Deixamos Greta na cozinha, e desço a escada de concreto com Cassia, acendendo a luz ao passar. Admito que até para mim isso é como entrar em uma prisão, mesmo não sendo eu a pessoa que vai ficar confinada nesse lugar. Gostaria de poder deixá-la morar livre em minha casa, capaz de olhar pelas janelas ou sair sempre que tivesse vontade. Mas, no momento, isso não é possível. E talvez nunca seja.
— Promete que não vai demorar? Ela deita a cabeça em meu peito, os
braços dobrados e apertados entre nós, agarrando minha camisa.
Seguro sua nuca com a mão, abraçando-a mais forte.
— Prometo.
Erguendo o rosto, ela me olha com apreensão.
— Fredrik?
Beijo sua testa.
— Que foi?
— Estou com medo.
Segurando seu rosto com as mãos, beijo seus lábios trêmulos.
— Não tenha medo.
— Mas eu tenho. Sempre vou ter medo. — Seus dedos apertam o tecido de minha camisa. — Fredrik? — repete ela, embora dessa vez com relutância.
Abrando o olhar, permitindo-lhe falar sobre Seraphina; agora é diferente.
— Você promete que nunca mais vai deixar que ela me machuque? — Os cantos de seus olhos se enchem de lágrimas. — Eu sei que é ela que você ama — ela puxa minha camisa com mais força, prendendo meu olhar perdido —, eu sei que é ela que você sempre vai amar. Mas, por favor, nunca mais deixe que ela me machuque.
Olhando-a nos olhos e pela primeira vez vendo apenas Cassia, digo:
— Nunca mais vou deixar que ela machuque você. — Dou um beijo em sua testa. — E acho que nem quero mais encontrá-la.
Cassia não diz mais nada enquanto prendo a corrente em seu tornozelo e subo os degraus de concreto.
Cassi a
Senti um sorriso tentando despontar em meu rosto, mas ele morreu cedo demais. Abaixo as mãos e fico ali, no meio do quarto, a corrente estendida no chão ao meu lado. Deveria estar feliz com a última coisa que ele disse — quero estar, mas me sinto estranha.
Não sei o que está acontecendo comigo.
Mas não estou gostando. Fredri k
Já vestindo o casaco e com as chaves na mão, vou até a porta, mas paro na entrada da cozinha.
— Greta, você precisa entender uma coisa.
Ela deixa o pano de prato no balcão e dá a volta em minha direção, sem deixar de me olhar, ao perceber a importância do que vou dizer.
— Cassia é perigosa — Greta franze as sobrancelhas na hora —, e você precisa tomar cuidado quando estiver com ela.
— Me desculpe, sr. Gustavsson — diz ela, chegando mais perto —, mas achei que o senhor já tivesse superado isso. Na primeira semana em que vim cuidar dela, o senhor me disse para tomar cuidado. Disse que era porque ela não era confiável, mas o senhor...
— Sei o que eu disse — interrompo-a. — E sei que depois acabei dizendo que estava tudo bem, mas a verdade é que eu nunca deveria ter permitido que você baixasse a guarda perto dela. Foi um erro meu.
— Cassia é inofensiva — declara ela, cruzando os braços metidos em um suéter de tricô azul. — Como pode dizer que ela é perigosa, depois de tanto tempo? Depois do que... — ela estreita os olhos — ... depois do que viveu com ela? — Está se referindo ao que viu quando entrou.
— Me escuta — digo, com autoridade. — Vou contar mais depois do que eu descobrir hoje, na reunião com Izabel. Espero entender melhor isso tudo. Mas, até lá, quero que você fique alerta o tempo todo perto de Cassia.
— Eu vou ficar — responde Greta, baixando as mãos e voltando para o outro lado do balcão. — Mas me deixe dizer, só para constar... e pode me matar por dizer isto, se quiser... que confio mais nela do que no senhor. — Suas palavras são amargas, mas sinceras. Ela me censura por manter Cassia em cativeiro, por tratá-la como um animal, e até por considerar a ideia de que alguém tão doce e carinhosa como Cassia possa ser perigosa.
— Sua opinião está anotada — digo, abrindo a porta. — Vou ficar de olho nas câmeras, por isso não faça bobagem.
— Não vou fazer, senhor.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO Fredrik
Entro no estacionamento do café e descubro que Izabel já está lá dentro, esperando por mim, quinze minutos adiantada. Eu me aproximo da mesa no canto mais afastado do salão e percebo que ela não sorri. O único sorriso em seu rosto é do tipo triste, quando você precisa dar uma notícia devastadora a alguém que ama.
Quero dar meia-volta e sair. Talvez, se eu não ouvir o que ela tem a dizer, nada daquilo será verdade.
Eu me sento na cadeira desocupada diante de Izabel.
Não digo uma palavra. Izabel tira um envelope branco e
grosso da bolsa, que está em cima da mesa, e o coloca diante de si, cobrindo-o com dedos que mostram unhas feitas.
Odeio esse envelope. Está prestes a arruinar minha vida, e quero pôr fogo nele.
Afasto o olhar com dificuldade, voltando-me apenas para Izabel.
— Como ela está? — pergunta minha amiga.
— Para dizer a verdade, Cassia está perfeita — respondo, como se esse fato fosse negar tudo o que ela vai contar. — Nenhum sinal de lembrar que é Seraphina. Até deixei que ela saísse do porão pela primeira vez em um ano. Fomos almoçar e ao cinema, você acredita? Eu. No cinema. — Não percebi o tamanho do meu sorriso, mas não consegui evitá-lo ao lembrar os últimos dias sozinho com Cassia.
Izabel parece sentir pena de mim, e o sorriso se dissolve em meu rosto.
— Fredrik, posso fazer uma pergunta pessoal?
— Claro.
Eu me recosto na cadeira e cruzo os dedos sobre a barriga.
Izabel mantém as mãos sobre o envelope, e tenho a sensação de que ela não quer que eu veja o que está dentro dele, assim como também não quero.
— Sua infância foi parecida com a minha?
Isso me pega de surpresa. Nunca falei do meu passado para
Izabel. Até onde eu saiba, além de Seraphina, as únicas duas pessoas que sabem alguma coisa a respeito são Victor Faust e nosso ex-chefe, Vonnegut. Eles sabem porque precisavam saber, antes que eu fosse recrutado pela Ordem. Mas nem eles sabem de tudo.
Ninguém além de Seraphina sabe de tudo.
— Parecida com a sua, sim. — Olho para a parede atrás de sua cabeça.
— Victor não me conta muito a seu respeito — explica ela, com a voz suave —, porque não é da minha conta, a não ser que você mesmo fale. Eu sei e aceito isso. Mas queria perguntar, para o caso de você sentir que tem intimidade suficiente comigo para contar.
— O que o meu passado tem a ver com o que há nesse envelope, Izabel? — Continuo sem olhar para o envelope. Eu o enxergo com a visão periférica, mas
não consigo olhá-lo diretamente. — É só uma pergunta, Fredrik. — Não, é mais do que isso — digo, e
então baixo a voz, para que o barista atrás do balcão não ouça. — Mas, sim, fui um escravo sexual, assim como você. Só que fui por muito mais tempo. E não era o favorito de ninguém.
Não queria que essa última parte soasse rancorosa ou ríspida, mas, pela expressão ofendida nos olhos de Izabel, presumo que tenha saído assim.
Suspirando, arrependido, fecho os olhos depressa e ponho as mãos dobradas na mesa.
— Eu não quis falar nesse tom. A expressão de Izabel fica mais
branda, e ela assente devagar. — Eu sei.
— Mas não entendo por que isso importa. O que meu passado tem a ver com Seraphina?
— Não tem nada a ver com Seraphina — responde ela. — Só quero que você saiba que eu estou do seu lado, aconteça o que acontecer. Você e eu somos parecidos em muitas coisas, e sei que fiquei sozinha por muito tempo por causa da vida que fui obrigada a levar. Eu não tinha ninguém. A não ser as garotas que moravam na fortaleza comigo, mas nossos relacionamentos sempre foram breves. Elas sempre eram vendidas, se matavam ou eram assassinadas. Eu não tinha ninguém, Fredrik. E sei como é viver sozinho e levar uma vida horrível que não escolhi. Ela se curva para a frente, deslizando o envelope para o meio da mesinha, mas ainda não está pronta para me entregar. Seus olhos estão tristes e cheios de
compreensão.
— Não só recentemente — continua ela —, mas desde a noite em que o conheci em Los Angeles, vi em você a mesma solidão e o mesmo tormento que eu sentia antes de encontrar Victor. Pessoas como eu e você... nós achamos que estamos escondendo nossa dor e escuridão do resto do mundo, mas esquecemos que conseguimos ver tudo isso com clareza uns nos outros.
Estendo a mão para pegar o envelope, mas Izabel reluta em se afastar dele. Finalmente, ela cede. Deslizo-o para o meu lado da mesa e mantenho a mão sobre ele. Mas não estou preparado para ler o conteúdo.
— Aprecio a confidência, Izabel, mas...
— Fredrik, eu temo por você. — Por quê? Por causa disto? — Bato
no envelope com a ponta do dedo, sem olhar para ele. — Eu aguento. Vou saber lidar com o que eu estou prestes a descobrir, seja lá o que for.
— Só quero dizer que Seraphina não é a única pessoa do mundo que já gostou de você.
Meus dedos amassam as bordas do envelope.
— Talvez não, mas é a única pessoa que me entendeu de verdade.
Izabel assente, pensativa. — Sim, mas não precisa ser. — O que isso quer dizer? —
pergunto, rindo de repente. — A gente vai ter um caso? — brinco, sorrindo para ela.
Izabel sorri e revira os olhos, mas logo substitui o humor por determinação. — Só estou dizendo que estou do seu lado. Faço qualquer coisa por você.
Espero que acredite nisso. Finalmente, olho para o envelope,
antes de abri-lo com cuidado. — James Woodard localizou as
informações sobre Cassia Carrington — anuncia Izabel, enquanto desdobro as folhas grossas e meu coração salta violentamente no peito. — Não foi difícil.
Olhando para o texto impresso no papel, leio com a mente aberta e o coração em frangalhos:
25 de junho
Paci ente: Cassi a Ana Carri ngton Idade: 13 anos
Di agnósti co Pri nci pal: Transtorno Di ssoci ati vo de Identi dade --
A paciente não exibe sinais de fraude consciente. Na minha opinião profissional, Carrington genuinamente acredita que foi uma garota de sua idade chamada Seraphina Bragado quem assassinou seus pais e pôs fogo em sua casa. Carrington fez um relato prolongado e com detalhes complexos sobre a história de como “conheceu” sua segunda personalidade, Seraphina Bragado, e a história nunca muda quando ela a conta. Tentei confundi-la com os detalhes, mas ela sempre me corrige. Cassia está cem por cento convicta de que tudo o que me conta é real.
Carrington, como “Seraphina”, confessou ter matado os pais de Cassia porque estava tentando salvar a amiga, poupá-la de passar com o pai o mesmo que Seraphina passara com o dela: abusos físicos brutais, violência sexual e estupro. Isso não é incomum em pacientes com TDI, criar uma personalidade emocional e mentalmente mais forte, que consegue fazer as coisas que a personalidade principal não é capaz de fazer por si mesma, por medo ou fraqueza. No caso de Carrington, Seraphina tornou-se a parte que tinha coragem de enfrentar o abuso paterno e lidar com a situação de que a mãe ignorava o fato e não intervinha para ajudá-la.
1 de agosto
Paci ente: Cassi a Ana Carri ngton Idade: 13 anos
Di agnósti co Pri nci pal: Transtorno Di ssoci ati vo de Identi dade --
Evidências levaram à conclusão de que Carrington também foi responsável pelo assassinato do garoto Phillip Johnson, de catorze anos, que desapareceu do bairro seis meses antes de Carrington assassinar os pais. O corpo de Johnson foi encontrado na mata atrás da casa de Carrington, coberto por galhos e folhas de árvores. Foi “Seraphina” quem nos revelou onde encontrar o corpo. “Seraphina” alega que Johnson tentou beijar Carrington e que, para proteger a amiga, levou-o para a floresta e o matou a facadas. 21 de setembro
Paci ente: Cassi a Ana Carri ngton Idade: 14 anos
Di agnósti co Pri nci pal: Transtorno Di ssoci ati vo de Identi dade --
A paciente não retorna à verdadeira personalidade há algum tempo. Ela insiste que é Seraphina Bragado, e começo a acreditar que a personalidade alternativa está aos poucos assumindo o controle. A duração que isso pode ter é preocupante. O tratamento para ajudar Carrington não terá sucesso se a personalidade tratada não for a principal. 29 de outubro
Paci ente: Cassi a Ana Carri ngton Idade: 15 anos
Di agnósti co Pri nci pal: Transtorno Di ssoci ati vo de Identi dade --
Carrington voltou esta semana, mas foi um encontro muito breve, pouco antes de “Seraphina” reassumir o controle. Ainda assim, nesse breve momento, finalmente descobri um gatilho da paciente, ao menos um deles. Carrington não gosta de espelhos. Seraphina não tem problema com o reflexo, mas Carrington faz de tudo para evitá-lo. Acredito que, quando Carrington se olha no espelho, não é o próprio reflexo que vê do outro lado, e sim a imagem de Seraphina. Porém, não acredito que se olhar no espelho invariavelmente mude sua personalidade e ela se torne Seraphina. Depois de mais testes, ficou aparente que não há um verdadeiro padrão para a transformação de Carrington em Seraphina, apenas que às vezes ver seu reflexo em um espelho pode desencadear a mudança.
20 de abri l
Paci ente: Cassi a Ana Carri ngton Idade: 17 anos
Di agnósti co Pri nci pal: Transtorno Di ssoci ati vo de Identi dade --
Cassia Carrington não volta a si há mais de um ano. Cheguei à conclusão de que o caso de Carrington é um dos piores que já vi com relação ao tempo que a outra personalidade permanece dominante. É como se Cassia não existisse mais e Seraphina tivesse assumido o controle.
Uma observação à parte: um pequeno grupo de pessoas — dois homens e uma mulher — apareceu na instituição para ver Carrington. Eles alegaram pertencer a uma organização governamental, forneceram identidades válidas — seus nomes até estavam no sistema, na lista de visitantes autorizados — e passaram três horas a sós com ela, em uma sala não monitorada. Câmeras e gravadores foram proibidos. Perguntei a “Seraphina” o que eles discutiram, depois que o grupo foi embora. Ela não respondeu.
1 de mai o
Paci ente: Cassi a Ana Carri ngton Idade: 17 anos
Di agnósti co Pri nci pal: Transtorno Di ssoci ati vo de Identi dade --
Carrington não se encontra mais na instituição. Foi transferida — na minha opinião, em circunstâncias misteriosas — para outra instituição em Nova York, mas não recebi nenhuma outra informação sobre a transferência. Meu superior mandou que eu abandonasse o caso e não conservasse os arquivos comigo.
Olho para a folha em minha mão, deixando o texto sair de foco. Então a folha cai sobre a mesa. Não tenho interesse em ler as dez páginas restantes.
— Sinto muito, Fredrik. — Não sinta. Já falei que consigo
lidar com isso.
Eu me recosto na cadeira e jogo a cabeça para trás, rindo de leve.
— Inacreditável. — Cruzo os braços. — Acho que me apaixonei pela mulher com a cabeça mais fodida do planeta.
Izabel não está rindo, nem mesmo sorrindo da minha tentativa patética de humor. Acho que ela estava certa quando disse que pessoas como nós não conseguem esconder a dor umas das outras.
— Está bem — digo, movendo as mãos —, então ela é doente. Isso eu já sabia. Aliás, lá no fundo eu sabia que o problema dela era esse negócio de múltipla personalidade. Mas não queria acreditar. Isso é raro, afinal. Por que ela precisava ter isso? É ridículo. Não consigo nem... — Não sei mais o que estou dizendo.
Deixo as mãos caírem no colo e olho para as folhas dobradas à minha frente. Izabel continua em silêncio, ouvindo, observando, querendo dizer alguma coisa para melhorar a situação, mas sabe tão bem quanto eu que nada conseguiria.
