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O COLECIONADOR DE OSSOS
Parte III
Series & Trilogias Literarias
CAPÍTULO XXI
— O caminho todo até o centro, Sachs — disse a voz de Rhyme, estalando nos fones de ouvido.
Ela apertou o acelerador do VRR, luzes vermelhas passaram como relâmpagos, enquanto eles desciam a West Side Highway. Fria como gelo, acelerou a 130.
— Uau! — exclamou Jerry Banks.
Contagem regressiva. Rua 23, 20, o mergulhão na doca de atracação da barcaça de lixo. Ao passar com um rugido pelo Village, pelo distrito dos frigoríficos, uma jamanta saiu de uma rua lateral e cruzou diretamente seu caminho. Em vez de frear, ela evitou o reboque articulado passando por cima do canteiro central, como se fosse um cavalo saltador de obstáculos, arrancando nomes feios de Banks e um gemido da buzina a ar do grande cavalo-mecânico White, que se dobrou espetacularmente como se fosse um canivete.
— Pô! — exclamou Amélia Sachs e voltou à pista na direção sul.
Dirigindo-se a Rhyme, acrescentou: — Repita aquilo! Não ouvi bem.
A voz metálica de Rhyme surgiu nos fones de ouvido: — No centro, isso é tudo que posso lhe dizer. Até que a gente saiba o que significa aquela folha.
— Estamos chegando a Battery Park City.
— Vinte minutos para a maré alta — avisou Banks.
ELEMENTO DESCONHECIDO 238
Aparência Residência Veículo Diversos • Branco, homem, estatura baixa • Roupa escura • Luvas velhas, pelica, avermelhadas • Loção pós-barba: para encobrir cheiro?
• Máscara de esquiador? Azul-marinho?
• Luvas são escuras • Loção pós-barba = Brut • Cabelo não é castanho • Cicatriz profunda, dedo indicador • Roupa esporte • Prov. tem casa segura • Localizada perto da: B'way & 82nd, ShopRite B'way & 96th, Anderson Foods Greenwich & Bank, ShopRite 2nd AVe., 72nd-73rd, Grocery World Battery Park City, J&G'S Emporium 1709 2nd AVe., Anderson Foods 34th & Lex., Food Warehouse 8th Ave. & 24th, ShopRite 6th Ave. & Houston, J&.G's Emporium Greenwich & Franklin, Grocery World • Prédio antigo, mármore cor-de-rosa • Táxi Yellow Cab • Sedã modelo recente • Cinza claro, prateado, bege • Carro de aluguel, prov. roubado • Conhece proc. de CC
• Possivelmente tem antec. criminais • Conhece levantamento de impressões digitais • Arma = .32 Colt • Amarra vít. com nós incomuns • O “Antigo” o atrai • Chamou uma vít. de “Hanna'
• Conhece alemão básico • Atraído por locais subterrâneos • Dupla personalidade • Talvez padre, assist. social, cons. psicológico • Desgaste incomum nos sapatos. Lê muito?
Talvez o grupo de Dellray pudesse conseguir do prisioneiro a localização exata. Eles poderiam arrastar o Sr. 238 para um beco, levando um saco de maçãs. Nick lhe contou que era assim que os federais conseguiam que um elemento “cooperasse”. Atingiam-no no estômago com o saco da fruta.
Realmente doloroso. Nenhuma marca. Ao tempo em que crescia, ela não teria acreditado que policiais fazem isso. Agora ela sabia que não era bem assim.
Banks deu-lhe uma palmadinha no ombro. Um bocado de velhos píeres.
Madeira podre, imunda. Lugares fantasmagóricos.
Resolveram parar e descer da caminhonete. Correram para a água.
— Você está aí, Rhyme?
— Fale comigo, Sachs. Onde é que você está?
— Em um píer imediatamente ao norte de Battery Park City.
— Acabo de receber notícia de Lon, no East Side. Nada encontrou.
— É uma busca sem esperança — disse ela. — Há dezenas de píeres. E, em seguida, todo o calçadão... E a garagem do barco dos bombeiros, as docas das barcas de passageiros e o píer de Battery Park... Precisamos da Unidade de Operações Especiais.
— Não temos a UOE, Sachs. Ela não está mais do nosso lado.
Vinte minutos para a maré alta.
Os olhos de Amélia acompanharam o cais. Os ombros caíram diante da tarefa sem esperança. Com a mão na arma, correu em alta velocidade para o rio, Jerry Banks em seus calcanhares.
— Diga-me alguma coisa sobre essa folha, Mel. Dê um palpite. Saque alguma coisa.
Inquieto, Cooper olhou do microscópio para a tela do computador.
Oito mil variedades de plantas folhudas em Manhattan.
— Ela não se encaixa na estrutura celular de coisa nenhuma.
— A folha é velha — disse Rhyme. — Que idade?
Cooper olhou novamente para a folha.
— Mumificada. Eu diria que tem uns cem anos, talvez um pouco menos.
— Que plantas se extinguiram nos últimos cem anos?
— Plantas não se extinguem em um ecossistema como o de Manhattan.
Elas sempre reaparecem.
Um estalo na mente de Rhyme. Estava prestes a lembrar-se de alguma coisa. Ele tanto amava quanto odiava essa sensação. Poderia agarrar o pensamento como quem pega uma mosca no ar. Ou ele poderia sumir por completo, deixando-o apenas com a pontada da inspiração perdida.
Dezesseis minutos para a maré alta.
Qual era o pensamento? Lutou com o problema, fechou os olhos...
Píer, pensou. A vítima sob um píer.
E daí? Pense.
Píer... navios... descarga... carregamento...
Carga sendo desembarcada!
Abriu de súbito os olhos.
— Mel, é uma folha de alguma cultura agrícola?
— Ora, pombas. Estive procurando nas páginas de horticultura geral, não em plantas cultivadas, comerciais.
E digitou durante um tempo que pareceu ser de horas.
— Tabaco? Tente isso.
Cooper acionou o mouse e uma imagem lentamente se desdobrou na tela.
— É isso!
— A World Trade Towers — anunciou Rhyme. — A terra ao norte desse local era coberta por plantações de fumo. Thom, a pesquisa para meu livro...
Quero um mapa da década de 1740. E aquele mapa moderno que Bo Haumann estava usando para localizar áreas de remoção de asbesto. Pendure-os no alto ali na parede, juntos.
O empregado encontrou o velho mapa nos arquivos de Rhyme.
Pregou com fita os dois na parede, perto da cama. Grosseiramente desenhado, o mapa mais antigo mostrava a parte norte da cidade colonizada — um grupo de casas na parte mais baixa da ilha — coberta de plantações. Havia três ancoradouros comerciais ao longo do rio, que na época não era chamado de Hudson, mas de West River. Rhyme lançou um olhar para o mapa moderno.
A terra agrícola tinha desaparecido, claro, como também os ancoradouros originais. O mapa, porém, mostrava um ancoradouro abandonado na localização exata de um dos velhos píeres dos exportadores de fumo.
Rhyme forçou a vista, lutando para ver o nome da rua da qual o ancoradouro ficava próximo. Ia gritar chamando Thom para segurar o mapa mais perto de seus olhos quando, lá embaixo, ouviu o som alto de uma porta sendo arrombada. Estalido de vidros.
Thom começou a descer a escada.
— Eu quero falar com ele.
Uma voz tensa encheu a entrada da casa.
— Apenas um... — começou o empregado.
— Não. Não em um minuto e não em uma hora. Agora, porra! Agora!
— Mel — sussurrou Rhyme -, esconda a prova, feche o sistema.
— Mas...
— Faça isso!
Rhyme sacudiu violentamente a cabeça, deslocando o conjunto fone-microfone, que caiu para o chão em um dos lados da Clinitron. Passos pesados na escada.
Thom fez o melhor que podia para dificultar a entrada. Os visitantes, porém, eram três agentes federais e dois deles tinham armas de grosso calibre nas mãos. Lentamente, eles o forçaram a subir de costas a escada.
Deus o abençoe. Mel Cooper desmontou o microscópio composto em cinco segundos e estava, calmamente, com meticuloso cuidado, arrumando as peças numa caixa quando o FBI apareceu no patamar da escada e invadiu o quarto de Rhyme. Os sacos de prova estavam sob uma mesa, cobertos por números atrasados da National Geographic.
— Ah, Dellray. Encontrou nosso elemento desconhecido, não?
— Por que você não nos disse?
— Disse o quê?
— Que aquela impressão digital era falsa.
— Ninguém me perguntou.
— Falsa? — perguntou Cooper, confuso.
— Bem, era uma impressão digital autêntica — respondeu Rhyme, como se isso fosse óbvio. — Mas não do elemento desconhecido. Nosso rapaz precisava de um táxi para fisgar seus peixes. Ele então conheceu... como era o nome dele?
— Victor Pietrs — murmurou Dellray e contou a história do motorista de táxi.
— Um toque de mestre — comentou Rhyme, com autêntica admiração.
— Escolheu um sérvio com antecedentes criminais e problemas mentais. Eu gostaria de saber por quanto tempo ele andou à procura de um candidato. De qualquer modo, 238 matou o pobre Sr. Pietrs e lhe roubou o táxi. Amputou-lhe o dedo. Guardou-o e pensou que, se estivéssemos chegando perto demais, ele deixaria uma impressão digital bela e óbvia em uma cena de crime, para nos fazer perder o rastro. Acho que funcionou.
Rhyme olhou para o relógio. Ainda quatorze minutos.
— Como é que você soube?
Dellray olhou para os mapas na parede, mas, graças a Deus, não demonstrou interesse por eles.
— A impressão digital mostrava sinais de desidratação e encolhimento.
Aposto que o corpo estava que era uma ruína só. E encontrou-o no porão, estou certo? Onde nosso rapaz gosta de guardar suas vítimas?
Dellray ignorou-o e andou focinhando pelo quarto como um gigantesco temer.
— Onde foi que você escondeu nossas provas?
— Provas? Não sei do que está falando. Ouça aqui, você quebrou minha porta? Na última vez, entrou sem bater. Agora abriu-a a pontapés...
— Sabe de uma coisa, Lincoln? Eu estava pensando em lhe pedir desculpas, antes...
— Muito bonito de sua parte, Fred.
— Mas agora estou a um centímetro de encaná-lo.
Rhyme olhou para o conjunto fone-microfone, caído no chão.
Imaginou a voz de Sachs balindo nos fones.
— Devolva-me as provas, Rhyme. Você nem imagina em que roubada está metido.
— Thom — disse lentamente Rhyme. — O agente Dellray me deu um susto e deixei cair meu walkman. Poderia ligá-lo novamente na armação da cama?
O empregado nem pestanejou. Pôs o microfone ao lado da cabeça de Rhyme, longe da vista de Dellray.
— Obrigado — disse Rhyme a Thom. Em seguida, acrescentou: — Sabe, não tomei ainda o meu banho. Acho que está na hora. O que é que você acha?
— Eu só queria saber quando era que você ia pedir o banho — retrucou Thom com a habilidade de um ator nato.
— Fale, Rhyme. Pelo amor de Deus, onde está você?
Em seguida, ela ouviu a voz nos fones de ouvido. A de Thom. Parecia forçada, exagerada. Alguma coisa estava errada.
— Arranjei uma nova esponja — disse a voz.
— Parece que é boa — respondeu Rhyme.
— Rhyme? — disse nervosamente Sachs. — O que diabo está acontecendo?
— Custou dezessete dólares. Tem que ser de primeira. Vou virá-lo.
Mais vozes chegaram aos fones de ouvido, mas ela não conseguiu entender as palavras.
Ela e Banks estavam correndo pelo cais, olhando por cima dos ancoradouros para a água cinzento-pardacenta do Hudson. Com um movimento, disse a Banks que parasse, dobrou-se com uma cãibra embaixo do esterno, escarrou no rio, tentando recuperar o fôlego.
Através dos fones, ouviu: — ... não vai levar muito tempo. Os senhores terão que nos desculpar, cavalheiros.
— ... nós simplesmente esperaremos, se não se importa.
— Eu me importo, mesmo — replicou Rhyme. — Será que não posso ter nem um pouco de privacidade aqui?
— Rhyme, você pode me ouvir? — perguntou Sachs em desespero.
Que diabo ele estava fazendo?
— Nada disso. Nada de privacidade para aqueles que roubam provas.
Dellray! Ele estava no quarto de Rhyme. Bem, isso era o fim de tudo.
A vítima está praticamente morta.
— Eu quero aquelas provas — berrou o agente.
— Bem, o que você vai conseguir é uma visão panorâmica de um homem tomando um banho de esponja, Dellray.
Banks começou a falar, mas ela mandou-o calar-se com um gesto.
Em seguida, novamente a voz calma de Rhyme: -... Sabe, Dellray, eu era um nadador. Eu nadava todos os dias.
— Temos menos de dez minutos — sussurrou Sachs.
A água batia calma no cais. Dois barcos passaram placidamente.
Dellray murmurou alguma coisa.
— Eu ia para o rio Hudson e nadava. Era muito mais limpa nessa época. Quero dizer, a água.
Uma transmissão truncada.
— ...o velho píer. Meu favorito desapareceu. Era a casa dos Hudson Dusters. Aquela gangue, já ouviu falar nela? Na década de 1890. Ao norte do lugar onde hoje está a Battery Park City. Você parece entediado. Cansado de olhar para a bunda mole de um paralítico? Não? Fique à vontade. Aquele píer ficava entre a North Moore e a Chambers. Eu mergulhava, nadava em volta do píer...
— North Moore e Chambers! — gritou Sachs. Deram uma volta sobre si mesmos. Haviam-no perdido porque tinham seguido longe demais na direção sul. O lugar ficava a uns 400 metros do ponto onde se encontravam. Ela podia ver dali a madeira marrom despegando, um grande cano de esgoto se enchendo com a água da maré.
Quanto tempo restava? Quase nenhum. Não havia como salvarem a vítima.
Ela tirou os fones com um arranco e correu para o carro, Banks quase nas suas costas.
— Você sabe nadar? — perguntou ela.
— Eu? Uma, duas raias no Health and Racquet Club.
Eles nunca conseguiriam.
Sachs parou de repente, fazendo um círculo rápido, e ficou olhando para as ruas desertas.
A água estava quase chegando ao nariz da vítima.
Uma pequena onda lavou o rosto de William Everett no momento em que ele inalava e o líquido sujo, salgado, penetrou até a garganta. Começou a sufocar, soltando um ronco profundo, horrível. Tossindo. A água encheu-lhe os pulmões. Perdeu a empunhadura na coluna do píer, mergulhou sob a superfície, endureceu-se, subiu mais uma vez, e em seguida afundou.
Não, meu Deus, não... por favor, não deixe...
Sacudiu as algemas, bateu com força os pés, tentando mover-se um pouco, como se um milagre pudesse acontecer e seus músculos débeis conseguissem dobrar o enorme parafuso ao qual estava preso.
Espirrando água, balançando a cabeça de um lado para o outro, em pânico. Por um momento, limpou os pulmões. Os músculos do pescoço estavam em fogo — tão doloridos quanto o dedo quebrado — com o esforço de dobrar a cabeça para trás para encontrar a fina camada de ar imediatamente acima de seu rosto.
Teve um momento de alívio.
Em seguida, outra onda, ligeiramente mais alta.
E isso foi o fim.
Não podia lutar mais. Renda-se. Reúna-se a Evelyn, diga adeus...
E William Everett amoleceu. Flutuou sob a superfície na água imunda, cheia de lixo e de tentáculos de algas marinhas.
Em seguida, ergueu horrorizado a cabeça. Não, não...
Ele estava ali. O seqüestrador! Ele tinha voltado.
Everett chutou a superfície, espirrando mais água, tentando desesperadamente afastar-se dali. O homem lançou uma luz forte em seus olhos e estendeu para ele a mão, empunhando uma faca.
Não, não...
Não era suficiente afogá-lo, tinha que retalhá-lo até a morte. Sem pensar, Everett chutou-o outra vez. O seqüestrador, porém, desapareceu sob a água... e, em seguida, snap, estava livre.
O velho esqueceu as plácidas despedidas e escoiceou como o diabo para chegar à superfície, inalando ar azedo pelo nariz e arrancando a mordaça.
Arquejando, cuspindo a água imunda. A cabeça bateu com força na parte inferior do píer de carvalho e riu alto.
— Oh, Deus, Deus, Deus...
Outro rosto apareceu... Mascarado, também, com outra lanterna cegante, e Everett conseguiu reconhecer o emblema do DPNY no traje de mergulho. Não eram facas o que aqueles homens tinham nas mãos, mas cortadores de metal. Um deles enfiou um bocal entre os lábios de Everett e ele inalou um hausto embriagador de oxigênio.
O mergulhador passou o braço em volta dele e juntos nadaram até a borda do píer.
— Respire fundo, nós vamos sair daqui em um minuto.
Everett encheu os pulmões estreitos até quase o ponto de explodir e, olhos fechados, acompanhou o mergulhador até o fundo, a água iluminada sobrenaturalmente pela luz amarela da lanterna na mão daquele homem. Foi um mergulho curto mas angustiante, até o fundo e, em seguida, para cima através da água turva, cheia de fragmentos. Em certo momento, escorregou das mãos do mergulhador e se separaram por um curto momento. William Everett, porém, ficou à altura da situação. Depois daquela noite, nadar sozinho no picado Hudson seria uma gostosura.
Ela não havia pensado em tomar um táxi. O ônibus do aeroporto seria ótimo.
Pammy, porém, estava zonza por falta de sono — ambas estavam acordadas desde as cinco daquela manhã — e começava a ficar inquieta. A menininha precisava ir dormir logo, ser posta sob as cobertas com sua mamadeira de Hawaiian Punch. Além disso, a própria Carole não podia esperar para chegar a Manhattan — ela era apenas uma mulher magra do Meio-Oeste que, em todos os seus 41 anos de idade, jamais tinha viajado para mais longe na direção leste do que até o Ohio, e estava morrendo de desejo de ver pela primeira vez a Grande Maçã.
Carole pegou a bagagem e as duas dirigiram-se para a saída. Verificou se trazia tudo com que tinha deixado a casa de Kate e Eddie naquela tarde.
Pammy, bolsa, cobertor, valise, mochila amarela.
Tudo no lugar onde devia estar.
Os amigos haviam-na avisado sobre a cidade.
— Vão assaltá-la — dissera Eddie. — Ladrões de bolsa, batedores de carteira.
— E não se meta naqueles jogos de cartas na rua — acrescentara a maternal Kate.
— Eu não jogo carta em minha sala de estar — lembrara-lhe Carole, rindo. — Por que vou começar a jogar nas ruas de Manhattan?
Mas gostou da preocupação dos amigos. Afinal de contas, ali estava ela, viúva, com uma filha de três anos, dirigindo-se para a cidade mais difícil da Terra, a fim de assistir à conferência das Nações Unidas — mais estrangeiros, droga, mais gente do que ela jamais tinha visto de uma vez só.
Carole foi até um telefone público e ligou para o hotel-residência a fim de confirmar as reservas. O gerente da noite respondeu que o quarto estava pronto e à espera delas. Ele as veria dentro de uns 45 minutos ou por aí.
As duas passaram pelas portas automáticas e o escaldante ar de verão foi como um soco que as deixou sem respiração. Carole parou, olhando em volta. Segurou Pammy firme com uma das mãos, suspendeu a valise surrada na outra, levando a mochila pendurada no pescoço.
Entrou na fila de passageiros à espera de um táxi, em frente ao estande do despachante.
Carole lançou um olhar para o imenso cartaz no outro lado da estrada, Bem-Vindos, Delegados, às Nações Unidas! A arte-final era horrível, mas, ainda assim, olhou para o cartaz durante um longo momento: um dos homens no cartaz parecia-se com Ronnie.
Durante algum tempo, após a morte dele, dois anos antes, virtualmente tudo lhe lembrava o marido bonitão, de cabelos cortados rentes.
Ela passava de carro por uma loja McDonald's e lembrava-se de que ele gostava de Big Macs. Atores em filmes que não se pareciam em nada com ele podiam inclinar a cabeça da maneira como Ronnie fazia. Via um impresso sobre a venda de um cortador de grama e se lembrava de como ele adorava o pequeno gramado que tinham em Arlington Heights.
Nessas ocasiões, as lágrimas começavam a correr. E ela voltava ao Prozac ou à Imipramina. Passava uma semana na cama. Relutantemente, aceitou o oferecimento de Kate de passar uma noite com ela e com Eddie. Ou uma semana. Quem sabe, um mês.
Mas chega de lágrimas. Estava ali para recomeçar a vida. O sofrimento era coisa do passado.
Sacudindo dos ombros suados a massa de cabelos louro-escuros, tocou Pammy para a frente e empurrou a bagagem com os pés, à medida que a fila para o táxi se movia. Olhou em volta, tentando pegar um vislumbre de Manhattan. Mas nada conseguiu ver, exceto tráfego, caudas de aviões e um mar de pessoas, táxis e carros. Vapor subia como se fossem fantasmas das tampas de esgotos e o céu da noite era preto, amarelo e enevoado.
Bem, logo veria o suficiente da cidade, pensou. Teve esperança de que Pammy fosse crescida o suficiente para guardar uma primeira recordação daquela paisagem.
— Que tal está achando até agora a nossa aventura, querida?
— Aventura. Eu gosto de aventura. Eu quero um pouco de Waiin Punch. Posso, por favor, tomar um pouco agora?
Por favor... Essa era nova. A menininha de três anos estava aprendendo todas as teclas e botões. Carole riu.
— Você vai tomar, logo.
Finalmente, chegaram ao táxi. A mala abriu com um estalo e Carole colocou lá a bagagem e bateu a tampa. Subiram para o assento traseiro do táxi e ela fechou a porta.
Pammy, a bolsa...
O motorista perguntou: — Para onde?
Carole deu-lhe o endereço do Midtown Residence Hotel, gritando através da divisória de plexiglas.
O motorista entrou no trânsito. Carole recostou-se e pôs Pammy no colo.
— Vamos passar pelo prédio das Nações Unidas? — perguntou ela em voz alta ao motorista.
O homem, porém, estava concentrado em mudar de pista e não a ouviu.
— Estou aqui para a conferência — explicou ela. — A conferência das Nações Unidas.
Ainda nenhuma resposta.
Carole perguntou a si mesma se ele tinha algum problema para entender inglês. Kate a avisou que todos os motoristas de táxi de Nova York eram estrangeiros. (“Tomando empregos americanos”, tinha grunhido Eddie.
“Mas não me obrigue a falar nesse assunto.”) Carole não conseguiu ver claramente o motorista por causa da divisória arranhada.
Talvez ele simplesmente não queira conversar.
