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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Circulo Matarese / Robert Ludlum
O Circulo Matarese / Robert Ludlum

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Circulo Matarese

 

Somos os três reis magos

Trazendo presentes de muito longe...

Na esquina, um bando de meninos cantava em coro, batendo os pés e sacudindo os braços, as vozes jovens cortando o gélido ar noturno por entre os sons de buzinas estridentes, apitos de policiais e os acordes metálicos de músicas natalinas que jorravam de alto-falantes na fachada das lojas. A neve caía em abundância, atrapalhando o tráfego e fazendo com que os compradores de última hora protegessem os olhos com as mãos; ainda assim, eles conseguiam evitar os outros transeuntes, os carros engarrafados e os montes de neve enlameada. Nas ruas molhadas, os pneus derrapavam, os ônibus avançavam lentamente com contínuas e irritantes freadas, enquanto as sinetas dos papais-noéis uniformizados repetiam incessantemente seu fútil chamamento.

Cruzamos rios e charcos

Campos, montanhas e fontes...

 

                      

Um Cadillac escuro dobrou a esquina e acercou-se do coro. O chefe do bando, uma caricatura de um personagem de Dickens, aproximou-se do vidro do banco traseiro estendendo a mão enluvada numa súplica, a boca escancarada num agudo.

Seguindo uma estrela...

O motorista premiu a buzina num gesto irritado, mas no banco de trás o passageiro de meia-idade enfiou a mão no bolso do sobretudo e, tirando várias notas, apertou um botão. O vidro desceu e o homem grisalho colocou o dinheiro na mão estendida.

— Que Deus o abençoe, senhor — gritou o rapazinho. — Os meninos da Rua 50 agradecem. Feliz Natal, senhor!

Os votos teriam sido mais apreciados se não fossem acompanhados por um forte bafo de álcool.

— Feliz Natal — retribuiu o passageiro, apertando o botão que fechava o vidro para cortar o diálogo.

Houve um momentâneo desafogo no tráfego. O Cadillac arrancou para deter-se dez metros adiante numa freada brusca. As mãos do motorista crisparam-se em torno do volante num gesto que equivalia a uma praga.

— Calma, major — disse num tom amigo, mas incisivo, o passageiro grisalho. — Não adianta nada se irritar. Isso não nos fará chegar mais depressa ao nosso destino.

— O senhor tem razão, general — respondeu o outro com um respeito que estava longe de sentir.

Normalmente esse respeito existia, mas não naquela noite, não naquela viagem. Mesmo admitindo-se a auto-indulgência do general, era descaramento excessivo da parte dele exigir que seu assistente ficasse a seu dispor numa véspera de Natal. E ainda por cima para dirigir um carro alugado até Nova York a fim de que o general pudesse fazer uma farra. O major podia imaginar uma dúzia de circunstâncias que justificariam um plantão em tal noite, mas uma farra não era uma delas.

Um bordel. Deixando de lado os eufemismos, era isso o que aquela casa era. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas estava indo a um bordel na véspera de Natal! E terminada a farra seu assistente de confiança tinha de estar lá para recolher, recompor e velar os destroços durante a manhã seguinte em algum motel obscuro, assegurando-se, sem possibilidade de falha, de que ninguém descobrisse a identidade daquele lixo humano, ou o que andara fazendo. E lá pelo meio-dia do dia seguinte o chefe do Estado-Maior reassumiria sua postura marcial, daria suas ordens, e a noite anterior e a bacanal seriam esquecidas.

O major fizera aquela viagem muitas vezes nos últimos três anos — desde o dia em que o general assumira seu importantíssimo posto —, mas essas viagens sempre tinham ocorrido após períodos e intensa atividade do Pentágono ou momentos de crise nacional em que o general mostrava sua competência. Nunca, porém, numa noite como aquela. Nunca, merda, numa véspera de Natal! Se o general não se chamasse Anthony Blackburn, o major teria protestado, argumentando que até mesmo a família de um subordinado tinha certos direitos.

Mas nunca, em circunstância alguma, o major faria a mínima objeção tratando-se de Anthony “Maluco” Blackburn. O general tinha fugido de um campo de prisioneiros de guerra no Vietnã do Norte carregando nos ombros um jovem e combalido tenente, livrando-o das torturas e da morte por inanição, levando-o através da floresta até as linhas americanas. Alguns anos se haviam passado, o tenente era agora major, assistente-chefe do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

É lugar-comum um militar declarar que seguiria certo chefe até o inferno. Mas o major estivera mesmo no inferno com Anthony “Maluco” Blackburn e voltaria para lá ao primeiro estalar de dedos do general.

O carro chegou à Park Avenue e dobrou para o Norte. Ali o tráfego estava menos congestionado que no Centro, como convinha a um bairro rico. Tinham ainda umas quinze quadras a percorrer para chegar à casa de arenito pardo da Rua 71, entre a Park e a Madison Avenue.

O assistente do chefe do Estado-Maior estacionaria o Cadillac numa vaga reservada na frente da casa e o general saltaria e subiria os degraus que levavam à porta. O major não diria uma só palavra, mas uma sensação de tristeza o envolveria.

Ele esperaria até que uma mulher esbelta vestida de seda escura com um fio de brilhantes no pescoço abrisse a porta dali a umas três ou quatro horas, apagando e acendendo a luz da entrada: um sinal para que o major entrasse para apanhar seu passageiro.

 

— Olá, Tony! — a mulher atravessou o vestíbulo mal-iluminado e beijou o rosto do general. — Como vai, querido? — perguntou ela acariciando o colar de brilhantes.

— Estou muito tenso — retrucou Blackburn, tirando o sobretudo civil com a ajuda de uma criada uniformizada. Ele examinou a moça; era nova ali, e linda.

A mulher notou o olhar.

—_Ela ainda não está pronta para você, querido — disse ela, pegando-lhe o braço. — Talvez daqui a um mês ou dois... Venha, vamos ver se podemos dar um jeito nessa sua tensão. Temos tudo que é preciso: o melhor haxixe de Ancara, absinto da melhor destilaria de Marselha e a especialidade da casa, justamente o que o doutor lhe recomendaria. E, por falar nisso, como está sua esposa?

— Muito tensa, também — respondeu calmamente o general. — Pediu-me que lhe transmitisse os seus cumprimentos.

— Transmita-lhe meu carinho, querido.

Passando sob uma arcada, os dois entraram numa grande sala onde luzes suaves e coloridas provenientes de focos ocultos faziam girar lentamente pelo teto e pelas paredes círculos azuis, amarelos e cor de púrpura. A mulher tornou a falar.

— Temos uma nova garota que quero que experimente, junto com a sua parceira habitual. Ela parece feita sob medida para você, e seus antecedentes são perfeitos. Mal pude acreditar quando a entrevistei! Acabou de chegar de Atenas. Você vai adorá-la!

 

Anthony Blackburn estava deitado nu na grande cama de casal iluminada por minúsculos focos de luz embutidos no teto espelhado. Nuvens aromáticas de fumaça de haxixe pairavam na penumbra do quarto; sobre a mesa de cabeceira, viam-se três copos de absinto translúcido. O corpo do general estava coberto de riscos e círculos desenhados com tinta d’água. Setas fálicas apontavam para sua virilha, os testículos e o pênis ereto tinham sido pintados de vermelho, os peitorais pretos como os cabelos crespos que cobriam o tronco, os mamilos de azul e ligados por um traço branco. Imerso em gozo, ele gemia e virava a cabeça de um lado para o outro enquanto suas companheiras desincumbiam-se do seu mister.

As duas mulheres nuas massageavam o corpo que se contorcia espalhando gordos glóbulos de tinta com movimentos ritmados. Uma delas começou a esfregar os seios no rosto que gemia enquanto a outra acariciava os genitais do homem deixando escapar gritinhos abafados de fingido orgasmo à medida que o general se aproximava do clímax — calculadamente protelado por uma profissional que conhecia seu trabalho.

Debruçada sobre a cabeça do general, a garota de cabelos arruivados murmurava, ofegante, em grego, palavras incompreensíveis. Erguendo o busto um instante, ela apanhou um copo na mesa de cabeceira e, segurando a cabeça de Blackburn, despejou em seus lábios o líquido espesso. Sorriu para a companheira que piscou maliciosamente sem largar o pênis vermelho de Blackburn.

Foi então que a jovem grega se ergueu de mansinho e indicou com um gesto a porta do banheiro. Sua colega inclinou a cabeça em assentimento e, esticando o braço, enfiou dois dedos na boca do general para compensar a breve ausência da companheira. A jovem de cabelos arruivados atravessou o tapete negro e entrou no banheiro. Os gemidos de gozo do general ressoavam pelo quarto. Trinta segundos depois a grega retornou, mas não estava mais nua. Vestia agora um casaco de tweed escuro com um capuz que lhe cobria a cabeça. Ela hesitou um instante nas sombras e então dirigiu-se à janela mais próxima e afastou silenciosamente as pesadas cortinas.

O barulho de vidro quebrado encheu o quarto e uma lufada de vento fez dançar as cortinas. A silhueta de um homem atarracado de ombros largos delineou-se na janela. Ele quebrara a vidraça com um pontapé e agora pulava o peitoril, o rosto oculto por uma máscara de esquiar, na mão um revólver.

Na cama, a moça virou se, soltando um berro de pavor quando o assassino fez pontaria e apertou o gatilho. A explosão foi abafada por um silenciador e a jovem caiu sobre o corpo obscenamente pintado de Anthony Blackburn. O homem aproximou-se da cama e o general ergueu a cabeça, tentando ver por entre as névoas dos narcóticos, o olhar vago, a garganta emitindo sons guturais. O assassino atirou outra vez, e mais outra e outra mais. As balas penetraram no pescoço, no peito e na virilha de Blackburn, e o sangue jorrou, misturando-se às cores brilhantes.

O homem fez um gesto para a moça de Atenas. Ela correu para a porta, abriu-a e disse em grego:

— Ela deve estar lá embaixo na sala com as luzes móveis. Está usando um longo vermelho e tem um fio de brilhantes no pescoço. O homem assentiu e os dois saíram para o corredor.

 

Os pensamentos do major foram interrompidos por sons ines­perados que pareciam vir de algum lugar no interior da casa de arenito. Ele aguçou os ouvidos, a respiração suspensa.

Pareciam gritos... berros! Havia gente gritando!

Ele ergueu os olhos para a casa. A pesada porta escancarou-se e duas pessoas desceram correndo os degraus, um homem e uma mulher. Um espasmo de dor contraiu as entranhas do major: o homem enfiava um revólver no cinto.

Oh, meu Deus!

Metendo a mão debaixo do banco, o major pegou sua pistola automática do Exército e saltou do carro. Subiu correndo as escadas e entrou no vestíbulo. Lá dentro, a gritaria aumentara e pessoas corriam, umas subindo e outras descendo a escadaria.

Ele correu para a sala das alucinantes luzes coloridas. No chão, viu o corpo de uma mulher esbelta com um colar de brilhantes. Sua testa era uma massa sangrenta. Alguém a baleara.

Oh, Cristo!

— Onde está ele? — berrou o major.

— Lá em cima — gritou uma pequena encolhida a um canto.

Em pânico, o major virou-se e, correndo para a faustosa escadaria, subiu ao primeiro andar, galgando três degraus de cada vez. Em cima, passou por uma mesinha com um telefone, arquivando a imagem na mente, e seguiu pelo estreito corredor na direção do quarto. Conhecia-o bem; era sempre o mesmo. Ao chegar à porta, entrou.

Oh, Jesus!

A cena ultrapassava qualquer coisa que pudesse imaginar, qualquer horror que já tivesse presenciado. O general nu coberto de sangue e pinturas obscenas, a mulher morta caída sobre ele, o rosto enterrado em seus genitais. Era uma visão do inferno, se é que o inferno era tão horrível.

O major nunca soube como conseguiu recuperar seu autocontrole, mas a verdade é que conseguiu. Fechando a porta do quarto com um repelão, virou-se com a automática erguida. Uma mulher ia passando correndo na direção da escada. Ele agarrou-a e berrou:

— Faça o que eu mandar, ou eu a mato! Há um telefone logo ali. Você vai discar o número que vou lhe dar e vai repetir o que eu disser, sem mudar uma só palavra!

Empurrou-a violentamente na direção do telefone.

 

Taciturno, o presidente dos Estados Unidos atravessou o portal do Gabinete Oval e dirigiu-se à mesa. Em pé, à sua espera, um ao lado do outro, estavam o secretário de Estado e o diretor da CIA.

— Eu já conheço os fatos — disse o presidente em tom incisivo com seu modo de falar arrastado — e eles me dão náuseas. O que quero saber agora é o que vão fazer sobre o caso.

O diretor da CIA deu um passo à frente.

— O Departamento de Homicídios de Nova York está cooperando. Felizmente o assistente do general ficou na porta do quarto com um revólver e não deixou ninguém entrar até nosso pessoal chegar. Eles limparam a zorra da melhor forma possível.

— Diabos, não estou interessado no trabalho dos esteticistas — cortou o presidente. — O que estão achando do caso? lera sido um desses crimes de tarados tão comuns em Nova York ou algo bem diferente?

— Na minha opinião — falou o diretor —, algo bem diferente. Foi o que eu disse aqui ao Paul ontem à noite. Foi um crime planejado, e planejado com perfeição. Até no detalhe do assassinato da dona do estabelecimento, a única que poderia fornecer qualquer pista.

— E quem é o responsável?

— Na minha opinião, a KGB. As balas saíram de uma automática russa, a Graz-Burya, uma de suas armas favoritas.

— Devo protestar, Sr. Presidente — interveio o secretário de Estado. — Não posso concordar com a conclusão de Jim. A arma talvez não seja comum, mas pode ser adquirida na Europa. Passei uma hora com o embaixador soviético esta manhã. Estava tão abalado quanto eu. Não só negou a possibilidade de qualquer participação dos russos no crime, como argumentou com justiça que o seu Governo preferia o general Blackburn a qualquer outro que o pudesse substituir no momento.

— A KGB — replicou o diretor da CIA — com freqüência discorda do corpo diplomático do Kremlin.

— Como a CIA discorda do nosso? — sugeriu o secretário.

— Não mais do que seu próprio Departamento de Operações Consulares — retrucou o diretor.

— Chega — cortou o presidente. — Esta não é hora para um bate-boca. Eu quero os fatos. Fale você primeiro, Jim, desde que parece tão seguro de si mesmo. O que foi que descobriu?

— Muita coisa.

O diretor abriu uma pasta de papéis que trazia consigo e, retirando uma folha, colocou-a na frente do presidente.

— Fornecemos aos computadores todos os dados do crime de ontem à noite para que os cotejassem com os assassinatos cometidos pela KGB nos últimos quinze anos, comparando métodos de execução, padrões, locação, cronogramas e trabalho de equipe. Obtivemos três perfis — três dos mais esquivos e eficientes assassinos do Serviço Secreto Soviético. Todos os três, naturalmente, operam sob os disfarces de praxe, mas são assassinos. Estão relacionados por ordem decrescente de perícia.

O presidente examinou a lista tríplice.

 

Taleniekov, Vasili. Último posto conhecido: Setores do Sudoeste Soviético.

Krylovich, Nikolai. Último posto conhecido: Moscou, VKR.

Jukovski, Georgi. Último posto conhecido: Berlim Oci­dental. Adido à Embaixada.

 

Agitado, o secretário de Estado não conseguiu ficar em silêncio.

— Sr. Presidente, esse tipo de especulação baseada, na melhor das hipóteses, em suposições pode nos levar a uma confrontação perigosa. A hora não é apropriada.

— Espere aí, Paul — protestou o presidente. — Pedi os fatos e não ligo a mínima se a hora é boa ou não para uma confrontação. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas foi morto. Ele pode ter sido um bom filho da puta, um cara muito doente em sua vida particular, mas como militar era estupendo. Se foi assassinado pelos soviéticos, eu quero saber. — O chefe do Executivo largou a folha sobre a mesa e, olhando para o secretário, acrescentou: — Além disso, até que saibamos mais, não haverá nenhuma confrontação. Estou certo de que Jim manteve o assunto no mais absoluto sigilo.

— Naturalmente — disse o diretor da CIA.

Após uma rápida batida na porta do Gabinete Oval, o assistente-chefe de Comunicações entrou sem esperar uma ordem.

— Excelência, o premier russo está no telefone vermelho. Já confirmamos a procedência da chamada.

— Obrigado — disse o presidente, virando-se para um telefone às suas costas. — Sr. Premier? Aqui é o presidente.

As palavras russas vieram rápidas e incisivas e, na primeira pausa, um intérprete traduziu-as. Quando o intérprete russo se calou, uma outra voz, a de um tradutor americano, acrescentou simplesmente:

— Está correto, Sr. Presidente.

O diálogo a quatro vozes começou.

— Sr. Presidente — dissera o premier —, lamento muito a morte... o assassinato do general Anthony Blackburn. Ele era um excelente soldado e detestava a guerra — como eu e o senhor a detestamos. Ele era respeitado aqui, sua força e sua percepção dos problemas mundiais exerciam uma influência benéfica em nossos próprios líderes militares. Sentiremos dolorosamente sua falta.

— Obrigado, Sr. Premier. Nós também lamentamos sua morte. Seu assassinato. Ainda não encontramos uma explicação para o fato.

— É esse o motivo deste telefonema, Sr. Presidente. Certamente deve saber que os líderes responsáveis das Repúblicas Socialistas Soviéticas jamais desejariam a morte — o assassinato — do general Blackburn. Posso dizer que tal idéia mereceria o anátema. Espero estar me expressando claramente, Sr. Presidente.

— Está, Sr. Premier, e agradeço novamente. Mas, se me permite a pergunta, estaria o senhor aludindo à possibilidade da existência de uma cúpula irresponsável?

— Não há membros do seu Senado que defendem o bombardeio da Ucrânia? Não levamos em consideração tais idiotas, naturalmente.

— Então receio não ter compreendido integralmente as sutilezas de suas declarações.

— Vou ser mais claro. Seu Serviço Secreto apresentou-lhe três nomes acreditando que possam estar envolvidos na morte do general Blackburn. Esses homens são indivíduos responsáveis, sob o controle absoluto de seus superiores. Na verdade, um deles, Jukovski, foi hospitalizado na noite passada. Outro, Krylovich, está servindo na fronteira da Manchúria há onze meses. E o respeitado Taleniekov está aposentado, para todos os efeitos. Atualmente, encontra-se em Moscou.

O presidente olhou para o diretor da CIA.

— Obrigado por seus esclarecimentos, Sr. Premier, e pela precisão de suas informações. Compreendo que não lhe deve ter sido fácil fazer essa chamada. O Serviço Secreto Soviético está de parabéns.

— Assim como o seu. Hoje em dia há menos segredos. Alguns acham que isso é bom. Eu pesei as conseqüências e resolvi falar com o senhor. Não estamos envolvidos nisso, Sr. Presidente.

— Acredito em sua palavra. Gostaria de saber quem foi.

— Estou preocupado, Sr. Presidente. Acho que ambos deveríamos saber a resposta.

 

— Dimitri Yuri Yurievich! — chamou com bom humor a viçosa mulher aproximando-se da cama com a bandeja do desjejum. — Esta é sua primeira manhã de férias. O sol está derretendo a neve, e antes que passe o efeito da vodca que você bebeu as florestas estarão verdes outra vez!

O homem afundou o rosto no travesseiro e em seguida virou-se de barriga para cima e abriu os olhos, piscando ante a brancura imaculada do quarto. Através das grandes janelas da dacha, viu os galhos das árvores que pendiam sob o peso da neve.

Yurievich sorriu para a esposa, cofiando os pêlos do cavanhaque, agora já mais grisalho que castanho.

— Acho que me queimei na noite passada — disse ele.

— Quase! — replicou rindo a mulher. — Felizmente, nosso filho herdou meus instintos camponeses. Ao ver fogo, não perde tempo analisando as causas, apaga o incêndio!

— Lembro-me de que ele pulou em cima de mim.

— Pulou mesmo — a esposa de Yurievich colocou a bandeja sobre a cama e, afastando as pernas do marido para poder se sentar, colocou a mão em sua testa. — Você está meio quente, mas vai sobreviver, meu cossaco.

— Dê-me um cigarro.

— Só depois do suco de fruta. Você é um homem muito importante. Os armários estão cheios de latas de suco de fruta. Nosso tenente disse que provavelmente elas se destinam a apagar os cigarros que queimarem sua barba.

— A mentalidade dos soldados não progride nunca. Nós, cientistas, sabemos que as latas de suco são para serem misturadas à vodca. — Dimitri Yurievich sorriu outra vez sem qualquer constrangimento. — Quer me dar um cigarro, amor? Vou até deixar que você o acenda.

— Ora, você é impossível! — ela apanhou o maço na mesa de cabeceira, tirou um cigarro e colocou-o entre os lábios do marido. — Tome cuidado para prender a respiração quando eu acender o fósforo, senão iremos ambos pelos ares e eu serei enterrada em desonra por ter assassinado o maior físico nuclear da União Soviética.

— Meu trabalho viverá depois de mim. Que me enterrem fumando — disse Yurievich, tragando enquanto a esposa segurava o fósforo. — Como está nosso filho esta manhã?

— Está ótimo. Acordou cedo para lubrificar os rifles. Seus hóspedes estarão aqui dentro de uma ou duas horas. A caçada começará por volta do meio-dia.

— Meus Deus, tinha me esquecido disso — retrucou Yurievich, sentando-se na cama. — Tenho mesmo de ir?

— Vocês dois vão caçar juntos. Lembre-se de que disse a todos no jantar que a dupla pai e filho iria abater a maior presa.

Dimitri fez uma careta.

— Foi minha consciência que falou por todos aqueles anos no laboratório enquanto ele crescia sem minha assistência...

A esposa sorriu.

— Vai lhe fazer bem respirar ar fresco. Agora termine o cigarro, coma o desjejum e vista-se.

— Sabe de uma coisa? — disse Yurievich, pegando a mão da mulher. — Estou começando a achar que estou realmente em férias. Não me lembro mais de quando gozei as últimas.

— Pois eu não estou nem certa de que elas existiram. Acho que você é o homem mais dedicado ao trabalho que eu conheço.

Yurievich deu de ombros.

— O Exército foi muito amável oferecendo uma licença ao nosso filho.

— Foi ele quem pediu. Queria estar com você.

— Foi muito amável da parte dele também. Amo-o, mas mal o conheço.

— Todos dizem que é um ótimo oficial. Pode orgulhar-se dele.

— E eu me orgulho. Apenas não sei o que conversar com ele. Temos tão pouco em comum. A vodca facilitou as coisas ontem à noite.

— Vocês não se viam há quase dois anos.

— Eu tenho um trabalho a fazer, todos sabem disso.

— Você é um cientista — disse a esposa de Dimitri, apertando-lhe a mão. — Mas não hoje e nem nas próximas três semanas. Nada de laboratórios, nada de quadro-negros, nem de reuniões até a madrugada com estudantes e jovens professores ambiciosos que querem contar a todos que trabalharam com o grande Yurie­vich. — Ela tirou o cigarro dos lábios dele e apagou-o. — Agora coma e vista-se. Uma caçada de inverno vai lhe fazer muito bem.

— Minha querida mulher — protestou Dimitri, rindo-se. — É mais provável que isso seja a minha morte. Há vinte anos que não disparo um rifle!

 

O tenente Nikolai Yurievich abria caminho através da neve profunda na direção da velha construção que fora antigamente o estábulo da dacha. Virando-se, contemplou o imenso casarão de três andares. A construção brilhava ao sol da manhã, um pequeno palácio de alabastro edificado num vale estreito numa clareira aberta na floresta coberta pela neve.

Moscou tinha seu pai em alta conta. Todos queriam conhecer o grande Yurievich, o homem brilhante e irascível cujo nome bastava para aterrorizar os líderes do mundo ocidental. Dizia-se que Dimitri Yuri Yurievich sabia de cor as fórmulas de uma dúzia de armas estratégicas nucleares; que, deixado só num depósito de munições com um laboratório anexo, ele poderia fabricar uma bomba que destruiria a Grande Londres, toda Washington e grande parte de Pequim.

Esse era o famoso Yurievich, homem acima das críticas ou da disciplina, apesar de suas falas e atos por vezes descomedidos. Mas sua devoção ao país nunca fora questionada. Dimitri Yurievich era o quinto filho de camponeses pobres de Kourov. Não fosse o Estado, estaria atrás de uma mula nos campos de algum aristocrata. Não, ele era comunista até a ponta dos dedos, mas, como todo homem brilhante, não tinha paciência com burocratas. Ele protestara contra interferências e nunca fora censurado por isso.

Tal era o motivo por que tantos queriam conhecê-lo. Talvez na esperança, suspeitava Nikolai, de que só o fato de conhecerem o grande Yurievich transferisse para eles, de alguma forma, parte de sua imunidade.

O tenente sabia que aquela era a motivação de seus convidados do dia, e a idéia lhe era desagradável. Os homens que deviam estar agora a caminho da casa de campo de seu pai se tinham praticamente autoconvidado. Um deles era o comandante do batalhão de Nikolai em Vilnius, e o outro um homem que Nikolai nem ao menos conhecia. Um amigo moscovita de seu comandante, alguém que, segundo esse, poderia ser muito útil a um jovem tenente quando chegasse a hora das promoções. Nikolai não se deixara seduzir por tal promessa; ele era ele mesmo, em primeiro lugar, e, em segundo, o filho de seu pai. Abriria os próprios caminhos, isso era muito importante para ele. Mas não podia negar o pedido do comandante, pois se havia alguém no Exército soviético que merecia um “toque” de imunidade, esse alguém era o coronel Janek Drigorin.

Drigorin tinha se manifestado contra a corrupção que grassava no Corpo Especial de Oficiais. Os clubes de férias do mar Negro eram mantidos através de desvios de recursos, as cantinas viviam cheias de contrabando, as mulheres eram trazidas em aviões militares contra todos os regulamentos.

Moscou colocara-o no ostracismo, enviando-o para Vilnius, a fim de apodrecer na mediocridade. Enquanto Nikolai Yurievich era um jovem tenente de vinte e um anos ocupando um cargo de responsabilidade numa guarnição secundária, Drigorin era um militar de reconhecido talento relegado ao esquecimento num pequeno comando. Se tal homem queria passar um dia com seu pai, Nikolai não podia protestar. E depois o coronel era uma pessoa divertidíssima. Mas ele gostaria de saber quem era o outro homem.

Nikolai chegou aos estábulos e abriu a larga porta que dava para as baias. As dobradiças haviam sido lubrificadas, a porta girou sem ruído. Ele correu os cubículos imaculadamente limpos que no passado tinham abrigado os mais finos ginetes e tentou imaginar como fora aquela Rússia. Quase podia ouvir os relinchos dos garanhões de olhos de fogo, o arranhar impaciente dos cascos, o bufido dos caçadores ansiosos para partir em direção aos campos.

Aquela Rússia devia ter sido digna de se ver. Se você não estivesse atrás de uma mula.

Ele chegou ao fim do longo corredor de baias onde havia outra porta larga. Abriu-a e saiu para a neve. Ao longe, algo atraiu-lhe a atenção, um detalhe incongruente.

Rastros partiam do canto do silo e dirigiam-se para a floresta Talvez pegadas humanas. Entretanto, os dois criados enviados por Moscou para a dacha ainda não tinham saído do edifício principal E os caseiros permaneciam em suas cabanas, junto à estrada.

Por outro lado, raciocinou Nikolai, o calor do sol matinal podia ter derretido o rebordo de quaisquer impressões na neve, e a luz ofuscante pregava peças à vista. As marcas eram sem dúvida os rastros de algum animal à procura de comida. O tenente sorriu ao imaginar um animal da floresta procurando cereais ali, naquela cuidada relíquia que fora o silo da grande dacha. Os animais não tinham mudado, mas a Rússia sim.

Nikolai olhou o relógio. Era hora de voltar para casa. Dentro em breve, os hóspedes deveriam chegar.

 

Tudo estava correndo muito bem. Nikolai mal podia acreditar. Não houvera nenhum constrangimento, graças, em grande parte, ao seu pai e ao homem de Moscou. A principio, o coronel Drigorin parecera pouco à vontade — o comandante que impusera sua presença ao subordinado bem-relacionado —, mas Vuri Yurievich acabou logo com aquilo recebendo o chefe do filho como qualquer pai ansioso — ainda que célebre — e apenas interessado em favorecer a carreira do filho. Nikolai não pôde deixar de achar graça; a atitude do pai era óbvia demais. A vodca foi servida com suco de frutas e café, e Nikolai ficou atento à possibilidade de um cigarro incendiário.

A grande e deliciosa surpresa foi o amigo moscovita do coronel, um homem chamado Brunov, alto funcionário do Partido trabalhando no Planejamento Militar-Industrial. Não só Brunov e o pai de Nikolai tinham amigos comuns, como logo se tornou evidente que compartilhavam da mesma atitude irreverente em relação à maior parte da burocracia governamental — que abrangia, naturalmente, muitos desses amigos mútuos. O riso não tardou a explodir, cada rebelde tentando ultrapassar o outro com comentários mordazes sobre aquele comissário de cabeça de asno ou esse economista de bolsos furados.

— Nós somos muito maldosos, Brunov! — rugiu o pai de Nikolai, os olhos risonhos.

— É verdade, Yurievich — concordou o homem de Moscou. — Mas é uma pena que tenhamos tanta razão.

— Olhe, tome cuidado, estamos na companhia de militares. Eles vão nos delatar!

— Ora, eu reterei os salários deles, e você desenhará uma bomba que explode antes do tempo.

Dimitri Yurievich parou de rir por um breve instante.

— Gostaria que não houvesse necessidade de bombas eficientes.

— E eu que não houvesse necessidade de folhas de pagamento tão grandes.

— Mudando de assunto — disse Yurievich —, os caseiros dizem que a caça aqui é excepcional. Meu filho prometeu tomar conta de mim, e eu prometi trazer de volta o maior troféu. Vamos, o que quer que lhes falte encontrarão aqui. Botas, peles... vodca.

— Não com um rifle na mão, papai.

— Por Deus, você lhe ensinou mesmo alguma coisa — exclamou Yurievich, sorrindo para o coronel. — A propósito, cavalheiros, não me falem em partir hoje. Vão passar a noite aqui, naturalmente. Moscou foi generosa. Temos assados e legumes frescos vindos só Deus sabe de onde.

— E muitas garrafas de vodca, espero.

— Garrafas, não, Brunov. Tonéis! Ah, estou vendo em seus olhos que vão ficar.

— Eu ficarei — disse o homem de Moscou.

 

Os disparos ecoaram pela floresta fazendo vibrar os tímpanos dos dois homens. Com pios assustados, as aves hibernais levantaram vôo. Vozes excitadas chegaram aos ouvidos de Nikolai, mas a distância as tornara incompreensíveis. Ele virou-se para o pai.

— Eles devem tocar o apito dentro de sessenta segundos se tiverem atingido alguma coisa — disse ele, o rifle apontando para a neve.

— Isso é um desaforo! — exclamou Yurievich, fingindo raiva. — Os caseiros me juraram — às escondidas, certamente — que toda a caça estava concentrada nesta parte do bosque, perto do lago. Do lado de lá não havia nada! Foi por isso que insisti em que fossem para lá...

— Você é um velho patife — replicou o filho com os olhos fitos na arma do pai. — Seu pino de segurança está destravado. Por quê?

— Pensei ter ouvido um ruído há pouco. Queria estar preparado.

— Com todo o respeito, meu pai, por favor, trave o pino outra vez. Espere até que seus olhos confirmem seus ouvidos antes de soltá-lo novamente.

— Com todo o respeito, meu caro oficial, então eu teria de fazer muita coisa ao mesmo tempo — disse Yurievich, mas viu a expressão preocupada do filho. — Pensando bem, provavelmente você tem razão. Eu posso cair e o rifle disparar. Eu sei disso.

— Obrigado — disse o tenente, virando-se de repente.

Seu pai estava certo. Ouvira um ruído atrás de si. O farfalhar de um ramo, ou o estalar de um galho. Ele destravou o pino de segurança do rifle.

— O que foi? — perguntou Dimitri Yurievich, um brilho de excitação no olhar.

— Psss — sussurrou Nikolai, examinando as trilhas tortuosas cobertas de neve que os cercavam. Nada vendo, tornou a travar o pino de segurança.

— Então você também ouviu? — perguntou Dimitri. — Então não foram apenas meus ouvidos cinqüentões.

— O peso excessivo da neve deve estar estalando os ramos. Foi isso que ouvimos — sugeriu o filho.

— Bem, pelo menos um apito é que não foi — retrucou Yurievich. — Eles não acertaram merda nenhuma.

Mais três disparos explodiram à distância.

— Eles viram alguma coisa — disse o tenente. — Talvez agora ouçamos o apito...

De repente eles ouviram. Um som estridente. Mas não era o apito. Em vez dele, um grito de pânico prolongado, fraco, mas claro. Um grito terrível. Logo seguido de outro, mais histérico.

— Meu Deus, o que aconteceu? — Yurievich agarrou o braço do filho.

— Eu não...

A resposta foi cortada por um terceiro grito, lancinante e terrível.

— Fique aqui! — gritou o tenente para o pai. — Eu vou até lá!

— Eu vou atrás — retrucou Yurievich. — Vá depressa, mas tome cuidado!

Nikolai correu pela neve na direção dos gritos. Agora eles enchiam o bosque, menos estridentes, porém mais dolorosos pela perda de força. O oficial usou o rifle para abrir caminho por entre a densa ramagem, erguendo nuvens de neve. Suas pernas doíam, o ar gelado estourava-lhe os pulmões, lágrimas de fadiga obscureciam-lhe a vista.

Primeiro, ouviu os roncos, depois viu o que mais temia, o que nenhum caçador jamais queria ver.

Um enorme e enraivecido urso preto, cuja cabeça aterrorizante era uma massa sangrenta, voltava sua fúria vingativa contra os que haviam causado seus ferimentos, dilacerando, rasgando, estraçalhando o inimigo.

Nikolai ergueu o rifle e atirou até acabarem as balas.

O gigantesco urso caiu. O oficial correu para os dois homens. Ao vê-los, perdeu o resto de fôlego que lhe sobrara.

O homem de Moscou estava morto, a garganta rasgada, a ensangüentada cabeça quase decepada. A vida de Drigorin estava por um fio, e se ele não morresse dentro de segundos Nikolai sabia que teria de recarregar a arma e terminar a obra da fera. O coronel não tinha mais rosto. Em seu lugar, uma visão de horror que ficou impressa a fogo na mente do oficial.

Mas como? Como aquilo podia ter acontecido?

Foi então que a vista do tenente bateu no braço direito de Drigorin e o choque foi além de qualquer coisa que pudesse imaginar.

O braço do coronel fora quase decepado na altura do cotovelo e o método cirúrgico era evidente: balas de alto calibre.

Alguém lhe cortara qualquer possibilidade de defesa!

Nikolai correu para o cadáver de Brunov, abaixou-se e virou o corpo. O braço direito de Brunov estava intacto, mas a mão esquerda fora despedaçada a bala, restando apenas o contorno retorcido e ensangüentado da palma, os dedos reduzidos a meros fios de ossos. A mão esquerda. Nikolai Yurievich lembrou-se do café da manhã, do suco de fruta com vodca, dos cigarros.

O homem de Moscou era canhoto.

Brunov e Drigorin haviam sido inutilizados por alguém com um rifle, alguém que sabia o que iriam encontrar em seu caminho.

Nikolai ergueu-se com cautela, o soldado que havia nele alerta, à procura de um inimigo oculto. E aquele inimigo ele queria encontrar e matar, com todas as forças do seu coração. Sua lembrança voltou às pegadas que vira atrás dos estábulos. Não eram rastros de um animal faminto — embora não deixassem de ser de um animal —, eram as pegadas de um assassino cruel.

Quem seria? E, acima de tudo, por quê!

O tenente viu um reflexo luminoso. O sol batendo numa arma.

Ele deu um passo para a direita e então, abruptamente, girou para a esquerda e atirou-se no chão, rolando para trás do tronco de um carvalho. Retirando a cartucheira vazia do seu rifle, substituiu-a por uma carregada e, semicerrando as pálpebras, procurou a origem da luz. Encontrou-a no alto de um pinheiro.

A uns quinze metros do chão, um vulto enganchado em dois ramos segurava um rifle de mira telescópica. O assassino vestia um macacão branco de inverno com um capuz de peles brancas, o rosto oculto por trás de enormes óculos negros.

Nikolai pensou que ia vomitar de raiva è revolta. O homem sorria e o tenente sabia que o sorriso era para ele.

Encolerizado, ele ergueu o rifle. Uma explosão de neve cegou-o acompanhada pelo estampido de um rifle de alta potência. Um segundo disparo seguiu o primeiro. A bala passou por cima de sua cabeça e perdeu-se na mata. Ele recuou para a proteção do tronco.

Outro disparo, bem próximo, e não do rifle do assassino no pinheiro.

— Nikolai!

Uma explosão de ódio toldou-lhe a mente. O grito viera do seu pai.

— Nikolai!

Outro tiro. O oficial ergueu-se num pulo e, disparando o rifle contra o pinheiro, correu pela neve.

Um dardo gelado cravou-se em seu peito. Ele não viu nem ouviu mais nada até sentir a neve chocar-se contra o seu rosto.

 

O premier da União Soviética pousou as mãos sobre a longa mesa sob a janela que dava para os telhados do Kremlin. Inclinando a cabeça, examinou as fotografias, o largo rosto camponês espelhando exaustão, os olhos mostrando raiva e choque.

— É horrível — sussurrou. — Homens não deviam morrer dessa forma terrível. Pelo menos Yurievich foi poupado — não da morte, mas de um fim desses.

Do outro lado da sala, sentados a uma outra mesa, dois homens e uma mulher, as fisionomias severas, olhavam para o premier. Diante de cada um se via uma pasta marrom e era evidente que os três estavam ansiosos por prosseguir a reunião. Mas ninguém ousava apressar o premier ou interromper-lhe as reflexões — seu , gênio explosivo poderia vir à tona com tais demonstrações de impaciência. O cérebro do premier era mais rápido que o de qualquer um dos presentes, mas suas deliberações eram lentas, os problemas examinados em toda a sua complexidade. Ele era um sobrevivente num mundo em que só os mais astutos — e sutis — sobreviviam.

O medo era uma arma que ele manejava com extraordinária perícia.

Levantando-se, empurrou as fotografias com uma expressão de repulsa e voltou à mesa de reunião.

— Todas as estações nucleares estão em alerta, nossos submarinos dirigem-se aos pontos de ataque — declarou ele. — Quero que essa informação seja transmitida a todas as embaixadas. Utilizem códigos já decifrados por Washington.

Um dos homens da mesa inclinou-se para a frente. Era um diplomata, mais velho que o premier e obviamente um companheiro de longa data, um aliado que se podia expressar mais livremente que os outros dois.

— O senhor está assumindo riscos que considero excessivos. Não podemos ter certeza de como irão reagir. O embaixador americano está profundamente chocado. Eu o conheço bem, ele não estava fingindo.

— Então não tinha sido informado — afirmou sumariamente o segundo homem. — Nós da VKR não temos dúvida alguma. As balas e os cartuchos foram identificados: sete milímetros, preparados para implodir, com ranhuras causadas por uma Browning Magnum tipo IV. O que mais é preciso?

— Bem mais que isso. Esse tipo de arma não é assim tão difícil de se obter e duvido que um assassino americano deixasse seu cartão de visitas.

— Não se essa fosse a arma com que estivesse habituado a trabalhar. Temos todo o quadro. — O homem da VKR virou-se para a mulher de meia-idade cujo rosto parecia talhado em granito. — Exponha os detalhes por favor, camarada diretora.

A mulher abriu sua pasta e passou os olhos pela primeira página antes de falar. Virando a folha, dirigiu-se ao premier, evitando olhar para o diplomata.

— Como sabe, o serviço foi executado por dois assassinos, provavelmente dois homens. Um deles é sem dúvida um atirador de extrema perícia e perfeita coordenação, e o outro alguém que, além de certamente também possuir essas qualificações, é um especialista em espionagem eletrônica. Encontramos vestígios de sua atuação nos estábulos: marcas de sucção, pegadas em pontos estratégicos ideais para observação — o que nos leva a crer que toda a conversação na dacha foi interceptada.

— Parece trabalho de peritos da CIA, camarada — interrompeu o premier.

— Ou das Operações Consulares, Excelência — retrucou a mulher. — É importante não esquecermos isso.

— É verdade — concordou o premier. — O pequeno bando de “negociadores” do Departamento de Estado.

— E por que não dos Tao-pans chineses? — sugeriu com convicção o diplomata. — Eles estão entre os assassinos mais eficientes do mundo. E Yurievich constituía uma ameaça bem maior para os chineses que para os demais.

— Suas características fisionômicas os eliminam. Pequim sabe que, se apanhássemos um deles, mesmo que se suicidasse com cianeto, seria o seu fim — replicou o homem da VKR.

— Vamos voltar ao que descobriram — atalhou o premier.

A mulher continuou.

— Fornecemos todos os dados aos computadores da KGB concentrando-nos nos agentes secretos americanos que sabemos estarem infiltrados aqui, e que, além de serem reconhecidos assassinos, falam fluentemente o russo. Chegamos a quatro nomes. Aqui estão eles, Sr. Premier. Três são da CIA e um das Operações Consulares do Departamento de Estado.

Ela passou a folha ao homem da VKR, que por sua vez se levantou e levou-a ao premier.

Ele estudou os três nomes.

 

Scofield, Brandon Alan. Departamento de Estado, Operações Consulares. Responsável por assassinatos em Praga, Atenas, Paris, Munique. Suspeita-se de que já tenha operado na própria Moscou. Envolvido em mais de vinte fugas para o Ocidente.

Randolph, David. CIA, Cobertura: Diretor de Importação da Dynamax Corporation, filial de Berlim Ociden­tal. Perito em sabotagem. Responsável por explosões de hidrelétricas em Kazan e Tagil.

Saltzman, George Robert. CIA. Mensageiro e assassino em Vientiane (Indochina). Cobertura: Funcionário da AID durante seis anos. Especialista em assuntos orientais. Visto há cinco semanas em Tashkent. Cobertura: imigrante australiano, diretor de vendas da Perth Radar-Corporation.

Bergstrom, Edward. CIA ...

 

— Sr. Premier — interrompeu o homem da VKR —, minha colega pretendia explicar que os nomes estão em ordem decrescente de importância. Em nossa opinião, as características da emboscada e da execução de Dimitri Yurievich apontam inequivocamente para o primeiro homem da lista.

— Esse tal de Scofield?

— Sim, Sr. Premier. Ele desapareceu um mês atrás em Marselha. Já causou mais prejuízos e atrapalhou mais operações do que qualquer outro agente que os Estados Unidos tenham utilizado desde a guerra.

— É mesmo?

— Sim, senhor. — O homem da VKR hesitou, mas depois continuou como que a contragosto: — A mulher dele foi morta há dez anos em Berlim Oriental. Desde então ele vem agindo como um verdadeiro louco furioso.

— Em Berlim Oriental!

— Numa emboscada. Pela KGB.

Um telefone tocou na mesa do premier. Ele atravessou a sala com rapidez e pegou o fone.

Era o presidente dos Estados Unidos. Os intérpretes estavam a postos e começaram seu trabalho.

— Nós lamentamos profundamente a morte... o pavoroso assassinato de um grande cientista, Sr. Premier. Assim como o fim horrível de seus amigos.

— Apreciamos suas palavras, Sr. Presidente, mas, como deve saber, essas mortes trágicas foram premeditadas. Agradeço seu interesse, mas não posso deixar de pensar que talvez seja um alívio para seu país saber que a União Soviética perdeu seu mais importante físico nuclear.

— Isso não é verdade, senhor. O brilho da inteligência desse homem transcendia fronteiras e interesses nacionais. Ele era um homem universal.

— Mas que preferiu ser parte de um só povo, não é mesmo? Devo dizer-lhe com franqueza que minhas responsabilidades me forçam a olhar para os flancos.

— Então, com seu perdão, Sr. Premier, devo dizer que está procurando fantasmas.

— Talvez já os tenhamos encontrado, Sr. Presidente. Descobrimos provas extremamente perturbadoras. A tal ponto que eu...

— Perdoe-me novamente — interrompeu o presidente dos Estados Unidos. — Foram esses indícios que me induziram a telefonar, apesar de minha natural relutância em fazê-lo. A KGB cometeu um grande erro. Quatro erros, para ser mais preciso.

— Quatro?

— Sim, Sr. Premier. Especificamente, os nomes de Scofield, Randolph, Saltzman e Bergstrom. Nenhum deles esteve envolvido nisso, Sr. Premier.

— O senhor me assombra, Sr. Presidente.

— Não mais do que o senhor me assombrou na semana passada. Há menos segredos hoje em dia, lembra-se?

— Palavras são gratuitas, e os indícios muito fortes.

— Era essa mesmo a intenção. Deixe-me esclarecer: dois dos três homens da CIA estão fora de ação. Randolph e Bergstrom encontram-se no momento em suas mesas em Washington. O Sr. Saltzman foi hospitalizado em Tashkent. O diagnóstico é câncer.

O presidente fez uma pausa.

— Isso nos deixa apenas um nome, não é? — disse o premier. — O agente das suas torpes Operações Consulares, tão inócuas nos círculos diplomáticos, mas tão ignóbeis em ação.

— Estou chegando ao trecho mais difícil dos esclarecimentos. Creia, é inconcebível que o Sr. Scofield esteja envolvido. Para ser franco, suas chances de envolvimento são ainda menores que as dos outros. Posso dizer-lhe isso porque agora já não tem mais importância.

— Palavras são gratuitas...

— Então devo ser mais explícito. Durante os últimos anos, vínhamos mantendo um dossiê meticuloso sobre o Dr. Yurievich, acrescido de novas informações quase todos os meses. Segundo certos círculos, chegara a hora de oferecermos a Dimitri Yurievich opções viáveis.

— O quê?

— Isso mesmo, Sr. Premier. Defecção. Os dois convidados que estavam na dacha iam entrar em contato com o Dr. Yurievich defendendo nossos interesses. Scofield era o agente de controle dos dois. Ele era o responsável pela operação.

Os olhos do premier da União Soviética fixaram-se na pilha de fotografias que estava sobre a mesa. Lentamente, ele disse:

— Obrigado pela franqueza.

— Procure outros inimigos.

— Eu o farei.

— Ambos devemos fazê-lo.

 

O sol da tarde parecia uma bola de fogo. Seus raios ofuscantes ricocheteavam nas águas oscilantes do canal. A multidão apressada que se dirigia para o Oeste ao longo da Kalverstraat, em Amsterdam, semicerrava as pálpebras, grata pelo sol de fevereiro e pela brisa que acompanhava as miríades de cursos d’água que se originavam no rio Amstel. Com freqüência, fevereiro significava névoa, chuva e umidade, o que não acontecia naquele dia, e os habitantes da cidade portuária mais importante do mar do Norte estavam eufóricos ante o ar luminoso e estimulante aquecido pelo sol.

Um homem, entretanto, não sentia qualquer espécie de euforia. Nem era nativo do lugar, nem estava nas ruas. Seu nome era Brandon Alan Scofield, adido especial das Operações Consulares do Departamento de Estado norte-americano. Encontrava-se numa janela de quarto andar, acima do canal e da Kalverstraat, observando a multidão através de binóculos focalizados numa área da calçada onde uma cabina telefônica de vidro refletia os fortes raios do sol. A luminosidade fazia-o semicerrar os olhos, mas não havia energia em seu rosto pálido. Seus traços marcantes estavam tensos e contraídos sob a cabeleira castanha descuidadamente penteada, entremeada de fios grisalhos.

Maldizendo o sol e a movimentação da rua, Scofield reajustava as lentes. Seus olhos cansados ostentavam fundas olheiras, resultado de um déficit de sono cujas múltiplas causas preferia esquecer. Tinha um trabalho a fazer e era um profissional; sua concentração não podia oscilar.

Havia mais dois homens na sala. Junto à mesa estava sentado um técnico meio calvo, ao lado de um telefone ligado por fios a um gravador, o fone fora do gancho. Em algum lugar sob a rua, algumas pequenas modificações tinham sido feitas numa central telefônica — a única cooperação oferecida pela polícia de Amsterdam, que assim saldava uma antiga dívida para com o adido especial do Departamento de Estado. O terceiro homem era mais jovem que os outros dois, com pouco mais de trinta anos, e em seu rosto não havia nenhuma deficiência de energia, nem seus olhos traíam exaustão. Se acaso sua fisionomia estava tensa, era a tensão da fascinação — ele era um jovem ansioso para abater a caça. Sua arma era uma câmara cinematográfica montada num tripé com uma lente telescópica e um filme de alta sensibilidade. Teria preferido outro tipo de arma.

As lentes dos binóculos de Scofield colheram uma figura lá embaixo na rua. O homem hesitou junto à cabina telefônica e naquele breve instante foi empurrado pela multidão para a beira da calçada, em frente ao vidro batido pelo sol, obstruindo a luminosidade com seu corpo, um alvo perfeito cercado por um halo de luz. Seria muito mais cômodo para todos os interessados se aquele alvo pudesse ser abatido onde se encontrava agora. Um rifle de alta potência calibrado para sessenta metros faria o serviço, o homem da janela apertando o gatilho como em tantas outras vezes. Mas não se cogitava de comodidade. Uma lição precisava ser dada, outra aprendida, e esse adestramento dependia da confluência de fatores vitais. Os que iam ensinar e os que deviam aprender tinham de compreender os respectivos papéis. De outro modo, a execução não teria sentido.

A figura na rua era um homem idoso, com mais de sessenta anos. Trajava roupas amarrotadas, um grosso sobretudo para cortar a friagem, um chapéu muito usado caído sobre a testa. A barba despontava no rosto assustado. Tratava-se de um fugitivo, e para o americano que o observava através dos binóculos nada havia de mais terrível ou deprimente que um velho apavorado. Exceto, talvez, uma velha. Ele já vira ambas as coisas. E com uma freqüência que preferia esquecer.

Scofield olhou o relógio.

— Vá em frente — disse para o técnico na mesa e, virando-se para o homem mais jovem, perguntou: — Você está pronto?

— Estou — foi a curta resposta. — Estou focalizando aquele filho da puta. Washington estava certo. Você acaba de provar.

— Ainda não estou muito certo disso. Gostaria de estar. Quando ele entrar na cabina, focalize os lábios dele.

— Certo.

O técnico discou os números combinados e apertou os botões do gravador. Erguendo-se rapidamente de sua cadeira, entregou a Scofield um jogo de fones de ouvido com um bocal.

— Está tocando — disse ele.

— Eu sei. Ele está olhando para o vidro. Não me parece com muita vontade de ouvir o toque da campainha. E isso me incomoda.

— Mexa-se, seu filho da puta! — exclamou o homem da câmara.

— Ele já vai se mexer — disse Scofield, segurando com firmeza os binóculos e o jogo de fones. — Está apavorado. Cada segundo para ele é uma eternidade e eu não sei por quê... Lá vai, ele está abrindo a porta. Fiquem quietos. — Sempre olhando pelos binóculos, Scofield aguçou os ouvidos e depois falou em voz baixa no bocal: — Dobfi dyen, priyatel...

O diálogo travado inteiramente em russo durou dezoito segundos.

— Dosvidaniya — disse Scofield, e acrescentou: — zavtra nochyn. Na mostye.

Ele continuou com o fone no ouvido observando o homem assustado lá embaixo. Quando o alvo desapareceu na multidão, o outro desligou a câmara e o adido especial largou os binóculos sobre a mesa, entregando os fones ao técnico.

— Você conseguiu gravar tudo? — perguntou ele.

— E bem claro — disse o operador calvo com um gesto de assentimento verificando os mostradores. — Dá para se tirar uma impressão vocal.

— E você?—Scofield virou-se para o homem da câmara.

— Se eu entendesse melhor a língua, poderia até ler os lábios dele.

— Ótimo. Outros o farão e entenderão. — Scofield enfiou a mão no bolso, tirou uma caderneta de couro e começou a escrever. _Quero que você leve a gravação e o filme para a Embaixada. Mande revelar imediatamente o filme e providencie uma cópia dos dois. Com redução. Aqui estão as especificações.

— Sinto muito, Bray — respondeu o técnico olhando para Scofield enquanto enrolava o fio do telefone. — Mas sabe que tenho ordens de me manter longe da sede.

— Estava falando com Harry — retrucou Scofield virando a cabeça para o homem mais jovem e tirando a página do caderninho de notas. — Quando as reduções estiverem prontas, faça com que as coloquem juntas num estojo e mande impermeabilizá-lo para que resista a uma semana dentro d’água.

— Bray — falou o homem mais jovem pegando a folha de papel —, consegui entender uma em cada três palavras do que você disse no telefone.

— Você está progredindo — retrucou Scofield voltando à janela e aos binóculos. — Quando estiver entendendo uma em cada duas, vou recomendá-lo para uma promoção.

— Aquele homem queria um encontro esta noite, e você recusou — continuou Harry.

— É verdade — admitiu Scofield levando os binóculos aos olhos e focalizando a rua.

— Nossas instruções eram para pegá-lo o mais cedo possível. A mensagem cifrada era clara. Não há tempo a perder.

— Tempo é coisa muito relativa, não é? Quando aquele velho ouviu o telefone tocar, cada segundo lhe pareceu uma eternidade de agonia. Para nós, uma hora pode parecer um dia. Para Washington, merda, um dia equivale a um ano.

— Isso não é resposta — protestou Harry olhando o bilhete. — Nós podemos reduzir e embalar isso aqui nuns quarenta e cinco minutos. Podíamos fazer contato esta noite. Por que não?

— O tempo está péssimo — replicou Scofield por trás dos binóculos.

— O tempo está perfeito. Não há uma única nuvem no céu.

— É justamente por isso que está péssimo. Nas noites claras os canais ficam cheios de gente passeando. Quando o tempo está ruim, ficam vazios. Há previsão de chuva para amanhã.

— Isso não faz sentido. Em dez segundos podemos bloquear uma ponte e atirar o cadáver dele n’água.

— Mande esse palhaço calar a boca, Bray! — berrou o técnico na mesa.

— Você ouviu — disse Scofield focalizando as agulhas dos telhados vizinhos. — Acabou de perder aquela promoção. Sua ultrajante declaração de que pretende infligir danos corporais ao alvo melindrou nosso amigo aí da CIA.

O homem mais jovem fez uma careta. A censura fora merecida.

— Desculpe. Mas ainda acho que não faz sentido. A mensagem em código era um alerta urgentíssimo. Devíamos pegá-lo esta noite.

Scofield baixou os binóculos e olhou para Harry.

— Eu vou lhe dizer o que é que faz sentido — disse. — É algo mais do que aquelas frases idiotas que alguém descobriu numa caixa de cereais. Aquele homem lá embaixo estava aterrorizado. Há dias que ele não dorme. Está a ponto de ter um colapso e eu gostaria de saber por quê.

— Pode haver uma dúzia de razões — replicou o outro. — Ele é velho e inexperiente. Talvez ache que estamos em sua pista, que está prestes a ser preso. Mas que diferença isso faz?

— A vida de um homem. Apenas isso.

— Ora, Bray, nem me parece coisa sua. Ele é um réptil soviético, um agente duplo.

— Quero ter certeza.

— E eu quero sair daqui — atalhou o técnico entregando a Scofield um rolo de fita e pegando sua aparelhagem. — Diga a esse palhaço aí que ele nunca me viu.

— Obrigado, Sr. Sem-Nome. Fico lhe devendo um favor.

O homem da CIA saiu inclinando a cabeça na direção de Scofield e evitando qualquer contato com seu colega.

— Aqui não esteve mais nenhum gaiato além de nós dois, Harry — falou Scofield depois que a porta se fechou. — Não se esqueça disso.

— Ah, ele não passa de um filho da puta nojento!

— Que é capaz de instalar dispositivos de escuta até nos banheiros da Casa Branca, se é que já não o fez — replicou Bray jogando o rolo de fita para Harry. — Leve essas provas para a Embaixada. Leve apenas o filme e deixe a câmara aí.

Mas ele não ia se livrar de Harry assim tão facilmente. O outro apanhou o rolo de fita, mas não deu nenhum passo em direção à câmara.

— Eu também estou nisso. A mensagem cifrada era dirigida tanto a mim quanto a você. Quero ter as respostas para o caso de me fazerem perguntas, se acontecer qualquer coisa entre hoje e amanhã.

— Se Washington estiver certo, nada acontecerá. Eu já lhe disse que quero ter certeza.

— De que mais você precisa? O alvo pensa que acabou de fazer contato com a KGB de Amsterdam! Você mesmo armou a armadilha. Você acabou de provar!

Scofield fitou o colega por um momento e então deu-lhe as costas e voltou à janela.

— Quer saber de uma coisa, Harry? Todo o treinamento por que você passou, tudo o que possa vir a ouvir, todas as experiências que viver, nada disso pode tomar o lugar da regra número um. — Bray pegou os binóculos e focalizou um ponto distante acima da linha do horizonte. — Aprenda a pensar como o inimigo pensa. Não como você gostaria que ele pensasse, mas como ele lealmente pensa. Não é nada fácil. Você pode se enganar. Isso, sim, é fácil.

Exasperado, o homem mais jovem explodiu:

— Pelo amor de Deus, o que tem isso a ver com o resto? Nós obtivemos a prova!

— Será? Segundo você, nosso desertor fez contato com sua gente. Nosso pombinho acaba de descobrir o caminho de volta para a Mamãe Rússia. Agora está seguro, vai retornar ao ninho.

— Sim, é isso mesmo que ele pensa!

— Então por que é que ele não está feliz? — perguntou Bray Scofield virando os binóculos para o canal.

 

A névoa e a chuva cumpriam as promessas invernais. O céu noturno de Amsterdam era uma manta impenetrável, as fímbrias pontilhadas pelas luzes trêmulas da cidade. Não havia transeuntes na ponte, nem barcos no canal. Bolsões de névoa revoluteavam sobre as ruas, sinal de que os ventos do mar do Norte corriam livremente para o Sul. Eram três horas da madrugada.

Scofield encostou-se ao gradil de ferro no acesso Oeste da antiga ponte de pedra. A mão esquerda segurava um pequeno rádio transistorizado, não um transmissor, apenas um receptor de sinais. Os dedos da mão direita enfiada no bolso da capa de chuva tocavam o cano de uma automática calibre 22, pouco maior que uma pistola comum e com um estampido bem mais abafado. Para pequenas distâncias, era uma arma bastante eficiente. Atirava com rapidez e precisão apreciáveis e mal era ouvida entre os ruídos noturnos.

A duzentos metros dali,. o jovem colega de Bray escondia-se num portal da Sarphatistraat. O alvo teria de passar por ele ao dirigir-se à ponte — não havia outro caminho. Quando visse o velho russo, Harry apertaria um botão em seu transmissor: era o sinal. A execução entraria em andamento. A vítima estaria andando seus últimos cem metros em direção ao meio da ponte, ao encontro de seu carrasco, que lhe daria as boas-vindas, colocaria em seu bolso um pequeno volume impermeabilizado e executaria sua tarefa.

Dali a um ou dois dias, o volume chegaria à sede da KGB em Amsterdam. A gravação seria ouvida, o filme examinado com atenção, e outra lição teria sido dada.

E naturalmente ignorada, como todas as outras tinham sido, como sempre eram ignoradas. E daí a futilidade de tudo aquilo, pensou Scofield. A interminável futilidade que entorpecia os sentidos a cada repetição.

“Que diferença faz?” Uma pergunta perspicaz, ainda que feita por um colega impaciente e não muito perspicaz.

“Nenhuma, Harry. Absolutamente nenhuma. Agora mais nenhuma.”

Mas naquela noite os aguilhões da dúvida não paravam de espicaçar a consciência de Bray. Não sua moral: há muito tempo o prático tomara o lugar do moral em seu julgamento. Se era eficiente, era moral; caso contrário, não era prático, e portanto imoral. O que o estava incomodando naquela noite tinha suas bases nessa filosofia utilitária. Seria prática aquela execução? A lição a ser dada seria a melhor lição, a lição mais eficaz? Compensaria os riscos e a repercussão da morte de um velho que dedicara toda sua vida adulta à engenharia espacial?

Superficialmente, a resposta parecia ser sim. Seis anos antes o engenheiro soviético tinha desertado em Paris durante uma exposição espacial internacional. Procurara e conseguira asilo; fora acolhido pela irmandade espacial em Houston, que lhe dera trabalho, casa e proteção. Entretanto, não fora considerado uma grande aquisição. Os russos haviam até escarnecido de seu desvio ideológico, insinuando que seus talentos seriam mais apreciados pelos laboratórios capitalistas, menos exigentes que os deles. Rapidamente se tornara um homem esquecido.

Até oito meses antes, quando fora descoberto que as estações rastreadoras soviéticas estavam localizando os satélites americanos com uma freqüência alarmante e reduzindo o valor dos reconhecimentos fotográficos através de uma sofisticada camuflagem do terreno. Era como se os russos conhecessem com antecedência a imensa maioria das trajetórias orbitais.

E conheciam. Uma investigação apontou para o homem esquecido em Houston. O próximo passo foi relativamente simples: armou-se em Amsterdam uma conferência versando exclusivamente sobre o reduzido campo de especialidade do homem esquecido, um avião do Governo levou-o até lá e o resto ficou nas mãos de um perito em tais assuntos. Brandon Scofield, adido especial das Operações Consulares.

Há muito tempo Scofield conhecia os códigos e métodos de contato da KGB-Amsterdam. Utilizou-os e ficou ligeiramente surpreso com a reação do alvo, e essa era agora a base de sua profunda preocupação. O velho não mostrara alívio diante da convocação. Após seis anos na corda bamba, ele tinha todo direito de esperar uma aposentadoria honrosa, a gratidão de seu Governo e um final de vida confortável. Esperar só, não. Bray prometera-lhe tudo isso em suas mensagens cifradas.

Mas o velho russo não estava feliz. E aparentemente não formara nenhum vínculo pessoal envolvente em Houston. Scofield requisitara o dossiê Quatro-Zero sobre o alvo, um relatório tão completo que incluía as horas das evacuações. Não havia ninguém em Houston. O homem era um solitário. E isso preocupava Bray. Na espionagem, um tipo desses não se comportava da mesma forma que seu equivalente mais sociável.

Um silvo agudo e breve partiu do transmissor em suas mãos. Três segundos depois, repetiu-se. Scofield acusou o recebimento apertando um botão e, colocando o rádio no bolso, esperou.

Passou-se menos de um minuto e ele viu o vulto do velho sair do nevoeiro sob a chuva, a luz de um poste desenhando sua silhueta fantasmagórica. O andar do alvo era hesitante, mas possuía certa determinação, como se ele se dirigisse a um encontro ao mesmo tempo temido e desejado. Aquilo não fazia sentido.

Bray deu uma olhada à direita. Como esperava, não viu ninguém na rua. Não havia vivalma naquela zona da cidade naquela hora deserta. Ele virou para a esquerda e começou a subir a rampa para o meio da ponte enquanto o velho russo vinha pelo outro lado do canal. Scofield manteve-se à sombra, o que lhe foi fácil, pois as três primeiras lâmpadas sobre o gradil da esquerda tinham sido apagadas por um curto-circuito.

A chuva castigava as pedras antigas do piso. Do outro lado da ponte, o velho parará e olhava a água corrente, as mãos sobre o gradil. Scofield aproximou-se dele por trás, o ruído do aguaceiro abafando-lhe os passos. Dentro do bolso esquerdo de sua capa de chuva, ele segurava uma caixa circular e chata com uns cinco centímetros de diâmetro e uns dois de espessura. Ela fora impermeabilizada e tratada com um preparado químico que depois de imerso em água durante trinta segundos se transformava num poderoso adesivo. A caixa permaneceria em seu lugar até ser retirada com o corte do tecido. Continha as provas: um rolo de filme e um rolo de fita magnética que seriam examinados pela KGB-Ams­terdam.

— Plakhaya noch, stary priyatel — disse Bray atrás do russo, tirando a automática do bolso.

O velho virou-se espantado.

— Por que entraram em contato comigo? — perguntou em russo. — Aconteceu alguma coisa?... — Vendo a arma, calou-se, mas logo continuou, uma estranha calma substituindo de repente o alarme: — Vejo que sim, não sou mais útil. Vá em frente, camarada. Você me fará um imenso favor.

Scofield olhou para o velho, para os olhos penetrantes onde o medo desaparecera. Ele já vira antes aquela expressão. Respondeu em inglês:

— Sua atividade nos últimos seis anos foi bem intensa, mas infelizmente nenhum benefício nos trouxe. Você não foi tão grato como esperávamos.

O russo fez um gesto afirmativo e disse:

— Americano... Bem que eu tinha dúvidas. Uma conferência inesperada em Amsterdam sobre problemas que poderiam facilmente ser examinados em Houston. Permissão para que eu deixasse o país, ainda que sob disfarce e escoltado... E depois, aqui, a vigilância negligenciada. Mas você conhecia os códigos e usou as palavras certas. E seu russo é impecável, priyatel.

— É meu trabalho. E qual era o seu?

— Você já sabe. É por isso que está aqui.

— Eu quero saber o motivo.

O velho deu um sorriso amargo.

— Ah, não. De mim você não vai saber mais nada além do que já sabe. Compreenda, eu estava falando sério. Você vai me fazer um favor. Você é minha listok.

— Sua solução para o quê?

— Desculpe, nada feito.

Bray ergueu a automática e o pequeno cano da arma brilhou sob a chuva. O russo olhou-a e respirou fundo. O medo reaparecera em seus olhos, mas o velho não vacilou nem disse nada. De repente, deliberadamente, Scofield encostou a arma sob o olho esquerdo do seu alvo, pele e aço tocando-se. O russo estremeceu, mas continuou em silêncio.

Bray sentiu-se mal.

“Que diferença faz?”

“Nenhuma, Harry. Absolutamente nenhuma. Agora mais nenhuma.”

“Uma lição precisava ser dada.”

Scofield baixou a arma.

— Vá embora — disse.

— O quê?...

— Você me ouviu. Vá embora. A sede da KGB fica na Tolstraat. Procure uma firma de comerciantes de diamantes, a Diamant Bruusteen. Ande logo.

— Eu não compreendo — disse o russo numa voz quase inaudível. — Isso é outro truque?

— Porra! Saia daqui, desgraçado! — berrou Bray já tremendo.

Por um instante, o velho cambaleou e segurou o gradil para recuperar o equilíbrio. Depois recuou desajeitadamente e por fim começou a correr sob a chuva.

— Scofield! — o grito viera de Harry. Ele estava na extremidade Oeste da ponte, bem no caminho do russo. — Scofield! Pelo amor de Deus!

— Deixe-o ir! — berrou Bray.

Ele nunca soube se falara tarde demais ou se suas palavras se perderam no aguaceiro. Ouviu três estampidos abafados e viu, enojado, o velho levar as mãos à cabeça e cair contra o gradil.

Harry era um profissional. Segurando o corpo de sua vítima, ele disparou uma última bala bem no pescoço, e com um único impulso levantou o cadáver e jogou-o nas águas do canal.

“Que diferença faz?”

“Nenhuma. Agora mais nenhuma.”

Scofield virou-se e começou a andar na direção da entrada Leste da ponte. Guardou a automática no bolso, pareceu-lhe muito pesada. Atrás, na chuva, passos apressados o seguiam. Estava terrivelmente cansado e não os queria ouvir. Como também não queria ouvir a voz irritante de Harry.

— Bray, que diabo aconteceu! Ele quase escapou!

— Ficou no quase — replicou Scofield apressando o passo. — Você tratou disso.

— Tratei mesmo, porra! Pelo amor de Deus, o que há com você? — Os olhos do homem mais novo bateram na mão de Bray e reconheceram a caixa impermeabilizada. — Pombas! Você nem botou isso aí no bolso dele!

— O quê? — Só então Bray percebeu a que Harry se referia. Olhou por um instante para a pequena caixa redonda e atirou-a nas águas do canal.

— Por que fez isso?

— Vá para o inferno — retrucou Scofield em voz baixa.

Harry parou e Bray continuou a andar. Dali a alguns segundos Harry alcançou-o e pegou-o pela gola da capa de chuva.

— Por Deus Todo-Poderoso! Você deixou-o ir!

— Tire as mãos de cima de mim.

— Não tiro merda nenhuma. Você não pode... — Harry não foi mais longe. A mão direita de Bray fechou-se em torno do polegar exposto do seu colega mais novo e torceu-o com força.

Harry gritou. Seu polegar estava quebrado.

— Vá para o inferno — repetiu Scofield continuando seu caminho.

 

O local para encontros secretos ficava perto da Rosengracht e a entrevista deveria realizar-se no segundo andar. A sala de estar era aquecida por uma lareira também utilizada para destruir o que fosse necessário. Um alto funcionário do Departamento de Estado chegara de avião dos Estados Unidos para interrogar Scofield in loco, caso existissem circunstâncias atenuantes só ali compreensíveis. Era muito importante entender o que acontecera, especialmente tratando-se de alguém como Brandon Scofield. Ele era o melhor, o mais eficiente agente que possuíam, um trunfo extraordinário do serviço secreto americano, um veterano de vinte e dois anos das “nego­ciações” mais complexas que se pudesse imaginar. Precisava ser tratado com todo cuidado... no local do problema. E não mandado retornar devido a uma queixa de um subordinado. Ele era um especialista, e alguma coisa tinha acontecido.

Bray estava ciente disso e as providências do Departamento divertiam-no. Harry fora afastado de Amsterdam no dia seguinte e Scofield não tivera mais oportunidade de vê-lo. Os poucos funcionários da Embaixada que tinham tomado conhecimento do incidente tratavam Bray como se nada tivesse acontecido. Aconselharam-no a tirar uns dias de folga; alguém viria de Washington para examinar um problema qualquer em Praga, segundo uma mensagem cifrada. Não era em Praga que ele gostava de caçar?

Camuflagem, naturalmente. E não das melhores. Scofield sabia que agora todos os seus passos em Amsterdam estavam sendo observados, provavelmente por equipes de agentes do Departamento. E se ele se aproximasse dos comerciantes de diamantes na Tolstraat, certamente receberia uma bala.

Uma mulher discreta de idade indeterminada, uma criada que acreditava que a velha casa pertencia ao casal aposentado que contratara seus serviços, foi quem abriu a porta para Scofield. Ele disse que tinha hora marcada com o proprietário e seu advogado. A criada assentiu e conduziu-o à sala de estar do segundo andar.

O senhor idoso estava lá, mas não o homem do Departamento. Quando a empregada fechou a porta, o dono da casa falou:

— Vou esperar um pouco e depois subirei para meu apartamento. Se precisar de alguma coisa, aperte aquele botão no telefone. A campainha toca lá em cima.

— Obrigado — replicou Scofield olhando o holandês e lembrando-se de outro velho numa ponte. — Meu colega deve chegar logo. Não precisaremos de nada.

O homem assentiu e saiu. Bray deu uma volta pela sala olhando distraidamente os livros quando lhe ocorreu que nem tentava ler os títulos, na verdade nem os via. Percebeu então que não sentia nada, nem frio, nem calor, nem raiva, nem resignação. Não sentia nada. Era como se estivesse envolto numa nuvem de vapor, entorpecido, todos os sentidos dormentes. Perguntou-se o que iria dizer ao homem que voara quase seis mil quilômetros para vê-lo.

Não tinha importância.

Ouviu passos na escada. A empregada fora obviamente dispensada por alguém que já conhecia a casa. A porta se abriu e o homem que viera dos Estados Unidos entrou.

Scofield já o conhecia. O homem era do Planejamento e Desenvolvimento, um estrategista de operações secretas. Tinha mais ou menos a idade de Bray, mas era mais magro, um pouco mais baixo e dado a demonstrações exuberantes de falsa amizade, demonstrações que certamente esperava encobrissem sua ambição. Não encobriam.

— Bray, como vai você, meu velho companheiro? — exclamou ele em altos brados estendendo a mão num gesto exuberante para um cumprimento ainda mais exuberante. — Meus Deus, já devem fazer uns dois anos que eu não o vejo. Tenho umas histórias quentes para lhe contar!

— É mesmo?

— Se tenho — mais uma declaração exuberante. — Fui a Cambridge para o vigésimo aniversário de minha formatura e naturalmente encontrei amigos seus por toda parte. Bem, meu velho, tomei um pileque e não me lembro quais as mentiras que inventei a seu respeito. Falei que você era importador na Malásia, perito em línguas na Nova Guiné, subsecretário em Camberra, e não sei mais o quê. Uma loucura. Fiquei tão bêbado que não me lembro mais.

— Por que é que alguém iria perguntar por mim a você, Charlie?

— Bem, eles sabem que somos ambos do Departamento de Estado, e todos sabem que éramos amigos.

— Deixe disso. Nunca fomos amigos. Acho que você me desaprova tanto quanto eu o desaprovo. E nunca o vi bêbado em toda a minha vida.

O recém-chegado imobilizou-se e o sorriso morreu lentamente em seus lábios.

— Você está querendo engrossar?

— Não, estou apenas dizendo a verdade.

— O que aconteceu?

— Onde? Quando? Em Harvard?

— Você sabe do que estou falando. Na noite de anteontem. O que aconteceu anteontem à noite?

— Você é quem vai dizer. Foi você quem começou tudo, quem iniciou a operação.

— Nós descobrimos que informações altamente secretas estavam transpirando. Há anos que atos de espionagem vinham reduzindo a eficácia da vigilância espacial a ponto de torná-la uma brincadeira. Queríamos uma confirmação. Você a obteve. Sabia o que precisava ser feito e tirou o corpo fora.

— Sim, tirei — concordou Scofield.

— E quando seu colega o chamou à ordem você causou-lhe danos corporais... ao seu próprio subordinado!

— É verdade. E se eu fosse você me livraria dele. Transferia-o para o Chile. Ele não poderia fazer muita bosta por lá.

— O quê?

— Mas sei que você não fará isso. Ele é parecido demais com você, Charlie. Ele nunca aprenderá. Mas cuidado, hem, algum dia ele vai tomar seu lugar.

— Você está bêbado.

— Infelizmente, não. Cheguei a pensar nisso, mas sofro um pouco de acidez de estômago. Naturalmente, se soubesse que iam mandar você, teria feito uma forcinha para me embriagar. Só para relembrar os velhos tempos, naturalmente.

— Se você não está bêbado, então não está em seu juízo perfeito.

— Eu saí dos trilhos, a rota que você tinha traçado não me agradava.

— Basta de cretinice! Suas ações, ou melhor, sua falta de ação comprometeu uma operação vital de contra-espionagem!

— Agora, deixe você de çretinices — berrou Bray dando um passo ameaçador na direção do recém-chegado. — Você já falou demais. Eu não comprometi nada. Você é que comprometeu! Você e o resto daqueles cretinos de Washington. Você encontrou um furo em sua maldita rede e tinha de tampá-lo com um cadáver! Então poderia comparecer ao Comitê dos Quarenta e contar àqueles cretinos como é eficiente!

— De que é que você está falando?

— O velho realmente passou para o nosso lado. Ele foi pressionado, mas sua defecção foi sincera.

— Pressionado como?

— Não tenho certeza. Gostaria muito de saber. Em algum ponto daquele dossiê Quatro-Zero está faltando alguma coisa. Talvez uma esposa que não morreu, e está escondida em algum lugar, ou netos que ninguém se deu ao trabalho de investigar... Eu não sei quem são, mas eles existem. Refiro-me a reféns, Charlie. Foi por isso que ele fez o que fez. E eu fui sua listok.

— O que quer dizer isso?

— Pelo amor de Deus, aprenda a língua deles! Supõe-se que você seja um perito.

— Não me venha com baboseiras, eu sou um perito. Não há provas que corroborem essa sua teoria de chantagem, nenhum indício da existência de familiares. Seu alvo era mesmo um devotado agente do Serviço de Informações Soviético.

— Provas? Ora, Charlie, sei que nem você mesmo acredita nisso. Se ele foi bastante esperto para conseguir se passar para nós, também conseguiu esconder o que precisava ser escondido. Meu palpite é que seu segredo, ou seus segredos, foi descoberto. E ele foi pressionado — vê-se isso claramente no seu dossiê. Ele vivia de uma forma anormal, mesmo para uma existência anormal.

— Nós rejeitamos essa hipótese — declarou enfaticamente Char­lie. — Ele era apenas um excêntrico.

Scofield deteve-se e fixou os olhos no outro.

— Rejeitaram?... Um excêntrico?... Porra, você... você sabia Você podia tê-lo usado, fazendo-o passar informações falsas... Mas não, você queria uma solução rápida para que os lá de cima vissem como é eficiente! Você podia tê-lo usado, e não matado! Mas não soube como e preferiu ficar de boca fechada e chamar os carrascos!

— Isso é um absurdo. Ninguém pode provar que ele tenha sido pressionado.

— Provar? Eu não tenho de provar nada. Eu simplesmente sei.

— Como?

— Eu li nos olhos dele, seu filho da puta.

O homem de Washington hesitou e depois disse baixinho:

— Você está é cansado, Bray. Precisa de um repouso.

— Com uma pensão — perguntou Scofield — ou num caixão?

 

Taleniekov deixou o restaurante e foi colhido por uma lufada fria de vento que levantou a neve, fazendo-a rodopiar com tal força que momentaneamente a transformou em névoa, tornando difusa a luz do poste. Ia ser outra daquelas noites enregelantes. Segundo a previsão do tempo da rádio de Moscou, a temperatura iria cair a menos oito graus.

Contudo, a neve parará de cair de manhã cedo; as pistas do Aeroporto Sheremetyevo tinham sido desobstruídas e no momento era só o que importava a Vasili Taleniekov. O vôo 85 da Air France decolara para Paris, havia dez minutos. A bordo do avião estava um judeu que tinha passagem reservada para Atenas na Aeroflot dentro de duas horas.

O homem não teria partido para Atenas se aparecesse na estação da Aeroflot. Em vez disso, teriam lhe pedido que entrasse numa sala onde o esperavam agentes da Vodennaya Kontra Rozvedka, e a insensatez teria início.

Teria sido uma estupidez, pensou Taleniekov ao virar-se para a direita erguendo a gola do sobretudo para proteger o pescoço e baixando a aba do seu addyel. Uma estupidez porque a VKR não teria conseguido nada, a não ser criar um tremendo mal-estar. Não teria enganado a ninguém, muito menos àqueles que estava tentando impressionar.

Um dissidente retratando-se! Que espécie de literatura cômica aqueles jovens fanáticos da VKR andavam lendo? Onde estavam as cabeças mais velhas e experimentadas quando os jovens tolos inventavam tais loucuras?

Vasili rira ao saber do plano, chegara até mesmo a rir. O objetivo era armar uma curta mas forte campanha contra as acusações sionistas, mostrando ao mundo ocidental que nem todos os judeus da URSS pensavam da mesma forma.

O escritor judeu havia se tornado uma pequena celebridade na imprensa americana — na imprensa nova-iorquina, para ser mais exato. Ele fora um dos que trocaram idéias com um senador visitante à cata de votos a mais de treze mil quilômetros de distância do seu eleitorado. Mas, apesar da raça, o judeu não era bom escritor, sendo na verdade quase um motivo de constrangimento para seus correligionários.

Não só o escritor era um objeto inadequado para tal exercício, como, por motivos pertinentes a uma outra operação, era imperativo que lhe fosse permitido deixar a Rússia. O homem era um fio com o qual pretendiam envolver o tal senador de Nova York. Esse estava persuadido de que tinham sido suas relações com um adido do consulado que haviam levado o serviço de imigração soviético a conceder ao tal escritor um visto de saída; o senador ia tentar explorar o incidente, e uma pequena mas poderosa laçada surgiria do nada. Outras laçadas e relações embaraçosas iriam surgir de repente e desenvolver-se entre o senador e “conhecidos” no Governo soviético — o que poderia vir a ser muito útil. O judeu tinha de deixar Moscou naquela noite. Dali a três dias o senador tinha marcado uma entrevista coletiva à imprensa em sua chegada ao Aeroporto Kennedy.

Mas os jovens e agressivos cérebros da VKR eram obstinados. O escritor tinha de ser detido, levado para Lubyanka e submetido a um certo tratamento. Ninguém fora da VKR deveria saber da operação; seu sucesso dependeria do súbito desaparecimento e do segredo total. Preparados químicos seriam administrados à vítima até que essa estivesse pronta para uma espécie bem diferente de entrevista coletiva. Nessa, ele revelaria que terroristas israelenses o tinham ameaçado com represálias contra parentes em Tel Aviv se não obedecesse às instruções e não suplicasse publicamente uma permissão para deixar a Rússia.

O plano era absurdo e Vasili disse-o abertamente a seu contato na VKR, mas foi confidencialmente informado de que nem mesmo o extraordinário Taleniekov poderia interferir com o Grupo Nove da Vodennaya Kontra Rozvedka. Mas o que, em nome de todos os desacreditados czares, era esse tal Grupo Nove?

O novo Grupo Nove, seus amigos explicaram, era o sucessor da infamante Seção Nove da KGB. Smert Shpiononam. A divisão do Serviço Secreto Soviético dedicada exclusivamente a dobrar o espírito e a vontade dos homens por meio de chantagem, tortura e o mais terrível dos métodos: matar entes queridos na frente dos que os amavam.

Matar não era estranho a Vasili Taleniekov, mas essa espécie de assassinato revoltava-lhe o estômago. A ameaça de tais atos podia freqüentemente ser muito útil, mas não o ato em si. O Estado não ordenava essa prática, e apenas sádicos a exigiam. Se existia realmente uma sucessora da Smert Shpiononam, então ele a faria saber quem teria de enfrentar no âmbito mais amplo da KGB — isto é, um certo e extraordinário Taleniekov. Eles aprenderiam a não contrariar um homem que passara vinte e cinco anos percorrendo a Europa a serviço do Governo.

Vinte e cinco anos. Um quarto de século se passara desde que um estudante de vinte e um anos da Universidade de Leningrado com talento para línguas fora enviado a Moscou para três anos de treinamento intensivo. Treinamento de tal tipo que assombrara o filho de introspectivos professores socialistas. Ele fora arrancado de um lar tranqüilo onde os livros e a música eram gêneros de primeira necessidade e transplantado para um mundo de violência e conspirações, onde cifras, códigos e brutalidade eram os principais elementos. Onde todas as formas de vigilância e sabotagem, espionagem e extinção de vidas — nunca assassinatos, tal termo não se aplicava ao caso — eram as matérias a serem estudadas.

Poderia ter fracassado, não fosse por um incidente que alterou sua vida e lhe serviu de estímulo. O incidente fora obra de animais, de animais americanos.

Fora enviado a Berlim Ocidental num exercício de treinamento, como observador de táticas secretas no auge da guerra fria. Criara uma ligação com uma jovem, uma moça alemã que acreditava fervorosamente na causa marxista e que fora recrutada pela KGB. Seu posto era tão insignificante que seu nome nem constava da folha de pagamento; ela era uma simples organizadora  de demonstrações de rua, paga com uns magros trocados da gaveta de despesas. Não passava de uma estudante universitária pouco prudente e apaixonada por suas crenças, uma radical entusiasta que se considerara uma espécie de Joana D’Arc. Mas Vasili a amara.

Os dois tinham vivido juntos várias semanas, semanas gloriosas, cheias da paixão e do entusiasmo do amor juvenil. E então, um dia, ela fora enviada numa missão insignificante, uma manifestação de protesto na Kurfurstendam, do outro lado da fronteira. Uma criança liderando outras crianças, dizendo coisas que mal entendiam, abraçando causas em que estavam despreparadas para se engajar. Uma manifestação sem importância. Insignificante.

Mas não para os animais dó Exército Americano de Ocupação, seção G2, que lançaram outros animais em seu encalço.

O corpo da moça foi devolvido num carro funerário, o rosto deformado e irreconhecível, o resto do cadáver dilacerado, coberto de nódoas de sangue seco. E os médicos tinham confirmado o pior. Ela fora repetidamente estuprada e brutalizada.

Junto com o corpo — preso ao braço dela com um prego — viera um bilhete.

“Vá tomar no cu, comuna sujo, assim como ela tomou!”

Animais!

Animais americanos que tinham aberto o caminho até a vitória graças ao seu dinheiro, sem que uma única bomba houvesse maculado seu solo pátrio, cuja potência era medida por sua indústria sem peias que auferira tremendos lucros com a carnificina das terras estrangeiras, cujos soldados traficavam com latas de comida utilizando crianças famintas para gratificar outros apetites. Todos os exércitos abrigavam animais, mas os americanos eram mais repugnantes por alardearem tanta honradez. Os santarrões eram sempre os mais repugnantes.

Taleniekov voltara a Moscou com a lembrança da morte obscena da jovem gravada a ferro e fogo em sua memória. Se antes ele fora uma pessoa, agora era outra. No conceito de muitos, tornou-se o melhor homem do serviço, e em sua própria opinião ninguém poderia desejar ser melhor que ele. Havia visto o inimigo, um animal asqueroso, mas que possuía recursos inimagináveis, inacreditáveis riquezas. Portanto, era necessário ser melhor que o inimigo em coisas que não podiam ser compradas. Era preciso aprender a pensar como ele e então sobrepujá-lo em astúcia e rapidez. Vasili compreendera isso e tornara-se mestre em estratégia e contra-estratégia, um criador de armadilhas inesperadas, um aplicador de choques imprevisíveis — como a morte à luz do sol matinal numa esquina movimentada.

Morte na Unter den Linden às cinco da tarde, na hora de maior tráfego.

Ele chegara lá também. Vingara a morte de sua mulher-criança anos depois, quando diretor de operações da KGB. Atraíra a esposa de um assassino americano até o posto de controle da fronteira. Ela fora abatida de forma limpa, profissional, com um mínimo de dor, uma morte muito mais piedosa que a provocada pelos animais de quatro anos antes.

Ele fizera um gesto de assentimento ao saber de sua morte, mas não sentira alegria. Sabia o que o outro homem estava passando e, embora fosse merecido, não sentira euforia, pois sabia que o homem não descansaria até encontrar uma forma de vingança.

E o homem encontrou. Três anos depois em Praga. ;

Um irmão.

Onde estaria agora o detestado Scofield? — perguntou-se Vasili. Ele também estava no serviço secreto há quase um quarto de século. Ambos tinham servido bem a seus governos, isso era inegável. Mas Scofield era mais afortunado: as coisas em Washington eram menos complexas, os inimigos internos mais conhecidos. O detestado Scofield não tinha de aturar maníacos amadores como os do Grupo Nove da VKR. O Departamento de Estado americano também tinha sua quota de malucos, mas o controle era mais rígido, era preciso admitir. Dentro de alguns anos, se Scofield sobrevivesse, poderia aposentar-se e ir morar em algum local longínquo e criar galinhas ou cultivar laranjas, ou ainda embebedar-se regularmente para esquecer o passado. Em Washington, não precisaria preocupar-se em se manter vivo, apenas na Europa.

Taleniekov tinha de se preocupar com a sobrevivência em Moscou.

As coisas tinham mudado muito nesse quarto de século. E ele mudara também; aquela noite era um exemplo, e não o primeiro. Sub-repticiamente, ele frustrara os objetivos de correligionários. Não teria feito aquilo cinco anos antes — talvez nem mesmo dois anos antes. Teria procurado os estrategistas da unidade e exposto suas reservas com argumentos estritamente profissionais. Era um especialista e, em sua opinião abalizada, a operação fora não só mal-engendrada como era muito menos importante que a outra com a qual interferia. Agora mudara seu modo de agir. Nos últimos dois anos, como diretor dos Setores do Sudoeste, tomara suas próprias decisões, pouco se importando com a reação dos idiotas que sabiam muito menos que ele. Entretanto, essas reações vinham cada vez mais causando pequenas tempestades em Moscou; mesmo assim, continuava fazendo o que acreditava ser certo. Ultimamente, essas pequenas tempestades geravam graves descontentamentos, e ele fora chamado ao Kremlin por alguém muito afastado da luta e absorto em abstrações tais como o obscuro envolvimento de um político americano.

Taleniekov sabia que ia cair. Era apenas questão de tempo. Quanto ainda lhe restaria? Será que lhe dariam um sitiozinho ao Norte de Grasnov e o mandariam cultivar suas próprias hortaliças e manter a boca fechada? Ou os maníacos lhe cortariam também essa saída, argumentando que “o extraordinário Taleniekov” era perigoso demais?

No caminho, o cansaço envolveu Vasili. Até o ódio que sentia pelo matador americano que assassinara seu irmão estava entorpecido. Quase não lhe restavam mais sentimentos.

 

A súbita tempestade intensificou-se e os ventos transformaram-se num vendaval turbilhonando a neve que cobria a Praça Vermelha. De manhã, o túmulo de Lênin estaria invisível. Taleniekov deixou as gélidas partículas golpearem-lhe o rosto enquanto lutava contra o vento a caminho do seu apartamento. A KGB fora amável: seus aposentos distavam apenas dez minutos do seu escritório na Praça Dzerzhinsky, a três quadras do Kremlin. Ou, em vez de amabilidade, tratava-se de algo bem mais prático, embora menos benevolente — numa crise, seu apartamento ficava a dez minutos da sede, ou apenas três minutos num,automóvel veloz.

Entrou no edifício, batendo os pés ao fechar a pesada porta, abafando o assobio cortante da ventania. Como sempre, verificou a caixa de correspondência no vestíbulo, que se encontrava, como de hábito, vazia. O ritual infrutífero acabara por se tornar um hábito sem sentido mantido pelos anos afora, em tantas caixas de correspondência, em tantos edifícios diferentes.

Só quando estava a serviço em países estrangeiros, sob nomes falsos, é que recebia correspondência pessoal, e então sempre em código, com um significado muito distante das palavras escritas. Contudo, às vezes, essas palavras eram amigas e carinhosas, e por alguns instantes ele fazia de conta que eram sinceras. Mas só por alguns instantes. Não era bom fazer de conta. Só quando se estava analisando um inimigo.

Começou a subir a escada estreita, aborrecido com a luz insuficiente das lâmpadas fracas. Certamente os projetistas da Iliktri-chiskaya moscovita não moravam em prédios como aquele.

Foi então que ouviu o estalido. Não era o resultado de um esforço estrutural, nada tinha a ver com a temperatura hibernai ou com a ventania lá fora. Era o ruído de um ser humano pisando numa tábua de assoalho. Seus ouvidos eram os de um perito treinado, capaz de avaliar distâncias com rapidez. O ruído não vinha do andar de cima, mas de um ponto mais alto da escada. Seu apartamento ficava no andar seguinte e alguém estava a sua espera. Alguém que talvez o quisesse ver entrar numa armadilha, a saída cortada.

Vasili continuou a subir sem alterar o ritmo de seus passos. Os anos o haviam ensinado a guardar peças como chaves e moedas nos bolsos da esquerda, deixando a mão direita livre para sacar rapidamente uma arma, ou mesmo para usar essa direita como arma. Ao chegar ao patamar, virou-se; sua porta ficava a poucos passos.

Nisso ouviu outro estalido, tênue, quase imperceptível, mesclado ao som da ventania longínqua. Quem quer que estivesse na escada recuara e isso significava duas coisas: o intruso esperaria até que ele tivesse entrado no apartamento e, quem quer que fosse, era descuidado ou inexperiente, ou ambas as coisas. Não se devia fazer nenhum movimento quando se estivesse próximo à presa — o ar era bom condutor de ruídos.

A mão esquerda segurava a chave; a direita desabotoara o sobretudo e agora empunhava a coronha da automática que trazia num coldre aberto e afivelado ao peito. Inserindo a chave, abriu a porta e tornou a fechá-la num repelão, ocultando-se rápida e silenciosamente nas sombras da escada, encostando-se à parede e empunhando a arma por sobre o balaústre.

Sons de passos apressados precederam o aparecimento de um vulto que correu para a porta. Sua mão esquerda segurava um objeto que Vasili não conseguiu ver, oculto que estava pelo tronco bem-agasalhado do outro. Não havia tempo a perder. Se o objeto fosse um explosivo, devia estar ligado a um mecanismo de tempo. O vulto ergueu a mão direita para bater na porta.

— Encoste-se na porta! E com a mão esquerda na frente, entre sua barriga e a madeira! Depressa!

— Por favor! — o homem tentou virar-se, mas Taleniekov jogou-se contra ele, empurrando-o contra a porta.

Era um rapaz, quase um menino, na verdade, um adolescente, pensou Vasili. Era alto para a idade, mas essa estampava-se u rosto imaturo, de olhos arregalados, límpidos, assustados.

— Recue devagar — ordenou rispidamente Taleniekov. — Erga a mão esquerda. Devagar.

O rapaz recuou, mão esquerda à mostra, o punho fechado.

— Eu não fiz nada de errado, senhor, eu juro! — disse o rapaz num sussurro amedrontado.

— Quem é você?

— Andreev Danilovich, senhor. Moro em Cheremushki.

— Você está bem longe de casa — retrucou Vasili. O conjunto residencial a que o rapaz se referia ficava a uns quarenta e cinco minutos ao Sul da Praça Vermelha. — Neste tempo horrível, um rapaz de sua idade pode ser preso pela militsianyer.

— Eu precisava vir até aqui, senhor — respondeu Andreev. — Um homem foi baleado e está muito mal. Acho que ele vai morrer. Eu tinha de entregar isto ao senhor — abriu a mão esquerda e mostrou um emblema de bronze, uma insígnia do Exército usada por generais. Aquele desenho não era mais utilizado há trinta anos. — O velho mandou que eu falasse em nome de Krupskaya, Aleksie Krupskaya. Fez-me repetir várias vezes para não esquecer. Não é esse o nome que ele usa em Cheremushki, mas é o nome que eu devia lhe dizer. Ele quer que eu leve o senhor até lá. Ele está morrendo, senhor!

Ao som daquele nome, a mente de Taleniekov voltou atrás no passado. Aleksie Krupskaya! Era um nome que não ouvia há anos, um nome que muito pouca gente em Moscou gostaria de ouvir. Krupskaya fora antigamente o maior professor da KGB, um homem com um talento infinito para matar e sobreviver — e precisava ser. Ele fora o último dos famosos Istrebiteli, um grupo altamente especializado de exterminadores, um produto de elite da velha NKVD cujas origens encontravam-se no quase esquecido OGPU.

Mas Aleksie Krupskaya tinha desaparecido, como tantos outros, há pelo menos uma dúzia de anos. Alguns rumores tinham ligado seu nome às mortes de Beria e Jurkov, alguns incluindo até o próprio Stalin. Certa vez, num acesso de fúria — ou de medo —, Kruschev levantara-se no Presidium e acusara Krupskaya e seus colegas de serem um bando de assassinos maníacos. Isso não era verdade. Não havia nenhuma loucura na obra dos Istrebiteli, sua ação era demasiado metódica. Mesmo assim, de repente, Aleksie, Krupskaya deixou de ser visto em Lubyanka.

Entretanto, os boatos persistiam. Alguns referiam-se a documentos preparados por Krupskaya e ocultos em locais secretos, como garantia para atingir uma idade avançada. Dizia-se que esses documentos incriminavam vários líderes do Kremlin em uma centena de assassinatos — conhecidos, desconhecidos, camuflados. Assim, presumia-se que Aleksie Krupskaya estivesse continuando a viver em algum lugar ao Norte de Grasnov, talvez numa fverma, cultivando legumes e conservando a boca fechada.

Ele fora o melhor professor que Vasili já tivera; sem as pacientes instruções do velho mestre, Taleniekov já estaria morto há muitos anos.

— Onde está ele? — perguntou Vasili.

— Nós o levamos para nosso apartamento. Ele ficou batendo no assoalho, no teto de nossa casa. Nós subimos e o encontramos.

— Nós?

— Minha irmã e eu. Ele é um bom velho. Foi muito bondoso comigo e com minha irmã. E acho que vai morrer logo. Por favor, vamos logo, senhor!

 

O velho deitado na cama não era o Aleksie Krupskaya que Taleniekov conhecera. O cabelo cortado rente e o rosto bem-barbeado que tanta força revelara no passado não mais existiam. A pele pálida e fina estava toda enrugada sob a barba branca, e os cabelos brancos emaranhados pareciam um ninho de pássaros, os fios finos e ralos revelando trechos de pele cinzenta no crânio esquálido. Krupskaya estava morrendo e mal podia falar. Baixando a coberta, ele ergueu um pano encharcado de sangue, revelando um orifício sangrento de ferimento de bala.

Praticamente nenhum segundo foi gasto em cumprimentos; o respeito e a afeição nos olhos dos dois homens eram suficientes.

— Eu dilatei as pupilas e fiz olhar de morto — disse Krupskaya com um sorriso fraco. — Ele acreditou. Tinha feito seu serviço e saiu correndo.

— Quem foi?

— Um assassino enviado pelos corsos.

— Corsos? Que corsos?

Após uma inspiração profunda e dolorosa, o ancião fez um gesto para que Vasili se aproximasse.

— Resta-me menos de uma hora de vida e há coisas que preciso lhe contar. Ninguém mais lhe contará, e você é o melhor homem que temos e precisa saber. Mais do que todos os outros, você tem a perícia necessária para enfrentar a perícia deles. Você e um outro, do outro lado. Vocês dois talvez sejam os únicos que restam.

— Do que está falando?

— Do Matarese.

— O quê?

— Do Matarese. Eles sabem que eu sei... o que estão fazendo, o que estão prestes a fazer. Eu sou o único que ainda resta que os reconheceria, que ousaria falar a respeito deles. Eu cortei os contatos com eles uma vez, mas não tive a coragem nem a ambição suficiente para os desmascarar.

— Não estou entendendo.

— Tentarei explicar — Krupskaya fez uma pausa, reunindo as forças. — Há pouco tempo, um general chamado Blackburn foi morto na América.

— Sim, eu sei. O chefe do Estado-Maior. Nós não tivemos nada a ver com isso, Aleksie.

— Sabe que os americanos pensaram que o assassino provavelmente era você?

— Não, ninguém me disse isso. A idéia é ridícula.

— Ninguém lhe conta mais as coisas, não é?

— Não estou me enganando, velho amigo. Já dei o que tinha de dar. Não sei o que tenho pela frente. Espero que não esteja longe o dia em que eu possa ir para Grasnov.

— Se eles deixarem — interrompeu Krupskaya.

— Creio que deixarão.

— Isso agora não vem ao caso... No mês passado, Yurievich, o cientista, foi assassinado quando passava férias em sua dacha em Provasoto juntamente com o coronel Drigorin e um tal de Brunov, do Planejamento Industrial.

— Ouvi falar no caso — disse Taleniekov. — Parece ter sido horrível.

— Você leu os relatórios?

— Que relatórios?

— Os que a VKR apresentou.

— Eles são todos uns idiotas, uns loucos! — exclamou Taleniekov.

— Nem sempre — ressaltou Krupskaya. — Neste caso, apresentaram os fatos com a maior clareza e precisão possível.

— E que fatos precisos são esses?

Respirando com dificuldade, Krupskaya engoliu e continuou:

— Cartuchos americanos de sete milímetros com ranhuras produzidas por uma Browning Magnum tipo IV.

— Uma arma brutal — replicou Taleniekov com um gesto de assentimento. — E muito precisa. Mas é a última arma que um homem de Washington usaria.

O velho pareceu não ouvir.

— A arma utilizada para matar o general Blackburn foi uma Graz-Burya.

Vasili ergueu as sobrancelhas.

— Uma bela arma e de difícil obtenção. — Após uma pausa, acrescentou em voz baixa: — É a minha preferida.

— Exatamente. Assim como a Magnum tipo IV é a arma favorita de um outro.

Taleniekov empertigou-se.

— Como?

— Sim, Vasili. A VKR apresentou vários nomes como sendo os prováveis matadores de Yurievich. A hipótese número um era alguém que você detesta: Beowulf Agate.

Taleniekov acrescentou em tom inexpressivo:

— Brandon Scofield, Operações Consulares. Codinome: Beowulf Agate.

— Isso mesmo.

— E foi ele mesmo?

— Não. — O velho lutou para erguer a cabeça do travesseiro: — Assim como você não esteve envolvido na morte de Blackburn. Não está vendo? Eles sabem de tudo. Sabem até que certos agentes de inegável perícia estão sofrendo de fadiga mental, e que talvez necessitem de uma presa importante. Eles estão testando os mais altos escalões do poder antes de agir.

— Mas quem... ? Quem são eles?

— O Matarese. A febre corsa...

— A que está se referindo?

— Ela está se espalhando... Transformou-se e é muito mais mortal em sua nova forma.

O velho Istrebiteli deixou-se cair sobre o travesseiro.

— Você precisa ser mais explícito, Aleksie. Não estou entendendo nada. O que é essa febre corsa, esse... Matarese?

Os olhos esbugalhados de Krupskaya fitavam o teto.

— Ninguém abre a boca — sussurrou. — Ninguém ousa falar. Nosso próprio Presidium, o Ministério do Exterior da Inglaterra, a Société Diable D’Etat francesa, e os americanos também. Ah, não se esqueça dos americanos... Ninguém abre a boca. E todos nós os utilizamos! Fomos maculados pelo Matarese.

— Maculados? Como assim? O que você está tentando dizer? O que, em nome de Deus, é esse Matarese?

O velho virou lentamente a cabeça, seus lábios tremiam.

— Alguns dizem que existe desde Sarajevo. Outros juram que em sua lista figuram Dolfuss, Bernadotte... e até Trotsky. Quanto a Stalin, não há dúvida alguma: nós mesmos os contratamos para matá-lo.

— Stalin? Então é verdade o que dizem?

— Ah, sim. E Beria também. Nós pagamos — os olhos do Istre­biteli agora vagavam, fora de foco. — Em 45... o mundo pensou que Roosevelt morrera de um derrame fulminante — Krupskaya sacudiu lentamente a cabeça, a saliva escorrendo dos cantos da boca. — Haviam forças que acreditavam que sua política em relação aos soviéticos era economicamente desastrosa. Não podiam mais permitir que ele tomasse as decisões. Eles pagaram, e uma injeção foi administrada.

Assombrado, Taleniekov perguntou:

— Você está querendo dizer que Roosevelt foi morto? E por esse Matarese?

— Assassinado, Vasili Vasilivich Taleniekov. O termo é assassinado. E essa é uma das verdades que ninguém admitirá. Tantos... em tantos anos... Ninguém ousará falar nos contratos, nós preços. Tal admissão seria catastrófica... para os governos em todo o mundo.

— Mas por que recorreram a esse Matarese?

— Porque estava disponível. E livrava o cliente de qualquer envolvimento.

— É um absurdo. Assassinos são apanhados. Esse nome nunca veio à tona!

— Você não devia usar esses argumentos, Vasili Vasilivich. Você mesmo já usou táticas iguais às do Matarese.

— O que quer dizer?

— Ambos matam... e dirigem matadores — disse o velho, e Taleniekov fez um gesto de assentimento. — O Matarese permaneceu inativo durante vários anos. Depois reapareceu, mas de uma forma diferente. Os assassinatos passaram a ocorrer sem clientes, sem pagamento. Matanças sem sentido. Homens de valor começaram a ser seqüestrados e mortos, aviões roubados explodindo no ar, governos paralisados pela chantagem: ou pagavam ou presenciavam massacres. Os métodos tornaram-se mais refinados, mais profissionais.

— Você está descrevendo as táticas dos terroristas, Aleksie. O terrorismo não obedece a uma direção central.

Novamente o velho Istrebiteli lutou para erguer a cabeça.

— Agora obedece. E o vem fazendo há vários anos. Os Baader-Meinhoff, a Brigada Vermelha, os palestinos, os maníacos africanos — todos eles gravitam em torno do Matarese. E matam com impunidade. E agora estão provocando o caos nos dois superpoderes para dar seu passo mais ousado: assumir o controle de um deles e, finalmente, dos dois.

— Como pode ter tanta certeza?

— Capturaram um homem com uma marca no peito, um membro do Matarese. Administraram-lhe drogas e deixaram-no a sós com meu informante. Eu já o advertira.

— Você?

— Escute, o cronograma já está em execução, mas é impossível revelar sua existência sem admitir o passado, e ninguém ousa fazer tal coisa! Tomarão Moscou por meio de assassinatos, Washington por manobras políticas ou violência, se necessário. Ê questão de dois meses, três no máximo, o plano já está sendo executado. Ação e reação foram testados nos altos escalões, homens desconhecidos estão a postos nos focos de poder. Logo agirão, e quando agirem estaremos perdidos. Seremos destruídos, dominados pelo Matarese.

— Onde está esse prisioneiro?

— Está morto. Quando passou o efeito das drogas, ele rasgou a própria pele num local onde fora costurada uma cápsula de cianeto e envenenou-se.

— Que assassinatos, que manobras políticas são essas? Você precisa ser mais explícito.

A respiração de Krupskaya ficou mais difícil e ele tornou a cair sobre os travesseiros. A voz, entretanto, continuou firme:

— Não há tempo... eu não tenho tempo. Minha fonte de informação é a melhor de Moscou, de toda a União Soviética.

— Perdoe-me, caro Aleksie. Você foi o melhor homem que tivemos, mas está fora de ação. Todos sabem disso.

— Você precisa encontrar Beowulf Agate — continuou o velho Istrebiteli como se Vasili nada tivesse dito. — Você e ele têm de encontrá-los. E detê-los. Antes que um de nossos países seja dominado e garantida a destruição do outro. Você e aquele homem, Scofield. Agora vocês são os melhores, e precisamos dos melhores.

Taleniekov olhou impassível para o moribundo.

— Isso é uma coisa que ninguém deve me pedir. Se eu encontrasse Beowulf Agate, eu o mataria. Assim como ele me mataria, se pudesse.

— Vocês não significam nada! — o velho respirava devagar numa tentativa desesperada de fazer o ar entrar nos pulmões. — Vocês não têm mais tempo para pensar em si mesmos, não consegue entender isso? Eles infiltraram-se clandestinamente nas esferas mais poderosas de nossos governos. Eles já usaram vocês dois, e tornarão a usá-los. Eles só utilizam os melhores, e só matam os melhores! Homens como vocês não passam de um divertimento para eles!

— Onde estão as provas?

— Nos padrões, nos métodos — sussurrou Krupskaya. — Estudei-os. Conheço-os bem.

— Que métodos?

— Cartuchos de uma Graz-Burya em Nova York. Cartuchos de uma Browning Magnum em Provasoto. Em poucas horas, Washington e Moscou estavam em pé de guerra. Esse é o método Matarese. Nunca mata sem deixar indícios, freqüentemente os próprios assassinos, mas esses indícios nunca são verdadeiros, assim como são falsos os assassinos.

— Já foram apanhados homens ainda com o dedo no gatilho, Aleksie.

— Mataram por motivos errados, por motivos engendrados pelo Matarese... Agora estamos à beira do caos.

— Mas por quê?

Krupskaya virou o rosto para ele, o olhar firme, implorante.

— Eu não sei. Reconheço os métodos, mas não sei as razões. É isso que me assusta. É preciso voltar ao passado para entender. As raízes do Matarese estão na Córsega. Tudo começou com o louco da Córsega... a febre corsa... Guillaume de Matarese. Ele era o sumo-sacerdote

— Quando? — perguntou Taleniekov. — Quando foi isso?

— Nos primeiros anos do século. Guillaume de Matarese e seu círculo. O sumo-sacerdote e seus ministros. Eles estão de volta. Precisam ser detidos. Por você e Scofield.

— Quem são eles? — perguntou Vasili. — E onde estão?

— Ninguém sabe — agora a voz do velho fraquejava. — A febre corsa está se espalhando...

— Aleksie, escute — insistiu Taleniekov, preocupado. Havia uma possibilidade que não podia ser ignorada. As fantasias de um moribundo não deviam ser levadas a sério. — Quem é esse seu informante de toda a confiança? Quem é o homem mais bem-informado de Moscou, de toda a Rússia? Como ele conseguiu as informações que acaba de me dar? Como soube da morte de Blackburn, do relatório da VKR sobre Yurievich? Quem é esse desconhecido que está a par do cronograma?

Em meio a uma vertigem que anunciava a morte próxima, Krupskaya compreendeu. Um leve sorriso apareceu-lhe nos lábios finos e pálidos.

— Várias vezes por mês — disse ele, lutando para ser ouvido —, um motorista vem me ver, às vezes para levar-me para uma volta no campo, às vezes para um encontro com certa pessoa. É uma amabilidade do Governo para com um velho soldado aposentado que usa um nome suposto. Eles mantêm-me informado.

— Não compreendo, Aleksie.

— Meu informante é o premier da União Soviética.

— O premier! Mas por que ele falaria com você?

— Ele é meu filho.

Um estremecimento percorreu Taleniekov. A revelação explicava tudo, Krupskaya tinha de ser levado a sério. O velho Istrebiteli possuíra as informações, a munição necessária para eliminar todos que se interpusessem no caminho da ascensão de seu filho ao primeiro posto da União Soviética.

— Ele me receberia?

— Nunca. À primeira menção do nome Matarese, ele mandaria executá-lo. Tente entender, ele não teria opção. Mas ele sabe que tenho razão. Concorda comigo, mas nunca o admitirá. Não o pode fazer. Limita-se a conjeturar se o primeiro alvo será ele ou o presidente americano.

— Compreendo.

— Agora, deixe-me a sós — disse o moribundo. — Faça o que deve fazer, Taleniekov. Não tenho mais forças. Procure Beowulf Agate, encontre os Matareses. Precisam ser detidos. A febre corsa não deve mais se espalhar.

— A febre corsa... na Córsega?

— Talvez a resposta esteja lá. É a única pista que tem para começar. Descubra os nomes... da primeira junta... muitos anos atrás!

 

Uma insuficiência coronária impusera a Robert Winthrop o uso de uma cadeira de rodas, mas de forma alguma afetara a vivacidade do seu espírito. Nem ele alimentava a enfermidade: passara toda a vida a serviço do Governo, e nunca lhe faltavam problemas que considerasse mais importantes que a própria pessoa.

Em sua casa em Georgetown, os convidados logo esqueciam a cadeira de rodas. A figura esbelta de gestos graciosos e o rosto sempre interessado lembravam-nos do homem que era: um enérgico aristocrata que recorrera à fortuna pessoal para se livrar das preocupações financeiras e dedicar a vida à causa pública. Em vez de um estadista idoso e enfermo, fazia lembrar Yalta e Potsdam, onde um membro empreendedor do Departamento de Estado estivera sempre debruçado sobre a cadeira de Roosevelt ou o ombro de Truman para esclarecer algum aspecto ou sugerir uma objeção.

Havia muita gente em Washington — e em Londres, e também em Moscou — que acreditava que o mundo seria melhor se Robert Winthrop tivesse sido nomeado Secretário de Estado por Eisenhower, mas os ventos políticos tinham mudado de direção e na época ele não fora considerado uma escolha adequada. E mais tarde seu nome não poderia mais ser cogitado — envolvera-se em outra área do Governo que exigia sua total concentração. Fora entretanto discretamente nomeado consultor-chefe das Relações Diplomáticas pelo Departamento de Estado.

Vinte e seis anos antes, Robert Winthrop organizara uma divisão especial no Departamento, batizada de Operações Consulares. Após dezesseis anos de dedicação, demitira-se — segundo alguns, porque estava consternado com o rumo que tomara sua criação, segundo outros, porque, embora ciente da necessidade de tais rumos, não conseguia forçar-se a tomar certas decisões. Apesar disso, durante os dez anos que haviam decorrido desde sua saída, fora constantemente procurado como consultor e conselheiro. Como naquela noite.

As Operações Consulares tinham novo diretor: Daniel Congdon, funcionário de carreira do Serviço Secreto que fora transferido de um alto posto na Agência de Segurança Nacional para o cargo clandestino do Departamento de Estado. Ele substituíra o sucessor de Winthrop e parecia perfeitamente afinado com as duras decisões exigidas pelo Departamento. Mas era novo no posto e tinha dúvidas. Tinha também um problema com um homem chamado Sco­field e não estava certo de como resolvê-lo. Sabia apenas que queria encerrar a carreira de Brandon Alan Scofield, afastá-lo definitivamente do Departamento de Estado. Seu comportamento em Amsterdam não podia ser tolerado e revelava um homem perigoso e instável. Mas quão mais perigoso seria ele longe do controle das Operações Consulares? Era uma pergunta difícil. O homem de codinome Beowulf Agate sabia mais a respeito das redes clandestinas do Departamento de Estado do que qualquer outro homem vivo. E, como Scofield chegara a Washington muitos anos antes por intermédio do Embaixador Robert Winthrop, Congdon foi direto à fonte.

Winthrop concordara prontamente em receber Congdon, mas não numa sala impessoal de escritório. Através dos anos, o embaixador aprendera que os homens envolvidos em operações secretas instintivamente adaptavam-se ao meio ambiente. Frases curtas e obscuras tomavam o lugar de diálogos mais livres e descontraídos onde um número bem maior de informações podia ser transmitido ou captado. Assim sendo, ele convidou o novo diretor para jantar em sua casa.

A refeição chegou ao fim sem que nenhum assunto importante fosse abordado. Congdon percebeu que o embaixador estava sondando a superfície antes de se aprofundar. Mas agora chegara o momento.

— Vamos à biblioteca? — convidou Winthrop, afastando a cadeira de rodas da mesa.

Uma vez no aposento repleto de livros, ele não perdeu mais tempo:

— Então deseja me falar sobre Brandon...

— E muito — retrucou o novo diretor das Operações Consulares.

— Como poderemos agradecer a homens como ele pelo que fizeram? — disse Winthrop. — E por tudo que perderam? Eles pagam um preço terrível pelo trabalho que executam.

— Não estariam lá se não o desejassem — replicou Congdon —, se por algum motivo não necessitassem dele. Mas ainda nos resta um problema: o que fazer com eles. Eles são explosivos ambulantes!

— O que está tentando dizer?

— Não estou bem certo, Sr. Winthrop. Quero saber mais sobre Brandon. Quem é? Como é? De onde veio?

— Na tese de que a criança é o pai do homem?

— Mais ou menos isso. Li a ficha dele — várias vezes, na verdade —, mas nunca falei com ninguém que lealmente o conhecesse.

— Nem sei se essa pessoa existe. Brandon... — O velho estadista fez uma pausa e sorriu. — Por falar nisso, o apelido dele é Bray.

— Isso eu já sabia — replicou o diretor, devolvendo o sorriso e sentando-se numa poltrona de couro. — Quando criança, a irmã mais nova não sabia dizer Brandon e chamava-o de Bray. O nome pegou.

— Devem ter acrescentado essa informação à ficha dele depois que deixei o Departamento. Na verdade, imagino que essa ficha tenha crescido bastante. Mas, quanto a amigos, não creio que ele os tenha, é simplesmente um tipo reservado e fechou-se ainda mais depois da morte da mulher.

Congdon perguntou em voz baixa:

— Ela foi assassinada, não é?

Ê.

— No mês que vem faz dez anos que a mataram em Berlim, não é?

— Isso mesmo.

— E no mês que vem vai fazer dez anos que o senhor se demitiu da chefia das Operações Consulares, a unidade altamente especializada que o senhor criou.

Winthrop virou-se e encarou o novo diretor.

— Minha concepção era bem diferente do produto final. As Operações Consulares foram criadas como um instrumento humanitário para facilitar a fuga de milhares de indivíduos para o Ocidente, sua libertação de um sistema político que lhes era intolerável. Com o passar do tempo, as circunstâncias vieram restringir esse objetivo. Os milhares transformaram-se a princípio em centenas, e depois, devido à interferência de outros órgãos, em dezenas. Não estávamos mais interessados nas súplicas da multidão de homens e mulheres que continuamente nos procuravam, mas apenas nos poucos cujo talento e conhecimento eram considerados bem mais importantes. A unidade concentrou sua atenção num punhado de cientistas, militares e agentes secretos... como continua fazendo atualmente. Não era esse nosso objetivo inicial.

— Mas, como o senhor mesmo ressalvou — disse Congdon —, as circunstâncias justificaram essas mudanças.

Winthrop fez um gesto de assentimento.

— Não me interprete mal. Não sou ingênuo. Lidei com os russos em Potsdam, em Casablanca, em Yalta. Testemunhei sua brutalidade na Hungria em 56 e vi os horrores que cometeram na Tcheco-Eslováquia e na Grécia. Acho que sei do que os soviéticos são capazes, tão bem quanto qualquer estrategista de nossos serviços secretos. E durante anos permiti que vozes mais agressivas fossem ouvidas, compreendendo a necessidade. Pensa que não?

— Não, naturalmente, senhor. Eu apenas... — Congdon hesitou.

— O senhor apenas fez uma ligação entre o assassinato da esposa de Scofield e minha demissão — completou bondosamente o estadista.

— Sim, senhor. Sinto muito. Não queria ser indiscreto. Só que as circunstâncias...

— Justificavam uma mudança — terminou Winthrop. — E foi o que aconteceu, como sabe. Eu recrutei Scofield. Estou certo de que isso consta da ficha dele. Imagino que é por isso que está aqui esta noite.

— Então há uma ligação... ? — Congdon não completou a frase.

— Sim, há. Senti-me responsável.

— Mas sem dúvida aconteceram outros incidentes, com outros homens... e com outras mulheres.

— Não iguais a esse, Sr. Congdon. Sabe o motivo por que escolheram a mulher de Scofield como alvo naquela tarde em Berlim Oriental?

— Imagino que a emboscada fosse para Scofield. Apenas foi ela e não ele quem apareceu. Isso acontece.

— Uma emboscada para Scofield? Em Berlim Oriental?

— Ele tinha contatos no setor soviético. Fazia incursões freqüentes ali, organizava suas próprias células. Imagino que pretendiam pegá-lo com a lista de seus contatos. O cadáver dela foi revistado e roubaram sua bolsa. Não é raro.

— Acredita então que ele utilizava a esposa em suas operações? — perguntou Winthrop.

Congdon assentiu.

— Isso também não é raro.

— Não é raro? Pois receio que no caso de Scofield seja impossível. Ela era parte de sua camuflagem, mas não tinha qualquer conexão com as atividades secretas do marido. Não, Sr. Congdon, o senhor está errado. Os russos sabiam que nunca apanhariam Scofield numa emboscada em Berlim Oriental. Ele era bom demais, eficiente demais... quase imaterial, invisível. E assim eles atraíram a esposa dele ao outro lado do muro e mataram-na por outra razão.

— Que razão?

— Um homem enfurecido é um homem descuidado. Esse era o objetivo dos soviéticos. Mas eles, da mesma forma que o senhor, enganaram-se a respeito de Scofield. A raiva intensificou sua determinação de ferir o inimigo de todas as formas possíveis. Se antes ele já era de uma brutalidade inteiramente profissional, depois da morte da esposa tornou-se positivamente cruel.

— Ainda não estou entendendo muito bem.

— Tente, Sr. Congdon — disse Winthrop. — Há vinte e dois anos conheci um bacharelando de Administração Pública na Universidade Harvard, um jovem com real talento para línguas e uma capacidade de liderança que lhe pressagiavam um futuro brilhante. Convenci-o a entrar para o Departamento. Enviaram-no para a Escola Maxwell em Syracuse e depois transferiram-no para Washington onde ingressou nas Operações Consulares. Parecia um belo início para uma carreira brilhante no Departamento de Estado — Winthrop fez uma pausa e seu olhar tornou-se distante como se estivesse imerso em lembranças do passado. — Nunca esperei que ele ficasse nas Operações Consulares. Por estranho que isso lhe possa parecer agora, pensei que aquilo seria apenas uma espécie de trampolim para ele pular para o Corpo Diplomático. Imaginei-o até embaixador. Com seus dons, seu lugar era nas mesas de conferências internacionais. Mas algo aconteceu — continuou o estadista, voltando o olhar distraído para o novo diretor. — Assim como as Operações Consulares sofreram modificações, Brandon também modificou-se. Quanto mais vital era a importância dos especialistas cuja fuga pretendíamos, mais rapidamente se recorria à violência. Nos dois lados. Logo Scofield recebeu treinamento de comando, passando cinco meses na América Central, onde se exercitou nas técnicas mais severas de sobrevivência — tanto ofensivas como defensivas. Aprendeu dezenas de códigos e cifras e tornou-se tão competente no assunto quanto qualquer criptógrafo da Agência de Segurança Nacional. Então voltou à Europa e virou o perito.

— Ele compreendeu os requisitos do trabalho — ajuntou Cong­don, favoravelmente impressionado. — Muito louvável, eu diria.

— Ah, sim, muito — concordou Winthrop —, mas não havia como voltar atrás do ponto em que ele chegara. Nunca mais seria aceito numa mesa de conferências. Sua reputação estava firmada. Protestariam contra sua presença nos termos mais incisivos. O jovem e brilhante bacharel que eu recrutara para o Departamento de Estado era agora um matador. Não importa quais fossem as justificativas, ele era um matador profissional.

Congdon remexeu-se inquieto em sua poltrona.

— Muitos diriam que ele era um soldado em ação numa batalha perigosa e sem descanso. Ele precisava sobreviver, Sr. Winthrop.

— Precisava, sim, e sobreviveu — admitiu o velho cavalheiro. — Scofield foi capaz de mudar, adaptar-se às novas regras. Mas eu não fui. Quando mataram a mulher dele, compreendi que precisava me afastar. Vi o que havia feito: recrutara um estudante talentoso para determinado objetivo e vira aquele objetivo ser deturpado. Assim como a finalidade humanitária das Operações Consulares fora deturpada — por circunstâncias que exigiram as alterações já mencionadas. Assim, tive de assumir minhas próprias limitações. Não podia mais continuar lá.

— Contudo, o senhor pediu que o mantivessem informado sobre as atividades de Scofield durante vários anos. Isso consta da ficha dele. Posso perguntar o motivo?

Winthrop franziu o cenho como se estivesse procurando a resposta.

— Não tenho certeza. Creio que por um compreensível interesse pelo homem, talvez até fascinação. Ou talvez por autopunição, não excluo essa hipótese. Às vezes deixava os relatórios vários dias em meu cofre antes de lê-los. E, naturalmente, depois de Praga, não os quis mais receber. Estou certo de que isso também consta da ficha.

— Consta, sim. Acho que se refere ao incidente do mensageiro, não é?

— É — admitiu Winthrop baixinho. — “Incidente” é um termo muito impessoal, não é? Ajusta-se bem ao Scofield daquele relatório: o matador profissional motivado pela necessidade de sobreviver — como um soldado sobrevive, transformado num assassino de sangue-frio, impulsionado apenas pela vingança. A mudança foi total.

O novo diretor das Operações Consulares mudou novamente de posição e cruzou as pernas, constrangido.

— Ficou provado que o mensageiro de Praga era irmão do agente da KGB que ordenou a morte da esposa de Scofield.

— Era só o irmão, não o homem que dera a ordem. Era apenas um rapazola, um mensageiro sem importância.

— Que poderia ter se transformado em outra coisa.

— Até onde isso levaria?

— Não sei responder. Mas posso compreender por que Scofield fez o que fez. Talvez tivesse feito o mesmo.

— Não lhe feriria o senso de justiça? — retrucou o idoso estadista. — Não creio que eu o fizesse. Também não creio que o jovem que conheci em Cambridge há vinte e dois anos o tivesse feito. Será que estou sendo claro?

— Dolorosamente claro, senhor. Mas em minha defesa — e em defesa do Scofield atual — preciso lembrar que não fomos nós que criamos o mundo em que operamos. É uma ressalva justa.

— Dolorosamente justa, Sr. Congdon. Mas os senhores o perpetuam. — Winthrop levou a cadeira até a escrivaninha, pegou uma caixa de charutos e ofereceu-a ao diretor, que sacudiu a cabeça numa negativa. — Também não gosto de charutos, mas desde Jack Kennedy tornou-se moda tê-los à mão.

— Se bem me lembro, o fornecedor canadense de havanas era a fonte de informação mais precisa que o presidente Kennedy tinha sobre Cuba.

— O senhor já estava conosco naquela época?

— Entrei para a Agência de Segurança Nacional quando ele era senador... O senhor sabia que Scofield deu para beber de uns tem­pos para cá?

— Nada sei sobre o Scofield atual, como o chama.

— Na ficha dele consta que ingeria bebidas alcoólicas, mas sem excessos.

— Era de se esperar. O álcool interferiria em seu trabalho.

— Pode estar interferindo agora.

— Pode estar? Está ou não está? Não me parece difícil de descobrir. Se ele está bebendo muito, terá de interferir. Lamento saber disso, mas não posso dizer que esteja surpreendido.

— Realmente? — Congdon inclinou-se para a frente. Era evidente que julgava estar prestes a receber a informação que procurava. — No tempo em que o conhecia bem, notou algum sinal de possível instabilidade?

— Absolutamente.

— Mas o senhor disse que não se surpreendia.

— E não me surpreendo. Não me surpreenderia se qualquer homem lúcido começasse a beber após longos anos de uma vida tão anormal. Posso me surpreender apenas que tenha sido necessário tanto tempo para que isso o afetasse. O que terá mantido sua sanidade durante as longas noites?

— Os homens condicionam-se. Como o senhor mesmo disse, ele adaptou-se, e com extremo sucesso.

— Mas mesmo assim de forma anormal — reafirmou Winthrop. — Que pretendem fazer com ele?

— Ele foi chamado à sede. Quero afastá-lo do campo de ação.

— Ótimo. Dê-lhe uma mesa e uma secretária atraente e mande-o analisar problemas teóricos. Não é assim que costumam fazer?

Congdon hesitou antes de responder.

— Sr. Winthrop, acho que quero vê-lo bem longe do Departamento de Estado.

O criador das Operações Consulares ergueu as sobrancelhas:

— É mesmo? Vinte e dois anos de serviço não bastam para uma pensão decente.

— Isso não é problema. Hoje em dia, é comum fazermos acordos generosos.

— O que ele fará então de sua vida? Que idade tem? Uns quarenta e cinco... ou seis?

— Quarenta e seis.

— Ainda não está pronto para uma dessas, não é? — disse o estadista alisando as rodas de sua cadeira de enfermo. — Posso perguntar por que tomou essa decisão?

— Não o quero perto do pessoal envolvido em nossas atividades secretas. Segundo as últimas informações, ele mostrou-se hostil à nossa política básica. Poderia tornar-se uma influência negativa.

Winthrop sorriu.

— Então alguém deve ter feito alguma besteira. Bray nunca teve muita paciência com tolos.

— Falei em política básica. Personalidades não estão em questão.

— Infelizmente, Sr. Congdon, as duas coisas não se separam. São as personalidades que formam a política básica. Mas isso provavelmente é irrelevante a esta altura. Mas por que me procurou? É óbvio que já tomou uma decisão. Que mais deseja?

— Sua opinião. Como ele reagiria? Podemos confiar nele? Scofield sabe mais sobre nossas operações, contatos e táticas do que qualquer outro homem na Europa.

O olhar de Winthrop tornou-se subitamente frio.

— E que alternativa sugere, Sr. Congdon? — perguntou em tom gélido.

O novo diretor corou, compreendendo as ilações de seu interlocutor.

— Vigilância, controle, interceptação de correspondência e telefones. Estou sendo honesto com o senhor.

— Está mesmo? — Winthrop agora fuzilava com o olhar o homem a sua frente. — Ou está esperando ouvir de mim uma palavra, ou uma pergunta, que justifique outra solução?

— Não sei o que quer dizer.

— Acho que sabe. Acidentalmente, soube o que se faz nesses casos, e fiquei horrorizado. Praga, Berlim ou Marselha são informados de que certo homem não merece mais a sanção do Departamento. Chegou ao fim, está acabado, inquieto, bebe demais. Pode revelar o nome de contatos, pôr em perigo toda uma rede. Em suma, o alarme espalha-se: suas vidas estão ameaçadas. Assim, combina-se que outro homem ou, talvez, uns dois ou três peguem um avião em Praga, Berlim ou Marselha e venham a Washington com um único objetivo: silenciar o homem que está liquidado. Então, todos relaxam e o serviço secreto americano — que se manteve fora desse incidente — respira aliviado. Sim, Sr. Congdon, isso me horroriza.

O diretor das Operações Consulares permaneceu imóvel. Sua resposta veio em tom tranqüilo:

— Que eu saiba, Sr. Winthrop, esses incidentes... têm sido tremendamente exagerados, sem qualquer proporção com a realidade. Novamente vou ser completamente sincero consigo. Em quinze anos, que eu saiba, isso só aconteceu duas vezes, e nos dois casos os agentes afastados não tinham mais salvação. Haviam se vendido aos soviéticos e estavam passando informações.

— E Scofield também “não tem mais salvação”? Foi essa a sua expressão, não é?

— Se quer saber se eu penso que ele se vendeu, a resposta é não. É a última coisa que ele faria. Na verdade, confesso que vim aqui para saber mais sobre ele. Como reagirá ao saber que sua carreira terminou?

Winthrop fez uma pausa, obviamente aliviado, e então tornou a franzir o cenho.

— Não sei, pois não conheço o Scofield atual. Trata-se de uma medida drástica. O que ele fará? Não existem meias medidas?

— Se eu encontrasse uma que ambos considerássemos aceitável, eu a adotaria sem hesitar.

— Se eu fosse o senhor, tentaria encontrá-la.

— Ele terá de ficar longe de nosso pessoal, disso estou convencido.

— Então, posso fazer uma sugestão?

— Será um favor.

— Mande-o para o mais longe que puder. Para algum lugar onde ele encontre paz e esquecimento. Faça o senhor mesmo a sugestão, ele entenderá.

— Será?

— Sim, Bray não é homem que tente enganar-se, pelo menos nunca foi. Era uma de suas melhores qualidades. Entenderá porque eu acho que entendo. Acho que o senhor me descreveu um moribundo.

— Não existem indícios clínicos de tal coisa.

— Ora, pelo amor de Deus! — retrucou Robert Winthrop.

 

Scofield desligou o aparelho de televisão. Há vários anos não via um programa americano de notícias, desde a última vez que voltara para um período de instrução entre operações, e a dose bastara para alguns anos. Não que achasse que todas as notícias devessem ser transmitidas em tons graves e fúnebres, mas as risadinhas e os ares maliciosos que agora acompanhavam as descrições de incêndios e estupros lhe pareciam intoleráveis.

Olhou o relógio. Deviam ser 7h20min, embora o mostrador ainda acusasse meia-noite e 20, hora de Amsterdam. Tinha hora marcada no Departamento de Estado às 8h.

Da noite. Isso era comum, tratando-se de especialistas de seu- gabarito; o que não era comum era o local da entrevista. Adidos especiais das Operações Consulares invariavelmente recebiam instruções estratégicas em locais seguros, geralmente afastados, em Maryland, ou talvez num quarto de hotel no centro da cidade.

Nunca no Departamento de Estado. Não no caso de especialistas que deviam voltar à ação. E Bray sabia que não havia nada programado para ele no futuro. Fora chamado à sede com um único fito: desligamento.

Vinte e dois anos e ele estava acabado. Uma partícula ínfima de tempo em que se condensava tudo que ele sabia — tudo que aprendera, absorvera, deduzira. Continuava esperando sentir alguma reação, mas não sentia nada. Era como se fosse um espectador olhando as imagens de uma outra pessoa numa parede branca, o fim inevitável cada vez mais próximo, sem que fosse afetado pelos acontecimentos. Apenas estava levemente curioso. Como iriam agir?

 

As paredes do escritório do subsecretário de Estado Daniel Congdon eram brancas. Havia certo conforto naquilo, pensou Scofield, ouvindo distraído a arenga monótona de Congdon. Ele podia olhar as imagens. Rosto após rosto, dezenas deles, entravam em foco e rapidamente esmaeciam. Rostos lembrados e esquecidos, fitando-o, pensando, chorando, rindo, morrendo... mortos.

Sua esposa. Cinco horas da tarde. Unter den Linden.

Homens e mulheres correndo, detendo-se. A luz do sol, nas sombras.

Mas onde estava ele? Ele não estava ali. Era um espectador.

Então, subitamente, deixou de sê-lo. Não tinha a certeza de ter ouvido as palavras corretamente. Teria aquele frio e eficiente subsecretário dito “Berna, Suíça?”

— Pode repetir, por favor?

— Os fundos serão depositados em seu nome, dotações adequadas a serem corrigidas anualmente.

— Isso além da pensão a que tenho direito?

— Sim, Sr. Scofield. E, por falar nisso, sua folha de serviço foi pré-datada. O senhor receberá a pensão máxima.

— Está sendo muito generoso.

Estava mesmo. Num cálculo rápido, Bray estimou sua renda em cinqüenta mil dólares anuais.

— Apenas prático. Esses fundos deverão substituir quaisquer proventos que o senhor pudesse ter com a venda de livros ou artigos baseados em suas atividades nas Operações Consulares.

— Compreendo — disse Bray devagar. — Tem havido muito disso ultimamente, não é? Marchetti, Agee, Snepp.

— Exatamente.

Aqueles cretinos não aprendiam nunca. Scofield não se conteve:

— Acaso o senhor está insinuando que, se tivessem oferecido dinheiro, eles não teriam escrito o que escreveram?

— Os motivos variam, mas essa é uma possibilidade que não desprezamos.

— Pois podem desprezar — retrucou Bray, rispidamente. — Conheço bem dois desses homens.

— O senhor está rejeitando nossa oferta?

— Não, porra! Eu aceito. Mas quando decidir escrever um livro o senhor será o primeiro a saber.

— Não o aconselharia a fazer isso, Sr. Scofield. Tais quebras de sigilo são proibidas. O senhor será processado e poderá passar anos na cadeia.

— E se acaso os senhores perderem nos tribunais poderei sofrer certas penalidades extralegais, como, por exemplo, um tiro na cabeça quando estiver dirigindo, bem no meio do tráfego.

— As leis são bem claras — replicou o subsecretário. — Essa hipótese sua é uma fantasia.

— Não é, não. Leia minha ficha Quatro-Zero. Treinei com um homem em Honduras. Mais tarde matei-o em Madri. Ele era de Indianápolis e chamava-se...

— Não estou interessado em suas atividades passadas —interrompeu rudemente Congdon. — Quero apenas que cheguemos a um entendimento.

— Chegaremos, pode ficar tranqüilo. Não vou infringir as regras de segurança. Não tenho estômago para isso. E minha bravura também não chega a tanto.

— Escute, Scofield — disse o subsecretário, recostando-se na cadeira com uma expressão de amabilidade: — Sei que vai parecer um lugar-comum, mas para todos nós chega o momento de nos afastarmos das áreas mais ativas de nosso trabalho. Quero ser honesto com o senhor.

Bray sorriu, um sorriso amargo.

— Sempre fico nervoso quando alguém me diz isso.

— Isso o quê?

— Que quer ser honesto. É como se a honestidade não fosse algo que normalmente devêssemos esperar.

— Eu estou sendo honesto.

— E eu também. E se acaso está pensando que vou me rebelar está enganado. Vou deixá-los de modo rápido e discreto.

— Mas não queremos que faça isso — retrucou Congdon, inclinando-se para a frente, os cotovelos sobre a mesa.

— É?

— Naturalmente que não. Um homem com sua folha é extremamente valioso para nós. As crises vão continuar a aparecer, e gostaríamos de poder contar com sua perícia.

Scofield estudou seu interlocutor.

— Mas não no campo de ação. Era uma afirmação.

— Não, não oficialmente. E naturalmente vamos querer estar a par do seu paradeiro, de suas viagens.

— Aposto que vão — disse Bray baixinho. — Mas oficialmente minha carreira está encerrada.

— Sim. Contudo, isso é confidencial, um assentamento Quatro-Zero.

Scofield não se moveu. Tinha a sensação de que estava em ação, preparando-se para uma troca arriscada.

— Espere um instante, deixe-me entender bem. O senhor quer me afastar do serviço, mas sem que ninguém saiba disso. E, embora eu esteja oficialmente desligado, quer que mantenha contato em base permanente.

— Seus conhecimentos nos são valiosos, e o senhor sabe disso, E acho que estaremos pagando muito bem por eles.

— Então, por que o assentamento Quatro-Zero?

— Julguei que isso lhe agradaria. O senhor conservará certo status sem responsabilidades oficiais. Continuará parte da unidade.

— Gostaria de saber o porquê dessa solução.

— Mas que diabos... — Congdon calou-se com um sorriso ligeiramente embaraçado. — É que realmente não desejamos perdê-lo.

— Então por que me afastam?

O sorriso desapareceu do rosto do subsecretário.

— Porque me pareceu melhor. Pode perguntar a um velho amigo seu, Robert Winthrop. Disse-lhe a mesma coisa.

— Winthrop? Que disse a ele?

— Que não o quero mais por aqui. E estou disposto a pagar e modificar seus registros para que se afaste. Ouvi suas declarações em Amsterdam. Charles Englehart gravou suas palavras.

Bray assobiou baixinho.

— O velho Charlie... Devia ter adivinhado.

— Pensei que tivesse. Pensei que estivesse nos enviando um recado particular. De qualquer forma, nós o recebemos. Temos muito o que fazer e sua obstinação e seu cinismo são desnecessários aqui.

— Finalmente estamos chegando a algum lugar.

— Mas tudo o mais é verdade. Precisamos de seus conhecimentos. Precisamos poder entrar em contato com o senhor a qualquer tempo. O senhor precisa manter contato conosco.

Bray fez um gesto de assentimento.

— E o assentamento Quatro-Zero significa que meu afastamento é ultraconfidencial. O resto do pessoal não saberá que fui desligado.

— Isso mesmo.

— Está certo — disse Scofield pegando um cigarro no bolso. — Acho que está se dando muito trabalho desnecessário para me manter na reserva, mas, como o senhor mesmo disse, está pagando para isso. Uma simples ordem de ação — afastado até rescisão, categoria especial — obteria o mesmo resultado.

— Não. Provocaria perguntas demais. Assim é mais fácil.

— É mesmo? — Bray acendeu o cigarro, os olhos sorridentes. — Está bem.

— Ótimo. — Congdon remexeu-se na cadeira. — Estou satisfeito por nos termos entendido. O senhor mereceu tudo que ganhou até hoje e estou certo de que continuará merecendo... Estava lendo sua ficha esta manhã: o senhor gosta do mar. Há centenas de assentamentos de contatos feitos em barcos à noite. Por que não experimenta navegar ao sol? Por que não vai para algum lugar como o Caribe gozar um pouco a vida? Eu o invejo.

Bray levantou-se. A entrevista chegara ao fim.

— Obrigado, talvez eu vá. Gosto de climas quentes — estendeu a mão e Congdon apertou-a. Nisso Scofield acrescentou: — Sabe, essa história de assentamento Quatro-Zero me deixaria nervoso se não me tivessem chamado aqui.

— Que está querendo dizer? — as mãos continuaram apertadas, mas imobilizadas.

— Bem, nossos homens não saberão que fui afastado, mas os soviéticos sim, e não me incomodarão mais. Quando alguém como eu é afastado de ação, tudo muda: contatos, códigos, cifras, locais de encontro, nada permanece igual. Eles conhecem as regras e vão deixar-me em paz. Muito obrigado.

— Não estou entendendo muito bem — disse o subsecretário.

— Ora, vamos, já disse que estou grato. Ambos sabemos que agentes da KGB em Washington mantêm as câmaras focalizadas neste local vinte e quatro horas por dia. Nenhum especialista que deverá continuar em ação é chamado aqui. Já faz uma hora que eles sabem que fui afastado. Outra vez obrigado, Sr. Congdon. Foi muita consideração de sua parte.

