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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COLAR DE BRILHANTES / Ann Hulme
O COLAR DE BRILHANTES / Ann Hulme

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Susanna Harte sentia-se fascinada pelo charme latino do major Hugh Russell. Ela nunca vira um homem de olhos tão negros e misteriosos, que a faziam suspirar e sonhar cada vez que a fitavam. Hugh, porém, escondia um terrível segredo, e o sexto sentido de Susanna lhe dizia para não confiar nele... Quando o famoso colar de brilhantes dos Harte desapareceu, contudo, Susanna recusou-se a acreditar que Hugh fosse o culpado. O cavalheiro que roubou seu coração não poderia também ter roubado as jóias da família!”

 

 

 

 

A cortina de veludo verde que cobria uma das portas laterais foi puxada para o lado, e um homenzinho gordo e careca entrou seguido por uma figura que era sua réplica perfeita.

O cavalheiro que os aguardava, impaciente, piscou ao notar a inusitada semelhança daqueles que acabavam de adentrar a sala. Seu olhar vagou pelo aposento decorado com móveis de boa qualidade, porém de péssimo gosto, antes de pousar de novo sobre os recém-chegados, e ele teve certeza de que não estava tendo uma alucinação.

— Vejo que está surpreso, sir — comentou o homenzinho que entrara na frente. — As pessoas sempre têm essa reação, é natural. Permita-me apresentar-lhe meu irmão gémeo, Tobias Clay, que é também meu sócio.

A réplica perfeita daquele que acabara de falar fez um gesto de cumprimento com a cabeça, mas permaneceu calado.

— É difícil encontrar alguém que consiga nos diferenciar — prosseguiu o homenzinho com um sorriso divertido. — Quando éramos crianças, pregávamos muitas peças em nossas babás, não é mesmo Toby?

— De fato — respondeu o segundo homem, que permanecia à sombra do irmão.

  • Contudo, se nos observar atentamente, sir, irá notar que sou alguns centímetros mais alto que meu irmão. — continuou o homenzinho dando um passo em direção ao visitante, o qual recuou com certo asco. — Não se esqueça deste detalhe, e assim o senhor sempre saberá que eu sou Josiah e ele é Tobias. Não é mesmo Toby?
  • De fato — repetiu o lacónico Tobias Clay.Tobias, obviamente mais cauteloso que seu verborrágico irmão, apenas assentiu com um movimento de cabeça.Josiah concluiu que o homem era um cavalheiro; seu porte aristocrático e o olhar altivo não deixavam margem para dúvidas. O visitante tinha ombros largos e fortes, pele morena e cabelos negros e fartos, com precoces fios grisalhos nas têmporas. Devia ter por volta de trinta anos.

 

    • No instante de silêncio que se fez em seguida, os gémeos observaram o visitante com a mesma curiosidade com que ele os havia observado de início.
    • — Também sou mais velho onze minutos, não é verdade, Toby? —declarou Josiah Clay.
  • Conseguiu o que pedi? — indagou o cavalheiro, num tom autoritário, rompendo o silêncio.
  • Claro que sim, senhor! — respondeu Josiah, antes de dirigir-se ao irmão. — Toby, por favor!

 

    • Tobias Clay deu um passo à frente. Colocou sobre a mesa no centro da sala a pequena caixa de veludo vermelho que tinha nas mãos e abriu-a.
  • Aí está — exclamou Josiah, orgulhoso, enquanto Tobias se afastava da mesa. — O que acha, senhor? Não é uma beleza?
  • Embrulhe para mim — ordenou o cavalheiro moreno sem se importar em responder à pergunta que lhe fora feita. — Preciso viajar para o interior e levarei a mercadoria comigo.
  • Embrulhar?! — espantou-se Josiah. Suas mãos gorduchas buscaram a caixa de veludo num gesto protetor. — Mas senhor, não pode sair cavalgando por aí com esta preciosidade no bolso. Suponha que, por acidente, ela vá parar nas mãos erradas. Seria embaraçoso demais!
  • Deixe que eu me preocupe com isto — retrucou o visitante com impaciência. — Agora embrulhe a mercadoria, e depressa!
  • Se o senhor faz mesmo questão — concordou Josiah num tom indignado. — Mas ouça bem, cavalheiro, Toby e eu não nos responsabilizaremos se acontecer algo.
  • Nem eu pedi que o fizessem. Agora preparem logo o embrulho! Não posso passar o dia todo aqui, esperando.Os gémeos ficaram a observá-lo da janela e viram quando um homem muito baixo e franzino deixou o vão da porta de uma das casas vizinhas e passou a seguir o cavalheiro autoritário. O contraste entre as duas figuras que iam pela rua era marcante, uma tão alta e forte, a outra tão magra e miúda. O fato que mais chamou a atenção dos irmãos Clay, porém, foi que o homenzinho seguia sem a menor discrição o cliente que levara a caixa de veludo.

 

    • Alguns minutos depois, o indelicado visitante deixou a loja e afastou-se a passos rápidos pela rua tranquila.
  • Ainda bem, Toby — disse Josiah, aliviado. — Não gostaria de vê-lo sendo assaltado bem em frente à nossa casa. Acho que você entende o que quero dizer, não é?
  • Claro, Josh.
  • Não que fosse fácil para alguém assaltar um homem forte como aquele — sentenciou Josiah.
  • Sim, muito forte — concordou Tobias, como sempre.
  • Espero que não apareça mais por aqui, não gostei nem um pouco de negociar com ele. Que cliente difícil! Se ao menos soubéssemos em que tramas está envolvido...
  • É melhor não saber, deve ser algo de desonesto — disse Tobias Clay, pela primeira vez expressando uma opinião própria.— Eu me recuso terminantemente! Não pode me obrigar a fazer isto, Susie!— A tradição que vá para o inferno! — retrucou o primo da moça. O rapaz estava de pé, junto à lareira, e erguia a barra do casaco para secar a calça molhada diante das chamas crepitantes. Tudo indicava que acabara de voltar de uma cavalgada, pois havia restos de lama em suas botas encharcadas. Era um jovem de feições bonitas, com um olhar obstinado que em geral provocava suspiros em muitas donzelas. O cabelo de cor clara caía em cachos sobre a testa altiva. — Veja, fiquei molhado até os ossos depois de ter cavalgado até Newbury para levar alguns recados de Viola, favor pelo qual tenho quase certeza de que não receberei nenhum agradecimento — argumentou o rapaz, irritado. — E agora você quer que eu saia outra vez, nesta noite chuvosa, e espere até a meia-noite para entrar em casa trazendo um pedaço de carvão nas mãos? Ora, francamente!—  Claro que aprecio — admitiu Leo Drayton soltando a barra do casaco. — Mas você deve ter se esquecido de alguns detalhes, querida prima. Primeiro, não sou nenhum estranho. Segundo, reza a tradição que o estranho deve ser moreno e forte. Sendo assim, um primo loiro e magro que vive há cinco anos nesta casa não pode concretizar o seu desejo.Susanna, entretanto, não se deu por vencida. Observou que nos últimos cinco anos fora ele o encarregado de manter a tradição, e era justo que tornasse a fazê-lo.

 

    • O jovem fez uma pausa e aguardou que seus comentários fossem levados em consideração.
    • — Esta é uma tradição da véspera do Ano Novo — redarguiu Susanna, muito séria. — Segundo dizem, é preciso que um estranho entre em nossa casa trazendo um pedaço de carvão para que tenhamos sempre uma mesa farta e um teto para nos abrigar. E pelo que conheço de você, meu caro, sei que aprecia muito estas regalias.
    • — Mas trata-se de uma tradição! — exclamou Susanna Harte, exasperada.
    • — Você tem razão, Toby — assentiu Josiah, pensativo. — Tem toda razão...
  • Ah, esqueci de mencionar um terceiro detalhe — comentou o rapaz quando a prima terminou de falar. — Acho que as chances de faltar comida em nossa mesa são mínimas, de onde se conclui que o seu pedido não tem razão de ser, minha cara.
  • Leo, por favor, você fez isso nos últimos cinco anos! — insistiu Susanna em tom choroso.
  • Só que não o farei mais — disse o jovem, inflexível. — Por Deus, Susie, não vou sair de novo na chuva. Não vê que já estou todo molhado?
  • Bobagem! As suas botas e o seu casaco é que estão molhados, basta trocá-los e ficará tão seco quanto eu. Não seja malvado, Leo! Tudo o que desejo é uma véspera de Ano Novo como sempre tivemos. Ultimamente as coisas mudaram tanto... — Susanna suspirou e calou-se; uma expressão triste surgiu-lhe no rosto.

 

    • Leo fitou-a, enternecido.
  • Sei o que quer dizer, Susie, mas receio que tenhamos de nos acostumar à nova situação.
  • Viola me contou que pretende usá-lo esta noite. Faz isso de propósito, só para me magoar — comentou Susanna, pesarosa. — Não pense que estou com ciúmes, Leo, sei que ele fica muito melhor em Viola do que jamais ficaria em mim. Papai comprou-o para minha mãe, contudo, e só o fato de vê-lo no pescoço de outra mulher...
  • Não se preocupe — disse Leo interrompendo a prima, tentando alegrá-la. — Vou dar um jeito para que tenha o seu pedaço de carvão de todos os anos. Já percebi que esta tradição significa muito para você.
  • Vai fazer o que eu pedi, então?
  • Não pessoalmente, mas encontrarei um jeito de resolver o problema, fique tranquila. E agora, se me der licença, vou subir e me preparar para o jantar — declarou o rapaz, acrescentando a seguir: — Não fique tão deprimida, Susie. Anime-se, o Ano Novo pode trazer muitas surpresas.
  • Este último ano também trouxe muitas surpresas! — exclamou Susanna com ironia.Susanna respirou fundo e, sentando-se na poltrona diante da lareira, ficou a observar o crepitar das chamas azuladas. Ela não era bonita no sentido convencional da palavra, mas suas feições delicadas, a pele aveludada, os brilhantes olhos acinzentados e os cabelos castanhos macios, quase sempre presos num coque, formavam um conjunto bastante harmonioso e agradável de se ver.Susanna olhou pensativa para o relógio sobre a lareira e constatou que dentro de poucas horas 1816 iria embora para sempre e 1817, com surpresas agradáveis ou não, estaria despertando para o mundo.Viola, a nova lady Harte, não devia ter mais de trinta e cinco anos de idade. Sir Frederick já se encontrava próximo dos setenta e, apesar de muito gentil, era em essência um homem do campo, sem os refinamentos da corte. A razão que o levara a desposar uma mulher tão frívola, de personalidade oposta à dele em todos os aspectos, era algo que Susanna ainda não havia conseguido descobrir.A atual lady Harte gostava de festas, comemorações, jogos de cartas, e adorava dar jantares extravagantes. Durante quase todo o verão os amigos de Viola, muitos dos quais bastante libertinos, haviam lotado a casa. Apareceram com o pretexto de assistir às corridas que aconteciam na vizinha Newbury. Hospedaram-se na residência dosFelizmente, com a chegada do inverno, todos aqueles parasitas haviam desaparecido.Agora o Ano Novo estava próximo, e eles finalmente iriam comemorá-lo em família: apenas sir Frederick, a esposa, a filha e o sobrinho.A nova lady Harte havia aceito o presente sem a menor hesitação ou demonstração de embaraço, e Susanna não se sentia capaz de culpá-la por isto. Afinal, nenhuma mulher em sã consciência teria recusado a jóia magnífica.Fortalecida por aquela decisão, Susanna foi para o seu quarto trocar de roupa.— Não faça isso, Leo! — ordenou uma voz feminina às costas do jovem. — Se continuar a mexer nas brasas só vai conseguir piorar a situação. É o tubo de ventilação da lareira que precisa ser limpo, e eu já mandei a governanta chamar o limpador de chaminés para resolver o problema.— A senhora está maravilhosa esta noite, lady Harte. E tem razão no que se refere à chaminé, é claro. Deixemos que a criadagem cuide deste inconveniente.Depois de beijar a mão que lhe foi oferecida, Leo observou com certa malícia:

 

    • — Vejo que está usando o colar de brilhantes que ganhou de seu esposo, milady. Viola tocou a jóia com a ponta dos dedos.
    • Viola sorriu, não apenas por causa do elogio recebido, mas também porque Leo era um rapaz muito atraente. Num gesto coquete, estendeu a mão direita para o jovem.
    • Leo largou o atiçador e limpou as mãos no lenço imaculadamente branco que tirou do bolso, declarando:
    • Quando Leo desceu para o jantar, o tempo ainda não havia melhorado. A chuva açoitava as janelas. O vento soprava com força assustadora, fazendo com que alguns pingos de chuva entrassem pela chaminé e respingassem sobre as brasas que ardiam na lareira da sala de visitas, deixando o ambiente meio enfumaçado. O rapaz tentou reavivar as chamas com o atiçador.
    • — O problema é que Viola adora exibir-se com o colar na minha frente. Que falta de tato! — refletiu Susanna, em voz alta. — Por outro lado, talvez papai goste de vê-la usando a jóia... Bem, de qualquer modo, jamais permitirei que ela perceba o quanto sua atitude me perturba!
    • No entanto, ainda existia algo que magoava o sensível coração de Susanna. Por ocasião de seu segundo casamento, sir Frederick presenteara a esposa com o maravilhoso colar de brilhantes que havia pertencido à mãe de Susie. O idoso cavalheiro sempre dissera que um dia daria a jóia, preciosíssima, à própria filha. Mas, pelo visto, esquecera-se por completo de tal promessa.
    • "Graças a Deus!", pensara Susanna ao vê-los partir. Até mesmo o bom e hospitaleiro sir Frederick já começara a aborrecer-se com os abusos daquela gente.
    • Harte, fizeram balbúrdia até altas horas da noite, tomaram as melhores bebidas da adega dè sir Frederick e, quando partiram, deixaram fabulosas contas a pagar nas tabernas locais.
    • Ela vivia dizendo a si mesma que não era o fato de seu pai ter contraído segundas núpcias que a incomodava. O problema era a noiva não ter nem idade nem interesses em comum com sir Frederick Harte.
    • No ano passado, aproximadamente nesta mesma época, o pai de Susanna chegara em casa e surpreendera toda a família com a notícia de seu segundo casamento. Sir Frederick Harte fazia parte do parlamento, como representante da região onde morava, e tinha ido a Londres para participar de algumas votações extraordinárias. Voltara para casa logo após o Natal, trazendo consigo uma belíssima e jovem esposa.
    • Por causa da simplicidade das roupas que a prima costumava usar Leo dizia, às vezes, que ela parecia uma adepta da seita religiosa Quacre. Susanna não se importava com o comentário, pois achava que roupas mais simples combinavam melhor com o seu tipo físico e realçavam a delicadeza de seus traços. Além disso, sabia que Leo não tinha a menor intenção de ofendê-la. Afinal, durante o último e difícil ano, ele fora a pessoa que mais a ajudara.
    • — Não me interprete mal, querida prima. O que eu quis dizer foi que as surpresas do Ano Novo podem ser boas — explicou Leo, antes de sair da sala assobiando uma melodia alegre.
  • Sim, estou. Acha que fico bonita com ele, Leo?
  • A senhora é que torna o colar ainda mais belo ao emprestar-lhe seu brilho pessoal, milady — respondeu o rapaz, galante.

 

    • Qualquer pessoa no lugar de lady Harte teria dito que Leo estava exagerando. Viola, no entanto, adorava elogios e os aceitava sem reservas.
  • Vamos, Leo, vou deixar que me conduza até a sala de jantar. Freddie descerá a qualquer momento, e Susanna também não deve demorar a se juntar a nós.
  • Será um prazer acompanhá-la, lady Harte. A propósito, posso cumprimentá-la pelo belíssimo vestido novo que está usando?
  • Fico feliz que tenha gostado de minha roupa, Leo. Comprei-a especialmente para esta ocasião. Ainda acredito que usar um vestido novo na véspera do Ano Novo traz boa sorte — confessou Viola enquanto alisava a saia do luxuoso traje de cetim cor-de-rosa.— A senhora parece ser tão supersticiosa quanto Susie — comentou o jovem. — Minha prima acredita, por exemplo, que se alguém entrar em nossa casa na véspera do Ano Novo trazendo um pedaço de carvão nas mãos, teremos mesa farta durante os doze meses seguintes. Nos últimos cinco anos fui eu que adentrei a casa com o pedaço de carvão, a pedido de Susie. Hoje, no entanto, recusei-me a fazer a vontade de minha prima por causa dessa chuva horrorosa que não pára nunca.— Não, não ficará. Falei com um dos criados, que concordou em trazer um pedaço de carvão para dentro de nossa casa em troca de algumas moedas. Por coincidência o rapaz é moreno, como exige a tradição. Desse modo, Susie ficará contente e eu não correrei o risco de pegar uma pneumonia.

 

    • Assim que Leo terminou de falar, as vozes de sir Frederick e Susanna soaram próximas à sala de visitas.
    • —Susanna ficará desapontada — disse lady Harte com ar de pouco caso, demonstrando não ter muito interesse pelos sentimentos de sua enteada.
    • Viola Harte era uma mulher belíssima, de pele clara e longos cabelos negros que caíam em cascata sobre os ombros delicados. Ela dissera a Leo, certa vez, que possuía ascendência italiana, mas não entrara em detalhes. Era sempre muito vaga quando se referia à família.
  • Não conte nada a Susie, milady — pediu Leo, num sussurro. — Quero fazer-lhe uma surpresa.
  • Está bem — assentiu Viola, já entediada com aquele as­ sunto.— Minha querida, você está divina! — exclamou sir. Frederick, adiantando-se para beijar as mãos da esposa.Susanna retribuiu o gesto com um olhar de censura. Em certas ocasiões, o senso de humor de Leo tornava-se insuportável. Além disso, a cumplicidade do primo estava a ponto de transformar-se em piedade, e ela não queria ser alvo da compaixão de ninguém.No presente momento, sir Frederick Harte era a maior preocupação de Susanna. O relacionamento entre ambos mudara muito no decorrer do último ano. Antes de Viola entrar em suas vidas, Susie sempre tivera o pai em alta conta. Habituara-se a ajudá-lo na elaboração dos documentos que precisavam ser enviados de tempos em tempos ao parlamento, orgulhando-se de saber que era filha de um cavalheiro honesto e devotado às causas da nação.Deixando as divagações de lado, Susanna se deu conta de que sir Frederick a segurava pelo braço enquanto Leo e Viola conversavam a alguns passos de distância.

 

    • Jamais lhe ocorrera que sir Frederick pudesse se interessar por uma mulher bem mais jovem que ele. Tal descoberta a deixara bastante chocada e confusa. Mas Susanna continuava a amar o pai, apesar de tudo, e não gostava de ouvir as pessoas comentando que sir Frederick estava fazendo papel de tolo ao acreditar que uma mulher tão moça e bonita como Viola pudesse realmente amá-lo. Susanna temia pelo futuro do pai, pois sabia que no final seria ele o maior prejudicado por essa história toda...
    • Sentia-se triste, é verdade, mas não apenas pelo fato de Viola estar usando o colar de brilhantes que a fazia lembrar-se da mãe. Por mais que tentasse, Susanna não conseguia gostar da nova esposa de seu pai, e sabia que o sentimento era recíproco. O que mais a perturbava era a sensação de que sua madrasta não nutria uma afeição sincera por sir Frederick. Do seu ponto de vista, se a atual lady Harte realmente amasse o marido não teria aceitado receber tantas visitas de amigos do sexo masculino durante o verão, nem teria tratado com tanta intimidade aqueles homens todos!
    • Leo, que se afastara um pouco para o lado, olhou de soslaio para a prima e dirigiu-lhe um sorriso cúmplice.
    • Ao entrar acompanhada do pai no aposento aquecido pelas chamas na lareira, Susanna empalideceu ao ver sua bela e elegante madrasta usando o colar de brilhantes que havia pertencido à primeira lady Harte.
  • Viola é linda, não é mesmo? — indagou sir Frederick, de repente, olhando para a esposa como se ela fosse uma preciosa obra de arte exposta num museu.
  • Sim, de fato — concordou Susanna, enrubescendo.

 

    • Sir Frederick pareceu lembrar-se de que conversava com a filha e pigarreou, embaraçado, falando a seguir:
  • Você também está muito bonita, minha querida.
  • Obrigada, papai.
  • Eu... eu gostaria de aproveitar este momento para lhe dizer algo, Susie — começou ele, um tanto hesitante. — Trata-se do colar de brilhantes de sua mãe. Sei que prometi que você o herdaria, e cumprirei a promessa um dia, não tenha dúvida.— Sabe, filha —, prosseguiu sir Frederick, como se estivesse tentando convencer a si próprio —, acontece que o colar combina melhor com mulheres adultas, como Viola. Você ainda é jovem demais para usá-lo.— É mesmo? Céus, como o tempo passa depressa! Ainda ontem você era apenas uma menina...Lady Harte riu alto de um comentário feito pelo jovem Leo, e Susanna viu o semblante do pai crispar-se de ciúme.— Freddie, querido, por que está tão sério? Vamos, sorria, o Ano Novo se aproxima. Temos de recebê-lo com alegria!O jantar transcorreu bem. Leo estava mais engraçado que nunca, e seus comentários jocosos acabaram por provocar boas risadas. Lady Harte dedicou atenção total ao marido, e sir Frederick voltou a ficar de bom-humor.

 

    • Após a refeição todos se dirigiram para a sala de visitas, e a conversa continuou em tom ameno e familiar. De repente, vozes exaltadas soaram no vestíbulo.
    • Para agradar a esposa, o idoso cavalheiro obrigou-se a sorrir.
    • Viola, lançando um olhar na direção do marido, notou-lhe a expressão carregada. No mesmo instante, afastou-se de Leo e caminhou para junto de sir Frederick, dizendo:
    • Uma expressão triste estampou-se no rosto de sir Frederick enquanto ele observava a filha e a esposa como se as estivesse comparando. Não lhe agradava pensar que Susanna era apenas nove anos mais moça que Viola, e que ele próprio era trinta anos mais velho que a mulher que desposara.
    • — Já estou com vinte e seis anos, papai — observou Susanna, calmamente.
    • Susanna não fez nenhum comentário em voz alta, mas refletiu que se o pai estava pensando que seria fácil tirar os brilhantes de Viola, estava muito enganado.
  • O que estará acontecendo? — perguntou sir Frederick.
  • Já é quase meia-noite. Deve ser a surpresa que preparei para Susie — respondeu Leo, incapaz de refrear a língua.

 

    • Naquele momento, a porta da sala foi aberta e o mordomo entrou exibindo um ar confuso.
  • Desculpe-me, sir, mas há um cavalheiro querendo vê-lo.
  • A esta hora! — exclamou sir Frederick, espantado.Obediente, o criado afastou-se da porta para dar passagem a um cavalheiro desconhecido.O desconhecido tirou as luvas e a capa militar, sob a qual vestia um elegante casaco civil, e entregou-as ao mordomo.

 

    • Susanna recuperou-se aos poucos do choque proporcionado pela inesperada chegada do estranho, e a ira crispou-lhe o rosto em geral tão sereno. Quando todos pensavam que estavam livres dos amigos de Viola, chegava mais um... E o pior era que aquele homem parecia diferente dos outros que haviam passado pela mansão durante o verão. Alguma coisa nos cabelos negros e na pele morena conferia-lhe um ar de extrema arrogância. "Deve ser um soldado", pensou Susanna, observando a capa militar entregue ao mordomo.
    • Por um momento todos o fitaram estupefatos. O homem era muito alto e forte, e usava uma pesada capa militar. As botas sujas de lama indicavam que ele deveria ter percorrido uma boa distância para chegar até ali.
    • — Permita-me tomar as rédeas da situação, titio — pediu Leo, pondo-se de pé. — Fui eu que combinei tudo, para satisfazer um capricho de Susie. O senhor sabe, trata-se daquela história do pedaço de carvão... — explicou o rapaz, ordenando em seguida ao mordomo: — Pode deixar o homem entrar!
  • Meu Deus! — exclamou Leo, arregalando os olhos. Sir Frederick ficou ainda mais confuso.
  • Que diabo está havendo, Leo?— Não tenho a menor ideia!— Não, tio. Posso jurar que nunca vi este cavalheiro antes. O visitante avançou em direção ao pequeno grupo familiar.O cavalheiro fez uma pausa, como se esperasse que fosse feito algum— Não recebeu minha carta, sir? — prosseguiu o enigmático desconhecido.

 

    • comentário. Por alguma inexplicável razão, Susanna sentiu o sangue gelar em suas veias.
    • — Sir Frederick Harte? Peço desculpas por invadir sua casa a esta hora da noite, em plena véspera de Ano Novo. Certos trechos da estrada já estão cobertos de neve, foi por isso que cheguei tão tarde.
    • — Você disse que tinha preparado uma surpresa — resmungou sir Frederick. — Este homem tem algo a ver com ela?
    • O rapaz voltou-se para o tio, perplexo, tentando esboçar uma resposta coerente. Tudo o que conseguiu dizer, por fim, foi:
  • Que eu saiba, cavalheiro —, retrucou sir Frederick muito zangado —, o senhor nunca me enviou carta nenhuma! Importa-se de me dizer quem é e o que deseja em minha casa?
  • Posso responder à sua pergunta, Freddie!— Este cavalheiro é o major Hugh Russell, meu sobrinho — declarou lady Harte, após um segundo de hesitação.

 

    • Para surpresa de todos, foi Viola quem falou. Ela parecia uma criança assustada. Estava muito pálida e suas mãos tremiam ligeiramente.
  • O quê? — indagou sir Frederick, incrédulo.
  • O cavalheiro é meu sobrinho, Freddie, filho de minha irmã mais velha. Sei que ele tem quase a mesma idade que eu, mas... Isso é natural em famílias grandes como a nossa.— Aqui estou, sr. Leo. Sinto muito por ter me atrasado — murmurou o jovem criado. Em seguida, tirou um pedaço de carvão do bolso e mostrou-o a todos, recitando num tom pomposo: — Senhoras e senhores, desejo-lhes um feliz Ano Novo! Que sua mesa seja sempre farta, e jamais falte um teto para... para...

 

  • Estavam todos aturdidos com a recente revelação de Viola quando um rapaz moreno de aparência humilde entrou na sala.
  • Abrigá-los — completou o sobrinho de sir Frederick.
  • Sim, que jamais falte um teto para abrigá-los! — repetiu o jovem criado, antes de perguntar num sussurro: — E então, sr. Leo, fiz tudo direitinho?Leo foi o primeiro a recuperar a presença de espírito. Apressou-se em dar uma moeda ao rapaz que trouxera o pedaço de carvão, garantindo-lhe que fizera tudo a contento.Sir Frederick também não demorou muito a adotar uma postura mais amistosa em relação ao recém-chegado. Cumprimentou-o com um aperto de mão, declarando:

 

    • O jovem criado sorriu, satisfeito. Pediu licença e deixou a sala.
    •  
  • Imagino que sua carta tenha se extraviado, major. Como parente de minha esposa, porém, o senhor será sempre bem-vindo nesta casa.
  • Muito obrigado, sir — agradeceu o homem moreno, acrescentando depois de um breve momento de hesitação: — Eu trouxe um serviçal comigo. Ele está lá fora, no frio, e...

 

    • — Oh, não se preocupe! — exclamou sir Frederick. — Leo, por favor, vá pedir à sra. Merrihew que arrume acomodação para o criado do major Russell.
  • Pois não, titio — respondeu o jovem, saindo do aposento.
  • E agora, caro major, por que não se aproxima mais da lareira?— sugeriu sir Frederick. — O senhor deve estar congelando. Disse que havia muita neve na estrada? Isto não me surpreende, sempre neva bastante nesta região. Posso oferecer-lhe um pouco de brandy, para ajudá-lo a se aquecer?"Ele me parece um perfeito biltre!", pensou Susanna, enquantc estudava as feições morenas do visitante. Havia um certo quê de Ia tino naquele rosto iluminado pela ténue luz das chamas na lareira "Se este homem for sobrinho de Viola, eu sou a rainha da Inglater ra!", refletiu Susanna, recordando-se de todos os amigos do sexi masculino que lady Harte havia recebido na mansão durante o vê rão. Estava, no entanto, habituada às normas, da boa educação, não permitiu que suas reais impressões sobre o major transpareces­sem em seu semblante.

 

    • Nesse meio-tempo, Viola já havia se recuperado do choque e vol­tara a assumir o ar afetado de sempre.
    • — Sim, por favor — assentiu o major Russell, sorrindo.
  • Hugh, sua chegada foi uma grande surpresa! Se soubéssemos que viria, teríamos esperado para que ceasse conosco.
  • Agradeço a atenção, querida tia, mas nem eu mesmo podia pre­ver a hora exata de minha chegada..Susanna, que o observava atentamente, viu uma estranha ex­pressão estampar-se no rosto másculo. Foi como se um raio hou­vesse caído sobre a cabeça do major, deixando-o aturdido. Ela pen­sou em perguntar a ele se estava passando mal, mas o suposto so­brinho de Viola logo se recompôs e indagou num tom gentil e ca­sual:

 

    • Enquanto falava, o major Russell curvou-se para beijar as mãos de lady Harte, e seu olhar foi atraído pelo colar de brilhantes que enfeitava o colo da dama.
  • Como tem passado, minha tia?
  • Muito bem, obrigada, Hugh. Tem visto algum de nossos pa­rentes nestes últimos tempos?
  • Infelizmente, não. Acabo de voltar da França — respondeu o major Russell. Depois, voltando-se para sir Frederick, acrescentou: — Estive com o exército de ocupação em Paris. Mas já dei baixa, como todos podem ver pelos meus trajes civis, e agora pretendo levar uma vida mais tranquila.
  • Então o senhor esteve na batalha de Waterloo! — exclamou sir Frederick. — Seja duplamente bem-vindo em minha casa! Gostaríamos que nos contasse tudo sobre a batalha, amanhã, é claro, quando o senhor estiver mais descansado. Lady Harte tem razão, deveríamos tê-lo esperado para a ceia. Pena não termos recebido a carta avisando que o senhor estava a caminho — comentou sir Fre­derick, cheio de gentilezas, pedindo em seguida à filha: — Susanna, minha querida, toque a sineta e peça aos criados para trazerem algo para o major Russell comer.Nesse meio tempo, o major Russell já havia se acomodado con-fortavelmente na poltrona mais próxima à lareira, e parecia ter as­sumido sem reservas o papel de hóspede de honra da mansão.Viola, em contrapartida, assumira um ar de falsa satisfação pela visita inesperada do sobrinho. Susanna chegou a sorrir com amar­gura ao pensar só mesmo seu pobre pai era capaz de acreditar na­quela atitude fingida.