Passaram para outra estrada — e, de repente, diante dela, a linha denteada de arranha-céus da cidade. Tal como os cristais que Kate e Eddie colecionavam. Um conglomerado imenso de prédios azuis, dourados e prateados no meio da ilha e outro conglomerado mais longe, à esquerda. Era maior do que qualquer coisa que ela já tinha visto e, por um momento, a ilha lhe pareceu um enorme navio.
— Olhe, Pammy, é para ali que estamos indo. É beeeelo, não?
Um momento depois, porém, a vista foi cortada quando o motorista saiu da via expressa e fez uma curva rápida ao pé da rampa de saída. Em seguida, começaram a rodar por ruas quentes, desertas, ladeadas por prédios de tijolos. Carole inclinou-se à frente.
— Esse é o caminho certo para a cidade?
Mais uma vez, nenhuma resposta.
Ela bateu com força no plexiglas.
— O senhor está indo no caminho certo? Responda. Responda.
— Mamãe, o que é que está acontecendo? — perguntou Pammy e começou a chorar.
— Aonde é que o senhor está indo? — gritou Carole.
O homem, porém, simplesmente continuou a guiar displicentemente, parando nos sinais vermelhos, nunca ultrapassando o limite de velocidade. E quando parou em um terreno vazio atrás de uma fábrica escura e abandonada, ele teve o cuidado de sinalizar corretamente.
Oh, não... não!
Ele pôs a máscara de esquiador e desceu do táxi. Chegando à traseira do carro, estendeu a mão para a porta. Mas hesitou e a mão caiu. Inclinou-se, o rosto contra a janela, e bateu no vidro. Uma, duas, três vezes. Despertando a atenção dos lagartos e répteis no zoológico. Durante um longo momento, ele olhou para a mãe e a filha, antes de abrir a porta.
CAPÍTULO XXII
— Como foi que você conseguiu isso, Sachs?
A margem do malcheiroso rio Hudson, ela respondeu no microfone articulado: — Lembrei-me de ter visto a estação dos barcos dos bombeiros no Battery Park. Eles embarcaram rapidamente uns dois mergulhadores e chegaram ao píer em três minutos. Pô, você devia ver como aquele barco voou! Qualquer dia desses, vou querer passear em um deles.
Rhyme falou sobre o motorista de táxi com o dedo amputado.
— O filho da puta! — exclamou ela, estalando a língua, enojada.
— O canalha enganou todos nós.
— Todos nós, não — lembrou-lhe modestamente Rhyme.
— De modo que Dellray sabe que surrupiei a prova. Ele anda à minha procura?
— Disse que ia voltar para o prédio federal. Provavelmente, para resolver qual de nós dois vai prender primeiro. Como está a cena aí, Sachs?
— Muito ruim — respondeu ela. — Ele estacionou em cima de cascalho...
— De modo que, nada de pegadas.
— E pior do que isso. A maré cobriu grande parte do cano de esgoto e o lugar onde ele estacionou está debaixo d'água.
— Droga — murmurou Rhyme. — Nenhum sinal, nenhuma pegada, nada.
Como está a vítima?
— Nada bem. Exposição aos elementos, dedo fraturado. Ele tem problemas cardíacos. Vai ficar no hospital durante um ou dois dias.
— Ele pode nos contar alguma coisa?
Sachs aproximou-se de Banks, que nesse momento interrogava William Everett.
— Ele não era grandalhão — disse em tom prosaico o homem, como se falasse de coisa banal, examinando com todo cuidado a tala que um paramédico lhe colocava na mão. — E não era realmente forte, não um homem musculoso. Mas era mais forte do que eu. Eu o agarrei e ele simplesmente empurrou minhas mãos para longe.
— Descrição? — pediu Banks.
Everett falou na roupa escura e na máscara de esquiador. Isso era tudo de que conseguia se lembrar.
— Mas uma coisa tenho que dizer a vocês. — Everett ergueu a mão enfaixada. — Há ruindade nele. Eu o agarrei, como disse. Eu não estava pensando... estava simplesmente em pânico. Mas ele ficou realmente furioso.
Foi nesse momento que quebrou meu dedo.
— Retaliação, hã? — perguntou Banks.
— Acho que sim. Mas não é essa a parte estranha.
— Não?
— A parte estranha foi ele ficar escutando o som do osso se quebrando.
O jovem detetive havia parado de escrever. Olhou para Sachs.
— Você ouviu isso, Rhyme?
— Ouvi. Thom acrescentou esse dado ao nosso perfil. Mas não sei o que significa. Vamos ter que pensar nisso. Algum sinal de prova material plantada?
— Ainda não.
— Percorra a grade, Sachs. Oh, pegue as...
— Roupas da vítima? Já pedi. Eu... Rhyme, você está bem?
Amélia ouviu o som de um acesso de tosse.
A transmissão foi temporariamente interrompida. Ele voltou momentos depois: — Você está aí, Rhyme? Tudo bem?
— Estou ótimo — respondeu ele rapidamente. — Comece. Percorra a grade.
Amélia examinou a cena, fracamente iluminada pelas lanternas de halógeno da UOE. Ele esteve ali. Andou pelo cascalho, a alguns metros dali.
Mas qualquer que fosse a prova material que ele tivesse deixado sem querer, ela estava muitos centímetros abaixo da água escura. Cobriu lentamente o terreno. Para frente e para trás.
— Não consigo ver nada. As pistas podem ter desaparecido.
— Não. Ele é esperto demais para não ter levado em conta a maré. Elas devem estar em terreno seco em algum lugar.
— Tenho uma idéia — disse subitamente Sachs. — Venha até aqui.
— O quê ?
— Processe a cena comigo, Rhyme.
Silêncio.
— Rhyme, você ouviu o que eu disse?
— Está falando comigo? — perguntou ele.
— Você parece De Niro. Mas não pode representar tão bem como ele.
Lembra-se? Aquela cena de Taxi Driver?
Rhyme não achou graça. Respondeu: — Aquela fala era “Você está olhando para mim?” Não “conversando comigo”.
Sachs continuou, sem se dar por achada.
— Venha para cá. Processe a cena comigo.
— Vou abrir minhas asas. Não, melhor ainda. Vou me projetar até aí.
Telepatia, você sabe.
— Deixe de brincadeira. Estou falando sério.
— Eu...
— Nós precisamos de você. Não consigo encontrar as pistas plantadas aqui.
— Mas elas estão aí. Você só tem que se esforçar um pouco mais.
— Já percorri a grade duas vezes.
— Nesse caso, você definiu o perímetro de modo estreito demais.
Acrescente mais alguns metros e continue a andar. O 238 não terminou ainda, nem de longe.
— Você está mudando de assunto. Venha até aqui e me ajude.
— Como? — perguntou Rhyme. — Como é que posso fazer isso?
— Tive um amigo que foi desafiado — começou ela. — E ele...
— Você quer dizer, ele era um paralítico — corrigiu-a Rhyme. Em voz baixa mas firme.
Ela continuou: — O ajudante dele colocava-o naquela cadeira incrementada todas as manhãs e ele ia por si mesmo a todos os lugares. Ao cinema, ao...
— Essas cadeiras... — a voz de Rhyme soou oca.
Amélia calou-se.
Rhyme continuou: — O problema é como fui ferido. Seria perigoso para mim ficar numa cadeira de rodas. Isso poderia — hesitou por um momento — tornar piores as coisas.
— Desculpe. Eu não sabia.
Após um momento, ele voltou a falar: — Claro, você não sabia.
Tinha botado a perder aquela. Oh, poxa. Irmão... Rhyme, porém, não pareceu ficar pior por causa do faux pas de Amélia. A voz era suave, sem emoção: — Escute, você tem que continuar com a busca. Nosso elemento desconhecido a está tornando mais complicada. Mas não será impossível...
Veja esta idéia. Ele é um homem de subterrâneos, certo? Talvez ele as tenha enterrado.
Amélia olhou para a cena.
Talvez ali... Viu um montículo de terra e folhas em um trecho de grama alta perto do cascalho. Aquilo não parecia certo. O montículo dava impressão de arrumado demais.
Sachs agachou-se ao lado do montículo, baixou a cabeça e, usando os lápis, começou a afastar as folhas.
Virou o rosto ligeiramente para a esquerda e descobriu que estava olhando para uma cabeça erguida, para presas de serpente...
— Jesus, Deus — berrou ela, cambaleando para trás, caindo sentada com toda força, tentando, atabalhoada, sacar a arma.
Não...
Rhyme berrou ao seu ouvido: — Você está bem?
Sachs apontou para o alvo e tentou manter firme a arma com mãos que tremiam muito. Jerry Banks veio correndo, sua própria Glock na mão.
Parou. Sachs levantou-se, olhando para aquilo que estava na frente deles.
— Cara... — disse Banks baixinho.
— É uma cobra... bem, um esqueleto de cobra — disse Sachs a Rhyme. - De uma cascavel. Porra! — Embainhou a Glock. — Está montada em uma tábua.
— Uma cobra? Interessante.
Rhyme parecia intrigado.
— Isso mesmo, muito interessante — murmurou ela. Calçou luvas de látex e levantou os ossos enrodilhados. Virou-os para baixo. — Metamorfose.
— O quê?
— Uma etiqueta na parte de baixo. O nome da loja onde a cobra foi comprada, acho. Broadway, 604.
— Vou mandar os Irmãos Hardy checarem isso. O que foi que conseguimos? Fale das pistas.
Elas estavam embaixo da cobra. Em uma bolsinha. O coração de Amélia bateu forte quando se agachou ao lado da bolsa.
— Uma caixa de fósforo — disse.
— Talvez ele esteja pensando em incêndio criminoso. Alguma coisa impressa na caixa?
— Não. Mas há uma mancha de alguma coisa. Como se fosse vaselina.
Só que mais pegajosa.
— Ótimo, Sachs... Sempre cheire a prova sobre a qual não tem certeza.
Apenas, seja mais precisa.
Ela aproximou mais a caixa do nariz.
— Arrrrgh.
— Isso não é suficientemente preciso.
— Talvez, enxofre.
— Poderia ser baseado em nitrato. Explosivo. Tovex. É azul?
— Não, claro como leite.
— Mesmo que isso pudesse explodir, acho que seria um explosivo secundário. Estes são os estáveis. Mais alguma coisa?
— Outro pedaço de papel. Há alguma coisa nele.
— O que, Sachs? O nome, o endereço, o e-mail dele?
— Parece que foi tirado de uma revista. Estou vendo uma pequena foto em preto-e-branco. Parece parte de um prédio, mas não podemos saber qual.
E por baixo disso, tudo que podemos ler é uma data, vinte, maio, 1906.
— Vinte, cinco, zero, seis. Será que isso é um código? Ou um endereço?
Vou ter que pensar nisso. Alguma coisa mais?
— Nada.
Amélia ouviu-lhe o suspiro.
— Tudo bem, volte para cá, Sachs. Que horas são? Meu Deus, quase uma hora da manhã. Há anos que não fico acordado até tão tarde assim. Volte e vamos ver o que temos.
Entre todas as zonas de Manhattan, o Lower East Side foi a que permaneceu mais conservada em toda a história da cidade.
Grande parte desapareceu, claro: as pastagens onduladas, as sólidas mansões de John Hancock e dos primeiros luminares do governo, o Der Kolek, o grande lago de água doce (a palavra holandesa acabou, no fim, sendo corrompida e se tornou “The Collect”, o que descrevia com maior precisão a lagoa profundamente poluída); o mal-afamado bairro de Five Points — que era no século XIX o quilômetro quadrado mais perigoso da terra -, onde uma única casa de cômodos, tal como a decrépita Gates of Hell, poderia ser o cenário de duzentos ou trezentos assassinatos por ano.
Mas centenas de prédios antigos continuavam de pé — casas de cômodos do século XIX, velhas casas de madeira e casas de tijolos do século anterior, centros de reuniões públicas em estilo barroco, vários edifícios em estilo egípcio, construídos por ordem do deputado regiamente corrupto Fernando Wood. Alguns tinham sido abandonados, as fachadas estavam cobertas de ervas, com os pisos rachados pelo roubo contínuo da madeira.
Mas muitos continuavam em uso: esta tinha sido a terra da iniquidade de Tammany Hall, de carrinhos de mão e oficinas de exploração cruel de mão-de-obra, do asilo da Henry Street, dos espetáculos de variedades de Minsky e da tristemente célebre gomorra lídiche — a máfia judaica. Uma zona que dá à luz tais instituições não morre fácil.
E era nessa direção que o colecionador de ossos pilotava nesse momento o táxi, levando a mulher magra e a filha pequena.
Observando que a guarda municipal estava em seu encalço, James Schneider enfurnou-se novamente no chão como a serpente que era, procurando esconder-se — era o que se especulava — nas adegas das muitas casas de cômodos da cidade (que os leitores talvez possam reconhecer como as “pensões” ainda hoje comuns). E nelas permaneceu, na moita, durante alguns meses.
Dirigindo-se para casa, o colecionador de ossos via à sua volta não a Manhattan dos anos 90 — as delicatessen de coreanos, as lojas úmidas que vendiam biscoitos moles, as casas que alugavam filmes pornô, as butiques vazias -, mas o mundo onírico de homens que usavam chapéu-coco, mulheres de anquinhas, as bainhas das saias e os punhos das blusas tornados imundas pelo lixo das ruas. Hordas de carruagens e carroças, o ar saturado do cheiro às vezes agradável, às vezes repulsivo de metano.
Mas tal era a compulsão perversa, insaciável, que havia nele para recomeçar sua coleção que, logo depois, foi forçado a sair de seu covil para emboscar outro bom cidadão — desta vez um rapaz recém-chegado à cidade para estudar na universidade.
Ele dirigia nesse momento pela tristemente famosa Eighteenth Ward, outrora o lar de quase cinquenta mil pessoas, apinhadas em mil casas de cômodos decrépitas. Ao pensar no século XIX, a maioria das pessoas o fazia em sépia — por causa das velhas fotos. Mas nisso havia erro. A Velha Manhattan tinha cor de pedra. Com a sufocante fumaça industrial, tintas proibitivamente caras e luz fraca, a cidade era um conjunto de numerosas tonalidades de cinzento e amarelo.
Schneider esgueirou-se por trás do rapaz e ia atacá-lo quando a consciência dos Fatos finalmente protestou. Dois guardas municipais presenciaram por acaso o ataque.
Reconheceram Schneider e o perseguiram. O assassino fugiu para leste, tentando cruzar aquela maravilha da engenharia, a Ponte de Manhattan, terminada em 1909, dois anos antes desses acontecimentos. Mas parou a meio caminho, vendo que três guardas municipais se aproximavam vindo do Brooklyn, tendo ouvido o alarme disparado pelos apitos e tiros de pistola de seus colegas de Manhattan.
Schneider, desarmado, como queriam os Fatos, subiu para o balaústre da ponte ao ser cercado pela lei. Berrou diatribes de louco contra os guardas, acusando-os de ter arruinado sua vida. Aproximando-se mais os policiais, ele saltou do balaústre para o rio.
Uma semana depois, um piloto descobriu-lhe o corpo em uma praia da ilha Welfare, próxima da Hell Gate. Pouco restava dele, porque os caranguejos e tartarugas trabalharam diligentemente para reduzir Schneider ao próprio osso que ele, na sua loucura, adorava.
O colecionador virou o táxi para a calçada de lajes da rua onde morava, a East Van Brevoort, e parou em frente ao prédio. Examinou os dois barbantes sujos que havia passado de um lado a outro da porta, a fim de certificar-se de que ninguém tinha entrado ali. Um movimento súbito assustou-o e ele ouviu novamente o rosnado gutural de cães, viu seus olhos amarelos, dentes escuros, corpos cobertos de cicatrizes e feridas. A mão desceu para a pistola, mas os cães subitamente deram uma volta e, ganindo, correram pelo beco atrás de um gato ou rato.
Não viu ninguém na calçada quente e abriu o cadeado que fechava a porta da garagem de carruagens, voltou ao carro e entrou, parando ao lado do Taurus.
Após a morte do bandido, suas posses foram encontradas e examinadas por detetives. O diário que mantinha indicava que ele havia assassinado oito bons cidadãos da cidade. Mas não ficava acima de violação de sepulturas para roubar, pois foi verificado nessas páginas (se ele merecia fé) que arrombara vários santos lugares de repouso final nos cemitérios da cidade. Nenhuma das vítimas lhe fizera a menor afronta — de maneira nenhuma, a maioria era de cidadãos respeitáveis, trabalhadores, inocentes. Ainda assim, ele não sentia a menor culpa. Na verdade, parece que ele trabalhava sob a louca ilusão de que prestava um favor às vítimas.
O colecionador parou e enxugou a boca. A máscara de esquiador fazia cócegas. Puxou da mala a mulher e a filha e levou-as pela garagem. Ela era forte e resistiu bravamente. Finalmente, ele conseguiu algemá-las.
— Seu escroto! — uivou ela. — Não ouse tocar em minha filha. Toque nela e eu o mato!
Ele segurou-a com força pelo peito e tapou-lhe a boca com uma fita adesiva. Em seguida, fez o mesmo com a criança.
“A carne murcha e pode ser fraca” — (escrevera o bandido, com mão implacável mas firme) — “O osso é a parte mais forte do corpo. Velho como possamos ser na carne, somos sempre jovens no osso. É uma nobre meta a minha, e está além de mim compreender por que alguém poderia contestar isso. Eu pratiquei um ato de bondade com todos eles. Eles, agora, são imortais. Eu os libertei. Eu os reduzi até o osso.”
Puxou-as para o porão e jogou a mulher com força no chão e a filha ao lado dela. Com uma corda de varal de roupa, amarrou as algemas à parede.
Em seguida, voltou a subir.
Tirou do carro a mochila amarela que estava no assento traseiro, as valises no compartimento de bagagem, e passou por uma porta de madeira com ferrolho para o cômodo principal da casa. Ia jogá-las em um canto, mas descobriu que, por alguma razão, estava curioso sobre esses cativos em particular. Sentou-se em frente a um dos murais — a pintura de um açougueiro, placidamente segurando uma faca em uma das mãos e uma peça de carne na outra.
Examinou a etiqueta da bagagem. Carole Ganz. Carole com E. Por que a letra extra?, pensou. A valise nada continha, exceto roupas. Passou à mochila. Encontrou imediatamente o dinheiro. Devia haver ali quatro ou cinco mil dólares. Recolocou o dinheiro no compartimento fechado com zíper.
Encontrou também uma dezena de brinquedos de criança: uma boneca, uma lata de aquarelas, um pacote de massa de modelar, um conjunto Sr. Cabeça-de-batata. Achou também um caro Discman, meia dúzia de CDs e um radio relógio de viagem Sony.
Examinou algumas fotos. Fotos de Carole e a filha. Na maioria das fotografias, a mulher parecia triste. Em algumas, mais feliz. Não encontrou fotos dela e do marido, embora ela usasse aliança. Muitas das fotos eram da mãe e filha em companhia de um casal — uma mulher corpulenta, usando um desses costumes antigos de avó, e um homem barbudo e calvo, vestido com uma camisa de flanela.
Durante muito tempo, o colecionador de ossos olhou para a foto da menininha.
O destino da pobre Maggie O'Connor, a menininha de apenas oito anos de idade, foi especialmente triste. Ela teve a infelicidade, especulou a polícia, de cruzar o caminho de ]ames Schneider quando ele estava dando sumiço em uma de suas vítimas.
A menina, moradora da tristemente célebre Hell's Kitchen, havia saído para apanhar crina de cavalo de um dos muitos animais mortos encontrados na parte pobre da cidade. Era costume das crianças transformar a crina em braceletes e anéis — as únicas bugigangas com que essas crianças pobres e maltrapilhas poderiam se enfeitar.
Pele e osso, pele e osso.
Colocou a foto na cornija da lareira, ao lado da pequena pilha de ossos em que estava trabalhando naquela manhã e de outros que tinha roubado da loja onde encontrara a serpente.
Supõe-se que Schneider encontrou a pequena Maggie perto de seu covil, presenciando o espetáculo macabro do assassinato de uma das vítimas. Se a matou rapidamente ou devagar, não podemos saber. Mas, ao contrário do que aconteceu com as outras vitimas, cujos restos foram finalmente encontrados — isso nunca aconteceu com os da frágil Maggie O'Connor de cabelos encaracolados.
O colecionador de ossos desceu para o porão.
Arrancou a mordaça da boca da mãe. A mulher arquejou para respirar, olhando-o com uma fúria gelada.
— O que é que você quer? — perguntou asperamente. — O quê?
Ela não era tão magra como Esther, mas, graças a Deus, em nada se parecia com a gorda Hanna Goldschmidt. Podia ver grande parte de sua alma.
A mandíbula estreita, a clavícula e, através da blusa azul fina, uma sugestão do osso inominado — uma fusão do ílio, ísquio e púbis. Nomes semelhantes aos de deuses romanos.
A menininha esperneou. Ele inclinou-se e tocou-lhe a cabeça com a mão. Crânios não crescem a partir de uma peça única de osso, mas de oito, separados, e a coroa sobe como as lajes triangulares do telhado do estádio Astródomo. Tocou o osso occipital da menina, os ossos parietais da calota do crânio. E dois de seus favoritos, os ossos sensuais em volta das órbitas oculares — o esfenóide e o etmóide.
— Pare com isso! — Carole sacudiu furiosa a cabeça. — Fique longe dela.
— Shhhh — respondeu ele, levando o dedo enluvado aos lábios.
Olhou para a menina, que começou a chorar e se colou à mãe.
— Maggie O'Connor — disse ele docemente, examinando a forma do rosto da menina. — Minha pequena Maggie.
A mulher olhou-o cheia de ódio.
— Você esteve no lugar errado, na hora errada, criança. O que foi que você me viu fazer?
Jovem no osso.
— Do que é que você está falando? — perguntou baixinho Carole.
O colecionador voltou a atenção para ela.
Ele sempre se sentiu curioso sobre a mãe de Maggie O'Connor.
— Onde está seu marido?
— Faleceu — cuspiu ela. Em seguida, olhou para a menininha e disse em voz mais calma: — Foi morto há dois anos. Escute, solte minha filha. Ela não pode dizer nada sobre você... Está me... ouvindo? O que é que você está fazendo?
Ele segurou as mãos de Carole e levantou-as. Acariciou os ossos metacárpicos dos pulsos. As falanges — os dedos minúsculos. Apertando os ossos.
— Não, não faça isso. Eu não gosto disso. Por favor!
A voz alquebrou-se, em pânico.
Ele sentiu que estava perdendo o controle e não gostou nada dessa sensação. Se ia ter sucesso naquilo, com as vítimas, com seus planos, tinha que reprimir o desejo ardente — a loucura estava levando-o mais, cada vez mais, para o passado, confundindo o agora com o outrora.
Antes e depois...