Sob o olhar do diretor das Operações Consulares, subsecretário de Estado, Scofield atravessou a sala e fechou a porta atrás de si.

Estava acabado. Tudo. Nunca mais teria de voltar correndo para algum anti-séptico quarto de hotel para ver se chegara alguma mensagem cifrada. Não seria mais necessário planejar três mudanças de veículos para ir do ponto A ao ponto B. Apesar de ter mentido a Congdon, era bem provável que os soviéticos já soubessem, a essa altura, que ele fora afastado. Se ainda não sabiam, logo iriam saber. Após alguns meses de inatividade, a KGB compreenderia que ele deixara de ser útil. As normas eram imutáveis: as táticas e os códigos seriam alterados. Os soviéticos deixá-lo-iam em paz. Não o matariam.

Mas tivera de mentir a Congdon, nem que só para ver a expressão de seu rosto. “Gostaríamos de manter esse assunto confidencial, um assentamento Quatro-Zero.” O homem era tão transparente... Acreditava mesmo ter criado o clima propício para a execução de seu próprio agente, um homem que considerava perigoso. Um agente supostamente ativo seria assassinado pelos soviéticos, e o Departamento de Estado negaria qualquer responsabilidade, afirmando sem dúvida que o morto rejeitara as medidas de segurança.

Os cretinos não mudavam nunca, mas sabiam muito pouco. Execuções desse tipo eram inúteis, as repercussões, com freqüência, perigosas demais. Matava-se sempre com algum motivo: descobrir alguma coisa, remover um elo vital numa cadeia, para evitar algum acontecimento. Ou para dar determinada lição. Mas sempre com algum motivo.

Exceto em circunstâncias como as de Praga, e mesmo aquilo poderia ser considerado uma lição. Um irmão por uma esposa.

Mas tudo estava acabado. Não precisava mais planejar estratégias, nem tomar decisões que resultassem na defecção ou na volta de alguém, vivo ou morto. Estava acabado.

Talvez agora até mesmo os quartos de hotéis, as camas fedorentas de pensões decadentes em bairros de má fama numa centena de cidades tivessem fim: estava tão cansado delas. Detestara todas elas. Com a exceção de um curto e único período — curto demais, terrivelmente curto —, há vinte e dois anos não residia num local que pudesse considerar um lar.

Mas aquele período dolorosamente curto, vinte e sete meses dentro de uma vida inteira, fora o bastante para sustentá-lo através da agonia de milhares de pesadelos. As lembranças nunca o deixavam; elas o manteriam de pé; o sustentariam até o dia de sua morte.

O pequenino apartamento em Berlim Ocidental fora o ninho de sonhos, amor e riso que nunca julgara poder conhecer. Sua linda Karine, sua adorável Karine, de olhos grandes e curiosos, do riso que brotava de dentro, dos momentos silenciosos em que o tocava. Ela era dele, e ele era dela, e então...

Morte na Unter den Linden.

Oh, Deus! Um telefonema e uma senha. O marido precisava dela. Desesperadamente. Procure certo guarda, atravesse a fronteira. Depressa!

E um porco da KGB certamente rira. Até Praga. Depois de Praga ele deixara de rir.

Scofield sentiu os olhos arderem. Umas poucas e súbitas lágrimas tinham feito contato com o vento noturno. Ele enxugou-as com a luva e atravessou a rua.

Do outro lado, na fachada iluminada de uma agência de viagens, cartazes mostravam corpos idealizados e irreais bronzeando-se ao sol. Aquele amador de Washington, Congdon, estava certo num ponto: o Caribe era uma boa idéia. Nenhum serviço secreto de respeito mandava agentes para as ilhas do Caribe com receio de perdê-los. Uma vez nas ilhas, os soviéticos saberiam que ele estava fora de ação. Há muito tempo desejava passar umas férias nas ilhas Granadinas. Por que não agora? No dia seguinte de manhã ele...

O vulto refletia-se no vidro — minúsculo, obscuro, lá do outro lado da larga avenida, quase imperceptível. Bray não o teria notado se o homem não se tivesse desviado do caminho para evitar a claridade de um poste. Quem quer que fosse, queria a proteção das sombras. Quem quer que fosse, o estava seguindo. E era bom profissional. Nada de movimentos abruptos, saltos repentinos para fugir da luz. O andar era casual, desembaraçado. Scofield perguntou-se se seria alguém treinado por ele.

Apreciava o profissionalismo, e teria elogiado o homem, com votos de que lhe confiassem um alvo mais fácil da próxima vez. O Departamento de Estado não queria perder tempo. Congdon devia estar aflito à espera dos relatórios. Bray sorriu. Forneceria a primeira notícia ao subsecretário. Não a que ele desejava, mas a que merecia.

O divertimento começou, uma curta pavana entre profissionais. Scofield afastou-se da vitrina da loja aumentando o passo até chegar à esquina onde os círculos de luz dos quatro postes de iluminação sobrepunham-se uns aos outros. Ali dobrou abruptamente para a esquerda como se pretendesse voltar à outra calçada, mas deteve-se no meio da rua. Parou no asfalto e olhou para cima, para a placa da rua — um homem confuso, incerto quanto a seu paradeiro. Então, virou-se e voltou para a calçada, aumentando a velocidade até que estava praticamente correndo ao atingir o meio-fio. Seguiu pela calçada até a primeira loja apagada e então mergulhou na escuridão da entrada e esperou.

Através dos vidros da vitrina, tinha uma visão clara da esquina. O homem que o seguia teria de entrar agora nos círculos de luz. Não os poderia evitar, sua presa estava escapando. Não havia tempo para procurar sombras.

Foi o que aconteceu. O vulto de sobretudo atravessou esbaforido a avenida e seu rosto foi atingido pela luminosidade.

Seu rosto foi atingido pela luminosidade.

Scofield imobilizou-se. Os olhos doíam, o sangue subiu-lhe à cabeça. Todo o corpo tremia, e sua parte racional tentou desesperadamente controlar a ira e a angústia que se tinham apoderado dele. O homem na esquina não era do Departamento de Estado. O rosto iluminado não pertencia a ninguém que tivesse a mais remota ligação com o serviço secreto americano.

Pertencia a um agente da KGB. KGB — seção de Berlim Oriental.

Era um dos rostos da meia dúzia de fotografias que ele estudara em Berlim dez anos antes — estudara até saber de cor cada traço, cada fio de cabelo.

Morte na Unter den Linden. Sua bela Karine, sua adorável Ka-rine. Apanhada à traição no outro lado da fronteira numa emboscada armada pelo assassino mais sujo de toda a URSS: V. Taleniekov, um animal.

Esse era um daqueles homens. Daquela unidade. Um dos carrascos de Taleniekov.

Aqui! Em Washington! Alguns minutos após seu desligamento!

Então a KGB já sabia. E alguém em Moscou decidira dar um fim espetacular ao desligamento de Beowulf Agate. Só um homem era capaz de pensar com tal precisão. V. Taleniekov. Um animal.

Sem afastar os olhos do homem através dos vidros, Bray decidiu o que ia fazer, o que tinha de fazer. Mandaria uma última mensagem a Moscou. Seria um marco apropriado, um gesto final para assinalar o término de uma vida e o início de outra — qualquer que fosse.

Ele atrairia o assassino da KGB a uma. emboscada. E o mataria.

Scofield deixou o portal e, correndo em ziguezague, atravessou a rua deserta. Podia ouvir atrás de si os passos de alguém que o seguia.

 

O avião da Aeroflot que fazia o vôo noturno Moscou — Sebastopol aproximava-se do mar de Azov, a Nordeste da Criméia. Deveria chegar ao destino à uma da madrugada, dali a pouco mais de uma hora. A aeronave estava cheia; os passageiros, em sua maioria, jubilosos, em férias de fim de ano, longe das fábricas e escritórios. Uns poucos militares — soldados e marinheiros — estavam menos exuberantes: para eles, o mar Negro não significava férias, mas a volta ao trabalho nas bases aéreas e navais. Esses já tinham gozado suas licenças em Moscou.

Num dos últimos bancos via-se um homem segurando firmemente entre os joelhos uma caixa de violino de couro escuro. Suas roupas baratas e amarrotadas estavam em desacordo com o rosto forte e os olhos claros e penetrantes que pareciam pertencer a outro nível. Seus documentos identificavam-no como Pietre Rydukov, músico. Seu passe de vôo declarava apenas que pretendia juntar-se à Orquestra Sinfônica de Sebastopol como terceiro violinista.

Ambas as informações eram falsas. O homem era Vasili Taleniekov, perito estrategista do Serviço Secreto Soviético.

Ex-perito estrategista. Ex-diretor de operações da KGB — em Berlim Ocidental, Varsóvia, Praga, Riga e Setores do Sudoeste que abrangiam Sebastopol, o Bósforo, o mar de Marmara e os Dardanelos. Fora nesse último posto que obtivera os papéis que lhe haviam permitido tomar o avião para Sebastopol. Aquele era o início de sua fuga da Rússia.

Em sua atividade profissional, descobrira e destruíra dúzias de rotas de fuga utilizadas pelos que queriam deixar a União Soviética. Agia implacavelmente, na maioria das vezes matando os agentes do Ocidente que as tinham aberto e induzido descontentes a trair a Rússia com mentiras e promessas de dinheiro. Sempre dinheiro. Ele nunca vacilara em sua guerra a esses mentirosos incitadores de cobiça; nenhuma rota de escape era demasiado insignificante para escapar à destruição.

Exceto uma. Uma pequena rede de fuga através do Bósforo e o mar de Marmara. Ele a descobrira vários meses antes, durante suas últimas semanas como diretor dos Setores do Sudoeste da KGB Soviética. Durante os dias em que tivera de enfrentar atritos diários com idiotas impulsivos das bases militares e driblar ordens imbecis da própria Moscou.

Na época, não soubera ao certo por que não liquidara a rede. Durante algum tempo, convencera-se de que, deixando que ela funcionasse sob estrita vigilância, poderia chegar a peixes maiores. Entretanto, lá no fundo, soubera que a verdade” era outra.

Sua hora estava se aproximando. Estava fazendo um número excessivo de inimigos num número excessivo de lugares. Poderia haver pessoas que achassem que uma aposentadoria tranqüila ao Norte de Grasnov não era a solução adequada para alguém que conhecia todos os segredos da KGB. E agora ele conhecia outro segredo, mais assustador que qualquer outro que o Serviço Secreto Soviético pudesse imaginar. O Matarese. E aquele segredo o estava levando para fora da Rússia.

Tudo acontecera muito depressa, pensou Taleniekov, saboreando o chá quente trazido pelo comissário de bordo. Muito depressa. O diálogo junto ao leito de morte do velho Aleksie Krupskaya, os fatos assombrosos revelados pelo moribundo. Assassinos enviados para executar a elite de uma nação — de duas nações. Jogando os soviéticos contra os americanos. Até controlar um país ou o outro. Um premier e um presidente, um deles ou ambos na alça de mira. Quem seriam eles? O que era aquela febre que começara nas primeiras décadas do século na Córsega? A febre corsa. O Matarese.

Mas ele existia — e estava funcionando — bem vivo e mortal. Agora sabia disso. Falara seu nome e por ter falado colocara em movimento um plano que visava sua prisão; cedo viria a sentença de execução.

Krupskaya dissera-lhe que procurar o premier estava fora de questão; sendo assim, ele se dirigira a quatro antigos líderes do Kremlin, outrora poderosos e agora generosamente aposentados, o que significava que ninguém os ousaria tocar. A cada um falara sobre o estranho fenômeno denominado Matarese, repetindo as palavras sussurradas pelo Istrebiteli moribundo.

Um deles obviamente nada sabia e ficara tão assombrado quanto o próprio Taleniekov. Dois outros nada admitiram, mas foram traídos pelos olhares e vozes assustados com que protestaram ignorância. Nenhum deles quis participar da divulgação de tal loucura e ambos expulsaram Vasili de suas casas. O último homem, um nativo da Geórgia, era o mais velho dos quatro — mais velho que o falecido Krupskaya — e, apesar da postura empertigada, teria pouco tempo para aproveitar a espinha ainda rígida. Tinha noventa e seis anos e uma mente lúcida que, entretanto, foi rapidamente dominada pelo medo. À menção do nome Matarese, as mãos magras cheias de veias tremeram e minúsculos espasmos sacudiram-lhe o rosto encarquilhado. A garganta ficou subitamente seca, a voz faltou-lhe e mal conseguiu fazer-se ouvir.

Aquele nome estava enterrado no passado remoto, sussurrara o velho georgiano, e ninguém deveria ouvi-lo. Ele sobrevivera aos primeiros expurgos, sobrevivera ao louco Stalin, ao insidioso Beria, mas ninguém conseguiria sobreviver ao Matarese. Em nome de tudo que era sagrado para a Rússia, suplicara o aterrorizado ancião, afaste-se do Matarese!

— Nós fomos uns idiotas, mas não os únicos. Homens poderosos em todo o mundo foram seduzidos pela fantástica conveniência de verem inimigos e obstáculos eliminados. A garantia era absoluta, nenhum indício ligava as execuções aos mandantes. As negociações referindo-se a compras fictícias eram sempre feitas através de quatro ou cinco intermediários que desconheciam a natureza das transações. Krupskaya percebera o perigo. Em 48, advertiu-nos para que nunca mais fizéssemos contato com eles.

— Mas por que ele teria dito isso? — perguntara Vasili. — Eles não eram eficientes?

— Porque os Matareses acrescentaram uma condição: o Conselho Matarese exigia a prerrogativa de aprovação. Foi o que me disseram.

— Essa é uma exigência habitual dos assassinos de aluguel — retrucara Taleniekov. — Alguns alvos são simplesmente inatingíveis.

— A aprovação prévia nunca fora exigida antes. Krupskaya achava que essa aprovação nada tinha a ver com a exeqüibilidade da tarefa.

— De que dependia, então?

— Seu fito era a extorsão.

— Como faziam contato com esse Conselho?

— Eu nunca soube, nem Aleksie.

— Mas alguém tinha de saber.

— Se essas pessoas ainda estão vivas, nunca falarão. Krupskaya tinha razão.

— Ele apelidou a organização de “Febre Corsa” e sugeriu que eu talvez encontre as respostas na Córsega.

— é possível. Foi lá que tudo começou com o maníaco corso Guillaume de Matarese.

— O senhor ainda exerce influência sobre os líderes do Partido. Quer me ajudar? Krupskaya disse-me que esse Matarese deve ser...

— Não! — berrara o ancião. — Deixe-me em paz! Já disse mais do que devia, admiti mais do que tinha o direito de admitir. Mas apenas como uma advertência, para detê-lo! O Matarese não pode fazer nenhum bem à Rússia! Afaste-se dele.

— O senhor não me entendeu. Sou eu quem quer detê-los... a esse tal Conselho Matarese. Dei minha palavra a Aleksie que...

— Você não me disse nada! — gritara o encarquilhado e outrora poderoso líder, a voz infantilizada pelo pânico. — Negarei que tenha estado aqui, negarei tudo que disser! Você é um estranho, e não o conheço!

Perturbado, perplexo, Vasili saíra. Voltara ao apartamento com a idéia de passar a noite analisando aquele enigma que era o Matarese, tentando decidir o próximo passo. Como de hábito, dera uma olhada na caixa de correspondência e chegara mesmo a dar-lhe as costas antes de perceber que havia alguma coisa lá dentro.

Era um bilhete do seu contato na VKR, escrito num dos códigos previamente combinados entre eles. As palavras eram inócuas: uma resposta positiva a um convite para uma ceia às llh30min assinada com um prenome feminino. A banalidade do bilhete ocultava uma emergência: surgira uma novidade importante. Ele não deveria perder tempo fazendo contato, seu amigo estaria à espera no lugar combinado.

Ele já estivera lá antes. Um piva kafe perto da Universidade Estadual de Lomonosov, um bar barulhento em sintonia com a nova permissividade estudantil. Os dois homens dirigiram-se aos fundos do estabelecimento. Ali o contato não perdeu nenhum segundo para abordar o problema.

— Você precisa ir embora, Vasili. Está na lista negra deles. Não entendo, mas é o que consta.

— Será por causa do judeu?

— É, sim, e isso não faz o menor sentido! Quando deram aquela entrevista idiota à imprensa em Nova York, todos nós da divisão demos boas risadas. Mais uma surpresa de Taleniekov, dissemos. Até um chefe de seção do Grupo Nove disse que admirara o que você tinha feito, que você dera uma boa lição àquelas cabeças, de asno impulsivos. Então, ontem, tudo mudou. O que você fez deixou de ser piada para transformar-se em grave interferência com nossa política básica.

— Ontem? — perguntara Vasili ao amigo.

— No final da tarde. Depois das quatro horas. Aquela diretora filha da puta percorreu as salas como uma gorila no cio que tivesse farejado uma curra e estivesse adorando a idéia. Ordenou a todos os homens da divisão que fossem ao escritório às cinco horas. Ficamos pasmos ao ouvirmos o que ela tinha a dizer. Era como se fosse você pessoalmente responsável por todos os fracassos que tivemos nos dois últimos anos. Todos aqueles loucos do Grupo Nove estavam lá, menos o chefe da seção.

— Quanto tempo me resta?

— Calculo no máximo uns três ou quatro dias... Eles estão reunindo provas incriminadoras contra você. Mas na moita, o assunto não deve nem ser comentado.

— Ontem, é... ?

— Que aconteceu, Vasili? Não me parece coisa da VKR, trata-se de algo diferente.

Esse algo diferente, como Vasili instantaneamente percebeu, é que fora justamente na véspera que ele procurara os dois antigos funcionários do Kremlin que o tinham expulso de suas casas. Esse algo diferente era o Matarese.

— Um dia lhe conto, meu amigo — respondera Vasili. — Con­fie em mim.

 

— Naturalmente. Você é nosso melhor homem. O melhor que já tivemos.

— Agora, preciso de umas trinta e seis, talvez quarenta e oito horas. Será que as terei?

— Acho que sim. Eles querem sua cabeça, mas serão cautelosos. Vão documentar-se o máximo possível.

— Acredito. Precisarão de um necrológio para ler no enterro. Obrigado. Você terá notícias minhas.

Vasili não voltou ao apartamento. Foi para o escritório onde ficou horas sentado no escuro até chegar àquela extraordinária decisão. Horas antes, tal hipótese nem entraria em cogitação, mas agora era diferente. Se o Matarese era capaz de corromper os mais altos escalões da KGB, poderia fazer o mesmo em Washington. Se a mera menção de tal nome provocara uma sentença de morte para um estrategista do seu nível — e não havia engano possível, o objetivo era sua eliminação —, então eles possuíam um poder inimaginável. Se na verdade o Matarese fora responsável pelos assassinatos de Blackburn e Yurievich, então Krupskaya tinha razão. Havia um cronograma que já estava em execução, e a alça da mira já se dirigia para o presidente ou o premier. Ele precisava entrar em contato com um homem que detestava. Tinha de encontrar Brandon Scofield, o assassino americano.

De manhã, Taleniekov tomou as primeiras providências. Com sua habitual — ainda que agora cerceada — liberdade de ação, espalhou discretamente a notícia de que iria incógnito ao mar Báltico para uma conferência. Em seguida, vasculhou os arquivos da Sociedade de Proteção aos Músicos até encontrar um nome que lhe serviria: o de um violinista que se aposentara cinco anos antes e fora para os montes Urais. Por último, acionara os computadores à procura de uma pista do paradeiro de Brandon Scofield. O americano evaporara-se em Marselha, mas acontecera em Amsterdam um incidente com o selo inconfundível da perícia de Scofield. Vasili enviou uma mensagem cifrada para um agente em Bruxelas, um homem em quem podia confiar, alguém a quem salvara a vida mais de uma vez.

“Procure Scofield, condições brancas. Amsterdam. Absolutamente necessário fazer contato. Não o perca. Investigue situação códigos setor Sudoeste.”

Tudo acontecera muito depressa e Taleniekov sentia-se grato pelos anos que lhe haviam possibilitado tomar decisões rápidas. Sebastopol ficava a menos de uma hora de distância. Em Sebastopol — e mais além — aqueles anos de experiências árduas iam ser testados.

 

Reservou um quarto num pequeno hotel do Bulevar Chervonesus e em seguida telefonou para um número na sede da KGB em que as conversações não eram gravadas. Ele próprio instalara o aparelho.

A VKR em Moscou ainda não dera o alarme à sua procura. Isso ele verificou pela acolhida calorosa, condizente com a volta de um velho amigo.

— Para ser franco — disse ele ao funcionário de plantão, antigo colega —, estamos tendo novos problemas com a VKR. Eles tornaram a interferir com nossas operações. Talvez vocês recebam um teletipo me convocando. Nesse caso, vocês não tiveram notícias minhas, está certo?

— Não haverá problema se não aparecer por aqui. Você ligou para o número certo. Vai manter a identidade falsa?

— Sim. Não há necessidade de incomodá-lo com meu paradeiro. Estamos ocupados investigando um comboio de caminhões que se dirige para Odessa e depois segue para o Sul através das montanhas. Parece que é uma rede da CIA.

— Isso é bem mais fácil que pescar barcos no Bósforo. Por falar nisso, esse seu projeto tem alguma ligação com Amsterdam?

Taleniekov surpreendeu-se. Não esperara uma resposta tão rápida do seu agente naquele local.

— É possível. O que sabe a respeito?

— Chegou uma mensagem há duas horas. Só agora acabou de ser decifrada. Nosso criptógrafo, o homem que você trouxe de Riga, reconheceu um velho código de seu uso particular. íamos mandá-la para Moscou com os despachos matutinos.

— Não é necessário — disse Vasili. — Leia para mim.

— Espere um pouco. — Houve um ruído de papéis. — Aqui está. “Beowulf retirado de órbita. Nuvens sobre Washington. Sendo imperativo, prosseguirei busca e farei contato branco. Telegrafe instruções estação capitólio.” É só.

— E é o bastante — retrucou Taleniekov.

— Parece importante, Vasili. Um contato branco? Pelo jeito, você conseguiu uma defecção de alto nível. Que ótimo! Isso tem relação com a sua investigação?

— Creio que sim — mentiu Taleniekov. — Mas não espalhe. Mantenha a VKR longe disso.

— Com prazer. Quer que telegrafemos a resposta para você?

— Não — replicou Vasili. — Eu mesmo posso fazê-lo. É coisa de rotina. Telefonarei de novo esta noite, lá pelas nove e meia. Deve dar tempo. Dê lembranças ao meu velho amigo de Riga. Mas a ninguém mais. E obrigado.

— Quando terminar sua sindicância, vamos jantar juntos. é um prazer tê-lo de volta a Sebastopol.

— É um prazer estar de volta. Conversaremos depois.

Taleniekov desligou e concentrou-se na mensagem de Amsterdam. Scofield fora chamado a Washington em circunstâncias anormais. Beowulf Agate provocara uma tempestade no Departamento de Estado. Só esse fato bastava para levar um agente em Bruxelas a lançar-se numa perseguição transatlântica, apesar das despesas.

Um contato em condições brancas significava uma trégua momentânea, e uma trégua em geral significava que alguém estava prestes a tomar uma decisão drástica. E, se existia a mais remota possibilidade de que o lendário Scofield estivesse pensando em passar-se para os russos, o risco valia a pena. O homem que conseguisse a deserção de Beowulf Agate teria todo o Serviço Soviético de Informações a seus pés.

Mas uma defecção era impossível para Scofield... tanto quanto para ele. O Inimigo era o Inimigo, e nada mudaria isso.

Vasili pegou o fone outra vez. Existia no distrito de Lazarev, na zona portuária, um telefone de plantão utilizado por homens de negócios gregos e iranianos para enviar telegramas a seus escritórios no exterior. Se usasse as palavras certas, conceder-lhe-iam prioridade sobre o tráfego usual, e dentro de algumas horas seu telegrama chegaria à “estação do capitólio”: um hotel na Nebraska Avenue em Washington, D.C.

Ele encontraria Scofield em território neutro, em algum lugar onde nenhum dos dois pudesse tirar vantagem do local. Talvez no salão de embarque de uma linha aérea em que as medidas de segurança eram severíssimas. Em Berlim ou em Tel Aviv, não impor-tava, a distância era irrelevante. Mas os dois tinham de se encontrar e Scofield precisava ser convencido da necessidade desse encontro. A mensagem cifrada para Washington instruía o agente de Bruxelas para transmitir a Beowulf Agate o seguinte recado:

 

Nós permutamos sangue que nos era muito caro. Na verdade, perdi mais do que você, embora você não pudesse saber disso. Agora existe quem nos queira culpar por matanças internacionais em tal escala que não nos ê possível sancionar. Precisamos trocar idéias — por mais odioso que isso nos possa ser. Escolha um terreno neutro numa área de segurança de um aeroporto — sugiro a El Al em Tel A viv, ou a linha doméstica alemã em Berlim Ocidental. O mensageiro saberá como me alcançar.

Você sabe meu nome.

 

Eram quase quatro horas da madrugada quando ele fechou os olhos. Não dormia há quase três dias e o sono veio longo e pesado. Adormeceu antes que surgisse qualquer indício de sol no Leste e só acordou uma hora depois que esse se pusera a Oeste. Isso era ótimo. Sua mente e seu corpo necessitavam daquele descanso, e a pessoa que viera procurar em Sebastopol só era acessível à noite.

Ainda faltavam três horas para que o funcionário de plantão chegasse à KGB, e era melhor não envolver mais ninguém na sede. Quanto menos gente soubesse que ele estava na cidade, melhor. O criptógrafo naturalmente sabia, deduzira o fato da mensagem de Amsterdam, mas não diria nada. Taleniekov o havia treinado e transferido o jovem inteligente da vida austera de Riga para a vida mais livre de Sebastopol.

O intervalo de tempo seria bem empregado, pensou Vasili. Comeria e depois tomaria providências para seguir a bordo de um cargueiro grego que atravessaria o mar Negro e, seguindo ao longo da costa sul, atravessaria o estreito de Bósforo, para chegar aos Dardanelos. Se algum membro das unidades gregas ou iranianas a soldo da CIA ou da SAVAK o reconhecessem — o que era bem possível — sua atitude seria inteiramente profissional. Como diretor anterior daquele setor da KGB, não denunciara a rota de fuga por motivos pessoais. Entretanto, se um músico chamado Pietre Rydukov não desse um telefonema para Sebastopol dentro de dois dias após sua partida, uma denúncia seria feita, e as represálias da KGB seguir-se-iam. Seria uma pena: outros homens talentosos, portadores de dons e informações valiosos, poderiam querer utilizar a rota mais tarde.

Taleniekov colocou o sobretudo comum, mal-cortado, e o chapéu surrado. Deixou cair os ombros, curvou a espinha e acrescentou uns óculos de aro de metal. Depois consultou o espelho: sua aparência era satisfatória. A caixa de couro do violino completou o disfarce, pois músico algum deixaria seu instrumento no quarto de um hotel estranho. Saindo para o corredor, desceu as escadas — nunca usava o elevador — e seguiu pelas ruas de Sebastopol. Iria a pé até a zona portuária; sabia aonde ir e o que dizer.

 

O nevoeiro vindo do mar enovelava-se através dos fachos luminosos dos holofotes do cais. Era grande ali a atividade — o cargueiro estava sendo carregado. Guindastes gigantescos levavam enormes vagões de mercadorias para o bojo do navio. Os estivadores eram russos supervisionados por gregos. Soldados circulavam entre eles, as armas casualmente penduradas nos ombros, patrulheiros ineficientes mais interessados em acompanhar o trabalho das máquinas do que em procurar irregularidades.

Se eles quisessem mesmo saber, refletiu Vasili ao se aproximar do oficial junto ao portão de entrada, ele poderia contar-lhes. As irregularidades estavam nos imensos fardos que os guindastes levavam para o interior do navio: homens e mulheres acondicionados em papelão picado, tubos ligando suas bocas a furos de ventilação onde necessários, tendo recebido instruções para esvaziar a bexiga e o intestino horas antes, pois só poderiam aliviá-los bem depois da meia-noite, quando estivessem em mar alto.

O oficial da entrada era um jovem tenente entediado com o seu trabalho, o rosto revelando irritação. Franziu a testa ao ver o velho curvado, de óculos, dirigir-se a ele.

— O que está querendo? Só é permitida a entrada aos que tiverem um passe — e apontando para a caixa do violino: — O que é isso?

— Meu ganha-pão, tenente. Faço parte da Sinfônica de Sebastopol.

— Que eu saiba, não há nenhum concerto programado no cais.

— Seu nome, por favor? — disse Vasili em tom casual.

— O quê?

Taleniekov endireitou os ombros e gradualmente assumiu postura habitual.

— Eu perguntei seu nome, tenente.

— Para quê?

O oficial mostrava-se agora um pouco menos hostil. Vasili tirou os óculos e fitou com severidade seu rosto atônito.

— Para uma recomendação ou uma repreensão, depende.

— Do que está falando? Quem é o senhor?

— KGB. Sebastopol. Isso é parte de uma inspeção da zona portuária.

O jovem tenente hesitou polidamente; não era tolo.

— Infelizmente, não fui informado, senhor. Terei de pedir-lhe a identificação.

— Se não pedisse, levaria a primeira repreensão — replicou Taleniekov, pegando no bolso o cartão da KGB. — A segunda virá se falar sobre minha presença aqui essa noite. Seu nome, por favor.

O tenente obedeceu e depois ajuntou:

— Seu pessoal suspeita de algum problema por aqui? — ele examinou o cartão e devolveu-o.

— Problema? — Taleniekov sorriu bem-humorado com um olhar de conspirador. — O único problema, tenente, é que estou perdendo uma ceia agradável na companhia de uma bela senhora. Acho que os novos diretores sentem-se obrigados a merecer seus rublos. Sua gente está fazendo um bom trabalho; eles sabem disso, mas não o querem admitir.

Aliviado, o jovem oficial devolveu o sorriso.

— Obrigado, senhor. O serviço é monótono, mas é feito da melhor forma possível.

— Mas não mencione minha presença aqui, eles fazem questão disso. Dois oficiais da guarda foram repreendidos na semana passada. — Vasili tornou a sorrir: — No segredo repousa a segurança de nossos diretores. E seus postos.

O tenente riu.

— Compreendo. O senhor traz uma arma nessa caixa?

— Não. Na verdade, trata-se de um violino muito bom. Gostaria de saber tocá-lo.

Com uma inclinação de cabeça, Taleniekov abriu caminho entre a balbúrdia dos estivadores, supervisores e maquinaria. Estava procurando um certo encarregado, um grego de Kavalla chamado Zaimis. Isto é, estava procurando um homem de sangue grego, filho de uma mulher de sobrenome Zaimis, mas de cidadania americana.

Karras Zaimis era um agente da CIA, ex-chefe de estação em Salônica e agora encarregado da expedição da rota de fuga. Vasili conhecia o rosto do agente através de várias fotografias que removera dos arquivos da KGB. Correu os olhos pelos trabalhadores, por entre o nevoeiro e a luz dos holofotes. Não conseguiu localizar seu homem.

Taleniekov forçou passagem por entre turmas de estivadores resmungões e a maquinaria em movimento e dirigiu-se ao imenso armazém de carga. Dentro do enorme galpão, a luz era fraca, as luminárias protegidas por redes de aço altas demais para serem eficientes. Fachos de luz de lanterna cruzavam os fardos: eram homens verificando os números. Por um instante, Vasili ficou imaginando quanto talento estava embalado naqueles caixotes, quanta informação estava sendo levada para fora da Rússia. Na verdade, bem pouca, pensou. Aquela era uma rota de fuga de pequena importância; acomodações mais confortáveis aguardavam os portadores de grande talento ou informações valiosas.

A postura curvada reduzindo a velocidade de sua marcha, os óculos novamente no lugar, pediu licença e passou por um encarregado grego que discutia com um trabalhador russo. Seguiu para o fundo do armazém, desviando-se de pilhas de volumes e carros de carga, examinando os rostos dos que seguravam as lanternas. Estava começando a irritar-se, não tinha tempo a perder. Onde estava Zaimis? Não houvera nenhuma alteração na situação: o cargueiro era o transporte, o agente ainda o chefe. Lera todos os relatórios vindos de Sebastopol — a rota de fuga nunca fora mencionada. Onde estava o homem?

De repente, Taleniekov sentiu um espasmo de dor quando o cano de uma arma se enterrou cruelmente em seu rim esquerdo. Dedos fortes agarraram o tecido do seu sobretudo, maltratando a carne que recobria suas costelas inferiores e empurrando-o para um corredor deserto. Num sussurro áspero, ele ouviu em inglês:

— Não vou me dar ao trabalho de falar grego ou tentar me fazer entender em russo. Disseram-me que seu inglês é tão bom quanto o de qualquer um em Washington.

— Consideravelmente melhor que o da maioria — retrucou Vasili entre os dentes. — Você é Zaimis?

— Nunca ouvi falar nele. Pensávamos que você não estava mais em Sebastopol.

— E não estou. Onde está Zaimis? Preciso falar com ele.

O americano ignorou a pergunta.

— É preciso reconhecer que você tem culhões. Não há ninguém da KGB nos próximos dez quarteirões.

— Tem certeza disso?

— Total. Temos um bando de corujas espalhadas por aí. Elas vêem no escuro. Viram você. Que idéia idiota, uma caixa de violino!

— Elas patrulham o mar, também?

— Temos gaivotas fazendo isso.

— Vocês são uns pássaros muito bem organizados.

— E você é menos inteligente do que dizem. O que acha que estava fazendo? Uma pequena inspeção particular?

Vasili sentiu a pressão em seu rim diminuir e ouviu o som abafado de um objeto saindo de uma borracha. Um frasco de medicamento. Uma agulha hipodérmica.

— Não faça isso! — disse ele em tom de comando. — Por que acha que vim aqui sozinho? Eu quero sair do país.

— E é justamente o que vai fazer. Meu palpite é que vai passar uns três anos num hospital na Virgínia sendo interrogado.

— Não! Você não entende! Preciso fazer contato com alguém, mas não dessa maneira.

— Conte isso aos médicos. Eles são muito bonzinhos. Vão ouvi-lo com muita paciência.

— Não há tempo! — Não havia tempo. Taleniekov sentiu o peso do homem deslocar-se. Num segundo, uma agulha lhe perfuraria as roupas e lhe penetraria na carne. Aquilo não podia acontecer! Ele não poderia falar com Scofield oficialmente.

“Ninguém ousará falar. A admissão seria catastrófica... para os governos em toda á parte.” O círculo Matarese.

Se Moscou queria destruí-lo, os americanos não hesitariam um minuto em silenciá-lo.

Vasili ergueu o ombro direito — um gesto de dor provocado pelo cano da arma em seu rim. Numa reação instantânea, o americano aumentou a pressão da pistola nas costas do outro, desviando, nessa fração de segundo, a pressão que exercia no gatilho para a coronha da arma. Taleniekov estava preparado para isso.

Girou para a esquerda, o braço descreveu uma curva e abateu-se sobre o cotovelo do americano, torcendo-o contra o quadril e que-brando-lhe o antebraço. Com os dedos da mão direita, Taleniekov golpeou o pescoço do outro, atingindo em cheio a traquéia. A pistola caiu no chão, o ruído abafado pelo burburinho do armazém. Vasili apanhou-a e empurrou o agente da CIA contra um caixão de mercadoria. Em sua dor, o americano ainda segurava frouxamente a seringa na mão esquerda, mas essa também caiu ao chão. Seus olhos estavam vidrados, mas não perdera a consciência.

— Agora você vai me escutar — disse Taleniekov, o rosto em frente ao rosto de Zaimis. — Há quase sete meses sei da sua “Operação Dardanelos”. Sei que você é Zaimis. Mas seu tráfico é medíocre, você não é importante. Contudo não foi essa a razão por que não o destruí. Achei que um dia você me poderia ser útil. Esse dia chegou. Você pode ou não aceitar.

— Taleniekov desertando? — replicou Zaimis, a mão no pescoço. — É impossível. Você pode querer fazer jogo duplo, mas desertar não.

— Tem razão. Não sou desertor. E se essa idéia inconcebível passasse um dia pela minha cabeça preferiria procurar os ingleses ou os franceses do que vocês. Disse que queria sair da Rússia, não traí-la.

— Você está mentindo — retrucou o americano, a mão descendo para a lapela da espessa jaqueta. — Você pode ir aonde quiser.

— Não neste momento. Receio que tenham surgido complicações.

— O que você fez? Virou capitalista? Embolsou fundos?

— Ora, vamos, Zaimis? Qual de nós não tem suas economiazinhas? E muitas vezes legítimas, os recursos podem tardar. Onde estão as suas? Eu não confiaria em Atenas, e Roma é instável demais. Meu palpite é Berlim ou Londres. As minhas, é fácil adivinhar: Chase Manhattan Bank, Nova York.

O homem da CIA, o polegar oculto atrás da lapela, não mudou de expressão.

— Então você foi apanhado — disse ele distraído.

— Estamos perdendo tempo! — rosnou Vasili. — Leve-me aos Dardanelos. De lá eu sigo sozinho. Se não quiser, se um certo telefonema não for recebido aqui em Sebastopol num determinado momento, sua operação será desmascarada. Você será...

Zaimis levou a mão rapidamente à boca. Taleniekov agarrou os dedos do agente e torceu-os para fora com violência. Grudada ao polegar do americano estava uma pequena cápsula.

— Seu idiota! O que pensa que estava fazendo?

Zaimis fez uma careta, a dor era excruciante.

— Prefiro acabar aqui do que em Lubyanka.

— Seu cretino! Se alguém tiver de ir para Lubyanka, esse alguém sou eu! Isso porque existem alucinados como você nos gabinetes lá em Moscou. E idiotas — também iguaizinhos a você — que preferem envenenar-se a ouvir a verdade! Se você quer morrer, eu lhe faço a vontade. Mas antes leve-me aos Dardanelos!

O agente, respirando com dificuldade, olhou surpreso para Taleniekov. Vasili soltou-lhe a mão depois de retirar a cápsula presa ao polegar.

— Você está falando sério, não está? — perguntou Zaimis.

— Estou. Vai me ajudar?

— Não tenho mais nada a perder — disse o agente. — Você irá no navio.

— Não se esqueça de que terei de telefonar para cá, lá dos Dardanelos. Senão você estará acabado.

Zaimis fez um gesto de assentimento.

— Certo. Negócio fechado.

— Negócio fechado — concordou Taleniekov.

 

O cubículo de blocos de concreto no armazém tinha dois telefones — instalados pelos russos e sem dúvida controlados eletronicamente pela CIA e pela SAVAK para evitar interceptações, pensou Vasili. Deviam ser seguros, ele poderia falar. O agente americano pegou um dos fones quando Taleniekov terminou de discar. No instante em que atenderam, Vasili falou.

— é você, meu velho camarada?

Era e não era. Não era o encarregado do posto com quem falara antes, mas o criptógrafo que Taleniekov treinara trinta anos antes em Riga e levara para Sebastopol. O homem respondeu em voz baixa e ansiosa.

— Nosso amigo mútuo foi chamado à sala de códigos. Ficou combinado que eu esperaria seu telefonema. Preciso vê-lo imediatamente. Onde você está?

Zaimis estendeu o braço e seus dedos machucados taparam o bocal do fone de Taleniekov. Este sacudiu a cabeça numa negativa; apesar de confiar no criptógrafo, não tinha intenção de responder à pergunta.

— Isso não importa. O telegrama é do “capitólio”?

— Não é só isso, meu velho.

— Mas é de lá? — insistiu Vasili.

— Sim, mas não está escrito em nenhum código conhecido. Nada que eu ou você já tenhamos usado, nem em nossos anos de Riga, nem aqui.

— Leia-o para mim.

— Há outra coisa ainda — continuou o criptógrafo, com mais veemência. — Eles estão abertamente à sua procura. Devolvi o teletipo a Moscou pedindo confirmação e queimei o original. Mas daqui a menos de duas horas ele deverá estar de volta. Não posso acreditar nisso. Recuso-me a acreditar!

— Calma. O que o teletipo dizia?

— Do Báltico até a fronteira da Manchúria há um alerta a sua procura.

— A VKR está atrás de mim? — perguntou Vasili alarmado, mas controlado; ele esperava que o Grupo Nove agisse rapidamente, mas não tanto.

— Não só a VKR, a KGB também, e todos os postos do Serviço de Informações, assim como as unidades militares. Todo mundo! Não é de você que eles estão falando, não pode ser! Recuso-me a acreditar!

— O que é que eles dizem?

— Que você traiu a nação. Que deve ser capturado, mas não deve ser interrogado, nem detido. Você deve ser... executado... sumariamente.

— Compreendo — disse Taleniekov. E compreendia. Esperara por isso. Não era a VKR. Eram os homens poderosos que tinham sabido que ele mencionara um nome que ninguém devia ouvir. Matarese. — Eu não traí ninguém. Pode acreditar.

— Acredito. Conheço você.

— Leia-me o telegrama do “capitólio”.

— Está bem. Tem um lápis aí? Ele não faz sentido.

Vasili procurou a caneta no bolso. Havia papel sobre a mesa.

— Pode ditar.

O homem falou devagar, bem claro:

— Aí vai: “Convite Kasimir, Schrankenwarten cinco gols...” — o criptógrafo calou-se. Taleniekov ouviu vozes a distância. — Não posso continuar. Vem gente aí — disse o homem.

— Preciso do resto do telegrama!

— Daqui a meia hora no Magazin Amar. Estarei lá — a ligação foi cortada.

Vasili deu um soco na mesa e desligou o telefone.

— Preciso do resto! — repetiu em inglês.

— Que Magazin Amar é esse? Uma peixaria? — perguntou o homem da CIA.

— Um restaurante especializado em peixes na Rua Kerenski, a umas sete quadras da nossa sede. Ninguém que conheça bem Sebastopol entra lá, a comida é horrível. Mas ajusta-se ao que ele estava tentando me dizer.

— Como assim?

— Sempre que o criptógrafo queria que eu examinasse algum material recém-chegado antes que outros o vissem, ele sugeria que nos encontrássemos no Amar.

— Por que ele não ia simplesmente mostrá-lo em seu escritório?

Taleniekov olhou de esguelha para o americano.

— Não seja ingênuo.

O agente encarou Vasili de frente.

— Eles querem mesmo vê-lo morto, não é?

— Um erro colossal da parte deles.

— Para variar — retrucou Zaimis e acrescentou, franzindo o cenho: — Você confia nesse cara?

— Ouviu o que ele disse. A que horas sai o navio?

— Às onze e meia. Daqui a duas horas. Mais ou menos na hora em que a confirmação deverá chegar de Moscou.

— Estarei aqui.

— Sei disso — retrucou o agente —, pois vou com você.

— Você o quê?

— Vou dar-lhe proteção na cidade. Naturalmente, vou querer minha pistola de volta. E a sua também. Veremos o quanto você realmente quer atravessar o Bósforo.

— Por que vai fazer isso?

— Tenho uma esperança de que você reconsidere aquela hipótese inconcebível. Quero levá-lo comigo.

Vasili sacudiu lentamente a cabeça.

— Nada mudou. É impossível. Ainda posso denunciá-lo e você não o pode evitar. E denunciando-o destruo toda a rede do mar Negro. Levaria anos para reconstruí-la. E o fator tempo é essencial, não é?

— Vamos ver. Quer mesmo ir aos Dardanelos?

— Naturalmente.

— Então dê-me a pistola — disse o americano.

 

O restaurante estava cheio, os aventais dos garçons tão sujos como a serragem do chão. Taleniekov sentou-se sozinho nos fundos junto à parede da direita, Zaimis a duas mesas de distância na companhia de um grego da marinha mercante a soldo da CIA. Esse franzira o rosto numa careta de nojo provocada pelo ambiente. Vasili bebericava vodca gelada para disfarçar um pouco o gosto do caviar de quinta classe.

O criptógrafo entrou, localizou Taleniekov e abriu caminho desajeitadamente entre fregueses e garçons até chegar à mesa. Por trás das grossas lentes, seus olhos exprimiam ao mesmo tempo alegria, medo e uma centena de perguntas mudas.

— Tudo é tão inacreditável — disse ele, sentando-se. — Que foi que eles te fizeram!

— A questão é o que eles vão fazer a si mesmos — replicou Vasili. — Eles não querem ouvir, não querem ouvir o que tem de ser dito, deter o que tem de ser detido. É só o que lhe posso dizer.

— Mas ordenar sua execução! É inconcebível!

— Não se preocupe, meu velho amigo. — Eu voltarei, e reabilitado com honras, como eles dizem. — Taleniekov sorriu e tocou o braço do homem. — Nunca se esqueça, existem homens bons e decentes em Moscou, mais dedicados a seu país do que preocupados com os próprios medos e ambições. Eles sempre existirão, e são esses que irei procurar. Eles vão me agradecer pelo que fiz, pode acreditar... Agora, todos os minutos contam. Onde está o cabograma?

O criptógrafo abriu a mão, mostrando uma folha cuidadosamente dobrada, agora amassada.

— Queria poder jogá-lo fora, se fosse necessário. Sei as palavras de cor — disse ele, entregando-o a Vasili.

O pesar envolveu Taleniekov quando leu a mensagem de Washington.

 

Convite Kasimir. Schrankenwarten cinco gols, Unter den Linden. Przselvac Zero. Praga. Repito texto. Zero. Repito novamente à vontade. Zero.

Beowulf Agate

 

Ao terminar a leitura, o ex-estrategista-mestre da KGB sussurrou:

— Nada mudou.

— O que diz aí? — perguntou o criptógrafo. — Não entendi. Nunca usamos esse código.

— Você não tinha meios de entender — respondeu Vasili com raiva e tristeza na voz. — É uma combinação de dois códigos, um nosso e um deles. O nosso é da minha época em Berlim Oriental, o deles de Praga. Esse cabograma não foi enviado por nosso homem de Bruxelas. Foi enviado por um assassino que não quer parar de matar.

Aconteceu tão depressa que só houve alguns segundos para uma reação, e foi o marinheiro grego quem se mexeu primeiro. Seu rosto castigado pelo tempo estivera voltado para os fregueses que entravam. Ele quase cuspiu as palavras:

— Cuidado! Os bodes imundos!

Taleniekov ergueu os olhos, o criptógrafo virou-se na cadeira. A seis metros de distância, na passagem onde circulavam os garçons, estavam dois homens que não tinham entrado ali para comer. Com expressões rígidas, varriam a sala com o olhar. Examinavam as mesas, mas não à procura de amigos.

— Oh, meu Deus — sussurrou o criptógrafo, voltando-se para Vasili. — Eles interceptaram nosso telefonema, estava com medo disso!

 

— Eles o seguiram — retrucou Taleniekov, vendo que Zaimis, aquele idiota, estava se levantando da cadeira. — Sabem que somos amigos e você deve estar sob vigilância, mas não sabem nada sobre aquele telefone. Se tivessem certeza de que me encontrariam aqui, invadiriam este lugar com uma dúzia de soldados. São membros locais da VKR, eu os conheço. Tenha calma, tire o chapéu e levante-se devagar. Dirija-se para os fundos, como se fosse ao banheiro. Há uma saída lá atrás, lembra-se?

— Sim, sim, eu me lembro — balbuciou o homem.

Levantando-se, com os ombros curvados, ele seguiu na direção do corredor estreito, a várias mesas de distância.

Mas ele era um teórico, não um homem de ação, e Vasili amaldiçoou-se por lhe ter dado aquelas instruções. Um dos homens da VKR reconheceu-o e adiantou-se, empurrando os garçons que estavam no caminho.

Nisso ele viu Taleniekov e sua mão subiu para pegar uma arma escondida sob o paletó. Nesse instante, o marinheiro grego ergueu-se num repelão, cambaleando como alguém que exagerara na vodca, e chocou-se contra o homem da VKR, que tentou descartar-se dele. O grego fingiu indignação e empurrou-o com tanta força que o russo caiu sobre uma das mesas, atirando pratos e comida no chão.

Num pulo, Vasili correu atrás do velho amigo de Riga, puxando-o na direção do estreito corredor. Foi então que viu o americano. Zaimis estava de pé, com a pistola na mão. Idiota!

— Guarde isso! — berrou Taleniekov. — Não se exponha!

Era tarde demais. Um tiro explodiu, transformando instantaneamente o caos num pandemônio. O homem da CIA levou as duas mãos ao peito e caiu, a camisa sob a jaqueta subitamente empapada de sangue.

Vasili agarrou o criptógrafo pelo ombro e puxou-o para o portal estreito. Ouviu-se um segundo estampido, e o criptógrafo arqueou-se num espasmo, as pernas juntas, uma erupção de carne no pescoço. Recebera um tiro na base do crânio.

Taleniekov atirou-se ao chão. Aturdido, ouviu um terceiro tiro, e um grito estridente varando a cacofonia de outros gritos. E então o marinheiro grego precipitou-se através do portal, uma automática na mão.

— Tem saída pelos fundos? — berrou ele em mau inglês. — Temos que correr. O outro bode fugiu. Foi buscar mais gente!

Taleniekov levantou-se num pulo e fez um gesto para que o grego o seguisse. Juntos atravessaram a cozinha repleta de cozinheiros e garçons aterrorizados e foram dar numa viela. Dobrando à esquerda, dispararam por um labirinto de ruelas escuras entre velhas construções, até alcançar uma rua conhecida.

Continuaram a correr por quase dois quilômetros. Vasili conhecia cada centímetro da cidade, mas era o grego que dirigia a fuga. Ao dobrarem uma rua secundária mal-iluminada, o marinheiro agarrou o braço de Taleniekov. O homem estava sem fôlego.

— Podemos descansar aqui um minuto — disse ele ofegante. — Eles não nos encontrarão.

— É, não é um lugar em que se pensaria numa busca logo de saída — concordou Vasili, examinando os prédios de apartamentos bem-construídos.

— Sempre se esconda num bairro de classe — disse o marinheiro. — Os moradores não querem saber de encrenca, denunciam logo qualquer anormalidade. Todo mundo sabe disso, e assim não procuram em tais lugares.

— Você falou em descansar um minuto — disse Taleniekov. — Ainda não sei para onde iremos depois disso. Preciso de tempo para pensar.

— Então o navio está fora de questão, não é? — perguntou o grego. — Também acho.

— É, Zaimis estava com os documentos. E, pior ainda, com uma das minhas armas. Daqui a uma hora o cais vai estar formigando de homens da VKR.

O grego fitou Vasili à luz fraca.

— Então o grande Taleniekov está fugindo da Rússia. Se ficar, vira cadáver.

— Não estou fugindo da Rússia, apenas de homens apavorados. Mas terei de sair... por algum tempo. Preciso descobrir como.

— Há um jeito — disse simplesmente o marinheiro. — Vamos seguir ao longo da costa no sentido Nordeste e depois desceremos para o Sul através das montanhas. Dentro de três dias você estará na Grécia.

— Como?

— Há um comboio de caminhões que vai primeiro a Odessa.

 

Sentado num banco duro na traseira de um caminhão, Taleniekov via a luz da madrugada infiltrar-se através das fendas da coberta de lona inflada pelo vento. Dentro em pouco, ele e os demais teriam de esgueirar-se para baixo das tábuas do piso e permanecer imóveis e silenciosos numa plataforma oculta entre os eixos até passarem a barreira seguinte. Mas durante uma hora, mais ou menos, poderiam estirar as pernas e respirar um ar não-impregnado de óleo e graxa.

Enfiando a mão no bolso, pegou a mensagem cifrada vinda de Washington, o cabograma que já custara três vidas.

 

Convite Kasimir. Schrankenwarten cinco gols, XJnter den Linden. Przselvac Zero. Praga. Repito texto. Zero. Re­pito novamente à vontade. Zero.

Beowulf Agate

 

Dois códigos. Apenas um significado.

Com a caneta, Vasili escreveu esse significado sob a mensagem cifrada.

Venha me pegar, como fez com outra pessoa num posto de fronteira às cinco horas na Unter den Linden. Eu matei seu mensageiro, assim como outro mensageiro que morreu em Praga. Repito. Venha me pegar. Eu o matarei.

Scofield

Além da brutal decisão do assassino americano, o aspecto mais eletrificante do cabograma de Scofield era o fato de que ele não estava mais a serviço de seu país. Fora afastado do Serviço Secreto. E, considerando-se o que fizera e as forças patológicas que o tinham compelido a isso, esse afastamento fora sem dúvida bárbaro. Pois nenhum profissional do Governo assassinaria um mensageiro nas circunstâncias daquele extraordinário contato soviético. E uma coisa que Scofield era, era profissional.

As nuvens tempestuosas sobre Washington tinham sido catastróficas para Beowulf Agate. Elas o tinham destruído.

Assim como a tempestade sobre Moscou destruíra um mestre-estrategista chamado Taleniekov.

Era estranho, quase macabro. Dois inimigos que se detestavam haviam sido escolhidos pelo Matarese como as primeiras de suas iscas mortais — como esporte e divertimento, como dissera o velho Krupskaya. Mas apenas um deles sabia disso; o outro tudo ignorava. Estava preocupado apenas em reabrir cicatrizes e deixar correr o sangue novamente entre eles.

Vasili guardou o papel no bolso e respirou fundo. Os dias seguintes seriam plenos de ação e reação, dois peritos numa caçada até a inevitável confrontação.

“Meu nome é Taleniekov. Ou matamos um ao outro, ou conversaremos.”

 

O subsecretário de Estado Daniel Congdon levantou-se de um pulo, o telefone na mão. Desde seus primeiros dias na Segurança Nacional, ele aprendera que uma forma de controlar uma explosão era movimentar-se fisicamente num momento de crise. E o controle, pelo menos um controle aparente, era a chave para tudo em sua profissão. Ficou ouvindo enquanto um encolerizado secretário de Estado expunha a crise atual.

Merda, ele estava controlado!

— Acabei de ter uma conversa particular com o embaixador soviético, e ambos somos de opinião que o incidente não deve vir a público. O importante agora é deter Scofield.

— O senhor tem certeza de que foi Scofield? Simplesmente não posso acreditar nisso!

— Digamos que, até que ele negue e prove de forma irrefutável que estava a mil quilômetros daqui nas últimas quarenta e oito horas, acreditamos que foi mesmo Scofield. Nenhuma outra pessoa envolvida em operações clandestinas teria cometido tal ato. É inconcebível.

Inconcebível? Inacreditável. O cadáver de um russo entregue nos portões da Embaixada Soviética no banco de trás de um táxi às 8h30min da manhã na hora de tráfego matinal mais intenso em Washington. E o motorista não sabia absolutamente nada, a não ser que apanhara dois bêbados, e não um só — embora um deles estivesse em pior estado que o outro. Que diabo acontecera com o outro cara? O que tinha sotaque russo e usava chapéu e óculos escuros e dissera que a luz do sol estava clara demais depois de uma noite inteira de vodca. Onde ele se metera? E o que ficara no banco de trás estava bem? Tinha péssimo aspecto!

— Quem era o homem, Sr. Secretário?

— Era um oficial do Serviço de Informações Soviético que servia em Bruxelas. O embaixador foi franco: a KGB não tinha ciência de que ele estava em Washington.

— Seria um desertor?

— Não há indícios que corroborem essa hipótese.

— Então, qual é a ligação entre ele e Scofield? Além do método de extermínio e entrega.

O secretario de Estado fez uma pausa e depois respondeu com cautela:

— O senhor deve entender, Sr. Congdon, que o embaixador e eu temos um relacionamento muito especial que já dura varias décadas. Freqüentemente usamos de maior franqueza um com o outro do que outros diplomatas... embora esteja subentendido que não falamos oficialmente.

— Entendo, senhor — retrucou Congdon, compreendendo que o que iria ouvir seria estritamente confidencial.

— O morto fez parte de uma unidade da KGB de Berlim Oriental há uns dez anos. Presumo, por suas últimas decisões, que o senhor está familiarizado com a ficha de Scofield.

— Refere-se à esposa dele? — Congdon sentou-se. — O homem foi um dos que mataram a esposa de Scofield?

— O embaixador não fez nenhuma referência à esposa de Scofield. Meramente mencionou o fato de que o morto fizera parte de uma unidade relativamente autônoma da KGB em Berlim Oriental há dez anos.

— Aquela seção era dirigida por um estrategista chamado Taleniekov. Foi ele quem deu a ordem.

— Eu sei — disse o secretário de Estado. — Falamos longamente sobre o Sr. Taleniekov e outro incidente ocorrido em Praga vários anos depois. Consideramos a possibilidade de uma ligação, a mesma que acabou de lhe ocorrer. Talvez ela exista.

— Como assim, senhor?

— Vasili Taleniekov desapareceu há dois dias.

— Desapareceu?

— Sim, Sr. Congdon. Imagine só, Taleniekov soube que ia ser oficialmente aposentado, arranjou um disfarce simples mas eficaz e desapareceu.

— Scofield foi afastado... — Congdon falou baixinho, mais para si mesmo do que para o interlocutor.

— Exatamente — concordou o secretário de Estado. — Esse paralelo é que nos preocupa. Dois especialistas aposentados estão agora determinados a fazer o que não podiam fazer oficialmente. Matar um ao outro. Eles possuem contatos por toda a parte, homens que lhes são leais por múltiplas razões. Sua vendetta pessoal poderia criar inúmeros problemas para nossos governos durante esses preciosos meses de conciliação. Isso não pode acontecer.

O diretor das Operações Consulares franziu a testa; havia algo errado nas conclusões do secretário.

— Eu mesmo falei com Scofield há três noites. Não me pareceu que ele se estivesse consumindo de raiva, desejo de vingança ou coisa parecida. Tinha o aspecto cansado de um agente que estivera em ação, vivendo uma vida... anormal... tempo demais. Por longos anos. Ele me disse que apenas queria desaparecer, e acreditei nele. Por falar nisso, conversei sobre Scofield com Robert Winthrop, e ele era da mesma opinião. Ele disse...

— Winthrop não sabe de nada! — interrompeu o secretário de Estado com inesperada dureza. — Robert Winthrop é um homem brilhante, mas nunca compreendeu o significado de uma confrontação, a não ser de forma teórica. Pode ter certeza, Sr. Congdon, Scofield matou aquele agente secreto de Bruxelas.

— Talvez por circunstâncias que desconhecemos.

— Será? — outra vez o secretário de Estado fez uma pausa, e quando falou foi para expressar seu pensamento de forma bem clara: — Se essas circunstâncias existem, então estamos diante de uma situação potencialmente muito mais perigosa do que a criada por uma rixa pessoal. Scofield e Taleniekov sabem mais a respeito das operações dos respectivos serviços secretos do que quaisquer outros dois homens vivos. Não podemos permitir que façam contato. Nem como inimigos determinados a matar-se mutuamente, nem por circunstâncias desconhecidas. Estou sendo bem claro, Sr. Congdon? Como diretor das Operações Consulares, a responsabilidade é sua. Como vai desincumbir-se dessa responsabilidade não me interessa. O senhor pode ter nas mãos um homem sem salvação. Isso é o senhor quem deve decidir.

Daniel Congdon continuou parado depois de ouvir o estalido do telefone sendo desligado. Em todos os anos de serviço, nunca recebera uma ordem indireta tão mal-disfarçada. Mas, se os termos eram discutíveis, a ordem não era. Recolocou o fone no gancho e apanhou outro à esquerda. Apertando um botão, discou três algarismos.

— Segurança Interna — disse uma voz masculina.

— Aqui é o subsecretário Congdon. Localize Brandon Scofield. Traga-o até aqui imediatamente.

— Um instante, senhor — retrucou o homem polidamente. — Scofield está sob vigilância de segundo grau. O último assentamento data de dois dias atrás. Deixe-me consultar o computador. Ele tem todas as informações.

— Dois dias atrás?

— Sim, senhor. A informação já está na tela. Scofield deixou o hotel aproximadamente às seis horas do dia 16.

— Dezesseis? Hoje é 19.

— Sim, senhor. Mas não houve atraso no assentamento. A gerência informou-nos pouco depois.

— Onde ele está agora?

— Deixou dois endereços para correspondência, mas não precisou datas. A casa da irmã em Minneapolis e um hotel em Charlotte Amalie, St. Thomas, ilhas Virgens americanas.

— Os endereços foram investigados?

— Quanto à exatidão, sim. Ele tem uma irmã que mora mesmo em Minneapolis, e o hotel de St. Thomas tem um quarto reservado e pago para Scofield desde o dia 17. O pagamento foi enviado de Washington.

— Então ele está nesse hotel.

— Até o meio-dia de hoje ele não tinha chegado, senhor. Fizemos uma chamada de rotina.

— E quanto à irmã? — perguntou Congdon.

— Ela confirmou que Scofield lhe telefonara e prometera passar lá, mas não precisara o dia. Acrescentou que isso não era anormal, suas visitas eram sempre inesperadas. Ela esperava-o qualquer dia desta semana.

O diretor das Operações Consulares teve vontade de ficar de pé novamente, mas conteve-se.

— O senhor está me dizendo que realmente não sabe onde ele está?

— Bem, Sr. Congdon, a vigilância de segundo grau opera na base de informações, não há contato visual contínuo. Mas mudaremos imediatamente para vigilância de primeiro grau. Minneapolis não será problema, as ilhas Virgens talvez.

— Por quê?

— Não temos fontes fidedignas lá, senhor. Ninguém tem.

Daniel Congdon levantou-se da cadeira.

— Deixe-me entender isso bem. O senhor disse que Scofield está sob vigilância de segundo grau, e no entanto minhas instruções foram claras: deveríamos estar sempre a par de seu paradeiro. Por que não o submeteram a uma vigilância de primeiro grau? Por que não mantiveram contato visual contínuo?

O homem da Segurança Interna respondeu meio hesitante:

— A decisão não foi minha, senhor, mas acho que é compreensível. Se aplicassem o primeiro grau em Scofield, ele descobriria logo e... bem, só de maldade, nos despistaria.

— E que diabos o senhor pensa que ele acabou de fazer? Encontre-o! Informe-me de seus progressos de hora em hora! — Cong­don sentou-se encolerizado, batendo o fone com tanta força que a campainha tocou. Com os olhos fuzilando, tornou a pegar o fone e discar.

— Comunicações Ultramarinas, Srta. Andros — disse uma voz feminina.

— Srta. Andros, aqui é o subsecretário Congdon. Por favor, mande um perito em códigos a minha sala imediatamente. Classificação Código A, segurança e prioridade máximas.

— É uma emergência, senhor?

— Sim, Srta. Andros, é uma emergência. O cabograma será enviado dentro de meia hora. Libere as linhas para Amsterdam, Marselha... e Praga.

 

Scofield ouviu os passos no corredor e levantou-se da cadeira. Andou até a porta e olhou pelo olho mágico. O vulto de um homem passou sem parar na porta em frente, a entrada da suíte utilizada pelo mensageiro de Taleniekov. Bray voltou à sua cadeira e sentou-se. Encostou a cabeça no espaldar e ficou olhando para o teto.

Três dias tinham se passado desde a caçada nas ruas, três noites desde que pegara o mensageiro de Taleniekov — mensageiro três noites antes, assassino na Unter den Linden dez anos atrás. Fora uma noite estranha, uma caçada bizarra, com um final que poderia ter sido diferente.

O homem poderia ter vivido. A decisão de matá-lo gradualmente perdera para Scofield a urgência, como tantas outras coisas tinham perdido a urgência. O próprio mensageiro provocara seu fim. O soviético tinha entrado em pânico e, sacando uma navalha afiada dos fundos da poltrona do hotel, o atacara. Sua morte foi conseqüência da reação de Scofield, não um assassinato premeditado.

As coisas pouco mudavam. O mensageiro da KGB fora usado por Taleniekov. O homem convencera-se de que Beowulf Agate estava pensando em desertar; o russo que o levasse para Moscou receberia a medalha mais reluzente do país.

— Você foi enganado — dissera Bray ao mensageiro.

— É impossível! — gritara o soviético. — Foi Taleniekov!

— Sem dúvida. E ele escolheu um homem da Unter den Linden para fazer contato, alguém cujo rosto ele sabe que nunca esquecerei. As possibilidades eram todas de que eu perderia o controle e o mataria. Em Washington. Aqui estou a descoberto, vulnerável... mas você está preso.

— Você está cometendo um erro! Este é um contato branco!

— Em Berlim Oriental também era, seu filho da puta.

— O que você vai fazer?

— Justificar um pouco minha aposentadoria. Vou entregá-lo.

— Não!

— Sim.

O homem jogara-se contra Scofield.

Três dias se tinham passado desde aquele momento de violência, três manhãs desde que Scofield entregara a encomenda na Embaixada e mandara a mensagem cifrada para Sebastopol. Ninguém ainda viera à suíte do outro lado do corredor, e aquilo não era normal. A suíte fora alugada por uma firma de corretagem de Berna, Suíça, para ficar à disposição de seus “executivos”. Providência habitual de firma internacional, no caso uma fachada transparente para uma força soviética.

Bray forçara a questão. A mensagem e o cadáver do mensageiro forçosamente levariam alguém a investigar a suíte. Entretanto, ninguém aparecera. Aquilo não fazia sentido.

A não ser que parte do cabograma de Taleniekov fosse verdadeira: ele estava mesmo agindo sozinho. Se o caso era esse, então só havia uma explicação: o assassino soviético fora desligado do serviço e, antes de se recolher ao isolamento em algum lugar próximo a Grasnov, decidira saldar uma dívida em aberto.

Ele jurara fazê-lo depois de Praga. A mensagem fora clara: “Você é meu, Beowulf Agate. Algum dia, em algum lugar, farei com que respire pela última vez.”

Um irmão por uma esposa. O marido pelo irmão. Uma vingança enraizada no ódio, num ódio interminável. Não haveria paz para nenhum deles até que um encontrasse o seu fim. Era melhor saber isso agora, pensou Bray, do que descobri-lo numa rua apinhada ou numa faixa deserta de praia com uma faca no peito ou um tiro na cabeça.

A morte do mensageiro fora um acidente. A de Taleniekov não seria. Não haveria paz até que eles se encontrassem, e então sobre-viria a morte, de um jeito ou de outro. Agora, o problema era atrair o russo ao campo aberto. Ele dera o primeiro passo, determinando os papéis: ele era o caçador.

A estratégia era clássica: rastros bem visíveis para chamar o caçador, e, então, no momento adequado — e inesperado — os rastros desaparecem, o caçador atônito se expõe — e a armadilha se fecha.

Como Bray, Taleniekov podia viajar para onde entendesse, com ou sem sanção oficial. Anos afora, ambos tinham aprendido uma variedade de métodos. Uma pletora de documentos falsos estavam sempre à venda, existiam centenas de homens por toda parte dispostos a arranjar transporte ou abrigo, armas ou disfarces — qualquer uma ou todas essas coisas. Só duas coisas eram necessárias, basicamente: papéis e dinheiro.

Nenhuma das duas faltava a Taleniekov, nem a ele. Ambas conseqüência da profissão, muito natural no caso dos papéis, nem tanto quanto ao dinheiro. Este, com freqüência, o resultado de dificuldades anteriores devido a demoras burocráticas no envio de fundos. Assim, todo especialista experimentado tinha suas fontes particulares de recursos. Despesas exageradas, dinheiro desviado e depositado em território estável. O objetivo não era roubo, nem riqueza, apenas sobrevivência. Um agente ativo só precisava levar um ou dois sustos para tomar consciência da necessidade de apoio econômico.

Bray tinha contas sob vários nomes em Paris, Munique, Londres, Genebra e Lisboa. Era aconselhável evitar Roma e o bloco comunista: o Tesouro italiano era uma loucura e o sistema bancário nos satélites orientais excessivamente corrupto.

Scofield raramente pensava no dinheiro que tinha à disposição com a intenção tácita de devolvê-lo um dia. Se o predatório Congdon não tivesse deixado entrever suas próprias tentações e complicado tanto seu desligamento oficial, Bray poderia ter retornado na manhã seguinte para entregar-lhe os extratos bancários.

Agora não. Os atos do subsecretário o impediam disso. Não se entregam várias centenas de milhares de dólares a quem tenta arranjar nossa própria eliminação mantendo-se nos bastidores. Fora um plano primorosamente concebido. Lembrava até as concepções maquiavélicas dos assassinos do Matarese no passado, pensou Scofield. Mas esses eram assassinos de aluguel; há séculos, desde os tempos de Hasan Ibn-al-Sabbah, não se tinha notícia de nada parecido. Nunca mais se veria algo semelhante, e Daniel Congdon era pálida sombra do que eles tinham sido.

Congdon. Scofield riu e apanhou o maço de cigarros no bolso. O novo diretor das Operações Consulares não era tolo, e só um tolo o subestimaria. Tinha, entretanto, a mentalidade das classes dirigentes, tão comum nos chefes dos serviços clandestinos. Na verdade, ele não entendia o que acontecia a um homem em ação; podia saber as regras, mas não percebia o elo simples existente entre ação e reação. Poucos percebiam, ou queriam perceber, pois isso significava admitir o comportamento anormal de subordinados de cujo serviço o Departamento não poderia prescindir. Mas esse comportamento patológico era simplesmente o modo de vida normal do agente em campo, e não merecia qualquer atenção especial. O agente aceitava o fato de que era criminoso antes mesmo que qualquer crime tivesse sido cometido. Portanto, ao primeiro sinal de atividade, tomava medidas de proteção antes que lhe acontecesse alguma coisa — isso tornava-se instintivo.

Fora justamente o que Bray fizera. Com o mensageiro de Taleniekov sentado do outro lado do quarto no hotel da Avenida Nebraska, Scofield dera vários telefonemas. O primeiro para sua irmã em Minneapolis: pretendia tomar um avião para o Meio-Oeste dali a umas duas horas e a veria dentro de um ou dois dias. O segundo para um amigo em Maryland, adepto da pesca submarina com uma sala cheia de troféus e vítimas empalhadas: acaso sabia de algum hotelzinho simpático no Caribe que aceitaria um hóspede sem necessidade de reserva? O amigo tinha outro amigo em Charlotte Amalie que era dono de um hotel e sempre reservava um ou dois quartos para tais emergências. O pescador prontificou-se a procurá-lo em nome de Bray.

Assim, para todos os fins, na noite do dia 16 ele estava a caminho do Meio-Oeste... ou do Caribe. Ambos a mais de dois mil quilômetros de Washington — onde ele permaneceu escondido, sem sair uma só vez do quarto de hotel em frente ao reduto soviético.

Quantas vezes martelara aquela lição na cabeça de agentes jovens e menos experientes? Um número incontável de vezes. Um homem que permanece imóvel em meio a uma multidão dificilmente é percebido.

Mas a cada hora sua perplexidade aumentava. Todas as explicações possíveis tinham de ser examinadas. A mais óbvia era que o russo ativara um velho reduto fora de ação enviando uma mensagem discreta para Berna, e a suíte fora alugada por cabograma. Levaria semanas antes que a informação chegasse a Moscou — uma entre milhares procedentes do mundo inteiro.

Se era assim — e talvez fosse a única explicação —, Taleniekov não estava apenas agindo sozinho, mas contra os interesses da K.G.B. Sua vendetta sobrepusera-se à fidelidade ao Governo, se é que isso ainda significava muito para ele; para Scofield, significava muito pouco. Era a única explicação. De outra forma, a suíte do outro lado do corredor estaria agora apinhada de soviéticos. Eles poderiam esperar vinte e quatro ou trinta e seis horas para escapar à vigilância do FBI, mas não mais que isso. Havia muitas maneiras de lograr os observadores daquele órgão.

Um instinto dizia a Bray que ele estava certo, um instinto desenvolvido através dos anos e em que confiava completamente. Agora tinha de se colocar no lugar de Taleniekov, pensar como Vasili Taleniekov pensaria. Era sua proteção contra uma punhalada mortal ou um disparo de um rifle de alta potência. Era a maneira de precipitar um desfecho e não ter de passar os dias vendo o perigo em cada sombra. Ou na multidão.

O homem da K.GB não tinha escolha: era sua vez de agir e teria de vir a Washington. Tinha de começar pelo único elo material: a suite vazia do outro lado do corredor. Dentro de alguns dias — talvez agora mesmo —, Taleniekov desceria no Aeroporto Dulles, e a caçada iria começar.

Mas o russo não era nenhum idiota, não iria cair numa armadilha. Em vez dele, viria outro, alguém que não soubesse de nada, uma isca paga e desprevenida. Um passageiro confiante cuja amizade fora cuidadosamente cultivada num vôo transatlântico, ou uma das dezenas de inocentes contatos que Taleniekov já utilizara em Washington. Homens e mulheres que nem desconfiavam que o europeu a quem prestavam favores bem-remunerados era um estrategista da JS.UÜ. Entre eles seria escolhida a isca, ou as iscas, e os pássaros. As iscas não sabiam de nada, eram apenas iscas. Os pássaros observavam, dando o alarme quando a isca fosse mordida. Pássaros e iscas — essas seriam as armas de Taleniekov.

Alguém viria ao hotel da Avenida Nebraska. Quem quer que fosse, suas instruções seriam apenas para instalar-se no quarto: nenhum número de telefone, nenhum nome significativo. E por perto os pássaros estariam esperando que a presa tosse atrás da isca.

Quando a presa fosse localizada, os pássaros avisariam, ao caçador, o que significava que esse também estava por perto.

Essa seria a estratégia de Taleniekov, pois nenhuma outra era possível; era também a estratégia que Scofield usaria. Umas três ou quatro — no máximo cinco — pessoas seriam utilizadas nessa brincadeira. Uma brincadeira montada com facilidade: alguns telefonemas do aeroporto, um encontro num restaurante do Centro. Uma manobra barata considerando-se o valor da presa.

Ruídos do outro lado da porta. Vozes. Bray levantou-se e correu para o olho mágico. Do outro lado do corredor, uma mulher bem-vestida estava falando com o chefe da portaria, que carregava sua maleta. Uma pequena maleta, não uma mala própria para um vôo transatlântico. A isca chegara, os pássaros não deviam estar longe. Taleniekov viera, a caçada começara.

A mulher e o chefe da portaria desapareceram no interior da suíte.

Scofield dirigiu-se ao telefone. Chegara o momento de começar a contra-ofensiva. Precisava de tempo, talvez mesmo dois ou três dias.

Telefonou para o pescador submarino na costa de Maryland utilizando a discagem direta. Cobrindo o bocal com a mão direita, falou através dos dedos. Uma saudação rápida e apressada, e um recado:

— Estou em Keys e não consigo falar para aquele maldito hotel em Charlotte Amalie. Quer telefonar por mim, por favor? Diga-lhes que estou ao largo de Tavernier seguindo num barco fretado e estarei lá daqui a uns dois dias.

— Pois não, Bray. Isso é que são férias, não?

— Nem te conto. Obrigado, hem?

O telefonema seguinte não precisou de tal artifício. Foi para uma francesa com quem ele vivera durante curto período em Paris, há alguns anos. Ela fora uma das mais eficientes agentes secretas da Interpol até que sua identidade se tornara conhecida; agora trabalhava para uma unidade da CIA em Washington. Não havia mais atração sexual entre eles, mas eram amigos. Ela não fez perguntas.

Scofield deu-lhe o nome do hotel da Avenida Nebraska.

— Telefone daqui a quinze minutos para a suíte 211. Vai atender uma mulher. Pergunte por mim.

— Ela não vai ficar furiosa, querido?

— Ela não sabe quem eu sou. Mas outra pessoa sabe.

 

Taleniekov recostou-se na parede de tijolos num beco escuro em frente ao hotel. Por alguns momentos, relaxou o corpo e moveu a cabeça para a frente e para trás, tentando reduzir a tensão, aliviar o cansaço. Tinha viajado durante quase três dias, voado por mais de dezoito horas, atravessado cidades e aldeias atrás de pessoas capazes de lhe arranjar documentos falsos que lhe permitissem passar por três postos de imigração diferentes. De Salônica para Atenas, de Atenas para Londres, de Londres para Nova York. Por fim chegara a Washington no começo da noite pela ponte aérea, depois de visitar três bancos em Manhattan.

Ele conseguira. Seu pessoal estava a postos. Uma prostituta de luxo que trouxera de Nova York e dois homens e uma mulher mais velha, os três de Washington. Com exceção da última, os outros eram nichivo bem-falantes, furões espertos. Todos tinham prestado serviços no passado ao generoso “homem de negócios” de Haia que tinha a mania de investigar seus sócios e que costumava pagar muito bem por informações.

Eles tinham recebido instruções para aquele serviço noturno. A prostituta estava agora na suíte que era o posto Berna-Washington. Dentro de alguns minutos, isso chegaria ao conhecimento de Scofield. Mas Beowulf Agate não era nenhum amador: receberia a notícia — por intermédio de um dos empregados ou da telefonista — e mandaria alguém para interrogar a pequena.

Quem quer que fosse, seria visto por algum dos pássaros de Taleniekov. Os dois homens e a mulher mais velha. Ele dera a cada um deles um receptor-transmissor miniatura que cabia na palma da mão; comprara quatro no representante da Mitsubi na Quinta Avenida. Eles podiam entrar em contato com ele instantânea e discretamente. Com exceção da prostituta. Não correria o risco de que encontrassem tal aparelho em seu poder. Ela era substituível.

Um dos dois homens estava sentado numa das mesas do bar mal-iluminado por castiçais. Diante de uma maleta aberta, ele estudava papéis à luz das velas, um caixeiro viajante avaliando os resultados de uma viagem de negócios. O outro homem estava no salão de refeições, numa mesa posta para dois reservada por um alto funcionário da Casa Branca. O anfitrião fora retido e o maître já recebera vários telefonemas de desculpas. O hóspede merecedor de tanta cortesia seria tratado condignamente.

Mas era na mulher mais velha que Taleniekov depositava maior confiança. Ela fora muito mais bem paga do que os outros e por bons motivos. Ela não era uma nichivo. Era uma assassina.

Sua arma inesperada. Uma mulher fina, inteligente, que não se inibia ante a necessidade de atirar em alguém do outro lado da sala ou enfiar um punhal no estômago de um companheiro de mesa. Que sabia em poucos instantes transformar-se numa dama ou numa velha rameira — ou em qualquer coisa entre esses dois extremos. Na última meia dúzia de anos, Vasili já lhe pagara grandes somas, por várias vezes a tendo chamado à Europa para serviços adequados a seus extraordinários talentos. Ela nunca o desapontara, e não o desapontaria naquela noite. Procurara por ela pouco depois de descer no Aeroporto Kennedy; ela tivera um dia inteiro para preparar-se para a noite. Era mais que suficiente.

Taleniekov desencostou-se da parede de tijolos, sacudindo as mãos, respirando fundo, afastando da mente a tentação de dormir. Protegera seus flancos; agora só lhe restava esperar. Se é que Scofield ainda desejava aquele encontro — encontro que, na opinião do americano, seria fatal para um dos dois. E por que ele desistiria? Era melhor acabar logo com aquilo do que ficar obcecado ante as sombras da noite ou ruas apinhadas à luz do sol, temendo o que pudessem esconder... sem nunca afastar a mão do coldre ou do punhal. Não, era muito melhor acabar de uma vez a caçada, pensaria Beowulf Agate. Ah, mas ele estava tão enganado! Se houvesse alguma forma de alcançá-lo, de lhe contar! Contar sobre o Matarese! Havia pessoas a quem podiam procurar, apelar, convencer! Juntos poderiam fazê-lo; existiam homens decentes em Moscou e em Washington, homens que não teriam medo.

Mas não havia nenhuma forma de alcançar Brandon Scofield em terreno neutro, pois nenhum terreno seria neutro para Beowulf Agate. À primeira visão de seu inimigo, o americano recorreria imediatamente a todas as armas a seu alcance para destruí-lo. Vasili compreendia, pois, se fosse Scofield, faria o mesmo. Assim, era preciso esperar, rodear, sabendo que cada um deles achava que o outro era a presa que iria expor-se primeiro; cada um manobrando para que o adversário cometesse esse erro.

A terrível ironia era que o único erro significativo seria a vitória de Scofield. Taleniekov não podia deixar isso acontecer. Onde quer que Scofield estivesse, tinha de ser apanhado, imobilizado e forçado a escutar.

Por isso, aquela espera era tão importante. E o perito estrategista de Berlim Ocidental, Riga e Sebastopol era um mestre em paciência.

 

— Valeu a pena esperar, Sr. Congdon — disse a voz excitada no telefone. — Scofield está num barco fretado ao largo de Ta-vernier, em Keys, Flórida. Calculamos que chegará às ilhas Virgens depois de amanhã.

— Qual foi sua fonte de informação? — perguntou apreensivo o diretor das Operações Consulares, pigarreando para clarear a voz sonolenta, forçando a vista para ver as horas no relógio de cabeceira. Eram três da manhã.

— O hotel em Charlotte Amalie.

— E qual foi a fonte de informações deles?

— Receberam um telefonema interurbano pedindo para que mantivessem a reserva, que ele chegaria dentro de dois dias.

— Quem deu o telefonema? E de que lugar?

Houve uma pausa do outro lado da linha, nas dependências do Departamento de Estado.

— Deduzimos que foi Scofield. Lá de Keys.

— Não deduza nada. Descubra.

— Estamos confirmando tudo, naturalmente. Nosso homem em Key West seguiu para Tavernier. Vai verificar nas linhas de barcos de aluguel.

— Verifique o telefonema. Dê notícias.

Congdon desligou e recostou-se na cabeceira. Olhou para a mulher na cama ao lado. Ela cobrira a cabeça com o lençol, tendo através dos anos aprendido a ignorar as chamadas noturnas. Ele começou a pensar sobre o que acabara de ouvir. Era demasiado simples, verossímil demais. Scofield estava encobrindo seus rastros sob o disfarce de uma viagem fortuita, impulsiva: um homem exausto afastando-se de tudo. Mas havia uma contradição: mesmo exausto, Scofield nunca agira de modo fortuito. Ele estava deliberadamente encobrindo seus movimentos... o que significava que realmente matara o agente secreto vindo de Bruxelas.

KGB. Bruxelas. Taleniekov.

Berlim Oriental.

Taleniekov e o homem de Bruxelas tinham trabalhado juntos em Berlim Oriental. Numa “seção da KGB relativamente autônoma” — o que significava Berlim Oriental... e qualquer lugar.

Washington? A unidade “relativamente autônoma” teria enviado homens a Washington? Era possível. O termo “autônoma” significava, em primeiro lugar, liberdade de movimentos e, em segundo, visava absolver os superiores de certos atos de seus subordinados. Um agente da CIA em Lisboa podia seguir um homem até Atenas. E por que não? Ele conhecia toda a operação. Da mesma forma, um agente da KGB em Londres podia perseguir um suspeito de espionagem até Nova York. Tendo trânsito livre, era parte de suas atribuições. Taleniekov já operara em Washington; supunha-se que já tivesse estado mais de uma dúzia de vezes nos Estados Unidos na última década.

Taleniekov e o homem de Bruxelas — era esse o elo que precisavam investigar. Congdon estendeu a mão para o telefone, mas parou a meio caminho. O fator tempo era essencial agora. Os cabogramas tinham alcançado Amsterdam, Marselha e Praga há quase doze horas. Segundo informantes fidedignos, tinham aturdido os destinatários. Contatos em todas as três cidades haviam reagido com pânico à notícia do comportamento “intolerável” de Scofield. Nomes poderiam vir a ser revelados, homens e mulheres torturados, assassinados, redes inteiras denunciadas — não havia tempo a perder: Beowulf Agate tinha de ser eliminado. No início da noite, recebera informações dizendo que dois homens já tinham sido escolhidos para assassinos. Em Fraga e Marselha. Já estavam voando a caminho de Washington e não deveriam ter problemas com passaportes ou a imigração. Um terceiro deveria deixar Amsterdam antes do amanhecer. Já amanhecia agora em Amsterdam.

Ao meio-dia, a equipe de execução, totalmente desassociada do Governo dos Estados Unidos, estaria em Washington. A cada homem fora dado o mesmo número de telefone, um aparelho de localização secreta num gueto de Baltimore. Qualquer informação sobre Scofield seria retransmitida à equipe através daquele número. E apenas um homem podia transmitir essa informação a Baltimore. O responsável, o diretor das Operações Consulares. Nenhum outro membro do Governo americano conhecia aquele número.

Aquela ligação final poderia ser estabelecida? — perguntou-se Congdon. Restava muito pouco tempo e seria necessária uma extraordinária cooperação. Essa cooperação poderia ser pedida, mesmo cogitada? Nada de semelhante acontecera antes. Mas podia acontecer, uma localização seria descoberta, uma execução dupla garantida.

Pensara em telefonar para o secretário de Estado e sugerir uma entrevista matinal, muito invulgar, com o embaixador soviético. Mas despender-se-ia demasiado tempo com complicações diplomáticas, nenhum dos lados querendo admitir o objetivo de violência. Havia um meio melhor; perigoso, mas infinitamente mais direto.

Congdon levantou-se da cama em silêncio, desceu ao andar térreo e entrou no pequeno estúdio que era seu escritório em casa. Dirigiu-se à mesa, que era aparafusada ao chão, as gavetas inferiores da direita ocultando um cofre com uma fechadura de combinação. Acendendo a luz, abriu a tampa e ajustou a combinação. A fechadura deu um estalido, a porta de aço se abriu. Procurou por um instante e retirou uma ficha de arquivo onde se via um único número de telefone.

Ele julgara que nunca discaria aquele número. O código de área era 902 — Nova Escócia — e sempre alguém atenderia; era o número de um centro de computação, a estação central de coordenação de todas as operações secretas soviéticas na América do Norte. Chamando aquele número, revelaria um conhecimento que deveria ser ignorado. O Serviço Secreto americano supostamente desconhecia a central da Nova Escócia, mas o fator tempo e as circunstâncias extraordinárias sobrepunham-se à segurança. Havia um homem na Nova Escócia que compreenderia, sem preocupar-se com as aparências. Já dera muitas sentenças de morte. Era o dirigente mais graduado da KGB fora da Rússia.

Congdon apanhou o telefone.

— Cabot Strait Exportadores — disse uma voz masculina na Nova Escócia. Despachante da noite.

— Aqui é Daniel Congdon, subsecretário de Estado, Operações Consulares, do Governo dos Estados Unidos. Peço que investigue esta chamada e verifique que estou telefonando de uma residência particular em Herndon Fails, Virgínia. Enquanto estiver fazendo isso, ative os detectores eletrônicos de dispositivos de escuta. Não vai encontrar nada. Esperarei o quanto quiser, mas preciso falar com Voltagem Um, Vol’t Adin, como vocês o chamam.

Suas palavras foram recebidas em silêncio pela Nova Escócia. Não era necessária muita imaginação para visualizar um operador aturdido apertando botões de emergência. Por fim, a voz retrucou:

— Parece estar havendo interferência. Por favor, repita a mensagem.

Congdon repetiu.

Outra vez, silêncio. Então:

— Se esperar um pouco, o supervisor falará com o senhor. Entretanto, acho que discou o número errado aqui no cabo Breton.

— Você não está no cabo Breton. Está na baía de São Pedro, na ilha Príncipe Eduardo.

— Espere um momento, por favor.

A espera demorou quase três minutos. Congdon sentou-se. Estava funcionando.

Voltagem Um entrou na linha.

— Por favor, espere um pouco — disse o russo. Seguiu-se o som oco de uma ligação ainda intacta, mas em suspenso: dispositivos eletrônicos estavam em operação. O soviético tornou a falar: — Essa chamada origina-se realmente de um telefone residencial na cidade de Herndon Falls, Virgínia. Os detectores não revelam interferências, mas isso naturalmente pode não significar nada.

— Não sei que outras provas lhe posso oferecer...

— O senhor não me entendeu, Sr. Subsecretário. O fato de possuir esse telefone não é assim tão espantoso, mas o fato de ter tido a audácia de utilizá-lo e chamar-me por meu nome de código talvez seja. Já estou suficientemente convencido. O que deseja tratar comigo?

Congdon explicou da forma mais sucinta possível:

— Os senhores querem Taleniekov. Nós queremos Scofield. Estou convencido de que pretendem fazer contato em Washington. Seu homem de Bruxelas é a chave do local.

— Se não me engano, o cadáver dele foi entregue na nossa Embaixada há alguns dias.

— Isso mesmo.

— O senhor ligou o fato a Scofield?

— Foi seu próprio embaixador quem o fez. Ele lembrou que esse agente fez parte de uma seção da KGB em 1968 em Berlim Oriental, a unidade de Taleniekov, responsável por um incidente que envolveu a mulher de Scofield.

— Compreendo — retrucou o russo. — Então Beowulf Agate continua matando por vingança.

— Seria levar as coisas muito longe, não? Se me permite uma opinião parece-me que é Taleniekov quem está atrás de Scofield.

— Seja mais preciso, Sr. Subsecretário. Em princípio, estamos de acordo, mas o que deseja de nós?

— Uma informação que deve estar registrada em seus computadores ou em algum arquivo. É coisa de alguns anos atrás, mas os senhores devem tê-la; nós a teríamos. Achamos que numa época qualquer o homem de Bruxelas e Taleniekov operaram juntos em Washington. Precisamos do endereço de sua base. Ê a única ligação que temos entre Scofield e Taleniekov. Achamos que é onde irão encontrar-se.

Compreendo — repetiu o soviético. — E, supondo que esse endereço, ou endereços, realmente exista, qual seria a posição de seu Governo?

Congdon estava preparado para a pergunta:

Absolutamente nenhuma — replicou ele, sem alterar a voz. — A informação será passada a terceiros, homens a quem o comportamento de Scofield causa graves preocupações. Fora minha pessoa, nenhum membro do Governo se envolverá na questão.

Um cabograma em código, no mesmo teor, foi enviado a três células contra-revolucionárias européias, em Praga, Marselha e Amsterdam. Cabogramas desse tipo geralmente acarretam assassinatos.

Seu serviço de interceptação está de parabéns — retrucou o diretor das Operações Consulares.

Os senhores fazem o mesmo conosco todos os dias. Não há o que elogiar.

Não tentaram interferir?

De forma alguma, Sr. Subsecretário. O senhor interferiria?

Não.

Agora são onze horas em Moscou. Dentro de uma hora receberá uma resposta.

Congdon desligou e recostou-se na poltrona. Sentiu uma vontade louca de beber alguma coisa, mas decidiu não ceder à tentação. Era a primeira vez em sua longa carreira que estava tratando diretamente com o inimigo de Moscou. Não poderia mostrar o menor traço de irresponsabilidade. Estava só e aquele contato solitário era sua proteção. Fechou os olhos e imaginou paredes nuas de concreto branco.

Vinte minutos mais tarde o telefone tocou. Ele atendeu num pulo.

Na Avenida Nebraska, existe um hotel pequeno e seleto...

 

Scofield abriu a torneira de água fria, encostou-se na pia e olhou no espelho. Seus olhos estavam vermelhos por falta de sono, a barba crescida. Há quase três dias não se barbeava; seus momentos de descanso nesse período não somariam três horas. Eram pouco mais de quatro da madrugada e não tinha tempo para pensar em dormir ou fazer a barba.

Do outro lado do corredor, a atraente isca de Taleniekov não estava conseguindo descansar mais do que ele. Agora estava recebendo telefonemas a cada quinze minutos.

 

— Quero falar com o Sr. Brandon Scofield, por favor.

— Não conheço nenhum Scofield! Pare com esses telefonemas! Quem é você?

— Uma amiga do Sr. Scofield. Preciso falar urgentemente com ele.

— Ele não está aqui! Não o conheço. Pare com isso! Você está me deixando maluca! Vou mandar a telefonista não ligar mais para cá!

— Eu não faria isso, se fosse você. Seu amigo não aprovaria Você não receberá seu pagamento.

Pare com isso!

 

A antiga amante parisiense de Bray estava desincumbindo-se muito bem do seu papel. Fizera apenas uma pergunta quando ele lhe pedira para continuar telefonando.

— Você está em dificuldades, querido?

— Estou.

— Então farei o que me pede. Conte-me o que for possível para que eu saiba o que dizer.

— Não ultrapasse vinte segundos. Não sei quem está controlando a mesa telefônica.

— Você está mesmo em dificuldades.

Dali a uma hora, ou menos, a mulher da suíte em frente entraria em pânico e fugiria do hotel. O que quer que lhe tivessem prometido não compensava os telefonemas macabros, a sensação de perigo iminente. A isca se evaporaria, entravando a caçada.

Taleniekov seria então forçado a substituí-la pelos pássaros, e a manobra iria recomeçar. Apenas os telefonemas seriam menos freqüentes, talvez de hora em hora, quando estivessem começando a pegar no sono. Por fim, os pássaros voariam, pois o tempo em que podiam permanecer no ar também tinha limites. Os recursos do caçador eram extensos, mas não tanto. Ele estava operando em território estrangeiro; de quantas iscas e pássaros poderia dispor? Não podia continuar indefinidamente convocando contatos, arranjando entrevistas improvisadas para distribuir dinheiro e instruções.

Não, não poderia fazer isso. A frustração e a exaustão sobreviriam, e o caçador ficaria sozinho, esgotados os expedientes. Por fim, ele se mostraria. Não tinha outra escolha, não podia abandonar a suíte. Era a única armadilha de que dispunha, a única ligação com sua presa.

Mais cedo ou mais tarde, Taleniekov surgiria no corredor do hotel e deter-se-ia na porta do 211. Nunca mais daria outro passo.

O assassino soviético era um perito, mas ia perder a vida nas mãos do homem a quem chamava Beowulf Agate, pensou Scofield. Fechando a torneira, mergulhou o rosto na água fria.

Levantou a cabeça. Ouvira sons de passos no corredor. Dirigiu-se ao olho mágico. Em frente, uma empregada do hotel de aspecto matronal estava abrindo a porta. No braço esquerdo trazia várias toalhas e lençóis. Uma arrumadeira às quatro da manhã? Em silêncio, Bray saudou a imaginação de Taleniekov; esse contratara uma criada noturna para servir-lhe de olhos lá dentro. Uma manobra inteligente, mas falha. Tal vigia podia ser facilmente afastada, convocada pela portaria. Um acidente com um hóspede, um cigarro deixado aceso, uma jarra d’água derramada. E tinha um defeito ainda maior.

De manhã, deixaria o serviço. E nesse momento poderia ser chamada pelo hóspede do quarto em frente.

Scofield ia voltar à pia quando ouviu o vozerio e retornou ao olho mágico. A mulher bem-vestida acabara de sair do quarto com a pequena maleta na mão. A arrumadeira estava em pé na porta. Scofield podia ouvir as palavras da isca.

— Diga-lhe que vá para o inferno! — berrava ela. — Aquele cretino não passa de um maluco, meu bem. Esta joça está cheia de doidos!

A arrumadeira ficou em silêncio olhando a outra afastar-se. Depois entrou e fechou a porta.

A criada de aspecto matronal fora bem paga; de manhã, receberia uma paga ainda melhor do hóspede em frente. As negociações começariam no instante em que ela deixasse a suíte.

O laço estava ficando mais apertado. Agora, a paciência era tudo. Paciência e ficar acordado.

 

Taleniekov apressou o passo, sabendo que seus joelhos estavam prestes a ceder, esforçando-se para permanecer alerta, evitando esbarrar nos transeuntes que seguiam pela calçada. Fazia jogos mentais para manter a concentração, contando os passos e as rachaduras do piso entre as cabinas telefônicas. Os rádios não podiam mais ser utilizados, as faixas de onda repletas de ruídos. Amaldiçoou o fato de não ter tido tempo de comprar um equipamento mais sofisticado. Mas nunca julgara que aquilo pudesse demorar tanto! Uma loucura!

Eram onze e vinte da manhã. Na.cidade de Washington cheia de vida, as pessoas passavam apressadas, os automóveis e ônibus entupiam as ruas... e a suíte do hotel da Avenida Nebraska continuava recebendo aqueles telefonemas insanos.

— Quero falar com Brandon Scofield, por favor. É urgente...

Era de alucinar!

O que Scofield estaria fazendo? Onde estava? Onde estavam seus intermediários?

Apenas a mulher idosa permanecia no hotel. A prostituta revoltara-se, os dois homens há muito estavam exaustos, presenças meramente embaraçosas, inúteis. A mulher permanecia na suíte tirando alguns momentos de descanso entre os telefonemas enlouquecedores, anotando cada palavra da interlocutora. Uma mulher com forte sotaque estrangeiro, provavelmente francês, que nunca ficava na linha mais de quinze segundos, insensível a provocações, e rude. Tratava-se de uma profissional ou de alguém instruído por um profissional; fora impossível determinar a origem das chamadas.

Vasili entrou na cabina telefônica que ficava do outro lado da rua, a cinqüenta metros ao Norte do hotel. Era a quarta vez que telefonava daquela cabina, e memorizara as inscrições e os vários números gravados no metal cinza. Fechando a porta, inseriu uma moeda, esperou o ruído de discar e levou o dedo ao mostrador.

Praga!

Seus olhos lhe estavam pregando peças! Do outro lado da Avenida Nebraska, um homem saltou de um táxi e ficou parado na calçada olhando na direção do hotel. Ele conhecia aquele homem!

Pelo menos, conhecia seu rosto. E ele significava Praga!

Aquele homem tinha uma história violenta, tanto política como apolítica. Sua ficha criminal estava repleta de agressões, roubos e suspeitas de homicídio, tendo passado quase dez anos na prisão. Trabalhara contra o Estado mais por lucro do que por ideologia; fora bem pago pelos americanos. Sua perícia com armas de fogo era apreciável. Com armas brancas, melhor ainda.

O fato dele se encontrar em Washington e a menos de cinqüenta metros daquele hotel só podia significar que ele tinha alguma ligação com Scofield. Contudo, aquilo não fazia sentido! Beowulf Agate podia contar com o auxílio de dezenas de homens em dezenas de cidades, mas não recorreria a um europeu agora, e certamente não àquele homem — sua veia sádica era incontrolável. Então, por que ele estava ali? Quem o chamara?

Quem o enviara! Haveria outros?

Mas era o “porquê” que martelava o cérebro de Taleniekov. A descoberta era profundamente desconcertante. Além do fato de o local da sede Berna-Washington ter sido revelado — sem dúvida involuntariamente pelo próprio Scofield —, alguém que o conhecia fora procurar em Praga um pistoleiro de aluguel que já prestara muitos serviços aos americanos.

Por quê? Quem era o alvo?

Beowulf Agate?

Oh, Deus! Aquilo tinha método, um método que já fora utilizado antes por Washington... e que, por estranho que parecesse, era vagamente semelhante aos métodos do Matarese. Nuvens de tempestade sobre Washington... Scofield provocara uma tempestade tão forte que não fora apenas desligado; provavelmente, fora ordenada sua execução. Vasili precisava certificar-se. O homem de Praga poderia ser um engodo, um brilhante engodo para atrair um russo, e não para matar um americano.

Sua mão continuava em suspenso diante do mostrador. Baixou a alavanca de devolução de moedas e refletiu por um instante, perguntando-se se deveria correr o risco. Nisso, viu o homem do outro lado da rua consultar o relógio e dirigir-se para um café; ia encontrar-se com alguém. Então havia outros. Vasili percebeu que não poderia dar-se ao luxo de não correr o risco. Precisava saber, o tempo podia ser curto. Talvez lhe restassem apenas alguns minutos.

Havia um pradavyet na Embaixada, um assistente diplomático que perdera o pé esquerdo numa explosão durante uma revolta em Riga, alguns anos antes. Era um veterano da KGB e fora amigo de Taleniekov no passado. Talvez aquele não fosse o momento propício para testar a antiga amizade, mas Vasili não tinha escolha. Sabia o número da Embaixada; era o mesmo há anos. Tornou a inserir a moeda e discou.

— O tempo correu depois daquela noite terrível em Riga, meu velho amigo — disse Taleniekov quando atenderam no escritório do pradavyet.

— Quer esperar um momento, por favor — foi a resposta. — Estou falando em outro aparelho.

Vasili abriu os olhos. Se tivesse de esperar por mais de trinta segundos, já teria sua resposta: a antiga amizade não tinha mais valor. Até para os soviéticos existiam meios de determinar a origem de um telefonema na capital dos Estados Unidos. Virando o pulso, fixou os olhos no inquieto ponteiro de segundos de seu relógio. Vinte e oito, vinte e nove, trinta, trinta e um... trinta e dois. Ia desligar quando ouviu a voz.

— Taleniekov? é você mesmo?

Vasili reconheceu o zumbido de um dispositivo de interferência ligado ao bocal do telefone, o qual obstruiria com estática qualquer tentativa de interceptação.

— Sim, meu velho. Já ia desligar.

Ainda não esqueci Riga. Que foi que aconteceu? Soubemos de umas histórias malucas!

Não sou um traidor.

Ninguém aqui acredita nisso. Deduzimos que você pisou nos pés de algum moscovita muito importante. Mas por que não volta?

Algum dia voltarei.

Não pude acreditar nas acusações. Mas você está aqui!

Porque é preciso. Para o bem da Rússia. Para o bem de todos. Confie em mim. Preciso com urgência de uma informação. Se existe alguém aí na Embaixada que pode me ajudar, esse alguém é você.

De que se trata?

Acabei de ver um homem vindo de Praga, alguém que os americanos costumam utilizar por seus talentos mortíferos. Tínhamos uma longa ficha a seu respeito; ela ainda deve existir. Você sabe alguma coisa...

Trata-se de Beowulf Agate, não é? — interrompeu-o gentilmente o diplomata. — Você ainda não esqueceu Scofield.

Conte-me tudo que sabe!

Esqueça-o, Taleniekov. Deixe-o em paz. Sua própria gente cuidará dele. Ele está liquidado.

Meus Deus, eu estava certo! — exclamou Vasili com os olhos no café do outro lado da Avenida.

Não sei do que você esta falando, mas sei que foram interceptados três cabogramas. Para Praga, Marselha e Amsterdam.

Eles mandaram uma equipe — ajuntou Taleniekov.

Mantenha-se longe disso. Você terá sua vingança, a mais doce vingança que poderia imaginar. Depois de tantos anos de serviço, ele será morto por sua própria gente.

Isso não pode acontecer! Há fatos que você ignora.

Pode acontecer, sim, não importa o que eu desconheça. Não podemos impedir.

De repente, a atenção de Vasili foi atraída por um pedestre que se preparava para atravessar na esquina, a uns dez metros da cabina telefônica. O homem tinha qualquer coisa diferente, talvez a expressão determinada do rosto, os olhos que corriam de um lado para o outro por trás das lentes claras — indecisos, mas não desorientados, examinando os arredores. E as roupas dele, largas, de um tweed barato, mas espesso e durável... eram francesas. Os óculos eram franceses, o rosto de um gaulês. O homem olhou na direção da marquise do hotel e apressou o passo.

Marselha chegara.

— Venha para cá — estava dizendo o diplomata. — Considerando-se seus extraordinários serviços, não creio que o que quer que tenha acontecido seja irreparável — continuou, em tom persuasivo, o antigo camarada de Riga. — O fato de se entregar voluntariamente contará a seu favor. E Deus é testemunha de que contará com nosso apoio. Atribuiremos sua fuga a uma perturbação passageira, um estado emocional anormal. Afinal, Scofield matou seu irmão.

— Eu matei a mulher dele.

— Uma esposa não é do mesmo sangue. Isso é compreensível. Tome a decisão certa. Entregue-se, Taleniekov.

A tentativa de persuasão, de excessiva, passara a ilógica. Um homem não se entrega voluntariamente sem ter indícios concretos de uma absolvição. Não com uma sentença de execução sumária pendendo sobre sua cabeça. Talvez, afinal, a antiga amizade não tivesse resistido à pressão.

— Você me protegerá? — perguntou ele ao pradavyet.

— Naturalmente.

Mentira. Ele não poderia garantir tal coisa. Algo estava errado.

Do outro lado da rua, o homem de terno francês aproximou-se do café. Diminuindo o passo, parou diante da vitrina como que para examinar o menu afixado ao vidro, e acendeu um cigarro. Dentro, quase invisível à luz do sol, a chama de um fósforo tremeluziu. O francês entrou. Praga e Marselha tinham feito contato.

— Agradeço seus conselhos — disse Vasili ao telefone. — Vou pensar, ligarei mais tarde.

— Quanto mais cedo, melhor para você — retrucou o diplomata, a persuasão cedendo lugar à pressão. — Envolvendo-se com Scofield, não melhorará em nada sua situação. Você não deve ser visto por aí.

Visto por aí? Taleniekov reagiu a essas palavras como a um disparo de pistola. O velho amigo traíra-se com aquela admissão. Visto onde? Seu colega de Riga sabia: no hotel da Avenida Nebraska. Não fora Scofield quem, voluntária ou involuntariamente, revelara a base soviética. Fora a própria KGB! O Serviço Secreto soviético colaborara para a execução de Beowulf Agate. Por quê? O Matarese? Não havia tempo para refletir, só para agir... O hotel! Scofield não estava sentado sozinho diante de um telefone em algum lugar afastado, esperando notícias de seus intermediários. Ele estava no hotel. Ninguém teria de deixar o local para levar informações a Beowulf Agate, nenhum pássaro iria levá-lo até o alvo. O alvo executara uma manobra brilhante: encontrava-se na linha de fogo, oculto, observando sem ser observado.

— Você precisa me escutar, Vasili.

O pradavyet tornara-se mais eloqüente agora, sem dúvida percebendo a indecisão do interlocutor. Se o antigo colega de Riga tinha de ser executado, isso poderia ser feito de inúmeras maneiras no interior da Embaixada. Seria infinitamente preferível ao encontro do cadáver num hotel americano, uma morte logo associada ao assassinato de um agente secreto americano por agentes estrangeiros. Aquilo significava que a KGB revelara a localização da base aos americanos, desconhecendo, contudo, a hora da execução.

Mas agora já sabiam. Alguém do Departamento de Estado os informara com instruções claras: seus compatriotas deveriam manter-se longe do hotel — assim como os americanos. Ninguém deveria envolver-se. Vasili precisava de tempo, talvez só lhe restassem alguns minutos.

— Estou escutando — retrucou Vasili num tom sincero, um homem exausto recobrando a razão. — Você está certo. Não tenho mais nada a ganhar, só a perder. Entrego-me em suas mãos. Se conseguir arranjar um táxi nesse tráfego louco, estarei na Embaixada dentro de meia hora. Espere por mim. Preciso de você.

Vasili cortou a ligação e, ingerindo outra moeda, discou o número do hotel. Não podia perder um segundo.

— Ele está aqui? — perguntou incrédula a mulher idosa ao ouvir a declaração de Taleniekov.

— Meu palpite é que está bem perto. Isso explica a presteza de suas reações, os telefonemas, o fato de ele saber quando alguém entra na suíte. Deve estar no mesmo andar, escutando do outro lado da parede, ou espiando por uma fresta ao ouvir barulho no corredor. Você ainda está de uniforme?

— Sim, estava cansada demais para tirá-lo.

— Investigue os quartos aí em volta.

— Deus do céu, sabe o que está me pedindo? E se ele.. ,

— Sei o que estou lhe pagando; pagarei mais se fizer o que peço. Vá! Não há um momento a perder. Telefonarei daqui a cinco minutos.

— Como vou saber se é ele?

— Ele não a deixará entrar.

 

Bray sentara-se sem camisa entre a janela aberta e a porta, e o ar frio o fazia estremecer. Reduzira a temperatura do quarto dez graus; a friagem o manteria acordado. Um homem exausto com frio conservava-se mais alerta do que um que estivesse confortavelmente aquecido.

Ouviu um som leve e distante de metal atritando contra metal e o girar de uma maçaneta. No corredor, uma porta se abrira. Scofield fechou a janela e correu para o minúsculo ponto de observação a fim de ver o estreito mundo que logo iria tornar-se o local de uma armadilha invertida. Teria de ser logo. Não sabia quanto tempo mais poderia agüentar.

Do outro lado, a arrumadeira idosa de aspecto agradável deixara a suíte com uma pilha de lençóis e toalhas sobre o antebraço. Tinha uma expressão perplexa, mas resignada. Sem dúvida, estava pensando que o estrangeiro lhe oferecera uma quantia inusitada apenas para ficar acordada e receber uma série de telefonemas estranhos. Outra pessoa também tinha ficado acordada para dar aqueles telefonemas. Alguém a quem Bray muito devia; algum dia a recompensaria. Mas no momento tinha de se concentrar no pássaro de Taleniekov. Ela estava indo embora; não era capaz de permanecer no ar mais tempo.

Ela abandonara a base. Agora, era só questão de tempo, muito pouco tempo. O caçador seria forçado a examinar a armadilha. E cairia nela.

Scofield dirigiu-se para a mala aberta sobre a cômoda e pegou uma camisa limpa e bem-engomada. O tecido rígido e encorpado funcionava como um irritante, da mesma forma que o frio, mantendo-o alerta.

Vestiu-a e andou até a mesa de cabeceira onde colocara a arma, uma Browning Magnum tipo IV, munida de um silenciador especial.

A um som inesperado, Bray girou nos calcanhares. A batida tímida repetiu-se. Por quê? Ele pagara pelo total isolamento. A portaria alertara os poucos empregados que poderiam ter motivos para entrar no quarto 213 no sentido de respeitar o letreiro pendurado na maçaneta.

Não Perturbe.

Entretanto, alguém estava desobedecendo a ordem, ignorando o pedido de um hóspede, pedido reforçado com uma gorjeta de várias centenas de dólares. Ou esse alguém era surdo e analfabeto ou...

Era a arrumadeira, o pássaro de Taleniekov, ainda em ação. Scofield espiou pela minúscula lente circular que ampliava os traços cansados do rosto a poucos centímetros de distância. Os olhos empapuçados pela falta de sono olharam para um lado e para o outro e depois baixaram. A velha tinha de estar vendo o letreiro, mas evidentemente não o acatava. Além do comportamento contraditório, seu rosto tinha algo de estranho... mas Bray não tinha tempo para um exame mais profundo. Nas novas circunstâncias, as negociações tinham de começar depressa. Ele enfiou a arma dentro da camisa, o tecido engomado disfarçando a saliência.

— O que é? — perguntou.

— A arrumadeira, senhor — foi a resposta num vago sotaque irlandês. — Estou trocando as toalhas a mando da gerência, senhor.

O pretexto era muito fraco, o pássaro tonto demais para imaginar um melhor.

— Entre — disse Scofield abrindo a porta.

 

— Ninguém atende na suíte 211 — disse a telefonista, irritada com a insistência do interlocutor.

— Tente outra vez — retrucou Taleniekov, olhos fixos na entrada do café do outro lado da rua. — Eles podem ter saído por um instante, mas voltarão logo. Eu sei disso. Continue chamando. Eu espero na linha.

— Como quiser, senhor — replicou a telefonista.

Que inferno! Nove minutos se haviam passado desde que a velha começara sua busca, nove minutos para bater em quatro portas no corredor. Mesmo supondo-se que os quatro quartos estivessem ocupados e que a arrumadeira precisasse desculpar-se com os ocupantes, nove minutos era demasiado. O último diálogo seria breve e áspero. “Vá embora. Não quero ser perturbado.” A menos que...

Um fósforo tremeluziu à luz do sol, o reflexo nítido no vidro escuro do café. Vasili piscou e fixou a vista; em alguma mesa invisível lá dentro, um sinal correspondente extinguiu-se com rapidez.

Amsterdam chegara. A equipe de execução estava completa. Taleniekov examinou o vulto que entrava no pequeno restaurante Era um homem alto com um sobretudo negro e um cachecol de seda cinzento. O chapéu também era cinzento, e lhe encobria o perfil.

Do outro lado da linha, a campainha tocava com insistência. Toques longos e insistentes produzidos por uma telefonista furiosa Ninguém atendia e Vasili começou a pensar no inconcebível: Beowulf Agate interceptara sua isca. Nesse caso, o americano corria perigo muito maior do que poderia imaginar. Três homens haviam chegado da Europa para serem seus verdugos e — não menos mortífera do que eles — a velhinha de aparência frágil, com quem poderia tentar negociar, iria matá-lo no instante em que se sentisse encurralada. Ele nem saberia de onde viera o tiro, nem que ela estava armada.

— Sinto muito, senhor! — exclamou, raivosa, a telefonista. — Continuam não atendendo na suíte 211. Sugiro que telefone mais tarde.

Sem esperar uma resposta, ela cortou a ligação.

A telefonista do hotel?

Era uma manobra desesperada, que ele nunca aprovaria a não ser como último recurso — o risco de expor-se grande demais. Mas aquele era seu último recurso e, se existiam alternativas, estava demasiado exausto para descobri-las. Agora sabia apenas que precisava agir, cada decisão um reflexo instintivo em que depositava confiança. Enfiou a mão no bolso e tirou cinco notas de cem dólares. Depois, da carteira de documentos, extraiu uma carta que escrevera numa máquina inglesa cinco dias antes em Moscou. O papel timbrado de uma firma de corretagem em Berna identificava o portador como um dos sócios da casa. Nunca se sabia...

Deixando a cabina telefônica, acompanhou o fluxo dos pedestres até achar-se bem em frente à porta do hotel. Esperou que o tráfego diminuísse e atravessou rapidamente a Avenida Nebraska.

Dois minutos depois, um solícito gerente apresentou Monsieur Blanchard à telefonista do hotel. Esse mesmo gerente — tão bem-impressionado com as credenciais do monsieur como com os duzentos dólares com os quais o financista suíço o recompensara pelo incômodo — providenciara rapidamente uma telefonista substituta enquanto a moça falava a sós com o generoso Monsieur Blanchard.

— Peço-lhe que perdoe minha rudeza ao telefone — disse Taleniekov, depositando três notas de cem dólares na mão nervosa da pequena. — Foi a rudeza de um homem muito preocupado. O mundo das finanças tem aspectos aterradores hoje cm dia. E uma verdadeira guerra. É necessária uma luta constante para impedir que homens inescrupulosos se aproveitem de corretores honestos e instituições legítimas. Minha companhia está com um sério problema. Há alguém neste hotel...

Um minuto depois, Vasili estava examinando uma lista de chamadas telefônicas registradas por um computador. Concentrou-se nas chamadas do segundo andar. Havia ali dois corredores: a ala Oeste, com as suítes 211 e 212 em frente a três quartos de casal, e do outro lado quatro quartos de solteiro. Examinou todas as chamadas da ala Oeste. Os nomes nada significavam; as chamadas locais não eram identificadas pelo número, apenas as interurbanas poderiam fornecer informações. Beowulf Agate precisava camuflar seus passos, fabricar uma pista para um ponto longe de Washington. Ele matara um homem em Washington.

Como Taleniekov já sabia, aquele era um hotel caro. A lista confirmava o fato, pois seus hóspedes telefonavam para Londres com a mesma facilidade com que discariam para o restaurante ao lado. Concentrou-se no destino das chamadas:

 

212... Londres, Ing. $26.50

214... Des Moines, Ia. $4.75

214... Cedar Rapids, Ia. $6.20

213... Minneapolis, Minn. $7.10

215... Denver, Col. $6.75

213... Easton, Md. $8.05

215... Atlanta, Ga. $3.15

212... Munique, Al. Oc. $41.10

213... Easton, Md. $4.30

212... Estocolmo, Suécia $38.25

 

Onde achar um padrão? A suíte 212 fizera chamadas freqüentes para a Europa. Era óbvio demais, perigoso demais. Scofield não se exporia dessa maneira. O quarto 214 concentrava-se no Meio-Oeste, o 215 no Sul. Mas havia ali qualquer coisa que ele não sabia identificar. Algo que despertara uma lembrança.

Percebeu, então, e a lembrança se tornou clara. O quarto 213. O único que não obedecia a um padrão. Duas chamadas para Easton, Maryland, e uma para Minneapolis, Minnesota. Vasili viu as palavras do dossiê como se o estivesse lendo agora. Brandon Scofield tinha uma irmã em Minneapolis, Minnesota.

Taleniekov decorou os dois números, caso houvesse necessidade de utilizá-los, caso houvesse tempo de confirmar suas suspeitas. Depois virou-se para a telefonista:

— Não sei o que dizer. A senhorita foi muito atenciosa, mas não creio que isso aqui possa ajudar em alguma coisa.

Entrando na pequena conspiração, satisfeita com a atenção com que aquele homem importante a distinguia, a moça aventurou:

— Repare, Monsieur Blanchard, a suíte 212 fez várias chamadas para a Europa.

— Sim, notei. Infelizmente, não há ninguém nesses locais que esteja envolvido na presente crise. Entretanto, é estranho... O quarto 213 telefonou para Easton e Minneapolis. Pode ser coincidência, mas tenho amigos nos dois lugares...

Vasili deixou a frase interminada, um convite a um comentário.

— Aqui entre nós, Monsieur Blanchard, acho que o cavalheiro do quarto 213 não é muito bom da cabeça, sabe?

— É?

A moça explicou. O hóspede dera ordem para que sua privacidade não fosse perturbada. Até o restaurante recebera instruções para deixar as refeições no corredor, e a arrumação só deveria ser feita a pedido. Pelo que ela sabia, tal pedido não era feito há três dias. Quem podia viver assim?

— Naturalmente, volta e meia aparece gente desse tipo. Homens que alugam um quarto para embriagar-se o dia inteiro, ou ficar longe de suas esposas, ou para encontrar-se com outras mulheres. Mas acho que três dias sem arrumar o quarto é coisa de gente doente.

— Pelo menos, ele não é nada exigente.

— Isso está ficando cada vez mais comum — confidenciou a moça. — Especialmente gente do Governo. Todo mundo anda tenso. Mas quando se pensa que somos nós que pagamos a conta com nossos impostos...

— Ele é do Governo? — interrompeu Taleniekov.

— Parece. O gerente da noite não tinha autorização para dizer coisa alguma, mas como trabalho aqui há muito tempo...

— É de toda confiança, naturalmente. O que aconteceu?

— Bem, esteve aqui um homem na noite passada — às cinco da manhã, para ser mais exata — e mostrou uma fotografia ao gerente.

— Uma foto do homem do quarto 213?

A telefonista olhou para trás; a porta do escritório estava aberta, mas não havia ninguém à vista.

— É. Parece que ele está mesmo doente. Ou é alcoólatra ou tem algum distúrbio mental. Ninguém deve dizer nada para não o alarmar. Um médico deve vir buscá-lo hoje, a qualquer hora dessas.

— A qualquer hora, é? Sem dúvida, o homem que esteve aqui identificou-se como funcionário do Governo. Foi assim que souberam que o tal hóspede é do Governo também, não foi?

— Quem vive aqui há muito tempo, Monsieur Blanchard, não precisa nem de documentos para identificá-los. Está na cara de todos eles.

— Creio que sim. Muitíssimo obrigado. A senhorita foi de grande ajuda.

Vasili saiu rapidamente e dirigiu-se ao saguão. Obtivera sua confirmação. Encontrara Beowulf Agate.

Outros, porém, também o tinham encontrado. Os verdugos de Scofield estavam a poucas dezenas de metros, preparando-se para a execução.

Invadir o quarto do americano para adverti-lo seria um convite, a um tiroteio. Um deles morreria, ou ambos. Falar-lhe pelo telefone seria inútil: que crédito merecia o alarme dado por um inimigo odioso a respeito de um novo inimigo cuja existência ele ignorava?

Tinha de haver uma forma, e precisava descobri-la depressa. Se ao menos houvesse tempo para mandar outra pessoa com algo que convencesse Scofield da verdade... Algo em que Beowulf Agate acreditasse...

Não havia mais tempo. Vasili viu o homem de sobretudo negro entrar no saguão do hotel.

 

No instante em que a arrumadeira entrou no quarto, Scofield descobriu o que o intrigara em seu rosto idoso. Era o olhar. Revelava uma inteligência que não se coadunava com uma simples doméstica que passava as noites limpando o que hóspedes descuidados haviam sujado. Ela estava amedrontada — ou talvez apenas curiosa — mas de qualquer forma não possuía uma mente obtusa.

Uma atriz, talvez?

— Desculpe o incômodo, senhor — disse a mulher, notando a barba por fazer e a temperatura baixa, e seguindo em direção ao banheiro. — Num minuto eu termino.

Uma atriz. O sotaque era falso, sem raízes na Irlanda. O andar também era lépido; as pernas não tinham os músculos de uma pessoa habituada ao trabalho tedioso de carregar lençóis e fazer camas. E as mãos eram brancas e macias, não irritadas pelo uso constante de saponáceos.

Bray apiedou-se dela, desaprovando novamente a escolha de Taleniekov. Uma arrumadeira de verdade seria um pássaro muito melhor.

— Troquei todas as toalhas, senhor — disse a velha, saindo do banheiro e dirigindo-se para a porta. — Já vou, agora. Desculpe tê-lo incomodado.

Scofield deteve-a com um gesto.

— Senhor? — perguntou a mulher, os olhos alertas.

— Diga-me, de que parte da Irlanda a senhora é? Não consigo identificar o sotaque. Por acaso é do Condado de Wicklow?

— Sou, sim, senhor.

— Da região Sul?

— Sim, o senhor acertou —- retrucou ela rapidamente, a mão esquerda na maçaneta.

— Pode me dar uma toalha extra? Pode deixá-la sobre a cama.

— Ah? — a velha virou-se, a expressão outra vez perplexa. — Pois não, senhor — acrescentou, dirigindo-se para a cama.

Bray aproximou-se da porta e fechou o ferrolho, sempre falando em tom tranqüilo. Nada tinha a ganhar alarmando o assustado pássaro de Taleniekov. — Gostaria de conversar com você. Sabe, eu a vi na noite passada, às quatro da madrugada, para ser mais preciso...

Um deslocamento de ar, um farfalhar de tecido. Sons que lhe eram familiares. No quarto, atrás dele.

Girou nos calcanhares, mas não a tempo. Ouviu o disparo abafado e sentiu a bala raspar-lhe o pescoço. O sangue brotou, banhando-lhe o ombro esquerdo. Ele jogou-se para a direita. Um segundo tiro foi encravar-se na parede acima de sua cabeça. Scofield girou o braço com violência, lançando um abajur que estava sobre a mesa na direção daquela visão inacreditável a dois metros de distância.

A velha deixara cair as toalhas e empunhava uma arma. A doce expressão de surpresa desaparecera, substituída pelo rosto calmo e determinado de uma assassina experiente. Ele devia ter adivinhado!

Ele abaixou-se e seus dedos agarraram o pé da mesa. Deslocou-se como um relâmpago para a direita e depois para a esquerda e, segurando a mesinha como um aríete, arremeteu contra a velha. Dois disparos soaram, penetrando na madeira a alguns centímetros de sua cabeça.

Ele atingiu a mulher, jogando-a contra a parede com tal força que expulsou o ar de seus pulmões e a saliva lhe escorreu dos lábios retorcidos.

Soltando um grito abafado, ela deixou cair a pistola. Scofield largou a mesa em cima dos pés da velha e abaixou-se para apanhar a arma.

De posse da pistola, ergueu-se e agarrou pelos cabelos a mulher encurvada, afastando-a da parede. A peruca ruiva que ela usava se soltou, fazendo-o perder o equilíbrio. De algum ponto sob o uniforme, a assassina de cabelos grisalhos sacou um punhal — um fino estilete. Bray já vira anteriormente armas semelhantes, com lâminas banhadas em ácido succínico e colina, tão mortíferas como uma pistola. A paralisia sobrevinha em segundos, a morte logo depois. Um arranhão ou uma perfuração superficial era o bastante. Ela o atacou, o punhal em riste, um golpe quase indefensável empregado pelos mais experientes. Ele pulou para trás, atingindo o antebraço dela com a pistola. Com a dor, ela recuou instintivamente, mas sem desistir de seu intento.

— Pare! — ordenou ele, apontando a arma diretamente para o rosto dela. — Você disparou quatro vezes. Ainda restam duas balas. Eu a matarei!

A velha baixou o punhal e ficou imóvel, muda, a respiração ofegante, fitando-o com ar de espanto. Ocorreu a Scofield que ela nunca estivera antes naquela posição. Sempre fora a vencedora.

O pássaro de Taleniekov era um gavião cruel sob o disfarce de uma rolinha cinzenta. Aquela coloração protetora era sua segurança. Nunca lhe havia falhado.

— Quem é você? É da KGB? — perguntou Bray, apanhando a toalha na cama e apertando-a contra o ferimento do pescoço.

— O quê? — sussurrou ela, o olhar ainda distante.

— Você trabalha para Taleniekov. Onde está ele?

— O homem que me contratou usa vários nomes — replicou ela, a mão inerte ainda segurando a faca. Sua fúria evolara-se, substituída por medo e exaustão. — Não sei quem ele é. Não sei onde está.

— Ele sabia onde encontrá-la. Você foi treinada. Onde? Quando?

— Quando? — repetiu ela, num sussurro exangue. — Quando você ainda era criança. Onde? Fomos retiradas de Belsen e Da-chau... e enviadas para outros campos, outras frentes. Todas nós.

— Deus... — murmurou Scofield baixinho.

Todas nós. Uma legião delas. Jovens dos campos de concentração enviadas para as frentes de batalha, para os acampamentos, para os campos de pouso. Sobrevivendo como prostitutas, desonradas, indesejáveis, banidas por sua própria gente. Haviam se tornado a escória da Europa. Taleniekov sabia onde encontrar seu rebanho.

— Por que trabalha para ele? Ele não é melhor do que aqueles que a enviaram para os campos.

— Não tenho escolha. Ele me mataria. Agora é você quem vai me matar.

— Eu a teria morto meio minuto atrás. Você não me dava outra opção. Mas, se me der, eu a protegerei. Como entra em contato com esse homem?

— Ele telefona. Para a suíte aí em frente.

— Com que freqüência?

— A cada dez ou quinze minutos. Deve estar para telefonar.

— Vamos — disse Bray com cautela. — Ande para a direita e largue o punhal na cama.

— E então você atira — sussurrou a velha.

— Por que eu iria esperar? — retrucou Scofield. Precisava dela, precisava ganhar-lhe a confiança. — Se eu quisesse já teria atirado, não acha? Vamos lá para o seu telefone. Dobro a proposta que ele lhe fez.

— Acho que não conseguirei andar. Creio que você quebrou meu pé.

— Eu ajudo. — Bray baixou a toalha e, dando um passo na direção dela, estendeu-lhe a mão. — Segure no meu braço.

A velha adiantou o pé esquerdo com um ríctus de dor. Então, de repente, como uma leoa enfurecida, ela atacou, o rosto novamente contorcido, o olhar insano.

A lâmina voou na direção do estômago de Scofield.

 

Taleniekov entrou no elevador atrás do homem de Amsterdam. Havia somente dois outros passageiros. Um casal jovem de americanos ricos e mimados, amantes ou recém-casados elegantemente vestidos, cônscios apenas um do outro e de seus apetites. Tinham bebido.

O holandês de sobretudo negro tirou o chapéu cinzento e Vasili, a seu lado, encostado na parede do pequeno cubículo, virou o rosto para o lado. As portas fecharam-se. A jovem riu baixinho e seu companheiro apertou o botão do quinto andar. O homem de Amsterdam adiantou-se e apertou o número dois.

Ao recuar, olhou para a esquerda e viu Taleniekov. O choque foi total, o reconhecimento instantâneo — o homem ficou paralisado. E em seu choque, em sua reação, Vasili percebeu outra verdade: a execução também o incluía. A equipe tinha uma prioridade que era Beowulf Agate, mas se um agente da KGB chamado Taleniekov aparecesse em cena deveria ser eliminado tão impiedosamente quanto Scofield.

O homem de Amsterdam levou o chapéu ao peito e meteu a mão direita no bolso. Vasili arremeteu, imprensando-o contra a parede, e com a mão esquerda agarrou o punho dentro do bolso, forçando-o a abandonar a arma. Procurando o polegar, torceu-o para fora até que o osso estalou e o homem soltou um berro, caindo de joelhos.

A jovem gritou. Em voz forte, Taleniekov dirigiu-se ao casal.

— Não lhes farei mal. Repito, não lhes farei mal se fizerem o que eu mandar. Não façam barulho e levem-nos até seu quarto.

O holandês cambaleou para a direita. Vasili golpeou-lhe o rosto com o joelho, imprensando-Ihe a cabeça contra a parede. Tirou a arma do bolso e apontou-a para o teto.

— Não pretendo usar isto. Não pretendo usar, a menos que me desobedeçam. Vocês nada têm a ver com nossa rixa, e não lhes quero fazer mal. Mas terão de fazer o que eu disser.

— Deus, Deus do céu... — os lábios do rapaz tremiam.

— Pegue a chave — ordenou Taleniekov, quase amável. — Quando as portas se abrirem, saiam naturalmente à nossa frente e sigam até o quarto. Não correrão perigo se fizerem o que eu mandar. Caso contrário, se gritarem ou derem o alarma, terei de atirar. Mas não para matar. Atirarei na espinha. Ficarão paralisados o resto da vida.

— Oh, Deus, por favor!...

Agora, toda a cabeça, o pescoço e os ombros dó rapaz tremiam.

— Por favor, cavalheiro! Faremos tudo que quiser! — a moça ao menos conservara a lucidez e tirou a chave do colete do companheiro.

— Levante-se! — ordenou Vasili ao homem de Amsterdam. Enfiando a mão no bolso do sobretudo do assassino, apanhou a arma do holandês.

As portas do elevador se abriram. O casal saiu em passos tensos, cruzando com um homem idoso que lia um jornal e dobrou à direita no corredor. Taleniekov, a Graz-Burya escondida ao lado, agarrou Amsterdam pelo sobretudo, empurrando-o para a frente.

— Se der um pio, holandês — sussurrou —, será o último. Estouro-lhe os miolos. Não terá tempo nem de gritar.

No quarto do casal, Vasili empurrou o holandês para uma cadeira, mantendo-o sob a mira do revólver, e deu novas ordens aos amedrontados jovens.

— Entrem no armário de roupas. Depressa!

As lágrimas agora escorriam pelo rosto mimado do rapaz; a moça empurrou-o para o interior escuro de sua cela temporária. Taleniekov colocou uma cadeira sob o trinco da porta e chutou-a até vê-la firmemente presa entre o metal e o tapete. Virou-se então para o holandês.

— Você tem exatamente cinco segundos para me explicar todo o plano — disse ele, apontando a arma para o rosto do verdugo.

— Seja mais explícito — foi a resposta do profissional.

— Como queira. — Vasili desceu o cano da Graz-Burya, cortando a face do assassino. O sangue correu; o homem ergueu as mãos. Vasili curvou-se e golpeou os dois pulsos em rápida sucessão. — Baixe as mãos! Nós mal começamos. Beba o seu sangue! Daqui a pouco, você não vai ter mais lábios. Depois vai perder os dentes, o queixo, as maçãs do rosto! Por fim, vou tirar-lhe os olhos! Você já viu um homem assim? Os ferimentos no rosto são terrivelmente dolorosos, furar os olhos, então, é insuportável... — Vasili atingiu-o novamente, dessa vez num movimento ascendente, lacerando as narinas do homem.

— Não... não! Apenas obedeço ordens!

— Onde foi que já ouvi essa história antes? — Taleniekov ergueu a arma; as mãos levantaram-se outra vez e outra vez foram repelidas com golpes. — Quais são suas ordens, holandês? Vocês são três, e os cinco segundos já se passaram! A brincadeira terminou. — Ele bateu com força com o cano da Graz-Burya no supercílio direito e depois no esquerdo do homem. — O tempo acabou! — recuou a arma e depois enfiou-a como um punhal na garganta do outro.

— Pare! — berrou o homem sem ar, a voz truncada. — Eu falo... Ele nos traiu, está revelando nossos nomes por dinheiro... Vendeu-se ao inimigo!

— Sua opinião não interessa. Quero as ordens!

— Ele nunca me viu. Posso tirá-lo de lá.

— Como?

— Você. Você está a caminho. Eu vim avisá-lo.

— Ele o repeliria, o mataria! A desculpa é muito fraca. Como descobriu o quarto dele?

— Temos uma fotografia.

— Dele? Ou minha?

— De vocês dois, naturalmente. Mas só mostrei a dele. O gerente da noite reconheceu-o.

— Quem lhe deu essa fotografia?

— Amigos de Praga que operam agora em Washington e que tem elos com os soviéticos. Ex-amigos de Beowulf Agate que sabem o que ele fez.

Taleniekov fitou o homem de Amsterdam. Ele estava dizendo a verdade, pois a explicação estava baseada em meias-verdades. Scofield procuraria discrepâncias, mas não poderia ignorar as palavras de Amsterdam; não se podia dar a esse luxo. Reteria o holandês como refém e ficaria a postos. Esperando, observando, oculto. Vasili pressionou o olho direito do holandês com o cano da Graz-Burya.

— Onde estão Marselha e Praga? Onde vão colocar-se?

— Fora os elevadores sociais, os andares só têm duas saídas: as escadas e o elevador de serviço. Eles ficarão nesses dois pontos.

— Quem ficará onde?

— Praga nas escadas, Marselha no elevador de serviço.

— Qual é o cronograma? Minuto por minuto.

— Já está se escoando. Devo bater na porta dele às 12hl0min. Taleniekov olhou de relance o relógio antigo sobre a escriva­ninha. Eram 12hllmin.

— Eles já estão a postos.

— Não sei. Não posso ver o relógio. Meus olhos estão cheios de sangue.

— Quando é a hora-zero? Descobrirei se você mentir. E você morrerá de uma forma que não pode nem imaginar. Fale!

— A hora-zero é às 12h35min. Se Beowulf não tiver aparecido em nenhum dos dois lugares, invadirão seu quarto. Mas, francamente, não confio em Praga. Acho que ele nos jogaria na frente, a mim e Marselha, para receber o fogo inicial. Ele é louco!

Vasili levantou-se.

— Seu discernimento é bem maior do que a sua perícia.

— Já lhe contei tudo! Não me bata mais. Pelo amor de Deus, deixe-me limpar os olhos. Não posso ver!

— Limpe. Quero você enxergando muito bem. Levante-se!

O holandês ergueu-se, as mãos cobrindo o rosto, afastando os fios de sangue, a Graz-Burya enfiada em seu pescoço.

Por alguns segundos, Taleniekov ficou imóvel, os olhos no telefone do outro lado do quarto. Estava prestes a falar com um inimigo a quem odiara durante uma década, prestes a ouvir-lhe a voz.

Ia tentar salvar a vida do inimigo.

 

Scofield rodopiou quando a lâmina letal lhe cortou a camisa, resvalando no metal da arma que escondera sob o tecido engomado poucos minutos antes. A mulher era uma louca suicida! Teria de matá-la e não queria fazer isso!

A pistola!

Ele dissera que ainda restavam duas balas. Ela sabia que a verdade era outra!

Ela estava atacando outra vez, brandindo o punhal em ziguezague — o que quer que estivesse em seu caminho seria cortado, arranhado ao menos, ferimento insignificante em circunstâncias normais, mas fatal com aquela lâmina. Ele mirou a arma para o rosto dela e apertou o gatilho; nada aconteceu, a não ser o estalido do percursor.

Ele deu um chute violento com o pé direito, atingindo-a entre o seio e a axila, desequilibrando-a por um instante, mas apenas por um instante. Parecia uma louca, segurando o punhal como se fosse um passaporte para a vida; apenas um toque e ela estaria livre. Encurvada, brandia o braço esquerdo como um escudo protegendo a lâmina que voava furiosamente em sua direita. Ele pulou para trás, procurando alguma coisa, qualquer coisa com que pudesse defender-se das investidas dela.

Por que ela protelara o ataque? Por que parará de repente e falara com ele, revelando fatos que o tinham feito pensar? Então percebeu. O gavião não era apenas cruel, mas sábio — vira que precisava restaurar as energias gastas, e que só o conseguiria aplacando o inimigo, distraindo-o, à espera de um descuido... um único toque da lâmina envenenada.

Ela investiu outra vez, o punhal descrevendo um arco ascendente do chão para as pernas dele. Ele chutou; ela recuou a lâmina e então, numa cutilada lateral, passou a milímetros da rótula de Scofield. Com o golpe, seu braço girou para a esquerda e ele a atingiu no ombro com o pé direito, lançando-a de costas no chão.

Ela caiu; ele agarrou o objeto mais próximo — um abajur de pé com uma pesada base de metal — e jogou-o sobre ela, ao mesmo tempo em que tornava a chutar a mão que segurava o estilete.

O pulso da mulher dobrou-se para dentro e a ponta da lâmina perfurou o tecido do seu uniforme de arrumadeira, penetrando na carne acima do seio esquerdo.

A cena que ele presenciou, então, bem que gostaria de esquecer. Os olhos da mulher arregalaram-se e saltaram, seus lábios distenderam-se num sorriso macabro e tenebroso. Ela começou a contorcer-se no chão em convulsões horríveis. Por fim, contraiu-se em posição fetal, as pernas magras contra a barriga, a agonia completa. Gritos roucos e prolongados lhe saíram da garganta quando ela rolou, cravando as unhas no tapete, a boca contorcida expelindo muco, a língua intumescida.

De repente, um engasgo horrível e uma última expulsão de ar. O corpo da mulher arqueou-se num espasmo e ficou rígido. Os olhos arregalados nada viam, a boca abriu-se na morte. Todo o processo não levara sessenta segundos.

Bray abaixou-se e, pegando a mão da morta, abriu os dedos ossudos. Removeu o punhal, levantou-se e dirigiu-se à cômoda, onde se via uma caixa de fósforos. Acendeu um e colocou-o sob a lâmina. Essa inflamou-se numa violenta erupção de chamas, chamuscando-lhe os cabelos, o calor intenso lhe queimando o rosto. Deixou cair o estilete e apagou o fogo com os pés.

O telefone tocou.

 

— Aqui fala Taleniekov — disse o russo ao aparelho silencioso. Quem atendera não emitira nenhum som. — Creio que sua posição não fica enfraquecida pelo fato de admitir nosso contato.

— Está admitido — foi a resposta sucinta.

— Você repeliu minha proposta, minha bandeira branca, e no seu lugar teria feito o mesmo. Mas você errou, como eu estaria errado. Jurei matá-lo, Beowulf Agate, e algum dia talvez ainda o faça, mas não agora, não dessa forma.

— Você leu minha mensagem — foi a resposta sem qualquer expressão. — Você matou minha esposa. Venha me pegar. Estou esperando.

— Pare com isso! Ambos matamos. Você me levou um irmão... e antes disso uma jovem inocente que em nada ameaçava os animais que a estupraram e assassinaram.

— O quê?

— Não há tempo para explicar! Há homens que o desejam matar, mas não sou um deles! Capturei um, entretanto, e ele está aqui comigo agora...

— Você enviou outra pessoa — interrompeu Scofield. — Pois ela está morta. Feriu-se com o punhal, em vez de me ferir. Um corte superficial.

— Você deve tê-la provocado, não planejamos nada disso! Mas os segundos estão passando e não lhe restam muitos. Vou trazer o homem ao telefone. Ele é de Amsterdam. Ouça o que ele vai dizer. O rosto dele está contundido e ele não pode ver muito bem, mas pode falar. — Vasili apertou o fone contra os lábios ensangüentados do holandês e enfiou a Graz-Burya em seu pescoço. — Conte a ele, holandês!

— Cabogramas foram enviados... — sussurrou o homem ferido, engasgando-se com o sangue e o pavor — a Amsterdam, Marselha e Praga. Beowulf Agate não tinha mais salvação. Podíamos ser mortos se ele continuasse a viver. Os cabogramas continham as fórmulas usuais, uma advertência para que nos precavêssemos, mas sabíamos seu significado real. Não tomem precauções, eliminem o problema, liquidem Beowulf Agate... Nada disso é novidade para o senhor, Herr Scofield. O senhor mesmo já deu ordens como essas, sabe que elas têm de ser executadas.