— Tudo bem, então posso conseguir ajuda para ela — digo, olhando para minha amiga. — Ela está bem como Cassia. Puta que pariu, Izabel. A verdade é que Seraphina nunca existiu. Quando me casei com ela em segredo, quando fiz amor com ela, todas as coisas que fizemos juntos... ela era e sempre foi Cassia Carrington. Seraphina nunca existiu. — A revelação quase me faz perder o controle, mergulhando no limbo do que resta do meu juízo. — Posso conseguir ajuda para ela — repito, determinado a fazer exatamente isso.
— Fredrik — começa Izabel, com cautela —, acho que nada nem ninguém pode ajudar Cassia.
— Por que você está dizendo isso? — Sinto as sobrancelhas se franzindo em minha testa.
Ela olha para as folhas diante de mim.
— Você deveria ler o resto. Balanço a cabeça.
— Não vou ler mais nada. Seraphina está doente. Ela precisa de ajuda. E eu vou conseguir ajuda para ela. — Começo a levantar a voz. — Por acaso você acha que analistas e médicos simplesmente internam pessoas como ela? Não. Eles receitam terapia, dão remédios...
— Sim, eles fazem isso — concorda Izabel, com cuidado e compaixão —, mas não com quem mata pessoas inocentes. Eu li o arquivo todo, Fredrik. Os pais dela podiam não ser inocentes. Ela matou os dois, e eles mereceram. Mas aquele garoto, Phillip Johnson, não foi o único inocente que Seraphina matou. Houve vários outros depois dele. Todos do sexo masculino.
E, depois, as louras inocentes, seis anos atrás — não há como ter certeza de quantas pessoas Seraphina matou sem que eu ficasse sabendo.
— Que lado dela você mais amava, ou mais ama?
Levanto os olhos.
— Eu nunca disse que continuo amando.
— Você não precisa dizer. Baixo os olhos de novo. — Eu amava Seraphina porque ela
era como eu — começo, visualizando apenas o rosto de Seraphina, os cabelos pretos curtos e a maquiagem escura. — Eu era um tipo diferente de monstro quando a gente se conheceu. Ela era a resposta para tudo. Me ajudou a controlar meus impulsos e me mostrou um jeito de ser eu mesmo sem correr o risco de ser pego. Nós éramos perfeitos juntos, Izabel. Eu nunca rezei e nunca sonhei com nada, mas ela era a resposta para as minhas preces e um sonho que se realizava. Ela era tudo para mim.
— E Cassia?
Agora só consigo enxergar Cassia, com os lindos cabelos louros e compridos e a beleza natural, porque ela nunca usa maquiagem — só agora sei por quê: ela não pode se olhar no espelho para aplicá-la.
— Cassia me deu uma coisa que nunca tive com Seraphina. Ela me deu paz. Ela me fez ver uma luz na escuridão que é a minha vida e me fez sentir tão normal quanto qualquer um. — Olho Izabel nos olhos. — Ela é a minha luz.
Izabel me encara por um momento. Há dor e remorso em seu semblante.
— Você precisa de uma pessoa inteira, Fredrik — diz, pensativa e determinada. — Precisa acreditar que um dia vai encontrar essa pessoa, um amor que seja ao mesmo tempo luz e trevas, que o entenda e o complete do modo como Seraphina completava, mas que também possa lhe dar essa paz. — Ela cruza os dedos sobre a mesa e se curva para a frente. — Mas você não pode fazer isso com ela, e sabe disso. Ela não é uma pessoa inteira. E foi longe demais, de todas as formas, para um dia ser. Ela pode ter um estalo e se transformar a qualquer momento, como você sabe muito bem.
Desvio o olhar. Não quero ouvir nada disso. Porque sei que é verdade.
— Você vai encontrar... — Não — interrompo, e meus olhos
se fixam nos dela. — Se não pode ser Seraphina, ou melhor, Cassia, então não será mais ninguém. — Cerro os dentes. — Não estou desesperado pelo amor de uma mulher, Izabel. Você está totalmente enganada, se é isso o que está pensando. Eu não queria Seraphina quando nos conhecemos. Queria ficar sozinho, e a última coisa de que eu precisava era ela, ou qualquer outra mulher seguindo cada passo que eu dava. Mas, como ela me entendia, e por ter passado a vida toda emocionalmente sozinho, me apaixonei por ela. Isso não dava para evitar. O amor me traiu, assim como a vida me traiu no dia em que nasci no banheiro de uma loja de conveniência, de uma mãe que não me queria. — Eu me debruço para a frente, chegando mais perto, para que Izabel possa ver a resolução estampada em meu rosto. — Não vai ter mais ninguém depois dela. Não vai ter nada depois dela, a não ser a carcaça do homem que eu era antes de a gente se conhecer.
— O que isso significa? — Ela parece preocupada. Sem dúvida comigo. Enfio as folhas de volta no envelope
e o guardo no bolso do casaco. Eu me levanto da mesa. — Significa que talvez eu não me
encaixe mais no seu mundo ou no de Victor.
Izabel me olha da cadeira. Seus longos cabelos ruivos cobrem os ombros do casaco branco, se amontoando sobre a gola de pele falsa ao redor do capuz em suas costas.
Ela fica de pé, com as botas de salto cor de bronze. Suas bochechas ainda estão um pouco vermelhas do frio lá fora.
— Ela ajudava você a matar, não ajudava?
Meu coração para. Olho do outro lado do salão vazio, para o barista atrás do balcão, depois para o chão.
— Não — respondo. — Ela me ajudava a encontrar as pessoas certas. — Olho para ela de novo e continuo falando em voz baixa: — Pessoas ligadas às missões dela. Aquelas cujas mortes podiam ser acobertadas e colocadas na conta da Ordem dela. Eram todas pessoas que eu tinha cem por cento de certeza que mereciam. — Meus olhos fogem dos dela, por isso talvez Izabel não veja a vergonha e a culpa que se escondem neles.
— Quem você... — Ela olha de relance para o barista e cochicha ainda mais baixo: — Como você fazia isso, antes de Seraphina?
Meus ombros sobem e descem. Volto a me sentar.
— Pegava gente na rua. Traficantes. Cafetões. Membros de gangues. Aqueles que fariam falta para pouca gente. Mas... — Eu me interrompo.
— Mas o quê?
Olhando para os pés, continuo: — Umas poucas vezes, poucas
mesmo, matei inocentes por engano. Torturei um homem, ano passado. Foi na época em que você fugiu do México e estava na estrada com Victor. Eu... bem, como falei, eu o torturei. Descobri, antes de matar o cara, que não era ele quem eu
estava procurando. — Olho bem nos olhos dela, demonstrando remorso. — Eu torturei um inocente, Izabel. Pai de duas filhas. Nunca levou sequer uma multa por estacionar em local proibido.
— Mas você não matou o cara. Certo? — Ela parece esperançosa.
Balanço a cabeça.
— Não. Não matei. Não fosse por esse meu instinto... embora naquela noite ele tenha funcionado um pouco tarde, porque minha cabeça estava muito perturbada pela necessidade... eu não teria parado. Nunca o teria escutado me dizer que não era quem eu achava que era. Soltei o cara e... — dou uma risada de repente — e, como se isto resolvesse tudo, como quem bota uma porra de um curativo em um ferimento a bala, dei meio milhão de dólares para ele. Teria dado mais se tivesse, mas eu não recebia nada da Ordem havia três meses.
— Mas você não matou o cara — declara Izabel, com um sorrisinho rápido.
Eu não estou sorrindo. — É, você tem razão — digo. — Eu
não matei ele.
O rosto dela murcha com a mesma rapidez.
— Teve uma — começo, relutante, lembrando o rosto da vítima. — Uma mulher. Não faz muito tempo, em São Francisco. Era irmã de um dos alvos de Dorian. — Izabel arregala mais os olhos, agora que sabe que matei a mulher, porque até esse momento ninguém sabia o que havia acontecido com ela. — Para encurtar a história, ela disse que sabia do assassinato em que o irmão estava metido. Ela confessou enquanto eu a mantinha em cativeiro, na sala ao lado de onde Dorian estava com o irmão dela. Ela não devia estar ali. Com certeza você se lembra do relatório. — Ela balança a cabeça. — Mas eu estava precisando
desesperadamente derramar sangue. Fazia um mês que não interrogava ninguém. Ela confessou, e eu aceitei.
— Mas ela estava mentindo, não estava?
Faço que sim, relutante. — Isso explica a sua cara na reunião
com Victor. Quando Victor mostrou para você e para Dorian a informação que foi encontrada com a irmã.
— Sim — concordo, com o coração pesado. — Ela queria morrer e me usou para fazer isso por ela. Ainda me pergunto como François Moreau, lá na França, aparentemente sem nenhuma ligação com essa gente, sabia que eu tinha matado essa mulher.
— François Moreau — diz Izabel — era o cliente que encomendou a morte do irmão.
Surpreso com a informação, a princípio não encontro palavras.
Mas isso não importa no momento, por isso não digo nada.
Ela mexe na bolsa preta na mesa e tira outro envelope, colocando-o diante de mim. Desconfiado depois de ter lido conteúdo do primeiro, só lanço um olhar para esse segundo.
— Aliás, por falar em Paul Fortright e Kelly Bennings — diz ela, empurrando envelope mais para perto, me instigando a pegá-lo, o que ainda não faço —, você estava certo.
— Sobre o quê?
Ela acena para o envelope. — Abra e veja por si mesmo. Hesitando de início, finalmente faço
o que ela sugere. Não me surpreendo ao ler a folha sobre Kelly Bennings.
Deixo a folha na mesa e olho para Izabel.
Dando de ombros, digo: — E por que você está me mostrando
isso? — Não encontro qualquer ligação entre aquilo e Seraphina, o motivo que me trouxe aqui e, francamente, a única coisa que me importa no momento.
Ela olha para a mesa, tamborilando com os dedos longos na madeira, aparentemente devido a um leve nervosismo. Então diz:
— Foi por isso que perguntei se Seraphina ajudava você a matar. Eu não tinha certeza, mas, pelo pouco que sabia, tinha a sensação de que era Seraphina que ajudava com os seus impulsos. De alguma forma.
Ainda sem entender aonde ela quer chegar, cruzo os braços e olho para ela e depois para a folha, esperando que continue.
— Eu, hã, bem, achei que você poderia precisar descontar sua dor em cima de alguém. — Ela faz uma pausa, sem saber se falou a coisa certa ou qual será minha reação. — Depois do que você descobriu sobre Seraphina. Eu sei que é difícil para você. — Ela está ficando mais confiante, mais determinada a me fazer entender. — Você pode fingir que consegue dar conta, mas...
— Você está me oferecendo uma vítima? — acuso, com dificuldade para decifrar suas intenções. Sei que é isso que ela está fazendo, mas o que ainda não está claro é... — Espera... Victor sabe disso?
Ela não responde.
E não consegue olhar para mim. — Izabel, pelo amor de Deus, você
está me oferecendo uma vítima envolvida em uma das suas missões e Victor não sabe? — Balanço a cabeça e empurro a folha de volta para ela, recusando o gesto.
Ela bate a palma da mão sobre a folha.
— Escuta, eu nunca tive uma família de verdade — argumenta ela —, fora a sra. Gregory, antes de conhecer Victor, você e... quero arrancar minha cabeça por dizer isto, até Niklas. — Ela empurra a folha de volta para mim. — Você faz parte da minha família, e quero ajudar. Falei sério sobre contar tudo para Victor. E vou contar. Mas quando eu estiver pronta. No momento, quero ajudar você.
— Não preciso disso, Izabel. — Tiro as mãos da mesa e fico de pé. — Posso encontrar minhas próprias vítimas. Com certeza não preciso que você bote o seu na reta por mim. Victor vai matar você.
Ela pisca, atordoada, e joga a cabeça para trás.
— Você não falou que ele nunca me mataria?
— Você me entendeu. — Suspiro. — Olha, Izabel, eu agradeço. De verdade. Mas posso encontrá-las sozinho.
— Eu quero que você mate essa mulher — insiste Izabel entredentes, como se estivesse reprimindo isso o tempo todo.
Fico imóvel em vez de ir embora e deixá-la sentada ali.
— Como é?
Ela fica de pé ao meu lado. — Eu mesma ia matar, quando
descobri o que ela fez — murmura Izabel, em um tom ríspido. — Eu estava pronta para pegar um avião, na noite passada. Até falei para Victor que ia visitar Dina. E ia mesmo, depois, para isso tecnicamente não ser mentira, então não me olhe assim. — Ela agarra a lapela do meu casaco e me puxa para mais perto. — Mas aí James Woodard me deu as informações sobre Cass... sobre Seraphina, e percebi que seria melhor deixar o trabalho de matar Kelly Bennings nas suas mãos. Você precisa disso mais do que eu. — Ela solta meu casaco. — Eu não preciso, na verdade. Eu só quero.
— Por que você quer tanto isso? Suas narinas se dilatam brevemente. — Por causa do que ela fez com a
própria filha e com a filha do cliente, só por um homem, caralho! — Ela olha para o barista atrás de mim. Um cliente entra no café. — Aquela vaca merece morrer, ou pelo menos ser torturada. E quem melhor do que você para fazer isso? Qualquer projeto de mãe que se arrisque a arruinar a vida da filha por causa de um homem merece o que vai acontecer com ela. — Ela pega a bolsa da mesa e joga a alça curta sobre o ombro.
Analiso o rosto de Izabel em busca do que já sei que está ali: dor pelo que a própria mãe fez com ela, levando-a ainda jovem para viver com um chefão do tráfico mexicano que a manteve em cativeiro pela maior parte da vida. Em qualquer outro momento, eu a provocaria, acusando-a de simplesmente me usar para fazer seu trabalho sujo, mas sei que não é isso. Izabel não precisa que ninguém faça seu trabalho sujo. Ela é mais do que capaz disso. E ela gosta.
— Você precisa disso, Fredrik. — Ela faz menção de ir embora, mas para diante de mim e me encara com aqueles olhos verdes suaves. — Você é família, e acho que deveria me deixar ajudar, do jeito que Seraphina ajudava. E, depois do que você disse sobre se tornar a carcaça do homem que era, minha missão vai ser ajudar você. Porque me recuso a perder qualquer membro da minha família. Entendeu? — É mais uma exigência do que uma pergunta.
Não respondo, mas sei que não preciso. Olho para a folha e a pego.
— Obrigado, Izabel — digo. Ela assente e sai do café.
CAPÍTULO VINTE E CINCO Fredrik
Não suportaria a ideia de ver Cassia de novo esta noite. Preciso de tempo para pensar no que fazer, porque, no fim das contas, como vou ter que fazer alguma coisa, prefiro que seja escolha minha, e não algo reservado pelo destino para me pegar de surpresa. Embora, como prova o passado, eu seja pego de surpresa assim mesmo.
No entanto, o mais importante, mais do que a necessidade de me afastar um pouco de Cassia, é alimentar minha necessidade de derramar sangue.
Liguei para Greta minutos antes de ir para o aeroporto e lhe disse que ficasse longe de Cassia até eu voltar:
— Mas e se ela precisar de mim para alguma coisa? Quanto tempo o senhor vai demorar?
— Não mais do que quarenta e oito horas — respondi. — Cassia vai ficar bem por esse tempo.
Como de costume, detectei a frustração na voz de Greta, ainda que ela se esforçasse muito para escondê-la.
O que Izabel fez por mim — bem, é algo que me preocupa, e vou cuidar melhor disso quando toda essa situação acabar, porque não consigo lidar com todas essas coisas ao mesmo tempo. Mas não vou permitir que ela se arrisque desse jeito por minha causa. Além disso, a última coisa que quero é Victor pensando que está rolando alguma coisa entre nós. Ele não hesitaria em meter uma bala na minha cabeça por causa dessa garota. Infelizmente, conheço muito bem a sensação. Eu sentia isso por Seraphina. E agora por Cassia...
Dorian estica as pernas, uma no corredor do avião, e afunda na poltrona. Olho pela janela ao meu lado para a escuridão do céu noturno, a quarenta mil pés de altitude sobre o estado de Washington.
— Não sei o que deu em você ultimamente — comenta ele, apoiando a cabeça no assento e juntando as mãos sobre a barriga —, mas está começando a me decepcionar de verdade.
