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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CISNE NEGRO / Leo Dartey
O CISNE NEGRO / Leo Dartey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

O caminho alongava-se diante deles e o matagal tornava-se cada vez mais cerrado. Já se lhes tornava difícil avançarem os dois ao lado um do outro. Os arbustos e as silvas prendiam-se como garras à calça de veludo verde de Carine. Mas Renaud continuava a andar, de espingarda na mão, sem parecer importar-se ou aperceber-se.

Para aonde me levas, Renaud? admirou-se Carine. Nós já estamos longe dos outros caçadores. É imprudente afastarmo-nos assim. Uma chumbada ou um tiro perdido pelo ar pode atingir-nos. Eu própria tenho dito muitas vezes à Malaine que acho muito perigoso o hábito de se afastar sozinha com o Capi...

Sem se deter, Renaud teve, porém, um encolher de ombros e replicou secamente:

Tu não achas um bocado esquisita essa tua infantil maneira de tratares a tua madrasta?

As finas sobrancelhas de Carine elevaram-se, marcando o espanto no seu fino rosto mate de virgem florentina, onde os seus olhos rasgados, profundos e escuros, sorriam com doçura.

Para a minha madrasta eu hei-de ser sempre a menina que ela acabou de educar e amimou como se fora a minha verdadeira mãe. E não deixa que a trate por este nome por uma questão de delicadeza da sua parte...

 

 

 

 

Bem sei redarguiu ele num tom amargo. Para ti, ela tem todas as qualidades! Mas acho ridículo inquietares-te a seu respeito, sabendo-se que ela conhece melhor do que ninguém estes bosques e matas de Ardimont, aonde já caçava ainda tu não eras nascida... Sim: muito antes de se ter visto obrigada a casar com o teu pai para salvar dos credores a posse das terras e do castelo, que era a moradia!

De facto, após a morte de seu pai, Ghislaine d’Ardimont encontrava-se em face duma situação de tal modo crítica e endividada, em consequência das negligências e má administração do velho fidalgo, que o desmembramento do património estivera iminente. Fora então que Marinot, jovem e rico industrial estabelecido na região, recentemente viúvo da mãe de Carine, lhe ofereceu resgatar todas as hipotecas a fim de lhe restituir intacta a propriedade de Ardimont, se ela acedesse a ser sua esposa.

O oferecimento leal e simples feito por aquele homem simpático visava ainda encontrar quem olhasse por sua filha e completasse junto dela a devida tarefa maternal. Ghislaine aceitara. Para salvar o castelo, sacrificara a fidalguia do seu nome. Mas por mais plebeu que fosse aquele nome de Marinot, apelido do esposo, ela respeitava-o com uma dignidade e fidelidade impecáveis.

Carine abanou a cabeça.

Lá voltas à mesma história, Renaud. Não foi com certeza para me dizeres isso que me trouxeste até aqui...

Pois decerto respondeu ele; porém, num tom de voz tão grave e circunspecto que a jovem o olhou surpreendida.

Em verdade, Carine sempre o conhecera com aquele feitio sisudo, e até mesmo áspero, a ponto de logo de criança lhe chamar o seu ”grande selvagem”.

Contudo, nunca como nesse dia a expressão do rosto dele lhe parecera tão feroz, com a madeixa do seu cabelo preto caída para os olhos leoninos, de pupilas esverdeadas, a crispação das suas maxilas, o balancear dos seus passos ao mesmo tempo leves e firmes. Seria uma fera temível... para os outros, talvez, mas não para ela. Alta e flexível, ”havia cinco anos que Carine o trazia, como costuma dizer-se, pelo beicinho.

Mas para que nos distanciamos tanto do nosso grupo, pelo meio da mata, uma vez que nunca ninguém nos impediu de falarmos à vontade?

Renaud soltou um riso sardónico:

Lá no castelo?

No castelo e nos jardins, por toda a parte. Pois não será verdade que nos consideram quase como noivos?

O rapaz repetiu com ironia:

”Quase”! Ora aí está exactamente a palavra que eu não suporto! E não suporto porque as nossas mães sonharam com este casamento antes mesmo de termos vindo ao mundo; e porque nós correspondemos de tal modo a essa ideia no decorrer de vinte anos que não está certo esse ”quase” noivos! Por mim, não o aceito! Não posso deixar de lembrar-me que se a tua mãe não tivesse falecido tão nova, deixando a outra o seu lugar, há muito já que esse ”quase” teria desaparecido. Em todo o caso, e seja como for, não estou disposto a admiti-lo por mais tempo! E eis o que te quero dizer: quando é, Carine, que o nosso casamento será oficialmente anunciado?

Pronunciou estas palavras com tal decisão que Carine se sentiu impressionada.

Quase tão alta como ele, via-se no entanto obrigada a erguer o rosto para poder fixar os olhos naquelas pupilas estriadas de oiro do seu prometido.

Então notou que esses olhos evitavam os seus. Desconcertada, murmurou:

Mas... bem sabes, que sempre se convencionou... enfim... que sempre ficou subentendido entre nós que esperaríamos a tua nomeação de agregado aos liceus...

Ele cortou, com uma amargura que surpreendia naquele espírito habitualmente bom e compreensivo para ela:

Para não causar tanta vergonha à tua família? Bem ouvi o teu pai dizer num tom bastante desdenhoso: ”O meu futuro genro, um jovem professor de grande futuro...”. Creio bem, Carine, que o rico industrial senhor Marinot, preferiria com certeza menos futuro e mais presente para ti... Quanto à tua madrasta, a divina Malaine...

A jovem não pôde então suportar o tom sarcástico que feria o seu afecto.

Cala-te!

É verdade, é, sim! troçou ele. Proibido tocar nessa madrasta incomparável!

Sempre, mais ou menos, Renaud fora ciumento daquela afeição, mas não o denunciara tão acerbamente como dessa vez.

Oh, eu sei bem exclamou que tu serias capaz de nos sacrificares a todos só por uma palavra dela... E percebo também que os teus empates, as tuas hesitações, só provém do receio de lhe desagradares.

As finas sobrancelhas escuras arquearam-se, de espanto.

Que ideia! A minha madrasta estima-te muitíssimo e sempre to demonstrou...

Ele elevou, com súbita violência, a voz:

Mas para marido da sua enteada preferia qualquer outro mais bajulador, mais sedutor!... Qualquer fidalgote provinciano, de nome campanudo, mesmo arruinado, mesmo inepto, tolo, vaidoso e dissipador, como Xavier d’Ardimont, que ela mete à cara da sua própria filha.

Estupefacta, Carine exclamou:

Patt e Xavier! Mas ele é seu primo...

Sim! prosseguiu ele no mesmo tom acusador: É o último parente que usa aquele apelido fidalgo que a tua madrasta teve de trocar, não sem desgosto, por outro mais plebeu: o de teu pai. Que espécie de vingança e de recuperação para ela se a sua filha pode voltar a usá-lo, um dia! Para isso, não hesitará em dá-la a esse homem sem moral, sem carácter e sem... Aí tens, numa palavra, enfim, do que ela é capaz, essa mulher que tu admiras tanto!

A jovem exaltou-se por sua vez:

Tu és para Malaine duma injustiça revoltante!

Não! exclamou Renaud, com uma cólera que assombrou Carine. Eu vejo-a tal qual ela é: uma criatura egoísta e vaidosa, capaz de tudo para satisfazer o seu preconceito de casta e o seu snobismo! Mas não tolerarei por mais tempo que a sua oposição surda retarde o nosso casamento. Exijo-te, Carine, que fixes hoje, sem falta, a data ou então...

O tom ameaçador magoou a jovem, que se sentiu melindrada no seu sentimento de dignidade:

Se julgas intimidares-me, enganas-te redondamente. Já te disse: mais tarde!

Uma explosão de furor passou nos olhos e na voz de Renaud:

E eu digo-te que ou hoje ou nunca mais! exclamou.

Muito pálida, imóvel, a voz fria, Carine, ferida por essa atitude, pronunciou:

Hoje não, com certeza, se o exiges nesse tom!

Num reflexo de cólera impotente, Renaud cerrou os punhos e as maxilas. Ainda um instante ficou diante dela, com o rosto crispado.

E Carine, estupefacta, mas sem medo, pensou:

”Seria capaz de me bater?”

Contudo ele pareceu dominar a sua violência. Implacável severidade pareceu endurecer mais a expressão do seu rosto e rodando bruscamente nos calcanhares:

Está bem! gritou, afastando-se a grandes passadas. Sei o que me resta fazer!

Ainda por algum tempo Carine ficou perplexa e como que pregada ao solo, vendo-o sumir-se ao longo do carreiro.

Renaud ia apressadamente, caminhando a passos largos e pesados, sem se importar com as silvas e troncos que derrubava, como se o levasse a urgência de atingir desconhecido fim... ou o desejo de fugir dela.

Apenas recobrada do seu espanto, a jovem teve um encolher de ombros ao vê-lo desaparecer na volta do caminho.

Carine guardava, entretanto, dessa primeira altercação entre eles uma impressão desoladora, uma espécie de inquieto mal-estar.

Vagarosamente, seguiu então o mesmo carreiro. Agora já não sentia qualquer vontade de se juntar ao grupo dos caçadores. Devia fazer-lhe bem caminhar algum tempo, respirar o ar fresco, no qual ecoavam os repetidos tiros dos caçadores, e assim ia quando uma outra jovem, que lembrava uma raposa daqueles bosques por estar vestida de peles, surgiu repentinamente duma das moitas próximas, atravessando-se-lhe no caminho. Visível inquietação perturbava o seu rosto e foi com voz vibrante de angústia que perguntou:

Carine! Tu viste Renaud?

Vi... respondeu com ar amuado à interrogação latente nos olhos de sua irmã. Deixou-me agora mesmo... e, por sinal, de muito mau humor...

Ah! suspirou Patt com alívio, sacudindo o pequeno feltro que, inclinado para trás, cobria os seus encaracolados cabelos ruivos. Vocês discutiram? Foi então por isso que ele me gritou agora mesmo, sem sequer parar, que abandonava a caça! Ia com o parecer tão transtornado que fiquei inquieta...

Não deve ter ficado bem disposto depois da nossa discussão! Demais, eu faço como ele! Volto para casa! Se te perguntarem por mim... diz que estou com uma enxaqueca!

 

                               À caçada fatal

Carine estava tão absorta na sua leitura que não deu pelo tumulto que, do vestíbulo, vinha até ali ao seu quarto.

Sobressaltou-se quando a porta se abriu com violência para deixar entrar de roldão uma espécie de labareda vermelha que saltou e se imobilizou no meio do aposento, após oscilar como se fosse cair.

Aterrorizou-se ao reconhecer a sua irmã, cujos cabelos dourados soltos pelo vento ou pelo pavor se viam espalhados sobre o fato de caça, o qual, devido à sua cor vermelha, mais lhe acentuava a semelhança com uma língua de fogo.

Mas intensa palidez lhe cobria o rosto. E abria desesperadamente a boca, como se o ar lhe faltasse.

Patt! gritou Carine, alarmada.

A aflita jovem pareceu retomar a respiração: A mamã...começou ela. De súbito, porém, faltou-lhe a voz e a irmã mal percebeu, num rouco murmúrio, estas palavras:

A mamã está morta!

Carine levantou-se dum salto que fez cair no chão o livro e arredar para longe a cadeira.

Que dizes? exclamou, levando as mãos à fronte. Meu Deus! Um desastre?

Então, Patt voltou-se para a porta que ficara aberta e apontou as vozes que subiam agora distintamente ao longo da escada.

É o que dizem todos! resmoneou num tom rude.

E, de súbito, começou a gritar com veemência:

Mas não pode ser verdade... não é verdade!... Não é verdade!

E bruscamente caiu, abatida, numa cadeira que se encontrava atrás dela.

Carine já corria para a porta. Atravessando dum salto o corredor, saiu ao patamar e debruçou-se na balaustrada de mármore que dominava o vestíbulo lá em baixo. E quase se atirou pela escada, descendo-a a correr.

Pai... meu pai... balbuciava ela, procurando reconhecê-lo ou encontrá-lo entre as figuras que se agitavam ao fundo da escada, encobrindo-o.

O seu robe branco e os seus longos cabelos negros voavam naquela corrida. Num grupo de caçadores que, em baixo, comentavam a meia voz o desastroso acidente, alguém, ao vê-la, murmurou desolado:

É a filha!

Não. Só a Patt é que é a filha do casal. Esta Carine foi educada pela madrasta, a senhora Marinot, mas adora-a...

Diga antes: adorava-a... Pobres pequenas! Que fatalidade! Uma senhora tão agradável e bonita. Decididamente, estas caçadas são bem perigosas!

”Pai!” chamava Carine na sua voz interior com infinita angústia, enquanto corria pela escada senhorial, com a sensação que se despenhava num abismo sem fundo.

E, no último degrau, tombou, sem saber como, no peito dalguém que saíra a ampará-la e agora a apertava ternamente entre os braços.

Sem saber a quem devia esse abraço, consolador naquele momento para a sua aflição, a jovem rompeu enfim perdidamente a soluçar. As lágrimas a custo contidas pelos seus olhos dilatados sob o golpe da trágica revelação durante os segundos da sua descida pela escada, que lhe haviam parecido um século, distendiam a crispação dos seus nervos brutalmente contraídos pelo choque. E a comoção causava-lhe agora um tal delíquio que Carine esteve prestes a desmaiar.

Os braços que a estreitavam sentiram o seu desfalecer, ao mesmo tempo que uma voz apaziguadora murmurava junto dos seus cabelos e ao seu ouvido uma enternecida consolação:

Carine, Carine... minha pobre querida...

Dolente, soluçando sempre, Carine mal escutava essas palavras. E o verdadeiro sentido dessas murmurantes expressões não logravam despertar o seu espírito aturdido e embotado pelo desgosto... Aniquilada, ela deixava-se apertar contra esse peito compassivo sem cuidar de saber a quem pertencia.

No átrio os circunstantes ajuntavam-se, vendo Xavier d’Ardimont abraçar assim a jovem. E conservavam-se agora a certa distância com uma discrição não isenta de surpresa entre eles.

Inconsciente, porém, dos olhares que a observavam, a jovem continuava a chorar apoiada contra o ombro que tão caridoso se oferecia à sua dor.

Minha querida Malaine! Minha Malaine! soluçava inconsolàvelmente.

Meu pobre pai!

Vem já aí... murmurou com os lábios junto dos seus cabelos Xavier d’Ardimont.

À jovem pareceu surpreendida pela voz que lhe falava assim tão perto e, erguendo, enfim, os olhos, reconheceu-o, admirada. De todos era dele quem menos esperava aquele compadecimento pela sua dor. Incapaz, porém, de seguir um pensamento fora da brutal fatalidade, Carine afastou-se um pouco sem todavia escapar à mão que pousava sobre o seu ombro. E de lábios trémulos, o olhar alucinado, perguntava:

Mas como foi isto?... Como pôde acontecer?...

E foi então uma voz feminina, baixa, cansada, um tanto rouca, a voz da mãe de Xavier, que lhe respondeu:

Um tiro de caçadeira... um lamentável desastre! Como sempre, como não é raro acontecer! À morte deve ter sido instantânea.

Sem poder resistir mais, o corpo de Carine inclina-se para a frente e foi necessária a força máscula da senhora d’Ardimont para evitar a queda, ao mesmo tempo que vários circunstantes se precipitavam, a fim de acudir e segurar também a desfalecida...

                           Aonde estava Mcnaud?

Mas Carine não tardou em recobrar-se do seu desmaio. E logo se sentou à beira do divã em que a tinham estendido.

Indecisa, ainda meio inconsciente, passou pelo rosto a mão trémula.

Deixem-me. Não se preocupem comigo murmurou, com voz enfraquecida.

Erguendo o olhar, deixou-o errar pelos rostos que se inclinavam para ela. E encontrando mais próximo do que qualquer outro o rosto de Xavier d’Ardimont, disse precipitadamente:

Oh! meu Deus! Deixei a Patt lá em cima, no meu quarto... Vão vê-la, depressa...

Mas foi a senhora d’Ardimont quem interrompeu logo, sem dar tempo a que o filho fizesse o menor gesto:

Eu vou, não se inquietem!

E com seus largos passos de desportista, pesados passos que balançavam os seus ombros ligeiramente arqueados, dirigiu-se para a escada.

Era uma mulher alta e forte, um tanto masculinizada, que dir-se-ia nunca ter sido jovem, nem era bonita. Mas o à-vontade com que usava o seu velho trajo de caça não deixava de ter simplicidade e elegância. Subiu rapidamente ao andar de cima, mas quando entrou no quarto de Carine, não encontrou Patt.

Quando esta desfalecera fora mais por fadiga e esgotamento nervoso do que pela perda dos sentidos. Ficara, pois, durante alguns minutos inanimada, ao fim dos quais se erguera com inusitada coragem.

Contudo, o seu coração não estava bem e ela ressentia-se ainda da falta de ar que ainda há pouco a impedira de falar por momentos. Embora combalida, e andando a custo, atravessou o corredor para ir tomar ao seu quarto um calmante.

O seu quarto, ao contrário do da irmã, que dava para os jardins da parte detrás da propriedade, à maneira francesa, ficava situado a ala esquerda.

Para tirar dum pequeno armário o medicamento que procurava, a jovem Patt passou por diante da janela. E agora, no escuro da noite, ela distinguiu nitidamente qualquer coisa que a fez estremecer. Entre o escuro arvoredo do parque que desse lado vinha quase até à casa, luzes acompanhavam o lento caminhar dum sinistro cortejo, trilhando uma alameda. Compreendendo tudo, de repente, Patt largou o tubo de comprimidos e largou a correr ao longo do corredor.

Quando desceu a estreita escada de caracol do torreão do sul, dirigiu-se apressadamente para o cortejo que as luzes das tochas lhe indicavam.

A cem metros apenas de distância, logo alcançou aquele cortejo de desgraça, vindo a caminho do castelo, ainda nessa manhã em festa. Ousou somente relancear os olhos à maca, que dois guardas transportavam, e à delicada forma nela estendida sob a manta de pelúcia usada para abafo no interior do automóvel. Então, num impulso, a jovem lançou os braços ao pescoço de seu pai, que vinha à frente daquele fúnebre cortejo.

Querido pai! Querido pai! murmurou ela com fervor. Será isto verdadeiramente possível?

A cabeça de seu pai branquejava no escuro da noite à luz indecisa dos brandões, luz agora mais viva pela gradual proximidade das iluminadas janelas do castelo.

Contraído pela dor que se lhe adivinhava acerba, o pai respondia simplesmente:

É possível, Patt. É possível. Agora não tenho senão tu e Carine...

Desembocaram no terreiro que precedia a entrada.

E, precisamente nesse momento, o Prefeito, que viera convidado para jantar, desceu do seu carro diante das portas de vidraças iluminadas.

Mas alguém, bem-intencionado, apressara-se a ir ao seu encontro para o avisar e lhe dar parte do drama que enlutava a família Ardimont.

Ainda que, evidentemente, sabendo suprimido o jantar, esperou para apresentar as suas condolências ao dono do castelo.

Os dois homens encontraram-se à entrada dos degraus de acesso ao terraço.

Querido amigo começou o Prefeito, estendendo-lhe a mão creia que sinto muito, com profunda mágoa...

Em voz pausada, mas firme, Marinot, espaçando as palavras, como que para lhes dar maior expressão, disse:

Agradeço-lhe muito, meu caro Prefeito! Todos nos encontramos num estado de desespero. Em todos, ela só contava amizades...

Disso estou bem convencido,

Foi um acidente tornou com força de convicção Marinot, como se desejasse persuadir bem o seu interlocutor. A minha infeliz mulher tinha o louco hábito de se afastar sempre do grupo dos caçadores. Encontraram-na caída num maciço... Ninguém viu nem ouviu nada.

No rápido espaço dum segundo, os olhares dos dois homens encontraram-se e entenderam-se. Com um tom de voz igualmente forte, o Prefeito anuiu:

Um deplorável acidente, sim, meu caro amigo. Mas sossegue: não será importunado por ninguém. O inquérito não vai passar duma formalidade, e eu próprio redigirei o comunicado para a imprensa local.

Ah! sim, nada de atender jornalistas! A falta de tacto desses senhores é, para mim, odiosa!

Suplico-te, Carine, não fiques aí murmurou Xavier d’Ardimont que inquietamente voltava a cabeça para a porta envidraçada donde aliás ele esperava ver o dramático cortejo que conduzia o corpo da desventurada castelã.

Com um gesto aborrecido e ao mesmo tempo que arredava da fronte uma das suas longas madeixas de cabelo, a jovem repeliu aquela solicitude que lhe pareceu surpreendente e um tanto importuna.

Renaud? perguntou ela num murmúrio, tendo perdido a lembrança do que havia precedido o drama. Aonde está Renaud?

Renaud, o seu melhor amigo, o seu prometido, aquele que estava quase o seu noivo. Por que não estaria ali em vez daquele outro rapaz que lhe era indiferente?

Sei lá aonde ele pára... disse com certa aridez, Xavier. Desapareceu do nosso grupo... aliás, como tu, também.

E em voz mais baixa, concluiu:

Facto esse que não é caso para rir!... Contudo, Carine sentia-se preocupada demais para dar importância a qualquer dessas frases sibilinas para ela.

Abanou entristecidamente a cabeça e tornou:

- Mas...

A entrada de seu pai e de Patt cortou-lhe, porém, a palavra. Pressentindo o espectáculo triste que os precedia, a jovem soltou um grito que a sua mão crispada levada aos lábios num gesto de horror, não pôde abafar.

Então, numa atitude de protectora ternura, o jovem d’Ardimont, recolheu-a nos seus braços, aconchegando-lhe a cabeça ao seu ombro:

Não olhes, Carine! Não olhes.

E foi assim que Patt os surpreendeu quando entrou no vestíbulo.

 

                                   Não é possível!

Carine seguia, conduzindo devagar e com circunspecção. Agora, que se estava no dia seguinte ao funeral de Malaine, a jovem não conseguia readquirir o domínio dos seus nervos. O seu corpo e o seu cérebro, quebrantados pelo choro, deixavam-na numa semi-inconsciência; e, mesmo quando logrou reagir um pouco para recuperar o seu perdido equilíbrio, continuou num pasmo incessante a repetir:

Não é possível!... Isto não é possível!...

Não. Não lhe parecia possível que pudessem ter desaparecido assim tão brutalmente da sua vida aquele sorriso, aquela graça, aquela gentileza própria duma grande senhora que, para ela, Carine, se revestiam dum carinho constante... Não lhe parecia possível esse fim horrível, sem uma espera ou um recurso a fervorosa prece!... Não queria crer que o seu pobre pai se encontrasse viúvo pela segunda vez! Não era possível que ela, Carine, se sentisse sozinha, tão de repente, abandonada de todos!

A dizer a verdade, o único conforto amigável que tentara consolar Carine naquele seu imenso desgosto, viera-lhe da condessa d’Ardimont, prima da sua madrasta, estranha para ela e ainda há pouco um tanto fria e até quase desdenhosa. Dela... e de seu filho, aquele Xavier d’Ardimont, preguiçoso, fútil e leviano, de quem Carine não recebera nunca tantas e tão afectuosas atenções em circunstâncias semelhantes... enquanto que outros, Renaud, por exemplo, a haviam abandonado. Renaud que não tornara a aparecer, nem tão pouco lhe escrevera.

”Não era possível...repetia ela falando consigo, as sobrancelhas carregadas, as maxilas crispadas. A não ser que ele esteja doente... ou tivesse endoidecido...”

Não, nem mesmo a discussão que haviam tido no dia da caçada podia explicar semelhante procedimento.

Que a notícia do desastre, que emocionara Ardimont inteira, não tivesse chegado a Nancy, para aonde ele deveria ter partido directamente, tornava-se inverosímil. Os Marinot eram muito conhecidos em toda a região e a intimidade de Renaud Martin com eles igualmente estava no conhecimento de todos para que o eco daquele drama não chegasse logo à instituição Fourcade, onde o rapaz exercia as suas modestas funções de vigilante, com destino à sua preparação de professor agregado.

E maior inverosimilhança resultava do facto de, sabendo ele a dor que os pungia, não acorrer junto de Carine, ocupando um lugar que, sem falar já na sua condição de futuro noivo, o título de amigo de infância sobejamente lhe assegurava.

As suas respectivas mães haviam-se conservado amigas desde os tempos do pensionato, e sempre, para que a sua amizade não se ressentisse nunca do casamento de cada uma delas, casamentos diferentes um do outro sob o ponto de vista social.

Enquanto a mãe de Carine desposara um rico industrial, grã-senhor da região, a mãe de Renaud escolhera um simples professor primário da vila, porque, mais romanesca, se apaixonara por ele.

Não obstante, jamais haviam deixado de se visitar, e quando a primeira falecera, Marinot continuara, primeiro pelo respeito à memória da esposa e depois por simpatia pessoal, a receber na sua intimidade os esposos Martin e seu filho, o pequeno Renaud, cujo precoce amor por Carine, ainda muito menina, fora uma graça notada por toda a gente.

Nem o tempo nem o segundo casamento do industrial alteraram depois estas coisas e, mesmo depois da morte dos seus pais, e no decurso das suas estadas em Nancy, onde ele se esforçava por conseguir os graus universitários que lhe permitiriam desposar um dia Carine, Renaud continuava a ser um dos familiares da casa d’Ardimont, sempre afectuosamente recebido pelos donos e seus filhos.

Com um ligeiro aperto de coração, Carine ponderou.

Essa amizade, esse amor, tinham feito parte integrante não só da sua infância como da sua adolescência. Seria possível poderem extinguir-se tão depressa e por tão pouco?

Aquela quebra duma afeição tão antiga e fraternal seria para Carine como se devesse renunciar ou se visse privada subitamente da dedicação de Patt, a sua amada irmã!

Mas, vendo bem, não se tornara igualmente estranha e duvidosa a atitude de Patt?

Longe de estreitar mais os laços de afecto entre as duas irmãs, dir-se-ia que a fatalidade os quebrara. Inexplicavelmente, Patt, que deveria procurar na ternura da sua irmã mais velha o conforto e a compreensão duma desventura igual, afastara-se desde o primeiro instante.

Obstinada num desgosto insaciável, quase bravio, evitara desde logo a aproximação, as efusões... ou talvez receosa de deixar explodir a sua angústia.

Pobre Patt! Que enormes seriam o seu desgosto e a sua desordenada perturbação sob a máscara duma altiva coragem?

Como seria preciso ser hábil e suave para tocar naquele juvenil coração ferido sem correr o risco de o despedaçar?

Querida Patt! Pensando nela, Carine sentia enternecer-se-lhe o coração, num desejo de a proteger. Não competia agora a ela, como irmã mais velha, desempenhar o seu maternal papel? E no decorrer dessa missa matinal a que ela fora assistir na modesta capela da vila, Carine pedira na sua prece à querida morta não a abandonasse e a guiasse de modo a inspirá-la o melhor possível na missão que lhe deixara para cumprir junto de seu pai e da sua irmã.

Agora, mais confortada pela sua oração, voltava para Àrdimont, pronta a afrontar as suas pesadas e novas obrigações, dando-lhes todos os recursos do seu espírito e do seu generoso coração.

Saindo da sombra das tílias, o automóvel entrou no caminho descoberto. Àrdimont surgiu então aos olhos de Carine com seu aspecto suavizado pelas suas florescências. Ao chegar junto das portas envidraçadas que acima de três largos degraus davam no terraço vasto entrada para a casa, relembrou os deveres que lhe competiam agora... agora que Malaine jamais ali estaria...

Um breve soluço se enovela na garganta da jovem perante essa recordação ainda candente.

Não ficava sozinha, agora que o fim das cerimónias fúnebres afastava o auxílio da condessa d’Ardimont, para se integrar sem demora nos deveres e obrigações que a sua madrasta exercera com tanto saber e graça?...

E também junto da irmã... pensando no que Renaud lhe revelara respeitante ao que supusera haver entre ela e Xavier? Sim.

Ah! Renaud! Sempre Renaud?... Sim. Como o silêncio dele pesava a Carine... Talvez lhe tivesse sucedido algum desastre. Ele andava sempre com tanta velocidade na moto. Mas, não. Duma ou doutra maneira logo se teria sabido...

Quanto ao que lhe fora apontado como namoro entre Patt e Xavier, Carine pensava que em nada o entravaria, uma vez que fosse da vontade de sua irmã. Por sua vez, agora, parecia-lhe conhecer melhor aquele rapaz contra o qual anteriormente fora sem dúvida um tanto injusta.

Ao aproximar-se, notou parado diante do terraço um pequeno automóvel do mesmo modelo que o seu. Calculou que Patt ia sair e, apesar do luto, regozijou-se com isso. Apressou-se pois a entrar para a ver antes dela partir... e talvez mesmo sentindo o desejo de a acompanhar.

Travando o seu carro de modo a ficar atrás do de sua irmã, Carine atravessou rapidamente o vestíbulo, dirigindo-se para o sítio onde todas as manhãs era colocada a correspondência vinda pelo correio.

Descalçando a sua luva preta, pegou com mão nervosa nas numerosas cartas e cartões de pêsames, sentindo-se desolada por não encontrar em primeiro lugar a caligrafia de Renaud, tão sua conhecida.

Não há meio de vir nada da parte dele! É extraordinário.

Parece-te? disse por detrás dela a voz um tanto sarcástica de Patt, que viera de descer a escada.

Sem se voltar, Carine respondeu enquanto examinava mais de perto um sobrescrito.

À ti não te causa admiração que Renaud não tenha até agora dado o menor sinal de vida?

A mesma voz, com uma variante, porém, de agreste ironia, protestou:

O que me admira, principalmente, é que tu te preocupes com ele. Confessa, em todo o caso, que para ver o que teria visto, mais lhe valeu não ter posto cá os pés!

Que queres tu dizer? perguntou calmamente, voltando-se para ela?

Foi então que reparou no trajo de viagem e na pequena mala de mão que Patt conduzia.

Mas exclamou estupefacta aonde vais tu, minha querida?

O rosto de Patt como que se fechou.

Vou à abadia de Pierre-Blanch disse num tom breve. A tia Adelina recebe-me com prazer.

A tia Adelina era uma prima da senhora Marinot, superiora do célebre convento. E, de repente, Carine sentiu-se amedrontada.

Mas não vais...

Tomar o véu de noviça? disse a jovem com toda a calma. Não, decerto. São necessárias muitas virtudes que estou longe de possuir! Senti, no entanto, precisão de me isolar e a tia Adelina, a quem telefonei, oferece-me asilo na sua casa por todo o tempo que eu quiser.

Em face desta resolução, Carine ficou interdita, deslocada, com todas as suas ternas intenções inutilizadas. Avançou, no entanto, dois passos e tentou colocar as mãos sobre os ombros da irmã:

Espero que não ficarás lá por muito tempo, querida Patt. A nossa casa vai parecer-nos ainda mais vazia sem ti. Que dirá o nosso pobre pai?

Com um movimento de ombros, a jovem esquivou-se ao abraço da irmã. Apenas consentiu que um beijo dela lhe aflorasse o rosto. E correndo já para o seu automóvel, gritou-lhe de passagem:

Já lhe falei a este respeito ontem à noite. E ele está de acordo!

Por longo espaço de tempo, Carine ficou ali, como que petrificada, inerte, invadida por um frio cruel, como se uma derrocada de gelo se houvesse abatido sobre ela.

Assim, aquela fuga, aquela viagem não era imprevista. Pelo contrário. Dava-se tão apressadamente, nessa manhã, que não lhe deixara tempo para uma despedida, visto Patt, desde a véspera, tudo ter previsto e organizado sem nada lhe dizer...

Tudo se passara como se a irmã mais nova pretendesse esconder-se dela... fugir-lhe... Mas porquê? Por que razão?

Abanou a cabeça, incapaz de achar uma resposta concreta. Ainda na manhã da caçada as duas irmãs se adoravam.

Ao longe, o ruído do motor acabava de perder-se. Ela partira, de facto. Nada havia já a fazer. Ou antes: tudo havia e ficava por fazer naquele casarão sem dirigentes, sem donos... pois que o pai, ocupado na fábrica como todos os dias, a deixava sozinha para governar.

Com um suspiro ela subiu, e tão abalada e desmoralizada se sentia, que recolheu ao seu quarto e ali ficou, no silêncio insólito que a esmagava.

Depois da fatalidade que sucedera, os criados abafavam os seus passos, as suas vozes, e era então exactamente como se Carine estivesse sozinha naquelas imensas dependências. Muito sozinha como moralmente tinha a impressão de o estar, agora que à sua volta tantos vácuos se abriam dum só golpe nos seus afectos.

E começa por enumerar:

”Malaine, Renaud... Patt”.

Como se sentia abandonada nessa manhã!

Em passos trémulos ia sair ao patamar quando uma voz sua conhecida se elevou de baixo para ela:

Carine! Poderei ser-te útil de qualquer modo?

Acabei de me cruzar com o carro da Patt e pensei que estivesses sozinha. Por isso, vim.

Oh, Xavier! exclamou ela, com alívio. Animada, desceu as escadas, sentindo-se liberta da sua opressão, exorcismada.

Aparecia enfim alguém que com ela se preocupava, que vinha falar-lhe...

Tu sabias perguntou que Patt ia retirar-se para Pierre-Blanche?

Ele ergueu as sobrancelhas e abriu os braços com tranquila indiferença para responder:

Patt retirou-se, abalou? Afianço que nunca supus tal coisa! Como se não fosse aqui mais útil, ao pé de ti.

E, diante de tamanha calma, Carine pensou que Renaud se enganava.

 

                               A demanda imprevista

Ah! suspirou Carine com lassidão, depondo a sua chávena de café. Tenho de responder a todas estas cartas.

Oito dias após as exéquias, a correspondência chegava ainda. Metido na sua poltrona, o pai, sem nada dizer, meneava a cabeça, vendo-se-lhe a fronte pregueada de rugas. Com o olhar vago, tirava as fumaças do seu cachimbo. Como envelhecera em tão poucos dias, o pobre pai!

Procurando fugir à sua solicitude, convidara Xavier para almoçar e viera essa manhã para o ajudar em certas contas das rendas da propriedade, com a sua incansável amabilidade. Levantou-se o rapaz e disse:

Em que poderei ajudar-te, Carine?

A jovem abanou a cabeça, sensibilizada no entanto por aquela solicitude que, depois do desastre, não mais se desmentira. E tornara-se tanto mais de agradecer quanto em verdade ficara sendo a única.

Obrigada. Trata-se apenas de cartas particulares às quais devo resposta pessoal. Quanto ao resto... a senhora Brun se encarrega de enviar os cartões de agradecimento... conforme a lista.

Inclinada para a bandeja que acabavam de lhe trazer com a correspondência desse dia, Carine procurava em vão, e como sempre, encontrar a letra bem sua conhecida.

Nada! suspirou ela, levantando angustiado olhar para Xavier que a acompanhara até junto da pequena mesa aonde era costume abrir-se o correio. Nada, como sempre.

Xavier teve um ligeiro franzir de sobrancelhas, agastado, mas fingiu não compreender:

Falas de Patrícia? Mas, vejamos, tu bem sabes que...

Carine já não ouviu o fim do que ele estava dizendo. E não era uma carta de Patt o que ela ansiava receber (a jovem irmã declarara não querer nenhum contacto com ninguém durante o seu retiro) mas sim de Renaud, cujo imperdoável, inexplicável silêncio, lhe pesava no coração com uma amargura cada vez maior. Mas para que falar em tal a Xavier? Apesar, e mau grado as suas recentes gentilezas junto da enteada de sua falecida prima Ghislaine, não a compreenderia. Para ele, Renaud não existia, era o simples filho do director da escola, portanto, insignificante personagem!

Mas, de súbito, ela aproximou-se, um tanto arrependida daquela sua amargura. Não fora Xavier, com sua mãe, o único a mostrar-se prestável, caritativo, afectuoso após a tragédia? Por causa dum indiferente, que a esquecera, havia de mostrar-se ingrata com esse amigo fiel? Teve então um meigo sorriso para lhe responder:

Não, meu bom amigo, basta o que tens feito. Quanto mais não fosse, já muito me ajudavas com a tua presença.

E assim fora. Marinot, mesmo depois do almoço ou do jantar, retinha-o muitas vezes, e ele ficava a auxiliá-los nos penosos deveres inerentes ao luto, pois se assim não fora muito mais dolorosa se tornaria a isolação do pai e da filha em face um do outro.

Xavier murmurou, caloroso:

Quereria poder evitar-te todas as maçadorias...

De olhos baixos, Carine não observou o olhar em que ele a envolveu e, bem assim, o seu especial tom de voz ao dizer:

Em todo o caso insistiu visto que amanhã vais à cidade, espera por mim. Virei ter contigo.

Obrigada. Eu prefiro conduzir respondeu gentilmente. Distrai-me.

Mas não te afasta os maus pensamentos! protestou com veemência. Eu venho da mesma maneira: seguirei só como teu acompanhante, se assim preferes. Detesto saber-te sozinha por essas estradas fora, nestes dias, a ruminares todas as ideias que não podem deixar de assaltar-te o cérebro.

Desta vez, um impulso de grato reconhecimento levou-a a pousar a delicada mão no braço do jovem companheiro. Quem, sem ser ele, teria tido tão cuidadoso pensamento a seu respeito? Ninguém... nem mesmo seu pai, absorvido como se encontrava pelo seu desgosto pessoal! Contudo, ouviu as palavras do rapaz e lá da sua poltrona disse:

Tens razão. Acho bem que venhas para a acompanhar. Quando sei que vai contigo, fico mais sossegado.

Carine viu que se enganava. Também nesse caso o pai se preocupava com ela... Humedeceram-se-lhe de enternecimento os olhos que ergueu para Xavier, inclinado para ela na espera da sua resposta:

Ficamos de acordo?

Como se tornava doce para ela sentir que podia contar com aqueles dois entes. Ainda que pálido, esboçou o seu primeiro sorriso, agora brilhante de lágrimas, e respondeu:

Ficamos!

Pudera dizer-lhe que preferiria ir sozinha a Nancy, onde Renaud ocupava um quarto perto da Faculdade, a fim de se informar discretamente a respeito do seu amigo de infância. Mas se o dissesse, tanto o pai como Xavier decerto a criticariam, embora nenhum mal houvesse nessa indagação. Renaud não era ainda declaradamente seu noivo ou mesmo seu namorado, mas sim quase um irmão cujo desaparecimento se tornava natural que a inquietasse, devido à sua forma de se arriscar à morte nas suas correrias com a moto...

Xavier, com a mão livre, apertou fortemente os dedos que pousavam sobre a sua manga.

Então até amanhã disse como constrangido.

E, comovida ainda pela solicitude dele, Carine deu alguns passos acompanhando-o pelo terraço até ao pequeno automóvel, por sinal dum modelo já fora de moda, que o aguardava à beira dos degraus.

Quando reentrou na fresca penumbra da sala de fumo, ficou surpreendida de ali encontrar seu pai. Não fora à fábrica, porquê? Ele que nunca faltava, nem meio dia que fosse? Sentir-se-ia doente? Mas logo, com a sua voz firme e bem timbrada, o tom conciso do homem de negócios, a serenou:

É efectivamente um bom rapaz, este Xavier! Muito melhor do que eu supunha! Existem, como o dele, caracteres que para se revelarem necessitam da pressão das grandes circunstâncias.

Carine não discordou. Nunca esperara qualquer prova de dedicação daquele rapaz que ela, com certo desprezo, considerara leviano, fútil, um tipo fim de raça... herdeiro somente dos defeitos e das taras, visto as virtudes ancestrais se terem perdido com a fortuna, dissipada em loucas prodigalidades.

Em silêncio, a jovem dirigiu-se para o sítio onde se encontrava a correspondência e começou a apartar aquela a que lhe faltava responder.

E repito continuou Marinot com insistência sinto-me mais tranquilo quando o sei ao pé de ti.