Precisava de toda sua inteligência e astúcia para terminar o que tinha começado.
E ainda assim... ainda assim...
Ela era tão magra, tão dura. Fechou os olhos e imaginou que uma faca raspando-lhe a tíbia cantaria como o arco de um velho violino.
Respirava rápido, suava em bicas.
Quando finalmente abriu os olhos, descobriu que estava olhando para os sapatos abertos da mulher. Não possuía muitos ossos de pés em boas condições. Os sem-teto que vinha atacando nos últimos meses... bem, eles sofriam de raquitismo e osteoporose, tinham dedos deformados por sapatos apertados.
— Eu faço um trato com você — ele se ouviu dizendo.
A mulher olhou para a filha. Arrastou-se um pouco mais para ela.
— Faço um trato com você. Eu a solto se você me deixar fazer uma coisa.
— O quê? — perguntou Carole baixinho.
— Deixar eu esfolar você.
Ela pestanejou.
Ele pediu, baixinho: — Deixe eu fazer isso. Por favor. Um pé. Apenas um de seus pés. Se fizer isso, deixo você ir embora.
— O quê...?
— Até o osso.
Ela fitou-o, cheia de horror. Engoliu em seco.
O que era que isso importaria?, pensou ele. Afinal de contas, ela já estava quase lá, tão magra, tão angulosa. Sim, havia alguma coisa diferente nela — diferente das outras vítimas.
Guardou a pistola e tirou o canivete do bolso. Abriu-o com um surpreendente estalido.
Ela não se moveu, os olhos deslizando para a menininha. Voltou-se para ele.
— Você nos deixará ir embora?
Ele inclinou a cabeça.
— Você não viu meu rosto. Não sabe onde fica este lugar.
Passou-se um longo momento. Ela olhou em volta do porão.
Murmurou uma palavra. Um nome, pensou ele. Ron ou Rob.
Com os olhos firmes nele, ela estendeu as pernas e empurrou os pés em sua direção. Ele tirou-lhe o sapato do pé direito.
Pegou os dedos, amassou as hastes fracas.
Ela inclinou-se para trás, os cabos dos tendões saltando fortemente do pescoço. Fechou com força os olhos. Ele acariciou sua pele com a lâmina do canivete.
Uma empunhadura forte no canivete.
Ela fechou os olhos, respirou fundo e soltou um gemido.
— Vá em frente — murmurou.
Virou o rosto da menina para o outro lado e abraçou-a fortemente.
O colecionador de ossos imaginou-a em um vestido vitoriano, saia de anquinhas, renda preta. Viu os três, sentados juntos no Delmonico's ou descendo a Quinta Avenida. Viu a pequena Maggie com eles, vestida de renda fofa, empurrando um aro de roda com um bastão, enquanto passava pela ponte do canal.
Naquele tempo e agora...
Posicionou a lâmina manchada no arco do pé da mulher.
— Mamãe! — gritou a menina.
Alguma coisa saltou dentro dele. Por um momento, foi dominado por asco por aquilo que estava fazendo. Nojo de si mesmo.
Não! Não podia fazer isso. Não com ela. Esther ou Hanna, sim. Ou com a próxima. Mas não com ela.
O colecionador de ossos sacudiu triste a cabeça e tocou-lhe o maxilar com as costas da mão. Amordaçou novamente Carole com a fita e cortou a corda que lhe prendia os pés.
— Venha — disse.
Ela lutou bravamente, mas ele agarrou-lhe a cabeça com força e tapou-lhe as narinas até que ela desmaiou. Em seguida, colocou-a nos ombros e começou a subir a escada, levantando cuidadosamente a bolsa próxima, no chão. Com todo cuidado. Não era o tipo de coisa que queria que caísse. Subiu a escada. Parou uma única vez, para olhar para a pequena Maggie O'Connor de cabelos encaracolados, sentada ali na sujeira, olhando desamparada para ele.
ELEMENTO DESCONHECIDO 238
Aparência Residência Veículo Diversos • Branco, homem, estatura baixa • Roupa escura • Luvas velhas, pelica, avermelhadas • Loção após barba: para encobrir cheiro?
• Máscara de esquiador? Azul-marinho?
• Luvas são escuras • Loção pós-barba = Brut • Cabelo não é castanho • Cicatriz profunda, dedo indicador • Roupa esporte • Prov. tem casa segura • Localizada perto da: B'way & 82nd, ShopRite B'way & 96th, Anderson Foods Greenwich & Bank, ShopRite 2nd AVe., 72nd-73rd, Grocery World Battery Park City, J&G'S Emporium 1709 2nd AVe., Anderson Foods 34th & Lex., Food Warehouse 8th Ave. & 24th, ShopRite 6th Ave. & Houston, J&.G's Emporium Greenwich & Franklin, Grocery World • Prédio antigo, mármore cor-de-rosa • Táxi Yellow Cab • Sedã modelo recente • Cinza claro, prateado, bege • Carro de aluguel, prov. roubado • Conhece proc. de CC
• Possivelmente tem antec. criminais • Conhece levantamento de impressões digitais • Arma = .32 Colt • Amarra vít. com nós incomuns • O “Antigo” o atrai • Chamou uma vít. de “Hanna”
• Conhece alemão básico • Atraído por locais subterrâneos • Dupla personalidade • Talvez padre, assist. social, cons. psicológico • Desgaste incomum nos sapatos. Lê muito?
• Escutou som com prazer, enquanto quebrava dedo de vítima
CAPÍTULO XXIII
Ele os prendeu em frente à casa de Rhyme.
Rápido, como a serpente enroscada que Jerry Banks trazia colada ao corpo, como se fosse um suvenir de Santa Fé.
Dellray e dois agentes saíram de um beco.
Em tom casual, anunciou: — Tenho notícias, queridinha. Você está presa por roubo de provas que estavam sob custódia do governo dos Estados Unidos.
Lincoln Rhyme estava errado. Dellray, afinal de contas, não tinha voltado para o edifício federal. Estava vigiando a casa. Banks rolou os olhos para cima.
— Melhor se mandar, Dellray. Nós salvamos a vítima.
— É você fez uma coisa maravilhosa, filhote. Se não tivesse salvo, nós poderíamos acusá-lo de homicídio.
— Mas nós o salvamos — disse Sachs. — E não você.
— Obrigado por essa rápida recapitulação, policial. Estenda as mãos.
— Isso é sacanagem.
— Algeme essa moça — disse em tom dramático o Camaleão, dirigindo-se ao corpulento agente a seu lado.
— Nós encontramos mais provas, agente Dellray — insistiu Sachs. — Ele capturou outra vítima. E não sei de quanto tempo dispomos.
— Oh, e convide também esse rapaz aí para nossa festinha.
Dellray inclinou a cabeça na direção de Banks, que se virou para a agente feminina do FBI que se aproximou dele, e pareceu estar pensando em derrubá-la. Alegremente, Dellray avisou-o: — Não, não, não. Você não quer fazer isso.
Relutante, Banks estendeu as mãos.
Mesmo furiosa, Sachs ainda sorriu friamente para o agente.
— Como foi sua viagem a Morningside Heights?
— Ele ainda matou aquele motorista de táxi. O nosso pessoal da PERT
está rastejando nesse momento por aquela casa como baratas em esterco.
— E isso é tudo o que vão encontrar — retrucou Sachs. — O elemento desconhecido conhece melhor cenas de crime do que você e eu.
— Para o centro — ordenou Dellray, inclinando a cabeça para Sachs, que estremeceu quando as algemas foram fechadas em torno de seus pulsos.
— Poderemos também salvar a próxima. Se você...
— Sabe qual é a acusação contra você, policial Sachs? Adivinhe. Você tem o direito de permanecer calada. Você vai ser...
— Tudo bem — disse uma voz às costas deles.
Sachs girou sobre si mesma e viu Jim Polling vindo em passos largos pela calçada. Tinha a calça e o paletó esporte amassados, como se tivesse dormido com eles, embora os olhos vermelhos sugerissem que ele não dormia há vários dias. Podia se ver a barba de um dia e os cabelos amarelos estavam desgrenhados.
Dellray pestanejou, inquieto, embora não fosse o policial que o deixasse nervoso, mas sim o alto promotor federal do Distrito Sul, que vinha atrás de Polling. E, fechando a retaguarda, o superintendente Perkins.
— OK, Fred. Solte-os — disse o promotor.
No tom modulado de um disk jockey de FM, o Camaleão respondeu: — Ela roubou provas, senhor. Ela...
— Eu simplesmente acelerei análises de polícia técnica — disse Sachs.
— Escute... — começou Dellray.
— Nada disso agora — falou Polling, inteiramente no controle. Nada de crises de mau humor. — Não, nós não vamos escutar. — Virou-se para Sachs e disse secamente: — Mas não tente nenhuma gracinha.
— Não, senhor. Sinto muito, senhor.
O promotor federal dirigiu-se a Dellray: — Fred, você deu um telefonema fazendo uma consulta e ele chegou a nós. São os fatos da vida.
— Era uma boa pista — disse Dellray.
— Bem, nós estamos mudando a direção da investigação — declarou o promotor.
— Conversamos com o diretor e com Comportamento — acrescentou Perkins. — Concluímos que o posicionamento dos detetives Rhyme e Sellitto é o enfoque a seguir.
— Mas meu informante tinha certeza de que alguma coisa ia acontecer no aeroporto. Esse não é o tipo de coisa que pudéssemos ignorar.
— A situação se resume no seguinte, Fred — disse rudemente o promotor. — O que quer que o filho da puta esteja para fazer, foi a equipe de Rhyme que salvou as vítimas.
Os longos dedos de Dellray se fecharam em um punho hesitante, abriram-se novamente.
— Compreendo esse fato, senhor. Mas...
— Agente Dellray, esta é uma decisão que já foi tomada.
O rosto preto lustroso — tão enérgico no edifício federal quando ele arregimentava as tropas — tornou-se nesse momento sombrio, reservado. Por um momento, o hipster desapareceu.
— Sim, senhor.
— Esse refém mais recente teria morrido se não fosse a intervenção da detetive Sachs — disse o promotor.
— O senhor quer dizer, a policial Sachs — disse ela, corrigindo-o. — E o mérito coube principalmente a Lincoln Rhyme. Fui apenas a perna dele, por assim dizer.
— O caso vai voltar para as autoridades municipais — esclareceu o promotor. — O A.T. do FBI continuará a cuidar, com efetivos reduzidos, da ligação informante-terrorista. Tudo que descobrirem deve ser passado aos detetives Rhyme e Sellitto. Dellray, você deverá pôr à disposição deles quaisquer efetivos necessários para trabalhos de busca e vigilância ou resgate de reféns.
— Sim, senhor.
— Ótimo. Quer tirar agora as algemas desses policiais?
Placidamente, Dellray abriu as algemas e enfiou-as no bolso.
Dirigiu-se a uma grande van estacionada perto. No momento em que pegava o saco com as provas, Sachs viu-o sozinho sob uma poça de luz de um poste, o dedo indicador erguido, alisando o cigarro atrás da orelha.
Desperdiçou um momento sentindo pena do agente federal e, em seguida, subiu correndo a escadas, dois degraus de cada vez, tendo às costas Jerry Banks e a cascavel.
— Descobri o que é. Bem, quase.
Sachs acabava de entrar na sala de Rhyme quando ele disse isso. E
parecia muito satisfeito consigo mesmo.
— Tudo, menos a cascavel e essa pasta sebosa.
Amélia entregou as novas provas a Mel Cooper. A sala tinha sido transformada mais uma vez e as mesas estavam cobertas por novos frascos, potes de boca larga, caixas para pílulas e caixas e equipamentos de laboratório.
Não era lá grande coisa em comparação com a sede dos federais, mas Amélia, estranhamente, sentiu-se como se tivesse voltado para casa.
— Diga-me — pediu ela.
— Amanhã é domingo... Desculpe... hoje é domingo. Ele vai incendiar uma igreja.
— Como foi que descobriu isso?
— A data.
— No pedaço de papel? O que ela significa?
— Você já ouviu falar em anarquistas?
— Russos baixinhos usando capas de chuva e levando por aí aquelas bombas que parecem bolas de boliche? — perguntou Banks.
— Palavras de homem que lê revistas em quadrinhos — comentou secamente Rhyme. — Suas raízes de desenhos animados de manhã de sábado estão aparecendo. O anarquismo era um antigo movimento social que queria a abolição do governo. Um anarquista, Enrico Malatesta... o lema dele era “propaganda por atos”. Traduzido, isso significa assassinato e mutilação intencional de pessoas. Um de seus seguidores, um americano chamado Eugene Lockworthy, residia em Nova York. Numa certa manhã de domingo, ele fechou as portas de uma igreja no Upper East Side, pouco depois de iniciado o serviço religioso, e tocou fogo no prédio. Dezoito paroquianos morreram.
— E isso aconteceu no dia 20 de maio de 1906? — perguntou Sachs.
— Exato.
— Não vou perguntar como foi que você descobriu isso.
Rhyme encolheu os ombros.
— Óbvio. Nosso elemento desconhecido gosta de história, certo? Ele nos deu fósforos e, com isso, está dizendo que planeja um incêndio intencional. Simplesmente me lembrei dos incêndios famosos da cidade... o da Triangle Shirtwaist, o do Crystal Palace, o do barco de cruzeiro General Slocum... Conferi as datas... Vinte de maio foi o dia do incêndio na Primeira Igreja Metodista.
— Mas onde? — perguntou Sachs. — Na mesma localização daquela igreja?
— Tenho minhas dúvidas — disse Sellitto. — Lá só existe agora um arranha-céu comercial. O 238 não gosta de lugares modernos. Tenho uns dois homens trabalhando nisso, no caso de termos certeza de que ele vai atacar uma igreja.
— E nós pensamos — continuou Rhyme — que ele vai esperar até começar o serviço religioso.
— Por quê?
— Em primeiro lugar, foi isso o que Lockworthy fez — prosseguiu Sellitto. — Estivemos pensando no que Terry Dobyns nos disse: que ele estava aumentando as apostas. Partindo para múltiplas vítimas.
— De modo que temos um pouco mais de tempo. Até que o serviço comece.
Rhyme olhou para o teto.
— Quantas igrejas há em Manhattan?
— Centenas.
— Essa foi uma pergunta que não pedia resposta, Banks. Quero dizer...
vamos continuar a examinar nossas pistas. Ele vai ter que estreitar o foco, de alguma maneira.
Passos na escada.
Eram os gêmeos, mais uma vez.
— Nós passamos por Fred Dellray no lado de fora.
— Ele não foi nada cordial.
— Nem parecia feliz.
— Ei, olhe para isso. — Saul, pelo menos Rhyme achava que era o Saul, pois tinha esquecido qual dos dois tinha sardas, olhou para a cobra. — Já vi mais dessas aí em uma única noite do que jamais quero ver novamente.
— Cobras? — perguntou Rhyme.
— Nós estivemos na Metamorfose. É um...
— ... lugar muito assustador. Conheci o dono. Tipo esquisitíssimo.
Como se poderia imaginar.
— Barba comprida, bem comprida. Eu gostaria de não ter ido lá à noite — continou Bedding.
— Eles vendem morcegos e insetos empalhados. Você não acreditaria que alguns desses insetos...
— Têm quinze centímetros de comprimento.
— ...e criaturas como essa aí — completou Saul, inclinando a cabeça para a serpente.
— Escorpiões, um bocado de escorpiões.
— De qualquer modo, a loja foi arrombada há um mês e imagine só o que levaram? O esqueleto de uma cascavel.
— Ocorrência comunicada? — perguntou Rhyme.
— Comunicada.
— Mas o prejuízo total do comerciante roubado foi de apenas uns cem dólares, ou por aí. De modo que o furto não foi típico.
— Mas conte a eles.
Saul inclinou a cabeça.
— A cobra não foi a única coisa que levaram. Quem quer que tenha arrombado a loja levou também umas duas dúzias de ossos.
— Ossos humanos? — perguntou Rhyme.
— Isso mesmo. Foi isso o que o dono da loja achou esquisito. Alguns daqueles insetos...
— ...valem de trezentos a quatrocentos dólares. Mas tudo que o perp levou foram a cobra e alguns ossos.
— Alguns ossos em particular? — indagou Rhyme.
— Uma grande variedade. Como no Sampler, de Whitman.
— Palavras dele, não nossas.
— Principalmente, ossos pequenos. De mão e pé. E uma costela, talvez duas.
— O cara não tinha certeza.
— Alguma queixa de roubo?
— De ossos roubados? Nenhuma.
Os Irmãos Hardy foram embora, a caminho da última cena de crime, onde começariam a andar de porta em porta interrogando possíveis testemunhas.
Rhyme começou a pensar na cobra. Estaria ela lhes dando uma localização? Tinha alguma relação com o incêndio da Primeira Metodista? Se cascavéis fossem animais nativos de Manhattan, o desenvolvimento urbano teria muito tempo antes bancado o São Patrício e expurgado a ilha de sua presença. Estaria ele fazendo um trocadilho com as palavras cobra e cascavel?
De repente, achou que tinha compreendido.
— A cobra é para nós.
— Para nós? — riu Banks.
— E uma bofetada no rosto.
— De quem?
— De todos os que estão à procura dele. Acho que é uma brincadeira de mau gosto.
— Não estou achando muita graça nisso — disse Sachs.
— Sua expressão é muito engraçada — comentou Banks com um sorriso.
— Acho que somos melhores do que ele esperava e ele não está nada feliz com isso. Ele é louco e está nos desafiando. Thom, acrescente isso ao nosso perfil, por favor. Ele está zombando de nós.
O telefone de Sellitto tocou nesse momento. Abriu-o e atendeu, dizendo: — Emma, querida, o que foi que você conseguiu? — Inclinou a cabeça repetidas vezes, enquanto tomava notas. Em seguida, ergueu a vista e anunciou: — Roubos de carros de aluguel. Dois carros da Avis desapareceram na semana passada, quando alugados, um em Midtown. Estão confusos porque as cores eram erradas: vermelho, verde e branco. Nenhum da National. Quatro da Hertz foram “surrupiados”? Três em Manhattan — um deles de uma localização no centro, no East Side, outro em Midtown e o terceiro no Upper West Side. Dois deles verdes e — isto poderia ser uma pista - outro marrom. Mas um Ford prateado foi também roubado em White Plains. Esse é o meu voto.
— Concordo — disse Rhyme. — White Plains.
— Como é que você sabe? — perguntou Sachs. — Monelle disse que o carro poderia ser bege ou prateado.
— Porque nosso rapaz mora na cidade — explicou Rhyme — e se vai roubar alguma coisa tão óbvia como um carro, ele fará isso tão longe da casa segura quando puder. É um Ford, foi o que você disse?
Sellitto fez uma pergunta a Emma e, em seguida, ergueu a vista.
— Taurus. Modelo deste ano. Interior cinza-escuro. A placa é irrelevante.
Rhyme concordou com um aceno.
— A primeira coisa que ele mudou foram as placas. Agradeça a ela e diga-lhe para ir dormir um pouco. Mas que não se afaste muito do telefone.
— Consegui aqui alguma coisa, Lincoln — gritou Mel Cooper.
— O quê?
— A pasta sebosa. Estou passando-a através do banco de dados de nomes de marca. — Olhou para a tela. — Referências cruzadas... Vejamos, o emparelhamento mais provável é Kink-Away. Trata-se de uma loja que vende cosméticos para alisar cabelos a varejo.
— Politicamente incorreta, mas útil. Esse dado nos coloca no Harlem, você não acha? Reduz consideravelmente o número de igrejas.
Banks examinava as agendas de serviços religiosos de todos os três jornais que eram vendidos no metrô.
— Contei vinte e dois.
— Qual o serviço que começa mais cedo?
— Três igrejas têm serviço às oito. Seis às nove. Uma às nove e meia. O
resto às dez ou onze.
— Ele vai escolher uma das que começam mais cedo. Já nos deu as horas para descobrir o local.
— Vou mandar Haumann reunir novamente o pessoal da UOE.
— O que me diz de Dellray? — perguntou Sachs. Ela imaginou o agente sozinho, largado, em uma esquina próxima.
— O que é que tem ele? — perguntou Sellitto.
— Oh, vamos incluí-lo. Ele quer muito um pedaço desse cara.
— Perkins disse que ele devia ajudar — sugeriu Banks.
— Você o quer, realmente? — perguntou Sellitto, franzindo as sobrancelhas.
Sachs inclinou a cabeça.
— Claro.
Rhyme concordou: — Tudo bem, ele pode dirigir os grupos da S&S federal. Quero um grupo em cada igreja, imediatamente. Todas as entradas vigiadas. Mas devem ficar fora da vista. Não quero assustar nosso rapaz. Talvez a gente possa flagrá-lo no ato.
Sellitto recebeu um telefonema. Olhou para cima, os olhos fechados.
— Jesus.
— Oh, não — murmurou Rhyme.
O detetive enxugou o rosto suado e confirmou com um aceno.
— A Central recebeu um 9-1-1 do gerente noturno de um hotel. Qual?
O Midtown Residence Hotel? Uma mulher e a filha ligaram de La Guardia, dizendo que iam justamente pegar um táxi. Isso aconteceu há algum tempo.
Não chegaram ao hotel. Com todas essas notícias sobre sequestros, ele achou que devia telefonar. O nome dela é Carole Ganz. De Chicago.
— Diabos — murmurou Banks. — Uma menina, também? A gente devia tirar todos os táxis da cidade até pegarmos esse cara pelo cu.
Rhyme estava tomado de profundo cansaço. A cabeça protestava.
Lembrou-se de ter processado uma cena de crime em uma fábrica de bombas.
Nitroglicerina tinha vazado de uns pacotes de dinamite e se infiltrado na espreguiçadeira onde ele tinha que dar uma busca à procura de vestígios. A nitro produzia dores de cabeça lancinantes.
Nesse momento, a tela do computador de Cooper resolveu piscar.
— E-mail — anunciou ele, baixou a mensagem e leu as palavras miúdas. -
Eles polarizaram as amostras do celofane que a UOE reuniu. Acham que o pedaço que encontramos no osso, na cena da Pearl Street, veio do mercado ShopRite. É o mais parecido com o celefane que usam.
— Ótimo — disse Rhyme. Indicou o pôster com a cabeça. — Risque todos os mercados, menos os ShopRites. Que localizações temos agora?
Observou Thom riscando os mercados e deixando apenas quatro: B'Way & 82nd Greenwich & Bank 8th Ave. & 24th Houston & Lafayette — Isso nos deixa com o Upper West Side, West Village, Chelsea e Lower East Side.
— Mas ele poderia ter ido comprá-las em qualquer um desses lugares.