A seriedade na voz dele me dá vontade de rir.
— Me avisaram que trabalhar com você não ia ser fácil. Como se você fosse alguma nova versão do Sweeney Todd, o barbeiro demoníaco da Rua Fleet. — Eu rio baixinho, sozinho. — Mas, para ser sincero, estou achando você muito mole para o trabalho.
— Bom, posso sempre oferecer um lugar na minha cadeira, se você quiser — respondo, com um sorriso.
— Obrigado, seu babaca, mas eu dispenso. — Ele se ajeita na poltrona, tirando o pé do corredor. — Mas vou pedir para trocar de parceiro, depois de ajudar você com isso.
— Não vai precisar — digo, olhando para as costas da poltrona à frente. — Victor me garantiu que a missão de Seattle vai ser nosso último trabalho juntos.
Ele vira a cabeça para me olhar. — Sério?
Faço que sim.
— Ha! — exclama ele. — Por que será que ele ainda não me disse nada?
— Não sei. — Eu o encaro por um momento. — Talvez a missão de Seattle não tenha acabado.
Ele dá de ombros e olha para a poltrona à sua frente.
— Acho que isso explica por que a gente está voltando.
Sim, faria sentido se tivesse sido Victor a nos mandar de volta para Seattle, mas desta vez é pessoal. Izabel tinha razão: preciso de um trabalho só meu para me acalmar um pouco. Como um viciado em drogas precisando de uma dose, imagino. Eu nunca disse que estava acima disso.
Tenho um encontro muito especial com Kelly Bennings. Para mim e para Izabel.
Dorian me olha de novo. — Sem querer ofender, é claro. É que
estou acostumado a trabalhar com pessoas mais parecidas comigo. Entende?
Faço que sim, ainda olhando para — Entendo perfeitamente o que você quer dizer. E preciso me ver livre de você tanto quanto você precisa se ver
livre de mim.
Dorian ri baixinho.
— Mas imagino que não haja muita gente como você esperando para tomar o meu lugar — comenta, com um ar divertido.
— Não, não há. Porque gente como eu prefere trabalhar sozinha.
— Esse mundo é solitário pra caralho, Gustavsson. — Ele fecha os olhos. — Acho que, se eu fosse como você, provavelmente enlouqueceria, sozinho, fazendo essas porras de psicopata que você faz.
Em grande parte, Dorian está certo. Minha vida é solitária. E, se as coisas fossem do meu jeito, Seraphina nunca teria me traído, anos atrás. Ela nunca teria matado aquelas três inocentes. Nunca teria fugido e me deixado viver na solidão, sem ela. E, mais do que tudo, se as coisas fossem do meu jeito, ela não estaria doente, nada disso teria acontecido e nós dois ainda estaríamos juntos. Eu não precisaria ficar sozinho.
Mas tudo isso demonstra que provavelmente estamos melhor cada um por sua conta. Apegar-se a alguém nos torna fracos e vulneráveis. Fode com nossas emoções. E não gosto que ninguém foda com minhas emoções.
Dorian e eu chegamos a Seattle antes das seis da manhã do dia seguinte. Alugamos um carro e encontramos um hotel, onde passamos parte do dia repassando informações sobre a localização de Kelly Bennings e do cliente que nos contratou para eliminar Paul Fortright. De acordo com os arquivos, existe uma conexão entre Bennings e o cliente, Ross Emerson, que alegava que Fortright tinha molestado sua filha. Toda a informação de que preciso está aqui no bolso do paletó. O resto é puro instinto, e nunca me enganei em relação à culpa de alguém — exceto, é claro, quando uma vítima fingiu ser culpada, o que era inédito para mim e me deixou desorientado. Mas o instinto pode ser uma arma letal quando alguém sabe utilizá-lo. Dominei o meu quando garoto. Porque, se não tivesse feito isso, jamais teria escapado dos meus patrões e teria morrido escravo.
Ao anoitecer, Dorian e eu estamos esperando no carro, estacionado na frente do local de trabalho de Kelly Bennings, uma loja de bebidas. Duas
horas depois, após segui-la até um posto de gasolina, uma lanchonete, vê-la entrar e sair do apartamento de ninguém menos que o cliente, Ross Emerson, ela finalmente para o carro em casa, e nós a jogamos no porta-malas.
Agora estamos de volta ao mesmo galpão que usamos para interrogá-la da primeira vez, e ela age de maneira tão desafiadora quanto antes.
Com o lenço, limpo o cuspe do meu rosto e depois enfio o lenço em sua boca.
— Mnnmmnn! — Seus gritos abafados decerto estão cheios de xingamentos e ameaças. — Dmmnmmm-Mnnnmmooo! — O branco de seus olhos esbugalhados está completamente visível. Ela se agita na cadeira de madeira, fazendo-a balançar, raspando no chão de concreto.
Eu gostaria muito de ter a minha cadeira para prendê-la — facilita muito mais as coisas.
Dorian fica em um lado da sala, de pé e com as costas apoiadas na parede aço, a arma escondida na parte de trás da calça, uma expressão de impaciência e desconforto no rosto de menino bonito.
Arrasto uma cadeira vazia para perto de Bennings, deixando-a na frente dela. Como da última vez. Ela me fuzila com os olhos azul-claros, emoldurados pelos cabelos castanhos desgrenhados e sujos. Seus gritos e ameaças continuam saindo como gemidos abafados, indecifráveis, mas ao mesmo tempo completamente óbvios.
Cruzo as pernas e inclino a cabeça para o lado. Então olho para a gaze suja, enrolada em sua mão amarrada ao braço da cadeira, e sorrio um pouco, lembrando o que senti quando cravei o punhal de Izabel nela: satisfação completa e total.
Puxo meu punhal de dentro do casaco. Os olhos de Bennings focam a lâmina e ela para de gritar.
Me curvando para a frente, coloco a ponta do punhal sobre a pele nua do ombro dela e o deslizo por todo o seu braço, sem cortá-lo. Eu a despi antes de amarrá-la na cadeira, e ela está só de calcinha e sutiã; as peças não combinam. As pernas finas tremem sobre a madeira, as costelas são claramente visíveis. A escrota desbocada deve pesar uns quarenta quilos. A pele pálida não é bonita, e sim doentia. Olheiras mancham a região sob os olhos. Fico pensando qual deve ser sua droga favorita, mas, como não me interesso a ponto de perguntar, concluo que deve ser heroína.
Mas Kelly Bennings merece mesmo morrer?
Ainda praticamente na cara dela, anuncio, muito calmo:
— Se você cuspir em mim de novo, corto sua língua fora.
Ela balança a cabeça furiosamente, com lágrimas nos olhos.
Hesitando só por um momento, uso a mão enluvada com látex para tirar o lenço encharcado de saliva, que enfiei fundo o suficiente em sua garganta para que ela não conseguisse cuspi-lo sozinha, e o jogo no chão aos meus pés.
— O que você quer de mim, caralho?!
Inclino a cabeça para o lado. — E fale mais baixo — acrescento
—, porque está começando a me dar dor de cabeça.
Ela franze o cenho e me encara como que dizendo E o que me importa?, mas não se atreve a dizê-lo. Ao menos ainda não. Essa mulher é corajosa e quase completamente sem medo, é só questão de tempo até que sua boca grande a deixe ainda mais encrencada.
— Você armou esta missão contra o seu namorado, Paul Fortright, junto com Ross Emerson — digo, voltando a me recostar na cadeira.
— Quê? Que merda é essa que você está dizendo?
Ela não mente muito bem quando sabe que está ferrada.
— Você sabe exatamente o que estou dizendo. — Deixo o punhal sobre minha perna, cobrindo-o delicadamente com a mão. — Mas, pior do que planejar o assassinato dele, é armar com Ross Emerson para tentar pôr Fortright na cadeia por molestar crianças. Até a sentença de morte seria melhor.
Os olhos de Bennings ficam mais sombrios, e seu queixo cai.
— Você... você é doente! Puta que pariu, por que eu faria uma coisa dessas?
— Porque você é uma vaca inútil — digo, interrompendo-a. — Um desperdício de ar. — Giro a mão enluvada no ar acima do meu ombro. — Me incomoda imensamente saber que você está neste momento respirando o mesmo ar que eu. — Volto a pôr a mão sobre o punhal. — Você e Emerson armaram a missão quando as acusações de abuso sexual não foram suficientes para prender Fortright. Para tirá-lo da sua vida e da de Ross Emerson. Vocês...
— Você está louco! Vai se foder, seu psicopata do caralho! — Ela se agita na cadeira de novo. — Me tira daqui! Me solta! — começa a gritar a plenos pulmões.
— Porra, cara, faz essa escrota calar a boca! — Ouço Dorian dizer, do canto.
Mas já estou me curvando e encostando o punhal no braço dela de novo antes que Dorian termine a frase. Faço um corte longo e fundo, e o sangue escorre do talho. Bennings grita de dor, enquanto o lado esquerdo de seu corpo brilha com o sangue escuro, vermelho, maravilhoso.
— AHHHHH! CARALHO! — Lágrimas escorrem de seus olhos.
Ela enfim para de gritar, e só o que lhe resta fazer é tremer, gaguejar e sangrar.
— T-tudo bem! Eu ajudei Ross! Ajudei! Mas o que isso importa para vocês?! Era para vocês matarem Paul e pronto! Foi para isso que vocês foram
contratados!
Ponho a lâmina debaixo dos olhos dela, que se cala em um instante.
— Você estava disposta a arruinar a vida de um inocente por causa de outro homem. Podia ter simplesmente se separado dele. — Não levanto a voz.
Ela luta contra as amarras, apesar de saber que nunca vai se libertar.
— Eu não podia me separar! — rosna ela. — Paul é um canalha! Ameaçou levar nossa filha, se eu o abandonasse!
— Você não liga para a sua filha. Ela parece chocada. E magoada. Não acredito nisso, e, por mais que
eu saiba que ela mesma quer acreditar, sei que também não está completamente convencida.
— Eu amo minha menina! Como pode dizer uma coisa dessas?
Inspiro profundamente, aborrecido, e ajeito as costas na cadeira.
— Ah, claro — falo, em tom de zombaria. — Ama tanto que tentou mandar o pai inocente dela para a cadeia sob a acusação de molestar crianças. — Faço um corte longo e fundo no outro braço, só porque estou com vontade. Ela grita de novo, mas
continuo, muito calmo em meio aos gritos: — Isso sem falar no que você e Emerson fizeram a filha dele passar na polícia, fazendo lavagem cerebral nela para que acreditasse que foi molestada. — Não tenho nenhuma prova incontestável disso, mas sei que é verdade. — Devo dizer que você e seu caso amoroso são a escória da escória, sra. Bennings.
Só agora noto que Dorian saiu da sala. Eu sabia que, assim que eu começasse a cortá-la, isso não demoraria a acontecer. Por outro lado, ele tem mais um serviço para fazer, e foi por isso que eu o trouxe comigo.
— Olha, e-eu não sei por que você me trouxe para cá. — Bennings gagueja, os lábios finos tremendo. — Mas Ross vai pagar para você me soltar. E-ele paga o dobro do que ia pagar para sua organização pela morte de Paul. É só ligar para ele. Por favor. O número dele está no meu celular. No meu casaco. — Ela olha para o outro lado da sala, para as roupas amontoadas no chão.
— Isso não será necessário. — Cruzo as pernas e me afasto dela, sentado tão despreocupadamente quanto se eu estivesse em uma reunião entediante. — Mas me interessa saber por que você acha que Ross Emerson faria uma coisa dessas por sua causa. — Meu nariz se franze em uma vaga careta quando a olho de cima a baixo. — Olhe para você: é um nojo.
Chocada e completamente insultada, Bennings dispara:
— Vai se foder!
Ainda fico intrigado em ver o quanto essa mulher é desafiadora e estúpida, para não conseguir manter a boca fechada nem mesmo na situação em que se encontra.
Sorrio.
— Então, vai me contar? — pergunto, batendo o punhal ensanguentado na calça. — Ou eu vou ter que recorrer a técnicas mais drásticas de
interrogatório?
Como com qualquer um, torço muito para que ela não fale.
Bennings me olha com frieza, rugas profundas se formando ao redor dos olhos azuis. Mechas do cabelo estão espalhadas pelo rosto, pescoço e busto, grudadas na pele pelo suor, embora faça frio no galpão. Levanto as sobrancelhas, perguntando, com um gesto: E então, como vai ser?
— Ross faria qualquer coisa por mim — começa ela. — E eu faria qualquer coisa por ele. Qualquer coisa!
— Por quê?
— Porque a gente foi feito um para o outro. Porque eu amo Ross. Porque ele me ama. O que mais é preciso?
Sorrio outra vez e olho para ela, pensativo.
— Um motivo válido para arruinar ou tirar por completo, intencionalmente, a vida de um inocente — digo, mas me pego pensando apenas em Seraphina. — Se você conseguir me dar um bom motivo, um motivo válido, uma justificativa para o que você e Ross Emerson fizeram com Paul Fortright e com as duas crianças indefesas que usaram para conseguir o que queriam, eu solto você e Emerson.
A boca trêmula de Bennings se fecha e seus lábios finos e rachados formam uma linha reta.
Então ela se dá conta do que eu disse, e seus olhos arregalados correm de mim para a área fria, mal iluminada e ampla ao redor.
— Como assim, vai soltar a gente? — pergunta ela, a princípio cautelosa, mas depois sua voz começa a se elevar. — Cadê ele? Me fala! Cadê Ross? — Ela luta contra as amarras.
— Ele está na outra sala — respondo, olhando por cima do ombro para a porta de metal que antigamente dava para a cantina dos funcionários.
— Você está mentindo — acusa ela, mas a expressão preocupada em seu rosto diz o contrário. — Só está dizendo isso para...
— Para quê? Não tem mais nenhuma informação que eu queira da senhora, além dessa última pergunta tão simples que lhe fiz. — Dou um sorriso fraco e balanço a cabeça. — Mas nós dois sabemos que você não vai me dar uma resposta aceitável para essa pergunta. Porque a resposta não existe.
— A resposta que eu dei é suficiente! — ruge ela, agitando mais ainda os cabelos desgrenhados, que cobrem seu rosto e grudam em seus lábios. — Sim! A gente se ama, seu canalha da porra! E, sim, a gente faz qualquer coisa um pelo outro, mesmo que isso signifique arruinar a vida de outra pessoa! Porque o amor é isso! É esse o significado de incondicional! Você não tem como saber! — Ela cospe no chão e me encara com os olhos úmidos e estreitos, transbordando de ódio.
Cerro os dentes ao ouvir seu último comentário.
Sem tirar os olhos dela, grito para Dorian:
— Traga o Emerson para cá! O som da porta de metal se abrindo
ecoa pelo espaço amplo e vazio. Emerson aparece primeiro, com Dorian atrás, a arma apontada para as costas do homem.
— Ross! Ross! — exclama Bennings, quase derrubando a cadeira.
Eu me curvo para a frente e bato a lâmina do punhal em sua perna nua.
— Olha o volume, sra. Bennings. Não esqueça o que eu disse sobre o volume da sua voz e a integridade da sua língua.
Ela engole em seco e baixa a voz. — Ross, e-eu sinto muito. — Mais
lágrimas escorrem dos cantos de seus olhos — Eu sinto muito!
Dorian força Emerson a andar o restante do caminho incentivando-o apenas com a arma, enquanto toma o cuidado de parar ao meu lado e não entrar no campo da câmera escondida que apontei para o casal.
Ross é baixinho, com cabelo escuro cacheado, ombros largos e uma expressão aterrorizada e covarde. Trinta e poucos anos. Visual de operário, com botas e cheiro de cigarro e loção pós-barba barata, que ele acha mais fácil de usar do que o chuveiro. Ele quer olhar para Kelly, mas está com medo. Mantém os olhos escuros no chão e as mãos às costas.
— Ross...
— Por favor, Kelly, fique quieta — diz Emerson, em voz baixa e derrotada. — Não piore as coisas.
— Você está... puto comigo? — pergunta Bennings, muito preocupada.
Emerson balança a cabeça. — Não, amor, não. Eu te amo, você
sabe.
Reviro os olhos e me dirijo a Dorian: — Por que você não ajuda o sr.