Como a filha continuasse sem dizer nada, o pai concluiu:

Bem vês que podes, à tua vontade, dar fim à história que está à vista...

Voltou a sugar a fumaça do seu cachimbo, como se esperasse ouvir uma resposta longa e definitiva.

A filha não reagiu, porém, conforme esperava. Sem mesmo voltar a cabeça na direcção dele, e continuando atenta a escolher as cartas, Carine perguntou num tom de indiferente e ligeira curiosidade:

Que história, meu pai?

O senhor Marinot segurou na mão direita o cachimbo e apoiou o cotovelo esquerdo no braço da poltrona. E com o tronco um pouco inclinado para diante, explicou, lento, como se falasse a uma criança:

Minha menina: é inútil fingires... Quero que compreendas que podes confiar no teu velho pai e, por consequência, persuadires-te de que, se alguma coisa neste mundo e nas circunstâncias actuais me pode ser agradável, é isso... isso a que me referi.

Desta vez, intrigada, a jovem voltou-se para ele, segurando entre os dedos um sobrescrito. Sem todavia supor que se tratava dum assunto importante, repetiu:

Agradável? Mas agradável o quê, meu pai?

Ora adeus! O que Xavier me anunciou esta manhã! Confesso que, em minha opinião, achava mais... indicado esperar ainda algum tempo, mas dada a maneira como o caso se propalou, acho inevitável confirmar sem demora os vossos esponsais.

- Que diz? exclamou Carine, deixando cair a carta das mãos. Os esponsais de quem?

O pai ergueu as sobrancelhas, com um ar de irritação.

Entendo ociosa esta comédia, uma vez que Xavier me veio dizer...

A voz de Carine subiu de tom para exclamar:

Mas finalmente o quê? Que pôde ele dizer-te?

Que tudo estava pronto para anunciar oficialmente o seu casamento contigo para ver se faz calar o falatório que, segundo parece, corre a vosso respeito e...

Carine acabava de retomar o fôlego que tais palavras lhe haviam cortado. Mal refeita do seu espanto, ainda incrédula, protestou então:

Mas, pai, isso é inaudito, é insensato... ou será brincadeira?

Contrariadíssimo, ergueu a sua cabeça de cabelos brancos, numa atitude reprovadora. E logo uma expressão de grande dignidade se reflectiu no rosto do industrial:

Deves de compreender, Carine, que eu não me encontro na disposição, nem na situação de brincar!

Desculpa! disse ela, aturdida. Nem eu tão-pouco, juro-to. Mas proferiste com tanta calma... uma coisa tão... tão ridícula.

A voz paternal tornou-se áspera:

Ridículo? Um casamento entre Xavier e tu? Devias ter pensado nisso antes de te haveres refugiado nos braços e no peito dele diante de toda a gente!

O espanto desmesurou os olhos negros:

Refugiar-me nos braços dele, eu?

O pai levantou-se bruscamente e, assim, de pé diante dela, a sua figura pareceu-lhe curvada, decaída por extrema fadiga.

Em voz triste, disse:

Na verdade, Carine, nada compreendo de toda esta comédia. Se a tua atitude, conforme deixaste ver, é de completa inclinação por Xavier, segundo ele me confidenciou, nada explica o teu espanto de agora. Julgo mesmo não ser este o momento azado, repito, a complicares as coisas com subterfúgios, hipocrisias indignas de ti, aliás numa situação que, pelo seu natural desfecho, me traria um relativo consolo no meio da minha dor presente.

Os lábios de Carine principiaram a tremer, como os das crianças quando vão romper num choro... E, como uma criança indefesa ela se sentia, desamparada, no atropelo duma situação incompreensível.

Perdão, meu pai disse, também compungida e abrandada pela pena que ele lhe causava. Sinto-me desolada, mas... acredite que não compreendo absolutamente nada do que tudo isso significa. Nunca, mas nunca, concebi a ideia de casar com o Xavier. Que ele o pensasse... já me parece... abusivo... grotesco... mas eu... eu!...

Enfim, minha filha... principiou o pai, cruzando os braços, e Carine estremeceu porque ele nunca empregava o tratamento de ”minha filha”, tanto para ela como para a irmã, senão nas mais graves circunstâncias poderás então explicar-me... se não admitiste nunca semelhante ideia, como pudeste conduzir-te de maneira que ela não só entrou na cabeça, diga-se, do interessado, mas de toda a gente desta terra...

Desprezo as más-línguas! protestou Carine. Têm bastante com que se entreter sem ser com o meu casamento. Só não posso compreender que... fosse eu quem, sem querer, desse lugar a criar-se esse mito! Isto...

No mesmo tom severo, o pai cortou:

Fico penosamente surpreendido. Sempre te considerei uma rapariga muito sensata, muito equilibrada para dares motivo a maledicências sobre a tua conduta. Esqueces-te, minha filha, de que quando entrei no vestíbulo, após o drama, a primeira coisa que eu vi foi estares abraçada por um homem que cobria de beijos os teus cabelos...

Tão inconsciente estivera então, que, abrindo muito os olhos, Carine perguntou:

Qual homem?

Não se dignando responder-lhe, o pai continuou:

E quando um tal abraço teve lugar diante de cinco pessoas, não sendo esse homem um velho, nem teu pai, nem teu irmão, tens de concordar que essas testemunhas não puderam fazer a vista grossa... nem calar-se.

E é de Xavier que se trata?

Sim, ele próprio mo confirmou ainda esta manhã. Confessando que o drama e a compaixão pelo teu desespero o fizeram sair da reserva em que até aí calara o seu amor por ti, cedeu irresistivelmente... a essa expansão, a essa liberdade, a esses beijos...

Admitindo que ele me abraçasse explodiu Carine, sufocada - não era eu que o abraçava!

Mas consentia-lo, meio desfalecida no peito dele.

Se a memória me não falha, não tardaram uns instantes que eu estivesse abraçada à mãe dele. Também me criticam por isso?

Criticar, não, mas confirmação, sim. Confirmação lógica das suposições...

Súbito, acalmada pelo próprio absurdo do caso, Carine teve um encolher de ombros.

Gente doida!

Nesse caso, sou eu também doido visto que, apesar da fatalidade que me perturbava, fiz a mesma suposição...

Tu, pai? exclamou, numa voz abafada.

Eu, sim. E prezo-me de possuir bom senso, em geral! Depois, as vossas restantes atitudes nestes últimos tempos levaram-me a crer que estavas de acordo com os sentimentos de Xavier... dado que esse rapaz te ama, indiscutivelmente!

Tu... tens a certeza disso, pai?

Tenho, sim... mesmo que ele não mo tivesse dito, pessoalmente.

Carine baixou a cabeça, aterrada.

Deve então ser verdade! murmurou.

 

                               Preferível esquecer

Não te precipites dissera-lhe o pai. Pondera. Pensa que, aceitando, me darias um grande prazer. Esta noite, Xavier deve vir jantar. Fala-lhe... Sê bondosa!

Ser bondosa? Eis o que Carine diligenciara sempre. Mas, numa situação daquelas, a jovem tinha a impressão de se defender contra uma espécie de conspiração de guardar a sua independência e defender a sua liberdade... Desposar Xavier? Mas nunca, por nunca ser, lhe acudira ao cérebro tal ideia. Ela não queria aceitá-la... Não admitia essa noção das conveniências prescrita como um compromisso, quer há cinquenta anos, quer no dia de hoje...

Por consequência, Xavier, seu pai, eles juntos, supunha, iam travar contra ela duro combate...

Logo que Xavier chegou, naquela noite, Carine foi ao seu encontro e atacou-o enfurecidamente:

Que brincadeira é esta? Tu queres casar comigo, tu?

Brincadeira? Mas... não acho que seja disse ele, constrangido. Eu desejo, verdadeiramente, casar contigo, Carine!

Porquê? Enfim, porquê? exclamou, sufocada.

Porque... te amo, Carine.

E disse-o de modo tão comprometido e desorientado que ela quase teve pena dele. Mas ripostou com ironia.

Tens uma maneira de dizer isso que pareces um rapazinho receoso do castigo!

E ficara admirada de o ver assim desconcertado, esse Xavier que se orgulhava sempre de saber fazer face a todas as situações como homem experiente do mundo.

Tu é que provocaste esta forma de to dizer. Nunca imaginei ter de fazer semelhante confissão desta maneira: entre portas, no átrio!

Com resignada tristeza ela encolheu um ombro:

Seja como for, não a esperava de ti.

E por que não? disse com súbito ardor. Tu és tão bela, Carine! Há muito tempo que eu me calava; mas, depois dos últimos acontecimentos, tudo mudou... e tão comovedora te tornaste na tua dor de ave profundamente ferida... que nunca mereceste melhor o teu cognome de o ”Cisne negro”... Sim.. Como esta designação te assenta bem!

Pois eu detesto que assim me chamem disse, franzindo as sobrancelhas.

Assim alguém a cognominara em seguida a um baile da Prefeitura aonde ela se apresentara trajando um coleante vestido de veludo preto que acentuava a sua flexibilidade e elegância. Depois, toda a gente principiara a dar-lhe essa designação. Ela aborrecia-se, porém, de a ouvir, achando-lhe pretensioso sabor.

Nada tenho de uma ”vamp” tornou ela. Estás sendo vítima da tua imaginação. E eu, que te considerava enamorado de Patt?

Patt é ainda muito nova para mim redarguiu ele, um tanto embaraçado. Pela minha parte, nunca pensei nela...

Carine olhou-o fixa, profundamente.

- Mas outros pensaram-no. Eu sei. Estás certo de que as tuas assiduidades aqui não tenham sido abusivas da tua parte?

Com uma palmada cheia de irritação, Xavier replicou:

À firmo-te, Carine, que, acima de tudo, tenho em vista de momento alguma coisa de muito mais importante.

Que é então?

De sobrolho carregado, numa expressão grave, explicou:

A tua salvaguarda!

Carine desmesurou os seus grandes” olhos aveludados nos quais uma centelha de zombaria faiscou.

A minha salvaguarda? repetiu, sem compreender.

E, de súbito, exclamou:

Ah, é verdade! Parece que, aos olhos de toda a gente, estou comprometida contigo? Ou não? Pois escuta, meu caro amigo: tu possuis e levas longe demais a noção das responsabilidades! Já não estamos no ano de 1830, compreendes? Desde já te garanto que não me considero obrigada a casar contigo pelo facto de meia dúzia de imbecis maldizentes me haverem visto chorar contra o teu peito!

Ele abriu os braços, como em face do irremediável.

Inteiramente de acordo.

Nesse caso disse, intrigada qual o porquê?

Vejamos, Carine: tu és muito mais rica do que eul

A jovem ficou admirada. Nunca supusera Xavier capaz de semelhante delicadeza de pensamentos. Com efeito, e depois de tudo, a herança de sua mãe junta à fortuna paterna tornavam-na um partido brilhante em extremo. Maior, por exemplo, do que o de Patt... Por que teria ela pensado nisso, de repente? Nem teve tempo de se censurar. A ideia atravessara o seu espírito com a rapidez do relâmpago.

Encolheu os ombros e, para não o humilhar com a sua recusa, disse:

Isso da fortuna nada representa, Xavier, Tu dás, com o teu nome, uma outra espécie de valor... a quem o ligares.

Não para ti acrescentou ele, abanando a cabeça. Para uma pessoa como a tia Ghislaine o caso do nome podia ser importante, sim; mas... sei que és indiferente a esse respeito...

E ao dinheiro também, já o sabes! tornou, com a mesma intenção de amaciar a sua recusa. A prova é que sempre me considerei como a prometida de Renaud. De resto, bem o sabes, assim como toda a gente.

Xavier teve um ligeiro sobressalto ao ouvir aquele nome. O ar sério, as sobrancelhas carregadas, protestou logo:

Eis precisamente o que é lamentável, o que é desastroso. Acredita, Carine: na situação actual, seria preferível para ti esquecê-lo... e fazer esquecer aos outros esse caso.

Mas... porquê? perguntou ela, de olhos bem abertos.

Queres sabê-lo?

Sem dúvida, visto que não compreendo. O rosto de Xavier voltou a sombrear-se.

Não julgo possível que o comportamento desse rapaz te pareça natural.

Carine compreendeu que a ausência, o silêncio absoluto de Renaud fora notado por outras pessoas e que caíra na crítica de todos aquele abandono em meio do luto e do desgosto duma família que tão generosamente o recebera sempre nos seus tempos de felicidade. A própria Carine se sentira humilhada e enraivecida contra ele, embora tentando defendê-lo.

Toda a gente pode ter um impedimento... uma doença.

A ele não sucedeu nada disse Xavier com aspereza.

Como sabes?

Informei-me, no próprio domicílio, que ele deixou aliás com destino e por tempo indeterminado.

Desde quando? perguntou a jovem com vivacidade.

Xavier pareceu hesitar na resposta, mas depois, numa súbita brusquidão:

Segundo o meu cálculo... foi em seguida ao dia da caçada fatal.

Prouvera a Deus que ele não tenha tido algum desastre disse Carine, inquieta.

Mas não teve. Ele preveniu por carta a dona da casa onde alugara o quarto.

Ah! bom. Receio sempre a velocidade a que ele costuma andar largado, na moto...

E quase não pensou em admirar-se ou estranhar aquela inquirição. À ideia de que Renaud tomara muito a peito a sua recusa de anunciar para breve o seu casamento com ela, acabrunhou-a de repente. Decerto, por isso, o pobre rapaz partira para longe... E Carine teve um suspiro de alívio.

Como é que dizes ”Ah bom!...” indignou-se Xavier com espanto. Tu pareces não te aperceber do perigo que isso representa para ele... e para ti, ainda que indirectamente, se eu não te livrar a tempo.

Que dizes? Um perigo: Renaud? perguntou ela, pasmada.

Na casa contígua acabava de ouvir-se, porém, uma aproximação de passos.

Silêncio. Vem aí o teu pai. Diante dele nem uma palavra a este respeito. Peço-te mesmo encarecidamente que nem o nome pronuncies diante dele.

Mas fico ansiosa, quero saber...

Amanhã murmurou Xavier.

Ao longo do dia, Carine ficou pensativa e preocupada sob os olhares atentos de seu pai.

Aquele silêncio e aquela atitude não eram, no entanto e de modo algum, a resposta que ela deveria dar ao pedido de casamento de Xavier; a resposta esperada por seu pai e na qual a jovem pensava com desorientada sensação de angústia.

E, quando à noite adormeceu, foi com o mesmo lancinante pensamento:

”Por que motivo Renaud não aparecia?”

 

                           O mal de Renaud

Mas Renaud não aparecia.

Renaud não podia aparecer.

Prostrado numa semi-inconsciência, arquejante, aterrado pelos fantasmas do delírio ou do remorso, estendido numa cama desconhecida que os suores da febre e do sofrimento humedeciam, com o seu enorme corpo extinto de forças, dir-se-ia um gigante vencido ou um fero animal abatido, a debater-se com a morte.

Inclinadas para ele, duas mulheres velavam.

Uma, de pele escura e de tranças, olhos oblíquos e pequenos, pouco abertos entre as pálpebras, olhar dissimulado, apresentava todas as características dos mestiços nascidos dentre brancos e Indianos.

A outra, de maior estatura, revelava a sólida robustez das filhas do Leste. E ao lado do aspecto físico da serva mestiça, os seus cabelos castanhos, os seus olhos dum cinzento-claro, os seus traços finos e graciosos formavam um conjunto suave, embora sem atractivo.

Apenas o sol daquele país tornara mais viva a cor de âmbar que tingira o rosto de Cecília Bechman, após cinco anos da sua saída de Nancy... cinco anos passados a esperar e a suspirar por Renaud... esse Renaud que agora jazia, ali, vítima dum mal diante do qual a ciência recuava.

Grossas lágrimas rolavam pelo seu desgracioso rosto.

Do outro lado do leito, a jovem mestiça murmurou num tom fervoroso:

Senhora... o homem branco viverá se tu quiseres.

Cecília conhecia a dedicação daquela rapariga que, aliás, tratava mais como amiga do que como serva. Traía, porém, agora o seu desespero e a sua desesperança encolhendo os ombros.

Aonde o doutor Benoit, que a personificação da ciência e do desvelo confessou a sua impossibilidade...

Minha ama: a ciência do médico é grande, mas ele não conhece os segredos! Os segredos dos sacerdotes do Sol, que os nossos antigos guardam e usam ainda. Se tu queres, eu posso dar ao teu amigo o pó que faz voltar a memória ao cérebro esvaído...

Sempre incrédula, respondeu-lhe com um simples gesto.

Ama tornou ela com sombrio ardor sei que gostas deste homem, que lhe queres como às meninas dos teus olhos. Esta noite, enquanto o velavas, fui até à montanha consultar o velho sacerdote que possui os segredos. Expliquei-lhe o mal e, aproveitando a lua cheia, ele compôs a beberagem que deve curar o teu doente.

Um bruxo, um feiticeiro murmurou Cecília com menosprezo.

Um feiticeiro que é senhor dos segredos dos Incas e tem mais poder que o teu médico branco protestou a mestiça ofendida.

Cinco anos depois de estar naquele país, Cecília ouvira falar de curas maravilhosas devidas a antigas receitas... De resto... também os nossos camponeses ainda recorrem aos chás e infusões de ervas.

Seja...disse com lassitude. Na condição de não haver perigo para a vida dele, pode-se experimentar...

Logo então a serva, apressada e silenciosa, dissolveu num copo o pó do feiticeiro. Entretanto, o doente agitava-se e principiou a murmurar palavras ininteligíveis, cada vez com mais violência.

Inclinada para ele, Cecília Bechman juntava as mãos.

Ah! este delírio que não o larga!... Sempre estas palavras... sempre as mesmas, que tanto mal me fazem ouvir...

Como em resposta a este angustiado queixume, a voz ofegante elevou-se, cheia de exprobrações:

Carine! Carine! Tu não queres?... Por causa dela? Ah, como a odeio! Sim, odeio-a! Carine! Fica... sim... Carine...

Estas últimas palavras pareciam uma espécie de grito de socorro. Tapando os ouvidos com as mãos, Cecília ergueu o busto, com ar desvairado.

Oh, este nome, sempre, sempre... E dizer que fui a França para não mais a ver, insolentemente triunfante. Para tentar esquecer que era ela quem ele amava...

Curvada para o enfermo, com o copo na mão, a mestiça prometeu, num meio sorriso equívoco:

Não ouvirás mais pronunciar esse nome, senhora...

Esta estremeceu:

Que queres tu dizer?... perguntou, horrorizada.

Quero dizer que, mesmo depois de curado, ele não voltará a pronunciá-lo, porque o terá esquecido...

 

                                         Um Dom Quixote

Infinitamente cansada, mais desorientada do que nunca após uma noite de insónia, passada a discutir consigo própria acerca daquele inverosímil pedido de casamento e das últimas sibilinas palavras de Xavier, Carine acordou naquela manhã com uma violenta dor de cabeça.

Sozinha e ociosa naquela imensa casa cujo silêncio lhe pesava tão esmagadoramente, Carine decidiu dar pelo parque e pela mata um passeio que lhe distendesse, acalmasse os nervos. Mas logo aos primeiros passos um arrepio a sacudiu dos pés à cabeça, embora o tempo não estivesse especialmente frio. Atribuindo aquilo à sua fraqueza, voltou atrás e tirando do vestiário do pessoal uma espécie de largo capote castanho que pertencia à senhora Brun, a despenseira, embrulhou-se nele, friorenta.

Logo nos primeiros cem metros do seu passeio, se sentiu melhor. Quando chegou à pequena porta que havia ao fundo do parque, ficou estupefacta de vê-la abrir-se; estupefacta e inquieta. Só os familiares da propriedade utilizavam aquela entrada, que aliás não se fechava nunca. Seria Xavier, pois, quem voltava à carga? Mas não reconheceu a alta figura que se aproximava com leveza e desembaraço. Rosto aberto, olhos cíntilos de inteligência e de vivacidade, um queixo de traço enérgico, uma boca fresca e voluntariosa, um vinco entre as sobrancelhas, davam-lhe uma expressão de temível tenacidade.

Trajava um simples fato à ”sport” sem nenhum dos requintes da moda mundana, não parecendo ser esse o seu meio habitual, com seus modos desenvoltos, seu ar endiabrado, cabelos castanhos, ondeados e em desordem.

Sem pavor, porque era bastante simpático esse desconhecido, Carine perguntou, intrigada:

Que faz o senhor aqui?

Num rápido olhar incisivo, o recém-chegado mediu-a de alto abaixo e catalogou-a, sem dúvida, entre as pessoas sem importância, porquanto replicou sem nenhuma cerimónia:

O que está vendo: decidi entrar pela porta pequena visto que me ferraram com a grande na cara.

E posso perguntar-lhe quem é?

Sou João Dourget, repórter do jornal ”Espoir de ’Est” declarou ele num ar de desafio,

”É então pensou ela, pondo-se em guarda um desses senhores que forçam as portas de cada qual a fim de obterem elementos para um artigo cronológico...”

E seu pai recomendara-lhe bastante que não recebesse nenhum. Nem tão-pouco lhes dissesse nada. Esses cavalheiros deformam e alteram tudo quanto se lhes confia, não hesitando no escândalo, sem se importarem com aqueles a quem enxovalham só pelo prazer de estamparem um eco, por vezes venenoso, nos seus noticiários.

O seu olhar e a sua voz esfriaram, para perguntar a medo:

E que pretende?

Decerto, devido àquela enorme capa que lhe ocultava o vestido de luto e agrosseirava o aspecto; devido também ao penteado muito simples, sem a menor garridice, que nessa manhã puxava para trás os seus cabelos e acentuava a deprimida expressão do seu rosto, quis parecer ao jornalista que ela fazia parte do pessoal: criada de quarto, costureira de roupa branca ou talvez institutrice. E respondeu serenamente:

Falar com os donos da casa, minha menina. Carine aproveitou-se daquele erro que preservava a sua personalidade.

Duvido que eles possam recebê-lo.

O imbecil do porteiro disse-me isso mesmo, fechando-me a porta na cara, conforme já lhe disse replicou num sorriso cintilante.

Cada vez mais intimidada por aquele à-vontade, Carine respondeu:

O porteiro teve razão. Presentemente ninguém é recebido por qualquer membro desta família que acaba de ser ferida pela dor dum grande luto... E com ligeira ironia no tom da voz:- Luto que o senhor não deve ignorar visto ser seu ofício tudo saber...

O jornalista não acusou o toque e afirmou com seriedade:

Mas é por isso mesmo que eu venho aqui... É justamente por motivo desse luto que eu devo falar-lhes... até no seu próprio interesse...

Pois desista! Acho que está a perder o seu tempo... Forneceu-se aos jornais um comunicado que deve bastar a satisfazer a curiosidade local.

Já não se trata de curiosidade... ou melhor: impõe-se não a deixar desviar-se ou amortecer insistiu o recém-chegado com ardor. Peço-lhe: se é cá da casa consiga-me uma entrevista com os donos dela... É para bem deles, afirmo-lhe!

De lábios contraídos, Carine lançou-lhe um olhar de frio desprezo.

Julgo que não há ninguém neste mundo satisfeito de ter dado entrevistas a um jornalista!

Então o visitante reagiu e, de dentes cerrados, a voz sibilante, replicou:

Escute, menina, eu não me ocupo das suas obrigações... deixe-me portanto levar a cabo as minhas. Preciso de ganhar o meu pão, como você, como toda a gente afinal.

Linda obrigação! exclamou ela. Não lhe pode saber bem nem ser muito branco esse pão, se, para o ganhar, tem de remexer na roupa suja dos outros...

A resposta do jornalista veio como uma bala: Por que não a acha própria? Diga! Durante um segundo, mediram-se com o olhar.

Em seguida, ele baixou os olhos e prosseguiu mais calmo:

E, depois, fique sabendo que não é só a minha profissão que me trouxe cá, mas também o espírito de justiça. Tornei-me jornalista ao ver com repugnância tantos escândalos abafados, tantos crimes impunes, tantas injustiças encorajadas pelo silêncio e pela cumplicidade de gente paga...

Isso dá vontade de rir... Será que um jornalista é de preço mais caro do que um polícia ou um juiz?

Ele ergueu a cabeça, num desafio dos seus olhos cinzentos.

É, sim, com toda a certeza, menina!

Nesse caso não conservam o seu lugar!

Diz bem. Eu sei sempre alguma coisa. Este é o sexto jornal onde estou, tendo saído dos outros porque ouso dizer coisas ”tabus”.

E não lhe acontece mal?

A mim, não, mas aos outros! Porque quando um director se ergue picado de raiva, já o artigo está impresso e o jornal desse dia circula à venda! Outros, mesmo que o leiam a tempo de me despedirem, não obstam: sempre consigo pôr de pé algumas verdades e assim posso fazê-las triunfar, desencadeando a corrente da opinião pública.

Olhou-a intensamente para terminar, dizendo com brandura:

Como vê, um simples jornalista que remexe em ”roupa suja” pode valer de muito no caminho do bem. A minha profissão não é portanto desprezível nem mesmo quando, pelo amor da verdade, se vê forçada a causar algum mal! encolheu os ombros: Mal necessário, bem entendido, e no caso que nos ocupa...

Que vos ocupa rectificou Carine, sem desarmar.

Mas por que se desinteressa você do que acontece aos seus patrões? perguntou, empalidecendo.

Respeito-lhes a intimidade e agora, nesta circunstância, o seu desgosto. Sei que eles não desejam mais do que o silêncio a respeito da fatalidade que os feriu.

Quanto a mim, se me tivessem morto a minha mulher ou a minha mãe, eu não sossegava enquanto não me vingasse! exclamou com arrebatamento.

Carine soltou um grito: ”O quê?” e empalideceu de tal modo que o jornalista compreendeu a imprudência da sua frase.

Mas você não sabe de nada? Nem ao menos a ideia lhe passou pela cabeça?

Como endoidecida, a jovem exclamou:

É falso, falsíssimo! Foi um deplorável acidente de caça, como infelizmente tantos acontecem... Não pode ser outra coisa... Ou então... seria... horroroso!

O jornalista olhava-a de soslaio e, sentindo quanto era sincera, respirou fundo.

Ah! ainda bem. Prefiro isso... Acredite que aborreceria muito saber que a menina fazia parte da conspiração do silêncio para evitar um escândalo a esses ”intocáveis” castelães. É que lhe encontro realmente o aspecto duma rapariga distinta, incapaz de se misturar nessas negras tramóias... Vejo-a, de facto, cair das nuvens! Enfim! O que me parece impossível é não lhe ter chegado ainda aos ouvidos o que se murmura aí por todo o lado!

Carine levou as mãos às têmporas num gesto alucinado.

Mas quê?... O quê? O que é que ousam dizer?...

”Ousam”, minha menina, admirar-se de certas bizarrias.

De olhar duro, lábios cerrados, protestou:

Não consigo ver bizarria de espécie nenhuma num caso tão claramente doloroso.

Por instantes, olhou-a com profunda atenção. Semicerrou as pálpebras, de pestanas longas e frisadas demais para um homem, deixando apenas filtrar o olhar das suas pupilas cinzentas, maliciosas e risonhas. Viu-a rígida, numa antipatia que parecia implacável e suspirou desencorajado, encolhendo os ombros:

Escute: compreendo a sua hostilidade contra mim pela dedicação que vota aos senhores deste domínio. Mas desejaria que compreendesse que, pelo contrário, é ajudando-me que melhor os poderá servir... Se eu aqui vim, forcei aquela porta, teimei em vencer todas as dificuldades para levar a efeito a minha investigação pessoal, é por que, mau grado a versão oficial do assunto, ou seja do acidente, vejo a opinião pública conduzida por certas maledicências e portanto a desvirtuar-se dum ponto que não passará, talvez, dum erro odioso. Ora as vítimas da má-língua são precisamente as duas personagens do drama para mim as mais simpáticas...

Ele viu-a desmesurar os olhos. Calculando que a ”degelara” e a fim de conquistar definitivamente para o seu intento uma preciosa aliada, apressou-se a encadeá-la,

Se você pudesse dizer-me o que pensa a respeito dum tal Renaud...

Renaud? repetiu Carine, quase privada da voz pela estupefacção.

Como era que Renaud vinha para o caso? O jornalista correspondeu à interrogação do olhar dela, precisando:

Um tal Renaud Martin, filho do antigo professor primário da vila. Um bom rapaz, segundo me disseram, que faz com brilho os seus estudos em condições difíceis. Presentemente exerce o lugar de prefeito numa escola particular e procura concluir não sei que licenciatura com vista ao professorado.

Tirou do bolso um maço de cigarros meio amarrotado e estendeu-o maquinalmente a Carine que, de olhos fixos, como hipnotizada, pareceu não o ver. Pausadamente tirou um, meteu-o entre os lábios, acendeu-o e, com agudo olhar fito nela por cima do isqueiro, perguntou num tom que desejava aparentar indiferença:

Também me disseram que ele era dantes amigo inseparável da filha mais velha do senhor Marinot... filha de um primeiro casamento desse senhor, me parece. Aquela a quem nestas redondezas toda a gente chama o ”Cisne Negro”, não sei porquê.

Carine escutava-o sem se mexer, sem manifestar, por um leve frémito que fosse, que o entendia e estava compreendendo.

No seu íntimo, qualquer coisa se erguia contra esse silêncio que representava um abuso de confiança para com esse desconhecido. Moralmente, já não tinha o direito de calar por mais tempo a sua identidade, de deixar falar o seu interlocutor sem lhe dizer quem ela era. Até aí, deixá-lo no seu engano não revestia grande importância. Mas agora?... Agora que ele falava dela... e de... Renaud, poderia de modo honesto deixá-lo continuar?

E, todavia, uma força invencível impedia-a de falar. Era justamente porque ele se referira a Renaud e a ela própria, Carine, que desejava ir mais além... saber, saber enfim... Tanto pior se era um desonesto, se...

Ela semicerrou as pálpebras para que o malicioso olhar daquelas pupilas cinzentas não pudessem ler as suas reacções... Mas foi-lhe necessária uma invulgar força de vontade para não se denunciar, enquanto o visitante prosseguia no mesmo tom entre afirmativo e duvidante:

Contaram-me que a primeira mulher do industrial, filha de rica família provinciana como ele, e a mãe de Renaud Martin eram amigas de infância. A sua intimidade reflectiu-se nos respectivos filhos, continuando em ambos, parece, não obstante a desproporção da fortuna. Enquanto crianças, os pequenos quase nunca se separaram. E ainda há tempos ele vinha muitas vezes na moto para a ver... formando um idílio campestre, afirmaram-me... idílio que a segunda esposa do industrial, herdeira duma família de alta estirpe e nobreza, cheia de títulos aristocráticos, não teria visto com bons olhos para a enteada, à qual se teria oposto com violência.

Em face da atitude de Carine, que o escutava de rosto parado e de olhos semicerrados, o jornalista irritou-se:

Não diz nada? Não me ajuda? Pois adiante... passarei sem isso. Jurei a mim mesmo que havia de saber a verdade e não permitiria que a maledicência venenosa se encarniçasse sobre aqueles dois entes cujo crime não era senão o de terem a coragem de serem simples e de se amarem à parte de preconceitos e convenções...

Bruscamente ele descarregou com violência o punho fechado da mão direita na palma da mão esquerda.

E - concluiu ninguém me poderá barrar o caminho! Nem você, nem os outros!

Carine obrigou-se a continuar impassível, mau grado a onda de sentimentos que em seu peito se agitavam. Não era dela... dela e de Renaud, que se tratava?... De súbito, a lembrança das palavras de Xavier acudiu-lhe à mente, num clarão... as suas alusões... as suas reticências... Saber: só ”faltava” saber.

Carine reabriu os olhos, que pareciam imensos, e forçou um ar gracejador.

Mas para que precisa de mais informações? Já me parece bastante bem informado! Que quer saber de mim?

Ele calou-se por momentos. Balanceava o corpo, os olhos baixos para a cigarrilha de que sacudia maquinalmente a cinza. Percebia-se que hesitava em confidenciar-se mais com ela. Mas, por fim, numa decisão, ergueu para a jovem um olhar tão franco e luminoso que ela se envergonhou do seu papel.

Gostaria que me dissesse se estarei enganado acerca daqueles dois a que me referi... Renaud Martin e... a sua amada. Porque, veja lá, apesar de tudo quanto se diz e talvez mesmo por isso, são-me simpáticos ele e ela. Ele, o rapazola que se educou por si próprio, lutando sozinho para merecer a alta posição que escolheu. Ela, a filha de ricos, educada no meio dos falsos deuses de ontem: o dinheiro e a nobreza fidalga, conservando o necessário bom senso para lhes preferir os verdadeiros valores de hoje: o trabalho, a coragem, a fidelidade!

Carine voltou os olhos para ele para perguntar:

E então?

Então tornou o jornalista com entusiasmo se assim é, eu não descansarei enquanto não trouxer bem à luz os meandros deste drama.

A jovem como que arredou, com um gesto, essa eventualidade.

E, no entanto, justamente porque eles são assim dignos, é que se torna indispensável deixá-los em paz e na tranquilidade...

Mas não compreende que não poderá haver paz e tranquilidade para eles, mesmo que estejam inocentes, sem se descobrir o responsável... e note que eu não digo o culpado, o assassino...

Sem poder dominar-se por mais tempo, ela exclama:

Mas não há, nem pode haver nenhum assassino!... Todos, nesta terra, adoravam aquela senhora tão bondosa e bela. Ninguém no mundo, ninguém, ouviu bem, poderia desejar nem por um instante a sua morte!

A réplica esfuziou, dura, incisiva:

Nem mesmo Renaud?

Carine recuou. O seu olhar foi perturbado por uma espécie de pasmo, para logo brilhar cintilante de cólera:

Retire-se! gritou, voltando-se para correr na direcção do castelo. Vá-se daqui! Detesto-o! Odeio-o!

Parado em meio da álea, ficou a olhar demoradamente a figura da rapariga que corria desvairada, como criança perseguida.

Esquisita rapariga! murmurou num meio sorriso.

Em seguida, notando subitamente que ela deixara sem resposta a sua última pergunta:

”Vejamos, vejamos... talvez seja...pensou interessado.

E já não teve mais vontade de sorrir.

 

                             O noivo terçado

Carine correra para casa como se uma matilha de cães a perseguisse, o coração a saltar-lhe no peito, o cérebro enlouquecido e vazio.

Quando parou à vista do terraço, já do outro lado dos canteiros de flores, com tomar o fôlego de novo lhe veio o pensamento.

”Renaud! É então de Renaud que eles suspeitam!...”

A verdade acabava de fulgurar no seu espírito. As palavras do jornalista reuniam as insinuações, os subentendidos de Xavier.

Xavier. Ele sabia tudo!... Tinha de lhe explicar!... Precisava de saber... Porquê o tom em que lhe dissera que Renaud partira justamente na tarde da caçada fatal?

Renaud? Mas por que acusá-lo a ele? Podia considerar-se inépcia dum caçador... Mas, não!... Se por desgraça a descarga dessa chumbada perdida no ar fosse a causa da viuvez do senhor Marinot, o rapaz seria o primeiro a demonstrá-lo, a acusar-se logo, em vez de se safar, como parecia quererem acreditar. Ela conhecia bem o quilate da sua alma...

A menos que nem ele próprio tivesse dado por isso. Carine conhecia a forma traiçoeira como as chumbadas se espalhavam a certa distância em todos os sentidos. Tem-se visto que, batendo num tronco ou em qualquer obstáculo, não é raro resvalarem de recochete, qual bola de bilhar que se desvia e parte noutra direcção. Quantos inquéritos em seguida a acidentes de caça terminam pela imprecisão lacónica desta resumida frase: ”Chumbo perdido”, deixando tudo e todos na incapacidade duma absoluta certeza.

Mas então quem poderia dizer que fora Renaud? Ele, porquê? E por que insinuara Xavier que ela própria se encontrava em perigo... se não a ”desligasse” a tempo?...

E por que lhe recomendara que não pronunciasse o nome de Renaud diante de seu pai? Também este suspeitaria dele? Ah! Necessitava de saber tudo imediatamente! Retomando pois a sua energia correu ao telefone que havia no vestíbulo e ligou:

”Xavier, és tu? Vem cá a casa sem demora!”

O trajecto era curto e ele não poderia tardar.

Pouco depois da morte do marquês a viúva do seu sobrinho ocupava o castelo com seu filho Xavier, o último descendente do seu nome. Em seguida ao seu falecimento a ruína logo se manifestou e Marinot ofereceu-se então para resgatar Ardimont, a favor de Ghislaine, se ela aceitasse desposá-lo. A prima daquela retirou-se então com Xavier para um pequeno solar vizinho do dos seus parentes, e de resto em mau estado de conservação. Aí passou então a viver mui restritamente do produto de algumas terras de cultivo, mas conservando, no entanto, os seus ares de grande senhora e a sua altiva brusquidão.

Em poucos minutos Xavier podia, portanto, chegar à presença de Carine, mesmo que viesse devagar no seu cabriolé. E assim foi.

Quando ela o viu saltar do seu antiquado carrinho, sem mesmo se dar ao trabalho de abrir a portinhola, a jovem desceu os poucos degraus do terraço indo ao encontro dele e, pegando-lhe num braço, levou-o a toda a pressa até junto dos terrenos floridos e dos relvados.

Mas aonde me levas tu com esta pressa toda?

perguntou inquieto por aquela agitação.

Aqui respondeu ela, inspeccionando em redor aquele campo sem arvoredo e a descoberto. ninguém poderá escutar-nos.

Olhava-a, parado a meio duma álea e logo baixou o olhar, fixando um pequeno calhau que arredou com o bico da bota porque a cavalo ou não Xavier calçava sempre bota alta, ”como era próprio dum fidalgo” segundo dizia.

Sim, e depois? murmurou pouco à vontade.

Depois, podes ler na minha cara que estou sem saber inteiramente certas coisas disse com uma decisão que tornava duro o seu rosto pálido, em geral tão suave de expressão. Mas chamei-te e conto contigo para me dizeres aquilo que eu ainda não sei!

Ou seja? obviou ele com prudência.

Em que te baseias tu para tornares Renaud responsável pela morte de Ghislaine?

Xavier, com ar constrangido, embaraçado, tentou, aliás mal, iludir a resposta:

Compreendes... o facto dele ter desaparecido da caça logo a seguir ao momento em que se encontrou a morta...

Encolhendo os ombros Carine disse com impaciência:

Mas isso nada significa. Também havia deixado a...

Súbito, a sua voz extinguiu-se e também o seu olhar. E foi como se no meio desse jardim tranquilo, a jovem se sentisse morrer de pé. Estendeu instintivamente a mão, mas nem deu tempo a que ele lha segurasse. Reagiu prontamente. E de novo as palavras puderam aflorar aos seus descorados lábios:

Meu Deus!... Mas não, Xavier, isto não é possível!... E era por esse motivo que tu falavas de me salvaguardar?... Ou acusam-me de eu ter sido testemunha do desastre e não indicar Renaud como seu autor?

Xavier agitou as mãos com desespero.

Ah! que se se tratasse só dum desastre! Sem poder empalidecer mais do que já estava,

Carine balbuciou:

Vamos, Xavier, não vais dizer-me que... Bruscamente, ele segurou-a pelos ombros e declarou:

Então, escuta: é melhor que tu o saibas: as línguas do mundo não se calam.

Não se calam contra Renaud? Contra mim? Mas porquê?

Ora, porquê! Porque tudo é contra vós! Ele eclipsou-se da caçada e tu idem, quase ao mesmo tempo... Ele não voltou a aparecer no castelo, do qual era um dos familiares, se bem que ultimamente a tua madrasta não o visse com bons olhos, afirmam os maldizentes... e depois ainda houve... aquela violenta discussão...

O quê? Ouviram aquela nossa ligeira altercação? Nesse caso, devem compreender que um rapaz que acaba de ser mal recebido por aquela com quem estimaria casar, é natural não continue a caçar junto dela.

Xavier olhou-a de lado.

