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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CÓDIGO ETERNO / Eion Colfer
O CÓDIGO ETERNO / Eion Colfer

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Artemis Fowl construiu um supercomputador — o Cubo V — a partir de tecnologia roubada do povo das fadas. Em mãos erradas, ele poderia destruir tanto os homens quanto os seres encantados. Mas não há por que se preocupar, pois Artemis, como sempre, tem um plano brilhante. Ele não quer usar sua invenção, quer apenas chantagear um inescrupuloso empresário americano que tem ligações com a Máfia. O encontro é em um restaurante no centro de Londres, apinhado de turistas. Artemis será escoltado por Butler, seu invencível guarda-costas. O que poderia dar errado...?

Nos últimos dois anos meus empreendimentos comerciais prosperaram sem interferência da família. Nesse tempo vendi as Pirâmides a um empresário ocidental, falsifiquei e leiloei os diários perdidos de Leonardo da Vinci e separei o povo das fadas de uma grande parte de seu precioso ouro. Mas minha liberdade para tramar está quase terminando. Enquanto escrevo, meu pai está num leito de hospital em Helsinki, onde se recupera de dois anos como prisioneiro da Mafiya russa. Continua inconsciente, devido à dolorosa experiência, mas acordará logo e retomará o controle das finanças dos Fowl.

Com meus pais morando na Mansão Fowl, será impossível realizar meus vários atos ilegais sem ser detectado. Anteriormente isso não seria problema, já que meu pai era um bandido maior do que eu, mas mamãe está decidida a fazer com que os Fowl tomem jeito.

Mas há tempo para um último serviço. Uma coisa que mamãe não aprovaria. Não creio que o povo das fadas vá gostar muito, também. Por isso não contarei a eles.

 

 

 

 

 

 

ARTEMIS Fowl estava quase contente. Qualquer dia desses seu pai teria alta do Hospital da Universidade de Helsinki. Ele próprio ansiava por um almoço delicioso no En Fin, um restaurante de frutos do mar em Londres, e o contato de negócios deveria chegar a qualquer momento. Tudo segundo o plano.

Seu guarda-costas, Butler, não estava tão relaxado. Mas, afinal de contas, ele nunca ficava à vontade — não era possível se tornar o homem mais duro de matar do mundo baixando a guarda. O eurasiano gigante andava rapidamente entre as mesas do bistrô em Knightsbridge, posicionando os itens habituais de segurança e liberando rotas de saída.

— Você está usando os protetores de ouvido? — perguntou ao patrão.

Artemis deu um suspiro fundo.

— Estou, Butler. Mas não acho que corremos perigo aqui. É um encontro de negócios perfeitamente legal, à luz do dia, pelo amor de Deus.

Na verdade os protetores de ouvido eram esponjas que serviam como filtros sônicos, canibalizados dos capacetes da Liga de Elite da Polícia dos Elementos de Baixo. Butler tinha obtido os capacetes, junto com um tesouro de tecnologia dos subterrâneos, há mais de um ano, quando uma das tramas de Artemis o colocou contra uma equipe SWAT do povo das fadas. As esponjas eram cultivadas em laboratórios da LEP, e tinham minúsculas membranas porosas que se lacravam automaticamente quando os decibéis ultrapassavam os níveis de segurança.

— Talvez, Artemis, mas o negócio dos assassinos é que eles gostam de pegar a gente de surpresa.

— Pode ser — respondeu Artemis, examinando a seção de entradas do menu. — Mas quem teria motivo para nos matar?

Butler lançou um olhar feroz para uma mulher que fazia parte da meia dúzia de outros clientes, só para o caso de ela estar planejando alguma coisa. A mulher devia ter pelo menos oitenta anos.

— Eles podem não estar atrás de nós. Lembre-se, Jon Spiro é um homem poderoso. Ele acabou com um monte de empresas. Nós poderíamos ser apanhados no fogo cruzado.

Artemis assentiu. Como sempre, Butler estava certo, o que explicava por que os dois continuavam vivos. Jon Spiro, o americano com quem ia se encontrar, era o tipo de homem que atraía balas de assassinos. Era um bilionário bem-sucedido, com passado sombrio e supostas ligações com a Máfia. Segundo os boatos, sua empresa, a Fission Chips, tinha chegado ao topo graças ao roubo de pesquisas. Claro, nada jamais foi provado — não que a promotoria de Chicago não tentasse. Várias vezes.

Uma garçonete se aproximou, dando um sorriso ofuscante.

— Olá, meu jovem. Gostaria de ver o menu infantil? Uma veia pulsou na têmpora de Artemis.

— Não, mademoiselle, eu não gostaria de ver o menu infantil. Não tenho dúvida de que o próprio menu infantil tem. gosto melhor do que as comidas que estão nele. Gostaria de pedir à la carte. Ou vocês não servem peixe para menores de idade?

O sorriso da garçonete se encolheu uns dois molares. O vocabulário de Artemis tinha esse efeito sobre a maioria das pessoas.

Butler revirou os olhos. E Artemis se perguntou quem desejaria matá-lo. A maioria dos garçons e alfaiates da Europa, para começar.

— Sim, senhor — gaguejou a desafortunada garçonete. — Como quiser.

— O que eu quero é um prato misto, com tubarão e pei-xe-espada tostados na panela, sobre um leito de legumes e batatas frescas.

— E para beber?

— Água mineral. Irlandesa, se tiver. E sem gelo, por favor, já que o seu gelo sem dúvida é feito de água da torneira, o que destrói o objetivo da água mineral.

A garçonete correu para a cozinha, aliviada por escapar do jovem pálido da mesa seis. Ela já vira um filme de vampiro. O morto-vivo tinha aquele mesmo olhar hipnótico. Talvez o garoto falasse como um adulto porque na verdade tinha quinhentos anos.

Artemis sorriu antecipando a comida, sem perceber a consternação que tinha provocado.

— Você vai ser um grande sucesso nos bailes da escola — comentou Butler.

— O que foi?

— Aquela pobre garota quase saiu chorando. Não seria mau se você fosse gentil de vez em quando.

Artemis ficou surpreso. Raramente Butler dava opiniões em assuntos pessoais.

— Eu não me vejo dançando em bailes de escola, Butler.

— A questão não é dançar. Tem a ver com comunicação.

— Comunicação? — zombou o jovem Sr. Fowl. — Duvido de que haja um adolescente vivo com um vocabulário igual ao meu.

Butler já ia apontar a diferença entre falar e se comunicar quando a porta do restaurante se abriu. Um homem baixo e bronzeado entrou, flanqueado por um verdadeiro gigante. Jon Spiro e seu segurança.

Butler se curvou para sussurrar no ouvido do patrão.

— Tenha cuidado, Artemis. Eu conheço a reputação do grandão.

Spiro serpenteou entre as mesas, com os braços estendidos. Era um americano de meia-idade, magro como uma lança e pouco mais alto do que o próprio Artemis. Nos anos 80, seu negócio era navegação; nos 90 ganhou muito nas bolsas de valores. Agora eram comunicações. Ele usava seu característico terno de linho branco, e havia jóias suficientes penduradas nos pulsos e nos dedos para revestir o Taj Mahal de folhas de ouro.

Artemis se levantou para cumprimentar o recém-chegado.

— Sr. Spiro, bem-vindo.

— Ei, pequeno Artemis Fowl. Como você vai, diabos? Artemis apertou a mão do sujeito. As jóias chacoalharam como a cauda de uma cascavel.

— Estou bem. Fico feliz por o senhor ter vindo. Spiro ocupou uma cadeira.

— Artemis Fowl ligou com uma proposta: eu teria andado em vidro quebrado para estar aqui.

Os guarda-costas se avaliaram abertamente. Afora o tamanho, os dois eram totalmente opostos. Butler era o epítome da eficiência discreta. Terno preto, cabeça raspada, o mais invisível que se podia ser medindo cerca de dois metros e dez. O recém-chegado tinha cabelos tingidos de louro, usava camiseta com as mangas cortadas e brincos de prata nas duas orelhas, como de um bucaneiro. Esse não era um homem que quisesse ser esquecido, ou ignorado.

— Arno Bronco — disse Butler. — Ouvi falar de você. Bronco assumiu sua posição perto do ombro de Jon Spiro.

— Butler. Um dos Butler — disse ele com sotaque da Nova Zelândia. — Ouvi dizer que vocês são os melhores. Foi o que ouvi dizer. Espero que a gente não tenha de descobrir.

Spiro riu. Parecia uma caixa de grilos.

— Arno, por favor. Nós estamos entre amigos. Este não é um dia para ameaças.

Butler não tinha tanta certeza. Seus sentidos de soldado estavam zumbindo como um ninho de vespas na base do crânio. Havia perigo ali.

— Então, meu amigo. Aos negócios — disse Spiro, fixando Artemis com os olhos escuros e muito próximos. — Eu vim salivando sobre todo o Atlântico. O que você tem para mim?

Artemis franziu a testa. Esperava que os negócios pudessem aguardar até depois do almoço.

— Não gostaria de olhar o menu?

— Não. Ultimamente eu não como muito. Quase que só comprimidos e líquidos. Problemas de estômago.

— Muito bem. — Artemis pôs uma pasta de alumínio sobre a mesa. — Então, aos negócios.

Ele abriu a pasta, revelando um cubo vermelho do tamanho de um tocador de minidiscos, aninhado em espuma azul. Spiro limpou os óculos com a ponta da gravata.

— O que estou vendo aqui, garoto? Artemis pôs a caixa brilhante sobre a mesa.

— O futuro, Sr. Spiro. Antes do tempo.

Jon Spiro se inclinou para a frente, olhando bem.

— Para mim parece um peso de papel.

Arno Bronco deu um risinho, com os olhos provocando Butler.

— Então uma demonstração — disse Artemis, pegando a caixa de metal. Ele apertou um botão e o instrumento começou a zumbir. Partes deslizaram, revelando alto-falantes e uma tela.

— Bonitinho — murmurou Spiro. — Eu viajei quase cinco mil quilômetros para ver uma microtevê?

Artemis assentiu.

— Uma microtevê. Mas também um computador controlado por voz, um celular, um kit de diagnósticos. Esta caixinha pode ler qualquer informação em absolutamente qualquer plataforma, elétrica ou orgânica. Pode tocar vídeos, discos laser, DVDs; entrar on-line, baixar e-mail, invadir qualquer computador. Pode até escanear o seu peito e ver com que velocidade seu coração está batendo. A bateria dura dois anos e, claro, é completamente sem fios.

Artemis fez uma pausa para que o outro entendesse bem. Os olhos de Spiro pareceram gigantescos por trás dos óculos.

— Quer dizer que esta caixa...

— Vai tornar obsoletas todas as outras tecnologias. Suas fábricas de computadores não terão valor.

O americano respirou fundo várias vezes.

— Mas como... como?

Artemis virou a caixa. Um sensor infravermelho pulsava suavemente atrás.

— Este é o segredo. Um onissensor. Ele pode ler tudo que a gente pedir. E, se a fonte estiver programada, ele pode se conectar a qualquer satélite que a gente escolher.

Spiro balançou um dedo.

— Mas isso é ilegal, não é?

— Não, não — disse Artemis, sorrindo. — Não existem leis contra uma coisa assim. E não haverá durante pelo menos dois anos depois de isso ser lançado. Veja quanto tempo demorou para fecharem o Napster.

O americano pousou o rosto nas mãos. Era demais.

— Não entendo. Isto está a anos, não, décadas à frente de tudo que temos agora. Você não passa de um garoto de 13 anos. Como conseguiu?

Artemis pensou por um segundo. O que diria? Que há 16 meses Butler dominou um esquadrão de resgate da Liga de Elite da Polícia do povo das fadas e pegou material de alta tecnologia? E que depois ele, Artemis, tinha apanhado os componentes e construído essa caixa maravilhosa? Dificilmente.

— Só vamos dizer que eu sou um garoto muito inteligente, Sr. Spiro.

Os olhos de Spiro se estreitaram.

— Talvez não tão inteligente quanto quer que nós pensemos. Quero uma demonstração.

— E justo. O senhor tem um celular?

— Naturalmente. — Spiro pôs o celular na mesa. Era o último modelo da Fission Chips.

— Imagino que seja seguro, não é?

Spiro assentiu com arrogância.

— Criptografia de quinhentos bits. O melhor de sua classe. Você não vai entrar no Fission 400 sem ter um código.

— Veremos.

Artemis apontou o sensor para o celular. A tela mostrou instantaneamente uma imagem do interior do aparelho.

— Baixar? — perguntou uma voz metálica do alto-falante.

— Afirmativo.

Em menos de um segundo o serviço estava feito.

— Download completo — disse a caixa, com um leve tom de presunção.

Spiro ficou pasmo.

— Não acredito. Esse sistema custou vinte milhões de dólares.

— Não vale nada — disse Artemis, mostrando a tela. — Gostaria de ligar para casa? Ou talvez movimentar algum dinheiro? O senhor realmente não deveria manter os números de suas contas bancárias num sim card.

O americano pensou durante vários minutos.

— É um truque — declarou finalmente. — Você devia saber sobre o meu telefone. De algum modo, não sei como, você teve acesso a ele antes.

— Isso é lógico — admitiu Artemis. — É o que eu suspeitaria. Diga que teste quer fazer.

Spiro olhou o restaurante em volta, com os dedos tamborilando na mesa.

— Ali — disse finalmente, apontando para uma prateleira com um vídeo acima do balcão. — Bote uma daquelas fitas para tocar.

— Só isso?

— Vai servir, para começo.

Arno Bronco fez um estardalhaço examinando as fitas, até escolher uma sem etiqueta. Bateu com ela na mesa, fazendo os talheres de prata decorada subirem mais de um centímetro no ar.

Artemis resistiu à ânsia de revirar os olhos e pôs a caixa vermelha diretamente sobre a fita.

Uma imagem do interior do cassete apareceu na minúscula tela de plasma.

— Baixar? — perguntou a caixa. Artemis assentiu.

— Baixar, compensar e tocar.

De novo a operação estava terminada em menos de um segundo. Um velho episódio de uma telenovela inglesa saltou para a vida.

— Qualidade de DVD — comentou Artemis. — Independentemente do material, o Cubo V vai compensar.

— O o quê?

— Cubo V. O nome que eu dei à minha caixinha. Meio óbvio, admito. Mas adequado. O cubo que vê tudo.

Spiro pegou o videocassete.

— Verifique — ordenou, jogando a fita para Arno Bronco. O guarda-costas louro oxigenado ligou a TV sobre o balcão, colocando a fita no aparelho de vídeo. A novela Rua da Coroação surgiu na tela. Era a mesma. A qualidade nem de longe era a mesma.

— Convencido? — perguntou Artemis.

O americano brincou com uma de suas muitas pulseiras.

— Quase. Um último teste. Eu tenho a sensação de que o governo está me monitorando. Você poderia verificar?

Artemis pensou um momento, depois segurou o onis-sensor perto da boca.

— Cubo, está vendo algum facho de vigilância concentrado neste prédio?

A máquina zumbiu durante um tempo.

— O feixe de íons mais próximo está a oitenta quilômetros a oeste, emanando do satélite americano com número de código ST1132P. Registrado para a Agência Central de Inteligência. Tempo estimado de chegada, oito minutos. Também há várias sondas da LEP ligadas a...

Artemis apertou o botão de mudo antes que o Cubo pudesse continuar. Obviamente os componentes do computador podiam captar também tecnologia dos Elementos de Baixo. Ele teria de remediar isso. Nas mãos erradas essa informação seria devastadora para a segurança do povo das fadas.

— Qual é o problema, garoto? A caixa ainda estava falando. O que é a LEP?

Artemis deu de ombros.

— Quem não paga, não leva, como dizem vocês, americanos. Um exemplo basta. Nada menos do que a CIA.

— A CIA — ofegou Spiro. — Eles suspeitam de que eu vendi segredos militares. Tiraram um dos satélites deles de órbita só para me rastrear.

— Ou talvez a mim — observou Artemis.

— Talvez você. Você está parecendo mais perigoso a cada segundo.

Arno Bronco deu um riso de desprezo. Butler ignorou. Um deles tinha de ser profissional. Spiro estalou os nós dos dedos, um hábito que Artemis detestava.

— Temos oito minutos, então vamos ao que interessa, garoto. Quanto quer pela caixa?

Artemis não estava prestando atenção, distraído pela informação sobre a LEP que o cubo quase tinha revelado. Num momento de descuido, quase havia exposto seus amigos subterrâneos exatamente ao tipo de homem que poderia abusar deles.

— Desculpe, o que o senhor disse?

— Eu perguntei quanto quer pela caixa.

— Em primeiro lugar, é um Cubo. E em segundo, não está à venda.

Jon Spiro respirou fundo, estremecendo.

— Não está à venda? Você me trouxe do outro lado do Atlântico para mostrar uma coisa que não vai me vender? O que está acontecendo aqui?

Butler envolveu com os dedos o cabo de uma pistola na cintura. A mão de Arno Bronco desapareceu às costas. A tensão se esticou mais um pouco.

Artemis entrelaçou os dedos das duas mãos.

— Sr. Spiro. Jon. Eu não sou um idiota completo. Percebo o valor do meu Cubo. Não existe dinheiro suficiente no mundo para pagar por esse objeto específico. O que quer que o senhor me desse, valeria mil por cento a mais em uma semana.

— Então qual é o trato, Fowl? — perguntou Spiro através dos dentes trincados. — O que você está oferecendo?

— Estou lhe oferecendo doze meses. Pelo preço certo, estou disposto a manter meu Cubo fora do mercado durante um ano.

Jon Spiro brincou com sua pulseira de identificação. Um presente de aniversário para si mesmo.

— Você vai esconder a tecnologia durante um ano?

— Correto. Isso deve lhe dar tempo suficiente para vender seus estoques antes que percam o valor e usar os lucros para comprar ações das Indústrias Fowl.

— As Indústrias Fowl não existem. Artemis deu um risinho.

— Vão existir.

Butler apertou o ombro de seu patrão. Não era boa idéia colocar um homem como Jon Spiro contra a parede.

Mas Spiro nem notou a provocação. Estava ocupado demais calculando, girando a pulseira como se fosse um rosário de orações.

— Qual é o seu preço? — perguntou enfim.

— Ouro. Uma tonelada — respondeu o herdeiro da propriedade Fowl.

— Isso é muito ouro. Artemis deu de ombros.

— Eu gosto de ouro. Não perde o valor. E, de qualquer modo, é uma pechincha comparado com o que esse acordo vai economizar para você.

Spiro pensou. Perto de seu ombro, Arno Bronco continuava encarando fixamente Butler. O guarda-costas dos Fowl piscava à vontade: no caso de um confronto, olhos secos só reduziriam sua vantagem. As disputas de olhar eram para amadores.

— Digamos que eu não goste dos seus termos — disse Jon Spiro. — Digamos que eu decida pegar seu pequeno artefato agora mesmo.

O peito de Arno Bronco se estufou mais um centímetro.

— Mesmo que consiga levar o Cubo — respondeu Artemis, sorrindo —, ele seria de pouco uso para você. A tecnologia está além de qualquer coisa que seus engenheiros já viram.

Spiro lhe deu um sorriso sem humor.

— Ah, tenho certeza de que eles poderão deduzir. Mesmo que demorem uns dois anos, não importaria para você. Não no lugar aonde você vai.

— Se eu for a algum lugar, os segredos do Cubo V irão comigo. Cada função dele é codificada aos meus padrões de voz. É um código bem inteligente.

Butler dobrou os joelhos um pouquinho, pronto para saltar.

— Aposto que poderíamos decifrar esse código. Eu tenho uma equipe infernal reunida na Fission Chips.

— Perdoe se não estou impressionado com sua equipe infernal. Até agora vocês estão se arrastando vários anos atrás da Phonetix.

Spiro saltou de pé. Não gostava daquela palavra com P. A Phonetix era a única empresa de comunicações cujo valor na bolsa era maior do que o da Fission Chips.

— Certo, garoto, você já se divertiu. Agora é a minha vez. Eu tenho de ir, antes que o facho do satélite chegue aqui. Mas vou deixar o Sr. Bronco. — Ele deu um tapa no ombro de seu guarda-costas. — Você sabe o que fazer.

Bronco assentiu. Sabia. Estava ansioso por isso.

Pela primeira vez desde o início da reunião, Artemis se esqueceu do almoço e se concentrou completamente no que acontecia. Isso não estava indo de acordo com o plano.

— Sr. Spiro. Não pode estar falando sério. Nós estamos num lugar público, rodeados por pessoas comuns. O seu empregado não pode achar que vai competir com Butler. Se insistir com essas ameaças ridículas, eu serei forçado a retirar a oferta e lançarei o Cubo V imediatamente.

Spiro pôs as mãos na mesa.

— Escute, garoto — sussurrou. — Eu gosto de você. Dentro de alguns anos você poderia ser exatamente como eu. Mas você já encostou uma arma na cabeça de alguém e puxou o gatilho?

Artemis não respondeu.

— Não? — grunhiu Spiro. — Acho que não. Algumas vezes só isso basta: coragem. E você não tem.

Artemis estava sem palavras. Uma coisa que só tinha acontecido duas vezes desde que fez cinco anos. Butler decidiu preencher o silêncio. Ameaças explícitas eram mais sua área.

— Sr. Spiro. Não tente blefar conosco. Bronco pode ser grande, mas eu sou capaz de parti-lo como um graveto. E depois disso não haverá ninguém entre nós. E, acredite na minha palavra, o senhor não quer isso.

O sorriso de Spiro se espalhou sobre seus dentes manchados de nicotina como uma poça de melado.

— Ah, eu não diria que não há ninguém entre nós.

Butler teve aquela sensação desagradável. A que se tem quando há uma dúzia de miras a laser brincando sobre seu peito. Eles tinham sofrido uma emboscada. De algum modo Spiro havia sido mais esperto do que Artemis.

— Ei, Fowl? — disse o americano. — Por que será que seu almoço está demorando tanto?

Foi nesse momento que Artemis percebeu o tamanho da encrenca.

Tudo aconteceu num átimo. Spiro estalou os dedos e cada um dos clientes do En Fin sacou uma arma de dentro do casaco. A velha de oitenta anos subitamente pareceu muito mais ameaçadora com um revólver na mão ossuda. Dois garçons armados emergiram da cozinha usando metralhadoras de cabo dobrável. Butler nem teve tempo de respirar. Spiro derrubou o saleiro.

— Xeque-mate. O jogo é meu, garoto.

Artemis tentou se concentrar. Deveria haver uma saída. Sempre havia. Mas ela não surgia. Tinha sido ludibriado. Talvez fatalmente. Nenhum humano jamais havia sido mais esperto do que Artemis Fowl. Mas, afinal de contas, isso só precisava acontecer uma vez.

— Eu vou sair agora — continuou Spiro, enfiando o Cubo V no bolso — antes que o facho do satélite chegue, e os tais outros. Eu nunca ouvi falar dessa agência, a LER E assim que puser essa geringonça em funcionamento eles vão desejar nunca ter ouvido falar em mim. Foi divertido negociar com você.

No caminho para a porta, Spiro piscou para seu guarda-costas.

— Você tem seis minutos, Arno. Vai realizar um sonho, hein? Você vai ser o cara que apagou o grande Butler. — Ele se virou de novo para Artemis, incapaz de resistir a uma última gracinha.

— E, a propósito. Artemis não é nome de mulher? — E foi embora, entrando na turba multicultural de turistas na rua.

A velha senhora fechou a porta depois de ele sair. O clique ecoou pelo restaurante.

Artemis decidiu tomar a iniciativa.

— Bom, senhoras e senhores — falou, tentando não olhar para os olhos pretos dos canos das armas. — Tenho certeza de que podemos chegar a um acordo.

— Quieto, Artemis!

O cérebro de Artemis levou um tempo para processar o fato de que Butler tinha ordenado que ele silenciasse. Uma coisa impertinente demais.

— Perdão, mas...

Butler apertou a mão na boca do patrão.

— Quieto, Artemis. Essas pessoas são profissionais, não podemos barganhar com elas.

Bronco girou o crânio, estalando os tendões do pescoço.

— Isso mesmo, Butler. Estamos aqui para matar vocês. Assim que o Sr. Spiro recebeu o telefonema nós começamos a mandar gente para cá. Não acredito como você caiu nessa, cara. Você deve estar envelhecendo.

Butler também não podia acreditar. Houve um tempo em que teria tocaiado qualquer ponto de encontro durante uma semana, antes de dar autorização. Talvez estivesse mesmo ficando velho, mas havia uma chance excelente de não ficar mais velho ainda.

— Certo, Bronco — disse Butler, estendendo as mãos vazias diante do corpo. — Você e eu. Um contra um.

— Muito nobre. Esse é o seu código de honra asiático, suponho. Eu não tenho código. Se acha que vou me arriscar a que você saia daqui, está maluco. Este é um negócio sem complicações. Eu atiro em vocês. Vocês morrem. Nada de confronto, nada de duelo.

Bronco enfiou a mão preguiçosamente no cinto. Por que se apressar? Bastava um movimento da parte de Butler e uma dezena de balas acharia o alvo.

O cérebro de Artemis parecia fechado. O jorro usual de idéias estava seco. Eu vou morrer, pensou. Não acredito.

Butler estava dizendo alguma coisa. Artemis decidiu que deveria ouvir.

— Vamos levar a vida até Aquenaton voltar — disse o guarda-costas, enunciando claramente.

Bronco estava atarraxando um silenciador no cano de sua pistola de cerâmica.

— O que você disse? Que tipo de papo furado é esse? Não diga que o grande Butler está desmoronando? Espere até eu contar ao pessoal.

Mas a velha ficou pensativa.

— Até Aquenaton voltar... eu conheço isso.

Artemis também conhecia. Era praticamente todo o código verbal de detonação para a granada sônica do povo das fadas que estava magneticamente presa embaixo da mesa. Um dos pequenos equipamentos de segurança de Butler. Eles só precisavam de mais uma palavra e a granada explodiria, lançando uma sólida parede de som pelo prédio, explodindo cada janela e cada tímpano. Não haveria fumaça nem chamas, mas qualquer pessoa num raio de dez metros que não estivesse usando protetores de ouvido tinha uns cinco segundos antes que a dor fortíssima chegasse. Mais uma palavra.

A velha senhora coçou a cabeça com o cano do revólver.

— Vamos levar a vida até Aquenaton voltar? Eu lembro agora, as freiras ensinaram naquela escola. É um daqueles truques de memória. São as primeiras letras de... das cores do arco-íris!

Arco-íris. A última palavra. Artemis se lembrou — no último segundo — de afrouxar o maxilar. Se seus dentes estivessem trincados, as ondas sônicas iriam despedaçá-los como se fossem de açúcar cristalizado.

A granada detonou num choque de som comprimido, lançando instantaneamente onze pessoas para as extremidades mais distantes do salão, até fazerem contato com várias paredes. Os felizardos acertaram em divisórias e passaram direto por elas. Os azarados colidiram com paredes de blocos vazados. Coisas se quebraram. Mas não os blocos.

Artemis estava seguro no abraço de urso de Butler. O guarda-costas tinha se ancorado num portal sólido, envolvendo com os braços o garoto que veio voando. E eles tinham várias vantagens sobre os assassinos empregados por Spiro: os dentes estavam intactos, não sofriam de fraturas múltiplas, e as esponjas de filtro sônico tinham se lacrado, salvando os tímpanos da perfuração.

Butler examinou o restaurante. Todos os assassinos estavam no chão, apertando os ouvidos. Durante vários dias continuariam com os olhos vesgos. O mordomo sacou sua Sig Sauer de um coldre de ombro.

— Fique aqui — ordenou. — Vou verificar a cozinha.

Artemis sentou-se de novo em sua cadeira, respirando trêmulo várias vezes. Em volta era um caos de pó e gemidos. Mas, de novo, Butler os tinha salvado. Nem tudo estava perdido. Era até possível que pudessem pegar Spiro antes que ele deixasse o país. Butler tinha um contato na segurança do aeroporto de Heathrow: Sid Commons, um ex-Boina Verde com quem havia trabalhado como guarda-costas em Monte Cario.

Uma grande figura apareceu, bloqueando a luz do sol. Era Butler, voltando do reconhecimento. Artemis respirou fundo, sentindo-se estranhamente emocionado.

— Butler — começou ele. — Nós realmente temos de falar sobre seu salário...

Mas não era Butler. Era Arno Bronco. Tinha uma coisa em cada mão. Na direita, dois minúsculos cones de espuma amarela.

— Protetores de ouvido — cuspiu ele por entre os dentes quebrados. — Eu sempre uso antes de um tiroteio. É uma coisa boa, não é?

Na mão direita tinha uma pistola com silenciador.

— Você primeiro — disse ele. — Depois o macaco. Arno Bronco apontou a arma, mirou rapidamente e disparou.

 

MESMO que Artemis não pretendesse, a varredura do Cubo em busca de fachos de vigilância teria repercussões distantes. Os parâmetros de busca eram tão vagos que o Cubo lançou sondas no espaço profundo e, claro, no subsolo profundo.

Abaixo da superfície, a Liga de Elite da Polícia estava no limite de suas forças depois da recente revolução dos goblins. Três meses após a tentativa de golpe por parte dos goblins, a maioria dos protagonistas estava presa. Mas ainda havia bolsões isolados da tríade B'wa Kell percorrendo os túneis da cidade do Porto com lasers NarizMacio ilegais.

Cada policial disponível da LEP tinha sido convocado para ajudar na Operação Limpeza antes que a temporada de turismo começasse. A última coisa que o conselho municipal queria eram turistas gastando o ouro das férias em Atlantis porque a praça central para pedestres em Porto não era segura para se passear. Afinal de contas, o turismo respondia por dezoito por cento dos ganhos da capital.

A capitã Holly Short fora emprestada pelo Esquadrão de Reconhecimento. Em geral seu serviço era voar até a superfície atrás de criaturas que tivessem se aventurado acima do chão sem visto no passaporte. Se ao menos um renegado dos subterrâneos fosse capturado pelo Povo da Lama, Porto deixaria de ser seguro. Portanto, até que cada goblin pertencente às quadrilhas estivesse lambendo os olhos na instituição correcional do Pico do Uivo, os deveres de Holly eram os mesmos de cada policial da LEP: resposta rápida a qualquer alerta dos B'wa Kell.

Hoje estava escoltando quatro goblins arruaceiros para ser fichados na Delegacia Plaza. Eles tinham sido encontrados dormindo numa lanchonete que servia insetos, com a barriga distendida depois de uma noite de gulodice. Tinha sido uma sorte deles Holly ter chegado quando chegou, porque o anão dono da lanchonete estava a ponto de colocar os quatro escamosos na frigideira com gordura quente.

O companheiro de Holly na Operação Limpeza era o cabo Larva Kelp, irmão mais novo do famoso capitão Encrenca Kelp, um dos oficiais mais condecorados da LEP. Mas Larva não compartilhava da personalidade estóica do irmão.

— Eu arranquei a cutícula da unha quando algemei aquele último goblin — disse o policial mais jovem, mordendo o polegar.

— Dói um bocado — disse Holly, tentando parecer interessada.

Estavam indo por uma magnapista até a Delegacia Plaza, com os bandidos algemados na traseira do camburão. Mas não era um camburão de verdade. Os B'wa Kell tinham conseguido queimar tantos veículos da polícia durante sua curta revolução que a LEP foi forçada a requisitar qualquer coisa que tivesse motor e espaço atrás para alguns prisioneiros. Na verdade Holly estava pilotando um furgão de venda de comida com o símbolo da LEP, uma bolota de carvalho, pintada com spray na lateral. Os gnomos da garagem tinham simplesmente aparafusado a janela de serviço e retirado os fornos. Uma pena não terem conseguido tirar o cheiro.

Larva examinou o dedo machucado.

— Essas algemas têm pontas afiadas. Acho que vou fazer uma queixa formal.

Holly se concentrou na estrada, apesar de a magnapista guiar o carro por ela. Se Larva realmente fizesse uma queixa, não seria a primeira, nem mesmo a vigésima. O irmão mais novo de Encrenca achava defeito em tudo, menos em si mesmo. Neste caso estava completamente errado: não havia bordas afiadas nas algemas de perspex a vácuo. Se houvesse, um goblin poderia pensar em fazer um buraco na outra luva e deixar o oxigênio chegar à sua mão, e ninguém queria goblins lançando bolas de fogo na traseira de um veículo.

— Sei que parece mesquinho fazer uma queixa formal por causa de uma cutícula, mas ninguém pode me acusar de ser mesquinho.

— Você! Mesquinho! Nem dá para pensar. Larva estufou o peito.

— Afinal de contas eu sou o único membro da LEP resgate Um a derrubar o humano, Butler.

Holly gemeu alto. Esperava com fervor que isso dissuadisse Larva de contar de novo sua história da guerra contra Artemis Fowl. A cada vez ela ficava mais longa e mais fantástica. Na realidade Butler o havia deixado ir, como um pescador solta uma cocoroca.

Mas Larva não pegaria a deixa.

— Eu me lembro bem — começou ele, melodramaticamente. — Era uma noite escura.

E, como se suas palavras tivessem uma magia imensurável, cada luz na cidade se apagou.

Não somente isso, mas a energia da magnapista pifou, deixando-os parados no meio de uma auto-estrada imóvel.

— Eu não fiz isso, fiz? — sussurrou Larva.

Holly não respondeu, já saindo pela porta do furgão. No alto, as tiras solares que imitavam a luz da superfície estavam desbotando até o preto. Nos últimos momentos de meia-luz, Holly forçou a vista para o Túnel Norte e, sem dúvida, a porta estava baixando, com luzes de emergência girando na borda inferior. Sessenta metros de aço sólido separando Porto do mundo exterior. Portas semelhantes baixavam em arcos estratégicos por toda a cidade. Apagão. Só havia três motivos para o

Conselho iniciar um apagão em toda a cidade: enchente, quarentena ou descoberta por parte dos humanos.

Holly olhou em volta. Ninguém se afogando; ninguém doente. Então o Povo da Lama ia chegar. Finalmente o pior pesadelo de qualquer membro do povo das fadas estava se concretizando.

Luzes de emergência se acenderam em cima, e o brilho branco e suave das tiras solares foi substituído por um laranja fantasmagórico. Os veículos oficiais receberiam um jorro de energia da magnapista, o bastante para chegarem à garagem mais próxima.

Os cidadãos comuns não tinham tanta sorte; teriam de andar. Centenas saíram dos automóveis, amedrontados demais para qualquer protesto. Isso viria mais tarde.

— Capitã Short! Holly!

Era Larva. Sem dúvida ele faria uma queixa formal a alguém.

— Cabo — disse ela, virando-se de novo para o veículo. — Não é hora de entrar em pânico. Precisamos dar exemplo...

O sermão parou em sua garganta quando ela viu o que estava acontecendo com o furgão. Todos os veículos da LEP já deviam ter recebido o jorro regulamentar de dez minutos de energia da magnapista, para levá-los com sua carga até a segurança. Além disso, essa energia manteria o vácuo das algemas de perspex. Mas claro, como eles não estavam usando um veículo oficial da LEP, não tinham recebido a energia de emergência — coisa que os goblins obviamente perceberam, porque estavam tentando sair do furgão usando fogo.

Larva saiu cambaleando da cabine, com o capacete enegrecido de fuligem.

— Eles derreteram as algemas e começaram a explodir as portas — ofegou ele, recuando para uma distância segura.

Goblins. A piadinha da evolução. Pegue as criaturas mais imbecis do planeta e lhes dê a capacidade de conjurar fogo. Se os goblins não parassem de lançar bolas de fogo contra o interior reforçado do furgão, logo estariam envoltos em metal derretido. Um belo modo de se acabar, mesmo que você fosse à prova de fogo.

Holly ativou o amplificador em seu capacete da LER

— Vocês aí no furgão. Cessar fogo. O veículo vai desmoronar e vocês vão ficar presos.

Durante vários instantes a fumaça saiu pelas aberturas. Então o veículo se assentou sobre os eixos. Um rosto apareceu na grade, a língua bífida passando pelo aramado.

— Acha que a gente é idiota, elfo? A gente vai queimar tudo e passar por essa pilha de lixo.

Holly chegou mais perto, aumentando o volume dos alto-falantes.

— Escute, goblin. Vocês são idiotas, vamos simplesmente aceitar isso e ir em frente. Se continuarem a encher o veículo com bolas de fogo, o teto vai derreter e cair em cima de vocês como balas de uma arma humana. Vocês podem ser à prova de fogo, mas são à prova de balas?

O goblin lambeu os olhos sem pálpebras, pensando.

— Tá mentindo, elfo! A gente vai abrir um buraco nessa prisão. Depois vai ser você.

Os painéis do furgão começaram a se amassar e sacudir enquanto os goblins renovavam o ataque.

— Não se preocupe — disse Larva, de uma distância segura. — Os extintores vão acabar com eles.

— Acabariam — corrigiu Holly— se não estivessem ligados à grade de energia central, que foi desligada.

Um furgão destinado a preparar comida, como esse, teria de cumprir os regulamentos mais rígidos antes de pôr uma roda magnética na pista, neste caso, vários extintores a base de espuma, que poderiam submergir todo o interior em espuma de retardamento de chamas numa questão de segundos. O interessante da espuma de retardamento de chamas é que ela endurecia em contato com o ar, mas o que não era muito interessante era que o interruptor estava ligado à pista magnética. Sem energia não havia espuma.

Holly sacou sua Neutrino 2000 do coldre.

— Eu mesma vou ter de acionar esse interruptor.

A capitã Short lacrou seu capacete e subiu na cabine do furgão. Evitou ao máximo possível tocar no metal, porque mesmo que os microfilamentos de seu macacão da LEP fossem projetados para dispersar o calor extra, nem sempre eles faziam o que eram projetados para fazer.

Os goblins estavam deitados de costas, lançando bola de fogo após bola de fogo contra o teto.

— Parem com isso! — ordenou ela, apontando o cano de sua arma laser através da tela de arame.

Três dos goblins a ignoraram. Um, possivelmente o líder, virou o rosto escamoso para a grade. Holly viu que ele tinha tatuagens nos globos oculares. Esse ato de suprema estupidez provavelmente lhe teria garantido uma promoção, se a B'wa Kell não tivesse sido debandada com eficácia.

— Você não vai poder acertar em todos nós, elfo — disse ele, com fumaça saindo da boca e das narinas fendidas. — Depois um de nós pega você.

O goblin estava certo, mesmo não sabendo por quê. De repente Holly se lembrou de que não podia disparar durante um apagão. Os regulamentos diziam que não haveria jorros de energia sem escudos, para o caso de Porto estar sendo sondada.

Sua hesitação foi a prova de que o goblin precisava.

— Eu sabia! — grasnou ele, lançando uma bola de fogo casual contra o visor de Holly. Por cima da cabeça dos goblins, o teto afundava perigosamente. Mais alguns segundos e cairia.

Holly tirou um dardo preso a uma corda no cinto, aparafusando-o no atirador acima do cano principal da Neutrino. O atirador era acionado por mola, como uma arma de lanças antiquada, e não soltaria um jorro de calor: nada que alarmasse sensores.

O goblin estava achando muito divertido, como costuma acontecer com os goblins logo antes de ser presos, o que explica por que tantos são presos.

— Um dardo? Você vai matar a gente com alfinetadas, elfo? Holly mirou uma trava que se projetava do bocal do extintor de espuma nos fundos do furgão.

— Por favor, fiquem quietos — disse ela, e lançou o dardo. Ele voou por cima da cabeça do goblin, penetrando entre as hastes do prendedor do bocal; a corda do gancho se estendeu por todo o interior do furgão.

— Errou! — disse o goblin, balançando a língua bifurcada. Era uma evidência da estupidez do goblin o fato de que ele podia estar preso num veículo se derretendo durante um apagão, com uma policial da LEP atirando contra ele, e ainda assim achar que estava em vantagem.

— Eu mandei você ficar quieto! — disse Holly, puxando com força a corda e soltando a trava.

Oitocentos quilos de espuma de extintor jorraram do bico difusor a mais de trezentos quilômetros por hora. É desnecessário dizer que todas as bolas de fogo se apagaram. Os goblins foram empurrados para baixo pela força da espuma que já ia se endurecendo. O líder foi pressionado com tanta força contra a grade que seus olhos tatuados ficaram facilmente legíveis. Um deles dizia "Papai", e o outro "Mamai". Erro de grafia, mas ele provavelmente não tinha idéia disso.

— Ai — disse ele, mais de incredulidade do que dor. Não disse mais nada porque sua boca estava cheia de espuma se solidificando.

— Não se preocupe — avisou Holly. — A espuma é porosa, assim vocês vão poder respirar, mas também é completamente à prova de fogo, então boa sorte na tentativa de abrir caminho queimando tudo.

Larva ainda estava examinando sua cutícula quando Holly saiu do furgão. Ela tirou o capacete, limpando a fuligem do visor com a manga do macacão. O capacete deveria ser antiaderente; talvez ela devesse mandá-lo para colocarem outra camada protetora.

— Tudo bem? — perguntou Larva.

— Tudo, cabo. Está tudo bem. E não graças a você. Larva teve a audácia de parecer ofendido.

— Eu estava guardando o perímetro, capitã. Nem todos podemos ser heróis de ação.

Era típico do Larva, uma desculpa para cada momento. Ela cuidaria dele mais tarde. Agora era vital chegar à Delegacia Plaza e descobrir por que o Conselho tinha fechado a cidade.

— Acho que a gente deveria voltar ao QG — sugeriu Larva. — Os rapazes da inteligência talvez queiram me entrevistar, se os humanos estiverem invadindo.

— Acho que eu deveria voltar ao QG — disse Holly. — Você fique aqui, de olho nos suspeitos até a energia voltar. Acha que pode fazer isso? Ou está incapacitado demais com essa cutícula?

O cabelo castanho-avermelhado de Holly estava de pé, em pontas molhadas de suor, e seus olhos redondos amendoados desafiaram Larva a questionar.

— Não, Holly... capitã. Deixe comigo. Está tudo sob controle.

Duvido, pensou Holly, começando a correr para a Delegacia Plaza.

A cidade era um caos total. Todos os cidadãos estavam na rua olhando seus equipamentos desligados, incrédulos. Para alguns mais jovens, a perda dos celulares era demais para suportar. Deixavam-se cair nas ruas, soluçando baixinho.

A Delegacia Plaza estava apinhada de gente curiosa, como mariposas atraídas para a luz. Nesse caso, uma das únicas luzes acesas na cidade. Os hospitais e os veículos de emergência ainda teriam energia, mas, afora isso, o quartel-general da LEP era o único prédio do governo que funcionava.

Holly abriu caminho pela turba, entrando no saguão. As filas de serviço público desciam a escada e saíam pela porta. Hoje todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: o que aconteceu com a energia?

A mesma pergunta estava nos lábios de Holly quando entrou no gabinete das Crises, mas ficou quieta. A sala já estava cheia com os capitães da força policial, junto com os três comandantes regionais e todos os sete membros do Conselho.

— Aaah — disse o encarregado Cahartez. — A última capitã.

— Eu não recebi a energia de emergência — explicou Holly. — Estava num veículo não-regulamentar.

Cahartez ajustou seu chapéu cônico oficial.

— Não temos tempo para desculpas, capitã. O Sr. Potrus aqui estava adiando os informes até a sua chegada.

Holly ocupou seu lugar à mesa do capitão, ao lado de Encrenca Kelp.

— Larva está bem? — sussurrou ele.

— Está com uma cutícula arrancada. Encrenca revirou os olhos.

— Sem dúvida ele vai redigir uma queixa.

O centauro Potrus trotou pela porta, trazendo uma braçada de disquetes. Potrus era o gênio técnico da LEP, e suas inovações de segurança eram o principal motivo para os humanos ainda não terem descoberto o esconderijo subterrâneo do povo das fadas. Talvez isso estivesse para mudar.

O centauro carregou habilmente o material dos discos no sistema operacional, abrindo várias janelas numa tela de plasma do tamanho da parede. Vários algoritmos de aparência complicada e padrões de ondas apareceram na tela.

Ele pigarreou ruidosamente.

— Eu aconselhei o encarregado Cahartez a iniciar o apagão baseado nestas leituras.

O comandante Raiz, do Recon, sugou um charuto de fungo, apagado.

— Acho que estou falando por todo mundo nesta sala, Potrus, quando digo que só vejo linhas e rabiscos. Sem dúvida isso faz sentido para um pônei inteligente como você, mas o resto de nós vai precisar ouvir gnomês simples.

Potrus suspirou.

— Em termos simples. Realmente simples. Nós fomos pingados. Isso basta?

Bastava. A sala ressoou com um silêncio perplexo. Ser pingado era um velho termo naval, da época em que o "ping" do sonar era o método de detecção preferido. Ser pingado era a gíria para ser detectado. Alguém sabia que o povo das fadas estava lá embaixo.

Raiz foi o primeiro a recuperar a voz.

— Pingados. Quem nos pingou? Potrus deu de ombros.

— Não sei. Só durou alguns segundos. Não houve assinatura reconhecível, e não foi possível rastrear.

— O que eles captaram?

— Um bocado. Tudo do norte da Europa. Escópios, Sentinelas. Todas as nossas cam-câmeras. Baixaram informações de todas elas.

Isso era uma notícia catastrófica. Alguém ou alguma coisa sabia tudo sobre a vigilância do povo das fadas no norte da Europa, depois de apenas alguns segundos.

— Era humano? — perguntou Holly —, ou alienígena? Potrus apontou para uma representação digital do facho de detecção.

— Não posso dizer com certeza. Se for humano, é uma coisa totalmente nova. Isso veio do nada. Ninguém estava desenvolvendo uma tecnologia assim, que eu saiba. O que quer que seja, nos leu como a um livro aberto. Minhas criptografias de segurança se dobraram como se nem estivessem ali.

Cahartez tirou seu chapéu oficial, não mais preocupado com o protocolo.

— O que isso significa para o Povo?

— É difícil dizer. Há hipóteses para as melhores e piores situações possíveis. Nosso hóspede misterioso poderia saber tudo sobre nós sempre que quisesse, e fazer com nossa civilização o que quiser.

— E a melhor situação? — perguntou Encrenca. Potrus respirou fundo.

— Essa era a melhor situação.

O comandante Raiz chamou Holly para a sua sala. O lugar fedia a fumaça de charuto, apesar do purificador incrustado na mesa. Potrus já estava lá, com os dedos parecendo um borrão sobre o teclado do comandante.

— O sinal se originou de algum lugar em Londres — disse o centauro. — Nós só soubemos porque, por acaso, eu estava olhando para o monitor na hora. — Ele se afastou do teclado, balançando a cabeça. — Isso é incrível. É algum tipo de tecnologia híbrida. Quase como os nossos sistemas iônicos, mas não totalmente; só um pouquinho alterado.

— O como não é importante para nós agora — disse Raiz. — Eu estou preocupado é com o quem.

— O que eu posso fazer, senhor? — perguntou Holly. Raiz se levantou e foi até um mapa de Londres na tela de plasma na parede.

— Preciso que você pegue um kit de vigilância, vá lá para cima e espere. Se formos pingados de novo, quero alguém no lugar, pronto para agir. Nós não podemos gravar essa coisa, mas certamente podemos conseguir um visual do sinal. Assim que ele aparecer na tela, nós vamos lhe dar as coordenadas e você pode investigar.

Holly assentiu.

— Quando vai ser o próximo jorro quente?

Jorro quente era a gíria da LEP para as explosões de magma que os policiais do Recon usavam para ir até a superfície dentro de ovos de titânio. Os pilotos dos casulos se referiam a esse procedimento sem o uso de instrumentos de navegação como "Cavalgar o jorro quente".

— Estamos sem sorte — respondeu Potrus. — Não haverá nada nos tubos nos próximos dois dias. Você terá de pegar um transportador.

— E o apagão?

— Eu restaurei a energia para Stonehenge e nossos satélites. Teremos de arriscar; você precisa ir acima do solo e nós precisamos fazer contato. O futuro de nossa civilização depende disso.

Holly sentiu o peso da responsabilidade nos ombros. Ultimamente esse negócio de futuro de nossa civilização estava acontecendo cada vez mais.

 

A EXPLOSÃO sônica da granada de Butler tinha despedaçado a porta da cozinha, jogando longe os instrumentos de aço inoxidável como se fossem hastes de capim. O aquário tinha se despedaçado, deixando as pedras do piso escorregadias com a água, perspex e lagostas surpresas. Elas andavam em meio ao entulho com as garras levantadas.

Os funcionários do restaurante estavam no chão, amarrados e encharcados, mas vivos. Butler não os desamarrou. Não precisava de histeria agora. Haveria tempo para lidar com eles assim que todas as ameaças fossem neutralizadas.

Uma assassina se mexeu, suspensa na metade de uma divisória. O mordomo verificou os olhos dela. Estavam vesgos e desfocados. Nenhuma ameaça ali. Mesmo assim Butler enfiou no bolso a arma da velha senhora. Todo cuidado era pouco — uma coisa que ele vivia aprendendo de novo. Se Madame Ko pudesse ter visto o que aconteceu nessa tarde, certamente mandaria tirar com laser sua tatuagem de formatura.

A cozinha estava livre, mas alguma coisa continuava incomodando o guarda-costas. Seu sentido de soldado rangia como dois ossos partidos. De novo Butler voltou a Madame Ko, sua sensei da Academia. A função primária do guarda-costas é proteger seu superior. O superior não pode levar um tiro se você estiver na frente dele. Madame Ko sempre se referia aos patrões como superiores. A gente não se envolvia com os superiores.

Butler se perguntou por que exatamente esse ditado tinha-lhe ocorrido. Um dentre as centenas que Madame Ko havia cravado em seu cérebro, mas por que esse? Era óbvio. Ele tinha violado a primeira regra da proteção pessoal, deixando seu superior desguarnecido. A segunda regra, não desenvolva uma ligação emocional com o superior, também estava em frangalhos. Butler tinha se ligado tanto a Artemis que isso obviamente estava começando a afetar seu bom senso.

Podia ver Madame Ko diante dele, indefinível em sua roupa cáqui, aparentando para qualquer pessoa uma dona-de-casa japonesa comum. Mas quantas donas-de-casa, de qualquer nacionalidade, poderiam dar um golpe tão rápido que o ar sibilava? Você é uma desgraça, Butler. Uma desgraça para o seu nome. Seria melhor usar seus talentos conseguindo um trabalho como sapateiro. Seu superior já foi neutralizado.

Butler se movia como num sonho. O próprio ar parecia segurá-lo enquanto ele corria para a porta da cozinha. Sabia o que teria acontecido. Arno Bronco era um profissional. Vaidoso, talvez — um pecado mortal entre os guarda-costas —, mas mesmo assim profissional. Os profissionais sempre punham protetores de ouvido se houvesse algum perigo de tiroteio.

Os ladrilhos estavam escorregadios sob seus pés, mas Butler compensou se inclinando para a frente e apertando as pontas dos pés com solas de borracha contra a superfície. Seus tímpanos intactos captavam vibrações irregulares no restaurante. Conversa. Artemis estava falando com alguém. Arno Bronco, sem dúvida. Já era tarde demais.

Butler passou pela porta de serviço numa velocidade que teria envergonhado um corredor olímpico. Seu cérebro começou a calcular as probabilidades enquanto as imagens chegavam às retinas: Bronco prestes a disparar. Agora nada poderia ser feito com relação a isso. Havia apenas uma opção. Sem hesitar, Butler usou-a.

Na mão direita Bronco segurava uma pistola com silenciador.

— Você primeiro — disse ele. — Depois o macaco.

Arno Bronco levantou a arma, mirou rapidamente e disparou.

Butler veio de lugar nenhum. Pareceu preencher todo o salão, lançando-se no caminho da bala. De uma distância maior, o kevlar de seu colete à prova de bala poderia ter agüentado, mas à queima-roupa a bala coberta de Teflon furou o colete como um ferro quente através da neve. Ela penetrou no peito de Butler um centímetro abaixo do coração. Era um ferimento fatal. E dessa vez a capitã Short não estava ali para salvá-lo com magia do subterrâneo.

O próprio ímpeto do guarda-costas, combinado com a força da bala, fez Butler se chocar contra Artemis, prendendo-o no carrinho de sobremesas. Nenhuma parte do garoto era visível, a não ser um sapato Armani.

A respiração de Butler enfraqueceu e sua visão tinha sumido, mas ele ainda não estava morto. A eletricidade de seu cérebro estava acabando rapidamente, mas o guarda-costas se agarrava a um único pensamento: proteger o superior.

Arno Bronco ofegou surpreso, e Butler disparou seis tiros na direção do som. Ele ficaria desapontado com a mira, se pudesse ver. Mas uma das balas acertou o alvo, roçando a têmpora de Bronco. A inconsciência foi imediata, a concussão inevitável. Arno Bronco se juntou ao resto de sua equipe, no chão.

Nada mais podia ser feito. Estivesse Artemis seguro ou não. Se não estivesse, Butler não estava em condições de cumprir os termos de seu contrato. Esse pensamento trouxe uma calma tremenda. Chega de responsabilidade. Apenas sua vida para viver, pelo menos durante alguns segundos. E, de qualquer modo, Artemis não era somente um superior. Ele fazia parte da vida do guarda-costas. Era seu único amigo de verdade. Madame Ko podia não gostar dessa atitude, mas não havia muito que pudesse fazer agora. Não havia muito que qualquer pessoa pudesse fazer.