— Certo, poderia ter feito isso, Sachs. E também comprado a canela em White Plains, quando esteve roubando o carro. Ou em Cleveland, visitando a mãezinha dele. Mas, veja bem, há um ponto em que elementos desconhecidos se sentem confiantes em suas manobras de despistamento e deixam de cobrir seu rastro. Os estúpidos... ou os preguiçosos... jogam a arma fumegante no latão de lixo atrás do prédio onde moram e continuam em sua alegre vidinha.
Os sabidos colocam-na em um balde de Spackle e jogam-na no Hell Gate. Os brilhantes entram furtivamente em uma refinaria e vaporizam a arma em uma fornalha de cinco mil graus centígrados. O nosso elemento desconhecido é sabido, claro. Mas é também igual a todos os outros criminosos na história do mundo. Ele tem limites. Aposto que ele pensa que não teremos tempo ou inclinação para procurá-lo, ou localizar sua casa segura, porque estaremos concentrados nas pistas plantadas por ele. E, claro, ele está inteiramente errado. É exatamente dessa maneira que vamos encontrá-lo. Agora, vamos ver se nos aproximamos um pouco mais de seu covil. Mel, alguma coisa nas roupas da vítima da última cena?
A água da maré, porém, havia virtualmente lavado tudo da roupa de William Everett.
— Você disse que eles lutaram, Sachs? O elemento e Everett?
— Não foi lá uma grande briga. Everett pegou-o pela camisa.
Rhyme estalou a língua.
— Devo estar ficando cansado. Se tivesse me lembrado, teria pedido a você que raspasse embaixo das unhas dele. Mesmo que ele estivesse debaixo d'água esse seria o único lugar...
— Aqui está — disse ela, estendendo dois pequenos sacos plásticos.
— Você raspou?
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
— Mas por que dois sacos?
Pegando um saco e depois o outro, ela respondeu: — Mão esquerda, mão direita.
Mel Cooper caiu na gargalhada.
— Nem mesmo você pensou em sacos separados para guardar raspas, Lincoln. É uma grande idéia.
— Diferenciar as mãos — grunhiu Rhyme — poderia ter algum valor probatório marginal.
— Uau — comentou Cooper, ainda rindo -, isso significa que ele pensa que é uma idéia brilhante e que lamenta não ter pensado nisso em primeiro lugar.
O técnico examinou as raspas.
— Há aqui um pouco de pó de tijolo.
— Não havia tijolo em parte alguma em volta do cano de esgoto ou no campo — disse Sachs.
— São fragmentos. Mas há alguma coisa presa ao pó. Não sei o quê.
— Isso não podia ter vindo do túnel do curral? — perguntou Banks. — Ali havia muito tijolo, certo?
— Tudo isso veio da Annie Oakley aqui — disse Rhyme, acenando melancolicamente para Sachs. — Não, lembrem-se, o elemento foi embora antes que ela sacasse a pistola. — Mas depois cerrou as sobrancelhas e inclinou o pescoço para a frente. — Mel, quero ver esse tijolo. No microscópio. Há alguma maneira?
Cooper olhou para o computador de Rhyme.
— Acho que a gente pode fazer alguma ligação. — Ligou um cabo da porta de saída de vídeo ao microscópio composto de seu próprio computador e em seguida procurou alguma coisa em uma grande valise. Tirou um fio comprido, grosso, cinzento. — Isto é um cabo serial.
Ligou os dois computadores e transferiu alguns programas para o Compaq de Rhyme. Em cinco minutos, deliciado, Rhyme estava vendo exatamente o que Cooper examinava através da ocular.
Os olhos do criminalista escanearam o fragmento de tijolo, enormemente ampliado. E riu alto.
— Ele se superou. Estão vendo essas bolhas brancas presas ao tijolo?
— O que são? — perguntou Sellitto.
— Parece cola — sugeriu Cooper.
— Exatamente. De uma escova redonda para pentear animais.
Criminosos realmente cautelosos usam-nas para limpar traços em si mesmos.
Mas o tiro saiu pela culatra. Alguns pedaços do adesivo devem ter se despregado da escova e colaram-se à roupa dele. De modo que sabemos que o vestígio veio de sua casa segura. Manteve o fragmento de tijolo no lugar até que Everett pegou-o com as unhas.
— O tijolo nos diz alguma coisa? — perguntou Sachs.
— É antigo. E caro. O tijolo barato era muito poroso porque os fabricantes acrescentavam enchimento. Acho que a casa dele é de alguma antiga instituição ou foi construída por um cara rico. Tem pelo menos cem anos de idade. Talvez mais.
— Ah, aqui estamos nós de novo — disse Cooper. — Outro pedacinho da luva, ao que parece. Se a droga da coisa continuar a desintegrar-se, vamos chegar às cristas de atrito antes de muito tempo.
A tela de Rhyme relampejou e, um momento depois, apareceu o que ele reconheceu como um pedacinho de couro.
— Há alguma coisa esquisita aqui — disse Cooper.
— Não é vermelha — observou Rhyme. — Como as outras partículas.
Esse ponto é preto. Mas a tintura é diferente. Talvez manchada ou desmaiada.
Rhyme inclinava a cabeça nesse momento, olhando atentamente para o pontinho na tela, quando se deu conta que estava com um problema.
Problema sério.
— Ei, você está bem?
Foi Sachs quem falou.
Rhyme não respondeu. Pescoço e mandíbula começaram a tremer violentamente. Uma sensação como que de pânico subiu da ponta superior da espinha despedaçada e chegou até o couro cabeludo. Em seguida, como se um termostato tivesse sido ativado, os arrepios e calombos na pele desapareceram e ele começou a suar. O suor escorreu e provocou uma horrível coceira no rosto.
— Thom! — murmurou ele. — Thom, está acontecendo!
Em seguida, arquejou quando a dor de cabeça queimou-lhe o rosto e subiu pelas paredes internas do crânio. Rilhou os dentes, balançou a cabeça, fez tudo que podia para neutralizar a dor insuportável. Nada funcionou. A luz na sala piscou. A dor era tão forte que sua reação foi de fugir dela, com as pernas encurvadas que não se moviam há anos.
— Lincoln! — gritou nesse momento Sellitto.
— O rosto dele! — arquejou Sachs. — Está vermelho vivo!
E as mãos, brancas como marfim. Todo o corpo abaixo da latitude mágica da C4 estava ficando branco. O sangue de Rhyme, na falsa e desesperada missão para chegar aonde pensava que era necessário, encheu os minúsculos capilares do cérebro, dilatando-os, ameaçando partir os delicados filamentos.
Agravando-se o ataque, Rhyme notou Thom curvado sobre ele, jogando para longe os cobertores da Clinitron. Notou Sachs dando um passo à frente, seus radiantes olhos azuis apertados de preocupação. A última coisa que viu antes da escuridão foi o falcão abrindo as asas enormes e decolando do peitoril da janela, assustado pela explosão inesperada de atividade na sala, procurando esquecimento fácil no ar quente que pairava sobre as ruas vazias da cidade.
CAPÍTULO XXIV
Quando Rhyme desmaiou, Sellitto foi o primeiro a chegar ao telefone.
— Ligue 911 para Socorro Urgente — disse Thom. — Em seguida, ligue para esse número aí. Discagem rápida. É o número de Pete Taylor, nosso especialista em coluna vertebral.
Sellitto deu os telefonemas. Thom gritou nesse momento: — Preciso de ajuda aqui. Alguém!
Sachs era a que estava mais perto. Inclinou a cabeça, aproximou-se de Rhyme. O empregado havia agarrado o homem inconsciente por baixo dos braços e o colocado mais alto na cama. Puxou, rasgando, a camisa, e examinou o peito lívido, dizendo: — Todo mundo, se puderem fazer o favor, simplesmente nos deixem sozinhos.
Sellitto, Banks e Cooper hesitaram por um momento e em seguida saíram. Sellitto fechou a porta.
Uma caixa de cor bege apareceu nas mãos do empregado. Continha comutadores e botões no alto e dela saía um fio que terminava em um disco plano, que ele colocou sobre o peito de Rhyme e prendeu com um esparadrapo.
— Estimulador do nervo frênico. Isso o manterá respirando.
Ligou a máquina.
Thom passou uma braçadeira de pressão arterial em volta do braço de Rhyme, que estava branco como alabastro. Com um choque, Sachs deu-se conta de que o corpo de Rhyme virtualmente não tinha qualquer ruga. Ele andava pela casa dos quarenta anos e tinha o corpo de um rapaz de vinte.
— Por que o rosto dele está tão vermelho assim? Parece que ele vai explodir.
— Está explodindo — disse Thom em tom de voz prosaico, puxando uma maleta de médico de baixo de uma mesinha-de-cabeceira. Abriu-a e continuou a tomar a pressão arterial. — Disreflexia... Todo o estresse de hoje...
mental e físico. Ele não está acostumado a isso.
— Ele disse o tempo todo que estava cansado.
— Eu sei. E não estive prestando atenção suficiente. Shhh. Tenho que escutar.
Ligou o estetoscópio aos ouvidos, inflou a braçadeira e deixou o ar escapar lentamente. Olhando para o relógio, as mãos eram firmes como rochas.
— Merda. Diastólica um por 25. Merda.
Pai do céu, pensou Sachs. Ele vai ter um derrame. Thom indicou com a cabeça a bolsa preta.
— Procure aí o vidro de nifediplina. E abra uma dessas seringas.
Enquanto ela procurava, Thom abriu o pijama de Rhyme, pegou um cateter ao lado da cama e abriu o envoltório plástico. Lubrificou a extremidade com geléia K-Y, levantou o pênis esbranquiçado de Rhyme e inseriu suave mas rapidamente a ponta na glande.
— Esta é parte do problema. Pressão intestinal e urinária podem provocar um ataque. Hoje ele bebeu mais do que devia.
Sachs abriu a seringa hipodérmica e disse: — Não sei como aplicar uma injeção.
— Eu faço isso. — Thom fitou-a. — Eu poderia lhe pedir... você se importaria em fazer isso? Não quero que o tubo se dobre.
— Claro. Certo.
— Quer uma luva?
Ela calçou um par de luvas e, com todo cuidado, pegou o pênis de Rhyme com a mão esquerda. Segurou o tubo com a mão direita. Havia passado muito, muito tempo, desde que tinha pego em um homem nesse lugar. A pele era macia e ela pensou como era estranho que esse centro do ser do homem seja, na maior parte do tempo, delicado como seda.
Thom aplicou com perícia a injeção.
— Acorde, Lincoln...
A distância, ouviram o som de uma sirene.
— Eles estão quase chegando — disse ela, olhando pela janela.
— Se não conseguirmos que ele recupere os sentidos agora, não há nada que a emergência possa fazer.
— Quanto tempo para o remédio fazer efeito?
Thom olhou para Rhyme, sem resposta corporal, e disse: — Já devia ter feito. Mas se eu aplicasse uma dose alta demais ele entraria em choque.
O empregado inclinou-se e ergueu uma pálpebra do doente. A pupila azul estava vidrada, desfocalizada.
— Isso não é bom. — Tomou novamente a pressão. — Um por 50. Cristo.
— O remédio vai matá-lo — disse Sachs.
— Oh, o problema não é esse.
— O quê? — perguntou baixinho a chocada Sachs.
— Ele não se importa em morrer. — Olhou para Amélia, como se surpreso por ela não ter compreendido esse fato. — Ele simplesmente não quer ficar mais paralisado do que já está. — Preparou outra injeção. — Ele já pode ter tido isso. Quero dizer, um derrame. É isso que o apavora.
Thom inclinou-se outra vez e aplicou mais uma injeção com o medicamento.
A sirene estava mais próxima nesse momento. E sons de buzina, também. Carros deveriam estar bloqueando a ambulância, sem pressa de se afastarem para um lado — uma das coisas na cidade que enfureciam Sachs.
— Você pode tirar o cateter agora.
Com todo cuidado, ela puxou o tubo.
— Eu deveria... — E com um movimento de cabeça indicou o saco de coleta de urina.
Thom conseguiu pôr nos lábios um fraco sorriso.
— Esse trabalho é meu.
Passaram-se vários minutos. Aparentemente, a ambulância não estava conseguindo furar o bloqueio, mas, em seguida, uma voz estrugiu num alto-falante e gradualmente o som da sirene aproximou-se mais.
De repente, Rhyme se mexeu. A cabeça sacudiu-se de leve. Balançou para frente e para trás, pressionou o travesseiro. A pele perdeu um pouco do tom avermelhado.
— Lincoln, você está me ouvindo?
— Thom — gemeu ele.
Rhyme tremia violentamente. Thom cobriu-o com um lençol.
Quando deu por si, Sachs estava alisando os cabelos emaranhados de Rhyme. Pegou um lenço de papel e enxugou-lhe a testa.
Passos soaram na escada e dois corpulentos paramédicos apareceram, os rádios crepitando. Entraram rapidamente na sala, tomaram a pressão arterial de Rhyme e examinaram o estimulador neural. Um momento depois, o Dr. Peter Taylor entrou apressadamente.
— Peter — disse Thom. — Disreflexia.
— Pressão?
— Está baixando. Mas foi ruim. Chegou a 50.
O médico se encolheu todo.
Thom apresentou o médico ao pessoal do pronto-socorro. Eles pareceram aliviados por estar ali um especialista e deram um passo para trás quando Taylor se aproximou da cama.
— Doutor... — disse Rhyme, ainda zonzo.
— Vamos dar uma olhada nesses olhos.
Taylor lançou uma luz dentro das pupilas de Rhyme. Sachs examinou o rosto do médico em busca de uma reação e ficou perturbada ao vê-lo franzir as sobrancelhas.
— Não preciso do estimulador neural — murmurou Rhyme.
— Você e seus pulmões, certo? — perguntou ironicamente o médico. -
Bem, vamos deixá-lo funcionando por mais algum tempo, certo? Até descobrirmos o que exatamente está acontecendo aqui. — Lançou um olhar a Sachs. — Talvez seja melhor você esperar lá embaixo.
Taylor aproximou-se mais e Rhyme notou gotas de suor porejando o couro cabeludo do médico, sob os cabelos.
As mãos hábeis do médico levantaram uma pálpebra, olhou novamente para uma pupila e em seguida para a outra. Preparou o aparelho e tomou novamente a pressão de Rhyme, os olhos distantes, com aquela concentração de médicos perdidos em suas tarefas minuciosas, vitais.
— Está se aproximando do normal — anunciou. — Como está a urina?
— Mil e cem cc — respondeu Thom.
Taylor fechou a cara.
— Andou negligenciando coisas? Ou simplesmente foi bebida demais?
Rhyme fez uma carranca em resposta.
— Estávamos distraídos com outras coisas, doutor. Esta noite foi muito agitada.
Taylor seguiu o movimento de cabeça de Rhyme e olhou surpreso em volta da sala, como se alguém tivesse introduzido aquele equipamento ali enquanto ele estava distraído.
— O que significa tudo isso?
— Fui tirado de minha aposentadoria.
A expressão de perplexidade de Taylor transformou-se em um sorriso.
— Já não era sem tempo. Venho enchendo você há meses para que faça alguma coisa de sua vida. Bem, e a situação dos intestinos?
— Provavelmente, doze, quatorze horas — respondeu Thom.
— Descuido seu — repreendeu-o Taylor.
— Não foi culpa dele — disse secamente Rhyme. — Tive o quarto cheio de gente o dia todo.
— Não quero desculpas — respondeu seco por sua vez o médico.
Esse era Pete Taylor, que nunca falava através de outra pessoa quando conversava com Rhyme e que nunca deixava que seu paciente intimidador o intimidasse.
— É melhor cuidarmos das coisas.
Calçou luvas cirúrgicas e inclinou-se sobre o torso de Rhyme. Os dedos começaram a manipular o abdome para enganar os intestinos preguiçosos e fazer com que eles fizessem o que tinham que fazer. Thom levantou as cobertas e colocou em posição as fraldas descartáveis.
Um momento depois, o trabalho foi feito e Thom limpou o patrão.
Subitamente, Taylor disse: — Então, você desistiu daquele absurdo, espero? — enquanto o observava atentamente.
Aquele absurdo...
Ele se referia ao suicídio. Com um olhar a Thom, Rhyme respondeu: — Não ando pensando nisso já há algum tempo.
— Ótimo. — Taylor olhou para os instrumentos espalhados sobre a mesa. — É isso o que você deve estar fazendo. Talvez o departamento volte a incluí-lo na folha salarial.
— Acho que não passaria no exame físico.
— E a cabeça, como vai?
— Uma dezena de bate-estacas trabalhando chegariam perto de descrevê-la. Meu pescoço, também. Já tive duas cãibras hoje.
Taylor foi até atrás da cabeceira da Clinitron e pressionou com os dedos os dois lados da espinha de Rhyme, onde — desconfiava Rhyme, embora nunca tivesse visto aquele ponto, claro — estavam as cicatrizes bem visíveis das incisões das operações por que tinha passado durante esses anos todos. Taylor aplicou-lhe uma massagem, pressionando fundo os dedos nas fibras rígidas dos músculos dos ombros e pescoço. Lentamente, a dor desapareceu.
Sentiu os polegares do médico pararem no que achou que era a vértebra despedaçada.
A nave espacial, a arraia...
— Algum dia, vão dar um jeito nisso — disse Taylor. — Algum dia, não vai ser pior do que quebrar uma perna. Escute o que estou dizendo. Prevejo isso.
Quinze minutos depois, Peter Taylor desceu a escada e juntou-se aos policiais na calçada.
— Ele está bem? — perguntou ansiosamente Amélia Sachs.
— A pressão baixou. Ele precisa, acima de tudo, de repouso.
O médico, um homem de aparência comum, deu-se conta subitamente que estava falando com uma mulher muito bela. Alisou os cabelos grisalhos e lançou um olhar discreto ao corpo esguio e flexível. Os olhos passaram em seguida aos carros da radiopatrulha estacionados em frente à casa e perguntou: — Que caso é esse em que ele está ajudando vocês?
Sellitto demorou-se, como acontece com todos os detetives quando ouvem essa pergunta de parte de um paisano. Sachs, porém, adivinhou que Taylor e Rhyme eram amigos íntimos e respondeu: — Os sequestros. Ouviu falar neles?
— O caso do motorista de táxi? Está em todos os noticiários. Bom para ele. Trabalhar é a melhor coisa que pode lhe acontecer. Ele precisa de amigos e de um objetivo na vida.
Thom apareceu no alto da escada.
— Ele disse obrigado, Pete. Bem, ele não disse realmente obrigado. Mas era o que queria dizer. Você sabe como ele é.
— Seja honesto comigo — disse Taylor nesse momento, a voz baixa, em tom conspiratório: — Ele ainda está pensando em conversar com eles?
Mas, quando Thom respondeu “Não, não está”, alguma coisa no tom da voz disse a Sachs que ele estava mentindo. Não sabia o que era ou que importância poderia ter. Mas incomodava.
Pensando em conversar com eles?
De qualquer modo, aparentemente Taylor não percebeu a falsidade da resposta do empregado.
— Volto aqui amanhã para ver como ele está passando.
Thom respondeu que agradecia muito, Taylor passou a correia da maleta por cima do ombro e se afastou. O empregado chamou Sellitto com um gesto: — Ele gostaria de lhe falar por um minuto.
O detetive subiu rápido a escada. Entrou na sala e, minutos depois, ele e Thom desceram. Sellitto, solene nesse momento, lançou um olhar a Sachs e disse: — Você, agora.
E com um meneio da cabeça indicou a escada.
Deitado na cama maciça, Rhyme tinha os cabelos despenteados, mas o rosto não estava mais vermelho nem as mãos cor de marfim. O quarto cheirava a alguma coisa madura, visceral. Lençóis limpos forravam nesse momento a cama e a roupa dele tinha sido novamente mudada. Dessa vez, o pijama era tão verde quanto o terno de Dellray.
— Esse é o pijama mais feio que já vi em toda minha vida — disse ela. -
Foi presente de sua ex, não?
— Como foi que adivinhou? Presente de aniversário... Desculpe pelo susto que dei — disse ele, desviando a vista.
Ele pareceu subitamente tímido e esse fato perturbou-a. Pensou no pai, na sala pré-operatória no Sloan-Kettering, antes de o levarem para fazer uma cirurgia exploratória, da qual ele nunca acordou.
— Desculpe? — perguntou ela, ameaçadora. — Não quero ouvir mais essa merda, Rhyme.
Ele fitou-a durante um minuto e disse: — Vocês dois vão se dar bem.
— Nós dois?
— Você e Lon. Mel, também, claro. E Jim Polling.
— O que quer dizer com isso?
— Estou me aposentando.
— Você está o quê?
— Penoso demais para o velho sistema, lamento dizer.
— Mas você não pode desistir. — Acenou para o pôster de Monet. -
Olhe só para tudo o que descobrimos sobre 238. Estamos tão perto dele.
— Por isso mesmo, vocês não vão precisar de mim. Tudo de que precisam é de um pouco de sorte.
— Sorte? Foram precisos anos para pegar Bundy. E o que é que você diz do assassino do Zodíaco? E do Lobisomem?
— Nós temos boa informação aqui. Informação segura. Você vai descobrir algumas boas pistas. Você vai pegá-lo, Sachs. Será seu canto de cisne antes de a trancarem em Assuntos Públicos. Estou com um palpite de que 238 está ficando ousado. Eles podem mesmo pegá-lo na igreja.
— Você parece estar bem — disse ela após um momento, embora ele não parecesse.
Rhyme soltou uma risada. Que em seguida desapareceu.
— Estou muito cansado. E machucado. Droga, acho que sinto dor em lugares onde os médicos dizem que não posso sentir nada.
— Faça o que eu faço. Tire uma soneca.
Ele tentou uma risada de zombaria, mas o som saiu fraco. Ela odiou vê-lo nesse estado. Ele tossiu por um instante, olhou para o estimulador neural e fez uma careta, como se embaraçado por depender de uma máquina.
— Sachs... acho que não vamos trabalhar juntos novamente. Eu só queria dizer que você tem uma boa carreira pela frente, faz as opções certas.
— Bem, vou voltar para vê-lo, depois de pegarmos aquele mau elemento.
— Eu gostaria que viesse. Estou satisfeito porque você foi o primeiro policial a chegar ontem à cena do crime. Não há ninguém no mundo que eu preferisse para percorrer uma cena comigo.
— Eu...
— Lincoln — disse uma voz.
Ela virou-se e viu um homem à porta. Ele olhou curioso em volta da sala, tomando nota de todo aquele equipamento.
— Ao que parece, houve um bocado de agitação por aqui.
— Doutor — disse Rhyme, o rosto se abrindo em um sorriso. — Por favor, entre.
Ele entrou e disse: — Recebi a mensagem de Thom. Emergência? Foi o que ele disse.
— Dr. William Berger, apresento-lhe Amélia Sachs.