Infelizmente ouviu-se que ele atribuía à tua madrasta a oposição pela qual lhe retardavam de modo indefinido o casamento... e Renaud estava muito exaltado, parece!

Aterrada, Carine compreendia enfim: não era dum simples acidente de caça que acusavam o seu amigo de infância.

Xavier! Tu não podes acreditar que ele fosse capaz de...

Ele não a deixou concluir:

Não, eu não acredito, embora reconheça que a sua desaparição disse com veemência que a sua fuga sejam suficientes para o acusarem. Se eu acreditasse, cuidas que seria capaz de me incomodar para ver se o salvo?

E que podes tu fazer para isso? perguntou, abatida.

- Sozinho, nada! Mas contigo, tudo!

Ele agarrou-a pelos ombros e, mergulhando o olhar nos olhos dela, disse:

Pensa bem, Carine: o que se pode formular de pior contra ele? A sua partida? Mas esta seria natural se tu o repudiaste definitivamente. E o móbil dessa fuga? O móbil, dada a posição de Ghislaine, cai pela base se considerarmos que escolheste de tua livre vontade um outro para teu futuro marido. Já não se poderia dizer, como agora se murmura: ”Ela incomodava-os; era um obstáculo” se agora, depois do desaparecimento da pobre Ghislaine, vocês se afastaram um do outro...

Insistia, apertando-lhe os antebraços, que segurava com força, como para lhe fazer penetrar o seu pensamento:

Carine! Carine! É forçoso que sejas senhora de ti, que vejas bem, que encares a triste realidade! Designando-me como teu noivo, desde já, e parecendo feliz, tu salvas Renaud duma terrível acusação... Largou-a e acrescentou, suspirando: Em todo o caso, tu estás salva!

A jovem parecia desvairada.

Eu... eu ainda não consigo compreender bem murmurou, passando pela fronte a mão trémula.

Então ele, repisando as palavras como quem mete na cabeça duma criança certa lição, disse:

Ora faz um esforço para conseguires compreender! Acusam Renaud de ser o autor ”voluntário” do desastre fixa bem isto! e as suspeitas, que por enquanto não passam de murmurações, não tardarão em criar amplitude, gravidade, suspeitas às quais estás associada, Carine, pois toda a gente crê que vocês se namoravam secretamente, sendo a desventurada morta o ”único” obstáculo erguido contra o vosso casamento. Anunciando-se os nossos esponsais, estando o namoro aliás confirmado pela nossa assiduidade junto um do outro, depois da fatalidade ocorrida, dar-se-ia volta ao caso e tudo retornaria à normalidade... O obstáculo entre Renaud e tu já não seria a tua madrasta, mas sim eu! Eu, a quem tu votaste verdadeiro amor... ao passo que com ele só terias mantido uma fraternal amizade de infância. Quero dizer que desapareceria qualquer razão de animosidade contra Ghislaine. E dum só golpe todas as suspeitas cairiam por si. Apartando-te dele, tu salva-lo... Mas se o aproximas, ou te aproximas, ele estará perdido... e tu com ele. Xavier deixou pender os braços, desencorajadamente, e abanou a cabeça:

E tudo quanto eu tenho feito vai ficar inutilizado!

Carine pareceu não o entender. E num passo de autómato, dirigiu-se para o castelo.

Carine tornou ele ansioso e seguindo-a compreendeste bem? Reconheceste a urgência que há para ti... e para... Renaud, em tomares uma decisão?

Ela voltou-se bruscamente para ele:

Sim, eu ”reconheço” replicou iradamente que me acusam de cumplicidade na morte daquela a quem eu amava mais do que se fosse minha verdadeira mãe... Mas, mesmo para me furtar a essa acusação, mesmo para provar a inocência de Renaud, da qual estou certa, não me sinto com o direito de tomar uma decisão que poderia talvez ser o desespero de Patt.

Patt. exclamou ele, erguendo os braços ao céu. Que loucura a tua! Juro-te que te enganas redondamente!

No mesmo tom inflexível, Carine concluiu:

Assim o desejo... não só por Renaud como talvez por ti, meu pobre Xavier, embora pergunte a mim mesma que género de casamento poderia fazer a tua felicidade?... Mas é inútil insistir. Não anunciarei compromisso de casar contigo sem primeiramente falar com a minha irmã.

Pela doçura infinita que, pela primeira vez depois da tragédia, brilhava nos olhos negros e abafava a voz de Carine, o jovem fidalgo compreendeu que não abalaria aquela decisão.

Teve um gesto fatalista.

Mas terás tu noção da urgência que há?

Vou procurá-la imediatamente disse com autoridade, referindo-se à irmã.

 

                                   O coração de Palt

Duas horas bastavam para percorrer de carro a distância que ia d’Ardimont à abadia de Pierre-Blanche, aonde Patt procurara refúgio.

O carro de Carine dir-se-ia voar estrada fora, enquanto que sobreexcitado o espírito da jovem defrontava sucessivamente todos os aspectos da medonha situação em que se encontrava envolvida.

Quanto mais reflectia, mais claro e fatal lhe parecia que Renaud e ela, ao abandonarem sem razão aparente a caçada, pouco depois da madrasta aparecer morta por uma descarga anónima, se encontravam de facto em terrível situação.

Assim se explicavam certas atitudes reservadas, certas ”indiferenças” incompreensíveis que Carine notara, não sem surpresa, após aquela desgraça.

Enquanto toda a compaixão e simpatia visavam seu pai e sua irmã, pareciam esquecer ou menosprezar o seu desgosto, todavia tão sincero. Sim. Agora, ela compreendia...

A desaparição completa de Renaud depois do acontecimento agravava as circunstâncias. Depressa, o que a malignidade pública murmurava, podia tornar-se uma ameaça mais grave, de carácter oficial. E, para frustrar essa ameaça, o que havia a fazer? Anunciar o seu casamento com Xavier? Mas se essa resolução a única bem capaz de a salvar e a Renaud, segundo aquele levasse ao desespero Patt? Sem o saber, Carine, em sua consciência, nada resolveria...

E mais a amedrontava recordar a atitude da irmã durante o luto. A ansiedade torturava-lhe o coração enquanto esperava agora Patt no frio silêncio do parlatório do convento.

Gelada, ansiosa, abriu a porta envidraçada e encontrou-se sob as arcadas dum claustro. Respirou melhor. Também ali o silêncio reinava, mas o tímido sol de inverno descia por entre duas colunas para acariciar as lajes sob o arco ogival, pondo na severidade desse lugar como que uma carícia de suave renúncia, paz não desesperante mas, pelo contrário, plena de promessas.

E, no entanto, Carine sentia aumentar os seus receios. Sim, tudo isso podia inquietar terrivelmente a desventurada menina se...

Não sossegou enquanto não a viu aparecer no fim do claustro onde a esperava, vendo-a aproximar-se com seu modo decidido, seu passo firme, senhora de si como sempre.

Em face uma da outra, ficavam sempre em contraste: a mais nova, forte, ruiva e rosada, de aspecto frio e autoritário acentuado pelo desenho do nariz e do queixo; a primogénita, alta, delicada, cabelos castanhos e pele branca, corpo flexível que, no conjunto com o porte altivo da sua pequenina cabeça, assente no pescoço delgado e fino, lhe tinha valido esse baptismo de ”Cisne negro”. Logo de longe, Patt, inquieta, lhe atirou: Que vens aqui fazer? O pai está doente?

Não respondeu Carine, indo ao encontro dela. Nem por isso, no entanto, temos muita necessidade da tua presença, minha querida. Mas, para dizer a verdade, de momento, não somos ”nós”, mas ”eu” quem necessita falar-te.

Patt empertigou-se um pouco no abraço com que a irmã procurou cingi-la.

Não vejo em que possa servir-te... Nada valho para as tuas precisões materiais e, moralmente, na tua idade, deves saber conduzir-te sem recorrer, penso, a uma garota como eu! Sobretudo, se se trata, como suponho, da traição que consiste em retomar a palavra dada.

Carine estremeceu.

Era então bem aquilo! Fiando-se na sua surpreendente atitude na ocasião do drama, Carine supusera-os de acordo, Xavier e ela, em detrimento de Renaud. Para a obrigar a ser categórica, perguntou:

Que entendes tu, exactamente, pelo que acabas de dizer?

Desta vez a mais nova explodiu, vermelha de indignação:

Que depois de teres feito acreditar a Renaud, durante dez anos, que te casarias com ele, pensaste deliberadamente em esquecê-lo para desposar um outro! Eu tenho dois olhos para ver, bem sabes!

À cólera fazia-lhe tremer a voz, e, nesse mesmo instante, um raio de sol, deslizando por entre duas colunas, desferiu tais clarões nos seus cabelos que toda ela parecia uma labareda.

Quando penso murmurou de dentes cerrados que tiveste a imensa ventura de seres amada por um rapaz como Renaud e o repudiaste, e o puseste longe de ti... e de todos nós, por causa dum tipo irritante como Xavier!

Mas isso não é verdade! protestou Carine Ele não se afastou por semelhante motivo! Nunca lhe preferi o Xavier... este é que me quer, segundo parece e...

Patt riu de chacota.

Quer dizer que ele representa contigo a mesma comédia que representou comigo, há um ano, antes de eu o mandar passear...

Ah! exclamou Carine com alívio. Tu rejeitaste-o? Mas então não o amas, não tens ciúmes?

Eu, ciúmes de Xavier replicou Patt com estupefacto desdém. Estás doida? Julgarás porventura que todos estão atingidos pela tua doença, senhora minha irmã? O mal não é contagioso, descansa!

Escuta-me! Suplico-te que acredites nas minhas palavras, querida... Sei bem que a minha atitude pôde equivocar-te. Outros se enganaram também. Eu é que estava bem longe, crê, de imaginar o resultado a que dei margem. Deixei-me abraçar por ele porque os seus braços foram os primeiros que se estenderam para mim... mas juro-te que não o amo e que a ideia de casar com ele para salvar Renaud é para mim atroz...

Ouvindo tais palavras, Patt quase pulou, com os olhos bem abertos:

Mas tu não estás boa da cabeça! Vejamos, Carine, vê se voltas a ti! Que significa o que acabas de dizer? Salvar Renaud casando com Xavier? Isso é idiota, não tem pés nem cabeça... Tu bem sabes, pelo contrário, que, abandonando-o, é que o matarias!

E fixava com assombro a irmã que com os olhos replectos de lágrimas a custo contidas, meneava a cabeça, entristecida.

É o único meio...

QUal meio? exclamou a outra, agarrando Carine pelo braço e sacudindo-a com todas as suas forças. E... salvá-lo de quê, diz-mo antes de mais nada?

Ah, sim, é verdade suspirou Carine com lassidão tu ainda não sabes nada, minha querida...

E, como numa precisão de confessar-se para alívio da sua alma, confiante no bom entendimento dessa juvenil irmã que ela pressentia mais forte e bem avisada do que ela própria, contou-lhe tudo. Num verdadeiro turbilhão de palavras, relatou-lhe as alusões de Xavier, a sua discussão com seu pai, os ditos que corriam e enfim, a brutal acusação trazida pelo jornalista desconhecido contra Renaud.

Ao ouvir esse nome, Patt deu como que um salto e as faces coloriram-se-lhe vivamente:

Renaud? Como? Ele ousou acusar Renaud!... E tu consentiste?... Ouviste-o?...

Desalentada, Carine encolheu os ombros: Que podia eu dizer?

Precisamente, que esse rapaz é o mais leal e honesto que se pode imaginar, incapacíssimo de fazer mal seja a quem for!

E para quê? O repórter estava ali sozinho! Mas parece que toda a gente fala no desaparecimento de Renaud, facto esse não de molde a apaziguar os espíritos.

Mas qual o motivo, o móbil? tornou Patt, indignada. Por que havia ele de fazer uma coisa dessas?

Sabe-se que éramos amigos de infância, inseparáveis, e toda a gente nos considerava já como noivos... Quis, porém, a fatalidade que, naquele dia da caçada, aproveitando uma ocasião em que ficou só comigo no bosque, Renaud me perguntou porque não nos casávamos em breve. Recusei fixar data próxima, pedindo-lhe até que esperasse a sua nomeação de professor. Ele exaltou-se então, muito acusando tua mãe de ser a responsável por essa minha recusa; pretendendo que ela tinha a meu respeito vistas mais largas, mais ambiciosas e considerava humilhante que a sua enteada desposasse um simples professor... enfim, doidices...

E após curto silêncio, concluiu com voz estrangulada:

O pior foi que uma ou mais pessoas ouviram aquelas palavras, as quais, repetidas com má intenção e por maldade, começaram a correr de boca em boca... Inventou-se então que a nossa pobre mãe era o único obstáculo erguido entre Renaud e eu, desencadeando assim sobre ela a vingança do rapaz... Acresce que ele abandonou a caçada... e eu também!... concluiu com um suspiro.

Patt levou a mão à boca num gesto de terror. Os seus grandes olhos cheios agora de emocionado pavor, diziam quanto ela compreendia a gravidade da ameaça.

Mas isso é loucura, loucura perfeita!... Inconcebível!... Pobre Renaud! Temos de fazer imediatamente qualquer coisa...

Sim disse Carine. Só há uma coisa a fazer, como já te disse. Uma coisa que poderá explicar a minha recusa e destruindo até a ideia da oposição de Malaine: uma coisa que me poria, pelo menos, a coberto do escândalo: o meu casamento com Xavier.

Patt teve novo encolher de ombros.

Penso que se Renaud aí continua, não poderás escapar-lhe! E diante da expressão interdita da irmã, perguntou impulsiva: Afinal, tu ama-lo ou não?

Tinha apenas doze anos quando decidimos casar-nos, eu e ele respondeu Carine com simplicidade.. Pensativa, Patt disse:

Entre um compromisso desses aos doze anos

e amar aos vinte há uma grande margem... transposta, parece, pelo Renaud, dada a sua impaciência em não querer esperar. Tu... Carine interrompeu-a:

Não é agora o momento próprio de nos preocuparmos com essas subtilezas, mas sim com a segurança de Renaud. Não esqueçamos que está ameaçado na sua liberdade e na sua honra. Sucede que a mesma ameaça nos uniu. O essencial é remediar, travar.

Para isso, partamos depressa para Ardimont! Tens razão. Vamos disse decidida Patt. No caminho teremos tempo de estudar um plano...

Em silêncio, conservaram-se absortas em dolorosos pensamentos durante mais duma hora viajando no carro.

Súbito, carregando as sobrancelhas, Patt declarou:

A desgraça é que eu não vejo, para vos livrar, outro meio a não ser o proposto por Xavier...

O carro saltou num brusco solavanco:

Queres dizer que devo casar com Xavier? perguntou Carine com voz abafada.

Se prometer casamento não implica necessariamente casar respondeu. E passa-me o volante senão enfiamos por algum barranco!

Docilmente, Carine passou o comando do automóvel à irmã. Sentiu-se profundamente desalentada.

Ao fim dum longo silêncio, Patt murmurou, como se falasse consigo própria:

Anunciar o casamento teria a imediata vantagem de fazer sair Renaud do seu esconderijo. Julgas que ele reagiria, aparecendo?... E quando o apanhássemos, seria fácil explicar-lhe a fundo a questão da sua atitude e de o expurgar de toda a suspeição infamante. Depois...

Teve um movimento desenvolto para arredar a madeixa dourada que teimava em cair-lhe para os olhos.

Carine voltou a cabeça para melhor admirar o traço do seu perfil voluntarioso. E entre ansiosa e hesitante, perguntou:

Porque tu também estás convencida da inocência dele, não é verdade?

As finas sobrancelhas carregaram-se de novo:

A própria pergunta me espanta. Renaud? Nunca!...

E todavia volveu timidamente Carine, no espírito da qual a ideia abrira lento caminho, todavia, no dia da caçada tu me disseste que todos acreditavam num acidente... mas que não era verdade! Tenho pensado muito nisso desde ontem... Tu, como os outros, não criam num desastre?...

O automóvel acabava de entrar na alameda, ao fundo da qual se erguia Ardimont com seu aspecto altaneiro.

Patt viu que podia responder sem arriscar outras perguntas incómodas.

Sim disse. E em voz muito baixa: Mas não, não foi nele que eu pensei...

 

                       O remédio que apaga a memória

Logo que Renaud recuperou os sentidos e ficou consciente, a primeira coisa que lhe feriu a atenção e o olhar, naquele quarto desconhecido, foi a fina rede que guarnecia a janela, grande e aberta, perto do seu leito e sobre uma densa vegetação tropical.

- Onde estou eu? balbuciou, levando a mão hesitante à fronte que ao mesmo tempo sentia ardente e estranhamente vazia.

- Estás em Quaracha, na casa do teu velho companheiro Fechman disse, perto do leito, uma voz rude, mas afectuosa.

Renaud sentia-se incapaz de voltar a cabeça para ver quem assim lhe respondia. Olhando para diante de si, com olhos vagos, murmurou:

Em Quaracha? Bechman? Não sei... não me recordo...

E mergulhou de novo na inconsciência.

Foi somente, quase uma semana depois, que ele conseguiu encontrar uma parcela da realidade, reconhecendo aquele que se conservava à sua cabeceira, embora as suas botas altas, o calção de cavaleiro e a camisa aberta no peito transformassem enormemente o antigo professor na escola de Nancy.

Alex? suspirou, admirado e feliz de encontrar finalmente um fio condutor na embaraçada meada das suas recordações.

Ora até que enfim e em boa hora seja! exclamou a voz jovial do seu amigo. Até que achaste o meu nome! Vamos, que já não era cedo para te recordares do teu antigo companheiro dos bancos da escola!

Soergueu-se apoiado num cotovelo, e com expressão meio alucinada, Renaud murmurou a custo:

Agora, sim, estou a lembrar-me, estou, desse dia em que o pequeno Renaud Martin chegou ao colégio de Nancy e entrou intimidado na escola primária dirigida na vila por seu pai... O pequeno Renaud era eu! E tu... Alex prosseguiu com devotado acento no tom da voz eras o camarada ”maior” que me defendia dos outros... esse amigo que obrigava mesmo os mais fortes a respeitarem-me e à menor arremetida lhes aplicava a respectiva sova!

Leve emoção se dissimulou no riso de Alexandre Bechman.

Muito bem, sim, senhor! Onze valores para a boa memória do aluno Martin! E então... ficam por aí as recordações?

Oh, não! tornou Renaud fervorosamente. Lembro-me ainda da maneira como me protegias e estimavas sem cessar, como se fosses um irmão mais velho... E depois, mais tarde, não foste ainda tu quem me arranjou o cargo de explicador na instituição onde já eras professor de história, permitindo-me assim concluir os estudos nessa época?

Começava a falar menos seguro de si e mais hesitante. Com paciente precaução o professor insistiu:

E é tudo? Ora vejamos: não te recordas de que eu deixei Nancy há cinco anos para ir para muito longe, reger uma cadeira de história e de arqueologia... na América do Sul... em Quaracha?

O dolorido rosto do enfermo como que se iluminou.

É verdade, sim. Agora acudiu-me de repente à ideia!... Muitas vezes perguntei até a mim próprio qual seria a íntima, a profunda razão desse exílio... de vós ambos?

De ambos! acentuou Alex com júbilo. Isso quer dizer que te lembras de Cecília...

A razão profunda daquele exílio? Poderia acaso dizer-lhe que o motivo provinha de Cecília, a sua amada irmã, não suportar mais viver na mesma terra em que existia um Renaud indiferente por ela, um Renaud que não pensava senão em Carine, que só falava em Carine, que unicamente amava Carine?

Estou a lembrar-me, sim...continuou lentamente Renaud de Cecília... uma companheira de infância, também tão gentil!... Bastante gostava e queria a vocês dois!

Então Alex, decidiu atacar:

Ora se tu nos estimasses e querias tanto podes explicar-me por que hesitaste durante várias semanas antes de aceitares vir juntar-te a nós, podendo eu aqui fazer-te entrar como professor no meu colégio? Por que respondeste às minhas primeiras cartas com um redondo não, quase brutal, e só depois de variadas tergiversações acabaste por escrever uma carta a dizer não poderes vir sem primeiro definires em absoluto a tua situação em França?... De resto, foi preciso fazer-te ver na minha última carta que o tempo livre deixado pela situação oferecida te permitiria realizares as pesquisas arqueológicas em curso neste país, ao tempo ainda intactas, para então te decidires! E não foi Cecília nem eu que te atraímos aqui, mas, estou certo disso, o mistério do tesouro dos Incas!

Um clarão brilhou nos olhos mortiços do doente, em reflexos dourados.

O tesouro dos Incas - repetiu.

Sim tornou Alex, tirando a fumaça do seu cachimbo, mas sem desviar do amigo os olhos através da pequena nuvem de fumo. Nem mais, nem menos! E ainda assim hesitaste! Na tua última carta para mim dizias-me estares tentando ainda uma última diligência... Se esta não resultasse como desejavas, considerar-te-ias livre de vir para aqui, fazer a tua vida junto de nós...

Diante da fisionomia sempre inexpressiva e indiferente do seu amigo, insistiu:

Essa última diligência realizaste-a, sem dúvida. E também sem dúvida foi de resultado negativo... visto que, quase ao mesmo tempo com a chegada dessa carta, tu chegaste sem nos teres prevenido. Vieste, a bem dizer, sem bagagem nenhuma, tremendo e já um pouco delirante de febre.

Num gesto desalentado, Renaud encolheu os ombros.

Não sei... Não me recordo! As tuas cartas, as minhas, a viagem, tudo isso se baralha e perde num nevoeiro... Enquanto os nossos tempos do colégio me surgem tão nítidos como se estivessem próximos, tudo quanto é mais recente me escapa por completo... os factos, as coisas, as pessoas...

Sempre com a mesma insistente paciência, Alex disse:

Nem um nome, nem qualquer facto acode à tua mente?

Uma vez mais, o seu avantajado corpo, ainda há pouco tempo tão robusto, tremia debilitado, qual gigante abatido. Num brando e confrangente gesto, tantas vezes esboçado, levou a mão à fronte para arredar a madeixa de cabelo castanho que teimava em cair-lhe para os olhos.

Não! Nada...murmurou com esforço. É como se me tivessem dado uma forte pancada! Peve ser da doença... Terrível!

Mas espera obviou logo o amigo: aqui há só agora uma coisa importante: estares salvo e encontrares-te entre nós, que te dedicamos a maior amizade! A vida é bela, Renaud, crê... Não tentes nada, não penses em nada. Dorme, sonha ou lê... Tudo se há-de arranjar, verás!

Lentamente, o enfermo deixou-se escorregar, ficando estendido de costas no leito.

A vida é bela?... balbuciou interrogativamente, como se para ele semelhante afirmação não possuísse qualquer sentido.

Então? perguntou avidamente Cecília, que espreitava detrás da porta a saída de seu irmão.

Então respondeu, afastando-se com precaução, para o fundo da casa recobrou os sentidos mas não de todo a memória. Está incapaz de explicar como e porquê chegou aqui naquele. oh! meu Deus! gemeu ela, levando à face a mão trémula. Irá ficar assim?

Talvez fosse melhor para ti, se assim sucedesse disse com teimosa ternura. Nem um nome, um só, excepto os nossos, acode ao seu espírito.

Uma louca esperança relampagueou de súbito no rosto pouco agradável da rapariga.

Nem um? insistiu ela. Nem mesmo o de...

Carine? Nem mesmo esse. Confesso que acho bastante estranhável, depois de o ter repetido tantas vezes no seu delírio! Formidável o facto, mas, antes de mais nada, caso feliz. Através das suas divagações, pudemos compreender, tu e eu, que houvera um rompimento entre os dois... Ou não será assim?

Por instantes, olhou a irmã com insistência. Esperançoso, verificou que a vida ao ar livre naquele clima, havia dourado a sua epiderme outrora baça, afinado o seu corpo, mais bem musculado, ao qual ficava bem agora o ”short”. Sorriu.

Desejemos pois que esta favorável falta de memória dure ainda algum tempo, hem? O tempo necessário a poderes fazer-te apreciar, agora que ele já não tem os olhos tapados por uma outra imagem!

Corando até à raiz dos cabelos, Cecília balbuciou:

Que queres tu dizer, Alex?...

Que os doentes são muito sensíveis às amabilidades, aos carinhos... E agora que eu to trouxe para cá, é natural que ele não pense mais na outra... Compete-te, portanto, fazeres o teu jogo. concluiu com o seu riso jovial.

Longamente, depois do irmão se retirar, ela ficou pensativa. No fim de contas Alex tinha razão. Naquele que repousava no quarto vizinho residia a grande oportunidade da sua vida, esse Renaud que ela tanto amava em segredo, no meio de ciúme e de lágrimas, aquele que a doença e a perda de memória lhe haviam entregado maleável e confiante...

De súbito, levantou-se. Resoluta, depois de compor diante do espelho os seus curtos cabelos, de cor esmaecida pelo sol ardoroso que os tornara também mais finos e sedosos, Cecília dirigiu-se para a porta do quarto ocupado pelo enfermo. Ao segurar, porém, no puxador da porta para o abrir, deteve-se.

E como se acabasse de tomar repentina decisão diante da qual até aí recuara, saiu ao terraço aonde a mestiça se encontrava toda entregue a um desses trabalhos de ornar sobre cabedal desenhos floreados, espécie de bordadura minuciosa.

Lolla disse imperativamente Cecília, que sabia poder contar na devoção absoluta dessa estranha moça de olhos impenetráveis o doente melhorou, mas não o bastante ainda...

Aproximou-se dela, quase a tocar-lhe, e mergulhando o olhar das suas pupilas azuis acinzentadas nas pupilas de azeviche:

É preciso segredou-lhe quase com uma força de persuasão apaixonada é forçoso dar-lhe ainda por algum tempo a beberagem que lhe tira a memória.

Está bem, ama respondeu simplesmente a mestiça.

 

”Depois de muito reflectir, sou eu agora quem deseja falar-lhe. Quer encontrar-se comigo amanhã, no mesmo sítio e à mesma hora que na terça-feira? Lá estarei.

 

João Dorget volteava entre os dedos aquele bilhete que, na redacção do jornal, acabava de receber pelo correio.

”Segundo estas palavras compreende-se que ela virá pessoalmente...”

No entanto, não saberia dizer se esse convite o deixava satisfeito ou contrariado.

Após o encontro sem qualquer resultado, da outra manhã, o jornalista voltara aos seus trabalhos, nervoso e perplexo.

Alguma coisa no tom da voz, no olhar daquela estranha rapariga o induzia a pôr de parte a sua investigação, a calar-se, a retirar-se em bicos de pés... como se o fizesse do quarto dum morto.

Como ela parecia estimar o tal R’enaud que todavia e segundo diziam era o prometido da filha mais velha do dono do castelo. Fora assaz eloquente a sua reacção quando ele a informara das vozes e comentários que andavam de boca em boca.

Se tanto lhe pedira para ”respeitar a dor daquele luto” não seria devido a que, em vez de recear que a sua curiosidade afirmasse a inocência do jovem professor, essa curiosidade, pelo contrário, trouxesse à luz a sua culpabilidade?

Porque ela não tinha negado. Apesar da emoção que revelara na jovem um sentimento ardente ela nada tinha negado. Não proclamara a inocência do acusado. ”Odeio-o!... Detesto-o!...” Dissera, precipitada. Não pronunciara enfim as palavras que seriam de esperar: ”Está mentindo!”

Deste modo, se essa rapariga, que a despeito da sua situação subalterna tanto interesse mostrava pelo casamento de uma das filhas dos patrões, aceitava a implícita acusação por ele formulada, era por que essa acusação alguma justa razão tinha de existir!

João devia convir, contra si próprio, e até com um certo despeito, que assim era. O seu gosto cavalheiresco pela defesa da inocência oprimida, colocara-o num mau caminho. A sua irresistível simpatia pelo jovem par de namorados postos em causa pela maledicência pública, levara-o a enganador objectivo.

Por consequência, as más-línguas teriam razão e nesse caso o inquérito do jornalista não poderia mais do que reforçar a sua tese ou, até mesmo, talvez, sobrecarregar mais os acusados.

Nestas condições, perdera o desejo de continuar. Como perseguir caça já vencida ou encurralada? Deixava isso aos caçadores a cavalo e às matilhas, género que sempre lhe repugnara. Contentar-se-ia pois em calar-se e... ficar vendo o que se passava.

Todo esse lodo, embora pousado nos fossos dum castelo senhorial, o desgostava demasiado para poder continuar a olhá-lo... A opinião pública que se encarregasse de fazer justiça.

”No fim de tudo pensava se era Renaud o culpado, não iria muito longe nem por muito mais tempo com essa canzoada atrás dele. Inútil misturar-se!

E eis que o bilhete da estranha moreninha vinha levantar de novo a questão. Decidira falar no caso agora que ele nada queria ouvir a tal respeito. Iria ou não àquele encontro?

Hesitou por muito tempo. Que iria fazer a Ardimont se resolvera abandonar o assunto? Que importava agora o que ele poderia dizer-lhe? E no entanto... no entanto, o seu instinto de ”caçador de notícias”, esse pequeno demónio que dorme sempre no âmago de cada jornalista, segredava-lhe o conselho de não perder um ensejo talvez excepcional... de não abandonar uma revelação sensacional, apaixonante, que o esperava, talvez, ao fundo do parque d’Ardimont.

Acabou por se render, ainda que um tanto contrariado.

Chegou atrasado e receou que ela já o não esperasse. Mas a pequena porta entreaberta, sossegou-o. Esperava-o, sim.

Apressando o passo, seguiu pela senda até ao cruzamento aonde se haviam encontrado pela primeira vez. À rapariga lá estava.

Ele estremeceu, porém, ao reparar na sua transfiguração. Em poucos dias, a angústia e as mortificações tinham adelgaçado mais a sua frágil estatura, modelada agora por um ”jersey” preto, um pouco inclinada para diante a sua figura altiva.

O seu pescoço, liberto e branco, saindo da gola do ”jersey” inclinava-se também como se fora incapaz de suportar o peso das negras tranças de cabelo enroladas atrás em espessa cuia. Seus ombros frouxos, as suas pálpebras azuladas, um vinco de amargura ao canto da boca, os braços caídos e as mãos entreabertas ao longo da saia preta, pareciam trair um sofrimento e um desalento imensos.

Profunda piedade, mesclada na curiosidade profissional, nasceram no espírito de João.

”Vejo que ela sofreu a valer pensou. É preciso que sinta muito no íntimo o perigo em que se encontra o rapaz. Deve amá-lo em segredo, embora esteja noivo doutra... Que terá ela sabido? Que irá dizer-me?

Duas perspectivas se ofereciam: ou, obedecendo cegamente ao seu amor sem esperança e não correspondido, ela ia afirmar a inocência de Renaud Martin; ou num acesso de súbito ciúme desejava acusá-lo, denunciando-o...

Sem ao certo saber porquê, o jornalista pendia para a primeira hipótese.

O fogo daqueles grandes olhos negros, entrevisto da outra vez, parecia-lhe incapaz de ocultar um espírito de delação ou de baixa vingança.

Sem directa razão para isso, aquela rapariga inspirava-lhe confiança; achava-a sombria como uma Espanhola, pressentindo-a porém clara e límpida como água corrente dum ribeiro da França.

Nada de vil ou de hipócrita poderia provir dela. Teria respondido pela sua rectidão e pela sua franqueza...

Agradeço-lhe ter-me chamado disse, aproximando-se. Devo concluir daí que abandonou as suas desconfianças e que eu posso ser de qualquer utilidade para aqueles... por quem vos interessais?

Escutara-o sem fazer um movimento, sem o olhar.

Bruscamente ergueu os olhos, enquanto metia a mão no bolso da saia, e numa voz surda dizia:

”Cada um tem o direito de ganhar a sua vida”.

Desconcertado, ele fixou-a:

Que diz?...

Pensei que poderia interessar-lhe em conhecer, antes dos seus colegas, uma notícia que vai decerto causar estrondo... Aqui tem a nota que vai ser comunicada amanhã aos jornais desta região e de Paris.

Estendeu-lhe um papel todo amarrotado como o tivessem amarfanhado nervosamente. Antes de o abrir e de o ler, pensou ainda: terá ela, de facto, a intenção de me ajudar ou estará simplesmente a querer humilhar-me?

Excitado, leu e logo exclamou:

Ah! Mas isto é uma ignomínia!

Sobressaltada, e com o rubor nas suas faces de alabastro, perguntou:

Como? Que quer dizer?

Que esta gente do castelo se ligou entre si para deitar a perder o pobre rapaz que teve a pouca sorte de levantar os olhos para uma das suas filhas. Sabendo-o suspeito e bem assim comprometida por isso a menina, depressa o puseram à margem para o desligar dela. A fim de afastarem da jovem qualquer suspeita de cumplicidade, ofereceram-na de presente a um dos da sua igualha... Que importa que seja um sujeito podre até ao fundo da alma?... É um dos deles e tudo acham preferível ao escândalo. Quanto ao outro que se aguente agora com as suspeitas acusadoras!... Ninguém se preocupa com ele, e menos do que todos, aquela que nestes arredores é conhecida pela designação de ”Cisne Negro”. Essa menina infame que ele considerou sua noiva e o abandona cobardemente, sacrificando-o, sendo ela, como é, a responsável por tudo!

Petrificada, Carine escutara-o sem tempo nem ânimo para o interromper. Desta vez, porém, um grito se lhe escapa:

Responsável, como?

Evidentemente tornou ele, sempre levado pela cólera. Responsável, se acaso ele é culpado desse crime: visto que o teria praticado por ela. Responsável porque se o acusam é por que ele teve a desdita e a loucura de a amar. Amar uma pessoa sem dignidade e sem fé não é a pior das desgraças?

Bruscamente, e quando parecia mais acabrunhada, reagiu então.

Que sabe o senhor para falar assim? É pronto demais em arrasar! Não pensou, antes, que ela pudesse sacrificar-se aceitando um casamento que, pelo contrário, livraria Renaud de toda a suspeita?

Mais calmo ele ergueu as sobrancelhas.

Para dizer a verdade, não vejo como!

Claro que tudo mudaria se ela amasse um outro, visto que então já não podia considerar-se a madrasta um obstáculo entre eles...

Ele olhou-a com irónica piedade.

E fizeram-na acreditar nisso? Pobre pequena... São de força! Mas essa opinião não tem pés nem cabeça! Embora ela prefira um outro, isso não invalida o facto de terem ouvido Renaud Martin alguns momentos antes... do acidente, discutir com aquela que ele queria desposar, atribuindo à senhora Marinot a oposição ao casamento. Foi justamente nisso que se baseou a maledicência para o acusar, compreende?... E agora nada pode desfazer a atoarda... Renunciando ao seu casamento, ajustado desde a infância e comprometido pelo drama, a menina Marinot livra-se de toda a cumplicidade... mas não deixa no entanto de abandonar com frio egoísmo o rapaz. Não. Não tenha ilusões a esse respeito.

Imóvel, diante dele, vacilando ligeiramente, ela abriu muito os olhos, num rosto onde se diria que nem uma gota de sangue circulava.

E, de súbito, a jovem tombou desmaiada.

Pasmado, precipitou-se para a socorrer.

”Que brutalidade a minha! lamentava-se, enquanto soerguia aquele delgado busto, e tirando do bolso o seu lenço o abanava junto do rosto dela. E logo apanhando algumas folhas de hortelã, esfregou-a rapidamente entre os dedos na esperança de que o seu odor a despertasse.

”Nada mais a fazer... E aonde pedir socorro? Não ao castelo, por certo! Quereriam saber o que ela fazia junto de mim ao fundo do parque e a pobre rapariga perderia o seu lugar. Necessitava dum pouco de água fresca...”

Lembrou-se então de ter visto de passagem e ali perto um pequeno lago. Ficava a alguns passos. Segurando entre os braços esse leve corpo desmaiado, olhou bem de perto aquele rosto sem vida. No curto trajecto, apertando contra o peito aquele corpo frágil, mas cheio, a delicada cabeça de cabelos negros tombada no seu ombro, tão próxima dos seus lábios, o jornalista sentia-lhe a respiração alterada.

E foi com simultânea pena e alívio que ele a depôs à beira do lago.

Encharcando o lenço na água, banhou-lhe as fontes, e rasgando em três, fez compressas que lhe colocou uma em cada pulso e a última na testa... Logo então um assomo de vida acudiu às suas faces, em vagas rosetas, enquanto um frémito agitou os seus lábios...

Vendo que ela voltava a si, levantou-se e afastando-se alguns passos, para não a perturbar, ficou espreitando, ansioso, aquele seu despertar.

Finalmente as longas pálpebras ergueram-se e deixaram passar um olhar vago ainda.

Meu Deus... suspirou ela, levando a mão tacteante à fronte que foi que me aconteceu?

O jornalista continuava silencioso, atento a não lhe causar nenhuma nova emoção. Pobre pequena, a memória de tudo depressa lhe voltaria!

Avidamente ele contemplava o encantador quadro formado por essa graciosa figura estendida no tapete de musgos e verdura.

Na semi-inconsciência em que mergulhava ainda, não cuidara de corrigir o abandono do seu delicado corpo... Um dos seus braços, molemente estendido, deixava entrar a ponta dos seus dedos na água verde... Meio erguida sobre um dos cotovelos, sua delicada cabeça pendia parecendo vergar ao peso das belas tranças negras, desenroladas na queda.

Em seu redor, ligeiros caniços e plantas deixavam tombar na irisação da água lânguidas verduras. O sol do outono passando por entre os ramos e as folhas, que dir-se-iam incandescentes, constelava também a superfície lisa do lago, a relva e a negra silhueta de manchas luminosas e dançantes.

Naquela atitude, pensou João maravilhado e enternecido, ela parecia uma bela ave ferida... assemelhava-se a um...

E, de repente, a verdade fulgurou no seu espírito, arrancando-lhe um grito que ele não pôde reprimir, um grito onde vibrava uma espécie de espanto horrorizado.

Mas... é ela, é o ”Cisne Negro”!

 

                                 Pobre Renaud

Como se aquele grito lhe devolvesse a noção dos acontecimentos, Carine soergueu-se, levando a mão à fronte. Deixou-a cair depois sobre o joelho e disse num tom de voz infinitamente fatigado, ao mesmo tempo que descerrava as azuladas pálpebras para o olhar:

Pois bem, sim, sou eu.

Viu então que ele, rígido, recuava passo a passo, como se receasse tocar-lhe. E leu nos seus olhos dilatados um tal desprezo que ela estremeceu de revolta.

Diga-me tornou mais vivamente por que olhar para mim desse modo, como se eu lhe causasse horror? E no entanto o senhor mostrou simpatia pela minha situação, segundo confessou, antes de me conhecer.

É isso mesmo replicou ele, irritado. Sem a conhecer experimentei uma certa simpatia por... por aquela que eu supus capaz de tudo afrontar em defesa do seu amor... Outro tanto a senti pela estranha rapariga que eu julguei fiel e devotada àqueles de quem era servidora... E, de súbito, tudo isso se esvaiu, deixando um tal resíduo de cobardia, de hipocrisia, de duplicidade, que...

Como que açoitada pelo tom destas últimas palavras, exclamou:

- Proíbo-lhe!

De dizer a verdade?

Não. Dizer o que é falso.

Como quer então que chame ao facto de se fazer passar por outra pessoa, a fim de melhor espionar, de melhor enganar?...

Não tentei enganá-lo.

Como, se nada fez para dissipar o meu equívoco? Com certeza ele lhe era bastante útil para bem conhecer a posição da opinião pública. E quando me extorquiu os informes que lhe faltavam, compreendendo que Renaud se encontrava comprometido, logo se apressou a atirá-lo, como se costuma dizer, pela borda fora, no intuito de não lhe compartilhar a sorte... votando-o ainda mais a um cobarde abandono. Acha bem tudo isso? Talvez na sua moral um bocado... especial, encontra suficiente desculpa. Não olha aos meios para atingir os fins, mas, para mim, nada há de mais miserável e de mais vil!