 

    • Leo, depois de retornar para junto do grupo, encolhera-se numa cadeira disposta no canto da sala, e quem o conhecesse bem reco­nheceria que estava aborrecido. De vez em quando, o jovem olhava de soslaio para o homem que roubara a cena que havia preparado para surpreender a prima.
    • Obediente, Susanna atendeu ao pedido do pai. Em pouco tempo uma bandeja repleta de pães, presunto e peito de peru foi colocada diante do recém-chegado.
  • A refeição estava excelente, srta. Harte! — disse Hugh Rus­sell, entregando a bandeja vazia ao mordomo e limpando as mãos num guardanapo de linho.
  • Tem certeza de que não quer mais alguma coisa? — indagou Susanna, assombrada com a apetite do major.
  • Não, obrigado. Devo confessar que parei numa estalagem em Newbury, e acabei comendo alguma coisa por lá mesmo.O visitante, contudo, não devia estar nem um pouco preocupado com o que Susanna estava pensando, pois, erguendo o copo cheio de brandy, exclamou:

 

    • "Só espero que tenha pago a conta!", pensou ela ao recordar-se do comportamento dos outros amigos de sua madrasta.
  • Eu gostaria de desejar-lhes um feliz Ano Novo!
  • Feliz Ano Novo! — repetiram todos em coro, em resposta ao brinde."Bem, suponho que logo descobriremos porque o major Russell veio para cá", pensou Susanna enquanto se preparava para deitar na cama coberta por lençóis imaculadamente limpos. "De qualquer forma, ele que não pense que será fácil nos enganar. Vou ficar de olhos bem abertos, a vigiá-lo de perto!"— Então, Charlie, o que achou de suas acomodações? — perguntou o major Russell ao serviçal que acompanhava.— São boas, major. O senhor e eu já estivemos em lugares muito piores.O criado já havia auxiliado o patrão a tirar as botas cobertas de lama quando alguém bateu à porta.Meneando a cabeça, o major retirou o relógio de ouro do bolso de seu colete. Quando viu as horas, sorriu levemente.Lady Harte entrou de modo precipitado no aposento, mas assim que se deu conta da presença do serviçal assumiu uma postura mais digna, declarando num tom calmo:O major sorriu e lançou um olhar significativo para seu criado, que imediatamente saiu do quarto fechando a porta atrás de si.

 

    • — Vim saber se está precisando de alguma coisa, Hugh.
    • — Quatro da manhã... Viola está ficando descuidada — murmurou Russell, antes de fazer um sinal para que Charlie abrisse a porta.
    • — Hugh? — chamou lady Harte. — Ainda está vestido? Preciso falar com você.
    • — É verdade, você tem razão... Agora me ajude aqui com estas botas, elas estão me matando.
    • Charlie, um homem franzino e baixo, guardou o casaco do pa­trão num armário e pensou um pouco antes de responder:
    • Em outro quarto, naquela mesma ala da mansão, havia outras pes­soas acordadas.
    • Quando os Harte e seu novo hóspede se recolheram para dormir a aurora já começava a despontar no horizonte, e alguns dos cria­dos estavam se levantando para dar início ao cumprimento das tare­fas diárias.
  • Que homenzinho estranho — comentou Viola assim que se viu à sós com o sobrinho. — Nunca vi ninguém tão esquelético e baixinho em toda a minha vida! Quais são os talentos ocultos desse seu criado particular, Hugh? Ele marca cartas de baralho, ou é especia­ lista em dados viciados?
  • Ele é um ajudante fiel, querida tia — informou Russell, levantando-se e oferecendo uma cadeira para que a mulher se sentasse. — Chama-se Charlie Treasure, e foi meu ordenança enquan­to estive no exército.
  • Não me chame de "tia", Hugh! Sabe muito bem que não suporto este tipo de tratamento. Nós temos quase a mesma idade, portanto não há necessidade de se dirigir a mim deste jeito. Além disso, você sempre me chamou de Viola, desde que éramos crianças.
  • Sim, eu sei. Mas acho que seu marido pode não apreciar tanta intimidade. E por falar em sir Frederick, Viola, não é muito tarde para você estar sozinha no quarto de um homem solteiro?
  • Freddie é um ingénuo. A esta hora já deve estar no terceiro sono. — retrucou lady Harte. — De qualquer modo, não pretendo me demorar, só vim lhe perguntar o que está pretendendo com tudo isto.

 

    • Hugh Russell fitou-a, fingindo-se de desentendido.
  • Com tudo isto o quê, Viola?
  • Não se faça de tolo comigo! — esbravejou ela, irritada. — Você entendeu perfeitamente o que eu quis dizer. Quero saber porque está aqui, e, por favor, não repita aquela história de carta extraviada. Sei que não escreveu carta alguma. Vamos,'confesse logo, Hugh, por que veio para cá?

 

    • — Viola, sua imaginação está indo longe demais! — replicou o major, um tanto exaltado. — Tudo bem, admito que não escrevi carta alguma, mas só porque não tive tempo de fazê-lo. Não faz nem dois meses que regressei da Inglaterra, e tive muitos problemas para re­solver. Fui um soldado durante doze anos, e retornar à vida civil foi um pouco difícil para mim. No entanto, consegui me arranjar, e quando soube que você havia se casado pensei, "Bem, não seria má ideia visitar Viola e ver como ela está se saindo junto de sua nova família". A propósito, aquela é toda a família Harte?
  • Como assim? — perguntou lady Harte, em tom seco.
  • Quero dizer, seu marido, a moça e o rapaz são as únicas pes­soas que vivem nesta casa? Não há mais ninguém?
  • Não, não há. A moça é minha enteada, como já deve ter notado, e o rapaz, Leo Drayton, é um primo dela. Leo perdeu toda a fortuna que o pai lhe deixou, e vive aqui às custas da caridade de Freddie. Portanto, pode deixar de lado a ideia de ganhar algum dinheiro dele no jogo de cartas, meu caro Hugh. Leo não tem um centavo, e, na minha opinião, só está esperando uma oportunidade propícia para casar-se com Susanna, se ela for tola o suficiente para aceitá-lo como marido. Mas este assunto não é da minha conta, é da conta de Freddie. Susanna é sua única filha.— Isto é pouco provável — afirmou Viola, num tom mordaz.Lady Harte recuou um pouco e automaticamente levou as mãos ao pescoço, onde as pedras preciosas cintilavam.

 

    • — Oh, compreendo — retrucou Russell, zombeteiro. — Que azar, não é mesmo? No entanto, parece que ser esposa de sir Frederick tem lá as suas compensações. Veja este lindo colar, por exem­plo.
    • — E única herdeira, também... Pelo menos, só até que você consiga mudar a situação, certo? Afinal, ainda é uma mulher jovem o bastante para presentear o velho sir Frederick com um filho belo e saudável, que se tornaria mais um herdeiro legítimo da fortuna da família.
  • Tem razão, Hugh. Este é o famoso colar de brilhantes da família Harte. Ganhei-o de Freddie como presente de casamento.
  • Espero que o conserve em local bem seguro.
  • Pode estar certo que sim! — exclamou Viola, levantando-se.— Aposto que foi você mesma quem fez a lista depois de se casar com sir Frederick. Posso até imaginá-la contando a prataria, para certificar-se de que fez um bom investimento...

 

    • Lady Harte encarou o sobrinho, enfurecida.
    • — E agora vou direto ao assunto que me trouxe ao seu quarto. Eu lhe permito ficar hospedado aqui por uma ou duas semanas, Hugh. Depois, quero que vá embora e não retorne nunca mais. A propósi­to, ordene ao seu criado particular que não caia na tentação de rou­bar nada, pois temos uma lista completa de todos os objetos de valor da casa..
  • Você é um aventureiro, Hugh! Sempre foi e sempre será. Como deve sentir falta da vida de militar! Sempre viajando por aí como um cigano, deixando um rastro de dívidas e de amantes chorosas! Não consigo imaginar o que você fará daqui para a frente, agora que exilaram Napoleão em Santa Helena.
  • Parte do que acaba de dizer é verdade, Viola. Mas não se esqueça de que você mesma é muito parecida comigo! Eu a conheço bem, sei que no fundo também não passa de uma aventureira.
  • Hugh, eu o proíbo de falar desta maneira comigo! Não permitirei que perturbe a tranquilidade que conquistei a tão duras penas. Lembre-se, o seu prazo de permanência aqui é de duas semanas. Depois disso, quero vê-lo longe daqui para sempre! Sem mais uma palavra, lady Harte deixou o quarto com uma ex­pressão ameaçadora no rosto moreno. Uma nova batida na porta anunciou que Charlie havia voltado.
  • Aquela é a dama sobre a qual me falou, major? — indagou o criado.
  • Sim, a própria.
  • Então vai precisar ser muito cauteloso, senhor.
  • O pior é que não posso, Charlie, não nesta situação.
  • Compreendo — murmurou o serviçal, com serenidade. — Bem, o senhor sempre sabe o que faz, patrão.

 

    • Não foi surpresa alguma o fato de todos terem dormido até tarde na manhã seguinte. Quando Susanna deixou seu quarto, já era qua­se meio dia.
  • Devo servir o almoço, srta. Susanna? — perguntou a gover­nanta, confusa com a troca de horário dos patrões.
  • Sim, por favor. Sirva a refeição na sala de jantar, pois certa mente os cavalheiros desejarão comer assim que descerem.
  • Um dos cavalheiros já desceu há tempos, senhorita. É o visitante que chegou na noite passada. Está acordado desde antes das dez horas. Acho que ele se encontra na biblioteca, agora.

 

    • Então o major Russell se aproveitara do fato de todos estarem dor­mindo para bisbilhotar pela casa... Susanna franziu o cenho, abor­recida.
  • Obrigada pela informação, sra. Merrihew. Oh, antes que eu me esqueça, a chaminé da lareira da sala de visitas está apresentando problemas. Suponho que precise de uma boa limpeza.
  • Sim, senhorita, eu sei. Lady Harte já havia conversado co­migo a respeito. Chamei um limpador de chaminés, ele virá amanhã.O major encontrava-se de pé ao lado de uma enorme estante cheia de volumes encadernados em couro, e tinha nas mãos um livro que recolocou no lugar assim que viu Susanna. Sorrindo, cumpri­mentou-a.Russell parecia completamente recuperado da longa viagem que fizera. Susanna teve de admitir que, na verdade, ele era o homem mais atraente que já conhecera. A pele bronzeada e os cabelos ne­gros que caíam ligeiramente revoltos sobre a testa conferiam-lhe um ar ao mesmo tempo misterioso e encantador.

 

    • — Bom dia, srta. Harte!
    • Susanna assentiu e seguiu em direção à biblioteca. Diante da por­ta, hesitou. Acabou por ignorar a voz da consciência, que lhe dizia que o que estava prestes a fazer era uma indelicadeza, e colou o ou­vido à fechadura. Não escutou ruído algum. Curiosa, endireitou o corpo e entrou no aposento.
  • Bom dia, major Russell. Dormiu bem?
  • Sim, dormi muito bem, obrigado — respondeu ele..— Mas como pode ver, estou acostumado a levantar cedo mesmo tendo me deitado tarde.Um brilho de curiosidade surgiu nos olhos escuros do major.

 

    • — A sra. Merrihew vai servir uma refeição leve daqui a pouco — informou ela. — Antes de nos dirigirmos para a sala de jantar, porém, gostaria de dizer-lhe que fico feliz por tê-lo encontrado sozinho. Eu estava mesmo querendo falar com o senhor.
  • Estou ao seu dispor, srta. Harte. E pode me chamar de Hugh, se preferir. Afinal, somos quase parentes.
  • Será? — retrucou Susanna, com frieza. — O senhor é mesmo sobrinho de lady Harte? Acho um pouco difícil acreditar neste pa­rentesco.— Minha mãe é a mais velha de uma família numerosa, onze filhos ao todo, e Viola é a caçula. Como costuma acontecer nestas circunstâncias, minha mãe casou-se e fundou sua própria família enquanto minha avó ainda amamentava os filhos menores. Desse modo, a di­ferença de idade entre Viola e eu é de apenas dois anos.— Obrigada pela informação, major — disse Susanna, um tanto embaraçada. — Creio que o senhor deve estar me considerando um tanto rude por ter duvidado de seu parentesco com...

 

    • O major a interrompeu.
    • Então o major tinha trinta e três anos... Ele possuía fios de cabe­lo grisalhos nas têmporas; prestando-se mais atenção às linhas do rosto, no entanto, ficava evidente que se tratava de um homem jovem.
    • — É verdade, eu juro! — declarou Russell, parecendo sincero.
  • De forma alguma. A sua atitude é perfeitamente natural. Diga-me, Susanna, se é que posso chamá-la assim, o que acha de Viola?
  • Eu a considero encantadora — ela mentiu, enrubescendo. —Mas acredito que o que penso de minha madrasta não é de seu interesse!
  • Madrasta... — murmurou Russell. — Tenho certeza de que Viola não gosta de ser chamada desta maneira...Hugh Russell notou o olhar que lhe era dirigido e decidiu que não podia culpar Susanna por não confiar nele; afinal, haviam acabado de se conhecer. A presença da moça na mansão, porém, representa­va uma dificuldade a mais para a execução de seus planos. A filha de sir Frederick parecia bastante inteligente, e embora não fosse de uma beleza estonteante podia ser considerada muito atraente. Os olhos de Susanna eram de um belo tom de cinza, e o narizinho arre­bitado emprestava-lhe um ar travesso; a pele aveludada e as madei­xas castanhas levemente encaracoladas que lhe emolduravam o rosto só faziam realçar a delicadeza dos traços femininos. Além disso, Su­sanna emanava uma aura de dignidade e inspirava respeito. Hugh achou que devia desculpar-se por ter sido indiscreto.

 

    • Susanna não fez qualquer comentário a respeito do que acabara de ouvir. Limitou-se a fitar o major com expressão desconfiada.
  • Mil perdões, senhorita, eu não deveria ter feito tal comentário. Acho que também preciso desculpar-me por ter chegado aqui da maneira como cheguei. Quando me encontrar com o sr. Leo, também me desculparei por estragar a surpresa que ele havia preparado.
  • Oh, aquilo foi apenas mais uma das bobagens de Leo — afirmou Susanna. — Ele está sempre tentando criar situações engraçadas.
  • Pelo que entendi, o sr. Leo é seu primo.
  • Sim — concordou ela, pouco à vontade.
  • Perdoe-me por estar sendo indiscreto outra vez, mas como acabei de chegar tenho de fazer algumas perguntas para poder compreender o que se passa por aqui.   Por exemplo... Existe algum relacionamento entre a senhorita e o sr. Leo? Quero dizer, ele a está cortejando?Hugh percebeu que acabara de cometer um grave erro, e a melhor saída que encontrou para consertar a situação foi dirigir um galan­teio à filha de sir Frederick:— Permita-me esclarecer uma coisa, major: se pretende aliviar o tédio de sua estadia na casa de meu pai tentando flertar comigo, fi­cará bastante desapontado. Não tenho nem interesse e nem talento para envolver-me nestes jogos ridículos.A ténue luz do sol de inverno, atravessando as vidraças, propor­cionava um brilho dourado aos cabelos de Susanna, realçando-lhe a feminilidade. Embora ela houvesse se voltado para fitá-lo, Hugh não podia distinguir-lhe a expressão do rosto por causa da claridade que entrava pela janela. No entanto, não tinha a menor dúvida de que ela o enxergava perfeitamente bem.— Major Russell! — falou Susanna, por fim. — Ou Hugh, se preferir... Para mim não faz a menor diferença. O senhor disse agora há pouco que gostaria de "compreender o que se passa por aqui". Pois eu também gostaria de entender o que está acontecendo! Não sei porque veio para cá, mas desconfio que esteja tramando algo que irá prejudicar meu pobre pai!— Juro que não desejo mal algum ao seu pai ou à senhorita! Não tenho como provar o que digo, contudo. Só posso pedir-lhe que confie em mim.Susie respirou fundo e passou a mão sobre a testa, afastando um cacho rebelde que teimava em lhe cair sobre os olhos. O que devia fazer agora? Este jogo era novo para ela. Não tinha como provar sua desconfiança em relação a Hugh Russell. Qualquer atitude que tomasse só poderia basear-se no instinto que lhe dizia que o major viera até a mansão com algum estranho propósito em mente. O fato de ser parente de Viola, por si só, deixava Russell numa posição sus­peita. Por outro lado, lady Harte ficara aborrecidíssima com a che­gada do sobrinho, embora tivesse disfarçado seu desagrado. Susanna não tinha dúvida de algum motivo deveria existir para justificar tal atitude.

 

    • Susanna teve dificuldade para fitar os olhos escuros que a obser­vavam com grande seriedade. Toda aquela situação estava começando a deixá-la transtornada. Não sabia mais o que pensar, pois a proxi­midade do sobrinho de Viola perturbava-lhe a capacidade de ra­ciocínio.
    • O major cruzou rapidamente o espaço que os separava, argumen­tando num tom convincente:
    • Hugh Russell sentiu uma enorme admiração por aquela jo­vem. Susanna era mesmo muito inteligente. Pelo visto ela ainda ti­nha algumas perguntas a lhe fazer, e fora para junto da janela para ficar numa posição mais vantajosa, assumindo o controle da si­tuação.
    • Ao terminar de falar, Susanna Harte girou nos calcanhares e ca­minhou até as enormes janelas que ficavam no fundo do aposento. "Céus", pensou Russell, "aí está uma jovem que não esconde o que pensa!"
    • — Desculpe-me pela ousadia de minha pergunta, mas quando se encontra uma jovem tão atraente quanto a senhorita, a primeira coisa que um homem precisa fazer é certificar-se de que não possui um rival. Susanna corou, argumentando:
    • — Não, não está — respondeu Susanna, muito zangada. — E não vejo em quê isto possa interessar ao senhor!
  • Acho que a senhorita não aprova o casamento de seu pai — comentou o major de repente, interrompendo os pensamentos da jovem.
  • Não aprovo, mesmo — admitiu Susanna, contrafeita. — Sónão me revolto contra a situação porque sei que meu pai ama Viola. Infelizmente, não creio que este amor seja correspondido.
  • Compreendo — murmurou o major. — No fundo, porém, Viola não é má pessoa. Um pouco geniosa, talvez, e egoísta ao extre­mo, mas nada disto pode ser considerado crime, não é mesmo?
  • Por" Deus, se o senhor visse os amigos dela! — explodiu Susanna, chegando a assustar Russell. — Nunca vi pessoas tão desprezíveis em toda minha vida! Abusaram de nossa hospitalidade durante todo o verão e comportaram-se como animais! Deixaram dívidas nas tavernas locais, e meu pai foi obrigado a pagá-las para não comprometer o bom nome da família!
  • Posso imaginar — afirmou o major. — Viola nunca foi muito sábia na hora de escolher suas amizades. Sir Frederick, contudo, tem autoridade para regular a entrada e saída de visitantes nesta casa. Se não apreciou os amigos da esposa, bastava tê-los posto para fora.
  • Papai jamais faria algo que magoasse Viola — respondeu Susanna com amargura. — Ele não gostou dos amigos de minha madrasta, mas como a companhia deles a deixava feliz...

 

    • "Nenhum tolo é pior do que um homem apaixonado", refletiu Hugh. Ainda assim, não conseguiu deixar de sentir certa antipatia por sir Frederick. O velho cavalheiro não tinha o direito de fazer a filha infeliz por causa de seus problemas pessoais! Em seguida, pensando melhor, Russell concluiu que a atitude egoísta de sir Fre­derick era natural; afinal, a paixão era uma doença que privava os homens de todo e qualquer processo mental racional...
  • A refeição matinal já deve ter sido servida. O senhor não está com fome? — perguntou Susanna.
  • Sim. A senhorita me acompanha até a sala de jantar?
  • Não, tomarei o desjejum mais tarde — informou, evasiva.Susanna esperou até ter certeza de que ele estava bem longe e ca­minhou rapidamente para junto da estante. Pegou o volume que Rus­sell estivera consultando e abriu-o, curiosa.Quando o major chegou à sala de jantar, Leo já estava lá. Isto o surpreendeu, pois havia imaginado que o jovem era o tipo de pes­soa que não conseguia deixar a cama antes do meio da tarde.Hugh sorriu e ocupou uma cadeira ao lado de Leo. Servindo-se de um pouco de presunto, indagou:

 

    • — Será que consigo arrumar um cavalo, por aqui? O meu animal ainda esta cansado da longa jornada, dificilmente poderá ser utilizado hoje. E como estou acostumado a cavalgar todos os dias...
    • — Bom dia, major Russell! — exclamou o rapaz. — Espero que tenha dormido bem. Não quer provar um pouco da comida da sra. Merrihew? É deliciosa.
    • — As propriedades dos Minerais — leu ela em voz alta. — Que estranho. Por que Hugh estaria interessado em minerais?
    • O major Hugh sorriu, fez uma reverência e deixou a biblioteca.
  • Ora, pode usar um dos nossos animais. E eu que pensei que o senhor deveria estar exausto da viagem! Os militares são sempre uma grande surpresa, mesmo! Bem, se gosta de cavalgar, podemos sair juntos, mais tarde. Que tal lhe parece a ideia?
  • Excelente — disse Hugh.

 

    • Os dois homens passearam a cavalo pelo parque que circundava a propriedade e depois, deixando os portões de ferro para trás, tro­taram pelos prados verdejantes. A água da chuva que caíra na noite anterior havia se transformado em gelo, e naquele momento os té­nues raios de sol matinais derretiam os montículos brancos deposi­tados no solo.
  • Sinto muito ter estragado seus planos na noite passada — desculpou-se o major. — Não tive a intenção de comprometer a sur­presa preparada para a véspera de Ano Novo.
  • Oh, não se preocupe — falou Leo, dando de ombros. — Só fiz aquilo para agradar Susie. Ela não anda muito bem, ultimamente e ...Alguns cavalos de raça galopavam harmoniosamente em direção ao topo da pequena elevação do terreno.

 

    • O rapaz interrompeu o que estava dizendo e apontou encantado na direção da encosta da colina.
  • Eles estão sendo preparados para as corridas — informou Leo. — Mas acho que o senhor já sabe disso.
  • Sim, sei. Diga-me, estas terras também pertencem a sir Frederick?
  • Uma parte delas. A divisa é naquelas árvores ali embaixo. In­felizmente meu tio não tem o menor interesse em criar cavalos. É uma pena — completou p jovem mais para si mesmo do que para o cavalheiro que o acompanhava.— Gosta de apostar em cavalos, sr. Leo?Enquanto falava, Leo desmontou e conduziu sua montaria até al­guns arbustos, atando as rédeas em um galho mais grosso. Hugh ainda o fitava com curiosidade.

 

    • — Bem, digamos que não consigo resistir a uma pequena aposta de vez em quando. Mas procuro não gastar muito dinheiro, pois tenho andado com os bolsos meio vazios, se é que me compreende. Não ligo para jogos de cartas, mas entendo um pouco de cavalos.
    • Hugh, que o observava atentamente, indagou no tom mais casual possível:
  • Sabe, uma vez tive um puro-sangue, e eu mesmo costumava montá-lo — comentou o rapaz.
  • O senhor? — o major não conseguiu evitar que a surpresa se revelasse em seu tom de voz.— Pois é. Depois precisei vender o animal para conseguir algum dinheiro. E agora... Sejamos francos, major Russell, o que deseja por aqui?— O senhor é a segunda pessoa que me interroga, hoje. A srta. Harte já o fez quando nos encontramos na biblioteca, e devo reconhecer que ela foi muito eficiente. Só o que posso dizer-lhe é o que já disse a ela. Se tenho algum negócio a resolver por aqui, não é na­da que possa causar danos ou prejuízos a sir Frederick ou à srta.— Então deve ser algo relacionado a lady Harte — afirmou Leo. — Aqui entre nós, major, gosto de Viola, apesar do génio difícil que ela tem, às vezes. Eu mesmo tenho meus defeitos, e não posso criticá-la. Só não desejo vê-lo fazendo meu tio de tolo dentro de sua pró­pria casa, major.— Só vou desculpar o que disse por que sei que o fez para defender a honra de sua família. Mas se tornar a repetir esta loucura, não respondo por minhas atitudes. Viola é minha tia, rapaz!

 

    • Hugh Russell franziu a testa, carrancudo.
    • Harte.
    • A pergunta, apesar de repentina, já era esperada. Hugh respon­deu calmamente:
    • Leo percebeu e sorriu, divertido.
  • Oh, eu sei — retrucou Leo sem se deixar afetar pelo que Hugh acabara de dizer. — Pelo menos, foi isso o que ela e o senhor afirmaram. Na verdade, paramim não importa se são parentes ou não. Não estou questionando a atitude de Viola, e sim a sua.
  • Ora, rapaz! — esbravejou o major, mal contendo a ira. — Mais uma gracinha destas e o desafiarei para um duelo!
  • Sinto muito, major Russell, mas não quero ver meus miolos espalhados pelo chão. A meu ver, os duelos são as coisas mais estúpidas de nossa sociedade.
  • Por Deus, não sei se o senhor é louco ou idiota — afirmou Hugh, sério.Com um movimento rápido, o major, que também descera de seu cavalo, agarrou o jovem impertinente pela gola do casaco e vocife­rou, furioso:Livrando-se das mãos de Russell, Leo afastou-se um pouco e ten­tou aparentar a maior dignidade possível.

 

  • — Escute aqui, camarada, não se meta na minha vida! Não es­tou acostumado a ter um garoto xereta espionando todos os meus passos, e não permitirei que você o faça, entendeu?
  • — Nenhum dos dois. Sou apenas um cidadão razoável que não gosta dessas histórias de heroísmo. Deixo isso para os soldados como o senhor. Entretanto, volto a defender o que disse anteriormen­te: não tente trapacear meu tio dentro de sua própria casa. E antes que diga alguma coisa, vou lhe contar que vi quando Viola deixou o seu quarto depois das quatro e meia da madrugada. Sei que ela não ficou lá por muito tempo, mas o senhor teve sorte que tenha sido eu a vê-la, e não uma das criadas ou o próprio Sir Frederick. Para mim, o seu aparecimento por aqui é muito suspeito.
  • Entendi, major. Queria que soubesse apenas que não estou interessado em sua vida, e sim na do seu tio,
  • É claro --- retrucou Hugh, com sarcasmo. --- Você não quer perder a ultima tábua de salvação que lhe resta, não é mesmo?

 

    • Leo enrubesceu e perdeu a calma, exclamando:
  • Vá para o inferno, major! No dia seguinte, pela manhã, todos os criados es­tavam alvoroçados porque o limpador de cha­minés iria fazer seu trabalho e seria preciso remover todos os mo­veis e quadros do aposento, a fim de impedir que fossem atingidos pela fuligem.Foi Susanna quem supervisionou todo o trabalho, auxiliada pela sra. Merrihew.Susanna nunca apreciara aquele homem. Tudo em torno dele chei­rava a álcool e havia uma expressão malévola em seus olhos.O pequeno ajudante, que usava roupas esfarrapadas e botas gran­des demais para seus pés, chamou a atenção de Susanna. Ele não devia ter mais de oito ou nove anos de idade. Seu rostinho triste apre­sentava um ar desprotegido que tocou fundo o coração de Susanna. A pobre criança não esboçou nenhum gesto até que o sr. Bundy exi­giu sua ajuda.

 

  • — Bom dia, senhoras — disse o sr. Bundy com um sorriso que revelava os dentes amarelados.
  • Tudo estava pronto quando o sr. Bundy chegou com seus apetre­chos de limpeza e um garoto para ajudá-lo.
  • Viola, como era de se esperar, não se envolveu com o assunto.
  •  
  • Venha até aqui, Sammy, precisamos trabalhar.
  • Por favor, sr. Bundy, faça um bom serviço. — pediu a sra. Merrihew. — Da outra vez lady Harte reclamou que a fuligem estragou as cortinas e manchou os quadros. E não faz muito tempo que o senhor veio limpar a chaminé pela última vez.
  • Sinto muito, senhora — disse o homem, aborrecido. — Não é culpa minha que a chaminé seja tão antiga.
  • Está bem, sr. Bundy — Susanna interferiu. — Mas por favor, faça o melhor que puder.
  • Sempre faço um bom trabalho, senhorita, todos reconhecemque sou um excelente profissional. Agora acho melhor as senhoras saírem, porque vou fazer muita sujeira por aqui. Susanna e a sra. Merrihew aceitaram a sugestão.— Ninguém gosta, senhorita. Ele tem um péssimo caráter, e ficou ainda pior depois que a esposa morreu. Costumava surrá-la violentamente, e toda vizinhança o despreza por isto. Mas não se preocupe, ficarei aqui para vigiá-lo. A senhorita pode ir juntar-se aos outros para tomar seu desjejum.Assim que entrou, percebeu que apenas sir Frederick e o major Russell estavam no aposento.

 

    • Susanna agradeceu e foi para a sala de jantar, onde os demais já deveriam estar saboreando a refeição matinal.
    • — Não gosto muito deste homem — confidenciou Susanna à fiel governanta, uma idosa viúva que trabalhava na mansão Harte há mais de vinte anos.
  • Concordo que esta foi a melhor solução, sir — dizia Hugh pa­ ra seu interlocutor, que acabara de defender a restauração da monarquia francesa depois da queda de Napoleão. — Contudo, não creio que as pessoas tenham perdoado os erros cometidos pelos Bourbon. Sem mencionar que, daqui a alguns anos, os franceses terão esquecido os problemas que Bonaparte causou e só recordarão as vitórias que ele conquistou.
  • Camarada estranho, este Napoleão Bonaparte — resmungou sir Frederick.
  • Com licença, papai — interferiu Susanna depois de cumprimentar o major com um gesto de cabeça. — Vim avisar que o limpador de chaminés já esta trabalhando na lareira da sala de vi­sitas.
  • Bundy, não é este o nome dele? — indagou sir Frederick. — Outro sujeito e estranho e mau-caráter! — exclamou, dando um soco na mesa.

 

    • Russell pestanejou e pareceu divertir-se com a comparação que sir Frederick fez entre Napoleão e o limpador de chaminés.
  • Da última vez que esteve aqui, fez um serviço bem ruim! — continuou o idoso sir em sua lista de reclamações contra o sr. Bundy.
  • Ele diz que a culpa é da chaminé, que é muito antiga, pa­pai.
  • Bem, cuide para que desta vez Bundy faça um bom trabalho. Agora desculpem-me, mas preciso me retirar para escrever algumas cartas.

 

    • Sir Frederick limpou os lábios num guardanapo de linho e saiu da sala de jantar, deixando a filha e o major a sós.
  • Suponho que seu primo não seja um madrugador, pois até esta hora ainda não o vi — comentou Russell.
  • Está falando de Leo? Ele não deve descer antes do meio dia. Aliás, ele nunca acorda antes deste horário — respondeu Susanna.
  • Acho que minha primeira impressão do rapaz estava correta— murmurou Hugh enquanto comia uma fatia de presunto.
  • Perdão, não ouvi o que o senhor disse.
  • Não foi nada de importante, senhorita.
  • Compreendo... Bem, acho que vai ficar muito enfadado enquanto estiver conosco, senhor. Não há nada por aqui que possa distrair um homem mundano.
  • É assim que me vê, como um homem mundano? — questionou ele arqueando as sobrancelhas.

 

    • Susanna sentiu-se enrubescer.
  • Bem, imagino que um homem viajado, que tenha conhecido tantos lugares e vivido tantas aventuras...
  • Aventuras? — indagou Russell, perplexo. — Ah, sim, acho que estou entendendo, a senhorita fala das batalhas de que participei...
  • Exato. Não me referi a outros tipos de aventuras... Embora eu não tenha dúvida de que o senhor deva ter tido uma boa parcela delas, também.Susanna não precisou responder porque naquele momento alguém passou correndo diante das janelas francesas da sala de jantar. Era Sammy, o garoto que ajudava o sr. Bundy. Parado em meio ao gramado, o jovenzinho olhava fixamente para o alto da casa.