Sachs, porém, percebeu que ela já tinha deixado de existir no universo de Lincoln Rhyme. O que quer que restasse para ser dito — e ela achava que havia algumas coisas, talvez muitas — teria que esperar. Passou pela porta.
Thom, que se encontrava no largo passadiço do outro lado, fechou-a às suas costas e, sempre correto, parou, indicando com a cabeça que ela o precedesse.
Saindo para a noite sufocante, ela ouviu uma voz próxima.
— Queira desculpar.
Virou-se e viu o Dr. Peter Taylor sob uma árvore de nogueira-do-Japão.
— Posso lhe falar por um minuto?
Sachs acompanhou-o pela calçada até algumas portas adiante.
— Sim? — perguntou.
Ele encostou-se em um muro de pedra e passou outra vez uma tímida mão pelos cabelos. Sachs lembrou-se de quantas vezes tinha intimidado homens com uma única palavra ou olhar. E pensou, como frequentemente fazia: O que é que pode ser mais inútil do que a beleza?
— Você é amiga dele, certo? — perguntou o médico. — Quero dizer, você trabalha com ele, mas é também amiga dele.
— Sou. Acho que sou.
— Aquele homem que acaba de entrar. Sabe quem é?
— Berger, acho. Médico.
— Ele lhe disse de onde é?
— Não.
Durante um momento, Taylor olhou para a janela da sala de Rhyme.
E perguntou: — Já ouviu falar na Sociedade Lethe?
— Não, oh, espere... É o grupo de eutanásia, certo?
Taylor confirmou com um aceno.
— Conheço todos os médicos de Lincoln. E nunca ouvi falar em Berger. Eu estava justamente pensando que ele talvez esteja com eles.
— O quê?
Está ainda conversando com eles... Então, era a isso que a conversa aludia. Amélia se sentiu no ar com o choque.
— Será que ele... que ele falou seriamente sobre isso antes?
— Oh, sim, falou — suspirou Taylor e olhou para o céu enevoado da noite. — Oh, sim. — Olhou para o nome dela no crachá. — Policial Sachs, passei horas tentando convencê-lo a não fazer isso. Dias. Mas trabalho também há anos com tetraplégicos e sei como eles são teimosos. Talvez ele a escutasse.
Apenas algumas palavras. Eu estava pensando... Você poderia...
— Oh, droga, Rhyme — murmurou ela e começou a descer a calçada correndo, deixando a frase do médico pela metade.
Chegou à porta da frente da casa no momento em que Thom a estava fechando. Empurrou-o para um lado.
— Esqueci minha caderneta de notas.
— Sua...
— Volto logo.
— Você não pode subir. Ele está com o médico.
— Vai ser apenas um segundo.
Já estava no alto da escada antes que Thom começasse a subir atrás dela.
Ele devia ter sabido que aquilo era mentira dela, porque subiu dois degraus de cada vez. Mas ela contava com uma boa vantagem e abriu a porta de Rhyme antes que o empregado chegasse ao alto da escada.
Empurrou a porta, surpreendendo Rhyme e o médico, que estava inclinado sobre a mesa, os braços cruzados. Fechou a porta e passou a chave.
Thom começou a bater no lado de fora. Berger voltou-se para ela com uma expressão de curiosidade no rosto.
— Sachs! — explodiu Rhyme.
— Preciso falar com você.
— Sobre o quê?
— Sobre você.
— Mais tarde.
— Quanto tempo mais tarde, Rhyme?— perguntou ela, sarcástica. -
Amanhã? Na próxima semana?
— O que você quer dizer com isso?
— Quer que eu marque uma reunião para, talvez, dentro de uma semana a partir de quarta-feira? Você poderá comparecer? Você estará por aqui?
— Sachs...
— Eu quero falar com você. A sós.
— Não.
— Neste caso, vamos fazer isso na marra. — Aproximou-se de Berger. -
Você está preso. A acusação é tentativa de ajudar em um suicídio.
As algemas brilharam, clique, clique, e se fecharam em uma mancha prateada em volta dos punhos do médico.
Ela adivinhou que o prédio era uma igreja.
Carole Ganz estava estirada no chão do porão. Um único feixe de luz fria, oblíqua, caía sobre a parede, iluminando uma estampa barata de Jesus e uma pilha de volumes mofados de Histórias da Bíblia. Uma meia dúzia de cadeiras minúsculas — para alunos da escola dominical — estava arrumada no centro do cômodo.
Continuava algemada e amordaçada. Ele a amarrou também a um cano com um pedaço de corda de varal de roupa, de mais ou menos l,20m de comprimento.
Em uma mesa próxima, viu a parte superior de uma grande jarra de vidro.
Se pudesse derrubar a jarra, poderia usar o vidro para cortar a corda.
A mesa parecia fora de seu alcance. Rolou, porém, sobre um lado e começou a se contorcer, como uma lagarta, em direção à mesa.
Esse fato lembrou-lhe Pammy quando era bebê, rolando na cama entre ela e Ron. Pensou na filha, sozinha naquele horrível porão, e começou a chorar.
Pammy, querida, a bolsa.
Durante um momento, um curto momento, entregou-se ao desespero.
Como desejava jamais ter deixado Chicago.
Não, pare de pensar assim! Deixe de sentir pena de si mesma! Essa foi a coisa absolutamente certa a fazer. Você fez isso por Ron. E também por você. Ele se orgulharia de você. Kate lhe disse isso milhares de vezes e acreditava nisso.
Voltou a lutar. Aproximou-se uns trinta centímetros da mesa, Tonta, não podia pensar direito.
A garganta lhe doía com uma sede horrível. E com o mofo e os fungos no ar.
Rastejou um pouco mais e parou sobre um lado do corpo, recuperando o fôlego, olhando fixamente para a mesa. Aquilo parecia impossível. Qual a utilidade disso?, pensou.
Seu filho da puta!, pensou. Vou matá-lo por isso!
Esperneou, esforçando-se para mover-se um pouco mais pelo chão.
Mas, em vez disso, perdeu o equilíbrio e caiu de costas. Arquejou, sabendo que ele estava vindo. Não! Com um alto pop o punho quebrou. Gritou através da mordaça. Perdeu os sentidos. Ao recuperar a lucidez um momento depois, foi dominada pela vontade de vomitar.
Não, não, não... Se vomitasse, morreria. Com a mordaça na boca, seria a morte.
Combata essa vontade! Lute contra ela. Vamos. Você pode fazer isso.
Lá vou eu... Engulhou uma vez. Outra vez.
Não! Controle isso.
O vômito subindo à garganta.
Controle...
Controle isso...
E controlou. Respirando pelo nariz, concentrando-se em Kate, Eddie e Pammy, na mochila amarela que continha suas preciosas posses. Vendo-a, imaginando-a de todos os ângulos. Toda sua vida estava ali. Sua nova vida.
Ron, não quero pôr isso a perder. Vim aqui por sua causa, querido...
Fechou os olhos. Pensou: respire fundo, inalando, exalando.
Finalmente, a náusea passou. Um momento depois, sentiu-se melhor e, embora chorando de dor pelo punho quebrado, conseguiu continuar a arrastar-se como uma lagarta na direção da mesa. Trinta centímetros. Sessenta centímetros.
Sentiu uma pancada quando a cabeça colidiu com o pé da mesa.
Conseguiu simplesmente fazer contato com a mesa e não podia mover-se mais à frente. Sacudiu a cabeça para a frente e para trás, batendo com força na mesa. Ouviu a jarra mexer-se, mudando de posição no tampo da mesa.
Ergueu a vista.
Um pedaço da jarra estava aparecendo do outro lado da borda.
Empurrou a cabeça para trás e bateu na perna da mesa pela última vez.
Não! Com a pancada, empurrou a perna da mesa para fora de seu alcance. A jarra balançou por um momento, mas continuou no mesmo lugar.
Carole lutou para conseguir mais folga da corda, mas não deu.
Droga. Oh, droga! Olhando impotente para a jarra, notou que ela estava cheia de um líquido e que alguma coisa flutuava ali. O que era aquilo?
Arrastou-se para a parede por uns trinta ou sessenta centímetros e ergueu a vista.
Parecia que ali dentro havia uma lâmpada elétrica. Não, não a lâmpada inteira, mas apenas o filamento e a base, enfiada em um soquete. Um fio corria do soquete na jarra para um daqueles timers que acendem e apagam luzes quando a gente sai de férias. Aquilo parecia...
Uma bomba! Nesse momento, sentiu o cheiro leve de gasolina.
Não, não...
Começou a rastejar para longe da mesa com toda rapidez de que era capaz, soluçando em desespero. Havia um arquivo junto da parede. Ele lhe daria alguma proteção. Puxou as pernas para cima, sentiu um calafrio de pânico e estirou-as novamente, furiosa. O movimento a fez perder o equilíbrio. Para seu horror, notou que estava novamente caindo de costas. Oh, pare. Não.... Permaneceu parada, inteiramente imóvel, durante um longo momento, tremendo, enquanto tentava mudar o peso para a frente.
Mas, nesse momento, continuou a rolar, caindo sobre as mãos algemadas, o punho quebrado recebendo o peso do corpo. Seguiu-se um momento de dor excruciante e, felizmente, desmaiou mais uma vez.
CAPÍTULO XXV
— De maneira nenhuma, Rhyme. Você não pode fazer isso.
Berger olhava contrafeito para a cena. Rhyme pensou que, nesse tipo de trabalho, ele já tinha visto todos os tipos de cenários histéricos vividos em um momento como esse. O maior problema de Berger não é com aqueles que querem morrer, mas com os que querem que todos os outros vivam.
Thom bateu violentamente na porta.
— Thom — gritou Rhyme. — Está tudo bem. Você pode nos deixar aqui.
— E em seguida, voltando-se para Sachs: — Nós já nos despedimos. Você e eu.
É de mau gosto arruinar uma saída perfeita.
— Você não pode fazer isso.
Quem fora que dera o alarme? Peter Taylor, talvez. O médico devia ter adivinhado que ele e Thom estavam mentindo.
Rhyme notou os olhos de Amélia descerem para os três artigos ali na mesa. As oferendas dos Reis Magos: o conhaque, os comprimidos, e o saco plástico. E também um elástico, semelhante aos que ela ainda usava nos sapatos. (Quantas vezes ele tinha voltado para casa de uma cena de crime e descoberto Blaine olhando fixamente para os elásticos em seus pés, horrorizada? “Todo mundo vai pensar que meu marido não tem dinheiro para comprar sapatos novos. Está mantendo a sola no lugar com uso de elásticos.
Assim também, não, Lincoln!”) — Sachs, tire as algemas dos pulsos do bom médico aqui. Vou ter que lhe pedir, pela última vez, que se retire.
— Eu estava simplesmente tendo uma conversa com um paciente -
disse Berger.
— Esse é o motivo por que a acusação é apenas de tentativa. Até agora.
Talvez a gente deva passar seu nome e impressões digitais pelo serviço de identificação. Para ver o que descobrimos.
— Lincoln — disse Berger, assustado -, eu não posso...
— Nós resolveremos isso — respondeu Rhyme. — Sachs, por favor.
Pernas abertas, mãos nos quadris esguios, a face deslumbrante com uma expressão imperiosa, ela disse secamente para o médico: — Vamos.
— Sachs, você não faz idéia de como isso é importante.
— Não vou deixar você cometer suicídio.
— Me deixar? — retrucou Rhyme, violento. — Me deixar? E por que, exatamente, preciso de sua permissão?
— Srta... policial Sachs — disse Berger -, é uma decisão dele e inteiramente consensual. Lincoln está mais informado do que a maioria dos pacientes com quem trato.
— Pacientes? Vítimas, é o que o senhor está dizendo.
— Sachs! — disse impulsivamente Rhyme, tentando manter o desespero longe da voz. — Levei um ano para encontrar uma pessoa disposta a me ajudar.
— Talvez porque o que você quer fazer seja errado. Já pensou nisso?
Por que agora, Rhyme? Exatamente no meio do caso?
— Se eu tiver outro ataque e derrame, perco a capacidade de me comunicar. Eu poderia ficar consciente durante quarenta anos e inteiramente incapaz de me mover. E se eu não tiver morte cerebral, ninguém no universo vai desligar as máquinas. No mínimo, ainda posso dizer qual é a minha decisão.
— Mas por quê? — disse ela, impulsiva.
— Por que não? — respondeu Rhyme. — Diga. Por que não?
— Bem... — Parecia que os argumentos contra o suicídio eram tão óbvios que ela estava tendo problema para explicá-los. — Por que...
— Porque por quê, Sachs?
— No mínimo, porque é uma covardia.
Rhyme soltou uma gargalhada.
— Quer discutir esse assunto, Sachs? Quer? Bastante justo. “Covardia”, disse você. Essa palavra nos leva a Sir Thomas Brown: “Quando a vida é mais terrível do que a morte, esse é o valor mais puro para viver.” Coragem diante de adversidade insuperável... Um argumento clássico em favor da vida. Mas se isso é verdade, por que anestesiam pacientes antes de cirurgias? Por que vender aspirina? Por que encanar braços quebrados? Por que o Prozac é o remédio mais receitado na América? Sinto muito, mas nada existe intrinsecamente bom na dor.
— Mas você não está com dor.
— E como é que você define dor, Sachs? Talvez a ausência de toda sensação possa ser também dor.
— Você ainda pode dar grandes contribuições. Veja só tudo que você sabe. Tudo sobre criminalística, tudo sobre história.
— O argumento da contribuição social. Esse é muito popular.
Olhou para Berger. O médico, porém, permaneceu calado.
Rhyme notou o interesse dele descer para o osso em cima da mesa — o disco pálido de coluna vertebral. O médico pegou-o e alisou-o nas mãos juntas. Ele era um antigo ortopedista, lembrou-se Rhyme.
E continuou a falar, dirigindo-se a Sachs: — Mas quem diz que devemos contribuir com alguma coisa para a vida? Além do mais, o corolário disso é que eu poderia contribuir com alguma coisa ruim. Eu poderia também causar algum mal. A mim mesmo ou a outras pessoas.
— É disso que a vida é feita.
Rhyme sorriu.
— Mas estou escolhendo morte, não vida.
Sachs pareceu contrafeita, enquanto fazia um grande esforço, pensando.
— Isso simplesmente... a morte não é natural. Vida é.
— Não? Freud discordaria de você. Ele desistiu do princípio do prazer e veio a pensar que havia outra força... uma agressão básica não-erótica, como a descreveu. Trabalhando para deslindar as conexões que construímos na vida.
Nossa própria destruição é uma força inteiramente natural. Tudo morre. O
que é mais natural do que isso?
Mais uma vez, ela coçou uma parte do couro cabeludo.
— Tudo bem — disse Amélia. — A vida é um desafio maior para você do que para a maioria das pessoas. Mas pensei... tudo que vi em você me diz que é alguém que gosta de desafios.
— Desafios? Deixe que eu lhe fale sobre desafios. Fiquei um ano usando uma máquina de respiração artificial. Está vendo a cicatriz da traqueotomia em meu pescoço? Bem, graças a exercícios de respiração por pressão positiva... e a maior força de vontade que consegui reunir... consegui me desligar da máquina. Na verdade, tenho pulmões iguais aos melhores. São tão fortes quanto os seus. Em um tetraplégico por lesão a uma C4, esse estado é para figurar nos livros, Sachs. E consumiu minha vida durante oito meses.
Está entendendo o que estou dizendo? Oito meses apenas para ser capaz de realizar uma função humana básica. Não estou falando em pintar a Capela Sistina ou em tocar violino. Estou falando nessa merda chamada respiração.
— Mas você poderia melhorar. No próximo ano, a ciência pode descobrir uma cura.
— Não. Não, no próximo ano. Não, em dez anos.
— Você não sabe disso com certeza. Cientistas devem estar fazendo pesquisas...
— Claro que estão. Quer saber de uma coisa? Sou um especialista.
Transplantar tecido nervoso de embriões para tecidos lesionados, a fim de promover a regeneração axonal. — As palavras saíram facilmente de seus belos lábios. — Nenhum efeito significativo. Alguns médicos estão tratando quimicamente as áreas afetadas, afim de criar um meio no qual as células possam regenerar-se. Não com efeitos significativos... não em espécies superiores. Formas inferiores de vida mostram grande sucesso nisso. Se eu fosse uma rã, estaria andando novamente. Bem, saltando.
— De modo que há pessoas trabalhando nisso? — perguntou Sachs.
— Claro que há. Mas ninguém está contando com um progresso súbito ainda durante vinte ou trinta anos.
— Se fosse esperado — replicou ela — não seria um progresso súbito, seria?
Rhyme riu. Ela era esperta.
Sachs jogou para o lado o véu de cabelos ruivos que lhe caíra sobre os olhos e disse: — Sua carreira era a de manutenção da lei, lembre-se. Suicídio é ilegal.
— E pecado, também — respondeu ele. — Os índios dakota acreditavam que a alma dos que cometiam suicídio tinha que ficar pendurada, por toda a eternidade, na árvore onde se enforcaram. Isso acabou com os suicídios?
Nunca. Eles apenas escolheram árvores mais baixas.
— Vou lhe dizer uma coisa, Rhyme. É o meu último argumento. -
Inclinou a cabeça para Berger e pegou a corrente da algema. — Vou levá-lo comigo e dar parte dele. Agora, refute esse argumento.
— Lincoln — disse Berger, nervoso, pânico nos olhos.
Sachs pegou o médico pelo ombro e empurrou-o para a porta.
— Não — implorou ele. — Não faça isso.
No momento em que ela abria a porta, Rhyme disse em voz alta: — Sachs, antes de fazer isso, responda-me uma coisa.
Amélia parou, a mão na maçaneta.
— Uma única pergunta.
Olhou para ele.
— Você já teve vontade de fazer isso? De se matar?
Ela destrancou a porta com um som alto e seco.
— Responda-me! — gritou ele.
Sachs deixou-a fechada.
— Não. Nunca.
— Está feliz com a vida que tem?
— Tanto quanto qualquer pessoa.
— Nunca se sentiu deprimida?
— Eu não disse isso. Eu disse que jamais quis me matar.
— Você gosta de dirigir, foi o que me disse. Pessoas que gostam de dirigir correm muito. Você corre, não?
— Corro. Às vezes.
— Qual foi a velocidade máxima que atingiu?
— Não sei.
— Mais de 150 por hora?
Um sorriso de quem ignora a pergunta.
— Sim.
— Mais de 160?
Sachs levantou o polegar.
— Mais de 180? Mais de 190? — perguntou ele, sorrindo, atônito.
— Cheguei a 260.
— Deus do céu, Sachs, você impressiona. Bem, dirigindo a essa velocidade, você não pensou, talvez, apenas talvez, que alguma coisa poderia acontecer? Que uma barra de direção, um eixo, poderia quebrar, um pneu estourar, haver uma poça de óleo na estrada?
— Foi tudo muito seguro. Eu não sou louca.
— Muito seguro. Mas dirigir tão rápido quanto um pequeno avião, bem, isso não é inteiramente seguro, ou é?
— Você está induzindo a resposta da testemunha.
— Não, não estou. Continue a prestar atenção. Dirigindo nessa velocidade, você tem que aceitar que poderia sofrer um acidente e morrer, certo?
— Talvez.
Berger, as mãos algemadas em frente do corpo, olhava-os, nervoso, enquanto apertava e soltava o disco amarelo claro de coluna vertebral.
— De modo que você chegou perto dessa linha, certo? Ah, você sabe muito bem do que estou falando. Sei que chegou... a linha entre o risco de morrer e a certeza de morrer. Entenda, Sachs, se você leva os mortos consigo por toda parte, é um passo muito curto para o outro lado dessa linha. Um curto passo para se juntar a eles.
Amélia baixou a cabeça e seu rosto ficou inteiramente imóvel, enquanto a cortina dos cabelos lhe obscurecia os olhos.
— Esquecer os mortos — murmurou ele, rezando para que ela não se fosse dali levando Berger, sabendo que ele estava tão próximo de empurrá-la para o fundo do abismo. — Eu toquei um nervo em você. O quanto você quer seguir os mortos? Mais do que um pouquinho, Sachs. Oh, muito mais do que um pouquinho.
Amélia hesitava. Ele sabia que estava próximo do coração dela.
Raivosamente, Amélia se voltou para Berger e agarrou-o pelas algemas.
— Venha.
E empurrou-o pela porta.
— Você entendeu o que eu estou dizendo, não? — disse em voz alta Rhyme.
Mais uma vez, ela parou.
— Às vezes... coisas acontecem, Sachs. Às vezes, não podemos simplesmente ser o que devemos, não podemos ter aquilo que temos o direito de ter. E a vida muda. Talvez, apenas um pouco, talvez muito. E, em algum ponto, simplesmente não vale a pena tentar consertar o que está errado.
Rhyme observou-os, imóveis, à soleira da porta. O quarto estava em silêncio total. Ela se virou e fitou-o outra vez.
— A morte cura a solidão — continuou Rhyme. — Cura a tensão. Cura a coceira.
Da mesma maneira que ela olhou de relance para suas pernas antes, ele, nesse momento, lançou um rápido olhar para os dedos machucados de Amélia.
Amélia soltou as algemas de Berger e foi até a janela. Lágrimas brilhavam em seu rosto no fulgor amarelado das luzes da rua no lado de fora.
— Sachs, estou cansado — disse ele, ansiosamente. — Não posso nem lhe dizer o quanto estou cansado. Para começar, você sabe como a vida é dura.
Empilhada em cima de uma montanha inteira de... de fardos. Lavar, comer, defecar, dar telefonemas, abotoar camisas, coçar o nariz... E continuar a empilhar mil dessas coisas mais. E mais depois disso.
Rhyme caiu em silêncio. Após um longo momento, ela respondeu: — Eu faço um trato com você.
— Qual?
Com a cabeça, ela indicou o pôster.
— O 823 pegou aquela mãe e a filhinha... Ajude-nos a salvá-las. Apenas elas. Se fizer isso, darei a ele uma hora com você. — Olhou para Berger. -
Contanto que ele saia imediatamente da cidade depois.
Rhyme sacudiu a cabeça.
— Sachs, se eu tiver um derrame, não vou poder me comunicar...
— Se isso acontecer — respondeu ela, a voz calma -, mesmo que você não possa dizer uma única palavra, o trato ainda vale. Darei um jeito para que vocês tenham uma hora juntos.
Cruzou os braços, abriu novamente as pernas no que era agora a imagem de Amélia Sachs favorita de Rhyme. Adoraria tê-la visto no leito da estrada de ferro naquela manhã, parando o trem. Amélia continuou: — Isso é o melhor que posso fazer.
Passou-se um momento. Rhyme concordou com um aceno de cabeça.
— Negócio feito. — Voltando-se para Berger, perguntou: — Segunda-feira?