Sem encontrar forças para se levantar de todo, e mesmo assim na sua revolta, gritou-lhe:

É repugnante o que está dizendo. Vê-me, caída, exausta, ferida por tantos desgostos e ainda por cima se encarniça em me ferir mais, isto em vez de me auxiliar...

E numa grande prostração, resignada, deixou-se cair para a frente. Inflectida, com uma flexibilidade inimaginável, tocava com a fronte nos joelhos, lembrando assim a enternecedora figura da célebre Pavlowa na sua Morte do Cisne. A comparação ainda desta vez se impôs ao espírito do jornalista; Mas isso irritou-o mais ainda. Um cisne... sim, mas não branco, um cisne negro... ave de malefício e de luto...

Recuou mais três passos.

Peço-lhe me perdoe, mas tenho a impressão de que uma pessoa da sua... capacidade, deve saber sempre sair-se, na perfeição e sozinha, dum caso complicado. Não se admire portanto se a partir de agora reservo unicamente para Renaud Martin o meu auxílio e os meus esforços...

Carine fixou-o por um momento intensamente.

Seja! acabou por dizer com enorme lassitude.

Pobre Renaud! suspirou João, antes de girar nos calcanhares e de se afastar rápido, rápido... tão depressa como se fosse fugindo a um perigo.

 

                                       Aliança

Poderá explicar-me, senhor perguntou a jovem, falando com João Dorget no vestíbulo o que é que fez a minha irmã?

O jornalista ergueu as sobrancelhas. O velho contínuo do Espoir viera pouco antes dizer-lhe, com uma piscadela de olho, que uma linda pequena perguntava por ele. Logo deixara a barulhenta sala da redacção e fora atendê-la, levando consigo a impressão visionadora do Cisne Negro. Mas nada de comum havia a esse respeito com a trepidante jovem de fosforescentes cabelos que tão açodada viera falar-lhe à porta.

À sua irmã? Mas eu não a conheço...

Isso é fácil de dizer...

Perdão... Diga primeiro a quem tenho a honra de falar.

Ela olhou-o, incrédula.

Ah! não sabe? Então o caso muda de figura...

Num rápido relance de olhos a jovem observou o poeirento vestíbulo donde partia uma escada, e no qual havia várias portas que batiam com violência na passagem de vários indivíduos apressados.

Este lugar em que estamos é que não me parece apropriado para o assunto a tratar...

Ah! tornou ele, surpreendido. Há então um assunto a tratar?

Graciosa, com seu ar decidido, ela disse:

Naturalmente! E é indispensável. Mas não tem o senhor um gabinete sossegado aonde possamos falar ao abrigo de indiscrições?

Ele teve um esgar irónico:

Um gabinete sossegado e discreto num jornal!... É que eu não sou mais do que um simples redactor e o Espoir não põe à disposição de cada um de nós um gabinete particular! Fique-o sabendo.

Ele meneou aprovativamente a cabeça.

Trabalha então em qualquer parte?

Claro disse ele, trocista. Aqui, assim é... Bruscamente, deitando mão ao puxador duma dessas portas, ele abriu-a e a jovem encontrou-se no limiar duma grande sala onde sete redactores, com ares exaltados, sentados, a escreverem em pequenas secretárias, quase semelhantes às carteiras duma aula, falavam alto duns para os outros ou delas saíam andando a passos largos, brandindo papéis, ou gritando por um aparelho telefónico gracejando, invectivando-se, rindo ou metendo com desespero a cabeça entre as mãos, tudo isto numa nuvem de fumo cuja densidade desafiava os nevoeiros de Londres.

Ela teve um ligeiro acesso de tosse, e recuou dois passos.

Realmente murmurou ela, estupefacta.

É a isto, como vê, que se chama uma sala de redacção comentou, chocarreiro. Vejo que mademoiselle, assim como muita gente, ignora o trabalho do jornalista...

Ela, porém, não mostrou a desilusão que ele esperava. Pelo contrário. Às asas do seu pequenino nariz palpitaram, teve no olhar uma cintilação ao dizer:

Deve ser bastante divertido!

Muito divertido respondeu ele agradavelmente surpreso mas asperamente difícil, bicudo por vezes...

Fica uma coisa pela outra! A minha ”institutrice” dizia-me: ”O que é difícil torna-se recreativo, divertido”.

Decididamente, agradava-lhe em cheio aquela visitante. Ergueu a cabeça:

Muito justo. Oiça: para falarmos com sossego não será melhor irmos para o bar ali defronte?...

Que deve estar cheio de colegas seus! Obrigada. O senhor conhece o que é a vida na província? Estou em dizer que não.

O jornalista esboçou de novo o seu malicioso e subtil sorriso.

É que eu sou de Paris, mademoiselle... Estou aqui apenas há algumas semanas.

Então está explicado! O melhor é portanto ir comigo no meu carrinho... e falaremos enquanto formos rodando...

Pois de acordo respondeu ele, seguimdo-a.

lá ela saltara para o seu pequeno automóvel de cor creme, parado diante da redacção do Espoir. O jornalista ainda não tivera tempo de se sentar, quando ela arrancou com tanta precipitação que João Dorget foi projectado sobre o estofo.

Desculpe... Vejo lá em baixo a generala e quero escapar a essa maçadora.

Em seguida o jornalista, debruçando-se um pouco, pousou o olhar na placa de identidade ornada pela imagem de São Cristóvão; e leu o nome ali gravado.

Ah! exclamou, sentindo-se esfriar e assentando-se melhor. Já sei de quem se trata.

A jovem conduzia a grande velocidade, os olhos postos na estrada que dava saída à vila.

Que quer dizer?

Que acabei de ler aí: Ardimont... É então a... irmã mais nova?

Agora, ultrapassadas as últimas casas, a jovem meteu o carro por um caminho vicinal, pouco frequentado e, abrandando a marcha, que conservou vagarosa, voltou-se para ele.

Ora bem: nesse caso, compreende agora a razão por que lhe perguntei o que fez a minha irmã?

Ele abanou a cabeça com tristeza.

Eu disse-lhe simplesmente o que em regra as pessoas suportam mal: a verdade!

Patt franziu as sobrancelhas, com o que ensombrou o inverosímil azul dos seus olhos.

Pelo estado em que a deixou não devia ser muito agradável essa verdade. Que diz?

Digo replicou ele friamente que acho odioso abandonar-se um indivíduo confiante no seu direito de contar com a fidelidade de certa pessoa, quando esse abandono recai sobre o desditoso numa situação difícil para ele...

Aquele recanto do caminho era perfeitamente deserto e Patt, arrumando o carro na berma do talude, travou. As mãos espalmadas sobre o volante, a jovem voltando-se para encarar o jornalista, perguntou-lhe:

É ao planeado casamento de Carine com Xavier d’Ardimont que alude?

Calmo, suportando bem o olhar dela, João respondeu:

Sim, considero-o uma boa canalhice. Acusando o golpe, ela cerrou os lábios.

Desculpe-me tornou, sarcástico mas a sua irmã foi considerada durante anos a noiva prometida do seu amigo de infância Renaud Martin... e não só por toda a gente da região como pelo próprio interessado; e tanto assim que ele pareceu ver-se iludido e cheio de pasmo logo que, no dia da caçada, ela recusou fixar a data do enlace matrimonial... Nestas condições, o facto de sua irmã se lançar na aceitação do primeiro fidalgote arrumado, ave de rapina, que lhe apareceu, logo que ela pressentiu vítima de suspeita o Martin, suspeita que aliás a poderia atingir também, bem parece isto uma esquivança à qual não será impróprio chamar traição...

E estendeu-lhe a cigarreira aberta.

Quanto àqueles ou àquelas que a aconselharam com o intuito sacrossanto de não enlamear o brasão d’Ardimont... dispenso-me de os qualificar...

E após imperceptível silêncio, continuou:

Aceite um cigarro. Sirva-se disse com indiferença e num tom ao mesmo tempo impertinente.

Não quero, obrigada. Já lho disse. Eu compreendo que se você disse outro tanto e nesse modo à pobre Carine, ela esteja azamboada ainda ao fim de três dias e batendo no volante com a mão espalmada. Simplesmente, meu caro senhor, não sou como minha irmã. Não me deixo ir, sem protestar...

Ele acendeu o cigarro, soprou a fumaça que em parte lhe saiu pelas narinas e replicou irónico:

E que adianta isso para o caso?

Serve para o convencer talvez que nesta história nem tudo é tão negro como pensa. E principalmente que nós não abandonamos Renaud, mas entendemos, antes, fazer ressaltar nitidamente a sua absoluta inocência dando, enfim, certa publicidade a um estado de coisas que existiam oficialmente já há algum tempo.

Sempre irónico e incrédulo, o jornalista concretiza:

Diga-me: é ao casamento de sua irmã com o conde d’Ardimont que está fazendo alusão? É que não vejo a possibilidade de me explicar em que podem eles fazer ressaltar a inocência de Renaud Martin estando ele inocente como está. Ou não?

De repente Patrícia perdeu a calma. Muito corada, exclamou:

Como? Bem entendido que o está. Mas vejamos: a simples suspeita duma criminosa intenção por parte de Renaud é... burlesco! Esse rapaz é bondoso, indulgente, dedicado em extremo...

Ora até que enfim... Eis o grito de consciência e de coração que eu esperava para me radicar e satisfazer nas minhas convicções... porque jamais e mesmo sem o conhecer, acreditei na culpabilidade de Renaud...

Um sorriso feliz iluminou o rosto e brilhou naqueles olhos azuis.

Sim? Ah, como fico contente!

Assim tanto?

É que o senhor não pode imaginar disse a jovem com súbita confiança quanto isso vale para o sentir duma pessoa que conhece bem o rapaz, vendo que toda a gente suspeita dele... até mesmo aquela que, mais do que ninguém, devia acreditá-lo...

O jornalista meneou a cabeça e muito sério:

Confesso que também a mim me impressiona muito ”vê-la” indecisa...

Enfurecida, exclamou:

Essa é forte!... Mesmo que fosse verdade ela deixar-se ganhar pela dúvida, o que não posso compreender... poderia muito bem ter-lho ocultado.

Ele sorriu:

Compreende que não é fácil ocultarem-me grande coisa...

Presunção não lhe falta! Enfim, veremos! Em todo o caso, o dever de Carine sendo defender Renaud contra tudo e contra todos...

Decidiu casar com Ardimont rematou ele, zombeteiro.

A jovem irritou-se:

E se o senhor não vê o ”porquê” é por que não será tão finório como se julga...

Olá!... Vejo muito bem que, realizando esse casório, todos vós quereis que o romance do ”Cisne Negro” toma as aparências dum erro da juventude e suprimir ostensivamente o móbil que, até aqui, parecia consistir na oposição da falecida senhora Marinot... Ora se Renaud nada mais tem a seu favor para provar a sua inocência...

Com ligeiro ar superior ela encolheu os ombros.

O senhor não vê senão um dos aspectos da questão, mas... apesar de toda a sua esperteza, outros existem. Primeiro: este anúncio de casamento espalhado aos quatro ventos vai ter a virtude de sair do buraco em que está escondido o inacessível Renaud, cuja desaparição é, concordemos, um motivo acusador para ele.

De acordo disse o jornalista, com uma inclinação de cabeça. O regresso, o apresentar-se, representa para um inocente uma tal vantagem que decidi provocar o seu aparecimento, indo eu próprio procurar esse encantado tenebroso.

Mas já o encontrou? exclamou ela com um clarão no rosto.

-Ainda não. Possuo, porém, alguns indícios...

certas referências...

Quais, por exemplo? perguntou ela com avidez.

Soube que um dos seus antigos condiscípulos e amigo, que está há cinco anos na América do Sul... e recebeu dele uma carta poucos dias antes do seu desaparecimento...

Logo agitada, ela amontoou suposições.

Pensa que ele partisse a ir juntar-se a esse amigo, devido à decepção... Talvez seja bem isso... Mas então o lugar que exercia na instituição Fourcade...

Escreveu, pedindo a sua demissão. Essa carta está com o carimbo de Paris e com a data do dia seguinte... ao da caçada.

Patt exultou.

Enfim! rejubilou ela, descarregando o punho fechado da mão direita na palma da mão esquerda. Você achou! É isso... o outro deve ter-lhe proposto ou proporcionado uma situação... Renaud queria obter de Carine a data oficial do casamento e quando ela recusou, ele, despeitado, decidiu partir... É isso, sim! Está claro!

Menos entusiasmado, porém, o jornalista abanou a cabeça.

É claro para você, que tem fé nele. Mas para os outros... continuará a versão de que partiu cheio de medo, para fugir à sua culpa... ou ao remorso.

Os lábios de Patt descoraram-se-lhe na palidez que a assaltou.

Meu Deus... Não pensei nisso. Mas... e então?

Então é preciso saber, perguntar-lhe, ver se haverá qualquer outro facto que o possa ilibar.

Sim, e você disse ela maravilhada é bem capaz de deslindar o que falta saber; achou o principal: o resto será para si um brinquedo... Devemos indagar se ele não teria falado da América do Sul a Carine... se ela não terá um endereço...

A sua irmã não deverá querer tornar a falar-me disse ele penalizado. É a mademoiselle quem deve tratar disso...

Sucede que também eu não estou muito bem com ela depois da vossa discussão. Segundo parece, o senhor criticou de maneira tão violenta a ideia do tal casamento com Xavier, que ela a quer repelir.

O jornalista sacudiu a cinza do cigarro para fora do carro e tomando nova fumaça, observou, olhando-a de lado:

A verdade é que, para uma bela rapariga aparentemente boa e sensata, a ideia de lançar a sua irmã nos braços desse arrivista... parece-me inconsiderada...

Com licença objectou ela, carregando as sobrancelhas nada permite pensar que Carine não goste de Xavier, visto termos estado ambos de acordo sobre que se ela ama Renaud... é de uma forma bem fria! Quanto a ele, Xavier...

Só procura redoirar o seu brasão, é claro! redarguiu João com bom humor.

A fisionomia da jovem tornou-se grave. Com ar impenetrável e preocupado, murmurou:

Não será bem assim! E eu posso falar com conhecimento de causa. Há um ano, representou ele comigo uma pequena comédia inspirada pela mãe e que não visava outro fim. Apercebi-me do caso e cortei cerce. Logo que Carine me anunciou a sua intenção, cuidei tratar-se da repetição do mesmo... e depois...

E depois?

Devo confessar-lhe que... falei com Xavier quando cheguei. Perscrutei-o bastante e... quase concluí, crendo-o sincero... Dedicara-se ou propusera-se amar tão ”verdadeiramente” Carine que agora já não me admirava assim fosse, de facto...

Nesse caso disse ele com intenção vai tudo pelo melhor.

Indiferente àquela interrupção, Patt prosseguiu pensativa:

É uma das razões por que eu aconselhei esse casamento.

Ele desaprovou com um movimento de cabeça.

Não temos por consequência mais do que inclinar-nos! Mas... será tudo?

Não respondeu ela, baixando instintivamente a voz. Se quis por minha parte essa situação... é por que ela me permitirá, talvez, salvar Renaud... encontrando um outro culpado.

O jornalista não pôde reprimir um sobressalto. Ela, porém, fê-lo calar e num tom de voz artificial, sem nenhuma convicção:

Um outro culpado do ”acidente” que causou a desgraça. Porque, assim como todos em Ardimont, estou certa de que não se trata doutra coisa...

Diante daquele rosto grave, ele não insistiu. E pouco convencido:

Bem entendido... Isso não me impedirá, no entanto, de procurar Renaud Martin!

A jovem, inclinando-se para diante, destravou o carro e pô-lo em marcha. Fazendo girar o volante,

deu a volta:

Não fica então inimigo?

De si? Pode ter a certeza que não! disse com ardor.

E... de Carine?

Ah! isso é outra coisa disse com reserva. Ela enganou-me, mentiu, intrujou-me... doravante nunca mais a acreditarei. Não sei o que vale nem o que pensa... sempre duvidarei dela como dum vivo enigma!

 

                             Tudo se sabe

Apenas deixou Dorget, não à porta do jornal, mas numa rua próxima, a fim de não despertar curiosidades, Patrícia meteu o seu carro pela estrada de Ardimont.

Mas, quando chegou ao último cruzamento, tomou um caminho oblíquo e seguiu ao longo dos verdes campos da Colombiére.

Era um pequeno solar arruinado, ou quase, para aonde, na altura do casamento de Ghislaine sua prima se retirara com o filho.

De longe, avistando a torre meio caída sobre si, qual dama rotunda sem espartilho, e já sem três ou quatro ameias ao alto, a jovem abanou a cabeça com ironia: bem precisava de reparações aquele ”barracão”. Ardimont valia muito mais, sem contradita.

A chegada do pequeno automóvel de cor creme ao pátio aonde ao mesmo tempo havia as capoeiras de galináceos e a cavalariça, surpreendeu a mãe de Xavier, a qual se encontrava com um desses trajos simples de camponesa, que ela sabia usar com rude elegância.

Com um blusão comprido, abotoado até ao pescoço, num tecido de cor beije, os cabelos grisalhos apanhados e atados por uma fita sobre a nuca, ela estava, apesar do frescor outonal, de braços e pernas nuas, para vigiar, metida numa espécie de cave que servia de depósito, o acondicionamento das últimas maçãs no tabuleiro engradado, a fim de se conservarem durante o inverno.

Baixando a sua alta estatura para passar pela porta baixa, reconheceu com surpresa a jovem que nunca ali fora.

Pouco orgulhosa do que ela chamava o seu ”terreiro”, a altiva condessa d’Ardimont evitara sempre receber ali sua prima Ghislaine, mais do que qualquer outra pessoa.

Olá, minha querida! Alguma novidade em tua casa? Tu saíste de Pierre-Blanche, segundo vejo...

Patt lançou-lhe um olhar incisivo.

Disse-lho Xavier, não? Ele e eu temo-nos visto diversas vezes nestes últimos dias.

O rosto um tanto fanado da senhora d’Ardimont fechou-se.

Xavier é um homem e não me dá parte das suas idas e vindas, aqui ou ali, como calculas.

Acabava de sacudir no limiar as suas sandálias de couro sujas pelo esterco dos estábulos e, entrando na vasta sala redonda do rés-do-chão, mobilado pelo que restava dos bons tempos, móveis antigos muito usados, tapeçarias inestimáveis mas corroídas ou desfiadas, despojou-se daquele avental e vestimenta de trabalho.

Surgindo no seu vestido preto, ela como que retomou toda a sua altura para medir a jovem que, em face dela, erguia por sua vez o seu rosto voluntarioso.

Todos vós se tornaram crescidos e começaram portanto voando com as próprias asas...

Combativa, Patrícia perguntou:

Por muito independente que ele se tornasse será de crer que vos traga fora das suas ”negociações” com Ardimont?

A condessa semicerrou os olhos com impertinência e perguntou:

Será para designares o seu casamento com Carine que empregaste essa palavra... ofensiva?

Foi a vez de Patt se tornar insolente.

Pois eu estou convencida de que a senhora está metida no assunto.

Com efeito não é de admirar, na nossa esfera, que um rapaz ofereça o seu nome, mesmo sem o dizer a sua mãe, quando sobretudo se trata dum partido em regra, perfeitamente honroso...

E vantajoso!

A senhora d’Ardimont ficou impassível, mas os seus olhos verdes tornaram-se frios, ao mesmo tempo que num tom sardónico perguntava:

Diz-me, Patt, dar-se-á o caso de estares com ciúmes de Xavier?

A jovem sobressaltou-se, tornando-se escarlate.

Há-de concordar que isso não seria sem motivo... se eu tivesse sido tão tola que me deixasse cair na armadilha o ano passado...

A condessa riu, com um riso áspero e sem alegria.

É possível? Ele propôs-te?... O demónio do rapaz!

Não se faça de novas, tia Blanche. Ele estava inteiramente de acordo consigo para, casando comigo, tentar recuperar o castelo dos seus antepassados...

Então, cada vez mais impertinente, ela conveio com altivez:

No fim de contas... se fingi ignorá-lo foi para não ferir o teu orgulho...

Está portanto de acordo tornou Patt tremendo de cólera que, ao fazer-me a corte, Xavier se combinara consigo?

E por que não? proferiu com desprezo esmagador. Digo-te mais: foi até por instigação minha... E não vejo em que possas censurar-me. Nós pertencemos a uma estirpe, a uma raça em que o nome, o castelo, as terras, formam um património sagrado e indivisível. Tendo-o outros desmembrado, parece-me louvável da minha parte querer reconstituí-lo na sua integridade... Nós dávamos um grande nome, minha querida, se tu nos desses o castelo...

Acompanhado de muitos milhões mais! motejou duramente Patt. Os milhões ganhos por esses Marinot, cujo património plebeu tanto desprezo vos mereceu.

Mas nada parecia capaz de vencer a arrogância da condessa d’Ardimont. Com gesto desdenhoso repudiou a alusão.

O dinheiro para mim não vale senão pelo que permite manter um nome, um estilo de vida, um domínio...

Sim, por isso lhe faz falta o castelo e os seus rendimentos! exclamou Patrícia. É por isso que, depois da mais nova ter desmascarado e arredado as vossas baterias, não desistiram de as apontar agora à mais velha... à primogénita...e após curto silêncio: Mas como é que não recearam a afeição que ela votara sempre a Renaud, para voltarem à brecha?

À senhora d’Ardimont deu alguns passos na casa, passos que os soberbos tapetes de outrora, embora no fio, ensurdeceram. Parou enfim diante da jovem, que ela dominava de alto, e friamente declarou:

Já é tempo de falarmos claro. Se Xavier avançou para Carine é por que sabia estar livre o campo... Depois, não foi preciso muito tempo para, observando, ser fácil compreender que o amor de crianças afrouxara, se desvanecera... e que não lhe pesaria muito se um outro sentimento pudesse alvorecer no seu coração de mulher...

A senhora compreendeu isso, desse modo? perguntou, fixando-a com admirado olhar.

Não só eu... mas tua pobre mãe...

Como? exclamou. A mamã falou-lhe a esse respeito? Ela encarou...

A grande mão aristocrática, embora algo estragada pelos trabalhos do campo, abateu-se sobre o frágil ombro.

Minha filha: a tua mamã era suficientemente nossa, do nosso sangue, para desejar uma união que reentregasse o castelo d’Ardimont aos seus legítimos proprietários...

Mas, porquê, Carine? perguntou sufocada. Vaga doçura passou naquele rosto altaneiro.

Talvez por que tu te furtaras a...

Ah! exclamou. Quer então dizer que ela teria desejado que eu... Mas minha mãe nunca me falou em tal! concluiu com os olhos alagados de lágrimas, que não lhe deslizaram pelas faces.

Com vaga satisfação no olhar, que dir-se-ia devida à perturbação provocada e com o mesmo tom de voz reservada, a tia explicou:

Sim, tua mãe desejou que os teus filhos encontrassem o nome e o título dos seus avós; sucede, porém, que ela te amava muito para te impor um casamento que tu parecias repudiar. E então...

Num gesto vago, calou-se. Mas, numa voz abafada, Patt insistiu:

Então, ela pensou em Carine para restaurar o brasão dos Ardimont? É isso? Sim, talvez... mas há ainda uma coisa que vós fingis esquecer.

Os olhos verdes semicerraram-se.

Seria para admirar. Nunca esquece nada... Num tom enérgico a jovem sublinhou:

É que a mamã amava muito Carine para lhe impor também essa união, e é por isso que eu venho falar-lhe, tia Blanche... para lhe dizer: de momento está entendido que Carine é forçada a aceitar o casamento... mas venho pedir o seu juramento sobre isto: se ela um dia quiser ou puder retirar a sua palavra, lha devolverem sem histórias nem exprobrações!

A senhora d’Ardimont empalideceu. E com escárnio:

Fique assente, no entanto, que se hoje Xavier desempenha o papel de anjo salvador, ela seja salva e retirada para sempre do atoleiro em que a precipitou esse canalha do Renaud Martin e...

Patt como que deu um pulo:

Renaud não é um canalha. Em tudo isto ele não passa dum joguete do destino e dos vossos cálculos!

Apre! que és bem desdenhadora! Como chamas tu ao acto de aceitar este casamento, que vos põe a coberto dum escândalo, ou talvez pior, para o romper em seguida? Não será isto uma falta de palavra, uma espécie de burla...

Não, se antecipadamente entrarmos num acordo.

Isso não interessa! sibilou ela. Nunca, por nunca ser possível, renunciarei...

Súbita resolução se desenhou na juvenil fisionomia. Lentamente aproximou-se da sua parente, e mui de perto, disse-lhe numa voz abafada, mas distinta:

Nunca pensou que poderia ter um outro meio de se apropriar agora do castelo?

Vendo-a recuar e empalidecer, Patt avançou ainda um passo e à queima-roupa:

Àquele que... já teve e se lhe escapou outrora, quando a sua prima Ghislaine desposou o meu pai...

A condessa recuou como diante duma ameaça física, seus olhos desmesuraram-se fixando Patt com horrorizada surpresa. Os seus lábios, secos, tremiam:

Ah! disse num sopro, muito baixo. Tu sabias?

E mudando repentinamente de tom, sacudindo os cabelos com desenvoltura, a jovem redarguiu:

Tudo se sabe, tia Blanche! Tudo acaba por se saber... Eis por que me admira que, diante desse lugar vago... livre, a tia se retraísse, se pusesse de lado para fazer avançar Xavier até Carine.

Durante longo silêncio, ela pareceu reflectir, com seu enorme rosto ossudo sombreado por uma luta interior. Enfim, reabriu os olhos e, numa voz que soava estranhamente:

Cuidas então que eu não tenha pensado nesse caso? perguntou. Mas um coração de mãe guarda engenhosos segredos. O meu deixou passar adiante de tudo a felicidade de Xavier.

Patt inquiriu estupefacta:

E a felicidade de Xavier... consiste em casar com Carine?

Consiste em ser amado por ela corrigiu mais duramente a condessa. É assim, quer creias ou nãol Compreendi já há tempos que ele estava violentamente apaixonado. Não lhe basta só casar...

Num tom incrédulo, a jovem exclamou:

E ele pensa conseguir-lhe o amor?

Por que não? disse com arrogância a mãe. O importante é que o coração de Carine esteja livre. E creio que o está! Ela aceitou a proposta de casamento com Xavier por... interesse, por conveniência, por medo. Deixá-lo-á conquistá-la pela doçura, suavemente... E se daqui a alguns meses ela aceita casar por... sentimento duma ternura recíproca, por que havia eu, mãe, de me opor?

Completamente desorientada, Patrícia murmurou:

Eu não lhe pedi que se opusesse. Não tinha visto isso ainda...

Desta vez e com um ar em que ninguém poderia deixar de ver a franqueza do cálculo, a condessa disse pegando-lhe no braço:

Escuta: vamos nós fazer uma combinação. Se, dentro de três, seis ou doze meses, Carine quiser devolver a sua palavra, nós deixámo-la livre. E eu diligenciarei mesmo não precipitar o casamento. Quanto a ti, por exemplo, deixarás o campo livre ao meu pobre Xavier a fim de se fazer apreciar... e amar.

Patt começou a rir levemente.

Acredita nessa possibilidade? Quando se conheceu e amou Renaud...

Acredito, sim respondeu com energia. É que Xavier possui um outro género de encanto, verdade seja, que o desse caçador... desastrado!

De acordo! murmurou Patt, que saltou lesta para o seu automóvel. De resto, em que é que isso interessa? Se ele falhar, se for mal sucedido... a senhora poderá sempre apanhar Ardimont, casando-se com o meu pai.

 

                                 O despertar de Carine

Perdão, meu pai disse lentamente Carine. Para responder à tia Blanche gostaria de consultar primeiro o doutor Barnoux.

A inesperada resposta fez erguer a cabeça de todos os circunstantes. Quatro pares de olhos pousaram um olhar ao mesmo tempo inquieto e surpreendido sobre aquele rosto tão pálido que parecia devorado pela grandeza dos olhos.

Sentes-te doente, minha filha? perguntou o pai sinceramente assustado.

Carine experimentou quase remorso de lhe causar alarme.

Doente? Não, bem. Muito cansada, sim...

Numa palavra: eu queria, antes de partir para o estrangeiro, ter a certeza de que não causaria trabalhos a ninguém fora de casa, aborrecimentos com a minha saúde àqueles que têm a gentileza de me querer levar.

”Muito bem” pareceu aprovar o olhar atento e malicioso de Patt. Desse modo, Carine ganhava o tempo necessário a combinar com ela o que havia a fazer, antes de aceitar... ou não aquela viagem. Dar-lhe-ia tempo a reflectir, embora Patt parecesse nunca mais chegar a uma conclusão. Tinha por vezes a impressão- de que a sua cabeça ia estalar. Ah! a tia Blanche não perdia tempo em se aproveitar das facilidades que o seu pacto lhe conferia.

Logo no dia seguinte, ela entrara pela casa dentro, à hora do almoço, para os apanhar reunidos à mesa e propor ao viúvo Marinot levar as duas filhas por algum tempo até Espanha para uma benéfica ”mudança de ares” após o luto que as afligia.

Xavier, que almoçava ali nesse dia, em Ardimont, retido pelo tio ao qual fora levar umas contas de rendeiros conferidas por ele, parecia tão surpreendido como os restantes, mas sinceramente encantado pela iniciativa de sua mãe... embora o estivesse menos com a polida escusa de Carine.

Inclinado para ela, esquecendo a comida que arrefecia no seu prato, pois o criado dera entrada à condessa na sala de jantar em virtude da visita ser íntima da casa, Xavier começou a apoquentar, com inquietas perguntas, a sua ”prometida”.

”Ah, seria então verdade que ele se dedicara a querer-lhe com amor sincero? pensava pela segunda ou terceira vez Patt, sentindo-se admirada Que confusão, Santo Deus!...”

Um Xavier manejável e interesseiro convinha melhor ao plano geral de operações que a maliciosa rapariga ideara...

Xavier, como caçador de dotes não seria mais que um pau mandado: que ora se faria avançar, ora recuar; assoprar-se-lhe-ia o que ”conviesse” sem dificuldades e... sem escrúpulos!

Mas com Xavier sinceramente apaixonado o caso mudaria de figura, tornando-se mais difícil e perigoso manobrá-lo! Perigoso sobretudo para a confiante Carine cujo coração despedaçado não seria tão difícil de conquistar como Renaud teria o direito de supor...

Renaud estava longe, porém, sem poder defender o que era o seu bem! Longe? Aonde?

”Ah! enfurecia-se Patt, no íntimo é o que falta saber! Desaparecer deste modo, sem deixar rasto... Ainda se enfim, e por felicidade, o jornalista pudesse fazer alguma coisa... se pudesse levá-las junto dele...”

Mas aonde e como e quando? Tantas dúvidas e interrogações das quais dependia a descoberta de Renaud... o seu regresso.

O seu regresso! Regressaria ele alguma vez mais?...

O coração de Patt apertava-se-lhe. No fim de tudo não seria muito possível que Renaud, dados os subterfúgios de Carine, houvesse tomado em definitivo a decisão de viver longe? E, mesmo se soubesse do projectado casamento, mesmo se fosse conhecedor das imprecisas ameaças e suspeitas que pesavam sobre ele, resolver-se-ia a voltar? Ou lhe importaria o que sucedesse se o seu amor de infância tivesse cessado? Ou se era ainda por a amar que, levado pelo despeito ou pelo desgosto, fugira para o fim do mundo? Sim, mesmo depois de encontrarem Renaud, podia ser muito bem que ele optasse por ficar onde estava.

Patt soltou um tão profundo suspiro que a condessa d’Ardimont, lançando-lhe agudo olhar, disse com ironia:

Aí está uma menina que ficaria bastante desolada de ver a sua mana mais velha privar-se da bela viagem, creio!

Patt ergueu a fronte, encarou-a com desafiante olhar e sorriu:

Pode ser isso, pode, talvez, tia Blanche!

Acho que pensas bem, minha querida Blanche apressou-se a dizer com sinceridade o pai: Estas minhas pequenas ficarão encantadas de aproveitarem o seu generoso oferecimento para as acompanhar, o que eu pessoalmente muito agradeço também, se como suponho e espero a saúde de Carine o permitir!

Bem entendido, claro disse com ar reticente.

Não vejo, de resto, em que poderia estar contra-indicada esta viagem a um país de sol precisamente quando é mais necessário mudar de ambiente... No fundo, penso que seria um pai egoísta se contrariasse!

Egoísta! exclamou a condessa com tal acentuação e um olhar de admirativo protesto, que Patt pensou logo:

”Olá!... Não deve estar muito segura do êxito do seu querido filho Xavier, visto não abandonar as suas ”baterias” pessoais.”

Egoísta tornou, após curto e eloquente silêncio, a senhora d’Ardimont o meu bom amigo que, sendo o mais atingido, o mais mortificado, é também o mais devotado e o mais generoso dos homens?

Não obstante o brilho de contentamento que a lisonja fez aflorar ao seu rosto, protestou:

Minha querida prima, quando se sofre um golpe profundo esquecemo-nos das dores dos outros! Estas minhas filhas têm, sem dúvida, precisão de se distraírem, necessidade duma diversão. Na idade delas é muito custosa a aprendizagem do sofrimento... Deve dar-se-lhes uma trégua, proporcionar-se-lhes as distracções inerentes a uma mudança de vida e de lugares. Agradeço-lhe ter tomado tão maternalmente a minha posição...

Não tenho mais vontade de comer! exclamou Patt, arredando para trás a cadeira, que chiou sobre o parquet.

E, empurrando o prato, abandonou a mesa.

Meu Deus! disse Carine por sua vez, levantando-se para se precipitar em seu seguimento.

Impassível, a senhora d’Ardimont, com um gesto impediu Xavier de se mexer; ele ia também lançar-se em perseguição delas. E num tom de voz em que a indulgência mal abafava uma ironia cruel:

Vê, Paulo disse, dirigindo-se a Marinot, que ficara confrangido e estupefacto como estas meninas estão vivamente nervosas! Creia que é enorme a precisão que elas têm de viajar, esquecer o drama que enlutou as suas vidas! Bastou uma palavra sua pouco feliz... esse ”maternalmente” que lhe escapou, para as virar do avesso...

Marinot abanou a cabeça, toda branca, e num ar desolado:

Fui, de facto, pouco hábil, compreendo... talvez por estar mais habituado a lidar com operários do que com raparigas sensíveis. Não sei como cativá-las, falar-lhes, e, sem querer, agravo o desgosto que desejaria suavizar. Para tocar nesses corações doloridos falta uma feminina mão...

E lançou-lhe um olhar humilde, mas ao mesmo tempo confiante:

Felizmente que a prima está aí! Que seria de mim... que seria de nós sem a senhora e sem o Xavier nesta provação? Ah! confesso-lhe, Blanche, que nunca supus receber da sua parte o apoio e o conforto que me tem dado...

Os olhos adoçados pelas lágrimas recentemente vertidas fixaram o seu olhar no bem penteado rapaz que, constrangido e pouco à vontade, escutava aquelas palavras de elogio.

Eis por que eu me sinto duplamente feliz em vê-lo entrar na minha família mais próxima como esposo de Carine. A minha filha não podia realmente ter feito melhor escolha.

Aquela cujo futuro era deste modo evocado, enlaçava ternamente os ombros da sua irmã mais nova que fora parar ao fundo da galeria dos retratos a óleo, aonde soluçante se refugiara no profundo vão duma das janelas.

Minha querida irmã murmurava, afagando-lhe a cabeça sossega, acalma-te...

Sentia-se como que enlouquecida por esse desespero infantil o primeiro que Patt se permitia, tão enérgica até aí.

As suas lágrimas tinham provocado as de Carine e os seus soluços misturavam-se agora aos da irmã.

Então, sê corajosa!

Através das suas lágrimas, soluçante e quase inconsciente, ia dizendo:

-Desculpa, mas... é mais forte do que eu... Quando a vejo tão segura já de tomar o lugar da falecida, perco a cabeça...

Alarmada, Carine perguntou docemente, não querendo espavorir a confiança algo inconsciente que aproximava de si a irmã:

Querida... eu compreendo-te... mas não... também eu não, tanto como tu, poderia suportar essa ideia...

Lentamente, as palavras haviam aberto caminho no seu espírito. Adivinhava, sim, o ciúme filial de Patt e uma súbita perspicácia fazia-lhe encontrar agora, na lembrança de certas alusões e de certas reticências da sua delicada madrasta, a suspeita duma antiga ”história” entre seu pai e Blanche d’Ardimont...

Uma súbita resolução a agitou, sacudindo a apatia em que nesses últimos dias tivera a impressão de se deixar esvair, e, abraçando pelos ombros, mais apertadamente contra si, a querida irmã da qual se sentia o único apoio, o único afecto carinhoso, disse:

Sossega, fica tranquila que isso não acontecerá.

Patt afastou-se um pouco, enrolou o seu lenço para secar com furor os seus olhos entumecidos.

Não lhe vai ser cómodo! Ela sempre quis reapossar-se de Ardimont... fosse como fosse... duma maneira ou doutra!

Com a mesma firmeza, agora nova, Carine afirmou, de sobrancelhas carregadas:

Mas duma maneira ou doutra... juro-te que a impedirei! e, com repentina exaltação, continuou: Vê, querida Patt, como eu me sinto reviver, como se fosse outra, mais forte e combativa, depois que te encontrei, assim, nos meus braços. Se tu me ajudas, se te voltas para mim, se me dás a tua confiança, que eu tive a impressão de me haveres tirado, então, acredita-me, eu terei toda a espécie de coragem! Mas que eu não sinta mais entre nós, essa desconfiança, aquela barreira... Diz-me tudo, vamos...

Ainda enfraquecida pelas lágrimas, a jovem teve um impulso, como se fosse falar, dizer, enfim, o que em segredo torturava o seu coração. Mas, de súbito, susteve-se a tempo, a fisionomia endureceu-se-lhe de novo sobre seus traços juvenis e recuou dois passos.

Tudo? Não, não posso disse ela.

 

                                        Àquela que ama

Pedi-lhe que viesse explicou Patt quase sem fôlego por ter vindo a correr desde o fundo do parque porque nós vamos partir e...

João Dorget sobressaltou-se e com as feições contraídas:

Como? Vão partir? Quem?

Mas... Carine e eu respondeu ela um tanto desconcertada por aquele inesperado acolhimento. Vamos com a condessa d’Ardimont, que julgou salutar para nós uma pequena viagem...

Aguda ironia uniu as sobrancelhas do jornalista sobre as suas pupilas cinzentas cintilantes de malícia:

Muito bem. Tudo no mais perfeito acordo, me parece... Vai a feliz noiva, sob céus mais clementes, fruir o mais dedicado amor como seu suspiroso... pretendente, não é assim?

Não. Não creio que assim seja. Ninguém falou em tal. Suponho até que o meu pai tem precisão dele aqui. É possível que vá depois juntar-se a nós...

Oh, não duvidei disso! disse, sarcástico. A ocasião para tomar o lugar do pobre Renaud é óptima.

Curioso disse ela abrindo os seus grandes olhos. Dir-se-ia que esta nossa partida o contraria, pessoalmente!

A mim? Pessoalmente? Ora vejamos!... Considero-me assaz sensato para compreender que de pessoal nada pode existir entre mim e as ”meninas d’Ardimont” como vos chamam. De resto concluiu com energia só falei com sua irmã duas vezes, memoráveis por sinal, e espero não tornar a falar-lhe mais!

É que murmurou Patt, agastada telefonei-lhe, a chamá-lo, porque foi ela quem quis e quer falar consigo...

Ele ergueu as sobrancelhas:

Antes da vossa partida?...

A ”propósito” da nossa partida interrompeu Carine, intervindo, pois não se encontrava longe dali.

João estremeceu ao ouvir aquela voz. Quando a jovem surgiu, saindo da álea próxima, alta, ágil e sombria, com suas mãos e sua tez ebúrnea, a aversão que ela parecia inspirar-lhe traduziu-se por um estremecimento de todo o seu corpo.

Ah! exclamou ele eis uma boa armadilha bem própria do ”Cisne Negro”!

Uma armadilha? articulou Patt, pasmada com o termo.

