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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CLUBE DAS SOBREVIVENTES / Lisa Gardner
O CLUBE DAS SOBREVIVENTES / Lisa Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CLUBE DAS SOBREVIVENTES

 

                 Começou com uma conversa:

- Os cientistas é que são o problema, não a bófia. A bófia é apenas a bófia. Alguns deles têm faro para os donuts recheados; outros têm faro para as reformas. Já

os cientistas... li qualquer coisa sobre um caso em que apanharam um tipo porque conseguiram equiparar a costura de dentro das calças de ganga a uma marca ensanguentada deixada na cena do crime. Não estou a brincar. Um perito qualquer disse que o padrão da ganga é tão individual que havia uma hipótese num milhão de outro par de calças de ganga deixar a mesma marca, etc., etc., etc. É mesmo surrealista!

- Não uses calças de ganga - disse o segundo homem.

O primeiro homem, que na verdade não passava de um miúdo, revirou os olhos.

- Isso é brilhante, realmente...

O segundo homem encolheu os ombros.

- Antes de me vires com sermões sobre o homem que o Calvin vai enviar ao casarão, talvez seja melhor começar com as coisas básicas. Impressões digitais.

- Luvas - disse o miúdo imediatamente.

- Luvas? - O homem franziu o sobrolho. - E eu à espera que sugerisses uma coisa mais inovadora.

- Olha, as luvas são uma chatice, mas cumprir pena também é. O que mais vais fazer?

- Não sei. Mas não quero usar luvas se não tiver de ser. Vamos pensar no assunto.

- Podias limpar tudo - sugeriu o miúdo. - O amoníaco dissolve a gordura das impressões digitais, sabias? Depois da coisa, podias borrifar tudo e limpar. Sabes, incluindo... - O miúdo calou-se. Não parecia ser capaz de dizer a palavra, o que o homem achou engraçado, tendo em conta aquilo que o "miúdo" fizera.

O homem assentiu.

- Sim. Incluindo. com amoníaco, claro. Senão poderão conseguir a impressão digital na pele da mulher utilizando aquelas luzes especiais ou uma fumigação. Em vez de a borrifar, a outra opção é colocar a mulher na banheira. Para garantir que se é meticuloso.

- Pois - assentiu o miúdo, pensativo. - Mas ainda podes deixar escapar qualquer coisa. E isso envolve uma série de manobras. Lembra-te do que dizia o livro: "quanto mais contacto com a vítima, mais provas se deixam."

- É verdade. Tens outras ideias?

- Podias deixar impressões digitais falsas. Uma vez conheci um tipo de Nova Iorque. Ô gangue dele gostava de cortar as mãos aos rivais e usá-las para deixar impressões digitais falsas nas suas cenas dos crimes.

- Resultou?

- Bem, metade do gangue estava a cumprir pena em Rikers na altura...

- Então não resultou.

- Provavelmente não.

O homem uniu os lábios e esticou-os.

- Mas não deixa de ser uma ideia interessante. Criativa. A polícia detesta criatividade. Devíamos descobrir onde é que esses tipos falharam.

- vou fazer umas perguntas por aí.

- Uma impressão digital não passa de um padrão de estrias disse o homem, com ar pensativo. - Se enchermos os sulcos entre estrias deixa de haver impressão. Parece que tem de haver maneira de se fazer isso. Talvez esfregar supercola nas pontas dos dedos? Já ouvi falar nisso, mas não sei se resulta.

- Mas isso não interferiria com o tacto? Quero dizer, se vais perder a sensação na ponta dos dedos é melhor regressares às luvas, pois já sabes que elas funcionam.

- Outra possibilidade são as cicatrizes. Cortes repetidos na ponta dos dedos com uma lâmina, para disfarçar a impressão digital.

- Não, obrigado!

- Quem não arrisca, não petisca - retorquiu o homem com suavidade.

- Pois, mas se não tens prazer no que fazes, não vale a pena. O que achas que o tecido cicatricial vai fazer às extremidades nervosas dos teus dedos? Mais vale cortá-los logo de uma vez. Mantém as coisas simples, lembras-te? E outra coisa que dizia o livro: o que é simples é bom.

O homem encolheu os ombros.

- Muito bem, então ficamos com as luvas. O látex mais fino possível. Isso resolve a questão das impressões digitais. Tema seguinte: ADN.

- Merda - resmungou o miúdo.

- O ADN é lixado - concordou o homem. - com as impressões digitais, podes ter cuidado com aquilo em que tocas. Mas com o ADN... já tens de ter em conta o teu cabelo, o teu sangue, o teu esperma, a tua saliva. Oh, e as dentadas. Não nos esqueçamos do poder das comparações dos dentes.

- Credo, és um filho da mãe doentio! - O miúdo tornou a revirar os olhos. - Olha, não mordas em nada nem em ninguém. É demasiado arriscado. Já prenderam ladrões por compararem os seus dentes a marcas deixadas numa fatia de queijo que estava no frigorífico. Depois disso, sabe-se lá o que podem fazer com um seio humano.

- Tens razão. Então voltemos ao ADN.

- Faz como o O.J. - resmungou o miúdo. - Deixa que os advogados tratem do assunto.

- Achas mesmo que os advogados são assim tão bons, tendo em conta a tua situação...? - perguntou o homem num tom arrastado.

O miúdo tornou-se hostil.

- Olha, que porra é que um gajo pode fazer? Usar a merda de um preservativo? Porra, pá, mais valia foder com uma mangueira...

- Então precisamos de uma ideia melhor. Pôr as culpas nos polícias não é uma boa defesa. E também não são eles que lidam com o ADN. O hospital envia-o directamente para o Departamento de Saúde por correio expresso. Ou não lês os jornais?

- Leio...

- E um banho aí também não serve de nada - continuou o homem, implacável. - Vê só o que aconteceu ao Motyka. Meteu a mulher numa banheira e a coisa correu tão bem que ele se arrisca a passar o resto da vida na prisão. O esperma sobe dentro do corpo. É preciso mais qualquer coisa, uma espécie de duche, não sei. E há ainda o cabelo. O cabelo também pode fornecer o ADN se trouxer a raiz, ou a polícia pode comparar o cabelo encontrado na cena de um crime com o teu cabelo. As banheiras também não ajudam em relação ao cabelo. Um técnico da polícia pode encontrar cabelos nos canos... também pode retirar de lá amostras de sangue, sabias? Não podes encarar isto de ânimo leve.

- Rapa os pêlos.

- No corpo todo?

- Sim. - O tom do rapaz era rancoroso. - Sim, merda! No corpo todo. Diz às pessoas que gostas de nadar. Que se lixe.

- Rapar os pêlos do corpo é boa ideia - admitiu o homem. Isso resolve a questão do cabelo. Que mais? A polícia faz um esfregaço do interior da boca da mulher, não te esqueças disso.

- Sim, sim, sim, li o mesmo livro que tu leste.

- Nada de tocar nas coisas sem luvas... nem sequer num globo ocular.

- Também já ouvi falar nesse caso.

- Nada de calças de ganga, acho.

- Põe aquelas capas nos sapatos para evitar terra e fibras - acrescentou o rapaz. - E, sempre que possível, recorre à engenharia social. Os arrombamentos deixam para trás marcas de ferramentas, e as marcas de ferramentas podem ser analisadas e comparadas.

O homem assentiu.

- Isso abrange a maior parte dos vestígios deixados, excepto o ADN. Ainda temos de resolver a questão do ADN. Eles recolhem uma pequena amostra de esperma, enviam-na para a base de dados do ADN...

- Eu sei, eu sei. - O rapaz fechou os olhos. Parecia estar a pensar. Muito. Por fim voltou a abrir os olhos. - Podes tentar confundir as coisas. Houve um tipo que foi preso e acusado de ser um violador em série com base no ADN, depois, enquanto ele estava preso, houve outra violação e encontrou-se o mesmo ADN nas cuecas da rapariga...

- O que aconteceu? O rapaz suspirou.

- Também acusaram o tipo preso desse crime. Dolo, ou coisa parecida.

- Ele violou outra rapariga enquanto estava preso?

- Não, pá, ejaculou para uma embalagem de ketchup na prisa, depois mandou-a a um amigo que pagou cinquenta dólares a uma chavala para esfregar a coisa nas cuecas e dizer que tinha sido violada. Assim iria parecer que havia outro tipo em liberdade com o mesmo ADN e que esse é que era o verdadeiro violador.

- Não existem duas pessoas com o mesmo ADN. Nem sequer os gémeos verdadeiros têm o mesmo ADN.

- Pois, e essa seria a grande falha do plano. Os cientistas sabiam isso e a acusação sabia isso, pelo que pressionaram a rapariga até ela confessar o que acontecera na realidade.

- Há alguma moral da história?

- Deve pagar-se mais de cinquenta dólares à rapariga! O homem suspirou.

- Esse plano não presta.

- Olha, tu querias uma ideia, dei-te uma ideia.

- Eu queria uma ideia boa.

- Vai-te foder!

O segundo homem não disse nada. O rapaz também ficou em silêncio.

- É preciso resolver a questão do ADN - murmurou o rapaz passado algum tempo.

- Lá isso é verdade - concordou o homem.

- A camisinha no zequinha... - gracejou o rapaz. - Quem é que precisa dela?

- Também não ajudaria muito. Os preservativos têm fugas, rompem-se. A polícia também está cada vez melhor a localizar os lubrificantes e os espermicidas. Isso permite-lhes descobrir a marca, depois começam a correr lojas e, quando damos por isso, já um empregado de uma farmácia está a dizer que reparou num certo rapaz a comprar uma determinada caixa...

- Estamos lixados.

- Pois. Aqueles cientistas. A mais pequena coisa que deixamos na cena do crime...

O rapaz pareceu subitamente animado.

- Olha, tive uma ideia!

 

Jersey

A loura que se via pela mira telescópica da arma não parecia temer pela vida. Aliás, naquele momento ela estava a ajeitar o cabelo. Depois tirou um espelhinho da mala e verificou o discreto batom rosa-nacarado. Jersey ajeitou a arma no ombro enquanto a jornalista esticava os lábios diante do espelho e ensaiava boquinhas. Ao lado dela, o cameraman tirou o pesado equipamento do ombro e pousou-o no chão, revirando os olhos. Parece que estava a reconhecer o ritual e sabia que demoraria ainda algum tempo.

A três metros da loura, outro jornalista, um homem - da WNAC-TV, a casa-mãe do programa Futurecast da Fox - apanhava meticulosamente pontas de linhas do fato castanho. O seu cameraman estava sentado no chão a beber café do Dunkin Donuts e pestanejava, ensonado. Do outro lado do pilar de pedra que dominava o enorme World War Memorial Park estava espalhada uma dezena de outros jornalistas a verificarem o ponto, a verificarem a aparência, a bocejarem cansados e depois a verificarem a rua.

Oito horas e um minuto, segunda-feira de manhã. Faltavam pelo menos vinte minutos até que a carrinha azul das Instituições Correccionais para Adultos (IÇA) chegasse ao Complexo Judicial de Licht na baixa de Providence, e todos estavam aborrecidos. Caramba, até Jersey estava aborrecido. Encontrava-se instalado no terraço do edifício do tribunal desde a meia-noite. E se fazia frio naquelas noites de início de Maio! Três cobertores do exército, umas jardineiras pretas e luvas Bob Allen pretas, de cabedal, próprias para atiradores, e ainda assim ele tremera de frio até o Sol nascer. Isso fora um pouco antes das seis, o que significava que ainda lhe haviam faltado mais duas horas e meia para matar sem sequer poder levantar-se e espreguiçar-se, pois assim denunciaria a sua posição.

Jersey passara a noite - e agora a manhã - escondido atrás do rebordo decorativo de tijolo com sessenta centímetros de altura que existia naquela parte do telhado. O muro falso permitia-lhe permanecer invisível para as pessoas no pátio lá em baixo e, mais importante ainda, para os jornalistas acampados no parque do outro lado da rua. O muro também seria o ponto de apoio ideal para a espingarda quando chegasse o momento.

A carrinha azul das IÇA haveria de aparecer entre as oito e meia e as nove. O portão de ferro forjado com dois metros e meio de altura que dava para o pátio interior do complexo judicial seria aberto. A carrinha entraria. O portão fechar-se-ia. E depois...

O dedo de Jersey estremeceu no gatilho da pesada espingarda AR 15- Ele dominou-se, depois deixou de apertar tanto a arma nas mãos, um pouco surpreendido com o seu desassossego. Não era nada normal nele aquele nervosismo. "Tem calma e controla-te", disse a si próprio. "Descontrai-te." Não iria fazer nada que não tivesse já feito antes. Não havia ali nada que não pudesse controlar.

Jersey caçava desde que aprendera a andar, e o cheiro da pólvora era-lhe tão familiar como o do pó de talco. Seguindo as pisadas do pai, alistara-se no Exército com dezoito anos, depois passara oito anos a aperfeiçoar a sua perícia com uma M16. Não era para se gabar, mas Jersey conseguia acertar em alvos a quinhentos metros que a maior parte das pessoas não acertava a cem metros. Também era membro do Clube Cinquenta Milímetros - a duzentos metros, era capaz de colocar três balas num triângulo, a cinquenta milímetros de distância umas das outras. O pai fora um atirador furtivo no Vietname, por isso Jersey calculava que disparar lhe estava nos genes.

Cinco anos antes, ao tentar arranjar um estilo de vida melhor do que aquele que o Exército americano lhe podia proporcionar, montara o negócio. Mantinha o maior sigilo. Os clientes nunca sabiam o seu nome, ele não sabia o dos clientes. Um primeiro intermediário contactava um segundo intermediário que, por sua vez, contactava Jersey. O dinheiro era transferido para as contas apropriadas. Dossiês com informação pertinente eram enviados para vários apartados abertos em diversas estações dos correios sob pseudónimos. Jersey estipulara que nunca dispararia contra mulheres e crianças. Em certos dias achava que isso o tornava uma boa pessoa. Noutros dias achava que isso o tornava pior, porque se servira dessa desculpa para tentar provar a si próprio que tinha uma consciência quando afinal o seu trabalho se resumia a, bem, matar pessoas por dinheiro.

Se o pai soubesse certamente não iria aprovar.

Aquele trabalho fora-lhe proposto cinco meses antes. Jersey sentira-se imediatamente intrigado. Em primeiro lugar, porque o alvo era um violador conhecido, pelo que Jersey não teria de se preocupar com a sua consciência. Em segundo lugar, porque o trabalho era em Providence, e Jersey sempre quisera visitar aquela região do país. Fizera quatro viagens à cidade para preparar o trabalho e, até ali, gostara do que vira.

Providence era uma cidade pequena, atravessada pelo rio Providence, no qual, imagine-se, havia corridas de gôndola em algumas sextas e sábados. Os barcos esguios pareciam saídos directamente de Veneza, e o presidente da Câmara até pusera uma mão-cheia de italianos a manobrar as embarcações com camisolas

às riscas pretas e chapéus de palha com fitas vermelhas. Depois havia aquela coisa chamada WaterFire, em que acendiam fogueiras no meio do rio. Podíamos estar sentados no nosso restaurante favorito a ver o rio arder enquanto os turistas deslizavam por entre as chamas nas gôndolas. Jersey desejara secretamente que alguém pegasse fogo, mas isso não passara de um devaneio.

A cidade era bonita. Aquele tribunal, no lado este do rio, era uma impressionante estrutura de tijolo vermelho com uma torre branca e alta cujo relógio dominava todo o quarteirão. Uma mistura do velho mundo colonial com a grandiosidade do novo mundo. A fachada do tribunal dava para Beneht Street, que parecia anunciar dinheiro antigo

- enormes casas históricas com tudo, desde torreões vitorianos a pedra gótica, intervaladas com relvados bem cuidados e muros de tijolo. As traseiras do tribunal, onde Jersey se encontrava, davam para o jardim, o seu relvado salpicado por dignas esculturas de bronze representando soldados e por peças menos dignas de arte moderna. A arte moderna provinha da Escola de Design de Rhode Island (EDRI), com o seu complexo universitário urbano estendendo-se ao lado do tribunal.

Não havia muitos crimes violentos em Rhode Island. Trinta homicídios por ano, ou coisa parecida. Claro que isso mudaria hoje. O estado era mais conhecido pela sua longa história de crimes fiscais, ligações à máfia e corrupção política. Como os autóctones gostavam de dizer, em Rhode Island não interessa o que sabemos, mas sim quem conhecemos. E, com toda a franqueza, toda a gente parecia conhecer-se naquele estado. Isso dava com Jersey em maluco.

Jersey começou de novo a bocejar, dominou-se e obrigou-se a concentrar-se. Já eram oito horas e vinte e um minutos. Não faltava muito mais. No relvado do outro lado da rua, as várias equipas de jornalistas começavam a mexer-se.

Na noite anterior, antes de se dirigir para o tribunal, Jersey estivera sentado no seu quarto de hotel a fazer zapping pelos vários noticiários locais para ficar a conhecer as vedetas jornalísticas. Não reconheceu a loura bonita lá em baixo, embora a camisa do seu cameraman indicasse que trabalhavam para a WJAR, o Canal Dez, a filiada local da NBC. Um noticiário nacional. Isso era uma coisa respeitável. Jersey ficou feliz por ela.

Depois perguntou a si mesmo se a mulher faria ideia da importância que aquela manhã iria ter. O alvo dele, Eddie Como, também conhecido como o Violador de College Hill, tinha honras de primeira página naquela região do país. Todos se encontravam ali para cobrir o início do julgamento. Todos se encontravam ali para captar imagens do pequeno e curvado Eddie, ou talvez para lançar uma mirada fiigaz a uma das suas três belas vítimas.

Aqueles jornalistas ainda não sabiam nada. Acerca de Jersey. Acerca do seu cliente. Acerca do que iria realmente acontecer naquela soalheira manhã de segunda-feira em Maio. Jersey olhou com ar benevolente para as pessoas aborrecidas, tensas e bem arranjadas espalhadas no relvado lá em baixo. Tinha uma surpresa para elas. Iria tornar uma delas, algumas delas, muito especiais.

Por exemplo, aquela loura bonita com os lábios rosa-nacarados. Levantara-se de madrugada, lera o texto que havia preparado a pensar que, na melhor das hipóteses, conseguiria filmar uma carrinha azul das IÇA para o noticiário da manhã da sua estacão de televisão. Claro que os outros vinte jornalistas filmariam a mesma coisa e diriam praticamente o mesmo, pois nenhum era melhor nem pior que os outros. Era apenas mais um dia de trabalho, a cobrir o que precisava de ser coberto para as mentes curiosas interessadas.

Só que alguém lá em baixo no parque, sentado na relva, rodeado por estátuas de soldados e arte moderna esquisita, iria obter uma cacha naquek manhã. Alguém, talvez aquela loura bonita, iria preparar-se para filmar uma imagem rotineira da carrinha azul das IÇA e acabaria por obter a imagem de um assassino contratado.

Não havia forma de contornar o assunto. A única altura em que Jersey teria acesso a Eddie Como seria quando o alegado violador fosse deslocado das IÇA para o Complexo Judicial de Licht, no primeiro dia do julgamento. E a única altura em que Jersey teria acesso a Eddie no Complexo Judicial de Licht seria quando ele fosse retirado da carrinha numa zona vedada do tamanho de uma garagem para dois carros destinada à largada de passageiros. E a única maneira que Jersey tinha de disparar para uma zona vedada com uma cerca de dois metros e meio de altura era colocando-se bem acima do alvo.

O enorme edifício de tijolo vermelho do tribunal ocupava um quarteirão inteiro. Elevando-se a uma altura de dezasseis andares, era bem mais alto que os edifícios vizinhos e protegia zelosamente o seu pátio interior e a zona de largada de passageiros. Por isso, as opções de Jersey haviam sido bem claras desde o início. Teria de entrar no tribunal propriamente dito, o que seria fácil a coberto da noite e depois de saber qual a rotina dos seguranças.

Teria de instalar-se à altura de um sexto andar no telhado adjacente à zona de largada de passageiros para poder disparar um único tiro. Teria de preparar tudo durante a noite. E quando a carrinha chegasse finalmente, entre as oito e meia e as nove da manhã, ele teria cinco segundos para se pôr de pé, rebentar com a cabeça de Eddie Como e desatar a correr.

Os marshals que acompanhavam os reclusos provavelmente não conseguiriam vê-lo - estaria demasiado acima deles; prisioneiros também não conseguiriam vê-lo - é provável que estivessem demasiado ocupados a gritar por causa dos miolos que haviam ido parar aos seus cabelos; porém, os jornalistas, cada jornalista ganancioso e ávido acampado do outro lado da rua obteria uma imagem nítida de Jersey, de pé seis andares acima do solo. De Jersey a disparar uma espingarda seis andares acima do solo. De Jersey a correr pelo telhado seis andares acima do solo.

O tiro em si seria fácil. A distância era de uns meros vinte metros. Em linha recta. Caramba, Jersey poderia até pôr de parte a espingarda e atirar uma bigorna para cima da cabeça do tipo. Sim, o tiro propriamente dito seria uma seca. Mas os momentos subsequentes... Os momentos subsequentes iriam ser bastante divertidos.

Uma agitação na rua. Jersey olhou para a loura bonita a tempo de a ver guardar o batom e avançar um passo. Estava na altura do espectáculo.

Olhou para o relógio. Oito e trinta e cinco. Parecia que os manhals não queriam fazer esperar os jornalistas.

Jersey tornou a encostar a espingarda ao corpo. Ajustou a mira telescópica. Verificou as munições, depois enfiou a primeira bala na câmara. Estava a utilizar uma Winchester com um carregador .223 Remington, cujas balas eram mais indicadas para alvejar coiotes.

E, agora, o Violador de College Hill.

Jersey colocou-se de joelhos. Pousou a espingarda no muro e encostou o olho à mira. Conseguia ver a rua através dos arcos de pedra que rodeavam o pátio exterior. Ouviu a vedação de ferro forjado do pátio interior começar a abrir-se. Calmo e controlado. Fácil. Ali não havia nada de novo. Nada que não conseguisse resolver.

Flectiu os dedos. Ouviu o estalido tranquilizador das suas luvas pretas de cabedal...

Os prisioneiros estariam algemados uns aos outros. A maior pane traria fatos-macaco caqui ou azuis. Mas Eddie Como viria de outra forma. Tendo pela frente o primeiro dia do julgamento, Eddie Como viria de fato.

Jersey esperou pela ordem de descarregar a carrinha latida por um marshal. Sentiu a primeira gota de suor. Mas não se ergueu. Continuou a apertar o gatilho.

Vinte jornalistas e cameramen do outro lado da rua. Vinte jornalistas à espera de uma grande oportunidade...

- Pátio seguro! Abram a porta!

Jersey ouviu um deslizar metálico quando a porta da carrinha foi aberta. Ouviu o som da primeira sola de borracha a bater no pátio empedrado...

"Um, dois, três, quatro, cinco..."

Jersey ergueu-se sobre os joelhos e baixou a espingarda num ângulo de vinte e dois graus. À procura, à procura...

A cabeça escura de Eddie Como emergiu da carrinha. Olhava em frente, para a porta do tribunal. Tinha os ombros curvados. Deu três passos incertos em frente...

E Jersey rebentou-lhe o cimo da cabeça. Num momento Eddie Como estava algemado entre dois tipos. No outro estava a dobrar-se em silêncio e a cair no chão duro.

Jersey largou no telhado a espingarda comprada no mercado negro. Depois desatou a correr.

Apercebeu-se de muitas coisas ao mesmo tempo. Do sol no rosto. Do cheiro a cordite no ar. Do ruído de uma cidade prestes a iniciar uma atarefada semana de trabalho, de carros a roncarem, de pneus a chiarem. E depois de pessoas a gritarem.

- Arma, arma, arma!

- Baixem-se, baixem-se!

- Olha! Lá em cima, no telhado!

Jersey sorria. Jersey sentia-se bem. Subiu pelo telhado do tribunal, as solas de borracha dos seus sapatos de escalada a encontrarem a tracção perfeita. Dobrou a esquina e contornou a torre central do relógio, que se erguia vários metros acima dele. "Agora vêem-me. Agora não me vêem."

Foram disparados tiros. Uns marshals cheios de adrenalina a despejarem os carregadores na direcção do inimigo que não conseguiam ver.

O sorriso de Jersey alargou-se. Cantarolava enquanto descalçava as luvas e as atirava para trás das costas. Estava quase junto à porta. Agarrou na parte da frente das jardineiras e abriu as molas com a mão esquerda. Três segundos depois, as jardineiras foram fazer companhia à espingarda e às luvas no telhado. Cinco segundos a seguir, Jersey substituíra os sapatos de escalada por uns elegantes sapatos de cabedal italianos. Depois foi uma simples questão de ir recuperar a pasta de cabedal preta deixada junto à porta. Na noite anterior, a pasta contivera a espingarda desmontada. Esta manhã, continha apenas papéis.

De atirador de primeira classe a apenas mais um tipo de fato em menos de cinco minutos.

Jersey abriu a porta. Enfiara um arame na fechadura na noite anterior para não ter surpresas. Momentos depois, tinha descido as escadas e juntava-se à multidão, mais um advogado aflito e demasiado atarefado para olhar alguém nos olhos.

Alguns guardas da Capital Security e marshals passaram por ele. As pessoas no interior do tribunal olhavam em volta, cada vez mais conscientes de que acontecera qualquer coisa, mas sem saberem exactamente o quê. Jersey, seguindo o exemplo delas, arvorou uma expressão ligeiramente intrigada enquanto prosseguia pelo passeio.

Passou por ele a correr outro marshal vestido de cinzento, vozes a sair do rádio preso à sua cintura. Chocou contra o ombro de Jersey, e este recuou um passo.

- Francamente! - exclamou Jersey.

O marshal continuou a correr na direcção das escadas que levavam ao telhado.

- O que aconteceu? - perguntou uma senhora que caminhava ao lado de Jersey.

- Não sei bem - respondeu ele. - Deve ter sido qualquer coisa má.

Assentiram ambos vigorosamente com a cabeça. E trinta e dois segundos mais tarde, Jersey saía pela porta da frente, virava à esquerda e descia a íngreme College Street em direcção ao parque. Recomeçou a cantarolar, já estava na recta final. Mesmo que um polícia o mandasse parar, o que iria encontrar? Jersey não tinha armas, nem vestígios de pólvora nas mãos e na roupa. Era apenas um homem de negócios, e andava sempre identificado.

O barulho das sirenas fez-se subitamente ouvir. A cidade não era grande e a esquadra da polícia de Providence ficava na baixa. Os polícias apareceriam vindos de todo o lado e vedariam as ruas numa questão de minutos. Jersey estugou o passo, mas manteve-se calmo. O seu atencioso cliente, sem dúvida familiarizado com as dificuldades de estacionamento na baixa de Providence, enviara a Jersey um passe de visitante para a Escola de Design de Rhode Island, com o qual ele pudera meter o carro no parque de estacionamento do outro lado da rua. Os polícias chegariam dentro de dois minutos. Jersey ter-se-ia ido embora dentro de um.

As sirenas aproximaram-se. Jersey chegou ao minúsculo parque de estacionamento da faculdade na junção de College Street e South Main. Encontrou a chave do carro azul alugado. Destrancou as portas, atirou a pasta lá para dentro, sentou-se no banco.

Calmo e controlado. Fácil. Ali não havia nada de novo. Nada que não conseguisse resolver.

Jersey rodou a chave na ignição. Foi então que ouviu o clique.

Um instante parado no tempo. Os seus olhos arregalaram-se, o seu espanto sincero. Mas, mas, e o secretismo todo? Ninguém sabia o seu nome. Ele não sabia o nome de ninguém. Como fora possível, como fora possível...

E então o seu olhar pousou no cartão vermelho de visitante que dava acesso ao parque de estacionamento e que estava pendurado no retrovisor do carro alugado, o único passe de visitante num minúsculo parque de estacionamento com capacidade apenas para vinte carros.

O seu atencioso cliente...

Calmo e controlado. Fácil. Ali não havia nada de novo. Nada que não conseguisse resolver...

A corrente da ignição do carro chegou ao interruptor da bomba e o carro alugado de Jersey explodiu na manhã luminosa.

A uma dezena de quarteirões, em Hope Street, os clientes bem vestidos do restaurante da moda rue de 1espoir - ainda mais na moda pelo facto de o seu nome se escrever em minúsculas - levantaram os rostos dos seus decadentes pequenos-almoços de negócios constituídos por ovos Benedict e fatias-douradas. Sentados em compartimentos confortáveis, olharam em volta para o interior elegante, onde as paredes eram da cor de panelas de cobre e os compartimentos estavam decorados com tons de vermelho, verde, castanho e cor de beringela. O tremor, embora ligeiro, fora inconfundível. Até as empregadas estacaram.

- Sentiste aquilo? - perguntou uma delas.

As pessoas no restaurantezinho chique olharam umas para as outras. Tinham começado a afastar dos pensamentos aquela ligeira perturbação quando o som estridente das sirenas cortou o ar. Dois carros-patrulha passaram na rua a grande velocidade. Seguiu-se-lhes uma ambulância.

- Deve ter acontecido qualquer coisa - disse alguém.

- Qualquer coisa grave - acrescentou outro cliente.

Sentadas numa pequena mesa a um canto, três mulheres levantaram finalmente os rostos das suas enormes canecas de chai. Duas eram mais velhas, uma mais nova. Haviam despertado alguma curiosidade quando entraram no restaurante. As mulheres olharam umas para as outras. Depois, simultaneamente, baixaram os rostos.

- Será? - perguntou uma.

- Não penses nisso - respondeu outra. E foi tudo o que disseram.

Até a polícia chegar.

 

Griffin

Às oito e trinta e um da manhã de segunda-feira, o sargento-detective Roan Griffin, da Polícia Estadual de Rhode Island, já se encontrava atrasado para a reunião das oito e meia. Isso não era bom. Era o seu primeiro dia de trabalho depois de uma baixa de dezoito meses. Provavelmente deveria chegar a horas. Bolas, provavelmente deveria chegar adiantado. Aparecer na esquadra pelas oito e um quarto, em forma, a roupa bem engomada, a cumprimentar os colegas. Aqui me encontro, estou pronto.

E depois...?

- Bem-vindo - diriam eles. (Esperava-se.)

- Obrigado - responderia ele. (Provavelmente.)

- Como te sentes? - perguntariam. (Desconfiados.)

- Óptimo - responderia ele. (com demasiada facilidade.)

Ah, merda! "Óptimo" era uma resposta estúpida. Era demasiadas vezes dita para ser credível. Se respondesse "Óptimo", eles olhariam para ele com mais atenção, à espera de conseguir ler nas entrelinhas. "Óptimo" como se estivesses disposto a começar a investigação de um caso, ou "Óptimo" como se te pudéssemos confiar uma arma carregada? Era uma pergunta interessante.

Tamborilou com os dedos no volante e tentou mais uma vez.

- Bem-vindo - diriam eles.

- É bom estar de volta - responderia ele.

- Como vai isso? - perguntariam.

- A minha ansiedade encontra-se dentro dos parâmetros normais responderia.

Não. De maneira nenhuma. Aquelas balelas psicológicas davam-lhe vontade de gritar. Eram para esquecer. Devia ter seguido a recomendação do pai e aparecer com uma T-shirt a dizer: "Vocês Têm Ciúmes porque as Vozes Falam Comigo."

Assim pelo menos todos se poderiam ter rido.

GrifFin alistara-se na Polícia Estadual de Rhode Island dezasseis anos antes. Começara por passar quatro meses numa base militar, aprendendo tudo, desde manobras de condução evasivas a luta corpo-a-corpo depois de se ter sido pulverizado nos olhos. (Querem saber o que é a dor? A dor é ser pulverizado nos olhos. Querem saber o que é o autodomínio? Ser pulverizado de livre vontade pela segunda vez é autodomínio.) A seguir à base militar, Griffin passara oito anos como agente da polícia. Contribuíra para os cofres do estado ao passar a sua quota-parte de multas por excesso de velocidade. Ajudara condutores a mudar pneus. Estivera em dezenas de acidentes de viação, incluindo demasiados com crianças. Depois juntara-se ao Gabinete de Detectives, iniciando-se nos serviços secretos, onde alcançara uma excelente reputação graças ao seu trabalho num caso importante do FBI. A seguir, investigara branqueamento de dinheiros, tráfico de armas, falsificação de obras de arte, homicídios. Rhode Island pode não ter muito crime, mas, como os detectives gostam de dizer, o crime é de qualidade.

Griffin fora um bom detective. Inteligente. Obstinado. Teimoso. Por vezes feroz. Por vezes engraçado. Aquilo estava-lhe no sangue. O avâ fora polícia de giro em Nova Iorque. O pai fora xerife em North Kingstown. Dois irmãos seus eram agora marshals. Havia alguns anos, quando Griffin conhecera Cindy num passeio a pé por New Hampshire, a olhara nos olhos e o sorriso dela o deixara fulminado, ele anunciara, antes de dizer o seu nome: "Sou polícia." Felizmente para ele, Cindy entendera.

Griffin fora um bom detective. Os colegas gostavam de trabalhar com ele. Os superiores gostavam de lhe entregar casos. A comunicação social gostava de seguir a sua carreira. Ele foi ao programa do David Letterman quando a Polícia Estadual de Rhode Island foi condecorada como a melhor força policial do país. Conduziu a Operação Pinto, que pôs cobro a uma rede de roubo de automóveis e fez as primeiras páginas do Providence Journal. Foi até nomeado para a task force do governador para policiamento comunitário, provavelmente porque as velhotas andavam a perguntar por ele desde que o tinham visto no programa de Letterman. ("Agente Olhos Azuis", alcunhara-o o Providence Journal. Ah, pois, e os outros detectives tinham posto a frase numa T-shirt.)

Dois anos e meio antes, quando a terceira criança desaparecera de Wakefield e se tornou claro que havia um predador de crianças na zona, não houvera dúvidas de que Griffin deveria chefiar a investigação. Ele recordava-se de sair animado do briefing. Recordava-se da adrenalina nas suas veias, do flectir dos seus músculos, da ligeira vertigem de iniciar novamente um caso.

Dois dias antes, Cindy fizera um checkup de rotina. Seis meses antes de tudo ir de mal a pior. Onze meses antes de ele aprender qual a verdadeira natureza do abismo.

Para que conste, ele prendera o filho da mãe. Para que conste.

Griffin virou à esquerda na Estrada 6, rumando em direcção a North Scituate. Estava a cinco minutos da esquadra. Passou pelo reservatório gigantesco à medida que a paisagem se alargava para revelar uma imensidão de água à sua direita, e colinas verdejantes à sua esquerda. Em breve veria pessoas a fazer o jogging da manhã. Depois chegaria ao complexo da polícia. Primeiro veria o feio edifício castanho dos anos 60 que albergava os Serviços de Apoio à Investigação. Depois, um enorme celeiro cinzento ao fundo, a única coisa que restava da antiga propriedade. Por fim, a bela mansão branca antiga, com uma escadaria curva e janelas de sacada que davam para mais colinas verdes. A Casa Branca, como lhe chamavam os caloiros. Onde viviam os rapazes mais velhos.

Bolas, tivera saudades do local. Bolas.

- Bem-vindo, Griffin - diriam eles.

- Obrigado - responderia ele.

- Como te sentes? - perguntariam. E ele responderia...

Um Ford Taurus azul passou a grande velocidade na faixa da esquerda, luzes vermelhas a piscarem. Depois surgiram outros dois carros com as sirenas também a soar.

O que se passaria?

Griffin entrou no parque de estacionamento a tempo de ver os detectives saírem do edifício e correrem para os carros. Reconheceu dois tipos da Unidade de Investigação

Criminal (UIC), Jack Cappelli e Jack Needham, também conhecidos por Jack-n-Jack, que naquele momento entravam para uma carrinha cinzenta que servia de laboratório

na investigação de cenas de crime. Pouco depois saíram do parque de estacionamento com a sirena ligada.

Griffin estacionou o carro. Ainda não o tinha desligado quando a tenente Marcey Morelli dos Crimes Graves lhe bateu no vidro.

- Minha tenente. - Começou a fazer a continência. Morelli interrompeu-o:

- A Polícia de Providence acabou de nos informar da ocorrência de disparos e de uma explosão no Complexo Judicial de Licht. O ATF1 e os bombeiros ficaram com a explosão.

Nós com o tiroteio. Todas as unidades têm de ir para lá.

- Um tiroteio no tribunal? - Ele arqueou as sobrancelhas. Não era possível.

- Tem seguido o caso Como? Parece que alguém se cansou de esperar pelo julgamento. Melhor ainda, a comunicação social já lá está, a filmar o antes e o depois. É

capaz de dizer "Filme às onze"?

- Alguém lá em cima detesta-a, minha tenente.

- Não me diga. Olhe, sabemos que o que acabou de acontecer foi uma coisa em grande. Já pedi ao comandante-detective mais homens, e quero todos os membros dos Crimes Graves lá em baixo o mais

 

  1. Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives baço, Armas de Fogo e Explosivos. (N. do T.)

 

depressa possível. Os agentes podem ocupar-se da sondagem dos presentes, mas quero que vocês façam as primeiras entrevistas. Descubra quando, onde, porquê, como, comunique via rádio com todos os polícias da zona para poderem procurar o atirador, e olhe, apanhe-me o gajo ontem. Já sabe como é. - Morelli fez uma pausa para poder respirar, depois semicerrou os olhos quando olhou bem para ele pela primeira vez. Deus do Céu, Griffin, pensei que você tinha passado o tempo a pescar ou a fazer uma coisa parecida!

- Bem... sim. E também levantei alguns pesos. - Encolheu os ombros modestamente.

- Pois.

- E corri.

- Pois sim.

- Está bem, e também pratiquei algum boxe.

A tenente revirou os olhos. Griffin passara o último ano da sua baixa de dezoito meses a aprender a dominar a arte da sublimação - a canalizar a tensão improdutiva para algo produtivo. Saíra-se bastante bem. Era capaz de correr a grande velocidade durante quase dezasseis quilómetros. Conseguia jogar boxe durante dezasseis rounds. Conseguia levantar um Volvo com os braços.

O seu corpo estava em forma. A sua expressão era ainda um pouco tensa - não dormia bem à noite. Mas fisicamente... Griffin era uma máquina bem oleada.

A tenente endireitou-se.

- Bem - disse ela -, o chefe vem a caminho. Por isso toca a mexer, sargento. E lembre-se, estão lá apenas cem câmaras a filmar todos os nossos passos.

A tenente Morelli afastou-se a correr. Griffin ficou parado um momento, um pouco aturdido. "A minha ansiedade encontra-se dentro dos parâmetros normais", pensou ele. "Ah, que se lixe. Estou de volta." Ligou a sirena e juntou-se aos colegas, rumando em direcção a Providence.

 

Ela dirige-se de carro para. o apartamento da irmã. O trabalho reteve-a, vem com uma hora de atraso. O trânsito está um caos, claro. Mais um acidente na 195, onde é que não há acidentes? Pensa em todas as coisas que ainda tem para fazer. Analisar os lucros do primeiro semestre. Fazer uma projecção dos lucros do semestre seguinte. Storyboards para Roger. Provas para Claire.

Toppi ligara-lhe para o trabalho a dizer que Libby estava a ter um dia mau. Por favor, não venhas muito tarde.

Ela dirige-se de carro para o apartamento da irmã, mas não está a pensar na irmã. Não anseia por jantar com Trisha. Tornou-se mais uma coisa na longa lista de coisas a fazer e parte de si desconfia que isso é mau. Perdeu a perspectiva das coisas. Deixou que a vida lhe fugisse. O resto de si anda demasiado ocupado para se importar com isso.

Tem as suas responsabilidades. Ela é a responsável.

Trisha está na faculdade. Trisha tem o seu primeiro apartamento, minúsculo, atafulhaao, mas bonito porque é iodo dela. Trisha tem novos amigos, uma nova vida,

novos objectivos. Quer ser dramaturga, contara ela muito animada a Jillian na semana anterior. Antes disso quisera estudar Comunicação. Antes disso fora Inglês. Trisha

é jovem, bonita, inteligente. O mundo pertence-lhe, e Jillian não duvida de que Trisha irá tornar-se exactamente naquilo em que quiser tornar-se, que irá fazer exactamente

aquilo que quiser fazer.

E isto custa-lhe de uma forma que ela não compreende. Anima-a, deprime-a. É a mãe adoptiva, orgulhosa dos feitos da sua filha. É a irmã mais velha cansada, que sente

uma pontada de ciúme quando não tem outra coisa de que sentir ciúme. Sim, o seu percurso foi mais difícil. Não, nunca teve dezanove anos nem viveu despreocupada.

Não, nunca conseguiu viver sozinha, nem sequer agora. Mas frequentou a universidade, tirou uma licenciatura em Gestão. Aos trinta e seis anos dirige uma empresa

de publicidade bem-sucedida. Não sacrificou tudo pela mãe e pela irmã. Também talhou a sua própria vida.

E contudo...

Hoje em dia custa-lhe visitar Trisha. Não o faz com tanta frequência como devia.

Agora, percorre Thayer Street, à procura de um lugar para estacionar, Na terceira semana de Maio, o Sol está a começar a pôr-se e os passeios estão apinhados com os alunos de Verão da Universidade Erown, parados à porta do Starbucks, da GAP, da Abercrombie Fitch. Jillian ainda se sente pouco à vontade com o facto de Trisha viver na cidade. Especialmente depois das notícias recentes de duas violações, a segunda das quais ocorrera apenas havia duas semanas. No entanto, uma fora no Providence College, e a outra a de uma mulher que estava em casa.

Trisha tem conhecimento dos ataques. Até falaram do assunto na semana anterior. Algumas das raparigas começaram a andar com sprays de gás pimenta. Trisha também comprou uma lata. E verificou as fechaduras do seu apartamento. O apartamento é realmente bastante seguro. É um pequeno estúdio numa cave, com apenas umas minúsculas janelas bem altas que não permitem a entrada de um homem. Trisha também mandara instalar uma tranca quando assinara o contrato de aluguer na passada Primavera. É daquelas trancas em que basta meter e tirar a chave; parece que é das melhores do mercado.

- Eu fico bem - disse Trisha a Jillian daquela forma exasperada que só os adolescentes conseguem. - Por amor de Deus, até fiz dois cursos de autodefesa!

Jillian encontra finalmente lugar para estacionar o carro lá em baixo em Angell Street. Tem agora uma boa caminhada até ao apartamento de Trisha, mas isso não é invulgar dada a dificuldade que há para estacionar em Providence. Para além disso, está uma noite amena e agradável, e o exercício faz-lhe bem.

Jillian não tem nenhum spray de gás pimenta. Lembra-se disso quando tranca o seu Lexus dourado. Faz o que viu na televisão - leva as chaves do carro diante de si, com a maior enfiada entre dois dedos para poder servir como arma. Também caminha rapidamente e de cabeça erguida. Claro, aquilo sai-lhe com naturalidade, Nunca foi uma daquelas violetas prestes a murchar. Agrada-lhe pensar que Trisha herdou o seu espírito independente.

Trisha vive na extremidade do complexo universitário da Brown. Geralmente encontram-se no apartamento dela, depois caminham até Thayer Street com a sua variedade

de restaurantes étnicos e cafetarias elegantes. Jillian tem vontade de comer massa de arroz à tailandesa. Ou borrego grelhado.

Pela primeira vez, estuga o passo. Thayer Street tem restaurantes tão bons; sabe bem andar por College Hill, com a sua juventude e vitalidade. E a noite está encantadora, nem demasiado quente nem demasiado fria. Depois do jantar podem ir comer gelado. Trisha pode contar-lhe tudo sobre o estágio de Verão no Trinity Theater, se o encenador - Joe, Josh, Jon já a convidou para sair. Haverá boatos novos no seu grupo de amigas, claro. Histórias de aventuras da recente ida ao Providence Place Mall, da ladies night em Newport, etc., etc.

Jillian pode descontrair-se, recostar-se e deixar Trisha falar. Conta-me tudo sobre cada hora, cada minuto, cada dia. Conta-me tudo.

Pois é neste ponto que a mãe adoptiva orgulhosa e a irmã mais velha cansada se unem: vivem ambas para escutar Trisha. Adoram o seu entusiasmo. Apreciam a sua animação. Espantam-se com a maravilha que ela é, uma mulher-criança de dezanove anos, ainda a aprender tudo sobre o mundo, ainda convencida de que pode torná-lo um sitio melhor.

Jillian chega ao complexo de apartamentos onde mora Trisha. Fora outrora uma oela mansão. Agora a casa está dividida em oito unidades para os estudantes universitários. Como inquilina da cave, Trisha tem a sua própria entrada pelas traseiras.

Jillian contorna a casa no momento em que o Sol desce mais um pouco no horizonte e lança a viela na penumbra. Trisha tem um projector potente sobre a porta das traseiras. Dado o cair da noite, Jillian fica um pouco admirada por Trisha ainda não o ter ligado. Irá falar-lhe nisso.

À porta, Jillian levanta a mão para bater, baixa a mão. E depois sustém a respiração quando a porta se abre silenciosamente, revelando as escadas escuras.

- Trisha? Trisha?

Jillian desce os degraus com cautela, vendo-se obrigada a agarrar-se ao corrimão para se guiar. Ter-se-ia Trisha cansado de esperar por ela? Talvez tivesse decidido ir tratar da roupa suja e dado um pulo à Lavandaria, Isso já acontecera antes.

Ao fundo das escadas está outra porta, esta de madeira, simples. A porta de um quarto. Jillian pousa a mão na maçaneta reluzente cor de latão. Roda-a. A porta abre-se

e Jillian vê-se perante um aposento mergulhado em sombras.

- Trisha?

Dá três passos. Olha para a minúscula kitchenette. Vira-se na direcção da cama e...

Alguma coisa a atinge por trás. Ela grita, abrindo as mãos, as chaves do carro a voarem pelo quarto enquanto cai com força. Amortece a queda com a palma da mão esquerda e ouve qualquer coisa estalar.

- Trisha? - A sua voz está aguda, rouca, muito diferente do habitual. A cama, a cama, aquela pobre mulher na cama.

- Cabra filha da puta!

Tem algo pesado a pressionar-lhe as costas. Mãos ásperas a emaranharem-se no seu cabelo. A cabeça inclinada para trás. Tenta a custo respirar. Depois batem-lhe com a cabeça no chão.

Estrelas. Vê estrelas e, atordoada, esforça-se por perceber o que está a acontecer. Não é um desenho animado. Não está ali o Coiote nem o Bip-Bip. Aquilo é ela, no apartamento da irmã, e oh, meu Deus, está a ser atacada. E na cama não é um manequim sem roupa manietado à cama, de pernas e braços abertos. Trisha, Trisha, Trisha!

De repente, Jillian fica furiosa.

- Não! - exclama.

- Foda-se, foda-se, foda-se - diz o homem. Agarrou-lhe de novo no cabelo. A cabeça dela levanta-se. A cabeça dela cai. O seu nariz explode e o sangue e as lágrimas escorrem-lhe pela cara.. Geme, mas depois a sua raiva aumenta. Tem de apanhar aquele homem! Tem de magoar aquele homem! Porque mesmo com dores, mesmo em choque, compreende instintivamente o que acabou de acontecer ali. O que aquele homem acabou de fazer à sua irmã.

Consegue tirar as mãos de debaixo do corpo, e esbraceja às cegas, tentando atingir o peso sobre as suas costas. Mas os seus braços não se dobram para aquele lado, e ele ainda está a bater-lhe com a cara no chão e o mundo dela começou a girar. A cabeça dela ergue-se. A cabeça dela cai...

Ele desliza pelas costas dela. Está a esfregar-se contra ela e não existem dúvidas quanto à sua erecção.

- vou foder-te bem - murmura o homem. Ri-se, ri-se, ri-se. Jillian torce-se finalmente sob o corpo dele. Bate-lhe nas coxas. Une os

dedos da mão direita e tenta desferir um golpe nas costelas dele. E ele sacode-lhe a cabeça de um lado para o outro, vezes sem conta, até ela. deixar de sentir a dor. Está num sítio escuro, negro, com um peso a esmagar-lhe o corpo e uma voz metida na cabeça a dizer-lhe que a vai foder bem.

A mão esquerda dele rodeia-lhe o pescoço. Começa a apertar. Ela tenta arranhar-lhe o pulso, mas encontra apenas látex.

Oh, não. Trisha. Oh, não.

Tem de afastá-lo. Não consegue afastá-lo. Os pulmões dela ardem. Quer lutar. Quer salvar a irmã. Oh, por favor, pára, por favor.

Socorro. Alguém nos ajude.

As luzes ficam mais intensas atrás das pálpebras dela. Lentamente, o seu corpo começa a ficar inerte. O homem abranda a pressão que as suas pernas fazem na caixa torácica dela. Ergue ligeiramente o seu peso de cima dela.

E ela impulsiona a mão para a frente com toda a força que consegue reunir e atinge-o no meio das pernas.

O homem uiva. Rola e fica de lado. Agarrado aos tomates. Jillian roda os ombros, apoia-se no chão e tenta encontrar algo para se içar.

E então o peso desaparece completamente. O homem afastou-se. Está enroscado no chão e ela tem de mexer-se. Telefone, telefone, telefone. O balcão da cozinha. Está no balcão da cozinha. Se ela pudesse chegar ao telefone e marcar 112.

Jillian arrasta-se pelo chão de madeira. Tem de mexer-se, tem de mexer-se. Trisha precisa dela. Precisa dela.

Vá lá, Jillian.

E então, antes sequer de o sentir, ouve-o atacar de novo.

- Não - murmura, mas já é tarde de mais.

- Sua cabra filha da puta! vou MATAR-TE! vou PARTIR-TE o pescoço, vou arrancar-te os olhos. Filha da...

Deita-a de costas no chão e aperta-lhe o pescoço com mãos de aço. Aperta, aperta, aperta. Ela. não consegue engolir, não consegue respirar.

O peito dela a ficar sem ar. As mãos dela a tentarem agarrar nas mãos enluvadas dele. Não, não, não.

Vá lá, Jillian. Vá lá, Jillian.

Mas ele é demasiado forte. Ela percebe isso quando o seu mundo começa a rodopiar e os seus pulmões ameaçam explodir. É orgulhosa. É forte. É uma mulher que acredita poder controlar a sua vida.

Mas ele é força bruta. E ela não é rival para ele.

Está a afundar-se. Quer dizer qualquer coisa. Quer tocar na irmã. Lamenta tanto. Oh, Trisha, oh, Trisha, oh, Trisha.

E então, de repente, as mãos dele desaparecem.

- Foda-se! - Passos apressados percorrem o quarto. Passos fortes nas escadas. Um estrondo ao longe quando a porta da rua se abre.

Jillian respira fundo a custo. Como a vítima de um afogamento a libertar-se da água, senta-se como uma mola, tentando, desesperada, meter mais oxigénio nos pulmões.

Ele foi-se embora. Foi-se... embora.

O quarto está vazio. Acabou. Ela está viva, está viva. Não está mais forte. Não está mais capaz. Mas tem sorte.

Jillian põe-se de pé a cambalear. Dá uns passos pelo quarto. Cai na cama ao lado do vulto da irmã.

- Trisha! - grita.

E então, no silêncio interminável do quarto, percebe que não tem sorte nenhuma.

Sete da manhã de segunda-feira. Jillian Hayes continuava prostrada na cama. Fitava o tecto. Ouvia o som abafado do ressonar da mãe ao fundo do corredor, depois o bipe, bipe, bipe ténue do despertador de Toppi a soar pela primeira vez. A enfermeira fê-lo logo calar-se. Era preciso o despertador tocar mais umas três ou quatro vezes antes de Toppi se levantar.

Jillian virou finalmente a cabeça. Olhou pela janela da sua casa de East Greenwich, através da qual o Sol brilhava com intensidade. Depois olhou para a cómoda, onde o sobrescrito de papel manilha continuava bem à vista.

Sete da manhã de segunda-feira. A segunda-feira.

O telefone ao lado da cama tocou de forma estridente. Jillian imobilizou-se de imediato. Podia ser outro jornalista a pedir-lhe um comentário. Pior ainda, podia ser ele. Provavelmente ainda não começara a viagem para o tribunal. No que pensaria ao acordar num dia como aquele?

O telefone voltou a tocar, sonoro e exigente. Jillian não teve alternativa senão atendê-lo; não queria incomodar a mãe.

- Acordei-te? - murmurou Carol ao seu ouvido.

Jillian recomeçou novamente a respirar. Claro que era Carol. Dan já se devia ter levantado e saído. Deus proibisse que mesmo num dia tão importante como aquele ele ficasse em casa com a mulher.

- Não - respondeu Jillian.

- Não consegui dormir - disse Carol.

- Conheço todas as imperfeições do meu tecto.

- Tem graça. Sinto-me tão nervosa. Tenho o estômago cheio de nós, as mãos tremem-me. Não me sentia assim desde, bem... - A gargalhada de Carol era tensa. -... desde o dia do meu casamento.

- Vai acabar depressa - respondeu Jillian calmamente. - Achas que devíamos ligar à Meg?

- Ela tem conhecimento do pequeno-almoço.

- Está bem.

- O que vais levar vestido?

- Um calça-casaco cor de camelo e um colete de linho branco. Já o escolhi ontem à noite.

- Eu fui às compras. Nada do que tinha no roupeiro me pareceu adequado. Mas por outro lado, o que é que se veste numa ocasião destas? Não sei. Encontrei um fato

Chanel cor de manteiga no Nordstrom. Custou-me novecentos dólares. vou pegar-lhe fogo quando o dia chegar ao fim.

Jillian pensou no seu fato cor de camelo e no dia que tinha pela frente.

- Eu faço-te companhia. A voz de Carol suavizou-se.

- O que fizeste à roupa que tinhas vestida naquele dia?

- Quando a polícia finalmente ma devolveu, levei-a à lavandaria. E nunca mais... nunca mais a vesti.

- Hoje vamos estar a pensar na Trisha. Jillian sentiu um aperto na garganta.

- Carol... obrigada.

E depois, claro, a pergunta mais importante, a pergunta que originara o telefonema.

- Sabes... sabes o que vai acontecer?

O olhar de Jillian voltou a pousar no sobrescrito de papel manilha que se encontrava em cima da cómoda. Depois olhou para o relógio. Sete e dez. Falta pelo menos

mais uma hora.

- Não - respondeu com sinceridade. - Mas acho que estamos prestes a descobrir.

 

Waters

Nove e cinco da manhã. Na baixa, a cena com que Griffin deparou era sensivelmente a que ele esperava. Muitos e muitos flashes a dispararem. Muito pouca organização.

Mesmo com um veículo oficial e uma sirena, ele demorou treze minutos a abrir caminho pelos últimos três quarteirões junto ao tribunal. Descobriu a causa quase de imediato. À comunicação social não estava apenas no local. A comunicação social era o local.

As carrinhas brancas das cadeias de televisão entupiam a larga South Main Street. Os helicópteros enxameavam o ar. Griffin já tinha calculado que a maior parte das televisões locais mandara jornalistas para fazer a cobertura do primeiro dia do julgamento de Eddie Como. Parece que, quando soara o primeiro tiro, os jornalistas tinham soltado em uníssono um grito de vitória e pedido reforços. Se ao menos a polícia conseguisse fazer uma cobertura tão boa da cena do crime...

Griffin encostou o carro à berma e estacionou na calçada que tecnicamente formava o pátio em redor de um dos edifícios da EDRI. Três alunos saíram apressados da sua frente a praguejar. Cerca de quarenta outros permaneceram colados ao chão, a olhar boquiabertos para o drama que se desenrolava diante deles.

Saindo do Taurus, Griffin foi de imediato assolado pelo cheiro acre de gás em combustão e de metal queimado. Do parque de estacionamento do outro lado da rua elevava-se uma espessa coluna de fumo negro e havia homens a gritar ordens com mangueiras na mão, inundando vários carros cobertos de chamas. O chefe dos bombeiros já se encontrava no local, juntamente com uma colecção de veículos de emergência e carros-patrulha mal estacionados. Vários detectives de Providence ladeavam o chefe dos bombeiros, à espera que os homens deste apagassem as chamas para que eles pudessem isolar aquele espaço.

- Credo - murmurou Griffin, tossindo duas vezes, depois desejando não o ter feito porque assim inspirara mais fumo. E àquela distância captou um cheiro mais rico subjacente ao odor da gasolina.

Griffin virou-se para o tribunal à sua direita e deparou com mais caos. Jornalistas, contidos no relvado do parque, pressionavam as barricadas da polícia e gritavam perguntas para os ouvidos dos pobres chuis de Providence para ali destacados. Em frente a eles estava uma ambulância parada na berma, juntamente com a carrinha do Instituto de Medicina Legal e inúmeros carros da polícia. De Providence, da estadual, carros-patrulha, carros sem qualquer indicação, até um carro pertencente à

polícia do complexo da Universidade Brown. Parece que quem tinha um crachá fazia parte daquela festa.

Griffin abanou a cabeça. Enquanto abria caminho por entre a multidão crescente de curiosos, um jovem guarda com farda de Providence e cabelo preto penteado para

trás avistou-o do outro lado da rua e correu na sua direcção.

- Sargento!

- Olá, Bentley. Não imaginava encontrar-te aqui. - Bentley jogava softball com o irmão mais novo de Griffin, Jon. Para que conste, a equipaestadual tinha ganho três

anos seguidos.

Bentley estacou diante de Griffin, parecendo um pouco atordoado. Griffin não o culpou. Durante todos os seus anos de serviço nunca vira uma coisa daquelas. Tinha

a sensação de se encontrar em Los Angeles e não em Providence. Agora só lhes faltava um produtor de cinema a tentar comprar os direitos cinematográficos na esquina

mais próxima.

- Fui o primeiro a chegar aqui - disse Bentley. - Estava a fazer uma patrulha do outro

lado do rio. Ouvi o disparo e carreguei no acelerador. Meu Deus, devia ter visto os jornalistas! Julguei que iam escalar a vedação do tribunal para tirar mais fotografias! Passámos os primeiros cinco minutos a tentar controlá-los, sem podermos começar a procurar o atirador.

- A sério? - O primeiro a chegar ali? Griffin mostrou-se adequadamente impressionado. - Hás-de dar origem a muitas lendas - asseverou ele ao jovem polícia enquanto atravessava a rua com Bentley atrás. - Então o que temos?

- Um morto, Eddie Como. O tiro foi disparado pouco depois das oito e meia, quando o retiravam da carrinha. Segundo as primeiras informações, foi um disparo efectuado do telhado. Cinco, dez minutos depois, ocorreu uma explosão no parque de estacionamento da EDRI.

- Uma bomba?

- O chefe dos bombeiros ainda não disse nada mas, aqui entre nós, ficaram destruídos cinco carros, por isso creio que podemos afirmar que se tratou de uma bomba.

- Mortos?

- Não se sabe. Aquilo ainda está demasiado quente. No entanto, vi o que me pareceu ser um braço, logo, há pelo menos uma vítima. Para além disso, havia o... bem...

- O cheiro - terminou Griffin por ele.

- Pois. - Bentley engoliu a custo.

- Há guardas a vasculhar a zona?

- Sim, senhor.

- Detiveram alguém com uma gabardina?

- Sim, senhor.

- Tiveram sorte?

- Não, senhor. Griffin assentiu.

- Sim, o braço que viste deve pertencer a um tipo que já foi bom com a espingarda. Nunca ninguém lhe disse que não existe honra entre os ladrões?

- Parece coisa da máfia - aventou Bentley. Griffin encolheu os ombros.

- O que é que interessa à máfia o Violador de College Hillí Não sei. Uma coisa de cada vez. Tenho de ir andando, mantém-nos a par das buscas, está bem?

Griffin chegara junto da fita amarela que isolava a cena. Do outro lado da rua, vários jornalistas avistaram-no e elevou-se um burburinho.

- Sargento, sargento...

- Olá, Griffin!

Griffin ignorou-os, concentrando-se no agente estadual parado do lado de fora da fita amarela. Griffin não reconheceu a mulher polícia que naquele momento lhe perguntava

o nome, posto e número do crachá. Claro que em dezoito meses algumas coisas tinham de ter mudado. Disse a si próprio que não fazia mal, embora tivesse ficado pouco

a vontade. Trabalho era trabalho. Era como andar de bicicleta. Baixou-se para passar sob a fita.

No interior do pátio, apercebeu-se de várias coisas ao mesmo tempo. A carrinhia azul das IÇA encostada à esquerda, as portas ainda abertas, sem ninguém no interior.

Três marshals vestidos de cinzento do lado direito, a, conversarem com outro detective. Sentados no chão, os prisioneiros atordoados, vestidos de azul e caqui, ainda

amarrados uns aos outros. No meio estava uma poça de sangue relativamente grande, encimada

pelo que restava do corpo de Eddie Como O tipo preso à esquerda do corpo de Como encontrava-se coberto de sangue e miolos, e parecia abordoado. O tipo preso à direita dele também se encontrava coberto de sangue e miolos, mas não se calava.

- Nem pensar. Nem pensar, porra. Não está a acontecer. A sério, não está a acontecer. Por que é que ainda estamos presos, pá? Até parece que vamos fugir numa altura

destas. Porque é claro que isto não está a acontecer:. Não está mesmo a acontecer. Tirem-me esta merda de cima!

Os marshals ignoravam-no. O mesmo faziam Jack-n-Jack, os técnicos da Unidade de Investigação Criminal. Já se tinham posto ambos em campo, com uma máquina fotográfica

digital, a registarem todos os pormenores da cena do crime. Dois funcionários do Instituto de Medicina Legal também registavam diligentemente aquilo que tinham descoberto. De momento, encontravam-se debruçados sobre o que podia ter sido o maxilar de um homem.

- Olá, Griffin - saudou Jack Cappelli, levantando por fim a cabeça.

- Olha-me só para ti - disse Jack Needham, levantando igualmente a cabeça. - Oh! Isso deve ser italiano!

Griffin fez deslizar a mão pela mistura de seda e lã do seu blusão azul-acinzentado. Fora Cindy quem lho comprara. Era um dos preferidos dela.

- Claro. Só o melhor para este trabalho. Agora digam-me a verdade: tiveram saudades minhas?

- Absolutamente - responderam em uníssono.

- O Jack deixou morrer a tua planta, Griffin - declarou o primeiro Jack.

- Não podes prová-lo - retorquiu o segundo.

- Aposto que posso. Fiz uma série de fotografias a preto e branco a documentar a cena.

- Por outras palavras - deduziu Griffin -, as coisas têm estado calmas ultimamente.

Assentiram ambos, carrancudos. Depois o primeiro Jack voltou a animar-se.

- Mas agora acabou-se a calma. Olha, faz-nos um favor. Manda embora aqueles helicópteros,

Griff.

- Pois, estão a estragar a cena do crime, Griff.

Griffin olhou para o enxame de helicópteros da comunicação social a zunir no céu, depois fez uma careta. Os helicópteros da comunicação social eram uma seca. Como se já não bastasse ter de se preocupar com um fotógrafo demasiado agressivo a tirar uma fotografia sensacionalista da vítima, o vento causado pelas hélices destruía metade das provas. Pegou no rádio para contactar o Departamento de Aeronáutica Estadual quando o tipo algemado à esquerda do corpo de Como levou a mão ao rosto salpicado de sangue.

- Pare! - gritaram Jack-n-Jack ao mesmo tempo. - Nada de mexer! Recorde-se, você faz parte da cena do crime. Precisamos da sua cara para analisar a forma como o sangue se espalhou.

- Ahhhhhh! - fez o tipo.

Jack-n-Jack olharam para ele e tiraram-lhe outra fotografia.

Griffin conteve um sorriso. Sim, era tal como nos velhos tempos. bom, para além do pormenor de nunca antes ter havido um assassínio no tribunal. Acabou de ordenar

a retirada dos helicópteros de cima do complexo judicial, depois voltou a sua atenção para os dois Jacks.

- O que conseguiram?

- Foi um único tiro na cabeça. Entrou pela parte de cima do crânio Saiu por baixo do queixo. Não há vestígio de queimaduras de pólvora. Calculamos que tenha sido uma espingarda com um projéctil de ponta oca, que ainda assim teria força para penetrar o crânio e expandir-se o suficiente para... bem, para fazer aquilo.

Jack-n-Jack apontaram para o corpo. Ainda bem que Griffin já vira o rosto de Eddie Como na televisão, porque naquele momento não conseguia vê-lo. As balas de ponta oca expandiam-se com o impacte, criando um magnífico efeito de cogumelo.

- com que então um tiro de espingarda disparado quase na vertical. - Griffin olhou para cima. Um atirador furtivo no telhado batia certo com os primeiros relatórios. Infelizmente, daquele ângulo no interior do pátio, ele não conseguia ver nada que estivesse escondido seis andares acima. Não iria ser fácil encontrar testemunhas. Por outro lado, era para isso que lhe pagavam bem. Tirou o minigravador Norelco do bolso e desviou a sua atenção para os cinco prisioneiros algemados.

- Meus senhores... a vossa ajuda pode ser uma atenuante. Nenhum dos homens pareceu particularmente impressionado.. Por

fim, o primeiro tipo levantou a cabeça.

- Pá, não sabemos nada. Estávamos a sair da carrinha quando, de repente, BUM! Ouvimos um estrondo que parecia um trovão e logo a seguir os nossos pés levantaram-se do chão. Olhei para trás e vi o Eddie no chão, os marshals gritavam "Arma!, arma!" e aqui o Jazz... O primeiro tipo lançou um olhar de gozo ao que estava preso à direita do corpo de Eddie. -... já estava a gritar "Fui atingido! Fui atingido!" Claro que não foi atingido. Só tem em cima a maior parte dos miolos do Eddie.

Griffin olhou para os prisioneiros. Todos assentiram. Aquele parecia ser o resumo oficial dos acontecimentos. Tornou a olhar para o telhado, tentando decidir se havia de separar os prisioneiros e interrogá-los um a um. Não valia a pena, decidiu. Mesmo sabendo que no telhado estavam dois técnicos, daquele ângulo não conseguia ver nada. No entanto, do outro lado...

Os rádios que os Jacks traziam à cintura ganharam vida.

- Encontrámos uma arma - informou um dos técnicos do telhado.

- Uma espingarda ARI 5 com mira telescópica, duas munições Remington ponto duzentos e vinte e três no carregador. Também encontrei três cobertores do exército, umas jardineiras pretas, um par de luvas e um par de sapatos, Oh, e três invólucros vazios de bolachas Newtons de ngo. Parece que o nosso homem não gostava de umas bolachas quaisquer...

- Beatas? - perguntou um dos Jacks esperançado.

- Nada de beatas - respondeu o técnico. - Desculpa, Jack.

- Bolas! - O primeiro Jack olhou para o segundo com apatia. As beatas de cigarros continham muita informação, desde a marca à saliva, que permitia identificar o ADN.

- Animem-se - disse Griffin. - Têm sapatos. Pensem em tudo o que consegue tirar-se dos sapatos.

Os Jacks tornaram a animar-se.

- Gostamos de sapatos - concordaram. - Podemos fazer algumas coisas com sapatos.

Griffin acenou encorajadoramente aos dois homens, depois dirigiu-se aos marshals. O detective Mike Waters reunira três homens em volta do seu minigravador para prestarem

declarações.

- Griffin! - exclamou o primeiro marshal. Afastou-se do gravador o suficiente para poder apertar vigorosamente a mão de Griffin.

- Olá, Jerry! Como vai isso? - Entroncado e com cabelo grisalho a rarear, Jerry era marshal há já bastante tempo. Ajudara a treinar Frank, o irmão mais velho de Griffin.

Mas Jerry também ajudava a treinar toda a gente.

- Bem, bem - respondeu Jerry. - bom, okay, podia estar melhor. Credo, tinha ouvido dizer que ias regressar, mas não percebera que iria ser logo hoje! Sempre soubeste escolher os dias, Griff. Olha, és tu quem manda neste circo?

- Não, sou mais um pau-mandado. Olá, George. Olá, tom. Griffin apertou também as mãos dos outros dois homens. Ao seu lado, o detective Waters pigarreou. Griffin virou-se, pesaroso, para o colega. Mike Waters era cinco anos mais novo que Griffin. Era alto e magro, com uma preferência por fatos azul-escuros que o faziam parecer-se com um aspirante a agente do FBI. Contudo, era inteligente, forte e calmo. Muitos suspeitos subestimavam-no. Nunca tinham oportunidade de cometer o mesmo erro segunda vez.

Noutros tempos Griffin teria cumprimentado Mike com um caloroso "Primo Fedorento!" e noutros tempos Waters teria respondido com um sonoro "Primo Asqueroso!" Esses tempos haviam passado. Uma das coisas que Griffin perguntava a si mesmo era se esses tempos alguma vez voltariam.

- Sargento - disse Waters, acenando um cumprimento.

- Detective - respondeu Griífin. Os três marshak pareceram mais atentos, observando os dois homens. Provavelmente já tinham ouvido a história. Talvez tivessem até ajudado a difundir a história. Griffin tentou, mas não conseguiu impedir-se de olhar para o nariz de Waters. Mas não fazia mal. O olhar de Waters descera até ao punho de Griffin.

Os dois homens voltaram a concentrar-se nos marshals. O silêncio arrastara-se durante demasiado tempo e tornara-se desconfortável. "Merda!", pensou Griffin.

Waters tornou a pigarrear.

- Então, como estavam a dizer...

- Ah, sim! - exclamou Jerry. - Isolámos o pátio.

- Abrimos as portas da carrinha - acrescentou George.

- Ocupámos as nossas posições - continuou tom. - Começámos a descer os prisioneiros...

- Bum!

- BUUM! - emendou George.

- Era definitivamente uma espingarda potente. O disparo fez um belo som. Por momentos pensei mesmo que alguém andava a caçar veados.

- Depois vi tudo vermelho. Literalmente. O sangue borrifou tudo.

- O miúdo caiu logo. Morreu antes ainda de aterrar no chão. Ouvimos falar destas coisas, mas anteriormente nunca vira nada semelhante.

- Gritei "Arma!"

- Pois foi. O Jerry gritou "Arma!" e acocorámo-nos todos. Sabe, com o Sol a brilhar por trás do telhado daquela maneira não conseguíamos ver mesmo nada. Foi o momento mais assustador da minha vida.

- Pareceu-me ver um movimento. Talvez alguém a correr. Mas foi tudo.

- Depois ouvimos os jornalistas todos a gritarem do outro lado da rua. "No telhado!", gritavam eles. "Lá vai ele, lá vai ele."

- Características particulares? - inquiriu Waters. - Altura, peso?

- Nem sequer consegui perceber se era um homem ou uma mulher - respondeu Jerry com frontalidade. - Foi como vislumbrar uma silhueta, digo-lhe. Mas mexia-se depressa. Era um atirador em excelente forma.

Waters olhou para o marshal.

- "Um atirador em excelente forma", hein? bom, deixe-me ir dizer isso à minha tenente. Por amor de Deus, Jerry, vamos lá tratar de fazer o retrato robô!

Os três marshals mostraram-se embaraçados.

- Desculpem, rapazes - disse finalmente Jerry com um encolher de ombros -, mas daqui... Olhem vocês lá para cima. Não conseguem ver nada.

- Mas tentem falar com os jornalistas - sugeriu George. - Estavam mais bem localizados. Olhem, até podem ter filmado o gajo!

Os três marshals, desejosos de uma pequena vingança depois daquele interrogatório, sorriram-lhes. Enquanto tinham estado a conversar, o barulho dos jornalistas aumentara ainda mais do lado de fora do tribunal. Agora parecia o King Kong - mesmo antes de partir as correntes.

Waters suspirou. Tinha um ar infeliz. Depois baixou lentamente a cabeça. Detestava os jornalistas. Da última vez que ele e Griffin haviam trabalhado juntos, ele descaíra-se com um comentário perto de um jornalista e pagara pelo erro durante semanas. Para além disso, como posteriormente confiara a Griffin, o seu rabo parecia mais ossudo na televisão. Duas cidadãs tinham escrito cartas ao editor a pedir que alguém na polícia de Rhode Island começasse a alimentá-lo.

- Têm a certeza de que não viram nada? - insistiu ele com os marshals pela última vez.

Os homens abanaram as cabeças, desta feita parecendo mais satisfeitos. Foi então que Jerry, sempre bondoso, teve pena dele.

- Se não quer chatices com a comunicação social pode sempre ir direito às mulheres - disse.

- Às mulheres? - perguntou Griffin.

- Sim, as três mulheres que o Eddie atacou. Não as viu nos noticiários?

- Oh, essas mulheres! - exclamou Griffin, embora na realidade não assistisse aos noticiários havia meses e soubesse muito pouco sobre as violações de College Hill.

- Sejamos realistas - dizia Jerry. - Se alguém tinha motivos para transformar o Eddie em patê vivo, esse alguém são aquelas três senhoras. Aposto na última, a mulher de negócios, como é mesmo o nome dela? Jillian Hayes. Sim, ela é fria, era capaz de matar um homem só com os olhos. E depois do que o Eddie fez à irmã dela...

- Não, não, não - interrompeu George. - Essa Hayes nem sequer foi violada. Se querem saber quem o fez, eu digo-vos: foi a segunda, a Carol Rosen, a dona de casa

endinheirada de East Side. A mulher do meu irmão trabalha nas Urgências do hospital da zona e estava de serviço quando Mistress Rosen deu entrada. Ás coisas que o Eddie lhe fez, coitada! Foi um milagre não ter precisado de fazer uma operação plástica à cara. Aposto que o atirador era uma mulher.

- Estão ambos enganados - interveio tom. - É impossível uma mulher ter disparado um tiro destes. Como se a dona de uma agência de publicidade ou uma ricaça estivessem dispostas a subir ao telhado do tribunal com uma espingarda. A mais nova, a Pesaturo...

- Oh, deixa a miúda em paz! - exclamou Jerry com ar sério. A Meg Pesaturo nem sequer se lembra de nada. Para além do mais, é apenas uma miúda.

- Ela diz que não se lembra de nada. Mas sempre achei isso muito esquisito. Talvez queira guardar as coisas para ela. E para a família. E vocês sabem quem a família dela é. - tom olhou para todos com ar expectante. Todos se inclinaram para a frente, até Griffin. Também os polícias gostavam de um bom boato. - O Vinnie Pesaturo - anunciou tom. - Sim, o corretor de apostas favorito da família Carlone. Se o Vinnie quisesse alguma coisa feita, podem ter a certeza de que era feita. Então, talvez a bonitinha da Meg não se lembre de nada. Ou talvez prefira andar a divertir-se enquanto o Vinnie trata de tudo. Um atirador furtivo, uma explosão. Oh, sim, isto tem todos os ingredientes para ser da família Carlone. Fixem bem o que vos digo: a Meg Pesaturo é a culpada.

 

Meg

Ela está a rir-se. Não sabe porquê. A polícia está ali. Uma rapariga, a sua colega de quarto, dizem-lhe, está a chorar. Mas Meg encontra-se lá fora. Olha para o

céu escuro da noite, onde as estrelas brilham como pequenos pontos de luz, com a brisa fresca a tocar-lhe no rosto, e envolve o tronco com os braços e dá gargalhadas, inebriada.

Os polícias querem levá-la para o hospital. Olham para ela de forma estranha.

- Está uma noite muito bonita - diz-lhes ela. - Olhem, está uma noite linda!

Os agentes, preocupados, sentam-na na parte de trás de um carro-patrulha. Ela cantarola. Toca na cara e lembra-se de algo.

Um toque, leve como um murmúrio, impossivelmente meigo. Olhos cor de chocolate, fitando os seus. O começo de um sorriso lento e doce.

- Quem sou eu? - pergunta ela aos agentes sentados à frente.

- Por que não espera até chegarmos ao hospital?

Por isso ela espera até chegarem ao hospital. Por ela tudo bem. Canta uma melodia qualquer que não consegue tirar da cabeça. Sonha com carícias suaves. Estremece com a antecipação do beijo de um amante.

No hospital, fazem-na entrar nas Urgências, levam-na para uma minúscula sala de exames onde uma enfermeira especial, que examina as vítimas de agressões sexuais, entra de rompante. Parece conhecer os agentes, o que Meg acha bem, porque ela não conhece ninguém.

- Qual a gravidade? - pergunta a enfermeira.

- Diga-nos a senhora. A colega de quarto chegou e encontrou-a amarrada à cama. Ela afirma não se lembrar de nada, inclusive do próprio nome...

- Como é que me chamo? - intervém Meg. Eles ignoram-na.

- Ela afirma também não se recordar da companheira de quarto diz o agente -, nem de ninguém nem de nada. À colega de quarto deu-nos um contacto dos pais, que já vêm a caminho.

A enfermeira indica Meg com a cabeça.

- Tinha aquilo vestido?

-Não, a companheira de quarto desamarrou-a e vestiu-a antes de nos chamar - O agente parecia contrafeito. - Alguém devia ensinar alguma coisa às pessoas. Encontrámos uma T-shirt rasgada no chão, e umas cuecas. Já vão a caminho do laboratório.

- vou meter igualmente estas roupas num saco, para o caso de terem apanhado alguns cabelos ou fibras. vou identificá-las como segundas roupas. Serve para vocês?

Os agentes encolheram os ombros.

- Somos apenas os motoristas; o que nos importa a nós?

- Olhem, não está uma noite linda?

Os agentes reviram os olhos. A enfermeira dispensa-os e aproxima-se de Meg. A enfermeira tem olhos azuis. Os olhos fitam-na com meiguice, mas estão igualmente atentos.

- Como te chamas? - pergunta ela, calçando um par de luvas.

- Não sei. Era isso que estava a perguntar-lhes. Aquela rapariga chamou-me-Meg. Talvez me chame Meg.

- Estou a ver. E quantos anos tens, Meg? Meg tem de pensar. Ocorre-lhe um número.

- Dezanove?

A enfermeira assente, como se a resposta fosse aceitável.

- E que dia é hoje? Aquela era mais fácil.

- Quarta-feira - responde Meg de imediato. - Onze de Abril.

- Muito bem. Preciso apenas de verificar umas coisas, Meg. Sei que pode ser um pouco desconfortável, mas não vou magoar-te. Por favor, compreende que estamos todos aqui para te ajudar. Mesmo que pareça que estamos a pedir de mais, zelamos apenas pelos teus interesses.

A enfermeira estende o braço. Pega no pulso de Meg com os dedos enluvados. De imediato, Meg encolhe-se. Liberta a mão.

- Não - diz ela, embora não saiba porquê. Abana a cabeça. A noite já não parece tão bonita. - Não - repete. - Não, não.

- Estás a sangrar do pulso - explica a enfermeira pacientemente. Só preciso de o observar, ver se precisa de tratamento. - Estende novamente a mão enluvada e pega no pulso de Meg.

- Não! - Desta vez Meg afasta-se. Encosta o pulso ensanguentado ao peito, sentindo o coração a galopar enquanto procura, desesperada, um sítio por onde fugir. A porta está fechada. Encontra-se encurralada na pequena sala com aquela mulher e aquelas luvas. As luvas deitam cheiro. Será que a mulher não o sente? Têm um cheiro horrível, horrível.

Meg dá várias voltas. Não há sítio para onde ir. Nenhuma fuga possível. Senta-se no chão frio e branco. Aninha os pulsos ensanguentados junto ao peito e, por um

motivo que não consegue explicar, geme.

A enfermeira está a olhar para ela. O seu rosto não se modificou. A sua expressão é determinada, inescrutável, mas pelo menos ela não se aproxima.

- O pulso está a doer-te? - pergunta a enfermeira calmamente. Meg ainda não tinha pensado nisso. Mas agora que a mulher falou no

assunto... Olha para os pulsos. Uns vergões enormes marcam-nos a toda a volta. Vê sangue fresco e nódoas negras a mancharem-lhe a pele.

- Isto... isto arde - responde Meg. O seu tom parece ser de espanto. A enfermeira põe-se de cócoras para ficar ao nível dela.

- Meg, estou aqui para te ajudar. Se me deixares, trato-te os pulsos e ajudo a dor a passar. Também quero ajudar-te de outra forma, Meg. O meu trabalho é ajudar a apanhar a pessoa que te fez isto, que te deixou os pulsos a arder. Para o fazer, preciso de tirar algumas fotografias. Preciso também de examinar o resto do teu corpo. Sei que neste momento isso não parece fácil. Mas se confiares em mim, prometo que não te magoo.

Lentamente, Meg faz que sim com a cabeça. Não tem medo daquela mulher. Aliás, começou a gostar do seu rosto sério e do seu olhar firme. A mulher parece forte, parece controlar a situação. Meg volta a levantar-se. Estende os pulsos feridos.

Mas no momento em que a mulher volta a tocar-lhe, a encostar os dedos cobertos de látex à sua pele...

- vou vomitar - diz Meg, mal tendo tempo de conseguir chegar ao lavatório de aço inoxidável.

A porta abre-se e em seguida fecha-se quando a enfermeira sai da sala. Meg deixa a água correr durante algum tempo. Lava a cara, o que já fizera duas vezes antes da chegada da polícia; outra coisa que os levara a fazer caretas de desaprovação.

A boca de Meg está dorida. Encontra um espelho e observa o seu rosto durante bastante tempo. Os cantos da sua boca sangram ligeiramente. Apele aí está rasgada.

Meg sente-se verdadeiramente confusa. Procura na sua memória alguma recordação, mas só consegue recordar-se da sensação distante de carícias suaves na sua pele. Carícias meigas e provocadoras. E ela sustém a respiração, esperando que ele se aproxime mais, mais.

Por favor, beija-me.

Estremece. E, pouco depois, pela primeira vez naquela noite, percebe que está com medo.

Do lado de fora vem o som de vozes. A enfermeira e os agentes da polícia estão novamente a falar dela.

- Látex? Ela foi amarrada com garrotes de látex? Por amor de Deus, meus senhores, esse é o tipo de pormenor que me deviam ter comunicado. Tentei tocar-lhe com as mãos enluvadas e a pobre quase trepou pelas paredes. Não admira que tenha ficado apavorada.

- Então acha que ela foi violada?

- Claro que foi violada. Já olharam para a boca dela? Os amantes consensuais não costumam amordaçar-se.

- Pois, pois, mas... ouviu o que ela disse? "Está uma noite linda." E fartou-se de cantarolar e de sorrir. A que propósito?

-A isso chama-se euforia, senhor agente. Porque mesmo que Miss pesaturo ainda não se recorde de ter sido violada, o seu subconsciente sabe perfeitamente o que aconteceu e está a dizer-lhe que ela deve sentir-se grata por estar viva.

Os agentes não dizem mais nada. Pouco depois, a porta abre-se de rompante e a enfermeira volta a entrar. Meg olha para as mãos da mulher, que agora estão nuas. A mulher abre uma vitrina, tira de lá uma caixa. Estende a caixa a Meg.

- Estas estão bem para ti?

Meg olha para a caixa. Também contém luvas, mas estas são diferentes. Tira de lá uma, segura-a na mão. E fina e cheira a borracha. A caixa diz que é uma luva de vinil. Torna a cheirá-la. Recorda-se de água com detergente para a louça. Mais nada.

Devolve a caixa à enfermeira.

- Pode ser - diz ela, e a sua voz adquiriu um tom mais sério. A enfermeira coloca um pano branco no chão. Meg põe-se de pé em cima do pano e despe a roupa, incluindo as cuecas e o sutiã. A enfermeira enfia cada peça num saco separado. Meg estende os braços. A enfermeira tira fotografias ao seu corpo nu, incluindo a boca, pulsos e tornozelos. A enfermeira passa um pente pelos seus pelos púbicos. O resultado vai para outro saco.

Depois Meg tem de deitar-se de costas na maca. Põe os pés numa espécie de estribos. O coração bate-lhe de novo com força. Ela tenta não pensar nisso. Tenta lembrar-se que tem de confiar naquela mulher, porque aconteceu uma coisa terrível mesmo que Meg apenas consiga lembrar-se dos olhos cor de chocolate e do beijo meigo do amante.

Meg estremece. A sala está demasiado fria. Tem medo dos esfregaços que a enfermeira está a recolher. Medo das coisas que eles possam revelar e que ela desconhece. Sente-se exposta, e nem quando a enfermeira lhe estende uma bata cor-de-rosa se sente melhor.

Há sinais de penetração vaginal, diz-lhe a enfermeira. Vestígios de fluido no cérvix. Será que Meg toma a pílula?

Aquilo parece correcto a Meg. Ela assente. No entanto, é apenas o começo. Não tem de tomar a pílula do dia seguinte a menos que realmente queira, mas ainda há o risco das doenças sexualmente transmitidas. Herpes. Gonorreia. Sida. Irá fazer análises ao sangue naquele dia, e mais ainda nas semanas seguintes, à medida que continuarem à procura de sinais de infecção. Por exemplo, poderão passar seis meses até se detectar o primeiro sintoma da sida após a exposição inicial.

Meg torna a assentir. A sua euforia já passou. Está cansada. Mais cansada do que alguma vez esteve. Dói-lhe a boca. Os tornozelos, os pulsos. Senta-se com as pernas firmemente cruzadas e espera, lá bem no fundo, que ninguém mais volte a tocar-lhe.

Batem à porta. Um agente da polícia espreita lá para dentro. Os pais de Meg chegaram. Bem como um detective de Providence. Têm de lhe fazer algumas perguntas...

- Vais ficar bem - diz-lhe a enfermeira.

Meg limita-se a olhar para a mulher. Compreende finalmente que aquela mulher bondosa e sisuda é paga para mentir. Meg foi violada. Meg perdeu o juízo. Meg não reconhece o homem e a mulher que agora entram na sala a soluçar o seu nome.

Meg estará muitas coisas nos dias, semanas e meses que se irão seguir. Mas não estará bem. Esse será um projecto que exigirá um prazo mais alargado. Levará anos. Provavelmente, levará o resto da sua vida.

Segunda-feira de manhã, sete e dez; Meg arrastou-se finalmente para fora da cama. Não dormiu bem a noite passada, embora não saiba exactamente porquê. Aquele poderá

ser um grande dia, mas seria um dia ainda maior para outra pessoa que não ela. O advogado de acusação, Ned DAmato, nem sequer iria chamá-la para depor. Como DAmato observara, que contributo poderia ela dar? Ainda não sabia nada sobre aquela noite. Durante o contra-interrogatório, a defesa poderia comê-la viva.

Meiga e doce Meg. Querida e sortuda Meg, que ainda não se lembrava de nada.

Lá de baixo chegou-lhe o som característico de tachos e panelas. A mãe já devia estar na cozinha, a bater os ovos para o pequeno-almoço. Depois ouviu uma gargalhada aguda, seguida de um pedido gritado: "Panquecas, panquecas, panquecas!" A irmã mais nova de Meg, Molly, gostava de se levantar às seis.

A falta de memória de Meg já não a incomodava grandemente. Cerca de quatro meses antes, percebera que possuía um conhecimento instintivo das coisas se estivesse disposta a dar ouvidos à sua voz interior. Por exemplo, não era capaz de se recordar do nome da mãe, da sua idade, nem do seu aspecto geral. Mas assim que a mãe entrara na sala de exames do hospital e abraçara os ombros trémulos de Meg, ela soubera que aquela mulher a amava. Sentia o mesmo em relação ao pai e a Molly. E quando a haviam levado para ali ela sentira que regressara a casa, embora não fosse capaz de dizer qual o endereço.

Às vezes, as pequenas coisas ajudavam-na a continuar. Uma canção na rádio sacudia as teias de aranha do seu cérebro. Concentrou-se mais na sua voz interior. Deixou que os momentos de semiclareza pairassem como nevoeiro diante dos seus olhos. Passava grandes períodos de tempo a pensar em nada e em tudo. A amnésia pós-traumática era a maneira que a sua mente arranjara para lidar com a situação, haviam-lhe explicado os médicos. Forçar a questão criava apenas mais trauma. Assim, ela deveria descansar, comer bem e fazer muito exercício. Por outras palavras, deveria tratar-se bem.

Meg tratava-se bem. Não tinha mais nada para fazer.

Ouviu o som de vozes, mais próximas, no corredor. Vozes abafadas, como faziam as pessoas quando discutiam e não queriam que os outros as ouvissem. Os pais, de novo. Ela adormecera a ouvir o mesmo som.

O tio Vinnie estava constantemente a visitá-los. Na véspera estivera lá até quase às dez da noite, a falar baixo e intensamente com o pai dela. A mãe não gostava do tio Vinnie. Não gostava que ele lá fosse tantas vezes, e obviamente não gostava do assunto da conversa.

A própria Meg não percebia. O tio Vinnie tinha um riso sonoro, tonitruante. Cheirava a uísque e charutos. Era quase careca e tinha uma barriga enorme. Parecia uma mistura do Kojak com o Pai Natal. Como é que podia não se gostar do Kojak misturado com o Pai Natal?

Meg aguardou no quarto até as vozes dos pais se terem finalmente afastado. Molly continuava lá em baixo. Provavelmente agora decorava o chão com bocados de panquecas. A mãe devia ter regressado para junto dela. O pai tinha de preparar-se para o trabalho. Meg atravessou o corredor e enfiou-se na casa de banho do primeiro andar, onde tomou um duche longo e quente.

Precisava de se despachar se queria estar no rue de l'espoir pelas oito.

Vinte minutos mais tarde, já de calças de ganga e T-shirt, o cabelo comprido e molhado amarrado num rabo-de-cavalo, a cara lavada, desceu as escadas aos saltos.

O pai já devia ter saído para o trabalho, o que tornava as coisas mais fáceis para ela e para ele. Passado um ano, o pai ainda não era capaz de olhar para ela sem

ver a vítima de uma violação. E Meg não era capaz de olhar para ele sem o ver a fitá-la daquela maneira.

com a mãe era mais fácil. Chorara, enfurecera-se e ficara radiante no dia em que a polícia prendera Eddie Como. Mas também estava radiante por ter Meg de novo em

casa, a pequena Molly não lhe dava um minuto de descanso e havia sempre muitas coisas para fazer. Tinha uma vida atarefada. Uma vida que continuara. Provavelmente percebia melhor que o marido que as mulheres são mais fortes do que parecem.

Naquele momento, Meg envolveu o corpo magro e eficiente da mãe com os braços e apertou-o com força.

- Tenho de me encontrar com a Carol e a Jillian na baixa - disse, beijando a bochecha da mãe. Aquele era o tipo de coisas que podia dizer à mãe. O pai não aprovava os encontros do Clube das Sobreviventes. Por que haveria a sua filhinha de se encontrar com duas mulheres mais velhas e falar de violações? Por amor de Deus, no que é que o mundo se estava a tornar?

Meg não se importava com as discussões. Ficara até surpreendida e agradada quando Jillian a convidara a juntar-se-lhes. Afinal de contas, Meg não sabia nada. Não se tornara uma militante como Jillian. Não semi-enlouquecera como Carol. Meg continuava a ser Meg. Falava acerca da família, das pessoas que estava a aprender a amar de novo, enquanto Jillian falava friamente sobre assuntos como os direitos das vítimas e Carol arengava sobre as injustiças de um mundo criado pelos homens.

- Panquecas? - perguntou a mãe, esperançada.

- Meg! - gritou Molly. - bom dia, Meg! - Molly era uma daquelas pessoas que gostam da manhã e funcionam bem durante essa parte do dia.

Meg largou a mãe e atravessou a cozinha para pespegar quatro beijos molhados na cara lambuzada de doce da irmã.

- Molly! bom dia, Molly! - respondeu Meg.

A irmã de cinco anos, o descuido que os pais haviam tido na meia-idade, mas um descuido feliz, sorriu-lhe.

- Vais comer panquecas?

- Não, vou beber chai.

- Nada de chai. Come panquecas comigo.

- Não posso, tenho um encontro escaldante. Mas vejo-te logo à tarde.

Tornou a beijar a cara lambuzada de Molly, depois fez-lhe cócegas até ela começar a gritar e a contorcer-se na cadeira.

- Já te vais embora? - perguntou a mãe do fogão.

- Desculpa, já estou atrasada. Fiquei de ir ter ao rue de l'espoir às oito.

- Depois ligas - disse, referindo-se à eventualidade de Meg ter notícias do tribunal, de Ned DAmato.

- Depois ligo.

A mãe afastou-se finalmente do fogão na minúscula cozinha. Tinha a frigideira numa mão e uma luva de ir ao forno na outra. Olhou para Meg durante bastante tempo.

- Amo-te - disse ela abruptamente.

- Também te amo.

- Ligas-me?

- Ligo.

- Então está bem. - A mãe assentiu, regressou ao fogão e fez mais um prato de panquecas numa cozinha onde não restava mais ninguém para alimentar.

Meg dirigiu-se para a porta. O sol brilhava, a manhã estava fresca mas prometia calor. Um belo dia, embora isso nada significasse. Afinal de contas, um ano antes estivera uma bela noite.

Meg meteu-se no pequeno Nissan castanho estacionado na rua. Tentou não olhar para o autocolante de estacionamento do Providence College que ainda continuava colado ao vidro, embora o seu prazo de validade já tivesse expirado. O pai achava que não era seguro a sua menina voltar a estudar. Se conseguisse fazer prevalecer a sua vontade, ela nunca mais regressaria.

E Meg? O que queria Meg? Ela era a sortuda. Toda a gente lhe dizia isso. O detective Fitzpatrick, Ned DAmato, Carol, até Jillian. Claro que fora violada, mas o assunto morrera aí. Não fracturara nada, não tinha cicatrizes, nem planos de vingança. Fora a primeira vítima do Violador de College Hill e depois dela ele piorara muito.

Meg pôs o carro a trabalhar. Meg avançou rua abaixo. Meg sentiu novamente os olhos que a seguiam nos últimos tempos. Meg não se voltou para trás.

Mas estremeceu.

Tinham passado quatro meses. Não sabia o que se passava. Mas uma coisa era clara. De alguma forma, a doce e sortuda Meg já não estava sozinha.

Maureen

Na baixa de Providence, Griffin e Waters saíram juntos do pátio. Griffin achou que devia dizer qualquer coisa.

- Fala-me do caso do Eddie Como. - bom, talvez devesse ter dito algo um pouco mais pessoal.

Waters encolheu os ombros.

- Sei pouca coisa. Foram os tipos de Providence que se ocuparam do caso.

- Dá-me os traços gerais.

- Foram atacadas quatro mulheres, e uma morreu. A primeira era uma aluna do Providence College, a Meg Pesaturo. Acho que a família dela está relacionada com a máfia,

embora não tenha nada de concreto. A vítima seguinte, a tal Rosen, mora numa daquelas enormes casas históricas perto da Brown e pôs todo o East Side a clamar por melhor protecção policial. O terceiro ataque foi na Brown, outra aluna, só que a irmã da rapariga apareceu durante a violação. Ele espancou a irmã mais velha e a mais nova acabou morta. Teve uma reacção anafiláctica ao látex, ou coisa parecida.

- O tipo usava luvas?

- Sim, e fez-lhes torniquetes de látex. Sabes, daqueles que usam nos hospitais quando nos tiram sangue. Foi graças a isso que a polícia de Providence acabou por apanhá-lo. Parece que as vítimas tinham dado sangue antes do ataque numa carrinha que havia estado algum tempo no complexo universitário. A polícia investigou um pouco... o Eddie Como recolhia sangue no Banco de Sangue de Rhode Island. Parece que aproveitava estas campanhas de angariação de dadores para localizar potenciais alvos, depois procurava as moradas na base de dados dos dadores.

Griffin inclinou a cabeça para um lado e para o outro, tentando aliviar a tensão no pescoço.

- Provas circunstanciais?

- Não, arranjaram ADN. Correspondência perfeita nas três vítimas. O Como é o culpado.

-Vai ser enterrado no julgamento? Waters assentiu vigorosamente.

- Vai ser enterrado no julgamento.

- Interessante. Então, por um lado, o Eddie ia apanhar perpétua. Por outro, segundo os marshals, há três mulheres que o queriam morto.

- Ainda não viste as fotografias das cenas dos crimes - disse Waters. Nesse momento chegaram junto dos jornalistas.

- Sargento, sargento, sargento! - O rugido aumentou, seguido imediatamente de uma chuva de perguntas.

- O Eddie Como está morto?

- E os marshalsí

- Houve mais mortes?

- E a explosão? Era uma bomba num carro?

- Quem é que vai ficar à frente do caso? Providence? A Polícia Estadual? Quando é que fazem uma conferência de imprensa, quando é que fazem uma conferência de imprensa?

Griffin levantou a mão. Os flashes dispararam imediatamente. Ele fez uma careta, teve uma breve branca, depois regressou à normalidade.

- Okay. O que vai acontecer é o seguinte: não iremos responder a nenhuma das vossas perguntas.

Um gemido colectivo.

- Estamos aqui para vos fazer perguntas. Um renovar do interesse.

- Eu sei, eu sei - prosseguiu Griffin com secura -, também estamos muito excitados com isto. No caso de ainda não terem reparado, vocês são todos testemunhas de um tiroteio.

- Foi o Eddie Como, não foi? Alguém matou o Violador de College Hilll

O resto dos jornalistas começou novamente a disparar perguntas, fazendo lembrar crianças à solta numa loja de doces.

- Quando é que fazem uma conferência de imprensa? Quando é que fazem uma conferência de imprensa?

- Quem vai ficar à frente do caso?

- O que pode dizer-nos acerca da explosão?

- Já alguém falou com as mulheres? O que é que as vítimas têm a dizer?

Griffin suspirou. Tentar argumentar com a comunicação social era uma completa perda de tempo. Mas, naquele trabalho, havia

certas coisas que tinham de ser feitas. Ele e Waters endireitaram os ombros, afastaram para o lado duas barricadas azuis da polícia e avançaram corajosamente até ao meio da multidão. Quatro microfones

apareceram de imediato em frente ao rosto de Griffin. Este afastou-os, dirigiu-se a um jornalista e espetou-lhe o dedo no peito.

- Você. Você e o seu cameraman podem começar. Aqui.

Ele e Waters afastaram os dois homens do grupo. Eles não ficaram muito satisfeitos, mas Waters e Griffin não pareceram importar-se com isso. Griffin obrigou o jornalista a recapitular os seus apontamentos, enquanto Waters fazia o cameraman passar a fita gravada. No último minuto foram recompensados com a imagem cheia de grão das costas de um homem a correr no telhado do tribunal. Quando ele levantara a câmara depois do disparo, o atacante já estava demasiado afastado para ele poder captar uma boa imagem.

- O tipo estava todo vestido de preto - disse o jornalista. Tinha qualquer coisa na cabeça. Talvez uma meia. Sabem, como os assaltantes de bancos nos filmes.

Griffin grunhiu. Waters tomou nota dos nomes e do canal de televisão dos dois homens, depois chamaram outros jornalistas. Estes foram ainda piores. O cameraman gostava tanto de tiros que atirara o equipamento no valor de cinco mil dólares para cima da relva.

- Não me dou bem com sons muito elevados - disse ele envergonhado.

- Por amor de Deus, Gus! - exclamou a jornalista que o acompanhava. - O que vai acontecer se nos enviarem para o Afeganistão?

- Trabalhamos para a filiada da UPN no estado mais pequeno da nação, Sally. Quando é que raio nos vão mandar para o Afeganistão?

- Olhou ao menos para cima? - Griffin decidiu interromper o arrufo.

- Sim - respondeu Gus. - Vi uma pessoa a correr pelo telhado.

- Uma pessoa? - insistiu Waters. Gus encolheu os ombros.

- Só vi a roupa preta. Podia ser um homem, mas também podia ser uma mulher. Hoje em dia, quem é que consegue saber?

- Muito observador, Gus, muito observador. , Griffin virou-se para Sally.

- E você?

A morena de expressão dura fitou Griffin.

- Pareceu-me que era um homem. Ombros largos. Cabelo curto e escuro. Vestia umas jardineiras pretas, parecidas com as dos mecânicos. Ora muito bem. Está com bom ar depois das suas férias, Griffin. Um sargento dos Crimes Graves, com pouco trabalho depois de ter estado tanto tempo afastado. Aposto que vão pô-lo à frente deste caso. Por que é que não me concede uma entrevista? Cinco minutos. O meu chefe pede autorização ao seu. O que me diz?

Waters olhava para ele com uma expressão estranha. Ainda não ocorrera a Griffin que podiam pô-lo à frente da investigação. Essa decisão não era normalmente tomada de imediato. No entanto, Sally tinha razão. Griffin era um sargento, tinha experiência na condução de investigações e de momento estava com pouco trabalho.

- Tenho a certeza de que o comandante-detective irá em breve prestar declarações à imprensa - respondeu Griffin a Sally. Depois regressou para junto dos outros jornalistas. - Os próximos!

Ele e Waters levaram duas horas a concluir as entrevistas. No fim, tinham a descrição de um homem branco, entre um metro e cinquenta e um metro e oitenta, com cabelo que podia ser castanho, louro ou preto, entroncado ou muito magro, com uma máscara de esqui, uma máscara de Zorro, uma meia ou nada na cabeça, e que podia ou não ser muito parecido com a personagem que James Gandolfini interpretava em Os Sopranos.

- Pronto, acho que podemos preparar alguns suspeitos para serem identificados.

- Absolutamente. E eu que achava que iríamos levar o dia inteiro para saber que ninguém vira nada. Em vez disso levámos... o quê? Duas horas e meia?

- A chefe vai ficar muito satisfeita - concordou Waters. Suspiraram ambos. Afastaram-se dos jornalistas, que tinham visto o

major do outro lado da rua e haviam recomeçado a pedir aos gritos a conferência de imprensa.

- O que te parece? - perguntou Waters, olhando em volta para se certificar de que nenhum jornalista os vira afastarem-se. Ainda pairava no ar algum fumo acre da explosão que deixava as vozes roucas.

- Isto não vai levar a lado nenhum - respondeu Griffin. - Um único disparo para a cabeça, por isso o tipo devia ser um profissional. Deixou tudo no telhado, por isso devia saber que a espingarda e o resto das coisas nunca iriam conduzir a nada. Aposto que, assim que disparou, ficou com roupas de civil e se dirigiu para o tribunal onde se misturou com o resto dos transeuntes.

- Limitou-se a descer a rua até ao veículo que deixara preparado para a fuga - acrescentou Waters.

- Onde teve uma fuga ainda maior do que a esperada.

- Ainda vamos ter de descobrir quem ele era para confirmar a sua profissão, e depois tentar descobrir quem o contratou.