Artemis nunca tinha gostado de sobremesas. No entanto se viu submerso em coberturas, tortas de queijo e pavlova. Seu terno devia estar totalmente destruído. Claro, o cérebro de Artemis apenas vomitava esses fatos para não pensar no que tinha acontecido. Mas um peso morto de 90 quilos é uma coisa difícil de ignorar.

Felizmente, para Artemis, o impacto de Butler tinha-o empurrado através da segunda prateleira do carrinho, enquanto o guarda-costas permanecia na parte dos sorvetes, em cima. Pelo que Artemis tinha notado, a torta Floresta Negra havia amortecido o impacto o bastante para evitar um sério dano interno. Mesmo assim não tinha dúvida de que seria necessária uma visita ao quiroprático. Possivelmente para Butler também, se bem que o sujeito tinha uma saúde de troll.

Artemis lutou para sair de sob o mordomo. A cada movimento, malignas bombas de creme explodiam em sua direção.

— Realmente, Butler — resmungou o adolescente. — Vou começar a escolher com mais cuidado com quem faço negócios. Mal se passa um dia sem que a gente seja vítima de alguma trama.

Artemis ficou aliviado ao ver Arno Bronco inconsciente no chão do restaurante.

— Outro vilão despachado. Bom tiro, Butler, como sempre. E mais uma coisa. Decidi usar colete à prova de balas em todas as próximas reuniões. Isso deve tornar seu serviço um pouco mais fácil, não?

Foi nesse ponto que Artemis notou a camisa de Butler. A visão tirou o ar de seu peito como o golpe de uma marreta invisível. Não o buraco no material, e sim o sangue que escorria dele.

— Butler, você foi ferido. Levou um tiro. Mas e o kevlar? O guarda-costas não respondeu, nem precisava. Artemis conhecia ciências melhor do que a maioria dos que exerciam a medicina nuclear. Para dizer a verdade, freqüentemente punha na Internet palestras sob o pseudônimo de Emmsey Squire. Obviamente o ímpeto da bala tinha sido grande demais para o colete agüentar. Provavelmente era uma bala coberta de Teflon, para penetração extra.

Uma boa parte de Artemis queria envolver o guarda-costas com os braços, como faria com um irmão. Mas ele reprimiu esse instinto. Agora estava na hora de pensar rápido.

Butler interrompeu seu fluxo de pensamentos.

— Artemis... é você? — perguntou ele, as palavras saindo em jorros curtos.

— Sim, sou eu — respondeu Artemis com a voz trêmula.

— Não se preocupe. Juliet vai proteger você. Você vai ficar bem.

— Não fale, Butler. Fique parado. O ferimento não é grave.

Butler tossiu. Era o mais perto que podia chegar de uma gargalhada.

— Está bem, é grave. Mas eu vou pensar em alguma coisa. Só fique parado.

Com os últimos vestígios de força, Butler levantou a mão.

— Adeus, Artemis. Meu amigo.

Artemis segurou a mão. Agora as lágrimas estavam correndo. Sem controle.

— Adeus, Butler.

Os olhos do eurasiano estavam calmos, mesmo sem ver.

— Artemis, me chame... de Domovoi.

O nome disse duas coisas a Artemis. Primeiro, que seu amigo de toda a vida tinha recebido o mesmo nome de um espírito guardião eslavo. Segundo, que os formandos da Academia de Madame Ko eram instruídos a jamais revelar seus primeiros nomes aos superiores. Isso ajudava a manter as coisas num tom impessoal. Butler jamais violaria essa regra... a não ser que ela não importasse mais.

— Adeus, Domovoi — soluçou o garoto. — Adeus, meu amigo.

A mão caiu. Butler tinha partido.

— Não! — gritou Artemis, cambaleando para trás.

Não estava certo. Não era assim que as coisas deveriam terminar. Por algum motivo ele sempre tinha imaginado que os dois morreriam juntos — enfrentando perigos intransponíveis em algum lugar exótico. Na borda do Vesúvio reativado, talvez, ou nas margens do poderoso Ganges. Mas juntos, como amigos. Depois de tudo por que tinham passado, Butler simplesmente não podia ser derrotado nas mãos de um capanga de segunda classe metido a besta.

Butler quase tinha morrido antes. Há dois anos fora machucado por um troll dos túneis profundos abaixo da Cidade do Porto. Holly Short salvou-o, usando sua magia das fadas.

Mas agora não havia criaturas dos subterrâneos por perto para salvar o guarda-costas. Aqui o tempo era inimigo. Se Artemis tivesse mais tempo, poderia deduzir um modo de contatar a LEP e persuadir Holly a usar sua magia de novo. Mas o tempo estava acabando. Talvez Butler tivesse quatro minutos antes que seu cérebro se desligasse. Não era o suficiente, nem mesmo para um intelecto como o de Artemis — ele precisava ganhar um pouco de tempo. Ou roubar.

Pense, garoto, pense. Use o que a situação oferece. Artemis fechou a fonte de lágrimas. Estava num restaurante, um restaurante de peixes. Inútil! Não adiantava! Talvez numa instituição médica ele pudesse fazer alguma coisa. Mesmo que tivesse os instrumentos adequados, ainda não havia terminado seus estudos de medicina. De qualquer modo era tarde demais para uma cirurgia convencional — a não ser que houvesse um método de transplante que durasse menos de quatro minutos.

Os segundos estavam tiquetaqueando. Artemis ia ficando com raiva de si mesmo. O tempo estava contra eles. O tempo era o inimigo. O tempo precisava ser parado. A idéia saltou em seu cérebro num clarão de neurônios. Talvez ele não pudesse parar o tempo, mas podia interromper a passagem de Butler através dele. O processo era arriscado, certamente, mas era a única chance que tinham.

Soltou com o pé o freio do carrinho de sobremesas e começou a empurrá-lo para a cozinha. Teve de parar várias vezes para arrastar para fora do caminho do veículo os assassinos que gemiam.

Os carros de emergência estavam se aproximando, vindo por Knightsbridge. Obviamente a granada sônica tinha atraído atenção. Restavam apenas instantes até que ele tivesse de inventar alguma história plausível para as autoridades... Melhor não ficarem ali... As digitais não seriam problema, já que o restaurante teria dezenas de fregueses. Só precisava sair dali antes que os melhores policiais de Londres chegassem.

A cozinha era toda de aço inoxidável. Bancadas, coifas e superfícies de trabalho estavam cobertas de coisas que tinham caído com a explosão da granada sônica. Peixes se sacudiam na pia, crustáceos andavam pelos ladrilhos e caviar beluga pingava do teto.

Ali! Nos fundos, uma fileira de freezers, essenciais em qualquer restaurante de frutos do mar. Artemis empurrou o carrinho com o ombro, guiando-o para os fundos da cozinha.

O maior freezer era de parede, do tipo que costuma ser visto em restaurantes. Artemis puxou a gaveta, tirando rapidamente o salmão, os linguados e badejos incrustados nos pedaços de gelo.

Criogenia. Era a única chance. A ciência de congelar um corpo até a medicina ter evoluído o suficiente para revivê-lo. Em geral descartada pela comunidade médica, mesmo assim ganhava milhões por ano dos espólios dos ricos excêntricos que precisavam de mais do que uma vida para gastar seu dinheiro. Em geral as câmaras de criogenia eram construídas com especificações exatas, mas agora não havia tempo para os padrões habituais de Artemis. Esse freezer teria de servir como solução temporária. Era imperativo que a cabeça de Butler fosse resfriada para preservar as células do cérebro. Enquanto as funções cerebrais estivessem intactas, teoricamente ele poderia ser ressuscitado, mesmo que não houvesse batimentos cardíacos.

Artemis manobrou o carrinho até ele estar acima do freezer aberto; então, com a ajuda de uma bandeja de prata, baixou o corpo de Butler para o gelo que soltava vapor. O lugar era apertado, mas o guarda-costas coube com apenas uma pequena dobra das pernas. Artemis jogou gelo solto sobre o amigo, e então ajustou o termostato para quatro graus abaixo de zero, para evitar danos nos tecidos. O rosto de Butler mal era visível sob uma camada de gelo.

— Eu volto — disse o garoto. — Durma bem.

Agora as sirenes estavam próximas. Artemis ouviu o guincho de pneus.

— Espere aí, Domovoi — sussurrou ele, fechando a gaveta do freezer.

Artemis saiu pela porta dos fundos, misturando-se à multidão de moradores locais e turistas. A polícia colocaria alguém fotografando os espectadores, por isso ele não se demorou junto ao cordão de isolamento, nem mesmo olhou para trás, para o restaurante. Em vez disso foi até a Harrods e achou uma mesa no café da galeria.

Assim que garantiu à garçonete que não estava procurando sua mãe, e mostrou dinheiro suficiente para pagar pela xícara de chá Earl Grey, Artemis pegou o celular, escolhendo um número no menu de discagem rápida.

Um homem atendeu ao segundo toque.

— Alô. Seja rápido, quem quer que seja. Eu estou muito ocupado.

O homem era o detetive inspetor Justin Barre, da Nova Scotland Yard. A voz grave de Barre fora causada por uma faca de caça passando pela garganta durante uma luta de bar nos anos 90. Se Butler não estivesse à mão para estancar o sangue, Justin Barre nunca teria ido além de sargento. Estava na hora de cobrar a dívida.

— Detetive inspetor Barre. Aqui é Artemis Fowl.

— Artemis, como vai? E como vai meu velho parceiro, Butler?

Artemis franziu a testa.

— Não muito bem. Ele precisa de um favor.

— Qualquer coisa para o grandão. O que eu posso fazer?

— Você ouviu alguma coisa sobre um distúrbio em Knightsbridge?

Houve uma pausa. Artemis ouviu um papel ser rasgado enquanto um fax saía da máquina.

— Sim, acaba de chegar. Duas janelas foram despedaçadas num restaurante. Nada grave. Alguns turistas estão meio em choque. Os relatórios preliminares falam que foi algum tipo de tremor de terra localizado, se é que dá para acreditar. Nós estamos com dois carros lá agora mesmo. Não me diga que Butler estava por trás disso?

Artemis respirou fundo.

— Preciso de que você mantenha seus homens longe dos freezers.

— É um pedido estranho, Artemis. O que há no freezer que eu não deveria ver?

— Nada ilegal. Acredite quando eu digo que é questão de vida ou morte para Butler.

Barre não hesitou.

— Isso não está exatamente na minha jurisdição, mas considere feito. Você precisa tirar de dentro do freezer o que eu não deveria ver?

O policial tinha lido sua mente.

— O mais rápido possível. Só preciso de dois minutos. Barre pensou.

— Certo. Vamos sincronizar os horários. A equipe de perícia vai estar lá durante umas duas horas. Não posso fazer nada com relação a isso. Mas exatamente às seis e meia posso garantir que não haverá ninguém de serviço. Você tem cinco minutos.

— Vai ser mais do que suficiente.

— Bom. E diga ao grandão que estamos quites. Artemis manteve a voz firme.

— Sim, detetive inspetor. Direi a ele. Se tiver oportunidade, pensou.

 

INSTITUTO DE CRIOGENIA IDADE DO GELO,

PERTO DA HARLEY STREET, LONDRES

O Instituto de Criogenia Idade do Gelo não ficava realmente na Harley Street de Londres. Tecnicamente ele ficava enfiado na Dickens Lane, um beco secundário na parte sul do bulevar famoso pelos serviços médicos. Mas isso não impedia que a diretora, uma tal de Dra. Constance Lane, pusesse Harley Street em todos os papéis timbrados do Instituto Idade do Gelo. Não se pode comprar credibilidade de uma hora para outra. Quando as classes altas viam aquelas palavras mágicas num cartão de visita, ficavam fora de si, doidas para congelar seus corpos frágeis.

Artemis Fowl não se impressionava tão facilmente. Mas, afinal de contas, não tinha muita opção; o Idade do Gelo era um dos três centros de criogenia da cidade, e o único com unidades livres. Apesar de ter considerado o letreiro de néon um pouco demais: "Casulos para Alugar." Francamente.

O prédio em si bastou para Artemis se retorcer. A fachada era forrada de alumínio escovado, obviamente projetada para parecer uma espaçonave, e as portas eram deslizantes, do tipo Jornada nas estrelas. Onde estava a cultura? Onde estava a arte? Como uma monstruosidade daquela tinha permissão de existir na Londres histórica?

Uma enfermeira, com uniforme branco e chapéu de três pontas, cuidava da recepção. Artemis duvidou de que ela fosse enfermeira de verdade — alguma coisa a ver com o cigarro entre suas unhas falsas.

— Com licença, senhorita?

A enfermeira mal ergueu os olhos de sua revista de fofocas.

— Sim? Está procurando alguém? Artemis apertou os punhos às costas.

— Sim, gostaria de falar com a Dra. Lane. Ela é a médica-chefe, não é?

A enfermeira amassou seu cigarro num cinzeiro que transbordava.

— Não é outro trabalho escolar, é? A Dra. Lane diz que não quer saber de mais deveres de casa.

— Não. Não é outro trabalho escolar.

— Você não é advogado, é? — perguntou a enfermeira cheia de suspeitas. — Um daqueles gênios que recebe um diploma enquanto ainda usa fraldas?

Artemis suspirou.

— Um gênio, sim. Advogado, nem de longe. Sou um cliente, senhorita.

E de repente a enfermeira era puro charme.

— Ah, um cliente! Por que não disse? Vou levá-lo agora mesmo. Gostaria de um chá, café, ou talvez alguma coisa mais forte?

— Eu tenho 13 anos, senhorita.

— Um suco?

— Chá estaria ótimo. Earl Grey, se tiver. Sem açúcar, obviamente; açúcar me deixa hiperativo.

A enfermeira estava preparada para aceitar sarcasmo de um cliente, e levou Artemis até uma sala onde o estilo, de novo, falava da era espacial. Um monte de veludo brilhante e espelhos refletindo até a eternidade.

Artemis tinha terminado uma xícara de algo que definitivamente não era chá Earl Grey quando a porta da Dra. Lane se abriu.

— Entre — disse uma mulher alta, em dúvida.

— Devo ir andando? Ou a senhora vai me teleportar? As paredes da sala eram cheias de molduras. De um lado estavam diplomas e certificados da doutora. Artemis suspeitou de que muitos daqueles certificados poderiam ser obtidos num fim de semana. Ao longo da parede estavam várias fotografias. Acima delas havia a legenda "O Amor Está Dormindo". Nesse momento Artemis quase foi embora, mas estava desesperado. A Dra. Lane sentou-se atrás da mesa. Era uma mulher muito glamourosa, com cabelos ruivos espalhafatosos e dedos compridos de artista. Seu jaleco era Dior. Até o sorriso de Constance Lane era perfeito — perfeito demais. Artemis olhou mais de perto e percebeu que o rosto inteiro era a obra de um cirurgião plástico. Obviamente toda a vida daquela mulher tinha a ver com enganar o tempo. Ele viera ao lugar certo.

— Bom, meu jovem, Tracy disse que você quer se tornar um cliente? — A doutora tentou sorrir, mas o esticamento fez seu rosto brilhar como um balão de aniversário.

— Não pessoalmente. Mas gostaria de alugar uma de suas unidades. A curto prazo.

Constance Lane pegou na gaveta um panfleto da empresa, circulando alguns números em vermelho.

— Nossos valores são bastante elevados. Artemis nem mesmo olhou os números.

— Dinheiro não é problema. Podemos fazer uma transferência eletrônica agora mesmo, de meu banco na Suíça. Dentro de cinco minutos a senhora poderá ter cem mil libras em sua conta pessoal. Só preciso de uma unidade para uma única noite.

A quantia era impressionante. Constance pensou em todas as esticadelas e costuras que aquele dinheiro poderia pagar. Mas continuou relutante...

— Em geral os menores de idade não têm permissão de colocar parentes em nossas câmaras. É a lei.

Artemis se inclinou para a frente.

— Dra. Lane. Constance. O que eu estou fazendo aqui não é exatamente legal, mas ninguém vai se machucar. Basta uma noite e a senhora será uma mulher rica. Nesta mesma hora, amanhã, será como se eu nunca tivesse vindo aqui. Nenhum corpo, nenhuma reclamação.

A mão da doutora passou pela linha do maxilar.

— Uma noite?

— Só uma. Você nem saberá que eu estive aqui. Constance pegou um espelho de mão na gaveta da mesa, examinando atentamente o próprio reflexo.

— Ligue para o seu banco — disse ela.

 

Os túneis de transporte da LEP emergiam no sul da Inglaterra. Um em Londres propriamente dita, mas esse estava fechado ao público devido ao fato de que o Chelsea Football Club tinha construído sua sede quinhentos metros acima do terminal.

O outro terminal ficava em Wiltshire, perto do que os humanos chamavam de Stonehenge. O Povo da Lama tinha várias teorias para a origem daquela estrutura. Iam de um espaço-porto a um centro de culto pagão. A verdade era muito menos glamourosa. Stonehenge tinha sido um local de venda de comida baseada em pão chato. Ou, em termos humanos, uma pizzaria.

Um gnomo chamado Bog tinha percebido o enorme número de turistas que esqueciam de levar sanduíches nos passeios acima do chão, por isso montou uma loja ao lado do terminal. Era um estabelecimento bacana. Você chegava em seu veículo até uma das janelas, dizia as coberturas prediletas e dez minutos depois estava enchendo a pança. Claro, Bog teve de mudar sua loja para baixo do chão assim que os seres humanos começaram a falar usando frases inteiras. E, de qualquer modo, todo aquele queijo estava deixando o solo empapado. Duas janelas de serviço tinham até mesmo desmoronado.

Era difícil para os civis do povo das fadas conseguir vistos para visitar Stonehenge por causa da atividade constante na superfície. Afinal de contas, os hippies viam criaturas das fadas todo dia e isso nunca chegava às primeiras páginas. Como oficial da polícia, Holly não tinha problema de visto; bastava mostrar o distintivo do Recon para abrir um buraco direto até a superfície.

Mas ser oficial do Recon não ajudava se não houvesse uma explosão de magma programada. E o poço de Stonehenge estivera adormecido durante mais de três séculos. Nenhuma fagulha. Na ausência de um jorro quente para cavalgar, Holly foi forçada a viajar num transporte comercial.

O primeiro transporte disponível estava lotado, mas felizmente houve um cancelamento de última hora, por isso Holly não foi obrigada a expulsar um passageiro.

O transporte era um cruzador de luxo, de cinqüenta lugares. Tinha sido especialmente encomendado pela Irmandade de Bog para visitar o local de seu patrocinador. Aquelas criaturas, na maioria gnomos, dedicavam a vida à pizza, e a cada ano, no aniversário do primeiro dia de Bog nos negócios, eles alugavam um transporte e iam fazer piquenique acima do chão. O piquenique consistia em pizza, cerveja de tubérculo e sorvete sabor pizza. Desnecessário dizer que eles não tiravam seus bonés de borracha em forma de pizza durante o dia inteiro.

Assim, durante 67 minutos, Holly sentou-se espremida entre dois gnomos que engoliam cerveja cantando a canção da pizza:

Pizza, pizza Encha a sua pança, Quanto mais grossa a massa Melhor é a comilança!

Eram 114 estrofes. E não ia ficando melhor. Holly nunca tinha se sentido tão feliz ao ver as luzes de atracamento em Stonehenge.

O terminal em si era bastante amplo, com três cabines de liberação de vistos com três pistas, complexo de diversões e uma free-shop. A última loucura em suvenires era um boneco de Homem da Lama hippie que dizia; "Paz, cara", quando você apertava a barriga dele.

Holly abriu caminho pela fila de clientes mostrando o distintivo, e pegou um elevador para a superfície. Tinha ficado mais fácil sair em Stonehenge ultimamente, porque o Povo da Lama havia construído cercas. Os humanos estavam protegendo seu passado, ou pelo menos assim pensavam. Era estranho que o Povo da Lama parecesse mais preocupado com o passado do que com o presente.

Holly vestiu as asas e, assim que a cabine de controle lhe deu autorização, saiu da área estanque, subindo a uma altitude de dois mil metros. Havia bastante cobertura de nuvens, mas mesmo assim ela ativou o escudo. Nada podia vê-la agora; estava invisível aos olhos humanos e mecânicos. Só ratos e duas espécies de macacos podiam ver através de um escudo do povo subterrâneo.

Holly ligou o navegador de bordo no computador das asas e deixou que o equipamento se orientasse sozinho. Era bom estar de novo acima do chão, ainda mais ao pôr-do-sol. Sua hora predileta do dia. Um sorriso lento se espalhou pelo rosto. Apesar da situação, estava contente. Era isso que tinha nascido para fazer. Reconhecimento. Com o vento batendo no visor e um desafio entre os dentes.

 

Fazia quase duas horas desde que Butler tinha levado o tiro. Em geral o período entre a falência cardíaca e os danos cerebrais é de cerca de quatro minutos, mas esse período pode ser estendido se a temperatura corporal da pessoa for reduzida o suficiente. Vítimas de afogamento, por exemplo, podem ser ressuscitadas até uma hora depois da morte aparente. Artemis só podia rezar para que sua câmara de criogenia improvisada mantivesse Butler em estase até que ele pudesse ser transferido para um dos casulos do Idade do Gelo.

O Instituto de Criogenia Idade do Gelo possuía uma unidade móvel para transportar clientes das clínicas particulares onde tinham falecido. O furgão era equipado com seu próprio gerador e equipamentos de cirurgia completos. Ainda que a criogenia fosse considerada charlatanismo por muitos clínicos, o veículo em si atendia aos mais rígidos padrões de equipamento e higiene.

— Essas unidades custam quase um milhão de libras cada uma — informou a Dra. Constance Lane a Artemis, enquanto os dois se acomodavam na branquíssima área cirúrgica. Um casulo cilíndrico de criogenia estava preso numa maca com rodas, entre eles. — Os furgões são feitos sob encomenda em Munique, e com blindagem especial. Esse negócio poderia passar sobre um campo minado e sair sorrindo.

Pela primeira vez Artemis não estava interessado em colher informações.

— Isso é muito bom, doutora, mas ele não pode ir mais rápido? O tempo do meu amigo está se esvaindo. Já se passaram 127 minutos.

Constance Lane tentou franzir a testa, mas não havia folga suficiente na pele.

— Duas horas. Ninguém jamais foi ressuscitado depois de tanto tempo. Mas, afinal de contas, ninguém já foi ressuscitado depois de estar numa câmara de criogenia.

O tráfego em Knightsbridge, como sempre, era caótico. A Harrods estava fazendo uma liquidação especial, de apenas um dia, e o quarteirão estava apinhado de consumidores cansados a caminho de casa. Demoraram mais 17 minutos para chegar à entrada de serviço do En Fin e, como prometido, não havia policiais presentes, a não ser um. O próprio detetive inspetor Justin Barre estava montando sentinela na porta dos fundos. O sujeito era enorme, descendente de zulus, segundo Butler. Não era difícil imaginá-lo ao lado de Butler em alguma terra distante.

Incrivelmente encontraram uma vaga para estacionar, e Artemis desceu do furgão.

— Criogenia — disse Barre, notando as palavras escritas no veículo. — Você acha que pode fazer alguma coisa por ele?

— Então você olhou no freezer? — perguntou Artemis. O policial assentiu.

— Como eu iria resistir? A curiosidade é o meu negócio. Agora lamento ter verificado; ele era um bom homem.

— É um bom homem — insistiu Artemis. — Ainda não estou pronto para abrir mão dele.

Barre ficou de lado para liberar a entrada de dois paramédicos do Idade do Gelo.

— Segundo meus homens, um grupo de bandidos armados tentou assaltar o estabelecimento, mas foram interrompidos por um terremoto. E se foi realmente isso que aconteceu, eu como o meu distintivo. Imagino que você não possa lançar alguma luz sobre a situação, não é?

— Um concorrente meu discordou de uma estratégia de negócios. Foi uma discordância violenta.

— Quem puxou o gatilho?

— Arno Bronco. Um neozelandês. Cabelo oxigenado, argolas nas orelhas, tatuagens no corpo e no pescoço. A maior parte dos dentes está faltando.

Barre tomou nota.

— Vou fazer circular a descrição nos aeroportos. Nunca se sabe, talvez a gente o pegue.

Artemis coçou os olhos.

— Butler salvou minha vida. A bala era para mim.

— Isso é a cara do Butler — disse Barre, assentindo. — Se houver alguma coisa que eu possa...

— Você será o primeiro a saber. Seus policiais descobriram alguém no local?

Barre consultou seu caderninho.

— Alguns clientes e funcionários. Todos pareciam legítimos, por isso deixamos ir embora. Os ladrões escaparam antes de chegarmos.

— Não importa. É melhor que eu mesmo cuide dos culpados.

Barre fez um esforço para ignorar a atividade na cozinha atrás dele.

— Artemis, você pode garantir que isso não vai voltar para me assombrar? Tecnicamente nós estamos olhando um homicídio.

Artemis olhou Barre nos olhos, o que foi um tremendo esforço.

— Detetive inspetor, sem corpo não há caso a investigar. E garanto que amanhã Butler estará vivo e em forma. Vou mandar que ele telefone para o senhor, se isso puder tranqüilizá-lo.

— Seria bom.

Os paramédicos passaram com Butler numa maca. Uma camada de gelo cobria seu rosto. O dano nos tecidos já estava deixando seus dedos azuis.

— Qualquer médico que conserte isso terá de ser um verdadeiro mágico!

Artemis baixou os olhos.

— Este é o plano, detetive inspetor. Este é o plano.

No furgão, a Dra. Lane administrou injeções de glicose.

— Isso vai impedir que as células morram — informou a Artemis, massageando o peito de Butler para fazer o medicamento circular. — Caso contrário a água em seu sangue vai congelar em pontas e furar as paredes das células.

Butler estava deitado numa unidade de criogenia aberta, com seus próprios giroscópios. Ele fora vestido com uma roupa prateada especial, e sacos de material gelado foram postos sobre o corpo, como saquinhos num açucareiro.

Constance não estava acostumada a ter gente prestando atenção quando explicava o processo, mas aquele garoto pálido absorvia os fatos mais rápido do que ela era capaz de apresentá-los.

— A água não vai congelar de qualquer modo? A glicose não pode impedir isso.

Constance ficou impressionada.

— Bom, sim, vai. Mas em pequenos fragmentos, de modo que pode flutuar em segurança entre as células.

Artemis fez uma anotação em seu computador de mão.

— Pequenos fragmentos, entendo.

— A glicose é apenas ume medida temporária — continuou a doutora. — O passo seguinte é a cirurgia; nós precisamos lavar completamente as veias dele e substituir o sangue por um líquido preservativo. Então poderemos baixar a temperatura do paciente até trinta graus negativos. Teremos de fazer isso no instituto.

Artemis fechou o computador.

— Não há necessidade. Eu só preciso de que ele seja mantido em estase durante algumas horas. Depois disso não fará diferença.

— Acho que não entende, meu jovem. As práticas médicas atuais não evoluíram ao ponto em que esse tipo de ferimento possa ser curado. Se eu não fizer logo uma substituição completa do sangue, haverá sérios danos aos tecidos.

O furgão se sacudiu quando uma das rodas bateu num dos muitos buracos das ruas de Londres. O braço de Butler se sacudiu e, por um momento, Artemis pôde fingir que ele estava vivo.

— Não se preocupe com isso, doutora.

— Mas...

— Cem mil libras, Constance. Só fique repetindo essa quantia para si mesma. Estacione a unidade móvel do lado de fora e se esqueça de nós. De manhã teremos desaparecido. Nós dois.

A Dra. Lane ficou surpresa.

— Estacionar do lado de fora? Você nem vai querer entrar?

— Não, Butler vai ficar do lado de fora. Meu... ah... médico tem problema com lugares fechados. Mas será que posso entrar um momento para usar seu telefone? Preciso dar um telefonema bastante especial.

 

As luzes de Londres estavam espalhadas abaixo de Holly como as estrelas de alguma galáxia turbulenta. A capital da Inglaterra geralmente era uma área de vôo proibido para oficiais do Recon, por causa dos quatro aeroportos colocando aviões no céu. Há cinco anos o capitão Encrenca Kelp quase fora empalado por um que ia do aeroporto de Heathrow para o JFK. Desde então, todos os planos de vôo envolvendo cidades com aeroportos tinham de ser autorizados pessoalmente por Potrus. Holly falou ao microfone do capacete:

— Potrus. Algum vôo chegando, do qual eu deva saber?

— Deixe-me ver o radar. Certo, vejamos. Se fosse você, eu desceria para 240 metros. Há um 747 vindo de Málaga dentro de alguns minutos. Não vai acertar você, mas o computador do seu capacete poderia interferir nos sistemas de navegação da aeronave.

Holly baixou seus flaps até estar na altitude correta. Em cima, o jato gigantesco gritava pelo céu. Se não fossem as esponjas de filtro sônico, seus tímpanos teriam estourado.

— Certo. Um jato cheio de turistas evitado com sucesso. E agora?

— Agora nós esperamos. Não vou ligar de novo a não ser que seja importante.

Não tiveram de esperar muito. Menos de cinco minutos depois Potrus rompeu o silêncio de rádio.

— Holly. Temos uma coisa.

— Outra sonda?

— Não. Alguma coisa do Sentinela. Espere aí, estou mandando o arquivo para o seu capacete.

Um arquivo de som apareceu no visor de Holly. A onda parecia uma leitura de sismógrafo.

— O que é isso, um grampo telefônico?

— Não exatamente — disse Potrus. — É um dentre um bilhão de arquivos que o Sentinela nos manda a cada dia.

O sistema Sentinela era uma série de unidades de monitoramento que Potrus tinha inserido em satélites obsoletos dos Estados Unidos e da Rússia. Sua função era monitorar todas as comunicações humanas. Obviamente seria impossível monitorar cada telefonema dado a cada dia. Assim o computador era programado para captar certas palavras-chave. Se, por exemplo, as palavras "fada", "porto" e "subterrâneo" aparecessem numa conversa, o computador gravaria a ligação. Quanto mais expressões relacionadas ao Povo aparecessem, mais urgente era a classificação.

— Este telefonema foi dado em Londres há alguns minutos. Está cheio de palavras-chave. Nunca ouvi nada assim.

— Toque — disse Holly com clareza, usando a voz de comando. Um cursor vertical começou a percorrer a onda sonora.

— Povo — disse uma voz, nebulosa com a distorção. — LEP, magia, Porto, terminais de transporte, duendes, B'wa Kell, trolls, parada de tempo, Recon, Atlantis.

— É isso?

— Não basta? Quem deu esse telefonema poderia estar escrevendo nossa biografia.

— Mas é só uma série de palavras. Não faz sentido.

— Ei, não precisa discutir comigo — disse o centauro. — Eu só recolho informações. Mas tem de haver alguma conexão com a sonda. Duas coisas assim não acontecem no mesmo dia.

— Certo. Temos uma localização exata?

— O telefonema veio de um instituto de criogenia em Londres. A qualidade do Sentinela não é suficiente para fazer um reconhecimento de voz. Só sabemos que veio de dentro do prédio.

— Para quem nosso misterioso Homem da Lama estava ligando?

— Estranho. Ele estava ligando para o departamento de palavras cruzadas do jornal The Times.

— Talvez essas palavras fossem as respostas às palavras cruzadas de hoje — disse Holly cheia de esperança.

— Não. Eu verifiquei a solução correta. Não havia nenhuma palavra relacionada com o povo das fadas.

Holly pôs as asas no comando manual.

— Certo. Hora de descobrir o que essa pessoa está tramando. Mande as coordenadas do instituto.

Holly suspeitou de que fosse um falso alarme. Centenas daqueles telefonemas chegavam a cada ano. Potrus era paranóico a ponto de acreditar que o Povo da Lama estava invadindo os subterrâneos a cada vez que alguém mencionava a palavra "magia" ao telefone. E com a recente tendência humana para filmes e videogames de fantasia, as expressões mágicas brotavam um bocado. A polícia desperdiçava milhares de horas tocaiando as casas de onde esses telefonemas tinham se originado, e geralmente era algum garoto jogando em seu PC.

Era mais do que provável que esse telefonema estranho fosse resultado de uma linha cruzada, ou de algum maluco de

Hollywood tentando vender um roteiro de cinema. Mas hoje, especialmente hoje, tudo tinha de ser verificado.

Holly chutou as pernas para trás, baixando num mergulho íngreme. Mergulhar era contra os regulamentos do Recon. Todas as abordagens deveriam ser feitas controlada e gradualmente, mas de que adiantava voar se você não podia sentir a esteira do ar repuxando os dedos dos pés?

 

Artemis se encostou no pára-choque traseiro da ambulância de criogenia. Era engraçado a rapidez com que as prioridades de uma pessoa podiam mudar. Esta manhã ele estivera preocupado com os sapatos que usaria com o terno, e agora só conseguia pensar no fato de que a vida de seu maior amigo estava na balança. E o equilíbrio da balança estava mudando rapidamente.

Enxugou uma camada de cristais de gelo dos óculos que havia tirado do paletó de seu guarda-costas. Não eram óculos comuns. Butler tinha visão perfeita. Aqueles óculos específicos tinham sido preparados especialmente para acomodar filtros tirados de um capacete da LER Filtros antiescudos. Butler andava com eles desde que Holly Short quase o pegou desprevenido na Mansão Fowl.

— Nunca se sabe — tinha dito ele. — Nós somos uma ameaça para a segurança da LEP, e algum dia o comandante Raiz pode ser substituído por alguém que não goste tanto de nós.

Artemis não se convenceu. Em grande parte, o povo das fadas era bastante pacífico. Não podia acreditar que eles fariam mal a alguém por causa de crimes passados, nem mesmo a uma Pessoa da Lama. Afinal de contas, eles haviam se separado como amigos. Ou, pelo menos, não como inimigos.

Tinha presumido que o telefonema daria certo — não havia motivo para acreditar que não desse: várias agências de segurança de governos monitoravam linhas telefônicas usando o sistema de palavras-chave, gravando conversas que pudessem comprometer a segurança nacional. E se os humanos estavam fazendo isso, podia-se apostar que Potrus estivesse dois passos adiante.

Pôs os óculos, subindo na cabine do veículo. Tinha dado o telefonema há dez minutos. Presumindo que Potrus passasse a trabalhar imediatamente a partir de um rastreamento, ainda poderiam se passar duas horas antes que a LEP tivesse condições de colocar um agente na superfície. Com isso seriam quase cinco horas desde que o coração de Butler tinha parado. O recorde de tempo em ressuscitação era de duas horas e cinqüenta minutos para um esquiador nos Alpes congelado numa avalanche. Nunca houvera uma ressuscitação depois de três horas. Talvez não devesse haver.

Artemis olhou para a bandeja de comida mandada pela Dra. Lane. Em qualquer outro dia teria reclamado de praticamente tudo que havia no prato, mas agora a refeição era simplesmente algo para sustentá-lo acordado até a chegada da cavalaria. Tomou um longo gole de um copo de poliestireno cheio de chá. O líquido chacoalhou audivelmente em seu estômago. Atrás dele, na traseira da ambulância, a unidade de criogenia de Butler zumbia como um freezer doméstico. Ocasionalmente o computador emitia bips eletrônicos e zumbidos, enquanto a máquina fazia autodiagnósticos. Artemis lembrou-se das semanas que passou em Helsinki esperando que seu pai recuperasse a consciência. Esperando para ver o que a magia das fadas faria com ele...

 

Trecho do Diárío de Artemis, Disco 2. Criptografado.

Hoje meu pai falou comigo. Pela primeira vez em mais de dois anos ouvi sua voz, e é exatamente como eu recordava. Mas nem tudo era o mesmo.

Passaram-se dois meses desde que Holly Short usou sua magia curativa no corpo arrasado de meu pai, e ele continua de cama no hospital em Helsinki. Imóvel, sem reagir. Os médicos não podiam entender.

— Ele deveria estar acordado — informaram-me. — Suas ondas cerebrais estão fortes, excepcionalmente fortes. E seu coração bate como o de um cavalo. É incrível; este homem deveria estar às portas da morte, mas tem o tônus muscular de uma pessoa de vinte anos.

Claro, para mim isso não é mistério. A magia de Holly ergueu todo o ser de meu pai, com exceção da perna esquerda, que foi perdida quando seu navio afundou no litoral de Murmansk. Ele recebeu uma infusão de vida, corpo e mente.

O efeito da magia em seu corpo não me preocupa, mas não posso deixar de me perguntar que efeito essa energia positiva terá na mente de meu pai. Para meu pai, uma mudança assim poderia ser traumática. Ele é o patriarca dos Fowl, e sua vida gira em torno de ganhar dinheiro.

Durante 16 dias ficamos sentados no quarto do hospital com meu pai, esperando algum sinal de vida. Nesse ponto eu já havia aprendido a ler os instrumentos, e na manhã em que as ondas cerebrais do meu pai começaram a saltar percebi imediatamente. Meu diagnóstico foi de que ele recuperaria logo a consciência, por isso chamei a enfermeira.

Fomos retirados do quarto para a entrada de uma equipe médica com pelo menos 12 pessoas. Dois cardiologistas, um anestesista, um neurocirurgião, um psicólogo e várias enfermeiras.

De fato, meu pai não precisava de cuidados médicos. Simplesmente sentou-se, esfregou os olhos e murmurou uma palavra:

— Angeline.

Mamãe foi chamada. Butler, Juliet e eu fomos forçados a esperar por vários outros minutos agonizantes até ela reaparecer na porta.

— Entrem, todo mundo — disse ela. — Ele quer ver vocês. E de repente eu senti medo. Meu pai, o homem cujo lugar eu vinha tentando ocupar há dois anos, estava acordado. Será que ele ainda estaria à altura de minhas expectativas? Será que eu estaria à altura das dele?

Entrei hesitante. Artemis Fowl, pai, estava encostado em vários travesseiros. A primeira coisa que notei foi seu rosto. Não as marcas de cicatrizes — que já estavam quase completamente curadas, mas a expressão. A testa de meu pai, geralmente uma tempestade de contemplação mal-humorada, estava lisa e tranqüila.

Depois de um tempo tão longo separados, eu não sabia o que dizer.

Meu pai não tinha esse tipo de dúvida.

— Arty — exclamou ele, estendendo os braços para mim. — Você já é um homem. Um jovem homem.

Corri para o seu abraço e, enquanto ele me apertava, todas as tramas e os esquemas foram esquecidos. Eu tinha um pai de novo.

 

As lembranças de Artemis foram interrompidas por um leve movimento na parede acima. Ele espiou pela janela de trás e fixou o olhar naquele ponto, observando com olhos filtrados. Havia uma criatura das fadas agachada numa janela do terceiro andar: um policial do Recon, com asas e capacete. Depois de somente 15 minutos! Seu ardil tinha funcionado. Potrus havia interceptado o telefonema e mandado alguém para investigar. Agora tudo que restava era esperar que aquele agente específico estivesse cheio de magia até as bordas, e disposto a ajudar. Isso tinha de ser abordado com sensibilidade. A última coisa que ele desejava era assustar o policial do Recon. Bastava um movimento errado e Artemis acordaria dentro de seis horas, sem absolutamente qualquer lembrança dos acontecimentos do dia. E isso seria fatal para Butler.

Artemis abriu lentamente a porta do furgão, descendo no pátio. A criatura inclinou a cabeça, seguindo seus movimentos. Para sua perplexidade, Artemis viu-a sacar uma arma de platina.

— Não atire — disse ele, levantando as mãos. — Eu estou desarmado. E preciso da sua ajuda.

A criatura ativou as asas, descendo lentamente até que seu visor estivesse no nível dos olhos de Artemis.

— Não se assuste — continuou Artemis. — Eu sou amigo do Povo. Ajudei a derrotar a B'wa Kell. Meu nome é...

A criatura desligou o escudo, levantando o visor opaco.

— Eu sei o seu nome, Artemis — disse a capitã Holly Short.

— Holly — disse Artemis, agarrando-a pelos ombros. — É você!

Holly afastou suas mãos humanas.

— Eu sei que sou eu. O que está acontecendo aqui? Imagino que você tenha dado o telefonema, não é?

— Foi, foi. Não temos tempo para isso agora. Eu posso explicar depois.

Holly acelerou suas asas, subindo para uma altura de quatro metros.

— Não, Artemis. Eu quero uma explicação agora. Se você precisava de ajuda, por que não ligou pelo seu telefone?

Artemis se obrigou a responder:

— Você me disse que Potrus tinha tirado a vigilância das minhas comunicações, e, de qualquer modo, eu não tinha certeza de que você viria.

Holly pensou nisso.

— Certo. Talvez eu não viesse. — Então ela notou. — Onde está Butler? Vigiando suas costas como sempre, imagino.

Artemis não respondeu, mas sua expressão dizia a Holly exatamente o motivo para o Garoto da Lama tê-la chamado.

Artemis apertou um botão, e uma bomba pneumática abriu a tampa do casulo de criogenia. Butler estava dentro, engastado em um centímetro de gelo.

— Ah, não — suspirou Holly. — O que aconteceu?

— Ele ficou na frente de um tiro destinado a mim.

— Quando você vai aprender, Garoto da Lama? — disse rispidamente a criatura do subterrâneo. — Suas tramazinhas têm a tendência de machucar as pessoas. Geralmente pessoas que gostam de você.

Artemis não respondeu. A verdade era a verdade, afinal de contas.

Holly afastou um saco de gelo de cima do peito do guarda-costas.

— Quanto tempo faz?

Artemis consultou o relógio de seu celular.

— Três horas. Alguns minutos a mais ou a menos.

A capitã Short empurrou o gelo para o lado, pondo a mão no peito de Butler.

— Três horas. Não sei, Artemis. Não há nada aqui. Nem um tremor.

Artemis a encarou por cima do casulo de criogenia.

— Você pode fazer isso, Holly? Você pode curá-lo? Holly recuou.

— Eu? Eu não posso curá-lo. Nós precisamos de um feiticeiro profissional para ao menos tentar alguma coisa assim.

— Mas você curou meu pai.

— Aquilo foi diferente. Seu pai não estava morto. Nem em estado crítico. Odeio dizer, mas Butler se foi. Há muito tempo.

Artemis pegou um medalhão de ouro preso numa tira de couro ao pescoço. O disco era perfurado por um único buraco circular. Bem no centro.

— Você se lembra disso? Você me deu por ter garantido que seu dedo do gatilho fosse preso de novo à sua mão. Você disse que isso iria me lembrar da fagulha de decência que há em mim. Eu estou tentando fazer uma coisa decente agora, capitã.

— Não é uma questão de decência. Simplesmente não pode ser feito.

Artemis tamborilou com os dedos na maca. Pensando.

— Quero falar com Potrus — disse finalmente.

— Eu falo em nome do Povo, Fowl — disse Holly irritada. — Nós não recebemos ordens de humanos.

— Por favor, Holly. Não posso deixar que ele vá embora. É o Butler.

Holly não pôde evitar. Afinal de contas, Butler tinha salvado a pele de todos eles em mais de uma ocasião.

— Muito bem — falou, pescando um equipamento de comunicação de reserva no cinto. — Mas ele não vai ter notícias boas para você.

Artemis pôs o fone num ouvido, ajustando a haste do microfone sobre a boca.

— Potrus? Está ouvindo?

— Está brincando? — foi a resposta. — Isso está melhor do que as novelas de TV dos humanos.

Artemis se concentrou. Teria de ser convincente, caso contrário a última chance de Butler teria ido embora.

— Eu só quero uma cura. Aceito que possa não dar certo, mas o que custa tentar?

— Não é tão simples, assim, Garoto da Lama — respondeu o centauro. — Curar não é um processo simples. Requer talento e concentração. Holly é bastante boa, garanto, mas para uma coisa dessas nós precisamos de uma equipe de feiticeiros treinados.

— Não há tempo. Butler já está assim há muito tempo. Isso tem de ser feito agora, antes que a glicose seja absorvida na corrente sangüínea. Já há danos nos tecidos dos dedos dele.

— E talvez também no cérebro, não é? — sugeriu o centauro.

— Não. Eu baixei a temperatura dele em minutos. O crânio está congelado desde o incidente.

— Tem certeza? Nós não queremos trazer o corpo de Buder sem a mente.

— Tenho certeza. O cérebro está ótimo. Potrus não falou durante vários instantes.

— Artemis, se nós concordarmos em fazer isso, não tenho idéia de quais serão os resultados. O efeito no corpo de Butler pode ser catastrófico, para não mencionar a mente. Uma operação desse tipo nunca foi tentada com um humano.

— Eu sei.

— Sabe, Artemis? Mesmo? Está preparado para aceitar as conseqüências da cura? Pode haver um número enorme de problemas imprevisíveis. O que sair desse casulo vai estar aos seus cuidados. Você vai aceitar essa responsabilidade?

— Vou — disse Artemis sem hesitar.

— Muito bem, então a decisão é de Holly. Ninguém pode obrigá-la a usar a magia. É com ela.

Artemis baixou os olhos. Não conseguia se obrigar a olhar para a elfo da LER

— Bem, Holly. Você vai fazer? Vai tentar?

Holly espanou o gelo da testa de Butler. Ele tinha sido um bom amigo do Povo.

— Vou tentar. Sem garantia, mas vou fazer o que puder. Os joelhos de Artemis quase se dobraram, aliviados. Em seguida ele se controlou de novo. Haveria tempo suficiente para joelhos fracos mais tarde.

— Obrigado, capitã. Sei que essa não é uma decisão fácil. Agora, o que eu posso fazer?

Holly apontou para as portas traseiras.

— Pode sair. Eu preciso de um ambiente estéril. E, independentemente do que acontecer, independentemente do que você ouvir, não entre enquanto eu não chamar.

Holly soltou a câmera de seu capacete, prendendo-a na tampa do casulo de criogenia para dar a Potrus uma visão melhor do paciente.

— Que tal?

— Bom — respondeu Potrus. — Dá para ver toda a parte superior do corpo. Criogenia. Esse Fowl é um gênio, para um humano. Você sabe que ele teve menos de um minuto para pensar nesse plano? É um Garoto da Lama inteligente.

Holly lavou as mãos muito bem na pia da ambulância.

— Não o suficiente para ficar longe de encrenca. Não acredito que estou fazendo isso. Uma cura depois de três horas. Vai ser o primeiro caso.

— Tecnicamente é apenas uma cura de dois minutos, se ele levou o cérebro a ficar abaixo de zero imediatamente. Mas...

— Mas o quê? — perguntou Holly, esfregando os dedos rapidamente com uma toalha.

— Mas o congelamento interfere nos biorritmos e nos campos magnéticos do corpo; coisas que nem o Povo entende totalmente. Há mais coisas em risco do que pele e ossos. Nós não temos idéia do tipo de trauma que isso pode causar em Butler.

Holly enfiou a cabeça embaixo da câmera.

— Tem certeza de que é uma boa idéia, Potrus?

— Eu gostaria de que tivéssemos tempo para uma discussão, Holly, mas cada segundo custa ao nosso velho amigo algumas células cerebrais. Eu vou falando enquanto você age. A primeira coisa que temos de fazer é olhar o ferimento.

Holly tirou vários sacos de gelo e abriu o zíper da roupa metalizada. O ferimento da bala era pequeno e escuro, escondido no centro de uma poça de sangue, parecendo uma flor.

— Ele não teve chance. Bem debaixo do coração. Vou dar um zoom.

Holly fechou o visor, usando os filtros do capacete para ampliar o ferimento de Butler.

— Há fibras presas aqui. Kevlar, eu diria. Potrus gemeu nos alto-falantes.

— É só disso que a gente precisa. Complicações.

— Que diferença as fibras fazem? E esta não é uma hora de usar jargão. Eu preciso de que você fale em gnomês simples.

— Certo. Curso de cirurgia para idiotas. Se você enfiar os dedos nesse ferimento, a magia vai reproduzir as células de Butler, até mesmo com as novas fibras de kevlar. Ele vai estar morto, mas completamente à prova de bala.

Holly sentiu a tensão se esgueirando pelas costas.

— Então eu preciso fazer o quê?

— Precisa fazer um novo ferimento, e deixar a magia se espalhar a partir de lá.

Ah, fantástico, pensou Holly. Um novo ferimento. É só cortar um velho amigo.

— Mas ele está duro como pedra.

— Bem, então você vai ter de derretê-lo um pouco. Use sua Neutrino 2000, ajuste fraco, mas não por muito tempo. Se o cérebro acordar antes de nós querermos, ele está acabado.

Holly sacou sua Neutrino, ajustando a saída para o mínimo.

— Onde você sugere que eu derreta?

— O outro peitoral. Esteja preparada para curar; o calor vai se espalhar rapidamente. Butler precisa ser curado antes que o oxigênio chegue ao cérebro.

Holly apontou o laser para o peito do guarda-costas.

— É só mandar.

— Um pouco mais perto. Quinze centímetros, aproximadamente. Um tiro de dois segundos.

Holly levantou o visor, respirando fundo várias vezes. Uma Neutrino 2000 sendo usada como instrumento médico. Quem imaginaria?

Puxou o gatilho até o primeiro clique. Mais um clique ativaria o laser.

— Dois segundos.

— Certo. Vá.

Clique. Um facho laranja de calor concentrado se derramou do focinho da Neutrino, abrindo-se como uma flor no peito de Butler. Se o guarda-costas estivesse acordado teria ficado inconsciente. Um círculo perfeito de gelo se evaporou, subindo para se condensar no teto da ambulância.

— Agora — disse Potrus, com a voz aguda de ansiedade. — Estreite o facho e concentre-o.

Holly manipulou os controles da arma habilmente com o polegar. Estreitar o facho intensificaria a potência, mas o laser teria de ser concentrado num determinado alcance para não atravessar direto o corpo de Butler.

— Estou ajustando para 15 centímetros.

— Bom, mas depressa; o calor está se espalhando.

A cor tinha voltado ao peito de Butler e o gelo estava se derretendo sobre seu corpo. Holly apertou o gatilho de novo, dessa vez cavando um corte em forma de lua crescente na carne de Butler. Uma única gota de sangue escorreu entre as bordas do ferimento.

— Não há fluxo constante — disse Potrus. — Isso é bom. Holly guardou a arma no coldre.

— E agora?

— Agora enfie sua mão e dê cada gota de magia que você tem. Não deixe que ela simplesmente flua; ponha a magia para fora.

Holly fez uma careta. Nunca gostava dessa parte. Não importando quantas curas tivesse feito, jamais podia se acostumar a enfiar os dedos nas entranhas de outras pessoas. Alinhou os polegares, um contra o outro, e enfiou na incisão.

— Cure — sussurrou, e a magia escorreu por seus dedos. Fagulhas azuis pairaram sobre o ferimento de Butler, depois desapareceram dentro, como estrelas cadentes mergulhando abaixo do horizonte.

— Mais, Holly — insistiu Potrus. — Outro tiro. Holly empurrou de novo, com mais força. A princípio o fluxo era denso, uma massa de riscas azuis, enquanto sua magia ia diminuindo, o fluxo ficava mais fraco.

— É isso — ofegou ela. — Praticamente não tenho o bastante para manter o escudo no caminho para casa.

— Bem, então recue até que eu diga, porque todo o inferno está para se abrir.

Holly recuou para a parede. Não aconteceu grande coisa durante vários instantes, e então as costas de Butler se arquearam, lançando seu peito para o ar. Holly ouviu algumas vértebras gemendo.

— Foi o coração que começou a bater — observou Potrus. — A parte fácil.

Butler tombou de volta no casulo, com sangue jorrando do ferimento mais recente. As fagulhas mágicas se juntaram como num tricô, formando uma renda vibrante sobre o tronco do guarda-costas. Butler se sacudia na maca, como uma conta num chocalho, enquanto a magia reajustava seus átomos. Seus poros soltavam vapor enquanto toxinas eram expelidas do organismo. A cobertura de gelo em volta se dissolveu instantaneamente, provocando nuvens e depois chuva, quando as partículas de água se condensavam no teto de metal. Os sacos de gelo explodiam como balões de gás, lançando cristais ricocheteando pela ambulância. Era como estar no centro de uma tempestade multicolorida.

— Você precisa entrar lá agora! — disse Potrus no ouvido de Holly.

— O quê?

— Entre lá. A magia está se espalhando pela coluna vertebral. Segure a cabeça dele para a cura, caso contrário qualquer célula danificada pode ser copiada. E assim que alguma coisa foi curada, nós não podemos desfazer.

Fantástico, pensou Holly. Segurar Butler imóvel. Sem problema. Abriu caminho em meio ao entulho, com cristais dos sacos de gelo se chocando contra seu visor.

A forma humana continuava se sacudindo no casulo de criogenia, envolto por uma nuvem de vapor.

Holly apertou as mãos dos dois lados da cabeça de Butler. As vibrações viajavam pela extensão de seus braços e pelo seu corpo.

— Segure, Holly. Segure!

Holly se inclinou sobre o casulo, pondo o peso do corpo sobre a cabeça de Butler. No meio de toda a confusão, não dava para saber se seus esforços estavam surtindo qualquer efeito.

— Aí vai! — disse Potrus em seu ouvido. — Prepare-se! A renda mágica se espalhou pelo pescoço de Butler e sobre o rosto. Fagulhas azuis acertaram os olhos, viajando pelo nervo ótico, entrando no cérebro. Os olhos de Butler se abriram, revirando-se nas órbitas. Sua boca também foi reativada, soltando longas fiadas de palavras em várias línguas, nenhuma das quais fazia qualquer sentido.