Taleniekov arrancou o fone da boca do homem sem afastar o cano da arma de seu pescoço.

— Você ouviu. A armadilha que você armou para mim está sendo usada para caçá-lo. E por sua própria gente.

Silêncio. Beowulf Agate não disse nada. A paciência de Vasili estava se esgotando.

— Não compreende? Eles permutaram informações, é a única maneira de terem descoberto essa sede. Moscou forneceu o endereço, não percebe? Cada um de nós está sendo usado como motivo para executar o outro. Eles querem nos liquidar, aos dois. Mas meu povo é mais direto que o seu. Enviaram ordens para minha execução a todos os postos soviéticos, civis e militares. Seu Departamento de Estado age de forma um pouco diferente; seus dirigentes não assumem a responsabilidade de decisões tão inconstitucionais. Simplesmente enviam alertas para pessoas que não ligam para abstrações, mas que desejam, e muito, manter-se vivas.

Silêncio. Taleniekov explodiu.

— Que mais você quer? O papel de Amsterdam era tirá-lo daí, você não teria opção. Teria de escolher entre duas posições: a área de serviço ou as escadas. Neste instante, Marselha está ao lado do elevador de serviço e Praga nas escadas. O homem de Praga é um velho conhecido seu, Beowulf. Você já utilizou o punhal e o revólver dele em várias ocasiões. Ele está a sua espera. Se daqui a menos de quinze minutos você não tiver aparecido em nenhum desses dois lugares, eles invadirão seu quarto para matá-lo. Que mais você quer?

Por fim, Scofield respondeu.

— Quero saber por que você está me contando tudo isso.

— Releia a mensagem cifrada que lhe mandei! Essa não é a primeira vez que nós dois somos usados. Está acontecendo algo inacreditável, muito maior que eu ou você. Poucos homens têm conhecimento disso. Alguns em Washington, alguns em Moscou. Mas não dizem nada, ninguém pode dizer nada. A admissão seria catastrófica.

— Admissão de quê?

— De que eles utilizaram assassinos de aluguel. Os dois lados. O caso é antigo, de várias décadas.

— Que tem isso a ver comigo? Não tenho nada com sua vida.

— Dimitri Yurievich.

— Que tem ele?

— Estão dizendo que você o matou.

— Está mentindo, Taleniekov. Pensei que iria inventar uma história melhor. Yurievich estava balançando, era um provável desertor. O civil que foi assassinado era meu contato, sob minha supervisão. A morte deles foi uma operação da KGB. Melhor um físico morto que um físico desertor. Vou repetir, venha me buscar.

— Você está errado!... Mais tarde! Não tenho mais tempo para discutir. Quer uma prova? Então escute. Espero que seus ouvidos sejam mais atilados que a sua mente! — o russo meteu rapidamente a arma no cinto e virou o fone para cima. Com a mão esquerda, agarrou o pescoço do homem de Amsterdam, o polegar sobre os anéis da traquéia. Então, fez pressão, a mão um torno, os dedos como garras esmagando fibra e osso. O holandês debateu-se violentamente agitando os braços, tentando livrar-se do aperto num esforço inútil, seu prolongado grito de dor terminando num gemido de agonia. O homem de Amsterdam caiu no chão, inconsciente. Taleniekov levou o fone à boca e falou: — Acredita que alguma isca humana se submetesse a isso?

— E ele tinha alternativa?

— Você é um idiota, Scofield! Deixe que o matem! — Vasili sacudiu a cabeça desesperado, numa reação à sua perda de controle. — Não! Não deve fazer isso. Você não está entendendo e preciso tentar fazê-lo entender. Detesto o que você é, detesto tudo o que representa. Mas agora temos um trabalho a fazer que muitos poucos podem realizar. Temos de forçá-los a escutar, a falar. E, se não for por outros motivos, que seja porque nos temem, porque temem o que sabemos. Ambos os lados têm medo...

— Não sei do que está falando — interrompeu Scofield. — Sua estratégia não é desprezível, provavelmente a KGB dar-lhe-á uma bela dacha em Grasnov, mas não me convence. Vou repetir, venha me buscar.

— Chega! — berrou Taleniekov, olhando para o relógio da escrivaninha. — Você só tem onze minutos. E sabe onde encontrar a prova final: no elevador de serviço ou nas escadas. A menos que prefira convencer-se morrendo no quarto. Talvez você reconheça Praga, mas não Marselha. Não pode chamar a polícia, nem se arriscar a que a gerência a chame, ambos sabemos disso. Vá procurar a prova de que necessita, Scofield! Veja se este seu inimigo está mentindo. Você não passará do final do corredor! Se sobreviver — o que é improvável —, estou no quinto andar, quarto 505. Já fiz o que podia! — Encolerizado, Vasili bateu o fone num gesto teatral. Qualquer coisa para sacudir o americano, para fazê-lo pensar.

Agora, todos os segundos eram preciosos. Taleniekov dissera a Beowulf Agate que fizera todo o possível, mas não era verdade. Ajoelhando-se, arrancou o sobretudo, negro do corpo inconsciente de Amsterdam.

 

Bray recolocou o fone no lugar, a mente em torvelinho. Se ao menos tivesse dormido, ou não tivesse sofrido o inesperado e violento ataque da mulher, ou se Taleniekov não lhe tivesse dito tantas verdades, as coisas estariam mais claras. Mas tudo aquilo acontecera e, como tantas vezes no passado, precisava ajustar-se a uma aceitação cega dos fatos e pensar em termos de ação imediata.

Não era a primeira vez que ele era o alvo de facções distintas. Acostumara-se a isso lidando com grupos adversários de um mesmo partido, embora raramente visassem sua morte. O incomum era o fator tempo, a simultaneidade de ataques distintos. Entretanto, era compreensível, óbvio!

O subsecretário de Estado Daniel Congdon mostrara as patinhas! O aparentemente inócuo burocrata encontrara a coragem para agir segundo suas convicções. Ou, mais precisamente, encontrara Taleniekov e seus passos em direção a Beowulf Agate. Que melhor motivo descobriria para infringir as regras e eliminar um especialista aposentado que considerava perigoso? Que melhor motivo para procurar os soviéticos, que só podiam aprovar a execução dos dois agentes?

Tão óbvio. Uma estratégia tão bem planejada que poderia ter sido concebida por ele ou por Taleniekov. Negativas e ares de espanto seguir-se-iam, estadistas em Washington e Moscou condenando a violência de seus ex-agentes secretos, de uma era ultrapassada. Uma era quando animosidades pessoais freqüentemente se superpunham aos interesses nacionais. Podia até ouvir as declarações de angelical inocência de homens que, como Congdon, ocultavam decisões nojentas sob títulos respeitáveis.

O que o enfurecia era que a realidade iria corroborar os chavões, a sede de vingança de Taleniekov legitimaria as excusas. “Jurei que o mataria, Beowulf Agate, e algum dia talvez ainda o faça.”

O dia chegara, o “talvez” sem significado para o russo. Taleniekov queria Beowulf Agate para si; não toleraria interferências de assassinos recrutados por burocratas de Moscou e Washington. “Farei com que respire pela última vez...” Tais tinham sido as palavras de Taleniekov seis anos antes; ele falara a sério, e não mudara de idéia.

Sem dúvida, ele salvaria seu inimigo das armas de Marselha e Praga. Seu inimigo merecia uma arma melhor, a sua. E nenhum pretexto era por demais ilógico, nenhuma tática impossível para atrair seu inimigo ao alcance de um tiro.

Ele estava cansado de tudo aquilo, pensou Scofield, largando o fone. Cansado das tensões daquela caçada. E, no cômputo final, quem se importaria? Quem daria um tostão por dois especialistas decadentes, adversários determinados a matar um ao outro?

Bray fechou os olhos, apertando as pálpebras, ciente de que estavam úmidos. Lágrimas de fadiga, de um corpo e uma mente esgotados — mas não era hora de admitir exaustão. Pois ele se importava. Se tinha de morrer — e havia sempre uma possibilidade —, não iria ser pela arma de Marselha, Praga ou Moscou. Era melhor do que eles, sempre fora.

Segundo Taleniekov, restavam-lhe onze minutos; dois já tinham decorrido desde o telefonema do russo. A armadilha era seu quarto, e se o homem de Praga era mesmo quem Taleniekov dissera o ataque seria rápido e com um mínimo de risco. Projéteis com gás precederiam o uso de automáticas, os vapores imobilizando quaisquer ocupantes do quarto. Era a tática preferida do assassino de Praga, que não gostava de se arriscar.

Seu objetivo imediato, portanto, era cair fora da armadilha. Sair pelo corredor não era possível, talvez nem abrir a porta o fosse. Sendo a atribuição de Amsterdam atraí-lo para fora, e não tendo ele saído, Praga e Marselha atacariam. Como não havia ninguém no corredor — o que a ausência de ruído parecia indicar —, eles nada tinham a perder. O cronograma não sofreria atraso, mas poderia ser acelerado.

Ninguém no corredor... e se houvesse alguém? Gente correndo, excitada, distraindo a atenção. Na maioria das vezes, uma multidão era uma vantagem para o assassino, não para o alvo, especialmente se esse era facilmente identificável e o assassino, ou os assassinos, não. Por outro lado, um alvo que sabia precisamente quando e onde o ataque seria desfechado podia usar a multidão para cobrir sua fuga do ponto-zero. Uma fuga baseada na confusão e numa mudança de aparência. A mudança não precisava ser grande, apenas o bastante para causar indecisão; um tiroteio indiscriminado durante uma execução era algo a ser evitado.

Oito minutos. Ou menos. A preparação era essencial. Teria de levar seus pertences indispensáveis, pois quando começasse a correr teria de continuar correndo; por quanto tempo e até que ponto, não tinha condições de saber, nem podia pensar nisso agora. Precisava cair fora da armadilha e escapar de quatro homens que o queriam ver morto, um deles mais perigoso que os outros três, pois não fora enviado por Moscou, nem por Washington. Viera por conta própria.

Com passos rápidos, Bray pegou a mulher morta no chão, arrastou-a para o banheiro e fechou a porta. Em seguida, apanhou o abajur de pé de base metálica e golpeou violentamente a maçaneta. O trinco emperrou. Só arrombando a porta poderiam entrar no banheiro.

Poderia deixar as roupas ali. Não tinham marcas de lavanderia ou indícios óbvios que as relacionassem imediatamente a Brandon Scofield; as impressões digitais iriam encarregar-se disso, mas levaria tempo para que fossem colhidas e identificadas. A essa altura, estaria longe — se conseguisse sair vivo do hotel. Sua maleta era diferente, continha as ferramentas de sua profissão. Fechou-a girando o fecho de combinação e jogou-a em cima da cama. Enfiou o paletó e, voltando ao telefone, discou para a telefonista.

— Aqui é do quarto 213 — disse ele num sussurro fraco. — Não a quero alarmar, mas acho que tive um derrame. Conheço os sintomas. Preciso de um médico...

Soltou o fone. O aparelho bateu na mesa e caiu no chão.

 

Taleniekov vestiu o sobretudo negro e abaixou-se para pegar o cachecol cinzento, ainda enrolado no pescoço de Amsterdam. Arrancou-o, colocou-o em volta do pescoço e apanhou o chapéu cinzento que caíra ao lado da cadeira. Era largo demais para ele; afundou a copa para que ficasse menos desajeitado e dirigiu-se para a porta. Ao passar pelo armário, deteve-se e disse ao casal que estava lá dentro:

— Fiquem aí e não façam barulho! Estarei do lado de fora da porta. Se ouvir algum ruído, voltarei e vocês sofrerão as conseqüências!

O russo saiu correndo pelo corredor, passou pelos elevadores sociais e dirigiu-se ao elevador de serviço no fundo do vestíbulo. Encostada à parede via-se uma mesinha de rodas utilizada pelos camareiros. Tirou a Graz-Burya do cinto, enfiou-a no bolso do sobretudo e apertou o botão com a mão esquerda. A luz vermelha acima da porta acendeu-se: o elevador estava no segundo andar. Marselha estava em seu posto, à espera de Beowulf Agate.

A luz apagou-se e segundos mais tarde o número três delineou-se em vermelho, e em seguida o quatro. Vasili virou-se, dando as costas ao elevador.

A porta se abriu, mas não houve palavras de reconhecimento ou surpresa diante do sobretudo negro e do chapéu cinzento. Taleniekov girou nos calcanhares, o dedo no gatilho da arma.

Não havia ninguém no elevador. Entrou e apertou o botão do segundo andar.

 

— Senhor? Senhor? Meu Deus, é o doido do 213! — a voz excitada da telefonista subiu estridente do fone caído no tapete. — Mande dois rapazes lá em cima para ver o que aconteceu! Vou chamar uma ambulância. Ele teve um derrame ou coisa parecida...

A ligação foi cortada. O caos começara.

Scofield destrancou a porta e esperou. Tinham se passado menos de quarenta segundos quando ouviu passos apressados e gritos no corredor. A porta escancarou-se. O chefe dos mensageiros entrou, seguido por um subordinado mais jovem e forte.

— Graças a Deus não estava trancada! Onde... ?

Bray fechou a porta com um chute, mostrando-se aos recém-chegados, a pistola automática na mão.

— Ninguém vai se machucar — disse ele calmamente — se fizerem exatamente o que eu mandar. Você aí — disse ao mais jovem — tire a jaqueta e o boné. E você — continuou, dirigindo-se ao chefe dos camareiros — pegue o telefone e diga à telefonista para mandar o gerente aqui em cima. Você está com medo. Não quer mexer em nada, mas acha que estou morto.

O homem gaguejou, os olhos fixos na arma, e correu para o telefone. Seu desempenho foi convincente, estava realmente apavorado.

Bray pegou a jaqueta vermelha enfeitada de dourado que o outro lhe estendia. Tirou o paletó e vestiu-a, meteu seu paletó debaixo do braço e ordenou:

— O boné.

O rapaz obedeceu. Os olhos arregalados para Bray, o chefe dos mensageiros encerrou seu apelo quase gritando:

— Pelo amor de Deus, depressa! Mande alguém aqui em cima!

Indicando a porta com a arma, Scofield disse ao homem desnorteado:

— Fique ao lado da porta, junto de mim. — E acrescentou, dirigindo-se ao mais jovem: — Entre naquele armário junto da cama. Já!

O mensageiro mais forte hesitou, olhou para a cara de Bray e entrou depressa no armário. Scofield, a arma apontada para o chefe dos mensageiros, deu alguns passos e fechou a porta do armário com um chute. Apanhando o abajur de pé pela haste, ordenou:

— Vá para o lado direito! Entendeu? Responda!

— Entendi — foi a resposta abafada.

— Bata na porta!

A batida veio da extrema esquerda, à direita do rapaz. Bray golpeou a maçaneta com a base do abajur; a maçaneta caiu. Então ergueu a automática munida de silenciador e disparou uma bala no lado direito da porta. — Isso foi um tiro! — disse ele. — Ouça o que ouvir, fique de boca fechada ou levará outro. Estou bem aqui em frente!

— Oh, meu Deus...

O homem ficaria em silêncio nem que houvesse um terremoto. Scofield voltou para junto do chefe dos mensageiros pegando de passagem sua maleta.

— Onde fica a escada?

— No corredor à direita, no caminho dos elevadores. Fica lá no fim.

— E o elevador de serviço?

— Em frente, à esquerda, também no fim do corredor...

— Escute, e lembre-se do que eu vou dizer — cortou Bray. — Daqui a alguns segundos, o gerente e talvez outros vão vir aí pelo corredor. Quando eu abrir a porta, saia gritando, gritando, até estourar os pulmões... e corra ao meu lado.

— Meu Deus! E o que é que eu grito?

— Que você quer sair daqui — respondeu Bray. — Use a imaginação. Não deve ser difícil.

— Aonde é que nós vamos! Tenho mulher e quatro filhos!

— Ótimo. Por que não vai para casa?

— O quê?

— Como é que se chega mais depressa à portaria?

— Porra, eu não sei!

— Elevadores podem demorar.

— Pela escada, então. Pela escada! — exclamou triunfante o homem em pânico.

— Pois vá pela escada — disse Scofield, o ouvido encostado na porta.

As palavras chegavam até ele, abafadas, mas enfáticas. Ouviu “polícia”, “ambulância” e depois “emergência”. Deviam vir de umas três ou quatro pessoas;

Bray escancarou a porta e empurrou o chefe dos mensageiros para o corredor.

— Agora — ordenou.

Taleniekov virou-se para o lado quando o elevador de serviço se abriu no segundo andar. O sobretudo negro e o distinto chapéu cinzento tornaram a não provocar sons de reconhecimento, e ele girou outra vez, empunhando a Graz-Burya dentro do bolso. Defrontou-se com várias mesinhas de rodas com refeições inacabadas e o aroma de café, mas não viu Marselha.

Um par de portas de vaivém de metal com uma vidraça circular em cada folha dava para o corredor central do segundo andar. Vasili adiantou-se e espiou pela abertura da direita.

Lá estava ele. O homem de terno, grosso de tweed seguia cautelosamente junto da parede em direção ao corredor secundário que levava ao quarto 213. Taleniekov olhou o relógio: eram 12h31min. Faltavam quatro minutos para o ataque, uma eternidade se Scofield usasse a cabeça. Era preciso chamar a atenção. O meio mais seguro era o fogo. Um telefonema, uma fronha cheia de panos e papéis incendiada e jogada no corredor. Perguntou a si mesmo se Scofield teria pensado nisso.

Scofield tinha pensado em alguma coisa. No saguão, a luz sobre um dos elevadores sociais se acendeu; a porta se abriu e três homens saíram apressados, falando com excitação. Um deles era o gerente, agora quase em pânico; outro carregava uma malinha negra: um médico. O terceiro era atarracado, a expressão fechada, o cabelo à escovinha... o detetive particular do hotel.

Passaram correndo pelo espantado Marselha — que lhes deu as costas abruptamente — e seguiram pelo longo corredor que levava ao quarto de Scofield. O francês sacou a arma.

Do outro lado do corredor, sob um letreiro em vermelho que dizia “Saída”, uma pesada porta de segurança se escancarou. O vulto de Praga adiantou-se e fez um sinal para Marselha. Na mão direita, trazia uma automática de alto calibre, de cano longo, e na esquerda o que parecia ser... e era... uma granada. O polegar curvado apertava a alavanca. O percussor já fora retirado!

E ele certamente trouxera outras. Praga era um arsenal ambulante. Mataria quem quer que estivesse na área, contanto que matasse Beowulf Agate. Uma granada atirada num corredor sem saída, uma incursão rápida na carnificina antes que a fumaça se dissipasse para meter uma bala na cabeça dos sobreviventes, a primeira sem dúvida para Scofield. Não importa em que Scofield tivesse pensado, estava encurralado. Não poderia passar pelo cerco.

A menos que Praga pudesse ser detido onde estava, a granada levando-o pelos ares. Vasili sacou a Graz-Burya do bolso e empurrou a porta de vaivém.

Ia atirar quando ouviu um grito... gritos de um homem em pânico.

— Saiam do caminho! Pelo amor de Deus, tenho de sair daqui!

Seguiu-se um pandemônio. Dois homens com uniformes do hotel vieram correndo pelo corredor e um deles dobrou à direita, chocando-se com Praga, que o jogou longe, golpeando-o com o cano da arma. Praga gritou para Marselha que seguisse em frente.

Marselha não era tolo, Amsterdam também não. Vira a granada na mão de Praga. Os dois homens começaram a gritar um com o outro.

A porta do elevador se fechou.

A porta se fechou. A luz se apagou. Alguém acabara de entrar!

Beowulf Agate conseguira escapar.

Taleniekov recuou para trás das portas de metal; na confusão, ninguém o vira. Mas Praga e Marselha tinham visto o elevador, e obviamente se lembrado do segundo homem de jaqueta vermelha correndo em frente, sem pânico algum, sabendo o que fazia... e carregando qualquer coisa debaixo do braço esquerdo. Como Vasili, os dois verdugos voltaram os olhos para os números sobre a porta do elevador, esperando, assim como Taleniekov, que a letra T se acendesse. Isso não aconteceu.

Ao chegar ao número 3, a luz parou.

O que é que Scofield estava fazendo? Poderia estar na rua em dois segundos, buscando segurança na multidão, a caminho de um santuário qualquer entre as dezenas que conhecia. Mas continuava no campo de batalha! Era loucura!

Então Vasili compreendeu. Beowulf Agate estava a sua procura.

Espiou pela vidraça circular. Praga disse qualquer coisa com um ar selvagem e Marselha assentiu, sempre com o dedo no botão do elevador da esquerda. Praga saiu correndo em direção à escada e desapareceu por trás da porta de segurança.

Taleniekov precisava saber o que tinham combinado. Podia economizar-lhe muitos segundos — se conseguisse descobrir em segundos. Meteu a Graz-Burya no bolso e arremeteu corredor adentro, o lenço de seda cinza ocultando o pescoço, o chapéu bem enterrado sobre a testa, o rosto encoberto. Gritou alto:

— Alors, vous avez découvert quelque chose par hazard?

A impostura funcionou. Em sua excitação, Marselha caiu no logro. O sobretudo negro, o cinza do lenço e do chapéu, o francês falado com o sotaque gutural de um holandês, tudo isso foi suficiente para confundir a imagem de um homem que ele só vira uma vez e rapidamente, no café. Aturdido, ele correu para Taleniekov falando alto em sua língua nativa, tão atropeladamente que o outro mal pôde distinguir as palavras.

— O que é que você está fazendo aqui? — Isto parece um hospício! Tem gente berrando lá no quarto de Beowulf, arrombando as portas! Ele escapou. Praga...

Marselha calou-se. Ao ver o rosto do homem à sua frente, seu espanto transformou-se em choque. Num relâmpago, a mão de Vasili agarrou a arma que o francês segurava e torceu-a com tal força que Marselha soltou um berro. A pistola foi arrancada dos dedos do francês. Taleniekov jogou-o contra a parede e golpeou-lhe a virilha com o joelho, a mão esquerda erguendo Marselha pela orelha direita.

— Onde está Praga? Você tem um segundo para falar! — atingiu os testículos do outro novamente com o joelho. — Vamos!

— Íamos subir até o telhado... — engasgado, Marselha cuspiu as palavras entre dentes, a mão erguida num espasmo de dor. — Revistar andar por andar... até o telhado.

— Por quê? — Meu Deus, pensou Vasili. Havia um aeroduto de metal ligando o hotel ao edifício vizinho. Eles saberiam disso? Uma nova joelhada e insistiu: — Por quê?

— Praga acha que Scofield acredita que você colocou homens nas portas do hotel. Ele vai esperar pela chegada da polícia... pela confusão. Fez alguma coisa lá no quarto dele! Pelo amor de Deus, pare!

Vasili golpeou o crânio do francês atrás da têmpora esquerda com a coronha da arma que lhe arrancara. O ferimento esguichou sangue e o assassino caiu inconsciente. Taleniekov arrastou o corpo ao longo da parede e largou-o no ponto em que o corredor se bifurcava. Quem quer que saísse do quarto 213 seria surpreendido por outra visão dantesca. O pânico cresceria, garantindo-lhe minutos preciosos.

O elevador da esquerda atendera ao chamado do francês. Vasili correu para dentro da cabina e apertou o botão do terceiro andar.

As portas se fecharam no instante em que dois homens excitados saíram correndo do quarto 213. Um deles era o gerente do hotel. Ao ver o francês caído no meio do tapete encharcado de sangue, ele soltou um berro.

 

Scofield tirou a jaqueta e o boné, socou-os num canto e vestiu o paletó. O elevador parou no terceiro andar. Ele enrijeceu ao dar com uma arrumadeira corpulenta que entrou com uma pilha de toalhas no braço. Ela inclinou a cabeça num cumprimento; ele nem piscou. As portas se fecharam e eles subiram até o quarto andar, onde a arrumadeira desceu. Num gesto rápido, Bray tornou a apertar o botão do sexto, o último andar do prédio.

Se fosse possível, uma parcela daquela loucura iria terminar! Não pretendia fugir apenas para começar a correr novamente, sem saber onde estaria a próxima armadilha. Taleniekov estava ali naquele hotel, e isso era tudo que lhe interessava.

Quarto cinco-zero-cinco. Taleniekov dera-lhe o número pelo telefone, dizendo que estaria à sua espera. Bray forçou a memória, tentou lembrar algum código que correspondesse a esses algarismos, mas nada lhe ocorreu. Ele duvidava de que o agente da KGB fosse revelar sua posição.

Cinco-Zero-Cinco.

Cinco-Morte-Cinco?

“Estou à sua espera no quinto andar. Um de nós morrerá.”

Seria tão simples assim? Taleniekov teria se limitado a um desafio? Seu ego estaria tão exacerbado ou sua exaustão tão completa que nada lhe restava a não ser marcar o local do duelo?

“Pelo amor de Deus, vamos acabar com isso! Estou indo, Taleniekov! Você pode ser bom, mas não é páreo para o homem que chama de Beowulf Agate!”

Ego. Tão necessário. Tão cansativo.

O elevador chegou ao sexto andar. Bray prendeu a respiração quando entraram dois homens bem-vestidos. Falavam de negócios, uma conversa aborrecida sobre os resultados do ano anterior. Ambos lhe endereçaram um olhar rápido e desaprovador. Ele compreendeu o motivo. A barba, os olhos injetados. Evitando-lhes o olhar, agarrou a maleta. A porta começou a fechar e Bray adiantou-se, a mão dentro do paletó.

— Desculpem — murmurou. — É meu andar.

Não havia ninguém no longo corredor que se estendia à frente, quatro andares acima do 211 e do 213. Lá embaixo à direita, viu uma porta dupla metálica com vidraças circulares. O elevador de serviço. Uma das folhas acabara de fechar, ainda tremia. Scofield tirou parcialmente a automática do cinto, mas recolocou-a no lugar ao ouvir barulho de pratos por trás das portas de vaivém. Alguém empurrava uma mesinha de rodas; um homem de tocaia com intuitos assassinos não faz ruídos.

À esquerda, perto da escada, uma arrumadeira acabara de limpar um quarto. Ela fechou a porta e, com ar cansado, começou a empurrar seu carrinho para o quarto seguinte.

Cinco-Zero-Cinco.

Cinco-Morte-Cinco.

Se existia um local de duelo, ele estava acima dele, em terreno alto. Mas era um terreno alto do qual nada via, e o tempo estava se escoando. Pensou por um instante em falar com a mulher, usá-la como patrulha de ponta, mas sua aparência o desencorajou. Sua aparência excluía muitas coisas; barbear-se fora um luxo impraticável, mesmo urinar significava perder minutos preciosos, longe dos sons da armadilha. As pequenas coisas tornavam-se perigosas, adquiriam importância exagerada durante a espera. E ele estava muito cansado.

Usar o elevador de serviço estava fora de cogitação; podia transformar-se numa cela facilmente paralisada, isolada. A escada não era muito melhor, mas ali ele tinha uma vantagem. A não ser o telhado — se é que havia uma saída no telhado —, ela não ia mais longe. O campo visual de quem estava por cima era melhor. Aves de rapina mergulhavam sobre a presa, raramente atacavam de baixo.

Os tubarões o faziam, entretanto.

Algo para atrair a atenção. Qualquer coisa. É sabido que os tubarões atacam objetos inanimados, destroços flutuantes.

Bray seguiu em passos rápidos para a pesada porta da escada, detendo-se por alguns segundos no carrinho de limpeza. Apanhou quatro cinzeiros de vidro, meteu-os nos bolsos e apertou a maleta contra o peito.

O mais silenciosamente possível, fez pressão sobre a barra da pesada porta contra incêndios, abrindo-a. Começou a descer as escadas, mantendo-se junto à parede, alerta a qualquer som do inimigo.

Ele estava lá. Vários andares abaixo, passos rápidos ressoavam nos degraus de concreto. Os passos cessaram e Scofield imobilizou-se. O que se seguiu o confundiu. Ouviu um rangido, uma série de sons abrasivos, metálicos. Que era aquilo?

Olhou para a porta de metal às suas costas e compreendeu. A escada era essencialmente uma saída de incêndio; as portas de segurança só eram abertas pelo interior do hotel, frustrando os possíveis ladrões. A pessoa que estava num dos andares de baixo introduzira uma folha de metal ou plástico na fenda da porta, numa tentativa de erguer o trinco. O método era de uso universal; a maior parte das portas de incêndio, se fossem funcionais, podia ser aberta daquela forma. Teriam de ser funcionais naquele hotel.

Os sons metálicos cessaram; a porta fora aberta.

Silêncio.

A porta bateu. Scofield deslocou-se para a beira da escada e olhou para baixo; viu apenas os corrimãos em ângulos retos descendo até confundir-se na escuridão. Silenciosamente, desceu os degraus um a um, até chegar ao patamar seguinte. Estava no quinto andar.

Cinco-Zero-Cinco. Um número sem significado, inútil complicação verbal.

Agora, a estratégia de Taleniekov era evidente. E lógica. O próprio Bray a teria utilizado. Iniciado o caos, o russo aguardara no saguão, observando os elevadores à espera de um sinal do inimigo, e quando esse não aparecesse deduziria que a fuga de Beowulf fora cortada, e ele vagava à procura de uma saída. Só depois de se ter certificado de que o inimigo não deixara o hotel, Taleniekov iria iniciar a caçada final pelas escadas, espreitando pelos corredores, a arma preparada para o alvo móvel.

Mas o russo não poderia começar a perseguição do alto, teria de começar pela escada do saguão. Seria forçado a abandonar o terreno alto, desvantagem tão mortífera numa escada quanto em terras montanhosas. Scofield colocou a maleta no chão e pegou dois dos cinzeiros que guardara nos bolsos. A espera estava chegando ao fim. A qualquer segundo começaria o duelo.

No andar de baixo, a porta escancarou-se. Bray atirou o primeiro cinzeiro lá embaixo por entre os corrimãos; os sons do vidro estilhaçado ecoaram pelas escadas de aço e concreto.

Passos recuando. O choque de um corpo pesado contra a parede. Scofield debruçou-se sobre o vão central e atirou o segundo cinzeiro. O objeto espatifou-se no andar de baixo; um vulto passou correndo junto ao corrimão. Bray atirou. O inimigo gritou, rodopiou no ar, e foi cair fora do seu campo visual.

Scofield desceu três degraus, colado à parede. Viu uma perna agitando-se e atirou outra vez, para ouvir o som cantante de uma bala ricocheteando no metal e indo encravar-se no cimento. Errara o tiro. Ferira o russo, mas não o inutilizara.

Súbito, outros sons lhe chegaram aos ouvidos. Sirenas. Distantes. Lá fora. Aproximando-se. E gritos, abafados pelas pesadas portas de incêndio; ordens berradas nos vestíbulos e corredores.

As opções estavam sendo eliminadas, as chances de fuga diminuindo a cada novo som. A caçada tinha de terminar agora. Só lhe restava o duelo final. Uma centena de lições do passado condensadas numa só: “Atraia o fogo inimigo, faça o atirador expor-se nem que isso signifique expor parte de seu próprio corpo. Um ferimento superficial não tem importância alguma se salvar sua vida.”

Os segundos escoavam-se. Não havia outra alternativa.

Bray tirou os dois cinzeiros restantes do bolso e atirou-os no andar de baixo. Ao primeiro som de vidro estilhaçado, girou o. braço esquerdo num semicírculo, cortando o ar, uma parte dele diretamente na linha de fogo do russo. Mas sua pistola não — estava preparada para o ataque.

Duas explosões ensurdecedoras ressoaram pelo túnel vertical...

A arma foi arrancada de sua mão! De sua mão direita! Impotente, viu a pistola pular de seus dedos, gotículas de sangue escorrerem pela sua palma ao zunido da bala que ainda ricocheteava de metal a metal.

Ele fora desarmado por um tiro perdido. Morto por um eco.

A automática Browning caiu ruidosamente escada abaixo. Atirou-se para pegá-la, mesmo sabendo que era tarde demais. O assassino do andar de baixo lhe surgiu à frente, erguendo-se com esforço, levantando o cano longo da arma na direção da cabeça de Scofield.

Não era Taleniekov, não era o rosto visto em milhares de fotografias, o rosto que há uma década detestava! Era o homem de Praga, o homem que utilizara tantas vezes na causa dos homens livres. Aquele homem agora ia matá-lo.

Dois pensamentos lhe acorreram rapidamente, um após o outro. As últimas conclusões, por assim dizer. Teria morte rápida, e estava grato por isso. Afinal, privara Taleniekov de seu triunfo.

— Todos nós temos que fazer nosso trabalho — disse o homem de Praga, três dedos apertando a coronha da arma. — Foi você quem me ensinou isso, Beowulf.

— Nunca conseguirá sair daqui.

— Esqueceu as próprias lições. “Abandonem suas armas, saiam junto com a multidão.” Eu sairei daqui. Mas você não. Se saísse, muitos morreriam.

— Padazdit! — uma voz trovejou de cima, sem ser precedida pela batida de uma porta.

Alguém entrara rápida e sorrateiramente. O verdugo de Praga abaixou-se instantaneamente, girou para a esquerda, virando sua poderosa arma para Vasili Taleniekov.

O russo disparou um tiro abrindo um orifício na testa de Praga. O tcheco caiu à frente de Scofield, que se lançara na direção de sua Browning. A mão de Bray fechou-se sobre a coronha do revólver e ele rolou escada abaixo, disparando selvagemente sobre o homem da KGB; não permitiria que Taleniekov o salvasse de Praga apenas para garantir um triunfo pessoal.

“Farei com que respire pela última vez...”

Não aqui! Não agora! Não enquanto eu puder me mover!

E então ele não pôde mais se mover. Sobreveio o impacto e Scofield apenas sentiu que a cabeça parecia ter estourado. Seus olhos encheram-se de faíscas luminosas ofuscantes, mescladas de alguma forma aos sons do pandemônio. Sirenas, gritos, correrias, vozes em pânico vindas das profundezas do túnel.

No mergulho para escapar à linha de fogo de Taleniekov, seu crânio fora chocar-se com a aguçada quina metálica do balaústre da escada. Um tiro perdido, um eco, uma peça inanimada de aço. Eis o que provocaria a sua morte.

Embora embaçada, a visão era inconfundível. O vulto do vigoroso russo desceu correndo as escadas. Bray tentou erguer a arma que ainda segurava; não conseguiu. Uma bota pesada a imobilizou. Depois sentiu que a desprendiam de seus dedos.

— Atire — sussurrou Scofield. — Pelo amor de Deus, atire logo! Você só ganhou por acidente. De outra forma não ganharia.

— Não ganhei nadai Essa vitória não me interessa. Venha! Mexa-se! A polícia chegou. A qualquer momento estarão aqui em cima!

Bray sentiu que mãos fortes o levantavam, colocando um de seus braços em torno de um pescoço grosso. Um ombro lhe foi oferecido como apoio.

— Que diabos você está fazendo? — ele não sabia ao certo se fora ele mesmo quem falara. A dor o impedia de pensar.

— Você está ferido. O corte do pescoço tornou a abrir. Não é grave, mas sua cabeça também está sangrando.

— O quê?

— Existe um meio de sairmos daqui. Este hotel serviu-me de base durante dois anos. Conheço todos os cantos do edifício. Vamos! Ajude-me! Ande! Vamos para o telhado.

— Minha maleta...

— Está aqui comigo.

 

Eles estavam num túnel de metal corrugado, escuro como breu, sacudido por rajadas constantes de ar frio. A baixa temperatura, pouco acima de zero grau, produzia audíveis vibrações. Na escuridão, eles rastejavam pelo piso nervurado.

— Este é o aeroduto principal — explicou Taleniekov numa voz baixa que o eco ampliou. — O hotel e o prédio comercial ao lado são servidos por um único sistema de refrigeração. Ambos são propriedade de uma mesma firma.

Scofield começara a recuperar a lucidez, enquanto avançava maquinalmente, o próprio movimento forçando-o a enviar impulsos às pernas e aos braços. O russo rasgara o lenço de seda, envolvendo a cabeça de Bray com uma das metades e amarrando-lhe o pescoço com a outra. A hemorragia não cessara de todo, mas fora contida. Ele recuperara parte da lucidez, mas ainda não compreendia claramente o que estava acontecendo.

— Quero saber por que você me salvou a vida.

— Fale baixo — sussurrou o homem da KGB. — E vá em frente.

— Quero uma resposta.

— Já expliquei.

— Não me convenceu.

— Você e eu estamos acostumados a uma vida de mentiras. Nós as enxergamos por toda parte.

— De você não espero outra coisa.

— Daqui a alguns minutos, você vai ter de tomar uma decisão.

— Que está querendo dizer?

— Vamos chegar ao fim deste aeroduto. Há um respiradouro a uns três metros e pouco do piso, num quarto de depósito no telhado. De lá, sei como chegar à rua, mas todos os segundos contam. Se houver gente perto do respiradouro, teremos de assustá-los. Atire para o ar.

— O quê?

— Isso mesmo. Vou devolver-lhe a arma.

— Você matou minha mulher.

— Você matou meu irmão. Antes disso, seu exército de ocupação devolveu-me o cadáver de uma jovem, quase uma criança, que eu amava muito.

— Não sabia disso.

— Agora sabe. Tome sua decisão.

O respiradouro de malha metálica tinha cerca de um metro e vinte de largura. Abria para um depósito amplo e mal-iluminado cheio de engradados c caixas de suprimentos. Não havia ninguém à vista. Taleniekov entregou a Scofield sua automática e começou a forçar a grade metálica, golpeando-a com o ombro. A grade soltou-se e caiu com estardalhaço no piso de cimento. O russo esperou alguns instantes por uma reação, mas nada aconteceu.

Virando-se de costas, começou a escorregar para fora do aeroduto. Primeiro as pernas, depois o tronco e a cabeça, até que ficou pendurado pelas pontas dos dedos, recuperando o equilíbrio e preparando-se para o salto final.

O estranho ruído começou muito fraco e depois acentuou-se. Um passo... algo se arrastando. Um passo... algo se arrastando. Taleniekov imobilizou-se, suspenso entre o respiradouro e o chão.

— Bom dia, camarada — disse uma voz suave em russo. — Não acha que o meu andar melhorou depois de Riga? Eles me deram um pé novo.

 

Bray recuou para a escuridão do aeroduto. Embaixo, junto a um engradado, estava um homem de bengala. Um aleijado cuja perna direita sob o tecido das calças não passava de um membro rígido de madeira. Tirando um revólver do bolso, o homem continuou.

— Conheço-o bem demais, meu velho. Você foi um grande professor. Tive uma hora para estudar sua base. Há várias saídas, mas deduzi que você escolheria esta. Sinto muito, mestre. Mas não podemos permitir que continue vivo.

O homem levantou a arma. Scofield atirou.

 

Eles correram para o beco que desembocava em frente ao hotel na Avenida Nebraska. Encostaram-se na parede de tijolos, a respiração ofegante, o olhar atento ao movimento fronteiro. Três carros de patrulha, com as luzes vermelhas girando na capota, bloqueavam a entrada do hotel, cercando uma ambulância. Duas padiolas cobertas com lona foram retiradas do edifício. Uma terceira apareceu, e Taleniekov divisou a cabeça ensangüentada de Praga. Policiais uniformizados continham os curiosos enquanto seus superiores entravam e saíam, gritando ordens em transmissores portáteis.

Uma rede se ia estendendo em torno do hotel, cobrindo todas as saídas, vigiando as janelas, armas prontas para o inesperado.

— Quando se sentir mais forte — disse Taleniekov entre duas tomadas de fôlego —, vamos misturar-nos à multidão e andar alguns quarteirões até um ponto em que seja seguro apanhar um táxi. Mas, para ser honesto, não sei aonde ir.

— Mas eu sei — disse Scofield, afastando-se da parede. — É melhor irmos andando enquanto a confusão é grande. Daqui a pouco, vão começar a revistar a área. Vão deter quem estiver ferido. O tiroteio foi grande.

— Um momento — o russo encarou Bray. — Há três dias, eu estava num caminhão nas montanhas perto de Sebastopol. Decidi então o que ia dizer-lhe se nos encontrássemos. Chegou a hora. Ou vamos nos matar um ao outro, Beowulf Agate, ou vamos conversar.

Scofield encarou Taleniekov.

— Talvez façamos ambas as coisas — disse. — Vamos embora.

 

A cabana ficava numa região remota de Maryland, à margem do rio Patuxent, cercada por terras incultas. O isolamento era total, não existiam outras casas num raio de dois quilômetros, e o local só era acessível por uma estradinha de terra muito primitiva pela qual nenhum táxi iria aventurar-se. A nenhum táxi se pediu tal coisa.

Em vez disso, Bray telefonou para certa pessoa da Embaixada do Irã, um agente não registrado da SAVAK, especializado em drogas e estudantes em intercâmbio cultural cuja detenção seria embaraçosa para o benevolente xá. Um carro alugado foi deixado à sua disposição num estacionamento da Rua K com as chaves sob o tapete do piso.

A cabana pertencia a um professor de Ciência Política de Georgetown, um homossexual enrustido que Scofield auxiliara alguns anos antes, rasgando uma página de um dossiê que nada tinha a ver com a habilidade do professor em avaliar informações confidenciais para o Departamento de Estado. Bray já utilizara várias vezes a cabana em suas idas a Washington quando queria ficar fora do alcance dos burocratas das Operações Consulares, quase sempre na companhia de uma mulher. Tudo que era necessário era um telefonema para o professor; esse não fazia perguntas, limitava-se a revelar a localização da chave. Naquela tarde, ela estava debaixo da segunda telha da frente, a partir da direita. Bray apanhou-a com o auxílio de uma escada que estava sob uma árvore próxima.

Dentro, a decoração era adequadamente rústica: pesadas vigas e um mobiliário espartano suavizado por uma profusão de almofadas colchoadas, paredes brancas e cortinas quadriculadas. A lareira de pedra era flanqueada por estantes repletas de livros cujas encadernações davam ao ambiente um toque de cor e calor.

— Ele é um homem culto — disse Taleniekov, correndo os olhos pelos títulos.

— Muito culto — retrucou Bray, acendendo o aquecedor a gás. — Há fósforos sobre a lareira, a lenha está arrumada, é só acender.

— Muito conveniente — replicou o homem da KGB e, apanhando um fósforo num vidro que estava sobre o consolo, ajoelhou-se e acendeu o fogo.

— Faz parte do trato. Quem usar a cabana tem de limpar a lareira e substituir a lenha usada.

— Parte do trato? E quais são as outras exigências?

— Só mais uma: manter a boca fechada. Sobre este lugar e seu proprietário.

— É realmente muito cômodo — Taleniekov retirou depressa a mão quando as chamas saltaram da madeira seca.

— Muito — repetiu Scofield, ajustando o aquecedor depois de verificar que estava funcionando. Levantando-se, encarou o russo. — Só falaremos depois que eu tiver dormido um pouco. Você pode discordar, mas é assim que vai ser.

— Não tenho objeções. Não estou certo de estar muito lúcido agora. E vou precisar de toda a lucidez quando falar. Se isso é possível, acho que tenho dormido menos que você.

— Há duas horas, podíamos ter-nos morto um ao outro — disse Bray sem se mover. — Mas não o fizemos.

— Muito pelo contrário — anuiu o homem da KGB. — Evitamos que outros o fizessem.

— O que cancela qualquer dívida entre nós dois.

— Tais dívidas não podem existir, naturalmente. Entretanto, creio que talvez vá descobrir uma ainda maior quando falarmos.

— É possível, mas duvido. Talvez você não possa modificar as decisões de Moscou, mas eu posso fazer alguma coisa sobre o que aconteceu hoje em Washington. Talvez essa seja a diferença entre nós dois.

— Para o nosso bem, para o bem de todos, espero fervorosamente que esteja certo.

— Estou. Agora vou dormir um pouco. — Scofield apontou para um sofá: — Aquilo ali se transforma numa cama. Há cobertores naquele armário. Eu fico com o quarto. — A meio caminho da porta, Scofield parou e virou-se para o russo: — Caso lhe interesse, vou trancar a porta e tenho sono muito leve.

— Desse mal eu também sofro, pode estar certo — disse Taleniekov. — Mas da minha parte você nada tem a temer.

— Nunca tive — replicou Bray.

 

Scofield ouviu ao longe estalidos secos e sentou-se num relâmpago, apanhando a Browning que estava ao lado dos joelhos sob o lençol. Empunhando a arma, jogou os pés para fora da cama, preparado para abaixar-se e atirar.

Não havia ninguém no quarto. O luar penetrava pela janela do Norte, raios de pálida luz branca separados pelas espessas vidraças em faixas fantasmagóricas. Por um instante, não soube onde estava, tão intensa era sua exaustão, tão profundo seu sono. Mas, no instante cm que seus pés tocaram o solo, lembrou-se: o inimigo estava na sala ao lado. Um inimigo muito estranho, que lhe salvara a vida, e cuja vida ele salvara poucos minutos depois.

Bray olhou o mostrador luminoso de seu relógio. Eram quatro e quinze da madrugada. Dormira quase treze horas; seus braços e pernas pesados e a secura de sua garganta atestavam que mal se movera durante todo esse tempo. Ficou sentado por algum tempo na beira da cama. Largando a arma, sacudiu as mãos e fixou os olhos na porta trancada do quarto.

Taleniekov levantara-se e acendera a lareira. Percebia agora que os estalidos secos eram os sons inconfundíveis de madeira queimando. Scofield decidiu protelar a entrevista de ambos por mais alguns minutos. Seu rosto cocava; a barba incipiente era tão desconfortável que provocara uma leve erupção na pele. Sempre havia um equipamento completo para barba no banheiro; podia dar-se ao luxo de barbear-se e trocar as ataduras que colocara no crânio e no pescoço quatorze horas antes. Isso protelaria mais um pouco sua conversa com o ex-homem da KGB — desertor? Qualquer que fosse o assunto, Bray não queria envolver-se de forma alguma. Entretanto, os acontecimentos e decisões das últimas vinte e quatro horas diziam-lhe que já estava envolvido.

Eram 4h37min quando ele destrancou a porta e abriu-a. Taleniekov estava de pé em frente à lareira com uma xícara nas mãos.

— Desculpe-me se o fogo o acordou — disse o russo — ou a batida da porta da frente, se é que a ouviu.

— O aquecedor apagou-se — disse Scofield, examinando o aparelho.

— Acho que o bujão de gás está vazio.

— Foi por isso que você saiu?

— Não. Fui urinar lá fora. Não havia banheiro aqui.

— Eu me esqueci.

— Ouviu quando eu saí? Ou quando voltei?

— Isso aí é café?

— É — respondeu Taleniekov. — Um mau hábito que adquiri dos ocidentais. O chá de vocês é insosso. O bule está no fogo. — O homem da KGB apontou para uma divisória atrás da qual se alinhavam um fogão, uma pia e uma geladeira. — Surpreende-me que não tenha sentido o cheiro.

— Senti, sim — mentiu Scofield, dirigindo-se ao fogão. — Mas, pelo cheiro, deve estar fraco.

— Este nosso diálogo está um tanto ou quanto infantil, não acha?

— Completamente — anuiu Bray, enchendo uma xícara. — Parece que você tinha algo importante para me dizer. Pois comece.

— Primeiro quero lhe fazer uma pergunta: já ouviu falar numa organização chamada Matarese?

Scofield deteve-se, relembrando.

— Assassinos políticos de aluguel dirigidos por um conselho na Córsega. Surgiram há mais de meio século e desapareceram no meio dos anos quarenta, depois da guerra. Que têm eles?

— A organização não morreu. Entrou num período de hibernação, por assim dizer, mas reapareceu de forma ainda mais perigosa. Está operando desde o início da década de cinqüenta. Está em operação neste momento. Infiltrou-se nas áreas mais delicadas e poderosas de nossos dois Governos. Seu objetivo é controlar nossos países. O Matarese foi responsável pelos assassinatos do general Blackburn, aqui, e de Dimitri Yurievich, em meu país.

Bray tomou um gole de café, observando a expressão do russo por sobre a orla da xícara.

— Como soube disso? Por que acredita nisso?

— Um velho que teve experiências mais vastas que eu e você juntos identificou-os. Ele não se enganou. Foi um dos poucos que admitiram, que foram capazes de admitir, ter negociado com o Matarese.

— Você está falando no passado.

— Ele morreu. Mandou me chamar quando já estava moribundo. Queria que eu soubesse. Ele tinha informações a que nem eu nem você jamais teríamos acesso.

— Quem era ele?

— Aleksie Krupskaya. O nome não deve significar nada para você. Eu explico.

— Está enganado — interrompeu Scofield, dirigindo-se a uma poltrona na frente da lareira. — Krupskaya, o tigre branco de Krivoi Rog. Istrebiteli. O último dos verdugos da Seção Nove da KGB. A Seção Nove original, naturalmente.

— Você aprendeu bem suas lições. Não nega ter saído de Harvard.

— Esse tipo de aprendizado pode ser muito útil. Krupskaya foi banido uns vinte anos atrás. Se ainda continua vivo, deve estar vegetando em Grasnov. Não venha me dizer que se transformou num consultor que recebe informações do pessoal do Kremlin. Não acredito nisso.

— Pois acredite — retrucou Taleniekov, sentando-se em frente a Bray. — E não é do “pessoal” do Kremlin, é de um único homem: o filho dele. Um homem que durante os últimos trinta anos tem sido um dos mais influentes sobreviventes do Politburo. E há seis anos é o premier da União Soviética.

Scofield pousou a xícara no chão e tornou a estudar o rosto do homem da KGB. Era o rosto de um mentiroso experiente, de um mentiroso profissional, mas não de alguém intrinsecamente mentiroso. Não estava mentindo agora.

— O premier é filho de Krupskaya? Isso é realmente... um choque.

— Também tive essa reação, mas, se refletir sobre o assunto, verá que não é assim tão surpreendente. Com a orientação constante do pai, protegido por sua ampla coleção de... digamos, lembranças... Poderia ter acontecido aqui também. Suponhamos que o falecido John Edgar Hoover tivesse um filho com ambições políticas. Quem lhe poderia ter entravado o caminho? Os arquivos secretos de Hoover teriam aplainado quaisquer obstáculos, até mesmo os da entrada da Casa Branca. O cenário pode ser diferente, mas as árvores são da mesma espécie. Elas têm variado muito pouco desde que os senadores entregaram Roma a Calígula.

— O que foi que Krupskaya lhe contou?

— Primeiro, o passado. Em muitas coisas não acreditei, até que as mencionei a vários líderes aposentados do Politburo. Um ancião assustado confirmou-as, os outros fizeram com que minha execução fosse ordenada.

— Sua...?

— Isso mesmo. A execução de Vasili Vasilivich Taleniekov, mestre-estrategista da KGB. Um homem irascível que já viu dias melhores, mas cujos conhecimentos ainda podiam ser úteis por várias décadas talvez, mesmo em Grasnov. Somos um povo prático; essa seria a solução mais prática. Apesar das pequenas dúvidas que ocorrem a todos nós, eu acreditava nisso, julgava que esse seria meu futuro. Mas não depois de ter mencionado o Matarese. De repente, tudo mudou. Eu, que servi bem ao meu país, tornei-me subitamente um inimigo.

— Quais foram precisamente as revelações de Krupskaya? E quais, em seu julgamento, foram confirmadas?

Taleniekov repetiu as palavras do Istrebiteli moribundo, as declarações que ligavam dezenas de assassinatos ao Matarese, inclusive as mortes de Stalin, Beria e Roosevelt. Como a organização corsa fora utilizada por todos os governos dos países mais influentes, tanto dentro de suas fronteiras como fora. Nenhum estava livre da máquina. União Soviética, Inglaterra, França, Alemanha, Itália... Estados Unidos. Seus líderes, nessa ou naquela ocasião, haviam contactado o Matarese.

— Essas especulações não são novas — disse Bray. — Foram feitas investigações discretas, mas nada de concreto resultou delas. Isso posso garantir.

— Porque nenhum elemento importante ousou testemunhar. Segundo Krupskaya, tais admissões seriam catastróficas para os governos. Agora estão sendo empregadas novas táticas com o fito de criar instabilidade nos centros de poder.

— Que táticas?

— Atos de terrorismo. Bombas, raptos, seqüestros de aeronaves, bandos de fanáticos ameaçando matanças se suas exigências não forem satisfeitas. A cada mês, seu número aumenta, e a grande maioria é financiada pelo Matarese.

— Como?

— Só posso deduzir. O Conselho Matarese deve estudar os objetivos das partes envolvidas, fornecer peritos e financiamento. Certamente os fanáticos pouco se importam com a origem desse dinheiro, contanto que lhes chegue às mãos. Tanto eu como você já utilizamos essas pessoas mais vezes do que gostaríamos de admitir.

— Para objetivos muito diferentes — retrucou Bray, apanhando sua xícara. — E quanto a Blackburn e Yurievich? Que lucrou o Matarese com a morte deles?

— Krupskaya achava que os mataram para testar os líderes, para ver se seus homens conseguiriam controlar as reações dos respectivos governos. Não tenho tanta certeza disso. Talvez a finalidade tenha sido outra. E, para ser franco, foi o que você me disse que me fez duvidar.

— Que foi que eu lhe disse?

— Sobre Yurievich. Sobre sua operação. Estava falando a verdade?

Bray franziu a testa.

— Estava, mas as coisas não são assim tão simples. Yurievich era homem experiente, não se tratava de uma defecção pura e simples. Era um cientista que acreditava que os dois lados se tinham excedido. Não confiava em maníacos. Estávamos testando o terreno. Não sabíamos qual seria o resultado.

— Acaso você sabia que o general Blackburn, que quase foi morto na Guerra do Vietnã, fez o que nenhum chefe de Estado-Maior ousou fazer antes em toda a história de seu país? Encontrou-se secretamente com inimigos em potencial. Na Suécia, na cidade de Skelleftea, no golfo de Bothnia, viajando incógnito como um turista comum. Concluímos que ele recorreria a medidas extremas para evitar a repetição de matanças inúteis. Ele abominava as táticas convencionais de guerra e não acreditava que as armas nucleares viessem a ser usadas. — O russo calou-se e inclinou-se para a frente: — Dois homens que detestavam fervorosamente, apaixonadamente, os sacrifícios humanos, que procuravam uma conciliação... ambos mortos pelo Matarese. Talvez testar fosse apenas parte do objetivo. É bem possível que visassem principalmente eliminar dois homens poderosos que visavam a estabilidade.

A princípio, Scofield não replicou; a informação sobre Blackburn o aturdira.

— Testando, aproveitaram para me incriminar na morte de Yurievich...

— E a mim na de Blackburn — completou Taleniekov. — Usaram uma Browning Magnum tipo IV para matar Yurievich e uma Graz-Burya para Blackburn.

— Preparando uma bela execução para nós dois.

— Exatamente — disse o soviético. — De todos os agentes de nossos respectivos serviços secretos, nós somos os que eles mais temem, os que não podem continuar vivos. Isso porque nunca mudaremos. Krupskaya tinha razão: eles nos utilizaram para afastar as suspeitas e agora querem nos matar. Somos demasiadamente perigosos.

— Por que chegaram a essa conclusão?

— Eles nos estudaram. Sabem que não aceitaríamos o Matarese, assim como não aceitamos os maníacos existentes em nossos próprios departamentos. Somos dois homens mortos, Scofield.

— Você deve falar apenas por si! — De repente, a cólera invadiu Bray. — Estou fora de tudo isso, afastado, liquidado] Não me interessa a mínima o que possa acontecer! Não tire conclusões a meu respeito!

— Outros já tiraram.

— Isso é você quem diz. — Scofield levantou-se e largou a xícara, a mão a pouca distância da Browning em seu cinto.

— Porque acreditei no homem que me contou tudo isso. E essa é a razão por que estou aqui, por que lhe salvei a vida, por que não o matei eu mesmo.

— Isso dá para pensar, não acha?

— Como assim?

— Tudo sincronizado... você sabia até mesmo em que local da escada estava Praga...

— Eu matei um homem que o tinha sob sua mira!

— Praga? Um pequeno sacrifício. Sou um ex-agente. Não tenho provas de que meu Governo tenha entrado em contato com Moscou, só posso tecer hipóteses baseado no que me contou. Talvez não esteja vendo o óbvio, talvez o grande Taleniekov esteja rastejando temporariamente para conseguir a defecção de Beowulf Agate.

— Vá para o inferno, Scofield — trovejou o homem da KGB, erguendo-se num pulo. — Devia tê-lo deixado morrer! Escute-me com atenção: o que você sugeriu é inconcebível e a KGB sabe disso. Meus sentimentos são demasiado profundos. Nunca o induziria a desertar. Preferiria matá-lo.

Bray encarou o russo. Era óbvia a sinceridade de Taleniekov.

— Acredito em você — disse Scofield, sua cólera transformando-se em cansaço. — Mas isso não muda nada. Não me importo. Realmente não ligo... Não estou nem certo de que ainda deseje matá-lo. Só quero que me deixem em paz. — Bray acrescentou, dando-lhe as costas: — Leve as chaves do carro e vá embora. Considere-se... vivo.

— Obrigado pela generosidade, Beowulf, mas receio que seja tarde demais.

— O quê? — Scofield virou-se para o soviético.

— Ainda não terminei. Um homem foi preso, falou sob a ação de drogas. Existe um cronograma. Dois meses. Três no máximo. As ordens são: “Moscou por assassinatos, Washington por manobras políticas, ou morte, se necessário.” Quando isso acontecer, nem eu nem você sobreviveremos. Eles nos seguirão até os confins da terra.

— Espere aí — interrompeu Bray, furioso. — Você disse que sua gente prendeu um deles?

— Prendeu, mas o homem está morto. Tinha cianeto sob a pele.

— Mas ele jaloul — replicou Bray. — Suas palavras devem ter sido gravadas!

— Nada foi gravado. E apenas um homem ouviu suas declarações, um homem cujo pai aconselhara a não permitir a presença de outros no interrogatório.

— O premier?

— Sim.

— Então ele sabe!

— Sim, sabe. E só o que pode fazer é tentar proteger-se — o que não é nenhuma novidade em seu posto —, mas não pode revelar o que ouviu. Com isso, estaria admitindo o passado, como bem disse Krupskaya. Esta é uma era de conspirações, Scofield. Quem se atreve a desencavar antigos contratos? No meu país, há muitas mortes inexplicadas. Não vejo muita diferença aqui: os Kennedy, Martin Luther King, talvez a mais surpreendente, Frank-lin Roosevelt. Se o passado viesse à tona, nossos governos se lançariam ao pescoço um do outro ou, mais precisamente, aos botões da guerra nuclear. Que você faria se fosse o premier?

— Iria proteger-me... — disse Bray baixinho. — Oh, meu Deus...

— Está vendo agora?

— Não quero ver. Não quero ver nada. Eu estou fora disso!

— Acho que não está. Nem eu. Tivemos a prova ontem na Avenida Nebraska. Somos homens marcados. Eles nos querem. Eles convenceram outros a nos executar — por motivos falsos — mas eram eles que estavam por trás da manobra. Ainda duvida disso?

— Gostaria de poder duvidar. Os manipuladores são os mais fáceis de serem manipulados, os homens do serviço secreto são os maiores trouxas de todos. Merda! — Scofield dirigiu-se ao fogão para servir-se de café. De repente, ocorreu-lhe um ponto obscuro. — Não estou entendendo. Do pouco que sabemos sobre o Matarese, a organização nasceu como uma espécie de culto e transformou-se num negócio. Ela aceitava contratos, ou pelo menos dizia aceitar contratos, baseada em preço e exeqüibilidade. Matava por dinheiro, nunca se interessou pelo poder em si. Por que está se interessando agora?

— Não sei — disse o homem da KGB. — Krupskaya também não sabia. Ele estava morrendo e não muito lúcido, mas disse que a resposta talvez estivesse na Córsega.

— Na Córsega? Por quê?

— Foi lá que tudo começou.

— Mas não onde a organização tem sede. Se é que tem sede. As informações diziam que o Matarese deixou a Córsega no meio da década de trinta. Os contratos eram negociados tanto em Londres como em Nova York... até em Berlim. Em centros de tráfego internacional.

— Então, talvez fosse mais apropriado falar em pistas. Pistas para a solução do enigma. O Conselho Matarese formou-se na Córsega. Só um de seus componentes é conhecido: Guillaume de Matarese. Quem eram os outros? Para onde foram? Onde estão agora?

— Há uma forma mais rápida de descobrir do que ir até a Córsega. Se houve a mais tênue menção da palavra Matarese em Washington, existe um homem que pode descobrir a fonte. Ia procurá-lo de qualquer forma. Queria esclarecer tudo.

— Quem é ele?

— Robert Winthrop — disse Bray.

— O criador das Operações Consulares — assentiu o russo._ — Um homem decente que não teve estômago para engolir o que ele mesmo criou.

— As Operações Consulares a que você se refere não são a mesma organização que ele criou. Ele ainda é o único homem que conheço que pode telefonar para a Casa Branca e conseguir ser recebido pelo presidente dali a vinte minutos. Muito pouca coisa acontece que ele não saiba, ou que não possa descobrir. — Scofield fitou as chamas, relembrando. — É estranho. De certa forma, ele é responsável por tudo que sou, e não me aprova. Mas acho que me dará ouvidos.

 

A cabina telefônica mais próxima ficava a uns cinco quilômetros do ponto em que a estrada de terra que levava à cabana interceptava a rodovia. Eram oito e dez quando Bray entrou nela, protegendo os olhos da luz brilhante do sol matinal, e fechou a porta de vidro. Encontrara o telefone particular de Winthrop em sua maleta; há muitos anos não o utilizava. Discou, esperando que continuasse o mesmo.

Continuava. A voz culta do outro lado da linha trouxe à tona muitas lembranças. Possibilidades perdidas, outras aproveitadas.

— Scofield! Onde está você?

— Receio não poder dizer-lhe. Por favor, tente entender.

— Compreendo que está numa grande enrascada e nada ganhará fugindo. Congdon telefonou. O homem que morreu no hotel foi baleado com uma pistola russa...

— Eu sei. O homem que o matou salvou-me a vida. Aquele homem foi enviado por Congdon; os outros dois também. Formavam uma equipe encarregada da minha execução. Vieram de Praga, Marselha e Amsterdam.

— Oh, meu Deus... — o estadista idoso ficou calado por alguns instantes e Bray não lhe interrompeu o silêncio. — Sabe o que está dizendo? — perguntou Winthrop.

— Sei, sim, senhor. O senhor conhece-me suficientemente bem para saber que eu não falaria sem ter a certeza. Não estou enganado. Falei com o homem de Praga antes que ele morresse.

— Ele confirmou isso?

— De forma indireta, sim. Mas o senhor sabe que esse tipo de ordem é sempre indireta.

Houve novo momento de silêncio antes que o velho estadista respondesse.

— Não posso acreditar nisso. Bray. E por uma razão que você desconhece. Congdon procurou-me uma semana atrás. Estava preocupado em saber como você iria reagir ante um afastamento. Uma preocupação razoável: um agente extremamente bem-informado, aposentado contra a vontade, ocioso, talvez bebendo demais... Ele é um homem frio, esse Congdon, e receio ter me encolerizado. Depois de tudo por que você passou, merecer tão pouca confiança... Ironicamente, insinuei que ele estava pensando nessa solução que você acabou de descrever. Não que acreditasse que ele fosse capaz nem de cogitar tal coisa, mas porque sua atitude me consternou. É por isso que não posso acreditar. Você entende? Ele sabe que eu descobriria, e não pode se arriscar a tal coisa.

— Então alguém lhe deu a ordem, senhor. B sobre isso que precisamos conversar. Aqueles três homens sabiam onde me encontrar, e só havia um jeito de terem descoberto. O hotel era uma base soviética, e eles eram agentes das Operações Consulares. Moscou deu o endereço a Congdon. Ele passou-o adiante.

— Congdon contactou os soviéticos? Isso não é plausível. Mesmo que tivesse tentado, por que eles cooperariam? Por que iriam revelar a localização de uma base?

— As negociações envolviam um homem deles. Os russos queriam que ele fosse morto. Estava tentando entrar em contato comigo. Já tínhamos trocado cabogramas.

— Taleniekov?

Foi a hora de Scofield silenciar. Depois respondeu baixinho:

— Sim, senhor.

— Um contato branco!

— Sim. Enganei-me, a princípio, mas era essa a intenção dele. Estou convencido disso agora.

— Você... e Taleniekov? Extraordinário...

— As circunstâncias são extraordinárias. Lembra-se de uma organização dos anos quarenta conhecida como o Matarese?...

 

Eles concordaram em se encontrar às nove horas daquela noite no lado Leste da Avenida Missouri, uns dois quilômetros ao Norte da saída do Rock Creek Park. Havia ali um trecho mais largo de acostamento onde carros podiam estacionar junto a picadas que levavam a uma garganta de onde se descortinava uma bela paisagem. Winthrop pretendia cancelar os compromissos daquele dia e concentrar-se em descobrir o que fosse possível a respeito das espantosas, ainda que deficientes, informações de Bray.

— Ele convocará o Comitê dos Quarenta, se for preciso — disse Scofield a Taleniekov na volta para a cabana.

— Ele pode fazer isso? — perguntou o russo.

— O presidente pode — respondeu Bray.

Os dois homens pouco conversaram durante o dia, a tensão da proximidade desconfortável para ambos. Taleniekov passou o tempo lendo os livros da variada biblioteca, volta e meia lançando um olhar a Scofield, olhares em que se mesclavam resquícios de ira e curiosidade.

Bray percebia os olhares, mas recusava-se a dar-lhes atenção. Ligara o rádio para ouvir os noticiários sobre a carnificina do hotel da Avenida Nebraska e a morte de um adido russo no prédio vizinho. Os fatos foram apresentados com discrição, quase abafados, sem qualquer menção do assassinato do funcionário da Embaixada. Foi aventada a hipótese de que as mortes do hotel seriam de autoria de estrangeiros, criminosos sem dúvida, envolvidos provavelmente no tráfico de drogas. Pressões tinham sido aplicadas, a censura do Departamento de Estado agira com rapidez e segurança.

E a cada noticiário mais restrito e abafado do que o anterior Scofield sentia que a armadilha fechava progressivamente sobre ele. Estava sendo envolvido por algo de que desejava fugir. A perspectiva de uma nova vida estava cada vez mais distante. Começou a perguntar a si mesmo se algum dia ela seria realidade. Estava sendo inexoravelmente impelido para um vórtice chamado Matarese.

Às quatro horas, saiu para dar uma volta pelos campos e pelas margens do rio Patuxent. Ao sair da cabana, fez questão de que o russo o visse guardar a automática Browning no coldre. O russo viu e colocou sua Graz-Burya na mesa ao lado da poltrona. Às cinco horas, Taleniekov fez um comentário:

Acho que deveríamos assumir nossas posições pelo menos uma hora antes da entrevista.

Confio em Winthrop — retrucou Bray.

Com razão, estou certo. Mas poderá confiar nas pessoas que ele procurou?

Ele não dirá a ninguém que vai encontrar-se conosco. Quer conversar longamente com você. Certamente fará perguntas. Nomes, postos, patentes.

Tentarei responder o que se relacionar com o Matarese. Não me comprometo a quaisquer revelações em outras áreas.

Valentão, hem...

Continuo a achar...

Sairemos daqui a quinze minutos — interrompeu Scofield. — Há um pequeno restaurante no caminho. Comeremos em mesas separadas.

Às 7h35min Bray parou o carro alugado na extremidade Sul da área de estacionamento localizada na orla do Rock Creek Park. O homem da KGB e o americano fizeram quatro incursões no bosque, afastando-se das picadas, procurando vestígios de intrusos entre as árvores, revistando as rochas e a ravina. O frio da noite era cortante. Não cruzaram com nenhum andarilho, não encontraram vivalma em parte alguma. Reuniram-se num local pré-combinado na beira de uma pequena garganta. Taleniekov foi o primeiro a falar.

Não vi nada. A área está livre.

Bray consultou o relógio na escuridão.

São quase oito e meia. Vou esperar perto do carro. Você fica aqui. Falarei primeiro com ele e depois farei um sinal.

Como? A distância é de mais de duzentos metros.

Acenderei um fósforo.

Muito apropriado.

O quê?

Nada. Não importa.

Faltavam dois minutos para as nove quando a limusine de Winthrop saiu do parque, tomou a direção da área de estacionamento e freou a uns seis metros do carro de aluguel. Ao reconhecer o motorista, Bray teve um instante de preocupação. O homenzarrão servia Robert Winthrop há mais de vinte anos. Boatos sobre uma carreira na Marinha cortada por uma corte marcial cercavam o motorista, mas Winthrop impedia quaisquer comentários chamando-o com firmeza de “meu amigo Stanley”. Ninguém ousara interferir.

Bray deixou as sombras e dirigiu-se para a limusine. Stanley abriu a porta e saltou do carro num único movimento, a mão direita no bolso, uma lanterna na esquerda. Acendeu-a. Scofield fechou os olhos. A luz extinguiu-se.

— Olá, Stanley — disse Bray.

— Faz muito tempo que não nos vemos, Sr. Scofield — replicou o motorista. — É um prazer revê-lo.

— Obrigado. Eu digo o mesmo.

— O embaixador está esperando — continuou o motorista, abaixando-se e destravando o trinco. — A porta já está aberta.

— Ótimo. Escute, daqui a uns dois minutos vou sair do carro e acender um fósforo. É um sinal para alguém se aproximar. Ele está esperando lá na outra ponta. Vai sair por uma daquelas picadas.

— Estou sabendo. O embaixador disse que ia encontrar dois homens.

— O que estava tentando dizer é que, se você ainda fuma aqueles charutos fininhos, espere até que eu saia para acender um deles. Gostaria de ficar alguns instantes a sós com o Sr. Winthrop.

— O senhor tem uma memória dos diabos — replicou Stanley, batendo no bolso da túnica com a lanterna. — Já ia acender um.

Bray entrou no banco de trás e encarou o homem que era responsável por sua vida. Winthrop envelhecera, mas à luz fraca seu olhar ainda era elétrico, cheio de solicitude. Apertaram-se as mãos, o estadista idoso prolongando o contato.

— Tenho pensado freqüentemente em você — disse ele suavemente, os olhos procurando os de Scofield; ao perceber as ataduras, franziu a testa. — Meus sentimentos são contraditórios, mas não creio que precise dizer isso.

— Não, senhor. Não precisa.

— Tantas coisas mudaram, não foi, Bray? Os ideais, a oportunidade de fazer tanto por tantos. Éramos realmente cruzados. A princípio. — O velho soltou a mão de Scofield e sorriu. — Lembra-se? Você concebeu um plano em que as dívidas dos territórios ocupados poderiam ser saldadas através de imigrantes. Uma concepção brilhante de diplomacia econômica, na minha opinião. Vidas humanas em troco de empréstimos que nunca seriam remidos, de qualquer forma.

— O plano teria sido rejeitado.

— Provavelmente. Mas, na arena da opinião mundial, teria imprensado os soviéticos contra a parede. Ainda me lembro de suas palavras: “Se nós somos um Governo capitalista, admitamos o fato. Utilizemo-lo às claras. Os cidadãos americanos financiaram metade do Exército russo. Enfatizem a dívida psicológica. Obtenham algo em troca, obtenham gente.” Foi o que você disse.

— Palavras de um bacharel incursionando em ingênuas teorias geopolíticas.

— Com freqüência, há muita coisa verdadeira nessas teorias ingênuas. Sabe, ainda me lembro claramente do estudante recém-formado. O que teria...

— Não há tempo agora, senhor — cortou Scofield. — Taleniekov está esperando. Ah, antes que me esqueça, revistamos a área. Está limpa.

O velho piscou.

— Você tinha alguma dúvida?

— Tive receio de que nossa conversação tivesse sido interceptada.

— Não precisava ter — disse Winthrop. — Esses dispositivos têm de ser registrados em alguma parte, relacionados em algum lugar. Não queria estar na pele de quem ousasse tal coisa. Muitas conversas confidenciais são ditas no meu aparelho. É minha melhor proteção.

— Soube alguma coisa?

— Sobre o Matarese? Sim... e não. Não, no sentido de que nem mesmo os registros ultra-secretos fazem qualquer referência à organização nos últimos quarenta e três anos. Isso foi o que o presidente me assegurou, e eu confio nele. Ele ficou pasmo. Admitiu a possibilidade e alertou seus homens. Ficou furioso e assustado, creio.

— E quanto ao “sim”?

Winthrop escolheu cuidadosamente as palavras:

—_É algo impreciso, mas inegável. Antes que decidisse procurar o presidente, falei com cinco homens que nos últimos anos, nas últimas décadas mesmo, têm estado envolvidos nas áreas mais delicadas da diplomacia e do serviço secreto. Desses cinco, três lembravam-se do Matarese e mostraram-se chocados. Ofereceram-se para fazer o possível no sentido de ajudar. O espectro da volta do Matarese os aterrorizou... Mas os outros dois, homens de conhecimentos ainda mais vastos que os demais, se possível, afirmaram nunca ter ouvido falar nessa organização. Uma reação sem sentido, eles tinham de conhecê-la. Assim como eu. Minhas informações podiam ser mínimas, mas do tipo que ninguém esquece. Quando disse isso, quando os pressionei, os dois reagiram de forma estranha e até insultuosa, considerando nosso conhecimento de longa data. Ambos trataram-me como se eu fosse um velho senil, dado a fantasias senis. Fiquei realmente aturdido.

— Quem são eles?

— É outra coisa esquisita...

Uma centelha luminosa à distância atraiu o olhar de Scofield. Outra... e mais outra. Fósforos acesos em rápida sucessão.

Taleniekov.

O homem da KGB empalmara os fósforos e os acendia furiosamente, um após o outro. Era uma advertência. Taleniekov estava avisando-o de que algo acontecera, estava acontecendo. De repente, a chama manteve-se constante, mas sua luz era interceptada a períodos pela outra mão colocada em frente à chama. Mais luz, menos luz, em rápida seqüência. Código Morse. Traços e pontos.

Três pontos, um traço. Uma interrupção. Três pontos, um traço. V. Uma interrupção. Um ponto, dois traços, um ponto. Novamente. P.

V.P.

— O que há? — perguntou Winthrop.

— Espere um instante — retrucou Scofield.

Três pontos, um traço. Pausa. Um ponto, dois traços, um ponto.

V. P. Vigiados. Perigo.

A chama deslocou-se para a esquerda, na direção da estrada que margeava os bosques da área de estacionamento, e extinguiu-se. O agente soviético estava mudando de posição. Bray voltou-se para o antigo chefe.

— Tem certeza de que seu telefone não está sob vigilância?

— Absoluta. Nunca foi controlado. Tenho meios de saber.

— Eles podem não ser totalmente eficazes. — Scofield apertou o botão da janela e o vidro desceu. Chamou o motorista que estava em pé na frente da limusine. — Stan, venha cá! — Ele obedeceu. — Quando atravessou o parque, verificou se não estava sendo seguido?

— Ora, como não! E não vi nada. Eu sempre fico de olho no retrovisor, especialmente quando vamos encontrar alguém à noite... O senhor viu aquela luz lá em cima? Era seu companheiro?

— Era. Estava me avisando de que há alguém por aí.

— Impossível — afirmou Winthrop enfaticamente. — Se há, nada tem a ver conosco. Isto aqui é um lugar público.

— Não o quero alarmar, senhor, mas Taleniekov é um homem experiente. Não se vê nenhum farol, nenhum carro na estrada. Quem quer que esteja nas redondezas não deseja ser visto, e essa não é uma noite adequada para um passeio inocente. — Bray abriu a porta. — Stan, vou pegar minha pasta no meu carro. Quando voltar, vamos sair daqui. Quero que dê uma parada no fim do estacionamento junto às árvores.

— E o russo? — perguntou Winthrop.

— A parada é por causa dele. Vamos apanhá-lo. É melhor que esteja à nossa espera.

— Espere um instante — objetou Stanley, sem qualquer deferência na voz. — Se vai haver barulho, não vou parar para pegar ninguém. Minha obrigação é uma só: tirar o Sr. Winthrop daqui. Ele e mais ninguém.

— Não temos tempo para discutir. Ligue o motor. — Bray correu para o carro de aluguel com as chaves na mão. Abriu a porta, pegou sua maleta no banco da frente e começou a correr de volta para a limusine.

Nunca chegou até lá. Um poderoso facho de luz cortou a escuridão e iluminou o enorme automóvel de Robert Winthrop. Stanley estava na direção, acionando o motor, pronto para arrancar-se dali. Mas quem segurava a lanterna não ia permitir tal coisa. Ele queria aquele carro... e seus ocupantes.

As rodas da limusine giraram guinchando no asfalto e o enorme carro arrancou. Uma saraivada de balas explodiu, estilhaçando as vidraças, cravando-se no metal. A limusine começou a descrever semicírculos de um lado para o outro da estrada, aparentemente descontrolada.

Dois fortes disparos vieram do bosque; a lanterna explodiu, acompanhada de um grito de dor. O carro de Winthrop retomou a direção Norte por alguns metros e então dobrou abruptamente à esquerda. Dois homens de armas na mão foram apanhados pelas luzes dos faróis. Um terceiro estava caído no chão.

Brandindo sua arma, Bray jogou-se no asfalto e atirou. Um dos dois homens caiu. A limusine completou a volta e, com um ronco possante, disparou para o Sul, deixando para trás a área de estacionamento.

Scofield rolou para a direita; dois tiros espocaram atingindo o asfalto onde ele estivera um segundo atrás. Bray ergueu-se e correu na escuridão para a grade na orla da ravina.

Ao jogar-se por cima da grade, sua maleta chocou-se contra um poste de madeira, o ruído nítido. Um disparo já esperado explodiu quando ele caiu entre as rochas.

Luzes. Faróis! Dois fachos luminosos varando a noite sobre ele, acompanhados pelo ronco de um motor. Som de vidros estilhaçados seguido pelo guincho de pneus numa freada brusca. Um grito — impreciso, histérico... cortado por uma explosão — precedeu o silêncio.

O motor morrera, os faróis ainda acesos revelavam espirais de fumaça, dois corpos imóveis no chão, e um terceiro homem de joelhos, olhando em volta, em pânico. O homem ouvira qualquer coisa; girou e ergueu a arma.

Um tiro espocou nos bosques. O disparo final; o quase assassino caiu.

— Scofield! — gritou Taleniekov.

— Estou aqui! — Bray pulou a grade e correu na direção da voz do russo.

Taleniekov surgiu do meio das árvores. Estava a uns três metros do carro afogado. Os dois homens aproximaram-se cautelosamente do automóvel; a vidraça do motorista estava estilhaçada, destruída por um único tiro da automática do homem da KGB. A cabeça atrás dos estilhaços estava toda ensangüentada, mas ainda reconhecível. A mão direita do motorista protegida por uma atadura — ainda não refeita da fratura do polegar numa ponte de Amsterdam, às três horas da manhã, causada por um homem exausto e encolerizado.

Era Harry, o jovem e agressivo agente que matara uma pessoa tão desnecessariamente sob a chuva daquela noite.

— Não acredito — disse Scofield.

— Você o conhece? — perguntou Taleniekov num tom curioso.

— Chamava-se Harry. Trabalhou para mim em Amsterdam.

O russo ficou em silêncio por um instante e depois falou:

— Ele estava com você em Amsterdam, mas não trabalhava para você. Nem se chama Harry. Esse rapaz é um agente do serviço secreto soviético treinado desde os nove anos no campo de prisioneiros americanos em Novgorod. Era da VKR.

Bray fitou o rosto de Taleniekov e então voltou o olhar para a cabeça ensangüentada de Harry.

— Parabéns. As coisas estão ficando mais claras agora.

— Pois para mim, não — retrucou o homem da KGB. — Acredite, é de todo improvável que Moscou desse uma ordem que incluísse um ataque direto a Robert Winthrop. Não somos tão tolos. Ele está acima de quaisquer represálias, sua voz e perícia devem ser preservadas, não destruídas. E certamente não por causa de homens como eu e você.

— Que está querendo dizer?

— Essa era uma equipe de execução, tão certo quanto a daqueles homens do hotel. Você e eu não devíamos ser separados, mortos isoladamente. A execução era múltipla. Winthrop também seria uma das vítimas e, pelo que sabemos, talvez tenha sido abatido. Estou certo de que essa ordem não veio de Moscou.

— Do Departamento de Estado é que não veio. Disso, tenho certeza.

— Concordo. Nem de Washington, nem de Moscou, mas de uma fonte capaz de dar ordens em nome de qualquer um dos dois Governos, ou de ambos.

— O Matarese? — perguntou Scofield.

O russo assentiu.

— O Matarese.

Bray reteve a respiração, tentando pensar, absorver tudo aquilo.

— Se Winthrop ainda estiver vivo, será amordaçado, detido, mantido sob um microscópio. Não conseguirei chegar perto dele. Serei morto sem discussão.

— Sou da mesma opinião. Existem outros homens de confiança que você possa procurar?

— É uma loucura — disse Scofield, estremecendo de frio ou talvez com a idéia que lhe ocorrera. — Deve haver, mas não sei quais são. Quem quer que eu procure terá de me entregar, as leis são bem claras. Sem falar em ordens de prisão, seria uma questão de segurança nacional. Um processo contra mim será instaurado rápido e legalmente. Suspeito de traição, espionagem interna, entrega de informações ao inimigo. Ninguém me receberá.

— Certamente, devem haver pessoas que o escutarão.

— Escutar o quê? Que tenho para lhes dizer? Que posso oferecer-lhes como prova? Você? Você seria levado a um hospital numa área de segurança máxima antes mesmo de poder abrir a boca. As palavras de um Istrebiteli moribundo? Um assassino comunista? Onde está a corroboração, onde está a lógica? Diabos, estamos ilhados. Tudo que temos são sombras!

Taleniekov deu um passo à frente, a voz cheia de convicção:

— Talvez o velho Krupskaya estivesse certo, talvez a resposta esteja na Córsega, afinal.

— Ai, Deus...

— Escute: você disse que só temos sombras. Se é assim, precisamos de muito mais. Se tivéssemos mais, se tivéssemos descoberto mesmo uns poucos nomes, se pudéssemos apresentar algo mais do que probabilidades... Então você poderia procurar alguém e forçá-lo a escutar?

— Somente à distância — respondeu Bray devagar. — Fora do alcance deles.

— Naturalmente.

— Teríamos de ter mais do que probabilidades, teríamos de ter provas irrefutáveis.

— Poderia convencer os homens de Moscou se tivesse tais provas. Minha esperança era que aqui uma investigação pudesse ser ordenada com menos indícios. Vocês são famosos pelos intermináveis inquéritos do seu Senado. Simplesmente concluí que aqui isso seria possível, que você poderia conseguir tal coisa.

— Agora não é mais possível. Eu não posso.

— A Córsega, então?

— Não sei. Preciso pensar. Ainda resta Winthrop.

— Você mesmo disse que não conseguiria chegar perto dele. Se tentasse, seria morto.

— Outros já conseguiram. Tomarei todas as precauções. Preciso descobrir o que aconteceu. Ele viu com os próprios olhos; se ainda estiver vivo e eu conseguir falar com ele, ele saberá o que fazer.

— E se não estiver vivo, ou se você não conseguir falar com ele?

Scofield olhou para os mortos caídos no asfalto.

— Então talvez só reste a Córsega.

O homem da KGB sacudiu a cabeça.

— Eu examino as probabilidades com mais cuidado que você, Beowulf. Não vou esperar. Não vou me arriscar a terminar naquele “hospital” que você mencionou. Vou para a Córsega agora.

— Se for, comece pela costa Sudeste, ao Norte de Porto Vecchio.

— Por quê?

— Foi lá que tudo começou. É a terra do Matarese.

Taleniekov assentiu.

— Aprendeu bem suas lições. Obrigado. Talvez nos encontremos na Córsega.

— Vai conseguir sair do país? — perguntou Bray.

— Entrar ou sair... isso é fácil. Não é obstáculo. E quanto a você? Se resolver juntar-se a mim.

— Tenho como chegar a Londres, ou Paris. Tenho contas em bancos nessas cidades. Se eu for, estarei lá em três, quatro dias no máximo. Há pequenas hospedarias nas montanhas. Saberei encontrá-lo...

Scofield calou-se. Os dois homens voltaram-se rapidamente ao som de um carro que se aproximava. O sedã deixara a rodovia e preparava-se para estacionar. No banco da frente estava um casal, o braço do homem envolvendo os ombros da mulher. Os faróis dianteiros iluminaram os corpos imóveis caídos no asfalto, e a claridade revelou a janela estilhaçada do carro afogado e lá dentro a cabeça ensangüentada.

O motorista empurrou a mulher para baixo, agarrou a direção com as duas mãos, e com uma curva violenta retomou a direção da estrada, o ronco do motor ecoando através do bosque e do espaço aberto.

— Eles vão procurar a polícia — disse Bray. — Vamos sair daqui.

— Acho que será melhor não usar o carro — retrucou o homem da KGB.

— Por que não?

— O motorista de Winthrop. Talvez você confie nele. Eu não teria tanta certeza.

— Você está louco! Quase o mataram!

Taleniekov apontou para os mortos no asfalto.

— Eles eram peritos atiradores. Russos ou americanos, isso não importa. Eram especialistas. O Matarese não os utilizaria se não fosse assim. O pára-brisa da limusine tinha pelo menos um metro e meio de largura, o motorista era alvo fácil até para um principiante. Por que não o atingiram? Por que não detiveram o carro? Fomos conduzidos a uma armadilha e não percebemos, Beowulf. E talvez pelo próprio Winthrop.

Bray sentiu-se mal. Não tinha resposta para aquilo.

— Vamos nos separar. Será melhor para nós dois.

— A Córsega, talvez?

— Talvez. Você saberá se eu for.

— Taleniekov?

— Sim?

— Obrigado por acender os fósforos.

— Nessas circunstâncias, acredito que você teria feito o mesmo por mim.

— Nessas circunstâncias... sim, teria.

— Você já percebeu? Nós não nos matamos um ao outro, Beo­wulf Agate. Nós conversamos.

— Nós conversamos.

O vento frio da noite trouxe o som de uma sirena solitária. Logo, outras seriam ouvidas, carros-patrulha convergiriam para a cena da matança. Os dois homens deram-se as costas e correram. Scofield desceu a picada escura que levava ao bosque por trás do carro alugado. Taleniekov pulou a grade que acompanhava a ravina do Rock Creek Park.

 

 

O barco de pesca cortava as vagas revoltas como um animal pesado e desajeitado, vagamente consciente de que as águas lhe eram hostis. As ondas chocavam-se contra a proa e os lados do barco, formando cascatas de espuma sobre a amurada, e os ventos matinais fustigavam o rosto dos homens que manobravam as redes, deixando rastros de sal.

Um homem, entretanto, não se ocupava com as tarefas árduas da pesca. Não puxava nenhum cabo, não manipulava nenhum croque, nem se imiscuía nas piadas, palavrões e risadas características dos que ganham a vida no mar. Sentava-se a sós no tombadilho, uma garrafa térmica em uma das mãos, um cigarro empalmado na outra. Se um barco-patrulha francês ou italiano se aproximasse, ele se transformaria imediatamente em pescador, mas, se isso não acontecesse, estava combinado que todos o deixariam em paz. Ninguém fizera objeções a esse estranho sem nome, pois todos os membros da tripulação haviam ganho 100.000 liras com sua presença. O barco o pegara no cais em San Vincenzo. De acordo com a escala, deveriam sair da costa italiana de madrugada, mas o desconhecido sugerira que procurassem alcançar a costa da Córsega nas primeiras horas da manhã, e o capitão e a tripulação seriam altamente recompensados pelo trabalho. Postos mais altos têm seus privilégios. O capitão recebeu 150.000 liras. Zarparam de San Vincenzo antes da meia-noite.

Scofield tampou a garrafa térmica e jogou o cigarro no mar. Pôs-se em pé e se espreguiçou, procurando vislumbrar a costa através da neblina. Tinham andado bem. Pelo que o capitão dissera, deveriam avistar Solenzara dentro de alguns minutos e dentro de uma hora deixariam seu ilustre passageiro entre Sainte-Lucie e Porto Vecchio. Não esperavam encontrar nenhum problema; havia dúzias de reentrâncias desertas na costa rochosa onde um barco de pescaria poderia abrigar-se temporariamente.

Bray puxou a corda amarrada na alça da pasta de documentos e prendeu-a no pulso, bem segura, molhada como estava. A abrasão causada pela corda irritava muito devido à água salgada, mas ia melhorar rapidamente — na verdade, a água salgada ajudaria. Talvez fosse uma precaução desnecessária, mas o que importava eram as aparências. Talvez cochilasse, e os corsos costumavam despojar os viajantes de tudo que possuí-m de valor, especialmente viajantes sem papéis e com dinheiro.

— Signore! — O capitão se aproximou, com um largo sorriso que mostrava a falta dos dentes principais. — Ecco Solenzara! Ci arriveremo súbito — trenta minuti. E nord di Porto Vecchio!

— Benissimo, grazie.

— Prego!

Em meia hora estaria em terra, na Córsega, nas colinas onde nasceu o Matarese. Era indiscutível que a organização existia e altamente provável que havia fornecido assassinos de aluguel até a década de trinta. Mas sua história era realmente um mistério, e ninguém poderia dizer quanto dela era mito, quanto era realidade. A lenda crescia e, ao mesmo tempo, as pessoas riam-se dela. Era um enigma, pois ninguém conhecia sua origem. Sabia-se que um louco, chamado Guillaume de Matarese, tinha organizado um conselho, vindo não se sabe de onde, e dado à luz a um bando de assassinos, baseado, diziam alguns, na sociedade de matadores de Hasan Ibn-al-Sabbah, no século XI.

Mas isso parecia mais um culto, e assim aumentava o mito e diminuía a realidade. Nunca houve um depoimento em juízo, nunca foi preso um assassino que se pudesse provar fosse ligado a uma organização chamada Matarese. Se é que houve confissões, essas nunca se tornaram públicas. E os boatos persistiram. Circulavam histórias em altos escalões, apareciam artigos em jornais sérios, e eram logo desmentidos nas edições seguintes. Foram iniciadas várias pesquisas independentes, mas se alguma chegou ao fim nunca se soube. E em tudo isso os diversos governos nunca se manifestaram. Nunca. Ficaram silenciosos.

Anos atrás, um jovem agente secreto estudara a história de assassinatos, e foi esse silêncio que o fez acreditar na existência do Matarese.

Da mesma forma, outro silêncio, imposto subitamente três dias atrás, convenceu-o de que o encontro na Córsega não era uma idéia louca, surgida em meio à violência, e sim a única saída. O Matarese podia ser um enigma, mas não era mito. Era realidade. Um homem poderoso tinha contactado outros homens poderosos e pronunciado o nome, alarmado.

Robert Winthrop tinha desaparecido.

Três noites atrás, Bray tinha fugido correndo do Rock Creek Park e se refugiado num motel perto de Fredericksburg. Correra a estrada, acima e abaixo, chamando Winthrop de uma série de cabinas telefônicas, nunca repetindo a mesma, pedindo caronas sob o pretexto de que seu carro enguiçara. Tinha falado com a esposa de Winthrop, alarmando-a, com toda certeza, mas não revelando nada, dizendo apenas que precisava falar com o embaixador. E chegou a madrugada e o telefone não mais respondia, os tinidos da campainha se tornaram mais lentos, mais afastados, ou assim lhe pareceu, e ninguém atendeu.

Não tinha aonde ir, não podia apelar para ninguém. A rede estava armada para ele. Se o encontrassem, seria o fim, sabia disso. Se o deixassem vivo, seria entre as quatro paredes de uma cela ou, pior ainda, como um vegetal. Mas não acreditava que o deixassem viver. Taleniekov tinha razão: estavam ambos condenados.

A resposta, se houvesse, estava a mais de seis mil quilômetros, no Mediterrâneo. Trazia em sua pasta uma dúzia de passaportes falsos, cinco contas bancárias em nomes diferentes e uma lista de homens e mulheres que lhe arranjariam condução para qualquer lugar. Deixara Fredericksburg dois dias atrás, de madrugada, passara em bancos em Londres e Paris e na noite anterior, bem tarde, chegara a um cais de pescadores em San Vincenzo.

E agora faltavam apenas alguns minutos para colocar os pés no chão da Córsega. Tinha tido muito tempo para pensar, pelo menos para organizar os pensamentos, nos períodos de imobilidade forçada, no ar e no mar. Era preciso partir do previamente estabelecido. Dois fatos eram incontestáveis:

Guillaume de Matarese existira, assim como um grupo de homens denominado o Conselho Matarese, dedicado às teorias insanas de seu fundador. O mundo é impulsionado por mudanças constantes e violentas de poder. Choques e mortes súbitas são inerentes à evolução da história. Alguém tem de fornecer os meios para que se alcance o fim. Todos os governos pagam assassinos políticos. Assassinatos executados por métodos totalmente controlados, cuja autoria não pudesse ser descoberta, poderiam ser uma fonte mundial infinita de riquezas e influência. Assim pensara Guillaume de Matarese.

Uma minoria dos membros da comunidade de segurança internacional acreditava que o Matarese tinha sido responsável por dúzias de assassinatos políticos da segunda década do século até os anos trinta, de Sarajevo à cidade do México, de Tóquio a Berlim. Era sua opinião que o colapso do Matarese era devido à explosão da II Guerra Mundial e o conseqüente aumento do número de serviços secretos, que tornavam esses assassinatos legais; ou à Máfia siciliana, centralizada nos Estados Unidos, mas espalhada por toda parte, que absorvera o Conselho.

Mas esse era o ponto de vista de uma minoria. A maioria dos profissionais concordava com a Interpol, o MI-6 britânico e a CIA, que declaravam que o poder do Matarese estava sendo muito exagerado. Certamente tinham matado algumas figuras políticas de menor importância no labirinto profundamente ineficiente dos políticos franceses e italianos, porém não havia provas de mais nada além disso. Tratava-se basicamente de uma coleção de paranóicos liderados por um ricaço excêntrico, que nada sabia de filosofia, nem dos governos que aceitavam seus contratos exorbitantes. Se não fosse assim, perguntavam esses profissionais, por que eles nunca haviam sido chamados?

“Porque”, Bray acreditara há anos e continuava a acreditar, “vocês eram — nós éramos — as últimas pessoas no mundo com quem o Matarese queria negociar. Desde^o início formamos a concorrência, de uma forma ou de outra”.

— Ancora quindici minuti — berrou o capitão da casa de comando —, Ia costa è molto vicina.

— Grazie tante, capitano.

— Prego.

O Matarese. Seria possível? Um grupo de homens escolhendo e controlando assassinatos mundiais, fornecendo uma estrutura ao terrorismo, criando o caos por toda parte?

Para Bray, a resposta era sim. As palavras de um Istrebiteli moribundo, a sentença de morte imposta pelos soviéticos em Vasili Taleniekov, sua própria equipe de execução recrutada de Marselha, Amsterdam e Praga... tudo era um prelúdio ao desaparecimento de Robert Winthrop. Tudo estava ligado ao atual Conselho Matarese. Era ele que agia atrás da cena.

Quem seriam eles, esses homens que dispunham de recursos para alcançar os mais altos escalões do Governo e com a mesma facilidade financiar terroristas alucinados e escolher homens célebres para serem assassinados? E a pergunta maior era por quê. Por quê? Qual era seu objetivo, afinal?

Primeiro, era preciso desvendar o mistério de quem eram... e, fossem quem fossem, deveria haver uma conexão entre eles e os fanáticos originariamente reunidos por Guillaume de Matarese, pois de onde teriam vindo, como poderiam ter sabido? Os homens de então se reuniram nas colinas de Porto Vecchio. Todos tinham nomes. Era seu único ponto de partida.

Lembrou-se de que houvera outro, mas tinha se extinguido na chama de um fósforo no bosque do Rock Creek Park. Robert Winthrop estivera prestes a declarar o nome de dois homens poderosos em Washington que tinham negado enfaticamente qualquer conhecimento do Matarese, e essa negativa revelou sua cumplicidade. Era impossível que não tivessem ouvido falar do Matarese, fosse como fosse. Mas Winthrop não pronunciara os nomes. A violência interferira. Agora, talvez não mais pudesse dizê-los.

Os nomes do passado poderiam levar aos nomes do presente, e nesse caso tinham de levar. Os homens deixam sua marca na era em que vivem, o fruto de seu trabalho... seu dinheiro. Tudo pode ser pesquisado e levar a algum ponto. Se é que havia chaves para abrir os cofres que encerravam os mistérios do Matarese, elas seriam encontradas nas colinas de Porto Vecchio. Era imperativo encontrá-las, da mesma forma que Vasili Taleniekov, seu inimigo, tinha de encontrá-las. Nenhum dos dois sobreviveria se não as encontrasse. Não haveria, para o russo, uma quinta em Grasnov, nem uma vida nova para Beowulf Agate, até que encontrassem as respostas.

— La costa si avvicina! — gritou o capitão, virando o leme. Olhou o passageiro, sorrindo por entre a espuma soprada pelo vento. — Ancora cinque minuti, signore, e poi la Corsica.

— Grazie, capitano.

— Prego.

Córsega.

 

Taleniekov correu colina acima à luz da lua, agachando-se nas moitas de mato alto para disfarçar os movimentos, mas sem obscurecer a trilha que abria. Não queria que seus perseguidores desistissem da caça, apenas queria retardá-los, separá-los, se possível. Seria muito mais fácil agarrar um deles, isso seria o ideal.

O velho Krupskaya tinha razão quanto à Córsega, e Scofield estava certo quanto às colinas ao Norte de Porto Vecchio. Tinha levado menos de dois dias para descobrir que havia segredos ali. E agora estava sendo caçado nas colinas, na escuridão, por homens que queriam evitar que descobrisse mais alguma coisa.

Quatro noites atrás, a Córsega lhe parecera uma escolha altamente especulativa, uma alternativa a ser testada, e Porto Vecchio simplesmente uma cidade na costa Sudeste da ilha, rodeada de colinas inexploradas.

As colinas permaneciam inexploradas. Eram habitadas por um povo distante, estranho, pouco comunicativo, que falava um dialeto ultramontano bastante difícil de entender, mas não havia mais especulações. Bastava mencionar o nome Matarese para que olhos inicialmente hostis se velassem de todo. Se insistisse em obter qualquer informação, por mais inocente que fosse, estava encerrada a conversa que apenas começara. Era como se o próprio nome fizesse parte de um ritual tribal que não podia ser mencionado a não ser nos recônditos das colinas, e nunca na presença de estranhos. Isso Vasili compreendeu poucas horas depois de penetrar os campos semeados de rochas, e foi dramaticamente confirmado logo na primeira noite.

Quatro dias atrás, ele não teria acreditado; agora sabia que era verdade. O Matarese era mais que uma lenda, mais que um símbolo místico para o povo primitivo das colinas: era uma espécie de religião. Tinha de ser. Havia homens prontos a morrer para preservar-lhe o segredo.

Quatro dias, e tudo mudara para ele. Não estava mais lidando com homens preparados e aparelhamento sofisticado. Não podia apertar um botão, ver as fitas dos computadores revolvendo atrás dos painéis de vidro e as letras verdes se sucederam rapidamente nas telas negras, fornecendo imediatamente a informação necessária à decisão a ser tomada. Pesquisava o passado no meio de figuras do passado.

Era essa a razão por que desejava desesperadamente pegar um dos homens que o seguiam colina acima na escuridão. Calculava que eram três. O cume da colina era extenso e largo, com uma profusão de árvores disformes e rochas pontiagudas. Eles teriam de se separar para cercar todas as descidas que levavam a outras colinas e à baixada, na entrada da floresta. Se conseguisse pegar um homem e manipular-lhe a mente e o corpo, aprenderia muita coisa. Não tinha o menor escrúpulo. Na escuridão da noite anterior, uma cama de madeira havia sido estraçalhada e a silhueta de um corso surgira no portal com uma espingarda Lupo na mão. Supunha-se que Taleniekov estivesse naquela cama... Bastava um homem, aquele homem, Vasili pensou, contendo a raiva e correndo para esconder-se numa moita de abetos selvagens quase no cume da colina. Poderia descansar ali por alguns minutos.

Vislumbrou lá embaixo os raios fracos de lanternas elétricas. Um, dois... três. Três homens, e estavam se separando. O da extrema esquerda se encaminhava para seu esconderijo. Levaria dez minutos escalando a colina até chegar aos abetos. Taleniekov rezou para que fosse o homem com a Lupo. Encostou-se numa árvore, respirando fundo, e afrouxou todo o corpo.

Precipitara-se na incursão a esse mundo primitivo. Entretanto, havia uma espécie de simetria. Começara correndo à noite nos bosques à margem da ravina no Rock Creek Park em Washington, e aqui estava ele num santuário isolado, coberto de árvores, no alto das colinas da Córsega. À noite. Fora uma viagem muito rápida e ele soubera exatamente o que devia fazer, e quando.

Ontem às cinco horas da tarde, no Aeroporto Leonardo da Vinci, em Roma, providenciara um avião particular para voar até Bonifácio, a Oeste, no extremo Sul da Córsega. Chegara a Bonifácio às sete e um táxi o levou para o Norte, ao longo da costa, até Porto Vecchio, e daí para um hotel nas colinas. Comera uma refeição corsa pesada, conversando com muita naturalidade com o proprietário curioso.

— Sou uma espécie de historiador — dissera. — Procuro informações sobre um padrone de muito tempo atrás. Um certo Guillaume de Matarese.

— Não entendo — replicara o proprietário. — O senhor disse que é uma espécie de historiador. Acho que uma pessoa é um historiador ou não é. O senhor está ligado a alguma grande universidade?

— Uma fundação particular, mas as universidades têm acesso aos nossos trabalhos.

— Un’ fondazione?

— Un’ organizzazione accademica. Minha seção está incumbida da história da Sardenha e da Córsega no fim do século XIX e princípio do século XX, que é muito pouco conhecida. Aparentemente, existiu um padrone, esse tal de Guillaume de Matarese, que controlava a maior parte das terras nas colinas ao Norte de Porto Vecchio.

— Elas lhe pertenciam, signore. Era muito bom para todos os que viviam em suas terras.

— Naturalmente. E gostaríamos de dar-lhe um lugar de destaque na história da Córsega. Não sei por onde começar.

— Talvez... — O proprietário recostou-se na cadeira, os olhos em frente, a voz inexpressiva. — As ruínas da Vila Matarese. A noite está bem clara, signore. São muito belas à luz do luar. Posso arranjar alguém que o leve até lá. A não ser que esteja muito cansado da viagem...

— De forma alguma. Foi um vôo rápido.

Levaram-no mais longe ainda nas colinas, para os restos mortais de uma imensa propriedade, onde as ruínas de um casarão ocupavam quase quatro mil metros quadrados. As únicas estruturas ainda em pé eram algumas paredes desmoronadas e chaminés derruídas. Entreviam-se no mato rasteiro os tijolos que beiravam uma imensa estrada de acesso circular. De ambos os lados da mansão, caminhos de pedra cortavam o mato alto, salpicados de treliças quebradas, testemunhas de jardins luxuriantes bem-tratados, há muito destruídos.

O conjunto de ruínas erguia-se em silhueta fantasmagórica contra a colina, aumentado pela esteira de luar. Guillaume de Matarese erguera um monumento a si mesmo, e o impacto do edifício não diminuíra, apesar da destruição do tempo e dos elementos. Pelo contrário, o esqueleto tinha enorme força própria.

Vasili ouvira vozes e o menino que o trouxera havia sumido. Eram dois homens e as primeiras palavras de uma saudação meio duvidosa com que o acolheram foram o início de um interrogatório ,que durara mais de uma hora. Teria sido muito fácil subjugar os dois corsos, mas Taleniekov sabia que poderia aprender mais se usasse resistência passiva. Inquisidores não-treinados sempre revelam mais do que conseguem arrancar de vítimas bem-treinadas. Manteve-se firme na história da organizzazione accademica e no final recebeu os conselhos que já esperava.

— Volte para o lugar de onde veio, signore. Não pode descobrir nada aqui que lhe seja útil, nós não sabemos de nada. Houve uma epidemia nestas montanhas anos atrás. Não sobrou ninguém que lhe possa ajudar.

— Deve haver pessoas idosas nas montanhas. Talvez possa andar por aí e fazer umas perguntas.

— Nós somos idosos, signore, e não podemos responder às suas perguntas. Volte. Somos todos ignorantes por aqui, somos pastores. Não nos sentimos bem quando estranhos se intrometem em nossa vida simples. Volte.

— Vou pensar em seus conselhos...

— Não se incomode em fazer isso, signore. Vá embora. Por favor. Deixe-nos em paz.

Na manhã seguinte, Vasili voltou às montanhas, à Vila Matarese e mais além, parando em várias fazendas com casas de sapé, fazendo perguntas, notando os olhares fulminantes nos olhos corsos que acompanhavam as não-respostas, consciente de que estava sendo seguido.

Nada lhe disseram, naturalmente, mas na progressão de atitudes empedernidas em reação à sua presença descobrira algo importante. Não só havia homens seguindo-o, havia também outros que o precediam, alertando as famílias das montanhas de que um estranho se aproximava. Deveriam mandá-lo embora sem lhe dizer nada.

Aquela noite, a noite passada, pensou Taleniekov, enquanto observava o facho de luz à esquerda subir lentamente a colina, o proprietário se aproximara de sua mesa.

— Sinto muito, signore, mas não posso permitir que continue aqui. Aluguei seu quarto.

Vasili levantou os olhos e falou sem hesitar:

— Que pena. Preciso somente de uma poltrona ou uma cama de armar, se é que dispõe de alguma. Partirei de manhã cedo. Consegui o que vim buscar aqui.

— E o que foi isso, signore?

— Logo saberá. Outros virão depois, com o aparelhamento adequado e os registros de imóveis. Haverá uma investigação completa, científica. É fascinante o que aconteceu aqui. Falando academicamente, é claro.

— Claro... Talvez mais uma noite.

Seis horas depois, um homem irrompera em seu quarto e disparara dois tiros de uma espingarda mortífera chamada de Lupo — o “lobo”. Taleniekov estava à espera. Vira tudo pela porta do armário entreaberta: a cama de madeira explodindo, o estofo abaixo das cobertas arremessado contra a parede escura. I

O estrondo foi ensurdecedor, uma explosão que ecoou pelo pe­queno hotel, e no entanto ninguém veio ver o que tinha acontecido. Em vez disso, o homem com a Lupo ficara em pé no portal e falara baixo em ultramontano, como se pronunciasse um juramento.

— Per nostro circolo — dissera. E então fugira.

Não significara nada, mas Vasili sabia que isso dizia tudo. Pala­vras pronunciadas como uma fórmula cabalística após tomar uma vida... “Pelo nosso círculo.”

Taleniekov ajuntara os pertences e abandonara o hotel às pres­sas. Caminhara até a estrada de barro, a única que o ligava a Porto Vecchio, e se escondera na vegetação a uns seis metros da orla. A centenas de metros abaixo, vislumbrou a brasa de um cigarro. A estrada estava sendo vigiada. Ficara à espera. Não tinha escolha.

Se Scofield viesse, usaria aquela estrada. Era a madrugada do quarto dia. O americano dissera que, se a Córsega era tudo o que restava, estaria lá em três ou quatro dias.

Às três da tarde, ainda não havia sinal dele, e uma hora depois Vasili viu que não podia esperar mais. Vários homens haviam descido a estrada correndo em direção ao porto. Sua missão era óbvia: o intruso se esquivara das patrulhas da estrada. Era preciso achá-lo e matá-lo.

Começaram as buscas nos bosques. Dois corsos de machete em punho abriram caminho pelo mato a menos de dez metros de dis­tância. Muito em breve, as patrulhas se tornariam mais concentradas, vasculhando a área. Não podia esperar por Scofield. Não havia garantia alguma de que Beowulf Agate tinha conseguido escapar da rede que se espalhara para ele em seu próprio país, muito menos a caminho da Córsega.

Até o sol se pôr, Vasili passou horas iludindo os homens que o caçavam. Criava pistas falsas, como uma velha raposa, que se­guiam numa direção e logo após seu vulto era vislumbrado em outra. Ramos quebrados, mato rasteiro amassado sob o peso dos pés provavam indiscutivelmente que passara por ali, que estava encurralado numa faixa pantanosa cercada por uma muralha de xisto inacessível, mas quando os homens se aproximavam viam seu vulto disparando num campo a mais de um quilômetro de distância. Era como um marimbondo levado pelo vento, ferroando visualmente em dezenas de lugares ao mesmo tempo.

Ao escurecer, Taleniekov iniciou a estratégia que o levou ao lugar em que agora estava, escondido nos abetos, quase no topo de uma colina mais alta, esperando que se aproximasse o homem com a lanterna. O plano era muito simples e constava de três etapas, cada uma evoluindo logicamente da etapa anterior. Primeiro, dis­trair a atenção, afastando o maior número possível de atacantes; depois, revelar-se aos poucos que restassem, afastando,-os ainda mais do grupo maior, e finalmente o isolamento total desses poucos, culminando pela captura de um. Chegara quase ao fim da terceira etapa, com os fogos alastrando-se ao Leste, a mais de dois quilô­metros de onde se encontrava.

Atravessara os bosques, descendo em direção a Porto Vecchio, andando do lado direito da estrada de barro. Juntara galhos secos e folhas, amontoando-os, abrira alguns cartuchos Graz-Burya e es­palhara o pó dentro de cada monte. Acendera sua fogueira na floresta, esperara até que irrompesse em chamas e ele ouvisse os gritos dos corsos que acorriam. Correra, então, para o Norte, do outro lado da estrada, numa área mais cerrada, mais seca, do bosque que cercava a colina, e repetira a façanha, incendiando um monte maior, perto de um castanheiro morto. O fogo espalhara-se como uma bomba incendiaria, as chamas subindo pela árvore e amea­çando alastrar-se pela floresta. Correra mais uma vez para o Norte e acendera seu último fogo, que também foi o maior, escolhendo uma árvore há muito destruída por insetos. Em meia hora as colinas ardiam em chamas em três pontos separados, e os caçadores corriam de um lado a outro, procurando conter o fogo e continuar a busca ao mesmo tempo. Fogo. Sempre fogo.

Cruzara em diagonal novamente para Sudoeste, subindo pelos bosques até a estrada que ia dar no hotel. Saíra da floresta à vista da janela por onde havia fugido na noite anterior. Dirigira-se para a estrada, onde vários homens armados de rifles estavam parados, discutindo agitadamente. Eram os homens da retaguarda, confusa diante do caos que reinava abaixo, em dúvida quanto a perma­necerem onde estavam, conforme ordens superiores, ou irem em auxílio de seus irmãos ilhéus.

Quando Vasili acendeu o fósforo, reparou na ironia da coinci­dência. Fora um fósforo que começara tudo, há tantos dias, na Avenida Nebraska, em Washington. Era o sinal de uma armadilha. E marcava mais uma nas montanhas da Córsega.

— Ecco!

— Il fiammifero.

— E lui!

Começara a caçada; e agora ia terminar. O homem com a lan­terna estava pertinho dele. Subiria até seu esconderijo de abetos nos próximos trinta segundos. Lá embaixo, no declive da colina, a lanterna do centro estava a várias centenas de metros em direção ao Sul e seus raios cruzavam o chão à frente do corso que a mane­java. Bem longe, à direita, a terceira lanterna, que há poucos segundos se agitava freneticamente em semicírculos, agora estava estranhamente imóvel, fixando um ponto no chão. Taleniekov ficou preocupado com a posição da luz e essa imobilização abrupta, mas não teve tempo de avaliar o significado desses fatos. O corso estava se aproximando e já alcançara a primeira árvore do refúgio de Vasili.

O homem dirigiu o feixe de luz para o aglomerado de troncos e ramos. Taleniekov quebrara vários galhos, descascando alguns, para que qualquer luz fosse refletida na madeira branca. O corso avançou, seguindo a pista. Vasili deu um passo à esquerda, escon­dendo-se atrás de uma árvore. O caçador passou a quarenta centí­metros dele, o rifle em posição. Taleniekov ficou observando os pés do corso no reflexo da luz. Ao levantar o pé esquerdo, o atirador destro perderia o equilíbrio por uma fração de segundo, e essa perda seria irreparável.

O pé se levantou e Vasili atirou-se, enrascando o braço no pes­coço do corso, buscando com a outra mão o gatilho da arma e arrancando-a da mão do homem. O feixe de luz mirou o topo das árvores. Taleniekov golpeou os rins da vítima com o joelho direito, puxando-a para trás e jogando-a no chão. Fez uma tesoura com as pernas na cintura do homem, arqueando-lhe dolorosamente o pescoço e colocando a orelha do corso junto de seus lábios.

— Você e eu vamos passar uma hora juntos — murmurou em italiano. — Nessa hora você vai me contar tudo que quero saber, ou nunca mais vai poder falar. Vou usar sua faca. Seu rosto vai ficar tão desfigurado que ninguém vai reconhecê-lo. Agora levante-se devagar. Se erguer a voz, é um homem morto.

Vasili foi diminuindo aos poucos a pressão na cintura e no pes­coço do homem. Ambos levantaram-se lentamente e Taleniekov conservou os dedos agarrados na garganta do corso.

De repente, houve um estalido acima deles, que ecoou por entre o arvoredo. Alguém pisara num galho caído. Vasili virou-se depres­sa, procurando penetrar com os olhos a folhagem densa. O que vislumbrou cortou-lhe a respiração.

Um homem em silhueta entre duas árvores, uma silhueta que não lhe era desconhecida e que vira pela última vez no portal de um hotel campestre. E agora, como daquela vez, os grossos canos da Lupo miravam diretamente em frente. O alvo era ele.

Num turbilhão de pensamentos, Taleniekov compreendeu que nem todos os profissionais são treinados em Moscou e Washington. Compreendeu o porquê da luz agitada freneticamente na base da colina e de repente tão parada, imóvel. Uma lanterna amarrada a um arbusto ou um galho elástico, que se prendesse e largasse para dar a ilusão de movimento, enquanto seu dono corria colina acima, num caminho familiar, na escuridão.

— Foi muito esperto ontem à noite, signore — disse o homem com a Lupo. — Mas aqui não há lugar para se esconder.

— O Matarese! — gritou Vasili com toda a força dos pulmões. — Per nostro circolo! — urrou. Atirou-se para a esquerda. A explo­são dos dois canos da Lupo retumbou nas montanhas.

 

Scofield pulou do barco e atravessou as ondas em direção à costa, onde não havia praia, somente rochedos contíguos, formando uma muralha tridimensional de pedras pontiagudas. Alcançou um promontório de pedra chata e escorregadia e escorou-se contra o impacto das águas, equilibrando a pasta de documentos na mão esquerda e a sacola de lona na direita.

Rolou pelo chão arenoso, coberto de plantas rasteiras, até encon­trar uma superfície bastante plana para ficar de pé, correndo logo para se esconder no mato emaranhado que o protegeria de qualquer patrulha que rondasse acima, nos picos das colinas. O capitão o avisara de que a polícia não formava um bloco sólido, alguns eram subornáveis, outros não.

Ajoelhou-se, tirou do bolso um canivete, cortou a corda do pulso, soltando a pasta. Abriu então a sacola de lona e tirou calças secas, um par de botas, um suéter escuro, um boné e uma jaqueta de lã grossa, tudo comprado em Paris, sem nenhuma etiqueta. Era tudo bem rude e podia passar como vestimenta local.

Mudou de roupa, enrolou as coisas molhadas, enfiou-as na sacola junto com a pasta e começou a longa e tortuosa ascensão rumo à estrada acima. Já estivera na Córsega duas vezes e em Porto Vecchio uma. O motivo principal dessas viagens fora um antipático e suarento dono de barcos de pesca em Bastia, pago pelo Estado como “observador” das operações soviéticas no mar Leguriano. A breve excursão ao Sul até Porto Vecchio também estivera ligada a um estudo da exeqüibilidade do financiamento secreto de um projeto turístico na região do mar Tirreno. Nunca soubera o que acontecera com esse projeto. Durante a estada em Porto Vecchio, alugara um carro e subira até as montanhas. Vira as ruínas da Vila Matarese sob o sol ardente da tarde e parará para tomar um copo de cerveja numa taverna à beira da estrada, mas não se recordava bem desse passeio. Nunca pensara em voltar. Naquele tempo, a lenda do Matarese estava tão morta quanto as ruínas da vila. Na­quele tempo.

Chegou à estrada e puxou o boné bem para baixo, a fim de esconder a equimose na testa, machucada quando bateu num poste de ferro de uma escada.

Taleniekov. Será que ele alcançara a Córsega? Estaria nas colinas de Porto Vecchio? Não ia levar muito tempo para descobrir. Um estranho fazendo perguntas sobre uma lenda era muito fácil de achar. Por outro lado, o russo seria cauteloso. Como lhes tinha ocorrido procurar a origem da lenda, poderia ocorrer a outros.

Bray olhou o relógio: eram quase onze e meia. Consultou um mapa e estimou sua posição a três quilômetros e meio ao Sul de Sainte-Lucie. Concluiu que a linha mais direta para as montanhas, isto é, as colinas Matarese, seria em direção ao Oeste. Mas era preciso descobrir algo antes de penetrar nessas colinas: uma base de operações. Um lugar onde pudesse esconder seus pertences na expectativa razoável de encontrá-los quando voltasse. Qualquer parada normal de um viajante estava fora de questão. Não poderia dominar o dialeto ultramontano em poucas horas. Seria marcado como um estranho, e estranhos serviam de alvo. Teria de acampar no bosque, preferivelmente perto de água e a curta distância de uma venda, loja ou hotel onde pudesse encontrar o que comer.

Era forçado a calcular que passaria alguns dias em Porto Vec­chio, não era possível pensar em outra coisa. Quando encontrasse Taleniekov, se o encontrasse, tudo podia acontecer, mas no mo­mento urgia pensar em todas as necessidades, todos os pequenos detalhes, antes de elaborar grandes planos.

Havia uma trilha, muito estreita para qualquer carro, talvez um caminho de pastores, que se desviava da estrada e subia suave­mente uma série de campos, em direção Oeste. Passou a sacola para a mão esquerda e tomou a trilha, afastando os galhos pen­dentes até chegar ao capim alto.

Às 12h45min, caminhara somente uns oito ou nove quilômetros, mas prosseguira propositadamente em ziguezague, o que lhe dava uma visão ampla da área. Encontrou o que procurava, uma parte da floresta que se elevava abruptamente acima de um regato, obscurecendo-lhe as margens com ramos espessos de pinheiros corsos que se arrastavam no chão. Um homem e seus pertences estariam bem seguros atrás dessas muralhas verdejantes. A um quilômetro ou dois a Sudoeste, havia uma estrada que subia pelas montanhas. Pelo que se lembrava, e tinha quase certeza, era a estrada que seguira quando fora às ruínas da Vila Matarese. Só havia uma estrada. E, se sua memória não o enganava, passara por várias casas isoladas em fazendas espalhadas a caminho das ruínas e da taverna onde parará para tomar a cerveja local naquela tarde tão quente. Só que a taverna foi primeiro, perto daquela estrada nas monta­nhas, na encruzilhada de uma estrada mais estreita. À direita, subindo a montanha, à esquerda, voltando a forto Vecchio. Bray consultou o mapa novamente; checou a estrada da montanha e a outra cruzando à direita. Agora sabia onde estava.

Atravessou o riacho e subiu a margem oposta até chegar à cortina de pinheiros. Engatinhou por baixo dos ramos pendentes, abriu a sacola e tirou uma pequena pá, sorrindo quando caíram no chão dois rolos de papel higiênico. Os pequenos detalhes, disse consigo mesmo, e começou a cavar a terra fofa.

Quase quatro horas. Acampara atrás da cortina de ramos verdes, enterrara a sacola, mudara o curativo do pescoço e lavara o rosto e as mãos no riacho. Descansara, também, deitado de costas, con­templando a luz do sol filtrada na renda de folhas de pinheiro. Deixou a mente divagar, um luxo que não se permitia, mas que não conseguiu controlar. Não vinha o sono, mas os pensamentos se atropelavam.

Ali estava, sob uma árvore às margens de um regato na Córsega, uma viagem que começara uma noite numa ponte em Amsterdam. E, se ele e Taleniekov não encontrassem o que buscavam nas colinas de Porto Vecchio, não haveria retorno.

Não seria tão difícil assim desaparecer. Já organizara muitos desaparecimentos no passado, com muito menos dinheiro e expe­riência. Havia tantos sumidouros: a Melanésia, as ilhas Fiji, a Nova Zelândia, cruzando para a Tasmânia, as vastas paragens da Austrália, Malásia, ou qualquer uma das ilhas de Sunda. Mandara muitos homens a esses lugares e mantivera comunicação com alguns deles no decorrer dos anos. Tinham reconstruído suas vidas, colocado o passado fora do alcance dos novos conhecidos, formado novas amizades, adquirido novas ocupações, até mesmo novas famílias.

Poderia fazer o mesmo, pensou. E talvez o fizesse. Tinha os documentos e o dinheiro necessários. Poderia comprar passagem para a Polinésia ou as ilhas Cook, comprar um barco de aluguel e provavelmente ganhar o suficiente para uma vida confortável. Poderia ser uma boa vida, uma existência anônima, um final.

Então lhe surgiu diante dos olhos a imagem de Robert Winthrop, os olhos penetrantes buscando os seus, e ouviu a angústia na voz do velho, que falava do Matarese.

Mas ouviu também outros sons. Mais próximos, urgentes, acima de sua cabeça. Inúmeros pássaros voavam assustados e seus gritos roucos ecoavam raivosamente pelos campos e bosques. Seu domínio fora perturbado por intrusos. Ouviu homens correrem, ouviu seus gritos.

Será que tinha sido descoberto! Pôs-se rapidamente de joelhos, sacando a Browning do bolso da jaqueta, e espreitou por entre a rede de iolhas de pinheiro.

Lá embaixo, uns cem metros à esquerda, dois homens tinham aberto caminho com machetes até a margem verdejante do riacho. Pararam ali por um momento com as pistolas metidas no cinto, olhando ao redor como se não soubessem o que fazer. Bray soltou a respiração, aliviado. Não estavam à sua procura, não tinha sido descoberto. Estavam apenas caçando — um animal que atacou seus rebanhos, talvez, ou um cão selvagem. Não era ele que bus­cavam. Não buscavam o estranho oculto nas colinas.

Foi aí que ouviu as palavras e viu que não estava totalmente certo. O berro não foi dado pelos dois corsos de machete em mão, veio do campo além da margem do riacho.

— Ecco, Ia... nel campo!

Não perseguiam um animal, mas um homem. Um homem fugia de outros homens e, a julgar pela fúria dos perseguidores, esse homem estava em perigo de vida.

Taleniekov! Seria Taleniekov? E, se fosse, por quê? Será que o russo tinha descoberto alguma coisa tão depressa? Alguma coisa tão valiosa que os corsos de Porto Vecchio estavam prontos a matá-lo?

Scofield observou os dois homens abaixo sacarem as armas do cinto e correrem colina acima, fora do alcance de sua vista. Voltou de quatro para se esconder atrás do tronco de árvore e procurou pôr os pensamentos em ordem. Sabia instintivamente que Il uomo era Taleniekov. Sendo assim, tinha várias opções. Poderia enca­minhar-se para a estrada e subir as colinas, um tripulante italiano cujo barco de pesca estava sendo reparado e não tinha o que fazer; poderia ficar onde estava até escurecer e, protegido pela noite, chegar perto dos homens e ouvir o que diziam; ou poderia sair do esconderijo agora e seguir os cavauores.

Essa última era a menos convidativa, mas provavelmente a mais produtiva. E foi a que escolheu.

Eram 5h35min quando Bray o avistou, correndo na crista de uma colina, um alvo fácil no resplendor do sol poente, perseguido por tiros. Taleniekov, como era de esperar, estava fazendo o ines­perado. Não procurava escapar; pelo contrário, estava se utilizando da perseguição para criar confusão e, com essa confusão, aprender qualquer coisa. Era uma tática excelente; a melhor maneira de descobrir algo de importância vital era forçar o inimigo a proteger essa informação.

Mas o que teria ele descoberto que justificasse esse risco? Como, por quanto tempo, teria forças ou poder de concentração para escapar ao inimigo?... A resposta era clara, tão clara quanto a pergunta: isolar o inimigo, agarrá-lo e destruir-lhe a resistência. Tudo isso dentro do seu território.

Deitado de bruços no campo, Scofield estudou o terreno o melhor que pôde. A brisa do cair da tarde facilitou-lhe a tarefa, curvando o capim a cada sopro, ampliando-lhe a visão. Tentou analisar as opções de Taleniekov e onde seria melhor interceptá-lo. O homem da KGB corria para o Norte e daí a uns dois quilômetros chegaria à base das montanhas, onde teria de parar, pois não adiantaria escalá-las. Voltaria atrás, em direção Sudoeste, evitando o cerco das estradas. E em algum momento criaria uma distração, grande bastante para transformar a confusão em caos e preparar o caminho para a armadilha que se seguiria.

Talvez tivesse que esperar até esse momento para interceptar Taleniekov, pensou Bray, mas preferia que não fosse assim. Seria atividade demais concentrada num período de tempo muito curto. Muitos erros aconteciam por isso. Era preferível alcançar o russo antes disso, e assim poderiam planejar juntos a estratégia. Scofield agachou-se e seguiu para Sudoeste por entre o capim alto.

O sol escondeu-se atrás das montanhas distantes, as sombras alongaram-se em manchas de tinta derramada sobre as montanhas, cobrindo campos inteiros que há momentos estavam banhados de luz alaranjada. Escureceu e não havia sinal de Taleniekov; nem um som sequer. Os olhos de Bray adaptaram-se à escuridão, os ouvidos aguçados captavam qualquer ruído estranho aos campos e à floresta ao percorrer rapidamente o perímetro da área onde era lógico que o russo se movimentasse, e nem assim percebeu sua presença.

Será que o homem da KGB tinha corrido o risco de usar uma estrada de terra para ganhar tempo? Se assim fosse, era loucura, a não ser que ele tivesse inventado uma tática melhor para usar nas colinas mais baixas. Os grupos de busca formigavam nos cam­pos, variando de dois a seis homens, munidos de facas, armas de fogo e machetes penduradas nas roupas, carregando lanternas cujos feixes de luz se entrecruzavam como raios laser. Scofield correu no sentido Oeste, em busca de um ponto mais alto, protegido contra os furiosos corsos pelos milhares de raios de luz, sabendo quando correr e quando parar.

Correu, passando no meio de dois grupos que convergiam, paran­do abruptamente ao ver um animal que gania, com o pêlo em pé e os olhos esbugalhados. Ia usar a faca quando percebeu que era um cão de pastor e suas narinas não estavam interessadas em cheiro humano. Mesmo assim, ficou com a respiração suspensa. Aca­riciou o cão, acalmando-o, e abaixou-se rapidamente para evitar um feixe de luz saído do bosque. Logo continuou a subir pelo campo inclinado.

Alcançou uma rocha meio enterrada no solo e atirou-se atrás dela. Levantou-se devagar, segurando a pedra, pronto a lançar-se em campo novamente. Por cima da pedra, espiou a cena abaixo, os feixes de luz cortando a escuridão e definindo a posição dos grupos de busca. Conseguiu distinguir a rude estrutura de madeira da taverna onde parará anos atrás. A primitiva estrada de terra que atravessara horas atrás para subir mais acima passava à sua frente. A uns cem metros, à direita, estava a estrada mais larga que ser-peava, colinas abaixo, em direção a Porto Vecchio.

Os corsos se tinham espalhado pelos campos. Bray ouviu o latido de cães aqui e ali, em meio a gritos humanos e golpes de machete. Era uma visão fantasmagórica, os feixes de luz apontando em todas as direções e fantoches invisíveis dançando na escuridão, puxados por fios luminosos.

Subitamente, surgiu outra luz, amarela em vez de branca. Fogo. Uma explosão abrupta de chamas ao longe, à direita da estrada que levava a Porto Vecchio.

A distração de Taleniekov. Surtiu efeito.

Homens correram, gritando, convergindo os feixes de luz na estrada, precipitando-se em direção ao fogo que se alastrava. Scofield ficou parado, pensando como um clínico, um profissional: como o homem da KGB iria utilizar sua distração? Que faria em seguida? Que método usaria para armar a cilada coto que apanharia um deles?

Três minutos depois, a resposta delineou-se. Uma segunda erup­ção de chamas bem maior lançou-se aos céus meio quilômetro à esquerda da estrada para Porto Vecchio. Uma distração tinha se tornado duas, dividindo os corsos, confundindo a busca. O fogo nas colinas era fatal.

Agora podia ver os fantoches com seus fios de luz fundindo-se ao brilho das chamas que se alastravam. Mais um fogo irrompeu, bem mais volumoso, atingindo uma árvore que rebentou numa bola ofuscante, a trezentos ou quatrocentos metros mais para a esquerda. A terceira distração era bem maior que as duas primeiras. O caos alastrou-se tão rápido quanto o fogo, ambos correndo o risco de se tornarem incontroláveis. Taleniekov protegia-se de todas as maneiras; se não conseguisse armar uma cilada, escaparia na confusão.

Mas se a mente do russo trabalhasse como a sua, pensou Bray, a armadilha estaria pronta em segundos. Abandonou a proteção da rocha e começou a descida, de quatro, ombros perto do chão, como um animal, pés e mãos movimentando-se automaticamente.

Lá embaixo na estrada, uma luz brilhou. Durou apenas um segundo o minúsculo clarão. Alguém riscara um fósforo. Não fazia sentido, até Bray ver os raios de uma lanterna surgirem à direita e logo após duas mais. Os três feixes de luz convergiram na direção do fósforo e pouco depois separaram-se na base da colina à margem da estrada.

Agora Scofield sabia qual era a tática. Há quatro noites, no Rock Creek Park, um fósforo fora aceso para expor uma armadilha; agora seria para armar uma. O homem era o mesmo. Taleniekov tinha conseguido transformar em caos e paralisar a busca dos corsos e agora atraía os poucos que restavam. Começara a caçada final e o russo pegaria um dos homens.

Bray tirou a automática do coldre da jaqueta e procurou o silenciador no bolso. Colocou-o na arma, destravou o pino de segu­rança e correu em diagonal para a esquerda, abaixo do cume da colina. Em algum lugar, nesses hectares de capinzal e floresta, seria armada uma cilada. O problema era descobrir exatamente onde, imobilizar, se possível, um dos perseguidores e assim favo­recer as possibilidades de sucesso da armadilha. Ou, melhor ainda, pegar um dos corsos, pois duas fontes de informação eram melhor que uma.

Correu aos arrancos, sempre juntinho do chão, os olhos grudados nas três lanternas abaixo, cada uma cobrindo uma parte da colina. No reflexo de sua luz, viu as armas com clareza. Ao primeiro vestígio da caça, atirariam...

Scofield parou. Sentiu que havia algo errado. Era o feixe de luz à direita, o que talvez estivesse uns duzentos metros diretamente abaixo. Balançava rápido demais, sem focalizar ponto algum. E não havia reflexo, nem mesmo um reflexo apagado, de luz batendo em metal. Não havia armas.

Mão alguma segurava aquela lanterna! Tinha sido amarrada a um galho grosso ou a um ramo. Um estratagema, uma colocação falsa para simular movimento a fim de encobrir outros movimentos. Bray deitou-se no chão, escondido pelo capim alto e pela escuridão, escutando, procurando distinguir o som de um homem correndo.

Aconteceu de modo tão súbito, tão inesperado, que Scofield quase atirou em defesa instintiva. O vulto volumoso de um corso assomou ao seu lado, acima dele, e um pé passou célere a quarenta centí­metros de sua cabeça. Rolou para a esquerda, fora do caminho do homem que corria.

Respirou fundo, tentando dissolver o choque e o medo, e levan­tou-se cautelosamente para seguir como pudesse a trilha do corso. O homem seguia diretamente para o Norte ao longo da colina, abaixo da crista, como Bray planejara fazer para achar Taleniekov, usando os raios de luz e som, ou o súbito desaparecimento de ambos, como guias. O corso conhecia bem o terreno. Scofield apressou o passo, deixando atrás o feixe de luz do meio, ainda lá embaixo, certificando-se assim de que Taleniekov havia escolhido o terceiro homem. A lanterna, quase invisível, no extremo Norte da colina.

Bray apressou-se. Queria, instintivamente, manter o corso à vista. Mas não conseguia distingui-lo. Tudo era silêncio, silencioso demais. Scofield atirou-se ao chão e tornou-se parte do silêncio, esprei­tando a escuridão, com o dedo no gatilho da automática. Ia acon­tecer a qualquer minuto. Mas como? Onde?

A uns cento e cinqüenta metros em frente, em diagonal à direita, o terceiro feixe de luz apareceu, luziu e apagou-se numa série de lampejos curtos e irregulares. Não, era engano... Não estava sendo ligada e desligada rapidamente; a luz estava sendo bloqueada. Árvores. Era isso. Quem quer que segurasse a lanterna estava andando entre as árvores na encosta da colina.

De repente, o feixe de luz se elevou, dançando ligeiro no alto dos troncos, e caiu novamente, ficando estacionário, o brilho amor­tecido pela folhagem que atapetava o chão. Era isso! A cilada estava armada, mas Taleniekov ignorava que um corso aguardava um sinal dessa armadilha.

Bray pôs-se em pé e correu o mais rápido possível, batendo com as botas nas pedras que recobriam a encosta. Só dispunha de alguns segundos, tinha uma área extensa a percorrer e a escuridão o atra­palhava. Não podia ver onde começavam as árvores. Se ao menos visse uma silhueta em que pudesse atirar, ou ouvisse o som de uma voz... Voz. Estava prestes a gritar para avisar o russo, quando ouviu uma voz. Eram palavras naquele italiano esquisito dos corsos do Sul. O som flutuou nas brisas noturnas.

Dez metros abaixo! Viu o homem em pé entre duas árvores, o corpo em silhueta à luz do facho mudo e imóvel que brilhava no chão: o corso segurava uma espingarda. Scofield deu uma revira­volta à direita e atirou-se sobre o homem de automática em punho.

— O Matarese! — Taleniekov gritou. — Per nostro circolo!

Bray atirou nas costas do corso, os três tiros abafados pela explosão da espingarda. O homem caiu de bruços. Scofield meteu o pé no corpo, agachou-se, esperando um ataque. Mas viu o que acontecera: o corso que Taleniekov conseguira pegar tinha sido despedaçado por seus tiros.

— Taleniekov?

— Você! É você mesmo, Scofield?

— Apague essa luz! — bradou Bray. O russo lançou-se sobre a lanterna, apagando-a. — Há um homem na colina. Não se mexe. Está esperando ser chamado.

— Se vier, teremos de matá-lo. Se não, irá buscar auxílio. Virão mais outros com ele.

— Acho que seus amigos não terão tempo a perder com ele — retrucou Scotield, observando o raio de luz na escuridão. — Você os deixou muito ocupados... Lá vai ele! Está descendo a colina.

— Venha! — disse o russo, levantando e aproximando-se de Bray. — Conheço vários esconderijos. Tenho muito a lhe contar.

— Deve ter.

— Tenho. Está aqui!

— O quê?

— Não tenho certeza... a resposta, talvez. Pelo menos, parte dela. Você mesmo viu. Estão me caçando e me matarão se me avistarem. Intrometi-me...

— Fermate! — A ordem súbita foi um grito vindo da colina atrás de Scofield. Bray girou o corpo; o russo ergueu a arma. — Basta! — A segunda ordem foi acompanhada de um rosnar animal, um cão retesando a correia. — Tenho uma espingarda de dois canos nas mãos, signori — continuou a voz... a voz inconfundível de uma mulher, falando agora em inglês. — É uma Lupo, como a que foi disparada há pouco, e sei usá-la melhor que o homem que jaz a seus pés. Mas não quero usá-la. Deixem cair os braços ao longo do corpo, mas não soltem as armas, poderão precisar delas.

— Quem é você? — perguntou Scofield, apertando os olhos para ver a mulher acima dele na colina.

Pelo que podia entrever à luz da noite, usava calças e jaqueta. O cão rosnou de novo.

— Procuro o historiador.

— O quê!

— Sou eu — disse Taleniekov. — Da organizzazione accademica. E este aqui é meu associado.

— Que diabo você está...

— Basta — interrompeu o russo calmamente. — Por que está me procurando, e não me matou?

— A notícia se espalhou por toda parte. Faz perguntas sobre o padrone dos padrones.

— Faço. Guillaume de Matarese. Ninguém quer me responder.

— Alguém quer — replicou a moça. — Uma velha nas monta­nhas. Ela quer falar com o historiador. Tem muito a lhe dizer.

— Mas sabe o que aconteceu aqui — disse Taleniekov, pressionando-a. — Estão à minha caça, querem matar-me. Está disposta a arriscar a vida para me levar, nos levar, até ela?

— Sim. É uma viagem longa e árdua. Cinco ou seis horas su­bindo as montanhas.-

— Por favor, responda-me: por que está correndo esse risco?

— Ela é minha avó. Todos nas colinas a desprezam. Ela pode viver aqui. Mas eu a amo.

— Quem é ela?

— É chamada a prostituta da Vila Matarese.

 

Atravessaram ligeiros as colinas até o sopé das montanhas e escalaram as trilhas sinuosas que cortavam *as florestas. O cão fare­jara os dois homens quando a mulher se aproximara deles. Fora posto em liberdade e precedia-os nos caminhos cobertos de mato, seguro de conhecer o terreno.

Scofield achava que era o mesmo cão que encontrara de modo tão súbito e assustador. Conferiu com a mulher.

— Provavelmente, signore. Ficamos lá muitas horas. Estava à sua procura e deixei-o vagar, mas ele ficava sempre perto, caso precisasse dele.

— Teria me atacado?

— Só se levantasse a mão contra ele. Ou contra mim. Passava da meia-noite quando chegaram a um capinzal plano em

frente do que parecia ser uma série de montes imponentes cobertos de bosques. As nuvens baixas esvoaçantes esgarçaram-se e o luar lavou o campo, acentuando os picos à distância, enfatizando a gran­deza dessa parte da cordilheira. Bray notou que a camisa de Tale­niekov, embaixo da jaqueta aberta, estava encharcada de suor, assim como a sua. E a noite estava bem fresca.

— Agora podemos descansar um pouco — disse a mulher, apon­tando para uma área escura a alguns metros de distância, para onde o cão disparara. — Há uma caverna de pedra na colina. Não é muito funda, mas serve de abrigo.

— Seu cão a conhece — acrescentou o homem da KGB.

— Ele espera que eu faça uma fogueira. — A moça riu. — Quando está chovendo, apanha gravetos com a boca e os traz para mim lá dentro. Ele gosta de fogo.

A caverna era escavada em rocha escura, com uns três metros de profundidade e pelo menos um metro e oitenta de altura. Entraram.

— Quer que acenda um fogo? — perguntou Taleniekov.

— Se quiser. Uccello lhe ficará grato. Estou muito cansada.

— Uccello? — perguntou Scofield. — “Passarinho”?

— Porque voa sobre o chão, signore.