- Não sei. com tudo o que ouvimos, acho que o tio Vinnie parece cada vez mais o principal suspeito. Tem motivos, tem conhecimentos para contratar um assassino. Parece-me que o tom andava a tramar qualquer coisa. Ou... - O tom de Waters tornou-se mais pensativo.

- A senhora de East Side tem bastante dinheiro. Talvez tenha contratado o assassino. Ou talvez as três mulheres tenham conspirado juntas... ouvi dizer que formaram uma espécie de grupo de apoio. Claro, não sei por que motivo iriam matar o assassino. Mas por outro lado, quando se decide matar um criminoso, o que é matar mais um?

Griffin limitou-se a grunhir. Não gostava de tirar conclusões precipitadas. Folheou o caderno de espiral.

- Olha, Mike, o que aconteceu à NBC?

- Não sei. O Seinfeld acabou, o Serviço de Urgência perdeu o Clooney?

- Não, não, quero dizer, ainda não entrevistámos ninguém da WJAR. Acreditas mesmo que o Canal Dez não mandou nenhuma equipa?

Waters franziu o sobrolho. Olhou em volta para o parque. E depois arregalou os olhos.

- Além, no fim do quarteirão. Aquela carrinha não tem escrito "Canal Dez"?

- Bem, quem havia de dizer. Dois jornalistas deixaram a manada e isolaram-se. Ora, por que haviam dois jornalistas de fugir da matilha?

- Por que têm alguma coisa?

- Não, não, Mike, nós é que temos alguma coisa. Vamos apanhá-los.

Sessenta segundos mais tarde, Griffin bateu à porta da carrinha. Ela não se abriu como que por magia. Ele bateu com mais força. As vozes no interior calaram-se imediatamente.

- Vá lá, pá! - exclamou ele. - Sou o sargento Griffin da polícia estadual. Agora abram, senão soprarei, soprarei e a vossa carrinha derrubarei!

Outra pausa demorada. Por fim, um clique, depois a porta abriu-se devagar. Sentada lá dentro, Maureen Haverill dirigiu aos detectives o seu melhor sorriso de jornalista.

- Griffin! - exclamou calorosamente. - Ouvi dizer que ia regressar ao activo.

Maureen Haverill trabalhava na filiada local da NBC havia cinco anos. Uma loura pequenina, era suficientemente pretensiosa para um dos noticiários matutinos das cadeias nacionais e devia achar que era apenas uma questão de tempo. Naquele momento, os seus olhos azuis estavam bastante brilhantes. Parecia uma toxicodependente que tivesse acabado de consumir a sua dose. Ou uma jornalista a quem saíra uma cacha. O seu cameraman não se encontrava à vista. Devia estar muito ocupado a copiar a cassete. Bolas.

- Vocês os dois, já lá para fora. - A voz de Griffin era áspera.

- Griffin...

- Lá para fora!

Maureen esboçou um sorriso desdenhoso. Demorou bastante tempo a descer da carrinha, a loura indefesa com uma saia verde-clara demasiado curta e justa. Provavelmente conseguiu mais trinta segundos para o colega.

- Prometo-lhe, Maureen, que se você copiar aquela cassete eu acuso-a de ocultar provas - informou Griffin.

- Não sei do que é que está a falar.

- Jimmy! - chamou ele. - Você também. Já.

Uma cabeça com bastante cabelo ruivo revolto apareceu com relutância.

- Estávamos apenas a tomar alguns apontamentos - disse Jimmy amuado. - Será que dois jornalistas já não podem trabalhar? O ruivo volumoso desceu para o passeio. Nunca olhou para os detectives. Havia uma película de suor recente na sua testa.

- Quero a cassete - declarou Griffin.

- Que cassete? - tentou Maureen mais uma vez.

- A cassete que você está a copiar à pressa para a sua cacha, e que neste momento deve estar a ir para o ar. Seria uma pena, Maureen, que um jornalista inexperiente tivesse de fazer a locução da peça por você estar presa.

- Não pode prender-me! com que motivo?

- Obstrução à justiça.

- Oh, por favor! Isso são balelas, e você sabe-o.

- Passaram dezoito meses, e o meu conhecimento da lei está um pouco enferrujado. Primeiro prendo-a, depois deixo que os tribunais resolvam o problema.

Maureen começou a ficar chateada.

- Caramba, estou protegida pela Quarta Emenda contra buscas e apreensões ilegais!

- Então ainda bem que estamos junto a um tribunal. Eu fico aqui consigo. O detective Waters pode dar um pulinho ao outro lado da rua e trazer uma intimação. Meia hora mais tarde, não só apreendemos a cassete, como também lhe prometo que quando terminarmos daremos cópias da filmagem a todos os noticiários deste estado. Compreende? A todos.

- Nem pensar. É a minha cacha!

- Uma ova. É a nossa prova e assim que lhe deitarmos a mão podemos fazer o que nos apetecer.

- Bolas, Griffin! Gostava muito mais de si antes de... - O protesto de Maureen terminou abruptamente. Pareceu aperceber-se do que estava prestes a dizer e teve a delicadeza de corar.

Griffin ficou calado. Limitou-se a olhar para ela. Tornara-se um especialista a olhar para as pessoas no último ano. As vezes, especialmente durante os primeiros meses depois do Grande Bum, dava consigo diante de um espelho a olhar daquela maneira. Como se tentasse olhar para dentro dos seus próprios olhos e captar o homem que lá vivia.

- Quero a cassete - repetiu. - É uma prova. E o que fizerem com ela, incluindo copiá-la, será considerado adulteração de provas. Temos sessenta detectives a vasculhar este quarteirão, Maureen, já para não falar nos mais de cem agentes. Acha mesmo que o secretário da Justiça vai gostar de ouvir que uma jornalista local adulterou uma prova potencialmente fundamental?

Maureen mordeu o lábio inferior, parecendo muito menos determinada.

- Quero um acordo - anunciou abruptamente.

- Porquê, Maureen, vai confessar algum crime?

- Nós colaboramos, entregamo-vos a cassete...

- Quer antes dizer que nós apropriamo-nos dela.

- Nós entregamo-la. Em troca de alguma consideração. Uma entrevista exclusiva com o coronel.

Griffin soltou uma gargalhada.

- com o major - emendou ela. Griffin riu-se ainda mais.

- com o comandante-detective. Vá lá, Griffin. Está a tirar-me imagens exclusivas. As melhores imagens da minha carreira. Merecemos pelo menos uma entrevista. E ainda direitos exclusivos para a cópia da cassete. Nada de a entregar a outros. Se não olharam para cima, azar o deles.

- A sua compaixão comove-me.

- Pois, pois. O que me diz? Cinco minutos com o comandante-detective, direitos exclusivos sobre a cassete.

- Trinta segundos com o oficial à frente do caso, direitos exclusivos sobre a cassete.

- Três minutos.

- Um, com a aprovação prévia das perguntas. Senão, as únicas respostas que vão ouvir serão "Sem comentários."

Maureen fez um sorriso desdenhoso. Lançou-lhe um olhar de esguelha.

- Você vai chefiar a investigação, Griffin?

- Será nomeada uma pessoa para dirigir a investigação do caso na altura apropriada.

- Porque isso seria uma boa história, sabe? O menino de ouro de Rhode Island regressa à guerra. Muitas pessoas acharam que você não iria regressar depois do caso do Homem dos Doces. Muitas pessoas não sabiam se você estaria interessado, e outras não sabiam se teria coragem. Gosta assim tanto da profissão, Griffin, ou é apenas uma daquelas coisas que se entranha na pessoa? - Decidiu mudar de táctica. Sei que ele ainda lhe manda cartas.

- Um minuto com o oficial à frente do caso. Sim ou não, Maureen. A proposta sai da mesa dentro de cinco, quatro, três, dois...

- Está bem - apressou-se ela a concordar. - Está bem. Um minuto com o oficial à frente do caso. Aceitamos. - Suspirou, dedicou mais um minuto a fazer um ar destroçado ao ver desaparecer o seu sonho de uma notícia de abertura no noticiário das cinco, depois voltou ao normal. - É para aprendermos a não fazer certas gravações murmurou. - Bem, já agora é melhor entrar. Vai querer ver isto.

Na parte de trás da carrinha, Jimmy ligara a sua enorme máquina de filmar a um monitor. Ele e Maureen ainda não tinham preparado a cassete, mas haviam-na visto uma e outra vez à procura das melhores partes. Jimmy carregou no botão "Play" pela última vez. O filme durava setenta e cinco segundos e mostrava tudo. Tudo mesmo.

- Como raio é que conseguiu isto? - perguntou Griffin, furioso. Deu dois passos em frente antes que Waters pudesse detê-lo, e encostara Maureen ao painel na parte lateral da carrinha. - Está a brincar connosco?

-Não, não, juro...

- Recebeu um telefonema anónimo? Um Garganta Funda a dizer-lhe que ia acontecer uma coisa importante, e não lhe apeteceu contar-

-nos isso?

- Griffin, Griffin, percebeu tudo mal...

- Não filmou sequer a carrinha! Tiveram sempre a câmara apontada para o

telhado! Havia outras onze equipas de jornalistas no relvado, Maureen. Todas elas estavam

a olhar para a carrinha. Por que é que você estava a olhar para cima? O que raio sabia você que os outros desconheciam?

- Não sei! - exclamou ela. Ergueu o queixo e encostou os ombros ao painel. - Só que... durante toda a manhã tive a sensação de que alguém me estava a observar. Não estou a brincar. Senti arrepios na espinha, os cabelos da minha nuca eriçaram-se. Para onde quer que fosse, o que quer que fizesse, sentia... qualquer coisa. Depois ouvi um grito a prevenir-nos da chegada da carrinha, pelo que comecei a ajustar o microfone e... e olhei para cima. Uma última vez. Para o telhado. Juro que vi um movimento. Por isso toquei no braço do Jimmy e disse-lhe que apontasse a máquina para o telhado. Imediatamente.

- Eu pensei que ela tinha enlouquecido - interveio Jimmy da parte de trás. - Mas captar imagens de uma carrinha azul também não é nada de transcendente. Por isso foquei o telhado do tribunal, e o que vi? Um tipo a levantar-se e a abrir fogo. Uma coisa mesmo esquisita. Achei que o nosso filme passaria nos telejornais a nível nacional.

- Que receberíamos prémios - acrescentou Maureen. - De certeza prémios. - O brilho nos seus olhos regressara. Encostada à parte lateral da carrinha, estremeceu.

Griffin recuou, devagar. Ainda tinha os punhos cerrados. Obrigou-se a abrir as mãos, a descontrair os ombros e a respirar fundo. Sentiu-se subitamente enojado. E apercebeu-se pela primeira vez que Waters o observava com nervosismo. Maureen e Jimmy também. Deviam estar todos a pensar naquela maldita cave. Talvez devessem estar.

Respirou fundo mais uma vez, mediu mentalmente o pulso e contou devagar até dez.

- A cassete - disse, assim que teve coragem para voltar a falar. com relutância, Jimmy abriu a máquina de filmar e tirou de lá a

cassete digital. Waters fez aparecer o saco de plástico para as provas. Jimmy lançou à cassete um último olhar e meteu-a lá dentro.

- Não se esqueça do nosso acordo - disse Maureen.

- Pois, pois, pois.

- Se conseguirmos uma cópia antes das quatro - disse ela muito séria -, ainda podemos aparecer nos noticiários das cinco.

- Eu digo aos tipos da UIC. - Uma cópia antes das quatro. Teria sorte se a conseguisse ter dentro de seis meses.

Maureen encostou-se à parte lateral da carrinha. Perdera aquele round, mas Griffin percebeu que ela já estava a planear a batalha seguinte.

- Vá lá, Griffin, seja sincero. Esse tipo já está morto, não está? Fizeram-no explodir naquele parque de estacionamento depois do assassínio do Eddie Como?

- Não comento.

- Foi o que pensei. Vai falar agora com as vítimas? com as três mulheres?

- Não comento.

- Talvez elas façam uma conferência de imprensa. Isso seria agradável. Durante o último ano conseguimos uns bons furos com aquelas três e o seu clubezinho. - Maureen mordeu o lábio inferior. - Será que eu conseguiria levá-las a dar-me o exclusivo desta vez...

- As vítimas de violações dão conferências de imprensa? - Griffin olhou para Waters, confuso.

No entanto, foi Maureen quem lhe respondeu.

- Credo, Griffin, onde é que você tem estado? Logo a seguir à morte da Trisha Hayes aquelas mulheres dominavam praticamente o noticiário das cinco. A irmã, Jillian, uniu-as numa espécie de grupo. O Clube das Sobreviventes, chamam-lhe elas. Depois começaram a enviar comunicados à imprensa. Resultou às mil maravilhas. Antes de se tornarem públicos, as pessoas já tinham conhecimento dos ataques, mas não perdiam o sono com isso. Sabe como são as pessoas... os crimes violentos acontecem sempre aos outros. Especialmente as violações. Isso acontece só às outras mulheres... sabe, a mulheres pobres, mulheres pertencentes a minorias, mulheres que vivem em zonas de risco ou que levam vidas arriscadas. Só que um dia, as pessoas ligaram a televisão e ali estavam as três vítimas - bonitas, brancas, cultas e abastadas. Duas delas nem sequer são adolescentes, mas sim mulheres maduras, respeitáveis, com vidas respeitáveis de classe média.

"As pessoas ficaram loucas - prosseguiu Maureen com secura. "Olhem para aquelas pobres mulheres, brutalmente agredidas nas suas próprias casas. Prendam alguém, prendam alguém, mas, por amor de Deus, façam justiça antes que a próxima vítima seja a minha filha, a minha irmã, a minha mãe, a minha mulher. O que raio tem andado a polícia a fazer?" Sei que, depois de terem aparecido pela primeira vez na televisão, o telefone do procurador-geral não parou de tocar durante uma semana.

- Deram um rosto aos crimes - observou Griffin.

- O Clube das Sobreviventes deu aos crimes rostos muito atraentes. Alguma vez estudou psicologia? As pessoas avaliam mesmo um livro pela sua capa. Pessoas feias têm o que merecem. Pessoas bonitas, por outro lado...

Griffin assentiu. Compreendia.

- Elas deram muitas conferências de imprensa? - perguntou ele com curiosidade.

- Não sei. Cinco ou seis.

- Sempre as três mulheres?

- Sempre as três mulheres. Nada de entrevistas individuais; deixaram isso bem claro desde o início.

- E as famílias delas? Maureen encolheu os ombros.

- Às vezes via-se o marido da Carol Rosen ou a mãe da Meg Pesaturo ao fundo, mas todas as conferências de imprensa eram claramente destinadas às mulheres. Afinal de contas, elas é que foram brutalmente atacadas enquanto os chuis de Providence ficaram quietinhos durante seis semanas.

- Estão amargas?

- As palavras são minhas, não delas.

- Emotivas?

- As vezes. Não muitas. Parecem-me mais... determinadas. Em cada conferência, o Clube das Sobreviventes tinha uma exigência. Por exemplo, quando deram uma em frente ao Departamento de Polícia de Providence, exigiram mais polícias de giro em College Hill. Quando estiveram diante da Câmara, lançaram um apelo para policiamento comunitário. Diante do gabinete do procurador-geral, quiseram uma investigação mais agressiva, arranjem um suspeito e tirem-no das ruas, já, já, já. Estamos a falar de um violador em série, e todos sabemos que os violadores em série não param magicamente sozinhos.

- Por outras palavras, elas excitaram o público - observou Griffin, pensativo. Ah, pois, percebia isso. Os detectives de Providence deviam adorar essas tardes. Nada como uma flagelação pública pelas pessoas que tentávamos ajudar para nos fazer sentir bem na profissão. Claro que se o caso tivesse sido entregue à polícia estadual o tipo teria sido preso logo no primeiro dia. Nem era preciso dizê-lo.

- O Eddie Como atacou quatro mulheres em seis semanas - declarou Maureen com firmeza. - Matou uma delas. Como é que acha que a Jillian Hayes se deve sentir neste momento, sabendo que, se os detectives de Providence tivessem estado mais atentos depois do segundo ataque, talvez o terceiro nunca tivesse ocorrido? Talvez a irmã dela ainda estivesse viva.

- Ela disse isso?

- Não foi preciso. Só pelo facto de estar ali de pé recordou ao público o que acontecera à irmã e, por sua vez, podia acontecer à irmã de qualquer um enquanto o violador andasse à solta. O público reagiu a isso. Bolas, o público devorou isso. Aposto que as mulheres poderiam dar uma conferência de imprensa esta tarde e anunciar que tinham alvejado o Eddie Como e ninguém sequer pestanejaria.

- Elas são atraentes? - perguntou Griffin secamente.

- Não! - Maureen revirou os olhos. - São... estimulantes. Pense nisso. Tem a Jillian Hayes, a irmã mais velha trabalhadora que dirige a sua própria empresa enquanto toma conta da mãe inválida. É elegante, é serena, mas traz sempre na mão uma fotografia da irmã mais nova a sorrir, que tinha apenas dezanove anos quando o Eddie Como a matou. Depois temos a Meg Pesaturo, que parece o Bambi, com os seus grandes olhos castanhos e ombros trémulos. Confie em mim, não há nenhum homem nesta cidade que não olhe para ela e não tenha vontade de matar o Eddie Como com as próprias mãos. E, por fim, temos a Carol Rosen, a loura de olhos azuis, a esposa bonita que por um lado vive numa mansão, mas por outro lado passa o tempo a ajudar as instituições de caridade da zona. Não conseguiria reunir um grupo melhor mesmo que tentasse.

- Uma mulher de negócios, uma estudante e uma dona de casa da burguesia. Por outras palavras, um bocadinho para toda a gente.

- Exacto.

- Revezando-se ao microfone - murmurou Griffin.

- Oh, não! A Jillian Hayes é a porta-voz do grupo. É só ela quem fala.

- Sempre?

- Sempre. Acho que fizeram um acordo. Para além do mais, ela tem experiência de marketing e as outras duas nunca pareceram muito à vontade diante das câmaras.

- Então elas nunca fazem exigências - disse Griffin devagar. A Jillian Hayes faz exigências.

- Falou em nome de todas. Por amor de Deus, a Carol e a Meg estavam ao lado dela.

- Mas a Jillian é a líder desse tal Clube das Sobreviventes?

- Ora, Griffin, até parece que ela anda a tramar alguma coisa.

- Estou só a pensar em voz alta.

Maureen ficou em silêncio durante algum tempo. Os seus olhos azuis tinham adquirido de novo a sua expressão agressiva.

- Temos umas imagens que talvez você gostasse de ver. Griffin e Waters olharam um para o outro.

- Parece que toda a gente tem imagens - observou Griffin num tom neutro. - É essa a natureza de uma conferência de imprensa.

- Temos imagens melhores.

- Estava novamente a olhar para um telhado, Maureen?

- Mais ou menos.

- Vá lá. - Griffin começava a ficar farto daquela conversa. Agitou os dedos. - Desembuche, Maureen. Já pôs no ar aquilo que tem, e isso torna as imagens propriedade pública. Então deixemo-nos de rodeios e a sua colaboração não será esquecida.

- Como?

- Da próxima vez que nos encontrarmos, prometo não lhe rosnar como lhe estou a rosnar neste momento.

- Tem graça, pensei que as férias prolongadas lhe teriam melhorado o temperamento, sargento Griffin.

- E eu pensei que seguir o percurso de três mulheres que foram brutalmente atacadas lhe teria ensinado o que é a compaixão. Acho que nos enganámos os dois.

Os lábios de Maureen transformaram-se numa linha fina. Ao lado dela, Jimmy virou-se antes que ela pudesse ver o seu sorriso.

- Temos umas imagens da Carol Rosen - disse Maureen abruptamente.

- A esposa bonita.

- Sim. É a terceira ou quarta conferência de imprensa. Já nem me lembro qual era a exigência. Mas a Jillian está a falar ao microfone, e a Carol e a Meg estão a fazer aquilo que fazem melhor, em pé ao lado dela, quando o marido da Carol aparece. Aproxima-se da mulher por trás, e acho que ela não o ouviu chegar, porque assim que ele lhe pousa uma mão no ombro, ela dá um salto, apavorada. O Jimmy estava por acaso a filmá-la quando isso aconteceu, e a expressão dela... Percebe-se bem:

mesmo em plena luz do dia, rodeada por uma série de pessoas, aquela mulher estava apavorada. Não se sentia em segurança. E é isso que significa ser sobrevivente de uma violação. É um momento televisivo poderoso. E, para que conste, somos os únicos que o temos gravado.

Maureen parecia tão orgulhosa que Griffin apenas se limitou a olhar para ela. Waters devia estar a fazer a mesma coisa, porque pouco depois Maureen fungou e apontou para eles.

- Oh, vá lá! Vocês já são grandinhos, têm experiência. Sabem como este jogo se joga.

- Você está a dizer-nos - começou Griffin devagar - que acha que a Carol Rosen matou o Eddie Como. E acredita nisso porque, por acaso, captou um momento em filme, um momento em que ela sentia um terror abjecto?

Maureen semicerrou os olhos.

- Sabe o que ele lhe fez, Griffin? Já leu o relatório do ataque? Meu Deus, quando o Eddie Como terminou ela não foi capaz de andar durante cinco dias. A Jillian Hayes pode ter perdido a irmã. A Meg Pesaturo pode ter perdido a memória. Mas, por aquilo que vi, a Carol Rosen quase enlouqueceu. Eu era capaz de matar uma pessoa que me tivesse feito isso. Você não?

Era uma pergunta perigosa e todos o sabiam. Griffin ficou calado. Pouco depois, Maureen abanou a cabeça, impaciente.

- Olhem, ambos sabemos o que é que você vai fazer a seguir. Vai à procura das três vítimas. Vai perguntar qual delas puxou o gatilho. E assim que uma delas pestanejar, você leva-a presa. Por isso não me venha dar sermões sobre a compaixão, sargento. Isto é um jogo. E você não teria voltado se não estivesse com saudades de o jogar.

- Sou um desgraçado - murmurou Griffin. Maureen abanou de novo a cabeça.

- Não, a Carol Rosen é que é uma desgraçada.

 

Carol

Ela está a assistir ao noticiário das dez na Fox. Os seus olhos estão sempre a fechar-se. Gosta de se levantar cedo, e hoje está a pé desde as cinco, pelo que às dez da noite já é demasiado tarde. Devia desligar a televisão. Devia ir para a cama.

A casa é grande e está silenciosa. O relógio de pêndulo acabou de tocar no vestíbulo, mas ela ainda sente as vibrações graves a espalharem-se pelos recantos da sua casa vitoriana com cento e cinquenta anos. Houve tempos em que ela achara o som reconfortante. Em que passara, orgulhosa, a mão pelo corrimão de cerejeira polido da escadaria da casa. Em que revistara todos os quartinhos do sótão, na torre com telhas de madeira, como um caçador em busca de um tesouro.

Esses tempos haviam passado. Cada vez mais ela olha para esta casa que recuperou com tanto custo e vê nela a sua prisão.

- Tens de trabalhar sempre até tão tarde? - perguntou ela ao marido, Dan.

- Caramba, Carol, alguém tem de pagar isto tudo! Uma canalização nova não é propriamente oarata, como sabes.

Ela não se recorda de ele ser assim no inicio. Fora ele quem encontrara a casa, quem chegara a correr certa tarde à casa alugada onde ambos viviam e anunciara muito excitado que acabara de ver o futuro lar de ambos. Uma casa em East Side é uma grande subida na escala. Era ali que as grandes famílias de Providence viviam outrora. Os banqueiros, os armadores magnatas, os joalheiros. Anteriormente, Dan costumava falar de irem morar para Benefit Street, mas de maneira alguma tinham dinheiro para uma daquelas enormes mansões antigas.

Esta casa, contudo - velha, negligenciada, tragicamente subdividida em apartamentos de aluguer -, era diferente. O preço era baixo. Já o encargo com que ficariam a longo prazo...

Para ser sincera, Carol também se apaixonara pela casa. O torreão de três andares, o alpendre a toda a volta, os pormenores requintados. Sim, precisava de um telhado novo, de ligações eléctricas novas, de uma canalização nova. Precisava que as paredes recentes fossem demolidas e as antigas reconstruídas. Precisava de trabalho de carpintaria, de trabalho de pedreiro. Precisava de uma boa lavagem, de ser lixada e pintada.

Precisava deles. Fora isso que ela pensara no inicio. Precisava de um casal simpático, jovem e em ascensão social, com cada vez maior poder financeiro e muitos carinhos. Lentamente, mas com determinação, iriam restituir a casa à sua glória anterior. E encheriam os seus cinco quartos com uma nova geração de bebés felizes. Era disso que as casas velhas precisavam. Não apenas de fios eléctricos novos, mas de uma injecção de vida.

Haviam estado tão esperançados naquela época! O escritório de advocacia de Dan começava a crescer e, embora ela trabalhasse como sua secretária, sabiam que seria apenas uma questão de tempo até ela se tornar uma mãe doméstica, com dois vírgula dois filhos e, já agora, um cãozinho muito bem ensinado.

Carol levanta-se do sofá. Desliga a televisão. Ouve o silêncio, o silêncio absoluto e total de uma casa com trezentos metros quadrados que continua demasiado vazia.

E constata que odeia aquele som.

- Caramba, Carol, alguém tem de pagar isto tudo!

Lá em cima, o ar está quente e parado. A temperatura hoje chegou quase aos trinta e dois graus, o que não é normal para o início de Maio, mas a Nova Inglaterra é assim mesmo. Se não se gosta do tempo, é só esperar um minuto. Infelizmente, a casa não tem ar condicionado e o quarto está insuportavelmente quente. Carol abre a janela para arrefecer o aposento. Pode ligar o alarme com a janela aberta, mas isso implica alinhar o conectar da janela com o segundo conectar colocado mais acima no parapeito, afim de completar o circuito. A companhia de seguros sente-se orgulhosa desta inovação. No entanto, Carol acha uma estupidez. Se alinhar os conectares, pode apenas abrir a janela uns dez centímetros, o que não permite a entrada de muito ar. Precisa de ar fresco para dormir; abre a janela toda.

Afinal de contas, são dez e oito da noite. Dan deve estar a chegar.

Despe-se sem acender a luz. Lá fora ouve carros a passarem e o murmúrio distante de vozes. Vivem na zona muitos estudantes universitários e Carol tem a impressão de que eles nunca dormem.

Carol puxa a colcha para os pés da cama. Vestindo uma camisa de dormir em seda cor-de-rosa, enfia-se finalmente entre os lençóis. Suspira, o tecido de algodão fresco junto à sua pele.

Pouco depois adormece.

Um barulho acorda-a. Não sabe o que foi. Pestaneja, desorientada, depois vê um vulto aos pés da cama.

- Dan? - murmura, ensonzda. - Que horas são, querido? O vulto não diz nada.

- Dan? - torna ela a perguntar. E então, subitamente, compreende.

Carol salta da cama. Consegue afastar-se meio metro, depois o homem agarra-a pelo cabelo. O pescoço dá um esticão ao ser puxado para trás. Ela grita, mas o som é abafado, engasgado, tão diferente do normal. "Grita!", pensa ela. "Grita!"

Mas não consegue. A sua garganta não funciona. Não tem saliva suficiente na boca. Emite apenas uma exclamação.

Enquanto o homem a puxa pelo cabelo, de regresso à cama.

"Dan", pensa ela. "DAN!"

O homem atira-a para cima da cama. Ela tenta espernear, mas ele agarra-lhe os tornozelos com a mão. Ela bate-lhe na cabeça, mas os seus esforços inúteis não parecem incomodá-lo. Então ele levanta a outra mão. Esbofeteia-a com força.

A cabeça dela inclina-se para o lado. A maçã do rosto explode, o olho incha. Antes de conseguir recuperar, ele esbofeteia-a de novo. O lábio dela rebenta. Sente o sabor a sal do próprio sangue enquanto as lágrimas lhe correm pela cara.

Ele atou-lhe qualquer coisa ao pulso. Ela tenta puxar o braço, mas o movimento súbito crava o torniquete ainda mais na sua pele. Ele sentou-se em cima dela e embora ela tenha a certeza de que está a lutar, tem de estar a lutar, ele prendeu as suas mãos, depois os seus pés, aos postes da cama.

Ela chora abertamente agora, enormes soluços. O corpo retesa-se contra as amarras. Ela contorce-se, eleva-se. Mas nada pode fazer. Está presa, os ombros doridos, as pernas abertas, revelando... tudo.

Está vulnerável. Está indefesa. E, embora implore, sabe o que ele irá fazer em seguida.

De repente, ele desenrola um bocado de tecido e enfia-o na boca dela, à laia de mordaça. Látex, regista o seu cérebro chocado. Ele prendeu-a com bocados de látex, e a substância rija e aborrachada crava-se na sua pele.

Mais látex a cobrir-lhe os olhos. Não consegue ver o que vai acontecer a seguir, e isso torna as coisas ainda piores.

A camisa de noite é-lhe arrancada do corpo. O tinir do metal no quarto silencioso quando ele desaperta o cinto. O som do fecho de correr a abrir-se. Depois o som das calças a caírem no chão, a respiração ofegante dele à medida que se aproxima cada vez mais...

O colchão a curvar-se, o peso dele a descer...

Dan, por favor, Dan...

E então a mão do homem, subitamente, brutalmente, a apertar-lhe o pescoço.

Ela não se lembra bem do que aconteceu a seguir. Isola-se algures dentro de si. O quarto é um vazio negro, um local onde outra pessoa, um manequim, uma boneca Barbie, uma mulher sem sentimentos, existe. Ela é uma criança pequenina, enroscada na sua cabeça, com os braços em volta dos joelhos unidos, a murmurar uma e outra vez "Dan, Dan, Dan..."

Depois o peso desaparece. Ela leva algum tempo a reparar. Sente as mãos dele nos seus tornozelos. O torniquete direito desaparece. Depois o esquerdo. A corrente sanguínea fora interrompida. Ela já não consegue sentir os pés.

Ele aproxima-se da cabeceira da cama. A mão esquerda dela é libertada. Depois a direita.

O corpo dela foi como que espancado, está cansado e dorido. Ela não consegue pensar. Não consegue mexer-se. Mas acabou, diz a si mesma, e sente o começo da histeria. Acabou e ela continua viva!

Então o homem vira-a de barriga para baixo. Volta a subir para a cama. O homem faz-lhe coisas que ela apenas lera, e desta vez ela tem a certeza de estar a gritar. Está a gritar, a gritar, a gritar.

Mas tem a mordaça na boca. O colchão absorve o som.

Ela está a gritar e ninguém ouve nada.

O tempo desapareceu. A realidade foi suspensa. Os olhos dela ficam vítreos. A saliva amontoa-se em redor da mordaça e pinga para os belos lençóis de algodão egípcio.

Quando ele finalmente termina, ela já não dá por isso, nem se importa. O homem regressa. Enfia-lhe qualquer coisa no corpo imóvel. Um líquido frio espirra por toda a parte.

Ele volta a pô-la de barriga para cima, volta a prender-lhe os pés e as mãos, depois contempla o seu rosto. Por fim, quase com ternura, tira-lhe a mordaça.

- Acabou - murmura. - Vá, podes gritar. Chama os vizinhos, chama a polícia.

O homem desaparece pela janela aberta. Por fim ela fica sozinha.

Carol não grita. Está amarrada à cama, nua. Não vai chamar os vizinhos. Não vai chamar a polícia. O homem sabia isso, e ela sabe-o agora também.

E assim fica ali deitada, a sentir um líquido a escorrer-lhe pelas coxas. Fica ali deitada, com o esperma de outro homem a escorrer-lhe pelas pernas e aguarda...

Aguarda que o marido volte finalmente para casa.

Seis da manhã, segunda-feira, Carol Rosen preparou-se para o dia. O dia. Dan já saiu de casa. Disse que queria chegar cedo ao trabalho para poder tirar a tarde, se a chamassem para depor. Sabiam ambos que ele estava a mentir. O advogado de acusação, Ned DAmato, garantira-lhe que nunca acontecia o que quer que fosse no primeiro dia de um julgamento. A defesa ocupa a manhã com moções de última hora que a seguir são recusadas, depois a escolha do júri ocupa a tarde toda.

Mas Dan insistira. Nunca se sabe, dissera. Nunca se sabe.

Agora Dan costumava chegar a casa por volta das sete. Mas mesmo quando estava presente parecia ausente, e Carol tinha a impressão de que ele se levantava cada vez mais cedo. Como se às cinco da manhã ele já não suportasse estar sozinho com ela naquela casa.

Carol odiava-o por isso. Talvez odiasse a casa ainda mais.

Subiu as escadas, tomou um duche demorado com a cortina do chuveiro aberta, a porta da casa de banho aberta. Ultimamente precisava de muito espaço. Precisava de ver o que se aproximava. Tinha de saber onde estivera. O alarme encontrava-se sempre ligado. Há dez meses que não desligava a televisão. Muitas vezes adormecia no sofá, diante das vozes e do ecrã colorido.

Depois do duche, tirou do roupeiro o fato novo cor de manteiga. Dan ainda não sabia da existência do rato. Ultimamente andava obcecado com dinheiro. No mês anterior ouvira-o fechar uma conta que estava em nome dos dois. Ela não dissera nada; ele também não.

Era estranho. De certa forma, ele estava mais atencioso que nunca. Vinha jantar a casa, perguntava-lhe de que precisava. Logo a seguir àquela noite, nos dias que ela passara no hospital, ele nunca se afastara dela. Quatro dias, quatro noites, provavelmente o período de tempo mais longo que passavam juntos desde a lua-de-mel, dez anos antes.

Quando ela regressara finalmente a casa, ele já passara o quarto para uma assoalhada diferente, uma das localizadas no torreão, longe da cena do ataque. Comprara uma cama nova, um colchão novo, lençóis novos. Mandara pôr grades de ferro forjado muiro trabalhadas em cada janela.

Ela lançara um olhar ao quarto redondo e escuro e desatara a chorar. Ele abraçou-a, desajeitado, dando-lhe palmadinhas nas costas, embora para ele fosse difícil tocar-lhe e para ela deixar-se tocar. Não compreendia o desespero dela, e ela não sabia como explicá-lo.

Durante uma semana, trouxe-lhe um ramo de flores todas as noites e comida pronta dos restaurantes preferidos dela. A culpa, decidiu ela, cheirava a rosas vermelhas e a piccata. de vitela.

Na casa reinava um silêncio ainda mais profundo. Ela parou diante do espelho e contemplou a mulher aí reflectida.

Na maior parte dos dias, continuava a sentir que não pertencia a si própria. Aquela mulher com maçãs de rosto salientes e queixo determinado não podia ser ela. Aquela mulher com os brincos de pérola e o fato Chanel parecia poder estar numa festa ou na abertura de um museu. Ou talvez noutra festa de cariz social patrocinada pela Sociedade para a Preservação de Providence. Por outras palavras, as coisas que Carol icostumava fazer.

Aquela mulher no espelho parecia demasiado normal para ser ela.

Despiu o fato. Quando fosse uma hora mais civilizada, digamos sete da manhã, ligaria a Jillian a perguntar-lhe o que iria vestir. Jillian era a perita naquelas coisas.

Parecia sempre desprendida, calma, composta. Até no funeral da irmã parecera saber exactamente o que dizer e fazer.

Carol vestiu umas calças de fato de treino cinzentas e uma T-shirt larga. Depois desceu até à sua elegante cozinha e tirou do congelador uma embalagem de gelado. O apresentador do noticiário da manhã pairava na sala de estar. O relógio de pêndulo bateu a meia hora no vestíbulo.

Seis e meia da manhã de segunda-feira. A segunda-feira de manhã.

Carol Rosen olhou para os pulsos, pálidos, delicados e ainda com algumas cicatrizes brancas ténues. Olhou em volta para a cozinha, com os armários de cerejeira e as bancadas de mármore, ainda tão vazios. E pensou no seu corpo, o seu corpo supostamente belo, supostamente atraente, que não era tocado havia quase um ano. E então sentiu-se feliz por aquele dia. Extremamente feliz. Mal podia esperar pela porra daquele dia!

- Ainda é bom de mais para ti, grandessíssimo filho da puta! exclamou ela com voz rouca no aposento silencioso.

Depois Carol encostou o rosto às mãos e chorou.

 

Fitz

Griffin e Waters saíram do World War Memorial Park a tempo de verem a tenente Morelli, o capitão Dodge e o major Walsh muito juntos no meio dos carros-patrutha mal estacionados. A tenente Morelli levantou a cabeça, viu-os e fez-lhes rapidamente sinal para que se aproximassem.

- Oh, pá! - murmurou Waters. A presença da tenente Morelli era natural. A tenente da Unidade de Crimes Graves visitava habitualmente uma nova cena de crime se havia um homicídio envolvido. A presença do comandante-detective, capitão Dodge, também não era totalmente inesperada. Costumava aparecer quando se considerava que um caso iria ser muito badalado. Já a chegada do major das Operações de Campo, o major Walsh, o número dois da organização, também conhecido por "chefe", significava que o caso tomara enormes proporções. Que iria ser cabeçalho dos jornais. Que haveria muita pressão para que ele fosse rapidamente solucionado. O tipo de caso que faz carreiras ou destrói carreiras. Da última vez que Waters e Grifnn haviam visto tantos chefões numa cena de crime...

Waters voltou a evitar cuidadosamente o punho de Griffin. Griffin voltou a fazer questão de não olhar para o nariz de Waters.

- Meu major - cumprimentou Griffin, batendo com os calcanhares e fazendo continência. - Meu capitão. Minha tenente. Também lhes fez continência e aguardou enquanto Waters fazia o mesmo. Este limitou-se a saudar o major e o capitão, pois já cumprimentara oficialmente a tenente Morelli nessa manhã.

- Já temos alguma descrição do atirador? - perguntou de imediato o major. Parecia pronto a entrar em acção, e tinha vestida uma farda muito bem engomada dos soldados de Rhode Island. O tecido cinzento-escuro tinha uma orla vermelha em forma de tubo, o chapéu Stetson amarelado quase lhe ocultava os olhos, e as botas

castanho-escuras de atacadores chegavam-lhe aos joelhos. Era a melhor farda do país.

Waters mostrou-lhes o saco das provas.

- Melhor ainda. Temos imagens do atirador, cortesia do Canal Dez. Vê-se tudo, até o tique nervoso na cara do homem.

- Excelente. Vamos entregar já isso ao laboratório. Revele a cassete, e imprima uma imagem do rosto do atirador para ser distribuída por todos os agentes, detective. - O major olhou para Waters com ar expectante.

- Sim, meu major - respondeu Waters, já a virar-lhe costas. Waters não era idiota. Qualquer simples agente poderia ter levado aquele saco para o laboratório. Era evidente que os chefões queriam falar com Griffin a sós.

- Sargento - começou o major.

- Sim, meu major - respondeu Griffin. Para sua surpresa, sentia o estômago tenso, como se se preparasse para levar um soco.

- Está com bom ar - disse o major.

- Obrigado, meu major.

- Avaliação?

- Desculpe? - Por momentos, ficou confuso. "A minha ansiedade encontra-se dentro dos parâmetros normais. Não. Espere. Ah, merda."

- A situação, sargento. Diga-me o que pensa.

Griffin deixou descair os ombros. O seu estômago descontraiu-se. Sentia-se à vontade para falar de trabalho.

- Um atirador profissional. Instalou-se no telhado do tribunal. Elimina o alvo, Eddie Como, também conhecido como o Violador de College Hill, quando este sai da carrinha das IÇA pouco depois das oito e meia da manhã. O atirador regressa então ao seu carro para fugir rapidamente, só que o cliente lhe deixou um último pagamento em forma de bomba.

- Já tem a confirmação do chefe dos bombeiros?

- Não, meu major. Parece que a zona ainda está demasiado quente para poder ser investigada. Deve levar mais uma hora, aproximadamente.

- Mas tem a certeza de que o atirador morreu? Grififm encolheu os ombros.

- Sabemos que temos um morto no parque de estacionamento da EDRI. Como a explosão no parque de estacionamento ocorreu dez minutos depois do tiroteio, acho que é seguro assumir que os dois incidentes estão relacionados. Agora, há a possibilidade de o nosso atirador ter eliminado dois alvos, sendo o primeiro Eddie Como e o segundo uma pessoa não identificada no parque de estacionamento. Mas, na minha opinião, isso é pouco provável. Por um motivo: é pouco provável ter havido uma mudança de modus operandi... passar de atirador furtivo a especialista em explosivos. Sabemos também que o atirador deixou a espingarda e um carregador com duas munições ponto duzentos e vinte e três. Porquê abandonar a arma se ainda havia trabalho a fazer? Não, o mais provável é o atirador ter achado que completara a missão, abandonado as ferramentas de modo a poder escapar sem problemas, e ter deparado com uma complicação inesperada ao chegar ao carro. Daí provavelmente o atirador estar agora morto.

O major emitiu um grunhido. A tenente Morelli reprimiu um sorriso.

- Novas medidas? - interveio o capitão Dodge. Griffin concentrou-se nele, obrigando-se a permanecer calmo embora estivesse a ser tratado como um novato inexperiente.

- Partindo do princípio que foi um profissional, precisamos de identificar o atirador, provar que ele matou o Eddie Como (o que será bastante fácil graças à cassete de vídeo), depois encontrar uma relação entre o atirador e o cliente - respondeu Griffin. - Identificar o atirador não deverá ser muito difícil. Temos o seu rosto gravado. O chefe dos bombeiros tirará o número de identificação do motor. O médico legista arranjará as suas impressões digitais. E pronto.

- Mas isso pode levar dias - notou o capitão. O seu olhar estava sempre a fugir para o jardim, onde os jornalistas espezinhavam a relva e empurravam as barricadas da polícia.

- Ora bem, considerem o seguinte. O parque de estacionamento da EDRI. Só com autorização é que se pode deixar lá o carro, certo? E sabemos que o atirador deve lá ter deixado o carro algum tempo, porque esteve várias horas no telhado. Partindo do princípio que ele não quis atrair as atenções ao ser multado por mau estacionamento, ou, pior ainda, perder o meio de fuga se lhe rebocassem o carro, deve ter arranjado um cartão de estacionamento. Contactamos a EDRI, obtemos uma lista de nomes, metemo-los no computador e rapidamente associamos alguns nomes à cara.

- Não está mal - observou o capitão.

- Comparamos os nomes das pessoas com autorização de estacionamento com os das vítimas das violações e das suas famílias - acrescentou Griffin.

- Melhor ainda - disse o major. No entanto, Griffin começara a franzir o sobrolho.

- Hum... conheço essa expressão - observou a tenente Morelli.

- Ah, não sei...

- Faça-nos a vontade, sargento. Pelo andar da carruagem, quanto mais teorias ouvirmos, melhor.

Griffin teve de organizar as ideias.

- Estamos a partir de vários princípios. O primeiro é que temos um atirador contratado para matar o suposto Violador de College Hill, Eddie Como. O segundo é que o motivo óbvio para contratar o atirador é a vingança, o que significa que os suspeitos mais óbvios são as vítimas de violações eou as suas famílias. Um bom violador é um violador morto e assim por diante. Mas quantos casos de vingança conhecem que envolvam um atirador contratado? O típico pai abalado, o marido furioso, a vítima destroçada aparecem no tribunal, sacam da pistola da família e tratam do assunto frente a frente. Não se preocupam com o facto de serem apanhados nem tentam encobrir os seus movimentos. Estão obcecados com a vingança. Estão zangados, loucos, tristes. É um acto emocional. Já um assassino contratado... isso revela uma grande frieza.

- Já passou algum tempo - disse a tenente. - Talvez a pessoa tenha tido tempo para se acalmar.

- O que poderá ser o meu segundo problema - retorquiu Griffin de imediato. - Passou quanto tempo desde os ataques? Um ano? Parece-me que as vítimas se têm saído muito bem. Formaram uma espécie de clube de sobreviventes, explicaram a sua missão à comunicação social, tornaram-se activistas. A prisão do Eddie Como foi uma vitória para elas. E agora estão na parte final. O julgamento está prestes a começar. Terminaria dentro de duas semanas e o mais provável seria o Eddie Como ser condenado a prisão perpétua. As mulheres, o seu Clube das Sobreviventes, obteriam justiça. Uma coisa seria haver dúvidas quanto ao desfecho do julgamento, mas por aquilo

que ouvi o Como não tinha qualquer hipótese... o ADN dele fora encontrado nas cenas dos crimes.

- Também tinham o ADN do OJ. Simpson... - observou o capitão com secura.

- Mas o Como não tinha uma equipa de advogados fantástica. Estamos a falar de um defensor oficioso. Por outras palavras, o miúdo estava lixado e estamos apenas a

duas semanas do fim do julgamento. Então porquê matá-lo agora? Se estamos mesmo zangados e queremos poupar-nos e aos nossos familiares à agonia do sistema judicial,

não devíamos ter morto o Eddie Como quando ele foi preso há um ano?

- Mais vale tarde que nunca?

- Sim, talvez. - Griffin continuava de sobrolho franzido. Não sei. Um atirador no telhado revela frieza. Calculismo. Não bate certo.

- O que é que sabe do caso Como? - perguntou o major.

- Pouca coisa - respondeu Griffin com sinceridade. Olhou o major bem nos olhos. - Fiz férias em relação à televisão.

- E agora?

- Posso ver alguma televisão. Duvido que tenha tempo para isso no futuro mais próximo, mas sou capaz de ver.

- Óptimo - disse o major com brusquidão. Pigarreou. - Bem, os tipos de Providence querem participar na investigação.

- Não me diga.

- Foram eles que apanharam o Como. Conhecem-no, conhecem o caso e as vítimas.

- Sim, bem, se conhecem toda a gente assim tão bem, como é que o preso foi acabar morto?

Fitz

A tenente Morelli estava a reprimir outro sorriso. Deixou de olhar para Griffin e pôs-se a examinar os sapatos.

- Vamos precisar da ajuda deles - dizia o major - para obtermos informações sobre a explosão. Eles gostariam que o investigador principal do caso do Violador de

College Hill se juntasse à nossa equipa.

- Quem era o investigador principal? - Griffin semicerrou os olhos, desconfiado.

- O detective Joseph Fitzpatrick, dos Crimes Sexuais.

- Ah, bolas! - Griffin conhecia o detective "Fitz" Fitzpatrick apenas de reputação, mas, segundo a reputação, Fitz era um chui de terceira geração natural de Providence

e que não tinha em grande conta o Gabinete de Detectives de Rhode Island. Segundo ele (bem como segundo outros membros do Departamento de Polícia de Providence),

a polícia estadual devia limitar-se a fazer o que de melhor fazia - patrulhar as auto-estradas - e deixar os chuis da cidade fazer o que faziam melhor - investigarem

crimes reais.

- Não podemos mandar-lhes cópias dos nossos relatórios? - perguntou Griffin, já irritado.

- Não. Para além disso, a seguir você vai ter de entrevistar as vítimas, e o detective Fitzpatrick tem uma relação de amizade com elas que pode vir a ser bastante útil. Ainda por cima, ele está no caso Como desde o primeiro ataque. Pode pô-lo ao corrente de tudo.

- Ele não devia estar a pôr o oficial encarregue do caso ao corrente de tudo?

O major sorriu-lhe.

- Exactamente.

- Calculámos que concordasse - interveio a tenente Morelli. Fitava-o com intensidade. O major e o capitão faziam o mesmo. Chegara o momento. O mais próximo que alguém estaria de lhe fazer a pergunta-chave. Griffin compreendeu. Na semana anterior, passara o teste e fora considerado fisicamente apto para o trabalho. Segundo as regras e os regulamentos, estava de volta. Õ sistema era esse e toda a gente devia honrá-lo. No entanto, se ele estivesse enganado, se não estivesse preparado, se não pudesse dedicar ao caso toda a atenção e empenho que ele merecia, cabia-lhe a ele referir isso. Que fale agora ou se cale para sempre, como diz o ditado.

- Onde é que posso encontrar os brilhantes agentes de Providence?

- perguntou Griffin a Morelli.

- Além, no parque de estacionamento, a respirar fumo.

- Mais alguma coisa que eu deva saber?

- O procurador-geral não gosta de ter um homicídio à porta. Oh, e o presidente da Câmara acha que estas grandes explosões são más para o turismo.

- Por outras palavras, não estamos a ser pressionados? Morelli, o capitão e o major sorriram-lhe.

- Percebeu.

Griffin arqueou uma sobrancelha. Despediu-se dos superiores com um aceno de cabeça, depois desceu o quarteirão até ao parque de estacionamento fumegante, passando de novo em frente dos jornalistas e suscitando uma nova onda de perguntas gritadas. Naquele momento sentia-se como uma estrela de rock, e a adrenalina subiu direita ao seu cérebro. Investigador principal. A excitação da caçada, da perseguição. Oh, sim. Executou um passo de dança, depois dominou-se e achou que devia ser maluco e que já há um ano que não se sentia tão bem.

Raios, quem havia de pensar que o Sargento Psicopata precisava apenas de um homicídio importante?

Ao chegar ao parque de estacionamento fumegante, avistou imediatamente o detective Fiztpatrick a um canto. O entroncado agente de Providence envergava um fato cinzento que lhe assentava mal sobre uma camisa azul-clara e uma gravata azul-escura dos anos 80. Parecia que seguia a moda ditada pelas personagens da série A Balada de Nova Iorque até ao pormenor do cabelo castanho a rarear. A avaliar por aquilo que Griffin ouvira dizer, Fitz era um polícia da velha guarda. Comia donuts ao pequeno-almoço e informadores ao almoço. Passava os serões no andrajoso clube da polícia em Olneyville, a beber cerveja irlandesa Killian. Já não havia muitos tipos assim. A nova

geração de agentes preocupava-se demasiado com a saúde para comer donuts e com o corpo para ir a outro lugar depois do trabalho que não o ginásio. Os tempos estavam

a mudar, mesmo na polícia. Griffin duvidava que Fitz gostasse dessas mudanças.

E então, subitamente, sem mais nem menos, Griffin sentiu saudades da mulher. Abanou a cabeça, desejando poder controlar melhor as suas emoções e com receio de um dia poder vir a consegui-lo. Cindy tivera um grande fascínio pelo trabalho policial. Engenheira, tinha uma mente maravilhosamente analítica. Ajudava-o nos casos mais complicados, ocupando-se de algumas peças do quebra-cabeças, ajudando-o a decifrar os enigmas. Iria adorar um caso como aquele. Havia de querer saber tudo sobre Eddie Como, as suas vítimas, o atirador contratado. Cindy haveria de ficar animadíssima só de pensar que uma vítima feminina poderia voltar-se contra o atacante. Porquê contentarmo-nos com uma castração simples se em vez disso se podia matar o homem?

Cindy não fora propriamente uma mulher frágil.

Então, como costumava acontecer nos últimos tempos, os pensamentos de Griffin mudaram de rumo. Deixou de pensar em Cindy. Começou a pensar em David. E os seus punhos flectiram-se num gesto reflexo enquanto um músculo se contraía no seu maxilar. A tensão voltara novamente. Estaria ali durante bastante tempo. Cabia-lhe agora geri-la, aprender a lidar com os obstáculos. Devia ir correr. Devia arranjar um saco para esmurrar. Ver quantos rounds conseguiria disputar antes de despersonalizar a sua raiva.

Uma semana depois do Grande Bum, antes de ter compreendido que era o Grande Bum, o irmão fora à procura dele e encontrara-o na garagem ainda a dar murros ao saco.

Tinha as mãos a sangrar. Os seus pés estavam cheios de bolhas e algumas já haviam rebentado. E ele continuava a lutar, com quatro dedos da mão partidos e o zumbido na cabeça pior do que nunca. Frank tivera de lutar com ele e obrigá-lo a parar. Isso custara-lhe dois olhos negros e um lábio inchado.

Griffin soçobrara pouco depois. Não comia ou dormia havia cinco dias. Recordava-se vagamente de estar no chão e ver o irmão em pé, junto de si. De Frank a olhar para as mãos ensanguentadas de Griffin. De Frank com lágrimas nos olhos.

Fizera chorar o irmão mais velho. Lembrava-se de se ter sentido atordoado, assustado, envergonhado. E depois deixara-se cair, cair no grande abismo negro. Deixara-se cair, cair, enquanto murmurava o nome da mulher falecida.

Griffin afastou-se do parque de estacionamento. Não queria aproximar-se de Fitz naquele estado de espírito, por isso respirou fundo várias vezes enquanto tentava localizar o chefe dos bombeiros. Um agente do ATF encontrava-se ao seu lado, o que lhe permitiria saber mais alguma coisa.

- Marshal. - Griffin apertou a mão ao homem, depois aguardou um momento enquanto o marshal Grayson o apresentava ao agente especial Neilson, do ATF. Mais apertos de mão e acenos de cabeça. Os dois homens tinham os rostos sujos de fuligem e suor. Pareciam simultaneamente cansados e zangados, por isso Bentley acertara quanto à morte.

- Ouvi dizer que tinha voltado - comentou Grayson.

- Não podia ficar a pescar para sempre... - retorquiu Griffin. Grayson esboçou um ligeiro sorriso.

- Num dia como este, não me importava de experimentar. Não, num dia como este não me importava nada de experimentar.

Os três homens viraram-se para as ruínas fumegantes.

- O que me pode dizer? - perguntou Griffin.

- Ainda pouca coisa. Só agora é que estamos a conseguir aproximar-nos da cena.

- Um morto?

- Um morto.

- Causa da explosão?

O marshal indicou com a cabeça a pilha de cinco carros.

- Vê como o carro da esquerda está quase carbonizado? Os estofos desapareceram, as seis janelas partiram-se? Foi aí o centro da explosão. Os outros carros têm danos periféricos.

- Mas aquele carro está numa ponta.

- A força da explosão levantou o veículo e transportou-o pelo ar. Quem fez isto não estava para brincadeiras.

- Então estamos a falar de uma bomba no carro.

- Tudo leva a crer que foi utilizado um engenho incendiário. Ainda não sei mais do que isso. O problema com uma explosão deste tamanho e desta natureza é que provoca

também explosões secundárias. Rebentaram vários depósitos de gasolina, por isso temos padrões de zona queimada que confirmam a utilização de um acelerante. O banco no lado do condutor tem estilhaços, que podem ter vindo de uma daquelas bombas que se fazem com tubos, ou podem ser fragmentos do local da explosão principal, de depósitos de gasolina, etc. Até eu ter podido desmantelar e voltar a juntar tudo, não saberei o que é o quê.

- vou precisar de saber qual o tipo de bomba - disse Griffin. Estamos a falar de um engenho sofisticado, de algo com peças fora do comum, ou de uma bomba caseira que até um escuteiro seria capaz de montar na garagem? Oh, e havia um temporizador, etc.?

Grayson olhou para ele.

- Quando eu tiver terminado, sargento, saberá exactamente que tipo de arames foi utilizado nesta menina e se esses fios vieram de uma bobina utilizada para fazer outras bombas nos Estados Unidos. Mas não vai conseguir saber isso antes de eu terminar, e não vou terminar antes de uma semana ou dez dias.

- Constou-me que o procurador-geral não gosta de ter um homicídio à porta e que o presidente da Câmara acha que as grandes explosões são más para o turismo - disse Griffin. - Só para que saiba.

O marshal suspirou.

- Tenho de mudar de profissão - murmurou ele. - Ou mudar de pacemaker. Muito bem, dê-me cinco dias. vou tentar dizer-lhe alguma coisa nessa altura.

O detective Fitzpatrick escolheu aquele momento para se aproximar.

- Sargento Griffin?

- Detective. - Griffin estendeu-lhe a mão. Fitz apertou-a, e durante os segundos seguintes divertiram-se os dois a apertá-las com demasiada força. Nenhum deles pestanejou. Tendo dado o mote, os dois pediram licença ao marshal e dirigiram-se para um canto, onde podiam procurar descansados as fraquezas um do outro.

- Alguma novidade acerca do atirador? - perguntou Fitz.

- Gostava de bolachas Newtons de figo. Novidades quando à identidade do proprietário do veículo?

- É alugado.

- Já verificaram o número do motor?

- Olhei para a matrícula. Já conseguiu uma descrição?

- Várias. Onde está o corpo?

- Na morgue. Tem a arma?

- Temos uma espingarda. O médico legista consegue obter impressões digitais?

- Pergunte ao médico legista. Já tem um nome?

- Não. Mas calculamos que tivesse autorização para estacionar no parque da EDRI.

Fitz grunhiu. A sua respiração acelerara-se. A de Griffin também.

- Estas trocas de informação são muito úteis - disse Fitz. Passou uma mão pelo cabelo a rarear, depois mordeu o palito que lhe pendia do canto da boca.

- É sempre isso que penso.

- Você tem um corpo - continuou Fitz passado um momento.

- Eu tenho um corpo. Agora do que ambos precisamos é de uma ligação.

- Sim, é isso.

- Está a pensar nas mulheres ou nas famílias delas.

- Gostaria de falar com as mulheres e as famílias delas.

- Eu conheço estas mulheres - disse Fitz muito sério.

- Okay.

- Passei um ano a interrogá-las, a tranquilizá-las, a prepará-las para o dia de hoje. Sabe como é.

- Ainda recebo alguns postais pelo Natal.

- Então compreende por que motivo quero ser eu a conduzir os interrogatórios.

- Pode ir começando - respondeu Griffin.

Fitz semicerrou os olhos. Abriu a boca, parecendo querer dizer qualquer coisa abrupta, mas depois arrependeu-se. Voltou a fechar a boca e lançou a Griffin um olhar empedernido.

A polícia de Rhode Island era uma comunidade pequena e incestuosa, tal como o resto do estado. Todos se conheciam, promoviam os irmãos uns dos outros, davam uma oportunidade a outros membros da família. Fitz já devia ter ouvido falar de Griffin, da cave, do Grande Bum. Naquele momento devia estar a pensar quanto dessas histórias seria verdadeiro. E devia estar a pensar, enquanto olhava para o peito musculado de Griffin e para o seu rosto anguloso, se seria seguro provocar o Sargento Psicopata.

Nesta fase do jogo, Griffin não sentiu necessidade de fazer comentários.

De repente, Fitz encolheu os ombros.

- Muito bem. Vamos falar com as mulheres.

- Elas estão todas juntas?

- Sim.

- Uma reunião do Clube das Sobreviventes? - calculou Griffin.

- Então já sabe.

- Sei que têm uma predilecção por conferências de imprensa.

- São bastante interventivas - disse Fitz. No entanto, longe de parecer amargo, o detective mais velho limitou-se a encolher os ombros.

- No ano passado, foram elas que identificaram uma das pistas-chave para o caso. Para ser sincero, sem o Clube das Sobreviventes não sei se teríamos apanhado o Eddie Como.

 

O Clube das Sobreviventes

- A Jillian Hayes é a líder incontestada do grupo - explicou Fitz enquanto conduzia pelo labirinto de ruas estreitas e de sentido único que formava o lado oriental

de Providence. - A irmã dela foi a terceira vítima de violação, uma estudante de dezanove anos que estava no segundo ano, na Brown. Morreu porque teve uma reacção

anafiláctica ao látex.

- Pensei que as vítimas eram dadoras de sangue.

Fitz lançou-lhe um olhar de esguelha, surpreendido por Griffin saber tanto.

- Uma pista descoberta no decurso da investigação foi que tanto a primeira vítima, Meg Pesaturo, como a terceira, Trisha Hayes, tinham dado sangue numa carrinha que fora ao complexo universitário nas semanas anteriores aos ataques.

- Então a Trisha Hayes deu sangue, embora fosse alérgica ao látex?

- Claro. Segundo Kathy Hammond, a pessoa que recolheu o sangue de Miss Hayes, a Trisha informou-a que era sensível ao látex e Mistress Hammond calçou umas luvas de vinil, seguindo a política e os procedimentos do Banco de Sangue de Rhode Island. Muitos hospitais, centros de dadores de sangue, associações de enfermagem, etc., têm igualmente outros tipos de luvas.

- Anotam essa sensibilidade ao látex nas fichas dos dadores? Fitz percebeu onde Griffin queria chegar com aquela pergunta e

abanou a cabeça com ar pesaroso.

- Não. E é pena. Se tivéssemos podido provar que o Como sabia de antemão da alergia de Miss Hayes, podíamos tê-lo acusado de homicídio premeditado. Assim, tivemos

de nos contentar com homicídio involuntário.

- É pena - concordou Griffin. Olhou para o espelho lateral, avistou qualquer coisa branca e semicerrou os olhos para poder ver melhor quando Fitz carregou no acelerador.

- Pois é - dizia Fitz. - A Jillian Hayes tinha ficado de se encontrar com a irmã para jantar às sete, mas atrasou-se. Apareceu às oito, entrou no apartamento da cave e foi logo atacada por trás. O Eddie deu-lhe uma grande sova. Sufocou-a com as mãos. Só Deus sabe o que ele teria feito se o vizinho de cima não se tivesse apercebido do barulho e chamado a polícia. O Eddie fugiu ao ouvir as sirenas. A Jillian arrastou-se até à cama, onde encontrou o corpo da irmã amarrado com torniquetes de látex.

- Isso era a assinatura dele?

- Sim, torniquetes de látex nas três vítimas. Usava dez pedaços, um para mordaça, outro para venda, depois dois para cada um dos pulsos e tornozelos, formando um nó corrediço que se ia apertando à medida que as vítimas se debatiam. Por outro lado, se elas se descontraíssem... Digamos apenas que o Eddie sabia ser irónico.

- Calculo que depois do telefonema do vizinho de cima os agentes tenham aparecido de imediato e passado a zona a pente fino. Não viram um tipo a fugir da cena?

- Não. Mas para ser justo com os agentes, não tínhamos a descrição do criminoso. A única vítima que vislumbrou o atacante foi a número dois, Carol Rosen, e ela diz

que o quarto estava demasiado escuro para poder ver bem. A primeira rapariga, Meg Pesaturo, nem sequer se lembra do ataque, por isso não pode ajudar. A Trisha Hayes

pode ter visto o Eddie, mas não recuperou a consciência para poder prestar depoimento. E a irmã, Jillian, foi atacada numa cave escura, por isso também não pode ajudar. Por outras palavras, claro, enviámos todos os homens disponíveis para a rua, mas ou o Eddie se escondeu, ou agiu friamente. Nunca ninguém o deteve.

- Ou o Eddie Como tinha muita sorte ou era muito esperto murmurou Griffin. Virou-se para Fitz. - Olhe, vê aquela carrinha branca quatro carros atrás de nós? Aquela que tem uma parabólica em cima?

Fitz olhou para o espelho retrovisor.

-Sim- !

- Acho que é a carrinha do Canal Dez. Fitz observou-a durante momentos.

- Oooh! - fez ele. - Acho que tem razão. Vem com os admiradores atrás, sargento Griffin?

- Não me parece que sejam meus admiradores. Foi você quem esteve à frente do caso do Violador de College Hill, Logo, deve ser uma das poucas pessoas que sabe onde

encontrar as mulheres.

- Ah, merda! Malditas sanguessugas. Julgava que dois cadáveres bastavam para os manter ocupados. Mas não, você deve ter razão. Querem encontrar uma das vítimas. São capazes de lhe encostar um microfone à boca e perguntar: "Olhe, vítima número dois, o seu violador encontra-se espalhado no chão. O que vai fazer agora? Visitar a Disneylândia?" Foda-se!

Sem aviso prévio, Fitz guinou o volante para a direita. O Ford faurus, tecnicamente o mesmo carro que Griffin conduzia, mas muito mais gasto, gemeu em protesto.

Fitz ignorou o chiar da coluna da direcção, o estremecimento da suspensão, e acelerou enquanto se aproximava da berma, cortava a esquina por cima do passeio e parava numa rua paralela.

Griffin agarrou-se ao tabliê, depois olhou para o espelho retrovisor.

- Ainda vêm atrás de nós.

- Isso é o que você pensa. - Fitz chegou a uma viela estreita, virou à esquerda, chegou a um parque de estacionamento, virou à direita, depois desembocou numa rua lateral e virou novamente à esquerda. Impressionante, pensou Griffin. Mas então, semelhante a um enorme tubarão branco, a carrinha voltou a aparecer.

- Maureen, Maureen, Maureen - murmurou Griffin. - Queres vingar-te pela perda da cassete?

- Não vou conduzir nenhuma jornalista até às mulheres - resmungou Fitz. - Nem pensar.

Griffin entendeu aquilo como uma deixa para se agarrar à pega rente ao tejadilho. Ainda bem que o fez. Fitz ligou a sirena, passou um vermelho sem o habitual cheiro a travão e quase abalroou um carro do lixo. Aparentemente, não se deixava melindrar por colisões falhadas por pouco e carregou no acelerador, passou outro vermelho, virou à esquerda, percorreu quatro quarteirões, e virou à direita antes de estacionar entre dois carros.

- Isto deve bastar - disse ele, respirando a custo. As suas mãos ainda agarravam o volante com força. Os seus olhos haviam adquirido um brilho selvagem.

Sem qualquer motivo aparente, Griffin decidiu não largar a pega.

- Já não os vejo - comentou.

- Continue a olhar.

- Está bem, kimosabe.

- Detesto jornalistas - resmungou Fitz.

- Isto não é a revista Peoplé!

A revista escorregara de debaixo do banco de Griffin. Fitz baixou-se, agarrou nela e atirou-a para o banco de trás.

- Eu sei, eu sei - disse Griffin. - Compra-a só por causa das fotografias.

- Por causa das fotografias, não - retorquiu Fitz. - Por causa das palavras cruzadas.

Aguardaram mais alguns minutos. Ao ver que a carrinha não aparecia, Fitz arrancou novamente. Ali havia pouco trânsito e a zona estava calma. Tinham deixado para trás a loucura da baixa, mas assim levariam muito mais tempo a chegar ao destino. Ora, paciência. Era uma oportunidade para se conhecerem melhor, pensou Griffin. Flectiu o bíceps e rodou a cabeça.

- Então onde é que nós íamos? - perguntou Fitz, descontraindo-se finalmente ao volante.

- Uma vítima amnésica, duas outras que não conseguiram ver o violador no escuro - respondeu Griffin. Virou-se para Fitz com uma expressão curiosa. - Se nunca teve uma descrição, como é que determinou que era o Como?

- Não determinámos logo. Tem de compreender, não estávamos perante a investigação típica de um crime em série. A primeira vítima, a Meg, não ajudou minimamente por causa da amnésia provocada pelo trauma. Não se recorda do ataque, do dia do ataque, nem da sua vida antes do ataque...

- Nem da sua vida antes do ataque? - interrompeu Griffin, perplexo. - Pensei que a amnésia induzida por um trauma consistia em esquecer-se o trauma. Como é que ela acabou por se esquecer da vida toda em vez de apenas uma noite?

Fitz encolheu os ombros.

- Como é que quer que eu saiba? Talvez a Meg não gostasse da sua vida e isto tenha sido uma boa oportunidade. Talvez o seu cérebro não goste de diferenciar. Não faço ideia. Mas o médico dela jura que a amnésia é verdadeira, os pais dela dizem que a amnésia é verdadeira e ela parece achar que a amnésia é verdadeira. Eu bem que entrevistei a Meg umas vinte e tal vezes no ano passado e ela nunca se descaiu. Por isso, se está a fingir, é uma excelente actriz.

- Hum - fez Griffin.

- Hum - concordou Fitz. - Seja como for, o estado da Meg dificultou-nos a investigação da primeira violação. Tentámos a companheira de quarto dela, a Vickie,

mas ela só sabe que quando chegou a casa às duas da manhã a Meg encontrava-se misteriosamente amarrada à cama. Depois procurámos pistas, mas obtivemos os mesmos resultados: nada de marcas de ferramentas, nem de cabelos, fibras ou impressões digitais. Aliás, no fim do primeiro ataque tínhamos apenas uma aluna confusa, a sua colega traumatizada, dez garrotes de látex e a amostra de ADN que comparámos com a base de dados de criminosos sexuais e não deu em nada.

- Investigaram o látex?

- Claro que investiguei o látex. Era a única pista que tinha. Pedi ao laboratório que analisasse a sua composição química, comparasse com outras marcas, outros lotes, visse a quantidade de pó de látex utilizada em cada faixa. Fiquei a saber de mais sobre o látex. E de nada valeu. Pela forma como é fabricado, é impossível detectar um love ou um carregamento apenas com uma mão-cheía de garrotes. Três semanas depois do primeiro ataque estávamos num beco sem saída. O caso parecia não ir a lado nenhum.

- Ai sim? E o que tinha o tio Vinnie, o tio da Meg, a dizer? Fitz soltou uma gargalhada.

- Então já ouviu falar dele. O tio Vmnie é um tipo engraçado. Apareceu no meu gabinete um dia. Queria saber se eu estava a esconder alguma informação da família. Por exemplo, eu podia ter já um nome em mente. E se já o tivesse, então ele também o poderia ter e o nome que ele tinha poderia tratar do nome que eu tinha, sem qualquer despesa para os contribuintes.

- À sua maneira, o Vinnie é um tipo prestável.

- Pois é - concordou Fitz, suspirando em seguida. - Provavelmente temos de fazer uma visita ao tio Vinnie. Para ser sincero, não o considero um defensor desse tipo de coisa. Atiradores furtivos em telhados e assassínios em tribunais atraem muita atenção, e não me parece que o tio Vinnie goste de atrair as atenções. Estou em crer que um dia o Eddie entraria nos duches da prisão e sofreria um pequeno acidente, um acidente que envolveria a lâmina de outra pessoa e o fígado do Eddie. Mas estamos sempre a aprender.

- Estamos sempre a aprender - concordou Griffin. Concentrou-se nas violações, na investigação, tentando perceber como é que a polícia partira de uma vítima com amnésia

e dois meses depois tinha prendido um suspeito. - Muito bem. Então depois da primeira violação, você não desconfiava do Eddie Como. Não desconfiava de ninguém.

- Depois da primeira violação andávamos completamente às aranhas. Investigámos tudo. Os antigos namorados, os violadores presos... quem é que fora libertado há pouco da prisão e podia viver na zona, etc., etc. A Meg saía muito pouco e todos os pervertidos da cidade estavam a fazer outras perversões na altura. Provavelmente a verem O Sexo e a Cidade. Já não saem tanto de casa desde que têm televisão por cabo.

- Mas depois ocorreu o ataque de East Side.

- Exacto. Quatro semanas depois da violação de Pesaturo ocorreu o ataque em East Side.

- Uma zona completamente diferente - observou GrifFm.

- Também é uma zona estudantil - disse Fitz, abanando em seguida a cabeça. - Sim, o ataque número dois teve diferenças bastante significativas. A Carol Rosen é uma dona de casa de quarenta e dois anos, não uma jovem aluna universitária. Mora com o marido numa mansão vitoriana, que não é exactamente o mesmo que um apartamento no complexo universitário. Por fim, e esta é provavelmente a diferença mais importante, o nível de violência foi muito mais elevado. Segundo a enfermeira, a Meg Pesaturo sofreu apenas penetração vaginal, com lacerações menores nos pulsos, tornozelos e boca, devido aos torniquetes. Não houve sinal de espancamento, e, mais importante ainda, não tinha equimoses no pescoço. com a Meg, parece que o Eddie entrou, fez o serviço e saiu.

"Já a Carol Rosen sofreu penetração vaginal e anal. Tinha equimoses nos seios e nas nádegas, contusões múltiplas no rosto, lacerações múltiplas no interior das coxas, e para além disso ele começou a brincar com a asfixia, apertando-lhe tanto o pescoço que as pontas dos seus dedos provocaram equimoses. Também a prendeu com tanta força que ela ainda tem cicatrizes nos pulsos e nos tornozelos. Numa escala relativa, a Meg teve sorte. A Carol não.

- Mas tem a certeza de que era o mesmo tipo?

- Dez garrotes de látex - respondeu Fitz. - Uma amostra de ADN. Oh, sim, era mesmo o Eddie.

- E onde estava o marido quando tudo aconteceu?

- O Dan Rosen é advogado. Abriu um escritório há uns anos e trabalha sempre até bastante tarde. Só chegou a casa depois da meia-noite e foi então que descobriu a mulher amarrada à cama. Foram para o local vários agentes, passámos tudo a pente fino, mas mais uma vez não tínhamos uma descrição nem tivemos sorte.

GrifFin franziu o sobrolho.

- Espere lá. A primeira vítima tem uma companheira de quarto que por acaso estava a trabalhar nessa noite, a segunda vítima tem um marido que também estava a trabalhar até tarde. Isto quer dizer aquilo que eu penso?

- Achamos que ele observou as vítimas antes de atacar - concordou Fitz. - Escolheu-as quando deram sangue, depois passou algum tempo a fazer o trabalho de casa, daí o lapso de tempo decorrido entre a primeira vez que as viu e a altura em que as atacou. Agora, esta teoria resulta quando olhamos para a Meg e para a Trisha, que eram dadoras. Já com a Carol Rosen não, porque ela nunca deu sangue. Achamos que ela foi uma substituta de última hora. Uma aluna morena e bonita que se enquadra no "tipo" do Eddie mora apenas a um quarteirão. Deu sangue na faculdade e lembra-se de alguém lhe ter tocado à campainha nessa noite. Como não estava à espera de visitas, não abriu a porta. Ainda bem para ela. Mas já não foi bom para a Carol.

- Isso não explica o marido estar fora de casa - insistiu Griffin.

- Olhe, acha que disponho de todas as respostas para a vida? Talvez enquanto observava a morena o Eddie tenha reparado que a Carol vivia praticamente sozinha. Talvez tenha visto a janela do quarto dela aberta, uma janela convenientemente colocada logo acima do alpendre, e decidido atacar. Estava faminto. Tinha-se preparado para uma grande refeição que viu ser-lhe negada. Além disso, o Eddie era capaz de levantar noventa quilos. Trepar para um alpendre devia ser canja para ele. E se o marido também estivesse em casa... o Eddie devia achar que também seria capaz de dar conta dele. Afinal de contas, já era tarde e a adrenalina corria-lhe pelas veias...

- E então vingou-se em Mistress Rosen. Talvez o Como não tivesse ficado satisfeito com a alteração de planos. Ou talvez se preparasse para algo mais forte.

- Talvez. - Fitz lançou a Griffin um olhar. - A Jillian Hayes também foi bastante agredida. A irmã dela não, mas a Jillian foi interromper a festa. Não sei. Depois do ataque à Carol Rosen fiquei Com a impressão que tínhamos um predador sexual com tendência para a escalada de violência. E achei... achei que se não apanhássemos rapidamente o tipo ainda acabaríamos com um cadáver nas mãos. Infelizmente, esse dia chegou antes do que eu esperava. O Eddie Como atacou a Trisha Hayes apenas duas semanas depois. Quase não teve folga.

Griffin assentiu, carrancudo.

- Foi pena.

- Pois foi - resmungou o detective de Providence.

- Então como é que percebeu que o perpetrador era o Eddie Como?

- Utilizámos um processo de eliminação. Assim que descobrimos a ligação aos dadores de sangue, pedimos ao Banco de Sangue de Rhode Island uma lista dos nomes dos funcionários envolvidos nas recolhas de sangue na universidade. Felizmente para nós, quase todos os funcionários são mulheres. Assim que nos concentrámos nos homens ficámos apenas com dez suspeitos. Depois começámos a vasculhar. Um, o Eddie teve acesso às moradas de casa de duas vítimas, e tinha muitos torniquetes de látex. Dois, embora o Eddie não fosse um tipo muito corpulento, é surpreendentemente forte. Foi campeão de luta livre no secundário e ainda gosta de levantar pesos. O Eddie tem... tinha... um metro e setenta e pesava sessenta e oito quilos, mas conseguia levantar mais de noventa. Temos de admitir que tinha de ter músculos. Claro que assim que lhe sacámos o ADN todas as suspeitas se confirmaram.

- Como é que conseguiram sacar-lhe a amostra?

- Pedimos.

Griffin olhou para ele.

- Pediram e ele deu-a logo? Nem falou com um advogado? Não invocou a Quinta Emenda? Não vos acusou de abuso de autoridade?

Ao volante, Fitz sorriu. Era o sorriso de um predador.

- Deixe-me dizer-lhe uma coisa acerca das violações que muito pouca gente sabe. O Eddie julgava que era esperto. Aliás, o Eddie julgava que era tão esperto que acabava por ser estúpido, mas já estou a adiantar-me. Sabe, o Eddie tinha um livro sobre medicina legal. Parece que o comprara pela internet e que depois de o ler ficara um especialista. Era muito bom em bastantes coisas. Três violações mais tarde, ainda não tínhamos cabelos, fibras ou impressões digitais. Nem sequer marcas de ferramentas. Achamos que ele devia parecer às vítimas um tipo simpático e afável, porque nunca encontrámos vestígios de arrombamentos. Então está bem, o miúdo saiu-se bem. Mas cometeu um erro.

- Não usou preservativo?

- Não usou preservativo. Julgou ter tido uma ideia melhor. O duche floral descartável da Berkely and Johnson.

- O quê?

- Sim, exactamente. Sabe, o Eddie seguira o caso Motyka... encontrámos recortes de artigos de jornais no seu apartamento. Lembra-se do caso Motyka?

Griffin teve de pensar um pouco.

- Tiverton, não era? Um trolha que andara a trabalhar em casa de uma senhora forçou a entrada, violou-a, assassinou-a e pôs o corpo dela na banheira.

- Sim. Durante o julgamento, o advogado de acusação argumentou que Motyka achou que imergir o corpo em água faria desaparecer o sémen. Claro que não fez, viram que o sémen era dele, e agora o tipo está a passar o resto da vida atrás de grades. Porque o sémen sobe no corpo. Porque é preciso mais do que um simples banho para o fazer desaparecer.

- Uma espécie de duche - disse Griffin.

- Era isso que o Eddie julgava. Mas não estava a pensar bem. Claro, um duche consegue fazer desaparecer uma data de sémen, mas está só a passá-lo para o lençol. E quando analisamos uma violação, não recolhemos apenas amostras da vítima, também recolhemos do lençol. E alguns testes mais tarde...

- Então o Como julgava que descobrira a forma perfeita de bater o ADN, daí não ter recusado dar-vos uma amostra, mas, azar, afinal não era assim tão inteligente.

Fitz assentiu. ;

- É isso mesmo.

- Não é um mau plano - comentou Griffin com sinceridade. - Tem antecedentes?

- Não.

- Historial de violência com as namoradas?

- Não. Aliás, a namorada dele ia ser a principal testemunha da defesa. Diz que o Eddie é um tipo muito meigo e sensível incapaz de fazer mal a uma mosca, e que esteve com ele nas noites dos ataques.

- Ele tinha um álibi? - perguntou Griffin surpreendido. Fitz revirou os olhos.

- Não, tinha uma namorada grávida que não estava interessada em que o pai do seu filho acabasse atrás das grades. Confie em mim, nós confirmámos isso. Nunca encontrámos outras testemunhas que pudessem corroborar que o Eddie esteve em casa naquelas noites. E ainda tínhamos o ADN. Se o Eddie estava mesmo a ver o Quem Quer Ser Milionário?, como é que o seu ADN foi parar não a uma, nem a duas, mas a três cenas de crime?

Griffin abanou a cabeça. Fitz tinha razão.

- Então o caso avançou quando estabeleceram a ligação com as recolhas de sangue?

- Sim, foi isso.

Griffin semicerrou os olhos. Pronto, já percebera.

- E este clube, o Clube das Sobreviventes, ajudou-o com isso. - A Jillian Hayes sabia que a irmã dera sangue duas semanas antes do ataque. Referiu isso por causa dos garrotes de látex. Voltámos a verificar e, claro, a boa da amnésica da Meg também dera sangue um mês antes de ser violada. Foi essa a primeira ligação estabelecida entre as vítimas. E sim, depois disso tudo se encaixou. Fitz parou o carro na berma.

- Chegámos.

Griffin olhou pela janela. Tinham chegado ao rue de l'espoir, um cafezinho chique em Hope Street. Cindy gostara de ir ao rue de l'espoir. Griffin, por outro lado, preferia o vizinho, o Big Alices, que tinha o melhor gelado da cidade.

Fitz desligou o motor. Agora que tinham chegado, voltara a mostrar-se distanciado, um detective a defender o seu território.

- Então as regras são as seguintes - anunciou ele. - A Meg, como -mais nova e mais calada, é o membro mais fraco do grupo. Também é a que sabe menos, por isso pressioná-la não serve de nada. A Carol é a mais propensa a explosões. Acho que ela não está a conseguir lidar muito bem com o ataque e tenho a impressão de que o seu casamento também não está a correr bem. Se jogarmos bem as nossas cartas, talvez consigamos sacar-lhe alguma coisa. Mas o problema é que é a Jillian quem manda. Foi ela que organizou o grupo, é ela que dita o programa. E tem tomates de aço (desculpe a minha linguagem). Se a chatear, a conversa termina logo. Fecha-se na concha, fecham-se todas na concha e acabamos todos por perder tempo. Por isso temos apenas de perguntar o suficiente para levar a Carol a dizer qualquer coisa antes que a Jillian se farte e nos mande embora.

- Está a prever um certo antagonismo. - O que era interessante, porque supostamente Fitz dava-se bem com aquelas mulheres. Depois de um ano a trabalhar no caso, era o seu guardião, protector, amigo.

- Acho que estas mulheres não vão perder o sono por causa do assassínio do Eddie Como - observou Fitz. - E mesmo que sejam completamente inocentes não vão estar

interessadas na investigação que rodeou a morte dele. O Eddie Como... era escumalha. Agora é escumalha morta. Será que nos devemos importar muito?

- Acha que uma delas contratou o atirador? - perguntou Griffin abruptamente.

Fitz suspirou.

- Nenhuma delas é muito boa a manejar armas - acabou por dizer. - Se queriam o Eddie morto, teriam de pedir ajuda exterior.

- Mas acha-as capazes de encomendar um homicídio? Fitz tornou a hesitar.

Acho que são sobreviventes de violações. E, enquanto sobreviventes de violações, são capazes de muitas coisas que nunca julgaram antes ser capazes.

- Mesmo de matar um homem?

- Você não seria? Vá lá. - Fitz abriu a porta. - Toca a mexer enquanto ainda estamos adiantados em relação à comunicação social.

 

O Clube das Sobreviventes (continuação)

Dentro do restaurante foi fácil localizar as mulheres. Estavam sentadas a um canto, debruçadas sobre enormes canecas vermelhas, tentando ignorar os olhares curiosos

das outras pessoas. Ao olhar para as três mulheres, Griffin registou várias impressões ao mesmo tempo. Primeira, Como tinha bom gosto em matéria de mulheres. Elas formavam um grupo bastante atraente: duas mais velhas, uma mais nova, como se duas ex-modelos estivessem a almoçar com a talentosa geração seguinte. Segunda, as três mulheres agarravam nas canecas com mais força que a necessária. Terceira, e a mais interessante, nenhuma das mulheres pareceu surpreendida com o aparecimento de Fitz.

Este aproximou-se da mesa. Os outros clientes tinham começado a murmurar. Ele não lhes ligou.

- Jillian. Carol. Meg. - Cumprimentou cada uma com um aceno de cabeça. Elas retribuíram o aceno, mas muito mais devagar. Fitz não disse mais nada. Nem as mulheres, pelo que o silêncio rapidamente se tornou incómodo. Griffin foi forçado a admitir que estava impressionado com a compostura de todos. Deixou os outros continuarem a olhar uns para os outros enquanto procedia à sua avaliação.

Meg Pesaturo era tal e qual como ele a imaginara. Pesaturo era um nome italiano antigo, e ela correspondia-lhe: tinha pele dourada, cabelo castanho comprido e brilhantes olhos escuros. Naquela manhã estava vestida de forma prática: calças de ganga e uma T-shirt castanha. Era mesmo a jovem do grupo. Também foi a primeira a desviar o olhar.

Já a vítima número dois, Carol Rosen, aparentava ser uma mulher endinheirada. Cabelo louro apanhado, olhos azuis muito pintados, fato claro de marca. Estava sentada muito hirta, as costas direitas, os ombros bem para trás. Frequentara provavelmente uma daquelas escolas para mulheres onde se aprende a beber chá com o dedo mindinho espetado e a nunca deixar que os maridos as vejam chorar. Susteve o olhar de Fitz com olhos demasiados brilhantes, os lábios comprimidos numa linha exangue e o corpo a tremer de tensão.

Griffin teve de reprimir o desejo de a levar a correr com ele. Ou de a colocar num ringue de boxe. Estava provavelmente demasiado sensível, dada a sua situação, mas Fitz tivera razão quanto àquela mulher. Ela não estava a reagir bem. Talvez julgasse que estava, mas um especialista como ele percebia que não. Carol Rosen dirigia-se para o seu próprio Grande Bum e quando ele se desse não iria ser fácil.

Perguntou a si mesmo se o marido dela estaria a aperceber-se de alguma coisa. E se pudesse, estaria disposto a trocar a vida de Eddie Como pela paz de espírito da mulher?

Pousou o olhar no último membro do grupo. Jillian Hayes. Não propriamente violada, mas espancada e transformada em vítima. Líder nata. Irmã chorosa. E, naquele momento, tão fria como um dia de Outono.

Era muito mais velha do que ele esperara, dada a pouca idade da irmã. Imaginara-a na casa dos vinte, mas ela parecia estar a meio da dos trinta, uma mulher madura e confortável na sua própria pele. Parecia descontraída, e envergava um fato castanho com um colete de linho branco. O seu cabelo castanho espesso estava apanhado junto ao pescoço com um travessão. Tinha simples argolas de ouro nas orelhas e um fio com uma espécie de medalhão ao pescoço. Nada de anéis nos dedos. Unhas curtas e arranjadas.

O pensamento mais estúpido do dia - Griffin deu consigo a pensar que Cindy teria gostado daquele fato.

Bolas, como lhe apetecia ir correr naquele momento! E então percebeu que Jillian Hayes já não estava a olhar para Fitz. Em vez disso, os seus olhos castanhosdouradosverdes fitavam-no atentos.

- O senhor é da polícia estadual - disse ela. Uma afirmação, não uma pergunta.

- Sargento-detective Roan Griffin - apresentou-se ele. Fitz lançou-lhe um olhar de esguelha. Talvez tivesse querido ser ele a fazer as apresentações. Ele que se lixasse. O assunto já não estava nas mãos deles.

- Conte-nos o que aconteceu - disse ela. Uma ordem, não um pedido.

- Temos umas perguntas a fazer - começou Fitz.

- Conte-nos o que aconteceu.

- O que vos leva a pensar que aconteceu alguma coisa? - retorquiu Griffin, recebendo outro olhar de esguelha de Fitz.

- Por que outro motivo estariam os senhores aqui?

Bem jogado. Griffin olhou para Fitz, percebendo que aquilo iria ser divertido e passando a bola ao colega. Este não pareceu muito divertido.

- Temos de saber onde estavam por volta das oito e meia da manhã de hoje - disse Fitz.

Jillian encolheu os ombros. Na verdade, ergueu um ombro num gesto frio que era tanto de repúdio como de submissão. Fitz tinha razão - ela era claramente o porta-voz daquele grupo. As outras duas mulheres nem sequer abriram as bocas, esperando calmamente que ela respondesse.

- Estávamos aqui - respondeu ela. - Juntas. As três. Como a maior parte das pessoas presentes poderá corroborar. Agora, detective, conte-nos por favor o que aconteceu.

- Houve um incidente - começou Fitz com cautela. - O Eddie Como está morto.

Griffin e Fitz ficaram simultaneamente tensos, à espera das reacções. Griffin fitou Meg: seria a que mais provavelmente deixaria escapar alguma coisa. Mas se tinha participado na conspiração, era uma excelente actriz. Naquele momento parecia quase confusa. Inclinou a cabeça para um lado, como se escutasse alguma coisa lá dentro.

Carol, por outro lado, expeliu o ar dos pulmões com um sibilar. Inclinou-se para a frente e agarrou a extremidade da mesa até ficar com os nós dos dedos brancos.

- Tem a certeza? - perguntou.

- O que quer dizer com isso? - retorquiu Fitz.

- Viu o corpo dele?

- Sim - respondeu Griffin. - Eu vi o corpo. Ela virou-se para ele, ávida.

- Conte-me. Quero saber todos os pormenores. Qual o aspecto dele. Quanto tempo demorou. Sofreu? Foi horrível? Sangrento? Quero todos os pormenores.

- Não estamos autorizados a falar do caso... - começou Fitz.

- Quero todos os pormenores!

Os outros clientes viraram-se para olhar para eles. Griffin não os culpou. Carol estava um bocadinho histérica. Não havia sangue suficiente no mundo para a saciar. Nem provavelmente justiça suficiente para a satisfazer.

- Foi rápido - disse Griffin.

- Foda-se! - exclamou Carol.

Okay, talvez Maureen estivesse certa a respeito daquela mulher. Griffin aguardou, divertido, as reacções das outras. Jillian Hayes limitou-se a erguer a caneca e a beber um gole de chai, com uma expressão cuidadosamente neutra. Meg Pesaturo continuava com a cabeça inclinada, a ouvir atentamente algo que só ela conseguia ouvir. Apenas Carol parecia agitada. Continuou a respirar a custo, as mãos a agarrar na mesa como se estivesse à espera de alguma coisa, qualquer coisa, que a fizesse sentir melhor. Talvez Griffin devesse ter mentido e dito que Eddie Como fora alvejado várias vezes, cada tiro despedaçando um dos seus membros. Provavelmente assim ela dormiria melhor.

E talvez pagasse um bónus ao atirador? Oh, esperem, ele já recebera um bónus.

Jillian ou Meg devem ter dado um pontapé a Carol debaixo da mesa, porque ela recostou-se finalmente e pareceu tentar dominar-se.

Fitz pigarreou.

- Achamos que seria melhor se viessem connosco.

- Por que haveríamos de ir convosco? - Jillian pousou a caneca. com um gesto, abarcou os outros membros do Clube das Sobreviventes. - Estivemos aqui toda a manhã. Se o Eddie Como está morto, é evidente que não fomos nós quem o matou.

- Há algumas coisas que gostaríamos de discutir convosco... - tentou novamente Fitz.

- Não percebo - interrompeu Carol. - Ele está morto. Acabou. Não precisamos de voltar a falar consigo. O caso, o julgamento, tudo acabou.

- O detective está a tentar descobrir alguma coisa - interveio Jillian calmamente. - Embora não tenhamos disparado contra o Eddie Como, ele acha que talvez tenhamos pago a alguém para o fazer.

- Como é que sabe que ele foi alvejado? - perguntou rapidamente Fitz. - Eu não disse que ele tinha sido alvejado.

- Detective, não viu as notícias da manhã? "Pouco depois das oito e meia desta manhã ouviram-se disparos no Tribunal do Município de Providence. Segundo informações recebidas, crê-se que o alegado Violador de College Hill, Eddie Como, foi abatido ao descer da carrinha da prisão. Fontes próximas da investigação acreditam que um homem não identificado disparou o tiro fatal a partir do telhado do tribunal. Para além disso, uma explosão num parque de estacionamento próximo provocou outro morto." Foi mais ou menos isto, não foi? Eu acho que foi.

Sorriu, calma e destemida, enquanto Fitz praguejava baixinho. Griffin limitou-se a encolher os ombros. Claro que a comunicação social pusera cá fora a história ainda antes de confirmar a identidade de Eddie Como. Todas as notícias relacionadas com o Violador de College Hill eram escaldantes. Bem escaldantes. E para quê agir de forma responsável se se podia estragar a investigação de um homicídio?

"Maureen, Maureen, Maureen", pensou ele novamente, tendo de súbito um mau pressentimento em relação à cassete.

- Está bem - admitiu Fitz contrariado. - O Eddie Como foi alvejado. Está morto. Mas acho que este não é o sítio mais indicado para falarmos disso. Seria melhor que nos acompanhassem à esquadra.

- Não - respondeu Jillian com firmeza. - Mas obrigada por ter perguntado.

- Ora, minhas senhoras...

- Não temos de ir com eles - interrompeu Jillian. Olhou para Meg e Carol, e mais uma vez Griffin ficou impressionado com a sua compostura. - Não temos de responder a nenhumas perguntas. Sem causa provável, o detective Fitzpatrick e o sargento Griffin não podem obrigar-nos a fazer ou a dizer nada. Eu não me esqueceria disto, porque o detective Fitzpatrick não veio até aqui para saber como estamos. Este é um dia importante para nós, meninas. O Eddie Como foi morto e passámos de vítimas de violação a suspeitas de homicídio.

- Ela tem razão, sabe? - interveio Griffin.

- O quê? - Jillian Hayes fitou-o de olhos semicerrados. Fitz lançou-lhe um olhar desdenhoso.

- Então, não vai contar-lhes o resto? - perguntou ele inocentemente.

- O resto?

- Absolutamente. O resto. Estas senhoras são suas amigas, certo? com certeza quer que elas compreendam tudo. Por exemplo, se as senhoras não quiserem falar connosco, teremos de passar para os nomes a seguir na lista. Contactar os vossos amigos, a vossa família. Maridos, pais, tios, mães, irmãs, tias. Colegas de trabalho. Sujeitá-los todos a escrutínio da polícia. Oh, e iremos investigar as vossas finanças, claro. As três mulheres endireitaram-se nas cadeiras. Griffin encolheu os ombros. - Têm motivo e oportunidade, o que nos dá a causa provável. Iremos analisar as vossas contas bancárias, as contas de cada uma das pessoas da vossa família. Talvez até o negócio do seu tio. - Olhou serenamente para Meg. - Ou talvez o escritório de advocacia de um marido. - Fitou Carol. - Quaisquer pagamentos recentes que não tenham factura... - Encolheu novamente os ombros. - Um homicídio é um homicídio, minhas senhoras. Colaborem agora e talvez possamos chegar a um acordo que vos salve da pena perpétua.

Meg e Carol já não pareciam tão convencidas. Jillian, por outro lado... Jillian observava-o como se estivesse a olhar para uma mosca incomodativa e se preparasse para a esborrachar com a mão.

- Inimputabilidade - desafiou ela.

- Não para um assassino contratado. Requer premeditação. Devia ter aparecido no tribunal e disparado você mesma sobre o Como.

- Não necessariamente. Inimputabilidade significa simplesmente que influências externas o levaram a fazer algo que de outra forma não faria... que não estava a agir no seu perfeito juízo, por assim dizer. Podemos argumentar que o trauma de termos sido violadas, que o medo de sermos novamente atacadas nos levou a contratar um assassino.

- Parece que já andou a pensar no assunto.

- Nunca se sabe o que precisamos de saber até precisarmos de o saber.

- Tem alguma experiência na área do Direito, Mistress Hayes?

- Miss Hayes. Tenho experiência de marketing. Mas sei ler.

- Os argumentos da defesa?

- Ainda não está a fazer a pergunta certa, sargento.

- E que pergunta é essa?

Jillian Hayes inclinou-se para a frente.

- Tínhamos motivo para ter medo? Havia causa provável para temermos pelas nossas vidas?

- Não sei. Havia?

- Ele telefonou-nos, sargento. O detective Fitzpatrick contou-lhe isso? Durante o último ano, o Eddie Como passou o tempo a telefonar-nos e a mandar-nos correspondência. Sabe o que é sentir um arrepio a percorrer-nos o corpo de cada vez que o telefone toca?

- Eu também já suportei a minha parte de vendas pelo telefone - respondeu Griffin, embora olhasse para Fitz com uma expressão interrogadora.

- Ele não devia ter conseguido ligar-lhes - disse Fitz. - Na teoria, os reclusos têm de marcar um código no telefone para ter acesso a uma linha exterior, e cada código permite-lhes apenas ligar para uns determinados números. Confie em mim, nunca lhe foi permitido ligar para os números destas senhoras; mas aquilo é uma prisão. Os reclusos arranjam forma de contornar cada regra imposta. Provavelmente com ajuda do exterior.

- Pode pedir uma monitorização do correio que sai da prisão disse Griffin de sobrolho franzido. - Impedi-lo de contactar com o exterior.

- Se um recluso é ameaçador. O Eddie nunca as ameaçou, por isso não podíamos negar-lhe esse contacto. Elas mudaram os números de telefone e ele passou a comunicar por carta. Quando lhe retiveram a correspondência, ele pediu a alguém para deitar as cartas no correio noutro lado. O Eddie era persistente, isso tenho de reconhecer.

- E o que tentava ele dizer com tanta persistência?

- Que era inocente - respondeu Jillian com secura. - Que tínhamos cometido um grande erro. Que ele nunca quisera fazer mal a ninguém. Que aquilo era tudo um grande mal-entendido. E depois, já para o fim, claro, queria saber porque é que estávamos a dar-lhe cabo da vida, porque é que o afastámos do filho. Ele assassinou a minha irmã, sargento, e depois vem perguntar-wz por que é que eu estou a impedi-lo de ver o filho?

- Ele não nos deixava em paz - interveio Carol com veemência.

- Por amor de Deus, até contactou o meu marido no local de trabalho! Pediu-lhe que lhe recomendasse alguns advogados! O meu violador a consultar o meu marido para arranjar um bom advogado! E quando isso não deu em nada, começou a mandar-nos cartas com os selos grátis fornecidos aos reclusos. Pense nisso. O meu violador a importunar-me com selos que eu pago como contribuinte. O homem era um maldito monstro!

Griffin olhou para Meg. Ela limitou-se a encolher os ombros.

- Os meus pais não me deixam atender o telefone nem ir buscar o correio.

- A questão é... - começou Jillian, chamando a atenção novamente para si -... que o senhor veio bater à porta errada, sargento. Então alguém limpou o sebo ao Eddie Como. Não nos interessa quem foi. E não precisamos de saber quem foi. Francamente, estamos muito contentes por ele ter morrido!

 

Jillian

O detective Fitzpatrick e o sargento Griffin ficaram no restaurante mais uns cinco minutos. Eles pressionavam, Jillian resistia. Eles insistiam, ela mantinha-se firme. Os dois polícias foram ficando cada vez mais frustrados. Jillian não se importou. Dissera a verdade a Meg e a Carol. Elas não tinham de dizer nada nem de ir a parte alguma. Naquele momento, continuavam a ser apenas as vítimas do Eddie Como. Bem que podiam aproveitar isso enquanto era possível.

Um ano antes, quando Jillian se lembrara de criar o Clube das Sobreviventes, não estivera iludida quanto ao que a esperava. Acordara naquela manhã com a terrível constatação de que Trisha continuava morta e ela viva. Ficara deitada, com medo de todos os ruídos que ouvia em casa, consciente da sua fraqueza física, e depois ficara de novo zangada. Não - ficara furiosa. Não queria que a polícia lhe fizesse mais perguntas. Não queria que o promotor público entrasse no seu quarto de hospital, não queria agentes a fazerem-lhe perguntas sobre o que dissera ou fizera na noite em que a sua irmã mais nova fora brutalmente violada e assassinada. Não queria sair da cama sabendo que o homem continuava à solta. Ele matara Trisha. Atacara duas outras mulheres. E a polícia não fizera nada a respeito do assunto.

Nessa altura Jillian levantara-se da cama. E depois pegara no telefone.

Talvez Meg e Carol se tivessem juntado ao grupo à procura de consolo. Talvez, nessa altura, ele fosse mesmo uma fonte de consolo. Mas Jillian ainda não estava pronta para coisas suaves. Acima de tudo, precisara de agir por Trisha, por si própria, por todas elas. Formara aquele grupo, depois transformara-o numa espada.

- Não somos o Clube das Vítimas - dissera ela na primeira reunião. - Somos o Clube das Sobreviventes e, embora possamos ter perdido o controlo uma vez, nunca mais voltaremos a perdê-lo. Estes ataques são os nossos ataques. Aquele violador é o nosso violador. E vamos atrás dele. Nós as três vamos servir-nos da comunicação social, vamos servir-nos do promotor público, vamos servir-nos da polícia e vamos descobrir o homem que nos fez isto. E depois vamos ensinar-lhe o que significa meter-se connosco. Prometo-vos. Do fundo do coração, prometo-vos que vamos apanhar este homem e fazê-lo pagar.

E em apenas três semanas viram a polícia prender Eddie Como. O que os detectives de Providence não tinham conseguido fazer em quase dois meses, o Clube das Sobreviventes conseguira em metade do tempo.

O detective Fitzpatrick e o sargento Griffin foram-se embora. Uma empregada aproximou-se. A sua expressão era simultaneamente curiosa e de compreensão.

- Mais chai?

Elas abanaram a cabeça.

- Fiquem o tempo que quiserem, meninas. Oh, e não se preocupem com a conta. Depois de tudo aquilo por que passaram, esta é por conta da casa.

A empregada afastou-se. Jillian olhou para Carol e para Meg. Ninguém parecia saber o que fazer em seguida.

- Um pequeno-almoço à borla - murmurou Carol por fim. Quem disse que ser violada não tinha as suas vantagens?

- Não tivemos o pequeno-almoço à borla por termos sido violadas - contrapôs Jillian. - Tivemos o pequeno-almoço à borla porque matámos o Eddie Como. Vá, depressa, vamos até Federal Hill. Quem sabe quanta comida à borla não conseguiremos lá arranjar!

Federal Hill era a zona italiana de Providence, famosa pelos seus restaurantes, pastelarias e ligações à máfia. Talvez pudessem ser saudadas por vários patrões da máfia ou recebessem cannolis à borla. Era uma ideia.

Meg fez rodar a caneca vazia nas mãos. Olhou para Carol e depois para Jillian. Depois surpreendeu ambas, talvez até ela própria, por ser a primeira a falar de assuntos sérios.

- Talvez devêssemos ter-lhes contado - disse ela a Jillian. Sabes, da disquete.

- Porquê? O Eddie contactou-nos antes de a polícia fazer alguma coisa.

- Mas dessa vez foi diferente.

- "Paus e pedras levam tudo à frente, mas as palavras não magoam a gente." - citou Jillian.

- Ele mandou a disquete para tua casa. - Agora era Carol, claramente de acordo com Meg. Carol detestava o facto de Eddie Como ter podido aceder às suas residências. Como dissera ao detective Fitzpatrick seis meses antes, aquando do primeiro telefonema, ela achara que era o mesmo que deixar um assassino regressar à cena do crime. Eddie fora acusado de violação, de homicídio involuntário e de ofensa à integridade física qualificada. Depois disso tudo, como é que ele ainda tinha a liberdade de fazer telefonemas e mandar correio? Eddie Como podia ter estado atrás das grades, mas a maior parte do tempo elas é que se sentiam aprisionadas.

- Ele contactou-nos a todas em casa - disse Jillian. - Temos de ser realistas: ele gosta de joguinhos. Gosta de nos deixar baralhadas. Isto foi apenas o último esforço.