— O cérebro dele está fazendo testes — disse Potrus. — Só para verificar se tudo está funcionando.

Cada músculo e junta foi testado até o limite, revirando-se, torcendo-se e se esticando. Folículos de cabelos cresciam a uma taxa acelerada, cobrindo a cabeça normalmente raspada de Butler com fios grossos. Unhas se projetaram dos dedos como garras de tigre, e uma barba áspera se espremeu para fora do queixo.

Holly só podia ficar segurando. Imaginou que devia ser assim a sensação de um peão de rodeio montando um touro particularmente mal-humorado.

Por fim as fagulhas se dissiparam, espiralando-se no ar como brasas num vento leve. Butler se acalmou e se acomodou, o corpo afundando em 15 centímetros de água e líquido de resfriamento. Sua respiração era lenta e profunda.

— Nós conseguimos — disse Holly, saindo de cima do casulo e caindo de joelhos. — Ele está vivo!

— Não comece a comemorar por enquanto. Ainda há um longo caminho. Ele vai demorar pelo menos dois dias para recuperar a consciência, e, mesmo então, quem sabe em que condições sua mente vai estar? E, claro, há o problema óbvio.

Holly ergueu o visor.

— Que problema óbvio?

— Veja você mesma.

A capitã Short estava quase com medo de olhar o que estava no casulo. Imagens grotescas encheram sua imaginação. Que tipo de mutante malformado eles haviam criado?

A primeira coisa que notou foi o peito de Butler. O buraco da bala em si tinha sumido por completo, mas a pele tinha escurecido, com uma linha vermelha no meio do preto. Parecia um "I" maiúsculo.

— Kevlar — explicou Potrus. — Parte do material deve ter se copiado. Não o bastante para matá-lo, ainda bem, mas o suficiente para ralentar sua respiração. Butler não vai correr nenhuma maratona com essas fibras grudadas nas costelas.

— O que é a linha vermelha?

— Eu diria que deve ser tinta. Devia haver alguma coisa escrita no colete à prova de bala.

Holly olhou a ambulância em volta. O colete de Butler estava jogado num canto. As letras "FBI" estavam impressas em vermelho no peito. Havia um pequeno buraco no centro do I.

— Ah, bem — disse o centauro. — É um pequeno preço a pagar pela vida. Ele pode fingir que é uma tatuagem. Hoje em dia elas são muito populares entre o Povo da Lama.

Holly tinha esperado que a pele reforçada por kevlar fosse o "problema óbvio" ao qual Potrus tinha se referido. Mas havia outra coisa. A outra coisa ficou imediatamente clara quando seu olhar pousou no rosto do guarda-costas. Ou, mais precisamente, nos pêlos que brotavam de seu rosto.

— Ah, deuses — sussurrou ela. — Artemis não vai gostar disso.

Artemis andava de um lado para o outro do pátio enquanto seu guarda-costas passava pela cirurgia mágica. Agora que o plano estava sendo realizado, dúvidas começaram a roer as bordas de sua mente, como lagartas numa folha. Seria essa a coisa certa a fazer? E se Butler não fosse mais o mesmo? Afinal de contas, seu pai tinha ficado inegavelmente diferente no dia em que por fim voltou para a família. Ele jamais esqueceria aquela primeira conversa...

 

Trecho do Diário de Artemis Fowl. Disco 2. Criptografado.

Os médicos em Helsinki estavam decididos a encher meu pai de suprimentos de vitaminas. Ele estava igualmente decidido a não permitir. E um Fowl decidido geralmente consegue o que quer.

— Estou perfeitamente bem — insistiu ele. — Por favor, deixem que eu tenha algum tempo para retomar o contato com minha família.

Os médicos recuaram, desarmados por sua personalidade. Eu fiquei surpreso com essa abordagem. O charme nunca tinha sido a arma predileta do meu pai. Anteriormente ele conseguia seus objetivos passando como um trator por cima de qualquer um que tivesse a estupidez de ficar no seu caminho.

Papai estava sentado na única poltrona do quarto do hospital, com a perna encurtada repousando numa banqueta. Minha mãe estava empoleirada no braço da poltrona, resplandecente em seu casaco de peles falsas.

Papai me pegou olhando para sua perna.

— Não se preocupe, Arty. Amanhã serei medido para uma prótese. O Dr. Hermann Gruber está vindo de avião, de Dortmund.

Eu tinha ouvido falar de Gruber. Ele trabalhava com o time paraolímpico alemão. Era o melhor.

— Vou pedir uma coisa esportiva. Talvez com tiras pintadas, para sugerir velocidade.

Uma piada. Não era o estilo do meu pai.

— Pare de provocar, querido. Isso é difícil para Arty, você sabe. Ele não passava de um bebê quando você partiu.

— Não era um bebê, mamãe. Eu tinha onze anos, afinal de contas.

Meu pai sorriu para mim cheio de carinho. Talvez agora fosse um momento adequado para nós falarmos, antes que seu bom humor se acabasse e fosse substituído pelo jeito carrancudo de sempre.

— Papai, as coisas mudaram desde o seu desaparecimento. Eu mudei.

Papai assentiu, solene.

— Sim, você está certo. Nós precisamos falar dos negócios. Ah, sim. De volta aos negócios. Esse era o pai de quem eu me lembrava.

— Acho que o senhor descobrirá que as contas bancárias da família estão saudáveis, e creio que vai aprovar a carteira de ações. Ela rendeu dezoito por cento de dividendos no último ano fiscal. Dezoito por cento é um resultado exemplar no atual mercado; eu não falhei com o senhor.

— Eu falhei com você, filho, se você acha que as contas bancárias e as ações são tudo que há de importante — disse Artemis pai. — Você deve ter aprendido isso comigo. — Ele me puxou para perto. — Eu não fui um pai perfeito, Artemis, longe disso. Estava ocupado demais com os negócios da família. Sempre achei que meu dever era administrar o império Fowl. Um império do crime, como ambos sabemos. Se algum bem resultou de meu seqüestro, é que eu reavaliei minhas prioridades. Quero uma vida nova para todos nós. Eu não podia acreditar no que estava escutando. Uma das minhas lembranças mais persistentes era de papai citando repetidamente o lema da família: "aurum potestas est" — "ouro é poder". E, agora, aqui estava meu pai, dando as costas para os princípios dos Fowl. 0 que a magia tinha feito com ele?

— O ouro não é a coisa mais importante, Arty — continuou ele. — Nem o poder. Nós temos tudo de que precisamos aqui mesmo. Nós três.

Fiquei absolutamente surpreso. Mas não de modo totalmente desagradável.

— Mas, papai. O senhor sempre disse... Este não é o senhor. O senhor é um novo homem.

Mamãe entrou na conversa.

— Não, Arty. Não é um novo homem. É o velho homem. Aquele por quem eu me apaixonei e com quem me casei, antes que o império Fowl assumisse o controle. E agora eu o tenho de volta; nós somos uma família de novo.

Olhei meus pais — como estavam felizes juntos! Uma família? Seria possível que os Fowl se tornassem uma família normal?

 

Artemis foi arrancado de volta ao presente por uma agitação dentro da UTI móvel do Idade do Gelo. O veículo começou a se sacudir sobre os eixos, com luzes azuis estalando atrás da porta.

Não entrou em pânico. Tinha visto curas antes. No ano passado, quando Holly emendou de volta o dedo indicador, a precipitação da magia tinha despedaçado meia tonelada de gelo — e isso somente para um dedo pequeno. Imagine os danos que o organismo de Butler poderiam causar para reparar um ferimento crítico.

O pandemônio continuou durante vários minutos, estourando um ou dois pneus do furgão, e despedaçando completamente a suspensão. Por sorte o instituto estava trancado para a noite, caso contrário a Dra. Lane certamente estaria acrescentando o conserto do veículo à sua conta.

Por fim a tempestade mágica acabou, e o veículo se acomodou como um carrinho de montanha-russa depois da corrida. Holly abriu a porta traseira, apoiando-se na lateral. Estava exausta, esvaída. Uma palidez doentia brilhava através de sua pele cor de café.

— E então? — perguntou Artemis. — Ele está vivo?

Holly não respondeu. Uma cura estafante costumava resultar em náusea e fadiga. Respirou fundo várias vezes, apoiando-se no pára-choque traseiro.

A capitã Short assentiu.

— Vivo. Sim. Ele está vivo. Mas...

— Mas o quê, Holly? Diga!

Holly tirou o capacete. Ele escorregou dos seus dedos, rolando pelo pátio.

— Sinto muito, Artemis. Fiz o máximo que pude.

Estas eram provavelmente as piores palavras que ela poderia ter dito.

Artemis subiu no furgão. O chão estava escorregadio com água e cristais coloridos. Fumaça vazava da grade partida do sistema de ar condicionado, e a lâmpada de néon acima piscava como raio engarrafado.

O casulo de criogenia estava meio virado num canto, com os giroscópios vazando líquido. Um dos braços de Butler tombava por cima da borda da unidade, lançando uma sombra monstruosa na parede.

O painel de instrumentos do casulo ainda estava funcionando. Artemis ficou aliviado em ver o ícone dos batimentos cardíacos piscando suavemente na tela. Buder estava vivo! Holly tinha conseguido de novo! Mas alguma coisa preocupava a capitã do povo das fadas. Havia um problema.

Assim que Artemis olhou dentro do casulo ficou imediatamente evidente qual era o problema. O cabelo recém-crescido de seu empregado estava marcado de grisalho: Butler tinha entrado na câmara de criogenia com quarenta anos; o homem diante de Artemis tinha pelo menos cinqüenta. Possivelmente mais. No espaço de pouco mais de três horas, Butler tinha envelhecido.

Holly apareceu junto ao ombro de Artemis.

— Pelo menos ele está vivo — disse ela. Artemis assentiu.

— Quando ele vai acordar?

— Dentro de uns dois dias. Talvez.

— Como isso aconteceu? — perguntou o garoto, afastando uma madeixa da testa de Butler.

Holly deu de ombros.

— Não sei exatamente. Essa é a área do Potrus. Artemis pegou o comunicador de reserva no bolso, pondo o fone no ouvido.

— Alguma teoria, Potrus?

— Não dá para ter certeza — respondeu o centauro. — Mas acho que a magia de Holly não foi suficiente. Parte da força vital de Butler era necessária para a cura. Uns 15 anos, pela aparência.

— Alguma coisa pode ser feita?

— Infelizmente não. Uma cura não pode ser desfeita. Se serve de consolo, ele provavelmente vai viver mais do que viveria naturalmente. Mas não há como ter a juventude de volta, e mais, não podemos ter certeza de sua condição mental. A cura pode ter limpado o cérebro mais do que se fosse um disco magnetizado.

Artemis deu um suspiro fundo.

— O que eu fiz com você, meu velho amigo?

— Não temos tempo para isso — disse Holly rapidamente. — Você dois devem sair daqui. Tenho certeza de que esse tumulto deve ter atraído atenção. Vocês têm algum transporte?

— Não. Nós viemos num avião de carreira. Depois pegamos um táxi do aeroporto de Heathrow.

Holly deu de ombros.

— Eu gostaria de ajudar, Artemis, mas já dei muito de meu tempo aqui. Estou numa missão. Uma missão extremamente importante, e tenho de voltar a ela.

Artemis se afastou da unidade de criogenia.

— Holly, sobre a sua missão...

A capitã Short se virou lentamente.

— Artemis...

— Vocês foram sondados, não foi? Alguma coisa passou pelas defesas de Potrus?

Holly pegou um grande pedaço de tecido de camuflagem de dentro de sua mochila de vigilância.

— Nós precisamos ir a algum lugar para conversar. Algum lugar privado.

Os 45 minutos seguintes foram uma espécie de borrão para Artemis. Holly enrolou os dois humanos no tecido de camuflagem e prendeu-os ao seu CintoLua. O cinto reduzia o peso deles a um quinto do normal na terra.

Mesmo assim foi uma luta para suas asas mecânicas levantarem os três para o céu noturno. Holly teve de acelerar tudo só para levá-los a 150 metros acima do nível do mar.

— Vou ligar o escudo agora — disse ela ao microfone. — Tente não se sacudir muito. Não quero ter de soltar um de vocês.

Então ela sumiu, e em seu lugar pairava um ligeiro tremor. Um trecho de estrelas na forma de Holly. As vibrações vinham através dos elos do cinto, sacudindo os dentes de Artemis em sua cabeça. Ele se sentia como um inseto num casulo, enrolado no tecido, com apenas o rosto exposto ao ar noturno. De início a experiência era quase agradável, subindo sobre a cidade, olhando os carros piscando nas ruas. Então Holly pegou um vento oeste e entrou nas correntes de ar sobre o oceano.

De repente o universo de Artemis era um turbilhão de ventos cortantes, sacudindo os passageiros e espantando os pássaros. Ao seu lado Butler pendia frouxo na trouxa improvisada. O tecido absorvia as cores em volta, refletindo os tons dominantes. Não era de modo algum uma recriação perfeita do ambiente, mas certamente bastava para um vôo noturno sobre o mar até a Irlanda.

— Esse tecido é invisível ao radar? — perguntou Artemis no fone com microfone. — Não quero ser confundido com um OVNI por algum piloto nervoso de um caça Harrier.

Holly pensou nisso.

— Você está certo. Talvez eu devesse descer um pouquinho, só para garantir.

Dois segundos depois Artemis se arrependeu profundamente de ter rompido o silêncio de rádio: Holly inclinou o equipamento das asas num mergulho íngreme, lançando os três na direção das ondas noturnas abaixo. Parou no último instante, quando Artemis poderia jurar que a pele do seu rosto estava para ser arrancada.

Roçaram o topo das ondas, com os borrifos brilhando no tecido de camuflagem. O oceano estava violento naquela noite, e Holly seguia os padrões das ondas, mergulhando e subindo para acompanhar as curvas. Um grupo de baleias corcundas sentiu a presença deles e rompeu a espuma da superfície, saltando 30 metros entre duas ondas antes de desaparecer sob a água escura. Não havia golfinhos. Os pequenos mamíferos estavam se abrigando dos elementos nas baías e angras ao longo da costa irlandesa.

Holly passou perto do casco de uma balsa de passageiros, voando suficientemente perto para sentirem a pulsação do motor. No convés, uma enorme quantidade de passageiros vomitava por cima da amurada, errando por pouco os viajantes invisíveis embaixo.

— Que gracinha — murmurou Artemis.

— Não se preocupe — disse a voz de Holly, vinda de lugar nenhum. — Estamos quase chegando.

Passaram pelo terminal de balsas de Rosslare, seguindo o litoral para o norte, por cima das montanhas Wicklow. Mesmo desorientado, Artemis não pôde deixar de se maravilhar com a velocidade. Aquelas asas eram uma invenção fantástica. Imagine o dinheiro que poderia ganhar com uma patente assim. Obrigou-se a parar de pensar. Vender tecnologia do povo das fadas era o que tinha feito Butler se ferir.

Reduziram a velocidade o suficiente para Artemis identificar marcos individuais. Dublin se agachava ao leste, uma aura de luz amarela zumbindo sobre o sistema de vias expressas. Holly rodeou a cidade, indo para o norte do país, menos povoado. No centro de um grande retalho escuro havia uma única construção, pintada de branco pelos refletores externos: o lar ancestral de Artemis, a Mansão Fowl.

 

— Agora explique-se — disse Holly assim que tinham levado Butler flutuando em segurança até a cama.

Ela se sentou no degrau de baixo da grande escadaria. Gerações de Fowl olhavam-na dos retratos a óleo nas paredes. A capitã da LEP ativou o microfone de seu capacete e o ligou ao alto-falante.

— Potrus, grave isso, está bem? Tenho a sensação de que vamos querer ouvir de novo.

— Todo esse incidente começou com uma reunião de negócios esta tarde — começou Artemis.

— Continue.

— Eu estava me reunindo com Jon Spiro, um industrial americano.

Holly ouviu teclas sendo batucadas em seu ouvido. Sem dúvida Potrus estava fazendo uma verificação sobre esse tal de Spiro.

— Jon Spiro — disse o centauro, quase imediatamente. — Uma figura sombria, até mesmo pelos padrões humanos. As agências de segurança dos Homens da Lama estão tentando colocar esse sujeito em cana há trinta anos. Suas empresas são desastres ecológicos. E isso é apenas a ponta do iceberg. espionagem industrial, seqüestro, ligações com a Máfia. É só dizer qualquer coisa, ele já fez e saiu livre.

— É esse mesmo — disse Artemis. — Então eu marquei um encontro com o Sr. Spiro.

— O que você estava vendendo? — interrompeu Potrus.

— Um homem como Spiro não atravessa o Atlântico para tomar chá com bolinhos. Artemis franziu a testa.

— Na verdade eu não estava vendendo nada. Mas me ofereci para não lançar uma tecnologia revolucionária, por um preço, claro.

A voz de Potrus soou fria:

— Que tecnologia revolucionária? Artemis hesitou um instante.

— Vocês se lembram daqueles capacetes que Butler tirou do esquadrão de Resgate?

Holly gemeu.

— Ah, não.

— Eu desativei os mecanismos de autodestruição dos capacetes e construí um cubo a partir dos sensores e chips: o Cubo V, um minicomputador. Foi coisa simples instalar um bloqueador de fibra ótica para que vocês não pudessem assumir o controle do Cubo, caso o detectassem.

— Você entregou tecnologia do povo das fadas a um homem como Jon Spiro?

— Obviamente eu não entreguei a ele — reagiu Artemis rispidamente. — Ele tomou.

Holly apontou um dedo para o garoto.

— Não se incomode em bancar a vítima, Artemis. Não combina com você. O que você acha? Que Jon Spiro ia largar uma tecnologia que poderia torná-lo o homem mais rico da face do planeta?

— Então foi o seu computador que pingou a gente?

— Foi — admitiu Artemis. — Sem intenção. Spiro pediu uma varredura de segurança, e os circuitos do Cubo captaram fachos de satélites da LER

— A gente não pode bloquear sondagens futuras? — perguntou a capitã da LER

— Os defletores da Cidade do Porto serão inúteis contra nossa própria tecnologia. Mais cedo ou mais tarde Spiro vai descobrir sobre o Povo. E se isso acontecer, não consigo ver um homem desses simplesmente permitindo que a gente viva em harmonia.

Holly olhou furiosa para Artemis.

— Faz você se lembrar de alguém?

— Eu não sou nem de longe como Jon Spiro. Ele é um assassino frio!

— Espere mais alguns anos — disse Holly. — Você chega lá.

Potrus suspirou. Era só colocar Artemis Fowl e Holly Short no mesmo lugar e cedo ou tarde haveria uma briga.

— Certo, Holly — disse o centauro. — Vamos tentar agir como profissionais. O passo um é interromper o apagão. Nossa próxima prioridade é recuperar o Cubo antes que Spiro possa descobrir seus segredos.

— Nós temos algum tempo — disse Artemis. — O Cubo é criptografado.

— Criptografado como?

— Eu coloquei um Código Eterno no disco rígido.

— Um Código Eterno — disse Potrus. — Estou impressionado.

— Não foi muito difícil. Eu inventei uma linguagem de base completamente nova, de modo que Spiro não terá estrutura de referência.

Holly estava se sentindo meio de fora.

— E quanto tempo demora para decifrar esse Código Eterno?

Artemis não pôde resistir a levantar uma sobrancelha.

— Uma eternidade. Em teoria, mas com os recursos de Spiro, um bocado a menos.

Holly ignorou o tom de voz.

— Certo, então estamos em segurança. Não é preciso sair caçando Spiro se tudo que ele tem é uma caixa de circuitos inúteis.

— Nem de longe são inúteis — contrapôs Artemis. — Somente o projeto do chip vai levar sua equipe de pesquisa e desenvolvimento em direções interessantes. Mas você está certa com relação a uma coisa, Holly, não há necessidade de sair caçando Spiro. Assim que ele perceber que ainda estou vivo, virá me procurar. Afinal de contas eu sou o único que pode abrir todo o potencial do Cubo V.

Holly pousou a cabeça nas mãos.

— Então a qualquer momento uma equipe de assassinos pode entrar aqui, procurando a chave do Código Eterno. E em momentos assim que seria bom termos alguém como Butler.

Artemis pegou o telefone de parede.

— Há mais de um Butler na família.

 

Sfax, Tunísia, Norte da Áfríca

PARA o seu décimo oitavo aniversário Juliet Butler pediu, e recebeu, um traje de judô reforçado, duas facas de atirar e um vídeo do Campeonato Mundial de Vale-tudo — itens que geralmente não estão na lista de pedidos de uma adolescente comum. Mas Juliet Butler não era uma adolescente comum.

Juliet era extraordinária em muitos sentidos. Por um lado, podia acertar um alvo em movimento com qualquer arma que você queira e, por outro, podia jogar a maioria das pessoas muito mais longe do que seria recomendável.

Claro que não aprendeu tudo isso assistindo a vídeos de lutas. O treinamento de Juliet começou aos quatro anos. Depois do jardim-de-infância, todos os dias Domovoi Butler acompanhava a irmãzinha até o dojô da Mansão Fowl, onde lhe ensinava as várias formas de arte marcial. Quando estava com oito anos, Juliet era faixa-preta do terceiro dan em sete disciplinas. Aos onze anos estava além de qualquer faixa.

Tradicionalmente, todos os homens da família Butler se matriculavam na Academia de Proteção Pessoal de Madame Ko ao fazer dez anos, passando seis meses de cada ano aprendendo o trabalho de guarda-costas e os outros seis guardando um superior de baixo risco. As mulheres Butler geralmente serviam várias famílias ricas por todo o mundo. Mas Juliet decidiu que combinaria os dois papéis, passando metade do tempo com Angeline Fowl e a outra metade aprimorando suas habilidades marciais no acampamento de Madame Ko. Foi a primeira mulher da família Butler a se matricular na Academia, e apenas a quinta mulher a passar do exame físico. O acampamento jamais se localizava no mesmo país por mais de cinco anos. Butler tinha feito seu treinamento na Suíça e em Israel, mas sua irmã mais nova recebeu instrução nas montanhas de Utsukushi-gahara, no Japão.

O dormitório de Madame Ko era muito diferente das acomodações luxuosas da Mansão Fowl. No Japão, Juliet dormia numa esteira de palha, não tendo nada além de dois roupões de algodão rústico, e só consumia arroz, peixe e bebidas de proteínas.

O dia começava às cinco e meia, quando Juliet e os outros acólitos corriam 8 quilômetros até o riacho mais próximo, pegando peixe com as mãos. Depois de cozinhar e apresentar o peixe aos seus sensei, os acólitos amarravam às costas barris vazios de 75 litros e subiam até o início da parte nevada. Quando o barril estava cheio de neve, o acólito o rolava de volta até o acampamento base, depois amassava a neve com os pés descalços até ela derreter e poder ser usada para o banho do sensei. Então o treinamento do dia podia começar.

Dentre as lições estava o Cos Tapa, uma arte marcial desenvolvida pela própria Madame Ko, especialmente adequada aos guarda-costas, cujo objetivo primário não era a defesa pessoal, e sim a defesa do superior. Além disso, os acólitos estudavam armamento avançado, tecnologia de informática, manutenção de veículos e técnicas de negociação com reféns.

Aos 18 anos Juliet podia desmontar e montar de novo, de olhos vendados, noventa por cento das armas produzidas em todo o mundo, operar qualquer veículo, fazer a maquiagem em menos de quatro minutos e, apesar de sua estonteante mistura genética asiática e européia, desaparecer em qualquer multidão como se fosse uma nativa. Seu irmão mais velho estava muito orgulhoso.

O último passo no treinamento era uma simulação de campo num ambiente desconhecido. Se ela passasse nesse teste, Madame Ko marcaria o ombro de Juliet com a tatuagem de um diamante azul. A tatuagem, idêntica à do ombro de Butler, simbolizava não somente a dureza do formando, mas também a natureza multifacetada de seu treinamento. Nos círculos de proteção pessoal, um guarda-costas que tivesse o diamante azul não precisava de outra referência.

Madame Ko tinha escolhido a cidade de Sfax, na Tunísia, para a avaliação final de Juliet. Sua missão era guiar o superior pelo tumultuoso mercado, ou medina, da cidade. Em geral um guarda-costas alertaria seu superior para não se aventurar numa área tão densamente povoada, mas Madame Ko observou que os superiores raramente ouviam os conselhos, e era melhor estar preparada para qualquer eventualidade. E, como se Juliet já não estivesse sob pressão suficiente, a própria Madame Ko decidiu representar o papel de superior.

Fazia um calor excepcional no norte da África. Juliet forçou a vista através dos óculos com lentes que iam até os lados do rosto, concentrando-se em seguir a figura diminuta que serpenteava pela multidão à sua frente.

— Depressa — disse rispidamente Madame Ko. — Você vai me perder.

— Nem sonhando, madame — respondeu Juliet, imperturbável. Madame Ko estava simplesmente tentando distraí-la com a conversa. E já havia distrações suficientes no ambiente local. Ouro pendia em correntes brilhantes em dezenas de barracas; tapetes tunisianos balançavam em varais de madeira, cobertura perfeita para um assassino. Moradores locais se comprimiam desconfortavelmente próximos, ansiosos para olhar aquela mulher bonita, e o terreno era traiçoeiro — um passo em falso podia levar a uma torção no tornozelo e ao fracasso.

Juliet processava todas essas informações automaticamente, ajustando-as a cada movimento. Pôs a mão firme no peito de um adolescente que riu para ela, pulou por cima de uma poça oleosa refletindo padrões de arco-íris e seguiu Madame Ko por outro beco no interminável labirinto da medina.

De repente havia um homem junto de sua cara. Um dos comerciantes do mercado.

— Eu ter bons tapetes — disse ele num francês precário. — Vem comigo. Eu mostrar!

Madame Ko foi em frente. Juliet tentou acompanhá-la, mas o homem bloqueou seu caminho.

— Não, obrigada. Não estou interessada. Eu vivo ao ar livre.

— Muito engraçado, mademoiselle. Você faz boa piada. Agora venha ver tapetes de Ahmed.

A multidão começou a notar, girando para encará-la, como as gavinhas de um organismo gigantesco. Madame Ko estava se afastando ainda mais. Ela estava perdendo o superior.

— Eu disse não. Agora saia do caminho, Sr. Homem do Tapete. Não me faça quebrar uma unha.

O tunisiano estava desacostumado a receber ordens de alguém do sexo feminino, e agora seus amigos estavam olhando.

— Eu dar boa pechincha — insistiu ele, apontando para sua barraca. — Melhores tapetes de Sfax.

Juliet se desviou para um dos lados, mas a multidão se moveu para interceptá-la.

Foi nesse ponto que Ahmed perdeu qualquer simpatia que Juliet pudesse sentir por ele. Até agora ele fora simplesmente um habitante local, inocente, no lugar errado na hora errada. Mas agora...

— Vamos — disse o tunisiano passando um dos braços pela cintura da jovem. Não era uma idéia que chegaria às suas dez melhores.

— Ah, atitude ruim, Homem do Tapete!

Mais rápido do que o olho poderia piscar, Ahmed foi enrolado nas dobras do tapete mais próximo e Juliet havia se afastado. Ninguém teve a menor idéia do que tinha acontecido até que repassaram o incidente na tela da camcorder de Kamal, o vendedor de galinhas. Em câmera lenta, os comerciantes viram a garota eurasiana levantar Ahmed pela garganta e pelo cinto e jogá-lo inteiro numa barraca de tapetes. Foi um movimento que um dos mercadores de ouro reconheceu como um Estilingue, uma manobra popularizada pelo lutador americano Papa Hog. Os comerciantes riram tanto que vários se desidrataram. Foi a coisa mais engraçada que tinha acontecido o ano inteiro. A gravação chegou a ganhar um prêmio na versão tunisiana das Videocassetadas. Três semanas depois, Ahmed se mudou para o Egito.

De volta a Juliet. A guarda-costas em teste correu como se disputasse os cem metros rasos, desviando-se de comerciantes aparvalhados e virando bruscamente à direita num beco. Madame Ko não poderia ter ido longe. Ela ainda poderia terminar sua tarefa.

Juliet estava furiosa consigo mesma. Era exatamente o tipo de coisa sobre a qual seu irmão a tinha alertado.

— Cuidado com Madame Ko — tinha avisado Butler. — Nunca se sabe o que ela vai tramar num teste de campo. Ouvi dizer que uma vez ela causou o estouro numa manada de elefantes em Calcutá, só para distrair um acólito.

O problema era que nunca se poderia ter certeza. Aquele vendedor de tapetes poderia ser contratado por Madame Ko ou poderia ser um civil inocente, que por acaso meteu o nariz onde não era chamado.

O beco se estreitava de modo que o tráfego humano seguia em fila indiana. Varais improvisados ziguezagueavam à altura das cabeças; gutras e abayas pendiam frouxas soltando vapor no calor. Juliet se abaixou sob a roupa lavada, desviando-se de compradores parados. Perus saltavam de susto o mais longe que os barbantes que os amarravam permitiam.

E de repente ela estava numa clareira. Uma praça com pouca luz, cercada por casas de três andares. Homens se apoiavam nas varandas superiores, soltando baforadas em narguilés com sabor de frutas. No chão havia um mosaico inestimável, representando uma cena numa terma romana.

No centro da praça, caída com os joelhos junto ao peito, estava Madame Ko. Estava sendo agredida por três homens. Não eram comerciantes locais. Todos os três usavam preto das forças especiais, e atacavam com a segurança e a precisão de profissionais treinados. Isso não era um teste. Aqueles homens estavam realmente tentando matar sua sensei.

Juliet estava desarmada; essa era uma das regras. Levar armas para o país africano significaria automaticamente prisão perpétua. Por sorte parecia que seus adversários também estavam desarmados, mas as mãos e os pés na certa seriam suficientes para o serviço que tinham em mente.

Aqui a improvisação era a chave para a sobrevivência. Não havia sentido em tentar um ataque direto. Se aqueles três haviam dominado Madame Ko, seriam mais do que um desafio para ela em combate regular. Era hora de tentar uma coisa não muito ortodoxa.

Juliet saltou enquanto corria, agarrando um varal de roupas ao passar. A argola resistiu por um segundo, e depois se soltou do reboco seco. A corda veio atrás dela, balançando com o peso de tapetes e turbantes. Juliet foi para o leste ao máximo que o ancoragem da corda do outro lado permitia, e então girou na direção dos homens.

— Ei, garotos! — gritou ela, não por bravata, mas porque isso funcionaria melhor com as cabeças levantadas.

Os homens olharam para cima a tempo de levar na cara um monte de pêlo de camelo empapado. Os tapetes pesados e as roupas se enrolaram em volta dos membros que se sacudiam, e a corda de náilon pegou-os abaixo do queixo. Em menos de um segundo os três estavam caídos. E Juliet se certificou de que continuassem no chão, com beliscões nos feixes de nervos na base de cada pescoço.

— Madame Ko! — gritou ela, procurando sua sensei no meio das roupas lavadas. A velha estava estremecendo em seu vestido verde-oliva, com um turbante simples cobrindo o rosto.

Juliet ajudou-a a ficar de pé.

— Viu aquilo, madame? Eu acabei com aqueles panacas. Aposto que nunca viram nada assim. Improvisação. Butler sempre diz que essa é a chave. A senhora sabe, acho que a sombra nos meus olhos os distraiu. Verde brilhante. Nunca falha...

Juliet parou de falar porque havia uma faca em sua garganta. A faca era segura pela própria Madame Ko, que na verdade não era Madame Ko, e sim outra minúscula senhora oriental com um vestido verde-oliva. Uma isca.

— Você está morta — disse a senhora.

— Sim — concordou Madame Ko, saindo das sombras. — E se você está morta, seu superior está morto. E você fracassou.

Juliet se curvou, juntando as mãos.

— Foi um truque sujo, madame — disse ela, tentando parecer respeitosa.

A sensei riu.

— Claro. A vida é assim. O que você esperava?

— Mas aqueles assassinos; eu chutei a bun...; eu os derrotei totalmente.

Madame Ko descartou isso com um aceno.

— Sorte. Felizmente, para você, eles não eram assassinos, e sim três formandos da Academia. Que bobagem foi aquela com a corda?

— É um truque de luta-livre — disse Juliet. — Chama-se O Varal.

— Não é confiável — disse a dama japonesa.— Você conseguiu porque a sorte estava ao seu lado. A sorte não basta em nosso trabalho.

— Não foi minha culpa — protestou Juliet. — Houve um cara no mercado. Veio para cima de mim. Eu tive de colocá-lo para dormir durante um tempo.

Madame Ko deu um tapinha entre os olhos de Juliet.

— Quieta, garota. Pense pela primeira vez. O que você deveria ter feito?

Juliet se curvou mais alguns centímetros.

— Deveria ter incapacitado o vendedor imediatamente.

— Exato. A vida dele não significa nada. É insignificante comparada com a segurança do superior.

— Eu não posso simplesmente matar pessoas inocentes — protestou Juliet.

Madame Ko suspirou.

— Eu sei, criança. E é por isso que você não está pronta. Você tem toda a capacidade, mas carece de foco e decisão. Talvez no ano que vem.

O coração de Juliet se dilacerou. Seu irmão tinha conquistado o diamante azul aos 18 anos. Era o mais jovem a se formar na história da Academia. Ela esperava igualar esse feito. Agora teria de tentar de novo dali a 12 meses. Era inútil protestar. Madame Ko nunca voltava atrás numa decisão.

Uma jovem vestida de acólito saiu de um beco, segurando uma pasta pequena.

— Madame — disse ela fazendo uma reverência. — Telefonema para a senhora, via satélite.

Madame Ko pegou o aparelho e ouviu atentamente durante vários minutos.

— Mensagem de Artemis Fowl — disse por fim.

Juliet estava doida para ficar ereta, mas seria uma quebra imperdoável do protocolo.

— Sim, madame?

— A mensagem é: Domovoi precisa de você. Juliet franziu a testa.

— Quer dizer que Butler precisa de mim.

— Não — disse Madame Ko, sem qualquer traço de emoção. — Quero dizer que Domovoi precisa de você. Só estou repetindo o que ele me disse.

E de repente Juliet pôde sentir o sol golpeando seu pescoço, e pôde ouvir os mosquitos zumbindo em seus ouvidos como brocas de dentista, e tudo que queria era ficar de pé e sair correndo até o aeroporto. Butler nunca teria revelado seu nome a Artemis. A não ser que... Não, ela não podia acreditar. Nem podia se dar ao luxo de pensar.

Madame Ko bateu em seu queixo, Pensativamente.

— Você não está preparada. Eu não deveria deixá-la ir. Você está muito envolvida emocionalmente para ser uma guarda-costas eficaz.

— Por favor, madame.

Sua sensei pensou nisso durante dois longos minutos.

— Muito bem. Vá.

Juliet tinha ido antes que a palavra terminasse de ecoar na praça. E que Deus ajudasse qualquer vendedor de tapetes que surgisse no seu caminho.

 

Agulha Spiro, Chicago, Illinois, Eua

JON Spiro pegou o Concorde no Aeroporto Heathrow, para o Aeroporto Internacional O'Hare em Chicago. Uma limusine o levou até a Agulha Spiro, no centro da cidade, uma lasca de aço e vidro que subia 86 andares acima da silhueta de Chicago. As Indústrias Spiro ocupavam os andares que iam do cinqüenta ao 85. O 86° andar era a residência pessoal de Spiro, acessível por elevador privativo ou heliporto.

Jon Spiro não tinha dormido durante toda a viagem, empolgado demais com o pequeno cubo que estava em sua pasta. O chefe de sua equipe técnica ficou igualmente empolgado quando Spiro informou o que aquela caixa de aparência inofensiva era capaz de fazer, e imediatamente veio correndo para desvendar os segredos do Cubo V. Seis horas depois ele voltou para a sala de reuniões.

— É inútil — disse o cientista, cujo nome era Dr. Pearson. Spiro girou uma azeitona em sua taça de martíni.

— Acho que não, Pearson. De fato eu sei que esse negociozinho é tudo, menos inútil. Talvez você é que seja o inútil nesta equação.

Spiro estava num humor terrível. Arno Bronco tinha acabado de telefonar informando que Fowl tinha sobrevivido. Quando Spiro estava mal-humorado, sabia-se que pessoas desapareciam da face da terra, se tivessem sorte.

Pearson podia sentir o olhar do terceiro ocupante da sala de reuniões ricocheteando em sua cabeça. Aquela não era uma mulher que alguém desejaria ver com raiva: Pearson sabia que, se Jon Spiro decidisse que ele fosse jogado pela janela, aquela figura em particular não teria problema em assinar um documento jurando que ele havia pulado.

Pearson escolheu cuidadosamente as palavras.

— Este equipamento...

— O Cubo V. É como se chama. Eu lhe disse, portanto use o nome.

— Sem dúvida o Cubo V tem enorme potencial. Mas é criptografado.

Spiro jogou a azeitona contra seu cientista-chefe. Era uma experiência humilhante para um ganhador do prêmio Nobel.

— Então decifre o código. Para que eu pago vocês?

Pearson pôde sentir o coração acelerando.

— Não é tão simples assim. Este código. É indecifrável.

— Deixe-me entender direito — disse Spiro, reclinando-se na poltrona de couro vermelho-escuro. — Eu estou gastando duzentos milhões por ano em seu departamento e você não consegue decifrar uma porcaria de código feito por um garoto?

Pearson estava tentando não pensar no som que seu corpo faria ao bater na calçada. A próxima frase iria salvá-lo ou condená-lo.

— O Cubo é ativado por voz, e codificado para os padrões de voz de Artemis Fowl. Ninguém pode decifrar o código. Não é possível.

Spiro não respondeu; era um sinal para ir em frente.

— Eu já ouvi falar de alguma coisa assim. Nós, cientistas, teorizamos a respeito. Chama-se Código Eterno. O código tem milhões de permutações possíveis e, não somente isso, é baseado numa linguagem desconhecida. Parece que esse garoto criou uma linguagem falada somente por ele. Nós nem sabemos como ela se corresponde com o inglês. Um código assim nem deveria existir. Se Fowl está morto, sinto dizer, Sr. Spiro, o Cubo V está morto com ele.

Jon Spiro enfiou um charuto no canto da boca. Não acendeu. Seus médicos tinham proibido. Educadamente.

— E se Fowl estivesse vivo?

Pearson sabia identificar uma corda salva-vidas quando ela era jogada na sua direção.

— Se Fowl estivesse vivo ele seria muito mais fácil de quebrar do que um Código Eterno.

— Certo, doutor — disse Spiro. — Está dispensado. O senhor não vai querer ouvir o que virá em seguida.

Pearson juntou suas anotações e saiu correndo para a porta. Tentou não olhar o rosto da mulher à mesa. Se ele não ouvisse o que viria em seguida, poderia se enganar dizendo que sua consciência estava limpa. E se não visse a mulher à mesa, não poderia identificá-la numa acareação na polícia.

— Parece que temos um problema — disse Spiro para a mulher vestida com um tailleur escuro.

A mulher assentiu. Tudo que ela usava era preto. Tailleur preto, blusa preta, escarpins pretos. Até o relógio Rado no pulso era totalmente preto.

— Sim. Mas é o meu tipo de problema.

Carla Frazetti era afilhada de Spatz Antonelli, que comandava a seção do centro da cidade da família mafiosa Antonelli. Carla atuava como elemento de ligação entre Spiro e Antonelli, possivelmente os dois homens mais poderosos de Chicago. Spiro tinha aprendido no início da carreira que os negócios aliados da Máfia tendiam a florescer.

Carla verificou suas unhas muito bem-cuidadas.

— Parece que o senhor só tem uma opção: pegar o garoto Fowl e arrancar o código dele.

Spiro sugou o charuto apagado, pensando nisso.

— Não é tão simples. O garoto tem uma organização bem-feita. A Mansão Fowl é como uma fortaleza.

Carla sorriu.

— É de um garoto de 13 anos que nós estamos falando, não é?

— Vai fazer 14 dentro de seis meses — disse Spiro, na defensiva. — De qualquer modo, há complicações.

— Como, por exemplo?

— Arno está machucado. De algum modo, Fowl explodiu os dentes dele.

— Nossa! — disse Carla, encolhendo-se.

— Ele nem pode suportar uma brisa, quanto mais comandar uma operação.

— Que pena.

— De fato, o garoto incapacitou os meus melhores agentes. Eles também estão fazendo tratamento dentário. Vai me custar uma fortuna. Não, eu preciso de ajuda externa nesse caso.

— Quer contratar alguém para o serviço?

— Exato. Mas tem de ser o pessoal certo. A Irlanda faz parte do velho mundo. Pistoleiros comuns se destacariam a quilômetros de distância. Eu preciso de gente que possa se misturar e persuadir um garoto a acompanhá-los até aqui. Dinheiro fácil.

Carla piscou.

— Estou entendendo, Sr. Spiro.

— Então, vocês têm gente assim? Gente que possa cuidar de um negócio sem atrair atenção?

— Pelo modo como eu vejo, o senhor precisa de um homem do metal e de um macaco?

Spiro assentiu, familiarizado com a gíria da Máfia. Um homem do metal portava a arma, e um macaco entrava em lugares difíceis de se chegar.

— Temos dois homens assim na nossa folha de pagamento. Posso garantir que não vão atrair a atenção errada na Irlanda. Mas não será barato.

— Eles são bons?

Carla sorriu. Um dos seus incisivos tinha um rubi incrustado.

— Ah, eles são bons. Esses caras são os melhores.

 

Mocassim McGuire estava sendo tatuado. Um crânio na forma de um ás de espadas. A idéia era sua, e ele tinha muito orgulho dela. Tanto orgulho que quis a tatuagem no pescoço. Burton Tinta, o tatuador, conseguiu mudar a idéia de Mocassim, argumentando que as tatuagens no pescoço eram melhores do que um crachá quando os policiais queriam identificar um suspeito. Mocassim cedeu.

— Certo — disse ele. — Faça no braço.

Mocassim mandava fazer uma tatuagem depois de cada serviço. Não restava muita pele em seu corpo com a cor original. Para ver como o bom Mocassim McGuire era no trabalho.

O verdadeiro nome de Mocassim era Aloysius, e vinha da cidade irlandesa de Kilkenny. Ele próprio tinha bolado o apelido Mocassim, porque achava que parecia mais coisa da Máfia do que Aloysius. Durante toda a vida, Mocassim quis ser mafioso, como nos filmes. Quando seus esforços para estabelecer uma máfia celta fracassaram, veio para Chicago.

A Máfia de Chicago o recebeu de braços abertos. Na verdade, um dos capangas lhe deu um abraço de urso. Mocassim mandou o sujeito e seis colegas para o Hospital Mãe da Misericórdia. Nada mau para alguém de um metro e cinqüenta e dois. Oito horas depois de descer do avião, Mocassim tinha entrado para a folha de pagamento.

E aqui estava ele, dois anos e vários serviços depois, já como o principal homem do metal da organização. Suas especialidades eram assalto e cobrança de dívidas. Não era a linha habitual de trabalho para os caras de um metro e cinqüenta e poucos. Mas Mocassim não era um cara de um metro e cinqüenta e poucos comum.

Mocassim se recostou na cadeira regulável do tatuador.

— Gosta dos sapatos, Tinta?

Tinta piscou o suor dos olhos. Era preciso ter cuidado com Mocassim. Até a pergunta mais inocente podia ser uma armadilha. Uma resposta errada e você podia se ver pedindo desculpas a São Pedro.

— É. Gosto. Como é que eles se chamam?

— Mocassins! — gritou o gângster minúsculo. — Mocassins, idiota. Eles são minha marca registrada.

— Ah, é, mocassins. Eu esqueci. Legal, ter uma marca registrada.

Mocassim verificou o progresso em seu braço.

— Está pronto com a agulha?

— Prontíssimo — respondeu Tinta. — Terminei de pintar o contorno. Só tenho de colocar uma agulha nova.

— Não vai doer, vai?

Claro que vai, panaca, pensou Tinta. Eu vou enfiar uma agulha no seu braço. Mas disse em voz alta:

— Não muito. Eu passei anestésico no seu braço.

— É melhor não doer. Ou você vai estar sentindo dor logo depois.

Ninguém ameaçava Tinta, a não ser Mocassim McGuire. Tinta fazia todas as tatuagens para a Máfia. Era o melhor tatuador do estado.

Carla Frazetti passou pela porta. Sua elegância em preto parecia deslocada naquele estabelecimento sujo.

— Olá, garotos — disse ela.

— Olá, Srta. Carla — disse Tinta, ruborizando profundamente. Não eram muitas as damas que entravam no Mancha de Tinta.

Mocassim saltou de pé. Até ele respeitava a afilhada do chefão.

— Srta. Frazetti, poderia ter me passado um bip. Não precisava vir até essa espelunca.

— Não tenho tempo para isso. É urgente. Você vai partir agora mesmo.

— Vou partir? Para onde?

— Irlanda. Seu tio Pat está doente. Mocassim franziu a testa.

— Tio Pat? Eu não tenho um tio Pat.

Carla bateu no chão com o bico do sapato de salto agulha.

— Ele está mal, Mocassim. Muito mal, se é que você me entende.

Finalmente Mocassim captou.

— Ah, saquei. Então eu tenho de fazer uma visita.

— Isso mesmo. Para ver como ele está doente. Mocassim usou um trapo para limpar a tinta do braço.

— Certo, estou pronto. Vamos direto para o aeroporto? Carla passou o braço pelo do gângster minúsculo.

— Logo, Mocassim. Mas primeiro temos de pegar o seu irmão.

— Eu não tenho irmão — protestou Mocassim.

— Claro que tem. O que tem a chave da casa do tio Pat. Ele é o próprio macaquinho.

— Ah. Esse irmão.

Mocassim e Carla pegaram a limusine até o East Side. Mocassim ainda se espantava com o tamanho dos prédios americanos. Em Kilkenny não havia nada com mais de cinco andares, e o próprio Mocassim tinha passado a vida inteira numa casinha de subúrbio. Não que fosse admitir isso aos amigos da Máfia. Para eles tinha se reinventado como um órfão que passou a juventude entrando e saindo de vários reformatórios.

— Quem é o macaco? — perguntou ele.

Carla Frazetti estava ajeitando seu cabelo preto usando o espelho do pó compacto. O cabelo era curto e puxado para trás.

— Um cara novo. Pal Scaver. É irlandês, como você. Isso torna as coisas muito convenientes. Sem vistos, sem documentos falsos, sem história de disfarce elaborada. Só dois baixinhos indo passar as férias em casa.

Mocassim se irritou.

— O que quer dizer com dois baixinhos? Carla fechou o pó compacto com um estalo.

— Com quem você está falando, McGuire? Porque você não pode estar falando comigo. Não nesse tom de voz.

Mocassim empalideceu, com sua vida passando num clarão diante dos olhos.

— Desculpe, Srta. Frazetti. É só o negócio do baixinho. Eu ouvi isso a vida inteira.

— Como você quer que as pessoas o chamem? Grandão? Você é baixo, Mocassim. Aceite isso. É o que lhe dá vantagem. Meu padrinho sempre diz que não há nada mais perigoso do que um sujeito baixo com alguma coisa a provar. Por isso você tem trabalho.

— Acho que sim.

Carla deu-lhe um tapinha no ombro.

— Anime-se, Mocassim. Comparado com esse cara, você é o próprio gigante.

Mocassim se empertigou consideravelmente.

— Verdade? Pal Scaver é muito baixo?

— Ele é baixo. Não sei os centímetros exatos, mas se fosse mais baixo eu estaria trocando as fraldas dele e o empurrando num carrinho de bebê.

Mocassim riu. Ia gostar desse trabalho.

 

Pal Scaver tinha visto dias melhores. Há menos de quatro meses estivera morando numa cobertura em Los Angeles com mais de um milhão de dólares no banco. Mas agora seus fundos tinham sido congelados pelo Departamento de Bens Criminosos e ele estava trabalhando para a Máfia de Chicago ganhando comissão. Spatz Antonelli não era conhecido pela generosidade de suas comissões. Claro, Pal sempre poderia deixar Chicago e voltar a LA, mas lá havia uma força-tarefa policial com seu nome no caderninho, só esperando que ele voltasse ao local do crime. De fato, não havia porto seguro para Pal acima ou abaixo do chão, porque Pal Scaver era na verdade Palha Escavator, anão cleptomaníaco e fugitivo da LEP.

Palha era um anão de túnel, que decidiu que a vida nas minas não era para ele e passou a usar seus talentos de minerador para outros fins: aliviar o Povo da Lama de seus valores e vender no mercado negro do povo subterrâneo. Claro, entrar na residência de outras criaturas sem permissão significava abrir mão de sua magia, mas Palha não se importava. Os anões não tinham mesmo muito poder, e lançar feitiços sempre o deixara nauseado.

Os anões têm várias características físicas que os tornam ladrões ideais. Eles podem deslocar os maxilares, ingerindo vários quilos de terra por segundo. A terra é separada de qualquer mineral benéfico e ejetada pela outra extremidade. Eles também desenvolveram a capacidade de beber através dos poros, um atributo que pode ser bastante útil durante escavações. Isso também transforma seus poros em ventosas, uma ferramenta interessante no arsenal de qualquer ladrão de residências. Finalmente os pêlos dos anões são na verdade como uma rede de antenas vivas, semelhante aos bigodes dos felinos, que podem fazer tudo, de prender besouros a captar ondas de sonar numa parede de túnel.

Palha tinha sido uma estrela em ascensão no submundo do povo das fadas — até que o comandante Julius Raiz pegou seu dossiê. Desde então ele havia passado mais de trezentos anos entrando e saindo da cadeia. Atualmente estava foragido por ter roubado várias barras de ouro do fundo de resgate de Holly Short. Não havia porto seguro abaixo do solo, nem mesmo entre sua própria espécie. Assim Palha foi obrigado a se passar por humano e a pegar qualquer trabalho que conseguisse com a Máfia de Chicago.

Havia perigos associados ao papel de humano. Claro, seu tamanho atraía a atenção de todos que por acaso olhassem para baixo. Mas Palha descobriu rapidamente que o Povo da Lama podia encontrar um motivo para desconfiar de quase todo mundo. Altura, peso, cor da pele, religião. De certa forma era quase mais seguro ser diferente.

O sol era um grande problema. Os anões são extremamente fotossensíveis, e se queimam em menos de três minutos. Por sorte os trabalhos de Palha para a Máfia geralmente aconteciam à noite, mas quando era forçado a se aventurar ao ar livre durante o dia o anão se certificava de que cada centímetro da pele exposta estivesse coberto com bloqueador solar de alta duração.

Palha tinha alugado um apartamento de porão num prédio de pedras marrons do início do século XX. O lugar precisava de alguns reparos, mas isso servia muito bem ao anão. Ele tirou as tábuas do piso do quarto, jogando duas toneladas de solo e fertilizante nos alicerces apodrecidos. O mofo e a umidade já se grudavam às paredes, de modo que ali não era preciso remodelar nada. Numa questão de horas os insetos prosperavam no cômodo. Palha se deitava de costas em seu buraco e agarrava baratas com os pêlos da barba. Lar, doce lar. Não somente o apartamento estava começando a se parecer com uma caverna num túnel, como também, se a LEP aparecesse, ele podia estar cinqüenta metros abaixo do chão num piscar de olhos.

Nos próximos dias Palha iria lamentar não ter tomado esse caminho mais cedo quando ouviu a batida na porta.

Houve uma batida na porta. Palha se arrastou de sua cama no túnel e verificou o monitor de vídeo. Carla Frazetti estava verificando o cabelo no reflexo da aldrava de metal.

A afilhada do chefão? Em pessoa. Devia ser um serviço grande. Talvez a comissão bastasse para ele se estabelecer em outro estado. Estava em Chicago há quase três meses, e era apenas questão de tempo até que a LEP captasse sua pista. Mas nunca sairia dos Estados Unidos. Se você precisasse viver acima do chão, era melhor que fosse num lugar com TV a cabo e muita gente rica de quem roubar.

Palha apertou o painel do interfone.

— Só um minuto, Srta. Frazetti, estou me vestindo.

— Depressa, Pal — disse Carla rispidamente, com a voz estalando pelo alto-falante barato. — Eu estou ficando velha aqui.

Palha vestiu um roupão que tinha feito a partir de velhos sacos de batata. Achava a textura do tecido, que lembrava os pijamas da Penitenciária do Porto, estranhamente confortável. Penteou rapidamente a barba para tirar qualquer besouro preso e atendeu à porta.

Carla Frazetti passou por ele e entrou na sala, acomodando-se na única poltrona. Havia outra pessoa na porta, escondida fora do campo da câmera. Palha fez uma anotação mental. Redirecionar as lentes da câmera do circuito fechado. Uma criatura das fadas poderia se esgueirar por baixo, mesmo não estando com escudo.

O homem franziu os olhos com expressão perigosa para Palha. Típico comportamento da Máfia. Só porque aqueles caras eram gângsteres assassinos, não significava que precisavam ser grosseiros.

— Você não tem outra poltrona? — perguntou o humano baixinho, seguindo a Srta. Frazetti para a sala.

Palha fechou a porta.

— Eu não recebo muitas visitas. Na verdade vocês são as primeiras. Em geral Bruno me passa um bip e eu vou até a oficina.