Emerson a se sentar?
Dorian sorri.
— Com prazer — responde ele, educadamente, com um sorriso ainda mais largo.
Dois tiros ecoam. Os gritos de Emerson preenchem o espaço quando seus joelhos são estraçalhados pelas balas. Ele cai de lado no chão frio, o rosto batendo no concreto.
— Qual é o seu problema, caralho?! — grita Bennings. — Ele não fez nada!
Salto da cadeira e seguro o maxilar inferior de Bennings, forçando-a a abrir a boca — sempre ficando de costas para câmera. Ela tenta gritar, mas forço seu pescoço para trás e ela engasga com a
saliva e as lágrimas que escorrem para o fundo da garganta. Seguro sua língua carnuda em meio aos gritos, à luta e aos dentes afiados, forçando dois dedos no músculo quente e flácido por baixo dela e meu polegar por cima para mantê-la presa. Os olhos dela estão arregalados de terror, e todos os ossos e músculos de seu corpo se tensionam de uma vez.
Encosto a lâmina no meio da língua dela.
— Por favor! Não a machuque! Eu imploro! — grita Emerson, do chão, incapaz de se sentar, muito menos de se levantar.
Paro, indiferente, com a lâmina ainda sobre a língua da mulher.
— Eu sei que, o que a gente fez foi errado — anuncia Emerson, em meio à respiração ofegante, com o semblante dolorosamente distorcido. — Paul a ameaçou. Disse que, se Kelly abandonasse ele e a filha, transformaria vida dela em um inferno. Que tiraria a guarda de Abigail e obrigaria Kelly a pagar pensão. — Ele para só por tempo suficiente para recuperar o fôlego e deixar que mais dor suba pelas pernas. — O plano foi ideia minha. Acusá-lo de molestar minha filha. A gente só queria que ele fosse para cadeia. Que saísse do caminho. Era melhor do que matá-lo.
Balanço a cabeça, incrédulo. — Melhor viver banido pela
sociedade e pela própria filha, taxado de pedófilo? — Dou risada baixinho e aperto a lâmina um pouco mais sobre a língua de Bennings, fazendo-a sangrar. Ela grita um pouco mais, abrindo e fechando os olhos de exaustão e medo, mas não ousa se agitar, sabendo que um movimento errado pode arrancar sua língua.
Emerson não tem nenhum contra-argumento.
— Está olhando para mim, sr. Emerson? — O homem me encara do chão, lutando contra a dor. — Diga o que vê quando olha para mim. Seja completamente sincero. Não vou lhe fazer mal por dizer a verdade.
Os olhos de Bennings vêm e vão de mim para Emerson, mas ele está perto demais do chão para que ela o veja.
O homem parece perplexo com a pergunta, e desconfiado mesmo assim. Ele demora um momento, mas finalmente começa a gaguejar.
— V-você é um homem justo. Olho para cima, com aborrecimento e
decepção.
Dorian ri atrás de mim. — Caralho, essa é boa. Ele está
sendo bonzinho. Pode deixar que eu dou uma resposta sincera.
— Não perguntei para você — digo, sem olhá-lo.
— Bom, só estou dizendo, se quiser a verdade, é só falar comigo. — Ele ri de novo e diz em voz baixa: — Um homem justo. Do caralho.
Olho só para Emerson. — Eu disse que queria a verdade. — Mas... essa é a verdade. Profundamente irritado, solto a língua
de Bennings, que geme e tosse, sugando a saliva que se acumulou na boca e que ela não conseguia engolir.
— Diga a verdade, sra. Bennings. — Eu sei que ela é a única que vai dizer. — O que vê quando olha para mim? É a sua chance de desabafar sem qualquer consequência.
Bennings abre um sorriso cheio de ódio.
— Você é um doente do caralho, é isso que você é. Um psicopata. Um demente. — Ela cospe no chão outra vez. — Aposto que corta as pessoas em pedacinhos para se divertir, não corta? Quando olho para você, vejo um homem que não bate bem da bola. Um doente mental do caralho.
Sorrio delicadamente e dou um passo para longe dela.
— O que vocês estão vendo, na verdade, é um homem criado por gente como vocês. O mal personificado, que anda à solta pela sociedade, pingando veneno na língua dos inocentes. Vocês desfiguram, violentam e destroem a luz daqueles que ainda são jovens demais para controlar os próprios caminhos, tirando a luz deles e deixando só as trevas. — Eu. Izabel. Cassia. — Vocês são uma infecção. Um tumor maligno. E a senhora tem razão, sra. Bennings, eu sou um doente mental do caralho. Me deleito com o que faço. Sinto vontade de fazer. E nunca vou parar, porque um doente mental do caralho que sente prazer em torturar pessoas como vocês, que me deixaram deste jeito, é a única coisa que consigo me imaginar sendo. — Enfio a faca na mão sadia de Bennings até atravessar o osso, os tendões e a madeira do braço da cadeira.
— POOOOORRAAA! — grita ela. Emerson também grita, estendendo
uma das mãos para ela, mas ainda incapaz de se mover.
Despreocupadamente, dou um passo para trás, saio do campo da câmera escondida e me viro para Dorian.
— É melhor você esperar no carro — digo a ele.
— Não precisa me dizer duas vezes — responde Dorian, enfiando a arma na parte de trás da calça e indo para a saída.
— Jesus! — Eu o ouço dizer, enquanto se afasta. — Preciso trocar de parceiro.
A porta de metal se fecha atrás dele, e olho para Bennings e Emerson, que sabem que a noite acaba de enveredar por um caminho infeliz.
Não perco tempo e ponho as mãos à obra.
CAPÍTULO VINTE E SEIS Fredrik
— Como ela está? — pergunto para Greta ao telefone, sentado em meu carro no aeroporto, depois de chegar a Baltimore.
— Bom, pelas imagens do vídeo, está ótima — diz Greta. — Mas não estou gostando disso, sr. Gustavsson. Cassia sabe que estou aqui e deve estar confusa por eu ainda não ter descido para falar com ela.
— Ela vai entender.
Greta hesita, provavelmente organizando as palavras que quer dizer, mas em vez disso pergunta:
— O senhor vai voltar logo? — Sim. Já estou na cidade. Preciso
cuidar de umas coisas e depois vou para esses lados. Chego até a meia-noite.
— Sim, senhor.
É isso.
Chegou o momento em que preciso tomar uma decisão. Não posso voltar para aquela casa enquanto não resolver. Não posso, porque bastará bater os olhos nela que minha consciência, minhas emoções e minhas decisões serão ditadas por Cassia, e toda a razão vai me abandonar.
Minhas mãos apertam o volante enquanto olho a noite fria pelo para-brisa, a fumaça rodopiando do escapamento dos carros. Vejo pessoas entrando e saindo do estacionamento do aeroporto, puxando as malas com rodinhas pela calçada polvilhada de neve. Executivos. Casais voltando das férias ou chegando para passar as festas com a família. Todos rituais normais, feitos por pessoas normais. Nunca sonhei em ser como essas pessoas. É preciso saber como é uma vida normal para sentir falta dela e sonhar em tê-la de novo.
A única vida de que sinto falta é da que eu tinha com Seraphina.
Saio do aeroporto e me vejo na mesma lanchonete em que estava algumas noites atrás, e pela mesma razão: não consigo ir para casa. E a mesma garçonete que me atendeu naquela noite também está ali. Ela se aproxima com um sorriso branco radiante, seios médios e os longos cabelos escuros presos em um rabo de cavalo na nuca.
— Já de volta? — pergunta, segurando um bloco de pedidos na palma da mão. — Posso trazer um café, para começar?
— Sim, obrigado. — Dou um sorriso discreto e estendo os braços sobre a mesa.
Olhando-a se afastar, estudo o formato perfeito de seu corpo, a curva de violão, o traseiro redondo, a pele nua da nuca, onde fios cor de chocolate escaparam do rabo de cavalo.
Mas só consigo ver Cassia. Antes que a garçonete volte com o
café, já saí da lanchonete e estou indo para casa.
Passa um pouco das dez da noite. Duas luzes são visíveis no andar de cima — a da cozinha e, provavelmente, a tv ligada na sala. Olho para a casa por muito tempo, pensando em Cassia. Em Seraphina. Em como tudo isso foi acontecer.
Tomei uma decisão.
Vou ajudar Cassia. Não importa o que for preciso, vou ajudá-la a melhorar. Durante a volta para casa, lembrei o que li nos arquivos que Izabel me deu:
O tratamento para ajudar Carrington não terá sucesso se a personalidade tratada não for a da própria Carrington.
Mas Cassia está aqui já faz um ano — mais de um ano, porque estava vivendo como seu verdadeiro eu havia algum tempo, ganhando a vida em Nova York. Isso deve significar alguma coisa. Deve ser uma boa notícia. Darei a ela os melhores cuidados do mundo.
Vou ajudá-la.
Saio do carro para o ar frio, andando depressa pela calçada até a varanda. Mas, antes de enfiar a chave na fechadura, meu instinto começa a sofrer uma pane. Greta não apareceu espiando em nenhuma cortina enquanto fiquei em frente à casa, dentro do carro ligado. Não vi a sombra dela se movendo na frente das luzes. Ela não está ansiosa para abrir a porta.
O fundo do meu estômago se revira em um nó.
Minha boca fica seca. Meu coração está pesado. Abro a porta com cautela e espio o
interior da casa mal iluminada, achando seu silêncio macabro. Apenas o volume baixo da TV na sala faz algum barulho.
— Greta? — chamo, receoso. Nenhuma resposta.
Então ouço canos rangendo e reconheço imediatamente o barulho do chuveiro sendo fechado. Soltando um suspiro profundo de alívio, finalmente fecho a porta e vou para a cozinha, deixando as chaves do carro no balcão. Tiro o longo casaco preto e deixo-o no encosto de um banquinho. Depois, apoio as mãos no balcão e baixo a cabeça, olhando para o tampo de mármore preto. — Achei que você nunca fosse voltar. — Ouço a voz de Cassia atrás de
mim.
Levantando a cabeça lentamente, eu me viro e a vejo parada na porta da cozinha, vestindo apenas uma de minhas camisas sociais. Seus longos cabelos louros estão molhados, grudados nas costas.
Mas tem algo muito errado nisso. Tudo está errado, e aquela voz no fundo da minha cabeça ruge.
Estou desconfiado dela. Estou confuso, chocado, preocupado — um leque de emoções me mantém imóvel, com as mãos ainda apoiadas no balcão, os ombros rijos como pedra.
Ela se aproxima de mim, e ainda não consigo me mexer. Então ela passa por mim e dá a volta no balcão.
— Cadê Greta? — pergunto com cautela.
Cassia abre a geladeira e olha lá dentro, mas tenho a sensação de que isso não tem nada a ver com qualquer interesse real pelo que tem no seu
interior.
— Esse era o nome dela? — pergunta, tão casualmente que meus nervos ficam à flor da pele.
Então ela fecha a geladeira com uma cerveja na mão e me olha diretamente nos olhos. Abrindo a tampa na borda do balcão, ela encosta a garrafa nos lábios e toma um pequeno gole, sem tirar os olhos dos meus.
— Cadê a Greta, Seraphina? — pergunto mais uma vez, e inspiro profundamente, tentando manter o semblante calmo.
Seraphina sorri, mas é um sorriso casual e inocente, não perverso.
Ela põe a cerveja no balcão. Finalmente endireito as costas e
baixo as mãos.
— Senti tanto sua falta, meu amor — diz ela, e isso estraçalha o meu coração. — Não sei como você me achou, ou o que eu estava fazendo lá embaixo com uma corrente no tornozelo, mas você me achou direitinho, eu sempre soube que acharia.
Ela volta para o meu lado do balcão e para perto de mim. O cheiro de sua pele é inebriante e familiar, sua proximidade é suficiente para me fazer querer desistir, empurrá-la com violência contra a parede e mergulhar dentro dela.
Meu coração está se partindo. Engulo em seco.
— Sim, eu achei você. — Mas é só isso que consigo falar.
Seraphina chega mais perto, apoiando as mãos em meu peito, e seu calor atravessa a camisa, chegando à minha pele.
— Eu ia fugir — diz ela, em voz baixa, pousando lentamente a cabeça em meu coração. — Eu ia embora, mas estou cansada de fugir, Fredrik. Só quero ficar com você de novo. No meu lugar.
Meus braços se fecham ao redor de seu corpo. Nem reparo, até olhar para baixo e vê-los ali.
Fecho os olhos suavemente e a recebo, toda ela, porque faz muito tempo que não a sinto tão perto de mim, nem posso inalar seu aroma e sentir o calor de seu corpo contra o meu.
Mas me obrigo a voltar à realidade bem rápido.
Eu me afasto dela com delicadeza. — O que foi? — pergunta ela, me
olhando com a cabeça levemente inclinada.
— Cadê a Greta?
— Está no porão — diz, como se isso não importasse muito. Então sorri e pega minha mão. — Vem comigo, amor. — Ela me puxa, e eu a sigo, relutante, pela sala, onde a televisão brilha contra as paredes escuras, indo para o quarto.
Aquela voz dentro de mim está gritando, mas continuo a bloqueá-la, perplexo, empolgado, arrependido e aliviado demais para fazer qualquer outra coisa.
Seraphina praticamente dança para dentro do quarto.
Ela para ao lado da cama, de onde me olha enquanto move os dedos pelos botões da camisa que está usando, abrindo-os. Então fica diante de mim, nua, a camisa amontoada ao redor dos pés descalços.
Balanço a cabeça.
— Não — digo, dando um passo para trás. Eu a quero. Quero-a mais do que qualquer coisa, mas minha consciência está me enchendo de porrada. — Não vou fazer isso com você, Seraphina.
— Por que não? — Ela se aproxima de mim, balançando os quadris esbeltos de uma forma sedutora, como uma serpente, da maneira que somente Seraphina consegue fazer.
Passando as pontas dos dedos pelo meu peito, ela procura meus botões, mas seguro suas mãos e as afasto.
— Você pode me cortar, amor — murmura ela, virando de costas para mim, para que eu veja as cicatrizes que fiz. Só de imaginar, fico de pau duro. — Eu sei que já faz muito tempo. Como você aguentou?
Eu me afasto dela, quando na verdade o que quero é me entregar, senti-la debaixo de mim de novo, saborear seu amor por mim mais uma vez.
Mas não posso. Tudo o que vejo é Cassia. Talvez sejam os cabelos compridos e louros, ou o fato de ela estar sem maquiagem, não sei, mas só vejo Cassia. E eu jamais poderia machucá-la assim.
— O que você tem? — pergunta Seraphina, começando a ficar impaciente.
Seus olhos castanhos e torturados examinam os meus, então ela se aproxima, com a boca curvada para baixo e a expressão cheia de remorso.
Não posso fazer isso. — Fredrik?
— Eu... Seraphina, eu não posso fazer isso. — Levanto as mãos, enfio os dedos em meu cabelo e os mantenho ali. — Você me traiu. — Sinto a voz ficando mais alta, a raiva dentro de mim se tornando mais forte. — Eu amava você. Você era tudo para mim. Meu anjo das trevas. Minha salvação. Minha sanidade. — Sou eu que tenho olhos torturados agora, eu sei. Olho bem para ela. — Procurei você por seis anos. SEIS ANOS!
Tiro as mãos da cabeça e cerro os punhos à frente do corpo.
Ela se aproxima ainda mais, as mãos também diante do corpo, estendendo-as para mim com seus passos lentos e cautelosos.
— Eu sei, Fredrik... Eu sei, e nunca vou conseguir me perdoar.
— Você me traiu! — Sinto meu rosto se contorcendo de raiva.
— Eu sei! — Os olhos de Seraphina começam a brilhar, úmidos. — Mas eu traí você porque o amava! Não por amar outra pessoa!
— VOCÊ ME DESTRUIU, SERAPHINA! — Minha voz ecoa pela casa.
Ela se joga em meus braços. — Mas eu amo você! Sempre amei!
Por que não pode me perdoar? — Com os braços dobrados entre nós, ela me agarra desesperadamente pela camisa. — Se você me amava tanto, por que não conseguiu me perdoar?!