 

    • A voz desagradável do sr. Bundy soou dentro da casa:
    • — Srta. Harte, parece que tem uma péssima opinião a meu respeito. Ou será que estou enganado? — perguntou Hugh, inclinando-se sobre a mesa para fitá-la nos olhos.
  • Está vendo alguma fumaça, Sammy?
  • Não! — retrucou o garoto.Hugh levantou-se imediatamente com uma expressão ameaçado­ra nas feições morenas, declarando:— Melhor não fazer isto, major — aconselhou Susanna. — Ignore o sr. Bundy. Tenho certeza de que ele sabe perfeitamente bem que pode ser ouvido no resto da casa, e foi por isto mesmo que foi tão grosseiro.— A senhorita é muito mais condescendente do que eu. Se o homem não reconhece seu lugar, alguém deve dar-lhe uma boa lição.— Sou um soldado, e não um pastor religioso. Fui ensinado que a disciplina é o melhor caminho para a boa educação — disse ele com orgulho. — Mas a senhorita voltou a chamar-me de major Russell...— Oh, está bem. Vau chamá-lo de Hugh, já que insiste tanto nis­so. E pode me chamar de Susanna, se preferir.— Sinto muito, não quis ser grosseira — desculpou-se ela, genui­namente arrependida.Russell sorriu. Pena que aquele primeiro momento de descontra-ção que surgiu entre eles tenha sido interrompido pela voz de Bundy, que gritou um outro palavrão.Eles ainda continuaram à mesa por mais alguns instantes. Ao ter­minarem a refeição, seguiram calados para a sala de visitas.

 

    • A sra. Merrihew estava no corredor e andava de um lado para ou­tro falando consigo mesma.
    • — Agora já está passando da conta! — exclamou Hugh zangado. — Se este camarada voltar a repetir palavras deste nível, vou até lá dar-lhe uma lição!
    • Para ser honesta consigo mesma, precisava admitir que não tinha motivos plausíveis para tratar o major daquela maneira.
    • — Obrigado pela gentileza. Sabe que tem o poder de acabar com minha auto-confiança, Susanna? Fala comigo com um ar de tão pouco caso!
    • Susanna suspirou, aborrecida.
    • — É assim que resolve seus problemas, major Russell? Com vio­lência?
    • Hugh sentou-se, contrafeito.
    • — Acho que vou ter uma conversa com este sujeito. Imagino que ele não tenha percebido que outras pessoas podem escutá-lo. Que vocabulário mais impróprio!
    • Ouviu-se um palavrão, e ninguém teve dúvida de quem o havia proferido. Só podia mesmo ser o sr. Bundy.
  • Oh, meu Deus! Que tragédia? E agora, o que fazer?
  • O que houve, sra. Merrihew? — indagou Susanna.
  • É o sr. Bundy. Sei que não é culpa dele, a chaminé é que é muito estreita, mas eu avisei... E agora o menino está preso lá em cima...Hugh não esperou que mulher dissesse mais uma palavra e entrou como um furacão na sala coberta de fuligem.

 

    • Bundy estava ajoelhado junto da grade da lareira e olhava para cima, tentando avistar o pequeno ajudante que sumira na abertura que conduzia ao telhado.
    • O quê!? — exclamaram Susanna e Hugh ao mesmo tempo. O sr. Bundy mandou o garoto subir porque a vassoura de limpeza não estava passando na abertura que dá para o telhado, agora é o pobrezinho do Sammy que está lá em cima.
  • Sam? Seu moleque sem vergonha! Desça já da chaminé ou se­rá pior para você! Ouviu bem Sam? Juro que dou uma surra de cinto em você se não descer logo daí!
  • Saia da frente — ordenou Hugh puxando Bundy pelos ombros e empurrando-o para longe. Com um movimento rápido, tirou seu casaco e entregou-o a Susanna. Aproximou-se da lareira e colocou-se junto à abertura da chaminé.
  • Sam? Pode ouvir-me rapaz? Grite, se puder, e não tenha me­do! Vamos tirá-lo daí!

 

    • Seguiu-se um breve silêncio e então uma vozinha distante chegou até as pessoas que se encontravam na sala.
  • O garoto deve estar a uma altura de uns três metros — anunciou Hugh deixando a lareira e aproximando-se das senhoras. Depois lançou um olhar ameaçador em direção ao sr. Bundy. — O que o senhor pretendia mandando o garoto lá para cima?
  • Sam é treinado para isto! — retrucou o homem com ar de desafio. — O menino precisa aprender a escalar estas chaminés velhas para poder trabalhar. Não é fácil treinar ajudantes, eles deixam a gente quase louco. E, respondendo à sua pergunta, mandei o garoto lá para cima porque a chaminé está entupida e minhas vassouras não estão resolvendo o problema. A governanta pode confirmar o que digo. Mas este menino só pensa em comer, se eu deixar ele come todos os dias. Sam não se preocupa com a possibilidade de engordar e não poder mais me ajudar com o serviço. É um glutão!— Ele precisa ficar bem magrinho, senhorita. É para o próprio bem dele, se quiser continuar na profissão. Mas ele não compreende isto. Chega até a roubar comida, o pestinha! Não se preocupe, po­rém, eu sei como dar um jeito nele!

 

    • — Como? — questionou Hugh com a voz perigosamente baixa. Ele ouvira o sr. Bundy descrever o tratamento que dispensava a Sam, o que só fez aumentar sua ira.
    • — Por quê o garoto não pode comer todos os dias? — indagou Susanna, furiosa.
  • Bem, se quisermos que ele desça da chaminé, por exemplo, é só acendermos a lareira. A fumaça e o calor vão fazer com que Sam saia de lá, rapidinho.
  • Por Deus, homem! — exclamou Russell, revoltado. — Isto vai fazer com que o garoto suba ainda mais, sem falar que pode cair e queimar-se todo nas chamas.
  • Bem, se Sam não consegue descer, o melhor mesmo é subir —afirmou o sr. Bundy com tranquilidade. — Ele pode sair pelo te­lhado.
  • Ou então, morrer sufocado na chaminé! Pode parar, sr. Bundy! — exclamou Hugh com ferocidade. — Ninguém vai acender a larei­ra para forçar o menino a sair.
  • Talvez o cavalheiro tenha uma ideia melhor? — disse o limpa­dor de chaminés com sarcasmo.

 

    • Russell não se deu ao trabalho de responder, apenas virou-se para a sra. Merrihew e ordenou:
  • Vá chamar Charlie Treasure, diga-lhe para vir até aqui!
  • Sim, senhor!Hugh tornou a voltar sua atenção para a lareira e, agachando-se sob a abertura, gritou:Ouviu-se um barulho estranho de algo que se soltava, e uma gros­sa camada de fuligem caiu sobre a cabeça do major, que tossiu en­gasgado com aquele pó negro que recobriu seu corpo.Hugh, que afastara um pouco a cabeça da abertura da chaminé para poder respirar, retornou à posição anterior para acalmar o garoto.Depois de um instante de silêncio, uma vozinha chorosa chegou até a sala.As mãos de Susanna apertaram, convulsivamente, o casaco que ela segurava para o major.Naquele momento, Charlie Treasure entrou na sala seguido pela governanta.

 

    • — Ninguém vai acender fogo algum, Sam! — gritou Hugh. —Vamos tirá-lo daí, aguente só mais um pouquinho e não tenha medo!
    • — Estou com medo do fogo!
    • — Tudo bem, Sam, pode mover-se um pouco, mas não tente subir mais.
    • Um largo sorriso brilhou no rosto desagradável do sr. Bundy.
    • — Sam? Não entre em pânico, aguente só mais um pouquinho!
    • A sra. Merrihew apressou-se em seguir as instruções que lhe ha­viam sido dadas.
  • O que está acontecendo, major, algum problema? — quis sa­ber o homem ao ver o patrão todo recoberto de pó negro.
  • Não há tempo para explicações, Charlie. Tire seu casaco e suba nos meus ombros. Tem um garoto entalado na chaminé, e preci­samos tirá-lo de lá. Imagino que ele deva estar a uns três metros de altura.

 

    • O homenzinho seguiu as instruções do major Russell e logo desa­pareceu no vão da lareira.
  • Já alcançou os pés do garoto? — perguntou Hugh.
  • Ainda não major! Não consegui nada até agora!O sr. Bundy sorriu, achando todo aquele esforço inútil, e Susanna fitou-o, furiosa.Ouviu-se um grito. Susanna, a sra. Merrihew e o sr. Bundy afastaram-se instintivamente enquanto uma pesada nuvem de poei­ra negra envolvia todo o aposento. Da lareira, veio o estrondo de alguma coisa que caía.

 

    • — Consegui! — gritou Charlie com voz abafada. — Alcancei-o, major, está aqui!
    • — Por Deus, Charlie, vamos rápido!
  • Hugh? — gritou Susanna. — Você está bem?
  • Sim, estou! — respondeu ele em algum lugar sob a pesada massa de fuligem. — Saia de cima de mim Charlie! Você está bem?A poeira começou a baixar. Aos poucos, três figuras totalmente enegrecidas por aquela substância escura emergiram da lareira.— Sra. Merrihew? — chamou o major. — Será que pode limpar este garoto para nós?

 

    • Quando a governanta saiu, acompanhada por Sam e Charlie Trea­sure, Hugh voltou-se para Bundy, que o fitava apreensivo.
    • Hugh segurava as mãos da pobre criança, que exibia um ar assus­tado. Sam tinha as faces encardidas de fuligem, e os olhos estavam marejados de lágrimas de pânico.
    • — Sim, major... Ei, garoto, está pisando na minha cabeça!
  • Limpe tudo isto aqui! — ordenou Russell em um tom que não admitia recusas. — Depois teremos uma conversinha.
  • Sim, senhor — murmurou o limpador de chaminés, parecen­do muito assustado.O major esforçou-se para tirar o pó preto do rosto e das roupas com as próprias mãos, mas foi inútil.

 

    • Oh, Hugh — começou Susanna. — Estou tão feliz por você ter salvo o garoto. Foi um ato muito... — Ela fez uma pausa enquanto o fitava entre divertida e aliviada. — Desculpe-me, mas está tão sujo que não consigo conter o riso!
  • Acho que esta sujeira só sairá com água. Vou lavar-me.
  • Vou pedir para os criados encherem uma banheira de água quente para você! — prometeu Susanna, virando-se a fim de concretizar sua intenção.
  • Não! Preparar um banho vai demorar muito. Vou lavar-me na estrebaria, lá tem uma bomba d'água, fica muito mais fácil.Susanna seguiu-o até o hall e depois parou, perdida em pensamen­tos. O que deveria fazer? Não demorou muito para se decidir. Abra­çando o casaco de Hugh, trilhou o caminho que ele acabara de fazer.Mais alguns passos e encontrou-se diante da estrebaria. Nunca es­tivera ali antes. Aquele era um lugar que os homens costumavam frequentar e que as mulheres aprendiam a evitar. Contudo, desta vez a situação era diferente, e ela seguiu adiante.Nunca antes tinha visto um homem com o peito exposto daquela maneira. Ficou fascinada com o poder que emanava daquele corpo musculoso. Porém, não sabia como lidar com aquele estranho pal­pitar que a visão provocara em suas emoções.Naquele exato momento, o criado que segurava a mangueira a avis­tou e disse alguma coisa para o major.Agora era tarde demais para voltar atrás, para fugir. Susanna pren­deu a respiração e caminhou devagar na direção da bomba d'água. Estranhamente, suas pernas pareciam não obedecer ao comando do cérebro, e o sangue parecia gelar em suas veias quanto mais se apro­ximava da figura do major. "Oh, céus!", pensou ela. "Quanto cabelo ele tem no peito! Nunca vi isto nas estátuas ou nos qua­dros..."

 

    • O que Hugh Russell viu quando olhou na direção que o serviçal lhe apontava, foi uma figura frágil envolta no seu enorme casaco, banhada pelo fraco sol invernal.
    • Pensou que o melhor seria ir embora antes que alguém a visse. Entretanto, a visão do corpo de Hugh a atraía como um imã gigan­tesco. É claro que já tinha visto pinturas e estátuas de homens semi­nus, mas a realidade era bem diferente. Imaginou que aquela sensação que a dominava fosse puro embaraço. Mas então, porque não se afas­tava de uma vez e esquecia o que tinha visto? Não podia, o torso nu de Hugh exercia um estranho fascínio sobre ela .
    • A bomba d'água ficava no centro do terreno cercado, e um servi­çal segurava uma mangueira sobre a cabeça de Hugh, que trazia o peito nu. Ele parecia insensível ao frio intenso e Susanna ficou atur­dida com as sensações que afloraram em seu peito no momento em que o avistou.
    • Um vento gelado soprava nos jardins da mansão, e ela não hesi­tou em jogar o casaco sobre as costas.
    • Russell passou rapidamente por ela deixando, atrás de si um par de pegadas negras.
  • A água deve estar muito fria — comentou ela com dificulda­de, quando já estavam frente a frente.
  • Não está mais fria do que a água das fontes em que me banheiquando andei acampado com o exército na cadeia dos Pirineus —replicou ele.Hugh a ouviu calado. Contudo, havia uma expressão no rosto mo­reno que revelava que ele não ficara particularamente feliz com o que ela acabara de dizer.

 

    • — Não, claro que não! — concordou Susanna, fracamente. Depois, respirou fundo, e seus olhos acinzentados se encontraram com os de Russell. — Vim procurá-lo aqui porque, hoje de manhã, durante o desjejum, você disse que eu devia ter uma opinião muito ruim a seu respeito. E realmente eu tinha. Percebi, porém, que estava errada, e gostaria de dizer-lhe agora que sei que não fui justa. Peço desculpas por ter pensado mal a seu respeito. Depois do modo co­mo salvou Sam, tenho certeza de que é um homem íntegro.
  • Não Susanna, não sou tão integro assim. Em alguns momentos de minha vida, já tive atitudes bastante desprezíveis — argumen­tou o major, por fim.
  • Leo não teria feito o que você fez pelo garoto! — disse Susan­na, com franqueza.
  • Leo não estava presente, então não podemos saber o que ele teria feito em meu lugar.Susanna retirou a peça escura dos ombros e fez menção de entregá-la a Hugh.— De forma alguma! — Susanna começava a recuperar seu bom senso habitual. — Enquanto se enxuga, vou entrar e pedir para a sra. Merrihew preparar um chocolate bem quente para você.Hugh Russell ficou a observá-la por alguns segundos. Depois, com expressão distante, caminhou sem pressa na direção à casa.— O que pretende fazer, papai?

 

    • Sir Frederick olhou aborrecido para a comida que começava a es­friar em seu prato.
    • — Concordo que é uma situação lamentável — disse sir Frederick. — Claro que farei alguma coisa a respeito, Susie. Não precisa ficar tão aflita, minha filha!
    • Sem mais uma palavra, ela depositou o casaco nos braços muscu­losos e dirigiu-se rapidamente para a porta da cozinha.
    • — Não, fique com o casaco! É mais fácil você adoecer do que eu — protestou Hugh.
    • — Eu posso, pois conheço bem meu primo — afirmou ela. O vento gelado tocou sua pele delicada e ela estremeceu, dizendo: — Você deve estar congelando! É melhor vestir seu casaco, ou vai pegar uma pneumonia!
  • Sei que Bundy pegou este menino no orfanato da igreja. O ga­roto é órfão. Quando o pastor souber que Bundy o deixa passar fome, tenho certeza de que vai tirá-lo dele. Além disso, vou exigir que o pastor não entregue mais nenhuma criança para ser aprendiz deste sujeito desclassificado!
  • Não é suficiente, papai. O que o pastor vai fazer com o meni­no quando ele voltar para o orfanato?

 

    • Sir Frederick suspirou e tornou a deixar os talheres de lado.
  • Uma vez no orfanato, o garoto não é mais problema nosso, Susie! Mas acho que, pelo menos, o safado do Bundy vai aprender que não se pode acender o fogo em uma lareira para forçar uma criança entalada na chaminé a sair.
  • Bundy já recebeu uma boa lição — afirmou Hugh, calma­mente.

 

    • Susanna fitou-o, preocupada.
  • O sr. Bundy não é o único a explorar crianças, todos os outros limpadores de chaminé fazem a mesma coisa. O senhor deve tentar fazer com que o parlamento tome alguma providência a respeito, papai — pediu Susanna.
  • Não creio que consiga alguma coisa com eles, filha. O parla­mento entrou em recesso.
  • Se conseguisse fazer o que Susie lhe pede, seu nome faria sucesso junto à sociedade, Freddie — disse Viola inesperadamente.

 

    • Sir Frederick começou a perder a paciência. Seu jantar estava es­friando no prato e ele ainda nem conseguira prová-lo.
  • Céus! Será que não vão me deixar comer em paz?
  • Claro, Freddie — disse Viola. — Por favor, não se zangue comigo, sabe muito bem que não fui eu quem começou este assunto.Pensou novamente no papel heróico que o major Russell assumi­ra no salvamento de Sam e decidiu que seria extremamente gentil com ele enquanto continuasse na mansão.

 

    • Quando desceu na manhã seguinte, no entanto, Susanna teve uma grande surpresa: o major Russell não se encontrava na propriedade de sir Frederick.
    • Susanna abriu a boca para protestar, mas um gesto de Russell fez com que se calasse. Ele estava certo, era melhor continuar aquela conversa outra hora. Sir Frederick já estava muito irritado e ela não iria conseguir nada deixando-o ainda mais nervoso. As atrocidades que os limpadores de chaminé praticavam com os pobres garotos ain­da continuariam por mais algum tempo, mas Susanna iria lutar pa­ra que tal situação mudasse, um dia.
  • Ele foi para Newbury — informou Leo. — Disse que precisava visitar um amigo militar que se mudou para a cidade, e avisou que não voltaria esta noite.
  • Ah, compreendo — comentou ela, tentando não demonstrar seu aborrecimento. — Só espero que não comece a nevar outra vez, caso contrário o major ficará preso em Newbury.
  • Melhor ainda! — exclamou Leo. Depois fitou a prima, intrigado. — Por que você se importaria com a possibilidade de o major não poder retornar?— Agora que você tocou no assunto, percebo que Charlie conti­nua aqui. Um camarada muito engraçado, este homenzinho. Já está íntimo de todos os criados. Não ficaria surpreso se descobrisse que Russell o deixou aqui com o propósito de nos vigiar.

 

    • — Vigiar para quê, e por quê? Leo deu de ombros.
    • — Não é com o fato de o major Russell voltar ou não para cá que me preocupo — replicou ela rapidamente. — Mas acontece que toda a bagagem dele está aqui. E... o major levou o sr. Treasure junto?
  • Não sei. Contudo, você não acredita que Russell veio até aqui apenas para ver como sua tia Viola estava se saindo com a nova fa­mília, não é mesmo? Isto é, se ela for realmente tia dele.
  • Não acho que o major tenha mentido! — declarou Susanna com mais veemência do que pretendia. Tentando disfarçar, foi até a janela e ficou a observar a paisagem bucólica que se descortinava diante de seus olhos. — O major disse o nome do amigo que ia visitar, Leo? — perguntou Susanna, tentando parecer o mais casual possível.
  • Não, por quê? Ah, estou entendendo o que quer dizer... Acha que ele foi atrás de alguma dama prestativa? Não seria de se sur­preender.
  • Eu não quis dizer nada disso! — exclamou Susanna, enrubescendo indignada. — Francamente, Leo, este é um comentário muito mesquinho. Não tem o direito de fazê-lo, afinal não sabe de nada da vida do major!—Deixe de dizer bobagens, Leo! — resmungou Susanna, enrubescendo, fazendo o possível para livrar suas mãos das garras do primo.                            De súbito, o tom brincalhão e caçoísta de Leo desapareceu. Em seu lugar, um leve ar de preocupação se fez notar, e o rapaz pros­seguiu:Era verdade. O próprio Hugh havia dito a Susanna que não era tão íntegro quanto ela havia pensado.

 

    • — Susie, minha querida, fique longe de Hugh Russell. E antes que você se ofenda com o meu comentário, vou lhe dizer que o próprio major lhe diria a mesma coisa se estivesse em meu lugar.
    • — Está vendo só? Agora ofendi sua sensibilidade! — continuou Leo. — E isto só vem confirmar a minha teoria de que é uma moça ingénua, minha cara.
    • — Ah, querida prima — disse ele cruzando o espaço que os separava e tomando as mãos dela entre as suas. — Você é realmente muito inocente. Passou a maior parte de sua vida trancada aqui nesta casa. Como poderia saber o que acontece com um homem como este nosso indesejado visitante? Olhe bem para ele. E depois não me diga que pensa que as mulheres não se sentem tremendamente atraídas pelo tipo latino!
  • Sim, suponho que esteja certo, Leo — admitiu ela com voz fraca.
  • Pode apostar nisso. Agora alegre-se, priminha, pois vou levá-la para um passeio. Como você mesma acabou de dizer, pode ser que a nevasca retorne, e então ficaremos confinados em casa por muito tempo. Agora vá correndo buscar um casaco, e eu a levarei até a colina para ver os cavalos de corrida treinando.— Bom dia! — cumprimentou-a ele alegremente.

 

    • Susanna estava no hall quando Hugh Russell retornou na manhã seguinte.
  • Bom dia — respondeu Susie, e por alguma estranha razão a manhã tornou-se mais brilhante a seus olhos. — Apreciou sua esta­ dia em Newbury?
  • Sim, a viagem foi perfeita.

 

    • Russell parecia muito satisfeito consigo mesmo, e Susanna co­meçou a imaginar que talvez Leo estivesse com a razão. Talvez o amigo misterioso do major vestisse saias e levasse uma vida fá­cil...
  • Seu amigo, o militar, ele está bem? — perguntou Susanna.
  • Broughton? Aquele camarada tem uma sorte danada. Servimos juntos na França, mas ele acabou sendo ferido e retornou à Inglaterra. Quando voltei para Londres, fiquei sabendo que ele havia se estabelecido em Newbury.

 

    • O coração de Susanna batia descompassado. Era de fato um ami­go que Russell fora visitar, e não uma dama que gentilmente lhe ofe­recesse seus préstimos.
  • Espero que o sr. Broughton tenha se recuperado bem dos ferimentos de guerra.
  • Pode ter certeza que sim.
  • Imagino que tenham tido assunto para muitas horas de conversa.
  • Oh, sim. Broughton sempre foi muito falante, sempre tem his­tórias interessantes para contar. — disse Hugh, pensativo.

 

    • Parecia óbvio que o major não tinha a menor intenção de discutir com Susanna as histórias interessantes que o velho amigo lhe conta­ra, e a jovem achou melhor mudar de assunto.
  • Bem, acho que deve estar faminto. Vou pedir a sra. Merrihew que lhe prepare um bom desjejum.
  • Agradeço muito, mas já tomei meu café da manhã numa estalagem. Broughton e eu viramos a noite jogando cartas, e agora tudo que desejo é uma boa cama.Estava tão concentrada em seus pensamentos que demorou a per­ceber que Hugh tirava alguma coisa do bolso. Era uma pequena cai­xa de prata. O major entregou-a a Susanna.— É linda! — exclamou ela, enquanto corria os dedos pelo objeto delicado. Sem querer abriu a tampa, e emitiu um grito de prazer. — Céus! É uma caixinha de música! — comentou com os olhos bri­lhando.— Muito interessante, não acha? Esta caixa de música deve ser francesa, embora Broughton a tenha trazido de uma cidade dos Países Baixos. Ganhei-a dele às três da madrugada.

 

    • Repentinamente, o delicado objeto de prata perdeu todo seu va­lor aos olhos de Susanna. Fora conseguido em uma mesa de carteado...
    • Russell sorriu, satisfeito.
    • Susanna examinou o objeto com curiosidade. Era um trabalho de artesanato muito fino e, talvez, muito antigo também. A tampa da pequena caixa trazia um desenho alegre que retratava a Grécia an­tiga.
    • " Cartas!", pensou Susanna, desapontada. Então esse era o elo que unia os dois velhos amigos! Ela não gostava desse vício traiçoei­ro, pois sabia que muitos homens perdiam suas fortunas por causa do jogo. Leo era o exemplo vivo da situação triste em que estes ca­valheiros viciados terminavam. Seu primo perdera quase toda a he­rança que recebera apostando em cavalos de corridas.
  • O sr. Broughton deve ter ficado triste ao perdê-la...
  • De forma alguma, ele nem se importou. Provavelmente também a ganhou de alguém, 410 jogo. Devo confessar que não aprecio muito este tipo de objeto, por ser feminino demais. Só o trouxe por­que achei que você iria gostar.
  • Eu? — exclamou, intrigada.
  • Sim. Estraguei a surpresa que Leo havia preparado para você na véspera do Ano Novo e achei que deveria compensá-la de algu­ma forma por isso.— É muito bonita, mas não possa aceitá-la — disse Susanna, por fim.— Faça o que quiser com a caixinha, então. É um objeto essencialmente feminino que não me será da menor valia. Agora, se me der licença, vou para a cama. Estou exausto.

 

    • Susanna ficou sozinha com caixinha de música na mão e uma ex­pressão completamente aturdida no rosto delicado.
    • Russell, no entanto, ignorou o comentário, e passando ao lado de Susanna declarou com um certo ar de pouco caso:
    • Susanna sentiu-se ultrajada. Aceitar um presente de um cavalhei­ro com o qual não se tinha intimidade nenhuma já era uma atitude bastante deplorável; aceitar um presente que acabara de ser ganho numa mesa de jogo era pior ainda. Jamais poderia aceitar a caixi­nha de prata, mesmo tendo ficado encantada com ela.
  • Bom dia — disse Leo, entrando no aposento. — Céus, priminha, você está tão pálida! Aconteceu alguma coisa?
  • Nada — disse ela, apressando-se em esconder a caixinha no bolso de seu vestido de veludo.
  • Sei... Parece que Russell voltou, não é mesmo?

 

  • Susanna teve uma leve suspeita de que Leo andara espiando. Mas ainda assim respondeu com calma:
  • Voltou...E eu preferia que tivesse ficado onde estava.Era óbvio que a presença do major Russell não es­tava sendo muito agradável aos habitantes da man­são Harte.Leo o tratava com estudada indiferença, e Susanna procurava evitá-lo o máximo possível.O clima era tão tenso que Susanna sentiu vontade de desaparecer de sua própria casa. Por alguma estranha razão, sabia que precisa­va manter-se afastada daquele homem perigoso. Nunca antes alguém havia despertado nela tantas emoções contraditórias, indefiníveis. Inquieta, achou que deveria tentar espairecer, distrair-se um pouco. Pediu à governanta que preparasse um bolo de chocolate e decidiu levá-lo até a vila para dá-lo de presente aos filhos do vigário. Conse­guiria, assim, ficar distante por algum tempo do magnetismo de Hugh.Depois de uma breve caminhada, Susanna chegou à pequena casa onde a família Lucas vivia. Foi recebida por uma dezena de griti-nhos alegres. As crianças exigiram a atenção da recém-chegada; en­quanto algumas empoleiravam em seu colo, outros a puxavam pela saia chamando-a carinhosamente de tia.— Parece que o hóspede de vocês retornou de Newbury — comentou o reverendo Lucas.

 

  • Ali, naquele pequeno vilarejo, as notícias corriam rápidas, e a pre­sença de um homem marcante como o major Hugh não podia dei­xar de ser notada.
  • A pobre sra. Lucas correu a preparar um chá para a visitante, en­quanto o reverendo fazia companhia a uma Susanna rodeada de crianças.
  • O reverendo Lucas tinha treze filhos e Susanna sabia que ele en­frentava dificuldades para sustentá-los.
  • A própria Viola, que a princípio deveria estar satisfeita com o re­torno do sobrinho, mostrava-se muito nervosa e a todo instante fa­zia comentários significativos sobre a partida definitiva do major, como se quisesse vê-lo logo pelas costas.
  • Sir Frederick, ocupado como estava com alguns problemas parla­mentares, mal notava a presença do hóspede.
  •  
  • É verdade — confirmou Susanna, sabendo que não havia co­mo negar a presença daquele visitante moreno na mansão Harte.
  • Se bem me lembro, o cavalheiro não acompanhou a senhorita e seu pai à missa de domingo, não é mesmo?— Na verdade, reverendo Lucas, não sei quais são as crenças religiosas do major Russell — disse Susanna, diplomaticamente.— Thomas! Pare de pular no colo da srta. Harte! — ralhou a sra. Lucas com um dos filhos, ao entrar na sala trazendo o chá.Assim que deixou a residência do reverendo, sentiu o vento frio bater em seu rosto e decidiu seguir pelo atalho que cortava os cam­pos. Desse modo, chegaria em casa muito mais rápido do que se fosse pela estrada principal.Na metade do caminho havia um lago que no verão costumava ser pequeno, mas que naquela época do ano tinha o volume de água aumentado em razão das chuvas. Susanna fitou o lago com ar so­nhador, recordando-se de que quando o sol brilhava no céu azul uma enorme infinidade de aves circulava por ali. Naquele dia frio e cin­zento de inverno, porém, não havia nenhum movimento além do on­dular das águas sob a ação do vento gelado.Finalmente localizou um cãozinho, uma mistura de fox-terrier com alguma outra raça qualquer, que se debatia na lama das margens do lago. Na certa o pequeno animal fora até lá para saciar a sede e fica­ra atolado.Logo percebeu que era mais fácil falar do que pôr a ideia em prá­tica. Olhou ao redor. Não avistou ninguém que pudesse ajudá-la a resgatar o pobre animal, encontrava-se sozinha no meio dos campos. Com muita cautela, tentou caminhar até o local onde o cão esta­va preso, mas acabou descobrindo que a lama era tanta que seria difícil prosseguir. Foi então que avistou o galho de uma árvore caí­do nas proximidades. Teve uma ideia que poderia funcionar. Apa­nhou o galha e estendeu-o à sua frente, improvisando uma tosca ponte. A esta altura suas botas já estavam cobertas de lama, e a bar­ra do vestido azul encontrava-se completamente molhada e suja. Susanna aproximou-se com cuidado do pequeno animal, cujas pa­tas estavam enterradas no barro pegajoso. Não hesitou um segun­do. Abaixou-se e enfiou as mãos na lama para libertar o cãozinho. Quando conseguiu soltá-lo, depois de algum esforço, tomou-o nos braços. Assustado, o pequeno animal debateu-se inquieto em seu colo e, com um movimento brusco, saltou para a liberdade fazendo com ela perdesse o equilíbrio e caísse de costas no chão barrento.Susanna não teve nem tempo de pensar na ingratidão do animal. Quando tentou se levantar, viu que estava tão atolada na lama quanto o cãozinho estivera há poucos minutos atrás. Com um esforço tre­mendo, tentou erguer os pés, mas tudo o que conseguiu foi perder suas botas para a força de sucção do lamaçal. O terreno estava in­crivelmente gelado, e ela emitiu um grito de socorro. Naquele momento, uma voz de barítono chegou até seus ouvidos.Ela ergueu o rosto sujo de barro e deparou-se com a figura do ma­jor Russell, que cavalgava em sua direção.Era muito embaraçoso ser salva naquelas condições. Olhou de re­lance para sua roupa e ficou horrorizada. Estava toda imunda e ainda por cima perdera as botas. Que triste figura de mulher! Hugh parou o cavalo numa parte mais sólida do terreno e indagou:A voz do major tremera ao fazer a pergunta, e Susanna imaginou que ele estava contendo o riso. Irritada, retrucou:

 

    • — Por Deus, o que está fazendo aí, Susanna?
    • — Oh, droga! — exclamou para si mesma.
    • — Fique onde está, Susanna! Não se mexa, caso contrário afun­dará ainda mais!
    • Sem demonstrar a menor compaixão por sua salvadora, o cãozi­nho desapareceu em meio às árvores que circundavam o lago.
    • — Pobrezinho! — disse Susanna, penalizada. — Preciso tirá-lo de lá antes que morra de fome e de frio!
    • Estava erguendo a barra do vestido azul para prosseguir sua jor­nada quando escutou um uivo de agonia. Assustada, correu os olhos pelo local em busca do ser que emitira aquele som de provocar ar­repios.
    • Mal havia iniciado sua pequena caminhada, no entanto, quando se arrependeu da decisão que tomara. Havia lama por todos os la­dos, e o terreno estava cheio de poças d'água por causa do degelo da neve. Mesmo assim, resolveu continuar seguindo em frente com cautela.
    • Apesar do reverendo fazer questão de demonstrar que estava de­cepcionado com a falta de espírito religioso de algumas das pessoas que moravam na mansão Harte, Susanna acabou se divertindo mui­to durante a visita aos Lucas, e ficou triste quando notou que já es­tava na hora de se despedir.
    • Não queria magoar o bom homem dizendo que duvidava que Hugh se dedicasse a alguma religião em particular.
    • Sir Frederick jamais perdia os serviços dominicais, e Susanna se habituara a acompanhá-lo desde pequena. Leo e Viola, porém, nunca se interessaram em fazê-lo, è o reverendo ressentia-se do fato por ser um pastor muito zeloso de seu rebanho.
  • Estou tentando sair desse lamaçal! E então, vai me ajudar ou vai ficar parado, só olhando?
  • É claro que vou ajudá-la!