— Você fala inglês muito bem — observou Bray, enquanto o russo empilhava gravetos em um círculo de pedras evidentemente usado para esse fim. — Onde foi que aprendeu?

— Na escola do convento em Vescovato. Aqueles que queriam participar dos programas do Governo estudaram francês e inglês.

Taleniekov riscou um fósforo e chegou-o aos gravetos, que pega­ram fogo imediatamente, as chamas crepitando, aquecendo e ilu­minando a caverna.

— Você é muito bom nisso — disse Scofield ao homem da KGB.

— Obrigado. Um de meus talentos menos importantes.

— Não foi tão pouco importante umas horas atrás.

Bray virou-se para a mulher, que tirara o boné e sacudia a longa cabeleira escura. Parou de respirar por um segundo, olhando-a fixa­mente. Seria o cabelo? Ou os grandes olhos castanhos límpidos que eram da cor dos olhos de uma corça, ou as maçãs salientes ou o nariz cinzelado sobre os lábios generosos que pareciam prestes a sorrir? Seria qualquer uma dessas coisas, ou seria simplesmente porque estava cansado e grato por conhecer uma mulher atraente e competente? Não sabia a resposta. Sabia apenas que essa moça corsa das montanhas o fazia recordar-se de Karine, sua esposa, cuja ordem de morte fora dada pelo homem que estava a menos de um metro de distância nessa caverna corsa. Cortou esses pensa­mentos e respirou de novo. — E você — perguntou — participou desses programas do Governo?

— Até onde me permitiram.

— Onde foi isso?

— A scuola media em Bonifácio. O resto consegui com o auxílio de outros. Com dinheiro dos fondos.

— Não entendi.

— Sou formada pela Universidade de Bolonha, signore. Sou comunista. Digo isso com orgulho.

— Bravo — aplaudiu Taleniekov mansamente.

— Um dia consertaremos tudo na Itália inteira — continuou a moça, com os olhos brilhando. — Acabaremos com o caos, com a estupidez cristã.

— Estou certo disso — concordou o russo.

— Mas nunca como fantoches de Moscou, isso não seremos nunca. Somos independentes. Não damos ouvidos aos ursos per­versos que nos devorariam e criariam um mundo fascista. Isso nunca!

— Bravo — disse Bray.

A conversa morreu, a moça mostrou-se relutante em responder outras perguntas sobre si mesma. Disse-lhes que seu nome era Antonia, mas, além disso, quase nada. Quando Taleniekov lhe per­guntou por que ela, ativista política de Bolonha, voltara a essa região isolada da Córsega, respondeu somente que queria ficar com a avó por uns tempos.

— Fale-nos sobre ela — disse Scofield.

— Ela lhes dirá o que quiser que saibam — respondeu a moça, levantando-se. — Disse-lhes o que ela me mandou dizer.

— A prostituta da Vila Matarese — repetiu Bray.

— Sim. Eu não escolheria essas palavras. Nem as usaria, nunca. Vamos, temos de caminhar mais duas horas.

Alcançaram a coroa plana de uma montanha e olharam a encosta descendo suavemente até o vale abaixo. Da crista da montanha ao chão do vale, não eram mais que uns cento e cinqüenta metros, talvez um quilômetro e meio de área na bacia. Aos poucos a lua ficara bem brilhante. Podiam distinguir a casa da fazenda no centro do pasto e os estábulos no fim de uma estrada curta. Ouviram o som de água corrente: um riacho saía da montanha perto de onde estavam, cascateando encosta abaixo entre fileiras de pedras e pas­sando a quinze metros da pequena casa.

— Muito bonito — disse Taleniekov.

— Isso para ela é todo o mundo, há mais de meio século — replicou Antonia.

— Você foi criada aqui? — perguntou Scofield. — Essa era sua casa?

— Não — respondeu a moça, sem mais explicações. — Venham, vamos falar com ela. Está à nossa espera.

— A esta hora da noite? — Taleniekov ficou espantado.

— Para minha avó, não há dia nem noite. Disse-me que os levasse a ela assim que chegássemos. E chegamos.

Para a mulher idosa numa cadeira em frente ao fogão de lenha, não havia dia ou noite no sentido de luz ou escuridão. Era cega. Dois globos vazios de cor azul-clara contemplavam os sons e ima­gens das recordações. As feições eram agudas e angulares sob a camada de pele encarquilhada, mas era um rosto que havia sido, há tempos, de extraordinária beleza.

A voz era macia, um sussurro oco que obrigava o ouvinte a acompanhar os movimentos dos lábios finos e brancos. Era uma figura meio apagada, mas não demonstrava hesitação ou indecisão. Falou rapidamente, uma mente simples, segura do que sabia. Tinha muito a dizer e a morte rondava sua casa, uma realidade que a fazia apressar as idéias e percepções. Falou em italiano, mas era um idioma de outra era.

Começou pedindo a Taleniekov e Scofield que dissessem, em suas próprias palavras, porque estavam tão interessados em Guillaume de Matarese. Vasili respondeu primeiro, repetindo a história acerca de uma fundação acadêmica em Milão e de seu departa­mento estar encarregado da História da Córsega. Falou pouco, dei­xando a Scofield a possibilidade de elaborar como quisesse. Era esse o processo normal quando dois ou mais agentes secretos eram detidos e interrogados simultaneamente. Nenhum dos dois tinha que se preparar para essa situação. A mentira fácil já lhes era natural.

Bray escutou o russo e confirmou a informação básica, acres­centando detalhes sobre datas e finanças que julgou apropriados a Guillaume de Matarese. Quando terminou, estava satisfeito com sua resposta e achou-se superior ao homem da KGB. Tinha estu­dado o assunto melhor que Taleniekov. Contudo, a velha acenou a cabeça em silêncio, afastando um cacho de cabelo branco que caíra ao lado do rosto esquálido. Finalmente resolveu falar.

— Ambos estão mentindo. O segundo cavalheiro é menos con­vincente. Procura impressionar-me com fatos que qualquer criança das colinas de Porto Vecchio poderia saber.

— Talvez em Porto Vecchio — protestou Scofield mansamen­te —, mas não necessariamente em Milão.

— Sim. Entendo o que quer dizer. Mas nenhum dos dois é de Milão.

— Bem verdade — interrompeu Vasili. — Apenas trabalhamos em Milão. Nasci na Polônia... no Norte da Polônia. Estou certo de que percebeu as imperfeições do meu italiano.

— Não percebi nada. Só as mentiras. Mas não se preocupem, não faz a menor diferença.

Taleniekov e Scofield entreolharam-se e desviaram os olhos para Antonia, que, exausta, se enrascara numa almofada em frente à janela.

— O que não faz diferença? — perguntou Bray. — Estamos preocupados. Queremos que fale com franqueza.

— Falarei — disse a cega. — Suas mentiras não são de homens interesseiros. Perigosos, talvez, mas não movidos, por dinheiro. Não procuram o padrone em benefício próprio.

Scofield não se conteve, inclinou-se para a frente.

— Como sabe isso?

Os velhos olhos azuis-claros, vazios, mas poderosos, fixaram-se nos dele. Era difícil acreditar que era cega.

— Suas vozes — respondeu. — Estão com medo.

— E temos razão de ter medo? — perguntou Taleniekov.

— Isso dependeria do que acreditam, não é?

— Acreditamos que alguma coisa terrível tenha acontecido — disse Bray. — Mas sabemos muito pouco. É o mais sincero que posso ser.

— O que sabem de lato, signorp.

Scofield e Taleniekov entreolharam-se novamente e o russo ace­nou com a cabeça. Bray reparou que Antonia os observava atenta­mente. Dirigiu-se tanto a ela quanto à velha.

— Antes de respondermos, acho que seria melhor se sua neta nos deixasse a sós.

— Não! — A moça falou com tanta violência que Uccello le­vantou bruscamente a cabeça.

— Ouça-me — continuou Scofield. — Uma coisa é trazèr-nos aqui, dois estranhos que sua avó queria conhecer. Mas é muito diferente envolver-se conosco. Meu... associado... e eu temos experiência disso. É para seu próprio bem.

— Deixe-nos, Antonia. — A cega virou-se na cadeira. — Não tenho nada a temer desses homens e você deve estar cansada. Leve Uccello consigo e vá descansar no celeiro.

— Está bem — respondeu a moça, pondo-se de pé —, mas Uccello fica aqui. — Rápida, tirou a Lupo de debaixo da almofada e apontou-a. — Ambos têm armas. Atirem-nas no chão. Acho que não sairão daqui sem elas.

— Isso é absurdo! — bradou Bray e o cão levantou-se, rosnando.

— Faça o que ela mandou — disse Taleniekov bruscamente, jogando a Graz-Burya no chão.

Scofield tirou a Browning, verificou o pino de segurança e atirou-a no tapete em frente de Antonia, que se abaixou e apanhou as duas automáticas segurando firme a Lupo.

— Quando terminarem, abram a porta e me chamem. Por mi­nha vez, chamarei Uccello, e se ele não vier não verão mais suas armas.

Esgueirou-se pela porta. O cão rosnou e deitou no chão.

— Minha neta é voluntariosa — disse a velha, acomodando-se na cadeira. — O sangue de Guillaume, embora muito longe.

— Ela é neta dele! — perguntou Taleniekov.

— Bisneta, nascida de minha filha quando já bem madura. E essa minha primeira filha foi o resultado de o padrone ter se deitado com sua jovem prostituta.

— A prostituta da Vila Matarese — disse Bray. — A senhora disse à moça para nos dizer que se chamava assim.

A velha sorriu, ajeitando o cacho de cabelo branco. Por um segundo, habitava aquele outro mundo, e a vaidade ainda não a abandonara.

— Há muitos anos. Voltaremos àqueles tempos, mas, antes disso, respondam, por favor: que sabem, na verdade? Que os traz aqui?

— Meu associado falará primeiro — disse Taleniekov. — Co­nhece o assunto melhor que eu, embora eu lhe tenha trazido infor­mações novas que considero surpreendentes.

— Seu nome, por favor — interrompeu a velha. — Seu nome verdadeiro e de onde vem.

O russo olhou para o americano e, no olhar que trocaram, con­cordaram em que não havia motivo para continuar a mentir. Pelo contrário, não iriam alcançar seu objetivo com mentiras. Essa mu­lher idosa, simples, mas estranhamente eloqüente, ouvira as vozes de mentirosos por quase um século, na escuridão. Não podia ser enganada.

— Meu nome é Vasili Vasilivich Taleniekov. Ex-estrategista em assuntos exteriores, KGB, Serviço Secreto Soviético.

— E o senhor? — A mulher virou os olhos cegos para Scofield.

— Brandon Scofield. Agente secreto americano, setor Euro-Mediterrâneo, Operações Consulares, Departamento de Estado dos Estados Unidos.

— Entendo. — A velha cortesã encostou no rosto as mãos ma­gras de dedos delicados, um gesto de calma contemplação. — Não tenho muitos conhecimentos e vivo uma vida isolada, mas tenho notícias do mundo lá fora. Ouço o rádio horas a fio. Recebo os programas de Roma com muita clareja, de Gênova também, e muitas vezes Nice. Não pretendo saber muito, pois não sei, mas o fato de virem juntos, à Córsega me parece estranho.

— E é, madame — disse Taleniekov.

— Muito — concordou Scofield.

— Prova a gravidade da situação.

— Então, deixe seu associado começar, signore.

Bray inclinou-se na cadeira, colocou os braços nos joelhos e fixou os olhos nos olhos cegos à sua frente.

— Numa data imprecisa, entre os anos de 1909 e 1913, Guillau­me de Matarese convocou um grupo de homens para uma reunião em sua propriedade em Porto Vecchio. Nunca se soube quem eram ou de onde vinham. Mas chamavam-se...

— A data foi 4 de abril de 1911 — interrompeu a velha. — Não tinham nome, foi o padrone que o deu. Declarou que se chamariam o Conselho Matarese... Continue, por favor.

— A senhora estava W.

— Por favor, continue.

Foi um momento difícil. Falavam de um acontecimento que tinha sido objeto de especulações por dezenas de anos, sem informações sobre datas ou identidades, sem testemunhas. Agora, em poucos segundos, ficaram sabendo o ano certo, o mês exato, o dia preciso.

— Signorel...

— Perdão. Nos trinta anos seguintes, esse Matarese e seu con­selho foram objeto de grande controvérsia... — Scofield contou a história rapidamente, no italiano mais simples possível, para que não houvesse mal-entendidos. Afirmou que a maioria dos peritos que estudaram a lenda sobre o Matarese havia chegado à conclusão de que era mais mito que realidade.

— Em que acredita, signore! Foi o que lhe perguntei desde o início.

— Não tenho certeza, mas sei que um grande homem desapa­receu há quatro dias. Acho que o mataram porque falou a outros homens poderosos sobre o Matarese.

— Entendo. — A velha abanou a cabeça. — Quatro dias atrás. Mas acho que ouvi o senhor dizer trinta anos... aquela reunião em 1911. Que aconteceu então, signore! Há muitos anos inexplicados.

— De acordo com o que sabemos, ou pensamos que sabemos, depois da morte de Matarese o Conselho continuou a operar na Córsega por vários anos e afastou-se, então, negociando contratos em Berlim, Londres, Paris, Nova York e Deus sabe onde. No início da II Guerra Mundial, suas atividades se tornaram escassas, e final­mente sumiu, após a guerra. Nunca mais se ouviu falar nele.

O vestígio de um sorriso pairou nos lábios da velha.

— Então voltou do nada, é isso que está dizendo?

— Sim. Meu associado pode explicar-lhe por que pensamos assim. — Bray olhou para Taleniekov.

— Nas últimas semanas — disse o russo —, dois homens de paz de nossos dois países foram brutalmente assassinados, e o Governo de um foi levado a acreditar que o outro era responsável. Um contato imediato de nossos dirigentes evitou uma confrontação, mas foram momentos perigosos. Um grande amigo mandou cha­mar-me. Estava à morte e havia coisas que queria que eu soubesse. Restava-lhe muito pouco tempo e sua mente divagava, mas o que me disse forçou-me a procurar outros que pudessem auxiliar-me, orientar-me.

— Que lhe disse?

— Que o Conselho Matarese estava bem vivo. Que, na realidade, nunca se extinguira, apenas se escondera e continuara a crescer silenciosamente, espalhando sua influência. Que era responsável por centenas de atos de terrorismo e dezenas de assassinatos nos últimos anos, pelos quais outros foram acusados e condenados. Os dois homens de que falei estão entre esses. Mas o Matarese não estava mais matando por dinheiro, tinha outro objetivo.

— Qual? — perguntou a velha, naquela voz estranha e oca.

— Ele não sabia. Só sabia que o Matarese era como uma epi­demia que tem de ser sustada, mas não podia dizer-me como, nem a quem poderia dirigir-me. Todos que já tiveram negócios com o Conselho silenciam a seu respeito.

— Não lhe ofereceu nada, entno?

— A última coisa que me disse antes de deixá-lo foi que a resposta poderia estar na Córsega. Na ocasião, não me convenceu, até que acontecimentos posteriores não me deixaram outra alter­nativa. Nem para mim, nem para meu associado, o agente Scofield.

— Compreendo a razão de seu associado: há quatro dias, um grande homem desapareceu porque falou do Matarese. E qual é a sua, signorel

— Também falei do Matarese àqueles a quem pedi orientação, e eu era altamente credenciado em meu país. Foi dada a ordem para minha execução.

A velha silenciou novamente e, mais uma vez, aquele ligeiro sorriso lhe pairou nos lábios enrugados.

— O padrone retorna — murmurou.

— Acho que nos deve uma explicação — disse Taleniekov. — Fomos francos com a senhora.

— Seu amigo morreu? — perguntou ela.

— No dia seguinte. Foi enterrado com honras militares e tinha direito a isso. Viveu uma vida de violência sem temor. No entanto, no final o Matarese o aterrorizou.

— O padrone o amedrontou — disse a velha.

— Meu amigo não conhecia Guillaume de Matarese.

— Conhecia seus discípulos e isso bastava. Eles eram ele. Ele era seu Cristo, e, como Cristo, morreu por eles.

— O padrone era o deus deles? — perguntou Bray.

— E seu profeta, signore. Acreditavam nele.

— Em que sentido?

— Acreditavam que algum dia seriam donos do mundo. Foi a vingança do padrone.

 

A velha fixou os olhos vazios na parede e falou em seu murmúrio habitual:

Ele descobriu-me no convento em Bonifácio e negociou-me com a Madre Superiora por um preço favorável. Dai a César o que é de César, disse, e ela obedeceu, pois concordou em que eu não era dada a Deus. Era frivola, não gostava das lições e ficava me olhando nas janelas escuras, que mostravam o reflexo de meu rosto e corpo. Deveria ser dada a um homem, e o “padrone” era o máximo dos homens.

Tinha dezessete anos de idade quando um mundo que nunca poderia imaginar me foi revelado. Era levada em carruagens com rodas de prata e cavalos dourados de crinas esvoaçantes acima dos penhascos íngremes, nas aldeias e nas grandes lojas onde podia comprar o que quisesse. Podia ter o que quisesse, e queria tudo, pois viera de uma família pobre de pastores, um pai temente a Deus e uma mãe que agradeceu a Cristo quando fui levada para o convento e ela nunca mais me viu.

E a meu lado estava sempre o “padrone”. Era o leão, e eu sua cria amada. Levava-me com ele pelo campo, em todas as grandes mansões, apresentando-me como sua “protetta”, rindo quando dizia a palavra. Todos entendiam e riam também. Sua esposa falecera, sabem, e ele passava dos setenta. Queria que todos soubessem, seus dois filhos especialmente, que ainda tinha a constituição e o vigor da mocidade, que podia deitar-se com uma jovem e satisfazê-la como poucos homens.

Contratou tutores para ensinar-me as prendas de sua corte: mú­ica, fala correta, até história e matemática, assim como francês, que era a língua das senhoras de alta linhagem. Era uma vida maravilhosa. Cruzávamos freqüentemente o mar, íamos a Roma e de lá tomávamos o trem para a Suíça e atravessávamos a França até Paris. O “padrone” fazia essas viagens cada cinco ou seis meses. Seus negócios eram lá, compreendem? Seus dois filhos eram os diretores e comunicavam-lhe tudo que faziam.

Durante três anos, fui a moça mais feliz do mundo, pois o “padrone” dava-me o mundo. E então esse mundo se despedaçou. Em uma semana, o mundo desmoronou e Guillaume de Matarese ficou louco.

Viajaram homens de Zurique e Paris, e até da grande bolsa de Londres, para falar com ele. Era uma época de grandes investimentos bancários e especulações. Disseram-lhe que nos quatro meses anteriores seus filhos tinham feito coisas terríveis, tomado decisões tolas e, mais horrível ainda, tinham feito acordos desonestos, empenhando vastas somas com homens sem honra que operavam fora das leis bancárias e das cortes. Os Governos da França e da Inglaterra haviam apreendido as companhias e sustado todo comércio, todo acesso aos fundos. Com exceção das contas que tinha em Gênova e Roma, Guillaume de Matarese perdera tudo.

Telegrafou aos dois filhos, ordenando que voltassem à casa em Porto Vecchio para prestar contas do que haviam feito. A notícia que recebeu de volta foi como um raio que o atingisse em um grande temporal. Nunca mais foi o mesmo.

As autoridades em Paris e em Londres informaram que ambos estavam mortos, um pela própria mão, outro, assim diziam, assassinado por um homem que ele havia arruinado. Nada restava para o “padrone”; seu mundo desabara ao seu redor. Trancava-se na biblioteca dias a fio, sem sair, comendo em bandeja atrás da porta fechada, não falando com ninguém. Não dormia comigo, pois não se interessava por coisas carnais. Estava se destruindo, morrendo pela própria mão, como se tivesse enfiado uma faca na barriga.

Um dia chegou um homem vindo de Paris e insistiu em invadir a privacidade do “padrone”. Era um jornalista que estudara a queda das companhias Matarese e contou uma história incrível. Antes de ouvi-la, o “padrone” já se encaminhava para a loucura; depois, não havia mais salvação.

A destruição de seu mundo fora causada deliberadamente por banqueiros trabalhando em conjunto com seus governos. Seus filhos haviam sido ludibriados, assinando documentos ilegais, e sujeitos a chantagem, encarando a ruína, por assuntos carnais. Foram, finalmente, assassinados e a versão falsa de sua morte foi aceita, pois as provas “oficiais” de seus terríveis crimes eram esmagadoras.

Era insano. Por que haviam feito isso ao grande “padrone”? Roubaram suas companhias e as destruíram. Mataram seus filhos. Quem teria feito isso?

O homem de Paris explicou em parte. Ouvira a frase: “Basta um corso louco na Europa por quinhentos anos.” O “padrone” entendeu. Na Inglaterra, Eduardo morrera, mas efetuara os tratados de finanças franco-ingleses e abrira o caminho para as grandes companhias unirem-se e fazerem fortuna na Índia, África e em Suez. Mas o “padrone” era corso. Não gostava dos franceses, muito menos dos ingleses, embora lhes desse grandes lucros. Não só recusou juntar-se às companhias e aos bancos, mas opôs-se a eles a cada passo e instruiu os filhos no sentido de que superassem os concorrentes em estratégia. A fortuna dos Matarese impediu homens poderosos de levar a cabo seus intentos.

Para o “padrone”, era tudo uma grande brincadeira. Para as companhias francesas e inglesas, era um grande crime a ser retribuído com crimes maiores. As companhias e os bancos controlavam os governos. Os tribunais e a polícia, políticos e homens de Estado, mesmo os reis e presidentes, eram todos lacaios e serventes dos homens que possuíam imensas quantias em dinheiro. Isso nunca mudaria. E esse foi o princípio de sua loucura final. Descobriria um meio de destruir os corruptores e os corruptos. Lançaria todos os governos ao caos, pois eram os líderes políticos que traíam a confiança. Não fossem os funcionários de governo, seus filhos estariam vivos, seu mundo intacto. Se os governos entrassem em caos, as companhias e os bancos perderiam seus protetores.

— Procuram um corso louco — gritou ele. — Não o encontrarão, mas ele estará lá.

Viajamos para Roma pela última vez. Não como antes, com roupas luxuosas e carruagens de rodas de prata. Fomos como um homem e uma mulher humildes, ficando em acomodações baratas na Via Due Maccelli. O “padrone” passou dias rondando a bolsa de valores, lendo as histórias das grandes famílias que haviam sido arruinadas.

Voltamos para a Córsega. Ele escreveu cinco cartas a cinco homens que sabia estarem vivos em cinco países, convidando-os a viajar secretamente a Porto Vecchio para tratarem de um assunto da maior urgência, relacionado à sua história pessoal.

Ele tinha sido o grande Guillaume de Matarese. Ninguém recusou.

Os preparativos foram magníficos, a Vila Matarese ficou mais linda que nunca. Os jardins foram esculpidos e explodiam em cores, os gramados eram mais verdes que os olhos de um gato pardo, a mansão e os estábulos foram caiados, os cavalos tratados até o pêlo brilhar. Era um país de fadas como antigamente. O “padrone” estava em toda parte ao mesmo tempo, verificando tudo, exigindo perfeição. Tinha recobrado sua grande vitalidade, mas não era a vitalidade que conhecíamos. Agora havia nele um tanto de crueldade. — Faça-os lembrar, minha filha — gritou para mim no quarto. — Faça-os lembrar do que já foi deles!

Tinha voltado para a minha cama, mas não era mais o mesmo. Só havia força bruta na demonstração de sua virilidade, não mais alegria.

Se todos nós, na casa, nos estábulos e nos campos, soubéssemos então o que logo saberíamos, tê-lo-íamos matado na floresta. Eu mesma, a quem ele tinha dado tudo, que o adorava como pai e amante, seria a primeira a enfiar-lhe a faca.

Chegou o grande dia. Os veleiros, vindos de Lido di Ostia, assomaram de madrugada, e as carruagens foram buscar os ilustres convidados em Porto Vecchio para trazê-los à Vila Matarese. Foi um dia glorioso, com música nos jardins, mesas imensas empilhadas de iguarias e muito vinho. Os vinhos mais finos de toda a Europa, armazenados há dezenas de anos nas adegas do “padrone”.

Os convidados de honra foram alojados em apartamentos, com um balcão e uma vista magnífica e, mais ainda, uma jovem prostituta para proporcionar-lhes uma tarde de prazer. Eram o que havia de melhor, não da Europa, como os vinhos, mas do Sul da Córsega. As cinco virgens mais belas das montanhas.

Caiu a noite e foi servido no salão nobre o banquete mais grandioso jamais visto na Vila Matarese. Quando terminou, os criados colocaram garrafas de conhaque em frente aos convidados e retiraram-se para a cozinha. Os músicos receberam ordem de levar os instrumentos e continuar tocando nos jardins. Nós, as moças, fomos mandadas para o andar de cima, onde aguardaríamos nossos senhores.

Sentíamos o calor do vinho, elas e eu, mas havia uma diferença entre nós. Eu era a “protetta” de Guillaume de Matarese e sabia que esse era um grande acontecimento. Ele era meu “padrone”, meu amante, e eu queria participar de tudo. Além disso, eu passara três anos com tutores e, embora não fosse sábia, não podia satisfazer-me com a conversa tola das moças ignorantes das montanhas.

Afastei-me delas e escondi-me atrás da grade do balcão acima do salão nobre. Passei horas, ao que me pareceu, observando e escutando. Pouco entendi do que dizia meu “padrone”, mas percebi que estava sendo muito persuasivo, às vezes falando tão baixo que mal ouvia, outras gritando como um possesso.

Falou de gerações passadas, quando homens dominavam impérios que lhes eram dados por Deus e pelo próprio empenho. Como governavam com punho de aço protegendo-se daqueles que queriam roubar-lhes o reino e os frutos de seus esforços. Mas os tempos mudaram e as grandes famílias, os grandes criadores de impérios, como os que se encontravam nessa sala, estavam agora sendo reduzidos à miséria por ladrões e governos corruptos que protegiam esses ladrões. Eles, os que estavam na sala, tinham de procurar outros métodos para reaver o que, por direito, lhes pertencia.

Tinham de matar... com cautela, com critério, com perícia e audácia... e apartar os ladrões de seus protetores corruptos. Não matariam pessoalmente, pois a eles cabia tomar as decisões. Escolheriam as vítimas, sempre que possível vítimas já escolhidas por outros entre os corruptos. Os que se encontravam nessa sala seriam chamados o Conselho Matarese, e deveria espalhar-se nos círculos do poder a notícia de que havia um grupo de homens silenciosos, desconhecidos, que compreendia a necessidade de mudanças rápidas e de violência, e não temia fornecer os meios de causá-las e, mais ainda, garantiria sem sombra de dúvida que jamais seria descoberta qualquer ligação entre aqueles que executassem os atos e os que para isso os contratassem.

Passou a falar de coisas que não compreendi: de assassinos treinados por grandes faraós e príncipes árabes há séculos passados. Como se podia treinar homens para fazer coisas terríveis contra sua vontade e mesmo sem seu conhecimento. Como havia outros que precisavam apenas de ser encorajados, pois possuíam o fascínio pelo martírio que tem o assassino. Seriam esses os métodos do Matarese, mas de início haveria descrença nos círculos do poder, e era preciso convencê-los com exemplos.

Nos próximos anos, deveriam assassinar alguns homens cuidadosamente escolhidos. Morreriam de maneira a gerar desconfianças, jogando um partido político contra outro, um governo corrupto contra outro. Haveria caos e sangue derramado, e a mensagem seria clara: o Matarese existia.

O “padrone” distribuiu algumas páginas, onde descrevera suas idéias, para cada convidado. Essas palavras seriam fonte de força e serviriam de orientação ao Conselho, mas nunca deveriam ser vistas por outros olhos. Essas páginas eram o testamento de Guillaume de Matarese... e os que se encontravam naquela sala eram seus herdeiros.

“Herdeiros?” — perguntaram os convidados. Tiveram compaixão, mas foram diretos. Sabiam que ele estava arruinado, como eles, apesar da beleza da Vila, dos criados, dos músicos e do banquete. A qual deles restara mais que suas adegas e suas terras e a renda dos arrendatários, que lhes permitia viver uma pálida sombra da vida anterior? Um grande banquete uma vez por outra, e nada mais.

A princípio o “padrone” não lhes respondeu. Em vez disso, perguntou a cada um se aceitava o que tinha dito, se estava preparado para ser um “consigliere” Matarese.

Responderam que sim, cada um mais veemente que o outro, empenhando-se em seguir os objetivos do “padrone”, pois grande mal lhes havia sido feito e queriam vingança. Era evidente que, naquele momento, Guillaume de Matarese era um santo para eles.

Todos, menos um, um espanhol profundamente religioso que falou em Deus e Seus sagrados mandamentos. Acusou o “padrone” de loucura, chamou-o uma abominação aos olhos de Deus.

— E aos seus olhos sou também uma abominação, senhor? — perguntou o “padrone”.

— Ê sim, senhor — o homem replicou.

Foi aí que aconteceu a primeira das coisas terríveis. O “padrone” tirou a pistola do cinto, apontou-a para o homem e atirou. Os convidados saltaram das cadeiras e contemplaram em silêncio o espanhol morto.

— Não poderia permitir que saísse daqui vivo — disse o “padrone”.

Os convidados voltaram às cadeiras como se nada tivesse acontecido, os olhos fixos nesse homem tão poderoso, que matava deliberadamente, talvez receosos por suas próprias vidas. O “padrone” continuou.

— Todos os que estão nesta sala são meus herdeiros, pois são o Conselho Matarese e farão, ou os seus farão, o que não posso mais fazer. Estou muito velho e a morte se aproxima, está mais perto do que pensam. Cumprirão minhas ordens, separarão os corruptores dos corruptos, espalharão o caos e, pela força de seu sucesso, herdarão muito mais do que aquilo que lhes lego. Herdarão a terra. Reaverão o que é seu.

— Que nos lega? — perguntou um convidado.

— Uma fortuna em Gênova e uma fortuna em Roma. As contas foram transferidas, conforme o documento cuja cópia foi colocada em seus quartos. Aí estão também estipuladas as condições para receberem esse dinheiro. Ninguém sabe que essas contas existiam; são milhões para começarem seu trabalho.

Os convidados ficaram atônitos, até que um fez uma pergunta.

— “Seu” trabalho? Não deveria dizer “nosso” trabalho?

— Sempre será nosso, mas não estarei aqui. Deixo-lhes algo mais precioso que todo o ouro do Transvaal: o segredo completo de sua identidade. Digo isso a cada um, especificamente. Sua presença aqui hoje nunca será revelada a nenhum ser humano. Nenhum nome, nenhuma descrição da aparência física ou da maneira de falar jamais será divulgada. Nem forçada das divagações senis da mente de um velho.

Vários convidados protestaram, fracamente, é verdade, mas com razão. Havia muita gente na Vila Matarese aquele dia. Os criados, cavalariços, músicos, as moças...

O “padrone” ergueu a mão. Estava tão firme quanto seus olhos brilhantes. — Vou mostrar-lhes como. Nunca devem esquivar-se da violência. Devem aceitá-la tão naturalmente quanto o ar que respiram, pois é necessária à vida. Necessária às suas vidas, à missão que terão de cumprir.

Deixou cair a mão e o elegante e pacífico mundo da Vila Matarese explodiu em tiros e gritos mortais. Primeiro foi a cozinha. Estouros ensurdecedores de espingardas, vidro estilhaçando-se, metal sendo esmagado e os criados abatidos ao tentarem escapar pelas portas do salão nobre, com o rosto e o peito cobertos de sangue. Depois foi o jardim. A música parou abruptamente e ouviram-se súplicas a Deus, respondidas pelo estrondo das armas. Em seguida, mais horrível ainda, os gritos agudos de terror vindos do andar de cima, onde massacravam as moças ignorantes das montanhas. Crianças, que até poucas horas eram virgens, profanadas por homens que nunca antes haviam visto, por ordem de Guillaume de Matarese, agora trucidadas por novas ordens.

Encolhi-me contra a parede na penumbra do balcão sem saber o que fazer, trêmula e apavorada. Aí o fogo cessou e o silêncio que se seguiu foi mais horrendo que os gritos, por vir carregado de morte.

De repente, ouvi passos de gente correndo, três ou quatro homens, não sabia ao certo, mas sabia que eram assassinos. Desciam as escadarias e percorriam as salas e pensei: “Deus que estais no céu, estão à minha procura.” Mas não. Corriam para se encontrarem em algum lugar, a varanda do Norte, pareceu-me, não podia ter certeza, tudo acontecia ao mesmo tempo. No salão nobre abaixo, os quatro convidados estavam em estado de choque, imóveis nas cadeiras, detidos pelo olhar flamejante do “padrone”.

Soaram o que pensei fossem os últimos tiros, até minha própria morte, três tiros, três somente, entremeados de gritos horríveis. Compreendi então. Os assassinos haviam sido mortos, por sua vez.

Voltou o silêncio. A morte reinava em toda parte, nas sombras e dançando nas paredes a luz bruxuleante das velas no salão nobre. O “padrone” falou aos convidados:

— Está tudo acabado — disse — ou quase. Estão todos mortos, exceto nós aqui e um homem que jamais verão novamente. Ele os levará numa carruagem velada a Bonifácio, onde deverão misturar-se aos foliões noturnos e de manhã tomar o vapor para Nápoles. Têm quinze minutos para arrumar as coisas e encontrar-se nos degraus da frente. Sinto muito, mas não há ninguém para carregar a bagagem.

Um convidado achou a voz e falou: — E o senhor, “padrone”?

— No fim, dou-lhes minha vida como a lição final. Lembrem-se de mim! Eu sou o caminho. Vão e tornem-se meus discípulos! Extirpem os corruptores e os corruptos! — Estava completamente louco, seus gritos ecoavam pela mansão da morte. — “Entrare!” — berrou.

Uma criança, um pequeno pastor das colinas, atravessou os portais da varanda do Norte. Segurava uma pistola com as duas mãos. Era pesada, e ele era franzino. Aproximou-se do senhor.

O “padrone” levantou os olhos ao céu, a voz a Deus. — Faça o que lhe mandei! — gritou. — Pois uma criança inocente iluminará seu caminho!

O pastor ergueu a pesada pistola e atirou na cabeça de Guillaume de Matarese.

A velha terminou, com os olhos sempre abertos cheios d’água.

— Preciso descansar — disse.

Taleniekov, ereto na cadeira, falou de mansinho.

— Temos perguntas a fazer, madame. Certamente sabe disso.

— Mais tarde — disse Scofield.

 

A luz irrompeu sobre as montanhas, c pufes de neblina acamados nos campos subiram ao ar ao redor da casa de fazenda. Taleniekov encontrou o chá e, com permissão da velha, ferveu água no fogão de lenha.

Scofield sorveu seu chá, olhando o regato pela janela. Estava na hora de falar novamente. Havia muitas discrepâncias entre a história da cega e os fatos como os presumiam. E havia uma pergunta básica: por que razão ela lhes contara isso? A resposta a essa pergunta esclareceria se podiam acreditar em qualquer parte de sua narrativa.

Bray deu as costas à janela e olhou para a velha na cadeira em frente ao fogão. Taleniekov dera-lhe chá e ela o bebia delicadamente, como se lembrasse das lições de boas maneiras dadas a uma menina de dezessete anos, há tanto tempo. O russo estava ajoelhado junto ao cão, acariciando-lhe o pêlo, lembrando-lhe que eram amigos. Ergueu os olhos quando Scofield se aproximou da velha.

— Demos nossos nomes, signora — disse Bray em italiano. — Qual é o seu?

— Sophia Pastorine. Se alguém procurasse, tenho certeza de que encontraria nos registros do convento em Bonifácio. É por isso que pergunta, não é? Para poder verificar?

— Sim — respondeu Scofield. — Se acharmos necessário e tivermos a oportunidade.

— Encontrarão meu nome. Talvez até o padrone esteja registrado como meu benfeitor e tenham me colocado sob sua custódia, como futura esposa de um de seus filhos, talvez. Nunca soube.

— Então temos de acreditar na senhora — disse Taleniekov, ficando de pé. — Não seria tão tola a ponto de mandar-nos lá se não fosse verdade. É muito fácil hoje em dia determinar se houve falsificação de registros.

A velha sorriu, um sorriso que tinha raízes na tristeza.

— Não entendo desses assuntos, mas compreendo suas dúvidas. — Colocou a xícara de chá na beira do fogão. — Não há dúvida alguma em minhas recordações. Disse a verdade.

— Então, minha primeira pergunta é a mais importante de todas — disse Bray, sentando-se. — Por que nos contou essa história?

— Porque tinha de ser contada e ninguém mais poderia fazê-lo. Só eu sobrevivi.

— Havia um homem — interrompeu Scofield. — E um pequeno pastor.

— Eles não estavam no salão nobre para ouvir o que ouvi.

— Já contou essa história antes? — perguntou Taleniekov.

— Nunca — respondeu a cega.

— Por que não?

— A quem contaria? Recebo poucas visitas, e as que aqui vêm são das colinas e trazem-me os poucos mantimentos de que necessito. Contar-lhes seria levá-los à morte, pois certamente contariam a outros.

— Então a história é conhecida — insistiu o homem da KGB.

— Não o que lhes contei.

— Mas há um segredo lá nas colinas! Tentaram mandar-me, embora e, quando recusei, procuraram matar-me.

— Minha neta não me contou isso. Parecia realmente surpresa.

— Acho que não teve tempo — disse Bray.

A velha pareceu não escutar; continuou prestando atenção na russo.

— Que foi que disse ao povo das colinas?

— Fiz perguntas.

— Deve ter feito mais que isso.

Taleniekov franziu a testa, procurando lembrar-se.

— Procurei provocar o hoteleiro. Disse-lhe que traria outros, com registros e documentos para estudar mais profundamente a questão de Guillaume de Matarese.

A mulher acenou com a cabeça.

— Quando partirem, não tomem o mesmo caminho. Nem levem minha neta com vocês. Prometam-me isso. Se os encontrarem, não os deixarão com vida.

— Sabemos disso — disse Bray. — Queremos saber por quê.

— Todas as terras de Guillaume de Matarese foram legadas ao povo das colinas. Os arrendatários tornaram-se herdeiros de milhares de campos e pastos, regatos e florestas. Assim foi registrado nas cortes de Bonifácio e houve grandes comemorações em toda parte. Mas havia um preço, e outras cortes que anulariam essa posse se soubessem do preço.

A cega Sophia parou, como se avaliasse outro preço, talvez o da traição.

— Por favor, Signora Pastorine — implorou Taleniekov, sentando na beira da cadeira.

— Sim — respondeu calmamente. — Devo contar-lhes...

 

Tudo tinha de ser muito rápido por medo de intrusos que poderiam aparecer na grande mansão da Vila Matarese onde a morte reinava. Os convidados juntaram os papéis e voaram para seus quartos. Permaneci nas sombras do balcão, cheia de dor, rodeada pelo vômito silencioso do medo. Não sei quanto tempo fiquei assim, mas logo ouvi os passos apressados dos convidados descendo a escadaria para irem ao ponto de encontro. Depois, ouvi o som de rodas de carruagem e o relincho de cavalos. Segundos após, a carruagem afastou-se com o ruído de cascos batendo em pedras e o estalo de um chicote, sumindo na distância.

Arrastei-me para a porta do balcão, sem poder pensar, relâmpagos diante dos olhos, a cabeça tremendo tanto que mal podia andar. Coloquei as mãos na parede, desejando que nela houvesse ganchos em que pudesse segurar, quando ouvi um grito e me atirei novamente ao chão. Era um brado terrível, pois vinha de uma criança, mas era frio e imperioso.

— “Viene súbito!”

O pequeno pastor estava gritando para alguém da varanda do Norte. Tudo era insensato, mas os gritos da criança intensificavam a loucura daqueles momentos, pois era apenas um menino... e um assassino.

Não sei como, pus-me de pé e corri para a porta que ia dar no topo da escadaria. Ia começar a descer, só queria sair dali, ir para o ar livre e os campos sob a proteção da noite, quando ouvi outros gritos e vi pela janela vultos de homens correndo. Traziam tochas, e em poucos segundos arremessaram-se contra as portas.

Eu não podia correr pela escadaria, pois seria vista, então subi correndo as escadas que levavam ao andar superior, em tal pânico que não sabia mais o que estava fazendo. Só correndo... correndo. Como se fosse guiada por uma mão invisível, irrompi no quarto de costura e vi as mortas. Ali estavam, esparramadas em sangue, as bocas escancaradas em tal terror que ainda podia ouvir seus gritos.

Esses gritos não eram reais, mas os dos homens na escadaria eram. Era o fim. Nada me restava, iam me pegar. Seria morta...

E então, como se a mão invisível que me levara àquele quarto estivesse me forçando a isso, fiz uma coisa incrível: juntei-me às mortas.

Banhei as mãos no sangue das minhas irmãs e esfreguei-as no rosto e nas roupas, atirei-me em cima dos corpos e esperei.

Os homens entraram no quarto de costura, alguns fazendo o sinal da cruz, outros murmurando preces, mas nenhum hesitou no que tinha a fazer. As próximas horas foram um pesadelo que só podia ter sido concebido pelo demônio.

Os corpos das minhas irmãs (e o meu) foram carregados pela escadaria e atirados para fora, além dos degraus de mármore, na estrada. Tinham trazido carroças dos estábulos e muitas já estavam cheias de corpos. Fomos novamente arremessadas numa carroça, junto com outros mortos, como se fôssemos lixo.

O cheiro dos mortos e de sangue era tão forte que afundei os dentes na própria carne para não gritar. Através dos corpos empilhados sobre mim e nas grades da carroça, ouvi os homens gritando ordens. Nada podia ser roubado da Vila Matarese; qualquer um apanhado em flagrante iria juntar-se aos corpos dentro da mansão. Muitos corpos foram deixados lá dentro; carne e ossos carbonizados foram encontrados muito mais tarde.

As carroças começaram a andar, devagar a princípio, mas chegamos aos campos e os cavalos foram fustigados sem dó. As carroças correram pelo capim e sobre as pedras em alta velocidade, como se cada segundo fosse um momento que os guardas queriam deixar atrás deles, no inferno. A morte estava abaixo de mim, acima de mim, e eu rezava a Deus Todo-Poderoso para me levar também. Mas não podia chamar em voz alta, pois, embora desejasse a morte, tinha medo da dor ao morrer. A mão invisível agarrava-me pela garganta. Misericordiosamente, perdi os sentidos, não sei por quanto tempo, mas acho que foi muito longo.

Acordei. As carroças haviam parado e espreitei por entre os corpos e as travessas do lado. Era noite enluarada e estávamos bem longe nas colinas, mas não nas montanhas. Não reconheci nada. Estávamos longe, muito longe da Vila Matarese, mas não sabia onde, e não sei.

Começou o final do pesadelo. Nossos corpos foram arrancados das carroças e atirados numa sepultura comum, dois homens segurando cada corpo e arremessando-o na parte mais profunda. Doeu-me a queda e mordi os dedos para impedir que minha mente se entregasse à loucura. Abri os olhos e vomitei novamente. Estava cercada de rostos mortos, braços frouxos e bocas abertas. Carcaças sangrentas que há poucas horas eram seres humanos.

A sepultura era imensa, larga e profunda, e, estranhamente, pareceu-me, na minha histeria silenciosa, que tinha a forma de círculo.

Além da orla, podia ouvir as vozes de nossos coveiros. Alguns choravam, enquanto outros pediam misericórdia a Cristo. Vários exigiam que se ministrassem os sagrados sacramentos aos mortos, que se trouxesse um padre a esse local de morte e ele intercedesse a Deus pela salvação de suas almas. Mas outros disseram que não, não eram eles os assassinos, apenas os escolhidos para dar descanso aos mortos. Deus entenderia.

“Basta!”, disseram. Não podia ser. Era o preço que pagavam para o bem de gerações ainda por nascer. As colinas eram suas; os campos, regatos e florestas lhes pertenciam! Não podiam mais voltar atrás. Haviam feito um pacto com o “padrone”, e esse deixara bem claro com os mais velhos que somente se o Governo soubesse que houvera uma “cospirazione” poderiam vir a perder as terras. O “padrone” era o mais sábio dos homens, conhecia as cortes e as leis, e seus ignorantes arrendatários não. Tinham de fazer exatamente o que dissera aos mais velhos, ou as cortes lhes tirariam as terras.

Não poderia haver padres de Porto Vecchio ou Sainte-Lucie ou qualquer outra parte. Não podiam correr o risco de que a notícia saísse daquelas colinas. Quem não pensasse assim, que se juntasse aos mortos. Seu segredo jamais sairia das colinas. As terras eram suas!

Era o bastante. Os homens calaram-se, pegaram as pás e começaram a jogar terra sobre os corpos. Pensei então que certamente morreria, com a boca e as narinas sufocadas sob o solo. Mas parece que, quando a morte nos cerca, achamos meios de afastá-la. Foi o que aconteceu comigo.

Quando cada camada de terra cobria a sepultura circular e era compactada com os pés, eu movia as mãos no escuro, abrindo um buraco na terra para poder respirar. Quando terminaram, só tinha uma pequena passagem de ar, mas era suficiente. Havia espaço ao redor de minha cabeça, o bastante para o ar de Deus entrar. A mão invisível havia guiado a minha, e eu estava viva.

Horas mais tarde, penso, comecei a escavar um caminho para a superfície, um animal... cego... buscando a vida. Quando minha mão não encontrou nada, só ar úmido, chorei descontroladamente e parte da minha mente entrou em pânico, com medo de que meu choro fosse ouvido.

Deus foi misericordioso, todos haviam partido. Arrastei-me para fora da terra, saí daquela floresta da morte para um campo e vi o sol subindo acima das montanhas. Estava viva, mas não havia vida para mim. Não podia regressar às colinas, pois certamente seria morta, mas não era possível para uma moça nesta ilha ir a qualquer parte, chegar a um lugar estranho e simplesmente “ser”. Não tinha a quem recorrer, fora por três anos cativa voluntária de meu “padrone”. Entretanto, não podia morrer naquele campo com o sol de Deus espalhando-se pelo céu. O sol mandava-me viver.

Procurei pensar no que poderia fazer, aonde poderia ir. Além das colinas, das costas, havia outras grandes mansões que pertenciam a outros “padrones”, amigos de Guillaume. Imaginei o que aconteceria se eu aparecesse em uma delas e implorasse abrigo e misericórdia. Então vi o erro que cometia. Esses homens não eram meu “padrone”, eram homens com esposas e famílias, e eu era a prostituta da Vila Matarese. Enquanto Guillaume era vivo, minha presença era tolerada, apreciada mesmo, porque o grande homem o exigia. Mas, com ele morto, também estava morta.

Foi então que me lembrei: havia um homem que tomava conta dos estábulos de uma propriedade em Zonza. Havia sido bondoso comigo quando íamos lá de visita e eu cavalgava as montarias de seu patrão. Sorrira freqüentemente e ensinara-me a montar, pois percebera minha ignorância. Na verdade, confessei-a e rimos juntos. E sempre reparara em seus olhares. Estava habituada a olhares de desejo, mas seus olhos exprimiam mais que isso. Havia neles carinho e compreensão, talvez mesmo respeito, não pelo que eu era, mas pelo que não fingia ser.

Olhei o sol matinal e vi que Zonza estava à minha esquerda, provavelmente além das montanhas. Pus-me a caminho na direção daqueles estábulos e daquele homem.

Veio a ser meu marido e, embora eu desse à luz à criança de Guillaume de Matarese, aceitou-a como se fosse sua, dando-nos amor e proteção pelo resto da vida. Esses.anos e nossa vida durante esses anos não lhes interessam, nada têm a ver com o “padrone”. Basta dizer que nada de mal nos aconteceu. Por muitos anos, vivemos no Norte, em Vescovato, longe do perigo do povo das colinas, nunca ousando mencionar seu segredo. Não era possível trazer os mortos de volta, e o assassino e seu filho assassino, o homem e o pequeno pastor, haviam deixado a Córsega.

Disse-lhes a verdade, toda a verdade. Se ainda têm dúvidas, nada posso fazer.

 

 

Terminou mais uma vez.

 

 

Taleniekov levantou-se e caminhou vagarosamente até o fogão e o bule de chá.

— Per nostro circolo — disse, olhando para Scofield. — Passaram-se setenta anos e ainda matam por sua sepultura.

— Perdona? — A velha não compreendia inglês e o homem da KGB repetiu o que dissera em italiano. Sophia concordou com a cabeça. — O segredo vai de pai para filho. Essas são as duas gerações que nasceram desde que ganharam as terras. Não é tanto tempo assim. Ainda têm medo.

— Não há lei alguma que possa tomá-las deles — disse Bray. — Duvido que jamais houvesse. Poderiam ter mandado homens para a prisão por terem suprimido informações sobre o massacre, mas, naquele tempo, quem iria processar? Enterraram os mortos, essa foi sua conspiração.

— Houve uma conspiração maior. Não permitiram os sacramentos.

— Isso é com outra corte. Nada sei sobre isso. — Scofield olhou o russo de relance e voltou a olhar os olhos cegos à sua frente. — Por que voltou?

— Porque pude. E já estava velha quando encontramos este vale.

— Isso não é resposta.

— O povo das colinas acredita numa mentira. Pensam que o padrone me poupou, mandou-me embora antes que os tiros começassem. Para outros, eu inspiro medo e ódio. Dizem que Deus me poupou para que eu fosse uma recordação de seu pecado, mas cega por Deus para que nunca possa revelar sua sepultura na floresta. Sou a prostituta cega da Vila Matarese, e permitem que eu viva porque têm medo de tirar a vida do lembrete de Deus.

Taleniekov falou do outro lado do fogão.

— Mas disse há pouco que não hesitariam em matá-la se contasse a história. Talvez mesmo se desconfiassem de que sabia. No entanto, agora nos conta a historia e dá a entender que quer que a levemos para fora da Córsega. Por quê?

— Um homem em seu país chamou-o e lhe disse coisas que queria que soubesse, não? — O russo começou a falar e Sophia Pastorine interrompeu. — Sim, signore. Sou como aquele homem; meu fim aproxima-se, sei disso cada vez que respiro. Parece que a morte convida aqueles de nós que sabem alguma coisa sobre o Matarese a falar dele. Não sei dizer-lhes por quê, mas, quanto a mim, tive um sinal. Minha neta desceu as colinas e voltou com a notícia de um historiador que procurava informações sobre o padrone. O senhor foi meu sinal. Mandei-a de volta para procurá-lo.

— Ela sabe? — perguntou Bray. — Contou-lhe alguma vez? Ela poderia ter levado a história para fora daqui.

— Nunca! É conhecida nas colinas, mas não pertence a elas! Seria caçada aonde quer que fosse. Seria morta. Pedi sua palavra, signori, e têm de dar-me. Não vão ter mais nada a ver com ela!

— A senhora a tem — concordou Taleniekov. — Ela não está nesta sala por nossa causa.

— O que esperava conseguir falando com meu associado? — perguntou Bray.

— Acho que o mesmo que o amigo dele esperava: fazer os homens olharem embaixo das ondas e ver as águas escuras no fundo. É aí que se encontra a força que move o oceano.

— O Conselho Matarese — disse o homem da KGB, encarando os olhos cegos.

— Sim... eu lhes disse. Ouço as transmissões de Roma, Milão e Nice. Está acontecendo em toda parte. As profecias de Guillaume de Matarese estão se realizando. Não é preciso ter grande preparo para ver isso. Durante anos, ouvi as transmissões e pensei: poderia ser? Seria possível que sobrevivessem? Então, uma noite, há vários dias, ouvi as palavras e foi como se o tempo não existisse. De repente, me encontrei de volta às sombras do balcão do salão nobre, com os tiros e os gritos ecoando em meus ouvidos. Lá estava eu, com os olhos que Deus me levou, vendo aquela cena horrível e lembrando o que o padrone dissera momentos antes: “Farão, ou os seus farão, o que não posso mais fazer.”

A velha parou, os olhos cheios d’água, e recomeçou, apressada pelo medo.

— Era verdade! Tinha sobrevivido, não o Conselho de antigamente, mas o Conselho de hoje. “Os seus” haviam sobrevivido! Liderados por um homem cuja voz é mais cruel que o vento.

Sophia Pastorine tornou a parar abruptamente e agarrou os braços da cadeira com as mãos frágeis e delicadas. Ficou de pé e estendeu a mão esquerda para a bengala à beira do fogão.

— A lista. Tenho de dar-lhes a lista, signoril Tirei-a de um vestido encharcado de sangue há setenta anos, após arrastar-me da sepultura nas montanhas. Ficou colada à minha pele durante o terror. Levei-a comigo para que não me esquecesse dos nomes e títulos, para que meu padrone se orgulhasse de mim.

A velha tateou com a bengala, atravessando a sala, até uma prateleira primitiva fixa na parede. Apalpou a borda com a mão direita, procurando com os dedos entre os vários potes, até encontrar o que queria. Retirou a tampa de barro, enfiou a mão dentro e tirou um pedaço de papel sujo, amarelado pelo tempo. Virou-se para eles!

— É sua. Nomes do passado. Esta é a lista dos convidados de honra que viajaram secretamente à Vila Matarese no dia 4 de abril do ano de 1911. Deus tenha piedade de mim se estou cometendo um ato terrível dando-lhes esta lista.

Scofield e Taleniekov puseram-se de pé.

— Não está — disse Bray. — Está agindo certo.

— Não podia fazer outra coisa — acrescentou Vasili. Tocou a mão dela. — Posso? — Ela soltou o papel esmaecido e o russo olhou-o atentamente. — É a chave — disse para Scofield. — E é muito mais do que podíamos esperar.

— Por quê? — perguntou Bray.

— O espanhol, o homem que Matarese matou, o nome dele foi riscado, mas há dois nomes que vão espantá-lo. São eminentes, e isso é o de menos. Olhe.

Taleniekov foi até Scofield, segurando o papel delicadamente entre dois dedos para que não se esfarelasse. Bray tomou-o na palma da mão.

— Não acredito — disse Scofield, lendo os nomes. — Gostaria de mandar analisar isso para verificar que não foi escrito há cinco dias.

— Não foi — disse o homem da KGB.

— Sei. E isso me apavora.

— Perdona?

Sophia Pastorine permanecia de pé ao lado da prateleira. Bray respondeu-lhe em italiano.

— Reconhecemos dois desses nomes. São homens muito conhecidos ...

— Mas não são esses homens! — bradou a velha, batendo com a bengala no chão. — Nenhum deles! São apenas os herdeiros! São controlados por outro. Esse é que é o homem!

— De que está falando? Quem?

O cão rosnou. Scofield e Taleniekov não prestaram atenção, pois uma voz alterada se havia erguido. O animal pôs-se de pé, rosnando alto, e os dois, com a atenção concentrada em Sophia, ignoraram-no, mas a velha não. Ergueu a mão pedindo silêncio e falou, alarmada, esquecendo a zanga:

— Abram a porta. Chamem minha neta. Depressa!

— Que foi? — perguntou o russo.

— Homens aproximando-se. Estão atravessando o bosque, Uccello os ouviu.

Bray andou rápido até a porta.

— A que distância?

— Do outro lado da serra. Quase aqui. Depressa!

Scofield abriu a porta e chamou:

— Ei! Você, Antonia. Venha aqui, depressa!

As rosnadelas do cão saíam pelos dentes arreganhados. A cabeça se erguera, as pernas estavam esticadas e tensas, preparava-se para defender ou atacar. Bray deixou a porta aberta, atravessou a sala e pegou uma folha de alface no balcão. Rasgou-a ao meio e colocou o pedaço amarelado de papel entre as duas metades.

— Vou botar isso no bolso — disse para o homem da KGB.

— Decorei os nomes e os países — replicou Taleniekov. — Tenho certeza de que fez o mesmo.

A moça entrou correndo, sem fôlego, com a jaqueta parcialmente abotoada, a Lupo na mão e as automáticas deformando os bolsos.

— Que aconteceu?

Scofield virou-se para ela.

— Sua avó disse que há homens aproximando-se. O cão os ouviu.

— Do outro lado da colina — interrompeu a velha. — Novecentos passos, talvez, não mais.

— Por que fariam isso? — perguntou a moça. — Por que viriam aqui?

— Viram você, minha filha? Viram Uccello?

— Devem ter visto. Mas não disse nada. Não interferi em nada. Não tinham motivos para pensar...

— Mas viram você um dia antes — disse Sophia Pastorine, interrompendo novamente.

— Sim. Comprei o que precisava.

— Então por que você teria voltado? — A velha falou retoricamente. — Foi isso que procuraram entender, e entenderam. São homens das colinas, olham o capim e a terra e vêem que havia três pessoas, não uma só. Têm de ir embora. Todos vocês!

— Não farei isso, vovó! — exclamou Antonia. — Não nos farão mal. Direi que devo ter sido seguida, mas que não sei de nada.

A velha olhou bem em frente.

— Têm o que vieram buscar, signori. Levem-no. Levem-na. Saiam!

Bray virou-se para a moça.

— Ela está certa.

Arrancou a espingarda das mãos dela. Ela procurou reagir, mas Taleniekov prendeu-lhe os braços contra o corpo e retirou-lhe a Browning e a Graz-Burya dos bolsos.

— Viu o que aconteceu lá embaixo — continuou. — Faça o que ela diz.

O cão correu para a porta aberta e latiu furiosamente. Vozes à distância eram trazidas pela brisa matinal; os homens gritavam ordens para outros que os seguiam.

— Vão! — disse Sophia Pastorine.

— Venham. — Bray empurrou Antonia à sua frente. — Voltaremos quando eles se forem. Não terminamos ainda.

— Um momento, Signori! — exclamou a cega. — Acho que terminamos. Os nomes que lhes dei podem ser úteis, mas são apenas os herdeiros. Procurem o homem cuja voz é mais cruel que o vento. Eu a ouvi! O pequeno pastor. é ele!

 

Correram ao longo da orla do pasto à beira dos bosques e subiram até o topo da cordilheira. A sombra da encosta do Leste impedia que fossem vistos. Houvera apenas alguns segundos durante os quais poderiam ter sido descobertos. Estavam preparados para isso, mas não aconteceu. A atenção dos homens na cordilheira oposta havia sido desviada por um cão que latia e ficaram em dúvida quanto a se deveriam usar os rifles ou não. Não chegaram a usá-los porque o cão foi chamado por um assovio antes que tomassem uma decisão. Uccello estava ao lado de Antonia no capim, tão sem fôlego quanto ela.

Eram quatro homens na cordilheira oposta, e restavam quatro nomes no pedaço de papel amarelado em seu bolso, pensou Scofield. Naquele momento, só desejava que encontrá-los, pegá-los, fosse tão fácil quanto pegar e matar os quatro que desciam para o vale. Mas os quatro homens da lista eram apenas um começo.

Tinha que achar um pastor. “Uma voz mais cruel que o vento”... uma voz de criança reconhecida dezenas de anos depois... emitida pela garganta do que seria agora um homem muito, muito velho.

“Ouvi as palavras e foi como se o tempo não existisse...”

Que palavras eram essas? Quem era esse homem? O verdadeiro descendente de Guillaume de Matarese... um velho que proferiu uma frase que removeu setenta anos da memória de uma cega nas montanhas da Córsega. Em que língua? Tinha de ser francês ou italiano, pois era só o que ela entendia.

Tinham de falar com ela novamente, tinham de compreender muito mais. Não haviam terminado a conversa com Sophia Pastorine.

Bray viu os quatro corsos aproximarem-se da casa, dois cobrindo os lados, dois dirigindo-se à porta, todos de arma em punho. Os homens em frente à porta pararam por um instante, e o da esquerda levantou o pé calçado de bota e meteu-o na madeira, arrebentando a porta para dentro.

Silêncio.

Ouviram-se dois gritos e perguntas ásperas. Os homens do lado de fora correram ao redor da casa e entraram. Mais gritos... e o som inconfundível de carne batendo em carne.

Antonia tentou erguer-se, a fúria estampada no rosto. Taleniekov puxou-a para baixo pelo ombro da jaqueta. Os músculos de sua garganta estavam contorcidos, estava prestes a gritar. Scofield não teve escolha, apertou-lhe a boca com a mão, forçando os dedos nas suas bochechas, e o grito ficou reduzido a um acesso de tosse.

— Fique quieta! — murmurou Bray. — Se a ouvirem, vão usar sua avó para atrair você!

— Seria muito pior para ela — disse Vasili — e para você também. Ouviria sua dor e eles pegariam você.

Antonia piscou os olhos e acenou com a cabeça. Scofield afrouxou a mão, mas não a retirou. Ela murmurou por entre os dedos dele:

— Bateram nela! Uma cega, e bateram nela!

— Estão amedrontados — disse Taleniekov. — Mais do que você pensa. Sem as terras, não têm nada.

Os dedos da moça agarraram o pulso de Bray.

— Que quer dizer?

— Agora não! — ordenou Scofield. — Há algo de errado. Estão demorando demais lá dentro.

— Talvez tenham encontrado alguma coisa — concordou o homem da KGB.

— Ou ela está lhes contando alguma coisa. Oh, Cristo, não pode!

— Em que está pensando? — perguntou Taleniekov.

— Ela disse que tínhamos terminado. Não terminamos. Mas ela vai nos garantir. Vão ver nossas pegadas no chão, andamos em terra molhada, não pode negar que estivemos lá. Com seus ouvidos aguçados, sabe que direção tomamos e vai mandá-los na direção oposta.

— Ótimo — disse o russo.

— Merda, vão matá-lal

Taleniekov jogou a cabeça para trás e olhou para a casa.

— Tem razão — disse. — Se acreditarem nela, e sei que acreditarão, não podem deixá-la viva. Ela é a fonte e lhes dirá isso, mesmo que seja só para convencê-los. A vida dela pelo pequeno pastor. Para que possamos achar o pastor!

— Mas não sabemos o bastante! Bem, vamos embora! Scofield pôs-se em pé, arrancando a automática do cinto. O cão rosnou, a moça levantou-se e Taleniekov empurrou-a no chão novamente.

Não deu tempo. Três tiros seguiram-se rapidamente.

Antonia gritou; Bray atirou-se para ela e a segurou, aninhando-a nos braços.

— Por favor, por favor! — murmurou. Viu o russo sacar uma faca de dentro do casaco. — Não! Está tudo bem!

Taleniekov empalmou a faca e ajoelhou-se com os olhos fixos na casa.

— Estão correndo para fora. Tem razão, estão indo para a encosta do Sul.

— Mate-os! — As palavras da moça estavam abafadas pela mão de Scofield.

— Com que finalidade agora? — disse o homem da KGB. — Ela fez o que queria fazer, o que achava que devia.

 

O cão não os seguiu. Os comandos de Antonia não fizeram o menor efeito. Correu para a casa e recusou-se a sair. Seus ganidos chegaram até a cordilheira.

— Adeus, Uccello! — disse a moça, soluçando. — Voltarei para te buscar, por Deus, voltarei!

Andaram para longe das montanhas, descrevendo um círculo a Noroeste além das colinas de Porto Vecchio, depois foram em direção ao Sul, para Sainte-Lucie, acompanhando o regato até chegarem aos pinheiros, onde Bray havia enterrado a pasta e a sacola de lona. Viajaram com cautela, usando os bosques o máximo possível, separando-se e andando um atrás do outro nos trechos desprotegidos, para que ninguém os visse juntos.

Scofield tirou a pá escondida debaixo de uma pilha de ramos, desenterrou os pertences e partiram de novo, acompanhando o regato na direção de Sainte-Lucie. A troca de palavras era reduzida ao mínimo, não perderam tempo em se distanciar das colinas.

Os longos silêncios e as breves separações tinham uma utilidade prática, pensou Bray, observando a moça avançando a custo, confusa, obedecendo as ordens deles sem pensar, lágrimas assomando-lhe aos olhos intermitentemente. O movimento constante distraía suas idéias e já estava aceitando, de alguma forma, a morte da avó. Nada que pessoas relativamente estranhas dissessem poderia ajudá-la; precisava da solidão dos próprios pensamentos. Scofield suspeitava de que Antonia não fosse violenta, apesar da maneira como manejava a Lupo. Não era criança; à luz do dia, podia ver que tinha mais de trinta anos, e além disso vinha de um mundo de acadêmicos radicais, não de revolução. Duvidava de que ela soubesse como agir nas trincheiras.

— Temos que parar de correr! — bradou ela de repente. — Podem fazer o que quiserem, mas vou voltar a Porto Vecchio. Quero vê-los na forca!

— Há muita coisa que você ignora — disse Taleniekov.

— Ela foi morta! É só isso que preciso saber!

— Não é tão simples assim — disse Bray. — A verdade é que ela se matou.

— Eles a mataram!

— Ela os forçou a isso. — Scofield pegou-lhe a mão, segurando-a com firmeza. — Procure entender. Não podemos deixar você voltar, sua avó sabia disso. E preciso deixar o que aconteceu nas últimas quarenta e oito horas ser esquecido o mais depressa possível. Vai haver certo pânico nas colinas, vão mandar homens procurar-nos, mas depois de algumas semanas, nada acontecendo, eles esfriarão. Viverão com medo, mas ficarão quietos. É tudo que podem fazer. Sua avó entendeu isso. Contou com isso.

— Mas por quê?

— Porque temos outras coisas a fazer — disse o russo. — Ela compreendeu isso também. Foi por essa razão que mandou você de volta para nos encontrar.

— Que coisas são essas? — perguntou Antonia, e ela mesma respondeu. — Ela disse que lhes tinha dado nomes. Falou de um menino pastor.

— Mas você não vai falar disso — ordenou Taleniekov. — Se é que quer que a morte dela signifique alguma coisa. Não podemos deixar que você interfira.

Scofield percebeu algo no tom de voz do homem da KGB e por um segundo sentiu sua mão encaminhar-se para a arma. Naquele segundo, a memória de Berlim dez anos atrás veio à superfície. Taleniekov já tinha tomado uma decisão, e se tivesse a menor dúvida mataria essa moça.

— Ela não vai interferir — disse Bray, sem saber por que garantia isso, mas falando com firmeza. — Vamos. Faremos uma parada, quero ver um homem em Murato. Depois, se conseguirmos chegar a Bastia, eu nos tiro daqui.

— Para onde, signore? Não pode mandar-me...

— Fique quieta — disse Bray. — Não abuse da sorte.

— É, não abuse — repetiu o homem da KGB, olhando para Scofield. — Precisamos conversar. Devemos viajar separados, dividir o trabalho, organizar cronogramas e pontos de contato. Temos muito que discutir.

— Pelos meus cálculos, estamos a cento e quarenta e cinco quilômetros de Bastia. Temos muito tempo para conversar.

Scofield abaixou-se para pegar a pasta e a moça arrancou a mão da dele, afastando-se, zangada. O russo inclinou-se para apanhar a sacola.

— Sugiro que conversemos a sós — disse a Bray. Ela não é um crédito, Beowulf.

— Estou desapontado com você. — Scofield tomou a sacola do homem da KGB. — Nunca lhe ensinaram a converter um débito em crédito?

 

Antonia morara em Vescovato, no rio Golo, a uns trinta quilômetros de Bastia. Sua contribuição imediata foi levá-los até lá sem serem vistos. Era importante que tomasse decisões, mesmo que fosse só para fazê-la esquecer que estava obedecendo ordens com as quais não concordava. E as tomou rapidamente, escolhendo estradas secundárias primitivas e trilhas-nas montanhas que conhecera quando criança, crescendo na província.

— As freiras nos trouxeram até aqui num piquenique — disse, olhando um riacho represado. — Fizemos fogueiras, comemos salsichas e nos revezamos entrando no bosque para fumar...

Foram avante.

— Esta colina tem uma brisa deliciosa de manhã — disse ela. — Meu pai fazia pipas maravilhosas e vínhamos soltá-las aqui aos domingos. Depois da missa, é claro.

— Vínhamos? — perguntou Bray. — Você tem irmãos e irmãs?

— Um de cada. São mais velhos que eu e ainda vivem em Vescovato. Têm famílias, e quase não os vejo. Não temos muito em comum.

— Eles não freqüentaram as escolas superiores? — perguntou Taleniekov.

— Pensavam que isso era uma tolice. São gente boa, mas preferem uma vida simples. Se precisarmos de auxílio, eles o darão.

— Seria melhor não pedir — disse o russo. — Nem procurá-los.

— São minha família, signore. Por que evitá-los?

— Porque talvez seja necessário.

— Isso não é resposta. Não me deixaram ir a Porto Vecchio exigir a justiça que deveria ser feita. Não podem mais dar-me ordens.

O homem da KGB olhou para Scofield, sua intenção explícita nos olhos. Bray esperava que o russo sacasse a arma e pensou de passagem em qual seria sua própria reação. Não sabia dizer. Mas o momento passou e Scofield compreendeu algo que não havia entendido bem antes: Vasili Taleniekov não queria matar, mas o profissional nele estava em forte conflito com o homem. O russo estava implorando... queria saber como converter um débito em crédito. Scofield mesmo gostaria de saber.

— Calma — disse Bray. — Ninguém quer dizer-lhe o que fazer, exceto no que se refere a sua própria segurança. Já dissemos isso antes, e é dez vezes mais válido agora.

— Acho que é outra coisa. Querem que fique calada. Calada sobre o assassínio de uma velha cega!

— Já lhe dissemos que sua segurança depende disso. Ela entendeu.

— Ela está morta.

— Mas você quer viver — insistiu Scofield calmamente. — Se o povo das colinas a encontrar, não viverá. E, se souberem que você falou com outros, também estarão em perigo. Não compreende isso?

— Então que devo fazer?

— O que estamos fazendo. Desaparecer. Sair da Córsega. — A moça ensaiou um protesto e Bray o cortou. — E confie em nós. Tem de confiar em nós. Sua avó confiou. Morreu para que vivêssemos e procurássemos algumas pessoas que estão envolvidas em coisas terríveis que vão além da Córsega.

— Não está falando com uma criança. Que quer dizer com coisas terríveis?

Bray lançou um olhar para Taleniekov, percebendo sua desaprovação, mas ignorando-a.

— Há homens, não sabemos quantos, dedicados a matar outros homens, que espalham a desconfiança e a suspeita escolhendo vítimas e financiando assassinatos. Não existe nenhum plano, só a violência, violência política, jogando um partido contra o outro, um governo contra o outro... um povo contra o outro. — Scofield parou, notando a expressão de intensa concentração no rosto de Antonia. — Você disse que era uma ativista política, uma comunista. Ótimo. Bom. Meu associado também é, foi treinado em Moscou, Eu sou americano, treinado em Washington. Somos inimigos, lutamos um contra o outro por muito tempo. Os detalhes não são importantes, mas o fato é que estamos trabalhando juntos agora, e isso é importante. Os homens que procuramos são muito mais perigosos que qualquer diferença entre nós, entre nossos governos. Porque esses homens podem transformar essas diferenças numa coisa que ninguém quer... podem fazer a Terra explodir.

— Obrigada por ter me contado — disse Antonia, pensativa. Depois franziu a testa. — Mas como é que ela sabia disso?

— Estava lá quando tudo começou — respondeu Bray. — Há quase setenta anos, na Vila Matarese.

Antonia murmurou as palavras lentamente: — A prostituta da Vila Matarese... O padrone, Guillaume?

— Era tão poderoso quanto qualquer um na Inglaterra ou na França, um obstáculo aos cartéis e coalizões. Atrapalhava-os e muitas vezes ganhava, por isso o destruíram. Usaram o Governo para causar seu colapso, mataram seus filhos. Ficou louco... mas em sua loucura, e com os recursos que lhe sobraram, pôs em execução um plano de vingança de longo alcance. Reuniu outros homens que tinham sido destruídos da mesma maneira e formou o Conselho Matarese. Por muitos anos, sua especialidade foi assassinatos. Muito mais tarde, presumiu-se que estivesse extinto. Voltaram agora, mais letais que nunca. — Scofield fez uma pausa; achava que dissera o suficiente. — Não posso ser mais claro e espero que compreenda. Você quer que os homens que mataram sua avó paguem pelo crime que cometeram. Gostaria de acreditar que isso acontecerá algum dia, mas tenho de lhe dizer que eles não são importantes.

Antonia ficou calada por alguns instantes, fixando os olhos castanhos inteligentes em Bray.

— Foi muito claro, Sr. Scofield. Se eles não importam, eu também não. É isso que quis dizer?

— Acho que sim.

— E meu camarada socialista — acrescentou ela, lançando um olhar a Taleniekov — preferiria remover minha insignificante presença.

— Olho o objetivo — respondeu Vasili — e faço o possível para analisar os problemas inerentes à tentativa de alcançá-lo.

— Sim, claro. Então devo virar as costas e entrar no bosque, aguardando o tiro que terminará minha vida?

— A decisão é sua — disse Taleniekov.

— Tenho escolha, então? Aceitaria minha palavra de que não direi nada?

— Não — replicou o homem da KGB. — Não aceito.

Bray estudou a fisionomia de Taleniekov, com a mão direita perto da automática Browning que trazia ao cinto. O russo queria chegar a algum ponto e estava testando a moça até chegar lá.

— Então qual é a escolha? — continuou Antonia. — Deixar que um de seus Governos me façam prisioneira até encontrarem os homens que procuram?

— Infelizmente, isso não é possível — respondeu Taleniekov. — Estamos agindo sem o apoio de nossos Governos, sem seu consentimento. Falando francamente, estão à nossa procura com o mesmo afinco com que buscamos os homens que mencionamos.

A moça reagiu a essa informação surpreendente como se tivesse recebido um golpe.

— São caçados pelos próprios conterrâneos? — perguntou.

Taleniekov concordou com a cabeça.

— Entendo. Agora compreendo tudo. Não podem aceitar minha palavra e não podem fazer-me prisioneira. Sou, portanto, uma ameaça, muito maior do que imaginava. Então não tenho escolha, não é?

— Talvez tenha — respondeu o homem da KGB. — Meu associado a mencionou.

— E qual é?

— Confie em nós. Ajude-nos a chegar a Bastia e confie em nós. Talvez haja uma solução. — Taleniekov virou-se para Scofield e disse uma palavra. — Conduto.

— Veremos — disse Bray, deixando cair a mão do cinto. Pensavam em linhas paralelas.

 

O contato do Departamento de Estado em Murato não estava nada feliz, não queria essa complicação. Era dono de barcos de pesca em Bastia e fazia relatórios para os americanos sobre as manobras navais soviéticas. Washington pagava-lhe bem e havia alertado todas as estações para o fato de que Brandon Alan Scofield, ex-especialista em Operações Consulares, era um desertor. O regulamento era claro quanto a essa classificação: apanhá-lo, se possível; se não, usar de todos os meios para eliminá-lo.

Silvio Montefiori hesitou por um momento contemplando essa possibilidade, mas era homem prático e rejeitou a idéia, apesar da tentação. Scofield tinha a faca em seu pescoço, mas havia mel na lâmina. Se Silvio recusasse o pedido do americano, suas atividades seriam reveladas aos soviéticos, mas se acedesse o desertor prometera-lhe dez mil dólares. E dez mil dólares, mesmo com a alta taxa de câmbio, eram provavelmente mais do que qualquer bônus que poderia receber pela morte de Scofield.

Além disso, estaria vivo para gastar o dinheiro.

Montefiori alcançou o armazém, abriu a porta e atravessou a caverna escura e deserta até chegar à parede dos fundos, conforme as instruções. Não podia ver o americano, havia muito pouca luz, mas sabia que Scofield estava lá. Era uma questão de aguardar que os pássaros circulassem e os sinais fossem transmitidos.

Tirou um charuto fino e torto do bolsinho do lenço, procurou um fósforo nos bolsos da calça, encontrou um e riscou-o. Ao chegar a chama à ponta do charuto, reparou, irritado, que a mão tremia.

— Você está suando, Montefiori. — A voz vinha das sombras à esquerda. O fósforo mostrou seu rosto coberto de suor. — Na última vez em que o vi, você estava suando. Eu era encarregado da mala diplomática e fiz-lhe certas perguntas.

— Brandon! — exclamou Silvio efusivamente. — Meu caro amigo! Que bom vê-lo de novo... se pudesse vê-lo.

O americano alto saiu das sombras para a luz fraca. Montefiori esperava ver uma arma em sua mão, mas, naturalmente, não havia arma. Scofield sempre fazia o inesperado.

— Como vai você, Silvio? — perguntou o “desertor”.

— Bem, meu caro amigo! — Montefiori sabia que não devia haver aperto de. mãos. — Está tudo em ordem. Estou correndo grande risco e pagando a tripulação dez vezes mais, mas isso é pouco para um amigo que tanto admiro. Basta que você e o provo-cateur estejam no cais número sete em Bastia à uma hora da manhã. Meu melhor barco de arrasto os deixará em Livorno ao amanhecer.

— Essa é sua rota costumeira?

— Claro que não. O porto de costume é Piombino. Estou pagando o combustível extra com prazer, sem pensar no prejuízo.

— Muito generoso de sua parte.

— E por que não? Você foi sempre muito justo comigo.

— E por que não? Você sempre cumpriu o prometido. — Scofield meteu a mão no bolso e tirou um bolo de notas. — Mas receio que haja algumas mudanças. Para começar, preciso de dois barcos: um irá de Bastia para o Sul e o outro para o Norte, e ambos ficarão a menos de mil metros da costa. Uma lancha irá ao encontro de cada um, e depois será posta a pique. Estarei em uma delas, o russo na outra. Darei os sinais. Uma vez a bordo, iremos para o mar aberto, onde planejaremos o curso a tomar, e só os capitães e nós saberemos o destino.

— Quanta complicação, meu amigo! Não é necessário tudo isso, dou-lhe minha palavra.

— E eu a guardarei como um tesouro, Silvio, mas enquanto isso faça o que digo.

— Naturalmente! — disse Montefiori, engolindo em seco. — Mas tem de compreender que isso vai aumentar muito meus custos.

— Então deveremos cobri-los, não?

— Estou contente por você compreender.

— Ora, claro que compreendo, Silvio. — O americano separou várias notas de alto valor. — Para começar, quero que saiba que suas atividades em prol de Washington nunca serão reveladas por mim, e isso já é um pagamento considerável, se é que dá valor à vida. E quero que fique com isso, são cinco mil dólares.

Scofield estendeu o dinheiro.

— Meu caro amigo, você disse dez mil! Fiz todos os preparativos baseado na sua palavra!

O suor brotava dos poros de Montefiori. Seu relacionamento com o Departamento de Estado corria grande risco e além disso esse porco traidor o estava assaltando!

— Não terminei ainda, Silvio. Você está ansioso demais. Sei que disse dez mil e você os terá. Tem cinco mil a receber, sem contar as despesas adicionais. Correto?

— Certo — disse o corso. — As despesas são exorbitantes.

— Tudo é, hoje em dia — concordou Bray. — Vejamos... quinze por cento sobre o preço original, está bem?

— Talvez discutisse com outros, mas com você não.

— Então estamos combinados, mil e quinhentos a mais, não é? Isso deixa um total de seis mil e quinhentos a receber.

— É uma frase problemática. Implica uma entrega no futuro e minhas despesas são feitas agora. Não posso protelá-las.

— Vamos, meu velho. Certamente, uma pessoa com sua reputação tem crédito por alguns dias.

— Alguns dias, Brandon? Muito vago, novamente. Alguns dias, e você pode estar em Singapura. Ou Moscou. Não pode ser mais específico?

— Claro. O dinheiro estará em um de seus barcos, não decidi qual ainda, escondido debaixo da divisória da proa, à direita do esteio do centro, dentro de um pedaço de madeira oco, envernizado, preso ao cavername. Você o encontrará facilmente.

— Mãe de Deus, qualquer um encontrará!

— Por quê? Ninguém vai saber, a não ser que você faça um anúncio.

— É arriscado demais! Não há um membro da tripulação que hesitasse em matar a própria mãe em frente do padre por uma quantia dessas! Realmente, meu amigo, você está louco!

— Não se preocupe, Silvio. Vá ao encontro de seus barcos no porto. Se não encontrar a madeira, procure um homem que perdeu a mão numa explosão, ele terá o dinheiro.

— Uma armadilha? — perguntou Montefiori, incrédulo, com o colarinho encharcado de suor.

— Um parafuso do lado, você já fez isso. Ê só retirá-lo e a carga será desativada.

— Contratarei meu irmão...

Silvio estava deprimido; o americano não era boa pessoa. Era como se Scofield lesse seus pensamentos. Já que o dinheiro estaria a bordo, seria contraproducente afundar qualquer dos barcos, talvez o Departamento de Estado não o recompensasse totalmente. E quando ambos estivessem de volta em Bastia o desprezível Scofield poderia estar navegando o Volga, ou o Nilo.

— Não pode reconsiderar, meu bom amigo?

— Infelizmente, não. E não direi a ninguém quanto Washington o considera, tampouco. Não se preocupe, Silvio, o dinheiro estará lá. Sabe, podemos estar em contato novamente. Muito breve.

— Não tenha pressa, Brandon, e por favor não diga mais nada. Não quero saber de nada. Que responsabilidade! Quais são os sinais para hoje à noite?

— Muito simples. Dois lampejos de luz, repetidos várias vezes, ou até os barcos pararem.

— Dois lampejos, repetidos... Lanchas em perigo pedindo auxílio. Não posso ser responsável por acidentes no mar. Tchau, meu velho.

Montefiori enxugou o pescoço com o lenço, virou as costas na penumbra do armazém e deu alguns passos no chão de concreto.

— Silvio?

Montefiori parou.

— Sim?

— Mude a camisa.

 

Vinham observando-a atentamente há quase dois dias, ambos reconhecendo silenciosamente que era preciso tomar uma decisão. Seria seu salvo-conduto ou teria de morrer. Não havia escolha, não podiam mandá-la para uma prisão de segurança ou um recinto isolado. Tinha de ser seu conduto ou seria vítima de um ato de pura e fria necessidade.

Precisavam de alguém que levasse recados de um para o outro, não podiam comunicar-se diretamente, isso era muito perigoso. Precisavam de um terceiro que ficasse em um lugar fixo, escondido, conhecesse os códigos básicos que inventassem e fosse, acima de tudo, uma pessoa reservada e precisa. Será que Antonia poderia ser essa pessoa? E, se pudesse, será que aceitaria os riscos que teria de correr? Por isso, estudavam-na como se estivessem procedendo à análise da iminente confrontação de inimigos em terreno neutro.

Tinha reações rápidas e coragem superficial, conforme haviam visto nas colinas. Era também alerta, consciente do perigo, mas continuava a ser um enigma em seu íntimo. Estava sempre na defensiva, era fechada, ficava muito tempo calada, com os olhos rodando em todas as direções, como se esperasse que um chicote viesse sulcar-lhe as costas, ou uma mão agarrá-la pela garganta, saídos das sombras ao seu redor. Mas não havia chicotes, não havia sombras à luz do sol.

Antonia era uma mulher estranha, e ocorreu aos dois profissionais que ela escondia alguma coisa. Fosse o que fosse, não estava prestes a revelá-lo. Os momentos de descanso de nada adiantavam. Mantinha-se afastada, trancada dentro de si mesma, e recusava abrir-se.

Fazia, porém, tudo que lhe pediam. Levou-os a Bastia sem incidentes, sabia até onde fazer parar o calhambeque que levava os trabalhadores das redondezas até o porto. Taleniekov sentou-se com Antonia na frente e Scofield ficou atrás, observando os outros passageiros.

Saltaram nas ruas apinhadas de gente, Bray sempre atrás, sempre observando, sempre alerta para qualquer reação na indiferença que os rodeava: um rosto que ficasse repentinamente rígido, um par de olhos que se fixasse no homem de meia-idade andando ereto ao lado da mulher de cabelos escuros. Mas só viu indiferença.

Dissera à moça que se encaminhasse para um bar à beira do cais, uma espelunca onde ninguém interferiria com um companheiro de bebida. Até a maioria dos corsos evitava o lugar; servia a escória das docas.

Uma vez lá dentro, separaram-se novamente. Taleniekov juntou-se a Bray numa mesa de canto e Antonia ficou a três metros em outra mesa, com uma cadeira inclinada sobre a borda, indicando reserva, que de nada adiantou para evitar as propostas dos fregueses bêbados. Isso era também parte dos testes; era importante ver como ela se comportaria.

— Que você acha? — perguntou Taleniekov.

— Não tenho certeza — disse Scofield. — É muito escorregadia. Não consigo pegá-la.

— Talvez esteja procurando com demasiada ansiedade. Ela teve um grande choque emocional, não podemos esperar que se comporte normalmente, nem na superfície. Acho que pode fazer o trabalho, e logo saberíamos se não desse conta. Podemos proteger-nos com códigos pré-arranjados. E, com toda franqueza, quem mais temos? Existe algum homem em qualquer dos postos em que possamos confiar? Mesmo os parasitas fora dos postos, quem não ficaria curioso? Quem resistiria às pressões de Washington ou de Moscou?

— É o choque emocional que me perturba — disse Bray. — Acho que aconteceu muito antes de nós a encontrarmos. Ela disse que estava em Porto Vecchio para se afastar um pouco. Afastar-se de quê?

— Pode haver dezenas de explicações. Há desemprego em toda a Itália. Pode estar desempregada. Ou quem sabe um amante infiel, um caso amoroso fracassado. Isso nada tem a ver com o que queremos que ela faça.

— Não foi isso que percebi. Além disso, por que confiar nela? Mesmo que arriscássemos, por que aceitaria?

— Estava presente quando mataram a velha — disse o russo. — Talvez seja suficiente.

Scofield concordou com a cabeça.

— É um ponto de partida, mas só se estiver convencida de que há uma ligação entre o que estamos fazendo e o que viu.

— Deixamos isso bem claro. Ouviu as palavras da velha, repetiu-as.

— Ainda estava confusa, em estado de choque. É preciso que se convença.

— Então convença-a.

— Eu?

— Confia mais em você do que em seu “camarada socialista”, isso é óbvio. Scofield ergueu o copo.

— Você ia matá-la?

— Não. Essa decisão teria de partir de você. E ainda tem. Não me senti bem vendo sua mão tão perto do cinto.

— Nem eu.

Bray baixou o copo e olhou para a moça. Berlim nunca estava muito longe — Taleniekov compreendia isso — mas a mente e os olhos não mais lhe confundiam as memórias. Não estava mais numa caverna na encosta de uma colina vendo uma mulher sacudir o cabelo à luz do fogo. Não havia semelhança alguma entre sua esposa e Antonia, podia até matá-la, se fosse preciso.

— Ela irá comigo, então — disse ao russo. — Terei certeza em quarenta e oito horas. Nossa primeira comunicação será direta, as próximas duas por seu intermédio em código previamente combinado, para que possamos verificar a precisão... Se a quisermos e se ela concordar.

— E se não quisermos ou ela não concordar?

— A decisão será minha, não é? — Bray afirmou, não perguntou.

Tirou a folha de alface do bolso e abriu-a. O pedaço amarelado de papel estava intacto, os nomes borrados, mas legíveis. Taleniekov repetiu-os sem olhar.

— Conde Alberto Scozzi, Roma; sir John Waverly, Londres; Príncipe Andrei Voroshin, São Petersburgo. Acrescentaram a palavra Rússia e a cidade hoje em dia é Leningrado, claro. Senhor Manuel Ortiz Ortega, Madri, esse está riscado; Josua, que presumo seja Joshua Appleton, Estado de Massachusetts, Estados Unidos. O espanhol foi morto pelo padrone na Vila Matarese, portanto nunca fez parte do Conselho. Os outros quatro já morreram há muito tempo, mas dois de seus descendentes são muito importantes e muito fáceis de encontrar: David Waverly e Joshua Appleton IV. O ministro do Exterior da Inglaterra e o senador de Massachusetts. Opino por uma confrontação imediata.

— Eu não — retorquiu Bray, estudando o papel e a caligrafia infantil. — Sabemos quem são eles, mas não sabemos nada sobre os outros. Quem são seus descendentes? Onde estão? Se vai haver outras surpresas, vamos achá-los primeiro. Os Matarese não se restringem a dois homens, e esses dois, especificamente, talvez não tenham nada a ver com isso.

— Por que diz isso?

— Tudo que sei a seu respeito indica que não têm ligação alguma com os Matarese. Waverly fez o que se considera na Inglaterra uma bela campanha de guerra; jovem membro de um comando altamente condecorado. Depois, uma folha de serviços tremenda no Ministério do Exterior. Foi sempre um conciliador tático, nunca um instigador... não combina. Appleton é um intelectual de Boston que rompeu as separações de classes e tornou-se um reformista liberal, três vezes senador, protetor do trabalhador e da comunidade intelectual também, é um cavaleiro errante num sólido cavalo político e a maioria dos americanos pensa que cavalgará a Casa Branca no ano que vem.

— Não há residência melhor para um consigliere do Matarese.

— É chocante demais e, ao mesmo tempo, encaixa-se bem demais. Acho que ele é genuíno.

— A arte da convicção, em ambos os casos, talvez. Mas tem razão, eles não vão fugir, então começaremos por Leningrado e Roma, descobriremos o que pudermos.

— “Farão, ou os seus farão, o que eu não posso mais fazer...” São as palavras que Matarese usou anos atrás. Será que é tão simples assim?

— Está querendo dizer que os “seus” poderiam ser escolhidos, não nascidos? — perguntou Taleniekov. — Não seriam descendentes diretos?

— Isso mesmo.

— É possível, mas todas essas famílias foram muito poderosas. Os Waverly e os Appleton ainda são. Há certas tradições nessas famílias, o sangue é altamente importante. Comece com as famílias que deveriam herdar a terra, foram essas as palavras dele. A velha disse que era sua vingança.

Scofield concordou com a cabeça..

— Sei. Também disse que eram apenas os sobreviventes, que eram controlados por outro homem... que devíamos procurar alguém mais.

— “Com uma voz mais cruel que o vento” — acrescentou o russo. — “É ele”, disse ela.

— O pequeno pastor — disse Bray, olhando o pedaço de papel amarelo. — Depois desse tempo todo, quem é ele? O que é ele?

— Comece com as famílias — repetiu Taleniekov. — Se pode ser encontrado, esse é o caminho.

— Você pode voltar à Rússia? A Leningrado?

— Com facilidade. Através de Helsínqui. Será muito estranho, passei três anos na universidade em Leningrado, foi lá que me acharam.

— Acho que ninguém lhe vai oferecer uma festa de boas-vindas. — Scofield dobrou o pedaço de papel amarelo dentro da folha de alface e botou-o dentro do bolso. Tirou uma pequena agenda. — Fique no Hotel Tavastian em Helsínqui até ter notícias minhas. Vou dizer-lhe quem deve procurar lá. Dê-me um nome.

— Rydukov, Pietre — respondeu o homem da KGB sem hesitar.

— Quem é ele?

— Um terceiro violinista da Sinfônica de Sebastopol. Vou alterar seus documentos ligeiramente.

— Espero que ninguém lhe peça para tocar.

— Um reumatismo severo iria impedir-me.

— Vamos combinar os códigos — disse Bray, olhando para Antonia, que fumava um cigarro e conversava com um jovem marinheiro de pé a seu lado.

Comportava-se bem; sorria com polidez, mas também com frieza, criando delicadamente uma distância entre ela e o jovem importuno. Na verdade, havia algo de elegante em sua atitude, que não combinava com esse bar de beira de cais, mas era agradável aos olhos. Meus olhos, pensou Scofield, sem ir mais longe.

— Que você acha que vai acontecer? — perguntou Taleniekov, olhando para Bray.

— Saberei em quarenta e oito horas — disse Scofield.

 

O barco de arrasto aproximava-se da costa italiana. Os mares de inverno estavam turbulentos, a correnteza violenta e o barco vagaroso. Levaram quase dezessete horas para fazer a viagem desde Bastia. Escureceria em breve, e arriariam um pequeno bote salva-vidas para levar Scofield e Antonia à terra.

A viagem longa e tediosa fora muito útil para Bray, além de levá-los à Itália, onde começaria a caça à família do conde Alberto Scozzi. Teve tempo e oportunidade para conhecer melhor Antonia Gravet. Seu sobrenome inesperado era porque o pai tinha sido um sargento da Artilharia francesa servindo na Córsega durante a II Guerra Mundial.

— Então — ela dissera, com o vestígio de um sorriso nos lábios —, minhas aulas de francês foram muito baratas. Bastava que papai ficasse zangado, e ele nunca se sentia bem com o italiano de minha mãe.

Não era mais a mesma, exceto nos momentos em que sua mente se voltava para Porto Vecchio. Começou a rir, seus olhos castanhos refletiam alegria, brilhantes, contagiosos, às vezes até quase maníacos, como se o mero ato de rir fosse uma libertação. Scofield achou impossível aceitar que essa moça sentada a seu lado, de calça cáqui e jaqueta rasgada, fosse a mesma que conhecera tão taciturna e pouco comunicativa; ou aquela que gritara ordens e manejara a Lupo com tanta eficiência. Ainda faltavam alguns minutos para entrarem no bote, e resolveu perguntar-lhe sobre a Lupo.

— Foi uma fase, acho que todos nós passamos por isso. Uma hora em que mudanças sociais radicais só parecem possíveis com o uso da violência. Os maníacos das Brigadas Vermelhas sabiam como manobrar conosco.

— As Brigadas? Você fazia parte das Brigadas Vermelhas? Deus meu!

Ela acenou com a cabeça.

— Passei várias semanas num acampamento brigatista em Medicina, aprendendo a atirar com armas de fogo, escalar muros e esconder contrabando. Por falar nisso, não era boa em nenhuma dessas coisas, até que um dia um jovem estudante, um meninote mesmo, foi morto e os líderes disseram que tinha sido um “acidente de treinamento”. Parecia até uma frase militar, mas não eram soldados treinados, eram brutos e tiranos à solta, armados de facas e armas de fogo. Morreu em meus braços com o sangue jorrando da ferida... e um olhar apavorado e confuso. Mal o conhecia, mas quando morreu não pude agüentar mais. Naquela noite mesmo saí de lá e voltei para Bolonha. Portanto, o que viu em Porto Vecchio não era eu mesma. Estava representando. Estava escuro e você não viu o medo em meus olhos.

Ele tivera razão, ela não servia para as trincheiras.

— Sabe — disse ele lentamente —, vamos ficar juntos por algum tempo.

Não havia medo nos olhos dela.

— Não resolvemos isso ainda, não é?

— Resolvemos o quê?

— Aonde eu vou. Você e o russo disseram que eu tinha de confiar em vocês, fazer o que estavam fazendo, sair da Córsega e não dizer nada. Bem, signore, deixamos a Córsega e confiei em vocês. Não fugi.

—E por que não?

Antonia fez uma breve pausa.

— Por medo, sabe disso. Vocês não são homens normais. Falam com cortesia, mas movem-se rápido demais para cavalheiros. As duas coisas não combinam. Acho que, no fundo, são o que os malucos das Brigadas Vermelhas gostariam de ser. Vocês me assustam.

— E isso a impediu de fugir?

— O russo queria matar-me. Vigiava-me cuidadosamente, teria atirado no momento em que pensasse que eu fugia.

— Na verdade, ele não queria matá-la e não a teria matado. Estava apenas mandando um aviso.

— Não compreendo.

— Não precisa compreender, você não corria perigo algum.

— E não corro agora? Aceita minha palavra de que não direi nada e deixa-me ir embora?

— Para onde?

— Bolonha. Lá, sempre posso arranjar emprego.

— Fazendo o quê?

— Nada de muito importante. A universidade contrata-me como pesquisadora. Pesquiso estatísticas maçantes para professores que escrevem livros e artigos maçantes.

— Pesquisadora? — Bray sorriu consigo mesmo. — Você deve ser muito precisa.

— O que é ser precisa? Fatos são fatos. Vai deixar-me voltar para Bolonha?

— Então seu trabalho não é permanente?

— É o tipo de trabalho de que eu gosto — respondeu Antonia. — Trabalho quando quero, o que me deixa tempo para outras coisas.

— Então você é autônoma, sem patrão e dona do próprio negócio — disse Scofield, divertindo-se. — Não é essa a essência do capitalismo?

— E você é muito irritante! Faz perguntas, mas não responde as minhas!

— Desculpe. Ê característico da minha profissão. Qual foi sua pergunta?

— Vai deixar-me ir embora? Aceita minha palavra, confia em mim? Ou terei de aguardar, um momento em que não esteja me vigiando e fugir?

— Não faria isso se fosse você — retrucou Bray com cortesia. — Olhe aqui, você é uma pessoa honesta. Não conheço muitas. Há instantes, disse que não fugia porque tinha medo, não porque não confiava em nós, isso é honesto. Você trouxe-nos a Bastia, seja honesta comigo agora. Sabendo do que sabe, vendo o que viu em Porto Vecchio, que valor tem sua palavra?

A meia-nau, quatro tripulantes içavam o bote salva-vidas sobre a amurada e Antonia os observava enquanto falava.

— Está sendo injusto. Sabe o que vi e sabe o que me disse. Quando penso nisso, tenho vontade de gritar e... — Não terminou. Virou-lhe as costas e falou numa voz cansada: — Que valor tem minha palavra? Não sei. Então, que me resta? Será você e não o russo que vai disparar o tiro?

— Talvez eu lhe ofereça um emprego.

— Não quero seu emprego.

— Veremos — disse Bray.

— Venite súbito, signori. La landa va partire.

O bote estava na água. Scofield pegou a sacola a seu lado e pôs-se de pé, estendendo a mão para Antonia.

— Vamos. Já lidei com gente muito mais fácil.

Era verdade. Poderia matá-la se fosse preciso, mas ia tentar que não fosse.

Agora, onde estava uma vida nova para Beowulf Agate?

Deus, como detestava esta.

 

Bray alugou um táxi em Fiumicino. A princípio, o motorista relutou em aceitar um passageiro para Roma, mas mudou de idéia imediatamente quando viu o dinheiro na mão de Scofield. Pararam para uma rápida refeição e chegaram ao centro da cidade antes das oito horas. As ruas estavam apinhadas e as lojas fazendo bom negócio essa noite.

— Encoste na calçada — disse Bray ao motorista. Estavam em frente de uma loja de roupas. — Espere aqui — acrescentou, incluindo Antonia. — Vou adivinhar seu manequim. — Abriu a porta.

— O que está fazendo? — perguntou a moça.

— Uma transição — Scofield respondeu em inglês. — Você não pode entrar numa loja decente vestida assim.

Cinco minutos depois, voltou carregando uma caixa com calças compridas, uma blusa branca e um suéter de lã.

— Vista isso — disse.

— Está louco!

— A modéstia é uma grande qualidade, mas estamos com pressa. As lojas vão fechar dentro de uma hora. Tenho o que vestir, você não. — Falou com o motorista, cujos olhos estavam grudados no espelho retrovisor. — Você entende inglês melhor do que pensei — disse em italiano. — Dê umas voltas. Depois direi aonde vamos.

Abriu a sacola e tirou uma jaqueta de tweed.

Antonia mudou de roupa no banco traseiro do táxi, olhando freqüentemente para Scofield. Quando tirou as calças caqui e colocou as outras, as luzes da rua iluminaram-lhe as longas pernas. Bray olhava pela janela, consciente de que estava afetado pelo que via com o rabo do olho. Há muito tempo que não possuía uma mulher, e não possuiria essa. Era muito possível que tivesse de matá-la.

Ela enfiou o suéter em cima da blusa e a lã frouxa não lhe escondeu a curva dos seios. Scofield fez questão de fixar os olhos nos olhos dela.

— Está bem melhor. Completamos a fase número um.

— Você é muito generoso, mas eu não teria escolhido isso.

— Pode jogar tudo fora dentro de uma hora. Se alguém lhe perguntar, chegou em Ladispoli num barco de aluguel. — Falou novamente com o motorista. — Vá para a Via Condotti, lá eu lhe pago; não vamos precisar mais de você.

 

A loja na Via Condotti era cara, servindo os ociosos e ricos, e era óbvio que Antonia Gravet nunca estivera num lugar assim. Óbvio para Bray, duvidava que o fosse para qualquer outra pessoa, pois ela tinha bom gosto inato, não-cultivado. Poderia estar explodindo ao ver aquela quantidade de vestimentas expostas, mas estava totalmente controlada. Era aquela elegância que Bray havia visto no bar imundo à beira do cais de Bastia.

— Gosta? perguntou ela, saindo de uma cabina com um vestido de seda escura, discreto, chapéu de abas largas, branco, e sapatos de salto alto, também brancos.

— Muito bonito — disse Scofield, com sinceridade, incluindo o vestido, ela e tudo mais que viu.

— Sinto-me como uma traidora a tudo em que acreditei por tanto tempo — acrescentou ela, num murmúrio. — Esses preços alimentariam dez famílias por um mês! Vamos a outra loja.

— Não temos tempo. Fique com isso e escolha um casaco e tudo mais de que precisar.

— Está louco!

— Estou com pressa.

De uma cabina telefônica na Via Sistina, ele chamou uma pensão, onde ficara várias vezes quando vinha a Roma, situada na Piazza Navona. O dono e a esposa nada sabiam sobre Scofield, não tinham a menor curiosidade sobre os hóspedes passageiros, só sabiam que Bray costumava dar gorjetas generosas. Teriam o maior prazer em acomodá-lo à noite.

A Piazza Navona estava apinhada; sempre estava, e por isso era ideal para um homem de sua profissão. As fontes Bernini atraíam tanto os nativos quanto os turistas, os numerosos bares de calçada eram pontos de encontro, planejados ou espontâneos; para Scofield, era sempre planejado. Uma mesa numa praça cheia era um lugar propício para alguém verificar se está sendo vigiado. Não era necessário preocupar-se com isso agora.

Agora só era necessário dormir, limpar a mente. Amanhã teria de tomar uma decisão: a vida ou a morte da mulher ao seu lado, a quem ele guiava através da praça, em direção a um velho edifício de pedras onde se localizava a pensão.

O teto do quarto era alto, as janelas enormes, dando para a praça três andares abaixo. Bray empurrou o sofá contra a porta e apontou para a cama do outro lado do quarto.

— Quase não dormimos naquele barco desgraçado. Descanse um pouco.

Antonia abriu uma das caixas da loja da Via Condotti e tirou o vestido de seda escura.

— Por que me comprou essas roupas tão caras?

— Amanhã, vamos a alguns lugares onde você vai precisar delas.

— Por que vamos a lugares assim? Devem ser muito caros.

— Não. Preciso encontrar certas pessoas e quero que você vá comigo.

— Queria agradecer-lhe. Nunca tive roupas tão lindas.

— Não tem o que agradecer. — Bray foi até a cama e tirou a coberta, voltando para o sofá. — Por que deixou Bolonha e voltou para a Córsega?

— Mais perguntas? — estava muito controlada.

— Estou curioso, é só isso.

— Já lhe disse. Queria me afastar por um pouco. Não é razão suficiente?

— Não explica nada.

— É a explicação que prefiro dar.

Contemplou o vestido que ainda segurava.

Scofield espalhou a coberta no sofá.

— Por que a Córsega?

— Viu aquele vale. É remoto, sereno. Um bom lugar para se pensar.

— Remoto é, e isso o faz um bom esconderijo. Estava se escondendo de alguém ou alguma coisa?

— Por que diz coisas assim?

— Tenho de saber. Estava se escondendo?

— Não de alguma coisa que você entendesse.

— Experimente.

— Pare! — Antonia estendeu-lhe o vestido. — Tome suas roupas. Tome o que quiser de mim, não posso impedi-lo! Mas deixe-me em paz

Bray aproximou-se dela. Pela primeira vez, viu medo em seus olhos.

— Acho melhor me contar. Aquela conversa toda sobre Bolonha... era mentira. Não voltaria lá mesmo que pudesse. Por quê?

Ela o encarou por um momento, os olhos brilhando. Quando começou a falar, virou de costas e foi até a janela que dava para a Piazza Navona.

— É melhor que saiba, não faz mais diferença... Está errado, posso voltar, eles me esperam... Se não voltar, algum dia virão à minha procura.

— Quem?

— Os líderes das Brigadas Vermelhas. Contei-lhe no barco que fugi do acampamento em Medicina. Isso foi há mais de um ano, e por mais de um ano tenho vivido uma mentira muito maior do que a que lhe contei. Eles me encontraram e fui levada a julgamento na Corte Vermelha, o que eles chamam de Corte Vermelha da Justiça Revolucionária. A sentença de morte não é apenas uma frase, é uma execução real, e o mundo agora sabe disso. Não tinha sido doutrinada, mas sabia a localização do acampamento e tinha testemunhado a morte do rapaz. Pior de tudo, eu fugira, não podiam confiar em mim. Claro que eu não tinha a menor importância, comparada com os objetivos da revolução. Disseram que eu tinha provado que era menos que insignificante, era uma traidora. Percebi o que ia acontecer e implorei que me salvassem a vida. Aleguei que tinha sido amante do estudante e que minha reação era compreensível, embora talvez não louvável. Enfatizei que não dissera nada a ninguém, muito menos à polícia. Estava dedicada à revolução como todos naquela corte, talvez mais do que muitos, pois vinha de uma família verdadeiramente pobre. Fui muito persuasiva, à minha maneira, mas tive outra vantagem. Para compreender isso, precisa saber como se organizam esses grupos. Há sempre um quadro de homens fortes e, dentro dele, um ou dois que disputam a chefia, como lobos numa alcatéia, rosnando, dominando, escolhendo as companheiras à vontade, pois isso é parte do domínio. Um homem desses me quis. Era provavelmente o mais cruel do grupo, os outros tinham medo dele, e eu também. Mas ele podia salvar-me a vida e fiz minha escolha. Vivi com ele por mais de um ano, detestando cada dia, desprezando as noites em que me possuía, odiando a mim mesma tanto quanto o odiava. Não podia fazer nada, vivia apavorada, um pavor tremendo de que o mais ligeiro movimento fosse mal-interpretado e um tiro me estourasse a cabeça... seu método favorito de execução.

Antonia deu as costas à janela.

— Perguntou-me por que não fugi de vocês. Talvez compreenda melhor agora; essas condições de sobrevivência não me eram desconhecidas. Fugir significa a morte, mesmo agora. Era cativa em Bolonha, tornei-me cativa em Porto Vecchio... e agora sou cativa em Roma. — Parou e depois prosseguiu. — Estou cansada de todos vocês. Não agüento mais. Chegará o momento e fugirei... e você atirará. — Estendeu o vestido novamente. — Tome suas roupas, Signore Scofield. Corro melhor de calças.

Bray não se moveu, nem fez objeção alguma, por gesto ou palavra. Quase sorriu, mas não podia fazer isso, tampouco.

— Gosto de saber que seu fatalismo não inclui suicídio intencional. Quer dizer, você vai oferecer alguma resistência.

— Pode contar com isso.

Deixou cair o vestido no chão.

— Não a matarei, Antonia.

Riu baixo, com escárnio.

— Ora, claro que sim. Você e o russo são os piores. Em Bolonha, eles matam com fogo nos olhos, gritando lemas. Vocês matam sem raiva... não precisam de um fogo interno.

“Há muito tempo, eu precisava. A gente acaba se acostumando. Não há mais compulsão, só necessidade. Por favor, não fale nessas coisas. A vida que viveu é o perdão da sua execução, não precisa saber mais nada.”

— Não vou discutir com você. Não disse que não podia, ou não o faria, apenas que não ia fazê-lo. Estou tentando dizer-lhe, não precisa fugir.

Ela franziu a testa.

— Por quê?

— Porque preciso de você. — Scofield ajoelhou-se, pegou o vestido e entregou-o à moça. — Só me resta convencê-la de que você precisa de mim.

— Para salvar-me a vida?

— Para devolvê-la a você. Em que forma, não sei, mas melhor que antes. Quando não tiver medo.

— Isso pode demorar muito. Por que devo acreditar?

— Acho que não tem escolha. Não posso dar-lhe outra resposta enquanto não souber mais, mas vamos começar com o fato de que as Brigadas não estão só em Bolonha. Disse que, se não voltasse, eles viriam à sua procura. As... alcatéias... vagam pela Itália inteira. Quanto tempo pode ficar escondida até que a encontrem, se quiserem mesmo encontrá-la?

— Poderia ter ficado escondida por muitos anos na Córsega. Em Porto Vecchio. Nunca me encontrariam.

— Não é mais possível, e, mesmo que fosse, é esse o tipo de vida que deseja? Passar a vida isolada naquelas colinas? Os homens que mataram a velha são iguais às Brigadas. Um quer guardar seu mundo e seu segredo nojento e mata por isso, o outro quer mudar o mundo, usando o terror, e mata todos os dias por isso. Acredite-me, eles estão ligados um ao outro. É essa conexão que Taleniekov e eu estamos procurando, e é bom encontrá-la antes que esses loucos nos mandem todos para os ares. Sua avó disse certo: está acontecendo em toda parte. Pare de se esconder. Ajude-nos. Ajude-me.

— Não tenho maneira de ajudá-lo.

— Não sabe o que vou lhe pedir.

— Sei, sim. Quer que eu volte!

— Mais tarde, talvez. Agora não.

— Não vou! São uns porcos. E ele é o maior porco do mundo!

— Então elimine-o. Elimine todos eles. Não os deixe crescer, não os deixe fazê-la prisioneira, seja na Córsega ou aqui ou em qualquer outra parte. Será que não compreende? Eles vão encontrá-la se acharem que você constitui uma ameaça para eles. Quer voltar assim? Para ser executada?

Antonia afastou-se, parou perto do sofá que Bray colocara em frente da porta.

— Como vão me encontrar? Você vai ajudá-los?

— Não — disse Scofield, permanecendo imóvel. — Não será preciso.

— Há centenas de lugares aonde poderei ir...

— E há milhares de maneiras de encontrá-la.

— É mentira! — Virou-se e encarou-o. — Não têm esses métodos.

— Acho que têm. Pelo mundo afora, grupos como as Brigadas estão recebendo informações, dinheiro, acesso a aparelhamento sofisticado, e na maioria dos casos não sabem como, nem por quê. São apenas uns soldadinhos, e isso é irônico, mas encontrarão você.

— Soldados de quem?

— Dos Matareses.

— Que loucura!.

— Gostaria que fosse, mas temo que não seja. Muita coisa aconteceu e não pode ser só coincidência. Homens que acreditavam na paz foram assassinados; um estadista respeitado pelos dois lados procurou outras pessoas e mencionou o assassinato... e desapareceu. Estão em Washington, em Moscou... na Itália e na Córsega, e Deus sabe onde mais. Estão lá, mas não podemos vê-los. Só sei que temos de encontrá-los, e aquela velha nas colinas deu-nos a primeira informação concreta em que nos podemos basear. Era cega, mas viu... porque estava lá quando tudo começou.

— Palavras!

— Fatos. Nomes.

De repente, um som. Não fazia parte do murmúrio da praça lá embaixo, era do outro lado da porta. Todos os sons são parte de um conjunto ou distintamente individuais; esse era individual. Um passo, a mudança de peso de um pé para o outro, couro arranhando pedra. Bray colocou o indicador nos lábios e fez um gesto mandando Antonia ir para a esquerda do sofá, enquanto ele se colocava à direita. Ela ficou confusa, pois não ouvira nada. Por gestos, pediu-lhe que o ajudasse a afastar o sofá da porta. Com jeito, silenciosamente.

Pronto.

Scofield mandou-a para um canto do quarto, tirou a Browning e recomeçou a falar em voz natural, enquanto ia, pé ante pé, em direção à porta, com o rosto voltado.

— Os restaurantes não estão muito cheios. Vamos ao Tre Scalini. Deus sabe que estou...

Abriu repentinamente a porta: não havia ninguém no corredor. No entanto, não se enganara, sabia o que tinha ouvido, os anos ensinaram-lhe a não cometer tais erros. E os anos também lhe ensinaram a ficar furioso consigo mesmo por ser descuidado. Desde Fiumicino, tinha sido muito descuidado, ignorando a probabilidade de vigilância. Roma era um posto de baixa prioridade; há quatro anos cessara o tráfego pesado e a CIA, as Operações Consulares e a KGB mantinham um mínimo de atividade. Há mais de onze meses que não vinha a Roma, e naquele tempo os registros já indicavam que não havia ali agentes de importância. O potencial de serviço secreto diminuíra muito em Roma no ano anterior... quem poderia ser?

Havia alguém e fora descoberto. Alguém, há poucos instantes, estivera perto da porta, escutando, procurando confirmar uma presença. A interrupção da conversa o tinha alertado, mas estivera lá, nas sombras do corredor ou na escada.

Diabo, pensou Bray, furioso, dando uma busca no patamar, como podia ter esquecido que todos os postos deveriam ter sido alertados? Era um fugitivo e tinha sido descuidado. Onde teriam pegado sua pista? Na Via Condotti? Atravessando a Piazza?

Ouviu ar escapando e, no mesmo instante, seus instintos disseram-lhe que era tarde demais para reagir. Enrijeceu o corpo e virou-se para a direita, atirando-se ao chão para diminuir o impacto do golpe.

Abria-se subitamente uma porta atrás dele e um vulto que era apenas uma sombra precipitou-se sobre ele com o braço levantado no ar, mas só por um instante. Desceu sobre ele e a onda de dor espalhou-se da base do crânio, pelo peito, até os joelhos, onde se fixou, trazendo os ventos de colapso e escuridão.

 

Piscou os olhos cheios de lágrimas de dor, desorientado, mas começando a sentir um mínimo de alívio. Há quantos minutos estaria deitado ali, no chão do corredor? Não podia dizer, mas sentia que não haviam sido muitos.

Levantou-se devagar e olhou o relógio. Estivera desacordado aproximadamente quinze minutos. Se não tivesse torcido o corpo um segundo antes do impacto, teria sido perto de uma hora.

Por que estaria ali?. Sozinho? Onde estaria seu captor? Não fazia sentido! Havia sido capturado e abandonado. Então, por que a captura?

Ouviu um grito abafado, suspenso ao meio, e virou-se em direção ao som, confuso. Mas logo se desfez a confusão: não era ele o alvo, nunca tinha sido, era ela: Antonia. Ela é que tinha sido descoberta, não ele.

Scofield pôs-se de pé, escorou-se na grade da escada e olhou o chão ao seu redor. A Browning tinha desaparecido, naturalmente, e não tinha outra arma. Mas tinha outra coisa: consciência. Seu assaltante não esperaria isso. O homem soubera precisamente onde golpear com o cano da arma e contaria que sua vítima ficasse inconsciente muito mais que esses poucos minutos. Atrair esse homem não seria grande problema.

Bray caminhou silenciosamente até a porta do quarto e encostou o ouvido ao painel. Os gemidos eram mais pronunciados agora. Gritos agudos de dor, abruptamente silenciados. Certamente uma mão forte, comprimida contra a boca com os dedos apertando a carne, estrangulando todos os sons, menos os grunhidos. E ouviu palavras ásperas em italiano.

— Prostituta! Porca! Era Marselha Novecentas mil liras! Duas ou três semanas, no máximo! Ele não estava lá. Nenhum mensageiro de drogas ouviu falar em você! Mentirosa! Prostituta! Onde estava? Que você fez? Traidora!

Soou um grito, cortado abruptamente, seguido de um gemido gutural lancinante em seu tormento. Em nome de Deus, que estaria acontecendo? Scofield bateu com a mão na porta, berrando como se estivesse meio inconsciente, incoerente, as palavras indistintas e quase incompreensíveis.

— Pare! Pare com isso! Que está acontecendo? Não posso... não posso... Espere! Vou lá embaixo correndo! A polícia está na praça. Vou buscar a policia!

Bateu com os pés no chão de pedra como se estivesse correndo e diminuiu a voz até ficar em silencio. Encostou-se na parede e esperou, escutando o tumulto dentro do quarto. Ouviu bofetadas e arquejos convulsivos de dor.

De repente, houve um baque surdo e um corpo, o corpo dela, foi jogado contra a porta, a porta se abriu abruptamente e Antonia foi arremessada à frente com tanta violência que caiu de joelhos. O que Bray viu fê-lo sustar qualquer reação. Não havia emoção, só ação... e o inevitável: teria que punir.

O homem transpôs o portal correndo, de arma em punho. Scofield estirou a mão direita, pegando a arma, e, ao mesmo tempo, descreveu uma pirueta, dando um pontapé cruel na virilha do atacante. O homem fez uma careta de choque e dor súbita; a arma caiu ao chão, batendo ruidosamente na pedra. Bray agarrou-o pela garganta, batendo-lhe com a cabeça na parede e virando-o pelo pescoço contra o portal. Manteve o italiano em pé e socou-o violentamente nas costelas, até ouvir os ossos estalarem. Meteu o joelho na base da espinha e, com as duas mãos funcionando como martelos, atirou-o de cara para dentro do quarto. O italiano caiu por cima do sofá, rolando no chão inconsciente. Scofield correu para Antonia.

Agora podia permitir-se uma reação: sentiu-se mal. O rosto estava todo machucado; linhas vermelhas espalhavam-se das inchações causadas por golpes repetidos à cabeça; o canto do olho esquerdo estava tão contundido que a pele se rasgara; dois fios de sangue corriam-lhe pela face. O suéter tinha sido tirado à força, a blusa branca feita em pedaços, não sobraram mais que uns fiapos de fazenda. Abaixo da blusa, o sutiã tinha sido arrancado e pendurava-se de uma só alça.

Foi essa carne exposta que lhe deu engulhos. Estava coberta de queimaduras de cigarro, círculos feios de carne queimada que iam do pélvis, atravessando o ventre chato, até a curva do seio direito e o pequeno mamilo vermelho.

O homem que fizera isso não era um interrogador buscando informação, isso era secundário, era um sádico, satisfazendo sua tara o mais brutalmente possível. Bray ainda não terminara com esse homem.

Antonia gemeu, sacudindo a cabeça de um lado para o outro, implorando que não a magoassem novamente. Pegou-a nos braços e levou-a de volta ao quarto, fechou a porta com o pé, deu a volta em torno do sofá, passou pelo homem ainda inconsciente e foi até a cama. Deitou-a cuidadosamente, sentou-se a seu lado e puxou-a contra o peito.

— Está tudo bem. Acabou tudo, ele não vai mais tocar em você. — Sentiu suas lágrimas contra o rosto e, logo depois, os braços que o rodeavam. De repente, ela agarrou-se a ele fortemente, tremendo, chorando e implorando mais que alívio da dor imediata... implorava a liberação de um tormento que rugia dentro dela há muito tempo. Mas não estava na hora de sondá-la. Era preciso examinar a extensão de suas feridas e tratar delas.

Havia um médico na Viale Regina, e um homem no chão que não podia ignorar. Seria difícil levar Antonia ao médico, a não ser que conseguisse acalmá-la; dispor do sádico no chão seria muito simples. Talvez até desse algum resultado.

Chamaria a polícia de uma cabina telefônica em algum lugar e daria o endereço da pensão. Encontrariam um homem e sua arma, e um sinal tosco sobre o corpo inconsciente.

Brigadas.

 

O médico fechou a porta da sala de exames e falou em inglês. Estudara em Londres e fora recrutado pelo serviço secreto britânico. Scofield o encontrara numa missão que envolvera as Operações Consulares e o MI-6. Era seguro. Pensava que todos os serviços clandestinos eram ligeiramente loucos, mas, como os ingleses tinham pago seus dois últimos anos na Escola de Medicina, cumpria seu lado da barganha. Era sempre chamado para tratar de pessoas desequilibradas que trabalhavam num negócio muito. tolo. Bray gostava dele.

— Está sob a ação de sedativos e minha esposa está com ela. Vai acordar dentro de alguns minutos, e então podem ir.

— Como está ela?

— Com dor, mas não vai durar. Tratei as feridas com um ungüento que age como anestésico local. Dei-lhe um pote para levar. — O médico acendeu um cigarro: ainda não terminara. — Aplique bolsas de gelo nas contusões faciais. A inchação cederá amanhã de manhã. Os cortes são mínimos, não foi preciso suturar.

— Então está bem — disse Scofield, aliviado.

— Não, não está, Bray. — O médico expeliu a fumaça. — Oh, clinicamente está bem, e com um pouco de maquilagem e óculos escuros estará, sem dúvida, em pé e andando amanhã ao meio-dia. Mas não está bem.

— Que quer dizer com isso?

— Você a conhece bem?

— Muito pouco. Encontrei-a há vários dias, não importa onde...

— Não estou interessado — interrompeu o médico. — Nunca estou. Só queria que soubesse que essa noite não foi a primeira vez que isso lhe aconteceu. Há provas de surras anteriores, algumas muito severas.

— Deus meu... — Scofield pensou imediatamente nos gritos de angústia que ouvira há menos de uma hora. — Que espécie de provas?

— Cicatrizes de lacerações múltiplas e de queimaduras. Todas bem pequenas e precisamente colocadas para causar o máximo de dor.

— Recentes?

— Diria um ano, aproximadamente. Alguns tecidos ainda estão moles, são relativamente novos.

— Tem alguma idéia?

— Sim. As pessoas falam durante um trauma severo. — O médico parou, puxando pelo cigarro. — Não é preciso dizer-lhe isso, você sabe muito bem.

— Continue — disse Bray.

— Acho que foi sistematicamente, psicologicamente, quebrada. Repetiu muitas coisas; fidelidade a isso e aquilo; lealdade além da morte e tortura pessoal ou de camaradas. Esse tipo de besteira.

— Os membros da Brigada eram uns filhos da puta muito ativos — disse Bray.

— O quê?

— Nada, esqueça.

— Esquecido. Aquela linda cabeça está em total confusão.

— Não tanto quanto pensa. Ela escapou.

— Intacta e funcionando? — perguntou o médico.

— Na maior parte.

— Então é excepcional.

— O que é mais importante: é exatamente do que eu preciso — disse Scofield.

— E essa é resposta que se dê? — A zanga do médico era óbvia. — Vocês sempre me desapontam. As cicatrizes dessa mulher não são só na pele, Bray. Ela foi brutalizada.

— Está viva. Gostaria de estar presente quando passar o efeito da sedação. Posso?

— Para pegá-la com a mente funcionando só pela metade e extrair suas respostas? — O médico parou novamente. — Desculpe, não tenho nada a ver com isso.

— Gostaria que tivesse, se ela precisar de auxílio. Se não se importa.

O médico estudou-o em silêncio.

— Meus serviços limitam-se à medicina, sabe disso.

— Compreendo. Ela não tem ninguém, não é daqui. Pode procurá-lo... se uma dessas cicatrizes se abrir?

O italiano assentiu com a cabeça.

— Diga-lhe que me procure se precisar de cuidados médicos. Ou de um amigo.

— Muito obrigado. E obrigado também por outra coisa: armou várias peças de um quebra-cabeça que eu não conseguira decifrar. Vou entrar agora, se me permitir.

— Pode ir. Diga a minha esposa que venha para cá.

 

Scofield tocou a face de Antonia. Jazia imóvel na cama, mas, a seu toque, rolou a cabeça para o lado, abriu os lábios e um gemido de protesto lhe escapou da garganta. Tudo se esclarecia agora, o quebra-cabeça que era Antonia Gravet estava se resolvendo. O que faltara era foco, não tinha podido ver através da parede de vidro opaco que ela erigira contra o mundo exterior. A mulher dominadora das colinas, que mostrara coragem sem a força essencial, e que podia encarar um homem que ela acreditava que a quisesse ver morta e dizer-lhe que atirasse. A mulher infantil no barco de arrasto, encharcada de mar, dada a risadas contagiosas repentinas. As risadas o haviam confundido, mas não o confundiam mais. Era sua maneira de agarrar-se a breves momentos de alívio e normalidade. O barco era seu refúgio temporário; não iriam magoá-la ali, então aproveitou ao máximo. Como uma criança abusada ou um prisioneiro a quem concedessem uma hora de ar fresco e sol. Tome esses momentos e aproveite-os, se puder esquecer nesses breves momentos.

Uma mente ferida trabalhava assim. Scofield havia visto tantas mentes cheias de cicatrizes que podia reconhecer a síndrome, desde que compreendesse as cicatrizes. O médico usara a frase “aquela linda cabeça está em total confusão”. Que se poderia esperar? Antonia Gravet passara sua própria eternidade num labirinto de dor. Sobrevivera sem tornar-se um vegetal, o que era mais que extraordinário, era a marca de uma profissional.

Muito estranho, pensou Bray, mas esse era o maior elogio que ele podia dedicar-lhe. E, de certa maneira, enchia-o de náuseas.

Ela abriu os olhos, piscando com medo, os lábios tremendo. Aí pareceu reconhecê-lo, o medo desapareceu de seu olhar e parou de tremer. Ele tocou-lhe o rosto novamente, e os olhos dela refletiram o conforto que esse toque lhe dava.

— Grazie — murmurou. — Obrigada, obrigada, obrigada...

Inclinou-se sobre ela.

— Sei de quase tudo — disse suavemente. — O médico contou-me o que lhe fizeram. Agora conte-me o resto. Que aconteceu em Marselha?

Seus olhos encheram-se de lágrimas e recomeçou a tremer.

— Não! Não me pergunte!

— Por favor. Tenho de saber. Não podem tocá-la, não lhe tocarão nunca mais.

— Viu o que fazem! Ah, meu Deus, a dor...

— Acabou. — Enxugou-lhe as lágrimas com os dedos. — Ouça-me. Agora compreendo tudo. Disse-lhe coisas estúpidas porque não entendia, não sabia. Claro que queria escapar, esconder-se, isolar-se, pedir demissão da raça humana, por Deus, compreendo isso. Mas você não entende? Não pode. Ajude-nos a sustá-los, ajude-me a fazê-los parar. Fizeram você sofrer tanto... faça com que paguem por isso, Antonia. Fique com raiva, merda! Basta olhar para você que fico furioso!

Não pôde dizer o que funcionou; talvez o fato de que ele se importava, o que era verdade, e não escondeu esse sentimento. Estava em seus olhos, em suas palavras, ele o sabia. Seja o que for, as lágrimas pararam, os olhos castanhos brilharam como haviam brilhado no barco de arrasto. Raiva e resolução vieram à tona. Contou o resto da história.

— Eu ia ser a prostituta das drogas — disse. — A mulher que viajava com o mensageiro, ficando de olhos abertos e o corpo permanentemente disponível. Deveria dormir com homens ou mulheres, não fazia diferença, servindo-os como desejassem. — Antonia franziu o rosto com náusea. — A prostituta de drogas é muito valiosa para o mensageiro. Pode fazer o que ele não pode, ser suborno, isca e cão de guarda insuspeito. Fui... treinada. Deixei que pensassem que não oferecia mais nenhuma resistência. Escolheram meu mensageiro, um animal de boca suja que não podia esperar para possuir-me, pois eu tinha sido a favorita do mais forte e isso lhe dava status. Estava enojada com o que me esperava, mas contava as horas, sabendo que cada uma levava-me mais perto do que eu sonhara há meses. O mensageiro imundo e eu fomos levados a La Spezia, onde fomos passados para um cargueiro com destino a Marselha e o contato que organizaria as rotas de drogas. O mensageiro não podia esperar, e eu estava pronta para ele. Puseram-nos num quarto de guardados no porão. O navio só sairia dali a uma hora; então disse ao porco que talvez devêssemos esperar para não nos arriscarmos a ser interrompidos, mas ele não quis, e sabia que não ia querer, e se quisesse eu o teria provocado, pois cada minuto me era precioso. Sabia que não podia deixar que me levassem para alto-mar, pois aí terminaria minha existência. Havia feito uma promessa a mim mesma: ia atirar-me ao mar à noite e afogar-me em paz, mas não encararia Marselha, onde todo o horror iria recomeçar. Mas não foi preciso...

Antonia parou, engasgada com a dor de suas recordações. Bray tomou-lhe a mão e a segurou entre as suas.

— Continue — disse.

Era preciso que falasse. Era o momento final e tinha de encará-lo e exorcizá-lo, sabia disso tão bem como se fosse ele mesmo.

— O porco arrancou meu casaco e rasgou minha blusa. Não importava que eu estivesse pronta a tirá-los, tinha de mostrar sua força bruta, tinha de estuprar, pois queria tomar, não queria que lhe dessem nada. Rasgou minha saia e fiquei nua à sua frente. Tirou as roupas como um louco e colocou-se embaixo da luz, suponho que para impressionar-me com sua nudez. Agarrou-me pelos cabelos e forçou-me a ajoelhar-me... à altura de sua cintura... fiquei profundamente enjoada. Mas sabia que ia chegar a hora, então fechei os olhos e representei meu papel e pensei nas belas colinas de Porto Vecchio, onde morava minha avó... onde eu moraria pelo resto de minha vida. Aconteceu. O mensageiro atirou-se sobre mim. Fiz nossos corpos se aproximarem do rolo de corda, gritando o que meu estuprador queria ouvir, enquanto procurava alcançar com a mão o centro do rolo. Chegara minha hora. Tinha uma faca, uma faca de mesa comum, que afiara na pedra e escondera no rolo de corda. Peguei o cabo e pensei novamente nas lindas colinas de Porto Vecchio. E quando aquele lixo estava deitado nu em cima de mim. levantei a faca e afundei-a em suas costas. Gritou e tentou erguer-se, mas a ferida era profunda demais. Retirei a faca e afundei-a novamente, e mais uma vez, e mais uma... e, ai, mãe de Deus!, mais uma e mais uma! Não conseguia parar de matar!

Tinha dito tudo e agora chorava, descontrolada. Scofield segurou-a, acariciando-lhe os cabelos, não dizendo nada porque nada havia que pudesse dizer para aliviar-lhe a dor. Finalmente, o tremendo controle que tinha sobre si mesma restabeleceu-se.

— Tinha de fazer isso. Compreende, não é? — disse Bray. Ela balançou a cabeça.

— Sim.

— Esse é o primeiro passo, Antonia. Tem de aceitar isso. Não estamos num tribunal onde advogados discutem filosofias. É muito simples para nós. É uma guerra e você mata porque, se não matar, alguém a matará.

Ela respirou fundo, correndo o rosto dele com os olhos, deixando a mão presa nas dele.

— Você é um homem esquisito. Diz as palavras certas, mas sinto que não gosta de dizê-las.

“E não gosto. Não gosto do que sou. Não escolhi minha vida, ela precipitou-se sobre mim. Estou num túnel debaixo da terra e não consigo sair. As palavras certas são um conforto. A maior parte do tempo, preciso delas para preservar minha sanidade.”

Bray apertou-lhe a mão.

— Que aconteceu depois?...

— Depois de eu matar o mensageiro?

— Depois que matou o animal que a estuprou e que a teria matado.

— Grazie ancora — disse Antonia. — Vesti as roupas dele, enrolei a bainha das calças, meti o cabelo dentro do boné e enchi a jaqueta, que era grande demais, com os restos de meu vestido. Fui até o tombadilho. O céu estava escuro, mas havia luz nas docas. Os estivadores carregavam as caixas, subindo e descendo a escada de bordo como um exército de formigas. Foi muito simples, entrei na fila e saí do navio.

— Muito bem — disse Scofield, com sinceridade.

— Não foi difícil. Só quando botei o pé no chão.

— Por quê? Que aconteceu?

— Porque queria gritar. Queria berrar e rir e correr pelo cais anunciando a todo mundo que estava livre. Livre! O resto foi muito fácil. O mensageiro tinha dinheiro no bolso da calça. Era mais que suficiente para me levar a Gênova, onde comprei roupas e uma passagem de avião para a Córsega. Cheguei em Bastia ao meio-dia do dia seguinte.

— E de lá para Porto Vecchio?

— Sim. Livre!

— Não completamente. Deus sabe que a prisão era diferente, mas você ainda era prisioneira. As colinas eram sua cela.

Antonia desviou os olhos.

— Seria feliz lá pelo resto de minha vida. Desde criança que amo aquele vale e as montanhas.

— Guarde-os na memória — disse Bray. — Não procure voltar.

Virou a cabeça para ele.

— Disse que um dia eu poderia voltar! Aqueles homens têm de pagar pelo que fizeram! Você mesmo concordou!

— Disse que esperava que pagassem. Talvez isso aconteça, mas deixe que outros se encarreguem disso, não você. Alguém vai fazer explodir sua cabeça se você puser o pé naquelas colinas.

Scofield soltou a mão dela e afastou os fios de cabelo escuro que tinham caído sobre o rosto quando ela se virará tão abruptamente para ele. Alguma coisa o perturbava, não sabia ao certo o que era. Estava faltando alguma coisa, haviam dado um salto, faltava um passo.

— Sei que não é justo obrigá-la a falar disso, mas estou confuso. As rotas das drogas... Como são organizadas? Você disse que escolhem um mensageiro e uma mulher é designada para viajar com ele. Ambos encontram o contato em um lugar especificado?

— É. A mulher usa um artigo específico em sua vestimenta e o contato se aproxima dela primeiro. Paga por uma hora de seus serviços e saem juntos, e o mensageiro os segue. Se acontecer alguma coisa, como uma interferência da polícia, o mensageiro declara que é o mezzano, o cáften dela.

— Então o contato e o mensageiro encontram-se através da mulher. E os narcóticos são entregues nessa hora?

— Acho que não. Lembre-se de que nunca fiz esse negócio, mas acho que o contato apenas organiza o cronograma de distribuição, aonde levar as drogas e quem deve recebê-las. Depois disso, manda o mensageiro a uma fonte, usando a prostituta como proteção.

— Para que, se alguém for detido, a prostituta assuma a culpa?

— Sim. As autoridades em drogas não prestam muita atenção a essas mulheres, são logo liberadas.

— Mas a fonte fica sendo conhecida, os cronogramas estão na mão e o mensageiro protegido...

— Que havia? Bray fixou os olhos na parede, procurando desemaranhar os fatos e localizar a omissão que tanto o perturbava.

— A maior parte dos riscos é reduzida ao mínimo — disse Antonia. — Mesmo a entrega é feita de tal maneira que a mercadoria pode ser abandonada a qualquer momento. Pelo menos, foi isso que deduzi das outras moças.

— A maior parte dos riscos... — repetiu Scofield. — Reduzidos ao mínimo?

— Não todos, claro, mas a maior parte. É muito bem organizado. Cada etapa tem seu próprio meio de escape.

— Organizado? Escape?... — Organizado! Era isso. O mínimo de riscos, o máximo de resultados! Era essa a configuração. Voltava ao início... ao conceito original. — Antonia, diga-me, de onde vinham esses contatos? Como chegaram às Brigadas?

— As Brigadas fazem muito dinheiro com narcóticos. O mercado de drogas é sua principal fonte de renda.

— Mas como começou? Quando?

— Alguns anos atrás, quando as Brigadas começaram a expandir-se.

— Não aconteceu, simplesmente. Como aconteceu?

— Só posso contar-lhe o que ouvi. Um homem procurou os líderes, vários deles estavam na prisão. Disse-lhes que o procurassem quando saíssem de lá, que poderia ajudá-los a fazer muito dinheiro sem os grandes riscos de roubos e raptos.

— Em outras palavras — disse Scofield, pensando rapidamente enquanto falava —, ofereceu-se para financiá-los ao máximo com mínimo esforço. Uma equipe de dois saindo por três ou quatro semanas e voltando com uns nove milhões de liras. Setenta mil dólares por um mês de trabalho. Mínimo risco, máximo resultado. Muito pouca gente envolvida.

— Sim. A princípio os contatos eram dele, desse homem, e, por sua vez, levaram a outros. Como você disse, não são necessárias muitas pessoas e essas trazem grandes quantias de dinheiro.

— E assim as Brigadas podem concentrar-se na sua verdadeira vocação — completou Bray sarcasticamente. — A destruição da ordem social; em uma palavra, terrorismo. — Levantou-se da cama. — O homem que foi ver os líderes na prisão... ficou em contato com eles?

Ela franziu a testa.

— De novo, só posso dizer-lhe o que ouvi. Nunca mais foi visto após o segundo encontro.

— Aposto que não foi. Todas as negociações sempre são o mais afastadas possível do ponto de origem.,. Uma progressão geométrica, não se pode retraçar nenhuma linha. É assim que eles trabalham.

— Quem?

— Os Matareses.

Antonia olhou-o, espantada.

— Por que diz isso?

— Porque é a única explicação. Nenhum negociante em narcóticos que se preze jamais se misturaria com maníacos como as Brigadas. É uma situação controlada, uma charada criada para financiar o terrorismo, para que os Matareses possam continuar a financiar as armas e a matança. Na Itália, são as Brigadas Vermelhas; na Alemanha, a Baader-Meinhof; no Líbano, o OLP; em meu país, os Minutemen, os Weathermen, a Ku-Klux-Klan e a JDL, e todos os idiotas que explodiram bancos, laboratórios e embaixadas. Cada um financiado de forma diferente, secretamente. E todos eles foram apenas peões para os Matareses, peões maníacos, e isso é que mete medo. Quanto mais os alimentamos, mais eles crescem, e quanto mais crescem, maiores danos causam.

Estendeu a mão e pegou a dela, e só percebeu o que fazia quando as mãos se tocaram.

— Você tem certeza, não tem? De que está acontecendo.

— Agora mais do que nunca. Você acabou de mostrar-me como uma pequena parte do todo é manobrada. Sabia, ou pensei que sabia, que estava sendo manipulada, mas não sabia como. Agora sei, e não é preciso muita imaginação para pensar em variações. Ê uma guerra de guerrilhas com milhares de campos de batalha, e nenhum deles definido.

Antonia ergueu a mão dele, como para assegurar-se de que estava realmente ali, que lha havia sido dada; depois, seus olhos castanho-escuros fixaram-se nos dele, subitamente inquisitivos.

— Você fala como se essa guerra fosse novidade para você. Certamente que não é. Você é um agente secreto...

— Era — corrigiu Bray. — Não sou mais.

— Isso não altera o que você sabe. Disse, momentos atrás, que havia coisas que deviam ser aceitas, que as cortes e os advogados não valiam nada, que era preciso matar para não ser morto. E esta guerra é tão diferente assim?

— Mais do que posso dizer — respondeu Scofield, levantando os olhos para a parede branca. — Éramos profissionais e havia regras, a maioria feita por nós, muito severas, mas eram regras e nós as obedecíamos. Sabíamos o que estávamos fazendo, tudo tinha sentido. Acho que se poderia dizer que sabíamos quando parar. — Virou-se novamente para ela. — Agora são animais selvagens, soltos nas ruas. Não têm regras, não sabem quando parar, e os que os financiam não querem que aprendam. Não se iluda, são capazes de paralisar governos...

Bray parou, a voz foi diminuindo e morreu. Ouviu as próprias palavras e elas o surpreenderam. Ele mesmo o dissera. Numa frase só, ele o dissera! Era óbvio todo o tempo e nem ele nem Taleniekov tinham percebido! Tinham se aproximado, descrito círculos à sua volta, usando palavras que quase o definiram, mas não o tinham encarado claramente.

“... são capazes de paralisar governos...”

Quando a paralisia se espalha, perde-se o controle, tudo deixa de funcionar. Cria-se um vácuo no qual uma força que não está paralisada pode mover-se, penetrando no hospedeiro e assumindo o controle.

“Herdarão a Terra. Terão de volta o que era seu.” Outras palavras, pronunciadas por um louco há setenta anos. Mas não eram palavras políticas, na verdade, eram apolíticas. Nem se aplicavam a fronteiras específicas ou alguma nação obtendo ascendência. Eram dirigidas a um conselho, um grupo de homens ligados por um laço comum.

Mas esses homens estavam mortos; quem eram os homens, agora? E o que os ligava? Agora. Hoje.

— Que foi? — perguntou Antonia, vendo sua expressão tensa.