Bruno do Queijo era o supervisor local da Máfia. Ele fazia seus serviços num depósito de carros roubados. Segundo a lenda, em 15 anos ele não tinha saído de trás de sua mesa de trabalho.

— Tremenda decoração — disse Mocassim, sarcástico. — Mofo e cupins. Eu gosto.

Palha passou o dedo carinhoso por uma tira de umidade verde.

— Esse mofo estava atrás do papel de parede quando eu me mudei. É espantoso o que as pessoas cobrem.

Carla Frazetti pegou na bolsa um frasco de perfume Pétalas Brancas e borrifou o ar em volta de onde estava.

— Certo, chega de conversa. Eu tenho um serviço especial para você, Pal.

Palha se obrigou a ficar calmo. Era sua grande chance. Talvez pudesse arranjar um belo buraco úmido e se acomodar durante um tempo.

— É o tipo de serviço que paga bem se a gente faz direito?

— Não — respondeu Carla. — É o tipo de serviço em que há um pagamento doloroso se você fizer errado.

Palha suspirou. Será que ninguém mais falava com gentileza?

— Então por que eu?

Carla Frazetti sorriu, com o rubi piscando na semi-escuridão.

— Vou responder a essa pergunta, Pal. Mesmo não estando acostumada a me explicar aos empregados. Especialmente a um macaco como você.

Palha engoliu em seco. Algumas vezes se esquecia de como aquelas pessoas eram implacáveis. Nunca durante muito tempo.

— Você foi escolhido para essa tarefa, Pal, por causa do serviço notável que fez com aquele Van Gogh.

Palha deu um sorriso modesto. O alarme do museu tinha sido brincadeira de criança. Nem havia cães.

— Mas também porque você tem passaporte irlandês. Um gnomo fugitivo escondido em Nova York tinha feito documentos irlandeses para ele com uma copiadora roubada da LER Os irlandeses sempre tinham sido os humanos prediletos de Palha, por isso decidiu ser um deles. Deveria saber que isso daria em encrenca.

— Esse serviço específico é na Irlanda, o que geralmente poderia ser um problema. Mas para vocês dois será como férias pagas.

Palha olhou para Mocassim.

— Quem é o pateta?

Os olhos de Mocassim se estreitaram mais. Palha sabia que, se a Srta. Frazetti mandasse, o sujeito o mataria na hora.

— O pateta é Mocassim McGuire, seu parceiro. Ele é um homem do metal. É um serviço para dois. Você abre a porta. Mocassim escolta o alvo de volta para cá.

Escolta o alvo. Palha entendeu o que a expressão significava, e não queria fazer parte daquilo. Roubo era uma coisa, mas seqüestro era outra. Palha sabia que não poderia recusar a tarefa. O que podia era se livrar do homem do metal na primeira oportunidade e ir para um dos estados do sul. Parece que a Flórida tinha uns pântanos lindos.

— Então, quem é o alvo? — perguntou, fingindo que isso importava.

— Essa é uma informação que você não precisa ter — disse Mocassim.

Carla Frazetti pegou uma fotografia no bolso do paletó.

— Quanto menos você souber, menos culpa terá de sentir. A casa. Por enquanto só temos esta fotografia; você pode fazer uma avaliação quando chegar lá.

Palha pegou a foto. O que viu no papel o acertou como um ataque com gás. Era a Mansão Fowl. Portanto Artemis era o alvo. Aquele psicopata baixinho estava sendo mandado para seqüestrar Artemis.

Frazetti sentiu seu desconforto.

— Alguma coisa errada, Pal?

Não deixe aparecer no rosto, pensou Palha. Não deixe que eles vejam.

— Não. É... bem... É um negócio tremendo. Dá para ver caixas de alarme e luzes do lado de fora. Não vai ser fácil.

— Se fosse fácil, eu mesma faria.

Mocassim deu um passo em frente, olhando para Palha.

— Qual é o problema, baixinho? Difícil demais para você? Palha foi obrigado a pensar rapidamente. Se Carla Frazetti achasse que ele não estava à altura do serviço, mandaria outra pessoa. Alguém sem problemas para levar a Máfia até a porta de Artemis. Ficou surpreso ao perceber que não poderia deixar que isso acontecesse. O garoto irlandês tinha salvado sua vida durante a revolução dos goblins, e era a coisa mais parecida com um amigo que ele tinha — o que era bastante patético, quando pensava nisso. Precisava pegar o trabalho, nem que fosse para garantir que não acontecesse de acordo com o plano.

— Ei, não se preocupe comigo. Ainda não fizeram uma construção que Pal Scaver não possa abrir. Só espero que Mocassim seja suficientemente homem para o serviço.

Mocassim agarrou o anão pelas lapelas.

— O que você quer dizer com isso, Scaver?

Em geral Palha evitava insultar pessoas que teriam probabilidade de matá-lo, mas talvez fosse útil estabelecer Mocassim como um cabeça-quente agora. Especialmente se quisesse culpá-lo por coisas que dessem errado mais tarde.

— Uma coisa é ser um macaco anão, mas um homem do metal anão? Até que ponto você vai ser bom numa luta de perto?

Mocassim largou o anão e abriu a camisa, revelando o peito coberto por uma tapeçaria de tatuagens.

— Sou bom até esse ponto, Scaver. Conte as tatuagens. Conte.

Palha lançou um olhar carregado para a Srta. Frazetti. O olhar dizia: Você vai confiar nesse cara?

— Já chega! — disse Carla. — A testosterona aqui está começando a feder mais do que as paredes. Este é um serviço muito importante. Se vocês dois não puderem fazer, vou arranjar outra equipe.

Mocassim abotoou a camisa.

— Certo. Srta. Frazetti. Nós podemos fazer. Considere esse serviço realizado.

Carla se levantou, espanando umas duas centopéias da bainha do paletó. Os insetos não a incomodaram muito. Ela já vira coisas muito piores em seus 25 anos.

— Fico feliz em saber. Pal, vista uma roupa e pegue seu kit de macaquice. Vamos esperar na limusine.

Mocassim cutucou o peito de Palha.

— Cinco minutos. Se demorar mais, nós viremos pegá-lo.

Palha olhou-os saindo. Era sua última chance de se mandar. Podia mastigar através dos alicerces do quarto e estar num trem para o sul antes que Carla Frazetti soubesse que ele havia sumido.

Pensou nisso a sério. Esse tipo de coisa ia totalmente contra sua natureza. Não que ele fosse um anão mau, simplesmente não estava acostumado a ajudar outras pessoas. A não ser que houvesse algum lucro nisso. A decisão de ajudar Artemis Fowl era um ato completamente altruísta. Estremeceu. Uma consciência era a última coisa de que precisava. Mais um pouco e estaria vendendo biscoitos para ajudar os velhinhos de algum abrigo.

 

Trecho do Diário de Artemis Fowl. Disco 2. Criptografado

FINALMENTE meu pai tinha recuperado a consciência. Fiquei aliviado, claro, mas suas últimas palavras naquele dia estavam saltando de um lado para o outro na minha mente. "O ouro não é a coisa mais importante, Arty", tinha dito ele. "Nem o poder. Nós temos tudo de que precisamos aqui mesmo. Nós três."

Seria possível que a magia tivesse transformado o meu pai? Eu precisava saber. Precisava falar com ele sozinho. Assim, às três da madrugada do dia seguinte pedi que Butler me levasse de volta ao Hospital da Universidade de Helsinki no Mercedes alugado.

Papai ainda estava acordado, lendo Guerra e Paz à luz do abajur.

— Não é um livro muito engraçado — comentou ele. Mais piadas. Tentei sorrir, mas meu rosto não estava no clima.

Papai fechou o livro.

— Eu estava esperando você, Arty. Nós precisamos conversar. Há algumas coisas que precisamos pôr em pratos limpos.

Fiquei parado rigidamente ao pé da cama.

— Sim, papai. Concordo.

O sorriso de papai estava tingido de tristeza.

— Como você está formal! Eu me lembro de que também era assim com o meu pai. Algumas vezes acho que ele não me conhecia, e fico preocupado com a possibilidade de a mesma coisa acontecer conosco. Por isso quero que a gente converse, filho, não sobre contas bancárias. Não sobre ações e bolsa de valores. Não sobre controle acionário de empresas. Não quero falar de negócios, quero falar de você.

Eu estivera com medo disso.

— De mim? O senhor é a prioridade aqui, papai.

— Talvez, mas não consigo ficar feliz enquanto a cabeça de sua mãe não puder descansar.

— Descansar? — perguntei, como se não soubesse aonde isso estava levando.

— Não banque o inocente, Artemis. Eu liguei para alguns dos meus contatos nas agências da lei pela Europa. Aparentemente você andou ativo na minha ausência. Muito ativo.

Estremeci, sem saber se estava levando uma bronca ou sendo elogiado.

— Não faz muito tempo eu ficaria muito impressionado com suas extravagâncias. Tamanha audácia e ainda menor de idade. Mas agora, falando como pai, as coisas têm de mudar, Arty. Você precisa ter de volta sua infância. É meu desejo, e de sua mãe, que você volte à escola depois das férias e deixe os negócios da família comigo.

— Mas, papai!

— Confie em mim, Arty. Eu estou nos negócios há muito mais tempo do que você. Prometi à sua mãe que os Fowl estarão no caminho certo daqui para a frente. Todos os Fowl. Eu tenho outra chance, e não vou desperdiçá-la com cobiça. Agora nós somos uma família. Uma família de verdade. A partir de agora o nome Fowl estará associado à honra e à honestidade. Concorda?

— Concordo — falei, segurando sua mão.

Mas, e minha reunião com Jon Spiro, de Chicago? Decidi ir emfiente, de acordo com o plano. Uma última aventura — e então os Fowl poderiam ser uma família de verdade. Afinal de contas, Butler iria me acompanhar. O que poderia dar errado?

 

Butler abriu os olhos. Estava em casa. Artemis dormia na poltrona ao lado da cama. O garoto parecia ter cem anos de idade. Não era surpreendente, depois de tudo por que tinha passado. Mas agora aquela vida estava acabada. Toda ela.

— Tem alguém em casa? — perguntou o mordomo.

Artemis ficou instantaneamente alerta.

— Butler, você voltou!

Butler lutou para se apoiar nos cotovelos. Foi um tremendo esforço.

— É uma surpresa. Eu não esperava ver você, ou qualquer pessoa, nunca mais.

Artemis encheu um copo d'água da jarra ao lado da cama.

— Aqui, velho amigo. Só descanse.

Butler bebeu devagar. Estava cansado, mas era mais do que isso. Ele já sentira o cansaço da batalha, mas isso ia mais fundo.

— O que aconteceu, Artemis? Eu não deveria estar vivo. E se aceito que estou vivo, deveria estar sentindo uma dor gigantesca neste momento.

Artemis foi até a janela, olhando para a propriedade.

— Bronco atirou em você. Foi um ferimento fatal, e Holly não estava por perto para ajudar, por isso congelei você até que ela chegasse.

Butler balançou a cabeça.

— Criogenia? Só Artemis Fowl. Você usou os freezers de peixe, imagino.

Artemis assentiu.

— Espero que neste momento eu não seja em parte uma truta de rio, hein?

Quando Artemis se virou para encarar o amigo, ele não estava sorrindo.

— Houve complicações.

— Complicações?

Artemis respirou fundo.

— Foi uma cura difícil, não havia como prever o resultado. Potrus alertou que talvez ela fosse demais para o seu organismo, mas eu insisti em que fôssemos adiante.

Butler sentou-se.

— Artemis. Está tudo bem. Eu estou vivo. Qualquer coisa é melhor do que a alternativa.

Artemis não se sentiu tranqüilizado. Pegou no armário um espelho de cabo de madrepérola.

— Prepare-se, e dê uma olhada.

Butler respirou fundo e olhou. Esticou o maxilar e beliscou as bolsas debaixo do olho.

— Quanto tempo eu fiquei apagado?

 

Palha tinha decidido que o melhor modo de estragar a missão era antagonizar Mocassim até ele ficar louco. Deixar as pessoas loucas era um talento seu, um talento que ele não tinha oportunidade de exercer com muita freqüência.

Dois indivíduos diminutos estavam sentados lado a lado num 747, olhando as nuvens passarem rapidamente abaixo. Primeira classe: uma das vantagens de trabalhar para os Antonelli.

Palha bebericou delicadamente numa flûte de champanhe.

— E então, Chinelo...

— É Mocassim.

— Ah, é, Mocassim. Qual é a história por trás de todas essas tatuagens?

Mocassim enrolou a manga, revelando uma cobra turquesa com gotas de sangue no lugar dos olhos. Outra idéia sua.

— Eu faço uma depois de cada serviço.

— Ah. Então se você pintar uma cozinha, faz uma tatuagem?

— Não esse tipo de serviço, estúpido.

— Então que tipo de serviço? Mocassim trincou os dentes.

— Eu vou ter de soletrar para você?

Palha pegou alguns amendoins numa bandeja que passava.

— Não vai adiantar. Eu nunca fui à escola. É só falar de um jeito simples.

— Você não pode ser tão imbecil! Spatz Antonelli não contrata imbecis.

Palha deu uma piscadela marota.

— Tem certeza?

Mocassim bateu no bolso da camisa, esperando encontrar algum tipo de arma.

— Espere até isso acabar, seu espertinho. Nós dois vamos resolver nossas diferenças.

— Você fica dizendo isso o tempo todo, Botina.

— Mocassim!

— Tanto faz.

Palha se escondeu atrás da revista da companhia aérea. Isso era fácil demais. O mafioso já estava meio enlouquecido. Mais algumas horas na companhia de Palha deveriam bastar para deixar Mocassim McGuire com a boca espumando.

 

Palha e Mocassim passaram pela alfândega irlandesa sem qualquer incidente. Afinal de contas, eram apenas cidadãos voltando para casa para as férias. Não pareciam uma dupla da Máfia pronta para aprontar alguma coisa. Como poderiam ser? Quem já ouvira falar de baixinhos envolvidos com o crime organizado? Ninguém. Mas talvez isso acontecesse porque eles eram muito bons.

O controle de passaportes deu a Palha outra oportunidade de enfurecer seu parceiro.

O policial estava se esforçando ao máximo para não prestar atenção à altura, ou à falta de altura, de Palha.

— Então, Sr. Scaver, veio visitar a família? Palha assentiu.

— Isso mesmo. A família de minha mãe é de Killarney.

— Não diga.

— Se eu não dissesse o senhor não poderia ter dito "não diga"!

— Muito boa. Você deveria estar no palco.

— Engraçado o senhor mencionar isso...

O policial gemeu. Mais dez minutos e seu turno estaria terminado.

— De fato eu estava sendo sarcástico... — murmurou ele.

— ...porque meu amigo, o Sr. McGuire, e eu também fazemos parte da peça de fim de ano. É Branca de Neve. Eu sou o Mestre, e ele o Dunga.

O policial do controle de passaportes forçou um sorriso.

— Muito bom. O próximo. Palha falou para toda a fila ouvir.

— Claro, o Sr. McGuire aqui nasceu para fazer o papel do Dunga, se é que vocês entendem.

Mocassim perdeu as estribeiras ali mesmo no terminal.

— Seu baixinho desgraçado! — gritou ele. — Eu vou matar você! Você vai ser minha próxima tatuagem. Você vai ser minha próxima tatuagem!

Palha ficou cantarolando enquanto Mocassim desaparecia no meio de meia dúzia de seguranças.

— Atores — disse ele. — São muito irritadiços.

Soltaram Mocassim três horas mais tarde, depois de uma revista completa e vários telefonemas para o padre da paróquia em sua cidade natal. Palha estava esperando no carro alugado antecipadamente, um modelo especialmente modificado, com os pedais do acelerador e do freio mais altos.

— Seu mau gênio está pondo essa operação em sério risco — comentou o anão, com a maior cara-de-pau. — Vou ter de telefonar para a Srta. Frazetti se você não puder se controlar.

— Dirija — disse rouco o homem do metal. — Vamos terminar logo com isso.

— Certo, então. Mas é a sua última chance. Mais um episódio assim e eu vou ter de esmagar sua cabeça entre os dentes.

Mocassim percebeu pela primeira vez os dentes do parceiro. Eram blocos de marfim na forma de lápides de cemitério, e parecia haver uma quantidade muito grande para apenas uma boca. Seria possível que Scaver conseguisse fazer o que estava ameaçando? Não, decidiu Mocassim. Só estava meio nervoso depois do interrogatório na alfândega. Mesmo assim havia alguma coisa no sorriso do anão. Um brilho que falava de talentos ocultos e apavorantes. Talentos que o homem do metal preferiria que continuassem ocultos.

Palha dirigiu enquanto Mocassim dava alguns telefonemas pelo celular. Para ele foi simples contatar alguns velhos colegas e conseguir uma arma, um silenciador e dois rádios com fones de ouvido, para serem deixados numa bolsa atrás da placa de saída da estrada em direção à Mansão Fowl. Os colegas de Mocassim até mesmo aceitavam cartão de crédito, de modo que não havia necessidade das frases de macho que geralmente acompanhavam as transações no mercado negro.

Mocassim verificou o funcionamento e a mira da arma no carro. Sentia-se de novo no controle.

— Que tal, Pal? — disse ele dando um risinho, como se essa rima simples fosse a piada mais engraçada que já tivesse feito. E, infelizmente, era. — Já pensou num plano?

Palha não afastou os olhos da estrada.

— Não. Eu pensava que você era o chefão aqui. Os planos são o seu departamento. Eu só invado.

— Isso mesmo. Eu sou o chefão, e acredite, o jovem Sr. Fowl vai perceber isso também quando eu terminar de falar com ele.

— Jovem Sr. Fowl? — disse Palha em tom inocente. — Nós estamos aqui para pegar algum garoto?

— Não é só um garoto — revelou Mocassim, contra as ordens. — É Artemis Fowl. Herdeiro do império do crime da família Fowl. Ele tem uma coisa na cabeça, e a Srta. Frazetti quer. Por isso devemos deixar claro para o moleque como é importante que ele venha conosco para abrir o bico.

O aperto de Palha no volante ficou mais frouxo. Ele já deveria ter agido. Mas o truque não era incapacitar Mocassim, era persuadir Carla Frazetti a não mandar outra equipe.

Artemis saberia o que fazer. Ele tinha de falar com o garoto antes de Mocassim. Um celular e uma ida ao banheiro eram tudo de que precisava. Uma pena nunca ter se incomodado em comprar um telefone, mas nunca houvera para quem ligar antes. Além disso, com Potrus, todo cuidado era pouco. Aquele centauro era capaz de triangular um grilo cricrilando.

— É melhor nós pararmos para pegar uns suprimentos — disse Mocassim. — Pode demorar dias para tocaiar esse local.

— Não precisa. Eu conheço a planta. Já roubei aqui, na juventude. É moleza.

— E não falou disso antes porque...

Palha fez um gesto grosseiro para um motorista de caminhão que estava ocupando as duas pistas.

— Você sabe como é. Eu trabalho por comissão. A comissão é baseada na dificuldade. No segundo em que eu dissesse que já tinha invadido esse lugar, iriam cortar dez mil do meu pagamento.

Mocassim não discutiu. Era verdade. Você sempre exagerava a dificuldade do serviço. Qualquer coisa para espremer mais algumas pratas do patrão.

— Então, você pode fazer com que a gente entre?

— Eu posso fazer com que eu entre. Depois volto para pegar você.

Mocassim ficou cheio de suspeitas.

— Por que eu não vou simplesmente com você? Seria muito mais fácil do que ficar por aí em plena luz do dia.

— Primeiro, eu só vou entrar no escuro. E segundo, é claro que você pode ir comigo, se não se importar em se arrastar pela fossa séptica e subir por nove metros de canos de esgoto.

Mocassim teve de abrir a janela, diante do pensamento.

— Certo. Você vem me pegar. Mas nós vamos ficar em contato pelo rádio. Se alguma coisa der errado, você me avisa.

— Sim, senhor, chefe — disse Palha, enfiando o fone no ouvido peludo e prendendo o microfone no paletó. — Eu não iria perder a oportunidade de vê-lo intimidando um garoto.

O sarcasmo fez um ligeiro som chiado voando por cima da cabeça de Mocassim.

— Isso mesmo — disse o homem de Kilkenny. — Eu sou o chefe. E você não quer que eu chegue tarde ao compromisso.

Palha teve de se concentrar para impedir que os pêlos de sua barba se enrolassem. O pêlo dos anões é sensível ao humor, especialmente à hostilidade, e a hostilidade estava fluindo por cada poro daquele homem. Até hoje a barba de Palha nunca tinha errado. Aquela parceria não iria terminar bem.

Palha estacionou à sombra do muro da propriedade Fowl.

— Tem certeza de que o lugar é esse? — perguntou Mocassim.

Palha apontou o dedo gorducho para o portão de ferro ornamentado.

— Está vendo ali onde diz Mansão Fowl?

— Estou.

— Eu diria que este é provavelmente o lugar.

Nem mesmo Mocassim podia deixar de entender uma provocação tão direta.

— É melhor você me colocar lá dentro, Scaver, ou... Palha mostrou os dentes.

— Ou o quê?

— Ou a Srta. Frazetti vai ficar muito chateada — completou Mocassim sem graça, consciente de que estava perdendo a batalha para ver quem era o mais durão. Mocassim decidiu que daria uma lição em Pal Scaver o mais rápido possível.

— Não vamos querer chatear a Srta. Frazetti — disse Palha. Em seguida desceu do banco alto e pegou a bolsa de equipamento no porta-malas. Dentro da bolsa havia certas ferramentas de invasão pouco ortodoxas, fornecidas por seu contato do povo dos subterrâneos em Nova York. Esperava que nenhuma delas fosse notada. Não do modo como pretendia entrar na mansão.

Palha bateu na janela do carona. Mocassim abriu-a.

— O quê?

— Lembre-se, você fica aqui até que eu venha pegá-lo.

— Isso parece uma ordem, Scaver. Está me dando ordens agora?

— Eu? — disse Palha revelando toda a amplidão dos seus dentes. — Dando ordens? Eu nem sonharia com isso.

Mocassim levantou a janela de novo.

— É melhor que não — disse o homem do metal assim que havia uma camada de vidro reforçado entre ele e aqueles dentes.

Dentro da Mansão Fowl, Butler tinha acabado de se barbear. Estava começando a se parecer com seu eu antigo. Com seu eu muito antigo.

— Kevlar, você disse? — repetiu, examinando o tecido escuro no peito.

Artemis assentiu.

— Parece que algumas fibras ficaram presas no ferimento. A magia as copiou. Segundo Potrus, o novo tecido vai restringir sua capacidade respiratória, mas é suficientemente denso para ser à prova de bala, a não ser uma bala de pequeno calibre.

Butler abotoou a camisa.

— Tudo está diferente, Artemis. Eu não posso guardá-lo mais.

— Eu não vou precisar de guarda. Holly estava certa. Meus grandes planos geralmente levam as pessoas a se machucarem. Assim que tivermos cuidado do Spiro, eu pretendo me concentrar na minha educação.

— Assim que tivermos cuidado do Spiro? Você faz parecer uma coisa fácil. Jon Spiro é um homem perigoso, Artemis. Pensei que você tinha aprendido isso.

— Aprendi, velho amigo. Acredite, não vou subestimá-lo de novo. Já comecei a formular um plano. Nós devemos ser capazes de recuperar o Cubo V e neutralizar o Sr. Spiro, desde que Holly concorde em ajudar.

— Onde está Holly? Eu preciso agradecer a ela. De novo. Artemis olhou pela janela.

— Foi completar o Ritual. Você pode adivinhar onde.

Butler assentiu. Os dois tinham encontrado Holly pela primeira vez num local sagrado do povo das fadas, no sudeste, enquanto ela estava realizando o ritual de restauração de força. Se bem que "encontrado" não era o termo que Holly usara. — "Seqüestrado" era mais próximo da verdade.

— Ela deve voltar em menos de uma hora. Sugiro que você descanse até lá.

Butler balançou a cabeça.

— Eu posso descansar mais tarde. Neste momento preciso verificar o terreno. É improvável que Spiro possa montar uma equipe tão rapidamente. Mas nunca se sabe.

O guarda-costas foi até um painel da parede, que ligava seu quarto à cabine de controle do sistema de segurança. Artemis podia ver que cada passo era um esforço. Com o novo tecido no peito de Butler, simplesmente subir a escada seria como uma maratona.

Butler dividiu a tela do monitor para poder ver simultaneamente a imagem de todas as câmeras. Uma delas lhe interessou mais do que as outras, por isso ampliou-a.

— Bem, bem — ele deu um risinho. — Olha só quem apareceu para dizer olá.

Artemis foi até o painel de segurança. Havia um indivíduo muito pequeno fazendo gestos grosseiros para a câmera da porta da cozinha.

— Palha Escavator — disse Artemis. — Exatamente o anão que eu queria ver.

Butler transferiu a imagem de Palha para a tela principal.

— Talvez. Mas por que ele quer ver você?

Melodramático como sempre, o anão insistiu em ganhar um sanduíche antes de explicar a situação. Infelizmente, para Palha, foi Artemis quem se ofereceu para prepará-lo. Ele saiu da cozinha com o que parecia simplesmente uma explosão num prato.

— É mais difícil do que parece — explicou o garoto.

Palha abriu suas mandíbulas enormes, enfiando a pilha inteira numa única bocada. Depois de mastigar durante vários minutos, enfiou a mão inteira na boca e desalojou um pedaço de peru assado.

— Na próxima vez ponha mais mostarda — disse ele, espanando algumas migalhas da camisa e, no processo, inadvertidamente ligando o microfone preso nela.

— De nada — disse Artemis.

— Você é que deveria me agradecer, Garoto da Lama — disse Palha. — Eu vim lá de Chicago para salvar sua vida. Sem dúvida isso vale uma porcaria de um sanduíche, não é? E quando digo sanduíche estou falando no sentido mais amplo da palavra.

— Chicago? Jon Spiro mandou você? O anão balançou a cabeça.

— Possivelmente, mas não diretamente. Eu trabalho para a família Antonelli. Claro, eles não têm idéia de que eu sou um anão do povo das fadas; acham que sou simplesmente o melhor ladrão de propriedades que existe.

— A promotoria de Chicago ligou a família Antonelli a Spiro no passado. Ou melhor, tentou ligar.

— Tanto faz. De qualquer modo, o plano é eu invadir sua casa, e depois meu parceiro o encoraja a nos acompanhar até Chicago.

Butler estava encostado na mesa.

— Onde está seu parceiro agora, Palha?

— Do lado de fora do portão. Ele é o baixinho raivoso. A propósito, fico feliz em ver você vivo, grandão. Correu um boato pelo submundo, dizendo que você estava morto.

— Eu estive — disse Butler, indo para a cabine de segurança. — Mas agora estou melhor.

Mocassim pegou um pequeno caderno espiral no bolso do peito. Nele havia anotado os gracejos que sentia que realmente funcionavam em situações perigosas. Diálogos cortantes eram a marca registrada de um bom gângster — segundo os filmes, pelo menos. Folheou as páginas, dando um sorriso afetuoso.

"Está na hora de encerrar sua conta. Permanentemente." — Larry Ferrigamo. Banqueiro corrupto, 9 de agosto.

"Acho que seu disco rígido acaba de ser apagado." — David Spinski. Hacker de computadores, 23 de setembro.

"Estou fazendo isso porque sou eu quem amasso o pão." — Morty, o Padeiro, 17 de julho.

Era um bom material. Talvez um dia ele escrevesse suas memórias.

Mocassim ainda estava rindo quando ouviu Pal falando em seu fone de ouvido. A princípio achou que o macaco falava com ele, mas depois percebeu que seu suposto parceiro estava abrindo o bico para o alvo.

— Você é que deveria me agradecer, Garoto da Lama — disse Scaver. — Eu vim lá de Chicago para salvar sua vida.

Para salvar a vida dele! Pal estava trabalhando para o outro lado e o idiotazinho tinha se esquecido do microfone.

Mocassim desceu do carro, tendo o cuidado de trancá-lo. Perderia o depósito da locadora se o carro fosse roubado, e a Srta. Frazetti descontaria de sua comissão. Havia uma pequena entrada de pedestres no muro, ao lado do portão principal. Pal Scaver tinha-o deixado aberto. Mocassim passou e foi correndo pelo caminho de entrada, tendo o cuidado de ficar na sombra das árvores.

Em seu ouvido, Pal continuava tagarelando. Entregou todo o plano deles para o garoto Fowl sem nem mesmo a ameaça de tortura. Foi completamente voluntário. De algum modo Scaver estivera trabalhando para o garoto irlandês o tempo todo. E mais, Pal não era Pal, era Palha. Que tipo de nome era esse? Palha, que aparentemente era um anão do povo das fadas. Isso estava ficando cada vez mais esquisito. Talvez os anões do povo das fadas fossem algum tipo de quadrilha. Se bem que não era um bom nome para quadrilha. Anões do povo das fadas não era um nome que causaria terror no coração da concorrência.

Mocassim foi correndo pelo caminho, passou por uma fileira de faias elegantes e por uma verdadeira quadra de críquete. Dois pavões caminhavam pela beira de um espelho-d'água. Mocassim fungou. Espelho-d'água! Nos dias anteriores à TV, os jardineiras chamariam aquilo de laguinho.

Mocassim estava imaginando onde ficaria a entrada de serviço quando viu a placa: "Entregas nos fundos". Muito obrigado. Verificou o silenciador e o pente mais uma vez, e foi na ponta dos pés pelo caminho de cascalho.

Artemis farejou o ar.

— Que cheiro é esse?

Palha mostrou a cabeça do outro lado da porta da geladeira.

— Acho que sou eu — murmurou, com uma quantidade incrível de comida se revolvendo dentro da boca. — Filtro solar. É nojento, eu sei, mas eu cheiraria muito pior sem isso. Pense em tiras de bacon numa pedra lisa no Vale da Morte.

— Uma imagem encantadora.

— Os anões são criaturas subterrâneas — explicou Palha. — Mesmo durante a dinastia Frond, nós vivíamos no subterrâneo...

Frond foi o primeiro rei elfo. Durante seu reino, o povo das fadas e os humanos compartilhavam a superfície da terra.

— ...ser fotossensível torna difícil existir entre os humanos. Para ser honesto, eu estou meio farto desta vida.

— Seu desejo é minha ordem — disse uma voz. Era Mocassim. Estava parado na porta da cozinha, brandindo uma arma muito grande.

Para ser justo com Palha, ele se recuperou bem.

— Pensei ter dito a você para esperar lá fora.

— É verdade, disse. Mas eu decidi vir assim mesmo. E sabe de uma coisa? Nada de fossa séptica, nada de cano de esgoto. A porta dos fundos está escancarada.

Palha tendia a trincar os dentes enquanto pensava. Pareciam unhas arranhando um quadro-negro.

— Ah... sim. Um golpe de sorte. Eu me aproveitei disso, mas infelizmente fui interrompido pelo garoto. Tinha acabado de ganhar a confiança dele quando você entrou.

— Não se incomode. Seu microfone está ligado. Eu ouvi tudo, Pal. Ou será que devo dizer Palha, o anão do povo das fadas?

Palha engoliu a massa de comida meio mastigada. De novo sua bocarra tinha-o posto em encrenca — talvez ela pudesse tirá-lo de encrenca também. Era possível que ele conseguisse desencaixar o maxilar e engolir o sujeitinho. Já havia comido coisas maiores. Um rápido jorro de gás de anão bastaria para lançá-lo do outro lado do cômodo. Só teria de esperar que a arma não fosse disparada antes que ele pudesse soltá-lo. Mocassim captou o olhar de Palha.

— Isso mesmo, homenzinho — disse ele, engatilhando a pistola. — Tente. Veja aonde consegue ir.

Artemis também estava pensando. Sabia que por enquanto estava em segurança. O recém-chegado não iria lhe fazer mal, contrariando as ordens. Mas o tempo de Palha estava acabando, e não havia ninguém para salvá-lo. Butler estava fraco demais para intervir, mesmo que estivesse aqui. Holly estava longe terminando o Ritual. E o próprio Artemis não era grande coisa em situações que exigissem o físico. Teria de negociar.

— Eu sei por que você veio aqui — começou. — Por causa dos segredos do Cubo. Eu lhe conto, mas não se você fizer mal ao meu amigo.

Mocassim balançou o cano da arma.

— Você vai fazer o que eu mandar, quando eu mandar. Possivelmente vai chorar como uma mulherzinha também. Algumas vezes isso acontece.

— Muito bem. Eu digo o que você quer saber. Só não atire em ninguém.

Mocassim engoliu um riso.

— Claro. Tudo certo. Você só venha comigo, quietinho, e eu não machuco ninguém.

Butler entrou na cozinha. Seu rosto estava escorregadio de suor e a respiração saía em jorros curtos.

— Eu verifiquei o monitor — disse ele. — O carro está vazio, o outro homem deve estar...

— Aqui — completou Mocassim. — Notícia velha para todo mundo menos você, vovô. Nenhum movimento brusco ou talvez o senhor tenha um ataque cardíaco.

Artemis viu o olhar de Butler saltando pelo cômodo. Ele estava procurando alguma abordagem. Algum modo de salvá-los. Talvez o Butler de ontem pudesse ter feito isso, mas o Butler de hoje era 15 anos mais velho e ainda não tinha se recuperado totalmente da cirurgia mágica A situação era desesperadora.

— Você poderia amarrar os outros — sugeriu Artemis. — Depois a gente poderia partir juntos.

Mocassim bateu na cabeça.

— Que idéia fantástica! Então talvez eu possa concordar com alguma outra tática de adiamento, já que eu sou um completo amador.

Mocassim sentiu uma sombra cair em suas costas. Girou e viu uma garota parada junto à porta. Outra testemunha. Carla Frazetti receberia uma conta por todo esse pessoal. Esse serviço tinha sido mal apresentado desde o início.

— Certo, moça — disse Mocassim. — Vá se juntar aos outros. E não faça nenhuma besteira.

A garota na porta jogou o cabelo sobre o ombro, piscando com suas pálpebras verdes brilhantes.

— Eu não faço besteiras — disse ela. Em seguida sua mão se moveu rapidamente, roçando na arma de Mocassim. Ela pegou a trava corrediça da pistola e habilmente torceu-a, soltando do cabo. Agora a arma era completamente inútil, a não ser para ser usada como martelo. Mocassim saltou para trás.

— Ei, ei. Cuidado. Não quero machucar você por acidente. Essa arma pode disparar.

Era o que ele pensava.

Mocassim continuou brandindo seu pedaço de metal inofensivo.

— Para trás, garotinha. Não vou falar de novo. Juliet balançou a peça da arma debaixo do nariz dele.

— Ou o quê? Você vai atirar em mim com isso? Mocassim olhou vesgo para o pedaço de metal.

— Ei, isso parece exatamente...

Então Juliet deu-lhe um soco tão forte no peito que ele atravessou o balcão de café da manhã.

Palha olhou para o mafioso inconsciente, depois para a garota perto da porta.

— Ei, Butler, só estou chutando, mas eu diria que essa aí é sua irmã.

— Está certo — disse o mordomo, abraçando Juliet com força. — Como foi que você adivinhou?

 

ESTAVA na hora de discutirem. Naquela noite o grupo se acomodou na sala de reuniões da mansão, diante de dois monitores que Juliet tinha trazido da cabine de segurança. Potrus tinha sintonizado a freqüência dos monitores e estava transmitindo imagens ao vivo do comandante Raiz e dele mesmo.

Para sua própria irritação, Palha ainda estava presente. Estivera tentando arrancar algum tipo de recompensa de Artemis quando Holly voltou e o algemou a uma cadeira.

A fumaça do charuto de Raiz estava turvando a tela. — Parece que a quadrilha está toda aí — disse ele, usando o dom do povo das fadas para as línguas e falando inglês. — E adivinhem só. Eu não gosto de quadrilhas.

Holly tinha posto seu microfone no centro da mesa de reuniões, de modo que todos os ocupantes da sala pudessem ser captados.

— Eu posso explicar, comandante.

— Ah, aposto que pode. Mas, estranhamente, eu tenho uma premonição de que sua explicação não vai me amolecer nem um pouco. E terei seu distintivo na minha gaveta no fim deste turno.

Artemis tentou intervir.

— É verdade, comandante. Holly... a capitã Short... só está aqui porque eu a enganei.

— Isso é fato? E afinal, o que será que ela ainda está fazendo aí? Lanchando, é?

— Esta não é hora para sarcasmos, comandante. Nós estamos diante de uma situação séria. Potencialmente desastrosa.

Raiz exalou uma nuvem de fumaça esverdeada.

— O que vocês, humanos, fazem uns com os outros é coisa de vocês. Nós não somos sua força policial pessoal, Fowl.

Potrus pigarreou.

— Nós estamos envolvidos, querendo ou não: foi Artemis quem nos pingou. E isso não é o pior, Julius.

Raiz olhou para o centauro. Potrus tinha-o chamado pelo primeiro nome. As coisas deviam ser sérias.

— Muito bem, capitã — disse ele. — Continue com seu relato.

Holly abriu um relatório em seu computador manual.

— Ontem eu respondi a uma gravação do sistema de alerta Sentinela. O telefonema foi dado por Artemis Fowl, um Homem da Lama conhecido da LEP por sua participação no levante da B'wa Kell. O colega de Fowl, Butler, tinha sido mortalmente ferido por ordens de outro Homem da Lama, Jon Spiro, e ele requisitou minha ajuda com uma cura.

— Coisa que você recusou, e depois requisitou apoio técnico para realizar uma limpeza mental, segundo os regulamentos.

— Não. Levando em conta a ajuda considerável de Butler durante a revolução dos goblins, eu realizei a cura e transportei Fowl e Butler de volta ao seu domicílio.

— Não me diga que você voou com eles...?

— Não havia alternativa. Eles foram enrolados em tecido de camuflagem.

Raiz coçou as têmporas.

— Um pé. Se apenas um pé saísse do tecido, nós poderíamos estar em toda a internet amanhã. Holly, por que você fez isso comigo?

Holly não respondeu. O que poderia dizer?

— Há mais. Nós detivemos um dos empregados de Spiro. Um trabalho feio.

— Ele viu você?

— Não. Mas ouviu Palha dizer que era um anão do povo das fadas.

— Sem problema — disse Potrus. — Faça uma lavagem mental e o mande para casa.

— Não é tão simples assim. O sujeito é um assassino. Ele poderia ser mandado de volta para terminar o serviço. Acho que precisamos realocá-lo. Acredite. A falta dele não será sentida por aqui.

— Certo — disse Potrus. — Ponha-o para dormir, faça a lavagem e se livre de qualquer coisa que possa provocar as lembranças. Depois mande-o para algum lugar onde ele não possa fazer mal.

O comandante deu várias baforadas longas para se acalmar.

— Certo. Fale da sonda. E se Fowl é o responsável, o alerta acabou?

— Não. O empresário humano Jon Spiro roubou de Artemis a tecnologia do povo das fadas.

— Que Artemis roubou de nós — observou Potrus.

— Esse tal de Spiro está decidido a conhecer o segredo da tecnologia e não tem escrúpulos quanto ao modo de conseguir isso — prosseguiu Holly.

— E quem sabe o segredo? — perguntou Raiz.

— Artemis é o único que pode operar o Cubo V.

— E posso saber o que é um Cubo V? Potrus assumiu a narrativa.

— Artemis montou um microcomputador a partir de tecnologia antiga da LEP. A maior parte já ficou obsoleta debaixo do chão, mas, pelos padrões humanos, está uns cinqüenta anos à frente da programação de desenvolvimento deles.

— E portanto vale uma fortuna — concluiu o comandante.

— E portanto vale uma fortuna absoluta — concordou Potrus.

De repente Palha estava prestando atenção.

— Uma fortuna? Exatamente uma fortuna de que tamanho? Raiz ficou aliviado por ter alguém com quem gritar.

— Cale a boca, condenado! Isso não interessa a você. Apenas se concentre em desfrutar o resto de ar puro que lhe cabe. Amanhã a esta hora você vai estar apertando a mão de seu colega de cela, e eu espero que ele seja um troll.

Palha não se abalou.

— Dá um tempo, Julius. Toda vez que há um problema com Fowl sou eu que salvo a sua pele. Não tenho dúvida de que qualquer plano que Artemis bole terá a participação deste seu criado. Provavelmente em alguma função ridiculamente perigosa.

A pele de Raiz passou de rosa a um vermelho-escuro.

— Bem, Artemis? Você planeja usar o condenado?

— Isso depende.

— De quê?

— De o senhor me emprestar Holly ou não.

A cabeça de Raiz desapareceu numa nuvem de fumaça de charuto. Com a ponta vermelha brilhando, ele parecia um trem a vapor saindo de um túnel. Parte da fumaça pairou, chegando à tela de Potrus.

— A coisa não parece boa — comentou o centauro. Por fim, Raiz se acalmou o bastante para falar.

— Emprestar Holly? Deuses, me dêem paciência. Você tem idéia da quantidade de burocracia que estou ignorando só para esta reunião?

— Um bocado, imagino.

— Uma montanha, Artemis. Uma montanha. Eu não estaria falando com você se não fosse pelo negócio da B'wa Kell. Se isso vazasse, eu terminaria comandando equipes de tratamento de esgoto em Atlântida.

Palha piscou para a tela.

— Eu provavelmente não deveria ter ouvido isso. O comandante o ignorou.

— Você tem trinta segundos, Artemis. Convença-me. Artemis ficou de pé, diretamente em frente à tela.

— Spiro está com tecnologia do povo das fadas. É improvável que ele possa usá-la, mas ela colocará seus cientistas a par da tecnologia iônica. O sujeito é um megalomaníaco, sem respeito pela vida ou pelo meio ambiente. Quem sabe que máquina medonha ele construirá com a tecnologia do povo das fadas? Além disso existe a hipótese clara de que sua nova tecnologia o leve a descobrir a própria cidade do Porto, e se isso acontecer, a vida de cada criatura no planeta, e debaixo dele, estará correndo risco.

Raiz empurrou sua cadeira para longe da câmera, reaparecendo no monitor de Potrus. Inclinou-se perto do ouvido do centauro, sussurrando baixinho.

— A coisa não parece boa — disse Holly. — Talvez eu vá para casa no próximo transporte.

Artemis tamborilou com os dedos na mesa. Era difícil ver como ele poderia cuidar de Spiro sem ajuda do povo das fadas.

Depois de vários instantes, o comandante reapareceu em sua tela.

— Isso é sério. Nós não podemos correr o risco de que esse tal de Spiro ative outra sonda. Por menor que seja a possibilidade, ainda existe essa chance. Terei de montar uma equipe de inserção. Uma equipe de Resgate totalmente equipada.

— Uma equipe inteira? — protestou Holly. — Numa área urbana? Comandante, o senhor sabe como é o Resgate. Isso poderia virar um desastre. Deixe-me fazer uma tentativa.

Raiz pensou.

— Levará 48 horas para autorizarem uma operação, então é isso que você tem. Eu posso cobri-la durante dois dias. Não posso deixar que você tenha Potrus. Ele terá trabalho suficiente montando essa operação. Mas Escavator pode ajudar, se quiser; a opção é dele. Eu poderia deixar de lado umas duas acusações de roubo, mas mesmo assim ele estará encarando de cinco a dez anos pelo roubo das barras de ouro. É só o que posso fazer. Se você fracassar, a equipe de Resgate estará esperando nos bastidores.

Artemis pensou nisso.

— Muito bem. Raiz respirou fundo.

— Há uma condição.

— Foi o que eu pensei — disse Artemis. — O senhor quer uma lavagem mental. Correto?

— Isso mesmo, Artemis. Você está se tornando um problema sério para o Povo. Se nós o ajudarmos nessa questão, você e o seu pessoal terão de se submeter a lavagens mentais.

— E se não aceitarmos?

— Então vamos direto ao plano B, e vocês serão lavados de qualquer modo.

— Sem ofensa, comandante, mas esta é uma questão técnica...

Potrus interveio.

— Há dois tipos de lavagem mental. Uma lavagem em bloco, que tira tudo no período escolhido. Holly poderia fazer isso com o equipamento de sua mochila. E uma lavagem com sintonia fina, que só apaga determinadas lembranças. É um procedimento mais especializado, mas há menos perigo de diminuir o QI. Nós faremos uma lavagem de sintonia fina em todos vocês. Eu detonarei uma carga de dados em seu sistema de computador, que deleta automaticamente qualquer arquivo relacionado com o povo das fadas. Além disso vou precisar de sua permissão para fazer uma varredura na sua casa, só para o caso de haver algum objeto do Povo largado por aí. Em termos práticos, vocês vão acordar no dia seguinte a essa operação sem ter absolutamente qualquer registro ou lembrança do povo das fadas.

— Você está falando de quase dois anos de lembranças.

— Você não vai sentir falta delas. Seu cérebro vai inventar lembranças novas para preencher os vazios.

Era uma decisão difícil. Por um lado, agora o conhecimento sobre o Povo tinha grande participação da estrutura psicológica de Artemis. Por outro, ele não podia mais colocar em risco a vida das pessoas.

— Muito bem — disse o adolescente. — Aceito a oferta. Raiz jogou o charuto num incinerador próximo.

— Então, certo. Temos um trato. Capitã Short, mantenha um canal aberto o tempo todo.

— Sim, senhor.

— Holly.

— Comandante?

— Tenha cuidado desta vez. Sua carreira não vai sobreviver a outro golpe.

— Entendido, senhor.

— Ah, e... condenado? Palha suspirou.

— Imagino que esteja falando de mim, não é, Julius? Raiz fez um muxoxo.

— Acabou, Palha. Você não vai escapar de novo, então prepare o cérebro para comida fria e paredes duras.

Palha se levantou, apresentando as costas para a tela. De algum modo a aba das calças especiais para cavar túneis se abriu, apresentando ao comandante uma vista linda de seu traseiro. No mundo dos anões, apresentar o traseiro era o insulto definitivo, como na maioria das culturas.

O comandante Raiz desligou a conexão. Afinal de contas, não havia como revidar uma afronta como essa.

 

Mocassim McGuire acordou com uma dor de cabeça debilitante. Doía tanto que ele se sentiu obrigado a arranjar alguma imagem, caso tivesse de descrever aquilo mais tarde. Concluiu que parecia haver um porco-espinho furioso andando dentro de seu crânio. Nada mau, pensou. Eu deveria colocar isso no caderno.

Então pensou: o que é um caderno? Seu pensamento seguinte foi: quem sou eu? Sapato, alguma coisa a ver com sapato.

Era sempre assim quando as criaturas sujeitas a implantes de memórias recuperavam a consciência. A antiga identidade paira por alguns instantes, tentando se afirmar, até que os estímulos externos varrem-na para longe.

Mocassim sentou-se e o porco-espinho enlouqueceu, jogando agulhas em cada centímetro quadrado de seu macio tecido cerebral.

— Ah — gemeu ele, segurando a cabeça dolorida. O que isso tudo significava? Onde ele estava? E como tinha chegado aqui?

Olhou para os braços. Por um segundo seu cérebro projetou tatuagens na pele, mas as imagens desapareceram rapidamente. Sua pele estava sem máculas. A luz do sol rolava nos antebraços como raios brancos.

Ao seu redor tudo era mato ralo. Terra avermelhada se estendia até os morros azul-índigo a distância. Um disco dourado do sol abria rachaduras na terra, que parecia tremular. Duas figuras corriam através das ondas de calor, elegantes como guepardos.

Os homens eram gigantes, teriam facilmente dois metros e dez de altura. Cada um levava um escudo oval, de pele, uma lança fina e um celular. O cabelo, o pescoço e as orelhas eram adornados com contas multicoloridas.

Mocassim saltou de pé. Pés que, notou ele, estavam com sandálias de couro. Os homens usavam tênis Nike.

— Socorro! — gritou ele. — Me ajudem!

Os homens alteraram seu caminho, correndo até o mafioso confuso.

— Jambo, irmão. Você está perdido? — perguntou um deles.

— Desculpe — respondeu Mocassim em um swahili perfeito. — Eu não falo swahili.

O homem olhou para seu companheiro.

— Sei. E qual é o seu nome?

— Mocassim — disse o cérebro de Mocassim. — Nuru — disse sua boca.

— Bem, Nuru. Unatoka wapi? De onde você vem?

As palavras saíram antes que Mocassim pudesse fazer qualquer coisa a respeito.

— Não sei de onde eu venho, mas quero ir com vocês. Para a sua aldeia. É onde eu deveria estar.

Os guerreiros quenianos olharam para o estranho baixinho. Ele era da cor errada, verdade, mas parecia bastante são.

O mais alto dos dois tirou o celular do cinto de pele de leopardo e digitou o número do chefe da aldeia.

— Jambo, chefe, aqui é Bobby. Os espíritos da terra nos deixaram outro.

Bobby riu, olhando Mocassim de cima a baixo.

— É, ele é minúsculo, mas parece forte, e tem um sorriso maior do que uma banana descascada.

Mocassim esticou o sorriso, só para o caso de isso ser importante. Por algum motivo, tudo que queria no mundo era ir para a aldeia e ter uma vida produtiva.

— Certo, chefe, vou levá-lo. Ele pode ficar com a velha cabana do missionário.

Bobby prendeu o telefone de novo no cinto.

— Muito bem, irmão Nuru. Você foi aceito. Venha atrás de nós, e tente manter o passo.

Os guerreiros partiram correndo. Mocassim, que daí em diante seria conhecido como Nuru, correu atrás dele, com as sandálias de couro estalando sob os pés. Realmente teria de conseguir um par de tênis.

Quarenta e cinco metros acima da cabeça deles, a capitã Holly Short pairava, escudada para não ser vista, gravando todo o incidente.

— Realocação terminada — disse ao microfone do capacete. — O indivíduo foi adotado com sucesso. Nenhum sinal aparente da personalidade original. Mas ele será monitorado a intervalos de meses, só para garantir.

Potrus estava do outro lado da linha.

— Excelente, capitã. Volte imediatamente à estação de lançamento E77. Se você acelerar, talvez pegue o transporte da noite. Podemos colocá-la de volta na Irlanda dentro de algumas horas.

Holly não precisou ouvir duas vezes. Não era freqüente ter autorização para usar alta velocidade. Ativou o radar para o caso de aparecerem abutres e ligou o cronômetro no visor.

— Agora — disse ela. — Vejamos se eu consigo quebrar o recorde de velocidade aérea.

Um recorde que Julius Raiz tinha estabelecido há oitenta anos.

 

Trecho do Diárío de Artemis Fowl. Disco 2. Criptografado.

HOJE papai foi preparado para a perna artificial. Ele brincou o tempo todo, como se estivesse sendo medido para um novo terno na Grafton Street. Devo admitir que seu bom humor foi contagiante, e eu me peguei pedindo licença só para sentar no canto da sala do hospital e desfrutar de sua presença.

Nem sempre foi assim. No passado era preciso um motivo válido para visitar meu pai. Claro, ele não costumava estar disponível e, mesmo quando estava, seu tempo era limitado. Ninguém entrava no seu escritório sem um bom motivo. Mas agora eu me sinto bem-vindo junto dele. É um bom sentimento.

Meu pai sempre gostou de partilhar conhecimentos, mas agora é mais conhecimento filosófico do que financeiro, Nos velhos tempos, ele dirigiria minha atenção para os últimos preços das ações no Financial Times.

— Olhe, Artemis — dizia ele. — Todo o resto cai, mas o ouro permanece firme. Isso é porque não existe ouro suficiente. E nunca haverá. Compre ouro, garoto, e o mantenha em segurança.

Eu gostava de ouvir as suas pérolas de sabedoria, mas agora elas são mais difíceis de entender.

No terceiro dia em que ele estava consciente, eu caí no sono na cama do hospital enquanto meu pai se exercitava andando. Acordei e o encontrei me olhando pensativo.

— Devo lhe dizer alguma coisa, Arty?— perguntou ele. Confirmei com a cabeça, sem saber o que esperar.

— Enquanto eu estava preso, pensei na minha vida, em como eu a desperdicei acumulando riquezas sem me importar com o que isso custasse à minha família e aos outros em volta. Na vida, o homem tem poucas chances de fazer diferença. De fazer o que é certo. De ser um herói, se você quiser. Eu pretendo me envolver nessa luta.

Não era o tipo de sabedoria que estava acostumado a ouvir de meu pai. Isso era a sua personalidade natural ou magia do povo das fadas? Ou uma combinação de ambos?

— Eu nunca me envolvi antes. Sempre achei que o mundo não poderia ser mudado.

O olhar de papai era intenso, queimando com uma nova paixão.

— Mas agora as coisas são diferentes. Minhas prioridades são diferentes. Pretendo aproveitar a oportunidade, ser o herói que todo pai deveria ser.

Ele se sentou na cama ao meu lado.

— E você, Arty? Vai fazer a jornada comigo? Quando chegar o momento, você aproveitará a chance de ser herói?

Não pude responder. Não sabia a resposta. Ainda não sei.

 

Durante duas horas Artemis se trancou em seu escritório, sentado de pernas cruzadas na postura de meditação ensinada por Butler. Ocasionalmente verbalizava uma idéia em voz alta, para ser captada por um gravador digital ativado por voz, posto na esteira à sua frente. Butler e Juliet sabiam que não deveriam interromper o processo. Esse período era crucial para o sucesso da missão. Artemis tinha a capacidade de visualizar uma situação hipotética e calcular os resultados prováveis. Era quase um estado onírico, e qualquer perturbação fazia com que o fio de idéias voasse como vapor.