Não te surpreendas disse-lhe Carine num tom de mofa. Este senhor reserva-me sempre este género de tratamento, mas podes persuadir-te de que em troca receberá sempre de mim a respectiva resposta...

De sobrolho carregado, ele atacou:

Acha bonita esta maneira de espiar uma conversa, não? Quando eu era menino ensinaram-me, como muito feio, escutar às portas ou por ”detrás das árvores”.

Eu não estive a escutar rebateu Carine, vermelha de cólera. Patt correu à minha frente para não o fazer esperar, e eu segui-a tão depressa quanto me foi possível. Apanhei no ar as suas últimas palavras e... Acho que é preciso ter uma alma bem pouco formada para acusar sempre os outros de...

No mesmo tom violento ele ripostou:

Em todo o caso há uma coisa de que eu nunca poderia acusar-me: é do defeito da duplicidade e...

Mas o senhor não está bom da cabeça! bradou Patt que, com espanto, os via irados um contra o outro, vermelhos os olhos relampagueantes, os lábios trémulos. Que significa isto?

Significa gritou João por sua vez, voltando-se para ela que a sua irmã sabe muito bem que eu não viria nunca a este encontro se soubesse que ela me aparecia!

Mas não... começou Patt com a maior boa fé, sacudindo os seus fulvos caracóis.

Mas sim! cortou a irmã com uma calma tanto mais impressionante quanto era certo suceder a sua grande exaltação.

Ah! ah! ah! riu Patt, absolutamente siderada, enquanto João também escarnecia.

Sim tornou Carine no mesmo tom impassível no fundo do qual se adivinhava apenas um frémito, eu já sabia. E foi justamente por isso que, tendo de lhe falar, te pedi que fosses tu a marcar-lhe pelo telefone este encontro, uma vez que tiveste a dita de lhe cair em graça!

Depois dalguns segundos, João baixou a cabeça, parecendo concentrar a sua atenção numa pedrita que arredou com o pé, num movimento maquinal e de seu hábito. Depois, ergueu a cabeça e querendo também mostrar-se calmo:

Queria falar-me?

E por que não? As suas injúrias deixam-me indiferente disse ela desdenhosamente e eu sei que o senhor pode ser útil a alguém... cuja tranquilidade me é bastante cara terminou mais baixo, numa imperceptível hesitação.

Quererá referir-se ao desgraçado Renaud?

perguntou com ironia. Que haverá mais ainda? Não acha que já lhe causou bastante mal? Considerou-se durante dez anos seu noivo e arrancou-lhe essa ilusão! A decepção que desse modo lhe causou deu origem a que ele sem demora se expatriasse... o que por sua vez motivou a suspeita dum crime... Para cúmulo, se ele voltasse viria encontrá-la casada com outro... O quadro está bem completo, sem ser preciso ajuntar-lhe mais nada!

Oh! exclamou Patt, sufocada, voltando-se para a irmã. E tu suportas que este senhor te trate desta forma?

Não importa respondeu ela com soberbo desdém se, mau grado a opinião que ele exprime a meu respeito, puder salvar o pobre Renaud e provar a sua inocência! Esse a quem eu quero mais do que a ninguém, mais do que este escrevinhador pode imaginar, incapaz de admitir um nobre sentimento.

Oh! exclamou ainda Patt, olhando uma vez mais o jornalista. Diga-lhe então que se cale, parece louca!

Muito pálido, João afectou, porém, o mesmo desprezo:

Não se inquiete! Conforme a sua irmã acabou de dizer justamente, conhecemos a recíproca opinião que temos um do outro. Nada, portanto, nos pode surpreender ou chocar! O que conta unicamente é a consciência desse desditoso rapaz em que sempre acreditei, como você... e pelo qual a sua irmã acaba de descobrir um interesse repentino e... novo.

Carine saltou:

Novo!? Novo como?

Sim, essa ideia de inocência que tão de súbito se apoderou do seu coração, nem sempre a teve, confesse!

 

                     É odiosa essa mentira!

Carine gritou Patt, vendo-a ir longe demais.

Mentira, não de todo! vociferou ele fora de si. Da primeira vez que falámos, quando eu lhe revelei que o julgavam culpado, a senhora não negou.

Eu disse...

Disse: ”Detesto-vos, odeio-vos!” Ora isto não era a resposta devida. Como quer pois que não formasse a seu respeito a opinião de que era uma pessoa sem coração e sem bom senso?

Sempre alarmada por aquela violência, Patt, de olhos desmesurados, as mãos juntas, ia dum ao outro como endoidecida e sem esperança de os deter. Mas, de repente, recuperando a sua calma, bradou carregando as sobrancelhas e cerrando os seus débeis punhos:

Basta! Basta! Basta!

E como ambos se calassem, olhando-a estupefactos por aquele autoritarismo, ela concluiu enraivecida, agora por sua vez:

Estão a perder tempo com idiotices em vez de vos ocupardes com a única pessoa merecedora de interesse em tudo isto: Renaud. Falam ambos demais, mas sem pensarem a sério no caso. Ora eu, embora vos desagrade, não penso noutra coisa. E então pergunto...voltou-se para o jornalista: Que fez o senhor até aqui e que conta fazer?

Docilmente, como se obedecesse à chamada do seu chefe de redacção, explicou em breves palavras:

Desencantei o endereço do tal amigo que se encontra actualmente em Quaracha. Escrevi-lhe pondo-o ao corrente do perigo que ameaça Renaud Martin se ele sem demora não regressa a França”. Espero...

E... se lhe respondem que ele não se encontra lá? inquiriu ansiosa.

Procurá-lo-ei noutro sítio.

E tornou ela, olhando de lado para Carine se... se Renaud, estando lá, se recusa a regressar?

Então... não sei replicou desalentado. Foi a vez de Carine intervir.

Então, impõe-se ”ir” lá procurá-lo afirmou com uma calma impressionante.

Patt e o jornalista olharam-na admirados.

Ir lá... quem? perguntou ele.

O senhor!

Eu? Ir a Quaracha? Mas sabe o que está a dizer?

Perfeitamente! E foi por isso que pedi, que desejei falar-lhe. Patt, que parece conhecê-lo bem, afirmou que o senhor é o único capaz de tirar Renaud da sua incompreensível incógnita. Mas para isso é necessário ter os movimentos livres e... pôr os pontos sobre os ii ou seja: um livro de cheques bem aprovisionado. Assim, antes de partir, devo dizer-lhe que tomo à minha conta todas as despesas que uma tal procura e inquérito possa provocar. E não há que cingir-se a nenhuma limitação inútil: sei que essas despesas podem ser enormes, mas acho-me na posição de lhes fazer face.

Ele recuou, com o sobrecenho carregado.

A senhora? Era da sua mão que eu tinha de receber?...

Pois claro, sim! enervou-se ela de novo. Que há nisso de extraordinário? Sou eu a pessoa mais directamente interessada no caso...

Eu não costumo aceitar... de...

Mas os seus recursos, os seus meios pessoais permitem-lhe uma viagem ao Quaracha? Embora bonito o papel de D. Quixote, agora não basta um rocinante para ir em socorro dos oprimidos... O navio e o avião são vias mais caras... E enfim, o senhor não aceita o pagamento de todas as despesas quando o seu jornal o envia em serviço de reportagem?... Pois bem! Façamos de conta que eu o contrato...

O jornalista empertigou-se:

A senhora acaba de pronunciar as únicas palavras que devia evitar...

Porquê? Recusa? disse Carine, exaltada.

Recuso!

Pelo motivo de ser eu quem...

Sim, por esse motivo replicou ele, afrontando seu olhar.

É inaudito! E se fosse a minha irmã, aceitaria?

Talvez... sem dúvida disse ele com hesitação.

Mas isso é idiota! Patt é muito nova para poder proceder livremente. Eu desfruto duma fortuna pessoal e posso dispor da minha vontade...

A minha é a de continuar independente redarguiu ele, enfiando com força as mãos nos bolsos.

É um orgulho estúpido, o seu! E por uma ridícula questão de vaidade, sacrifica a honra dum infeliz.

Oh! a senhora retrucou asperamente sacrificou-o por bem menos!...

É monstruoso! É...

É assim mesmo! tornou, rodando numa reviravolta impertinente. E permita-me abreviar uma conversa como esta sem objectivo. Passe muito bem...

Voltando-lhes as costas, sem responder, Carine dirigiu-se para o castelo, esforçando-se por manter uma atitude calma e correcta.

Por um longo momento, postado no meio da álea, ficou vendo-a afastar-se. E sobressaltou-se ao ouvir a sumida voz que a seu lado murmurou, ainda embargada pelo pasmo:

É então certo que se detestam! Vi-os e ouvi-os: pouco faltou para baterem um no outro...

O jornalista soltou breve risada sem alegria, enquanto desviava o olhar da figura que ao longe se afastava para o fixar no rosto estupefacto e desiludido que se erguia para ele.

Mas não chegámos a vias de facto. Veja pois de quanto pode servir a boa educação!

Não compreendo uma tal antipatia, semelhante animosidade prosseguiu abatida. É horrível...

Não dramatizemos retorquiu João com desenvoltura. Há coisas e desgraças maiores.

Não para Renaud disse ela com desgosto porque é o pobre rapaz quem vai pagar as diferenças deste ódio inexplicável. O senhor abandona-o por causa de Carine.

Ele tirou do bolso um maço de cigarros todo amarfanhado, devido a amachucá-lo sem precauções, e escolhendo um vagarosamente, murmurou sem a olhar:

Diga-me: a sua irmã parece preocupar-se tão de repente pela inocência de Renaud... É coisa nova?

Não. Não é nova! exclamou Patt. Ela gosta muito dele e...

Somente? perguntou acendendo o cigarro. Era o que eu supunha... mas esta sua nova atitude...

Patt, enfurecida, encolheu os ombros.

Vocês aborrecem-me ambos com as vossas subtilezas e implicações! Para mim só uma coisa conta: a honra... e a felicidade de Renaud. Graças à Carine, esperei que o senhor pudesse aplicar-se a salvar-lhas...

Interrompeu-a com um gesto:

E se eu me aplicasse sem... como se chama

ela?

Parecia tão descabida essa pergunta, agora, no meio daquela discussão, que Patt respondeu maquinalmente e aturdida:

Carine... mas é um diminutivo de Catarine, que eu lhe dava quando era pequenina. Depois, toda a gente o adoptou.

Carine repetiu ele, olhando ao longe. Carine... Pois seja: pode dizer-lhe que, visto ser esse o seu desejo, eu descobrirei e hei-de trazer Renaud Martin... sem que isso lhe custe um centavo!

Uma hesitação tremulava ainda na voz de Patt, mas já no seu olhar cintilava um brilho de júbilo.

Vai fazer isso?

Vou afirmou ele.

Ah! murmurou a jovem num tom em que o calor da esperança vibrava. Que ventura! Mas como vai ser terrivelmente difícil...

Não duvido; mas... eu me desembaraçarei.

E porquê... se lançará nesses trabalhos? Após curta hesitação, João murmurou, gracejador:

Se lhe dissesse que era para agradar ao ”Cisne Negro” não poderia acreditar, pois não? Teve um breve riso seco e concluiu. Admitamos então que é para agradar a mim mesmo

Ah! exclamou Patt sois um belo rapaz! Espantoso! Fico sossegada e certa de que Renaud será encontrado, e salvo, porque desfará todas as suspeitas logo que as conheça... e poderá voltar à nossa terra de cabeça bem erguida! Se o senhor soubesse quanto é dolorosa para aqueles que o conhecem a suspeita caída sobre ele... ele, tão bom, tão generoso, tão puro de sentimentos!

Um brilho de emoção transpareceu nos olhos cinzentos do repórter. Carinhoso, passou a mão pelos luminosos cabelos que adornavam a pequenina cabeça altaneira.

Ainda bem! disse com gentileza. Aomenos vejo que gosta dele não ”muito”, mas muitíssimo!” Quanto lhe quer!...

Um instante ela ficou muito direita, interdita, em face dele. Depois, bruscamente, abriu muito os olhos, com uma das mãos tapou a boca, num gesto infantil, de criança surpreendida.

Oh! meu Deus! suspirou, atónita.

E rodando por sua vez nos calcanhares, sem uma palavra, sem um adeus, lançou-se rapidamente a caminho de casa.

 

                                         Se Renaud voltasse

Se Renaud voltasse? perguntou Patt à queima-roupa.

Carine estremeceu, abrandou por um momento o seu passo já de si vagaroso e, com um estranho olhar que parecia não se desconcentrar dela própria, o seu olhar de ”través” (como a irmã dizia quando era garotinha) repetiu com hesitação:

Se Renaud voltasse?...

Aquela sua atitude indecisa exasperou Patt.

Sim tornou com súbito impulso, procurando apenas moderar o tom da voz (a multidão sevilhana era assaz barulhenta para, principalmente naquele bairro, se aperceber duma explosão mais pergunto por vezes a mim mesma se tu o esperas ainda, se tu desejas o seu regresso ou preferes, acobardadamente, que tudo fique neste estado de incerteza que te facilita a cobardia...

Carine teve um sobressalto, parou então para fixar na irmã um olhar ardoroso, profundo, quase desesperado.

Assim me julgas? disse, voluntariosa. Patt parou também e agora as duas irmãs encaravam-se, imóveis no meio da multidão de transeuntes que afluíam e refluíam junto delas qual movediça maré ao redor duma ilha.

Era em plena rua Serpes, onde todos os Sevilhanos pareciam viver, aglomerados, ao ar livre, dia e noite. Como todas as ruas comerciais espanholas, esta não conhecia linha recta, e nela parecia encerrar-se uma população impante e jovial, plena de exuberância e de certo mistério, entre as suas lojas de estilo barroco, extravagante.

Entre elas, acotovelando-se, belas moças e nervosos jovens iam num caminhar ondulante, batendo o tacão, riso pronto; e a isto se misturava a ameaça imprecisa e sorna dum caminhar abafado pelas alpercatas dum peão ou do frufru duma longa saia multicor de cigana.

Estranha multidão, perturbadora e aliciante, jamais esquecida de que ainda não há muito cada Andaluz usava a sua navalha de ponta e mola na cinta.

Várias vezes as duas jovens, passando sozinhas nas ruas de Sevilha, haviam percebido a atracção causada pela sua exuberante beleza, ameaça galante que entretanto lhes ganhara o coração.

Ainda uma apóstrofe acompanhada pelo atrevido olhar dum rapazelho, moreno escuro como um desses Mouros de que descendia, fizera subir a cor às faces de Carine.

Vem disse ela à irmã, puxando-a pelo braço não vamos ficar aqui a apanhar encontrões...

A passo estugado encaminhou-a para o Parque Maria-Luísa aonde pensou encontrar um pouco de calma.

De longe, o perfume, todos os aromas adocicados, fortes, embriagadores, dos jasmins, das acácias, das roseiras, das laranjeiras em flor, acolhia-as como um inebriante convite. Sem descerrar os lábios seguiram até lá. E quando atingiram enfim uma calma relativa, Carine largou o braço da irmã e, com uma voz em que o enervamento abria falhas, perguntou:

Que querias tu dizer com aquela tua frase: ”Se Renaud voltasse”?

Patt reflectiu um instante. Que queria dizer? Precisamente o que o seu cérebro e o seu coração a si própria perguntavam há longos dias, depois de que a sua estada em Espanha com os Àrdimont principiara a revelar-lhe, a pouco e pouco, uma nova Carine, tão profundamente mudada tanto na linguagem como nas maneiras, que ela chegou a crer possível vir um dia no qual lhe proporia retirar a Xavier a palavra por ele arrancada, e Carine cederia sem nada opor!

Porque, bem entendido, e ainda nesse ponto João Dorget tinha razão, o filho não tardara em vir juntar-se a elas, viajantes, fazendo-o evidentemente de acordo com sua mãe que, por todos os meios possíveis, se esmerava em conquistar para ele a conquista definitiva de Carine.

Era tão flagrante, tão clara essa espécie de conspiração destinada ao enfeitiçamento que vinha à mente perguntar se aquela que era seu alvo não a adivinharia, surpreendida. Se, parecendo fruir o encanto dessas manobras, era sincera ou ardilosa, iludida ou lúcida? E Patt, que assistia impotente a esse perfeito cerco feito à irmã, sentia-se alarmada, não tanto pela sua visível atitude, que podia muito bem ser enganadora, como pelo mistério envolvente. Porque, mais do que nunca, e há uns dias, Carine escapava-se-lhe, refugiava-se na defesa inexpugnável dum sorridente silêncio, duma desprendida e sorridente indiferença, duma negligência inteiramente nova. No decurso das suas excursões, dos seus constantes deslocamentos através da península ibérica, a intimidade a sós das duas irmãs havia sido quase rara, constrangidas, vigiadas pela atenção da condessa, hábil em colocar sempre entre elas uma terceira pessoa a fim de evitar as suas escapadas ou expansões.

Em verdade, porém, só Patt desejara que se tornassem mais frequentes as suas isoladas conversações! Carine, pelo contrário, aproveitava todos os ensejos para evitar essas ocasiões, fazendo assim o jogo da condessa. E Patt, exasperada, ansiosa, perguntava-se porquê... se não seria para fugir à concisa pergunta de agora posta por si e deixava desorientada a irmã, incapaz de lhe responder:

E se Renaud voltasse?

Carine corou, com os olhos brilhantes, os lábios trémulos, perdida toda a sua calma, para por sua vez perguntar com ardor:

Por que o queres saber e repisas com essa insistência? Sabes qualquer coisa? Recebeste algumas notícias?

Recebi, sim. João Dorget escreveu-me. Carine teve um sobressalto e nos seus olhos passou um relâmpago de indignação.

Ele escreveu-te?

Escreveu. E até por mais duma vez.

Esse odioso jornalista! Ousou uma coisa dessas! Por que não mo disseste?

Mas respondeu a mais nova, surpreendida por aquele ataque nunca me perguntaste...

Eu, perguntar-te por esse cínico e mal-educado, por esse garoto que... Muito calma, Patt relevou:

Não acho que seja nada disso e ainda não cheguei a compreender a tua antipatia. Não é...

Não é comparável nem devida essa antipatia senão à sua hostilidade! resmoneou Carine.

Concordo, mas não deixo de perguntar a mim mesma qual o motivo que os leva a arrebatarem-se um contra o outro,

- Não sabes? disse indignada. É a má fé o procedimento dele, a sua teimosia em me culpar

carregar de todos os pecados, de todos os defeitos deste mundo. Considera-me hipócrita lá por que ele teve o grosseiro engano de me tomar por uma criada.

Criada, não replicou a jovem, impassível

mas sim pela nossa ”institutrice” ou seja: a Brou... Há que distinguir concluiu numa risada tão jovial e comunicativa que Carine não pôde impedir-se de lhe fazer eco.

A ideia do jornalista ter tomado Carine pela excelente, mas obesa Brou, tornava-se tão cómica que não pôde deixar de lhe despertar aquela gargalhada.

Que estupidez. protestou Carine, tentando refrear o riso que também a sacudia.

Mas, alegre, Patt saltou-lhe ao pescoço.

Estupidez por ter abalado o teu mau humor? Ora, é assim mesmo, a rir, que eu te quero ver. Tudo quanto aconteceu te modificou de tal modo. No entanto, eu pretendo acima de tudo é desarmar o partido que tomaste contra esse rapaz tão apreciável, tão gentil que...

O passageiro bom humor de Carine, desapareceu.

Sim disse ela, carregando as sobrancelhas vejo que também foste conquistada por esse Dom Quixote! Mas lembra-te de que aquela atitude é para ganhar a confiança das pessoas e traí-las depois! Essa espécie de indivíduos não respeitam nada e suspeitam de tudo e de todos. O papá tinha razão quando proibiu receber os jornalistas, recomendando não lhes dizer a mínima coisa...

Patt encolheu os ombros.

Falsos raciocínios de muita gente. É assim que se usa avaliar pelas aparências e formular deduções muitas vezes enganosas... Não acredita na verdade... se lha dissessem.

São espíritos ruins, nebulosos e atrevidos. Nada os detém. São capazes de tudo para obter e divulgar uma notícia. São...

Patt escutava a irmã, abanando a cabeça e agora muito séria.

-Ora, adeus... Mas, se me permites uma pergunta, diz-me cá: por que pões no plural todas essas censuras? É afinal de João Dorget que se trata! E, nesse caso, concretiza o que podes censurar-lhe. Porventura divulgou ele alguma falsidade ou alguma verdade que pudesse causar-nos qualquer prejuízo... ou a Renaud?

Ligeiro rubor tingiu a cor mate da jovem e as suas belas pálpebras baixaram-se.

Não... confessou um tanto contrafeita.

Demais tornou Patt, impiedosa desde que lhe demos a conhecer um facto que parecia poder comprovar a sua inocência e, no mesmo passo, a tua, que infalivelmente serias acusada de cumplicidade com ele, não se apressou ele a publicá-lo, dando-lhe o sentido mais favorável, para vós, com um tacto e uma discrição perfeitas? Refiro-me ao anúncio dos teus esponsais com Xavier.

É certo reconheceu ela ainda, de má vontade. Mas...

Mas tornou Patt não jurou ele fazer ressaltar a inocência de Renaud, na qual acredita e sempre acreditou... mesmo quando estavas prestes a duvidar?

Carine teve novo encolher de ombros.

Acho tudo isso natural uma vez que ele tomou o partido de Renaud, encontrando-lhe todas as qualidades!... Renaud é também para ti... um herói da antiguidade, um deus, um...

É apenas Renaud! concluiu Patt num tom definitivo.

Outro encolher de ombros lhe respondeu. Depois, mais calma, mas sempre irónica, a primogénita perguntou:

Não te parece que em vez de me contares todos esses elogios a respeito desse... como lhe chamas: Dorget?...

Sim: João Dorget precisou com divertida admiração Patt, lembrando-se da idêntica interrogativa do jovem repórter: ”Como se chama ela?”

Pois bem, não te parece que, em vez desses elogios, farias melhor revelar-me as notícias dadas nessas cartas, que tiveste por bem conservar secretas para mim?

Não são sensacionais, além de que acabaria por te falar nelas... Dorget escreveu ao cônsul da França em Manana.

Que é isso?

A capital de Quaracha, um pequeno estado da América do Sul, próximo do Peru, aonde investigações recentes levaram à descoberta das ruínas dos Incas, como sabes...

Diante do ar indiferente da irmã, a jovem prosseguiu:

Sucedeu que um amigo de Renaud partiu para lá como professor, há já alguns anos. Sabes também o apaixonado interesse que Renaud manifestou sempre pelas antiguidades incas e tudo o mais relativo à história dos índios. Veio-nos à ideia que ele tivesse ido procurar e encontrar-se com Alexandre Bechman.

Bechman? Espera disse Carine pestanejando lembro-me... duma irmã dele, uma rapariga alta, pálida, que andou comigo no colégio...

Ela partiu com o irmão e, segundo as últimas notícias recebidas por Dorget, o Renaud também lá se encontra... mas doente.

Doente?

Sim, o senhor Hourvy, o cônsul, escreveu e soube que os Bechman albergavam há algum tempo um jovem francês que a casa deles chegou doente e pelo qual o médico não dava nada, desesperançado de o salvar.

Notou quanto esta notícia pouco inquietava a irmã e irritou-se.

Achas isto muito natural?

Vejo respondeu calma que isso explica o seu silêncio. E depois?

Depois... Dorget parte dentro de dois dias. Deixou passar curto silêncio, e em seguida, firmemente:

E eu acompanho-o. Vou com ele.

O quê? gritou Carine. Tu enlouqueceste? O pai não permitiria...

Pergunto eu continuou Patt com a mesma decisão: nesta nossa época em que as raparigas da minha idade viajam e cruzam os dois hemisférios, quer seja por simples prazer, quer pelas exigências da vida desportiva, como poderá proibir-se-me fazê-lo quando se trata da salvação dum amigo? e aproveitando a sua razão: Pois está dito. Parto com Dorget e é a mim que tu remetes as quantias necessárias a esta expedição... não podendo ele, por esta forma, recusar!

E o pai? inquiriu Carine, já convencida.

Julgar-me-á sempre aqui, em Espanha... Quanto aos Ardimont é melhor fazer-lhes crer que eu fui para junto dele...

Sufocada por tamanha decisão, Carine não encontrou mais do que uma fútil resposta:

Mas... desse modo, Patt indignou-se ela tu mentes!

A jovem, com indiferença, replicou:

Bem vês que já tenho idade para saber o que faço.

 

                                 Uma carta difícil

”Senhor...” principiou Carine. E logo se arrepende, riscando enraivecida a palavra, rasgando a folha de papel. E diante doutra folha em branco, reflectiu longamente sobre a palavra mais própria e melhor para encimar aquela carta.

”Senhor”? Não. Devia de evitar definitivamente o cerimonioso tratamento de senhor. Como aplicá-lo a esse jornalista sem importância, da sua geração... porque, afinal, que idade poderia ele ter? Vinte e seis, vinte e sete anos?... Encolheu os ombros, num arremesso. Não via, na nossa época, os jovens tratarem-se entre si por ”senhor” ou ”senhora”... Então? ”Caro”? Ah, nãol Isso ainda menos! Caro, esse insolente que lhe mostrara tanta hostilidade e menosprezo... Autêntico inimigo! Mas como não se podia começar uma carta por ”Senhor meu inimigo” o melhor seria não pôr coisa nenhuma. Redigiria a missiva em estilo telegráfico. Para mais ia enviá-la pelo serviço ”expresso” para que ele a recebesse antes de partir... A carta devia chegar ao mesmo tempo que Patt ao endereço parisiense que esta lhe dera, o endereço da casa de uma das suas primas, onde deveriam esperar a conclusão das últimas formalidades para a viagem.

Depois, numa caligrafia mal traçada pelo enervamento, começou:

”Queira não se admirar desta carta ir redigida em estilo telegráfico. A isso me obriga o pouco tempo de que disponho. Acabo de saber do insensato projecto de minha irmã e não me admira que semelhante doidice haja sido encorajada por você... mas, visto assumir em grande parte a respectiva responsabilidade, venho suplicar-lhe não a esqueça em ocasião nenhuma. Seja como for, confio-lha nessa missão em que, nem o meu afecto nem a minha prudência quereriam, entretanto, de forma alguma, vê-la metida... Ela nem me deu tempo sequer a levantar-lhe uma ligeira oposição. Demais a mais tudo desconheço, nesta ocasião, a respeito do país para aonde a leva... Contudo, ainda tive tempo esta manhã de me informar dalguma coisa e fiquei horrorizada ao saber dos perigos diversos que vos esperam... enfim, que a ”espera”. O Alto Quaracha, dizem-me, ainda se encontra povoado de índios selvagens, além de abundar em feras e répteis, doenças e febres malignas... Peço-lhe a maior atenção em não se exporem, ambos, inconsideradamente. A vossa intenção de encontrarem Renaud e de o trazerem é das mais louváveis, mas considero dificílimo o móbil que vos incita, entendendo que essa missão não deve de modo algum conduzir-vos a um suicídio! Desculpe-me esta sinistra palavra, que só tem uma intenção: recomendar a necessária prudência, afirmar-vos que, pecuniáriamente, podeis sempre, sem limite, recorrer a mim e enviar-me da sua parte notícias dessa expedição na qual se lançou com minha irmã. Deve ainda compreender que, se não fosse por ela, jamais me seria possível esquecer as palavras trocadas entre nós e que são, no entanto, a expressão real dos nossos sentimentos... mas a ternura que eu sinto por ela e a dedicação que ela me testemunha, mesmo nesta circunstância, devem calar qualquer rancor ou pessoal animosidade. É, pois, neste sentido, que eu lhe peço creia no vivo interesse votado por mim a esta aventura por cujos informes pormenorizados lhe fico muito reconhecida.

Catarina Marinot.”

Assinada a carta, Carine expediu-a, não sem se admirar de a ver tão extensa para o ”estilo telegráfico” invocado por ela.

Logo que Patrícia, poucas horas antes da partida do avião, a entregou ao jornalista, este só de uma pequena coisa se admirou:

Catarina! Nem ao menos assinou com o diminutivo por que toda a gente a trata. Já é preciso ser rabugenta!

E, não querendo deixá-la sem resposta, deu um salto ao posto telegráfico, expedindo um verdadeiro telegrama assim concebido:

”Acuso recebimento sua missiva. Sossegue a respeito extrema prudência. Reitero reciprocidade sentimentos. Pô-la-ei ao corrente resultados obtidos.

João Dorget, jornalista.”

Fazendo acompanhar do seu título profissional a assinatura, ele acentuava, como Carine, o carácter particular dessa correspondência que em caso algum ou em qualquer circunstância poderia tomar um tom pessoal e amigável.

Vinte e quatro horas depois, chegou ao Quaracha e pensou no compromisso tomado. Como o que havia a dizer seria extenso para redigir em telegrama, mesmo na tarifa internacional, optou por um verdadeiro ”boletim de operações”, como segue:

”Relatório das diligências efectuadas para encontrar Renaud Matin, que se presume refugiado no Quaracha...”

Carine precipitou-se para essa carta de cuja leitura estava sedenta, como os famintos do deserto pelo maná celeste, abriu mais os seus grandes olhos logo às primeiras linhas, encolheu os ombros, bateu o pèzinho no chão e, em seguida, indo dum extremo a outro, teve uma explosão de riso... o primeiro depois de longos dias.

Que idiotice! exclamou, num tom que não se saberia definir: se o de verdadeiramente irritada, se divertida.

O relatório prosseguia nestes termos:

”Nesta nossa chegada ao Quaracha descemos primeiro no aeroporto de Mariana, capital do Estado. Àlojámo-nos num hotel, o melhor, que mesmo assim está longe de ser de primeira ordem, e fomos ao consulado da França a fim de recolher alguns informes que esperávamos tivessem sobre todos os indivíduos franceses residentes nesse território estrangeiro. Primeira decepção: os recém-chegados aqui não são obrigados a apresentar os seus passaportes e é dada a mais ampla liberdade aos estrangeiros para residirem incógnitos no Quaracha... o que permite que o Francês pouco desejoso de se dar a conhecer no seu consulado possa aqui residir durante anos sem ninguém obter a seu respeito informações!

”O cônsul, que felizmente é ainda primo em oitavo ou décimo grau da família Ardimont e que por esse motivo nos recebeu de braços abertos, não deixa, porém, de ter a sua ”polícia” local, mas feita de falatórios e mexeriquices. Sabia por isso que Alex Bechman, professor no Colégio de Manana, chegado de França há quatro ou cinco anos, albergava desde algum tempo um estrangeiro... talvez um francês chegado por avião nos começos de Outubro e que, doente, teria sido cuidado pelos seus amigos, o professor e a irmã. Ora nada me resta senão dirigir-me amanhã a casa daqueles, que moram um bocado distantes da cidade, numa residência onde são servidos por dois criados indígenas.

”Escusado será dizer que não levarei comigo a sua irmã a qual até agora se tem portado admiravelmente e dado provas duma corajosa disposição deveras estimável numa jovem tão nova e não a levarei por não calcular nem saber quais serão as consequências... Os Bechman vivem, com efeito, completamente à parte, depois da sua chegada a este país, e por outro lado o que eu soube respeitante ao carácter da tal irmã não é de molde a augurar um resultado muito satisfatório...

”De qualquer modo, ser-vos-á enviado, dia a dia, um relato dos nossos passos e iniciativas.

”Um dos membros da missão:

João Dorget.”

Por debaixo destas linhas, dactilografadas como o resto, na máquina portátil de escrever de João, figurava na larga caligrafia de Patt, com vários pontos de exclamação, este gracejo:

”Inteiramente de acordo com os termos do presente relato!

”O segundo membro da missão:

”E aí vão mil beijos!

”Patt!!!

 

                                       Em cheque

Logo que ouviu um galope, Cecília precipitou-se para fora. Muito direita no último dos cinco degraus que conduziam à casa, parecia defender-lhe a entrada.

Cruzando o seu olhar com as pupilas azul-acinzentadas daquela mulher em que uma expressão rude e desconfiada substituía a beleza, João compreendeu que ela iria tentar afastá-lo, servindo-se duma mentira.

Foi logo à sua primeira pergunta: ”Sou um amigo de Renaud Martin. Vinha visitá-lo. Disseram e é certo que ele mora com o professor Alexandre Bechman?” viu-a empertigar-se. À resposta esfuziou, pronta:

O senhor Bechman partiu numa missão. Ninguém mais habita esta casa além de mim, que sou irmã dele.

No entanto, minha senhora, falaram-me dum Francês que chegou aqui doente, há uns três meses.

Recebemos efectivamente a visita dum amigo nosso, doente. Mas logo que ficou restabelecido, foi-se embora disse ela com uma reserva quase hostil.

Está bem segura do que afirma? insistiu João com o seu meio sorriso zombeteiro, através do qual Cecília teve a impressão de ser perscrutada até ao fundo da alma.

Optou por se mostrar ofendida:

Eu não conheço o senhor, nem certamente meu irmão o conhece também. De contrário, eu.

sabia, pois não temos segredos um para o outro, peço-lhe, portanto, o favor de não me importunar, visto não poder, embora com muita pena, dar-lhe nenhuma informação a respeito do Francês que o senhor procura...

Ela não se desembaraçaria, porém, tão facilmente de João Dorget. Bem firme nas suas pernas, calçadas em botas altas e rebrilhantes, dava a impressão de estar pregada ao solo, decidida a não ceder em contrapartida nem uma polegada...

Escute-me: sei que é conterrânea, que de Nancy partiu há tempos. Em nome portanto da nossa condição de compatriotas, permito-me insistir a favor do meu desditoso amigo. Mesmo que ele seja seu desconhecido, julgo não poder recusar a sua colaboração para nos ajudar a acharmos vestígios dele, vivo ou morto!

Ela estremeceu imperceptivelmente e, no mesmo tom agressivo, ainda que um pouco intrigada, agora, redarguiu:

Morto? E se assim fosse de que lhe serviria encontrá-lo?

Num tom premente e ao mesmo tempo sério, de modo a não deixar dúvidas, ele concluiu:

Serviria, ao menos, para reabilitar a sua memória duma suspeita infamante; e, ao mesmo tempo, para libertar também uma desditosa que a dúvida condena, arrasando-lhe a vida.

Cecília teve um frouxo de riso arrepiante.

Que tom grandiloquente!... Eu que censuro sempre os Espanhóis os seus exageros verbais, não me lembrava ou não sabia que fosse também assim a linguagem dos meus compatriotas!

Indiferente pelo motejo, João replicou com a mesma seriedade:

Tem razão, sim, esta linguagem não é a ”habitual”, mas nós encontramos-nos em face de circunstâncias ”excepcionais”...

Verdadeiramente intrigada, disse não sem ansiedade:

Não compreendo.. Vai já compreender.

Então, num resumo breve, mas eloquente, descreveu-lhe os acontecimentos: a morte da senhora Marinot devida à descarga duma caçadeira, descarga perdida no ar, momentos depois de se ter ouvido Renaud proferir censuras contra ela, as quais podiam tomar-se por ameaças... e logo o desaparecimento do rapaz que imediatamente se retirou da caçada, e também de Nancy nesse mesmo dia; o seu silêncio perante o luto duma família de que era íntimo amigo, considerado como quase noivo de uma das filhas da casa; enfim, as dúvidas, as suspeitas que esta separação de Renaud provocaram contra ele.

Compreendendo que acusavam Renaud de ter morto, talvez voluntariamente, a senhora Marinot, Cecília acudiu:

Mas é falso! É loucura. É iníquo!!... Renaud disparar uma arma contra alguém!... Seria ele o primeiro a adoecer!

E calou-se, como que ferida pelo sentido pesado das palavras que ela própria acabava de pronunciar. Se João não viu a palidez que embaciou a sua cor tostada, foi porque, segundo o seu hábito nos momentos de reflexão profunda, estava de olhos baixos postos numa pedra avermelhada tida na sua bota.

Como é curioso! disse numa voz distante. Falou exactamente como a jovem Marinot!

A voz de Cecília esfriou:

Carine!

Não disse ele erguendo a cabeça para a encarar com novo interesse: Patrícia.

Mas...disse Cecília num tom que procurava destacar-se não era da mais velha que ele... esteve quase noivo?

Justamente disse João sem deixar de a fitar; isso, porém, não impede que a mais nova sinta por ele um interesse... mais ardente, talvez, do que o manifestado pela irmã.

Num tom gracejador, concluiu depois de lançar de revés um novo olhar ao rosto dela, ruborizado agora até à raiz dos cabelos:

Pessoalmente não o conheço, mas parece ser um verdadeiro carrasco de corações femininos esse famoso Renaud Martin!

Súbito, tornando-se desconfiada, protestou, observando-o com seus esmaecidos olhos:

Como? O senhor não o conhece? Mas acabou de o dar como um dos seus amigos! Que vem então fazer aqui? Por que o procura? Como pode pretender salvá-lo, sem o conhecer?

Sem o conhecer, perfeitamente! replicou ele sem se perturbar.

Poderá, pois tornou ela com violência dizer-me qual o motivo por que empreendeu esta longa viagem, inútil de todo, apresso-me a repetir-lhe, visto ele não estar aqui? Porquê... e para quem, se para ele não é?

Cecília teve o gosto amargo de ver que, desta vez, era ele quem, sob o seu olhar, perdia a calma. Os seus olhos verdes, sempre tão brilhantes, tão maliciosos, toldavam-se, enquanto que, muito baixo, murmurou:

Não sei!

Durante o ligeiro silêncio que se seguiu ouviu-se o rumor quase metálico das altas e grossas palmeiras agitadas pelo vento, acima das suas cabeças. Perto, um repuxo de água cantava no côncavo duma pequena fonte. Um pássaro lento e de comprida plumagem cor de fogo voou de repente duma árvore para outra. Uma ave... Instintivamente, o pensou numa outra... num cisne negro... E porquê essa associação de ideias? Sacudiu os ombros como que para repelir uma suposição pouco agradável, e, lentamente, repetiu martelando as palavras:

Não sei. Em verdade, não sei por que afronto num desafio o mundo, a fim de encontrar esse rapaz, provar a sua inocência, e levá-lo ilibado de suspeitas àquela que ele ama... A sua voz subiu de tom e tornou-se mais dura, para concluir: Também me parece que a senhora não sabe... por que o quer impedir, custe o que custar!

De expressão irada, ela protestou batendo o pé no chão, o que ergueu uma poeira avermelhada:

Não lhe permito que duvide das minhas palavras. Repito-lhe que o nosso amigo esteve cá durante o tempo necessário a curar-se duma febre maligna, mas já se retirou há tempo desta casa onde eu habito agora com uma criada. E, para se convencer, entre, veja com os seus próprios olhos, uma vez que não me acredita.

Num impulso, ela subiu a escada de acesso à varanda coberta que ornava a fachada.

Vamos perguntou? por que espera? Venha.

Imóvel, em baixo, os braços cruzados, o jornalista abanou a cabeça. Sabia sempre conter-se.

Desde que a senhora assim mo propõe, acho inútil; e fico sabendo que Renaud Martin não se encontra cá. Sim, eu não sou tolo. Mas a pergunta continua posta de pé para mim: aonde está ele? A senhora sabe-o?

Não! afirmou ela voltando para ele a cabeça.

Não? Com certeza? disse, incrédulo. Estou convencido no entanto de que o seu irmão sabe. Ou não?

Já lhe disse que ele partiu em missão. Nada podemos fazer em seu favor.

Nem em favor de Renaud? rematou, sublinhando as palavras. Nem para esse cuja felicidade, e mais ainda: a liberdade e a vida estão em jogo? Decididamente: não?

Sem abrir a boca, ela abanou negativamente a cabeça. Ele olhou-a por momentos e viu-a bem firme, postada nas suas belas pernas que o ”short” revelava, com o seu vigor saudável e a resolução de toda a sua pessoa. E suspirou baixo. Nada a abalaria.

Então, adeus disse ele, saltando sobre a sela. Mas note que isto não fica por aqui... pois eu não vim só!