— EU PERDOEI! — Pensei tê-la repelido, mas acho que foi só em pensamento. Em vez disso, agora a estou abraçando. — Eu perdoei você há muito tempo, Seraphina. Passei anos dizendo a mim mesmo que, quando a encontrasse, eu a mataria. — Lágrimas caem dos seus olhos e escorrem pelas bochechas. — Mas eu sabia, a parte mais profunda do meu ser sabia, que eu não seria capaz disso. Eu teria torturado você. Sim, teria feito isso. Mas não conseguiria matar.
Suas mãos seguram meu pescoço, e seu toque faz um arrepio quente atravessar meu corpo, como se eu tivesse engolido uma grande dose de uísque.
— Mas eu estou aqui agora — diz ela, olhando em meus olhos com toda a sua paixão sombria, seu amor e sua sinceridade, todas as coisas que desejei por tanto tempo. — Estou aqui agora, e podemos ficar juntos de novo. A gente pode voltar a ser como era. — Ela agarra minha camisa com mais força, para enfatizar. — A gente foi feito um
para o outro, Fredrik. Não existe mais ninguém no mundo como nós. Separados, vamos morrer sozinhos. Juntos, do jeito que fomos feitos para ficar, podemos ser felizes de novo.
Um anjinho em meu ombro me diz para fazer a coisa certa, por mais saborosa que a coisa errada seja, e vejo Cassia de novo. O rosto de Cassia está diante de mim, falando com os lábios deliciosos e venenosos de Seraphina.
E sei que nada jamais poderá ser do jeito que era.
Finalmente, consigo me desvencilhar dela, balançando a cabeça
negativamente não só para as palavras que saem de sua boca, nas quais quero acreditar mais do que tudo, mas também para mim mesmo, por pensar demais nelas.
Seus olhos castanhos brilhantes se estreitam, desconfiados.
— Quem é? — pergunta ela, com a voz ácida.
Atordoado pela mudança repentina de atitude, eu só olho para ela.
— Quem é o quê? — pergunto, por — Era... — Ela afasta a cabeça,
franzindo as sobrancelhas. — Quem era aquela velha? Você me esqueceu e me trocou por uma velha?
— Não — respondo, com as mãos levantadas, tentando acalmá-la.
Mas fico atordoado de novo quando, em vez de gritar, ficar furiosa e me acusar, ela chora.
Seraphina cai de joelhos, cobrindo o rosto com as mãos.
— Sinto muito, meu amor — diz ela, com a voz trêmula e torturada. — Eu não devia ter deixado você. Não devia ter me entregado para aquele homem... nem lembro mais o nome dele.
— Marcus — digo para lembrá-la, e a amargura que sinto não é menor do que há seis anos.
— A culpa é minha. Eu tinha medo do amor. Tinha medo de você.
Eu me ajoelho no chão ao lado dela e a puxo para mim, abraçando-a. Essa não é a Seraphina que eu lembro. Não é a mulher por quem me apaixonei. Seraphina era forte e orgulhosa, e a única vez que a vi chorar foi na noite em que ela matou aquela mulher em minha cadeira de interrogatório, porque achou que fosse outra pessoa.
Porque achou que a mulher fosse Cassia.
— Seraphina? — murmuro em seu cabelo úmido. Eu a abraço mais forte e acaricio suas costas. — Não foi Greta. Eu não me apaixonei por Greta.
Seraphina levanta a cabeça do meu braço e me olha nos olhos.
Seguro seu rosto com as mãos e me curvo, beijando-a delicadamente na testa.
Ela parece confusa. Preocupada. — Eu me apaixonei por Cassia. Seu corpo todo enrijece. Seus olhos
ficam arregalados e imóveis, como se ela tivesse visto a coisa mais traumatizante de sua vida.
Então me empurra e se põe de pé de um salto tão rápido que só consigo saltar também.
— CASSIA?! — ruge ela. — Você ama Cassia?!
Eu a seguro pelos antebraços. — SIM! — grito em seu rosto furioso,
marcado pela pior traição. — Você é a Cassia! Não percebe isso?! Por favor, me diga que entende! — As lágrimas ardem no fundo da minha garganta e dos meus olhos, mas não permito que escorram.
Eu a sacudo de novo, como se assim pudesse fazer Cassia vir à tona, mas, bem no fundo, sei que a perdi.
Eu a perdi.
Perdi as duas, todas as partes da única mulher que já amei ou que vou amar.
Eu a perdi ...
— Ela me traiu, Fredrik! — Seraphina joga o corpo contra o meu, mas eu a seguro. — Passei anos em uma porra de um hospício por causa dela!
— Você é ela! — Aperto seus braços com tanta força que sei que devo estar machucando. — Você. É. Cassia! — Quero fazê-la entender. Só quero que ela seja normal, que seja... Ela nunca poderá ser normal. — Não faça isso comigo de novo — peço, com a voz angustiada, embora nem saiba o que estou dizendo. É o meu coração falando, não minha mente.
Ela se desvencilha de mim e corre para a porta do quarto, mas eu a seguro pela cintura antes que ela se afaste e volto a imobilizá-la em meus braços.
— Me solta! — grita ela. — Não. Só se me disser quem você
é. — Eu a seguro forte, pressionando suas costas contra meu peito, meus braços apertando sua silhueta quente e nua, meus lábios perto do seu ouvido.
Quero chorar.
— Você sabe quem eu sou! Agora me solta!
— Me diz seu nome. — Não consigo abrir os olhos. Só quero saborear este momento com ela.
Só quero saboreá-lo.
Minhas mãos tremem. Meu coração está vivo de novo, mas sei que não por muito tempo. Ele tem medo. Medo do que vai acontecer quando souber que ela se foi para sempre, quando cada parte dela tiver ido embora para sempre.
Eu a abraço com mais força, agarrando seu corpo nu junto ao meu como se fosse a última vez. As lágrimas estão ardendo. Ardendo, caralho!
— Eu sou Seraphina! Você me conhece, Fredrik! Sou sua esposa! A única mulher que já amou você! — Lágrimas escorrem por seu corpo, e sua resistência começa a diminuir. — Por favor...
De repente, ela se rende, se entregando não só a mim, mas à dor que minhas palavras causaram. Seu corpo escorrega.
— Por que você foi amar logo essa garota? — indaga ela, em meio a lágrimas incontroláveis. — De todas as pessoas do mundo, por que Cassia?
Eu a abraço forte, e ambos estamos sentados no chão, ela ainda em meus braços, mas agora querendo ficar ali. Afago seu cabelo e beijo sua têmpora, e aquelas lágrimas do caralho continuam ardendo.
— Porque ela é você — digo baixinho, ao lado do seu rosto. — E porque você é ela. Eu posso ajudar, se você deixar, mas você precisa libertá-la. Precisa libertar Cassia.
Por favor, liberte-a... — Eu matei aquela mulher no porão
— diz ela, falando de Greta, e, embora eu pressentisse que ela tivesse feito isso, é difícil ouvir a confissão. — Matei porque ela não queria me soltar. — Ela funga, engolindo as lágrimas. — Eu a estrangulei com a corrente presa em meu tornozelo. E depois peguei a chave do bolso dela.
— Não precisava ter matado — digo, com calma, mas nem um pouco calmo por dentro.
Continuo afagando o cabelo dela. — Precisava, sim.
— Por quê? Por que precisava matar?
Ela se vira, segurando as mangas da minha camisa.
— Porque ela ficava me chamando de Cassia. — Sua voz está calma e distante, como se ela estivesse lembrando. — E porque não queria me soltar.
Ela me encara, e preciso de todas as minhas forças para não me debulhar em lágrimas.
— Eu amo você, Fredrik. Sempre amei. Você é a única pessoa deste mundo que já amei.
Engulo as lágrimas e a aperto contra mim. Ela chora no meu pescoço. Revejo os dois anos que passamos juntos, dois curtos anos que pareceram uma eternidade. Como ela me ajudou, me moldou, me tornou um homem melhor e me amou. Imagino o quanto ela me amou.
— Me diga seu nome — peço novamente, esperando que desta vez dê certo, que ela entenda. — Só me diga seu nome, e tudo vai ficar bem.
O silêncio entre nós parece uma eternidade enquanto espero pela resposta. Meu coração parou de bater. Minha respiração está presa nos pulmões.
Por favor, liberte-a... — Meu nome é Seraphina —
responde ela, e meu coração se dissolve em trevas, minha respiração sai em um suspiro prolongado de angústia.
Pegando o punhal que está a poucos centímetros de mim, debaixo da cama, e com o coração negro e pesado, eu o posiciono entre nós e cravo a lâmina no peito dela. As lágrimas ardentes finalmente eclodem, e dou um grito que eu nem sabia que era capaz de dar. Sinto calor de seu sangue escorrendo em minha mão e meu peito, mas tenho medo de olhar. Pela primeira vez em minha vida adulta de interrogador e torturador, não quero ver o sangue, porque dói demais.
Sua cabeça cai para trás, balançando sem firmeza sobre o pescoço, enquanto me encara. Um fio fino de sangue escorre de um canto da boca. Eu me curvo e o beijo enquanto soluços sacodem meu peito.
Não choro assim desde que era menino.
— Eu lamento tanto... lamento tanto que tenha que ser assim — digo, ofegante e com a garganta ardendo. — Você é a única morte que vou lamentar até o dia em que eu lhe fizer companhia.
Ela ergue a mão, sem forças, e toca a lateral do meu rosto. Faço o mesmo, tirando a mão do punhal e tocando sua face. O sangue em meus dedos mancha sua pele.
Ela engasga e cospe mais sangue. — Não lamente — diz ela, embora
não saiba quem está falando. — Você me salvou.
— Cassia? — Não consigo enxergar através das lágrimas.
Ela sorri fracamente e acaricia meu lábio inferior com os dedos, e sei que é ela. Cassia.
Beijo seus lábios ensanguentados e a abraço mais forte, sentindo o cabo do punhal se apertando contra mim. Seus olhos estão ficando mais pesados; o corpo, mais fraco; os braços, mais flácidos. Afasto o cabelo úmido de sua testa, onde mais sangue mancha seu rosto, mas não consigo parar de tocá-la, de acariciá-la, de estar ali com ela em seu último momento. Nosso último momento.
— Eu sempre amei você — murmuro contra seus lábios. — Amo tudo em você, Cassia. E sempre vou amar.
Sua mão se solta do meu rosto e sua cabeça pende inerte do pescoço. E, quando vejo os olhos sem vida fitando o teto, engasgo com lágrimas ardentes e aperto seu corpo contra o meu, chorando até o peito doer.
CAPÍTULO VINTE E SETE Izabel
Chego com os limpadores à casa de Fredrik, e a porta está destrancada. Recebi uma ligação dele há duas horas.
Ele parecia fora de si.
— Fredrik, o que está acontecendo? — perguntei, surpresa em ter notícias dele tão cedo.
Seguiu-se o silêncio.
— Fredrik?
— Preciso que você venha para cá — disse ele, com uma voz tão baixa e distante que me perguntei se não estaria em estado autômato.
— Está tudo bem?
— O que está acontecendo? — indagou Victor, rolando na cama e passando o braço pela minha cintura.
Afastei os lábios do telefone e me virei para Victor.
— Não sei, tem alguma coisa errada — falei em voz baixa, sem conseguir esconder a preocupação e a dor na voz, mesmo tentando. — Preciso ir vê-lo.
Voltei a falar ao telefone enquanto Victor ligava o abajur da cabeceira.
— Fredrik — falei, com urgência na voz —, preciso que você me conte o que está acontecendo. Vou aí agora mesmo, mas preciso saber para o que devo estar preparada. Se for esse o caso.
Senti a cama se mexer quando Victor se levantou e atravessou, nu, o quarto até o banheiro.
Ainda sem ouvir a voz de Fredrik do outro lado, me sentei na cama e joguei as pernas para fora do colchão.
— Eu a matei — anunciou Fredrik, e meu coração parou. Estava chocada, sobretudo por causa dele.
Eu me levantei da cama com uma exclamação de espanto.
Victor estava me encarando ao voltar do banheiro.
— Diga a ele que você vai chegar logo — falou, balançando a cabeça.
Agradeci a Victor com o olhar e falei ao telefone:
— Fredrik, eu vou chegar logo. Fique aí. Não saia daí, está bem? Prometa que não vai sair.
Nada.
— Fredrik?
Meus olhos não desgrudavam dos de Victor, e sei que deviam estar cheios de preocupação e medo. Medo por Fredrik.
A linha ficou muda.
Por muito tempo, fiquei com o telefone encostado no ouvido, achando que talvez ele estivesse apenas em silêncio. Finalmente, Victor o tirou da minha mão, e isso me arrancou de meus pensamentos preocupados e paranoicos. Fredrik ia se machucar? Ele seria capaz de fazer alguma besteira? Os pensamentos deixavam meus nervos à flor da pele.
— Vista-se e vá até ele — disse Victor, baixinho. — Vou mandar um carro encontrar você lá.
Assenti depressa, depois me vesti correndo. E, antes de sair, Victor me parou, me beijou e disse:
— E, quando você voltar, acho que é hora de me contar essa história de Seraphina Bragado estar no porão dele.
Ele sabia o tempo todo. Fiquei ali, paralisada diante dele,
preocupada com o que estaria pensando de mim, de Fredrik, e de mim e Fredrik. Eu estava com medo. Não sei por quê, mas estava. Talvez porque soubesse que jamais, por mais que eu me esforçasse, jamais conseguiria esconder algo dele.
Victor me beijou na boca e afastou o cabelo do meu rosto.
— Eu entendo. Agora vá ajudá-lo e me mantenha informado.
Assenti.
E saí.
Chegando à casa de Fredrik sem fazer barulho, olho ao redor da soleira da porta, antes de entrar. A casa está quase um breu, apenas o clarão azul pálido do luar entra por algumas janelas. Está silenciosa. Muito silenciosa. Nem
uma torneira pingando, o zumbido da geladeira ou o aquecimento central podem ser ouvidos. Mas ouço meu coração, bombeando sangue ansiosamente.
Dois dos homens de Victor entram na casa atrás de mim.
— Esperem — ordeno, levantando a mão. — Fiquem na varanda até eu mandar vocês entrarem.
Parados na entrada, eles assentem e voltam para fora, deixando a porta entreaberta.
Caminhando cautelosamente pela casa, fico imóvel na entrada da sala. Fredrik está sentado no sofá, com as longas pernas dobradas e os braços sobre as coxas, as mãos entre elas. Suas costas estão arqueadas, os ombros, rígidos.
Ele está olhando para o chão diante de si. Olho ao redor e percebo que a mesinha de centro está fora do lugar. Foi afastada para o lado, encostada em uma poltrona de couro.
— Fredrik, sou eu, estou aqui — chamo-o em voz baixa.
Eu me aproximo com cuidado. Meu coração diz que ele precisa de mim, mas também que não está em seu juízo perfeito e que pode ser perigoso.
Ele não fala.
Chego um pouco mais perto. Meu coração dói por ele.
— Eu estou aqui...
— Preciso que alguém a tire da casa — diz Fredrik, sem me olhar nem mover um músculo do corpo além da boca. — E também o corpo no porão.
Quero perguntar de quem é “o corpo no porão”, mas não é a hora certa para isso.
Faço que sim, embora ele não esteja vendo, e chamo os limpadores — homens cuja missão é limpar nossas cenas do crime —, que estão na varanda.
— Entrem! E andem logo! — Quando eles aparecem na porta da sala, acrescento: — Tem dois cadáveres. Um no porão, o outro não sei onde, mas encontrem e tirem os dois daqui.
Eles assentem e saem depressa para cumprir minhas ordens.
Eu me viro para Fredrik, me aproximo mais, minhas botas fazendo um barulho suave na madeira do assoalho.
Finalmente chego ao sofá, tiro o sobretudo branco e o deixo sobre a almofada ao meu lado, ao me sentar. Fredrik continua sem olhar para mim. Ele não fala. Não se move. E não sei o que dizer, porque de fato não há o que eu possa falar para que ele se sinta melhor.
Ficamos em silêncio por vários minutos, enquanto os limpadores andam por outras partes da casa. Por sorte, eles têm o bom senso de não carregar os corpos pela sala, e eu os ouço saindo por uma porta nos fundos.