Por fim Artemis saiu, cansado, mas satisfeito. Estava com três CDs graváveis.

— Quero que você estude esses arquivos — disse ele. — Contêm os detalhes de sua tarefa. Quando tiver memorizado o conteúdo, destrua os discos.

Holly pegou os discos.

— Um CD. Que antiquado! Nós temos isso nos museus.

— Há vários computadores no escritório — continuou Artemis. — Use qualquer terminal que você quiser.

Butler estava de mãos vazias.

— Nada para mim, Artemis?

Artemis esperou até os outros terem saído.

— Preciso lhe dar instruções verbalmente. Não quero me arriscar a que Potrus capte no computador.

Butler deu um suspiro profundo, afundando numa poltrona de couro perto da lareira.

— Eu não vou com vocês, vou? Artemis se sentou no braço da poltrona.

— Não, velho amigo. Mas tenho uma tarefa importante para você.

— Olha, Artemis. Eu pulei direto minha crise de meia-idade. Você não precisa inventar um serviço só para eu me sentir útil.

— Não, Butler. Isso é de importância vital. Tem a ver com as lavagens mentais. Se meu plano tiver sucesso, nós teremos de nos submeter a elas. Não vejo como sabotar o processo em si, por isso devo garantir que alguma coisa sobreviva à busca de Potrus. Alguma coisa que dispare nossa memória do Povo. Uma vez Potrus me disse que um estímulo suficientemente forte pode resultar numa lembrança completa.

Butler se remexeu na poltrona, encolhendo-se. Seu peito ainda estava lhe causando problema. Não era de surpreender. Estava vivo há menos de dois dias.

— Alguma idéia?

— Nós precisamos deixar umas duas pistas falsas. Potrus vai estar esperando isso.

— Claro. Um arquivo escondido no servidor. Eu poderia mandar um e-mail para nós mesmos, e não pegá-lo. E, na primeira vez em que a gente verificar o e-mail, toda a informação virá.

Artemis entregou uma folha A4 dobrada.

— Sem dúvida nós seremos hipnotizados e interrogados. No passado nos escondemos do mesmer usando óculos espelhados. Não vamos nos livrar com isso desta vez. Aqui estão as instruções.

Butler examinou os planos.

— É possível. Eu conheço alguém em Limerick. O melhor homem no país para esse tipo de trabalho especializado.

— Excelente. Depois disso você precisa colocar tudo que sabemos sobre o Povo num disco. Todos os documentos, vídeos, esquemas. Tudo. E não esqueça o meu diário. Toda a história está lá.

— E onde vamos esconder o disco?

Artemis desamarrou o medalhão do povo das fadas que usava no pescoço.

— Eu diria que isso é mais ou menos do tamanho do disco. Não acha?

Butler enfiou o medalhão de ouro no bolso do paletó.

— Logo será — disse ele.

Butler preparou uma refeição para eles. Nada chique. Rolinhos primavera vegetarianos, seguidos por risoto de cogumelos com creme de caramelo para terminar. Palha optou por um balde de minhocas e besouros picados, com molho de água da chuva e vinagrete de musgo.

— Todo mundo estudou seus documentos? — perguntou Artemis, quando o grupo se reuniu na biblioteca.

— Sim — disse Holly. — Mas parece que me faltam algumas peças fundamentais.

— Ninguém tem o plano inteiro. Só as partes que lhes concernem. Acho que assim é mais seguro. Temos o equipamento que eu especifiquei?

Holly jogou no tapete o conteúdo de sua mochila.

— Um kit de vigilância da LEP completo, inclusive tecido de camuflagem, microfones, microcâmeras de vídeo e caixa de primeiros socorros.

— Além disso, ainda temos dois capacetes da LEP intactos e três pistolas a laser deixadas depois do cerco — acrescentou Butler. — E, claro, um dos protótipos do Cubo, do laboratório.

Artemis passou o telefone sem fio para Palha.

— Então muito bem. Podemos começar.

 

Jon Spiro estava sentado em seu escritório opulento, olhando carrancudo para o Cubo V sobre a mesa. As pessoas achavam que era fácil ser ele. Como sabiam pouco! Quanto mais dinheiro você possuía, mais pressão sofria. Ele tinha oitocentos empregados apenas neste prédio, todos contando com ele para o salário do mês. Queriam aumentos anuais, planos de saúde, creches, pausas para o cafezinho, pagamento dobrado para horas extras e até participação acionária, pelo amor de Deus. Algumas vezes Spiro sentia falta do tempo em que um trabalhador encrenqueira era jogado de uma janela alta e isso encerrava o assunto. Hoje em dia, se você jogasse alguém pela janela, eles telefonavam para o advogado enquanto estavam caindo.

Mas esse Cubo poderia ser a resposta às suas preces. Um negócio que só aparecia uma vez na vida. Se ele conseguisse fazer aquela pequena geringonça funcionar, o céu seria o limite. Literalmente. Os satélites do mundo estariam sob o seu comando. Ele teria controle completo sobre os satélites espiões, lasers militares, redes de comunicação e, mais importante que tudo, estações de televisão. Poderia dominar o mundo.

Sua secretária tocou o interfone da recepção.

— O Sr. Bronco deseja vê-lo, senhor. Spiro apertou o botão de comunicação.

— Certo, Marlene, mande entrar. E diga que é melhor ele parecer arrependido.

Bronco realmente parecia arrependido quando empurrou a porta dupla. A porta em si já era bastante imponente. Spiro a havia roubado do salão de baile do Titanic afundado. Era um exemplo perfeito do poder enlouquecido.

Arno Bronco não estava tão presunçoso como em Londres. Mas afinal de contas é difícil parecer arrogante quando sua testa é uma massa de hematomas e sua boca está cheia de gengivas e nada mais.

Spiro se encolheu ao ver as bochechas fundas dele.

— Quantos dentes você perdeu? Bronco tocou o queixo com cuidado.

— Todof. O dentifta dife que af raives eftão quebuadaf.

— Bem feito — disse Spiro em tom casual. — O que eu vou fazer, Arno? Eu lhe entrego Artemis Fowl de bandeja e você estraga tudo. Diga o que aconteceu. E não quero ouvir sobre nenhum terremoto. Quero a verdade.

Bronco enxugou uma gota de baba do canto da boca.

— Eu não entendi. Alguma coiva efplodiu. Não fei o quê. Algum tipo de guanada. Mas vou divê uma coiva. Eu atiueu na cabefa dele. De jeito nenhum eue vai fe livuar defa.

— Ah, cale a boca! Você está me dando dor de cabeça. Quanto mais cedo arranjar esses dentes novos, melhor.

— Minha gengiva vai eftá cuuada de tarde.

— Eu pensei que tinha dito para você se calar!

— Difculpe, chefe.

— Você me colocou numa situação muito difícil, Arno. Por causa da sua incompetência, eu tive de contratar uma equipe dos Antonelli. Carla é uma garota inteligente; ela concluiu que eles merecem uma percentagem. Isso vai me custar bilhões.

Arno se esforçou ao máximo para aparentar remorso.

— E não se incomode em parecer um cachorrinho, Bronco. Comigo não adianta. Se esse negócio der errado, você vai perder muito mais do que uns dentes.

Arno decidiu mudar de assunto.

— E então, feus fíentiftas fizeuam o Cubo funcionar?

— Não — disse Spiro, girando sua pulseira de ouro. — Fowl trancou o negócio direitinho. Com um Código Eterno, ou sei lá o quê. Aquele idiota do Pearson não conseguiu espiar nada.

Foi nesse momento, dramaticamente, que uma voz emanou do microalto-falante do Cubo V.

— Sr. Spiro? — disse a voz. — Aqui é uma chamada da Irlanda. Está ouvindo, Sr. Spiro?

Jon Spiro não era homem de se assustar com facilidade. Ainda não tinha visto um filme de terror que o fizesse pular na cadeira, mas a voz saindo daquele alto-falante quase o arrancou do assento. A qualidade era incrível. Bastava fechar os olhos e daria para jurar que a pessoa estava bem à sua frente.

— Quer que eu refponda?

— Eu disse para calar a boca! De qualquer modo, não sei como responder a essa coisa.

— Eu estou ouvindo, Sr. Spiro — disse a voz. — Não precisa fazer nada. Só falar. A caixa faz o resto.

Spiro notou que um medidor digital de ondas tinha aparecido na tela do Cubo. Quando ele falou, o medidor registrou.

— Então certo. Temos comunicação. Agora, quem, diabos, é você? E como fez essa caixa funcionar?

— Meu nome é Pal Scaver, Sr. Spiro. Eu sou o macaco da equipe de Carla Frazetti. Não sei que tipo de caixa o senhor tem aí; eu só estou falando num telefone simples, antigo.

— Bem, então quem discou o número?

— Um garotinho que estou segurando pelo cangote. Eu deixei claro para ele como é importante eu falar com o senhor.

— E como você sabia que deveria falar comigo? Quem lhe deu meu nome?

— De novo, o garoto. Ele estava muito ansioso para contar tudo, depois de ver o que eu fiz com o homem do metal.

Spiro suspirou. Se o homem do metal estava danificado, ele teria de pagar uma multa aos Antonelli.

— O que você fez com o homem do metal?

— Nada permanente. Mas ele não vai apontar mais nenhuma arma para crianças por algum tempo.

— Por que você achou necessário danificar seu próprio parceiro, Scaver?

Houve uma pausa do outro lado da linha, enquanto Palha pensava na suposta seqüência de acontecimentos.

— Foi o seguinte, Sr. Spiro. Nossas instruções eram para acompanhar o garoto de volta aos Estados Unidos. Mas Mocassim ficou louco e começou a apontar uma arma pra todo canto. Eu achei que era o modo errado de agir, por isso fiz com que ele parasse. À força. De qualquer modo, o garoto ficou com medo e contou tudo que eu queria saber. E aqui estou, tendo uma conversa com o senhor.

Spiro esfregou as mãos.

— Você fez a coisa certa, Scaver. Haverá uma bonificação para você. Garantirei isso pessoalmente.

— Obrigado, Sr. Spiro. Acredite, o prazer foi meu.

— O garoto Fowl está aí?

— Bem do meu lado. Meio pálido, mas sem um arranhão.

— Ponha-o no telefone — ordenou Spiro, com todos os traços de depressão desaparecendo.

— Sou eu, Spiro. — A voz de Artemis estava altiva, mas com um tremor inconfundível.

Spiro espremeu o ar, como se fosse o pescoço de Artemis.

— Então agora não está tão arrogante, garoto? É como eu disse, você não tem entranhas para esse serviço. Eu, por outro lado, se não conseguir o que quero, vou mandar Pal tirá-lo do meu sofrimento. Estamos entendidos?

— Sim. Alto e claro.

— Bom — disse Spiro, trincando um gigantesco charuto cubano entre os dentes. Ele seria mastigado até virar polpa, mas não aceso. — Agora fale. O que eu tenho de fazer para colocar esse Cubo funcionando?

A voz de Artemis soou ainda mais fraca do que antes.

— Não é tão simples, Sr. Spiro. O Cubo V é codificado. Uma coisa chamada Código Eterno. Eu posso acessar remotamente algumas funções básicas: o telefone, o tocador de MP3 e assim por diante, mas para desabilitar o código por completo e liberar o potencial do Cubo V, preciso estar com ele na minha frente. Se o senhor pudesse trazer o Cubo V aqui...

Spiro cuspiu o charuto.

— Espere aí, Fowl. Até que ponto você acha que eu sou idiota? Acha que vou levar essa tecnologia sem preço de volta à

Europa? Esqueça! Se você vai desabilitar esse negócio, vai fazer isso aqui. Na Agulha Spiro!

— Mas minhas ferramentas? Meu laboratório?

— Eu tenho ferramentas aqui. E um laboratório. O melhor do mundo. Faça aqui.

— Sim. Como o senhor quiser.

— Isso mesmo, garoto. Como eu quiser. Quero que você ponha combustível no lear Jet que, por acaso, eu sei que você tem, e dê um pulinho até o aeroporto O'Hare. Haverá um helicóptero esperando por vocês.

— Imagino que eu não tenha outra opção.

— Isso mesmo, garoto. Não tem. Mas faça isso direito e talvez eu o deixe ir embora. Você ouviu isso tudo, Scaver?

— Alto e claro, Sr. Spiro.

— Bom. Estou contando com que você traga o garoto para cá em segurança.

— Considere feito. A linha ficou muda. Spiro deu um risinho.

— Acho que vou comemorar — falou, apertando o botão do interfone. — Marlene, mande um bule de café, e nada daquele lixo com baixo nível de cafeína. Quero café de verdade.

— Mas, Sr. Spiro, os seus médicos disseram...

Spiro esperou sua secretária perceber com quem estava discutindo.

— Desculpe, senhor. Agora mesmo.

Spiro se recostou na cadeira, cruzando os dedos atrás da cabeça.

— Veja só, Bronco. Isso vai acabar muito bem, apesar de sua incompetência. Eu estou com aquele garoto exatamente onde quero.

— Fim, fenhor. Um golpe de méstue, fenhor. — Spiro riu.

— Cale a boca, palhaço. Você está falando que nem um personagem de desenho animado.

— Fim fenhor. Muito enguafado, fenhor. — Spiro lambeu os lábios, antecipando o café.

— Para um suposto gênio, aquele garoto é muito ingênuo. Faça isso direito e talvez eu o deixe ir embora? Ele engoliu o anzol direitinho, com linha e tudo.

Bronco tentou rir. Não foi uma visão bonita.

— É, fenhor Fpiro. Engoliu o anvol com linha e tudo.

 

Artemis desligou o telefone, o rosto ruborizado com a empolgação da trama.

— O que vocês acham?

— Acho que ele engoliu — respondeu Butler.

— Com linha e tudo — acrescentou Palha. — Você tem um jato? Imagino que haja uma cozinha dentro.

Butler levou-os no Bentley até o aeroporto de Dublin. Seria sua última atuação naquela operação específica. Holly e Palha se encolheram no banco de trás, satisfeitos com o vidro fumê.

Os irmãos Butler sentaram-se na frente, vestidos com ternos Armani combinando. Juliet tinha incrementado o seu com uma gravata rosa e maquiagem brilhante. A semelhança familiar era clara: o mesmo nariz estreito e os lábios cheios. Os mesmos olhos, saltando nas órbitas como bolinhas saltando na roleta. Observando, sempre observando.

— Você não precisa de uma arma tradicional nesta viagem — disse Butler. — Use uma pistola de impacto da LEP. Elas não precisam ser recarregadas, sempre atiram em linha reta e não são letais. Eu dei a Holly duas da minha coleção.

— Entendi, Dom.

Butler pegou a saída para o aeroporto.

— Dom. Eu não era chamado assim há muito tempo. Ser guarda-costas acaba virando o nosso mundo. A gente se esquece de ter vida própria. Tem certeza de que é isso que você quer, Juliet?

Juliet estava fazendo uma trança apertada no cabelo. Na ponta prendeu um anel ornamental de jade. Ornamental e perigoso.

— Onde mais eu poderia espancar pessoas fora de um ringue de luta-livre? Por enquanto guarda-costas me serve muito bem.

Butler baixou a voz.

— Claro, é completamente contra o protocolo você ter Artemis como seu superior. Ele já sabe o seu primeiro nome e, para dizer a verdade, eu acho que ele gosta um pouco de você.

Juliet bateu com o anel de jade na palma da mão.

— Isso é apenas temporário. Eu ainda não sou guarda-costas de ninguém, Madame Ko não gosta do meu estilo.

— Não me surpreende — disse Butler, apontando para o anel de jade — Onde conseguiu isso?

Juliet sorriu.

— Foi idéia minha. Uma pequena surpresa para alguém que subestime as mulheres.

Butler entrou na área de estacionamento.

— Escute, Juliet — falou, segurando a mão da irmã. — Spiro é perigoso. Olhe o que aconteceu comigo, e, com toda a modéstia, eu era o melhor. Se essa missão não fosse tão vital para os seres humanos e para o povo das fadas, eu não deixaria você ir.

Juliet tocou o rosto do irmão.

— Vou tomar cuidado.

Eles desceram na calçada. Holly pairou no ar, usando o escudo, logo acima da multidão de empresários e turistas de viagem. Palha tinha aplicado uma nova camada de filtro solar, e o fedor repelia qualquer humano que tivesse a infelicidade de captar o cheiro.

Butler tocou o ombro de Artemis.

— Você vai ficar bem? Artemis deu de ombros.

— Honestamente, não sei. Sem você do meu lado é como se um dos meus membros estivesse faltando.

— Juliet vai mantê-lo em segurança. Ela tem um estilo incomum, mas é uma Butler, afinal de contas.

— É só uma missão, velho amigo. Depois não haverá mais necessidade de guarda-costas.

— É uma pena Holly não poder simplesmente ter mesmerizado Spiro através do Cubo.

Artemis balançou a cabeça.

— Não teria dado certo. Mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação, a criatura das fadas precisa de contato visual para mesmerizar uma mente forte como a de Spiro. Não quero me arriscar com esse homem. Ele precisa ser destruído. Mesmo que o povo das fadas o realocasse, ele poderia causar algum mal.

— E quanto ao seu plano? Pelo que você disse, é bastante complicado. Tem certeza de que vai dar certo?

Artemis piscou, uma demonstração muito incomum de frivolidade.

— Tenho certeza. Confie em mim. Eu sou um gênio.

Juliet pilotou o lear jet por cima do Atlântico. Holly ocupou o assento do co-piloto, admirando os instrumentos.

— Belo pássaro — comentou.

— Nada mau, garota — disse Juliet, ligando o piloto automático. — Não se compara com as aeronaves do povo das fadas, certo?

— A LEP não acredita no conforto — disse Holly. — Num transporte da LEP, mal há espaço para espremer um verme fedorento.

— Se você quisesse espremer um verme fedorento.

— Claro. — Holly examinou Juliet. — Você cresceu um bocado em dois anos. Na última vez em que a vi, você era uma garotinha.

Juliet sorriu.

— Muita coisa pode acontecer em dois anos. Passei a maior parte desse tempo lutando com homens grandes e peludos.

— Você deveria ver as lutas do povo das fadas. Dois gnomos marombados se arrebentando numa câmara de gravidade zero. Não é uma visão bonita. Vou lhe mandar um videodisco.

— Não, não vai.

Holly se lembrou das lavagens mentais.

— Está certa. Não, não vou.

Na área de passageiros do jato, Palha estava revivendo seus dias de glória.

— Ei, Artemis — falou com a boca cheia de caviar. — Lembra de quando eu quase arrebentei a cabeça de Butler com uma explosão de gás?

Artemis não riu.

— Lembro, Palha. Você foi o único entrave num trabalho que, afora isso, foi perfeito.

— Para dizer a verdade, foi acidente. Eu só fiquei nervoso. Nem notei que o grandão estava ali.

— Isso faz com que eu me sinta melhor. Liquidado por um problema de tripas.

— E lembra da vez em que eu salvei o seu pescoço nos Laboratórios Koboi? Se não fosse eu, você estaria trancado no Pico do Uivo agora mesmo. Você não pode fazer nada sem mim?

Artemis tomou água mineral numa taça de cristal lapidado.

— Aparentemente não, mas acabei sobrevivendo. Holly veio pelo corredor.

— É melhor prepararmos você, Artemis. Vamos pousar em trinta minutos.

— Boa idéia.

Holly esvaziou o conteúdo da bolsa na mesa central.

— Certo, do que precisamos, por enquanto? O microfone de garganta e uma câmera de íris.

A capitã da LEP escolheu o que parecia um esparadrapo circular, tirou a camada de adesivo e prendeu o material no pescoço de Artemis. O negócio ficou imediatamente da cor da pele.

— Látex de memória — explicou Holly. — É quase invisível. Talvez uma formiga rastejando pelo seu pescoço pudesse notar, mas afora isso... E o material é à prova de raios X, de modo que é impossível detectar o microfone. Ele vai captar tudo que for dito num raio de dez metros, e eu gravo no chip do meu capacete. Infelizmente não podemos arriscar um fone de ouvido, então nós vamos ouvi-lo, mas você não poderá nos ouvir.

Artemis engoliu em seco, sentindo o microfone subir e descer em seu pomo-de-adão.

— E a câmera?

— Vamos lá.

Holly pegou uma lente de contato num frasco cheio de líquido.

— Esta coisa é uma maravilha. Temos alta resolução, qualidade digital, imagem gravável com várias opções de filtros, inclusive de ampliação e térmico.

Palha chupou um osso de galinha até secar.

— Você está começando a parecer o Potrus. Artemis olhou para a lente.

— Pode ser uma maravilha tecnológica, mas é castanha.

— Claro que é castanha. Meus olhos são castanhos.

— Fico feliz em saber, Holly. Mas meus olhos são azuis, como você sabe muito bem. Essa câmera de íris não vai servir.

— Não me olhe assim, Garoto da Lama, você é que é o gênio.

— Eu não posso entrar lá com um olho castanho e outro azul. Spiro vai notar.

— Bem, você deveria ter pensado nisso enquanto estava meditando. Agora é meio tarde.

Artemis beliscou o nariz.

— Está certa, claro. Eu sou o planejador aqui. Pensar é minha responsabilidade, não a de vocês.

Holly semicerrou os olhos, cheia de suspeitas.

— Isso foi um insulto, Garoto da Lama?

Palha cuspiu o osso de galinha numa lata de lixo ali perto.

— Preciso dizer, Arty, um erro tão cedo não me deixa muito

confiante. Espero que você seja tão inteligente quanto fica dizendo a todo mundo.

— Eu nunca digo a ninguém exatamente até que ponto sou inteligente. As pessoas ficariam apavoradas demais. Muito bem, teremos de nos arriscar com a câmera de íris castanha. Com sorte, talvez Spiro não note. Se notar, eu posso inventar alguma desculpa.

Holly pôs a câmera na ponta do dedo, colocando a lente sob a pálpebra de Artemis.

— A decisão é sua, Artemis. Só espero que você não tenha achado no Spiro alguém à sua altura.

 

Spiro estava esperando por eles no hangar particular no Aeroporto O'Hare. Usava um sobretudo com gola de pele por cima do terno branco que era sua marca registrada. Lâmpadas halógenas clareavam o asfalto, e o vento das pás do helicóptero agitava as abas do casaco. Era tudo muito cinematográfico.

Agora só precisamos de música de fundo, pensou Artemis enquanto descia a escada automática do jato.

Seguindo as instruções, Palha estava bancando o gângster.

— Andando, garoto — rosnou ele de modo bem convincente. — Não queremos que o Sr. Spiro fique esperando.

Artemis já ia responder quando percebeu que deveria bancar o "garoto aterrorizado". Não ia ser fácil. Ser humilde era um verdadeiro problema para Artemis Fowl.

— Eu disse para andar! — repetiu Palha, enfatizando com um empurrão firme.

Artemis cambaleou pelos últimos degraus, quase colidindo com Arno Bronco, que ria. E não era um riso comum. Os dentes de Bronco tinham sido substituídos por uma dentadura de porcelana feita sob medida. As pontas eram finas e afiadas. O guarda-costas parecia um híbrido entre homem e tubarão.

Bronco captou o olhar de Artemis.

— Gostou? Eu tenho outras. Uma é toda chata. Para esmagar coisas.

Um riso cínico estava se formando na boca de Artemis, mas ele se lembrou de seu papel, e substituiu o riso por lábios trêmulos. Estava baseando seu desempenho no efeito que Butler geralmente causava nas pessoas.

Spiro não ficou impressionado.

— Belo número, filho. Mas perdoe se eu duvido de que o grande Artemis Fowl esteja desmoronando tão facilmente. Arno, verifique o avião.

Bronco assentiu rapidamente, entrando no jato particular. Juliet estava com uniforme de aeromoça, ajeitando os forros dos encostos de cabeça. Apesar de toda a sua capacidade atlética, ela estava achando difícil não despencar dos saltos altos.

— Onde está o piloto? — rosnou Bronco, fazendo jus ao nome.

— O jovem Sr. Artemis pilota o avião — respondeu Juliet. — Desde que tinha onze anos.

— Verdade? Isso é legal?

Juliet fez seu melhor rosto de inocente.

— Não sei se é legal, moço. Eu só sirvo as bebidas. Bronco grunhiu, charmoso como sempre, e fez um exame rápido no interior do avião. Por fim decidiu aceitar a palavra da aeromoça. Sorte dele porque, se decidisse discutir, duas coisas teriam acontecido. Primeiro, Juliet o teria derrubado com o anel de jade. E segundo, Holly, que estava com o escudo num armário em cima, o teria deixado inconsciente com um tiro de sua Neutrino 2000. Claro, Holly poderia simplesmente ter hipnotizado o guarda-costas, mas depois do que ele fizera com Butler, um tiro parecia mais adequado. Bronco enfiou a cabeça pela porta.

— Não tem ninguém aqui, a não ser a idiota da aeromoça.

Spiro não ficou surpreso.

— Pensei que não haveria. Mas eles estão em algum lugar. Acredite ou não, Scaver, Artemis Fowl não seria apanhado fácil por um capanga como você. Ele está aqui porque quer.

— Não sei o que o senhor quer dizer — disse Artemis. — Eu estou aqui porque esse homenzinho odioso ameaçou esmagar meu crânio entre os dentes. Por que outro motivo eu viria? O Cubo V é inútil para o senhor, e eu poderia facilmente construir outro.

Spiro nem estava ouvindo.

— É, é, como quiser, garoto. Mas deixe-me dizer uma coisa. Você mordeu mais do que pode engolir quando concordou em vir aqui. A Agulha Spiro tem o melhor sistema de segurança do planeta. Nós temos coisas lá que nem os militares possuem. Assim que aquelas portas se fecharem, você vai estar sozinho. Ninguém vai salvá-lo. Ninguém. Entendeu?

Artemis confirmou com a cabeça. Entendia o que Spiro estava dizendo. O que não queria dizer que concordasse. Jon Spiro podia ter coisas que nem os militares possuíam, mas Artemis Fowl tinha coisas que os humanos nunca tinham visto.

Um helicóptero executivo Sikorsky os levou até a Agulha Spiro, no centro da cidade. Pousaram num heliporto no terraço do arranha-céu. Artemis era familiarizado com os controles do helicóptero, e percebeu como devia ser difícil pousar na agitação da Cidade dos Ventos.

— A velocidade do vento deve ser traiçoeira nessa altitude — falou casualmente. Holly podia registrar a informação no chip do capacete.

— Nem diga — gritou o piloto acima do barulho dos rotores. — Chega a mais de 90 quilômetros por hora no topo da Agulha. O heliporto pode balançar até 10 metros em condições ruins.

Spiro gemeu, assentindo para Bronco. Arno deu um tapa no capacete do piloto.

— Cale a boca, imbecil! — disse Spiro rispidamente. — Por que não aproveita para dar a ele a planta do prédio? — Em seguida se virou para Artemis. — E para o caso de você estar se perguntando, Arty, não existe planta nenhuma por aí. Qualquer um que procurar na prefeitura vai descobrir que a pasta desapareceu misteriosamente. Eu tenho o único jogo de plantas, por isso não se incomode em mandar nenhum dos seus colegas fazer uma busca na internet.

Não era surpresa. Artemis já tinha feito várias buscas, se bem que realmente não esperava que Spiro fosse tão descuidado.

Desceram do Sikorsky. Artemis teve o cuidado de apontar a câmera de íris para cada item de segurança que pudesse ser útil mais tarde. Freqüentemente Butler tinha dito que até mesmo um detalhe aparentemente insignificante, como o número de degraus numa escada, podia ser vital ao planejar uma operação.

Um elevador os levou para baixo, do heliporto até uma porta com teclas de código. Havia câmeras de circuito fechado postas estrategicamente para cobrir todo o terraço do prédio. Spiro foi até o teclado. Artemis sentiu uma pontada aguda no olho e de repente a câmera de íris ampliou sua visão em quatro vezes. Apesar da distância e das sombras, ele pôde facilmente ver o código digitado.

— Espero que tenha pego isso — murmurou, sentindo o microfone vibrar na garganta.

Arno Bronco dobrou os joelhos, de modo que seus dentes extraordinários ficaram a um centímetro do nariz de Artemis.

— Está falando com alguém?

— Eu? Com quem eu estaria falando? Nós estamos a oitenta andares do chão, caso você não tenha notado.

Bronco pegou o adolescente pelas lapelas, levantando-o do piso.

— Talvez você esteja usando um microfone. Talvez alguém esteja ouvindo agora mesmo o que a gente fala.

— Como eu poderia estar usando microfone, seu gigante imbecil? O mafioso miniatura de vocês não ficou longe de mim durante toda a viagem. Até me acompanhou ao banheiro.

Spiro pigarreou ruidosamente.

— Calma aí, Sr. Metido a Sabichão, se esse garoto cair do prédio é melhor você também se jogar, porque o moleque vale mais para mim do que um exército de guarda-costas.

Bronco pôs Artemis no chão.

— Você não vai ser valioso para sempre, Fowl — sussurrou em tom agourento. — E quando suas ações caírem, eu vou estar esperando.

Pegaram um elevador espelhado até o octogésimo quinto andar, onde o Dr. Pearson esperava junto com mais dois capangas musculosos. Pelo olhar deles, Artemis podia ver que não eram exatamente neurocirurgiões. Na verdade, eram o mais parecido possível com rottweillers equilibrados em duas patas. Provavelmente era bom tê-los por perto para quebrar coisas e não fazer perguntas.

Spiro chamou um deles.

— Peits, você sabe o que os Antonelli cobram se você perder alguém deles?

Peits teve de pensar um momento. Seus lábios se moveram enquanto ele pensava.

— É, espere, entendi. Vinte mil por um homem do metal e 15 por um macaco.

— Isso para morto, certo?

— Morto ou incapati... incatacip... aleijado.

— Certo — disse Spiro. — Quero que você e Frits digam a Carla Frazetti que eu lhe devo 35 mil pela equipe. Vou transferir o dinheiro para a conta dela em Cayman de manhã cedo.

Palha ficou compreensivelmente curioso, e nem um pouco apreensivo.

— Com licença? Trinta e cinco mil? Mas eu ainda estou vivo. O senhor só deve vinte mil pelo Mocassim, a não ser que os 15 mil extra sejam minha bonificação, não é?

Spiro sorriu com um arrependimento quase convincente.

— É assim que as coisas são, Pal — disse ele, dando um soco de brincadeira no ombro de Palha. — O negócio é gigantesco. Mastodôntico. Como números de telefone. Não posso me dar ao luxo de deixar pontas soltas. Talvez você saiba de alguma coisa, talvez não saiba. Mas não vou me arriscar a que você dê a dica para a Phonetix ou um dos meus outros concorrentes. Tenho certeza de que você entende.

Palha esticou os lábios, revelando uma fileira de dentes parecendo lápides.

— Entendo muito bem, Spiro. Você é uma cobra que esfaqueia pelas costas. Sabe, o garoto me ofereceu dois milhões de dólares para deixá-lo solto.

— Você deveria ter aceitado o dinheiro — disse Arno Bronco, jogando Palha nos braços gigantescos de Peits.

O anão continuou falando, enquanto era arrastado pelo corredor.

— É melhor me enterrar fundo, Spiro. É melhor me enterrar bem fundo.

Os olhos de Spiro se estreitaram até virar fendas úmidas.

— Vocês ouviram o sujeito, rapazes. Antes de irem falar com Frazetti, enterrem-no bem fundo.

O Dr. Pearson guiou o grupo até o cofre-forte. Tiveram de passar por uma pequena antecâmara antes de entrar na área de segurança principal.

— Por favor, fique de pé no tapete do scanner — disse Pearson. — Nós não queremos nenhum grampo aqui. Especialmente do tipo eletrônico.

Artemis pisou no tapete, que afundou como uma esponja sob seus pés, lançando jatos de espuma sobre os sapatos.

— Espuma antiinfecção — explicou Pearson. — Mata qualquer vírus que você possa ter trazido. No momento estamos com alguns experimentos de biotecnologia no cofre-forte. Muito suscetíveis a doenças. A espuma tem a vantagem a mais de provocar curto em qualquer instrumento de vigilância que haja em seus sapatos.

Acima da cabeça, um scanner móvel banhou Artemis em uma luz arroxeada.

— Uma das minhas invenções — disse Pearson. — Um scanner combinado. Incorporei fachos termais, de raios X e detector de metais. O facho basicamente divide seu corpo nos elementos e mostra na tela aqui.

Artemis viu uma réplica sua em 3D sendo rastreada na pequena tela de plasma. Prendeu o fôlego, rezando para que o equipamento de Potrus fosse tão inteligente quanto o centauro pensava.

Na tela, uma luz vermelha pulsou na frente do paletó de Artemis.

— Ahá — disse o Dr. Pearson, tirando um botão. — O que temos aqui? Ele abriu o botão, revelando um chip minúsculo, com microfone e bateria.

— Muito inteligente. Um microgrampo. O nosso jovem amigo estava tentando nos espionar, Sr. Spiro.

Jon Spiro não ficou com raiva. De fato sentiu-se deliciado em ter a oportunidade de cantar vantagem.

— Veja bem, garoto. Talvez você seja algum tipo de gênio, mas vigilância e espionagem são o meu negócio. Você não pode passar nada por mim. E quanto mais cedo aceitar isso, mais cedo terminaremos com esse negócio.

Artemis saiu do tapete. A isca tinha dado certo, e os verdadeiros grampos não tinham provocado nenhuma reação no sistema. Pearson era inteligente, mas Potrus era mais.

Certificou-se de dar uma boa olhada na antecâmara. Havia mais coisas aqui. Cada centímetro quadrado da superfície metálica continha um instrumento de segurança ou vigilância. Pelo que Artemis podia ver, uma formiga invisível teria problema para entrar. Para não mencionar dois humanos, um elfo e um anão — presumindo que o anão sobrevivesse a Peits e Frits.

A porta do cofre-forte em si era impressionante. A maioria dos cofres-fortes corporativos parecia impressionante, cheios de cromados e teclados, mas isso era apenas para impressionar os acionistas. No cofre-forte de Spiro não havia uma caneca fora do lugar. Artemis viu a tranca eletrônica mais moderna numa porta dupla de titânio. Spiro digitou outra complicada série de números, e as portas de um metro de espessura deslizaram revelando outra barreira. A porta secundária.

— Imagine que você é um ladrão — disse Spiro, o próprio ator reapresentando uma peça — e que conseguiu de algum modo entrar no prédio, passar pelos olhos eletrônicos e pelas portas trancadas. Então imagine que de algum modo conseguiu enganar os lasers, a almofada de sensores e o código da porta, e abriu a primeira porta do cofre-forte — um feito impossível, a propósito. E enquanto estamos imaginando tudo isso, vamos fingir que você desabilitou a meia dúzia de câmeras, e mesmo assim, mesmo depois do tudo, você poderia fazer isso?

Spiro parou numa pequena placa vermelha no chão diante da porta. Pôs o polegar num scanner de impressão digital, manteve a pálpebra esquerda aberta e enunciou claramente:

— Jon Spiro. Eu sou o chefe, então abra logo.

Quatro coisas aconteceram. Um scanner de retina filmou seu olho esquerdo e mandou a imagem para o computador. Um scanner plano rastreou seu polegar direito, e um analisador vocal examinou a pronúncia, o timbre e as entonações de sua voz. Assim que o computador tinha verificado todas essas informações, os alarmes foram desativados e a porta secundária deslizou, revelando um espaço impressionante.

Bem no meio, no centro de uma coluna de aço feita sob encomenda, estava o Cubo V, dentro de uma caixa de perspex, com pelo menos seis câmeras concentradas em seus vários planos. Dois guardas corpulentos estavam parados, costas contra costas, formando uma barreira humana diante daquele exemplo de tecnologia do povo das fadas.

Spiro não pôde resistir a uma provocação.

— Diferentemente de você, eu cuido da minha tecnologia. Este cofre-forte é o único do tipo no mundo.

— Segurança viva numa sala onde nem o ar entra. Interessante.

— Esses caras são treinados em altas altitudes. Além disso nós trocamos a guarda de hora em hora, e todos levam cilindros de oxigênio para respirar. O que você imaginava? Que eu ia colocar entradas de ar num cofre-forte?

Artemis deu um muxoxo.

— Não precisa se gabar, Spiro. Eu estou aqui; você venceu. Então, vamos em frente?

Spiro digitou uma última seqüência no teclado da coluna e os painéis de perspex se retraíram. Ele pegou o Cubo em seu ninho de espuma.

— Meio exagerado, não acha? — comentou Artemis. — Isso tudo não parece necessário.

— Nunca se sabe. Algum empresário bandido poderia tentar me separar do meu tesouro.

Artemis se arriscou a demonstrar um sarcasmo calculado.

— É verdade, Spiro. Você acha que eu tentaria invadir? Talvez você tenha pensado que eu viria para cá voando com meus amigos do reino das fadas e levaria sua caixa usando magia, não é?

Spiro riu.

— Você pode trazer todos os amigos do reino das fadas que quiser, Arty, garoto. A não ser por um milagre, esse Cubo vai ficar aí mesmo onde está.

Juliet era cidadã americana por nascimento, mesmo que seu irmão tivesse nascido do outro lado do mundo. Ela estava feliz em voltar à sua terra natal. A agitação do tráfego de Chicago e o coro constante das vozes multiculturais faziam com que se sentisse em casa. Adorava os arranha-céus, as saídas de vapor e o sarcasmo afetuoso dos camelôs. Se algum dia tivesse a chance de se estabelecer num lugar, seria nos Estados Unidos. Mas na Costa Oeste, algum lugar com sol.

Juliet e Holly estavam circulando a Agulha Spiro num minifurgão com janelas de vidro fumê. Holly estava sentada atrás, olhando o vídeo ao vivo mandado pela câmera de íris de Artemis para o visor de seu capacete.

Num determinado ponto, ela deu um soco triunfante no ar.

Juliet parou num sinal vermelho.

— Como estamos indo?

— Nada mau — respondeu a elfo, levantando o visor. — Estão levando Palha para enterrá-lo.

— Legal. Como Artemis disse que fariam.

— E Spiro acabou de convidar todos os amigos de Artemis do reino das fadas para entrar no prédio.

Esse era um passo crucial. O Livro proibia que as criaturas das fadas entrassem em prédios humanos sem convite. Nem Holly estava livre para invadir e criar tumulto sem violar a doutrina de seu povo.

— Excelente — disse Juliet. — Estamos dentro. Eu vou arrebentar o cara que atirou no meu irmão.

— Não tão depressa. Esse prédio tem o sistema de segurança mais sofisticado que eu já vi entre os Homens da Lama. Spiro tem alguns truques que eu nunca vi antes.

Finalmente Juliet achou uma vaga na frente da porta giratória principal da Agulha Spiro.

— Mas não vão ser problemas para o carinha meio cavalo, não é?

— Não, mas Potrus não deveria nos ajudar. Juliet apontou um binóculo para a porta.

— Eu sei, mas tudo depende de como você pedir. Um cara inteligente como Potrus... O que ele precisa é de um desafio.

Três figuras saíram da Agulha. Dois homens grandes vestidos de preto e um indivíduo menor, de aparência nervosa. Os pés de Palha estavam balançando no ar tão depressa que pareciam numa dança folclórica irlandesa. Não que ele tivesse alguma chance de escapar. Peits e Frits estavam segurando com mais força do que dois cachorros brigando por um osso.

— Aí vem o Palha. É melhor a gente dar apoio a ele.

Holly prendeu seu arnês mecânico, estendendo as asas ao toque de um botão.

— Vou segui-los pelo ar. Fique de olho em Artemis. Juliet ligou o monitor de vídeo do computador manual de um dos capacetes de reserva. O ponto de vista de Artemis surgiu subitamente na tela.

— Você realmente acha que Palha precisa de ajuda? — perguntou ela.

Holly ficou invisível.

— Ajuda? Eu só vou garantir que ele não machuque aqueles dois Homens da Lama.

Dentro do cofre-forte, Spiro tinha parado de bancar o anfitrião educado.

— Deixe-me contar uma pequena história, Arty — disse ele, acariciando amorosamente o Cubo V. — Era uma vez um garoto irlandês que achava estar pronto para se dar bem. Por isso criou confusão com um empresário muito sério.

Não me chame de Arty, pensou Artemis. Meu pai me chama de Arty.

— Esse empresário não gostava de que criassem confusão com ele, por isso criou confusão de volta, e o garoto foi arrastado para o mundo real, se debatendo e gritando. E agora o garoto tem de fazer uma escolha: ele conta o que o empresário precisa saber ou se coloca, e coloca sua família, em perigo mortal? Bem, Arty, qual é a opção?

Spiro estava cometendo um erro grave ao mexer com

Artemis Fowl. Para os adultos, era difícil acreditar que aquele garoto pálido de 13 anos podia ser uma ameaça. Artemis tinha tentado se aproveitar disso usando roupas informais, em vez de seus ternos de grife. Também estivera treinando um olhar inocente, arregalado, enquanto estava no jato, mas arregalado não era como você quereria ser visto quando uma íris não combinava com a outra.

Bronco cutucou Artemis entre as omoplatas.

— O Sr. Spiro lhe fez uma pergunta. — Seus dentes novos estalaram enquanto ele falava.

— Eu estou aqui, não estou? — respondeu Artemis.— Vou fazer o que você quiser.

Spiro pôs o Cubo numa comprida mesa de aço que atravessava o centro do cofre-forte.

— O que eu quero é que você desabilite o Código Eterno e ponha esse cubo funcionando agora mesmo.

Artemis gostaria de ser capaz de se obrigar a suar, para que sua ansiedade parecesse mais autêntica.

— Agora? Não é tão simples.

Spiro agarrou Artemis pelos ombros, encarando-o nos olhos.

— E por que não seria tão simples? É só digitar a senha e lá vamos nós.

Artemis desviou os olhos descombinados, olhando para o chão.

— Não existe uma senha comum. Um Código Eterno é construído para ser irreversível. Eu tenho de reconstruir toda uma linguagem. Pode demorar dias.

— Você não tem anotações?

— Tenho. Em disco. Na Irlanda. Seu macaco não quis deixar que eu trouxesse nada, para o caso de ser uma armadilha.

— Nós podemos acessar seu disco rígido pela internet?

— Sim. Mas eu só mantenho as anotações em discos separados. A gente poderia voltar à Irlanda. Oito horas, ida e volta.

Spiro nem quis considerar a opção.

— Esqueça. Enquanto eu tiver você aqui, estou no controle. Quem sabe que tipo de recepção está me esperando na Irlanda? Vamos fazer aqui. Não importa quanto tempo vá levar.

Artemis suspirou.

— Muito bem.

Spiro recolocou o Cubo em sua caixa de perspex.

— Tenha uma boa noite de sono, garoto, porque amanhã você vai descascar essa geringonça como uma cebola. E se não fizer isso, o que está para acontecer com Pal Scaver vai acontecer com você.

Artemis não ficou muito preocupado com a ameaça. Não acreditava que Palha estivesse correndo perigo. De fato, se alguém estava com problema, seriam os capangas Peits e Frits.

 

JON Spiro não tinha contratado Peits e Frits por suas capacidades de articulação verbal. Na entrevista para o serviço, eles só tinham recebido uma tarefa. Cem candidatos receberam uma noz e a ordem de esmagá-la como pudessem. Apenas dois tiveram sucesso. Peits gritou para a noz durante alguns minutos, depois esmagou-a entre as palmas gigantescas. Frits optou por um método mais polêmico. Pôs a noz na mesa, segurou o entrevistador pelo rabo-de-cavalo e usou a testa do homem para esmagar a noz. Os dois foram contratados no ato. Rapidamente se estabeleceram como os auxiliares mais confiáveis de Arno Bronco para trabalho interno. Não tinham permissão para sair de Chicago, já que isso envolveria leitura de mapas, algo em que Peits e Frits não eram muito bons.

No momento Peits e Frits estavam conversando ao luar enquanto Palha cavava uma cova tamanho de anão no barro seco atrás de uma fábrica de cimento abandonada.

— Adivinha por que me chamam de Peits — disse Peits, flexionando os músculos do peito como dica.

Frits abriu um saco de batata frita que ele vivia mastigando.

— Não sei. É tipo um diminutivo de alguma coisa?

— Tipo o quê?

— Não sei — disse Frits. Ele usava essa expressão um bocado. — Francis?

Isso pareceu idiota até mesmo para Peits.

— Francis? Como é que Peits pode ser diminutivo de Francis?

Frits deu de ombros.

— Ei. Eu tinha um tio Robert, e todo mundo chamava ele de Bobby. Isso também não faz sentido.

Peits revirou os olhos.

— É de pei-to-rais, seu panaca. Peits é diminutivo de peitorais, porque eu tenho músculos grandes no peito.

No buraco, Palha gemeu. Ouvir aquele palavrório insensato era quase tão ruim quanto ter de cavar um buraco com uma pá. Sentiu-se tentado a se desviar do plano e se jogar no solo quebradiço. Mas Artemis não queria nenhuma demonstração de poderes nesse estágio dos acontecimentos. Se ele fugisse e aqueles capangas escapassem sem ser mesmerizados, a paranóia de Spiro subiria mais um ponto.

Na superfície, Frits estava ansioso para continuar com o jogo.

— Adivinha por que me chamam de Frits — disse ele, escondendo o saco de batatas fritas às costas.

Peits pôs o dedo na testa. Essa ele sabia.

— Não conte. Eu posso deduzir. Palha pôs a cabeça para fora do buraco.

— É porque ele gosta de comer batata frita, seu idiota. Frits come batatas fritas. Vocês são os Homens da Lama mais imbecis que eu já vi. Porque não me matam simplesmente? Pelo menos não vou ter de ficar ouvindo suas sandices.

Peits e Frits ficaram pasmos. Com todo o exercício mental, tinham quase esquecido do homenzinho no buraco. Além disso, não estavam acostumados a ver futuras vítimas dizendo nada além de "Ah, não, por favor, meu Deus, não".

Peits se inclinou sobre a borda da sepultura.

— O que quer dizer com sandices?

— Estou falando dessa coisa de Peits e Frits. Peits balançou a cabeça.

— Não, eu quero dizer: o que significa "sandice"? Nunca ouvi antes.

Palha adorou explicar.

— Significa absurdo, tolice, asneira, palermice, disparate, burrice. Está suficientemente claro para você?

Frits reconheceu a última.

— Burrice? Ei, isso é um insulto! Você está insultando a gente, baixinho?

Palha juntou as mãos fingindo que estava rezando.

— Finalmente, uma dedução.

Os capangas não tinham certeza de como reagir à ofensa. Havia apenas duas pessoas vivas que os insultavam regularmente: Arno Bronco e Jon Spiro. Mas isso fazia parte do serviço — você ignorava aumentando a música dentro da cabeça.

— A gente tem que ficar ouvindo esse espertinho? — perguntou Peits ao parceiro.

— Acho que não. Talvez eu devesse telefonar para o Sr. Bronco.

Palha gemeu. Se estupidez fosse crime, esses aí seriam os inimigos públicos número um e dois.

— O que vocês deveriam fazer é me matar. Essa era a idéia, não era? Só me matar e acabar com isso.

— O que acha, Frits? A gente deve matar ele?

Frits mastigou um punhado de Ruffles sabor churrasco.

— É. Claro. Ordem é ordem.

— Mas eu não me mataria simplesmente — exclamou Palha.

— Não?

— Ah, não. Depois do modo como insultei a inteligência de vocês? Não, eu mereço algo especial.

Quase dava para ver o vapor saindo dos ouvidos de Peits enquanto seu cérebro superaquecia.

— Isso mesmo, baixinho. A gente vamos fazer uma coisa especial pra você. A gente não aceitamos ofensa de ninguém!

Palha não se incomodou em mostrar o erro de concordância.

— Está certo. Eu falo demais, e mereço tudo que vou receber.

Seguiu-se um curto silêncio, enquanto Peits e Frits tentavam pensar em alguma coisa pior do que o tiro direto, usado normalmente.

Palha esperou um minuto, depois fez uma sugestão educada.

— Se fosse comigo, eu me enterraria vivo. Frits ficou horrorizado.

— Enterrar você vivo? Isso é terrível! Você ia ficar gritando e mastigando a terra. Eu posso ter pesadelos.

— Prometo ficar imóvel. De qualquer modo, eu mereço. Chamei vocês dois de um par de Cromagnons superdesenvolvidos e só com uma célula nervosa.

— Chamou?

— Bom, agora chamei.

Peits era o mais impulsivo dos dois.

— Certo, Sr. Scaver. Sabe o que a gente vamos fazer? Enterrar você vivo!

Palha pôs as mãos nas bochechas.

— Ah, que horror!

— Foi você quem pediu, meu chapa.

— Pedi, não pedi?

Peits pegou uma pá extra no porta-malas.

— Ninguém me chama de coroa-magneto superdesenxabido só com uma cédula nervosa.

Palha ficou deitado obedientemente na sepultura.

— Não, aposto que ninguém chama.

Peits jogava a terra furiosamente, com os músculos esculpidos na academia esticando o paletó do terno. Dentro de minutos o corpo de Palha estava completamente coberto.

Frits se sentia meio abalado.

— Isso foi horrível. Horrível. Coitado do baixinho! Peits não se arrependeu.

— É, bem, ele pediu. Ficou chamando a gente de... aquele monte de coisa.

— Mas ser enterrado vivo? É que nem naquele filme de terror. Sabe? Aquele cheio de terror.

— Acho que vi esse. Com um monte de palavras subindo pela tela no final?

— É, foi esse. Para dizer a verdade, aquelas palavras meio que acabaram comigo.

Peits amassou a terra fofa com o pé.

— Não se preocupe, meu chapa. Neste filme aqui não tem palavras.

Eles subiram de novo no Chevrolet. Frits ainda estava meio perturbado.

— Sabe, é muito mais real do que num filme, quando é real.

Peits ignorou uma placa de acesso proibido e entrou na estrada.

— É o cheiro. Não dá pra sentir cheiro das coisas num filme.

Frits fungou, emocionado.

— Scaver devia estar meio chateado, no fim.

— Isso não me surpreende.

— Porque eu pude escutar ele chorando. Os ombros dele estavam sacudindo, como se ele estivesse gargalhando. Mas devia estar chorando. Quero dizer, que tipo de maluco ia rir quando estava sendo enterrado vivo?

— Ele devia estar chorando.

Frits abriu um saco de batatas fritas sabor bacon.

— É, devia estar chorando.

Palha estava rindo tanto que quase engasgou com a primeira bocada de terra. Que palhaços! Mas, afinal de contas, tinha sido sorte eles serem palhaços, caso contrário poderiam ter escolhido seu próprio método de execução.

Com o maxilar desencaixado, Palha fez um túnel descendo direto cinco metros, depois virou para o norte, para o abrigo de alguns armazéns abandonados. O pêlo de sua barba lançava sinais de sonar em todas as direções. Todo cuidado era pouco em áreas construídas. Sempre havia algum animal, e o Povo da Lama tinha o hábito de enterrar coisas onde não era de se esperar. Tubos, fossas sépticas e tonéis de lixo industrial eram coisas em que ele tinha dado uma mordida indesejada algum dia. E não havia coisa pior do que descobrir na boca alguma coisa que você não esperava ali, especialmente se a coisa estiver se retorcendo.

Era bom estar abrindo túnel de novo. Era para isso que os anões tinham nascido. A sensação da terra entre os dedos era boa, e logo ele se estabeleceu em seu ritmo. Cortando o solo entre os dentes, respirando pelas narinas com fendas estreitas e bombeando pela outra extremidade o material que sobrava.

As antenas dos pêlos de Palha o informaram de que não havia vibrações na superfície, por isso ele virou para cima usando os últimos vestígios de gás de anão para impeli-lo para fora do buraco.

Holly pegou-o a um metro do chão.

— Encantador — disse ela.

— O que eu posso dizer? — respondeu Palha sem se desculpar. — Eu sou uma força da natureza. Você estava aí em cima o tempo todo?

— Sim, só para o caso de as coisas saírem do controle. Você fez uma tremenda apresentação.

Palha espanou o barro das roupas.

— Dois tiros da Neutrino poderiam me economizar um bocado de escavação.

Holly sorriu numa imitação assustadora de Artemis.

— Isso não está no plano. E agora precisamos nos ater ao plano, não é?

Ela enrolou um pedaço de tecido de camuflagem em volta dos ombros do anão e o prendeu em seu CintoLua.

— Vá com calma, está bem? — disse Palha, ansioso. — Os anões são criaturas do solo. Não gostamos de voar; nós nem gostamos de pular muito alto.

Holly acelerou as asas, indo para o centro da cidade.

— Vou considerar seus sentimentos tanto quanto você considera os da LEP.

Palha empalideceu. Era curioso como essa elfo minúscula dava muito mais medo do que dois homens de mais de um metro e noventa.

— Holly, se alguma vez fiz alguma coisa que ofendeu você, eu peço...

Palha não conseguiu terminar a frase, porque a aceleração súbita empurrou as palavras de volta pela garganta.

 

Arno Bronco levou Artemis até sua cela. Era bastante confortável, com banheiro privativo e sistema de diversão. Faltavam duas coisas: janelas e uma maçaneta na porta. Bronco deu um tapa na cabeça de Artemis.