— Tudo bem, Lincoln. Bastante justo.
Ainda abalado, Berger observou cautelosamente Sachs, enquanto ela abria as algemas. Com medo, parecia, que ela pudesse mudar de idéia. Ao ficar livre, dirigiu-se rapidamente para a porta. Deu-se conta de que ainda tinha a vértebra na mão, voltou, colocou-a — quase com reverência — junto a Rhyme, em cima do relatório sobre a cena do primeiro assassinato naquela manhã.
— Mais felizes do que porcos na lama da Virgínia — observou Sachs, arriando-se na rangedora cadeira de vime. Referia-se a Sellitto e Polling, depois de lhes ter dito que Rhyme tinha concordado em permanecer à frente do caso por mais um dia. — Polling, em especial — continuou. — Pensei que aquele anãozinho fosse me prender. Não diga a ele que o chamei de anão.
Como é que está se sentindo? Você parece melhor.
Bebeu um pouco de uísque escocês e pôs o copo na mesinha-de-cabeceira, ao lado do copo de boca larga de Rhyme.
— Nada mal.
Thom estava mudando as roupas de cama.
— Você estava suando como uma fonte — disse ele.
— Mas apenas acima do pescoço — observou Rhyme. — Suando, quero dizer.
— Foi isso mesmo? — perguntou Sachs.
— Foi. É assim que a coisa funciona. O termostato queima abaixo disso. Eu nunca preciso de desodorante axial.
— Axial?
— Sovaco — resmungou Rhyme. — Axila. Meu primeiro empregado nunca dizia axila. Dizia: “Vou levantá-lo por seus axiais, Lincoln.” Ou: “Se você tiver vontade de regurgitar, vá em frente, Lincoln.” Ele se autodenominava de “prestador de cuidados”. Essas palavras constavam realmente do currículo dele. Não tenho a mínima idéia do motivo por que o contratei. Nós somos muito supersticiosos, Sachs. Achamos que chamar alguma coisa por um nome diferente vai mudá-la. Elemento desconhecido.
Perpetrador. Mas, aquele empregado, ele era apenas um enfermeiro à altura de suas próprias axilas. Certo, Thom? Nada do que ter vergonha. É uma profissão respeitável. Suja, mas respeitável.
— Eu me desenvolvo na sujeira É por isso que trabalho para você.
— O que é que você é, Thom? Empregado ou prestador de cuidados?
— Eu sou um santo.
— Ah, rápido com as respostas. E rápido com a agulha, também. Ele me trouxe de volta do reino dos mortos. Fez isso mais de uma vez.
Rhyme ficou subitamente tomado de medo de que Sachs o tivesse visto nu. Com os olhos fixados no perfil do elemento desconhecido, perguntou: — Ei, devo-lhe também alguns agradecimentos, Sachs? Você bancou aqui a Clara Burton?
Nervoso, esperou pela resposta, não sabia como poderia olhar novamente para ela, se ela tivesse feito isso.
— Não — respondeu Thom. — Eu o salvei sozinho. Não queria que essas almas sensíveis ficassem repugnadas vendo sua bunda murcha.
Obrigado, Thom, pensou ele. Em seguida, disse secamente: — Agora, saia daqui. Temos que conversar sobre o caso. Sachs e eu.
— Você precisa dormir um pouco.
— Claro que preciso. Mas ainda precisamos conversar sobre o caso.
Boa noite, boa noite.
Saindo Thom, Sachs pôs um pouco de Macallan no copo. Baixou a cabeça e inalou o odor de fumaça da bebida.
— Quem foi que dedurou? — perguntou Rhyme. — Pete?
— Quem? — perguntou ela.
— O Dr. Taylor, o homem da recuperação.
Ela hesitou por tempo suficiente para ele ter certeza de que Taylor era o culpado. Finalmente, Amélia disse: — Ele gosta de você.
— Claro que gosta. Esse é que é o problema... Eu quero que ele goste um pouco menos. Ele conhece Berger?
— Desconfia.
Rhyme fez uma careta.
— Escute, diga a ele que Berger é simplesmente um velho amigo... Ele...
O quê?
Sachs exalou lentamente, como se estivesse soltando fumaça de cigarro pelos lábios cerrados.
— Você não só quer que eu permita que se suicide, mas quer também que eu minta para a única pessoa que poderia convencê-lo a não fazer isso.
— Ele não conseguiu me convencer — respondeu Rhyme.
— Neste caso, por que quer que eu minta?
Rhyme riu.
— Vamos simplesmente manter o Dr. Taylor no escuro por mais alguns dias.
— Tudo bem — concordou ela. — Puxa, é difícil conviver com você.
Rhyme examinou-a atentamente.
— Por que você não me conta o que houve?
— Sobre o quê?
— Quem é o morto? Que você não esqueceu?
— Há muitos deles.
— Tais como?
— Leia os jornais.
— Ora, vamos, Sachs.
Ela sacudiu a cabeça, olhou para o uísque, um leve sorriso nos lábios.
— Não, acho que não.
Ele atribuiu seu silêncio à relutância em ter uma conversa íntima com alguém que só conhecia há um dia. O que parecia irônico, considerando que ela estava sentada junto a dezenas de cateteres, de um tubo de geléia KY e de uma caixa de fraldas descartáveis. Ainda assim, ele não ia pressionar e nada mais disse. Por isso mesmo, ficou surpreso quando ela ergueu de repente a cabeça e disse, impulsivamente: — Acontece apenas que... acontece apenas que... Oh, droga.
E quando os soluços começaram, ela levou as mãos ao rosto, derramando sobre o parquê uma boa quantidade do melhor uísque da Escócia.
CAPÍTULO XXVI
— Não consigo acreditar que estou lhe contando isso.
Enrodilhada na cadeira funda, as pernas puxadas para cima, os sapatos regulamentares jogados para longe, as lágrimas haviam secado, embora o rosto de Amélia estivesse tão vermelho quanto os cabelos.
— Continue — disse ele, encorajando-a.
— Sobre esse cara de quem lhe falei? Nós íamos morar juntos num apartamento.
— Oh, com o collie. Você não disse que era um cara. Namorado?
Amante secreto?, especulou Rhyme.
— Ele era meu namorado.
— Pensei que era seu pai que você havia perdido.
— Não. Papai realmente faleceu... há três anos. Câncer. Mas sabíamos que isso ia acontecer. Se saber prepara a gente, então estávamos preparadas.
Mas Nick...
— Ele foi morto? — perguntou Rhyme baixinho.
Ela, porém, não respondeu a essa pergunta.
— Nick Carelli. Ele era um de nós. Policial. Detetive, terceira-classe.
Trabalhava em Crimes de Rua.
O nome era conhecido. Rhyme, porém, nada disse e deixou que ela continuasse.
— Vivemos juntos durante algum tempo. Conversamos sobre casamento. — Ela se interrompeu e parecia estar alinhando os pensamentos, como se fossem alvos em um estande de tiro. — Ele trabalhava em serviço reservado. De modo que mantínhamos nosso relacionamento muito sigiloso.
Ele não podia permitir que se soubesse nas ruas que a namorada dele era uma policial. — Pigarreou. — É difícil explicar. Entenda, nós tínhamos essa... essa coisa entre nós. Era... Isso não me aconteceu muitas vezes. Droga, nunca aconteceu antes de Nick. Nós clicamos de uma maneira realmente profunda.
Ele sabia que eu tinha que ser policial e isso não era problema para ele. O mesmo comigo e com o serviço reservado que ele fazia. Era esse tipo de...
mesmo comprimento de onda. Você sabe, quando a gente simplesmente compreende alguém? Você sentiu alguma vez isso de que estou falando? Com sua esposa?
Rhyme sorriu levemente.
— Senti. Sim. Mas não com Blaine, minha esposa. — E isso era tudo que ele queria dizer sobre o assunto. — Como foi que vocês se conheceram? - perguntou.
— Nas aulas sobre missões, na Academia. Naquelas ocasiões em que alguém se levanta e fala um pouco sobre o trabalho de sua divisão. Nick estava falando sobre serviço reservado. Ele me convidou, na hora, para sair com ele. Nosso primeiro encontro foi no Rodman's Neck.
— No estande de tiro?
Ela inclinou a cabeça, fungando.
— Depois disso, fomos à casa da mãe dele, no Brooklyn, e comemos massa e tomamos uma garrafa de Chianti. Ela me beliscou com força e disse que eu era magra demais para ter filho. Obrigou-me a comer dois cannoli.
Voltamos para meu apartamento e ele passou a noite lá. Um primeiro encontro e tanto, hã? Daí em diante, nos encontrávamos o tempo todo. A coisa ia funcionar, Rhyme, eu sentia isso. Ia funcionar muito bem.
— O que foi que aconteceu? — perguntou Rhyme — Ele foi... — Outro revigorante gole do velho uísque. — Ele andava recebendo propinas, foi isso que aconteceu. Durante todo o tempo em que estivemos juntos.
— Ele era...?
— Corrupto. Oh, meio corrupto. Nunca tive a menor pista disso. Nem uma única droga de pista. Ele chegou a juntar duzentos mil dólares.
Lincoln ficou calado durante um momento.
— Que pena, Sachs. Drogas?
— Não. Contrabando, principalmente. Eletrodomésticos, TVs, componentes eletrônicos. Chamavam a isso de A Conexão Brooklyn. Os jornais.
Rhyme inclinou a cabeça.
— Foi por isso que me lembrei. Havia uma dezena deles na quadrilha, certo? Todos policiais?
— A maioria. E, também, uns caras da Alfândega.
— O que foi que aconteceu com ele? Com Nick?
— Você sabe o que acontece quando policiais prendem policiais. Batem nele pra valer. Disseram que ele resistiu à prisão, mas sei que não fez isso. Ele teve três costelas quebradas, dois dedos, o rosto ficou desfigurado.
Confessou-se culpado, mas ainda assim pegou uma pena de vinte a trinta anos de prisão.
— Por contrabando? — perguntou Rhyme, atônito.
— Ele realizou pessoalmente uns dois desses trabalhos. Deu coronhadas em um motorista, deu um tiro em outro. Simplesmente para assustá-lo. Sei que foi apenas para assustá-lo. O juiz, porém, condenou-o a uma pena longa.
Ela fechou os olhos e apertou com força os lábios.
— Quando ele foi preso, Serviços Internos caiu em cima dele como se estivesse no cio. Checou telefonemas dados de penitenciárias. Tínhamos todo cuidado quando nos telefonávamos. Ele dizia que, às vezes, criminosos grampeavam o telefone dele. Mas houve alguns telefonemas para meu apartamento. O SI veio atrás de mim, também. De modo que Nick simplesmente me cortou. Quero dizer, ele tinha que fazer isso. De outra maneira, eu teria me afundado também com ele. Você conhece o SI... é sempre uma droga de caça às bruxas.
— O que foi que aconteceu?
— Para convencer o SI de que eu não era nada para ele... Bem, ele disse algumas coisas a meu respeito. — Ela engoliu em seco, os olhos no chão. — No inquérito aberto pelo SI, quiseram saber coisas a meu respeito. Nick disse: “Oh, a Sachs F.P.? Eu simplesmente a fodi algumas vezes. Descobri que ela era nojenta. De modo que a chutei.”— Amélia inclinou a cabeça para trás e enxugou lágrimas com a manga. — Meu apelido era FP.
— Lon me falou.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Ele disse o que significava?
— A Filha do Patrulheira. Por causa de seu pai.
Amélia sorriu lividamente.
— Foi assim que a coisa começou. Mas não como terminou. No inquérito, Nick disse que eu era uma foda tão ruim que as letras significavam realmente “Foda Porca” porque eu provavelmente gostava mais de mulheres.
Adivinhe com que rapidez essa calúnia circulou pelo departamento.
— Lá é muito baixo o denominador comum, Sachs.
Amélia respirou fundo.
— Eu o vi em juízo, perto do fim do inquérito. Ele me olhou uma vez e... não posso nem descrever o que havia em seus olhos. Simplesmente puro sofrimento. Oh, ele fez isso para me proteger. Mas, ainda assim... Você tinha razão, sabia? Sobre aquela coisa de solidão.
— Eu não quis dizer...
— Não — respondeu ela, séria. — Eu bato em você, você bate em mim. E
você teve razão. Odeio ficar só. Quero sair, quero conhecer gente. Mas, depois de Nick, perdi meu gosto por sexo. — Sachs sorriu amargamente. -
Todo mundo pensa que ser bonita como eu é maravilhoso. Eu poderia escolher os caras que quisesse, certo? Conversa fiada. Os únicos que têm coragem suficiente para me convidar para sair são os que querem foder o tempo todo. De modo que simplesmente desisti. É mais fácil eu me satisfazer sozinha. Odeio isso, mas é mais fácil.
Finalmente, Rhyme compreendeu a reação dela quando o viu pela primeira vez. Estava à vontade com ele porque via um homem que não era uma ameaça para ela. Nada de gozo sexual. Era alguém que ela não teria que cortar. E, também, talvez pudesse surgir alguma camaradagem — como se a ambos faltasse o mesmo gene crucial.
— Sabe de uma coisa — disse ele, brincando -, você e eu, nós devíamos nos juntar e não ter um caso.
Amélia riu.
— De modo que, fale agora sobre sua esposa. Por quanto tempo ficaram casados?
— Sete anos. Seis, antes do acidente, um depois.
— Ela o deixou?
— Não. Eu a deixei. Não queria que ela se sentisse culpada por isso.
— Bacana de sua parte.
— No fim, eu a teria mandado embora. Sou um pé no saco. Você só viu meu lado bom. — Após um momento, ele perguntou: — Essa coisa com Nick...
tem algo a ver com o motivo por que você está deixando a radiopatrulha?
— Não. Bem, tem.
— Repugnância a armas de fogo?
Ela, finalmente, inclinou a cabeça, confirmando.
— A vida nas ruas é diferente agora. Foi isso o que as ruas fizeram com Nick. O que o transformou. Não é mais como no tempo em que meu pai fazia sua ronda a pé. As coisas eram melhores naquela época.
— Você quer dizer, não é como as histórias que seu pai lhe contava.
— Talvez — reconheceu ela. Arriou-se mais na cadeira. — A artrite? Isso é verdade, mas não tão grave quanto finjo que é.
— Eu sei — disse Rhyme.
— Você sabe? Como?
— Simplesmente olhei para a prova e tirei algumas conclusões.
— Foi por isso que ficou no meu pé o tempo todo? Sabia que eu estava fingindo?
— Fiquei no seu pé — respondeu ele -, porque você é melhor do que pensa.
Amélia lançou um olhar esquisito a Rhyme.
— Ah, Sachs, me faz lembrar de mim.
— Faço?
— Vou lhe contar uma história. Eu estava no destacamento de processamento de cena de crime quando recebemos um telefonema de Homicídios. Um cara havia sido encontrado morto em um beco em Greenwich Village. Todos os sargentos estavam fora e fui escolhido para processar a cena. Eu tinha 26 anos de idade, lembre-se. Fui lá, examinei a cena e descobri que o morto era o chefe dos Serviços de Saúde e Pessoal da Prefeitura. Bem, o que era que havia em volta dele, senão um bocado de polaróides? Você devia ter visto alguns desses instantâneos... ele tinha ido a um desses inferninhos de sadomasoquismo da Washington Street. Oh, esqueci de dizer, quando o encontraram, ele trajava um minivestido preto deslumbrante e meias rendadas.
“De modo que providenciei a segurança da cena. De repente, um capitão apareceu e fez menção de cruzar o cordão de isolamento. Eu sabia que ele estava pensando em dar sumiço naquelas fotos a caminho da sala de provas, mas eu era tão ingênuo que não dei muita bola para as fotos... fiquei simplesmente chateado em pensar que alguém ia andar pela cena do crime.
— P significa proteger a cena do crime.
Rhyme soltou uma risadinha.
— De modo que não deixei que ele entrasse. Enquanto ele me espinafrava do outro lado do cordão, um vice-comissário tentou invadir o local. Eu disse a ele que não fizesse isso. Ele começou também a gritar comigo. A cena vai ficar intacta até que a DIRC acabe com o processamento, eu disse a eles. Adivinhe quem finalmente apareceu.
— O prefeito?
— O vice-prefeito.
— E você os manteve afastados?
— Ninguém entrou naquela cena, exceto Impressões Digitais Latentes e Fotografias. Claro, minha recompensa foi passar seis meses imprimindo faixas. Mas pegamos o elemento com algumas provas vestigiais e uma impressão digital numa das polaróides — que aconteceu ser o próprio instantâneo que o Post publicou na primeira página, para dizer a verdade.
Exatamente como você fez ontem pela manhã, Sachs. Fechando o leito da estrada de ferro e a Avenida Onze.
— Eu não pensei nisso — respondeu ela. — Simplesmente fiz. Porque está me olhando dessa maneira?
— Ora, acabe com isso, Sachs. Você sabe onde devia estar. Na rua.
Radiopatrulha, Crimes Graves, IRD, não importa... Mas Assuntos Públicos?
Você vai apodrecer lá. E um bom trabalho para algumas pessoas, mas não para você. Não desista tão rápido assim.
— Oh, e você não está desistindo? O que é que me diz de Berger?
— As coisas são um pouco diferentes no meu caso.
O olhar dela perguntou: São? E ela se levantou à procura de um lenço de papel. Ao voltar à cadeira, perguntou: — Você não carrega nenhum cadáver por aí?
— Carreguei, nos meus dias. Mas todos estão enterrados agora.
— Conte.
— Na verdade, nada há...
— Não é verdade. Eu sei. Vamos... eu lhe mostrei os meus.
Rhyme sentiu um estranho calafrio. Sabia que não era disreflexia. O sorriso desapareceu.
— Rhyme, continue — insistiu ela. — Eu gostaria de ouvir.
— Bem, houve um caso, há alguns anos — começou ele. — Cometi um erro. Um erro grave.
— Conte.
Ela serviu outro dedo de uísque para ambos.
— Foi um telefonema de assassinato-suicídio doméstico. Marido e mulher em um apartamento em Chinatown. Ele matou-a com um tiro e se suicidou. Eu não tive muito tempo para processar a cena. Trabalhei rápido. E
cometi o erro clássico... resolvi o que ia descobrir antes de começar a procurar. Encontrei algumas fibras que não pude identificar, mas supus que o marido e a mulher haviam-na trazido para casa. Encontrei os fragmentos da bala, mas não os comparei com a arma que encontramos na cena. Notei o ângulo do tiro, mas não fiz uma dupla verificação para descobrir a posição exata da arma. Fiz a busca, dei o trabalho por terminado e voltei para a sede.
— O que foi que aconteceu?
— A cena havia sido montada. Foi realmente um latrocínio. E o criminoso nunca deixou o apartamento.
— O quê? Ele ainda estava lá?
— Depois que fui embora, ele saiu de baixo da cama e começou a atirar.
Matou um membro da Polícia Técnica e feriu um assistente. Chegou à rua e trocou tiros com uma dupla de patrulheiros que haviam ouvido o 10-13. O
criminoso foi morto... morreu depois... mas matou um dos policiais e feriu o outro. Atirou também numa família que acabava de sair de um restaurante chinês, no outro lado da rua. Usou uma das crianças como escudo.
— Oh, meu Deus.
— Collin Stanton era o nome do pai. Não foi absolutamente ferido e havia sido paramédico no Exército... o legista disse que ele poderia ter salvo a esposa ou um ou os dois filhos se tivesse tentado estancar a hemorragia, mas ele entrou em pânico e ficou paralisado. Permaneceu simplesmente ali, vendo todos eles morrerem à sua frente.
— Jesus, Rhyme, mas isso não foi culpa sua. Você...
— Deixe eu terminar. Isso não foi o fim da coisa.
— Não?
— O marido voltou para casa... no norte do Estado de Nova York.
Teve um colapso nervoso e ficou internado durante algum tempo em um hospital de doenças mentais. Tentou matar-se. Colocaram-no em regime de vigilância contra suicídio. Inicialmente, ele cortou os pulsos com um pedaço de papel... a capa de uma revista. Em seguida, foi a uma biblioteca, descobriu um copo no banheiro das bibliotecárias, quebrou-o e rasgou os pulsos. Foi costurado e depois mantido num hospital de doentes mentais durante um ano, mais ou menos. Finalmente, deram-lhe alta. Um ou dois meses depois, ele tentou outra vez. Usou uma faca. — E Rhyme acrescentou, friamente: — Desta vez, a coisa funcionou.
Ele soube da morte de Stanton em uma mensagem via fax enviada pelo legista do condado de Albany. Alguém lhe enviou, via correio interno, um memorando com a nota: Pensamos que você poderia ficar interessado, era o que estava escrito.
— Houve uma investigação. Incompetência profissional. Recebi uma repreensão. Acho que deviam ter me demitido.
Amélia suspirou e fechou os olhos por um momento.
— E você está me dizendo que não se sente culpado por isso?
— Não mais.
— Não acredito em você.
— Cumpri minha pena, Sachs. Convivi com esses cadáveres durante algum tempo. Mas os esqueci. Se não tivesse feito isso, de que maneira poderia continuar a trabalhar?
Após um longo momento, ela voltou a falar: — Quando tinha dezoito anos de idade, fui multada. Por excesso de velocidade. Eu estava dirigindo a 145 por hora em uma zona de velocidade máxima de 65.
— Ora...
— Papai disse que me daria o dinheiro para a multa, mas que eu teria que pagar depois. Com juros. Mas quer saber o que ele disse mais? Disse que teria me esfolado por ultrapassar um sinal vermelho ou por dirigir imprudentemente. Mas correr ele compreendia. E me disse: “Eu sei como você se sente, querida. Quando você se move, eles não podem pegá-la.” — E
dirigindo-se novamente a Rhyme: — Se eu não podia dirigir, se não podia me mover, então eu faria isso, também. Eu me mataria.
— Eu tinha o costume de andar por todos os lugares — lembrou Rhyme.
— Nunca dirigi muito. Não tive carro durante vinte anos. Que tipo você tem?
— Nada que um nova-iorquino como você dirigiria. Um Chevy.
Camaro. Era de meu pai.
— Que lhe deu uma furadeira? Para trabalhar com carros, acho?
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
— E uma chave de torque. E um jogo para testar velas de ignição. E meu primeiro conjunto de chaves de boca... meu presente dos treze anos. - Riu baixinho. — Aquele Chevy é um carro e tanto. Sabe o que ele é? Um carro americano. O rádio, os ventiladores, os botões de luz estão todos sujos e sebosos. Mas a suspensão é como uma rocha, leve como embalagem de ovos, e desafio um BMW em qualquer dia.
— Aposto que já fez isso.
— Uma ou duas vezes.