 

    • Russell fez o cavalo avançar com cautela para junto de Susanna e curvou-se sobre a sela, dizendo:
  • Coloque os braços em torno do meu pescoço para que eu possa puxá-la para cima.
  • O quê? — indagou ela, atónita.
  • Vamos logo! — exclamou ele, impaciente. — Segure-se em meu pescoço, e eu farei o resto!
  • Estou toda cheia de lama... — murmurou ela. — Vou sujar o seu casaco...
  • Não se importe com o meu casaco. Agora faça o que eu mandei e deixe de bobagens!Curvado sobre a sela, ele parecia um galante cavalheiro medieval, habituado a salvar donzelas em perigo. Susanna ficou assustada ao perceber que seu corpo se arrepiava diante da presença daquele ho­mem fascinante, que seu coração batia mais rápido que o normal.

 

    • Agoniada, Susanna sentiu-se entre a cruz e a caldeirinha. Queria sair do lamaçal, mas não lhe agradava nem um pouco a ideia de ser carregada pelo major.
  • Vamos logo! Prometo que não a deixarei cair! — disse Rus­sell, impaciente.
  • Tenho certeza que não! — replicou ela, pensando na quantidade de mulheres que ele já teria segurado de encontro ao seu corpo musculoso.

 

    • Com dificuldade, fez o que Hugh mandava. Em seguida, sentiu duas mãos fortes pousarem em sua cintura. Em poucos segundos, ficou livre da prisão de lama.
  • Perdi meus sapatos! — exclamou, quando o major a segurou de encontro ao peito.
  • Sinto muito, mas acho que será impossível recuperá-los. Você terá de voltar para casa na garupa de meu cavalo.
  • Não! Por favor, tente achar meus sapatos antes de irmos em­bora. Não posso voltar no mesmo cavalo que você!Susanna nunca havia estado tão próxima de um homem, antes. Tinha o rosto recostado no peito de Russell, e podia sentir o calor que emanava do corpo forte, o pulsar do coração que deveria ter amado muitas mulheres... Estava gostando de tal proximidade, mas ao mesmo tempo sentia-se envergonhada com a situação. Céus, co­mo era difícil entender seus sentimentos em relação a Hugh!Russell a ajudou a montar na garupa, e ela foi obrigada a enlaçá-lo pela cintura para firmar-se.

 

    • Quando deu por si, percebeu que o major a colocara de volta no chão. Um leve desapontamento a invadiu quando não sentiu mais os braços másculos em torno de sua cintura. "Ora, tenha juízo, Su­sanna!", disse a si mesma, procurando reprimir suas emoções.
    • —Prefere voltar andando e pegar uma bela pneumonia? Tenha um pouco de bom senso. Você está molhada até os ossos, Susanna! — exclamou ele, zangado. — Não adianta discutir, vai para casa co­migo, sim! — ordenou, levando o cavalo para terra firme.
  • Imagino que não vai querer me contar como se meteu nesta confusão — caçoou Hugh enquanto subiam a colina que conduzia à residência dos Harte.
  • Não foi nada demais. Eu só estava tentando salvar um pobre cãozinho. O coitado estava preso na lama, e quando finalmente o libertei ele fugiu. Então fui eu que fiquei presa no lamaçal.
  • Você é uma jovem muito intrépida! Não conheço muitas da­mas dispostas a se arriscarem para salvar um pobre animal. Por outro lado, a situação poderia ter sido resolvida de outra maneira. Você poderia ter ido até a mansão e pedido a um serviçal que viesse fazer o resgate do tal cachorro.

 

    • Susanna ficou extremamente aborrecida com aquele comentário.
  • Poderia sim, mas não o fiz! — resmungou, irritada.
  • Bem, tenho de reconhecer que se tivesse agido como sugeri per­deria a chance de ser salva por um cavalheiro como eu...
  • Só espero que este cavalheiro não saia por aí contando este incidente para todo mundo!
  • Não, ele só vai até a taverna mais próxima para anunciar em alto e bom tom que a querida srta. Harte teve alguns problemas com o lamaçal que se formou em torno do pequeno lago — zombou ele. — Cuidado, Susanna você é uma pessoa muito conhecida na região!
  • Se não parar com isto, vou descer deste cavalo agora mesmo!
  • Sim, não tenho dúvida nenhuma de que é capaz de fazê-lo. É uma moça muito teimosa.

 

    • Eles cavalgaram por algum tempo em silêncio depois daquela breve discussão. Quando Susanna voltou a falar, já estava bem mais calma
  • Hugh? Não vai contar esta história a ninguém, não é? Leo iria se divertir às minhas custas. Papai ficaria preocupado, e Viola ra­lharia comigo.
  • Você tem razão. Vamos pensar em alguma coisa para que ninguém a veja... — falou Hugh, pensativo. — Já sei! Chegaremos pelo jardim, e você se esconderá atrás de um arbusto enquanto eu entrona casa e abro uma das janelas do andar térreo. Acha que consegue pular uma janela?
  • Posso tentar.Ajudada por dois braços fortes, Susanna conseguiu alcançar o pa­rapeito e passar facilmente pelas vidraças escancaradas.Susanna enrubesceu ao notar as implicações contidas na declara­ção do major.— Desculpe-me, mas não sou um cavalheiro. E depois do que acaba de me dizer, começo a pensar que deveria tê-la deixado atolada na lama até que outra pessoa a encontrasse. Seu primo Leo, por exemplo. Ou melhor, não... Leo não sujaria o casaco por você, Susanna! — disse Hugh, com uma expressão zombeteira brilhando nos olhos escuros.

 

    • — Este não foi um comentário muito cavalheiresco, major Russell! Pode se gabar de suas aventuras com quem bem entender, mas não comigo!
    • — Estou achando tudo isso muito divertido — comentou Russell, sorrindo. — Muitas damas já me ajudaram a sair de suas casas pela janela, mas é a primeira vez que ajudo uma senhorita a entrar escondida em sua própria residência!
    • — Boa garota! — exclamou, ele encorajador. Executaram o plano à perfeição. Susanna ficou escondida atrás de alguns arbustos do jardim até que o major finalmente abriu uma janela e assobiou, indicando que era a hora certa para entrar.
  • Isso não é verdade! — exclamou ela, zangada.
  • Sim, é verdade! E da próxima vez que precisar de alguém para ajudar a salvar um garoto que ficou entalado na chaminé ou para resgatar uma senhorita atolada num lamaçal, não conte comigo.
  • Ora, você sabe que apreciei muito a sua ajuda em ambas as ocasiões! — replicou ela no auge da ira.
  • E eu não ouvi nem sequer um agradecimento! — retrucou Russell.— Já lhe agradeci pelo que fez, major. Agora se me dá licença... — girou nos calcanhares e saiu da sala com toda dignidade que a situação lhe permitia.Hugh Russell, contudo, parecia ter esquecido completamente o acontecido, pois nunca mais tocou no assunto.E ela não estava enganada. Dois dias depois do incidente no pe­queno lago, lady Harte fez questão de falar a sós com o sobrinho, que lia o jornal na sala de estar. Viola entrou no aposento com um brilho ameaçador no olhar e, com um gesto decidido, fechou a por­ta para que ninguém os interrompesse.Ela cruzou o espaço que os separava e fitou-o, irada.

 

    • — Qual o problema, Viola? — perguntou Hugh, com ar in­dulgente.
    • Já fazia uma semana que o major estava na mansão, e apesar de todos o tratarem polidamente era óbvio que sua presença não era bem quista. Pelo menos, esta era a impressão de Susanna.
    • Para alívio de Susanna, Hugh manteve sua palavra e não comen­tou o incidente com quem quer que fosse. Ela teve de admitir que fora muito indelicada com o major e que lhe devia algumas descul­pas. Afinal, ele sofrera prejuízos nas duas vezes em que a ajudara.
    • Susanna, sentindo o sangue ferver em suas veias, achou que era melhor desistir daquela discussão.
  • Você já está aqui há mais de uma semana, Hugh. Eu disse que poderia ficar no máximo quinze dias, portanto tem pouco tempo para continuar em minha casa!
  • Que indelicadeza! Por acaso está me expulsando daqui, queri­da tia? Que fiz eu para ofendê-la?
  • Pare de brincar comigo, Hugh. Não estou com paciência para ouvir suas bobagens! Você transformou minha vida num inferno du­rante a última semana. E não finja que não percebe o mal-estar que está causando em todos por aqui! Não tem o direito de me atormen­tar deste jeito! Sei que veio para cá com alguma intenção malévola em mente. Vamos, diga, o que você quer de mim? — perguntou ela, por fim, angustiada.
  • Sente-se Viola. Você está certa a meu respeito, já é hora de termos uma boa conversa. Mas não fique histérica, sabe que suporto isso. Pelo menos uma vez em sua vida, comporte-se como uma mulher de bom senso!
  • Está vendo só? — acusou ela. — Você está querendo atirar em meu rosto todos os erros que cometi no passado. Sei muito bem que veio até aqui para me arruinar, Hugh!
  • Muito pelo contrário, minha cara! — afirmou ele taxativo. —Vim aqui para salvá-la de si mesma, se é que isto é possível.— Sei que fui muito tola no passado. Mas agora estou com trinta e cinco anos, como você mesmo fez questão de frisar outro dia. Sei que está na hora de construir uma vida decente para mim mesma. Acha que tenho alguma intenção de atirar minha grande oportunidade pela janela? Oh, Hugh, não me arruine agora!— Muito comovente, Viola, mas qualquer um que a conheça bem sabe que estas suas lágrimas são pura encenação. Todas as vezes em que se metia em alguma enrascada e que um de nós precisava socorrê-la, você agia da mesma maneira. Suplicava que a perdoássemos e prometia se comportar melhor no futuro, mas nunca cumpria tal promessa. Portanto, pode tirar a máscara, não cairei mais em seus truques.

 

    • Um brilho de zanga surgiu no belo rosto moreno, e Russell não teve dúvida de que ela usaria todas as armas de que dispunha para defender-se.
    • Ele se esticou na poltrona, sem se deixar afetar pelo tom choroso da tia. Pelo contrário, parecia levemente divertido com a cena.
    • Lady Harte fitou-o com ar de choro, argumentando:
  • Então esteve com os outros membros da família, meu caro Hugh? Só pode ter estado, depois do que acabou de dizer. Por acaso eles o transformaram em garoto de recados? Estarei enganada, ou foi a preocupação deles que o fez vir até aqui? — indagou lady Harte, pondo-se de pé.
  • Para ser honesto, devo admitir que está certa, querida tia. —Com um movimento rápido, o major também se levantou e começou a andar de um lado para outro na sala. — Vou abrir o jogo, Viola. Gosto tanto de ter vindo aqui quanto você de minha presença. Na verdade até me recusei a fazer este papel, porém acabei con­cordando que era minha obrigação vir visitá-la.
  • Obrigação? — riu ela, com cinismo. — Será que foi no exército que aprendeu estas coisas, Hugh? Se bem me lembro, há tantas passagens obscuras na sua vida quantas há na minha.
  • Tem razão, Viola — admitiu ele com franqueza. — Mas não se esqueça de que sou um homem. Em nossa sociedade preconceituosa, o direito de se redimir das insanidades praticadas na juventude   é   privilégio   do   sexo   masculino.   Infelizmente,   a   mesma oportunidade não é dada às mulheres. Se cometer alguma loucura, ficará visada para sempre...Russell praguejou, impaciente.Lady Harte relaxou um pouco e sentou-se na poltrona mais próxima.— Pare de dizer asneiras, Viola. Não há motivos para que eu re­vele os erros que cometeu no passado, a não ser, é claro, que torne a cometê-los! E ao que parece, você já andou fazendo algumas tolices. O rosto belo e moreno da mulher que o fitava assumiu um ar ameaçador.

 

    • — Bem, Hugh, e o que pretende fazer? Denunciar-me durante um jantar da família Harte? O rapaz, Leo, ficaria deliciado, e minha enteada também. Afinal, nenhum dos dois gostou da minha chega­da aqui como esposa de Freddie.
    • — Deixe disso, Viola. Sabe muito bem que eles me escolheram porque sabem que sou uma das poucas pessoas que ainda tem afeto por você. Ou então porque eu conheço muito bem aquela corja de amigos que você tem.
    • — Como é objetivo, meu caro Hugh! Agora entendo porque mandaram justamente você.
  • Que tolices, por exemplo?
  • Bem —, começou ele, calmamente —, ouvi dizer que esta casa ficou cheia de aproveitadores durante todo o verão. Como você acha que a comunidade local vê tudo isto, Viola? Será que não pensa na situação embaraçosa em que deixou seu marido? Ele é um homem importante, membro do parlamento. Pelo amor de Deus, não pode prejudicá-lo com um escândalo! — De súbito, Hugh foi até onde ela estava e chacoalhou-a pelos ombros. — Sir Frederick acabaria sendo obrigado a afastar-se do cargo que vem exercendo há mais de quarenta anos. E tudo por culpa sua, minha cara!
  • Está exagerando, Hugh! — retrucou ela, num tom mordaz. —Para seu governo, Freddie tem confiança total em mim.
  • Então você tem muito mais a perder com este comportamento inconsequente!
  • Sei muito bem como cuidar de Freddie, Hugh. Não precisa me ensinar os deveres de uma esposa.
  • Acho que preciso, sim. Você parece não ter percebido que sir Frederick está cuidando bem demais da nova lady Harte!
  • O que está insinuando?Uma nova luz brilhou nos olhos de lady Harte.

 

  • — Bem, seu marido está tentando agradá-la, e isto é evidente quando olhamos para as jóias preciosíssimas com que ele a tem presenteado. É claro que se sir Frederick deseja cobrir sua jovem esposa de jóias ninguém pode impedi-lo... A propósito Viola, eu gostaria de ver os brilhantes dos Harte mais de perto. Eles são tão famosos por sua beleza...
  • Você os verá, Hugh. Vou usá-los no jantar desta noite.
  • Eu preferiria vê-los antes disto — declarou Russell, polidamen­te, embora houvesse um tom imperioso em suas palavras.
  • Guardo os brilhantes muito bem trancados, Hugh. Tenho uma gaveta com chave na cómoda em meu quarto de vestir, e ninguém além de mim entra lá, a não ser a minha camareira particular.
  • Pois eu adoraria conhecer o seu quarto de vestir. Importa-se de me levar até lá e mostrar-me sua jóia mais preciosa, querida tia?
  • Claro que não! — exclamou ela, contendo a fúria. — Já que insiste, venha comigo. Mas vou lhe dizer uma coisa, Hugh, esta é a última vez que falo com você sobre o meu casamento e sobre os presentes de Freddie, pois tais assuntos não lhe dizem respeito!Uma criada muito jovem pregava botões em algumas roupas da patroa. Levantou-se assustada quando eles entraram.A pobre moça arregalou os olhos e saiu cabisbaixa do aposento, abismada com a atitude grosseira de lady Harte.Hugh permaneceu parado à porta do quarto de vestir enquanto sua geniosa tia destrancava uma das gavetas da cómoda, tirando de dentro um estojo de veludo vermelho.

 

    • O colar repousava majestosamente sobre o tecido macio. O bri­lho que as pedras emitiam ofuscava os olhos de quem ousasse fitá-las. Russell deu um passo a frente e fez menção de tocar os brilhantes com as pontas do dedo.
    • Viola nem se incomodou com a ideia de seu comportamento ter chocado a serviçal. Mergulhando a mão no bolso do vestido, reti­rou uma chave pequenina.
    • — Saia já daqui! — ordenou Viola, bruscamente.
    • O major assentiu e subiu com lady Harte até o andar onde fica­vam os quartos. No fundo do corredor, à esquerda, Viola abriu uma porta e entrou.
  • São magníficos! — exclamou, parecendo hipnotizado pelo cin­tilar do colar.
  • São mesmo! — retrucou Viola, cortante. — Você queria veros brilhantes de perto, não é? Pois bem, seu desejo foi realizado. Espero que esteja satisfeito. Pode escrever para todos da família, dizendo que estou sabendo cuidar bem de meu casamento.

 

    • Ele ignorou o comentário e recostou-se contra a parede, cruzando os braços na altura do peito.
  • O que sir Frederick sabe sobre o seu passado, Viola? Você lhe contou alguma coisa sobre o seu primeiro casamento?
  • Claro que contei — afirmou ela com veemência. — Quando Freddie me conheceu, eu ainda era a sra. Devaux. Ele soube desde o início que eu era viúva.Lady Harte ficou visivelmente pálida.

 

    • Será que sir Frederick também ficou sabendo que tipo de ho­mem era Harry Devaux, e como foi que ele morreu?
  • Freddie ficou sabendo que Harry foi morto num duelo depois de ter se envolvido numa briga com um parceiro de jogo.
  • Esta é uma maneira delicada de dizer que Harry acabou com a própria fortuna e a da esposa antes que alguém lhe estourasse os miolos...

 

    • Viola voltou-se irada para o sobrinho, esbravejando:
  • Agora chega, Hugh! O que quer que tenha acontecido antes de eu me casar com Freddie só diz respeito a ele e a mim! Não vou tolerar sua intromissão!
  • Não se irrite, queria tia, estou apenas curioso. Será que sir Frederick sabe que o sr. Devaux foi ajudado na destruição de sua for­tuna pela própria esposa, e que a mesa de jogos tinha tanto encanto para ele quanto para você?— Se tentar jogar meu marido contra mim, Hugh, se tentar, de alguma maneira, comprometer a estabilidade que consegui com o casamento, vou arruiná-lo também! E você sabe muito bem que te­nho como cumprir minha promessa, meu caro!Russell ficou parado por um instante, depois voltou-se na direção em que ela havia acabado de guardar o colar de brilhantes. Tentou abrir a gaveta, mas lady Harte a havia trancado de novo e ele aca­bou desistindo. Suspirando fundo, girou nos calcanhares e preparou-se para sair do quarto. Nesse instante, uma voz feminina chegou a seus ouvidos.Hugh fitou a recém-chegada com certa impaciência. Susanna estava parada à porta do aposento e exibia uma expres­são acusadora nos olhos acinzentados.

 

    • O que está fazendo aqui?
    • Sem mais uma palavra, Viola passou rapidamente por ele e desa­pareceu no longo corredor.
    • As feições normalmente tão controladas da jovem lady Harte se alteraram por completo. Havia uma fúria cega em seu olhar, que revelava o quão perigosa podia ser quando desafiada.
  • Eu tinha uma coisa para dizer a Viola.
  • Mas ela não esta aqui!
  • Não agora, mas estava antes. — Ele meneou a cabeça, aborrecido. — Vou contar-lhe a verdade: tivemos uma discussão, e minha tia me largou falando sozinho.— Pois agora você vai me ver desaparecendo pelo corredor! —explodiu Russell, de repente.— Sinto muito, não pretendia ser indelicado. Mas estou um tan­to nervoso depois da discussão que tive com minha tia.Hugh jogou-se em uma poltrona diante da janela que dava para o jardim.Passando nervosamente os dedos pelos cabelos cor de ébano, Rus­sell parecia uma fera enjaulada.— Viola está com algum problema?— Não interprete mal minha pergunta — apressou-se a dizer Susanna. — Só quero saber se papai será atingido de alguma maneira pelo que está acontecendo com ela.— Como você sabe, estive fora por muito tempo — começou ele. —       Fiquei anos sem me encontrar com Viola, portanto não sei o que ela andou aprontando durante estes anos todos.

 

    • Um leve sorriso bailou nos lábios carnudos de Hugh. Sua expres­são zangada amenizou-se um pouco.
    • Hugh levantou a cabeça para fitá-la, e havia fúria em seus olhos escuros.
    • Susanna foi obrigada a admitir que mesmo com aquela expressão carrancuda, ele era o homem mais bonito que já havia encontrado. O major continuava a remexer-se com impaciência na cadeira, e ela calculou que o melhor seria tentar descobrir o que estava aconte­cendo. No entanto, sabia que deveria escolher com cuidado as pala­vras que iria dizer. Assim, o mais calmamente possível, indagou:
    • Susanna ficou a observá-lo durante algum tempo, sem saber que atitude deveria tomar. Ele parecia muito perturbado com o que aca­bara de ocorrer.
    • Susanna não fez qualquer comentário, e como se houvesse algum acordo silencioso entre eles, caminharam calados até a sala de estar.
    • Depois, parecendo arrepender-se do que acabara de dizer, parou onde estava e voltou-se para Susanna, declarando:
    • Desculpe — disse Susanna. — Eu não estava querendo ser inoportuna. Apenas estranhei vê-lo aqui, no quarto de vestir de minha madrasta.
  • Então ela está mesmo com problemas — murmurou Susanna, pensativa. — Você sabe do que se trata?
  • Tenho uma leve ideia — confessou Russell, muito sério.
  • E não pode me dizer o que é, não é mesmo?— Desculpe-me, Susanna, mas não posso falar. Espero conseguir resolver tudo sem que outras pessoas precisem ser importunadas.A imagem de Hugh salvando o pobre Sammy lhe veio de imedia­to à cabeça, e Susanna tentou ser o mais simpática possível.Sem erguer o rosto, continuando a fitar o fogo, Russell perguntou:Susanna enrubesceu, sentindo-se uma perfeita idiota.Hugh deu as costas ao fogo e aproximou-se mais de Susanna, ar­gumentando:

 

    • — Desculpe, acho que disse bobagem. Tudo que conheço da vida militar é o que vejo nos quadros e leio em alguns livros.
    • — É isso que acredita que acontece em uma campanha militar? Aventura, camaradagem e combates heróicos?
    • — Deve ter sido muito difícil para você retornar à Inglaterra de­ pois de tantos anos combatendo no exterior. Estava acostumado a aventuras e ao burburinho das campanhas militares... Sem falar na camaradagem que deve existir entre os soldados, não é?
    • Ela viu quando o major caminhou para perto da lareira e ficou a observar o estranho bale das chamas azuladas. Sorriu consigo mes­ma; geralmente, fazia a mesma coisa quando tinha algum problema.
    • Hugh fitou o rosto pálido e delicado da moça que tinha diante de si.
  • Não se desculpe. A sua impressão é a mesma de milhares de outras pessoas. Já ouvi coisas muito mais ridículas do que estas que acabou de dizer. A culpa não é sua, nem daqueles que desconhecem a guerra. A culpa é do governo é dos órgãos oficiais, que jogam seus homens no meio de um combate e tentam fazer com que eles pare­çam heróis. Como você poderia saber o que é um campo de batalha?
  • Então como é a guerra, realmente? Conte-me, por favor! —pediu ela, sentando-se em um pequeno sofá de cetim vermelho ao lado da lareira.— Na maioria das vezes, as campanhas militares são uma grande confusão. Ninguém sabe para onde está indo ou o que deve fazer quando alcançar a destinação final. Você chega a um lugar desconhecido, em geral ao cair da noite, e não sabe nem porque está ali e nem quem são realmente seus inimigos. Quase sempre não há comida nem abrigo, e os cavalos estão sedentos e cansados. A população local também está tentando salvar o pouco de comida que lhe resta, e não vende nem dá nada aos soldados, que acabam roubando para não morrer de sede ou de fome. Quando paro para pensar, acho que a guerra é a coisa mais estúpida que já se viu. Um homem mata o outro sem motivos reais, e na maioria das vezes é obrigado a ver um colega morrer sem poder fazer nada por ele. Se alguém é ferido e não pode seguir com a tropa, é preciso deixá-lo para trás, para que todos os outros não sejam mortos pelos inimigos que se aproximam. Cansei de ver companheiros feridos sendo deixados em lugares ermos porque não havia condições de transportá-los — Rus­sell fitou Susanna e seus olhos estavam ainda mais escuros por cau­sa daquelas lembranças tristes. — Nenhum homem é soldado porque ama a profissão — comentou ele, em tom gentil. — Na maior parte dos casos, um homem torna-se soldado porque não tem outra opção.Ele deu de ombros ao responder:

 

    • — E você, Hugh? Por que resolveu ser um militar? — indagou ela, comovida.
    • Depois de um momento de hesitação, Hugh sentou-se ao lado de Susanna e começou a falar.
  • Precisava de dinheiro, e não tinha outro meio de ganhar a vida. Fui impedido de exercer muitas profissões melhores por causa de uma lei estúpida.
  • Que lei? — indagou Susanna, perplexa.
  • Ora, ora... — começou o major, parecendo compreender a surpresa dela. — Então Viola não contou nada a sir Frederick sobre nossa religião? É compreensível, afinal ele é um membro do parlamento.
  • Vocês são católicos! — exclamou Susanna, finalmente desven­dando o mistério.
  • Exato. E pelas leis vigentes, aqueles que professam esta fé são marginalizados em nossa sociedade, não podem nem fazer parte do parlamento. Seria embaraçoso para sir Frederick se fosse divulgado por aí que ele desposou uma mulher católica. No entanto, sei que Viola não é muito religiosa, e por esta razão não deverá causar problemas à família Harte por causa de sua fé. E agora... Se quiser contar a sir Frederick tudo o que eu lhe disse, Susanna, esta é uma coisa que não poderei impedi-la de fazer.— Obrigado — agradeceu Russell com um sorriso terno. — Mas como eu estava dizendo, fui impedido de exercer várias atividades mais nobres aqui na Inglaterra. Só que o problema já havia começa do na minha infância... Como deve saber, os católicos não podem frequentar escolas públicas em nosso país. Desta forma, fui enviadc para a Itália para morar com alguns parentes de minha mãe. Passei toda minha infância e adolescência em Pallanza, um lugar idílico onde o clima é quente, as águas dos rios e dos lagos possuem os matizes mais variados de turquesa, e o povo é amável e gentil. No final, che­guei à conclusão de que foi uma verdadeira dádiva divina precisar ser enviado a um país mediterrâneo para poder estudar.

 

    • — Prefiro guardar nossa conversa em segredo, só contarei o que ouvi se for mesmo necessário. E depois, esta é uma lei completamente inadequada. Tenho certeza de que meu pai concorda comigo, não há motivos para que Viola tema a reação dele. Pode ficar tranquilo, Hugh, papai só ficara sabendo disso se minha madrasta resolver lhe contar.
  • Compreendo perfeitamente — comentou Susanna.
  • Sendo assim, esta não foi a primeira vez que retornei à Inglaterra depois de ter passado algum tempo no exterior. Mas quando voltei pela primeira vez e encontrei um país cheio de preconceitos, descobri que precisava fazer alguma coisa para sobreviver. Minha família tem algumas posses, mas é muito numerosa; não podemos nos dar ao luxo de viver sem trabalhar. Uma das minhas poucas op­ções foi entrar para o exército. Não vou dizer que a experiência foi de todo ruim, pois aprendi muitas coisas úteis e interessantes. No entanto, confesso que estou feliz por deixar a vida militar.
  • O que vai fazer para viver agora? — perguntou Susanna, preocupada. — Sei que gosta de jogar cartas, mas não pode viver disto pelo resto de sua vida.— Não se preocupe, minha cara, não preciso mais viver do carteado. Herdei uma propriedade em Pallanza, onde as videiras espalham-se sobre as colinas verdejantes e os jardins são repletos de flores multicoloridas. Assim que resolver este assunto de família, vol­to à Itália.

 

    • Susanna sentiu-se curiosamente triste.
    • Desta vez Russell esboçou um largo sorriso.
  • Então vai para o campo, Hugh, viver como um tranquilo pro­dutor de queijos e vinhos?
  • Do modo como fala, parece que no futuro terei uma vida muito bucólica e entediante. Especialmente quando sei que estarei sozinho...
  • Ora,   sem   dúvida   você   se   casará!   —   exclamou   ela, arrependendo-se da ousadia no mesmo instante em que acabava de proferir a frase.
  • Para que eu me case, primeiro preciso encontrar a mulher ideal — replicou Hugh, correndo os dedos pelos cabelos escuros. — Infelizmente, sempre me envolvi com as mulheres erradas. E olhe que conheci muitas! — ele esticou-se confortavelmente no sofá e voltou-se curioso para Susanna. — E quanto a você? Não tem planos de casar-se um dia? Não com seu primo é claro, isso você já me disse.
  • É verdade, Leo é apenas um primo querido e nada mais. Ele é uma boa pessoa, seu único defeito é a preguiça. Mas não existe envolvimento nenhum entre nós.

 

    • Hugh franziu o cenho, obviamente discordando de sua opinião sobre Leo, porém não quis ser grosseiro e indagou:
  • Não existe nenhuma outra pessoa?
  • Não — disse Susanna sem demonstrar qualquer ressentimento pelo fato.— Sim, passei por isto — confessou Susanna. — E você disse muito bem, é uma bobagem muito grande. Minha mãe e minha tia Jessica, lady Weston, esforçaram-se para que eu fosse um sucesso. Naquela época eu tinha dezoito anos, e nos mudamos temporariamente para Londres. Tia Jessica deu dezenas de festas para ver se conseguia me arranjar um bom partido.— Para ser franca, devo confessar que me sentia como uma mercadoria exposta em uma vitrine.— Contudo, foi tudo pura perda de tempo — continuou Susanna. — Todos aquele vestidos cheios de fitilhos e rendas, os chapéus, luvas e fricotes, me irritavam. Não gosto de exageros, sentia-me co­mo se estivesse fantasiada. Acabei desistindo de querer fazer suces­so em sociedade.