- Mas ele ameaçou matar-te - argumentou Meg. - O detective Fitzpatrick disse-nos que podia fazer qualquer coisa se o Eddie se tornasse ameaçador. E aquele vídeo... - Meg estremeceu -... aquele vídeo era mesmo ameaçador.

A disquete fora enviada para a casa de Jillian na sexta. O remetente era a empresa de Jillian - sim, à sua maneira Eddie era muito esperto. Então ela abrira o envelope de papel manilha, metera descuidadamente a disquete no computador, achando que devia ser de Roger ou de Claire, e depois... depois o rosto de Eddie fitara-a do monitor do seu computador. E enquanto ela procurava ejectar a disquete, ou carregar na tecla "Escape", ou fechar o programa com o rato, ou qualquer outra coisa, ele começara a falar.

- Grande cadela - disse-lhe Eddie Como quando ela estava sentada na sua própria casa, a três metros da mãe doente, a cinco metros da empregada da mãe, a meio metro da fotografia de Trisha, a sorrir feliz e ainda tão cheia de vida. - Grande cadela, deste cabo da minha vida. Deste cabo da vida do meu filho, da vida da minha mãe e da da minha namorada. Porquê? Por que sou hispânico? Ou apenas por que sou um homem? Já não importa. vou apanhar-te, nem que leve o resto da minha vida. vou apanhar-te nem que seja do túmulo.

Jillian tirara a disquete na altura. Voltara a metê-la no envelope e a fechá-lo, como se ela fosse uma aranha venenosa que pudesse tentar escapar. Depois ficara sentada bastante tempo, a respirar a custo, a tremer como varas verdes e praticamente à beira das lágrimas.

Jillian odiava estar à beira das lágrimas. Chorar nunca ajudava. Chorar nunca mudara o mundo. Chorar com certeza não afastava tipos como o Eddie Como.

- Se eu fosse contactar o detective Fitzpatrick tê-lo-ia feito na sexta à noite - disse ela ao grupo naquele momento. - Mas não o fiz. Pronto.

- Devias ter-lhe dito - afirmou Carol, ainda num tom de desaprovação. - Talvez ele pudesse ter feito alguma coisa.

Jillian revirou os olhos.

- Já passava das oito quando abri o envelope. O detective Fitzpatrick já devia ter ido para casa. E... e pareceu-me uma infantilidade na altura. Um truque de última hora do Eddie para nos assustar, uma vez que o julgamento iria começar na segunda. Para além disso, ele mandou o envelope, e devia estar à espera que a polícia ou os guardas prisionais aparecessem, ou outras pessoas quaisquer, a fim de o fazerem passar um mau bocado. Depois poderia divertir-se com o facto de me ter amedrontado tanto. Mas se eu não dissesse nada a ninguém... então ele passaria o fim-de-semana à espera. Na dúvida. Sem saber nada. Isso agradou-me.

- Puni-lo com o silêncio - disse Meg. - Não me parece mal. Jillian encolheu os ombros com modéstia.

- Mas isso já não interessa, pois não? Independentemente do que o Eddie tenha feito, do que tenha ameaçado fazer... já não interessa. Ele está morto.

Um silêncio estranho abateu-se sobre o grupo. Pela primeira vez, com a confirmação de que Eddie Como fora fatalmente baleado, as palavras começaram a penetrar, a tornarem-se reais, a tornarem-se o novo estado do universo. Olharam umas para as outras. Ninguém sabia o que dizer. Já não havia Eddie Como. Isso desafiava a imaginação.

Durante o último ano ele fora o centro do universo delas. Tudo aquilo que odiavam, desprezavam, temiam. Tinham-se encontrado semanalmente apenas para falar de como ele as enfurecera, as tornara determinadas, as confundira, as destroçara, as deixara indefesas, abaladas. Haveria algum pensamento delas que não estivesse relacionado com Eddie Como? Uma resolução que não começasse com ele? Um dia bom, um dia mau, um bom episódio, um mau episódio que não lhe fosse directamente atribuído? Meg era incapaz de recordar-se da sua vida. Carol não conseguia desligar a televisão. Jillian não era capaz de se descontrair e, de uma ou de outra forma, tudo isso estava relacionado com Eddie Como. Só que agora ele desaparecera e o mundo continuava a girar e os outros clientes a comerem e...

- Não me parece que possamos falar sobre isto - declarou Jillian.

- Temos de falar sobre isto - retorquiu Meg.

- Temos de falar sobre isto! - secundou Carol com mais veemência. - É melhor falarmos disto! Eu, por exemplo...

- Não podemos - interrompeu Jillian. - Somos suspeitas. Se falarmos sobre o tiroteio ou sobre o facto de ele estar morto, mais tarde alguém... bolas, talvez o Ned DAmato... possa considerar isso uma conspiração.

- Oh, por amor de Deus! - exclamou Carol. - O Violador de College Hill está morto e tu continuas a inventar regras e a dizer o que devemos ou não fazer! Esquece o assunto, Jillian! Passámos os últimos doze meses a preparar-nos para um julgamento que já não vai ter lugar.

Oh, meu Deus, nem sei por onde começar!

- Não podemos...

- Vamos votar. - Carol foi peremptória. - Quem é a favor de dançar em volta da campa do Eddie Como que levante o braço.

Carol levantou o braço. Pouco depois, o braço de Meg também se levantou. Ela lançou a Jillian um olhar de desculpas.

- Quando se começaram a ouvir as primeiras notícias eu tive a certeza de que era um engano - disse. - Como é que alguém tão malévolo como o Eddie podia morrer? Teria o atirador usado uma bala de prata? Mas depois apareceram os polícias, por isso acho que isto está tudo realmente a acontecer, e bem... creio que estou um pouco confusa. Ele está morto, mas na minha mente não pode estar morto. Tudo está diferente, mas tudo está na mesma. É... surrealista.

Jillian franziu o sobrolho. Ainda estava aborrecida com o comentário de Carol. Mas então...

Sentia a pele esquisita, demasiado apertada para os ossos. O ar também estava estranho, demasiado frio no rosto. Meg tinha razão. Tudo estava diferente, contudo tudo continuava na mesma, e teria havido uma noite nos últimos doze meses em que Jillian não fora para a cama a desejar a morte de Eddie Como, a implorar a morte de Eddie Como com todas as fibras do seu ser?

Ela ganhara. O Clube das Sobreviventes ganhara. E então percebeu finalmente o que estava errado. Eddie Como morrera. Mas ela não se sentia vitoriosa.

- Talvez... talvez possamos falar de como nos sentimos - disse Jillian lentamente. - Mas nada de entrarmos em pormenores sobre o tiroteio. Combinado?

Meg assentiu. com mais relutância, Carol imitou-a.

- Bem, eu pelo menos estou feliz! - exclamou Carol de imediato.

- Estou a rebentar de felicidade! Bolas, sim. É um grande dia na América. O filho da mãe teve finalmente o que merecia! Sabem do que precisamos? De champanhe. Precisamos de celebrar isto condignamente, isso porá as coisas na devida perspectiva. Onde está a empregada? Vamos beber um pouco de champanhe e, porque não, comer um bocado de bolo de chocolate.

A empregada materializou-se como que por magia. Carol pediu uma garrafa de Dom Pérignon, depois o bolo de chocolate inteiro.

- Não se preocupe, nós pagamos isto - disse ela à mulher. Não estamos a tentar abusar da generosidade de ninguém, só precisamos de um bom brinde. Tem morangos, querida? Ponha um morango em cada copo. Isso será perfeito. E depois o bolo. Não se esqueça do bolo. Meu Deus, tem um aspecto delicioso!

Carol agitava as mãos entusiasticamente. Os seus olhos azuis brilhavam de novo, a sua expressão voltara a ser luminosa. Meg e Jillian entreolharam-se.

- Muito bem - disse Carol muito alto. - O champanhe vem a caminho. Entretanto, vamos enumerar os pontos em que as nossas vidas irão melhorar. Eu começo. Primeiro, já não temos de nos preocupar com depormos no julgamento. Nada de recapitulações terríveis, de interrogatórios cruéis, de mostrar fotografias dos nossos corpos feridos a desconhecidos. Nenhum julgamento é um bom julgamento. Obrigada, Eddie Morto. Oh, vejam, aí está o champanhe.

A empregada regressara. Trazia o Dom Pérignon e, sim, copos com morangos. Abriu a garrafa, encheu os três copos e começou a servir o bolo.

Jillian aceitou o copo, já a imaginar os cabeçalhos. "Eddie Como jyforreu, As Mulheres Comem Bolo." Mas, logo a seguir, a boa disposição de Carol contagiou-a. O que raio deveriam elas fazer? Chorar para cima de canecas de café? Torcer as mãos? Talvez aquilo não fosse uma coisa sã e talvez não fosse socialmente aceitável, mas haviam tido muitos momentos menos sãos que aquele. E haviam suportado muitas coisas que não seriam socialmente aceitáveis.

Trisha amarrada, nua, depois brutalmente atacada enquanto a sua qarganta se fechava, enquanto os seus pulmões lutavam por ar. Trisha a debater-se furiosamente. Trisha a morrer, a última coisa que viu foi um desconhecido em cima dela.

- Muito bem - disse Jillian. Ergueu o copo de champanhe. É a minha vez. Brindo ao fim dos telefonemas a meio do dia, ao fim das cartas, ao fim dos vídeos esquisitos. Obrigada, Eddie Morto.

- Brindo a não termos de temer saídas da prisão em liberdade condicional - disse Meg. - A não termos de reviver as nossas violações ante comissões nem a temer que ele regresse às ruas. Obrigada, Eddie Morto.

- A não recear que ele consiga de alguma forma sair e ir atacar outra pessoa - continuou Carol.

- A não recear que ele consiga de alguma forma sair e vir atacar uma de nós - corrigiu Jillian.

- A não termos mais medo! - exclamou Meg.

Beberam. O champanhe soube surpreendentemente bem. Devolveu as cores aos seus rostos. Que se lixasse. Jillian serviu outra rodada enquanto Carol atacava a sua fatia de bolo.

- Ainda bem que os polícias se foram embora - comentou Meg por volta do terceiro copo. Comera muito pouco ao pequeno-almoço e o champanhe estava a subir-lhe à cabeça.

- Õh, eles vão voltar - disse Carol. Deixara de beber após o primeiro copo e decidira dedicar-se ao bolo. Tinha os lábios sujos de chocolate. Sujara também a cara e as mãos.

- Aquele novo é giro - declarou Meg. - Que belos olhos azuis! E aquela peitaça? Viram o peito dele? Ali está um homem que parece saber como servir e proteger.

- Também disseste isso acerca do Fitz e o Fitz não é giro. Gostas é de fardas. - Carol terminou a fatia de bolo e meteu imediatamente outra no prato.

- A cara dele não me é estranha - murmurou Jillian.

- Neste estado, ninguém é estranho - disse Carol.

- Para mim são todos estranhos! - exclamou Meg alegremente, estendendo o copo vazio para que fosse novamente enchido.

- Talvez devesses abrandar um pouco - avisou Jillian.

- És sempre tão razoável. Sempre tão controlada. Sabes do que é que este grupo precisa? De uma festa. com um stripper masculino!

- Não creio que um grupo de sobreviventes de violação devesse contratar um stripper.

- Por que não? O homem como objecto. Podia fazer-nos bem. Vá lá, Jillian, já nos obrigaste a ler todos os livros tradicionais e a discutir os métodos tradicionais. Por que não nos desviamos um pouco do caminho normal? Já passou um ano. Sejamos loucas!

Meg olhou para Carol à procura de apoio. Aquele era o problema de um grupo com apenas três elementos, como Jillian percebera logo no início. Duas pessoas podem sempre fazer panelinha contra uma. No início, fora Jillian e Carol a decidirem as coisas por Meg. Mas ultimamente...

Contudo, naquele momento, Carol limitou-se a encolher os ombros. Parecia estar mais interessada no bolo de chocolate do que num "bolo" masculino. Claro, Carol encontrava pouca utilidade para os homens nos últimos tempos. Não que qualquer uma delas andasse a sair-se muito bem nesse campo, mas Carol, em particular, detestava até pensar em sexo.

- Eu estava a falar a sério em relação ao sargento Griffin - disse Jillian. - Conheço-o de qualquer lado. Juro que já vi a cara dele na televisão. Ainda vou tentar descobrir.

- Não tem aliança. - Meg arqueou uma sobrancelha.

- Por amor de Deus, Meg. Ele é polícia, não concorrente de um daqueles programas onde se tenta arranjar parceiro.

- Por que não? Tu és muito bonita, Jillian. E não podes punir-te para sempre.

Aquilo pôs fim à conversa. Até Carol se deteve com o garfo a caminho da boca.

- Acho que não devíamos falar disso agora - disse Jillian.

- Só queria dizer...

- E não quero falar disso agora. Tivemos uma manhã muito longa. Acabemos mas é o champanhe e fiquemos por aqui.

Carol continuou a comer o bolo. No entanto, Meg ficara com uma expressão ausente. Estava embriagada. Claro que mesmo sóbria dizia sempre mais do que Jillian ou Carol ousavam dizer. Eram mais velhas, preservavam mais a sua privacidade e erguiam muros à sua volta. Meg, não. Meg, nunca.

- Estou zangada - disse ela de repente. - O Eddíe Como está morto, mas continuo zangada. Porquê?

Jillian pegou no copo de champanhe vazio, e fê-lo rodar entre os dedos.

- É demasiado recente - respondeu. - Vais precisar de tempo para assimilar, vamos todas precisar de tempo para assimilar que ele desapareceu mesmo.

Meg abanou a cabeça.

- Não. Acho que não é isso. Acho que talvez não importe. Não, receio que não importe mesmo. O Eddie Como está morto. E depois?

Vais prosseguir magicamente com a tua vida, Jillian? Irei eu magicamente recordar o meu passado? Irá a Carol finalmente desligar o televisor? Não me parece. - A sua voz tornou-se mais aguda. - Oh, meu Deus, é a coisa que mais desejávamos e nada ficou diferente!

- Meg...

Jillian tentou pegar-lhe na mão. Contudo, Meg afastou a sua, batendo sem querer na garrafa quase vazia de champanhe e tombando-a. Jillian pegou na garrafa. Carol pegou num guardanapo. Meg continuou a falar.

- Pensem no assunto. Nós odiávamo-lo. Todas nós. Até eu. E centrámos nele a nossa ira. Por que formaste este grupo, Jillian? Para apanhar o Eddie Como. E por que

ficámos juntas? Para combater o Eddie Como. Tudo, nos últimos does meses, girou à volta dele. E é mais fácil assim. Quando acordamos zangadas, desorientadas ou com

medo, sabemos porquê: Eddie Como. Quando a polícia invade a nossa privacidade ao fazer-nos mais perguntas, ou os nossos amigos ou familiares olham para nós de forma estranha, sabemos porquê: Eddie Como. Mas... mas agora...

Calou-se. Jillian e Carol não disseram nada. Não puderam dizer nada.

- Estou tão zangada - murmurou Meg. - Não sei quem sou. Ainda tenho de fazer testes da sida e às vezes, a meio da noite... fico deitada na cama a pensar. Aquele homem sabe mais sobre o meu corpo do que eu. Fez coisas, invadiu espaços. Afastou-me de mim. E mesmo que esteja morto, continuo furiosa.

- Duvido que consiga dormir esta noite - disse Carol abruptamente. - A Meg tem razão. Não é realmente por causa dele. Quero dizer, sim, tenho medo do Eddie. Mas também tenho medo de... tudo. Tenho medo do escuro, do silêncio, da minha casa, da janela do meu quarto. Tenho medo do meu marido, sabem? Nunca falamos sobre isso, mas ele sabe que eu às vezes acordo a meio da noite, olho gara ele e só vejo o Eddie. Gosto do sofá. Os quartos Já não são seguros. É melhor dormir no sofá. Mesmo, mesmo agora. É melhor estar no sofá.

Olharam ambas para Jillian. Era a vez dela. Era assim que o grupo funcionava. Uma partilhava, todas partilhavam.

- Pelo menos sentimos que se encerrou um capítulo - aventou ela. Carol assentiu de imediato.

- Encerramento. Isso é bom. Mas Meg abanou a cabeça.

- Estás a fugir de novo.

- Não estou a fugir - protestou Jillian, como protestava sempre.

- Ainda não tenho uma resposta.

Carol e Meg limitaram-se a olhar para ela. Esperaram. Ultimamente pareciam exigir mais.

- A minha perda é diferente - disse Jillian por fim. - A minha irmã está morta. Independentemente do que aconteceu ao Eddie... nada vai trazer a Trisha de volta. Sempre soube isso.

- É mais fácil para ti. - No tom de Carol havia uma certa amargura. - Lutaste com ele. Venceste.

- Não venci.

- Venceste.

- Tive sorte, está bem? Achas que não sei isso? Tive sorte!

- Bem, eu não sou esquisita, teria aceitado a sorte de bom grado!

- E eu teria preferido a vida da minha irmã! - A voz de Jillian elevara-se de repente, chamando novamente a atenção dos outros clientes. Ela conteve-se, unindo os lábios numa linha fina para se controlar, embora respirasse a custo, estivesse corada e nervosa. Endireitou-se. Pegou no copo de champanhe. Pousou-o. Pegou novamente nele.

- Isso foi bom - disse Meg, assentindo. - Honesto. Acho que estás a fazer progressos.

Jillian conteve a custo o impulso de estrangular a rapariga. A intenção de Meg era boa, claro. Jillian sabia-o. Mas ela não era uma jovem de vinte anos amnésica. Tinha trinta e seis anos, responsabilidades e lembrava-se de tudo. De tudo mesmo. Bolas...

Pegou no copo, voltou a pousá-lo, pegou outra vez nele e combateu o impulso de o atirar para o chão. Um ano depois... vejam como estavam elas.

Carol quebrou finalmente o silêncio.

- Mas continua a ser melhor, não? A vida tem sido insuportável com o Eddie Como vivo. com certeza há-de ser melhor com ele morto.

- Encerramento - declarou Jillian.

- Encerramento - repetiu Meg.

- Encerramento - ecoou Carol.

- A vida há-de melhorar - insistiu Jillian. Meg sorriu finalmente.

- Pensem nas coisas assim. Não pode piorar.

 

Tawnya,

- bom, elas estão mesmo muito bem organizadas.

- A Jillian, a Carol e a Meg? - Fitz conduzia novamente o velho Ford Taurus pelas ruas estreitas da cidade. Olhou para Griffin. - Não as deixe enganá-lo. Foi um ano complicado. Já as vi irem-se abaixo uma ou duas vezes.

- Até a Jillian Hayes?

- Bem... - Fitz teve de fazer um esforço para se recordar. -... a Jillian talvez não.

- A irmã era bastante mais nova que ela. Uns quinze, dezasseis anos? Parece que talvez tenham tido uma relação mais de mãe e filha do que de irmãs.

- Possivelmente. A mãe, Olivia, não está de boa saúde. Teve um enfarte há uns anos e ficou presa a uma cadeira de rodas. A Jillian toma conta dela com a ajuda de uma empregada interna.

- Então a Jillian tem sido a chefe de família? Fitz encolheu os ombros.

- Ela tem trinta e seis anos, sabe? Não é assim tão trágico.

- Não. Estou só a pensar... É bastante duro perder um irmão. Mas graças ao Eddie, a Jillian perdeu a irmã e a filha. Isso deve custar muito. - Griffin pensou em Cindy. - Deve deixar-nos furiosos acrescentou com voz rouca. - Furibundos mesmo.

Fitz lançou-lhe um olhar estranho.

- Acho que não tinha pensado nisso.

- Ela estava bem vestida - disse Griffin num tom mais neutro.

- O que é que faz?

- É dona de uma pequena empresa de marketing. Uma empresa bastante bem sucedida, por acaso, mas ela tem ainda outros bens. Interessa-se por bluesí A mãe dela, a

Olivia Hayes, foi uma cantora bastante conhecida na sua época. Amealhou centenas de milhares de dólares, e a Jillian transformou-os em milhões.

Griffin arregalou os olhos.

- Isso daria para comprar um assassino ou dois.

- Pois daria.

- Ela parece uma pessoa fria. - O tom de Griffin era provocador. Sabia que Fitz odiava aquele assunto.

O outro ficou calado.

- Segundo ela própria disse, sente-se grata - insistiu Griffin. Fitz abriu e fechou as mãos ao volante, mas continuou calado.

- Também tem o motivo mais forte, e parece que andou a estudar a sua melhor defesa.

- Ela não manda ninguém fazer o trabalho dela, está bem? - respondeu Fitz abruptamente. - Passei um ano com aquela mulher. Bolas, nem sequer achou que conseguiríamos

apanhar o assassino da irmã sem ela. Pergunte ao DAmato quantos telefonemas recebia dela por dia. Pergunte ao meu tenente quantas vezes é que ela ia à esquadra. Por que julga que ela formou o Clube das Sobreviventes? Por que julga que ela passou tanto tempo diante da comunicação social? A Jillian luta para conseguir o que quer.

- Ora, Fitz, até parece que você gosta dela! Fitz grunhiu ao volante.

- Não me obrigue a matá-lo, Griffin.

Griffin foi obrigado a sorrir. Mesmo que Fitz conseguisse atingi-lo, o mais provável seria partir a mão.

- Então não aposta na Jillian Hayes?

- Se a Jillian queria realmente o Eddie Como morto teria ela própria apertado o gatilho.

- Mesmo que não percebesse muito de armas?

- Contrataria um professor e aprenderia. Na primeira vez que foi ao meu gabinete trazia um livro sobre cenas de crimes e o do Robert Ressler sobre agressores sexuais.

Depois de termos descoberto o Eddie Como pelo ADN, ela pediu ao nosso sargento do gabinete de Investigação Criminal que lhe recomendasse uns livros sobre o assunto.

Tenho quase a certeza que ela sabe mais do que a maior parte dos nossos técnicos. A mulher pode ser irritante, mas não é estúpida.

- Então quem é que acha que contratou o assassino?

Fitz premiu os lábios. Não queria nada ter aquela conversa. Griffin compreendia-o. Depois do último ano, suspeitar de uma das mulheres era, para Fitz, o mesmo que suspeitar de um colega.

- O tio Vinnie - respondeu Fitz contrariado.

- Um tio furioso com ligações à máfia. Percebo isso. Embora pessoalmente continue interessado na Meg. Aquela coisa da amnésia. Há ali algo que me incomoda.

- Uma rapariga não pode esquecer?

- A vida inteira?

- A violação é um trauma fortíssimo.

- Sim, mas também já aconteceu há um ano e a amnésia provocada por traumas costuma melhorar com o tempo.

- E quanto tempo é esse? Conheço veteranos de guerra ainda a sofrerem de stresse pós-traumático e já passaram trinta anos desde a guerra do Vietname. Precisamos do tempo que precisamos, é tão simples como isso. - Fitz olhava novamente para Griffin de esguelha. Griffin não era um idiota.

- Pessoalmente - disse ele num tom ligeiro -, acho que ninguém deveria precisar de mais de dezoito meses.

Fitz revirou os olhos, mas aparentemente decidiu não insistir.

- Dan Rosen - declarou de repente.

- O marido da Carol?

- Sim. Interroguei o tipo uma meia dúzia de vezes e não sei... Há qualquer coisa nele que não me agrada. Pensa demasiado antes de falar. Quase conseguimos ver a engrenagem na cabeça dele a funcionar enquanto escolhe cada palavra, sopesa cada sílaba. Por amor de Deus, sei que o tipo é advogado, mas a mulher dele foi violada no quarto de ambos. Já é suficientemente mau ele não ter estado em casa para a ajudar. O mínimo que pode fazer agora é deixar de economizar nas palavras.

- Têm dinheiro?

- Não, têm uma casa que lhes chupa tudo. Pelo menos foi isso que nos pareceu há um ano quando investigámos a situação financeira deles. Na altura, o escritório de advogados era bastante recente e a casa acabara de ser renovada. Por outras palavras, tinham muitos bens mas nenhum dinheiro a mais. Talvez o escritório esteja a sair-se melhor agora, ou talvez não.

- E os bens podem sempre ser transformados em dinheiro - salientou Griffin.

- É verdade.

- E a família da Jillian Hayes?

- Que família? - Fitz encolheu os ombros. - Ela tem uma mãe doente e uma empregada interna. Mais nada.

- Mais nada? Não tem pai?

- Não. Fiquei com a impressão de que a mãe dela só alugava homens, não os comprava.

- Então ela e a Trisha eram meias-irmãs?

- Sim.

- E quanto aos homens na vida da Jillian? Ela andava com alguém na altura do ataque?

- Que eu saiba, não.

- E agora?

Fitz olhou de novo para ele.

- Não está a querer saber demasiados pormenores íntimos, Griff?

- Estou apenas a fazer conversa. - Griffin tamborilou com os dedos no tabliê. - Ei, Fitz, para onde é que estamos a ir?

- Já que tenho ajuda, lembrei-me de irmos fazer uma visita à mãe do Eddie.

Dez minutos depois, Fitz e Griffin chegaram à residência dos Como. Desta vez, não conseguiram antecipar-se à comunicação social. Duas carrinhas enormes já estavam a engarrafar a rua estreita do bairro residencial degradado. Um emaranhado de microfones dominava o pátio minúsculo. Fitz e Griffin não viram nenhum membro da família de Eddie Como na rua, mas isso não queria dizer nada. Ou já tinham acabado de prestar declarações ou estavam prestes a falar com os jornalistas. Fosse como fosse, as coisas não estavam facilitadas para Griffin e Fitz.

- A mãe do Eddie odeia-me - anunciou Fitz estacionando o carro na berma estragada. - O pai do Eddie morreu quando ele era miúdo, senão também haveria de me odiar. Agora restam apenas a mãe, a namorada e o bebé. Oh, e a namorada, Tawnya, morde.

Griffin, que estava prestes a abrir a porta do carro, deteve-se e olhou para Fitz.

- Morde?

- Sim. E às vezes também arranha. Tem umas unhas enormes. Quase com sete centímetros. Gosta de as pintar com pequenas palmeiras e flamingos. Depois limou-as até ficarem pontiagudas; pensamos em praias tropicais até ela nos tentar ir aos olhos.

- Há alguma porta nas traseiras?

- A porta da cozinha.

- Óptimo, porque de forma alguma podemos ter um encontro desses diante da comunicação social.

Fitz olhou para as carrinhas.

- Bem visto. Não admira que vos paguem uma pipa de massa. Griffin abriu a porta.

- Também temos carros melhores.

Assim que ele e Fitz se dirigiram para a rua sossegada, as portas das carrinhas abriram-se e dois jornalistas, acompanhados de cameramen, saíram. Griffin e Fitz disseram "Sem comentários" uma dezena de vezes até chegarem finalmente às traseiras da pequena casa. Aí, pararam, olharam um para o outro e bateram à porta. Pouco depois, uma cortina amarela desbotada que cobria a metade superior da porta foi afastada. Depararam com uma pequena mulher hispânica que lhes lançou uma mirada sombria com os seus olhos pretos.

- Mistress Como. - Fitz esboçou um leve aceno e um sorriso nervoso. - Desculpe, minha senhora, mas precisamos de falar consigo.

Mrs. Como não fez menção de querer abrir a porta.

- Eu sei o que aconteceu - disse ela atrás do vidro. - A Tawnya estava lá. No tribunal. Contou-me.

- Lamentamos muito a sua perda - disse Fitz. Mrs. Como fungou.

- Viemos até aqui para investigar o que aconteceu ao Eddie continuou Fitz cheio de coragem. - Sei que tivemos as nossas divergências no passado, mas... estou aqui por causa do seu filho, Miistress Como. com certeza pode dispensar-nos alguns minutos do seu tempo...

- O meu Eddie está morto. Vá-se embora, senhor detective. O senhor magoou a minha família e não quero mais falar consigo.

Nesse preciso momento, uma rapariga muito bonita contornou a casa. Griffin ainda teve tempo de pensar "Ena, parece-se mesmo com a Meg Pesaturo" antes de a jovem se atirar a Fitz com as unhas rosa-vivo em riste e os dentes arreganhados.

- Hijo de puta! - exclamou Tawnya.

- Aaahhh! - fez Fitz.

Levantou o braço para proteger o rosto ao mesmo tempo que Griffin prendeu a rapariga, agarrando-a pela cintura com o braço. Levantou-a no ar e ela esperneou e bateu-lhe no braço com os punhos.

- Quanto é que pesa, uns quarenta e cinco quilos? - perguntou ele num tom ligeiro.

- Filho da puta! Seu porco de merda...

- Eu peso mais uns cinquenta quilos que você - continuou Griffin.

- Isso quer dizer que posso continuar a segurá-la assim o resto do dia. Então, se quiser regressar ao chão, talvez deva respirar fundo. Moderar a linguagem. Viemos aqui só para conversar.

Tawnya voltou a bater-lhe no braço. Depois atacou-o com uma perna. Ao ver que ele nem pestanejara, acalmou-se finalmente, embora o seu olhar continuasse posto em Fitz, que estava agora encostado à parede com a mão a proteger o rosto. Mrs. Como encontrava-se atrás da porta fechada, a observar tudo, impassível.

- Está pronta a portar-se bem? - perguntou Griffin depois de ter passado um minuto em que Tawnya não tentou matar ninguém.

Ela assentiu contrariada. Ele libertou-a.

Ela lançou-se a Fitz, que desta vez conseguiu agarrar-lhe um braço, torcer-lho atrás das costas e algemá-la.

- Pronto! - exclamou ele, respirando a custo. - Fica algemada até eu me ir embora. Dê-se por contente por eu não apresentar queixa pela sua agressão.

- Não é crime matar um porco! - ripostou Tawnya.

- Credo, rapariga, o pai do seu filho acabou de morrer. Não teve já violência que chegue para hoje?

As palavras surtiram efeito. Tawnya curvou os ombros. Baixou o queixo. Por momentos, Griffin achou que ela iria chorar. Mas isso não aconteceu. Dominou-se, depois assentiu na direcção da sogra, que abriu finalmente a porta.

O interior da casa era o que Griffin esperava. Uma cozinha demasiado cheia com chão de vinil rasgado e bocados de comida de bebé. Uma sala com uma carpete amarelada puída e um sofá castanho com as molas gastas. O objecto mais caro da sala era o parque azul, colocado diante da janela. Tawnya dirigiu-se imediatamente para ele, depois virou-se e olhou para Fitz ao perceber que não podia pegar no filho. Chocalhou as algemas.

- Olhe, para a próxima pense antes de arranhar - gritou Fitz da cozinha.

Griffin, que tinha um fraco por bebés - gostava do seu cheiro -, aproximou-se para inspeccionar o parque. O filho de Tawnya - e também de Eddie, presumiu ele - dormia profundamente de barriga para baixo, o rabinho com fralda espetado no ar e bolhinhas na boca.

- Nome? - perguntou ele a Tawnya.

- Eddie Júnior - respondeu ela contrariada.

- Idade?

- Nove meses.

- É muito bonito. A propósito, sou o sargento Griffin. Polícia estadual. - Sorriu.

- Prendeu aquelas putas por matarem o meu Eddie?

Griffin calculou que as putas devessem ser Meg Pesaturo, Carol Rosen e Jillian Hayes.

- Não.

- Então vá-se foder! - Tawnya virou-se e desapareceu no corredor. Não valia a pena continuar a desempenhar o papel do bom polícia. Griffin regressou à cozinha, onde Mrs. Como batia com os tachos, provavelmente para ter qualquer coisa para fazer. Agora sentado à mesa da cozinha e sem saber bem como prosseguir, Fitz mordia o lábio

inferior.

- Ó rapaz estadual! - Tawnya de novo, a gritar da outra ponta da casa. - Venha cá. Quero mostrar-lhe uma coisa.

- Cuidado com as unhas - murmurou Fitz. - E com os dentes.

Griffin percorreu o estreito corredor sem grande vontade. Mas parecia que Tawnya já não tinha em mente morte e destruição. Em vez disso, apontava desajeitadamente com as mãos algemadas para um álbum de fotografias castanho e dourado numa prateleira curvada pelo peso dos livros.

- Pegue naquilo. Quero que veja uma coisa.

Griffin olhou para a prateleira em risco de cair. Ao não ver vestígios de armadilhas, pegou cuidadosamente no álbum. Como Tawnya não lhe mordeu, ele seguiu-a de volta à cozinha. Ali chegados, ela disse-lhe onde pousar o álbum e para que fotografias olhar. Griffin começou a perguntar a si mesmo se Eddie não teria ido para a prisão para fugir.

- Olhe! - exclamou Tawnya quando ele chegou finalmente à página desejada. - Veja isso. Sou eu e o Eddie. Olhe para essa cara. E a cara de um violador?

- Eles não vêm com carimbos na testa - respondeu Griffin com brandura, embora percebesse onde ela queria chegar. Eddie era um rapaz bem parecido. Baixo, mas atlético, bem vestido com calças de malHa castanhas e camisa azul-escura. Feições bem delineadas, cabelo preto bem penteado. Passaria perfeitamente por uma pessoa normal.

Agora olhe para mim - ordenou Tawnya, apontando com o

queixo para a fotografia, onde posava com um vestido preto reduzido, abraçada a Eddie. - Sou boa. Tão simples como isso. Desde os doze que dou a volta à cabeça dos rapazes. E sei como fazer um homem feliz. Se um tipo tem uma mulher como eu pode ter a certeza de que ele vem comer a casa.

- Quanta comida é que podia fazer grávida de seis meses? - interveio Fitz.

Tawnya lançou-lhe um olhar venenoso.

- Eu fiz o Eddie feliz. Fi-lo delirar, porra! - Olhou na direcção do fogão. - Sem ofensa, Mistress C.

Mrs. Como nada disse. A sua expressão mal se alterara desde a altura em que haviam chegado. Nem dor, nem ira, nem negação, nem medo. Agora mexia qualquer coisa numa panela gigantesca. A Griffin cheirou-lhe a lixívia. Depois percebeu. Ela preparava-se para lavar as fraldas fervendo-as no fogão. Olhou em volta para a cozinha, para os armários cheios de comida de bebé, de roupas de bebé, de brinquedos de bebé. E a seguir percebeu o resto. Para Mrs. Como, Eddie já partira há quase um ano. Agora a sua vida girava em torno do neto.

Dois homens desaparecidos na família, restando um. Será que ela pensava nisso à noite? Choraria quando ninguém estava a ver? Ou seria apenas uma coisa banal para uma mulher como ela, num local daqueles? Parecia que Griffin passava grande parte do seu trabalho a lidar com aquele tipo de cenas. Sentiu-se súbita e inesperadamente triste, e isso incomodou-o ainda mais. É preciso erguer muros naquela profissão. É preciso separar as águas se se quer ser polícia e manter a paz de espírito.

Deveria dar uma corrida em breve. Encontrar um saco de areia. Esmurrar o cabedal pesado até a tensão ter abandonado o seu corpo e não restarem mais emoções. Depois poderia fingir que senhoras de idade tristes não o afectavam e que dois anos depois não tinha imensas saudades da mulher.

- Estava com o Eddie nas noites em que as mulheres foram atacadas? - perguntou Griffin a Tawnya.

- Sim. Estava. Não que o detective Fitzpatrick tenha acreditado em mim. - Lançou outro olhar sombrio a Fitz. Este sorriu com doçura. - Na altura vivíamos num apartamento - continuou Tawnya. - Um sítio decente, em Warwick. O Eddie ganhava bom dinheiro no Banco de Sangue. Aquilo não é fácil, sabe. Ele teve de fazer estágio, de tirar alguns cursos. O Eddie era esperto. Tinha planos. E gostava mesmo do que fazia. Ajudar as pessoas e essas coisas. Estávamos a sair-nos bem.

- Ninguém vos viu juntos naquelas noites.

- Mierda! Já parece ele! - Indicou Fitz com o queixo. - Vá lá, o Eddie tinha um trabalho duro. Estava de pé seis, oito horas em cada turno. Quando chegava a casa

estava cansado. Queria descontrair. Sabe o que o Eddie mais gostava de fazer? Estender-se no sofá, ver um filme alugado e colocar a mão na minha barriga para poder sentir o bebé a dar pontapés. Sim, é este o vosso Violador de College Hill. Sentado no sofá com a namorada grávida e a contar histórias ao bebé. E agora... agora. Ah, vão-se todos foder!

Tawnya virou-se. Diante do fogão, Mrs. Como pegou num monte de fraldas e atirou-as para a panela. Mexeu-as vezes sem conta com uma enorme colher metálica. Ã cozinha encheu-se com o cheiro da lixívia, do pó de talco e da urina.

- Sabe que ele telefonou às mulheres - disse Griffin. Tawnya virou-se de novo para ele.

- Claro que lhes telefonou! Elas deram-lhe cabo da vida. Obrigaram a polícia a prendê-lo. Espicaçaram a população ao falarem nos noticiários sobre aquele violador horrível, horrível, que a seguir lhes iria matar a filha. Sabe que ele recebeu ameaças de morte graças àquelas mulheres? Até Mistress Como, e que mal fez ela? Um dia, um tipo ligou para um programa de rádio e disse que, se houvesse justiça no mundo, o pénis do Eddie Júnior cairia antes de ele poder transformar-se no pai. Por amor de Deus! Alguém devia prender aquele tipo por ameaçar um bebé daquela maneira! Não pude levar o Eddie Júnior ao tribunal porque estava com demasiado medo do que as pessoas poderiam fazer. Ao que isto chegou!

- Não acha que o Eddie era culpado.

- Sei que o Eddie não era culpado. Era apenas um pobre desgraçado a trabalhar no local errado na altura errada. É assim que o mundo funciona. As mulheres brancas magoam-se, um asiático ou um negro lixam-se.

- A polícia encontrou o ADN do Eddie nas cenas dos crimes.

- Ora! A bófia está sempre a falsificar o ADN. Toda a gente sabe isso.

- A bófia falsifica o ADN? - Griffin olhou para Fitz, como se perguntasse se uma coisa daquelas podia ser verdade. Fitz encolheu os ombros.

- A bófia não lida com o ADN - respondeu Fitz. - E, neste caso, tivemos duas enfermeiras e um médico legista a entregar as provas a três estafetas diferentes para que chegassem ao Departamento de Saúde. E muita gente para uma conspiração só, mas, bolas, eu sou apenas um pobre bófia que é acusado de corrupção de cada vez que faz o seu trabalho. Sabe... é assim que o mundo funciona - declarou com sarcasmo, olhando para Tawnya.

- Por que haveria a bófia de alterar as provas? - perguntou Griffin a Tawnya.

- A pressão, claro! Vá lá... três mulheres brancas atacadas em casa. Uma delas num casarão elegante em East Side. A bófia não pode ignorar esse tipo de coisa. Depois

uma morre e o estado entra em pânico. A bófia tem de prender alguém nessa altura. A seguir, a bófia começa a examinar as recolhas de sangue, e pronto! Um jovem hispânico. Nem sequer tem dinheiro para um advogado. O Eddie era culpado ainda antes de lhe terem feito qualquer pergunta. A bófia conseguiu prender alguém, o presidente da Câmara viu os cabeçalhos que queria nos jornais, e quem é que se importa connosco?

- O Eddie foi uma vítima do estado?

- Pode crer.

- Por que pertencia a uma minoria?

- Pode crer.

- Então se o estado já tinha provas de que fora ele o violador, quem é que acha que o matou esta manha?

Tawnya hesitou finalmente. Inspirou profundamente, reteve o ar nos pulmões, depois expeliu-o de repente.

- Toda a gente pensa que o Eddie é um violador. Toda a gente quer um violador morto.

- As ameaças na rádio?

- Sim. E no jornal. E na prisão. Diga-me a verdade - acrescentou -, vai mesmo fazer alguma coisa acerca disto?

Griffin pensou nos microfones que o aguardavam lá fora.

- Desde esta manhã que temos todos os detectives a trabalhar no caso - respondeu com sinceridade.

Tawnya semicerrou os olhos. Não era idiota.

- Porque ele foi morto no tribunal, não foi? Se o tivessem morto na prisão, vocês nem sequer estariam agora aqui. Mas alvejaram-no em público. Diante de câmaras. Isso faz-vos parecer incompetentes.

- Um assassínio é um assassínio. Estamos a investigar o caso. Eu estou a investigar o caso.

Tawnya não pareceu minimamente impressionada. Sabia como o mundo funcionava.

- Tem algum nome? - perguntou Griffin. - Pessoas que sabe terem ameaçado o Eddie? Pessoas a quem tenha ouvido dizer que o queriam morto?

- Não. Leia os jornais. Fale com os guardas da prisão. Eles devem saber. Se quiserem dar-se ao trabalho de lhe dizer. - Mais alguém que devamos ter em conta?

-As estúpidas das mulheres, claro.

- As três vítimas?

- Vítimas, o caraças! Foram aquelas cabras que escolheram o Eddie. Insistiram para que ele fosse preso, estavam sempre a chatear a polícia. Talvez quisessem certificar-se de que a coisa ficava resolvida. O Eddie já não pode defender-se. E elas também já não precisam de se preocupar com a possibilidade de se saber qualquer coisa menos agradável no julgamento.

- Ia saber-se alguma coisa menos agradável no julgamento? - inquiriu Griffin com aspereza.

- Nunca se sabe.

- Tawnya - começou Fitz em tom de aviso. Inclinou-se para a frente, pousou os cotovelos nos joelhos, mas Tawnya abanou a cabeleira escura.

- Não vou fazer o seu trabalho por si, pá! Se quiser saber o que ia acontecer, tem de descobrir o que ia acontecer. Agora vá. Tenho de dar de comer ao meu filho.

Contrariado, Fitz abriu as algemas, embora Griffin reparasse que o detective de Providence se inclinava para trás, temendo pelo rosto. Tawnya arreganhou-lhe os dentes e sorriu ao ver que ele se encolhia.

- Não me interessa o que vocês pensam - disse Tawnya antes de sair da sala. - Estive com o Eddie naquelas noites. Sei que ele não fez mal àquelas mulheres. E querem ouvir outra coisa? Vocês estão lixados. Porque o tipo continua lá fora. E agora o Eddie morreu. Já não há ninguém a quem deitar as culpas. Ninguém atrás de quem se esconderem. Hoje é noite de lua cheia. Um tempo perfeito para o Violador de College Hill atacar de novo.

Fitz e Griífin não falaram até terem chegado à rua e estarem a entrar no carro velho de Fitz.

- É impressão minha, ou a Tawnya é a imagem chapada da Meg Pesaturo? - perguntou Griffin.

- Espere só até ver uma fotografia da Trisha Hayes. O Eddie tinha mesmo um tipo de mulher.

- Ela teria sido uma boa testemunha para a defesa - comentou Griffin.

- Sim e não. Os telefonemas do Eddie para as mulheres... Podem ter sido feitos, digamos, no caso de alguém da lista de pessoas para quem ele podia ligar, a namorada, por exemplo, tivesse uma função especial no telefone, de transferir chamadas e, ignorando o aviso gravado que pede para não transferir a chamada, o fizesse na mesma.

- Ah, então a pequena Tawnya leva os seus deveres de namorada muito a sério.

- A prisão tem gravações das chamadas, se quiser ouvi-las.

- São boas?

- Só se for adepto de teorias da conspiração. O Eddie parecia convencido de que as mulheres queriam tramá-lo. Claro que os reclusos sabem que os telefonemas são gravados, por isso podia ter sido um teatro por causa do julgamento.

- A defesa dele ia ser essa? Que três mulheres desconhecidas o tinham escolhido a ele, um pobre inocente?

- O perpetrador como vítima. É clássico.

- E infelizmente parece que há sempre um membro do júri a acreditar nessas coisas.

- Malditos jurados - murmurou Fitz.

- Sim, o que aconteceu à velha justiça popular? Aos linchamentos? Poupávamos uma data de dinheiro em recursos.

Fitz olhou para Griffin com desconfiança, provavelmente a tentar perceber se o outro estava a gozar. Griffin estava e não estava. O sistema de júri era uma grande chatice.

Fitz olhou para o relógio.

- São três horas. Quer-me parecer que não vamos ter isto resolvido a tempo do noticiário das cinco.

- Também não me parece.

- Aliás, uma vez que ninguém parece querer fazer uma confissão, calculo que isto vá levar algum tempo.

- Pois vai.

- E isso é um problema? - O olhar de Fitz pousou no peito musculado de Griffin e no seu rosto de expressão dura. Griffin percebeu onde ele queria chegar.

- Para mim não é.

- Só queria saber...

- Estou de volta. Quando estamos de volta ao trabalho, estamos de volta ao trabalho. Não podemos fazer as coisas pela metade.

- Nunca pensei isso. - Os olhos de Fitz continuavam semicerrados, avaliadores. - Olhe, vou abrir o jogo consigo. Já que vamos trabalhar juntos, creio ter o direito de saber algumas coisas.

- Tais como?

- Ouvi falar no caso do Homem dos Doces, que demorou tempo de mais, e a seguir se tornou demasiado pessoal. Você espancou mesmo dois detectives em casa do miúdo? Quase mandou um deles para o hospital?

Griffin ficou em silêncio durante algum tempo.

- Foi isso que me disseram - respondeu ele por fim.

- Não se lembra?

- Está tudo um pouco desfocado. Eu não queria atacar o detective Waters nem o detective OReilly. Eles fizeram apenas o seu dever e meteram-se à frente.

- Você ia atrás do Price.

- Mais ou menos.

- E se lhe tivesse deitado a mão?

- Nunca iremos saber, pois não? Fitz resmungou.

- Está a tomar Prozac!

- Não tomo medicamentos.

- Porque não?

Griffin sorriu.

- Não sou assim tão maluco.

- Basta-me usar o capacete de hóquei? O sorriso de Griffin alargou-se.

- Pode experimentar, detective, mas não prometo nada.

- Mas...

- Olhe - interrompeu Griffin num tom sério, porque uma vez que não iam ter aquilo resolvido pelas cinco da tarde mais valia esclarecerem as coisas. - Não vou atacá-lo. Há dois anos, quando a minha mulher morreu... larguei muitas coisas. Pessoalmente. Profissionalmente. A vida, este trabalho... é preciso cuidarmos das coisas. Todos aprendemos, de uma maneira ou de outra. Eu aprendi. Agora controlo a situação.

Fitz permaneceu calado, por isso talvez tivesse uma opinião diferente.

- Sinto muito pela sua mulher - disse ele por fim.

- Eu também.

- Conheço muitos tipos que foram ao funeral. Ela devia ser uma grande mulher.

- Era a melhor - afirmou Griffin e a seguir, como dois anos eram realmente pouco tempo, teve de desviar o olhar. Mexeu no fecho da porta. Fitz engrenou a mudança. Pigarrearam ambos.

- Então o que vai fazer agora? - perguntou ele enquanto punha o carro em andamento. - Acerca do caso.

- Regressar à esquadra e organizar as coisas. Depois devo ir dar uma corrida.

- Eu vou tentar saber alguma coisa sobre o cadáver carbonizado. com sorte, conseguiremos impressões digitais.

- Olhe, detective, já que vai à sua esquadra, arranje-me uma cópia do dossiê sobre o Violador de College Hill.

Fitz parou de imediato, carregando no travão e imobilizando o carro no meio da rua. Griffin esperara que isso acontecesse.

- Vá lá! - exclamou Fitz. - Não se deixe levar pelo que a Tawnya disse. O caso foi bem investigado. Tínhamos o modus operandi, a oportunidade, o ADN. Levámos seis meses a juntar tudo e, digo-lhe, saímo-nos bem. O Eddie Como violou aquelas mulheres. Ponto final.

- Não disse que não.

- Não preciso que a polícia estadual reveja o meu trabalho! Isso é uma treta.

- A vida é uma merda e depois morremos. Fitz lançou-lhe um olhar fulminante. Griffin susteve-o, calmamente.

- Quero o dossiê. O tiroteio está relacionado com o caso, logo, preciso de saber o que se passou antes.

- Eu já lhe disse o que se passou.

Deu-me a sua opinião.

Sou o investigador principal! Construí a porcaria da teoria do caso, sou a opinião!

- Então explique-me o seguinte: encontrou o Eddie assim que começou a investigar as recolhas de sangue. E começou a investigar as recolhas de sangue por causa dos garrotes de látex.

- Sim, absolutamente.

- Então por que é que o Eddie, que não deixou para trás cabelos, fibras e impressões digitais, deixou dez garrotes de látex? Por que é que ele, por um lado, aprendeu a encobrir as suas pistas, e por outro vos deixou praticamente o seu cartão-de-visita?

- Porque os criminosos são estúpidos. É isso que mais gosto neles.

- É inconsistente.

- Por amor de Deus! Nós não inventámos o ADN! E não tramámos o Eddie Como!

- Sim - respondeu Griffin. - E para ser franco, detective, é isso que me preocupa.

 

Gríffin

Apesar das suas palavras, Griffin não regressou imediatamente à esquadra em North Scituate. Em vez disso, e seguindo um palpite, regressou ao restaurante rue de l'espoir na baixa de Providence. Eram três e meia da tarde. As três mulheres já haviam tido mais do que tempo de acabar de beber o chai e de ter saído.

Mas nessa altura ele começou a pensar. Para onde iriam elas? Conheciam bem o modo de actuação aã comunicação social. Deviam ter-se apercebido que a partir das nove dessa manha novas equipas tinham acampado diante das suas casas, subido os degraus e começado a bater às suas portas. Já para não falar nas inúmeras carrinhas brancas que percorriam as ruas, à procura de pistas, de quaisquer pistas, que dessem ao seu canal a vantagem na corrida dos noticiários.

Se fosse ele, decidiu, limitar-se-ia a ficar onde estava. com as amigas do clube. Assim, se algum jornalista as localizasse, ao menos estariam juntas. Em segurança. Segundo Maureen, o Clube das Sobreviventes tinha regras quanto a isso.

Assim, Grimn regressou a Hope Street. E depois, seguindo outro palpite, verificou as matrículas dos carros no minúsculo parque de estacionamento. Encontrou o carro de Jillian em menos de um minuto. Um Lexus dourado com a matrícula TH 18.

- Bolas! - murmurou, e por um momento ficou ali imóvel, sentindo uma enorme tristeza.

Os habitantes de Rhode Island tinham uma predilecção por matrículas. Ele não sabia como começara. Talvez os primeiros colonos sentissem a mesma coisa em relação aos ferros com que marcavam os cavalos. Mas Rhode Island era um estado pequeno, por isso as suas matrículas começavam com uma letra e eram seguidas de um número de um ou dois dígitos. Depois o estado adoptara duas letras e dois números. Agora, o estado tinha cinco números, mas só os forasteiros culturais escolhiam essas matrículas. Um verdadeiro nativo, querendo mostrar a antiguidade dos seus laços, ia pessoalmente à Direcção-Geral de Viação e pedia a combinação letrasnúmeros mais baixa possível, ou, uma vez que matrículas prestigiadas como A20 ou J28 eram atribuídas a cidadãos bem relacionados, pedia as suas iniciais com o número de Jois dígitos mais baixo possível. Depois ficava com essa matrícula toda a vida.

TH 18. Trisha Hayes, provavelmente décimo oitavo aniversário. Alguém, provavelmente Jillian, se dera a bastante trabalho para conseguir para a irmã a matrícula especial.

Teria Trisha ficado radiante na altura? Teria a matrícula acompanhado um carro novo, aquele que Trisha sempre desejara? Talvez tivesse abraçado a irmã. Talvez beijado a mãe. Trisha Hayes, de dezoito anos, a comemorar o carro novo. Trisha Hayes, de dezoito anos, prestes a iniciar a vida nova de estudante universitária.

Griffin duvidava que a calma e controlada Jillian Hayes falasse muito acerca desse dia. Provavelmente já vendera o carro, ao mesmo tempo que dera uma escolha nas roupas da irmã, esvaziara o seu apartamento, passara em revista as suas coisas. Visualizava perfeitamente o que ela tivera de fazer, porque não há muito tempo ele

próprio fizera a mesma coisa. A burocracia da morte surpreendera-o. Quase lhe destroçara novamente o coração. Mas fazia-se o que se tinha de fazer. Despacha as coisas, aconselhavam sempre as pessoas. Depois podes seguir com a tua vida.

Conduzir um carro com a matrícula da irmã morta.

- O que está a fazer?

GrirTm deu meia volta. Jillian Hayes encontrava-se a pouco mais de um metro de distância, as chaves do carro na mão e os olhos cor de avelã já fulminantes. "Depressa, diz qualquer coisa inteligente", pensou ele.

- Hum?

- O que raio pensa que está a fazer? - Ela pronunciou cada palavra com clareza, como se fossem pregos de aço a cravarem-se num caixão. Griffin perguntou a si mesmo se deveria levar a mão ao peito num gesto teatral.

- Acredita que passei aqui por acaso?

- Não.

- Então deixemos de lado a conversa fiada. - Encostou-se ao carro e cruzou os braços.

Aquilo enfureceu-a.

- Afaste-se do meu carro.

- Tem uma bela matrícula.

- Vá-se foder!

- Já é a segunda vez que me dizem isso hoje. Parece que está na altura de pensar em mudar de loção para a barba.

- Acha-se muito engraçado, não acha?

- com toda a sinceridade, detestaria considerar-me engraçado, mas isso é apenas um problema de ego. Bonito, cativante, intimidante, atraente, encantador, inteligente, até ameaçador, tudo isso pode ser. Agora engraçado... engraçado não.

- Não gosto muito de si - declarou Jillian Hayes.

- Será da loção?

- Estou a falar a sério. E não vou responder a nenhuma das suas perguntas sem a presença de um advogado.

- Então recorre à Quinta Emenda no que diz respeito ao meu perfume?

Jillian suspirou, cruzou também os braços e fitou-o com uma expressão séria.

- Tive um dia muito comprido, sargento. Não tem outras mulheres para incomodar?

- Nem por isso.

- Uma namorada, uma irmã, uma mulher?

- Nunca tive uma irmã e já não sou casado.

- Deixe-me adivinhar: ela deixou de o considerar engraçado.

- Não. Ela morreu.

Jillian calou-se finalmente. Ele apanhara-a desprevenida. Pareceu incomodada e talvez um pouco triste. Depois ficou novamente furiosa. Jillian Hayes não gostava de ser apanhada desprevenida.

- Acho que esta conversa não é apropriada - declarou.

- Não fui eu quem a começou.

- Foi sim. Apareceu outra vez depois de já o termos mandado embora hoje.

- Pois, mas diga-me com franqueza: conseguiria dormir bem à noite se soubesse que o sargento que está a investigar o seu caso se deixava mandar embora por três mulheres?

Ela fez uma careta de desdém e pareceu ainda mais incomodada. "Interessante", pensou ele. Os olhos dela ficavam mais claros quando estava zangada, e mais escuros quando estava perturbada. E quando estivesse triste? Ou quando planeasse vingança contra o homem que matara a sua irmã mais nova?

- Tem saudades dela, não tem? - perguntou ele com brandura.

- Acho que isso é evidente - respondeu ela com brusquidão.

- Perdi a minha mulher há dois anos. com cancro. Ainda sinto a falta dela.

- O cancro é difícil - observou Jillian. Cobriu a barriga com os braços e desviou o olhar. Sofria. Ele via-o no corpo dela, embora não soubesse se era por ele ou não.

- Eu detestava a doença - prosseguiu ele. - Depois detestei os médicos que não conseguiam fazê-la melhorar. Detestei a quimioterapia que lhe roubou as forças. Detestei os hospitais que cheiravam a morte antiséptica. Detestei Deus, que me deu uma mulher para amar e depois ma roubou.

Jillian olhou finalmente para ele.

- E se tivesse uma espingarda, teria também tentado matar a doença... é isso que quer dizer?

Fitz estivera certo. Ela não era estúpida.

- Mais ou menos - respondeu Griffin num tom ligeiro. Ela abanou a cabeça.

- Lamento que tenha perdido a sua mulher. Lamento que quem quer que seja perca alguém que ama. Mas não tente enganar-me, sargento. Não pense que só porque também sabe o que é perder alguém consegue entrar na minha cabeça.

- A sua dor é especial?

- A dor de todas as pessoas é especial.

Foi a vez de Griffin desviar o olhar. Ela tinha razão, e isso deixou-o envergonhado.

- Tem a certeza de que foi o Eddie Como que a atacou e à sua irmã? - perguntou ele.

- Sim.

- Nunca duvidou?

- Não.

- Por que não? - Olhou-a nos olhos. - Toda a gente tem dúvidas.

- A voz - respondeu ela.

- A voz?

- Quando fui atacada, o homem falou. Por isso, embora não conseguisse ver o rosto dele, ouvi bem a sua voz. E aquela voz era parecida com a do Eddie Como.

- Parecida? - Griffin arqueou uma sobrancelha. Captou logo a nuance. - Fizeram uma identificação de voz com o Eddie?

- Claro!

- Só consigo?

- com a Carol também. - Contrariada.

- O que correu mal, Miss Hayes?

- Já lhe disse, era parecida. Isso quer dizer que nada correu mal.

- Tretas. Parecida não é igual. Não conseguiu identificá-lo a cem por cento, pois não?

- De todos os suspeitos alinhados, restaram ele e outro tipo.

- Pois, por outras palavras, não conseguiram identificá-lo a cem por cento. - Griffin assentou o peso do corpo sobre os calcanhares. Aquilo era interessante.

No entanto, Jillian abanava a cabeça com veemência.

- Isso da identificação a cem por cento é uma treta. Um jargão das forças da ordem. No que me diz respeito, e à Carol, estávamos numa sala escura, ouvimos seis tipos falarem, e escolhemos o Eddie. Considere as coisas assim. Tivemos a certeza que quatro tipos não eram o Violador de College Hill. E o Eddie não era um deles.

- Um empate legal - murmurou Griffin. - Não se pode utilizar a identificação da voz em tribunal porque o suspeito não foi realmente identificado, mas a defesa também não pode argumentar isso, porque vocês argumentariam que identificaram o Eddie. E voltamos de novo ao ADN para desempatar.

Ela fitou-o com uma expressão curiosa, menos obstinada por momentos.

- Até parece que isso é mau. Pensava que o ADN era uma coisa muito, muito boa.

- Sim, geralmente.

- Geralmente?

- Alguma vez viu a namorada do Eddie? - Griffin decidiu mudar de táctica. - Já alguma vez falou com a Tawnya Clemente?

Jillian hesitou uma fracção de segundos.

- Não... não tenho a certeza.

- Não tem a certeza? Ela suspirou.

- O Fitz falou-lhe da sua teoria de que a Tawnya transferiu os telefonemas do Eddie para as nossas casas? - Griffin assentiu. Também recebi outros telefonemas - prosseguiu ela. - Uma pessoa que não dizia nada. Não sei porquê, mas desconfio que podia ser a Tawnya.

- Ela é muito convincente em relação à inocência do Eddie.

- É uma mulher que tem uma criança para proteger. Uma mulher com uma criança para proteger pode ser bastante convincente em relação a qualquer coisa.

- Gosta dela?

- Não a conheço.

- Mas compreende-a. - Griffin tinha a certeza disso, o que o surpreendeu. Mais uma vez, a calma e controlada Jillian Hayes surpreendia-o.

- Ela tem um filho, sargento Griffin. Independentemente do que o Eddie fez ou não fez, o crime não é dela nem do bebé.

- Mas ela transferiu as chamadas dele para a sua casa. Ajudou-o a assediá-la. Talvez até lhe tenha também telefonado.

Jillian sorriu com secura.

- Mulheres apaixonadas já fizeram bem pior, sargento.

- Trate-me por Griffin.

- Vai-me desculpar, mas prefiro tratá-lo por sargento. Foi a vez de Griffin sorrir.

- Olhe, Jillian, faça um favor a ambos: olhe-me nos olhos e diga-me que não esteve envolvida no assassínio do Eddie Como.

O queixo dela subiu. Jillian olhou-o nos olhos.

- Não vou dizer-lhe nada disso - afirmou.

- Sabe que temos um segundo cadáver, do parque de estacionamento da EDRI. Os cadáveres começam a amontoar-se. Não podemos ignorar isso, Jillian. A polícia estadual está encarregue da investigação e todos os nossos detectives meteram mãos à obra. Assim que descobrirmos alguma coisa, o culpado, vamos cair-lhe em cima com toda a força. Jillian fungou. Os seus olhos tinham aclarado de novo; era o único sinal.

- Isso é para me assustar, sargento? É para aterrar a minha frágil mente feminina? Pois olhe que não estou propriamente a tremer de medo. Vamos esclarecer as coisas de uma vez por todas. A minha irmã não foi a primeira vítima do Eddie. Foi a terceira. A terceira, sargento! E seis semanas depois do primeiro ataque. A investigação séria da polícia de Providence estava a correr lindamente! E nem nessa altura, com a minha irmã morta, comigo espancada, os detectives de Providence faziam ideia do que estava a acontecer: foi preciso que nós, três mulheres, três mulheres civis, nos envolvêssemos no caso. Por isso, vá-se lixar, sargento. Se vocês chuis são tão bons no vosso trabalho, deviam ter sido bons há um ano, quando ainda tinham a possibilidade de salvar a vida da minha irmã!

Calou-se abruptamente, o rosto corado e respirando a custo. Imediatameate a seguir, deve ter-se apercebido do que dissera, porque lhe virou costas e abraçou o tronco. Durante bastante tempo ficaram os dois imóveis. Griffin a olhar para as costas dela, para os ombros curvados, o pescoço baixo. Griffin a ouvir a dor e a ira dela ainda tão à superfície. Jillian Hayes, tão calma e controlada. Habituada a dirigir sozinha a sua firma ao mesmo tempo que educava a irmã mais nova e cuidava da mãe inválida. Jillian Hayes, tão calma e controlada, que nunca antes se sentira tão impotente.

E então, pela primeira vez, Griffin percebeu. Carol não era o membro do Clube das Sobreviventes à beira do colapso. Era Jillian. Só que o escondia melhor.

- Já me lembrei de quem você é - disse Jillian abruptamente, virando-se.

O estômago de Griffin contraiu-se de imediato. Obrigou-se a continuar encostado ao carro de Jillian, numa pose descontraída, os braços cruzados, as mãos ocultas pelos cotovelos, de forma que ela não viu os seus dedos fecharem-se.

- E quem sou eu? - perguntou ele num tom ligeiro.

- Você chefiou a investigação. Contra o pedófilo de Cranston. O Homem dos Doces. Estavam sempre a desaparecer crianças, mês após mês. E você aparecia nas notícias a dizer que as ia encontrar todas. Acho que encontrou, no fim. Na cave de terra do seu vizinho.

Griffin obrigou-se a abrir as mãos, a descontrair. "Respira fundo, conta até dez."

- A sua mulher estava a morrer - continuou Jillian com suavidade. O seu tom alterara-se, já não era duro, antes compreensivo. Por estranho que pareça, Griffin achou isso pior. - A sua mulher estava doente, é isso. Acho que até já tinha morrido...

- O cancro apanhou-a depressa.

- E as crianças continuavam a desaparecer e as pessoas começaram a perguntar-se se você estaria a prestar atenção suficiente ao caso...

- Não fiz outra coisa que não fosse trabalhar no maldito caso! Não me restava mais nada.

- E depois... - Os olhos dela não largavam os dele. - E depois a polícia encontrou finalmente todas as crianças desaparecidas. Enterradas na cave mesmo ao lado da sua casa. O Homem dos Doces era o seu vizinho.

- Demorei onze meses, mas apanhei-o.

- Foi você que percebeu que era ele.

- Sim.

- Por que não percebeu antes? Estava desatento porque a sua mulher tinha morrido?

- Talvez. Mas acho que teve mais a ver com o facto de ele ser meu amigo.

- Oh. - Jillian ficou sem fala, e pestanejou. - Não sabia.

- Não era relevante para o caso.

- Prendeu-o?

- Sim. - Depois de ter tentado desmembrá-lo. Naquela cave, com o cheiro acre da cal e o fedor mais intenso da morte. Naquela cave, com aquelas pobres crianças. Naquela cave escura, de onde ele tentava sair desde essa altura. - Nesse dia aprendi uma coisa.

- Que não tem amigos? Ele sorriu.

- Talvez. Mas isso não é verdade. vou dizer-lhe uma coisa, Jillian. Uma coisa que apenas uma dezena de pessoas sabe oficialmente. Para as restantes, não passa de um boato.

Jillian hesitou, mordeu o lábio inferior, depois pôs-se a mexer no medalhão de ouro que tinha ao pescoço. Griffin compreendia o dilema dela. Aceitar uma confidência era como aceitar uma prenda. Se a aceitasse, deixariam de ser estranhos. Talvez se estabelecesse entre eles uma certa ligação. E Griffin duvidava que naquele momento, por várias razões, Jillian Hayes quisesse ligar-se a um polícia.

Mas a curiosidade dela venceu.

- O quê?

- Quando percebi que era o David Price, o meu vizinho, o meu amigo, foi mau. Mas quando desci àquela cave, quando vi o que ele fizera àquelas crianças, foi ainda pior. Nesse dia enlouqueci um pouco. Fui atrás do David e, se lhe tenho conseguido deitar as mãos, tinha-o morto. Ter-lhe-ia arrancado a cabeça e tê-lo-ia transformado numa massa ensanguentada de carne. E ter-me-ia sentido bem. Mas não o fiz. Dois outros detectives puseram-se à minha frente. Foram espancados por ele, e fizeram-no porque são profissionais que não queriam que aquele filho da mãe se safasse por alegar brutalidade policial, e também

porque são meus amigos e compreenderam. É graças a eles que o Price está agora na prisão e eu ainda tenho trabalho. Um amigo traiu-me, jas dois outros amigos salvaram-me. Afinal, ainda é muito bom ter

amigos.

Jillian não disse nada. Inconscientemente ou não, inclinara-se um pouco para a frente e tinha uma expressão estranha. Desejo, talvez? Teria confiado em alguém desde o dia em que a irmã morrera? Confiaria mesmo nos outros membros do Clube das Sobreviventes?

- Mas não foi essa a lição que aprendi naquele dia - continuou ele.

- Não?

- Não. O que aprendi é que é uma arrogância ter-se a certeza de qualquer coisa. O mundo é um local complexo e só os idiotas e os parvos julgam saber tudo.

Jillian encolheu-se quando uma porta se abriu e Carol Rosen saiu do restaurante para o parque de estacionamento.

- Jillian, aí estás... - Carol avistou Griffin e estacou de imediato. O seu olhar percorreu ambos, ali parados no parque de estacionamento, e percebeu-se que ela não gostou do que viu.

- Sim? - Jillian virou-se para Carol. Os seus movimentos eram desajeitados.

- Hum, a Meg... Nós, hum... Podes vir cá dentro um instante?

- Não sei. - Jillian parecia ainda ausente, mas recuperou rapidamente e virou-se para Griffin. - Já acabou de me acusar de homicídio, sargento?

- Por agora.

- Então... - Esboçou um ligeiro sorriso. - Acho que vou andando.

Dirigiu-se para Carol, de queixo levantado e ombros direitos. Mas no último instante, já na porta do restaurante, tornou a virar-se.

- Está enganado, sargento - gritou.

- Acerca do Eddie?

- Acerca do mundo. Temos de estar certos em relação a algumas coisas. Senão damos em doidos.

Foi a vez de Griffin sorrir.

- Se eu fosse a si, não tinha assim tanta certeza - respondeu ele enquanto ela desaparecia no restaurante. - Não tinha assim tanta certeza.

 

Price

Griffin passou por casa pouco depois das quatro e meia. Pelo andar da carruagem, o dia de trabalho deveria estender-se até de madrugada. Não era o dia ideal de regresso ao trabalho para um homem que quase enlouquecera dezoito meses antes, mas o que é que havia a fazer? Como dissera a Fitz, estava de volta.

Para além disso, sentia-se cada vez mais intrigado com o caso. Baralhado, confundido, fascinado. Por outras palavras, estava a divertir-se imenso.

Griffin estacionou à porta da pequena casa à beira-rio que comprara recentemente em North Kingstown, e entrou para preparar o estojo de trabalho para os grandes casos. Por outras palavras, um saco de viagem com duas camisas lavadas, duas gravatas e muita roupa interior lavada. Nunca se tinha roupa interior a mais. Ah, acrescentou ainda uma escova de dentes e uma máquina de barbear - não era tão boa como uma gilete, mas era mais prática.

Parou na cozinha para beber um copo de água e deu uma vista de olhos ao correio. Contas, contas, folheto da mercearia. Oh, meio quilo de laranjas a noventa e nove cêntimos. Deus abençoe a América.

Chegou ao fim e deparou com um envelope branco simples, e o seu coração começou a bater mais depressa: "Para: O bom Vizinho Griffin." Na nova morada de Griffin. "De: O Teu Amigo Dave." O remetente não trazia morada.

David Price não suportava estar aborrecido.

Psicopata da merda!

David escrevera-lhe várias vezes, na maior parte delas para a antiga casa em Cranston, onde Griffin ficara quase um ano depois do Grande Bum. Provavelmente deveria ter posto a casa à venda assim que metera baixa, mas quem é que quereria comprar uma casa ao lado daquela onde o Homem dos Doces assassinara brutalmente dez crianças? Quem é que quereria comprar a casa do detective idiota que vivera apenas a seis metros e nunca desconfiara de nada?

David Price, que costumava aparecer para cortar a relva quando Griffin e Cindy estavam demasiado ocupados. O pequeno e arrapazado David Price, que parecia ter dezassete anos embora tivesse vinte e oito, que mal podia levantar um saco de terra de vinte quilos, mas era um ás com os fios eléctricos. O simpático e amável David Price, que ajudou Griffin a montar o sistema de rega, que gostava de aparecer para partilhar um churrasco de hambúrgueres e uma cerveja, que arranjou a lâmpada por cima do lava-louças quando o zumbido quase deu com Cindy em doida, que não tinha família e ao longo de três anos se foi tornando parte da deles.

Quando Cindy soubera que tinha um cancro, apenas dois dias depois de Griffin ter recebido a pasta do caso do Homem dos Doces, ela própria contara a David que estava doente. Griffin tinha um caso importante, explicara ela. Griffin iria estar muito ocupado. Ela ficava muito mais tranquila sabendo que David morava na porta ao lado.

David chorara nessa noite. Todos tinham chorado. Na pequena sala que Cindy pintara de amarelo-manteiga e decorara com fotografias de aves ení voo. E depois David pegara na mão de Cindy e prometera-lhe que faria o que ela precisasse. Iriam vencer aquilo! Iriam ganhar!

Seis meses mais tarde Cindy estava morta.

E, cinco meses depois disso, Griffin estava a falar com uma menina que conseguira fugir a um homem que tentara apanhá-la no recreio da escola. O desconhecido estivera lá quando Summer Marie Nicholas saíra da sala de aulas e se dirigira para os balouços, mas quando ele se oferecera para a empurrar, ela ficara nervosa.

As calças dele estavam "muito cheias", dissera a menina. Reparara que o homem tinha uma erecção.

Correra logo para o interior da escola, onde encontrara um funcionário a limpar o ginásio. E ele fora suficientemente sensato para chamar a polícia. O homem já desaparecera quando Griffin chegou, claro, mas a pequena Summer Marie, de sete anos, fora brilhante.

Anunciara sem hesitação que o homem era igualzinho ao rapaz daquele grande filme dos anos 80 chamado Regresso ao Futuro. Ela gostava desse filme. O professor maluco fazia-a rir tanto! E mais, quando tivesse idade suficiente para ter um carro, queria um igualzinho àquele, com as portas esquisitas.

Griffin ficara a olhar para a pequena Summer Marie. E, através da névoa da depressão, da dor e da exaustão que o tinham mantido a meio gás durante meses, surgiu na sua mente uma recordação perfeitamente nítida: Cindy, Griffin e David sentados no alpendre das traseiras da primeira vez que David fora lá a casa. Cindy a rir, dizendo "Ena, Dave, já alguém te disse que és igualzinho ao Michael J. Fox?"

David, um trabalhador por conta própria com um horário flexível. David, cujos trabalhos de electricista o levavam a diferentes zonas por todo o estado. David, cuja pequena estatura, rosto arrapazado e sorriso fácil pareciam completamente inofensivos para uma criança. Pelo menos até ser demasiado tarde.

A descrição da criança permitiu-lhes obter um mandado de busca. Duas horas mais tarde, Griffin estava de regresso ao seu bairro, à frente de um pequeno grupo de detectives que incluía Mike Waters e que entrou na casa de David, enquanto o seu vizinho do lado os observava em silêncio, com um sorriso estranho estampado no rosto.

Quinze minutos mais tarde, o primeiro detective abriu a porta da cave. O cheiro que de lá saiu foi tão intensamente floral que o detective chegou mesmo a espirrar. E depois todos sentiram o cheiro sob o cheiro. O odor da morte, muito difícil de disfarçar.

Entraram na cave com chão de terra e tecto à prova de som. Entraram naquela cave, com três lâmpadas nuas fortes. Entraram naquela cave, com um colchão manchado e uma bancada de trabalho velha com algemas, dildos e revistas pornográficas. Entraram naquela cave, onde num dos cantos a terra estava diferente. Ali, a terra escura ondulava-se em dez pequenas elevações cobertas de cal.

Dez pequenas elevações comovedoras salpicadas de branco.

David levara cada uma das crianças ali para baixo, para junto do odor da morte. E fizera-lhes coisas indizíveis enquanto elas inalavam o fedor da morte. Isso tê-lo-ia excitado ainda mais?

Ou isso surgira mais tarde, quando fora a casa do vizinho, o sargento da polícia estadual, para lhe cortar a relva?

Griffin devia ter morto David Price nesse dia. Na maior parte das noites, quando acordava encharcado em suor e a reprimir os gritos, desejava tê-lo feito. As vezes, quando as pessoas faziam o que estava certo continuava a ser errado. Passara dezoito meses no psiquiatra quando, francamente, podia ter-se curado a si próprio naquele dia com um murro bem dado.

Os psiquiatras não percebiam nada daquele trabalho.

Naquele momento, Griffin olhava para o envelope que tinha na mão. Devia deitá-lo fora, atirá-lo para o caixote do lixo. Mas não o fez. Para ser sincero, acabara por considerar aqueles bilhetinhos a melhor parte dos seus testes de sanidade caseiros. Os seus superiores tinham um diagnóstico; Griffin tinha outro.

Abriu o envelope. O bilhete era mais curto que o habitual. Geralmente incluía várias páginas onde descrevia a sua vida na prisão de máxima segurança. As aulas de carpintaria que tivera. O seu amor recém-descoberto pelo ioga - bom para o corpo e para a mente. Dizia-se que o estabelecimento prisional poderia assinar em breve um contrato para pôr os reclusos a fazerem bandeiras americanas; não seria divertido? Oh, e a propósito, aqui vai o esboço de uma rosa para colocar no túmulo da Cindy. Ainda tenho saudades dela, companheiro.

Por contraste, esta carta continha apenas duas linhas. Dizia: "Boa sorte com o novo caso. Vai ser dos bons."

O sangue de Griffin gelou. Agarrou no envelope e virou-o. O carimbo era de sábado, dezoito de Maio. Mas isso fora antes de Griffin regressar ao trabalho, antes de Eddie Como ter sido alvejado. Como é que David...? O que é que David...?

O zumbido aumentou nos seus ouvidos, O coração começou a galopar, o sangue a fluir mais depressa, o suor a irromper dos poros.

Griffin inspirou com algum esforço, contou até dez, fechou os olhos e, logo a seguir, o seu ataque de ansiedade passou. A sua respiração acalmou-se. Conseguiu de novo raciocinar.

David estava simplesmente a provocá-lo. Provavelmente soubera qual o dia em que Griffin regressaria ao trabalho da mesma forma que soubera a sua nova morada. O poder da fábrica de rumores da prisão, coadjuvado por demasiados jornalistas indiscretos na televisão.

E quando Griffin regressou ao trabalho é claro que lhe deram um caso novo. Afinal de contas, era um detective. Era esse o seu trabalho. Ver mais coisas naquelas duas linhas era dar a um vidente todo o crédito por adivinhar que "em breve, a sua sorte vai mudar."

David Price não merecia esse tipo de crédito. E certamente não merecia esse tipo de poder.

Griffin carregou no pedal do caixote do lixo branco da cozinha. A tampa levantou-se e ele juntou a carta de David Price ao monte de lenços de papel e de cascas de ovo.

- Vai-te foder também - murmurou. Depois, por descargo de consciência, olhou para as mãos. Nem um tremor. Sim, dezoito meses depois ele estava óptimo. Dezoito meses depois estava fabuloso.

Griffin pegou no seu estojo de trabalho para os grandes casos e fez-se à estrada.

 

Carol

Carol deixou o rue de l'espoir pouco depois das quatro da tarde, mas só regressou a casa perto das seis e meia. Primeiro, passou algum tempo às compras no Nordstrom.

Dan iria pôr-se aos gritos quando recebesse a conta, mas ele que gritasse. Eram quatro da tarde no dia de abertura do julgamento, mas já não era o dia de abertura do julgamento, e bolas!, ela faria compras se lhe apetecesse fazer compras!

Por isso Carol foi ao Nordstrom, onde uma funcionária pequenina a ajudou a escolher vários fatos de costureiros enquanto se esforçava por não olhar para ela. Carol não se importava com os olhares. Já se habituara a eles. No princípio, quando Jillian propusera a criação do Clube das Sobreviventes, chamara-lhes a atenção para as consequências da publicidade. Por um lado, nunca se devia subestimar o poder de três mulheres bonitas diante de um aglomerado de câmaras de televisão a exigirem que a polícia se despachasse com a investigação e fizesse mais para proteger a população feminina daquele estado.

Por outro lado, nunca se devia subestimar o poder da imprensa para atacar três mulheres feridas como abutres a abaterem-se sobre a presa. Tinham ideia de quem estava, por trás daqueles ataques terríveis? E quanto ao progresso lento da investigação? Ainda tinham pesadelos? E os maridos, os pais, as irmãs, os irmãos? Tinham algum conselho para as outras mulheres?

Jillian respondia a todas as perguntas, claro. Jillian era boa nessas coisas. Sucinta, profissional, sem nunca revelar demasiado.

Mas já Carol, se tivesse posto as mãos no microfone... Mas claro que tenho pesadelos, porra! Mulheres, se se quiserem proteger, comprem uma arma. Disparem primeiro, perguntem depois. Eles que sefodam todos, meninas. É a única maneira.

Por isso, sim, tenho pesadelos... quando durmo... o que já não acontece há meses... e a propósito, quando olho para o meu marido vejo o rosto de um violador e quando o meu marido me toca sinto as mãos de um violador. E odeio o Eddie Como, odeio janelas abertas e casas demasiado silenciosas à noite. Mas acima de tudo odeio o facto de, quando adormeço, Sonhar com sangue e bezerros mortos, e quando acordo estou tão zangada que tenho de pressionar os olhos para impedir que eles me saltem das órbitas.

Para além disso, estimados espectadores, estou a sentir-me perfeitamente bem.

Carol gastou dois mil dólares. Dan iria ficar furioso. bom para ele. Sim, ela estava mesmo chateada.

Talvez devesse ter ficado com Jillian e Meg. Jillian iria levar Meg a casa, para a apoiar no caso de o pai lá estar e ver a filha sob a influência não de uma, mas sim de duas garrafas de champanhe. Carol ainda não sabia como é que Meg pusera as mãos na segunda garrafa. Fora à casa de banho e, quando deu por si, estava outra garrara em cima da mesa, e já a meio. Pelo menos conseguira apanhar Jillian no parque de estacionamento. Claro, isso também fora estranho. Jillian a falar com o sargento Olhos Azuis. Os dois tão próximos, tão embrenhados na conversa... Depois a forma como Jillian dera um salto. Surpreendida. Culpada.

Carol tinha uma sensação estranha. Traição, embora não soubesse porquê. Desconfiança, embora não tivesse provas.

Quando ela e Jillian tinham regressado ao restaurante, Carol perguntara-lhe sobre o que conversara com o sargento Griífin. Nada, respondera Jillian. E Carol perguntara a si mesma que tipo de nada levava um quarto de hora a discutir num parque de estacionamento.

Depois de Jillian ter voltado a entrar, avaliara a situação, como Carol esperava. Apresentara um plano de ataque, como Carol esperava. Carol podia ir para casa, Jillian trataria de Meg e, por conseguinte, do pai dela, tom Pesaturo. Força, Jillian.

Pessoalmente, Jillian não gostava de tom. Por aquilo que Meg contava, ele parecia dominador, bruto e chauvinista até à medula. Obrigara a filha a abandonar a faculdade. Como se negar uma educação superior a Meg fosse o segredo para a manter segura. Credo, haveria alguma coisa que prestasse no cromossoma Y? Um grama de inteligência a acompanhar a testosterona em ebulição?

Claro, aquilo fê-la pensar em Dan, e no aroma de rosas vermelhas e piccata de vitela. E esse pensamento atravessou o vapor da sua ira, o seu ataque de crítica. Ficou subitamente vazia e desolada, sem força nas pernas.

Em tempos amara-o tanto! Lembrar-se-ia ele desses tempos? Quando só de o ver a atravessar a sala a deixava trémula de desejo? Quando só de pensar que o ia ver ao jantar a fazia sorrir o dia todo? Quando o perfume dele era a primeira coisa que ela queria cheirar pela manhã e a última coisa à noite? Quando costumavam dormir entrelaçados, braços e pernas misturados, a cabeça dela pousada em segurança no peito dele?

Ela ainda se lembrava desses tempos. Certas noites, quando não estava muito ocupada a odiar Eddie Como, ficava acordada a recordar

aqueles primeiros, loucos e maravilhosos momentos. Nunca sabia qual das recordações a magoava mais.

Naquele momento sentou-se no Café Nordstrom, onde comeu uma enorme salada de frango à oriental e, sim, outra fatia de bolo de chocolate. Depois pediu um copo de vinho. Ou dois, ou três ou quatro.

Continuava com fome depois de acabar, mas isso já não a surpreendia. Há mais de um ano que andava com fome.

Ser violada era uma coisa interessante. Mais interessante do que Carol poderia ter imaginado. Sim, agora sofria de uma grande variedade de encantadoras perturbações. Stresse pós-traumático, que lhe provocava pesadelos, suores frios e mudanças abruptas e irracionais de humor. Generalização, que a fazia odiar não só o violador, mas também quase todos os homens, incluindo o marido, o detective Fitzpatrick e Ned DAmato. Depois havia a sua "síndrome gatilho" - não podia desligar a televisão porque desligar a televisão fora uma das últimas coisas que fizera antes de ser atacada, e assim a sua mente associava o acto à causa da violação. E, finalmente, havia a velha culpa - culpa por ter sido atacada, culpa por ter sobrevivido. Culpa por ter incomodado o marido, culpa por ter deixado a janela aberta, culpa por não ter conseguido enfrentar um homem adulto. Jillian, quer o admitisse ou não, ainda detinha o primeiro lugar na categoria da culpa, mas Carol achava que devia ser elogiada por não ter apenas uma das várias síndromes acerca das quais tinham lido nos livros sobre sobreviventes de violações, mas praticamente todas, formando uma bonita bola que necessitava de tratamento profissional. À sua maneira, Carol era também uma vencedora.

Então, por um lado, ser violada era tão traumatizante, doloroso e devastador como Carol sempre imaginara. Não o recomendava a ninguém. As mulheres deviam realmente disparar primeiro e fazer as perguntas depois.

Por outro lado...

Por outro lado, à falta de um termo melhor, ser violada tinha as suas vantagens. Por exemplo, o Clube das Sobreviventes. Carol passava agora a maior parte do seu tempo com duas mulheres com quem, antes daquilo, não teria perdido um minuto. Afinal de contas, Meg era demasiado nova para poder tê-la considerado uma amiga. E, já que estava numa de honestidade, era também demasiado classe trabalhadora. Partindo do princípio que os seus caminhos se cruzassem, provavelmente seria num restaurante barato, onde Carol seria a cliente e Meg a empregada. Nenhuma teria dado importância à outra.

Jillian era um caso mais interessante. Estava mais próxima da idade e da classe social de Carol. Era o tipo de mulher que Carol poderia ter conhecido num acontecimento social ou numa festa de caridade. Teriam trocado umas palavras banais, o costume em tais festas. Provavelmente, Carol teria achado que Jillian só pensava na carreira. E provavelmente Jillian teria achado Carol demasiado anos 50, a esposa bonita que ficava em casa enquanto o marido é que trabalhava.

Mas agora ali estavam todas. Às vezes zangadas, às vezes más, às vezes desajeitadas. A dizerem umas às outras todas as coisas que as pessoas normais não podiam perceber.

Aos gritos num momento, a chorar no outro. A esconderem ainda mais. Carol tinha a certeza disso. Deus sabia que ela sentia coisas que um ano depois ainda não era capaz de pôr por palavras. E quanto a Jillian - bem, Carol e Meg tinham a certeza de não ter ainda passado da superfície. Por isso tinham os seus segredos. Mas também tinham uma ligação, uma ligação que não deveria existir, e era triste que existisse, mas ali estavam elas. E, francamente, as suas reuniões semanais eram a única coisa que mantinha Carol a funcionar.

As pessoas normais não conseguiam perceber essas coisas. As pessoas normais, se tivessem sorte, nunca teriam de perceber estas coisas.

Carol terminou o copo de vinho. Depois, sentindo-se mais reconfortada, dirigiu-se finalmente a casa.

Não havia jornalistas à vista. Isso era um alívio. Provavelmente deviam ter ali estado a maior parte do dia, e esse era outro dos motivos por que ela não fora a correr para casa. No entanto, já passava das seis horas, era demasiado tarde para conseguir qualquer coisa para o noticiário das cinco. Ou talvez a polícia estivesse a dar uma conferência de imprensa do outro lado da cidade. Jillian, Carol e Meg tinham aprendido a gostar das conferências de imprensa da polícia, altura em que os jornalistas abandonavam os seus relvados e corriam para a esquadra, deixando as mulheres à vontade durante um quarto de hora para poderem respirar. Só até a conferência de imprensa terminar, claro, e as hordas regressarem outra vez, inúmeras carrinhas brancas que transportavam legiões de combatentes manejadores de perguntas. Nos seus dias bons, Carol imaginava o que seria ter uma metralhadora no telhado para os ceifar a todos. Nos seus dias maus, escondia-se na casa de banho do primeiro andar, a única assoalhada da casa sem janelas, e emborcava embalagens de gelado Ben ó- Jerry encolhida na banheira vazia.

O carro de Dan encontrava-se estacionado junto à casa. O capo estava frio; ele chegara a casa já há algum tempo. Não era bom sinal.

Cinco minutos mais tarde, ela encontrou Dan na sala de estar, tendo como única fonte de luz o ecrã de televisão. Assustou-se quando Carol entrou na sala e ela quase podia jurar que ele fizera um movimento furtivo. No entanto, quando contornou o sofá para poder ver melhor, ele estava apenas a pegar num enorme cálice de conhaque para beber o último gole. Carol ficou a olhar para ele, à espera de ver quem é que falava primeiro. Depois apercebeu-se de que ele ainda tinha o fato vestido e que

o seu cabelo escuro estava todo revolto - ele enfiava sempre os dedos nos cabelos quando estava ansioso.

Na televisão, uma jornalista loura encontrava-se junto ao tribunal, a falar para o microfone enquanto as luzes azuis e vermelhas dos carros-patrulha se reflectiam no seu cabelo.

- A polícia já confirmou que o alegado violador, Eddie Como também conhecido como Violador de College Hill, foi alvejado e morto aqui esta manhã. Fontes próximas da investigação dizem que Como, de vinte e oito anos, foi alvejado uma vez na cabeça quando descia da carrinha da prisão no Complexo Judicial de Licht por volta das oito e meia. Segundo outro prisioneiro...

- Vim para casa assim que soube - disse finalmente Dan. Carol ficou calada.

- Pensei que talvez quisesses ver-me. Carol continuou calada.

- Ao menos podias ter telefonado - continuou ele. O seu olhar encontrou o dela. - Eu preocupo-me, sabes...

- Estás com a roupa do trabalho.

- Bolas, Carol, desmarquei três reuniões hoje...

- Vais voltar para o escritório.

- Não tenho alternativa! Os clientes pagam-me para estar disponível a qualquer hora. A advocacia não é um trabalho que se faz das nove às cinco. Sabes isso.

- Vai anoitecer - respondeu ela apenas.

Dan baixou a cabeça. Abriu a boca, mas depois fechou-a, unindo os lábios numa linha fina e concentrando-se em rodar o cálice vazio entre os dedos. Estava zangado. Ela viu a tensão dele nos ombros. Mas Dan não voltou a abrir a boca. E o silêncio foi-se prolongando.

- Fui às compras - acabou ela por dizer, de queixo bem erguido com uma expressão de desafio.

- Já percebi.

- Comprei três fatos. Bons fatos.

- Está bem, Carol.

- Gastei dois mil dólares - insistiu ela.

Um músculo contraiu-se no rosto de Dan. Ele fez rodar o cálice de cristal ainda com mais concentração. Ela decidiu mudar de táctica. O Sol começava a pôr-se. O crepúsculo a abater-se sobre aquela casa, demasiado grande, demasiado vazia. E ele iria deixá-la de novo, o que provava que, por muito que ela o punisse, ele sabia bem retribuir-lhe.

- A polícia foi falar connosco hoje - anunciou Carol. - O detective Fitzpatrick apareceu na nossa reunião.

- Queria ser o primeiro a dar-vos a boa notícia?

- Não, queria ser o primeiro a perguntar-nos se o tínhamos morto.

- E o que respondeu a Jillian?

- Mandou-o foder. com palavras mais elegantes, claro.

- O detective Fitzpatrick já devia saber como é. - Dan pousou finalmente o cálice na mesinha. Levantou-se do sofá. Os seus movimentos eram tensos e agitados.

- Não foi só o Fitzpatrick. Um agente estadual também.

- A polícia estadual? - A cabeça de Dan girou.

O sargento-detective Roan Griffin. Um tipo corpulento. Esperto.

Afirma que a seguir irão investigar as nossas contas bancárias. Sabes, nara ver se descobrem algum levantamento misterioso, ou alguma transferência, qualquer coisa que possa ser relacionada com o pagamento de um assassino. Parece muito determinado a esse respeito.

Dan afastou-se dela, parando finalmente junto à lareira. Percorreu com um dedo a madeira trabalhada. Dan tinha dedos compridos e elegantes. Podia ter sido escultor

ou músico. Ou um pai a ensinar o filho a fazer o nó da gravata.

- Por que é que se dão ao trabalho de investigar? - perguntou ele com rudeza. - O Eddie Como já provocou estragos suficientes. Está morto. Esqueçam o assunto.

- Não me interessa - respondeu Carol. - Saber quem o alvejou. Não me interessa.

Sustinha o fôlego, desejando que o marido se virasse e a olhasse nos olhos. Ela começara aquelaconversa para o espicaçar, mas agora... Agora começava a ouvir o sofrimento na sua voz. Não dissera a ninguém, nem sequer a Jillian e a Meg, mas desejava secretamente que o marido tivesse morto ou pago a alguém para matar Eddie Como. Seria a primeira indicação que ela teria de que ele ainda a amava.

"Eu sei onde estavas naquela noite. Nunca disse a ninguém, mas sei onde estavas naquela noite, e não era no escritório a trabalhar."

Dan virou-se. Dan, com o seu olhar castanho profundo, olhou-a bem nos olhos. Após dez anos de casamento, o seu rosto tinha rugas novas, sombras mais escuras, cabelo mais grisalho. O passar dos anos não fora fácil para ambos. Havia tantas coisas que não tinham corrido conforme o planeado. E contudo ela ainda o considerava bonito. Ainda desejava que ele atravessasse a sala naquele momento e a tomasse nos braços.

"Se prometesses tentar tocar-me, eu prometeria tentar não te repelir. Se prometesses tentar aproximar-te, eu prometeria não tentar ver-te como mais um Eddie Como. Se prometesses tentar amar-me novamente, eu prometeria tentar perdoar-te. E talvez, se tu tentasses e eu tentasse...

- Tenho de ir andando - disse ele. - A reunião começa às sete e ainda preciso de me preparar.

-Dan... - Ela hesitou. Decidiu calar-se. Engoliu as palavras.

E - Trancas a porta depois de eu sair?

- Claro.

-E ligas o alarme?

- Eu sei, Dan.

- Pensa assim, Carol: os jornalistas devem voltar em breve. Depois já não ficas sozinha.

Contornou o sofá, olhou para os sacos das compras dela e fez um esgar a caminho da porta. O som seguinte que ela ouviu foi o da porta da rua a abrir-se, depois a fechar atrás dele. Logo a seguir, o motor do carro foi posto em funcionamento.

O olhar de Carol vagueou até à rua, onde o Sol desaparecia no horizonte. Aproximava-se o crepúsculo. A escuridão vinha aí, vinha aí à sua procura.

O silêncio, por outro lado, já lá estava.

Na televisão, a empertigada jornalista loura dizia:

- A família de Eddie Como anunciou esta tarde que tentará tirar o corpo da morgue o mais tardar amanhã à noite, a fim de o preparar para o serviço fúnebre católico

na quarta-feira de manhã. A família, ainda a reclamar a sua inocência, também gostaria de criar um fundo com o seu nome para ajudar outros homens acusados por engano...

Carol trancou a porta da frente, ligou o alarme. Depois subiu as escadas. Percorreu o corredor comprido e cheio de sombras até uma porta fechada numa extremidade. Abriu a porta. E olhou para dentro do quarto, o quarto que outrora partilhara com o marido, o quarto onde outrora fizera amor com o marido, e o que viu naquele momento foram apenas vários móveis empoeirados, prisioneiros atrás de grades de ferro forjado.

Nada de janelas abertas. Nada de lençóis de algodão salpicados de sangue. Nada de garrotes de látex ainda com cabelos louros compridos agarrados.

Nada. Nada, nada, nada.

As mãos dela começaram a tremer. O coração bateu mais depressa. "Ele está morto", tentou dizer a si própria. "Está morto, acabou tudo, estás finalmente a salvo."

Não serve de nada. De nada, de nada, de nada.

Carol bateu com a porta, fechando-a, voltando a percorrer o corredor, tacteando as paredes às cegas. Tinha de fugir. A televisão continuava ligada. Não importava, não importava. A casa era demasiado grande, o silêncio demasiado poderoso, e Deus sabia que Dan viria para casa tarde de mais. Sozinha. Sempre sozinha. Corre, Carol, corre.

Entrou a cambalear na casa de banho do primeiro andar. Bateu com a porta. E depois debruçou-se sobre o lavatório de louça branca, onde vomitou até não ter mais nada

no estômago.

O Eddie Como está morto. O Eddie Como está morto. O Eddie Como está morto.

Acabou tudo, Carol. Estás finalmente, finalmente a salvo.

Mas todo o seu corpo tremia. E não conseguia deixar de pensar no quarto vazio. Não conseguia deixar de pensar naquela janela do quarto. Não conseguia deixar de pensar que poderia jurar, poderia jurar, poderia jurar que o Eddie Como estivera ali mesmo.

 

Meg

- Santa mãe de Deus, estás bêbada?

- Eu... foi champanhe. Só um copo. Talvez dois. Juro.

- Mister Pesaturo, se pudesse acalmar-se um momento...

- E você! - Mr. Pesaturo virou-se para Jillian, o rosto carnudo muito corado, um dedo gordo espetado no ar. O fato-macaco azul de electricista estava-lhe apertado na barriga, dois dos botões brancos tremiam literalmente com a força da sua ira. O efeito era bastante cómico e, agora que ele estava a gritar com Jillian, Meg sentiu-se em segurança para começar de novo a rir. Jillian tentou lançar-lhe um olhar de aviso. Meg bebera quase seis copos de champanhe. Era inútil.

- Como é que ousa servir álcool à minha filha menor de idade?

- gritou tom Pesaturo. - Por amor de Deus, não fez já o suficiente?

Jillian pestanejou.

- O suficiente?

- Paizinho...

- tom, acalma-te, senta-te. A Meg já está em casa e isso é que é importante. - A mãe de Meg, Laurie, interveio, pousando uma mão no antebraço musculado do marido. Era claramente a voz da razão na família, graças a Deus. Mr. Pesaturo olhou de novo furioso para Jillian, mas por fim, relutantemente, sentou-se.

Meg escolheu esse momento para exclamar:

- Ai mãezinha, tenho de ir mijar! - e saiu a correr da sala.

Mr. Pesaturo retomou a sua expressão desaprovadora. Jillian suspirou, sentou-se num cadeirão puído e apercebeu-se que tinha uma forte dor de cabeça.

- Mister Pesaturo...

- Já viu os noticiários? Compreende o que aconteceu esta manhã? O nosso telefone não pára de tocar desde as nove da manhã. A primeira carrinha dos noticiários chegou às nove e um quarto. E nem sequer sabíamos onde estava a Meg.

- Sabíamos exactamente onde estava a Meg - interveio Laurie de novo com voz firme. - Eu disse-te que ela ia tomar o pequeno-almoço com a Jillian e com a Carol.

- Isso foi o que a Meg disse - afirmou tom em tom de dúvida. Jillian olhou para ele.

- Mister Pesaturo, acha que andámos pela cidade a disparar contra o Eddie Como esta manhã? É isso que acha que fizemos?

- Olhe, não estou a dizer que desaprovo...

- Estávamos no restaurante, Mister Pesaturo. Estivemos lá todo o dia, por sinal. com testemunhas. Embora acho que deva saber que o detective Fitzpatrick e um agente da polícia estadual, o sargento Griífin, nos têm debaixo de olho.

- O que é que lhes disse?

- Não lhes dissemos nada, claro. Não temos de prestar declarações e, pessoalmente, não quero prestar qualquer declaração. No que me diz respeito, terão a minha colaboração assim que me devolverem a minha irmã do mundo dos mortos.

Mr. Pesaturo abandonou finalmente a expressão desdenhosa. Pouco depois, resmungou qualquer coisa e instalou-se melhor no sofá de dois lugares, o que nele correspondia a um elogio.

- Sim, bem - murmurou. Sentada ao lado dele, a mulher sorriu.

- Vão começar a investigar-nos todos - anunciou Jillian. Na última meia hora não pensara noutra coisa. A polícia estadual tinha o caso nas mãos. A polícia estadual iria aplicar-se a fundo. Ela perguntou a si mesma o que significaria isso. O sargento Griffin, grande e mau, que provavelmente teria sido capaz de arrancar a cabeça àquele pedófilo. O sargento Griffin, grande e mau, com aqueles olhos azuis penetrantes. Sentiu-se de novo zangada, depois confusa. O sargento Griffin, grande e mau... Obrigou-se a pensar noutra coisa, a concentrar-se no assunto que tinha em mãos. - Disseram-me que todos os detectives da polícia estadual estão a trabalhar no caso. O próximo passo será examinar as nossas contas bancárias em busca de levantamentos inexplicáveis.

Mr. Pesaturo revirou os olhos.

- Boa sorte! Não fiz nenhum levantamento inexplicável. Tenho uma hipoteca e duas filhas. Isso basta.

- Imagino que também queiram falar com o seu irmão - disse Jillian. - Sabe, com o tio Vinnie.

O sorriso desapareceu do rosto de Mrs. Pesaturo. Inclinou-se um pouco para trás e fitou o marido.

- tom?

- Oh, vá lá! Deixa-os falar com o Vinnie. Ele não se importa. Mr. Pesaturo olhava agora para Jillian. Esta ouvia a voz de Meg no

corredor, e depois uma gargalhada aguda. Meg falava com a irmã mais nova, Molly. Vieram mais gargalhadas do corredor.

- Você importa-se? - perguntou tom a Jillian abruptamente, Jillian não era idiota. Percebeu as nuances da pergunta.

- Está tudo bem comigo.

- Porque, sabe, se precisasse de alguma coisa...

Jillian sorriu. À sua maneira, Mr. Pesaturo era um homem muito doce. A oferta era quase tentadora, mas ele não podia ajudá-la com os problemas que ela tinha. Agora que tivera mais tempo para assimilar o impacte da morte de Eddie Como, calculava que teria entre vinte e quatro e quarenta e oito horas até voltar a ver o sargento GrirTin. A vida iria complicar-se. Mas alguma vez fora simples?

- Está tudo bem comigo - repetiu ela. No entanto, Mr. Pesaturo era mais esperto do que ela pensara, e ela viu no seu rosto uma expressão de dúvida.

- O Vinnie... tem muitos amigos.

- Eu sei. Aliás, não sei se sabe, mas acho que o Vinnie e a minha mãe devem ter amigos em comum.

- A sério?

- O senhor gosta de música? A minha mãe era cantora de blues...

- Espere lá. Hayes. Olivia Hayes. É a sua mãe?!

- Ela vai gostar de saber que o senhor se lembrou.

tom Pesaturo ficara bastante impressionado. Recostou-se e olhou para a mulher.

- Ena, a Olivia Hayes. Já ouviste falar nela? Pequenina e com um ar inofensivo. Mas quando abria a boca deixava toda a gente de queixo caído. O meu pai estava sempre a ouvir os discos dela. Ainda devo ter um ou dois álbuns no sótão. Uma bela mulher. - Virou-se para Jillian.

- O que lhe aconteceu? Há anos que não ouço falar nela.

- Aposentou-se. - Dissera que ia finalmente passar mais tempo com as filhas. Tivera um enfarte. Perdera as pernas. Perdera a voz. Pelo menos nunca haviam tido que se preocupar com dinheiro.

- Dê-lhe os meus cumprimentos.

- Darei, sim.

- O Vinnie nem vai acreditar! - Mr. Pesaturo sorriu subitamente e endireitou-se. - A minha filha é amiga da filha da Olivia Hayes! O Vinnie vai ficar fodido!

- tom... - A mulher revirou os olhos e sorriu a Jillian, como que a pedir desculpa. Jillian retribuiu o sorriso. Ficara bastante satisfeita com a alegria de Mr. Pesaturo. A época da mãe, a infância da própria Jillian, era um período de que já muito poucas pessoas se recordavam. Quando Trisha era pequena, as suas histórias preferidas eram as dos nightclubs. A noite em que a mãe cantara para Sinatra. Como mais tarde o cantor deixara a pequena Jillian, de oito anos, sentar-se ao seu colo. Jillian esforçara-se por contar as histórias, embora até para si estas se tivessem tornado recordações pouco nítidas; era uma vida vivida havia tanto tempo que mais parecia um sonho distante.