— Carros são status no mundo dos paralíticos — explicou Rhyme. — A gente ficava sentado, ou deitado, na clínica de reabilitação e conversava sobre o que podíamos arrancar de nossas companhias de seguro. Vans tipo cadeira de rodas era o máximo. Em seguida, carros dirigidos inteiramente com as mãos. O que não me adiantaria em nada, claro. — Apertou os olhos, testando a boa memória. — Não entro em um carro há anos. Não consigo me lembrar de quando foi a última vez.
— Tive uma idéia — disse subitamente Sachs -, antes de seu amigo... o Dr. Berger... voltar, deixe que eu o leve para um passeio de carro. Ou isso será um problema? Ficar sentado espigado? Você disse que cadeiras de rodas não funcionam em seu caso.
— Bem, não, cadeiras de rodas são um problema, mas, um carro? Acho que seria bom. — Soltou uma risada. — Duzentos e oitenta quilômetros? Por hora?
— Isso aconteceu em um dia especial — respondeu Sachs, cutucando a memória. — Boas condições de tempo. E não havia Polícia Rodoviária.
O telefone tocou e o próprio Rhyme atendeu. Era Lon Sellitto.
— Temos o pessoal do S&S em posição em todas as igrejas-alvo no Harlem. Dellray está à frente disso. Ele se tornou um verdadeiro crente. Você não o reconheceria, Rhyme. Oh, e tenho trinta radiopatrulheiros e uma tonelada de seguranças das Nações Unidas vigiando quaisquer outras igrejas que possamos ter esquecido. Se ele não aparecer, vamos fazer uma varredura em todas elas às sete e meia. Tendo em vista a possibilidade de que ele tenha se infiltrado sem que o víssemos. Acho que vamos pegá-lo, Linc — disse o detetive, suspeitosamente entusiástico para um policial especializado em homicídios do Departamento de Polícia de Nova York.
— Ótimo, Lon. Vou enviar Amélia a seu PC por volta das oito.
Os dois desligaram.
Thom bateu à porta antes de entrar.
Como se pudesse nos flagrar numa posição comprometedora, Rhyme riu consigo mesmo.
— Nada mais de desculpas — disse Thom, seco. — Cama, agora.
Passava de três da manhã e Rhyme deixara a exaustão para trás muito tempo antes. Estava flutuando em algum outro lugar. Acima do corpo.
Perguntou a si mesmo se tinha começado a sofrer alucinações.
— Tudo bem, mamãe — respondeu. — A policial Sachs vai passar a noite aqui, Thom. Você podia arranjar um cobertor para ela, por favor?
— O que foi que você disse? — Thom virou-se para ele.
— Um cobertor.
— Não, depois disso — explicou o empregado. — Aquelas palavras?
— Não sei. “Por favor”?
Os olhos de Thom se esbugalharam de susto.
— Você está bem? Quer que eu chame Pete Taylor? O diretor do Hospital Presbiteriano de Columbia? O secretário de Saúde dos Estados Unidos?
— Está vendo como esse filho da puta me atormenta? — disse Rhyme a Sachs. — Ele nunca sabe como chega perto de ser mandado embora.
— Acordar você a que horas?
— Seis e meia será uma boa hora — respondeu Rhyme.
Quando ele saiu, Rhyme perguntou: — Ei, Sachs, você gosta de música?
— Adoro.
— Que tipo?
— Antigas, sentimentais... E você? Parece um cara que gosta de clássicos.
— Está vendo aquele closet ali?
— Aquele?
— Não, não, o outro. A direita. Abra-o.
Sachs abriu-o e ficou pasma. O armário era uma pequena sala onde havia, talvez, uns mil CDs.
— Até parece a Tower Records.
— Aquele estéreo. Aquele em cima da prateleira.
Sachs passou a mão sobre o preto e empoeirado Harmon Kardon.
— Isso custou mais do que meu primeiro carro — disse Rhyme. — Eu não o uso mais.
— Por que não?
Ele não respondeu à pergunta, mas disse: — Ponha alguma coisa nele. Está ligado, não? Está? Ótimo. Escolha alguma coisa.
Um momento depois, ela saiu do closet e foi até o sofá, enquanto Levi Stubbs e os Four Tops começavam a cantar sobre amor.
Havia se passado um ano desde que uma nota de música tinha sido ouvida naquela sala, calculou Rhyme. Em silêncio, tentou responder à pergunta de Sachs sobre o motivo por que havia deixado de escutar música.
Não conseguiu.
Sachs tirou livros e arquivos de cima do sofá. Deitou-se e folheou um exemplar do Scenes of the Crime.
— Posso ficar com um? — perguntou.
— Leve dez.
— Você...
Ela calou-se subitamente.
— Se eu o autografaria para você? — Rhyme riu. Ela, também. — Que tal se eu aplicasse nele minha impressão digital? Analistas de escrita jamais dão mais de 85 por cento de probabilidade de emparelhamento de escrita. Mas uma impressão digital? Qualquer especialista em cristas de atrito certitificará que ela é minha.
E ficou observando-a, enquanto ela lia o primeiro capítulo. As pálpebras dela caíram. Fechou o livro.
— Você faz uma coisa para mim? — pediu ela.
— O quê?
— Ler para mim. Alguma coisa do livro. Quando Nick e eu estávamos juntos... — A voz morreu.
— O quê?
— Quando estávamos juntos, Nick, muitas vezes, lia em voz alta antes de irmos dormir. Livros, o jornal, revistas... Isso é uma das coisas que me faz a maior falta.
— Sou um péssimo leitor — confessou Rhyme. — Parece que estou recitando relatórios de cenas de crime. Mas tenho uma memória... Muito boa!
Que tal se eu lhe falar apenas sobre algumas cenas?
— Você faz isso?
Ela lhe deu as costas, tirou a blusa azul-marinho, soltou o colete à prova de bala e jogou-o para um lado. Por baixo disso, usava uma camiseta furadinha e, sob ela, um sutiã esporte. Voltou a vestir a blusa e deitou-se no sofá, puxando o cobertor para cima do corpo e, enrodilhando-se sobre um lado, fechou os olhos.
Usando a unidade de controle ambiental, Rhyme diminuiu as luzes.
— Sempre julguei fascinantes os locais de morte — começou ele. — Eles são como santuários. Sentimos muito mais interesse pelo lugar onde morremos do que pela casa onde nascemos. Veja o caso de John Kennedy.
Milhares de pessoas, todos os dias, visitam o Texas Book Depository, em Dallas. Quantas, acha você, fazem peregrinação a uma enfermaria obstétrica em Boston?
Rhyme descansou a cabeça na maciez luxuosa do travesseiro.
— Esta conversa a está entediando?
— Não — respondeu ela. — Por favor, não pare.
— Quer saber o que sempre me interessou, Sachs?
— Fale.
— Fascinou-me durante anos... o Calvário. Há dois mil anos. Bem, aquilo é que foi uma cena de crime. Eu gostaria de a ter processado. Sei o que você vai dizer: mas nós conhecemos os criminosos. Conhecemos, mesmo?
Tudo que realmente sabemos é o que as testemunhas nos disseram. Lembre-se do que eu disse: jamais confie em uma testemunha. Talvez aquelas histórias da Bíblia não sejam absolutamente o que aconteceu. Onde está a prova? Os cravos, o sangue, o suor, a lança, a cruz, o fel? As pegadas de sandálias e as cristas de atrito?
Virou ligeiramente a cabeça e continuou a falar sobre cenas de crime e provas, até que o peito de Sachs começou a subir e a descer ritmicamente e leves fios do cabelo cor de fogo ondearam para cima e para baixo sob a respiração rasa. Com o indicador da mão esquerda, Rhyme acionou o controle do ECU e apagou a luz. Ele, logo depois, dormia também.
A fraca luz do amanhecer apareceu no céu.
Acordando, Carole Ganz viu-a através do vidro em cima da cabeça.
Pammy. Oh, minha filhinha... Em seguida, pensou em Ron. E em todas as suas posses, naquele porão horrível. O dinheiro, a mochila amarela...
Mas, principalmente, pensou em Pammy.
Alguma coisa a despertou de um sono leve e inquieto. O quê?
A dor no punho? O punho latejava horrivelmente. Mudou ligeiramente de posição. Ela...
O uivo tubular de um órgão de fole e vozes cada vez mais altas de um coro encheram novamente a sala.
Foi isso o que a acordou. Música. Uma onda de música que se quebrava. A igreja não era abandonada. Havia gente por ali! Riu para si mesma. Alguém iria...
E foi nesse momento que se lembrou da bomba.
Olhou em volta do arquivo. A jarra ainda estava lá, na borda da mesa.
Tinha a aparência crua de bombas de verdade e de armas assassinas — e não as engenhocas bonitas e lustrosas que vemos no cinema. Fita ordinária, fios mal desencapados, gasolina suja... Talvez isso seja uma bomba que não explodiu, pensou. A luz do dia, não parecia tão perigosa.
Outra explosão de música. Que vinha de algum lugar diretamente acima de sua cabeça. Acompanhada de um arrastar de pés. Ouviu o som de uma porta sendo fechada. Rangidos e gemidos enquanto pessoas se moviam sobre o chão de madeira velha e seca. Plumas de poeira caíam das traves do teto.
As vozes cada vez mais altas foram interrompidas em meio a um trecho da música. Um momento depois, elas recomeçaram.
Carole bateu com os pés. O chão, porém, era de concreto, e as paredes, de tijolo. Tentou gritar e o som foi engolido pela mordaça. O ensaio continuou, a música solene, vigorosa, ecoando pelo porão.
Após dez minutos, arriou-se no chão de pura exaustão. Os olhos foram novamente atraídos para a bomba. Nesse momento, a luz era mais forte e ela pôde ver claramente o timer.
Apertou os olhos. O timer.
Aquilo não era absolutamente uma bomba de mentirinha. O ponteiro tinha sido colocado às 6:15 da manhã. O mostrador indicava, nesse momento, 5:30.
Contorcendo-se para ficar mais longe, atrás do arquivo, começou a bater com o joelho nas laterais metálicas do móvel. Mas qualquer que fosse o ruído produzido pelos golpes, ele era imediatamente abafado pela execução trovejante, triste, de Swing Low, Sweet Chariot que enchia o porão.
Parte 4
ATÉ O OSSO
Só uma coisa é negada a Deus: o poder de refazer o passado.
ARISTÓTELES
CAPÍTULO XXVII
Domingo, das 5:45 da manhã às 7:00 de segunda-feira.
Acordou com um cheiro. Como frequentemente lhe acontecia.
E — como em tantas outras manhãs — não abriu logo os olhos.
Permaneceu simplesmente na posição recostada, tentando descobrir o que o cheiro estranho poderia ser.
O cheiro de relva no ar do amanhecer? O orvalho nas ruas escorregadias de óleo? Reboco úmido? Fez um esforço para detectar o perfume de Amélia Sachs, mas não conseguiu.
Os pensamentos rasparam por ela e ele continuou a busca. O que era aquilo?
Artigo de limpeza? Não.
Um produto químico do laboratório improvisado de Cooper?
Não, podia reconhecer todos eles.
Era... Ah, sim... a caneta marcadora.
Nesse momento, abriu os olhos — mas olhando primeiro para a adormecida Sachs, para ter certeza de que ela não o abandonara — e, quando deu por si, estava fitando o pôster de Monet. Era dali que vinha o cheiro. O ar quente, úmido, dessa manhã de agosto, havia emurchecido o papel e liberado o cheiro.
Os números claros do relógio de parede brilhavam: 5:45 da manhã. Os olhos voltaram ao pôster. Não podia vê-lo com clareza, era apenas uma configuração fantasmagórica de branco puro contra um branco menos nítido.
Mas havia luz suficiente do céu matutino para poder ler a maioria das palavras.
• dupla personalidade • talvez padre, assistente social, conselheiro psicológico • desgaste incomum nos sapatos. Lê muito?
• escutou com prazer, enquanto quebrava o dedo da vítima • deixou serpente como bofetada nos investigadores
Os falcões estavam acordando nesse momento. Notou um bater de asas na janela. Os olhos voltaram ao pôster. No seu gabinete na DIRC tinha pregado uma dezena de quadros para anotação, com marcadores que podiam ser apagados, e mantinha um histórico das características de elementos desconhecidos em casos importantes. Lembrou-se de que ficava andando de um lado para outro, olhando para os quadros, especulando sobre as pessoas que eles descreviam.
Moléculas de tinta, lama, pólen, folhas...
• prédio antigo, mármore cor-de-rosa
Lembrou-se de um hábil ladrão de joias que ele e Lon haviam prendido uns dez anos antes. Na qualificação do suspeito, o elemento disse modestamente que eles nunca encontrariam o produto dos trabalhos anteriores, mas se concordassem em exculpá-lo, diria onde o havia escondido.
Ele, Rhyme, respondeu: — Bem, tivemos alguns problemas para descobrir onde está o produto do roubo.
— Tenho certeza de que tiveram — disse o velhaco.
— Entenda — continuara Rhyme -, estreitamos a localização a uma parede de pedra na carvoeira de uma velha casa de fazenda à margem do rio Connecticut. A cerca de oito quilômetros ao norte do Long Island Sound.
Simplesmente não sei se a casa fica na margem leste ou oeste do rio.
Quando a história circulou, a frase usada por todo mundo para descrever o rosto do elemento foi: “Você, merda, teve que estar lá.” Talvez seja magia, Sachs, pensou ele.
• Pelo menos cem anos de idade, provavelmente mansão ou prédio público
Observou o pôster mais uma vez e fechou os olhos, recostando-se no seu maravilhoso travesseiro. E foi nessa ocasião que sentiu a pontada. Quase igual a uma bofetada no rosto. O choque subiu para o couro cabeludo como fogo se espalhando. Olhos bem abertos, fixos no pôster.
• O “Antigo” o atrai
— Sachs! — exclamou. — Acorde!
Ela se mexeu e sentou-se.
— O quê? O que é...?
Velho, velho, velho.
— Eu cometi um erro — disse secamente. — Há um problema.
Ela pensou, no início, que era alguma coisa de natureza médica e saltou do sofá, estendendo a mão para a maleta de socorro de Thom.
— Não, as pistas, Sachs. As pistas... Entendi tudo errado.
A respiração era rápida e ele rilhou os dentes enquanto pensava. Ela se vestiu, voltou a sentar-se, os dedos desaparecendo automaticamente entre os cabelos e o couro cabeludo, coçando.
— O que, Rhyme? O que é?
— A igreja. Talvez não esteja no Harlem. — E repetiu: — Cometi um erro.
Exatamente como no caso do elemento que tinha assassinado a família de Colin Stanton. Em criminalística, é possível interpretar perfeitamente cem pistas e a que escapou é a que termina na morte de alguém.
— Que horas são? — perguntou ela.
— Quinze para as seis, um pouco mais. Pegue os jornais. A agenda dos serviços religiosos.
Sachs pegou o jornal e folheou-o. Em seguida, ergueu a vista: — O que é que você está pensando?
— O 238 sente obsessão por coisas antigas. Se está atrás de uma velha igreja de negros, ele talvez não esteja pensando na zona norte da cidade. Philip Payton fundou a Afro-American Realty Company no Harlem, em 1900. Havia dois outros bairros negros na cidade. No centro, onde estão agora os prédios das cortes de justiça, e na San Juan Hill. Hoje, elas são principalmente de brancos, mas... Oh, em que diabo eu estava pensando?
— Onde fica a San Juan Hill?
— Exatamente ao norte de Hell's Kitchen. No West Side.
Recebeu esse nome em homenagem a todos os soldados negros que lutaram na Guerra Hispano-Americana.
Ela continuou a ler o jornal: — Igrejas no centro... — disse. — Bem, em Battery Park há o Seamen's Institute. Tem uma capela. Realizam serviços religiosos. Trinity, Saint Paul's.
— Isso não ficava na zona negra. Mais ao norte e leste.
— Há uma igreja presbiteriana em Chinatown.
— Alguma batista, evangélica?
— Não, nada absolutamente nessa área. Há... Oh, diabo. — Com resignação nos olhos, ela suspirou: — Oh, não.
Rhyme compreendeu.
— Serviço religioso ao amanhecer!
Ela inclinava a cabeça nesse momento.
— Tabernáculo Sagrado, Batista... Oh, Rhyme, há um serviço evangélico que começa às seis. Esquina da rua 59 com a Onze.
— É a San Juan Hill! Ligue para eles!
Sachs agarrou o telefone e discou o número. Ficou parada, cabeça baixa, puxando ferozmente uma sobrancelha e sacudindo a cabeça.
— Responda, responda... Droga! É uma gravação. O pastor deve estar fora de seu escritório. — No telefone, disse: — Fala aqui o Departamento de Polícia de Nova York. Temos razão para acreditar que há uma bomba em sua igreja. Evacuem o local o mais rápido possível.
Desligou e calçou os sapatos.
— Vá, Sachs. Você tem que chegar lá. Agora!
— Eu?
— Estamos mais perto do que a delegacia mais próxima. Você pode chegar lá em dez minutos.
Ela correu para a porta, afivelando ao mesmo tempo o cinto regulamentar.
— Eu ligo para a delegacia — gritou ele, enquanto ela descia saltando os degraus, os cabelos como uma nuvem vermelha em volta da cabeça. — E, Sachs, se gosta de dirigir rápido, faça isso agora!
O VRR entrou como uma bala na rua 81 e acelerou na direção oeste.
Sachs ignorou a esquina na Broadway, derrapou, bateu numa máquina de venda de jornais do New York Post, jogando-a para dentro da vitrine da Zabar, antes de recuperar o controle da caminhonete. Lembrou-se de todo o equipamento para uso em cenas de crime que havia ali atrás. O veículo está pesado de traseira, pensou, nada de dobrar esquina a oitenta.
Desceu a Broadway. Freou no cruzamento. Olhe à esquerda. A direita.
Livre. Pise fundo!
Raspou pela Nona Avenida no Lincoln Center e tomou a direção sul.
Eu estou apenas a ...
Oh, droga!
Uma parada louca com os pneus cantando.
A rua estava fechada!
Uma fileira de cavaletes bloqueava a Nona por causa de uma feira de rua que seria realizada ali mais tarde naquela manhã. Uma faixa anunciava: Artesanato e Comidas de Todas as Nações. De mãos dadas, nós somos um só.
Porra... aquela merda das Nações Unidas! Rodou meio quarteirão de ré e acelerou a caminhonete até oitenta antes de bater no primeiro cavalete.
Espalhando mesas portáteis de alumínio e estandes à retaguarda, abriu uma faixa através da feira deserta. Dois quarteirões depois, a caminhonete rompeu a barricada sul e entrou derrapando na 59, usando muito mais calçada do que ela queria.
Lá estava a igreja, a uns sessenta metros de distância.
Viu paroquianos nos degraus — pais, meninas usando vestidos brancos e cor-de-rosa de babados, meninos usando ternos escuros e camisas brancas.
E, na janela do porão, uma pequena baforada de fumaça cinzenta.
Pisou no acelerador até embaixo, o motor rugindo.
Pegou o microfone: — VRR Dois para Central.
E no instante que levou para lançar um olhar ao Motorola e verificar se o volume está no alto, um grande Mercedes saiu de um beco e cruzou diretamente seu caminho.
Um olhar rápido à família dentro do carro, olhos esbugalhados de pavor quando o pai pisou forte nos freios.
Instintivamente, Sachs girou com toda força o volante para a esquerda, pondo a caminhonete em derrapagem controlada. Vamos, suplicou ela aos pneumáticos, agarrem, agarrem, agarrem! O asfalto oleoso, porém, estava escorregadio devido ao calor dos últimos dias e coberto de orvalho. A caminhonete dançou sobre a rua como se fosse um aquaplano.
A traseira da caminhonete bateu de chapa na frente da Mercedes, a oitenta. Com um som explosivo, a 560 cortou o lado direito da traseira da caminhonete. As valises pretas de CC voaram no ar, abrindo-se e espalhando o conteúdo pela rua. Paroquianos que estavam por ali correram para se proteger dos estilhaços de vidro, plástico e folhas de metal.
O air bag encheu-se e esvaziou, deixando-a atordoada. Cobriu o rosto no momento em que a caminhonete tombava sobre uma fileira de carros e uma banca de jornal, deslizava pelo chão e parava com as rodas para cima.
Jornais e sacos plásticos de guardar provas caíram flutuando no chão como se fossem pequenos pára-quedistas.
Presa de cabeça para baixo pelo cinto de segurança, sem poder ver por causa dos cabelos que lhe cobriam o rosto, Sachs limpou o sangue da testa e dos lábios feridos e tentou soltar a mola. Que não cedeu. Gasolina quente entrou no carro e desceu devagar pelo seu braço. Tirou um canivete do bolso traseiro, abriu-o e cortou o cinto de segurança. Ao cair, se espetou na lâmina e ficou por um momento deitada, arquejando, sufocando com os vapores da gasolina.
Vamos, menina, saia daí. Saia!
As portas estavam travadas e não havia maneira de escapar pela traseira amassada da caminhonete. Começou a dar chutes na janela. O vidro não quebrava. Puxou o pé para trás e jogou-o com toda força contra o pára-brisa rachado. Nenhum efeito, exceto quase torcer o tornozelo.
A pistola!
Bateu no quadril. A arma tinha sido arrancada do coldre e jogada para algum lugar dentro do carro. Sentindo o gotejar quente da gasolina nos braços e ombros, procurou freneticamente entre os papéis e equipamentos de CC que cobriam o teto da caminhonete.
Nesse momento, viu a volumosa Glock perto da luz do teto. Agarrou-a e fez pontaria para a janela lateral.
Vá em frente. O vidro traseiro está desimpedido, não há ainda espectadores por aí.
Mas nesse momento hesitou. E se a chama do cano incendiasse a gasolina?
Manteve a arma tão longe quanto possível da blusa ensopada do uniforme enquanto pensava.
Em seguida, apertou o gatilho.
CAPÍTULO XXVIII
Cinco tiros, um desenho de estrela e, mesmo assim, o honesto vidro General Motors resistiu.
Mais três tiros, ensurdecendo-a no espaço apertado da caminhonete.
Mas pelo menos a gasolina não explodiu.
Recomeçou a escoicear. Finalmente, a janela rompeu-se para fora numa cascata de gelo azul-esverdeado. No momento em que rolava para fora, a caminhonete explodiu com um whoosh silencioso.
Tirando toda a roupa e ficando somente com a camiseta, jogou fora a blusa ensopada do uniforme e o colete à prova de bala, juntamente com o conjunto articulado de cabeça fone-microfone. Sentiu o tornozelo ceder, mas correu para a porta da frente da igreja, passando pelos paroquianos e coro que fugiam nesse momento. O térreo estava coberto de fumaça, enroscando-se.
Perto dali, uma parte do chão ondulou, soltou vapor e irrompeu em chamas.