— Existe um cronograma — disse Bray, quase num murmúrio. — É como uma orquestração. O terrorismo aumenta a cada mês, como se seguisse um cronograma. Blackburn, Yurievich... foram testes, sondas de reação dos escalões mais altos. Winthrop criou alarme nesses círculos e teve de ser silenciado. Tudo se encaixa.

— E você está falando sozinho. Segura minha mão, mas fala sozinho.

Scofield olhou para ela, outra idéia lhe surgindo à mente. Ouvira duas histórias extraordinárias de duas mulheres excepcionais, as duas narrativas baseavam-se na violência e ambas as mulheres estavam ligadas ao mundo violento de Guillaume de Matarese. O Istrebiteli moribundo dissera em Moscou que a resposta poderia ser encontrada na Córsega. Não encontrara a resposta, mas descobrira indícios. Sem Sophia Pastorine e Antonia Gravet, a amante e á descendente, não tinha nada. Cada uma, à sua maneira, fizera revelações surpreendentes. O enigma do Matarese continuava a ser um enigma, mas não era mais inexplicável. Tinha forma, finalidade. Homens ligados por uma causa comum, cujo objetivo era paralisar os governos e assumir o controle... para herdar a Terra.

Aí jazia a possibilidade de uma catástrofe: a Terra poderia ir pelos ares no processo de ser herdada.

— Estou falando sozinho — concordou Bray — porque mudei de idéia. Disse que queria que você me ajudasse, mas você já sofreu bastante. Há outros, e eu os encontrarei.

— Entendo. — Antonia apoiou-se nos cotovelos, erguendo-se na cama. — De repente, não precisa mais de mim.

É.

— Por que pensou em mim?

Scofield hesitou antes de responder, calculando como ela aceitaria a verdade.

— Você tinha razão, era uma coisa ou outra, incorporá-la ou matá-la.

Antonia estremeceu.

— Mas não é mais assim? Não é necessário matar-me?

— Não. Não há necessidade. Você não diria nada. Não mentiu para nós, sei o que passou. Não quer voltar, ia matar-se para não acabar em Marselha, e acho que seria capaz disso.

— Então, que vai acontecer comigo?

— Encontrei-a escondendo-se, vou mandá-la de volta às escondidas. Vou dar-lhe dinheiro e de manhã arranjarei seus documentos e um vôo de Roma para algum lugar bem distante. Escreverei algumas cartas que você levará às pessoas que lhe indicarei. Tudo vai dar certo. — Bray parou por um momento. Não pôde conter-se, tocou o rosto inchado e afastou um cacho de cabelo. — Talvez encontre outro vale na montanha, Antonia. Tão belo quanto aquele que deixou, mas com uma diferença: não será prisioneira. Ninguém neste mundo jamais a incomodará.

— Incluindo você, Brandon Scofield?

— Sim.

— Então é melhor matar-me.

— O quê?

— Não irei embora! Não pode forçar-me, não pode mandar-me embora porque é conveniente... ou, pior ainda, porque tem pena de mim! — Os olhos corsos escuros faiscaram novamente. — Que direito tem você? Onde estava quando fizeram essas coisas horríveis? A mim, não a você. Não tome decisões por mim! Mate-me primeiro!

— Não quero matá-la... não preciso matá-la. Queria ser livre, Antonia. Vá. Não seja idiota.

— Você é idiota! Posso ajudá-lo como ninguém mais!

— Como? A prostituta do mensageiro?

— Se for preciso, sim! Por que não?

— Pelo amor de Deus, por quê?

A moça estava rígida e respondeu pausadamente.

— Por causa do que disse...

— Sei — Scofield interrompeu. — Disse-lhe que ficasse zangada.

— E tem mais. Disse que, no mundo inteiro, aqueles que acreditam em causas, alguns não muito sabiamente, outros com raiva e desafio, estão sendo manipulados, encorajados à violência e ao assassinato. Conheço alguma coisa sobre causas; nem todos são insensatos, nem todos os crentes são animais. Muitos de nós querem mudar este mundo injusto e temos o direito de tentar! E ninguém tem o direito de nos transformar em prostitutas e assassinos. Você chama esses manipuladores de Matarese, eu digo que são mais ricos, mais poderosos, mas não são melhores que as Brigadas, que matam crianças e transformam pessoas como eu em mentirosos e assassinos! Quero ajudá-lo, não deixarei que me mande embora!

Bray estudou seu rosto.

— Vocês são todos iguais, não param de fazer discursos. Antonia sorriu, um sorriso meio amargo, mas tímido e encantador.

— É só o que podemos fazer, a maior parte do tempo. — O sorriso desapareceu e o rosto ficou triste, uma tristeza que Scofield não compreendeu. — Tem mais uma coisa.

— O quê?

— Você. Você é um homem cheio de pesar, é tão claro em seu rosto quanto as marcas em meu corpo, mas eu me lembro de quando era feliz. E você?

— Essa pergunta é irrelevante.

— Não para mim.

— Por quê?

— Poderia dizer que você me salvou a vida, e isso seria bastante, mas aquela vida não valia muito. Você deu-me outra coisa: uma razão para abandonar as colinas. Nunca pensei que alguém pudesse fazer isso por mim. Acaba de oferecer-me a liberdade, mas é tarde demais, já a tenho, e dada por você. Estou respirando novamente, portanto você é importante para mim. Gostaria que se lembrasse de quando era feliz.

— Quem está falando é a... mulher do mensageiro?

— Ela não é prostituta. Nunca foi.

— Desculpe.

— Não precisa pedir desculpas. Se é esse o presente que você quer, tome-o. Gostaria de acreditar que há outros.

De repente, Bray sentiu-se dolorido. A ingenuidade de sua oferta comoveu-o, magoou-o. Estava ferida e ele a ferira novamente, e sabia por quê. Tinha medo, preferia prostitutas, não queria ir para a cama com alguém a quem quisesse bem, era melhor não lembrar-se de um rosto ou de uma voz. Era muito melhor permanecer afundado na terra, já estava lá há tanto tempo... E agora essa mulher queria tirá-lo de lá e ele tinha medo.

— Aprenda o que eu lhe ensinar, isso já é um presente.

— Então posso ficar?

— Você acabou de dizer que não posso impedi-la.

— E é verdade.

— Sei e acredito. Se não acreditasse, estaria telefonando para um dos melhores falsificadores de Roma.

— Por que estamos em Roma? Pode dizer-me agora?

Bray não respondeu logo, depois acenou a cabeça.

— Por que não? Para descobrir o que resta de uma família chamada Scozzi.

— É um dos nomes que minha avó lhe deu?

— O primeiro. Eram de Roma.

— Ainda são de Roma — disse Antonia, como se estivesse falando do tempo. — Pelo menos um ramo da família, e não muito longe de Roma.

Scofield a olhou espantado.

— Como sabe disso?

— As Brigadas Vermelhas. Raptaram um sobrinho dos Scozzi-Paravacini de uma propriedade perto de Tivoli. Cortaram seu indicador e o mandaram para a família junto com o pedido de resgate.”

Scofield lembrou-se dos artigos nos jornais. O rapaz fora liberado, mas Bray não se recordava do nome Scozzi, somente de Paravacini. Mas lembrou-se de outra coisa: nunca fora pago o resgate. As negociações, haviam sido intensas, com a vida de um jovem na balança, mas houve uma falha, uma deserção, o sobrinho foi posto em liberdade por um raptor amedrontado e vários membros da Brigada morreram depois, levados a uma emboscada armada pelo desertor.

Algum padrinho das Brigadas Vermelhas teria resolvido ensinar-lhes uma lição?

— Estava envolvida nisso, de alguma maneira?

— Não. Estava no acampamento em Medicina.

— Ouviu alguma coisa?

— Muita. A maior parte era sobre traidores e como matá-los da maneira mais brutal possível, para que servissem de exemplo. Os líderes sempre falavam assim, isso foi muito importante para ele.s no rapto Scozzi-Paravacini, pois o traidor fora comprado pelos fascistas.

— Que fascistas?

— Um banqueiro que representou os Scozzi há muitos anos. Os Paravacini autorizaram o pagamento.

— Como chegaram a ele?

— Sempre há uma forma, quando há muito dinheiro. Ninguém sabe.

Bray levantou-se da cama.

— Não vou perguntar-lhe como se sente, mas acha que pode sair daqui?

— Claro que sim — respondeu ela, franzindo o rosto ao jogar as longas pernas para o lado da cama.

A dor a atingiu, fazendo-a conter a respiração; ficou parada por um instante e Scofield segurou-a pelos ombros. Não pôde conter-se novamente, tocou-a na face.

— Já se passaram quarenta e oito horas — disse com brandura. — Vou telegrafar a Taleniekov em Helsinque.

— Que quer dizer isso?

— Quer dizer que você está viva e bem e vivendo em Roma. Vamos, vou ajudá-la a vestir-se;.

Ela tocou a mão dele com os dedos.

— Se tivesse sugerido isso ontem, não sei o que teria dito.

— E o que diz agora?

— Ajude-me.

 

Na Via Frascati, havia um restaurante de luxo que pertencia aos três irmãos Crispi. O mais velho dirigia o estabelecimento com a percepção de um ladrão consumado e os olhos de um chacal faminto, ambos escondidos atrás de um rosto de querubim e uma exuberância devastadora. A maioria dos habitantes dos covis aveludados da dolce vita romana adorava Crispi, pois era sempre compreensivo e discreto, sendo que a discrição era mais valiosa que a compaixão. Deixavam com ele recados que eram passados dos homens às suas amadas, das esposas aos amantes, dos conquistadores às conquistadas. Era uma rocha num mar de frivolidades, e as crianças de todas as idades o amavam.

Scofield fazia uso dele. Quando os problemas da OTAN se estenderam até a Itália, cinco anos atrás, Bray pusera a mão em Crispi, e o dono do restaurante tinha sido um trabalhador dedicado.

Era um dos homens que Bray tinha querido ver antes de Antonia contar-lhe sobre os Scozzi-Paravacini, e isso agora era imperativo. Se alguém em Roma podia revelar algo sobre a aristocrática família dos Scozzi-Paravacini, esse alguém era o efusivo príncipe herdeiro das futilidades, Crispi. Almoçariam no restaurante da Via Frascati.

Muito cedo para almoçar em Roma, pensou Scofield, colocando a xícara de café sobre a mesa e olhando o relógio. Ainda não era meio-dia; o sol lá fora aquecia o salão da suíte de hotel e os sons do trânsito subiam da Via Veneto. O médico telefonara ao Hotel Excelsior e fizera a reserva pouco depois da meia-noite, explicando confidencialmente ao gerente que um cliente rico precisava imediatamente de acomodações... confidencialmente. Bray e Antonia haviam sido recebidos na entrada de serviço e levados pelo elevador dos fundos a uma suíte no oitavo andar.

Pedira uma garrafa de conhaque e servira três doses sucessivas a Antonia. O efeito cumulativo do álcool, da medicação, da dor e da tensão levou-a à melhor condição possível: o sono. Ele carregou-a para o quarto, despiu-a e colocou-a na cama, cobrindo-a, tocando-lhe na face e resistindo ao desejo de deitar-se a seu lado.

De volta ao diva na sala, lembrou-se das roupas da Via Condotti. Metera-as na sacola antes de sair sua pensão. O chapéu branco foi o que mais sofreu, mas o vestido de seda não ficou tão amassado quanto temia. Antes de dormir, pendurou-o cuidadosamente.

Levantara-se às dez e fora às lojas no saguão do hotel para comprar uma maquilagem cor de carne a fim de encobrir as contusões de Antonia, e uns óculos Gucci escuros que o fazia lembrar-se dos olhos de um gafanhoto. Deixou-os, junto com as roupas, na cadeira ao lado da cama.

Ela os encontrara há uma hora e o vestido fora a primeira coisa que vira quando abrira os olhos.

— Você é minha fanciulla pessoal! Sou uma princesa num conto de fadas e minhas servas cuidam de mim! Que vão pensar meus camaradas socialistas?

— Que você sabe mais do que eles — respondeu Bray. — Enforcariam a efígie de Marx para ficar em seu lugar. Tome café e vista-se. Vamos almoçar com um discípulo dos Medici. Você vai adorar sua política.

Estava vestindo-se agora, cantarolando fragmentos de uma música desconhecida que parecia uma canção de marinheiros da Córsega. Estava novamente de posse de parte de sua mente, e sentia uma espécie de liberdade; esperava que pudesse conservar ambas — não havia garantias. A caçada iria acelerar-se no restaurante da Via Frascati e agora ela fazia parte dela.

A canção morreu e os saltos de sapato soaram no chão de mármore. Viu Antonia no portal e o peito lhe doeu; ficara emocionado ao vê-la e sentiu-se estranhamente impotente. Mais estranho ainda, por um instante queria apenas ouvi-la falar, escutar-lhe a voz, como se isso confirmasse sua presença imediata. Contudo, ela não falou; ficou ali de pé, linda e vulnerável, uma criança grande buscando aprovação e ressentindo-se por desejá-la. O vestido de seda tinha tons de um vermelho-escuro, combinando com sua pele, bronzeada pelo sol da Córsega; o chapéu de abas largas emoldurava a metade do rosto em branco, a outra cercada pelos longos cabelos castanhos-escuros. O sangue da França e da Itália misturara-se em Antonia Gravet, e o resultado era impressionante.

— Você está ótima — disse Bray, levantando-se da cadeira.

— A maquilagem escondeu as marcas no meu rosto?

— Nem me lembrei delas, portanto deve ter escondido. — Com aquela dor no peito, esquecera-se mesmo. — Como está se sentindo?

— Não tenho certeza. Acho que o conhaque causou tantos danos quanto os membros da Brigada.

— Há um remédio. Alguns copos de vinho.

— Acho que não, obrigada.

— Como quiser. Vou buscar seu casaco, está no armário. — Ia cruzar a sala, mas parou, vendo-a estremecer. — Não está bem. Está com dor.

— Não, por favor, estou bem. A pomada que seu médico me deu é muito boa, diminui muito a dor. Ele é muito bom.

— Quero que vá vê-lo sempre que precisar de auxílio. Sempre que alguma coisa a perturbar.

— Até parece que você não vai ficar comigo — replicou ela. — Pensei que isso estava resolvido. Aceitei sua oferta de emprego, lembra?

Bray sorriu.

— Seria difícil esquecer, mas ainda não definimos seu trabalho. Vamos ficar juntos em Roma por algum tempo. Depois, dependendo do que descobrirmos, sairei daqui. Sua tarefa será ficar aqui e transmitir mensagens entre Taleniekov e eu.

— Vou ser um serviço telegráfico? — perguntou Antonia. — Que emprego é esse?

— De importância vital. Explicarei à medida que formos em frente. Vamos, vou buscar seu casaco. — Viu-a fechar os olhos novamente, a dor a fez estremecer. — Antonia, ouça-me: quando sentir dor, não procure escondê-la, isso não adianta. Está doendo muito?

— Não muito. Sei que vai passar. Já senti isso antes.

— Quer ir ao médico?

— Não. Mas obrigada por se preocupar comigo.

A dor no peito continuava, mas Scofield resistiu/

— Minha única preocupação é que uma pessoa não funciona bem quando está com dor. Comete erros. Você não pode cometer erro algum.

— Talvez tome aquele copo de vinho, então.

— Por favor — disse ele.

 

Bray notou os olhares que acompanharam Antonia quando entraram no restaurante. Do outro lado da delicada treliça à entrada do salão, o Crispi mais velho era todo sorrisos subservientes. Quando viu Bray, ficou surpreso, por um segundo seus olhos se embaciaram, ficaram sérios, mas logo recuperou a calma e aproximou-se deles.

— Benevenuto, amico mio! — exclamou.

— Faz mais de um ano — disse Scofield, apertando-lhe a mão. — Estou aqui a negócios, só por um dia ou dois, e queria que minha amiga provasse seu fettucini.

As palavras significavam que Bray queria falar com Crispi em particular, à mesa, quando houvesse oportunidade.

— É o melhor de Roma, signorina! — Crispi estalou os dedos para que um irmão mais novo os levasse até a mesa. — Quero ouvi-los confirmar isso daqui a pouco, mas primeiro bebam um pouco de vinho, pois talvez o molho não esteja perfeito!

Piscou o olho com exagero, apertando a mão de Scofield novamente, para dizer que entendera. Crispi nunca ia à mesa de Bray, a não ser que fosse chamado.

O garçom trouxe-lhes uma garrafa gelada de Pouilly Fume, com os cumprimentos dos irmãos, mas só depois que o fettucini fora servido e levado é que Crispi veio até a mesa. Sentou-se na terceira cadeira e as apresentações e frases convencionais que as acompanharam foram bem breves.

— Antonia está trabalhando comigo — explicou Scofield —, mas nunca a mencione. Para ninguém, entende?

— Claro.

— E eu também. Se alguém da Embaixada, ou de qualquer outro lugar perguntar por mim, não me viu, entendeu?

— Sim, mas é estranho.

— Ninguém deve saber que estou aqui... ou estive.

— Mesmo seu pessoal?

— Especialmente meu pessoal. Minhas ordens estão acima dos interesses da Embaixada. É o máximo que posso dizer.

Crispi levantou as sobrancelhas, abanando a cabeça lentamente. —— Desertores?

— Basta.

Olhou-o sério.

— Muito bem, não o vi, Brandon. Então por que está aqui? Vai me mandar alguém?

— Só Antonia. Quando precisar de auxílio a fim de mandar telegramas para mim... e para outra pessoa.

— Por que precisaria de meu auxílio para mandar telegramas?

— Quero que sejam reencaminhados, mandados de pontos diferentes. Pode fazer isso?

— Não é problema, desde que os idiotas dos communisti não destruam o serviço telefônico novamente. Tenho um primo em Florença que pode mandar um; um exportador em Atenas ou Túnis ou Tel Aviv que farão o mesmo. Todos fazem o que Crispi quer e ninguém faz perguntas. Sabe disso.

— E seus telefones? Não há controle?

Crispi riu.

— Não há um membro do Governo em Roma que permitiria essa impertinência, sabendo das conversas que se travam no meu telefone.

Scofield lembrou-se de Robert Winthrop em Washington.

— Alguém me disse o mesmo há pouco tempo, mas estava errado.

— Sem dúvida — concordou Crispi com um sorriso nos olhos. — Perdoe-me, Brandon, mas vocês lidam somente com assuntos do Governo. Nós na Via Frascati lidamos com assuntos do coração, e temos precedência no que diz respeito a assuntos confidenciais. Sempre foi assim.

Bray sorriu para o italiano.

— Talvez tenha razão. — Levou o copo de vinho aos lábios. — Deixe-me dizer-lhe um nome: Scozzi-Paravacini.

Crispi abanou a cabeça, pensativo.

— O sangue busca o dinheiro e o dinheiro busca o sangue. Que mais posso dizer?

— Fale mais claro.

— Os Scozzi são uma das famílias mais nobres de Roma. Até hoje, a venerável contessa passeia com o motorista na sua Bugatti restaurada e seus filhos são pretendentes a tronos há muito abandonados. Infelizmente, não tinham um tostão, só as pretensões. Os Paravacini tinham dinheiro, muito dinheiro, mas nenhuma gota de sangue decente nas veias. Foi um casamento realizado nas cortes divinas da conveniência mútua.

— Qual casamento?

— Da filha da contessa com o Signor Bernardo Paravacini. Foi há muito tempo, o dote foi de vários milhões e, além disso, o filho da contessa, o conde, que assumiu o título do pai, ganhou um emprego altamente remunerativo.

— Qual é o nome dele?

— Guillamo. Conde Guillamo Scozzi.

— Onde mora?

— Onde quer que seus interesses, financeiros e demais, o levem. Tem uma propriedade perto da de sua irmã, em Tivoli, mas acho que poucas vezes vai lá. Por que pergunta? Ele tem alguma ligação com desertores? Não é provável.

— Talvez não esteja consciente disso. Pode ser que esteja sendo usado por pessoas que trabalham para ele.

— Menos provável ainda. Sob sua personalidade encantadora, reside a mente de um Borgia. Acredite no que lhe digo.

— Como sabe disso?

— Conheço-o — sorriu Crispi. — Ele e eu somos bem parecidos.

Bray inclinou-se para a frente.

— Quero conhecê-lo. Não como Scofield, é claro. Como outra pessoa. Pode arranjar isso?

— Talvez. Se estiver na Itália, e acho que está. Li em algum lugar que sua esposa ia patrocinar a Festa Vila d’Este, que se realiza amanhã. É uma festa de caridade nos jardins. Ele não faltaria; dizem que todo mundo em Roma estará lá.

— Sua Roma, espero — disse Scofield —, não a minha.

 

Observava-a, do outro lado do quarto, viu-a tirar a saia da caixa e dobrá-la no colo, como se estivesse verificando se havia algum defeito. Sabia que o prazer que sentia em comprar-lhe coisas era descabido. Roupas eram simplesmente uma necessidade, sabia, mas isso não impedia que o calor corresse em suas veias ao olhá-la.

A prisioneira estava livre, as decisões tomadas, e ela não recusara as roupas que ele lhe comprara, embora reclamasse dos preços exorbitantes do Excelsior. Era um jogo que faziam nas lojas; ela olhava para Bray; se ele abanasse a cabeça afirmativamente, ela franzia a testa, fingindo desaprovação, invariavelmente olhando a etiqueta do preço. Depois, lentamente, fingia mudar de idéia, e finalmente concordava com a escolha dele.

Sua esposa costumava fazer o mesmo em Berlim Ocidental, era uma de suas brincadeiras. Sua Karine estava sempre preocupada com dinheiro. Queriam ter filhos algum dia, o dinheiro era muito importante e o Governo não era generoso. Um agente do serviço exterior de Grau Doze não estava em condições de abrir uma conta bancária na Suíça.

A essa altura, Scofield já tinha conta em Berna... e em Paris e Londres e, naturalmente, Berlim. Mas não lhe dissera nada, sua vida profissional nunca a havia tocado... até atingi-la fatalmente. Se tudo tivesse sido diferente, talvez lhe tivesse dado uma dessas contas, depois de ser transferido das Operações Consulares para uma seção mais civilizada do Departamento de Estado.

Merda! Era isso que ia fazer, tinha sido uma questão de semanas!

— Você está tão distante!

— O quê?

Bray levou o copo aos lábios. Era puro reflexo, pois o copo estava vazio. Ocorreu-lhe que estava bebendo demais.

— Está olhando para mim, mas acho que não me vê.

— Claro que sim. Sinto falta do chapéu. Gostava daquele chapéu branco.

Ela sorriu.

— Não se usa chapéu dentro de casa. O garçom que trouxe o jantar ia achar que eu era louca.

— Mas você o usou quando fomos ver Crispi e o garçom não fez nada.

— É diferente num restaurante.

— Ambos são dentro de casa.

Pôs-se de pé e tornou a encher o copo.

— Obrigada mais uma vez por tudo isso. — Antonia olhou as caixas e sacolas de compras ao lado da cadeira. — É como se fosse a véspera de Natal, não sei qual abrir primeiro. — Riu. — Mas nunca houve um Natal assim na Córsega! Papai ficaria de cara amarrada um mês inteiro se visse isso. Ê, agradeço muito.

— Não é preciso. — Scofield permaneceu de pé junto à mesa, despejando mais uísque no copo. — Faz parte da aparelhagem, como uma máquina de escrever ou de somar, ou arquivos. Faz parte do emprego.

— Entendo. — Colocou a saia e a blusa de volta na caixa. — Mas você não.

— Perdão?

— Niente. O uísque ajuda-o a relaxar?

— Pode ser. Quer um?

— Não, obrigada. Há muito tempo não me sinto tão relaxada, seria um desperdício.

— A cada um de acordo com suas necessidades. Ou desejos — disse Scofield, acomodando-se numa cadeira. — Pode ir para a cama, se quiser. Amanhã vai ser um dia muito longo.

— Minha companhia o aborrece?

— Não, claro que não.

— Mas prefere ficar a sós.

— Não pensei no assunto.

“Ela costumava dizer isso, em Berlim Ocidental, quando havia problemas e eu me sentava sozinho, procurando pensar como os outros pensariam. Ela falava e eu não a ouvia. Ficava zangada... zangada, não, magoada... e dizia: ‘Prefere ficar só, não é?’ Era verdade, mas eu não podia explicar. Talvez se tivesse explicado... Talvez uma explicação tivesse sido um aviso.”

— Se alguma coisa o preocupa, por que não fala?

“Oh, meu Deus, as mesmas palavras de Berlim Ocidental.”

— Chega de querer ser outra pessoa! — Ouviu surpreso seu próprio berro. Era o uísque, o diabo do uísque! — Desculpe, não disse por mal — falou depressa, colocando o copo na mesa. — Estou cansado e bebi demais. Não quis dizer isso.

— Claro que quis — disse Antonia, pondo-se de pé. — Acho que agora compreendo, mas você também tem de compreender. Não sou outra pessoa. Tive de fingir ser outra pessoa que não eu mesma, e essa é a maneira mais segura de descobrir o que somos realmente. Sou eu mesma, e você ajudou-me a me reencontrar.

Virou-se e dirigiu-se rapidamente para o quarto, fechando a porta.

— Toni, sinto muito...

Bray levantou-se, furioso consigo mesmo. Revelara muito mais que queria naquele desabafo. Detestava perder o controle.

Bateram à porta, a porta do corredor, e Scofield virou-se rápido, buscando instintivamente o coldre preso ao peito sob o paletó. Aproximou-se da porta e falou:

— Si? Chi è?

— Un messaggio, Signor Pastorine. Da vostro amico, Críspi. Di Via Frascati.

Bray colocou a mão dentro do paletó, verificou a corrente da porta e abriu-a. No corredor estava o garçom de Crispi, que os havia servido. Estendeu um envelope e entregou-o a Scofield pela abertura da porta. Crispi não correra riscos, o mensageiro era homem dele.

— Grazie. Un momento — disse Bray, tirando uma nota de uma lira do bolso.

— Prego — replicou o garçom, aceitando a gorjeta.

Scofield fechou a porta e abriu o envelope, que continha dois convites em relevo dourado e um bilhete. Tirou-os do envelope e leu a mensagem de Crispi, numa letra tão floreada quanto a linguagem.

 

Chegou aos ouvidos do conde Scozzi, por intermédio do signatário, que um americano, chamado Pastor, apresentar-se-á na Vila d’Este. O conde foi informado de que Pastor tem amplas conexões nos países da OPEP, servindo freqüentemente de agente de compras para os xeques encharcados de petróleo. São empreendimentos que tais homens nunca discutem, portanto apenas sorria e aprenda onde fica o golfo da Arábia. O conde sabe também que Pastor está de férias e procura diversões, e é bem possível que as ofereça.

Beijo a mão da bella signorina.

Tchau,

Crispi.

 

Bray sorriu. Crispi tinha razão, os que serviam de intermediários para os xeques nunca discutiam seus serviços. Mantinham um perfil baixo porque as paradas eram muito altas. Falaria de outras coisas com o conde Guillamo Scozzi.

Ouviu o barulho da fechadura da porta do quarto. Houve um momento de hesitação antes que Antonia a abrisse. Quando o fez, Bray compreendeu por quê. Ficou de pé no portal, com uma combinação preta que ele comprara numa loja no saguão. Tirara o sutiã e os seios esticavam a seda transparente, que revelava as curvas de suas longas pernas. Estava descalça e a pele bronzeada das pernas e tornozelos harmonizava-se perfeitamente com os braços e o rosto. Aquele lindo rosto, impressionante, mas tão doce, com os olhos escuros fixos nos seus sem vacilar, sem condenar.

— Deve tê-la amado muito — disse ela.

— Sim. Foi há muito tempo.

— Não bastante tempo, aparentemente. Chamou-me de Toni. Era o nome dela?

— Não.

— Fico contente. Não gostaria de ser confundida com outra pessoa.

— Deixou isso bem claro. Não acontecerá novamente.

Antonia ficou calada, imóvel no portal, os olhos ainda livres de condenação. Quando falou, foi uma pergunta.

— Por que se recusa?

— Não sou um animal no porão de um cargueiro.

— Ambos sabemos disso. Tenho visto você olhar para mim e desviar os olhos como se não fosse permitido. Está tenso, mas não procura alívio.

— Se quisesse essa espécie de... alívio... saberia onde encontrá-lo.

— Estou oferecendo.

— Estudarei a oferta.

— Pare com isso! — exclamou Antonia, avançando. — Quer uma prostituta? Pensam em mim como a prostituta do mensageiro!

— Não posso fazer isso.

— Então não me olhe assim! Parte de você comigo, parte a milhas de distância. Que você quer?

“Por favor, não faça isso. Deixe-me onde eu estava, no fundo da terra, confortado pela escuridão. Não me toque, pois se tocar morrerá. Não compreende isso? Haverá homens que a chamarão do outro lado da barreira, e eles a matarão. Deixe-me com as prostitutas, as profissionais, como eu também sou um profissional. Conhecemos as regras do jogo. Você não.”

Estava à sua frente; não a vira aproximar-se, mas estava ali. Olhou para o rosto erguido em frente ao seu, os olhos fechados, as lágrimas quase derramadas, os lábios entreabertos.

O corpo todo tremia, nas garras do medo. As cicatrizes se haviam rompido, ele as rompera, porque ela vira a dor em seus olhos.

Ela não podia apagar a dor dele. O que a fazia pensar que ele poderia apagar a dela?

Então, como se lesse seus pensamentos, ela murmurou:

— Se a amava tanto, ame-me um pouquinho. Talvez ajude.

Chegou-se a ele, rodeando-lhe o rosto com as mãos, os lábios pertinho dos dele, o corpo ainda tremendo. Ele a abraçou, os lábios se tocaram e a dor se desfez. O vento arrebatou-o; sentiu lágrimas lhe subirem aos olhos e desusarem pelas faces, misturando-se com as dela. Deixou as mãos lhe correrem as costas, acariciando-a, puxando-a para bem perto, segurando-a... segurando-a. Por favor, mais perto, aquela boca úmida despertando-o, apagando a dor de querê-la a seu lado. Escorregou a mão para seu seio; ela colocou a mão sobre a dele, pressionando-a, grudando-se a ele, revolvendo o corpo no ritmo que se apossara deles.

Desviou os lábios.

— Leve-me para a cama. Em nome de Deus, me leve. E me ame. Me ame um pouquinho. Por favor, me ame um pouquinho.

— Tentei avisá-la — disse ele. — Tentei avisar a nós dois.

“Emergia do buraco na terra e via o sol. No entanto, à distância ainda havia escuridão. E medo... ele o sentia. Mas por um momento escolheu ficar à luz do sol, mesmo por um momento. Com ela.”

 

A Vila d’Este não perdia seu aspecto magnífico no ar frio da noite. Os refletores estavam ligados e as fontes iluminadas... milhares de cascatas resplandecentes de luz arqueando em fileiras pelas encostas. No centro de vastas piscinas, os gêiseres erguiam-se dentro da noite e as gotas d’água pulverizadas no ar cintilavam à luz dos refletores como diademas. Em cada estrutura de rocha formando uma queda d’água, caíam véus de prata em frente de estátuas antigas; santos e centauros banhavam-se em esplendor.

Os jardins estavam oficialmente fechados para o público, só a elite romana fora convidada para a festa. A finalidade ostensiva era angariar fundos para sua manutenção, aumentando assim os subsídios do Governo, que diminuíam, mas Scofield teve a impressão de que havia um motivo secundário, não menos desejável: proporcionar uma noite em que a Vila d’Este pudesse ser apreciada pelos verdadeiros herdeiros, livres dos turistas. Crispi tinha razão, toda Roma estava presente.

Não minha Roma, pensou Bray, passando a mão na lapela de veludo do smoking... a Roma deles.

Os enormes salões da própria vila se haviam transformado em pátios palacianos, com mesas de banquete e cadeiras douradas ao longo das paredes para descanso dos cortesãos e das damas da corte. Zibelinas russas e visons, chinchilas e raposas douradas drapeavam ombros vestidos por Givenchy e Pucci; teias de diamantes e fios de pérolas pendiam de pescoços alongados, muitas vezes cobertos de pelancas. Cavalheiros esbeltos, elegantíssimos com seus cinturões vermelhos e têmporas grisalhas, coexistiam com homens carecas, atarracados, que seguravam um charuto e possuíam mais poder do que indicava a aparência. Quatro orquestras, de seis a vinte instrumentos, forneciam o fundo musical, tocando tudo, desde as melodias nobres de Monteverdi aos ritmos frenéticos de discoteca A Vila d’Este pertencia aos belli romani.

De todas essas belas pessoas, uma das que mais se distinguiam era Antonia... Toni. (Era Toni agora, por acordo mútuo, decretado no conforto da cama.) Não trazia jóias no pescoço ou nos pulsos, não combinariam com a pele macia, bronzeada, relevada pelo vestido simples de branco e ouro. A inchação do rosto cedera, conforme dissera o médico. Não usava mais os óculos, e os olhos grandes e castanhos refletiam a luz. Era tão bela quanto tudo que a rodeava, mais bela do que as que poderiam ser suas concorrentes, pois sua beleza não era enfatizada, e crescia aos olhos do observador, a cada segundo.

Toni foi apresentada simplesmente como a misteriosa amiga do Sr. Pastor, do lago Como, por conveniência. Sabia-se que certas partes do lago serviam de abrigo às crianças ricas do Mediterrâneo. Crispi tinha feito bom trabalho, dera informações suficientes para intrigar vários convidados. Àqueles que mais queriam saber sobre o retraído Sr. Pastor, dissera muito pouco, enquanto a outros, preocupados demais consigo mesmos para se interessarem por Pastor, dissera mais, para que repetissem o que ouviram como bisbilhotice, que era sua maior ocupação.

Aqueles que se ocupavam mais diretamente, às vezes até exclusivamente, com finanças estavam propensos a pegá-lo pelo braço e perguntar em voz baixa sobre as perspectivas do dólar ou a estabilidade de investimentos em Londres, São Francisco e Buenos Aires. A esses, Scofield inclinava ligeiramente a cabeça ante certas sugestões, e a sacudia uma vez só ante outras. Levantavam-se sobrancelhas... discretamente. Havia sido transmitida uma informação, embora Bray não soubesse qual.

Após um encontro com um inquiridor especialmente insistente, tomou o braço de Toni e levou-a, através de um arco maciço, ao pátio próximo. Aceitou duas taças de champanha de um garçom, deu uma a Toni e olhou-a por sobre a borda de cristal enquanto bebia.

Embora nunca o tivesse visto antes, Scofield sabia que tinha acabado de encontrar o conde Guillamo Scozzi. O italiano estava em um canto, conversando com duas jovens de pernas alongadas, desviando os olhos de seus rostos atentos para percorrer o salão com simulada indiferença. Era alto e esbelto, um completo cavaliere, de casaca, com riscas de cabelo grisalho espalhando-se das têmporas pela cabeça impecavelmente tratada. Minúsculas fitas coloridas ornamentavam-lhe a lapela, uma estreita faixa de ouro debruada de vermelho-escuro e amarrada do lado lhe cingia a cintura. Se alguém não percebesse o significado das fitas, não podia ignorar a marca de distinção inerente à faixa — Scozzi ostentava seus escudos. Aos cinqüenta e muitos anos, o conde era o retrato do bello romano. Nenhum siciliano jamais se insinuara na cama de algum de seus antepassados e, por Deus, era bom que o mundo inteiro soubesse disso.

— Como o encontrará? — perguntou Antonia, tomando um gole de vinho.

— Acho que já o encontrei.

— Aquele ali? — perguntou ela. Bray concordou com a cabeça. — Tem razão, vi o retrato nos jornais. É assunto favorito dos paparrazzi. Vai se apresentar?

— Acho que não será preciso. A não ser que me engane, está a minha procura. — Scofield fez um gesto para a mesa do bufê. — Vamos até a mesa do fim, perto das sobremesas. Ele nos verá.

— Mas como saberá quem é você?

— Crispi. Nosso intermediário benevolente talvez não lhe tenha dado uma descrição minha, mas tenho certeza absoluta de que não deixaria de descrever você. Especialmente para alguém como Scozzi.

— Mas eu estava usando aqueles óculos escuros enormes.

— Você é muito engraçada — disse Bray.

Em menos de um minuto, ouviram uma voz melíflua atrás deles, perto da mesa do bufê.

— Signore Pastor, se não me engano.

Viraram-se.

— Perdão? Já nos conhecemos?

— Estávamos a ponto de fazê-lo — disse o conde, estendendo a mão. — Scozzi. Guillamo Scozzi. É um prazer conhecê-lo.

O título era enfatizado pela ausência.

— Oh, claro. Conde Scozzi. Disse àquele camarada encantador, o Crispi, que ia procurá-lo. Chegamos há menos de uma hora e tem sido muito movimentado. Eu o teria reconhecido, naturalmente, mas estou espantado com o fato de que me conhecesse.

Scozzi riu, mostrando dentes tão brancos e perfeitos que não podiam fazer parte da máquina original.

— Crispi é realmente encantador, mas temo que seja um pouco maroto. Estava em êxtase com a bella signorina. — O conde inclinou a cabeça em direção a Antonia. — Vejo-a, e encontro-o. Como sempre, o gosto de Crispi é impecável.

— Perdão. — Scofield tocou o braço de Antonia. — Conde Scozzi, minha amiga, Antonia... do lago Como.

O uso do primeiro nome e a menção do lago diziam tudo; o conde tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios.

— Que criaturinha adorável. Roma precisa vê-la mais vezes.

— É muita bondade sua, excelência — disse Antonia, como se fora nascida para freqüentar a Vila d’Este.

— Na verdade, Sr. Pastor — continuou Scozzi —, disseram-me que muitos amigos meus o têm importunado com perguntas. Peço desculpas por eles.

— Não é necessário. Temo que as descrições de Crispi tenham incluído assuntos mais mundanos. — Bray sorriu com humildade desarmadora. — Quando descobrem minha ocupação, fazem perguntas. Já estou habituado.

— É muito compreensivo.

— É difícil não o ser. Gostaria que meus conhecimentos fossem tão amplos quanto pensam. Geralmente, limito-me a implementar decisões tomadas antes da minha chegada.

— Mas nessas decisões — disse o conde — há conhecimentos, não é?

— Espero que sim, senão muito dinheiro está sendo jogado fora.

— Soprado aos quatro cantos pelos ventos do deserto, por assim dizer — esclareceu Scozzi. — Por que tenho a impressão de que já nos conhecemos, Sr. Pastor?

Scofield já havia considerado a pergunta repentina. Era sempre uma possibilidade e estava preparado.

— Se assim fosse, creio que me lembraria, mas pode ter sido na Embaixada Americana. Suas festas não são tão grandiosas quanto esta, mas são muito concorridas.

— Então é freqüentador habitual da Embaixada? _—

— Não chega a tanto, somente um convidado de última hora. — Bray sorriu timidamente. — Parece que há ocasiões em que meus conterrâneos estão tão interessados em fazer-me perguntas quanto seus amigos aqui em Tivoli.

— Muitas vezes, informação é o meio de alcançar uma estatura nacional de proporções heróicas, Sr. Pastor. O senhor é um herói relutante — disse o conde com um meio sorriso.

— Nem tanto. Tenho de ganhar a vida, é somente isso.

— Não gostaria de negociar com o senhor — disse Scozzi. — Estou vendo que tem a mentalidade de um barganhista experiente.

— É uma pena — retrucou, Scofield, mudando o tom de voz o suficiente para alertar as antenas internas do italiano. — Pensei que talvez pudéssemos conversar um pouco.

— Oh? — O conde olhou para Antonia. — Será muito maçante para a bella signorina.

— De forma alguma — disse Toni. — Nestes últimos minutos, aprendi muito sobre meu amigo, mais que em toda a semana passada. Mas estou faminta...

— Não precisa dizer mais nada — interrompeu Scozzi, como se sua fome fosse questão de sobrevivência. Ergueu a mão. Num segundo, um rapaz de cabelos escuros, de casaca, surgiu a seu lado. — Meu assistente a acompanhará, signorina. Chama-se Paolo e é excelente dançarino. Acho que aprendeu com minha esposa.

Paolo cumprimentou-os, esquivando-se do olhar do conde, e ofereceu o braço a Antonia, que o aceitou, dando um passo à frente e virando o rosto para Scozzi e Bray.

— Tchau — disse, desejando sorte a Scofield com os olhos.

— É para invejá-lo, Sr. Pastor — comentou o conde Guillamo Scozzi, observando o vulto de branco. — Ela é adorável. Comprou-a em Como?

Bray lançou-lhe um rápido olhar; era isso mesmo que queria dizer.

— Para ser sincero, nem sei se ela já esteve lá — respondeu, sabendo que a mentira dupla era obrigatória, pois o conde poderia investigar com muita facilidade. — Um amigo em Riad deu-me um número de telefone no lago. Ela veio ao meu encontro em Nice, nunca perguntei de onde vinha.

— Poderia, talvez, perguntar-lhe sobre seus compromissos? Diga-lhe que, para mim, quanto mais cedo melhor. Pode encontrar-me nos escritórios Paravacini em Turim.

— Turim?

Sim, nossas fábricas do Norte. A Fiat dos Agnelli chama muito mais atenção, mas posso garantir-lhe que os Scozzi-Paravacini mandam em Turim, assim como em grande parte da Europa.

— Não sabia disso.

— Não? Pensei que fosse a razão de querer... conversar um pouco, conforme disse.

Scofield bebeu a última gota de champanha, falando ao afastar a taça dos lábios.

— Acha que podemos ir lá fora por uns minutos? Tenho uma mensagem confidencial para o senhor de um cliente de... digamos... do golfo da Arábia. É por isso que vim aqui hoje.

Os olhos de Scozzi embaçaram-se.

— Uma mensagem para mim? Tenho encontrado casualmente vários cavalheiros dessa região, naturalmente, como quase todo mundo em Roma e Turim, mas não me lembro do nome de nenhum. Mas, claro que podemos dar uma volta. O senhor me intriga.

O conde deu um passo, mas Bray o deteve com um gesto.

— Prefiro que não nos vejam sair juntos. Diga-me onde estará e irei ao seu encontro em vinte minutos.

— Extraordinário. Muito bem. — O italiano fez uma pausa. — A Fonte de Hipólito, sabe onde é?

— Estarei lá.

— É bem longe. Deve estar deserta.

— Ótimo. Vinte minutos.

Scofield acenou com a cabeça. Ambos viraram e saíram andando em direções opostas através da multidão.

 

Não havia refletores na fonte, nem houve sons de distúrbio quando um homem rastejou por detrás das rochas e caminhou silenciosamente através dos arbustos. Bray estava verificando se Scozzi postara assistentes nos arredores; se houvesse, teria mandado um recado ao italiano, marcando outro encontro imediato.

Estavam a sós... ou estariam, em alguns minutos. O conde estava vindo pelo caminho em direção à fonte. Bray voltou atrás por um jardim cheio de mato e saiu no caminho, quinze metros atrás de Scozzi. Limpou a garganta quando Scozzi alcançou o muro de um metro de altura que cercava o lago da fonte. O conde virou-se; a luz derramada dos terraços acima era suficiente para que enxergassem. Scofield estava preocupado com o escuro. Scozzi poderia ter escolhido muitos outros lugares mais convenientes, menos cheios de sombras. Bray não gostava de sombras.

— Era preciso vir tão longe? — perguntou. — Queria vê-lo a sós, mas não pretendia andar meio caminho de volta a Roma.

— Nem eu, Sr. Pastor, até quando o senhor declarou que não queria que nos vissem saindo juntos, e isso lembrou-me do que era óbvio. Talvez não seja bom para mim ser visto falando com o senhor. Afinal, é um corretor dos xeques.

— E por que isso o incomodaria?

— Por que quis sair separadamente?

Scozzi raciocinava rápido, confirmando a alusão de Crispi a uma mentalidade de Borgia.

— Eu diria que o problema é ser óbvio demais. Entretanto, se alguém passeasse por aqui e nos visse, isso também seria óbvio demais. Há uma escolha mais moderada, um encontro casual nos jardins, por exemplo.

— Teve seu encontro e ninguém nos verá — disse o conde. — Só há uma entrada para a Fonte de Hipólito, quarenta metros atrás de nós, onde está postado um assistente meu. Não é a primeira vez que Guillamo Scozzi passeia pelos jardins acompanhado e, nessas ocasiões, não gosta de ser incomodado.

— É por eu fazer o que faço que tomou essas precauções?

O conde ergueu a mão.

— Lembre-se, Sr. Pastor, que os Scozzi-Paravacini negociam em toda a Europa e as duas Américas. Estamos sempre procurando novos mercados, mas não procuramos capital árabe. É altamente suspeito; estão levantando barreiras em toda parte para evitar seu influxo excessivo. Não gostaríamos de ser examinados minuciosamente. Só os interesses judaicos em Paris e Nova York nos custariam caro.

— O que tenho a lhe dizer nada tem a ver íom os Scozzi-Paravacini — disse Scofield. — Diz respeito à parte Scozzi, não à Paravacini.

— Está se referindo a um assunto delicado, Sr. Pastor. É favor ser específico.

— É filho do conde Alberto Scozzi, não?

— Todos o sabem, como sabem de minhas contribuições ao crescimento das Indústrias Paravacini. Estou certo de que compreende a significação da mudança da organização para o nome Scozzi-Paravacini.

— Sim, mas não faz diferença. Sou apenas um intermediário, supostamente o primeiro de vários contatos, cada um mais afastado do seguinte. No que me diz respeito, encontrei-o casualmente em uma festa de caridade em Tivoli e nunca tivemos esta conversa.

— Sua mensagem deve ser realmente dramática. Quem a manda?

Foi a vez de Bray erguer a mão.

— Por favor. De acordo com as regras, nunca se especificam as identidades na primeira conferência, somente a área geográfica e uma equação política que envolve antagonistas hipotéticos.

Scozzi apertou os olhos e as pálpebras baixaram com a concentração de sua atenção.

— Prossiga — disse.

— O senhor é conde, portanto esquecerei um pouco as regras. Digamos que há um príncipe que vive em um país de tamanho considerável, um xeque, realmente, no golfo da Arábia. Seu tio, o rei, pertence a outra era. É velho e está senil, mas sua palavra é lei, como era nos tempos em que liderava uma tribo beduína no deserto. Está esbanjando milhões em maus investimentos, esgotando as reservas do domínio, extraindo demais do solo em muito pouco tempo. Esse príncipe hipotético queria que ele fosse substituído, para o bem de todos. Apela para o Conselho através do filho de Alberto Scozzi, cujo nome vem do padrone corso, Guillaume... Essa é a mensagem. Agora gostaria de falar eu mesmo.

— Quem é você? — perguntou o italiano, com os olhos bem abertos. — Quem o mandou?

— Deixe-me acabar — disse Bray depressa. Precisava ir além do choque inicial, saltar para um segundo platô. — Como observador dessa... equação hipotética, posso dizer-lhe que a hora é crítica, não há um dia a perder. O príncipe precisa de uma resposta e, francamente, se eu for o portador da mesma, serei um homem muito mais rico. O senhor, naturalmente, pode fazer o preço do Conselho. Posso adiantar-lhe que... cinqüenta milhões, americanos, não estão fora de questão.

— Cinqüenta milhões.

Dera resultado, chegara ao segundo platô. A quantia era atordoante, mesmo para um homem como Guillamo Scozzi. Estava na hora de complicar, estontear novamente.

— Essa quantia é condicional, por certo. É uma quantia máxima, que presume resposta imediata, a eliminação de contatos subseqüentes e entrega da encomenda dentro de sete dias. Não será fácil. O velho tem uma guarda de sabathi dia e noite; são uns cães loucos que... — Scofield parou. — Mas não preciso dizer-lhe nada relacionado a Hasan ibn-al-Sabbah, pois não? Pelo que sei, o corso baseou-se nele, em grande parte. Seja como for, o príncipe sugere um suicídio programado...

— Basta! — murmurou Scozzi. — Quem é você, Pastor? é suposto que o nome signifique alguma coisa para mim? Pastor? Padre? Será um padre mandado para me testar? — Sua voz elevou-se estridentemente. — Fala de coisas sepultadas no passado. Como ousa?

— Estou falando em cinqüenta milhões de dólares americanos. E não mencione coisas sepultadas para mim ou meu cliente, pois seu pai foi enterrado com a garganta aberta do queixo até ao omoplata por um maníaco a mando do Conselho. Verifique os arquivos, se é que os tem, deve estar lá. Meu cliente quer o que lhe pertence e está disposto a pagar aproximadamente cinqüenta vezes o que pagou o irmão de seu pai. — Bray parou por um momento e sacudiu a cabeça como que desaprovando e sentindo-se subitamente frustrado. — É uma loucura! Disse-lhe que por menos da metade eu podia comprar-lhe uma revolução legítima, sancionada pelas Nações Unidas, mas ele quer que seja assim, com vocês, e acho que sei por quê. Disse-me uma coisa, não sei se é parte da mensagem, mas vou dizer-lhe de qualquer maneira. Disse: “O caminho do Matarese é o único. Verão que tenho fé.” Ele quer tornar-se membro da organização.

Guillamo Scozzi recuou, imprensando as pernas contra o muro da fonte, com os braços rígidos ao lado do corpo.

— Que direito tem de me dizer essas coisas? Está louco, insano! Não sei do que está falando.

— Realmente? Então é o homem errado. Encontraremos o homem certo, eu o encontrarei. Deram-nos as palavras, sabemos a resposta.

— Que palavras?

— Per nostro... — Scofield deixou a voz morrer e fixou os olhos nos lábios de Scozzi na penumbra.

Involuntariamente, os lábios separaram-se. O italiano estava a ponto de pronunciar a terceira palavra, completar a frase que vivera por setenta anos nas colinas remotas de Porto Vecchio...

A palavra não veio. Em vez disso, Scozzi murmurou novamente. Não mais em choque, mas possuído de uma ansiedade tão profunda que mal podia ser ouvido.

— Meu Deus. Não pode... não deve. De onde veio? Que lhe disseram?

— Bastante para saber que encontrei o homem certo. Um deles, pelo menos. Fazemos negócio?

— Não presuma, Sr. Pastor! Seja seu nome qual for. — A voz do italiano estava furiosa.

— Pastor mesmo serve. Está bem, consegui minha resposta. Passou. Direi a meu cliente. — Bray virou as costas.

— Alto!

— Perchè? Che cosa? — Scofield falou sobre o ombro, sem se mover.

— É muito rápido, muito fluente em italiano.

— E em várias outras línguas. É útil quando se viaja muito, e eu viajo. Que quer?

— Ficará aqui até eu dizer que pode ir.

— Verdade? — disse Scofield, tornando a virar de frente para Scozzi. — Por que razão? Obtive minha resposta.

— Fará o que eu disser. Basta eu levantar a voz e um assistente estará a seu lado, cortando qualquer saída.

Bray tentou compreender. Esse poderoso consiglieri poderia negar tudo, afinal ele não dissera nada, e mandar seguir um americano estranho. Ou poderia chamar auxílio; ou simplesmente ir embora e mandar homens armados a sua procura. Poderia fazer qualquer uma dessas coisas, era parte dos Matareses, seus olhos o confirmaram, mas não fez nenhuma delas.

Então Scofield pensou ter compreendido. Guillamo Scozzi, o pirata industrial com a mentalidade de um Borgia, não sabia ao certo o que fazer. Estava enfrentando um dilema que repentinamente o confundira. Tudo tinha sido muito rápido, não estava preparado para tomar uma decisão; portanto, não fez nada.

Isso queria dizer que havia alguém bem perto, acessível, que tomaria essa decisão.

Alguém que estava na Vila d’Este essa noite.

— Quer dizer que está reconsiderando? — perguntou Bray.

— Não quer dizer nada!

— Então, por que devo ficar? Acho que não deve dar-me ordens, não sou um de seus pretorianos. Não faremos negócio, é tão simples.

— Não é tão simples! — Scozzi levantou a voz de novo, com mais medo que raiva.

— Eu digo que é, e digo que vá para o inferno — disse Scofield, virando novamente as costas.

Era importante que o italiano chamasse o guarda invisível. Muito importante.

E Scozzi o fez.

— Veni! Presto!

Bray ouviu o barulho de pés correndo no caminho escuro, e dentro de segundos um homem atarracado, de ombros largos, traje a rigor, veio correndo de dentro das sombras.

— Sorveglia quest’uomo!

O guarda não hesitou. Puxou um revólver de cano curto e apontou-o para Bray. Scozzi falou, como se impondo controle em si mesmo, explicando desnecessariamente.

— Estamos em dias difíceis, Signore Pastore. Todos nós viajamos com esses pretorianos que acaba de mencionar. Há terroristas em toda parte.

O momento era irresistível, era a hora de dar o golpe verbal final.

— É um assunto que seu pessoal deve conhecer bem. Estou falando de terroristas. Como as Brigadas. Recebem ordens do pequeno pastor?

Foi como se tivesse batido em Scozzi com um martelo invisível. A parte superior do corpo convulsionou-se, desviando-se do golpe, sentindo o impacto, procurando recobrar-se sem certeza de que isso fosse possível. Na penumbra, Scofield podia ver o suor brotando na testa do italiano, empapando as têmporas grisalhas cuidadosamente arrumadas. Os olhos eram os de um animal aterrorizado.

— Rimanere — murmurou para o guarda e caminhou rápido pelo caminho escuro.

Scofield virou-se para o homem, o medo estampado no rosto e falando italiano.

— Não sei do que se trata, não sei o que aconteceu! Ofereci muito dinheiro ao seu patrão a mando de alguém e ele ficou louco. Cristo sou apenas um vendedor! — O guarda ficou calado, mas o medo óbvio de Bray o aliviou. — Importa-se se eu fumar um cigarro? Tenho um medo danado de armas.

— Pode fumar — disse o homem de ombros largos.

Foi a última coisa que disse por muitas horas. Scofield botou a mão esquerda no bolso, deixou a direita ao lado do corpo, na sombra, abaixo do cotovelo do guarda. Ao puxar para fora um maço de cigarros, lançou a mão direita para o alto e agarrou o cano do revólver do guarda, torcendo a mão e a arma violentamente. Deixou cair os cigarros, segurou-o pela garganta com a esquerda, estrangulando qualquer som, e arrastou o guarda para fora do caminho, por sobre a borda de pedras, até o meio da folhagem densa. O homem caiu e Bray arrebatou-lhe a arma e golpeou-o na cabeça tom o cabo. O guarda esparramou-se no chão; Scofield arrastou o corpo e escondeu-o no mato.

Não podia perder um segundo. Guillamo Scozzi saíra correndo, em busca de conselhos, essa era a única explicação. Em algum lugar, num terraço ou numa sala, o consigliere transmitia as notícias chocantes a outra pessoa... ou outras.

Bray correu pelo caminho, escolhendo a sombra sempre que possível, passando a um andar rápido quando emergiu nos terraços em frente à última escadaria que levava à vila. Ali em cima, em algum lugar, Scozzi estava em pânico. A quem teria recorrido? Quem tomaria a decisão que esse homem poderoso mas apavorado era incapaz de tomar?

Scofield galgou os degraus rapidamente, com o revólver do guarda no bolso da calça e a Browning amarrada ao peito debaixo do smoking. Transpôs as portas de vidro e entrou numa sala apinhada de gente; era um “pátio” dedicado anacronicamente aos sons explosivos de discoteca. Globos de luzes coloridas refletidos em espelhos revolviam loucamente e os dançarinos balanceavam juntos, com expressões rígidas no rosto, perdidos no ritmo, na maconha e no álcool.

Essa era a sala mais próxima dos degraus do terraço que ficava mais perto do caminho para a Fonte de Hipólito. Considerando o estado mental de Scozzi, tinha de ser o que escolhera quando entrara. Havia duas entradas, qual delas escolhera?

A multidão apartou-se momentaneamente e Bray encontrou a resposta. Havia uma porta pesada na parede atrás de uma longa mesa de bufê. Dois homens corriam em sua direção. Haviam sido chamados, o alarma havia soado.

Scofield encaminhou-se para a porta, esgueirando-se pela orla de corpos frenéticos, e abriu-a devagar, com a mão na Browning embaixo do paletó. Viu degraus estreitos de pedra avermelhada subindo em curva e ouviu passos lá em cima.

Havia também outros sons: homens gritando e duas vozes discutindo, uma mais forte, mais calma, outra quase histérica. Essa última era a voz do conde Guillamo Scozzi.

Bray subiu alguns degraus, encostado à parede, segurando a Browning ao lado do corpo. À altura da primeira curva, havia uma porta, mas as vozes não vinham de lá, estavam mais em cima, além de uma segunda porta, diagonalmente acima do terceiro patamar. Scozzi agora gritava e Scofield estava perto o bastante para ouvir claramente as palavras.

— Falou das Brigadas e... meu Deus!... do pastor! Do corso! Ele sabe, mãe de Deus! Ele sabe!

— Silêncio! Ele está sondando, não sabe de nada. Fomos avisados de que faria isso, provavelmente. O velho o chamou e o velho sabia algumas coisas, mais do que imaginamos, e isso é um problema, concordo.

— Problema? É o caos! Uma palavra, uma insinuação, um murmúrio e posso ser arruinado! No mundo inteiro!

— Você? — disse a voz mais forte com desprezo. — Você não é nada, Guillamo! É só o que dizemos que é. Lembre-se disso... Você o deixou, certamente. Não lhe deu a entender que havia o mínimo de credibilidade no que disse.

Houve uma pausa.

— Chamei o guarda e disse ao americano que ficasse onde estava. Está debaixo de armas, ao lado da fonte.

— O quê? Você o deixou com um guarda? Um americano? Está louco? Isso é impossível. Ele não é nada disso!

— É americano, claro que é! Fala inglês como americano, completamente americano. Usa o nome de Pastor, disse-lhe isso!

Outra pausa, dessa vez agourenta, carregada de tensão elétrica.

— Você sempre foi um elo mais fraco, Guillamo, sabíamos disso, mas agora foi longe demais, deixou uma abertura onde não pode haver nenhuma] Esse homem é Vasili Taleniekov! Muda de língua como um camaleão muda de cor e mataria um guarda com a mesma facilidade com que pisaria num inseto. Não podemos nos dar ao luxo de agüentá-lo, Guillamo. Não pode haver nenhuma ligação. Absolutamente nenhuma.

Silêncio... muito breve, cortado por um tiro e uma explosão de ar gutural. Guillamo Scozzi estava morto.

— Deixem-no! — ordenou o misterioso consigliere do Matarese. — Será encontrado de manhã em seu carro no fundo do desfiladeiro de Adriano. Vão procurar esse tal de Pastor, o Taleniekov, mestre em escapar de captores. Não conseguirão pegá-lo vivo, nem tentem. Encontrem-no. Matem-no... E a moça de branco, ela também. Matem os dois.

Scofield lançou-se escada abaixo, contornando a curva. As últimas palavras que ouviu lá em cima, entretanto, foram tão estranhas, tão impressionantes, que quase parou, tentado a atirar nos assassinos que saíam e ir até lá enfrentar o desconhecido, que lhes dera as ordens.

— ... Scozzi! Mãe de Deus! Contate Turim, diga-lhes que telegrafem para as águias, para o gato. Os enterros têm de ser absolutos...

Não havia tempo para pensar, precisava encontrar Antonia, tinham de sair da Vila d’Este. Fechou a porta e precipitou-se no turbilhão, reparando, de repente, nas cadeiras alinhadas ao longo da parede, a maior parte vazia, mas algumas com capas, peles e estolas.

Se pudesse eliminar um dos perseguidores, as vantagens seriam múltiplas. Um homem dando o alarme seria muito menos eficaz que dois. E tinha mais, um homem encurralado, convencido de estar prestes a perder a vida, revelaria muito mais facilmente uma identidade para salvá-la. Virou-se para a parede, colocando as mãos na beira de uma cadeira, parecendo um cavalheiro que bebera um pouco além da conta.

A pesada porta abriu-se subitamente e irrompeu o primeiro dos dois assassinos, com o companheiro logo atrás. O primeiro encaminhou-se para as portas de vidro que davam para os degraus e o terraço abaixo; o segundo andou pela orla da pista de dança, em direção à arcada do outro lado da sala.

Scofield deu um salto à frente, torcendo o corpo numa série de contorções como se fosse um dançarino solitário enlouquecido pela percussão do rock. Não era o único que parecia bêbado, havia vários na multidão da pista. Alcançou o segundo homem e jogou o braço sobre seu ombro, segurando o coldre debaixo do paletó e imobilizando a arma, agarrou o punho através da fazenda e forçou o cano no peito do homem. O italiano debateu-se, mas era inútil, e logo reconheceu isso. Bray deslizou a mão pela cintura do homem e enfiou os dedos na base das costelas, empurrando-os com tanta força que ele gritou.

Ninguém ouviu o grito, pois havia gritos em toda parte, além de música ensurdecedora e luzes giratórias ofuscantes. Scofield puxou o homem para a fileira de cadeiras contra a parede e virou-o, forçando-o a sentar-se na que estava mais perto da porta pesada. Segurou a garganta do italiano, a mão esquerda debaixo do paletó, os dedos em busca do gatilho, o cano ainda encostado na carne do homem. Aproximou os lábios do ouvido do assassino.

— O homem lá em cima! Quem é ele? Fale ou faço explodir seus pulmões com sua própria arma! Ninguém ouvirá o tiro! Quem é ele?

— Não!

O homem tentou arquear o corpo e sair da cadeira. Bray meteu o joelho na virilha que se erguia e comprimiu a garganta com os dedos. Apertou os dois... dor contínua, sem alívio.

— Estou lhe avisando pela última vez! Quem é ele?

A saliva corria-lhe da boca, os olhos eram dois círculos de veias vermelhas e o peito arfava. Abandonou sua causa e expeliu o nome num murmúrio rouco.

— Paravacini.

Bray apertou-lhe a garganta ainda mais e suspendeu o ar dos pulmões e da cabeça por mais de dois segundos. O homem desmaiou. Scofield acomodou-o na cadeira. Mais um bello romano bêbado.

Deu as costas e tomou a faixa estreita entre a fileira de cadeiras e a massa de dançarinos delirantes. O primeiro homem tinha saído; poderia movimentar-se livremente por um minuto ou dois, mas não mais. Abriu caminho pela multidão à entrada e entrou num grupo menos frenético na sala ao lado.

Viu-a a um canto, com Paolo, de cabelos escuros, a seu lado e outros dois cavalheiros em frente, todos buscando sua atenção. Paolo, entretanto, parecia menos insistente; devia reconhecer posses futuras no que dizia respeito a seu conde. A primeira coisa que ocorreu a Bray foi que o vestido de Toni tinha de ser encoberto. “... a moça de branco... ela também. Matem os dois...” Encaminhou-se, rápido, para os quatro, sabendo exatamente o que ia fazer. Era necessária uma distração — quanto mais histérica, melhor. Tocou o braço de Paolo, mas olhou para Antonia, seus olhos dizendo-lhe que ficasse quieta.

—_É Paolo, não? — perguntou ao rapaz de cabelos escuros em italiano.

— Sim, senhor.

— O conde Guillamo quer vê-lo imediatamente. Acho que é uma emergência.

— Claro! Onde ele está, senhor?

— Atravesse aquele arco ali e vire à direita, passe uma fileira de cadeiras até chegar a uma porta. Há uma escada...

O jovem italiano saiu às pressas. Bray apresentou suas desculpas e as de Toni aos outros dois homens e segurou-lhe o braço, dirigindo-a para o arco que levava à discoteca.

— Que está acontecendo? — perguntou ela.

— Vamos embora — respondeu. — Aí dentro há casacos e outras coisas nas cadeiras. Pegue o que houver de mais escuro, e bem grande. Depressa, não temos muito tempo.

Ela encontrou uma capa longa, preta, enquanto Bray ficava entre ela e os contorcionistas na pista de dança. Ela enrolou-a embaixo do braço e abriram caminho até as portas de vidro e os degraus.

— Vamos, vista-a — ordenou Scofield, colocando-lhe a capa nos ombros. — Rápido — disse, começando a descer os degraus. — Vamos para a direita, cortando pelos terraços, e entraremos pelo hall até o estacionamento...

Soaram gritos vindos de dentro. Homens gritavam, mulheres berravam e, em poucos segundos, vultos em vários graus de bebedeira precipitaram-se para fora da sala, colidindo uns com os outros. Foi um caos nas salas e as palavras de pânico eram bem claras.

— E stato ucciso!

— Terrorista

— Fuggiamo!

Haviam encontrado o corpo do conde Guillamo Scozzi.

Bray e Antonia correram até o primeiro terraço e seguiram ao longo de um muro ornamentado com jardineiras. No fim dessa área cercada, havia uma abertura que levava à próxima. Scofield segurou-lhe a mão e puxou-a.

— Alto! Fiquem onde estão!

A ordem viera de cima. O primeiro homem que saíra da porta há apenas alguns minutos estava de pé nos degraus de pedra com uma arma na mão. Bray empurrou Antonia com o ombro, jogando-a contra a parede. Arremessou-se à direita no concreto, rolou para a esquerda e arrancou a Browning do coldre. Os tiros do homem explodiram a pedra antiga acima de Scofield. Bray atirou deitado de costas, erguendo os ombros do chão e firmando a mão direita com a esquerda. Atirou duas vezes. O assassino caiu de bruços, rolando os degraus.

Os tiros aceleraram o caos, gritos de terror encheram os elegantes terraços da Vila d’Este. Bray chegou até Antonia, que se agachara junto à parede.

— Você está bem?

— Estou viva.

— Vamos!

Encontraram uma abertura na parede, onde um canal levava água para um lago abaixo. Saíram e correram ao longo do córrego artificial até o primeiro caminho, uma alameda ladeada por centenas de estátuas de pedra que cuspiam jatos de água simultaneamente. Os refletores eram filtrados pelas árvores; era uma cena estranhamente tranqüila, e o caos dos terraços acima justapunha-se, mas não a afetava.

— Em frente! — disse Scofield. — No fim, há uma cascata e outra escadaria, que nos levará até lá.

Correram pelo túnel de folhagem, e a neblina dos jatos de água misturava-se ao suor de seus rostos.

— Dannazione!

A capa de Antonia foi arrancada dos ombros por um galho de árvore e ela caiu. Bray parou e ajudou-a a levantar-se.

— Ecco Ia!

— La donna!

Gritos soaram atrás deles, seguidos de tiros. Dois homens vieram correndo pelo canal de água. Serviam de alvo, delineados pela luz da fonte à frente. Scofield disparou três cartuchos. Um homem caiu, segurando a coxa; o segundo agarrou o ombro e a arma voou-lhe da mão quando se arremessou atrás da estátua mais próxima como proteção.

Bray e Antonia alcançaram a escadaria no fim do caminho... uma das entradas da vila. Subiram correndo, de dois em dois degraus, até se reunirem às multidões em pânico que se atropelavam no pátio, tentando chegar ao estacionamento.

Os motoristas estavam todos a postos, em pé junto a elegantes automóveis, protegendo-os, esperando avistar os patrões e, como todos os motoristas na Itália nesta época, empunhando armas... a proteção era indispensável. Eram bem-treinados, estavam preparados.

Entretanto, houve um que não estava tão bem-preparado. Bray aproximou-se dele.

— Esse carro é do conde Scozzi? — perguntou, sem fôlego.

— Não, não é, signore! Afaste-se!

— Desculpe.

Scofield deu um passo atrás, o suficiente para apaziguá-lo, e então se arremessou contra ele, golpeando-lhe o crânio com o cano da arma. O homem caiu ao chão.

— Entre! — gritou para Antonia. — Tranque as portas e deite-se no chão até sairmos daqui.

Levaram quase um quarto de hora para alcançar a rodovia que levava a Tivoli. Percorreram quase dez quilômetros em alta velocidade, depois tomaram uma estrada à direita em que não havia muitos carros. Bray dirigiu para o acostamento, parou, e por alguns minutos deixou a cabeça cair contra o assento, fechando os olhos. O sangue parou de martelar nas veias; empertigou-se, procurou os cigarros no bolso e ofereceu um a Antonia.

— Geralmente não fumo — disse ela. — Mas agora vou querer um. Que aconteceu?

Ele acendeu os dois cigarros e contou-lhe, terminando com o assassinato de Guillamo Scozzi, as palavras enigmáticas que ouvira na escada e a identidade do homem que as pronunciou. Paravacini. Os detalhes estavam claros, as conclusões não. Só podia especular.

— Pensaram que eu fosse Taleniekov, tinham sido avisados quanto a ele. Mas não sabiam nada sobre mim, nem mencionaram meu nome. Não faz sentido. Scozzi descreveu um americano. Eles deviam ter sabido.

— Por quê?

— Porque Washington e Moscou sabiam que Taleniekov estava atrás de mim. Tentaram pegar-nos numa armadilha, fracassaram, portanto deviam presumir que tínhamos entrado em contato...

Será que não? — pensou Scofield. O único que sabia realmente que o russo e ele se haviam encontrado era Robert Winthrop e, se ainda estivesse vivo, podiam contar com seu silêncio. O resto da comunidade do serviço não tinha provas em que se basear, só boatos. Ninguém os havia visto juntos. Apesar disso, deveriam presumir, a não ser que...

— Pensam que estou morto — disse em voz alta, olhando o pára-brisa através da fumaça do cigarro. — É a única explicação possível. Alguém lhes disse que eu estava morto. Por isso é que disseram “impossível”.

— E por que alguém faria isso?

— Bem gostaria de saber. Se fosse apenas uma manobra do serviço secreto, poderia ser por uma razão básica — ganhar tempo, por exemplo, desnortear o inimigo armando sua própria armadilha a seguir. Mas não é isso, não pode ser. Os Matareses estão a par das operações soviéticas e americanas, não tenho dúvidas quanto a isso, mas o inverso não é verdadeiro. Não compreendo.

— E se a pessoa que falou isso pensasse que você estava realmente morto?

Bray olhou-a, pensando rápido.

— Não vejo como. Ou por quê. Ê ótima idéia, mas não pensei nisso. Ê bem difícil realizar um enterro sem defunto.

“Enterro... Os enterros têm de ser absolutos.

Contate Turim... Diga-lhes que telegrafem para as águias, para o gato.”

Turim. Paravacini.

— Teve alguma idéia? — perguntou Antonia.

— Outra coisa — respondeu. — Esse Paravacini. É ele que dirige as companhias Scozzi-Paravacini em Turim?

— Dirigia. E também em Roma e Milão, Nova York e Paris. No mundo inteiro. Casou-se com a filha do velho Scozzi, e com o passar do tempo o irmão dela, o conde, assumiu cada vez mais o controle. O conde é que dirigia as companhias. Pelo menos, é o que os jornais diziam.

 

— Era o que Paravacini queria que dissessem, mas não era verdade. Scozzi era apenas um testa-de-ferro. —

— Então não fazia parte do Matarese?

— Ora, era parte do círculo, sem dúvida, de certo modo uma parte muito importante. Posso estar errado, mas acho que trouxe o círculo consigo. Ele e sua mãe, a condessa, deram-no de presente a Paravacini, junto com a esposa de sangue azul. Chegamos à pergunta realmente importante: por que um homem como Paravacini lhes deu ouvido? Homens como Paravacini precisam, acima de tudo, de estabilidade política. Gastam fortunas com governos que têm estabilidade e com candidatos que a prometem, porque perdem fortunas quando ela não existe. Procuram governos fortes, autoritários, capazes de exterminar as Brigadas Vermelhas ou a Baader-Meinhof de qualquer maneira, independente do processo ou das reclamações.

— Esse tipo de governo não existe na Itália — interrompeu Antonia.

— Nem em, muitos outros lugares, e é isso que não faz sentido. Os Paravacini deste mundo alimentam-se de lei e ordem. Nada têm a ganhar com sua destruição, nem têm algo para substituí-la. No entanto, o Matarese é contra tudo isso, quer paralisar os governos, alimenta os terroristas com dinheiro, espalha a paralisia o mais rápido possível.

Scofield deu uma tragada. Enquanto algumas coisas se esclareciam, outras ficavam mais obscuras.

— Está se contradizendo, Bray — Antonia tocou-o no braço, era um gesto que se tornara perfeitamente natural nas últimas vinte e quatro horas. — Diz que Paravacini é parte do Matarese...

— É. É o que está faltando, o porquê.

— Onde vai procurá-lo?

— Não mais aqui. Vou pedir ao médico para pegar nossas coisas no Excelsior, vamos sair daqui.

— Nós!

Scofield segurou-lhe a mão.

— Muitas coisas mudaram hoje à noite. La bella signorina não pode mais ficar em Roma.

— Então posso ir com você.

— Até Paris — disse Bray, hesitando, não porque tivesse dúvidas, mas porque precisava arranjar as vias de comunicação em Paris. — Ficará lá. Organizarei os trabalhos e providenciarei um lugar para você ficar.

— Aonde você vai?

— Londres. Já sabemos sobre Paravacini, ele é o fator Scozzi. Londres é o próximo passo.

— Por que Londres?

— Paravacini disse que Turim devia telegrafar para as águias, para o gato. Não é difícil decifrar esse código, com o que sua avó nos contou na Córsega. Uma das águias é meu país, a outra o de Taleniekov.

— Não faz sentido — discordou Antonia. — A Rússia é o urso.

— Neste caso, não. O urso russo é bolchevista, a águia russa, czarista. O terceiro convidado na Vila Matarese em abril de mil novecentos e onze era um homem chamado Voroshin. Príncipe Andrei Voroshin, de São Petersburgo, hoje Leningrado. Taleniekov está a caminho de lá.

— E o gato?

— O leão britânico. O segundo convidado, sir John Waverly. Seu descendente, David Waverly, é ministro do Exterior da Inglaterra.

— Uma alta posição.

— Alta demais, visível demais. Não faz sentido que esteja envolvido, assim como o homem em Washington, um senador que provavelmente será presidente ano que vem. E exatamente porque não faz sentido é que me dá medo. — Scofield soltou sua mão e ligou o motor. — Estamos chegando perto. Pode ser que seja muito difícil descobrir o que as águias e o gato escondem, mas há alguma coisa. Paravacini deixou isso bem claro. Disse que os enterros tinham de ser absolutos, isso quer dizer que as conexões deviam ser reexaminadas, removidas para mais longe, fora de alcance.

— Correrá grande perigo — ela tocou seu braço novamente.

— Nem um décimo do de Taleniekov. O Matarese pensa que estou morto, lembra? Ele não, e é por isso que vamos mandar o primeiro telegrama, para Helsinque. Temos de avisá-lo.

— Sobre o quê?

— Que qualquer pessoa andando em Leningrado procurando informações sobre uma antiga família de São Petersburgo chamada Voroshin será provavelmente morto, vão lhe estourar a cabeça. — Bray deu partida no carro. — É uma loucura — disse. — Vamos no encalço dos herdeiros, ou pensamos que vamos, pois temos seus nomes, mas há alguém mais, muito mais importante, e acho que nenhum dos outros vale nada sem ele.

— Quem?

— Um pequeno pastor. É ele que temos de achar, e não tenho a menor idéia de como procurá-lo.

 

Taleniekov caminhou até o meio do quarteirão na Itä Kaivopuisto em Heisínqui, vendo as luzes da Embaixada Americana mais adiante. Era muito a propósito, pois vinha pensando em Beowulf Agate o dia inteiro.

Levara a maior parte do dia para absorver as notícias contidas no telegrama de Scofield. As palavras, em si, eram inócuas: o relatório de um vendedor sobre a importação italiana de cristal finlandês, dirigido a um executivo na sede, mas a informação era surpreendente e complexa. Scofield havia feito extraordinário progresso em muito pouco tempo.

Havia encontrado a primeira conexão: era um Scozzi, o primeiro nome na lista dos convidados de Guillaume de Matarese, e o homem estava morto, assassinado por aqueles que o controlavam. Isso provava a premissa do americano, na Córsega, de que os membros do Conselho Matarese não eram descendentes, eram escolhidos. O Matarese estava controlado por uma mistura de descendentes e usurpadores, o que confirmava as palavras do moribundo Aleksie Krupskaya em Moscou.

“O Matarese permaneceu inativo durante vários anos. Ninguém podia contactá-los. Depois reapareceu, mas não era mais o mesmo. Matanças... sem clientes, sem sentido... governos paralisados.”

Era, realmente, um novo Matarese, infinitamente mais perigoso que um culto de fanáticos dedicados a assassinatos políticos por dinheiro. O Matarese presumia agora que a lista de convidados havia sido encontrada e a caça à família Voroshin em Leningrado tornara-se infinitamente mais complicada.

Em Leningrado, estavam à espera de que alguém fizesse perguntas sobre os Voroshin. Mas o homem, ou homens, com que entrasse em contato era seguro, pensou Taleniekov, batendo os pés para esquentá-los e procurando avistar o automóvel e o homem que viria a seu encontro para levá-lo ao Leste, ao longo da costa, passando por Hamina, em direção à fronteira soviética.

Scofield estava a caminho de Paris com a moça e seguiria para a Inglaterra sozinho, depois de organizar os métodos de trabalho na França. A corsa passara nos testes que Beowulf Agate inventara; viveria e seria seu salvo-conduto. Entretanto, como Vasili começava a compreender, Scofield raramente operava numa linha simples. Havia uma terceira figura, o gerente do Hotel Tavastian em Helsinque.

Ao chegar a Leningrado, Taleniekov telegrafaria ao gerente, dando todos os detalhes que pudesse transmitir em código, e esse, por sua vez, aguardaria os telefonemas diretos de Paris para transmitir os códigos recebidos de Leningrado. Caberia à mulher, então, comunicar-se com Scofield na Inglaterra. Vasili sabia que o controle das transmissões era uma especialidade da KGB e que o único meio seguro de escapar era usar o próprio aparelhamento da KGB. Tinha de arranjar um meio.

Um carro encostou na calçada, as luzes piscaram uma vez. O motorista usava um cachecol vermelho, com uma ponta jogada sobre uma jaqueta de couro escuro. Taleniekov atravessou a rua e entrou na frente, ao lado do motorista. Estava a caminho de volta à Rússia.

 

A cidade de Vainikala ficava na margem Noroeste do lago. Do outro lado era a União Soviética, e as margens do lado Sudeste eram patrulhadas por equipes de soldados e cães assediadas mais pelo tédio que por ameaças de penetração ou de fuga. Quando a KGB a descobriu, não a utilizou, simplesmente porque durante os meses de inverno os ventos gelados eram por demais perigosos e no verão o fluxo constante de turistas indo e vindo de Tallin e Riga, sem mencionar a própria Leningrado, tornava essas cidades os acessos mais fáceis à liberdade. Conseqüentemente, as guarnições do Noroeste, ao longo da fronteira finlandesa, eram compostas pelos menos eficientes militares russos, muitas vezes um conglomerado de bêbados e marginais, sob o comando de homens que estavam sendo punidos por haverem tomado decisões erradas. Vainikala era o ponto lógico para penetrar na Rússia. Até os cães eram de terceira classe.

Os finlandeses, entretanto, não eram, nem haviam perdido o ódio aos invasores soviéticos que haviam inundado seu país em 39. Eram, então, os senhores dos lagos e florestas, repelindo divisões inteiras com armadilhas brilhantemente armadas, e continuavam senhores quarenta anos depois, evitando outras. Quando Taleniekov foi escoltado através de uma península de gelo e levado além das patrulhas, acima das margens cobertas de neve, percebeu que Vainikala se havia tornado uma rota de fuga de proporções consideráveis.

— Se algum dia — disse o finlandês que o levara na última etapa da viagem — qualquer um de vocês lá de Washington quiser atravessar a linha desses bolchevistas filhos da puta, lembrem-se de nós, pois nós não esquecemos.

Vasili Vasilivich Taleniekov, ex-mestre-estrategista da KGB, achou isso irônico.

— Devia ter mais cuidado com essas ofertas — replicou. — Como sabe que não sou um espião russo?

O finlandês sorriu.

— Seguimos sua pista até o Tavastian e fizemos nossas próprias investigações. Foi mandado pelo melhor homem que existe. Ele já nos usou em dezenas de operações bálticas diferentes. Dê nossas lembranças ao homem silencioso. — Estendeu a mão. — Providenciamos um carro para levá-lo ao Sul, atravessando Vyborg, até Zelenogorsk — continuou.

— O quê?

Taleniekov não pedira isso. Deixara bem claro que, uma vez dentro da União Soviética, preferia arranjar-se sozinho.

— Não lhe pedi isso, não paguei por isso.

O finlandês sorriu com superioridade.

— Achamos melhor, vai ser muito mais rápido. Ande dois quilômetros por essa estrada; encontrará um carro estacionado junto a um monte de neve. Pergunte ao homem dentro do carro que horas são e diga que seu carro quebrou, mas fale russo. Dizem que conhece a língua mais ou menos. Se o homem responder e começar a dar corda no relógio, é sua carona.

— Acho que isso é desnecessário — objetou Vasili. — Esperava tomar eu mesmo essas providências, para nosso próprio bem.

— É melhor que qualquer coisa que pudesse arranjar. O dia

vai romper em breve e as estradas são vigiadas. Não se preocupe com coisa alguma. O homem que vai encontrar está na folha de pagamento de Washington há muito tempo. — O finlandês sorriu novamente. — É o segundo em comando, KGB-Vyborg.

Taleniekov sorriu também. Toda sua irritação evaporou-se. Em uma frase seu companheiro lhe dera a solução de vários problemas. Se roubar um ladrão era o furto mais seguro, um “desertor” comprometendo um traidor estava ainda mais seguro.

— Vocês são um povo extraordinário — disse ao finlandês. — Estou certo de que trabalharemos juntos novamente.

— Por que não? A geografia nos mantém ocupados. Temos contas a ajustar.

Taleniekov sentiu-se impelido a perguntar.

— Ainda? Depois de tantos anos?

— Não acaba nunca. Você tem sorte, meu amigo, não vive com um urso selvagem, imprevisível, no quintal de sua casa. Experimente um dia, é deprimente. Não ouviu falar? Nós bebemos demais.

 

Vasili viu o carro à distância, uma sombra preta entre outras sombras, cercada de neve na estrada. Era madrugada; em uma hora o sol jogaria seus raios amarelos através das neblinas árticas e elas desapareceriam. Quando criança, aquecera-se àquele sol.

Estava em casa. Muitos anos se haviam passado, mas não” teve nenhum sentimento de regresso, nenhuma alegria com a possibilidade de rever cenas familiares, talvez um rosto conhecido... envelhecido, como ele também envelhecera.

Não havia prazer algum, somente o dever. Muita coisa acontecera. Sentia frio e o sol de inverno dessa vez não o aqueceria. Havia somente uma família chamada Voroshin. Aproximou-se do carro, mantendo-se à direita o máximo possível, segurando a Graz-Burya na mão direita enluvada. Transpôs a neve acumulada à beira da estrada, agachando-se, até ficar paralelo à janela da frente. Ergueu a cabeça e olhou o homem dentro do carro.

Um cigarro aceso iluminava um rosto que não lhe era desconhecido. Vira-o antes, numa fotografia de um dossiê, ou talvez durante uma breve entrevista em Riga, insignificante demais para ser lembrada. Recordava-se até do nome, e esse nome despertou-lhe a memória dos fatos.

Maletkin. Pietre Maletkin. De Grodro, logo ao Norte da fronteira polonesa. Estava na casa dos cinqüenta, o rosto confirmava isso, e era considerado um profissional sólido, se bem que pouco inspirado, alguém que fazia seu trabalho calado, com eficiência rotineira e pouco mais. Subira na KGB por antiguidade, mas a falta de iniciativa o relegara a um posto em Vyborg.

Os americanos haviam sido muito perceptivos escolhendo-o como recruta. Aqui estava um homem condenado à insignificância pela própria insignificância, mas conhecedor de códigos e cronogramas em virtude da posição mantida por longo tempo. O segundo em comando em Vyborg sabia que chegara ao fim de uma estrada não muito gloriosa. Era possível jogar com ressentimentos, usar promessas de uma vida melhor. Poderia sempre ser baleado atravessando o gelo numa viagem final a Vainikala. Ninguém sentiria sua falta, seria um pequeno sucesso para os americanos e um pequeno embaraço para a KGB. Mas tudo mudara. Pietre Maletkin estava prestes a se tornar um homem muito importante. Ele mesmo o saberia no momento em que Vasili se encaminhasse para a janela, pois, se a cara do traidor era vagamente familiar a Taleniekov, o “desertor” era mais do que conhecido de Maletkin. Todos os postos da KGB no mundo inteiro estavam atrás de Vasili Vasilivich Taleniekov.

Encoberto pelo monte de neve, retornou a uns vinte metros atrás do carro e tomou a estrada. Maletkin estava afundado nos pensamentos ou cochilando. Não deu nenhum sinal de que vira alguém, não virou a cabeça, não apagou o cigarro. Só quando Vasili estava a dois metros da janela é que o traidor torceu os ombros e virou o rosto para o vidro. Taleniekov virou a cabeça para trás, como se estivesse checando a estrada enquanto andava. Não queria que seu rosto fosse visto até que o vidro tivesse sido abaixado. Colocou-se diretamente em frente à porta, com a cabeça invisível acima do teto do carro.

Ouviu rodar a manivela e sentiu a onda de calor que saiu do carro. Como esperava, os raios de uma lanterna projetaram-se do assento. Inclinou-se e mostrou o rosto, enfiando a Graz-Burya pela janela aberta.

— Bom dia, camarada Maletkin. É Maletkin, não é?

— Meu Deus! Você!

Taleniekov deslizou a mão esquerda para dentro do carro, segurou a lanterna e desviou-a lentamente, sem a menor urgência.

— Não fique assustado — disse. — Temos algo em comum agora, não é mesmo? Por que não me dá as chaves?

— Que... o quê? — Maletkin estava paralisado, não podia nem falar.

— Dê-me as chaves, por favor — continuou Vasili. — Eu as devolverei assim que estiver dentro do carro. Está nervoso, camarada, e as pessoas nervosas fazem coisas nervosas. Não quero que vá embora sem mim. As chaves, por favor.

O cano ameaçador da Graz-Burya estava a centímetros do rosto de Maletkin. Os olhos pulavam da arma para Taleniekov e a mão incerta buscou as chaves no painel e as entregou.

— Aqui está — murmurou.

— Obrigado, camarada. Somos camaradas, sabe disso, não é? Não adiantaria nada um de nós querer tirar partido da situação do outro. Ambos perderíamos.

Taleniekov deu a volta pela frente do carro, atravessou o monte de neve e entrou na frente, junto ao traidor apático.

— Vamos, coronel Maletkin... é coronel agora, não?... não há razão para essa hostilidade. Quero saber de todas as novidades.

— Sou coronel temporariamente, o posto ainda não foi confirmado.

— Que lástima. Nunca o apreciamos devidamente. Bem, estávamos definitivamente errados. Veja só o que conseguiu, bem debaixo de nosso nariz. Conte-me como conseguiu isso... em Leningrado.

— Leningrado?

— A poucas horas de carro de Zelenogorsk. Não é nada demais e tenho certeza de que o segundo em comando em Vyborg pode arranjar uma explicação razoável para essa viagem. Estou disposto a ajudá-lo. É uma de minhas especialidades.

Maletkin engoliu em seco, olhando Vasili com apreensão.

— Tenho de estar de volta em Vyborg amanhã de manhã para dar instruções às patrulhas.

— Delegue poderes, coronel! Todos adoram que lhes deleguem responsabilidade, prova que são devidamente apreciados.

— Foi delegado a mim — disse Maletkin.

— Vê o que estou dizendo? E, por falar nisso, onde estão suas contas bancárias? Na Noruega? Na Suécia? Em Nova York? Certamente não na Finlândia, isso seria uma tolice.

— Na cidade de Atlanta. Um banco que pertence aos árabes.

— Bem pensado. — Taleniekov entregou-lhe as chaves. — Vamos embora, camarada?

— Isso é loucura — disse Maletkin. — Seremos homens mortos.

— Por enquanto, não. Temos o que fazer em Leningrado.

 

Era meio-dia quando seguiram pela Ponte Kirov, passando os jardins de verão enrolados em sacos de aniagem, rumo ao Sul; para o enorme Bulevar Nevsky Prospeckt. Taleniekov ficou silencioso ao contemplar os monumentos de Leningrado. O sangue de milhões havia sido sacrificado para converter a lama congelada e a terra lamacenta do rio Neva na janela para a Europa de Pedro, o Grande.

Chegaram ao fim de Prospeckt, sob a torre reluzente do edifício do Ministério da Marinha, e viraram à direita, desembocando no cais. Lá estava, à beira do rio, o Palácio de Inverno, e o efeito em Vasili foi o mesmo de sempre. Fê-lo pensar na Rússia de outrora, que terminava ali.

Não havia tempo para reflexões, nem era essa a Leningrado que iria percorrer nos próximos dias, embora, ironicamente, fosse essa Leningrado, essa Rússia, que o havia trazido ali. O príncipe Andrei Voroshin era parte de ambas.

— Tome a Ponte Anichov e vire à esquerda — disse. — Dirija-se ao velho conjunto habitacional. Direi onde deve parar.

— Que há por lá? — perguntou Maletkin, mais apreensivo com cada quarteirão que deixavam para trás, cada ponte que atravessavam, aproximando-se do coração da cidade.

— É de espantar que não saiba, devia saber. Uma fileira de pensões ilegais e hotéis baratos, também ilegais, que têm uma atitude coletiva de reforma quanto a documentos.

— Em Leningrado?

— Você não sabe, não é mesmo? — disse Taleniekov. — E ninguém nunca lhe disse. Você foi esquecido, camarada. Quando servi em Riga, os chefes de distrito como eu vinham aqui freqüentemente e usavam essa área para conferências que queriam manter secretas, aquelas que diziam respeito a nosso próprio pessoal em do o setor. Foi onde ouvi seu nome pela primeira vez, se não me engano.

— Eu? Falaram de mim?

— Não fique preocupado, despistei-os e protegi-o. Você e o outro homem em Vyborg.

— Vyborg?

Maletkin perdeu o controle do volante. O carro derrapou, quase batendo num caminhão que vinha em direção oposta.

— Controle-se! — gritou Vasili. — Um acidente mandaria nós dois aos negros quartos de Lubyanka!

— Mas Vyborg! — repetiu o traidor estupefato. — KGB-Vyborg? Sabe o que está dizendo?

— Precisamente — replicou Taleniekov. — Dois informantes da mesma origem, sem que um soubesse da existência do outro. É a maneira mais exata de verificar informações. Mas se um ficar sabendo a respeito do outro... bem, ele está se aproveitando dos dois lados, não concorda? Em seu caso, as vantagens seriam incalculáveis.

— Quem é ele!?

— Mais tarde, meu amigo, mais tarde. Coopere totalmente comigo em tudo que lhe pedir e lhe darei o nome quando for embora.

— De acordo — disse Maletkin, refazendo-se.

Taleniekov recostou-se no assento ao prosseguirem por Sadovaya, onde o trânsito era pesado, e alcançarem as ruas tumultuadas do velho conjunto habitacional, o dom vashen. A patina dos pavimentos e prédios limpos escondia as tensões que se acumulavam por dentro da área. Duas ou três famílias morando num pequeno apartamento, quatro ou cinco pessoas dormindo num quarto... iria explodir algum dia.

Vasili olhou para o traidor a seu lado. Detestava esse homem. Maletkin pensava que ia ganhar uma vantagem com a qual nem sonhava minutos atrás: o nome de um agente secreto da KGB, altamente colocado, de seu próprio grupo, um traidor como ele mesmo, que poderia ser manipulado sem dó nem piedade. Faria qualquer coisa para conseguir esse nome. Receberia isso, em três palavras, não era necessária nenhuma outra identificação. E é claro que seria falso. Pietre Maletkin não seria baleado pelos americanos ao atravessar o gelo rumo a Vainikala, e sim no pátio de um quartel em Vyborg. Chega de política dos homens insignificantes, pensou Vasili, ao reconhecer o edifício que procurava um pouco adiante.

— Pare na próxima esquina, camarada — disse. — Espere por mim. Se a pessoa que quero ver não estiver, voltarei logo. Se estiver em casa, levarei uma hora mais ou menos. — Maletkin encostou o carro à direita, atrás de um grupo de bicicletas acorrentadas a um poste na sarjeta. — Lembre-se — continuou Taleniekov — de que tem duas alternativas. Pode sair correndo para a sede da KGB, é no Ligovsky Prospeckt, para sua informação, e me entregar; isso levará a uma cadeia de revelações que resultará na sua execução. Ou pode esperar por mim, fazer o que lhe pedir, e comprará a identidade de alguém que lhe trará benefícios presentes e futuros. Terá em suas garras um homem muito importante.

— Então não tenho escolha, não é? — disse Maletkin. — Estarei aqui.

O traidor sorriu; estava suando no queixo e seus dentes eram amarelos.

Taleniekov aproximou-se dos degraus de pedra do edifício. Era uma estrutura de quatro andares com vinte ou trinta apartamentos, muitos deles apinhados de gente. Mas não o dela. Lodzia Kronescha tinha seu próprio apartamento, era uma decisão da KGB cinco anos atrás.

Não a via desde Riga, com exceção de uma breve conferência num fim de semana, quatorze meses atrás, em Moscou. Durante a conferência, tinham passado uma noite juntos, a primeira noite, mas decidiram não se encontrar posteriormente por motivos profissionais. O “brilhante Taleniekov” mostrara sinais de tensão, seu comportamento estranhamente descontrolado irritara muitas pessoas, e foram muitos os comentários. Era melhor cortarem qualquer ligação fora das salas de conferência. Apesar de totalmente investigada e liberada, ela estava sendo vigiada. Ele não era o tipo de homem com quem devesse ser vista. Ele lhe dissera isso, insistentemente.

Há cinco anos, Lodzia Kronescha tivera problemas. Alguns chegaram a dizer que eram sérios o bastante para removê-la de seu posto em Leningrado. Outros discordaram, alegando que seus lapsos de raciocínio eram devidos a uma depressão temporária acarretada por problemas de família. Além disso, era muito eficiente em seu trabalho; quem iriam arranjar para substituí-la nestes períodos de crise? Lodzia era excelente matemática, doutorada pela Universidade de Moscou e treinada pelo Instituto Lenin, e uma das melhores programadoras de computadores no campo.

Não a removeram, mas recebeu os avisos de costume quanto a sua responsabilidade para com o Estado, que a havia educado. Transferiram-na para Operações Noturnas, Divisão de Computadores, KGB-Leningrado, Ligovsky Prospeckt. Isso fora cinco anos atrás; permaneceria aí pelo menos mais dois.

Os “crimes” de Lodzia poderiam ter sido considerados erros profissionais, uma série de pequenas variações matemáticas, não fosse um acontecimento inquietante a dois mil quilômetros de distância, em Viena. Seu irmão, um oficial superior na defesa aérea, cometera suicídio sem motivo aparente. Todavia, os planos de defesa aérea de toda a fronteira Sudoeste com a Alemanha foram alterados e Lodzia Kronescha fora detida e interrogada.

Taleniekov estivera presente e ficara intrigado com essa mulher quieta, acadêmica, colocada sob as luzes da KGB. Ficara fascinado com suas respostas pausadas, bem-pensadas, tão convincentes e desprovidas de pânico. Admitiu prontamente que adorava o irmão e que estava abalada quase a ponto de um desequilíbrio nervoso com sua morte. Não, não sabia de nenhuma irregularidade em sua vida; sim, era um membro dedicado do Partido; não, não guardara suas cartas, isso nunca lhe tinha ocorrido.

Taleniekov ficara silencioso, sabendo o que sabia por instinto e por sua longa experiência com pessoas que escondem a verdade. Ela mentira, desde o início, mas suas mentiras não eram portraição, nem sequer por sua própria sobrevivência. Era outra coisa. Quando a vigilância diária da KGB foi suspensa, ele voara freqüentemente a Leningrado de Riga, onde estava servindo, e instituíra sua própria vigilância.

Ao seguir Lodzia, Vasili descobriu o que já esperava encontrar: contatos extremamente bem-engendrados nos parques do Petrod-vorets com um agente americano de Helsinque. Ela não procurara esses encontros; haviam sido forçados.

Uma noite ele a seguiu até seu apartamento e confrontou-a com suas provas. Instintivamente, não tomou nenhuma atitude profissional. Havia muito menos que traição em suas atividades.

— O que fiz foi insignificante! — exclamara ela, com lágrimas de exaustão nos olhos. — Não é nada comparado com o que querem! Mas têm provas de que fiz alguma coisa! Não farão o que ameaçaram!

O americano havia lhe mostrado fotografias, dúzias delas, a maioria de seu irmão, mas também de outros oficiais soviéticos de alta categoria nos setores de Viena. Eram cenas de uma obscenidade revoltante, extremos de perversão sexual, homem com mulher, homem com homem, todos bêbados, mostrando uma Viena entregue à devassidão, onde figuras soviéticas responsáveis eram facilmente corrompidas por qualquer um.

A ameaça era simples: essas fotografias seriam espalhadas pelo mundo inteiro. Seu irmão, assim como seus superiores, seria universalmente ridicularizado. E a União Soviética também.

— Que esperava conseguir, fazendo o que fez? — perguntara ele.

— Cansá-los! — respondera ela. — Ficarão em dúvida, sem nunca saber o que vou fazer, o que posso fazer... o que fiz. De vez em quando, são informados de que houve erros de computador. São erros mínimos, mas é o suficiente. Não cumprirão as ameaças.

— Há uma forma melhor — sugerira ele. — Acho que deve deixar isso comigo. Há um homem em Washington que batalhou no Sudeste da Ásia, um general chamado Blackburn. Anthony Blackburn.

Vasili voltara a Riga e mandara avisos através da rede de Londres. Washington recebeu a informação em poucas horas: qualquer revelação do serviço secreto americano sobre Viena seria retaliada com revelações igualmente devastadoras, também com fotografias, de um dos homens mais respeitados no estabelecimento militar americano.

Helsinque nunca mais incomodou Lodzia Kronescha. E ela e Taleniekov tornaram-se amantes.

Ao subir a escada escura até o segundo andar, Vasili recordava o passado. Seu caso fora baseado na necessidade mútua, sem agarramentos emocionais febris. Eram duas pessoas retraídas, quase totalmente dedicadas às suas profissões. Ambas precisavam de alívio mental e físico, e foi só isso que exigiram um do outro. Quando ele foi transferido para Sebastopol, despediram-se como dois bons amigos, que se queriam muito, mas não dependiam um do outro, e apreciavam esse fato. Perguntou a si mesmo o que ela diria quando o visse, como se sentiria... como ele mesmo se sentiria.

Olhou o relógio: dez para uma. Se o horário dela ainda era o mesmo, deixara o trabalho às oito da manhã, chegara em casa às nove, lera os jornais por meia hora e dormira. De repente, ocorreu-lhe que talvez ela tivesse um amante. Se assim fosse, não a poria em perigo, sairia depressa, antes que pudesse ser identificado. Mas esperava que esse não fosse o caso, precisava de Lodzia. O homem com quem queria comunicar-se em Leningrado não era acessível diretamente; ela poderia ajudá-lo, se quisesse.

Bateu na porta. Em poucos segundos, ouviu passos atrás da porta, o som de saltos de couro no chão de madeira. Estranho, não estava na cama. A porta entreabriu-se e Lodzia Kronescha surgiu na abertura completamente vestida; muito esquisita, com um vestido de algodão de cores fortes, um vestido de verão. Os cabelos castanho-claros caíam-lhe nos ombros, o rosto de feições aquilinas tinha uma expressão rígida e os olhos castanho-esverdeados o fitavam fixamente, intensamente, como se seu súbito aparecimento depois de tanto tempo fosse uma intrusão.

— Muito gentil de sua parte passar por aqui, meu velho — disse ela, sem vestígio de expressão.

“Estava tentando dizer-lhe algo. Havia alguém lá dentro. Alguém que o aguardava.”

— Que bom vê-la de novo, velha amiga — disse Taleniekov, acenando a cabeça para indicar que compreendera e olhando pela abertura da porta.

Via parte de uma jaqueta e a fazenda marrom de um par de calças. Era um homem só, ela estava lhe dizendo. Puxou a Graz-Burya e ergueu a mão esquerda com três dedos estendidos gesticulando para a esquerda. Quando acenasse com a cabeça três vezes, ela se jogaria para a direita. Com os olhos, ela indicou que entendera.

— Há muitos meses que não a vejo — continuou, casualmente. — Estava aqui perto e resolvi...

Abanou a cabeça pela terceira vez. Ela atirou-se para a direita e Vasili meteu o ombro na porta, no painel da esquerda, para que o movimento fosse limpo e o impacto, total, e bateu-a novamente, esmagando o vulto atrás dela contra a parede.

Mergulhou na sala, fazendo uma pirueta para a direita e batendo com o ombro na porta mais uma vez. Arrancou a arma da mão do homem, puxou-o da parede e bateu com o joelho no pescoço exposto, jogando o fracassado assaltante numa poltrona próxima, de onde caiu ao chão.

— Você compreendeu — exclamou Lodzia, encolhida junto à parede. — Estava com tanto medo de que não compreendesse!

Taleniekov fechou a porta.

— Ainda não é uma hora — disse, pegando sua mão. — Pensei que estivesse dormindo.

— Estava esperando que você se lembrasse.

— E também está abaixo de zero lá fora, não é bem a época para um vestido de verão.

— Sabia que ia notar. A maioria dos homens não, mas você sim.

Segurou-a pelos ombros, falando depressa.

— Trouxe-lhe problemas tremendos. Perdoe-me. Vou sair imediatamente. Rasgue as roupas, diga que tentou impedir-me. Vou arrombar a porta de um apartamento lá em cima e...

— Vasili, preste atenção! Esse homem não é dos nossos. Não é da KGB.

Taleniekov virou-se para o homem estirado no chão, que recobrava os sentidos aos poucos, tentando levantar-se e orientar-se ao mesmo tempo.

— Tem certeza?

— Completa. Para começar, é inglês, vê-se logo quando fala russo. Quando mencionou seu nome, fingi que estava chocada, zangada, de nosso pessoal pensar que eu seria capaz de abrigar um fugitivo... Disse que queria telefonar para meu chefe. Ele recusou. Disse: “Temos tudo que precisamos de você.” Foram suas palavras exatas.

Vasili olhou-a.

— Teria mesmo telefonado para seu chefe?

— Não tenho certeza — Lodzia replicou, olhando-o fixo com seus olhos castanho-esverdeados. — Imagino que dependeria do que ele dissesse. É muito difícil acreditar que você é o que dizem.

— Não sou. Por outro lado, você deve proteger-se.

— Esperava que não chegasse a isso.

— Obrigado... velha amiga.

Taleniekov virou-se novamente para o homem no chão e deu um passo em sua direção.

Viu então que era tarde demais!

Vasili atirou-se ao vulto perto da cadeira, forçando a boca com os dedos, metendo o joelho no estômago, empurrando-o para atrás das costelas, para induzir o vômito.

O odor acre de amêndoas... cianeto de potássio. Dose maciça. Inconsciência em segundos, morte em minutos.

Os olhos ingleses de um azul frio estavam bem abertos e cheios de satisfação. O Matarese escapara.

 

— Vamos ter de repetir novamente — insistiu Taleniekov, erguendo os olhos do corpo nu. Tiraram-lhe as roupas e Lodzia, sentada numa cadeira, checava peça por peça, meticulosamente, pela segunda vez. — Tudo que ele disse.

— Não omiti nada. Falou muito pouco.

— Você é uma matemática. Temos de preencher os números que faltam. As somas estão claras.

— Somas?

— Sim, somas — repetiu Vasili, virando o corpo. — Queria pegar-me, mas estava disposto a matar-se caso a armadilha falhasse. Daí podemos deduzir duas coisas: primeiro, não podia arriscar-se a ser apanhado vivo por causa do que sabia. E, segundo, não contava com auxílio. Se eu pensasse diferente, não estaríamos aqui agora.

— Mas por que pensou que você viria aqui?

— Viria, não — Taleniekov a corrigiu. — Talvez viesse. Tenho certeza de que, em algum lugar em Moscou, está anotado que você e eu andamos juntos. E os homens que me perseguem têm acesso aos arquivos, isso eu sei. Vigiarão as pessoas, aqui em Leningrado, com as quais eu possa entrar em contato. Não darão atenção aos chefes de setores ou ao pessoal de Ligovsky. Esses, se tivessem uma pista minha, dariam alarmes que seriam ouvidos na Sibéria e os que me procuram surgiriam e me apanhariam. Não, eles só se incomodam com as pessoas que provavelmente não me entregariam. E você é uma delas.

— E há outras? Aqui em Leningrado?

— Três ou quatro, talvez. Um judeu na universidade, um bom amigo, com quem bebia e discutia noites inteiras; ele será vigiado. Outro em Jdanov, um teórico político que prega Marx, mas se sente mais à vontade com Adam Smith. Mais um ou dois, imagino. Nunca me preocupei realmente sobre as pessoas com quem era visto.

— Não precisava preocupar-se.

— Sei. Meu posto tinha suas vantagens. Havia sempre dezenas de explicações para a menor coisa que eu fizesse, qualquer pessoa que visse. — Fez uma pausa. — Será que investigam em profundidade?

— Não compreendo.

— Quero entrar em contato com um homem. Teriam de voltar muitos anos atrás para encontrá-lo e talvez o tenham feito.

Vasili parou novamente, colocando o dedo na base da espinha do defunto nu. Ergueu os olhos para o rosto, que demonstrava tanta força e era ao mesmo tempo tão doce, dessa mulher que conhecera tão bem.

— Que foi que ele disse? “Temos tudo que precisamos de você”?

— Sim. Foi quando arrancou o telefone da minha mão.

— Tinha certeza de que você ia telefonar para a sede?

— Fui muito convincente. Se ele me tivesse dito que fosse em frente, talvez eu mudasse de tática, não sei. Lembre-se de que eu sabia que era inglês. Achei que não ia me deixar telefonar. Mas não negou ser da KGB.

— E depois, quando você pôs o vestido, não fez objeções?

— Pelo contrário. Isso o convenceu de que você vinha mesmo aqui, que eu estava cooperando.

— Que disse, então? As palavras exatas. Disse que ele sorriu e falou qualquer coisa sobre as mulheres serem todas iguais e não se lembrava do resto.

— Foi uma coisa banal.

— Nada é banal. Procure lembrar-se. Algo sobre “desfiar as horas”, acho que foi isso que você disse.

— Sim. A língua era a nossa, mas a construção era bem inglesa, lembro-me disso. Disse que desfiaria agradavelmente as horas... mais que os outros. Que não havia “visões como esta no Quay” Já lhe disse, ele insistiu em que eu trocasse de roupa à sua frente.

— O Quay. Hermitage, Malachite Hall. Lá há uma mulher — disse Taleniekov, franzindo a testa. — Foram meticulosos. Mais um número que faltava.

— Meu amante foi infiel?

— Freqüentemente, mas não com ela. Era uma czarista consumada, encarregada de excursões arquitetônicas e completamente encantadora. Está mais perto dos setenta que dos sessenta, embora isso não me pareça muito longe hoje em dia. Levei-a para tomar chá várias vezes.

— Comovente.

— Gostava de sua companhia. Era excelente professora de muita coisa que eu desconhecia. Por que a colocariam numa lista em um arquivo?

— Falando por Leningrado — disse Lodzia, divertida —, se víssemos nosso concorrente de Riga encontrar-se com uma pessoa assim, certamente registraríamos o fato.

— Provavelmente é uma dessas idiotices. Que mais ele disse?

— Nada que tenha importância. Quando trocava de roupa, disse qualquer coisa sobre as vantagens dos matemáticos sobre os acadêmicos e bibliotecários...

— É isso — disse Taleniekov, pondo-se de pé. — O número que faltava. Encontraram-no.

— Que está dizendo?

— Nosso inglês devia estar sondando. O Quay... o Museu Hermitage. Os acadêmicos... meus companheiros de bebida no Jdanov. A referência a um bibliotecário... a Biblioteca Saltykov-Shchedrin. É lá que está o homem que quero ver.

— Quem é ele?

Vasili hesitou.

— Um velho que anos atrás fez amizade com um jovem estudante da universidade e lhe abriu os olhos para um mundo novo.

— Quem é ele? Quem é ele?

— Eu era um jovem muito confuso — continuou Taleniekov. — Como era possível que três quartos do mundo rejeitassem os ensinamentos da revolução? Não podia aceitar o fato de que tantos milhões não estivessem esclarecidos, mas era isso que diziam os livros e nossos professores. E por quê? Queria compreender por que nossos inimigos pensavam assim.

— E esse homem pôde explicar-lhe?

— Ele me mostrou. Deixou que eu descobrisse por mim mesmo. Eu era bastante fluente em inglês e francês naquela época, razoavelmente em espanhol. Ele abriu as portas, literalmente abriu as portas de aço que encerravam os livros proibidos... milhares de volumes que Moscou desaprovava... e deixou-me solto com eles. Passei semanas, meses, debruçado sobre eles, procurando compreender. Foi aí que o “grande Taleniekov” aprendeu a mais valiosa lição de todas: como ver as coisas do modo que o inimigo as vê, como pensar da maneira que ele pensa. Essa é a chave de todos os sucessos que já obtive. Meu velho amigo tornou isso possível.

— E precisa comunicar-se com ele agora?

— Sim. Ele viveu aqui a vida toda. Viu tudo acontecer e sobreviveu. Se alguém pode me ajudar, é ele.

— Que está procurando? Acho que tenho o direito de saber.

— Claro que tem, mas é um nome que você precisa esquecer.

Pelo menos, nunca o mencione. Preciso de informação sobre uma família chamada Voroshin.

— Uma família? De Leningrado?

— Sim.

Lodzia sacudiu a cabeça, exasperada.

— Às vezes chego a pensar que o grande Taleniekov é um idiota! É só colocar o nome em nossos computadores.

— No minuto em que fizesse isso, estaria marcada, para todas as finalidades, morta. Esse homem aí no chão tem cúmplices por toda parte. — Voltou para perto do corpo e ajoelhou-se, a fim de continuar o exame. — Além disso, nada encontraria. Foi há muito tempo, houve muitas mudanças de regime e de diretrizes. Se é que alguma informação chegou a ser dada ao computador, duvido que ainda se encontre lá. A ironia é que, se houvesse algo nos bancos de dados, seria porque a família Voroshin provavelmente não está mais envolvida.

— Envolvida em quê, Vasili?

Não respondeu imediatamente, pois tinha virado o corpo de costas e olhava uma pequena descoloração da pele na metade inferior do peito, próxima à área do coração, quase invisível através dos pêlos. Era muito pequena, não mais que dois centímetros de diâmetro, uma marca azul-arroxeado em feitio de círculo. À primeira vista, parecia um sinal de nascença, um fenômeno perfeitamente natural, não-desenhado na pele. Mas não era natural; fora colocado ali pela agulha de um perito. O velho Krupskaya dissera as palavras ao morrer: “pegaram um homem com um círculo azulado no peito, um soldado do Matarese.”

— Nisso. — Taleniekov separou os pêlos pretos no peito do morto para que se pudesse ver melhor o círculo irregular. — Venha cá.

Lodzia ficou de pé, foi até o defunto e ajoelhou-se.

— O quê? O sinal de nascença?

— Per nostro circolo — disse ele. — Não existia quando nasceu este nosso inglês. Teve de merecê-lo.

— Não compreendo.

— Mas vai compreender. Vou contar tudo que sei. Não tinha-certeza de que era isso que queria fazer, mas acho que não tenho mais escolha. Podem me matar facilmente. Se o fizerem, você deve procurar uma pessoa, vou lhe dizer como. Descreva essa marca, quarta costela, na orla do arcabouço, perto do coração. Não era para ser achada.

Lodzia ficou calada, olhando a marca azulada na pele, e, finalmente, Taleniekov.

— Quem são eles?

— Usam o nome de Matarese...

Contou-lhe, então. Tudo. Quando terminou, Lodzia não disse nada por muito tempo e ele não lhe interrompeu os pensamentos. Ouvira fatos chocantes, um dos quais era a incrível aliança entre Vasili Vasilivich Taleniekov e o homem conhecido pela KGB como Beowulf Agate. Ela foi até a janela que dava para a rua sombria e falou, o rosto encostado no vidro.

— Imagino que deve ter feito essa pergunta a si mesmo inúmeras vezes, mas vou fazê-la: era necessário entrar em contato com Scofield?

— Sim — respondeu.

— Moscou não lhe deu ouvidos?

— Moscou ordenou minha execução. Washington, a dele.

— Sim, mas você disse que nem Moscou nem Washington sabem desse Matarese. A armadilha que armaram para você e Beowulf era para mantê-los apartados. Isso eu compreendo.

— Washington oficial e Moscou oficial estão cegos ao Matarese. Se não fosse assim, alguém teria feito alguma coisa por nós. Teríamos sido chamados para dizer o que sabemos, o que levei a Scofield. Em vez disso, somos chamados de traidores, com ordens de matar-nos à primeira vista, sem oportunidade de sermos ouvidos. O Matarese orquestrou isso, usando os aparelhamentos clandestinos dos dois países.

— Então esse Matarese está em Moscou e em Washington.

— Completamente. Capaz de manipulações, mas invisível.

— Invisível, não, Vasili — opôs Lodzia. — Os homens com quem falou em Moscou...

— Velhos em pânico — interrompeu Vasili. — Cavalos de guerra moribundos relegados ao pasto. Impotentes.

— E o homem que Scofield procurou... o estadista, Winthrop.

— Sem dúvida deve estar morto.

Lodzia afastou-se da janela e ficou em pé em frente dele.

— Então aonde irá? Está encurralado.

Vasili sacudiu a cabeça.

— Pelo contrário, estamos progredindo. O primeiro nome na lista, Scozzi, estava certo. Agora temos nosso inglês aqui no chão. Nenhum documento, nenhuma prova de quem é ou de onde veio, mas com uma marca que diz mais que uma carteira cheia de documentos falsos. Era parte de seu exército, o que quer dizer que há outro soldado aqui em Leningrado vigiando um velho encarregado dos arquivos literários da Biblioteca Shchedrin. Quero esse homem, quase tanto quanto quero estar com meu velho amigo; quero quebrá-lo, arrancar respostas. O Matarese está em Leningrado para proteger os Voroshin, para esconder a verdade. Estamos chegando perto dela.

— Mas, supondo que a encontrem, a quem poderão levá-la? Não podem proteger-se porque não sabem quem são eles.

— Sabemos quem não são, e isso basta. O premier e o presidente, para começar.

— Não vão chegar até eles.

— Vamos, se tivermos provas. Beowulf tinha razão, precisamos de provas irrefutáveis. Quer nos ajudar? Ajudar a mim?

Lodzia Kronescha olhou-o dentro dos olhos, docemente. Estendeu as mãos e rodeou-lhe o rosto.

— Vasili Vasilivich. Minha vida se tornara tão descomplicada e agora você voltou...

— Não sabia aonde ir. Não podia ir diretamente ao velho. Prestei depoimento em seu favor numa audiência de segurança em 1954. Sinto muito, Lodzia.

— Não tem importância. Senti muito sua falta. E é claro que ajudarei. Se não fosse você, provavelmente estaria ensinando o primário nos setores de Tashkent.

Ele a tocou no rosto, retribuindo o gesto.

— Essa não deve ser a razão de nos ajudar.

— Não é. O que você me contou me amedronta.

 

Em nenhuma condição poderia o traidor, Maletkin, saber da existência de Lodzia. O oficial de Vyborg ficara no carro na esquina, mas quando passou de uma hora Taleniekov o viu passeando, nervoso, na calçada abaixo.

— Ele não tem certeza se é este prédio ou o outro ao lado — disse Vasili, afastando-se da janela. — Os porões ainda se comunicam?

— Ainda se comunicavam, na última vez em que estive lá.

— Vou descer e sair na rua bem mais adiante. Vou ao encontro dele e direi que o homem que estou visitando quer mais meia hora. Isso nos deve dar bastante tempo. Acabe de vestir o inglês, está bem?

Lodzia estava certa, nada mudara nos velhos prédios. Cada porão comunicava-se com o próximo, formando uma galeria subterrânea imunda e úmida, que se estendia por quase todo o quarteirão. Taleniekov saiu na rua a quatro prédios do apartamento de Lodzia. Aproximou-se de Maletkin, que não o vira chegar e levou um susto.

— Pensei que estivesse ali! — disse o traidor de Vyborg, acenando com a cabeça para a escada à esquerda.

— Ali?

— Sim, estava certo disso.

— Você ainda está muito nervoso, camarada, e isso interfere com seus poderes de observação. Não conheço ninguém naquele prédio. Vim aqui para lhe dizer que o homem com quem estou falando precisa de mais tempo. Sugiro que espere no carro, não só porque está extremamente frio, mas porque chamará menos atenção.

— Não vai demorar muito, vai? — perguntou Maletkin ansiosamente.

— Pretende ir a algum lugar? Sem mim?

— Não, não, claro que não. Preciso ir ao banheiro.

— Discipline sua bexiga — disse Taleniekov, afastando-se depressa.

Vinte minutos depois, ele e Lodzia tinham planejado os detalhes de seu contato com o diretor dos arquivos da Biblioteca Saltykov-Shchedrin no Maiorov Prospeckt. Ela lhe diria que um estudante de muitos anos atrás, um homem que subira muito alto a serviço do Governo e que depusera por ele em 1954, queria encontrar-se com ele a sós. Aquele estudante, seu amigo, não podia ser visto em público; estava em dificuldades e precisava de auxílio.

Não deveria haver dúvidas quanto à identidade do estudante ou quanto ao perigo que corria. Era preciso assustar o velho, amedrontá-lo, forçar a vir à tona o interesse por um jovem amigo antigo. Seu alarme deveria comunicar-se a qualquer pessoa que o estivesse observando. Os detalhes do encontro seriam complicados o bastante para confundir a mente do velho. A confusão e o medo o levariam a movimentos incertos, partidas e paradas aturdidas, voltas e mudanças de direção súbitas, decisões tomadas e imediatamente rejeitadas. Nessas circunstâncias, quem seguisse o velho teria de revelar-se, pois qualquer movimento que o velho fizesse seu seguidor teria de fazer.

Lodzia o instruiria a sair do enorme complexo da biblioteca pela saída Sudoeste às dez para as seis, naquela tarde; as ruas estariam escuras e não havia expectativa de neve. Dir-lhe-ia que andasse um determinado número de quarteirões numa direção, depois em outra. Se não estabelecessem contato, deveria voltar à biblioteca e esperar. Se fosse possível, seu amigo de muito tempo tentaria ir até lá. Mas não havia qualquer garantia.

Colocado sob tanta tensão, já bastavam os números para confundir o sábio, pois Lodzia terminaria a chamada telefônica abruptamente, sem repeti-los. Vasili se encarregaria do resto, usando um traidor chamado Maletkin como cúmplice inconsciente.

— Que você fará depois de ver o velho? — perguntou Lodzia.

— Depende do que me disser, ou do que eu puder aprender com o homem que o segue.

— Onde ficará? Vou vê-lo de novo?

Vasili ficou de pé.

— Pode ser perigoso para você se eu voltar aqui.

— Estou disposta a correr esse risco.

— Não estou disposto a deixar que corra. Além do mais, você trabalha até de manhã.

— Posso entrar cedo e sair à meia-noite. Agora é tudo muito mais relaxado do que quando você esteve em Leningrado a última vez. Trocamos horários com freqüência e estou completamente reabilitada.

— Alguém lhe perguntará por quê.

— Direi a verdade. Um velho amigo chegou de Moscou.

— Não acho que seja boa idéia.

— Um secretário do Partido que é do Presidium, tem mulher e vários filhos e quer ficar anônimo.

— Como disse, uma idéia esplêndida. — Taleniekov sorriu. — Terei cuidado e irei pelos porões.

— Que vai fazer com ele? — Lodzia indicou o inglês com a cabeça.

— Deixá-lo no mais remoto porão que encontrar. Tem uma garrafa de vodca?

— Está com sede?

— Ele está. Mais um suicida desconhecido no paraíso. Não fazemos propaganda deles. Preciso de uma lâmina de barbear.

 

Pietre Maletkin estava em pé ao lado de Vasili nas sombras de um arco em frente à entrada Sudeste da Biblioteca Saltykov-Shchedrin. Os refletores do pátio dos fundos do complexo derramavam amplos círculos de luz dos muros altos, criando a ilusão de uma imensa prisão. Mas os arcos que levavam à rua abriam-se simetricamente de três em três metros; os prisioneiros podiam ir e vir à vontade. Era uma noite muito movimentada, inúmeros prisioneiros iam e vinham.

— Disse que esse velho é um dos nossos? — perguntou Maletkin.

— Entenda bem quem são seus novos inimigos, camarada. O velho é da KGB, o homem que o segue e que está prestes a contactá-lo é dos nossos. Precisamos alcançá-lo antes que o peguem. O sábio é uma das armas mais eficazes que Moscou já produziu em termos de contra-espionagem. Só cinco pessoas na KGB sabem seu nome; basta saber de sua existência para ficar marcado como informante americano. Por Deus do céu, nem o mencione.

— Nunca ouvi falar nele — disse Maletkin. — Mas os americanos pensam que é um deles?

— Sim. É um embuste. Relata tudo diretamente a Moscou em linha privada.

— Incrível — murmurou o traidor. — Um velho. Muito engenhoso.

— Meus ex-associados não são nada tolos — disse Taleniekov, olhando o relógio. — Nem os seus atuais. Esqueça que já ouviu falar do camarada Mikovsky.

— É esse o nome dele?

— Até eu prefiro não repeti-lo... Olhe ele ali.

Um velho embrulhado num sobretudo, com um chapéu de pele preta, surgiu à entrada. Sua respiração formava colunas de vapor no ar gélido. Parou por um momento nos degraus, olhando em volta como se escolhesse um arco para sair à rua. A barba curta era totalmente branca e o que se via de seu rosto era uma massa de rugas e carne cansada e pálida. Desceu os degraus com cautela, segurando o corrimão. Alcançou o pátio e caminhou para o primeiro arco à direita.

Taleniekov estudou a corrente humana que fluía das portas de vidro atrás do velho. Parecia formar grupos de dois ou três. Procurou um homem só, que estivesse observando o pátio abaixo. Não encontrou nenhum e ficou preocupado. Estaria errado? Não parecia provável, no entanto não descobria um único homem cujo alvo tosse Mikovsky, agora já na metade do pátio. Quando o velho chegasse à rua, não adiantaria esperar mais, teria errado. O Matarese não havia encontrado seu velho amigo.

Uma mulher. Não estava errado. Era uma mulher. Uma mulher sozinha desligou-se da multidão e apressou-se a descer os degraus, os olhos fixos no velho. Muito plausível, pensou Vasili. Uma mulher sozinha na biblioteca horas a fio chamaria muito menos atenção que um homem. O Matarese também treinava mulheres em sua elite de soldados.

Não sabia ao certo por que isso o surpreendeu. Alguns dos melhores agentes da KGB soviética e das Operações Consulares americanas eram mulheres, mas suas atribuições raramente incluíam a violência Era isso que o espantava. A mulher seguia o velho Mikovsky somente para encontrá-lo, ele, Vasili, e a violência era parte intrínseca desse encargo.

— Aquela mulher — disse a Maletkin. — Aquela de sobretudo marrom e boné de pala. É a informante. Temos de impedi-la de fazer contato.

— Uma mulher!

— É capaz de uma variedade infinita de coisas e você não, camarada. Venha, temos de ter muito cuidado. Não se aproximará dele imediatamente, aguardará o momento mais oportuno, e nós também. É preciso separá-los, levá-la para bem longe dele, a fim de que não a identifique se houver barulho.

— Barulho? — repetiu Maletkin, perplexo. — Por que ela faria barulho?

— As mulheres são imprevisíveis, todo mundo sabe disso. Vamos.

Os próximos dezoito minutos, como Taleniekov previra, foram desorganizados e dolorosos de ver. Dolorosos porque um pobre velho inquieto ficou cada vez mais confuso com a passagem do tempo, e sua agitação transformou-se em pânico quando não viu sinal de seu jovem amigo. Atravessou as ruas no ar gelado, andando devagar, as pernas bambas. Olhava freqüentemente o relógio à luz fraca demais para seus olhos cansados. Era empurrado por pedestres toda vez que parava, e parava a todo instante, cansado e ofegante. Por duas vezes se encaminhou para um abrigo de ônibus no quarteirão em frente, convencido momentaneamente de que errara em contar as ruas. Na interseção do Teatro Kirov, havia três abrigos e ficou mais confuso ainda. Visitou todos os três, cada vez mais perplexo.

A estratégia surtiu efeito na mulher que o seguia. Interpretou os movimentos do velho como prova de que temia estar sendo vigiado, não era treinado em métodos evasivos e era um velho assustado, capaz de criar uma situação incontrolável. Portanto, a mulher de sobretudo marrom e boné de pala guardou distância, ficando nas sombras, indo das fachadas escuras das lojas para vielas mal iluminadas, forçada a agitar-se pela própria imprevisibilidade do suspeito.

O velho iniciou o caminho de regresso à biblioteca conforme programado. Vasili e Maletkin observaram-no de sua posição vantajosa a setenta e cinco metros de distância. Taleniekov estudou a rota diretamente em frente à larga avenida. Havia dois becos e ambos seriam usados pela mulher quando Mikovsky passasse por ela em seu retorno.

— Venha — ordenou Vasili, segurando o braço de Maletkin e empurrando-o para a frente. — Vamos atravessar e ficar por trás dele na multidão. Ela vai virar-se de costas quando ele passar por ela e, à altura do segundo beco, vai se esconder.

— Como tem tanta certeza?

— Porque ela já fez isso antes e é natural que repita. Eu faria o mesmo. E agora nós é que vamos usá-lo.

— Como?

— Eu lhe direi quando estivermos em posição.

O momento aproximava-se e Taleniekov sentiu o coração bater no peito. Havia orquestrado os acontecimentos dos últimos dezesseis minutos e agora ia ver se essa orquestração tinha mérito. Dois fatos eram indiscutíveis: primeiro, a mulher o reconheceria imediatamente; na certa lhe deram fotografias e uma descrição, detalhada. Segundo, se a violência se virasse contra ela, daria cabo da própria vida, com a mesma rapidez e eficiência demonstrada pelo inglês no apartamento de Lodzia.

O uso do fator tempo e choque eram suas únicas ferramentas. Providenciaria o primeiro e o traidor de Vyborg se encarregaria do segundo.

Atravessaram a praça com um grupo de pedestres e juntaram-se à multidão em frente ao Teatro Kirov. Vasili olhou por sobre o ombro e viu Mikovsky romper desajeitadamente a fila da bilheteria, respirando com dificuldade.

— Escute bem e faça exatamente o que eu disser — disse Taleniekov, segurando o braço de Maletkin. — Repita o que vou dizer...

Uniram-se à corrente de pedestres na calçada, ficando atrás de um quarteto de soldados cujos sobretudos volumosos formavam uma parede, a qual não impedia que Vasili olhasse à frente quando quisesse. Adiante, o velho aproximava-se do primeiro beco; a mulher desapareceu nele por um segundo, saindo assim que ele passou.

Faltavam alguns momentos. Só uns momentos.

O segundo beco. Mikovsky à frente da entrada, a mulher dentro dele.

— Agora! — ordenou Vasili, correndo com Maletkin para a entrada.

Ouviu as palavras que Maletkin gritou alto, para que não se perdessem no barulho das ruas.

— Espere, camarada! Pare! Circolo! Nostro circolo!

Silêncio. O choque fora quase total.

— Quem é você? — perguntou a voz fria e tensa.

— Pare tudo! Tenho notícias do pastor!

— O quê?

O choque agora era completo.

Taleniekov virou a esquina do beco, correndo para a mulher. Atirou-se sobre ela, segurando-lhe os braços com mãos que eram como duas molas em espiral desenrolando-se. Seus dedos deslizaram imediatamente até os pulsos, imobilizando as mãos dela, uma das quais estava no bolso do sobretudo, segurando uma arma. Ela recuou, virando para a esquerda e fazendo o corpo mole, arrastando-o à frente. Então, virou-se para a direita e deu-lhe um golpe com o pé esquerdo, os dois atracados como animais selvagens.

Ele contra-atacou diretamente, suspendendo-a no ar, jogando-a contra o muro, martelando-a com o ombro, esmagando-a contra os tijolos.

Foi tudo tão rápido que só percebeu o que ela estava fazendo quando sentiu os dentes cravarem-se em seu pescoço. Ela metera a cara na dele, um gesto tão inesperado que ele só pôde retorcer o corpo de dor. A boca estava escancarada, os lábios vermelhos grotescamente abertos. Foi uma mordida feroz, as mandíbulas apertavam-lhe o pescoço como um torno. Sentiu o sangue correr, encharcando-lhe o colarinho... ela não o largava. A dor era cruciante; quanto mais ele a batia contra o muro, mais fundo os dentes penetravam-lhe na carne. Não podia agüentar mais. Soltou os braços e arranhou-lhe o rosto, empurrando-a.

O tiro explodiu alto, nitidamente, embora abafado pela pesada fazenda do sobretudo, e ecoou, levado pelo vento, em todo o beco. Ela caiu, flácida, contra o muro.

Olhou-a no rosto; os olhos estavam abertos e opacos; escorregou lentamente para o chão. Fizera exatamente o que fora programado: avaliara as chances, dois homens contra ela, e disparara a arma no bolso, estourando o peito.

— Está morta! Meu Deus, ela se matou! — gritou Maletkin. — O tiro, ouviram o tiro! Temos de fugir! A polícia!

 

Vários curiosos que passavam ajuntaram-se à entrada do beco e olhavam a cena, imóveis.

— Fique quieto! — ordenou Taleniekov. — Se vier alguém, mostre o cartão da KGB. Assunto oficial, não é a ninguém permitido ficar aqui. Quero trinta segundos.

Vasili puxou um lenço do bolso e o comprimiu contra o pescoço, reduzindo o fluxo de sangue. Ajoelhou-se junto ao corpo da morta e, com a mão direita, rasgou o casaco, expondo uma blusa manchada de vermelho. Arrancou a fazenda molhada e viu logo abaixo do seio esquerdo um grande buraco, por onde escapavam tecidos e intestinos. Apalpou a carne ao redor da ferida. Não podia ver, a luz era muito fraca. Procurou o isqueiro.

Acendeu-o, esticando a pele ensangüentada abaixo do seio e segurando a chama poucos centímetros acima. A chama bruxuleou no vento.

— Depressa, pelo amor de Deus! — Maletkin estava de pé a alguns metros de distância e sua voz murmurava em pânico. — Que está fazendo?

Taleniekov não respondeu. Usou os dedos para limpar o sangue ao redor da ferida a fim de ver melhor.

Encontrou-o. Na dobra abaixo do seio esquerdo, em ângulo em direção ao meio do peito. Um círculo irregular azul cercado de pele branca manchada de vermelho. Uma jaca que não era jaca, e sim a marca de um exército incrível.

O círculo Matarese.

 

Saíram rapidamente pela outra ponta do beco e inçorporaram-se aos grupos que iam rumo ao Norte. Maletkin tremia e estava lívido. Vasili o segurava pelo cotovelo, controlando o pânico que poderia forçar Maletkin a sair disparado, chamando a atenção para ambos. Taleniekov precisava do homem de Vyborg, tinha de mandar um telegrama que furasse a intercepção da KGB, e só Maletkin poderia mandá-lo. Sabia que tinha muito pouco tempo para elaborar o código para Scofield. O velho Mikovsky levaria mais dez minutos para chegar ao escritório, mas Vasili sabia que não deveria demorar a chegar lá. Um velho assustado poderia dizer coisas erradas a pessoas erradas.

Taleniekov apertou o lenço contra a ferida do pescoço. O sangue que corria estava reduzido a um fio pelo ar gélido, e em breve poderia fazer um curativo. Ocorreu-lhe comprar um suéter de gola alta para esconder a ferida.

— Devagar! — exclamou, puxando Maletkin pelo cotovelo. — Ali em frente há um café. Vamos entrar por uns minutos, tomar alguma coisa.

— Bem que preciso — murmurou Maletkin. — Meu Deus, ela se matou! Quem era ela?

— Alguém que cometeu um erro. E você que não cometa outro.

O café estava cheio. Sentaram-se à mesa de duas mulheres de meia-idade, que não gostaram da intrusão e retraíram-se morosamente. Era um arranjo excelente.

— Vá até o gerente, perto da porta — disse Taleniekov. — Diga-lhe que seu amigo bebeu um pouco demais e cortou-se. Peça gaze e esparadrapo.

Maletkin ensaiou uma objeção; Vasili tocou-o no braço.

— Faça isso, vamos lá. Não é nada demais num lugar como este.

O traidor ficou de pé e caminhou para o homem junto à porta. Taleniekov dobrou o lenço de dentro para fora, pressionando o lado mais limpo na carne rasgada, e procurou um lápis no bolso. Pegou o guardanapo de papel grosseiro e começou a escolher um código para Beowulf Agate.

Sua mente isolou todos os sons e concentrou-se num alfabeto e uma progressão de números. Mesmo quando Maletkin voltou com uma atadura de algodão e um rolo de esparadrapo, Vasili continuou escrevendo, riscando os erros logo que os cometia. Chegaram as bebidas... o traidor pedira três para cada um. Taleniekov continuou escrevendo.

Terminou em oito minutos. Rasgou o guardanapo em dois e copiou os dizeres em letras grandes, inconfundíveis, entregando-o a Maletkin.

— Quero que mande esse telegrama para Helsinque, para o nome e o hotel aí em cima. Quero que vá numa linha branca, tráfego comercial, não-sujeito a interceptação de duplicata.

O traidor esbugalhou os olhos.

— Como espera que eu consiga isso?

— Da mesma maneira que manda informações para nossos amigos em Washington. Sabe os horários de transmissões que não são controladas. Nós todos nos protegemos de nós mesmos. É um de nossos maiores talentos.

— Mas isso é através de Estocolmo. Não passamos por Helsinque!

Maletkin ficou vermelho. Seu estado de agitação e a rápida ingestão de álcool o tornaram descuidado. Não tencionara revelar a conexão sueca. Não se fazia isso, nem mesmo entre desertores.

E Vasili não podia usar Estocolmo, pois então o telegrama estaria sob observação americana. Mas havia outra maneira.

— Quantas vezes você vem aqui, à sede de Ligovski, para conferências de setor?

O traidor repuxou os lábios, embaraçado.

— Não muitas. Talvez três ou quatro vezes no ano passado.

— Você vai lá agora — disse Taleniekov.

— Eu o quê? Você perdeu a cabeça!

— Você perderá a sua se não for. Não tenha medo, coronel. O posto ainda tem seus privilégios e faz efeito. Você vai mandar um telegrama urgente para um homem de Vyborg em Helsinque. Linha branca, tráfego não-duplicado. Mas terá de me trazer uma cópia para conferência.

— E se checarem com Vyborg?

— Quem estaria de serviço lá agora ousaria interferir com o segundo em comando?

Maletkin franziu a testa, nervoso.

— Farão perguntas mais tarde.

Vasili sorriu e, quando falou, sua voz prometia riquezas incalculáveis.

— Acredite em mim, coronel. Quando regressar a Vyborg, não haverá nada que não possa ter... ou comandar.

O traidor riu, o queixo brilhando de suor.

— Onde entrego a cópia? Onde nos encontraremos? E quando?

Taleniekov segurou a atadura no lugar sobre a ferida do pescoço e desenrolou um pedaço de esparadrapo, segurando a ponta entre os dentes.

— Rasgue para mim — disse a Maletkin. Uma vez rasgado, Vasili aplicou-o, tirando outro pedaço enquanto falava. — Passe a noite no Hotel Europeiskaya na Rua Brodsky. Procurarei você lá.

— Pedirão identificação.

— Mas claro que a dará, um coronel da KGB certamente conseguirá um quarto melhor. Uma mulher melhor, também, se descer ao saguão.

— Ambos custam dinheiro.

— O prazer será meu — disse Taleniekov.

 

Era a hora do jantar. Os imensos salões de leitura da Biblioteca Saltykov-Shchedrin, com suas paredes forradas de tapeçarias e tetos enormemente altos, estavam bem mais vazios que de costume. Estudantes espalhados sentavam às longas mesas, alguns grupos de turistas passeavam, estudando as tapeçarias e os quadros a óleo, falando baixinho, assombrados com a grandeza da Shchedrin.

Ao atravessar os corredores de mármore em direção ao conjunto de escritórios da ala Oeste, Vasili recordou os meses que passara nessas salas, despertando a mente para um mundo que conhecera tão pouco. Não havia exagerado quando falara com Lodzia; fora aqui, através da coragem sábia de um homem, que aprendera mais sobre o inimigo que em todo o treinamento que recebera posteriormente em Moscou e Novgorod.

A Saltykov-Shchedrin fora sua melhor escola, e o homem que estava prestes a ver, depois de tantos anos, seu professor mais perfeito. Imaginava se a escola ou o professor poderiam ajudá-lo agora. Se a família Voroshin estivesse ligada ao novo Matarese, não haveria qualquer informação de valor nos bancos de dados do serviço secreto, disso tinha certeza. Estaria por acaso aqui? Em algum lugar nos milhares de volumes que detalhavam os eventos da revolução, de famílias e vastas propriedades, banidas e repartidas, tudo documentado pelos historiadores da época, que sabiam que essa era jamais voltaria, pois era o início explosivo de um novo mundo. Acontecera aqui em Leningrado... Sao Petersburgo... e o príncipe Andrei Voroshin era parte do cataclismo. Os arquivos revolucionários da Saltykov-Shchedrin eram os mais completos em toda a Rússia. Se houvesse informações sobre os Voroshin, estaria aqui. Mas encontrá-las seria bem difícil. Será que o velho professor saberia onde procurar?

Virou à esquerda num corredor onde se alinhavam as portas de escritórios envidraçadas, todas escuras, exceto uma, no final. A luz através da porta era fraca e desaparecia intermitentemente, bloqueada pela silhueta que passava de um lado para o outro em frente à lâmpada de mesa. Era o escritório de Mikovsky, a mesma sala que ocupara por mais de um quarto de século, e a figura que se movia do outro lado do vidro ondulado era, sem dúvida, o sábio.

Foi até a porta e bateu de leve; a figura escura surgiu imediatamente do outro lado do vidro.

A porta se abriu e lá estava Yanov Mikovsky, o rosto enrugado ainda vermelho de frio, os olhos atrás de espessas lentes, cheios de perguntas e de medo. Fez um gesto para Vasili entrar depressa e fechou a porta assim que ele transpôs o limiar.

— Vasili Vasilivich! — A voz do velho era um murmúrio suplicante. Abriu os braços para o amigo. — Nunca pensei que fosse vê-lo novamente.

Deu um passo atrás, segurando o sobretudo de Taleniekov, estudando-lhe as feições, tentando formar palavras com a boca enrugada. Os acontecimentos da última meia hora haviam sido demais para ele. Só conseguiu emitir sons indistintos.

— Não fique tão perturbado — disse Vasili, procurando reconfortá-lo. — Tudo está bem.

— Mas por quê! Por que tanto segredo? Essa correria de um lugar para o outro? Será preciso isso? De todos os homens na União Soviética... você. Nunca veio ver-me nos anos que passou em Riga, mas outros me disseram como era respeitado, como estava encarregado de tanta coisa.

— Foi melhor que não nos encontrássemos naquela época. Disse-lhe isso no telefone.

— Nunca compreendi.