Na época em que a mãe tinha uma voz. Há anos que Jillian não a ouvia sequer cantarolar.

tom Pesaturo voltara a reclinar-se no sofá. A sua expressão descontraíra-se por fim, e as suas mãos repousavam confortavelmente nos joelhos. Falar da progenitora

de Jillian dera resultado. Agora eram velhos amigos e ele ficava feliz por tê-la na sua sala. Era engraçado, mas durante os últimos doze meses, os meses em que as vidas de Meg e Jillian se tinham unido, ela nunca visitara a casa de Meg. Nem a de Carol. Devido a uma qualquer regra subentendida, o grupo encontrava-se sempre em restaurantes ou noutros locais públicos. Era como se depois de tudo o que diziam umas às outras não suportassem partilhar mais aquele bocado.

- Eu estava preocupado - disse Mr. Pesaturo abruptamente, talvez até como que a desculpar-se. - Quando ouvi as notícias na televisão, quando não consegui encontrar a Meg. Fiquei em pânico.

- Compreendo.

- Tem filhos?

Jillian pensou em Trisha e nos seus grandes olhos brilhantes. Pensou na mãe, confinada à cadeira de rodas desde o enfarte.

- Não.

- Não é fácil. Queremos mante-los em segurança, sabe? Quero dizer, queremos que eles saiam para o mundo. Que sejam fortes. Que nos deixem orgulhosos. Mas acima de tudo, acima de tudo, queremo-los em segurança. Felizes. Bem.

- Ela está bem - murmurou Mrs. Pesaturo. - Estão ambas bem.

- Se eu pudesse ter estado lá, naquela noite... É isso que dá cabo de mim, sabe? Esse tal Como! - exclamou Mr. Pesaturo. - Nem sequer é um tipo grande. Se eu tivesse lá estado naquela noite, tinha-lhe dado cabo do canastro!

Jillian pensou no apartamento escuro de Trisha. O vulto imóvel da irmã na cama. Aquelas mãos fortes, muito fortes, a agarrarem-na por trás.

- Também gostava que o senhor lá tivesse estado - disse ela.

- Sim, bem, acho que agora pouco posso fazer a esse respeito. Pelo menos o tipo está morto. Isso agrada-me. Olhe, acha que a Meg vai ficar bem agora?

Jillian pareceu intrigada.

- Acho que a Meg já está bem.

- Não, não. Que vai começar a lembrar-se. Que vai recuperar a sua vida.

- Não... não sei. Não sei muita coisa acerca da amnésia.

- Ela não fala nisso?

- No quê?

- Na amnésia dela. No que aquele estupor lhe fez. Vocês não falam dessas coisas enquanto bebem café ou coisa no género?

Mister Pesaturo... - começou Jillian, mas Laurie Pesaturo foi mais rápida.

-tom, cala-te.

Mr. Pesaturo pestanejou.

.- O que foi? - perguntou ele à mulher.

- A Jillian não vai dizer-te qual é o estado de espírito da nossa filha. Se queres saber no que é que a Meg anda a pensar, pergunta-lhe directamente.

- Estava só a perguntar - respondeu tom defensivamente, mas baixou a cabeça, envergonhado.

Jillian sentiu pena dele.

- Para que conste, acho que a Meg está a sair-se muito bem disse. - É uma rapariga forte, Mister Pesaturo. Devia ter orgulho nela.

- E tenho!

- Tem? Ou tem mais medo do que lhe possa acontecer?

- Olhe lá! - Mr. Pesaturo já não estava a achar muita graça à conversa. Mas quando viu que Jillian o olhava fixamente, e que a própria mulher o olhava fixamente, tornou a curvar os ombros. - Sou pai - murmurou. - Os pais protegem as filhas. Não há nada de errado nisso.

- Ela tem vinte anos - disse Laurie.

- Ainda é nova.

- tom, já passaram anos... - insistiu Laurie.

Jillian não percebeu aquela. Não queria Laurie dizer que já passara um ano?

- Pois, e tivemos a sorte de a conservar todos estes anos.

- Isso não é justo.

- A quem o dizes.

Jillian ficara completamente baralhada, e isso deve ter-se notado pela sua expressão, porque de repente Mr. e Mrs. Pesaturo calaram-se. Olharam para a convidada, olharam um para o outro e foi o fim da conversa.

- É melhor eu ir andando - disse Jillian por fim, depois de o silêncio se ter prolongado por demasiado tempo.

Os pais de Meg não se deram ao trabalho de se levantar.

- Obrigada por ter trazido a Meg a casa - disse Mrs. Pesaturo.

- Havemos de ir buscar o carro dela noutra altura.

- O champanhe... bem, na altura pareceu-nos uma boa ideia. Mrs. Pesaturo esboçou um sorriso bondoso.

- Foi um dia longo e estranho, não foi?

- Sim - respondeu Jillian e, sem saber porquê, sentiu vontade de chorar naquele momento. Controlou-se. Tinha os nervos em franja, tivera-os todo o dia, e a sua conversa com o sargento Griffin só viera piorar as coisas. Mas o seu cansaço não importava. Provavelmente havia câmaras lá fora, na rua. Era preciso voltar a pôr a máscara. Para além disso, iria necessitar de todas as forças quando regressasse a casa onde a mãe, vítima de afasia, provavelmente já ouvira as notícias e folheava agora o seu livro de imagens, tentando encontrar uma que pudesse expressar "O assassino da minha filha morreu hoje e sinto-me..."

Meg apareceu.

- Anda - disse ela a Jillian. - Acompanho-te à porta. Jillian seguiu-a pelo corredor estreito. A irmãzinha de Meg, Molly, apareceu a espreitar a uma esquina, uma amálgama de cabelo escuro aos canudos e grandes olhos castanhos de corça. "Trisha", pensou Jillian. Tinha de sair daquela casa.

Quando Meg abriu a porta, Jillian admirou-se ao ver que já escurecera. O vento soprava fresco. A rua estava vazia. Nem um jornalista à vista, o que a deixou simultaneamente aliviada e apreensiva. Onde estavam os flashes e. as perguntas rápidas? Para onde se escoara o dia? Parecia-lhe já tão pouco nítido...

Meg oscilava ligeiramente.

- Obrigada - murmurou.

- Porquê? - Jillian continuava a olhar para a rua. À sua direita, algo se moveu nos arbustos.

- Já começo a sentir-me melhor, sabes. Creio que o choque está a passar. Não pensei que fosse tão rápido, mas agora... sinto que pela primeira vez em doze meses posso finalmente respirar.

Jillian limitou-se a olhar para Meg. E depois percebeu. Meg estava a falar da morte de Eddie Como. Agradecia a Jillían o assassínio de Eddie Como.

- Mas tens razão - continuou Meg muito faladora. - Não delíamos falar do assunto. A polícia ainda nos virá visitar, pelo menos

durante mais alguns dias. Depois o pior terá passado. O pó assentará. E seremos... seremos livres.

- Meg...

- Não está uma noite linda?

- Oh, céus, Meg!

- Uma noite tão, tão bonita.

- Voltaste a beber! Por que é que continuas a beber?

- Não sei. Os médicos dizem para não insistir. A mente curar-se-á sozinha. Mas até agora isso não aconteceu e, sinceramente, acho que depois do que aconteceu hoje já se devia ter curado. Por isso acrescentei um pouco de bourbon. Mas, sabes, não resultou.

- Meg, só precisas de descansar.

- Não, não acho. Acho que é tudo muito mais esquisito do que isso. Já descansei, já tive paz e agora o assunto ficou encerrado. No entanto, ainda sinto os olhos a seguirem-me. O que quer isso dizer?

- Quer dizer que bebeste demasiado.

- Quero ser feliz. Acho que nunca fui. Porque, se tivesse sido, devia lembrar-me, não achas? Não devia lembrar-me de tudo?

Meg, escuta...

Chiu, nos arbustos!

Jillian estacou. Olhou para os arbustos, ainda a agitarem-se à sua direita. Olhou para Meg. Àquela distância, via o olhar vidrado da rapariga e ? tom rosa? as suas faces provocado pelo álcool.

- Se está aí alguém escondido, é melhor aparecer! - gritou Jillian.

- Está uma noite muito bonita - cantarolou Meg. - Oh, que noite linda, tal como a última noite, aquela noite.

- Estou a avisá-lo! - A voz de Jillian elevou-se, sem ela querer, quando outro ramo se agitou e Meg cambaleava como um pêndulo gigante.

- Uma noite muito, muito bonita. Uma noite linda, linda...

- Raios! - Jillian marchou até aos arbustos. Esticou o braço como se quisesse agarrar a pessoa pela orelha. Arrancá-lo-ia dali. E depois... depois...

O gato cinzento às riscas saltou do meio da vegetação com um miau hostil e Jillian cambaleou para trás, o coração a galopar-lhe no peito. Teve de respirar fundo uma vez, depois outra. Ainda não se acalmara. De repente, só lhe apetecia afastar-se daquela casa e daquela rua demasiado vazia. Não conseguia parar de tremer.

No alpendre, Meg tinha um sorriso beatífico estampado no rosto.

- Foi-se embora. Ele já se foi embora.

- Vai para dentro, por favor, Meg - pediu Jillian com voz cansada.

- Não fará diferença. Ele está aqui, está aqui, está aqui.

- Quem é que está aqui?

- Não sei - murmurou Meg. - Quem quer que seja, é pior que o Eddie Como.

 

Griffin

- Temos um problema.

Já na esquadra de North Scituate, Griffin fez finalmente uma pausa no meio de cinco pilhas de folhas. Passava pouco das seis e meia, e ele tentava avançar com a investigação na enorme sala de reuniões com alcatifa cinzenta. Nunca deixava de se espantar com a quantidade de papelada gerada por um único crime. Relatórios de contactos, depoimentos de testemunhas, relatórios de actividade dos detectives, levantamentos financeiros e relatórios de provas. Já estava enterrado até ao joelho em papelada e, mesmo enquanto olhava para os documentos, alguns agentes fardados, detectives de crimes financeiros e detectives da Unidade de Investigação Criminal entravam na sala para deixar ainda mais relatórios em cima da mesa. De vez em quando, o tenente, o major ou o coronel também passavam por ali, querendo saber se ele já resolvera o caso como que por artes mágicas. Ah, sim, e o telefone fartava-se de tocar. Jornalistas a quererem citações. Homens de negócios locais a exigirem justiça. O procurador-geral a enfatizar de novo que não gostava de tiroteios à porta de casa e que o presidente da Câmara era de opinião que explosões grandes eram más para o turismo.

Agora estava ao telefone com Fitz.

- Está a ver isto? - perguntou Fitz. - Acredita numa coisa destas?

- Não estou a ver nada.

- Então acenda a televisão!

Griffin franziu o sobrolho, desviou as pilhas de folhas à procura do comando e acendeu a televisão. Foi instantaneamente recompensado com uma emissão em directo do Canal Dez.

- Ah, então foi para lá que os jornalistas foram. Já me tinha perguntado o que os teria feito desaparecer magicamente do parque de estacionamento.

- Isto não é bom - queixou-se Fitz. - Nada bom mesmo. O defensor oficioso de Eddie Como, um tipo sério que dava pelo

nome de Frank Sierra, explicava agora ao igualmente sério grupo de jornalistas que ocorrera uma grande tragédia naquela

manhã, nos degraus da justiça. Ora, ainda na noite anterior obtivera uma pista nova que provava de uma vez por todas a inocência do seu cliente. Fora sua intenção apresentar a nova prova logo de manhã para limpar o nome de Eddie. Mais quinze, vinte minutos, era só disso que ele teria necessitado, e Mr. Como seria livre como um pássaro.

- Não parece muito promissor - observou Griffin.

- Detesto o raio dos advogados! - resmungou Fitz.

- Não se preocupe, tenho a certeza de que eles também o detestam.

Griffin calou-se o tempo suficiente para ouvir a declaração seguinte de Sierra. Na sala de reuniões, Waters e mais alguns detectives também tinham interrompido o que estavam a fazer para olhar para a televisão. Aquelas conferências de imprensa eram um circo.

- Ontem à noite - dizia o defensor oficioso Frank Sierra contactei uma testemunha que afirma ter visto Mister Como do outro lado da cidade na noite e na hora do segundo ataque, confirmando as actividades do meu cliente na noite em questão. Minhas senhoras e meus senhores, permitam-me que vos apresente Lucas Murphy.

O advogado de Eddie Como desviou-se e um miúdo magro que não devia ter mais de dezoito anos ocupou o seu lugar. O miúdo, que era só braços, pernas e borbulhas, olhava para os flashes das máquinas fotográficas como um veado para os faróis de um carro. Por momentos, Griffin achou que ele poderia fugir dali, e Sierra deve ter achado o mesmo, porque agarrou o adolescente pelo braço. Depois lembrou-se do público e esboçou um enorme sorriso.

- Uma testemunha - murmurou Fitz ao telefone. - Que raio de prova é isso? Por cinquenta dólares ou menos até eu podia arranjar uma testemunha.

- Mister Murphy trabalha na loja Blockbuster em Warwick.

- Oh, diabo - disse Griffin.

- Mister Murphy, pode, por favor, dizer a estas simpáticas pessoas onde estava na noite de dez de Maio?

- Oh, meu Deus! - gritou Fitz, apopléctico. - Ele está a tratá-lo como uma testemunha. Está a apresentar a sua prova ali mesmo no noticiário! Não acredito nisto!

- Eu estava... hum... bem, a trabalhar - disse o miúdo. - Sabe, hum, no Blockbuster.

Sierra começava a aquecer.

- E viu por acaso Mister Como nessa noite, na noite de dez de Maio, no seu clube de vídeo em Warwick?

- Hum... sim.

- Mas, Mister Murphy, e já sei que os simpáticos jornalistas lhe irão perguntar isto a seguir, como é que pode ter a certeza que foi Mister Como que entrou na sua loja nessa noite?

- Bem... vi o nome dele. Sabe, no cartão de sócio.

Os jornalistas abriram novamente a boca de espanto. Fitz disse qualquer coisa parecida com:

- Oh, meu Deus, calem-me aquele miúdo. Depressa, arranjem-me uma arma.

- Ah, sim, agora é que está mesmo metido em sarilhos - observou Griffin.

Na televisão, Sierra fez uma pausa, olhou novamente para as câmaras e preparou-se para entrar a matar.

- Mister Murphy, não é verdade que sempre que alguém aluga um filme no Blockbuster há um registo da transacção?

- Bem, sim... sabe como é. As pessoas entregam-nos o cartão. Lemo-lo no computador. Depois, sabe, lemos o código de barras do vídeo. Então o computador fica com a informação sobre, hum, o vídeo e, hum, quem o alugou e, ah sim, em que dia e a que horas. Está a ver, para sabermos quem tem que vídeo e se o devolvem atrasado para o caso de, sabe, deverem dinheiro de aluguer, esse género de coisa. Temos de saber essas coisas se trabalhamos num clube de vídeo. - O rapaz assentiu muito sério. - Também temos agora um programa em que se o vídeo é devolvido de imediato, como, hum, em vinte e quatro horas, o cliente recebe um dólar de crédito na conta do Blockbuster. Por isso, os clientes entram na loja para entregar os vídeos e mostrar o cartão. Porque um dólar é um dólar.

O advogado de Eddie Como quase rebentava de satisfação.

- Então, você não só viu pessoalmente o Eddie Como a devolver um vídeo na sua loja na noite de dez de Maio, às dez e vinte e cinco da noite, apenas cinco minutos antes do alegado ataque a Mistress Rosen, em East Side, onde o Eddie nunca conseguiria chegar em apenas cinco minutos, como também tem um registo dessa transacção. Um registo gerado por computador!

- Malditos computadores! - bramiu Fitz.

Na televisão, Lucas Murphy, o novo empregado do mês da Blockbuster, disse:

- Hum, sim.

Os jornalistas começaram a gritar as perguntas. Na sala de conferências, Waters abanou a cabeça e suspirou. Do outro lado da linha, Fitz parecia estar a gemer, e depois Griffin ouviu o barulho de comprimidos antiácidos a serem mastigados.

- Vá lá - murmurou Griffin de olhos postos no ecrã. - Faz-lhe a pergunta seguinte. Faz-lhe a pergunta seguinte lógica...

Mas o advogado de defesa de Eddie Como era mais esperto do que parecia. Frank Sierra agradeceu à comunicação social, depois agradeceu a Deus por lhes ter dado a verdade, mesmo que fosse tragicamente demasiado tarde, e a seguir tirou a sua jovem testemunha de frente das câmaras, enquanto ainda estava em vantagem. A conferência de imprensa terminou. O Canal Dez mostrou Maureen, com os olhos azuis mais brilhantes que nunca.

- Bem, este foi certamente um dia muito importante no caso do Violador de College Hill - declarou ela ofegante. - A informação que acabámos de ouvir levanta dúvidas quanto ao facto de Eddie Como, baleado e morto esta manhã, ser realmente o Violador de College Hill.

Minhas senhoras, isto quer dizer que o verdadeiro violador pode ainda andar à solta...

Griffin desligou a televisão. Waters olhava para ele, enquanto que Jo outro lado da linha Fitz continuava a mastigar os antiácidos.

- O Sierra preparou-nos uma emboscada - resmungou Fitz de boca cheia. - Não nos preveniu. Nem sequer um telefonema a falar desta prova nova, desta testemunha nova, nada. Num momento estou na morgue a ver o médico legista à procura de um pedaço de pele boa num corpo carbonizado, no outro recebo um telefonema do meu tenente a mandar-me ligar a televisão. O que raio se passa? O Sierra podia ao menos ter-nos concedido a cortesia de um telefonema.

- Ah, mas assim você poderia ter preparado uma resposta - retorquiu Griffin.

- Isto é uma treta - continuou Fitz a todo o vapor. - O cliente do Sierra está morto, por isso ele agora continua a defender o caso nos noticiários, onde nunca lhe farão um contra-interrogatório. O público só ouve o que ele quer que ouça. - Tornou a elevar a voz. - Esqueçam as três mulheres violadas. Esqueçam Trisha Hayes, amarrada e a asfixiar no seu apartamento. Esqueçam que o Eddie Como afectou irremediavelmente quatro vidas inocentes. Vamos mas é concentrar-nos no pobre do violador, que provavelmente aprendeu a usar o bacio com uma arma apontada. Por amor de Deus, por que é que o Sierra não rumou às casas das três mulheres e as esbofeteou pessoalmente?

- Não é uma prova conclusiva - disse Griffin, dirigindo-se simultaneamente a Waters e a Fitz. - Dizer que podia ter ilibado o Eddie esta tarde é exagerar um bocado. Quem é o advogado de acusação?

- O DAmato - resmungou Fitz. Parecia concentrado em respirar fundo.

- Sim, bem, foi por isso que o Sierra apresentou o seu caso na televisão e não no tribunal. O DAmato comia o miúdo vivo. Será que os cartões de sócio do Blockbuster têm fotografia? Não. Não é verdade que qualquer pessoa podia ter lá ido devolver o vídeo com o cartão do Eddie Como? Então por que é que ele não avançou antes? Por que é que esperou um ano inteiro para partilhar isto? Essa é a verdadeira questão.

- Ele tinha medo. - Fitz representava o papel de advogado do diabo.

- Porquê? O Violador de College Hill nunca atacou um homem. E o senhor não tem uma namorada, uma mãe ou uma irmã, Mister Murphy? Não pensou nelas? Não se preocupou com elas? Se realmente achava que o Eddie Como não era o criminoso, isso significava que o violador ainda anda à solta. Então por que é que não veio a público para ajudar a apanhar o verdadeiro criminoso e manter a sua namoradaírmãmãe a salvo?

- Não sei - respondeu Fitz.

- Claro que não sabe, Mister Murphy. Isso é porque já passou um ano desde o dia dez de Maio. Como é que pode ter a certeza um ano depois? Lembra-se do que comeu esta manhã ao pequeno-almoço? O que é que tinha vestido? O que é que comeu ao almoço? A quem é que telefonou? Quem foram os seus outros clientes? Que vídeo viu nessa noite durante o trabalho? Foi o que pensei, Mister Murphy, o senhor não se lembra muito bem do que aconteceu nessa noite, pois não!

- Oh, acho que mijei nas calças - disse Fitz. - Tem razão, não passo de escumalha reles. Por outro lado, aqueles magníficos detectives da polícia de Providence são génios, homens superiores. E aquele detective Fitzpatrick é um garanhão! Se eu tivesse uma irmã mais nova mandava-a ir ter com ele.

- Sim, mas uma vez que ele já deu os seus melhores anos à profissão, acho que não me dava a esse trabalho.

- Não me diga - murmurou Fitz. Respirou fundo e pareceu acalmar-se. - Registos informáticos da devolução de um vídeo. Quem iria pensar numa coisa destas?

- Como é que você tem a certeza da hora da violação?

- A hora não é exacta. A Carol Rosen deitou-se pouco depois das dez. Disse julgar ter dormido cerca de meia hora antes de acordar por causa de um ruído no quarto. Mas não olhou para o relógio.

- Por isso, mesmo que o Eddie estivesse a devolver um vídeo em Warwick, tal não prova que ele não fosse mais tarde até Providence.

- Não é concreto. Mas se pegar na declaração deste miúdo e a combinar com a da namorada do Eddie, a Tawnya, que diz que o passatempo preferido do Eddie era estar em casa com ela e o filho por nascer a ver filmes...

- O Eddie começa a parecer um tipo simpático. Um homem de família calmo. Tendo em conta esta predilecção, nunca se lembrou de verificar o Blockbuster?

- Quando perguntámos ao Eddie o que fizera naquela noite, tinham passado seis semanas. Achava que talvez tivesse alugado um filme, como era seu hábito, mas, ao olhar para o extracto do cartão de crédito, viu que não. Ninguém considerou um vídeo devolvido um álibi.

- Estamos sempre a aprender - disse Griffín.

- O ADN continua a ser o ADN - murmurou Griffin. - Se houvesse polícias nos júris, mandávamo-lo para a cadeira eléctrica. Mas claro que os bancos dos júris estão cheios de, bem, de jurados. Se o Eddie começar a parecer um bom rapaz...

- O resultado deste julgamento começa a ser uma incógnita coricluiu Griffin por ele. Ficou calado uns momentos. - Sabe, se este Depoimento fosse perigoso, o DAmato teria outra opção. Podia retirar a queixa relativa ao segundo ataque. Julgar apenas o Eddie pelas agressões a Meg Pesaturo, Trisha Hayes e Jillian Hayes. Perde uma acusação de violação, mas a vida na prisão continua a ser a vida na prisão.

- A Carol Rosen não iria achar muita graça.

- Pois não - concordou Griffin.

- Mesmo se o DAmato retirasse a queixa a envolver a Carol Rosen, para que o advogado do Eddie não apresentasse o jovem Blockbuster no julgamento - disse Fitz -, o Sierra continuaria a exibir o miúdo aos jornalistas como está a fazer agora. Isso faz com que o Eddie comece a parecer bom aos olhos do público, da União Americana para as Liberdades Civis, ou de outras pessoas que gostem de ter pena de violadores. E isso enfureceria todas as mulheres. Bolas, enfurece-me a mim!

- Torna as coisas interessantes. Acha que era a isto que a Tawnya se referia quando disse que iria saber-se uma coisa menos agradável no julgamento?

- Não sei. Ela tem-se mostrado firme quanto à inocência do Eddie. Parece-me que se tivesse sabido da existência do jovem Blockbuster teria apregoado isso a plenos pulmões. Fiquei com a sensação de que ela se referia a qualquer coisa sobre uma das mulheres.

- Há alguma coisa que devamos saber sobre as mulheres? - inquiriu Griffin muito sério.

- Olhe, passei um ano com elas e se houvesse alguma coisa para sabermos já a deveríamos saber. Por outro lado - admitiu Fitz contrariado -, estou a actualizar o meu relatório sobre elas neste momento.

- Há um motivo. Especialmente para Mistress Rosen e ou para a sua família.

- Partindo do princípio que sabiam da existência do jovem Blockbuster.

- O que nos dá um ponto de partida. Como é que o advogado do Eddie Como soube da existência do miúdo? E quantas pessoas sabiam também da sua existência? Partindo do princípio, claro, que o miúdo está a dizer a verdade.

Fitz suspirou.

- Eu sabia que este dia ia acabar mal. Muito bem, vamos analisar as coisas. Na Hipótese A, o advogado do Eddie ficou finalmente inteligente e decidiu investigar o Blockbuster por descargo de consciência. Depois...

- O miúdo está provavelmente a dizer a verdade, e nunca veio a público sozinho porque não quis envolver-se, ou teve medo de se envolver, ou todas estas hipóteses juntas.

- Muito bem, então na Hipótese A temos uma testemunha. O que não quer dizer que estejamos enganados quanto ao que o Eddie fez depois de ter ido devolver o vídeo - acrescentou Fitz -, mas torna o julgamento mais interessante e deixa as vítimas, a família e os amigos mais ansiosos em relação ao desfecho.

- Concordo.

- Muito bem, depois temos a Hipótese B, em que o jovem Blockbuster vem a público porque tem os seus motivos. Quais poderão eles ser?

- Talvez tenha visto a Tawnya - respondeu Griffin com secura.

- Segundo o que ela nos disse, dá a volta à cabeça dos rapazes desde os doze anos. Talvez tenha decidido que o Eddie precisava de uma pequena garantia em tribunal e esta foi a melhor forma de a arranjar. Claro, isso significa que alguém, provavelmente o miúdo, teve de estar disposto a mexer no programa informático do Blockbuster para assim mostrar uma transacção falsa. Não sei até que ponto isso será credível.

- Você viu a cara do miúdo? Um adolescente assim com tantas borbulhas provavelmente seria capaz de penetrar no sistema informático do Pentágono.

- À sua maneira, você é um verdadeiro Sherlock, Fitz.

- Gosto de pensar isso.

- Muito bem - disse Griffin. - Se fosse só pela declaração do miúdo, eu apostaria na Hipótese B. Mas não me agrada o registo informático. É demasiado elaborado para ser um esquema.

- Então voltamos à Hipótese A, em que o miúdo é íntegro. Claro, teremos de lhe fazer uma visita para nos assegurarmos disso.

- O que quer dizer que o Eddie Como pode ter uma espécie de álibi - concluiu Griffin.

- De maneira nenhuma - afirmou Fitz. - Mesmo que o miúdo tenha razão, houve uma ligeira confusão com as horas. O Eddie devolveu o filme em Warwick antes de ter prosseguido viagem para Providence. Não há qualquer regra que impeça os violadores de fazerem uns mandados. Aposto que até o Ted Bundy fazia coisas comezinhas de vez em quando. Mas o Eddie é culpado. O ADN não mente, e temos o ADN do Eddie. Não uma, nem duas, mas três vezes. Apanhámo-lo.

Griffin ficou em silêncio durante uns momentos. Voltava a ter aquela sensação de déjh vu. Pela segunda vez naquele dia, estava a ter uma conversa onde se dizia que as provas contra o Eddie Como eram duvidosas, com excepção do ADN. Finalmente percebeu o que é que o incomodava naquele caso.

- Olhe, Fitz, até que ponto o ADN era igual ao do Eddie Como?

- Há?

- Era completamente igual, ou havia apenas uma parte igual?

- Como é que quer que eu saiba? Não sou técnico de laboratório. O relatório do departamento de saúde dizia que as amostras eram iguais. Igual é igual.

- Não necessariamente.

- Griffin, o que raio está para aí a dizer?

- Ainda não sei. Mas diga-me uma coisa: tem a certeza absoluta de que o Eddie Como não tinha um irmão?

 

Jillian

Jillian chegou tarde a casa, quase às nove, um final tardio para um dia demasiado longo que a deixara nervosa e ansiosa. Olhara quatro vezes para o banco de trás à procura de um criminoso desde que safra da casa de Meg. Dirigia-se para todo o lado com a chave do carro enfiada entre os dedos da mão fechada, para servir de arma. Uma vez até abrira o porta-bagagens, para se certificar. Dizia a si mesma que estava a proteger-se de jornalistas demasiado agressivos, mas sabia que estava a mentir.

Ao chegar a casa, sentiu-se grata por ver luzes acesas. Desde o primeiro telefonema de Eddie Como, quase um ano antes, mandara instalar na entrada luzes que se acendiam ao menor movimento, bem como projectores estrategicamente colocados que iluminavam cada arbusto. Não haveria perseguições em torno da sua casa de East Greenwich. A casa tinha também um alarme ultramoderno com um botão de pânico em cada assoalhada e um comando à distância que a mãe tinha sempre no bolso. Jillian ainda não se convencera a comprar uma arma, mas talvez tivesse perdido um pouco a cabeça quando comprara um spray de gás pimenta. Dormia com uma lata debaixo da almofada. A mãe pusera a sua na gaveta da mesa-de-cabeceira. Como Toppi observara secamente, as mulheres da família Hayes estavam prontas para a guerra.

Jillian meteu o carro na garagem com os faróis acesos, fechou a porta, depois passou revista ao interior à procura de transgressores antes de finalmente destrancar e abrir a porta do carro. Colocou de novo a chave entre os dedos. Mantê-la-ia assim até entrar em casa e fazer uma inspecção breve à cozinha.

Sabiam que a cada minuto é violada aproximadamente uma mulher nos Estados Unidos? Sabiam que as mulheres são mais vezes violadas em casa do que noutro local? Sabiam que muitos intrusos iludem os alarmes entrando na garagem atrás do carro da mulher? Sabiam que menos de dez por cento dos violadores vai parar à prisão, o que quer dizer que há um número assustador de violadores ainda à solta, cheios de vontade de atacar de novo?

Jillian sabia aquelas coisas. Lera os livros. Analisara as estatísticas. Saber é poder. Conhece o teu inimigo. E não acredites nem por um minuto que, por qualquer razão especial, tens o direito de estar a salvo.

Na maior parte das noites, Jillian deitava-se com um enorme peso no peito. Na maior parte das noites, por volta das duas da manhã, acordava de repente com o rosto banhado em suor e um grito prestes a sair-lhe dos lábios. Levava algum tempo a recuperar. Também lera isso. £ntretanto - e esta era a sua própria filosofia -, fora por isso que se inventara boa maquilhagem.

Na garagem, Jillian respirou fundo, endireitou os ombros e ergueu o queixo. Está na hora do espectáculo, disse a si mesma, pondo uma expressão neutra enquanto entrava em casa.

Na cozinha encontrou de imediato a enfermeira da mãe, Toppi, encostada ao balcão de braços cruzados e com uma expressão desaprovadora.

- Desculpa o atraso - disse Jillian. Largou a mala, despiu o casaco e brincou com as chaves.

- Hum.

- Como está ela?

- Perdeu a fala, não o juízo - declarou Toppi. - O que é que te parece?

- Viu as notícias?

- Claro.

- E os jornalistas?

- Tirámos o telefone do descanso. Pelo menos até eu o ter desligado. Não que estivesse com receio que o teu telefonema não chegasse até nós. - A tensão regressara à voz de Toppi. Lançou outro olhar sério a Jillian e esta baixou obedientemente a cabeça.

com vinte e seis anos, uma saia de cores garridas e uma cabeleira castanha farta, Toppi parecia mais uma cigana do que uma profissional de cuidados de saúde. Era alegre, enérgica e, na teoria, empregada de Jillian. No entanto, Toppi não respondia perante ninguém. Desde que ali começara a trabalhar, três anos antes, virara aquela casa pacata do avesso. Sabia não só o que era melhor para Libby, como também para Jillian, Trisha e para o rapaz que trabalhava no quiosque ao fim da rua.

Dava sempre a sua opinião sem que lha pedissem e com grande entusiasmo. A mãe de Jiílian adorava-a. Trisha também adorara.

- Magoaste-a - disse Toppi. - Sei que não foi de propósito. Sei que tens outras coisas em que pensar. Mas magoaste-a, Jillian. Ela já perdeu uma filha e quando desapareces desta maneira ela preocupa-se

contigo.

- Desculpa.

- Não é a mim que tens de pedir desculpa.

- Eu vou falar com ela. Toppi fungou.

- Como se ela não tivesse já ouvido suficientes pedidos de desculpa teus. Vá lá, Jillian, ela é a tua mãe. Não quer os teus pedidos de desculpa, quer a tua presença.

Vem jantar a casa. Lê-lhe uma história Ou melhor ainda, leva-a a visitar a campa da Trisha.

Jillian pendurou as chaves do carro no chaveiro. Depois pegou na correspondência e começou a escolher as cartas. Contas, contas, contas. Publicidade. Pelo menos não havia nada dele. Só naquele momento percebeu que era isso que a preocupava. Pousou as cartas e Toppi aproveitou a oportunidade para continuar com o seu ataque.

- Foi lá que estiveste, não foi? A visitar a Trisha.

- Fui lá.

- A tua mãe também tem saudades dela. Jillian não disse nada.

- Ela não pode contar histórias, Jillian. com certeza compreendes isso. Quando alguém morre, queremos reviver a sua vida, e o que essa pessoa significou para nós. Partilhar os momentos, o riso, mante-la viva um pouco mais ao falar dela. A tua mãe não o pode fazer em voz alta, mas isso não quer dizer que não o esteja a fazer mentalmente.

- Eu sei.

- Se te sentasses ao pé dela e lhe pegasses na mão... Deixá-la olhar para ti e dizer tudo com os olhos. Ela faz isso, sabes? Na sua cabeça, é fluente, tem voz. Se pudesses estar ao pé dela, ela assim poderia fingir. Podia dizer-te tudo sem dizer nada. E acho que isso significaria muito para ela.

- Eu sei, Toppi, eu sei. - O assunto já tinha barbas. Há doze meses que andavam a falar dele. E Toppi estava certa e Jillian errada, e ela queria ser uma pessoa melhor, mas naquele momento não estava a ser. No trabalho precisava de funcionar e responder às exigências dos clientes, senão perderia a empresa. com Carol, Meg, os jornalistas, a polícia, tinha de funcionar, de dizer e fazer sempre as coisas certas, porque era a líder e não podia desapontar ninguém. E depois, quando chegava a casa...

Quando chegava a casa, não lhe restava mais nada. Via apenas a mãe, tão pequena e frágil e fácil de se ferir. Via Toppi, contratada por Jillian para Trisha não se sentir culpada por ir para a faculdade. Mas os muros tombaram, as barreiras erodiram e Jillian ainda não estava pronta para a mulher que existia abaixo da superfície. Eddie Como transformara-a. Trouxera o medo para a sua vida, e ela teria sido capaz de o odiar apenas por isso. Claro, ele também fizera muito pior.

"Grande cadela... vou apanhar-te, nem que leve o resto da minha vida. vou apanhar-te nem que seja do túmulo."

Jillian abriu o frigorífico. Apesar de ter passado a maior parte do dia num restaurante, quase não comera nada. Olhou para as várias prateleiras cheias de comida, mas nada lhe abriu o apetite. Toppi olhava-a de sobrolho franzido.

- Estás bem? - perguntou ela de repente. - Ultimamente... Jillian, estás bem?

Jillian fechou a porta. Abriu a boca para dizer "Claro", mas quando viu a expressão de Toppi a mentira morreu-lhe nos lábios. Sentiu um grande tremor. A dor, tão próxima da superfície desde a sua conversa com o sargento Griffin, subiu e voltou a abater-se sobre ela como se fosse um peso enorme, enorme. Mentira ao sargento nessa tarde. Dissera-lhe que tinha a certeza, quando na verdade há já um ano que não tinha a certeza de nada.

- Foi um dia muito comprido - respondeu com secura. - Precisava de algum tempo para absorver tudo. De algum tempo para estar... sozinha.

- com a Trisha?

- Mais ou menos.

- A tua mãe quis lá ir hoje. Mas eu estava preocupada com a comunicação social.

- Desculpa.

- Não faz mal, Jillian - respondeu Toppi com meiguice. - Ela não te culpa. Eu não te culpo. Tu reservaste esse direito para ti própria.

Jillian sorriu. Também já ouvira antes aquele sermão. Várias vezes, por sinal. Onde estava Trisha? Encostou-se ao frigorífico e respirou fundo.

- Sentes alguma diferença, Toppi? Pelo facto de ele estar morto? Sentes alguma diferença?

Toppi encolheu os ombros.

- Não vou perder horas de sono por causa disso, se é o que queres saber. Quando se leva uma vida violenta, tem-se uma morte violenta.

- Cá se fazem, cá se pagam.

- Parece-me bem.

- Achei que seria diferente - continuou Jillian. - Julguei que iria sentir-me... aliviada. Vingada, talvez. Triunfante. Mas sinto-me apenas... vazia. E... não sabia como é que havia de regressar hoje a casa. Como enfrentar a Libby. Sinto... sinto que a deixei ficar mal.

- Deixaste-a ficar mal?

- Sim. - Jillian tornou a sorrir. - Sinto-me estranha. Tenho-me sentido estranha o dia todo. Muito diferente do normal. Acho que devia ir para a cama.

- Jillian... a polícia esteve cá. Dois agentes à paisana. Queriam falar com a Libby, mas eu expliquei-lhes que isso era impossível. Há alguma coisa que eu deva saber?

- Não - respondeu Jillian com sinceridade, abanando a cabeça em seguida. - Talvez o problema seja esse. Eu não matei o Eddie. Não sei quem matou o Eddie. E, francamente,

isso irrita-me. Alguém lhe deitou a mão antes de mim. Alguém o matou e, nas minhas fantasias, eu tinha reservado essa honra para mim. Parece que sou mais sanguinária do que julgava.

- Eu também sonhei em matá-lo - declarou Toppi. Jillian olhou para ela, surpreendida.

- Claro - disse Toppi. - Um tipo daqueles. Depois do que te fez, do que fez à tua mãe, à Trisha. A morte para ele não era suficiente. Deviam ter-lhe cortado o pénis e deixá-lo vivo.

- A castração não funciona com os agressores sexuais - afirmou Jillian de imediato. - Aliás, há estudos que sugerem que a castração cirúrgica ou química os leva a executar actos ainda mais violentos, como o homicídio. Se se tirar o pénis a um agressor sexual, ele substitui-o por uma faca.

Toppi olhou-a com estranheza.

- Lês de mais, Jillian.

- Eu sei. E não consigo parar. Toppi ficou calada um momento.

- Será que nas tuas leituras não deparaste com a síndrome do stresse pós-traumático?

- Deparei.

- Porque... porque é de esperar esse tipo de coisas, sabes. Depois daquilo por que passaste.

Jillian sorriu.

- Ganhei o direito de ser um bocadinho chanfrada?

- Jillian, não foi isso que eu quis...

- Eu sei que estou a lutar, Toppi. Sei que não estou bem em mim. Talvez não tenha esquecido tudo como a Meg e talvez não seja tão agressiva como a Carol, mas estou... ferida. Pronto, consegui um grande feito. Detesto dizer isto em voz alta. Parece uma grande fraqueza. As aves ferem-se. As crianças ferem-se. Eu devia estar acima disso tudo. Francamente, nem sequer fui violada. Por que motivo choro?

- Oh, Jillian...

- Sei que estou a ser injusta em relação à Libby - continuou Jillian. - Gostava de te dizer que tenho um bom motivo, mas não sei qual é ele. Neste momento... nunca me apetece voltar para casa. Há noites em que queria estar noutro sítio que não aqui. Apetecia-me meter-me no carro e conduzir. Conduzir, conduzir, conduzir. - Tornou a sorrir, mas desta vez o sorriso era triste. - Talvez consiga chegar ao México.

- Estás a fugir de nós.

- Não, estou só a fugir. É a única altura em que me sinto em segurança.

- Ele já está morto, Jillian. Estás em segurança. í Jillian curvou os ombros e abanou a cabeça.

- Mas há ainda muitos mais como ele, Toppi - disse com voz rouca. - Tenho lido os livros. Não fazes ideia... o mundo é um sítio horrível. - Os seus ombros começaram a tremer. Bolas, não estava mesmo nos seus dias. E depois viu-se no quarto, naquele horrível quarto escuro, com Trisha a precisar dela, com Trisha a depender dela, e ela nada fora capaz de fazer. Longe de salvar o dia, quase fora também violada. E agora ele desaparecera, e que significado teria a sua vida sem Trisha, de quem cuidar, e sem Eddie Como para odiar?

E depois lembrou-se de Meg - "Acho que não era feliz" - e de Carol - "Vamos comer bolo de chocolate" - e de súbito apercebeu.se de que também as deixara ficar mal. Transformara-as em guerreiras, mas depois de terem derrotado o inimigo será que estavam melhores? Tinham apanhado o Eddie Como, mas nenhuma delas superara o que acontecera.

E agora Eddie Como estava morto e elas continuavam num caco.

Jillian fechou os olhos, tapou a boca com a mão. Domina-te, domina-te. A mãe estava no quarto ao lado. E recordou-se novamente do sargento Griffin, e isso confundiu-a ainda mais. Os homens não melhoravam as coisas. Bastava olhar para Eddie...

Toppi atravessara a cozinha. Tocou suavemente no ombro de Jillian e esta respirou fundo.

- Não sou especialista - disse Toppi. - Deus sabe que eu não seria capaz de ter passado por tudo aquilo que tu passaste. Mas uma coisa sei. Quando sofremos, quando

estamos em baixo, não há nada tão bom como chorar no ombro da nossa mãe. Tu podes fazer isso, Jillian. Ela havia de gostar. E faria muito bem a ambas.

Jillian tornou a respirar fundo.

- Compreendo.

- Compreendes mesmo?

O olhar de Toppi era demasiado penetrante. Jillian desviou o seu. Concentrou-se na sua respiração, inspirando em pequenas golfadas. Depois limpou a cara com as mãos e pestanejou. Iria para a cama em breve. Dormir uma boa noite de sono. Amanhã era outro dia. Sentir-se-ia melhor então. Mais forte, a controlar, pronta a enfrentar os jornalistas, pronta a enfrentar a polícia porque era apenas uma questão de tempo...

- bom, deixa-me ir vê-la.

- Está bem - concordou Toppi. - Está bem. - Mas era evidente pelo seu tom que não se deixara enganar.

Jillian entrou na sala, onde a mãe se encontrava no seu cadeirão preferido a ver televisão. Aos sessenta e cinco anos, Olivia Hayes ainda era uma mulher muito bonita. Pequena como um passarinho, com espesso cabelo escuro e grandes olhos castanhos. O seu cabelo era pintado, claro, de oito em oito semanas no seu cabeleireiro preferido, com seis tonalidades de castanho para ficar o mais parecido possível com a sua cor natural. Libby sempre fora muito vaidosa com o seu cabelo. Quando Jillian era pequena, costumava ver a mãe escovar os seus longos caracóis espessos quando esta chegava a casa à noite. Cem escovadelas. Depois vinham os gargarejes com água salgada para preservar a voz, seguidos de um creme espesso para proteger o rosto.

- Se tomares conta do teu corpo - dizia sempre Libby com uma piscadela de olho -, o teu corpo tomará conta de ti.

Jillian debruçou-se sobre ela.

- Olá, mãe - murmurou. - Desculpa chegar tarde. - Abraçou-a suavemente, tendo o cuidado de não a apertar muito.

Quando se endireitou, viu um brilho nos olhos da mãe. Frustração, ira, era difícil de dizer, e Libby nunca o diria. Desde o enfarte havia dez anos que os movimentos do lado direito do seu corpo eram limitados, e tinha uma afasia expressiva - embora compreendesse o que lhe diziam não era capaz de falar nem de escrever. Como um dos médicos tentara explicar a Jillian, a mãe conseguia pensar de forma fluente, mas, quando tentava fazer as palavras saírem-lhe pelos lábios, o seu cérebro chocava com uma parede e ficava bloqueado.

Agora Libby comunicava através de um "livro de fotografias" cheio de imagens de tudo, desde uma sanita a uma maçã, passando por fotografias de Jillian, Toppi e Trisha. Quando queria alguma coisa, indicava uma fotografia com um dedo. Logo a seguir ao funeral de Trisha, Libby afagara tantas vezes a fotografia da filha que a desfizera.

- Viste o noticiário? - perguntou Jillian, sentando-se no sofá. A mãe bateu uma vez com o indicador direito no braço do sofá, o

que queria dizer "sim".

- Estás contente? Nenhum movimento.

- Triste? Nenhum movimento.

- Assustada?

A mãe emitiu um som impaciente. Jillian hesitou, depois percebeu.

- Zangada?

Uma batida com o dedo.

- Querias o julgamento? - perguntou Jillian após uma hesitação. Uma batida forte!

- Mas porquê, mãe? Assim sabes que ele foi castigado. Não pode escapar por algum jurado ter a consciência pesada. Nunca teremos de nos preocupar com a liberdade condicional ou qualquer outro tipo de saída. Acabou. Ganhámos.

A mãe fez outro som impaciente. Jillian percebeu. As perguntas não resultavam muito bem com aquele sistema. Para obter a resposta certa, tinha de se fazer a pergunta certa. Competia a Jillian, como a pessoa capaz de falar, fazer a pergunta certa.

Toppi apareceu à porta.

- Não viste a conferência de imprensa às seis e meia, pois não?

- Não.

- O advogado do Eddie diz que tem uma testemunha que prova que o Eddie não pode ter atacado a Carol. Àquela hora estava do outro lado da cidade a devolver um filme no clube de vídeo.

- Estás a gozar! - exclamou Jillian, endireitando-se. Ao seu lado, a mãe abriu o livro de fotografias. Os dedos da sua mão esquerda deslizaram, agitados.

- Isso é ridículo - declarou Jillian. - A Carol nem sequer sabe a que horas é que ele lhe entrou em casa. Não se pode ter um álibi sem uma hora definida.

- Alguns jornalistas já começaram a falar em abuso da justiça. Talvez o Eddie tenha sido uma vítima. Talvez a polícia estivesse demasiado ansiosa por apanhar um suspeito. Talvez... - Toppi hesitou. Talvez tu, a Carol e a Meg tenham feito demasiada pressão.

- Isso é um absurdo! - Jillian pusera-se de pé, os punhos cerrados junto ao tronco. Quando encurralada, a sua primeira reacção era sempre a ira, e agora estava furiosa. Alguém lhe arranjasse depressa um jornalista. Um jornalista qualquer. Apetecia-lhe esborrachar um. A única coisa que fizemos foi estabelecer uma relação entre a Trisha e a Meg através das doações de sangue. Mais nada! O Eddie era o tipo que por acaso tinha acesso às moradas de casa delas. O Eddie era o tipo que por acaso esteve com duas das três vítimas de violação algumas semanas antes dos ataques. O Eddie é o tipo que por acaso deixou vestígios do seu esperma em casa delas. Como diabo é que os jornalistas explicam isso?

- Não explicam. Limitam-se a apresentar fotografias dele tiradas do livro de curso e a utilizar palavras como "minoria", "suspeito" de violação, "tragicamente" alvejado.

- Oh, por amor de Deus! - Jillian teve de voltar a sentar-se. Doía-lhe subitamente a cabeça. Pensou ter adoecido. - Estão a transformá-lo num mártir - murmurou. - Quem o alvejou... está a fazê-lo parecer inocente.

Libby bateu no braço de Jillian. Encontrara a fotografia que queria. Uma nova, acrescentada por Toppi um ano antes para ajudar Libby a comunicar sobre o julgamento. Era a de uma mulher de olhos vendados com a balança da justiça.

- Eu sei que querias o julgamento - disse Jillian com impaciência. - Já percebi.

A mãe uniu os lábios numa linha fina. Bateu com mais força na fotografia, desta vez em cima da balança.

- Justiça? Não só um julgamento, querias também justiça? Uma batida forte!

- Porque ainda não a obtivemos - completou Jillian devagar. Os jornalistas estão a julgar o caso à revelia, e estão a usar o aspecto e a etnia do Eddie como prova. E a única maneira que teríamos de responder seria com o próprio Eddie. com um julgamento onde pudéssemos provar sem a menor dúvida que o Eddie Como é o Violador de College

A mãe bateu, bateu, bateu com o dedo.

- Tens razão, mãe. Agora também estou zangada. Esta manhã fomos roubadas. - A voz de Jillian encheu-se de amargura. - Como se não tivéssemos já perdido o suficiente.

A mãe tornou a folhear o livro. Chegou a outra fotografia, esta também nova. Parecia o desenho de uma criança, a caricatura de um monstro com grandes presas amarelas

e olhos vermelhos salientes. Fora Toppi a autora, e era a sua caricatura de Eddie, porque seria impossível permitirem a presença da verdadeira fotografia dele no livro. Recusavam-se a deixá-lo estar tão presente nas suas vidas.

A mão esquerda de Libby mexia na página do álbum. Tirou-lhe a película plástica. Arrancou a fotografia de Eddie. Depois olhou para Toppi e Jillian de queixo bem levantado, os olhos castanhos a brilharem, o lábio inferior a tremer devido às lágrimas por derramar. Amarfanhou Eddie Como com a sua mão esquerda fraca. Depois atirou o monstro para o outro lado da sala.

Toppi e Jillian viram o papel bater no chão. A bola parou a quase dois metros de distância. E ficou imóvel.

- Tens razão - disse Jillian. - O Eddie Como desapareceu, por isso é melhor tirá-lo de uma vez por todas das nossas vidas. Já estou farta de ter medo. Farta de estar zangada. Farta de tentar pensar o que é que podia ter feito de diferente. - A sua voz elevou-se, ganhando força. - Que se lixem os jornalistas, mãe. Que se lixe o advogado de defesa. E que se lixe o público que não tem mais nada para fazer do que ver a nossa dor todas as noites no noticiário. O Eddie Como já nos tirou demasiadas coisas e não vou dar-lhe mais nada. Vamos parar de nos preocupar com ele. Já não temos medo dele. A partir de agora, o Eddie Como desapareceu e nós encerrámos o assunto!

 

O Clube das Vítimas

Vinte e duas e quarenta e cinco.

Carol não encerrara o assunto. Não conseguira tirar Eddie Como da sua vida. Em vez disso, estava enroscada, completamente vestida, numa banheira sem água. A porcelana fria gelava-a, por isso há uma hora atrás ela pegara em todas as toalhas para se cobrir. Estava escuro na casa de banho do primeiro andar. Não tinha janelas, nem fonte de luz natural. Não sabia que horas eram, mas calculava que fosse tarde. Já devia passar das dez. As coisas aconteciam depois das dez.

Dan ainda não chegara a casa. Esta mantinha o seu silêncio. As vezes

ela cantarolava apenas para ouvir um barulho. Mas continuava deitada

na banheira, uma adulta que não podia regressar ao útero. Pousara a

cabeça no rebordo duro e frio e esperava que o inevitável acontecesse.

"Não desliguei a televisão. Não desliguei a televisão."

Não iria fazer diferença. Passava das dez. Ela estava sozinha. E sabia, sabia bem lá no fundo que algures na casa uma janela estava a abrir-se, que um pé estava a pousar no chão, que um homem estava a entrar no seu quarto.

Aconteciam coisas más. As mulheres eram violadas, as pessoas eram alvejadas, outras morriam em explosões de canos. Os maridos abandonavam as mulheres, as mulheres enlouqueciam, as crianças não nasciam. Aconteciam coisas más. Especialmente depois das dez da noite. Especialmente a ela.

Eddie Como mandara-lhe um bilhete. Ela encontrara-o no meio do correio que Dan deixara no balcão da cozinha. O envelope cor-de-rosa parecia aqueles dos postais Hallmark e trazia a morada de Jillian no remetente. Um bilhete simpático, devia Dan ter pensado. Ela também pensou. Até o abrir.

"vou apanhar-te", escrevinhara Eddie a tinta vermelha no papel vegetal. "Nem que seja do túmulo..."

Carol fora a correr para a casa de banho, mas não sem antes fazer uma paragem junto ao cofre. "vou apanhar-te..."

"Desta vez não", decidiu Carol. "Nunca mais, seu filho da mãe " Carol enfiou a mão debaixo das toalhas e, suavemente, afagou a arma.

Vinte e duas e cinquenta e oito.

Sylvia Blaire dirigia-se a casa vinda da biblioteca da universidade. No dia seguinte de manhã tinha um teste. O exame final de Psicologia. Em teoria, Sylvia gostava

de Psicologia, mas não fizera as leituras que devia ter feito. Agora tinha duas noites para passar em revista o que devia ter estudado durante doze semanas, coisa que na secundária fora fácil, mas que estava a revelar-se mais difícil na faculdade.

Pessoalmente, ela achava que o professor Scalia devia desmarcar o teste. Como se alguém conseguisse estudar naquele dia, depois da enorme explosão apenas a seis quarteirões de distância e com as sirenas a soarem toda a manhã. O ar ainda tinha um cheiro acre, um misto de gasolina, metal chamuscado e plástico derretido. Na associação de estudantes, as pessoas só conseguiam falar da agitação. Francamente, nunca nada excitante acontecia em Providence. Na opinião dos alunos, a faculdade devia cancelar a semana dos exames e deixá-los gozar o espectáculo.

Mas não tinham essa sorte. Os professores eram tão chatos! Por isso Sylvia trocara a associação de estudantes pela biblioteca, onde conseguira ler seis capítulos do livro antes de adormecer e sonhar com galinhas a rasparem no chão o teorema de Pitágoras. Que se lixasse. Iria para casa dormir.

Sylvia desceu a rua em direcção ao apartamento. Geralmente havia mais pessoas na rua àquela hora da noite, mas durante a semana dos exames a maior parte dos alunos enfiava-se em salas de estudo a sofrer de ataques de ansiedade. A rua estava em silêncio, as casas às escuras.

Isso não a incomodava. A lua cheia brilhava, os candeeiros iluminavam tudo. Para além do mais, conhecia o procedimento. Andar de queixo erguido, os ombros direitos, com passo rápido. Os pervertidos procuravam mulheres fracas que não dessem luta, não antigas atletas como ela.

Não que Providence ainda tivesse muitos pervertidos. Aquele tal violador estava morto. As mulheres do complexo universitário haviam rejubilado.

Sylvia chegou finalmente à casa antiga onde, no segundo andar, se situava o seu estúdio. Parou nos degraus escuros, depois abanou a cabeça. A porcaria da luz exterior fundira-se de novo. Isso parecia suceder de três em três semanas e o senhorio gostava de esperar outras três semanas antes de a substituir. Sylvia comprara aquela com o seu próprio dinheiro. Como se fosse capaz de ver alguma coisa naquele sítio sem uma luz.

Tirou a mochila do ombro e, com um suspiro, começou à procura das chaves. Encontrou finalmente a corrente pesada do porta-chaves lá no fundo. Fora-lhe oferecido pelo Banco de Sangue de Rhode Island para comemorar a doação do oitavo meio litro de sangue havia apenas duas semanas. Grande Sylvia, agora fazia parte do clube dos cinco litros.

Sylvia tirou as chaves da mochila. Percorreu o monte de chaves que há semanas pretendia reduzir, mas que ainda não fizera, até chegar à pretendida. Enfiou a chave na fechadura.

Sylvia ouviu um barulho à direita. Virou a cabeça...

Vinte e três horas.

Jillian está a sonhar. Neste sonho sabe que está a sonhar, mas não se importa. O sonho está cheio de cores quentes e alegres. Este sonho tira-lhe o peso do peito e leva-a, pela primeira vez em muito tempo, para um sítio onde ela deseja ir.

Jillian tem dezasseis anos. Está num hotel - a maior parte da sua infância foi passada em hotéis. São duas da manhã e Libby foi-se embora. O seu espectáculo acabou

há horas, mas o tempo nunca significou muito para Libby. As noites são para cantar, dançar, beber, divertir-se. Libby já deve ter conhecido outro homem e está mais

uma vez a apaixonar-se. Naquela fase do campeonato, Jillian já está habituada. Liboy apaixona-se e desaparece ainda mais noites por semana. A sua voz torna-se mais forte, usa os melhores vestidos e dá a Jillian imensos presentes frívolos. Depois a rosa perde o viço. Ela deixa-o, ele deixa-a, ou talvez a mulher dele tenha voltado para casa. Quem sabe?

Libby desapaixona-se. Arranjam um hotel novo e ela promete passar mais tempo com afilha. Até, claro, o próximo homem bem-parecido entrar em cena.

No entanto, da última vez foi diferente. Da última vez houve consequências. Jillian tem agora uma meia-irmã bebé, a quem lhe foi permitido dar o nome. Jillian escolheu Trisha.

Trisha, de três meses, tem umas bochechas rosadas e grandes olhos azuis. A sua cabeça está coberta por uma penugem castanha. Gosta de agarrar num dos dedos de Jillian com a sua mãozinha. Gosta de espernear. E gorgoleja muito, faz muitas bolhinhas e adora que lhe dêem beijinhos repenicados na barriga. Também esboça um enorme sorriso de cada vez que Jillian lhe pega ao colo.

Agora Jillian está a embalar a irmãzinha nos braços e a ver os seus olhos azuis irem ficando cada vez mais pesados com o sono. Toca na bochecha de Trisha com o dedo.

Inspira o aroma doce do pó de talco. Sente o peito expandir com a força do seu amor e acha que se gostasse mais de Trisha o seu coração explodiria.

Libby nunca foi a mãe perfeita. Houve até alturas em que Jillian quase a odiou e ao seu desprendimento. Mas há três meses, Jillian perdoou tudo à mãe em troca daquela

prenda valiosíssima. Trisha Jane Hayes. Por fim, Jillian tem alguém que pode amar de todo o coração. Por fim, Jillian tem alguém que nunca partirá.

A noite calma. O peso perfeito de Trisha nos seus braços. A beleza pura da sua irmãzinha, a devolver-lhe o sorriso e a espernear.

No sonho que Jillian sabe estar a sonhar, gostaria de reter aquele momento para sempre. Compreende, naquele sonho que sabe estar a sonhar que a escuridão paira não muito longe. Se virar a cabeça, o belo quarto de hotel desaparecerá e ela irá ver-se num local diferente, mais feio. Se olhar para Trisha com demasiada atenção, Trisha desvanecer-se-á e Jillian terá nos braços o corpo adulto da irmã moribunda. Se pensar demasiado, irá perceber que aquele momento nunca aconteceu, que a irmã chorava a maior parte das noites pela mãe, e que Jillian era pouco mais do que uma mera substituta de dezasseis anos, impotente. No sonho ela sabe que está a sonhar, apenas o seu amor pela irmã é real.

Um som intromete-se. No quarto de hotel do sonho, a Jillian do sonho vira a cabeça. Ouve as sirenas que descem a rua a grande velocidade.

Mas depois o quarto de hotel desaparece. A bebé Trisha desaparece. E a Jillian do sonho, bem como a Jillian real, apercebem-se ao mesmo tempo que o barulho não é uma sirena na rua.

Alguém carregou no alarme.

Som. Carol tornou a ouvi-lo. Um estrondo na zona inferior da sua casa. Seguido de uma pancada.

Estava alguém na sua casa. Estava mesmo alguém dentro da casa de Carol. O pânico que a manietara toda a noite adquiriu força e tornou-se, súbita e assustadoramente, real.

A respiração de Carol acelerou. Devagar, ela esticou as pernas que tinham ficado entorpecidas e dormentes debaixo do seu corpo. Depois afastou a pilha de toalhas e deslizou para baixo até só os seus olhos ficarem acima do rebordo da banheira. Mais barulhos no corredor. Talvez no quarto. Aquele quarto. O quarto.

com cautela, Carol levantou a pistola e apontou para a porta.

Agora o som vinha do corredor. Eram mesmo passos a avançarem na sua direcção.

- Dan? - chamou ela com voz rouca. Inquiridora. Esperançada.

Não houve resposta.

E depois os passos pararam, duas sombras escuras aparecendo na frincha sob a porta da casa de banho. Ele estava ali.

Os braços de Carol cobriram-se de pele de galinha.

"Calma, Carol. Calma..."

A arma na sua mão. A respiração contida no seu peito...

Viu a maçaneta de latão começar a rodar.

Jillian levantou-se de um pulo. Agarrou no roupão, dirigiu-se para a porta e em seguida deu meia volta abruptamente, a fim de ir buscar o spray de gás pimenta à cama. O alarme continuava a ecoar pela casa.

Correndo para o corredor, encontrou Toppi de pé em camisa de noite de linho branco, com um ar ensonado e atordoado.

- Foste tu... .- Não.

- Libby! - gritaram ambas ao mesmo tempo, e desataram a correr para o quarto dela.

Jillian escancarou a porta e avançou de braço esticado, com o gás pimenta na mão, olhando em volta com nervosismo. Libby estava deitada. Tinha o rosto muito pálido. Apertava contra o peito o controlo remoto do alarme.

- Mãe, mãe, o que foi?

Libby levantou um braço trémulo. Apontou para a janela atrás delas. E, muito devagar, Jillian e Toppi voltaram-se.

Vinte e três e trinta e três.

Griffin continuava na esquadra a ler a papelada e a esfregar a cana do nariz, exausto, quando um agente enfiou a cabeça na sala.

- Sargento.

- Agente Girard.

- Meu sargento, o cento e doze acabou de receber um telefonema

por causa de uns distúrbios em East Greenwich. O alarme de uma casa ,

disparou e parece que uma senhora em roupão anda a correr pelo jardim.

Achei que gostasse de saber... a casa pertence a Jillian Hayes.

- Bolas! - Uns distúrbios em casa de Jillian naquela noite em particular não podia ser coisa boa, e ele estava a pelo menos vinte minutos de distância.

- Faça-me um favor, agente, e telefone ao detective Fitz - pediu Griffin a caminho da porta.

- Da polícia de Providence?

- Exacto.

- Desculpe, meu sargento, mas acho que os detectives de Providence foram chamados de urgência. Ouvi qualquer coisa no rádio, embora . não saiba os pormenores.

Parece que houve um incidente em College Hill.

Griffin estacou.

- Em College Hill?

- Sim, meu sargento, em College Hill - repetiu o agente Girard.

A porta da casa de banho abriu-se. Carol fechou os olhos e apertou o gatilho.

Pop, pop, pop. A pequena pistola saltou na sua mão. E a forma escura estatelou-se no chão.

- Oh, meu Deus - gemeu o vulto. - Acho que me acertaste.

- Dan? - perguntou Carol.

Jillian corria. Estava no jardim de roupão azul-bebé, afastando ramos das árvores, pisando arbustos. As luzes estavam todas acesas, os vizinhos começavam a aparecer, as sirenas soavam na rua. Ela estava a dar um grande espectáculo. Mas não se importava.

- Aparece, aparece, estupor! - gritou. Carregou no spray e borrifou uma folha trémula. - Queres pregar uma partida? Eu dou-te a partida, seu cobarde filho da puta. Vá. Mostra-te!

Correu junto à vedação. Os vizinhos recuaram um pouco. Ela ignorou-os, as lágrimas a correrem-lhe pela cara, o nariz a fungar por causa do spray que inalara. Ele tinha de estar ali algures. Não podia ter ido longe. E ela havia de encontrá-lo e agarrá-lo-ia pelo pescoço magricela, provavelmente de adolescente, e, e...

Tinha de magoar alguém. Precisava de infligir dor e violência, e isso assustou-a também, por isso continuou a correr, a pisar os bolbos que começavam a crescer e os amores-perfeitos acabados de plantar. Tinha de continuar a mexer-se. Tinha de lutar. Já não estava numa cave escura. Não estava impotente!

Ali, aquele arbusto. Mexera-se. Cobarde filho da mãe...

Jillian avançou em linha recta para o arbusto trémulo e chocou subitamente com uma coisa dura.

- Umpf! - exclamou, recuando alguns passos e em seguida levantou os olhos para deparar com o vulto enorme e imóvel do sargento Griffin.

- Jillian - disse ele.

- Viu o que ele fez?

- Os agentes contaram-me o que aconteceu.

- Era o quarto da minha mãe. Sabe como é que ela ficou? Tivemos de chamar um médico pois ela tem dificuldade em respirar. Se aquele estupor lhe provocar outro ataque cardíaco juro que o mato com as minhas próprias mãos! Hei-de encontrá-lo e desmembrá-lo!

- Jillian.

- Era o quarto da minha mãe! Que idiota é que faz uma coisa dessas? Ainda por cima hoje. A minha pobre mãe. Oh, Céus, a minha pobre mãe...

Os seus ombros tremeram e a seguir ela começou a oscilar. Olhou para baixo e constatou que o roupão se abrira e ela estava meia nua no jardim. Ouviam-se sirenas por todo o lado, as luzes dos carros-patrulha iluminavam a casa de vermelho. Havia pessoas por todo o lado a olhar para ela, a olhar para a casa, a falarem da sua dor.

O Eddie Como está vivo. Escrito a spray vermelho na janela do quarto da mãe. O Eddie Como está vivo.

- Não tem graça - murmurou ela. - É uma partida horrível, horrível. - Depois cambaleou de novo e o sargento Griffin teve de a agarrar.

- Lamento imenso.

- Detesto isto! - exclamou ela contra o peito dele.

- Jillian... - murmurou ele com ternura, e algo no tom dele fez Jillian acalmar-se. Devagar, levantou a cabeça. Os olhos azuis dele eram tristes. Tão tristes. Ela não conseguia deixar de os fitar. E então, de repente, pensou na mulher dele. Como teria sido amar aquele homem? Ser abraçada por aqueles braços fortes, fitar aquele olhar tranquilo e ainda assim sentir-se fugir? - O que aconteceu?

- Lamento imenso. Acabei de falar com o detective Fitzpatrick... Em College Hill. Houve outro incidente.

- Mas não pode ser. O Eddie... morreu. Acabou tudo. Até isto... Provavelmente foi só um adolescente com um spray. Por favor, diga-me que foi só um adolescente com um spray. Preciso que tenha sido apenas isso.

O sargento Griffin não disse nada. Continuava a abraçá-la, a segurar o seu corpo meio inerte, protegendo-a dos vizinhos. Não a largaria até ela estar pronta. Ela percebeu isso. Ele ficaria ali até ela precisar, apoiá-la-ia o tempo que ela precisasse. Era o seu trabalho e, mesmo antes, durante o caso do pedófilo, os jornalistas tinham dito que ele levara o trabalho demasiado a sério.

Jilliaff estudou o rosto dele, largo, esculpido, firme. Olhou para os seus olhos azuis tranquilos. Num impulso, levantou a mão e tocou-lhe no queixo. Perguntou a si mesma o que pensaria ele ao saber que ninguém tocava nela, e ela em ninguém, havia mais de um ano.

Depois, devagar, endireitou-se, recuou um passo e apertou o cinto do roupão.

- Morena? - perguntou.

- Sim.

- Garrotes de látex?

- Sim.

- Ela está...?

- Estrangulação manual. Jillian fechou os olhos.

- Muito bem, sargento. Talvez seja melhor entrar.

Meia-noite e vinte e um.

As luzes estavam acesas em casa dos Pesaturo. tom e Laurie dormiam tranquilamente, bem afastados, na sua enorme cama de casal. A pequena Molly encontrava-se enroscada aos pés da sua cama Barbie cor-de-rosa. No seu quarto, Meg começou a agitar-se no sono.

Olhos cor de chocolate. Mãos macias, suaves. O sorriso lento de um amante. Os dedos dele afagam o seu cabelo. As mãos dele deslizam até aos seus seios. Ela arqueia as costas e deseja que ele faça mais.

- Devíamos parar - murmura-lhe ele ao ouvido.

- Não, não...

- Não seria correcto. - O polegar dele toca-lhe no mamilo. Os seus dedos apertam.

- Por favor...

- Isto é errado.

- Oh, por favor...

A mão dele desce. Ela levanta as coxas para o receber. E depois A mão dele cobre-a. Todo o seu corpo estremece. Ela lança a cabeça para trás.

Olhos cor de chocolate. Mãos macias, suaves. O sorriso lento de um amante.

Meg agitou-se no sono.

- David - murmurou.

 

O Clube das Sobreviventes

- Disparei contra o meu marido.

- Disparaste contra o teu marido?

- Ontem à noite, quando ele chegou a casa. Estava com medo. Acabara dê receber outro postal do Eddie Como... desta vez com o teu endereço, Jillian. E... juro que primeiro chamei pelo Dan. Mas ele não respondeu. Por isso apertei o gatilho, e... bem, atingi-o no antebraço. Em cheio, por acaso. O médico ficou impressionado.

Jillian franziu o sobrolho.

- Pensei que tínhamos concordado em não ter armas.

- Não, Jillian, tu disseste que não querias armas. Eu, por outro lado, ainda me reservo o direito de pensar por mim própria. O que achas disso? - O tom de Carol subira.

Em contraste, a voz de Jillian continuou especialmente calma para aquela primeira reunião de emergência do Clube das Sobreviventes.

- Acho que a pergunta que se impõe fazer é: o que achou o Dan disso? - retorquiu ela com secura.

Meg suspirou e deixou-se descair um pouco na cadeira. Aquilo não estava a correr bem. Carol encontrava-se tão agitada que não conseguia estar quieta à mesa de uma sala privada que tinham reservado num restaurante em Federal Hill. Jillian, por outro lado, envergava um fato azul-escuro com o casaco abotoado até ao queixo e estava sentada tão direita que teria deixado orgulhosa a rainha de Inglaterra. A tensão na mesa era palpável. Excepto para Meg, claro. Ela nunca sabia o suficiente para se sentir tensa. Para além disso, esta manhã estava muito ocupada a cuidar da sua primeira ressaca. Pelo menos achava que era a sua primeira ressaca.

- Como diz a minha mãe, importavam-se de usar a vossa voz interior? - perguntou ela.

Carol lançou-lhe um olhar furioso. O de Jillian foi mais brincalhão.

- Está-te a custar esta manhã? - perguntou Jillian.

- Podes crer.

- Sempre chegaste a ir adorar o deus de porcelana ontem à noite? Meg levou algum tempo a perceber. Ah, vomitar.

- Não. Pelo menos acho que não.

- bom, hás-de sobreviver.

- com licença - interveio Carol. - Eu estava a falar do disparo contra o meu marido. O que é que eu tenho de fazer para conseguir alguma atenção aqui? Matá-lo?

- Não sei - respondeu Jillian. - Foi por isso que o alvejaste?

- Oh, por amor de Deus...

- Não, ouve-nos um minuto...

- Não há nenhum "nós", Jillian. Só existes tu. Sempre foste só tu. A Meg e eu somos apenas uma fachada para a tua demanda sagrada de justiça. O Clube das Sobreviventes. Isto é uma anedota. Este clube não é para sobreviver, é para vingar. Só que não podes utilizar essa palavra diante da comunicação social. bom, aqui estamos agora. O Eddie Como morreu, disparei contra o meu marido, outra rapariga foi atacada, e a imprensa anda a clamar erro judicial. O que vais fazer, Jillian? Como é que te vais desenvencilhar desta?

Jillian levantou-se da mesa. Andou em círculo uma vez, e depois mais duas vezes. Os seus movimentos eram rígidos e sacudidos. Tinha o rosto pálido e. uma expressão indecifrável. Meg só a vira assim uma vez. Quando Eddie Como as contactara pela primeira vez. Meg sentira um certo medo de Jillian nesse dia.

- Alguém entrou em minha casa ontem à noite - anunciou Jillian.

- Alguém desapertou as lâmpadas que se acendem ao menor movimento, depois entrou na minha casa e com um spray escreveu "O Eddie Como está vivo" na janela do quarto da minha mãe. Depois voltou a apertar as lâmpadas. Por amor de Deus, a minha mãe teve de receber oxigénio para recuperar do choque. Achas que não entendo o medo, Carol? Achas que não sei o que te passou pela cabeça ontem à noite quando ouviste passos desconhecidos no corredor? Se há doze horas eu tivesse uma arma, também teria disparado contra alguém. E provavelmente teria acertado num rapaz da vizinhança, tendo sido por isso que disse que era melhor não termos armas.

- És uma santa, Jillian.

- Bolas! Queres ter esta conversa, Carol? Muito bem. O detective Fitz e o sargento Griffin vão chegar daqui a menos de dez minutos, por isso vamos resolver a coisa de uma vez por todas.

- Lá estás tu outra vez, Jillian. Eu estou a tentar ter uma conversa, e tu a determinar o que temos de fazer.

Jillian uniu os lábios numa linha fina e olhou para Meg.

- Queres sair?

- O quê?

- Queres sair? Já estás cansada? Farta do grupo?

- Eu... não. Não quero sair do grupo - respondeu Meg com voz mais firme.

- Porque não?

- Porque... porque precisamos umas das outras. Olhem para nós. Quem mais poderia falar de vandalismo nocturno e de maridos alvejaJos sem olhar para nós como se fôssemos aberrações? com outras pessoas as conversas não são reais.

- Mas estas conversas também não são reais! - exclamou Carol com impaciência. - É aí que quero chegar. Já passou um ano. Já estamos para lá das conversas educadas,

dos direitos das vítimas ou da estratégia legal. Pelo menos devíamos estar. Se somos o Clube das Sobreviventes, então está na altura de passarmos ao tema da sobrevivência. Ou ao facto de não estarmos a sobreviver. Só que tu não queres ter essas conversas, Jillian. Não te importas que a polícia venha aqui falar connosco, nem que o DAmato apresente as suas tácticas. Mas quando se trata de nós, sozinhas, magoadas, sensíveis, tu afastas-te, Jillian. Pior ainda, afastas-nos. E isso não é justo. Francamente, se eu quisesse ser tratada assim ia para casa ter com o meu marido.

- Armada? - perguntou Jillian.

- Se tivesse um cérebro no crânio, sim - ripostou Carol. Jillian sorriu finalmente. Mas aquela expressão suave fê-la apenas

parecer cansada.

- Desculpa - disse ela.

Carol olhou-a com desconfiança. Meg bocejou, desejando que as outras se despachassem com aquilo. As personalidades de Jillian e de Carol eram como água e azeite, mas precisavam mesmo uma da outra. Todas precisavam umas das outras, especialmente agora, numa altura em que uma nova rapariga fora violada e assassinada. Meg não conseguia deixar de pensar que podia ter sido ela. E a pobre Jillian devia estar a pensar em Trisha. Depois de uma noite como aquela, como não haveria de estar a pensar em Trisha?

O queixo de Jillian baixara um pouco. Fitou Carol.

- É possível... - Hesitou, pigarreou e tentou outra vez. Quando estou tensa, quando estou zangada, é mais fácil para mim concentrar-me em algo. Delinear um plano de ataque e implementar esse plano. Preciso de estar ocupada. De estar... em movimento. Acho que talvez tenha imposto isso ao grupo.

- Eu não sou capaz de fazer isso - declarou Carol. - Volto para a mesma casa todas as noites, para o mesmo marido que não chegou a horas, para o mesmo quarto no segundo andar onde um homem entrou pela janela e me levou a vida. Tu consegues distanciar-te das coisas. A Meg consegue distanciar-se das coisas. Eu não. Aquela noite transformou-se em lama e eu estou sempre a derrapar nela.

- Por que não vendes a casa? Por que não te mudas? - perguntou Meg. Estava curiosa.

- O Dan adora aquela casa - respondeu Carol de imediato.

- Tenho a certeza de que ele te adora ainda mais.

Carol ficou em silêncio. A sua expressão disse tudo.

- Ele afasta-te assim tanto? - perguntou Jillian com ternura. O ambiente na sala mudou. E Meg estava de novo a pensar "pobre pobre mulher." Lutavam umas com as outras, mas realmente, lá no fundo, "pobre, pobre mulher."

- O Dan afasta-me tanto que não sei porque é que ele se dá ao trabalho de vir para casa - disse Carol. Os seus ombros haviam-se curvado, a expressão de ira dera

lugar a uma dor que era bastante pior.

- Ele não fala. Não discute, não sofre, nem sequer argumenta. O assunto é quase tabu. Vivemos numa casa com um elefante gigante que ambos fingimos não ver.

- Nunca falaram da violação?

- No início falámos sobre o que os médicos tinham dito. Depois falámos sobre o que a polícia tinha dito, ou o que o DAmato tinha dito. As vezes falamos sobre aquilo que o nosso grupo diz. Por isso falamos. Sobre o que as outras pessoas dizem.

- Deve ser difícil para ele - interveio Meg. - Quero dizer, ele é homem. Vejam o meu pai. Ainda se recrimina por não ter estado lá quando o Eddie me atacou, e nem sequer morava no meu apartamento. Para o teu marido, deve ser uma espécie de peso monstro que ele traz ao pescoço. O que será que os outros homens lhe dizem?

- Os outros homens?

- Bem, claro, os homens conversam entre si. bom, está bem, não propriamente. Quero dizer, não é como nós. Mas ele é homem e os outros homens sabem que a mulher dele foi violada na própria casa. Isso deve-o fazer sentir-se mal... Um grande falhado. Que tipo de homem não protege a mulher que ama? Sei que se alguma vez acontecesse qualquer coisa à minha mãe, o meu pai iria buscar as soqueiras. E a seguir talvez uma serra eléctrica. E depois o meu tio Vinnie iria... Bem, isso já é outra história.

- Ele não podia saber o que iria acontecer naquela noite - disse Carol.

Jillian olhou-a com curiosidade.

- Já lhe disseste isso?

Carol hesitou, e em seguida abanou a cabeça.

- Por que não?

- Porque o culpo, está bem? Porque rezei para que ele voltasse para casa naquela noite. Ali estava eu enquanto aquele homem me fazia aquelas coisas horríveis na esperança de que o Dan voltasse para casa. E aquilo arrastou-se, arrastou-se, arrastou-se... e onde estava o meu marido? Eu precisava dele. Por que é que ele não podia voltar para casa?

- Ele não podia saber... - tentou Jillian.

- Tu própria disseste que ele tinha ficado a trabalhar até tarde interveio Meg.

- Mas ele não estava a trabalhar! Bolas... bolas! - Carol sentou-se pesadamente. Cobriu o rosto com as mãos. E logo a seguir levantou a cabeça e mostrou as faces cobertas de lágrimas. - Há meses que eu desconfiava. Sempre a chegar tarde a casa. Todas aquelas reuniões de emergência. Por isso comecei a ligar-lhe para o escritório. Nunca ninguém me atendeu. Nunca. E depois, aquela noite. Liguei para o escritório dele às nove e meia. Ninguém atendeu. Sejamos realistas. O meu marido não podia salvar-me de ser violada porque estava demasiado ocupado a foder a namorada!

- Oh, Carol...

- Oh, Carol.

- Então como é que se toca nesse assunto? - perguntou Carol. - Hum? Alguém tem sugestões? Olha, Dan, peço desculpa por ter sido violada se pedires desculpa por estares a ter um caso. Ou, Dan, que tal eu pedir desculpa por estar emocionalmente de rastos se tu pedires desculpa por não teres chegado a casa a horas de deteres o meu atacante? Ou eu digo que peço desculpa por não poder ter filhos se tu pedires desculpa por estares sempre a afastar-me, a pores o teu trabalho acima de tudo, por me manteres num mausoléu de trezentos metros quadrados que só me faz perceber o quanto estou sozinha. E depois, o que é que acontece? Envelhecemos juntos, sempre a olhar um para o outro e sabendo que somos uns falhados?

- Esse é o problema do casamento, sabes? Começa-se por querer intimidade e depois, quando ela se estabelece, lembramo-nos demasiado tarde que a familiaridade gera desprezo.

- Ainda o amas? - perguntou Jillian.

- Oh, céus, sim! - exclamou Carol, desatando de novo a chorar. Durante muito tempo, ficaram todas em silêncio.

Bateram à porta. A empregada, já habituada às reuniões delas, espreitou para a sala.

- Jillian, a polícia já chegou. Jillian olhou para Carol.

- Queres adiar?

Nunca Jillian oferecera assim uma trégua.

No entanto, Carol já estava a recompor-se. Pegou num guardanapo e limpou a cara.

- Não. Deixa-os entrar. Temos de saber o que é que aconteceu à rapariga.

- Provavelmente é um imitador - disse Jillian.

- Não é - declarou Meg.

- Não sabemos isso.

- Eu sei.

- Meg...

- Não, se a Carol pode ter um esgotamento nervoso, eu também quero poder ter os meus sentimentos. E sinto que há aqui algo errado. Aquela rapariga era uma de nós. Mas só ouvimos falar dela demasiado tarde.

Carol e Jillian franziram os sobrolhos, de novo unidas pela sua preocupação com a frágil Meg. Mas Meg estava determinada. Tinha a certeza do que dizia. Sabia. Naquela manhã os olhos tinham-na seguido novamente. E ela compreendera pela primeira vez a morte de Eddie Como. Não fora um fim para elas, mas apenas um novo começo.

Aquela pobre rapariga.

- Mande entrar a polícia - disse Jillian à empregada.

- Desculpa, Carol - murmurou Meg.

- Eu também peço desculpa - disse Jillian.

Calaram-se quando o detective Fitzpatrick e o sargento Griffin entraram na sala.

 

Fitz

Ao ver as três mulheres juntas pela segunda vez em dois dias, Griffin achou-as menos serenas que no dia anterior. Carol Rosen, junto à parede, tinha as faces vermelhas e os olhos inchados de alguém que estivera a chorar há pouco tempo. Jillian Hayes, à cabeceira da mesa, tinha as feições pálidas e as olheiras de alguém que não dormira na noite anterior. Por fim, Meg Pesaturo, mais próxima da porta, parecia tensa, abatida. Devia ser da ressaca, calculou ele. Do champanhe da véspera. Maureen entrevistara testemunhas oculares do rue de l'espoir na sua reportagem daquela manhã.

As mulheres ainda não sabiam, mas estavam rapidamente a tornar-se o centro de uma tempestade legal. E apenas vinte e quatro horas após a morte de Eddie Como. Griffin perguntou a si mesmo o que trariam as vinte e quatro horas seguintes.

- Jillian, Carol, Meg. - Fitz cumprimentou uma de cada vez. Griffin não sabia se Fitz se apercebera, mas ele cumprimentava as mulheres sempre pela mesma ordem. Pelo posto, pensou Griffin com secura. Ou por ordem crescente de vitimizaçáo.

As mulheres nada disseram. Limitaram-se a fitar Fitz e Griffin com os olhos apáticos de alguém que está à espera de más notícias e só deseja ver aquilo pelas costas.

- Obrigado por terem acedido a falar comigo - disse Fitz muito formal, puxando uma cadeira e preparando-se para se sentar. – Estou certo de que todas se recordam do sargento-detective Roan Griffin. Convidei o sargento Griffin para estar aqui hoje por uma questão de cortesia profissional... na medida em que as actividades de ontem à noite podem estar relacionadas com a morte do Eddie Como e o sargento está também a investigar o caso.

Griffin sorriu ao grupo, tendo o cuidado de não demorar o seu olhar em Jillian. Cortesia profissional. Fora de mestre. Fitz dera-lhe as boas-vindas à reunião ao mesmo tempo que o punha no seu devido lugar. Aqueles rapazes de Providence eram refinados.

- Muito bem - começou Fitz. - Sei que houve uma certa ação nas vossas casas ontem à noite.

- Sim - confirmaram Carol e Jillian. O sorriso de Fitz ficou mais tenso.

- Por que é que não começa, Carol?

- Recebi um bilhete - disse Carol. - Num envelope cor de-rosa. O remetente era a Jillian. Não olhei para o carimbo do correi Quando o abri, vi que era do Eddie.

- Ainda ontem?

O queixo de Carol subiu.

- Eu sei como se processam essas coisas.

- Muito bem. O que dizia o bilhete?

- Dizia "vou apanhar-te. Nem que seja do túmulo..." Entrei um pouco em pânico. Estava sozinha em casa e isso assustou-me ainda mais Por isso tirei a arma do cofre. E depois, bem, infelizmente acabei por disparar contra o Dan quando ele chegou a casa.

- Levou a tensão no seu casamento um pouco longe de mais, não, vílrOiré?

- Foi mesmo um engano!

- Pois. E como é que ele está?

- Há-de sobreviver - retorquiu ela com frieza. - Mas vai levar algum tempo para que o braço sare. E, bem, provavelmente mais algum tempo até ele se sentir em segurança

para andar pelos corredores lá de casa. Claro, eu já sei o que isso é.

Fitz ignorou o comentário amargo e concentrou-se em Jillian.

- É a sua vez.

- Alguém escreveu com um spray. na Janela do quarto da minha mãe " Eddie Como está vivo." Depois tornou a enroscar as lâmpadas que se acendem ao menor movimento, para ter a certeza de que ela acordava e via aquilo enquanto ele fugia. A boa notícia é que a minha mãe ira sobreviver. A má é que o rapaz do spray não. Pelo menos depois de eu o encontrar - disse Jillian num tom lacónico Fitz resmungou. Já devia ter lido o dossiê da polícia de East Greenwich, que basicamente dizia a mesma coisa. com fotografias claro. Virou-se para Meg.

- E você?

Ela encolheu os ombros.

- Nada. Sejamos realistas, eu sou a mais aborrecida.

- Ainda bem. Se vocês tiverem mais problemas, a cidade não terá policias que cheguem para investigar os outros casos - observou Fitz com aspereza. Estivera a pé toda a noite. A investigar a cena do crime em Lollege Hill e a tomar conhecimento dos outros acontecimentos pelo telemóvel. Vinte e quatro horas sem dormir deixavam marcas. Fitz tinha olheiras e os olhos vermelhos, o rosto pálido. Os poucos cabelos que lhe restavam estavam espetados, e a camisa branca amarrotada tinha duas nódoas novas. Pareciam ser de mostarda e ketchup. Provavelmente comprara qualquer coisa no Haven Brothers Diner e comera-a no carro. Aquele estabelecimento servia a polícia há décadas e os agentes tinham níveis de colesterol que o provavam. Tendo dormido apenas uma hora, Griffin sabia aquelas coisas.

- E o que se passou? - perguntou Jillian.

- Foi ele? - interveio Carol. - Diga-nos só isso. Foi ele? Fitz recostou-se na cadeira e equilibrou-a em apenas duas pernas.

Olhou em volta, fitando cada uma das mulheres, sem pressas para responder.

- Se foi ele? Essa é a grande questão, não é? Se quando diz "ele" se refere ao Eddie Como e se o que ele fez foi atacar uma rapariga ontem à noite em College Hill, então a resposta é não. Bolas, não. O Eddie está morto. Eu vi o corpo. - Abruptamente, Fitz inclinou-se para a frente.

- Até sei que vocês lhe dedicaram um brinde.

Carol sobressaltou-se. Goraram as três em seguida.

- Jillian, Jillian, Jillian - disse Fitz baixinho. - Pensei que fosse mais esperta do que isso. Achava mesmo que a comunicação social não ia saber qual o seu paradeiro ontem de manhã? Achava mesmo que num restaurante cheio de pessoas não haveria pelo menos uma ou duas com disposição de falar?

- A ideia foi minha - começou Carol.

- Não interessa - interveio Jillian. - Todas quisemos pedir o champanhe. Todas o bebemos. Se as pessoas têm um problema com isso, o problema é delas. Não somos funcionárias públicas a concorrer para um cargo no Estado. Nem sequer somos estrelas de cinema ou celebridades locais. Somos apenas pessoas, e o que fazemos só a nós diz respeito.

- Não seja ingénua - retorquiu Fitz. - Foram vocês a ir ter com a comunicação social no ano passado. Assim que fizeram isso, tornaram públicos os vossos problemas. Não podem voltar atrás.

- Ele foi o nosso violador! Morreu. O que raio pensavam que iríamos fazer? Arrancar o cabelo? Lançar-nos para o túmulo?

- Isso teria ajudado.

- Ajudado quem? Ele matou a minha irmã. Que se foda o Eddie Como! Que se foda

- Que se foda ou que morra, Jillian? Jillian respirou fundo. Afastou-se da mesa.

- Ora, Fitz. Se continuar assim vou querer ter o meu advogado presente.

Fitz olhou para Griffin. Este não tencionara falar já no assunto, mas que se lixasse.

- Será que o seu advogado pode explicar os grandes levantamentos que fez? - perguntou Griffin.

- Tem andado muito ocupado, sargento.

- Tento - respondeu ele com modéstia. Carol e Meg olhavam para Jillian com curiosidade. Embora Jillian não parecesse admirada com a pergunta, elas pareciam.

- Precisava do dinheiro - respondeu Jillian.

- Porquê?

- Por razões pessoais.

- Que razões pessoais?

- Razões pessoais não relacionadas com a morte do Eddie.

- Vai ter de provar isso - disse Griffin.

- Tenciona acusar-me de alguma coisa?

- Não.

- Então não preciso de provar nada.

Griffin assentiu. Já tinha previsto aquilo. Jillian orgulhava-se da sua frieza e, quando se via sob pressão, agia ainda com mais frieza. Mas não na noite anterior. Não se comportara como a mulher calma e profissional do costume. Tivera o cabelo solto, revolto. Estivera agitada, com medo, com raiva. E as suas mãos, quando tinham

pousado nos seus ombros, procuravam realmente apoio, porque as pernas fraquejavam sob o peso daquelas letras vermelhas na janela da sua casa. A mãe dela, lembrou-se ele de repente. Jillian mostrava-se calma quando o assunto era consigo. Mas quando a sua família era ameaçada...

O pensamento estúpido do dia - Cindy teria gostado de Jillian Hayes. Era mesmo um pensamento estúpido - ele próprio começava também a gostar dela.

- Fale-nos do ataque - pediu Jillian. Fitz uniu os lábios.

- Sabe que não posso falar de uma investigação ainda não concluída.

- Detective - protestou Carol.

- Fitz! - exclamou Meg.

Fitz limitou-se a abanar a cabeça. Estava lixado. Até Griffin percebia isso. Se não soubesse que não era esse o caso, acharia que a frieza das mulheres ferira os sentimentos do detective.

- Podíamos ajudar - disse Jillian.

- A beber mais champanhe?

- Cometemos um erro - disse Carol. - Detective, por favor. Temos de saber. com certeza compreende. Esta nova onda de cartas, depois o vandalismo em casa da Jillian e a seguir este ataque em College Hill. Sentimos que estamos a enlouquecer.

- Cartas? - perguntou Griffin. - No plural? Carol e Meg viraram-se para Jillian.

- Eu também recebi uma. Na última sexta-feira. Uma disquete, enviada para minha casa, com a morada da minha firma no destinatário. Também não olhei para o carimbo. Era de esperar que já tivesse aprendido alguma coisa. - Esboçou um sorriso triste, depois continuou.

A disquete continha um vídeo. Uma imagem sorridente do Eddie Como a dizer-me que iria apanhar-me, nem que fosse do túmulo. Eu devia ter-lhe contado, detective Fitzpatrick.

Sei que devia. Mas na altura achei que era a derradeira partida dele antes do início do julgamento. Já nos mandara tanta coisa! Pareceu-me uma parvoíce preocupar-me com mais esta.

- Ainda tem a disquete? - com envelope e tudo. Mas toquei nele sem luvas. Devia tê-lo examinado melhor primeiro. Lamento.

Fitz suspirou, infeliz. Parecia cansado, frustrado e farto delas todas. Os criminosos eram maus, mas todos os detectives de homicídios podiam dizer que às vezes as vítimas eram ainda piores. Os detectives conheciam-nas melhor. Começavam a simpatizar com elas. E depois, com a melhor das intenções, as vítimas lixavam tudo e restava aos detectives lembrarem-se de que a culpa não era realmente delas. As pessoas eram pessoas. E toda a gente errava.

- Então temos um tema - disse Fitz por fim. - O Eddie Como quer vingança, nem que seja do túmulo.

- É uma escolha de palavras interessante - comentou Griffin. Jillian também percebera.

- Sim. É quase como se ele soubesse que ia morrer. Um silêncio desconfortável abateu-se sobre a sala.

- Não acha... - começou Carol.

- Que ele planeou a própria morte? - terminou Meg de cenho carregado. - Por que haveria alguém de fazer isso?

- Pode ser mera coincidência - respondeu Fitz com um encolher de ombros. - Lembrem-se, a vida real é mais estranha que a ficção.

- Detective. - Jillian virou-se para ele com uma expressão implorativa. - O novo incidente ontem à noite. O senhor melhor do que ninguém sabe o que isto está a fazer-nos. Sabemos que não nos deve nada. Sabemos que há um protocolo a seguir... mas isto é uma coisa tão próxima de nós. Depois de tudo o que passámos. Por favor... Fitz hesitou uma última vez, provavelmente por uma questão de ego, mas o fim nunca estivera em dúvida. Esfregou os olhos vermelhos, depois passou uma mão pelo cabelo ralo.

- Pois. Está bem. Já agora podem ficar a saber, uma vez que os jornalistas também irão atrás de vocês. Tivemos outra agressão. Uma aluna da Universidade Brown. Foi atacada no seu apartamento, depois amarrada com dez garrotes de látex, violada e a seguir... estrangulada. Morreu logo.

- O nome dela? - perguntou Meg.

- Quer mesmo saber isso?

- Sim.

- Sylvia Blaire.

- Idade?

- Vinte.

- O que é que estava a estudar?

- Não sei bem. Acho que Psicologia. Ainda estamos a elaborar o perfil da vítima.

- Era bonita?

- Vá lá, Meg! - Fitz esboçou um gesto de impaciência. - Não faça isto a si própria. Ela já morreu. Saber essas coisas todas... só vai servir para se torturar a meio

da noite.

- Temos de saber - retorquiu Meg muito calma. - Eu tenho de saber.

- Não irá ajudá-la, Meg. Meg sorriu.

- Não estou à procura de ajuda, detective. Estou a tentar saber rnais coisas sobre a Sylvia Blaire, uma jovem estudante universitária tal como a Trisha Hayes ou eu própria. Afinal de contas, isto é o Clube das Sobreviventes. E uma das obrigações das sobreviventes é saber coisas sobre as outras vítimas e recordá-las.

Um silêncio pesado abateu-se sobre todos. Fitz não sabia para onde olhar. Nem Griffin. E pela primeira vez percebeu uma coisa acerca das mulheres, do grupo, do clube. Tinham-se tornado uma unidade. Davam força umas às outras. E Sylvia Blaire, se não tivesse morrido...

Fitz parecia envelhecido. Parecia um detective que estivera em demasiadas cenas de crime e que aquela, a última, seria a única que nunca lhe sairia da cabeça. Os detectives daquela região gostavam de ir para a Florida após a reforma, mas, mesmo lá, as imagens continuavam a segui-los. Demasiadas caras tristes a olhá-los das tranquilas águas azuis enquanto lançavam a linha e tentavam pescar.

- Nas fotografias ela era muito bonita. Cabelo comprido escuro, grandes olhos castanhos. Atleta bem sucedida no secundário. Tinha boas notas. Dedicava algum tempo a ATL.

- Dava sangue com regularidade - acrescentou Jillian.

- Pois - confirmou Fitz pesaroso. - Pois.

- Parece ele - interveio Carol. Olhou em redor. - Tem de admitir...

- É demasiado cedo para saber. - Fitz abanou a cabeça e pigarreou. - Claro, há elementos comuns, mas este caso nunca foi muito, ocultado do público.

- Acha que pode ser um imitador? - disse Jillian.

- É uma possibilidade. O perfil da vítima... jovem, morena, estudante universitária... não é um mistério. Basta acender a televisão e ver uma fotografia da Meg ou da Trisha. A ligação com o banco de sangue, que também foi referida nos noticiários, uma vez que o Eddie trabalhava lá. E os garrotes de látex tornaram-se do conhecimento geral pouco depois da prisão do Eddie. Por isso aí tem: um perfil de violador.

- Havia sinal de entrada forçada? - De novo Jillian.

- Não.

- Isso não veio nos noticiários.

- Pode não ter sido um desconhecido. Jillian franziu o sobrolho, depois percebeu.

- Talvez alguém que a rapariga conhecia... um ex-namorado, digamos... fez com que a coisa se assemelhasse aos ataques do Violador de College Hill para encobrir o que fizera.

- Pode ser.

- Ela tinha algum ex-namorado?

- Só passaram oito horas. Pergunte-me daqui a duas.

- E impressões digitais?

- Havia várias.

- ADN?

Fitz hesitou, depois olhou para Griffin. Este não disse nada; afinal de contas, a festa era de Fitz. No entanto, Jillian foi demasiado rápida para ambos. Os seus olhos abriram-se muito. O seu rosto empalideceu. Lentamente, envolveu o tronco com os braços.

- Não - murmurou.

- Sim - disse Fitz.

- Mas o duche vaginal não veio nas notícias. Essa informação

munca foi dada a ninguém.

Carol começou a perceber e olhou em volta ainda mais ansiosa.

- Está a dizer... que era igual?

- Duche floral descartável da Berkely and Johnson. - Fitz tornou a suspirar, depois levantou uma mão e esfregou o rosto cansado. Griffin fizera o mesmo gesto quando Fitz lhe dera a notícia. O duche vaginal era o elemento-chave. Podia especular-se muito, mas, quando se chegava ao duche vaginal, parava-se.

- Mas... mas... - disse Meg. Parecia incapaz de mais. - Mas... mas...

- Não tiremos conclusões precipitadas - avisou Fitz.

- Ainda há outras possibilidades - interveio Griffin.

- Tais como? - perguntou Jillian.

- Se calhar o Eddie tinha um amigo - declarou Fitz. - Ou talvez gostasse de se vangloriar do que fazia. Lá por nós não termos divulgado os pormenores não quer dizer que ele não o tenha feito.

- Ele afirmou sempre que era inocente - disse Carol, ainda a olhar para um lado e para o outro. - Uma pessoa não se declara inocente e a seguir anda a vangloriar-se de um crime.

- Claro que anda, isso está sempre a acontecer. Meg começou a balançar-se para trás e para a frente.

- Não é um amigo. Não é um amigo. Oh, meu Deus, oh, meu Deus...

- Meg... - Era Jillian, com uma voz dura, a tentar restaurar a ordem.

Mas Meg estava para lá da razão. Carol estava para lá da razão. Só Jillian permanecia calma e decidida na cabeceira da mesa. Olhou para Fitz, depois para Griffin.

- Ó Eddie Como está vivo - murmurou Meg, impotente. Oh, meu Deus, o Eddie Como está vivo

 

Griffin e Fitz saíram do restaurante e o primeiro flash explodiu nos seus rostos.

- Detective, detective, pode comentar a informação de que a vítima de ontem à- noite também estava amarrada com garrotes de látex...

- É verdade que um homem parecido com o Eddie Como foi visto a sair do apartamento da rapariga...

- Sargento, sargento, a polícia estadual irá tomar conta do caso...

- Detective, detective...

- É verdade que alguém usou sangue para escrever "O Eddie Como está vivo" na parede da casa da nova vítima...

- E os rumores que dizem que o homem alvejado ontem não era realmente o Eddie Como?

Fitz e Griffin conseguiram finalmente chegar ao carro de Fitz. Tecnicamente, Griffin chegara ali no seu próprio carro, mas, como o deixara estacionado a dois quarteirões, o Taurus velho de Fitz era como uma bênção dos céus. Griffin empurrou com o ombro um jornalista especialmente agressivo, abriu a porta do lado do passageiro e sentou-se no momento em que os flashes voltaram a brilhar. Ouviu-se um grito. As mulheres estavam agora a tentar sair do restaurante. A matilha deslocou-se para a direita e avançou de imediato.

- Merda! - exclamou Fitz.

- Merda - concordou Griffin.

Saíram do Taurus e voltaram carrancudos para o meio da multidão.

- Desviem-se, por favor, desviem-se, por favor.

- Abram alas à polícia.

Nas escadas do restaurante, Jillian encontrava-se à frente de Carol e de Meg com uma expressão chocada, enquanto mais flashes e perguntas inflamadas se faziam ouvir. Ela devia ter julgado que aquela reunião não chegaria aos ouvidos da comunicação social. Teria lugar numa sala reservada de um restaurante que conhecia. Provavelmente não vira os noticiários da manhã e a crítica dura feita à polícia de Providence e ao chamado Clube das Sobreviventes pela sua perseguição agressiva a Eddie

Como. Jillian ainda não devia ter percebido que a cobertura de imprensa do ano anterior fora um mero exercício de aquecimento. Agora, a partir daquela manhã, começava a coisa a sério. Ela, Carol e Mee bem que podiam fugir. Mas não podiam esconder-se.

O rosto de Jillian adquiriu uma tonalidade cinzenta. Pouco depois, contudo, recuperou e levantou o queixo. Atrás dela, Carol ergueu

uma mão, tentando em vão proteger-se

das câmaras. Meg estava atordoada.

- Miss Hayes, Miss Hayes, como responde às alegações de que o seu grupo fez demasiada pressão para a detenção de Eddie Como?

- Acredita que este novo ataque prova a inocência de Eddie?

- E a testemunha do advogado de defesa? Mistress Rosen, tem a certeza da hora a que foi atacada?

- Miss Hayes, Miss Hayes...

- Mataram o Eddie?

- Saía da frente, se faz favor. Polícia estadual, não me obrigue a apreender a sua cassete de vídeo.

Para dizer a verdade, legalmente Griffin não podia apreender nenhuma das cassetes dos jornalistas, mas era evidente que já se tornara do conhecimento geral o que ele fizera a Maureen, porque de imediato três jornalistas recuaram e fitaram-no furiosos. Ele dirigiu-lhes o seu sorriso mais encantador. Depois abriu os braços musculados e obrigou os restantes chacais a recuarem quatro passos.

Como não era idiota, Jillian aproveitou a oportunidade para agarrar nas mãos de Meg e de Carol e descer os degraus. :

- Miss Hayes, Miss Hayes...

- Perseguiu um homem inocente?

- E quanto à mulher e ao filho dele?

- Miss Pesaturo, já se lembrou de alguma coisa? O Clube das Sobreviventes desapareceu ao virar da esquina e a última

pergunta dissipou-se no ar frio da manhã. Os jornalistas levaram uns segundos a reagrupar. Depois tornaram a ir atrás de Fitz e de Griffin.

- Quem está à frente da investigação?

- Qual será a vossa próxima medida?

- O verdadeiro Violador de College Hill ainda anda à solta? Qual o vosso conselho para todas as nossas jovens?

- Conferência de imprensa às quatro! - rosnou Fitz. - Pelas vias oficiais. Por amor de Deus, somos apenas os paus-mandados. Agora saiam da frente.

Ele e Griffin tiveram de abrir caminho de regresso ao carro de Fitz. Desta vez, conseguiram entrar no Taurus e fechar as portas. Os jornalistas bateram nos vidros. Fitz ligou o motor.

Não tendo a menor dúvida de que um chui de Providence os atropelaria sem qualquer remorso, os jornalistas recuaram finalmente. Fitz afastou o carro da berma ao mesmo tempo que procurava junto aos pés um frasco de pastilhas antiácido. Griffin pegou, divertido, na última edição da revista People que se encontrava em cima do tabliê. É claro ue pitz já tinha feito metade das palavras cruzadas. - Está lixado - comentou Griffin. Fitz abrira o frasco. Começou a mastigar. - Por este andar, estamos todos lixados.