— Não sei o que aconteceu naquele restaurante em Londres, mas se tentar alguma coisa assim aqui, eu viro você pelo avesso e como suas entranhas. — Ele trincou os dentes pontudos para deixar claro o que dizia, e chegou perto, sussurrando no ouvido de Artemis. Artemis pôde ouvir os dentes estalando com cada sílaba.

— Não me importa o que o chefe diz, você não vai ser útil para sempre, de modo que, se eu fosse você, seria muito bonzinho comigo.

— Se você fosse eu — respondeu Artemis — eu seria você, e se eu fosse você eu me esconderia num lugar bem distante.

— Ah, verdade? E por que você faria isso?

Artemis fez uma pausa para dar todo o efeito de suas palavras.

— Porque Butler está vindo pegá-lo. E ele está extremamente chateado.

Bronco recuou alguns passos.

— De jeito nenhum, garoto. Eu vi Butler caindo, vi o sangue.

Artemis riu.

— Eu não disse que ele estava vivo. Só disse que ele estava vindo.

— Você só está brincando com minha cabeça. O Sr. Spiro me alertou com relação a isso.

Bronco se afastou da porta, jamais desviando o olhar de Artemis.

— Não se preocupe, Bronco. Eu não estou com ele aqui no bolso. Você tem horas, talvez dias, antes que chegue o momento.

Arno Bronco bateu a porta com tanta força que o batente tremeu. O riso de Artemis se alargou. Cada nuvem lá fora tinha um fio de prata em volta.

Artemis entrou no chuveiro, deixando o jato de água quente bater na testa. Na verdade, ele se sentia meio ansioso. Uma coisa era formular um plano na segurança de casa. Outra bem diferente era executar esse plano preso na toca do leão. E mesmo que nunca admitisse, sua confiança tinha levado um golpe razoável nos últimos dias. Spiro tinha sido mais esperto do que ele em Londres, e sem esforço aparente. Ele havia entrado na armadilha do empresário com tanta ingenuidade quanto um turista num beco escuro.

Artemis tinha bastante consciência de seus talentos. Era um conspirador, um maquinador, um planejador de feitos malignos. Não havia empolgação maior do que a execução de um plano perfeito. Mas ultimamente suas vitórias tinham sido manchadas pela culpa, especialmente com relação ao que acontecera com Butler. Artemis estivera tão perto de perder o velho amigo que ficava enjoado só de pensar.

As coisas precisavam mudar. Logo seu pai estaria vigiando, esperando que Artemis fizesse as escolhas certas. E, se não fizesse, Artemis pai provavelmente lhe tiraria essas escolhas. Ele se lembrava das palavras do pai: E você, Arty? Vai fazer a jornada comigo? Quando chegar o momento, você vai aproveitar sua chance de ser um herói?

Artemis ainda não tinha resposta para essa pergunta.

Enrolou-se num roupão bordado com o monograma de seu captor. Não somente Spiro estava lembrando-o de sua presença com as letras douradas, mas também uma câmera de circuito fechado, sensível ao movimento, seguia Artemis pelo quarto. Artemis se concentrou na tarefa desafiadora de invadir o cofre de Spiro e roubar de volta o Cubo V. Tinha previsto muitas das medidas de segurança de Spiro e se preparado para elas. Apesar de algumas serem imprevistas e bastante engenhosas, Artemis tinha ao seu lado a tecnologia do povo das fadas, e esperava ter Potrus também. O centauro recebera a ordem de não ajudar, mas se Holly apresentasse a invasão como um teste, Artemis tinha certeza de que ele seria incapaz de resistir.

Sentou-se na cama, coçando o pescoço casualmente. A cobertura de látex do microfone tinha sobrevivido ao banho, como Holly garantiu que aconteceria. Era reconfortante saber que não estava sozinho em sua prisão.

Como o microfone operava a partir de vibrações, Artemis não precisava falar alto para que suas instruções fossem transmitidas.

— Boa noite, amigos — sussurrou, de costas para a câmera. — Tudo segue de acordo com o plano, dando como certo que Palha tenha sobrevivido. Devo alertar para esperarem uma visita dos capangas de Spiro. Tenho certeza de que o pessoal dele andou monitorando as ruas, e eles devem ser atraídos para um falso sentimento de segurança se ele acreditar que meu pessoal foi varrido. O Sr. Spiro teve a gentileza de me levar num passeio pelas instalações, e espero que vocês tenham gravado tudo de que precisamos para completar a missão. Acredito que a expressão local para esse tipo de operação é afanar. É isso que eu quero que vocês façam.

Artemis sussurrava lentamente, enunciando cada ponto com clareza. Era vital que os membros da equipe seguissem as instruções ao pé da letra. Se não fizessem isso, toda a trama poderia explodir como um vulcão ativo. E no momento ele estava sentado na cratera do vulcão.

Peits e Frits estavam de bom humor. Na volta à Agulha, não somente o Sr. Bronco tinha lhes dado a bonificação de cinco mil pelo serviço feito com Pal Scaver, mas também lhes dera outra tarefa. As câmeras de vigilância externa da Agulha tinham captado um furgão preto parado diante da porta principal. Estava lá há mais de três horas, e uma segunda observação das fitas mostrou o veículo circulando o prédio durante mais de uma hora, procurando vaga para estacionar. O Sr. Spiro havia alertado para estarem atentos a veículos suspeitos, e esse era certamente suspeito.

— Desçam lá — ordenou Bronco, sentado em sua cadeira na sala da segurança. — E se houver alguma coisa respirando dentro, perguntem por que estão respirando na frente do meu prédio.

Esse era o tipo de instrução que Peits e Frits entendiam. Nada de fazer perguntas, nada de operar máquinas complexas. Apenas abrir uma porta, dar um susto em tudo, fechar a porta. Fácil. Desceram pelo elevador brincando, um dando socos no ombro do outro até ficarem com os braços entorpecidos.

— A gente podemos ganhar uma grana preta esta noite, meu chapa — disse Peits, massageando os bíceps para a circulação voltar.

— Claro que podemos — empolgou-se Frits, pensando em todos os DVDs do dinossauro Barney que ele podia comprar. — Isso agora deve valer outro bônus. Pelo menos cinco mil. No total são...

Seguiram-se vários instantes de silêncio enquanto os dois contavam nos dedos.

— É uma grana preta — disse Peits finalmente.

— Uma grana preta — concordou Frits.

Juliet estava com o binóculo apontado para a porta giratória da Agulha. Teria sido mais fácil usar o Optix de um capacete do povo das fadas, mas infelizmente sua cabeça tinha crescido muito nos últimos dois anos. Essa não era a única coisa que havia mudado. Juliet se transformara de uma adolescente magricela numa atleta com tônus muscular. Mas não era perfeita para ser guarda-costas; ainda havia alguma rugas a ser passadas a ferro. Rugas de personalidade.

Juliet Butler era uma criatura que adorava se divertir; não podia evitar isso. Achava apavorante a idéia de ficar com a cara impassível grudada no ombro de algum político cheio de opiniões. Ficaria louca com o tédio — a não ser que Artemis pedisse para ela permanecer profissionalmente com ele. Ninguém sentia tédio ao lado de Artemis Fowl. Mas isso não tinha probabilidade de acontecer. Artemis havia garantido a todo mundo que esse era seu último serviço. Depois de Chicago, ele iria se endireitar. Se houvesse um depois de Chicago.

O trabalho de tocaiar também era tedioso. Ficar sentada quieta não fazia parte da natureza de Juliet. Seu jeito hiperativo tinha feito com que fracassasse em mais de uma matéria na Academia de Madame Ko.

— Fique em paz consigo mesma, garota — dizia a instrutora japonesa. — Encontre aquele lugar tranqüilo em seu coração e habite nele.

Em geral Juliet precisava conter um bocejo quando Madame Ko começava com aquele negócio de sabedoria kung fu. Butler, por outro lado, adorava isso. Vivia descobrindo seu lugar tranqüilo e habitando-o. De fato ele só saía de seu lugar tranqüilo para pulverizar quem estivesse ameaçando Artemis. Talvez por isso ele tivesse a tatuagem do diamante azul, e Juliet não.

Duas figuras corpulentas saíram da Agulha. Estavam rindo e dando socos nos ombros um do outro.

— Capitã Short, estamos aí — disse Juliet num rádio com a freqüência de Holly.

— Entendido — respondeu Holly de sua posição acima da Agulha Spiro. — Quantos elementos hostis?

— Dois. Grandes e idiotas.

— Precisa de apoio?

— Negativo. Vou embrulhar os dois. Você pode trocar uma palavra com eles quando voltar.

— Certo. Desço em cinco minutos, assim que tiver falado com Potrus. E, Juliet, não os apague.

— Entendido.

Juliet desligou o rádio, indo para a traseira do furgão. Colocou uma pilha de instrumentos de vigilância debaixo de um banco dobrável, só para o caso de os dois pesos-pesados conseguirem incapacitá-la. Não era provável, mas seu irmão esconderia o equipamento incriminador só para garantir. Juliet tirou o paletó do terno e pôs na cabeça um boné virado ao contrário. Depois abriu a porta de trás e saiu na rua.

Peits e Frits atravessaram a rua State até o furgão suspeito. Certamente parecia suspeito, com as janelas de vidro fumê, mas os dois não se preocuparam muito. Hoje em dia todo rapaz que entrava na universidade, cheio de testosterona, tinha vidros fume.

— O que você acha? — perguntou Peits ao companheiro. Frits fechou os punhos.

— Acho que não vamos nos incomodar em bater antes de entrar.

Peits assentiu. Esse era o plano que os dois geralmente seguiam. Frits iria arrancar as portas das dobradiças se uma jovem não tivesse aparecido do outro lado.

— Vocês estão procurando meu pai? — perguntou a garota num tom perfeito para a MTV. — As pessoas sempre, tipo, ficam procurando ele, e ele nunca está por aí. Papai é tão não aqui! E quero dizer espiritualmente.

Peits e Frits piscaram ao mesmo tempo. A piscadela era a linguagem corporal universal para dizer "Hein?' Aquela garota era uma mistura estonteante de asiática e caucasiana, mas era o mesmo que tivesse falado grego, pela compreensão que surgiu no rosto dos homens. "Espiritualmente" tinha sete sílabas, pelo amor de Deus.

— Esse furgão é seu? — perguntou Frits, assumindo a ofensiva.

A garota girou o rabo-de-cavalo.

— Só na medida em que qualquer um de nós pode ter, sei lá, alguma coisa. Um mundo, um povo, certo, cara? A propriedade, você sabe, é uma ilusão. Talvez a gente nem seja dona do próprio corpo. A gente pode ser, tipo, o sonho de algum espírito mais elevado.

Peits perdeu a cabeça.

— Esse furgão é seu? — gritou ele, envolvendo o polegar e o indicador no pescoço da garota.

Ela assentiu. Não havia ar suficiente em sua garganta para falar.

— Assim é melhor. Tem alguém aí dentro? Dessa vez um balanço da cabeça.

Peits aliviou o aperto ligeiramente.

— Quantas pessoas você tem na família?

A garota respondeu num sussurro, usando o mínimo de ar possível.

— Sete. Papai, mamãe, dois avós e os trigêmeos: Beau, Mo e Joe. Eles foram comer sushi.

Peits se animou consideravelmente. Trigêmeos e avós, não parecia problema.

— Certo. Vamos esperar. Abra, garota.

— Sushi? — disse Frits. — Esse negócio é peixe cru. Já comeu isso, meu chapa?

Peits segurou a garota pelo pescoço enquanto ela procurava a chave.

— Já. Comprei no supermercado uma vez.

— Era bom?

— Era. Eu joguei na frigideira com gordura durante dez minutos. Nada mau.

A garota abriu a porta deslizante do furgão e subiu. Peits e Frits foram atrás, abaixando-se sob a borda. Peits soltou o pescoço da garota momentaneamente para entrar. Isso foi um erro. Um soldado particular bem treinado nunca deixaria um prisioneiro desamarrado entrar na frente num veículo que não fosse seguro.

A garota tropeçou acidentalmente, caindo de joelhos no carpete do interior.

— Sushi — disse Peits. — Fica bom com batata frita. Então o pé da garota saltou para trás, pegando-o no peito.

O capanga desmoronou no chão, ofegando.

— Epa — disse a garota, ajeitando-se. — Acidente. Frits pensou que devia estar sonhando acordado, porque não havia como aquele clone de princesinha da música pop ter derrubado 90 quilos de músculos e pose.

— Você... Você acabou de... — gaguejou ele. — Isso é impossível. De jeito nenhum.

— E possível sim — disse Juliet, fazendo pirueta como uma bailarina. O anel de jade em seu rabo-de-cavalo girou, carregado de força centrífuga. Acertou Frits entre os olhos, como uma pedra saindo de uma atiradeira. Ele cambaleou para trás, caindo embolado num banco de curvim.

Atrás dela, a respiração de Peits estava voltando. Seus olhos pararam de girar loucamente e focalizaram a agressora.

— Oi — disse Juliet, dobrando-se sobre ele. — Adivinha só.

— O quê? — perguntou Peits.

— Você não deveria fritar sushi — disse ela, batendo com as palmas das mãos nas têmporas do assassino. A inconsciência foi imediata.

Palha saiu do toalete, abotoando a aba do traseiro de suas calças de abrir túnel.

— O que eu perdi? — perguntou ele.

Holly pairava 45 metros acima do centro de Chicago — conhecido localmente como Loop, ou círculo, por causa do elevado curvo que cercava a área. Estava lá em cima por dois motivos. Primeiro eles precisavam de um raio X da Agulha Spiro para construir as plantas tridimensionais. E segundo, ela queria falar com Potrus sozinha.

Viu uma águia de pedra empoleirada no telhado de um prédio de apartamentos do início do século XX e pousou na cabeça dela. Teria de trocar de poleiro depois de alguns minutos, caso contrário a vibração de seu escudo começaria a pulverizar a pedra.

A voz de Juliet soou em seu fone de ouvido.

— Capitã Short, estamos aí.

— Entendido — respondeu Holly. — Quantos hostis?

— Dois. Grandes e idiotas.

— Precisa de apoio?

— Negativo. Vou embrulhar os dois. Você pode trocar uma palavra com eles quando voltar.

— Certo. Desço em cinco minutos, assim que tiver falado com Potrus. E, Juliet, não os apague.

— Entendido.

Holly sorriu. Juliet era uma figura. Digna de Butler. Mas era imprevisível. Mesmo na tocaia não conseguia ficar quieta por mais de dez segundos. Nada da disciplina do irmão. Era uma adolescente feliz. Uma criança. Não deveria estar nesse tipo de negócio. Artemis não tinha o direito de arrastá-la para esses planos malucos. Mas havia alguma coisa no garoto irlandês que fazia a gente esquecer as reservas. Nos últimos 16 meses ela tinha lutado com um troll por ele, curado toda a sua família, mergulhado no oceano Glacial Ártico e agora estava se preparando para desobedecer a uma ordem direta do comandante Raiz.

Abriu um canal para a Sala de Operações da LEP.

— Potrus. Está ouvindo?

Nada durante vários segundos, depois a voz do centauro veio pelo microalto-falante do capacete.

— Holly. Espere aí. Você está meio difícil de ouvir; vou sintonizar melhor o comprimento de onda. Fale comigo. Diga alguma coisa.

— Testando. Um dois. Um dois. Trolls tropeçando trazem traumas terríveis.

— Certo. Captei. Claríssimo. Como vão as coisas na Terra da Lama?

Holly olhou a cidade abaixo.

— Aqui não tem lama. Só vidro, aço e computadores. Você gostaria.

— Ah, não. Eu não. O Povo da Lama é o Povo da Lama, não importa se estão usando ternos ou tangas. A única coisa boa dos humanos é a televisão. Tudo que a gente tem na PPTV são reprises. Estou quase lamentando o fim do julgamento dos generais goblins. Culpados de todas as acusações, graças a você. A sentença sai no mês que vem.

A ansiedade afrouxou no estômago de Holly.

— Culpados. Graças aos céus. Finalmente as coisas podem voltar ao normal.

Potrus deu um muxoxo.

— Normal? Você está no trabalho errado se quer o normal. Você pode dar adeus à normalidade se não arrancarmos a geringonça de Artemis de volta do Spiro.

O centauro estava certo. A vida dela não tinha sido normal desde que foi promovida do esquadrão de costumes para o Recon. Mas será que realmente queria uma vida normal? Não era por isso mesmo que tinha se transferido do esquadrão de costumes?

— Então, por que ligou? — perguntou Potrus. — Está sentindo saudade?

— Não — respondeu Holly. E estava sendo sincera. Não estava. A capitã elfo mal tinha pensado na cidade do Porto desde que Artemis a havia metido na última intriga. — Preciso do seu conselho.

— Conselho? Ah, verdade? Isso não seria outro modo de pedir ajuda agora, seria? Acho que as palavras do comandante Raiz foram, "Vocês têm o que vocês têm". Regras são regras, Holly.

Holly suspirou.

— É, Potrus. Regras são regras. Julius sabe das coisas.

— Isso mesmo. Julius sabe das coisas — disse Potrus, mas não parecia muito convencido.

— Você provavelmente não poderia ajudar mesmo. A segurança de Spiro é bem avançada.

Potrus fungou, e um centauro fungando é coisa digna de se ouvir.

— É, claro. O que ele tem? Duas latas e um cachorro? Aaai, que medo!

— Eu gostaria de que fosse. Há coisas naquele prédio que eu nunca vi. Coisas inteligentes.

Uma pequena tela de cristal líquido se acendeu no canto do visor de Holly. Potrus estava transmitindo um visual da delegacia Plaza. Tecnicamente não era uma coisa que ele devesse estar fazendo para uma operação não-oficial. O centauro estava curioso.

— A propósito, eu sei o que você está fazendo — disse ele balançando um dedo.

— Não tenho idéia do que você quer dizer — respondeu Holly com cara de inocente.

— Você provavelmente não poderia ajudar mesmo. A segurança de Spiro é bem avançada — imitou o centauro. — Você está tentando acender uma fogueira debaixo do meu ego. Eu não sou idiota, Holly.

— É. Talvez eu esteja. Quer a verdade nua e crua?

— Ah, você vai me contar a verdade agora? Tática interessante para a LEP.

— A Agulha Spiro é uma fortaleza. Não há como entrar sem você, até Artemis admite. Nós não estamos pedindo equipamento ou poder extra do povo das fadas. Só conselho a longa distância, talvez um trabalhinho de câmera. Manter as linhas abertas, é só o que estou pedindo.

Potrus coçou o queixo.

— Não há como entrar, hein? Até Artemis admite.

— "Nós não podemos fazer isso sem Potrus", foram as palavras exatas dele.

O centauro lutou para manter a presunção longe do rosto.

— Você tem algum material em vídeo? Holly pegou um computador de mão no cinto.

— Artemis gravou imagens dentro da Agulha. Estou mandando para você agora.

— Eu preciso de uma planta do prédio.

Holly moveu o visor para a esquerda e a direita, de modo que Potrus pudesse ver onde ela estava.

— Por isso estou aqui em cima. Para fazer uma varredura de raios X. Vai chegar ao seu computador central em dez minutos.

Holly ouviu uma campainha tocar em seus fones de ouvido. Era um alerta de computador. Seu e-mail tinha chegado à Delegacia Plaza. Potrus abriu o arquivo.

— Códigos de abertura. Certo. Câmeras. Sem problema. Espere até eu mostrar o que desenvolvi para as câmeras de circuito interno. Estou acelerando a imagem pelos corredores. Trá-lá-lá. Ah, o cofre-forte. No octogésimo quinto. Placas de pressão, tapetes antibióticos. Sensores de movimento. Lasers sensíveis a temperatura. Câmeras térmicas. Scanners de reconhecimento de voz, de retina e de digitais à base de gel. — Ele fez uma pausa. — Impressionante para um Homem da Lama.

— Você é quem está dizendo — concordou Holly. — Um pouquinho a mais do que duas latas e um cachorro.

— Fowl está certo. Sem mim vocês estão ferrados.

— E então, vai ajudar?

Potrus tinha de aproveitar o momento.

— Não estou prometendo nada, veja...

— Vai?

— Vou manter uma tela aberta para você. Mas se alguma coisa acontecer...

— Eu entendo.

— Nenhuma garantia.

— Nenhuma garantia. Eu lhe devo uma caixa de cenouras.

— Duas caixas. E uma de suco de besouro.

— Feito.

O rosto do centauro ficou vermelho com a promessa de um desafio.

— Você vai sentir falta dele, Holly? — perguntou Potrus subitamente.

Holly foi apanhada desprevenida pela pergunta.

— Falta de quem? — perguntou já sabendo a resposta.

— Do garoto Fowl, claro. Se tudo acontecer de acordo com o plano, nós vamos ser apagados da memória dele. Nunca mais as tramas loucas ou as aventuras de arrepiar. Vai ser uma vida calma.

Holly tentou evitar o olhar de Potrus, ainda que a câmera do capacete tivesse o seu ponto de vista, e o centauro não pudesse vê-la.

— Não — falou. — Não vou sentir falta dele. Mas seus olhos contavam a história verdadeira.

Holly circulou a Agulha várias vezes, em várias altitudes, até que o scanner de raios X tivesse acumulado dados suficientes para um modelo em 3D. Mandou uma cópia do arquivo para Potrus na Delegacia Plaza e voltou ao furgão.

— Eu pensei que tinha dito para você não apagar os dois — disse ela, curvando-se sobre os capangas caídos.

Juliet deu de ombros.

— Ei. Não esquenta, garota das fadas. Eu me empolguei no calor da batalha. Só mande uma fagulhinhas azuis e bote o cara pra dormir.

Holly passou o dedo em volta do machucado perfeitamente circular na testa de Frits.

— Você deveria ter me visto — disse Juliet. — Pou, pou, e eles estavam no chão. Não tiveram a menor chance.

Holly lançou uma fagulha solitária pelo dedo; ela limpou o hematoma como se fosse um pano úmido limpando uma mancha de café.

— Você poderia ter usado a Neutrino para atordoá-los, sabe disso.

— A Neutrino? E ia me divertir como?

A capitã Short retirou o capacete, olhando irritada para a humana adolescente.

— Isso não é para ser divertido, Juliet. Não é um jogo. Eu pensei que você sabia, considerando o que aconteceu com Butler.

O riso de Juliet desapareceu.

— Eu sei que não é um jogo, capitã. Talvez esse seja o meu modo de enfrentar as coisas.

Holly sustentou o olhar.

— Bem, então talvez você esteja na linha de trabalho errada.

— Ou talvez você tenha estado nessa linha de trabalho há tempo demais. Segundo Butler, você também era meio estourada.

Palha saiu do banheiro. Dessa vez ele estivera aplicando uma camada de filtro solar. Agora era o meio da noite, mas o anão não iria se arriscar. Se essa invasão desse errado, como provavelmente aconteceria, ele poderia muito bem estar fugindo de manhã.

— Qual é o problema, senhoras? Se estão brigando por minha causa, não se incomodem. Eu faço questão de não namorar quem não é da minha espécie.

A tensão se afrouxou como um balão furado.

— Só em sonhos, bola de pêlos — disse Holly.

— Só em pesadelos — corrigiu Juliet. — Eu faço questão de nunca namorar ninguém que vive num monte de estéreo.

Palha ficou inabalável.

— Vocês duas estão negando o óbvio. Eu provoco esse tipo de efeito no sexo feminino.

— Não duvido — disse Holly, rindo.

A capitã da LEP baixou uma mesa dobrável e pôs seu capacete em cima. Ligou a câmera do capacete para Projetar e abriu a planta em 3D da Agulha Spiro. Ela girou no ar, uma teia de linhas verde-néon.

— Certo, todo mundo. O plano é o seguinte. A Equipe Um abre caminho queimando a parede do octogésimo quinto andar. A Equipe Dois vai pela entrada do heliporto. Aqui.

Holly marcou as entradas batendo no ponto correspondente da tela de seu computador manual. Uma pulsação laranja apareceu na planta flutuante.

— Potrus concordou em ajudar, de modo que estará em comunicação conosco. Juliet, você leva este computador manual. Pode usá-lo para falar conosco enquanto estiver agindo. Ignore os símbolos em gnomês; nós vamos lhe mandar qualquer arquivo que você precise ver. Mas use um fone de ouvido. A última coisa de que precisamos é de computadores soltando bips na hora errada. Essa reentrância pequena debaixo da tela é um microfone. Sensível a sussurros, então não precisa gritar.

Juliet prendeu no pulso o computador do tamanho de um cartão de crédito.

— Quais são as equipes, e quais são os objetivos? Holly entrou na imagem em 3D. Seu corpo estava rodeado por tiras de luz.

— A Equipe Um cuida da segurança e dos tanques de oxigênio dos guardas do cofre. A Equipe Dois vai pegar a caixa. Simples. Vamos em pares. Você e Palha. Artemis e eu.

— Ah, não — disse Juliet, balançando a cabeça. — Eu tenho de ir com Artemis. Ele é meu superior. Meu irmão ficaria grudado em Artemis que nem cola, e é o que eu vou fazer.

Holly saiu do holograma.

— Não vai dar certo. Você não pode voar nem subir em paredes. Tem de haver alguém do povo das fadas em cada equipe. Se não gostar, entenda-se com Artemis na próxima vez em que falar com ele.

Juliet deu um muxoxo. Fazia sentido. Claro que fazia. Os planos de Artemis sempre faziam. Agora era claro demais por que Artemis não tinha revelado tudo na Irlanda. Ele sabia que ela iria protestar. Já era suficientemente ruim estarem separados nas últimas seis horas. Mas a fase mais difícil da missão estava adiante, e Artemis não teria Butler ao lado.

Holly entrou de novo no holograma.

— A Equipe Um, você e Palha, sobem a Agulha e atravessam o octogésimo quinto piso. De lá vocês colocam esse grampo de vídeo num cabo de circuito interno de TV.

Holly estendeu o que parecia um pedaço de fio.

— Fibra ótica carregada — explicou. — Permite grampear externamente qualquer sistema de vídeo. Com isso no lugar, Potrus pode mandar o sinal de cada câmera do prédio para os nossos capacetes. Também pode mandar aos humanos qualquer sinal que ele queira que vejam. Além disso vocês vão substituir os tanques de oxigênio por nossa mistura especial. Juliet pôs o grampo de vídeo no bolso do paletó.

— Eu vou entrar pelo teto — continuou Holly. — De lá prossigo até o quarto de Artemis. Assim que a Equipe Um liberar, nós vamos atrás do Cubo V.

— Você faz com que pareça muito fácil — disse Juliet. Palha gargalhou.

— Ela sempre faz isso. E nunca é.

 

Juliet Buder tinha sido treinada em sete disciplinas de artes marciais. Tinha aprendido a ignorar a dor e a privação do sono. Podia resistir à tortura física e psicológica. Mas nada a havia preparado para o que teria de suportar para entrar nesse prédio.

A Agulha não tinha lados cegos, era cheia de atividade 24 horas por dia em cada face, de modo que eles foram forçados a começar a subida a partir da calçada. Juliet dirigiu o furgão, parando-o em fila dupla o mais perto da parede que pôde.

Saíram pelo teto solar, enrolados no tecido de camuflagem de Holly. Juliet estava presa à cintura de Palha pelo CintoLua.

Ela bateu no capacete de Palha.

— Você fede.

A resposta de Palha veio através do transmissor cilíndrico no ouvido de Juliet.

— Para você, talvez, mas para uma anã eu sou a essência do macho saudável. Você é que fede, Garota da Lama. Para mim, você fede mais do que um gambá dentro de uma meia que não é lavada há dois meses.

Holly enfiou a cabeça pelo teto solar.

— Quietos! — sibilou. — Vocês dois! Nós estamos com pouco tempo, se é que esqueceram. Juliet, seu precioso superior está num quarto lá em cima esperando que eu apareça. Já são quatro horas e cinco minutos, e eu ainda tenho de terminar de mesmerizar esses capangas. Nós temos uma janela de 55 minutos. Não vamos desperdiçar tempo discutindo.

— Por que você não pode voar conosco até a plataforma?

— Tática militar básica. Se nós nos separarmos, talvez uma equipe consiga fazer o trabalho. Caso estivermos juntos, se um cair, todos caímos. Dividir e conquistar.

As palavras dela fizeram Juliet cair em si. A garota dos subterrâneos estava certa; Juliet deveria saber. Estava acontecendo de novo: ela estava perdendo a concentração num momento vital.

— Certo. Vamos. Eu vou prender o fôlego.

Palha enfiou as duas palmas das mãos na boca, sugando qualquer vestígio de umidade dos poros.

— Agüente firme — disse ele, depois de tirar as mãos do palato. — Lá vamos nós.

O anão flexionou as pernas fortes, saltando um metro e meio até a parede da Agulha Spiro. Juliet balançou atrás, sentindo como se estivesse debaixo d'água. O problema de ficar pendurado num CintoLua era que, além da falta de peso, você perdia a coordenação e algumas vezes também sentia náusea do espaço. Os CintosLuas eram projetados para carregar objetos inanimados, e não criaturas vivas do povo das fadas, e certamente não seres humanos.

Palha não tinha bebido uma gota d'água há várias horas, fazendo com que os poros de anão se abrissem até o tamanho de furos de alfinete. Eles sugavam sem fazer barulho, grudando-se à superfície externa lisa da Agulha Spiro. O anão evitava as janelas de vidro fumê, grudando-se aos suportes de metal, porque, apesar de os dois estarem embrulhados em tecido de camuflagem, ainda havia membros se projetando o suficiente para serem vistos. O tecido de camuflagem não deixava a pessoa totalmente invisível. Milhares de microssensores cruzando-se pelo material, analisavam e refletiam o ambiente em volta, mas bastava uma chuvarada para dar um curto na coisa toda.

Palha subia rapidamente, estabelecendo um ritmo fácil. Seus dedos das mãos e dos pés, com juntas duplas, dobravam-se para agarrar a menor das reentrâncias. E onde não havia reentrâncias, os poros do anão se grudavam à superfície lisa. Os pêlos da barba se espalhavam sob o visor do capacete, sondando a superfície do prédio.

Juliet teve de perguntar:

— Sua barba? Isso é meio esquisito. O que ela está fazendo? Procurando rachaduras?

— Vibrações — grunhiu Palha. — Sensores, correntes, pessoal da manutenção. — Obviamente ele não iria dedicar nenhuma energia a frases inteiras. — Basta um sensor. Estamos acabados. Com ou sem camuflagem.

Juliet não culpou o parceiro por estar economizando o fôlego. Tinham um longo caminho pela frente. Direto para cima.

Quando saíram do abrigo dos prédios adjacentes, o vento golpeou. Os pés de Juliet foram empurrados, e ela flutuava grudada ao pescoço do anão como se fosse um cachecol. Raramente havia se sentido tão desamparada. As coisas estavam absolutamente fora de seu controle. O treinamento não adiantava nada nessa situação. Sua vida estava completamente nas mãos de Palha.

Os andares passavam num borrão de vidro e aço. O vento puxava-os com dedos fortes, ameaçando mandar os dois girando pela noite.

— Há muita umidade aqui, do vento — ofegou o anão. — Eu não vou poder me segurar muito tempo.

Juliet estendeu a mão, passando um dedo pela parede. Estava escorregadia com minúsculas gotas de orvalho. Fagulhas saltavam no tecido de camuflagem enquanto o vento cheio de umidade provocava curtos nos microssensores. Trechos do tecido deixavam de funcionar totalmente. O efeito era de blocos de circuitos aparentemente suspensos na noite. Além disso todo o prédio estava balançando — talvez só o bastante para jogar longe um anão cansado e sua passageira.

Finalmente os dedos do anão grudaram na plataforma do octogésimo quinto andar. Palha pisou na pequena laje que se projetava, dirigindo seu visor para o prédio.

— Essa sala não é boa — disse ele. — Meu visor está captando dois detectores de movimento e um sensor a laser. Precisamos ir em frente.

Ele desceu da plataforma, com o pé firme como um cabrito montes. Afinal de contas, esse era o seu negócio. Os anões não caíam de coisas. A não ser que fossem empurrados. Juliet seguiu-o cautelosamente. Nem mesmo a Academia de Madame Ko poderia tê-la preparado para isso.

Finalmente Palha chegou a uma janela que o satisfez.

— Ótimo — disse ele, com a voz soando tensa no fone de ouvido de Juliet. — Temos um sensor com uma bateria descarregada.

Sua barba se grudou ao vidro da janela.

— Não estou sentindo nenhuma vibração, então não há nada elétrico funcionando, nem conversas. Parece seguro.

Palha experimentou algumas gotas de polidor de rochas de anão na janela reforçada. O produto liqüefez o vidro imediatamente, deixando uma poça de fluido grosso no carpete. Com sorte, o buraco permaneceria sem ser descoberto durante o fim de semana.

— Aah — disse Juliet. — Isso fede quase tanto quanto você. Palha não se incomodou em devolver o insulto, preferindo rolar para a segurança do lado de dentro. Verificou o luômetro de seu visor.

— Quatro e vinte. Hora humana. Estamos atrasados. Vamos.

Juliet pulou pelo buraco da janela.

— Típico de Homem da Lama. — disse Palha. — Spiro gasta milhões num sistema de segurança, que desmorona por causa de uma bateria.

Juliet sacou uma Neutrino 2000 da LEP. Soltou a trava de segurança e apertou o botão de ligar. A luz mudou de vermelha para verde.

— Ainda não estamos dentro — disse ela, indo para a porta.

— Espera! — sibilou Palha, segurando seu braço. — A câmera!

Juliet se imobilizou. Tinha se esquecido da câmera. Eles estavam a menos de um minuto no prédio e ela já cometia erros. Concentre-se, garota, concentre-se.

Palha apontou seu visor para a câmera de circuito interno que estava num nicho. O filtro iônico do capacete mostrou o arco da câmera como uma tira dourada e tremeluzente. Não havia como passar por ela.

— Não há ponto cego — disse ele. — E o cabo da câmera fica atrás da caixa.

— Temos de passar abraçados, dentro do tecido de camuflagem — disse Juliet, com os lábios se retorcendo diante da idéia.

A imagem de Potrus saltou na tela de computador em seu pulso.

— Vocês poderiam fazer isso. Mas infelizmente o tecido de camuflagem não funciona em vídeo.

— Porquê?

— As câmeras têm olhos melhores do que os humanos. Já viu a imagem de uma TV pela televisão? A câmera divide os pixels. Se vocês forem por aquele corredor usando um tecido de camuflagem, vão parecer duas pessoas atrás de uma tela de projetor.

Juliet olhou irritada para o monitor.

— Mais alguma coisa, Potrus? Talvez o chão vá se dissolver numa poça de ácido, não é?

— Duvido. Spiro é bom, mas não é Potrus.

— Você não pode colocar um trecho de imagem no circuito de vídeo, poneizinho? — disse Juliet ao microfone do computador. — Mandar um sinal falso para eles durante um minuto?

Potrus trincou seus dentes eqüinos.

— Eu sou tão pouco apreciado! Não, não posso colocar um trecho de imagem se não estiver presente, como fiz durante o cerco à Mansão Fowl. Para isso é que serve o grampo de vídeo. Acho que nesse caso vocês estão por conta própria.

— Vou atirar nela, então.

— Negativo. Um tiro de Neutrino certamente apagaria uma câmera, e possivelmente causaria uma reação em cadeia em toda a rede. É o mesmo que ficar dançando na frente de Arno Bronco.

Juliet chutou o rodapé, frustrada. Estava caindo diante da primeira dificuldade. Seu irmão saberia o que fazer, mas ele estava do outro lado do Atlântico. Meros seis metros de corredor os separavam da câmera, mas era como se fossem mil metros de vidro estilhaçado.

Ela notou que Palha estava desabotoando a aba do traseiro da calça.

— Ah, fantástico. Agora o homenzinho precisa parar para ir ao banheiro. Isso não é hora.

— Vou ignorar o seu sarcasmo — disse Palha, deitando-se no chão — porque eu sei o que Spiro pode fazer com gente de quem ele não gosta.

Juliet se ajoelhou ao lado de Palha. Não muito perto.

— Espero que sua próxima frase comece com "eu tenho um plano".

O anão parecia estar apontando o traseiro.

— Na verdade...

— Você não está falando sério.

— Tremendamente. Eu tenho uma força considerável à disposição aqui.

Juliet não pôde deixar de sorrir. O sujeitinho era um anão muito gracinha. Metaforicamente. Estava se adaptando à situação, como ela faria.

— Só precisamos girar a câmera uns vinte graus no suporte e termos como chegar ao cabo.

— E você vai fazer isso com... poder ventoso?

— Exatamente.

— E o barulho? Palha piscou.

— Silencioso, porém mortífero. Eu sou um profissional. Você só precisa apertar o dedo mindinho do meu pé quando eu mandar.

Apesar do treinamento árduo em alguns dos terrenos mais difíceis do mundo, Juliet não estava preparada para se envolver numa ofensiva à base de peido.

— Eu preciso participar? Isso aí me parece uma operação solitária.

Palha forçou a vista para o alvo, ajeitando o traseiro.

— Esse é um tiro de precisão. Preciso de um artilheiro para puxar o gatilho, para que eu me concentre na mira. A reflexologia é uma ciência comprovada com os anões. Cada parte do pé está ligada a uma parte do corpo. E por acaso meu mindinho esquerdo está ligado ao meu...

— Tá bem — disse Juliet rapidamente. — Entendi.

— Então vamos logo com isso.

Juliet tirou a bota de Palha. As meias tinham aberturas para os dedos, e cinco artelhos peludos balançaram com uma destreza que nenhum artelho humano possuía.

— É o único modo?

— A não ser que você tenha uma idéia melhor.

Juliet segurou cautelosamente o dedinho, cujos pêlos pretos e encaracolados se separaram docilmente para que ela tivesse acesso à junta.

— Agora?

— Espera. — O anão lambeu o dedo indicador, testando o ar. — Não tem vento.

— Por enquanto — murmurou Juliet. Palha fez uma sintonia fina em sua mira.

— Certo. Aperte.

Juliet prendeu o fôlego e apertou. E, para fazer justiça ao momento, ele tem de ser descrito em câmera lenta.

Juliet tateou com os dedos perto da junta. A pressão subiu rapidamente pela perna de Palha numa série de jorros. O anão lutou para manter a mira, apesar dos espasmos. A pressão na barriga cresceu e explodiu através da aba do traseiro com um estouro surdo. A única coisa que Juliet podia relacionar com a experiência era estar agachada perto de um morteiro. Um míssil de ar comprimido atravessou a sala, com um borrão de calor circundando-o como ondas de água.

— Saiu com efeito demais — gemeu Palha. — Eu carreguei muito.

A bola de ar espiralou na direção do teto, soltando camadas como uma cebola.

— Para a direita — insistiu Palha. — Um pouquinho para a direita.

O próximo míssil improvável bateu contra a parede um metro à frente do alvo. Felizmente o ricochete acertou a caixa da câmera, fazendo-a girar como um prato sobre uma haste. Os intrusos esperaram que ela parasse, com o fôlego preso. Finalmente a câmera parou depois de uma dúzia de giros.

— E então? — perguntou Juliet.

Palha sentou-se, verificando a corrente de íons da câmera pelo visor.

— Sorte — ofegou ele. — Muita sorte. Temos um caminho direto. — Ele fechou a aba do traseiro que estava fumegando. — Faz um tempo que eu não solto um torpedo.

Juliet pegou o grampo de vídeo no bolso, balançando-o na frente do computador de pulso para que Potrus pudesse ver.

— Então eu simplesmente enrolo esse negócio em qualquer cabo velho? É isso?

— Não, Donzela da Lama — suspirou Potrus, confortável em seu papel familiar de gênio incompreendido. — Isso aí é um complexo instrumento de nanotecnologia com filamentos que agem como receptores, transmissores e presilhas. Naturalmente ele usa a própria energia do sistema do Povo da Lama.

— Naturalmente — disse Palha, tentando manter os olhos abertos.

— Você precisa garantir que ele seja preso firmemente num dos cabos de vídeo. Por sorte o multissensor não precisa estar em contato com todos os fios, só um.

— E quais são os cabos de vídeo?

— Bem... todos eles. Juliet gemeu.

— Então eu só preciso enrolar em qualquer cabo velho?

— Acho que sim — admitiu o centauro. — Mas aperte com força. Todos os filamentos têm de penetrar.

Juliet levantou a mão, escolheu um fio ao acaso e enrolou o grampo em volta.

— Tudo certo?

Houve um momento de pausa enquanto Potrus esperava a recepção. Abaixo da superfície, janelas com imagens múltiplas começaram a pipocar na tela de plasma do centauro.

— Perfeito. Temos olhos e ouvidos.

— Então vamos — disse Juliet com impaciência. — Ponha o loop de vídeo.

Potrus perdeu um minuto fazendo outro discurso.

— Isso é muito mais do que um loop, jovem dama. Eu vou apagar completamente os padrões de movimento das imagens da vigilância. Em outras palavras, as imagens que eles verão na cabine de vigilância serão exatamente como deveriam, só que vocês não estarão nelas. Só tenham cuidado para nunca se imobilizarem, caso contrário ficarão visíveis. Mantenham alguma coisa em movimento, nem que seja o dedo mindinho.

Juliet verificou o relógio digital na tela do computador.

— Quatro e meia. Temos de correr.

— Certo. O centro de segurança fica um corredor adiante. Vamos pegar o caminho mais curto.

Juliet projetou a planta no ar.

— Por este corredor aqui, viramos duas vezes à direita e chegamos.

Palha passou por ela indo até a parede.

— Eu disse o caminho mais curto, Garota da Lama. Pense lateralmente.

A sala era uma suíte executiva, com uma visão até o horizonte e estantes de pinho do chão ao teto. Palha puxou uma parte da estante e bateu na parede atrás.

— Reboco — disse ele. — Sem problema. Juliet fechou o painel atrás deles.

— Nada de entulho, anão. Artemis disse que não devemos deixar nenhum rastro.

— Não se preocupe. Eu não faço bagunça quando como. Palha desencaixou o maxilar, expandindo a cavidade oral até as proporções de uma bola de basquete. Abriu a boca até incríveis 170 graus, e arrancou um bocado da parede. Um anel de dentes parecidos com lápides logo reduziu a parede a pó.

— Meio refecada — comentou ele. — Difífil de engolir. Três mordidas depois eles haviam passado. Palha saiu na outra sala sem que uma migalha caísse de seus lábios. Juliet foi atrás, puxando a estante de pinho para cobrir o buraco.

A sala seguinte não era tão salubre, era o cubículo escuro de um vice-presidente. Nada de vista da cidade, e com prateleiras simples de metal. Juliet arrumou de novo as estantes para cobrir a entrada recém-escavada. Palha se ajoelhou perto da porta, com os pêlos da barba tateando a madeira.

— Alguma vibração lá fora. Provavelmente o compressor. Nada irregular. Então não há conversa. Eu diria que estamos seguros.

— Você poderia me perguntar — disse Potrus no fone do capacete. — Eu tenho imagens de todas as câmeras do prédio. São mais de duas mil, para o caso de você estar interessado.

— Obrigado pela informação. Bem, estamos com caminho limpo?

— Sim. Extraordinariamente. Ninguém nas vizinhanças, exceto um guarda na mesa do saguão.

Juliet pegou duas latas cinza em sua mochila.

— Certo. É aqui que eu justifico meu salário. Você fique. Não devo demorar mais de um minuto.

Ela abriu a porta, indo rapidamente com as botas de sola de borracha pelo corredor. Havia tiras de luz, estilo interior de avião, incrustadas no carpete; afora isso, a única iluminação vinha das caixas onde estava escrito "saída", sobre as portas da escada de incêndio.

A planta em seu computador de pulso mostrou que Juliet tinha mais 20 metros a percorrer antes de chegar à sala da segurança. Depois disso, só podia esperar que o armário de oxigênio estivesse destrancado. E por que não estaria? Os tanques de oxigênio não eram objetos de risco. Pelo menos ela teria alerta suficiente se alguém estivesse fazendo a ronda.

Juliet se esgueirou como uma pantera pelo corredor, com os passos abafados pelo carpete. Ao chegar no último canto, deitou-se e foi com o nariz centímetro a centímetro até a quina. Dava para ver o posto de segurança do andar. Como Peits tinha revelado sob o mesmer, os tanques de oxigênio dos guardas do cofre ficavam num armário na frente da mesa.

Havia apenas um guarda de serviço, e ele estava ocupado assistindo a um jogo de basquete numa televisão portátil. Juliet se arrastou para a frente até ficar bem abaixo do armário. O guarda estava de costas para ela, concentrado no jogo.

— Que diabo?... — exclamou o segurança, que era aproximadamente do tamanho de uma geladeira. Tinha notado alguma coisa num monitor de segurança.

— Mexa-se! — sibilou Potrus no fone de ouvido de Juliet.

— O quê?

— Mexa-se! Você está aparecendo nos monitores.

Juliet balançou o dedo do pé. Tinha se esquecido de ficar em movimento. Butler jamais teria esquecido.

Sobre sua cabeça, o guarda empregou o método antiqüíssimo de conserto rápido, dando um tapa na caixa plástica do monitor. A figura turva desapareceu.

— Interferência — murmurou ele. — Droga de TV por satélite.

Juliet sentiu uma gota de suor escorrer pelo nariz. A jovem Buder levantou a mão lentamente e enfiou dois tanques de oxigênio substitutos no armário, apesar de "tanques de oxigênio" ser um nome meio inadequado, porque não havia oxigênio nos tanques.

Olhou o relógio. Talvez já fosse tarde demais.

 

Holly pairava seis metros acima da Agulha, esperando a luz verde. Não se sentia à vontade com essa operação. Havia um número demasiado de variáveis. Se essa missão não fosse tão vital para a civilização do povo das fadas, ela teria se recusado totalmente a participar.

Seu humor não melhorou à medida que a noite prosseguia. A Equipe Um estava se mostrando pouquíssimo profissional, trocando picuinhas como um par de adolescentes. Se bem que, para ser justa com Juliet, ela mal havia passado da adolescência. Palha, por outro lado, não poderia encontrar a própria infância nem com uma enciclopédia.

A capitã Short acompanhou o progresso deles pelo visor do capacete, encolhendo-se diante de cada novidade. Por fim, e contra todas as probabilidades, Juliet conseguiu trocar os tanques.

— Vá — disse Palha, fazendo o máximo para soar como um militar. — Repetindo: requisito autorização para prosseguir no código vermelho da operação preta.

Holly desligou a comunicação de Palha no meio do riso do anão. Potrus podia abrir uma janela em seu visor se houvesse uma crise.

Abaixo dela, a Agulha Spiro apontava para o espaço como o maior foguete do mundo. Uma névoa baixa se juntava ao redor da base, fazendo aumentar a ilusão. Holly ajustou as asas, descendo suavemente até o heliporto. Chamou em seu visor o arquivo de vídeo da entrada de Artemis na Agulha, e pôs em câmera lenta no ponto em que Spiro digitou o código da porta para o terraço.

— Obrigada, Spiro — disse ela, rindo, enquanto digitava o código.

A porta deslizou pneumaticamente. Luzes automáticas se acenderam ao longo do poço da escada. Havia uma câmera a cada seis metros. Nenhum ponto cego. Isso não importava para Holly, já que as câmeras humanas não podiam detectar uma criatura das fadas usando escudo — a não ser que tivessem uma taxa de quadros por segundo extremamente alta. E mesmo assim os quadros teriam de ser vistos em imagem congelada, para captar um vislumbre da criatura. Somente um humano tinha conseguido fazer isso. Um irlandês, que na época estava com 12 anos.

Holly flutuou escada abaixo, ativando no visor um filtro de laser de argônio. Todo o edifício poderia estar entrecruzado por fachos de laser e ela não saberia enquanto não ativasse o alarme. Até mesmo uma criatura das fadas com escudo ligado tinha massa suficiente para impedir um facho de chegar ao sensor, ainda que por um milissegundo. A visão diante dela se transformou num púrpura nublado, mas não havia fachos. Holly tinha certeza de que não seria assim quando chegasse ao cofre-forte.

Continuou voando até a porta de aço escovado do elevador.

— Artemis está no octogésimo quarto — disse Potrus. — O cofre fica no octogésimo quinto; a cobertura de Spiro fica no octogésimo sexto, onde estamos agora.

— Como são as paredes?

— Segundo o espectrômetro, principalmente argamassa e madeira nas divisórias. A não ser em cômodos especiais, que são de aço reforçado.

— Deixe-me adivinhar: o quarto de Artemis, o cofre e a cobertura de Spiro.

— Na mosca, capitã. Mas não se desespere. Eu projetei o caminho mais curto. Vou mandar a imagem ao seu capacete agora.

Holly esperou um momento até que o ícone de uma pena se acendeu no canto de seu visor, informando que tinha chegado um e-mail.

— Abrir correspondência — disse ela ao microfone do capacete, enunciando claramente. Uma matriz de linhas verdes se sobrepôs à sua visão regular. O caminho estava marcado por uma grossa linha vermelha.

— Siga o laser, Holly. Só um idiota erraria. Sem ofensa.

— Tudo bem, por enquanto. Mas se isso não der certo eu vou ficar tão ofendida que você nem vai acreditar.

O laser vermelho guiava direto para a barriga do elevador. Holly flutuou para dentro da caixa de metal e desceu até o octogésimo quinto andar. Em seguida o laser guiou-a para fora do elevador e seguiu pelo corredor.

Ela experimentou a porta de uma sala à esquerda. Trancada. Não era de surpreender.

— Terei de desligar o escudo para arrombar esta fechadura. Tem certeza de que meu padrão foi apagado do vídeo?

— Claro.

Holly podia imaginar o beicinho infantil nos lábios dele. Desligou o escudo e pegou uma Oniferramenta no cinto. O sensor da Oniferramenta mandaria raios X do interior da fechadura para o chip e escolheria a ponta certa. Ela até fazia o giro da chave. Claro, a Oniferramenta só funcionava em fechaduras com buraco, o que, apesar da pouca confiabilidade, ainda eram usadas pelo Povo da Lama.

Em menos de cinco segundos a porta estava aberta à sua frente.

— Cinco segundos — disse Holly. — Esse negócio precisa de uma bateria nova.

A linha vermelha em seu visor ia até o centro da sala, e depois fazia um ângulo reto para baixo, através do piso.

— Deixe-me adivinhar. Artemis está aqui embaixo?

— Sim. Dormindo, a julgar pelas imagens que vêm da câmera de íris.

— Você disse que a cela era forrada de aço reforçado.

— É. Mas não há sensores de movimento nas paredes ou no teto. Então você só vai precisar abrir caminho queimando.

Holly sacou sua Neutrino 2000.

— Ah, só isso?

Ela escolheu um lugar perto de um aparelho de ar-condicionado na parede e levantou o carpete. Embaixo, o piso era opaco e metálico.

— Sem deixar vestígios, lembra? — disse Potrus em seu fone de ouvido. — É essencial.

— Vou me preocupar com isso mais tarde — disse Holly, ajustando o aparelho de ar-condicionado para funcionar como exaustor. — Por enquanto preciso tirá-lo daí. Nós estamos com pouco tempo.

Holly ajustou a saída da Neutrino, concentrando o facho para cortar o piso de metal. Uma fumaça ácida subiu do buraco derretido e foi imediatamente sugada pelo aparelho de ar-condicionado para a noite de Chicago.

— Artemis não é o único com cérebro por aqui — grunhiu Holly, com o suor escorrendo pelo rosto, apesar do controle climático do capacete.

— O ar-condicionado impede que o alarme de incêndio dispare. Muito bom.

— Ele está acordado? — perguntou Holly, deixando o último centímetro de um quadrado de meio metro sem ser cortado.

— Arregalado e com a cauda balançando, para usar uma imagem centauriana. Um laser cortando o teto provoca isso nas pessoas.

— Bom — disse a capitã Short, cortando o trecho final. O quadrado de metal se torceu numa última tira de aço.

— Isso não vai fazer muito barulho? — perguntou Potrus. Holly olhou o pedaço de teto cair.

— Duvido.

 

ARTEMIS estava meditando quando o primeiro facho de laser cortou o teto. Levantou-se da posição de lótus, vestiu o suéter e arrumou alguns travesseiros no chão. Instantes depois um quadrado de metal caiu, com o impacto silenciado pelos travesseiros. O rosto de Holly apareceu no buraco. Artemis apontou para os travesseiros.

— Você previu o que eu ia fazer. A capitã da LEP assentiu.

— Só 13 anos, e já previsível.

— Imagino que você tenha usado o ar-condicionado para sugar a fumaça.

— Exato. Acho que estamos começando a nos conhecer bem demais.

Holly desenrolou uma corda do cinto, deixando a ponta cair no chão.

— Faça um laço na ponta com o prendedor e pule a bordo. Eu vou puxá-lo.

Artemis fez isso e, em segundos, estava subindo pelo buraco.

— Temos o Sr. Potrus do nosso lado? — perguntou. Holly entregou a Artemis um pequeno fone de ouvido cilíndrico.

— Pergunte você mesmo.

Artemis colocou aquele milagre de nanotecnologia.

— Bem, Potrus. Me surpreenda.

Lá embaixo, na Cidade do Porto, o centauro esfregou as mãos. Artemis era o único que realmente entendia seus discursos.

— Você vai adorar isso, Garoto da Lama. Não somente eu apaguei vocês do vídeo, não somente apaguei o teto caindo, mas criei uma simulação de Artemis.