— Eram apenas precauções que na ocasião pareciam razoáveis.

Haviam sido mais que razoáveis, pensou Taleniekov. Soubera que o velho estava bebendo demais, deprimido com a morte da esposa. Se o chefe da KGB-Riga tivesse sido visto com o velho, poderiam ter suspeitado das ligações entre os dois. E havia razões para isso.

— Não importa agora — disse Mikovsky. — Foi um período muito difícil para mim, como certamente lhe disseram. Há ocasiões em que certos homens devem ficar isolados, mesmo dos velhos amigos. Mas estamos no agora! Que aconteceu com você?

— É uma longa história, vou contar-lhe tudo que posso. Tenho de contar-lhe, pois preciso de seu auxílio.

Taleniekov desviou os olhos. À direita da mesa havia uma chaleira assentada sobre um fogareiro elétrico. Não podia ter certeza, mas lhe pareceram a mesma chaleira e o mesmo fogareiro elétrico de muitos anos. atrás.

— Seu chá sempre foi o melhor de Leningrado. Quer fazer um pouco para nós agora?

Taleniekov falou durante quase meia hora e o velho sábio escutou em silêncio, sentado na cadeira. Quando Vasili mencionou o nome do príncipe Andrei Voroshin, pela primeira vez, não fez nenhum comentário, mas quando seu estudante terminou ele disse:

— As propriedades dos Voroshin foram confiscadas pelo Governo revolucionário. A fortuna da família havia sido consideravelmente reduzida pelos Romanov e seus sócios industriais. Nicholas e seu irmão Michael detestavam os Voroshin, alegando que eram os ladrões de todo o Norte da Rússia e das rotas marítimas. E, naturalmente, os bolchevistas ordenaram a execução do príncipe. Sua única esperança era Kerenski, por demais indeciso ou corrupto para destruir completamente as famílias ilustres. Essa esperança esvaiu-se com o colapso do Palácio de Inverno.

— Que aconteceu com Voroshin?

— Foi condenado à morte. Não tenho certeza, mas acho que seu nome foi incluído nas listas de execuções. Os que escaparam manifestaram-se anos mais tarde. Se Voroshin estivesse entre eles, eu me lembraria.

— Por quê? Houve centenas, só aqui em Leningrado. Por que os Voroshin?

— Seria difícil esquecê-los por muitas razões. Era muito raro os czares da Rússia chamarem sua própria espécie de ladrões e piratas e procurar destruí-los. A família Voroshin era famosa. O pai e o avô do príncipe negociaram com escravos na China e na África, do Oceano Indico ao Sul da América do Norte. Manipularam os bancos imperiais, forçando frotas e companhias mercantes à bancarrota é absorvendo-as. Dizem que, quando Nicholas expulsou secretamente o príncipe Andrei Voroshin da corte, ele proclamou: “Se nossa Rússia cair nas mãos de maníacos, será devido a homens como você. Açula-os a lançarem-se em nossas gargantas.” Isso foi muitos anos antes da Revolução.

— Disse que ele o “expulsou secretamente”. Por que “secretamente”?

— Não era hora de expor desacordos entre os aristocratas. Seus inimigos se utilizariam disso para justificar os brados de crise nacional. A Revolução estava sendo fomentada dezenas de anos antes de ocorrer. Nicholas entendia, sabia o que estava acontecendo.

— Voroshin tinha filhos?

— Não sei, mas presumo que sim, de uma forma ou de outra. Tinha muitas amantes.

— Que sucedeu com a família?

— Novamente, não sei ao certo, mas deduzo que pereceram. Como sabe, os tribunais eram geralmente lenientes com mulheres e crianças. Permitiram que milhares fugissem. Só os mais fanáticos queriam sujar as mãos com esse tipo de sangue. Mas não creio que permitissem que os Voroshin escapassem. Tenho certeza quase absoluta, mas não disponho de fatos.

— Preciso de conhecimento específico.

— Compreendo, e, na minha opinião, você o tem. Pelo menos o bastante para refutar qualquer teoria que se aplique a Voroshin e essa incrível sociedade Matarese.

— Por que diz isso?

— Porque, se o príncipe tivesse escapado, não teria vantagem alguma em ficar calado. Os Brancos em exílio estavam organizando-se em toda parte. Os que possuíam títulos legítimos eram recebidos de braços abertos e remunerados excessivamente pelas grandes companhias e bancos internacionais... era bom negócio. Não era da natureza de Voroshin rejeitar fama e fortuna. Não, Vasili. Ele foi morto. ——

Taleniekov escutou as palavras do sábio, procurando Alguma incongruência. Levantou-se da cadeira e encaminhou-se para o bule de chá. Encheu a xícara e contemplou o líquido marrom distraidamente.

— A não ser que lhe tenham oferecido algo de maior valor ainda para que ficasse calado, permanecesse anônimo.

— Esse Matarese?

— Sim. Dispunham de dinheiro, em Roma e em Gênova. Foi seu capital inicial.

— Mas era para ser usado exatamente nisso, não era? — Mikovsky inclinou-se para a frente. — Pelo que me disse, era para alugar assassinos e pregar o evangelho de vingança de Guillaume de Matarese, não é isso?

— Foi o que disse a velha cega — concordou Taleniekov.

— Então não era para ser gasto em recuperação de fortunas individuais ou no financiamento de novas. Entenda, é isso que não posso aceitar no que diz respeito a Voroshin. Se tivesse escapado, não daria as costas às oportunidades que lhe fossem oferecidas, especialmente para se juntar a uma organização empenhada em vingança política. Era um homem extremamente pragmático.

Vasili estava de volta à cadeira; parou e virou-se, com a xícara suspensa no ar.

— Que disse agora mesmo?

— Que Voroshin era pragmático demais para rejeitar...

— Não — interrompeu Taleniekov. — Antes disso. O dinheiro não era para ser gasto em recuperação de fortunas ou... ?

— No financiamento de novas. Sabe, Vasili, vastas somas foram postas à disposição dos exilados.

Taleniekov ergueu a mão.

— Financiamento de novas — repetiu. — Há muitas maneiras de pregar o evangelho. Os mendigos e lunáticos pregam nas ruas, os padres pregam no púlpito e os políticos nas plataformas. Mas como pregar um evangelho que não pode ser examinado? Como pagar os custos disso? — Vasili colocou a xícara na pequena mesa ao lado. — Ambos são feitos anonimamente, usando os métodos e processos complexos de uma estrutura já existente. Uma em que áreas inteiras operam como entidades separadas, distintas umas das outras, mas ligadas por uma identidade comum. Uma em que enormes parcelas de capital são transferidas diariamente. — Taleniekov voltou à mesa e inclinou-se, apoiando-se nas mãos. — Adquire-se o que for necessário! Compram-se as posições de decisão! E fica-se dono da estrutura!

— Se é que entendo — disse o sábio —, o dinheiro que Matarese deixou era para ser dividido e usado na compra de participação em empresas gigantes já estabelecidas.

— Exatamente. Estou procurando no lugar errado, desculpe, o lugar certo, mas o país errado. Voroshin escapou de fato. Saiu da Rússia, provavelmente muito antes que o forçassem a isso, pois os Romanov aleijaram-no, despojaram-no, fiscalizaram todos os seus atos financeiros. Estava atado de pés e mãos aqui... e mais tarde os investimentos que Guillaume de Matarese planejou foram proibidos aqui. Será que não entende? Ele não tinha nenhuma razão para ficar na Rússia. Tomou sua decisão muito antes da Revolução, é por isso que nunca ouviu falar dele no exílio. Tornou-se outra pessoa.

— Está errado, Vasili. Seu nome estava na lista dos que foram condenados à morte. Lembro-me de tê-lo visto.

— Mas não tem certeza de tê-lo visto mais tarde, nas declarações dos que foram realmente executados.

— Foram tantos.

— É exatamente isso.

— Mas há seus comunicados com o governo provisório de Kerenski, que estão arquivados.

— É muito fácil mandar despachos e registrá-los. — Taleniekov afastou-se da mesa e todos os seus instintos lhe diziam que estava perto da verdade. — Haveria melhor maneira de um homem como Voroshin perder sua identidade que no caos de uma revolução? As multidões descontroladas, não houve qualquer disciplina durante semanas, e foi um milagre que não durasse mais tempo. Caos absoluto. Como foi fácil...

— Está simplificando demais — disse Mikovsky. — Houve, realmente, um período tumultuado, mas equipes de observadores viajaram pelas cidades e pelos campos e anotaram tudo que viram e ouviram, Não só fatos, mas impressões, opiniões e interpretações do que testemunharam. Os acadêmicos insistiram nisso, pois era um momento da história que nunca mais se repetiria e queriam que nem um só segundo fosse perdido ou não-justificado. Tudo foi anotado, mesmo as observações mais severas. Isso era uma forma de disciplina, Vasili.

Taleniekov concordou com a cabeça.

— Por que pensa que vim aqui?

O velho endireitou o corpo.

— Os arquivos da Revolução?

— Preciso vê-los.

— Um pedido fácil de fazer, mas difícil de atender. Moscou tem de dar permissão.

— Qual é o caminho?

— Através do Ministério de Assuntos Culturais. Vem um homem do escritório de Leningrado com a chave das salas lá embaixo. Aqui não há nenhuma chave.

Vasili desviou os olhos para os montes de papéis sobre a mesa de Mikovsky.

— E esse homem é um arquivista? Uma autoridade, como você?

— Não. É simplesmente um homem com uma chave.

— Com que freqüência concedem essas autorizações?

Mikovsky franziu a testa.

— Não é muito freqüente. Talvez duas vezes por mês.

— Quando foi a última vez?

— Há umas três semanas. Um historiador do Jdanov que estava fazendo uma pesquisa.

— Onde leu o material?

— Nas salas de arquivo. Não é permitido tirar nada de lá.

Taleniekov ergueu a mão.

— Tiraram alguma coisa. Foi devolvido a você e, para o bem de todos, tem de ser posto de volta nos arquivos imediatamente. Telefone para o escritório de Leningrado, muito excitado.

 

O homem chegou em vinte e um minutos, com o rosto queimado pelo frio.

— O oficial do plantão noturno disse que era urgente, senhor — disse o rapaz ofegante, abrindo a pasta e tirando uma chave recortada de modo tão complexo que só poderia ser reproduzida por um instrumento de precisão.

— E também altamente irregular, e sem dúvida uma ofensa criminosa — retrucou Mikovsky, levantando-se da cadeira. — Mas tudo bem, agora que está aqui. — O sábio deu a volta à mesa, com um envelope grande na mão. — Vamos lá embaixo?

— Isso aí é o material?

— Sim. — O velho abaixou o envelope.

— Que material? — A voz de Taleniekov era cortante e a pergunta uma acusação.

Pegara-o; o homem deixou cair a chave e estendeu a mão para o cinto. Vasili precipitou-se sobre ele, segurando a mão e puxando-a para baixo, metendo o ombro no peito do homem e atirando-o ao chão.

— Disse a coisa errada! — gritou. — Nenhum oficial de plantão dá os detalhes de uma emergência a um mensageiro. Per nostro circolo! Desta vez não haverá pílulas! Nem armas. Peguei você, soldado! E, pelo seu deus corso, vai me dizer o que quero saber!

— Ich sterbe für unser Verein. Für unser Heiligíum — murmurou o rapaz, com a boca aberta, os lábios estufados, a língua... a língua.

Os dentes. Ele mordeu, cerrou os dentes, e o resultado era irreversível.

Taleniekov, atônito e furioso, viu o líquido da cápsula penetrar na garganta, paralisando os músculos. Aconteceu em segundos... uma expulsão de ar, uma exalação final.

— Chame o Ministério! — disse a Mikovsky, profundamente abalado. — Diga ao oficial de plantão noturno que levará várias horas recolocando o material.

— Não compreendo. Não compreendo nada!

— Interceptaram os telefonemas do Ministério. Esse homem tomou o lugar do portador da chave. Ia deixá-la aqui e fugir depois de nos matar.

Vasili rasgou o sobretudo do homem e depois a camisa.

Lá estava. A jaca que não era jaca, o círculo azul irregular do Matarese.

 

O velho sábio alcançou os dois livros na prateleira de cima da estante de metal e deu-os a Taleniekov. Eram o décimo sétimo e décimo oitavo volumes que ambos haviam examinado, procurando o nome Voroshin.

— Seria muito mais fácil se estivéssemos em Moscou — disse Mikovsky, descendo a escada cuidadosamente e caminhando em direção à mesa. — Todo esse material foi transcrito com índice alfabético. Um volume só nos diria exatamente onde olhar.

— Há alguma coisa, tem de haver alguma coisa.

Taleniekov estendeu um volume para o velho, abriu o segundo e começou a ler os itens escritos a mão, virando as páginas frágeis com muito cuidado.

Doze minutos depois, Yanov Mikovsky falou.

— Está aqui.

— O quê?

— Os crimes do príncipe Andrei Voroshin.

— Sua execução?

— Ainda não. Sua vida e as vidas e atos criminosos de seu pai e seu avô.

— Deixe-me ver.

Estava tudo ali, meticulosamente, se bem que superficialmente registrado em letra firme, precisa. Descrevia os pais Voroshin como sendo inimigos das massas, repletos de crimes de assassínio irresponsável de servos e arrendatários e das manipulações mais refinadas dos bancos imperiais, causando o desemprego de milhares e atirando outros milhares aos montes de famintos. O príncipe fora mandado ao Sul da Europa para adquirir a educação superior, uma grande viagem que durara cinco anos e solidificara sua crença no domínio imperialista e na repressão do povo.

— Aonde? — Taleniekov falou alto.

— Referindo-se a quê? — perguntou o sábio, lendo a mesma página.

— Aonde foi mandado!

Mikovsky virou a página.

— Krefeld. Universidade de Krefeld. Está aqui.

— O filho da puta falou em alemão. Ich sterbe für unser Verein! Für unser Heiligtum! É na Alemanha!

— O que?

— A nova identidade de Voroshin. Está dito aqui. Leia mais adiante.

Leram. O príncipe passara três anos em Krefeld, dois em estudos de pós-graduação em Dusseldorf, e para lá voltara freqüentemente em sua vida adulta, quando formou ligações pessoais íntimas com industriais alemães como Gustav von Bohlen-Holbach, Friedrich Schotte e Wilhelm Habernicht.

— Essen — disse Vasili. — Dusseldorf levou-o a Essen. Era um território que Voroshin conhecia, uma língua que falava. O cronograma era perfeito; guerra na Europa, revolução na Rússia, o mundo em caos. Tornou-se parte das companhias de munições em Essen, foi isso.

— Krupp?

— Ou Verachten, concorrente de Krupp.

— Acha que ele comprou a entrada numa delas?

— Pela porta dos fundos e com nova identidade. A expansão industrial alemã naquela época era tão caótica quanto a guerra do Kaiser, o pessoal da direção mobilizava-se como um pequeno exército. As circunstâncias eram ideais para Voroshin.

— Aqui está a execução — interrompeu Mikovsky, que virará as páginas. — A descrição começa aqui em cima. Sua teoria perde a credibilidade, sinto muito.

Taleniekov inclinou-se sobre o texto, esquadrinhando as palavras. O texto detalhava a morte do príncipe Andrei Voroshin, sua esposa, dois filhos e suas esposas, e uma filha, na tarde de 21 de outubro de 1917, em sua propriedade em Tsarskoye Selo, às margens do rio Slovyanka. Descrevia minuciosamente os instantes finais da luta sangrenta, os Voroshin emboscados no casarão com os empregados, repelindo uma multidão de atacantes, disparando armas das janelas, atirando latas de gasolina em chamas dos telhados... no fim, soltando os empregados e, num pacto de morte, usando a própria pólvora para explodir a casa e todos dentro dela numa conflagração final. Nada sobrou, somente o esqueleto queimado de uma grande propriedade czarista; os restos dos Voroshin foram consumidos pelas chamas.

Imagens vieram à mente de Vasili... as ruínas da Vila Matarese. Lá, também, houvera uma conflagração final.

— Tenho de discordar — disse gentilmente a Mikovsky. — Isso não foi uma execução.

— Talvez o tribunal estivesse ausente — retorquiu o sábio —, mas mantenho que os resultados foram idênticos.

— Não houve resultados, nem indícios, nem prova de morte. Apenas ruínas carbonizadas. Esse texto é falso.

— Vasili Vasilivich! Esses são os registros oficiais, cada documento foi examinado e aprovado pelos acadêmicos! Na ocasião.

— Um deles foi comprado. Concordo que uma grande propriedade foi queimada totalmente, mas essa é a única prova. — Taleniekov virou várias páginas atrás. — Veja, este relatório é muito descritivo. Vultos empunhando armas às janelas, homens nos telhados, criados saindo aos trambolhões, explosões que começaram nas cozinhas, tudo muito bem explicado.

— Concordo — disse Mikovsky, impressionado com as minúcias.

— Errado. Está faltando alguma coisa. Em todos os textos desse gênero que vimos... a invasão de palácios e propriedades, a parada de trens, as demonstrações... há sempre frases assim: “...a coluna avançada era comandada pelo camarada Fulano de tal...”, “... a retirada sob fogo dos guardas czaristas comandada pelo capitão provisório Beltrano...”, “... a execução sob o comando do camarada Sicrano...” Como você disse antes, esses textos estão entulhados de identidades, tudo registrado para confirmação futura. Bem, leia isso de novo. — Vasili folheou um conjunto de páginas. — Os detalhes são extraordinários, mencionam até a temperatura do dia, a cor do céu da tarde e os casacos de peles usados pelos homens no telhado. Mas não há uma só identidade. Só os Voroshin são mencionados, nenhum outro nome.

O velho colocou as pontas dos dedos numa página amarelada e correu as linhas com os olhos, a boca aberta de espanto.

— Tem razão. O excesso de detalhes esconde a ausência de informação específica.

—_É o que sempre acontece — disse Taleniekov. — A “execução” da família Voroshin foi um embuste. Nunca aconteceu.

 

— O rapaz que mandou aqui é um irresponsável — disse Mikovsky no telefone ao oficial de plantão noturno do Ministério de Assuntos Culturais, as palavras e o tom de voz asperamente críticos. — Deixei bem claro, como espero que você também tenha deixado, que ele deveria ficar na sala de arquivos até que o material fosse colocado no lugar devido. E sabe o que aconteceu? O homem se foi e deixou a chave embaixo de minha porta! Realmente, isso é muito irregular. Sugiro que mande alguém aqui pegar a chave.

O velho desligou depressa, cortando a possibilidade de o oficial de plantão dizer alguma coisa. Olhou para Taleniekov, os olhos espelhando seu alívio.

— Merece um diploma de Stanislavsky por essa representação — Vasili sorriu, enxugando as mãos em toalhas de papel tiradas de um banheiro próximo. — Estamos a coberto, isto é, você está a coberto. Não se esqueça, acharão um corpo sem documentos atrás das caldeiras. Se for interrogado, não sabe de nada, nunca o viu antes, sua reação será a de um homem muito abalado e confuso.

— Mas o pessoal dos Assuntos Culturais, eles vão reconhecê-lo!

— Claro que não. Ele não era o homem que mandaram com a chave. O Ministério vai ter um problema muito sério. Vai ter a chave de volta, mas perdeu um mensageiro. Se aquele telefone ainda está sendo interceptado, quem estiver à escuta vai deduzir que seu homem foi bem-sucedido. Ganhamos tempo.

— Para quê?

— Tenho de ir a Essen.

— Essen. Numa hipótese, Vasili? Por especulação?

— É mais que especulação. Dos nomes mencionados no relatório Voroshin, dois eram importantes: Schotte e Bohlen-Holbach. Friedrich Schotte foi condenado pelos tribunais alemães logo após a I Guerra Mundial por transferência de fundos para fora do país; foi morto na prisão na noite de sua chegada. Foi um assassinato notório e os assassinos nunca foram encontrados. Acho que cometeu um erro e o Matarese exigiu seu silêncio. Gustav Bohlen-Holbach casou-se com a única sobrevivente da família Krupp e assumiu o controle das Fábricas Krupp. Se eram esses os amigos de Voroshin meio século atrás, teriam lhe prestado um auxílio inestimável. Tudo se encaixa.

Mikovsky sacudiu a cabeça.

— Você está procurando fantasmas de cinqüenta anos.

— Na esperança de que me levem a vivos atuais. Deus sabe que existem. Você quer mais provas?

— Não. Mas sua existência me faz temer por você. Um inglês o aguarda no apartamento de alguém, uma mulher me segue, um rapaz chega aqui com a chave dos arquivos que roubou de outro homem... tudo isso obra do Matarese. Parece que o emboscaram.

— Sim, do ponto de vista deles. Estudaram minha ficha e mandaram seus soldados cobrir todos os caminhos que eu possivelmente tomasse, considerando que um poderia falhar e outro não.

O velho tirou os óculos.

— Onde encontram esses... soldados, como você os chama? Onde é que há homens e mulheres tão dedicados, que enfrentam a morte com tanta facilidade?

— A resposta pode ser assustadora. Suas raízes encontram-se séculos atrás, num príncipe muçulmano chamado Hasan ibn-al-Sabbah. Formou quadros de assassinos políticos para manter-se no poder. Eram chamados os Fida’is.

Mikovsky deixou caiu os óculos na mesa com um som agudo.

— Os Fida”is? Os assassinos? Estou a par do que você diz, mas a idéia é absurda. Os Fida’is, os assassinos de Sabbah, eram baseados nas proibições de uma religião estóica. Trocavam suas almas, suas mentes, seus corpos nesta vida pelos prazeres de um. Valhalla. Esses incentivos não existem hoje em dia.

— Hoje em dia? — perguntou Vasili. — É exatamente época para isso. Uma casa maior, uma conta gorda no banco, ou o uso de uma dacha mais luxuosa por um período mais longo que os outros camaradas; uma esquadrilha maior ou um couraçado mais poderoso, o ouvido atento de um superior ou um convite a uma função a que outros não comparecerão. Essa é nossa época, Yanov. O mundo em que vivemos, você e eu, pessoalmente, profissionalmente e mesmo vicariamente, é uma sociedade universal estourando de ganância, e nove entre dez habitantes são um Fausto. Acho que Karl Marx nunca entendeu isso.

— Uma omissão intermediária deliberada, meu amigo. Ele compreendeu perfeitamente, mas havia outros pontos a serem atacados primeiro.

Taleniekov sorriu.

— Até parece que o está desculpando.

— Preferiria que eu dissesse que o governo de uma nação é importante demais para ficar nas mãos do povo?

— Uma declaração monarquista. Não se aplica. Poderia ter sido feita pelo czar.

— Mas não foi. Foi feita pelo americano Thomas Jefferson. Novamente usando uma omissão intermediária deliberada. Os dois países, entende, acabavam de emergir de uma revolução. Ambos eram uma nação nova que surgia. As palavras e as decisões tinham de ser práticas.

— Sua erudição não altera minha opinião. Já vi demais.

— Não quero alterar nada, muito menos seus talentos de observação. Só quero que você mantenha a perspectiva. Talvez estejamos todos num período de transição.

— Em que direção?

Mikovsky colocou os óculos.

— Para o céu ou para o inferno, Vasili. Não tenho a menor idéia. Meu único consolo é que não estarei mais aqui para ver qual dos dois. Como irá até Essen?

— Por Helsinque.

— Vai ser difícil?

— Não. Um homem de Vyborg me ajudará.

— Quando parte?

— De manhã.

— Pode passar a noite comigo.

— Não, seria perigoso para você.

O sábio ergueu a cabeça, espantado.

— Mas você disse que representei muito bem no telefone e que estava a coberto.

— Creio que sim. Acho que não vão dizer nada por alguns dias. Acabarão, é claro, por chamar a polícia, mas a essa altura o incidente, no que lhe diz respeito, não será mais que uma falha nos métodos.

— Então onde está o problema?

— Posso estar errado, e nesse caso terei causado sua morte e a minha.

Mikovsky sorriu.

— Soa muito fatalista.

— Tinha de fazer o que fiz. Não havia ninguém mais. Sinto muito.

— Não tem importância. — O velho ergueu-se e deu a volta à mesa, não muito seguro. — Vá, então, e não o verei mais. Abrace-me, Vasili Vasilivich. Qual vai ser, céu ou inferno? Acho que você sabe. É o último dos dois, e você já está lá.

— Já estou lá há muito tempo — disse Taleniekov, abraçando o meigo velho que nunca mais veria.

 

— Coronel Maletkin? — perguntou Vasili, sabendo muito bem que a voz hesitante do outro lado da linha pertencia realmente ao traidor de Vyborg.

— Onde você está?

— Estou telefonando da rua, não muito longe daí. Tem alguma coisa para mim?

— Sim.

— Bem. E eu tenho uma coisa para você.

— Certo — disse Maletkin. — Quando?

— Agora. Saia pela entrada principal e vire à direita. Continue andando, que o alcançarei.

Houve um momento de silêncio.

— É quase meia-noite.

— Estou contente de ver que seu relógio está certo, deve ser um relógio caro. É um desses cronômetros suíços tão populares entre os americanos?

— Há uma mulher aqui.

— Diga-lhe que espere. Ordene, coronel. É um oficial da KGB.

Sete minutos depois, Maletkin surgiu na calçada em frente à entrada como um animal saindo da toca, parecendo menor que seu tamanho natural e olhando em todas as direções ao mesmo tempo sem mover a cabeça. Vasili quase podia ver o suor no queixo do traidor; em um ou dois dias, esse queixo não existiria mais. Seria estourado num pátio em Vyborg.

Maletkin tomou o rumo Norte. Havia poucos pedestres na Rua Brodsky, alguns casais de braço dado, a trindade inevitável de jovens soldados procurando calor em alguma parte, qualquer parte, antes de regressar à esterilidade do acampamento. Taleniekov esperou, observando a cena de rua, buscando alguém que não fizesse parte dela.

Não havia ninguém. Maletkin não armara nenhuma traição e nenhum soldado do Matarese o vigiava. Vasili abandonou a sombra do portal e apressou-se a segui-lo. Em sessenta segundos, alcançava o traidor. Começou a assoviar “Yankee Doodle Dandy”.

— Aqui está seu telegrama! — disse o traidor, cuspindo as palavras na escuridão de uma fachada de loja recuada. — Esta é a única duplicata. E agora me diga: quem é o informante em Vyborg?

— Não quis dizer o outro informante? — Taleniekov acendeu o isqueiro e leu a cópia da mensagem codificada para Helsinque. Estava correta. — Terá o nome em poucas horas.

— Quero-o agora! Pode ser que alguém já tenha checado com Vyborg. Quero minha proteção, você a garantiu! Vou-me embora de manhã cedo.

— Vamos embora — interrompeu Vasili. — Antes do amanhecer, para ser exato.

— Não!

— Sim. Vai atender aquela chamada, afinal de contas.

— Não quero nada com você. Seu retrato está exposto em todos os quadros da KGB, havia dois na sede de Ligovsky! Fiquei banhado de suor.

— Difícil de acreditar. Mas, sabe, você tem de me levar de carro de volta ao lago e me pôr em contato com os finlandeses. Terminei meu trabalho aqui em Leningrado.

— Por que eu? Já fiz bastante!

— Porque, se não fizer isso, não me lembrarei de um nome em Vyborg. — Taleniekov deu uma palmadinha na face do traidor e Maletkin encolheu-se. — Volte para sua mulher, camarada, e tenha um bom desempenho. Mas acabe com ela cedo. Quero que saia do hotel antes de três e meia.

— Três e meia!

— Ê. Leve o carro à Ponte Anichkov. Esteja lá antes das quatro horas. Faça duas viagens pela ponte, ida e volta. Irei a seu encontro de um lado ou de outro.

— Os militsianyéra... Fazem parar veículos suspeitos, e um carro indo e vindo na ponte às quatro da manhã não é comum.

— Precisamente. Quero saber se os militsianyéra estão por lá.

— E se me pararem?

— Será que tenho de lhe lembrar todo tempo que você é um coronel da KGB? Está a serviço oficial. Muito oficial e muito secreto. — Vasili deu um passo para deixá-lo e voltou. — Acabei de me lembrar de uma coisa — disse. — Pode ter lhe ocorrido arranjar uma arma e atirar em mim num momento oportuno. Por um lado, levaria vantagem em me entregar e, por outro, poderia jurar que defendera minha vida com grave risco da sua. Essa estratégia parece bem sólida, desde que você esteja disposto a dispensar o nome do homem em Vyborg. Um risco pequeno, recompensas dos dois lados. Mas é bom que saiba que cada passo que dei com você aqui em Leningrado está sendo vigiado por alguém mais.

Maletkin falou com intensidade crescente.

— Juro que isso nunca me ocorreu!

“Você é mesmo um grande idiota”, pensou Taleniekov.

— Então, às quatro, camarada.

 

Vasili aproximou-se das escadas do prédio quatro portas adiante do apartamento de Lodzia. Olhara as janelas, as luzes estavam acesas. Estava em casa.

Subiu vagarosamente os degraus, como um homem cansado, regressando a um lar pouco convidativo depois de fazer extraordinários contra a vontade, sem ser recompensado, em frente à eterna esteira-rolante, por causa de algum novo plano econômico que ninguém entendia. Abriu a porta de vidro e ingressou no pequeno vestíbulo.

Empertigou-se imediatamente, estava terminada a pequena representação. Agora não havia hesitações. Abriu a porta interna, dirigiu-se à escada que ia dar no porão e desceu para seus confins imundos. Passou pela porta atrás da qual colocara o inglês, com vodca derramada garganta abaixo, e os pulsos abertos com a lâmina de barbear.

O inglês se fora. Não só isso, não havia sinal de sangue, tudo estava escrupulosamente limpo.

Taleniekov ficou rígido, os pensamentos suspensos. “Acontecera algo terrível.” Ele errara.

Como errara!

No entanto, tivera certeza. Os soldados do Matarese eram sacrificáveis, mas a última coisa que fariam seria voltar à cena de violência. As possibilidades de uma emboscada eram grandes demais, o Matarese não iria, não podia correr esse risco!

Mas o alvo valia o risco. Que fizera!

Lodzia!

Deixou a porta entreaberta e caminhou rápido pelos porões com a Graz-Burya na mão, pisando silenciosamente, ouvidos e olhos atentos.

Chegando ao prédio de Lodzia, subiu os degraus para a entrada, ao nível da rua. Puxou a porta devagar e ficou à escuta. Ouviu gargalhadas lá em cima, uma voz aguda feminina e logo depois a risada de um homem.

Vasili colocou a arma no bolso, entrou no vestíbulo e subiu os degraus atrás do casal, cambaleando. Aproximavam-se do patamar do segundo andar, diagonalmente oposto à porta de Lodzia. Taleniekov falou, com um sorriso idiota:

— Vocês jovens aí, querem fazer um favor a um amante meio velho? Acho que bebi demais.

O casal virou-se, sorrindo.

— Qual é o problema, amigo? — perguntou o rapaz.

— O problema é minha amiga — disse Taleniekov, mostrando a porta de Lodzia. — Fiquei de encontrá-la depois da sessão do Kirov. Infelizmente me atrasei com um velho companheiro do Exército. Acho que ela está furiosa. Por favor, bata na porta por mim. Se ela ouvir minha voz, provavelmente não vai me deixar entrar.

Vasili riu novamente, embora seus pensamentos indicassem justamente o oposto. O possível sacrifício de jovens atraentes tornava-se mais difícil à medida que se ficava mais velho.

— É o mínimo que podemos fazer por um soldado — disse a moça, com alegria. — Vá, maridinho, faça sua boa ação para os militares.

— E por que não?

O rapaz sacudiu os ombros e caminhou até a porta de Lodzia. Taleniekov foi mais além e ficou de costas para a parede, a mão direita no bolso. O rapaz bateu à porta.

Nada. Tudo silencioso. Olhou para Vasili, que acenou a cabeça, indicando que batesse novamente. O rapaz bateu mais forte, com mais insistência. Outra vez, só havia silêncio do outro lado da porta.

— Talvez ainda esteja à sua espera no Kirov — disse a moça.

— Ou talvez — acrescentou o rapaz, sorrindo — ela tenha encontrado um velho amigo do Exército e ambos estejam fugindo do senhor.

Taleniekov tentou sorrir, mas não conseguiu. Sabia muito bem o que poderia encontrar atrás daquela porta.

— Eu espero aqui — disse. — Muito obrigado.

O rapaz percebeu que fora jocoso na hora errada.

— Sinto muito — murmurou, segurando o braço da esposa.

— Boa sorte — disse a moça, sem jeito.

Subiram a escada depressa.

Vasili esperou até ouvir o som de uma porta que se fechava dois andares acima. Tirou a automática do bolso e estendeu a mão para a maçaneta, temeroso de que a porta não estivesse trancada.

Não estava, e o medo aumentou. Empurrou a porta, entrou e fechou-a. O que viu encheu-lhe o peito de dor e sabia que ia doer muito mais. A sala era um caos — cadeiras, mesas e lâmpadas de pernas para o ar; livros e almofadas espalhados pelo chão, peças de roupa jogadas por toda parte. Era uma cena criada para mostrar luta violenta, mas era falsa, exagerada. Não houvera luta, mas sim outra coisa: um interrogatório baseado na tortura.

A porta do quarto estava aberta. Caminhou em sua direção, sabendo que a dor maior viria em segundos, punhaladas lancinantes de angústia. Entrou e encarou a cena. Ela estava na cama, as roupas rasgadas, a posição das pernas indicando estupro. O ato, se realmente praticado, fora exclusivamente para efeitos da autópsia, e sem dúvida após estar morta. O rosto era uma massa informe, os lábios e os olhos inchados, os dentes quebrados. Fios de sangue correram pelas faces deixando desenhos abstratos em vermelho vivo sobre a pele clara.

Taleniekov virou as costas, sentindo-se possuído de imensa apatia. Já a sentira muitas vezes antes... só queria matar. Mataria.

De repente, sentiu-se emocionado, tão profundamente que seus olhos se encheram de lágrimas e não podia respirar. Lodzia Kronescha não fora quebrada, não revelara ao animal que trabalhara nela que seu amante dos dias de Riga deveria chegar depois da meia-noite. Fizera mais do que guardar o segredo, muito mais. Mandara o animal em outra direção. Quanto deveria ter sofrido!

Não amara em mais da metade de sua vida. Amava agora, e era tarde demais.

Tarde demais? Oh, Deus!

“... onde está o problema?”

“... estar errado e nesse caso, terei causado sua morte e a minha”.

Yanov Mikovsky.

Se o Matarese mandara um segundo soldado para checar Lodzia Kronescha, certamente mandara outro em busca do velho sábio.

Vasili correu para a sala, em direção ao telefone, que estava intacto. Não faria diferença se a linha estivesse interceptada ou não; saberia o que queria saber em segundos, e estaria longe antes que a pessoa que o interceptasse pudesse mandar seus homens ao dom vashen.

Discou o número de Mikovsky. Foi atendido imediatamente... depressa demais para um velho.

— Sim? — Era uma voz abafada, indistinta.

— Dr. Mikovsky, por favor.

— Sim? — repetiu a voz de homem. Não era a do velho.

— Sou colega do camarada Mikovsky e preciso falar com ele com urgência. Sei que não estava se sentindo bem mais cedo. Será que precisa de um médico? Mandaremos um imediatamente, é claro.

— Não. — O homem respondeu depressa demais. — Quem está falando, por favor?

Taleniekov forçou uma risadinha leve.

— É apenas seu vizinho de escritório, camarada Rydukov. Diga-lhe que encontrei o livro que ele procurava... não, deixe-me dizer-lhe pessoalmente.

Silêncio.

— Sim? — Era Mikovsky; tinham-no deixado falar.

— Você está bem? Esses homens são seus amigos?

— Corra, Vasili! Fuja! São...

Uma explosão ensurdecedora estourou na linha. Taleniekov segurou o fone na mão, olhando-o fixo. Parou por um momento, deixando as ondas de dor escaldar-lhe o peito. Amara duas pessoas em Leningrado e matara ambas.

Não, não era verdade. O Matarese os matara. E agora era sua vez de matar. Matar... e matar... e matar.

 

Entrou numa cabina telefônica no Nevesky Prospeckt e discou para o Hotel Europeiskaya. Não haveria conversa fiada; não tinha tempo a perder com homens insignificantes. Precisava atravessar o. lago Vainikala, ir a Helsínqui, comunicar-se com a corsa em Paris e mandar recado para Scofield. Estava a caminho de Essen, pois o segredo dos Voroshin residia lá, e os animais estavam soltos, matando para evitar que esse segredo fosse revelado. Como os queria agora... esses soldados da elite do Matarese. Em suas mãos, seriam todos homens mortos.

— Sim, sim, o que é? — foram as palavras apressadas do traidor de Vyborg.

— Saia daí imediatamente — ordenou Taleniekov. — Vá de carro para a Estação Moskva. Encontro você na calçada em frente da primeira entrada.

— Agora? Ainda não são duas horas! Você disse...

— Esqueça o que eu disse, faça o que eu estou dizendo. Tomou todas as providências com os finlandeses?

— Uma simples chamada telefônica.

— Você a fez?

— Pode ser feita em um minuto.

— Então faça. Esteja na Moskva em quinze minutos.

 

A viagem para o Norte foi feita em silêncio, quebrado somente pela choradeira intermitente de Maletkin quanto aos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas. Estava lidando com coisas tão além de sua capacidade que até sua traição tinha um aspecto superficial, meio rançoso.

Atravessaram Vyborg, ultrapassaram Selzneva, rumo à fronteira. Vasili reconheceu a estrada margeada de neve que seguira, vindo da margem do lago gelado. Breve chegariam à bifurcação da estrada, onde observara o traidor a seu lado pela primeira vez. Fora na madrugada; logo seria madrugada novamente. Muita coisa havia acontecido, e tinha aprendido muito.

Estava exausto. Não dormira nada e precisava muito dormir. Sabia que não podia funcionar bem quando a mente se negava a pensar. Chegaria em Helsinque e dormiria até que o corpo e as faculdades se revoltassem, depois tomaria suas providências. Para Essen.

Mas havia um último preparativo a fazer agora, antes de deixar sua amada Rússia, para o bem dela.

— Em menos de um minuto chegaremos ao ponto de encontro no lago — disse Maletkin. — Encontrará um finlandês no caminho que vai dar à beira d’água. Tudo está combinado. Agora camarada, cumpri minha parte, cumpra você a sua. Quem é o outro informante em Vyborg?

— Não precisa do nome, basta o posto. É o único homem em seu setor que pode dar-lhe ordens, seu único superior. O primeiro no comando de Vyborg.

— O quê? Ele é um tirano, um fanático!

— Que melhor cobertura? Vá procurá-lo... a sós. Saberá o que dizer.

— Sim — concordou Maletkin com os olhos brilhando, diminuindo a marcha ao se aproximarem de uma abertura na neve amontoada. — Sim, acho que saberei o que dizer... O caminho é aquele.

— E aqui está sua arma — disse Taleniekov, estendendo o revólver, sem o pino de percussão.

— Oh? Ah, sim, obrigado — replicou Maletkin, sem prestar atenção, pensando no poder que há poucos segundos nem podia imaginar.

Vasili saiu do carro.

— Adeus — disse, fechando a porta.

Ao dar a volta na traseira do carro em direção ao caminho, ouviu Maletkin abaixar a janela.

— É inacreditável — disse o traidor, cheio de gratidão. — Obrigado.

— Não tem de quê.

Subiu a janela. O rugido do motor juntou-se ao chio dos pneus rodando na neve. O carro precipitou-se à frente. Maletkin não ia perder tempo em voltar a Vyborg.

Para sua execução.

Taleniekov entrou no caminho que o levaria a um acompanhante a Helsinque, a Essen. Começou a assoviar baixinho. A música era “Yankee Doodle Dandy”.

 

O homem de cara bondosa com as roupas amarrotadas e suéter de algodão de gola alta segurou a caixa do violino com os joelhos e agradeceu a aeromoça da Finn Air pelo chá. Se alguém a bordo se dispusesse a adivinhar a idade do músico, provavelmente diria que era entre cinqüenta e cinco e sessenta, talvez um pouquinho mais. Os que estavam sentados mais longe começariam por sessenta e poucos e acrescentariam que devia ser mais velho.

No entanto, ele não usara cosméticos, além de algumas faixas brancas nos cabelos. Taleniekov aprendera anos atrás que os músculos da face e do corpo irradiavam idade e enfermidade muito melhor que pós e plásticos líquidos. O truque consistia em situar os músculos na posição desejada de estresse anormal e proceder o mais normalmente possível, dominando o desconforto por lutar contra ele, como as pessoas mais velhas lutam contra a idade e os aleijados fazem o que podem com suas deformidades.

Essen. Fora à jóia negra do Ruhr duas vezes, nenhuma delas registradas, por serem missões delicadas, envolvendo espionagem industrial, operações que Moscou não queria fossem anotadas em lugar algum. Portanto, o Matarese não possuía informação alguma que o pudesse ajudar em Essen. Nenhum contato para vigiar, nenhum amigo para emboscar, nada. Nenhum Yanov Mikovsky, nenhuma... Lodzia Kronescha.

Essen. Por onde começaria? O velho sábio tinha razão — estava procurando um fantasma de cinqüenta anos, a absorção escondida de um homem e sua família no vasto complexo industrial durante um período de caos universal. Documentos legais de mais de meio século estariam fora do alcance, se é que jamais existiram. E, mesmo que existissem e estivessem disponíveis, seriam tão obscurecidos que levaria semanas para localizar dinheiro e identidades, e nas tentativas de localização ele mesmo certamente seria exposto.

Além disso, os autos das cortes de Essen deveriam ser mais gigantescos e complicados que quaisquer outros. Quem poderia encontrar o caminho num labirinto desses? Onde estava o tempo necessário?

Havia um homem, um advogado de patentes, que sem dúvida ergueria as mãos ao ar em desespero ante a idéia de tentar descobrir o nome de um único russo que ingressara em Essen há cinqüenta anos. Mas era um advogado; era um ponto de partida. Se estivesse vivo, e se estivesse disposto a falar com o causador de uma situação embaraçosa ocorrida muito tempo atrás. Vasili não pensava nele há anos. Heinrich Kassel tinha então trinta e cinco anos e era sócio minoritário de uma firma que fazia o serviço legal de muitas das companhias eminentes de Essen. O dossiê que a KGB fizera dele o pintava como um homem que se opunha freqüentemente aos seus superiores, um homem que esposava causas extremamente liberais, algumas tão condenáveis que seus superiores ameaçaram despedi-lo. Mas era bom demais; nenhum de seus superiores queria ser responsável por despedi-lo.

Os conspiradores imbecis em Moscou decretaram, em sua sabedoria, que Kassel era material de primeira para espionagem em desenhos de patentes. Com mais sabedoria ainda, os idiotas enviaram seu negociador mais persuasivo, um tal de Vasili Taleniekov, a fim de ganhar o advogado para um mundo melhor.

Vasili levou menos de uma hora, num jantar arranjado sob um pretexto qualquer, para constatar que sua missão era absurda. Isso aconteceu quando Heinrich Kassel recostou-se na cadeira e exclamou:

— Você está completamente louco! Faço tudo que posso para que esses filhos da puta não entrem aqui!

Nada havia a fazer. O negociador persuasivo e o advogado desencaminhado haviam se embriagado, terminando a noite de madrugada, olhando o sol nascer sobre os jardins do Parque Gruga. Fizeram um pacto de bêbados: o advogado não revelaria a tentativa de Moscou ao Governo de Bonn desde que Taleniekov garantisse que a KGB alteraria consideravelmente o dossiê. O advogado ficara calado e Vasili voltara a Moscou e emendara a ficha do alemão com a opinião de que o advogado “radical” era provavelmente um provocador pago pelos americanos. Kassel talvez o ajudasse, pelo menos lhe diria por onde começar.

Se conseguisse encontrar Heinrich Kassel. Muita coisa poderia ter acontecido para impedi-lo. Doença, morte, mudança de lugar, acidentes da vida. Doze anos se haviam passado desde aquela missão fracassada.

Havia outra coisa que tinha de fazer em Essen, pensou. Não possuía armas e teria de comprar uma. A segurança do aeroporto na Alemanha Ocidental era tal que não ousava desmontar sua Graz-Burya e colocá-la em sua maleta de mão.

Havia tanto a fazer, tão pouco tempo... Mas o esboço estava ficando nítido. Era obscuro, escorregadio, contraditório... mas lá estava. A febre corsa estava se espalhando, seus agentes usavam somas maciças de dinheiro e métodos de financiamento engenhosos para criar pontos de caos por toda parte, recrutando um exército de soldados de elite, que davam suas vidas sem hesitação para proteger a causa. Mas que causa? Qual a finalidade? Que estavam os violentos descendentes filosóficos de Guillaume de Matarese tentando conseguir? Assassinatos, terrorismo, bombardeios indiscriminados, rixas e motins, raptos e mortes... tudo que os donos da riqueza têm de detestar, pois a ruptura da ordem significa o seu fim. Era uma contradição gigantesca. Por quê?...

Sentiu o avião perder altura, o piloto começara a descida sobre Essen.

Essen. Príncipe Andrei Voroshin. Em quem se teria transformado?

 

— Não acredito! — exclamou Heinrich Kassel no telefone, a voz transmitindo a mesma incredulidade bem-humorada de doze anos atrás. — Toda vez que passo pelos jardins do Gruga, paro um momento e dou uma risada. Minha esposa pensa que estou me lembrando de uma namorada antiga.

— Espero que tenha esclarecido isso.

— Ah, sim. Digo que é onde quase me tornei um espião internacional e aí ela fica convencida de que é uma antiga namorada.

— Encontre-me no Gruga, por favor. É urgente e nada tem a ver com minha ocupação anterior.

— Tem certeza? Não ficaria bem para um dos advogados mais eminentes de Essen ter uma conexão russa. Estamos vivendo em tempos estranhos. Multiplicam-se os boatos de que os Baader-Meinhof são financiados por Moscou, que nossos vizinhos do Norte estão fazendo das suas.

Taleniekov fez uma pausa, estremecendo com a coincidência.

— Tem a palavra de um velho conspirador. Estou desempregado.

— Verdade? Que interessante. O Parque Gruga, então. É quase meio-dia. Digamos, uma hora? O mesmo lugar nos jardins, embora não haja flores nesta época do ano.

 

O gelo no lago reluzia à luz do sol, os arbustos encolhidos pelo frio de inverno reviviam por curto tempo ao calor do meio-dia. Vasili sentou no banco; passavam quinze minutos da uma e ele começava a preocupar-se. Sem pensar, tocou o bolso da direita onde estava a pequena automática que comprara na Praça Kpstadt e tirou a mão quando viu o vulto sem chapéu caminhando rapidamente na ala do jardim.

Kassel tinha engordado e estava quase careca. Era a imagem do burgomestre bem-sucedido, com seu grande sobretudo de lapelas de pele preta. As vestimentas obviamente caras não combinavam com a memória que guardara do jovem advogado exaltado que não queria que os filhos da puta entrassem ali... Quando ele chegou mais perto, Taleniekov viu que o rosto era angélico... muita Schlagshne descera por aquela garganta, mas os olhos eram vivos, cheios de humor... e agudos.

— Sinto muito, meu caro — disse o alemão quando Taleniekov se levantou e aceitou a mão que lhe estendia. — Um problema de última hora com um contrato americano.

— Há certa simetria nisso — replicou Taleniekov. — Quando regressei a Moscou, doze anos atrás, anotei em sua ficha que achava que você estava sendo pago por Washington.

— Muito perspicaz. Na verdade, sou pago por Nova York, Detroit e Los Angeles, mas por que discutir sobre cidades?

— Você está com ótima aparência, Heinrich. Muito próspero. Que aconteceu com o falante campeão dos oprimidos?

— Fizeram dele um opressor. — O advogado sorriu. — Nunca teria acontecido se vocês controlassem o Bundestag. Sou um capitalista sem princípios que alivia seu sentimento de culpa com contribuições de caridade consideráveis. Meus Reichmarks fazem muito mais do que minhas cordas vocais jamais fizeram.

— Uma declaração razoável.

— Sou um homem razoável. E o que me parece pouco razoável agora é a razão de você procurar-me. Não que não aprecie sua companhia, mas por que agora? Disse que não está mais em sua profissão antiga; que posso ter que lhe interesse?

— Conselhos.

— E você tem problemas legais em Essen? Não me diga que um comunista dedicado tem investimentos particulares no Ruhr.

— Só de tempo, e isso eu tenho muito pouco. Estou tentando localizar um homem, uma família de Leningrado que veio para a Alemanha, para Essen, tenho certeza, sessenta ou setenta anos atrás. Estou convencido de que entraram ilegalmente no país e secretamente na indústria do Ruhr.

Kassel franziu a testa.

— Meu caro amigo, você está louco. Estou procurando contar as décadas, nunca fui muito bom em números, mas, se não me engano, está falando do período de 1910 a 1920. Correto?

— Sim. Foi um tempo turbulento.

— Não diga! Foi somente a Grande Guerra no Sul, a revolução mais sangrenta da história no Norte, confusão em massa nos Estados eslavos, os portos do Atlântico em caos e o oceano transformado em cemitério. Em suma, toda a Europa estava, se me permite, em chamas, e Essen conheceu uma expansão industrial nunca vista antes, ou depois, incluindo os anos de Hitler. Tudo era segredo, naturalmente, fortunas eram feitas todos os dias. Numa insanidade total dessas, chega um russo vendendo suas jóias, como centenas deles, para comprar uma fatia do bolo em qualquer uma das muitas companhias, e você espera que eu o encontre?

Pensei que talvez reagisse assim.

— De que outra forma poderia reagir? — Kassel riu. — Como é o nome desse homem?

— Para seu próprio bem, prefiro não dizer.

— Então como posso ajudá-lo?

— Dizendo-me onde procuraria primeiro, se fosse eu.

— Na Rússia.

— Já o fiz. Os Arquivos Revolucionários. Em Leningrado.

— Não encontrou nada?

Pelo contrário. Encontrei uma descrição detalhada de um suicídio em massa da família tão obviamente contrária à realidade que tinha de ser falsa.

Como descreveram esse suicídio? Não nos detalhes, só em geral.

A propriedade da família foi atacada pela multidão: lutaram o dia todo, mas no fim usaram o resto dos explosivos e mandaram a casa, com todos dentro, pelos ares.

Uma família deteve uma horda de bolchevistas amotinados por um dia inteiro? Pouco provável.

Precisamente. No entanto, a narrativa era tão detalhada quanto um exercício de von Clauswitz, até no clima e na cor do céu. Descreve cada centímetro da imensa propriedade, mas, fora o nome da família, não menciona qualquer identidade. Não há referência a testemunhas que pudessem comprovar o fato.

O advogado franziu a testa novamente.

Por que disse que “descreve cada centímetro da imensa propriedade”?

Porque descreve.

Mas por quê?

Presumo que fosse para dar credibilidade a um relato falso. Uma profusão de detalhes.

Profusão demasiada, talvez. Diga-me, a atuação da família naquele dia foi descrita com seu habitual veneno de “inimigos do povo”?

Taleniekov pensou um pouco.

Não, na verdade não. Foi mais como atos individuais de coragem. — Então lembrou-se de um detalhe. — Soltaram os criados antes de se matarem... soltaram. Isso não era normal.

E a menção de um ato tão generoso num relato revolucionário não é muito plausível, pois não?

Aonde quer chegar?

O relato pode ter sido escrito pelo próprio, ou por um membro da família, e passado por canais corruptos até chegar aos arquivos.

Perfeitamente possível, mas ainda não compreendo aonde quer chegar.

— As probabilidades são poucas, concordo, mas ouça-me. Através dos anos, aprendi que quando se pede a um cliente para esboçar uma declaração ele sempre aparece na melhor figura, isso se entende. Mas também, invariavelmente, inclui detalhes triviais sobre coisas que significam muito para ele. Escapam inconscientemente: a linda esposa, a bela criança, um negócio que dá muito dinheiro ou... uma bela casa. “Cada centímetro da imensa propriedade.” Era essa a paixão da família, não? Terra. Propriedade.

— Sim.

Vasili lembrou-se de Mikovsky descrevendo a propriedade dos Voroshin. Como os patriarcas dominavam absolutamente a terra, até o ponto de ter seus próprios tribunais.

— Pode-se dizer que eram excessivamente apegados a propriedades.

— Poderiam ter trazido esse apego para a Alemanha?

— Poderiam. Por quê?

O olhar do advogado tornou-se frio.

— Antes de responder, preciso fazer uma pergunta muito séria ao velho conspirador. Essa busca é alguma espécie de represália soviética? Você diz que está desempregado, que não trabalha mais ha sua ocupação antiga, mas que provas tenho disso?

Taleniekov respirou fundo.

— Poderia dar a palavra de um estrategista da KGB que alterou a ficha de um inimigo doze anos atrás, mas irei mais longe. Se você tem ligações com. o serviço secreto de Bonn e pode investigar discretamente, pergunte-lhe sobre mim. Moscou condenou-me à morte.

A frieza dos olhos de Kassel dissipou-se.

— Você não diria isso se não fosse verdade. Um advogado que lida diariamente com negócios internacionais pode verificar isso facilmente. Mas você era um comunista dedicado.

— Ainda sou.

— Então, certamente, foi cometido um erro enorme.

— Um erro manipulado — disse Vasili.

— Então, isso não é uma operação de Moscou, não é do interesse soviético?

— Não. É do interesse de ambos os lados, de todos os lados, e é tudo que posso dizer. Bem, respondi sua pergunta séria muito seriamente, agora responda a minha: aonde queria chegar com respeito à preocupação dessa família com a terra?

O advogado franziu os lábios grossos.

— Diga-me o nome. Talvez possa ajudá-lo.

— Como?

— Os Títulos de Propriedade são registrados na State House. Há boatos de que muitas grandes propriedades em Rellinghausen e Stadtwald, na margem Norte do lago Baldeney, foram compradas por russos, décadas atrás.

— Não as teriam comprado em seu próprio nome, disso tenho certeza.

— Provavelmente não. Disse que as probabilidades eram poucas, mas a aquisição de propriedade às escondidas é um pouco parecida com as declarações: escapam coisas. A posse da terra é intimamente ligada à imagem que o homem tem de si mesmo; em algumas civilizações, ele é a terra.

— Por que não posso procurar eu mesmo? Se os títulos estão disponíveis, diga-me onde posso encontrá-los.

— Não adiantaria nada. Só advogados credenciados têm permissão de dar busca em títulos. Diga-me o nome.

— Pode ser perigoso para qualquer pessoa que efetue a busca — disse Taleniekov.

— Ora, vamos lá. — Kassel riu, com um olhar divertido. — Uma aquisição de terra há setenta anos.

— Acredito que há uma ligação direta entre essa aquisição e os atos extremos de violência que ocorrem em toda a parte hoje em dia.

— Atos extremos de... — A frase ficou pendurada e a expressão do advogado era solene. — Uma hora atrás mencionei Baader-Meinhof no telefone. Seu silêncio foi muito eloqüente. Está sugerindo?...

— Prefiro não sugerir nada — interrompeu Vasili. — Você é um homem eminente, um homem de recursos. Dê-me um atestado e arranje-me uma entrada nos Títulos de Propriedade.

O alemão abanou a cabeça.

— Não, não farei isso. Você não saberia o que procurar. Mas pode acompanhar-me.

— Você faria isso, você mesmo? Por quê?

— Desprezo extremistas que lidam com a violência. Lembro-me vividamente dos gritos e invectivas do Terceiro Reich. Vou, certamente, procurar eu mesmo, e se tivermos sorte você poderá contar-me o que quiser. — Kassel falou em voz leve, mas com um traço de tristeza. — Além disso, qualquer pessoa que Moscou condenar à morte não pode deixar de prestar. Agora, diga-me o nome.

Taleniekov olhou o advogado fixamente, antevendo mais uma sentença de morte.

— Voroshin — disse.

 

O empregado uniformizado no Registro de Títulos de Essen tratou o eminente Heinrich Kassel com enorme deferência. A firma de Herr Kassel era uma das mais importantes na cidade. Deixou bem claro à recepcionista de aspecto rude atrás do balcão que ela deveria ter o maior prazer em fazer cópias de tudo que Herr Kassel desejasse. A mulher olhou-os com ar desagradável e expressão de desaprovação.

Os arquivos de aço da enorme sala do Registro de Títulos eram como robôs cinzentos empilhados uns em cima dos outros em volta da sala, fiscalizando os cubículos abertos onde os advogados credenciados faziam suas pesquisas.

— Tudo é arquivado por data — disse Kassel. — Ano, mês e dia. Seja o mais específico possível. Voltando atrás, qual seria a primeira data em que Voroshin poderia ter adquirido propriedades nos distritos de Essen?

— Considerando que os métodos de locomoção da época eram muito lentos, diria fins de maio ou princípio de junho de 1911. Mas, já disse, não teria feito a compra em seu nome verdadeiro.

— Não vamos procurar em seu nome, nem mesmo em um nome falso. Pelo menos, não no início.

— E por que não um nome falso? Por que não poderia comprar o que houvesse à venda em outro nome, se dispusesse de fundos?

— Por causa da época, e as coisas não mudaram tanto assim. Um homem não pode simplesmente ingressar numa comunidade com sua família e adquirir a posse de uma grande propriedade sem despertar curiosidade. Esse Voroshin, conforme você o descreveu, não ia querer isso. Estabeleceria uma identidade falsa muito devagar e com muito cuidado.

— Então como vamos procurar?

— Procuraremos uma aquisição feita por advogados em nome dos donos in absentia. Ou por um banco á que foi confiado o investimento de uma herança. Ou por diretores de uma companhia ou de uma sociedade limitada. Há uma variedade de maneiras de ocultar um proprietário, mas o tempo acaba por escoar-se, o dono quer tomar posse. É sempre o que acontece, seja com uma loja de doces, um conglomerado ou uma grande propriedade. Não há manobra legal que seja páreo para a natureza humana. — Kassel fez uma pausa, contemplando os arquivos cinzentos. — Vamos. Começaremos com o mês de maio de 1911. Se é que existe alguma coisa, talvez não seja tão difícil de encontrar. Só havia umas trinta ou quarenta propriedades assim em todo o Ruhr, talvez dez ou quinze nos distritos de Rellinghausen-Stadtwald.

Taleniekov teve o mesmo senso de antecipação que sentira com Yanov Mikovsky nos arquivos de Leningrado. A mesma sensação de descascar camadas de tempo, procurando uma chave em documentos registrados com precisão há dezenas de anos. Mas agora estava atônito com as aparentes irrelevâncias que Heinrich Kassel descobria e extraía das grossas páginas de linguagem legal. O advogado era como uma criança na loja de doces que mencionara: um jovem perito que examinava as balas e bombons, escolhendo pechinchas.

— Olhe aqui. Aprenda alguma coisa, meu espião internacional. Essa área de terra em Bredeney, cento e cinqüenta mil metros quadrados no vale Baldeney, ideal para alguém como Voroshin. Foi adquirida pelo Staatsbank de Duisburg para os menores de uma família em Remscheid. Ridículo!

— Qual é o nome?

— Irrelevante. Um artifício. Se descobrirmos quem tomou posse um ano ou mais depois, aí saberemos quem era o dono.

— Acha que pode ter sido Voroshin, em sua nova identidade?

— Não se precipite. Há outros como esse. — Kassel riu. — Não tinha a menor idéia de que meus antecessores eram tão cheios de caprichos legais. É positivamente chocante. Veja só — disse, puxando outro maço de papéis e automaticamente olhando uma cláusula recuada na primeira página —, aqui está outra. Um primo dos Krupp transfere o domínio da propriedade em Rellinghausen para uma mulher em Dusseldorf em gratidão pelos muitos anos de serviço. Realmente!

— É possível, não é?

— Claro que não; a família nunca o permitiria. Um parente descobriu uma maneira de fazer um bom dinheiro vendendo a alguém que não queria que seus companheiros, ou seus credores, soubessem que ele tinha dinheiro. Alguém que controlava a mulher em Dusseidorf, se é que ela realmente existiu. Os Krupp provavelmente congratularam seu primo.

E continuou assim. 1911, 1912, 1913, 1914... 1915.

20 de agosto de 1915.

Estava lá o nome. Não significava nada para Heinrich Kassel, mas muito para Taleniekov. Lembrou-lhe outro documento a três mil quilômetros de distância nos arquivos de Leningrado. Os crimes da família Voroshin, amigos íntimos do príncipe Andrei.

Friedrich Schotte.

— Espere um minuto! — Vasili colocou a mão sobre as páginas. — Onde é isso?

— Stadtwald. Não há nada irregular aqui. Pelo contrário, é absolutamente legal, muito limpo.

— Talvez legal demais, limpo demais. Assim como o massacre dos Voroshin tinha detalhes demais.

— Por Deus, em que está falando?

— O que sabe desse Friedrich Schotte?

O advogado faz uma careta se concentrando, procurando lembrar história irrelevante; não era isso que procurava. — Ele trabalhava para os Krupp, acho, em posição muito alta. Tinha de ser, para poder comprar isso. Teve algum problema depois da Primeira Guerra Mundial. Não me recordo das circunstâncias... uma sentença de prisão ou coisa parecida... mas não vejo que ligação tem isso.

— Eu vejo — disse Taleniekov. — Foi condenado por retirar dinheiro para fora da Alemanha. Foi morto na primeira noite quando cumpria a sentença na prisão em 1919. A propriedade já fora vendida então?

— Imagino que sim. Pelo mapa topográfico, parece ser uma propriedade cara demais para ser mantida pela viúva de um prisioneiro.

— Como podemos verificar isso?

— Conferindo o ano de 1919. Chegaremos lá...

— Vamos ver agora. Por favor.

Kassel suspirou. Pôs-se de pé e dirigiu-se aos arquivos, voltando logo após com uma pasta recheada.

— Quando se interrompem os autos, perde-se a continuidade —resmungou.

— O que perdermos pode ser recuperado. Talvez ganhemos tempo.

Levou quase trinta minutos para Kassel extrair uma pasta de dentro da outra pasta e colocá-la em cima da mesa.

— Receio que tenhamos desperdiçado meia hora.

— Por quê?

—A propriedade foi adquirida pela família Verachten em 12 de novembro de 1919.

— As Fábricas Verachten? Os concorrentes de Krupp?

— Naquela época, não. Agora, talvez. Os Verachten vieram de Munique para Essen no início do século, por volta de mil novecentos e seis ou sete. Todo mundo sabe, os Verachten eram de Munique e não podiam ser mais respeitáveis. Você tem um V, mas nenhum Voroshin.

Os pensamentos de Vasili voaram sobre todos os fatos já conhecidos. Guillaume de Matarese reunira os cabeças de famílias que haviam sido poderosas e foram destituídas quase totalmente de seus bens e sua influência. De acordo com o velho Mikovsky, os Romanov disputaram uma longa batalha com os Voroshin, acusando-os de serem os ladrões da Rússia, provocadores da Revolução... Estava claro! O padrone das colinas de Porto Vecchio convocara um homem e, por extensão, sua família, que já estava em processo de emigrar às escondidas, levando consigo tudo que pudessem tirar da Rússia!

— O V imperial, foi isso que encontramos — disse Taleniekov. — Deus meu, que estratégia! Até o uso de muitos caminhões carregados de ouro e prata saídos de Leningrado, com o V imperial! — Vasili pegou as páginas em frente do advogado. — Você mesmo o disse, Heinrich. Voroshin construiria uma nova identidade muito devagar, com muito cuidado. Foi exatamente o que fez, apenas começou cinco ou seis anos antes do que pensei. Estou certo de que, se houvesse registros disso ou pudéssemos despertar memórias, descobriríamos que Herr Verachten veio primeiro a Essen sozinho, até estabelecer-se. Um homem rico, testando novos campos para investimentos e para o futuro, trazendo consigo um histórico cuidadosamente elaborado, da longínqua Munique, o dinheiro rolando através de bancos austríacos. Tão simples, e as datas estavam tão corretas!

De repente, Kassel franziu a testa.

— Sua esposa — disse pausadamente.

— Que tem a esposa?

— Não era de Munique. Era húngara, de uma família rica de Debrecen, pelo que dizem. Nunca falou alemão direito.

— Traduzindo, ela era de Leningrado e não era boa em línguas. Qual era o nome todo de Verachten?

— Ansel Verachten — disse o advogado, olhando Taleniekov fixamente. — Ansel.

— Andrei. — Vasili deixou cair as páginas. — É incrível como o ego luta por ser sublime, não? Apresento-lhe o príncipe Andrei Voroshin.

 

Atravessaram lentamente a Gildenplatz, onde o edifício Kaffee Hag resplandecia de luz, com a insígnia Bosch discreta mas proeminente abaixo do enorme relógio. Eram oito horas da noite, o céu estava escuro e o ar frio. Não era uma noite feita para andar, mas Taleniekov e Kassel haviam passado quase seis horas nos Registros de Títulos e o vento que soprava na praça era refrescante.

— Um alemão do Ruhr não devia ficar chocado com coisa alguma — disse o advogado, sacudindo a cabeça. — Afinal, somos a Zurique do Norte. Mas isso é incrível. E só sei parte da história. Não quer mudar de idéia e contar-me o resto?

— Talvez um dia.

— É enigmático demais. Fale mais claro.

— Se eu estiver vivo. — Vasili olhou para Kassel. — Conte-me tudo que puder sobre os Verachten.

— Não é muito. A esposa faleceu em trinta e tantos, acho. Um filho e a nora foram mortos num ataque aéreo durante a guerra, lembro-me disso. Os corpos só foram encontrados vários dias depois, sepultados nos escombros, como tantos outros. Ansel viveu até uma idade avançada, escapando, de alguma maneira, às punições pelos crimes de guerra que pegaram os Krupp. Morreu em forma, de um ataque de coração quando andava a cavalo, lá pelos anos cinqüenta.

— Quem sobrou?

— Walther Verachten, esposa e filha; ela nunca se casou, mas isso não a impediu de gozar os prazeres conubiais.

— Que quer dizer com isso?

— Era uma figura ousada, como dizem, quando mais moça; até suas formas eram ousadas, combinando com a reputação. Os americanos têm uma expressão que se aplica muito bem a ela: era, e em parte ainda é, uma “devoradora de homens”. — O advogado fez uma pausa. — É estranho como as coisas acabam. Odile é que realmente dirige as companhias agora. Walther e a esposa estão com bem mais de setenta e raramente são vistos em público hoje em dia.

— Onde moram?

— Ainda estão em Stadtwald, mas não na propriedade original, é claro. Como vimos, foi uma das que foram vendidas para projetos de desenvolvimento após a guerra, e por isso não a reconheci. Têm uma casa mais afastada, no campo, agora.

— E a filha, essa Odile?

— Isso — replicou Kassel, sorrindo — depende dos caprichos da dama. Tem uma cobertura na Weden Strasse e por aqueles portais passam muitos adversários de negócios que acordam na manhã seguinte tão exaustos que perdem para ela na mesa de conferências. Quando não está na cidade, dizem que ocupa uma cabana nas terras dos pais.

— Parece uma mulher e tanto.

— No sweepstake das que têm quarenta e cinco ou mais, ninguém a vence. — Kassel fez outra pausa antes de terminar. — Tem uma falha, entretanto, e dizem que é de enlouquecer. Dirige a Verachten com firmeza, mas, quando as coisas não correm bem e é preciso tomar decisões imediatas, ela declara que necessita conferenciar com o pai e assim adia a decisão, às vezes por muitos dias. No fundo, é uma mulher, forçada pelas circunstâncias a tomar o lugar de um homem, mas o poder ainda está nas mãos de Walther.

— Você o conhece?

— Somos apenas conhecidos.

— Que acha dele?

— Não acho que seja grande coisa. Sempre me deu a impressão de ser um autocrata um tanto pretensioso e sem muito talento.

— As Fábricas Verachten progridem, entretanto — disse Vasili.

— Sei, sei. É o que dizem quando dou minha opinião. Minha resposta, um tanto fraca, é que talvez fossem melhor sem ele. Se a Verachten progredisse mais, tornar-se-ia dona da Europa. Portanto, presumo que seja uma antipatia pessoal minha e que eu esteja errado.

“Não necessariamente”, pensou Taleniekov. “O Matarese faz preparativos estranhos e muito eficientes. Só precisa de aparelha-mento.”

— Quero conhecê-lo — disse Vasili. — Sozinho. Já esteve na casa dele?

— Uma vez, anos atrás — replicou Kassel. — Os advogados deles nos consultaram sobre um problema de patentes. Odile estava fora do país. Eu precisava de uma assinatura de um Verachten na queixa, nada poderia fazer sem ela, aliás. Então telefonei ao velho Walther e fui lá pegá-la. A represa arrebentou quando Odile voltou a Essen. Berrou comigo no telefone: “Não devia ter incomodado meu pai! Nunca mais trabalhará para os Verachten!” Ah, ela é impossível. Disse-lhe o mais delicadamente possível que nunca os teríamos servido se o pedido inicial tivesse sido feito a mim.

Taleniekov observou o rosto do advogado enquanto ele falava. O alemão estava genuinamente zangado.

— Por que diz isso?

— Porque é verdade. Não gosto da companhia, ou companhias. Há maldade por lá. — Kassel riu de si mesmo. — Meus sentimentos a esse respeito devem ser parte do que sobrou daquele jovem, advogado radical que você tentou recrutar doze anos atrás.

“São os instintos de um homem decente”, pensou Vasili. “Você pressente o Matarese, embora não saiba de nada.”

— Tenho um último pedido a fazer-lhe, meu velho amigo-inimigo — disse Taleniekov. — Dois, na verdade. O primeiro é que não diga nada a ninguém sobre nosso encontro de hoje, nem o que descobrimos. O segundo é que descreva a localização da casa dos Verachten e tudo que puder lembrar-se sobre ela.

 

O canto de um muro de tijolos surgiu no clarão dos faróis. Vasili pisou no acelerador da Mercedes de aluguel e olhou o marcador de quilometragem para calcular a distância entre o começo do muro e o portão de ferro. Cinco oitavos de quilômetro, pouco mais de seiscentos metros. O portão alto estava fechado. Era operado eletronicamente.

Chegou ao fim do muro. Era um pouco mais curto desse lado do portão. Além do muro, estendia-se a floresta, no meio da qual fora construído o conjunto Verachten. Diminuiu a marcha e procurou uma clareira à beira da estrada, onde pudesse esconder a Mercedes.

Encontrou-a entre duas árvores, um lugar onde a vegetação havia sido comprimida por nevadas anteriores. Pôs o carro na caverna verde natural, o mais longe possível da estrada. Desligou o motor, saltou e seguiu o mesmo caminho, levantando os arbustos que se abaixaram a sua passagem, até alcançar a estrada, a cinco metros de distância. Parou no acostamento e examinou a camuflagem; no escuro, era insuficiente. Caminhou em direção ao muro.

Se conseguisse transpô-lo sem alarme, sabia que alcançaria a casa. Não se pode examinar uma floresta eletronicamente, os fios seriam perturbados por animais e aves. O muro é que lhe merecia a atenção. Acercou-se e estudou os tijolos à luz do isqueiro. Não havia dispositivo algum, era um muro de tijolos comum e, por isso mesmo, enganador. Vasili o sabia. À sua direita, um carvalho erguia-se até o topo do muro, os galhos se enrascando em cima, mas não se estendendo do outro lado.

Deu um salto, agarrou a casca da árvore com as mãos e cruzou as pernas no tronco. Subiu até o primeiro ramo, passou a perna por cima e alçou-se até sentar-se, as costas contra o tronco. Inclinou-se para a frente e para baixo, equilibrando o corpo com as mãos, até ficar deitado de bruços no galho, e estudou o topo do muro na penumbra. Encontrou o que esperava.

Uma rede de tubos plásticos protegidos por arame, através da qual passavam ar e corrente elétrica, havia sido embutida na superfície plana de concreto. A voltagem era suficiente para impedir que animais roessem o plástico e a pressão de ar era calibrada para ligar o alarme no momento em que certo peso pressionasse os tubos. O alarme estava certamente ligado a uma sala onde instrumentos mostrariam o ponto exato de penetração. Taleniekov sabia que o sistema era praticamente infalível; se houvesse um curto-circuito num fio, havia mais cinco ou seis para tomar seu lugar, e a pressão de uma faca na capa de arame seria o bastante para disparar o alarme.

Mas praticamente infalível não queria dizer completamente infalível. Fogo. Derreter o plástico e soltar o ar sem a pressão de uma lâmina. Dessa maneira, o único alarme seria o de mau funcionamento, e começariam a investigar onde o sistema começava, que deveria ser muito mais perto da casa.

Calculou a distância entre a ponta do galho e o topo do muro. Se conseguisse enganchar a perna o mais perto possível da ponta do galho, ficar suspenso e escorar-se com a mão no muro, a outra mão livre, poderia segurar o isqueiro contra os tubos plásticos.

Puxou o isqueiro — seu isqueiro americano, refletiu meio contrariado — e empurrou a minúscula alavanca do gás para o máximo. Acendeu-o; a chama manteve-se alta e firme; abaixou-a ligeiramente, pois a luz era brilhante demais. Respirou fundo, firmou os músculos da perna direita e deixou o corpo cair à esquerda, tocando a orla do muro com a mão esquerda ao arquear o corpo para baixo. Firmou-se e começou a respirar pausadamente, orientando a visão para a cena virada ao contrário. O sangue subiu-lhe à cabeça; virou o pescoço para diminuir a pressão e acendeu o isqueiro, segurando a chama contra o primeiro tubo.

Houve um estrépito de eletricidade, depois uma expulsão de ar, e o tubo ficou preto e derreteu. Passou para o segundo da série; esse explodiu como uma bombinha molhada, um barulho semelhante ao de uma espingarda de ar de pequeno calibre. O terceiro formou uma bolha fina. Uma bolha. Pressão! Peso! Empurrou a chama dentro dela e à estourou. Prendeu a respiração, esperando ouvir o alarme. Nada. Furara o tubo a tempo, antes que o calor e a expansão alcançassem a tolerância de peso. Aprendeu uma coisa: a segurar a chama mais perto logo no primeiro contato. Fez isso com dois outros fios e ambos estouraram logo. Faltava o último, tubo.

De repente, a chama diminuiu e apagou-se. Acabara o combustível. Fechou os olhos por um instante, frustrado e furioso. A perna lhe doía tremendamente; o sangue acumulado na cabeça o deixava tonto. Então lembrou-se do óbvio, irritado consigo mesmo por não ter pensado nisso imediatamente. O tubo restante podia muito bem evitar um alarme de mau funcionamento, era melhor deixá-lo intacto. Havia pelo menos quarenta centímetros livres na superfície de concreto, mais do que suficiente para colocar um pé e cair do outro lado do muro.

Tornou a erguer-se sobre o galho e descansou um pouco, deixando a cabeça clarear. Depois, devagar, com cuidado, desceu o pé esquerdo até o muro, colocando-o com firmeza sobre os tubos queimados. Com muita precaução, passou a perna direita sobre o galho, escorregando até que o galho ficasse encostado na base da espinha. Respirou fundo, retesou os músculos e deu um salto à frente, pressionando o pé esquerdo na pedra e lançando-se sobre o muro. Caiu no chão, rolando para diminuir o impacto. Estava dentro da propriedade dos Verachten.

Ficou de joelhos, à escuta de qualquer sinal de alerta. Não ouviu nada. Pôs-se de pé e começou a abrir caminho através de densos bosques rumo ao que presumia ser a área central da propriedade. O fato de que estava andando, ou engatinhando, na direção certa foi confirmado em menos de um minuto. Viu as luzes da casa principal filtradas pelas árvores e o princípio de um vasto gramado, mais visível a cada passo.

A brasa de um cigarro! Caiu ao chão. Diretamente em frente, talvez a uns quinze metros, um homem estava na orla do gramado. Imediatamente, Taleniekov sentiu a brisa da floresta; procurou ouvir sons de animais.

Nada. Não havia cães. Walther Verachten confiava em seus portões eletrônicos e no sistema de alarme sofisticado; necessitava somente de patrulhas humanas para a segurança de sua residência.

Vasili avançou lentamente, os olhos grudados no guarda. O homem estava de uniforme, com um quepe e uma jaqueta pesada de inverno, cingida por uma grossa correia de couro da qual pendia o coldre de uma arma. O guarda olhou o relógio e rasgou o cigarro, espalhando o tabaco na grama; estivera no Exército. Deu alguns passos à esquerda, espreguiçou-se, bocejou, andou mais uns sete metros e então voltou vagarosamente ao ponto de partida. Aquele pequeno pedaço de solo era seu posto, sem dúvida havia outros guardas posicionados a cada centena de metros, cercando a casa como a Guarda Pretoriana de César. Mas não era a época de César nem havia os perigos de César. O serviço era maçante, o guarda fumava cigarros abertamente, bocejava e andava à toa. O homem não seria problema.

Mas seria problema atravessar a extensão do gramado até as sombras da estrada, à direita da casa. Por um momento, teria de andar sob a luz dos refletores instalados no telhado.

Um homem sem chapéu, de calças, com suéter escuro, seria visto e obrigado a parar. Mas um guarda de quepe e jaqueta com um coldre passaria despercebido. Se fosse repreendido, o guarda poderia voltar ao posto. Era preciso não esquecer isso.

Taleniekov engatinhou pela vegetação rasteira, cotovelos e joelhos trabalhando no chão duro, parando ao estalar um galho, misturando seus sons com os sons noturnos da floresta. Estava a dois metros de distância, só os galhos de um arbusto o separavam do guarda. O homem, chateado, meteu a mão no bolso e tirou um maço de cigarros.

Era o momento de agir. Agora.

Vasili pulou, a mão esquerda segurou a garganta do guarda, o calcanhar fincou-se na terra para lhe dar firmeza. Num só movimento, levantou o homem no ar, arqueou-lhe o corpo em cima do arbusto, batendo com seu crânio no chão e ao mesmo tempo espremendo-lhe a garganta. O choque do assalto combinado com o golpe na cabeça e a falta de ar foram demais, e o guarda perdeu os sentidos. Tempos atrás, Taleniekov teria terminado o serviço, matando o guarda, pois era mais prático, mas esse tempo já havia passado. Não se tratava de um soldado do Matarese, não havia razão para matá-lo. Despiu-o da jaqueta e do boné, vestiu-os rapidamente e afivelou o coldre na cintura. Arrastou o guarda mais para dentro do bosque, virou-lhe a cara na terra, tirou-lhe a pequena arma e bateu com o cabo acima de sua orelha direita. Ficaria inconsciente durante horas.

Agachado, Vasili foi até a orla do gramado, ficou ereto, respirou fundo e começou a travessia. Observara o andar do guarda, um pouco arrogante, o pescoço rígido, a cabeça inclinada para trás, e imitou-o de memória. A cada passo que dava, esperava uma repreensão, uma ordem ou uma pergunta. Se isso acontecesse, daria de ombros e voltaria ao posto. Nada aconteceu.

Alcançou a estrada interna e as sombras. Quarenta e cinco metros adiante, a luz de uma porta aberta jorrava no pavimento e uma mulher destampava uma lata de lixo, duas sacas de papel a seus pés. Vasili tomou uma decisão e apressou o passo. Acercou-se da mulher; ela usava um uniforme de empregada branco.

— Com licença, o capitão me mandou trazer um recado para Herr Verachten.

— Que diabo é você? — perguntou a mulher rechonchuda.

— Sou novo aqui. Espere aí, deixe-me ajudá-la.

Taleniekov pegou as sacas.

— Você é novo mesmo. É sempre Helga faz isso, Helga faz aquilo. Por que iam se importar? Qual é o recado. Eu levo para ele.

— Gostaria de poder lhe dar. Não conheço o velho, nem quero conhecer, mas me mandaram falar com ele.

— São todos uns idiotas. Kommandos! Um bando de salafrários cheios de cerveja, isso é que é. Mas você tem uma cara melhor que a deles.

— Herr Verachten, por favor? Me disseram que era urgente.

— Tudo é sempre com pressa. São dez horas. A mulher do velho imbecil está no quarto e ele está na capela, claro.

— Onde?...

— Ah, está bem. Venha comigo, eu lhe mostro... Você tem bom aspecto e é polido também. Não mude.

Helga levou-o por um corredor terminando numa porta que dava para um grande hall de entrada. As paredes estavam revestidas de quadros a óleo da Renascença, iluminados por pequenos refletores que mostravam as cores vivas e dramáticas. Em frente, erguia-se uma larga escadaria circular com degraus de mármore italiano. O hall dava para várias salas grandes e o pouco que Taleniekov conseguiu ver delas confirmou a descrição de Heinrich Kassel de uma casa cheia de antiguidades preciosas. Mas foram só vislumbres; a empregada dobrou o canto além da escadaria e chegaram a uma pesada porta de mogno esculpida com motivos bíblicos. Abriu-a e desceram degraus forrados de vermelho até chegarem a uma espécie de ante-sala com chão de mármore igual ao da escadaria do grande hall. As paredes eram cobertas com tapeçarias mostrando cenas do início da era cristã. À esquerda estava um antigo banco de igreja, exemplo de baixo-relevo, uma arte há muito esquecida; era um lugar de meditação, pois a tapeçaria em frente era da via-sacra. A pequena sala terminava numa porta em arco, atrás da qual, obviamente, estava a capela de Walther Verachten.

— Pode interromper, se quiser — disse Helga, sem grande entusiasmo. — O chefe dos Kommandos levará a culpa, não você. Mas se eu fosse você esperaria uns minutos. O padre deve estar acabando de dizer suas besteiras.

— Padre?

A palavra escapou-lhe, era a última coisa que podia imaginar. Um consigliere do Matarese com um padre?

— Sua santidade cheia de peidos, é o que eu digo. — Helga virou-se e deu um passo para sair da sala. — Faça o que quiser — disse, encolhendo os ombros. — Eu não digo pra ninguém o que deve fazer ou não.

Taleniekov esperou que a porta de mogno se abrisse e fechasse. Então, foi silenciosamente até a porta da capela, grudou o ouvido ao painel, procurando entender a fala cantada que vinha de dentro.

Russo. A fala cantada era em russo!

Não conseguiu saber por que ficou tão espantado. Afinal, a congregação consistia no único filho sobrevivente do príncipe Andrei Voroshin. Era o serviço religioso em si que era espantoso.

Vasili pegou a maçaneta, virou-a lentamente e abriu a porta alguns centímetros. Duas coisas registraram-se imediatamente: o odor agridoce de incenso e as chamas bruxuleantes de enormes velas, que o fizeram piscar para acomodar os olhos ao efeito claro-escuro das chamas contra as sombras negras movediças nas paredes de concreto cinzento. Por toda parte, em recessos nas paredes, havia ícones da Igreja Ortodoxa Russa; os mais próximos do altar erguiam seus santos braços para a cruz de ouro no centro.

Em frente da cruz estava o padre, em sua batina de seda branca debruada de prata e ouro. Estava com os olhos fechados, as mãos cruzadas no peito, e de sua boca, que mal se mexia, saíam as palavras de um cântico originado há mais de mil anos.

Então Taleniekov viu Walther Verachten... um velho de ralos cabelos brancos, alguns fios caídos no pescoço descarnado. Estava prostrado nos três degraus de mármore do altar, aos pés do padre, os braços estendidos em súplica, a testa contra o mármore em submissão absoluta. O padre ergueu a voz, indicando o final do Kyrie Eleison ortodoxo. Começou a ladainha do perdão, a declaração do padre seguida da resposta do pecador, um exercício coral de auto-indulgência e automistificação. Vasili pensou na dor infligida, exigida pelo Matarese, e sentiu-se revoltado. Abriu a porta e entrou.

O padre abriu os olhos, assustado, deixando cair as mãos do peito, cheio de indignação. Verachten virou-se de frente nos degraus, seu corpo esquelético tremendo. Desajeitadamente, dolorosamente, ficou de pé.

— Como ousa interferir? — gritou em alemão. — Quem lhe deu permissão de entrar aqui?

— Um historiador de Petrogrado, Voroshin — disse Taleniekov em russo. — Essa resposta é tão boa quanto qualquer outra, não é?

Verachten caiu nos degraus, agarrando a borda de pedra com as mãos. Firmando-se, levou-as ao rosto, cobrindo os olhos como se esses tivessem sido arranhados ou queimados. O padre caiu de joelhos, segurou o velho pelos ombros, abraçando-o, e virou-se para Vasili, dizendo em voz áspera:

— Quem é você! Quem lhe deu esse direito?

— Não me fale em direitos! Você me enoja! Parasita!

O padre continuou abraçado a Verachten.

— Chamaram-me anos atrás e eu vim. Como meus antecessores nesta casa, nada peço e nada recebo.

O velho tirou as mãos do rosto, tentando controlar-se, abanando a cabeça trêmula. O padre soltou-o.

— Então veio, afinal. Sempre me avisaram. A vingança a Deus pertence, mas vocês não acreditam nisso, não é? Tiraram Deus do povo e deram muito pouco em troca. Não vou brigar com você neste mundo. Tire minha vida, bolchevista. Obedeça suas ordens, mas deixe esse pobre padre livre. Ele não é um Voroshin.

— Mas você é.

— É o meu fardo. — A voz de Verachten ficou mais firme. — E nosso segredo. Suportei a ambos muito bem, com a visão que Deus me deu.

— Um fala de direitos, o outro de Deus! — Taleniekov cuspiu as palavras. — Hipócritas! Per nostro circolo!

O velho piscou, os olhos sem expressão.

— Não entendi.

— Você me ouviu! Per nostro circolo!

— Escutei, mas não entendo.

— Córsega! Porto Vecchio! Guillaume de Matarese!

Verachten olhou para o padre...

— Estou senil, padre? Que ele está dizendo?

— Explique — disse o padre. — Quem é você? O que quer? Que querem dizer essas palavras?

— Ele sabe!

— Sei o quê? — Verachten inclinou-se à frente. — Nós, os Voroshin, temos sangue em nossa consciência, isso eu aceito. Mas não posso aceitar o que não sei.

— O pequeno pastor — disse Taleniekov. — Com uma voz mais cruel que o vento. Precisa mais que isso? O pequeno pastor!

— O Senhor é meu pastor...

— Pare com isso, seu carola mentiroso!

O padre pôs-se de pé.

— Pare você, seja lá quem for! Esse homem bom e decente viveu toda a sua vida pagando pecados que nunca foram dele! Desde criança queria servir a Deus, mas não o permitiram. Em vez disso, tornou-se um homem que está com Deus. Sim, com Deus.

— É um Matarese!

— Não sei o que seja isso, mas sei o que ele é. Distribui milhões todos os anos para os famintos, os que sofrem privações. Só pede nossa presença para ajudá-lo em suas devoções. Só isso é que sempre pediu.

— Você é um idiota! Esse dinheiro é dinheiro do Matarese! Ele compra a morte!

— Compra esperança. Você é que é mentiroso!

A porta da capela abriu-se abruptamente. Vasili deu meia-volta. Um homem de terno escuro estava em pé no portal com as pernas abertas, os braços estendidos à frente, uma arma na mão direita, apoiada pela esquerda.

— Não se mexam! — falou em alemão.

Duas mulheres atravessaram o portal. Uma era alta e esbelta, e usava um vestido longo de veludo azul e uma capa de peles nos ombros; seu rosto era branco, angular, lindo. A mulher rude a seu lado era baixa, vestia um sobretudo de lã e tinha o rosto inchado, com pequenos olhos astutos. Ele a vira há poucas horas... um guarda dissera que ela teria muito prazer, se Heinrich Kassel quisesse cópias.

— É esse homem — disse a recepcionista dos Registros de Títulos.

— Obrigada — replicou Odile Verachten. — Pode ir agora, o motorista a levará de volta para a cidade.

— Obrigada à senhora, madame.

A mulher saiu.

— Odile! — exclamou seu pai, lutando para se pôr de pé. — Esse homem entrou...

— Sinto muito, pai — interrompeu sua filha. — Adiar coisas desagradáveis só as complica. É uma coisa que você nunca compreendeu. Estou certa de que esse... homem... disse coisas que você não devia ouvir.

Com essas palavras, Odile Verachten fez um sinal com a cabeça para seu companheiro. Ele passou a arma para a mão esquerda e atirou. A explosão foi ensurdecedora; o velho caiu. O assassino ergueu a arma e atirou novamente; o padre deu uma volta completa, o topo da cabeça transformado numa massa vermelha.

Silêncio.

— Esse foi um dos atos mais brutais que eu jamais vi — disse Taleniekov.

Ele mataria... fosse como fosse.

— Vindo de Vasili Vasilivich Taleniekov, isso é muito — disse a mulher, dando um passo à frente. — Acreditou realmente que esse velho inútil, esse padre frustrado, poderiam ser parte de nós?

— Errei no homem, não no nome. Voroshin é Matarese.

— Errado. Verachten. Nós não nascemos, somos escolhidos. — Odile fez um gesto em direção ao pai morto. — Ele nunca foi. Quando seu irmão morreu durante a guerra, Ansel escolheu a mim! — Olhou-o fixamente. — Não sabíamos o que você descobriu em Leningrado.

— Gostaria de saber?

— Um nome — respondeu a mulher. — Um nome de um período caótico na história recente. Voroshin. Mas não tem importância que você saiba. Não há nada que possa dizer, nenhuma acusação que possa fazer e que os Verachten não possam refutar.

— Não sabe disso com certeza.

— Sabemos o bastante, não é? — disse Odile, lançando um olhar ao homem com a arma.

— Sabemos o bastante — repetiu o assassino. — Perdi-o em Leningrado. Mas não perdi a mulher, Kronescha, não foi? Se é que entende o que estou dizendo.

— Você!

Taleniekov deu um passo à frente; o homem engatilhou a arma.

Vasili parou, doendo-lhe o corpo e a mente. Mataria; para isso, precisava de controle. “Lodzia, minha Lodzia! Ajude-me!”

Olhou para Odile Verachten e falou com suavidade, lentamente, dando ênfase igual a cada palavra.

— Per... nostro... circolo.

O sorriso desapareceu dos lábios dela, sua pele branca ficou mais pálida.

—Novamente, do passado. De um povo primitivo que não sabe o que diz. Deveríamos ter visto que iria descobrir.

— Acredita nisso? Acha que não sabem o que estão dizendo?

— Sim.

Era agora ou nunca, pensou Taleniekov. Deu um passo propositado em direção à mulher. A arma do assassino estendeu-se, ficou a menos de um metro, apontada diretamente à sua cabeça

— Então por que falam do pequeno pastor?

Deu outro passo; o assassino respirou pelo nariz; um prelúdio ao tiro, estava apertando o gatilho.

— Pare! — gritou a Verachten.

Vasili agachou-se no momento da explosão. Odile Verachten estendera o braço num gesto súbito para sustar o tiro e, naquele instante, Taleniekov pulou, olhos, mente e corpo fixos num único objeto: a arma, o cano da arma.

Segurou o cano quente com os dedos e torceu a mão e o pulso para a esquerda, puxando para baixo para infligir maior dor. Meteu a mão direita com os dedos curvos e rígidos no estômago do homem, forçando músculos, procurando a protuberância das costelas. Puxou-a para cima com toda a força. O assassino berrou e caiu ao chão.

Vasili virou e atirou-se sobre Odile. No breve momento de violência, ela hesitara. Agora reagiu com precisão, tirando uma arma de debaixo da capa de peles. Taleniekov agarrou a mão, a arma e atirou Odile no chão da capela, martelando-lhe o peito com o joelho, o cano de sua própria arma pressionando a garganta da mulher.

— Desta vez não errarei! — disse ele. — Nenhuma pílula na boca.

— Será morto! — murmurou ela.

— Provavelmente — concordou Vasili. — Mas você vai comigo, e na certa não quer isso. Eu errei. Você não é um dos soldados; os escolhidos não tiram suas próprias vidas.

— Sou a única pessoa que pode salvar a sua. — Engasgou com a pressão do aço, mas continuou. — O pastor... Onde? Como?

— Você quer informação, ótimo! Eu também. — Taleniekov retirou a arma de sua garganta, colocando a mão esquerda em seu lugar, e meteu os dedos da direita dentro de sua boca, comprimindo a língua, rebuscando no tecido macio. Ela tossiu, e secreção e cuspe rolaram pelo queixo. Não havia pílulas fatais na boca. Ele estava certo; os escolhidos não cometiam suicídio. Então abriu a capa de peles no chão e correu as mãos pelo seu corpo, erguendo-a do chão e apalpando-lhe as costas, deitando-a de novo e metendo a mão entre suas pernas, dos tornozelos ao pélvis, procurando uma arma de fogo ou uma faca. Não encontrou nada.

— De pé! — ordenou.

Ela se levantou parcialmente, com as pernas dobradas embaixo do corpo, segurando o pescoço.

— Tem de me dizer! — murmurou ela. — Sabe que não pode escapar. Não seja tolo, russo! Salve sua vida! Que sabe a respeito do pastor!

— Que me oferece para lhe dizer?

— Que você quer?

— Que o Matarese quer?

A mulher parou.

— Ordem.

— Através do caos?

— Sim! O pastor? Em nome de Deus, diga-me!

— Direi quando sairmos daqui.

— Não! Agora.

— Acha que eu negociaria assim? — Colocou-a de pé. — Vamos agora. Seu amigo vai acordar daqui a pouco, e parte de mim daria a vida para tirar a dele. Devagar, com muita dor, como tirou a de alguém. Mas não vou fazer isso. Ele deve fazer seu relatório a homens sem nome que por sua vez entrarão em ação, e nós os observaremos. Verachten está sem direção; você estará bem longe de Essen.

— Não!

— Então morrerá — disse Taleniekov, com simplicidade. — Entrei, sairei de novo.

— Dei ordens! Ninguém pode sair!

— Quem vai sair? Um guarda uniformizado volta ao seu posto. Aqueles homens lá fora não são Matarese, são exatamente o que é suposto que sejam, antigos Kommandos alugados para proteger executivos ricos. — Vasili empurrou-lhe a arma contra a garganta. — Sua escolha? Para mim não faz diferença.

Ela estremeceu; ele segurou-lhe o pescoço, pressionando-o contra o cano da arma. Ela acenou com a cabeça.

— Conversaremos no carro de meu pai — murmurou. — Somos ambos civilizados. Você tem informações que eu quero e eu tenho uma revelação a lhe fazer. Não tem a quem recorrer agora, só nós. Poderia ser muito pior para você.

 

Sentou-se ao lado dela no banco da frente da limusine de Wal-ther Verachten. Tirara o uniforme e agora não passava de mais um garanhão dos estábulos de Odile Verachten. Ela estava atrás da direção, com o braço dele rodeando-lhe os ombros, e a automática lhe comprimia o lado direito. Quando o guarda na guarita do portão acenou com a cabeça e virou-se para apertar o botão, ele se inclinou contra ela. Se fizesse um movimento, um gesto suspeito, estaria morta. Ela sabia disso. Ficou quieta.

Transpuseram o portão aberto em alta velocidade e viraram à esquerda. Ele agarrou a direção, estendeu o pé para o freio e virou a roda rapidamente para a direita. O carro derrapou; ele firmou-o e colocou o pé sobre o dela no acelerador.

— Que está fazendo? — exclamou ela.

— Evitando qualquer encontro que você tivesse marcado.

Estava nos olhos dela; outro carro estava à espera na estrada de Essen. Pela terceira vez, Odile Verachten estava realmente amedrontada.

Voaram pela estrada secundária. A centenas de metros adiante ele avistou uma forquilha à luz dos faróis. Esperou; instintivamente, ela tomou a direita. Alcançaram a bifurcação, a curva começou. Ele botou rapidamente a mão na direção, empurrando-a para cima e mandando o carro para a estrada da esquerda.

— Você vai nos matar! — berrou ela.

— Então iremos os dois — disse Taleniekov. Os bosques em volta estavam menos densos. Havia clareiras adiante. — Aquele campo à direita. Pare.

— O quê?

Ele ergueu a arma e encostou-a na testa da mulher.

— Pare o carro — repetiu.

Saltaram. Vasili tirou as chaves e botou-as no bolso. Empurrou-a para a frente, sobre a grama, e caminharam em direção ao meio do campo. Ao longe havia uma casa de fazenda e, mais além, uma cocheira. Não havia luz; os fazendeiros de Stadtwald estavam dormindo. Mas a lua de inverno brilhava mais que em Gildenplatz.

— Que vai fazer? — perguntou Odile.

— Descobrir se você tem a coragem que exige de seus soldados.

— Taleniekov, escute-mel Não importa o que fizer comigo, não vai alterar nada. Já fomos muito longe. O mundo precisa de nós desesperadamente.

— O mundo precisa de assassinos?

— Para salvá-lo de assassinos! Você fala do pastor. Ele sabe. Como pode duvidar? Junte-se a nós. Venha conosco.

— Talvez vá. Mas preciso saber aonde vamos.

— Fazemos negócio?

— Como disse, talvez.

— Onde ouviu falar do pastor?

— Desculpe, você primeiro. Quem são os Matareses? Que são eles? Que estão fazendo?

— Sua primeira resposta — disse Odile, abrindo a capa e pondo as mãos no decote do vestido. Puxou-o para baixo com força, e os botões brancos arrebentaram, revelando os seios. — Sabemos que a encontrou — acrescentou.

À luz da lua, Taleniekov o viu. Maior que os outros que já vira, um círculo irregular que fazia parte do seio, fazia parte do corpo. A marca do Matarese.

— O túmulo nas colinas da Córsega — disse ele. — Per nostro circolo.

— Pode ser seu — disse Odile, estendendo-lhe as mãos. — Quantos amantes deitaram-se sobre estes seios e admiraram este sinal de nascença tão original! Você é o que há de melhor, Taleniekov. Junte-se ao melhor! Deixe-me levar você a eles!

— Há pouco você disse que eu não tinha escolha. Que você me revelaria uma coisa que me forçaria a recorrer a você. O que é?

Odile compôs o decote do vestido.

— O americano está morto. Você está sozinho.

— O quê?

— Scofield foi morto.

— Onde?

— Em Washington...

 

O ruído do motor de um carro a interrompeu. Faróis penetraram a escuridão da estrada que serpeava, saindo do bosque, vinda do Sul. Surgiu um carro. De repente, como se suspenso num vácuo negro, parou no acostamento atrás da limusine. Antes que se extinguissem os faróis, ele viu três homens saltarem, seguidos pelo motorista. Todos estavam armados; dois carregavam espingardas. Eram todos predadores.

— Eles me acharam — exclamou Odile Verachten. — Sua resposta, Taleniekov! Realmente não tem escolha, compreende isso, não? Dê-me a arma. Uma ordem minha pode mudar sua vida. Sem ela, está morto.

Aturdido, Vasili olhou para trás. Os campos estendiam-se em pastos, os pastos em escuridão. Escapar não era problema, talvez nem fosse a decisão certa. Scofield morto? Em Washington? Estava a caminho da Inglaterra, o que o teria mandado prematuramente a Washington? Mas Odile não estava mentindo; apostaria a vida! Dissera a verdade da forma que a conhecia, assim como sua oferta havia sido verdadeira. O Matarese se utilizaria bem de um certo Vasili Taleniekov.

Seria esse o meio! O único meio?

— Sua resposta? — Odile estava imóvel, a mão estendida.

— Antes de dá-la, diga-me: quando é que Scofield foi morto? Como?

— Foi baleado duas semanas atrás num lugar chamado Rock Creek Park.

Uma mentira. Uma mentira propositada! Haviam mentido para ela! Será que tinham um aliado nas profundezas do Matarese? Se assim fosse, tinha de encontrar esse homem. Vasili girou a automática na mão, oferecendo-a a Odile.

— Não tenho a quem apelar. Estou com você. Dê sua ordem. Ela deu meia-volta e gritou.

— Vocês aí! Levantem as armas! Suspendam o fogo!

O feixe de luz de uma lanterna irrompeu e Taleniekov viu o que ela não vira e ficou sabendo imediatamente o que ela não sabia. Um homem segurava a lanterna para deixar os outros três livres, e embora ele estivesse iluminado o feixe não era dirigido a ele. Era para ela. Atirou-se no capim à sua esquerda. Um ribombar de balas rompeu dos rifles do outro lado do campo.

Outra ordem fora dada. Odile Verachten gritou. Foi jogada no ar, o corpo dobrou-se para a frente, depois caiu para trás, ainda no ar, sob o impacto das balas.

Seguiram-se mais tiros, cavando a terra à direita de Taleniekov, que se embarafustou pelo capim cambaleando, fugindo da área do alvo. Os berros foram mais altos quando os homens atacaram convergindo para o local onde há apenas alguns segundos estava um membro vivo do Conselho Matarese, dando uma ordem que não lhe cabia dar.

Vasili alcançou a proteção relativa dos bosques. Ficou ereto e começou a correr para a escuridão, sabendo que em breve iria parar, virar-se e matar um homem a caminho da limusine. Em outra escuridão.

Mas por enquanto continuou a correr.

 

O músico idoso estava sentado na última fila no avião, segurando uma caixa de violino surrada entre os joelhos. Distraído, agradeceu a aeromoça pela xícara de chá. Estava absorto em seus pensamentos.

Estaria em Paris em uma hora, encontraria a moça corsa e providenciaria a comunicação direta com Scofield. Era imperativo que trabalhassem juntos agora, tudo estava acontecendo rápido demais. Tinha de se juntar a Beowulf Agate na Inglaterra.

Haviam dado conta de dois nomes na lista de convidados de Guillaume de Matarese, setenta anos atrás.

Scozzi. Morto.

Voroshin-Verachten. Morto.

Sacrificado.

Os descendentes diretos eram sacrificáveis, o que significava que não eram os verdadeiros-herdeiros do padrone corso. Eram apenas mensageiros, trazendo presentes para outros muito mais poderosos, muito mais capazes de espalhar a febre corsa.

“Este mundo precisa de assassinos?”

“Para salvá-lo de assassinos!”, dissera Odile Verachten.

Enigma.

David Waverly, ministro do Exterior, Grã-Bretanha.

Joshua Appleton IV, senador, Congresso dos Estados Unidos.

Seriam eles também mensageiros sacrificáveis? Ou seriam outra coisa? Teriam a marca do círculo azul irregular no peito? Scozzi teria tido? E, se um dos dois, ou Scozzi, a tivesse, seria essa jaca a marca de uma distinção mística, conforme Odile Verachten acreditara, ou seria algo diferente? Um símbolo de que eram sacrificáveis, talvez. Ocorreu a Vasili que onde a marca aparecia a morte era inevitável.

Scofield agora estava procurando na Inglaterra. O mesmo Beowulf Agate que alguém das fileiras do Matarese dissera que fora morto no Rock Creek Park. Quem era esse alguém e por que espalhara tal boato? Parecia que essa pessoa, ou pessoas, queria que Scofield fosse poupado, ficasse fora do alcance dos assassinos do Matarese. Mas por quê?

“Você fala do pastor. Ele sabe! Como pode duvidar?”

O pastor. O pequeno pastor.

Enigma.

Taleniekov colocou a xícara na bandeja a sua frente; seu companheiro de poltrona lhe empurrara o cotovelo. O negociante de Essen dormira com o braço apoiado no suporte divisório, e esse escorregara para seu lado. Vasili estava prestes a empurrá-lo de volta quando viu o jornal dobrado, espalhado no colo do alemão.

A fotografia o encarava; parou de respirar e uma dor lancinante cortou-lhe o peito.

O rosto brando, sorridente, de Heinrich Kassel. A manchete acima da fotografia bradava a notícia.

 

Advokat Mord

 

Taleniekov estendeu a mão e pegou o jornal, a dor aumentando à medida que lia.

 

Heinrich Kassel, um dos mais eminentes advogados de Essen, foi encontrado assassinado em seu carro em frente de sua residência na noite passada. As autoridades consideram o crime bizarro e brutal. Kassel foi estrangulado e sofreu múltiplas feridas na cabeça, lacerações no rosto e no corpo. Um aspecto estranho do crime é que as roupas da parte superior do corpo haviam sido rasgadas, expondo o peito, onde havia um círculo azul-escuro. A tinta ainda estava fresca quando o corpo foi descoberto, pouco depois da meia-noite...

Per nostro circolo.

Vasili fechou os olhos. Pronunciara a sentença de morte de Kassel com o nome Voroshin.

Fora executada.

 

 

— Scofield? — O homem de rosto cinzento estava estupefato ao pronunciar o nome.

Bray correu através da multidão no metrô de Londres, em direção à saída de Charing Cross. Acontecera, tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde. Não havia aba de chapéu que escondesse um rosto se olhos treinados o vissem, nem vestimentas originais que enganassem um profissional, uma vez que notasse o rosto.

Tinha sido reconhecido. O homem que o identificara, e agora certamente corria para um telefone, era um agente veterano da Agência Central de Informações servindo na Embaixada Americana em Grosvenor Square. Scofield o conhecia de vista; um ou dois almoços no The Guinea; duas ou três conferências, realizadas inevitavelmente antes de as Operações Consulares invadirem áreas que a Companhia, possessivamente, considerava sacrossantas. O homem lutava pelas prerrogativas da CIA e Beowulf Agate fora desmedido em suas transgressões.

Diabo! Dentro de minutos a rede americana em Londres seria alertada, dentro de horas todos os homens, mulheres e informantes pagos se espalhariam pela cidade à sua procura. Era possível que até os ingleses fossem chamados, mas não era provável. Em Washington, quem queria Brandon Alan Scofield o queria morto, não interrogado, e isso não era o estilo inglês. Não, os ingleses não seriam chamados.

Bray contava com isso. Havia um homem que ele ajudara anos atrás, em circunstâncias que pouco tinham a ver com suas profissões, e isso permitira que o inglês permanecesse no serviço secreto. Não só permanecesse, mas fosse promovido a uma posição de grande responsabilidade.

Roger Symonds perdera duas mil libras de fundos do MI-6 nas mesas de jogo de Les Ambassadeurs. Bray repusera a quantia usando uma de suas contas. O dinheiro nunca havia sido restituído, não por culpa de Symonds, mas porque Scofield não o vira mais. Nesse tipo de trabalho, nunca se deixam endereços.

Agora pediria uma forma de pagamento. Não duvidava que ele concordasse, mas não sabia se poderia efetuá-la. Mas se Roger Symonds soubesse que ele estava na lista de execuções de Washington nem chegaria a concordar. Dívida ou não, o inglês levava seu trabalho a sério. Não teria um ex-assassino das Operações Consulares, talvez transformado em assassino pago, em sua consciência.

Bray queria que Symonds arranjasse um encontro privado, isolado, com o ministro do Exterior da Inglaterra, David Waverly. O encontro, entretanto, devia ser negociado sem mencionar o nome de Scofield. O agente britânico ia relutar e recusaria terminante-mente se soubesse que Washington o caçava. Scofield sabia que tinha de inventar um motivo plausível. Ainda não conseguira.

Saiu correndo da estação de Charing Cross e juntou-se à corrente de pedestres rumo ao Sul no Strand. Em Trafalgar Square, cruzou a larga interseção e reuniu-se à aglomeração de transeuntes noturnos. Olhou o relógio. Eram 6hl5min, 7hl5min em Paris. Em trinta minutos começaria a chamar Toni em seu apartamento na Rue de Bac. Havia um centro telefônico a alguns quarteirões, em Haymarket. Iria até lá devagar, parando para comprar um chapéu e uma jaqueta. O homem da CIA daria uma descrição exata de sua vestimenta; era imperativo trocá-la.

Usava a mesma jaqueta que usara na Córsega e o mesmo boné de pescador, com pala. Deixou-os no cubículo em que trocou de roupas, numa filial da Dunns, onde comprou uma jaqueta de tweed escuro e um chapéu-esporte irlandês de aba mole, caída em volta do rosto, deixando-o em sombra. Continuou em direção ao Sul, andando mais rápido, cortando caminho por pequenas ruas escondidas até chegar a Haymarket.

No balcão do centro telefônico, pagou a uma das telefonistas, que lhe indicou uma cabina. Entrou e fechou a porta de vidro, desejando que fosse sólida. Faltavam dez para as sete. Antonia estaria esperando junto ao telefone. Davam sempre uma margem de meia hora para o tráfego internacional. Se não conseguisse chamá-la antes de 8hl5min, hora de Paris, ela aguardaria sua chamada entre 11h45min e 12hl5min. A única condição que Toni impusera fora que se falassem todos os dias. Bray não fizera objeção. Saíra de um buraco na terra e encontrara algo muito precioso, algo que pensara que havia perdido para sempre. Podia amar novamente, sentia de novo a excitação da antecipação. O som de uma voz o emocionava, o toque de uma mão era significativo. Encontrara Antonia Gravet no momento mais inoportuno de sua vida, mas essa vida tinha agora um significado que não tivera por muitos . anos. Queria viver com ela, envelhecer com ela, era tudo. Extraordinário. Nunca pensara em envelhecer, e já era tempo de pensar. Se o Matarese permitisse.

O Matarese. Uma potência internacional sem perfil, com líderes de feições indistintas procurando conseguir o quê?

O caos? Por quê?

O caos. Scofield percebeu repentinamente o significado da raiz da palavra. A condição da matéria informe, de corpos colidindo no espaço, antes da criação, antes de a ordem ser imposta no universo.

O telefone tocou. Bray pegou o fone depressa.

— Vasili está aqui — disse Antonia.

— Em Paris! Quando chegou?

— Hoje à tarde. Está ferido.

— É grave?

— No pescoço. Devia levar uns pontos.

Houve breve pausa enquanto o telefone trocava de mãos, ou era tomado.

— Ele precisa dormir — disse Taleniekov em inglês. — Mas tenho que lhe contar umas coisas primeiro, vários avisos.

— Que houve com Voroshin?

— Guardou o V, por razões práticas, se bem que idiotas. Tornou-se o Verachten de Essen. Ansel Verachten.

— Das Fábricas Verachten?

— Sim.

— Meu bom Cristo!

— Seu filho acreditava nele.

— O quê?

— Não vem ao caso e tenho muito a lhe dizer. Sua neta era a escolhida. Está morta, por ordem do Matarese.

— Como Scozzi — disse Scofield.

— Exatamente — concordou o russo. — Eram portadores. Executavam os planos, mas eram comandados por outros. Será interessante ver o que vai acontecer com as companhias Verachten. Estão sem diretores. Devemos observar e ver quem assume o controle.

— Chegamos à mesma conclusão, então — disse Bray. — O Matarese trabalha através de grandes corporações.

— Parece que sim, mas não tenho a menor idéia de qual seja a finalidade. É extremamente contraditório.

— Caos... — Scofield pronunciou a palavra baixinho.

— Desculpe, não entendi.

— Nada. Disse que queria me avisar.

— Sim. Estudaram nossas fichas debaixo de microscópio. Parece que conhecem todo mundo que já usamos, todos os amigos do passado, todos os contatos, todos os ... professores e todas as amantes. Tenha cuidado.

— Não podem saber o que não está na ficha, não podem cobrir todo mundo.

— Não fique muito certo disso. Recebeu meu telegrama sobre a marca nos corpos?

— É loucura! Esquadrões de assassinos identificando-se eles mesmos? Não sei se devo acreditar.

— Acredite — disse Taleniekov. — Mas há uma coisa que não consegui explicar. São suicidas, não se deixam apanhar, o que me leva a crer que não são tão numerosos quanto os líderes gostariam que pensássemos. São uma espécie de soldados de elite enviados a áreas perturbadas, e não devem ser confundidos com atiradores de aluguel usados por outros grupos.

Bray fez uma pausa, relembrando.

— Sabe o que está descrevendo, não?

— Muito bem — replicou o russo. — Hasan ibn-al-Sabbah. Os Fida’is.

— Quadros de assassinos... até que a morte nos separe de nossos prazeres. Como foi modernizado?

— Tenho uma teoria, talvez inútil. Conversaremos sobre isso quando nos encontrarmos.

— E quando será isso?

— Amanhã à noite, ou provavelmente na manhã seguinte, cedo. Posso alugar um piloto e um avião no distrito de Cap Gris, já fiz isso antes. Há um aeroporto particular entre Hyth e Ashford. Devo chegar em Londres à uma hora, o mais tardar duas ou três. Sei onde está, a moça me disse.

— Taleniekov. _

— Sim?

— O nome dela é Antonia.

— Sei disso.

— Deixe-me falar com ela.

— Claro. Aqui está.

 

Encontrou o nome no catálogo de Londres: R. Symonds, Brdbry Ln, Chelsea. Decorou o número e fez a primeira chamada às 7h30min de uma cabina em Piccadilly Circus. A mulher que atendeu disse delicadamente que o Sr. Symonds saíra do escritório e estava a caminho de casa.

— Deve chegar a qualquer momento. Quer deixar o nome?

— Nada significaria. Telefono daqui a pouco, obrigado.

— Ele tem excelente memória. Tem certeza de que não quer deixar o nome?

— Tenho, obrigado.

— Ele vem direto do escritório para casa.

— Sim, compreendi.

Scofield desligou, perturbado. Deixou a cabina e desceu Piccadilly, passando Fortnum e Mason, depois a Rua St. James e mais além. Havia outra cabina na entrada do Green Park. Haviam-se passado pouco mais de dez minutos. Queria ouvir a voz da mulher novamente.

— Seu esposo já chegou?

— Acabou de telefonar do bar da vizinhança, imagine só! The Brace and Bit, na Old Church. Estava muito irritado, é bom dizer. Deve ter tido um dia muito ruim.

Bray desligou. Sabia o número do MI-6 em Londres, nenhum membro da fraternidade o esquecia. Discou.

— Sr. Symonds, por favor. Prioridade.

— Um momento só, senhor.

Roger Symonds não estava a caminho de casa, nem num bar chamado The Brace and Bit. Estaria com problemas domésticos?

— Symonds — disse a conhecida voz inglesa.

— Sua esposa acaba de me dizer que você estava a caminho de casa, mas deu uma parada num bar chamado The Brace and Bit. Não pôde inventar uma desculpa melhor?

— Eu... o quê? Quem está falando?

— Um velho amigo.

— Não é muito amigo. Não sou casado e meus amigos sabem disso.

Bray parou, depois falou com urgência.

— Rápido. Dê-me um número estéril ou protegido por misturador. Rápido!

— Quem é?

— Duas mil libras.

Symonds levou menos de um segundo para compreender. Disse um número, repetiu-o uma vez e acrescentou:

— O porão. Quarenta e cinco andares acima.

Houve um estalo; o fone emudeceu. Quarenta e cinco andares acima do porão significava dividir o número ao meio, menos um. Deveria telefonar para o número mencionado exatamente dali a vinte e dois minutos, dentro do período de um minuto em que os dispositivos eletrônicos de mistura e interferência seriam ativados. Deixou a cabina em procura de outra o mais longe possível dentro daquele espaço de tempo. Interceptações telefônicas funcionavam potencialmente dos dois lados: a cabina no Green Park poderia estar sob observação dentro de alguns minutos.

Subiu a Rua Old Bond até a Rua New e seguiu até Oxford, onde dobrou à direita e começou a correr em direção à Rua Wardour. Aí diminuiu a marcha, virou à direita novamente e fundiu-se às multidões do Soho.

Tempo decorrido: dezenove minutos e meio.

Havia uma cabina na esquina da Avenida Shaftsbury, ocupada por um rapazola de terno azul-berrante que gritava no bocal. Scofield esperou junto da, porta, olhando o relógio.

Vinte e um minutos.

Não podia correr esse risco. Tirou uma nota de cinco libras do bolso e bateu na porta. O rapaz virou-se, viu a nota e mostrou o dedo médio estendido para cima num gesto que não significava cooperação.

Bray abriu a porta, colocou a mão esquerda no ombro coberto de azul-berrante, apertou e, quando o rapaz, ofensivo, começou a gritar, puxou-o para fora da cabina, passando-lhe uma rasteira com o pé esquerdo e jogando a nota em cima dele. O rapaz agarrou-a e correu.

Vinte e um minutos, trinta segundos.

Scofield respirou fundo várias vezes procurando acalmar as batidas rápidas no peito. Vinte e dois minutos. Discou.

—_Não vá para casa — disse Bray assim que Symonds atendeu.

— Não fique em Londres! — foi a resposta. — Grosvenor Square deu alarme sobre você.

— Você sabe? Washington lhe disse isso?

— De maneira alguma. Não dizem uma palavra sobre você. Você está liquidado, assunto proibido. Investigamos há várias semanas quando nos deram a notícia.

— Quem deu a notícia?

— Nossas fontes na União Soviética. Na KGB. Estão atrás de você também, mas sempre estiveram.

— Que disse Washington quando você investigou?

— Reagiu como se não tivesse importância. Falha em comunicar onde se encontra, ou alguma coisa parecida. Sentem-se mal em botar um selo oficial nessa bobagem. Você está escrevendo alguma coisa? Há muito disso por lá...

— Como soube sobre o alarme? — interrompeu Scofield. — O que diz respeito a mim?

— Ora, você sabe, nós nos mantemos a par. Muitas pessoas na folha de pagamento de Grosvenor são leais a nós em primeiro lugar, o que é muito justo.

Bray fez uma pausa, confuso.

— Roger, por que me diz tudo isso? Não acredito que seja por causa de duas mil libras.

— Essa apropriação indébita jaz num banco em Chelsea acumulando juros desde a manhã seguinte.

— Então por quê?

Symonds limpou a garganta, um inglês típico encarando a necessidade de demonstrar emoção.

— Não tenho a menor idéia de qual seja a briga por lá e acho que nem quero saber, você tem uns rompantes tão puritanos, mas fiquei horrorizado em saber que nossa fonte principal em Washington confirmou que o Departamento de Estado apóia o jogo soviético. Como disse, não é só bobagem, considero isso patentemente ofensivo.

— Jogo? Que jogo?

— Dizer que você juntou-se à Serpente.

— A Serpente?

— É como chamamos Vasili Taleniekov, um nome que sei que não esqueceu. Repito, não sei qual é seu problema, mas conheço uma mentira, e que mentira macabra, quando a ouço. — Symonds limpou a garganta de novo. — Alguns de nós lembram-se de Berlim Oriental. E eu estava aqui quando você voltou de Praga. Que ousadia ... depois de tudo que você fez! Filhos da puta!

Scofield respirou fundo.

— Roger, não vá para casa.

— Sim, você disse isso antes. — Symonds estava aliviado por voltar a coisas práticas, sua voz o dizia. — Há alguém lá, dizendo ser minha esposa?

— Provavelmente não está dentro da casa, mas perto e com boa visibilidade. Colocaram escuta em seu telefone e o equipamento é bom, não há ecos nem estática.

— Meu telefone? Estão me vigiando? Em Londres?

— Estão cobrindo você, mas sou eu que eles querem. Sabiam que somos amigos e pensaram que eu entraria em contato com você.

— Ousadia dos diabos! Vai cair um raio em cima da Embaixada que vai queimar as asas douradas daquela puta daquela águia ridícula! Foram longe demais!

— Não são os americanos.

— Não são... Bray, que diabo está dizendo?

— É isso mesmo. Precisamos conversar. Mas tem de ser uma rota bem complexa. Duas redes estão atrás de mim e uma delas está com você embaixo da redoma. São bons no negócio.

— Veremos — disse Symonds bruscamente, irritado, desafiado e curioso. — Aposto que vários veículos, uma ou duas iscas e um bocado de mentiras oficiais resolvem o problema. Onde você está?

— Soho. Wardour e Shaftsbury.

— Ótimo. Encaminhe-se para Tottenham Court. Dentro de aproximadamente vinte minutos, um Mini cinzento, com a placa de trás torta, entrará do lado Sul, vindo de Oxford, e afogará o motor no meio-fio. O motorista é preto, um camarada das Antilhas. É seu contato. Entre ao lado dele; o motor vai recuperar-se miraculosamente.

— Obrigado, Roger.

— De nada. Mas não conte com as duas mil. Os bancos estão fechados, você sabe.

 

Scofield entrou no Mini. O motorista negro examinou-o com cuidado e cortesia, a mão direita escondida. Obviamente, haviam lhe dado uma fotografia para estudar. Bray tirou o chapéu irlandês.

— Obrigado — disse o motorista e a mão apareceu no bolso da jaqueta e logo após na direção. O motor pegou imediatamente e saíram rápido de Tottenham Court. — Meu nome é Israel. E você é Brandon Scofield, claro. Prazer em conhecê-lo.

— Israel? -— perguntou.

— É isso aí, cara — replicou o motorista, sorrindo, falando cantado como todos os antilhanos. — Acho que meus pais não tinham em mente a necessidade de coesão das minorias quando escolheram esse nome, mas eram ávidos leitores da Bíblia. Israel Isles.

— É um nome bonito.

— Minha esposa acha que cometeram grave erro. Vive me dizendo que se tivessem me chamado Ishmael todas as minhas apresentações seriam inesquecíveis.

— “Chame-me Ishmael”... — Bray riu. — É bem parecido.

— Toda essa brincadeira encobre um pouco do nervosismo da minha parte, se me permite dizer — disse Isles.

— Por quê?

— Estudamos muitas proezas suas no treinamento. Não foi há muito tempo. Estou dirigindo para um homem que nós todos gostaríamos de imitar.

Os vestígios do riso desapareceram do rosto de Scofield.

— É muito elogioso. Tenho certeza de que o farão se realmente quiserem.

“E, quando chegar à minha idade, espero que pense que valeu a pena.”

Rumaram para o Sul, saindo de Londres, na estrada que levava a Heathrow, deixando a auto-estrada em Redhill e tomando o rumo Oeste pelos campos. Israel Isles era perspicaz bastante para encurtar os gracejos. Aparentemente, compreendeu que estava dirigindo para um americano muito preocupado ou muito exausto. Bray ficou grato pelo silêncio; tinha de tomar uma decisão difícil, e os riscos eram enormes, não importa o que decidisse.

Entretanto, parte dessa decisão já lhe tinha sido forçada — tinha de dizer a Symonds que Washington não era o problema imediato. Não podia permitir que Roger deixasse desabar sua afronta sobre a Embaixada Americana. Não fora ela que colocara escuta em seu telefone. Fora o Matarese.

Mas se dissesse toda a verdade envolveria Symonds, que não ficaria calado. Iria a outros, e esses outros aos superiores. Não era a hora de falar de uma conspiração tão maciça e contraditória que seria classificada como o produto de dois agentes secretos desempregados, ambos acusados de traição por seus respectivos países. Chegaria a hora, mas não era agora. Pois a verdade é que não possuíam uma sombra de prova. Tudo que sabiam poderia facilmente ser tido como as divagações paranóicas de lunáticos e traidores. Na superfície, a lógica estava com os inimigos. Por que iriam os dirigentes de corporações gigantescas, conglomerados que dependiam de estabilidade, financiar o caos?

Caos. Matéria informe, corpos colidindo no espaço...

— Mais alguns minutos e chegaremos ao nosso primeiro destino — disse Israel Isles.

— Primeiro destino?

— Sim, a viagem é em duas etapas. Mudamos de veículo logo adiante. Este volta para Londres, com um motorista preto e um passageiro branco. Nós continuamos em outro carro, bem diferente. A próxima etapa dura menos de um quarto de hora. O Sr. Symonds talvez se atrase um pouco, teve de mudar de veículos quatro vezes em garagens da cidade.

— Entendo — disse Scofield, aliviado.

O antilhano acabara de fornecer a resposta que Bray buscava. O encontro com Symonds era por etapas, então sua explicação também seria por etapas. Dir-lhe-ia parte da verdade, mas nada que comprometesse o ministro do Exterior, David Waverly. No entanto, era preciso dar informações a Waverly em bases extremamente confidenciais. Decisões de política exterior poderiam ser afetadas nela notícia de que enormes mudanças de capital estavam sendo manipuladas secretamente. Era essa a informação que Scofield descobrira e estava investigando: enormes mudanças de capital. Embora todas as manobras econômicas clandestinas fossem submetidas a exame pelo serviço secreto, essas iam além dos MI-5 e 6, assim como se sobrepunham aos interesses do FBI e da CIA. x Em Washington, havia aqueles que queriam evitar que ele revelasse o que sabia, mas não podia provar. A melhor maneira de alcançar esse objetivo era desacreditá-lo — matá-lo, se preciso fosse. Symonds compreenderia. Os homens matam facilmente por dinheiro, ninguém sabia disso melhor que os agentes secretos. Freqüentemente, era o alicerce de suas... proezas.

Isles diminuiu a marcha e entrou no acostamento. Deu meia-volta, pondo o carro na direção em que tinham vindo.

Dentro de trinta segundos, outro carro, maior, aproximou-se. Vinha seguindo-os a uma distância discreta há algum tempo. Bray sabia o que esperavam dele. Saltou e o antilhano também. O Bentley parou, um motorista branco abriu a porta de trás para um companheiro preto. Ninguém disse nada enquanto a troca era feita, e ambos os carros tinham agora motoristas pretos.

— Posso lhe fazer uma pergunta? — disse Israel Isles, hesitante.

— Claro.

— Fiz todo o treinamento, mas nunca tive de matar um homem. Isso às vezes me preocupa. Como é que a gente se sente?

Scofield olhou as sombras deslizando pela janela. “É como transpor o portal de um lugar onde você nunca esteve antes. Espero que nunca tenha de entrar lá; é habitado por milhares de olhos, alguns raivosos, outros amedrontados, a maioria suplicante... todos pensando: Por que eu, agora?”

— Não ocorre com muita freqüência — disse Bray. — Você nunca tira uma vida, a não ser que seja absolutamente necessário, sabendo que, se tiver de fazê-lo, está salvando muitas mais. É essa a justificativa, a única que pode haver. Afaste a idéia da cabeça, tranque-a atrás de uma porta em algum compartimento secreto.

— Acho que compreendo. A justificativa está na necessidade. É preciso aceitar isso, não é?

— Certo. Necessidade.

“Até ficar mais velho e a porta abrir-se cada vez com mais freqüência. Finalmente, não se fecha mais e você fica lá, olhando para dentro.”

 

Dirigiram-se ao estacionamento deserto de uma área de piquenique nos campos de Guildford. Além da cerca de madeira, havia balanços e gangorras delineados pela claridade do luar. Daí a poucas semanas, chegaria a primavera e o play-ground se encheria de gritos e risadas infantis. Agora ecoava o rugido de motores poderosos e o som controlado de homens conversando.

Um carro os esperava, mas Roger Symonds não estava nele. Era esperado a qualquer momento. Dois homens chegaram na frente para verificar se não havia ninguém mais na área de piquenique e nenhum interceptador nos telefones considerados estéreis.

— Olá, Brandon — disse um homem baixo, atarracado, com um sobretudo volumoso, estendendo a mão.

— Como vai você?

Scofield não se lembrava do nome do agente, mas reconheceu o rosto e o cabelo vermelho. Era um dos melhores homens do MI-6. As Operações Consulares o requisitaram, com a permissão dos ingleses, quando o círculo de espionagem Moscou-Paris-Cuba estava operando dentro da Câmara dos Deputados. Bray ficou bem impressionado ao vê-lo; Symonds estava usando o primeiro time.

— Uns oito ou dez anos, não é?

— No mínimo — concordou Scofield. — Como tem passado?

— Ainda estou por aí. Vou me aposentar em breve. Estou ansioso por isso.

— Aproveite bem.

O inglês hesitou, depois falou com embaraço.

— Nunca mais o vi depois daquele incidente horrível em Berlim Oriental. Não que fosse seu amigo íntimo, mas sabe como é... Meus pêsames atrasados, cara. Uma lástima. São uns filhos da puta.

— Obrigado. Já foi há muito tempo.

— Não tanto tempo assim — disse o homem do MI-6. — Foi minha fonte de informações em Moscou que falou aquela sujeira de você e a Serpente. Beowulf e a Serpente! Meu Deus, como é que aqueles veados em Washington engoliram isso?

— É complicado.

Viu os faróis primeiro, depois ouviu o motor. Um táxi londrino entrou no estacionamento. O motorista, porém, não era um motorista de táxi londrino, era Roger Symonds.

O oficial do MI-6, um homem de meia-idade, saltou do carro, e por um segundo ou dois piscou e espreguiçou-se, como para adaptar-se ao ambiente. Bray o observou, notando que Roger não mudara desde que se conheceram. O inglês ainda tinha uma tendência para engordar e o cabelo castanho despenteado continuava rebelde. Esse profissional veterano tinha uma aura de desorganização que servia de máscara a uma mente analítica de primeira qualidade. Não era um homem fácil de enganar, com parte da verdade ou nenhuma.

— Bray, como vai você? — disse Symonds, estendendo a mão. — Não responda, pelo amor de Deus, acabaremos por chegar lá. Vou lhe dizer uma coisa, esses carros não são nada fáceis de dirigir. Estou me sentindo como se tivesse tomado parte num dos piores jogos de futebol de Liverpool. Vou ser muito mais generoso com motoristas de táxi de hoje em diante. — Roger olhou em volta, acenando com a cabeça para seus homens, e notou a abertura na cerca que dava para o play-ground. — Vamos caminhar um pouco. Se comportar-se bem, talvez empurre o balanço para você.

 

O inglês ouviu em silêncio, encostado na barra de ferro que suportava o balanço, enquanto Bray estava sentado no assento e contava sua história sobre enormes transferências de fundos. Quando Scofield terminou, Symonds desencostou-se da barra, foi para trás de Bray e empurrou-o entre as omoplatas.

— O empurrão que prometi, embora você não mereça, não foi um bom rapaz.

— Por que não?

— Não está me contando o que devia e suas táticas me perturbam.

— Entendo. Não compreende por que estou lhe pedindo para não usar meu nome com Waverly?

— Não, não, isso está bem. Ele lida com Washington todos os dias. Não gostaria que constasse dos registros do Ministério do Exterior que concedera uma audiência extra-oficial a um agente secreto americano aposentado. Compreende, não há realmente defecções entre nós dois. Assumo essa responsabilidade, se for preciso.

— Então, o que está incomodando você?

— As pessoas que estão em seu encalço. Grosvenor não, é claro, mas os outros. Você não foi sincero. Disse que eram bons, mas não disse quanto. Ou qual era a extensão de seus recursos.

— Que quer dizer com isso?

— Consultamos seu dossiê e escolhemos três nomes que você conhece, chamamos os três dizendo que quem estava falando era seu intermediário, que fossem a um determinado lugar. Todas as três chamadas foram interceptadas e os três foram seguidos.

— Por que isso o surpreende? Eu lhe disse isso.

— O que me espanta é que só nós conhecíamos um desses nomes, nem MI-5, nem o serviço secreto, nem o Almirantado. Só nós.

— Quem era?

— Grimes.

— Nunca ouvi falar dele — disse Bray.

— Só o encontrou uma vez, em Praga, sob o nome de Brazuk.

— KGB — disse Scofield, espantado. — Defecção de 72. Entreguei-o a você. Não queria nada conosco e não valia a pena desperdiçá-lo.

— Mas só você sabia disso, não disse nada ao seu pessoal e, francamente, nós no 6 ficamos com o crédito pela compra.

— Alguém está soltando informações, então.

— Impossível — replicou Symonds. — Pelo menos com respeito às circunstâncias atuais, conforme você as descreveu.

— Por quê?

— Você disse que descobriu esse jogo financeiro mundial há pouco tempo. Vamos ser generosos e dizer alguns meses, concorda?

— Sim.

— E desde então aqueles que o querem silenciar têm estado em grande atividade, correto? — Bray concordou com a cabeça. O homem do MI-6 inclinou-se para a frente, com a mão na corrente acima da cabeça de Scofield. — Desde o dia em que assumi este posto, há dois anos e meio, a pasta de Beowulf Agate está no meu cofre particular. Só pode ser retirada com duas assinaturas, e uma delas é a minha. Não foi removida, e é a única pasta em toda a Inglaterra que contém qualquer referência à conexão entre você e a defecção de Grimes-Brazuk.

— Que está tentando dizer?

— Só há outro lugar onde essa informação pudesse ser encontrada.

— Explique-se.

— Moscou — Symonds disse lentamente.

Bray sacudiu a cabeça.

— Isso seria presumir que Moscou conhece a identidade de Grimes.

— Perfeitamente possível. Brazuk foi um fracasso, como alguns dos que você comprou. Não queremos ficar com ele, mas não podemos devolvê-lo. É um alcoólatra, já de muitos anos. Sua posição na KGB era um enfeite, uma dívida paga a um ex-soldado corajoso. Suspeitamos que ele tenha destruído sua cobertura há bastante tempo. Ninguém dava a menor importância, até você aparecer. Quem são esses caras atrás de você?

— Parece que não lhe fiz nenhum favor quando lhe dei Bra­zuk — disse Scofield, evitando o olhar do homem do_MI-6.

— Você não sabia e nós também não. Quem são eles, Bray?

— Homens que têm contatos em Moscou. Obviamente. Como nós.

— Então tenho de lhe fazer uma pergunta — continuou Symonds. — Uma que seria inconcebível algumas horas atrás. É verdade o que Washington pensa? Você está trabalhando com a Serpente?

Scofield olhou para o inglês.

— Sim.

Com toda a calma, Symonds soltou a corrente e empertigou-se.

— Acho que poderia matá-lo por isso — disse. — Por Deus do céu, por quê?

— Se é questão de você me matar caso eu não lhe conte, não tenho escolha, não é mesmo?

— Há outra solução: prendo você e o entrego a Grosvenor Square.

— Não faça isso, Roger, e não me peça para lhe dizer nada agora. Mais tarde, sim. Agora não.

— Por que iria concordar?

— Porque me conhece, não posso arranjar outra razão.

Symonds virou-se de costas. Nenhum dos dois falou por alguns momentos. Finalmente o inglês virou-se de frente para Bray.

— Uma frase tão simples. “Você me conhece.” Será que conheço?

— Não teria procurado você se não acreditasse nisso. Não peço a estranhos que arrisquem a vida por mim. Repito o que disse antes, não vá para casa. Você é um homem marcado... como eu. Se você cobriu seus movimentos, tudo bem. Se descobrirem que você se encontrou comigo, é um homem morto.

— Neste momento, estou assistindo a uma sessão de emergência no Almirantado. Telefonaram para meu escritório e minha casa ordenando minha presença.

— Ótimo. Já esperava isso de você.

— Merda, Scofield! Você sempre teve esse dom. Você aperta c cara até ele não agüentar mais! Sim, conheço você e vou fazer o que pediu... durante algum tempo, mas não é por causa de seu senso de dramaticidade, isso não me impressiona. Outra coisa, sim. Disse que podia matá-lo por trabalhar com Taleniekov. Acho que poderia, mas desconfio de que você se mata a si mesmo um pouquinho, cada vez que olha para ele. Isso me basta.

 

Bray desceu os degraus da pensão e foi ao encontro do sol da manhã e dos grupos que faziam compras em Knightsbridge. Era uma área de Londres muito apropriada para quem não queria ser visto. De nove da manhã em diante, as ruas estavam congestionadas. Parou num jornaleiro, passou a pasta para a mão esquerda, pegou The Times e entrou num pequeno restaurante, onde escolheu uma cadeira da qual descortinava a entrada, satisfeito de ver um telefone público na parede bem perto dele. Era um quarto para as dez; tinha de telefonar para Roger Symonds exatamente às 10hl5min no número estéril em que não se podia colocar escuta.

Pediu o desjejum a uma garçonete lacônica e abriu o jornal. Encontrou o que procurava numa coluna singela no topo da primeira página, à esquerda.

 

Herdeira dos Verachten Morta

 

Essen. Odile Verachten, filha de Walther, neta de Ansel Verachten, fundador das Fábricas Verachten, foi encontrada morta em sua cobertura na Werden Strasse ontem à noite, vítima, aparentemente, de uma trombose coronária maciça. Durante quase dez anos, Frãulein Verachten assumiu as rédeas da direção das companhias diversificadas sob orientação de seu pai, que se afastou da participação ativa nos últimos anos. Seus pais, recolhidos a sua propriedade em Stadtwald, não foram encontrados para fazer uma declaração. O enterro, restrito à família, terá lugar nas terras da propriedade. Aguarda-se em breve uma declaração da corporação, mas não de Walther Verachten, cujo estado consta ser grave.

Odile Verachten era uma atração dramática nas mesas de conferência das diretorias desta cidade de executivos frios e eficientes. Era uma criatura volúvel e, quando mais jovem, dada a demonstrações de exibicionismo contrárias ao comportamento dos líderes industriais de Essen. Mas ninguém duvidava de sua capacidade de dirigir os vastos empreendimentos Verachten.

 

Scofield passou rapidamente os olhos pela biografia hiperbólica que servia de obituário àquela puta mimada e voluntariosa que, sem dúvida, abrira as pernas com a mesma freqüência e menos delicadeza que uma prostituta do Soho.

Havia outro artigo diretamente abaixo. Bray começou a ler e sentiu instintivamente que se revelava mais um fragmento da verdade.

 

Morte de Verachten Afeta Trans-Comm

Nova York, N. Y. Wall Street foi tomada de surpresa ao saber hoje que uma equipe de consultores da diretoria da Trans-Communications, Inc. voava para Essen, na Ale­manha, a fim de conferenciar com os executivos das Fá­bricas Verachten. A morte intempestiva de Fraulein Odile Verachten aos 47 anos e a reclusão quase total de seu pai, Walther, aos 76, deixaram as companhias Verachten sem direção. O que espantou fontes supostamente bem-infor-madas aqui foi a extensão da participação da Trans-Comm no complexo Verachten. Nos labirintos legais de Essen, os investimentos americanos nem sempre podem ser inves­tigados, mas raramente a participação americana excede a vinte por cento. Persistem boatos de que a participação da Trans-Comm é de mais de cinqüenta por cento, embora a sede do conglomerado em Boston tenha declarado tais boatos absurdos...

 

As palavras saltaram aos olhos de Scofield. A sede do conglomerado em Boston...

Seriam dois fragmentos em vez de um que estavam sendo revelados? Joshua Appleton IV era o senador de Massachusetts, a família Appleton a entidade política mais poderosa no Estado. Eram o equivalente episcopal dos Kennedy, muito mais discretos, mas com a mesma influência no cenário nacional, o que também significava o serem no cenário financeiro internacional.

Seria possível que um estudo retrospectivo dos Appleton revelasse ligações, encobertas ou não, com a Trans-Communications? Era uma coisa a pensar.

O telefone na parede atrás dele tocou. Olhou o relógio. Eram oito e dez. Mais sete minutos e chamaria Symonds na sede do MI-6. Olhou para o telefone e ficou irritado ao ver a garçonete fazendo caretas no bocal, os lábios formando uma exclamação. Rezou para que a conversa não demorasse muito.

— Sr. Hagate? Tem um Sr. B. Hagate aqui? — berrou ela, mal-humorada.

Bray gelou. B. Hagate aqui?

Agate, B.

Beowulf Agate.

Seria algum jogo louco de Symonds? Será que o inglês tinha decidido provar a superioridade das técnicas de investigação do serviço secreto britânico? Seria ele tão egoísta assim?

Deus, que idiota!

Scofield pôs-se de pé, procurando não atrair a atenção, segurando sua pasta. Foi até o telefone e falou.

— O que é?

— Bom dia, Beowulf Agate — disse uma voz de homem enunciando as vogais bem redondas e as consoantes tão agudas que pareciam ter sido feitas em Oxford. — Esperamos que tenha descansado de sua árdua viagem de Roma.

— Quem está falando?

— Meu nome não importa, não me conhece. Queremos apenas que compreenda. Encontramos você. Podemos encontrá-lo onde quer que esteja, mas isso tudo é muito maçante. Achamos que seria muito melhor para todos se nos encontrássemos e discutíssemos nossas diferenças. Talvez descubra que não são tão grandes, afinal.