- Eu não. Tenho apenas um suspeito morto. O mesmo que ontem.

- Não se engane. Se se provar que o Eddie era inocente, estamos todos lixados. As mulheres vão ser acusadas de pressão. Vão acusar-nos por termos feito a detenção. O delegado do Ministério Público vai ser acusado de ter avançado com o caso. Os marshals vão ser acusados de não terem protegido um dos prisioneiros que transportavam. E vocês, os da polícia estadual, vão ser acusados de não ter intervindo para impedir que nós fizéssemos porcaria. Pronto.

- Você é muito optimista, não é, Fitz?

- Cem por cento. Maldito caso... - A sua expressão ficou mais abatida. - Maldito caso...

Griffin compreendia-o. Calou-se, dando a Fitz uma oportunidade para se recompor enquanto avançavam sem rumo pelas ruas em torno de Federal Hill.

- Dr. No - disse finalmente Griffin.

- Dr. No?

- Quarenta e oito vertical. Um filme de James Bond com quatro letras.

Fitz resmungou, tacteou o bolso da camisa e depois entregou a Griffin uma caneta.

- Sinto-me honrado - asseverou GrifTm, preenchendo em seguida os espaços.

- Foi a casa das Hayes - disse Fitz. - Ontem à noite.

- Fui.

- Porquê?

- Um dos agentes soube da coisa via rádio e informou-me. Calculei que se alguma coisa estava a acontecer em casa da Jillian no dia em que o Como foi assassinado, essa coisa não podia ser boa.

à, Fitz olhou para ele.

- Você acabou de a tratar por Jillian.

- Hum... sim.

- Nunca encontrei um polícia estadual que não fosse muito formal

durante a investigação de um caso. Vocês nem sequer se tratam uns aos outros pelo nome próprio. Parecem os fuzileiros!

- É eu serei a ovelha negra?

- Não se ponha com ideias, Griffin. Este caso já está suficiente mente complicado.

- Gosta assim tanto dela, Fitz?

Fitz grunhiu à laia de resposta e apertou o volante.

- Estou a ter um dia péssimo.

- Estamos ambos a bater à porta errada - observou Griffin num tom ligeiro. - Alguma vez perguntou à Jillian Hayes o que é que ela pensa dos homens com a nossa profissão? Ela não é propriamente uma adolescente histérica. Aliás, por aquilo que percebi, acho que nos considera uns imbecis incompetentes que, pelo menos indirectamente, são responsáveis pela morte da irmã. Daí a sua grande abertura e predisposição para colaborar connosco agora.

Fitz resmungou, e Griffin deduziu que fosse um ruído de concordância com a opinião de Jillian.

- Estes crimes em série são os piores - disse Fitz após um momento. - Quanto mais tempo se prolongam... quanto mais vítimas surgem... Sim, talvez me deva dar por feliz por conseguir encontrar as calças pela manhã, porque já não consigo encontrar muito mais coisas.

- Você farta-se de trabalhar no caso. Um detective pouco mais pode fazer.

Fitz tornou a resmungar.

- Acha que aquele incidente em casa da Jillian foi uma partida? Algum adolescente com um spray vermelho e vontade de fazer uma travessura?

- O caso está nas mãos da polícia de East Greenwich.

- Não brinque comigo, Griffin! Não depois da noite que tive! Griffin ficou em silêncio durante algum tempo.

- Não sei - respondeu finalmente, levantando em seguida uma mão em resposta ao esgar de desdém de Fitz. - A sério. O spray, os graffiti... sim, isso bate certo com um adolescente. Mas desenroscar as lâmpadas accionadas por sensor...

- Já tinha pensado nisso.

- Quando somos um miúdo a querer pregar uma partida a alguém, será que nos lembramos de desenroscar as lâmpadas exteriores? Griffin encolheu os ombros. - Também não podia ter feito aquilo à noite. Assim que se aproximasse no escuro, as luzes acender-se-iam. Isso quer dizer que foi feito antes, durante o dia, quando ninguém reparasse que as luzes estavam acesas.

- Premeditação.

- Parece demasiado elaborado. Para um adolescente.

- Ah, merda...

- Agora é a minha vez. Aqui entre nós, sem que ninguém nos ouça. Ontem à noite, o que é que pensou?

- Bolas, não dormi o suficiente para poder pensar. - Fitz esfregou o rosto cansado, e agarrou no volante a tempo de evitar uma colisão.

- Ainda há o ADN.

- Sim, é isso que me incomoda tanto. Se fosse apenas uma coincidência... ele trabalhar para o banco de sangue e conhecer as vítimas, então...

- Você pode ter-se precipitado.

- Talvez.

- Mas tinha o ADN.

- Tínhamos ADN bom. Ontem, depois da nossa conversa, fui ler o relatório de novo. Dada a publicidade do caso, enviámos as amostras para um laboratório independente na Virgínia, para além da análise feita pelo Departamento de Saúde. Ambos concordam. As amostras de ADN do Eddie Como são iguais às amostras recolhidas nos lençóis e nas mulheres. O que quer dizer que a probabilidade de outra pessoa ser responsável pelo ADN presente nas cenas das violações é de uma para trezentos milhões vezes a população de todo o planeta. Se quer a minha opinião, parece-me bastante conclusivo.

- A mim também me parece muito bem - concordou Griffin.

- As mulheres sabem disso?

- O DAmato sabia. Foi ele que enviou as amostras para o laboratório independente e, para além disso, tencionava basear a sua argumentação nisso. Deve ter falado do assunto com elas.

- O que quer dizer que elas devem realmente sentir que sabem que o CQITIO foi o atacante.

- Eu também sei que o Eddie foi o atacante.

- O que quer dizer que voltamos a ter um óptimo motivo para o homicídio.

Fitz libertou o ar dos pulmões.

- Detesto isto!

- Eu sei.

- Que porra de caso é este, pá? Você já me pôs a duvidar das vítimas,

e a comunicação social já me pôs a duvidar do suspeito. O trabalho policial não devia ser assim. Juntam-se as provas, elabora-se uma teoria, constrói-se um caso, apanha-se o filho da mãe. Ponto final. O Eddie Como está vivo. Bolas, parece que estamos no meio de um circo!

- Também não sou um grande fã.

- Acho que há um cúmplice - disse Fitz abruptamente.

- O Eddie abriu a boca?

- Sim. Faz imenso sentido. Talvez a Tawnya tenha uma certa razão, e ela só viu o Eddie bom. Mas nós sabemos que também há um Eddie mau que fez mais coisas do que devolver uma cassete ao Blockbuster. O Eddie mau tem necessidade de viver no limite, de explorar o lado selvagem da vida. E talvez o Eddie mau também sinta necessidade de contar o que faz. A outros amigos maus de que, aposto, a Tawnya nunca ouviu falar.

- O Eddie Como tinha uma vida dupla.

- Não seria a primeira vez. E encaixa-se. Griffin assentiu.

- É verdade.

- Agora considere o seguinte. Talvez um dos tais amigos maus tenha passado o último ano a fantasiar sobre todas aquelas histórias que ouviu do Eddie. Talvez até tenha comprado algumas daquelas revistas de bondage e se tenha metido no lado obscuro da pornografia Mas doze meses mais tarde, já nada daquilo o excita. Então, um dia, liga a televisão e, pasme-se, o Eddie Como está morto. E então surge-lhe a ideia. Ele podia fazer aquilo. Sabe tudo a respeito do Eddie, então por que não? Irá tornar-se o Violador de College Hill e ninguém desconfiará de nada. O modus operandi aponta para o Eddie, e o Eddie não pode negar porque está morto. O Eddie nem sequer pode dizer, bem, eu contei a fulano de tal, porque está morto.

É a cobertura perfeita. Griffin fitou-o.

- Porquê parar aí, Fitz? Talvez o outro tipo andasse a fantasiar sobre as violações há um ano. Talvez andasse a pensar que gostaria de experimentar. Só que em vez de acordar um dia e descobrir que o Eddie Como está morto, talvez tenha decidido garantir a cobertura perfeita, ao tratar da morte do Eddie.

- Merda! - Fitz deu um murro no volante, e quase os fez chocar com um candeeiro de rua. - Claro! E como o filme Jovem Procura Companheira, só que aqui é mais "Rapaz Procura Violador Violento". Por que é que não me lembrei disso?

- Porque é um disparate completo - respondeu Griffin.

- Não me interessa.

- Eu sei. E esse é o segundo problema.

- Olhe lá...

Griffin abanou a cabeça.

- Eu sei como é. Também passei pelo mesmo. A pressão interna, a pressão externa. Os jornalistas não estão errados. A certa altura, todos temos de apanhar o culpado.

- Você acha que eu estou tenso porque cedi às exigências do público e arruinei uma investigação?

- Não. Acho que está tenso porque, ao apressar a investigação, talvez tenha deixado escapar o assassino da Sylvia Blaire.

Fitz ficou calado, o que equivalia a ter dito que sim, como ambos sabiam. Se Eddie estava inocente, se o verdadeiro Violador de College ainda andava à solta... então Fitz metera a pata na poça, provavelmente as mulheres tinham metido a pata na poça, e não só tinham morrido duas raparigas, como também Eddie Como Júnior ficara órfão sem necessidade e alguém, provavelmente uma vítima ou um familiar, havia sido levado a matar sem razão. O custo, a carnificina, eram elevados.

Fitz conseguira finalmente dar a volta ao quarteirão e localizou o carro de Griffin. Estacionou ao lado, em dupla fila, ignorando as buzinadelas iradas que soaram prontamente atrás dele.

- Uma para trezentos milhões vezes a população do planeta disse Fitz. - Pense nisso.

- Irei pensar nisso.

Olhe, Griffin, quanto dinheiro é que foi levantado da conta da Jillian?

Griffin hesitou, com a mão no manipulo da porta.

- Vinte mil.

- O suficiente para contratar um atirador.

- Provavelmente. - Griffin tornou a hesitar. - Fitz, ela não é a única. O Dan Rosen está cheio de dívidas. Fez uma segunda hipoteca sobre a casa há seis meses, por cem mil dólares. Depois, a semana passada, liquidou uma das suas contas. Os tipos das finanças estão a tentar descobrir para onde foi o dinheiro.

Fitz fechou os olhos.

- E o dia está a ficar cada vez melhor.

- Ainda não se descobriu nada sobre as finanças dos Pesaturo disse Griffin -, mas acho que todos sabemos que eles não precisariam de dinheiro para contratar um assassino.

- Já têm o tio Vinnie.

- Exacto.

- Acha mesmo que foi uma delas.

- Acho que é a resposta que faz mais sentido.

- Pois. - Fitz assentiu, suspirou, depois tirou mais comprimidos antiácidos do frasco. - Eu gosto delas, sabe. Nunca devemos aproximar-nos demasiado, mas depois do último ano, da merda por que passaram, da forma como ajudaram, a Jillian, a Carol e a Meg são boas pessoas. Sinto-me... orgulhoso... por ter trabalhado com elas.

- Havemos de esclarecer isto.

- Claro. - Fitz olhou para ele. Sorriu, mas foi um sorriso amargo.

- Agora a polícia estadual está envolvida. E a polícia estadual apanha sempre o criminoso, não é, Griff? Não são como nós, polícias citadinos esforçados que servem apenas para tiroteios simples e rixas de gangues. Não, os detectives da polícia estadual nunca se enganam numa investigação. Os detectives da polícia estadual nunca sucumbem à pressão.

A mão de Griffin agitou-se no manipulo. Um músculo contraiu-se no seu rosto. Começou quase imediatamente a ouvir o zumbido. Muito devagar, largou o manipulo. Muito devagar, respirou fundo e contou até dez.

- Você teve uma noite difícil - disse Griffin calmamente, quando achou que já estava em condições de falar. - Por isso vou fazer um favor a ambos e fingir que não ouvi o que você disse.

Fitz continuou a fitá-lo. As suas pupilas estavam pequenas e escuras, o seu rosto descaído com um esgar desdenhoso. Por momentos, Griffin pensou que Fitz iria insistir na mesma tecla. Provavelmente porque tivera uma noite difícil, passada ao lado de uma jovem que não deveria ter morrido. E agora a comunicação social começava a crucificá-lo, a polícia estadual começava a crucificá-lo e, provavelmente, dentro de meia hora, o seu tenente começaria a crucificá-lo. E esse tipo de frustrações podia crescer. Crescer, crescer e crescer até que a pessoa deixava de se importar. Pensava-se demasiado naquelas pobres vítimas, naquelas que, se nos tivéssemos mexido com maior velocidade, se tivéssemos sido mais inteligentes, se tivéssemos lutado melhor... ainda estariam vivas Até que o desejo de destruir se tornava mais forte que o desejo de ser salvo.

Depois ia-se para casa e segurava-se a esposa moribunda nos braços, tão enfraquecida pelo cancro que era incapaz de falar, apenas conseguia pestanejar. Em breve também ela desapareceria. E a pessoa ia para casa, sentava-se numa casa vazia e via imagens de crianças desaparecidas a bailarem-lhe diante dos olhos.

- Vá para casa e durma - disse Griffin.

- Vá-se foder, Griffin! Sabe, posso não ser novo como você. Posso não ser capaz de fazer muitas flexões e abdominais, ou lá o que é que você faz no seu tempo livre. Mas não me subestime, sargento. Sou velho. Amargo. Gordo. Careca. E isso confere-me uma propensão para a violência que você nem imagina. Por isso não me venha com sermões sobre procedimentos nem me trate com condescendência. Oh, e mais uma coisa. Sei para onde foi o dinheiro da Jillian.

- Fitz...

- Telefone para o padre Rondell da paróquia de Cranston. Diga que a Jillian lhe deu o nome dele.

- A paróquia de Cranston? - Griffin franziu o sobrolho, depois pestanejou. - Não é possível!

- É sim. Eu conheço aquelas mulheres, sargento. Conheço-as. Agora desampare-me a loja!

Griffin encolheu os ombros. Saiu do carro.

- Sabe, Fitz, estas investigações interjurisdicionais estão sempre a ajudar a melhorar as relações entre as pessoas.

- Pois, eu também acho isso.

Fitz arrancou com o carro. Griffin dirigiu-se a Cranston.

 

Jillian

As ondas enrolavam-se na areia da praia, hoje não muito grandes, chegando com um pouco de espuma e voltando a desaparecer nas Profundezas escuras do oceano. Os maçaricos acorriam à areia molhada, depois deas ondas da maré baixa recuarem, à procura de algo para comer. Havia pouca gente na praia naquele dia do início de Maio. Outra onda verde-escura lambeu a areia, e os pequenos pássaros brancos levantaram voo.

Jillian continuou a olhar para a água muito depois de ter ouvido o carro parar, o motor ser desligado, a porta a abrir-se, depois a fechar-se. Passos na areia. Aquilo fê-la lembrar-se do poema religioso que lera em criança. Sorriu, e a dor atravessou-a.

Nunca fora boa a acreditar. Nunca tivera muita fé. Talvez tivesse passado demasiadas noites sozinha em criança. Demasiadas promessas não cumpridas pela mãe, até Jillian ter percebido que realmente só podia contar consigo própria. No entanto, namoriscara com a religião, ralara sobre ela com os amigos, fora algumas vezes assistir a uma missa de Natal. Adorava ouvir um coro a cantar. Reconfortava-a, durante os intermináveis dias cinzentos do Inverno, ir a uma catedral aquecida por centenas de corpos a rezarem lado a lado.

Trisha juntara-se a uma congregação quando estava no secundário. Embrenhava-se sempre muito nas coisas. Ter fé num poder superior encaixava-se na sua perspectiva cor-de-rosa da vida. Fazer boas acções adequava-se à sua natureza expansiva. Jillian fora à missa com ela várias vezes e admirara-se com o brilho que emanava do rosto da irmã durante a oração. A fé recarregava as baterias de Trisha. Tornava-a de certa forma maior, mais Trisha do que fora antes.

Até à noite em que ela precisara realmente de Deus... ou de Jillian... ou até de um polícia grande e forte, determinado a fazer o seu trabalho.

Se Deus existia, e não vira necessidade de salvar Trisha, será que Jillian deveria sentir-se tão culpada? Ou talvez Deus existisse e tivesse transformado Jillian no seu instrumento e, ao não ter sido capaz de desempenhar a sua tarefa, ela tivesse falhado a ambos. Podia torturar-se com tantos pensamentos durante a noite! Ou até durante dias luminosos de Primavera, sentada na praia sob as carícias do sol, a ver as ondas desfazerem-se na praia.

Céus, Sylvia Blaire. A pobre rapariga! O que tinham elas feito?

- Jillian.

Ela não se virou. Não precisou, para saber quem era.

- Trouxe os instrumentos de tortura desta vez?

- Por acaso, andamos sempre com eles. É política do departamento. Mas eu sou um católico à antiga... seria incapaz de usar um instrumento de tortura num padre.

Ela retesou-se, depois virou-se finalmente. O sargento Griffin encontrava-se na areia. As suas faces estavam escuras e ensombradas, o seu maxilar impressionantemente quadrado, os olhos muito vivos. Mesmo a três metros, Jillian sentia o impacte da sua presença. Os ombros largos, os braços musculados, o peito impressionante. Não era diferente dos outros polícias estaduais, pensou ela ressentida. Parecia que o departamento tinha um molde e produzia aqueles homens em série. Ela nunca gostara muito de músculos. Achava que o tamanho dos músculos de um homem era o inverso da capacidade do seu cérebro.

- Devia ter-me dito - declarou ele, a voz calma mas firme.

- Porquê? Já tinha dito que o dinheiro não estava relacionado com a morte do Eddie. Se não estava preparado para acreditar nisso, por que motivo devia eu esperar que você estava preparado para acreditar numa história mais estapafúrdia?

- Não é uma história estapafúrdia. Ela encolheu os ombros.

- Anda lá perto. Dei o dinheiro ao padre Rondell em notas, não aceitei recibos, certifiquei-me de que não havia testemunhas, e exigi que o anonimato fosse a condição para a doação. Se quer algo que prove para onde foi o dinheiro, nada lhe posso dar.

- A palavra de um padre é uma prova muito boa.

- Sim, mas ele não lhe devia ter contado. Griffin sorriu.

- Devo confessar que o enganei.

- Enganou um padre?

- Bem, foi por uma boa causa. Queria provar a inocência de uma mulher.

- É melhor não nos entusiasmarmos - resmungou Jillian.

- Por acaso, não posso ficar com os louros todos. O Fitz disse-me para ir falar com o padre Rondell. Por isso abordei-o, dizendo que precisava de confirmar que você tinha doado dinheiro para ajudar o filho do Eddie Como. Claro que ele se apressou logo a falar nos seus generosos vinte mil dólares. Parece que o Eddie Júnior tem um anjo-da-guarda.

- Ele não tem culpa daquilo que o pai fez. Nem sequer era nascido.

A Tawnya não sabe?

- Ninguém sabe.

- Nem sequer o Clube das Sobreviventes?

- Nem sequer o Clube das Sobreviventes.

- Porquê, Jillian?

-Não sei - respondeu ela com sinceridade. - E que... a Trisha tinha morrido. A Carol está um farrapo. A Meg perdeu o passado. E eu... bem, eu tenho os meus problemas, não é verdade? No ano passado, quando a polícia prendeu finalmente o Eddie, eu esperava sentir-me melhor. Vingada, satisfeita, qualquer coisa. Mas não senti. Porque a Trisha continuava morta, a Carol continua um farrapo e a Meg continua sem memória, e andamos a ver fotografias da namorada grávida do Eddie e só consigo pensar que aqui está mais uma vítima. Um bebé que irá crescer sem pai. Mais uma vida destruída. Parecia demasiado.

- Ela abanou a cabeça. - Eu precisava... só precisava que alguma coisa boa saísse de tudo isto. Precisava de sentir que alguém iria escapar aos erros do Eddie. E sabe Deus que nós nunca conseguiremos.

- Por isso criou um fideicomisso para o filho do Eddie. Ela encolheu os ombros.

- Pedi ao detective Fitzpatrick o nome de uma pessoa chegada à família Como. Ele deu-me o nome do padre Rondell. A partir daí o padre encarregou-se das coisas.

- Mas você guardou segredo.

- Não sabia se Miss Clemente iria aceitar o dinheiro se soubesse a sua proveniência.

- E por que não contou à Carol e à Meg?

- Não me parece que elas fossem gostar. Para além disso, o assunto não lhes diz respeito, pois não? O dinheiro é meu. A decisão é minha.

Griffin sorriu.

- Você gosta de fazer isso. Joga em grupo enquanto lhe convém, mas volta à sua individualidade quando precisa.

Ela fitou-o.

- Como é que soube que eu estava aqui?

- Graças ao meu excelente trabalho de detective, claro. Ela voltou a resmungar. Ele levantou a mão direita.

- Palavra de honra. Encontrá-la foi o meu maior feito de hoje. bom, para além de ter descoberto onde foi parar o seu dinheiro, mas o Fitz ajudou-me. No entanto, depois de ter falado com o padre, quis confirmar a transacção consigo. Calculei também que você não iria atender uma chamada minha. Por isso achei necessário vê-la pessoalmente. E depois comecei a pensar: se fosse a Jillian Hayes, onde iria hoje, com os jornalistas todos atrás de mim? Calculei que não fosse trabalhar, por não querer transformar a sua firma num circo. Depois calculei que, pelas mesmas razões, não haveria de querer ir para casanão levaria os jornalistas para junto da sua família. Em seguida devo confessar que tentei a campa da sua irmã. Para que saiba, já lá estavam três jornalistas.

Jillian fitou-o com curiosidade.

- Realmente fui lá primeiro. Mas depois de ter visto os jornalistas, vim-me embora.

- Exacto. - Ele assentiu. - Depois lembrei-me. Como qualquer nativo de Long Island que se preze, você deve ter uma casa na praia. Por isso pesquisei os registos de propriedades de Narragansett. Nada em seu nome. A seguir tentei o da sua mãe. O resto, como se costuma dizer, é história.

- Estou a perceber. Fez um trabalho de detective verdadeiramente brilhante. Então quem matou a Sylvia Blaire?

Griffin fez de imediato uma careta.

- Touché.

- Não estou a tentar ser cruel. Pelo menos ainda não.

- Está a começar a duvidar da culpa do Eddie, Jillian?

- Não sei.

- Isso é como se fosse um sim. Posso? - Apontou para os três degraus que conduziam ao alpendre. Ela hesitou. Se assentisse, estaria a convidá-lo. Ele iria sentar-se, tornar-se parte do seu último esconderijo, e ela ficaria sem a pouca privacidade que tinha. Talvez se sentasse junto dela. Talvez ela tornasse a sentir o calor do corpo dele, desse por si a olhar para aqueles braços.

Quando as suas pernas tinham cedido na noite anterior... Quando ele a apanhara e a protegera dos olhares curiosos dos vizinhos... Jillian recordou-se do calor que ele emanara na altura. De sentir o braço dele a suportar o seu peso com tanta facilidade. A calma do olhar dele enquanto esperava que ela se recompusesse.

E Jillian odiou-se por pensar aquelas coisas.

Mudou de posição, indo para o lado oposto às escadas. Ainda tinha vestido o fato azul-escuro daquela manhã e era difícil equilibrar-se nas tábuas com os saltos altos. Sentou-se num banco de madeira. Depois, finalmente, assentiu.

- Isto aqui é agradável - comentou o sargento Griffin, subindo.

- Tem uma bela vista.

- A minha mãe comprou-a há vinte anos, antes de Narragansett se tornar, bem, Narragansett. - Indicou com a mão as casas enormes de ambos os lados do seu terreno.

Já não eram casas de praia, antes castelos de praia.

- Nunca pensou em expandir?

- Se aumentássemos a casa para a frente, iríamos perder a praia. Se a aumentássemos em altura, taparíamos a vista à casa do outro lado da rua. E o que ganharíamos? Uma cozinha maior, um quarto mais luxuoso? A minha mãe não comprou esta casa por causa da cozinha ou do quarto. Comprou-a por causa da praia e da vista do mar.

Tem uma perspectiva das coisas extraordinariamente prática.

- Cresci com uma cantora, recorda-se? Não há nada que nos ensine tanto a ser práticas como crescer no circuito de clubes nova-iorquino. - Um hotel diferente cada noite?

- Quase. - Ela inclinou a cabeça para um lado. - E você? - Sou de Rhode Island. Vivi aqui toda a vida. Descendo de irlandeses. A minha mãe faz a melhor carne em salmoura com couve da região e o meu pai consegue beber o mesmo que um homem com o triplo do seu tamanho. Não se sabe o que é a vida até se ir a uma das nossas reuniões de família, - É uma família grande?

- Somos três irmãos. Dois deles são marshals, por acaso. Devemos ser polícias desde que a polícia existe. Se pensarmos nisso, é uma coisa natural para os irlandeses.

Ninguém sabe meter-se em apuros como nós. Logo, somos perfeitos para penetrar na mente criminosa. - Esboçou um sorriso de lobo.

Jillian sentiu um aperto no peito. Apertou a extremidade do banco com mais força e desviou o olhar.

-Jillian, disse que na identificação por vozes você e a Carol tinham chegado a dois suspeitos. O que tinham eles? - Não percebo.

- Porquê aqueles dois homens? O que vos fez concentrar neles? - Tinham... tinham vozes parecidas.

Griffin inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nosjoelhos. seus olhos azuis estavam atentos. Escuros, penetrantes. Jillian deu consigo a tremer, embora não soubesse porquê. - Pense, Jillian. Respire fundo, abra a sua mente. Está na sala de Identificação. O espelho está negro, mas um a um os homens avançam e falam para um microfone. Você ouve as vozes deles. Uma é parecida com a do criminoso. Depois outra. Porquê essas duas vozes?

Jillian inclinou a cabeça para um lado. Parecia-lhe estar a perceber. Por isso fechou os olhos, virou o rosto para a luz do sol e deixou que os seus pensamentos recuassem até àquela sala escura e claustrofóbica, onde se encontrava com um advogado de defesa e o detective Fitzpatrick, com receio de tornar a ouvir aquela voz, mas sabendo que era necessário. Duas vozes. Duas vozes graves, ressoantes, ligeiramente inexpressivas ao dizerem a frase pedida: "vou foder-te bem."

- Eram ambas graves. Profundas.

- Muito bem.

- Era... o sotaque. - Os olhos dela abriram-se. - Foi a forma como disseram "foder". com aquele forte sotaque de Rhode Island.

- Cranston - disse Griffin. Ela assentiu.

- Sim. Era mais o sotaque de Cranston.

- O Como cresceu em Cranston.

- Então bate certo. - Ela parecia satisfeita.

- Jillian, muitos homens cresceram em Cranston. E a maior parte deles assassina a língua inglesa, mesmo pelos padrões de Rhode Island. Não podemos prendê-los por causa disso.

- Mas... bem, ainda há o ADN.

- Sim - concordou Griffin. - Ainda há o ADN. O que lhe disse o DAmato a respeito disso?

Ela encolheu os ombros.

- Disse que era conclusivo. Que o tinha enviado para um laboratório na Virgínia e que de lá confirmaram que as amostras recolhidas das cenas de crime batiam certo com as do Eddie com uma probabilidade de um em três milhões vezes a população do planeta. Acho que é raro ter uma resposta tão conclusiva. Ele parecia bastante animado.

- Ele disse isso às três? Jillian ergueu o queixo.

- Sim.

- E isso convenceu-vos, ao Clube das Sobreviventes, que o Como era o Violador de College HilK?

- Sargento, aquilo convenceu o DAmato e o detective Fitzpatrick de que o Eddie era o Violador de College Hill. E se tivéssemos ido a julgamento, acho que teria convencido o júri de que o Eddie era o Violador de College Hill.

- E o rapaz do Blockbuster?

- O que tem ele? A Carol nunca soube ao certo a que horas foi atacada. Vai ter de a desculpar, mas enquanto estava a ser brutalmente sodomizada ela não se lembrou de olhar para o relógio.

- Jillian... - Griffin hesitou. Uniu as pontas dos dedos. Tinha dedos esguios e compridos. Cheios de calos, provavelmente devido a levantar pesos. Os nós dos dedos também se encontravam arranhados, cheios de cicatrizes antigas e arranhões recentes. "Devido ao boxe", percebeu ela de imediato. GrifFm tinha mãos de pugilista. Fortes. Capazes. Violentas. - Jillian, eles recolheram alguma amostra da sua irmã?

O olhar dela desceu logo para o chão. Teve de engolir para tentar produzir saliva.

- Sim.

- Então ele... antes de você ter chegado...

- Sim.

- Lamento.

- Cheguei atrasada - disse ela de repente. - Devia lá ter chegado uma hora antes, mas tive muito que fazer... Uma coisa qualquer sem importância lá no trabalho. Depois estava imenso trânsito e não arranjei sítio para estacionar. Enquanto eu andava às voltas pela cidade, a minha irmã estava a ser... Cheguei atrasada.

Griffin não disse nada, mas Jillian também não esperara uma resposta. Afinal de contas, o que havia a dizer? Chegara atrasada, a irmã fora atacada. Não encontrara lugar para estacionar, a irmã morrera. Um atraso não devia ser importante. Não ser capaz de encontrar um lugar para estacionar numa cidade congestionada não deveria custar a vida a alguém. Mas às vezes, por razões que ninguém conseguia explicar, isso acontecia.

Que erro idiota teria Sylvia Blaire cometido na véspera à noite? Esperara demasiado tempo para ir para casa? Não prestara atenção suficiente aos arbustos junto à sua porta? Ou talvez o erro tivesse sido anterior, ter-se apaixonado pelo homem errado ou rompido com o homem errado? Qualquer coisa que na altura não parecera ter a mínima importância.

O que a levou a perguntar-se, claro, que erros teria cometido o Clube das Sobreviventes com a melhor das intenções. Teriam pressionado demasiado a polícia? Teriam acreditado demasiado depressa na culpa de Eddie? Jillian já não sabia, e aquelas dúvidas davam cabo dela. Já bastara Trisha. Não sabia se conseguiria ter mais sangue na consciência.

- Não viu o homem? - perguntou por fim Griffin. Jillian fechou os olhos.

- Não - disse ela com uma voz cansada. - Como disse ao Fitz, como disse ao DAmato... não vi nada nessa noite. A minha irmã morava numa cave, as luzes estavam apagadas... Ele atacou-me por trás.

- Mas lembra-se da voz dele?

- Sim.

- Lutou com ele?

- Sim.

- O que sentiu? Agarrou-lhe nas mãos?

- Tentei afastá-las da minha garganta.

- Estavam cobertas com alguma coisa?

- Sim. com uma espécie de borracha, como se ele usasse luvas de látex, e isso fez-me pensar na Trisha... preocupar-me com ela.

- E o rosto dele? Tentou agredi-lo, arranhá-lo? Talvez ele tivesse barba, bigode, pêlos na cara?

Ela teve de pensar um pouco.

- Não! Não me lembro de lhe bater na cara. Mas ele riu-se. Falou. Não parecia ter nada a tapar-lhe a boca. Por isso não devia ter nada a tapar-lhe a cabeça.

- Atingiu-o?

- Hum... sim, entre as pernas. com as mãos. Tinha a mão fechada num punho, como nos ensinam nas aulas de defesa pessoal.

- Ele estava vestido?

- Sim. Tinha roupa e sapatos. Acho que já se vestira.

- O que tinha vestido? Disse que o agrediu entre as pernas; como era o tecido?

- De algodão - respondeu ela de imediato. - Quando lhe bati o tecido era macio. Algodão, não ganga.

- E em cima?

- Atingi-o nas costelas. De novo macio. Tipo algodão. Um botão Devia ser uma camisa. - Ela assentiu com firmeza, levantando a cabeça.

- Isso faria sentido, não faria? Para a zona. Quando saísse, estaria vestido como um estudante e passaria despercebido.

- Como o Eddie Como gostava de se vestir?

- Exacto. - Ela tornou a assentir com vigor.

Ele imitou-a, mas mais devagar, pensativo. Pouco depois, virou-se e olhou para o mar. O Sol já ia alto. A praia estava silenciosa, o som da água tranquilo. Eram apenas eles e os maçaricos, ainda na areia molhada à procura de alimento.

- Deve ser um sítio óptimo para se vir ao fim-de-semana, para recuperar do stresse de se ter uma empresa - comentou ele.

- Acho que sim.

- A sua mãe ainda cá vem?

- Gosta de se sentar no alpendre. É uma bela aventura para ela e para a Toppi quando o tempo fica quente.

Gnfíin olhou-a de esguelha.

- E a Trisha?

- Ela também gostava - respondeu Jillian num tom neutro.

- Fale-me dela, Jillian. Conte-me uma coisa que se tenha passado com ela neste lugar.

- Porquê?

- Porque as recordações são boas. Mesmo quando magoam. Ela não disse nada de imediato, não foi capaz de se lembrar de nada,

para ser franca. E isso assustou-a um pouco. Passara apenas um ano, Vinte e quatro de Maio do ano anterior. com certeza Trisha não podia desvanecer-se tão depressa. com certeza ela não podia ter perdido assim tanto. Conseguiu então acalmar as batidas do coração, respirar mais devagar. Olhou para as ondas lentas, e não foi nada difícil.

- A Trisha era travessa, tinha imensa energia. Atirava-se para as ondas como um cachorrinho gigante, depois rolava na areia até ficar com o corpo coberto de areia. A seguir corria para mim ou para a nossa mãe e ameaçava-nos com abraços.

- E o que faziam vocês? Ela sorriu.

- Caretas, claro. Não sou grande apreciadora de água nem de areia. Na praia estou sempre em cima de uma toalha enorme, debaixo de um chapéu-de-sol enorme, com um bom livro na mão. Era isso que tornava tudo tão engraçado.

Finalmente, Jillian virou-se para ele e olhou-o nos olhos.

- Fale-me da sua mulher. Se as recordações são boas, mesmo quando magoam, fale-me dela.

- Ela chamava-se Cindy, era linda e eu amava-a.

- Como é que se conheceram?

- Numa caminhada pelas White Mountains. Éramos ambos membros do Clube de Montanhismo dos Apalaches. Ela tinha vinte e sete anos. Eu trinta. Ganhou-me a subir o monte Washington, mas eu ganhei-lhe na descida.

- O que fazia ela?

- Era engenheira electrónica.

- A sério? - Jillian olhou-o surpreendida. Sem saber porquê, imaginara a mulher dele como alguém... menos inteligente. Talvez uma loura, o contraste perfeito com a beleza escura de Griffin.

- Ela trabalhava para uma empresa em Wakefield - continuou Griffin. - E gostava de fazer coisas por fora. Aliás, tinha acabado de inventar um novo tipo de electrocardiograma

antes de adoecer. Tratou da patente e tudo. Cindy Griffin, com uma patente! Ainda tenho o certificado emoldurado na parede.

- Ela era muito boa?

- Vendeu os direitos da invenção por três milhões de dólares respondeu Griffin. - Era muito boa.

Jillian fitou-o. Não conseguia lembrar-se de nada para dizer.

- Você... você não precisa de trabalhar.

- Eu não diria isso.

- Três milhões de dólares...

- Há muitas razões para se trabalhar. Você tem dinheiro, Jillian. Continua a trabalhar.

- A minha mãe tem dinheiro. Isso é diferente. Eu quero, preciso, do meu próprio dinheiro.

Griffin sorriu.

- E a minha mulher ganhou dinheiro - retorquiu ele com suavidade. - Talvez eu também queira, precise do meu dinheiro. Para além disso... - O tom dele alterou-se. - Dei-o todo.

- Deu-o todo?

- Sim, pouco depois do Grande Bum. Deixe-me que lhe diga, se arrear num suspeito de pedofilia não convence as pessoas de que somos malucos, dar milhões de dólares convence.

- Você deu o dinheiro todo. - Ela continuava a pensar naquilo. Tentava entender um detective que devia ganhar cerca de cinquenta mil dólares por ano e que dera três milhões de dólares. bom, está bem, um milhão e meio depois dos impostos.

Griffin observava-a. Ela estava admirada por ele lhe ter contado tudo aquilo. Mas, por outro lado, talvez não estivesse. Ele não precisara de ir pessoalmente a sua casa na noite anterior. Não precisara de clarificar a sua doação ao padre Rondell cara a cara. No entanto, ele estava sempre a aparecer e ela sempre a falar. Provavelmente eram ambos loucos.

- Inicialmente, quando a Cindy assinou o contrato, quando negociou a venda da patente, foi extraordinário. Trabalhara durante cinco anos naquela coisa e depois, voilà, não só a pôs a funcionar como a vendeu por mais dinheiro do que alguma vez julgámos que iríamos ter. Foi espantoso. Excitante.

Maravilhoso. Mas depois ela adoeceu. Num momento era a minha mulher vibrante e feliz, no outro o diagnóstico de um médico. Cancro do pâncreas. Deram-lhe oito meses.

Ela só conseguiu viver seis.

- Lamento.

- Quando a Cindy ganhou o dinheiro, eu gostei. - Griffin encolheu os ombros. - Bolas, três milhões de dólares... o que é que há para não gostar? Ela começou a fazer compras no Nordstrom, começámos a falar de uma nova casa, na possibilidade de um barco. Foi engraçado na altura. Surrealista. Éramos dois miúdos incapazes de acreditar que alguém nos dera todo aquele dinheiro. Mas depois ela adoeceu e a seguir morreu. E o dinheiro... tornou-se um albatroz em redor do meu pescoço. Como se eu tivesse feito um acordo inconsciente com o diabo. Ganho uma fortuna. Perdido a minha mulher.

- Culpa - disse Jillian com suavidade.

- Pois. Nós, rapazes católicos, não deixamos passar nada. O que é uma pena. A Cindy não era assim. Até ao último minuto da sua vida, esteve sempre a pensar em mim, a tentar preparar-me. - Griffin tornou a sorrir, mas desta vez o seu sorriso era ligeiramente amargo. - Era ela que estava a morrer, mas percebia que o meu fardo era mais pesado.

- Tinha de viver depois de ela ter partido.

- Teria trocado de lugar com ela num abrir e fechar de olhos declarou Griffin. - Ter-me-ia deitado de bom grado naquela cama de hospital. Tomado para mim a dor, o sofrimento agonizante, a morte. Teria feito... qualquer coisa. Mas infelizmente não podemos escolher quem morre nem quem vive.

Jillian assentiu em silêncio. Compreendia o que ele queria dizer. Ela teria dado a vida para salvar Trisha.

- Então aqui estamos - disse ela por fim. - Eu dei dinheiro ao filho de um alegado violador para suavizar a minha culpa. E você deu o seu a...

- À Liga Americana contra o Cancro.

- Mas é claro. Ele tornou a sorrir.

- Mas é claro.

- Há quanto tempo é que a Cindy morreu?

- Há dois anos.

O tom dela suavizou-se.

- Ainda sente a falta dela?

- Sempre.

- Eu também não estou a conseguir esquecer a Trisha.

- É suposto isto doer.

- Ela não era apenas minha irmã. Era como minha filha. Eu devia tê-la protegido.

- Olhe para mim, Jillian. Eu consigo levantar o meu peso, correr dois quilómetros em cinco minutos, disparar uma espingarda e acertar em quem quiser. Mas não fui capaz de salvar a minha mulher. Não salvei a minha mulher.

- Não se consegue combater o cancro. Griffin encolheu os ombros.

- O que é uma pessoa como o Eddie senão uma doença?

- Eu não o detive. Cheguei tarde, muito tarde. Depois entrei no apartamento da Trisha, vi-a na cama. E soube... soube o que tinha acontecido, o que ele fizera, e a seguir ele atacou-me. Atirou-me ao chão e eu tentei. Tentei tanto. Achei que conseguiria libertar-me, encontrar as chaves do carro, atingi-lo nos olhos. Sou inteligente, culta, tenho a minha própria empresa. De que vale isso tudo se não consegui libertar-me dele? De que vale isso tudo se não consegui salvar a minha irmã?

Griffin aproximou-se dela. Os seus olhos eram escuros, tão azuis. Jillian achou que seria capaz de se afogar naquelas profundezas, mas é claro que ambos sabiam que ela não o faria. E depois pensou que talvez ele fosse tocar-lhe de novo, e não soube se isso seria a melhor coisa que lhe podia acontecer ou a pior.

- Jillian, a sua irmã ama-a.

Jillian escondeu o rosto nas mãos. E ele continuou sem lhe tocar. Claro que ele não lhe tocou. Continuava a ser um detective e ela uma suspeita, e uma coisa era ele agarrá-la quando ela estava a cair e outra aninhá-la contra o peito. E então ouviu-se um novo ruído lá ao longe. Outro veículo, desta vez maior, mais gutural, o som feito pela carrinha branca de uma estação de televisão. Os jornalistas tinham-se tornado tão inteligentes como o sargento Griffin.

E Jillian chorou. Chorou pela irmã. Chorou por Sylvia Blaire. Chorou pela dor que só conseguira enfrentar um ano depois. Chorou por aqueles momentos no apartamento escuro, quando se esforçara tanto e falhara redondamente. E depois chorou pela época, não muito distante, em que Trisha correra alegremente naquela praia. Por uma época que nunca mais voltaria.

Ouviu então o motor gutural ser desligado. Ouviu a porta da carrinha abrir-se, o som de pés no chão de gravilha. Levantou a cabeça. Secou as lágrimas. Preparou-se para travar a batalha seguinte. E pensou...

Uma época que nunca mais voltaria...

 

Maureen

Ao contornar a casa, Griffin viu Maureen, já fora da carrinha, a ajeitar o microfone. Griffin percebeu imediatamente pelo brilho no olhar da jornalista que estavam em apuros. O olhar de Maureen pousou nele, depois em Jilíian e novamente nele.

- Jimmy! - chamou ela. - Vem cá fora. Preciso que filmes uma coisa.

Griffin sabia que não devia deixar-se provocar. Deu mais um passo colocando-se entre o cameraman e Jilíian. Não que esta precisasse de um escudo. Já limpara o rosto, retocara o rímel, endireitara os ombros. Passara de uma crise nervosa a uma calma empalidecida em menos de dez minutos. Se não a tivesse mesmo visto chorar, Griffin não teria acreditado. E isso deixava-o preocupado.

- O que está a fazer, Griff? - perguntou Maureen, cheia de curiosidade.

- É um assunto da polícia.

- Não sabia que fazia visitas ao domicílio.

- Não sabia que estava com vontade de ser presa por entrar em propriedade privada.

- Ela não pode prender-me. Isto não é dela. É da mãe.

- Tenho uma procuração da minha mãe que me permite tratar de todos os seus assuntos - interveio Jilíian. - Por isso posso mandá-la prender.

- Oh. - Maureen ficou momentaneamente sem saber o que dizer. Mas logo a seguir ergueu o queixo e lançou-lhes outro sorriso. - Então vou apenas roubar-vos um minuto do vosso precioso tempo.

- Não faço comentários - disse Jilíian.

- Ainda nem fiz a pergunta.

- Seja ela qual for, a resposta é "Não faço comentários."

- On, então Mister e Mistress Blaire vão ficar muito desiludidos.

- Mister e Mistress Blaire?

- Sim, os pais da estudante assassinada? Vieram do Wisconsin esta manhã para reclamar o corpo. São muito simpáticos. Parece que Mister Blaire tem uma vacaria e fornece algum do leite para aquele maravilhoso queijo do Wisconsin. A Sylvia era a única filha deles. A luz dos olhos deles, e estou a citar. Sentiam-se tão orgulhosos por ela ter conseguido uma bolsa para esta universidade. Seria o primeiro membro da família a ter uma licenciatura, etc.

Maureen tornou a sorrir. GrifFm teve de se conter para não lhe apertar o pescoço.

- Não percebo o que tem isso a ver comigo - disse Jillian. .- Ora, eles querem conhecê-la, claro.

- Querem conhecer-me?

- À líder do Clube das Sobreviventes? Claro!

- Eu não sou a líder do Clube das Sobreviventes. Não há nenhum líder no Clube.

Maureen fez um gesto com a mão.

- Ora, você sabe o que eu quero dizer. Foi o seu rosto que apareceu nos noticiários. Eles querem mesmo falar consigo.

- Porquê?

- Para lhe perguntarem porque é que não salvou a filha deles, claro.

- Maureen sorriu.

Jillian retesou-se quando a flecha atingiu o alvo.

- Maureen... - começou Griffm.

- Tem de ir-se embora - disse Jillian. Maureen ignorou ambos.

- Ainda acredita que o Eddie Como era o Violador de College Hillí E quanto ao facto de a Sylvia Blaire ter também sido amarrada com garrotes de látex? O que significa este ataque em relação às alegações contra Como? E, mais importante ainda, o que significa este ataque em relação à segurança das mulheres nesta cidade?

Maureen esticou o braço com o microfone, uma expressão ávida no rosto. Jimmy focou a câmara. E Griffm avançou três passos, sem levantar um dedo, sem tocar num cabelo dos jornalistas, mas obstruindo-lhes a vista com a largura do peito.

-A dona da propriedade pediu-lhe que se retirasse - disse ele com firmeza. Ameaçador.

- Não quer antes dizer a suspeita de homicídio? - Maureen...

- O que vai fazer, Griffm, apreender-me a cassete? - Maureen baixou o microfone. Longe de se sentir intimidada, avançou para ele e espetou-lhe um dedo no peito.

- A Primeira Emenda confere-me alguns direitos, sargento, por isso não comece a ameaçar-me, ou a ameaçar o meu cameraman. Não me interessa se você pensa que a liberdade de imprensa é a raiz de todo o mal. No que me diz respeito, estamos mesmo é a precisar de um pouco de acção. Por amor de Deus, um homem foi morto dentro do tribunal ontem de manhã! Agora outra estudante morreu. E o que anda você a fazer? O que anda ela a fazer? - Maureen indicou Jillian com a cabeça. - Há qualquer coisa neste caso que não bate certo e eu não só tenho o direito constitucional como também a obrigação cívica de fazer qualquer coisa.

- Maureen Haverill, a defensora do mundo livre - comentou Griffin.

- Pode crer!

- Tem andado a ler os seus textos novamente, não tem?

- Seu filho da mãe...

- Lamento a morte da Sylvia Blaire - disse Jillian de forma inesperada. Todas as cabeças rodaram na sua direcção.

- O quê? - perguntou Maureen.

- Lamento a morte da Sylvia Blaire - repetiu Jillian. - Quero apresentar à família as minhas condolências.

Maureen afastou-se de Griffin, fez sinal a Jimmy e adoptou a sua expressão séria e concentrada de jornalista. Seria capaz de chorar se quisesse. Griffin já a vira fazê-lo uma vez, depois de arrancar alguns pêlos do nariz.

- Acredita que o Eddie Como era o Violador de College HilP. perguntou ela a Jillian, esticando o braço com o microfone.

- Acredito que a polícia efectuou uma investigação meticulosa e responsável.

- Miss Hayes, morreu outra jovem.

- Uma tragédia que não devemos esquecer. Maureen franziu o sobrolho.

- com certeza sabe que há uma relação entre o ataque a Sylvia Blaire e o Violador de College Hill.

- Não sabia que a polícia tinha estabelecido essa relação.

- A senhora não quer que a polícia estabeleça essa relação, pois não, Miss Hayes? Porque, se o fizesse, isso quereria dizer que se tinham enganado a respeito do Eddie Como! Isso quereria dizer que a senhora se enganou a respeito do Eddie Como. A senhora e as suas amigas passaram o último ano a perseguir o homem errado.

- Passei o último ano a ajudar a polícia e o delegado do Ministério Público a investigar quem violou brutalmente e assassinou a minha irmã de dezanove anos, Trisha Hayes. Quero justiça para a minha irmã. Acho que quem perdeu uma pessoa querida é capaz de entender isso.

- Mesmo às custas de um homem inocente?

- Eu quero o homem que assassinou brutalmente a minha irmã. Mais ninguém.

- E quanto às alegações de que a senhora e o seu grupo, o chamado Clube das Sobreviventes, contribuíram para a criação de um erro judicial ao levarem a população a comportar-se como se estivesse numa caça às bruxas, desesperada por uma detenção?

- Acho que os cidadãos de Providence não iriam gostar de ser caracterizados como uma populaça violenta.

Maureen fez novamente um sorriso desdenhoso. Jimmy cometeu o erro de escolher esse momento para focar o rosto dela. Maureen afastou-o com um gesto furioso.

A Sylvia Blaire está morta - disse Maureen.

Jillian ficou calada.

.- O Eddie Como está morto.

Jillian continuou calada.

- A polícia retirou do parque de estacionamento da EDRI outro cadáver e levou-o para a morgue. São três mortos no espaço de vinte e quatro horas.

Jillian continuou calada. Maureen mudou de táctica.

- No dia em que a polícia prendeu o Eddie Como, você disse que estavam satisfeitas por eles terem apanhado o criminoso. Foi com a Meg Pesaturo e com a Carol Rosen para as escadas da Câmara Municipal e só vos faltou dizer publicamente que o Eddie Como era o Violador de College Hill.

- A polícia tinha provas conclusivas...

- Morreu outra rapariga! Foi violada e assassinada como a sua irmã!

- E eu lamento imenso!

- Lamenta? - repetiu Maureen. - O seu lamento não ajuda a Sylvia Blaire. O seu lamento não devolve a Mister e a Mistress Blaire a sua filha.

- Não temos culpa... - Jillian engoliu o que ia a dizer e abanou a cabeça. Começava a perder a compostura e a elevar a voz. Griffin tentou que ela olhasse para ele, mas ela recusou-se a fazê-lo.

- Vocês exigiram justiça - insistiu Maureen.

- Fomos violadas! Claro que exigimos justiça.

- Disse ao público que não estava a salvo até o Violador de College Hill ser preso.

- E não estava!

- Fez várias conferências de imprensa e pressionou a polícia de Providence para que fizesse uma detenção.

- Tinham sido atacadas quatro mulheres. A polícia já estava sob uma pressão enorme!

- Disse que estava feliz com a detenção de Eddie.

- Eu estava feliz com a detenção de Eddie!

- Ai sim? Então o que sente relativamente à morte dele? Precisa de mais champanhe, Miss Hayes? Não é todos os dias que alguém brinda publicamente à morte de um homem inocente.

Jillian estacou. Viu a armadilha demasiado tarde. Olhou demasiado tarde para a câmara de Jimmy com os seus olhos atordoados, o cabelo revolto, as faces coradas de ira.

- A morte não é justiça - respondeu calmamente, mas as suas palavras já não interessavam. Maureen conseguira o que queria, e todos o sabiam. A jornalista sorriu, desta vez genuinamente, e fez sinal a Jimmy para desligar a câmara.

- Obrigada - disse, baixando o microfone.

- Acha mesmo que vai ajudar alguma coisa? - perguntou Jillian A jornalista encolheu os ombros.

- Não posso estragar mais as coisas do que você estragou agora, pois não?

- A culpa é minha? Maureen olhou para ela.

- A senhora é maluca? Já alguma vez reviu as suas conferências de imprensa, Miss Hayes? Já se viu na televisão? Vende bem o seu peixe. Bolas, vende-o até melhor que a maior parte dos políticos. Sempre calma, sempre tranquila, a dizer ao público o que lhe aconteceu, o que aconteceu à Meg, o que aconteceu à Carol. A recordar aos espectadores que a seguir podiam ser as filhas deles.

"Não se limitou a inserir-se na história. Tornou-se a história. Até eu tive pena de si e das outras duas mulheres. E um grupo de jornalistas até bebeu à vossa saúde no dia em que o Como foi preso. Mas isso foi antes da Sylvia Blaire. Claro que a senhora é em parte responsável pelo que aconteceu ontem. Se não tivesse exercido tanta pressão, a investigação da polícia podia ter sido mais minuciosa. Talvez a polícia pudesse ter dedicado mais tempo ao caso se não tivesse passado tanto tempo a reagir à sua presença nos noticiários. A polícia é vulnerável à pressão do público, sabe. Pergunte aqui ao seu bom amigo sargento Griffin.

- Também gosto muito de si, Maureen - disse Griffm. Ela sorriu-lhe.

- É isso que torna o meu trabalho tão interessante.

- Não há provas conclusivas de que o Eddie Como fosse inocente.

- Diga isso à Sylvia Blaire.

- Pode ser um imitador.

- Quer prestar declarações?

Jillian ficou calada. Maureen assentiu.

- Pois, foi isso que pensei.

Ela e Jimmy regressaram à carrinha. Tinham chegado, visto e vencido. Maureen acenou-lhes alegremente antes de fechar a porta com estrondo.

- Não lhe devia dar ouvidos - disse Griffin quando a carrinha se afastou a grande velocidade.

Jillian limitou-se a sorrir.

- Oh, mas irei dar. Bem como a Meg e a Carol. A meio da noite só iremos conseguir pensar no que ela disse. Somos mulheres. E isso que faiemos.

Virou-se e dirigiu-se para o carro.

- Jillian... - disse ele, agarrando-a pelo braço. O contacto surpreendeu ambos. Olharam para a mão dele no antebraço dela até Griffin baixar a mão. - O Fitz fez uma boa investigação. Eu fiz uma boa investigação. Havemos de chegar ao fundo da questão.

Jillian olhou para o céu.

- Faltam quatro horas para o cair da noite, Griffin. Quantas jovens irão estar em casa sozinhas? Quantas estudantes irão estar a estudar ou a sonhar acordadas com os namorados ou a descansar em frente à televisão? Qual delas estará neste momento a cometer um pequeno erro que em breve lhe irá custar a vida?

- Não pode pensar assim.

- Oh, mas penso. Depois de sermos atacadas, é bastante difícil pensar noutra coisa. O mundo é um sítio muito perigoso, sargento. E ainda não vi nada que me desse esperança.

 

Griffin

- Boas notícias - disse a voz do detective Waters no telemóvel.

- O Eddie Como está morto.

- Ora aí está uma coisa que não tenho ouvido ultimamente. Griffin passou sob as torres em Ocean Road e rumou a Providence com o telemóvel encostado ao ouvido esquerdo. O trânsito não estava muito mau naquele início de Maio. Dali a um mês, aquela zona de Narragansett estaria transformada num gigantesco parque de estacionamento. Ah, as alegrias do Verão!

- O médico legista confirmou esta tarde as impressões digitais dizia Waters. - A nossa vítima é mesmo o Eddie Como. Quanto às boas notícias, Providence também conseguiu identificar o cadáver esturricado.

- Não me digas.

- O tipo tinha folha de serviço militar. Gus J. Ohlsson, de Nova Iorque. Ouve isto: esteve oito anos no Exército, como atirador especial.

- Ah, então a nossa intuição de detectives está de novo certa. Sejamos realistas, o nariz sabe tudo.

- Pois, bem, podes dar as palmadinhas que quiseres nas tuas costas. Os tipos de Providence é que ficam com o mérito. Neste preciso momento, preparam-se para aceder à folha militar do Ohlsson e às suas contas bancárias. Parece que indicou o pai como familiar mais próximo, também de Nova Iorque, por isso podes apostar que o Boz e o Higgins devem estar radiantes.

- Não faz mal - respondeu Griffin. Boz e Higgins trabalhavam havia quinze anos em Providence. Como Providence era a principal esquadra no corredor 1-95 entre Nova Iorque e Boston, muito do crime da cidade acabava relacionado com os casos de Nova Iorque e de Boston. De alguma forma, Boz e Higgins ficavam sempre com as viagens a Nova Iorque. Sempre. Dizia-se que tinham um fraco pelos espectáculos da Broadway.

- Dado o passado militar do Ohlsson - estava Waters a dizer -, a nossa teoria do assassino contratado parece ter pernas para andar.

Clar? que Providence também há-de querer verificar as ligações com a máfia.

- com um nome como Ohlsson?

- Então, ainda não sabes? Isto lá fora é uma aldeia global. Toda a gente se tornou multinacional, incluindo a máfia.

- Bolas, tiramos um ano de licença sabática e quando regressamos toda a paisagem geopolítica do crime se alterou. Quem havia de pensar? - Griffin chegou à saída para a Estrada 1 Norte e seguiu por ela. - Já soubeste alguma coisa dos bombeiros?

- Ao fim de apenas dois dias? Deves estar a brincar!

- Prefiro o termo "optimista". Olha, Mike, podes ligar aos tipos que estão a investigar o aspecto financeiro? Diz-lhes que a Jillian Hayes doou os vinte mil dólares que desapareceram da sua conta a uma paróquia em Cranston. O padre confirmou o donativo, mas temos de manter a coisa em segredo.

- Uma vez que não me deste pormenores, não deve ser difícil. Vens para cá?

- Não, vou visitar o Dan Rosen.

- Vais visitar o Dan Rosen? - O tom de Waters tornou-se mais duro, e o silêncio que se seguiu foi tenso. Griffin compreendia. Em teoria, os agentes principais não faziam muito trabalho de rua. Em teoria, a sua função era permanecer na esquadra, a coordenar e a supervisionar os detectives como Waters, que se encarregariam de falar com pessoas como o Dan Rosen. E aliás, se Griffin não aparecesse depressa na esquadra, a tenente iria dizer-lhe umas coisas. E ele não iria gostar dessas coisas.

- O que estás a fazer, Griffin? - perguntou Waters.

- Tenho uma teoria, quero investigá-la.

- Conta-me a tua teoria. Eu posso investigá-la.

- Pois podias, mas calculei que preferisses passar a tarde num bar.

- O quê?

- Preciso que vás a Cranston - explicou Griffin pacientemente.

- Preciso que identifiques todos os bares e pubs perto da casa do Eddie Como. Depois quero que mostres aos empregados uma fotografia do Eddie Como e descubras se ele passava lá muito tempo e, mais importante ainda, com quem. Mais silêncio. Um longo silêncio.

- Se o Fitz souber disto vai ficar furioso.

- O Fitz já nasceu furioso. Não podemos fazer nada a esse respeito agora. Para além do mais, é por isso que preciso que sejas tu a fazê-lo.

Estou a contar com o teu charme.

-Ah, bolas, Griff, ninguém tem tanto charme. Num estado

pequeno como este, tudo se sabe. Os chuis locais vão pensar

que andamos a cheirar o caso deles e logo a seguir o tenente deles há-de estar aos berros pelo telefone com a nossa tenente. A Morelli não gosta que lhe gritem, ou ainda não reparaste?

- Olha, temos um cadáver. A nossa função é descobrir quem o matou. Elaborar um perfil da vítima, completá-lo com nomes de amigos e associados não está fora do âmbito da nossa investigação.

- Isso é o que tu dizes. - Waters não se deixava enganar. Nem Fitz se deixaria.

- Se alguém perguntar, diz que fui eu quem te mandou fazer isso

- declarou Griffin. - Eu aguento as pressões.

- Sabes perfeitamente que não foi isso que eu quis dizer...

- Sotaque de Cranston, Mike. Ando à procura de uma pessoa que o Eddie conhecia bem, que cresceu em Cranston e que foi visto algumas vezes com calças de caqui e camisa. Talvez eu esteja enganado. Mas talvez... preciso que faças isto.

- Bolas! - Waters respirou fundo, o que significava que iria fazê-lo. - E se eu encontrar esse homem misterioso?

- Então eu provavelmente ficarei ainda mais confuso do que estou agora, mas de uma forma mais positiva.

- Bolas! - repetiu Waters, e Griffin imaginou o detective a revirar os olhos.

- Não gosto do caso de violação - disse Griffin abruptamente.

- Já me constou.

- Há aqui qualquer coisa... não sei. Algo não bate certo.

- Sabes que estiveste ausente um certo tempo. No primeiro caso depois do regresso...

- Eu devia seguir as regras?

- Não fazia mal.

- Pois, mas então quando é que eu me divertia?

Mais silêncio. Um silêncio estranho. Griffin não gostou dele.

- Griff, tenho uma chamada do cabo Charpentier da prisão disse Waters.

A princípio, Griffin não percebeu. Então, de repente...

- Não!

- Sim, receio bem que sim. O nosso velho amigo David Price meteu mãos à obra logo pela manhã. Diz que tem informações sobre o Eddie Como e quer falar contigo imediatamente. Acho que não devíamos ficar admirados. Tens aparecido em todos os noticiários e sabemos que ele adora chatear-te.

- Raios! - Griffin deu um murro no volante. Pensou no antigo vizinho. Pensou em Cindy. Depois tornou a bater no volante; daquela vez a mão ficou-lhe a doer. Devia manter a calma. Psicopatazinho da merda! - Por que é que hei-de estar admirado? O filho da mãe mandou-me ontem uma carta a felicitar-me pelo novo caso. Claro que quer participar na acção.

Ele já sabia do caso? Mas teve de te mandar a carta no sábado, Griff, antes de o Eddie Como ser alvejado.

.- Sim, sim, sim. Ele apenas me deu os parabéns pelo novo caso, não pelo caso do Eddie Como, não pelo caso do Violador de College fíill, apenas caso. Estamos a falar do David Price, lembras-te? O rei dos jogos mentais. Ele está aborrecido, está à espera de uma distracção. E agora que regressei ao activo, ele está a tentar entrar na festa. O que podia ele saber sobre o Eddie Como? Estavam ambos na prisão. Tal como três mil outros tipos, e esses não andam a chatear-nos com telefonemas. O Como estava detido em Intake, não era?

- Sim.

- E o Price continua a apodrecer em Steel City, não é?

- Sim.

- Logo, o David Price não sabe nada.

- Companheiro de cela - disse Waters.

- Filho da mãe.

- Pois. O antigo companheiro de cela do Eddie Como em Intake, o Jimmy -Woods, já teve o seu dia de glória em tribunal. Foi condenado a perpétua há três meses por um arrombamento e furto que deu para o torto. O Price diz que o Jimmy Woods tem andado a dar com a língua nos dentes e, em troca de alguma consideração, o Price dá-nos a sua versão.

- Consideração. - Griffin cuspiu a palavra. - O Price assassinou dez crianças. Depois disso não nos pode dar nada que mereça alguma consideração. Cometeu os seus crimes num estado que não tem

já pena de morte. Só aí já teve muita sorte. - Ninguém está a discordar de ti. - Então por que é que não me sinto tranquilo? - As coisas estão quentes, Griff - respondeu Waters num tom mais calmo. - Ainda não vieste à esquadra, mas deixa-me contar-te. Os telefones não param de tocar, desde o do coronel até ao do tipo menos importante. As pessoas estão assustadas. As pessoas com filhas ijovens estão apavoradas. Nós conhecemos o David Price. O cabo Charpentier conhece o David Price. Bolas, a tenente, o major, o coronel... todos conhecem o David Price. Já o presidente da Câmara e o governador...

- A primeira pessoa disposta a encetar um diálogo sério com o David Price irá receber fotografias a cores das cenas dos crimes comentou GrifFin com frieza. – Não me interessa que seja o governador. Estamos entendidos?

Outra pausa.

- Estamos.

- Mike...

- Quando é que estás despachado do Dan Rosen?

- Não sei. Pelas seis?

- Eu vou ter contigo.

- Mike, não preciso...

- Precisas, sim. Vemo-nos às seis. E não te preocupes. Desta vez levo uma protecção para o rosto.

Quando Griffin chegou à zona de Providence que albergava a casa dos Rosen, a sua disposição azedara. Estava a pensar demasiado. Esse fora sempre o seu problema. Estava a pensar nas feições pálidas de Meg. No sorriso ténue de Carol. Em Jillian, que nem sequer podia chorar convenientemente a irmã porque outro jornalista inconveniente já estava a parar junto à sua casa.

E a seguir pensou em Tawnya e no roliço Eddie Júnior. Pensou nas vidas que não tinham potencial e no tipo de pessoas que via todos os dias, sabendo já que em breve voltaria a vê-las: na prisão, no tribunal, no banco de trás de um carro-patrulha. Os ciclos que andavam à roda nunca terminavam.

E depois pensou naquela maldita cave, e nas vidas que podia ter salvo se não tivesse andado a pensar demasiado. Pensou em Cindy. Pensou em David. Pensou nas coisas que ainda não dissera a ninguém, nem sequer aos irmãos, nem ao pai, nem à simpática psicóloga que lhe tinham arranjado para o ajudar.

Às vezes, o mundo era lixado. Parecia-se demasiado com um ringue de boxe. Continuávamos a levar os golpes e depois a levantarmo-nos do chão. Mike tinha razão. Ele precisava de avançar. Precisava de correr. Precisava de dar uma tareia a alguém em breve, senão recomeçaria a ouvir o zumbido. Os seus braços e pernas começariam a mover-se sozinhos. Em vez de comer e beber como uma pessoa normal, ele transformar-se-ia num coelho das pilhas Enerrizer que não pararia durante cinco dias, não dormiria, até a sua cabeça rebentar.

Alguns polícias ficavam deprimidos, esgotados. Griffin ia ao outro extremo. Tinha um distúrbio de hiper-ansiedade, o que queria dizer que quando andava stressado era incapaz de se acalmar. A pressão ia aumentando até que, por muito que corresse, levantasse pesos, praticasse boxe ou qualquer outra coisa, nada fazia efeito.

Podia partir todos os ossos da mão sem sentir. Podia estar sem dormir três dias e continuar eléctrico quando finalmente se deitava. As mãos tremiam-lhe, os joelhos tremiam-lhe e ele parecia frenético. Depois, seis ou sete dias depois, o seu corpo acabava por ceder sob a pressão. Caía com estrondo, como alguém que tivesse andado movido a cocaína.

Depois entrava na zona verdadeiramente perigosa. Não lhe restavam quaisquer reservas físicas e emocionais, mas a pressão continuava lá. A mulher morrera, o vizinho era um assassino de crianças, o trabalho era intenso. A família ajudara-o da primeira vez. Os irmãos haviam-se revezado para que ele nunca ficasse sozinho em casa. Tinham-no ajudado a atravessar o pior momento. Ele teria de se desenvencilhar sozinho a partir daí.

Agora começava a aprender a gerir o stresse. Comia bem, dormia bem e fazia um bom treino aeróbico quatro a cinco vezes por semana. Assim, libertava alguma da tensão diariamente em vez de a deixar acumular. Nem sempre era muito fácil, mas nem por isso era muito difícil. Para além disso, nos dias maus, ele pensava apenas em Cindy. Ela lutara tanto para viver! Mesmo depois de o cancro começar a fazer parar os seus órgãos internos, lhe ter roubado a voz e lhe ter secado a carne. Mesmo no final amargo, quando pudera apenas comunicar por piscares de olhos e as suas mãos já não tinham forças para segurar as dele. Ela lutara. Como poderia ele fazer menos do que isso?

"Respira fundo", disse a si próprio. "Conta até vinte. Não podes mudar o mundo, mas podes melhorá-lo um pouco de vez em quando."

Saiu do carro. Fechou a porta. Inspirou, expirou. Pensou em tornar a abrir a porta e em fechá-la com estrondo. Limita-te a respirar. Subiu os degraus da casa vitoriana e bateu na porta com manchas escuras com mais força do que a necessária, mas sem exagerar. Ninguém veio abrir, embora ele tivesse ouvido vozes lá dentro.

Bateu- novamente, contou até dez, depois tornou a bater e contou até trinta antes de ouvir alguém afastar a chapinha e espreitar pelo buraco da porta. Pouco depois, Carol Rosen encontrava-se à sua frente. Tinha vestido um pijama de flanela azul aos quadrados, abotoado até ao pescoço, embora lá fora devessem estar quase dezasseis graus. O seu rosto estava afogueado. Os olhos tinham um brilho vítreo.

"Está bêbada", pensou ele de imediato, embora, quando ela cambaleou para a frente, ele não tenha notado o cheiro a álcool no hálito dela. Devia ter ingerido vodka.

- Eu não... falo consigo - disse ela, agarrando a porta com força.

- O seu marido está em casa?

- Não.

- Do escritório disseram que ele não estava lá.

- Bem, não está em casa.

- Mistress Rosen...

- Experimente em casa da namorada dele. - Os olhos dela tornaram-se mais brilhantes. Encostou um dedo ao peito de Griffin e ele reparou nos nós dos dedos da mão direita dela. Estavam a sangrar. Ele observou-a com mais atenção, mas ela pareceu não reparar. - Não está lá. Não está aqui. Deve estar em casa da namorada.

- O seu marido tem uma namorada?

- Foi isso que eu disse.

- Como é que ela se chama?

- Não sei. Aposto que nunca foi violada. O que lhe parece? Griffin ficou calado durante uns momentos.

- Quer que telefone a alguém, Mistress Rosen? Talvez a uma amiga ou a um familiar que possa ficar consigo algum tempo?

Ela abanou o dedo, balançando para a frente, agarrando-se depois melhor à porta.

- Não um jornalista. Odeio-os! O telefone está... sempre a tocar Fale-nos do Eddie! E aquela pobre estudante universitária? A Sylvia Blaire. A bonita Sylvia Blaire.

ê Eddie está morto e as mulheres continuam a sofrer.

- E se eu ligar a Miss Pesaturo ou a Miss Hayes?

- A Meg não sabe peva! É tão nova. - Carol suspirou. Inclinou a cabeça para o lado, o seu cabelo louro comprido a cair-lhe sobre o ombro. - Nova, doce e inocente.

Acha que eu alguma vez fui assim tão nova, doce e inocente? Não me lembro. Mesmo antes do Eddie... não me lembro.

- Miss Hayes? - perguntou ele esperançado.

- Ela detesta-me - anunciou Carol. - Estou demasiado abalada, sabe? A Jillian só gosta de pessoas que pode ajudar. Organiza-te! Segue o programa! Assume o controlo da tua vida! A Jillian é mesmo como a Oprah Winfirey! bom, não é negra.

- Vai ficar bem, Mistress Rosen?

- Não posso ter filhos - disse ela pesarosa. - Aposto que a namorada do Dan pode ter filhos. Aposto que ela pode desligar a televisão sempre que quiser. Aposto que nunca dormiu numa banheira sem água ou passou horas a verificar as grades nas janelas. Provavelmente também nunca disparou contra o Dan. É difícil competir com isso.

- Mistress Rosen... - Ela estava mesmo bêbada. Ele tornou a respirar fundo, depois reconheceu que não importava. Continuava a ter uma missão e a bebedeira dela facilitava-lhe

a vida. - O Dan costuma falar de dinheiro?

- Não.

- Uma casa como esta deve ser cara.

- Uma canalização nova não é propriamente barata, sabe? - cantarolou ela.

- Então as coisas têm sido difíceis?

- Caramba, Carol, alguém tem de pagar isto tudo!

- Muito difíceis.

- A Meg e a Jillian acham que devíamos vender esta casa. Eu escolhi quase tudo o que está dentro dela. Esta porta, fui eu quem escolheu esta porta. - Afagou-a. - A ombreira, eu escolhi esta ombreira.

- Tocou-lhe com ternura. - A antiga quase tinha desaparecido. Apodrecera, fora arrancada. Substituída por pinho barato. Li livros. Vi imagens de velhas casas vitorianas, falei com especialistas em restauração histórica. Ninguém podia ter amado esta casa mais do que eu. Meu Deus, quem me dera que ela ardesse!

- Mistress Rosen, sabemos que o Dan fechou a conta da hipoteca. Sabe para onde foi esse dinheiro?

Ela abanou a cabeça.

- Vamos ter de investigar isso, Mistress Rosen. Ela sorriu e encostou a cabeça à porta.

- Acha que ele contratou o assassino? Acha que ele gastou esse dinheiro para matar o meu violador?

.- Gostava de lhe fazer essa pergunta.

- Sargento Griffin, o meu marido não me ama assim tanto. Experimente a namorada. Talvez ela também goste de casas antigas caras.

Griffin levantou uma mão. Era demasiado tarde. Carol Rosen já fechara a porta. Voltou a bater, mas ela não abriu. Pouco depois, Griffin regressou ao carro, sentou-se ao volante e franziu o sobrolho.

Não lhe agradava deixar Carol Rosen sozinha naquele estado de espírito. Na noite anterior ela disparara contra o marido, e isso fora antes de saber o que acontecera a Sylvia Blaire.

Pegou no telemóvel e tentou ligar a Meg Pesaturo. Ninguém atendeu. A seguir, a casa de praia de Jillian. Também ninguém. Depois ligou para a residência de East Greenwich, onde finalmente alguém levantou o auscultador.

- Sim? - perguntou Toppi Niauru.

Jillian não se encontrava em casa, por isso Griffin contou a Toppi como encontrara Carol Rosen. Toppi disse que passaria imediatamente por lá com Libby.

A casa histórica de Carol não tinha rampas para cadeiras de rodas, por isso Griffin ficou à espera. Quarenta e cinco minutos depois, Toppi apareceu numa carrinha azul-escura. Abriu a porta lateral e com o elevador fez descer a cadeira de rodas de Libby até ao chão.

A mãe de Jillian pintara o rosto para a ocasião. Tinha o cabelo escuro apanhado no alto da cabeça e cumprimentou Griffin com um beijo.

As cinco da tarde, ele levou Libby ao colo até à porta de entrada enquanto Toppi os seguia com a cadeira de rodas. Às cinco e um, bateram à porta.

As cinco e dez desistiram de bater e Griffin arrombou a porta com o ombro. As cinco e onze encontraram Carol deitada no tapete em frente à televisão ligada, as mãos ainda a agarrarem o frasco vazio de comprimidos para dormir.

Griffin começou a ministrar os primeiros socorros, Toppi chamou uma ambulância e Dan Rosen, com o seu característico sentido de oportunidade, chegou finalmente a casa.

 

Carol

Jillian chegou em primeiro lugar. Abriu caminho à força pela multidão de jornalistas e entrou pela porta do serviço de urgências.

- Malditos abutres! - exclamou ela quando as portas automáticas finalmente se fecharam, mas não antes de um jornalista sério ter gritado:

- Miss Hayes, alguma vez pensou em suicidar-se?

Meg e a família apareceram pouco depois de Jillian. Um agente da polícia localizara o carro deles junto à casa de Vinnie Pesaturo e transmitira-lhes a notícia.

- Saiam da minha frente, seus ratos! - gritou Vinnie ao chegar ao parque de estacionamento, e os jornalistas, reconhecendo um homem armado, deixaram passar a família.

Assim que entraram no serviço de urgências, Meg dirigiu-se a Jillian.

- Onde está ela? Está bem? O que é que já te disseram?

- Não sei. Precisamos de falar com um médico. Além. O senhor, de casaco branco! O que nos pode dizer sobre a Carol Rosen?

- Jillian! Aqui. Jillian!

Jillian e Meg viraram-se a tempo de ver Toppi acenar-lhes do outro lado da sala de espera. Ao seu lado estava a mãe de Jillian. Ao lado dela, o sargento Griffin.

- Por que é que a tua mãe está aqui? - perguntou Meg.

- Aquela é mesmo a Olivia Hayes? - inquiriu o pai dela.

- vou matar o sargento Griffin - disse Jillian. Atravessaram a sala e Toppi levantou-se.

- Como está ela? Vai ficar bem? - As mãos de Jillian estavam a tremer. Ela só se apercebeu disso quando Toppi as tomou nas suas.

- Ainda não sabemos.

- Oh, meu Deus...

- O marido dela está a falar agora com um dos médicos. Talvez saiba qualquer coisa em breve.

- O que aconteceu?

- Parece que ela tomou uma doce excessiva de comprimidos para dormir. Talvez à mistura com álcool.

- Oh, não! - exclamou Meg. Começara a chorar. - Não tinha percebido... quero dizer, sabia que ela estava perturbada, mas não pensei...

- Ninguém podia saber - disse Jillian, mas as palavras foram autemáticas, faltando-lhes convicção. Elas eram as amigas de Carol; tinham estado com ela ainda naquela manhã. Talvez devessem ter percebido. A mãe de Meg pôs um braço sobre os ombros da filha. - E onde estava o marido durante isto tudo? - bramiu o tio Vinnie.

Toppi encolheu os ombros e olhou para Griffin. - Fora - limitou-se ele a dizer. - Era de esperar - resmungou o tio Vinnie. - Não aguento isto - disse Jillian.

- vou procurar um médico. Dirigiu-se para a recepção e não ficou admirada quando Griffin a seguiu.

- Como é que pôde? - começou ela assim que se afastaram dos outros. As mãos ainda lhe tremiam. Estava raladíssima com Carol. - Como é que pude o quê?

- Envolver a minha mãe nisto tudo!

- Oh, não comeces! - Toppi aproximara-se e decidiu intrometer-se na conversa. - Olha para ela! Espreita por cima do ombro e olha para ela!

Jillian uniu os lábios, contrariada, mas fez o que lhe pediam. A mãe inha agora o pai e o tio de Meg literalmente a seus pés. Os dois homens falavam animadamente.

A mãe sorria.

- Ela parece-me muito bem - comentou Griffin. Jillian espetou um dedo no peito musculado dele.

- Você não tem autorização para falar. - Depois tornou a virar-se para Toppi. - Ela é frágil...

- Ela está óptima.

- Ontem à noite teve de tomar oxigénio!

- Apanhou um susto.

- E encontrar a Carol no chão da casa dela não foi assustador?

- Provavelmente, mas imagino que deva ter sido pior para a própria Carol.

- Oh! - Jillian estava tão furiosa que puxou os próprios cabelos.

- Não a quero envolvida!

- É demasiado tarde. Ela é a tua mãe. Está envolvida.

- Vai preocupar-se ainda mais.

- Preocupada já ela estava! - retorquiu Toppi. - com isto pode finalmente fazer qualquer coisa.

- Toppi!

- Jillian! - gozou Toppi. - Olha, agora estou a falar a sério. Quando o sargento Griffin telefonou, perguntei à tua mãe o que é que ela queria fazer. Ela não hesitou um segundo. A Carol é tua amiga A Libby ficou radiante por poder ajudar. E isso é óptimo. - A voz de Toppi acalmou-se por fim. - Sei que ela não te acompanhou muito quando eras criança, Jillian. Mas já não és uma criança. Cresceste. Já paraste para pensar que talvez ela também tenha crescido?

Toppi regressou para junto dos outros. Meg tinha agora a cabeça encostada ao ombro da mãe e Libby folheava rapidamente o seu livro de imagens para aparente gáudio de tom e do tio Vinnie. Jillian virou-se para Griffin.

- Não diga nada.

- Ainda não abri a boca.

- Ela está enganada, sabe? A Toppi é que ainda não percebeu. Sei que a minha mãe mudou. Mas nunca tive um pai, e já não tenho a minha irmã. A Libby... é a única pessoa que me resta.

Na recepção ninguém pôde ajudá-la. Não era da família e, para o protocolo dos hospitais, ser também vítima de violação não contava. Sabiam quem Jillian era, claro. A enfermeira que falou com ela foi até muito simpática. E depois, pela primeira vez, Jillian reparou onde estava. Nas Urgências de um dos melhores hospitais de Providence, e onde cada uma delas já estivera pelo menos uma vez... Naquelas noites, naquela noite, na noite.

Ela virou-se, já menos firme. De todos os elos, aquele... E de repente compreendeu que não podia perder Carol. Não podia. Carol tinha de sobreviver, e depois voltariam a estar juntas as três, sentadas num reservado de um qualquer restaurante, a discutirem ou a rirem, a brincarem ou a falarem a sério, mas a ajudarem-se umas às outras.

Ela iniciara o Clube das Sobreviventes tão cheia de fé, e o grupo funcionara ainda melhor do que ela esperara. Porque naquele momento ali de pé, Jillian não se imaginava a não voltar a ver Carol. Não imaginava que passasse uma semana sem serem ela, Carol e Meg.

- Sente-se - disse Griffin. - Espere.

- Não me posso sentar. E não sei esperar. O meu problema é esse.

- Os dedos de Jillian apertavam a manga dele. Ela não sabia como aquilo acontecera. - Oh, meu Deus, só quero saber que a Carol se encontra bem.

À esquerda abriu-se subitamente uma porta; Dan Rosen apareceu. Estava pálido. Tinha o cabelo despenteado e o braço esquerdo ao peito. Envergava um casaco castanho e uma gravata dourada, como se, antes de ali ter entrado, já estivesse a caminho do trabalho. Naquele momento parecia não saber onde estava.

Jillian olhou para a cara dele e sentiu o mundo escorregar-lhe debaixo dos pés.

- Oh, não...

- Mister Rosen - interpelou Griffin muito calmo.

- Hum. O quê?

- Dan? - murmurou Jillian num tom mais urgente. Ele pareceu dar finalmente pela presença deles.

- Oh. Olá, Jillian.

- E ela? Por favor, Dan!

- Estão a fazer-lhe uma lavagem ao estômago. A administrar-lhe uma mistura de carvão activado, creio. Ela tomou o Ambien todo. A coisa está feia, muito feia. O Ambien misturado com álcool dá coma, disse o médico. - Dan olhou para Griffin. - Ele disse... disse que se o senhor não a tivesse encontrado naquele momento ela já estaria morta.

- Esteve a beber?

- Acho que sim. E a garganta dela... - Os dedos dele tocaram na sua garganta. - O estado do esófago dela... agravou-se. Acho que foi isso que o médico disse. E os molares mostram sinais de erosão. Por causa da bílis, disse ele. Quando ela se obriga a vomitar.

Jillian levou algum tempo a compreender.

- Bulimia?

- Ele acha que sim. Parece que a minha mulher passa o tempo livre a comer demasiado e talvez a beber demasiado e depois a vomitar. Vezes e vezes sem conta. Juro que não sabia. - Olhou para eles, ainda atordoado. - Jillian, sabia?

- Não.

- Mas você devia saber. - Meg aproximara-se enquanto eles falavam. Tinha as mãos pousadas nos quadris, numa pose autoritária, enquanto fitava Dan. - Éramos as amigas dela, mas só a víamos uma ou duas vezes por semana. Você vivia com ela. Como é que não sabia o que ela andava a fazer?

- Eu tenho estado... muito ocupado com o trabalho.

- Meg - interveio Jillian. Mas tarde de mais.

- Ocupado com o trabalho? - repetiu Meg. - Ou a divertir-se com a sua namorada?

- O quê? - A cabeça de Dan levantou-se. - O quê?

- Oh, não se arme em inocente connosco. - Meg já estava lançada e todos, incluindo o sargento Griffm, observavam a cena com grande interesse. - A Carol contou-nos tudo. As suas desculpas patéticas das reuniões ao fim da tarde e o trabalho em demasia. Ela ligou para o seu trabalho, sabe? Sabia que você não estava lá. Na noite em que foi violada... sabia o que o senhor estava realmente a fazer.

- A Carol acha que eu tenho uma amante? - perguntou Dan a custo.

- Ora, vá lá...

- Não tenho. Juro que não tenho. Não faria uma coisa dessas à Carol. Credo, eu amo a minha mulher!

- Você nunca está em casa! - exclamou Meg.

- Eu sei.

- Nunca está no trabalho!

- Eu sei.

- Então onde diabo está você?

Dan não respondeu. Estava mortificado. Foi então que uma voz interveio do outro lado da sala de espera silenciosa.

- No Foxwoods - anunciou o tio Vinnie. - O Danny não é um mulherengo. É um jogador. E já agora, permitam-me que o diga, um péssimo jogador.

Ao lado de Jillian, Dan Rosen assentiu com um ar miserável.

- Eu amo a minha mulher - repetiu. Depois voltou-se e deu um murro com a mão boa na parede.

- Vai ter de me contar tudo - disse Griffin a Dan dez minutos mais tarde. Requisitara um gabinete vazio para poderem ter alguma privacidade. Claro, Jillian, Meg e o resto do grupo seguiram-nos imediatamente e naquele momento olhavam para ambos como se tivessem todo o direito de estar presentes. Griffin ainda pensou em expulsá-los, depois desistiu. Era evidente que Vinnie Pesaturo tinha informações relevantes, e a presença de Jillian e Meg era tão eficaz no interrogatório como uma sequeira. Bastou-lhes olhar para Dan para ele debitar toda a história.

- Nunca quis magoar a Carol - começou Dan debilmente.

- Sabe, Dan, ela disparou contra si.

- Isso foi um acidente! Eu devia ter anunciado a minha presença assim que cheguei a casa. Era tarde... ela fica nervosa depois do anoitecer. Depois do que aconteceu naquela noite, quem é que pode culpá-la?

- Sim, aquela noite. Vamos falar sobre aquela noite. - Griffin tirou o minigravador do bolso, ligou-o e pôs uma expressão séria. Disse à polícia que esteve a trabalhar até tarde.

Dan baixou a cabeça.

- Presumo que tenha dito o mesmo à sua mulher.

- Sim.

- Mas não esteve no escritório?

Dan não levantou a cabeça. Vinnie deu-lhe uma palmada no braço.

- Por amor de Deus! - exclamou o corretor de apostas. - Deixe de ser um piegas e defenda a sua mulher!

Dan olhou para Vinnie, mas pareceu ganhar coragem.

- Eu... hum... estive no casino Foxwoods.

- Mentiu à polícia?

- Sim.

- Costuma fazer isso muitas vezes?

- Sentia-me envergonhado! Já bastava não ter estado em casa quando a minha mulher precisou de mim. Mas ter de admitir que estivera sentado a uma mesa de blackjack enquanto a minha mulher estava a ser violada... - Gemeu. - Meu Deus, que tipo de marido faz uma coisa dessas?

Griffin deixou a pergunta pairar no ar, e isso bastou como resposta. - Então mentiu à polícia e mentiu à sua mulher. Tudo para encobrir uma noite na mesa de jogo.

O senhor joga muito, Mister Rosen?

- Não sei. Quatro ou cinco vezes por semana é muito? Liquidar a minha firma é muito? Fazer uma segunda hipoteca sobre a nossa casa é muito? - A cor voltara ao rosto de Dan. Olhou para Griffin, como se esperasse que este dissesse o óbvio.

- Não sei, diga-me o senhor - respondeu Griffin calmamente. Dan foi-se novamente abaixo. Curvou os ombros. Encostou o queixo ao peito.

- Acho... acho que tenho um problema com o jogo. - E de seguida: - Oh, meu Deus, a Carol vai dar cabo de mim!

- Há quanto tempo é que isto dura?

- Não sei. Há três anos, talvez. Fui uma noite ao Foxwoods com uns amigos. Colegas de trabalho. E... e tive uma noite excelente. A sério. - As feições de Dan animaram-se novamente. - Saí das mesas de blackjack com um ganho de dez mil dólares. E, na altura, dez mil dólares... Uau! -Estava prestes a abrir a minha firma de advogados e a casa estava sempre a precisar de qualquer coisa. Dez mil dólares ajudaram bastante. Souberam bem. Dinheiro fácil.

- Pois - comentou Griffin. Dan sorriu, tenso.

- Exactamente. Por isso abri a minha firma, só que em vez de levar comigo cinco clientes leais, levei apenas três. O dinheiro foi mais curto do que julguei, as coisas não progrediram da forma esperada, o seguro de saúde era muito alto...

- Começou a contrair dívidas.

- Não quis contar à Carol. Tínhamos falado tantas vezes sobre eu formar a minha própria firma! Ela não estava tão confiante como eu. A casa, o pagamento da hipoteca,

credo! Mas era o meu sonho. Tinha de possuir a minha própria firma de advogados. Confia em mim, disse-lhe eu. Confia em mim. E ela confiou.

- Mas começou a atrasar-se no pagamento das mensalidades. E depois...?

- Lembrei-me do Foxwoods. Dez mil dólares. Dinheiro fácil, não é? Sou um homem inteligente, li todos os livros sobre blackjack, decorei as tabelas de probabilidades. Não é como apostar em cavalos. Isso é pura sorte. Já o blackjack requer estratégia.

- Daí os numerosos milionários que o blackjack tem feito - ironizou Griffin.

- Eu ganhei - retorquiu Dan imediatamente. O seu rosto estava de novo afogueado. - Ganhei muito dinheiro!

- Quanto é que deve, Mister Rosen?

O advogado vacilou. Não parecia capaz de olhar ninguém nos olhos. Algum tempo depois, quando o silêncio se tornou incómodo, Vinnie levantou o braço para bater de novo nele. Griffin fez-lhe sinal para parar.

- Mister Rosen.

- Devia oitenta mil dólares - respondeu Dan com voz rouca. Passou a mão direita pelo cabelo, deixando as madeixas castanhas no ar. - Agora só devo vinte mil. Eu, hum, liquidei a conta da hipoteca. Senão não me dariam mais dinheiro. E depois... bem, depois não teria qualquer hipótese de me safar, pois não?

- Quem é que não lhe daria mais dinheiro, Mister Rosen?

- Por que não pergunta a Mister Pesaturo? - perguntou Dan com amargura.

Griffin olhou para Vinnie.

- Não com esse gravador ligado - disse Vinnie.

- Estou a investigar um homicídio...

- Não com esse gravador ligado. Griffin suspirou, e desligou o gravador.

- Vamos lá ouvir isso.

- Talvez eu tenha conhecimento do problema de Mister Rosen.

- Talvez?

- Olhe, o homem precisava de dinheiro e eu por acaso conheço algumas pessoas que não se importam de emprestar uns dólares de vez em quando.

- E a percentagem?

- Bem, você sabe como são os empréstimos bancários. A taxa de juro sobre o empréstimo depende do nível de risco. Olhe para ele. Vinnie lançou a Dan Rosen um olhar depreciativo. - Oitenta mil dólares no blackjackí Ele é um risco elevado.

- Está a cobrar-lhe cem por cento?

- Cinquenta. Não somos completamente insensíveis.

- Espere lá. - Jillian ergueu uma mão, metendo-se finalmente na conversa. - Está a dizer-me que o senhor...

- Os meus associados - corrigiu Vinnie.

- Muito bem, os seus associados estão a emprestar ao Dan dinheiro para o vício dele a uma taxa de juro de cinquenta por cento?

Vinnie assentiu.

Ela virou-se para Dan.

- E você está a aceitar dinheiro àquela taxa?

- Um dia bom - respondeu ele de imediato. :- É só o que é preciso. Um dia bom, e o empréstimo é pago e posso amortizar os cartões de crédito, talvez até fazer um pagamento extra da hipoteca. Um dia bom.

- Oh, céus! - exclamou Jillian. - Pobre Carol.

Dan pareceu de novo abatido. Griffin voltou a ligar o gravador.

- Será correcto dizer, Mister Rosen, que o senhor utilizou os sessenta mil dólares que liquidou da sua conta para pagar aos agiotas?

Dan assentiu. Griffin olhou-o com insistência.

- Sim - disse Dan para o gravador. Griffin voltou-se para Vinnie.

- E o senhor, Vincent Pesaturo, pode verificar... através de fontes... se uma tal transacção teve lugar?

- Sim. As minhas fontes dizem que essa coisa teve lugar.

- Vinnie Pesaturo, o senhor mandou matar o Edward Como? A pergunta foi inesperada, mas Vinnie não pestanejou. Baixou-se,

aproximando a boca do microfone.

- Não. Eu, Vincent Pesaturo, não mandei matar o Eddie Como. Se eu, Vincent Pesaturo, quisesse aquele monte de esterco morto, tê-lo-ia liquidado com as minhas próprias mãos.

- Ou mandado que o matassem na prisão - murmurou Griffin. Vinnie sorriu, olhou para o microfone e não disse nada.

- tom Pesaturo - falou Griffin novamente. - O senhor mandou matar o alegado violador da sua filha, Edward Como?

tom pareceu um pouco mais à defesa.

- Não - respondeu após alguns segundos. - Decidi não o fazer.

- tom! - exclamou a mulher.

- Paizinho! - secundou Meg. Ele encolheu os ombros.

- Olhem, sou pai. Depois do que aquele estupor fez à minha filha, posso pensar estas coisas. Mas não fiz nada. - Tornou a encolher os ombros. - Não sei. Parecia que a polícia tinha o caso bem preparado. com o ADN e tudo o mais. E achei... Achei que o julgamento podia ser benéfico para a Meg. Ela enfrentaria o tipo e tudo.

Eu, num... li em qualquer lado que às vezes isso é melhor para a vítima. Devolve-lhe a sensação de poder, de controlo. Esse tipo de coisas.

- Andaste a ler essas coisas? - perguntou Meg.

- Mais ou menos. Foi um artigo... na Cosmopolitan.

- Na Cosmopolitan. - exclamou Vinnie. tom Pesaturo endireitou os ombros.

- Olhe, ela é minha filha. Quero o melhor para ela. Para além disso, um dia estava à espera num sítio qualquer que tinha muitas revistas femininas, daquelas com mulheres seminuas na capa. Claro que comecei a olhar. E depois, bem, vi o título do artigo. E a seguir abri a revista. E, bem, como estava com tempo, comecei a ler e...

- És um homem muito querido, Tommy Pesaturo - disse a mãe de Meg, apertando carinhosamente a mão do marido.

- Ora...

Toda a gente estava a observá-lo. Ele corou. Ouviu-se uma pancada num canto do gabinete. As cabeças voltaram-se para Libby, que fitava Griffin com ar expectante.

- Ôh! - exclamou ele, à laia de desculpa. - Hum, a senhora, Olivia Hayes, contratou alguém para matar ou fazer mal a Edward Como?

Olivia fez um gesto com a mão, que ele tomou como uma negativa. Ela servia-se da mão esquerda para folhear o livro de imagens. Toppi aproximou-se, debruçando-se sobre o ombro dela enquanto Libby batia numa imagem, folheava mais um pouco, e a seguir batia em mais duas imagens.

- Ela está a apontar para a Jillian, para a Carol e para a Meg disse Toppi. Olhou para Libby. - O Clube das Sobreviventes?

Libby bateu uma vez, folheou o livro, bateu de novo.

- O número um - disse Toppi. - O Grupo das Sobreviventes mais um?

Uma pancada.

- Isto quer dizer que sim - explicou Toppi ao grupo. Ajoelhou-se. - Não sei o que isso quer dizer, Libby. Referes-te à outra vítima? A Sylvia Blaire?

Nenhuma resposta.

- Queres dizer que o Clube das Sobreviventes devia ser composto por quatro pessoas?

Libby franziu o sobrolho, depois bateu uma vez. Contudo, a pancada foi relutante. A afirmação não estava completamente certa.

- Porquê quatro pessoas? - perguntou Meg.

- A pergunta não pode ser feita assim - interveio Jillian. - Ela sabe o que quer dizer, mas temos de a ajudar, levando-a a responder com "sim" ou "não".

Observava agora atentamente a mãe. Era difícil decifrar a sua expressão. Alguma compaixão, alguma ternura, alguma resignação. Depois Libby olhou também para ela. O suavizar das suas feições foi imediato e óbvio. Uma mãe a olhar para a filha. Uma mãe a olhar para a única filha que lhe restava.

- Uma pergunta que se possa responder com um "sim" ou um "não" - murmurou tom.

- Quatro pessoas, quatro pessoas - dizia Vinnie.

- Um Clube das Sobreviventes maior - comentou Meg. Então, de repente, os olhos de Jillian arregalaram-se.

- Eu sei o que ela quer dizer. Bolas, por que é que não nos lembrámos disso antes?

Na sua cadeira de rodas, Libby inclinou-se na direcção da filha, esperou que ela adivinhasse o que lhe ia na cabeça.

- O sargento Griffin perguntou a todos se estávamos envolvidos na morte do Eddie, porque somos todos vítimas do Eddie Como. Temos o melhor dos motivos.

Pancada, pancada, pancada.

Jillian virou-se para Griffin. Tinha as faces coradas, os olhos brilhantes.

- Mas qual é a outra grande estatística nos casos de violação, Griffin? A violação é um crime muitas vezes não comunicado. Aliás, só uma em quatro violações chega à atenção da polícia.

Griffin fechou os olhos. Também já tinha percebido.

- Ah, não.

E na sua cadeira de rodas, Libby continuava a dar pancadinhas com a mão.

- Ah, sim - contrapôs Jillian com suavidade. - A Meg, a Carol e eu somos as mulheres que se chegaram à frente, as mulheres que chamaram a polícia. Mas isso não quer dizer que tenhamos sido as únicas vítimas do Violador de ColUge Hill, É bastante provável que haja mais uma vítima algures. Outra mulher, outra família, e mais uma data de gente a querer o Eddie Como morto.

 

Gríffin

Às seis e meia continuavam sem notícias de Carol, mas Griffin tinha de ir-se embora. Waters esperava-o e, para além disso, precisava de fazer umas coisas. Deixou o grupo abatido a um canto da sala de espera, formando uma espécie de família. No início Dan afastara-se ligeiramente, mas Jillian fora sentar-se ao seu lado. Talvez Dan estivesse agradecido. Era difícil de dizer. Mas devia estar, pensou Griffin. Lançou um último olhar a Jillian e depois dirigiu-se para a porta.

No parque de estacionamento foi imediatamente rodeado por jornalistas.

- Há novidades sobre o estado de Carol Rosen?

- Está preparado para efectuar uma prisão?

- A tentativa de suicídio de Carol Rosen está relacionada com o homicídio de Eddie Como?

Griffin ignorou-os a todos e entrou no carro. Para ser franco, não estavam presentes tantos jornalistas como ele esperara. Depois ligou o rádio e percebeu porquê.

Tawnya Clemente dava nesse momento uma conferência de imprensa na baixa de Providence. Numa firma de advogados. Onde o seu novo advogado anunciava que iria processar a cidade de Providence e o Departamento de Polícia de Providence em cinquenta milhões de dólares em representação da família Como.

- Como indicam as provas mais recentes - dizia o advogado -, o Eddie Como nunca devia ter sido preso pelo Departamento de Polícia de Providence. Aliás, a indiciação prematura e irresponsável de Eddie como violador em série despoletou os acontecimentos que levaram à morte trágica deste jovem, abatido diante do tribunal onde pouco depois deveria ter sido absolvido. Ontem foi um dia muito negro para a justiça deste país. A cidade de Providence voltou-se contra um dos seus filhos. Agora a cidade tem de voltar atrás. Tem de recompensar a sua família.

Nesse instante, o telemóvel de Griffin tocou.

- Está a ouvir isto? - gritou-lhe Fitz do outro lado da linha. Santa Mãe de Deus, estou a ter um ataque cardíaco! A porra do coração está literalmente a explodir-me no peito! vou morrer por causa deste trabalho ingrato, merdoso e lixado, e depois a minha mulher vai processar a cidade em setenta e cinco milhões de dólares para poder ficar à frente dos Como. Caramba! Devia ter prendido a Tawnya quando tive oportunidade.

- Você tem mulher? - perguntou Griffin.

- Vá pentear macacos, sargento!

- Depreendo que teve outra tarde maravilhosa.

- Fui ao Blockbuster - queixou-se Fitz. - O maldito miúdo parece estar a falar a verdade. Mostrou-nos no computador os registos dos filmes levantados pelo Eddie, e a seguir quase se pôs a chorar quando disse que tivera demasiado medo para vir a público antes. A irmã dele frequenta o Providence College e, como o rapaz tinha a certeza de que o Eddie era culpado, não queria fazer nada que pudesse pôr em liberdade o Violador de College Hill.

- Então por um lado o miúdo do Blockbuster viu o Eddie naquela noite, mas por outro continua convencido de que ele é culpado?

- Por causa do ADN. Algumas pessoas acreditam mesmo nisso. Por que diabo é que elas nunca fazem parte dos júris?

Griffin entrara na auto-estrada. A falta de horas de sono começava a afectá-lo. Tanta informação e o seu cérebro estava incapaz de a processar.

- Este miúdo está na base da alegação da Tawnya?

- Talvez. Mas estou apenas a adivinhar, porque o advogado dela centrou-se essencialmente no ataque de ontem à noite à Sylvia Blaire, que é consistente com os ataques do Violador de College Hill. Ora, como isso aconteceu depois de o Eddie estar morto, o Eddie não pode estar implicado, o que significa que não está implicado em nenhum.

- O que significa que estão todos em cima de nós para descobrirmos o que aconteceu à Sylvia Blaire.

- Acredita que o presidente da Câmara acabou de nos dar carta branca para o caso Blaire?

- Ah, seu manganão!

- Pois, parece que podemos gastar uma pequena fortuna em homens e testes laboratoriais superurgentes sem que a despesa se aproxime da acção judicial de cinquenta milhões de dólares.

- Deduzo que tenha pedido uma análise urgente à amostra de ADN...

- Claro. Estamos a tentar ter resultados amanhã de manhã. Estou a rezar para que tenha sido um ex-namorado. Seria a única coisa capaz de nos salvar o coiro neste momento. Oh, e quando o apanharmos, ele tem de confessar que imitou os outros crimes e que teve conhecimento de todos os pormenores num site da internet, do género www.queroserumviolador.com, ou coisa parecida. Ex-namorado. Confissão. Sim, é mais ou menos disso que preciso para salvar a minha carreira.

- Acho que tinha melhores hipóteses com o ataque cardíaco comentou Griffin.

- Provavelmente. - Fitz tornou a suspirar. Ainda não dormira e isso notava-se na sua voz. - Olhe, Griffin, a Carol Rosen tentou mesmo suicidar-se?

- Encontrámo-la desmaiada com um frasco vazio de comprimidos para dormir na mão. Parece-me que ela também tem andado a beber.

- Ah, merda!

- Lamento, Fitz.

- É o caso Blaire, não é? Abalou toda a gente. A imprensa está a dar em doida, as pessoas a ligarem para o cento e doze se vêem o arbusto à porta de casa a mexer-se... E um imitador. Será que é assim tão difícil de perceber isso? Às vezes há imitadores. - Fitz soava desesperado. E sabia-o. Tornou a suspirar. - A culpa não é dela, sabe. O que aconteceu, os erros que podemos ou não tercometido... A culpa não é dela, nem da Jillian, nem da Meg. Somos todos crescidinhos. Resolvemos o caso da maneira que resolvemos.

- Fitz, vocês alguma vez tentaram encontrar outras vítimas?

- O que quer dizer com isso?

- A Jillian e a mãe levantaram um problema interessante. A violação é um crime muitas vezes não participado às autoridades. Claro, temos três vítimas conhecidas do Violador de College Hill. Mas isso não significa que tenham sido as únicas.

Fitz ficou em silêncio por momentos.

- Bem, corremos os pormenores do caso pelo Programa de Apreensão de Criminosos Violentos, para ver se havia pontos comuns. Nos outros estados não surgiu qualquer crime com características semelhantes. Claro que a coisa não é infalível. Uma das vítimas pode não ter participado o caso à polícia. Ou talvez o tenha feito e os agentes podem ainda não ter tido tempo de o introduzir na base de dados, e assim por diante. O DAmato esperou seis meses até falar com o júri de instrução, não fosse encontrar outras mulheres dispostas a depor, podendo assim juntar mais acusações ao bolo. Foi essa uma das razões por que ele não se importou que a Jillian e o grupo estivessem sempre a aparecer na televisão. Achou que se alguma coisa pudesse convencer outra vítima a vir a público seria o facto de ver a Jillian, a Carol e a Meg, determinadas, no ecrã.