Artemis ficou intrigado.

— Uma simulação? Verdade? Como, exatamente, você fez isso?

— Simples — disse Potrus com modéstia. — Eu tenho centenas de filmes humanos arquivados. Pequei emprestada a cena de prisão de Steve McQueen em Fugindo do inferno e alterei as roupas dele.

— E o rosto?

— Eu tinha algumas imagens do interrogatório em sua última visita a Porto. Juntei os dois e voilà. Nosso Artemis simulado pode fazer o que eu mandar, quando eu quiser. No momento a simulação está dormindo, mas dentro de meia hora eu posso instruí-la a ir ao banheiro. Holly enrolou sua corda.

— O milagre da ciência moderna. A LEP coloca milhões em seu departamento, Potrus, e tudo que você pode fazer é mandar Garotos da Lama ao banheiro.

— Você deveria ser legal comigo, Holly. Eu estou lhe fazendo um grande favor. Se Julius soubesse que eu estava ajudando, ficaria extremamente furioso.

— É exatamente por isso que você está ajudando. Holly moveu-se em silêncio até a porta, abrindo uma fresta. O corredor estava livre e silencioso, a não ser pelo barulho das câmeras girando e o zumbido das luzes fluorescentes. Um trecho do visor de Holly mostrava minúsculas telas transparentes com imagens das câmeras de vigilância de Spiro. Havia seis guardas fazendo a ronda no andar. Holly fechou a porta.

— Certo. Vamos indo. Nós precisamos chegar a Spiro antes da troca de guarda.

Artemis ajeitou o carpete em cima do buraco no chão.

— Vocês localizaram o apartamento dele?

— Diretamente acima de nós. Precisamos subir lá e escanear a retina e o polegar dele.

Uma expressão surgiu rapidamente no rosto de Artemis. Só por um segundo.

— Isso mesmo. Sim. Quanto mais cedo, melhor. Holly nunca tinha visto aquele olhar nas feições do garoto humano. Seria culpa? Poderia ser?

— Há alguma coisa que você não me disse? — perguntou. A expressão desapareceu, sendo substituída pela costumeira falta de emoção.

— Não, capitã Short. Nada. E você realmente acha que esta é uma hora para fazer um interrogatório?

Holly balançou um dedo ameaçador.

— Artemis. Se você fizer alguma coisa errada comigo agora, no meio de uma operação, eu não vou esquecer.

— Não se preocupe — disse Artemis de um jeito maroto. — Eu vou esquecer.

O apartamento de Spiro ficava dois andares acima da cela de Artemis. Fazia sentido reforçar a mesma coluna. Infelizmente Jon Spiro não gostava da idéia de alguém o espionando, então não havia câmeras nesta parte do prédio.

— Típico — murmurou Potrus. — Os megalomaníacos enlouquecidos pelo poder jamais gostam de que alguém veja seus segredos sujos.

— Acho que alguém está com crise de negação — disse Holly, focalizando no teto um facho apertado de sua Neutrino.

Um trecho do teto rebaixado derreteu como gelo numa chaleira, revelando o aço em cima. Gotas de metal derretido comeram o carpete enquanto o laser cortava o piso. Quando o buraco tinha diâmetro suficiente, Holly desligou o facho e enfiou a câmera de seu capacete lá dentro. Nada apareceu na tela.

— Mudando para infravermelho.

Um cabideiro cheio de ternos entrou em foco. Poderiam ser brancos.

— O armário. Estamos dentro do armário.

— Perfeito — disse Potrus. — Ponha-o para dormir.

— Ele está dormindo. São dez para as cinco da manhã.

— Bem, então certifique-se de que ele não vá acordar. Holly recolocou a câmera em seu encaixe. Pegou uma cápsula prateada no cinto e enfiou no buraco.

Potrus forneceu o comentário para Artemis.

— A cápsula é Sono Profundo, para o caso de você estar se perguntando.

— A gás?

— Não. Ondas cerebrais. Artemis ficou intrigado.

— Continue.

— Basicamente ele procura padrões de ondas cerebrais, depois as repete. Qualquer pessoa nas imediações fica no estado em que se encontrava até que a cápsula se dissolva.

— Sem deixar traços?

— Nenhum. E sem efeito secundários. Qualquer que seja o meu contracheque, ainda é baixo demais.

Holly contou um minuto pelo relógio de seu visor.

— Certo. Ele apagou, desde que não estivesse acordado quando o Sono Profundo começou a funcionar. Vamos.

O quarto de Spiro era branco como seus ternos, a não ser pelo buraco chamuscado no guarda-roupa. Holly e Artemis passaram por ele e pisaram num tapete fofo e branco dentro de um armário de madeira branca com portas deslizantes. Atravessaram a porta e chegaram a um quarto que luzia no escuro. Mobília futurística — branca, claro. Luminárias brancas e cortinas brancas.

Holly demorou um instante para examinar uma pintura que dominava a parede.

— Ah, me poupe! — disse ela.

A pintura era a óleo. Completamente branca. Havia uma placa de latão embaixo. Dizia "Fantasma da neve".

Spiro estava deitado no centro de um enorme futon, perdido nas dunas dos lençóis de seda. Holly puxou as cobertas, rolando-o de costas. Mesmo no sono, o rosto do sujeito era malévolo, como se seus sonhos fossem tão desprezíveis quanto os pensamentos em vigília.

— Sujeito legal — disse ela, usando o polegar para erguer a pálpebra esquerda de Spiro. A câmera de seu capacete escaneou o olho, guardando a informação num chip. Seria simples projetar o arquivo no scanner do cofre forte e enganar o computador da segurança.

Escanear o polegar não seria tão simples. Como o equipamento era um scanner a gel, os sensores minúsculos procurariam os relevos e os redemoinhos do polegar de Spiro. Uma

projeção não serviria. Teria de ser tridimensional. Artemis tivera a idéia de usar uma bandagem de látex com memória, material padrão em qualquer kit de primeiros socorros da LEP — e do mesmo látex usado para grudar o microfone em sua garganta. Eles só precisavam enrolar o polegar de Spiro numa bandagem durante um momento e teriam um molde do dedo. Holly desenrolou uma bandagem tirada do cinto, cortando uma tira de 15 centímetros.

— Não vai funcionar — disse Artemis.

O coração de Holly se encolheu. Era isso. A coisa que Artemis não tinha dito.

— Por que não vai funcionar?

— O látex de memória. Não vai enganar o scanner a gel. Holly desceu do futon.

— Eu não tenho tempo para isso, Artemis. Nós não temos tempo para isso. O látex de memória vai fazer uma cópia perfeita, até a última molécula.

Os olhos de Artemis estavam abaixados.

— Um modelo perfeito, verdade, mas invertido. Como um negativo fotográfico. Com relevos onde deveria haver reentrâncias.

— D'Arvit! — xingou Holly. O Garoto da Lama estava certo. Claro que estava. O scanner leria o látex como uma digital completamente diferente. Sua bochecha ficou vermelha por trás do visor.

— Você sabia disso, Garoto da Lama. Sabia o tempo todo. Artemis não se incomodou em negar.

— Estou espantado por ninguém ter notado.

— Então por que mentiu?

Artemis foi até o outro lado da cama, pegando a mão direita de Spiro.

— Porque não há como enganar o scanner a gel. Ele tem de ver o dedo verdadeiro.

Holly fungou.

— O que você quer que eu faça? Corte-o e leve conosco? O silêncio de Artemis foi resposta suficiente.

— O quê? Quer que eu corte esse polegar? Está maluco? Artemis esperou educadamente que o ataque passasse.

— Escute, capitã. É apenas uma medida temporária. O polegar pode ser grudado de novo. Certo?

Holly levantou as palmas das mãos.

— Cale-se, Artemis. Só feche a boca. E eu pensei que você tinha mudado. O comandante estava certo. A natureza humana não muda.

— Quatro minutos — insistiu Artemis. — Nós temos quatro minutos para abrir o cofre e voltar. Spiro não vai sentir nada.

Quatro minutos era o limite máximo para a cura, segundo o manual. Depois disso não havia garantias de que o polegar se grudasse de novo. A pele se ligaria, mas os músculos e os terminais nervosos poderiam rejeitar.

Holly sentiu como se seu capacete estivesse encolhendo.

— Artemis, eu vou lhe dar um tiro de atordoamento, por favor.

— Pense, Holly. Eu não tinha opção além de mentir sobre o meu plano. Você teria concordado se eu tivesse dito antes?

— Não. E não estou concordando agora!

O rosto de Artemis ficou pálido como as paredes.

— Você precisa, capitã. Não há outro modo.

Holly empurrou Artemis para o lado como se ele fosse uma mosca insistente, e falou ao microfone do capacete.

— Potrus, você está ouvindo essa insanidade?

— Parece insano, Holly, mas se você não pegar de volta essa peça de tecnologia, nós podemos perder muito mais do que um polegar.

— Não acredito. De que lado você está, Potrus? Eu nem quero pensar nas ramificações legais disso.

O centauro deu um risinho.

— Ramificações legais? Nós estamos meio fora dos sistemas judiciais, capitã. Esta é uma operação secreta. Sem registros e sem autorização. Se isso for revelado, estaremos todos sem emprego. Um polegar aqui ou ali não vai fazer qualquer diferença.

Holly virou o controle climático do capacete, dirigindo um jorro de ar frio para a testa.

— Você tem certeza de que a gente consegue, Artemis? Artemis fez alguns cálculos mentais.

— Sim. Tenho certeza. E, de qualquer modo, não temos opção além de tentar.

Holly foi até o outro lado do futon.

— Não acredito que estou ao menos pensando nisso. —

Ela levantou gentilmente a mão de Spiro. Ele não reagiu, nem com um murmúrio no sono. Por trás das pálpebras, os olhos de Spiro tremiam no sono REM.

Holly sacou sua arma. Claro, em teoria era perfeitamente viável remover um dedo e depois conectá-lo magicamente outra vez. Não haveria mal, e possivelmente a injeção de magia limparia algumas das manchas de velhice na mão de Spiro. Mas a questão não era essa. Não era assim que a magia deveria ser usada. Artemis estava manipulando o Povo com seus próprios objetivos, de novo.

— Facho de 15 centímetros — disse Potrus em seu ouvido. — Freqüência muito elevada. Precisamos de um corte limpo. E dê-lhe uma dose de magia enquanto faz isso. Talvez lhe renda uns dois minutos a mais.

Por algum motivo Artemis estava verificando atrás das orelhas de Spiro.

— Humm — disse ele. — Inteligente.

— O que é? — sibilou Holly. — O que foi agora? Artemis deu um passo atrás.

— Nada importante. Continue.

Um brilho vermelho se refletiu no visor de Holly quando um facho de laser curto e concentrado irrompeu do cano de sua Neutrino.

— Um corte — disse Artemis. — Limpo. Holly o encarou irritada.

— Não, Garoto da Lama. Nenhuma palavra. Especialmente conselhos.

Usando o polegar e o indicador esquerdos, Holly fez um círculo em volta do polegar de Spiro. Lançou uma suave pulsação de magia para a mão do humano. Em segundos a pele se retesou. Rugas desapareceram e o tônus muscular voltou.

— Filtro — disse ela em seu microfone. — Raios X.

O filtro baixou, e subitamente tudo era transparente, inclusive a mão de Spiro. Os ossos e juntas estavam claramente visíveis abaixo da pele. Eles só precisavam da impressão digital, por isso ela cortaria entre os nós. Seria bastante difícil religar sob a pressão do tempo sem acrescentar uma junta complexa na equação.

Holly inspirou e prendeu o fôlego. O Sono Profundo agiria de modo mais eficaz do que qualquer anestésico. Spiro não tremeria nem sentiria o menor incômodo. Ela fez o corte. Um corte liso que se fechava imediatamente. Nenhuma gota de sangue foi derramada.

Artemis enrolou o polegar num lenço apanhado no armário de Spiro.

— Belo trabalho — disse ele. — Vamos. O relógio está correndo.

Artemis e Holly desceram de novo pelo guarda-roupa até o octogésimo quinto andar. Havia quase dois quilômetros e meio de corredores neste andar, e seis guardas patrulhando-o em pares o tempo todo. As rotas deles eram especialmente planejadas para que uma dupla sempre ficasse de olho na porta do cofre-forte. O corredor do cofre tinha 100 metros de comprimento e precisava de 80 segundos para ser percorrido. No fim daqueles 80 segundos, a dupla seguinte de guardas chegava virando a esquina. Felizmente dois dos guardas estavam vendo as coisas a uma luz diferente naquela manhã específica. Potrus lhes deu a dica.

— Certo. Nossos rapazes estão se aproximando da esquina.

— Tem certeza de que são eles? Todos esses gorilas parecem a mesma coisa. Cabeças pequenas, sem pescoço.

— Tenho. Os alvos deles estão aparecendo luminosos e claros.

Holly tinha pintado Peits e Frits com um carimbo geralmente usado pela alfândega e pela imigração para vistos invisíveis. Os carimbos brilhavam em laranja quando vistos por um filtro infravermelho.

Holly empurrou Artemis pela porta, à sua frente.

— Certo. Vá. E nada de comentários sarcásticos.

Não havia necessidade de avisar. Nem mesmo Artemis Fowl se sentia inclinado ao sarcasmo num estágio tão perigoso da operação.

Ele foi rapidamente pelo corredor, direto até os dois seguranças mastodônticos. Os paletós deles se projetavam em ângulo debaixo das axilas. Armas, sem dúvida. Grandes, cheias de balas.

— Tem certeza de que eles estão mesmerizados? — perguntou a Holly, que estava pairando acima.

— Claro. A mente deles é tão vazia que foi como escrever com giz num quadro. Mas eu posso atordoá-los, se você preferir.

— Não — ofegou Artemis. — Nenhum rastro. Não deve haver rastros.

Peits e Frits estavam mais perto agora, discutindo os méritos de vários personagens de ficção.

— O capitão Gancho é da pesada — disse Peits — Ele conseguiria a bunda roxa do dinossauro Barney em todas as tentativas.

Frits suspirou.

— Você não está entendendo qual é a do Barney. Ele valoriza as coisas. Chutar bundas não está em questão.

Os dois passaram direto por Artemis, sem vê-lo. E por que iriam vê-lo? Holly os tinha mesmerizado para não perceber ninguém fora do comum neste andar, a não ser que a pessoa fosse especificamente apontada para os dois.

A cabine de segurança externa estava diante deles. Tinham aproximadamente 40 segundos antes que os dois guardas virassem a esquina. A dupla não mesmerizada.

— Só temos pouco mais de meio minuto, Holly. Você sabe o que fazer.

Holly aumentou as resistências térmicas de sua roupa para ficarem exatamente da mesma temperatura da sala. Isso enganaria a trama de lasers que se cruzavam na porta do cofre. Em seguida colocou as asas para pairar suavemente. Qualquer vento forte para baixo poderia acionar os tapetes de pressão no piso. Ela se adiantou, apoiando-se ao longo da parede em partes onde seu capacete dizia não haver sensores escondidos. O tapete de pressão tremeu com o deslocamento de ar, mas não o suficiente para ativar o sensor.

— Depressa, Holly. Vinte segundos.

Holly grunhiu alguma coisa impublicável, arrastando-se até chegar a uma distância de onde poderia tocar a porta.

— Arquivo de vídeo Spiro 3 — disse ela, e o computador do capacete passou a imagem de Spiro digitando o código da porta do cofre. Ela imitou suas ações e, dentro da porta de aço, seis pistões reforçados se recolheram, permitindo que a porta contrapesada girasse nos gonzos. Todos os alarmes externos foram automaticamente desligados. A porta secundária permanecia no lugar, com três luzes vermelhas acesas no painel. Agora só restavam três barreiras. O scanner de gel, o de retina e a ativação por voz.

Esse tipo de operação era complicado demais para se usar comando verbal. Já havia acontecido de os computadores de Potrus interpretarem errado algumas ordens, embora o centauro insistisse que era erro do usuário. Holly soltou a tira de velcro que cobria o teclado de comando do capacete em seu pulso.

Primeiro projetou uma imagem em 3D do globo ocular de Spiro a uma altura de um metro e sessenta e sete. O scanner de retina lançou um facho giratório para ler o globo ocular virtual. Aparentemente satisfeito, ele abriu a primeira tranca. Uma luz vermelha mudou para verde.

O próximo passo era chamar o arquivo de som adequado para enganar o verificador de voz. O equipamento era muito sofisticado, e uma gravação não poderia enganá-lo. Isto é, uma gravação humana. Os microfones digitais de Potrus faziam cópias impossíveis de serem distinguidas da voz real. Até mesmo os vermes fedorentos, que tinham todo o corpo coberto de ouvidos, podiam ser atraídos por um sibilo de acasalamento transmitido pelo equipamento de gravação de Potrus. Atualmente ele estava negociando a patente com uma agência de coleções de insetos.

Holly tocou o arquivo pelos alto-falantes do capacete.

— Jon Spiro. Eu sou o chefe, então abra logo.

O alarme número dois foi desligado. Outra luz vermelha.

— Com licença, capitã — disse Artemis, com um tom de apreensão se esgueirando na voz. — Nós estamos quase sem tempo.

Ele desenrolou o polegar e passou por Holly, indo até a placa vermelha no chão. Em seguida apertou o polegar no scanner. Uma luz verde escorreu para os redemoinhos do dedo decepado. A luz do alarme ficou verde. Tinha dado certo. Claro que tinha. O polegar era genuíno, afinal de contas.

Mas nada mais aconteceu. A porta não se abriu.

Holly apertou o ombro de Artemis.

— E então? Estamos dentro?

— Aparentemente não. E, a propósito, cutucar não ajuda em minha concentração.

Artemis olhou irritado para o console. O que tinha deixado de notar? Pense, garoto, pense. Ponha aquelas famosas células cerebrais para trabalhar. Inclinou-se para mais perto da porta secundária, mudando o peso da perna de trás. Abaixo dele, a placa vermelha guinchou.

— Claro! — exclamou Artemis. Em seguida agarrou Holly, puxando-a para perto.

— Não é só uma marca vermelha — explicou às pressas. — Ela é sensível ao peso.

Artemis estava certo. A massa dos dois era tão próxima da de Spiro que enganou a balança. Obviamente era um instrumento mecânico, já que um computador jamais seria enganado. A porta secundária deslizou na reentrância abaixo.

Artemis entregou o polegar a Holly.

— Vá — disse ele. — O tempo de Spiro está acabando. Eu vou logo depois.

Holly pegou o polegar.

— E se não for?

— Passamos para o plano B. Holly assentiu lentamente.

— Esperemos não ser necessário.

— Esperemos.

Artemis entrou no cofre. Ignorou a fortuna em jóias e ações ao portador, indo direto para a prisão de perspex do cubo. Havia dois seguranças corpulentos bloqueando o caminho. Os dois estavam com máscaras de oxigênio sobre o rosto e numa imobilidade pouco natural.

— Com licença, senhores. Será que um dos senhores se importaria se eu pegasse o Cubo do Sr. Spiro?

Nenhum dos dois respondeu. Nem mesmo com um tremor de sobrancelha. Sem dúvida era por causa do gás paralisante em seus tanques de oxigênio, preparado a partir do veneno de um ninho de aranhas peruanas. O gás tinha estrutura química semelhante a um ungüento usado pelos nativos sul-americanos como anestésico.

Artemis digitou o código, que Potrus estava recitando em seu ouvido, e os quatro lados da caixa de perspex desceram na coluna com o uso de motores silenciosos, deixando o Cubo V desprotegido. Ele estendeu a mão para a caixa...

 

Holly subiu pelo armário e entrou no quarto de Spiro. O industrial estava na mesma posição em que ela o havia deixado, com a respiração regular e normal. O cronômetro no visor de Holly indicava que eram 4h57 da manhã, e continuando a contagem. Bem a tempo.

Desembrulhou o dedo cuidadosamente, alinhando-o com o resto do polegar. A mão de Spiro estava fria e parecendo doente ao seu toque. Ela usou o filtro de ampliação do visor para dar um zoom no dedo cortado. Pelo que podia ver, as duas partes estavam alinhadas.

— Cure — disse ela, e as fagulhas mágicas irromperam da ponta de seus dedos, afundando-se nas duas metades do polegar de Spiro. Fios de luz azul costuraram a derme e a epiderme, com pele nova surgindo através da antiga para esconder o corte. O polegar começou a vibrar e borbulhar. Vapor saía dos poros, formando uma névoa em volta da mão de Spiro. Seu braço se sacudiu violentamente, com o choque viajando pelo peito ossudo. As costas de Spiro se arquearam até que Holly pensou que a coluna iria se partir, e então o industrial desmoronou de volta na cama. Durante todo o processo seu coração não falhou sequer uma batida.

Algumas fagulhas desgarradas correram pelo corpo de Spiro como pedras num lago, chegando a áreas atrás das duas orelhas, exatamente onde Artemis tinha olhado antes. Curiosa, Holly puxou uma orelha para trás, revelando uma cicatriz em forma de lua crescente, que foi rapidamente apagada pela magia. Havia uma cicatriz igual atrás da outra orelha.

Holly usou o visor para dar um zoom numa das cicatrizes.

— Potrus. O que acha disso?

— Cirurgia — respondeu o centauro. — Talvez nosso amigo Spiro tenha feito uma plástica. Ou talvez...

— Ou talvez não seja Spiro — completou Holly, mudando para o canal de Artemis. — Artemis. Não é Spiro. É um sósia. Está ouvindo? Responda, Artemis.

Artemis não respondeu. Talvez porque não quisesse; talvez porque não pudesse.

 

Artemis estendeu a mão para o cofre e uma parede falsa sibilou pneumaticamente. Atrás dela estava Jon Spiro e Arno Bronco.

O sorriso de Spiro era tão largo que era como se tivesse engolido uma fatia de melancia inteira.

Ele bateu palmas, fazendo as jóias chacoalharem.

— Bravo, jovem Sr. Fowl. Alguns de nós não acreditavam que você chegaria tão longe.

Bronco pegou uma nota de cem dólares na carteira e entregou a Spiro.

— Muito obrigado, Arno. Espero que isso o ensine a não apostar contra a casa.

Artemis assentiu pensativo.

— No quarto. Aquele era um sósia.

— Sim. Costa, meu primo. Nós temos a mesma forma de cabeça. Um ou dois cortes e ficamos como duas ervilhas numa vagem.

— Então você ajustou o scanner de gel para aceitar a digital dele.

— Só por uma noite. Eu queria ver até onde você iria. Você é um garoto espantoso, Arty. Ninguém jamais conseguiu entrar no cofre antes, e você ficaria espantado em ver quantos profissionais tentaram. Há obviamente algumas falhas no meu sistema, coisas que o pessoal da segurança vai ter de examinar. Mas como você conseguiu entrar? Parece que não trouxe o Costa.

— Segredo profissional.

Spiro desceu de uma plataforma baixa.

— Não importa. Nós vamos olhar as fitas. Deve haver umas duas câmeras em que você não conseguiu mexer. Uma coisa é certa; você não fez isso sem ajuda. Procure um fone de ouvido nele, Arno.

Bronco levou menos de cinco segundos para achar o fone. Ele o tirou em triunfo e esmagou o cilindro minúsculo debaixo da bota.

Spiro suspirou.

— Não tenho dúvida, Arno, de que aquela pequena maravilha eletrônica valia mais do que você vai ganhar durante a vida inteira. Não sei por que mantenho você. Realmente não sei.

Bronco fez uma careta. Essa dentadura era de perspex, com óleo azul até a metade. Uma macabra máquina de ondas.

— Lamento, Sr. Spiro.

— Você vai lamentar ainda mais, meu amigo com problema dentário — disse Artemis —, porque Butler está vindo.

Bronco deu um passo involuntário para trás.

— Não pense que esse papo furado está me amedrontando. Butler está morto. Eu o vi caindo.

— Caindo, talvez. Mas você o viu morrer? Se me lembro corretamente da seqüência de acontecimentos, depois de você atirar em Butler, ele atirou em você.

Bronco tocou as suturas na têmpora.

— Um tiro de sorte.

— Sorte? Butler é um atirador orgulhoso. Eu não diria isso na cara dele.

Spiro deu um riso deliciado.

— O garoto está mexendo com sua cabeça, Arno. Treze anos e está tocando você como um piano de cauda no teatro de ópera. Tome tendência, homem; você deveria ser um profissional.

Bronco tentou se recompor, mas o fantasma de Butler assombrava suas feições.

Spiro pegou o Cubo V na almofada.

— Isso é divertido, Arty. Toda essa conversa corajosa, mas não significa nada. Eu ganho de novo; você foi acertado pelos flancos. Tudo isso foi um jogo para mim. Diversão. Sua pequena operação foi bastante educativa, embora patética. Mas você tem de admitir que agora acabou. Você está sozinho, e não tenho tempo para mais jogos!

Artemis suspirou, a própria imagem da derrota.

— Tudo isso foi uma lição, não foi? Só para me mostrar quem é o chefe.

— Exato. Algumas pessoas demoram a aprender. Eu acho que, quanto mais inteligente o inimigo, maior o ego. Você tinha de perceber que não era páreo para mim, antes de fazer o que eu pedi. — Spiro colocou a mão ossuda no ombro do garoto irlandês. Artemis podia sentir o peso das jóias dele. — Agora escute atentamente, garoto. Quero que você destrave o Cubo. Chega de papo furado. Eu nunca encontrei um fanático por computadores que não deixasse uma porta dos fundos para si mesmo. Abra esse neném agora, ou eu vou parar de achar divertido. E, acredite, você não quer isso.

Artemis pegou o Cubo vermelho com as duas mãos, olhando a tela plana. Essa era a fase delicada de seu estratagema.

Spiro tinha de acreditar que havia enganado Artemis Fowl de novo.

— Faça isso, Arty. Faça agora. Artemis passou a mão pelos lábios secos.

— Muito bem. Eu preciso de um minuto. Spiro deu um tapinha em seu ombro.

— Eu sou um homem generoso. Tome dois. — E assentiu para Bronco. — Fique perto, Arno. Não quero nosso amiguinho colocando mais armadilhas.

Artemis sentou-se à mesa de aço inoxidável, expondo as entranhas do Cubo. Rapidamente manipulou um punhado de fibras óticas, removendo uma delas totalmente. O bloqueador da LEP. Depois de menos de um minuto fechou o cubo de novo.

Os olhos de Spiro estavam arregalados de ansiedade, e sonhos de riqueza ilimitada dançavam em seu cérebro.

— Boas notícias, Arty. Só quero boas notícias.

Agora Artemis estava mais desanimado, como se a realidade da situação finalmente tivesse roído seu jeito presunçoso.

— Eu o inicializei de novo. Está funcionando. Só que... Spiro balançou as mãos. Pulseiras chacoalharam como guizos.

— Só que! É melhor que essa seja uma exceção insignificante.

— Não é nada. Praticamente não valia mencionar. Eu tive de reverter à versão 1.0; a versão 1.2 era codificada estritamente para meus padrões de voz. A 1.0 é menos segura, ainda que um pouco mais temperamental.

— Temperamental. Você é uma caixa, e não minha avó, Cubo.

— Eu não sou uma caixa! — disse Potrus, a nova voz do Cubo, graças à remoção do bloqueador. — Sou uma maravilha de inteligência artificial. Vivo, logo aprendo.

— Está vendo o que eu quis dizer? — observou Artemis com voz débil. O centauro ia estragar tudo. As suspeitas de Spiro não deveriam ser provocadas nesse estágio.

Spiro olhou para o Cubo, como se ele fosse um subalterno.

— Vai dar uma de engraçadinho comigo, moço? O Cubo não respondeu.

— O senhor precisa se dirigir a ele pelo nome — explicou Artemis. — Caso contrário ele responderia a todas as perguntas feitas ao alcance da audição dos sensores.

— E qual é o nome dele?

Juliet costumava usar a palavra "sorvetão", para designar um imbecil completo. Artemis não usava esse tipo de coloquialismo, mas seria adequado nesse momento específico.

— O nome dele é Cubo.

— Muito bem, Cubo. Vai dar uma de engraçadinho comigo?

— Vou lhe dar tudo que meu processador tiver condições de dar.

Spiro esfregou as palmas das mãos com uma alegria infantil, com as jóias faiscando como ondas num mar ao pôr-do-sol.

— Certo, vamos testar esse neném. Cubo, você pode me dizer: há algum satélite monitorando o prédio?

Potrus ficou quieto um momento. Artemis podia imaginá-lo baixando suas informações de rastreamento de satélites numa tela.

— No momento só um, se bem que, a julgar pelos rastros de íons, este prédio foi acertado por mais raios do que o Millennium Falcon.

Spiro lançou um olhar para Artemis.

— O chip de personalidade dele é defeituoso — explicou o garoto. — Foi por isso que eu parei de usá-lo. Nós podemos consertar isso quando quisermos.

Spiro assentiu. Não queria que seu próprio gênio tecnológico desenvolvesse a personalidade de um gorila.

— E quanto àquele grupo, a LEP, Cubo? — perguntou ele. — Eles estavam me monitorando em Londres. Eles estão olhando?

— A LEP? É uma rede libanesa de TV por satélite — disse Potrus, seguindo as instruções de Artemis. — Principalmente programas de jogos. O alcance dela não chega até aqui.

— Está bem, esqueça-a, Cubo. Preciso saber o número de série daquele satélite.

Potrus consultou uma tela.

— Ah... Deixe-me ver. EUA, registrado pelo governo federal. Número ST1147P.

Spiro apertou os dois punhos.

— Isso! Correto. Por acaso eu já tinha essa informação. Cubo, você passou no meu teste.

O bilionário dançou pelo laboratório, reduzido pela cobiça a demonstrações infantis.

— Estou lhe dizendo, Arty, isso tirou anos da minha vida! Sinto-me como se estivesse vestindo um smoking para ir a um baile de debutantes.

— É mesmo.

— Não sei por onde começar. Será que devo fazer meu próprio dinheiro? Ou será que devo arrancar o de outro?

Artemis forçou um sorriso.

— O mundo está nas suas mãos. Spiro deu um tapinha no Cubo.

— Exato. É exatamente isso. E eu vou aproveitar essas mãos para pegar cada riqueza que há nele.

Peits e Frits chegaram à porta do cofre-forte, com as armas na mão.

— Sr. Spiro! — gaguejou Peits. — Isso é algum tipo de treinamento?

Spiro gargalhou.

— Ah, olha. Aí vem a cavalaria. Demorou uma eternidade. Não, isso não é um treinamento. E eu adoraria saber como o pequeno Artemis aqui passou por vocês dois!

Os capangas olharam para Artemis como se ele tivesse acabado de aparecer do nada. E, para seus cérebros mesmerizados, tinha mesmo.

— A gente não sabemos, Sr. Spiro. A gente não vimos ele. Quer que a gente leve ele lá fora para um pequeno acidente?

Spiro riu. Um latido curto e maligno.

— Eu tenho uma palavra nova para vocês, seus imbecis. Dispensável. Cada um de vocês é, e ele não, por enquanto.

Entenderam? Então só fiquem aí e pareçam perigosos, caso contrário eu posso substituí-los por dois gorilas com o pêlo raspado.

Spiro olhou para a tela do Cubo, como se não houvesse mais ninguém na sala.

— Eu admito que me restam vinte anos. Depois disso, por mim, o mundo pode ir para o inferno. Não tenho família, nem herdeiros. Não há necessidade de guardar para o futuro. Eu vou sugar esse planeta até ficar seco, e com este Cubo eu posso fazer o que quiser, com quem eu quiser.

— Eu sei a primeira coisa que eu faria — disse Peits. Seus olhos pareciam surpresos por as palavras estarem saindo de sua boca.

Spiro se imobilizou. Não estava acostumado a ser interrompido no meio de suas arengas.

— O que você faria, seu imbecil? Compraria uma mesa cativa na Churrascaria Costela do Merv?

— Não. Eu acabaria com aqueles caras da Phonetix. Eles vivem pegando no pé das Indústrias Spiro há anos.

Foi um momento elétrico. Não somente porque Peits tinha tido uma idéia, mas porque era uma idéia boa. A idéia acendeu uma fagulha nos olhos de Spiro.

— A Phonetix, minha maior concorrente. Eu odeio aqueles caras. Nada me daria mais satisfação do que destruir aqueles fanáticos por som de segunda classe. Mas como?

Agora foi a vez de Frits.

— Ouvi dizer que eles estão trabalhando num novo comunicador altamente secreto. Bateria com supervida, ou alguma coisa do tipo.

Spiro ficou imóvel. Primeiro Peits, agora Frits? Daqui a pouco eles estariam aprendendo a ler. Mesmo assim...

— Cubo — disse Spiro. — Quero que acesse o banco de dados da Phonetix. Copie os esquemas de todos os projetos que eles estão desenvolvendo.

— Não posso fazer isso, homem-chefe. A Phonetix opera com um sistema fechado. Não há nenhuma conexão com a Internet em seu departamento de pesquisa e desenvolvimento. Eu preciso estar no local.

A euforia de Spiro desapareceu. Ele se virou para Artemis.

— O que ele está falando? Artemis tossiu, pigarreando.

— O Cubo só pode examinar um sistema fechado se o onissensor estiver encostado no computador, ou pelo menos perto. A Phonetix é tão paranóica com relação aos hackers que o laboratório de pesquisa e desenvolvimento é totalmente isolado, enterrado sob vários andares de rocha sólida. Eles nem têm e-mail. Sei disso, porque tentei invadir o sistema deles algumas vezes.

— Mas o Cubo examinou o satélite, não foi?

— O satélite está transmitindo. E se estiver transmitindo, o Cubo pode rastreá-lo.

Spiro brincou com os elos de sua pulseira de chapa.

— Então eu teria de ir à Phonetix.

— Eu não recomendaria — disse Artemis. — É muito risco só por uma vingança pessoal.

Bronco se adiantou.

— Deixe eu ir, Sr. Spiro. Eu pego aqueles esquemas. Spiro engoliu um punhado de comprimidos de vitaminas que apanhou num frasco preso ao cinto.

— É uma boa idéia, Arno. Bom trabalho. Mas não acho bom entregar o controle do Cubo a mais alguém. Quem sabe a que tentação a pessoa pode ceder? Cubo, você pode desligar o sistema de alarme da Phonetix?

— Um anão pode explodir um buraco nas calças?

— Que negócio é esse?

— É... nada. Termo técnico. Você não entenderia. Eu já desliguei o sistema da Phonetix.

— E quanto a guardas, Cubo? Você pode deixá-los fora de ação?

— Sem problema. Eu poderia ativar remotamente a medida de segurança interna.

— Que é o quê?

— Tanques de gás dentro dos dutos de ventilação. Gás do sono. Ilegal, a propósito, segundo a Lei Estadual de Chicago. Mas inteligente. Sem efeitos secundários, impossível de ser rastreado. O intruso volta a si trincado, duas horas depois.

Spiro deu um risinho.

— Aqueles paranóicos da Phonetix. Vá em frente, Cubo, ponha-os a nocaute.

— Boa noite — disse Potrus com uma alegria que parecia verdadeira demais.

— Bom. Agora, Cubo, tudo que está entre nós e os esquemas da Phonetix é um computador criptografado.

— Não me faça rir. Não foi inventada uma unidade de tempo suficientemente pequena para medir quanto tempo eu levo para invadir o disco rígido da Phonetix.

Spiro prendeu o Cubo no cinto.

— Sabe de uma coisa? Estou começando a gostar desse cara. Artemis fez uma última tentativa sincera de conter a situação.

— Sr. Spiro, eu realmente não acho que isso seja boa idéia.

— Claro que não — riu Jon Spiro, bamboleando até a porta. — Por isso é que eu vou levá-lo comigo.

 

Laboratórios de Pesquisa e desenvolvimento da Phonetix,

Setor industrial de Chicago

Spiro escolheu uma limusine Lincoln Town Car de sua garagem exclusiva. Era um modelo dos anos 90, com placas falsas. Freqüentemente usava-a como veículo para fins ilícitos. Era suficientemente antigo para não chamar muito atenção, e mesmo que a polícia tirasse uma foto das placas, isso não iria levá-la a lugar nenhum.

Bronco parou diante da entrada principal do laboratório de P&D da Phonetix. Um segurança estava visível à mesa atrás da porta giratória de vidro. Arno pegou um binóculo dobrável no porta-luvas. Focalizou-o no guarda.

— Dormindo como um bebê — anunciou. Spiro apertou o ombro dele.

— Bom. Temos menos de duas horas. Vamos conseguir?

— Se esse Cubo é tão bom quanto diz que é, podemos entrar e sair em 15 minutos.

— Ele é uma máquina — disse Artemis com frieza. — Não é um dos seus empregados devoradores de esteróides.

Bronco olhou por cima do ombro. Artemis estava no banco de trás, espremido entre Peits e Frits.

— Você ficou corajoso de repente. Artemis deu de ombros.

— O que eu tenho a perder? Afinal de contas, as coisas não podem ficar piores.

Havia uma porta normal ao lado da giratória. O cubo ativou por controle remoto a tranca elétrica, deixando que o grupo de invasores entrasse no saguão. Nenhum alarme soou, e nenhum pelotão de segurança veio correndo detê-los.

Spiro seguiu pelo corredor, encorajado por seu novo amigo tecnológico e pelo pensamento de finalmente colocar a Phonetix fora dos negócios. O elevador de segurança não representou mais resistência para o Cubo do que uma cerca de tábuas representaria para um tanque, e logo Spiro e seu grupo estavam descendo os oito andares até o laboratório subterrâneo.

— Estamos indo para o subsolo — disse Peits com um risinho. — Lá onde ficam os ossos de dinossauros. Vocês sabiam que depois de um milhão de bilhões de anos o cocô de dinossauro vira diamante?

Geralmente um comentário assim teria sido uma ofensa a ser respondida a bala, mas Spiro estava de bom humor.

— Não, eu não sabia, Peits. Talvez eu devesse pagar o seu salário em cocô.

Peits decidiu que seria melhor para suas finanças se ele simplesmente ficasse de boca fechada dali em diante.

O laboratório em si era protegido por um scanner de impressões digitais. Nem mesmo era à base de gel. Foi simples para o Cubo escanear a digital que havia na placa e projetá-la de volta no sensor. Nem havia codificação.

— Fácil — cantarolou Spiro. — Eu deveria ter feito isso há anos.

— Um pouquinho de crédito seria legal — disse Potrus, incapaz de controlar o ressentimento. — Afinal de contas, eu coloquei vocês aqui dentro e deixei os guardas fora de ação.

Spiro segurou a caixa diante do rosto.

— Não esmagar você até virar metal amarrotado, Cubo, é o meu modo de dizer obrigado.

— De nada — resmungou Potrus.

Arno Bronco verificou o banco de monitores da segurança. Por todas as instalações havia guardas inconscientes, um com meio sanduíche de pão de centeio enfiado na boca.

— Preciso admitir, Sr. Spiro. Isso é lindo. A Phonetix vai ter até de pagar a conta do gás do sono.

Spiro olhou para o teto. Várias luzes de câmeras piscavam em vermelho nas sombras.

— Cubo, nós vamos ter de destruir a sala de vídeo na saída?

— Isso não vai acontecer — disse Potrus, como um ator consumado. — Eu apaguei os seus padrões do vídeo.

Artemis foi suspenso pelas axilas entre Peits e Frits.

— Traidor — murmurou ele. — Eu lhe dei a vida, Cubo. Eu sou seu criador.

— É, bem, talvez você tenha me feito muito parecido com você, Fowl. Aurum potestas est. O ouro é poder. Só estou fazendo o que você me ensinou.

Spiro deu um tapinha carinhoso no Cubo.

— Eu adoro esse cara. Ele é como o irmão que eu nunca tive.

— Mas eu pensei que o senhor tinha um irmão — disse Frits, perplexo, o que não era incomum.

— É — respondeu Spiro. — Ele é como um irmão de quem eu gosto.

O servidor da Phonetix era localizado no centro do laboratório. Uma CPU monolítica, com cabos que pareciam jibóias espalhando-se para várias estações de trabalho.

Spiro soltou do cinto seu novo melhor amigo.

— Onde você precisa estar, Cubo?

— Só me ponha na tampa do servidor, e meu onissensor fará o resto.

Spiro obedeceu e, em segundos, esquemas eletrônicos surgiam na minúscula tela do Cubo V.

— Peguei — grasnou Spiro, com as mãos formando dois punhos em triunfo. — Nunca mais vou receber e-mails metidos a besta com o preço das ações desses caras.

— Download completo — disse Potrus em tom presunçoso. — Temos cada projeto da Phonetix para a próxima década.

Spiro aninhou o Cubo V de encontro ao peito.

— Lindo. Eu posso lançar versões dos telefones da Phonetix antes deles, e ganhar mais alguns milhões antes de lançar o Cubo.

A atenção de Arno estava concentrada nos monitores da segurança.

— Ei, Sr. Spiro. Acho que temos uma situação crítica.

— Uma situação crítica? — rosnou Spiro. — O que isso significa? Você não é mais soldado, Bronco. Fale em nossa língua.

O neozelandês bateu numa tela como se isso fosse mudar o que ele estava vendo.

— Quero dizer que temos um problema. Um problema enorme.

Spiro agarrou Artemis pelos ombros.

— O que você fez, Fowl? Isso é algum tipo de...?

A acusação morreu antes de terminar. Spiro tinha notado alguma coisa.

— Seus olhos. O que há de errado com seus olhos? Eles não são iguais.

Artemis deu-lhe o seu melhor sorriso de vampiro.

— Para te ver melhor, Spiro.

No saguão da Phonetix, o segurança adormecido voltou a si de repente. Era Juliet. Ela espiou por baixo da aba de um quepe emprestado para se certificar de que Spiro não tinha deixado ninguém no corredor.

Depois da captura de Artemis no cofre-forte de Spiro, Holly tinha voado com ela até a Phonetix para iniciar o Plano B.

Claro que não havia gás do sono. Por sinal, havia apenas dois guardas. Um estava indo ao banheiro e o outro fazia a ronda dos andares de cima. Mas Spiro não iria saber disso. Estava ocupado vigiando a família de seguranças virtuais criada por Potrus, roncando por todo o prédio, graças a um clipe de vídeo tirado do sistema da Phonetix.

Juliet ergueu o fone da mesa e digitou três números.

9 ... 1 ... 1

Spiro estendeu dois dedos delicadamente até o olho de Artemis, tirando sua câmera de íris. Examinou-a com atenção, notando o microcircuito no lado côncavo.

— Isso é eletrônico — sussurrou. — Espantoso. O que é? Artemis piscou soltando uma lágrima.

— Nada. Isso nunca esteve aqui. Assim como eu nunca estive aqui.

O rosto de Spiro se retorceu em puro ódio.

— Você esteve aqui, Fowl, e nunca vai sair daqui.

Bronco deu um tapinha no ombro do patrão. Um ato de familiaridade imperdoável.

— Chefe, Sr. Spiro. O senhor realmente precisa ver isso.

Juliet tirou o paletó da segurança da Phonetix. Por baixo usava um uniforme da SWAT do Departamento de Polícia de Chicago. As coisas poderiam ficar cabeludas no laboratório de P&D, e seu serviço era garantir que Artemis não se machucasse. Escondeu-se atrás de uma coluna no saguão e esperou as sirenes.

Spiro olhou para os monitores da segurança do laboratório. As imagens tinham mudado. Não havia mais guardas dormindo pelas instalações. Em vez disso as telas mostravam uma gravação de Spiro e seus capangas invadindo a Phonetix. Com uma diferença crucial: não havia qualquer traço de Artemis na tela.

— O que está acontecendo, Cubo? — gaguejou Spiro. — Você disse que nós todos tínhamos sido apagados das fitas.

— Eu menti. Deve ser a personalidade criminosa que estou desenvolvendo.

Spiro jogou o Cubo no chão, com toda a força. Ele permaneceu intacto.

— Polímero de alta resistência — disse Artemis, pegando o microcomputador. — Quase inquebrável.

— Ao contrário de você — retrucou Spiro.

Artemis parecia uma boneca de trapos entre Peits e Frits.

— Ainda não entende? Vocês todos estão gravados nas fitas. O Cubo estava trabalhando para mim.

— Grande coisa. Então nós estamos nas fitas. Eu só preciso fazer uma visita à cabine de segurança e pegar as gravações.

— Não vai ser tão simples.

Spiro ainda acreditava haver uma saída.

— E por que não? Quem vai me impedir? O molequinho aí?

Artemis apontou para as telas.

— Não, os velhinhos lá.

Os policiais do DP de Chicago trouxeram tudo que tinham, e algumas coisas que precisaram pegar emprestadas. A Phonetix era o maior empregador da cidade, para não mencionar que era um dos cinco maiores doadores para os fundos de beneficência da polícia. Quando o chamado pelo 911 foi atendido, o sargento de plantão fez uma convocação por toda a cidade.

Em menos de cinco minutos havia vinte policiais e uma equipe completa da SWAT batendo às portas da Phonetix. Dois helicópteros pairavam acima, e oito atiradores de elite miravam dos telhados dos prédios adjacentes. Ninguém iria deixar a área, a não ser que estivesse invisível.

O segurança da Phonetix tinha voltado de sua ronda e acabado de notar os intrusos nos monitores. Pouco depois viu um grupo de policiais do DP de Chicago batendo na porta com o cano das armas.

Ele abriu a tranca eletrônica.

— Eu já ia chamar vocês — disse ele. — Há uns invasores no laboratório. Eles devem ter feito um túnel, ou alguma coisa do tipo, porque não passaram por mim.

O segurança que estava no banheiro ficou ainda mais surpreso. Estava acabando de ler a seção de esportes do Herald Tribune quando dois homens de aparência séria, com coletes à prova de bala, entraram no cubículo.

— Identidade — rosnou um deles, que aparentemente não tinha tempo para frases inteiras.

O guarda levantou sua carteira plastificada, com a mão trêmula.

— Fique parado, senhor — aconselhou o policial. Não precisou dizer duas vezes.

Juliet saiu de trás da coluna, juntando-se à equipe da SWAT. Ficou apontando a arma e rosnando como os melhores deles, e foi instantaneamente assimilada no grupo. O ataque foi interrompido por um probleminha. Havia apenas um ponto de acesso ao laboratório: o elevador.

Os policiais arrombaram a porta do elevador usando pés-de-cabra.

— Esse é o nosso dilema — disse um deles. — Se cortarmos a energia não poderemos subir de volta pelo elevador. Se chamarmos o elevador aqui para cima primeiro, vamos dar a dica aos invasores.

Juliet abriu caminho até a frente do grupo.

— Com licença, senhor. Deixe-me descer pelos cabos. Eu arrombo a porta e corto a energia.

O comandante nem considerou isso.

— Não. É perigoso demais. Os intrusos terão tempo suficiente para dar cem tiros para dentro do poço do elevador. E, a propósito, quem é você?

Juliet pegou um pequeno prendedor no cinto. Fixou-o no cabo e pulou no poço do elevador.

— Sou nova — disse ela, desaparecendo na escuridão.

No laboratório, Spiro e seu grupo estavam hipnotizados pelos monitores. Potrus tinha permitido que as telas mostrassem o que ia acontecendo nos andares superiores.

— SWAT — disse Bronco. — Helicópteros. Armamento pesado. Como isso aconteceu?

Spiro bateu na própria testa repetidamente.

— Uma armadilha. Essa coisa toda. Uma armadilha. Imagino que Pal Scaver estava trabalhando para você também, não é?

— Sim. E Peits e Frits também, mesmo não sabendo. Você nunca teria vindo aqui se eu sugerisse.

— Mas como? Como você fez tudo isso? Não é possível. Artemis olhou os monitores.

— Obviamente é. Eu sabia que você estaria me esperando no cofre da Agulha Spiro. Depois disso, só precisei usar seu ódio contra a Phonetix para atraí-lo até aqui, fora de seu ambiente.

— Se eu afundar, você afunda junto.

— Errado. Eu nunca estive aqui. As fitas vão provar.

— Mas você está aqui! — rosnou Spiro, com os nervos em frangalhos. Todo o seu corpo vibrava, e o cuspe voava dos lábios num arco amplo. — Seu cadáver vai provar isso. Me dê a arma, Arno. Eu vou atirar nele.

Bronco não podia esconder o desapontamento, mas obedeceu. Spiro apontou a arma com mãos trêmulas. Peits e Frits ficaram rapidamente de lado. O chefe não era conhecido por sua mira.

— Você tirou tudo de mim — gritou. — Tudo. Artemis estava estranhamente calmo.

— Você não entende, Jon. É como eu lhe disse. Eu não estou aqui. — Ele parou para respirar. — E mais uma coisa. Quanto ao meu nome, Artemis, você estava certo. Em Londres geralmente é um nome feminino, por causa da deusa grega da caça. Mas de vez em quando surge alguém do sexo masculino com tamanho talento para a caça que ele ganha o direito de usar o nome. Eu sou essa pessoa: Artemis, o caçador. Eu cacei você.

E de uma hora para outra ele desapareceu.

Holly estivera pairando acima de Spiro e seu grupo, desde a Agulha Spiro até o prédio da Phonetix. Tinha tido permissão para entrar nas instalações minutos antes, quando Juliet ligou para perguntar sobre as visitas públicas.

Juliet tinha usado sua voz mais charmosa para o guia da segurança.

— Ei, moço, tudo bem se eu levar minha amiga invisível?

— Claro que sim, querida — respondeu o guia. — Traga seu ursinho de pelúcia também, se isso deixá-la feliz.

Estavam dentro.

Holly pairou ao nível do teto, seguindo Artemis até embaixo. O plano do Garoto da Lama era cheio de riscos. Se Spiro decidisse atirar nele ainda dentro da Agulha, tudo estava acabado.

Mas não, como Artemis tinha previsto, Spiro havia optado por cantar vantagem durante o máximo de tempo possível, bronzeando-se à luz de seu próprio gênio demente. Mas, claro, o gênio não era dele. Era de Artemis. O garoto havia orquestrado toda essa operação do início ao fim. Até mesmo a idéia de mesmerizar Peits e Frits fora sua. Era crucial que eles plantassem a idéia de invadir a Phonetix.

Holly estava pronta quando a porta do elevador se abriu. Estava com a arma carregada e os alvos escolhidos. Mas não podia ir em frente. Devia esperar o sinal.

Artemis se demorou. Melodramático até o fim. E então, quando Holly estava para desconsiderar suas ordens e começar a dar tiros, ele falou.

— Eu sou essa pessoa. Artemis, o caçador. Eu cacei você. Artemis, o caçador. O sinal.

Holly apertou o acelerador manual de sua asa e desceu, parando a menos de um metro do chão. Prendeu Artemis a uma corda retrátil em seu CintoLua e em seguida largou um pedaço de tecido de camuflagem diante dele. Para todos na sala, foi como se o garoto tivesse desaparecido.

— Vamos para cima — disse ela, ainda que Artemis não pudesse ouvir, e acelerou. Num segundo estavam aninhados em segurança entre os cabos e tubos que seguiam ao longo do teto.

Abaixo deles, Spiro ficou doido de vez.

Spiro piscou. O garoto tinha sumido! Simplesmente sumido! Não podia ser. Ele era Jon Spiro! Ninguém enganava Jon Spiro! Virou-se para Peits e Frits, gesticulando loucamente com a arma.

— Onde ele está?

— Hein? — disseram os guarda-costas, num perfeito uníssono. Sem ter ensaiado.

— Onde está Artemis Fowl? O que vocês fizeram com ele?

— Nada, Sr. Spiro. A gente só estávamos parados aqui, dando uma de seguranças.

— Fowl disse que vocês estavam trabalhando para ele. Então entreguem o garoto.

O cérebro de Peits estava fervilhando. Era uma operação parecida com um processador de alimentos misturando concreto.

— Cuidado, Sr. Spiro, arma é um negócio perigoso. Especialmente para quem está na frente do cano.

— Isso não acabou, Artemis Fowl — rosnou Spiro para o teto. — Eu vou achar você. Nunca vou desistir. Você tem a palavra de Jon Spiro. Minha palavra!

Começou a dar tiros aleatórios, abrindo buracos em monitores, dutos de ventilação e conduítes. Um deles chegou a passar a um metro de Artemis.

Peits e Frits não tinham muita certeza do que estava acontecendo, mas concluíram que talvez fosse boa idéia entrar na brincadeira. Sacaram suas armas e começaram a dar tiros pelo laboratório.

Bronco não se envolveu. Considerou que seu contrato de trabalho estava terminado. Não havia saída dali para Spiro — era cada um por si. Foi até o painel de metal da parede e começou a desaparafusá-lo com uma chave de fenda elétrica. Um trecho soltou do suporte, atrás havia um espaço de cinco centímetros para os cabos, e depois concreto sólido. Estavam presos.

Atrás dele, a porta do elevador soltou um ping.

Juliet estava agachada no poço do elevador.

— Estamos liberados — disse Holly no fone de ouvido dela. — Mas Spiro está atirando no laboratório.

Juliet franziu a testa. Seu superior estava correndo perigo.

— Derrube-os com a Neutrino.

— Não posso. Se Spiro estiver inconsciente quando a polícia chegar, não poderá dizer que foi uma armadilha.

— Está bem. Vou entrar.

— Negativo. Espere a SWAT.