Olho para Fredrik, imóvel como uma estátua, e sinto como se tivesse perdido o meu melhor amigo; sinto que sua mente se foi, porque seu coração se foi, e isso me deixa arrasada.
Será que ele vai voltar a ser como era?
Algo me diz que não.
Uma espécie de escuridão o consumiu por inteiro, por dentro e por fora, algo tão horrível, impiedoso e implacável que me enche de sofrimento, e me sinto indefesa da mesma maneira como me senti quando estava aprisionada por Javier, no México. Quero estender a mão e tocar o braço dele, mas estou com medo demais.
Por que estou com medo, porra? Eu o toco mesmo assim, aliviada por
Fredrik não mover o braço nem me repelir. Mas ele tampouco está aceitando o gesto, eu sei.
Eu me pergunto se ele sequer notou. — Eu teria feito isso por você —
digo, com cautela. — Não precisava ser você, Fredrik.
Ele não responde.
— Você fez o que precisava ser feito — insisto, com ainda mais cautela, pois sinto que estou cruzando uma fronteira perigosa ao usar essas palavras. — Você deu paz a ela. Eu acredito nisso. — Faço uma pausa e acrescento: — Se fosse comigo, era o que eu ia querer.
— Eu sei que dei paz a ela — declara Fredrik, finalmente, mas ainda sem se mexer.
Tentando confortá-lo, acaricio seu braço até a altura do cotovelo.
— Eu posso ficar aqui — digo em voz baixa — se você precisar. Posso dormir no sofá.
— Não. — Ele balança a cabeça um pouco e finalmente move o braço para tirar minha mão do lugar. — Eu vou ficar bem. Só precisava de alguém para tirar os corpos.
— Entendo — digo, cedendo, embora ache que Fredrik não esteja nem um pouco bem. — Talvez você devesse ir...
Sua cabeça se vira de repente e ele finalmente me encara. A expressão sofrida em seu olhar me deixa tensa.
— Já disse que não.
Balanço a cabeça.
Mas, depois de alguns segundos, afasto a parte de mim que quer ceder ao que ele está dizendo e falo o que realmente acho:
— Eu sei que você a amava. Os dois lados dela, eu sei. E sei que você acha que nunca vai conseguir aceitar o modo como tudo acabou, ou que você vai ficar sozinho para sempre, porque pensa que não tem mais ninguém no mundo como ela. Eu sei.
Paro, esperando que ele já tivesse me interrompido e me mandado calar a boca e ir embora, mas ele não oferece qualquer resposta, e não sei o que sentir a respeito disso. Devo ficar aliviada porque ele está me escutando? Apreensiva porque não está? Preocupada com o que está passando por sua cabeça, algo tão devastador que preciso ficar surpresa por ele ainda não ter se revoltado contra mim?
Como ele continua sem demonstrar qualquer sinal de protesto, acrescento:
— Isto pode parecer loucura... Na verdade, sei que vai parecer loucura, mas me senti assim quando matei Javier.
Nada além de silêncio. — Depois de tanto tempo com Javier,
não importava que ele me estuprasse ou me mantivesse em cárcere, porque ele era tudo o que eu conhecia. Fiz uma lavagem cerebral em mim mesma e acreditava que só ele seria capaz de me amar, que só Javier iria querer alguma coisa comigo. E, quando o matei, senti que tinha matado minha outra metade. Se não fosse por Victor...
— Um dia Victor Faust ainda vai levar você para a cova, Izabel — interrompe ele, e fico chocada com suas palavras. Ele me encara. — Se você quer me ajudar, pode me ajudar mantendo isso na cabeça. De um jeito ou de outro, você vai morrer por causa dele, porque o ama.
Quero argumentar, discordar e dizer que ele está errado, mas sei que ele está sofrendo e não posso mudar o foco da conversa para mim. Não vou fazer isso.
Ele desvia o olhar.
— Diga para o Victor que aceito qualquer sentença que ele achar adequada para os meus ataques.
— Fredrik...
— Por favor, vá embora — diz ele, olhando para o chão. — Eu dou minha palavra de que vou ficar bem. Não quero que se preocupe comigo.
— Mas...
— Por favor, Izabel! — diz ele, rispidamente.
Fico de pé e olho para ele um momento antes de pegar meu casaco no sofá.
Nem me dou ao trabalho de vesti-lo e então me afasto.
Parando na porta da sala, de costas para ele, digo em tom neutro:
— Eu vou ajudar você. Fazer o que fiz com Kelly Bennings. Pelo tempo que for necessário.
Mais uma vez, ele não responde, e, com o coração pesado, saio da casa para a varanda enquanto os limpadores estão fazendo mais uma viagem pelos fundos. Mas nós três paramos na calçada quando um estrondo, parecido com um vidro se quebrando, preenche a noite, vindo de dentro da casa de Fredrik. Depois, mais vidro. E o som de móveis se chocando contra as paredes.
Sinto que os limpadores estão me olhando, mas não consigo tirar os olhos da casa onde Fredrik está sentindo a pior dor que já sentiu.
CAPÍTULO VINTE E OITO Fredrik
Destruo cada peça da mobília, jogando poltronas e arrebentando mesas contra as paredes, como se estivesse negando o direito de essas coisas existirem se Cassia não pode existir. Se Seraphina não pode existir. Afasto tudo o que encontro no caminho com uma força violenta e rancorosa.
Grito a plenos pulmões antes de pegar a última poltrona que resta e jogá-la contra a TV. O vidro se estilhaça e o que resta da estrutura cai no chão, espalhando cacos por todo o assoalho.
Caio depois disso, incapaz de manter o equilíbrio, e fico sentado no chão da sala, rodeado por destroços — de objetos, mas também do que resta de um homem. Sentado desconsoladamente com os joelhos dobrados, faço a única coisa que o destino me permite neste momento: choro com as mãos no rosto, deixando que a dor faça o que quiser comigo. Da mesma forma que chorava quando era só um menino, depois de ser espancado, estuprado e subjugado. Só que, desta vez, a dor que sinto por dentro é mil vezes mais insuportável.
Escuridão. Tudo o que vejo é escuridão, embora meus olhos estejam bem abertos ao olhar para o chão. E nessa escuridão do caralho ainda consigo ver o rosto dela. Seus olhos castanho-claros e lábios carnudos. Sua pele macia e sedosa e seus traços quase perfeitos. Os cabelos compridos e louros. Os cabelos pretos e curtos. E sei que ela vai assombrar minha alma pelo resto dos dias, não importa por quantos eu ainda tenha que sofrer.
E sei que mereço isso. Sem pensar mais, me levanto do chão
e corro para a cozinha, abrindo o armário debaixo da pia. Engatinhando, enfio metade do corpo porta adentro, afastando produtos de limpeza e outros materiais. Não encontro o que procuro, então fico de pé e faço o mesmo com todos os outros armários, jogando caixas de comida no chão da cozinha. Finalmente, no armário em cima do micro-ondas encontro uma lata de fluido para isqueiro e disparo pelo corredor com ela nas mãos, mas tropeço nos destroços e caio. Minhas costas batem na parede, pois minhas mãos amortecem o impacto com o chão, mas, assim que consigo controlar meu corpo outra vez, pego a lata do chão e sigo adiante. Abrindo a porta do porão, desço três degraus de cada vez, quase caindo novamente, mas chego ileso ao pé da escada.
Borrifo o fluido para isqueiro por cima de tudo, começando pela cama de Cassia, e, ao esvaziar o conteúdo, jogo a lata no chão e olho para ela sem me mover, até que minhas pernas ficam dormentes. Olho para a corrente estendida pelo chão e para o canto do quarto onde, ao voltar para casa, muitas vezes eu a encontrava sentada.
Soluços sacodem meu corpo, e não consigo controlá-los.
Afastando os olhos de tudo o que me faz lembrar dela, olho pelo quarto, procurando qualquer coisa que eu possa usar para atear fogo, e, como não encontro nada, torno a subir a escada. Mas volto para lá tão rápido que parece que nem saí.
A camisola fina e branca de Cassia forma uma pilha sedosa perto dos meus pés. Eu me abaixo e a seguro, querendo aproximá-la do rosto e inalar seu perfume uma última vez. Mas não o faço. Ponho fogo nela com o isqueiro e jogo o tecido, que queima depressa, na cama ensopada de fluido. Em segundos, o quarto é engolido pelas chamas.
E percebo, enquanto estou ali, olhando as labaredas lambendo as paredes, que encerrei um ciclo, e que não há mais volta.
CAPÍTULO VINTE E NOVE Fredrik
Dois meses depois...
Victor Faust tem um novo e elegante edifício nos arredores de Boston e está bastante orgulhoso dele, embora isso não seja perceptível em seu rosto inexpressivo. Espera, ele acaba de sorrir. Caminho ao lado dele até seu escritório particular, impressionado até
agora com o edifício, com todo o seu charme à la Velho Mundo: paredes originais de pedra, assoalhos de mármore restaurados e quadros impressionistas em grandes molduras decoradas. Com certeza é adequado para alguém como Faust, e devo dizer que, por mais que eu adore o estilo moderno e luxuoso, pode ser que me acostume com isso. Mas é um edifício especial para todos nós na nova Ordem, porque é o primeiro lugar onde iremos nos reunir e falar de negócios que parece mais uma empresa do que um
esconderijo em algum beco. Estamos expostos, de certa forma,
escondidos à vista de todos. Andam dizendo que Vonnegut se sente
ameaçado por Victor — por todos nós. E, embora ainda tenhamos que tomar cuidado a cada minuto de cada dia, estamos ficando em vantagem.
Às vezes acho que o único motivo para Victor ter decidido se esconder é Izabel. Ele faria qualquer coisa para mantê-la segura, mas é claro que não pode dizer isso a ela.
Entramos no escritório particular com paredes escalonadas e cobertas por estantes repletas de livros encadernados em couro, do assoalho ao teto. Uma grande mesa comprida ocupa o meio da enorme sala, e em volta há dezoito poltronas altas de couro escuro, oito de cada lado e uma em cada cabeceira. Na reunião de hoje, além de mim e Victor, estão presentes os de sempre: Izabel, Niklas, Dorian e até James Woodard, que Victor decidiu manter conosco como seu consultor oficial de informações. Woodard me conquistou aos poucos, admito. Dorian, nem tanto.
— Ora, vejam só quem está aí — comenta Dorian, de seu lugar, com um sorriso —, nosso maluco favorito.
Dorian finalmente foi remanejado para trabalhar com um novo membro da Ordem, que acho que talvez o despreze até mais do que eu — uma espiã altamente capacitada chamada Evelyn Stiles, que trabalhava para a CIA. Mas
ela ainda não foi testada de vez e não tem por que comparecer a esta reunião. James Woodard entrou no círculo mais depressa que o normal, mas confio no discernimento de Victor.
Eu me sento ao lado de Izabel. Ela sorri para mim, mas não diz uma palavra. Não conversamos muito desde a noite em que matei minha esposa, dois meses atrás, em Baltimore. Mas a distância que se abriu entre nós foi responsabilidade toda minha. Não posso deixar que ela se envolva em minha vida forma que quer, ou da forma que se envolvia. Não sou o mesmo homem que era quando Izabel me conheceu, ainda como Sarai. E, enquanto eu tiver controle sobre minha vida, é assim que as coisas vão continuar. Não quero amar ninguém — de nenhuma forma ou em nenhuma situação —, porque amar é ser controlado. Sempre vou gostar de Izabel, protegê-la e matar por ela, mas não posso me permitir amá-la, nem mesmo como irmã ou amiga. Não quero que ela acabe como todas as pessoas que já amei.
Apesar da distância que mantenho, ela continua teimando em querer me ajudar com interrogatórios e torturas “pessoais”, como Seraphina fazia.
Mas ela está muito enganada. Tenho outros planos para isso. Woodard sorri e desliza um jornal
sobre a mesa em minha direção, com a mão rechonchuda.
— Talvez você goste dessa notícia, senhor — comenta ele, sempre respeitoso, sempre morrendo de medo de mim.
Olho depressa para Victor, que está sentado à cabeceira da mesa, e então para o jornal, que foi dobrado na segunda página. Levo um instante para perceber que é de Seattle.
Correndo os olhos pelos textos e imagens, vejo duas pequenas fotos em um canto, lado a lado, de Kelly Bennings e Ross Emerson em uniformes
de penitenciária. O texto do jornal revela que, depois de um “ sequestro e interrogatório traumatizante e brutal executado por dois desconhecidos ”, o casal foi “ sentenciado a anos de prisão depois que provas incriminatórias em vídeo foram entregues ao departamento de polícia de Seattle, incluindo confissões detalhadas de seus crimes. ”
Eu me recosto na poltrona, cruzo as pernas e digo, indiferente:
— Estão recebendo o que merecem. Não olho para o jornal de novo. E
não penso mais nisso. — O motivo pelo qual eu trouxe
todos vocês aqui hoje — anuncia Victor, as mãos cruzadas à frente do corpo — é que tenho notícias importantes.
Ele tem a atenção de todos os presentes.
— Parece que Vonnegut juntou forças com a ordem de Sébastien Fournier, na França, e eles estão trabalhando juntos por alguma razão. — Ele ergue apenas o dedo indicador. — Acredito que todos vocês saibam muito bem qual é essa razão.
— Porque estão se cagando de medo — completa Niklas, sentado à esquerda de Victor, com um cigarro apagado pendurado nos lábios.
Dorian balança a cabeça loura em afirmação, sorrindo.
— Proponho que a gente acabe com isso de uma vez e passe o rodo em todos eles.
— Não dá para matar alguém sem encontrar a pessoa primeiro — lembra Izabel.
Vonnegut e Fournier têm se mostrado ariscos desde que Victor Faust desertou da Ordem.
— Isso não é bem verdade — digo. — Nós os estamos matando aos poucos, mas inexoravelmente. Matando os agentes que eram leais a eles e assumindo o controle dos que não eram.
— Sim, o sr. Gustavsson tem razão — diz James Woodard, e sorri do outro lado da mesa, com um pouco de admiração demais para o meu gosto.
Eu o ignoro.
— Sim, mas essa não é a notícia mais significativa que tenho para vocês — anuncia Victor, e todas as cabeças se viram na direção dele ao mesmo tempo.
Victor faz uma pausa. — Tenho razões para crer, e por
enquanto não vou revelar minhas fontes, que os serviços estratégicos dos EUA de alguma forma sabem de nossas operações. Não só estamos sendo caçados pela Ordem, mas talvez também pelo FBI e pela CIA.
— Como assim “talvez”? — pergunta Izabel, à direita de Victor, com o olhar cheio de preocupação. — E o que eles sabem, exatamente?
Todos, inclusive eu, queremos as mesmas respostas, por isso ninguém interrompe.
— O que eles sabem também é algo que vou manter em segredo, por enquanto — responde Victor, com a voz calma, sem olhar para ninguém em particular. — Não me surpreende que eles saibam de algumas coisas. Operações como as nossas, que continuam crescendo, não podem ser totalmente secretas. Na verdade, isso é impossível. Mas vou dizer que eles sabem o suficiente para me levar a crer que deve haver um espião infiltrado entre nós.
Olho para Woodard. Woodard olha para mim, até que entende por que o estou encarando, então se encolhe na poltrona e opta por olhar para a mesa. Izabel olha para Niklas. Niklas olha para Dorian e devolve o olhar de Izabel da mesma forma acusadora. Dorian olha para mim. Com certeza há um clima de muita desconfiança nesta mesa.
Todos olhamos para Victor, mas só com interrogações no rosto.
— Alguém desta mesa é um traidor? — pergunta Izabel.
— Bom, com certeza não sou eu, caralho — declara Dorian.
Woodard levanta as mãos gorduchas. — T-também não sou eu. Niklas tira o cigarro dos lábios e
relaxa na poltrona, jogando um braço por cima do encosto casual e calmamente.
— Olha, tirando o meu irmão — diz, com orgulho e confiança —, sou a última pessoa desta mesa que envolveria esse governo de merda em qualquer coisa. — Imagino Niklas cuspindo no chão para mostrar o tamanho de sua aversão pelo governo e pelos departamentos americanos de espionagem, mas ele não faz isso.