- Mas ninguém apareceu?

- Que tenhamos conhecimento, ninguém.

- Mas isso não exclui a possibilidade...

- Griffin, é impossível excluir essa possibilidade. Você pode interrogar todas as mulheres deste estado, perguntar-lhes directamente se alguma vez foram violadas, e ainda assim não excluir a possibilidade porque uma delas pode mentir. Somos polícias. Não podemos concentrar-nos no impossível. Temos de concentrar-nos no provável.

- Já sei o que se passou com o dinheiro de toda a gente - disse Griffm abruptamente.

- Não me diga! - exclamou Fitz, claramente espantado.

- Sim. Até perguntei ao Vinnie Pesaturo se tinha contratado um assassino. Ele disse que não. E pode chamar-me maluco, mas eu acredito nele.

- Por outras palavras, ficou sem suspeitos.

- Fiquei sem suspeitos para esta teoria - retorquiu Griffin.

- Ou seja?

- Ou seja, não foi por desejo de vingança que o Eddie foi morto. Talvez tenha sido por outra coisa. Diga-me você, Fitz. Por que quereria alguém ver o Eddie Como morto?

Assim que Griffin desligou o telemóvel, este tocou novamente.

- Sargento Griffin - disse ele para o bocal.

- Onde raio está você?

- Tenente Morelli! A minha tenente preferida. Já lhe disse que hoje está muito bonita?

- Você não pode saber se eu estou bonita ou não. Ainda não se deu ao trabalho de vir falar comigo hoje. Tem graça, mas eu julgava que a função do agente encarregue do caso era manter os superiores informados. Estar aqui no local de trabalho a supervisionar a informação, a elaborar teorias e a manter a coisa a funcionar. Qual julga você que é a função do agente encarregue do caso, sargento?

- Tenho boas notícias - apressou-se Griffm a dizer. - Estamos a fazer imensos progressos.

- Ai sim? É que tenho estado a ouvir os noticiários e parece-me que o caso está a ir por água abaixo.

- É por causa do processo de cinquenta milhões de dólares, não é?

- Esse é um dos problemas.

- E o facto de a população continuar convencida de que há um violador em série à solta e que estão todos prestes a ser violados eou mortos durante o sono?

- Esse pode ser outro dos problemas.

- O presidente da Câmara está a receber telefonemas, o coronel está a receber telefonemas e a comunicação social está a divertir-se à grande às nossas custas?

- Muito bem, sargento. Para alguém que nunca põe aqui os pés, você está bem informado. O detective Waters teve pena de si?

- Sim, minha tenente - admitiu Griffm.

- Bem, isso é muito louvável da parte do detective Waters. E creio que você o mandou passar Cranston a pente fino à procura de possíveis compinchas do Eddie Como. Quer-me parecer que está a interferir no caso de violação da polícia de Providence. Você está a interferir nesse caso?

- Estou a ser minucioso - respondeu Griffin cautelosamente

- Sargento, não me obrigue a matá-lo.

Griffin sorriu. Sempre gostara da tenente Morelli. Respirou fundo.

- O problema é o seguinte. Começámos com uma teoria básica. O Eddie Como é um alegado violador, logo os suspeitos prováveis deste caso são as vítimas de violação.

- Recordo-me dessa conversa.

- Continuando por esse ângulo, os detectives dos crimes financeiros investigaram a fundo as três mulheres e as suas famílias. Isso conduziu a duas boas pistas: a Jillian Hayes e o Dan Rosen fizeram levantamentos substanciais e não havia um receptor imediatamente identificável desse dinheiro.

- Podiam ter contratado o atirador.

- Pois podiam. Infelizmente, não o fizeram. A Jillian Hayes doou o dinheiro a uma paróquia de Cranston, como me foi confirmado pelo sacerdote. E o Dan Rosen estourou o dinheiro no casino de Foxwoods, como foi corroborado pelo Vincent Pesaturo. Parece que Mister Rosen tem um problema com o jogo.

- O que quer dizer que nós agora temos um problema.

- Pois. Pelo menos como as coisas estão agora, nenhuma das vítimas conhecidas nem as suas famílias são suspeitas, nem sequer o Vinnie Pesaturo.

- Onde é que pretende chegar com isto, sargento?

Griffin soltou uma gargalhada. Era a gargalhada oca e tensa de um detective que vê a sua teoria ir por água abaixo.

- Bem, restam-nos dois ângulos. Primeiro, agarramo-nos à teoria da vingança e vamos atrás da possibilidade de ter havido outras vítimas do Violador de College Hill. Vítimas que nunca apresentaram queixa à polícia.

A tenente ficou em silêncio durante uns momentos.

- É uma teoria interessante.

- É, não é? Foi a Jillian Hayes e a mãe que a desenvolveram. Lembre-se, a violação é um crime muitas vezes mantido em segredo. Confirmei com o Fitz e no início eles exploraram esse ângulo. Compararam o caso com outros do Programa de Apreensão de Criminosos Violentos, e assim por diante. Não encontraram nada semelhante, mas isso não quer dizer nada. Se existem outras vítimas, elas podem nunca ter ido à polícia.

- Tentaram a linha SOS para mulheres violadas e a organização que acolhe mulheres violadas?

- Hum... não.

- Bem, então talvez queira mandar lá alguns detectives, sargento. Uma organização destas não lhe dará nomes, mas podem dizer-lhe se receberam algum telefonema de alguém que tenha sofrido um ataque semelhante. Assim pelo menos saberá se está na pista certa.

Hum, bem visto.

- É por isso que antes do meu nome tenho a palavra "tenente". Qual é a sua outra teoria?

- Envolve o caso Sylvia Blaire. O Fitz espera que seja um imitador, está mesmo a rezar por isso, mas há outros problemas com essa teoria.

- O duche vaginal.

- Para uma tenente que se diz negligenciada, a senhora está muito bem informada - comentou GrifTin.

- Para que saiba, hoje estou muito bonita. Para além disso, o tenente Kennedy, de Providence, tem um fraco pela minha irmã. E é só por causa disso que o detective Fitzpatrick ainda não lhe torceu o pescoço. Bem, isso e o facto de o detective Fitzpatrick ter outros problemas neste momento.

- Obrigado por me ter dito isso - retorquiu GrifTm. - bom, está bem. O Fitz e eu tivemos uma conversa muito interessante esta manhã sobre o caso Sylvia Blaire. Uma das possibilidades é o Eddie Como ter tido duas vidas, uma como noivo apaixonado, e outra como criminoso sexual. E talvez o Eddie criminoso sexual tivesse alguns amigos a quem gostava de se gabar.

- Amigos da copofonia?

- Talvez.

- Que conheciam todos os pormenores do que ele fazia, incluindo o duche vaginal?

- A ideia é essa.

- Mais uma ideia interessante - comentou Morelli. - Mas porquê apenas um amigo da copofonia? Por que não um verdadeiro cúmplice? Já vimos antes duplas de violadores.

Griffin encolheu os ombros.

- Nas vítimas só se encontrou um tipo de esperma. E a Carol e a Jillian dizem só ter visto um homem.

Morelli ficou em silêncio por uns momentos.

- E se a segunda pessoa fosse um cúmplice passivo? Fizesse a vigilância do local?

- Ah! - exclamou Griffin.

- Sou boa, não sou, sargento?

- É boa, sim - concordou ele. - As horas! Isso explicaria as horas. Dá ideia que com a primeira vítima, a Meg Pesaturo, foi entrar e sair. Como se o violador tivesse medo de ser apanhado. Mas passou bastante tempo com a Carol, que sempre foi considerada uma substituta de última hora. Por que é que ele não estava preocupado com a possibilidade de alguém poder aparecer? E parece que o violador também esteve bastante tempo no apartamento da Trisha Hayes. Já terminara a violação quando a Jillian chegou, mas ainda não se fora embora E, embora em teoria a Jillian o tenha apanhado de surpresa, ele sabia que ela viria. Escondeu-se e atacou-a por trás. Creio que parte desta demora dele nas cenas dos crimes Rosen e Hayes se deve ao seu crescente apetite pela violência. Precisava de cada vez mais para sentir a mesma excitação. Mas talvez tivesse alguém a vigiar o local, ou tivesse encontrado um ajudante pelo caminho. Alguém cuja profissão lhe permitia sentir-se seguro para demorar o tempo que quisesse. Só que no caso da Trisha Hayes, quando alguém apareceu inesperadamente, o apartamento ficava numa cave e tinha apenas uma porta. Por isso ele não pôde fugir sem ser visto. O melhor que podia fazer era esconder-se e atacar quem aparecesse.

- E agora o cúmplice dele já não é apenas o vigilante? - perguntou Morelli.

- Talvez não. Hum, isso poderia explicar o incidente de ontem à noite em casa das Hayes. Alguém escreveu com um spray "O Eddie Como está vivo" numas janelas. Se calhar é isso que o tipo julga que está a fazer. A perpetuar a tradição do Eddie Como.

- Mas essa pessoa também teria motivos para matar o Como, certo? Tanto para encobrir o que fizera no passado, como para o que estava a pensar fazer no futuro.

- Sim, talvez. Quando o Fitz falou disso esta manhã achei que ele estava a exagerar. Mas por outro lado...

- Tem por base uma mudança de comportamento. - Morelli pensava em voz alta. - O perpetrador número dois estava disposto a ser apenas o vigilante, e agora ascendeu à posição de criminoso sexual... e homicida.

- Mas não deixa de ser comum um nível crescente de envolvimento nos crimes sexuais - acrescentou Griffin. - A maior parte dos violadores começa com fantasias de bondage, depois exerce pequenas violências sobre mulheres... como agressões... antes de passar à violação. Neste caso, temos um perpetrador que está bastante interessado na violação. Acompanha um violador, e desempenha um papel nos crimes. O seu primeiro incidente a solo envolve um grande nível de violência, homicídio... Isso também não se encaixa no padrão, mas pode haver circunstâncias atenuantes. Se a Sylvia Blaire foi atacada pelo sócio do Como, o tipo passou um ano sem fazer nada. Talvez a tensão tenha chegado a um ponto insustentável. Ele viu uma vítima potencial e enlouqueceu.

A tenente Morelli ficou em silêncio. Ele percebeu que ela também tinha de pensar no assunto.

- Vale a pena seguirmos essa teoria - disse ela por fim. - Então posso dizer ao tenente Johnson que você anda à procura de associados do Eddie Como enquanto possíveis suspeitos no nosso homicídio?

- Pode.

- Acho que é isso que irei dizer. Os tipos de Providence já têm problemas que cheguem e não precisam de sentir que também estão em guerra connosco.

- Providence tem problemas - concordou Griffin.

- A propósito...

Ele sabia o que vinha a seguir. Apertou o telemóvel com mais força, mas pelo menos continuou a respirar normalmente.

- Sargento, por acaso falou com o cabo Charpentier do estabelecimento prisional?

- Ainda não. Mas isso já me chegou aos ouvidos.

- Ninguém aqui está a levar o tipo a sério - disse ela.

- Agradeço.

- Por outro lado... Ele ficou calado.

- Este caso está a aquecer - acabou Morelli por dizer. - Está a ganhar vida própria. Você sabe o que acontece quando um caso ganha vida própria.

- Estou em cima dele.

- Urgência, sargento. Precisamos de dá-lo por encerrado. Depressa. Antes que as pessoas fiquem mais assustadas. Antes que o advogado da Tawnya Clemente consiga reunir mais munições. E antes que a comunicação social se aperceba que há um homem na prisão que afirma ter informações relevantes para o caso. Entendido?

Griffin fechou os olhos. Entendia perfeitamente. Estava a chegar a casa. O Taurus azul de Waters encontrava-se já ali e Griffin viu o detective sentado ao volante.

- Tenho de desligar - disse ele.

- Amanhã de manhãzinha...

- Deixo o relatório na sua secretária.

- Pode crer que deixa. E entretanto?

- vou mandar detectives às associações de acolhimento às vítimas de violações e aos bares de Cranston.

- Boa sorte, sargento.

- Pois. - Griffin desligou o telemóvel, pensando em Carol no hospital e em Price atrás das grades. - Boa sorte.

 

Waters

O detective Mike Waters saiu do carro envergando já umas calças de fato de treino cinzentas e uma T-shirt branca com o emblema da Polícia Estadual de Rhode Island. Pôs ao ombro um saco de ginástica azul-escuro e esperou que Griffin destrancasse a porta da frente. Nenhum deles metera o carro na garagem; Griffin tinha lá os halteres e o equipamento de boxe.

- Bela casa - comentou Mike ao ver a pequena casa branca. Griffin sorriu.

- Se vires bocados do chão com ar duvidoso, não metas lá os pés. Confia em mim.

Abriu a porta e avançou. Comprara a casa havia seis meses, necessitando começar de novo e encontrar um passatempo diferente. A casa encontrava-se numa zona óptima. North Kingstown. com vista para o rio. Num dia límpido, podia sentar-se no alpendre das traseiras e ver para lá da Ponte Newport. Era um local calmo. Muitas aves, algumas raias centenárias lindas. Por outras palavras, a casa em si era um autêntico casebre. Uma pessoa a sério - isto é, uma pessoa com dinheiro - tê-la-ia deitado abaixo e começado do princípio. Contudo, depois da sua doação generosa à Liga Americana contra o Cancro, Griffin não dispunha de muito dinheiro.

Para além disso, gostava de viver perigosamente.

- Ouvi dizer que estavas a arranjá-la. - O tom de Mike era agora mais de dúvida. Entrou lançando um olhar crítico ao chão de madeira com manchas de água, depois ao tecto de gesso a desfazer-se.

- Trabalhei nela durante seis meses todos os dias - disse Griffin.

- Não acredito!

- Comecei pela instalação eléctrica, depois passei para a canalização, a seguir para o telhado. Agora falta-me só a cozinha, a casa de banho, os tectos, o chão e três paredes do quarto. Oh, e o alpendre das traseiras. E acho que um bicho qualquer rastejou para baixo da garagem e morreu lá.

- Então... estará pronta antes da extinção da humanidade?

- Esse é o meu plano. - Griffin dirigiu Mike para a pequena cozinha. O chão era de linóleo cor de terra, vindo directamente dos anos 40. O fogão, verde-azeitona, também da mesma década. Já o frigorífico era uma caixa pequena dos anos 50. Griffin baixou o manipulo metálico e suspirou de alívio ao ver que a porta se abria mesmo. - Uma cerveja? Um refrigerante?

- Só depois.

- Como queiras.

Griffin desapareceu no quarto do primeiro andar, vestiu o fato de treino, depois conduziu Mike até à garagem. Tinha um equipamento de boxe simpático. Também não vinha dos seus dias endinheirados. Não, ele andava a comprar aquelas peças desde que saíra da faculdade. A sua primeira compra, claro, fora o saco de areia Everlast suspenso a um canto por uma corrente. Ao lado encontravam-se duas speed balis de couro com duas bolsas de borracha especialmente inseridas para um maior rechaço. Se a pessoa pestanejasse na altura errada, uma daquelas coisas podia fazê-la desmaiar - ou pôr-lhe um olho negro. Griffin sabia bem o que isso era.

Dirigiram-se primeiro para o canto do boxe. Mike fora peso leve na faculdade. Parecia demasiado magro para o desporto, mas, o que lhe faltava em volume, sobrava-lhe em alcance e velocidade. Da primeira vez que ele e Griffin se tinham enfrentado no ringue, ele socou Griffin quatro vezes antes de este sequer perceber o que estava a acontecer. Claro que, com mais vinte quilos em cima, bastou a Griffin um único soco para pôr fim ao confronto. Depois disso limitaram-se ao saco de areia.

Waters abriu o fecho do saco de lona azul. Tirou uma protecção para o rosto, daquelas usadas pelos apanhadores nos jogos de basebol, e colocou-a.

Griffin estacou. Tinha percebido a indirecta e não sabia como reagir. Por fim decidiu-se por um sorriso.

- Assim bato-te no resto do corpo - preveniu, e ficou aliviado ao ver que Mike retribuía o sorriso.

- Não me parece - respondeu Waters. - Tenho ido aos treinos. Sabes o que um gajo tem de aturar quando o melhor amigo lhe parte o nariz?

- Ah, toda a gente percebeu que tu eras lento?

- Lento? Bolas, deixaram-me no cacifo um daqueles narizes de palhaço. Até o pus um dia para os fazer sentirem-se culpados.

- E resultou?

- Não. No dia seguinte deixaram-me uns sapatos de palhaço. Os detectives têm muito tempo livre...

Mike endireitou-se. Deixou a protecção no rosto e colocou-se atrás do saco de areia.

- Tiveste sorte com as visitas aos bares? - perguntou Griffin.

- Ainda não. Mas só fui a seis. Volta a fazer-me a pergunta amanhã.

Griffin resmungou qualquer coisa e meteu mãos à obra. Começou devagar. Aqueceu os músculos e pensou que daquela vez devia demonstrar um pouco de autodomínio junto a Mike. Mas o dia fora longo, o caso difícil. Andava a pensar demasiado em Eddie Como, se ele teria sido ou não o perpetrador número um, se haveria ou não um perpetrador número dois. Depois pensou em Carol, da qual ainda não havia notícias. E a seguir em Jillian Hayes, na forma como os seus olhos pareciam ouro derretido quando ficava zangada, na forma como os dedos dela tinham apertado o seu braço havia apenas uma hora.

Deu uma coça monumental ao saco de areia. Até Waters estava ofegante quando ele terminou. O detective não disse nada. Fez um gesto com a cabeça e trocaram de lugar.

Segurar o saco para que Mike batesse nele não foi muito difícil. Mike não tinha uma constituição física que lhe permitisse bater com muita força. Mas gostava de trabalhar o alvo de forma minuciosa; Griffin já o vira fazer aquilo antes. Transformava o saco no substituto de um ser humano, depois atacava diversos pontos. Rim, rim, rim, directo da direita. Estômago, estômago, estômago, directo da esquerda.

Griffin descontraiu-se, deixou o corpo mexer-se livremente e permitiu que a sua mente vogasse. Já há muito que não treinava com alguém. Isso dava-lhe uma certa dose de conforto. O cheiro do giz e do suor. O calor dos corpos a exercitarem-se. O silêncio de homens que não precisavam de falar.

Depois Griffin foi levantar pesos enquanto Mike se divertia a saltar à corda. A seguir Griffin entreteve-se com os speed bags enquanto Mike levantava pesos. Uma hora passou, ficaram ambos exaustos, agarraram em duas cervejas, num jarro de água e foram para o alpendre das traseiras.

O Sol começava a pôr-se. Ao longe, as luzes da Ponte Newport brilhavam como estrelas e a brisa soprava da água e fazia com que eles ficassem com pele de galinha por causa do suor. Mike vestiu uma camisola de manga comprida. Griffin um pulôver.

Continuaram calados.

Tocou um telemóvel. Griffin foi lá dentro atendê-lo. Era do hospital. Carol Rosen fora transferida para os cuidados intensivos. Tinham-lhe feito a lavagem ao estômago, mas ela continuava inconsciente. Os médicos queriam mante-la sob vigilância.

Quando regressou ao alpendre, Waters acabara a água e abrira as duas cervejas. Estendeu a lata vermelha e branca de Budweiser a Griffin quando este se sentou.

- Estou a ver que continuas a comprar a melhor - disse Mike.

- Absolutamente.

Voltaram a cair no silêncio. Por fim, dez, vinte, trinta minutos mais tarde, não importa, Mike falou.

- Ainda sentes a falta dela?

- Todos os dias.

- Eu também. - Mike fitou-o. - Foi difícil, com o teu afastatnento. Fiquei com a sensação de que vos tinha perdido a ambos.

Griffin não comentou. Ele e Mike já se conheciam havia quinze anos. Mike estivera presente na sua primeira promoção a detective. Estivera presente quando ele regressara de uma caminhada pelas montanhas só a falar de uma mulher que conhecera. Fora padrinho de casamento de Griffin e de Cindy, e a seguir, numa bela tarde de Primavera, ajudara a carregar o caixão dela. Às vezes Griffin tinha dificuldade em lembrar-se que a dor não era exclusivamente sua.

- O David Price era um merdas - declarou Waters abruptamente.

- E escondeu-o muito bem, não só de ti. Mas já acabou. Ele teve o que mereceu. Não lhe dês mais.

- Eu sei.

- Óptimo. Ela havia de querer que fosses feliz, Griffin. Nunca quis para ti menos do que quis para ela.

- Não foi justo, sabes?

- Sei.

- Essa foi a parte mais difícil. Se penso nisso... - Rodou a lata de cerveja nas mãos. - Se me concentro nisso, começo novamente a enlouquecer.

- Então não penses nisso.

Griffin suspirou. Voltou a contemplar o oceano escuro.

- Sim. As coisas acontecem como acontecem. As pessoas que julgam controlar a vida... não estão é a prestar atenção.

- Amen - concordou Waters. Entrou em casa e trouxe mais duas cervejas.

- Falaste com o cabo Charpentier? - perguntou GrifFm mais tarde.

- Sim.

- E?

- O David Price não sabe nada.

- Tens a certeza?

- O cabo Charpentier localizou o Jimmy Woods, antigo companheiro de cela do Como, e o tipo está a cumprir pena noutra prisão. Segundo o Woods, o Eddie Como passou o tempo todo na prisão a lamuriar-se. Estava sempre a dizer que era inocente, e que tudo aquilo não passava de um erro horrível.

- Foi isso que o Woods disse?

- Foi. Para ser minucioso, o Charpentier falou com o Price. O Price disse que o Woods estava a mentir, mas o Charpentier não se deixou impressionar. Até perguntou ao Price se ele sabia quem tinha morto a Sylvia Blaire. Sabes o que ele respondeu?

- Não.

- Disse que fora o Eddie Como. E depois desatou a rir-se.

 

Cair da noite. Meg estava sentada no chão do quarto da irmã, a entrançar o cabelo da nova Barbie dela, mas na realidade a tentar fingir que não reparava na escuridão cada vez mais intensa do lado de fora da janela do primeiro andar - nem no som das vozes dos pais a discutirem no corredor.

- O vestido cor-de-rosa - anunciou Molly, de cinco anos. Vasculhara durante dez minutos a caixa de sapatos cheia de roupas da Barbie, tentando encontrar o fato perfeito

para o casamento da boneca. Molly não tinha o Ken, por isso a Barbie iria casar-se com o ursinho Winnie. O ursinho parecia bastante animado com aquilo tudo. Vestira para a ocasião uma capa cor-de-rosa nova. Molly adorava o cor-de-rosa.

A pequenita estendeu-lhe um vestido comprido de lantejoulas, mais apropriado para a cerimónia dos Óscares do que para um casamento, mas Meg vestiu-o à boneca.

- Talvez devêssemos contar a alguém - disse a mãe no corredor.

- De maneira nenhuma! - respondeu a voz abafada do pai.

- Que tal à Jillian...

- Não.

- Ao sargento Griffin?

- Bolas, Laurie, isto é um assunto de família. Se já chegámos até aqui não é agora que vamos envolver desconhecidos no assunto.

- Sapatos - declarou Molly. Olhou para a irmã e franziu o sobrolho. Já era difícil encontrar um par de sapatos dos adultos naquela casa, e muito mais seria descobrir os minúsculos pares plásticos da Barbie.

- Ela podia casar-se descalça - sugeriu Meg.

- Não! - exclamou Molly, chocada.

- O Winnie não tem sapatos - observou Meg. A irmã revirou os olhos.

- O Winnie é um ursinho. Os ursinhos não usam sapatos, toda a gente sabe isso.

- Os ursinhos usam capas?

- Sim, capas cor-de-rosa, porque é a cor preferida da Barbie e o marido dela tem de saber que a sua cor preferida é o cor-de-rosa.

"Vermelho-escuro", pensou Meg. A cor da realeza. A cor preferida dele. Quem era ele? Como sabia ela isso?

- Estou preocupada... - A voz da mãe elevava-se no corredor.

- Ora, querida...

- Não! Não me venhas com o "querida"! Por amor de Deus, tom! Os médicos disseram-nos que a memória dela regressaria pouco tempo depois. A amnésia induzida por traumas não costuma durar tanto tempo, nem ser tão completa. Mas ela parece não se lembrar de nada. De nada. E se está pior do que julgamos?

- Vá lá, Laurie. Já a viste. Ela está feliz. E se não se lembrar de nada? Se calhar é melhor para todos ela ter esquecido.

- Ou talvez ela odiasse assim tanto a vida que levava. Já pensaste nisso, tom? Talvez aquilo que nós fizemos... Oh, meu Deus, se calhar afectámo-la irremediavelmente!

- Sapatos. - gritou Molly. Despejou o conteúdo da caixa cheia de roupas da Barbie e tirou do meio da confusão um par de sapatos vermelhos vivos com saltos do tipo anos 70 e que provavelmente viera a acompanhar o trajo hippie da boneca ou umas calças de ganga. Molly tirou a Barbie das mãos de Meg e calçou-lhe os sapatos, completando assim a toilette cor-de-rosa de casamento. "Tão cedo não se verá uma indumentária daquelas num anúncio da Mattel", pensou Meg. Mas Molly parecia bastante contente.

- Está na altura do casamento - disse Molly com um grande sorriso. - Tã-tã-tari, tã-tã-tarã...

- Eu caso contigo...

- Não... não...

- É por causa deles, não é? Bem, que se fodam! Eu fujo contigo. Irei fazer-te feliz. Vá lá, Meg, doce Meg, minha querida Meg...

- Tenho medo.

- Não tenhas. Não vou permitir que alguém te faça mal, Meg. Nunca.

- Tenho medo - estava a mãe dela a dizer. - E se um dia ela se lembra de repente? Pum! Assim sem mais nem menos. E se ela não está preparada?

- Os médicos dizem que, se ela se lembrar, está preparada.

- Oh, por favor, os médicos também disseram que não havia motivo para ela se ter esquecido de tanta coisa. Tens de encarar a realidade, tom, os médicos não sabem nada. É amnésia. Uma coisa cerebral, mental. Eles inventam as coisas enquanto vão avançando.

- Laurie, querida, o que é que queres?

- Quero que ela seja feliz! Quero vê-la em segurança. Oh, tom, e se tivéssemos sido nós a chegar a casa hoje e a encontrar a Meg desmaiada por causa de uns comprimidos? Se o trauma de ter sido brutalmente violada é demasiado para uma adulta, o que achas que será para a Meg?

- Meg? - chamou Molly.

Meg pestanejou. O quarto cor-de-rosa da irmã voltou a aparecer focado. Estava novamente sentada no chão. A irmã mais nova encontrava-se ao seu lado, a observá-la com ansiedade.

- Não te sentes bem? - perguntou a Molly. Ainda segurava a Barbie na mão direita.

- Eu, hum, eu... - Meg tocou na cara. Tinha a pele coberta de suor. Também arrefecera e estava peganhenta. - Acho que é só uma dor de cabeça. - Sorriu debilmente

para a irmã.

- Casa comigo.

- Não posso...

- Casa comigo.

O seu estômago começou às voltas. Por momentos, achou que iria vomitar. E depois, de repente, num recanto da sua memória:

- Fedelha de um raio! Corre para casa, para os papás. Vai refugiar-te atrás das suas mentes tacanhas e da sua maldita panaceia suburbana. Não queres o meu amor? Então eu fico com ele outra vez. Odeio-te, odeio-te, odeio-te...

-Meg?

- Só... um minuto.

Depois novamente no corredor:

- Não quero que ela acabe como a Carol. Não conseguiria suportar se ela acabasse como a Carol. Oh, tom, e se não a ajudámos o suficiente?

- M... Meg?

- Odeio-te, odeio-te, odeio-te...

- Os médicos dizem que ainda não sabem se a Carol vai safar-se. A Meg é bastante amiga dela. E se a Carol morre? O que acontecerá? Meu Deus, o que acontecerá então?

Meg levantou-se de repente. Cambaleou para fora do quarto de Molly.

- M... Meg?

Avançou devagar pelo corredor.

- Odeio-te, odeio-te, odeio-te...

- E se a Carol morre, e se a Carol morre... Meg levantou a tampa da sanita. Inclinou-se...

Nada. Nem sequer almoçara. Esquecera-se de jantar. O estômago andava às voltas, às voltas, mas não havia nada para deitar fora. Dirigiu-se ao lavatório. Abriu a torneira da água fria. Meteu a cabeça deaixo da torneira e deixou que o fluxo gelado lhe afastasse as imagens distantes do cérebro.

Passaram-se alguns minutos. Vários minutos, frescos, enquanto a água deslizava pela sua pele transpirada e abafava todas as vozes na sua cabeça. Agua fresca, fresca a devolver o abençoado vazio ao seu cérebro.

Quando finalmente levantou a cabeça, viu que os pais estavam à porta. O pai parecia o estóico habitual. A mãe, por outro lado, tinha um braço pousado na barriga e a mão direita a mexer no coração de ouro que lhe pendia de um fio.

- Meg, querida? - perguntou a mãe.

Meg endireitou-se. As vozes estranhas e os rumores ténues regressaram ao recanto da sua mente. Como cenas longínquas, ameaçando aproximar-se cada vez mais.

Meg pegou numa toalha e limpou o rosto.

- Estás bem, querida? - perguntou o pai.

- Só um pouco enjoada. Foi por ter passado tanto tempo no hospital, sabes? - Esboçou um ligeiro sorriso.

- Tenho a certeza de que a Carol vai ficar bem - disse a mãe vigorosamente. A sua mão direita agora rodava furiosamente o coração de ouro.

- Claro. - Meg fechou a torneira. Pendurou a toalha. Passou um pente pelo cabelo castanho comprido.

- Se precisares de alguma coisa... - disse o pai.

- Eu estou bem, paizinho.

- Nós gostamos muito de ti. - Desta vez a mãe.

- Eu também gosto muito de vocês.

O que estavam eles a fazer? A dizerem palavras, mas nenhuma das que interessava dizer. Mentiras. Nunca se tinha apercebido disso antes, mas às vezes o amor produz mentiras. Grandes mentiras. Mentiras gigantescas, todas muito bem embrulhadas e oferecidas com a melhor das intenções. A protecção através da falsidade. Era isso mesmo uma panaceia suburbana.

Os pais continuavam à porta da casa de banho. Ela continuava junto ao lavatório. Ninguém parecia saber o que fazer.

- Eu, hum... tenho de ir a um casamento - disse Meg.

- A um casamento?

- Da Barbie e do Winnie. Não foram convidados?

- Oh, a Molly está de novo a casar a Barbie. - A mãe descontraiu-se finalmente. A sua mão deixou de mexer no coração de ouro.

- O vestido cor-de-rosa?

- Claro.

- Sapatos vermelhos de salto alto?

- A miúda tem imenso estilo!

- bom, então vai lá! - A mãe desviou-se, fazendo-lhe sinal para que passasse. - Não queremos empatar o verdadeiro amor.

- Odeio-te, odeio-te, odeio-te.

- Então está bem. - Meg voltou a arvorar o sorriso. Avançou até ao quarto, onde Molly a

aguardava de pé, sem saber o que fazer, ainda com a Barbie na mão.

- Vamos lá fazer esse casamento! - exclamou Meg com uma alegria fingida.

Molly olhou para ela e ficou radiante.

Horas mais tarde, a família Pesaturo foi deitar-se. Um a um, os pequenos quartos da pequena casa foram ficando às escuras. Meg apagou a sua luz. Mas não foi para a cama. Foi até à janela. Parou em frente à janela.

- Qdeio-te, odeio-te, odeio-te.

Olhou para a noite lá fora, para a escuridão que a aguardava. Aqueles olhos cor de chocolate. O beijo meigo de amante.

- David - murmurou ela, passando a língua pelos lábios e tentando novamente o nome. - David. Oh, não. David Price.

À meia-noite, Jillian saiu finalmente do hospital. Carol ainda não recobrara os sentidos. Tinham-lhe feito uma lavagem ao estômago, purgado o corpo. Naquele momento jazia tranquilamente sob os lençóis alvos do hospital, o cabelo louro comprido a formar um halo em redor da cabeça enquanto um monitor cardíaco emitia bipes ao ritmo do seu pulso e um ventilador lançava ar para os seus pulmões.

Coma, diziam os médicos. Ingerira quase 125 mg de Ambien, ou seja, doze vezes a dose recomendada. Combinado com o álcool, "desligara-lhe" quase todo o sistema, ao ponto de ela responder apenas a estímulos dolorosos. Os médicos iriam fazer-lhe mais testes na manhã seguinte, ver se ela começava a regressar à normalidade assim que os níveis de soporíferos e de álcool no seu sangue diminuíssem. Por outras palavras, iriam espetar o seu pobre e tranquilo corpo. Ver se lhe conseguiam provocar dores suficientes para a trazerem de regresso à vida.

Dan continuava no quarto. Ocupava uma cadeira ao lado da cama de Carol, e fora aí que finalmente adormecera com a cabeça apoiada na cama, a mão a agarrar no pulso dela. À porta da Unidade de Cuidados Intensivos, Jillian vira uma enfermeira cobrir-lhe os ombros com um cobertor. A seguir Jillian saíra do hospital.

A noite estava fria, e o choque da temperatura foi como que uma bofetada para ela. Ainda tinha vestido o rato da manhã, sem casaco nem cachecol. Curvou os ombros sob o casaco azul e estremeceu enquanto caminhava. O parque de estacionamento estava quase vazio àquela hora da noite. De certeza que já lá não se encontravam jornalistas.

No mundo das notícias, a tentativa de suicídio de Carol já era velha. Já passara à história. Ás seis horas da tarde, a notícia mais importante era o processo que Tawnya Clemente iria instaurar à cidade.

Céus, como Jillian estava cansada.

Junto ao carro, executou os gestos habituais. Espreitou para o banco de trás pelo vidro. Olhou para os carros mais próximos a ver se ali havia alguém. Destrancou a porta com a mão esquerda. Segurou o spray de gás pimenta com a direita. Estar preparada eram nove décimos da batalha. Se não queres ser uma vítima, então não podes agir como uma.

Entrou no Lexus, trancou imediatamente as portas e a seguir pôs o motor em funcionamento. Olhou novamente para o banco de trás. Apenas espaço vazio e escuro. Então por que sentia arrepios?

Meteu a marcha atrás, virou-se e quase se pôs aos gritos.

Não. Eddie Como. Não. Estava tudo na sua cabeça, na sua cabeça. O banco de trás encontrava-se vazio, o parque de estacionamento também. Tornou a virar-se para a frente, colocou o carro em ponto morto e ficou ali a tremer descontroladamente, o medo a invadi-la.

Era um ataque de pânico, percebeu pouco depois enquanto tentava acalmar a respiração. No início estava sempre a tê-los. Já passara algum tempo desde o último, mas, por outro lado, aquele fora um dia difícil. Primeiro Sylvia Blaire. Depois Carol.

Oh, céus, Carol...

Jillian encostou a cabeça ao volante e, subitamente, começou a chorar. Era já a segunda vez naquele dia. Um recorde. Mas era incapaz de parar. Os soluços subiram do seu âmago escuro, zangados, cruéis, desolados, até o estômago lhe começar a doer, os ombros lhe começarem a doer, mas ainda assim as lágrimas rolavam, amargas. Era por isso que ela não costumava chorar. Porque não havia nada terno nem trágico no seu sofrimento. Chorava como um camionista, e depois parecia um monstro, com manchas vermelhas na cara e o rímel borrado nos olhos.

E se o sargento Griffin a visse naquele momento? Só de pensar nisso teve de novo vontade de chorar, embora não soubesse porquê.

Iria ligar-lhe. Ele deveria atender o seu telefonema, embora já passasse da meia-noite. Provavelmente até a deixaria falar da irmã e da dor que não se atenuava e do sofrimento que não tinha fim. Ele ouviria aquelas coisas. Parecia ser esse tipo de homem.

No entanto, ela não pegou no telemóvel. Talvez não fosse esse tipo de mulher, o tipo que ainda acreditava no príncipe encantado. Ou talvez fosse, mas Meg tinha razão e ela não estava pronta para deixar de se castigar pela morte da irmã.

Ou talvez tudo não passassem de balelas de psicologia, e a questão era ela não estar pronta. Ainda tinha saudades da irmã. E continuava muito apegada à memória dela e cheia de remorsos. Agora estava também preocupada com Carol e, como sempre, preocupada com a mãe, e havia ainda aquela questão de mais uma pobre estudante assassinada e quem sabia realmente o que mais estava a acontecer naquela noite escura?

Merda! Jillian engatou o carro. Saiu do parque de estacionamento.

Em casa, as luzes exteriores brilhavam como se o local fosse uma pista de aterragem. Mandara instalar três projectores novos nessa manhã e provavelmente os vizinhos haviam tido de pôr óculos escuros para irem para a cama. Bem feito. Talvez essa fosse a pior tragédia que tivessem de enfrentar.

Jillian passou pelo carro-patrulha estacionado na rua. Os dois agentes no seu interior cumprimentaram-na com acenos de cabeça. Ela acenou-lhes com a mão. Então Griffin também cumprira a sua promessa.

Entrou na garagem seguindo a rotina habitual. Portas ainda trancadas. Olhar pelo retrovisor até a porta estar completamente fechada. Verificar todos os recantos escuros da garagem à procura de vestígios de intrusos. A costa parecia livre. Ela destrancou finalmente a porta do carro e entrou em casa.

Toppi deixara-lhe um prato coberto com película aderente na bancada. Uma sandes de frango, para o caso de ela ter fome. Jillian meteu o prato no frigorífico, serviu-se de um copo de água e fez a inspecção à casa. Portas ainda trancadas. Janelas fechadas. Nada fora do sítio.

A casa estava em silêncio àquela hora da noite. Ouvia-se apenas o tiquetaque do relógio no corredor e uma ressonadela ocasional junto à porta do quarto de Toppi.

Já era uma da manhã. Jillian devia deitar-se. Continuou às voltas pela casa, impulsionada por algo inexplicável.

Teria falhado com Carol? No passado, Carol e Meg haviam-na acusado de carregar demasiada culpa. Depois, naquela tarde, Griffin dera a entender que ela assumia demasiada responsabilidade pelas coisas. Ninguém podia manter toda a gente a salvo.

Mas era a sua função. Desde sempre. Libby levara uma vida rebelde. Jillian segurara as pontas. A pequena Trisha precisava de estabilidade. Jillian criara-lhes um lar. A saúde da mãe piorara. Jillian acolhera-a também. Eram a sua família, ela amava-as e com o amor vinha a responsabilidade. Por isso ela fizera tudo o que podia por elas. Só que nunca as deixara aproximarem-se muito.

Tal como fizera com Carol e Meg.

Ocorreu-lhe pela primeira vez - estaria a sentir culpa pela morte de Trisha, ou por não a ter amado mais em vida? Todos aqueles Verões passados com Trisha a correr pela praia, e Jillian sentada sozinha sob o chapéu-de-sol. Por que não correra pela areia com a irmã? Por que não chapinhara na água com ela? Do que teria tido medo?

A forte e responsável Jillian nunca tivera uma relação séria com ninguém. A séria e independente Jillian que não pensava noutra coisa que não fosse no trabalho. A solitária e orgulhosa Jillian que avançava pela vida como se esta fosse um campo de batalha não querendo que ninguém a levasse prisioneira. Não a mãe. Não a irmã. Não o Eddie Como nem o Clube das Sobreviventes.

A estúpida e pobre Jillian que, com trinta e seis anos, ainda sabia tão pouco sobre o que era importante na vida. Griffin tinha razão. Trisha amara-a. E Jillian não devia ter demorado quase um ano a aperceber-se disso.

Jillian avançou para o corredor. Tornou a pensar em Trisha e nos dias que não haveriam de voltar. E a seguir pensou na mãe e nos anos que tinham pela frente. A orgulhosa e determinada Libby, a bater com o dedo no livro de imagens. A triste e silenciosa Libby, que gostaria tanto de visitar o túmulo da filha. Jillian foi até ao quarto da mãe.

Abriu a porta. Viu Libby deitada na cama, iluminada pela luz de presença azul. Libby tinha os olhos abertos. Estivera a olhar para a porta e naquele momento olhava para Jillian.

- Estavas à espera que eu chegasse a casa - disse Jillian, genuinamente surpreendida.

A mãe bateu com o dedo na colcha.

- Querias ter a certeza de que eu chegava a casa em segurança. O dedo da mãe repetiu o movimento.

Jillian entrou mais no quarto.

- Já podes descansar, mãe. Estou... em segurança. - E a seguir:

- E também te amo, mãe.

A mãe sorriu. Estendeu os braços. E pela primeira vez desde pequena, Jillian avançou para o abraço da mãe. E não doeu assim tanto. Tantos anos depois o abraço parecia finalmente certo.

Entretanto, o relógio fazia tiquetaque no corredor. E os projectores iluminavam a casa. E os agentes continuavam no carro-patrulha, à espera de verem o que iria acontecer a seguir.

 

Gríffin

Quatro da manhã, madrugada de quarta-feira; o sargento-detective Roan Griffin rumou à esquadra em North Scituate. Estava adiantado. Bastante adiantado. O que era bom. Precisava de rever alguns interrogatórios, de reflectir em alguns depoimentos e de analisar os relatórios dos detectives. Depois precisava de elaborar uma cronologia dos acontecimentos. Oh, e queria fazer uma tabela e preenchê-la com as recentes descobertas acerca dos principais suspeitos. Isso haveria de deixar satisfeita a tenente Morelli.

Sim, Griffin conseguira dormir cinco horas seguidas na noite anterior. Não houvera novas violações, nem tiroteios, nem processos. Estava a sentir-se bastante alegre. Devia ter calculado.

Ao entrar no edifício foi imediatamente saudado pelo agente de serviço. Griffin retribuiu o cumprimento, depois continuou pelo corredor estreito banhado com uma luz amarela que levava aos Crimes Graves. O imóvel térreo castanho, construído nos anos 60 e que podia passar por um qualquer edifício governamental, estava dividido em várias alas. A Unidade de Identificação Criminal ocupava o canto direito ao fundo, e tinha uma sala grande para os cinco detectives e mais salas pequenas para os seus brinquedos - a sala do detector de mentiras, as duas salas com o Sistema Automático de Identificação de Impressões Digitais, a sala grande para processamento das provas, o laboratório fotográfico.

Em contraste com a UIC, os detectives dos Crimes Graves tinham direito a um pequeno canto na parte da frente do edifício, onde dispunham de cinco cubículos cinzentos apinhados numa sala alcatifada. Claro, achavam que ocupavam a sala mais simpática. O tecto, com uma altura de três metros, tinha apenas uma fracção das manchas de humidade encontradas no resto do edifício. Para além disso, os detectives não tinham papéis nas secretárias, apenas fotografias de família em belas molduras. Alguns detectives tinham trazido plantas ao longo dos anos, e naquele momento havia trepadeiras nas paredes dos cubículos. No geral, o local podia passar por um escritório de contabilidade - isto se os contabilistas tivessem uma parede do fundo com fotografias de pessoas procuradas e outra com um quadro branco contendo comentários sobre homicídios.

Griffin gostava do escritório dos Crimes Graves. Não era tão lúgubre como a esquadra de Providence onde Fitz trabalhava, por exemplo. O sítio devia ser demolido, e talvez fosse, assim que a nova esquadra acabasse de ser construída do outro lado da via rápida.

Griffin espreitou para o outro lado do corredor, onde a tenente Morelli tinha o seu gabinete. Estava vazio, óptimo. Ele podia sentar-se, ordenar os apontamentos sobre o caso e saber exactamente em que pé estavam as coisas do processo de Eddie Como antes das oito da manhã. Como um bom detective. Bolas, se calhar poderia surpreender todos e ter o caso solucionado às nove da manhã! Que grande convencido!

O optimismo de Griffin durou até às sete da manhã, altura em que o seu telemóvel tocou. Era Fitz e não parecia bem-disposto.

- Tem de chegar aqui - disse ele sem preâmbulo.

- Aqui onde?

- A Providence - respondeu Fitz, tenso. - Despache-se.

- Houve mais algum ataque?

- Venha até cá. Imediatamente. Antes que os jornalistas descubram. Fitz desligou. Griffin ficou sentado mais um momento a olhar para

o telemóvel. Ah, merda!

Pegou no casaco e dirigiu-se para a porta. A meio do corredor cruzou-se com Waters, que vinha a chegar. Mike movia-se com alguma rigidez nessa manhã, o que, noutras circunstâncias, teria deixado Griffin orgulhoso.

- Tenho de ir a Providence. Aconteceu qualquer coisa.

- Outro ataque? - perguntou Waters de imediato.

- Não sei. Ouviste as notícias esta manhã?

- Nada de novo.

- Bem, então o que quer que seja ainda não é do conhecimento geral. Isso é bom. Olha, podes falar com os outros detectives? Vê se eles estão a fazer progressos com os grupos de vítimas. Oh, e leva mais pessoas contigo aos bares de Cranston. Acho que vamos precisar de fazer progressos imediatamente.

- Está bem. Manténs-nos informados?

- Quando souber alguma coisa, serás o primeiro a ter conhecimento. - Griffin prosseguiu pelo corredor.

- Griffin! - chamou Waters. Griffin virou-se. - Eu ligo para a prisão. Para confirmar.

Griffin hesitou um momento.

- Está bem. Para confirmar.

Saiu pela porta, a boa disposição já a dissipar-se.

O Departamento de Polícia de Providence ficava logo à saída da 1-95, na baixa de Providence. O edifício envelhecido levava muito a sério o seu papel de esquadra urbana. Chão de linóleo cinzento rasgado, tectos com manchas de humidade, paredes sujas, canos à mostra. As opções de cor eram o sujo, o bastante sujo e o muitíssimo sujo.

Era completamente o oposto das instalações da polícia estadual em North Scituate. Não que houvesse ressentimentos ou coisa parecida.

Griffin chegou pouco depois das sete e meia. Deixou o Taurus na zona de estacionamento proibido junto à entrada principal. Um agente iria multá-lo só por vingança. Fitz tirar-lhe-ia a multa. Todas as organizações tinham os seus rituais.

Entrou pelas portas de vidro, passou por três jovens negros com calças de ganga largueironas e camisolas sem mangas que o olharam de forma funesta. Ele retribuiu o olhar e, como era maior, os rapazes desviaram primeiro o deles. Lá dentro havia um pequeno vestíbulo escuro. Griffin entrou pela porta à esquerda para outro pequeno vestíbulo, onde viu três recepcionistas atrás de um vidro à prova de bala. O espaço estava cheio de pessoas com vários pedidos. "Ó pá, tenho de ver fulano de tal." "Olhe, esta multa de estacionamento é treta!" As recepcionistas nada podiam fazer, claro, mas isso não impedia as pessoas de tentarem.

Griffin abriu caminho até ao vidro, exibiu o crachá e de imediato mandaram-no entrar pela porta principal para o coração, ou melhor, para as entranhas da esquadra. Sorte a dele.

Subiu pelas escadas. Só tentara uma vez o elevador e este gemera tanto e movera-se com tal esforço que ele jurara nunca mais repetir a experiência. Na opinião de Griffin, a polícia de Providence teria muita sorte se conseguisse evacuar o edifício antes que este lhe caísse em cima.

O gabinete dos detectives ficava no segundo andar, adjacente ao Gabinete de Investigação Criminal. Griffin tentou a sala principal, não viu Fitz, e seguiu para o vestiário. Também nada de Fitz, mas bastante arte; os detectives gostavam de colar fotografias dos casos mais interessantes nas portas dos cacifos. A vítima que estava dobrada ao meio quando atingida por um comboio. O corpo em avançado estado de decomposição que só fora encontrado várias semanas após a morte. Um par de mãos, cobertas de folhas de marijuana, encontrado no porta-bagagens de um carro que fora mandado parar numa operação stop de rotina. O corpo a quem pertenciam as mãos, encontrado no dia seguinte.

Griffin continuou a avançar pelo labirinto de minúsculas salas cinzentas até chegar ao fundo do corredor. Aí ficava o centro de processamento de provas, duas salas adjacentes, cada uma do tamanho de um roupeiro, cheias de ficheiros, mesas, equipamento e uma ligação ao Sistema Automático de Identificação de Impressões Digitais. Fitz encontrava-se de pé junto a uma mesa desdobrável, mergulhado numa conversa com um negro muito bem vestido que Griífin conhecia: o sargento Napoleon, chefe do Gabinete de Investigação Criminal. Os dois homens calaram-se assim que ele apareceu à porta, - Já não era sem tempo - murmurou Fitz.

- Você ligou, eu vim a correr - retorquiu Griffin alegremente. O rosto de Fitz tinha um rubor doentio. Os seus olhos estavam ainda mais encovados e o pouco cabelo ainda mais despenteado. Finalmente trocara de roupa desde a véspera, por isso devia ter ido a casa. Infelizmente, o intervalo não parecia ter-lhe feito bem.

- Griffin, Napoleon, Napoleon, Griffin. - Fitz fez as apresentações.

- Já nos conhecemos - disse Griffin quando ele e o sargento apertaram as mãos. Ao contrário de Fitz, Napoleon parecia animado. Tinha um brilho nos olhos, uma expressão

dinâmica. "êh, não!", pensou Griffin de imediato. "Quando os tipos da medicina forense ficavam excitados... Oh, não!"

- Você recebeu os relatórios - disse Griffin abruptamente.

- Sim - confirmou Fitz.

- O ADN?

Fitz olhou para a porta aberta.

- Sim - murmurou.

Griffin inclinou-se para a frente.

- E? - murmurou ele também.

- Encontrámos um igual - sussurrou Fitz.

- Bastante igual - enfatizou Napoleon.

- Sabemos quem violou a Sylvia Blaire - disse Fitz carrancudo.

- De acordo com o Departamento de Saúde, foi o Eddie Como.

- Isto só pode ser um engano - declarou Griffin cinco minutos mais tarde. Ele, Fitz e Napoleon tinham ocupado o gabinete do tenente, fechado a porta e continuado a conversa. Mantinham as cabeças próximas e as vozes baixas. Numa esquadra havia olhos e ouvidos em toda a parte.

- Claro que é um engano! - exclamou Fitz, baixando imediatamente a voz. - Um morto não podia violar e matar a Sylvia Blaire. Agora quer dizer-me quem foi?

Griffin virou-se para Napoleon.

- Poderá ser um familiar? Que tal um tio, um primo, um pai? Bolas, que tal um irmão há muito desaparecido?

Napoleon abanou a cabeça.

- Encontrámos um ADN igual em amostras recolhidas em sete locais. Vamos mandá-las para mais análises, mas o que temos aqui é uma amostra igual.

- Muito bem, então um irmão gémeo há muito desaparecido.

- Os gémeos não têm ADN igual. Seria parecido, sim, mas sete amostras igualzinhas...

Griffin passou a mão pelo cabelo.

- Merda!

- Não é o Eddie Como - murmurou Fitz. - Não é a porra do Eddie Como.

- Está bem, está bem! - Griffin ergueu a mão. - Sejamos lógicos. Partamos do princípio que o ADN recolhido na cena do crime da Blaire é de facto igual à amostra recolhida do Eddie Como. E se outra pessoa guardou sémen do Eddie Como e o pôs na cena?

Ele e Fitz olharam para Napoleon, que pelo menos parecia disposto a considerar a possibilidade.

- A primeira coisa que se procura nos esfregaços é sémen, para ver se se consegue obter algum ADN - observou Napoleon, pensativo. Ora, os espermatozóides só se mantêm vivos durante setenta e duas horas, pelo que se alguém tinha uma "amostra" do Eddie Como, por assim dizer, ela teria de ser fresca. De outra forma, os espermatozóides estariam mortos, os testes aos esfregaços dariam negativo em relação a sémen e nada mais seria feito.

- O homem esteve preso - resmungou Fitz. - Como é que se obtém uma amostra fresca de um tipo que está na prisão?

Griffin limitou-se a olhar para ele.

- Olhe, eu sei que há mais sexo na prisão do que na maior parte dos bordéis! Mas não estamos a falar de alguém que conseguiu mandar para o exterior um lençol sujo de esperma, a fim de ser colocado na cena do crime. A mesma amostra foi recolhida em sete sítios, o que quer dizer que se encontrou ADN igual nos lençóis, na camisa de dormir, nos esfregaços vaginais, etc., etc. Quer-me explicar isso?

- Isso dificulta as coisas - admitiu Griífin. - O Eddie podia ter conservado uma amostra. Não sei, tê-la enfiado num copo de gelado e mandado para o exterior?

Foi a vez de Fitz olhar para ele.

- E por que haveria ele de fazer isso? Estamos a falar de um tipo que passou o tempo todo a jurar que estava inocente. Não acharia estranho que alguém lhe pedisse fluido seminal?

- Visitas conjugais? - perguntou Napoleão.

- Não ali - murmurou Fitz.

- Isto é de loucos - concordou Griffin. - Muito bem, então se analisássemos isto de trás para a frente? E se a troca não foi feita no local? Se foi feita com a amostra do Eddie Como?

- O que quer dizer com isso?

- Que as amostras recolhidas nas cenas dos crimes são iguais a outra amostra catalogada Eddie Como. Mas se for aí que nos estamos a enganar?

- É impossível! - respondeu Fitz de imediato.

- Não podia acontecer - secundou Napoleon. - As amostras de ADN são recolhidas da seguinte forma: o detective Fitzpatrick e o detective McCarthy foram buscar o Eddie Como e trouxeram-no para o edifício Reagan, onde dois analistas e eu os aguardávamos. Os analistas recolheram duas amostras de sangue, arrancaram vários cabelos da cabeça do Eddie, depois passaram um pente pela sua zona púbica. Fui eu quem empacotou cada amostra e a catalogou. Por isso há umas cinco pessoas que podem afirmar que o Eddie Como estava na sala...

- Não estou a dizer que vocês tinham o homem errado - interrompeu Griffin.

- E quatro amostras - continuou o sargento implacável -, todas devidamente seladas e catalogadas que teriam de ser trocadas. Há alguma possibilidade de isso acontecer?

- Seria bastante difícil - admitiu Griffin contrariado.

- Eu diria impossível! - contrapôs Fitz. - Completamente impossível! Sabemos como fazer o nosso trabalho!

- Então como é que obtivemos estas amostras iguais? - O volume da voz de Griffin começava a aumentar.

- Não sei! Talvez tenha sido o Eddie Como. Ainda não vimos o corpo dele

- O Eddie Como está morto! O médico legista já confirmou as impressões digitais dele. O tipo está mais que morto! Então, mais uma vez, como é que o ADN dele foi parar a outra cena de crime?

- Não sei!

- Alguém anda a gozar connosco - disse Griffin. - Alguém está a fazer joguinhos. - Logo a seguir, ocorreu-lhe. - Merda!

- O que foi? - perguntou Fitz.

- Merda! Merda! Merda! Tenho de fazer um telefonema.

- Agora?

- Sim, agora. Onde é que há uma linha para o exterior?

- A quem vai ligar?

- Ao coelhinho da Páscoa, o que lhe parece? - Griffin marcou o número com impaciência.

- Detective Waters - disse Mike do outro lado da linha, trinta segundos mais tarde.

- Mike, é o Griffin. Falaste com o gajo da prisa? O que é que ele disse?

- O Price disse... O Price disse que te tinha avisado, e que continuava à espera da tua visita.

Que te tinha avisado... Quem matou Sylvia Blaire, David? O Eddie Como.

Ah, merda! Griffin baixou a cabeça. A sala pareceu abater-se sobre ele. Dezoito meses passados. Dezoito meses dolorosos, cuidadosos, e ali estava ele novamente. Atascado até aos joelhos em mais um jogo perverso de David Price. Griffin respirou fundo e tentou dominar-se. Um morto não podia ter assassinado a Sylvia Blaire. Devia ter acontecido outra coisa. Outra coisa que pusera o ADN de Como na cena do crime.

E recordou-se da conversa que tivera com Fitz na segunda-feira à tarde: "Então por que é que o Eddie, que não deixou para trás cabelos, fibras e impressões digitais, abandonou na cena do crime dez garrotes de látex? Por que é que ele, por um lado, aprendeu a encobrir as suas pistas, e por outro vos deixou praticamente o seu cartão-de-visita?"

Fitz retorquira furioso que a polícia de Providence não tramara Eddie Como. Agora, finalmente, Griffin fazia ideia de quem o tramara.

Joguinhos. Joguinhos não pareciam ser o estilo de Eddie. Mas Griffin conhecia outro homem, um jovem com um rosto ainda mais jovem, que adorava Joguinhos. Que também mandava bilhetes e fazia telefonemas, só que estes nunca declaravam a sua inocência. Um homem que passara dois dias a afirmar que sabia o que estava a passar-se e até enviara a Griffin um bilhete a dar-lhe as boas-vindas ao caso.

E depois Griffin voltou a pensar naquele estúpido ADN, a única prova que apontara para Eddie Como. ADN que deveria ter desaparecido com o duche floral descartável da Berkely and Johnson. Só que... Qual é a pior coisa que um detective pode fazer? Pôr-se com suposições. E o que haviam todos suposto? Que o duche fora utilizado para remover o ADN da cena. Filho da mãe.

As últimas peças começavam finalmente a encaixar-se... por um momento, Griffin ficou tão furibundo que foi incapaz de falar.

- O que se passa? - perguntou Waters do outro lado da linha.

- Quem? Quem?

- Em que dia foi a primeira violação? - perguntou Griffin com aspereza. - Em que dia foi atacada a Meg Pesaturo?

- Onze de Abril do ano passado - respondeu Fitz. - Porquê? O que é que você sabe?

Onze de Abril. Cinco meses após a prisão de David Price. Cinco meses depois do colapso nervoso de Griffin. Parecia impossível. E contudo...

- Ele anda a brincar connosco.

- O que queres fazer? - perguntou Mike.

- Quem? O quê? - continuava Fitz a papaguear.

- O tipo que previu isto. - Griffin fechou os olhos. - O tipo que, de alguma forma, sabe mais sobre este caso do que nós.

- Quem é que previu isto? - perguntou Fitz.

- O David - respondeu Griffin serenamente. - O meu antigo vizinho, o sádico sexual David Price.

 

Príce

Griffin marcava um número no telemóvel ao mesmo tempo que conduzia pelas estreitas ruas de Providence rumo à entrada da 1-95, enquanto Fitz se agarrava ao tabliê e continuava a praguejar entre dentes. Jillian atendeu e Griffin começou imediatamente a falar.

- Jillian, preciso que me diga uma coisa e preciso que seja sincera.

- Griffin? bom dia para si também...

- Sei que está zangada com a polícia - interrompeu ele. - Sei que acha que fomos incapazes de proteger a sua irmã e que não teve muitos incentivos para colaborar connosco. Mas preciso da sua ajuda agora. Preciso que me diga se alguma vez conheceu um homem chamado David Price. E não me minta, Jillian. Isto é muito sério.

Silêncio. Ele apertou o volante com mais força, perguntando a si mesmo o que significava esse silêncio, e desejando que o seu estômago não começasse às voltas ao mesmo tempo que o zumbido nos seus ouvidos aumentava. "Respira fundo, expira. Dezoito meses de trabalho árduo. Não percas agora a bola de vista."

- O nome é-me familiar - respondeu finalmente Jillian. - Espere lá. Não era o seu vizinho? GrifFm, o que vem a ser isto?

- A sua irmã alguma vez falou no nome dele?

- Não, nunca.

- Alguma vez recebeu correspondência? Talvez qualquer coisa no correio?

- Não. Espere lá. - Ouviu-se uma pancada quando ela pousou o auscultador. - Toppi! - gritou Jillian a seguir. - Alguma vez recebeste algo de um tipo chamado David

Price? Confirma com a minha mãe. - Outro ruído quando ela voltou a pegar no auscultador. - Dizem-me ambas que não. Griffin, você prendeu-o, não foi? Mandou-o para a prisão... há muito tempo. Por que está agora a fazer perguntas sobre ele?

Griffin ignorou a pergunta e fez-lhe outra.

- O que tenciona fazer hoje?

- Disse à minha mãe que a levava a ver a campa da Trisha. Griffin...

- Não vá.

- Não?

- Quero que fique perto de casa. Ou melhor ainda. Pegue na Toppi e na sua mãe e leve-as para a casa de Narragansett. vou mandar dois agentes para lá à vossa espera.

- Ele saiu da prisão? - perguntou Jillian muito calma.

- Não.

- Mas você tem-no como alvo. Ele está envolvido nisto? O David Price magoou de alguma forma a minha irmã?

- É isso que estou a tentar descobrir. Teve notícias da Carol?

- Ia agora mesmo ligar para o hospital.

- Também devia mandar para lá uns agentes - comentou ele em voz alta, arrependendo-se logo de seguida.

A voz de Jillian tornou-se ainda mais sombria do outro lado da linha.

- Aconteceu qualquer coisa, não foi? Qualquer coisa má.

- Eu depois ligo-lhe - respondeu Griffin. - E Jillian: tenha cuidado.

Desligou o telemóvel. Principalmente porque não sabia o que mais dizer. Ou talvez porque não sabia o que queria dizer, e aquele não era nem o local nem o momento, especialmente com Fitz sentado muito corado e irritado ao seu lado.

Encaminhou-se para a 1-95, rumo a sul, à prisão, e passou o telemóvel a Fitz.

- É a sua vez.

Fitz marcou o número da residência Pesaturo. Trinta segundos mais tarde, ouviram ambos a mãe de Meg atender o telefone.

- Fala o detective Fitzpatrick - disse Fitz com voz rouca, pigarreando em seguida. - Eu... hum... gostaria de falar com Miss Pesaturo, por favor.

- Detective Fitzpatrick! - exclamou a mãe de Meg com ternura.

- Como está o senhor?

Fitz manteve o tom áspero.

- Mistress Pesaturo, preciso de falar com a Meg.

Laurie Pesaturo hesitou. Do banco do condutor, Griffin apercebeu-se da confusão na voz cheia de estática quando ela pediu a Fitz para aguardar um momento. Só alguns minutos mais tarde é que ela voltou.

- Peço desculpa - disse num tom muito tenso. - Parece que a Meg saiu.

- Não está em casa?

- De momento não.

- Sabe onde ela está?

- De momento não. - O tom era ainda mais tenso. Fitz foi direito ao assunto.

- Mistress Pesaturo, já ouviu falar no David Price? Uma pausa.

- Detective, o que vem a ser isto?

- Por favor, limite-se a responder à pergunta, minha senhora. Conhece, ou já conheceu, um homem chamado David Price?

- Não.

- A Meg alguma vez falou no nome dele?

- Que me lembre não.

- Ele alguma vez mandou algo para sua casa? Alguma vez ligou?

- Se o tivesse feito, eu conheceria o nome, não lhe parece? - retorquiu ela com aspereza. - vou perguntar-lhe outra vez, detective, o que vem a ser isto?

- Gostaria de encontrar a Meg, Mistress Pesaturo. Gostaria que a senhora a mantivesse por casa hoje. Aliás, talvez não fosse má altura o seu marido tirar um dia de folga, passar a tarde com a família. Talvez pudessem todos ir visitar o tio Vinnie, ou coisa parecida.

- Detective...

- É apenas uma precaução - acrescentou Fitz calmamente. Mais uma pausa.

- Muito bem, detective - disse ela por fim. - Obrigada por ter ligado. Vai voltar a ligar?

- Espero voltar a contactá-la esta tarde, minha senhora.

- Obrigada, gostaríamos bastante.

- Encontre a Meg - repetiu Fitz no momento em que Griffin virou na direcção dos vários edifícios que continham o estabelecimento prisional.

Dirigiram-se ao prédio de tijolo vermelho que albergava a Unidade de Investigação Especial da prisão, bem como o estabelecimento prisional da polícia estadual. Meteu o carro no lugar do parque de estacionamento e desligou o motor. Já não olhava para Fitz. Estava concentrado na tensão crescente nos seus ombros, no zunido crescente nos seus ouvidos. Respira fundo, expira. Respira fundo, expira.

- Olha, Griffin, pá, achas que isto é mau? Deixa-me contar-te uma coisa sobre a tua mulher...

Fitz saiu do carro. Momentos depois, Griffin seguiu-o.

O complexo do estabelecimento prisional estendia-se por mais de cento e sessenta hectares de terra. com torres de tijolo e uma vedação de arame farpado visível da estrada, a prisão é composta por meia dezena de edifícios aninhados entre meia dezena de outras instituições governamentais. Quase quatrocentos reclusos residem no estabelecimento prisional; esses reclusos geram queixas internas e externas suficientes para empregarem a tempo inteiro seis investigadores especiais do estabelecimento prisional e dois detectives da polícia estadual. Os investigadores especiais são os primeiros a responder, lidando com todas as queixas entre reclusos. No entanto, nas situações em que há queixas relativas a crimes - agressões, homicídios a soldo, tráfico de droga, etc. -, a polícia estadual é chamada para dirigir a investigação.

Entre estes casos, os detectives da polícia estadual passam o tempo a receber chamadas de vários reclusos que tentam incriminar outros reclusos em troca de várias considerações. Os detectives recebem imensos telefonemas. Contudo, poucos levam a algum lado.

Fora isso que Griffin esperara quando tivera conhecimento do primeiro telefonema de David Price. Agora já perdera a esperança.

O cabo Charpentier encontrou-se com Griffin e Fitz no átrio do edifício administrativo, depois fê-los descer um lanço de escadas até ao escritório na cave. Griffin franziu de imediato o nariz ao sentir o ar bafiento, e Fitz chegou mesmo a recuar.

- Eu sei, eu sei - disse Charpentier. - Em teoria, o edifício está livre de amianto... já o que as pessoas inspiram... - Não disse mais nada. Griffin e Fitz perceberam onde ele queria chegar. Começavam também a ficar com dores de cabeça.

Charpentier chegou ao fim do corredor, abriu a porta e entrou num minúsculo gabinete. Viram duas secretárias frente a frente com computadores, envelopes de papel manilha e vários outros papéis. O resto do espaço era ocupado por duas cadeiras e uma série de arquivos cinzento-escuros. Não havia ali plantas para animar o ambiente. Apenas paredes cremes, uma carpete cinzenta e luzes amarelas fracas. Os agentes da polícia tinham uma vida tão glamorosa!

- Vão levá-lo para uma sala do fundo - disse Charpentier, sentando-se e fazendo-lhes sinal para que o imitassem. - Precisam de mais dez minutos.

- Muito bem - respondeu Griffin. Não se sentou. Não queria que ninguém se apercebesse de que o seu corpo começava a apresentar espasmos.

- Pessoalmente, acho que ele não sabe peva - acrescentou Charpentier, lançando em seguida um olhar avaliador a Griffin.

- Como está ele a adaptar-se? - perguntou Griffin.

- Melhor do que julga. - Charpentier recostou-se na cadeira e encolheu os ombros. - É jovem, é pequeno, é um pedófilo condenado. Francamente, só lhe falta ter a palavra "puta" escarrapachada na testa. Mas não sei. Ouvi uma história a um dos guardas. Seis tipos rodearam o David Price nos duches. Iam fazer-lhe um pouco de doutrinação prisional, mostrar-lhe o que o sítio oferece aos assassinos de crianças. Depois o David começou a falar. E nunca mais se calava. Os guardas correram para o local, claro, à espera de deparar com uma carnificina, e... e viram o David Price rodeado por seis gajos a rir, não a bater-lhe, mas a dar-lhe palmadinhas nas costas. Basicamente, em três minutos, ou menos, ele transformara-os em seis novos amigos de grande estatura.

- Charpentier abanou a cabeça. - Não percebo, mas dêem-lhe mais um ano e ele está a mandar nisto tudo.

- Ele sabe lidar com as pessoas - observou Griffin. Charpentier assentiu, depois inclinou-se para a frente, devagar.

O seu olhar passou de Griffin para Fitz e novamente para Grifnn.

- Quer ouvir uma coisa estranha? As agressões duplicaram desde que o David foi enviado para cá. Ainda esta manhã estava a olhar para as estatísticas. Quase todos os dias houve uma agressão nos últimos nove meses. Parece que abriu a caça. E a única variável nova que vejo é um homem que ainda compra a roupa na secção infantil das lojas.

- Você acha que ele é responsável - declarou Fitz. Charpentier encolheu os ombros.

- Não podemos provar nada. Os tipos têm sempre os seus motivos para fazerem o que fazem. Mas... o David fala muito. Sempre. Parece um político a trabalhar os outros reclusos no pátio, a passar bilhetinhos no bloco das celas. E, quando damos por isso, já temos novamente sarilhos. Sarilhos grandes. Tipos a irem parar à enfermaria empalados com objectos metálicos pontiagudos. Não sei que raio o Price diz ou faz, mas há nele algo de assustador.

- Ele é muito bom com as pessoas - repetiu Griffin.

- Deixa-me contar-te uma coisa sobre a tua mulher... O telefone do cabo tocou. Ele atendeu.

- Muito bem. Estão à nossa espera.

O edifício de máxima segurança, também conhecido como Old Max, é um imóvel impressionante. Construída em 1878 com pedra cinzenta, a estrutura de três andares é dominada por uma cúpula central gigantesca pintada de branco. Antigamente, brilhava uma luz naquela cúpula, verde se estava tudo bem, vermelha se alguma coisa corria mal. As pessoas de Providence mandavam lá então um cavalo e uma charrete para ver o que se passava.

A prisão também se vangloria de um dos sistemas mecânicos mais antigos do país. Actualmente, a maior parte das prisões é electrónica. Carrega-se no botão para abrir a porta de uma cela. O Old Max ainda tem alavancas para operar as pesadas portas de aço. Os reclusos provavelmente não dão valor a estas coisas, mas os apreciadores de história dão.

Essencialmente, o Old Max tem carisma. As espessas paredes de pedra parecem paredes de uma prisão. As celas de dois metros por dois metros e meio, que ocupam três pisos em corredores de trinta e três celas, parecem celas de uma prisão. As portas de aço pintadas de preto, que gemem ao abrir-se diante de nós, e se fecham rapidamente atrás de nós, soam a portas de uma prisão. Os odores - suor, urina, tinta fresca, amoníaco - correspondem aos odores de uma prisão. E o resto dos sons - homens a gritar, televisões, metal a tinir, a estática dos rádios, água a correr, homens a urinar - são os sons de uma prisão.

Dezenas de milhares de homens passaram por aqueles portões nos últimos cem anos. Violadores, assassinos, barões da droga, mafiosos, ladrões. Se aquelas paredes falassem, não diriam palavras. Soltariam gritos.

Griffin e Fitz assinaram os seus nomes à entrada. Os civis tinham de passar por um detector de metais. No entanto, como membros de uma corporação policial, foram dispensados dessa honra e entraram de imediato por um portão para a principal zona de controlo. A segurança ainda era apertada. Tiveram de esperar que o portão se fechasse atrás deles. A seguir, um guarda sentado numa cabina fez-lhes sinal para que colocassem os crachás num tabuleiro metálico. O guarda fez rodar o tabuleiro para si, inspeccionou os crachás, assentiu uma vez, colocou dois cartões vermelhos de visitante no tabuleiro e rodou-o.

Só depois de Griffin e de Fitz terem prendido os cartões às camisas é que o portão branco de aço diante deles começou a deslizar para o lado, permitindo-lhes avançar. Depois ficaram de novo parados, à espera que o portão se fechasse e outro se abrisse à sua frente. A seguir chegaram finalmente, oficialmente, à parte de trás do Old Max.

Meia dezena de guardas encontrava-se ali sentada. À esquerda havia uma porta que conduzia à ala esquerda das celas. Ao lado ficava o gabinete do tenente, onde dois guardas monitorizavam os vários ecrãs das câmaras de segurança. Em frente estava o corredor que dava para a cafetaria. E à direita a sala de visitas, utilizada pelos guardas para assuntos oficiais. Naquele dia, David Price encontrava-se manietado no seu interior. Havia mais dois guardas à porta. Olharam para Griffin, assentiram, e depois fizeram questão de desviar o olhar.

Achariam que ele ia de novo atacar o miúdo? Seria essa a sua forma de dizer que, se ele o atacasse, eles não se importariam? Parecia que Price mantinha a prisão na expectativa, quer os agentes pudessem provar qualquer coisa ou não. Mesmo numa prisão de máxima segurança, os reclusos passavam oito horas por dia fora da cela - a comer, a trabalhar, a falar com as visitas, a passar o tempo no pátio, etc. Por outras palavras, havia bastantes oportunidades para meter conversa com os outros reclusos e muito tempo para causar sarilhos.

Aquele sítio era realmente demasiado bom para Price.

O cabo Charpentier abriu a porta. Griffin e Fitz seguiram-no.

Envergando o fato-macaco castanho da prisão, David Price não tinha um grande aspecto. Nunca tivera, aliás. com um metro e sessenta, setenta quilos, não se destacaria numa multidão. Cabelo castanho-claro, olhos castanho-escuros, o rosto redondo que o fazia parecer ter dezassete anos quando na realidade estava próximo dos trinta e dois. Não era bonito, mas também não era feio. Um rapaz agradável, como o classificariam as mulheres.

Talvez tivesse sido isso que Cindy dissera naquele primeiro dia em que ele aparecera. "Olha, Griffin, anda conhecer o nosso novo vizinho, o David Price. Então como é que um miúdo simpático como tu vive num sítio destes?"

David Price sorria-lhe.

- Estás com bom aspecto - comentou. Parecia não ter reparado no cabo Charpentier nem no detective Fitz. Eles eram irrelevantes para o caso. Griffin percebia isso, e talvez eles também. Que Deus o impedisse de matar David Price!

David continuava a sorrir. Um sorriso simpático e agradável. Do género que um miúdo poderia esboçar ao ver o irmão mais velho. Era uma característica de Price. Nunca desafiava directamente, sobretudo homens mais corpulentos. Desempenhava o papel de ajudante, de aluno dedicado, de bom amigo. Mostrava-se respeitoso, mas nunca efusivo. Elogioso, mas nunca falso. E no princípio uma pessoa não lhe ligava, mas depois começava a simpatizar com ele e, quando se dava por isso, ansiava-se pela sua companhia, até pelo seu elogio. E as posições alteravam-se. Até deixar de ser claro quem é que mandava e quem é que era o ajudante, mas não se pensava muito nisso, porque parecia que se estava a fazer o que se queria, mesmo que não nos lembrássemos de ter querido fazer aquelas coisas antes.

Os homens gostavam de David - era o perfeito amigo discreto. As mulheres gostavam de David - era o companheiro de ar nada ameaçador. As crianças gostavam de David - era o tio preferido que nunca haviam tido.

Bolas, Griffin devia tê-lo morto quando tivera a oportunidade.

- Já substituíste a Cindy? - perguntou David. - Ou nenhuma outra mulher é suficientemente boa? Imagino que não deva ser muito fácil encontrar outra alma gémea.

- Cale a boca - ordenou Fitz.

- Fala-nos da Sylvia Blaire - disse Griffin. Puxou uma cadeira para si, mas não se sentou.

David inclinou a cabeça para um lado. Ainda não estava preparado para falar de coisas sérias. Griffin também não achara que ele estivesse.

- Tenho saudades dos jantares na tua casa, sabes? Adorava ver-vos juntos. Cindy e Griffin, Griffin e Cindy. Ajudavam-me a acreditar que há algo que vale a pena nesta vida. Espero um dia apaixonar-me assim também.

- Como é que ele se chama?

- Olha lá, Griffin, isso é falta de educação, não achas?

- Quero o nome do homem que violou e assassinou a Sylvia Blaire.

- Griffin pousou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente.

David limitou-se a sorrir e ergueu as mãos algemadas.

- Também não precisas de ser agressivo fisicamente, Griffi Sou bastante inofensivo. Ainda não percebeste? - Mais um daqueles malditos sorrisos açucarados.

- Dá-me o nome! - bradou Griffin, incapaz de se conter. David olhou para Fitz.

- Você não parece daqueles tipos dispostos a safar um gajo disse ele num tom casual. - Já o Mike Waters era. Saltou para a frente e recebeu o golpe, por assim dizer. E aqui o seu amigo Grifif sabe bem dar um soco. Já viu fotografias da cara do Mike? - O miúdo assobiou baixinho. - Quase seria de pensar que ele jogara dez assaltos com o Tyson. Imagino que deva ter feito uma plástica passado algum tempo e provavelmente à custa dos contribuintes. Talvez queira lembrar-se disso, senhor detective de Providence. Também parece estar a precisar de uma cirurgia plástica, ou pelo menos de uma lipoaspiração aqui e ali. E ali e aqui. Por acaso as batatas fritas não são o seu alimento preferido?

- Dê-nos a porra do nome! - rosnou Fitz.

David suspirou. A hostilidade frontal sempre o aborrecera. Tornou a virar-se para Griffin.

- Pensei que ao menos irias escrever.

- Vais dizer-nos aquilo que sabes - retorquiu Griffin calmamente.

- Ambos sabemos que irás. Senão, não te divertes.

- Recebeste as minhas cartas?

Griffin calou-se. Devia ter previsto aquilo. Para David fazer o seu joguinho, teria de receber algo em troca. Se a pessoa se recusasse a participar, ele deixava de ter algo que manipular. Acabava-se a brincadeira.

- Isto aqui não é muito mau, sabes? - comentou David, mudando de estratégia. - A comida é bastante boa. Calculo que os palhaços que mandam nisto acharam melhor certificar-se de que os animais no jardim zoológico são bem alimentados. Isso evita que afiemos as presas uns nos outros... ou talvez neles. Estou a aprender a ter paz interior na posição de lótus e, quem diria, tenho um jeito inato para a carpintaria. Já sei, vou fazer uma mesa para ti, Griff. Gravar as tuas iniciais na base. Pelos bons velhos tempos. Vá lá, diz-me o tamanho.

Fitz abriu a boca. Griffin olhou para ele, o detective franziu o sobrolho mas calou-se.

- Ooooh, parece mesmo uma foca amestrada! - exclamou David. Sorria muito satisfeito. Voltara a ter o seu tipo de público preferido, e isso deixava-o feliz. Era horrível. Parecia ter acabado de fazer dezasseis anos.

- Quem violou e matou a Sylvia Blaire? - perguntou Griffin.

- O Eddie Como.

- Como é que vocês se conheceram?

- Griff, companheiro, eu nunca conheci o Eddie. Estou farto de repetir isso. Conheci foi o companheiro de cela dele, o Jimmy Woods. Passámos algum tempo juntos aqui no Old Max.

- Não estou interessado nas tuas balelas, David. Quero saber mais coisas sobre o verdadeiro Violador de College Hill. Diz-me, qual de vocês se lembrou do duche vaginal?

Pela primeira vez, Price pareceu ficar sem palavras. Mas disfarçou bem, recuperou com facilidade e tornou a sorrir. Contudo, no seu regaço os seus dedos tinham começado a mexer nas correntes.

- Gostas deste caso, não gostas, Griffin? É complicado. Inteligente. Sempre apreciaste isso. Qual das três mulheres julgas que contratou o assassino do Eddie Como? Ou terá sido um familiar? Eu aposto na gaja fria. Como é que ela se chama? Ah, sim, Jillian Hayes.

- David, tens dez segundos para dizer alguma coisa útil, senão saímos já por aquela porta. Dez, nove, oito, sete, seis...

- Eu sei quem é o verdadeiro Violador de College Hill. Griffin encolheu os ombros.

- Não acredito. Cinco, quatro, três...

- Ei, ei, ei, não tenhas tanta pressa, pá! Todos aqueles meses no psicólogo não te ensinaram nada? Tem calma. Não queria chatear-te. Ele veio ter comigo.

- O Violador de College Hill veio ter comigo.

- Sim. Claro.

Griffin já sabia que ele estava a mentir.

- Porquê?

- Não sei. Talvez conhecesse a minha reputação. Talvez lhe apetecesse ter uma conversa decente. Não sei ler a mente das pessoas. Mas ele veio ter comigo e nós, hum, conversámos sobre algumas coisas.

- Sobre como cometer um crime?

- Interessávamo-nos ambos por isso.

- Como lixar a polícia. David Price sorriu.

- Oh, sim. Interessávamo-nos ambos por isso.

- Parabéns, Price - interveio Fitz. - Acabou de transformar-se em cúmplice de várias violações e homicídios. Agora vai ter de continuar a falar para salvar o coiro.

David lançou-lhe um olhar desdenhoso.

- Salvar o coiro de quê? Da sentença que já estou a cumprir? Olhe, amigo, não ouviu falar de mim? Sou o tipo que trava amizade com crianças no parque infantil. Dou-lhes doces, empurro-lhes os baloiços. E depois levo-as para casa, para a minha cave à prova de som, onde lhes tiro as roupinhas e...

- Ainda não disseste nada de novo - interrompeu Griffin. Três, dois, um...

- Ele põe os espermatozóides do Como nos duches vaginais.

- Foda-se, David! Fui eu que te disse isso ainda agora.

- A ideia foi minha - continuou David muito sério. - O ADN é o grande problema. Bolas, foi por isso que tive de enterrar os meus trofeus. Para que a decomposição fizesse o seu trabalho. E depois lembrei-me. O ADN gosta tanto de estar naqueles sítios profundos e escuros... Por que não fazer-lhe a vontade? Por que não seguir a corrente? Não esconder o ADN, ser dono dele. Gaita, fazê-lo participar no jogo!

Griffin levantou-se.

- Obrigado por devolveres a minha teoria. És um merdas, David. Sempre foste. Sempre serás.

Griffin dirigiu-se para a porta. E atrás dele David falou:

- Ele conhecia o Eddie Como. Se calhar o Eddie não o conhecia Mas ele conheceu o grande Eddie Como. Encontraram-se numa tarde durante pouco mais de dez minutos, tempo suficiente para que o pobre e estúpido Eddie comentasse que trabalhava no Banco de Sangue Depois disso, meu amigo, o destino dele ficou traçado. O Violador de College Hill encontrara o seu homem.

Griffin virou-se devagar.

- Ele perseguiu o Eddie Como?

- Fez os trabalhos de casa.

- E andou a roubar preservativos usados do caixote do lixo do Eddie.

David voltara a exibir a sua expressão matreira.

- Não vou responder a isso. Mas é a questão mais importante, não é? Como é que se rouba a um homem o seu sumo? Não é coisa que se perca por aí.

- Não acredito em ti.

- O que é que te custa a acreditar, Griff? Que eu tenha ajudado alguém a atacar jovens universitárias? Ou que continues sem poder fazer nada para nos deter? Tens um violador em série à solta, sargento-detective Roan Griffin. Alguém que é parecido com o Eddie Como, que soa como o Eddie Como e com um ADN igual ao do Eddie. Por outras palavras, não fazes a mínima ideia de quem ele é. Por isso sentas-te. E ouves. Porque eu sei o nome dele, e tu vais dar-me algo em troca. Vais dar-me o que eu quiser, ou apareço no noticiário das cinco, a dizer ao público apavorado que um gajo da polícia estadual, demasiado inchado e com a mania das grandezas, está disposto a ignorar provas decisivas capazes de deter o filho da mãe que anda a matar as suas queridas filhas. O que achas disto?

Griffin avançou. Depois deu mais um passo, e outro ainda. "Respira fundo", dizia uma parte da sua mente. O resto dele estava-se perfeitamente nas tintas. Cerrara os punhos, retesara os músculos e a sua expressão era ameaçadora. Devia ter morto David naquele dia. Devia ter esmurrado os amigos até eles caírem, para depois poder ter deitado a mão a David e arrancar-lhe a cabecinha esperta e mentirosa.

- Não vais sair daqui - disse com voz rouca. - Independentemente do que disseres, não vais sair daqui.

- Há jovens universitárias a morrer...

- Morreram dez crianças!

- Posso garantir-te um cadáver novo esta noite. Podes crer.

- E eu posso garantir-te uma transferência para o Super Max. Acabaram-se as aulas de carpintaria, de ioga, as horas passadas na cafetaria. Vais passar o resto da vida a apodrecer sozinho numa cela minúscula.

- Queres castigar-me, sargento-detective, ou queres impedir o homem de apanhar mais morenas giras? Pensa bem antes de responderes.

Os pais das futuras vítimas do Violador de College Hill aguardam expectantes a tua resposta.

- Seu cabrão... - começou Fitz. David calou-o, impaciente.

- Seis da tarde - anunciou, de olhar pousado em Griffin. Uma saída de três horas. Levarei vestida roupa normal, tu pões-me as algemas. Saio para o mundo real, tu supervisionas a saída. Õ acordo é esse.

- Não.

- Oh, sim! Ou vou direitinho aos jornalistas e digo-lhes que o mesmo detective que tentou partir-me a cara há ano e meio agora, por vingança, não quer proteger as jovens. Pensa nisso, pá. Se não chegares a acordo comigo vai morrer outra rapariga. Se não chegares a acordo comigo, o público devora-te ao jantar. - David olhou para o relógio na parede. - São dez da manhã. Tens até ao meio-dia para decidires.

- Não fazemos acordos com pedófilos.

- Claro que fazem. Fazem acordos com toda a gente que tiver informações. Agora faz a pergunta, Griff. Vá lá, pá. Pergunta-me o que queres realmente saber. - David inclinou-se para a frente. Olhou para Griffin com um enorme sorriso radioso no rosto redondo de menino de coro.

- Não a magoaste - declarou Griffin abruptamente. David Price pestanejou.

- Gostas de pensar que a magoaste. Mas isso não aconteceu. A Cindy era melhor do que tu, David. Sejamos realistas. Ela era melhor do que eu.

- Faz a maldita pergunta! - exclamou David.

- Para que queres uma saída de três horas, seu psicopata de merda? David encostou-se finalmente. Pela primeira vez desde o início da

conversa parecia satisfeito. Olhou para Fitz, para Charpentier e a seguir para Grirfin.

- Quero ver a minha filha. Nada de roupa prisional, de salas de visitas. Só eu e ela, frente a frente. Será provavelmente a única vez que a verei, por isso quero que tudo corra bem. Sejamos francos, pá, os avós dela nunca a irão trazer cá.

- Os avós dela?

- O tom e a Laurie Pesaturo. Ou a Meg não te disse? A Molly Pesaturo é minha filha. Vês, não matei todas as crianças. Deixei algumas procriar.

Cinco minutos mais tarde, Griffin, Fitz e Charpentier estavam de regresso ao parque de estacionamento. Inspiravam o ar frio em grandes golfadas. Mais tarde, esfregar-se-iam no duche até a pele estar quase em ferida.

- Ele não sai daqui - declarou Griffin. - Não sai às seis da tarde, nem a hora nenhuma, muito menos por três horas. O homem não sai daqui, ponto final!

Os braços de Griffin moviam-se por vontade própria, a perna esquerda tinha espasmos, os ouvidos zuniam. Sim, zuniam, zuniam, zuniam. Que se fodesse, mais valia ficar maluquinho! Provavelmente precisava da insanidade para lidar com fulanos como David Price. Virou-se para Charpentier.

- Quero listas, muitas listas. Nomes das pessoas que o visitaram, que lhe telefonaram. Nomes dos reclusos que podem ter entrado em contacto com o David de alguma forma ou feitio. Nomes de todos os amigos conhecidos, familiares ou associados dos ditos reclusos, especialmente os que tiverem um passado criminal. E quero uma lista dos reclusos recentemente libertados. Entendido?

- Vai levar algum tempo - disse Charpentier com ar sombrio.

- Tem duas horas. Peça ajuda a quem tiver de pedir. Charpentier assentiu. Meteu-se no carro e rumou ao gabinete da cave. Deixou Griffin e Fitz sozinhos no parque de estacionamento.

- Ele não sai daqui - repetiu Griffin.

- Havemos de ver.

- Ele não sai!

- Então descubra o maldito violador!

- Pois é isso que vou fazer! - Griffin deu um murro no Ford Taurus. Depois abriu a porta do lado do condutor. - Ele tem um plano qualquer.

- Não me diga...

- Pensou nisto tudo. Pôs tudo em movimento. Não se deixe enganar por aquela carinha de pêssego. Ele está-se nas tintas para a filha. Tem outra coisa em mente.

-Acha?

- Ele não sai - repetiu Griffin. - Nem agora, nem nunca. Mas quando saíram do parque de estacionamento da segurança máxima viram entrar a carrinha branca do Canal Dez.

 

Molly

Fitz conduzia. Griffin pegou no telefone. Marcou primeiro o número de Waters.

- O problema é o seguinte. O David Price afirma conhecer a identidade do verdadeiro Violador de College Hill e dá-nos essa informação se em troca o deixarmos ir visitar a filha que há muito não vê, a Molly Pesaturo. Temos duas horas para decidir.

- Hum?

- Não estou a brincar. Ouve, ainda estás em Cranston?

- Ando a percorrer os bares.

- Óptimo. Arranja uma fotografia da Tawnya Clemente. Que se foda o Eddie Como. Começa a mostrar a fotografia dela por aí.

- A fotografia da Tawnya? Achas que a leal namorada está metida nisto?

- Metade do que o David diz é mentira, mas numa coisa ele está certo: o Eddie Como era inocente. O verdadeiro Violador de College Hill incriminou-o, utilizou-o para cometer o perfeito crime em série. Agora, para fazer isso, o verdadeiro violador teve de conseguir o sémen do Eddie algures. É lógico começarmos pela Tawnya.

- Ela conspirou contra o pai do filho?

- Um processo de cinquenta milhões de dólares, Mike. Pensa nisso. Ela só precisava de sacrificar um tipo. Depois, com o Eddie Júnior, nunca mais precisaria de se preocupar com nada.

- Bem, quando pões as coisas nesses termos... - disse Waters.

- Pois. Agora não te esqueças: tens duas horas. Diverte-te! Griffin desligou a chamada e marcou logo de seguida outro número. Trinta segundos depois, tinha o sargento Napoleon em linha.

- Sargento! Estou a ligar da parte do detective Fitzpatrick. Gostaríamos que fizesse alguns testes.

- Oh, diabo! - exclamou Napoleon. Griffin fingiu não ter ouvido.

- O detective Fitzpatrick descobriu de forma brilhante qual a fonte do ADN do Eddie Como. Ele acha que o sémen do Como foi injectado nas vítimas de violação através do duche vaginal. O que lhe parece?

Houve um momento de silêncio. Fitz revirava os olhos por causa dos pseudo-elogios.

- Bem, raios me partam! - exclamou Napoleon passados uns segundos. - Isso faz algum sentido.

- É viável?

- Claro. Injecta-se o sémen no duche, abana-se um pouco a embalagem, depois verte-se o conteúdo nas cavidades corporais. As manchas daí resultantes nos lençóis,

os esfregaços vaginais, etc., dariam o mesmo resultado como se o duche tivesse sido utilizado para expelir o sémen do corpo. Claro, isso pressupõe que o violador utilizou um preservativo, senão teríamos detectado ainda um segundo ADN.

- Sim, tenho a certeza de que ele utilizou um preservativo. Ainda tem as embalagens dos duches guardadas?

- Bem, sabe como são os detectives de Providence. De vez em quando apetece-nos etiquetar devidamente as provas e guardá-las.

- A sério? Ah! Afinal os boatos eram mentira. Muito bem, então pode analisar o que está no interior da embalagem, certo? Se houver ADN dentro da embalagem, então de certeza...

- Esteja descansado que eu vou investigar. A pedido do detective Fitz, claro.

- Uma última pergunta. Disse que a amostra de sémen teria de ser fresca para os espermatozóides estarem vivos. E se tivesse sido congelada?

- Quer dizer congelada na altura da ejaculação, depois descongelada na altura da utilização?

- Sim.

- Claro - respondeu Napoleon de imediato. - Desde que a amostra de sémen tenha sido congelada no prazo de setenta e duas horas depois da ejaculação, os espermatozóides são preservados até à descongelação. Os bancos de esperma passam a vida a fazer isso. - Nesse instante Napoleon percebeu as implicações do que acabara de dizer. Oh! Que interessante. E os mortos ganham vida...

- E os mortos ganham vida - concordou Griffin sombriamente.

- "Nem que seja do túmulo..." Obrigado, sargento. O Fitz depois liga-lhe.

Desligou a chamada.

- Estamos em Cranston - disse Fitz nesse preciso momento. A Meg ou a Tawnya? A quem quer bater primeiro?

- À Meg - respondeu Griffin de imediato. - Quero dar ao detective Waters tempo suficiente para ele completar a investigação sobre a vida social da Tawnya. com sorte, ele arranja-nos munições... depois é só partir para a caça.

Fitz lançou-lhe um olhar sombrio.

- Tenho-lhe dito ultimamente quanto o amo?

- Não. Mas só por causa disso, deixo-o atacá-la primeiro.

- Ah, adoro esta profissão!

- Daqui a duas horas, lembre-se disso, Fitz. Lembre-se disso.

Griffin e Fitz estacionaram diante da casa dos Pesaturo pouco antes das dez e meia. Só lhes restava hora e meia e mal tinham feito progressos. Então por que ficou Griffin admirado por ver Jillian Hayes abrir a porta da casa dos Pesaturo?

- Sargento... - começou ela.

Ele não lhe deu tempo de terminar. Afastou-a para o lado e avançou pelo pequeno corredor até à sala das traseiras, com Fitz atrás.

- Quero falar com a Meg. Já!

- Ela não está aqui! - gritou Jillian lá atrás, tentando alcançá-los.

- Onde está ela?

Griffin entrou de rompante na sala. Os pais de Meg, tom e Laurie, encontravam-se sentados lado a lado no sofá. tom parecia carrancudo, Laurie abraçava de forma protectora Molly e percebia-se que estivera a chorar. Diante deles estavam Toppi e Libby Hayes. Uma grande família feliz. Bolas, ele e Fitz estavam mesmo a precisar daquilo.

Virou-se para Jillian, que aparentemente era a única pessoa capaz de falar.

- Onde está a Meg? - tornou ele a perguntar.

- Não sabemos.

- Perderam-na?.

- Ela... não sabemos.

Griffin pensou numa palavra, lembrou-se que Molly estava na sala, e conteve-se. Virou-se para os Pesaruro e indicou com a cabeça a neta

deles.

- Levem-na para fora da sala.

- Não me parece... - começou Laurie.

- Levem-na para fora da sala!

- Eu faço isso. - Toppi pôs-se de pé, atravessou a sala e pegou na mão de Molly depois de lançar a Griffin um olhar de reprovação.

Ele devolveu-lho. O sargento Griffin simpático desaparecera. O sargento

Griffin simpático fora lixado. Agora chegara a altura de fazer tremer de

medo aquelas pessoas.

- Você... - Gesticulou na direcção de Jillian, que erguera o queixo e fincara bem os pés no chão, pronta para a batalha. - Se quer ficar nesta sala...

- Sou convidada dos Pesaturo. Pediram-me para vir até cá...

- Se quer ficar nesta sala...

- Provavelmente porque sabiam que você se ia comportar desta forma hostil.

- Olhe que a prendo por obstrução à justiça.

- Oh, passe à frente! - exclamou. - Estamos todos preocupados com a Meg.

- Jillian, sente-se e cale-se. Os Pesaturo têm de me dizer algumas coisas e, a menos que seja advogada deles, não quero ouvir nem

um pio da sua boca.

Jillian fitou-o. Pouco depois, atravessou a sala e sentou-se muito direita ao lado da mãe. Pareceu calar-se. Nesse momento Libby Hayes deitou-lhe a língua de fora.

Oh, por amor de Deus...

- Você. - Griffin apontou para tom, porque não era capaz de continuar a gritar e a olhar para o rosto de Laurie, manchado pelas lágrimas. - Comece a falar.

- Foi há muito tempo. Não achámos que fosse relevante...

- A vossa filha teve uma relação com um pedófilo conhecido e acharam que não era relevante?

- O homem está atrás das grades!

- Não graças a vocês e não por muito mais horas!

tom calou-se. Os seus ombros musculados curvaram-se. Parecia destroçado.

- Juro por Deus, sargento, não sabíamos. Nunca imaginámos haver uma ligação até o senhor telefonar... Oh, meu Deus, Meg...

Griffin e Fitz deram-lhe uns momentos. Griffin também precisava de contar até dez. Ouvia demasiados zunidos. Sabia que se olhasse para baixo naquele momento veria as mãos a tremer. Se tentasse sentar-se, o seu joelho subiria e desceria com vontade própria. Acalma-te. O que quer que fosse que aquelas pessoas tivessem feito, agora estavam a pagar por isso. E ele precisava de manter a calma um pouco mais.

- Talvez se começasse do início - sugeriu Jillian calmamente. Fora informada previamente da situação e olhava para tom e Laurie com pena. Griffin não gostou disso. Não sabia porquê, mas não gostou.

- A Meg tinha apenas treze anos - murmurou Laurie. - Não fazíamos a mais pequena ideia. Até ao dia em que a encontrei enroscada a chorar no chão da casa de banho. Comprara um daqueles testes de diagnóstico e descobrira que estava grávida. Nem sequer sabíamos que ela tinha um namorado.

- Como é que a Meg conheceu o Price? - perguntou Fitz. Griffin virou-se para tom, embora já soubesse a resposta. O seu antigo vizinho, o electricista...

- Através do trabalho - respondeu tom, como seria de esperar.

- Andávamos juntos a electrificar um edifício. Ele era um miúdo tão simpático. Também fazia um bom trabalho. E um dia comentou que não tinha família. Os pais tinham morrido, já não sei porquê. E senti pena dele. Não devia ter mais de vinte e quatro, vinte e cinco anos. Por isso comecei a convidá-lo para vir jantar cá a casa.

- Ele era sempre tão educado - murmurou Laurie. Parecia não conseguir ultrapassar isso. - Por favor, obrigado, sim, minha senhora.

Até ajudava a lavar a louça. - Levantou finalmente a cabeça. - Sabia que a Meg tinha um fraco por ele. Era um jovem bem-parecido e é claro que aos treze ela começava a reparar nessas coisas. Mas achei que era uma coisa sem importância. Aquele tipo de paixoneta que se tem por um empregado do pai, ou pelo marçano. Ela era ainda tão nova. Nunca imaginei...

- Nunca os viu juntos? - De novo Fitz. Ambos abanaram a cabeça.

- Nunca - respondeu tom. - Ela esgueirava-se de casa à noite. Nem sequer sabia que ela pensava em fazer essas coisas. Tenho a certeza de que ele lho deve ter sugerido. Ela nunca nos tinha dado problemas antes. Era uma menina bem-comportada, tinha boas notas. Oh, Meg...

- Então descobriu que ela estava grávida? - incitou Griffin. E ela disse-lhe quem era o pai?

- Estava muito aflita - disse Laurie. - Contou-nos tudo.

- Vocês confrontaram-no?

tom fez um pequeno gesto que deu a entender que houvera um confronto, mas que não envolvera muita conversa. No entanto, os punhos dê tom e o rosto de David tinham-se conhecido. Griffin compreendeu perfeitamente.

- Se a Meg tinha apenas treze anos - disse Fitz -, isso é abuso í sexual de crianças. Por que não apresentou queixa? Assim o tipo era preso.

tom e Laurie olharam-se com expressões infelizes.

- Sentíamo-nos envergonhados - respondeu Laurie. - A Meg fora humilhada... e estava assustada, confusa e de coração destroçado. Parecia achar que o amava mesmo.

Segundo ela, ele até a pedira em casamento. Mas nós... - Respirou fundo, tentando recompor-se. - Parecia tudo um erro horrível. Não tínhamos prestado a devida atenção. A Meg portara-se mal. Ir à polícia só serviria para que toda a gente ficasse a saber e piorasse as coisas. Tem de compreender, não sabíamos que o David tinha feito este tipo de coisa antes, nem imaginávamos o que estava para vir. Seduzir uma criança de treze anos não é correcto, mas mesmo assim... Nunca adivinhámos. - Olhou para Griffin com uma expressão séria. - Por favor, tem de acreditar em nós. Nunca adivinhámos.

- Vocês encobriram tudo - acusou Griffin com brusquidão. Ela queria que ele lhe perdoasse? E as dez outras famílias que David destroçara?

- Tenho família na zona norte do estado de Nova Iorque - murmurou Laurie. - Mandámo-la para lá durante a gravidez. Eu comecei a dizer às pessoas que estava grávida.

E depois, quando chegou a altura, eu, nós, tivemos uma menina. Amamo-la, sargento. - Fitou-o muito séria. - As circunstâncias foram horríveis, mas a Molly é perfeita.

Tenho sentido orgulho de a ter como filha, e andamos a dizer isso há

263 tanto tempo que, no que me diz respeito, ela é minha filha. E farei tudo o que puder para a proteger.

- Ele quer vê-la - disse Griffin.

- Não.

- O Price tem informações sobre o Violador de College Hill. Aliás, começamos a achar que ele ajudou a criar o Violador de College Hill e a pôr tudo isto em andamento...

- O Eddie Como está morto ?- declarou Jillian com firmeza do outro lado da sala.

Griffin virou-se e olhou para ela.

- Sim, mas não foi ele que violou e assassinou a sua irmã.

Fez-se silêncio. Até as mãos de Libby estavam completamente imóveis no livro de imagens. Como absorver aquilo, o que dizer? Griffin e Fitz haviam tido mais tempo para assimilar tudo do que os outros e ainda remoíam a descoberta.

- Nós... num... já recebemos os resultados dos testes de ADN feitos à Sylvia Blaire. São iguais aos do Eddie.

- O quê? - De novo Jillian, ainda pálida, a voz trémula. - Mas isso é impossível!

- Estamos a partir do princípio que o ADN do Eddie foi introduzido como isco nas cenas dos crimes. Os duches vaginais não foram utilizados para lavar o sémen, mas para injectar sémen na cavidade corporal. - Fitz fez uma ligeira pausa. - Bem, isso explicaria por que motivo o Eddie estava tão disposto a dar uma amostra do seu ADN. O pobre desgraçado acreditava sinceramente que não era culpado.

- Mas os bilhetes - insistiu Jillian. - Todos aqueles telefonemas e cartas... Ele perseguiu-nos!

- A afirmar a sua inocência - disse Griffin. - Você não faria o mesmo se estivesse presa por uma série de crimes que sabia não ter cometido?

- Mas aquela disquete! - acabou ela por dizer. - A disquete que me mandou na sexta. Essa foi ameaçadora. E a carta para casa da Carol. Aquela treta toda do "hei-de apanhar-te nem que seja do túmulo." O que era aquilo?

- Sabe se isso veio do Eddie?

- Eu... bem... - Franziu o sobrolho. - A disquete tinha a fotografia dele.

- Era um ficheiro de vídeo, não era? De um homem cuja imagem foi emitida em todos os canais de televisão durante quase um ano. Griffin olhou para ela. Jillian fechou os olhos.