— Não. Você tire as armas deles. Eu cuido do resto. Palha tinha dado a Juliet um frasco de polidor de rochas de anão. Ela derramou uma pequena poça no teto do elevador e ele se dissolveu como gordura numa panela. Juliet saltou no elevador, agachando-se para o caso de Bronco dar alguns tiros naquela direção.

— No três.

— Juliet.

— Eu vou entrar no três.

— Certo.

Juliet levantou a mão para o botão que abria a porta.

— Um.

Holly sacou sua neutrino, colocando os quatro alvos no sistema de mira de seu visor.

— Dois.

Ela desligou o escudo, para melhorar a precisão, já que a vibração dificultaria a mira. Por alguns segundos teria de se esconder atrás do tecido de camuflagem com Artemis.

— Três.

Juliet apertou o botão. Holly deu quatro tiros.

Artemis tinha menos de um minuto para agir. Menos de um minuto enquanto Holly mirava e desarmava Spiro e seu grupo. As circunstâncias não eram ideais — gritos, tiros e tumulto geral. Mas, afinal de contas, que hora melhor para implementar o último passo nesse estágio do plano? Um passo muito vital. No segundo em que Holly disparou, Artemis fez projetar um teclado de perspex da base do Cubo V e começou a digitar. Em segundos tinha invadido as contas bancárias de Spiro — todas as 37, em instituições que iam da ilha de Man até as Cayman. Os vários números de contas surgiram. Ele tinha acesso a cada fundo secreto.

O Cubo fez rapidamente uma soma de todo o dinheiro. Dois bilhões e oitocentos milhões de dólares americanos, sem contar o conteúdo de vários cofres, que não poderiam ser tocados pela internet. Dois bilhões e oitocentos milhões de dólares. O suficiente para restaurar o status dos Fowl como uma das cinco famílias mais ricas da Irlanda.

Quando estava para completar a transação, Artemis se lembrou das palavras de seu pai. Seu pai, que fora devolvido pelo povo das fadas...

"...E você, Arty? Vai fazer a jornada comigo? Quando chegar o momento, você vai aproveitar a chance de ser um herói?..."

Ele realmente precisava de bilhões de dólares?

Claro que preciso. Aurum potestas est. Ouro é poder.

Verdade? Você vai aproveitar a chance de ser um herói? De ter importância para o mundo?

Como não podia gemer em voz alta, Artemis revirou os olhos e trincou os dentes. Bem, se ele ia ser herói, seria um herói bem pago. Rapidamente deduziu dez por cento de taxa de descoberta dos 2,8 bilhões de dólares e em seguida mandou o resto para a Anistia Internacional. Tornou a transação irreversível, para o caso de ter uma recaída mais tarde.

Artemis ainda não tinha terminado. Havia mais uma boa ação a ser feita. O sucesso deste empreendimento dependia de Potrus estar ocupado demais observando o show para notar Artemis invadindo seu sistema.

Entrou no site da LEP e pôs o decifrador de código trabalhando numa senha. Demorou dez valiosos segundos para cada

caractere, mas logo estava voando pelos microssites da LEP. Descobriu o que procurava nos arquivos de criminosos. O registro completo das prisões de Palha Escavator. A partir daí foi simples seguir a trilha de elétrons de volta ao mandato de busca original para a casa de Palha. Artemis mudou a data do mandato para o dia depois da prisão de Palha. Isso significava que todas as prisões e condenações subseqüentes estavam nulas e inválidas. Um bom advogado o colocaria fora da prisão num segundo.

— Ainda não terminei com você, Palha Escavator — sussurrou, desligando o Cubo e prendendo-o ao cinto de Holly.

Juliet passou pela porta tão rápido que seus membros pareciam um borrão. O anel de jade vinha atrás como uma isca de pesca no fim de uma linha.

Butler jamais se arriscaria assim, ela sabia. Ele teria algum plano perfeitamente prático e seguro — e por isso tinha sua tatuagem do diamante azul, e ela não. Bem, talvez ela não quisesse uma tatuagem. Talvez quisesse uma vida própria.

Avaliou rapidamente a situação. A mira de Holly era perfeita. Os dois gorilas estavam esfregando as mãos chamuscadas e Spiro batendo os pés como uma criança birrenta. Só Bronco estava no chão, tentando sacar a arma.

Mesmo estando de quatro, o guarda-costas continuava com o olhar quase no mesmo nível que o dela.

— Você não vai me dar a chance de ficar de pé? — perguntou ele.

— Não — disse Juliet, chicoteando o anel de jade como se fosse a pedra que derrubou Golias. Ele se chocou contra o osso do nariz de Bronco, quebrando-o e efetivamente cegando-o por uns dois minutos. Tempo suficiente para a polícia de Chicago descer pelo poço do elevador.

Agora Bronco estava fora do jogo. Juliet tinha esperado sentir alguma satisfação, mas só sentia tristeza. Não havia alegria na violência.

Peits e Frits achavam que deveriam fazer alguma coisa. Talvez, se desarmassem a garota, ganhassem uma bonificação do Sr. Spiro. Circularam em volta de Juliet, com os punhos erguidos.

Juliet balançou um dedo para eles.

— Desculpe, garotos. Vocês precisam dormir.

Os guarda-costas a ignoraram, apertando o círculo.

— Eu disse para dormir. Ainda não houve reação.

— Você tem de usar exatamente as palavras com que eu os mesmerizei, para ter a reação — disse Holly em seu ouvido.

Juliet suspirou.

— Já que é preciso. Mutio bem, senhores: o dinossauro Barney disse para ir dormir.

Peits e Frits estavam roncando antes de bater no chão.

Com isso ficou apenas Spiro, e ele estava ocupado demais arengando para ser de alguma ameaça. Ainda arengava quando a equipe da SWAT o algemou.

— Eu converso com você de volta na base — disse o capitão da SWAT, sério, para Juliet. — Você é um perigo para seus colegas e para si mesma.

— Sim, senhor — disse ela em voz contrita. — Não sei o que deu em mim, senhor.

Em seguida olhou para cima. Uma ligeira névoa de calor parecia estar indo para o poço do elevador. O superior estava em segurança.

Holly pôs a arma no coldre, aumentando o escudo.

— Hora de ir — falou, com o volume do amplificador no mínimo.

Apertou o tecido de camuflagem com força em volta de Artemis, certificando-se de que nenhum membro aparecesse. Era imperativo que saíssem enquanto o elevador estivesse vazio. Assim que a perícia e a imprensa chegasse, até mesmo um leve tremor no ar poderia ser captado em vídeo.

Enquanto voavam pela sala, Spiro era levado do laboratório. Finalmente tinha conseguido se acalmar.

— Isso é uma armação — proclamou em sua melhor voz de inocência. — Meus advogados vão rasgar vocês em pedaços.

Artemis não pôde resistir a falar enquanto passavam perto de seu ouvido.

— Adeus, Jon — sussurrou. — Nunca mexa com um garoto gênio.

Spiro uivou para o teto como um lobo demente.

Palha estava esperando do outro lado da rua, diante do laboratório da Phonetix, acelerando o furgão como um piloto de Fórmula 1. Estava sentado ao volante num caixote laranja, com uma tábua curta presa com fita adesiva ao pé. A outra ponta da tábua estava grudada no acelerador.

Juliet examinou o sistema nervosamente.

— Você não deveria desamarrar esse pé, para o caso de ter de usar o freio?

— Freio? — riu Palha. — Por que eu usaria o freio? Não estou fazendo teste para tirar carteira.

Na parte de trás do furgão, Artemis e Holly puxaram simultaneamente os cintos de segurança.

 

CHEGARAM à Irlanda sem maiores incidentes, embora Palha tenha tentado escapar 15 vezes de Holly— inclusive uma no lear jet, onde foi descoberto no banheiro com um pára-quedas e um frasco de polidor de pedras dos anões. Depois disso Holly não o deixou ficar longe de suas vistas.

Butler esperava por eles na porta da frente da Mansão Fowl.

— Bem-vindos. Fico feliz em ver todos vivos. Agora preciso ir.

Artemis pôs a mão em seu braço.

— Velho amigo. Você não está em condições de ir a lugar nenhum.

Butler estava decidido.

— Uma última missão, Artemis. Eu não tenho escolha. De qualquer modo, estive fazendo exercícios Pilates. Estou me sentindo muito mais ágil.

— É o Bronco?

— Sim.

— Mas ele está preso — protestou Juliet. Butler balançou a cabeça.

— Não mais.

Artemis pôde ver que seu guarda-costas não iria ser tirado do caminho.

— Pelo menos leve Holly. Ela pode ajudar. Butler piscou para a capitã elfo.

— Eu estava contando com isso.

A polícia de Chicago tinha posto Arno Bronco num furgão, com dois policiais. Dois seriam suficientes, pensaram, já que o bandido estava algemado nas mãos e nos tornozelos. Eles reavaliaram essa opinião quando o furgão foi descoberto 10 quilômetros ao sul de Chicago, com os policiais algemados e nenhum sinal do suspeito. Citando o relatório do sargento Iggy Lebowsky: "O sujeito arrebentou aquelas algemas como se fossem uma corrente de papel. Ele partiu para cima de nós como um trem a vapor. Nós não tivemos chance."

Mas Arno Bronco não escapou limpo. Seu orgulho tinha sofrido um sério abalo na Agulha Spiro. Sabia que a notícia de sua humilhação logo iria se espalhar pela rede dos seguranças. Como mais tarde Barriga de Porco LaRue colocou no site dos Soldados de Aluguel na Internet: 'Arno acabou que foi ferrado por uma garota de nariz ranhento. "Bronco tinha uma consciência dolorosa de que teria de ouvir risinhos sempre que entrasse numa sala cheia de machões — a não ser que vingasse o insulto de Artemis Fowl.

O guarda-costas sabia que tinha apenas alguns minutos antes que Spiro desse seu endereço ao DP de Chigago, por isso pegou algumas dentaduras de reserva e entrou no ônibus para o Aeroporto Internacional O'Hare.

Bronco adorou descobrir que as autoridades ainda não ti nham cancelado seu cartão de crédito corporativo das empresas Spiro, e o usou para comprar uma passagem de primeira classe num Concorde da Brittish Airways para o aeroporto de Heathrow em Londres. De lá entraria na Irlanda pela balsa de Rosslare. Seria apenas mais um dos quinhentos turistas que visitavam o país dos leprechauns.

Não era um plano tremendamente complicado, e teria dado certo se não fosse uma coisa: por acaso o agente de passaportes em Heathrow era Sid Commons, o ex-Boina Verde que tinha servido com Butler como guarda-costas em Monte Cario. No segundo em que Bronco abriu a boca, alarmes dispararam na cabeça de Commons. O cavalheiro diante dele se ajustava perfeitamente à descrição que Butler tinha mandado por fax. Até os dentes estranhos. Óleo azul e água, se você não se incomoda. Commons apertou um botão debaixo da mesa, e em segundos um esquadrão de seguranças aliviou Bronco de seu passaporte e o colocou sob custódia.

O chefe da segurança pegou o celular assim que o sujeito estava trancafiado. Digitou um número internacional. O telefone tocou duas vezes.

— Residência Fowl.

— Butler? É Sid Commons, de Heathrow. Chegou aqui um homem em quem você pode estar interessado. Dentes esquisitos, tatuagens no pescoço, sotaque da Nova Zelândia. O inspetor-detetive Justin Barre mandou por fax a descrição da Scotland Yard há alguns dias; disse que talvez você pudesse identificá-lo.

— Vocês ainda estão com ele?

— Sim. Numa das celas. Estamos fazendo uma verificação agora mesmo.

— Quanto tempo vai demorar?

— Duas horas no máximo. Mas se o sujeito é o profissional que você diz, uma verificação por computador não vai revelar nada. Precisamos de uma confissão para entregá-lo à Scotland Yard.

— Encontro você em 30 minutos no salão de desembarque, debaixo do quadro de partidas — disse Butler, cortando a ligação.

Sid Commons olhou para seu celular. Como Butler poderia chegar lá em 30 minutos vindo da Irlanda? Não era importante. Sid apenas sabia que Butler tinha salvado sua vida uma dúzia de vezes em Monte Cario, há muitos anos, e agora a dívida estava para ser paga.

Trinta e dois minutos depois, Butler apareceu no salão de desembarque.

Sid Commons o examinou enquanto os dois se cumprimentavam.

— Você parece diferente. Mais velho.

— As batalhas estão acabando comigo — disse Butler, com a palma da mão sobre o peito arfante. — Acho que está na hora de me aposentar.

— Há algum sentido em perguntar como você chegou aqui?

Butler ajeitou a gravata.

— Na verdade, não. É melhor você não saber.

— Sei.

— Onde está o nosso sujeito?

Commons foi na frente em direção aos fundos do prédio, passando por hordas de turistas e taxistas segurando placas com nomes.

— Por aqui. Você não está armado, está? Sei que nós somos amigos, mas não posso permitir armas de fogo aqui.

Butler abriu o paletó.

— Confie em mim, eu conheço as regras.

Pegaram um elevador da segurança, subiram dois andares e seguiram por um corredor mal iluminado durante o que pareceram quilômetros.

— Cá estamos — disse Sid por fim, apontando um retângulo de vidro. — Aí dentro.

Na verdade o vidro era um espelho através do qual Butler podia ver Arno Bronco sentado a uma mesinha, tamborilando os dedos impaciente na superfície de fórmica.

— É ele? É o homem que atirou em você em Knightsbridge?

Butler assentiu. Era ele mesmo. A mesma impressão indolente. As mesmas mãos que tinham puxado o gatilho.

— Uma identificação positiva é uma coisa, mas mesmo assim será sua palavra contra a dele e, para ser honesto, você não está parecendo muito confiável.

Butler pôs a mão no ombro do amigo.

— Imagino que não seria... Commons nem o deixou terminar.

— Não. Você não pode entrar ali. De jeito nenhum. Eu ficaria sem emprego, com certeza; e de qualquer modo, mesmo que você conseguisse arrancar uma confissão, ela nunca se sustentaria num tribunal.

Butler assentiu.

— Entendo. Você se incomoda se eu ficar? Quero ver como isso vai acabar.

Commons assentiu ansioso, aliviado por Butler não o ter pressionado.

— Sem problema. Fique o quanto quiser. Mas eu tenho de conseguir um crachá de visitante para você. — Ele foi andando pelo corredor, parou e se virou.

— Não entre ali, Butler. Se entrar, nós vamos perdê-lo para sempre. E, de qualquer modo, há câmeras por todo o lugar.

Butler deu um sorriso tranqüilizador. Coisa que não fazia com freqüência.

— Não se preocupe, Sid, você não vai me ver naquela sala.

Commons suspirou.

— Bom. Fantástico. É que algumas vezes você fica com aquele olhar...

— Agora sou um homem diferente. Mais maduro. Commons riu.

— Isso nunca vai acontecer.

Ele virou a esquina, com os risinhos se demorando no ar. Nem bem tinha saído, Holly desligou o escudo, perto da perna de Butler.

— Câmeras? — sibilou o guarda-costas com o canto da boca.

— Eu verifiquei os fachos de íons. Aqui estou liberada. — Ela pegou um pedaço de tecido de camuflagem na mochila, colocando-o no chão. Depois enrolou um grampo de vídeo num cabo grudado à parede externa da cela.

— Certo — falou, ouvindo a voz de Potrus no ouvido. — Conseguimos. Potrus apagou nossos padrões do vídeo. Agora estamos à prova de câmeras e microfones. Você sabe o que fazer?

Butler assentiu. Já haviam falado disso antes, mas Holly tinha a necessidade militar de verificar duplamente.

— Vou me escudar de novo. Dê-me um segundo para sair, depois ponha o tecido e faça o que tem de fazer. Você tem dois minutos, no máximo, antes que seu amigo volte. Depois disso estará por conta própria.

— Entendi.

— Boa sorte — disse Holly, desaparecendo do espectro visível.

Butler esperou um instante, depois deu dois passos à esquerda. Pegou o tecido e o deixou cair sobre a cabeça e os ombros. Para um passante, agora ele era invisível. Mas se alguém parasse no corredor, alguma coisa do corpanzil do segurança poderia estar surgindo sob o tecido. Melhor agir rapidamente. Ele puxou a tranca da cela e entrou.

Arno Bronco não estava muito preocupado. Aquilo era uma bobagem. Quanto tempo alguém poderia ficar detido por ter dentaduras diferentes, pelo amor de Deus? Não muito mais, isso era certo. Talvez ele processasse o governo inglês por trauma, se aposentasse e fosse para casa na Nova Zelândia.

A porta se abriu 30 centímetros, depois se fechou de novo. Bronco suspirou. Era um velho truque dos interrogadores. Deixar o prisioneiro suar durante horas, depois abrir a porta para fazê-lo pensar que a ajuda estava a caminho. Quando ninguém entrava, o prisioneiro podia mergulhar num desespero ainda maior. Cada vez mais perto do ponto de ceder.

— Arno Bronco — suspirou uma voz vinda do nada. Bronco parou de tamborilar e sentou-se empertigado.

— O que é isso? — disse com um ar de desprezo. — Há alto-falantes aqui? Isso é uma bobagem, pessoal. Uma tremenda bobagem.

— Eu vim pegar você — disse a voz. — Vim cobrar a dívida. Arno Bronco conhecia aquela voz. Estivera sonhando com ela desde Chicago, desde que o garoto irlandês tinha alertado de que Butler iria voltar. Mas isso era ridículo; não existiam fantasmas. Mas havia alguma coisa no olhar de Artemis Fowl que fazia a gente acreditar em tudo que ele dizia.

— Butler? É você?

— Ah — disse a voz. — Você se lembra de mim. Arno respirou fundo, estremecendo. Compondo-se.

— Não sei o que está acontecendo, mas não vou cair nessa. O que é? Será que devo chorar como um bebê agora? Porque você achou alguém com a voz parecida com minha vít... Com alguém que eu conheço?

— Isso não é truque, Arno. Eu estou aqui.

— Claro. Se você está aqui, por que não estou vendo?

— Tem certeza de que não consegue me ver, Arno? Olhe direito.

O olhar de Bronco saltou loucamente pela sala. Não havia mais ninguém ali dentro. Ninguém. Tinha certeza. Mas havia um trecho de ar no canto da sala que parecia estar dobrando a luz, como um espelho flutuante.

— Ah, você me viu.

— Não vi nada — disse Bronco, trêmulo. — Só vejo um borrão de calor. Talvez de uma entrada de ventilação.

— Ah, verdade? — disse Butler largando o tecido de camuflagem. Para Bronco foi como se ele tivesse saído do ar. O guarda-costas se levantou abruptamente, catapultando a cadeira contra a parede.

— Ah, meu Deus! O que é você?

Butler dobrou os joelhos ligeiramente. Pronto para agir. É verdade que estava mais velho agora. E mais lento. Mas a magia das fadas tinha melhorado seu tempo de reação, e ele tinha muito mais experiência do que Bronco. Juliet teria gostado de fazer esse serviço para ele, mas havia coisas que a gente precisava acabar pessoalmente.

— Sou o seu guia, Arno. Vim levá-lo para casa. Há muita gente esperando para vê-lo.

— C-c-casa? — gaguejou Bronco. — O que quer dizer com casa?

Butler deu um passo à frente.

— Você sabe o que eu quero dizer, Arno. Casa. O lugar para onde você sempre terá de ir. O lugar para onde mandou muitos outros. Inclusive eu.

Bronco apontou um dedo trêmulo.

— Fique longe de mim. Eu matei você uma vez, posso matar de novo.

Butler gargalhou. Não era um som agradável.

— Aí é que você errou, Arno. Eu não posso ser morto de novo. De qualquer modo, a morte não é grande coisa, comparada com o que vem depois.

— O que vem depois...

— Existe um inferno, Arno. Eu já vi e, acredite, você vai ver também.

Bronco estava totalmente convencido; afinal de contas, Butler tinha aparecido do nada.

— Eu não sabia — soluçou ele. — Não acreditava. Nunca teria atirado em você, Butler. Eu só estava seguindo as ordens de Spiro. Você ouviu quando ele deu a ordem. Eu só era o homem do metal; é só isso que eu sempre fui.

Butler pôs a mão no ombro dele.

— Eu acredito, Arno. Você só estava cumprindo ordens.

— Isso mesmo.

— Mas não basta. Você precisa limpar sua consciência. Se não fizer isso, terei de levá-lo comigo.

Os olhos de Bronco estavam vermelhos de lágrimas.

— Como? — implorou. — Como posso fazer isso?

— Confesse seus pecados às autoridades. Não deixe nada de fora, caso contrário eu volto.

Bronco assentiu ansioso. A prisão era melhor do que a alternativa.

— Lembre-se, eu estarei vendo. Esta é sua única chance de se salvar. Se não aceitar, eu voltarei.

Os dentes de Bronco saltaram de sua boca aberta, rolando pelo chão.

— Não fe pfeocupe, eu confefo. Pfometo.

Butler levantou o tecido de camuflagem, escondendo-se completamente.

— Faça isso, ou terá um inferno para pagar.

Butler foi para o corredor, enfiando o tecido dentro do paletó. Segundos depois, Sid Commons reapareceu com um crachá da segurança.

Viu Arno Bronco parado perplexo no meio da cela.

— O que você fez, Butler? — perguntou.

— Ei, não fui eu. Veja suas fitas. Ele só ficou maluco, falando com o vazio. Gritando que queria confessar.

— Ele quer confessar? Assim, de uma hora para outra?

— Eu sei que parece estranho, mas foi o que aconteceu. Se eu fosse você, ligava para o Justin Barre na Scotland Yard. Tenho a sensação de que a declaração de Arno poderia solucionar um bocado de casos importantes.

Commons forçou a vista para ele, cheio de suspeitas.

— Por que eu tenho a sensação de que você sabe mais do que está dizendo?

— Pode me revistar. Mas sensação não é prova, e suas fitas de vigilância vão provar que eu nunca pus os pés naquela sala.

— Tem certeza de que é isso que elas vão mostrar? Butler olhou para o trecho de ar tremulando acima do ombro de Sid Commons.

— Tenho.

 

A VIAGEM de volta de Heathrow levou mais de uma hora, graças a uma turbulência particularmente forte e a um vento de leste acima das montanhas galesas. Quando Holly e Butler finalmente aterrissaram no terreno da mansão Fowl, a LEP estava ocupada montando o equipamento de limpeza mental no caminho de entrada, sob a cobertura da noite.

Butler se soltou do CintoLua, encostando-se no tronco de uma bétula prateada.

— Você está bem? — perguntou Holly.

— Ótimo — respondeu o guarda-costas, massageando o peito. — É esse tecido de kevlar. Vem a calhar se você levar tiro de uma bala de pequeno calibre, mas está acabando com minha respiração.

Holly dobrou suas asas mecânicas.

— Daqui para a frente a vida será calma para você. Butler notou um piloto da LEP tentando estacionar seu transporte na garagem dupla, esbarrando no pára-choque do Bentley.

— Vida calma? — murmurou, indo para a garagem. — Bem que eu gostaria.

Assim que tinha terminado de aterrorizar o duende piloto, Butler foi para o escritório. Artemis e Juliet estavam esperando por ele. Juliet abraçou o irmão com tanta força que o ar foi espremido dos pulmões do mordomo.

— Eu estou bem, irmãzinha. O povo das fadas consertou tudo, então eu vou viver bem mais de cem anos. Vou continuar por aí para ficar de olho em você.

Artemis estava totalmente profissional.

— Como você se saiu, Butler?

Butler abriu um cofre na parede atrás da grade de ar-condicionado.

— Bastante bem. Estou com tudo da lista.

— E quanto ao serviço sob medida?

— Meu homem em Limerick seguiu suas instruções ao pé da letra. Em todos os anos na profissão, ele nunca fez nada assim. Eles estão numa solução especial para evitar corrosão. As camadas são tão finas que, assim que entram em contato com o ar, começam a se oxidar imediatamente, de modo que sugiro que a gente só coloque no último instante possível.

— Excelente. Com toda a probabilidade, eu sou o único que vou precisar delas, mas, só para garantir, todos nós devemos colocar.

Butler segurou a moeda de ouro pendurada na tira de couro.

— Eu copiei seu diário e os arquivos sobre o povo das fadas num minidisco laser, depois mandei pincelar uma camada de folha de ouro. Isso não passa por um exame atento, mas o ouro derretido teria destruído as informações contidas no disco.

Artemis amarrou o cordão no pescoço.

— Terá de servir. Você plantou as pistas falsas?

— Sim. Mandei um e-mail que ainda não foi apanhado, e contratei alguns megabytes num site de armazenamento na Internet. Também tomei a liberdade de enterrar uma cápsula do tempo no labirinto do jardim.

Artemis assentiu.

— Muito bem. Eu não tinha pensado nisso.

Butler aceitou o elogio, mas não acreditou. Artemis pensava em tudo.

Juliet falou pela primeira vez:

— Sabe, Artemis, talvez fosse melhor deixar essas lembranças desaparecerem. Dar ao povo das fadas alguma paz de espírito.

— Essas lembranças fazem parte do que eu sou — respondeu ele.

Artemis examinou os frascos sobre a mesa, escolhendo dois.

— Agora, todo mundo, está na hora de colocar isso. Tenho certeza de que o Povo está ansioso para apagar nossas mentes.

A equipe técnica de Potrus montou os equipamentos na sala de reuniões, espalhando uma complexa variedade de eletrodos e cabos de fibra ótica. Cada cabo era ligado a uma tela de plasma que convertia ondas cerebrais em informações binárias. Em termos leigos, Potrus poderia ler as memórias humanas como se fossem um livro, e cortar o que não devesse estar ali. Possivelmente a parte mais incrível de todo o procedimento era que o cérebro humano em si forneceria lembranças alternativas para preencher as partes em branco.

— Nós poderíamos fazer as varreduras mentais com um kit de campo — explicou Potrus, assim que os pacientes foram reunidos. — Mas os kits de campo são apenas para apagamentos generalizados. Apagaria tudo que aconteceu nos últimos 16 meses. Isso teria sérias implicações para seu desenvolvimento emocional, para não mencionar o QI. Assim, é melhor que usemos o kit do laboratório e simplesmente apaguemos a memória relativa ao Povo. Obviamente teremos de apagar totalmente os dias que vocês passaram na companhia de criaturas do povo das fadas. Não podemos nos arriscar.

Artemis, Butler e Juliet estavam sentados em volta da mesa. Gnomos técnicos passaram desinfetante em suas testas.

— Eu pensei numa coisa — disse Butler.

— Não diga — interrompeu o centauro. — O negócio da idade, certo?

Butler assentiu.

— Um monte de gente me conhece como um homem de quarenta anos. Você não poderá apagar todas elas.

— Eu estava na sua frente, Butler. Vamos lhe fazer um peeling a laser enquanto você está inconsciente. Para se livrar de um pouco dessa pele morta. Até mesmo trouxemos um cirurgião plástico para dar à sua testa uma injeção de Dewer para alisar as rugas.

— Dewer?

— Gordura — explicou o centauro. — Nós tiramos de uma área e injetamos na outra.

Butler não ficou entusiasmado com a idéia.

— Essa gordura. Ela não vem do meu traseiro, vem? Potrus se remexeu desconfortavelmente.

— Bem, não vem do seu traseiro.

— Explique.

— Foi feita uma pesquisa provando que, de todas as raças do povo das fadas, os anões têm a maior longevidade. Há um mineiro em Poll Dyne que supostamente tem mais de dois mil anos de idade. Você nunca ouviu a expressão "liso que nem o traseiro de um anão?"

Butler deu um tapa, afastando um técnico que estava tentando grudar um adesivo de eletrodo em sua cabeça.

— Você está dizendo que a gordura do traseiro de um anão vai ser injetada na minha cabeça?

Potrus deu de ombros.

— É o preço da juventude. Há duendes na margem oeste pagando uma fortuna para tratamentos com Dewer.

Butler falou com os dentes trincados.

— Eu não sou um duende.

— Nós também trouxemos uma tintura gel para colorir qualquer cabelo que você pode querer deixar crescer no futuro, e um pouco de pigmento para cobrir a alteração nas células do seu peito — continuou o centauro apressadamente. — Quando você acordar, seu exterior vai parecer jovem de novo, embora seu interior esteja velho.

— Inteligente — disse Artemis. — Eu esperava isso. Holly entrou rebocando Palha. O anão estava usando algemas e parecendo sentir uma pena extrema de si mesmo.

— Isso é mesmo necessário? — gemeu ele. — Depois de tudo por que passamos?

— Meu distintivo está na reta — respondeu Holly. — O comandante disse para eu voltar com você, caso contrário não preciso voltar.

— O que eu tenho que fazer? Eu doei a gordura, não doei? Butler revirou os olhos.

— Por favor, não. Juliet deu um risinho.

— Não se preocupe, Dom. Você não vai lembrar nada disso.

— Alguém me nocauteie — disse Butler. — Depressa.

— Nem fale nisso — resmungou Palha, tentando coçar o traseiro.

Holly tirou as algemas do anão, mas ficou perto.

— Ele queria se despedir, então cá estamos. — Ela cutucou Palha com o ombro. — Então diga adeus.

Juliet piscou.

— Tchau, Fedido.

— Até mais, Fedorenta.

— Não vá sair por aí mastigando qualquer parede de concreto.

— Eu não acho esse tipo de coisa engraçado — disse Palha com uma expressão dolorida.

— Quem sabe? Talvez a gente se veja de novo.

Palha assentiu para os técnicos, ocupados em acionar seus discos rígidos.

— Se a gente se encontrar, graças a esse pessoal será a primeira vez.

Butler se ajoelhou à altura do anão.

— Cuide-se, amigo baixinho. Fique longe dos goblins. Palha estremeceu.

— Não precisa me dizer.

O rosto do comandante Raiz apareceu numa tela enrolável montada por um policial da LEP.

— Talvez vocês dois queiram se casar, não é? — rosnou ele. — Não sei por que toda essa emoção. Dentro de dez minutos vocês nem vão se lembrar do nome desse condenado!

— Nós estamos com o comandante na linha — disse um técnico, um tanto desnecessariamente.

Palha olhou para a câmera miniatura montada na tela.

— Julius, por favor. Você percebe que todos esses humanos devem a vida a mim? Esse é um momento emocionante para eles.

O rosado da pele de Raiz era exagerado pela má recepção.

— Eu não poderia me importar menos com esse momento tocante. Estou aqui para garantir que essa limpeza aconteça direito. Se eu conheço nosso amigo Fowl, ele tem alguns truques na manga.

— Verdade, comandante? — disse Artemis. — Esse tipo de suspeita magoa.

Mas o adolescente irlandês não conseguiu reprimir um riso. Todo mundo sabia que ele teria escondido coisas que pudessem provocar memórias residuais; o trabalho da LEP era achá-las. A disputa final.

Artemis se levantou e chegou perto de Palha Escavator.

— Palha. De todo o povo das fadas, vou sentir mais falta dos seus serviços. Nós poderíamos ter um tremendo futuro juntos.

Palha estava um pouquinho lacrimoso.

— É. Com o seu cérebro e meus talentos especiais.

— Para não mencionar a falta de moral dos dois — exclamou Holly.

— Nenhum banco no planeta ficaria seguro — completou o anão. — Uma tremenda oportunidade perdida.

— Palha, você sabe que eu arrisquei sua vida traindo a família Antonelli, por isso gostaria de lhe dar uma coisa.

A imaginação de Palha fervilhou com visões de cadernetas de poupança e contas em paraísos fiscais.

— Não precisa. Verdade. Se bem que foi uma coisa incrivelmente corajosa, e eu corri perigo mortal.

— Exato — disse Artemis, desamarrando o medalhão de ouro do pescoço. — Sei que não é muita coisa, mas significa muito para mim. Eu ia guardar, mas percebi que dentro de alguns minutos não vai significar nada. Gostaria de que ficasse com você; acho que Holly também gostaria. Uma pequena lembrança de nossas aventuras.

— Nossa—disse Palha, erguendo o medalhão. — Meia onça de ouro. Fantástico. Você realmente quebrou a banca, Artemis.

Artemis segurou a mão do anão.

— Nem sempre se trata de dinheiro, Palha.

Raiz estava esticando o pescoço tentando ver mais.

— O que é isso? O que você deu ao prisioneiro? Holly pegou o medalhão, segurando-o diante da câmera.

— Só uma moeda de ouro, comandante. Eu mesma tinha dado a Artemis.

Potrus olhou para a pequena medalha.

— Na verdade isso mata dois vermes fedorentos com um espeto só. O medalhão poderia ter provocado memórias residuais. Muito improvável, mas possível.

— E o outro verme fedorento?

— Palha tem alguma coisa para a qual olhar na prisão. Raiz pensou nisso por vários instantes.

— Está bem. Ele pode ficar com a moeda. Agora ponham o prisioneiro no transporte e vamos terminar com isso. Eu tenho uma reunião do Conselho em dez minutos.

Holly levou Palha para fora, e Artemis percebeu que realmente estava lamentando ver o anão partir. Mais do que isso, porém, lamentava que a lembrança dessa memória pudesse desaparecer para sempre.

Os técnicos baixaram como moscas numa carcaça. Em segundos cada humano na sala tinha eletrodos nas têmporas e nos pulsos. Cada conjunto de eletrodos passava por um transformador neural chegando a uma tela de plasma. Lembranças saltaram nas telas.

Potrus estudou as imagens.

— Muito cedo — anunciou. — Calibre para 16 meses atrás. Na verdade, ponha três anos. Não quero Artemis planejando aquele seqüestro inicial outra vez.

— Bravo, Potrus — disse Artemis, amargo. — Eu esperava que você deixasse isso passar.

O centauro piscou.

— Não é só isso que eu não deixo passar.

Na tela enrolável, a boca cheia de pixels de Raiz se esticou num sorriso.

— Diga a ele, Potrus. Eu mal posso esperar para ver aquela cara humana.

Potrus consultou um arquivo em seu computador de mão.

— Nós verificamos o seu e-mail, e adivinha só.

— Diga.

— Achamos um arquivo sobre o povo das fadas, só esperando para ser entregue. Também fizemos uma busca na Internet em geral. E veja só, alguém com seu endereço de e-mail tinha alugado alguns megabytes de armazenamento. Mais arquivos sobre o Povo.

Artemis não parecia arrependido.

— Eu precisava tentar. Tenho certeza de que vocês entendem.

— Não há mais nada que queira nos contar?

Artemis arregalou os olhos, o exemplo máximo da inocência.

— Nada. Você é inteligente demais para mim.

Potrus pegou um disco laser numa caixa de ferramentas, colocando-o no drive de um computador ligado em rede sobre a mesa.

— Bem, só para garantir, vou detonar uma bomba de dados em seu sistema de informática. O vírus vai deixar seus arquivos intactos, a não ser que tenham alguma coisa a ver com o Povo. Não só isso, mas o vírus vai monitorar seu sistema durante mais seis meses, só para o caso de você ter nos enganado de algum modo.

— E você está me dizendo tudo isso só porque não vou lembrar mesmo.

Potrus fez uma pequena dança, batendo palmas.

— Exato.

Holly passou pela porta arrastando uma cápsula metálica.

— Olha o que eu achei enterrado no quintal. — Ela abriu a tampa, jogando o conteúdo da cápsula no tapete tunisiano. Vários discos de computador e cópias do diário de Artemis se espalharam no tapete.

Potrus examinou o disco.

— Mais alguma coisa que você esqueceu de mencionar? Agora Artemis não estava mais tão presunçoso. Suas ligações com o passado estavam sendo cortadas uma a uma.

— Me escapou da mente.

— Então é isso, imagino. Não há mais nada? Artemis voltou à sua cadeira, cruzando os braços.

— E se eu disser que sim, imagino que você vai acreditar. Raiz riu tanto que parecia que a tela estava se sacudindo.

— Ah, sim, Artemis. Nós confiamos completamente em você. Como poderíamos não confiar depois de tudo que você fez para o Povo? Se não se importa, gostaríamos de fazer algumas perguntas sob o mesmer, e dessa vez você não estará usando óculos escuros.

Há 16 meses Artemis tinha evitado o olhar hipnótico de Holly com óculos escuros espelhados. Foi a primeira vez em que enganou o povo das fadas. Não seria a última.

— Bem, então vamos em frente.

— Capitã Short — rosnou Raiz. — Você sabe o que fazer. Holly tirou o capacete, massageando as pontas das orelhas para ajudar a circulação.

— Vou mesmerizar você e fazer algumas perguntas. Não é a primeira vez que você passa por isso, portanto sabe que o procedimento não é doloroso. Aconselho-o a relaxar; se tentar resistir, isso pode causar perda de memória ou até mesmo danos cerebrais.

Artemis levantou a mão.

— Espere um momento. Eu estou certo em pensar que, quando acordar, tudo estará terminado?

Holly sorriu.

— Sim, Artemis. Isto é um adeus, pela última vez.

O rosto de Artemis estava controlado, apesar das emoções que fervilhavam por dentro.

— Bem, então eu tenho algumas coisas a dizer. Raiz estava curioso, mesmo contra a vontade.

— Só um minuto, Fowl. Depois é boa-noite.

— Muito bem. Em primeiro lugar, obrigado. Eu tenho minha família e meus amigos em volta graças ao Povo. Gostaria de não ter de esquecer isso.

Holly pôs a mão em seu ombro.

— É melhor assim, Artemis. Acredite.

— E segundo, quero que todos vocês pensem na primeira vez em que me encontraram. Lembram-se daquela noite?

Holly estremeceu. Lembrava-se do indivíduo frio que a havia atacado num local mágico no sul da Irlanda. O comandante Raiz nunca se esqueceria de como escapou por um triz de um petroleiro explodindo, e a primeira vez em que Potrus tinha vislumbrado Artemis tinha sido numa gravação das negociações para a libertação de Holly. Ele tinha sido uma criatura desprezível.

— Se vocês tirarem as lembranças e as influências do Povo — continuou Artemis —, talvez eu me torne aquela pessoa de novo. É isso que vocês realmente querem?

Era um pensamento arrepiante. Será que o Povo era responsável pela transformação de Artemis? E será que seria responsável por transformá-lo de volta no que tinha sido? Holly se virou para a tela.

— Isso é possível? Artemis percorreu um longo caminho. Nós temos o direito de destruir todo esse progresso?

— Ele está certo — acrescentou Potrus. — Eu nunca pensei que diria isso, mas meio que gosto do novo modelo.

Raiz abriu outra janela de computador na tela.

— A Irmandade Psíquica fez este relato de probabilidade para nós. Eles dizem que a probabilidade de reversão é ínfima. Fowl ainda terá fortes influências positivas de sua família e de Butler.

— A Irmandade Psíquica? — objetou Holly. — Argônio e sua turma? E quando, exatamente, nós começamos a confiar naqueles curandeiros?

Raiz abriu a boca para bocejar, mas pensou melhor. Uma coisa que acontecia todo dia.

— Holly — disse ele quase com gentileza. — O futuro de nossa cultura está em jogo. O fato é que o futuro de Artemis não é problema nosso.

A boca de Holly era um traço sério.

— Se isso é verdade, nós somos tão ruins quanto o Povo da Lama.

O comandante decidiu reverter para o seu modo normal de comunicação.

— Ouça, capitã — rugiu ele. — Estar no comando significa tomar decisões duras. Não estar no comando significa fechar a boca e fazer o que é ordenado. Agora mesmerize esses humanos antes que a gente perca a conexão.

— Sim, senhor. Como quiser, senhor.

Holly parou diante de Artemis, tendo o cuidado de manter o contato ocular.

— Adeus, Holly. Não vou ver você de novo, mas tenho certeza de que você me verá.

— Só relaxe, Artemis. Respire fundo.

Quando Holly falou de novo, sua voz tinha camadas em tons de baixo e contralto. As camadas hipnóticas do mesmer.

— Foi um tremendo serviço que fizemos com o Spiro, hein?

Artemis deu um sorriso sonolento.

— É. A última aventura. Chega de machucar pessoas.

— Como você criou esses planos? As pálpebras de Artemis baixaram.

— Habilidade natural, acho. Passada por gerações de Fowl.

— Aposto que você faria tudo para manter as lembranças do povo das fadas, não é?

— Quase tudo.

— Então o que você fez? Artemis sorriu.

— Uns truquezinhos.

— Que tipo de truques? — pressionou Holly.

— É segredo. Não posso dizer.

Holly acrescentou mais algumas camadas à sua voz.

— Diga, Artemis. Será o nosso segredo.

Uma veia pulsou na têmpora de Artemis.

— Você não vai contar? Não vai contar ao povo das fadas? Holly olhou cheia de culpa para a tela. Raiz sinalizou para ela ir em frente.

— Não vou contar. Vai ficar só entre nós.

— Butler escondeu uma cápsula no labirinto.

— E?

— Eu mandei um e-mail para mim mesmo. Mas acho que Potrus vai encontrar. E para colocá-lo fora da pista.

— Muito inteligente. Há mais alguma coisa que você espera que ele não encontre?

Artemis deu um sorriso esperto.

— Eu escondi um arquivo num site de armazenamento da Internet. A bomba de dados de Potrus não vai afetá-lo. Os provedores vão me mandar um lembrete dentro de seis meses. Quando eu recuperar os dados, isso deve provocar memórias residuais e possivelmente uma lembrança integral.

— Mais alguma coisa?

— Não. O site de armazenamento é nossa última esperança. Se o centauro descobrir, o mundo das fadas está perdido para sempre.

A imagem de Raiz tremeu na tela.

— Certo. A conexão está se partindo. Nocauteie-os e apague. Gravem todo o processo. Não acreditarei que Artemis está fora do jogo enquanto eu não vir a fita.

— Comandante. Talvez eu devesse fazer algumas perguntas aos outros.

— Negativo, capitã. Fowl mesmo disse. O site de armazenamento era a última esperança deles. Conecte todo mundo e rode o programa.

A imagem do comandante desapareceu em ondas de estática.

— Sim, senhor. — Holly se virou para a equipe técnica. — Vocês ouviram o chefe. Vamos. O sol nasce daqui a duas horas. Quero que todos estejamos debaixo do solo antes disso.

Os técnicos verificaram se os eletrodos estavam com bom contato, depois desenrolaram três máscaras de sono.

— Eu faço isso — disse Holly, pegando as máscaras. Ela passou o elástico por cima do rabo-de-cavalo de Juliet.

— Sabe de uma coisa? A proteção pessoal é um negócio frio. Você tem coração demais para isso.

Juliet assentiu lentamente.

— Vou tentar manter isso em mente.

Holly ajustou gentilmente as peças sobre os olhos da garota.

— Vou ficar de olho em você. Juliet sorriu.

— Vejo você nos meus sonhos.

Juliet apertou um pequeno botão na máscara do sono, e uma combinação de luzes hipnóticas nas lentes e sedativo administrado através dos lacres pôs Juliet a nocaute em menos de cinco segundos.

Butler foi o seguinte. A equipe técnica tinha acrescentado um pedaço de elástico à máscara, para poder envolver sua cabeça raspada.

— Certifique-se de que Potrus não fique maluco com esse equipamento de limpeza mental — disse o guarda-costas. — Não quero acordar com quatro décadas de nada na cabeça.

— Não se preocupe — disse Holly em tom tranqüilizador. — Em geral Potrus sabe o que está fazendo.

— Bom. Lembre-se, se algum dia o Povo precisar de ajuda, eu estou disponível.

Holly apertou o botão.

— Vou lembrar — sussurrou ela.

Artemis era o último da fila. Em seu estado mesmerizado, ele parecia quase pacífico. Pela primeira vez não havia linhas de pensamento franzindo sua testa e, se você não o conhecesse, acharia que ele quase poderia ser um humano de 13 anos normal.

Holly se virou para Potrus.

— Você tem certeza?

O centauro deu de ombros.

— Que opção nós temos? Ordens são ordens.

Holly pôs a máscara sobre os olhos de Artemis e apertou o botão. Segundos depois o adolescente se afrouxou em sua cadeira. Imediatamente linhas de texto em gnomês começaram a surgir na tela atrás dele. Nos dias de Frond, o gnomês era escrito em espirais. Mas ler em espirais dava enxaqueca na maioria do povo das fadas.

— Comecem a apagar — ordenou Potrus. — Mas mantenham uma cópia. Qualquer dia, quando eu tiver algumas semanas de folga, vou descobrir o que move esse garoto.

Holly viu a vida de Artemis sendo escrita em símbolos verdes na tela.

— Isso não parece direito — comentou. — Se ele nos encontrou uma vez, pode encontrar de novo. Especialmente se virar o monstro que era antigamente.

Potrus digitou comandos num teclado ergonômico.

— Talvez. Mas na próxima nós estaremos preparados. Holly suspirou.

— É uma pena, porque agora nós quase éramos amigos. O centauro fungou.

— Claro. Do mesmo modo como é possível ser amigo de uma víbora.

De repente Holly fechou o visor do capacete, escondendo os olhos.

— Você está certo, claro. Nós nunca poderíamos ser amigos. Foi a circunstância que nos colocou juntos, nada mais.

Potrus deu-lhe um tapinha no ombro.

— É isso aí, garota. Fique com as orelhas em pé. Aonde você está indo?

— A Tara. Vou voar. Preciso de ar puro.

— Você não tem autorização para um vôo. Raiz vai pegar o seu distintivo.

— Por quê? — disse Holly, ligando as asas. — Supostamente eu não estou aqui, lembra?

E foi embora, voando numa curva preguiçosa pelo hall de entrada. Passou pela porta principal tirando um fininho, subindo rapidamente no céu noturno. Por um segundo sua forma esguia foi silhuetada pela lua cheia, e então ela desapareceu, vibrando para fora do espectro visível.

Potrus ficou olhando. Criaturas emocionais, os elfos. Em alguns aspectos eles eram os piores agentes do Recon. Todas as decisões eram tomadas pelo coração. Mas Raiz nunca demitiria Holly, porque ela havia nascido para ser policial. E, de qualquer modo, quem mais salvaria o Povo se Artemis Fowl algum dia os achasse de novo?

Palha estava sentado na cela do transporte, sentindo uma pena enorme de si mesmo. Tentou sentar-se no banco sem tocá-lo com o traseiro dolorido. Não era fácil.

As coisas não pareciam bem, isso precisava ser dito. Mesmo depois de tudo que tinha feito pela LEP, eles iriam trancá-lo durante pelo menos uma década. E não parecia provável que tivesse oportunidade de escapar. Estava cercado de aço e barras de laser, e continuaria assim até que o transportador atracasse na cidade do Porto. Depois disso, era um pulo até a Delegacia Plaza, uma audiência sumária e a ida para uma prisão de segurança máxima até que sua barba ficasse grisalha. O que certamente iria acontecer, se ele fosse obrigado a ficar mais de cinco anos longe dos túneis.

Mas havia esperança. Um brilho minúsculo. Palha se obrigou a esperar até que todo o pessoal técnico tivesse tirado o equipamento do transporte. Então abriu casualmente a mão direita, coçando as têmporas com o polegar e o indicador. O que estava fazendo de verdade era lendo o bilhete minúsculo escondido na palma—o que lhe fora passado por Artemis Fowl quando os dois se cumprimentaram.

 

Ainda não terminei com você, — dizia o bilhete. — Quando voltar, diga ao seu advogado para verificar a data do mandado de busca original para a sua caverna. Quando você for solto, mantenha o focinho limpo durante uns dois anos. Depois traga o medalhão para mim.

Juntos seremos invencíveis.

Seu amigo e benfeitor, Artemis Fowl II

 

Palha amassou o bilhete. Fez um cilindro com os dedos e sugou o papel com a boca. Seus molares de anão destruíram a prova.

Palha respirou fundo pelo nariz. Ainda não era hora de abrir a rolha do Vinho de Verme da Rocha Skaliano. Uma revisão de seu processo poderia demorar meses, talvez anos. Mas havia esperança.

O anão envolveu o medalhão de Artemis com os dedos. Juntos eles seriam invencíveis.

 

Diário de Artemis Fowl. Disco I. Criptografado

Decidi fazer um diário. De fato estou surpreso ao pensar que a idéia nunca me ocorreu antes. Um intelecto como o meu deveria ser documentado, para que as gerações futuras dos Fowl possam aproveitar minhas idéias brilhantes.

Claro, eu devo ter cuidado com esse documento. Por mais que ele possa ser valioso para meus descendentes, seria ainda mais valioso para os agentes da lei que vivem tentando juntar provas contra mim.

É ainda mais importante que eu mantenha esse diário sem que meu pai saiba. Ele não parece o mesmo desde que escapou da Rússia. Ficou obcecado com nobreza e heroísmo. Conceitos abstratos, na melhor das hipóteses. Pelo que sei, nobreza e heroísmo não são aceitos por nenhum dos principais bancos do mundo. A fortuna da família está nas minhas mãos, e vou preservá-la como sempre fiz, com tramas engenhosas. A maioria dessas tramas será legal. As melhores sempre são. O lucro verdadeiro está nas áreas sombrias fora da lei.

Mas decidi, por respeito aos valores dos meus pais, a mudar o critério para a escolha de vítimas. Pareceria melhor, para a ecologia do mundo, se várias corporações globais falissem, por isso resolvi ajudá-las nesse caminho. Não serão crimes sem vitimas, mas com vítimas pelas quais serão derramadas poucas lágrimas. Isso não significa que me transformei num Robin Hood fraco e fora de moda. Longe disso. Pretendo obter benefícios substanciais com meus crimes.

Meu pai não é o único que mudou. Butler envelheceu quase da noite para o dia. Sua aparência é a mesma de sempre, mas ele ficou consideravelmente mais lento, não importando o quanto tente esconder. Mas não vou substituí-lo. Ele é um empregado leal, e seu conhecimento em questões de informação será valiosíssimo. Talvez Juliet me acompanhe quando for necessária proteção de fato, ainda que agora ela diga que uma vida trabalhando com proteção pessoal não seja para ela. Na semana que vem Juliet viaja aos Estados Unidos para tentar entrar numa equipe de luta-livre. Parece que escolheu "Princesa de Jade" como nome artístico. Só espero que fracasse no teste. Mas duvido. Ela é uma Butler, afinal de contas.

Claro, eu tenho alguns empreendimentos que posso realizar sem a ajuda de um guarda-costas. Nos últimos anos desenvolvi programas de computador para transferir dinheiro de várias contas bancárias para a minha. Esse programa terá de ser atualizado para ficar à frente dos esquadrões de combate aos crimes de informática. A versão 2.0 deve estar funcionando dentro de seis meses. E não meu talento para a falsificação de obras de arte. No passado preferi os impressionistas, mas agora, por algum motivo, sinto-me atraído por temas mais fantásticos, como as criaturas do povo das fadas representados por Pascal Hervé em sua série Mundo Mágico. Mas esses projetos devem ser adiados temporariamente, porque hoje descobri que sou vítima de uma conspiração.

O dia começou estranho. Quando acordei, senti um instante de fraqueza. Por um único momento, antes de abrir os olhos, senti-me contente, tendo esquecido o impulso de acumular riqueza. Isso nunca aconteceu antes. Talvez esse humor tenha permanecido depois de algum sonho mágico, ou talvez a atitude positiva recém-encontrada por meu pai seja contagiosa. Qualquer que seja o motivo, devo ter cuidado para evitar esses lapsos no futuro. Com meu pai nesse estado mental, não é hora de eu abandonar a decisão. Preciso continuar no ímpeto de sempre. O crime é o caminho de avanço para os Fowl. Aurum potestas est.

Minutos depois, um grande mistério se apresentou. Enquanto eu lavava o rosto na pia, um minúsculo objeto caiu de um dos meus olhos. O exame atento no laboratório revelou que era uma lente de contato colorida, meio tomada pela corrosão. Não só isso, mas uma camada espelhada tinha sido posta por trás das lentes de contato. Engenhoso. Sem dúvida obra de um mestre artesão. Mas com que objetivo? É estranho, mas mesmo eu não tendo conhecimento dessa lente, ou de como ela foi parar no meu olho, sinto que a resposta está em algum lugar do meu cérebro. Escondida nas sombras.

Imagine minha surpresa quando Juliet e Butler descobriram lentes espelhadas em seus olhos. As lentes são tão bem boladas que poderiam ser invenção minha, de modo que obviamente esse adversário desconhecido não deve ser subestimado.

Vou rastrear o culpado, não duvide. Nenhuma pista será deixada sem investigação. Butler tem um contato em Limerick, um especialista no campo de lentes e telescópios. Talvez ele reconheça o trabalho de nosso intruso. Enquanto escrevo, Butler está indo para lá.

E assim começa um novo capítulo na vida de Artemis Fowl II. Dentro de alguns dias meu pai volta com sua consciência recém-encontrada. Logo serei mandado para um colégio interno, onde terei acesso a um ridículo centro de informática e a um laboratório ainda mais ridículo. Meu guarda-costas parece velho demais para tarefas físicas e há um adversário desconhecido plantando objetos estranhos na minha pessoa.

Dificuldades avassaladoras, você poderia pensar. Uma pessoa comum puxaria as cortinas e se esconderia do mundo. Mas eu não sou uma pessoa comum. Sou Artemis Fowl, o último da dinastia criminosa Fowl, e não serei afastado de meu caminho. Encontrarei quem colocou essas lentes e o culpado pagará pela presunção. E assim que me livrar desse pequeno incômodo, meus planos prosseguirão sem freios. Vou lançar uma onda de crimes como jamais foi vista. O mundo vai se lembrar do nome de Artemis Fowl.

 

 

                                                                                                    Eion Colfer

 

 

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