Já a sua montada se afastava. Ele voltou a cabeça para trás e, belo como um demónio na nuvem avermelhada da poeira que se erguia do solo e o envolvia, gritou-lhe:

E aquela que me acompanhou será ainda mais tenaz do que você!

Na sombra do varandão, Cecília estava como petrificada. Os seus olhos desmesuradamente abertos tinham uma expressão de terror e de ódio.

”Carine...” murmurou com os lábios trémulos, de súbito.

 

                                     Tamila

Não era, todavia, Carine a jovem amazona de calção e polainas que João foi encontrar algumas tardes depois naquele abrigo, último ponto habitado em tais alturas diante do terreno revolvido e escavado onde, pouco tempo antes, haviam sido descobertos antigos vestígios da civilização dos incas.

Uma velha indiana, silenciosa e frágil nas suas sete saias multicolores, ia e vinha na casa enfurnada que o crepúsculo invadia a pouco e pouco, cobrindo-a de sombras inquietantes, quando o ruído dos passos de Dorget acordaram os ecos...

Ao ouvir aquelas passadas, a jovem, empoleirada num banco alto grosseiramente feito de quatro cepos de árvore, e diante duma espécie de bar, saltou para terra e correu ao encontro dele, agitando a sua cabeleira dourada em desordem.

Até que enfim!... Já estava em cuidados... Num relance de olhos, o recém-chegado observou os recantos sombrios da dependência.

Por si ou por mim? perguntou. Já lhe tinha dito que isto não era sítio próprio para meninas...

Patrícia ergueu os delicados ombros.

Por mim? Você não está bom! Pelo contrário, até me diverte bastante. Com um pouco mais de movimento neste cenário, eu imaginaria que estava a ser filmada, representando um papel de actriz! Aliás o sonho da minha infância!

Olhou-a com amizade apiedada e não isenta de admiração: essa rapariga cuja resolução de partir com ele lhe parecera loucura e um desafio ao bom senso, causava-lhe pasmo pela sua audácia e coragem, resistência e demais qualidades jamais esperadas da sua fragilidade.

E também este cubículo, este antro indiano...

Cubículo? Acho até que é duma tranquilidade desanimadora. Só há pouco veio aí um tipo de ”poncho” (1) semelhante a um Inca, salvo a pena espetada no cabelo como outrora, e bebeu um copito daquele péssimo álcool... a chamada ”chicha”, como sabe, e pareceu-me que a ”patroa” ia

 

(1) Poncho Peruano que usa uma espécie de capa com mangas em forma de blusão curto. N. do T.

 

mandá-lo embora por minha causa... O cônsul preveniu-a certamente! Que má ideia tivemos em nos dirigirmos a ele! concluiu, amuada.

João largou a rir francamente. Decerto o cônsul prevenira a velha indiana a fim de ninguém incomodar a jovem pensionista que lhe fora enviada por um dia e uma noite. Os dois viajantes não tinham de facto tenção de demorar neste recanto perdido; nem tão-pouco qualquer vilória, aglomerado existia que pudesse alojá-los no ”terminus” do ”autocarril” veículo meio autocarro, meio ”trâmuei”, assente em via reduzida e que nem sequer chegava às proximidades das ruínas incas recentemente descobertas. A partir desse ”terminus” era forçoso empreender no dia seguinte uma jornada em mulas durante longas horas, antes de chegarem ao termo. Este final problemático para Patrícia, que perguntava vivamente:

Mas você sabe, João, se os encontramos lá em cima?

Calma, calma retorquiu ele, com gesto apaziguador. O professor Bechman, segundo o cônsul nos sugeriu, aproveitou a sua licença para se juntar à missão que aqui chegou há quinze dias para efectuar pesquisas nesse alto! Um Indiano que lhes transporta para lá alimentos, viu-os.

- Mas... Renaud? inquiriu ansiosa.

De Renaud não se fala... A Missão é composta por uma dezena de indivíduos que acamparam naquele ponto. Não consegui obter mais do que alguns nomes... Conforme pensámos, é muito provável que Renaud Martin, apaixonado sempre pelo mistério inca, haja seguido as pesquisas científicas relativas às descobertas feitas até aqui na vizinha região do Peru, e se tivesse juntado a eles...

Patt entusiasmou-se:

Também pode dizer que deve ter sido ele quem inspirou a expedição; e quem sabe mesmo se não é sob os seus planos que estão realizando as buscas de agora?... Quanto a mim, sei a este respeito que ele possuía uma teoria muito sua... O famoso tesouro dos Incas, de que eu suponho não se ter descoberto até agora mais do que uma escassa quarta parte, deve existir num ponto que Renaud me mostrou no mapa, sítio esse em que devem tê-lo escondido os adoradores do Sol à chegada dos seus invasores... Sim, ele falou-me muitas vezes de tudo isso, a mim, a garota que o escutava de boca aberta, enquanto que os maiores, inclusive Carine, troçavam dele, um bocadinho... Lembro-me disto muitas vezes...

Ao dizer isto a sua voz dulcificara-se... e ao mesmo tempo que se dava esse abrandamento do metal da sua voz no que ela tinha de luminosamente agressivo, também o ouro avermelhado dos seus cabelos, o inverosímil azul das suas pupilas, como que se cobriram dum impalpável e ténue véu a envolvê-la inteiramente. E foi como num sonho que ela terminou falando muito baixo:

Recordo muitas vezes as horas que passava ajoelhada no chão junto dele ou assentados num cepo, na nossa mata. Ele olhava ao longe, ao longo dos arvoredos, e os seus grandes olhos palhetavam-se de ouro... como se de súbito recebesse neles o reflexo do tesouro... de toda essa munificência oculta há tantos anos. E contava-me então a magnífica e terrível aventura desse império que foi talvez o mais rico do mundo e que conquistado por um punhado de homens... há cento e oitenta anos, diz-se, sob o comando de Pizarro, pelos próprios conquistadores pereceu aniquilado em consequência da sua cupidez e crueldade... Durante séculos, o povo sobre o qual reinava o Inca, chefe venerado, considerava o ouro apenas como um metal maleável, bom de trabalhar, e para ele, sobretudo tão comum e abundante que se prestava a todos os empregos e utilizações. Os olhos maravilhados que eu devia fazer quando Renaud, pacientemente, me lia certas velhas crónicas descrevendo o famoso templo do Sol, pavimentado de ouro, povoado de estátuas e de animais de ouro, entre as paredes forradas de ouro e cravejadas de pedras preciosas!...

João disse meigamente gracejador:

E os olhos que ainda hoje faz, Patt, ao falar de tudo isso! Para uma rapariga tão desinteressada, dir-se-ia que o vil metal possui uma atracção bem maravilhosa!

Pois não é pelo valor dele! exclamou. Nem Renaud tão-pouco, posso jurar-lhe! Se ele sonhou com o tesouro dos últimos Incas, logo que os que vieram de novo revelaram o valor dado por eles ao ouro, foi unicamente como arqueólogo... e um pouco pelo fantasioso encantamento que daí provinha! Renaud? Estou bem certa de que se ele repentinamente descobrisse essa reserva de riquezas fabulosas, não pensaria em se apropriar duma pepita que fosse. Mas ficaria louco pela descoberta! E é por isso mesmo que eu creio, que eu tenho a certeza de que ele subiu até lá com a Missão... da qual comparticipou o seu amigo Alex Bechman... É a pista, a melhor pista, ia jurar! Já lho disse, João, logo que me contou a sua conversa com a irmã de Bechman. O que eu não posso compreender é o motivo por que ela recusou dizer-lho. Qual a razão que a leva a manter em segredo essa estada de Renaud nos Andes?

Sem responder, João começou a cantarolar. Bem sabia o motivo por que ela não queria deixar os Franceses juntarem-se com Renaud e talvez levá-lo para França... mas não o disse à jovem. Em todos os seus actos, palavras, impulsos ela confessava, sem querer, um amor tão profundo quão desinteressado por Renaud! Era um desses amores imensamente simples, quase instintivos, que, por vezes, se ignoram a si próprios, e são capazes dos maiores heroísmos, puramente, sem frases. Um Amor com A grande, pensava João, pouco habituado a encontrá-lo, e que ficava, diante da sua tranquila devoção, siderado por admirativa surpresa... Não, ele não dissera a Patrícia que a irmã de Bechman tudo faria neste mundo para impedir Renaud de partir ao encontro de Carine... Voltando da sua ida inútil a casa do professor, dissuadira a jovem de lá ir, por sua vez; argumentara que uma demasiada assistência serviria para recitar a desconfiança de outra, incitando-a talvez a prevenir o irmão e o seu companheiro amigo... Ora qual seria a reacção de Renaud se se soubesse perseguido? Era isto que, no fundo, ambos se perguntavam com ansiedade... mas não pelas mesmas razões. Patrícia, sabedora da atracção das pesquisas pelo jovem e sapiente investigador, não considerava possível que ele descurasse ou deixasse adormecido o sentimento da sua honra ameaçada pelas suspeitas que lhe seriam reveladas... pois nenhum outro receio jamais a assaltara, a assomara sequer.

Quanto a João, ele não podia impedir-se de ficar atónito de admiração diante duma tal confiança. Para ele, que não conhecia esse famoso Renaud senão pelo que ouvia dizer, o enigma da sua atitude continuava inteiro... Por que partira ele tão depressa e tão fora de propósito?... Por que chegara ao Quaracha tão mal, a ponto dos seus amigos terem de o cuidar longamente? Cecília o dissera. E a memória do jornalista retratava-lhe a atitude loucamente inquieta daquela que, logo depois de protestar: ”Renaud disparar contra alguém? Seria ele o primeiro a ficar doente...” empalidecera, levara a mão à boca como para tapar, suspender essas inditosas palavras...

E João não podia inibir-se de pensar algumas vezes no que sucederia se ao cabo de todas as suas investigações e esforços o assunto fosse dar a um beco sem saída... se, posto em face da situação que o esperava em França, Renaud se recusasse a regressar ou a desculpar-se! Quando este pensamento o invadia sacudiu-o um estremecimento... Pensava ainda no golpe terrível que isso vibraria em Patrícia, que nunca duvidara do acusado! E também supunha com angústia o acolhimento que nesse retorno uma outra lhe faria... uma outra que deveria estar esperando com ansiedade a volta e o resultado da missão...

Entretanto a noite, a horrível e glacial noite andina, invadia aquela espécie de sala. A luz dum coto de vela trazida pela velha indiana não bastava a afugentar as sombras de todos os cantos. Contudo, Patt parecia continuar satisfeita. Dir-se-ia nada ver, nem sentir, nem temer, de todo absorvida pela ideia magnífica de, no dia seguinte, após mais alguns esforços, encontrar Renaud... Voltaria a vê-lo, saberia convencê-lo a regressar, salvá-lo-ia...

Enquanto a hospedeira preparava uma refeição, o jornalista, em palavras precisas e simples, formulava o plano da jornada que ainda os esperava.

Amanhã cedo partiremos: temos, pelo menos, cinco horas de caminho em mulas, ao longo duma torrente, trepando e ladeando rochedos... Caminho duro e difícil, perigoso mesmo...

Eu sei disse ela contemplando as chamas às quais se achegara porque o frio começava a fazer-se sentir asperamente. Não se inquiete por mim...

Sim. Ele sabia. E não se inquietava. Ao começo da missão, ele receara bastante expor a tais fadigas e perigos uma jovem de tão pouca idade. Agora, porém, verificara a incrível resistência que o seu amor dava àquele corpo nervoso. Ela resistiria.

Mas continuou ele é necessário partir muito cedo para podermos estar aqui, de volta, antes do pôr do sol...

Trazendo connosco Renaud disse ela estreitando os joelhos entre os braços para tentar dominar a tremura que principiava a apoquentá-la.

Trazendo-o ou não respondeu ele, categórico. - Por coisa nenhuma deste mundo a deixarei passar uma noite lá no alto...

E porquê? Se os arqueólogos ali acamparam e passam lá dias e noites!

No meio de uma floresta de serpentes e de pumas. Se a eles agrada, que bom proveito lhes faça!... Mas repito que, quer Renaud nos siga ou não, trazê-la-ei antes da noite cair.

Tranquilamente, ela voltou a cabeça para ele, erguendo com ar trocista o seu narizito e o seu queixo voluntarioso.

Lamento muito, meu caro senhor, mas se Renaud recusar seguir-nos e decidir ali ficar, acho melhor preveni-lo a si, desde já, que eu ficarei junto dele...

Como? exclamou João, dando um salto. Você perdeu o juízo?

Não. Ainda o tenho replicou ela, zombeteira.

Ficar lá? Mas a que título? Com que direito?

Ao título que a ele mais agradar: secretária, servidora... Com que direito? Depois que eu deixei a família para seguir em busca desse rapaz, nada me importa com o ”direito”... Continuarei, muito simplesmente! E se você não quer que eu lhe cause ”aborrecimentos” muito sérios, pondo-me a clamar por toda a parte que me trouxe sequestrada, et cetera, aconselho-o a não me contrariar!

Furioso, os braços cruzados, olhou-a de cima da sua altura, com raiva, a si mesmo perguntava se era possível que esse bocadinho de gente, de carne e de malícia pudesse ter uma tal força de vontade.

Foi isso o que projectou quando quis partir comigo? Vir encontrar cá aquele que amava?... e que a sua irmã também ama? Porque você parece esquecida de que: é Catarina, a sua irmã mais velha, quem tem direito ao coração e à vida de Renaud! Foi para lho levar que eu empreendi esta aventura aonde posso perder a vida, a minha carreira e até, se você puser em prática o seu maldoso projecto, a minha honra e dignidade!... Foi para os reunir, para evitar a união monstruosa que você maquinou entre a sua irmã e esse... esse Ardimont... Foi para...

Imperturbável, sem se mexer, sempre encolhida e tiritante em face das chamas que ardiam na lareira e quase lhe queimavam as pestanas, a pequena Patt explicou com toda a calma:

Para tornar Carine feliz... tanto como eu, o faço... para que Renaud feliz seja também. Assim mesmo. Oh, eu compreendi ao fim de tempo... e talvez antes de você, João... que amamos com um amor infinito e sem esperança esses dois seres de quem nós queremos fazer a felicidade contra tudo... sobretudo contra nós... e sem nós.

Um momento, sem o olhar, esperou um protesto que ele não proferiu. Sentia-o de pé por detrás dela, alto e forte, tão trémulo como ela própria em face daquela verdade que acabava de lhe lançar em rosto e que, depois de tanto tempo sentia enovelada no seu coração.

Ao cabo dalguns minutos, numa voz muito baixa, de tom desconhecido, João disse:

Pois bem, sim: é verdade. Para que negar? Eu amo a sua irmã. Amo Carine, que a princípio tanto detestei... Amo-a depois de a saber desditosa, depois que... Ah! mas para que procurar mais razões de circunstância? Àmo-a. Eis tudo... Como você, Patt, ama Renaud. E ambos nós sabemos que a nossa única esperança consiste em realizar a ventura deles dois. Sim, é verdade. Terrivelmente verdade. E embora eu soubesse, desde o primeiro minuto, que a Carine não seria nunca minha mulher... não pude evitar de considerá-la, Patt, um pouco como minha irmã!

Apenas um segundo de silêncio pairou na casa obscurecida, fumosa do odorante arder dos troncos de eucalipto na lareira. Então Patrícia levantou-se de salto, como que sacudindo a emoção que a arriscava a enternecer-se.

Bem entendido, meu caro: sois um irmão! exclamou com a voz ligeiramente enrouquecida. E agora que estamos esclarecidos a respeito um do outro, não devemos enfraquecer, abrandar no que temos a fazer, pois isso é bem mais útil, não acha?

De acordo redarguiu ele no mesmo diapasão e, para começo imediato, comer um bocado dessa petisqueira se acaso estiver tragável. E em seguida dormir. Depois, ao nascer do dia, a caminho!

 

                                Monstruoso egoísmo

Uma hora mais tarde, tendo obrigado Patrícia a ir deitar-se no quarto relativamente apropriado e conforme indicação da velha indiana, João, sentado diante do fogo, visionava ainda sonhador todas essas coisas quando insólito ruído lhe despertou a atenção.

Lá fora, pequenas pedras rolavam como sob o passo duma montada. Aplicando o ouvido, escutou mais atento. Não havia dúvida: um ou mais cavaleiros seguiam por aquela pista habitualmente deserta, pois segundo soubera todos os viajantes utilizavam o autocarril para atingir parte daquelas altitudes quase inabitáveis. Somente, com efeito, os excursionistas, os curiosos assaz raros subiam até às ruínas da antiga cidade dos incas, desvendadas apenas há alguns anos, e naquela região infestada, mesmo de dia, por animais ainda selvagens e répteis. Quanto a indígenas, nenhum: nada além daquela espécie de pousada no terminus do autocarril; aquela espécie de ”refúgio”, de paragem destinada aos ascensionistas, tal como existe nos altos Alpes e aonde vivia a velha indiana solitária.

Quando lhe recomendara que ali ficasse uma noite, o cônsul da França em Manana, para lhe provar a indiscutível lealdade daquela descendente dos incas, contara-lhe a sua breve história: ama de leite da filha do presidente Valderez, pouco antes destituído e assassinado no decurso de uma revolução em Quaracha, a indiana seguira fielmente a sua pequena Anita e sua mãe no exílio em França. Aí passou a viver durante anos, consagrando a sua dedicação e mesmo algo da sua ciência obscura de profetiza à felicidade da criança que ela com tanto afecto criara.

Sucedeu, porém, que avançada já na idade, Tamila sentiu o imperioso desejo de voltar a ver a terra avermelhada dos seus avós, à qual queria entregar os seus ossos quando a morte viesse acolher a sua alma de justa. Um dos sucessores do presidente Valderez, porque eles se sucediam rapidamente como tal nessa terra do Sul, sempre alterada por alguma revolução, concedera-lhe para toda a vida o direito de possuir esse refúgio na grande altitude... o mais próximo das ruínas da cidade

Ler, do mesmo autor, nesta colecção: O teu amor vale um reino.

sagrada onde lhe fora possível viver ao longo do ano. E ainda só Tamila, a feiticeira, era capaz de ali se manter durante os cruéis meses do inverno andino. Mas somente a alta espiritualidade que existia no seu corpo descarnado, mantinha a velhíssima mulher numa longevidade pouco menos do que desencarnada e sustida pela sua exaltação religiosa.

Quem ali podia pois vir assim, de noite? De sobrolho carregado, empunhando o revólver que trouxera a conselho do cônsul, João avançou para a galeria que circundava a casa.

Ao mesmo tempo que ele, Tamila, a indiana, aproximou-se do limiar, leve e silenciosamente, como um réptil.

Trocaram um olhar. Logo, porém, a sua atitude inquieta se desfez. Eram de mulher as duas vozes que vinham do exterior.

Depressa, reconhecendo a acentuação gutural que lhe era familiar e que tinha o sotaque espanhol falado pelas desconhecidas, Tamila aproximou-se dos degraus, erguendo uma espécie de lanterna.

Estrangeiras disse alto e em espanhol quem quer que sejais, a minha casa oferece-vos o abrigo e o sal.

Desconfiado, no entanto, João recuara um pouco na sombra. E ali soltou um grito de admiração ao reconhecer na primeira figura que avançava no círculo de luz da lanterna a irmã do professor Bechman; ainda dois dias antes a deixara entre portas da sua casa. Saltando da sua montada, prendeu as rédeas da mula aos varões da janela, enquanto que uma outra mulher, ainda indistinta na sombra, fazia o mesmo um pouco mais distante.

Ouvindo aquela instintiva exclamação, Cecília Bechman ergueu a cabeça, a perscrutar a penumbra.

Eu tinha a certeza! disse com enraivecimento.

Tentastes esta loucura! Felizmente que cheguei a tempo.

Já então escalava os degraus, entrava autoritária na sala, ia aquecer diante do lume da lareira as suas mãos arroxeadas pelo frio da noite. Parecia fatigadíssima e a sua respiração precipitada indicava que ela sofria os efeitos da altitude. Bem que desconfiado ainda, João sentiu instintiva pena,

Que é a minha loucura comparada com a vossa? Fazer de noite esta caminhada, já medonha de dia; e duas mulheres sozinhas... debaixo duma temperatura destas! É quase um suicídio!

De dentes cerrados para os impedir de bater uns contra os outros, Cecília murmurou:

Se o que eu tento não resultar pouco me importa viver!

Olhou-a um instante profunda e fixamente:

Ah! bem se vê... murmurou ao fim dum instante de reflexão.

Sentia-se inquieto, perplexo, perguntando a si próprio que partido tomaria em face dum perigo que ele pressentia real. Súbito, tomando uma decisão, disse:

Sente-se, aqueça-se um bocado, beba isto. Enquanto espera que a nossa hospedeira lhe traga de comer, embrulhe-se nestas peles e dê-me os seus pulsos.

Como se nada tivesse a temer daquela mulher, João apressou-se a prestar-lhe os primeiros cuidados recomendados para as pessoas meio enregeladas, E enquanto diante do fogo reanimado na lareira, massajava os pulsos da recém-chegada a fim de lhe activar a circulação do sangue, ia pensando que essa vida que ele chamava àquele corpo inteiriçado, entorpecido, seria talvez amanhã a pior ameaça para a sua própria vida... para a felicidade de Carine.

Silenciosa e rápida, não obstante a altiva atitude dos seus movimentos, a velha Tamila ocupava-se da serva mestiça que acompanhava Cecília, e servia-lhes agora a ambas um desses repastos fortemente condimentados, pratos apropriados a reavivar o sangue paralisado pelo gelo naquelas altitudes dos Andes. Mas, girando em torno delas, com o rumor das suas sete saias coloridas, dir-se-ia espiar as recém-vindas com seus longos olhos fendidos apenas no rosto apergaminhado e de maçãs salientes.

João, que a olhava e via servi-las, teve a impressão duma espionagem tensa, duma força oculta alerta por detrás dessa impassível indiana. Que esconderia pois o rosto inexpressivo da velha feiticeira? Que poder maléfico ou benéfico residiria por detrás da sua aparente insensibilidade? João estremeceu, um tanto receoso por Patrícia, adormecida e confiante na dependência ao lado; e observava nas feições da serva que acompanhava Cecília Bechman as características da raça indiana sob a sua pele de mestiça. Seria pela presença dessa meia representante da sua raça que a velha Tamila não trairia os dois Europeus, embora recomendados pelo senhor Hourvy, a quem devia reconhecimento?

Se assim era, que fazer? Pouco ou nada. A solidariedade dos indígenas é ilimitada, sem freio. Nem a sua segurança, nem mesmo a sua vida pesariam muito se a jovem mestiça os reclamasse de sua mãe, a sacerdotisa do Sol. João sabia-o. Mas também ele sabia que nada serviria de entrave ao seu desejo de triunfar pela felicidade de Carine. Teve um encolher de ombros e, vendo que refeita e aquecida a sua jovem inimiga parecia voltar à vida, a pouco e pouco, julgou azado o momento de atacar.

Sente-se melhor? perguntou delicadamente, inclinando-se sobre a mesa grosseira que os separava para desse modo melhor penetrar com seus olhos perspicazes e maliciosos as pupilas dela, frias e acinzentadas. Sim? Então agora conversemos. Diga-me: que veio aqui fazer?

Cecília suspirou profundamente, num resto de lassitude; depois, arredando, brusca, a escudela vazia na sua frente, estendeu o braço para o maço de cigarros que lhe estava próximo. Sem proferir mais nada, o jornalista entregou-lhe um a que chegou a chama do seu isqueiro passando-o por cima da mesa e voltando a guardá-lo no bolso:

Decerto que, no convívio com o professor seu irmão, se habituou, creio, a pensar com bastante concisão. Repito, pois, a minha pergunta: que veio aqui fazer? Em tais condições e com uma tal rapidez serei levado a acreditar numa perseguição?

Depois de expelir a fumaça, Cecília soltou um riso entristecido.

Digo-lhe que senti de repente um irresistível desejo de ver meu irmão. Não acredita?

De certo modo, bem entendido. E então? Com seu agudo olhar, espiava as suas menores reacções e teve a impressão de que ela lhe mentia ao dizer:

Então admite que eu vim por piedade, para deter essa corrida louca com que estais indo ao encontro das piores decepções...

Por piedade? repetiu João, arregalando os olhos. Piedade por mim?

Não. Por aquela que o acompanha. Instintivamente voltou-se a meio para a porta do quarto onde Patt repousava.

Por ela? tornou, surpreendido.

Sim volveu Cecília com a voz sumida e trémula por essa Carine que nenhuma razão tenho para estimar!

Por Carine? repetiu João, com pasmo.

E compreendia agora que, tendo-lhe dito que não vinha só, a deixara supor-se acompanhado pela mais velha das filhas de Marinot... E já agora... seria inútil, pois, desenganá-la! Mais tarde, ou oportunamente, estaria sempre a tempo de desfazer o erro.

E porquê essa piedade? perguntou ele, simples, desviando o olhar.

Porque insistiu Cecília mesmo que Renaud esteja lá em cima com o meu irmão...

E está afirmou o jornalista.

Ela, porém, como se não ouvisse a interrupção:

Mesmo que ali o encontrassem, Carine só poderia retirar-se com infinita dor: porquanto ele recusaria segui-la.

Com certeza? disse João sem poder evitar um estremecimento, de tal modo essas palavras respondiam a uma das suas angústias.

Sim tornou ela, implacável porque do seu antigo amor tudo se lhe varreu da memória! Tudo esqueceu do seu recente passado... tanto a respeito do prometido casamento... como do respectivo rompimento...

Ainda que a si próprio houvesse jurado nada acreditar do que ela pudesse dizer, João teve um sobressalto.

O quê? Que diz?

A triste verdade respondeu Cecília, baixando o olhar para a cigarrilha, que agora lhe servia de motivo naquela atitude absorta. A sua longa doença fê-lo perder a lembrança de... pelo menos todos os acontecimentos que de mais perto a precederam... Renaud saiu curado da febre que o atacou, mas rejuvenesceu... recuou cerca de cinco anos... Suponho que foi a presença de meu irmão à sua cabeceira a causa dele retomar o fio das suas recordações em relação àqueles que datavam aproximadamente da sua separação... Mas Renaud, não se lembrando ”absolutamente de nada” em seguida àqueles acontecimentos, decidiu deixar a França e o seu antigo lugar para vir juntar-se a nós nestas paragens do Quaracha... Uma ou duas vezes pronunciou o nome de Marinot, mas com a mais completa indiferença, como se falasse de antigos conhecimentos...

É... extraordinário! murmurou, desconfiado.

Não sei porquê! Inúmeros casos semelhantes, de amnésia parcial, não se têm dado já... em seguida a choques emocionais de grande violência?

Cecília pronunciava lentamente as palavras para lhes dar o desejado relevo. João compreendeu que ela desejava tornar incisivo um subentendido, capaz de o regelar. Que saberia ela ao certo? No seu delírio, Renaud teria deixado escapar algumas palavras acusadoras para ele? Mas logo dominou a sua emoção. No fim de contas que razão tinha ele para acreditar naquela mulher que obedecia talvez somente ao seu baixo ciúme? Sacudiu a cinza do seu cigarro.

Julgo compreender o que me diz pronunciou ele com simulada indiferença. Sei que um doente fala demais, nos seus delírios, e a sua enfermeira deve portanto saber mais algumas coisas do que ninguém... Contudo, esse facto não basta nem é de natureza a fazer-me recuar.

Cecília reagiu com arrebatamento:

Como? Apesar disto teima em querer subir? Quer então infligir à desditosa que o acompanha o suplício de encontrar um indiferente, em vez do noivo enamorado que ela vem procurar? Quer levá-la ao desespero?

Desenvolto, ele retorquiu:

Não! De maneira nenhuma, porque não se trata daquela que está supondo... Não! Esta só veio comigo para encontrar Renaud, para o levar para França a fim de que ele reencontre a sua honra e a sua felicidade... ou seja: o amor de Carine...

O quê? disse, estupefacta. Não é Carine quem está ali? Quem é então? Falaram-me duma jovem que o acompanhava...

Essa jovem é Patrícia, a irmã mais nova.

declarou simplesmente.

E, por um instante, saboreou em silêncio o efeito de pasmo causado pelas suas palavras.

Quando retomou o fôlego, Cecília murmurou, incrédula:

Mas... não compreendo... por que veio essa?

Então, muito lentamente, pesando bem as palavras, o olhar fito naqueles olhos que vacilavam um pouco, João explicou:

Porque teve essa rapariga de dezoito anos a coragem de me acompanhar aos confins do mundo e da civilização para encontrar Renaud Martin e o reconduzir à Europa? Parece-me bem... ter-lho dado a entender e agora repito-o tão certo como ela mo haver confessado: acompanhou-me porque ela ama Renaud.

Mas... mas se ela o ama... e o leva para França, ali vai encontrar Carine... E se puder provar a sua inocência, casará com ela?

Ah!... compreendo, sim, que semelhante coisa a surpreenda redarguiu num tom rude. Entretanto, saiba que é assim mesmo. Justamente por que ela o ama, de verdade, Patrícia só pensa na felicidade e na honorabilidade de Renaud... O que ela pretende é levá-lo ali para que ele possa justificar-se das suspeitas infamantes que o enxovalham, expurgar o seu nome, limpá-lo. Para um homem da sua têmpera é de crer que nada lhe importe tanto, Não lhe parece? Sim, salvar Renaud da desonra e talvez mesmo da Justiça se esta se empenha em tomá-lo à sua conta dando ouvidos às más-línguas; acho que é o dever dele, assim como ajudá-lo nessa tarefa o dever de todos quantos o estimam! E com voz mais viva, plena de convicção, acrescentou: Creia-me, suplico-lhe. É forçoso que ele regresse, que ele apareça, que se defenda... e nada como esse regresso voluntário lhe valerá tanto! É a sua melhor defesa, Visto que ele é... vosso amigo, não podeis também querer outra coisa! Vamos: peço-lhe. Desde o primeiro momento compreendi que é minha inimiga e desse regresso... Desconheço quais sejam as suas armas contra nós, mas se, de facto, gosta de Renaud, cesse de pôr obstáculos àquilo que é para ele a salvação...

Fria, obstinada numa defensiva hostil, Cecília protestou:

Mas... não compreendo: se ele perdeu a memória do acontecido nos últimos meses em França, como poderá defender-se?

E rejubila com isso! indignou-se João. É, portanto, sua inimiga?

Não, mas não me agrada vê-lo partir!

Porque o ama! exclamou com calor. Bem o adivinhei! E nesse caso não tem a coragem nem a abnegação generosa daquela que veio até aqui buscá-lo para o entregar a outra!...

Diante do silêncio constrangido da jovem, prosseguiu exaltado:

Escute bem: é preciso ficar sabendo o que significa esta sua atitude: um egoísmo monstruoso da sua parte ou a pior das acusações contra Renaud. Oh! não! Não proteste! Para impedir a partida desse rapaz ameaçado na sua reputação e até mesmo na sua liberdade, para não dizer na sua vida... era preciso ter a certeza, sim, a certeza, de que esse regresso de nada lhe valeria... visto ele ser incapaz de se defender... estando, por consequência, culpado...

Ela semicerrou os olhos e, diante dessa face morta, João compreendeu que perdera a sua causa.

Assim suspirou ele nada quer dizer? Prefere perdê-lo... só para o guardar consigo? Porque o perde moralmente, bem vê. Eu próprio, que logo de começo acreditei firmemente na completa inculpabilidade dele, sinto-me agora abalado pela ideia de que a senhora tenha ouvido revelações no decurso do delírio... e...

Eu, não! disse calmamente uma voz juvenil junto dele. Eu, não! Pode ela dizer o que quiser ou calar-se, ajudar-nos a encontrá-lo ou tudo fazer para nos embargar o passo, que eu não deixo de crer na inocência de Renaud!

Entrara tão suavemente que não tinham dado por que a porta se abrisse. E foi apercebendo-se da presença de Patt a seu lado que João notou ao mesmo tempo o desaparecimento de Tamila e da mestiça. Ele começara a falar sem se preocupar com a presença de ambas, pois empregava o francês que elas não deviam compreender... Levado pelo ardor do seu defensivo ataque, não as vira retirarem-se. Não lhes ligara, de resto, importância de maior, E, tremendo ainda de indignação, agarrou o braço da jovem Marinot, metendo-a no quarto:

Venha: eu não posso suportar a presença duma pessoa que faz por querer a desgraça de um ser de quem se diz amiga, acarretando-lhe uma suspeita afrontosa.

Cecília reabrira os olhos e fixava Patrícia como se estivesse vendo um ente caído doutro planeta.

Com que então não posso abalar as suas convicções! Ama-o a esse ponto? E, apesar disso, iria entregá-lo a uma outra?

Vejamos replicou Patt com serenidade: Pois é por isso e não ”apesar disso”... Como você própria igualmente o faria se deixasse falar o coração em vez do ciúme!

Ainda por um minuto Cecília ficou muda. De pé diante das chamas, às quais voltara costas, a sua silhueta parecia cercada de fogo... como um demónio saído dum alçapão do inferno.

Não! declarou enfim, numa voz chicoteante.

Não serei tão tola! Vá então procurá-lo se tem tanto empenho! Mas, no caso de não ter ouvido pela porta entreaberta, repito que ele não se recorda de nada, nem de ninguém do seu recente passado... e que nem mesmo a reconhecerá... como não reconheceria Carine se ela se apresentasse a seus olhos! Carine, de quem eu pronunciei o nome diante dele um dia, sem que lhe despertasse a menor reacçãol Levem... levem esse homem sem memória, essa espécie de títere para França! E ver-se-á se nesse regresso lhe poderão dar a honra e a felicidade, conforme dizem pomposamente!

E, sobre as últimas palavras, soltou um riso demoníaco. Sem lhe responder, sem a olhar, Patt rodou nos calcanhares e entrou no seu quarto. Não a queria ver nem ouvir mais. João, antes de a seguir, voltou de novo direito a Cecília.

É assim perguntou em voz baixa que significa a sua hostilidade: com a mais terrível das acusações?

Ela ripostou, num escárnio:

Ou um monstruoso egoísmo da minha parte! lançou, voltando-se para aquecer as mãos ao fogo.

João Dorget, renunciando então a penetrar aquele enigma, saiu por sua vez.

 

                                       Reconhecido

No dia seguinte, ao nascer da aurora, João, mal refeito dalgumas horas de sono, tendo dormido vestido, numa espécie de catre donde saiu gelado e fatigadíssimo, entrou na dependência central e encontrou a velha Tamila ocupada em reavivar o fogo.

Aonde passaram a noite as outras viajantes? perguntou, surpreso de não ver Cecília Bechman.

Sem erguer o rosto apergaminhado e rugoso, a indiana resmoneou por entre dentes:

Aqui mesmo... não tenho mais quartos para oferecer.

E... tornou ele, indeciso neste mesmo instante...

Já partiram, acompanhando-as os génios resmungou, esquiçando vários sinais cabalísticos.

Diz-me volveu o jornalista: tu não pareces muito indulgente com elas. E, no entanto, uma, pelo menos em parte, era da tua raça.

O olhar de Tamila afilou-se ainda entre as suas pálpebras quase unidas.

Essa não é a responsável pelo mal que pôde fazer. Que o deus Sol lhe perdoe, em paga da boa acção que praticou esta noite. A outra cadela... que seja maldita, mil vezes amaldiçoada...

Muito interessado, mas sem o dar a perceber, João comentou:

Os estrangeiros que nós somos para ti podem ofender involuntariamente os teus deuses...

Não tu, meu filho respondeu ela adoçando a sua voz gutural. Não tu, que és um coração puro... assim como a tua jovem irmã! Eu compreendi ontem toda a tua discussão com a outra ruim; e percebi a altiva resposta da tua irmã. Possui uma alma fiel e boa, igual à tua. Haveis de triunfar, vos digo. Em verdade vo-lo digo... E o vosso amor será o mais forte porque é o mais puro!

Estupefacto e quase emocionado pela estranha majestade da velha iluminada, João perguntou timidamente:

Como compreendeste o que nós dizíamos, mestra, na nossa linguagem?

Criança! disse ela, com um rir baixo. Essa língua aprendi-a bem durante os longos anos que passei no teu país com a minha bela Anita, a Pérola dos Andes, a princesa do Sol (1), E é em memória dela, e também daqueles que lá em França a receberam e amaram, aliás conforme bem merecia, que eu me sinto feliz em ajudar-vos: a ti e à tua irmãzinha francesa. Vai acordá-la, vai; e, quando tiverdes comido e bebido, parti lá para cima, aonde se encontra, eu sei, aquele que procuram... Lá chegareis sem percalços nem ciladas, porquanto eu pedi ao guia mais seguro para vos conduzir... Não receeis a mulher ruim. Tamila já fez o necessário para que os seus perversos projectos não possam realizar-se. Um pouco mais tarde, logo que reconfortados e abafados se dispunham a sair para se juntarem ao guia, que os esperava diante da porta com três mulas folgadas para a última parte da jornada, Tamila pegou no braço de Patt, admirada, e puxou-a à parte.

Mademoiselle disse ela com doçura: Tamila sabe ler nas cinzas e aquelas que eu inquiri a teu respeito esta noite, dizem-me que tu encontrarás a felicidade se o teu coração continuar confiante e bom. Mas pode ser, minha jovem, que esse que tu procuras te pareça estranho. Sim, a mestiça, que eu fiz falar esta noite, confiou-me que lhe havia administrado, sob as ordens da sua ama, uma decocção de ervas para lhe causar a falta de memória, o esquecimento... Ora é para o fazerem absorver, com o mesmo intuito, nova dose que elas se apressaram, a fim de chegarem antes de vós às ruínas...

Oh... meu Deus! suplicou Patt, juntando as mãos com assombro.

 

(1) Ler: O teu amor vale um reino vol. desta colecção e do mesmo autor.

 

Tenha confiança, minha filha! Aqui tem um frasco cujo conteúdo, depois de tomado, combaterá nalgumas horas de sono o efeito da outra droga. Com isto, serás senhora da memória desse homem. Poderás dar-lhe esse filtro quando melhor entendas.

Obrigada! Oh! obrigada disse a jovem, apertando aquelas mãos descarnadas e frias como as garras dum abutre. Eu vos abençoo! Bendita sejas!...

Mas atenção! cortou a indiana. Atenção! Antes de o utilizar, pensa bem nas consequências do teu acto... Talvez dando-lhe a memória sejas a primeira a perdê-lo para sempre, tu, que tanto o amas!

Eu rogarei a Deus que me inspire e esclareça disse com simplicidade a jovem. Mas... boa conselheira: ainda uma palavra: esta nova droga não comporta nenhum perigo para ele?... para o seu cérebro?

Nenhum, se tu a administrares brandamente e o deixares em seguida no mais absoluto repouso durante o sono que o arrasará durante dois sóis. Mas escuta a sabedoria desta que, minha pequena, vai a caminho dos cem anos. Espera ainda; não lha dês já. Espera mais alguns dias... Deixa primeiro proceder a natureza e o teu bom coração. Talvez a acção de ambos se tornem mais eficazes que a droga de Tamila! E, sobretudo, não digas palavra seja a quem for, a este respeito. Tu, tu somente serás senhora do teu futuro e daquele que te é tão caro.

Por longo tempo, depois de montada na sua mula, que avançava num passo medido e seguro sobre os troços das rochas avermelhadas, entre a do guia e a de João Dorget, Patt se conservou pensativa e impressionada pelas palavras da velha indiana.

Já sabia que não se tratava de vãs superstições, mas que, entre os povos de vida primitiva, em contacto com a Natureza, existem numerosos remédios e seus antídotos... nos quais, recordava-o, a ciência moderna se inspira quando haja podido penetrar-lhes o segredo. Que Renaud houvesse estado sob o efeito duma droga absorvente, administrada talvez a princípio apenas para o curar, mas da qual se abusara em seguida para o deixar num estado de semi-inconsciência, não poderia negar a priori, E sentia-se confrangida. Em que estado iria pois encontrar o seu bom, o seu nobre Renaud? Se estava, de facto, amnésico, como poderia defender-se das acusações trazidas contra ele? Tudo teria esquecido: os últimos dias, os últimos anos, a razão da sua partida e Carine?