- Podia ser falsa - murmurou.

- Parte do esquema. Por acaso, da primeira vez que você falou na disquete, eu pensei imediatamente no David Price. Soou-me a coisa que ele seria capaz de fazer.

- Oh, meu Deus! - Jillian cobriu a boca com a mão. - Pobre Eddie Como! Oh, pobre homem...

- Não compreendo - interveio tom Pesaturo. - Está a dizer que isto foi tudo feito por outro tipo?

- É a teoria do dia.

- Bem, então quem diabo é ele?

- Se soubéssemos isso, Mister Pesaturo, não estaríamos agora aqui.

- Mas o David Price está a ajudar esse tipo?

- Parece que sim.

- Porquê?

- Para sair da prisão, Mister Pesaturo. Para regressar ao mundo verdadeiro onde pode violar e assassinar crianças. O que é que pensava?

- Não! - exclamou Laurie. Tinha uma expressão selvática. Não pode permitir. Não pode deixá-lo sair.

Griffin limitou-se a encolher os ombros.

- Ele diz que é a única maneira. Temos um predador sádico-sexual à solta que, para todos os efeitos, é o Eddie Como. Não temos impressões digitais, não temos ADN, nem sequer temos uma descrição. E, segundoo David Price, o verdadeiro Violador de College Hill irá matar outra rapariga esta noite a menos que deixemos o David sair da prisão por três horas para visitar a vossa neta.

Griffin virou-se abruptamente para tom.

- Por amor de Deus, Mister Pesaturo, por que é que o senhor e o Vinnie não mataram aquele filho da mãe quando tiveram oportunidade? Ele engravidou a sua filha de treze anos! Isso não lhe bastava?

- Não sabíamos - lamuriou-se tom. - E a Meg estava tão confusa, achando que o amava, que fiquei com medo do que ela pudesse fazer se ele desaparecesse de repente. Depois, após a prisão dele... todos ficámos a saber do que ele era capaz... e a Meg trancou-se no quarto e chorou até não poder mais. Não comia, não dormia, teve pesadelos horríveis. Só queríamos ajudá-la a ultrapassar aquela fase. Por isso jurámos nunca mais voltar a falar no nome dele. Fingiríamos que nunca acontecera. Afinal de contas, o David iria desaparecer de circulação. Os jornais diziam que ele nunca mais sairia, nunca mais veria a luz do dia...

- Começámos a mentir - murmurou Laurie. - E na nossa mentira o David Price não existia. Havia apenas a Molly, a nossa nova filha. Era tudo tão bom assim. Muito mais credível.

- bom, bem-vinda ao mundo real, Mistress Pesaturo. Onde há um monstro chamado David Price. E provavelmente ele anda a ajudar um violador. Por que é que acha que a Meg foi a primeira vítima do Violador de College Hill?

tom tornou a lamuriar-se.

- O David queria vingança. Depois do que fez à Meg, queria vingança...

- Sim, Mister Pesaturo. E, conhecendo o Price, ele ainda agora começou.

 

Jillian

O sargento Griffin e o detective Fitz subiram ao primeiro andar para procurar no quarto de Meg qualquer pista que os ajudasse a descobrir para onde ela fora, enquanto tom e Laurie permaneciam sentados na sala, sem forças, as expressões chocadas.

- Vai correr tudo bem - disse Jillian com firmeza. - A polícia começa a fazer grandes progressos. Vai correr tudo bem.

- Meg - murmurou Laurie.

- Havemos de encontrá-la. Provavelmente saiu para fazer qualquer coisa, talvez almoçar fora. - Mas isso não parecia nada típico de Meg, e Jillian sabia-o. A conscienciosa Meg dizia sempre aos pais onde ia. A cuidadosa Meg nunca passava muito tempo sozinha.

- Ele não pode ver a Molly - murmurou tom. - Não pode. Não... pode.

- Vai correr tudo bem - repetiu Jillian. - Tudo se irá resolver.

- Virou-se para a mãe. - Mãe, se calhar podias mostrar ao tom mais fotografias dos teus tempos de cantora. Eu tenho de ir lá acima falar com o sargento Griffin.

A mãe bateu com o dedo muito séria, um soldado a aceitar a sua missão. A expressão no seu rosto provocou um aperto no coração de Jillian. Apertou rapidamente a mão da mãe, pretendendo tranquilizá-la. Era curioso que nas últimas vinte e quatro horas Jillian tivesse finalmente dado um passo em frente na sua vida. Era curioso que nas últimas vinte e quatro horas Griffin tivesse recuado pelo menos três.

À volta dele parecia pairar uma nuvem. Uma nuvem de ira mal oculta. Se ele estivesse diante de um saco de areia, pensou Jillian, facilmente o desfaria. E a seguir pisaria os bocados desfeitos enquanto os tendões se retesariam no seu pescoço e a ameaça nele cresceria sem parar.

Dissera que tentara matar David Price no dia em que ele fora preso. Dois colegas detectives tinham-no impedido. Ao ver a fúria dele naquele momento, ela perguntou a si mesma como haviam eles conseguido ser tão corajosos. E qual seria o aspecto desses dois homens cinco minutos depois do início do confronto.

Ela endireitou os ombros e subiu as escadas.

Ouviu primeiro a voz do detective Fitz. Encontrava-se ao fundo do corredor, aparentemente a fazer algumas perguntas a Toppi no quarto de Molly. Jillian passou por essa porta e rumou ao quarto de Meg, onde encontrou Griffin diante da pequena secretária branca. Os seus ombros musculados bloqueavam a luz que entrava pela janela.

Jillian não foi capaz de avançar mais um passo. Permaneceu à porta e pigarreou.

Ele virou-se devagar, o calendário de Meg nas mãos.

- Isto é uma investigação oficial da polícia, minha senhora. Saia do quarto.

- Não estou no quarto.

- Jillian - rugiu ele.

- Griffin - retorquiu ela, avançando então um passo. Ao aproximar-se reparou que as mãos dele tremiam, que os seus olhos azuis estavam negros e que rangia os dentes.

- Eles estavam só a tentar proteger a família - murmurou ela. A Laurie e o tom não quiseram fazer mal a ninguém.

- Diga isso às outras dez famílias. Às mães e aos pais que tiveram de entrar na morgue e ver um vídeo porque os verdadeiros restos mortais eram demasiado horrendos até para serem vistos por profissionais experientes. Diga isso ao detective que teve de passar a ir ao psicólogo para tentar tirar aquelas imagens da cabeça.

- Eles não sabiam, Griffín. Ninguém sabia. Não é por isso que você está tão zangado? Porque o erro deles lhe lembra o seu, e isso o enfurece?

Griffin praticamente rosnou. Ela nunca vira um ser humano fazer aquilo antes. Ele rosnou-lhe, selvagem, e no âmago da ira dele Jillian viu também a dor. Isso deu-lhe coragem para erguer uma mão e pousá-la suavemente no peito dele.

- Desta vez é diferente. Vai correr tudo bem.

- Como é que sabe? Nunca conheceu o Price. Não sabe o quanto ele aprecia um bom jogo. E para ele tudo não passa de um jogo. Mais uma forma de passar o tempo até sair da prisão. E acho que isso vai acontecer hoje pouco depois das seis da tarde se eu não descobrir nada por artes mágicas.

Jillian ficou em silêncio.

- E o que sabe você? - O tom dele tornou-se mais hostil. Você e o seu clubezinho das sobreviventes. Que anedota que isso é!

É mas é o Clube das Mentirosas! Cada uma com as suas mentirinhas, enquanto há pessoas a morrerem lá fora. Há pessoas a serem magoadas porque vocês não disseram tudo à polícia.

Ela continuou calada.

- E o que sabe você da Meg? - prosseguiu ele implacável. - Segundo os pais, ela já julgou estar apaixonada por um homem que é um assassino em série. Como é que sabe se ela não continua apaixonada? Já pensou nisso? A violação dela foi a menos traumática. Quase não ficou com nódoas negras. Sempre a considerou sortuda, mas talvez ela tenha andado a colaborar com o Price este tempo todo. A violação foi encenada, a amnésia é encenada. Ela também faz parte do jogo do Price e, neste momento, anda lá fora a fazer coisas para o amante.

- Não.

- Não? Tem a certeza? A certeza absoluta?

- Sim.

- Por que é que subitamente tem assim tanta certeza, Jillian?

- Porque sim - respondeu ela com firmeza. Ele fechou os olhos.

- Bolas!

- Eu sei - sussurrou ela. - Eu sei. Ela precisa de si, Griffin. Não sei onde está a Meg, mas não está a ajudar o David Price. Não anda a ajudar o Violador de College Hill. É uma jovem que já teve dois grandes choques na vida: o primeiro foi ter sido seduzida por um pedófilo, o segundo ter sido atacada por um predador sexual. E a violação dela pode ter sido a menos violenta, mas a polícia diz que isso é comum num primeiro ataque. O Violador de College Hill serviu-se dela para experimentar e, infelizmente para todos nós, a coisa correu tão bem que só serviu para aumentar ainda mais a raiva dele. E por aquilo que os pais dela dizem, a amnésia faz todo o sentido. Como haverá ela de se lembrar da verdade se na sua vida não há qualquer verdade? A irmã é filha dela, o primeiro amante é um assassino perverso, os pais são também avós. Por amor de Deus, nem eu consigo perceber tudo bem!

Ele abriu os olhos e fitou-a com curiosidade.

- Gosta assim tanto dela, Jillian?

- Sim - respondeu ela. - Gosto.

Ele recuou um passo, colocou o calendário em cima da secretária e pareceu olhar para a superfície de madeira sem ver muito. Estaria de novo a pensar em David Price? Nos dias em que haviam sido amigos? Parecia que ele já gostara bastante de David Price. Talvez também tivesse acreditado nele.

- Como está a Carol? - perguntou Griffin abruptamente.

- Os médicos tiraram-na do ventilador esta manhã. Parece que o corpo dela começa a recuperar. Claro que só quando ela acordar é que saberemos até que ponto recuperou.

- E o Dan?

- Dizem que ainda não saiu do lado dela.

- Provavelmente não pode - murmurou Griffin. - Assim que sair do hospital, os capangas do Vinnie partem-lhe as pernas.

- Tive uma conversa com o Vinnie acerca disso. Ele fitou-a, surpreendido.

- Anda a tentar salvar o mundo, Jillian?

- Protejo aquilo que é meu - respondeu ela. - Embora saiba muito bem que não posso proteger sempre toda a gente. No entanto, acho que vale a pena continuar a tentar. Para além disso, a Libby pediu-me.

- Safou o Dan? Pagou as dívidas dele a pedido da sua mãe?

- Não. Convenci o tio Vinnie que a minha mãe consideraria um grande favor se ele perdoasse o resto da dívida ao Dan. Depois ela sorriu-lhe e isso resolveu o resto. A seguir eu disse-lhe que consideraria um grande favor se ele fizesse tudo para impedir que o Dan pedisse de novo dinheiro emprestado. O Vinnie achou isso cruel, pelo que gostou da ideia. - Ela hesitou. - Griffin...

Ele olhou-a.

Jillian respirou fundo.

- Sei que ninguém quer dizer isto, mas e se... e se negociar com o David Price for a melhor ideia?

- Nem pensar!

- Por favor! Ouça-me. Você disse que ele sabe qual é a verdadeira identidade do Violador de College Hill. Tem a certeza disso?

- O homem é um mentiroso e um predador nato. Por isso não, não tenho a certeza.

- Mas leva a sério as alegações dele.

- Ele sabia aquilo do ADN - declarou GrifFm. - Sabia que quando recebêssemos os resultados das análises ao ADN da Sylvia Blaire encontraríamos o do Eddie Como. E há ainda a Meg. E demasiada coincidência a primeira vítima do violador ser também a primeira conquista do Price. E depois existo eu, o detective que prendeu o David Price, e que agora dirige a investigação do homicídio do alegado Violador de College Hill. Merda! - Os olhos de Griffin abriram-se mais. Claro, um homicídio no edifício do tribunal. Boas notícias, pessoal! Três dias depois percebo finalmente porque é que o pobre Eddie Como está morto.

- Porquê?

- Para me trazer para o caso, claro. Porque se o Como morre no tribunal, o caso cai imediatamente na jurisdição da polícia estadual. Griffin sorriu com amargura. - É mesmo do David, mandar um convite ensanguentado para a sua festa.

Jillian fechou os olhos. Céus, nunca ouvira falar de um homem tão mau como David Price. Por isso custava-lhe dizer o que tinha de dizer a seguir. Abriu os olhos. Observou Griffin, tentando fazê-lo discernir a verdade, por muito que custasse.

- Então o David Price deve estar envolvido. Se sabe mesmo o nome do Violador de College Hill... Griffin, sei que não quer lidar com ele.

Eu sei que daria tudo para manter um homem daqueles longe da Molly. Mas como você disse, há pessoas a morrerem lá fora. E se não está perto de descobrir a verdadeira identidade do Violador de College Hill... O David só quer três horas - murmurou ela. - com certeza que salvar uma única vida que seja vale dar ao David Price três horas vigiadas no exterior. Não quer ao menos considerar a hipótese?

O rosto de linhas vincadas de Griffin já não estava vermelho. A sua expressão tornara-se perigosamente fria.

- A comunicação social vai concordar consigo - disse ele baixinho, de forma ameaçadora.

- A comunicação social nem sempre está errada.

- E as pessoas vão telefonar ao presidente da Câmara, o presidente da Câmara vai ligar ao governador, o governador vai ligar ao meu superintendente e o David Price vai conseguir o que quer.

- Mas em troca você apanha o Violador de College Hilf.

- Acha mesmo, Jillian? Como é que iremos saber que o nome que o Price nos vai dar é o correcto? Como é que iremos saber que não é mais uma piada? E mesmo que seja o homem certo, como é que construiremos o caso? Não temos impressões digitais, nem cabelos, nem fibras, nem ADN. Podíamos prendê-lo hoje, mas amanhã teríamos de libertá-lo.

- O DAmato é bom. Ele há-de inventar uma acusação para o tipo, a fim de que você possa dispor de mais tempo. Você consegue descobrir coisas. Isto já resultou antes.

- Quando os tipos de Providence prenderam o homem errado?

Ela perdeu um pouco da compostura. Pobre Eddíe Como. O verdadeiro impacte da inocência dele ainda não a atingira. Jillian não estava preparada para isso. Tentou de novo.

- Uma detenção porá ao menos a bola a rolar.

- O Price não nos ofereceu nada - argumentou Griffin. - É o que ele sabe fazer de melhor. Dá-nos cinzas, mas faz com que pareça carne da melhor qualidade. Sejamos realistas, ele é o criminoso perfeito para a era em que vivemos: está sempre pronto para os noticiários da tarde.

- Griffin, todas aquelas raparigas, aquelas pobres raparigas... Griffin ficou em silêncio. Jillian achou que finalmente conseguira penetrar naquela carapaça... até ele recomeçar a falar.

- vou contar-lhe uma coisa, Jillian. Uma coisa que muito poucas pessoas sabem. vou contar-lhe e depois não quero que você volte a tocar no assunto. Entendido?

Jillian sentiu um arrepio. Pressentia que devia dizer não. Pressentia que era aquilo que se sentia quando se fazia um acordo com o diabo. Assentiu, impotente.

- Há dezoito meses, quando prendemos o David Price, eu fui à cave da casa dele. Vi dez montinhos onde ele enterrara as vítimas no chão de terra. Vi o colchão onde as violara e vi a parafernália que ele usou para as torturar. Mas ainda assim não o ataquei. Chamei os técnicos para analisarem o local. Ordenei que o algemassem e continuei com o trabalho que tinha em mãos. Era uma prisão importante num caso importante. Estávamos a levar tudo aquilo muito a sério. Os olhos de Griffin não largavam os dela.

- O Price começou a falar. A fazer conversa enquanto estava algemado entre os detectives Waters e OReilly. A contar como conhecera os miúdos, como os raptara, o que lhes fizera. Foi difícil. Nós somos profissionais, mas aquilo que ele disse, e a forma como o fez, acabou por nos afectar. No entanto, era uma confissão, ele estava a incriminar-se, por isso deixámo-lo falar e o Waters pôs-se a gravar o que ele dizia. E nessa altura o Price mudou de assunto. Deixou de falar sobre as crianças. Começou a falar sobre a Cindy.

Griffin fez uma pausa. Jillian não desviou o olhar. Pensou que iria desejar nunca ter ouvido o que ele estava prestes a contar.

- Nas últimas duas semanas de vida da Cindy - prosseguiu Griffin calmamente - era evidente que ela não iria conseguir safar-se. O cancro consumira-a a partir de dentro. Não conseguia andar, não conseguia sentar-se, nem sequer conseguia levantar uma mão. Levei-a para casa, como havíamos combinado, instalei-a numa cama especial na sala e contratei um enfermeiro para lá ir ajudar nas coisas. A Cindy continuava a ser capaz de pestanejar e era assim que comunicávamos. Eu fazia-lhe perguntas e ela pestanejava uma vez para dizer sim e duas para dizer não. Mais ou menos como a sua mãe. Eu, hum... - Engoliu em seco, a voz finalmente a enrouquecer. - Eu costumava perguntar-lhe se ela me amava pelo menos umas noventa vezes por dia, só para a ver pestanejar. Só para saber que ela ainda tinha vida. Estava a trabalhar no maldito caso do Homem dos Doces, claro. Podia fazer bastantes telefonemas de casa, tratar das papeladas... Mas às vezes tinha de sair, e às vezes o enfermeiro precisava de sair e às vezes, às vezes, o David ia até lá.

"Exactamente - assentiu. - O nosso bom amigo e prestável vizinho David Price, que estava sempre a dizer "Vamos conseguir vencer esta coisa", ia até lá sentar-se ao pé da Cindy. Na altura parecia uma boa ideia.

"Mas agora estávamos na cave, com aquele colchão e aquela bancada e aqueles montinhos escuros. Agora estávamos na cave e o David começou a contar-me o que fazia exactamente durante aquelas tardes com a Cindy. A contar-me exactamente o que fez à minha mulher.

Grififin viu a expressão dela e abanou de imediato a cabeça.

- Não, nada disso, Jillian. A Cindy era adulta e o David só gosta de crianças. Ela forneceu-lhe uma coisa ainda melhor: um público. Sim, um maldito público. Durante cerca de um ano, o Price andou envolvido naquela matança, a raptar e a assassinar crianças. E ninguém desconfiava de nada. O que significava que não tinha ninguém com quem falar, junto a quem pudesse vangloriar-se. Isso também só serve para meter uma pessoa em apuros, e o David sabia-o. Mas eis que surge a Cindy. Impotente, moribunda e incapaz de dizer uma palavra. Por isso ele vai para lá e conta-lhe tudo. Todos os pormenores sobre como escolheu, perseguiu e raptou as crianças, como as magoou e estrangulou e enterrou na cave. E assim por diante, uma litania infindável de horrores. E a Cindy não podia rugir. A Cindy não conseguia repetir uma palavra.

"Tens de imaginar o que ela deve ter sentido, disse-me o David, quando te via cumprimentar-me com tanta gratidão ao chegares a casa. Tens de imaginar o desespero dela, disse ele, o desejo de que visses algo no rosto dela, ou na minha cara. Se ao menos eu fizesse a pergunta correcta... A minha mulher, inteligente, brilhante, que conhecia todos os horrendos crimes dele e era incapaz de fazer algo para os impedir. A minha mulher, meiga e cheia de compaixão, a morrer com todas aquelas crianças assassinadas na consciência. E durante todo esse tempo, o marido nunca desconfiou de nada. Durante todo esse tempo, o marido sentia-se tão grato a David por ele ir lá visitá-la...

"Foi nesse momento que eu perdi a cabeça e comecei aos socos. Não me lembro muito bem do que aconteceu a seguir, para ser franco. Disseram-me que o Waters e o OReilly se meteram à frente dele. E disseram-me que o David Price nunca deixou de sorrir.

"É com este tipo de homem que estamos a lidar, Jillian. Ele só faz amigos para ter pessoas a quem trair. Persegue crianças só para ter vidas para destruir. E, para mal de todos nós, é muito inteligente. É brilhante.

Griffin foi até à secretária. Pegou no bloco e o pedaço de papel que estava em baixo voou até ao chão. Aterrou junto aos pés de Jillian, por isso ela pegou-lhe primeiro. Era uma folha do bloco, e escrita na letra grande e redonda de Meg encontravam-se as seguintes palavras: "David Price, David Price. Oh, não, David Price."

- Bem - disse Griffin passado um momento. - Parece que a Meg começou finalmente a lembrar-se.

Cinco minutos mais tarde, Griffin e Fitz estavam a sair dali, com expressões impenetráveis mas os lábios muito apertados. tom e Laurie ficaram lá dentro. Pareciam incapazes de se moverem, de digerirem aquela reviravolta nos acontecimentos.

Foi Jillian quem seguiu os dois detectives até ao carro, os viu entrar e bater com as portas.

No último minuto, bateu no vidro do lado do condutor. Griffin abriu a janela.

- Estava com a sua mulher quando ela morreu? - perguntou.

- Claro.

- Perguntou-lhe se ela o amava? O que respondeu ela?

O tom de voz de Griffin suavizou-se.

- Pestanejou um "sim".

Jillian assentiu, recuando um passo.

- Lembre-se disso, Griffin. Se o David Price sair da prisão, se estiver com ele, lembre-se disso. Ele não ganhou. Você ganhou.

GrifFm finalmente assentiu. Depois a janela do seu lado voltou a fechar-se. Ele e Fitz arrancaram e fizeram-se à estrada.

 

Meg

Griffin e Fitz tinham-se afastado apenas quatro quarteirões da casa dos Pesaturo quando o segundo gritou:

- Pare!

Griffin carregou no travão e Fitz embateu no tabliê.

- Porra, gaita, além!

Griffin seguiu o dedo do detective até umas bombas de gasolina à direita. Estavam três carros a meter combustível. No entanto, o olhar de Fitz pousara num pequeno Nissan castanho estacionado junto às portas de vidro da loja da estação de serviço.

- Aquele é o carro da Meg - declarou ele. - Verifique a matrícula.

MP 63. Griffin virou para a estação de serviço.

Primeiro contornaram o carro. O interior tinha a tralha habitual

- lenços de papel, escova de cabelo, correspondência e mais uma série de elásticos para o cabelo enfiados no travão de mão. Griffin reparou no cartão caducado de estacionamento da universidade no momento em que Fitz pousou a mão no capo e disse que este estava frio.

Os dois homens entreolharam-se de sobrolho franzido. Se o motor já arrefecera, o carro encontrava-se ali há já algum tempo. Entraram na loja. Lá dentro estavam duas mulheres e um funcionário. A primeira mulher, com cabelo grisalho e uma camisola azul-escura enorme, observava com uma expressão concentrada a arca dos gelados. A segunda mulher, no corredor dos snacks, tinha cabelo louro. Nenhuma delas era Meg. Fitz e Griffin olharam um para o outro ainda mais preocupados.

Aproximaram-se da caixa, onde estava um adolescente cheio de borbulhas bastante parecido com o que trabalhava no Blockbuster. Fitz identificou-se.

- Onde está a condutora do Nissarit

O rapaz olhou para o crachá de Fitz, engoliu em seco, e tornou a olhar para o crachá.

- Não sei - lamuriou-se ele.

- O que queres dizer com isso?

- Quero dizer que ela não está aqui. Senhor - acrescentou o rapaz à pressa.

- Viste mesmo a condutora do Nissan castanho?

- Sim, senhor! Era muito bonita, senhor! bom, pela descrição devia ser a Meg.

- Ela entrou aqui, disse-te alguma coisa?

- Não, senhor.

- Não entrou aqui na loja? - Fitz não despregou os olhos do rapaz.

- Não, senhor. Quero dizer, acho que ela tencionava fazer isso, mas depois o amigo dela apareceu e ela foi com ele.

- com ele? - interveio Griffin.

O rapaz olhou para Griffin pela primeira vez, reparando na figura imponente do detective estadual, e empalideceu prontamente.

- S... sim.

Fitz encostou-se ao balcão. As duas mulheres tinham deixado de olhar para a comida e escutavam descaradamente a conversa. Fitz ignorou-as. Dirigiu-se ao rapaz num tom amável.

- Podes descrever exactamente o que viste? Não tenhas pressa. Pensa bem.

O miúdo respirou fundo. Pensou bem.

- Bem, vi-a sair do Nissan. E depois, bem, tornei a olhar para ela porque, bem, ela era muito bonita.

- O que tinha vestido?

- Hum... um casaco castanho. De camurça, sabe, com uma mala grande ao ombro, e calças de ganga, acho. Não sei. Nada de especial.

- Muito bem. Então ela saiu do carro com o casaco e a mala ao ombro. Fechou a porta do carro?

- Sim, fechou.

- E depois?

- Avançou um passo, como se se dirigisse para aqui. Mas de repente parou e voltou-se. Vi outro carro parar e um tipo sair. Parecia estar com pressa, sabe? Correu até junto dela, disse qualquer coisa, depois meteram-se ambos no carro dele.

- Descreve o homem - ordenou Fitz.

- Hum... não era muito alto, acho. Talvez da sua altura. Cabelo castanho. Era... um tipo normal. - O rapaz encolheu os ombros.

Fitz olhou para Griffin, que assentiu. Um tipo normal. A descrição favorita para o Eddie Como. Merda!

- idade? - perguntou Fitz.

- Hum, acho que era mais velho que ela. Não consegui vê-lo bem daqui, mas lembro-me de ter pensado que era demasiado velho para ela. Não sei porque pensei isso.

- Viste o carro dele?

- Daqui não. Mas pelo barulho parecia um carro grande. com um motor potente. Antigo. Deu uns estampidos quando ele arrancou.

Provavelmente precisa de velas novas - acrescentou o rapaz, muito prestável.

- Ele tocou na rapariga? - interveio Griffin.

O olhar do miúdo pousou nele, depois virou-se de imediato para o balcão.

- Hum...

- Tocou-lhe no braço, no ombro?

- Oh, sim! Quando se aproximou. Pousou uma mão no braço dela. E acompanhou-a ao carro, sabe? Abriu-lhe a porta. Uma rapariga como ela deve gostar de boas maneiras. - O rapaz assentiu, e suspirou. Na sua idade, já devia ter percebido como funcionavam as coisas e que tipos como ele nunca conseguiam uma rapariga como Meg.

- Ele continuava a segurar-lhe no braço quando abriu a porta? insistiu Griffin.

- bom, agora que fala nisso... Ele tinha o braço esquerdo no braço dela e abriu a porta com o direito.

- Nunca a largou?

- Acho que não.

Griffin e Fitz entreolharam-se de novo. Aquilo não parecia bom. Griffin olhou para o relógio. Onze e quarenta e seis. Merda, não iriam ser capazes de fazer nada até ao meio-dia, prazo dado por Price.

- A que horas parou ela aqui? - O olhar de Fitz seguira o de Griffin até ao relógio, e o seu tom adquirira uma urgência renovada.

- Oh, há algum tempo. Espere... um Suburban grande tinha acabado de encher os dois depósitos. Isso foi muita massa. Deixe-me conferir os recibos.

O rapaz abriu a caixa registadora e começou a virar os talões. Griffin e Fitz estavam impacientes. Os minutos iam passando, passando. O rapaz virou um recibo, disse "Hum", depois passou para outro. E a seguir para outro. E mais outro ainda. Quando Griffin achou que já não aguentava mais, Fitz rebentou.

Esticou o braço por cima do balcão e agarrou no pulso do rapaz.

- Ouve, faz um cálculo. Oito, nove, dez da manhã ou quê?

- Hum. - O rapaz olhou para os nós brancos dos dedos do detective. - Nove da manhã, senhor!

- Muito bem, obrigado. Portaste-te lindamente. - Fitz fez sinal a Griffin para que começasse a andar. Virou-se ainda para o rapaz: Daqui a pouco há-de passar por aqui um agente, que irá tomar nota do teu depoimento. Quero que lhe contes tudo o que nos contaste, e mais alguma coisa de que te lembres. Consegues fazer isso?

- Hum, sim, senhor.

- Isto é importante. Agradecemos a tua ajuda. Okay!

- Okay, senhor!

- Óptimo. Depois entramos em contacto contigo. - Fitz dirigiu-se para a porta a correr, a fim de apanhar Griffin, que já estava de gatas junto ao carro de Meg. Dez segundos depois, Griffin viu um brilho prateado e tirou um porta-chaves de debaixo do carro.

Ele e Fitz olharam para as chaves e para o papagaio verde de plástico.

- Ela devia tê-las ainda na mão - observou Griffin. - Depois, quando o tipo lhe agarrou o braço... - O sargento largou as chaves e elas caíram mais ou menos no sítio onde ele as apanhara.

- Não me parece que ela tenha encontrado um amigo - comentou Fitz.

- Pois não.

- Por que acha que ele a apanhou agora?

- Porque ninguém consegue resolver um caso em duas horas e o David Price sabe disso. - Griffin baixou-se para apanhar as chaves e depois olhou para Fitz. - O Price tem a certeza de que vai conseguir sair da prisão às seis da tarde. E quando isso acontecer, não vai querer estar sozinho.

- Pobre Meg - murmurou Fitz. - Pobre Molly. Griffin. olhou para o relógio. Cinco minutos para o meio-dia.

- Se o David Price sair da prisão, pobres de todos nós - disse ele. - Vamos.

Assim que entraram no carro, o telemóvel de Griffin tocou. Era Waters.

- As minhas duas horas acabaram-se. Desculpa, Griff, mas não descobri nada.

- Quantos bares?

- Fomos a uns vinte e quatro. Sabes, esta cidade não passa de uma taberna gigantesca. Em vários disseram-me conhecer a Tawnya, mas essencialmente reconheceram-na dos noticiários. Num bar disseram-me que ela costumava lá ir, mas antes de ter engravidado.

- Arranja mais homens e continua a tentar. Alguém deve ter visto qualquer coisa.

- Está bem.

- Mike... A Meg Pesaturo desapareceu. Foi vista a ser metida num carro por um homem desconhecido. O que quer que esteja a acontecer, já começou. Temos de nos despachar, Mike.

- Griffin, já é meio-dia...

- Eu trato do prazo do Price. Continua à procura de informações sobre a Tawnya Clemente. Percebido?

Griffin desligou a chamada e marcou um número.

- Vai ligar a Deus a pedir um milagre? - perguntou Fitz, carrancudo.

- Não, melhor ainda. Ao cabo Charpentier.

Griffin obteve o ptrger de Charpentier, marcou para urgente e, trinta segundos mais tarde, o outro estava a ligar-lhe.

- Onde está? - perguntou Griffin. Ouvia imenso ruído de fundo.

- No parque de estacionamento do Max. A Maureen Haverill, do Canal Dez, acabou de falar com o advogado do David Price. Agora exige falar com o Price. A hora da visita ao bloco de celas dele começa oficialmente ao meio-dia. Sargento, acho que isto é irreversível.

- Conseguiu as minhas listas?

- O detective James está neste momento a fazer o download de nomes. Estamos a falar de cerca de cem homens. Não vejo em que é que isto possa ajudar.

- Tenho uma teoria nova. Descubra os nomes das pessoas que o David Price conheceu quando ainda estava em Intake, antes de ser condenado. E, desses nomes, os dos tipos que acabaram por não ir para a prisão. Talvez tenham sido considerados inocentes, tenham sido ilibados por causa de um pormenor técnico, ou coisa parecida.

- Porquê esses tipos?

- Porque, depois de a primeira violação acontecer, o detective Fitz diz que eles investigaram os violadores conhecidos e não descobriram nada. Por isso talvez o verdadeiro violador nunca tenha sido condenado por esse crime. Foi preso, mas não condenado.

- O que quer dizer que o ADN dele está no sistema - respondeu o cabo Charpentier lentamente - e foi recolhido na altura da detenção. No entanto, o violador propriamente dito é um homem livre.

- Um homem livre a precisar de uma nova maneira de fazer as coisas - disse Griffin.

- E o David Price ajudou-o a descobri-la - concluiu Charpentier.

- Por que não? Já que se está na prisão, por que não tentar aprender com um mestre?

Ouviu-se mais barulho de fundo. A voz de Charpentier soou abafada, como se ele tivesse tapado o bocal.

- Sargento, eu consigo-lhe a lista, mas provavelmente vai demorar mais uma hora, e parece que o circo mediático está prestes a começar. O director do departamento correccional quer examinar o equipamento do cameraman, mas não pode impedir a entrada à comunicação social. Está na hora da visita, o advogado do Price concordou com a entrevista... estamos lixados.

- Quando tempo irá demorar o exame ao equipamento?

- Quinze minutos, no máximo. Podemos esticá-lo até vinte. Griffin olhou para o relógio. Estavam quase a chegar à casa dos

Como, mas quinze minutos não seriam suficientes para fazer vergar Tawnya Clemente. E assim que Maureen encostasse o microfone à boca de Price e ele começasse com o seu joguinho patético...

- Código - disse Griffin de repente.

- Código?

- Sim. Código Azul ou Código Branco, contento-me com uma cor qualquer. Se houver um código, terão de fechar a prisão toda, certo? Mandar sair toda a gente, até advogados e aspirantes a pivôs de noticiários?

- Exactamente - respondeu Charpentier, mais animado.

- E talvez leve algum tempo a resolver tudo e a voltar a deixar entrar toda a gente, certo? Os prisioneiros têm de ser revistados e acompanhados novamente até à zona das visitas. A Maureen e o JimmyS teriam de voltar a passar pela segurança... - Poderia levar algum tempo - concordou Charpentier alegremente. Depois hesitou. Grifin compreendeu. Um Código Azul só acontecia se ocorresse alguma perturbação grave, se um guarda fosse agredido, se houvesse um confronto entre dois reclusos. Um Código Branco, por outro lado, ocorria no caso de uma emergência médica. Em qualquer deles, primeiro tinha de acontecer algo na prisão. - O director não está muito satisfeito com a ideia de a televisão entrar na prisão - disse ele finalmente. - Eu podia falar com ele. Talvez agora seja uma boa altura para fazer um exercício. Sabe, como um favor à polícia estadual. - Ficámos gratos por esse favor - disse Griffín.

- Espere um momento. - Houve uma pausa, o som abafado de passos, depois uma conversa. Pouco depois, Charpentier voltou a falar para o telefone. - Sabe uma coisa?

Parece que aqui o Old Max já não vê um exercício há muito tempo. O acontecimento real sim, mas não um exercício. E sabe como é, se não se pratica de vez em quando...

- O senhor é um espectáculo, cabo. E diga ao director que aprovamos sempre um bom exercício. Mais uma coisa...

-Diga ...

- Se a entrevista não se realizar... peça ao director para não voltar a meter o Price na cela dele. Leve-o para qualquer lado, mas não para a cela dele.

- Não queremos que vá buscar alguma coisa que lá possa ter escondida.

- Nunca é demasiado cedo para tomarmos precauções.

- Estou certo de que o director irá perceber onde queremos chegar. E, bolas, o bloco de celas também deve estar prestes a receber uma inspecção surpresa. Que dia tão educativo para os guardas prisionais!

- Só se atinge a perfeição com a prática. Trabalhe nessa lista, cabo. Ligo-lhe mais tarde.

Grifin desligou no instante em que entravam na rua de Tawnya. Meio-dia e dez. Estacionou o Taurus em frente da casa.

- Você vai primeiro - disse ele a Fitz. O detective ficou radiante.

 

Tawnya

Voltaram a contornar a casa e a dirigir-se à porta das traseiras. Como nunca se sabia se havia cameramen escondidos nos arbustos, aquela parecia ser a melhor opção.

Desta vez Tawnya apareceu logo à porta. com o seu habitual bom humor, assim que viu o detective Fitz através do vidro cuspiu no chão.

Griffin abanou um dedo com ar brincalhão. Talvez o seu encanto tivesse dado resultados, porque ela acabou por abrir a porta.

- Se vocês, porcos, vieram até cá por causa do processo - disse Tawnya -, podem ir foder uma cabra. O meu advogado diz que não devo falar convosco.

- Que colorido! - comentou Griffin para Fitz.

- Já ouvi pior. Continue a falar e vai ver que também ouve. bom dia, Mistress Como. - Fitz entrou na cozinha atrás de Griffin, mantendo o vulto corpulento do detective estadual entre ele e Tawnya. Mrs. Como encontrava-se de novo junto ao fogão. Hoje a aventura culinária parecia ser cozer feijão preto. O odor a alho conferia à cozinha

um toque acolhedor. Não que faltassem as fraldas na lixívia.

Desta vez, Eddie Júnior estava acordado, aninhado numa alcofa em cima da mesa da cozinha. Estudou Griffin com uns grandes olhos castanhos, depois mordeu um anel de borracha multicolorido e deixou escorrer baba. Griffin enfiou as mãos nos bolsos antes de fazer qualquer coisa estúpida como acariciar as bochechas do bebé. Tinha de representar o papel do detective mau. Os minutos iam passando, passando. Caramba, os bebés eram mesmo giros!

- Talvez devêssemos falar na sala - disse Fitz, indicando o bebé com a cabeça.

- Não tenho nada para lhe dizer - respondeu Tawnya.

- Vamos para a sala - repetiu Fitz num tom mais firme. Tawnya lançou-lhe um olhar de desdém, mas obedeceu. Assim que saíram da cozinha, Fitz abriu fogo.

- Sabemos o que fez, Tawnya. Abra o jogo, antes que morra outra rapariga, e talvez ainda possamos chegar a acordo. O Eddie Júnior já perdeu o pai. Quer que ele fique completamente órfão?

- De que merda está você a falar?

- Cinquenta milhões de dólares. Por esse dinheiro, as pessoas até vendem as mães, quanto mais os namorados que as engravidaram mas ainda não levaram ao altar.

- Está a falar do processo? Porque eu não estou. O meu advogado disse-me que não tenho de vos contar nadinha. Vocês mataram o meu Eddie. Agora é a vossa vez de pagar!

- Não vai haver processo nenhum, Tawnya - interveio Griffin.

- Nem um cêntimo - enfatizou Fitz -, assim que as pessoas souberem o que você fez realmente ao Eddie.

Tawnya era boa. Muito boa. Primeiro olhou-os intrigada, depois preparou-se para a luta. Arreganhou os dentes. Exibiu as unhas rosa-choque.

- Saiam da minha casa.

- Tem de nos ouvir, Tawnya. Trabalhe connosco agora e ainda pode salvar qualquer coisa para o Eddie Júnior.

- Seus grandes cabrões, filhos de uma grandessíssima puta! Saiam da minha casa!

Fitz e Griffin não se moveram. Fitz olhou para Griffin.

- Tem razão, a linguagem é bastante colorida.

- Condiz com as unhas.

- Acha que ela vai atacar em breve?

- Isso seria bom. Assim podíamos prendê-la e ela nunca mais veria a luz do dia.

- Seria uma pena para o Eddie Júnior. Griffin encolheu os ombros.

- Sabe o que se costuma dizer. Não podemos escolher os pais. Tawnya espumava da boca. Griffin atacou logo.

- Tem trinta segundos para começar a falar - disse ele em voz baixa e intensa. - Sabemos que tramou o seu namorado. Sabemos que é cúmplice de quatro violações e dois homicídios. Se abrir já o jogo, o Eddie Júnior ainda pode ficar com a mãe. Se gozar connosco mais alguma vez, prendemo-la. Prendemo-la diante do seu filho.

Arrastamo-la para fora de casa e nunca mais voltará a ver o miúdo. Trinta segundos, Tawnya. Vinte e nove, vinte e oito, vinte e sete...

Tawnya não estava com disposição para negociar. Rosnou uma vez, depois lançou-se na direcção do vulto maciço de Griffin. Ele agarrou-lhe as mãos, colocou um pé atrás dos dela e fê-la tombar em cima do tapete puído. Fitz pegou nas algemas. Não tinham tempo a perder. Puseram-na de pé, a cuspir e aos coices, e preparavam-se para a levar porta fora quando Mrs. Como apareceu na sala, a secar as mãos num pano de cozinha, e proferiu uma única palavra:

- Parem.

Havia instintos demasiado fortes; eles imobilizaram-se. Griffin recuperou primeiro.

- Mistress Como, temos motivos para crer que a Tawnya ajudou a incriminar o seu filho por violação...

- Não fiz nada disso! - gritou Tawnya. Começou de novo a espernear, depois quis pontapear Fitz, que se desviou habilmente.

- A Tawnya é uma boa rapariga - disse Mrs. Como.

- Boa rapariga uma ova! - resmungou Fitz, ainda a desviar-se.

- Boas raparigas fizeram coisas muito piores por cinquenta milhões de dólares - recordou Griffin, afastando Tawnya de Fitz.

- A Tawnya não processar - disse Mrs. Como. - Eu processar. Quero dinheiro. Para o meu neto.

- A ideia do processo foi sua?

- Si.

- Mas foi a Tawnya que apareceu na televisão - comentou Fitz.

- Não gosto de televisão.

Fitz e Griffin entreolharam-se, preocupados. Afastaram-se ligeiramente de Tawnya. Ela, é claro, aproveitou a oportunidade para lhes cuspir em cima.

- Eu nunca faria nada para prejudicar o Eddie! Eu amava o Eddie, seus estúpidos, miseráveis...

- Pois, pois, pois - interrompeu Fitz, erguendo a mão e olhando para o relógio. - Já percebemos.

- O meu filho foi incriminado? - perguntou Mrs. Como da porta. - O meu Eddie não fez coisas más?

Griffin olhou também para o relógio de Fitz. Era quase meio-dia e meia. Merda.

- Mistress Como, sabia que ontem à noite foi atacada outra rapariga?

Mrs. Como assentiu.

- Já recebemos os testes de ADN feitos à vítima, Mistress Como. São iguais às amostras recolhidas do Eddie.

- Mas isso é impossível! - exclamou Tawnya. - O Eddie está morto. Vocês, porcos, estão tão desesperados que já andam atrás de cadáveres? Nem sequer mortos os latinos estão a salvo de vocês. Seus miseráveis, cabrões...

Desta vez foi Griffin quem ergueu a mão. Estudou o rosto vermelho e irado de Tawnya. Olhou para Mrs. Como e para a sua expressão muito mais indecifrável. Havia ali qualquer coisa errada, sentia-o.

E os malditos minutos iam passando, passando.

- Tawnya, sabia que quando os detectives revistaram o seu apartamento e do Eddie, o ano passado, encontraram vários livros sobre medicina forense e métodos policiais? E alguns recortes também, não foi, detective? Artigos de jornal de outro caso de violação ocorrido em Rhode Island.

- Eu disse à polícia que essas coisas não pertenciam ao Eddie!

- Então pertenciam a quem?

- Não sei! Chegou uma embalagem pelo correio para o Eddie. O bilhete dizia que era de um amigo. Ele não percebeu o que aquilo queria dizer, por isso meteu a embalagem num roupeiro. Achou que um dia alguém iria telefonar por causa daquilo, ou coisa do género. Eu disse isso aos detectives, disse-lhes

- Quando é que receberam a caixa?

- Não sei. Foi há muito tempo. O ano passado. Antes... - Ela franziu o sobrolho. - Antes de as coisas más começarem a acontecer. Não compreendo. Como podem pensar que o Eddie matou aquela mulher ontem à noite? O Eddie está morto.

- A embalagem tinha remetente?

- Não sei. Não a abri. Veio dirigida ao Eddie. Griffin olhou para Fitz.

- Não - disse o detective. - Era apenas uma velha caixa de cartão com uma etiqueta. Francamente, pareceu-nos que ele utilizara a caixa para guardar aquelas coisas. Quando a encontrámos, estava enfiada a um canto do roupeiro.

- Porque não era dele! - tornou a gritar Tawnya. - O Eddie não sabia porque é que aquilo tinha vindo pelo correio!

- Alguma vez ouviu falar no David Price? - perguntou Griffin.

- Quem?

- O Eddie nunca falou no David Price?

- Quem diabo é o David Price?

- Já ouviu falar no Homem dos Doces?

- O pervertido que fez mal àquelas crianças todas - disse ela de imediato. - Ora aí está um tipo que merecia que lhe cortassem a pila... ou que o fritassem na cadeira eléctrica!

Griffin tornou a estudá-la. Os seus olhos castanhos tinham uma expressão séria, honesta. Se estava a mentir, era muito, muito boa.

- Tawnya, o Eddie tinha outra namorada? Ela explodiu instantaneamente.

- O Eddie amava-me! Por que é que é tão difícil acreditar nisso? O Eddie amava-me e eu amava o Eddie e íamos ser felizes. Ele tinha um bom trabalho, sabe, e depois de o Eddie Júnior nascer eu iria tirar o curso de esteticista. E depois, depois... ah, merda!

Os ombros dela curvaram-se, a primeira lágrima tombou e ela virou-lhes logo as costas. Seriam lágrimas de crocodilo? Ou a mais verdadeira tristeza que Griffin vira? Tinham-lhe mentido tanto ultimamente que sentia alguma dificuldade em perceber. Mas desconfiava que alguém estava ali a dar-lhe uma lição de ironia. Neste caso, as vítimas e as suas famílias haviam mentido - com a melhor das intenções, claro - enquanto que o principal suspeito e a sua família podiam ter estado a dizer a verdade.

- Tawnya, estamos a ficar sem tempo - disse Griffin calmamente.

- Preciso que me diga a verdade, preciso de a ouvir agora.

- Eu já disse a verdade!

- Tawnya, deu a alguém uma... amostra do Eddie? Talvez tenha parecido uma coisa acertada, ou fosse um favor a um amigo.

Ela olhou para ele, estupefacta.

- Uma amostra? Quer dizer uma amostra de espermaí Está doido? Quem é que dá uma coisa dessas?

- Tawnya, o sémen do Eddie apareceu numa vítima de homicídio depois de ele ter morrido. Diga-me você, como pode isso ter acontecido?

E, de súbito, ela deve ter percebido, porque os seus olhos abriram-se muito.

- Oh, não! - exclamou. - Oh, não, não, não...

- O que foi, Tawnya? "Oh, não" porquê? O que foi que você e o Eddie fizeram?

O rosto dela toldou-se, a sua voz quase sumiu.

- Precisávamos do dinheiro - murmurou. - Eu estava grávida e o Eddie queria comprar-me uma coisa especial, sabe. E tínhamos de começar a poupar mais...

Ah, não! Griffin olhou para Fitz e pela expressão dele viu que o detective finalmente também percebera. Fazia tanto sentido, mas quem é que se lembraria de fazer a pergunta? Quem faz perguntas dessas?

- O Eddie estava de boa saúde - dizia Tawnya. - Dava sangue de oito em oito semanas, por isso sabíamos que não tinha doenças. E era bem-parecido. Eles gostam de tipos bem-parecidos, sabem?

- Quem é que gosta de tipos bem-parecidos? - insistiu Griffin. Ela tinha de o dizer. E disse-o.

- O banco de esperma. O Eddie deu esperma ao banco de Pawtucket. Umas duas vezes. Logo a seguir a eu ter descoberto que estava grávida. Eles pagam em dinheiro, sabem? - Tawnya fitou-os, impotente. - Pagam em dinheiro.

Fitz e Griffin saíram da casa a grande velocidade. Meio-dia e quarenta e cinco, começavam a fazer progressos, mas o tempo continuava a ser pouco.

- Precisamos de mais homens - disse Griffin.

- Alguém que a mantenha debaixo de olho até confirmarmos a sua história - concordou Fitz. Entraram no carro de Griffin e ele pegou no rádio para efectuar o pedido.

- Alguma vez ficou com a impressão de que somos estúpidos que nem umas portas? - murmurou Fitz.

- Não sei, até que ponto são estúpidas as portas?

Fitz descontraiu-se finalmente um pouco, e bateu com a mão no tabliê.

- Bolas! O sargento Napoleon adivinhou logo de manhã. "Os bancos de esperma passam a vida a fazer isso." Por que é que não fazemos uma lobotomia frontal e despachamos a coisa de uma vez por todas?

- E perdíamos este divertimento todo? Vá lá, os minutos estão a passar. Vamos analisar isto.

- O Eddie foi ao banco de esperma e deixou lá uma amostra disse Fitz quando Griffin arrancava com o carro.

- Teoricamente, os dadores são anónimos.

- Para quem recebe as amostras. O banco de esperma sabe quem são, tem de ver primeiro se estão de boa saúde. Não sei, quantos exames se fazem antes de se entregar a um tipo um copo de plástico e mandá-lo para uma sala cheia de revistas pornográficas? Sortudo.

- Alguém lá de dentro - sugeriu Griffin.

- Alguém que tivesse acesso às amostras congeladas.

- E ao nome do Eddie.

- O David Price disse que o tipo conhecera o Eddie. O Eddie não se devia lembrar minimamente disso, mas o tipo conhecera-o.

Griffin rodou a cabeça, fazendo estalar o pescoço e encolheu os ombros. Detestava ter de dar importância a uma coisa que David Price dissera, mas tinham de começar por algum lado.

- Então talvez o tipo seja um técnico. Alguém que estava de serviço num dos dias em que o Eddie lá foi, e meteu conversa com ele. Talvez tenha reparado que o Eddie tinha sensivelmente a sua constituição, e o mesmo sotaque de Cranston. Decidiu que encontrara um bom candidato.

- Então já andava à procura de um - disse Fitz.

- O que quer dizer que já conhecera o David Price.

- Talvez tenha estado preso. Pelo menos detido em Intake acusado de qualquer coisa.

- Ele já está no sistema - disse Griffin devagar. - Não é essa a questão principal? É um criminoso sexual, sabe que é, e mesmo que não tenha sido considerado culpado, foi apanhado. Então agora sabe que as suas impressões digitais e o seu ADN estão no sistema, tal como sabe que não irá parar, porque os criminosos sexuais nunca param. Vão-se tornando mais criativos a cada ataque.

- Sabe que quando sair, se sair, é apenas uma questão de tempo.

- E trava amizade com David Price.

- Que deve ter achado aquilo divertidíssimo.

- Só que nessa altura o Price percebe que também pode ganhar alguma coisa com aquilo. Ter uma pessoa no exterior, a trabalhar para ele. Alguém que um dia consiga metê-lo cá fora.

- E assim nasce uma sociedade.

- Então quem temos? - perguntou Griffin. - Alguém que foi acusado pelo menos de um crime sexual. Alguém que esteve em Intake mais ou menos na altura em que o Price lá esteve, ou seja, entre Novembro e Março. Foi libertado e conseguiu trabalho num banco de esperma.

- Acesso ilimitado a pornografia - murmurou Fitz. - Para onde mais haveria de ir um criminoso sexual?

- Mas náo pode ser um técnico - contrapôs Griffin. - Eles investigariam uma pessoa dessas, descobririam o seu passado criminoso e ficariam nervosos.

- Então alguém com um trabalho mais inferior, mas com acesso ilimitado. Tem chaves das salas com as arcas e não dá nas vistas se andar por ali fora de horas.

Adivinharam os dois ao mesmo tempo

- O zelador! - exclamou Fitz.

- Ou alguém da limpeza - acrescentou Griffin. - Um dos dois. Pegou no telefone e ligou a Waters.

- Desculpa, Griff... - começou Waters.

- Já sabemos quem foi - interrompeu GrifHn. - Quero dizer, sabemos como foi feito. Só precisamos de um nome. Vai ter comigo ao banco de esperma de Pawtucket daqui a dez minutos.

- Onde?

- Ao banco de esperma. Onde trabalha o Violador de College Hill.

- Está bem - respondeu Waters, mas não parecia tão entusiasmado como Griffin esperara. E depois distinguiu uns sons que vinham do bar onde Waters se encontrava. A voz de uma mulher. Maureen Haverill a apresentar David Price aos espectadores na televisão de ecrã gigante do bar. Uma da tarde. Griffin e Fitz haviam esgotado o tempo.

 

O Clube das Vítimas

Estava escuro. Meg semicerrava os olhos, tentando distinguir alguma coisa no escuro. De nada lhe serviu. A escuridão era uma presença espessa, tangível, tão sufocante

como um cobertor de lã, tão abrangente como um mar interminável.

Torceu o corpo, puxando as faixas que lhe prendiam as mãos acima da cabeça. Os garrotes de látex cravavam-se cruelmente nos seus pulsos. Sentiu uma gota de líquido a escorrer-lhe pelo braço e calculou que fosse sangue. Pelo menos já não sentia muitas dores. As mãos tinham ficado dormentes havia várias horas, e os pés, que estavam amarrados, pouco depois. Continuavam a doer-lhe as omoplatas devido à posição incómoda. Imaginava que também essa dor acabaria por desaparecer. E depois?

Tornou a deslocar os pés amarrados. Tentou apoiar-se na parede do canto, como se fosse capaz de trepar pela superfície vertical, abrindo caminho através do oceano negro e emergindo no topo, inspirando golfadas de ar. Claro que não faria tal coisa. Continuou uma rapariga de vinte anos cativa. A olhar para o escuro, a inalar o aroma revoltante do látex e a sentir o sangue a escorrer-lhe pelo braço.

Som. Mudou de posição, tentando adivinhar a direcção do ruído. Passos. Por cima dela. À direita? À esquerda? Nunca se apercebera do quanto a escuridão ecoava até se encontrar amarrada naquela cave bolorenta.

Mais próximo, de certeza, mais próximo. A cantarolar agora. O homem, pensou ela, encolhendo-se automaticamente e sustendo a respiração.

Ele chamara-a pelo nome na estação de serviço. Ela parara instintivamente, embora não tivesse reconhecido o carro nem o condutor. Não reconhecer uma pessoa não era propriamente uma novidade naquela altura, e acima de tudo recordava-se de ter sentido alguma curiosidade. Quem seria aquele desconhecido e que histórias do seu passado saberia ele?

Mas ele dissera-lhe que tinha havido um acidente. Molly precisava dela imediatamente. Enquanto ainda estava a recuperar do choque, ele empurrara-a para o banco do passageiro do carro. No último momento, algo dentro dela hesitou. Vira-o abrir a porta do lado do condutor, vira o seu corpo dobrar-se para entrar e alguma coisa se agitara no poço da sua memória. Não uma recordação propriamente dita. Mas uma emoção. Medo, forte, intenso e instantâneo. Agarrara no fecho da porta no instante em que ele carregara no fecho centralizado e lhe apontara a arma.

Ela reconhecera-o então. Olhara para o seu rosto e, embora as feições individuais não despoletassem recordações, teve uma imagem nítida de um corpo a mover-se por cima do seu na escuridão. Os gemidos, os grunhidos, os barulhos infindáveis que acompanhavam a sua vergonha. Como os garrotes, os terríveis garrotes de látex, haviam mantido o seu corpo exposto, vulnerável e disponível para ele o tomar.

E quando ela pensava que aquilo não iria terminar, que já não conseguiria aguentar mais, e que o seu corpo seria cortado ao meio, ele tombara finalmente em cima dela, transpirado.

O homem soltara uma gargalhada gutural. E a seguir murmurara:

- O David disse que gostavas disto à bruta. Precisas de um irmão ou de uma irmã para a Molly, Meg? Talvez eu espere antes alguns anos e depois experimente a pequena Molly.

Ela começara a gritar nessa altura. Mas a mordaça abafara o som, empurrara-o de novo para os pulmões, onde foi crescendo, crescendo. Um grito sem fim.

- O David tem saudades tuas, Meg. O David deseja-te, Meg. Nunca devias tê-lo rejeitado. Agora ele está na prisão, rodeado de animais ansiosos por saber o teu nome. Todos acabamos por sair um dia e. todos sabemos onde vives.

O homem saíra de cima dela e pegara na camisa.

- Ah, é verdade - acrescentou num tom casual -, o David manda-te um abraço.

O grito tornara-se então demasiado grande. Explodira subindo pela sua garganta e rasgara-lhe a mente. Saíra pelas suas órbitas e limpara-lhe o cérebro. Continuara sem parar, uma explosão sónica. E ela não emitira um único som. Ninguém ouvira nada.

Violentamente como começara, o grito estacou, virou-se sobre si mesmo, voltou a mergulhar no corpo dela e levou-a consigo para o abismo escuro e aveludado.

Ela passara um ano a querer recordar-se. No carro com aquele homem, Meg desejou conseguir esquecer.

Ele levara-a para uma zona da cidade que ela não conhecia. Remota. Isolada. O tipo de sítio onde só acontecem coisas más. Estacionando numa viela lateral, ele pegou-lhe nas mãos com uma força surpreendente. Ela sentiu o cheiro do látex antes de o ver. O seu estômago agitou-se. Julgou que iria vomitar. Ele amarrou-lhe os pulsos, apertou os nós, depois pousara a mão no seio dela.

Então era aquilo, percebeu ela.

Absurdamente, pensou em Jillian. Nas aulas de autodefesa que haviam tido, nos livros sobre sobreviver a uma agressão que haviam lido.

"As mulheres não têm de ser vítimas."

Mas então por que é que deram tanta força aos homens?

- Dispomos de algumas horas - disse ele. - Preciso de fazer umas coisas primeiro. Mas depois de estar despachado... não te preocupes, Meg. Ainda me lembro de como tu gostas. - Mexeu com o polegar no mamilo dela. Esboçou um último sorriso cruel, depois cobriu-lhe a cabeça com uma T-shirt preta.

Ela estava no escuro desde essa altura.

Mais sons agora. Pancadas. Portas de armários a abrir e a fechar. O bater de tachos. O estômago de Meg roncou e ela percebeu de repente o que ele estava a fazer. A preparar o almoço. O monstro levara-a para o seu covil, amarrara-a, manietara-a, deixando-a apavorada, e agora estava a preparar um belo de um almoço.

Ela sacudiu os braços, dorida. Puxou os garrotes presos a uma cavilha de metal por cima da sua cabeça. Nada, nada, nada Quis gritar de frustração.

As mulheres não são vítimas! Ela não era uma vítima! Bolas, lera os livros, fizera os cursos. Ouvira Jillian e acreditara. Como é que uma rapariga podia ser tão azarada? Como podia ter avançado tanto durante o ano passado para acabar naquele momento ali?

Deu um novo puxão nas amarras. Sentiu o cimento firme enquanto a sua própria pele se rasgava e o pulso recomeçava a sangrar.

E então teve vontade de chorar.

Ele acabaria de comer depressa. Abriria a porta no cimo das escadas. Desceria até à cave com o seu cheiro bafiento a decomposição e a terra revolvida há pouco.

E depois?

Jillian dissera-lhes que poderiam controlar as suas próprias vidas. Jillian dissera-lhes que, se se empenhassem, poderiam vencer. Poderiam estar confiantes, ser independentes e fortes.

Mas Meg já não conseguia pensar como Jillian. Era apenas uma rapariga de vinte anos. E estava cansada, faminta e apavorada. E em breve, muito em breve, uma coisa má iria acontecer. Uma coisa pior que o Violador de College Hill.

Em breve, prometera o homem, David estaria ali.

Na Unidade de Cuidados Intensivos, Dan estava sentado a ler um livro. Recuperar de Uma Violação: Um Guia para as Vítimas e Suas Famílias. Comprara o livro havia duas semanas. Ia no capítulo "O Primeiro Aniversário e Depois - Quando ainda não se ultrapassou o que aconteceu".

Os monitores emitiam um ruído sincopado, acompanhando o pulso da sua mulher. Ao fundo do corredor, uma outra máquina começou a apitar freneticamente.

- Desfibrilhador! - gritou uma enfermeira. Seguiu-se o barulho das rodas de borracha e o tinir do metal quando o carrinho do desfibrilhador foi levado para junto da cama.

Carol não se mexeu. O seu peito subia e descia calmamente. A sua cabeça estava pousada na almofada, um halo de cabelos louros. Os lençóis brancos permaneciam lisos e esticados sobre a pequena elevação do seu peito.

De vez em quando, a mão direita agitava-se. Nas últimas vinte horas, foi o mais perto que chegara de recuperar a consciência.

Dan terminou o capítulo do ponto de vista das sobreviventes. Passou para "O Marido - Quando ela ainda não ultrapassou o que aconteceu".

Leu e, embora não se apercebesse, chorou algumas vezes.

Ao fundo do corredor, os médicos e as enfermeiras lutavam desesperadamente para salvar uma vida. Ali no quarto, o coração de Carol batia de forma regular, os seus pulmões funcionavam ritmadamente e essa paz ameaçava levá-la.

Dan acabou o capítulo. Olhou para a mulher adormecida, os cotovelos assentes nos joelhos, a cabeça baixa. Ainda lhe doía o braço esquerdo no sítio onde Carol o alvejara. Já mal dava por isso.

Vinte horas de vigília. Vinte horas de esperança, de preces, de praguejar.

Pensou nos muitos anos em que o destino fora cruel e nas muitas formas de crueldade. Pensou em todas as coisas que ele e Carol haviam feito. Perguntou a si mesmo por que motivo magoamos sempre as pessoas que amamos. E por que motivo era necessária uma visita a um quarto nas urgências para perceber o que era realmente importante na vida.

Faria recuar o tempo se pudesse. Esqueceria a atracção do blackjack arranjaria forma de ser feliz na firma de advogados. Estaria mais em casa, ignoraria menos a mulher, concentrar-se-ia nas pequenas coisas que a faziam sorrir. Seria o marido perfeito, um homem que chegava a casa a tempo de deter um atacante, um homem que não levava a mulher à bulimia, ao álcool e aos comprimidos.

Claro que isso não era opcional. Agora podia apenas avançar devagar, com o seu braço ferido, as enormes dívidas e a culpa. Carol estava destroçada, ele estava destroçado.

Segundo o livro que estava a ler, esses sentimentos eram naturais e levaria algum tempo até ambos se sentirem inteiros - se alguma vez se voltassem a sentir. Mas era preciso continuar a viver, aconselhava o livro. Avançar a custo através da dor, à procura do outro lado.

Tinha de haver um outro lado.

- Amo-te - disse ele a Carol.

Não obteve resposta.

- Bolas, Carol, não o deixes ganhar! Nada.

Ao fundo do corredor as coisas haviam piorado. Já não havia agitação. Apenas um silêncio muito mais alarmante. Depois a voz de um médico interrompeu o silêncio.

- Hora da morte.

- Foda-se! - gritou Dan. Atirou o livro para o chão. Subiu para a cama de hospital. Desviou fios, adesivos e tubos para poder pegar na mulher. A cabeça dela pousou no seu ombro. O seu cabelo louro comprido cobriu o seu peito.

Dan abraçou Carol. Encostou-a ao seu corpo, apertou-a o mais que pôde.

Ao fundo do corredor, a equipa regressou cansada à sala de convívio, onde todos se concentraram na televisão.

- Olhem - disse alguém. - Aquele não é o David Price?

Ainda sentada na sala dos Pesaturo, Jillian não sabia o que fazer. tom olhava para o chão, como se a carpete puída contivesse o segredo para a vida eterna. Laurie desaparecera na cozinha, onde, a avaliar pelo cheiro a detergente, travava uma guerra santa contra a sujidade. Isso deixava Libby e Toppi a cuidar de Molly. A criança pusera a caixa de sapatos cheia de roupas da Barbie no regaço de Libby, para que esta escolhesse uma e Toppi estava encarregue de colocar uma capa rosa-choque no Winnie the Pooh. Jillian não estava a perceber nada daquilo.

tom olhava, Laurie limpava, Molly brincava... e Jillian? Não sabia o que devia fazer. O Clube das Sobreviventes sofrera uma cisão. Tinham-se afastado umas das outras, de propósito ou não, e sozinhas não eram tão fortes como haviam sido juntas. Carol, amarga, cedera à sua fúria autodestrutiva. Meg, frágil, desaparecera quando a família mais necessitava dela. E Jillian? Jillian, sisuda, determinada, perfeita? Não tinha tropas para conduzir até ao combate. Estava sentada ao lado da mãe, a brincar com a medalha de ouro de S. Cristóvão que pertencera a Trisha, a tentar organizar as ideias.

Se Griffin estava certo, o Clube das Sobreviventes fora duplamente vitimizado. Primeiro, o violador agredira os seus corpos. Depois levara-as não a exercer a vingança delas, mas a sua própria vingança sobre um pobre desgraçado que tentara provar-lhes a sua inocência. Pobre Eddie Como, a proclamar a sua inocência até ao último minuto.

Se Jillian pensasse muito nisso, se pensasse no homem, em Eddie, em Trisha, tinha medo de começar a gritar e de acabar por partir todos os objectos que estavam na sala.

Se pensasse muito nisso, voltaria novamente ao apartamento escuro da irmã. O homem estaria a apertar-lhe a garganta, a insultá-la. E enquanto ele fazia aquelas coisas, estaria a rir-se interiormente, porque já sabia que quando ela tentasse procurar justiça mais tarde estaria apenas a fazer o que ele queria.

Enquanto Trisha morria na cama.

Um ano antes, ela telefonara a Meg, telefonara a Carol. Dissera-lhes que já tinham sido vítimas uma vez, mas que tal nunca mais voltaria a acontecer. Dissera-lhes que poderiam recuperar as suas vidas. Dissera-lhes que poderiam ganhar.

Mentira.

E se no fim a vida não passasse daquilo mesmo? Tentava-se e falhava-se, tentava-se e falhava-se. O adversário não só era fisicamente mais forte do que nós, mas também mais inteligente? Podíamos lutar o melhor que sabíamos, mas a nossa irmã morria na mesma. Podíamos finalmente conseguir prender um pedófilo assassino, e o tipo limitava-se a sorrir e a dizer-nos exactamente o que havíamos feito.

David Price. David Price. Tudo terminava em David Price. Encantador, aparentemente inofensivo, o vizinho perfeito, David Price.

Jillian apertou a medalha de Trisha na mão. Afinal de contas não era assim tão difícil transferir a sua ira. Queria David Price morto. E então, pela primeira vez, compreendeu verdadeiramente Griffin. E então, pela primeira vez, ocorreu-lhe uma ideia.

A porta da rua abriu-se e fechou-se. Laurie, que saíra para ir buscar o correio, entrou na sala, a olhar para a correspondência.

Parou no meio da sala. A mãe de Meg começou a gritar.

 

Maureen

- Daqui fala-vos Maureen Haverill, directamente do Estabelecimento Prisional de Cranston. Hoje houve revelações surpreendentes no que diz respeito ao caso do Violador de College Hill, que ganhou uma nova intensidade ontem à noite com o brutal homicídio de Sylvia Blaire, uma aluna da Universidade Brown. Seria Eddie Como, de vinte e oito anos, tragicamente abatido a tiro na segunda-feira no Complexo Judicial de Licht, o verdadeiro Violador de College Hill, como foi acusado? Ou terá Como sido mais uma vítima de um jogo sádico? Estou aqui com o recluso David Price, um assassino condenado, que afirma saber a verdadeira identidade do Violador de College Hill, mas que também nos diz que a polícia estadual ignorou repetidas vezes as suas ofertas de ajuda. Mister Price, o que nos pode dizer sobre o ataque a Sylvia Blaire?

- Boa tarde, Maureen. Posso tratá-la por Maureen? - Falava num tom amigável, e a seguir esboçou o seu sorriso mais afável.

- Se quiser. Agora, Mister Price...

- Trate-me por David, por favor.

- David, afirmou ter informações sobre um caso bastante sério. Como é que conhece o Violador de College Hillí

- bom, acontece que costumamos escrever um ao outro.

- Escrever?

- Sim. Sabe, o homem, o verdadeiro violador, tem-me mandado umas cartas.

- Cartas? Mais do que uma?

- Exacto.

- Isso é interessante. Quantas cartas recebeu do homem que alega ser o Violador de College Hill, David?

- Eu diria que umas seis ou sete.

- E quando é que recebeu a primeira?

- Há mais de um ano, pouco depois de ter sido condenado a pena perpétua. Claro, no início não as levei muito a sério. Quero dizer, por que haveria um violador de me escrever? Só nos últimos dias é que comecei a perceber que o homem devia estar a falar a sério.

- Posso ver essas cartas, David? Tem-nas? Pode mostrá-las aos nossos espectadores?

- Bem, eu tenho-as, Maureen...

- Sim?

- Bem, elas constituem uma prova, não é, Maureen? Cartas de um violador. Não me parece que devamos andar a mexer numa coisa dessas. Tenho de mante-las a salvo para a polícia estadual. Isto é uma investigação importante. Não quero fazer nada que possa estragar tudo.

- Sorriu novamente.

Maureen franziu o sobrolho.

- Mas disse que a polícia estadual não está a levar a sério as suas afirmações, não é assim, David?

- A polícia estadual não gosta muito de mim.

- Porquê?

- Bem, a pessoa que está a dirigir esta investigação, o sargento Griffin, costumava ser meu vizinho. O sargento Griffin nunca gostou muito de mim. Estava sempre a trabalhar, sabe... aqueles detectives da polícia estadual têm uns empregos muito importantes. Mas isso significava que a mulher dele passava muito tempo em casa sozinha. Tornámo-nos bons amigos, e julgo... bem, julgo que o sargento Griffin pode ter-se sentido ameaçado por isso. Não que tivesse motivos! A mulher dele era uma senhora encantadora, muito simpática. Não tenho família, e ela teve a amabilidade de me fazer companhia. Era uma mulher maravilhosa, bonita, sensual.

- David, não é verdade que foi o sargento Griffin que o deteve?

- Bem, sim. E isso também o deixa furioso. Quero dizer, levou quase um ano a apanhar-me, Maureen, e eu vivia na casa ao lado. Quando se é um detective da polícia estadual isso é um pouco embaraçoso, não é?

- Isso foi no infame caso do Homem dos Doces, não foi?

- Parece que era isso que me chamavam.

- O senhor foi considerado culpado do homicídio de dez crianças, não é verdade, David? - Maureen fitou-o muito séria. - Os corpos das crianças haviam sido sepultados na sua cave, e o senhor cumpre agora dez penas perpétuas consecutivas, sem qualquer possibilidade de uberdade condicional. Não é assim?

David Price baixou humildemente a cabeça. De novo sentado na sala de interrogatórios da prisão, experimentou mostrar-se arrependido.

- Envergonha-me dizer isto, Maureen, mas tem razão. Fiz muitas coisas más na minha vida. Por outro lado, acho que é por isso que o Violador de College Hill me contactou. Ele parece considerar-me uma espécie de herói.

- O Violador de College Hill deixou-se impressionar por si? - Ela parecia com dúvidas, talvez até enojada.

- Acho que sim, Maureen. Ele escreveu isso na primeira carta. Andava a fazer algo que achava que só eu seria capaz de entender.

- Falou-lhe das violações?

- Na carta mais recente. Descreveu pormenores de forma bastante realista, Maureen, incluindo coisas que só o verdadeiro violador poderia saber. É isso que tenho tentado dizer à polícia.

- Pode dar-nos um exemplo, David? Que tipo de coisa é que só o "verdadeiro violador" podia saber?

David passou da expressão contrita à perturbada.

- Não sei, Maureen... é uma investigação oficial. Talvez eu deva manter-me calado. Às vezes a polícia não gosta que o público saiba tudo. Isso compromete a investigação. Não gostaria nada de fazer uma coisa dessas...

Maureen mordeu o isco.

- Autenticidade, David - respondeu ela de imediato. - Se pudesse dar-nos um pormenor, uma coisinha que só o verdadeiro Violador ãe College Hill pudesse saber, isso provaria a autenticidade das suas cartas. E isso seria um grande avanço na investigação. As pessoas teriam muito orgulho em si.

- Acha que sim?

- Só um pequeno pormenor, David. Só um pequeno pormenor.

- Bem, sou capaz de me lembrar de um. Mas é um pouco desagradável...

Maureen aproximou dele o microfone.

- Isto. é um crime grave, David. As mulheres de Providence andam assustadas. Precisamos de ouvir aquilo que você sabe.

- bom, está bem. Ele.... hum... usa duches vaginais nas vítimas. Isso é um pormenor. Usou-os nelas todas, depois de ter terminado. A polícia acna que com aquilo ele tentava eliminar... bem, você sabe. Não sou capaz de dizer a palavra à frente de uma senhora.

- Vestígios de sémen, David?

- Bem, sim. - David agitou-se na cadeira plástica cor de laranja, depois olhou directamente para a câmara e corou. - Então ele usa um duche vaginal depois de ter terminado com cada uma das mulheres. Mas a polícia estava enganada, Maureen. Ele não está a eliminar vestígios de sémen. Em vez disso, segundo as suas cartas, está... bem, está a meter coisas lá dentro. Serve-se dos duches para colocar sémen de outro homem, o ADN do Eddie Como, no local do crime. E é por isso que a polícia não consegue prendê-lo. Todas as provas apontam para outro tipo. Sejamos realistas, ao fim de quatro ataques, a polícia ainda não está prestes a identificar o verdadeiro Violador de College Hill. Não faz a mínima ideia.

Sentada do outro lado da mesa, Maureen ficara visivelmente ofegante.

- Este homem julga que inventou o crime perfeito, não julga, David?

- Oh, absolutamente. Tem orgulho naquilo que fez. E não tenciona parar. As suas cartas são bastante claras. Gosta de magoar mulheres. Gosta mesmo. E vai continuar, e continuar...

- Disse isto à polícia estadual?

- Maureen, ando a ligar para a polícia desde que o Eddie foi morto, pobre homem. Assim que ouvi dizer que ele fora abatido à porta do tribunal soube que as cartas eram verdadeiras. Este tipo incriminou o Eddie e depois matou-o para parecer que um tipo morto andava a atacar as estudantes de Providence. Ele é esperto, Maureen. Muito esperto. É isso que tenho tentado dizer à polícia.

- Falou mesmo com a polícia?

- O sargento Griffin veio finalmente visitar-me esta manhã. A coisa não correu bem, Maureen. Ele acusou-me de estar a interferir numa investigação policial. Depois enfureceu-se e começou a falar da mulher. Estou a dizer-lhe, éramos só amigos!

- Mostrou ao sargento Griffin as cartas que recebeu?

- Ele não me deu oportunidade. Percebi desde o início que achava que eu estava a mentir.

Ela inclinou-se para a frente com uma expressão intensa.

- Está a mentir, David?

David olhou directamente para a câmara, para os olhos dos espectadores.

- Não, Maureen. E o facto de eu ter conhecimento dos duches vaginais só vem prová-lo. Ligue para o médico legista, ligue para um detective de Providence. Eles dir-lhe-ão que foi encontrado um duche floral descartável da Berkely and Johnson em todas as cenas de crime, até nesta última. Ora como haveria eu de saber isso se o verdadeiro Violador de College Hill não mo tivesse dito?

Maureen virou-se para a câmara.

- Aliás, eu soube esta manhã por uma fonte que os duches são considerados

uma espécie de assinatura do Violador de College Hill, e por isso mesmo a sua existência nunca chegou ao conhecimento do público. A polícia encontrou igualmente um duche em casa de Sylvia Blaire, a estudante assassinada, o que sugere que ela é a última

vítima do Violador de College Hill. - Virou-se para David com uma expressão grave. - David, não me parece que esteja a mentir. Os espectadores não acham que esteja a mentir. Por isso, diga-nos o verdadeiro nome do Violador de College Hill.

E David Price, o pecador arrependido do dia, disse:

- Desculpe, Maureen, mas acho que não lhe devo dizer isso.

- Vá lá, David. Você quer fazer algum bem. Quer ajudar o público. Eis a sua oportunidade.

- Tenho de dizer à polícia e só à polícia.

- Mas segundo o que acabou de dizer, David, a polícia não acredita em si.

- Eu sei. E é triste, muito triste, Maureen, porque recebi uma carta ainda esta manhã. O Violador de College Hill passou um ano inteiro sem atacar porque queria matar primeiro Eddie e arrumar o seu plano.

Já fez isso. Agora está preparado para compensar o tempo perdido. Julgo... Não! Tenho a certeza absoluta que ele vai atacar outra rapariga esta noite!

- Ele vai voltar a atacar esta noite?

- Acho que sim, Maureen. Sim, tenho a certeza. Maureen inclinou-se para cima da mesa.

Os seus olhos azuis brilhavam. Agarrava o microfone com tanta força que os nós dos seus dedos estavam brancos. Sentia-se aturdida. O cameraman sentia-se aturdido. Na pequena sala, irradiavam energia pura. David divertiu-se a imaginá-los ambos mortos.

- David, diga-nos o nome dele. Você fez em tempos uma coisa horrível. Raptou crianças, magoou-as, feriu muitas famílias. As pessoas ainda se lembram disso. Há pessoas a ver esta emissão que se perguntam porque deveriam acreditar no que diz um monstro como você. Diga a essas pessoas o verdadeiro nome do Violador de College Hill. Mostre a essas pessoas que está pronto a redimir-se.

- Não posso.

- Não pode como? - Maureen estava praticamente aos gritos. Sabe ou não sabe o nome? Fale comigo, David. Ajude-nos! Segundo o que acabou de dizer, outra estudante inocente está prestes a morrer!

David cedeu finalmente.

- Eu sei o nome dele! Quero ajudar! - exclamou o pecador arrependido David. - Mas... mas olhe para mim! Vivo numa prisão de segurança máxima, Maureen. Vivo no meio de Steel City, rodeado pela escumalha da escumalha. E olhe para mim! Tenho apenas um metro e sessenta. Peso setenta quilos. Por amor de Deus, sabe o que é ser pequeno num local destes? Sabe?

- O que está a querer dizer, David?

- A informação é poder, Maureen. Na prisão. Na vida. Esta é a única informação que possuo. E a minha única oportunidade de adquirir algum poder num local destes. Que Deus me perdoe, mas não posso desistir. Preciso de algo em troca.

Maureen recuou finalmente. Pela primeira vez, parecia genuinamente desapontada.

- Só vai revelar o nome do Violador de College Hill em troca de algo? É isso que está a dizer, não é, David? Só nos ajuda se ganhar alguma coisa.

Aquela era a parte mais perigosa. David baixou a cabeça, depois lançou um olhar humilde à jornalista.

- Desculpe, Maureen. Peço desculpa também aos espectadores. Sei que não está certo. Mas é assim que o sistema funciona e agora faço parte deste sistema. Tenho de cumprir as regras.

- Espera sair da prisão? Violou e matou crianças, David. Enterrou os corpos delas na sua cave. Independentemente do que fizer agora, as pessoas não vão sentir-se à vontade com o facto de você receber alguma consideração...

- Eu sei.

- Você é um assassino, David. Sejamos honestos. Está numa prisão de máxima segurança por algum motivo, e a maior parte das pessoas sente-se grata por você aqui estar.

David respirou fundo.

- Eu sou pai.

- É pai? - Maureen ficou tão chocada que pestanejou. Foi provavelmente a primeira emoção genuína que mostrara à frente da câmara.

- Sim. Sou pai. Tenho uma filha. com cinco anos. Maureen, nunca vi a minha filhinha. Nunca... lhe disse olá.

O rosto de Maureen ficou de novo sério, o seu tom intenso.

- O que quer, David?

- Quero ver a minha filha, nada mais. Olhe, não estou a negar aquilo que você disse. Sei que nunca irei sair da prisão. Já me mentalizei. Depois das coisas que fiz, devo sentir-me grato por ainda estar vivo. Tenho falado com o capelão. Ando a ler a Bíblia. Embora não possa alterar o que fiz, Maureen, posso tentar ser um homem melhor daqui em diante...

- Diga-nos o nome do Violador de College Hill, David.

- Tenho uma filha - continuou ele, implacável - e ela está a chegar a uma idade em que vai reparar que não tem um pai como as outras crianças. Quero que ela saiba que a culpa não é dela. Quero que ela saiba que alguém a ama. Quero que ela saiba que eu a amo.

- O que pretende, David?

- Três horas, Maureen. E isso que quero, só isso que quero. Três horas, com vigilância, em roupas normais, para ir visitar a minha filha. Pela primeira vez. Pela única vez. Para lhe poder dizer que a amo. Para lhe poder dizer que ela é uma menina linda. Para lhe poder dizer que não posso ser seu pai, mas que a culpa não é dela.

- Quer que o estado o liberte da prisão por três horas. Que libertem um assassino condenado?

David ergueu as mãos.

- Uma saída vigiada, Maureen. Como é costume fazer-se para funerais, esse tipo de coisas. Eu estaria manietado nos pulsos e nos tornozelos. Sempre escoltado por guardas prisionais. A polícia pode escolher o local do encontro, a forma de eu lá chegar. Farei o que me mandarem. Cumprimentar a minha filha algemado e escoltado é melhor do que fazê-la vir aqui. Sejamos realistas, nenhuma criança aqui devia entrar.

Maureen recostou-se finalmente. Franzia o sobrolho, mas pela primeira vez parecia estar a considerar seriamente a proposta dele. E se ela estava disposta a fazer isso, outros o estariam...

- Uma saída de três horas, com escolta. E em troca dá-nos o nome do Violador de College Hill!

- Sim.

- Quem é a sua filha, David?

- Não vou dizer-lhe.

- Esta filha que tanto ama?

- A minha filha existe, Maureen. Pergunte a qualquer guarda prisional. Mas não vou anunciar o nome dela em público. Não seria capaz de fazer isso à minha filhinha.

Maureen lançou a última cartada.

- Por que não nos diz agora o nome do violador, David, e em troca eu vou lutar pela sua saída de três horas? Em troca por prestar à cidade um grande favor, tenho a certeza de que conseguiremos qualquer coisa.

- É muito simpática, Maureen.

- Obrigada, David.

- Mas eu não sou assim tão estúpido.

- O quê?

- Dão-me as três horas que pedi. Eu vejo a minha filha. E depois da visita acabar, viro-me para o primeiro polícia que encontrar e digo-lhe o nome do Violador de College Hill. O acordo é esse. Espero que a saída tenha lugar e, para bem de nós todos, espero que aconteça depressa. O violador é um homem faminto. Quando chegar a noite voltará a atacar.

- David...

- Oh, e sargento Griffin, se estiver a ouvir, volto a dizer. A sua deliciosa mulher e eu éramos apenas amigos.

 

Griffin

Griffin estava a ter alguma dificuldade em controlar a ira. Encostou o corpo maciço à secretária de cerejeira, olhou para o jovem que tinha o azar de ser o gerente do banco de esperma e não perdeu tempo com palavras.

- Empregado da limpeza. Nome. Agora.

- Estou a tentar dizer-lhe que não temos um homem da limpeza.

- Quem limpa?

- Uma empresa.

- O nome dela. Agora.

- Preciso de procurar.

- Então procure, bolas!

O homem virou-se rapidamente para um armário de cerejeira, as mãos arranjadas na manicura a tentarem abrir as portas, a transpirar dentro do fato Armani. Parecia que os tratamentos de infertilidade davam dinheiro. E muito.

Fitz estava atrás de Griffin. Waters estava ao lado de Fitz. Ambos olhavam para ele atentamente, mas nenhum interviera.

- É a Korporate Klean - anunciou o gerente endinheirado dois minutos depois.

- Morada?

O homem entregou-lhe o dossiê. Griffin folheou-o.

- Não está aqui o nome das pessoas que se ocupam da limpeza das vossas instalações.

- O nosso contrato é com a Korporate Klean. Eles é que contratam as pessoas.

- com que frequência vêm cá?

- Todas as noites.

- E durante o dia?

- Quando têm coisas especiais. Limpar o interior das janelas, polir os metais dos elevadores e das escadas. Oh, e a roupa. Trazem lençóis, toalhas e mais roupa lavada algumas tardes por semana. Nós, hum... gostamos de fazer com que os nossos clientes se sintam em casa e não num ambiente de laboratório.

- Que atencioso da vossa parte. Quem é que traz a roupa?

- Não sei.

- Por quantas pessoas é formada a equipa que trabalha aqui no edifício?

- Não sei.

- São sempre as mesmas pessoas?

- Não sei!

- Mister Matthews...

- O nosso contrato é com a Korporate Klean, sargento. Lamento, estou a tentar ajudar. Mas não nos preocupamos com esses pormenores. O senhor vai ter de falar com eles.

- Obrigado pelo dossiê - rosnou Griffin, dando meia volta e dirigindo-se para a porta.

No elevador, Fitz pegou no dossiê.

- Já ouvi falar nessa Korporate Klean.

- A polícia contratou uma empresa para limpar a esquadra? perguntou Waters com suavidade. - Nunca tinha dado por isso.

Fitz lançou um olhar impaciente ao detective magro.

- Não, investigámo-los uma vez. Vocês, grandes mongos, também já deviam ter ouvido falar nessa empresa. A Korporate Klean contrata essencialmente ex-reclusos.

- O quê? - GrifFin estacou no meio do elevador e olhou para Fitz.

Este encolheu os ombros.

- É uma daquelas empresas da "segunda oportunidade", sabem? Dirigida por uns tipos liberais que acreditam poder recuperar aquela gente. Um tipo cumpre pena, sai da prisão, tem de trabalhar nalgum lado. Dirige-se à Korporate Klean e reentra na sociedade como funcionário de limpeza. Investigámo-los algumas vezes mas nunca descobrimos nada esquisito. Toda a gente se dá bem, toda a gente se aplica no trabalho, todos funcionam em equipa. Pelo menos é o que o dono, o Sal Green, diz.

- Há empresas dispostas a ter as suas instalações limpas por uma equipa constituída por ex-reclusos? - perguntou Waters.

- Não sei ao certo o que é que as empresas sabem. Você ouviram o homem há pouco: o contrato deles é com a Korporate Klean. A Korporate Klean é que recruta os funcionários.

- Oh, bestial... - murmurou Griffin carrancudo. - Então quando lhes formos pedir uma lista de funcionários com registo criminal, a lista incluirá todos os funcionários.

- Sim, mas nem todos fazem a limpeza do banco de esperma.

O telemóvel de Griffin tocou. Pegou nele quando o elevador chegou ao rés-do-chão e abriu as portas para a entrada.

- Griffin.

- Viu as notícias? - perguntou a tenente Morelli.

- Ouvi-as na rádio.

- Sargento, gostávamos que voltasse para cá...

- Estamos quase a apanhá-lo, tenente. Segundo a Tawnya, o Eddie fez várias doações a um banco de esperma, cuja limpeza por acaso é feita por uma empresa de ex-reclusos. Dirigimo-nos neste momento para a sede da Korporate Klean. Mais uma hora, duas horas e teremos o nome do criminoso.

- Sargento, tendo em conta o envolvimento do David Price...

- Eu estou bem, tenente.

- Agradecemos os seus esforços, e achamos que seria melhor.. Griffin passou o telefone a Waters.

- Diz à tenente que estou bem. - Se calhar não devia ter rosnado ao dizer aquilo. Waters pegou no telefone enquanto Griffin rodava a cabeça para aliviar a tensão no pescoço.

- Boa tarde, tenente. Hum hum. Sim. Hum hum. Waters devolveu o telefone a Griffin.

- Ela não gosta muito de ti.

- Talvez tenha de mudar de água-de-colónia. - Griffin encostou o telefone ao ouvido e abriu a porta do carro. - Tenente, vamos apanhá-lo. Antes das seis da tarde e sem o David Price. Vamos apanhar o filho da mãe.

- Estamos a planear uma saída de três horas - retorquiu a tenente Morelli calmamente.

- O quê

- Para as seis da tarde. Estamos a colaborar com o departamento prisional, os marshals e a polícia de intervenção. Eu irei liderar a equipa.

- Tenente, não faça isso. É o que ele quer. Não faça isso!

- Acha que não sou capaz de liderar a equipa, sargento?

- A questão não é a minha tenente - respondeu GrifFin, fechando os olhos. - A questão não sou eu.

É o David Price. Escute, as violações começaram há mais de um ano.

Pense nisso. Quer dizer que o Price está metido nisto há mais de doze meses, doze meses de planeamento, de esquemas, que culminam hoje. Ele tem outros planos. E teve mais do que oportunidade durante todo este tempo para intervir.

- Acha que não sou capaz de liderar a equipa, sargento?

- Os Pesaturo não irão permitir - tentou ele de novo, já mais desesperado. - Não vão deixar que a neta de cinco anos sirva de isco.

- Os Pesaturo pediram pessoalmente este encontro. Foi o telefonema deles para o superintendente, não as outras centenas de telefonemas - acrescentou a tenente com secura -, que influenciou a decisão final.

- O quê? Como? Porquê?

- Encontraram um bilhete no correio. Se o David Price não vir a Molly, eles não voltam a ver a Meg. O bilhete trazia uma fotografia. Está a perceber a gravidade da situação?

- Ele está a cobrir todos os flancos - murmurou Griffin. - Se o apelo do público não for suficiente, a pressão por parte dos pais da vítima fará com que a coisa ande para a frente. Oh, e agora também já não podemos tocar nele. Pode posicionar todos os atiradores furtivos que quiser no local do encontro, mas nenhum deles poderá disparar um único tiro. Se alguma coisa acontecer ao David, nós perdemos a Meg. Pense nisso, tenente. Ele já arranjou um escudo humano, e esse escudo humano nem estará presente. É brilhante! E resulta de um ano de planeamento!

A tenente não disse nada, por isso provavelmente concordava. Às vezes, mesmo quando sabíamos que estávamos a ser manipulados, nada podíamos fazer.

- São agora três da tarde - disse Morelli calmamente. - Estou neste momento a começar a preparar a equipa. - E acrescentou ainda com mais calma: - Griffin... sabemos com quem estamos a lidar. Eu sei com quem estamos a lidar. vou arranjar os melhores homens, exigir a maior segurança possível. Quero tanto como você que o Price saia da prisão. Mas se isso acontecer, se as coisas chegarem a esse ponto, quero que tudo corra bem.

- Vamos descobrir o nome do homem - disse Griffin.

- Espero bem que sim. E sargento... se encontrar primeiro o Violador de College Hill, lembre-se do que passou o último ano a aprender. Lembre-se: continuamos a precisar da Meg.

 

O Clube das Vítimas

O homem entrou na cave. Meg ouviu o ranger de protesto dos velhos degraus de madeira, depois o cantarolar desafinado dele. Já a fora visitar antes. Descera os degraus,

dissera-lhe para sorrir e acendera uma luz forte antes de ela ouvir o disparo de uma máquina fotográfica instantânea. Inclinara a cabeça para trás, tentando ver por baixo da venda, mas ele apagara logo a luz e voltara a subir as escadas. Ela ficou sozinha no escuro, os braços dolorosamente içados por cima da cabeça, os músculos da caixa torácica a começarem a doer.

Naquele momento ouviu-o aproximar-se de novo e encolheu-se de forma reflexa contra a parede de cimento, como se isso pudesse salvá-la.

- Como está a linda Meg? - murmurou o homem. Encostou uma mão à cara dela. Meg virou a cabeça e ele riu-se, fazendo deslizar os dedos pelo pescoço dela, enfiando-os pela gola da camisa. - Ena, ena, tens transpirado bastante.

com a mordaça de látex na boca ela não era capaz de dizer nada e não se esforçou por fazê-lo.

- Tss, tss - admoestou o homem. - Acho que o David não vai gostar muito disso. Talvez te deva dar um banho antes de ele chegar. Tu, amarrada e nua numa banheira. Nunca experimentei isso antes. Acho que era capaz de gostar.

As mãos dele estavam dentro da sua camisa, nos seios cobertos de renda. Não apertou, não acariciou. Deixou apenas as mãos ali pousadas, como que para provar algo - que podia fazer tudo o que quisesse com o corpo dela. E ela nada poderia fazer para o impedir.

- Bem - disse o homem -, tenho uma última coisa a fazer. Um pequeno presente para o David, de que ele nem sequer está à espera. Vai ser muito divertido para toda a gente, especialmente para mim. Deseja-me sorte, querida. Se tudo correr conforme o planeado, irei dispor de uns minutos para vir brincar contigo.

Agora os dedos dele mexeram-se mesmo. Ela encostou o rosto à parede húmida. Esforçou-se por não vomitar. O homem riu-se.

- Até breve, Meg. - Beijou-lhe o pescoço. Depois voltou a cantarolar enquanto subia as escadas.

Assim que ouviu a porta fechar-se, Meg respirou fundo. Deixou-se cair sobre o chão de terra, as pernas a tremer, os braços a doerem-lhe muitíssimo. Chorou um pouco, mas as lágrimas foram de curta duração. Ele não lhe dera água desde que a raptara, e ela não podia dar-se ao luxo de perder mais líquidos.

Meg fungou, respirou fundo e inclinou a cabeça na direcção da cavilha que não conseguia ver. Quando fizera força para a frente, nada acontecera. Mas quando tentara afastar-se dos dedos do homem teve a certeza de que detectara um ligeiro movimento. Se a cavilha se movera um pouco, então, com o passar do tempo, poderia mover-se bastante.

Não era muita coisa, mas era tudo o que tinha. Meg, o pêndulo humano.

David Price estava a chegar. David Price estava a chegar. Meg começou a balançar-se.

A tenente Morelli estava sentada na sala dos Pesaturo. Toppi levara Molly para o primeiro andar assim que a tenente chegara. Naquele momento, a tenente abria um mapa no chão da sala e ia directa ao assunto. Olhou com ar sombrio para tom, Laurie, Jillian e Libby.

- Vamos então fazer o seguinte: queremos que o encontro aconteça num local público, de modo a podermos controlá-lo de forma apropriada, mas também queremos que ele seja semiprivado, para reduzir o risco de interferência dos transeuntes.

- Quer dizer reféns - murmurou Jillian.

- Gostamos deste parque. - A tenente bateu com o dedo no quadrado verde do mapa. - Tem um acesso directo da rua que pode ser facilmente vigiado. Fechamos todas as estradas laterais, claro, e encerramos o parque ao público. O parque em si é um espaço verde aberto, ou seja, é fácil de vigiar e tem poucos esconderijos.

- Quer dizer no caso de o Violador de College Hill estar a preparar uma emboscada - disse Jillian.

Daquela vez, a tenente deteve-se o tempo suficiente para lhe dirigir um olhar grave. Aparentemente, no mundo de um oficial da polícia estadual, os civis deviam ser vistos, não ouvidos. Bem, isso explicava o comportamento de Griffin.

- Também podemos posicionar atiradores furtivos nos telhados aqui, aqui e aqui - prosseguiu a tenente. - Por outras palavras, teremos uma arma apontada ao David Price durante as três horas.

- Se o matarem, o que acontecerá à nossa filha? - inquiriu tom.

- Tendo em conta a situação, os nossos atiradores terão de pedir autorização via rádio para poderem disparar.

- O que quer isso dizer?. - perguntou Laurie.

- Quer dizer que sabemos que o Price dispõe de uma informação importante e que faremos o possível por conduzir a operação de acordo com isso.

- Mas noutras circunstâncias a senhora autorizaria os disparos - interveio Jillian.

- Somos profissionais - retorquiu a tenente Morelli com firmeza.

- Sabemos o que estamos a fazer.

Jillian, tom, Laurie e Libby olharam uns para os outros. Julgavam saber o que aquilo queria dizer. Os atiradores furtivos não matariam David Price se ele parecesse ser controlável. Mas se parecesse estar prestes a fugir... Se a polícia estadual tivesse de sopesar a vida de uma mulher contra a de um assassino em série a cumprir pena que de certeza voltaria a matar se conseguisse ficar em liberdade...

- Os marshals irão tratar da transferência do Price da prisão para o parque. A sua função é transportar prisioneiros, e fazem-no melhor do que ninguém. Dada a gravidade da situação, forneceremos uma escolta policial e seguiremos uma rota segura e pre-defmida. Depois da chegada ao parque, os marshals irão entregar o Price aos dois detectives da polícia estadual enquanto durar o encontro.

- Ele trará roupa normal? - perguntou Laurie.

- O advogado do Price entregará às quatro da tarde roupas para a visita. Iremos inspeccionar todas as peças de roupa, claro, e revistar o David Price.

- Ele vai estar de pulsos e tornozelos manietados? - perguntou tom.

- com certeza. Terá os tornozelos manietados. As mãos algemadas vão estar presas à cintura por uma corrente. Garanto-vos que a sua mobilidade será extremamente limitada. Agora, gostaria de falar sobre a Molly...

- Não quero que ele lhe toque! - exclamou Laurie.

- Tencionamos manter uma distância de três metros entre eles.

- E o tamanho do parque? - perguntou tom.

- Poderemos aumentar a distância quando quisermos - respondeu a tenente.

- Por outras palavras, se o David começar a comportar-se de forma estranha... - murmurou Jillian.

- Não deixaremos a Molly aproximar-se sequer dele - concluiu a tenente.

Tom suspirou. Tinha os enormes ombros curvados, uma expressão abatida. Era evidente que não lhe agradava o que estava para acontecer e era evidente que achava não ter alternativa.

- Agora, quanto à escolta da Molly - começou Morelli.

- Nós levamo-la! - exclamou tom de imediato, levantando a cabeça.

- Preferíamos que não...

- Uma ova! Isso não é uma opção. Estamos a falar da nossa filha... neta. A Molly precisa de nós, depende de nós. Estaremos sempre ao lado dela.

- Mister Pesaturo, compreendemos a sua preocupação. Mas esta situação é potencialmente explosiva. Achamos que seria melhor minimizarmos o número de civis envolvidos e maximizar o número de profissionais experientes.

- Azar. Sou o pai dela. Não tenciono afastar-me dela.

- Mister Pesaturo, eu teria a honra de acompanhar a Molly...

- Sou o pai dela!

- E eu tenho também duas filhas! - A voz da tenente Morelli subira finalmente de tom. Ela apercebeu-se da sua fúria e controlou-se.

- Mister Pesaturo, não sabemos quais as verdadeiras intenções do David Price. No entanto, desconfiamos que não devam ser apenas dizer olá à filha há muito perdida. Se ele tiver preparado alguma, o que irá o senhor fazer?

- Matar o filho da mãe! - tom viu a expressão dela e acrescentou rapidamente: - Em autodefesa, claro está.

- E quanto à Meg?

- Não... não sei. - Os ombros dele voltaram a curvar-se. Meg desaparecera havia já quase seis horas. Seis longas horas de insegurança e medo. - O que faria a senhora?

- Não sei - respondeu a tenente com suavidade. - Desconfio que nenhum de nós saberá o que fazer até chegar o momento. Mas a questão é que pode ser necessário tomar uma decisão numa fracção de segundo e, como já tenho alguma experiência nestas matérias, eu estaria melhor preparada para a tomar.

- Isto é ridículo. - Laurie, de novo. - Estamos a fazer exactamente o que ele quer.

A tenente Morelli não comentou.

- Não pode fazer mais nada? Não podem obrigá-lo a dizer-vos onde está a Meg? A dar-nos o nome do violador?

- Ele já está a cumprir a pena perpétua - disse Morelli. - É a pena máxima que este estado permite.

- Mas as prisões têm castigos - interveio Jillian. - Protocolos, procedimentos para quando os reclusos saem da ordem.

- Os reclusos podem ser confinados às celas, não saírem de lá sequer para comer. É a nossa versão da solitária, só que o recluso permanece dentro da sua cela. Ou, nos casos em que o recluso perturba sistematicamente a vida prisional, pode ser enviado para o Super Max, onde todos os reclusos estão confinados às suas celas vinte e três horas por dia. Por outras palavras, perdem todas as regalias de que ainda dispõem no Old Max.

- Então ameace mandá-lo para lá! - exclamou tom. - Diga ao Price que o vai mandar para esse tal Super Max.

- O sargento Griffin já fez isso. O Price não se importou. - Morelli inclinou-se para a frente. - vou ser franca consigo, Mister Pesaturo. Se dispuséssemos de mais tempo, poderíamos tentar diferentes tácticas, colocar o Price no Super Max e ver se a pressão o afectava. Mas desconfio que o Price sabe isso. Foi por esse motivo que nos deu este horário tão apertado. É por isso que só temos algumas horas. Se não fizermos o que ele quer pode acontecer alguma coisa à Meg ou a outra rapariga inocente. Sim, o que estamos a fazer não é o ideal. Mas vamos fazê-lo o melhor que sabemos. Gostaria de acompanhar a sua neta, Mister Pesaturo. Prometo que farei todos os possíveis por mante-la em segurança.

- O que estará o sargento Griffin a fazer? - perguntou Jillian. Morelli lançou-lhe um olhar fatigado.

- O sargento está a investigar outra vertente da investigação.

- Pensava que a senhora iria querer que ele estivesse no local pressionou Jillian, olhando muito séria para a tenente. - Não é ele quem melhor conhece o David Price?

- O sargento Griffin acha que tem uma boa pista. Julgámos mais indicado deixá-lo segui-la.

- Ele acha que sabe onde está a Meg? - perguntou Laurie esperançada.

A tenente não disse nada, e Jillian percebeu então.

- O Griffin julga ser capaz de identificar o verdadeiro perpetrador

- disse ela. - Está a tentar encontrar o Violador de College Hill sem o David Price.

- Estamos a tentar tudo ao nosso alcance para evitar fazer a vontade ao David Price - disse a tenente.

- Oh, graças a Deus! - murmurou Laurie. Sentada ao lado de Jillian, Libby bateu com o dedo.

- Mas - recordou-lhes a tenente Morelli com firmeza -, o encontro que o Price está a exigir ainda pode acontecer. Precisamos de estar preparados. Gostaria de autorização para acompanhar a vossa neta...

- Não!

- Mister Pesaturo...

- Não - tornou tom a dizer. Olhou para a mulher, depois pegou-lhe na mão. Juntos, viraram-se para a tenente. - Criámos a Molly como nossa filha. Ela precisa de nós agora. Vamos fazer isto juntos. Como uma família.

- E se o Price tentar alguma coisa?

- Então veremos se os seus atiradores furtivos são bons, não veremos, tenente?

Às quatro da tarde, Griffin, Fitz e Waters encontraram finalmente o quartel-general da Korporate Klean. Por outras palavras, um armazém decrépito na zona sul de Providence, no meio de edifícios velhos ainda mais decrépitos. Parecia que as empresas de limpeza não faziam tanto dinheiro como, por exemplo, os bancos de esperma.

A porta da frente estava trancada. Griffin começou a carregar nas campainhas enquanto Waters olhava para a câmara. Foram precisos quatro ou cinco toques até uma voz feminina rouca se fazer ouvir no intercomunicador.

- O que foi?

- Estamos à procura da Korporate Klean - respondeu Griffm.

- Porquê?

- Estamos sujos e precisamos de uma boa limpeza... o que é que lhe parece?

- São chuis?

- Pior - anunciou Griffin. - Somos das finanças.

Aquilo surtiu efeito. A porta abriu-se de imediato. Um grupo de ex-reclusos sentiria apenas desdém da polícia. Toda a gente, por outro lado, teme o fisco.