 

    • O major não aguentou o comentário e explodiu em uma sonora gargalhada.
    • Hugh sorriu, divertido, e Susanna prosseguiu:
    • — O quê? Vai me dizer que não foi obrigada a passar por toda aquela bobagem de apresentação oficial à sociedade?
  • Não encontrou ninguém que a agradasse, em especial?
  • Não, ninguém. Nenhum dos cavalheiros que conheci conseguiu fazer com que eu desejasse ser desposada. Então, minha mãe e tia Jessica ficaram terrivelmente desapontadas e me acusaram de ingratidão. No fim, voltamos para casa sem que eu tivesse conquistado o tão desejado marido — concluiu Susanna, falando como se toda aquela história fosse apenas uma grande piada.
  • E depois? — indagou Russell, curioso.
  • Bem, fiquei muito triste por achar que havia dado uma gran­de desilusão à minha mãe e minha tia. È foi aí que surgiu o tal sr. Biggins. Ele era uma boa pessoa, só tinha um probleminha: não con­seguia pronunciar o som da letra "S".
  • Quem afinal era o sr. Biggins? — quis saber Hugh.
  • Era o pastor local, um homem muito respeitável. Mas como eu poderia me casar com um homem que nem sequer conseguia pro­nunciar meu nome?
  • Seu nome?
  • Sim, Susanna tem dois esses. Já imaginou ter um marido me chamando o tempo todo de Tutanna?— Acho que você já percebeu que me recusei a casar com ele — disse Susanna. — Fiquei aborrecida, porque minha mãe e minha tia haviam se esforçado muito para que eu conseguisse ser feliz. Temo ter sido meio ingrata...— Jamais diga isso, Susanna. É claro que você não foi ingrata. Tenho certeza de que sua mãe e sua tia nem chegaram a consultá-la para saber se desejava mesmo passar por toda aquela história de apresentação e tudo mais...

 

    • Susanna ficou pensativa.
    • Hugh parou de rir no mesmo instante e fitou-a muito sério.
    • O major cobriu o rosto com as mãos e gargalhou divertido duran­te alguns segundos.
  • Sabe que nunca encarei o assunto desta maneira?
  • Mas deveria. Na verdade, acho você uma moça encantadora, e não creio que sua mãe e sua tia estivessem certas quando diziam que você era um fracasso social. É uma jovem muito bonita, Susanna.
  • Oh, não! — objetou ela com veemência. — Viola é uma mu­lher bonita, não eu.
  • Você está falando de outro tipo de beleza, minha cara. Aquela a que me refiro é a que vem de dentro, e não tenho dúvida de que você é a jovem mais sensível que já encontrei.Havia uma aura tão eletrizante naqueles lábios rosados que se en­treabriam que Hugh Russell não resistiu; sem parar para pensar, beijou-os com ternura.— Por favor... Não faça isto!— Sinto muito — disse Hugh, afastando-se de repente. — Eu não deveria ter sido tão leviano — declarou, levantando-se com uma ex­pressão muito séria no rosto. — Agora, se me der licença... Preciso escrever uma carta.

 

    • Nenhum homem jamais a tinha beijado antes, e Susanna não sa­bia como reagir àquela sensação ensandecedora que a envolvia. A suave pressão dos lábios carnudos contra os seus acendia uma cha­ma impossível de apagar em sua alma. Era um desejo irracional de ficar cada vez mais próxima daquele homem que roçava a face mo­rena contra a sua... Como podia entregar-se daquela maneira a uma emoção tão irracional?
    • Susanna ficou imóvel, aturdida demais para esboçar qualquer reação. Seu coração batia tão descompassado que ela chegou a pensar que a qualquer momento saltaria para fora de seu peito. Recupe­rando um pouco do bom senso, murmurou, embaraçada:
    • Ela o fitou desconcertada e separou ligeiramente os lábios, como se tivesse intenção de fazer algum comentário.
  • Sim, claro — sussurrou Susanna, mal contendo suas emoções. Assim que o viu alcançar a porta, gritou num impulso repentino:
  • Hugh!— Fui muito indelicada quando me deu a caixinha de música. Ela é muito bonita, vou guardá-la comigo — disse Susanna, enru­bescendo.—Talvez fosse melhor que a jogasse no lixo! — exclamou, afastando-se sem mais uma palavra.Leo estava voltando de uma cavalgada pelas coli­das que circundavam a mansão Harte. Quem o conhecia bem sabia que ele sempre ficava de bom humor quando tinha um bom cavalo por perto. Por isso é que muitos estranhavam o fato de o rapaz ter perdido toda sua fortuna apostando em corri­das de cavalos. Afinal, entendendo do assunto como entendia, era de se esperar que ganhasse sempre. Infelizmente, contudo, tal não acontecera, e em menos de três anos o jovem dilapidara a fortuna que o pai lhe havia deixado. O pior era que para manter-se Leo aca­bara contraindo sérias dívidas, e muitos de seus credores passaram a persegui-lo furiosamente.Leo sorriu ao lembrar-se da enrascada em que se metera. Não lhe agradava o fato de viver de favores de parentes, mas o que mais ha­veria de fazer? Sabia que estaria protegido da miséria total enquan­to sir Frederick vivesse. O velho cavalheiro, porém, já estava com sessenta e cinco anos; quando ele morresse, Leo seria obrigado a pro­curar outra solução para seu problema. A única alternativa que lhe ocorria era casar-se com uma rica herdeira. Entretanto, não tinha dinheiro suficiente para arcar com as despesas exigidas pelo ato de fazer a corte a uma dama. Percebia que estava cada vez mais envol­vido naquele círculo vicioso que era a falta de dinheiro. Deixara-se ficar na mansão Harte, sendo sustentado pelo tio, e tendo casos, aqui e acolá, com algumas criadinhas que se contentavam em receber al­guns guinéus ou um metro de fita de cetim em troca de um momento de amor. Acabara se convencendo de que casar com Susanna era sua única chance de salvação. Afinal, ela era a herdeira de todas as posses de sir Frederick.— Eu gostaria que o diabo o fizesse desaparecer para sempre da face da Terra, major Russell! — exclamou Leo em voz alta, verbalizando o que lhe passava pela cabeça.— O que ela estará fazendo ali? — resmungou o jovem, aproximando-se da figura embevecida com o reflexo de sua própria imagem na água. — Bom dia, lady Harte! — cumprimentou ele, saltando do cavalo e parando ao lado da mulher morena. — Este é o último lugar em que eu esperava encontrá-la.

 

    • Viola enrolou-se ainda mais no casaco de pele que vestia e pare­ceu assustar-se com a chegada de Leo.
    • Perdido em pensamentos, dirigiu seu cavalo para a margem de um pequeno canal de irrigação que atravessava os jardins da mansão. Quando levantou os olhos para observar a paisagem, viu uma mu­lher que se debruçava sobre o gradil da pequena ponte em forma de arco sobre o canal, onde a água formava um espelho natural.
    • No entanto, mesmo aquela saída que lhe parecia tão certa, come­çava a mostrar-se ameaçada pela chegada inesperada do sobrinho de lady Harte.
    • Sem ter como saldar seus débitos ele recorrera a seu velho tio Fre-derick, que para manter o bom nome da família liquidara todas as dívidas que o rapaz contraíra e ainda lhe proporcionara uma pensão anual. Mesmo assim Leo precisara mudar-se para a mansão, pois não tinha condições financeiras de manter uma casa e serviçais. O dinheiro que sir Frederick lhe dava cobria apenas as despesas pes­soais de um jovem cavalheiro.
    •  
    • Ele suspirou profundamente, parecendo estar aborrecido.
    • O major voltou-se para atender o chamado.
  • O inverno é muito entediante. Dentro de casa sinto-me enjaulada. Além disso, tive uma terrível dor de cabeça e achei que uma caminhada iria me ajudar a relaxar. Não acha que este lugar é bastante romântico? — indagou ela por fim, tentando mudar de assunto.
  • Não, não acho — disse Leo, com honestidade. — Mas, afinal, não sou um homem romântico. Susie já tentou me converter à causa emprestando-me um livro do poeta Byron, porém não consigo interessar-me por coisas tão fantasiosas.

 

    • Viola não fez qualquer comentário e Leo achou que ali estava uma boa oportunidade para satisfazer uma curiosidade sua.
  • Lady Harte, posso lhe fazer uma pergunta?
  • Que pergunta? — replicou ela, desconfiada.
  • É sobre seu... sobrinho. Quanto tempo ele ainda vai ficar por aqui?
  • Não mais que uma semana! — respondeu Viola, em tom agressivo.
  • Vai partir tão rápido assim? — comentou Leo, visivelmente satisfeito com a notícia. — Esplêndido! Isto é, que pena...
  • O que o preocupa, Leo? — indagou a mulher morena, com malícia. — Está com medo de que sua prima se apaixone perdidamente por Hugh? Ela estará perdendo tempo se o fizer. Meu sobri­nho é um conquistador de mão cheia, e todos conhecem a fama que tem. Não se pode confiar em Hugh quando o assunto é mulher.
  • Quando diz que não se pode confiar no major Russell, o que pretende insinuar? Quero dizer, até que ponto o seu sobrinho seria capaz de chegar?
  • Até o ponto que a moça permitir que ele chegue — retrucou Viola. — Não é assim com todos os homens? Mas Susanna já tem vinte e sei anos. Suponho que ela já conheça algumas das verdades da vida e saiba como se cuidar.
  • Não tenho tanta certeza — comentou Leo, parecendo muito preocupado.

 

    • Uma expressão traiçoeira surgiu no rosto bonito de lady Harte.
  • Então é melhor que você cuide bem de sua prima, meu rapaz. Francamente, está deixando que o inimigo avance dentro de seu próprio território. Não perca tempo, caso contrário pode prejudicar sua grande oportunidade de arrumar-se na vida.
  • Tem razão — admitiu o jovem. — Mas acontece que o casamento é muito ... Bem... Sabe o que quero dizer, uma esposa tira a liberdade de um homem.
  • Sei muito bem o que quer dizer! — exclamou lady Harte com amargura. — E já que estamos falando no assunto, Leo, saiba que se não se casar com Susanna vou impedir que continue explorando sir Frederick como vem fazendo.

 

    • Ele enrubesceu, indignado.
  • Escute aqui...
  • Escute você, Leo! Muitas coisas irão mudar na mansão Harte. Freddie tem coração mole, e você está se aproveitando da situação! Agora, se pretende se casar com Susanna, faça isto logo e leve-a para morar em algum lugar bem longe daqui.
  • Acho que entendi... Quer se livrar de Susie, não é?
  • Exato! Se você se casar com ela, permitirei que Freddie continue a sustentá-lo. Caso contrário, pode começar a se preparar para ir embora da mansão, Leo!
  • O que está fazendo aqui? — indagou Susanna a Hugh.

 

    • Ele se aproximava dos canteiros da horta, onde ela conversava com um criado a respeito dos vegetais que deveriam ser plantados.
  • Sou um homem interessado pelas coisas da terra — respondeu o major.
  • Duvido! Mas o que é isto que tem na mão? — quis saber Susanna, olhando curiosa para o pedaço de vidro que ele carregava. Hugh ergueu o material e sorriu divertido.
  • Pedi ao jardineiro que encontrasse um pedaço de vidro para mim. Quero fazer uma experiência importante.
  • Você às vezes é tão enigmático ! — exclamou ela, divertida. — Que tipo de experiência pode fazer com um pedaço de vidro co­ mo este?

 

    • — Vamos até a sala de estar que eu lhe mostro — disse Russell. Enquanto caminhavam pelo pátio, ele prosseguiu:
  • Sabe, sempre quis ser um cientista. Acho que inventar e des­cobrir coisas pode ser fascinante.
  • Era por isso que estava tão interessado em saber mais sobre minerais?

 

    • Ele a fitou, confuso.
  • Como assim?
  • Ora, não era você mesmo que estava lendo um livro sobre as propriedades dos minerais ainda outro dia, lá na biblioteca?
  • Você é uma moça muito perspicaz, Susanna. Gostaria de ter notado isto antes, assim teria sido mais cauteloso em sua presença. Tem toda a razão, andei lendo o livro porque estava interessado em fazer uma experiência.Entraram na casa e, chegando à sala de estar, Hugh puxou uma cadeira para que Susanna se sentasse. Depois, pareceu se preparar para fazer algum tipo de mágica.

 

    • "Será mesmo?", perguntou-se ela em pensamento.
  • Pode me dizer que tipo de pedra é esta? — indagou ele mostrando o anel de ouro que trazia no dedo médio, no qual estava in­crustada uma pequena gema reluzente.
  • Sem dúvida é um diamante — afirmou ela, sentindo-se ridícu­la com aquela bobagem toda.

 

    • Hugh assentiu e murmurou:
  • Este anel pertenceu a meu pai, que foi quem me ensinou o truque que vou lhe mostrar agora. Os garotos costumam ficar maravilhados com ele.
  • Ao que parece, homens adultos também — comentou Susanna, brincalhona.— Tem certeza que não vai estragar o diamante que herdou de seu pai? — questionou ela, preocupada.— Está bem, acredito no que diz. Agora pare de esfregar o diamante contra o vidro, este barulho está me dando arrepios — disse Susanna, encolhendo-se toda.

 

    • — Ingrata! E eu que tive todo este trabalho pensando em lhe dar este pedaço de vidro personalizado com a letra inicial de seu nome para você enfeitar sua escrivaninha pessoal... Por outro lado, um simples caco de vidro não tem importância nenhuma, mesmo.
    • — Absoluta! — afirmou Hugh mostrando-lhe a superfície do pedaço de vidro, onde desenhara um belo "S". — Viu só? Um verdadeiro diamante é capaz de riscar o vidro! — declarou, triunfante.
    • O major sorriu. Segurou o pedaço de vidro com cuidado, para não se cortar, e começou a esfregá-lo com a pedra do anel. Parecia mui­to compenetrado enquanto demonstrava as propriedades do mineral.
  • Hugh —, começou ela, divertida —, você tem um jeito muito peculiar de dar presentes para as outras pessoas. Fica dizendo que não os deseja ou então tenta dar a eles um ar de insignificância.
  • Oh, que péssimas maneiras as minhas! — exclamou ele no mes­mo tom brincalhão que ela usara.
  • Nem tanto! Já percebi que faz isto por timidez.
  • Timidez, eu? — repetiu Hugh perplexo. Acho que pouquíssi­mas pessoas concordariam com você.
  • Não me importo. Tenho certeza de que estou com a razão. Teme que seus presentes sejam rejeitados e tenta fazer com que pareçam sem importância alguma para você.
  • Acho que se eu não tivesse outras preocupações mais importantes, começaria a ter medo de você, Susanna. É muito perspicaz para uma dama, e isto me deixa nervoso. Estou começando a ficar assustado.
  • Não acredito! — disse ela, desconfiada.
  • Não mesmo? — indagou ele tomando as mãos delicadas entre as suas. — Sabe Susanna, você é muito diferente das outras moças que conheci e isto faz com que eu não saiba como agir quando você está por perto. Acho que vai me achar um tolo por confessar-lhe o que se passa em meu íntimo, mas...— Quando chegou aqui, Hugh, perguntei por que tinha vindo. Acreditava que tinha uma razão muito especial para vir até nossa casa. Continuo acreditando que esta razão existe, e gostaria que me contasse o que se passa.

 

    • Ele meneou a cabeça, tristemente.
    • —De forma alguma — declarou ela depois de uma leve hesitação. Como ele não fizesse qualquer outro comentário, Susanna resol­veu prosseguir:
  • Melhor não, Susanna.
  • Por quê? Vejo que está muito preocupado... Sabe, algumas vezes é preciso dividir a aflição que nos vai na alma. Tem certeza de que não pode confiar em mim? Acho que somos amigos.
  • Obrigado, você é uma pessoa muito sensível e fico feliz que me considere seu amigo. Porém, é melhor que eu continue a carregar este fardo sozinho. Mas o que a faz pensar que estou tão preo­ cupado?
  • Não sei bem — confessou Susanna com sinceridade. — Está conosco há tão pouco tempo que não consigo definir o que me faz pensar que tem algum problema. Mesmo assim, tenho certeza de que algo o aflige, é como se já nos conhecêssemos por anos a fio...— Talvez você me compreenda tão bem, Susanna, porque nós dois temos algo em comum. Ambos fomos discriminados em nossos mundos, eu por meus vizinhos anglicanos e você por ter coragem sufi­ciente de dizer "não" aos costumes matrimoniais de uma sociedade.— Não posso ler suas mãos porque não sou um cigano — disse em tom carinhoso. — Mas se pudesse, desejaria que você fosse a pes­soa mais feliz do mundo, Susanna.

 

    • Russell parecia tão sincero que ela sorriu, comovida.
    • Delicadamente, ele acariciou as mãos delicadas e ficou a fitá-las, intrigado.
    • Hugh fitou-a enternecido e segurou as frágeis mãos femininas de encontro a seu peito.
  • Obrigada...
  • Não tem de quê — replicou ele com um leve sorriso enquanto levava a ponta dos dedos pequeninos aos lábios.

 

    • De súbito, aquele momento mágico foi quebrado por uma porta que se abriu atrás deles.
  • Acho que está se esquecendo das boas maneiras, major Hugh! — exclamou Leo, muito zangado, entrando no aposento. — É me­lhor soltar minha prima.
  • O senhor é que deve ter se esquecido de que não se entra assim, de repente, em uma sala. Assustou a dama, não percebe?

 

    • —Para mim o senhor está mais assustado que ela, major! Susanna percebeu que uma séria discussão se aproximava e resol­veu interferir.
  • Não seja tolo, Leo. Você compreendeu mal a situação.
  • Duvido muito! — vociferou o rapaz, não aceitando interfe­rências.Desconfiada, Susanna olhou de um para ou outro. Havia uma at­mosfera de tensão pairando na sala, e ela começou a ficar preo­cupada.

 

    • Srta. Harte —, começou Hugh, gentilmente —, talvez seja melhor retirar-se, pois seu primo deve estar querendo me dizer algu­mas coisas em particular.
  • Está bem — disse, por fim. — Mas prometam que não vão fazer uma tolice!
  • Saia logo, Susie — ordenou Leo, bruscamente. — Este é um assunto para ser resolvido entre cavalheiros.— Eu deveria era ter esmagado a cabeça dura daqueles dois. Posso apostar que vão acabar discutindo!

 

  • Em seguida, levantou-se para pegar a caixinha de música que Hugh lhe dera. Os acordes suaves emitidos pelo delicado objeto tinham o poder de acalmá-la.
  • Não havia mais nada que ela pudesse fazer. Subiu para o seu quarto e jogou-se na cama, resmungando:
  • Leo Drayton, pensei tê-lo ouvido dizer outro dia que não gos­tava de duelos — disse Hugh, com cinismo.
  • E não gosto — respondeu Leo, irado. — Mas também não sou um covarde, e não estou preparado para ficar sentado, só olhando, enquanto você engana vergonhosamente minha prima.
  • Jamais tentei enganar a srta. Harte. Fique sabendo que sinto uma grande amizade por ela.
  • Dê o nome que quiser ao que sente. Mas sei muito bem que Susanna não saberá lidar com uma situação de flerte como a que você está criando. Ela passou quase a vida toda enterrada neste fim de mundo. Lady Harte me disse que você partiria na semana que vem, entretanto este incidente me obriga a exigir que vá embora ime­diatamente, major!
  • Sinto muito — replicou Hugh, calmo. — Não posso fazer o que me pede.
  • Por que não? — questionou Leo, ainda mais irritado.
  • Porque ainda não fiz o que vim fazer aqui. E não adianta me perguntar do que se trata, não posso lhe revelar nada.Hugh possuía excelente reflexos, e antes que seu adversário pu­desse atingi-lo com um soco no nariz ele desviou o corpo e jogou o rapaz de costas no chão.Caminhando até o local em que jazia seu adversário, Hugh fazia menção de abaixar-se quando sentiu duas mãos segurarem firmemen­te seu tornozelo e puxá-lo.De súbito, Leo sentiu que duas mãos fortes o agarravam pelas costas.Imediatamente os dois cavalheiros colocaram-se de pé.

 

    • — Levantem-se! — ordenou sir Frederick numa voz que não ad­mitia desobediência, erguendo o sobrinho do chão.
    • Leo blefara. No mesmo instante em que derrubou o homem mo­reno que teimava em atrapalhar seus planos de casamento com Su­sanna, jogou-se sobre ele. Os dois homens se atracaram a socos e pontapés, como animais enfurecidos.
    • Leo ficou estendido sobre o assoalho de madeira sem esboçar qual­quer movimento, e o major começou a achar que havia exagerado na força do golpe.
    • Para Leo, que já fora espezinhado por Viola há menos de uma hora, as palavras de Russell foram demais. O moço investiu contra o visitante indesejado.
  • Desculpe-me, sir! — disse Hugh quando viu a expressão tempestuosa no rosto de sir Frederick.
  • Acho que os senhores enlouqueceram. Não quero nem saber o motivo que os levou a se atracarem como dois guris idiotas. Só quero frisar que esta é minha casa e que não vou admitir que isso se repita — declarou o pai de Susanna. — Leo!
  • Sim, tio — gemeu o rapaz, que sangrava pelo nariz.
  • O major Russell é um hóspede em nossa casa. Você deve tratá-lo com respeito!
  • É claro que sim. Desculpe-me, tio — sussurrou o moço, ca­bisbaixo.
  • E quanto ao senhor, major Russell —, disse sir Frederick com o dedo em riste —, este comportamento belicoso pode ser muito comum no exército, mas não o admito em minha casa!
  • Peço-lhe mil perdões, sir — disse Hugh, tentando manter a dig­nidade apesar de alguns ferimentos visíveis.
  • Fui eu quem começou a briga, titio — confessou Leo, inesperadamente.

 

    • O major olhou o jovem de soslaio e afirmou:
  • Na verdade, sir Frederick, eu ofendi sem querer o seu sobrinho. Não foi intencional.
  • O que me faz supor que ambos se arrependem do ato insano? Muito bem, major Russell. ...Leo!
  • Está bem, está bem, titio. Aceito as desculpas do major e pro­meto não guardar ressentimentos.— Agora vão se lavar, os dois! Imaginem se lady Harte e Susanna os encontram neste estado! E olhem só para a confusão que fize­ram na sala! Sir Frederick parecia realmente aborrecido com o incidente. - Lembrem-se, não quero mais nenhum confronto den­tro de minha casa. Entenderam?Susanna respirou aliviada ao notar, durante o jan­tar, que a paz havia sido restaurada entre os ha­bitantes da mansão. Tudo indicava que os cavalheiros já haviam re­solvido suas diferenças. Embora Leo estivesse com o nariz inchado e Hugh apresentasse uma das mãos enfaixadas, nenhum dos dois fez qualquer comentário sobre o que ocorrera naquela tarde.

 

    • Notícias da briga haviam chegado até Susanna por intermédio da zelosa sra. Merrihew.
    •  
    • Sob o olhar autoritário de sir Frederick, Hugh e Leo apertaram as mãos.
  • Alguns móveis foram quebrados, srta. Susanna. Precisaram ser mandados ao marceneiro para ver se ainda têm conserto. Mas se quer mesmo minha opinião, acho que vai ser preciso trocar a mo­bília da sala de estar.
  • Sabe como foi que aconteceu isto, sra. Merrihew
  • Oh, acredito que um dos cavalheiros deve ter escorregado e caído sobre os móveis, ou quem sabe os dois caíram — comentara a governanta com diplomacia. — Eu bem que disse para a arrumadeira não passar tanta cera no assoalho!Durante todo a refeição, Leo e Hugh procuraram evitar conver­sar um com o outro, porém nenhum outro incidente voltou a ocorrer.Sua madrasta estava usando o colar de brilhantes, e Russell pare­cia fascinado pelo brilho da jóia. Era óbvio também que ele insistia em um assunto que lady Harte fazia questão de evitar. Embora Su­sanna não pudesse ouvi-los, podia ver Viola menear a cabeça nega­tivamente, enquanto a postura de Hugh revelava que ele insistia no assunto.Viola parecia ter se cansado da insistência do sobrinho, pois levantara-se e caminhava para junto da lareira, onde estavam os demais.

 

    • —Veja aquilo! — sussurrou Leo ao ouvido da prima.
    • Mais tarde, quando todos já descansavam na sala de estar, Su­sanna viu quando Hugh deu um jeito de falar a sós com Viola.
    • — Está bem, sra. Merrihew, muito obrigada pela informação. Susanna sabia que a governanta jamais lhe diria o que realmente acontecera, e tivera de contentar-se com o que ouvira.
  • Não sei do que você está falando, Leo — mentiu Susanna.
  • Sabe sim, Susie. Você os estava observando, como eu, e tenho certeza de que pensava a mesma coisa!
  • Cale-se! — ordenou ela temendo que pudessem ser ouvidos por sir Frederick, que ressonava na poltrona ao lado.

 

    • Viola uniu-se a eles logo a seguir e entabulou conversa com Leo, deixando Susanna livre para ir até o canto da sala onde Hugh obser­vava uma pintura a óleo.
  • Minha mãe — disse ela, apontando para o quadro que retratava uma bela mulher. — A pintura foi feita no ano em que se casou.
  • É um trabalho de Reynolds, estou certo? — indagou Hugh com as sobrancelhas levemente arqueadas.
  • Sim. Ele conseguiu fazer com que mamãe parecesse bastante romântica e frágil neste retrato... Devo dizer que ela não era nada disso. Não que eu a esteja criticando, mas minha mãe era uma mulher muito prática e realista. Uma inglesa típica, se é que me compreende.— Eu compreendo — disse ele, por fim. — Mas...

 

    • Russell não terminou a frase e voltou o rosto de modo significati­vo na direção da atual lady Harte.
    • Hugh fitou o retrato onde uma jovem envolvida por uma massa suave de musselina e voile cor-de-rosa sorria timidamente.
  • Sei o que está pensando — afirmou Susanna. — Já me fiz a mesma pergunta. Acabei concluindo que era este o tipo de mulher com que papai sonhava quando se casou com minha mãe: romântica, feminina... Contudo, no cotidiano, mamãe era bem diferente do retrato que sir Joshua Reynolds pintou. Então, quando teve oportunidade de se casar novamente, papai escolheu uma pessoa como Viola.
  • É bem provável!— Hugh, você e Leo brigaram, não foi? Quero dizer, uma briga de verdade, com socos e tudo?— É isto que chama de briga de verdade, Susanna?

 

    • Sabe muito bem o que eu quis dizer. A sra. Merrihew contou-me que havia muita desordem na sala e que na certa vocês deviam ter escorregado por acidente. Mas é claro que não acredito nesta história.
    • Russell voltou-se para encará-la, e pela primeira vez naquela noi­te ela o viu sorrir.
    • Susanna examinou o major com atenção e finalmente fez a per­gunta que não lhe saía da mente.
  • É isto que eu chamo de mulher discreta — disse ele, parecendo ainda mais divertido. — A sra. Merrihew tem mais diplomacia que muitos políticos que conheço.
  • Não vai fazer brigar de novo, não é mesmo? — indagou Su­sanna, ignorando o comentário que ele acabara de fazer.
  • Pode ficar tranquila, se seu primo não insistir, a história não se repetirá. E se tornar a acontecer, pode estar certa de que não será dentro da mansão, caso esteja preocupada com a mobília.Hugh estranhou tal reação e fitou-a com ar indagador.

 

    • — Estou preocupada é com você! — replicou Susanna, com mais veemência do que pretendia.
  • E com Leo também, é claro! — tentou emendar ela. — Vocês poderiam ter se machucado seriamente!
  • Ora, somos dois homens e não dois vasos de porcelana chinesa que se rompem ao menor atrito, minha cara. Saímos inteiros da confusão, não foi?A criada retirou as fitas que mantinham os cabelos negros presos no alto da cabeça, e uma cascata de madeixas macias caiu sobre os ombros de Viola. Com um gesto nervoso, ela despachou a serviçal que a ajudava com a toalete noturna. No momento em que se viu a sós, lady Harte aproximou-se ainda mais do espelho para obser­var melhor o reflexo de sua imagem.Lady Harte estremeceu ligeiramente. A velhice era um aconteci­mento que temia mais que tudo na vida. Não suportava a ideia de que seu rosto sempre tão admirado seria devastado pela ação dos anos. Gemeu baixinho ante essa ideia e olhou para suas mãos ma­cias, que começavam a apresentar manchas escuras e um leve resse-camento. Petrificada, percebeu que ali estava a marca mais evidents de que não tinha armas para lutar seu maior inimigo: o tempo.Um figura alta e imponente refletiu-se no espelho, e lady Harte levou as mãos aos lábios para conter um grito.

 

    • Estava tão mergulhada em seus próprios dissabores que não ou­viu os passos que se aproximavam.
    • Sob a luz ténue das velas no candelabro era difícil notar os peque­nos vincos que começavam a formar-se em torno da boca e ao redor dos olhos. Viola tocou, pesarosa, a pele aveludada do rosto, e sus­pirou ao pensar que dentro de três ou quatro anos as pessoa come­çariam a olhar para sua figura elegante comentando que ela havia sido uma bela mulher.
    • Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa o major já estava ca­minhando para junto da lareira, onde Leo e Viola conversavam.
  • Aealme-se, Viola — disse Hugh, calmamente. — Não tive a menor intenção de assustá-la.
  • Há quanto tempo está aí? — perguntou ela, furiosa. — E o que está fazendo em meu quarto a esta hora da noite?
  • Ora, Viola, sabe muito bem que precisamos conversar.
  • Você esteve me espionando, Hugh! — acusou-o com amargura. — Eu sempre tive a impressão de que você é capaz de ler minha mente!
  • E algumas vezes eu sou capaz, mesmo — confessou ele sentando-se sem esperar por um convite. — Como agora por exemplo... Mas pode ficar tranquila, você continua tão adorável quanto sempre foi. É claro que não é a mesma de quando tinha vinte anos. Isto não quer dizer, porém, que esteja em desvantagem em relação àquela época. Está mais madura, mais graciosa. Não é mais uma menininha assustada. Confesso que eu, particularmente acho que você está bem melhor do que era há alguns anos.— Você tem razão, Hugh. Não posso mesmo esconder o que estou sentindo. Odeio perceber que estou envelhecendo. Freddie costuma me chamar de querida criança, e suponho que comparada a ele eu realmente o seja. Mas sei muito bem que não sou mais uma menina... Ah, Hugh, odeio isto, odeio!

 

    • Russell precisou reprimir um sorriso diante da atitude infantil da mulher que não queria envelhecer.
    • Viola soltou um suspiro de tristeza.
  • Seu marido a ama, Viola! — consolou-a, por fim. — Será que não percebeu isto?
  • Sim, claro que percebi! — exclamou ela, rapidamente.
  • Imagino que sir Frederick seria capaz de perdoá-la por quase todas as besteiras que cometeu. Se andou fazendo alguma asneira ultimamente, Viola, seria melhor contar a seu marido.

 

    • Ela fitou-o, beligerante.
  • Não fiz nenhuma bobagem! Agora vá embora daqui, Hugh!
  • Ainda não. Preciso falar com você sobre os brilhantes — anun­ciou ele o major, de modo brusco.— Já lhe disse que não há motivos para preocupar-se tanto com minhas jóias, querido sobrinho.

 

    • Lady Harte mudou completamente. Da exaltação anterior, nada restara. Em seu lugar, surgiu uma tranquilidade fria.
  • Viola —, começou Hugh, pacientemente —, se você tivesse al­gum problema que não pudesse contar a sir Frederick, seria capaz de confiar em mim?
  • De forma alguma! — retrucou ela, tornando a ficar irada. — Saia daqui, Hugh, saia antes que eu perca a cabeça!— Seja razoável, Viola. Vim aqui com a intenção de ajudá-la por que sou seu amigo, talvez o único amigo que você tem. Lembre-se bem disto!Felizmente ele tinha bons reflexos, e conseguiu desviar a tempo.Foi somente quando fechou a porta atrás de si que percebeu que havia alguém a observá-lo.