Batia-lhe com força o coração à medida que as montadas grimpavam pela montanha ameaçadora, no alto da qual já os primeiros vestígios das ruínas da cidade sagrada se desenhavam... Mas o pequeno frasco dado por Tamila incutia-lhe confiança. Por ordem da velha indiana, ela nada dissera a João Dorget, embora experimentasse por ele uma confiança verdadeiramente fraternal. Nada, porém, diria fosse a quem fosse, conforme havia prometido. Entretanto, a ideia de que da sua mão poderia provir, talvez, a saúde de Renaud, tornava-a a um tempo feliz e orgulhosa.

No momento da chegada, quando ainda de longe avistaram as tendas de campanha da Missão de sábios, João fez parar a montada para se entender com Patt.

Sugiro-lhe que não se mostre, que não se apresente já aconselhou ele. É necessário primeiramente assegurarmo-nos das reacções de Renaud. De mim, como não me conhece, estará sem razão de desconfiança. Quero dizer que poderei inteirar-me do verdadeiro estado de espírito em que ele se encontra.

Mas redarguiu ela com certa lógica. se é verdade o que a outra nos disse, ele perdeu a memória e portanto não me reconhecerá.

Ela disse-nos que ele esqueceu o passado recente, Lembrar-se-á, pois, da jovem Patt que outrora escutava da sua boca a lenda de Macco Cappac, ajoelhada junto dele e no meio dos fetos e plantas...

Tudo isso me parece inverosímil! murmurou, incrédula.

E todavia é o fenómeno produzido muitas vezes pelo choque, pelo electrochoque, para o mal se dissipar rapidamente.

Enfim, veremos suspirou Patt, descendo da sela e saltando em terra. Fico então esperando-o aqui. Trate de falar com Alexandre Bechman. Talvez seja mais compreensivo do que a irmã.

Deixo-lhe o guia. É, parece, de absoluta confiança. Pode ter precisão dalguma coisa...

Está bem, está bem impacientou-se a jovem, a qual se absteve de lhe fazer notar que, não sabendo quase nada de espanhol nem tão-pouco da língua inca, não teria meio de comunicar com o índio que, por sua vez, não conhecia nem uma palavra de francês. De resto, eu vejo daqui o acampamento... não estou perdida! Vamos, apresse-se: não sou eu agora que interessa!

A espera foi longa. O campo alcançado por João achava-se vigiado por um guarda que lhe explicou qual o caminho a seguir por entre as ruínas intransitáveis, para encontrar o grupo de sábios entre os quais se encontrava, de facto, o professor Bechman e o seu amigo francês. E o jornalista afastou-se, confiando na presença do guia junto de Patrícia.

Esta, ao cabo duma hora, começou a sentir pesar sobre ela a solidão grandiosa e ameaçadora da paisagem. Enquanto que, diante dela, o indiano acocorado e mascando uma pasta de folhas de coca, secas, que era o ”chewing-gum” dos da sua raça, parecia apartado do resto do mundo, a jovem, para entreter a sua espera, pusera-se a examinar o estranho cenário.

E o que seus olhos viam não era de molde a elevar o seu moral. Tudo, em seu redor, lhe mostrava uma fisionomia cruel e opressiva, esmagante. Primeiramente o tom vermelho, dum vermelho denso, amarelado em certos sítios, como se flamejasse por toda a parte: na terra, nas ruínas dos templos, nas moles de pedras enormes amontoadas não se sabia por que mãos gigantescas nas épocas pré-históricas...

Sozinha e entregue a si própria, Patt encarou longamente o pesado terror de que todos os exploradores confessavam ressentir-se no caos apocalíptico, únicos vestígios dum passado morto para sempre... Dominados todavia pela vontade enérgica da jovem, os seus nervos foram até ao extremo limite, no momento em que o guia, saindo da sua nostálgica indiferença, se levantou, principiando a falar-lhe com uma precipitação denunciadora de emoção profunda.

Incapaz de perceber uma palavra do que deveria ser mau espanhol, a jovem impacientou-se, maldizendo a sua antiga preguiça quando estudava.

Sim, sim... não digo que não tenhas muita razão... mas não compreendo nada... absolutamente nada... Ahaah!

Porque desta vez, mesmo sem palavras, ela havia compreendido. Seguindo o olhar alarmado do índio, acabava de descobrir, quase a seus pés, um corpo longo e delgado, dum tom mal definido sobre o caminho pedregoso e que, serpenteando, se dirigia para ela.

Paralisada pelo terror, sentia-se incapaz de fazer um gesto, de compreender o que acontecia... Apercebeu-se, no entanto, duma galopada, dum tiro e de exclamações várias... De roda dela, corria-se, gritava-se... Patt recobrou-se do seu estranho aturdimento nuns braços sólidos e fortes que a estreitavam contra um peito de que jamais esperara conhecer o calor.

Renaud! exclamou, maravilhada ao reconhecer o belo rosto, másculo e suave, de fronte barrada sempre pela grande madeixa de cabelo castanho que lhe descaía na testa. Renaud! És tu? És tu com certeza?

E não podia crer inteiramente, com os nervos excitados a recearem ainda qualquer sortilégio. Num relance de olhos viu um grupo de desconhecidos, mais ou menos trajados de caçadores com armadilhas, à frente dos quais João Dorget, muito pálido, fixava o cadáver do imundo animal abatido por uma bala em plena cabeça, em seguida ao que se aproximou daquele que a encerrava nos seus braços.

Era Renaud! Era bem aquele Renaud que ela sempre conhecera e sempre amara: alto, forte, com seu porte de homem ágil e liberto, ao mesmo tempo delicado e robusto, acentuadamente igual na figura e na atitude que ela por último tinha visto nos bosques de Ardimont. Para acentuar mais a sua atitude, ele segurava ainda a espingarda com a qual, sem dúvida, matara com pontaria de extraordinária precisão, o réptil perigoso.

Renaud! És tu, Renaud...balbuciava ainda,, com as lágrimas a saltarem-lhe.

E tinha a impressão de que terminava, enfim, o odioso pesadelo desses últimos meses, pois Renaud, desfazendo ou anulando todos os sortilégios, lhe aparecia tal qual o deixara.

Renaud! Tu...murmurou ainda.

E todos os maus feitiços pareciam efectivamente esconjurados, pois que, rindo com alegria na sua voz quente, respondeu:

Mas sou eu, sim, Renaud, o teu grande amigo, minha querida Patt!

Então, a jovem, enérgica como era quase sempre, desmaiou de felicidade: ele reconhecera-a.

 

                                       Para que ele seja feliz

Senhor Bechman disse bruscamente Patt, fixando-o bem nos olhos eu não tinha vindo nunca até aqui; mas vozes correntes no nosso pequeno recanto da França, deram-no como homem de toda a honestidade!

Ouvindo estas palavras, ele teve um ligeiro sobressalto e retirou da boca o seu eterno cachimbo.

No mesmo tom de voz baixa e opressa, que fora obrigada a adoptar e que tornava a sua discussão um pouco trágica, porquanto havia tido lugar não longe dos outros, sob a grande tenda aonde fora servida a refeição, a jovem tornou, martelando as palavras:

E agora que o conheço, ao senhor, sou obrigada a pensar como ela...

Ela? Ela, quem? disse completamente destribado e confuso pela firmeza daquele pedacito de mulher.

A voz corrente! A voz pública respondeu deliberadamente. Sim, encontro nos seus olhos qualquer coisa... que em vão procurei nos olhos da sua irmã, ou seja: a lealdade.

A fisionomia do plácido professor transfigurou-se e um relâmpago de cólera fuzilou no seu olhar.

Eu não lhe admito...

Abrande a voz indicou ela. Estão a ver-nos e a entender-nos, embora não pareçam escutar! Não esquecer que discutimos provavelmente os resultados das suas pesquisas: o sorriso, meu caro professor, o seu sorriso... E no mesmo tom pausado, algo escarninho, concluiu: Sentir-me-ia desolada se os seus confrades pudessem saber que sua irmã recorria a filtros de feitiçarias indianas para tirar a memória ao seu desditoso amigo.

Que diz?

Isto mesmo! O senhor não sabia nada? Pois eu certifiquei-me. Mas é tempo de esclarecer a sua consciência. A mestiça vossa serva, obedecendo a sua irmã, administrou regularmente a Renaud, depois que ele se acolheu a vossa casa, uma droga perniciosa. Admitindo que essa espécie de sonolência da memória fosse proveitosa à cura... não deixa, entretanto, de ser perigosa e culpável! Sim, culpável, digo e mantenho, visto essa falta de memória poder impedi-lo de se justificar duma grave acusação que pesa sobre ele.

Pálido, a expressão grave, Alex perguntou:

Nada compreendo do que está a insinuar. Não se formulam essas acusações sem provas precisas!

Provas? Quere-as? Ei-las! Desordenada, mas com grande clareza, Patt relatou-lhe tudo quanto acabrunhara Renaud antes da sua partida de França.

De maneira que concluiu ela os boatos e linguarices lá da terra o acusam da morte de minha mãe... sendo de esperar que a Polícia não dê crédito oficialmente a essa acusação!

De fisionomia cada vez mais grave, olhos baixos, tirando desesperadamente a fumaça do cachimbo, Alexandre Bechman parecia ruminar.

Eu vejo disse entre dentes, por fim.

Vê tornou ela, insistente que essa partida de Renaud constituiu uma espécie de prova contra ele e que o seu silêncio agora equivale a uma confissão. Não é isso?

O espírito do professor tomara, porém, outro caminho.

Eu vejo agora tornou o professor por que foi que ele aqui chegou abruptamente e naquele estado...

Sem lhe dar ouvidos, Patt prosseguiu com o mesmo ardor:

E não vê que é forçoso permitir-lhe reentrar em França para que ele possa defender-se e isentar-se de toda a suspeita?

O olhar de Alex ergueu-se para ela, pesado e triste.

Tome cuidado, não vá isso entregá-lo mais pela certa.

Patt abafou um grito de indignação.

Como? O senhor, seu amigo, acredita... pode acreditar no que essas línguas maldosas inventaram?

Eu creio no que a evidência torna gritante! Raciocinemos, pois, um pouco: Renaud, a quem eu pedi há muitos meses para abandonar os seus vãos estudos em França, a fim de vir ocupar aqui um lugar remunerador, lucrativo, e até apaixonar-se, correspondendo aos seus gostos, respondeu-me que não insistisse... Mas, por último, escreveu-me num tom amargo, dizendo estar decidido a vir se uma certa união que ele desejava e ”esperava” realizar em França, foi este o termo exacto que empregou, não se tornasse coisa apenas imaginária. Para isso tentaria uma última diligência e, se o resultado fosse negativo, então viria juntar-se a mim, rompendo com um passado de que não quereria mais ouvir falar... Ora essa carta, enviada por avião, chegou aqui na véspera do dia em que Renaud em pessoa me apareceu, sim, mas pálido, macilento, desvairado, bravio, agitado por uma febrilidade física e moral que parecia alienar-lhe a razão. Não tivera tempo de me telegrafar sobre a sua viagem, nem tão-pouco de fazer o menor preparativo de bagagem... que não trouxe. Além disto, não deu a menor explicação destas singularidades, e caiu vencido por uma febre cerebral que muito nos custou a curar... Tudo isto é ou não embaraçante, perturbador, se se perscruta a razão? De dentes cerrados, a jovem ripostou:

Mas eu não escuto senão o meu coração. Eu ”sei” que Renaud está inocente e que ele poderia com facilidade explicar a sua partida, o seu silêncio...

Admitamo-lo volveu ele entristecidamente. Mas é que existe ainda o facto das suas palavras... Um doente naquelas condições delira. O ódio que as suas divagações revelavam a respeito da senhora Marinot, o ressentimento dele contra sua irmã... tudo isso, repito, é muito grave, opressivo, contundente!

Para o senhor, talvez, para mim, não! Eu estou crente, oiça bem, tenho a certeza de que Renaud está inocente, mas que é preciso ajudá-lo a provar essa inocência: primeiro, facilitando-lhe a sua partida daqui e depois devolvendo-lhe, reintegrando-lhe a memória...

Longamente o professor contemplou em silêncio aquela jovem tão resoluta e tocante na sua inquebrantável confiança.

Minha querida disse enfim com uma certa doçura sois de facto convencedora. Mas, pessoalmente, persisto em crer que o melhor para o nosso desditoso amigo seria continuar aqui, ficando ao abrigo das consequências da sua conduta passada... sobre a qual, confesso, não sei bem que pensar. Vejo-a, no entanto, agarrada a uma afirmativa tal que... que, na verdade, quero ajudá-la!

E baixou a cabeça diante daquele olhar tão puro, tão franco.

Possa eu portanto reparar em parte a falta praticada pela minha irmã, se é certo que a praticou. Reclamo para ela a sua indulgência, minha amiga. Se ela pecou desse modo foi animada pelo mesmo sentimento que a lançou a si em socorro de Renaud... Ela não queria que ele se recordasse, não queria que ele pudesse afastar-se dela para ir para uma outra... visto que o ama, compreende? Ela ama-o como a menina o ama também, eis o que leio nos seus olhos.

Mas Patt abanou a cabeça:

Não o ama como eul Porque eu, a fim de que ele seja feliz, vou conduzi-lo e entregá-lo a uma outra!

Por momentos ficou silencioso, impressionado e comovido por essa generosa sinceridade. E suspirou:

Mas, seja como for, prometi ajudá-la e ajudá-la-ei, pois bem o merece. Diga: o que é preciso fazer?

Em primeiro lugar não me impedir de arrancar Renaud daqui. Eu possuo o meio de lhe dar a integridade mental. O que não posso é reanimar-lhe, reavivar-lhe a memória neste ”clima” e neste desconforto. Quando formos para Mariana e estivermos na calma e na moradia dos Hourvy, que nos ofereceram a sua hospitalidade, então tentarei despertar-lhe as recordações, docemente, sem brusquidões... e em seguida... em seguida, será ele quem decidirá da resposta a dar às suspeitas que nessa altura e só eu poderei revelar-lhe.

O professor olhou-a ainda com admiração.

É uma tarefa bem pesada e não isenta de perigos...

Eu sei. Aceito-os, porém. Tudo aceitarei para o salvar.

Desta vez, teve ele um encolher de ombros como para repelir toda e qualquer hesitação.

Pois seja! Está entendido. Vou ajudá-la e para já... Como foi que explicou a Renaud esta sua repentina chegada?

Vagamente...

Após o primeiro momento de emoção, Renaud exclamara com efeito ao largar o braço daquela que tanto se admirava de encontrar tão longe de casa:

Mas que espantosa surpresa, ver-te aqui E achar-te maior e mais bela, minha boa Patt! Foi o interesse enorme que manifestavas sempre pelos meus relatos a respeito dos incas que te trouxe até aqui, ao meio destas pesquisas?

Cuidado! A ser verdade o que se dizia, não convinha chocá-lo, pondo-o perigosamente em face da sua amnésia... Portanto, respondeu indirecta, evasivamente:

Talvez! Talvez também o desejo de o trazer para junto de nós, seu mausão, que nos fugiu há tanto tempo!

Um véu pareceu cobrir o belo rosto enérgico. O olhar hesitante de Renaud dirigiu-se para Alexandre, como num apelo de socorro.

Há muito tempo? Isso é verdade? perguntou ele. Parecia-me que...

E, tomando consciência do que a sua atitude podia ter de surpreendente para os não conhecedores do seu estado, confessou com esforço:

É que, minha pequena Patt, torna-se preciso explicar-lhe: eu tenho estado muito doente, aqui, e atacado por uma certa amnésia... Só muito distantemente me lembro dalguma coisa do passado... mas nada, nada dos dias ou tempos mais recentes. Assim, a menina... porque não ouso tratá-la por tu, tão bela e crescida e senhoril, me aparece! Não... Recordo-a na minha mente quando tinha os seus catorze anos! Que, evidentemente, já vão longe! concluiu, envolvendo num olhar admirativo e surpreso a formosa jovem de pé diante dele. Comovida, Patt riu.

É apenas daí que me conhece? Mas diga-me: esses meus catorze anos não são muito diferentes dos dezoito de agora, pois não? Julgo que me quer considerar ainda como sua amiga, a sua pequena camarada, não é verdade, Renaud? E... àquela que eu sou hoje, quer conceder o que decerto não recusaria à de outrora?

Com os olhos que a mesma surpresa admirativa palhetava de ouro, ele abanou a cabeça, e sorrindo:

Bem difícil me parece recusar seja o que for a essa carinha! Nada mudou...

Gentil e cativante, ela prendeu-se-lhe ao braço.

Então, Renaud, vai dizer-me que sim ao seguinte pedido: logo que ao anoitecer o ar refresque um pouco mais, acompanha-me a Manana?

Renaud teve um ligeiro sobressalto.

Como? Ao anoitecer? Quer partir?

Ela exagerou um pequeno estremecimento de angústia retrospectiva.

Não lhe parece que o meu primeiro contacto com esta montanha e... a sua fauna é bem de molde a dar-me o desejo de fugir? Sinto-me incapaz de passar, de viver uma noite aqui... Mas também não tenho coragem de abalar sozinha por entre esses rochedos ameaçadores se não quiser ’acompanhar-me!

Ele pareceu hesitar, disputado entre dois desejos.

Mas... e os meus trabalhos de investigação, aqui...

Ora! Virá retomá-los dentro de um ou dois dias! Oh! Renaud, Renaud, acho que pode bem sacrificar dois dias da sua actividade em favor da sua amiguinha, que atravessou os oceanos para vir vê-lo... Acredite, que eu morreria de medo nesses caminhos, sem a sua companhia...

Mas... tornou ele ainda, lançando um olhar pouco ameno a João Dorget aquele acompanhou-a nesta sua vinda... e também trouxeram um guia, se não me engano...

Patt encolheu os ombros e com soberba desenvoltura:

Ah! sim. Um simples jornalista que seguia o mesmo caminho. Mas, tanto ele como o guia, provaram claramente que não sabiam defender-me, visto teres sido tu, Renaud, quem matou aquela terrível ”bicha”... Se não fosses tu...

Continuando a exagerar o seu medo, a jovem aconchegava-se a ele, trèmulamente. Afectuoso, Renaud passou então o seu braço forte pelos frágeis ombros dela e censurou meigamente:

Bem, bem! Eu que estava a lembrar-me duma pequena Patt corajosa, sem medo de nada, pronta a afrontar perigos...

Com o coração a bater apressado, Patt não respondeu. Poderia acaso confessar-lhe que, de facto, se dispusera a tudo afrontar... excepto aquele terno e luminoso olhar que se inclinava para a sua fragilidade?...

E logo que, no cumprimento da sua promessa, Alex Bechman insistiu para que ele aproveitasse alguns dias de folga, a fim de acompanhar a juvenil viajante até Manana... não foi necessária grande eloquência para decidir Renaud.

 

                                     A revolta de Patt

Patt, estou com receio...confessou João num murmúrio.

A jovem desmesurou os olhos, numa expressão admirada e reprovadora, dirigida ao seu camarada.

Receio?... Medo, você? Agora que tudo parece arranjar-se. Eu que o vi tão resoluto!

Não é medo propriamente dito, mas, antes, uma espécie de angústia...

Ela estirou-se na tradicional cadeira de balanço, que ia accionando suavemente com a ponta do pé desnudo. Era deliciadora a atmosfera tamisada pelas pequenas palmeiras que, à volta deles, produziam o metálico ruido das suas folhas agitadas pela ligeira brisa, essa brisa que provinha dos altos cumes e chegava refrescada pelo murmurante repuxo de água no grande lago a meio do pátio. Aquela residência do cônsul da França, como todos os respeitáveis palácios de Mariana, possuía, sim, o seu pátio interior: adorável lugar de refrescante repouso em cujo traço os conquistadores espanhóis haviam deixado a marca da sua distinta aristocracia.

Era nessa antiga moradia que o cônsul e a senhora Hourvy, conhecedores do estado de amnésia do seu amigo por João e Patt, os convidaram a passar os poucos dias que precederiam a partida para França. Esta, a bem dizer, ainda não estava assente quanto a Renaud. Estudando a situação com os Hourvy, haviam concluído que seria mister procederem com prudência, tentarem despertar a memória do doente, as suas recordações, trazendo-o a pouco e pouco à realidade antes de revelarem as suspeitas que pesavam sobre ele em consequência do drama... E foi naturalmente Patt quem ficou encarregada dessa delicadíssima tarefa. Favorecer-se-iam para tal as suas conversações com Renaud, proporcionando os seus encontros, rodeando-os duma cúmplice discrição.

Convocado pelo cônsul, e na presença dos outros dois jovens, o doutor Benoit admitira, como certo, que remédios e beberagens preparados pelos indígenas podiam constituir um perigo, a par de possível benefício, e que, sem dúvida, o administrado pela mestiça exercera um efeito mais ou menos prolongado sobre o cérebro do enfermo... Quanto a encontrar um antídoto na farmacopeia tradicional, nada podia dizer... Só, afirmara o velho médico com a sua prática de quarenta anos naquele país, os índios possuíam por vezes o contraveneno das suas drogas... o filtro capaz de combater e triunfar dos efeitos nocivos... e, ainda assim, nem sempre.

Patt escutara como os outros, e mais interessadamente do que eles, esta conclusão. Ninguém sabia ainda que ela possuía esse contraveneno... ou antes, que ela supunha possuí-lo no frasco dado por Tamila. Havia-lhe prometido guardar o máximo segredo. Mas como esse segredo lhe pesava no coração! Como lhe parecia terrível e talvez perigoso esse remédio do qual dependia todo o futuro de Renaud... E quanto ela preferiria que o despertar dele se desse naturalmente, sem necessitar de recorrer a tal expediente!

Tímida, com infinitas precauções, experimentara, logo no dia seguinte ao da sua chegada, estimular a desfalecida memória, fazer nascer em Renaud o desejo de reatar a lembrança desse esquecido passado... A inércia, porém, do jovem professor deixava-a estupefacta.

Não respondera ele quando ela lhe perguntara se esse lapso, esse vácuo não lhe era penoso não... agora! Ao princípio, quando me encontrei neste país desconhecido, tendo somente em Alex um liame com a minha vida passada, experimentei uma impressão de abandono, de desenraizamento, que me levava à neurastenia. Tive então a ideia de me entregar a essas pesquisas para de certo modo me prender ao presente visto que o passado me fugia, por mais esforços que eu fizesse para o reencontrar. Mas agora...

E envolvera-a naquele seu olhar em que as cintilações douradas brilhavam.

Agora, Patt, estás aqui! E isso me basta, representas o passado, o presente... e talvez o futuro rematou numa voz hesitante, mais surda.

Devotada ao seu meritório encargo, toda entregue à sua missão, Patt não notou aquela singular acentuação da voz. E prosseguindo no seu intento:

Mas, Renaud, nesse passado distante, de que poderá recordar-se, não existia só eu... Não havia junto de mim, à minha volta, a restante família, a minha casa: Ardimont?

Vago, por instantes, o seu olhar iluminou-se.

Ah! sim. O castelo... Ah! que partidas, que folguedos nos seus bosques e nos relvedos... Era você um bebé que eu fazia rolar na erva...

À jovem tossiu para aclarar a voz que a emoção e a ansiedade velavam.

-E havia também... Carine.

Isolara a palavra para lhe dar maior relevo, e melhor impressionar o seu espírito. E, suspensa, perscrutou no rosto dele a reacção.

Nenhum abalo ou estremecimento revelou, porém, violenta emoção. Como sempre, uma espécie de bruma velou de novo o seu olhar, em seguida ao que pareceu alhear-se. Os seus olhares expressaram, como acerca do castelo, uma frouxa alegria.

Ah! sim... a tua irmã! Que excelente camarada! Tive por ela uma verdadeira paixão de garoto... sabias! Ela casou, entretanto? Já não me lembro...

Foi então Patt quem estremeceu. Quase se lhe escapou um grito: ”Mas, não! És tu quem ela espera!” Calou-se, todavia, aterrada pelo abismo desse esquecimento à beira do qual se aguentou por sua vez... receosa de ver soçobrar a razão de Renaud se insistisse. E, de olhos baixos, murmurou simplesmente:

Não, Renaud, ela não está casada. E pouco depois acrescentou: Continua noiva...

Mas, como única reacção, ele pegou na pequenina mão de Patt e levantou-a para a olhar.

E tu? perguntou com um olhar risonho e abstracto.

Eu? disse ela, admirada. Ainda estou muito nova! E depois, que importância poderia ter isso?

Sem observar o olhar com que ele acolheu estas palavras, Patt deixou-o um pouco bruscamente a fim de lhe ocultar a emoção por ela experimentada e na contemplação da qual Renaud parecia comprazer-se.

E, sem o dizer a mais ninguém, a jovem não pôde impedir-se de confiar o seu tormento a João.

Que fazer? disse este depois de ter ouvido o doutor Benoit acerca da ineficácia do seu método Se nem mesmo o nome de Carine consegue acordar-lhe quaisquer lembranças, como poderemos convencê-lo a ir connosco para França? E, no caso de vir, prisioneiro como está da sua desmemoriação, como poderá defender-se, lavar-se de todas as suspeitas? Acho pois que não nos resta senão um meio... Ir ao encontro dessa mestiça que lhe aplicou a droga e arrancar-lhe o segredo do antídoto, se realmente existe algum! Eu vou falar-lhe, pedir-lhe!

Ela suspendeu-o, com um gesto e em voz baixa:

Inútil. Eu tenho-o.

E, traindo o segredo de Tamila, confiou-lhe em poucas palavras o que se passara com ela.

Sendo assim, de você, só de você, Patt, depende o bom desenlace da situação. Quando conta utilizar então esse contraveneno?

Não sei confidenciou ela, desorientada. Ouviu o que o doutor Benoit nos disse; mas quem me prova que essa mestiça seja sincera? Que eu não me arrisque a dar a Renaud uma droga perigosa? Posso eu estar certa da sua inocuidade? Poderei dar-lha sem ele saber a que experiência está sendo submetido? E quando lho diga, consentirá ele em tomar a beberagem?

João ergueu as sobrancelhas.

Se lhe propuser o meio de reencontrar a integridade da memória, acho impossível que ele o recuse!

Talvez disse ela indecisa. Em todo o caso, e depois de reflectir bastante, resolvi nada fazer sem primeiro o informar. Não tenho o direito de...

Evidentemente concordou ele, após curto silêncio. Escolha então a melhor oportunidade, ou ensejo, para lhe fazer compreender o seu estado de semi-amnésia, e o convencer das consequências perigosas... e proceda consoante a sua consciência... mas o mais depressa possível, o mais rápido que puder, adorável Patt. Pense na desditosa Carine, que nos espera com a maior ansiedade...

Para dizer a verdade, a ansiedade manifestada nas cartas de Carine não se referia à sorte de Renaud ou, pelo menos, não o confessava abertamente.

Era o regresso de sua irmã o que figurava no primeiro plano das suas preocupações.

Esta, consciente da sua responsabilidade, empenhava-se em poder restabelecer a memória de Renaud, a qual, ao desaparecer, parecia ter anulado o seu amor por Carine...

Mas se, perante as primeiras impressões, Patt se abatera sob o golpe, depressa mostrou dominar as suas apreensões. Espreitando, conforme dissera, o momento propício de pôr Renaud em face da realidade, ela continuou, aos olhos indulgentes dos Hourvy e inquietos de João, a aproveitar a intimidade especial que fora combinada.

Caminhando ao lado dele fizera com que lhe fossem mostradas as curiosidades de Manana, essa estranha e diminuta cidade fundada outrora pelos incas no flanco da montanha, por debaixo da outra, a cidade sagrada dos Templos.

Os conquistadores não tinham feito mais do que levantar palácios espanhóis sobre as ruínas das casas indianas que lhes serviam muitas vezes de envasamento, e igrejas nos locais dos templos pagãos.

Reinava nessas igrejas uma tal atmosfera de fé, de confiança absoluta na divina Providência, que Patt gostava de ir lá ajoelhar entre os indígenas e os mestiços, no mesmo solo, nas grandes naves vazias de genuflexórios.

A seu lado, direito e de braços cruzados, Renaud parecia recolhido em intensas meditações suplicantes e a jovem contava assim preparar melhor o terreno para as suas revelações... Mas, esperando o temido momento, ela deixava-se influenciar pelo encanto, pela atracção nova para si, desses passeios dados em companhia um do outro, durante os quais ele não a tratava como nos tempos passados, como coisa familiar, mas sim como uma companhia sedutora e inteligente.

Junto dele, Patt admirava o pequeno palácio da Presidência, todo de mármore róseo, pelos degraus do qual, não obstante, havia corrido muito sangue no decurso das frequentes revoluções. Visitara as locandas aonde os Indianos e os mestiços embrutecidos pelo abuso do álcool nacional, a ”chicha” espumosa e pérfida, vendiam bordados e enfeites complicados, mantas e tecidos de cores berrantes, objectos de prata, cinzelados. Ao lado de Renaud, aquele mesmo que, sem diferença, ela amava desde a sua infância, ia admirando tudo, interessada, encantada com tudo. Por vezes, chegava a esquecer o drama que a trouxera até ali... drama só relembrado nos momentos em que uma palavra, uma reticência de Renaud, marcavam também aquele seu estado de amnésia parcial e a remergulhavam bruscamente na angustiada indecisão que a torturava quando ela própria não o esquecia. Essa espécie de esquecimento que a aliviava, adormentando-lhe a preocupação, atribuía-o ela àquele país, cuja altitude tornava suportável o calor das caminhadas devido a oxigenação maior que lhe decuplicava a vitalidade. Aqui, agora, nada podia parecer-lhe ameaçador, perigoso. Quando, ao instalá-la no seu bonito quarto, a senhora Hourvy, cativante esposa do cônsul, lhe mostrara sobre uma das ombreiras uma amolgadela funda, explicando-lhe que era o sinal duma bala disparada da praça contra a sua rival pela bela Dolores dela Carmela (1), filha de um dos últimos presidentes, no decorrer de uma noite de revolução, nem isso mesmo pudera impressionar Patt. Sorridente, escutara, abanando a cabeça, a descrição da cena sangrenta que se desenrolara na linda dependência

 

Ler do mesmo autor: ”Corações ardentes.

 

que ia ocupar, e não tardou em esquecer o assunto. Logo, fora com infinita surpresa que ela ouvira a João Dorget, o companheiro até então intrépido, confessar que tinha medo.

Pasmada, travou o balanço da cadeira e curvando-se, com os cotovelos sobre os joelhos, para melhor se aproximar dele, perguntou:

Mas medo de quê e de quem?

João hesitou um momento. Poderia dizer-lho? Depois, bruscamente, decidiu-se.

Medo por Carine confessou com dureza

e medo... por você.

Por mim? repetiu quase sem voz e num sobressalto. Tem medo de mim... e medo por causa de Carine?

Depois de meio minuto de silêncio sob o efeito da surpresa, Patt retomou a palavra com súbita violência, ainda que sem elevar a voz, no receio de ser ouvida por Renaud que conversava com Hourvy na casa ao lado:

Mas, explique-se. É aborrecido o que acaba de dizer. Não tem razão de ser quanto a Carine... pela qual tudo serei capaz de fazer...

Num tom de voz lenta, acentuada, acusadora, sem erguer os olhos, ele disse:

Carine, à qual você está em vias de roubar o coração de Renaud!

Que diz?

Obstinado, o jornalista calou-se, querendo deixá-la em face dessa dura verdade que acabara de lhe lançar em rosto.

Que diz? repetiu ela, de lábios trémulos.

Como pode você proferir semelhante disparate?

- E você, Patt, como pôde ignorar até agora

o beco sem saída em que se meteu?... Patt, a generosa rapariga pronta a todos os sacrifícios porque esses sacrifícios não dependiam de si... como se vê agora sem forças para se desembaraçar da tentadora cilada que a vida lhe oferece! Como pensar ainda em Carine se Renaud principia a voltar para você o seu sentimento de amor?

A jovem revoltou-se com sinceridade:

Mente! Renaud ama Carine: amou-a sempre...

Renaud esqueceu Carine tornou ele, implacável. E encontrou-a agora, Patt, transfigurada exactamente pelo seu lapso de memória, como se tivesse cessado de vê-la durante o espaço de cinco anos! E digo-lhe que o brilho aceso nos olhos dele quando a fitam, maravilhados e quase incrédulos, não é senão... a luz do amor.

Num frémito, a jovem respirou fundo, como se quisesse receber sem fraquejar, o golpe por ela própria provocado.

E acha-me capaz de ter compreendido esse sentimento, encorajando-o? De ter querido aproveitar esta abominável situação em detrimento de Carine?

Não, conscientemente respondeu ele, sincero. Oh, não! Considero-a bem longe disso, saboreando por assim dizer a certeza de que Renaud se encontrava no limiar daquele outro amor... Mas, a pouco e pouco, essa certeza atenuou-se em você, desapareceu, perverteu-se, levou-a, de olhos cerrados, até à traição...

Mas, não; não é assim! revoltou-se ela,

Nesse caso, diga-me então: estando nós aqui há já quatro dias, por que é que ainda não deu a Renaud o remédio libertador: esse remédio que, acordando-lhe a memória, o levaria a lembrar-se do antigo amor por sua irmã?

Incerta, ela passou a mão pela fronte.

Mas... não sei... Eu... eu tenho medo; medo não por esse motivo, juro! Receio o choque, a violência que possa causar ao cérebro dele essa nova transformação. Sim: é de imaginar que ele possa endoidecer... Quem nos diz que, acordando do seu longo sono, o espírito dele não analise de chofre a ideia de tudo quanto se passou depois?...

João levantou-se e foi debruçar-se nas costas da cadeira ocupada pela jovem.

Patt inquiriu ele num tom de voz surda dar-se-á então o caso... de você temer certas revelações acerca desse passado? Tem medo de que Renaud, diante do passado, diante do que ele fez, receba um golpe terrível?

Ela ergueu-se dum salto, encarou-o, de olhos cintilantes:

Ah! não, não! Isso não! - exclamou, com inabalável confiança. Nada disso que você agora, à semelhança de tantos outros, por sua vez insinua! Renaud culpado! Como? Também você pode acreditar em tal? Oh! João, agora que o conhece!

Mas também Bechman o conhecia e, como amigo dele, há muito, duvidou...

Num gesto de abatimento, Patt deixou pender ao longo do corpo os braços nus.

Também esse, como você repetiu em voz sumida como Cecília que o pretendia amar... E mais baixo ainda: Como Carine... que o ama.

Uma espécie de furor pareceu transfigurar de repente Patrícia, transformando-a numa autêntica mulher apaixonada e ardorosa.

-Todos, todos... têm duvidado dele! Só eu lhe resto! Porque eu amo-o verdadeiramente, mais do que qualquer outra... E eis que, você tem nisto razão, me encontro em face do dilema: despertar a memória de Renaud para o tornar feliz, mas ao mesmo tempo para o entregar à recordação duma outra cujo amor é menos forte e menos puro do que o meu... ou...

E no hesitante silêncio que se fez, num tom de voz mais baixo, rematou:

...ou calar-me e guardá-lo para mim!

Na voz dela vibrara tal frémito de paixão que o jornalista se arreceou; teve medo por Carine, conforme dissera, ele que só em Carine pensava.

E exclamou, com a voz abafada:

Patt, Você não fará isso. Será capaz de cometer esse crime, essa traição? Veja que não envolve unicamente a sua irmã, mas ainda o próprio Renaud cuja consciência dos factos lhe seria roubada! Você não tem esse direito! Oh, Patt, sempre tão generosa, tão boa até aqui, poderei crer que faça semelhante coisa? Não!

Direita, firme, a dois passos diante dele, a jovem deixava correr essa eloquente súplica sem parecer senti-la.

É verdade!... Eu não tinha compreendido, não tinha visto, mas, sim, o olhar dele quando me fixa... o tom da sua voz quando me fala, os seus modos atentos... Oh, meu Deus, como Te agradeço! Oh, sim, obrigada, meu Deus!

Patt! suplicou ainda João, como que para a sacudir e despertar. Mas isso não é possível!

Não tornou ela com o mesmo inebriamento. Jamais acreditei que fosse possível... Ser para mim, para mim, toda essa doçura, todo esse terno carinho, todo esse luminoso calor que eu o tenho visto dedicar a outra... Tudo isso para mim, agora, para mim...

E lentamente, num outro tom, como se acabasse de tocar com os pés no chão do mundo real, prosseguiu:

E era ”isso” que você queria ver-me destruir? Era a ”isso” que você queria que eu renunciasse? E porquê? E para quê? Para o entregar a Carine, à Carine que entretanto você ama e que desse modo perderia em definitivo? Mas vejamos, João: não será isto uma loucura, uma insensatez, uma sem-razão contra a própria natureza?

Como? exclamou ele por sua vez, siderado por aquelas palavras. Que quer dizer?

Eu quero dizer, João, que estamos a ser tolos, ambos, com os nossos rasgos de grandeza de alma, a nossa resolução de sacrifício... Não lhe parece que nos retardámos bastante, que nos antepomos à nossa época tão positiva e prática? Pergunto-lhe que significará no tempo presente dois lamentosos do nosso género que esgrimem e se esforçam por fazer a própria desventura a fim de construírem a hipotética felicidade alheia?...

Mas ponderemos, Patt, vejamos...tentou ele obstar, confrangido.

Vejamos, sim, mas com olhos lúcidos, olhos de ver: se eu me calar, se eu deixar Renaud mergulhado na sua consoladora amnésia, podemos ficar aqui, felizes e ocultos... e você, por sua vez, regressar a França, ao encontro de Carine que, no fim de contas, nada mais pedirá, além do esquecimento e de consoladora ventura...

Interdito, João replicou suavemente:

Como pode você, Patt, sempre tão justa e generosa, imaginar isso, esse... esse...

Esse paraíso, diga! concluiu ela com tanto enternecimento que ele sentiu apertar-se-lhe o coração. Sim, esse paraíso: nós dois, sós no mundo, ele e eu! E agora, depois de o imaginar, ter a coragem de o destruir...

Oh, Patt, suplico-lhe... por Carine e por Renaud... e até por si própria, por aquela que você tem sido sempre, não faça tal coisa!

Ela olhou-o, súbita e profundamente, com o azul dos olhos enturvado.

Sim disse com amargura porque ele não seja daqueles que têm o direito de ser feliz? E quem diz ele, diz você... ou eu, por exemplo? E aceita isso como natural?

João Dorget avançou um passo para lhe agarrar as mãos, mas Patt esquivou-se-lhe.

Aceito-o, como você acabará por aceitar, Patt, visto ser esse o nosso destino normal, porque assim somos, porque Deus assim o determinou... e porque a qualidade do nosso amor é diferente dos amores comuns...

 

                                     O coração de Patt

Renaud perguntou Patrícia querendo afectar um ligeiro à-vontade aliás desmentido pelo tremor dos seus finos dedos crispados sobre a toalha tenho a impressão de que a digestão deste excelente jantar vai ser difícil para mim. Um pequeno passeio, estou certa de que ma facilitaria. Quer acompanhar-me?

Renaud apressou-se a envolvê-la num grande xaile indiano que a senhora Hourvy lhe emprestara a fim de preservar do frio crepuscular os ombros desnudados da jovem pelo elegante vestido com que ela fora a esse jantar. E, diante da atenta solicitude com que ele obedecia ao menor capricho dela, João, com uma certa inquietude, dizia de si para si que era tempo de Patt falar e pôr em bom caminho aquela desfalecida memória...

Renaud, esse Renaud de coração inteiramente novo, pois esquecido do passado, parecia de todo subjugado ao malicioso encantamento de Patrícial Estaria ele preso, real e profundamente, à jovem? A ponto de a preferir a Carine logo que esta ressurgisse na sua memória? Mas parecia então inverosímil, impossível a João Dorget que se pudesse preferir a Carine, fosse quem fosse, Carine, a mais bela, a melhor, a mais... Enfim: Carine!