No quinto andar, o escritório da Korporate Klean revelou-se uma agradável surpresa, quando comparado com o resto do edifício. Claro, a carpete cinzenta estava puída, a cor marfim das paredes era monótona, mas o local estava imaculado. Até cheirava a amoníaco e a detergente de pinho. Devia ser ali que os recrutas treinavam a nova profissão.

Os três detectives depararam com uma secretária vazia em frente à entrada, olharam para um corredor estreito atrás dela e aguardaram impacientemente que alguém aparecesse.

A perna de GriíFm começou de novo com espasmos. Ele uniu as mãos atrás das costas para que ninguém as visse tremer. Quando voltou a levantar a cabeça, Waters estava a olhar para ele, por isso talvez não estivesse a enganar ninguém.

Quatro horas e três minutos. Já não havia muito tempo. Céus...

Ao fundo do corredor abriu-se finalmente uma porta. Uma rapariga com cabelo preto asa de corvo surgiu, exibindo piercings a mais e roupa a menos.

- Em que posso ajudá-los? - perguntou ela com um olhar bastante directo para alguém que se via seminua diante de três homens.

- Andamos à procura do proprietário da Korporate Klean.

- Posso perguntar qual é o assunto?

- Impostos.

- Os agentes das finanças não fazem visitas ao domicílio.

- Como é que sabe? - Griffm desistiu do concurso de troca de olhares. Exibiu a identificação. - Isto é um assunto oficial. Encontre o proprietário. Já.

A rapariga ergueu um sobrolho com um piercing, lançou-lhes um olhar desdenhoso, para que os homens soubessem que não a tinham assustado e voltou a desaparecer no corredor.

A perna de Griffin tremeu mais um pouco. Deu uns passos em volta enquanto Waters e Fitz o observavam.

Mais um minuto interminável. Um de muitos minutos semelhantes, a passar, a passar. Será que ninguém compreendia a urgência do tempo?

A rapariga regressou finalmente. Mr. Sal Green iria recebê-los agora. Ultima porta à esquerda. Tentem não partir nada no caminho.

Demasiado tarde. Avançaram disparados pelo corredor, entraram disparados no gabinete e pararam, ameaçadores.

- Senhores agentes. - Um homem mais velho, elegante e musculado, com calças de ganga desbotadas e um rabo-de-cavalo grisalho, saudou-os quando entraram. Levantou-se depois e indicou vagamente com a mão duas cadeiras vazias.

- Sargento - corrigiu Griffin.

Green não pareceu impressionado. Encolheu os ombros.

- Podia dizer que estava admirado com a vossa visita, mas é claro que não estou. O que aconteceu desta vez, cavalheiros? Desapareceu algum clipe de um dos escritórios, ou vêm só perseguir os vossos bodes expiatórios favoritos?

- A polícia estadual não perde tempo com clipes desaparecidos.

- Oh, tem razão, tem razão. Então uma das minhas equipas excedeu o limite de velocidade. Sabem, é seguro entregarem-lhes a multa. Nem todos os ex-reclusos mordem.

A tensão arterial de Griffin voltou a subir. Ele virou-se para Waters, que percebeu.

- Precisamos de um nome - disse ele.

- Não me diga.

- Precisamos de saber quem é que trabalha no banco de esperma em Pawtucket e as datas em que foram contratados.

- Então vou precisar de um mandado.

- Então vai precisar de gesso - grunhiu Griffin.

- Oh, o bom polícia e o mau polícia! - Green virou-se para Fitz.

- E você, é o polícia cómico?

- Sou uma testemunha que corroborará que os dois primeiros polícias não o magoaram.

- Oh, poupem-me! - Green recostou-se na cadeira. - Olhem, dirijo uma boa empresa, com boas pessoas. Vocês vasculham uma vez por mês os dossiês dos funcionários e ainda não encontraram nada. Seja o que for desta vez, arranjem um mandado. Se finalmente tiverem provas de que alguém contratado por mim fez alguma coisa condenável, não devem ter dificuldade em convencer um juiz a passar-vos um.

- Não temos tempo - disse Waters, tenso.

- E eu não tenho um milhão de dólares. Bem-vindos à vida.

Griffin perdeu finalmente a paciência. Pousou as mãos na secretária, inclinou-se para a frente até ficar com o rosto a centímetros do de Green, e susteve o olhar deste.

- Isto envolve o Violador de College Hill, percebido? Tem visto os noticiários? Percebe do que é que estamos a falar?

Green estacou finalmente. Desviou o olhar do de Griffin e franziu o sobrolho.

- Os meus funcionários trabalham à noite...

- Não todas as noites.

- Eu próprio os escolho. Não temos ninguém com um passado de crimes sexuais. As mulheres nas equipas levantariam objecções... ou far-lhe-iam mal.

- Este tipo nunca foi condenado.

- Então como é que sabem que é um dos meus? Olhe, sargento, sou apenas um pequeno empresário sob constante pressão e o senhor ainda não me convenceu.

- Temos os nossos motivos. Temos motivos mais do que suficientes...

- Então conte-os a um juiz - interrompeu Green com firmeza. Pegou no telefone, dando-lhes a entender que a conversa chegara ao fim.

Griffin tirou-lhe o auscultador da mão e pousou-o com toda a força.

- Se outra rapariga for ferida...

- Então sabe onde me encontrar, não sabe, sargento?

- Filho da mãe! - exclamou Fitz.

Griffin fitou-o. Agora estava zangado, e isso percebia-se.

- Cavalheiros, é assim que as coisas se processam. Os senhores são a polícia, por isso devem saber. Se eu fosse a vocês, ia à procura de um juiz. Porque está a fazer-se tarde e eu tenciono ir para casa às cinco.

Griffin quase o atacou nesse momento. A tensão arterial tão alta. O zumbido tão intenso nos ouvidos. Waters tocou-lhe no braço. Ele acalmou-se. Respirou fundo, contou até dez. Contou até vinte. O homem era um idiota. O mundo estava cheio de tipos assim.

- Havemos de voltar - disse Griffin.

- Sim, vocês e o Exterminador - observou Mr. Green com secura, pegando no telefone.

Saíram rapidamente do edifício. Eram quatro e trinta e dois, e o relógio não parava.

- Precisamos de um juiz simpático - resmungou Griffin. Nisso não posso ajudar.

- Eu conheço um - disse Waters de imediato.

- Está bem, eu e tu vamos buscar o mandado. Você... - Griffin virou-se para Fitz -... vigie o edifício. Não quero chegar aqui com o papel e descobrir que o gajo se foi embora.

- Oooh, eu e todos os ex-reclusos! Mal posso esperar!

- Eles sentem o mesmo. Anda, Waters, vamos embora.

Fitz voltou para o interior do edifício. Waters e Griffin meteram-se no carro de Waters. O céu continuava claro, faltavam três horas para o pôr do Sol. Mas este viria, e viria depressa e Price estaria fora da prisão, a dirigir-se para a filha de cinco anos. Ao mesmo tempo que uma jovem estudante saía da faculdade e se dirigia para casa.

E Meg? E Jillian? E Carol?

Griffin já falhara uma vez no que dizia respeito à mulher. E falhara com dez crianças indefesas. Falhara a si próprio. Agora era mais velho e mais sensato. Não queria falhar de novo.

- Consegues aguentar-te? - perguntou Waters.

- Estou a esforçar-me por isso.

- Mas muito a custo.

- Estás a ver? - retorquiu Griffin. - Já fiz progressos.

Quatro e quarenta e seis.

Um guarda prisional parou à porta da cela onde David Price fora provisoriamente colocado.

- Mãos - disse o guarda.

- Vai algemar-me já? Ena, vocês não estão a deixar nada ao acaso.

- Mãos - repetiu o guarda.

David encolheu os ombros. Já sabia como é que aquilo se processava. Enfiou as mãos na fenda da porta. O guarda colocou-lhe as algemas. David recolheu os pulsos algemados e a porta da sua cela foi finalmente aberta. O guarda puxou-o pelo ombro e conduziu-o para a saída.

- Posso passar pela minha cela? - perguntou David.

- Porquê?

- Gosto mais daquela sanita. Sabe, é difícil uma pessoa descontrair-se numa cela nova.

- Come mais fibra - retorquiu o guarda, empurrando-o pelo corredor. Ao fundo havia uma sala onde mais três guardas o aguardavam. Um viu-o aproximar-se e calçou umas luvas de borracha.

- Vai revistar as minhas cavidades? - perguntou David, arqueando uma sobrancelha. - Ora, hoje é mesmo o meu dia de sorte!

O guarda fitou-o, sisudo. David encolheu os ombros.

- Oh, o preço da liberdade...

Entrou na sala, onde viu a sua camisa e calças preferidas em cima da mesa. As roupas já deviam ter sido revistadas. Agora era a sua vez. David afastou-se da roupa, tentando não sorrir demasiado.

- Finalmente livre - murmurou ao levantar as mãos acima da cabeça -, finalmente livre. Deus Todo Poderoso, estou finalmente livre.

Cinco da tarde.

David Price dobrou-se.

Griffin e Waters expuseram o problema ao juiz.

Fitz olhava para a recepcionista meio despida.

Tawnya dava de mamar a Eddie Júnior, que choramingava.

Meg balançava-se de um lado para o outro.

A mão direita de Carol começou a fazer movimentos espasmódicos.

E Jillian estava sentada em casa dos Pesaturo, a pensar em Meg, a pensar em Carol, a pensar na irmã, a pensar em Sylvia Blaire e depois a pensar no plano de David Price. Havia ali qualquer coisa errada, pensou, esfregando as têmporas e tentando desesperadamente perceber o quê.

Molly estava sentada no chão do quarto e aguardava.

 

- Precisamos de um mandado...

- Temos causas prováveis

- O caso do Violador de College Hill...

- Como doou esperma a um banco de esperma em Pawtucket...

- O violador teve de certeza acesso àquelas amostras para poder colocar provas nas cenas dos crimes...

- Precisamos de ver uns arquivos particulares. Já!

Não foi a argumentação mais elegante que Griffin e Waters fizeram diante de um juiz, mas resultou. Às cinco e onze foi-lhes entregue o mandado. Conduziram a cento e quarenta quilómetros à hora até à sede da Korporate Klean, queimaram um pouco da borracha dos pneus ao fazer a curva apertada para o parque de estacionamento e estacionaram diante da porta com uma grande chiadeira.

A primeira coisa que viram foi Fitz, na rua, com uma mão pousada no braço de Mr. Green, a discutir. Green tentava obviamente cumprir a promessa de ir para casa às cinco. Fitz estava obviamente a cumprir a sua promessa de ficar de guarda.

Griffin parou o carro mesmo ao lado deles enquanto Waters esticava o braço para fora da janela e exibia o mandado.

- Exigimos acesso aos seus dossiês, já! - exclamou Waters.

Sal Green suspirou e abanou a cabeça ante tanta persistência. Depois virou-se e entrou no edifício.

Cinco minutos mais tarde, dava três pontapés num velho arquivo metálico cinzento, abria a gaveta de baixo e apontava para os dossiês.

- Estes são os meus actuais funcionários.

Griffin olhou para o que pareciam ser quarenta ou cinquenta nomes. Não dispunham de tanto tempo.

- Pessoas que trabalham no banco de esperma - anunciou ele.

- Passado e presente.

- Faço rodar as equipas... assim ninguém se acomoda.

- Data de contratação entre Novembro e Abril, Mister Green. Despache-se!

Durante um momento, pareceu que Green iria protestar. As mãos de Griffin começaram a abrir e a fechar-se. Tentava lembrar-se do que a tenente Morelli dissera. E, já agora, do que a sua psicóloga, os seus irmãos e Waters haviam dito. Contudo, essencialmente sentia-se descer, descer, descer para aquela cave escura com as suas tristes filas de sepulturas.

Green começou a pegar em dossiês. Griffin achou que fora a melhor decisão que o homem tomara naquele dia.

Ele, Waters e Fitz começaram a ler o conteúdo dos dossiês. Dez minutos mais tarde, Fitz arrebatava o prémio.

- Eu conheço este tipo! Ron Viggio. Prendi-o há uma data de anos. Um voyeur. A mulher sentiu vergonha e não apresentou queixa.

- Voyeur - repetiu Waters. - Parece-me um violador a desabrochar.

- Olhem, só sei que ele foi preso por arrombamento - protestou Green de imediato. - O Viggio disse-me logo isso. Foi uma confusão qualquer, ele queria deixar uma surpresa no apartamento da namorada e um vizinho interpretou mal as coisas.

- Foi apanhado a arrombar a porta da casa de uma mulher? perguntou Griffin com aspereza.

Green encolheu os ombros.

- Foi acusado, não condenado. Pelo menos foi o que ele me disse. Griffin já pegara no telemóvel e marcava um número.

- Fala o sargento Griffin. Quero que me investigue um nome no computador. Ronald Viggio. V-I-G-G-I-O. Sim. Hum, hum. E dois minutos a seguir: - Morada actual?

"Muito bem. - Agarrou no dossiê. - Vamos embora.

- Olhe lá! - Green começou novamente a protestar, mas ninguém ficou para o ouvir.

Cinco e meia da tarde.

Os marshals apareceram e conduziram David até à carrinha que o iria transportar. Por cortesia da entrega atempada do seu advogado, David envergava as suas próprias roupas pela primeira vez em ano e meio - um par de calças castanho-claras, uma camisa azul-escura e sapatos castanho-escuros. As roupas tinham sido revistadas e passadas por um detector de metais, claro. Tal como ele.

Algemaram-lhe as mãos e os pés. David avançou ladeado por dois marshals de semblantes carrancudos. Sorriu-lhes. Sorriu para os guardas ali reunidos. Sorriu para a carrinha azul que o aguardava. Estava de bom humor.

Meteram-no na carrinha.

- Se experimentares alguma coisa - disse um dos marshals -, desfazemos-te em pó. Capisce!

- Não falo italiano, seu iletrado!

O marshal quase lhe rosnou. David respondeu com um sorriso.

As portas da carrinha fecharam-se. David estava tão próximo da liberdade que quase conseguia saboreá-la. Dali a mais cinco ou dez minutos o portão iria abrir-se. Dali a mais cinco ou dez minutos a sua verdadeira viagem começaria.

"Obrigado, sargento Griffin", pensou. "E, claro, obrigado também, Meg."

- Parece que o Ron Viggio achou que não havia necessidade de contar ao patrão a sua história criminal completa - observou Griffin enquanto conduzia o carro rumo à via rápida e Waters pedia reforços.

- Afinal o tipo não foi preso por arrombamento, mas sim por violação. Também passou três anos atrás das grades em meados dos anos noventa por forçar a entrada em casa de uma mulher.

- Então, primeiro o tipo é um voyeur, depois entra à força em casas de mulheres e a seguir começa a violá-las. Bolas, seguiu mesmo todos os passos descritos nos manuais!

- Pois. Infelizmente, a acusação de violação não pegou. A mulher já tivera uma relação anterior com o Viggio... tinham namorado durante algum tempo... e uma vez que no passado já fora com ele para a cama de livre vontade, achou que o júri não iria acreditar na sua queixa. Ou talvez se tenha assustado ao pensar no julgamento. Não é propriamente uma coisa muito agradável.

- Porquê julgar o arguido se se pode espancar a vítima?

- Exactamente. O Viggio foi preso em Dezembro, a acusação retirou a queixa em Janeiro. O oficial de liberdade condicional dele deve poder contar-nos mais qualquer coisa. - Griffin chegou à saída para Cranston, fez sinais de luzes aos carros que avançavam com lentidão e desviou-se para o lado, a praguejar. Um idiota qualquer meteu-se à frente dele. Griffin carregou no travão e praguejou, e Waters agarrou no megafone.

- Encoste à direita. JÁ!

Aquilo fez com que o idiota ficasse apavorado. Claro que lhes lançou um olhar furibundo quando passaram por ele. Civis!

- O Viggio passou quatro semanas na prisão ao mesmo tempo que o David Price - disse Griffin, ofegante, as mãos húmidas devido a um misto de adrenalina e antecipação. Descobriu a rua lateral, o conta-quilómetros a marcar mais de cento e vinte e a sua atenção focada no volante.

- Oh, será apenas coincidência?

- Ou será causa provável? Em Dezembro, o Viggio devia ter calculado que era apenas uma questão de tempo até voltar a atacar uma mulher. Mas também sabia que o seu ADN e as suas impressões digitais já se encontravam no sistema informático, por isso, da primeira vez que cedesse ao impulso teria dois detectives a baterem-lhe à porta.

Depois recordou-se do bom do David Price, que vivia na casa ao lado da de um polícia e conseguiu matar dez crianças. O bom do David Price, que está convenientemente detido na mesma cela que ele.

- Até os violadores precisam de um modelo - observou Waters.

- Infelizmente para nós. E agora, infelizmente para o Viggio. Espera lá, já chegámos. - GrifFm viu a placa com o nome da rua, travou e ainda conseguiu virar. Desligou imediatamente os faróis e levantou o pé do acelerador. Não queria assustar Viggio percorrendo a rua a grande velocidade, com as luzes intermitentes a piscarem. Primeiro,

teriam de passar lentamente pela casa para avaliar o que os esperava.

Aproximaram-se do número e viram de imediato um homem a sair pela porta e a dirigir-se para o carro estacionado no caminho de acesso à garagem. O homem vestia calças azul-escuras, uma camisa azul-clara e, pelo menos de costas, era igualzinho a Eddie Como. Olá, Ron Viggio.

- Céus... - murmurou Waters, boquiaberto.

- Ele vai fugir! - avisou Griffin. Pegou no rádio. - Atenção a todos, luz verde, luz verde, luz verde Griffim Aparou o carro de forma a impedir a saída do de Viggio e travou. Viggio levantou a cabeça. Viu dois carros escuros e um carro-patrulha a aproximarem-se. E desatou a correr.

- Despacha-te! - Griffin já estava fora do carro. Mais adiante, viu Fitz meter o Taurus noutro caminho de acesso numa tentativa de deter o suspeito em fuga. Viggio saltou sobre o capo do Taurus, aterrou do outro lado e continuou a correr.

Gritos.

- Polícia, pare! - gritou Waters.

Os moradores a espreitarem pelas janelas e a espantarem-se com toda aquela agitação. Agentes aos gritos enquanto saíam disparados dos carros-patrulha e se preparavam para a perseguição.

Griffin ia à frente. Saltou sobre o capo de Fitz e seguiu passeio abaixo. Iria mostrar a Ron Viggio o significado de correr dois quilómetros em cinco minutos. Apercebeu-se vagamente de Waters a correr ao seu lado. Fitz ofegava um pouco mais atrás.

Viggio olhou por cima do ombro e viu-os aproximarem-se cada vez mais. Guinou para a direita, meteu pelo meio de duas casas e saltou uma vedação baixa. Uma mulher gritou. Um cão ladrou. Griffin ouviu tudo aquilo ao longe enquanto saltava a vedação, se aproximava de Viggio e se lançava às pernas do homem.

No último minuto, Viggio guinou à esquerda, evitando ser agarrado e estendendo os braços para uma cerca alta de arame. Griffin rolou ao cair e levantou-se a tempo de ver Viggio e Waters desaparecerem sobre a barreira. Saltou também a cerca e retomou a perseguição.

Tinham chegado a uma espécie de ferro-velho. Uma pequena casa branca erguia-se no meio de um monte de destroços retorcidos e queimados. Por instantes, Griffin não conseguiu ver ninguém. Depois ouviu um estrondo quando Viggio passou pelo meio de tampões de jantes enferrujados e Waters contornou outro carro esventrado.

Griffin percebeu qual a trajectória de Viggio, o seu destino óbvio

- uma bicicleta de criança junto à porta da casa - e contornou a casa pelo outro lado.

Apareceu quatro metros à frente de Viggio.

- Bu! - fez ele.

Ron Viggio estacou, surpreendido. E Waters apanhou-o.

Dez minutos mais tarde, Ron Viggio encontrava-se algemado no banco de trás de um carro-patrulha, recusando-se a falar. Deixaram-no em paz por enquanto e dirigiram-se à casa de onde ele saíra. Na casa de banho, Waters encontrou várias caixas muito bem empilhadas de luvas de látex. Na despensa, Fitz ensacou e catalogou três filas de duches florais descartáveis da Berkely and Johnson. Depois, claro, havia ainda os tubos de ensaio que encontraram no frigorífico.

Na mesa da cozinha estava uma embalagem aberta de detonadores cobertos de uma espécie de pó cinzento. Griffín cheirou o pó cinzento com uma certa desconfiança, depois deixou-o de lado para que Jack-n-Jack descobrissem o que era. Inspeccionaram os quartos do primeiro andar, a casa de banho do rés-do-chão e todos os roupeiros. Continuava a não haver sinal de Meg.

Griffin encontrou finalmente uma porta sob as escadas, uma porta que dava para a cave. Respirou fundo, fez sinal a Waters e desceram juntos.

- Meg? - chamou Griffin. Algo lhe tocou na cabeça. Era a extremidade de uma corrente para acender a luz do tecto.

Continuava a não se ouvir nada.

Preparado para o pior, Griffin puxou a corrente e acendeu a luz. Trinta segundos mais tarde, ele e Waters tinham chegado ao fim das escadas e encontravam-se numa cave húmida.

- O chão parece não ter sido mexido - disse Waters. - Acho que ninguém vem aqui abaixo há bastante tempo.

Griffin pensou um pouco.

- Carro? - perguntou de sobrolho franzido.

- Tem de ser.

- Merda.

Voltaram a subir as escadas e saíram da casa. O carro não seria coisa boa. O porta-bagagens seria ainda pior. "Calma. Lembra-te do que aprendeste."

A porta do lado do condutor não estava trancada. Waters abriu-a com uma mão enluvada, enquanto Griffin se dirigia ao porta-bagagens. Sacara da arma, para qualquer eventualidade. Contaram até três e Waters abriu o porta-bagagens.

Griffin levantou a arma.

- Olha - disse logo a seguir. - Aquilo não é uma bomba?

Carol começara a mexer-se. Dan não sabia se o movimento era bom ou mau. A princípio, apenas a mão direita teve uns espasmos. Ele entendera isso como um bom sinal e afagou-lhe os dedos, murmurando e incitando-a a voltar à vida.

Depois, a perna esquerda começara também com os espasmos e a respiração parecera tornar-se mais difícil. Ele não sabia o que é que aquilo significava. Os médicos haviam-lhe dito que a grande quantidade de soporíferos e de álcool no sangue de Carol lhe provocara uma espécie de "desligar" do corpo. No entanto, teoricamente os rins cumpririam a sua função, removendo as impurezas da corrente sanguínea, e ela responderia acordando. Pelo menos era o que esperavam que acontecesse.

Estremecer seria o mesmo que acordar? As pessoas recuperavam a consciência ficando com dificuldade em respirar?

Dan pusera-se de pé. Deu palmadinhas na mão de Carol, afastou-lhe o cabelo da testa pálida e fresca.

- Vá lá, querida - murmurou. - Volta para mim, amor. Vai tudo correr bem. Prometo-te que desta vez as coisas vão ser melhores.

A perna esquerda voltou a mexer-se. Ela teve uma espécie de soluço.

Dan inclinou-se para a frente. Olhou para o rosto tranquilo da mulher, tão bonito como no dia em que a conhecera.

E percebeu pela primeira vez que o peito dela deixara de se mover. Carol não voltara a respirar.

Uma máquina emitiu um bipe. Dan largou a mão da mulher. Correu para o corredor, aflito.

- Socorro, socorro! Alguém nos ajude, por favor.

Cinco e quarenta e cinco.

O enorme portão do estabelecimento prisional abriu-se. A carrinha azul avançou. David Price, ainda a sorrir, ia a caminho. Em casa dos Pesaturo, a tenente Morelli

ultimou os pormenores da operação, incluindo entregar a tom e a Laurie coletes à prova de bala.

Tinham dito a Molly que iriam fazer um jogo. Iriam a um jardim, para um piquenique de polícias. Beberiam punch, comeriam bolachas e ela poderia ver os polícias a desempenharem o seu dever. Talvez aparecesse também um homem que entraria no jogo. Mas ela não devia preocupar-se. Ele também fazia parte do jogo.

Molly olhou-os muito séria. Ás crianças percebiam sempre quando os adultos estavam a mentir.

Iam a sair de casa, muito sisudos, quando o telemóvel de Morelli tocou.

Era Griffin.

- Apanhámo-lo, apanhámo-lo, apanhámo-lo! Encontrámos caixas de luvas de látex, e duches descartáveis. Ron Viggio, antigo funcionário de limpeza no banco de esperma de Pawtucket, é definitivamente o Violador de College Hill.

- E a Meg? - perguntou Morelli. tom e Laurie estacaram, olhando para ela.

- Não está aqui.

- Onde raio está?

- Ainda não sabemos. O Viggio não abriu a boca. Mas podemos exercer alguma pressão, ver por onde andou. Iremos encontrá-la, tenente. É só uma questão de tempo.

Morelli olhou para tom e para Laurie.

- Apanhámos um homem que pode ser o Violador de College Hill

- anunciou -, mas ainda não encontrámos a Meg.

- Têm alguma pista? - perguntou Laurie.

- O sargento Griffin acredita que é apenas uma questão de tempo.

- De quanto tempo? Ela tem comida, tem água? E se está presa algures no exterior? Queremos a nossa filha, precisamos de saber que a nossa filha está em segurança.

- Não o deixe sair, tenente - dizia Griffin muito excitado do outro lado da linha. - Não deixe o Price sair. Podemos fazer isto sozinhos. Já não precisamos do Price.

Morelli olhou novamente para os rostos ansiosos dos Pesaturo. Olhou para o relógio. Cinco e cinquenta e cinco.

- Lamento, sargento. É tarde de mais.

 

O Homem dos Doces

Meg estava assustada. Os braços e as pernas doíam-lhe agora bastante, latejavam. Os dedos, contudo, estavam praticamente dormentes. Moviam-se de forma lenta, como se fossem uma entidade completamente sepafada do seu corpo.

Às vezes sentia humidade no cabelo, um gotejar lento e constante. A princípio, julgou que era alguma fuga de água do tecto. Depois percebeu que era mais sangue proveniente dos seus pulsos rasgados.

Continuava a balançar-se para trás e para a frente, já mais devagar, com menos força. As vezes a cavilha movia-se. Mas a maior parte das vezes continuava rigidamente fixa. Meg tinha uma constituição fraca, era admiravelmente elegante. Por outras palavras, não tinha estrutura para conseguir fazer aquilo. E naquele momento sentia-se mais do que cansada, sentia-se exausta. Havia alturas em que não sabia se estava a dormir ou se estava acordada. Tinha os lábios secos e estalados. A língua parecia colada ao céu da boca.

Perversamente, a bexiga cedera por fim. Não ia à casa de banho desde que se levantara e não foi capaz de aguentar mais. A vergonha era pior do que o desconforto. Uma adulta com calças ensopadas de urina; não estava certo.

E agora, para piorar ainda mais as coisas...

Tinha saudades do captor. Desejava genuinamente, bem lá no fundo, que ele regressasse para junto de si. Talvez, raciocinava a sua mente toldada e exausta, ele lhe cortasse as amarras e fizesse diminuir a dor nos seus ombros. Talvez, fantasiou, ele lhe desse um banho, a fizesse sentir de novo humana.

E se ele lhe tocasse depois disso, se exigisse uma espécie de pagamento...

Ela deixaria de estar no escuro. Não estaria perdida com as calças de ganga molhadas e os pulsos ensanguentados. Não estaria sozinha numa cave bafienta que se parecia

demasiado com uma sepultura.

Aqueles pensamentos eram maus, raciocinou ela num canto mais saudável da sua mente. Aqueles pensamentos fariam com que ele ganhasse. Ela tinha de aguentar-se, de ser forte. Tinha de ignorar a dor. Concentrar-se na ira, como Jillian gostava de dizer.

Não somos vítimas. Assim que acreditamos nisso, deixamos o violador ganhar. Quando tudo se resume à força bruta, minhas senhoras, talvez não consigamos proteger os nossos corpos. Mas podemos sempre controlar as nossas mentes.

Oh, por favor, oh, por favor, oh, por favor, deixa-a escapar daquilo. Antes que os braços cedessem completamente. Antes que ela fizesse algo de que se arrependesse. Antes que...

Antes que David Price chegasse.

David não conseguia ver muito bem para o exterior da carrinha. O veículo de transporte não tinha janelas laterais e havia uma rede entre ele e os dois marshals, que dificultava a visão do pára-brisas.

Não fazia mal: ele não precisava de saber onde estava nem para onde ia. Isso não era relevante para o que estava prestes a acontecer.

David inclinou-se para a frente e fingiu esticar as costas. Depois agitou-se inquieto para um lado e para o outro, os dedos enfiando-se na manga esquerda até encontrarem o objecto estreito cosido ao punho.

O volume do objecto passava praticamente despercebido. O instrumento de madeira laçada para arrombar fechaduras, com meio centímetro de espessura, estava enfiado na costura de cima do punho, onde o tecido de cambraia espesso já formava um volume considerável. Viggio era pelo menos muito bom a seguir instruções. Depois, num movimento que passara os últimos quatro meses a ensaiar, David inclinou-se para a frente e mordeu a bainha da perna direita das calças. Dentro da bainha a sua língua encontrou o aguardado tesouro - algo que pareciam ser pedaços de giz branco partido. Bocados de Alka-Seltzer - demasiado pequenos para serem facilmente detectados e, tal como o objecto de madeira, não faziam apitar o detector de metais.

Às vezes, as coisas simples resultavam realmente melhor.

David tirou os pedaços do comprimido da bainha das calças e meteu-os na boca. Depois começou a mastigar.

Quarenta segundos mais tarde, emitiu um ruído gorgolejante.

O marshal olhou pelo espelho retrovisor.

- O que raio...?

Na parte de trás da carrinha David Price espumava da boca.

Griffin tinha o rosto quase encostado ao de Ron Viggio.

- Onde está ela?

- Não sei do que é que está a falar.

- Não te armes em parvo comigo. Onde está ela?

- A minha avó morreu há muitos anos, mas obrigado por perguntar.

- Apanhámos-te, Viggio. Sabemos que roubaste amostras de esperma do banco, que depois as injectaste nos duches descartáveis. Vais ser acusado de dois crimes de homicídio, já para não falar dos quatro crimes de violação. Vais passar um pouco mais do que o tempo mínimo atrás das grades, Ronniezinho. Começa a falar agora e talvez possas ter esperança de voltar a ver a luz do dia.

No banco de trás do carro-patrulha, Viggio bocejou.

- Estás a tentar proteger o David Price? Porque ele já te denunciou. Daqui a três horas, depois do encontro com a filha, ele vai-nos dar o teu nome.

Viggio riu-se.

- Apanhámos-te por causa dele, Viggio. Se ele não nos tivesse dito que tu conheceras pessoalmente o Eddie Como não nos teríamos lembrado de investigar as pessoas que trabalham no banco de esperma.

Viggio franziu o sobrolho.

- Pois, é isso mesmo. Estavas a sair-te tão bem. Tinhas o esquema perfeito, um planozinho de primeira. Só falhava o David Price. Ele era o teu elo mais fraco. Foi ele que te meteu neste sarilho. Tu a achares que ele estava a ajudar-te e ele a aproveitar-se de ti. Não tens uma mente criminosa brilhante. És apenas um peão do Price.

Viggio -uniu os lábios numa linha fina. Apesar dos seus esforços, começava a ficar chateado.

Foi a vez de Griffin encolher os ombros. Endireitou-se, cruzou os braços e lançou uma olhadela a Viggio.

- Os peões podem ser sacrificados, Viggio. Tipos como o Price passam a vida toda a fazê-lo. Por que achas que estamos aqui? O Price queria comprar a liberdade, por isso vendeu-te. Agora vai encontrar-se com a filha enquanto tu vais para a prisão e ficas lá o resto da vida. Não parece justo. Onde está a Meg, Viggio? Fala agora, enquanto ainda tens uma oportunidade.

- Vá para o inferno.

- Vá lá, Viggio. O David não vai ajudar-te. Estás fodido, estás lixado. O que julgavas que ia acontecer já acabou. O que é que ainda lhe deves?

O olhar de Viggio pousou no carro, isolado com a fita amarela da polícia. Griffin apercebeu-se disso. Olhou para o veículo de Viggio e a seguir compreendeu.

- É outra bomba, não é, Viggio? Só que em vez de a usares no assassino contratado, vais usá-la no David Price. Ias ligá-la e ficavas a ver o teu cúmplice ir pelos ares. Bem, raios me partam. Então não há realmente honra entre os ladrões. Espera lá. - O tom de Griffin alterou-se. Ele inclinou-se para a frente. - Isso significa que o David Price ia meter-se num carro. O que diabo sabes, Viggio? Ô que diabo o David Price tem planeado?

Jillian andava de um lado para o outro na sala dos Pesaturo enquanto Libby e Toppi a observavam. A mão direita dela fazia rodar sem parar o medalhão de Trisha. A esquerda estava atrás das costas.

- Isto não está certo - disse ela a Libby e Toppi, embora elas já devessem estar fartas da sua tirada. - O tom e a Laurie precisam de nós. A Meg precisa de nós. Devíamos estar a fazer alguma coisa!

- Jillian - interveio Toppi com firmeza e paciência -, não somos profissionais. Às vezes, o melhor que há a fazer é esperar.

- Mas o David Price vai conseguir exactamente aquilo que quer! com certeza tem de haver outra maneira! Céus, por que não consigo lembrar-me de outra maneira?

Libby suspirou. Toppi olhou para Jillian.

- Como é que sabemos que ele irá dar o nome do violador? inquiriu Jillian. - O Griffin tem razão. Depois de se encontrar com a Molly, o Price pode dizer o que lhe apetecer. Nessa altura será demasiado tarde.

- Podem mandá-lo para o Super Max - disse Toppi. - Ou dar-lhe choques eléctricos.

- Oh, como se o David Price se importasse com isso. Ele gosta é de jogos, de ter as melhores cartas, de controlar todos os movimentos no tabuleiro. - Calou-se abruptamente, de sobrolho franzido.

- O que foi? - perguntou Toppi.

- O David gosta de controlar tudo - disse Jillian devagar. Mas este encontro... Ele deixou a polícia escolher o lugar e a trajectória para lá chegar. Só decidiria a hora. Se fosse planear alguma coisa, seria de esperar que escolhesse o local. Um sítio que conhecesse bem, ou que pudesse armadilhar. Ou que o Violador de College Hill pudesse armadiIhar. Isso faria sentido. O David ajuda o Violador de College Hill a elaborar o crime perfeito. Em troca, o violador ajuda o David a sair da prisão.

- Talvez ele não esteja a planear nada - argumentou Toppi com firmeza. - Ouviste a tenente Morelli. A polícia mandou uma grande quantidade de efectivos para o local. O Price mal vai poder sair da carrinha e andar.

Jillian olhou para ela, irritada.

- Claro que ele está a planear alguma coisa! Se ele quisesse mesmo ver a filha, teria falado no assunto antes de ir para a prisão. Então isto não é por causa da Molly. É para sair da prisão. - Fez uma pausa, ainda a pensar em voz alta. - E é para se vingar. Arranjou as coisas de forma a que a Meg fosse a primeira vítima, depois engendrou o homicídio do Eddie Como para trazer o Griffin para o caso. As suas acções são pessoais, quase autobiográficas... a mesma vítima, o mesmo detective. Mas ele não escolheu o local. Por que é que não escolheu o local?

- A seguir, os seus olhos abriram-se mais. - Oh, não!

- O quê?

- A coisa não vai ter lugar no local escolhido! Não estão a ver? Todos os atiradores especiais, a tenente e a Molly... Isso é apenas um disfarce, algo para distrair a polícia. Ele não escolheu o lugar porque não tenciona lá chegar.

O que quer que vá fazer, irá fazê-lo durante o caminho. Depressa, onde está o telefone, onde está o telefone? Tenho de ligar ao Griffin!

Enquanto percorriam a Estrada 2 em Cranston, o marshal Jerry Atkins comunicou via rádio com o carro-patrulha que seguia à frente.

- Há um problema qualquer com o Price. Está a espumar da boca. Bolas, acho que ele está a ter convulsões! O que quer que façamos?

Pausa.

- Bem, não podemos deixá-lo morrer... ele ficou de nos dar o nome do maldito violador. Espere lá. Ena! Ele desmaiou. Está no chão. Credo, acho que está a sufocar com a própria língua! Precisa imediatamente de cuidados médicos. Depressa, encostem!

À frente, o carro-patrulha guinou abruptamente para a direita, dirigindo-se para o parque de estacionamento de um restaurante. Aquela parte da Estrada 2 era ladeada por bares de striptea.se, um local pouco apropriado para uma paragem de emergência com um criminoso violento a bordo. Mas então, da parte de trás da carrinha veio outro estrondo, quando os tornozelos algemados de Price se agitaram violentamente.

Um segundo carro-patrulha parou atrás deles e tentou improvisar uma barricada ao fundo do parque de estacionamento. Encontravam-se ali poucos carros. Era o melhor que podiam fazer.

Jerry desceu do banco do condutor da carrinha. Tinha um pequeno estojo de primeiros socorros e apenas uma vaga ideia de como utilizá-lo.

- Peçam uma ambulância pelo rádio! - gritou.

- Estamos a falar com a tenente!

- Ela sabe administrar primeiros socorros?

- Não lhe tires as algemas!

- Credo, tenho cara de idiota?

Jerry abriu a porta lateral. O colega seguia logo atrás dele. Parece que a polícia estadual os achava uns idiotas e o oficial que os escoltava, Ernie, empurrou-os para o lado. Espreitou para o interior da carrinha com o coldre aberto e a mão na coronha da arma.

- Merda!

Jerry e o colega afastaram Ernie e estacaram. O corpo delgado de David Price parecia dobrado ao meio, uma amálgama de braços e pernas manietados que não podia ser natural. Enquanto os três homens o fitavam chocados, o corpo teve um novo espasmo e a cabeça tombou para trás, com os olhos revirados.

Jerry reagiu primeiro.

- Depressa, depressa, endireitem-no! Temos de enfiar-lhe um pau na boca antes que ele morda a língua. - Saltou para o interior da carrinha e agarrou nos pés de David. Ernie agarrou-o pelos ombros.

Jerry teve um pensamento estranho. As mãos de Price não estavam onde deviam. O que acontecera ao cinto grosso que devia prender-lhe as mãos à cintura? O seu olhar desviou-se para o chão e detectou uma pequena patilha de madeira. Semelhante às que se usavam para arrombar fechaduras. E depois...

A cabeça de Jerry endireitou-se.

A mão magicamente libertada de David agarrou na Beretta de Ernie.

- N... - gritou Jerry.

A bala perfurou-lhe o crânio.

Estática, confusão. No jardim de Cranston, agora isolado, a tenente Morelli afastou-se da família Pesaturo com o telemóvel numa mão e o rádio na outra. Transpirava profusamente sob o peso do colete à prova de balas, e o seu olhar estava sempre a ir para os telhados circundantes, onde os atiradores se encontravam.

- O que é isso de o Price estar a ter uma espécie de ataque? "Não, não encoste. O quê? Já encostou? De quem foi a ideia luminosa?

O telemóvel tocou. Atendeu ao primeiro toque enquanto ouvia as explicações de Brueger no rádio.

- Morelli!

- Ele vai tentar qualquer coisa no caminho! - gritou Griffin ao telemóvel. - Nunca fez tenções de encontrar-se com a Molly. É um embuste. O Viggio ia pôr-lhe uma bomba no carro em que ele iria pegar.

- Griffin... - E depois para o rádio. - Eu sei que não podem deixá-lo morrer!

- Tenente, onde está a carrinha? Diga-me onde posso encontrar a carrinha.

- Bolas, Brueger, onde está você? Tenho o Griffin ao telefone a gritar que o Price tem um plano de fuga qualquer. Não lhe toque. Ouviu? Ninguém toca no David Price. Brueger?

Tiros. Súbitos, fortes, a chegar pelas ondas de rádio. Muitos. E depois homens a praguejar, e mais tiros e depois um gorgolejar. Próximo. Junto ao bocal. Um homem a sufocar no próprio sangue.

- Brueger? Brueger, está a ouvir-me? Brueger, o que está a acontecer?

- Onde está a carrinha, onde está a carrinha? - gritava Griffin.

- Brueger!

Silêncio. Silêncio total. Até Griffin acabara por se calar. Os segundos iam passando. O suor escorria quente desde a testa de Morelli até ao queixo. Virou-se lentamente. Olhou para tom e Laurie Pesaturo, que a observavam com expressões chocadas e assustadas. Ela baixou o olhar. Olhou apenas para Molly. A pequena e bonita Molly que, se houvesse alguma justiça no mundo, nunca iria conhecer o pai biológico.

E depois, uma voz.

- Dêem os meus cumprimentos ao Griffin - disse David Price pelo rádio. - Oh, e talvez queiram mandar uma ambulância. Esperem, pensando melhor, acho que basta o médico legista.

Griffin praguejou uma vez, atordoado, enquanto o rádio se desligava. A tenente Morelli baixou a cabeça.

Griffin desligou a chamada. O telemóvel voltou a tocar imediatamente. Por momentos, ele limitou-se a olhar para o aparelho. Waters também. Tinham ouvido tudo o que chegara pelo rádio de Morelli através do telemóvel e os seus rostos haviam empalidecido. Fitz aparentava estar em choque. Os agentes ali reunidos estavam devastados.

Às vezes a vida era como estar submerso trinta quilómetros sob o mar. Todos os sons eram abafados. Os membros pareciam demasiado pesados para se moverem. Vagueava-se no escuro, a superfície demasiado longe, a pressão prestes a esmagar o peito.

O telemóvel de Griffin voltou a tocar.

Ele atendeu e preparou-se para ouvir a voz presunçosa de Price.

- Ele vai tentar qualquer coisa no caminho! - exclamou Jillian.

- Não vai chegar ao parque!

- Eu sei - murmurou Griffin.

- Pense nisso - continuou ela bastante animada. - Deixou que a polícia escolhesse o local. Nunca teria permitido tal coisa se fosse daí que tencionasse fugir.

- Eu ? sei.

- E com os atiradores, a polícia de intervenção e tudo o mais... seria impossível tentar ali qualquer coisa. Já durante o caminho, quando for apenas ele e os condutores...

- Jillian, eu sei.

-Ai sim? Bem, então detenha-o!

Ele ficou calado. Não tinha ainda palavras para descrever o que acabara de ouvir. Quantos homens teriam formado a escolta? Quatro, seis, oito? Quantos teriam mulher? Quantos teriam filhos? Waters virara costas. Fitz sentara-se no chão, junto à casa de Ron Viggio, a olhar para um candeeiro. Algures na zona um cão uivou.

- Griffin? - perguntou Jillian, começando a ter dúvidas. - Ele já...?

- Acabou de acontecer.

- Oh, meu Deus! O que...

- Não posso.

- A Meg?

- Não sabemos.

- Griffin, ele não pode escapar.

- Acha que eu não sei isso? - O corpo dele ganhou novamente vida. Deu um pontapé no pneu do carro-patrulha. Depois voltou a dar mais pontapés. Sentado no banco de trás do carro, Viggio fitava-o carrancudo. O estupor devia ter ouvido tudo e mesmo assim estava-se nas tintas.

A visão de Griffin começou a toldar-se. Via claramente as suas mãos. Imaginou-as a apertarem o pescoço de Viggio, a apertarem, a apertarem, a apertarem...

Respira fundo, expira. Respira fundo, expira. Não cedas. Imagina-te num local feliz. Apetecia-lhe dançar em cima do túmulo de David Price. Seria isso um local feliz? Ou significaria apenas que, passado um ano, ainda não aprendera nada?

- Griffin - disse Jillian -, a tenente Morelli comentou que você tem uma pista quanto ao paradeiro do raptor.

- Já o encontrei.

- Mas ele não tem a Meg?

- Não. E parece não lhe apetecer falar do assunto.

- Griffin, eu sei onde ela está.

- O quê? - Ele animou-se. Waters e Fitz aperceberam-se da mudança de humor e fitaram-no.

- O David é um egocêntrico - respondeu Jillian. - Só pensa em si próprio. Tudo isto foi por causa dele. Escolheu a Meg para ser novamente a primeira vítima. Escolheu-o a si para conduzir o caso. E agora, para o grande final...

- Não... - murmurou Griffin.

- Sim. Tem mais uma campa a escavar. Está a ver? Começou com a Meg. E agora vai fazer o que acha que devia ter feito há seis anos. Vai matar a Meg. E vai enterrá-la na cave. Vai voltar para o vosso antigo bairro, Griffin. Vai voltar à antiga casa!

Griffin olhou para Viggio. O violador tentou manter uma expressão neutra, mas era tarde de mais. A expressão de espanto no seu rosto dizia tudo.

- Como é que tiveste acesso à antiga casa do Price? - gritou Griffin.

- A minha mãe comprou-a.

- O quê?

- O Price recomendou-a. Sejamos realistas, quem é que quer comprar uma casa que costumava ter bebés assassinados na cave? O agente imobiliário desistiu há muitos meses, e a minha mãe comprou-a por bom preço. Ela tem uma reforma pequena, por isso ficou satisfeita.

- Envolveste a tua mãe nisto?

- Claro que não! Ela está na Florida. Ofereci-lhe a viagem.

- Filho da mãe! - Furioso, Griffin fez sinal a Waters e a Fitz. Obrigado, Jillian. Vamos a caminho.

O carro de Griffin estava bloqueado pelo carro-patrulha. Correram para o Taurus de Fitz enquanto Griffin começava a gritar para o rádio.

David tinha um avanço de dez minutos e eles encontravam-se a um quarto de hora de distância. Mais uma vez os segundos iam passando. Para bem de Meg, Griffin esperava que não chegassem demasiado tarde.

Na sala dos Pesaturo, Jillian desligou o telefone, agarrou no casaco, na mala e depois no spray de gás pimenta.

- Isto é de loucos - comentou Toppi de imediato. - Tu não és polícia!

- É a Meg.

- Deixa-os tratar disto.

- Por que para nós correu tudo bem? - Jillian virou-se para a mãe. - Dás-me o teu spray vou levar o máximo que puder.

Libby franziu o sobrolho e olhou-a com uma expressão desaprovadora.

- Não posso continuar aqui sentada à espera, mãe! A Meg precisa de mim. Tenho de tentar.

Libby não se mexeu.

- Oh, por amor de Deus, não vou entrar naquela casa! Fiz isso uma vez e sei perfeitamente que não resultou. Terei cuidado. Eu... eu hei-de inventar alguma coisa no caminho!

Libby começou a vacilar. Jillian baixou-se e olhou a mãe nos olhos.

- Tenho de fazer isto - disse ela, calma. - Não salvei a Trisha, percebes? Tens imensas saudades dela, sei que tens. Mas eu não estive lá para a ajudar e tenho de viver com isso todos os dias da minha vida. Sim, ele era mais forte do que eu. Sim, devemos culpar o violador e não a vítima. Tudo parece muito bem. Mas eu estava lá. Vi-a. E... e não cheguei lá a tempo. Não a salvei.

"Não quero voltar a perder alguém, mãe. Não quero perder-te, nem à Meg, nem à Carol. Por isso preciso de fazer isto. Talvez não possa mudar o mundo. Mas estou finalmente a aprender que, pelo menos para mim, é importante tentar. Por favor, mãe, dás-me o teu spray de gás pimenta?

Libby meteu a mão no bolso. Tirou de lá a embalagem com uma mão trémula e com manchas de fígado. Olhou para a filha que lhe restava com uma expressão preocupada. Depois suspirou e largou a embalagem na mão de Jillian.

Jillian beijou o rosto da mãe.

Depois virou-se e correu para a porta.

 

Meg desmaiou novamente. Estava em casa, no quarto cor-de-rosa de Molly. Preparavam a Barbie para o grande dia do casamento, só que desta vez a capa de Winnie the Pooh era vermelho sangue. Meg tentava tirar-lhe a capa quando olhou para baixo e viu que as bochechas fofas de Winnie se tinham transformado no rosto sorridente

de David Price.

- Paizinho! - exclamou Molly radiante.

Meg acordou com um sobressalto. As pernas haviam cedido e os braços doíam-lhe imenso devido ao impacte súbito do peso morto. Esperneou rapidamente para pôr-se de pé no chão de terra irregular. Mas, infelizmente, os braços e os ombros doeram-lhe ainda mais.

Um som. Lá em cima. Uma porta a abrir-se. Passos a avançarem rapidamente pelo chão de madeira.

Meg não conseguiu conter-se. O Violador de College Hill regressara e ela sentia-se grata. Os pulsos ensanguentados ardiam, os tornozelos manietados doíam. Detestava sentir as calças de ganga ensopadas de urina contra a pele. Queria deixar-se cair. Queria sair dali. Queria... queria tanto voltar a sentir-se humana.

Virou a cabeça para onde julgava estarem as escadas e susteve a respiração, antecipando a chegada dele.

Outro clique, a porta a abrir-se no cimo das escadas. E depois:

- Olá, querida! - A voz de David Price ouvia-se com toda a clareza. - Já cheguei!

Através da mordaça, Meg começou a gritar.

A cinco quarteirões da antiga casa de Griffin, Fitz carregou no travão. A adrenalina exigia que acelerassem até à porta da frente e saíssem do carro com as armas na mão. A prudência aconselhava uma coisa diferente. Os três homens observaram a zona à procura de sinal de David Price enquanto Fitz ia conduzindo.

Subiam uma rua, desciam outra. Contornavam um quarteirão, depois outro. Os segundos iam passando, a tensão aumentava. Griffin sentia os nós de tensão nos ombros e Waters fazia estalar as articulações das mãos incessantemente.

As ruas estavam tranquilas. O Sol começava a pôr-se e a colorir o céu de cor de laranja e vermelho-escuro.

Ficaram a um quarteirão de distância da antiga casa de Griffin, onde ele vivera, amara e perdera a mulher. Depois Fitz encostou.

- Quantas entradas? - perguntou ele calmamente.

- Três. Porta da frente, porta lateral do quintal e alçapão para a cave.

- Dividimo-nos - murmurou Waters.

- É preciso agir com cautela - disse Griffin. - O David está armado enão hesitará em utilizar a Meg como escudo. Basicamente, é uma situação de reféns que, tendo em conta o bairro, pode rapidamente piorar.

- Temos de o limitar - resmungou Fitz.

- Sim. Já basta a Meg. Não queremos que ele acabe por entrar noutra casa, com uma família inteira para atormentar.

Ninguém fez a pergunta lógica seguinte - até que ponto sacrificariam Meg para deter Price? Tinham de esperar que a situação não evoluísse nesse sentido.

- Muito bem - disse Griffin.

Saíram do carro, sacaram das armas e, um a um, desapareceram no crepúsculo avermelhado.

Os médicos apareceram a correr. Não passavam de miúdos, com batas demasiado grandes, a entrar no quarto de Carol e a rodearem-na. A perna esquerda dela tinha espasmos, o braço direito agitava-se violentamente. A máquina emitia bipes e os médicos gritaram códigos estranhos às enfermeiras, que já estavam a afastar Dan para um lado enquanto traziam mais equipamento e uma seringa gigante.

- Carol, Carol, Carol...

- O senhor tem de sair...

- A minha mulher...

- Um médico já irá ter consigo.

- Carol...

A enfermeira pô-lo fora do quarto e fechou a porta. Ele ficou parado no corredor, enquanto os médicos gritavam, a máquina emitia bipes e a mulher tinha convulsões na cama.

David tocou nela. Os seus dedos acariciaram o rosto de Meg e afastaram-lhe suavemente o cabelo. Ela tentou virar-lhe costas, mas não conseguiu. Ele tirara-lhe em primeiro lugar a venda. "Para te ver melhor, minha querida", cantarolou ele. O brilho intenso da lâmpada nua magoou-lhe a vista.

- Cresceste - disse David. - É pena.

Passou um dedo pelo braço dela, junto aos pulsos, e levou-o aos lábios para sugar o sangue.

- Estiveste ocupada, minha querida. Olha para a porcaria que fizeste. Não te serviu de nada, mas foi giro teres tentado. O Ronnie disse-te que eu vinha aí, Meg? Puseste-te neste estado só por minha causa?

Ela continuava amordaçada, por isso não se deu ao trabalho de responder.

- Bem, não posso atrasar isto muito - disse David com brusquidão. - Por isso vamos soltar-te e ir directos ao assunto.

Meg olhou para ele desconfiada. Viu a coronha de uma arma a sair-lhe do cós das calças. Tinha uma nódoa de sangue num dos lados da camisa, e a face direita salpicada também de sangue. Tresandava a pólvora e a morte. Ela não se iludia quanto ao significado das palavras dele.

Ele pôs a mão atrás das costas. Quando voltou a mostrar a mão, agarrava uma faca feia, de bainha preta.

- Cortesia do Jerry - disse David, embora ela não percebesse a quem é que ele se referia.

Viu-o abrir a bainha de cabedal. Viu a enorme lâmina de serrilha aparecer, a luz da lâmpada a reflectir-se no fio ameaçador. Devia ter-se esforçado mais com a cavilha. Devia ter feito mais força. Que importava que lhe doessem os braços e os ombros. O que David ia fazer-lhe agora iria doer muito, muito mais.

Ele encostou a ponta da faca à clavícula dela. Era fresca e aguçada contra a sua pele transpirada.

Meg fechou os olhos, encostou as costas à parede e tentou dizer a si própria que aquilo não iria doer para sempre. Tudo, até a dor, tinha um fim. Pobre Molly. Pobre mãe e pobre pai. Pobre Jillian e pobre Carol... Pobre Meg. Começara a organizar a sua vida. Mesmo sem recordações, tivera vontade de andar para a frente com as coisas. E agora... a faca deslocou-se. Ela gemeu, impotente.

E David soltou-a.

Os braços de Meg tombaram para a frente abruptamente, as mãos amarradas batendo na barriga como uma pedra. No instante seguinte, o sangue afluiu aos braços, provocando um formigueiro nas terminações nervosas, e ela gritou com a dor súbita.

David riu-se, observando-a.

- Sim, às vezes a recuperação é pior do que o ferimento. Sabes, passei o último ano a fazer ioga. Aprende: se tivesses preparado os teus músculos convenientemente, agora não te doía tanto. Credo, Meg, molhaste as calças?

Ela sentiu vontade de lhe bater. Não era capaz de mexer os braços. Estavam esquisitos, tipo borracha, como se não lhe pertencessem. E os ombros pareciam demasiado soltos. As peças estavam unidas, mas não da forma mais correcta.

- Tinha planeado demorar-me aqui algum tempo - disse David num tom casual -, mas a ausência do Ronnie leva-me a pensar que ele possa ter sido detido e, se o Ronnie foi detido, então esta casa já não é segura. Quanto às boas notícias, vejo que ele já me arranjou um carro. O que te parece, Meg? Vamos dar uma volta. vou deixar-te ligar o motor.

Avançou na direcção das escadas e, ao ver que ela não o seguia automaticamente, virou-se para trás e fitou-a de sobrolho franzido.

- Vá lá, não sejas tímida. - Depois olhou para baixo e reparou nos tornozelos presos. - Bem, bem, parece que o Ronnie não gostava de deixar as coisas ao acaso. Acredita quando te digo que sei exactamente o que sentes. Vá lá, preciso que caminhes.

David voltou a pegar na faca. Baixou-se e começou a serrar os garrotes de látex. O material rasgou-se por fim. Ele olhou para ela com um sorriso.

Meg retribuiu o sorriso. E depois levantou o joelho e bateu com toda a força na parte de baixo do queixo de David. O rosto dele empalideceu quando a dor subiu até à testa. Cambaleou para trás, ainda com a faca na mão.

Não lhe dêem tempo para recuperar, dissera o professor de autodefesa. Não dêem ao vosso atacante tempo para pensar.

Meg esticou a perna na direcção das virilhas de David; ele travou-a com a anca. Ela pontapeou-lhe o lado interior do pé. David emitiu um som esquisito. Ela atingiu-lhe a rótula de lado e ele por fim caiu.

Meg queria a arma dele. Queria a faca. Queria enfiar os dedos nas órbitas dele e puxar-lhe o cérebro. Mas os seus braços não se moviam, os seus braços não obedeciam.

Meg virou-se na direcção das escadas, a balançar os braços inertes. Começou a correr.

- Mais um passo, grande cabra, e rebento contigo! - gritou David atrás dela.

Meg não parou. David abriu fogo.

Griffin avançava pela parte da frente da casa, aproximando-se da porta, quando ouviu o primeiro disparo. Este foi rapidamente seguido de outros. Griffin baixou-se, agarrou na maçaneta com a mão esquerda enquanto segurava a Beretta com a direita. Virou-se, rolou pela entrada e levantou-se a tempo de ver David Price parado no cimo das escadas que conduziam para a cave, apenas a um metro de distância. David gritava "vou matar-te, cabra!" e brandia uma arma idêntica à de Griffin

- parecia que David se armara por cortesia de um dos agentes que o escoltara.

Griffin apertou o gatilho no momento em que David o viu, se desviou para a direita e abriu fogo. Merda! Griffin esgueirou-se para a sala à esquerda, disparando às cegas enquanto David abria buracos nas tábuas aos seus pés. De súbito, apareceu outro vulto à esquerda de Griffin - Fitz, vindo da porta lateral.

- Para baixo! - gritou Griffin.

David levantou o cano e disparou outro tiro quando Fitz caiu no chão.

Griffin tornou a disparar. David dobrou a esquina para a cozinha, onde tinha acesso ao lanço de escadas para o primeiro andar.

- Raios! - praguejou Fitz ao ouvido de Griffin, levantando-se.

- Acho que ele arrancou o cabelo que me restava.

- Onde está a Meg?

- Não sei, mas ele disparou para qualquer coisa lá na cave.

- Você vai lá abaixo e eu vou lá acima.

- E deixo o divertimento todo para si?

- Fica com a rapariga.

- Oh, está bem.

Griffin avançou de gatas pelo chão, espetando-se nas farpas de madeira. Cravou quatro farpas nos antebraços antes de chegar à entrada da cozinha. Esticou um braço, tombou uma mesa pequena e lançou-se para trás dela.

Depois aguardou, enquanto os seus olhos se habituavam à penumbra. Vinha luz da cave, mas parecia ser a única luz acesa em toda a casa. Griffin pestanejou, tentou recuperar o fôlego, depois olhou para o tecto.

Não se ouvia um som lá em cima. Nem um passo, um raspar ou um praguejar.

Sete e cinco. A casa estava no mais absoluto silêncio enquanto o Sol continuava a pôr-se e os combatentes se preparavam para o segundo assalto.

Jillian tentava conduzir e ler uma folha que imprimira a partir do site maps.com, com indicações de como chegar ao antigo endereço de Price, que ela descobrira ao ler notícias antigas sobre a sua prisão. A primeira vez passou pela rua. Fez inversão de marcha num local proibido, e em seguida percebeu que assim era melhor; teria melhores hipóteses de surpreender se se aproximasse da casa a pé.

Tinha um spray de gás pimenta na mão e outro no bolso. O spray funcionava melhor se estivesse perto da vítima. Apontar aos olhos e ao nariz, para o fazer chegar às membranas mucosas. Para alguém como ela, isso exigiria aproximar-se sem ser notada. Afinal de contas, David andava à procura da polícia. Provavelmente estava muito ocupado a lutar com profissionais experientes como Griffin. Talvez estivesse com dificuldade em controlar Meg. Eles seriam a distracção.

Pensou novamente no apartamento de Trisha. O peso do homem a esmagá-la contra o chão, a prendê-la enquanto a irmã sufocava e morria na cama. O homem a rir-se dos seus esforços fúteis. O homem a prometer fode-la bem.

Mas precisava de manter essas recordações bem longe. Precisava de concentrar-se no passeio sob os seus pés, na lata fresca na mão e na casa que se aproximava.

Trisha morrera, o homem ganhara. Não podia alterar-se o passado. Era tempo de avançar. De concentrar-se em Meg. De pensar nas lições que aprendera.

E depois regressar para junto da mãe, que realmente precisava dela.

Jillian rumou à casa. Ainda estava a tentar descobrir como aproximar-se sem ser vista quando ouviu um gemido baixo, e a seguir uma voz masculina.

- Céus, Waters. Oh, pá. Oh... meu Deus... Aguente-se amigo. Oh, pá, precisamos de um médico depressa.

Meg respirava a custo. O seu corpo começara a tremer descontroladamente e ela teve de manter-se colada à parede do quarto, pois receava estilhaçasse num milhão de pedaços. Enquanto subia a correr pelas escadas da cave ouvira os tiros atrás de si. A princípio baixara-se instintivamente, desviando-se de projécteis imaginários, depois percebera que vinham mais tiros de detrás de David. Alguém entrara pelo alçapão da cave. Por um momento, ela animara-se. Estava a ser salva! A cavalaria chegara.

Depois ouvira a exclamação súbita de um homem. A voz de um desconhecido. Alguém, que não David, fora atingido.

Ela correra e correra. E ainda assim ouvia tiros, cada vez mais próximos e ganhando nova intensidade no vestíbulo da entrada. Depois, tão abruptamente como começara, tudo acabara. Nada de tiros, apenas uma exclamação de David que subia para o primeiro andar.

Se os polícias tinham aparecido, ele matara-os todos. Porque David não parecia estar a fugir. Em vez disso, por aquilo que ela percebia, ele encontrava-se agora no primeiro andar consigo. Algures no corredor cheio de sombras ele andava à sua procura.

O olhar dela percorreu o quarto, à procura de uma saída. Os estores estavam descidos, mergulhando o quarto num cinzento-escuro que tornava todas as sombras sinistras e cada peça de mobiliário um monstro à espera de atacar. Viu a cama no canto mais afastado do quarto. A primeira tentação foi enfiar-se debaixo dela, encostar-se à parede e enroscar-se. Ele espreitaria para debaixo das camas, claro. E quando a encontrasse ela estaria encurralada, indefesa. Agarraria nela pelos tornozelos e arrastá-la-ia para fora, a faca já na mão.

Ela não podia deixar-se encurralar. Precisava de manter algumas opções. Tentava pensar: o que faria a Jillian?

A casa de banho. Talvez encontrasse uma lâmina ou uma embalagem de laca. Claro, uma lâmina não igualava propriamente uma faca de mato e a laca não era adversário à altura de uma arma. Pára ou borriforte até à morte!

Quase soltou uma gargalhada, depois percebeu que estava a ficar histérica e mordeu o lábio inferior. O movimento fez com que a mordaça se enterrasse ainda mais nos cantos da sua boca. Os olhos lacrimejaram.

E se conseguisse chegar à janela da casa de banho? Poderia abri-la, talvez subir para o telhado. Ou poderia sempre saltar. Provavelmente magoar-se-ia. Poderia partir uma perna, ou pior. Mas tendo em conta a alternativa...

Ouviu um som. Era um murmúrio, vindo do longo corredor escuro.

- Ó Meg, linda Meg - cantarolava David. - Aparece, aparece, onde quer que estejas.

Lutar ou fugir? Não restava muito tempo. A pobre Meg, exausta, tomou uma decisão.

Griffin tinha de chegar ao primeiro andar. Não sabia como. Tal como em muitas casas pequenas da Nova Inglaterra, a escada era estreita e íngreme. com a sua corpulência, seria um alvo fácil durante a subida. Price só tinha de ouvi-lo subir, dobrar a esquina e abrir fogo...

Mas por outro lado...

As tábuas rangiam lá em cima. Price estava em movimento.

E então Griffin ouviu outro ruído. Mais madeira velha a ranger, depois o chiar denunciador de uma janela finalmente a abrir-se. Mas este barulho vinha do canto oposto ao primeiro.

Havia uma segunda pessoa lá em cima. Oh, não, Meg!

Griffin já não tinha alternativa. Abandonou a protecção da mesa e avançou.

Jillian chegou à parte lateral da casa. A primeira coisa que viu foi Fitz no chão, ajoelhado junto a outro homem.

- Aguente, homem, aguente aí!

- Detective Fitzpatrick? - chamou ela baixinho.

Ele virou-se de repente. Era difícil distinguir as suas feições no crepúsculo, mas os seus movimentos denunciaram um certo atordoamento.

- Jillian, o que está... Não interessa. Tem um telemóvel? Preciso dele já!

- Ele está...

- Aquele filho da mãe do David Price alvejou-o quando ele abriu o alçapão da cave. Calculo que estivesse à espera dele.

- A Meg... - murmurou o homem no chão. - O Price... vai... matá-la.

- Chiu, o Griffin já a tem.

- Ela ainda está dentro da casa? - Jillian ajoelhou-se ao lado de Fitz, depois procurou o telemóvel na carteira. O detective tombado não estava com muito bom ar. Ela via a mancha de sangue a expandir-se rapidamente na parte lateral do tronco. O seu rosto magro estava demasiado pálido, a testa coberta de suor. Ia entrar em choque.

- Aqui está. - Entregou o telemóvel a Fitz, depois despiu o sobretudo e cobriu com ele o peito do homem. Ele começava a tremer. A relva fria não ajudava, mas ela não sabia se seriam capazes de o deslocar. Olhou nervosamente em volta. Estavam a metro e meio de uma casa com um assassino armado e um maldito jardim que nem sequer oferecia um arbusto ou uma árvore como protecção.

Fitz falava ao telemóvel. Em voz baixa e controlada, pedia reforços, pedia uma ambulância, pedia ajuda para um agente ferido.

- O detective Waters foi alvejado - disse ele. - Repito: necessitamos de assistência médica imediata.

Jillian pegou na mão de Waters. Os dedos dele estavam frios e peganhentos.

- M... Meg.

- A Meg está bem - mentiu Jillian. - Por favor, não se preocupe.

- Subiu... escadas da cave. Distraí... o Price.

- Chiu, vai tudo correr bem, detective. Agora descontraia-se. Ouviu o Fitz. O Griffin está lá dentro. O Griffin vai tomar conta da Meg.

Fitz acabara o telefonema e olhava para Waters, agitado. Jillian percebeu o seu dilema.

- Eu fico com ele - disse ela. - Vá ajudar o Griffin.

- Ele é um bom homem - disse Fitz com voz rouca, ainda renitente enquanto olhava para o colega no chão.

- Eu fico com o detective Waters - repetiu Jillian com firmeza.

- Vá ajudar a Meg.

Fitz lançou a Waters um último olhar. Muito fraco, o detective fez-lhe sinal que se afastasse.

- V... vá!

Fitz virou-se. Correu para a parte da frente da casa onde David Price aguardava com uma arma, onde Griffin perseguia um assassino, onde Meg lutava pela vida.

Jillian sentou-se na relva fria e húmida. Apertou a mão de Waters nas suas.

- Fique comigo, detective - murmurou. - Havemos de ultrapassar isto. Prometo-lhe que sairemos todos vivos daqui.

Meg estava à janela, exposta e vulnerável à porta parcialmente aberta. Ouviu movimento, a madeira a estalar no corredor, a aproximar-se cada vez mais depressa. David vinha aí. Devagar, mas com segurança, inspeccionava cada uma das assoalhadas.

Não havia muito tempo, não havia muito tempo. Vá lá, dedos, mexam-se!

Levantara os braços, flectira os cotovelos. Os dedos inchados começavam de novo a sentir e, embora ainda estivessem meio dormentes, ela já começara a movê-los. Subira os estores. Naquele momento mexia nos fechos em forma de meia-lua da janela... até que conseguiu virá-los.

Finalmente, a parte mais difícil. Os seus braços estavam esquisitos. Os ombros pareciam deslocados. Achou que não conseguiria içar nada, muito menos uma janela velha e perra. Mas naquele momento havia apenas uma saída daquela casa. Uma única forma de fugir a David.

Não sou uma vítima. Não sou uma vítima.

Meg chorava. Respirava com dificuldade, o corpo doía-lhe. Pensou no quanto amava os pais. Pensou no quanto amava Molly. E depois enfiou os braços sob a janela, cravou os dentes no lábio inferior e puxou com toda a força.

A janela rangeu, os braços doeram, e a seguir... A janela abriu-se num ápice. Ela meteu a cabeça de fora inspirando o ar fresco da noite. E deu por si a olhar para Jillian.

David ouvira o ranger da janela a abrir-se. Meg! Tentava fugir-lhe. Deu dois passos rápidos no corredor, o braço esticado com a arma, e a seguir ouviu outro som, também à frente, mas desta vez do lado direito. Estacou de imediato, tentando ouvir.

Griffin, deduziu, tentando subir as escadas sorrateiramente. Raios, por que não morrera ele no vestíbulo? David começava a fartar-se daqueles joguinhos. Raios, tivera um plano!

Franziu o sobrolho, apercebeu-se disso, e tentou mostrar-se descontraído. Pensa. O que poderia Meg fazer de uma janela do primeiro andar? Cair? Partir o pescoço?

Isso facilitaria matá-la mais tarde. Griffin era a ameaça imediata. Lidaria com Griffin primeiro.

David avançou para o lado direito do corredor. Encostou-se à parede e aproximou a arma do peito, agarrando nela com as duas mãos. Griffin subiria as escadas rente aos degraus, tentando não se mostrar muito. Também poderia trazer um colete à prova de bala. Por isso David iria também baixar-se e faria pontaria à cabeça.

Dobrou os joelhos e agachou-se. Sentia-se fluido, suave como seda, mesmo depois de abrir as algemas, libertar-se das correntes e matar uma escolta inteira. De certa forma, a prisão fora a melhor coisa que lhe acontecera. Entrara no estabelecimento prisional como um homem fisicamente fraco com jeito para agradar. Saíra de lá muito bem afinado, com um físico absurdamente flexível e uma compreensão cem por cento nova da natureza humana. O velho David perseguira miúdos. O novo David perseguiria o mundo inteiro.

Mas primeiro iria matar o sargento Griffin.

David disfarçou-se nas sombras.

- Não podes saltar - dizia Jillian baixinho e muito agitada. Meg abanou a cabeça, desesperada e inclinou-se para fora da janela.

- Bolas, Meg, é demasiado alto...

Meg não podia falar com a mordaça, apenas mostrar os seus pulsos ensanguentados.

- Oh, Meg...

Meg respirou fundo e meteu uma perna para fora da janela.

- Espera, espera, espera! - gritou Jillian. - Depressa, tive uma ideia!

De barriga rente ao chão, Griffin foi subindo devagar pelas escadas. Segurava a arma diante do rosto, enquanto olhava receoso para o vazio escuro que o aguardava lá em cima. Foi-se aproximando cada vez mais, sabendo que a qualquer altura Price atacaria.

Cinco degraus do cimo.

Gemidos ao fundo do corredor. Tábuas a ranger, o som de vidro a vibrar. Ainda não podia pensar naquelas coisas. Tinha de manter-se concentrado no cimo das escadas.

Quatro degraus do cimo. Três, dois...

E depois...

De repente, muito depressa, o rosto de David Price materializou-se no escuro. Um clarão. BUM, BUM, BUM.

Griffin apertou o gatilho ainda antes de sentir a primeira bala raspar-lhe a testa. Rolou, ficando de lado, batendo na parede inflexível enquanto disparava desesperado,

tentando atingir um homem que já não via. Clarões de luz explodiam diante dos seus olhos, o flash do cano a penetrar temporariamente o seu mundo escuro e a cegá-lo.

Sangue. Dor. A sua cabeça.

Griffin continuou a disparar. Depois chegou ao cimo das escadas com um rugido furioso.

David correu pelo corredor. Ouviu Griffin continuar a disparar. Óptimo, óptimo, óptimo, gasta as munições, dispara contra as escadas. David já não tinha muitas balas; com certeza não iria desperdiçá-las.

Entrou disparado no quarto à procura de Meg.

Uma brisa fresca atingiu-o de imediato, acompanhada da luz relativamente mais clara do crepúsculo. Obrigou os seus olhos a reajustarem-se e percebeu que os estores estavam subidos e a janela aberta. No momento seguinte, ouviu um estrondo no relvado.

David correu para a janela aberta. Espreitou lá para fora a tempo de ver o vulto de uma mulher a levantar-se e a correr pelo relvado.

Não, não, não. Não era possível. Meg devia estar magoada. Não podia fugir daquela maneira. Era sua, sua, SUA.

David levantou a arma para disparar. Nesse instante, um segundo vulto materializou-se junto à porta do roupeiro.

- Odeio-te, odeio-te, odeio-te! David virou-se.

- Meg? O que...

Ela apanhou-o de lado com o ombro e embateram ambos na parede quando Griffin entrou a correr no quarto.

David estava preso. Precisava de levantar-se, recuperar o equilíbrio e o controlo. Tinha uma mão em volta do pescoço de Meg e empurrou-a brutalmente para o lado. Mesmo a tempo de encontrar o punho de Griffin.

A face esquerda de David explodiu. Ele caiu com força, registou a nova ameaça no quarto e rolou para a esquerda. Levantou-se de arma na mão, apertou o gatilho ao calhas antes de Griffin lhe envolver a mão num aperto fortíssimo e começar a torcer-lhe o braço atrás das costas.

David gritou devido à dor súbita. Depois ficou mesmo furioso. Aquilo não estava a decorrer conforme o seu plano! Aquilo não fizera parte da equação!

Ficou quieto, inclinando-se para a frente e deixando que o impacte súbito do seu peso desequilibrasse Griffin. Tombaram ambos para diante. David rolou primeiro e pôs-se de pé. Tinha agora a faca de mato na mão. Assim era melhor.

Fez pontaria às costelas de Griffin no momento em que o seu velho amigo e vizinho levantou o braço. David cortou a camisa de Griffin e teve o prazer de ser o primeiro

a causar sangue. Recuou, vendo Griffin levantar-se furibundo. Griffin parecia já não estar armado. Provavelmente gastara as munições todas nas escadas e depois deitara

a arma fora. Griffin agia sempre por impulso. Tanto melhor para David.

- Aprendi umas coisas desde a última vez que estivemos juntos disse David, saltitando nas pontas dos pés e brandindo o braço com a faca. Perdera Meg de vista. Decidiu que isso não importava. O que podia uma rapariga fazer?

- Petit poinf". - perguntou Griffin.

- Não vou voltar para lá, nem pensar. vou matar-te, depois vou matar todos os chuis que se me meterem à frente. Hoje já limpei o sebo pelo menos a seis. Mais uns

quantos não faz diferença.

- Acho que devias levar o carro que está estacionado ali à porta

- disse Griffin, descrevendo também um círculo às arrecuas. - Sabes, o Viggio teve bastante trabalho a prepará-lo para ti.

- Merda! Armadilhou-o, não foi? Bem, isso irrita-me! Fui eu que lhe disse que páginas consultar na internet para aprender a fazer bombas, sabes? Sem mim, aquele cagalhoto reles não era ninguém!

David saltou para a frente, tencionando cortar a coxa desprotegida de Griffin. Contudo, este antecipou o movimento, desviou-se para a esquerda e deu-lhe um soco no olho esquerdo. A cabeça de David tombou para trás. Ele viu estrelas, mas não caiu. Em vez disso afastou-se um pouco e tentou recompor-se. Griffin era maior, tudo bem. Mas David era mais inteligente e estava mais bem armado.

Griffin não voltou a atacá-lo, mas continuou a descrever círculos. Parecia estranhamente calmo, quase curiosamente paciente.

- Sem ti, o Viggio poderia ser para sempre o Violador de College Hill - disse Griffin. - Nunca ninguém poderia denunciá-lo... como tencionavas fazer.

- Eu não ia necessariamente denunciá-lo. O que me importa que ele ande para aí a assustar estudantes? Considerei-o uma espécie de presente de despedida para ti, Griff. O teu trabalho nunca seria monótono. Agora vou ter de te matar.

- Eo que dizes.

- O que porra estás a fazer, Griffin? Onde está a raiva, onde está a guerra santa? Não te lembras do que eu fiz à Cindy? Terei de te repetir como foram os últimos

momentos dela?

- A Cindy morreu rodeada pelas pessoas que a amavam. Era bom que tivéssemos todos a mesma sorte.

- Eu contei-lhe todos os pormenores.

Griffin não disse nada. David franziu o sobrolho. Não gostava daquilo. Onde raio estava a raiva de Griffin? Precisava da raiva do seu velho amigo. Alimentava-se dessa raiva. O belo, escuro e obnubilante ódio de Griffin, que sempre levava o enorme detective a fazer algo de estúpido.

- Ela tentou fechar os olhos, Griffin. Eu segurei-lhe as pálpebras com os dedos. Ela não podia lutar comigo.

GrifTm continuou calado. Parecia estar a olhar para a porta atrás de David. Este virou-se de repente, viu apenas o corredor escuro, depois teve de tornar a voltar-se antes que Griffin o atacasse por trás.

- Para onde estás a olhar? - perguntou David. Estava a ficar nervoso, a sentir escapar-lhe o controlo da situação, embora não houvesse uma razão lógica para tal.

- Não estou a olhar para nada.

- Não resta mais ninguém, Griffin. Atirei ao teu amigo estúpido, o magrinho, o Waters. Lamento, mas já não podes voltar a partir-lhe o nariz, GrifFin. Ele interrompeu-me na cave, por isso matei-o.

Griffin continuou calado. David brandiu a faca.

- Estás a ouvir? Ficaste sozinho! Matei o teu amigo, atormentei a tua mulher. Assassinei dez miúdos e tu não fizeste nada E agora, meu caro amigo, estou em liberdade. Sim, tu também me ajudaste com isso. Bem-vindo, grande sargento Griffin. Bem-vindo, melhor amigo do aspirante a criminoso.

- Onde está a Meg?

- O quê? - David voltou a parar. Havia ali qualquer coisa errada. Nada daquilo estava a decorrer conforme o guião. Tinha suor na testa. E sentia-se... sentia-se estranhamente cansado. Todo aquele esforço. Estava a dar um bom espectáculo. O que diabo se passava com o seu público?

- Onde está a Meg? - repetiu Griffin, continuando a descrever círculos.

- A Meg é irrelevante.

- Achas? - Descrevendo círculos.

- O que queres dizer?

- Bem, ainda não estás propriamente a salvo, David. Pensa nisso. Tiveste imenso trabalho para sair da prisão, e acabaste encurralado na tua antiga casa. Foi uma grande correria, concordo, mas com poucos progressos.

- Cala-te.

GrirTin encolheu os ombros.

- Se assim queres.

- O que raio se passa contigo?! - berrou David. - Raios, grita comigo!

Griffin ficou em silêncio. Limitou-se a continuar a descrever círculos.

E David... E David... Qualquer coisa cedeu. Na sua cabeça. Atrás do olho. Sentiu um pequeno estalido, como se toda aquela fúria homicida tivesse explodido como uma

bomba de neutrões. E a seguir o seu braço subiu acima da cabeça. Depois desatou a correr, porque tinha de matar Griffin. Tinha de matar aquele homem com o seu rosto calmo, voz tranquila e olhar sensato, sabedor. Bolas, depois de todos aqueles planos merecia um público melhor.

David gritou a plenos pulmões. Lançou-se para a frente...

E Griffin sacou da arma que estava no cós atrás das costas e disparou à queima-roupa para o peito do outro. Pop, pop, pop. David Price caiu. Não voltou a levantar-se.

Trinta segundos mais tarde, Fitz entrou no quarto vindo do corredor, onde estivera a proteger Meg. Aproximou-se do corpo de David enquanto Meg espreitava, curiosa, da porta. O detective baixou-se, não encontrou pulso, e olhou para Griffin.

- Manipulou-o muito bem - comentou o detective.

- Aprendi com um grande mestre - respondeu Griffin.

Saiu da casa com Meg e Fitz atrás. As ambulâncias tinham chegado, as luzes piscavam e as sirenas perfuravam os tímpanos. Curiosamente, Griffin não dera pela sua chegada. No quarto, o seu mundo fora pequeno, apenas David e as lições do seu passado. Agora era luzes, câmara, acção.

Jillian contornou a casa, vinda da sua imitação de Meg Pesaturo em fuga. Tinha as faces ruborizadas, o cabelo despenteado, as roupas manchadas de sangue. Ele achou que nunca a vira tão bonita. Jillian olhou para ele uma vez, de queixo erguido, o seu olhar curiosamente franco e orgulhoso. Depois Meg lançou-se para os seus braços e ela apertou a rapariga, fazendo-lhe festas no cabelo.

Griffin dirigiu-se para a ambulância onde estavam a colocar Waters numa maca. O rosto dele encontrava-se coberto por uma máscara de oxigénio, mas o seu olhar estava alerta, concentrado.

- Como está ele? - perguntou Griffin.

-Tem de ir para o hospital - disse o paramédico.

- Ele terá os melhores.

- Os homens da farda têm sempre.

- Mike...

Waters tentou levantar o polegar. Depois a maca entrou na ambulância, as portas fecharam-se e o condutor arrancou.

Mais carros-patrulha surgiram na rua a grande velocidade. Mais luzes, câmara, acção.

Griffin ficou no meio do caos do seu velho bairro, da sua velha vida. Olhou para Meg. Olhou para Jillian. Olhou para a janela do quarto onde jazia David Price.

- Cindy, amo-te - murmurou.

O vento da noite soprou e levou consigo as palavras dele.

Na sala de espera dos cuidados intensivos, Dan aguardava com os cotovelos nas coxas e os dedos enfiados no cabelo. Tinham passado trinta minutos. Quase parecia um ano.

Uma porta abriu-se e fechou-se. Dan levantou finalmente a cabeça e viu um médico de bata branca parado junto a si. Tentou decifrar a expressão do homem, tentou preparar-se antes de ouvir as palavras.

- A sua mulher gostaria de vê-lo.

- O quê?

- A sua mulher... Passou um mau bocado, mas recuperou os sentidos.

- O quê?

- Quer ver a sua mulher, Mister Rosen?

- Oh, sim. Quero dizer, por favor!

Dan percorreu o corredor e entrou no quarto. E ali estava Carol, pálida mas consciente, deitada na cama. Os pés dele imobilizaram-se de repente. Esquecera-se de como se mexer.

- Querida?

- Ouvi a tua voz - murmurou ela.

- Julguei que te tinha perdido,

- Ouvi a tua voz. Disseste que me amavas.

- Amo, Carol! Oh, amo. Nunca houve mais ninguém. Tens de acreditar em mim. Cometi muitos erros, mas, Carol, nunca deixei de

te amar.

- Dan?

Ele conseguiu finalmente que os pés se mexessem. Deu uns passinhos tímidos na direcção da cama. Ela estava já acordada, era capaz de se recordar de tudo o que ele fizera, das vezes em que a deixara ficar mal. Estava acordada e ele não fora um bom marido, e...

Carol pegou-lhe na mão.

- Dan - disse ela baixinho. - Também te amo.

 

Jillian, Carol e Meg

- E esta cómoda? Vai ou fica?

- Vai.

- E o candeeiro?

- Vai, de certeza.

- Não sei, eu até gosto dele.

Carol revirou os olhos para Meg, depois fitou Jillian à procura de apoio.

- Não parece que o mobiliário rústico francês combine com alguma coisa num dormitório de faculdade - disse Jillian a Meg. - Talvez seja por causa da franja dourada.

- Olhem lá, tudo combina com puffi e candeeiros de lava. Acho que se chama ecléctico. - Mas Meg catalogou obedientemente o candeeiro para o futuro leilão de móveis de Dan e Carol. Andava a tentar escolher peças já há duas horas. Felizmente, poucas das antiguidades pesadas de Carol eram suficientemente pequenas para a futura morada de Meg - o dormitório da faculdade.

- Próxima assoalhada? - perguntou Jillian.

- Próxima assoalhada - concordou Carol.

- Tens a certeza?

- Sim.

Saíram as três do quarto e avançaram pelo corredor. Quando passaram pelas escadas ouviram as vozes dos familiares lá em baixo. Dan e tom andavam muito atarefados lá fora a escolher ferramentas na cabana do jardim, mas Laurie, Toppi e Libby haviam ficado na cozinha. Quando Jillian lá fora havia pouco, elas estavam a obrigar

Griffm a tirar todos os objectos do cimo dos armários. Assim que ele metia uma coisa numa caixa, elas queriam-na metida noutra caixa. Ele fartava-se de fazer subir

e descer as sobrancelhas para que Molly se risse, mas acabava sempre por obedecer às três mulheres. Molly achava tudo aquilo divertidíssimo, e no primeiro andar elas ouviram as gargalhadas da criança ao ver Griffin desempenhar a sua última tarefa hercúlea.

Molly andava muito bem nos últimos tempos e, surpreendentemente, fizera muito poucas perguntas acerca da sua estranha visita ao parque havia seis meses. Meg, por outro lado, andava mais pálida e emagrecera. Recuperara fisicamente do rapto, tal como o detective Waters. Mas com as recém-reencontradas recordações de Meg surgiram pesadelos, suores nocturnos, ataques de pânico. Ela tentava aguentar-se. Recuperara a sua vida, dissera na última reunião do Clube das Sobreviventes às amigas, e estava determinada a continuar a vivê-la. No mês seguinte regressaria à faculdade para terminar o curso. O pai continuava a tentar convencê-la a deixá-lo ligar-lhe todas as noites e a fornecer seguranças armados, mas isso era de esperar. E à sua maneira, tom era realmente carinhoso.

Jillian, Carol e Meg chegaram à porta fechada no fundo do corredor. A última assoalhada a ser catalogada para o leilão. O quarto.

- Tens a certeza? - repetiu Jillian. - A Meg e eu podemos fazer isto.

- O Qan também já se ofereceu - respondeu Carol calmamente.

- Talvez devesses aceitar a oferta dele.

- Pensei nisso. Ele gostava de ajudar mais. Jillian e Meg não disseram nada.

Carol abanou a cabeça.

- vou dizer-vos o que lhe disse a ele. Preciso de fazer isto. Afinal de contas, é apenas um quarto. Apenas um quarto numa casa que já nem sequer é minha. Os novos proprietários chegam para a semana. Vão encher esta casa com as suas coisas, com os seus filhos, com os seus sonhos. Se eles conseguem enfrentar este quarto, eu também consigo.

Jillian não achou que fosse exactamente a mesma coisa, mas não lhe competia dizê-lo. Abriu a porta do quarto bafiento e escuro e deu a Carol uns momentos para reunir as forças.

Há ano e meio que aquele quarto não era usado. O ar cheirava a bafio, os cantos estavam cobertos de enormes e elaboradas teias de aranha. O chão tinha uma película de pó. Os velhos fantasmas habitavam confortavelmente num local assim. Jillian pôde olhar para a cama de ferro forjado cheia de pó e pela primeira vez imaginar perfeitamente aquilo por que Carol passara. Um homem a entrar por aquela janela a coberto da noite. Um homem a bater, a amordaçar, a amarrar. Uma mulher a gritar, mas sem emirir um som.

Uma mulher vitimizada num local onde tinha todo o direito de setitir-se em segurança.

Meg pegara sem reparar na mão de Jillian. Depois Carol avançou determinada, acendeu uma luz e o feitiço quebrou-se rapidamente. Afinal de contas, o quarto era apenas

um quarto. Um que, por sinal, precisava de uma boa limpeza.

- Tudo o que está aqui dentro será vendido - declarou Carol.

Vinte minutos mais tarde, tinham regressado ao corredor. Carol sentou-se no chão com um suspiro. Jillian e Meg imitaram-na, encostando as cabeças à parede.

- Algum arrependimento? - perguntou Jillian com suavidade. Carol abriu os olhos.

- Honestamente? Não tantos como tinha pensado.

- É uma bela casa - observou Meg. - Devias sentir-te orgulhosa do que fizeste por ela.

- E sinto. Mas sabes, é apenas uma casa. E por muito amor e cuidado que tenha havido na sua recuperação, aconteceram aqui muitas coisas. É bom sair. Assim posso recomeçar do zero. O dinheiro ajudará o Dan a recomeçar do zero. E sabes, a nossa nova casa também é bonita. Só que numa escala menor. Mas aquela sala, já estou a pensar... deitamos abaixo uma parede, abrimos mais umas janelas, e teremos uma sala cheia de sol mesmo ao lado da cozinha. Ponho lá umas plantas, envernizo o chão...

Calou-se. Jillian e Meg sorriam-lhe.

- És incorrigível - disse Jillian.

- Gosto de casas. De todas as casas, julgo. Oh, olhem. Sou uma meretriz de casas!

Sorriu radiante e riram todas.

- O Dan está a dar-se bem no escritório de advogados? - perguntou Jillian.

Carol encolheu os ombros.

- Tão bem quanto seria de esperar. Trabalhar por conta de outrem significa menos liberdade, mas também é muito menos stressante do que trabalhar por conta própria.

E, sejamos francas, precisamos do dinheiro.

- O leilão vai ajudar - disse Meg.

- Claro. Graças a termos passado para uma casa mais pequena, arranjado um bom emprego ao Dan, eu ter começado a trabalhar em part-time, se calhar chegamos ao fim do ano sem dívidas. - Sorriu, embora com alguma tristeza. - Não era exactamente onde esperávamos encontrar-nos a meio dos quarenta. Sem poupanças, sem dinheiro de parte para a velhice. Sem uma vedaçãozinha branca...

- Ele continua a ir às reuniões dos Jogadores Anónimos?

- Sim, e eu vou ao psicólogo. Oh, o amor moderno...

- Puseste a casa nova em teu nome? - perguntou Jillian.

- Foi ele que quis. O carro também está em meu nome e, imaginem, só temos um cartão de crédito, que me pertence. Mesmo que ele caia de novo na tentação, não pode causar muitos estragos.

- O Dan está a esforçar-se bastante, Carol.

- Por acaso, sinto orgulho nele. Talvez a vida não fosse aquilo que esperávamos. Mas se calhar as coisas são mesmo assim. Quando tínhamos tudo aquilo que julgávamos que queríamos, éramos infelizes.

Talvez não tendo nada possamos finalmente aprender a dar valor um ao outro. Possuir menos coisas, mas ter mais. Acho que... bem... O tom dela tornou-se de novo mais brusco -... temos de começar por algum lado.

- Ama-lo? - indagou Meg.

- Claro.

- Então tens muita sorte.

Carol sorriu. Inclinou a cabeça e olhou para Meg.

- E tu, querida? Continuas muito pálida.

- Demasiados pesadelos - respondeu Meg de imediato, com uma careta. - Sabes o que é estranho? Continuo a sonhar com o Eddie Como. Ele é o homem que me persegue. Sei que não é correcto. Sei que foi o Ron Viggio, mas... Passámos tanto tempo concentradas no Eddie que parece que o meu subconsciente é incapaz de perceber a diferença.

- Ele é um símbolo - murmurou Jillian.

- Exacto.

Ficaram todas muito sérias e olharam para o chão. Eddie ainda era um assunto difícil. Haviam passado demasiado tempo a odiá-lo. Viggio parecia quase uma abstracção, ao passo que Eddie permanecia real. Pobre Eddie Como, condenado por crimes que não cometera, incriminado por um psicopata e depois sacrificado num tribunal apenas para atrair um determinado detective estadual.

Tawnya desistira finalmente do processo. Como o esperma de Eddie fora mesmo encontrado junto das quatro vítimas de violação, o advogado explicara-lhe que não podia alegar negligência ou corrupção da polícia. Mais, a polícia encontrara o programa que Ron Viggio utilizara para criar a imagem computorizada de Eddie a ameaçar Jillian com violência, o que vinha confirmar que Eddie fora mesmo incriminado por um louco. Afinal, Eddie limitara-se a estar no local errado à hora errada. Tal como elas, fora apenas uma vítima.

Dois meses antes, Jillian, Carol e Meg tinham ido juntas colocar flores na campa de Eddie. Era o máximo que podiam fazer por ele naquele momento. Depois dessa visita, Jillian passara mais um cheque à paróquia, para que Eddie Júnior viesse a ter dinheiro para pagar uma educação universitária.

- Pelo menos desta vez não haverá julgamento - comentou Meg.

- Graças a Deus! - exclamou Carol. Jillian soou mais filosófica.

- O DAmato teria bastante dificuldade em argumentar. O advogado do Viggio teria apenas de repetir Eddie, Eddie, Eddie, e tudo ficaria muito confuso. O acordo foi provavelmente a melhor solução.

- Jillian, sempre calma e tranquila - disse Carol, mas a sorrir.

- Ele matou a minha irmã - retorquiu Jillian muito séria. - Eu gostaria de o ter visto a ser julgado. Gostaria de ter ouvido doze jurados a considerá-lo culpado. E talvez isso nos ajudasse a fazer uma transição melhor, a canalizar a nossa raiva.

- Ele nunca irá sair da prisão - disse Meg.

- Sim, mas quem dera que tivesse morrido como o David Price. Ninguém comentou. Parte do acordo de Viggio fora obrigá-lo a

contar minuciosamente o seu plano e de Price. Os pormenores haviam sido arrepiantes. Viggio convencera-se de que precisava de arranjar a forma perfeita de violar uma mulher. Abordara David Price quando haviam estado juntos na prisão e, em colaboração com ele, delineara o plano perfeito. Viggio já ouvira falar na Korporate Klean da última vez que estivera preso. Uma das anedotas que corria entre os reclusos era que, quando finalmente se saía em liberdade, o único trabalho que se conseguia arranjar era limpar a porcaria de uns gajos que "batiam punhetas" - toda a gente sabia que a Korporate Klean fazia a limpeza do banco de esperma.

A partir daí, tudo se encaixara. Viggio vira Eddie na sala de espera e percebera que eram fisicamente parecidos. Metera conversa com ele, descobrira que ele trabalhava para o Banco de Sangue de Rhode Island e precisava de dinheiro, porque a namorada estava grávida. Começou a vigiar Eddie quando ele recolhia sangue na faculdade e percebeu que chegara a oportunidade. Podia atacar estudantes e isso serviria para incriminar Eddie aos olhos da polícia. Escrevera a David Price a contar-lhe os pormenores, e ele recomendara-lhe a utilização de garrotes de látex. Isso incriminaria definitivamente Eddie. David tivera ainda a amabilidade de sugerir que Meg fosse a primeira vítima. Era a "cobaia" adequada, dissera ele.

Mesmo que Viggio tivesse feito porcaria, calcularam que Meg não iria à polícia. Não quereria admitir a sua ligação a David Price, cujo nome Viggio mencionara durante a violação. Não tinham planeado que o trauma do ataque provocasse amnésia, mas isso também não os prejudicara.

Viggio escolhera as outras vítimas com antecedência. Carol fora uma substituta de última hora, mas achara-a segura: passara tempo suficiente na zona para perceber que o carro do marido nunca estava estacionado à porta. Trisha era uma jovem estudante que vivia sozinha. A intrusão de Jillian surpreendera-o, mas fora irrelevante para o seu plano.

Nesta altura do relato, a voz de Viggio tornou-se presunçosa. Em teoria, sofrera três complicações - a perda de memória de Meg, a substituição de Carol e a chegada inesperada de Jillian, e nada disso o deterá. Era invencível. Depois as mulheres tinham ido para a televisão e nem sequer isso importava. A polícia fizera o esperado. Prendera Eddie Como e a fase dois do plano começara.

O envolvimento de David não fora grátis, claro. Considerara a incriminação de Eddie a oportunidade perfeita para sair da prisão. Viggio recebera instruções para contratar um assassino, matar o assassino, e atacar logo de seguida, deixando o esperma de Eddie no local. A nova violação faria com que as pessoas entrassem em pânico. E David poderia intervir com a sua oferta para salvar o dia. Depois de uma pirueta, sairia finalmente da prisão.

Claro que Viggio tivera as suas reservas. Mas assim que percebera que podia matar David Price tal como matara o assassino contratado, deixara de se importar. Seguira as indicações de David e colocara o pedaço de madeira e o Alka-Seltzer na roupa preferida de David, que depois havia sido levantada pelo advogado daquele. Em seguida Viggio raptara Meg para pressionar a polícia a libertar David. Por fim, arranjara um carro para a fuga a ser deixado defronte da antiga casa de David.

Claro que David não sabia que Viggio tomara a liberdade de armadilhar o carro com uma bomba. Para Viggio, a saída de David da prisão equivalia à morte deste, o que equivalia a Viggio poder atacar, torturar e matar jovens mulheres para sempre. Era o plano perfeito.

Até a polícia ter parado junto à sua casa e o detective Waters o ter apanhado no quintal cheio de ferro-velho de um vizinho. Viggio já não iria a lado algum.

E as três mulheres... as três mulheres faziam os possíveis por ultrapassar tudo aquilo.

- É a tua vez - disse Meg virando-se para Jillian. - A Carol recomeçou do zero com o Dan, eu vou recomeçar do zero com o meu passado sórdido. E que novidades há contigo?

- Pouca coisa.

Carol e Meg entreolharam-se.

- Eu não chamaria ao sargento Griffin "pouca coisa" - observou Carol.

Jillian corou de imediato.

- Pois, pois - disse Carol. - Estou a ver...

- Tens uma mente porca!

- Podes crer. Vá lá, o Dan e eu andamos num psicólogo que nos proibiu de fazer amor durante os próximos seis meses. Tenho de viver estas emoções através de outra pessoa.

Jillian e Meg olharam-na com curiosidade.

- Isso funciona? - inquiriu Meg. Foi a vez de Carol corar.

- Por acaso... bem, sim. Alivia um pouco a pressão. Antes, quando ele me tocava, eu ficava em pânico. Começava logo a pensar que ele ia tocar num sítio, depois noutro e não conseguia suportar esse nível de intrusão. Não estava preparada. Agora... agora sei que um beijo será apenas um beijo. Posso concentrar-me nisso. Nele a beijar-me. E quando faço isso, as outras coisas desaparecem. Já não estou no quarto. Não está escuro, a televisão não está ligada. Sou apenas uma mulher a beijar o marido de

há dez anos. É... agradável. A sério, parece que estamos novamente a namorar.

- Vou chorar - disse Meg com a voz embargada, e esfregou os olhos. - Vais apaixonar-te outra vez e eu nem consigo perceber se alguma vez conseguirei ter uma relação normal. Olhem para mim! Tenho quase vinte e um anos, a minha irmã é na realidade minha filha e a minha vida sexual resume-se a um pedófilo que eu julgava amar e um violador que me foi oferecido por um pedófilo. Que doentio

- A Molly é tua irmã - disse Jillian. - Tu própria disseste que é melhor manter as coisas assim.

- Se eu for mãe dela, ela tem de ter um pai. Não quero que ela me faça perguntas sobre o pai.

- Então retira isso da equação. A Molly é a tua irmã mais nova, tu ama-la, os teus pais amam-na e ela é muito feliz.

- A Molly é muito feliz.

- O resto... Meg, tinhas apenas treze anos quando o David te conheceu. Eras muito nova. E não te podes culpar por teres sido violada. Isso apenas quer dizer que cometeste um erro, e com treze anos. Já tens quase vinte e um. És forte, és inteligente. Vais ficar bem.

Meg fungou um pouco.

- E se eu conhecer o homem certo, entrar em pânico e ele se afastar?

- Então não é o homem certo - afirmou Carol. Meg olhava para Jillian.

- Eu não fui violada - disse Jillian.

- Foste agredida.

- Tenho... tenho alguns maus momentos.

- Pensas na tua irmã - murmurou Meg.

- Sim.

- Sentes uma grande culpa. Ela não negou.

- O Griffin disse-me uma vez uma coisa, durante a investigação. E foi uma das coisas mais difíceis, mais tristes e mais verdadeiras que eu precisava de ouvir: a Trisha ama-me.

- Pois ama - disse Carol de imediato.

- Sim - secundou Meg. Jillian sorriu-lhes.

- Tinha-me esquecido disso. Não sei porquê. Mas estou a lembrar-me agora. Estou... a gostar... das minhas recordações da Trisha, e isso sabe bem. E o Griffin compreende que a Trisha é uma parte de mim, tal como eu compreendo que a Cindy é uma parte dele. As vezes falamos deles. E sabe bem.

- Ele é um homem de sorte - disse Carol.

- Eu sou uma mulher de sorte. bom, e a Libby também não está a dar-se mal. Já viram como ela namorisca com ele? Juro, ela não se preocupava tanto com a aparência desde que descobriu que o homem da UPS era solteiro.

- Oh, concorrência! - brincou Meg.

- Ele tem um fraquinho por ela. E um dia destes a minha mãe ainda vai acrescentar a palavra "garanhão" no livro dela.

Carol e Meg riram-se. Jillian revirou os olhos, mas também sorria. Sentia-se uma mulher de sorte. As vezes dava consigo a cantarolar no trabalho, sem motivo. Os clientes pareciam menos chatos, os dias mais luminosos, as noites mais bonitas. Quando o tempo estava bom, fazia piqueniques com Libby e com Toppi no jardim. E às vezes saía mais cedo do trabalho, outras vezes chegava mais tarde, e um dia levou quatro vasos grandes de crisântemos amarelos porque os vira na florista e os achara bonitos. Os empregados olharam-na com curiosidade, mas ninguém se queixou.

- Por falar em família... - disse Jillian.

- Devíamos regressar ao trabalho - concordou Carol.

- Achas que eles já despacharam a cozinha? - perguntou Meg.

- Podíamos ir buscar umas pizas.

A comida iria saber bem. Levantaram-se e desceram as escadas. Na cozinha, Jillian avistou Griffin primeiro. Pusera Molly às cavalitas para que ela passasse o espanador na parte de cima dos armários.

- Sou um coelhinho do pó! - gritou ela.

- Olhem só para ti! - exclamou Meg, estendendo os braços para a irmãzinha.

Griffin pousou a criança risonha no chão. Vestia calças de ganga e uma T-shirt, e tinha pó na face esquerda e teias de aranha nos cabelos. Griffin ficava bem de calças de ganga e T-shirt. Libby chegara até a corar quando ele a ajudara a entrar para a carrinha.

Naquele momento, os seus olhos azuis cintilantes estavam pousados em Jillian. Aquele olhar aqueceu o peito dela. Nessa noite, iam receber Waters para jantar. Toppi

interessara-se bastante pela recuperação do detective. Comprara uma roupa nova para essa noite. Nunca se sabia.

Griffin abriu os braços e soergueu uma sobrancelha, ficando com uma expressão maliciosa. Ela, claro, fingiu estar a olhar para outro lado. Em resposta, ele atravessou

a cozinha com grandes passadas e abraçou-a com força.

Molly deu um gritinho, Meg e Carol sorriram. Libby fingiu mostrar-se chocada.

Jillian abraçou a cintura estreita de Griffin. Encostou-se ao seu peito largo e quente, sentiu a força dos seus braços. Ele não se afastou.

- Piza! - exclamou Molly, e todos se prepararam para o jantar.

 

                                                                                Lisa Gardner  

 

                      

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