 

    • Susanna estava parada no centro do corredor e trazia um grande candelabro de bronze nas mãos.
    • — Que temperamento horrível, minha tia! — disse, zombeteiro, antes de sair.
    • Ainda mais furiosa com o que acabara de ouvir, lady Harte pe­gou uma pequena peça de porcelana que repousava sobre o touca­dor e atirou-a em direção ao major.
    • Russell dirigiu-se calmamente para a porta, mas antes de sair fez uma pausa e comentou:
  • Ouvi um barulho vindo do quarto de Viola... — começou ela, constrangida. — Parecia alguma coisa se quebrando.
  • Ela atirou um enfeite de porcelana em mim — confessou ele,sabendo que Susanna deveria estar intrigada com a cena que acabara de presenciar.

 

    • Afinal, era um homem que saía tarde da noite do quarto de uma dama bela e e atraente. Preocupado, argumentou:
  • Por favor, Susanna, não tire conclusões precipitadas. Não estava tentando seduzir Viola, só queria ter uma conversa particular com ela.
  • Sei... — comentou Susanna. — Acho que você esteve tentando fazer isto desde a hora do jantar.
  • Sim, estive. Mas começo a acreditar que estou perdendo meu tempo.
  • Leo acha que...— Sim? Leo acha o quê? — insistiu Russell.— Eu disse a Leo que era bobagem... Mas meu primo acha que você foi...

 

    • Ela parecia extremamente confusa com tudo que estava aconte­cendo, e apertando o xale contra os ombros comentou num fio de voz:
    • Susanna interrompeu a frase no meio, bruscamente.
  • Amante de Viola? Não, nunca! Somos parentes consanguíneos e talvez eu seja o único amigo que ela já teve.
  • Fico feliz de vê-lo negar a acusação — confessou Susanna, parecendo aliviada. — Ainda bem que nunca acreditei nas tolices que meu primo disse.
  • Vou partir daqui a um ou dois dias, Susanna — disse Hugh mudando abruptamente de assunto.

 

    • Ela estremeceu de leve e o candelabro oscilou em suas mãos.
  • Por que ir embora tão cedo? O tempo está tão ruim para que você se aventure nas estradas... Está todo mundo dizendo que há uma forte nevasca a caminho da nossa região.
  • Então é melhor que eu parta antes da neve chegar, se não as estradas vão ser bloqueadas. — o major deu alguns passos como se tivesse intenção de afastar-se; parou, contudo, ao lado dela, e declarou após uma breve pausa: — Sinto muito se lhe causei algum problema enquanto es_tive aqui. Vim para cá com a esperança de conseguir algo, mas acho que me enganei. Foi um grande prazer conhecê-la, Susanna. Estou dizendo isto neste momento, embora eu vá repetir a mesma coisa quando me despedir oficialmente, porque gosta­ria que soubesse que estou sendo sincero e não apenas educado.Russell segurou-lhe de leve o queixo.Com ternura, ele se curvou e cobriu os lábios rosados com os seus.O major pareceu ler seus pensamentos. Movendo os braços for­tes, enlaçou-a pela cintura e comprimiu o corpo delicado contra seu peito.— Não!Russell notou o olhar triste e envergonhado de Susanna e comen­tou gentilmente:

 

    • Susanna sentiu o rubor consumir suas faces, e a humilhação de ser rejeitada atingiu seu pobre coração inexperiente. Havia dado as costas a todas as normas do bom comportamento e ele a rejeitava dessa maneira! Como podia fazer isto? Uma lágrima brotou no canto dos olhos acinzentados. Ela gemeu, sentindo-se completamente in­defesa diante daquele homem moreno. Ele a tocara de maneira tão íntima e alucinante... Ninguém jamais a envolvera nos braços com paixão, Hugh fora o primeiro.
    • Estranhamente, Susanna reagiu ao desejo que a incendiava como se fosse a coisa mais natural do mundo. Nenhuma norma da socie­dade repressora em que vivia conseguia impedi-la de sentir prazer ao ser acariciada por aquele homem moreno de lábios macios. Que­ria mais, queria muito mais, e não se importava com o que as pes­soas pudessem pensar dela. Suas emoções eram muito mais importante que qualquer outra coisa no mundo. Pressionou o rosto com sofreguidão contra o peito de Russell, e permitiu-se sorver a magia do momento... De repente, porém, Hugh a afastou.
    • Susanna sentiu que todo seu corpo queimava em razão daquele toque delicado, e desejou que Hugh a segurasse mais junto dele.
    • — Também acho uma pena, Susanna. Mas está na hora de par­tir...
    • —É uma pena você ter de ir embora, Hugh... — sussurrou ela. Os olhos acinzentados buscaram os dele, e havia uma emoção no­va cintilando nas pupilas dilatas pela escuridão.
  • Sinto muito, acho que me comportei mal com você.
  • De fato! — exclamou ela, a ira tomando o lugar da tristeza.
  • Procure entender, fui soldado durante muito tempo e acabei perdendo a noção de boas maneiras. Preciso me acostumar de novo a me comportar bem em presença de uma dama. Peço que aceite mi­nhas desculpas.
  • Vá para o inferno com suas desculpas! — gritou ela, lutando para impedir que as lágrimas banhassem seu rosto delicado. — Não quero ouvir mais nada! Vá embora logo, major Hugh! Passaremos muito bem sem o senhor!Na manhã seguinte, Leo acordou muito cedo e mais animado que o habitual. Tomou um cuidado extra na hora de vestir-se. Mirou-se ao espelho e notou aliviado que a aplicação da compressa fria que Viola lhe recomendara havia surtido efeito, pois seu nariz já desin­chara. Arrumou a gravata três vezes antes de dar-se por satisfeito com o resultado obtido.

 

    • Com um brilho zangado no olhar, Susanna virou-se e desapare­ceu no corredor, deixandaHugh entregue à escuridão e a seus pró­prios pensamentos.
  • Limpou minhas botas com champanhe, como mandei, Hill?— perguntou ao criado que o ajudava.
  • Sim, sr. Leo.
  • Ótimo! — exclamou Leo, enquanto calçava as botas reluzen­tes que Hill acabara de lhe entregar.Charlie Treasure, escondido num dos cantos da sala de visitas, viu quando o moço passou em direção a biblioteca.Leo, entretanto, não notou que estivera sendo observado, pois na­quela manhã todos os seus pensamentos estavam voltados para a pri­ma Susanna. Era chegado o momento de resolver sua situação naquela casa, e Susie era o caminho mais fácil e seguro para sua re­cuperação financeira. Com as mãos ligeiramente trémulas, ele abriu a porta que dava acesso à imensa biblioteca mantida por sir Frederick.Leo ficou a caminhar impaciente de um lado para outro, até que finalmente a governanta os deixou a sós.

 

    • Susanna e a sra. Merrihew encontravam-se no aposento, revisan­do o cardápio da semana.
    • — Tão arrumadinho, mas aposto que nem teve a decência de pagar pela própria roupa! — exclamou Charlie para si mesmo, enquanto sorria de modo sarcástico.
    • Quando finalmente o espelho lhe revelou que não havia um fio de cabelo fora do lugar, ele desceu as escadas com o ar pomposo dos rapazes que sabem que sua presença causa furor entre as donzelas.
  • Isso não deveria ser trabalho de Viola? — indagou ele, indig­nado, esquecendo-se momentaneamente do propósito da conversa.
  • Está brincando? Viola supervisionando o cardápio? Nunca! Tenho certeza de que ela prefere que eu mesma cuide do assunto!
  • Está bem, esse problema não é da minha conta, mesmo! —exclamou Leo, mais sério do que o habitual. — Susie, estou feliz por estarmos a sós. Preciso ter uma conversa particular com você.— Está muito elegante hoje, Leo. Nunca o vi tão bonito — co­mentou ela com ternura.Puxando uma cadeira para mais perto da escrivaninha da prima, ele sentou-se e arrumou a gola casaco antes de começar a falar.

 

    • — Obrigado — agradeceu o rapaz.
    • Susanna deixou a pena de lado e recostou-se na cadeira para fitar o primo com certa curiosidade.
  • Susie, peço que me ouça com muita atenção, porque o que vou dizer é muito importante para nós dois.
  • Está bem, Leo — retrucou ela, obediente.
  • Bem, tenho vivido aqui na mansão há algum tempo, e a proximidade fez com que nos conhecêssemos muitíssimo bem! — Ele fez uma pequena pausa, como se procurasse recordar um discurso decorado. — Acho que nem é preciso que eu diga que gosto muito de você, Susie.
  • Obrigada, Leo, Também gosto de você.
  • Aí está! — exclamou ele, satisfeito. — Foi justamente isso que me animou a ter essa conversa! Susie, você já está com vinte e seis anos, e eu vou completar vinte e oito no mês que vem. Então, acho que já esta mais que na hora de colocarmos as coisas em seus devi­dos lugares.
  • Como assim? — indagou Susanna, aturdida com o que o pri­mo acabara de falar.
  • Por Deus, Susie, não seja tão obtusa! Sabe muito bem que estou falando em casamento.

 

    • Fez-se um silêncio constrangedor, e Susanna passou da palidez do susto ao enrubescimento da indignação.
  • Leo! — exclamou, incrédula. — Será que estou ouvindo bem? Está me pedindo para casar com você?
  • Sim — respondeu ele, tranquilo. — Não foi o que acabei de dizer?
  • Casar com você... — repetiu Susanna, completamente deso­rientada diante de tal ideia.
  • Susie! — interrompeu-a o rapaz. — Não pode estar assim tão surpresa, já devia saber que isso aconteceria um dia.
  • Não, Leo, não sabia — confessou ela com franqueza. — Jamais me passou pela cabeça que você tivesse a intenção de me desposar, pois nunca mencionou nada.
  • Não queria apressá-la — informou Leo, tentando mostrar-se mais virtuoso do que na verdade era. — Queria que você se decidisse aos poucos, apreciando minha companhia para depois...
  • Honestamente, Leo, você consegue nos imaginar casados?
  • Claro que sim! — exclamou ele, ofendido. — Caso contrário não teria feito o pedido.
  • Por que me pediu minha mão, Leo? Quero dizer, por que escolheu justo hoje para fazer o pedido?

 

    • O rapaz suspirou, exasperado.
  • Já lhe disse que queria dar um tempo para você. E este tempo esgotou-se. Além do mais, estamos começando um novo ano e ...
  • E esta é sua resolução de Ano Novo — completou Susanna por ele. — Primeiro você se casa comigo, depois...
  • Pare! — ordenou Leo, zangado. — Está zombando de mim, Susie. E pode apostar que não estou gostando disso!
  • Sinto muito. Mas sua proposta foi completamente inesperada. De qualquer forma, agradeço muito por tê-la feito, Leo. Senti-me lisonjeada. Por outro lado, acho que um de nós acabaria levando o outro às raias da loucura. Sendo assim, receio que eu deva recusar o seu pedido.
  • Recusar? — repetiu ele, atónito. — Você não pode!— Ora, escute aqui! — Leo começou a ficar agitado. — Convivemos nesta casa por bastante tempo e nenhum de nós enlouqueceu. Por que isto aconteceria se nos casássemos?

 

    • Sim, eu posso.
  • Por que o casamento não é uma coisa tão simples quanto a convivência diária sob o mesmo teto, é muito mais! — Susanna principiou a irritar-se com o comportamento do primo. — Francamente, Leo! Acho que deveria entender o que estou tentando dizer. Gosto muito de você, mas não a ponto de querer ser sua esposa. Eu o con­sidero um primo querido, mas não estou apaixonada por você.
  • Então é isso! — gritou Leo, perdendo toda a compostura. —Agora entendo, você não me engana! Eu bem que adivinhei...
  • Enganar? Que história é essa? Tenha calma, Leo!
  • Calma? É óbvio que um homem não pode ter calma quando é rejeitado por causa de outro. E tudo aconteceu bem debaixo de meu próprio nariz! Eu sabia, eu sabia... — vociferou ele no auge da fúria. — Você está apaixonada por Russell! Perdeu a cabeça, não é, Susie?
  • Já chega! — exclamou ela, zangada, elevando a voz. — Está dizendo um monte de asneiras!
  • Estou certo do que digo, Susie! Vamos, encare os fatos! Eles permaneceram parados, fitando-se de maneira beligerante. Leo foi o primeiro a recuperar o bom senso.
  • Ouça, Susie... — começou ele num tom apaziguador.
  • Não vou ouvir nada!Susanna acabou fazendo o que ele dissera.

 

    • — Vai sim — afirmou o rapaz, assumindo uma postura autoritá­ria que ela nunca vira antes.
  • Preste atenção no que vou lhe dizer, Susie, e pode estar certa de que não estou mentindo. O major Russell é um safado. Deveríamos ter tentado descobrir mais coisas a respeito dele antes de tê-lo aceito dentro desta casa. Mas acabamos permitindo que ficasse, porque Viola afirmou ser sua parenta. E, céus, olhe só para os outros amigos dela! Será que dá para confiar?
  • Não vou ficar aqui sentada enquanto você tenta denegrir a ima­gem do major, Leo! — exclamou ela, enfurecida. — Ele é um hós­pede nesta casa e, como tal, deve ser tratado com respeito.— Tenha um pouco de bom senso, Susie!

 

    • O rapaz parecia tão bem intencionado que Susanna também se esqueceu de sua ira.
    • Leo parou junto da cadeira em que a prima estava sentada e fitou-a agoniado. A raiva pareceu diminuir. Ele se ajoelhou e tomou as mãos pequeninas de Susanna entre as suas, num gesto evidente de súplica.
  • Oh, Leo, sei que só deseja o melhor para mim. Mas não preci­sa se preocupar, sei me cuidar muito bem.
  • É o que você pensa! — gemeu ele, magoado. — Veja bem, Susie, posso entender como se sente. Aqui está você enfiada neste fim de mundo, e de repente chega um homem charmoso e atraente como Russell. Por Deus, você não seria humana se não se interessasse pelo camarada! Sei, contudo, que não está preparada para se relacionar com alguém como o major. Ele já teve centenas de mulheres a seus pés!

 

    • As faces normalmente tão alvas de Susanna tornaram-se escarlate com a insinuação contida nas palavras de Leo.
  • Pare com isto, Leo. Levante-se e pare de agir como uma criança birrenta. Tenho certeza de que não tem motivos para falar tão mal do major Hugh.
  • Não? Você é uma ingénua, Susie! Quando foi para Londres, sua mãe e tia Jessica, duas mulheres experientes, cuidaram para afastá-la de tipos perigosos como Russell. Mas agora você não conta mais com a proteção delas, e não tem experiência alguma com os homens. Minha cara, há um major Russell em cada esquina de Londres tentando encontrar uma rica herdeira que o sustente e o afas­te das agruras da guerra!— E você, Leo? Será que também não está querendo uma rica herdeira que o sustente?— Está bem, Susie. Admito que o dinheiro teve uma parte importante em minha proposta. Não há como negar que preciso dele para viver. Mas realmente gosto muito de você. Não quero vê-la sendo destruída por Russell. E depois, sempre pensei que um dia nos casa­ríamos... — confessou ele desalentado.

 

    • Susanna notou o ar perdido do rapaz e uma imensa ternura supe­rou sua raiva.
    • Leo levantou-se de um salto.
    • Susanna levantou-se tão de repente que Leo foi jogado de costas no chão. Com um movimento rápido, ela se afastou do primo e fitou-o com um olhar tão zangado que o rapaz chegou a assustar-se.
  • Leo, sinto muito que tenha pensado isto. Tal ideia nunca me ocorreu. Sempre o encarei como um grande amigo, nada mais. De uma coisa pode estar certo, mesmo que o major Russell não tivesse aparecido, eu teria recusado seu pedido. Não posso me casar com você!

 

    • Está bem — murmurou Leo sem ousar encará-la.
  • Agora, quanto aos meus sentimentos pelo major —, prosseguiu Susanna —, posso lhe assegurar que não estou tão enlouquecida a ponto de fugir com ele! — Ela viu a expressão de espanto no rosto do primo e apressou-se a esclarecer: — Por favor, não pense que ele me fez tal proposta. Na verdade, Hugh até me disse que estaria partindo em breve, dentro de um ou dois dias, talvez...
  • Mentiroso! — resmungou Leo, ainda inconformado.
  • Ele não é mentiroso! — replicou Susanna com firmeza. — O major é um homem honesto, que admite suas falhas. Gosto muito dele.
  • Gosta ou ama? — quis saber o rapaz, enciumado.
  • Eu disse gosto, Leo. Agora vamos deixar este assunto de lado. E é melhor esquecermos tudo que dissemos um para o outro esta manhã.
  • Se prefere assim...
  • É melhor para nós dois. Mas agora tenho muito o que fazer, peço que me dê licença, L«o. Vamos, anime-se, você ainda tem mui­ta vida pela frente. Tenho certeza de que um dia vai achar uma moça que ficará encantada com um pedido de casamento seu.
  • Você não é esta moça, não é mesmo, Susie?
  • Não, não sou...
  • Bom dia, major Russell — cumprimentou sir Frederick, que avistou Hugh enquanto caminhava pelos jardins da mansão.
  • Bom dia, sir. Está muito frio aqui fora, não acha?
  • Sim, major. O jardineiro está prevendo uma nevasca para logo mais. Foi por isto que resolvi aproveitar para esticar um pouco as pernas. Um homem não pode passar o tempo todo trancado dentro de casa.
  • Tem razão, sir — concordou Hugh. Depois de uma breve pausa, comentou: — Sinto muito pela briga que tive com o sr. Leo, sir. Peço mais uma vez que aceite minhas desculpas.

 

    • Sir frederick ergueu a bengala com cabo de marfim e apontou-a para o homem moreno.
  • Esqueça, major. Sei como o sangue esquenta fácil quando somos jovens. Eu só não pensava que meu sobrinho também tivesse estes arroubos. Leo é geralmente tão tranquilo... Por que brigaram?
  • Bem, na verdade...
  • Por favor, desculpe-me por minha curiosidade, major. É me­lhor não responder, esqueça.

 

    • "Melhor assim!", pensou Hugh, perguntando-se qual seria a reação de sir Frederick se soubesse que o motivo da disputa fora sua própria filha.
  • O que pretende fazer agora que deixou o exército, major? —indagou sir Frederick inesperadamente.
  • Não sei ao certo, sir. Talvez vá embora do país.
  • Compreendo. É claro que por aqui tudo é mais difícil para o senhor. Como é idiota essa lei contra os católicos!. Tentamos vetá-la no parlamento, mas não conseguimos.

 

    • Hugh fitou-o, estupefato.
  • Então o senhor sabe que somos católicos? Viola lhe contou?
  • Não — disse sir Frederick com certa tristeza. — Outras pessoas me contaram, e eu não comentei nada com minha esposa na esperança de que ela o fizesse.
  • Minha tia teve experiências muito ruins em sua vida, sir. —começou Hugh com cautela. — Acho que isto a fez ficar arredia em relação à confiança que deve depositar nas pessoas. E, com frequência, ela escolhe as pessoas erradas para serem suas amigas. Viola não faz por mal. Eu, particularmente, acredito que ela tem excelentes qualidades. Com o incentivo adequado, tais qualidades podem desabrochar.

 

    • Sir Frederick parou de caminhar e voltou-se para Hugh com simpatia.
  • Partilho da mesma opinião que o senhor, major . — Depois, colocou as mãos na costa de Hugh e sorriu, confiante. — Agora, quanto ao problema do catolicismo, tenho certeza de que com o tempo nossas autoridades vão abrir os olhos para o fato de que somos todos ingleses, independente da fé que professamos. Acho que não viverei para ver este dia chegar, mas tenho certeza de que o senhor ainda terá o prazer de ver seus filhos gozando dos mesmo direitos que os anglicanos.
  • Obrigado, sir — disse Russell, percebendo a bondade que havia no coração cansado de sir Frederick.— É o senhor que mora na mansão?— E você, quem é ? — perguntou o major, imediatamente consciente da ameaça escondida naquela expressão animal.

 

    • Hugh ergueu os olhos lentamente e deparou-se com um homem enorme parado à sua frente.
    • Eles caminharam juntos durante mais algum tempo. Em seguida, Hugh se afastou e caminhou até o celeiro. Sempre gostara de se re­fugiar no colchão macio formado pelo feno quando tinha alguma coisa importante para decidir. Estava lá dentro há uma hora quan­do uma voz forte e rude chegou até seus ouvidos.
  • Bolger, Jem Bolger. Sou aprendiz de ferreiro do sr. Grummit.
  • Ah, sei — disse Russell, compreendo então a razão de tantos músculos. — Qual é o seu problema, Bolger?

 

    • Jem deu um passo a frente.
  • Quero saber se é o senhor o cavalheiro que mora na mansão e que está importunando minha namorada, Bessie.
  • Desculpe, não entendi.
  • Minha namorada é uma das arrumadeiras da mansão, e ela me disse que o moço da casa fica lhe pedindo... favores.
  • Entendi. Mas não posso ajudá-lo, sou um hóspede aqui e não conheço sua namorada Bessie.

 

    • "Só pode ser o jovem Leo a pessoa que ele procura!", pensou Hugh.
  • Então, se não é o senhor, é aquele outro engomadinho! — resmungou Jem Bolger, cruzando os braços maciços na altura do pei­to.
  • Bessie não mencionou nomes? — indagou Hugh com curio­sidade.
  • Ela só disse que era o cavalheiro da mansão dos Harte. Deve ser aquele outro, eu o conheço de vista. Desculpe incomodá-lo, senhor, apareça na ferraria quando desejar algum serviço — acrescentou Jem, com simpatia. — Agora, se me dá licença...

 

    • Hugh voltou para casa pensando no que acabara de ocorrer. Para sua satisfação, quando entrou no vestíbulo, a primeira pessoa que encontrou foi Leo.
  • Que bom que o encontrei! — comentou Russell, amigável.
  • Por quê? — questionou Leo, arredio.
  • Acabei de encontrar alguém que o procurava. Um homem enor­me chamado Jem Bolger.
  • Bolger, o namorado de Bessie... — murmurou o rapaz consigo mesmo. — Droga, já não bastassem os problemas que tenho! Obrigado por me avisar, Russell. Vou ficar longe dele por uma semana ou duas, acho que até lá o gorila acabará se esquecendo de mim. Jem não consegue guardar muita coisa naquela cabeça oca, é um to­lo de primeira!
  • Um tolo bastante agressivo — completou o major.
  • E pena que não tenha cérebro. Se tivesse, poderia ser um campeão de luta livre. Até tentei treiná-lo uma vez, mas não deu certo. Poderíamos ter ganho muito dinheiro com todos aqueles músculos...— Infelizmente, nada funciona comigo! — exclamou Leo, dei­xando Russell a sós.— Parece que o sr. Leo não está no melhor de seus humores, Charlie — comentou Hugh, consciente de que o criado estivera ouvindo a conversa.Hugh arqueou as sobrancelhas com ar indagador e o criado pros­seguiu:

 

    • — Hoje cedo o sr. Leo desceu todo arrumado, parecendo que ia a uma festa. Pensei comigo mesmo, "Onde será que ele vai?". Para minha surpresa, o moço foi até a biblioteca conversar com a jovem lady.
    • — Não está não, patrão. Acho que deve ser por causa do que a srta. Harte lhe disse esta manhã.
    • Charlie Treasure aguardava o patrão junto da escada.
    • Tem razão — disse Hugh com simpatia. — Acho que teria sido um bom negócio, mesmo.
  • Charlie —, repreendeu-o Hugh —, sei que disse para ficar de olhos abertos, mas não era para espionar a doce srta. Harte.
  • Não senhor, não fiz isto. Mas eles falavam tão alto que todo mundo ouviu. O rapaz estava pedindo que ela se casasse com ele, major.
  • Aquele atrevido! — resmungou Russell, irritado.
  • A srta. Harte o recusou na mesma hora. Todos os criados acabaram ficando com dó do sr. Leo. Achei que gostaria de saber dis­to, major.
  • O quê? — perguntou Hugh, parecendo não ter escutado o que o criado acabara de dizer. — Oh, sim, Charlie... Diga para os criados não deixarem que Jem Bolger se aproxime do sr. Leo, acho que ele esta querendo arrancar a cabeça do rapaz.— E não estamos todos nós, Charlie? — retrucou o major Russell, afastando-se.Susannaremexeu-se na cama, refletindo se valeria a pena levantar-se tão cedo. A criada ainda não viera acender o fogo na pequena lareira em seu quarto e, pela fraca iluminação que vinha da janela, dava para perceber que o dia mal acabara de nascer. Afastando um pouco as pesadas cobertas que co­briam seu corpo, Susanna notou que não fazia tanto frio quanto no dia anterior. Talvez aquilo*fosse um mal sinal. Os criados costuma­vam dizer que quando a temperatura subia de um dia para o outro durante o rigoroso inverno britânico, era sinal de que uma forte ne-vasca estava por cair.Era obrigada a admitir que Hugh estava se tornando cada vez mais importante em sua vida. Sabia, porém, que ele estava prestes a par­tir, e precisava se acostumar com a ideia. Suspirando tristemente, Susanna refletiu que apesar de ter desenvolvido um sentimento es­pecial em relação ao visitante que chegara com o Ano Novo, ela ainda sentia uma certa apreensão ao pensar no motivo que o levara a visi­tar a mansão. Tinha certeza de que Hugh deixara Londres com um propósito bem definido em mente e ainda não o atingira. Mas qual seria este propósito?Incapaz de continuar deitada, levantou-se e caminhou até o ar­mário. Escolheu um de seus vestidos mais confortáveis, um modelo de veludo vermelho que realçava sua tez muito clara e o tom casta­nho dos cabelos. Estava quase terminando de prender as madeixas castanhas numa fita vermelha quando a criada entrou no quarto.

 

    • Um forte calafrio percorreu seu corpo e ela teve a nítida impres­são de que algo de ruim estava prestes a acontecer. Exasperada, sentou-se na cama e tentou controlar sua ansiedade. Talvez fosse ape­nas imaginação. O que poderia acontecer ali, na tranquilidade do lar?
    • Seus olhos buscaram a pequena caixa de música que repousava sobre o toucador, e imediatamente a figura morena e atraente do major Russell apossou-se de seus pensamentos.
    •  
    • — Humpf! O sr. Leo está cheio de problemas, não é mesmo, patrão?
  • Oh, desculpe, srta. Susanna. Pensei que ainda estivesse dormindo — comentou a jovem, agachando-se para colocar alguns gra­vetos na lareira.
  • Não consegui dormir, Mary — confessou Susanna com um le­ve sorriso. — Tem mais alguém acordado?

 

    • A criada voltou-se para encará-la e, retribuindo o sorriso, co­mentou:
  • Pode parecer engraçado, mas parece que hoje todo mundo resolveu levantar cedo. Lady Harte....
  • Lady Harte? — interrompeu-a Susanna. — Minha madrasta já está acordada e vestida?
  • Sim, senhorita. Lady Harte disse que não dormiu bem. E o sr. Leo também está de pé.— Ele já está nos estábulos, senhorita — explicou Mary, pare­ cendo ler os pensamentos de sua patroa. — O sr. Leo disse que ia dar uma olhada nos animais porque acha que é preciso chamar o veterinário. — As chamas finalmente crepitaram na lareira e Mary ergueu-se, satisfeita. — Ah, o outro cavalheiro, parente de lady Har­te, também já se levantou e tomou o café da manhã.— Vou tomar meu desjejum, Mary! Se precisar de mim, sabe on­de me encontrar.

 

    • Mal havia descido o último degrau da escada e Leo entrou esba­forido, trazendo uma rajada de vento frio consigo.
    • "Hugh!", pensou Susanna jogando um xale sobre os ombros e dirigindo-se para o andar inferior.
    • Aquilo é que era surpresa! Por que Leo teria acordado tão cedo?
  • Os fardos de feno estão quase todos estragados! — exclamou ele sem ao menos dizer bom dia. — Eu bem que suspeitava! Hatton nem se deu conta de que o chão estava congelando e umedecendo a ração dos animais. Agora eles podem até ficar doentes se comerem aquela porcaria. Vou pedir a tio Freddie que mande Hatton embora.
  • Acho que antes deveria me dizer bom dia, Leo. Quanto a Hatton, trabalha conosco há anos e meu pai nunca reclamou de seus serviços.
  • Seu pai nunca se interessou pelos cavalos, Susie. Desde que as carruagens estejam em bom estado, tio Freddie jamais se importa com o que se passa nos estábulos! — replicou Leo antes de mudar de assunto. — Será que a sra. Merrihew já serviu o chá?
  • Não sei dizer — informou Susanna, enquanto o primo tirava o pesado casaco de lã e seguia para a sala de jantar.Naquele momento, como raramente acontecia, Viola mostrou-se satisfeita com a chegada de Susanna. Pelo menos não teria de atu­rar o assunto do rapaz por mais tempo.

 

    • Quando, alguns segundos depois, ela própria trilhou o mesmo ca­minho, ouviu Leo contando a mesma história a mais alguém. Apressou-se a abrir a porta na esperança de que se tratasse de major Hugh. Para seu desapontamento, porém, a pobre vítima do falató­rio do jovem Leo era lady Harte, que sorvia uma xícara de chá com ar enfadado.
  • Mary disse que você não dormiu bem, Viola — disse Susanna, sentando-se na cadeira que sempre ocupava durante as refeições.
  • É verdade, não dormi mesmo — retrucou a mulher morena, mal-humorada. — Leo! Pelo amor de Deus! Será que não podia se lavar antes de sentar à mesa? Você está com cheiro de estábulo!
  • Sinto muito — desculpou-se ele, enrubescendo. — É que eu não sabia que teria mais alguém de pé a esta hora da manhã. Pensei que fosse tomar o desjejum sozinho. A não ser, é claro, pela presença de Russell. Mas ele já esteve nos estábulos agora cedo. Hatton me disse que o major lhe pediu para preparar seu cavalo, pois parti­ria em breve.

 

    • Lady Harte pareceu ficar ainda mais irritada com aquele comen­tário. Sem dizer uma palavra, deixou a sala, enfurecida.
  • As coisas estão piorando para Viola — comentou Leo, servindo-se fartamente de tudo que havia à mesa.
  • O que está querendo insinuar? — perguntou Susanna, confusa com o comentário que o primo acabara de fazer.
  • Não sei muito bem. Entretanto, de uma coisa estou certo, o nervosismo de Viola está associado à presença de Russell.
  • Onde está Hugh, agora? — ela quis saber.
  • Não sei, deve estar em alguma parte da propriedade. Como já lhe disse, ele contou a Hatton que estava prestes a nos deixar.Leo fitou-a de soslaio e meneou a cabeça, preocupado. Desejava poder ajudar a prima a esquecer aquele homem, mas não sabia como.— Com certeza vai procurá-lo! — disse Leo a si mesmo. — Acho que as coisas estão começando a se complicar nesta casa!Susanna adentrou o aposento e sentiu o coração contrair-se den­tro do peito quando pensou que em breve não o veria mais. Talvez nunca mais...Com um movimento rápido dobrou o papel que tinha nas mãos, como se tivesse medo de que ela visse o que acabara de escrever.