— Você é meu primeiro palpite — acusa Izabel, seus lindos traços se distorcendo em um sorriso irônico.
Niklas faz um gesto obsceno para ela. — Ah, quanta maturidade da sua
parte — desdenha ela. Victor inspira, e todos os olhos se
voltam novamente para ele. — Eu não disse que o infiltrado, se é
que realmente existe, está sentado a esta mesa. E, na verdade, é bem possível que Vonnegut, em uma última tentativa de se livrar de nós, tenha fornecido as informações para a CIA e o FBI. Eu tenho minhas suspeitas, mas o dilema é: se eles sabem como e onde nos encontrar, por que não atacaram?
— Boa pergunta — digo, e depois acrescento: — Se eles sabem, há quanto tempo você acha que sabem?
— Não tenho certeza — admite Victor. — Mas quero que todos vocês fiquem de olho em qualquer coisa suspeita. O que, evidentemente, vocês já fazem.
Dorian e Niklas dão risada. — Isso é o meu dia a dia — declara
Dorian.
Niklas assente, concordando. Victor muda de assunto. Um pouco
cedo demais, na minha opinião: — O próximo item do dia é uma
missão de cinquenta mil dólares em Miami. Vou indicar Evan Betts — ele olha para a esquerda — e Niklas.
Niklas não parece contente. — Você está me juntando com um
novato? — De fato, ele parece bastante ofendido.
Izabel, por outro lado, é toda sorrisos.
— Betts pode ser novato — explica Victor —, mas é bom. Quero saber mais do trabalho dele, e eu só junto novatos com alguém desta mesa, em quem posso confiar.
Niklas parece aceitar melhor agora, mas o sorriso de Izabel se transforma em uma careta.
A reunião continua por mais vinte minutos, e, quando chega ao fim, todos saem, menos eu e Victor, que pediu que eu ficasse.
Estou fora da ativa — por ordens de Victor — desde o que aconteceu há dois meses. Esperava uma sentença mais severa do que a “dispensa por problemas pessoais” que sinto ter recebido, mas Victor não viu o fato de eu manter Cassia em segredo como traição. Isso é só mais uma prova de que ele não é um líder tirânico, e sim um homem de consciência, embora com certeza se esforce para esconder isso.
Mas a dispensa para lidar sozinho com o que restou de minha vida não teve o efeito que qualquer um da “távola redonda” esperava. Não chorei, não aceitei a situação nem tive qualquer revelação. Não tirei qualquer fardo dos ombros, não fiquei relaxando sob o sol nem refleti sobre a vida me obrigando a ser mais positivo e seguir em frente.
Não, não fiz nada disso. Em vez disso, fiquei diante de um
espelho.
Nu. Ainda ensanguentado depois de torturar e matar um homem que liderava uma famigerada gangue em Detroit, fiquei diante daquele espelho enquanto a água do chuveiro esquentava e eu via a carcaça do antigo Fredrik me olhando no reflexo, com novas entranhas. Novas trevas. Novos demônios. Novas lembranças. Tudo novo. E, sim, segui em frente, mas não na direção da luz.
Aquele vislumbre finito de luz que experimentei com Cassia era uma ilusão.
— Preciso ser sincero com você — diz Victor, atrás de mim. — Não estou convencido de que você tenha voltado... ao normal.
Balanço a cabeça sutilmente em concordância, as mãos unidas atrás do corpo.
— E você está certo.
Victor anda lentamente ao redor da mesa, deixando seu lugar, também com as mãos às costas, como as minhas.
— Se você fosse qualquer outra pessoa — continua ele —, eu não correria este risco, mas tudo o que vou pedir é que se afaste das operações ao primeiro sinal de que alguma ação sua possa nos prejudicar. Posso confiar que você vai fazer isso?
Balanço a cabeça em concordância outra vez.
— Você tem a minha palavra. Victor olha para a parede, depois de
volta para mim, como se tivesse usado aquele breve momento para decidir o que diria a seguir.
— Tenho confiança em você, Fredrik, mas estaria me iludindo se acreditasse que você não está na fronteira entre a sanidade e a autodestruição. Já vi essa sua expressão antes... aliás, já a vi no espelho, uma vez.
Como são irônicas as coisas que vemos nesses perversos e zombeteiros pedaços de vidro.
— Eu perguntaria como é que logo você foi parar nessa fronteira — digo —, mas sei que não vai me contar.
Victor dá um sorriso fraco. — E você está certo — diz, no
mesmo tom neutro com que eu disse isso momentos atrás. — Apesar de aceitar a situação toda — explica Victor, deixando de sorrir —, preciso deixar uma coisa muito clara.
Não falo nada, apenas ouço. Essa é a parte em que Victor sai do papel de líder compreensivo e se torna o líder ameaçador.
— Izabel — eu sabia que ele ia começar pelo nome dela — enfiou na cabeça que vai — ele agita uma das mãos, como se estivesse esperando que o termo correto se materialize em sua língua — auxiliar você a encontrar pessoas para torturar, mas você e eu
sabemos que isso é inaceitável. Correto?
— Sim, você está correto — digo, assentindo. — Não preciso da ajuda dela e nem quero. Já fiz isso sozinho e posso fazer de novo. Se ela tentar me ajudar, vou dizer a ela que você vai ser o primeiro a saber.
— Eu agradeço.
Fico em silêncio, querendo fazer uma pergunta pessoal, mas sem saber se deveria sondá-lo.
Decido fazê-lo assim mesmo. — Você se incomoda por eu e ela
sermos tão íntimos?
— Não — responde Victor, com sinceridade. — Não do jeito que você talvez esteja pensando. Confio em Izabel a sós com você, e com qualquer homem, se é a isso que se refere.
— De certa forma, é isso, sim. Mas na verdade eu quis dizer em todos os sentidos. Ela escondeu coisas de você para me ajudar.
— Você é família para ela — declara ele. — Izabel nunca teve uma família de verdade. Fico feliz por você existir na vida dela. Pode oferecer coisas que talvez eu nunca consiga dar.
Balanço a cabeça uma vez, rejeitando o que ele disse com todo o respeito.
— Não mais.
Ele não parece surpreso. — Você sabe que ela vai sofrer
muito, se você a evitar. Faço que sim.
— Melhor evitar agora do que ser o motivo de sua morte, mais tarde. — Em parte, isso é um conselho também para Victor, mas talvez eu nunca vá saber se ele entendeu a mensagem oculta.
Victor deixa por isso mesmo e indica porta alta de madeira maciça atrás de mim com um gesto.
— É bom ter você de volta. — Obrigado.
Izabel me para no corredor de paredes brancas e assoalho lustroso. Victor segue na direção oposta, nos deixando a sós.
Ela espera que ele vire no fim do corredor, antes de me olhar e dizer:
— Eu sei que ele provavelmente ameaçou você por minha causa, mas olha, Fredrik...
— Ele não precisou me ameaçar — interrompo. — Falei que, se você tentasse me ajudar, contaria para ele na hora. E falei sério. — Mantenho o olhar firme nela.
— Mas você está... Fredrik, estou com medo por você. Só quero ajudar.
— E você pode ajudar, saindo do meu caminho e não se metendo na minha vida.
Um clarão de mágoa e confusão passa por seu rosto.
— Por que você está fazendo isso? Desvio de Izabel e sigo pelo
corredor.
— Fredrik. Pare. Por favor. Finalmente paro, mas só para deixar
que ela desabafe, que diga tudo o que pensa agora, porque vai ser a única chance que vou dar.
Fico parado, de costas para ela. — Não vou permitir que você se
destrua — diz ela, disfarçando a raiva e não disfarçando tanto a determinação. — Estou cagando para a cara que você faz. Pode me mandar para a puta que pariu, não estou nem aí. Mas não vou deixar você se isolar. De nós. De mim. De si mesmo.
Eu me viro para encará-la com as mãos à frente do corpo, os pulsos encostados em meu belo terno preto.
— Infelizmente, você chegou um pouco tarde para isso — digo, me virando e me afastando, e deixo o som dos meus passos como rastro.
CAPÍTULO TRINTA Fredrik
Baltimore, Maryland
Puxo para trás o longo e moreno rabo de cavalo da mulher e meto meu pau nela, minha pélvis se chocando com força contra sua bunda, as mãos dela agarrando o lençol da cama de hotel em um espasmo de prazer e desespero.
— Puta que pariu! — exclama ela, com um lado do rosto encostado no colchão. A mulher morde o lábio inferior quando meto com mais força, meu pau inchando dentro dela.
Ela geme, abrindo os lábios, incapaz de fechá-los.
— Meu Deus, por favor... não para! Não para, caralho!
Ela está quase chorando. Posso sentir sua tensão e expectativa apertando meu pau, como se quisesse evitar que eu o tire antes de seu momento explosivo. Meto com mais força e me curvo sobre seu corpo, enfiando os dedos em sua boca aberta, fazendo um gancho em sua bochecha. Quando puxo o rabo de cavalo com a outra mão, seu pescoço se curva, rígido e desconfortável — se eu puxar com mais força, posso quebrar sua espinha. Faço investidas violentas, satisfazendo todos os meus demônios, mas não a mim mesmo. Ainda não. Ela começa a gemer, forçando a bunda contra mim para poder me fazer ir mais fundo.
Uma lágrima escorre por seu rosto e molha o lençol.
Paro e saio dela quando sinto que vai gozar e me levanto da cama, o pau latejando dolorosamente. Eu o seguro e o massageio lentamente para retardar o orgasmo.
A mulher, ainda com a bunda para cima, levanta o rosto do colchão e me olha como se eu tivesse acabado de esmurrar sua mãe.
Arranco o preservativo e o jogo no cesto de lixo perto do criado-mudo.
— Por que você...?
— Venha cá — ordeno, com um gesto de cabeça, me sentando na cadeira da mesinha ao lado da janela.
Com um leve ar de protesto no rosto, ela se levanta da cama e me obedece. Nua de pé diante de mim com aquele corpo perfeito, bunda redonda e quadris curvilíneos, quero muito meter nela mais um pouco, mas isso vai ter que esperar.
— Fique de joelhos.
Ela obedece e, já presumindo o que quero que faça, segura meu pau sem que eu ordene — estarrecida por um momento com o tamanho, suponho —, antes de aproximá-lo da boca.
— Eu falei para você fazer isso? — pergunto, encarando-a com os olhos semicerrados e uma expressão neutra.
Ela balança a cabeça, me admirando com olhos verdes, meu pau ainda em sua mão.
Eu a faço esperar alguns longos segundos enquanto a olho, ajoelhada no meio das minhas pernas, examinando o modo como seu rabo de cavalo desce pelo meio das costas nuas, a bunda em formato de coração. Sem roupa, ela é como a imaginei quando a vi no restaurante e pensei em comê-la.
Ela não solta meu pau nem por um instante. Ela o quer, não importa onde. Gosta de segurá-lo. E isso não me incomoda nem um pouco.
— Agora bota na boca — mando. — Devagar — acrescento, antes que seus lábios comecem a deslizar pela glande.
Meu pau enche sua boca, esticando os lábios em volta, também como imaginei. Jogo a cabeça para trás e gemo um pouco quando ela me enfia no fundo da garganta.
Levo as mãos à nuca e cruzo os dedos, encarando-a entre minhas pernas abertas. Acho brochante quando ela interrompe e se desculpa por me arranhar com os dentes — não porque me arranhou, mas porque pediu desculpas. Não digo nada e deixo que volte ao trabalho.
Mas ela pede desculpas de novo. Eu a interrompo no meio da frase,
segurando sua cabeça com minhas mãos enormes, forçando meu pau no fundo de sua garganta.
— Não tem problema se me arranhar, meu anjo. Eu gosto da dor.
Ela engasga um pouco enquanto me devora por inteiro, mas não para nem protesta quando continuo a forçar sua cabeça. Odeio esses sons dela engasgando, mas eles me excitam mesmo assim. Seu desconforto, sua dor, as lágrimas ardendo em seus olhos.
Eu sou um canalha doentio. Finalmente, meu pau explode em sua
boca, e jogo a cabeça para trás por cima do encosto da cadeira, segurando seu cabelo com força e prendendo-a no lugar para que ela engula tudo.
E ela engole. Como uma boa menina. Descansamos um pouco. Eu não me
levanto da cadeira. Só olho a parede, sem pensar em ninguém além dela, embora não lembre seu nome. Kate. Kira. Kali. Tomara que ela não pergunte.
Ela sai do banheiro, desfilando ao se aproximar de mim. Tímida. Atrevida, puta, inocente, dominadora, submissa, uma vagabunda, um doce — ela vai ser qualquer coisa que eu mandar que seja.
E é exatamente por isso que não gosto muito dela.
Até botava certa fé nela, antes de trazê-la para cá.
Tentativa e erro, Fredrik. Tentativa e erro, caralho.
— Que tal você me deixar sentar no seu pau? — pergunta a garota cujo nome certamente começa com K, com um sorrisão nos olhos.
Que tal você sentar em meu pau sem pedir permissão?
— Sim — digo —, quero que você se sente no meu pau. — Em seguida, pego outro preservativo da mesa ao lado, abro a embalagem e o ponho na mão dela.
— Coloca isso em mim antes — ordeno.
Mais uma vez, ela faz exatamente o que mando, e — admito — faz bem, deslizando-o em mim com precisão cuidadosa, fazendo questão de dar uma apalpadinha nas minhas bolas depois de terminar, antes de soltar e ficar de pé entre minhas pernas abertas.
Pondo as mãos em meus ombros para se equilibrar, ela sobe em meu colo e monta em mim, na cadeira. Fecho os olhos devagar quando sinto os lábios de sua boceta, quentes, úmidos e inchados, se esfregando em meu pau.
Trepamos por algum tempo. Quando me canso de ficar sentado na cadeira, eu a ponho de quatro na cama e a como um pouco mais. E, quando me canso disso,
eu a como contra a parede. E, quando me canso de ficar de pé, me deito de costas na cama e deixo que ela me cavalgue mais um pouco, antes de finalmente entregar os pontos e mandar que ela se sente na minha cara.
Algumas horas depois, estou saindo do chuveiro quando ela me diz, da cama:
— Pronto para outra rodada? — Um sorriso sugestivo está exposto em seu lindo rosto.
Mal olho para ela enquanto visto a cueca, depois de pegá-la do chão.
Consulto meu Rolex.
— Sinto muito, mas tenho que ir a um lugar.
Ela faz bico.
— Ah, vai, eu faço valer a pena. Prometo. — Ela bate no colchão com a palma da mão.
Visto a calça social, a abotoo e afivelo o cinto.
— Você já fez valer a pena — digo, em tom neutro. — Mas preciso mesmo ir.
Enquanto abotoo a camisa cinza e enfio a barra na calça, ela se levanta da cama e percorre, nua, a curta distância pelo quarto. Ela para na minha frente e põe as mãos em meu peito, mas me viro de lado e fecho os últimos botões.
Noto que seus ombros sobem e descem com um suspiro profundo, decepcionado.
— Bom, se importa de me dar seu telefone? — pergunta ela. — Quero ver você de novo.
Enfio os braços no paletó e visto o casaco comprido de inverno.
— Desculpa, mas isso não vai acontecer.
— Como assim? Por que não? Não olho para ela enquanto ando até
a porta.
— O sexo foi ótimo — digo, me virando para olhá-la e esperando deixar sua dignidade intacta, pelo menos. Minha intenção não era fazê-la se sentir usada. — Mas a gente não vai se ver de novo.
Ela só me olha com a boca aberta e o cenho franzido.
E eu saio do quarto.
~~~
Só voltei para Baltimore por um motivo, e com certeza não foi por causa do sexo. Dirijo para o outro lado da cidade e estaciono perto de uma caçamba de lixo na lateral de uma loja de conveniência. Ao sair, travo as portas com o controle remoto. O cheiro de gasolina de um carro que está sendo abastecido enche o ar. Ando lentamente até a porta dupla de vidro do estabelecimento e empurro um dos lados, acionando um sino eletrônico que alerta o balconista que um cliente entrou na loja — mas o balconista não ergue os olhos do que está fazendo atrás do balcão. Entro no ambiente quente e fedendo a fritura, panos de chão sujos e água sanitária. Um garoto de cabelo louro arrepiado sai do banheiro, cuja porta fica ao lado da geladeira de bebidas, e passa correndo por mim, empurrando a porta alta de vidro com todo o peso de seus braços magrinhos. Uma lufada de ar frio invade o interior. Por um momento observo o garoto através da porta, correndo para o carro parado ao lado da bomba, abrindo a porta de trás e entrando. Segundos
depois, o carro vai embora. Volto a me concentrar em Dante
Furlong, que está trabalhando atrás do balcão.