— Não me sinto confortável com pessoas que tentaram me matar.

— Devo corrigi-lo. Alguns tentaram matá-lo; outros tentaram salvá-lo.

— Para quê? Uma sessão de terapia química? Para descobrir o que aprendi, o que fiz?

— O que aprendeu não importa e não pode fazer nada. Sabe o que lhe espera se for apanhado por seu próprio pessoal. Não haverá julgamento, nem audiência, você é perigoso demais para muita gente. Colaborou com o inimigo, matou um rapaz que seus superiores acreditam que era um colega do serviço secreto no Rock Creek Park e fugiu do país. Você é um traidor; será executado na primeira oportunidade. Ainda duvida, depois dos acontecimentos na Avenida Nebraska? Nós podemos executá-lo no momento em que pisar fora desse restaurante. Ou antes mesmo de sair.

Bray olhou em volta, estudando as fisionomias, buscando o inevitável par de olhos, um olhar lançado por detrás de um jornal ou por cima da beira de uma xícara de café. Havia vários candidatos, não podia ter certeza. E não havia dúvida de que havia assassinos escondidos na multidão lá fora. Não havia saída. Seu relógio dizia dez e onze. Mais quatro minutos e telefonaria para Symonds na linha estéril. Mas estava lidando com profissionais. Se desligasse e discasse o número, haveria talvez alguém numa das mesas, inocentemente levando o garfo à boca ou bebendo café, que sacaria uma arma poderosa o bastante para estourá-lo na parede? Ou seria que os do lado de dentro eram apenas armas de aluguel e não estavam dispostos a fazer o sacrifício que o Matarese exigia de sua elite? Tinha de ganhar tempo e correr o risco, observando as mesas a cada segundo, preparando-se para aquele instante de fuga súbita e o possível sacrifício de pessoas inocentes.

— Você quer um encontro, eu quero uma garantia de que sairei daqui.

— Você a tem.

— Não basta que o diga. Identifique um de seus homens aqui dentro.

— Vamos considerar o seguinte, Beowulf. Podemos detê-lo aí, chamar a Embaixada Americana, e num piscar de olhos eles o pegariam. Mesmo que conseguisse escapar deles, estaríamos à sua espera no círculo da periferia, por assim dizer.

Seu relógio dizia agora doze minutos depois das dez. Três minutos.

— Então é claro que não está muito ansioso para se encontrar comigo.

Scofield ficou à escuta, totalmente concentrado. Tinha quase certeza de que o homem no telefone era um mensageiro. Alguém mais acima queria Beowulf Agate, mas não morto.

— Eu disse que achávamos melhor para todos...

— Descreva uma cara — interrompeu Bray. A voz era de um mensageiro. — Senão chame a merda da Embaixada. Eu me arrisco. Agora.

—_Muito bem — a resposta veio rápida. — Há um homem de faces encovadas e sobretudo cinzento...

— Já o vi. — Bray realmente vira, a umas cinco mesas de onde estava.

— Saia do restaurante; ele o seguirá. Ele será sua garantia. Dez e quinze. Dois minutos.

— E que garantia tem ele? Como vou saber que você não vai nos pegar, os dois?

— Ora, vamos. Scofield...

— Estou satisfeito de ver que você tem outro nome para mim. Qual é o seu nome?

— Já disse, não importa.

— Tudo importa. — Bray fez uma pausa. — Quero saber seu nome.

— Smith. Aceite isso.

Dez e quatorze. Um minuto. Hora de começar.

— Vou ter de pensar e também quero terminar meu café.

Desligou abruptamente, passou a pasta para a mão direita e encaminhou-se na direção do homem comum sentado a cinco mesas de distância.

O homem empertigou-se quando Scofield se aproximou, e meteu a mão no sobretudo.

— O alerta foi cancelado — disse Scofield, tocando a mão escondida debaixo da fazenda do casaco. — Mandaram que lhe dissesse isso e que me levasse daqui. Mas primeiro tenho de dar um telefonema. Ele me deu o número. Espero que não tenha esquecido.

O assassino de faces encovadas ficou imóvel, sem fala. Scofield voltou ao telefone na parede.

Dez horas, quinze minutos e cinqüenta e um segundos. Nove segundos mais. Franziu a testa, como se procurasse lembrar-se de um número, pegou o fone e discou. Três segundos depois de 10h 15min, ouviu o eco que se segue ao silêncio da campainha; os dispositivos eletrônicos foram ativados. Inseriu a ficha.

— Tenho de falar depressa — disse a Roger Symonds. — Eles me encontraram. Tenho um problema.

— Onde está? Nós ajudaremos.

Scofield disse-lhe e continuou:

— Mande duas sirenas, da polícia comum mesmo serve. Diga que é um incidente provocado por irlandeses, os provocadores estão dentro. Só preciso isso.

— Estou tomando nota. Estão a caminho.

— E Waverly?

— Amanhã à noite em sua casa, em Belgravia. Vou acompanhá-lo, naturalmente.

— Não pode ser antes?

— Antes? Homem dos céus, a única razão de ser tão cedo é que consegui um memorando em branco do Almirantado. Daquela mesma conferência inexistente a que compareci ontem à noite. — Bray ia falar, mas Symonds continuou. — E olhe, você tinha razão. Investigaram para saber se eu estava lá.

— Você estava bem coberto?

— Disseram à pessoa que chamou que não podiam interromper a conferência, que me dariam o recado quando terminasse.

— E você telefonou para o número do recado?

— Sim. Dos porões do Almirantado, uma hora e dez minutos depois de deixar você. Acordei um pobre-diabo em Kensington. Um interceptador, é claro.

— Então, se você voltou lá, foi visto saindo do prédio do Almirantado?

— Pela entrada principal, muito bem-iluminada.

— Ótimo. Não usou meu nome com Waverly, usou?

— Usei um nome, mas não o seu. Se sua conversa não for muito bem-sucedida, vou ouvir uma descompostura por isso.

Um fato óbvio ocorreu repentinamente a Bray. A estratégia de Roger havia dado resultado. O Matarese o encurralara dentro do restaurante em Knightsbridge, entretanto Waverly lhe concedera uma entrevista confidencial daí a trinta e seis horas. Portanto, não houvera nenhuma conexão entre a entrevista em Belgravia e Beowulf Agate.

— Roger, a que horas amanhã à noite?

— Por volta das oito. Tenho de telefonar primeiro. Pegarei você perto das sete. Tem alguma idéia de onde estará?

Scofield esquivou-se da pergunta.

— Telefonarei para você nesse número às quatro e trinta. Assim está bem?

— Pelo que eu saiba. Se não estiver aqui, deixe um endereço dois quarteirões ao Norte de onde estará e eu o encontrarei.

— Vai trazer as fotografias de todos os que seguiram suas iscas ontem?

— Devem estar em minha mesa ao meio-dia.

— Ótimo. E mais uma coisa: invente uma razão muito boa, muito oficial, para não me levar a Belgravia Square amanhã à noite.

— O quê?

— É o que dirá a Waverly quando lhe telefonar logo antes de nosso encontro. É uma decisão do serviço secreto. Você mesmo vai pegá-lo e levá-lo ao MI-6.

— MI-6?

— Mas não o levará lá, vai levá-lo para o Connaught. Dou o número do quarto às quatro e meia. Se você não estiver, deixarei recado. Subtraia vinte e dois do número que eu deixar.

— Olhe aqui, Brandon, você está pedindo demais!

— Isso você não sabe. Posso estar pedindo para salvar a vida dele. E a sua. — À distância, lá do lado de fora, Bray ouviu as duas notas das sirenas de Londres, agudas e penetrantes. — O reforço está chegando — disse Scofield. — Obrigado. — Desligou e voltou ao assassino Matarese de faces encovadas.

— Com quem estava falando? — perguntou o homem, com sotaque americano.

As sirenas aproximavam-se e ele parecia escutá-las.

— Não me deu seu nome — replicou Bray. — Mas deu-me instruções. Temos de sair daqui depressa.

— Por quê?

 

— Aconteceu alguma coisa. A polícia descobriu um rifle num de seus carros e o apreendeu. Tem havido muita atividade do IRA nas lojas por aqui. Vamos!

O homem saiu da cadeira, acenando para a direita. Do outro lado do restaurante cheio, Scofield viu uma mulher de meia-idade, com uma cara austera, levantar-se, reconhecer o comando colocando a alça de uma grande bolsa no ombro e encaminhar-se para a porta.

Bray chegou perto do caixa, contemporizando, atrapalhado com o dinheiro e a nota, e observando a cena do outro lado da janela. Dois carros de polícia convergiram, os pneus chiando, e pararam ao meio-fio. Um grupo de pedestres curiosos amontoou-se e logo se dispersou, assustado com quatro policiais de capacete que pularam de um dos veículos e caminharam para o restaurante.

Bray calculou a distância e agiu rápido. Chegou à porta de vidro e abriu-a alguns segundos antes de a polícia bloqueá-la. O homem de faces encovadas e a mulher de meia-idade estavam nos seus calcanhares e na última hora desviaram-se para evitar uma confrontação com a polícia.

Scofield virou-se de repente e lançou-se para a direita, segurando a pasta debaixo do braço e agarrando seus ex-futuros companheiros pelos ombros.

— São estes aqui! — berrou. — Veja se estão armados! Ouvi-os dizerem que iam jogar bombas em Scotch House!

A polícia caiu em cima dos dois Matarese, golpeando com braços, mãos e cassetetes. Bray caiu de joelhos, soltando os dois, e desviou-se para a esquerda, fora do caminho. Pôs-se de pé, embarafustou-se pela multidão e correu para a rua, esgueirando-se por entre os carros. Continuou correndo por três quarteirões, parando rapidamente debaixo de toldos e fachadas de lojas para ver se alguém o seguia. Não viu ninguém. Dois minutos mais tarde, diminuiu o passo e transpôs os enormes portais bronzeados de Harrods.

Uma vez lá dentro, acelerou o passo o máximo possível sem chamar a atenção, procurando um telefone. Precisava encontrar Taleniekov no apartamento da Rue de Bac antes que o russo partisse para Cap Gris. Era imperativo, pois quando Taleniekov chegasse à Inglaterra iria para Londres, uma pensão barata em Knightsbridge. Se o homem da KGB fizesse isso, seria apanhado pelo Matarese.

—_Atravesse a farmácia e vá para a entrada do Sul — disse um funcionário imperturbável. — Há uma fileira de telefones na parede.

O volume de telefonemas de manhã era muito leve. Sua chamada foi feita sem demora.

— Ia sair dentro de alguns minutos — disse Taleniekov, com certa hesitação.

— Graças a Deus que não saiu ainda. Que há com você?

— Nada. Por quê?

— Há algo de estranho em sua voz. Onde está Antonia? Por que ela não atendeu o telefone?

— Ela foi ao mercado e não demora. Se você me estranhou, é porque não gosto de atender a este telefone. — A voz do russo estava normal agora, e sua explicação parecia lógica. — Que há com você? Por que essa chamada que não estava programada?

— Conto quando chegar aqui, mas não vá para Knightsbridge.

— Onde você estará?

Scofield ia mencionar o Connaught quando Taleniekov interrompeu.

— Pensando bem, quando eu chegar a Londres telefonarei para Tower Central. Você se lembra do lugar, não?

Tower Central? Bray não ouvia esse nome há anos, mas lembrava-se dele. Era o código para um ponto de encontro da KGB no Victoria Embankment, abandonado quando foi descoberto pelas Operações Consulares no fim dos anos sessenta. Os barcos turísticos que passeavam pelo rio Tâmisa, era isso.

— Lembro — disse Scofield, confuso. — Responderei.

— Então irei...

— Espere um minuto — interrompeu Bray. — Diga a Antonia que ligarei daqui a pouco.

Houve uma pausa antes de Taleniekov responder.

— Bem, ela disse que talvez fosse ao Louvre, fica tão perto. Posso chegar ao distrito de Cap Gris em uma hora e pouco. Não há nada, repito, nada para você ficar preocupado.

Houve um estalido e a linha ficou muda. O russo havia desligado.

 

“Não há nada, repito, nada para você ficar preocupado.” As palavras estalaram como sons explosivos de um trovão bem próximo. Seus olhos estavam cegos pelos relâmpagos que levavam a mensagem ao seu cérebro. Havia com que se preocupar e dizia respeito a Antonia Gravet.

“Bem, ela disse que talvez fosse ao Louvre... Posso chegar ao distrito de Cap Gris em uma hora e pouco... Nada para ficar preocupado.”

Três declarações distintas, precedidas por uma interrupção que proibia que fosse revelado o ponto de contato em Londres. Scofield procurou analisar a seqüência. Se é que havia algum significado, estava na progressão. O Louvre estava a apenas alguns quarteirões da Rue de Bac, do outro lado do Sena, mas perto. O distrito de Cap Gris não podia ser alcançado em uma hora e pouco, duas e meia ou três seria o normal. “Nada, repito, nada com que se preocupar...” Então, por que a interrupção? Por que teria sido necessário evitar mencionar o Victoria Embankment?

Seqüência. Progressão. Voltar atrás?

“Não gosto de atender a este telefone.”

Palavras pronunciadas com firmeza, quase com raiva. Era isso! De repente, Bray entendeu, e o alívio que sentiu foi como se tivessem jogado água fria em seu corpo encharcado de suor. Taleniekov vira algo de errado... um rosto na rua, um encontro casual com um ex-colega, um carro que estacionara por muito tempo na Rue de Bac, qualquer incidente ou observação sua que o abalara. O russo decidira tirar Toni da Rive Gaúche e levá-la para o outro lado do rio, para outro apartamento. Ela estaria instalada em uma hora e pouco e ele não partiria enquanto ela não estivesse bem. Por isso é que não havia razão para se preocupar. Apesar de tudo, considerando o incidente ou a observação que fizera, o homem da KGB estava operando com a máxima cautela. Cautela, sempre cautela, era seu melhor escudo. E o telefone era um instrumento revelador.

Seqüência, progressão... significado. Seria isso? A Serpente matara sua esposa. Será que procurava consolo onde não existia? O russo fora o primeiro a sugerir a eliminação da moça das colinas de Porto Vecchio... o amor que entrara em sua vida no momento mais inoportuno. Poderia ele?...

Não! As coisas tinham mudado! Não havia mais um Beowulf Agate para ser esticado até arrebentar, pois esse ponto de arrebentar garantiria a morte da Serpente e o fim da caçada ao Matarese. Os melhores profissionais não matam sem necessidade.

Assim mesmo, pensou ao pegar no fone na entrada do Sul de Harrods, que era a necessidade senão um homem convencido do que era necessário? Afastou o pensamento; precisava achar um refúgio.

 

O Hotel Connaught de Londres, conservador, não só possuía uma das melhores cozinhas da cidade como era uma escolha ideal para quem procurasse um esconderijo rápido, desde que não aparecesse no saguão e experimentasse as iguarias encomendando as refeições no quarto. Era simplesmente impossível arranjar um quarto no Connaught a não ser fazendo reserva com semanas de antecedência. O elegante hotel em Carlos Place era um dos últimos bastiões do Império, servindo quase exclusivamente aqueles que lamentavam sua extinção e possuíam fortuna para fazê-lo com distinção. O número de pessoas nessa categoria era bastante grande para manter o hotel sempre cheio. O Connaught quase nunca tinha um quarto vazio.

Scofield sabia disso, e anos atrás decidira que poderia haver ocasiões em que a exclusividade do Connaught seria muito útil. Entrara em contato e cultivara um diretor do grupo financeiro a quem pertencia o hotel e fizera seu apelo. Assim como todos os teatros têm o que chamam de “poltronas da casa”, e quase todos os restaurantes têm sempre mesas “reservadas” para os fregueses de alta posição, os hotéis também guardam alguns quartos vazios para o mesmo fim. Bray era convincente. Trabalhava do lado dos anjos, o lado tóri. Um quarto estaria à sua disposição quando precisasse. —

— Quarto seiscentos e vinte e seis — disse o diretor, quando Scofield telefonou pela segunda vez, para confirmar. — Suba diretamente no elevador, como sempre. Pode assinar o cartão de registro em seu quarto... como sempre.

Bray agradeceu e passou a pensar em outro problema, um que era bastante irritante. Não podia voltar à pensão que distava vários quarteirões, e todas as suas roupas, exceto as que vestia, haviam ficado lá. Numa sacola de lona em cima da cama desfeita. Não havia mais nada importante: o dinheiro, assim como algumas dezenas de papéis de carta com cabeçalhos diferentes, passaportes e livros de cheques, estavam em sua pasta. Mas, fora as calças amarrotadas, a jaqueta barata e o chapéu irlandês, não tinha nada para vestir. E as roupas não serviam apenas para encobrir o corpo, eram de alto valor para o trabalho, e tinham de combinar com o tipo de trabalho. Eram como instrumentos, mais eficazes que as armas e a palavra falada. Largou a fileira de telefones e voltou aos balcões da loja. Levaria uma hora escolhendo as compras, e isso era ótimo. Faria com que se esquecesse de Paris. E do amor inoportuno de sua vida.

 

Passava um pouco da meia-noite quando Scofield saiu de seu quarto no Connaught, embrulhado numa capa de chuva escura, com chapéu preto de aba estreita. Tomou o elevador de serviço até o porão do hotel e saiu à rua pela entrada de serviço. Encontrou um táxi e disse ao motorista que o levasse à Ponte de Waterloo. Acomodou-se no assento de trás e fumou um cigarro, procurando controlar sua perturbação, cada vez maior. Perguntou a si mesmo se Taleniekov compreendera a mudança que sucedera, uma mudança tão irracional, tão ilógica, que não sabia como ele mesmo reagiria se fosse o russo. As raízes de sua excelência, sua longa vida de trabalho, foram sempre sua habilidade de pensar como o inimigo, e agora isso lhe era impossível.

“Não sou seu inimigo!”

Taleniekov gritara essa declaração irracional, ilógica, pelo telefone em Washington. Talvez, ilogicamente, estivesse certo. O russo não era amigo, mas não era o inimigo. O inimigo era o Matarese. E de modo louco, tão irracional, fora através do Matarese que encontrara Antonia Gravet. O amor...

Que acontecera!

Forçou a pergunta para fora do consciente. Saberia logo mais, e quando soubesse sentiria sem dúvida o mesmo alívio que sentira em Harrods e que diminuíra por ficar tanto tempo à toa. O telefonema para Roger Symonds, precisamente às 4h30min, havia sido rotina simplesmente. Roger não estava no escritório, deixara recado com a telefonista da sala de segurança. O número, sem explicações, que lhe seria dado era seiscentos e quarenta e oito... menos vinte e.dois... Quarto 621, Connaught.

O táxi deixou Trafalgar Square, subiu o Strand, passou Savoy Court e dirigiu-se para a entrada da Ponte de Waterloo. Bray inclinou-se para a frente. Não havia nenhuma vantagem em andar mais do que era preciso. Cortaria pelas ruas laterais até o Tâmisa e o Victoria Embankment.

—_Aqui está bom — disse ao motorista, estendendo o dinheiro e irritado ao ver que a mão tremia.

Desceu a viela calçada de pedras ao lado do Savoy Hotel e chegou à base da colina. Do outro lado do bulevar largo, bem-iluminado, estava a calçada de cimento e o muro alto de tijolos que faziam frente ao rio Tâmisa. A barcaça Caledonia, totalmente reformada e decorada, alojava um bar, permanentemente atracado, e já estava fechado às 11h pelo regulamento imposto a todos os locais que servem bebidas na Inglaterra; ainda tinha algumas luzes acesas atrás de grossas janelas, provando a presença do batalhão de limpeza que removia as manchas e odores acumulados durante o dia. Meio quilômetro ao Sul, à margem onde as árvores se alinhavam, estavam os rijos e amplos barcos de rio que cruzavam o Tâmisa quase o ano todo, levando turistas à Torre de Londres e de volta à Ponte Lambeth, antes de regressar às águas da Agulha de Cleópatra.

Muitos anos atrás, esses barcos eram conhecidos como Tower Central, pontos de encontro de mensageiros soviéticos e agentes da KGB contactando informantes e pessoal de espionagem de cobertura especial. As Operações Consulares descobriram o local e, com o tempo, os russos souberam. Eliminaram Tower Central e escolheram outro ponto que levaria meses para se descobrir.

Scofield seguiu os caminhos do parque atrás do Savoy. A música do salão de baile flutuava no ar acima dele. Passou por um pequeno anfiteatro rodeado de arquibancadas onde havia alguns casais, conversando baixinho. Bray procurou um homem sozinho, pois estava perto de Tower Central. O russo deveria estar por ali.

Não estava. Scofield saiu do anfiteatro e tomou o caminho mais largo que ia dar no bulevar. Subiu na calçada. O trânsito na rua era pesado, os faróis brilhavam dos dois lados, embaçados pela névoa de inverno que subia da água. Ocorreu a Bray que Taleniekov deveria ter alugado um carro. Olhou para os dois lados da avenida para ver se havia algum carro estacionado num dos lados. Não havia. Do outro lado do bulevar, em frente do Embankment, casais, grupos de três ou quatro e alguns grupos maiores passeavam calmamente. Não havia nenhum homem sozinho. Scofield olhou o relógio. Faltavam cinco minutos para a uma hora. O russo dissera que poderia ser até duas ou três da manhã. Bray ficou irritado com a própria impaciência, com a angústia em seu peito toda vez que pensava em Paris. Em Toni.

Viu a súbita chama de um isqueiro, a chama firme e logo extinta e reacesa um segundo depois. Em diagonal, do outro lado da larga avenida, à direita dos portões fechados e acorrentados que levavam à ponte e aos barcos turísticos, um homem de cabelos brancos segurava a chama para uma mulher loura acender o cigarro. Ambos estavam encostados ao muro, olhando a água. Scofield estudou o vulto, o que podia ver do rosto, e teve de se conter para não sair correndo. Taleniekov havia chegado.

Bray tomou a direita e andou até ficar paralelo ao russo e à loura. Sabia que Taleniekov o vira e ficou imaginando por que o homem da KGB não mandava a mulher embora, pagando o preço que haviam combinado, para tirá-la fora dali. Era tolice e talvez até perigoso que um chamariz observasse os dois lados num ponto de contato. Scofield esperou no meio-fio, vendo, agora que o russo virara a cabeça em sua direção, Taleniekov olhar diretamente para ele, com o braço ao redor da cintura da mulher. Bray fez um gesto, primeiro para a esquerda, depois para a direita, que dizia claramente: mande-a embora! Ande para o Sul, nos encontraremos logo.

Taleniekov não se mexeu. Que diabo estava o soviético fazendo? Não estava na hora de prostitutas!

Prostitutas? A prostituía do mensageiro! Oh, meu Deus!

Scofield pulou do meio-fio, uma buzina berrou, o carro desviou-se em direção ao centro do bulevar para não atropelá-lo. Bray nem ouviu nada, mal viu o carro. Só via a mulher junto de Taleniekov.

O braço ao redor da cintura não era um gesto fingido de afeição, o russo a agüentava de pé. Taleniekov disse qualquer coisa no ouvido da mulher e ela tentou virar-se. A cabeça rolou no pescoço, a boca se abriu, como num grito ou numa súplica, mas não saiu nada.

O rosto distorcido era o rosto de seu amor. Sob a peruca loura, era Toni. Perdeu todo o controle; correu, atravessando a avenida larga, forçando carros a frearem subitamente, rodas rodando, buzinas tocando. Seus pensamentos se sucediam como tiros de metralhadora, um pensamento, uma observação, mais dolorosos que todos, os outros.

Antonia parecia mais morta que viva.

 

— Foi drogada — disse Taleniekov.

— Por que diabo a trouxe aqui — perguntou Bray. — Há centenas de lugares na França, dezenas em Paris, onde estaria a salvo! Onde tomariam conta dela! Você os conhece tão bem quanto eu!

— Se pudesse ter certeza, eu a teria deixado — replicou Vasili em voz calma. — Não se aprofunde. Considerei outras alternativas.

Bray compreendeu e seu breve silêncio era uma expressão de sua gratidão. Taleniekov poderia facilmente ter matado Toni, provavelmente o teria feito, não fosse Berlim Oriental.

— Um médico?

— Poderia ajudar em termos de tempo, mas não é essencialmente necessário.

— Qual foi o produto químico usado?

— Escopolamina.

— Quando?

— Ontem de manhã cedo. Há mais de dezoito horas.

— Dezoito?... — Não era hora de explicações. — Você tem carro?

— Não podia arriscar. Um homem só com uma mulher que não pode ficar de pé. Era uma trilha muito óbvia. O piloto nos trouxe de Ashford para cá.

— Pode confiar nele?

— Não, mas ele parou para colocar gasolina dez minutos antes de entrar em Londres e entrou para usar o banheiro. Acrescentei um litro de óleo ao seu tanque de gasolina. Deve estar fazendo efeito na estrada de retorno a Ashford.

— Arranje um táxi.

O olhar de Scofield transmitiu o elogio que não expressara em palavras.

— Temos muito que conversar — acrescentou Taleniekov, afastando-se do muro.

— Então apresse-se — disse Bray.

 

A respiração de Antonia era regular e os músculos do rosto estavam relaxados no sono. Quando acordasse, ia sentir-se nauseada, mas isso passaria em um dia. Scofield puxou as cobertas sobre seus ombros, abaixou-se e beijou-a nos lábios brancos pálidos, e ficou de pé.

Saiu do quarto, deixando a porta aberta. Se Toni se mexesse queria ouvir. A histeria era uma conseqüência da escopolamina. Tinha de ser controlada, por isso Taleniekov não pudera arriscar a deixá-la só, mesmo por uns minutos que levaria para alugar um carro.

— Que aconteceu? — perguntou ao russo, que estava sentado numa cadeira com um copo de uísque na mão.

— De manhã, ontem de manhã — disse Taleniekov, encostando a cabeça branca no encosto da cadeira e fechando os olhos. O homem estava evidentemente exausto. — Dizem que você está morto, sabia?

— Sim. Que tem a ver com isso?

— Foi como a consegui de volta. — O russo abriu os olhos e olhou para Bray. — Há muito pouco sobre Beowulf Agate que eu não conheça.

— E?

— Disse que era você. Havia várias perguntas básicas para responder, não eram difíceis. Ofereci-me em troca dela. Concordaram.

— Comece do princípio.

— Bem que gostaria, mas não sei qual é. O Matarese, ou alguém dentro do Matarese, quer você vivo. É por isso que disseram a certas pessoas que você estava morto. Não estão procurando o americano, só o russo. Gostaria de entender.

Taleniekov bebeu um gole.

— Que aconteceu?

— Eles a encontraram. Não me pergunte como, não sei. Talvez em Helsínqui, talvez na saída de Roma, talvez qualquer coisa ou qualquer pessoa, não sei.

— Mas a encontraram — disse Scofield, sentando-se. — E então?

— Ontem de manhã cedo, quatro ou cinco horas antes de você telefonar, ela foi à padaria, logo ali ao lado. Uma hora depois, ainda não voltara. Vi então que tinha duas escolhas. Podia ir atrás dela, mas onde começar, onde procurá-la? Ou podia esperar que alguém viesse ao apartamento. Compreende, eles não tinham escolha, eu sabia. O telefone tocou várias vezes, mas não respondi, sabendo que assim estava trazendo alguém para mais perto.

— Respondeu quando eu chamei.

— Isso foi mais tarde. A essa altura, já estávamos negociando.

— Então?

— Finalmente, vieram dois homens. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida, controlar-me para não matar os dois, especialmente um deles. Tinha aquela marca feia no peito. Quando lhe rasguei as roupas e vi aquilo, quase fiquei louco.

— Por quê?

— Mataram em Leningrado. Em Essen. Depois você vai compreender. Faz parte do que teremos de discutir.

— Continue.

Scofield serviu-se de uma bebida.

— Vou ser breve, você mesmo pode preencher os espaços em branco, já esteve lá. Fiquei com o soldado e seu assassino contratado amarrados e inconscientes por mais de uma hora. O telefone tocou e dessa vez atendi, usando o sotaque mais americano que pude. O homem no telefone estava completamente histérico, era como se o céu de Paris tivesse desabado. “Um impostor em Londres!” — era como se fosse um guincho. Disse alguma coisa sobre um grande erro que a Embaixada havia cometido, a informação que tinham recebido estava completamente errada.

— Acho que você pulou alguma coisa — interrompeu Bray de novo. — Presumo que tenha sido quando disse que era eu.

— Digamos que respondi afirmativamente quando a pergunta histérica foi feita. Foi uma tentação a que não pude resistir, já que ouvira há menos de quarenta e oito horas que você tinha sido morto. — O russo fez uma pausa, depois acrescentou: — Duas semanas atrás, em Washington.

Scofield voltou à cadeira, franzindo a testa.

— Mas o homem no telefone sabia que eu estava vivo, da mesma forma que aqueles aqui em Londres o sabiam. Então você tinha razão. Só certas pessoas dentro do Matarese tiveram conhecimento da minha morte.

— Isso significa alguma coisa para você?

— O mesmo que para você. Eles fazem distinções.

— Exatamente. Quando você ou eu queríamos que um subalterno não fizesse nada, dizíamos-lhe que o problema estava resolvido. Para essas pessoas, você não está mais vivo, não é mais caçado.

— Mas por quê? Estou sendo caçado. Eles me encurralaram.

— Uma pergunta com duas respostas, acho — disse o russo. — Como todas as organizações diversificadas, o Matarese é imperfeito. Entre suas fileiras, há os indisciplinados, os inclinados à violência, homens que matam pela contagem apenas, ou devido a crenças fanáticas. Foi a esses que disseram que você estava morto. Se não caçassem você, não o matariam.

— Essa é a primeira resposta. Qual é a segunda? Por que alguém quer me manter vivo?

— Para fazer de você um consigliere do Matarese.

— O quê?

— Pense um pouco. Pese bem o que você levaria para uma organização dessas.

Bray olhou fixo para o homem da KGB.

— A mesma coisa que você.

— Oh, muito mais. Moscou não pode produzir grandes choques, aceito isso. Mas há revelações surpreendentes escondidas em Washington. Você poderia encontrá-las, seria imensamente valioso para eles. Os carolas são sempre muito mais vulneráveis.

— Aceito isso.

— Antes de Odile Verachten ser morta, ela me fez uma oferta. Não era uma oferta que tivesse autoridade para fazer. Eles não querem o russo, querem você. Se não puderem ter você, vão matá-lo, mas alguém está lhe dando a opção.

“Achamos que seria muito melhor para todos se nos encontrássemos e discutíssemos nossas diferenças. Talvez descubra que não são tão grandes, afinal.” Palavras de um mensageiro incógnito.

— Vamos voltar a Paris — disse Bray. — Como você a conseguiu de volta?

— Não foi tão difícil. O homem no telefone estava ansioso demais. Viu uma patente de general em seu futuro, ou sua própria execução. Conversei sobre o que poderia acontecer ao soldado com aquela pequena marca feia no peito, e o fato de que eu sabia sobre a marca quase que foi o bastante. Organizei uma série de etapas, oferecendo o soldado e Beowulf Agate em troca da moça. Beowulf estava cansado de correr e disposto a ouvir o que qualquer pessoa tivesse a dizer. Ele... eu... sabia que estava contra a parede, mas o profissionalismo exigia que ele... você... exigisse certas garantias. A moça tinha de ser posta em liberdade. Minhas reações foram coerentes com sua tão conhecida teimosia?

— Muito plausível — respondeu Scofield. — Vamos ver se posso preencher algumas lacunas. Você respondeu as seguintes perguntas: Qual era o segundo nome de minha mãe? ou: Quando foi que meu pai trocou de emprego?

— Nada tão comum — interrompeu o russo. — Qual foi o quarto homem que você matou, e onde.

— Lisboa — disse Bray pausadamente. — Um americano que não tinha mais salvação. Sim, você saberia disso... Então, a próxima etapa era uma série de telefonemas para o apartamento. Minha chamada de Londres foi uma interrupção, e em cada telefonema você dava novas instruções. Se não seguissem à risca, a troca ficava cancelada. O ponto de troca seria em trânsito, preferivelmente numa rua de mão única, com um veículo, um homem e Antonia. Tudo acontecendo dentro de sessenta a cem segundos.

O russo concordou com a cabeça.

— Meio-dia no Champs Elysées, ao Sul do Arco. Veículo e moça apanhados, homem e soldado com os cotovelos amarrados, jogados na interseção da Praça da Concórdia, e uma saída rápida, se bem que um pouco indireta, de Paris.

Bray deixou o copo de uísque na mesa e foi até a janela que dava para Carlos Place.

— Há pouco você disse que tinha duas escolhas: ir atrás dela ou esperar na Rue de Bac. Parece-me que havia uma terceira, mas você não a escolheu. Você podia ter saído de Paris sozinho imediatamente.

Taleniekov fechou os olhos.

— Essa era a única escolha que eu não tinha. Estava em sua voz, em qualquer referência que ela fazia a você. Pensei que havia visto isso na Córsega, aquela primeira noite na caverna acima de Porto Vecchio, quando você olhou para ela. Pensei então, que loucura, que... — o russo sacudiu a cabeça.

— Absurdo? — perguntou Bray.

Taleniekov abriu os olhos.

— Sim. Absurdo... desnecessário, fora de propósito. — O homem da KGB ergueu o copo e bebeu o resto do uísque de um trago. — O quadro-negro de Berlim Oriental está completamente limpo. Não haverá mais limpezas.

— Não pedirei nenhuma.

— Bom. Presumo que tenha visto os jornais.

— Trans-Communications? Suas ações da Verachten?

— Sua posse completa seria mais exato. Espero que tenha notado o local da sede da organização. Boston, Massachusetts. Uma cidade muito conhecida sua.

— O que é mais importante, a cidade, e o Estado, de Joshua Appleton IV, aristocrata e senador, cujo avô foi convidado de Guillaume de Matarese. Será interessante saber quais, se é que existem, são suas conexões com a Trans-Comm.

— Duvida de que existam?

— A esta altura, duvido de tudo — disse Scofield. — Talvez me sinta diferente quando juntarmos esses fatos todos que você diz que temos. Vamos começar quando saímos da Córsega.

Taleniekov concordou com a cabeça.

— Roma foi primeiro, Conte-me sobre Scozzi.

Bray aquiesceu, explicando também o papel que Antonia fora forçada a desempenhar nas Brigadas Vermelhas.

— É por isso que ela estava na Córsega, então? — perguntou Vasili. — Fugindo das Brigadas?

— Sim. Tudo que ela me contou sobre seu financiamento cheira a Matarese...

Scofield esclareceu suas teorias, passando rapidamente aos acontecimentos da Vila d’Este e o assassinato de Guillamo Scozzi, ordenado por um homem chamado Paravacini.

— Foi a primeira vez que ouvi dizerem que eu estava morto. Pensaram que eu fosse você... Agora, Leningrado. Que aconteceu lá?

Taleniekov respirou fundo antes de responder.

— Mataram em Leningrado, em Essen — disse em voz tão baixa que mal se podia ouvir. — Ah, como matam, esses Fida’is do século XX, esses mutantes contemporâneos de Hasan ibn-al-Sabbah. Devo dizer-lhe, o soldado que empurrei do carro na Praça da Concórdia tinha mais que uma jaca no peito. Suas roupas estavam manchadas por um tiro que deixou outra marca. Disse a seu companheiro que era por Leningrado, por Essen.

O russo contou sua história calmamente, mostrando a profundidade de seus sentimentos ao falar de Lodzia Kronescha, o estudioso Mikovsky e Heinrich Kassel. Especialmente Lodzia. Teve de parar um pouco e colocar mais uísque no copo. Scofield ficou calado, nada havia que pudesse dizer. O russo terminou com os campos à noite em Stadtwald e a morte de Odile Verachten.

— O príncipe Andrei Voroshin tornou-se Ansel Verachten, fundador das Fábricas Verachten, a maior companhia da Alemanha depois da Krupp, agora uma das mais espalhadas pela Europa. A neta foi escolhida como sua sucessora no Matarese.

— E Scozzi — disse Bray — uniu-se a Paravacini por um casamento de conveniência. Sangue puro, certo talento e charme em troca de um lugar na diretoria. Mas esse lugar era mero enfeite, nunca passou disso. O conde era sacrificável e foi morto porque cometeu um erro.

— Assim como Odile Verachten. Também sacrificável.

— E o nome Scozzi-Paravacini é enganador. O controle está nas mãos de Paravacini.

— Acrescente que a Trans-Communications é dona da Verachten. Então, dois descendentes de convidados do padrone estão eliminados, ambos membros do Matarese, mas ambos insignificantes. Que temos, então?

— O que suspeitamos, o que o velho Krupskaya lhe disse em Moscou. O Matarese mudou de mãos, certamente em parte, talvez totalmente. Scozzi e Voroshin eram úteis pelo que trouxeram consigo, pelo que sabiam ou pelo que possuíam. Eram tolerados e até um tanto bajulados enquanto eram úteis, e foram eliminados no momento em que deixaram de ser.

— Mas úteis para quê? Essa é a pergunta! — Taleniekov bateu com o copo na mesa, frustrado. — Que o Matarese quer? Financia intimidação e assassinato através de imensas organizações, espalha o pânico, mas por quê? O mundo está ficando louco de pavor, comprado e pago por homens que são os maiores perdedores com isso. Estão investindo na desordem total! Não faz sentido!

Scofield ouviu o som, o gemido, e pulou da cadeira. Caminhou rapidamente para a porta do quarto. Toni mudara de posição, virando-se para o lado esquerdo, as cobertas emboladas nos ombros. Mas ainda estava dormindo; o gemido fora inconsciente. Scofield voltou à cadeira e ficou de pé atrás dela.

— Desordem total — disse baixinho. — Caos. Corpos colidindo no espaço. A criação.

— De que está falando? — perguntou Taleniekov.

— Não estou certo — respondeu Scofield. — Volto sempre à palavra “caos”, mas não sei bem por quê.

— Não temos certeza de nada. Temos quatro nomes, mas dois não deram em grande coisa, e estão mortos. Vemos um conjunto de companhias que são a superestrutura essencial do terrorismo generalizado, mas não podemos provar que formam um conjunto e não sabemos por que financiam o terrorismo. Scozzi-Paravacini financia as Brigadas Vermelhas, Verachten certamente financia o Baader-Meinhof e só Deus sabe o que a Trans-Communications financia... e essas companhias talvez sejam apenas algumas das envolvidas. Encontramos o Matarese, mas não conseguimos vê-lo! Se fizéssemos qualquer acusação a esses conglomerados, seríamos chamados de loucos ou coisa pior.

— Muito pior — disse Bray, lembrando-se da voz no telefone do restaurante. — Traidores. Seríamos baleados.

— Suas palavras soam como profecias, não gostei.

— Nem eu, mas gostaria menos ainda de ser executado.

— Um non sequitur.

— Não se combinar com o que você acabou de dizer. “Encontramos o Matarese, mas não conseguimos vê-lo”, não foi isso?

— Sim.

— Vamos supor que encontrássemos um deles e o segurássemos. Ficássemos com ele em nossas mãos.

— Um refém?

— Isso mesmo.

— É uma loucura.

— Por quê? Você teve a Veracfcten.

—_Num carro. No campo de um fazendeiro. À noite. Não tive ilusão de levá-la para Essen e montar uma base de operações.

Scofield sentou-se.

— As Brigadas Vermelhas ficaram com Aldo Moro a oito quarteirões da Chefatura de Polícia em Roma. Embora não fosse bem isso que eu tinha em mente.

Taleniekov inclinou-se para a frente.

— Waverly?

— É.

— Como? A rede americana está atrás de você, o Matarese quase o pegou. Em que está pensando? Passar no Ministério do Exterior e fazer um convite para o chá? —

— Waverly vem até aqui, neste quarto, hoje à noite, às oito horas.

O russo assoviou.

— Posso perguntar como conseguiu isso?

Bray contou-lhe sobre Symonds.

— Ele está fazendo isso porque acha que minha razão de trabalhar com você é bastante forte para justificar uma entrevista com Waverly.

— Eles têm um apelido para mim. Ele disse qual é?

— Disse. A Serpente.

— Suponho que me devesse sentir lisonjeado, mas não me sinto. Acho o nome muito feio. Symonds suspeitará que esse encontro tem uma base hostil? Que você suspeita de que Waverly é mais do que o ministro do Exterior da Inglaterra?

— Não, é justamente o oposto. Quando ele fez uma objeção, a última coisa que lhe disse é que talvez estivesse tentando salvar a vida de Waverly.

— Muito bem — disse Taleniekov. — Muito assustador. Assassínios, como todos os atos de terror, tendem a se espalhar. Virão sozinhos, então?

— Sim, insisti nisso. Um quarto no Connaught, não há razão para Roger pensar que possa haver algo de errado. E sabemos que o Matarese ainda não fez a ligação entre mim e o homem que Waverly supostamente vai encontrar nos escritórios do MI-6.

— Tem certeza disso? Parece-me o ponto mais fraco da estratégia. Sabem que você está em Londres, sabem que tem os quatro nomes da Córsega. De repente, sem quê nem por quê, Waverly, o consigliere, é convidado a encontrar-se secretamente com um homem no escritório de um agente secreto inglês que, é sabido, era amigo de Beowulf Agate. A equação me parece óbvia. Por que escaparia ao Matarese?

— Uma razão muito específica: não sabem que entrei em contato com Symonds.

— Não podem ter certeza de que não o fez.

— As probabilidades são contra. Roger tem muita experiência de campo, cobriu todas as eventualidades. Estava registrado no Almirantado e mais tarde ligou para o número que foi deixado no recado. Não fui seguido na rua e usamos um telefone estéril. Nosso encontro foi a uma hora de Londres, mudei de veículo duas vezes e ele pelo menos quatro. Ninguém nos seguiu.

— Impressiona, mas não é decisivo.

— É o melhor que posso fazer. Exceto por uma observação final.

— Observação?

— Sim. Não vai haver encontro hoje à noite. Eles nunca chegarão até este quarto.

— Não vai haver encontro! Então por que chamá-los até aqui?

— Para que possamos pegar Waverly lá embaixo, antes que Symonds descubra o que está acontecendo. Roger vai dirigir o carro. Quando chegar aqui, não vai atravessar o saguão, vai usar uma entrada lateral. Vou descobrir qual. Caso Waverly seja seguido, e concordo que isso é possível, você estará na rua e saberá. Quando você os vir, pegue-os. Estarei do lado de dentro da entrada.

— Onde não esperam que esteja — interrompeu o russo.

— Certo, estou contando com isso. Posso pegar Roger de surpresa, segurá-lo e forçar uma pílula em sua garganta. Não acordará tão cedo.

— Isso não basta — disse Taleniekov, abaixando a voz. — Tem de matá-lo. É inevitável que haja sacrifícios. Churchill compreendeu isso, em Coventry e Ultra. Não se trata de menos, Scofield. O Serviço Secreto Britânico organizará a maior caçada na história da Inglaterra. Temos de retirar Waverly do país. Se ganharmos tempo com a morte de um homem, um dia que seja, acho que vale a pena.

Bray olhou para o russo, estudando-o.

— Você acha muita coisa.

— Sabe que tenho razão.

Silêncio. De repente, Scofield jogou o copo do outro lado da sala. Espatifou-se contra a parede. — Merda!

Taleniekov lançou-se à frente, a mão direita dentro do paletó.

— Que foi?

— Você tem razão e eu sei disso. Ele confia em mim e tenho de matá-lo. Vai levar dias até os ingleses saberem por onde começar Nem o ML-6 nem o Ministério do Exterior têm conhecimento do Connaught.

O homem da KGB tirou a mão de dentro do paletó e colocou-a no braço da cadeira.

— Precisamos de tempo. Não vejo outra maneira.

— Se é que há, peço a Deus que me ilumine. — Bray sacudiu a cabeça. — Estou saturado com a necessidade. — Olhou para a porta do quarto. — Ela me disse isso.

— O resto é só detalhes — continuou Taleniekov, apressando a fala. —_Vou providenciar um carro para ficar na rua em frente da entrada. Assim que eu terminar, se é que terei de fazer alguma coisa, entro e ajudo você. Será necessário, claro, levar o morto junto com Waverly. Removê-lo.

— O morto não tem nome — disse Scofield sem expressão. Levantou-se da cadeira e foi até a janela. — Já lhe ocorreu que, quanto mais perto chegamos, mais nos parecemos com eles?

— O que me ocorre — respondeu o russo — é que sua estratégia é simplesmente extraordinária. Não só teremos um consigliere do Matarese, mas é um consigliere e tanto! O ministro do Exterior da Inglaterra! Tem alguma idéia do que isso quer dizer? Vamos arrebentar com ele e o mundo vai escutar, será forçado a escutar! — Taleniekov fez uma pausa e acrescentou levemente. — O que você fez está à altura das lendas sobre Beowulf Agate.

— Merda — disse Bray. — Detesto esse nome.

O gemido foi súbito, explodindo num soluço prolongado, seguido de um grito de dor, abafado, incerto, desesperado. Scofield correu para o quarto. Toni estava se contorcendo na cama, arranhando o rosto com as mãos, dando pontapés violentos nos demônios imaginários que a cercavam. Bray sentou-se e puxou-lhe as mãos carinhosamente, mas com firmeza, esticando cada dedo para que as unhas não se cravassem na pele. Prendeu os braços e segurou-a, aninhando-a, como fizera em Roma. Os gritos diminuíram e se tornaram soluços. Ela tremia, respirando irregularmente, e aos poucos voltou ao normal, o corpo rígido afrouxou. Passara a primeira histeria causada pela dissipação da escopolamina. Scofield ouviu passos perto da porta. Virou a cabeça para mostrar que estava ouvindo.

— Vai durar até a manhã, sabe — disse o homem da KGB. — Deixa o corpo lentamente, com muita dor. Em grande parte, devido às imagens retidas na mente. Nada se pode fazer. É bom segurá-la.

— Sei. É o que vou fazer.

Houve um momento de silêncio. Bray sentiu os olhos do russo nele, em Antonia.

— Vou sair agora — disse Taleniekov. — Telefonarei ao meio-dia e voltarei mais tarde. Aí poderemos apurar os detalhes, coordenar os sinais e outras coisas mais.

— Certo. Outras coisas mais. Aonde vai? Pode ficar aqui, se quiser.

— Acho que não. Há dezenas de lugares aqui, como em Paris. Conheço-os tão bem quanto você. Além disso, preciso arranjar um carro e estudar as ruas. É essencial estar preparado, não é?

— É.

— Boa noite. Tome conta dela.

— Vou tentar.

Passos novamente. O russo saiu do quarto. Scofield falou:

— Taleniekov.

— Sim?

— Sinto muito sobre Leningrado.

— Sei. — Novamente silêncio. Depois, as palavras foram ditas baixinho. — Obrigado.

A porta de fora se fechou. Estava a sós com seu amor. Deitou-a nos travesseiros e tocou-lhe a face. Tão ilógico, tão irracional. “Por que encontrei você? Por que você me encontrou? Devia ter me deixado onde estava, num buraco na terra. Não está na hora para nenhum de nós dois, não compreende isso? É tão ... inadequado.”

Foi como se tivesse falado alto. Toni abriu os olhos, não bem focalizados, reconhecendo-o em parte, mas sabia que era ele. Os lábios formaram o nome dele, num murmúrio.

— Bray?...

— Você vai ficar boa. Eles não a maltrataram. A dor que está sentindo é causada por produtos químicos e vai passar, acredite.

— Você voltou.

— Sim.

— Não vá embora de novo, por favor. Não vá sem mim.

— Não vou, não.

Os olhos alargaram-se de repente, ficaram nublados, os dentes ficaram à mostra como os de um animal novo preso numa armadilha que lhe quebrava as costas. Um gemido de cortar o coração saiu de suas entranhas.

Desmaiou nos braços dele.

“Amanhã, meu amor, meu único amor. Amanhã vem o sol, todo mundo sabe disso. E então a dor passará, prometo. E prometo mais uma coisa, meu amor inoportuno que veio tão tarde em minha vida. Amanhã, agora, hoje à noite... Pegarei o homem que acabará com esse pesadelo. Taleniekov tem razão. Vamos quebrá-lo como ninguém jamais foi quebrado e o mundo nos escutará. Quando o fizer meu amor, meu único e adorável amor, você e eu estaremos livres. Iremos para muito longe, onde a noite traz sono e amor, não a morte, não o medo e o ódio da escuridão. Seremos livres porque Beowulf Agate desaparecerá... ele não tem feito o bem, mas tem mais uma coisa a fazer. Hoje à noite.”

 

Scofield tocou a face de Antonia. Ela segurou-lhe a mão e levou-a aos lábios, sorrindo, confortando-o com seus olhos.

— Como vai a cabeça? — perguntou Bray.

— A dor passou, só está dormente — disse. — Estou bem, verdade.

Scofield soltou sua mão e atravessou a sala até o lugar onde Taleniekov se debruçava sobre uma mesa estudando um mapa rodoviário. Sem ter combinado, ambos estavam vestidos quase iguais. Suéteres e calças escuros. Coldres de ombro bem apertados com cintos de couro preto atravessados no peito. Os sapatos eram também escuros, mas leves, com solas de borracha grossas que tinham sido arranhadas a faca para não escorregarem.

Taleniekov ergueu os olhos quando Bray se aproximou da mesa.

— Ao sair de Great Dunmow, seguiremos rumo Leste em direção a Doggeschall, a caminho de Nayland. Sabe, há um campo de aviação bastante grande para pequenos jatos ao Sul de Hadleigh. Pode nos ser útil dentro de alguns dias.

— Talvez tenha razão.

— E também — acrescentou o homem da KGB com relutância evidente — essa rota passa pelo rio Blackwater. As florestas são densas nessa área. Seria um bom lugar para... despejar o pacote.

— O morto ainda não tem nome — disse Scofield. — Dê-lhe o que merece. É Roger Symonds, homem honrado, e detesto este mundo de merda.

— Não querendo parecer néscio, posso declarar, desculpe, sugerir, que o que vai fazer hoje à noite será um benefício para este triste mundo do qual tanto abusamos por tanto tempo.

— Prefiro que não declare nem sugira coisa alguma. — Bray olhou o relógio. — Ele vai telefonar em breve. Quando o fizer, Toni descerá ao saguão e pagará a conta do Sr. Edmonton, isto é, a minha. Voltará com um mensageiro e levará nossas malas e pastas para o carro que alugamos em nome de Edmonton, e irá diretamente para Colchester. Esperará num restaurante chamado Bon-ner até 11h30min. Se houver qualquer mudança nos planos ou precisarmos dela, telefonaremos para lá. Se não tiver notícias nossas, seguirá para Nayland, irá para a Estalagem Double Crown onde tem um quarto reservado em nome de Vickery.

Taleniekov ergueu-se apoiado na mesa.

— Não abram minha pasta — disse. — Tem uma armadilha.

— A minha também — replicou Scofield. — Alguma pergunta?

O telefone tocou. Os três pares de olhos convergiram para ele... um momento suspenso no espaço, pois a campainha significava que chegara a hora. Bray foi até a escrivaninha, deixou o telefone tocar pela segunda vez e então pegou o fone.

Nada neste mundo poderia tê-lo preparado para o que ouviu, não importa o que esperasse... saudações, informações, instruções ou revelações. A voz de Symonds era um grito vindo do âmago do tormento, uma dor tão extrema que desafiava a razão.

— Estão todos mortos. É um massacre! Waverly, a esposa, as crianças, três empregados... mortos. Que diabo você fez?

— Oh, meu Deus! — Os pensamentos de Scofield voaram, transformando-se em palavras cuidadosamente selecionadas. — Roger, ouça-me. É o que procurei evitar! — Cobriu o bocal com as duas mãos, olhando para Taleniekov. — Waverly foi morto, todos na casa assassinados.

— Método? — gritou o russo. — Marcas nos corpos. Armas. Pegue todos os detalhes.

Bray sacudiu a cabeça.

— Mais tarde.

Tirou a mão do bocal. Symonds falava atropeladamente, quase histérico. —

— É horrível. Oh, Deus, que coisa terrível! Foram trucidados, como animais!

— Roger! Controle-se! Ouça o que eu digo. É parte de um plano. Waverly sabia. Ele sabia demais, por isso o mataram. Não pude chegar a ele a tempo.

— Você não pôde?... Pelo amor de Deus... por que não... por que não... me disse? Era o ministro do Exterior, o ministro do Exterior da Inglaterra! Tem alguma idéia das repercussões, das... oh, meu Deus, que tragédia! Uma catástrofe! Chacinados!

Symonds parou. Quando voltou a falar, era evidente que o profissionalismo se estava restabelecendo. — Quero que vá ao meu escritório assim que puder. Considere-se detido pelo Governo britânico.

— Não posso fazer isso. Não me peça.

— Não estou pedindo, Scofield! Estou lhe dando uma ordem direta reforçada pelas autoridades mais altas da Inglaterra. Você não sairá do hotel! Quando alcançasse o elevador, a corrente estaria desligada, todas as escadas, todas as saídas com guardas armados.

— Está bem, está bem, irei ao MI-6 — mentiu Bray.

— Será escoltado. Fique no quarto.

— Esqueça o quarto, Roger — disse Scofield, procurando as palavras adequadas para a crise. — Tenho de falar com você, mas não no MI-6.

— Acho que não me ouviu!

— Ponha guardas nas portas, desligue as merdas de elevadores, faça o que quiser, mas tenho de ver você aqui. Vou sair deste quarto e ir para o bar lá embaixo, para o reservado mais escuro que encontrar. Encontre-me lá.

— Repito...

— Repita quanto quiser, mas se não vier aqui para me ouvir haverá outros assassinatos, é isso que são, Roger! Assassinatos. E não vão parar com o ministro do Exterior ou o secretário de Estado... ou o presidente ou o primeiro-ministro.

— Oh, meu... Deus — murmurou Symonds.

— É o que não pude dizer-lhe ontem à noite. Era a razão que você procurava quando falamos. Mas não posso falar oficialmente, não posso trabalhar sob sanção. Isso deve bastar para você. Venha cá, Roger.

Bray fechou os olhos, prendeu a respiração. Era agora ou nunca.

— Estarei aí em dez minutos — disse Symonds, com a voz rouca.

Scofield desligou o telefone, olhando primeiro para Antonia, depois para Taleniekov.

— Está a caminho.

— Vai prender você! — exclamou o russo.

— Acho que não. Ele me conhece e sabe que não farei nada oficialmente se disser que não posso. E não quer que caia mais nada sobre sua cabeça. — Bray foi até a poltrona onde jogara a capa de chuva e a bolsa de viagem. — Tenho certeza de uma coisa: ele me encontrará lá embaixo e me dará uma chance. Se ele aceitar, voltarei dentro de uma hora. Se não... eu o matarei.

Scofield abriu o fecho da bolsa, meteu a mão lá dentro e tirou um facão de caça embainhado. Ainda tinha a etiqueta com o preço, da Harrods. Olhou para Toni. Os olhos dela diziam que compreendia. Tanto a necessidade quanto o horror que ele estava sentindo.

 

Symonds sentou-se na frente de Bray no reservado do bar do Connaught. A iluminação suave não escondia a palidez do rosto do inglês. Era um homem forçado a tomar decisões de tal magnitude que só de pensar nelas se sentia mal. Fisicamente doente, mentalmente exausto.

Falaram durante uns quarenta minutos. Scofield, conforme planejado, contou-lhe parte da verdade, mais do que queria, mas era necessário. E agora ia fazer o pedido final, e ambos sabiam isso. Symonds sentiu o enorme peso de sua decisão, estava em seus olhos. Bray sentia a faca no cinto. A apavorante decisão de usá-la se fosse necessário apertava-lhe o peito.

— Não sabemos sua extensão, nem quantas pessoas nos diversos governos estão envolvidas, mas sabemos que está sendo financiado através de grandes organizações — explicou Scofield. — O que aconteceu na Praça de Belgravia hoje à noite pode ser comparado ao que aconteceu com Anthony Blackburn em Nova York, ao físico Yurievich na Rússia. Estamos perto, temos nomes, ligações secretas, conhecimento de que os serviços secretos de Washington, Moscou e Bonn foram manipulados. Mas não temos provas. Vamos conseguir, mas ainda não temos. Se você me detiver, nunca conseguiremos. As acusações contra mim não têm remédio, não preciso dizer-lhe o que isso significa. Serei executado no primeiro... momento oportuno. Pela razão errada, pelo pessoal errado, mas o resultado será o mesmo. Dê-me tempo, Roger.

— E o que me dará?

— Que mais você quer?

— Os nomes, as ligações.

— Não significam nada agora. Pior ainda, se forem registrados, ou eles se esconderão ainda mais, sem deixar rastros, ou as matanças, o terrorismo, serão acelerados. Haverá uma série de banhos de sangue... e você morrerá.

— Essa é minha condição. Os nomes, as ligações. Ou você não sai daqui.

Bray olhou fixo para o homem do MI-6.

— Você me impedirá, Roger? Aqui, agora, neste momento? Fará isso? Pode fazer isso?

— Talvez não. Mas aqueles dois homens ali podem.

Symonds acenou para a esquerda.

Scofield olhou na direção indicada. Do outro lado da sala, numa mesa no centro, estavam dois agentes britânicos. Um deles era o homem atarracado, de cabelos vermelhos, com quem havia falado a noite passada no play-ground em Guildford, à luz da lua. Agora não havia qualquer simpatia em seu olhar, só hostilidade.

— Você se protegeu — disse Scofield.

— Pensou que não o faria? Estão armados e têm suas instruções. Os nomes, por favor. — Symonds tirou um livro de notas e uma esferográfica do bolso, e colocou-os na frente de Bray. — Não escreva bobagens, eu lhe imploro. Seja prático. Se você e o russo forem mortos, não há mais ninguém. Posso não estar na mesma classe que Beowulf Agate e a Serpente, mas tenho minhas qualidades.

— Quanto tempo me dará?

— Uma semana. Nem um dia mais.

Scofield pegou a pena, abriu o pequeno livro de notas e começou a escrever.

4 de abril de 1911

Porto Vecchio, Córsega

Scozzi

Voroshin

Waverly

Appleton

 

Atuais:

Guillamo Scozzi — Morto

Odile Verachten — Morta

David Waverly — Morto

Joshua Appleton — ?

 

Scozzi-Paravacini. Milão

Fábricas Verachten. (Voroshin.) Essen

Trans-Communications. Boston

 

Abaixo dos nomes e das companhias, escreveu uma palavra.

 

Matarese

 

Bray saiu do elevador, pensando em rotas aéreas, acessibilidade e cobertura. As horas assumiam a importância de dias. Havia tanto a aprender, tanto a descobrir, e tão pouco tempo para tudo.

Pensaram que poderia terminar em Londres com David Waverly. Deveriam ter visto que não era tão fácil: os descendentes eram sacrificáveis.

Três estavam mortos, três nomes removidos da lista de convidados de Guillaume de Matarese para o dia 4 de abril de 1911. Sobrava um: o político de ouro de Boston, o homem que poucos duvidavam ganharia as primárias de verão, e sem dúvida a eleição, no outono, e seria presidente dos Estados Unidos. Muitos proclamaram durante a violência dos anos sessenta e setenta que ele poderia manter o país unido. Appleton não tinha a presunção de afirmar tal coisa, mas a maior parte da América pensava que era o único homem capaz disso.

 

Mas mantê-los unidos para quê? Para quem? Isso era o mais assustador de tudo. Seria ele o único descendente que não era sacrificável? Escolhido pelo Conselho, pelo pequeno pastor, para fazer o que os outros não podiam?

Chegariam até Appleton, pensou Bray quando dobrava o canto do corredor do Connaught indo para o quarto, mas não onde Appleton o esperasse, se é que esperava por isso. Não se deixariam atrair para Washington, onde encontros casuais com o pessoal de Estado, do FBI e da Companhia eram dez vezes mais prováveis que em qualquer outro lugar no hemisfério. Não havia vantagem em enfrentar dois inimigos ao mesmo tempo. Em vez disso, iriam a Boston, ao conglomerado tão apropriadamente denominado Trans-Communications.

Em algum lugar, de alguma maneira, nos escalões mais altos daquela vasta companhia, encontrariam um homem, um homem com um círculo azul no peito ou ligações com Scozzi-Paravacini ou Verachten, e esse homem sussurraria um alarme chamando Joshua Appleton IV. Armariam uma cilada, pegariam-no em Boston. E, quando terminassem com ele, o segredo do Matarese estaria exposto, contado por um homem cujas credenciais impecáveis faziam par com sua incrível falsidade. Tinha de ser Appleton, não havia mais ninguém. Se eles...

Scofield sacou a arma do coldre. A porta de seu quarto, sete metros à frente, estava aberta. Não havia a mais remota possibilidade de que a porta tivesse sido deixada aberta de propósito. Houvera um intruso, ou intrusos.

Parou, sacudiu a paralisia da mente e correu para o lado da porta, pressionando as costas contra a parede perto do portal. Arremessou-se para dentro da sala, agachado, apontando a arma, pronto para atirar.

Não havia ninguém. Nada, só o silêncio e uma sala muito arrumada. Arrumada demais. O mapa rodoviário fora retirado da mesa, os copos lavados e depositados na bandeja de prata sobre a cômoda. Os cinzeiros estavam imaculados. Não havia um indício de que a sala fora ocupada. O que viu então trouxe de volta a paralisia.

No chão perto da mesa estavam sua pasta e sacola de viagem, cuidadosamente arrumadas uma junto da outra, como o faria o rapaz da portaria que viesse buscar as malas. Muito bem dobrada, sua capa de chuva repousava sobre a bolsa de viagem. Um hóspede pronto a partir.

Dois já haviam partido. Antonia se fora, Taleniekov se fora.

A porta do quarto estava aberta, a cama feita, a mesa de cabeceira destituída da jarra d’água e do cinzeiro, que uma hora atrás estava cheio de cigarros fumados a meio, prova de uma noite e um dia cheios de ansiedade e dor.

Silêncio. Nada.

Seus olhos foram atraídos subitamente por uma coisa, novamente no chão, que não se harmonizava com a ordem do quarto, e sentiu-se mal. No tapete, à esquerda da mesa, havia um círculo de sangue, um círculo irregular, ainda úmido, brilhando ainda. Ergueu os olhos. Uma das vidraças da janela explodira.

— Toni!

O grito foi seu. Quebrou o silêncio, mas ele não podia se conter. Não podia pensar, não podia mover-se.

O vidro espatifou-se. Outra vidraça explodiu de seu caixilho e ouviu o assovio de uma bala penetrando na parede atrás dele. Caiu no chão.

O telefone tocou, a campainha estridente comprovando a loucura. Engatinhou até a escrivaninha, fora do alcance da janela.

Toni?... Toni!

Estava gritando, chorando, e ainda não tinha alcançado a escrivaninha, não tinha tocado no telefone.

Estendeu a mão e puxou o instrumento para o chão perto dele. Pegou o fone e segurou-o no ouvido.

Sempre encontraremos você, Beowulf — disse a voz inglesa precisa da outra ponta do fio. — Disse-lhe isso quando nos falamos antes.

Que fez com ela? gritou Bray. — Onde está?

É, achamos que sua reação seria essa. Meio estranho, vindo de você, não? Nem perguntou pela Serpente.

Pare com isso! Diga-me!

É o que pretendo fazer. Escute aqui, você cometeu uma grande falha, também muito estranho para uma pessoa com tanta experiência. Bastou seguirmos seu amigo Symonds de Belgravia. Um exame rápido no registro do hotel, assim como a hora e o método de registro, deu-nos seu quadro.

Que fez com ela?... Eles?

— O russo está ferido, mas talvez sobreviva. Pelo menos o suficiente para nosso objetivo.

— A moça!

— Está a caminho de um aeroporto, com a Serpente. —

— Aonde vai levá-la?

— Achamos que sabe. Foi a última coisa que você escreveu antes de dar o nome do corso. Uma cidade no Estado de Massa-chusetts.

— Oh, Deus... Symonds!

— Morto, Beowulf. Temos o livro de notas. Estava em seu carro, para todos os fins, Roger Symonds, MI-6, desapareceu. Considerando sua agenda, é possível que ele estivesse ligado aos terroristas que massacraram o ministro do Exterior da Inglaterra e sua família.

— Seus... filhos da puta.

— Não. Meramente profissionais. Você devia apreciar isso. Se quiser a moça de volta, siga-nos. Sabe, há alguém que quer falar com você.

— Quem?

— Não seja idiota — disse o mensageiro rispidamente.

— Em Boston?

— Receio que não possamos ajudá-lo a chegar até lá, mas temos confiança absoluta em você. Vá para o Hotel Ritz Carlton sob o nome de... Vickery. É, esse nome serve, tem um som tão benigno.

— Boston — disse Bray, exausto.

Ouviu novamente uma vidraça se estraçalhando. A terceira vidraça explodiu do caixilho.

— Esse tiro — disse a voz no telefone — é um símbolo da nossa boa-fé. Podíamos tê-lo matado com o primeiro.

 

Chegou à costa da França da mesma maneira que a havia deixado quatro dias atrás: numa lancha a motor, à noite. A viagem a Paris demorou mais do que esperara. O indivíduo que contava usar não quis ajudá-lo. A notícia se espalhara, o preço por ele morto era alto demais, o castigo por ajudar Beowulf Agate severo demais. O homem tinha uma dívida para com Bray; preferiu afastar-se.

Scofield encontrou um gendarme de folga num bar em Boulogne-sur-Mer. As negociações foram rápidas. Precisava de um carro veloz para ir a Paris, ao Aeroporto de Orly. O pagamento deixou o gendarme atônito. Bray chegou em Orly ao nascer do dia. Às 9h, o Sr. Edmonton estava a bordo do primeiro vôo da Air Canada para Montreal. O avião decolou e ele concentrou seus pensamentos em Antonia.

Fariam uso dela para pegá-lo, mas não permitiriam de modo algum que ela continuasse viva, uma vez que a armadilha se tivesse fechado. Da mesma forma que não deixariam Taleniekov vivo, assim que descobrissem tudo que ele sabia. Mesmo a Serpente não podia resistir a injeções de escopolamina ou sódio amital. Ninguém pode bloquear a memória ou proibir o fluxo de informação, uma vez que os portões mentais sejam abertos quimicamente.

Era isso que ele tinha de aceitar e, tendo aceitado, basear seus movimentos nessa realidade. Não envelheceria com Antonia Gravet. Não haveria anos de paz. Uma vez que compreendesse isso, só restava procurar inverter a conclusão, sabendo que as probabilidades eram remotas. Já que não havia absolutamente nada a perder, valia a pena correr todos os riscos, considerar qualquer estratégia, por mais estranha que parecesse.

A chave era Joshua Appleton, isso permanecia constante. Seria possível que o senador fosse um ator tão consumado que conseguira enganar tantos, tão bem e por tanto tempo? Aparentemente, era. Alguém treinado desde que nasceu para atingir um único objetivo com dinheiro e talentos ilimitados à sua disposição, provavelmente poderia esconder qualquer coisa. Mas as lacunas que precisavam ser preenchidas estavam nas histórias de Josh Appleton, oficial de combate dos Fuzileiros Navais, Coréia. Eram histórias muito conhecidas, disseminadas pelos gerentes das campanhas, enfatizadas pela relutância do candidato em falar sobre elas, a não ser para elogiar os homens que haviam servido com ele.

O capitão Joshua Appleton havia sido condecorado por bravura sob fogo em cinco ocasiões distintas, mas as medalhas eram apenas símbolos, os tributos de seus homens eram os hinos de louvor de devoção verdadeira. Josh Appleton era um oficial dedicado ao princípio de que nenhum soldado deveria correr um risco que ele próprio não corresse. E nenhum soldado da Infantaria, não importa o quanto estivesse ferido ou quão aparentemente desesperada fosse a situação, seria deixado para o inimigo se houvesse a menor possibilidade de salvá-lo. Com esses credos, não era sempre o melhor dos oficiais, mas era o melhor dos homens. Expunha-se constantemente aos castigos mais severos para salvar a vida de um soldado raso ou atrair o fogo concentrado no esquadrão de um cabo. Fora ferido duas vezes arrastando homens para fora das colinas de Panmunjon e quase perdeu a vida em Chosan, quando rompeu as linhas inimigas para dirigir um salvamento por helicóptero.

Depois da guerra, tendo regressado a casa, Appleton enfrentou outra luta tão perigosa quanto as da Coréia. Um acidente quase fatal no Massachusetts Turnpike. Seu carro derrapara sobre a divisória e colidira com um caminhão que vinha em direção oposta. Os danos, da cabeça aos pés, foram tão severos que os médicos do Hospital Geral de Massachusetts deram-no por morto. Quando emitiram boletins sobre esse filho condecorado de uma família eminente, vieram homens do país inteiro: mecânicos, motoristas de ônibus, empregados da lavoura e de escritórios e soldados que serviram sob suas ordens.

Durante dois dias e uma noite, mantiveram vigília, os mais emotivos rezavam abertamente, outros simplesmente sentavam-se com seus pensamentos ou relembravam o passado com seus excompanheiros. Quando passou a crise e Appleton foi retirado da lista crítica, os homens voltaram para casa. Vieram porque quiseram vir, voltaram sem saber se haviam feito alguma diferença, mas esperando que sim. O capitão Joshua Appleton IV, do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, merecia essa esperança.

Era essa a lacuna que Bray não podia preencher nem entender. O capitão que arriscou sua vida tantas vezes, tão abertamente, por outros homens; como podia reconciliar isso com um homem programado desde o nascimento para se tornar presidente dos Estados Unidos? Como poderia justificar ao Matarese ter se exposto constantemente à morte?

Deveria ter sido justificado, pois não havia dúvida quanto à posição do senador Joshua Appleton. O homem que seria eleito presidente dos Estados Unidos antes do fim do ano estava inextricavelmente ligado a uma conspiração das mais perigosas na história da América.

Em Orly, Scofield pegou a edição parisiense do Herald-Tribune para ver se continha notícias sobre o massacre de Waverly. Não encontrou nada. Mas havia outra coisa, na segunda página. Era outro artigo sobre as ações da Trans-Communications na Verachten, dando uma lista parcial da diretoria do conglomerado de Boston. O terceiro nome da lista era o do senador de Massachusetts.

Joshua Appleton não era somente um consigliere do Matarese, era também o único descendente daquela lista de setenta anos atrás em Porto Vecchio que se tornou verdadeiro herdeiro.

— Mesdames et messieurs, síil vous plaít. Ã votre gaúche, les lies de Ia Manche...

A voz do piloto cantarolou no alto-falante do avião. Sobrevoavam as ilhas do Canal, em seis horas alcançariam a costa da Nova Escócia, uma hora depois Montreal. E quatro horas mais tarde Bray atravessaria a fronteira dos Estados Unidos ao Sul de Lacolle, no rio Richelieu, para atingir as águas do lago Champlain.

Em poucas horas começaria a loucura final. Ele iria morrer ou viver. E se não pudesse viver em paz com Toni, sem a sombra de Beowulf Agate a sua frente ou atrás dele, não queria mais viver. Estava repleto de... nada. Se pudesse apagar aquele horrível vazio, enchê-lo com o simples prazer de estar com outro ser humano, então os anos que ainda tivesse para viver seriam bem-vindos.

Se não, que fosse tudo para o inferno.

Boston.

“Há alguém que quer falar com você.

Quem? Por quê?

“Para fazer de você um consigliere do Matarese... considere o que você traria para uma organização dessas.”

Não era difícil. Taleniekov tinha razão. Moscou não tinha mais choques, mas havia revelações espantosas em Washington. Beowulf Agate sabia onde se escondiam os esqueletos, como e por que não respiravam mais. Seria de valor inestimável.

“Querem você. Se não puderem pegar você, eles o matarão.” Que assim fosse. Não seria um prêmio para o Matarese.

Bray fechou os olhos. Precisava dormir. Não teria tempo para isso nos dias seguintes.

 

A chuva fustigava o pára-brisa em lençóis de água inclinados para a direita pela força do vento que soprava do Atlântico sobre a estrada costeira. Scofield alugara o carro em Portland, Maine, com uma carteira de motorista e um cartão de crédito que nunca usara antes. Breve chegaria a Boston, mas não como o Matarese esperava. Não ia atravessar metade do mundo, disparado, e anunciar sua chegada indo para o Ritz Carlton com o nome de Vickery para ficar esperando a próxima jogada do Matarese. Um homem em pânico agiria assim, ou um homem que pensasse que era o único meio de salvar a vida de alguém muito amado. Mas ele estava além do pânico, tinha aceitado a perda total, portanto podia recuar e conceber a própria estratégia.

Estaria em Boston, no covil do inimigo, mas esse não ia saber. O Ritz Carlton receberia dois telegramas, com o espaço de um dia. O primeiro chegaria amanhã, solicitando uma suíte para o Sr. B. A. Vickery de Montreal, que chegaria no dia seguinte. O segundo seria enviado na tarde seguinte e diria que o Sr. Vickery havia sido detido e chegaria dois dias depois. Não mencionariam o endereço de Vickery, somente das agências telegráficas em Montreal, nas Ruas King e Market, e não haveria uma solicitação de confirmação. Presumia-se que alguém em Boston verificaria se havia quartos disponíveis.

Só os dois telegramas, enviados de Montreal. O Matarese não tinha outra escolha, acreditaria que ainda estava no Canadá. Poderiam suspeitar — mas não teriam certeza — de que ele mandara alguém enviar os telegramas... o que era verdade. Contactara um homem, um separatista que conhecera antes, homem inclinado ao crime, e encontrou-o no aeroporto. Deu-lhe as duas mensagens escritas a mão em formulários dos telégrafos, junto com uma quantia em dinheiro e instruções sobre como e de onde enviá-los. Se o Matarese telefonasse a Montreal para confirmar a origem, encontrariam as mensagens escritas pelo próprio Bray.

Tinha três dias e uma noite para operar dentro de território do Matarese, para aprender o que pudesse sobre a Trans-Communi-cations e sua hierarquia. Para encontrar alguma falha, importante o bastante para chamar o senador Joshua Appleton IV a Boston, em seus termos. Em pânico.

Tanto que aprender, tão pouco tempo.

Scofield deixou a mente divagar, buscando todo mundo que conhecera em Boston e Cambridge, tanto estudantes quanto profissionais. Nesse grupo dos que se encaixam e os que não se encaixam, tinha de haver alguém que pudesse ajudá-lo.

Passou um sinal rodoviário que lhe dizia que deixara a cidade de Marblehead. Estaria em Boston em menos de trinta minutos.

 

Eram 5h35min. As buzinas de motoristas impacientes clamavam de todos os lados enquanto o táxi se arrastava pela Rua Boylston, na zona de comércio apinhada de pedestres e carros. Deixara o carro de aluguel nos recônditos do estacionamento subterrâneo da Prudential, disponível, se precisasse dele, mas não sujeito aos caprichos do tempo ou do vandalismo. Estava a caminho de Cam­bridge. Um nome entrara em foco, um homem que passara vinte e cinco anos ensinando Direito Comercial na Universidade de Harvard. Bray não o conhecia. Não havia maneira de o Matarese fazer dele um alvo.

Era estranho, pensou Bray, enquanto o táxi protestava ruidosamente contra a passagem sobre as costelas da Ponte de Longfellow, que tanto ele quanto Taleniekov tivessem sido levados de volta, se bem que por pouco tempo, aos lugares onde tudo começara para ambos.

Dois estudantes, um em Leningrado, outro em Cambridge, com certo talento (bem semelhante) para línguas estrangeiras.

Será que Taleniekov ainda estava vivo? Ou morto, ou morrendo, em alguma parte de Boston?

Toni estava viva. Eles a manteriam viva... por um pouco.

“Não pense neles. Não pense nela agora! Não há esperança. Aceite isso, viva com isso. E faça o melhor que puder...”

O trânsito fechou novamente na Praça Harvard, a chuva súbita causando confusão nas ruas. Pessoas amontoavam-se nas fachadas das lojas, pulando bueiros entupidos, encolhendo-se sob o toldo grande da banca de jornais.

A banca de jornais. Jornais do Mundo Inteiro é o que estava impresso no letreiro acima do toldo. Bray olhou pela janela, através da chuva e a massa de corpos. Um nome, um homem dominava as manchetes.

Waverly! David Waverly! Ministro do Exterior da Inglaterra!

—Vou saltar aqui — disse para o motorista, pegando a sacola de viagem e a pasta a seus pés.

Abriu caminho pela multidão, agarrou dois jornais nacionais de uma fileira de mais de vinte edições diferentes, deixou um dólar e correu para atravessar a rua. A meio quarteirão dali, na Avenida Massachusetts, havia um restaurante alemão de que se lembrava vagamente, de seus tempos de estudante. A entrada estava entupida. Scofield foi pedindo desculpas até a porta, usando a bolsa de viagem para abrir caminho, e entrou.

Havia uma fila esperando mesa. Foi para o bar e pediu uísque. A bebida chegou. Desdobrou o primeiro jornal. Era o Globe, de Boston. Começou a ler, correndo os olhos pelas palavras, extraindo os pontos principais da narrativa. Terminou e pegou o Times de Los Angeles, cuja história era idêntica; um serviço telegráfico e, quase certo, a versão oficial de Whitehall, e era isso que Bray queria saber.

O massacre de David Waverly, sua esposa, filhos e empregados na Praça de Belgravia foi tido como sendo o trabalho de terroristas, provavelmente um grupo desmembrado dos fanáticos palestinos. Ressaltavam, entretanto, que nenhum grupo ainda tinha se apresentado declarando-se responsável, e a OLP negava veementemente que tivesse tido participação. Mensagens de pesar e condolências eram mandadas por líderes políticos do mundo inteiro. Parlamentos e presidiums, congressos e cortes reais interromperam seus afazeres para exprimir sua fúria e sua dor.

Bray leu os dois artigos e as colunas relacionadas nos dois jornais, procurando o nome de Roger Symonds. Não o encontrou. Não o encontraria por muitos dias, talvez nunca. As especulações eram loucas demais, as possibilidades muito pouco prováveis. Um oficial superior do serviço secreto britânico ligado à chacina do ministro do Exterior da Inglaterra. O Ministério do Exterior abafaria a morte de Symonds por uma porção de razões. Não era a hora de...

Os pensamentos de Scofield foram interrompidos. À luz fraca do bar, não vira a nota. Era uma notícia de última hora no Globe.

 

Londres, 3 de março — Um aspecto estranho e brutal da chacina dos Waverly foi revelado pela polícia há poucas horas apenas. Após ser baleado na cabeça, David Waverly aparentemente recebeu um grotesco coup de grâce, um tiro de espingarda diretamente no peito, que literalmente arrancou a parte esquerda do torso. O médico-legista não conseguiu explicar o ocorrido, pois esse tipo de tiro, considerando o calibre e a proximidade da arma, é extremamente perigoso para quem segura a espingarda. A polícia de Londres aventurou a hipótese de que a arma usada possa ter sido uma espingarda primitiva, de cano curto, antiga favorita dos bandidos errantes do Mediterrâneo. A Enciclopédia de Armas de 1934 refere-se a essa arma como a Lupo, a palavra italiana para “lobo”.

 

O legista em Londres poderia achar estranho o método de matar, mas Scofield não. Se é que o ministro do Exterior da Inglaterra tinha um círculo azul irregular no peito como se fosse um sinal de nascença, esse se fora.

E havia uma mensagem no emprego da Lupo. O Matarese queria que Beowulf Agate compreendesse claramente que a febre corsa se espalhara por toda parte e penetrara os círculos mais exclusivos do poder.

Terminou a bebida, deixou o dinheiro no bar junto com os dois jornais e procurou um telefone. O nome que focalizara, o homem que queria ver, era o Dr. Theodore Goldman, reitor da Escola de Comércio da Universidade Harvard e um espinho na carne do Departamento de Justiça, pois era um crítico franco e aberto da Divisão Antitruste, declarando constantemente que a Justiça perseguia as minhocas e deixava os tubarões em liberdade. Era um enfant terrible de meia-idade que tinha prazer em lutar com gigantes pois era também um gigante, disfarçando seu talento atrás de uma fachada de inocência bem-humorada que não enganava a ninguém.

Goldman era a pessoa indicada para esclarecer o que realmente era o conglomerado chamado Trans-Communications.

Bray não o conhecia, mas encontrara seu filho um ano atrás em Haia, em circunstâncias potencialmente desastrosas para um jovem piloto da Força Aérea. Aaron Goldman embriagara-se com as pessoas erradas perto de Groote Kerk, homens que se sabia estarem envolvidos numa infiltração da KGB na OTAN. O filho de um judeu americano eminente era material de primeira para os soviéticos.

Um agente secreto desconhecido retirara o piloto de cena, curara sua bebedeira è mandara-o de volta à base. Depois de inúmeras xícaras de café, Aaron Goldman manifestara sua gratidão.

— Se algum dia você tiver um filho que quiser ir para a Universidade Harvard, fale comigo, seja você quem for. Falarei com meu pai, juro. Como é seu nome?.

— Não importa — Scofield dissera. — Vá embora daqui e não compre papel de escrever na Cooperativa. É mais barato no outro quarteirão.

— Que...

— Saia.

Bray viu o telefone público na parede. Pegou a bagagem e foi até lá.

 

Apanhou um pequeno pedaço de jornal molhado na calçada alagada e caminhou para a estação do metrô MPTA na Praça de Harvard. Desceu as escadas e deixou sua maleta de couro macio num compartimento de bagagem. Se fosse roubada, teria um significado, e não havia nada dentro dela que não pudesse repor. Enfiou o pedaço de jornal molhado com muito cuidado embaixo do canto direito da maleta. Se, mais tarde, o papel frágil estivesse enrolado ou rasgado, queria dizer outra coisa: que a maleta fora rebuscada, e ele estava na mira do Matarese.

Dez minutos depois, tocou a campainha da casa de Theodore Goldman na Rua Brattle. A porta foi aberta por uma mulher de meia-idade, esbelta, de rosto agradável e olhos curiosos.

— Sra. Goldman?

— Sim?

— Telefonei para seu marido a alguns minutos...

— Ah, sim, claro — interrompeu. — Ora, por favor, saia da chuva! Está um verdadeiro dilúvio de Noé. Entre, entre. Sou Anne Goldman.

Apanhou-lhe o casaco e o chapéu. Ele continuou segurando a pasta.

— Desculpe por incomodá-los.

— Que tolice. Aaron contou-nos sobre aquela noite em... Haia. Sabe, nunca consegui descobrir onde fica isso.

— Ê um pouco confuso.

— Parece que nosso filho estava muito confuso naquela noite, que é a maneira de uma mãe dizer que seu filho estava embriagado. — Fez um gesto na direção de um arco quadrado, tão comum nas casas antigas da Nova Inglaterra. — Theo está no telefone e tentando misturar um coquetel ao mesmo tempo, e está todo embrulhado Detesta o telefone e adora seu coquetel.

Theodore Goldman era pouco mais alto que a esposa, mas tão expansivo que parecia muito maior do que realmente era: Não podia esconder a inteligência excepcional, então apelava para o humor, pondo seus convidados e, sem dúvida, seus associados, à vontade.

Sentaram-se nas três poltronas de couro em frente à lareira, os Goldman com seus coquetéis, Bray bebendo uísque. A chuva lá fora caía pesada, martelando as janelas. A recapitulação da aventura do filho em Haia terminou em pouco tempo. Scofield a tratou como se fosse de pouca importância.

— Que teria conseqüências graves, desconfio — disse Goldman —, se um agente secreto desconhecido não estivesse nos arredores.

— Seu filho é um bom piloto.

— É bom que seja, pois não é bom bebedor. — Goldman recostou-se na cadeira. — Mas agora, que conhecemos esse cavalheiro desconhecido que teve a bondade de nos dar seu nome, que podemos fazer por ele?

— Para começar, por favor, não digam a ninguém que vim aqui vê-los.

— Isso parece meio sinistro, Sr. Vickery. Acho que não aprovo a tática de Washington nessas áreas.

— Não estou mais ligado ao Governo. Meu pedido é pessoal. Com franqueza, o Governo não me aprova mais, porque, nas minhas funções antigas, acho que descobri informações que Washington e especialmente o Departamento de Justiça não querem que venham à tona, e eu acho que devem. Isso é o máximo que posso dizer.

Goldman aceitou a explicação.

— É o bastante.

— Com toda a sinceridade, usei meu breve encontro com seu filho como pretexto para falar com o senhor. Não é louvável, mas é a verdade.

— Admiro a verdade. Por que queria falar comigo?

Scofield colocou o copo na mesa ao lado.

— Há uma companhia aqui em Boston, pelo menos a sede é aqui. É um conglomerado chamado Trans-Communications.

— Certamente que é. — Goldman sorriu. — A Noiva de Alabastro de Boston. A Rainha da Rua do Congresso.

— Não compreendo — disse Bray.

— A Torre Trans-Comm — explicou Anne Goldman. — É um prédio de pedra de trinta ou quarenta andares, com fileiras de vidro azul esfumaçado em cada andar.

— A torre de marfim com mil olhos a encarando — acrescentou Goldman, divertido. — Dependendo do ângulo do sol, alguns parecem abertos, outros fechados, e ainda outros parecem piscar.

— Piscar? Fechados?

— Olhos — disse Anne, piscando. — As linhas horizontais de vidro esfumaçado são enormes janelas, fileiras e fileiras de círculos azuis enormes.

Scofield prendeu a respiração. Per nostro circolo.

— Parece estranho — disse ele sem expressão.

— Na verdade, impressiona — replicou Goldman. — Um pouco outre para meu gosto, mas acho que é de propósito. Há uma espécie de pureza ultrajada nessa torre branca no meio da selva de concreto escuro do distrito financeiro.

— Muito interessante.

Bray não se conteve. Havia uma analogia obscura nas palavras de Goldman. A torre branca era um raio de luz, a selva era o caos.

— Chega da Noiva de Alabastro — disse o advogado-profes-sor. — Que quer saber sobre a Trans-Comm?

— Tudo que puder me dizer — respondeu Scofield.

Goldman ficou meio espantado.

— Tudo?... Acho que não sei tanto. É o clássico conglomerado multinacional, isso posso dizer. Extraordinariamente diversificado, brilhantemente dirigido.

— Li outro dia que muitos financistas ficaram atônitos com a extensão de sua penetração na Verachten.

— Sim — concordou Goldman, acenando com a cabeça exageradamente, como fazem as pessoas quando ouvem uma tolice repetida. — Muitas pessoas ficaram atônitas, mas eu não. Claro que a Trans-Comm é dona de grande parte da Verachten. Aposto que posso citar quatro ou cinco países onde suas posses espantariam essas mesmas pessoas. A filosofia de um conglomerado é comprar o máximo, o mais espalhado possível, e diversificar seus mercados. Usa e ao mesmo tempo refuta as leis malthusianas da economia. Cria concorrência agressiva em suas próprias fileiras, mas faz o possível para remover toda a concorrência externa. É isso que são as multinacionais, e a Trans-Comm é uma das melhores no mundo inteiro.

Brav observou o advogado enquanto esse falava. Goldman era professor natural. Contagiava com suas palavras, a voz erguendo-se, entusiasmada.

— Compreendo o que está dizendo, mas me perdi quando disse uma coisa, que podia citar quatro ou cinco países onde a TransComm tem extensos investimentos. Como pode fazer isso?

— Não sou só eu — protestou Goldman. — Qualquer pessoa. É só ler e usar um pouco de imaginação. As leis, Sr. Scofield. As- leis do país hospedeiro.

— As leis?

— São a única coisa que não pode ser evitada, a única proteção de compradores e vendedores. Na comunidade financeira internacional, tomam o lugar dos exércitos. Todos os conglomerados têm de aderir às leis do país em que operam suas divisões. Bem, essas mesmas leis freqüentemente garantem sigilo; são a estrutura dentro da qual as multinacionais têm de funcionar, corrompendo e modificando-as quando podem, claro. E, quando o fazem, têm de arranjar intermediários que as representem. Legalmente. Um advogado de Boston exercendo a profissão em Massachusetts não seria de nenhuma valia em Hong Kong. Ou em Essen.

— Aonde quer chegar? — perguntou Bray.

— Estude as firmas de advogados. — Goldman inclinou-se para a frente. — Emparelhe as firmas e sua localização com o nível geral de seus clientes e os serviços que costumam prestar. Quando encontrar uma que é conhecida em negociações de ações, olhe em volta para ver quais as companhias por perto que estão a ponto de serem invadidas. — O acadêmico estava se divertindo. — Na verdade, é muito simples — continuou — e é uma brincadeira muito divertida. Já apavorei mais de um empregadinho desses conglomerados em minhas turmas de verão dizendo-lhes para onde eu achava que os donos do dinheiro em sua companhia estavam indo. Tenho um pequeno fichário, fichinhas de doze por oito centímetros, onde anoto minhas pesquisas.

Scofield falou. Tinha de saber.

— Tem uma ficha para a Trans-Comm?

— Ah, claro que sim. É isso que quis dizer quando falei em outros países.

— Quais são eles?

Goldman ficou de pé em frente da lareira, franzindo a testa para se lembrar.

— Começaremos pelas Fábricas Verachten. Os relatórios estrangeiros da Trans-Comm mencionam pagamentos consideráveis à firma Gehmeinhoff-Salenger em Essen. Gehmeinhoff é uma ligação legal direta com a Verachten e não estão interessados em transações de tostões. Era lógico que a Trans-Comm visava um grande naco do complexo. Embora tenha de confessar que nem eu pensei que fosse tão grande quanto os boatos dizem. Provavelmente não é.

— E os outros?

— Vejamos... Japão. Quioto. A TC usa a firma Aikawa-Onmura e qualquer coisa mais. Meu palpite é Yakashubi Eletrônica.

— Muito substancial, não é?

— Muito superior à Panasonic.

— E que tal a Europa?

— Bem, sabemos da Verachten. — Goldman franziu os lábios. — Depois, é evidente, vem Amsterdam. A firma de advogados lá é Hainaut & Filhos, o que me leva a pensar que a Trans-Comm comprou ações da Holanda Têxteis, que é um guarda-chuva cobrindo uma série de companhias que vão da Escandinávia a Lisboa. Daí podemos ir para Lyon... — O advogado parou e sacudiu a cabeça. — Não, isso deve estar ligado a Turim.

— Turim? — Bray empertigou-se.

— Sim, estão tão próximos, seus interesses são tão compatíveis, não há dúvida de que a primeira aquisição foi em Turim.

— Quem em Turim?

— A firma legal é Palladino-e-La Tona, o que só pode ser uma companhia, ou companhias. Scozzi-Paravacini.

Scofield ficou rígido.

— É um cartel, não é?

— Meu Deus, claro que sim. Agnelli e Fiat têm toda a propaganda, mas Scozzi-Paravacini dirige o Coliseu e todos os leões. Combine-o com Verachten e Holanda Têxteis, adicione Yakashubi, Singapura e Perth e mais uma dúzia de nomes na Inglaterra, Espanha e África do Sul que não mencionei, e verá que a Noiva de Alabastro de Boston organizou uma federação mundial.

— Parece que aprova.

— Não, não aprovo. Acho que ninguém pode aprovar essa centralização de tanto poder econômico. É uma corrupção da lei mal-thusiana, a concorrência é falsa. Mas respeito a existência de um gênio que consegue resultados tão espantosos. A Trans-Commun-ications foi uma idéia concebida e desenvolvida na mente de um homem: Nicholas Guiderone.

— Já ouvi falar nele. Um Carnegie ou Rockefeller de hoje em dia, não?

— Mais do que isso, muito mais. Os Geneen, os Lucas, os Bluedhorn, os homens miraculosos de Detroit e Wall Street, nenhum deles chega aos pés de Guiderone. É o último dos gigantes em extinção, um verdadeiro monarca benigno da indústria e das finanças. Quase todos os principais governos ocidentais e muitos orientais, incluindo Moscou, têm lhe prestado homenagens.

— Moscou?

— Certamente — disse Goldman, agradecendo a esposa com a cabeça ao vê-la encher novamente seu copo. — Ninguém fez mais que Nicholas Guiderone para abrir o comércio entre o Oriente e o Ocidente. Posso mesmo dizer que não sei de ninguém que tenha feito mais em prol do comércio internacional em geral. Tem mais de oitenta anos agora, mas consta que tem tanta energia e vitalidade quanto no dia em que saiu da escola Boston Latin.

— Ele é de Boston?

— É. É uma história sensacional. Veio para este país quando menino. Um imigrante de dez ou doze anos, sem mãe, viajando com um pai quase analfabeto no porão de um navio. Acho que podemos chamá-la a verdadeira história do sonho americano.

Involuntariamente, Scofield apertou o braço da cadeira. Sentiu uma pressão no peito e a garganta apertada.

— De onde vinha o navio?

— Da Itália — disse Goldman, tomando um gole da bebida. — Sul da Itália. Sicília ou uma daquelas ilhas.

Bray quase teve medo de fazer a pergunta.

— Saberia por acaso se Nicholas Guiderone chegou a conhecer algum membro da família Appleton?

Goldman olhou-o por cima da beira do copo.

— Sei, assim como quase todo mundo em Boston. O pai de Guiderone trabalhou para os Appleton, para o avô do senador, em Appleton Hall. Foi o velho Appleton que descobriu que o menino prometia muito, ajudou-o e persuadiu as melhores escolas a aceitá-lo. Não era tão fácil naqueles tempos, no princípio do século. Os irlandeses com seus dois banheiros tinham acabado de comprar o segundo, e ainda não eram muito numerosos. Um garoto italiano não tinha lugar na sociedade, pertencia à sarjeta.

As palavras de Bray pareciam flutuar no ar, ele mesmo quase não conseguiu ouvi-las.

— Está falando de Joshua Appleton, o segundo, não é?

— Sim.

— Ele fez tudo isso por essa... criança.

— Formidável, não é? E os Appleton estavam cheios de problemas naquela época. Haviam perdido quase tudo nas flutuações da bolsa. Estavam pendurados por um fio. Foi quase como se o velho Joshua tivesse visto uma mensagem escrita numa parede legendária.

— Que quer dizer com isso?

— Guiderone pagou tudo de volta, milhares de vezes mais. Antes de Appleton morrer, viu suas companhias lá em cima novamente, ganhando dinheiro de maneiras com que ele nunca sonhara, o capital jorrando dos bancos pertencentes ao garoto italiano que encontrara em sua cocheira.

— Oh, meu Deus...

— Eu lhe disse — Goldman falou. — É uma história sensacional. Está toda aí para quem quiser ler.

— Se souber onde procurar. E por quê.

— Como?

— Guiderone...

Scofield sentiu que estava andando através de um redemoinho de névoas em direção a uma luz fantasmagórica. Jogou a cabeça para trás e olhou para o teto, para as sombras que dançavam, atiradas pelo fogo na lareira.

— Guiderone. É derivado do italiano guida. Um guia.

— Ou pastor — disse Goldman.

Bray sacudiu a cabeça para a frente, os olhos bem abertos, fixos no advogado.

— Que disse?

Goldman estava espantado.

— Não fui eu, foi ele. Seis ou sete meses atrás, na ONU.

— As Nações Unidas?

— Sim. Guiderone foi convidado a falar na Assembléia Geral. O convite foi unânime, por falar nisso. Não o ouviu falar? Foi transmitido para o mundo inteiro. Chegou até a gravar em francês e italiano para a Rádio Internacional.

— Não.

— O eterno problema da ONU. Ninguém ouve.

— Que foi que ele disse?

— Mais ou menos o que acabou de dizer. Que seu nome tinha raízes na palavra guida ou guia. E era assim que sempre pensava em si mesmo. Como um simples pastor, guiando seus rebanhos, consciente dos declives rochosos e riachos intransponíveis... esse tipo de coisa. Apelou para relações internacionais baseadas em necessidades materiais mútuas, que alegava levariam a uma forma de moralidade mais elevada. Filosoficamente, foi um pouco estranho, mas surtiu tremendo efeito, tanto que há uma resolução na agenda dessa sessão tornando-o membro efetivo do Conselho Econômico da ONU. Isso não é só um título. Com sua experiência e recursos, não há governo no mundo que não preste muita atenção quando ele falar. Será um poderosíssimo amicus curiae.

— Ouviu esse discurso?

— Claro — o advogado riu. — Foi obrigatório em Boston. Quem não ouvisse era cortado da lista de assinantes do Globe. Vimos tudo na Televisão Pública.

— Como era ele?

Goldman olhou para a esposa.

— Bem, um homem muito velho. Vigoroso ainda, mas velho. Como você o descreveria, meu bem?

— Como você — disse Anne. — Um velho. Não é grande, mas impressiona, tem aquele ar de alguém que está habituado a que se preste atenção ao que diz. Lembro uma coisa, sobre a voz. Era uma voz aguda, talvez um pouco sem fôlego, mas falava extremamente claro, cada frase muito precisa, muito penetrante. Muito fria, na verdade. Não se perdia uma palavra.

Scofield fechou os olhos e pensou numa cega nas montanhas acima de Porto Vecchio, na Córsega, girando o dial de um rádio e ouvindo uma voz mais cruel que o vento.

Encontrara o pequeno pastor.

 

Encontrara-o!

“Toni, encontrei-o! Fique viva, não deixe que eles a destruam. Não matarão seu corpo, mas tentarão matar sua mente. Não deixe que façam isso. Irão atrás de seus pensamentos e o modo de você pensar. Vão tentar mudar você, alterar os processos que fazem de você o que você é. Eles não têm escolha, minha querida. Um refém tem de ser programado mesmo depois que a armadilha se tranca. Os profissionais entendem. Não há extremos que não sejam considerados. Procure algo dentro de você mesma, para o meu bem. Entende, meu amor adorado, encontrei uma coisa. Encontrei-o. O pequeno pastor! É uma arma. Preciso de tempo para usá-la. Fique viva. Proteja sua mente!”

 

“Taleniekov, meu inimigo que não consigo mais odiar. Se você está morto não há nada que eu possa fazer, só ir embora, sabendo que estou sozinho. Se está vivo, continue respirando. Não prometo nada, não há esperança, na verdade. Mas temos algo que nunca tivemos antes. Temos o que procurávamos. Sabemos quem é o pequeno pastor. A teia se define agora e rodeia o mundo. Scozzi-Paravacini, Verachten, Trans-Communications... e uma centena de companhias diferentes entre cada uma. Todas elas unidas pelo pequeno pastor, todas dirigidas de uma torre de alabastro que olha a cidade com seus milhares de olhos... Mas ainda falta alguma coisa. Sei, sinto isso! Alguma coisa que está no centro da teia. Nós que abusamos tanto desse mundo por tanto tempo desenvolvemos instintos, não é? Os meus são muito fortes. Está lá adiante. Preciso de tempo. Continue respirando... meu amigo.”

 

“Não posso mais pensar neles; preciso expulsá-los da mente. Eles se intrometem, interferem, colocam barreiras. Eles não existem; ela não existe e eu a perdi. Não vamos envelhecer juntos, não há esperança... Agora, mexa-se. Pelo amor de Deus, mexa-se!”

 

Deixara os Goldman rapidamente, agradecendo-lhes, confundindo-os com suas abruptas despedidas. Fizera apenas mais algumas perguntas, sobre a família Appleton, perguntas essas que qualquer pessoa bem-informada de Boston poderia responder. A informação era tudo de que precisava, não havia razão para ficar mais. Andava agora na chuva, fumando um cigarro, pensando na peça que faltava, que seus instintos lhe diziam ser uma arma maior que o pequeno pastor, embora parte dele, parte da falsidade de Nicholas Guiderone. Que seria? Onde estava a nota falsa que ouvia tão claramente?

Sabia de uma coisa, entretanto, e era mais que instinto. Tinha o suficiente para botar o senador Joshua Appleton IV em pânico. Telefonaria para o senador em Washington e recitaria uma ladainha que começara setenta anos atrás, em 4 de abril de 1911, nas colinas de Porto Vecchio. O senador tinha alguma coisa a dizer? Poderia esclarecer algo sobre uma organização conhecida como o Matarese que iniciou suas atividades na segunda década do século, talvez em Sarajevo, vendendo assassinatos políticos? Uma organização que a família Appleton nunca abandonara, pois a trilha levava a um arranha-céu branco em Boston, uma companhia honrada com a presença do senador em sua diretoria. A era de Aquário tornara-se a era da conspiração. Um homem a caminho da Casa Branca teria de entrar em pânico, e é em pânico que os erros ocorrem.

Mas o pânico pode ser controlado. O Matarese montaria as defesas do senador rapidamente, a presidência era um prêmio grande demais, não poderiam perdê-lo. Acusações feitas por um traidor não tinham valor algum. Eram meras palavras pronunciadas por um homem que traíra seu país.

Instinto. Olhe para o homem — o homem — minuciosamente.

Joshua Appleton não era aquilo que a nação via, a figura paterna que a todos encantava. E o homem do dia-a-dia? Teria acaso fraquezas que seriam infinitamente mais difíceis de refutar que a grande conspiração denunciada pelo traidor? Seria concebível (e quanto mais Bray pensava sobre isso, mais lógico lhe parecia) que toda a história da Coréia tivesse sido um embuste? Será que compraram comandantes e medalhas e uma centena de homens para uma vigília a quem ninguém dava importância? Não seria a primeira vez que a guerra havia sido usada como trampolim para uma vida civil célebre. Era um cenário perfeito, se a peça fosse executada com precisão; e por que não seria, com os recursos controlados pelo Matarese?

Olhe para o homem. O homem.

Goldman colocara a família Appleton em dia para Bray. A residência oficial do senador era uma casa em Concord onde ele e a família passavam somente os meses de verão. Seu pai morrera vários anos atrás. Nicholas Guiderone prestara as últimas homenagens ao filho de seu mentor comprando o imenso Appleton Hall da viúva a um preço muito acima do que o mercado oferecia, prometendo manter o nome perpétuo. A velha Sra. Appleton morava agora em Beacon Hill, numa casa de pedra escura na Praça Louisburg.

A mãe. Que espécie de mulher seria? Tinha setenta e tantos anos, Goldman calculara. Poderia dizer-lhe alguma coisa? Involuntariamente, talvez muito. As mães eram melhores fontes de informação do que geralmente se pensa, não pelo que dizem, mas pelo que deixam de dizer, por súbitas mudanças de assunto.

Eram nove e vinte. Bray ficou em dúvida se poderia encontrar a mãe de Appleton e conversar com ela. A casa poderia ser vigiada, mas não com prioridade. Um carro estacionado na praça à vista da casa, um homem, talvez dois. Se esses homens existissem e ele os eliminasse, o Matarese saberia que estava em Boston, e não estava pronto para isso. Entretanto, a mãe poderia encurtar o caminho, dar-lhe um nome, um incidente, algo que pudesse investigar rapidamente. Tinha muito pouco tempo. O Sr. B. A. Vickery era aguardado no Ritz Carlton, mas quando chegasse lá precisava estar bem armado. Na melhor das hipóteses, teria seu próprio refém, teria Joshua Appleton IV.

 

Não havia esperança. Devia tentar tudo. E havia o instinto.

 

A Rua Chestnut subia íngreme para a Praça Louisburg, e os quarteirões eram progressivamente mais quietos. Era como se estivesse deixando um mundo profano para entrar num sagrado. Sinais luminosos berrantes foram substituídos pelas chamas bruxuleantes de lampiões a gás, as ruas de paralelepípedos eram imaculadas. Chegou à Praça, aconchegando-se à sombra de um prédio de tijolos na esquina.

Tirou um pequeno binóculo da pasta e focalizou as poderosas lentes Zeiss-Icon em cada um dos carros parados nas ruas ao redor do parque no centro da Praça Louisburg.

Não havia ninguém.

Bray colocou o binóculo de volta na pasta, saiu da sombra do prédio de tijolos e caminhou pela rua pacífica em direção à casa de pedra dos Appleton. As casas imponentes em volta do pequeno parque cercado de ferro forjado estavam todas em silêncio. O ar da noite era de um frio cortante e os lampiões a gás tremulavam mais agora com as rajadas intermitentes do vento de inverno. As janelas estavam todas fechadas e as lareiras acesas na Praça Louis­burg. Era um mundo diferente, remoto, quase isolado, certamente em paz consigo mesmo.

Subiu os degraus de pedra branca e tocou a campainha. As luminárias de cada lado da porta projetavam luz demais para seu conforto.

Ouviu o som de passos. Uma enfermeira abriu a porta e ele viu imediatamente que a mulher o reconhecera, pela exclamação breve, involuntária, que escapou de seus lábios e o rápido arregalamento dos olhos. Isso explicava por que não havia ninguém na rua: o guarda estava dentro da casa.

— A Sra. Appleton, por favor?

— Sinto muito, já se recolheu.

A enfermeira ia fechar a porta. Scofield meteu o pé esquerdo na abertura e o ombro contra o painel preto, pesado, e forçou a porta.,

— Receio que saiba quem sou — disse, entrando e deixando cair a pasta.

A mulher descreveu uma pirueta, metendo a mão direita no bolso do uniforme. Bray reagiu empurrando-a mais ainda em sua pirueta, agarrando o pulso e torcendo-o para baixo e para longe do corpo. Ela gritou Scofield jogou-a no chão, batendo com o joelho na base da espinha. Com o braço esquerdo, rodeou-lhe o pescoço e apertou violentamente enquanto ela caía. Mais dez libras de pressão e lhe teria quebrado o pescoço. Mas não queria isso, queria essa mulher viva. Ela caiu no chão desacordada.

Agachou-se em silêncio, tirando o revólver de cano curto do bolso do uniforme da enfermeira, aguardando sons ou sinais humanos. O grito deveria ter sido ouvido por qualquer pessoa dentro de casa.

Não ouviu nada. Havia algo, mas era tão fraco que não podia imaginar o que fosse. Viu um telefone perto das escadas, foi até lá e tirou-o do gancho. Só ouviu o zunido de discar, ninguém estava usando o telefone. Talvez a mulher tivesse dito a verdade. Era possível que a Sra. Appleton estivesse recolhida. Em breve saberia.

Primeiro, tinha de saber outra coisa. Voltou para junto da enfermeira, arrastou-a até a luz da entrada e rasgou a frente do uniforme. Rasgou também a combinação e o sutiã, empurrou o seio esquerdo para cima e olhou a carne.

Lá estava. O pequeno círculo azul irregular, como Taleniekov o descrevera. O sinal de nascença que não era um sinal de nascença, e sim a marca do Matarese.

De repente, vindo de cima, ouviu o zumbido de um motor, vibrando continuamente em tom baixo. Bray saltou por cima do corpo da enfermeira inconsciente, escondeu-se à sombra das escadas e ergueu o revólver.

Na curva do primeiro patamar surgiu o vulto de uma mulher idosa. Estava sentada na cadeira ornamentada de um elevador automático, segurando o poste esculpido que subia do balaústre. Vestia um roupão cinza-escuro de gola alta e seu rosto, antigamente delicado, era uma ruína, a voz distorcida.

— Imagino que seja uma das maneiras de acorrentar a cadela ou encurralar a loba no cio, mas se seu objetivo é sexual, meu rapaz, duvido que tenha bom gosto.

Sra. Joshua Appleton III... bêbada. A julgar pelas aparências, estava bêbada há anos.

— Meu único objetivo, Sra. Appleton, é ver a senhora. Essa mulher tentou impedir-me. Esta arma não é minha, é dela. Sou agente secreto empregado pelo Governo dos Estados Unidos e estou pronto a lhe mostrar minha identificação. Devido ao que aconteceu, estou procurando armas escondidas. Faria o mesmo em quaisquer circunstâncias, em qualquer lugar, a qualquer hora.

Foi assim que começou, e com a equanimidade oriunda de prolongada saturação em álcool, a velha senhora aceitou sua presença.

Scofield carregou a enfermeira para uma sala de estar pequena, amarrou seus pés e mãos com tiras feitas do náilon de suas meias-calças, guardando o elástico da cintura para uma mordaça enfiada entre os dentes e amarrada, bem-apertado, atrás do pescoço. Fechou a porta e voltou para a Sra. Appleton no salão de visitas. Ela se servira de conhaque. Bray olhou para o copo de feitio estranho e para todas as garrafas depositadas em mesas por toda a sala. O vidro era tão grosso que não se quebraria facilmente, e as garrafas de cristal estavam arrumadas de maneira tal que era possível servir-se de uma bebida a cada dois ou três metros, em todas as direções. Estranha terapia para quem era tão obviamente al­coólatra.

— Receio — disse Scofield, parando no portal — que quando sua enfermeira voltar a si tenha de lhe passar um sermão sobre o uso indiscriminado de armas de fogo. Ela a protege de maneira muito estranha, Sra. Appleton.

— Muito estranha mesmo, meu rapaz. — A senhora ergueu o copo e sentou-se cuidadosamente numa poltrona. — Mas já que ela tentou e fracassou tão miseravelmente, por que não me conta do que ela estava me protegendo? Por que veio me ver?

— Posso sentar-me?

— Esteja à vontade.

Bray começou sua história.

— Como disse, sou agente secreto ligado ao Departamento de Estado. Alguns dias atrás, recebemos um relatório que envolve seu filho, através do pai, numa organização européia que, é sabido há anos, tem ligações com o crime internacional.

— Com o quê! — A Sra. Appleton deu uma risadinha. — Você é muito divertido.

— Desculpe-me, mas não há nada de engraçado nisso.

— De que está falando?

Scofield descreveu um grupo de homens parecido com o Conselho Matarese, observando cuidadosamente a velha para qualquer indício de que tinha feito alguma ligação. Não tinha nem certeza de ter penetrado em sua mente enfumaçada. Tinha de apelar para a mãe, não para a mulher.

— A informação da Europa foi mandada e recebida sob o maior sigilo. Pelo que sei, sou a única pessoa em Washington que a leu e, mais ainda, tenho certeza de que posso guardar segredo. Entenda, Sra. Appleton, acho que é da máxima importância para o país que nada disso atinja o senador.

— Meu rapaz — interrompeu a velha senhora. — Nada pode atingir o senador, não sabe disso? Meu filho será presidente dos Estados Unidos. Vai ser eleito no outono. Todo mundo diz isso. Todo mundo o quer.

— Então não me expliquei bem, Sra. Appleton. O relatório da Europa é devastador e preciso de informações. Antes de seu filho candidatar-se, trabalhava com seu pai nos negócios Appleton? Viajava freqüentemente à Europa com seu marido? Quem eram seus amigos mais íntimos aqui em Boston? Isso é tremendamente importante. Pessoas que só a senhora conhece, homens e mulheres que vinham vê-lo em Appleton Hall.

“Appleton Hall... lá em cima, na Appleton Hill” — interrompeu a velha senhora num murmúrio tenso, cantarolado, que não tinha melodia aparente. — “Com a mais bela vista de Boston... e para sempre calado.” Joshua, o primeiro, escreveu isso há mais de cem anos. Não é muito bom, mas dizem que ele tirou as notas num cravo. Isso é muito dos Joshuas, um cravo. Como todos nós, na verdade.

— Sra. Appleton? Quando seu filho voltou da guerra na Coréia...

— Nunca falamos sobre essa guerra! — Por um instante, seus olhos se focalizaram, hostis. Depois as nuvens voltaram. — Claro que quando meu filho for presidente eles não vão me exibir como Rose ou a Srta. Lillian. Guardam-me para ocasiões muito especiais. — Fez uma pausa e riu, uma risada leve, zombando dela mesma. — Depois de sessões muito especiais com o médico. — Fez outra pausa e levou o indicador aos lábios. — Sabe, meu rapaz, a sobriedade não é uma das minhas qualidades.

Scofield observou-a de perto, entristecido pelo que via. Sob a face em ruínas, houvera um dia um rosto lindo, de olhos límpidos e vividos, não flutuando em órbitas mortas como eram agora.

— Sinto muito. Deve ser doloroso saber disso.

— Pelo contrário — respondeu ela caprichosamente. Foi sua vez de estudá-lo. — Você se considera inteligente?

— Nunca pensei no assunto de uma forma ou de outra. — Instinto. — Há quanto tempo a senhora está... doente, Sra. Appleton?

— Desde que me lembro, e isso é muito tempo, obrigada.

Bray olhou novamente para as garrafas.

— O senador esteve aqui recentemente?

— Por que pergunta?

Parecia divertida. Ou estaria em guarda?

— Nada, realmente — disse Scofield, casualmente. Não podia alarmá-la. Não agora. Não sabia por que, ou o quê, mas alguma coisa estava acontecendo. — Dei a entender à enfermeira que o senador poderia ter me mandado aqui, que talvez ele mesmo estivesse a caminho daqui.

— Então, aí está a razão! — exclamou a senhora triunfante com sua voz tensa e alcoólica. — Não admira que tentasse impedi-lo de entrar!

— Por causa disso? — perguntou Bray calmamente, indicando as garrafas. — Garrafas cheias, evidentemente todos os dias, com álcool. Talvez seu filho fizesse objeções.

— Oh, não seja idiota! Ela tentou impedi-lo porque você mentiu.

— Menti?

— Claro! O senador e eu só nos encontramos em ocasiões especiais, depois daqueles tratamentos muito especiais, quando me põem em exibição para que o público que o adora possa ver a mãe que o adora. Meu filho nunca esteve nesta casa e nunca viria aqui. A última vez que estivemos juntos a sós foi há mais de oito anos. Até no enterro de seu pai, embora ficássemos de pé juntos, mal nos falamos.

— Posso perguntar por quê?

— Não. Mas posso lhe dizer que nada tem a ver com o que você estava dizendo, o pouco que entendi.

— Por que disse que nunca discutiam a guerra da Coréia?

— Não seja presunçoso, rapaz! — A Sra. Appleton levou o copo aos lábios. A mão tremeu e o copo caiu, derramando conhaque no roupão. — Diabo!

Scofield levantou-se da cadeira.

— Deixe — ordenou ela.

— Vou apanhá-lo — disse ele, ajoelhando-se em frente dela. —Pode tropeçar nele.

— Então apanhe. E me veja outro, por favor.

— Com prazer. — Foi a uma mesa próxima e serviu conhaque em outro copo. — Diz que não gosta de discutir a guerra da Coréia...

— Disse — interrompeu ela — que nunca a discutia.

— Tem muita sorte. Isso é, só diz isso e esquece o assunto. Há pessoas que não têm tanta sorte. — Ficou em frente dela, sua sombra caindo sobre ela, a mentira bem pensada. — Eu, por exemplo. Estive lá. Seu filho também.

Ela bebeu alguns goles sem parar.

— A guerra mata muito mais que os corpos que leva. Acontecem coisas terríveis. Aconteceram com você, meu rapaz?

— Aconteceram.

— Fizeram aquelas coisas horrorosas com você?

— Que coisas horrorosas, Sra. Appleton?

— Fazer você passar fome, bater-lhe, enterrá-lo vivo, enchendo suas narinas de terra e lama para você não respirar? Morrendo devagar, consciente, acordado e morrendo?

Ela descrevia torturas documentadas por homens feitos prisioneiros em campos da Coréia do Norte. Qual era a relevância?

— Não, isso não aconteceu comigo.

— Aconteceram com ele, sabe. Os médicos me contaram. Foi o que o fez mudar. Por dentro. Mudou tanto... Mas nunca devemos falar sobre isso.

— Falar sobre?... — Que estaria ela dizendo? — Quer dizer, o senador?

— Shhhh! — Bebeu o resto do conhaque. — Não devemos nunca, nunca, falar nisso.

— Entendo — disse Bray, mas não entendia.

O senador Joshua Appleton IV nunca fora feito prisioneiro dos coreanos do Norte. O capitão Josh Appleton tinha escapado de ser capturado em várias ocasiões, muitas vezes por trás das linhas do inimigo, e por isso mesmo havia sido condecorado. Scofield continuou de pé em frente dela e falou novamente.

— Mas devo dizer que nunca notei grande diferença nele, a não ser ficar mais velho. É verdade que não o conhecia muito bem vinte anos atrás, mas para mim ele ainda é um dos homens mais nobres que conheço.

— Por dentro! — murmurou ela asperamente. — É tudo por dentro! é uma máscara... e o povo o adora tanto. — De repente, seus olhos nublados se encheram de lágrimas e as palavras que se seguiram eram um grito do fundo de sua memória. — Deviam adorá-lo! Era um menino tão lindo, um rapaz tão bonito. Nunca houve alguém como o meu Josh, ninguém mais carinhoso, mais cheio de bondade!... Até fazerem essas coisas horrorosas com ele. — Chorava agora. — E eu fui péssima. Era sua mãe e não compreendia! Queria meu Josh de volta! Queria tanto meu Josh de volta!

Bray ajoelhou-se e tirou-lhe o copo da mão.

— Que quer dizer, queria-o de volta?

— Não podia compreender! Estava tão frio, tão distante. Tinham tirado toda sua alegria. Não havia alegria nele! Ele saiu do hospital... e a dor tinha sido demais e eu não podia compreender. Ele me olhou e não havia alegria, não havia amor. Nada lá dentro!

— O hospital! O acidente depois da guerra, logo depois da guerra?

— Ele sofreu tanto... e eu estava bebendo tanto... tanto. Cada semana que ele passava naquela guerra horrível eu bebia mais e mais. Não agüentava! Ele era tudo que eu tinha. Meu marido era... só no nome, minha culpa, tanto quanto dele, deve ter sido. Estava desgostoso de mim. Mas eu amava meu Josh tanto.

Estendeu a mão para o copo. Ele o pegou primeiro e serviu mais conhaque. Ela o olhou através das lágrimas, seus olhos flutuantes cheios da tristeza de saber o que ela mesma era.

— Eu lhe agradeço muito — disse com dignidade.

— Não há de quê — respondeu ele, sentindo-se impotente.

— De certo modo — murmurou ela —, ainda o tenho comigo, mas ele não sabe. Ninguém sabe.

— Como?

— Quando saí de Appleton Hall... em Appleton Hill... conservei seu quarto exatamente como era, como sempre fora. Sabe, ele nunca voltou, na verdade não voltou. Somente por uma hora, uma noite, para pegar algumas coisas. Então peguei um quarto aqui e fiz dele o seu quarto. Será sempre seu, mas ele não sabe.

Bray ajoelhou-se em frente dela novamente.

— Sra. Appleton, posso ver esse quarto? Por favor, posso vê-lo?

— Oh, não, isso não seria direito — disse ela. — É muito privado. É dele, e sou a única pessoa que ele deixa entrar. Ele ainda vive lá, sabe? Meu lindo Joshua.

— Tenho de ver esse quarto, Sra. Appleton. Onde é?

Instinto.

— Por que você tem de vê-lo?

— Posso ajudar a senhora. Posso ajudar seu filho. Eu sei.

 Ela franziu os olhos, estudando-o de algum ponto interno.

— Você é um homem bondoso, não é? E não é tão jovem quanto pensei. Seu rosto tem rugas e o cabelo está grisalho nas têmporas. Você tem uma boca forte, já lhe disseram isso?

— Não, acho que não. Por favor, Sra. Appleton, tenho de ver esse quarto. Deixe-me.

— É muito delicado em pedir. Ninguém me pede nada hoje em dia, só me dão ordens. Muito bem, ajude-me a ir até o elevador e iremos lá em cima. Você compreende, é claro, temos de bater na porta. Se ele disser que você não pode entrar, terá de ficar do lado de fora.

Scofield guiou-a através do salão até a cadeira-ascensora e subiu as escadas ao seu lado até o segundo andar, onde a ajudou a sair da cadeira.

— Por aqui — disse ela, indicando um corredor estreito e escuro. — É a última porta à direita.

Chegaram, ficaram em frente a ela por um momento, e então a velha senhora bateu de leve na madeira.

— Saberemos em um minuto — disse, inclinando a cabeça como se estivesse esperando uma resposta de dentro do quarto. — Tudo bem — disse, sorrindo. — Disse que você podia entrar, mas não deve tocar em nada. Tudo está arrumado como ele gosta.

Abriu a porta e ligou o interruptor na parede. Três luzes separadas acenderam-se, mas a iluminação era fraca. Sombras projetavam-se pelo chão e sobre as paredes.

Era o quarto de um jovem, com recordações de uma mocidade dispendiosa espalhadas por toda parte. As flâmulas sobre a cama e a escrivaninha eram de Andover e Princeton, os troféus nas prateleiras eram de esportes como vela, esqui, tênis e lacrosse. O quarto tinha sido conservado, fantasmagoricamente, como se tivesse pertencido a um príncipe da Renascença. Um microscópio estava ao lado de um estojo de química, um volume da Enciclopédia Britânica estava aberto, a maior parte de uma página sublinhada, com anotações a mão feitas na margem. Na mesa de cabeceira havia romances de Dos Passos e Koestler, e junto deles, batida a máquina, a página-título de um ensaio da autoria do célebre ocupante do quarto. Era intitulado: “Os Prazeres e as Responsabilidades de Velejar em Águas Profundas. Submetido por Joshua Appleton. Academia Andover. Março, 1945.” Aparecendo embaixo da cama estavam três pares de sapatos: mocassins, tênis e um de verniz preto, para traje a rigor. A combinação cobria uma vida.

Bray fez uma careta na semipenumbra do quarto. Estava no túmulo de um homem que estava bem vivo, cercado de artefatos de uma vida, talvez destinados a transportar o morto com segurança em sua viagem através da escuridão. Era uma experiência macabra, ao se lembrar de Joshua Appleton, o elétrico, magnético senador de Massachusetts. Scofield olhou para a mãe dele. Ela olhava, impassível, uma série de fotografias na parede. Bray deu um passo à frente para vê-las.

Eram fotografias de um Joshua Appleton mais moço e de vários amigos, sempre os mesmos, aparentemente a tripulação de um barco a vela, identificado na fotografia do centro. Essa mostrava uma longa flâmula segurada por quatro rapazes de pé no tombadilho. “Campeonato de Regata de Marblehead — Verão, 1949.”

A fotografia do centro e as três acima mostravam os quatro membros da tripulação. As três fotografias de baixo eram de só dois rapazes, Appleton e um outro, ambos nus da cintura para cima, esbeltos, musculosos, apertando as mãos sobre o leme; sorrindo para a máquina, um de cada lado do mastro, e sentados na amurada, erguendo os copos num brinde.

Scofield olhou os dois de perto e depois comparou-os com os outros rapazes. Appleton e o que era obviamente seu melhor amigo tinham um ar de força e coragem ausente nos outros dois, um senso de segurança, de convicção. Não eram parecidos, a não ser, talvez, em altura e largura, atletas à vontade um com o outro, mas também não eram muito diferentes. Ambos tinham feições bem-delineadas, ainda que diferentes. Queixos fortes, testas largas, olhos grandes e abundantes cabelos escuros e lisos.

Alguma coisa o perturbou nas fotografias. Bray não sabia o quê, mas sentiu. Instinto.

— Esses dois parecem primos — disse.

— Durante anos, foi como se fossem irmãos — replicou ela. — Em tempos de paz, seriam sócios, na guerra, soldados juntos! Mas ele era um covarde, traiu meu filho. Meu lindo Joshua foi para a guerra sozinho e fizeram coisas horríveis com ele. Ele fugiu para a Europa, para a segurança de um chateau. Mas a justiça é estranha, morreu em Gstaad, de ferimentos numa pista de esqui. Que eu saiba, meu filho nunca mais mencionou seu nome desde então.

— Desde?... Quando foi isso?

— Há vinte e cinco anos.

— Quem era ele? Ela lhe disse.

Scofield não podia respirar, não havia ar no quarto, somente sombras no vácuo. Encontrara o pequeno pastor, mas o instinto lhe dissera que procurasse algo mais, o fragmento mais espantoso de tudo que. aprendera. Agora o encontrara. A peça mais devastadora do quebra-cabeça estava no lugar. Só precisava de provas, porque a verdade era inacreditável.

Estava num túmulo. O morto viajara na escuridão durante vinte e cinco anos.

 

Levou a velha para o quarto, deu-lhe uma dose final de conhaque e deixou-a. Ao fechar a porta, ela estava sentada na cama cantarolando sem melodia. “Appleton Hall... lá em cima em Appleton Hill.”

Notas tocadas num cravo há mais de cem anos. Notas perdidas, como ela, sem saber por quê.

Voltou ao quarto mal-iluminado que era o túmulo de memórias e foi direto à série de fotografias na parede. Retirou uma e arrancou o pequeno gancho da parede, alisando o papel ao redor do buraco. Talvez retardasse a descoberta do furto, embora não a evitasse. Apagou as luzes, fechou a porta e desceu para o hall de entrada.

A enfermeira-guarda ainda estava inconsciente. Deixou-a onde estava. Nada lucraria em movê-la ou matá-la. Apagou todas as luzes, inclusive as luminárias dos degraus da entrada, e saiu na Praça Louisburg. Uma vez na calçada, virou à direita e começou a andar rapidamente na direção da esquina, onde novamente dobraria à direita, descendo Beacon Hill até a Rua Charles, a fim de apanhar um táxi. Tinha de pegar sua bagagem no compartimento do metrô em Cambridge. A descida da colina lhe daria tempo para pensar, tempo para tirar a fotografia da moldura, dobrando-a cuidadosamente no bolso para não estragar nenhum dos dois rostos.

Precisava de um lugar para ficar. Um lugar onde pudesse sentar-se e encher folhas de papel com fatos, conjecturas e probabilidades, seu relatório particular. De manhã, tinha várias coisas a fazer, entre as quais visitas ao Hospital Geral de Massachusetts e à Biblioteca Pública de Boston.

 

O quarto era igual a todos os quartos em qualquer hotel muito barato numa cidade grande. As molas da cama tinham cedido e a única janela dava para um muro imundo a três metros das vidraças rachadas. A vantagem, entretanto, era a mesma em todos esses lugares: ninguém fazia perguntas. Hotéis baratos tinham seu lugar neste mundo, geralmente para aqueles que não queriam fazer parte dele. A solidão era um direito humano básico que não podia ser negado.

Scofield estava seguro. Podia concentrar-se no relatório.

Às 4h35min da manhã, enchera dezessete páginas. Fatos, conjecturas, probabilidades. Escrevera com cuidado, de forma legível, para poder reproduzir com clareza. Não havia lugar para interpretações. A denúncia era específica, mesmo onde os motivos não eram. Estava juntando as armas, armazenando munição... era tudo que tinha. Esticou-se na cama curva e fechou os olhos. Duas ou três horas de sono bastariam.

Ouviu seu próprio murmúrio flutuar até o teto rachado.

— Taleniekov... continue respirando. Toni, meu amor, meu amor querido. Fique viva... conserve a razão.

 

A escrituraria corpulenta do Departamento de Registros do Hospital pareceu confusa, mas não ia recusar o pedido de Bray. A informação médica ali arquivada não era tão confidencial, e era preciso cooperar com um homem credenciado pelo Governo.

— Bem, deixe-me ver se entendi — disse, com sotaque bostoniano pronunciado, lendo as etiquetas nas gavetas dos arquivos. — O senador quer os nomes dos médicos e enfermeiras que tomaram conta dele quando esteve aqui, em 53 e 54. De novembro a março, mais ou menos?

— Isso mesmo. Como disse, o mês que vem é uma espécie de aniversário. Faz vinte e cinco anos que recuperou a vida, como ele diz. Confidencialmente, vai mandar para cada um dos que o atenderam um pequeno medalhão no feitio de um escudo médico, com os nomes e agradecimentos gravados.

A escrituraria parou.

— Isso é bem dele, não é? Lembrar-se. A maioria das pessoas tem uma experiência dessas e só quer se esquecer de tudo. Pensam que ganharam a luta contra a morte e todo mundo que se dane. Até a próxima vez, é claro. Mas ele não. Ele é tão... bem, ele se preocupa com os outros, se é que me entende.

— Sim, entendo.

— Os eleitores sabem, também, isso eu posso dizer. Este Estado vai ter seu primeiro presidente desde J.F.K., sem aquelas bobagens de papa e cardeais mandando na Casa Branca.

— Tem razão — concordou Bray. — Gostaria de repetir que estou aqui muito confidencialmente. O senador não quer publicidade alguma em torno desse pequeno gesto... — Scofield parou e sorriu para a mulher. — E neste momento a senhora é a única pessoa em Boston que sabe.

— Oh, não se preocupe. Como costumávamos dizer quando eu era criança, meus lábios estão selados. E eu adoraria um bilhete do senador Appleton, com sua assinatura e tudo mais. — Parou e bateu com o dedo num arquivo. — Aqui está — disse, abrindo a gaveta. — Agora, lembre-se, aqui só há os nomes dos médicos: cirurgiões, anestesistas, consultores, registrados de acordo com o andar e a enfermaria; as enfermeiras de serviço e o equipamento que foi usado. Não há qualquer avaliação psiquiátrica ou informações sobre o estado do paciente. Isso só pode ser obtido diretamente do médico. Mas o senhor não está interessado em nada disso. Até parece que estou falando com um desses desgraçados agentes de companhias de seguro. — Estendeu-lhe a pasta. — Há uma mesa no fim do corredor. Quando terminar, deixe a pasta em minha mesa.

— Muito bem — disse Bray. — Eu a devolvo, não precisa incomodar-se. Mais uma vez obrigado.

— Obrigado ao senhor.

Scofield leu as páginas rapidamente para ter uma idéia geral. Medicamente falando, pouco entendeu do que leu, mas a conclusão era inevitável. Joshua Appleton estava mais morto que vivo quando a ambulância o trouxe ao hospital depois da colisão na estrada. Lacerações, contusões, convulsões, fraturas e ferimentos graves no pescoço e na cabeça descreviam o quadro sangrento de um corpo e rosto humanos mutilados. Havia listas de drogas e soros usados para prolongar a vida que se esvaía, descrições detalhadas da maquinaria sofisticada que utilizaram para sustar a deterioração. E finalmente, semanas mais tarde, houve uma reversão. A máquina infinitamente mais sofisticada que é o corpo humano começou a curar-se a si mesma.

Bray anotou os nomes dos médicos e enfermeiras mencionados nas listas do andar e das enfermarias. Dois cirurgiões, um deles especialista em enxertos de pele, e uma equipe de oito enfermeiras em rotação apareciam consistentemente nas primeiras semanas. Depois, de repente, os nomes desapareciam e eram substituídos por dois médicos diferentes e três enfermeiras particulares em turnos de oito horas cada.

Tinha o que queria, um total de quinze nomes, cinco primários, dez secundários. Iria concentrar-se nos últimos dois médicos e três enfermeiras. Os nomes anteriores não cabiam no período de tempo em que estava interessado.

Colocou a pasta no lugar e voltou à mesa da escrituraria.

— Terminei — disse e depois acrescentou, como se a idéia acabasse de ocorrer-lhe: — Olhe, podia fazer-me mais um favor, isto é, ao senador, se quiser.

— Se puder, claro que sim.

— Tenho todos os nomes, mas precisava pô-los em dia. Afinal, foi há vinte e cinco anos. Algumas dessas pessoas podem não estar mais por aqui. Ajudaria muito se eu tivesse os endereços atuais.

— Não posso ajudá-lo — disse a escrituraria, estendendo a mão para o telefone sobre a mesa —, mas posso mandá-lo lá em cima. Aqui é tudo sobre os pacientes; lá em cima, eles têm as fichas dos empregados. Felizardos, é tudo feito com computadores.

— Continuo preocupado em manter sigilo.

— Ora, não se preocupe, tem a palavra de Peg Flannagan. Quem toma conta lá de cima é amiga minha.

Scofield sentou ao lado de um estudante negro barbudo em frente do teclado de um computador. A amiga de Peg Flannagan havia mandado o rapaz ajudá-lo, e ele estava um pouco irritado porque esse emprego temporário o fizera pôr de lado os livros de estudo com que se ocupava.

— Sinto muito incomodá-lo — disse Bray, querendo fazer amizade.

— Não é nada, cara — respondeu o estudante, batendo nas teclas. — É só que tenho um exame amanhã e qualquer idiota pode fazer isso.

— Exame de quê?

— Cinética terciária.

Scofield olhou o estudante.

— Alguém usou a palavra “terciária” comigo quando estava na escola por aqui. Não sabia o que queria dizer.

— Você deve ter ido para Harvard, cara. Não vale nada. Estou na Tech.

Bray gostou de ver que a lealdade às escolas ainda existia em Cambridge.

— Que tem aí? — perguntou, olhando para a tela acima do teclado.

O negro batera o nome do primeiro médico.

— Tenho uma fita onisciente e você não tem nada.

— Que quer dizer?

— O ilustre médico não existe. Pelo menos no que diz respeito a esta instituição. Nunca receitou nem mesmo uma aspirina nesta espelunca.

— Isso é loucura. Estava na lista da pasta de Appleton.

— Fale com o chefão, cara. Bati as letras e a resposta é Não Reg.

— Sei alguma coisa sobre essas máquinas, são facilmente programadas.

O negro concordou com a cabeça.

— E facilmente desprogramadas. Retificadas, por assim dizer. Seu médico foi suprimido. Talvez roubasse do seguro médico.

— Talvez. Vamos experimentar o próximo. O estudante bateu o nome.

— Bem, sabemos o que aconteceu com esse aqui. Hem Ceb. Morreu aqui mesmo, no terceiro andar. Hemorragia cerebral. Nem teve chance de aproveitar seus estudos.

— Como?

— Escola de Medicina, cara. Tinha só trinta e dois anos. Uma merda de morte nessa idade.

— E também muito rara. Qual a data?

— 21 de março de 1954.

— Appleton teve alta no dia 30 de março — disse Scofield, mais para si mesmo que para o estudante. — Esses três nomes são de enfermeiras. Experimente, por favor.

“Katherine Connally. Falecida. 26-3-54.”

“Alice Bonelli. Falecida. 26-3-54.”

“Janet Drummond. Falecida. 26-3-54.”

O estudante recostou-se na cadeira. Não era tolo.

— Parece que houve uma verdadeira epidemia, não é? Março foi um mês brabo e o dia vinte e seis foi especialmente ruim para três menininhas vestidas de branco.

— Causa da morte?

— Nada. O que quer dizer que não morreram no hospital.

— Mas as três no mesmo dia? É...

— Estou por dentro — disse o rapaz. — Loucura. — Ergueu a mão. — Ei, tem um cara aí que está neste hospital há uns seis mil anos. É encarregado do almoxarifado no primeiro andar. Talvez se lembre de alguma coisa. Vou apitar em seus ouvidos. — O negro girou a cadeira e estendeu a mão para o telefone no balcão. — Pegue aquele telefone e aperte o botão dois — disse a Bray, apontando para uma mesa próxima.

— Almoxarifado, primeiro andar — disse uma voz com forte sotaque irlandês.

— Oi, Matusalém, aqui é Amos.

— Você é um doido, isso sim.

— Olha, Jimmy, estou com um amigo aqui, pendurado no fone. Ele está procurando informações do tempo em que você era o terror do dormitório dos anjinhos. Aliás, a informação que ele quer é sobre três deles. Jimmy você se lembra de uma ocasião, lá nos anos cinqüenta, em que três enfermeiras morreram no mesmo dia?

— Três... Ah, sim, lembro sim. Foi uma coisa horrível. Katie Connally foi uma delas.

— Que aconteceu? — perguntou Bray.

— Afogaram-se, senhor. Todas as três se afogaram. Estavam num barco, ele virou e foram atiradas num mar bravo.

— Num barco? Em março?

— Uma dessas loucuras, senhor. Sabe como os rapazes ricos ficam rondando os dormitórios das enfermeiras. Calculam que elas vêem corpos de homens nus todo o tempo, portanto não vão se incomodar de olhar para o deles. Bem, uma noite uns ricaços estavam dando uma festa num desses clubes grã-finos e convidaram as meninas. Tinha muita bebida e muita bobagem, e algum idiota teve a brilhante idéia de sair de barco. Uma estupidez, é claro. Como disse, era pleno inverno.

— Aconteceu de noite?

— Sim, senhor, foi sim. Os corpos só apareceram depois de uma semana, eu acho.

— Morreu alguém mais?

— Claro que não. É sempre assim, não é? Os ricos sempre sabem nadar, não é mesmo?

— Onde foi? — perguntou Scofield. — Lembra-se?

— Claro que sim, senhor. Foi mais acima, na costa. Em Marblehead.

Bray fechou os olhos.

— Obrigado — disse em voz baixa, desligando.

— Obrigado, Matusalém. — O estudante colocou o fone no gancho, olhando para Scofield. — Você está com um problema, cara.

— Estou — concordou Bray, voltando ao teclado. — Tenho mais dez nomes, dois médicos e oito enfermeiras. Pode verificá-los para mim o mais depressa possível?

Das oito enfermeiras, a metade ainda vivia. Uma mudara-se para São Francisco, endereço desconhecido; outra vivia com a filha em Dallas, e as outras duas estavam no asilo de velhos St. Agnes, em Worcester. Um dos médicos ainda vivia. O especialista em enxertos de pele morrera há dezoito meses com setenta e três anos. O primeiro cirurgião registrado, Dr. Nathaniel Crawford, estava aposentado e morando em Quincy.

— Posso usar seu telefone? — perguntou Scofield. — Pago o que for preciso.

— Pelo que eu saiba, nenhum desses aparelhos está em meu nome. Sirva-se.

Bray anotara o número na tela. Foi para o telefone e discou.

— Aqui é Crawford.

A voz vinda de Quincy era brusca, mas polida.

— Meu nome é Scofield, senhor. Não nos conhecemos e não sou médico, mas estou muito interessado num caso em que o senhor esteve envolvido, há muitos anos, no Hospital Geral de Massachussets. Gostaria de discuti-lo rapidamente com o senhor, se não se importa.

— Quem era o paciente? Tive mais de mil.

— O senador Joshua Appleton, senhor.

Houve uma pausa na linha. Quando Crawford falou, a voz brusca parecia cansada.

— Esses diabos desses incidentes seguem a gente até a sepultura não é? Bem, não pratico a profissão há mais de dois anos, portanto, seja lá o que eu disser ou o senhor disser, não vai fazer a mínima diferença... Vamos dizer que cometi um erro.

— Erro?

— Não cometi muitos, e fui chefe da cirurgia durante quase doze anos. Meu sumário está na pasta médica de Appleton. A única conclusão razoável é que houve confusão de radiografias.

“Não havia sumário do Dr. Nathaniel Crawford na pasta de Appleton.”

— Está se referindo ao fato de que foi substituído como cirurgião encarregado?

— Substituído, nada! Tommy Belford e eu levamos um pontapé da família no traseiro!

— Belford? Dr. Belford, o especialista em enxertos de pele?

— O cirurgião. Cirurgião plástico e um verdadeiro artista. Tom­my reconstituiu a cara daquele homem como se fosse o próprio Deus. O gênio que puseram no lugar dele destruiu o trabalho de Tommy, na minha opinião. Mas fiquei com pena dele. O rapaz mal tinha terminado quando a cabeça dele estourou.

— Quer dizer que teve uma hemorragia cerebral, senhor?

— Isso mesmo. O suíço estava bem lá quando aconteceu. Operou, mas era tarde demais.

— Quando diz “o suíço”, está se referindo ao cirurgião que substituiu o senhor?

— Correto. O grande Herr Doktor de Zurique. O filho da mãe me tratou como se eu fosse um estudante retardado.

— Sabe o que aconteceu com ele?

— Voltou para a Suíça, presumo. Nunca soube que fim levou.

— Doutor, o senhor disse que cometeu um erro. Ou houve erro nas radiografias. Que erro foi esse?