E, todavia, ele receava por Patt, vendo-a afastar-se ao lado de Renaud, as duas juvenis figuras embrenhando-se no pequeno bosque de aloendros situado nas traseiras do Consulado.

Como iria ele reagir às revelações de Patt? Como conseguiria dizer-lhe e... sobretudo, que lhe diria?

Durante esse jantar, e mais do que nunca, a jovem mostrara para Renaud a melhor jovialidade, uma espécie de malícia ao mesmo tempo terna e provocante com que o rapaz parecia inebriar-se.

Somente, aquela alegria interior que a envolvia duma espécie de ardorosa luminosidade, recordava a João o seu diálogo da tarde. E, ao pensar que essa feliz e radiosa luminosidade, essa dádiva de todo aquele ser, a traduzir o júbilo de se saber amada por esse que ela amava, era devida a ele, João, que, pela sua revelação perigosa provocara em Patt semelhante ideia, maldizia a sua iniciativa.

Que necessidade tivera de revelar a Patrícia, resignada sempre e para sempre àquele amor sem esperança, que ela desfrutava em troca o mesmo sentimento? Fazendo-o, em vez de conjurar o perigo, não corria antes o perigo de o agravar?

Quando pensava na reacção, assaz imprevista, de Patt, na sua revolta súbita diante do novo sacrifício que a vida exigia dela, João sentia, apiedado, que a sua reveladora iniciativa fora desastrosa. E, contudo, apesar das palavras de revolta, ele não podia acreditar que essa generosa rapariga fosse capaz do monstruoso egoísmo que pretendera alardear. Não. Não era possível que essa rapariga, sempre tão distinta, ficasse insensível, surda aos apelos do dever... Não era possível! A menos que, inebriada pela ventura, tão nova para ela, de se saber amada... amada por aquele que sempre supusera inacessível ao seu sentimento de amor, não tivesse forças para resistir... e o destruísse pelas próprias mãos... Essa crueldade... ser-lhe-ia difícil? Pobre Patt: mesmo que ela se contraísse, mesmo que o não quisesse, não ”podia” falar...

Acabrunhado pelo receio e pela ansiedade, João, de cabeça baixa, dizia consigo que a situação se tornara tensa por sua culpa, que era ele o único responsável pelo trágico dilema no qual se encontrava mergulhada essa valorosa rapariga a quem pouco a pouco principiara a afeiçoar-se como a uma irmã. E assim se lamentava, se acusava, desolado...

Compreendia que a revolta da pobre Patt não poderia ser duradoura e que as suas duras palavras não passavam de fanfarronadas... De momento, insensível ao encanto daquela noite, ao mesmo tempo carregada de aromas e leve qual brisa marinha, a jovem deveria estar desmantelando a sua felicidade...

Avançando pela senda que eles haviam seguido, João assim ia pensando quando, de súbito, estacou diante do que avistava agora.

A cinquenta metros apenas, a meio duma pequena clareira inundada pela luz azul do luar, as silhuetas dos dois jovens desenhavam-se com nitidez, ternamente enlaçados.

João teve um sobressalto.

”Não é possível; estarei sonhando?”

Instintivamente adiantou alguns passos. Mas o par estava de tal modo absorvido que não deram por ele.

Nos braços de Renaud, Patt envolvia-o em extasiado olhar e, sem poder compreender mais do que o ardor do belo e másculo rosto do rapaz, inclinado para ela, João adivinhou quais as palavras com que Renaud a enleava...

Pobre Carine... Compungido ao pensar nela, o jornalista avançou ainda alguns passos mais e pôde ouvir então estas frases:

Renaud suspirou Patrícia com voz meiga e ardente é então bem verdade que me dedicas amor... não como aquele de quando eu era criança, nem tão-pouco como o que se dedica a uma companheira de infância?

Não; mas como o que se dedica à mais sedutora, à mais adorada mulher... terminou ele, num frémito de paixão.

Oh! Renaud... aperta-me ao teu coração... abraça-me como testemunho desse amor... para que eu guarde desta bela noite a lembrança desta primeira confissão e do teu primeiro beijo...

Cerrando os olhos, João recuou. Não quis ouvir mais. Pareceu-lhe um sacrilégio, uma profanação. Lentamente, a passos discretos, retirou-se para casa. Embora visionando o desespero de Carine, não se sentia com forças de exprobrar muito asperamente a desditosa que não soubera ou não pudera resistir à tentação. Sentia-se um tanto desiludido e triste... tendo-a considerado superior... mas devia, enfim, aceitar o facto tal qual era,

”No fim de contas ponderava com mágoa ela é humana, simplesmente humana como todos nós o somos!”

De cabeça baixa, coração alanceado, João acabava de entrar em casa e atravessar o pátio para subir ao seu quarto, quando uma sombra ligeira se perfilou batida pela claridade lunar.

A jovem seguira-o, bem de perto, arrancando-se imediatamente ao encantamento daquele primeiro beijo... e o jornalista não pôde então conter a censura que lhe acudia aos lábios:

Patt! Oh, Patt! Que fez você?... murmurou, agarrando-lhe um pulso.

Ela desprendeu-se, porém, vivamente. João viu reluzir-lhe na mão qualquer coisa de semelhante a um pequeno frasco que ela lançou no lago. E, numa voz que o surpreendeu pelo seu vibrante desespero, disse:

Fiz provisão de felicidade para todo o resto da minha vida!

 

                                     O dia seguinte

Na manhã seguinte, João, que errava como uma alma penada na casa da Praça de Armas, sem encontrar nenhum dos seus amigos, acabou por, ao virar no fim dum corredor, cair quase nos braços da senhora Hourvy, que vinha caminhando com infinitas precauções.

Estupefacto, o jornalista perguntou:

Há alguém doente?

Não, meu Deus! Pelo menos, assim o espero respondeu a encantadora e idosa senhora com misterioso ar.

Mas onde estão os nossos amigos? já saíram? Renaud...

Pondo um dedo sobre a boca em sinal de silêncio, murmurou:

Está a dormir.

Ainda? Já passa do meio-dia... admirou-se João que, num súbito pressentimento, exclamou: E Patt? Aonde está Patt?...

Foi-se embora! disse a senhora Hourvy com melancolia. Quis levar ao cúmulo o seu sacrifício, desaparecendo das vistas de Renaud... antes que ele acordasse.

Como? Quererá dizer que ela lhe administrou a droga de Tamila?

Sim, ontem à noite. Dentro de dois dias saberemos ao certo qual a sua eficácia. O doutor Benoit, que nós avisámos, vem vigiá-lo a fim de evitar qualquer choque perigoso.

Oh! - murmurou João com remorso. E lembrar-me de que acreditei o contrário... que lhe disse. Pobre rapariga! Que injustiça! Mas, minha senhora, como soube tudo isso?...

Patrícia contou-me tudo ontem à noite quando regressou do passeio durante o qual Renaud decidiu tomar o contraveneno. Então, ela quis partir para deixar absolutamente livre o campo à irmã quando ele acordasse com a memória recuperada. Patt considerou necessária a presença e a vigilância do médico junto dele. Sim, repito, ela disse-me tudo isto, e eu creio não exagerar afirmando que esta rapariga é um anjo...

João sentia-se desolado:

E eu que a considerei simplesmente humana, como nós! Mas, minha senhora, peço-lhe me diga em pormenor como as coisas se passaram...

Em boa verdade, a senhora Hourvy não sabia bem. Somente os aloendros, sob os quais o par havia passeado, teriam podido revelar em pormenor aquele último... que fora ao mesmo tempo o primeiro encontro de enlevado e confessado amor!

Porque não restava dúvida: era de amor que a voz de Renaud vibrava ao murmurar as palavras que supusera talvez ser o primeiro a inventar; era de amor que os seus braços estremeciam ao estreitar os frementes ombros de Patrícia.

Aquilo principiara por uma palavra, uma só palavra, pronunciada pela jovem a fim de provocar o fim que ela desejava atingir:

Partir... E diga-me, Renaud: não pensa em partir daqui?

Abraçando-a pelos ombros, ele respondera-lhe com a maior naturalidade:

Partir daqui, para quê... se tu estás aqui?

Mas, Renaud, eu não quero ficar por muito tempo neste país. Tenho em França a minha família, a minha casa...

Está bem disse ele, apoiando o queixo naqueles sedosos e louros cabelos de que provinha um perfume cativante e fresco. Está bem! Nós partiremos juntos. E é tudo. À parte estas pesquisas, eu não tenho, por assim dizer, qualquer forte motivo para desejar viver no Quaracha. Podes crer; e, até, pelo contrário, tenho agora um poderoso motivo para não te deixar, agora que te reencontrei... minha querida Patt!

Num misto de ventura e de receio, a jovem murmurou:

Oh, Renaud! É então verdade, bem verdade?...

Que eu te amo? rematou ele com uma voz na qual se fundiam todas as ternuras. Mas como poderia ser doutro modo, minha querida? Não és tu toda graça, encanto, bondade? Não é o teu delicado sorriso o doce reflexo da tua delicada alma?... Quem mais do que tu, Patt, mereceria ser amada por mim! Tu és, crê, o meu único, o meu eterno amor...

Palpitante duma alegria profunda, quase mística, indizível e jamais esperada, a jovem apertou-se contra ele, deixando que sobre a sua cabeça caísse a onda acariciadora daquelas palavras de amor...

Diz-me, querida implorou ele diz-me que não te magoam ou desagradam estas minhas palavras, diz...

Mas confessou ela num murmúrio se eu sou divinamente feliz!

E foi só alguns minutos depois que, recorrendo a toda a sua coragem, ousou dizer:

E, contudo, Renaud... como posso, como podes tu próprio acreditar nas doces palavras que acabas de proferir? O teu único amor, dizes? Quando há uma grande parte da tua vida, da tua juventude, que escapa à tua memória. Quem sabe, Renaud, se esse coração que me ofereces de tão boa fé, não estará daqui a algumas semanas plenamente avassalado por outra... por uma outra que terá os seus direitos sobre ele e que, só por efeito duma droga que te extinguiu a memória, foi afastada do teu coração? Renaud, escuta-me... esse passado, não distante, não quero eu ressuscitá-lo por meio de palavras incapazes de te sensibilizarem, pois não tenho o direito de me aproveitar da sua abolição transitória... Renaud, a mestiça que cuida de ti em casa de Alexandre Bechman e que adormeceu as tuas recordações por meio dum filtro indiano, deu-me o antídoto que pode permitir-te reencontrar a integridade da tua memória após quarenta e oito horas dum sono profundo... Renaud, eu não poderei crer no teu amor, eu só poderei considerar-me honestamente digna de ti se, ao fim desse tempo, tal sentimento resistir a essa prova... Renaud, quererás tu aceitar da minha mão o remédio libertador?

À claridade da lua, Renaud inclinou para ela o rosto onde havia uma expressão de êxtase.

Desse modo, dever-te-ei ainda isso, meu amor?... De ti me virá pois todo o bem, toda a doçura? Dá-me, dá-me esse remédio, Patt querida. Feliz me sentirei, sim, de reconquistar a ideia do meu passado total, intacto; e estou certo de que nele nada encontrarei, nem factos, nem pessoas que possam afastar-me de ti!

Agitada, ela estendera-lhe o pequeno frasco, e fora então que murmurara as palavras de súplica ouvidas por João:

Antes, porém, Renaud, dá-me um verdadeiro beijo de amor...

E assim se explicava a frase que a jovem proferira ao mesmo tempo que lançava fora o frasco vazio, e já inútil, no lago:

”Fiz provisão de felicidade para todo o resto da minha vida!”

Porque ela sabia, ela, Patt, estava bem certa de que essa felicidade experimentada e fruída no espaço duma hora nos braços daquele que amava, não poderia sobreviver ao acordar da sua memória. A esse despertar que o entregaria inteiramente a Carine, não teria ela a coragem de assistir... jamais quereria ser, pela sua presença, um elemento de perturbação ou de desgosto para Renaud se ele acaso devesse lembrar-se desses instantes benditos, razão por que, após ter prevenido a senhora Hourvy e o doutor Benoit, decidira partir.

Completamente abalada pelos acontecimentos, fora de si, a esposa do cônsul multiplicara os seus protestos, mas o idoso médico contentara-se em dizer, sorrindo, a Patt:

Se estivéssemos na Europa, cumpria-me persegui-la, minha filha... por exercício ilegal de medicina! Mas, aqui, e eu aprendi a conhecer bem os indianos, sei que o seu conhecimento das propriedades vegetais e minerais ultrapassa em muito a simples ciência das nossas Faculdades. Vou portanto vigiar o despertar desse rapaz e suponho que pouco terá a recear por ele... Visto que decidiu partir, poderá fazê-lo sem inquietação.

 

                           A libertação de Carine

Patt havia deixado algumas palavras a João, pelas quais lhe confiava Renaud.

”Leve-o para Ardimont, para Carine, a quem eu vou procurar em Espanha, desde que saiba ao certo da eficácia do remédio. Conto consigo, meu bom João, para levar até ao fim e a bom termo o que a sua dedicação sempre tem facilitado... Conto consigo, sim, para ajudar Renaud a provar a sua inocência, para o aproximar de Carine e ao mesmo tempo lhe explicar que o projecto daquele casamento não foi nunca uma traição da parte de minha irmã, como você sabe, mas antes um meio de protecção a ele unicamente dedicado... Perdoe a minha rudeza, meu amigo. Julgo-me, porém, no direito de lhe pedir tudo isto, porquanto eu, depois de ter reconduzido Carine a Ardimont, Carine que eu conseguirei antes de mais nada libertar do outro compromisso... eu desaparecerei muito antes de vós ambos regressardes...”

Logo que Patt traçou aquela promessa de ”desaparecer”, a generosa rapariga nada mais encarou do que esse extremo duma ”fuga”. Uma fuga que, a partir dali, representava um perfeito heroísmo.

Todavia, Patt não queria deixar o Novo Continente sem ter completo e seguro conhecimento do que se passava com a saúde de Renaud. Apesar das afirmações de Tamila e do encorajante conselho do doutor Benoit, a jovem continuava ansiosa quanto ao resultado desse misterioso contraveneno... e, assim, esperaria em terras do Peru um telefonema de João, no qual o jornalista lhe anunciasse o despertar, a cura da amnésia, num estado de febrilidade doentia.

Durante quarenta horas, Patt ficou como petrificada junto do aparelho telefónico, no seu quarto no hotel, à espera da comunicação do jornalista.

Quando a comunicação se deu, exactamente quarenta e nove horas depois do enfermo ter tomado a droga, a jovem irmã de Carine, apertando nas mãos geladas o auscultador, mal pôde ouvir as palavras, tão precipitado era o pulsar do seu coração. Mas sentiu radiosa vitória, ao perceber que João lhe dizia:

Tudo correu bem, Patt.

Ela teve então de se encostar à parede para não cair vencida pela emoção.

Meu Deus! Quer dizer-me que ele recuperou a memória?

Sim: há uma hora. A memória parece inteiramente restabelecida... ele encontra-se em perfeito estado e o doutor Benoit mostra-se satisfeito! Quanto à...

Obrigada, meu Deus! interrompeu ela, extasiada, enquanto as lágrimas rolavam de seus olhos pelas faces, sem que parecesse senti-las. E você... falou-lhe já da morte da mamã?... E do que se lhe seguiu?...

Não, não...respondeu ele. Acho que é necessário dar tempo a que ele se habitue um pouco ao seu novo estado... Por outro lado, o doutor Benoií não tem precisão de saber, como não sabe, as vagas suspeitas que pesam sobre o nosso amigo.

Sim admitiu ela, ainda trémula. Tem razão! Entendo mesmo que seria preferível, para o regresso, decidi-lo a tomar consigo lugar a bordo do navio... A viagem permitir-lhe-ia afazer-se lentamente a todo esse estado de coisas que ele esqueceu ou ignora, sem choque de maior... Essa a primeira vantagem... E, segunda: dar-me-ia tempo a ir a Espanha para reconduzir Caríne a Ardimont, eclipsando-me em seguida... De acordo?

De acordo repetiu João num tom de voz subitamente caçoadora, por forma inexplicável. Tudo se fará consoante os seus desejos, minha generala... A propósito: talvez lhe interesse saber qual foi o primeiro nome que Renaud pronunciou ao acordar...

Mas não teve tempo de concluir a frase.

Não! exclamou Patt, que desligou com violência o telefone.

Uma das maiores surpresas que Patt experimentou em toda a sua vida, foi a recepção que lhe fez Carine à sua chegada, aliás imprevista, em plena praça de S. Sebastian, aonde a jovem, sem ter prevenido a irmã, a encontrou três dias depois da sua partida.

Querida Patt! Até que enfim... Renaud está curado! Eles regressam e, ainda melhor que tudo, ele está inocente... Olha: lê isto...

Num verdadeiro delírio de contentamento, Carine quase saltava, exaltada, pondo sob os olhos da irmã o texto dum telegrama que recebera na tarde anterior.

”Excelente resultado obtido com tratamento de Patt. Renaud capaz de produzir provas e testemunhos irrefutáveis da sua completa inocência. Regressamos Nancy.

Aceite cumprimentos dedicação indejectível do último membro da missão...

João Dorget.”

Muito mais calma do que sua irmã, Patt encolheu os ombros.

Que idiota, disse. ”Indefectível” eis um sentimento pago por tarifa e nada barato em telegrama!

Idiota, porquê? perguntou Carine, entre ruborizada e admirada. Não compreendo como ousas tratar desse modo um amigo nosso, cuja dedicação se tornou, de facto, admirável e...

”Indefectível” concluiu Patt, erguendo os olhos ao céu, Eu já o sabia, antes dele confiar ao telégrafo essa palavra!... Só o que eu acho de surpreendente é que ele ta dirija, a ti, que parecia detestar... pelo menos à partida.

Mas protestou Carine, continuando corada

não é a primeira vez que... Enfim, temo-nos escrito... várias vezes... Penso em que era bastante natural recomendar-lhe todos os cuidados contigo, tendo tu seguido com ele, metida numa aventura daquelas!

Certamente... disse Patt que, sem parecer escutá-la, considerava com ar sonhador o telegrama.

O que me parece, porém, mais surpreendente é que te mostres liberta da dúvida em relação à notícia onde se afirma a inocência de Renaud...

O rubor tornou-se mais intenso na cor mate do rosto de virgem florentina.

Sim repetiu Patrícia com um suspiro de reprovação porque eu sabia que duvidaste dele! Devo dizer-te que Renaud nunca o soube...

E como a irmã não respondesse, a jovem insistiu, inquieta:

Carine! Estás a ouvir-me, Carine? Compreendes-me? Não vás tu um dia mais tarde, por um rebate de consciência, confessar-lho... Esse teu remorso far-lhe-ia mais mal do que a sua ignorância... é preciso, ouve bem, que ele não saiba nunca ter existido, por um minuto, por um segundo sequer, a mais ligeira dúvida no espírito daquela que ele ama... pois toda a vossa vida ficaria envenenada...

Num gesto súbito, Carine deteve-a; e numa voz baixa, porém plena de resolução:

Mas, Patt, fica sabendo que eu jamais partilharei da vida de Renaud.

Erguendo as sobrancelhas, Patrícia teve uma expressão de espanto:

Estás louca? Agora que a inculpabilidade dele está provada, nada poderá impedir-vos...

Carine continuava grave e resoluta.

Sim tornou ela uma coisa pode impedir que eu estrague as nossas respectivas existências, realizando o que não foi mais do que um projecto de infância...

A cólera começava a apossar-se de Patt.

Ah! perguntou de dentes cerrados e que coisa é essa, podes dizer-mo?

Simplesmente... porque eu estou decidida a casar com um outro... por mais que tu possas dizer ou fazer!

Uma explosão de ira insensata passou nos olhos e vibrou na voz da mais nova.

E deixa-lo tu vir de tão longe para encontrar essa decepção? exclamou, alarmada. Mas, nesse caso, o teu procedimento é criminoso e miserável... Nunca, fica sabendo, nunca te permitirei que lhe causes semelhante desesperação... Essa tua recente promessa de casamento não passa dum simulacro, duma comédia... Não posso acreditar que tu te deixasses prender por outrem... Mas, seja como for, vou meter o caso em boa ordem!

E, de roupão, saiu do quarto de Carine, Agitando o telegrama de João Dorget, correu ao encontro do primeiro criado que encontrou e ordenou-lhe:

Indique-me o quarto da senhora d’Ardimont, faça favor.

Informada pelo criado, que à vista do telegrama cuidou tratar-se dum caso de extrema urgência, Patt correu ao aposento aonde a condessa parecia estar reunida em grande conferência com seu filho.

Tia disse a jovem, surgindo à porta venho recordar-lhe o compromisso que tomámos uma com a outra. Deixei o campo livre a seu filho para ele tentar a conquista de Carine... Mas, hoje, Carine vem tornar a pedir-lhe a sua palavra. Ou antes: sou eu que lhe peço a confirmação...

Enquanto a condessa, muito calma, a olhava friamente, sem proferir palavra, Xavier erguia-se:

Patrícia! exclamou. Donde vens tu? Que queres?

Venho da América do Sul, aonde tive a felicidade de encontrar um homem que a tua mãe deixou acusar dum crime abominável, sabendo embora que o acusado estava inocente.

Como? Quem? perguntou ele com tamanho espanto que a sua boa fé não pôde ser posta em dúvida.

Vejam disse Patt, estendendo-lhe o telegrama. Lê e tudo compreenderás, talvez...

A senhora d’Ardimont, aproximando-se, rápida, leu por cima do ombro do filho. E Patt viu-a empalidecer.

Quando a titular ergueu a cabeça, os seus olhos encontraram-se com os da sobrinha numa fixidez incessante.

Então disse Xavier, que parecia violentamente emocionado Renaud está inocente?

Está, sim respondeu Patt. E tua mãe sabia-o.

Sabia-o, como?

Sabia-o porque tornou a jovem sem desfitar a senhora d’Ardimont, que empalidecia mais em cada segundo conhece o criminoso! E, conhecendo-o, calou-se, deixou acusar um inocente, arruinar a sua reputação, comprometer-lhe toda a existência... E tudo isso...

Tudo isso por ti, meu filho disse enfim a condessa, que baixou a cabeça como denunciando esgotadas as suas forças. Para que Renaud fosse afastado do teu caminho, para que tu pudesses desposar aquela que amavas...

Cruel e com aguda ironia, Patt aduziu:

E, também, no mesmo golpe, apanhar o castelo com que a tia sonhava!

Não! exclamou ela, desvairada. Não! Juro-o...

A jovem esboçou um gesto de desgosto:

Não seja perjura uma vez mais...

E, vibrantemente, prosseguiu: No dia do drama, fui eu uma das únicas pessoas que, mais perto de si, e no sítio em que me encontrava, podia aperceber-me dalguma coisa respeitante ao desastre que matou minha mãe... e formulei-lhe uma pergunta... lembra-se?... a indagar se a tia tinha visto alguma coisa...

Friamente, quase altiva, a condessa rematou: - É certo que me perguntaste se eu tinha visto quem disparara esse tiro perdido, desastroso... e eu respondi-te que não tinha visto nada.

Sim, mas eu sabia, por uma espécie de pressentimento, eu estava certa de que a senhora acabava de ver... Desde esse instante, compreendi que a tia se calava por uma razão misteriosa. Não podia andar longe da...

Ah! não, não, juro-te...

É bastante estranho! volveu Patt, mais calmamente. Não o acreditei nunca, embora o seu antigo despeito contra a minha pobre mãe, a sua ambição, tenham podido fazer da senhora a culpada por excelência; contudo, essa ideia, mal me aflorou, foi repelida para longe do meu espírito... Mas, então, quem, quem, quem? Visto haver confessado que conhece o causador da morte, seja ele por assassinato, seja simplesmente por desastre... quem é ele e por que razão o protege, o oculta?

Carregando o sobrolho, a senhora d’Ardimont parecia entrincheirar-se numa feroz resolução de silêncio. Mas cedeu, de repente, ao grito alucinado do filho:

Mãe! Fale, mãe, em nome do céu lho peço! Se conhece o nome desse homem, diga-o, não deixe que acusem o seu filho, nem a acusem! Fale!...

Seja disse ela com lassidão. Se me obstinei no silêncio até agora foi no interesse da tua felicidade que o fiz, embora não desconheça que tu próprio me censurarás...-E, com esforço, para continuar calma, prosseguiu: Conheço, de facto, o culpado... Se me calei, desde o primeiro momento, foi também um pouco por piedade... mas sobretudo por ter visto Renaud Martin afastar-se... afastamento que eu pensei poder utilizar, manejando, talvez, o mistério deste acidente contra ele...

Oh! exclamaram ao mesmo tempo e com indignação, Xavier e Patt.

Sim tornou ela, voltando-se para o filho contra esse rapaz que se atravessava entre ti e Carine, entre ti e Àrdimont, o castelo propriedade dos nossos pais... Esse rapaz que eu principiei a odiar, quando compreendi que não desposarias Patrícia devido a preferires-lhe a irmã...

E principalmente cortou com ironia a sobrinha porque eu o tinha mandado passear...

Não. Afirmo-te replicou a senhora d’Àrdimont que, pelo menos em relação a Carine, o meu filho, Xavier, foi sincero. Interessava-nos a ele e a mim que a desposasse, a fim de reconquistar a moradia dos nossos antepassados e, para tanto, sentia-me capaz...

Dum crime!

Não! exclamou ainda. Era incapaz de o praticar, juro... De resto, não foi um crime, mas sim um acidente... O desgraçado estava louco de medo e de desespero,

Mas que desgraçado? Quem? perguntaram excitados e ao mesmo tempo os dois jovens.

No silêncio que se seguiu, a tia disse então lentamente:

Um pobre vagabundo: o Luís, que, como todos nós sabemos, vive de caça ou pesca furtiva... O homem estava a dois passos de mim quando disparou a arma. Ao ligeiro grito que respondeu ao seu tiro, vi-o sair da moita em que se ocultava, saltando à frente do caminho, e correndo ao mesmo tempo do que eu... para vermos caída a pobre Ghislaine, cuja presença na proximidade desconhecíamos. Vimo-la sucumbida. E morreu. Não foi preciso grande exame para o verificar. Luís ficou como doido. Ele sabia que, se o descobrissem como autor daquele fatal desastre, seriam dobradamente severos a puni-lo em consequência dos seus antecedentes de caçador furtivo. Então o homem rojou-se de joelhos a meus pés, a suplicar-me, visto ser eu a única testemunha do caso, que não o denunciasse, que tivesse piedade dele... Ora sob aquele aflitivo golpe, não pude escutar mais do que a minha piedade... Não tardou então que eu tornasse a ver a figura de Renaud Martin, tal como o apercebera alguns minutos antes de soar o tiro, isto é: afastando-se na direcção oposta. E foi, creio, o meu subconsciente que me segredou: ”Aproveita a sorte desta oportunidade”. Vendo-o afastar-se, lembrei-me de que podia ser acusado, pelo menos, dessa fatalidade que levantaria entre ele e... Ardimont, uma barreira intransponível...” Baixou mais a cabeça: É fácil adivinhar o resto. A partida de Renaud, que ninguém tornou a ver, a conferência que ele tivera com Carine e que alguns perceberam... Sim, tudo concorria para a sua presumida culpa e responsabilidade... E eu continuei a calar-me... Implacável, Patt increpou-a:

Mas, para isso, a senhora só escutou então o seu ódio!

A mãe de Xavier sacudiu os ombros abatidos como para repelir de si a acusação.

Considera antes que foi por amor... uma espécie de amor que muitos não poderão compreender: o amor do nome, da casta, do domínio.

Num gesto de desprezo, Patt indicou-lhe Xavier, aniquilado.

E a essa espécie de amor sacrificou o seu filho. Repare: veja bem a sua obra!...

 

                               Livre ou venturosa?

-Tu estás livre! Livre... compreendes bem? não cessava Patt de lhe repetir com exaltação, no comboio que, da fronteira espanhola, as levava para o Norte.

Não obstante, encontrava Carine muito fria em face dessa liberdade recobrada, notando-lhe, no fundo dos grandes olhos sombrios, como que um fogo amodorrado, que dir-se-ia abafar no seu íntimo calorosa alegria.

É curioso admirou-se Patt, que parecia não poder estar quieta no seu lugar do compartimento em que só ambas viajavam. É curioso como tu pareces pouco animada a realizar a tua felicidade! Eu sinto-me contente, não sei se sabes?... muito contente!

Tossiu para aclarar a voz:

Foi uma sorte maravilhosa continuou ou, melhor ainda, uma bênção da Providência, que a tia Blanche cedesse tão depressa a tudo confessar! Agora estamos finalmente libertas do terrível pensamento de que a morte de nossa mãe pudesse ter sido voluntariamente causada por alguém que continuasse gozando liberdade. Foi um acidente horrível, mas banal, O desgraçado que foi instrumento dessa desgraça, não foi culpado nem responsável...

Mas murmurou enfim Carine, com perturbado espanto estás bem certa de que assim é?

A irmã teve um ligeiro sobressalto e olhou-a profundamente.

Ah! é então essa dúvida que ofusca a tua alegria? Receias uma nova mentira que serviria de defesa... de plataforma à... a essa mulher! Diz: não é isto?

Confesso que, ao descobrir a sua perfídia, a mim própria pergunto se...

Carine meneou a cabeça:

...não, podes crer que não foi ela, como supus também por muito tempo concluiu Patt, agora diante da janela da carruagem para ver o longínquo perfil das altas linhas sombrias das Ardenas. Pois bem! Não e não! Felizmente, não! Não resta a menor dúvida. Sucede que, prometendo-lhe guardar silêncio, ela, por precaução, e em troca, fez com que Luís escrevesse um relato do desastre, relato assinado, que eu lhe arranquei, além de a tia saber que não deixarei de falar com o homem, logo à nossa chegada a Ardimont. Compreendes que ela não podia arriscar uma mentira.

E que vais fazer agora?

Obrigar o responsável a desmascarar-se. A ele nada prometi! Bem entendido, porém, que o papá deve intervir um tanto a seu favor para o castigo não ser demasiadamente severo; contudo, é preciso que a verdade surja, bem clara, para justificar a inocência de Renaud aos olhos de todos e tu possas desposá-lo, finalmente!

Absorta, Carine não responde. De súbito, um sorriso entreabre os seus formosos lábios, um sorriso misterioso e doce.

Diz-me, querida murmurou toda essa longa viagem ao Quaracha foi então bastante útil?

Enfurecida, Patt, que acabava de se sentar, ergueu-se de um salto.

Como? ”Não foi bastante útil?” Principalmente para ti... porque essa famosa inocência de Renaud, que eu com um pouco de perspicácia consegui revelar, não bastaria a trazê-lo de novo! Teria continuado lá, nesse país de gente selvagem, esquecido de tudo e de ti própria, sob o efeito da droga indiana...

Àh, sim... tens razão concordou Carine com tal paz de espírito que a irmã, lançando-lhe um olhar quase adverso, pensou na sua falta de reconhecimento. Sacrificaste-vos... Sereis belamente recompensados... Oh! e não é por mim, não, que eu falo, crê. Eu... o que fiz, para mim foi E esse resultado era o meu fim. Sinto-me satisfeita. Mas, ao mesmo tempo, penso em João... nesse pobre rapaz, distinto, que tão generosamente, para te auxiliar e prestar um bom serviço, tudo pôs de parte: a sua situação, o país, a própria segurança...

O mesmo sorriso persistiu nos lábios entreabertos de Carine, que continuou:

Mas, não te inquietes a respeito dele. Estou certa de que terá também a sua recompensa!

Patt carregou sombriamente as sobrancelhas.

Não vás tu brigar com ele uma vez mais. Para ele, as questões de dinheiro, como sabes...

Sossega volveu Carine, num tom secreto. Não tenho que intervir nesse capítulo. Julgo que um grande jornal parisiense apreciou convenientemente os artigos que ele expediu pelo telégrafo de Manana sobre os costumes do Quaracha e...

Diabólico rapaz! disse Patt, admirativa. Como teve ele tempo de fazer esses artigos! E, de repente, desmesurando os olhos. Mas... e agora pergunto: como soubeste isso?

Oh! respondeu Carine vagamente, mas corando um pouco. Recebi dele uma carta no momento preciso de deixar o hotel e enquanto te ocupavas em pagar a conta e os bilhetes.

Uma carta?... Telegramas? Mas... vocês estão mantendo correspondência?

Não recebendo outra resposta além do enigmático sorriso de Carine, Patt resignou-se ao silêncio. Um silêncio que ela utilizou para congeminar longos e difíceis cálculos acerca do tempo e das distâncias, no intuito de compreender como e por que milagre Carine pudera ter sido informada tão rapidamente. Acabou por encolher os ombros.

O que unicamente lhe importava não era que Renaud, curado, limpo de culpas, regressasse de novo à sua terra, para se reunir a Carine e ser feliz?

De novo sentada atrás do motorista que viera buscá-las à estação com o automóvel de Ardimont, Patt se entregava a elaborar rápidos cálculos. Tudo seguiria pelo melhor: ia ter largo tempo para se avistar com o velho caçador furtivo, obter as suas confissões e dar para sempre a respectiva quitação a Ardimont, antes que os dois rapazes regressassem. Como a fachada do castelo aparecesse agora a seus olhos, uma violenta emoção a estrangulava. Para a sacudir, perguntou:

Foi nessa carta que... entre outras coisas, João te dizia qual o navio em que sairiam da América do Sul... e quando calculavam chegar a França?...

Precisava de saber... para se retirar antes do regresso dele, para não se encontrar de novo sob o olhar daquelas pupilas douradas que haviam cintilado de ternura por ela, Patt, certo dia... em que ele de mais nada se lembrava, nem para quem mais nada existia...

Sempre misteriosa, Carine iludiu a resposta.

João falou-me, com efeito, de muitas coisas... mas não do navio em que embarcava...

João? repetiu a jovem, de olhos arredondados pelo espanto. Quer isso dizer que criaram intimidade?

Patt sentia-se agitada, voltava a cabeça dum lado para o outro, olhando por uma e outra das janelas do carro.

E não te assusta que o papá tivesse mandado o carro à estação, esperar-nos, sem que ele viesse, como era de esperar, em resposta ao meu telegrama?

Carine sorria:

Preferiu esperar-nos aqui... Olha: aí o tens no terraço...

E, ao dizer isto, inclinava-se de tal modo para a portinhola, para ser a primeira a sair, que assim impedia Patt de ver; e esta, logo que atrás da irmã saiu do carro, estremeceu.

Ao cimo dos três degraus, seu pai aguardava-as, de facto, mas não estava só. E Patt, a corajosa, cuidou desmaiar ao reconhecer as duas figuras que o ladeavam. Não teve, porém, tempo de cair, nem de soltar um grito ou mesmo de pensar.

Sem saber como, encontrou-se apertada ao largo peito contra o qual já uma vez, que supusera ser a derradeira, delirara de felicidade.

Patt não era no entanto pessoa para longos desfalecimentos. E, num esforço heróico, arrancou-se a esse venturoso abraço. Agora, a pouca distância de Renaud, que a segurava por um braço, ela, circunvagando o olhar, olhava com alucinação para aqueles que a cercavam.

Ao lado do pai das duas irmãs, João, com seu ar simples e indulgente de bom rapaz, mas brilhando de malícia e de feliz triunfo, parecia exultar... enquanto Carine... uma inverosímil Carine, ruborizada, risonha e enternecida... Carine que, num tom de voz transfigurada como ela, declarava, empurrando alegre a irmã para o abraço de que esta procurava fugir:

Aí tens como os sortilégios indianos podem, não só adormecer a memória dos imprudentes que a eles se expõem, como acordá-los do que não passava dum mero sonho da infância!

Patt ergueu os olhos para Renaud. Viu-o sorridente, satisfeito, apenas confusamente reconhecido, enquanto que por cima da cabeça da jovem, dirigiu a palavra a Carine:

- Como pudeste, Carine, compreender tão bem o que em mim se passava e conceder-me o teu perdão?

A primogénita soltou uma risada franca, sem nada de reticente, e o tom mate do seu rosto de virgem florentina resplandeceu.

Mas, meu caro Renaud, tudo foi simplesmente porque o mesmo me aconteceu a mim, aliás sem a intervenção de qualquer droga indiana! As nossas infâncias aceitaram o sonho tecido pelas nossas respectivas mães... mas a vida, o amor verdadeiro, encarregaram-se de nos despertar cada um de nós por sua vez... E, cheia de malícia, concluiu: Sem querer deprimir-te... devo confessar que creio bem ter sido eu a primeira.

Ele repetiu quatro ”Ah!” exclamativos como que a saudar aquela declaração.

Cada um dos circunstantes reagiu então a seu modo. Renaud simplesmente curioso, o senhor Marinot perplexo, aturdido, e João Dorget pasmado.

Quanto a Patt, arrancando-se ainda uma vez mais ao que era a sua própria ventura, encarou com uma cintilação de cólera a irmã.

Não vais dizer-nos que preferiste esse fantoche do Xavier, esse mísero poltrão que somente soube curvar-se à vontade de sua mãe...

Tranquila e sempre sorridente, Carine sacudiu os ombros:

Mas tomas-me, porventura, por alguma idiota? disse, subindo os degraus. Como querias que eu me interessasse por outro quando este é... era...

E parando diante de João, ficou de súbito como que interdita, deslocada, sem saber como terminar a frase principiada.

A si própria prometera, durante longo tempo, que, chegado aquele momento, seria a primeira a falar... Falaria claro como que para expiar a sua maldade de outrora... e afinal não podia, visto que ele também nada ousava. Agora, ali, sob o seu olhar malicioso e meigo, pleno de incrédulo encantamento, ela não sabia... em vão procurava achar as palavras... e o pateta não a ajudava! Ficara de braços pendidos, quase desditoso.

Então, explodindo e batendo o pèzinho, Carine mostra nada lhe restar do Cisne Negro, indolente e soberbo.

Ah! como você é tolo, no fim de contas!

Sim, ele ousa então compreender, e estende-lhe os braços.

Quando eu te disse exclamou para a irmã que ele teria a sua recompensa, não te menti!

E a pouco e pouco uma parte do mistério se desvendou para a jovem Patt.

Apenas refeito da venturosa certeza em que hesitara acreditar, João exclamou, numa leve censura:

Se quando, pelo telefone, quis dizer-lhe o primeiro nome que Renaud pronunciara ao despertar, houvesse escutado, saberia...

Que era o teu, querida murmurou o interessado, apoiando os lábios aos loiros cabelos encanudados. O teu, que não mais me deixou, nem por um só instante. Carine tem razão. Entre nós não houve mais que um desses amores de crianças, mais fraternos do que enternecidos, Eis o que ela pressentia já quando protelava o prazo para fixar o nosso casamento... e eu, quando por esse motivo me zanguei... obedecia mais a um hábito do meu pensamento e ao meu orgulho de homem, do que a uma íntima paixão profunda. O meu sentimento de amor, verdadeiro amor, o primeiro, despertou no meu coração logo no dia em que te vi, lá no Quaracha... sentimento que, estou certo, nenhum filtro indiano poderia adormecer!

Com um bom sorriso, voltou-se para João:

Mas houve um bom amigo cuja magia me ajudou muito a conservar abertos os olhos! Foi este teu amigo que meu amigo se tornou. Sei que ele muito fez para esclarecer os mistérios dos nossos corações.

E contudo confidenciou João com piedoso sorriso confesso que, para mim, o mistério do ”Cisne Negro” persiste ainda impenetrável!

Docemente, Carine respondeu-lhe:

Não, pois o ”Cisne Negro” não é mais do que uma mulher, a mulher que uma irmã mais nova acaba de libertar... Ora eu li, algures, este pensamento: ”Uma mulher livre raramente é feliz... e uma mulher feliz nunca é livre...”

Em seguida, com aquele sorriso submisso que tão bem lhe ficava:

Eu escolhi ser feliz! concluiu, estendendo ao jornalista a sua mão. 

 

                                                                                Leo Dartey

 

 

                                         

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