Avanço sem pressa na direção dele passando os olhos casualmente pelos vários salgados e doces com preços exagerados de posto de gasolina, fatias de bolo embaladas individualmente e latinhas de molho de feijão para nachos à mostra nas prateleiras externas. Tudo está alinhado em perfeita ordem. O chão foi limpo recentemente. Dante tem trabalhado duro — e em algo que não seja vender heroína e ganhar boquetes de viciados.
Finalmente, ele ergue os olhos. Parece surpreso.
O sorriso que mal surgiu em seus olhos some quando ele me vê. Ele inspira de repente, gemendo, e cai para trás sobre as prateleiras cheias de remédios — envelopes de Tylenol, Advil e cápsulas para gripe e resfriado. As mercadorias despencam dos suportes, se espalhando pelo chão.
— É você! — Ele aponta para mim com o dedo trêmulo. — Olha, cara, eu não... não fiz mais nada depois daquela noite! Juro!
Posso ver que ele está usando dentadura na arcada superior.
Ainda cambaleando contra a prateleira, como se pudesse atravessar a parede atrás de si, ele derruba mais produtos antes de finalmente se dar conta de que não tem para onde ir.
Seu corpo todo — até bem-vestido, com uma camisa branca e uma calça jeans limpa — treme de um jeito febril. Seus olhos azuis parecem estar do tamanho dos meus punhos, e as rugas ao redor deles e nos cantos se aprofundam. Seu cabelo preto encaracolado foi lavado e não parece seboso sob o brilho das lâmpadas fluorescentes do teto. Ele mudou bastante desde que o torturei, dois meses atrás.
Termino o caminho até o balcão e fico diante dele, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Os olhos de Dante vão e vêm do meu rosto às minhas mãos, provavelmente preocupados com o que posso estar escondendo nelas, por baixo do casaco. Seringas para injetar nele? Alicates para arrancar o que resta de seus dentes? Um punhal para cortar sua língua, talvez? Uma pistola para acabar com sua vida miserável?
Nenhuma das alternativas. — Olha, não contei nada a ninguém
— gagueja ele, erguendo a mão, a palma virada para mim. — Não falei porra nenhuma. Não fiz porra nenhuma. — Ele passa os olhos pela loja. — Arrumei um emprego de verdade, aqui. O salário é uma merda, mas é trabalho honesto. — Então sua voz aumenta e fica esganiçada devido à minha falta de reação: — Eu não fiz nada!
— Eu sei — digo, por fim. — Estou de olho em você desde que o soltei, naquela noite.
Olhando para uma caixa de chicletes com brindes no balcão, embrulhados um a um em embalagens transparentes individuais, aponto e pergunto:
— Posso?
— Claro, claro, pode — diz ele, depressa, indicando os chicletes com as duas mãos. — É por conta da casa, cara. Aliás, pode pegar o que quiser na porra da loja. — Ele sorri, apavorado.
Pego um chiclete da caixa e abro a embalagem, enfiando o conteúdo na boca.
— Vejo que você está com dentes novos — digo, e começo a mastigar.
Ele assente depressa. — E-estou. Eu, hã, bem, tem um
dentista bem legal do outro lado da cidade, que ajuda viciados que estão tentando largar as drogas. Na verdade, não perdi os dentes por causa de metanfetamina, nem nada assim — eu sorrio e continuo mastigando —, mas ele me ajudou. Fez uma dentadura bem baratinha e me deixou pagar em prestações. Daqui a uns meses vou terminar de pagar.
Volto a enfiar as mãos nos bolsos. — Você gostaria de ter implantes
permanentes? — pergunto. Dante franze o cenho, confuso. — Não entendo o que você quer
dizer. — Ele está extremamente nervoso. Acho que sinto cheiro de mijo. Faço uma careta.
— Este chiclete tem gosto de merda — comento.
Ele concorda depressa com a cabeça, inseguro e ainda com medo de cada ação e palavra minhas.
— Pois é, mas a molecada gosta... — Bom, Dante — digo, voltando
para o assunto mais importante —, tenho uma proposta de emprego para você. Isto é, se estiver interessado em ouvir.
Silêncio.
Ele não sabe que resposta quer dar, mas tem certeza de que sabe que resposta quero ouvir.
Ele opta pelo meio-termo. — Hã, acho que não entendi. Levando a embalagem aos lábios,
cuspo o chiclete nela e o jogo no cesto de lixo no chão, ao lado do balcão.
— Andei pensando um pouco — começo, ainda do mesmo jeito casual de quando entrei —, e acredito que você é a pessoa certa para a função. Vai poder pagar essa dentadura com uma parte do seu primeiro pagamento e comprar implantes em um mês. Claro que você vai passar por alguns testes, exames médicos, entre outras coisas. E, como em qualquer trabalho honesto, vai ter que fazer exame de urina de vez em quando, mas acho que você é a pessoa certa. O que me diz?
— Hã, bem — ele coça a cabeça —, qual é o trabalho, exatamente? Tipo, hã, acho que vou querer saber o que eu tenho que fazer... bem, isto é, se para você tudo bem, antes de concordar?
Sim, esse cheiro definitivamente é de mijo.
Tiro do bolso um cheque com o nome dele e o deixo no balcão, deslizando-o sob seus olhos.
Ele vê o cheque, nervoso, tendo dificuldade para olhar só o que está no balcão, e eu estou perto o suficiente para agarrá-lo, caso baixe a guarda.
— Puta merda... — Sua voz some e ele finalmente deixa de prestar tanta atenção em mim quando os cinco algarismos perto de seu nome entram em seu campo de visão.
Ele pega o cheque como se quisesse certificar de que é real, depois olha para mim com aqueles olhos azuis sob os cabelos pretos cacheados.
— Você pode ganhar isso todo mês — digo. — Contanto que desempenhe seu trabalho para minha satisfação e aprovação completas e contanto que continue limpo e não faça nenhuma merda.
Seus olhos finalmente estão sorrindo de novo, como haviam começado a sorrir quando entrei na loja e ele ainda não havia percebido quem eu era. Agora, seu rosto todo sorri. Gananciosamente. Como um pirata com o pé sobre um baú cheio de ouro. O trabalho poderia ser me chupar uma vez por semana e ele provavelmente aceitaria, por essa quantia.
— Sou o cara certo — diz ele. Sorrio fracamente e tiro a carteira do
outro bolso, abrindo-a e pegando uma nota de vinte. Eu a jogo no balcão.
— Vou parar o carro perto da bomba. Põe vinte contos.
Ele assente e pega o dinheiro. — Peraí, hã — diz ele, quando me
afasto. Paro e me viro. — Como eu...? — Eu entro em contato — digo,
abrindo a porta de vidro. Dante Furlong se torna, assim, meu
assistente pessoal. Ele conhece um monte de traficantes e viciados irrecuperáveis, além de prostitutas ou piranhas de beira de estrada que já mataram homens; caminhoneiros e maridos procurando algo “diferente”. Dante conhece praticamente todo mundo nos círculos criminosos não só de Maryland, mas da maioria dos estados próximos. Ele conhece o jargão. Conhece os becos e as pocilgas e sabe onde encontrar todas as pessoas que um dia irão parar em minha cadeira.
Às vezes, quando penso em Seraphina — porque penso nela, sim, bem como em Cassia —, me pergunto por que não procurei alguém como Dante há muito tempo. Com ele não há envolvimento emocional ou risco de me apaixonar, nenhum risco de desilusão amorosa. Posso olhar Dante nos olhos e matá-lo sem pensar duas vezes, se precisar, sem sentir remorso ou sofrer por isso. E, quando quero trepar, posso procurar as Kates, Kiras, Kalis e Gwens. Sem envolvimento emocional. Sem olhar para trás. Apenas ir em
frente. Até a próxima mulher que eu possa subjugar.
E, a cada dia da minha vida, luto contra a dor que tortura meu coração negro, a dor que sei que jamais sumirá. A dor de estar sozinho e sem ela. Sem ninguém. Meus interrogatórios para a nova Ordem de Victor ficam mais brutais a cada missão. Minha tolerância com as vítimas diminui. Minha capacidade de oferecer misericórdia praticamente não existe. E, durante as torturas particulares daqueles que Dante me trará, serei mais sádico e deixarei um número cada vez menor sobreviver.
Parte de mim — mas só uma pequena parte — teme que um dia eu chegue ao ponto de matar cada um deles. Porque, quanto mais eu mato, quanto mais mergulho na dor dos outros, mais fácil é bloquear os gritos em minha cabeça e as imagens dos dois rostos da mulher que amei.
Meu lindo cisne. Minha salvadora, minha perdição.
CENA BÔNUS
1 de janeiro de 1979 – Estocolmo, Suécia
Segurando a barriga redonda com mãos trêmulas, a mulher alta e morena apoiou as costas na porta de vidro da loja de conveniência e a empurrou para abrir. Seus tênis sujos rangeram no chão de ladrilhos quando ela forçou a entrada, quase derrubando a prateleira de pão. A dor queimava seu corpo abaixo da cintura, fazendo-a parar a busca desesperada pelos banheiros nos fundos da loja. Ela se curvou e cerrou os dentes para suportar a dor, com uma das mãos agora segurando a parede ao lado para manter o equilíbrio. Foi só quando a agonia diminuiu que ela conseguiu fazer as pernas se movimentarem de novo.
Adiante, ela fez outra parada no fim da parede.
Não havia banheiro.
Uma respiração profunda, ofegante e desesperada a acalmou por um instante, sufocando momentaneamente o pânico. Ela fechou os olhos negros e apoiou a nuca na parede atrás de si. Seu longo casaco azul-marinho escondia as roupas imundas e a calça encharcada de líquido amniótico, mas não ajudava a disfarçar a barriga saliente que ela achava que fosse aguentar por mais um mês, antes de chegar àquele momento.
Seu momento mais sombrio. Outra contração atravessou seu
corpo, como um fogo ardente consumindo suas entranhas. Seus quadris e costas se contraíram, curvando-a para frente e quase a fazendo cair no chão. Ela gritou de agonia, com os dentes cerrados, o rosto suado, sujo e molhado de lágrimas retorcido em uma expressão horripilante.
— Moça — falou o atendente, em sueco, de trás do balcão —, você está bem? Quer que eu chame uma ambulância?
Com dificuldade, a mulher cambaleou com as pernas trêmulas até a frente da loja, as mãos segurando a barriga, como se temesse que o bebê fosse explodir de dentro dela a qualquer momento, deixando-a sangrar até a morte no chão.
— Var är toaletten?! — gritou ela, entredentes, apoiando-se no balcão. — Var är toaletten?!
O balconista apontou com relutância para os fundos da loja, os olhos arregalados e cheios de preocupação.
— Utanför — explicou o homem. A mulher saiu correndo da loja e deu
a volta no prédio, se segurando nos tijolos para se equilibrar. Ela sentia a cabeça do bebê forçando a passagem pelo canal vaginal, fazendo suas pernas se arquearem e tornando seus passos dolorosos, desajeitados e precários.
— Ahh! — gritou ela, xingando em seguida.
Abrindo a porta do banheiro, ela se esforçou para entrar no espaço mal iluminado, ocupado apenas por duas privadas e uma pia com uma lâmpada fluorescente bruxuleante acima. Escolhendo o compartimento maior, a mulher se jogou contra a porta vaivém, empurrando-a com um ruidoso bang! quando bateu na parede de metal do cubículo. Ela se jogou dentro do compartimento e se sentou no chão imundo, baixando a calça até os joelhos. Fez força. E gritou. E fez força de novo. E gritou de novo. Sentiu tontura, mas a dor era impiedosa e não permitia que ela desmaiasse. Jogava a cabeça para trás, batendo a nuca na porta do compartimento, atrás de si. Bam! Bam! Queria desmaiar, para não sentir mais a dor. Entretanto, no momento mais sombrio de alguém, o destino nunca
atende tais pedidos.
Ela fez força de novo, gritou, gemeu e xingou Deus e o homem que achava que a havia amaldiçoado com essa gravidez, ao esvaziar seu sêmen dentro dela, nove meses antes. Mas o bebê estava vindo antes da hora. Talvez estivesse amaldiçoando o homem errado. Não sabia e nem se importava mais. Suas mãos seguravam a parte externa das coxas, as pontas dos dedos cravadas na carne trêmula e suada. A pressão entre suas pernas era tão intensa, tão desgastante, que ela achou que poderia morrer só com a dor. Torceu por isso.
Mais um empurrão, e a pressão desapareceu em um momento de alívio geral que conseguiu fazê-la rir de alegria.
Tudo estava em silêncio, a mulher com as costas desajeitadamente apoiadas na porta, os joelhos dobrados, as pernas bem abertas diante de si. Tentou recuperar o fôlego. Não queria olhar para o bebê que sabia que jazia em uma poça de fluidos entre suas pernas. O bebê não estava chorando.
Não olhe para ele, Elin. Não olhe para ele!
Relutante, ela olhou mesmo assim, afastando a cabeça só um pouco do metal. O bebê estava ficando azul, o cordão umbilical esticado de sua barriguinha até a placenta, ainda dentro da mulher.
Com a mão imunda, ela enxugou as lágrimas do rosto.
Deixe-o morrer, Elin. Você não pode ter uma criança. Deixe-o aí.
Ela balançou a cabeça, lutando contra voz em sua mente que sempre conseguia o que queria.
Sempre. De uma maneira ou de outra. Instintivamente, estendeu as mãos
para o bebê, pegando o menino escorregadio nos braços trêmulos, e começou a esfregar seu peito e limpar sua garganta com o dedo. Não sabia por quê, nem de que isso adiantaria, mas fez
mesmo assim. Não o queria. Sabia que não poderia ficar com ele. Mas não queria ser uma assassina. Apesar de tudo que era — uma prostituta, uma viciada, um desperdício de ar —, ela se recusava a ser uma assassina.
Respirou na boquinha do bebê, e um gritinho finalmente saiu dos pulmões dele, um berro fraco e aflitivo que encheu seus ouvidos de alívio e de agonia. Segurando sobre os seios inchados a criança que gritava, mas sem
deixá-la mamar, pegou o papel higiênico e espalhou o rolo no chão sujo. Deitou o bebê sobre o papel e remexeu no casaco, procurando o canivete que sempre carregava consigo, para se proteger. Cortou o cordão umbilical e expeliu a placenta.
Ele não parava de chorar. Seus pequenos punhos faziam movimentos mecânicos sobre o peito. Seu rosto redondo, recobertos por uma cabeleira preta e por uma espécie de película fina e branca como algodão, ficou vermelho e roxo com o choro incessante.
Não dê de mamar para ele. Deixe-o aí, Elin.
Finalmente, a voz no fundo de sua mente venceu a guerra contra a consciência. Como sempre vencia. Como sempre venceria.
Ela deixou o menino no chão do banheiro, ao lado de uma privada fedorenta, sem olhar para trás.
Muitos minutos depois, o balconista entrou no banheiro com as autoridades e encontrou o bebê deitado em um monte de papel higiênico e, ao seu lado, a única parte da mãe que esteve com ele desde a concepção.
Depois que a criança foi atendida no hospital e a notícia do “bebê que nasceu e foi abandonado em um banheiro público” perdeu força no noticiário, ele foi enviado para um orfanato, onde ganhou o nome do balconista que o encontrou: Fredrik Mikael, recebendo mais tarde o sobrenome “Gustavsson” da mulher traiçoeira que administrava o orfanato e que as crianças chamavam de “Mamãe”.
Uma criança não nasceu naquele dia. Uma criança morreu naquele dia. Sua inocência. O que ela poderia ter sido. Quem ela poderia ter sido. Seu nascimento foi o início de uma vida muito longa e cruel.
Não, uma criança não nasceu naquele dia, e sim um assassino.
J. A. Redmerski
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