— Simples. Eu desisti. Ele estava no nosso sistema de apoio total e era exatamente isso. Apoio total. Sem isso não duraria um dia, e se durasse seria como um vegetal.

— Não viu possibilidade de recuperação?

Crawford abaixou a voz e havia força em sua humildade.

— Eu era apenas um cirurgião, não era Deus. Era falível. Minha opinião era de que Appleton não se recuperaria; pelo contrário, estava morrendo a cada minuto... E errei.

— Obrigado por falar comigo, Dr. Crawford.

— Como disse antes, agora não faz mais diferença e não me incomodo. Tive por muitos anos uma faca na mão e não cometi muitos erros.

— Tenho certeza de que não, senhor. Adeus.

Scofield voltou ao teclado. O estudante negro estava lendo seu tratado.

— Radiografias? — disse Bray suavemente.

— O quê? — O negro levantou os olhos. — Radiografias, o quê?

Bray sentou-se ao lado do rapaz. Se jamais precisara de um amigo temporário, era agora.

— Você conhece bem o pessoal do hospital?

— É um lugar muito grande, cara.

— Soube chamar o Matusalém.

— Bem, trabalho aqui temporariamente há uns três anos. Ando por aí.

— Existe um arquivo de radiografias antigas? De muitos anos atrás?

— Uns vinte e cinco?

É.

— Existe. Não é mistério.

— Pode me conseguir uma?

O estudante levantou uma sobrancelha.

— São outros quinhentos, não é?

— Vou pagar. Generosamente. O negro fez uma careta.

— Oh, cara! Não desprezo grana, acredite. Mas não roubo, não negocio com drogas e Deus sabe que não herdei nada.

— O que vou lhe pedir é absolutamente legal, até moral. Pode acreditar em mim, não sou mentiroso.

O estudante olhou dentro dos olhos de Bray.

— Se for, é convincente demais. E está com problemas, isso eu vi. Que você quer?

— Uma radiografia da boca de Joshua Appleton.

— Boca? Da boca dele?

— Os ferimentos da cabeça foram extensos, devem ter tirado de chapas. Tinha de haver muito trabalho dentário projetado. Pode fazer isso?

O rapaz concordou com a cabeça.

— Acho que sim.

— Mais uma coisa. Sei que vai parecer... absurdo, mas acredite em mim, nada é absurdo. Quanto você ganha aqui por mês?

— Em média, oitenta, noventa por semana. Mais ou menos trezentos e cinqüenta por mês. Nada mau para um estudante quase formado. Alguns dos internos fazem menos que isso. Claro que eles têm quarto e comida. Por quê?

— Vamos supor que eu lhe diga que pago dez mil dólares para você tomar um avião para Washington e me trazer outra radiografia. Só um envelope com uma radiografia dentro.

O negro puxou a barbicha, olhando Scofield como se esse fosse um louco.

— Supor? Eu diria: pezinhos, vamos andando rápido. Dez mil dólares?

— Teria mais tempo para a cinética terciária.

— E não é nada de ilegal? Tudo certinho, mas certinho mesmo?

— Para poder ser considerado mesmo remotamente ilegal no que lhe diz respeito, era preciso que você soubesse muito mais do que qualquer pessoa lhe contaria. Isso é certo.

— Sou apenas um mensageiro? Vôo para Washington e trago de volta um envelope... com uma radiografia dentro?

— Provavelmente, várias pequenas radiografias. É só isso.

— De quê?

— Da boca de Joshua Appleton.

 

Era 1h30min da tarde quando Bray chegou à biblioteca na Rua Boylston. Seu novo amigo, Amos Lafollet, ia apanhar um avião da ponte aérea para Washington às 2h e voltaria no vôo das 8h. Scofield iria encontrá-lo no aeroporto.

Não fora difícil obter as radiografias. Qualquer um que conhecesse os caminhos burocráticos de Washington poderia obtê-las. Bray deu dois telefonemas, o primeiro para as relações públicas do Congresso e o segundo para o dentista em questão. A primeira chamada fora feita por um assistente de um deputado muito conhecido que estava com um abscesso. Será que lhe poderiam dar o nome do dentista do senador Appleton? O senador mencionara ao deputado que ele era excelente. Obteve o nome do dentista.

A ligação para o dentista foi uma chamada rotineira do Escritório de Contabilidade Geral, tudo muito burocrático, sem substância, esquecido no dia seguinte. Estavam colecionando dados antigos de trabalhos feitos em senadores, e um idiota da Rua K inventara de incluírem radiografias. A recepcionista podia, por favor, ver todas as radiografias de Appleton e deixar no balcão da frente, que mandariam apanhar? Seriam devolvidas em vinte e quatro horas.

Washington trabalhava a toda velocidade. Não havia tempo de fazer todo o trabalho que tinha de ser feito, e os pedidos da Contabilidade eram irritações e atendidos com irritação, mas atendidos. As radiografias de Appleton seriam deixadas no balcão.

Scofield olhou o quadro indicador da biblioteca, tomou o elevador para o segundo andar e desceu um corredor até a Divisão de Jornalismo — Microfilme. Foi ao balcão no fim da sala e falou com o rapaz:

— Março e abril de 1954, por favor. O Globe ou o Examiner, qualquer um dos dois.

Recebeu quatro caixas de filme e mostraram-lhe um cubículo. Entrou, sentou-se e inseriu o primeiro rolo de filme.

Em março de 1954, os boletins detalhando o estado de Joshua Appleton, capitão Josh, haviam sido relegados às últimas páginas. A essa altura, já estava no hospital há mais de vinte semanas. Mas não estava esquecido. A famosa vigília era relatada em detalhe. Bray anotou o nome de vários dos que foram entrevistados. Amanhã saberia se havia razão para entrar em contato com eles.

 

21 de março de 1954

Jovem Médico Vítima de Hemorragia Cerebral

Uma história curta na página dezesseis. Não mencionaram quem era o cirurgião de Joshua Appleton.

 

26 de março de 1954

Três Enfermeiras do Hospital Geral de Massachusetts Vítimas de Acidente de Barco

 

O artigo aparecia na primeira página, à esquerda, embaixo, mas, novamente, não havia menção de Joshua Appleton. Na verdade, seria estranho se houvesse; as três trabalhavam em turnos de oito horas em cada vinte e quatro. Se estavam todas em Marblehead. naquela noite, quem estava à cabeceira de Appleton?

 

10 de abril de 1954

Bostoniano Morre em Desastre de Esqui em Gstaad

 

Encontrara.

Naturalmente, na primeira página em grandes manchetes, redigido mais para despertar os sentimentos que para relatar a morte trágica de um rapaz. Scofield estudou o artigo, certo de que encontraria certas informações.

Encontrou.

 

Considerando o profundo amor da vítima pelos Alpes e para poupar maior angústia à família e amigos, o enterro terá lugar na Suíça, na aldeia de Col du Pillon.

 

Bray ficou pensando em quem estaria no caixão em Col du Pillon. Ou será que estava vazio?

 

Voltou para o hotel barato, juntou as coisas e tomou um táxi para o Estacionamento da Prudential, Portão A. Dirigiu o carro de aluguel para fora de Boston, seguindo a Jamaica Way até Brookline. Encontrou Appleton Hill, ultrapassou os portões de Appleton Hall, notando todos os detalhes possíveis no curto espaço de tempo.

A imensa propriedade espalhava-se como uma fortaleza no topo de uma colina. A estrutura interna era cercada por alto muro de pedra, acima do qual apontavam telhados que davam a ilusão de parapeitos. A estrada de acesso que partia do portão principal curvava-se pela colina acima, indo até uma enorme cocheira de tijolos, coberta de hera, com oito ou dez apartamentos completos e cinco garagens em frente de um imenso estacionamento de concreto.

Deu a volta à colina. A cerca de ferro batido de três metros de altura era contínua. Pequenos abrigos foram escavados na encosta da colina, com intervalos de algumas centenas de metros, e dentro deles via homens uniformizados, em pé ou sentados, fumando ou falando no telefone.

Era a sede do Matarese, a casa do Pequeno Pastor.

 

Às 9h30min, foi para o Aeroporto Logan. Dissera a Amos La-follet que saltasse do avião e fosse diretamente para o bar mal-iluminado em frente da principal banca de jornais. Os cubículos eram tão escuros que era quase impossível ver um rosto a um metro e meio de distância. A única iluminação vinha irregularmente da enorme tela da televisão suspensa na parede.

Bray escorregou pelo banco preto de plástico no cubículo, adaptando os olhos à penumbra. Por um instante, lembrou-se de outro cubículo em outro bar escuro e de outro homem. Londres, o Hotel Connaught, Roger Symonds. Afastou a lembrança da mente. Era um obstáculo, e não podia pensar em obstáculos agora.

Viu o estudante entrar no bar. Levantou-se por um momento. Amos o viu e veio em sua direção. Tinha um envelope pardo na mão, e Bray sentiu o coração acelerar.

— Parece que tudo correu bem — disse Bray.

— Tive que assinar um recibo.

— Você o quê?

Bray ficou doente. Um detalhe tão pequeno, uma coisa tão óbvia, e não pensara nisso.

— Calma Não é à toa que cresci na esquina da Rua 135 com a Avenida Lenox.

— Que nome você usou? — perguntou Scofield, com o pulso mais lento.

— R M. Nixon. A recepcionista foi muito amável. Até me agradeceu.

—Você vai longe, Amos.

— Pretendo ir.

— Espero que isso ajude.

Bray entregou-lhe um envelope.

O estudante segurou-o entre os dedos.

— Ei, cara, sabe que não precisa fazer isso.

— Claro que preciso. Tínhamos um acordo.

— Sei. Mas tenho uma idéia de que você está fazendo uma força desgraçada por um montão de gente que você nem conhece.

— E muitas que conheço muito bem. O dinheiro não tem importância. Empregue-o bem.

Bray abriu a pasta e guardou o envelope com as radiografias dentro, logo em cima de uma pasta de cartolina com a radiografia de vinte e cinco anos atrás.

— Não se esqueça, nunca soube meu nome e nunca foi a Washington. Se lhe perguntarem, você apenas passou uns nomes, dos quais não se lembra mais, pelo computador para um homem que não se identificou. Por favor. Lembre-se disso.

— Vai ser uma parada dura.

— Por quê?

Scofield ficou alarmado.

— Como vou dedicar meu primeiro livro a você?

Bray sorriu.

— Você arranja um jeito. Adeus — disse, saindo do cubículo. — Tenho de dirigir por uma hora e preciso dormir algumas.

— Cuide-se, cara.

— Obrigado, professor.

 

Scofield estava em pé na sala de espera do dentista da Rua Main em Andover, Massachusetts. O nome do dentista lhe fora dado com prazer, até com entusiasmo, pelo Serviço de Enfermagem da Academia de Andover. Estavam à disposição dos ilustres, e generosos, graduados da academia, e, por extensão, do assistente do senador, naturalmente. Claro que o dentista não era mais o mesmo que tratara do senador Appleton quando esse era estudante. A clínica passara a um sobrinho há vários anos, mas não havia dúvida de que o atual dentista cooperaria. O Serviço de Enfermagem lhe telefonaria e avisaria que o assistente do senador estava a caminho.

Bray contara com uma psicologia tão velha quanto a broca do dentista. Dois rapazes que eram amigos íntimos, juntos numa academia, longe de casa, poderiam não concordar em tudo, mas usariam o mesmo dentista.

Sim, ambos freqüentaram o mesmo homem em Andover.

O dentista transpôs a porta que levava ao depósito, com os óculos pousados na ponta do nariz. Tinha na mão duas folhas de cartolina, nas quais se encaixavam pequenos negativos. Radiografias de dois estudantes de Andover tiradas há mais de trinta anos.

— Aqui estão, Sr. Vickery — disse o dentista, estendendo as radiografias. — Veja só o método primitivo de montar isso! Um dia desses vou ter de dar uma limpeza naquela confusão lá dentro, mas a gente nunca sabe. Ano passado tive de identificar um antigo cliente de meu tio que morreu queimado naquele incêndio em Boxford.

— Muito obrigado — disse Scofield, aceitando as radiografias. — Doutor, sei que está muito ocupado, mas será que poderia fazer-me mais um favor? Tenho aqui dois conjuntos mais recentes de ambos e tenho de compará-los com as que o senhor está me emprestando. Naturalmente, posso arranjar alguém que faça isso, mas se o senhor tiver um minuto...

— Claro, não leva nem um minuto. Dê-me aqui.

Bray tirou os dois conjuntos de radiografias dos envelopes. Um roubado do Hospital Geral de Massachusetts, o outro obtido em Washington. Colocara uma fita branca sobre os nomes. Deu-os ao dentista, que os levou para perto de uma lâmpada e os segurou contra a luz.

— Aqui está — disse, segurando as radiografias correspondentes em mãos separadas.

Scofield colocou cada conjunto em envelopes diferentes.

— Mais uma vez obrigado, doutor.

— Às suas ordens.

O dentista caminhou rápido para sua sala. Era um homem com muita pressa.

Bray sentou-se no banco da frente do carro, respirando ofegante, a testa coberta de suor. Abriu os envelopes e tirou as folhas de radiografias.

Arrancou as fitas que cobriam os nomes.

Tinha razão. A peça espantosa estava definitivamente no lugar, a prova em suas mãos.

O homem que ocupava um lugar no Senado, o homem que sem dúvida seria o próximo presidente dos Estados Unidos, não era Joshua Appleton IV.

Era Julian Guiderone, filho do Pequeno Pastor.

 

Scofield dirigiu rumo Sudeste, na direção de Salem. Atrasos não tinham mais importância, cronogramas anteriores podiam ser descartados. Só poderia lucrar em mover-se depressa, desde que cada movimento fosse o movimento certo, cada decisão a decisão sensata. Tinha seus canhões e sua bomba atômica... seu relatório e as radiografias. O problema agora era montar as armas corretamente, usando-as não só para destruir o Matarese, mas primeiro, e acima de tudo, encontrar Antonia e forçá-los a deixá-la em liberdade. E Taleniekov também, se ainda estivesse vivo.

Precisaria enganá-los e os enganos são baseados em ilusão, e a ilusão que criaria era a de que Beowulf Agate podia ser apanhado, seus canhões e sua bomba inutilizados, seu ataque sustado, ele próprio destruído. Para isso, tomaria inicialmente a posição de força... a fraqueza viria a seguir.

A estratégia de um refém não funcionaria mais, não conseguiria chegar perto de Appleton. O Pequeno Pastor não deixaria, o prêmio da Casa Branca era grande demais para colocar em perigo. Sem o homem, não haveria prêmio. Portanto, sua posição de força residia nas radiografias. Era imperativo que estabelecesse o fato de que só existia um conjunto de radiografias, não havia duplicatas. A análise espectrográfica revelaria qualquer processo de duplicação e Beowulf Agate não era tolo. Contava que fizessem uma análise. Queria a moça, queria o russo. Trocaria as radiografias por eles.

Haveria uma omissão sutil na mecânica da troca, uma fraqueza aparente em que o inimigo se agarraria, mas seria propositada, não uma fraqueza real. O Matarese seria forçado a efetuar a troca. Uma moça corsa e um agente soviético em troca de radiografias que provavam incontestavelmente que o homem no Senado, a caminho da presidência, não era Joshua Appleton IV, legendário combatente na Coréia, político extraordinário, e sim um homem que se supunha enterrado em 1954 na aldeia suíça de Col du Pillon.

Dirigiu em direção ao porto de Salem, atraído, como sempre, pela água, sem saber exatamente o que procurava, até vê-lo: um sinal em forma de escudo no gramado de um pequeno hotel. Apartamentos com Cozinhas. Fazia sentido. Quartos com geladeira e fogão. Não haveria um estranho comendo em restaurantes. Não era a estação de turismo em Salem.

Estacionou o carro num lote coberto de pedrinhas brancas e mar­geado por uma cerca de estacas, de onde se avistavam as águas cinzentas do porto. Levou a pasta e a sacola de viagem para dentro, deu um nome inofensivo e pediu uma suíte.

— Vai pagar com cartão de crédito, senhor? — perguntou a moça atrás do balcão.

— Não entendi, desculpe.

— O senhor não assinalou o método de pagamento. Se for cartão de crédito, temos de passar o cartão pela máquina.

— Entendo. Não, acontece que sou uma dessas pessoas esquisitas que usam dinheiro de verdade. A luta de um homem contra o plástico. Por que não lhe pago uma semana adiantada? Duvido que fique mais que isso. — Deu-lhe o dinheiro. — Presumo que haja uma venda ou quitanda aqui por perto.

— Sim, senhor. Logo adiante.

— Que tal outras lojas? Preciso de várias coisas.

— Tem o shopping center a uns dez quarteirões daqui. Estou certa de que encontrará tudo de que precisar lá.

Bray esperava que sim; estava contando com isso.

Foi levado à sua “suíte”, na realidade um quarto grande com uma cama reversível e uma divisória que escondia um minúsculo fogão e uma geladeira. Mas o quarto dava para o porto. Estava ótimo. Abriu a pasta, tirou a fotografia que retirara da parede do túmulo que a Sra. Appleton fizera para o filho e olhou-a. Dois rapazes, altos, musculosos, não confundíveis, mas parecidos o bastante para que um cirurgião desconhecido em alguma parte da Suíça pudesse esculpir um em cópia do outro. Um jovem médico americano, pago para assinar a alta, depois morto por motivos de segurança. Uma mãe mantida alcoólatra, guardada à distância, mas posta em evidência quando era conveniente ou produtivo. Quem conhece um filho melhor que sua mãe? Quem, na América inteira, discutiria com a Sra. Joshua Appleton III, muito menos a confrontaria?

Scofield sentou-se e acrescentou uma página às dezessete de seu relatório. “Médicos: Nathaniel Crawford e Thomas Belford. Um médico suíço desprogramado de um computador; um jovem cirurgião plástico que morreu repentinamente de hemorragia cerebral Três enfermeiras afogadas na costa de Marblehead; um caixão em Col Du Pillon. Radiografias: um conjunto de Boston, um conjunto de Washington, dois na Rua Main, em Andover, Massachusetts. Dois homens diferentes fundidos num só, e esse uma mentira. Uma fraude iria tornar-se presidente dos Estados Unidos.”

Bray acabou de escrever e foi até a janela que dava para ais águas paradas e frias do porto de Salem. O dilema estava mais claro que nunca: haviam seguido a pista do Matarese de suas origens na Córsega através de uma federação de corporações multinacionais que cercava o mundo. Sabiam que ele financiava o terror no mundo inteiro, encorajava o caos que resultava de assassinatos e raptos, matanças nas ruas e aviões explodidos nos ares. Sabiam disso tudo, mas não sabiam por quê.

Por quê?

A razão teria de esperar. Só o que importava era a fraude que era o senador Joshua Appleton IV. Uma vez que o filho do Pequeno Pastor chegasse à presidência, a Casa Branca pertenceria ao Matarese.

Não havia melhor residência para um consigliere...

“Continue respirando, meu velho inimigo.”

“Toni, meu amor. Fique viva. Conserve a razão.”

Scofield voltou à pasta aberta sobre a mesa, abriu uma divisão e tirou uma lâmina de barbear de um só gume, escondida entre duas camadas de couro. Pegou, então, as duas folhas de cartolina com os negativos dos dois estudantes de Andover há trinta e cinco anos e colocou-as na mesa, uma em cima da outra. Eram quatro fileiras de negativos, cada uma com quatro negativos, num total de dezesseis em cada folha. Pequenas etiquetas de bordas vermelhas identificando os clientes, e as datas das radiografias estavam coladas no canto superior esquerdo. Verificou, com cuidado, que as beiras das cartolinas eram idênticas. Pressionou um envelope pardo grosso na folha de cima, entre a primeira e a segunda fileira de radiografias, pegou a lâmina e cortou com força, para que a lâmina atravessasse as duas folhas. A fileira de cima foi separada, duas tiras de quatro negativos.

Os nomes dos clientes e as datas, datilografadas nas pequenas etiquetas orladas de vermelho há mais de trinta e cinco anos, ficaram nas tiras. A análise química mais simples confirmaria que eram autênticas.

Bray duvidava de que uma análise semelhante fosse feita nas novas etiquetas que ele ia comprar e colar nas duas folhas restantes, com doze radiografias cada. Seria perda de tempo. As radiografias seriam comparadas com as novas radiografias do homem que se chamava Joshua Appleton IV. Julian Guiderone. Isso seria prova suficiente para o Matarese.

Pegou as tiras e as folhas maiores de negativos, ajoelhou-se e esfregou cuidadosamente as bordas no tapete. Dentro de cinco minutos, todas as bordas estavam levemente gastas e sujas, o bastante para combinar com a idade das bordas originais.

Levantou-se e colocou tudo de volta na pasta. Estava na hora de voltar a Andover e pôr o plano em movimento.

 

— Sr. Vickery, há alguma coisa errada? — perguntou o dentista, saindo da sala, afobado.

Três clientes que liam revistas olharam para ele, ligeiramente irritados.

— Receio ter esquecido uma coisa. Posso lhe falar por um segundo?

— Entre aqui — disse o dentista, fazendo Scofield entrar numa pequena oficina forrada de prateleiras com impressões de dentes montados em braçadeiras movediças. Acendeu um cigarro tirado de um maço no balcão. — Vou lhe dizer uma coisa, hoje foi um dia de matar. O que há?

— É uma questão de leis. — Bray sorriu, abrindo a pasta e tirando os dois envelopes. — HR Sete-Quatro-Oito-Cinco.

— Que diabo é isso?

— Um novo regulamento do Congresso, parte da moralização pos-Watergate. Quando um empregado do Governo toma alguma coisa emprestada de qualquer fonte, para qualquer finalidade, é necessário uma descrição completa do item acompanhada de uma autorização assinada.

— Oh, por Deus do céu.

— Sinto muito, doutor. O senador é muito exigente nessas coisas. — Scofield tirou as radiografias do envelope. — Se o senhor quiser reexaminar isso, chamar sua enfermeira e dar-lhe uma descrição, ela poderá datilografar a autorização em seu papel timbrado e irei embora.

— Tudo que for para o próximo presidente dos Estados Unidos — disse o dentista, tomando as folhas encurtadas e estendendo a mão para o telefone. — Diga a Appleton para abaixar meus impostos. — Apertou o botão de intercomunicação. — Traga seu bloco, por favor.

— Incomoda-se? — Bray tirou seu maço de cigarros.

— Está brincando? O carcinoma adora companhia. — A enfermeira entrou, bloco e lápis na mão. — Como devo começar? — perguntou o dentista, olhando para Scofield.

— “A Quem Interessar Possa” está ótimo.

— Okay. — O dentista olhou para a enfermeira. — Estamos mantendo o Governo honesto. — Ligou uma lâmpada especial e segurou as radiografias contra o vidro. — “A Quem Interessar Possa. O Sr....” — O doutor parou, olhou Bray novamente. — Qual é seu primeiro nome?

— B.A. serve.

— “O Sr. B. A. Vickery do escritório do senador Appleton em Washington, D.C., pediu e recebeu de mim dois conjuntos de radiografias datadas de 11 de novembro de 1943, dos clientes identificados como Joshua Appleton e Julian Guiderone.” — O dentista parou. — Mais alguma coisa?

— Uma descrição, doutor. É isso que HR Sete-Quatro-Oito-Cinco requer.

O dentista suspirou, o cigarro pendurado nos lábios.

— “Os supramencionados conjuntos incluem” ...um, dois, três, quatro em cada fileira... “doze negativos.” — O dentista parou, apertando os olhos atrás dos óculos. — Sabe de uma coisa? — comentou. — Meu tio não era só primitivo, era bem descuidado.

— Por quê? — perguntou Scofield, observando o dentista cautelosamente.

— Estão faltando os pré-molares da direita e da esquerda nesses dois conjuntos. Estava com tanta pressa que não notei antes.

— São os mesmos que me deu hoje de manhã.

— Disso estou certo, veja as etiquetas. Acho que comparei os incisivos superiores e inferiores. — Estendeu as radiografias para Scofield e virou-se para a enfermeira. — Ponha o que eu disse em linguagem correta e bata a máquina, está bem? Assino lá fora. — Apagou o cigarro e estendeu a mão. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Vickery. Tenho de voltar lá para dentro.

— Só mais uma coisa, doutor. Quer colocar suas iniciais nestas folhas e datá-las? — Bray separou as radiografias e colocou-as no balcão. —

— Pois não — disse o dentista.

 

Scofield voltou para Salem. Ainda havia muito a esclarecer, novas decisões a serem tomadas à medida que os acontecimentos o demandassem, mas tinha um plano geral, um lugar por onde começar. Estava quase na hora de o Sr. B. A. Vickery chegar ao Ritz Carlton, mas não agora.

Parara antes no shopping center de Salem, onde encontrara etiquetas pequenas orladas de vermelho, quase idênticas às usadas há mais de trinta e cinco anos, e uma loja vendendo máquinas de escrever, onde datilografara os nomes e as datas, esfregando-as um pouco para lhes dar o aspecto de velhas. E enquanto andava em direção ao carro olhara rapidamente as outras lojas, vendo novamente o que esperava ver.

 

Cópias Enquanto Espera

Compra-se, Vende-se, Aluga-se Equipamento

Serviço de Primeira

 

Situava-se convenientemente a duas portas de uma loja de bebidas e três de um supermercado. Resolveu entrar e tirar cópias de seu relatório e depois comprar alguma coisa para comer e beber. Ficaria no quarto por muito tempo, tinha vários telefonemas a dar, que levariam cinco a sete horas. Tinham de ser encaminhados através de Lisboa num cronograma altamente preciso.

Bray ficou olhando o gerente da Copiadora Plaza extrair as folhas de sua denúncia das bandejas cinzentas que se projetavam da máquina. Tivera uma conversa curta com o homem meio careca, comentando que estava fazendo um favor a um sobrinho. O rapaz estava num desses cursos de literatura criativa em Emerson e entrara numa competição de estilo literário.

— Esse rapaz tem um bocado de imaginação — disse o gerente, grampeando as cópias.

— Oh, o senhor leu?

— Só uns pedaços. A gente fica em frente da máquina sem nada que fazer só verificar se o papel está correndo direito, e é claro que a gente olha. Mas quando vem alguém com coisas pessoais, como cartas, testamentos ou coisas assim, procuro não ver. Às vezes é bem difícil.

Bray deu uma risada.

— Eu disse ao meu sobrinho que é melhor ele ganhar, senão vai parar na cadeia.

— Que nada. Essa mocidade de hoje é formidável, dizem o que querem. Sei que muita gente não gosta deles por isso, mas eu gosto.

— Acho que eu também. — Bray olhou a conta que havia sido colocada em frente dele e tirou dinheiro do bolso. — Escute aqui, por acaso não teria uma Alpha Doze aqui, não?

— Alpha Doze? É uma máquina de oitenta mil dólares. Meu negócio é bom, mas não estou nessa classe.

— Imagino que deve haver uma em Boston.

— Aquela companhia de seguros na Rua Lafayette tem uma. Garanto que foi a sede que pagou por ela. É a única que conheço ao Norte de Boston, mesmo indo até Montreal.

— Uma companhia de seguros?

— A West Hartford Casualty. Fui eu que treinei as duas moças que trabalham com a Alpha Doze. É assim que as companhias de seguros fazem, compram uma máquina dessas e não querem pagar para aprender a usá-la.

Scofield debruçou-se no balcão, como um homem cansado fazendo uma confidencia.

— Ouça, estou viajando há cinco dias e tenho de colocar um relatório no correio hoje à noite. Preciso de uma Alpha Doze. Bem, posso ir a Boston e provavelmente achar uma. Mas são quase quatro horas e prefiro não fazer isso. Minha companhia é meio maluca, pensa que meu tempo vale ouro e me dá bastante dinheiro para eu poder economizar tempo quando puder. Que diz? Pode me ajudar?

Bray tirou uma nota de cem dólares do bolso.

— O senhor trabalha para uma companhia maravilhosa.

— Verdade.

— Vou dar um telefonema.

 

Eram 5h45min quando Bray voltou ao hotel no porto de Salem. A Alpha Doze fizera o trabalho de que precisava e encontrara uma papelaria onde comprara um grampeador, seis envelopes pardos, dois rolos de fita adesiva e uma balança que pesava em gramas. No correio de Salem, comprara cinqüenta dólares de selos.

Um filé e uma garrafa de uísque completaram suas compras. Espalhou tudo em cima da cama, levando parte para a mesa, outra para o balcão de fórmica entre o fogão em miniatura e a geladeira. Fez uma bebida e sentou-se na cadeira em frente da janela que dava para o porto. Estava escurecendo, mal podia ver a água, exceto onde refletia as luzes das docas.

Sorveu o uísque em goles curtos, deixando que o álcool se espalhasse, sustando os pensamentos. Só faltavam dez minutos para começar os telefonemas. Os canhões estavam no lugar, a bomba atômica em seu suporte. Era de importância vital que tudo se sucedesse em seqüência, sempre em seqüência, e para isso era preciso que escolhesse as palavras certas na hora certa... não havia lugar para erros. Para evitar erros, a mente tinha de estar solta, livre, leve... capaz de escutar atentamente, percebendo nuanças.

Toni?...

Não!

Fechou os olhos. As gaivotas ao longe vasculhavam as águas para sua última refeição antes que escurecesse de todo. Escutou seus gritos e a dissonância lhe trouxe algum conforto. Havia energia em todas as lutas pela sobrevivência. Esperava que ele mesmo também a tivesse.

Cochilou, acordando assustado. Olhou o relógio, irritado. Eram seis e seis, seus dez minutos se haviam esticado a quase quinze. Estava na hora do primeiro telefonema, o que achava menos provável de dar resultado. Não precisava ser encaminhado por Lisboa, as probabilidades de escuta eram tão remotas que praticamente não existiam. Mas praticamente não queria dizer totalmente. Por isso, a conversa não duraria mais que vinte segundos, que era o mínimo de tempo necessário mesmo para o aparelhamento interceptador mais sofisticado começar a funcionar.

O limite de vinte segundos era o que havia mandado a francesa usar semanas atrás, quando ela fizera chamadas a noite inteira para uma suíte de hotel na Avenida Nebraska, a seu pedido.

Levantou-se da cadeira e foi até onde estava a pasta, tirando as anotações que fizera de nomes e números de telefones. Dirigiu-se ao telefone na mesa de cabeceira, puxou a cadeira de braços para perto e sentou-se. Pensou por um momento, compondo uma versão francesa curta do que queria dizer, mas duvidando de que fizesse diferença. O embaixador Robert Winthrop desaparecera há mais de um mês. Não havia razão para pensar que tivesse sobrevivido. Winthrop mencionara os nomes do Matarese às pessoas erradas em Washington.

Pegou o fone e discou. Tocou três vezes e uma telefonista pediu o número de seu quarto. Os toques continuaram, mais distantes.

— Alô?

— Ouça! Não há tempo. Compreende?

— Sim. Continue.

Ela o reconhecera. Falou rapidamente em francês, olhando o ponteiro dos segundos.

— Embaixador Robert Winthrop. Georgetown. Leve dois homens da Companhia com você, nada de explicações. Se Winthrop estiver, peça para vê-lo a sós, mas não diga nada em voz alta. Dê-lhe um bilhete com as palavras: “Beowulf quer falar com você”. Ele deve responder por escrito. O contato tem de ser estéril. Vou chamá-la de volta.

Dezessete segundos.

— Precisamos falar — foi a resposta rápida, segura. — Chame de novo.

Desligou. Ela estaria segura. Era pouco provável que o Matarese a tivesse localizado e colocado escuta em seu telefone, mas, mesmo que tivessem, não a matariam. Nada lucrariam com isso, aprenderiam mais mantendo essa intermediária viva, e ainda teriam de matar os homens da Companhia junto com ela. Além disso, havia limites à sua participação nessas circunstâncias. Sentia muito, mas havia.

Estava na hora de Lisboa. Desde Roma, ele sabia que usaria Lisboa quando chegasse a hora. Uma serie de telefonemas só podia ser feita através de Lisboa uma vez. Quando os recipientes das chamadas fossem registrados nos bancos de dados, cartões vermelhos voariam dos computadores para os compartimentos de alarme, a origem codificada seria investigada por outros computadores em Langley, e não seriam permitidas outras chamadas dessa origem; todas as transmissões terminariam. O acesso a Lisboa só era permitido àqueles que lidavam exclusivamente com defecções de alto escalão, homens no campo que, numa emergência, tinham de ir diretamente a seus superiores em Washington, os quais, por sua vez, tinham autoridade para tomar decisões imediatas, somente vinte agentes secretos em todo o país tinham os códigos de Lisboa e não havia um único homem em Washington que recusasse uma chamada de lá. Nunca se sabia se o prêmio seria um general, ou um físico nuclear, ou um alto membro do presidium ou da KGB.

Era também sabido que qualquer abuso de Lisboa resultaria nas mais severas conseqüências para quem abusasse. Bray estava se divertindo, amargamente, com a idéia. O abuso que ia praticar ia além do que poderiam imaginar os homens que elaboraram o regulamento. Olhou os cinco nomes e títulos que estava a ponto de chamar. Provavelmente, poderiam ser encontrados em qualquer lista de assinantes da companhia telefônica. Seus postos, entretanto, não.

O secretário de Estado

O presidente do Conselho de Segurança Nacional

O diretor da Agência Central de Informações

O consultor do Presidente em Política Exterior

O chefe do Estado-Maior

A probabilidade de que um, possivelmente dois, desses homens fosse consiglieri do Matarese convenceu Bray a não tentar mandar sua denúncia diretamente ao presidente. Taleniekov e ele acreditavam que, se obtivessem provas, os dois líderes de seus respectivos países poderiam ser contactados e convencidos. Mas não era verdade. Presidentes e premiers eram muito protegidos, as mensagens eram filtradas, as palavras interpretadas. Cabia a outros chegar até presidentes e premiers, homens cujas posições de confiança e responsabilidade fossem impecáveis... esses eram os homens que lhes levariam as notícias, não “traidores”.

A maioria, senão todos, a quem ele ia telefonar estava dedicada ao bem-estar da nação. Qualquer um deles teria acesso ao presidente. Era só o que pedia e nenhum deles recusaria uma chamada de Lisboa. Pegou o telefone e discou para a telefonista internacional.

Vinte minutos depois, a telefonista chamou-o de volta. Lisboa, como sempre, liberara as linhas para Washington rapidamente. O secretário de Estado estava no telefone.

— Aqui fala Estado Um — disse o secretário. — Seus códigos foram aceitos, Lisboa. O que há?

— Sr. Secretário, dentro de quarenta e oito horas receberá pelo correio um envelope pardo. O nome Agate está impresso no canto esquerdo acima...

— Agate? Beowulf Agate?

— Por favor, ouça-me, senhor. Mande que o envelope lhe seja entregue diretamente, fechado. Dentro dele há um relatório detalhado de uma série de acontecimentos que sucederam e ainda estão sucedendo neste momento, que representam uma conspiração para assumir o controle do Governo...

— Conspiração? Por favor, seja específico. Comunista?

— Acho que não.

— Precisa ser específico, Sr. Scofield! É um homem procurado e está abusando da conexão de Lisboa! Seus gritos de alarme não lhe serão vantajosos, nem ao senhor, nem ao país.

— O senhor encontrará tudo muito especificado em meu relatório, como também prova, repito, prova, Sr. Secretário, de que há uma fraude no Senado que data de vinte anos atrás. É de tal magnitude que não sei se o país suportará o choque. Talvez nem seja de seu interesse expô-la.

— Explique-se!

— A explicação está no envelope, mas não a recomendação. Não tenho recomendações a fazer, isso é com o senhor e com o Presidente. Leve a informação a ele assim que a receber.

— Ordeno que se apresente a mim imediatamente!

— Irei dentro de quarenta e oito horas, se estiver vivo. Quando for, quero duas coisas: reabilitação para mim e asilo para um agente secreto soviético, se estiver vivo.

— Scofield, onde está?

Bray desligou.

Esperou dez minutos e fez sua segunda chamada para Lisboa. Trinta e cinco minutos depois o presidente do Conselho de Segurança Nacional estava na linha.

— Sr Presidente, dentro de quarenta e oito horas receberá pelo correio um envelope pardo. O nome Agate está impresso no canto esquerdo acima...

Eram exatamente quatorze minutos depois da meia-noite quando completou a última chamada. Entre os homens com quem falara, havia certamente homens de honra. Suas vozes seriam ouvidas pelo presidente.

Tinha quarenta e oito horas. Uma vida inteira.

Estava na hora de tomar uma bebida. Por duas vezes, enquanto dava os telefonemas, olhara a garrafa de uísque, quase racionalizando a necessidade de acalmar a ansiedade, mas em ambas rejeitou o método. Era o homem mais frio que conhecia sob pressão. Talvez não se sentisse sempre assim, mas era como funcionava. Agora merecia uma bebida. Seria um brinde apropriado à chamada que iria fazer para o senador Joshua Appleton IV, que nascera Julian Guiderone, filho do Pequeno Pastor.

O telefone tocou. O choque foi tal que Bray agarrou a garrafa, esquecendo o líquido que corria no copo, que transbordou no balcão. Era impossível! Não havia maneira de descobrir a pista dos telefonemas para Lisboa tão depressa. As linhas-tronco magnéticas flutuavam a cada hora, garantindo origens ocultas. O sistema inteiro teria de parar por um mínimo de oito horas a fim de seguir uma única chamada. Lisboa era absoluta. Quem a usasse estava perfeitamente seguro, sua localização só seria descoberta quando não mais importasse.

O telefone tocou novamente. Não responder era não saber, e a ignorância infinitamente mais perigosa que qualquer investigação da chamada. Fosse o que fosse, ainda tinha cartas a jogar, ou pelo menos a convicção de que tinha boas cartas. Demonstraria isso. Ergueu o fone.

— Sim?

— Quarto dois-um-dois?

— O que é?

— O gerente, senhor. Nada de importante, mas a telefonista, naturalmente, informou nossa mesa telefônica de que o senhor está fazendo chamadas internacionais. Notamos que o senhor preferiu não usar cartão de crédito e está debitando essas chamadas em sua conta. Achamos que devíamos avisá-lo de que o total, no momento, excede a trezentos dólares.

Scofield olhou a garrafa de uísque quase vazia. O ceticismo ianque nunca mudaria, até o fim do mundo... e aí os contadores ianques processariam o universo...

— Por que não vem até aqui, pessoalmente, e lhe darei o dinheiro das chamadas.

— Ah, não é necessário, não é absolutamente necessário, senhor. Na verdade, nem estou no hotel, estou em casa. — Houve uma ligeira pausa, bastante embaraçosa. — Em Beverly. Apenas...

— Obrigado por ter se preocupado com isso — interrompeu Bray, desligando e voltando ao balcão e à garrafa de uísque.

Cinco minutos depois, estava pronto, uma calma fria como o gelo tomando conta do corpo ao sentar-se ao lado do telefone. As palavras viriam porque o ultraje existia, não era preciso pensar, viriam facilmente. Pensara sobre a seqüência: extorsão, acordo, fraqueza, troca. Alguém dentro do Matarese queria falar com ele, recrutá-lo pelas razões mais lógicas do mundo. Daria àquele homem, seja quem for, a oportunidade de fazer ambas as coisas. Era parte da troca, prelúdio da fuga. Mas o primeiro passo na corda bamba não seria dado por Beowulf Agate e sim pelo filho do Pequeno Pastor.

Pegou o fone. Trinta segundos depois, ouviu a famosa voz com o sotaque bostoniano pronunciado que lembrava a tantos um jovem presidente morto em Dallas.

— Alô? Alô? — O senador tinha sido acordado pelo telefone, ouvia-se no limpar da garganta. — Quem é, por Deus?

— Há uma sepultura na aldeia de Col du Pillon, na Suíça. Se é que há um corpo no caixão, não é do homem cujo nome está inscrito na lápide.

A reação foi elétrica, uma tomada de ar súbita, o silêncio de um grito suspenso pelo medo.

— Quem?...

Estava em estado de choque, incapaz de formular a pergunta.

— Não precisa dizer nada, Julian...

— Pare! — O grito soltara-se.

— Muito bem, não mencionarei nomes. Sabe quem sou eu. Se não, o Pequeno Pastor não mantém seu filho bem-informado.

— Não vou ouvi-lo!

— Vai sim, senador. Neste momento, o fone é parte de sua mão, não pode largá-lo. Não consegue. Então ouça. Em 11 de novembro de 1943, o senhor e um grande amigo seu foram ao mesmo dentista na Rua Main, em Andover, Massachusetts. Tiraram radiografias naquele dia. — Scofield parou exatamente por um segundo. Elas estão comigo, senador. Seu escritório pode confirmar isso de manhã. Seu escritório também pode confirmar que ontem um mensageiro da Contabilidade apanhou um conjunto de radiografias mais recentes com seu dentista atual, em Washington. E finalmente, se quiser, seu escritório pode verificar o depósito de radiografias do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston. Descobrirão que falta uma chapa do rosto, tirada há vinte e cinco anos, na pasta Appleton. Todas estão comigo.

Houve um grito surdo, lamurioso, na linha, um gemido sem palavras.

— Continue escutando, senador — prosseguiu Bray. — Tem uma chance. Se a moça estiver viva, tem uma chance. Se não estiver, não tem. E quanto ao russo, se for morrer, serei eu quem o matará. Acho que sabe por quê. Sabe, podemos chegar a um acordo. O que sei, não quero saber. O que o senhor faz, ou venha a fazer, não é da minha conta, não mais. O que o senhor quer, já conseguiu, e homens como eu sempre acabam trabalhando para homens como o senhor, é isso que acontece. No fim, não há muita diferença entre todos vocês. Em lugar nenhum.

Scofield parou novamente. A isca estava muito óbvia. Será que a pegaria?

Pegou. O murmúrio era rouco e a frase hesitante.

— Há... pessoas que querem falar com você.

— Escutarei. Mas só depois de libertarem a moça e me entregarem o russo.

— As radiografias?...

As palavras vieram apressadas e abruptamente cortadas. O homem se afogava.

— Essa é a troca.

— Como?

— Negociaremos. Tem de compreender, senador, a única coisa que me importa agora sou eu. A moça e eu, queremos escapar.

— Que?... — Novamente o homem estava incapaz de formular a pergunta.

— Eu quero? — completou Scofield. — Prova de que ela está viva, que ainda pode andar.

— Não compreendo.

— Não sabe nada sobre trocas, também. Um pacote imóvel não serve, anula a troca. Quero provas e tenho um binóculo muito poderoso.

— Binóculo?

— Seu pessoal vai entender. Quero um número de telefone e uma oportunidade de observá-la. Naturalmente que estou nos arredores de Boston. Telefonarei para o senhor de manhã. Nesse número.

— Há um debate no Senado...

— O senhor não irá — disse Bray, desligando.

Terminara a primeira etapa. Os telefones entre Washington e Boston funcionariam a noite toda. Ofensiva e contra-ofensiva, estocada e parada, pressionar e sustar... as negociações haviam começado. Olhou os envelopes pardos sobre a mesa. Entre um telefonema e outro, selara-os, pesara-os e colara os selos. Estavam prontos.

Exceto um, e não havia razão para mandá-lo, a tragédia estava no desaparecimento do homem e no que ele poderia ter feito. Estava na hora de chamar sua velha amiga em Paris novamente. Pegou o fone e discou.

— Bray, graças a Deus! Estamos esperando há horas!

— Nós?

— O embaixador Winthrop.

— Ele está aí?

— Está tudo bem, foi tudo muito bem-arranjado. O homem dele, Stanley, garantiu que ninguém os seguiu e, para todos os fins, o embaixador está em Alexandria.

— Stanley é ótimo!

Scofield teve vontade de gritar aos céus de alívio, de alegria. Winthrop vivo! Os flancos estavam cobertos, o Matarese destruído. Podia negociar como nunca negociara em toda sua vida, e ele era o melhor de todos.

— Deixe-me falar com Winthrop.

— Brandon, estou aqui. Acho que arranquei o fone de sua amiga de modo muito indelicado. Perdoe-me, minha querida.

— Que aconteceu? Tentei telefonar...

— Fui ferido, nada sério, mas o bastante para precisar de tratamento. Fui a um médico conhecido meu em Fredericksburg. Ele tem uma clínica particular. Não ficaria bem para o mais velho dos estadistas aparecer num hospital de Washington com uma bala no braço. Já pensou em Harriman surgindo na enfermaria de emergência de um hospital do Harlem com um ferimento de arma?... Não podia envolver você ainda mais, Brandon.

— Jesus. Devia ter pensado nisso.

— Tinha muito em que pensar. Onde está?

— Fora de Boston. Tenho muito a lhe dizer, mas não pelo telefone. Está tudo num envelope, junto com quatro tiras de radiografias. Tenho de lhe entregar imediatamente e você tem de levá-lo ao presidente.

— O Matarese?

— Mais do que podíamos imaginar. Tenho provas.

— Tome o primeiro avião para Washington. Vou contactar o presidente agora e obter proteção absoluta para você, uma escolta militar, se preciso. A busca será cancelada.

— Não posso fazer isso.

— Por que não? — O embaixador ficou surpreso.

— Há... reféns envolvidos. Preciso de tempo. Serão mortos a não ser que eu negocie.

— Negocie? Você não precisa negociar. Se tem o que diz ter, deixe o Governo negociar.

— É preciso mais ou menos uma libra de pressão e menos de um quinto de segundo para puxar um gatilho — disse Scofield. — Tenho de negociar... Mas entenda, agora eu posso. Manterei contato, detalharei a troca. Poderá cobrir-me.

— Essas mesmas palavras — disse Winthrop. — Nunca saem de seu vocabulário, não é mesmo?

— Nunca me foram tão úteis.

— Quanto tempo?

— Depende. É muito delicado. Vinte e quatro, possivelmente trinta horas. Tem de ser menos de quarenta e oito, esse é o limite.

— Mande as provas para mim, Brandon. Há um advogado, a firma é em Boston, mas ele mora em Waltham. É um bom amigo. Você tem um carro?

— Sim. Posso chegar a Waltham em aproximadamente quarenta minutos.

— Muito bem. Vou chamá-lo. Ele estará no primeiro avião da manhã para Washington. O nome dele é Paul Bergeron. Tem de ver o endereço na lista telefônica.

— Não é problema.

 

Era Ih45min da manhã quando Bray tocou a campainha da casa de pedra em Waltham. A porta foi aberta por Paul Bergeron, de roupão. Rugas de ansiedade sulcavam seu rosto inteligente, envelhecido.

— Sei que não posso perguntar-lhe o nome, mas gostaria de entrar? Pelo visto, tenho certeza de que um drinque não iria mal.

— Muito obrigado, mas ainda tenho muito a fazer. Aqui está o envelope, e obrigado de novo.

— Outro dia, então. — O advogado olhou o envelope grosso em sua mão. — Munição?

— Altamente explosiva, Sr. Bergeron.

— Telefonei para a companhia aérea. Vou tomar o avião das 7h55min para Washington. Estará nas mãos de Winthrop às dez da manhã.

— Obrigado. Boa noite.

 

Scofield voltou para Salem, examinando as estradas instintivamente para ver se era seguido. Não viu nada e nem mesmo esperava ver. Procurava também um supermercado que estivesse aberto à noite. Suas mercadorias raramente se restringiam a produtos alimentícios.

Encontrou um nos arredores de Medford, recuado da estrada. Estacionou em frente, entrou e viu o que buscava logo na segunda ala. Um mostruário de despertadores baratos. Comprou dez.

Eram 3hl8min quando entrou no quarto. Tirou os relógios das caixas e alinhou-os sobre a mesa. Abriu a pasta e tirou um pequeno estojo de couro contendo ferramentas em miniatura. Compraria fio de campainha e pilhas logo de manhã cedo, e os explosivos mais tarde. As cargas poderiam ser problema, mas não insolúvel. Precisava de mais impressão visual do que força, e talvez não precisasse de nada. Os anos, entretanto, haviam-lhe ensinado a ter cautela. Uma troca era com a mecânica de um imenso avião. Cada sistema tinha outro de reserva, cada sistema de reserva uma alternativa.

Tinha seis horas para preparar as alternativas. Era bom que tivesse alguma coisa para fazer. Agora seria impossível dormir.

 

A transição da madrugada para o nascer do dia foi quase imperceptível. A previsão era de chuvas de inverno. Começaram às oito horas. Bray estava de pé, apoiado no peitoril da janela, olhando o oceano, pensando em mares mais calmos, de águas mais quentes, perguntando a si mesmo se ele e Toni algum dia os cruzariam. Ontem não havia esperança. Hoje havia, e estava preparado para agir como nunca agira antes. Esse dia seria a consagração de Beowulf Agate. Gastara sua vida em preparação para as poucas, curtas horas que a prolongariam da única maneira que lhe era aceitável. Ia tirá-la de lá ou morrer, isso não mudara. O fato de que efetivamente destruíra o Matarese era quase incidental. Havia um objetivo profissional e ele era o melhor... ele e o russo eram os melhores que havia.

Deu as costas à janela e foi até a mesa, a fim de examinar seu trabalho das últimas horas. Levara menos tempo do que pensara, tão intensa havia sido sua concentração. Os relógios foram desmontados; perfurou o fuso da mola da roda principal, inseriu parafusos de pinhão nos mecanismos de catraca e equilibrou os pinos em miniatura. Estavam agora prontos para receber os fios que seriam ligados a terminais de baterias, as quais lançariam trinta segundos de centelhas sobre a pólvora exposta. Essas centelhas, por sua vez, iriam queimar e inflamar explosivos por um período de quinze minutos. Cada um dos alarmes havia sido ligado e desligado dezenas de vezes. Com uma lima, fizera ranhuras microscópicas nas engrenagens para garantir a seqüência; todos funcionaram dezenas de vezes em seqüência. Ferramentas profissionais, não era especialmente significativo que soubesse usá-las. O planejador era também mecânico, o arquiteto era construtor. Isso era essencial.

Poderia obter pólvora em qualquer armeiro, ao comprar cartuchos. Quanto a explosivos, visitaria uma demolição ou escavação, armado com a identificação governamental apropriada, como se estivesse numa visita de inspeção. O mais era questão de ter uma capa de chuva com bolsos grandes. Já tinha feito tudo isso antes. Os leigos eram todos iguais. Cuidado com o homem que tem uma carteira de identidade de plástico preto e fala baixo. É perigoso. Coopere, não deixe que seu nome vá para uma lista.

Colocou os mecanismos de relógio numa caixa que lhe dera o empregado do supermercado, há cinco horas, selou a tampa e levou-a para o carro lá fora. Abriu a mala, calçou a caixa no canto e voltou ao saguão do hotel.

— Acho que vou embora daqui a pouco — disse ao rapaz na recepção. — Paguei por uma semana, mas houve mudança de planos.

— E o senhor tem muitos telefonemas na sua conta.

— Certo — concordou Scofield, pensando em quantas pessoas em Salem também saberiam disso. Será que ainda queimavam feiticeiras em Salem? — Se quiser tirar minha conta, descerei daqui a meia hora. Ponha esses jornais na conta, também, por favor.

Tirou dois jornais da pilha no balcão, o Examiner e um jornal local. Subiu as escadas para o quarto.

Preparou uma xícara de café solúvel e levou-a para a mesa, sentando-se com os jornais e a lista telefônica de Salem. Eram 8h25min. Paul Bergeron estaria voando há trinta minutos, dependendo do tempo no Aeroporto Logan. Era uma coisa que verificaria quando começasse a dar seus telefonemas.

Abriu o Examiner e procurou a seção de classificados. Havia duas vagas para trabalhadores de construção, uma em Newton, outra em Braintree. Anotou os endereços, esperando encontrar uma terceira ou quarta mais perto.

Encontrou. No jornal de Salem, havia uma fotografia tirada cinco dias atrás mostrando o senador Joshua Appleton na cerimônia de inauguração de um projeto de construção em Swampscott. Era um projeto federal coordenado com o Estado de Massachusetts, um projeto habitacional para a classe média a ser construído nas terras rochosas ao Norte de Phillips Beach. A manchete dizia: Explosões e Escavação a Serem Iniciadas...

A ironia era esplêndida.

Abriu a lista telefônica e encontrou um armeiro em Salem. Não precisou procurar mais. Anotou o endereço.

Eram 8h37min, hora de chamar a mentira que usava o nome de Joshua Appleton... Levantou-se e foi até a cama, decidindo impulsivamente ligar para o Aeroporto Logan primeiro. As palavras que ouviu foram as que queria ouvir.

— Sete e cinqüenta e cinco para Washington? Foi o vôo da Eastern, número sessenta e dois. Um momento, vou verificar... Houve um atraso de doze minutos, mas está no ar. Não há alteração na hora de chegada.

Paul Bergeron estava a caminho de Washington e Robert Winthrop. Não haveria atrasos agora, nenhuma conferência de crise, nenhuma reunião de última hora entre homens arrogantes tentando decidir como e quando proceder. Winthrop chamaria o Gabinete Oval, conseguiria uma audiência imediata e a potência total do Governo se jogaria contra o Matarese. E amanhã de manhã, Winthrop concordara, o senador seria apanhado pelo Serviço Secreto e levado diretamente ao Hospital Walter Reed, onde seria submetido a rigorosos exames. Exporiam uma fraude de vinte e cinco anos e o filho seria destruído juntamente com o Pequeno Pastor.

Bray acendeu um cigarro, tomou um gole de café e pegou o fone. Estava em pleno comando. Concentrar-se-ia completamente em suas negociações, na troca que nada significaria para o Matarese.

A voz do senador estava tensa, exausta.

— Nicholas Guiderone quer vê-lo.

— O Pequeno Pastor em pessoa — disse Scofield. — Sabe quais são minhas condições. E ele? Está preparado para concedê-las?

— Sim — murmurou o filho. — Concordou com o número de telefone, mas não tem certeza do que quer dizer “uma oportunidade de observar a moça”.

— Então não há nada mais a dizer. Vou desligar.

— Espere!

— Por quê? é muito simples. Disse que tenho um binóculo. Que há mais a dizer? Ele recusou. Adeus, senador.

— Não! — Podia ouvir a respiração de Appleton. — Está bem, está bem. Quando chamar o número que vou lhe dar, saberá a hora e o local.

— O quê? O senhor é um homem morto, senador. Se querem sacrificar o senhor, é problema deles, e seu, na verdade, mas certamente não é meu.

— Que diabo está dizendo? Que há de errado?

— Não aceito. Ninguém vai me dizer um local e uma hora — eu direi ao senhor e o senhor a eles. Especificamente, vou lhe dar um local e um intervalo de tempo, senador. Entre as três e as cinco horas desta tarde, nas janelas do lado Norte de Appleton Hall, as que dão para o lago Jamaica. Entendeu? Appleton Hall.

— O número de telefone é de lá!

— Não diga. Iluminem as janelas, ponham a mulher em uma, o russo na. outra. Quero movimentação, conversa. Quero vê-los andando, falando, reagindo. Está bem claro?

— Sim. Andando... reagindo.

— E, senador, diga ao seu pessoal que não tente encontrar-me. Não vou levar as radiografias comigo. Estão com uma pessoa que sabe para onde mandá-las se eu não estiver de volta numa parada de ônibus específica até as cinco e meia.

— Parada de ônibus?

— A estrada abaixo de Appleton Hall é caminho dos ônibus. Eles estão sempre cheios e a curva em volta do lago Jamaica faz com que diminuam a marcha. Se continuar a chover, serão ainda mais vagarosos. Terei tempo suficiente para ver o que quero ver.

— Mas vai ver Nicholas Guiderone? — A pergunta foi apressada, quase histérica.

— Se ficar satisfeito — disse Scofield friamente. — Telefonarei para o senhor de uma cabina por volta de cinco e meia.

— Ele quer vê-lo agora!

— O Sr. Vickery não falará com ninguém até se registrar no Hotel Ritz Carlton. Pensei que isso estivesse bem claro.

— Ele está preocupado com a possibilidade de que você faça duplicatas. Está muito preocupado.

— Esses negativos são de vinte e cinco e de trinta e oito anos atrás. Qualquer exposição à luz fotográfica seria acusada num espectrógrafo no mesmo instante. Não me matarão por isso.

— Insiste em que o contacte agora! Diz que é de vital importância!

— Tudo é de importância vital.

— Mandou dizer que você está enganado. Muito enganado.

— Se eu ficar satisfeito esta tarde, ele terá oportunidade de provar isso depois. E o senhor terá a presidência. Ou será ele?

Bray desligou e apagou o cigarro. Como pensara, Appleton Hall era o lugar mais lógico para Guiderone guardar seus reféns. Procurara não pensar nisso quando dirigira em torno da imensa propriedade. A proximidade de Toni era um obstáculo que mal podia ultrapassar, mas instintivamente sentira que ela estava lá. E, porque sabia, seus olhos haviam reagido como os rápidos obturadores de dezenas de câmaras fotografando centenas de imagens. As terras eram espaçosas, alqueires cheios de árvores densas, arbustos espessos e guardas em abrigos em volta da colina. Uma fortaleza dessas era alvo apropriado para uma invasão, e certamente essa possibilidade não escapava a Guiderone. Scofield tencionava capitalizar esse medo. Criaria uma invasão imaginária com raízes no tipo de exército que o Pequeno Pastor conhecia e compreendia mais que qualquer outra pessoa neste mundo.

Fez uma última chamada antes de deixar Salem, para Robert Winthrop em Washington. O embaixador poderia ficar ocupado durante horas na Casa Branca, seus conselhos sendo necessários a qualquer decisão a ser tomada pelo presidente, e Scofield queria sua primeira linha de proteção. Era, na verdade, sua única proteção. Invasões imaginárias não tinham invasores.

— Brandon? Não dormi a noite inteira.

— Assim como muitas outras pessoas. Essa linha é estéril?

— Foi checada eletronicamente hoje de manhã. Que está acontecendo? Viu Bergeron?

— Está a caminho. Vôo sessenta e dois da Eastern. Está com o envelope e chegará em Washington às dez.

— Vou mandar Stanley encontrá-lo no aeroporto. Falei com o presidente há quinze minutos. Ele está limpando a agenda e me verá às duas horas hoje de tarde. Espero que seja uma reunião bem demorada. Tenho certeza de que incluirá outras pessoas.

— É por isso que estou telefonando agora. Pensei isso mesmo. Já sei onde vai ser a troca. Tem um lápis?

— Sim, continue.

— É um lugar chamado Appleton Hall em Brookline.

— Appleton? Senador Appleton?

— Compreenderá quando receber o envelope de Bergeron.

— Meu.Deus!

— A propriedade fica acima do lago Jamaica, numa colina chamada Appleton Hill. É muito conhecida. Vou marcar o encontro para as onze e meia hoje à noite. Chegarei na hora exata, Diga a quem quer que seja que estiver encarregado que comece a cercar a colina as onze e quarenta e cinco, bloqueie as estradas por um quilômetro em todas as direções, usando sinais de desvio, e aproxime-se com cuidado. Há guardas por detrás da cerca a cada cem metros, aproximadamente. Posicione o comando na estrada de terra em frente ao portão de entrada. Ha uma grande casa branca lá, se não me engano. Tome-a e corte os fios telefônicos. Talvez pertença ao Matarese.

— Espere um minuto, Brandon — interrompeu Winthrop. — Estou escrevendo tudo isso e minhas mãos e meus olhos não são tão bons quanto antigamente.

— Desculpe, irei mais devagar.

— Está bem. Cortar os fios telefônicos. Continue.

— Minha estratégia é clássica. Talvez a esperem, mas não podem sustá-la. Digo que meu limite será quinze minutos depois de meia-noite. É quando devo sair pela porta de entrada com os reféns em direção ao meu carro. Riscarei dois fósforos, um após o outro. Reconhecerão uma configuração. Direi que há um mensageiro fora do portão com um envelope contendo as radiografias.

— Mensageiro? Radiografias?

— A primeira referência é alguém que eu vou contratar. A segunda é a prova que esperam que eu entregue.

— Mas você não pode entregá-la!

— Não faria diferença alguma se entregasse. Terá o suficiente no envelope que Bergeron lhe está levando.

— Certo. Que mais?

— Quando eu riscar o segundo fósforo, diga ao CP. que me dê sinais correspondentes.

— Correspondentes?

— Risque dois fósforos.

— Claro. Desculpe. E então?

 

— Espere que eu dirija até o portão. Controlarei tudo para que seja o mais próximo possível das doze e vinte. Assim que o portão for aberto, as tropas entrarão. Serão cobertas por estática. Diga-lhes que é só isso, estática.

— O quê? Não compreendo.

— Eles compreenderão. Preciso ir agora, Sr. Embaixador. Ainda tenho muito a fazer.

— Brandon!

— Sim?

— Há uma coisa que você não terá de fazer.

— O quê?

— Preocupar-se com reabilitação. Prometo-lhe. Você sempre foi o que há de melhor.

— Obrigado. Obrigado por tudo. Só quero ser livre.

 

O armeiro no Bulevar Hawthorne de Salem achou engraçado e ficou contente quando o estranho comprou duas grosas de cartuchos de espingarda Zero-Quatro fora de estação. Todos os turistas eram uns idiotas, mas esse era pior ainda. Não só pagou bom dinheiro pelos cartuchos, mas comprou dez tubos plásticos de mostruário que os fabricantes davam de graça. Falava com voz macia, meio pastosa. Devia ser um desses advogados de Nova York que nunca tinham usado uma arma. Grandes tolos.

A chuva caía pesada, formando poças na lama. Turmas de trabalhadores de construção, mal-humorados, sentavam-se nos carros aguardando uma estiada para se apresentarem e assinarem a folha. Quatro horas de trabalho significavam um dia de pagamento, mas sem assinar a folha não ganhariam nada.

Scofield aproximou-se da porta do galpão pré-fabricado, pisando numa tábua que afundou na lama em frente da janela borrifada de chuva. Dentro, o capataz estava sentado a uma mesa, falando pelo telefone. Uns três metros à esquerda havia um depósito de concreto com porta de aço e um cadeado pesado. Na porta, estampados em vermelho, estavam os dizeres:

PERIGO

SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO

CIA. DES. SWAMPSCOTT

 

Primeiro Bray bateu na janela, distraindo a atenção do homem no telefone, depois pisou fora da tábua e abriu a porta.

— Sim, o que há? — perguntou o capataz.

— Espero até acabar — disse Scofield, fechando a porta.

Uma plaqueta sobre a mesa dava o nome do homem: A. Patelli.

— Vai demorar um pouco, amigo! Estou falando com um ladrão. Um puta de um ladrão que diz que os veados de seus motoristas não podem trabalhar porque está molhado lá fora!

— Não demore muito, por favor.

Bray tirou a carteira de identidade. Abriu-a e mostrou-a.

— É o Sr. Patelli, não é?

O capataz olhou para o cartão de identidade na carteira preta.

— Sou. — Voltou ao telefone. — Chamo daqui a pouco, ladrão! — Levantou-se da cadeira. — É o Governo?

— Sim.

— Que é que há desta vez?

— Uma coisa que achamos que o senhor não sabe, Sr. Patelli. Minha unidade está trabalhando com o Bureau Federal de Investigações...

— O FBI?

— Correto. Vários carregamentos de material explosivo foram entregues aqui.

— Trancados a sete chaves e todos contados — interrompeu o capataz. — Um por um.

— Achamos que não. É por isso que estou aqui.

— O quê?

— Houve uma explosão há dois dias em Nova York, deve ter lido nos jornais. Um banco em Wall Street. A oxidação revelou vários números da série impressa que explodiu com a espoleta. Achamos que a pista leva a um de seus carregamentos.

— É uma puta de uma loucura!

— Por que não verificamos?

Os explosivos dentro do depósito de concreto eram blocos sólidos de uns treze centímetros de comprimento, oito de altura e cinco de largura, empacotados em caixas de vinte e quatro cada.

— Prepare uma declaração de consignação, por favor — disse Scofield, estudando a superfície de um dos blocos. — Temos razão. São esses mesmos.

— Uma declaração?

— Vou levar uma caixa para análise de indícios.

— O quê?

— Olhe aqui, Sr. Patelli, o senhor está num aperto. Assinou por esses carregamentos e acho que não contou. Aconselho-o a cooperar totalmente. Qualquer sinal de resistência pode ser mal-interpretado. Afinal de contas, a responsabilidade é sua. Francamente, acho que o senhor não está envolvido, mas sou apenas o investigador de campo. Por outro lado, minha palavra é importante.

— Assino qualquer porra de papel que quiser. Que é que eu escrevo?

 

Na loja de ferragens, Bray comprou dez baterias, dez vasilhames de plástico de cinco litros cada, um rolo de fio de campainha e uma lata de spray de tinta preta. Pediu uma caixa grande para carregar tudo na chuva.

 

No assento de trás de seu carro alugado, colocou o último relógio na vasilha de plástico e pressionou o bloco de explosivos ao lado da bateria. Escutou o tique-taque do mecanismo — tudo em ordem. Colocou a tampa e selou com a fita.

Era meio-dia e quarenta e dois minutos, os alarmes estavam em seqüência, as ranhuras nas engrenagens trancadas pelos dentes dos pinhões. A seqüência começaria exatamente dentro de onze horas e vinte e seis minutos.

Cobriu a vasilha com tinta preta, como fizera com as outras nove. Grande parte do spray caiu na almofada do assento. Deixaria uma nota de cem dólares para cobrir o prejuízo.

 

Inseriu a ficha no telefone público. Estava em West Roxbury, a dois minutos da fronteira com Brookline. Discou, esperou que erguessem o fone e gritou no bocal.

— Limpeza Pública?

— Sim, senhor. Em que podemos ajudá-lo?

— Alameda Appleton! Brookline! O esgoto está entupido! Inundou o gramado da minha casa!

— Qual é o endereço, senhor?

— Já lhe disse! Alameda Appleton com Beechnut Terrace! É medonho!

— Vamos mandar um caminhão imediatamente, senhor. —

— Por favor, depressa!

 

O caminhão da Limpeza Pública subiu Beechnut Terrace devagarinho, evidentemente checando as sarjetas e bueiros. Quando alcançou a esquina, um homem com uma capa de chuva azul-escura fê-lo parar. Era impossível desviar-se dele. Movia-se de um lado para o outro no meio da rua, acenando furiosamente com os braços. O motorista abriu a porta e gritou através da chuva.

— O que é?

Foi a última coisa que diria durante muitas horas.

 

Dentro do cercado de Appleton Hall, um guarda num abrigo de cedro pegou o telefone de parede e disse à telefonista da mesa que lhe desse uma linha para fora. Ia chamar o Departamento de Limpeza Pública de Brookline. Um de seus caminhões estava na Alameda Appleton, parando a cada cem metros.

—Recebemos um chamado, há um entupimento perto de Beechnut e Appleton, senhor. Mandamos um caminhão verificar.

— Obrigado — disse o guarda, apertando o botão de intercomunicação com todos os postos.

Passou a informação adiante e voltou à cadeira.

Que tipo de idiota ganharia a vida verificando esgotos?

 

Scofield vestiu a capa de plástico preto com as palavras pintadas em branco nas costas: “Dep.. Limpeza Pública. Brookline”. Eram 3h05min. Começara o período de observação. Antonia e Taleniekov estavam de pé junto às janelas do outro lado da mansão. A atenção de Appleton Hall estaria voltada para a estrada lá embaixo. Dirigiu o caminhão da Limpeza Pública devagar, subindo a Alameda Appleton junto ao meio-fio, parando em cada bueiro. A rua era longa, havia uns trinta ou quarenta bueiros. Saltava em cada parada, levando um desentupidor de dois metros e qualquer outra ferramenta que encontrava no caminhão e que parecia apropriada para o problema imaginário. Isso foi em cada parada, mas na décima acrescentou outro item: uma vasilha de cinco litros pintada de preto. Sete delas ele conseguiu meter entre as barras de ferro batido da cerca, empurrando-as para dentro da folhagem com o desentupidor, fora do alcance visual dos abrigos dos guardas. As outras três pendurou nas grades dos bueiros, usando o que restava do fio de campainha.

Às 4h22min, terminou e voltou a Beechnut Terrace, onde iniciou o processo embaraçoso de reavivar o empregado do Departamento de Limpeza Pública. Não havia tempo para sutilezas. Tirou o plástico preto e deu umas bofetadas no homem até acordá-lo.

— Que diabo aconteceu?

O homem estava assustado, encolhendo-se ao ver Bray debruçado sobre ele.

— Foi um engano — disse Scofield com simplicidade. — Aceite ou não, como quiser, mas não está faltando nada, não aconteceu nada de mal e não há nenhum problema com os esgotos.

— Está louco!

Bray tirou o dinheiro do bolso.

— Estou certo de que acha isso e estou disposto a pagar-lhe pelo uso de seu caminhão. Ninguém precisa saber de nada. Aqui estão quinhentos dólares.

— Quinhentos?

— Durante uma hora, você verificou os esgotos em Beechnut e Appleton. É só o que precisam saber. Foi despachado para cá e cumpriu seu dever. Isto é, se você quiser os quinhentos dólares.

— Está maluco!

— Não tenho tempo para discutir com você. Quer o dinheiro ou não?

O homem arregalou os olhos e pegou o dinheiro.

 

Não importava que o vissem agora, só importava o que ele visse. Seu relógio marcava 4h57min. Faltavam três minutos para terminar o período de observação. Parou o carro diretamente embaixo do centro de Appleton Hall, abaixou o vidro da janela e ergueu o binóculo, focalizando as janelas iluminadas trezentos metros acima, através da chuva.

O primeiro vulto que viu foi Taleniekov, mas não era o mesmo Taleniekov que vira pela última vez em Londres. O russo estava de pé, junto à janela, imóvel, um curativo cobrindo a metade da boca. Uma saliência abaixo do colarinho da camisa aberta acusava outro ferimento coberto de gaze. Um homem musculoso de cabelos escuros estava ao lado do soviético, com a mão escondida em suas costas. Scofield teve a nítida impressão de que, sem o auxílio do homem, Taleniekov não conseguiria ficar de pé. Mas estava vivo, olhava bem em frente, piscando de vez em quando. O russo estava lhe dizendo que estava vivo.

Bray desviou o binóculo para a direita e parou de respirar. As batidas dentro do peito aceleraram e pareciam tambores batendo nas selvas. Estava acima de suas forças. A chuva embaciou as lentes. Estava ficando louco.

Lá estava ela! Ereta atrás da janela, os olhos em frente, respondendo a vozes. Respondendo.

Aí Scofield viu o que não ousara esperar ver. Ondas de alívio rolaram sobre ele e teve vontade de gritar. Os olhos de Antonia refletiam o medo, certamente, mas também outra coisa: raiva.

Os olhos de seu amor transbordavam de raiva, e não havia nada no mundo que substituísse isso. Uma mente furiosa era uma mente intacta.

Abaixou o binóculo, suspendeu o vidro e ligou o motor. Tinha de dar vários telefonemas e fazer um arranjo final. Quando terminasse, estaria na hora de o Sr. B. A. Vickery chegar ao Hotel Ritz Carlton.

 

— Ficou satisfeito?

A voz do senador estava mais controlada do que naquela manhã. Ainda mostrava ansiedade, mas não de modo tão óbvio.

— Qual a gravidade dos ferimentos do russo?

— Perdeu sangue, está fraco.

— Notei isso. Pode andar?

— O bastante para entrar num carro, se é isso que quer fazer.

— É o que quero fazer. Ele e a mulher em meu carro comigo no momento exato que eu designar. Vou dirigir meu carro para o portão e, quando der o sinal, abram o portão. É aí que lhe dou as radiografias e nós saímos.

— Pensei que quisesse matá-lo.

— Quero outra coisa primeiro. Ele tem informações que podem tornar o resto da minha vida muito agradável, não importa quem mande em quem.

— Compreendo.

— Tenho certeza que sim.

— Disse que se encontraria com Nicholas Guiderone e ouviria o que ele tem a dizer.

— E vou. Seria mentira se dissesse que não tenho perguntas a lhe fazer.

— Ele responderá tudo. Quando quer vê-lo?

— Ele saberá quando eu estiver no Ritz Carlton. Diga-lhe que me telefone para lá. E vamos deixar uma coisa bem clara, senador: um telefonema, nada de tropas. As radiografias não estarão no hotel.

— E onde estarão?

— Isso é comigo.

Scofield desligou e saiu da cabina. Fez a próxima chamada de uma cabina no centro de Boston, para entrar em contato com Robert Winthrop e principalmente para ver a reação do embaixador ao material no envelope. Se houvesse alguma falha, queria saber logo.

— Aqui é Stanley, Sr. Scofield. — Como sempre, o motorista de Winthrop parecia meio áspero, mas não era desagradável. — O embaixador ainda está na Casa Branca. Pediu que eu viesse para cá e aguardasse seu telefonema. Mandou lhe dizer que tudo que pediu foi providenciado, e que eu repetisse as horas marcadas. Onze e meia, onze e quarenta e cinco e doze e quinze.

— Era isso que eu queria ouvir. Muito obrigado.

Bray abriu a porta da cabina telefônica da drogaria e foi até um balcão onde vendiam papel e canetas de várias cores. Escolheu papel amarelo-vivo e uma caneta azul-escuro.

Voltou ao carro e, usando a pasta como mesa, escreveu sua mensagem em letras nítidas, grandes. Satisfeito, abriu a pasta, tirou cinco envelopes pardos selados, endereçados a cinco dos homens mais poderosos da nação, e colocou-os no assento a seu lado. Estava na hora de colocá-los no correio. Tirou então um sexto envelope e inseriu a folha amarela. Fechou-o e escreveu na frente.

 

PARA A POLICIA DE BOSTON

 

Subiu a Rua Newbury devagar, procurando o endereço que encontrara na cabina telefônica. Era do lado esquerdo, o quarto prédio da esquina, e tinha um cartaz grande na janela.

 

Serviço de Mensageiros Phoenix

Entrega 24 Horas. Médica, Acadêmica, Industrial

 

Uma mulher magra, reservada, com aspecto eficiente, levantou-se da mesa e veio ao balcão.

— Posso ajudá-lo?

— Espero que sim — disse Scofield em voz formal, abrindo a carteira com a identificação. — Trabalho para o BDP, ligado a Inspeções Interdepartamentais.

— A polícia? Céus...

— Não há razão para alarme. Estamos fazendo um teste para verificar como os distritos reagem a emergências. Queremos que este envelope seja entregue na delegacia de Boylston hoje à noite. Pode encarregar-se disso?

— Certamente que sim.

— Ótimo. Quanto é?

— Oh, acho que não é necessário, senhor. É para o bem comum.

— Não posso aceitar isso, obrigado. Além do mais, precisamos do recibo e de seu nome, é claro.

— Claro. O preço de entregas noturnas é geralmente dez dólares.

— Quer me dar um recibo, por favor. — Scofield tirou o dinheiro do bolso. — E, se não se incomodar, por favor especifique que a entrega deve ser feita entre as onze e onze e quinze, isso é muito importante. Pode garantir isso?

— Melhor ainda, senhor. Vou entregá-lo pessoalmente. Trabalho até meia-noite, então vou deixar um dos rapazes tomando conta da loja e vou até lá eu mesma. Admiro muito o que estão fazendo. A onda de crimes é simplesmente astronômica hoje em dia. Todos nós devemos ajudar, é o que sempre digo.

— Muita bondade sua, minha senhora.

— Sabe, há umas pessoas muito estranhas em volta do apartamento onde eu moro. Muito estranhas mesmo.

— Qual é o endereço? Vou mandar as patrulhas vigiarem melhor daqui por diante.

— Ah, muito agradecida.

— Obrigado à senhora.

 

Eram 9h20min quando entrou no saguão do Ritz Carlton. Fora de carro até as docas e pedira para jantar a especialidade: peixe fresco. Passou a maior parte do tempo pensando no que ele e Toni fariam depois dessa noite. Aonde iriam? Como iriam viver? Dinheiro não o preocupava, Winthrop prometera reabilitação e o calculista que dirigia as Operações Consulares, o quase-carrasco chamado Daniel Congdon, fora muito generoso com sua pensão e outros benefícios, que continuaria a receber enquanto mantivesse silêncio. Beowulf Agate estava para desaparecer deste mundo. E aonde iria Brandon Scofield? Não importava, desde que Antonia estivesse a seu lado.

— Um recado para o senhor, Sr. Vickery — disse o empregado da recepção, estendendo um pequeno envelope.

— Obrigado — disse Scofield, pensando se embaixo daquela camisa haveria um pequeno círculo azul gravado na carne.

O recado era simplesmente um número de telefone. Amassou o papel e jogou-o no balcão.

— Alguma coisa errada? — perguntou o rapaz.

Bray sorriu.

— Diga ao filho da puta que não faço chamadas para números. Só para nomes.

 

Deixou o telefone tocar três vezes antes de atender.

— Sim?

— Você é um homem muito arrogante, Beowulf.

A voz era aguda, mais cruel que o vento. Era o Pequeno Pastor, Nicholas Guiderone.

— Eu estava certo, então — disse Scofield. — Aquele homem lá embaixo não trabalha em tempo integral para o Ritz Carlton. E quando toma banho há um pequeno círculo azul no peito que não sai por mais que esfregue.

— Esse círculo é usado com muito orgulho, senhor. São homens e mulheres extraordinários que se alistaram em nossa extraordinária causa.

— Onde encontra gente assim? Pessoas que se fazem explodir no ar e mordem cianeto?

— Muito simples: em nossas companhias. Desde o início dos tempos, o homem está sempre pronto a se sacrificar por uma grande causa. Não é preciso que seja num campo de batalha, ou num movimento de resistência, ou mesmo no mundo da espionagem internacional. Há muitas causas, não preciso dizer-lhe isso.

— Como a deles? Os Fida’is, Guiderone? O quadro de assassinos de Hasan ibn-al-Sabbah?

— Estou vendo que estudou o padrone.

— A fundo.

— Há certas semelhanças de ordem prática e filosófica, não nego. Esses homens e mulheres têm tudo que querem neste mundo, e quando o deixam suas famílias — mulheres, filhos, maridos — terão mais do que jamais tiveram. Não é esse o seu sonho? Com mais de quinhentas companhias, os computadores podem selecionar um punhado de pessoas com vontade e capacidade de fazer parte desse arranjo. Uma simples extensão do sonho, Sr. Scofield.

— Uma longa extensão.

— Não muito. Muitos mais executivos morrem de ataques de coração do que de violência. Basta ler os obituários nos jornais. Mas estou certo de que. esta é apenas uma pergunta entre muitas. Posso mandar um carro buscá-lo?

— Não.

— Não há razão para ser hostil.

— Não estou sendo hostil, sou apenas cauteloso. Basicamente, sou um covarde. Organizei um cronograma e estou resolvido a segui-lo. Chegarei aí exatamente às onze e meia. O senhor falará, eu escutarei. Precisamente às doze e quinze, sairei de lá com a moça e o russo. Um sinal será dado, entraremos no carro e iremos para seu portão principal. É aí que ficará com as radiografias e nós escaparemos. Se houver qualquer desvio, por menor que seja, as radiografias desaparecerão, e aparecerão em outro lugar.

— Temos o direito de examiná-las — protestou Guiderone. — Verificar sua precisão e fazer uma análise espectrográfica. Queremos ter certeza de que não foram feitas duplicatas. Precisamos de tempo para isso.

Típico do Pequeno Pastor. O exame fora omitido, essa era a fraqueza, e Guiderone naturalmente agarrou-se a isso. O enorme portão de ferro eletrônico tinha de ser aberto e ficar aberto. Se permanecesse fechado, todas as tropas e todos os truques que pudessem ser inventados não impediriam um homem de disparar um rifle contra quem estivesse dentro do carro. Bray hesitou.

— Muito justo. Mande o equipamento e um técnico para a guarita. A verificação levará dois ou três minutos, mas o portão deve ficar aberto enquanto estiver sendo feita.

— Muito bem.

— E olhe aqui — acrescentou Scofield —, o que eu disse a seu filho é verdade...

— Acho que está se referindo ao senador Appleton.

— O mesmo. Encontrará as radiografias intactas, nenhuma marca de duplicação. Não vão me matar por isso.

— Acredito. Mas acho que há um ponto fraco nesses preparativos.

— Ponto fraco? — Bray esfriou.

— Sim. De onze e meia às doze e quinze são só quarenta e cinco minutos. Não é muito tempo para conversarmos. Para eu falar e o senhor ouvir.

Scofield respirou de novo.

— Se for convincente, saberei onde encontrá-lo de manhã, não é?

Guiderone riu suavemente em sua voz aguda.

— Claro. Tão simples. O senhor é um homem lógico.

— Procuro ser. Onze e meia, então. — Bray desligou.

Conseguira! Cada sistema tinha um de reserva, cada sistema de reserva tinha uma alternativa. A troca estava coberta em todos os flancos.

 

Eram 11h29min quando entrou de carro pelos portões de Appleton Hall e tomou a estrada privativa que fazia uma curva em frente à cocheira, subindo para a mansão murada no topo da colina. Ao passar pela garagem cavernosa da cocheira, ficou espantado por ver várias limunises. Uns dez ou doze motoristas estavam conversando. Eram homens que se conheciam, já haviam estado lá juntos.

O muro cercando a enorme casa era mais enfeite do que proteção. Não chegava a dois metros e meio, embora parecesse mais alto quando visto do pé da colina. Joshua Appleton, o primeiro, construíra um brinquedo caro. Um terço castelo, um terço fortaleza e um terço mansão eficiente com uma vista maravilhosa de Boston. As luzes da cidade cintilavam ao longe. A chuva parara, deixando no ar uma neblina fria e translúcida.

Bray viu dois homens à luz dos faróis. O da direita fez sinal para que ele parasse em frente a uma abertura no muro. Parou. O caminho do outro lado do muro era flanqueado por correntes pesadas, suspensas de grossos postes de ferro, no fim do qual havia uma porta encaixada num arco. Só faltava a grade da fortaleza com suas pontas aguçadas cair violentamente, fechando a entrada, ao ser cortada a corda que a prendia.

Bray saltou do carro e foi imediatamente jogado contra o capô. Todos os bolsos, cada centímetro do corpo, foram revistados em busca de armas. Ladeado por guardas, foi escoltado até a porta na arcada e admitido.

Logo ao primeiro olhar, compreendeu por que Nicholas Guiderone quis a propriedade dos Appleton. A escadaria, as tapeçarias, os candelabros... a magnificência do grande hall era fantástica A única coisa que se aproximava disso era o esqueleto carbonizado em Porto Vecchio que um dia fora a Vila Matarese.

— Por aqui, por favor — disse o guarda da direita, abrindo uma porta. — O senhor tem três minutos com os convidados.

Antonia atravessou a sala correndo e atirou-se em seus braços, molhando as faces dele com suas lágrimas, abraçando-o com força desesperada.

— Meu querido! Veio nos buscar!

— Shhhhhh... — Segurou-a. Oh, Deus, segurou-a em seus braços! — Não temos tempo — disse suavemente. — Daqui a pouco vamos sair daqui. Tudo vai dar certo. Vamos ser livres.

— Ele quer falar com você — ela murmurou. — Depressa.

— O quê? — Scofield abriu os olhos e olhou além de Toni. Do outro lado da sala, Taleniekov estava sentado, rígido, numa poltrona. O rosto do russo estava pálido, tão pálido que parecia giz, o lado esquerdo da cabeça enrolado em ataduras. A orelha e metade da bochecha haviam sido arrancadas. O pescoço e a omoplata também estavam cobertos de ataduras, encaixados numa braçadeira de metal em ângulo feto; mal podia mover-se. Bray segurou a mão de Antonia e acercou-se dele. Taleniekov estava morrendo.

— Vamos sair daqui — murmurou Scofield. — Vamos levá-lo a um hospital. Tudo vai dar certo.

O russo sacudiu a cabeça vagarosamente, dolorosamente, deliberadamente.

— Ele não pode falar, querido. — Toni tocou a face direita de Vasili. — Não tem voz.

— Jesus! O que eles... ? Não importa, em quarenta e cinco minutos vamos sair daqui.

Novamente Taleniekov sacudiu a cabeça. O russo estava tentando dizer-lhe alguma coisa.

— Quando os guardas o estavam ajudando a descer as escadas, ele teve uma convulsão — disse Antonia. — Foi horrível, ele os arrastou com ele e ficaram furiosos. Bateram nele sem parar, e ele já com tanta dor.

— Ele os arrastou... ? — perguntou Bray, pensativo, olhando para Taleniekov.

O russo acenou afirmativamente com a cabeça, metendo a mão embaixo da camisa para alcançar o cinto. Tirou uma arma e empurrou-a no colo em direção a Scofield.

— Ele caiu de verdade — murmurou Bray, sorrindo, ajoelhando e pegando a arma. — Não se pode confiar nesses comunistas filhos da puta. — Então virou o russo, colocando os lábios perto da orelha direita de Taleniekov. — Tudo está em ordem. Temos homens do lado de fora. Coloquei cargas de explosivos em volta da colina. Eles querem a prova que tenho. Vamos sair daqui.

O homem da KGB sacudiu a cabeça mais uma vez. Parou, então, e fez um gesto para Scofield observar seus lábios.

Formou as palavras: Pazhar... sigda pazhar.

Bray traduziu:

— Fogo, sempre fogo?

Taleniekov fez que sim com a cabeça e formou outras palavras, num murmúrio quase inaudível: Zazhiganiye... pazhar.

— Explosões? Depois das explosões, fogo? É isso que está dizendo?

Mais uma vez Taleniekov concordou com a cabeça, implorando com os olhos.

— Você não compreendeu — explicou Bray. — Estamos cobertos.

O russo sacudiu a cabeça, dessa vez com violência. Depois ergueu a mão com dois dedos atravessados nos lábios.

— Um cigarro? — perguntou Scofield.

Vasili confirmou. Bray tirou o maço do bolso, junto com fósforos. Taleniekov empurrou os cigarros com a mão e pegou os fósforos. A porta se abriu e o guarda falou rispidamente.

— Chega. O Sr. Guiderone está a sua espera. Eles estarão aqui quando terminar.

— É melhor que estejam.

Scofield ficou de pé, escondendo a arma no cinto embaixo da capa de chuva. Segurou a mão de Antonia e foi com ela até a porta.

— Voltarei daqui a pouco. Ninguém nos poderá deter.

 

Nicholas Guiderone estava sentado atrás da mesa na biblioteca. A cabeça desmedidamente grande rodeada de uma franja de cabelos brancos terminava numa cara de velho, a pele pálida esticada até as têmporas, afundando nas órbitas, onde se aninhavam os olhos escuros e brilhantes. Tinha o aspecto de um gnomo. Não era difícil pensar nele como sendo o Pequeno Pastor.

— Gostaria de reconsiderar seu cronograma, Sr. Scofield? — perguntou em sua voz aguda, um pouco sem fôlego, sem olhar para Bray, estudando alguns papéis à sua frente. — Quarenta minutos é realmente muito pouco tempo e tenho muito a lhe dizer.

— Pode me dizer em outra ocasião, talvez. Hoje obedeço ao meu cronograma.

— Entendo. — O velho levantou os olhos, fixando-os em Scofield. — Acha que fizemos coisas horríveis, não é?

— Não sei o que fizeram.

— Certamente que sabe. Tivemos quase quatro dias completos com o russo. Seus monólogos não foram voluntários, mas, com o auxílio da química, as palavras vieram. O senhor descobriu o esquema de companhias imensas ligadas no mundo inteiro; percebeu que, através dessas companhias, encaminhamos dinheiro para grupos terroristas em toda parte. Por falar nisso, tem toda a razão. Duvido que haja um grupo eficaz de fanáticos em qualquer parte que não se tenha beneficiado conosco. Percebe tudo isso, mas não consegue compreender por quê. Está na ponta de seus dedos, mas lhe escapa.

— Na ponta de meus dedos?

— As palavras são suas. O russo as usou, mas eram suas. Induzidos quimicamente, as vítimas multilíngües falam a língua de suas origens... Paralisia, Sr. Scofield. Os governos precisam ser paralisados. Nada consegue isso mais rapidamente, ou mais totalmente, que o caos mundial que chamamos de terrorismo.

— Caos... — Bray sussurrou.

Era essa a palavra a que voltava a todo instante, sem saber por quê. Caos. Corpos colidindo no espaço...

— Sim. Caos! — repetiu Guiderone. Seus olhos impressionantes eram como duas pedras negras reluzentes refletindo a luz do abajur. — Quando o caos for completo, quando as autoridades civis e militares estiverem impotentes, reconhecendo que não podem destruir milhares de alcatéias de lobos com tanques, torpedos e armas táticas, então os homens da razão tomarão conta. O período de violência estará finalmente terminado e o mundo poderá dedicar-se a viver produtivamente.

— Num monte de cinzas nucleares?

— Isso não sucederá. Testamos os controles; nossos homens estão com eles.

— Que diabo esta dizendo?

— Governos, Sr. Scofield! — gritou Guiderone, os olhos em fogo. — Governos são obsoletos! Não se pode mais permitir que funcionem como funcionaram pela história afora. Se continuarem, este planeta não verá o próximo século. Os governos, como nós os conhecemos, não são mais entidades viáveis. Terão de ser substituídos.

— Por quem? Com quê?

O velho amaciou a voz, que ficou oca, hipnótica.

— Por uma nova raça de filósofos-reis, se quiser chamá-los assim. Homens que compreendem este mundo como ele está realmente ficando, que medem seu potencial em termos de recursos, tecnologia e produtividade, que não se importam com a cor da pele de um homem, ou a herança de seus antepassados, ou quais os ídolos que ele adora. Que só se importam com seu potencial total de produtividade como ser humano. E com sua contribuição para o mercado.

— Meu Deus — exclamou Bray. — Está falando dos conglomerados.

— E isso o ofende?

— Não se eu fosse dono de um.

— Muito bem. — Guiderone deu uma risadinha que parecia de um chacal e se extinguiu rapidamente. — Mas esse é um ponto de vista muito limitado. Alguns de nós pensaram que o senhor, mais que qualquer outro, compreenderia. Viu a outra inutilidade... viveu-a.

— Por escolha.

— Muito bem, muito bem. Mas isso significa que não há escolha em nossa estrutura, o que não é verdade. O homem tem a liberdade de desenvolver seu potencial total. Quanto maior sua produtividade, maiores sua liberdade e suas recompensas.

— Suponhamos que não queira ser produtivo? Como o senhor o define.

— Então, obviamente, há uma recompensa menor pela contribuição menor.

— E quem define isso?

— Unidades treinadas de pessoal de diretoria, usando toda a tecnologia desenvolvida na indústria moderna.

— É uma boa idéia fazer amizade com esse pessoal.

— Não perca tempo com ironias. Essas equipes trabalham diariamente no mundo inteiro. As companhias internacionais não operam para perder dinheiro e desistir dos lucros. O sistema funciona. Provamos isso todos os dias. A nova sociedade funcionará dentro de uma estrutura competitiva, não violenta. Os governos não podem mais garantir isso, estão em rotas de colisão nuclear em toda a parte. Mas a Chrysler Corporation não faz guerra à Volkswagen; os aviões não sobrevoam os ares para destruir as fábricas e cidades inteiras ao redor de uma companhia ou de outra. O novo mundo será dedicado ao mercado, ao desenvolvimento de recursos e de tecnologia que garantam a sobrevivência produtiva da humanidade. Não há outra maneira. A comunidade multinacional está a toda prova: é agressiva, altamente competitiva, mas não é violenta. Não porta armas.

— Caos — comentou Bray. — Corpos colidindo no espaço... destruição antes da criação da ordem.

— Sim, Sr. Scofield. O período de violência antes da era permanente de tranqüilidade. Mas os governos e seus líderes não desistem de suas responsabilidades facilmente. É preciso dar alternativas a homens cujas costas estão contra a parede.

— Alternativas?

— Na Itália, controlamos quase vinte por cento do Parlamento. Em Bonn, doze por cento do Bundestag; no Japão, quase trinta e um por cento da Dieta. Poderíamos ter feito isso sem a Brigada Vermelha ou o Baader-Meinhof ou o Exército Vermelho do Japão? Nossa autoridade aumenta a cada mês. Cada ato de terrorismo nos leva mais próximo de nosso objetivo: a ausência total da violência.

— Não era isso que Guillaume de Matarese tinha em mente, há setenta anos.

— É muito mais semelhante do que pensa. O padrone queria destruir os corruptos no governo, o que freqüentemente significava destruir o governo todo. Ele nos deu a estrutura, os métodos... assassinos de aluguel para jogar um partido político contra outro em toda parte. Ele forneceu a fortuna inicial para colocar tudo em movimento. Ele nos mostrou o caminho para o caos. Só faltava colocar alguma coisa em seu lugar. Encontramos isso. Salvaremos este mundo de si próprio. Não pode haver causa mais grandiosa.

— O senhor é convincente — comentou Scofield. — Acho que talvez tenhamos uma base para conversar mais.

— Estou contente que pense assim — respondeu Guiderone, numa voz que, de súbito, voltara a se tornar fria. — É elogioso saber que se é convincente, mas muito mais interessante observar as reações de um mentiroso.

— Mentiroso?

— Poderia ter sido parte disso! — Mais uma vez o velho gritava. — Depois daquela noite no Rock Creek Park, eu mesmo reuni o Conselho. Disse-lhes que reconsiderassem, reavaliassem! Beowulf Agate poderia ser de um valor inestimável! O russo não valia nada, mas você sim. A informação que você possuía faria das posições morais de Washington uma palhaçada. Eu mesmo o faria diretor de toda a segurança! Seguindo minhas instruções, procuramos contactá-lo durante semanas, trazê-lo para junto de nós, torná-lo um dos nossos! Você é implacável em seus enganos! Em poucas palavras, não se pode confiar em você. Nunca se pode confiar em você!

Bray inclinou-se para a frente. O Pequeno Pastor era um maníaco. Via-se em seus olhos maníacos engastados nas cavidades do crânio pálido, descarnado. Era capaz de discursar calmamente, aparentemente com lógica, mas era governado pela irracionalidade. Era uma bomba, e uma bomba tinha de ser controlada.

— Não esqueceria a finalidade da minha vinda aqui, se fosse o senhor.

— Sua finalidade? Alcançará seu objetivo. Quer a mulher? Quer Taleniekov? São seus! Ficarão juntos, eu lhe asseguro. Serão retirados desta casa e levados para muito longe e nunca mais se ouvirá falar de vocês.

— Vamos negociar, Guiderone. Não faça nenhuma tolice. Tem um filho que pode ser o próximo presidente dos Estados Unidos, enquanto for Joshua Appleton. Mas não é, e tenho as radiografias para prová-lo.

— As radiografias! — berrou Guiderone. — Seu imbecil! — Apertou um botão de um aparelho sobre a mesa e falou: — Traga-o aqui. Traga nosso ilustre convidado.

O Pequeno Pastor recostou-se na cadeira. A porta atrás de Scofield se abriu.

Bray virou-se, mente e corpo suspensos num vácuo de dor com o que viu.

Robert Winthrop transpunha a porta, empurrado por aquele que era seu motorista há vinte anos, sentado numa cadeira de rodas, os olhos vidrados e o rosto bondoso todo machucado. Stanley sorriu com uma expressão arrogante. Scofield ficou de pé. O motorista ergueu a mão de detrás da cadeira de rodas. Segurava uma arma.

— Há muitos anos — falou Guiderone —, um sargento dos Fuzileiros Navais foi condenado a passar a maior parte da vida na prisão. Encontramos trabalho mais produtivo para um homem com sua capacidade. Era necessário vigiar cuidadosamente o benigno e idoso estadista que todos em Washington procuravam para obter conforto e conselhos. Aprendemos muito.

Bray desviou os olhos da cara castigada de Winthrop e fixou Stanley.

— Parabéns... seu filho da puta! Que você fez? Bateu-lhe com o cabo da pistola?

— Ele não queria vir. — O sorriso de Stanley desapareceu. — Caiu.

Scofield lançou-se à frente. O motorista levantou a arma mais alto, apontando para sua cabeça.

— Vou falar com ele — disse Scofield, ignorando a arma, e se ajoelhou aos pés de Winthrop. Stanley olhou para o Pequeno Pastor. Bray pôde ver o aceno de cabeça de Guiderone. — Sr. Embaixador?

— Brandon... — A voz de Winthrop era muito fraca, seus olhos cansados estavam profundamente tristes. — Receio que não tenha ajudado muito. Disseram ao presidente que eu estava doente. Não há soldados lá fora, nenhum posto de comando, ninguém esperando que você risque um fósforo e dirija para o portão. Eu falhei com você.

— O envelope?

— Bergeron pensa que está comigo. Ele conhece Stanley, compreende? Tomou o primeiro avião de volta a Boston. Sinto muito, Brandon. Sinto profundamente. Por muitas razões. — O velho levantou os olhos para o ex-fuzileiro de quem tinha sido tão amigo por tantos anos, depois olhou para Scofield. — Ouvi o evangelho do lixo, segundo Nicholas Guiderone. Sabe o que eles fizeram? Meu Deus, sabe o que fizeram?

— Não o fizeram ainda — retrucou Bray.

— No próximo mês de janeiro, terão a Casa Branca! A administração será a administração deles!

— Não vai acontecer.

— Vai acontecer! — bradou Guiderone. — E o mundo será um lugar melhor. Em toda parte! O período de violência terminará, mil anos de produtividade tranqüila tomarão seu lugar!

— Mil anos?_— Scofield ficou de pé. — Outro maníaco disse isso uma vez. Vai ser seu Reich pessoal de mil anos?

— Os paralelos não têm significação, nomes são irrelevantes! Não há ligação alguma. — O Pequeno Pastor levantou-se atrás da mesa com os olhos novamente em chamas. — Em nosso mundo, as nações podem conservar seus líderes, as pessoas sua identidade. Mas os governos serão controlados pelas companhias. Em toda parte. Os valores do mercado ligarão os povos do mundo!

Bray pegou a palavra e ela o revoltou.

—_Identidades? Em seu mundo não há identidades! Seremos números e símbolos em computadores! Círculos e quadrados. —

— Devemos renunciar a parte do ego para a continuidade da paz.

— Então seremos robôs!

— Mas vivos. Funcionando!

— Como? Diga-me como? “Você aí! Você não é mais uma pessoa, é um fator. É X ou Y ou Z e o que você fizer será medido e armazenado em rolos de fitas por peritos treinados em avaliar fatores. Vamos, fator! Seja produtivo ou os peritos tirarão o pão de sua boca... ou seu novo e imaculado carro!” — Scofield parou, em ebulição. — Está errado, Guiderone. Tão errado! Dê-me um lugar imperfeito onde eu saiba quem eu sou.

— Encontre no outro mundo! — berrou o Pequeno Pastor. — Vai estar lá muito breve!

Bray sentiu o peso no cinto... a arma que lhe fora dada pelo moribundo Taleniekov. O visitante de Appleton Hall fora revistado cuidadosamente e não fora encontrada nenhuma arma, mas uma fora fornecida por seu velho inimigo. A decisão de fazer um gesto final era clínica. Não havia esperança, afinal. Mas antes de tentar matar e ser morto queria ver o rosto de Guiderone quando lhe dissesse.

— Disse há pouco que eu era um mentiroso, mas não tem a menor idéia da extensão das minhas mentiras. Pensa que tem as radiografias, não é?

— Sabemos que sim.

— Outros também as têm.

— Verdade?

— É, verdade. Já ouviu falar de uma máquina duplicadora chamada Alpha Doze? É um dos aparelhos mais maravilhosos que existem. É a única copiadora que pode pegar o negativo de uma radiografia e produzir uma cópia positiva. Uma cópia tão precisa que é aceita como prova num tribunal. Separei as quatro radiografias da fileira de cima das folhas que obtive em Andover, fiz cópias e mandei-as para cinco homens diferentes em Washington! Está liquidado, é o seu fim! Eles providenciarão isso!

— Isso já se prolongou demais. — Guiderone deu a volta à mesa. — Estamos no meio de uma conferência e você já tomou muito tempo.

— Acho melhor me ouvir!

— E eu acho que deve ir até aquela cortina e abri-la. Verá nossa sala de conferências, mas os que estão lá dentro não o verão... Acho que não é preciso explicar a tecnologia. Estava tão ansioso para conhecer o Conselho Matarese... aí está sua oportunidade. Nem todos compareceram hoje à noite e nem todos são iguais, mas é uma amostra representativa. Fique à vontade. Por favor.

Bray foi até a cortina, encontrou a corda e puxou-a. As cortinas se abriram, mostrando uma sala enorme com uma longa mesa de conferências oval, ao redor da qual sentavam-se uns vinte e tantos homens. Havia uma garrafa de conhaque em frente de cada lugar, assim como um bloco de papel, lápis e uma jarra d’água. A luz vinha de candelabros de cristal, auxiliada pelo brilho amarelado, do outro lado da sala, de uma lareira acesa. Poderia muito bem ser o salão de jantar da Vila Matarese, descrito por uma velha cega nas montanhas acima de Porto Vecchio. Scofield quase procurou com os olhos um balcão e uma assustada moça de dezessete anos escondendo-se nas sombras.

Mas seus olhos foram atraídos para a parede de doze metros atrás da mesa. Entre duas imensas tapeçarias ligadas no topo, havia um mapa-múndi. Um homem com um bastão na mão dirigia-se aos outros, de pé numa pequena plataforma. Todos os olhos convergiam para ele.

Usava o uniforme do Exército americano. Era o chefe do Estado-Maior do Exército.

— Vejo que reconheceu o general em frente do mapa. — A voz do Pequeno Pastor mais uma vez provou as palavras da velha cega: mais cruel que o vento. — Creio que sua presença explica a morte de Anthony Blackburn. Talvez deva apresentá-lo a alguns dos in absentia... No centro da mesa, diretamente abaixo da plataforma, está o secretário de Estado, ao lado dele o embaixador soviético. Em frente do embaixador está o diretor da Agência Central de Informações; parece que está dando um aparte ao comissário soviético de Planejamento e Desenvolvimento. Está faltando um homem que podia interessar-lhe. Ele não fazia parte, sabe, mas telefonou à CIA após receber um telefonema muito estranho via Lisboa. O consultor do presidente em política exterior. Sofreu um acidente. Sua correspondência está sendo interceptada, as últimas radiografias sem dúvida já devem estar em nossas mãos... É preciso que continue?

Guiderone começou a puxar a corda, vedando a janela.

Scofield estendeu a mão. A cortina arqueou antes de fechar. Não estava olhando os homens sentados à mesa, essa mensagem estava clara. Olhava um guarda posicionado em uma pequena porta recuada à direita da lareira. O homem estava em posição de sentido, olhando em frente e segurando uma metralhadora portátil de calibre 30.

Taleniekov soubera dessas traições nos mais altos escalões. Ouvira outros falando quando enfiavam as agulhas que lhe abreviariam a vida.

Seu ex-inimigo tentara dar-lhe a última oportunidade de sobreviver. Sua última chance. Quais eram as palavras?

Pazhar... sigda pazhar! Zazhiganiyea pazhar!

Quando as explosões começarem, o fogo virá a seguir.

Não sabia ao certo o que queria dizer, mas sabia que era o caminho que tinha de seguir. Eram o que havia de melhor. Era preciso confiar no único profissional no mundo inteiro que era seu igual.

E isso significava que precisava exercer o controle que seu par exigiria. Nenhum movimento em falso agora. Stanley estava de pé ao lado da cadeira de rodas de Winthrop, apontando a arma para Bray. Se conseguisse virar, contorcer-se, tirar a arma de debaixo da capa de chuva... Olhou para Winthrop, sua atenção despertada pelos olhos do velho. Winthrop estava tentando dizer-lhe alguma coisa, como Taleniekov tentara. Estava em seus olhos; o velho desviava-os repetidamente para a direita. Era isso! Stanley estava ao lado da cadeira agora, em vez de atrás. Com pequenos e imperceptíveis movimentos, Winthrop estava virando a cadeira. Ia tentar pegar a arma de Stanley! Seus olhos estavam lhe dizendo isso. E diziam também que continuasse falando.

Scofield olhou disfarçadamente para o relógio. Faltavam seis minutos para começar a seqüência de explosões. Precisava de três para os preparativos. Sobravam três minutos para eliminar Stanley e introduzir outra pessoa. Cento e oitenta segundos. Continue falando!

Virou-se para o monstro ao seu lado.

— Lembra-se de quando o matou? Quando puxou o gatilho na Vila Matarese aquela noite?

Guiderone olhou-o fixamente.

— Não era um momento que se pudesse esquecer. Era meu destino. Então a prostituta da Vila Matarese ainda vive.

— Não mais.

— Não? Não mencionou isso nas páginas que mandou para Winthrop. Foi morta, então?

— Pela lenda. Per nostro circolo.

O velho acenou com a cabeça.

— Palavras que há muito tempo significavam uma coisa, agora têm um sentido completamente diferente. Ainda guardam a sepultura.

— Ainda a temem. A sepultura vai matá-los a todos um dia desses.

— O aviso de Guillaume de Matarese.

Guiderone encaminhou-se para a mesa.

Continue falando. Winthrop empurrava as rodas da cadeira, cada empurrão ganhava dois centímetros:

— Aviso ou profecia? — Bray falou depressa.

— Muitas vezes são equivalentes, não?

— Chamavam-no de Pequeno Pastor.

Guiderone virou-se em sua direção.

— Sim, sei. Em parte, era verdade. Quando eu era criança, nós nos revezávamos tomando conta dos rebanhos, mas as ocasiões se foram tornando cada vez mais raras. Os padres o exigiram, tinham outros planos para mim.

Os padres?

Winthrop moveu a cadeira novamente.

— Eu os surpreendi. Com sete anos de idade, sabia e compreendia o catecismo melhor que eles. Com oito, lia e escrevia em latim. Antes de completar dez anos, discutia os pontos mais complexos de teologia e dogma. Os padres viam em mim o primeiro corso a ingressar no Vaticano, para alcançar alta posição... talvez mais alta. Eu traria muitas honras a suas paróquias. Aqueles padres simples das colinas de Porto Vecchio perceberam que eu era um gênio antes que eu mesmo o soubesse. Falaram com o pa-drone, suplicando-lhe que financiasse meus estudos... Guillaume de Matarese foi muito além de sua compreensão.

Quarenta segundos. Winthrop estava a meio metro da arma. Continue falando!

— Então Matarese combinou tudo com Appleton? Joshua Apppleton, o segundo.

— A expansão industrial americana era extraordinária. Era o lugar lógico para um rapaz brilhante com uma fortuna à disposição.

— Era casado? Teve um filho.

— Comprei um recipiente, a mulher mais perfeita para produzir filhos. O plano estava traçado.

— Incluindo a morte do jovem Joshua Appleton?

— Um acidente da guerra e do destino. A decisão foi o resultado das ações do próprio capitão, não fazia parte do traçado inicial. Era uma oportunidade única que não podíamos perder. Acho que já falamos bastante.

Agora! Winthrop saltou da cadeira, agarrou a arma de Stanley e puxou-a para si, usando toda sua força para segurar a arma, não largá-la.

Disparou. Bray sacou a própria arma, apontando para o motorista. O corpo de Winthrop arqueou no ar, com o pescoço estourado. Scofield apertou o gatilho uma vez, era só o que precisava. Stanley caiu.

— Afaste-se dessa mesa! — berrou Bray.

— Você foi revistado! Não é possível. Onde?...

— De um homem melhor que qualquer um escolhido por seus computadores! — retrucou Scofield, lançando um rápido olhar de angústia ao corpo de Winthrop. — Assim como este.

— Nunca sairá daqui!

Bray deu um salto à frente, agarrou Nicholas Guiderone pela garganta e o empurrou contra a mesa.

— Vai fazer o que eu mandar ou lhe estouro os olhos! — Encostou a pistola na órbita do olho direito de Guiderone.

— Não me mate! — ordenou o senhor do Matarese. — Minha vida tem um valor extraordinário! Meu trabalho não está terminado, tenho de terminá-lo antes de morrer!

— Você é tudo que eu odeio neste mundo — disse Scofield, pressionando a arma no crânio do velho. — Não preciso dizer quais são suas chances. Cada segundo que continuar a viver significa que talvez tenha outro. Faça o que digo. Vou apertar o botão, o mesmo botão que você apertou antes, Você vai dar uma ordem. Fale direitinho ou nunca mais falará. Diga a quem responder: “Mande o guarda da sala de conferências, o que está com a metralhadora portátil.” Compreendeu?

Empurrou a cabeça de Guiderone contra a mesa e apertou o botão.

— Mande o guarda da saia de conferências. — As palavras saíram apressadas, mas o medo não era audível. — O que está com a metralhadora portátil.

Scofield cercou o pescoço de Guiderone com o braço esquerdo, arrastou-o até as cortinas e abriu-as. Viu através do vidro, do outro lado da sala de conferências, um homem aproximar-se do guarda. O guarda acenou com a cabeça, abaixou a arma para o chão e atravessou rapidamente a sala em direção à arcada de saída.

— Per nostro circolo — sussurrou Bray.

Deu um puxão no braço, com toda a força, espremendo a garganta de Guiderone, esmagando ossos e cartilagens. Houve um estalo, uma expulsão de ar. Os olhos do velho saltaram das órbitas, o pescoço quebrou-se. O Pequeno Pastor estava morto.

Scofield correu para a porta, encostando-se na parede ao lado das dobradiças. A porta se abriu; viu primeiro a arma apontada para o chão e, uma fração de segundo depois, a figura do guarda. Bray fechou a porta com um pontapé e atirou-se ao homem com as duas mãos procurando diretamente sua garganta.

 

O afobado sargento de plantão no distrito da Rua Boylston olhou a mulher magra, de aspecto reservado e lábios franzidos, que o olhava com desaprovação. Em sua mão estava um envelope.

— Está bem, minha senhora, está entregue, está comigo. Está bem? Os telefones estão todos tocando, estou muito ocupado, está bem? Vou tratar disso assim que puder, está bem?

— Não “está bem”, sargento... Witkowski — respondeu a mulher lendo o nome na placa sobre a mesa. — Os cidadãos de Boston não ficarão parados enquanto seus direitos estão sendo atingidos por elementos criminosos. Estamos nos erguendo justamente ultrajados e nossos brados não foram em vão. O senhor está sendo observado, sargento! Existem muitos que compreendem nossa angústia, e eles estão testando o senhor. Aconselho-o a não ser tão displicente...

— Está bem, está bem. — O sargento abriu o envelope e tirou uma folha de papel amarelo. Desdobrou-a e leu as palavras em letra de imprensa grande, em azul. — Jesus Cristo numa balsa filha da puta — disse baixo, os olhos arregalados.

Olhou a mulher como se a visse pela primeira vez e, enquanto a olhava, estendeu a mão para um botão na mesa e apertou-o várias vezes.

— Sargento, essa linguagem é imperdoável...

Luzes vermelhas começaram a piscar acima de todas as portas da delegacia. Uma sirene de alarme, vinda dos confins do prédio, ecoou pelas paredes das salas e corredores. Dentro de poucos segundos, as portas se abriram e homens de capacete saíram em atropelo.

— Agarrem essa mulher! — berrou o sargento. — Segurem-lhe os braços! Joguem ela na sala das bombas!

Sete policiais convergiram sobre a mulher. Um tenente saiu correndo da sala.

— Que diabo é isso, sargento?

— Olhe isto!

O tenente leu as palavras na página amarela.

— Oh, meu Jesus!

 

Aos Porcos Fascistas de Boston, Protetores

da Noiva de Alabastro.

Morte aos Tiranos Econômicos! Morte a Appleton Hall! Quando os Porcos Lerem Isso, Nossas Bombas Farão o Que Nossas Súplicas Não Podem Fazer. Nossas Brigadas Suicidas Estão em Posição de Matar Todos os Que Fugirem

ao Justo Holocausto. Morte a Appleton Hall

Assinado:

Exército de Liberdade e Justiça do Terceiro Mundo

 

O tenente deu suas instruções.

— Guiderone tem guardas por toda a parte. Façam contato com a casa! Chamem Brookline, contem o que está acontecendo e alertem todos as patrulhas nos arredores de Jamaica Way. — O oficial parou, olhando a folha amarela com as letras azuis precisas e acrescentou asperamente. — Filhos da puta! Liguem para a sede central. Quero a melhor equipe da SWAT para ir a Appleton Hall. — Deu uns passos em direção à sala e parou novamente para olhar com nojo a mulher que estava sendo levada para dentro, com os braços esticados para longe do corpo, empurrada por homens de escudo e capacete. — Exército de Liberdade e Justiça do Terceiro Mundo! Filhos da puta malucos! Registrem a queixa! — berrou.

 

Scofield arrastou o corpo do guarda pela sala e escondeu-o atrás da mesa de Guiderone. Correu para o Pequeno Pastor e por um segundo olhou o rosto arrogante. Se fosse possível matar além da morte, Bray o faria agora. Puxou Guiderone para um canto, jogando seu corpo num monte informe. Parou, então, junto ao corpo de Winthrop, desejando que houvesse tempo de arranjar uma maneira de dizer adeus.

Pegou a metralhadora portátil do guarda e correu para as cortinas. Abriu-as e olhou o relógio. Faltavam cinqüenta segundos para começarem as explosões. Checou a arma em suas mãos — todos os pentes estavam cheios. Olhou a sala de conferências pela janela e viu o que não vira antes, simplesmente porque o homem não estava lá antes.

O senador chegara. Todos os olhos estavam fixos nele, sua presença magnética hipnotizava a sala inteira. A graça de seus movimentos, o rosto gasto, mas ainda belo, dando atenção a cada um, mesmo que só por um instante, dizendo àquele homem que ele era especial. E cada um ficava seduzido pela potência nua daquele poder. Esse homem era o próximo presidente dos Estados Unidos, e era um deles.

Pela primeira vez em todos os anos desde que conhecera aquele rosto, Scofield viu o que uma mãe destruída, uma alcoólatra, vira: era uma máscara. Uma máscara brilhantemente concebida, engenhosamente programada... assim como a mente atrás dela.

Doze segundos.

A estática irrompeu do alto-falante sobre a mesa. Uma voz falou:

— Sr. Guiderone, temos de interromper! Recebemos chamadas da polícia de Boston e de Brookline! Há avisos de um ataque armado em Appleton Hall. Um grupo que se chama Exército de Liberdade e Justiça do Terceiro Mundo. Não temos conhecimento de nenhuma organização com esse nome, senhor. Nossas patrulhas foram alertadas. A polícia quer que todos fiquem...

Dois segundos.

A notícia havia sido transmitida à sala de conferências. Homens saltavam das cadeiras, ajuntando papéis. Seu pânico específico estava se manifestando. Como explicar a presença de homens desse calibre? Quem daria explicações?

Um segundo.

Bray ouviu a primeira explosão além das paredes de Appleton Hall. Era ao longe, lá embaixo na colina, mas inconfundível. Seguiu-se o som de armas de fogo rápido. Estavam atirando na origem das primeiras explosões.

O pânico crescia na sala de conferências. Os consiglieri do Matarese corriam de um lado para o outro. Um único guarda estava de pé à saída da arcada, com a metralhadora apontada. De repente, Scofield compreendeu o que aqueles homens poderosos estavam fazendo: atiravam papéis, blocos e mapas no fogo da lareira.

Era sua hora. O guarda seria o primeiro, mas somente o primeiro.

Bray quebrou o vidro da janela com o cano da arma e abriu fogo. O guarda rodopiou quando as balas o atingiram; sua metralhadora portátil era automática. Ao morrer, a pressão de seu dedo no gatilho fez a arma descarregar violentamente. Um jato de cartuchos de calibre 30 voou do ejetor — paredes, candelabros e homens estouraram, explodiram, caíram sob seu impacto. Gritos de morte e berros de horror encheram a sala.

Scofield conhecia seus alvos com um olho treinado numa vida de violência. Acabou de quebrar os fragmentos de vidraça e ergueu a arma ao ombro. Apertou o gatilho em seqüências definidas rapidamente e com pontaria razoável. Um passo, uma morte, de cada vez.

As rajadas irromperam da janela. O general caiu e o bastão que tinha na mão lacerou-lhe o rosto ao cair. O secretário de Estado estava agachado ao lado da mesa: Scofield cortou-lhe a cabeça. O diretor da Agência Central de Informações apostou corrida com seu equivalente do Conselho de Segurança Nacional para alcançar a saída, saltando sobre corpos, histericamente. Bray pegou os dois. A garganta do diretor ficou uma pasta de sangue; o presidente do CSN ergueu as mãos para uma testa que não mais existia.

Onde estava ele? Ele, acima de todos, tinha de ser encontrado!

Lá estava!

O senador estava de cócoras embaixo da mesa de conferências em frente da lareira. Scofield fez a pontaria mais apurada de sua vida e apertou o gatilho. A rajada de balas atingiu a madeira. Algumas tinham de penetrar! O senador foi jogado para trás, depois ficou de pé. Bray atirou novamente. O senador girou, caindo na lareira e saindo de novo, coberto de sangue e de chamas. Correu à frente, cegamente, depois à esquerda, agarrando a tapeçaria da parede ao cair.

A tapeçaria pegou fogo. Em seu colapso de morte, o senador a arrancara da parede. A enorme peça caiu em chamas sobre a mesa de conferências. O fogo se alastrou, as chamas alcançaram todos os recintos da enorme sala.

Fogo!

Depois das explosões. Fogo!

Taleniekov.

Scofield abandonou a janela correndo. Fizera o que tinha de fazer. Estava na hora de fazer o que queria, tão desesperadamente. Se fosse possível, se houvesse ainda alguma esperança. Parou em frente da porta, checando a munição restante. Ele a havia conservado bem. A terceira e a quarta cargas haviam sido detonadas na base da colina. A quinta e a sexta deveriam explodir dentro de alguns segundos.

Veio a quinta. Escancarou a porta e atirou-se para fora da sala, de arma apontada. Ouviu a sexta explosão. Dois guardas que vigiavam as portas de entrada no caminho do lado de fora surgiram em seu campo de visão. Bray disparou duas rajadas. Os guardas do Matarese caíram mortos.

Correu para a porta do quarto onde estavam Antonia e Taleniekov Estava trancada.

— Afastem-se da porta! Sou eu!

Disparou cinco cartuchos na madeira ao redor da fechadura e abriu a pesada porta a pontapés; ela bateu contra a parede. Correu para dentro do quarto.

Taleniekov estava ajoelhado junto ao sofá no outro lado da sala, Toni a seu lado. Ambos trabalhavam furiosamente, arrancando as capas das almofadas. Arrancando?... almofadas? Que estavam fazendo? Antonia ergueu os olhos e gritou.

— Ajude-nos! Depressa!

— O quê? — Correu para ela.

— Pazhar!—O russo forçou a voz. Saiu como um grito sussurrado.

Seis almofadas estavam desprovidas de suas capas. Tom ficou de pé, jogando cinco espalhadas pela sala.

— Agora! — bradou Taleniekov, estendendo-lhe os fósforos que tirara de Bray.

Ela correu para a almofada mais afastada, riscou um fósforo e encostou-o à fazenda macia. Pegou fogo imediatamente. O russo estendeu a mão para Scofield.

— Ajude-me... levantar]

Bray ergueu-o do chão. Taleniekov agarrava a última almofada contra o peito. Ouviram a sétima explosão ao longe, seguida de tiros, acompanhando os gritos de dentro da casa.

— Vamos! — gritou Scofield, com o braço ao redor da cintura do russo. Olhou para Toni; ela tocara fogo na quarta almofada. Chamas e fumaça enchiam a sala. — Vamos! Vamos sair daqui!

— Não! — murmurou Taleniekov. — Você! Ela! Leve-me... porta! — O russo cambaleou, segurando a almofada.

No grande hall, a fumaça era densa, as chamas da sala de conferências lambiam as soleiras das portas e os arcos abertos, enquanto os homens subiam a escadaria à procura de janelas, pontos estratégicos para apontar suas armas contra os invasores.

Um guarda os viu e ergueu a metralhadora portátil.

Scofield atirou primeiro; o homem descreveu um arco para trás.

— Ouça-me! — exclamou Taleniekov baixinho. — Sempre pazhar! Com você, é seqüência, comigo, fogo! Apontou para a almofada macia. — Acenda isso! Vai ser a corrida da minha vida!

— Não seja louco.

Bray tentou arrancar-lhe a almofada, mas o russo não deixou.

— Nyet! — Taleniekov encarou Scofield. Seus olhos eram suplicantes. — Mesmo que pudesse, não desejaria viver assim. Você também não desejaria. Faça isso por mim, Beowulf. Eu o faria por você.

Bray olhou o russo dentro dos olhos.

— Trabalhamos juntos — disse com simplicidade. — Orgulho-me disso.

— Fomos o melhor que havia. — Taleniekov sorriu e ergueu a mão para tocar a face de Scofield. — Agora, meu amigo, faça o que faria por você.

Bray acenou com a cabeça e virou-se para Antonia. Os olhos dela estavam cheios d’água. Tomou os fósforos da mão dela, riscou um deles e segurou-o junto à almofada.

As chamas saltaram. O russo deu meia-volta, colocando-se em posição, segurando o fogo contra o peito. E com o urro de um animal ferido subitamente liberado de uma armadilha fatal, Taleniekov arremessou-se à frente correndo, mancando, tropeçando, batendo nas paredes e móveis, pressionando a almofada em chamas e seu próprio corpo em tudo que tocava... e tudo que tocava pegava fogo. Dois guardas desceram as escadas correndo ao ver os três. Antes que eles ou Scofield pudessem atirar, o russo lançou-se contra eles, atirando fogo em suas caras.

— Skaryei! — bradou. — Corra, Beowulf!

Uma rajada de tiros fez eco ao comando, abafada pelo corpo flamejante da Serpente; caiu, arrastando os dois guardas Matarese com ele escadas abaixo.

Bray agarrou Antonia pelo braço e correu para o caminho de pedra flanqueado pelas pesadas correntes pretas. Saíram pela abertura do muro que dava para a área de estacionamento de concreto. Refletores no alto dos telhados de Appleton Hall lançavam raios de luz. Apareciam homens às janelas, com armas na mão.

A oitava explosão veio de baixo, da base da colina, a carga tão quente que a vegetação ao redor explodiu em chamas. Os homens nas janelas quebraram vidraças e atiraram nas luzes movediças. Scofield viu que outras três detonações haviam causado pequenos incêndios na vegetação. Eram presentes que ele agradecia. Ele e Taleniekov, ambos, tinham razão. Seqüência e fogo, fogo e sequência. Cada um deles poderia salvar uma vida. Não havia garantias... nunca... mas havia esperança.

O carro de aluguel estava estacionado ao longo do muro a aproximadamente cinqüenta metros à direita. Estava nas sombras, um círculo isolado que não era para sair dali. Bray puxou Toni contra o muro. —

— O carro está ali. É a nossa chance.

— Vão atirar em nós!

— As probabilidades são melhores do que sair correndo. Há patrulhas em toda a colina. A pé, elas nos matariam.

Correram ao longo do muro. A nona carga de dinamite acendeu o céu na base Noroeste da colina. Soaram tiros isolados e rajadas de metralhadoras. Subitamente, de dentro das chamas crescentes de Appleton Hall, uma explosão maciça destruiu parte da parede da frente. Caíram homens das janelas, fragmentos de aço e pedra explodiram na noite e metade dos refletores desapareceu. Scofield compreendeu. A sede do Matarese tinha seus arsenais. O incêndio os encontrara.

— Vamos! — gritou, empurrando Antonia para o carro.

Ela se atirou dentro enquanto ele corria em volta da traseira para o lado da direção.

O concreto explodiu à sua volta. De algum lugar no que restava do telhado, um homem com uma metralhadora portátil os descobrira. Bray agachou-se embaixo do carro e viu a origem do fogo. Apontou a arma e segurou o gatilho numa rajada prolongada. Um grito foi seguido de um corpo projetado no espaço para cair no chão. Abriu a porta e deslizou atrás da direção.

— Não tem chave! — exclamou Toni. — Tiraram a chave!

— Pegue aqui — disse Scofield, entregando-lhe a arma e estendendo a mão para a cobertura de plástico da luz do teto. Tirou o plástico e uma chave lhe caiu na mão. Ligou o motor. — Vá para o assento de trás! — gritou. Ela obedeceu, passando por cima do banco. — Meta a arma na janela da esquerda e, quando sairmos daqui, aperte o gatilho! Faça pontaria para o alto e continue atirando. Atire em tudo até eu chegar à primeira curva, mas mantenha a cabeça bem para trás! Pode fazer isso?

— Posso!

Bray virou o carro numa curva fechada e cruzou o estacionamento em alta velocidade. Antonia fez o que ele mandara e as rápidas explosões da metralhadora encheram o carro. Chegaram à curva, a primeira descida da colina.

— Passe para o lado direito! — ordenou, impulsionando o carro na curva e segurando o volante com tanta força que os braços doeram. — Em poucos segundos, vamos passar pela cocheira. Há uma garagem lá, deve haver homens dentro. Se estiverem armados, abra fogo da mesma maneira. Mantenha a cabeça para trás e o gatilho apertado. Entendeu!

— Sim.

Os homens estavam lá. Tinham armas e as estavam usando. O vidro do pára-brisa foi estraçalhado com uma rajada de balas vinda das portas abertas da garagem.

Antonia abaixara o vidro e empurrara a arma na abertura. Segurou o gatilho contra a borda da janela e as explosões vibraram em todo o carro. Corpos caíam; gritos, vidro se esfacelando e ricochetes de balas encheram a cavernosa garagem da cocheira. Esgotou-se o último pente quando Scofield, o rosto todo cortado pelos fragmentos do pára-brisa, chegou aos últimos duzentos metros dos portões de Appleton Hall. Havia homens logo abaixo, homens armados, uniformizados, mas não eram soldados do Matarese. Bray procurou o botão das luzes e empurrou-o e puxou-o repetidas vezes. Os faróis piscaram... em seqüência, sempre em seqüência.

Os portões haviam sido forçados e estavam abertos. Botou o pé no freio. O carro derrapou e parou com os pneus gemendo.

A polícia convergiu. Depois, mais que a polícia: homens de preto com equipamento paramilitar, homens treinados para uma guerra especializada. O comandante aproximou-se do carro.

— Calma — disse ele a Bray. — Está do lado de fora. Quem é?

— Vickery. B. A. Vickery. Tinha negócios com Nicholas Guiderone. Conseguimos sair! Quando houve aquele inferno, agarrei minha esposa e nos escondemos num armário. Invadiram a casa em equipes, acho. Nosso carro estava de fora. Era a única chance que tínhamos.

— Agora, com calma, Sr. Vickery, mas rápido. Que está acontecendo lá?

A décima carga detonou do outro lado da colina, mas a luz confundiu-se nas chamas que se espalhavam no topo da colina.

Appleton Hall estava sendo consumida pelo fogo, as explosões cada vez mais freqüentes à medida que outros arsenais eram atingidos. O Pequeno Pastor cumpria seu destino. Encontrara sua Vila Matarese e, como seu seu padrone há setenta anos, seus restos pereceriam no esqueleto da casa.

— Que está acontecendo, Sr. Vickery?

— São assassinos. Mataram todo mundo lá dentro. Matarão todos vocês, se puderem. Não vão pegá-los vivos.

— Então os pegaremos mortos — disse o comandante com a voz cheia de emoção. — Vieram para cá agora, vieram mesmo. Da Itália, Alemanha, México... Líbano, Israel, Buenos Aires. Por que pensamos que éramos imunes?... Tire o carro daqui, Sr. Vickery. Siga a estrada meio quilômetro e encontrará ambulâncias. Tomaremos sua declaração mais tarde.

— Sim, senhor — respondeu Scofield, ligando o motor.

Passaram pelas ambulâncias no início da Alameda Appleton e viraram à esquerda na estrada de Boston. Em breve cruzariam a Ponte Longfellow, entrando em Cambridge. Havia um compartimento na plataforma do metrô MPTA na praça de Harvard, e nesse compartimento estava sua pasta.

Estavam livres. A Serpente morrera em Appleton Hall, mas eles estavam livres e sua liberdade era presente dele.

Beowulf Agate desaparecera finalmente.

 

Homens e mulheres foram detidos rapidamente, na surdina. Nenhuma acusação foi processada através dos tribunais, pois seus crimes iam além da sanidade mental das cortes, além da tolerância da nação. De todas as nações. Cada uma resolveu o problema dos soldados do Matarese a sua maneira. Onde conseguiu encontrá-los.

Chefes de Estado no mundo inteiro conferenciaram por telefone, dispensando os intérpretes usuais e substituindo-os por altas figuras do Governo, fluentes nas línguas necessárias. Os líderes manifestaram espanto e choque, reconhecendo tacitamente que seus serviços secretos eram inadequados, assim como infiltrados. Testaram-se um ao outro com nuanças sutis de acusações, sabendo que eram tentativas inúteis. Não eram idiotas. Por fim, tacitamente, chegaram a uma conclusão. Era a única que fazia sentido nesta época insensata.

Silêncio.

Cada um seria responsável pelas próprias mentiras e nenhum implicaria os outros além dos níveis normais de desconfiança e hostilidade. Admitir a existência de uma conspiração maciça a nível mundial seria admitir a existência da premissa fundamental: os governos eram obsoletos.

Não eram idiotas. Apenas tinham medo.

Em Washington, decisões rápidas foram tomadas por um punhado de homens.

O senador Joshua Appleton IV morreu como se originara: queimado num acidente de automóvel numa estrada escura, à noite.

Houve um funeral de Estado, o magnífico caixão foi montado na Rotunda, onde houvera outra vigília semelhante. As palavras pronunciadas na ocasião foram apropriadas para um homem que todos sabiam teria ocupado a Casa Branca, não fosse a tragédia que o abatera.

Um avião Lockheed Tristar de propriedade do Governo foi sacrificado no Colorado, nas montanhas ao Norte de Poudre Canyon. O mau funcionamento de dois motores forçou o avião a perder altitude ao cruzar aquela perigosa cordilheira. A morte do piloto e da tripulação foi muito lamentada e suas famílias receberam a máxima pensão, independente do tempo de serviço. Mas o lamento maior foi acompanhado de uma lição trágica que nunca seria esquecida, pois foi revelado que a bordo do avião estavam três dos homens mais notáveis da nação, mortos a serviço do país quando numa visita de inspeção a instalações militares. O chefe do Estado-Maior. solicitara a seus colegas da Agência Central de Informações e do Conselho de Segurança Nacional que o acompanhassem na viagem. Junto com uma mensagem de pesar presidencial, foi emitida uma ordem do Gabinete Oval: nunca mais seria permitido que figuras dos altos escalões do Governo viajassem juntas no mesmo avião. A nação não poderia ter uma perda de tal magnitude mais de uma vez.

À medida que as semanas se passaram, empregados dos altos escalões do Departamento de Estado, assim como numerosos repórteres que cobriam suas operações do dia-a-dia, perceberam gradativamente um fato estranho: o secretário de Estado não aparecia há muito tempo. A preocupação cresceu quando programações foram alteradas, viagens canceladas, conferências adiadas. Boatos se espalhavam pela capital, alguns insistindo em que o secretário estava envolvido em negociações prolongadas e secretas em Pequim, enquanto outros declaravam que ele estava em Moscou, quase chegando a um acordo sobre o controle de armas. Depois os boatos assumiram uma coloração menos atraente. Havia algo errado. Era necessária uma explicação.

O presidente a deu numa tarde amena de primavera. Foi irradiada e televisionada de um centro médico em Moorefield, Virgínia Ocidental.

— Neste ano trágico, cabe-me trazer-lhes mais tristeza. Acabo de me despedir de um grande amigo. Um homem de força e enorme coragem, que compreendia o delicado equilíbrio que era necessário manter em nossas negociações com nossos adversários, que não permitiu que esses adversários soubessem que sua vida se esvaía. Essa vida extraordinária extinguiu-se há horas apenas, sucumbindo finalmente a uma doença destruidora. Ordenei que as bandeiras...

E assim foi. No inundo inteiro.

 

O presidente recostou-se na cadeira quando o subsecretário Daniel Congdon entrou no Gabinete Oval. O comandante-em-chefe não gostava de Congdon. Parecia um furão, seus olhos sinceros demais escondiam uma ambição desmedida. Mas o homem desempenhava bem suas atribuições e era isso que importava. Especialmente agora, especialmente nesse cargo.

— Qual é a resolução?

— Conforme se esperava, Sr. Presidente. Beowulf Agate quase nunca agia normalmente.

— Ele não levava uma vida normal, pois não? Quer dizer, vocês não esperavam que ele levasse, não é?

— Não, senhor. Ele era...

— Diga-me, Congdon — interrompeu o presidente. — Você tentou mesmo mandar matá-lo?

— Era uma execução obrigatória, senhor. Nós o considerávamos irrecuperável, perigoso para nossos homens em toda parte. Ainda acredito nisso, até um certo ponto.

— É bom que acredite. Ele é. Então é por isso que ele insistiu em negociar com você. Aconselharia você a... Não, ordeno-lhe que tire essas idéias de atos obrigatórios de sua cabeça. Entendeu?

— Sim, Sr. Presidente.

— Espero que sim. Caso contrário, terei de dar uma ordem obrigatória minha mesmo. Agora que sei como fazer.

— Entendido, senhor.

— Muito bem. E a resolução?

— Além do pedido inicial, Scofield não quer ter mais nada a ver conosco.

— Mas sabe onde ele está.

— Sim, senhor. No Caribe. Mas não sabemos onde estão os documentos.

— Não procure por eles. Ele é melhor que você. E deixe-o em paz. Nunca lhe dê nenhuma razão para pensar que está interessado nele. Pois se o fizer, esses documentos aparecerão em centenas de lugares ao mesmo tempo. Este Governo, esta nação não podem agüentar as repercussões. Talvez dentro de alguns anos, mas agora não.

— Aceito sua decisão, Sr. Presidente.

— É bom que aceite mesmo. Quanto custou essa solução e onde está enterrada?

— Cento e sessenta e seis mil, quatrocentos e doze dólares e dezoito centavos. Foi adicionada a uma despesa extraordinária para equipamento de treinamento naval. O pagamento foi feito por um proprietário da CIA diretamente aos estaleiros de Mystic, Connecticut.

O presidente olhou o gramado da Casa Branca pela janela. As flores das cerejeiras morriam, encrespando-se e secando.

— Podia ter pedido o céu e o teríamos dado. Podia ter pedido milhões. Contentou-se com um barco e que o deixem em paz.

 

Março de 198...

O Serpente, veleiro de aluguel com dezoito metros de comprimento, a vela grande inflando-se à brisa das ilhas, deslizou na doca. Uma mulher saltou, uma corda na mão. Amarrou-a no poste da frente, fixando a proa. Na popa, o comandante barbudo laçou a corda, pisou na amurada e de lá no ancoradouro, apertando o laço no poste mais próximo, com a corda bem esticada.

A meia-nau, um casal de meia-idade e aspecto amável passou cuidadosamente para o ancoradouro. Era óbvio que haviam feito suas despedidas e que essas haviam sido um pouquinho dolorosas.

— Bem, acabaram-se as férias — disse o homem, suspirando e segurando o braço da esposa. — Voltaremos no ano que vem, capitão Vickery. O senhor tem o melhor barco de aluguel em todas as ilhas. E mais uma vez obrigado, Sra. Vickery. Como sempre, a comida foi formidável.

O casal afastou-se.

— Vou guardar o equipamento enquanto você verifica os estoques, está bem? — disse Scofield.

— Certo, querido. Temos dez dias até chegar o casal de Nova Orleans.

 

— Vamos velejar um pouco sozinhos — disse o capitão, sorrindo, saltando de volta ao Serpente.

Passou-se uma hora e vinte minutos. Os mantimentos foram embarcados, as previsões de tempo registradas e as cartas da costa estudadas. O Serpente estava pronto a zarpar.

— Vamos tomar um drinque — propôs Bray, segurando a mão de Toni.

Subiram o caminho arenoso que levava à rua quente de St. Kitts. Do outro lado havia um café, uma cabana com mesas e cadeiras de vime antiqüíssimas e um bar que não mudara em trinta anos. Era o ponto de reunião dos capitães e tripulações de barcos de aluguel.

Antonia sentou-se, cumprimentando amigos, rindo com os olhos e com a voz natural e espontânea. Os rudes e competentes marujos do Caribe gostavam dela. Era uma dama, e eles sabiam disso. Scofield observou-a do bar enquanto encomendava as bebidas, relembrando outro café à beira-mar, na Córsega. Fora há poucos anos — em outra vida, na verdade; mas ela não mudara. Ainda havia aquela graça natural, um senso de presença e o humor brando, sincero. Gostavam dela porque possuía inúmeras qualidades de que todos gostavam. Era simples.

Levou os copos para a mesa e sentou-se. Antonia estendeu o braço para uma mesa vizinha, tomando emprestado um jornal de Barbados de uma semana atrás. Uma manchete lhe chamara a atenção.

— Querido, olhe isso aqui — disse, empurrando o jornal para ele e marcando a coluna com o indicador.

 

Trans-Communications Ganha Batalhas Legais na

Reorganização do Conglomerado

 

Wash. D.C. — Após vários anos de litígio sobre a posse nos tribunais federais, o caminho está livre para os testamenteiros dos bens de Nicholas Guiderone levarem avante os planos de reorganização que incluem consideráveis consolidações com companhias européias. Após o assalto terrorista à mansão Guiderone em Brookline, Massachusetts, quando Guiderone e outros possuidores de grandes blocos de ações da Trans-Comm foram massacrados, a posse do conglomerado caiu num labirinto legal. Não é segredo que o Departamento de Justiça tem apoiado os testamenteiros, assim como, certamente, o Departamento de Estado. O consenso é que, embora a multinacional tenha continuado a funcionar, a falta de expansão devido à liderança obscura prejudicou o prestígio americano nos mercados internacionais.

O presidente, ao saber das derradeiras decisões legais, enviou o seguinte telegrama aos testamenteiros:

“Parece-me muito apropriado que durante a semana que assinala meu primeiro ano na presidência tenham sido removidos todos os obstáculos e mais uma vez uma grande instituição americana esteja em posição de exportar e expandir a tecnologia e o know-how americanos pelo mundo inteiro, juntando-se a outras companhias para nos dar um mundo melhor. Meus parabéns.”

 

Bray empurrou o papel para longe.

— A sutileza é cada vez menor, não é?

 

Bordejaram ao sair de Basseterre, amurando as velas. A costa de St. Kitts diminuía à ré. Antonia esticou a bujarrona, amarrou a vela e subiu novamente até o leme. Sentou-se ao lado de Scofield, acariciando com os dedos sua barba curta, aparada, mais grisalha que castanha.

— Aonde vamos, querido? — perguntou.

— Não sei — respondeu Bray, com toda sinceridade. — Seguindo o vento, por enquanto, se você não se incomoda.

— Não me incomodo. — Ela recostou-se, olhando-lhe o rosto, tão pensativo, tão preocupado. — Que vai acontecer?

— Já aconteceu. As grandes corporações tomaram conta da terra — respondeu, sorrindo. — Guiderone tinha razão. Ninguém pode impedi-las e talvez ninguém deva. Deixem que tenham seu lugar ao sol. Não faz a menor diferença, é o que eu acho. Vão me deixar em paz... deixar nós dois em paz. Ainda estão com medo.

— De quê?

— De gente. Das pessoas. Mareie a bujarrona, por favor. Estamos perdendo muito vento. Podemos ir mais depressa.

— Para onde?

— Não sei. Só sei que quero chegar lá.

 

                                                                                            Robert Ludlum

 

 

                      

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