 

    • — Susanna! — exclamou o major, finalmente percebendo a pre­sença dela.
    • Russell estava na sala de estar. Sentara-se à escrivaninha e parecia muito compenetrado enquanto corria a pena pelo papel de carta. Os cabelos escuros estavam levemente desalinhados, e alguns cachos caíam sobre a testa do major.
    • Empurrando a cadeira em que se encontrava sentada, Susanna murmurou uma desculpa qualquer e deixou a sala de refeições apres­sadamente.
    • Susanna ainda tentou comer mais um pedaço de bolo, mas foi im­possível. Não conseguia deixar de pensar que Hugh estava indo em­bora. Como poderia impedi-lo de partir?
  • Todos nos levantamos muito cedo, hoje — murmurou Susanna. — Leo acabou de retornar do estábulo e disse que você pediu que seu cavalo fosse preparado, pois tenciona partir.
  • Sim — replicou Hugh.
  • Então é verdade... Quando pretende nos deixar?
  • Hoje mesmo. Vou até Newbury para me despedir de Broughton e depois sigo para Londres. Já pedi para Charlie arrumar minhas coisas.
  • Tenho certeza de que papai ficará desapontado ao vê-lo partir tão cedo. — Fez uma pausa embaraçada depois do que acabara de dizer. — Leo e eu também sentiremos, é claro. Esteve conosco portão pouco tempo, e a viagem até Londres é tão árdua!
  • Estou acostumado a viagens árduas, Susanna.
  • Claro — murmurou ela. — Mas existe uma grande chance de cair uma forte nevasca nas próximas horas. Você pode ficar preso na estrada se houver deslizamentos ou algo parecido. Por que não fica por mais alguns dias?
  • Não posso. É uma ideia muito atraente, mas nada prática.

 

    • — Imagino que não — comentou Susanna num fio de voz. Um leve rubor tingiu suas faces. Ali estava ela implorando para que o major ficasse, quando estava claro que ele não desejava fazê-lo.
  • Bem, vou pedir à sra. Merrihew que prepare um bom suprimento de alimentos para que você não tenha problemas no cami­nho, Hugh.
  • É muito gentil de sua parte, Susanna.Apesar de todos os preparativos terem sido feitos com antecedên­cia, a partida de Hugh foi ligeiramente adiada por causa de sir Fre-derick, que só saiu do quarto no começo da tarde.

 

    • Russell jamais teria partido sem ter se despedido de seu anfitrião.
    • Eles estavam se comportando de maneira um tanto formal. Tal­vez Russell não se importasse com despedidas, mas ela tinha dificul­dade para agir como aquele homem experiente. Não estava habituada a negar suas emoções. Além disso, aquela emoção que sufocava seu peito era nova demais para saber como lidar com ela.
  • Então vai nos deixar? — indagou sir Frederick num tom gentil. — Bem, tenho certeza de que já percebeu que a neve deve começar a cair a qualquer momento, não é, major? É uma pena que tenha de partir. Não temos muita companhia por aqui, principalmente no inverno, quando todos se isolam no refúgio de suas casas.
  • Tenho negócios a resolver em Londres, sir. Fico muito agradecido por sua hospitalidade — Hugh hesitou um pouco, e acabou acrescentando: — Espero não ter causado transtornos à sua família com minha chegada repentina, sir Frederick.
  • Claro que não, meu rapaz!
  • Só falta Viola... Sei que minha tia está em algum lugar da casa, mas não consegui encontrá-la. Gostaria muito de me despedir dela. E... tenho algo que desejo lhe dar.
  • Vou mandar uma criada procurá-la, major.Hugh ergueu os olhos e uma expressão curiosa estampou-se em seu rosto.Escutou-se o barulho de passos apressados no corredor e não de­morou muito para que lady Harte entrasse na sala aos prantos.

 

    • — Céus! — exclamou sir Frederick. — Que diabo estará acon­tecendo?
    • Sir Frederick moveu-se até onde estava o sino que servia para cha­mar os criados. Porém, antes que pudesse tocá-lo, um forte grito ecoou pela casa.
  • Freddie! — gritou ela atirando-se nos braços do marido.
  • O que houve, minha criança? — indagou o velho cavalheiro segurando carinhosamente as mãos da esposa.

 

    • Russell observava a cena sem esboçar qualquer reação. Assustada, Susanna apareceu à porta indagando o que havia ocor­rido e o major lhe fez um sinal para que se calasse.
  • Vamos, querida, conte-me o que aconteceu — pediu sir Frede­rick, aninhando a esposa chorosa em seus braços.
  • O que está havendo? — foi a vez de Leo entrar na sala, atraído pelo barulho.Hugh deixou escapar um suspiro de impaciência e Susanna fitou-o, curiosa.Houve um breve instante de silêncio e então Leo e Susanna desa­taram a falar ao mesmo tempo. Lady Harte soluçava sem parar, e Russell observava impassívelSusanna seguiu as instruções do pai, e quando retornou à sala sua madrasta encontrava-se acomodada no sofá. Com as faces banha­das pelas lágrimas, lady Harte parecia ainda mais encantadora que nunca. Depois de tomar um gole do brandy trazido por sua entea­da, ela afirmou:Susanna sentiu o sangue gelar nas veias ao recordar-se da noite em vira o major sair do quarto de sua madrasta. Não, não poderia ser...

 

    • — Oh, Freddie juro que tomei conta do colar direitinho. Sei que ele era uma relíquia de família. Eu nunca deixava a gaveta des­trancada...
    • — Quietos! — ordenou sir Frederick energicamente. — Leo e Su­sanna, fiquem calados! Não percebem que Viola está em pânico? Vá até a cozinha e traga alguma coisa para ela beber, minha filha!
    • — Os brilhantes dos Harte! — gemeu Viola no auge do desespero. — Alguém roubou o colar!
    • — Fui roubada! Foi isto que aconteceu! Fomos roubados Freddie! Minha gaveta de jóias foi arrombada e alguém levou o estojo de veludo!
  • Não percebem —, insistiu Viola, descontrolada —, só pode ser alguém da casa que pegou os brilhantes. Um dos criados! Todos sabiam onde a jóia era guardada, Freddie!
  • Bobagem! — interferiu Leo pela primeira vez. — Esta jóia não seria de nenhuma serventia para os criados. Não teriam para quem vendê-la. Em Newbury não existe um joalheiro com calibre para reconhecer ou comprar os brilhantes da família. Seria preciso que o ladrão fosse até Londres para poder fazê-lo. Lá não encontraria di­ficuldade para conseguir um bom dinheiro pelo colar.

 

    • Hugh fitou Leo com ar intrigado. Nunca imaginara que o rapaz tivesse veia de detetive.
  • Leo tem razão! — exclamou sir Frederick. — Pela primeira vez na vida vejo você dizer alguma coisa sensata, meu rapaz. Mas vamos dar uma olhada na cena do crime para nos certificarmos de que não há nenhum engano nesta história!— Acalme-se, minha querida. Deixe que eu cuido disto.De fato, a gaveta do toucador que ficava no quarto de vestir de lady Harte havia sido arrombada.

 

    • Quando voltou à sala de estar, onde lady Harte estava sendo con­solada por Leo, sir Frederick hesitou um pouco antes de falar:
    • Sir Frederick dirigiu-se para o quarto de sua esposa e Hugh e Su-sanna o seguiram.
    • Como eu poderia ter me enganado, Freddie? — gritou Viola enfurecida.
  • Escutem bem, todos vocês. Peço desculpas antecipadas se o que eu disser ofender alguém, mas não tenho outra alternativa. Comecemos por você, Viola querida. Tem certeza de que os brilhantes estavam na gaveta na noite passada?
  • Claro que sim, Freddie. Eu usei o colar durante o jantar, lembra?
  • Está bem, querida, não precisa ficar nervosa.
  • Céus, como posso ficar calma numa situação destas, Freddie? Vamos revistar o quarto dos criados!
  • Ainda não! — disse o velho senhor, e havia tanta autoridade em sua voz que ela não ousou discordar. — Mais uma pergunta, que­ rida. Esta manhã, quando você acordou, o colar estava lá?
  • Sim.
  • Então —, prosseguiu sir Frederick, inflexível —, o roubo deve ter acontecido depois que deixou seu quarto, o que indica que é pouco provável que o ladrão seja um dos serviçais. Todos eles estiveram muito ocupados pela manhã. E depois, a maioria da criadagem está conosco há muitos anos, são pessoas de confiança.
  • Mas precisam ser revistados, de qualquer forma! — exclamou lady Harte, zangada. — Freddie, vou enlouquecer se você não tomar uma providência!
  • Os criados serão revistados — afirmou o velho sir com tranquilidade. — Todas as dependências da casa serão revistadas, inclusive nossos quartos.
  • Nossos quartos, papai? — indagou Susanna, estranhando aquela atitude. — Certamente nenhum de nós ousaria...
  • Tenho certeza que não. Mas não podemos deixar que os criados percebam que desconfiamos deles. Agora, por favor, filha, leve lady Harte até a biblioteca e lhe faça companhia até que possamos resolver as coisas por aqui.Enquanto isso, sir Frederick fitava os dois cavalheiros que haviam ficado na sala de estar.As faces pálidas do rapaz foram tingidas pelo rubor da indignação.

 

    • — Agora é entre nós, senhores! Leo, vou ser muito direto com você. Tem certeza de que esta não é mais uma de suas brincadeiras? Sei que têm andado sem dinheiro...
    • Obediente, ela fez o que o pai ordenou e conduziu a madrasta pa­ra o aposento no final do corredor.
  • Claro que não, meu Tio!
  • Não está tentando nos pregar mais uma de suas peças, não é, Leo? Já fez tanta besteira antes... Se tiver alguma culpa nesta histó­ria é melhor que fale agora!
  • Juro que não estou envolvido nesta trama sórdida, tio! Jamais me envolveria com os brilhantes dos Harte! O senhor pode procurar em meu quarto, se quiser. Aliás, faço questão que me reviste também!
  • Eu o farei, Leo, se for necessário... — depois, voltando-se para Hugh, sir Frederick declarou: — Major Russell? É muito embaraçoso para mim fazer tal pergunta, mas o senhor não é tolo e acho que já percebeu que sua posição nesta história toda é muito delicada. Diga-me, o senhor tem algo a ver com o desaparecimento da jóia de minha esposa?

 

    • Hugh respirou fundo e replicou, impassível:
  • Não, sir, não tenho.
  • Está bem. Em outras circunstâncias eu pediria ao senhor que me desse permissão para revistar seu quarto, mas como já está com suas coisas prontas para a viagem, peço-lhe que deixe sua bagagem ser revistada.
  • Sou obrigado a recusar, sir — respondeu Russell, sem perder a calma.
  • O quê? — retrucou sir Frederick, atónito.
  • Disse que não concordo, sir. Sinto muito.
  • Ora, vamos lá, Russell. Seja razoável! — interferiu Leo. —Isto não vai afetar sua dignidade, meu caro!
  • Cale-se, Leo! — ordenou o tio. — Agora, major, vou dizer-lhe que compreendo sua recusa. Confesso que também fico muito embaraçado com tal situação. Mas suplico-lhe que não me obrigue a tomar atitudes mais drásticas!
  • Já lhe disse, sir —, repetiu Hugh sem se alterar —, não abri aquela gaveta para roubar o colar de sua esposa.

 

    • Sir Frederick pareceu ainda mais abalado.
  • Deixe disso, major! Não estou questionando sua palavra, sei que é um cavalheiro...
  • Não posso concordar com o que me pede, sir!
  • Por quê?
  • Não posso lhe dizer.

 

    • Sir Frederick caminhou de um lado para outro do aposento, pen­sativo, como se não quisesse tomar uma decisão precipitada.
  • Sinto muito, major — disse ele, por fim, decidindo-se sobre qual a melhor atitude a tomar. — Leo! Traga a bagagem do major até aqui!
  • Escute, tio... — começou Leo, nervoso.A bagagem de Russell consistia em dois pequenos baús, e Leo colocou-os no chão diante do tio.

 

    • Porém, ao perceber que Hugh não esboçava qualquer reação, fez o que lhe era ordenado.
  • Talvez posso abri-los para nós, major — sugeriu sir Frederick, não querendo ser mais rude que o necessário.
  • Deixe que Leo faça isto! — exclamou Hugh para surpresa de todos.
  • Não estou gostando disso! — resmungou o rapaz, exaltado, antes de calar-se diante do olhar enérgico que o tio lhe lançou.

 

    • No primeiro baú havia apenas roupas íntimas, nada que pudesse comprometer o major. Leo colocou-o de lado e começou a revistar o segundo baú. Encontrou, no meio de um casaco de lã, um estojo de veludo vermelho.
  • Céus! — exclamou Leo, estupefato.
  • Qual o problema? — indagou seu tio rapidamente. Mas se a situação era ruim para ela, sabia que deveria estar sendo muito pior para o major. Ser acusado de um crime que não comete­ra era razão mais que suficiente para magoar um homem com o sen­so de honra de Russell.Leo e Susanna tentaram jogar xadrez. Contudo, nenhum dos dois conseguia concentrar-se devidamente no jogo.

 

    • Assim que a refeição chegou ao fim, Hugh subiu para seu quarto murmurando uma desculpa qualquer. Sir Frederick e Viola não de­moraram muito para fazer o mesmo.
    • O resto daquele dia foi um verdadeiro pesadelo pa­ra Susanna. O clima de desconfiança que se insta­lara na mansão fazia com que todos se calassem na presença do ma­jor Russell. O jantar foi o momento mas difícil. Sob um pesado si­lêncio, eles comeram automaticamente. Susanna mal tocou em seu prato; de vez em quando olhava de soslaio para Hugh, que até aquele instante não havia dito uma única palavra para defender-se.
    • Leo levantou-se e colocou o estojo aberto nas mãos de sir. Frede­rick. Ali estava o reluzente colar de brilhantes dos Harte.
  • Ouvi os criados dizerem que a estrada está completamente bloqueada — comentou Leo, recostando-se em sua cadeira. — Escute, Susie, talvez amanhã fosse melhor você inventar uma desculpa e passar o dia todo em seu quarto. O ambiente está muito tenso aqui na mansão.
  • De jeito nenhum! — exclamou ela, nervosa. — Hugh pode pen­sar que o estou abandonando.
  • Abandonando? Céus, Susie! Não pode fazer nada para ajudá-lo! Aquele homem é mais teimoso que uma mula!

 

    • Ela se levantou, indignada.
  • Papai disse que não queria que falássemos no assunto Leo, e eu não falarei!
  • Como preferir... É uma pena que esteja nevando tanto! Se o clima estivesse melhor, o major poderia estar bem longe daqui!
  • Não diga uma coisa dessas, Leo! — protestou Susanna, ainda mais irritada.
  • Ora, Susie, não se torture tanto! Não vale a pena!
  • Não quero tocar neste assunto, Leo. Vou para o meu quarto. Boa noite!— Aquele maldito, Russell! Queria poder acabar logo com esta história. Tudo por causa dos brilhantes.... Ei, espere... — murmu­rou Leo com os olhos brilhando de excitação, como se tivesse aca­ bado de descobrir algo muito importante. — Mas é claro! Que tolos fomos todos nós! Eu, especialmente... A ponte... Vou desvendar este mistério, ah, se vou!— Filha! Entre aqui, um minuto.— Este é um assunto meio difícil, Susie. Não sei ao certo o que fazer:

 

    • Ela obedeceu e percebeu que, por alguma estranha razão, o pai estava tendo dificuldades para dizer o que lhe ia na mente.
    • Quando Susanna caminhava em direção à escada que conduzia ao andar superior da mansão, a porta da biblioteca foi aberta e, para sua surpresa, sir Frederick surgiu de dentro do aposento.
    • O rapaz viu a prima desaparecer no corredor e praguejou baixinho:
  • Eu sei, papai — afirmou ela, não esperando que ele prosseguisse. — Precisamos parar de acusar o major Russell! Ele não é um ladrão! O senhor sabe disto tão bem quanto eu, não é mesmo?
  • Infelizmente sim, querida. Por outro lado, dei ao major todas as oportunidades possíveis para que se defendesse, mas ele não quis se explicar. Parece estar atrelado a algum estranho código de honra. Compreende minha situação? O que podemos fazer para forçá-lo a falar?
  • Não sei! — explodiu Susanna, pressionando nervosamente uma mão contra outra.

 

    • Sir Frederick observou a angústia que a consumia.
  • Você acabou desenvolvendo um sentimento muito especial por este cavalheiro, não é mesmo, Susie? Sinto muito, minha filha. Não há nada que possamos fazer. O major é um homem muito obstinado.
  • Não pode tentar falar com ele outra vez, papai?— Você é igualzinha à sua mãe, querida. A mesma bondade e a mesma coragem de lutar por aquilo em que acredita... Viola, por sua vez, é bem diferente.— Imagino que cada pessoa tenha sua própria maneira de ser, papai.— Papai...— Está tudo bem, papai — disse ela, depositando um beijo terno na testa de sir Frederick. — Só desejo que o senhor seja feliz.

 

    • Ele sorriu.
    • — Ora, não pense que não notei que minha esposa a desagradava, filha. E era natural que fosse assim. Podia parecer que eu estava profanando a memória de sua querida mãe. Mas isso não é verdade, Susie. Sabe, sua mãe e eu fomos muito felizes durante os anos de vida que tivemos em comum. Tínhamos um acordo, porém. Quan­do um de nós fosse para o descanso eterno, o que ficasse deveria tentar encontrar outro companheiro. Não queríamos ser um peso para você, minha querida. Sei que um dia vai se casar e formar sua própria família. O que seria então de seu velho pai se ele não se casasse novamente?
    • — Tem razão. Você é uma moça muito sensata. Sempre me orgulhei de vê-la evitar preconceitos de qualquer espécie. Tratou Vio­la com respeito, mesmo não apreciando meu casamento.
    • Susanna corou ao argumentar:
    • Sir Frederick fitou os olhos acinzentados de sua filha, comentan­do com um sorriso triste:
  • E você, filha, o que posso fazer para torná-la feliz? Ou melhor, quem seria capaz de fazê-la feliz? Certamente não é Leo. E por falar nisso, seu primo alguma vez lhe sugeriu casamento?
  • Sim, mas eu recusei.
  • Fez muito bem. Eu não permitiria mesmo que se casasse com um traste daqueles.
  • Papai! Leo é uma boa pessoa.
  • Imprestável, porém! Só sabe me causar problemas, vive con­traindo dívidas e importunando as pobres criadas!
  • Leo faz isso? — indagou ela, perplexa.
  • Susie, não fique tão chocada. Já não é mais uma adolescente, e deveria saber como é a vida. Eu... sempre achei que você precisava ter oportunidade de aprender alguma coisa sobre o mundo. Não aquela bobagem de apresentação oficial que sua mãe inventou, aquilo é tolice! Um homem de verdade poderia lhe ensinar muitas coisas, mas o máximo que sua mãe conseguiu foi apresentar completos idio­tas a você. Como o tal de Billins, por exemplo.
  • Biggins, papai. E ele era pastor.Naquela noite Susanna não conseguiu pregar o olho. Mal o dia surgiu no horizonte ela já estava de pé, pensando em como poderia ajudar Hugh.Quando desceu um pouco mais tarde para unir-se aos demais, Su­sanna percebeu que quase todos os criados estavam empenhados em limpar a neve que se acumulava em torno da casa. Para sua surpre­sa, viu que Russell se juntara à criadagem.Durante o resto do dia, Susanna não o viu mais. E mesmo se o houvesse visto, não teria tido oportunidade de ficar sozinha com ele. Por alguma razão desconhecida, Leo não a deixou a sós por um se­gundo sequer. Onde quer que ela fosse, lá estava o rapaz como um verdadeiro cão de guarda.

 

    • Parada junto à janela da biblioteca, ficou observando o major des­manchar os montes de neve com uma fúria cega. Era óbvio que es­tava descarregando toda sua tensão no trabalho, braçal.
    • O major, pelo visto, não tinha a menor intenção de revelar o ver­dadeiro motivo pelo qual os brilhantes tinham ido parar em sua bagagem.
    • Um pastor imbecil, é claro! A verdade minha filha, é que você precisa de um marido. — Sir Frederick fez uma pausa e observou atentamente o rosto de Susanna antes de acrescentar: — Pena que tenha acontecido tudo isto com Russell, ele seria o par ideal para você! Mas não vamos falar mais nele, querida. Só quero que saiba que sua felicidade é o que mais me interessa. Algum dia vai conhe­cer alguém que a fará muito feliz... Agora vá se deitar, Susie. Já tivemos muitas surpresas por hoje.
  • O que está havendo, Leo? Por que me persegue desta maneira?
  • Céus, Susie! Está imaginado coisas, só quero lhe fazer com­panhia.Naquela noite, depois de um dia cansativo, o sono veio pesado. Contudo, pouco depois da meia noite, Susanna acordou agitada e sentou-se na cama tentando pensar melhor em tudo que estava acon­tecendo. Era óbvio que não conseguiria voltar a dormir enquanto não conseguisse dizer a Hugh que sabia que ele era inocente. Mas como? Leo não lhe dava um minuto de folga. " Oh, Deus, ajude-me!", orou desesperada. "Não consigo ficar sozinha um minuto. O único instante de privacidade que tive hoje foi depois que vim pa­ra meu quarto... Ora, é isto!", concluiu ela com um lampejo de alegria.Claro que entrar no quarto de um cavalheiro no meio da noite não era comportamento digno de uma dama. Mas situações desesperadoras exigiam medidas extremadas!O aposento era extramente masculino, com seus móveis de ma­deira polida e a ausência de qualquer ornamento mais pessoal. Ha­via uma cómoda, um armário e uma enorme cama com dossel.Um leve ressentimento a invadiu quando pensou que estava mais aflita com a situação do que ele próprio demonstrava estar.Olhando para a figura máscula estendida sobre a cama macia, Su­sanna sentiu um forte aperto no coração ao pensar que logo Hugh não estaria mais ali. Como poderia suportar a ausência dele? Apren­dera a amá-lo em silêncio e contentava-se em fitá-lo apenas, como naquele momento em que ele parecia mais jovem porque a tranqui­lidade do sono suavizava as feições atraentes.— Por que veio aqui? Já não está satisfeita com tudo que fez? Susanna soltou um gritinho assustado e o castiçal balançou em suas mãos trémulas.

 

    • De súbito, os olhos escuros se abriram e Russell esbravejou, irri­tado:
    • O que ela não sabia, porém, era que o major aprendera no exérci­to que não valia a pena perder uma noite de sono por causa de um problema que não tinha mesmo solução.
    • Susanna aproximou-se mais da cama, e a luz da vela que trouxera consigo revelou-lhe que Hugh dormia profundamente.
    • Susanna pulou da cama. Jogando o xale sobre as costas, acendeu a vela no castiçal e saiu para o corredor gelado. Olhou cuidadosa­mente de um lado para outro, a fim de certificar-se de que ninguém a veria, e seguiu até a porta do quarto que fora destinado ao major. Um leve calafrio a percorreu quando girou a maçaneta e entrou no único refúgio que Russell ainda possuía na mansão.
    • Àquela hora da noite todos estavam dormindo. Podia muito bem levantar-se e ir até o quarto de Russell para conversarem.
    • "E que companhia!", pensou ela, irritada.
  • Susanna? — indagou ele, confuso, quando a luz da vela final­mente revelou quem era a visitante noturna.
  • Sim — sussurrou ela.
  • Desculpe, pensei que era...
  • Viola — completou ela. — Talvez você preferisse que fosse...
  • De forma alguma! — protestou o major. — Mas que diabo está fazendo aqui no meu quarto?
  • Precisamos conversar — começou Susanna, confusa. — Leo ficou atrás de mim o dia todo, por isso não falei antes com você! Queria tanto lhe dizer que tenho certeza de que não é um ladrão! Sei que não roubou os brilhantes! Não pode ir embora daqui tendo sua reputação manchada por um crime que não cometeu!—Fale baixo! — sussurrou Hugh. — Alguém pode ouvi-la. Quando Susanna permaneceu calada, ele acrescentou com um to­que de humor:

 

    • Convicta do que dizia, ergueu a voz um tom acima do habitual.
  • Será que não percebe que esta sua visita noturna pode piorar ainda mais a minha reputação e arruinar definitivamente a sua, mocinha?
  • Não me importo! — disse ela obstinada. — Oh, Hugh, o que vamos fazer?

 

    • Uma fria corrente de ar entrou pelas frestas da janela e Susanna estremeceu visivelmente. Russell percebeu e ordenou sem pestanejar:
  • Venha cá. Vou me levantar e você fica debaixo das cobertas.
  • O quê? — indagou ela, perplexa.— Agora entre aqui antes que fique congelada, Susanna! Vou fi­car aos pés da cama.Hugh vestia um pijama de flanela fina e ela podia ver os pêlos escuros esgueirando-se pelo colarinho entreaberto. "Talvez não te­nha sido uma boa ideia ter vindo até aqui", pensou Susanna ao no­tar que começava a ser dominada pelo mesmo tipo de emoção que a invadira no dia que encontrara Russell no estábulo. Nenhum ou­tro homem tinha o poder de afetá-la daquele maneira. Por outro la­do, ela jamais ousaria entrar no quarto de qualquer homem que não fosse Hugh Russell.

 

    • Susanna colocou o castiçal sobre a mesinha de cabeceira e ocu­pou o lugar que Hugh acabara de deixar. Um calor reconfortante desprendia-se dos lençóis, e uma certa excitação a invadiu ao pensar que aquele calor fora deixado pelo corpo de Russell, agora sentado aos pés da cama.
    • Sem responder, ele afastou as cobertas e pulou para fora da cama.
  • Sir Frederick me proibiu de ter qualquer contato com os membros da família Harte — comentou Hugh, interrompendo os pensamentos perigosos que a torturavam.
  • Eu sei — murmurou ela, infeliz.— Hugh, leve-me com você! Não me deixe! Quero ser sua para sempre... Por favor, não vá embora me deixando para trás!— Não posso. Não daria certo, Susanna. As coisas não funcionam desta maneira. Já vi isto acontecer antes. E pode estar certa de que o final não é dos melhores.

 

    • Ele se aproximou e segurou-a pelos ombros enquanto declarava pacientemente:
    • A lembrança da proibição feita por seu pai fez com que Susanna tomasse uma atitude desesperada.
  • Já sou crescida o bastante para decidir o que quero de minha vida! — protestou ela, sem deixar de notar que seu comentário apenas evidenciava sua inexperiência.
  • Sei que é. Mas as jovens costumam se entregar ao romantismo esquecendo-se das coisas básicas da vida. Depois, quando o deslum­bramento passa, elas querem voltar para o conforto e tranquilidade da casa dos pais. E muitas vezes isto não é possível... Não quero vê-la sofrer, Susanna. Jamais permitirei que me acompanhe!
  • Por que não confessa de uma vez que não quer que eu vá por­ que não se interessa por mim?
  • É claro que fico lisonjeado... — começou ele, mas foi inter­rompido bruscamente.
  • Lisonjeado?! — a ira apossou-se de Susanna, que bateu os punhos cerrados contra o peito de Hugh. — Seu... seu tolo! Lisonjea­do? É tudo que tem a dizer?
  • Não. Eu poderia dizer muitas coisa mais — replicou Hugh, sem perder a calma. — Contudo, tenho certeza de que se o fizesse as consequências não seria boas para nenhum de nós.Hugh observou-a com atenção. Era uma bela figura de mulher, com os longos cabelos castanhos caindo revoltos sobre os ombros. As feições delicadas possuíam uma dignidade que o major não se lembrava de jamais ter encontrado em outra mulher. Apesar do frio, Susanna usava uma camisola simples de algodão que revelava a cur­va suave do pescoço e dos seios.

 

    • Com um suspiro profundo, ele afastou os olhos daquela visão ine­briante e murmurou, com voz grave:
    • Susanna deixou suas mãos caírem sobre os lençóis e voltou a se recostar nos travesseiros.
  • Não devia ter vindo aqui, Susanna.
  • Vim porque desejava muito vê-lo, Hugh — sussurrou ela.
  • Ah, Susanna... Não sou o sujeito certo para você. Até mesmo Leo seria uma escolha melhor...
  • Leo? Jamais sonhei ter qualquer relacionamento mais íntimo com meu primo!Naquele momento, um vento gelado cruzou o aposento e a vela que ardia no castiçal deu seu último suspiro.Ela sentiu seu coração bater descompassado e suspirou, ofegante, dominada pela ânsia da paixão.

 

    • Os braços de Hugh a envolveram com ternura e, de súbito, Su­sanna se viu aprisionada sob o corpo musculoso e viril.
    • Tendo a escuridão da noite como cúmplice, Hugh mergulhou sob as cobertas e colou seu corpo ao de Susanna.
    • O comentário pareceu tão sincero que Hugh levantou os olhos para fitá-la com emoção. Foi como se uma força enigmática os unisse num só desejo.
  • Está tudo bem? — perguntou o major, com voz rouca, enquan­to beijava a pele macia de seu pescoço.
  • Sim... — gemeu ela, incapaz de emitir qualquer outro som in­teligível.Hugh parecia tão sequioso por aquele contato quanto ela mesma, pois enquanto deslizava as mãos dos ombros estreitos até os quadris arredondados, pressionava sua.s pernas contra o tecido fino que co­bria as coxas de Susanna.Ainda estava tentando descobrir o que fazer para agradá-lo quando ele se afastou abruptamente.

 

    • Ela não era tão ignorante sobre os mistérios do relacionamento entre um homem e uma mulher para não saber o que estava prestes a acontecer entre eles. Mesmo assim sentia-se insegura, pois não sa­bia o que Hugh esperava de uma mulher.
    • Lentamente, Hugh trilhou um caminho de fogo até a boca peque­nina e rosada. Quando finalmente seus lábios se encontraram num beijo ardente e sensual, Susanna arqueou-se ainda mais de encontro a ele, querendo sentir-se parte daquele homem que lhe ensinava a magia da paixão.
  • Hugh! — gemeu ela, confusa ao vê-lo sentar-se na cama.
  • Saia daqui! — ordenou ele com voz rouca. — Saia daqui, Susanna!
  • O quê? — indagou, perplexa com a súbita mudança de atitude do homem por quem descobrira estar apaixonada.
  • Eu disse saia! Fora da minha cama e do meu quarto, agora!

 

    • — Mas... — começou a dizer, aturdida demais para prosseguir. O major não esperou que ela continuasse. Pegou-a pelos ombros e forçou-a a sair da cama.
  • Pare! — gritou Susanna, revoltada com aquele comportamento hostil.
  • Fora, eu já disse! Você é uma tola, Susanna. Não tinha nada que vir até aqui no meio da noite. Deve estar perdendo o juízo!
  • Pensei que me desejasse — afirmou ela, tentando recuperar-se do choque da rejeição.
  • Claro que desejo! Se uma moça vem até meu quarto se ofere­cer, não sou homem de recusar tão generosa dádiva. Porém... Agradeça a Deus por ter feito com que eu parasse a tempo, mocinha. E agora, saia daqui e guarde suas virtudes para um cavalheiro que real­mente as mereça.
  • Não quero guardá-las para ninguém! — protestou ela.
  • Sim, você quer. Não sou tão tolo a ponto de ser facilmente apanhado por uma armadilha tão antiga quanto a que tentou armar pa­ra mim.
  • Armadilha? Está achando que eu quis forçá-lo a...?
  • Fora! — ordenou Russell, sem responder a pergunta. — E não volte a fazer isto outra vez! — gritou, enquanto a empurrava para o frio do corredor e fechava a porta às suas costas.— Dez horas, major! — exclamou Charlie Treasure abrindo as cortinas do quarto de Hugh. — Podemos seguir... — começou ele, mas interrompeu-se bruscamente ao notar um objeto estranho caí­do no chão. — Céus! — exclamou, surpreso.

 

    • Naquele momento, o major Russell abriu os olhos e piscou diante da claridade que entrava pela janela que o criado acabara de abrir.
    • Humilhada e sentindo-se o último dos seres humanos, Susanna ca­minhou até seu quarto e chorou até o amanhecer.
  • Você disse dez horas, Charlie?
  • Sim, major. Gostaria de tê-lo acordado antes, mas parecia que ninguém estava disposto a levantar-se cedo, hoje. Tenho boas notícias, senhor. Parou de nevar, e parece que as estradas estarão aber­tas amanhã mesmo.

 

    • Hugh passou as mãos pelo rosto, murmurando:
  • Charlie, estou me sentindo como se tivesse levado uma surra...
  • É mesmo? — perguntou o criado, divertido. — Pensei que o senhor estaria se sentindo mais animado depois da... festa... de ontem à noite — comentou ele antes de erguer o objeto que acabara de encontrar. — O que devo fazer com isto aqui, major?

 

    • Russell ergueu os olhos e percebeu que Charlie segurava o xale de Susanna.
  • Droga! — resmungou, irritado. — Deixe o xale sobre a cama, eu o devolverei assim que tiver uma oportunidade, Charlie.
  • Está bem, patrão.Quando desceu para tomar o café da manhã, notou que o major não estava na sala de refeições. Entretanto, como nem tudo era per­feito, Leo encontrava-se no aposento e continuou a vigiá-la como fizera no dia anterior.

 

    • Susanna também acordou tarde naquela manhã, e uma forte apreensão a invadiu quando pensou que teria de encarar Hugh de­pois do fiasco da noite anterior.
  • Está com olheiras, Susie — comentou o rapaz, não dando a menor importância ao fato de estar sendo indiscreto. — Por acaso continua preocupada com o problema do major? Pode ficar tranquila, ninha querida, Russell é o tipo de pessoa que sabe cuidar bem de si mesmo.
  • Pare de tocar neste assunto, por favor, Leo! E trate de não ficar grudado em mim o tempo todo como fez ontem. Sei que tem boas intenções, mas seus cuidados são completamente desnecessários! Agora, se me dá licença, vou para a sala de estar, onde estarei muito bem... sozinha!
  • Mas Susie, você nem tomou seu desjejum! — insistiu o primo.
  • Não estou com fome!Suspirou aliviada quando chegou à sala de estar. Sabia que não seria fácil evitar Hugh e Leo durante o dia todo. Respirando fundo, foi até a janela e observou que não estava mais nevando. Logo a estrada estaria livre e Hugh partiria para nunca mais voltar. O pen­samento antes tão assustador começava a parecer-lhe a melhor solu­ção para o relacionamento tumultuado que se estabelecera entre ela e o major. Depois do que acontecera na noite passada...— Realmente, Leo! Já não lhe disse...— Não queria incomodá-la — apressou-se a dizer Hugh. — Soube, contudo, que estava sozinha aqui, e achei que seria melhor devolver isto o mais depressa possível — declarou ele estendendo o xale que Charlie Treasure encontrara em seu quarto naquela manhã.Susanna chamou-o antes que pudesse conter-se.Ele voltou-se e arqueou as grossas sobrancelhas, numa expressão indagadora.

 

    • — Hugh!
    • Ela pegou o objeto que ele lhe estendia e no mesmo instante o ma­jor começou a afastar-se.
    • Mas era Hugh Russell que estava parado à sua frente.
    • Ouviu um barulho na porta e voltou-se impaciente, achando que sabia quem era o recém-chegado.
    • —Está bem, depois que eu terminar irei me juntar a você. Com um movimento brusco, Susanna deixou-o sozinho na enor­me mesa da sala de refeições.
  • Sobre ontem à noite... —murmurou Susanna.
  • É melhor esquecermos o que houve. Vou partir amanhã bem cedo — disse ele, interrompendo-a. — Devo confessar que não vim até aqui com a intenção de causar algum mal a você ou a sua famí­lia. Mas ao que parece, não tive muita sorte e acabei por magoá-la.
  • Você não teve culpa de nada!
  • Certamente você também não teve! — afirmou Hugh, voltan­do a ser o homem gentil de antes.

 

    • Susanna fitou-o com os olhos marejados de lágrimas.
  • Não chore, Susanna. Não por minha causa, por favor. Não mereço sua devoção!
  • Como não chorar? Eu o amo tanto! — argumentou, agoniada.
  • Não, não ama. Não sei exatamente o que é que você sente por mim, mas tenho certeza de que logo me esquecerá.
  • Não tente me enganar com falsos argumentos!
  • Não quero enganá-la, Susanna. Tenho um grande respeito por você, e acho que sabe muito bem que se não fosse por isso eu não teria parado como fiz na noite passada. Por favor, procure entender!— Aí está seu fiel cão de guarda! — disse Hugh com um sorriso. — Acho que esta na hora de nos despedirmos.Leo entrou no aposento com um ar curioso. Ao ver as lágrimas rolarem pelo rosto de Susanna, comentou calmamente:

 

    • Antes que ela tivesse tempo de dizer qualquer coisa, Hugh já ha­via deixado a sala.
    • A voz de Leo chamando pela prima interrompeu-os naquele momento.
  • Acho que cheguei um pouco atrasado. Bem que tentei evitar isso... Ainda vai negar que ama Hugh Russell, Susie?
  • Não, não vou — gemeu ela. — Mas agora não fará a menor diferença.

 

    • Leo esboçou um sorriso misterioso.
  • Pode ser que faça minha querida, pode ser que faça...
  • O que quer dizer, Leo?
  • Logo saberá . Agora, se me dá licença ... — O ajudante do major Russell está aqui, como o senhor pediu, sr. Leo.Leo Drayton estava sentado confortavelmente numa cadeira que ficava bem próxima à lareira e, trajando um robe de seda verde, pa­recia um verdadeiro sultão.

 

    • — Deixe-o entrar, Hill — ordenou Leo de dentro do quarto. Charlie olhou ao redor, desconfiado, mas acompanhou o outro criado.
    • Hill, o criado pessoal de Leo, trocou olhares hostis com Charlie Treasure antes de anunciar:
    • Onde vai com tanta pressa? — gritou ela para o rapaz que fe­chava a porta atrás de si.
  • Deseja falar comigo, senhor? — perguntou Charlie sem per­der tempo.
  • Sim, Treasure. Nós dois estamos precisando ter uma conversinha. Hill! Por favor, certifique-se de que não há ninguém circulan­do pelo corredor!
  • Está bem, senhor — respondeu o criado, mal-humorado; não lhe agradava que Charlie ficasse sozinho com o sr. Leo, aquilo era uma afronta à sua posição de criado de confiança.
  • Sejamos francos, Treasure — começou Leo, assim que se viu a sós com Charlie. — Seu patrão está numa enrascada, não é mesmo?
  • Pode ser — retrucou o criado particular de Russell, cauteloso.
  • Ora, tenha paciência, Treasure, você sabe muito bem que te­nho razão! Pois se o major até foi expulso desta casa!
  • Não discuto os assuntos pessoais do major. Especialmente com o senhor, que não pode ser considerado uma amigo de meu patrão.— Escute bem, você está muito enganado a meu respeito! Estou prestes a provar que sou um dos amigos mais sinceros do major. Sei que tivemos nossas desavenças, mas vamos acabar nos acertando, Russell e eu. Se minhas suposições estiverem certas, Treasure, pode­remos tirar o major desta confusão. Imagino que você queira ajudá-lo, não é mesmo?

 

    • Charlie, que até então fitara seu interlocutor com evidente des­confiança, agora parecia interessado.
    • Leo ficou irritado e, levantando-se da cadeira, apontou o dedo em riste para Charlie, argumentando:
  • Por que o senhor faria tal coisa, sr. Leo? Sei que o major atrapalhou seu planos em relação à srta. Harte, e isto já seria motivo suficiente para o senhor querer vê-lo pelas costas.
  • Não nego que tenha razão, Treasure. Mas, às vezes, precisamos levar em consideração outros fatores mais importantes. Um homem inteligente sabe de qual lado deve ficar na hora da batalha final. Não aprendeu isto no exército, meu caro?

 

    • Charlie pensou que talvez estivesse começando a compreender o jogo de Leo.
  • Está querendo dizer que o senhor sairá lucrando se ajudar o major?
  • Exatamente, Charlie. Se conseguir provar minha teoria de que Hugh não roubou nada, então poderei ficar tranquilo com relação ao meu futuro.

 

    • Charlie respirou aliviado. Sabia que Leo não era o tipo de pessoa que ajudava alguém sem tirar alguma vantagem da situação, e já que o rapaz sairia lucrando se o major fosse inocentado, então sabia que podia confiar nele.
  • O que devo fazer para ajudar, senhor?
  • Precisamos agir bem rápido, Treasure! Vá falar com o jardineiro e peça para ele lhe arranjar um rasteio que tenha o cabo bem comprido. Enquanto isso, vou trocar de roupa e procurar uma rede de pesca.Russell estava sentado perto da lareira de seu quarto. Seus olhos escuros fitavam as chamas azuladas, e ninguém poderia dizer o que lhe passava na mente naquele momento. Ouviu-se uma batida na por­ta e o major ordenou:Uma figura feminina aproximou-se suavemente.— Como duelar, por exemplo? — indagou o major, segurando as mãos pequeninas que pousaram em seus ombros. — Pode ficar tranquila, duelar não faz o estilo de Leo. E nem o meu, diga-se de passagem. A propósito, ainda não vi seu primo em lugar algum, hoje. Mas isso não quer dizer nada, afinal, nem Charlie eu consegui encontrar.

 

    • Susanna ajoelhou-se sobre o tapete macio e, olhando fixamente para as chamas que ardiam na pequena lareira, comentou sem ou­sar encarar Russell:
    • — Procurei-o pela casa toda, Hugh — disse Susanna num fio de voz. — Estava começando a temer que você e Leo tivessem se afas­tado da mansão prontos para fazer alguma besteira.
    • — Entre!
    • Charlie Treasure obedeceu sem discutir as estranhas ordens de Leo.
  • Não vi você o dia todo, e imaginei que talvez estivesse pensando que não poderia descer para a ala social da casa. Foi por isto que vim até aqui.
  • Para me fazer companhia na desgraça? Aprecio sua intenção, Susanna, mas acho que já dissemos adeus um ao outro.
  • Você disse, eu não! — exclamou, ela obstinada. — Mas já que esta indo embora dentro em breve, o mínimo que posso fazer é apro­veitar sua companhia.

 

    • Hugh acariciou o rosto aveludado de Susanna e depois afastou-se bruscamente.
  • Está mesmo determinado a partir amanhã? — perguntou ela num fio de voz.
  • Sim. Mesmo que não fosse este o meu desejo, seu pai me obri­garia a fazê-lo.

 

    • Susanna respirou fundo tentando conter sua frustração.
  • Nunca vi situação mais idiota! Por que não conta a verdade, Hugh? Pelo menos para mim!
  • Já tentei até lhe escrever uma carta, mas não consegui — confessou o major com um brilho estranho nos olhos escuros. — Eu queria poder lhe dar alguma ideia do que vim fazer aqui, Susanna...Ela suspirou e apoiou a cabeça sobre os joelhos de Hugh. Depois de um momento de hesitação, ele completou:

 

    • Percebi, no entanto, que só criaria mais transtornos.
  • Susanna? Quando você esteve aqui na noite passada... Sabe que eu gostaria muito que tivesse ficado, não é?
  • Sim, eu sei.
  • Eu deveria ter dito que espero que você encontre um homem bom e honesto que a faça muito feliz. Mas não consegui dizer uma mentira dessas! Você conhece o famoso egoísmo que corrói as entranhas da raça humana, eu suponho. Pois é, eu não podia pensar que outro teria o que precisei negar a mim mesmo. E foi melhor as­sim, minha querida. Você mercê encontrar um marido decente que a fará muito, muito feliz.
  • Não quero encontrar ninguém além de você, Hugh! — exclamou ela, convicta.
  • Deixe de bobagem! — falou o major com gentileza, tomando-a pelo braço para ajudá-la a levantar-se do tapete. — Sabia que uma dama não deveria sair por aí sentando-se no chão?
  • Uma dama também não pula uma janela depois de chegar em casa suja de lama, e nem visita cavalheiros a altas horas da noite! — argumentou Susanna, cansada do comportamento paternal de Hugh. — E pare de ser tão gentil comigo! Se realmente tivesse algum afeto por mim, me contaria a verdade!
  • Oh, Deus! — gemeu ele, agoniado.— Hugh, querido! Por quê tudo isto?

 

    • Ele hesitou por alguns instantes, depois abraçou-a e declarou com voz grave:
    • Susanna levantou-se de um salto e jogou os braços em torno do pescoço dele.
  • Não posso lhe contar nada, Susanna, porque outras pessoas seriam destruídas se a verdade fosse revelada. Ninguém pode construir sua felicidade em cima da desgraça dos outros.
  • Pensa assim mesmo sabendo que estou terrivelmente infeliz e você também, Hugh?— Sente-se!—Não tem um lenço? — perguntou ele ao vê-la chorar. Susanna tirou um lencinho de renda do bolso do vestido. Enxu­gando as lágrimas que teimavam em cair, indagou desconfiada:

 

    • Ela o fitou assustada e obedeceu, sentando-se sobre os joelhos do major.
    • Ele soltou-lhe o braço e ordenou muito sério:
  • Não vai começar de novo com aquelas histórias de garotas que se afastaram da família e foram muito infelizes, não é? Não acredito que seja assim com todo mundo!

 

    • Tem razão, nem sempre. Só que o fato de existir tal possibili­dade exige que se pense muito bem antes de se fazer uma bobagem. Já lhe disse que pretendo voltar para a Itália, Susanna! Não, não diga nada! — ordenou ele quando viu que ela se preparava para fazer um comentário. — Sei que pode parecer muito romântico mudarmos para um país latino. Mas não se trata de uma viagem de férias onde ao final voltamos para casa cheio de novidades. Trata-se de construir uma vida, trabalhar arduamente, aprender outro idioma, ser obrigado a seguir outros costumes. Seu pai ficaria horrorizado com tal ideia. Eu também ficaria, no lugar dele. E não é só isso, tem outra questão — finalizou ele, parecendo bastante embaraçado com o assunto.
  • O que é? — perguntou Susanna, sentindo ainda mais infeliz.
  • Bem, posso ser um aventureiro, mas nunca fui um caçador de fortunas. Graças à herança que recebi de meus parentes italianos, tenho dinheiro suficiente para ganhar a vida honestamente. Uma vida honesta, contudo, é só o que tenho a lhe oferecer, Susanna. Você, por outro lado, é a herdeira oficial de seu pai. Uma vez que sir Frederick, provavelmente, não terá filhos com Viola, tudo isto aqui será seu. A vida pode ser muito melhor para você sem mim, minha querida.
  • Tolice! — exclamou ela, indignada. — Se a vida melhor que posso ter sem você está relacionada ao fato de meu pai ter mais dinheiro, então acho que nem preciso dizer que está falando uma tre­menda bobagem.
  • Não é só o dinheiro, minha cara. Existe a reputação. Já parou para pensar que estou sendo acusado de roubar os brilhantes de sua família? Como encararia o fato das pessoas apontarem para você dizendo que se casou com um ladrão? É claro que não roubei nada, mas quem acreditará em mim? Gostaria que as coisas fossem dife­rentes... — comentou ele, suavemente.Nesse momento, Charlie Treasure entrou no quarto. Ficou con­fuso com a cena que se descortinava diante de seus olhos. A srta. Harte sentada nos joelhos do major? Espantoso!— Você não interrompeu nada. O que deseja, Charlie? Pode falar. Susanna notou um certo alívio na voz de Russell, que revelava que a interrupção de Treasure era muito bem vinda.Hugh e Susanna chegaram juntos à sala de visitas e viram sir Fre­derick caminhando impaciente de um lado para outro. Seu rosto en­velhecido exibia um expressão desconfiada.

 

    • — Vim avisá-lo que o sr. Leo pediu que todos se reunissem na sala de visitas, senhor. Ele tem uma comunicação importante a fazer.
    • — Sinto muito, senhor. Eu não queria interromper ... —desculpou-se o criado.
    • "Não há nada que eu possa fazer", pensou Susanna com tristeza. "Hugh já aceitou que deve se afastar de mim, e eu sou obrigada a fazer o mesmo!"
  • Espero que esta não seja mais uma de suas piadas de mau gosto, Leo! Se você nos trouxe aqui para dizer alguma asneira, juro que me esqueço de que é filho de minha irmã e o coloco para fora desta casa!
  • Juro que não se trata de uma piada, meu tio — declarou o ra­paz. — Ah, aí estão vocês, Russell, Susie...

 

    • Ao lado da janela, Viola voltou-se para declarar num tom mor­daz:
  • Não gosto de suas brincadeiras Leo. Acho bom ir direto ao assunto!
  • Bem, na verdade, lady Harte, acho que não tenho muita coisa para dizer à senhora.— Que palavras grosseiras são estas, rapaz? Hugh também se manifestou:

 

    • Viola fitou Leo aturdida com aquela ousadia, e sir Frederick in­terferiu a favor da esposa.
  • Pense duas vezes antes de fazer qualquer tolice com a inten­ção de limpar meu nome, Leo. Este é um problema só meu!
  • Um problema só seu!? — repetiu Leo, indignado. — E o que me diz de Susie? Tem o direito de fazê-la sofrer tanto?

 

    • Ouviu-se um murmúrio geral antes que o jovem Drayton se vol­tasse para o tio.
  • Trouxe o colar que foi encontrado na bolsa de Russell, tio Fre­derick?
  • Sim — respondeu o velho cavalheiro tirando o estojo de veludo vermelho do bolso de seu casaco. — Agora ouça bem, rapazinho, espero que tenha ouvido o conselho do major e tenha pensado bem antes de fazer alguma tolice.
  • Não vou fazer nenhuma tolice, muito embora alguém já tenha feito a maior delas. — Com um gesto dramático, Leo levou a mão ao bolso e retirou dela um estojo idêntico ao que sir Frederick acabara de colocar sobre a mesa de centro da sala.Viola empalideceu e sentou-se abruptamente na cadeira mais próxima.— Santo Deus! — exclamaram Susanna e o pai, ao mesmo tempo. Sir Frederick caminhou até a mesa onde repousavam os dois colares e, perplexo, constatou que eram idênticos.

 

    • — Bem, aqui está — declarou Leo com enorme satisfação enquan­to abria a caixa para revelar um colar igual ao que sir Frederick trou­xera consigo.
    • Susanna engoliu em seco e instintivamente procurou pela mão de Hugh.
  • O que está havendo Leo? Qual é o verdadeiro colar dos Harte? — indagou o velho cavalheiro ainda atónito.
  • De fato, tio, qual será o verdadeiro? Mas acho que a melhor pessoa para nos explicar esta história é o major Russell!— Major?— Conte a eles, Hugh! — ordenou Viola com despeito. — Pode explicar esta história perfeitamente bem, não é mesmo, meu caro?

 

    • Ele meneou a cabeça com tristeza.
    • Hugh respirou fundo. Soltando a mão de Susanna, aproximou-se do local onde repousavam os dois objetos idênticos. No entanto, antes de dizer algo, voltou-se para fitar as faces pálidas de sua tia.
    • Sir Frederick ergueu os olhos e encarou o homem moreno que con­tinuava impassível.
  • Está bem. De fato, sir Frederick, existem dois colares idênticos. Um deles é o verdadeiro, e é claro que o outro é uma falsificação. Acho que já ouviram falar num joalheiro alemão que inventou uma técnica para fazer réplicas perfeitas de brilhantes utilizando vidros comuns. Estas falsificações, porém, podem ser facilmente des­cobertas.
  • Como? — quis saber sir Frederick.
  • Todos sabem que os diamantes são os minerais mais resistente que existem, sir. Já demonstrei isto para sua filha, outro dia, e vou demonstrar agora para os senhores, só que de maneira diferente. —Levou a mão ao bolso do casaco e tirou de lá um pequeno canivete. Pegando um dos colares, pressionou a pequena navalha contra a superfície das pedras. — Estão vendo, nada aconteceu! — Hugh dei­xou de lado o primeiro colar e pegou o outro. — Agora este aqui. — Repetiu a ação, e desta vez um enorme risco apareceu na pedra contra a qual apertara a navalha. — Bem, acho que não preciso di­zer mais nada. Este é o colar falso.
  • Espere! — ordenou sir Frederick. — O que estava em sua bagagem era o colar verdadeiro, pois fui eu que o trouxe quando desci, e você acabou de demonstrar que as pedras são legítimas. Mas então, de onde veio este outro?
  • Do canal que atravessa o jardim — revelou Leo com satisfa­ção. — Charlie Treasure e eu acabamos de... pescá-lo.

 

    • Vinda do outro lado da sala, a voz de Viola soou conformada.
  • Acho melhor começar do princípio, Hugh. Conte tudo a eles. Russell voltou-se para encarar a tia, dizendo:
  • Não sabia que Leo havia encontrado a falsificação.
  • Tampouco eu sabia que você tinha o colar verdadeiro, Hugh. Juro... — declarou ela, parecendo subitamente cansada. — Vamos acabar logo com isto, conte toda a verdade, Hugh...
  • Se é o que deseja, Viola...Hugh hesitou. Lançou um olhar preocupado na 'direção de Susanna e depois, voltando-se para sir Frederick, declarou:

 

    •  
  • Sinto muito, sir, mas o que tenho a dizer pode ser muito embaraçoso. Não direi uma palavra do que aconteceu se o senhor não o desejar.
  • Vamos logo com isto, major! — exclamou o idoso cavalheiro, muito zangado. — Não pense que sou algum idiota, imagino muito bem o que deve ter acontecido.

 

    • Susanna sentou-se em uma poltrona ao lado da lareira. Nervosa, sentia-se incapaz de permanecer de pé, como se estivesse a ponto de desmaiar.
  • Ande logo com isto, Hugh! — ordenou Viola, parecendo ainda mais bonita em razão do contraste entre a tez pálida e os cabelos cor de ébano.
  • Está bem. Vou começar a história pelo primeiro casamento de minha tia. Sei que um homem não deve falar mal dos mortos, mas o falecido Harry Devaux era um sujeito desprezível em todos os sentidos. Todos nós sabíamos disso, contudo não conseguimos fazer com que Viola enxergasse a verdade. Então, ela acabou fugindo com o sujeito e eles se casaram em segredo.— Não vou me deter em detalhes —, prosseguiu Hugh —, mas devo admitir que Harry Devaux era um jogador inveterado. Aca­bou com a própria fortuna, e com a de minha tia também, na mesa de jogos. Sinto dizer que a influência dele sobre Viola foi a pior pos­sível. Ela também se interessou por jogos de cartas, e quando Harry morreu começou a contrair uma dívida atrás da outra, envolvendo-se com os tipos mais desclassificados. Tudo por causa das jogati-nas... Quando nós soubemos disso, e quando digo "nós" me refiro aos membros de nossa família, ficamos seriamente preocupados. Pior ainda foi quando soubemos que Viola havia contraído segundas núp­cias. Ela nunca demonstrou estar arrependida dos erros que come­tera no passado, e achamos que poderia envolver o respeitado sir Frederick em algum escândalo.

 

    • Sir Frederick ouvia tudo calado. Nada em seu semblante revelava quais os pensamentos que lhe passavam pela mente naquele momento.
    • "Era por isto que Hugh não queria que eu o seguisse para fora do país! Tinha medo de que cometêssemos o mesmo erro que Vio­la!", pensou Susanna, finalmente compreendendo que durante to­do aquele tempo o major só tentara poupá-la de um grande sofrimento.
  • Quando retornei à Inglaterra, pensei que poderia descansar um pouco depois de doze anos de guerra. Mas não foi bem assim. Fui convocado para uma assembleia familiar que pretendia discutir o problema de Viola. Fui escolhido para vir até aqui e ver como ela estava se comportando no seio de sua nova família. Na verdade, nós suspeitávamos que Viola ainda tivesse muitas dívidas a pagar, e que não mencionara nada ao marido.
  • Você tem dívidas, minha querida? — indagou sir Frederick, com ternura.— Minha criança, por que não me contou?— Tive medo, Freddie. Você poderia me achar uma grande tola. Sir Frederick não disse mais nada e fez um sinal para que Hugh continuasse a falar.

 

    • Ela fitou o marido e declarou, parecendo muito cansada:
    • — Sim, Freddie — confessou Viola num fio de voz. Inesperadamente, sir Frederick levantou-se e aproximou-se da es­posa, tomando as mãos delicadas entre as suas.
  • Bem, fiquei de investigar se Viola tinha mesmo muitas dívidas, e para minha surpresa descobri que minha tia já havia saldado todas elas. Intrigado, iniciei novas investigações. Acabei conhecendo dois camaradas chamados Tobias e Josiah Clay. Eles são joalheiros tarimbados, têm uma loja no centro de Londres, e Viola havia deixado o colar de brilhantes penhorado na loja deles.
  • Santo Deus! — exclamou sir Frederick.Leo sorriu, satisfeito com a importância que ganhara graças à sua descoberta, e começou a falar:

 

    • Imagino que minha tia pretendia recuperar a jóia, mas acabou se encontrando sem condições para fazê-lo. Então, nossa família se reuniu e juntou dinheiro para recuperar o colar. Vim para cá para trazê-lo de volta. Imaginem minha surpresa quando cheguei aqui na noite de Ano Novo e deparei com Viola usando o suposto colar de brilhantes! Tentei fazer com que minha tia confessasse a bobagem que havia feito, mas ela se recusou a me ouvir. No dia em que o colar verdadeiro foi encontrado em minha bagagem, eu pretendia entregá-lo a Viola antes de ir embora. Viola, por sua vez, alarmada com minha presença aqui na mansão, acabou atirando a falsifica­ção no canal e simulou o arrombamento da gaveta... Acho que ago­ra Leo pode continuar a história.
  • Bem, acho que só tive um pouco de sorte. Há alguns dias atrás, encontrei lady Harte debruçada no gradil da pequena ponte sobre o canal de irrigação que atravessa o jardim. Como estivesse muito frio, estranhei o fato dela estar fora de casa. Lady Harte alegou que estava com um pouco de dor de cabeça e precisava caminhar. Não acreditei naquela desculpa e fiquei a pensar no que ela poderia estar fazendo por ali. Foi então que o colar desapareceu, e juntando as peças do quebra-cabeça percebi que a presença de Russell nesta casa tinha algo ver com os brilhantes dos Harte. A atitude pouco à von­tade de lady Harte no dia em que a encontrei na ponte me deu a pista-chave para desvendar o mistério. Ela havia se livrado da jóia falsa que um de seus amigos lhe trouxera durante o verão!
  • Sinto muito, Freddie — disse Viola, com voz trémula. —- Sei que tive um comportamento desprezível. Juro que não queria que Hugh fosse prejudicado por minha causa. Mas eu jamais poderia imaginar que ele havia resgatado o colar verdadeiro. Quando me vi frente a frente com a possibilidade de você descobrir o que eu tinha feito, achei que a melhor saída era livrar-me da falsificação e fingir que havia sido roubada. Depois, contudo, quando percebi que começou a nevar e que a correnteza não levaria o colar para bem longe daqui, como eu desejava, fiquei aterrorizada.
  • Por quê? — indagou Susanna confusa com toda aquela história.
  • É simples — respondeu Hugh. — Primeiro porque, como a própria Viola acabou de dizer, o colar continuaria bem perto da mansão, com a água do canal meio congelada. Segundo, a forte nevasca impedia que qualquer um que tivesse roubado a jóia pudesse fugir.
  • Mas eu não sabia disto quando decidi fazer o que fiz! — exclamou Viola. — Jamais me ocorreu que Leo pudesse desconfiar da verdade. Não sei porque ele teve de se intrometer nesta história!
  • Se Leo não tivesse se intrometido —, repreendeu-a o marido, com firmeza —, a situação não teria se esclarecido e seu sobrinho seria chamado de ladrão, minha querida.
  • Acho que tem razão, Freddie — concordou Viola com um sus­piro. — Meu comportamento foi deplorável. Sinto muitíssimo, querido. Prometo que nunca mais farei algo parecido! Por favor, perdoe-me! — implorou ela, deixando todo orgulho de lado.— Vamos lá! — disse sir Frederick, ajudando a esposa a levantar-se. — Chega de choro, querida...Susanna fitou o casal que se retirava e um leve desapontamento iflvadiu sua alma. Então seu pai perdoara todas as loucuras que Viola fizera... Bem, pelo menos agora ele sabia do que a esposa era capaz, e na certa cuidaria para que ela não fizesse mais nada de errado.

 

    • Sem dizer mais uma palavra, o velho cavalheiro ofereceu-lhe o bra­ço, deixando perplexos aqueles que estavam na sala.
    • Susanna meneou a cabeça tristemente, imaginando que a madras­ta já recorrera várias vezes àquele artifício para evitar ser castigada por um erro que cometera. Olhou de soslaio para Hugh, e pela ex­pressão de ironia no rosto moreno percebeu que ele pensava o mesmo.
  • Posso saber por que fez tudo isto, Leo? — indagou Hugh, de repente. — Por que me ajudou?
  • Posso garantir que não foi só para salvar a sua pele, Russell. Susie estava infeliz e, apesar de não parecer, a felicidade dela é muito importante para mim. Além do mais, nunca gostei de Viola. Sei que na primeira oportunidade ela me expulsaria da mansão. Desse modo, aproveitei a chance de assegurar minha estadia aqui, desmascarando Viola e ao mesmo tempo ajudando o seu romance com mi­nha prima.
  • Leo! — exclamou Susanna, manifestando-se pela primeira vez.
  • Ora, Susie, deixe de bobagens! É evidente que você e o major estão apaixonados, não adianta negar. — Com um sorriso maroto, o rapaz curvou-se diante da prima e comentou malicioso: — Agora vou deixar os pombinhos a sós. Ah, antes que eu me esqueça, Susie... Até que aquela sua tradição de Ano Novo deu resultado desta vez, não é mesmo?
  • O que ele quis dizer com isso? — indagou Hugh envolvendo-a nos braços assim que Leo saiu da sala.
  • Nada de importante, meu querido major! — replicou ela, sor­ridente.
  • Ah, Susanna como é bom tê-la em meus braços! — murmurou ele com voz rouca.
  • Não foi isso que você me disse quando estive em seu quarto... — retrucou ela, brincalhona.

 

    • Minha querida, naquela noite eu desejei tanto poder amá-la com toda a paixão que trago dentro do peito... Mas não podia, ja­mais me perdoaria se a fizesse infeliz.
  • Jamais serei infeliz com você a meu lado, Hugh!
  • Tem certeza? — disse ele beijando-lhe a testa com ternura. —Não podemos correr nenhum risco!
  • E o que pretende fazer para que tudo dê certo conosco, sem risco nenhum? — perguntou ela, aninhando-se nos braços musculo­sos de Russell.
  • Bem... Herdei aquelas terras na Itália, e pensei em irmos morar lá. Mas seu pai precisa de você por perto, também. Para que todos fiquem satisfeitos, poderíamos passar seis meses em nossa propriedade italiana e seis meses aqui, com sir Frederick. O que acha da ideia?
  • Querido, você é maravilhoso! — exclamou Susanna, oferecendo os lábios rosados para serem beijados.
  • Não me tente, mocinha! Sabe que não posso resistir aos seus encantos — sussurrou Hugh com voz rouca de paixão.
  • E quem quer que você resista? — murmurou ela um pouco an­tes dos lábios de Hugh se apossarem dos seus.

 

  • "Leo tem razão", pensou ela entregando-se de corpo e alma ao beijo. "Cumprir a tradição da véspera de Ano Novo deu resultado desta vez!"

 

 

                                                                  Ann Hulme

 

 

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