O pastor apareceu de repente, sufocando, lágrimas escorrendo pelo rosto. Trazia a reboque uma mulher inconsciente. Sachs ajudou-o a levá-la até a porta.
— Onde fica o porão? — perguntou.
Ele teve um acesso de tosse e sacudiu a cabeça.
— Onde? — gritou ela, pensando em Carole Ganz e na filhinha.
— O porão?
— Lá... Mas... No outro lado daquele trecho em chamas do piso.
Sachs mal conseguiu vê-lo, tão grossa era a fumaça. Uma parede desmoronou em frente a eles, as velhas traves e colunas por trás estalando e lançando fagulhas e jatos de gás quente, que penetraram com um silvo na sala escura. Sachs hesitou, mas, em seguida, dirigiu-se para a porta do porão.
O pastor segurou-lhe o braço.
— Espere! — Abriu um armário, tirou um extintor de incêndio, e arrancou o pino. — Vamos.
Sachs sacudiu a cabeça.
— O senhor, não. Continue aqui, controlando a situação. Diga aos bombeiros que há uma policial e outra vítima no porão.
Sachs já corria nesse momento. Quando nos movemos...
Saltou por cima do trecho em chamas no chão. Mas, por causa da fumaça, julgou mal a distância até a parede. Estava mais perto do que pensara, bateu no painelamento de madeira e caiu para trás, rolando quando os cabelos roçaram pelo fogo, que pegou alguns fios. Sufocando com o mau cheiro, bateu as chamas com as mãos e começou a levantar-se. O chão, enfraquecido pelas chamas embaixo, quebrou-se sob seu peso e ela enfiou o rosto pelo madeirame de carvalho. Sentiu o calor do porão lhe lamber as mãos e braços quando os puxou para fora.
Rolando para longe da borda do buraco, levantou-se e estendeu a mão para a maçaneta da porta do porão. Parou de repente.
Vamos, moça, pense melhor. Sinta a porta, antes de abri-la. Se ela estiver quente demais e você deixar que oxigênio entre em um lugar superaquecido, o gás pegará fogo e o choque de retorno vai fritar de vez o seu rabo. Tocou a madeira. Insuportavelmente quente.
Mas em seguida, pensou: O que, diabo, posso fazer?
Cuspindo nas mãos, agarrou com força a maçaneta, torceu-a e abriu a porta antes que o calor lhe queimasse as mãos.
A porta se abriu violentamente e uma nuvem de fumaça e fagulhas escapou violentamente para fora.
— Alguém aí embaixo? — gritou, e começou a descer.
Os degraus mais baixos estavam em chamas. Cobriu-os com um rápido jato de dióxido de carbono e saltou para o porão escuro. O penúltimo degrau cedeu e ela inclinou-se para a frente. O extintor caiu com um som metálico no chão, no momento em que agarrava o corrimão justamente a tempo de evitar quebrar a perna.
Soltando-se do degrau quebrado, examinou com os olhos semi-cerrados a escuridão. A fumaça não era tão forte ali — estava subindo — mas as chamas rugiam furiosas por toda parte em volta. O extintor havia rolado para baixo de uma mesa em chamas. Esqueça-o! Correu através da fumaça.
— Olá! — gritou.
Nenhuma resposta.
Nesse momento, lembrou-se de que o elemento desconhecido 238
usava veda-juntas. Ele gostava que as vítimas ficassem em silêncio.
Abriu com um pontapé uma pequena porta e olhou para dentro de uma sala de caldeiras. Havia ali uma porta que dava para fora, embora destroços em chamas bloqueassem inteiramente aquele caminho. Ao lado, viu o tanque de combustível, nesse momento cercado pelas chamas.
Ele não vai explodir, pensou Sachs, lembrando-se das aulas na Academia sobre incêndio intencional. Óleo combustível não explode. Afaste com os pés o entulho e abra aporta. Limpe sua rota de fuga. Em seguida, procure a mulher e a menina.
Hesitou, vendo as chamas rolarem por cima de um dos lados do tanque de óleo.
Não vai explodir, não vai explodir.
Começou a andar para a frente, aproximando-se da porta.
Ele não vai...
O tanque, de repente, soltou uma baforada, como uma lata de soda aquecida, e se partiu ao meio. O óleo jorrou alto para o ar, inflamando uma enorme espuma alaranjada. Uma poça em chamas formou-se no chão e escorreu na direção de Sachs.
Não explode. Tudo bem. Mas queima que é uma beleza. Saltou para trás através da porta, fechou-a com uma batida forte. A rota de fuga já era.
Recuando para a escada, sufocando nesse momento, mantendo-se agachada, procurando quaisquer sinais de Carole e Pammy.
Teria 238 mudado as regras? Poderia ter ele desistido de porões e colocado essas vítimas no átrio da igreja?
Crack.
Um rápido olhar para cima. Viu uma grande viga de carvalho, em chamas, começando a cair.
Com um grito, saltou para um lado, mas tropeçou e aterrou de costas, com toda força, observando a imensa viga cair diretamente para seu rosto e peito. Instintivamente, ergueu as mãos.
Um alto som, quando a viga caiu sobre uma cadeira de escola dominical para crianças. E parou a centímetros da cabeça de Sachs, que rastejou por baixo, rolou e se pôs de pé.
Olhou em volta, tentando penetrar na escuridão da fumaça.
Diabos, não, pensou de repente. Não vou perder outra. Sufocando, voltou para o fogo e foi cambaleante para o único canto que não tinha examinado.
Enquanto corria para a frente, uma perna projetou-se de trás de um arquivo e derrubou-a.
Mãos à frente, caiu de cara a centímetros de uma poça de óleo em chamas. Rolou para um lado, puxou a arma e apontou-a para o rosto em pânico de uma mulher loura que lutava para se sentar.
Sachs arrancou-lhe a mordaça e a mulher cuspiu muco preto.
Engasgou por um momento, soltando um som profundo, de gente morrendo.
— Carole Ganz?
Ela inclinou a cabeça.
— Sua filha? — gritou Sachs.
— Não... não está aqui. Minhas mãos! As algemas.
— Não há tempo. Venha.
Com o canivete, Sachs cortou a corda que prendia os tornozelos de Carole.
E foi nesse momento que viu, encostado na parede junto à janela, um saco plástico que se derretia.
As pistas deixadas de propósito! As que diziam onde se encontrava a menininha. Deu um passo para o saco. Com um estrondo ensurdecedor, porém, a sala da caldeira partiu-se em duas, liberando um maremoto de 15cm de altura de óleo pelo chão, cercando o saco, que se desintegrou instantaneamente.
Sachs olhou para o local por um momento e, em seguida, ouviu o grito da mulher. Todos os degraus estavam em chamas nesse momento. Com um chute, Sachs tirou o extintor de incêndio de baixo da mesa em brasa. O cabo e a ponta haviam derretido e o tubo de metal estava quente demais para que pudesse segurá-lo. Com o canivete, cortou um pedaço da blusa do uniforme, pegou o extintor pelo gargalo e apontou-o para o alto dos degraus em chamas. O tubo balançou por um momento, como se fosse um pino de boliche sem saber se caía ou não, e em seguida começou a descer.
Sachs puxou a Glock e quando o cilindro vermelho estava a meio caminho disparou um tiro.
O extintor desintegrou-se em uma imensa explosão, pedaços de metralha vermelha voando por cima da cabeça das duas. O cogumelo de dióxido de carbono e de pó caiu sobre os degraus e, momentaneamente, apagou a maior parte das chamas.
— Agora, mova-se! — gritou Sachs.
Juntas, subiram os degraus, dois de cada vez, Sachs carregando seu próprio peso e metade do peso da mulher, passou pela porta e entrou no inferno do térreo. Colaram-se a parede, tropeçando para chegar à saída, enquanto acima delas janelas de vitrais explodiam e deixavam cair uma chuva de cacos de vidro — os corpos coloridos de Jesus, Mateus, Maria e do próprio Deus — sobre as costas encurvadas das mulheres que fugiam.
CAPÍTULO XXIX
Quarenta minutos depois, Sachs tinha sido untada com pomada, enfaixada, costurada e inalado tanto oxigênio puro que se sentia meio zonza.
Sentada nesse momento ao lado de Carole Ganz, as duas olharam para o que tinha sobrado da igreja. O que era virtualmente nada. Só duas paredes continuavam de pé e, curiosamente, uma parte do terceiro andar, projetando-se para o espaço, acima de uma paisagem lunar de cinzas e escombros empilhados no porão.
— Pammy, Pammy... — gemeu Carole. Em seguida, escarrou e vomitou.
Levou ao rosto a máscara de oxigênio, recostou-se, cansada, sentindo dores.
Sachs examinou outro trapo embebido em álcool com o qual estava enxugando o sangue do rosto. Os trapos tinham sido inicialmente de cor marrom e nesse momento estavam simplesmente cor-de-rosa. Os ferimentos não eram graves — um corte na testa, queimaduras de segundo grau nos braços e mãos. Os lábios, contudo, não eram mais impecáveis. O inferior tinha sido cortado fundo na queda da viga e o ferimento precisou de três pontos.
Carole estava sofrendo de intoxicação por fumaça e com o punho fraturado. Uma tala improvisada lhe envolvia o pulso esquerdo, que ela aninhava junto ao corpo, a cabeça baixa, falando através de dentes cerrados.
— Aquele filho da puta. — Tossiu. — Por que... Pammy? Por que, em nome de Deus? Uma criança de três anos de idade!
Enxugou lágrimas zangadas com as costas da mão intacta.
— Talvez ele não a queira machucar. Por isso ele só trouxe você à igreja.
— Não — cuspiu ela, furiosa. — Ele não se importa com ela. Ele é um doente mental! Vi pela maneira como olhou para ela. Eu vou matá-lo. Vou matar aquele filho da puta.
As palavras ásperas dissolveram-se em um acesso mais áspero ainda de tosse.
Sachs encolheu-se de dor. Inconscientemente, tinha enfiado uma unha numa ponta de dedo queimada. Puxou a caderneta de notas.
— Você pode contar o que foi que aconteceu?
Entre crises de soluços e acessos de tosse gutural, Carole contou a história do sequestro.
— Você quer que eu ligue para alguém? — perguntou Sachs. — Para seu marido?
Carole não respondeu. Puxou os joelhos para o queixo, abraçou-se, espirrando fortemente.
Com a mão queimada, Sachs apertou o bíceps da mulher e repetiu a pergunta.
— Meu marido... — Ela lançou a Sachs um olhar estranho. — Meu marido faleceu.
— Oh, sinto muito.
Carole estava ficando grogue com o sedativo e uma paramédica levou-a para descansar na ambulância.
Sachs ergueu a vista e viu Lon Sellito e Jerry Banks saindo da igreja queimada e correndo para ela.
— Jesus, policial. — Sellitto estava observando a carnificina na rua. — E a menina?
— Continua com ele — respondeu Sachs.
— Você está bem? — perguntou Banks.
— Nada de grave. — Sachs lançou um olhar para a ambulância. — A vítima, Carole, não tem dinheiro algum e nenhum lugar para ficar. Ela está na cidade para trabalhar para as Nações Unidas. Você acha que poderia dar alguns telefonemas, detetive? Ver se poderiam hospedá-la por algum tempo?
— Claro — respondeu Sellitto.
— E as pistas deixadas no local? — perguntou Banks e encolheu-se ao tocar uma atadura acima da sobrancelha direita.
— Perdidas — respondeu Sachs. — Eu as vi. No porão. Mas não pude chegar a elas a tempo. Queimadas e enterradas.
— Oh, cara — murmurou Banis. — O que é que vai acontecer à menininha?
O que é que ele pensa que vai acontecer com ela?
Amélia foi até os restos da caminhonete da VRR, encontrou o conjunto de fones e microfone. Colocou-o em volta da cabeça e ia ligar pedindo ajuda a Rhyme quando hesitou e baixou o microfone. O que, afinal de contas, poderia ele lhe dizer? Olhou para a igreja. Como é que podemos processar uma cena de crime quando não há cena?
Com as mãos nos quadris, olhava fixamente para o esqueleto fumegante do prédio, quando ouviu um som que não pôde identificar, um som uivante, mecânico. Não lhe deu atenção, até que notou que Lon Sellitto interrompia o trabalho de espanar as cinzas da roupa e da camisa enrugada. E ele disse: — Não acredito nisso.
Amélia voltou-se para a rua.
Uma grande van preta estava estacionada a um quarteirão de distância.
Uma rampa hidráulica projetava-se de um de seus lados e nela havia alguma coisa. Apertou os olhos para ver melhor. Era um daqueles robôs do esquadrão antibombas, ao que parecia. A rampa tocou o chão e o robô rolou para longe.
Em seguida, Sachs riu alto.
A engenhoca virou-se para eles e começou a se mover. A cadeira de rodas lhe lembrou um Pontiac Firebird, vermelha como bala de maçã. Era um desses modelos elétricos, com rodas pequenas na traseira, e uma grande bateria e motor montados embaixo da estrutura.
Thom vinha ao lado dela, mas era o próprio Rhyme quem a dirigia - no controle, observou ela ironicamente — através de um canudinho que tinha na boca. Os movimentos dele eram estranhamente graciosos. Rhyme veio até onde ela estava e parou.
— Tudo bem — disse ele bruscamente -, eu menti.
Amélia exalou um suspiro.
— Sobre suas costas? Quando disse que não podia usar uma cadeira de rodas?
— Estou confessando que menti. Você vai ficar uma fera, Amélia. Pois fique e vamos acabar logo com isso.
— Você já notou que quando está de bom humor me chama Sachs e quando está de ovo virado me chama de Amélia?
— Não estou de ovo virado — retrucou ele secamente.
— Realmente, não está — concordou Thom. — Ele simplesmente odeia ser flagrado em qualquer coisa.
Com um movimento de cabeça, o empregado indicou a impressionante cadeira de rodas.
Amélia olhou para um dos lados da engenhoca. Tinha sido fabricada pela Action Company, era um modelo Storm Arrow.
— Ele tinha isso guardado em um armário no térreo durante todo o tempo em que contava sua patética historinha de sofrimento. Eu, por falar nisso, deixei que ele fizesse isso.
— Nada de comentários, Thom, obrigado. Estou pedindo desculpas, não estou? Sinto. Muito.
— Ele tem essa cadeira há anos — continuou Thom. — Aprendeu a mexer nela com a maior facilidade. Esse aí é o canudinho de controle. Ele é muito competente nessa coisa. Por falar nisso, ele sempre me chama de Thom. Não recebo nunca tratamento respeitoso pelo sobrenome.
— Estou cansado demais de ser objeto de atenção — disse Rhyme em tom prosaico. — De modo que deixei de dar passeiozinhos. — Olhou para o rosto ferido de Amélia. — Dói?
Ela tocou a boca, torcida num sorriso.
— Arde como o diabo.
Rhyme olhou para o lado.
— E o que foi que aconteceu com você, Banks? Agora deu para barbear a testa?
— Choquei-me com um caminhão de bombeiros. — O jovem sorriu e tocou novamente a atadura.
— Rhyme — disse Amélia, não mais sorrindo. — Não há nada aqui. Ele está com a menininha e não consegui chegar a tempo à evidência plantada.
— Ah, Sachs, sempre há alguma coisa. Tenha fé nos ensinamentos de Monsieur Locard.
— Vi quando o fogo destruiu todas as provas. Se havia alguma coisa, neste momento está sob toneladas de escombros.
— Neste caso, vamos procurar as pistas que ele não teve intenção de deixar. Vamos processar essa cena juntos, Sachs. Você e eu. Vamos.
Deu duas curtas sopradas no canudinho e a cadeira andou para frente.
Chegaram a três metros da igreja, ocasião em que ela disse, subitamente: — Espere.
Rhyme freou.
— Você está ficando descuidado, Rhyme. Ponha uns elásticos nessas rodas. Você vai querer confundir suas pegadas com as dele?
— Por onde começamos?
— Precisamos de uma amostra da cinza — respondeu Rhyme. — Havia algumas latas limpas de tinta nos fundos da caminhonete. Veja se pode encontrar alguma.
Ela apanhou uma lata entre os restos do VRR.
— Você sabe onde foi que o fogo começou? — perguntou Rhyme.
— Muito bem.
— Tire uma amostra da cinza, um ou dois quartos de litro, tão perto do ponto de origem quanto puder.
— Certo — disse ela, subindo em uma parede de tijolo de l,50m de altura, tudo que restava do lado norte da igreja. Daí ela olhou para o buraco fumegante embaixo.
Um bombeiro avisou: — Ei, policial, ainda não tornamos segura essa área. Ela é perigosa.
— Não tão perigosa quanto a última onde estive — respondeu Sachs e, segurando a alça da lata com os dentes, passou a perna para o outro lado.
Lincoln Rhyme olhou para ela, mas estava realmente se vendo, três anos e meio antes, tirar o paletó e descer para o canteiro de obras na entrada do metrô perto da prefeitura.
— Sachs — chamou ele. Ela virou-se. — Tenha cuidado. Vi o que sobrou do VRR. Não quero perdê-la duas vezes no mesmo dia. Ela inclinou a cabeça e desapareceu pelo outro lado da parede. Alguns minutos depois, Rhyme perguntou secamente a Banks: — Onde está ela?
— Não sei.
— O que estou perguntando é: você pode ir ver o que aconteceu com ela?
— Oh, claro.
Foi até a parede, subiu e olhou para baixo.
— E então? — perguntou Rhyme.
— Está a maior bagunça aí embaixo.
— Claro que está a maior bagunça. Você a está vendo?
— Não.
— Sachs? — gritou Rhyme.
Seguiu-se um longo gemido de madeira queimando e depois um som de coisa caindo. Poeira subiu no ar.
— Sachs? Amélia?
Nenhuma resposta.
Imediatamente antes de ele enviar a UOE para tirá-la de lá, ouviram sua a voz.
— Estou indo.
— Jerry? — disse Rhyme.
— Pronto — respondeu o jovem detetive.
A lata voou, subindo. Banks pegou-a com uma única mão. Sachs saiu do porão, limpando as mãos na calça comprida, encolhendo-se.
— Tudo bem?
Ela inclinou a cabeça.
— Agora, vamos trabalhar no beco — ordenou Rhyme. — Por aqui há tráfego em todas as horas do dia, de modo que ele estacionaria fora da rua, antes de trazê-la para cá. Foi lá que ele estacionou. Usou aquela porta ali.
— Como é que você sabe?
— Há duas maneiras de abrir portas fechadas... sem explosivos, isto é.
Pela tranca e pelas dobradiças. Essa devia estar aferrolhada por dentro, de modo que ele tirou os pinos das dobradiças. Está vendo, ele não se importou nem em deixá-los bem longe quando foi embora.
Partiram para a porta e abriram caminho até os fundos do escuro canyon, com o prédio fumegante à direita. Andaram trinta centímetros de cada vez, Sachs apontando a PoliLight para as lajes.
— Quero marcas da banda de rodagem dos pneus — disse Rhyme. - Quero saber onde ficou a mala do carro dele.
— Aqui — disse Sachs, examinando o chão. — Banda de rodagem. Mas não sei se são de pneus dianteiros ou traseiros. Ele pode ter dado marcha a ré.
— Elas estão claras ou indistintas? As marcas da banda de rodagem?
— Um pouco indistintas.
— Então essas são dos pneu dianteiros. — Rhyme riu ao notar a expressão confusa de Sachs. — Você é a especialista automotiva, Sachs. Na próxima vez em que entrar num carro e dar partida, verifique se não gira o volante um pouco, antes de começar a mover-se. Para ver se os pneus estão retos. A banda de rodagem dianteira deixa sempre sinais mais indistintos do que os traseiros. Bem, o carro roubado era um Ford Taurus modelo 97. Ele mede 197,5 do pára-choque dianteiro ao traseiro, largura entre eixos de 108,5.
Aproximadamente 45 polegadas do centro do pneu traseiro até a carroceria.
Meça isso e passe o aspirador de pó.
— Ora, vamos, Rhyme. Como é que você sabe disso?
— Consultei um manual esta manhã. Você processou a roupa da vítima?
— Processei. Unhas e cabelos, também. E, Rhyme, veja só: o nome da menininha é Pam, mas ele a chamou de Maggie. Exatamente o que fez com a moça alemã... que ele chamou de Hanna, lembra-se?
— Você quer dizer, a outra persona dele fez isso — retrucou Rhyme.
— Eu gostaria de saber quem são os personagens na peça dele.
— Vou passar também o aspirador em volta da porta — disse ela.
Rhyme observou-a — rosto ferido e cabelos despenteados, calça queimada em alguns pontos. Sachs passou o aspirador pela parte inferior da porta e, exatamente no momento em que ele ia lhe lembrar que cenas de crime são tridimensionais, ela passou o aspirador em volta da verga da porta.
— Ele provavelmente olhou antes de levá-la para dentro — comentou Sachs e começou a passar também o aspirador pelo peitoril da janela.
O que teria sido a ordem seguinte de Rhyme.
Ele ficou escutando o zumbido do aspirador. Mas, um segundo após outro, ele estava desaparecendo, no passado, algumas horas antes.
— Eu estou... — começou Sachs.
— Shhh — disse ele.
Tal como os passeios que nesse momento dava, tal como os concertos a que comparecia, como tantas das conversas que tinha, Rhyme estava mergulhando cada vez mais fundo em sua consciência. E, quando chegou a um certo lugar — mesmo que não tivesse idéia de onde ficava aquilo -, descobriu que não estava sozinho. Estava vendo um homem baixo usando luvas, roupa esporte escura, máscara de esquiador. Descendo do Ford Taurus prateado, que tinha cheiro de coisa limpa e de carro novo. A mulher — Carole Ganz — estava na mala, a criança mantida cativa em um velho prédio construído com mármore cor-de-rosa e tijolo caro. Viu o homem tirando a mulher do carro e arrastando-a.
Quase uma recordação, tão clara era a cena.
Soltando as dobradiças, abrindo a porta, puxando-a para dentro, amarrando-a. Começou a deixar o local, mas parou. Foi até o lugar de onde podia olhar e ver claramente Carole. Da mesma maneira como olhou para o homem que enterrou no leito da estrada de ferro na manhã do dia anterior.
Da mesma maneira como acorrentou Tammie Jean Colfax ao cano no centro da sala. Para poder ter uma boa visão dela.
Mas por quê?, perguntou Rhyme a si mesmo. Por que ele as olha?
Para ter certeza de que as vítimas não vão escapar? Para ter certeza de que não deixou nada comprometedor ali? Para...
Abriu subitamente os olhos. A aparição vaga do elemento desconhecido 238 desapareceu.
— Sachs! Lembra-se da cena da Colfax? Quando encontrou a impressão da luva?
— Claro.
— Você disse que ele a estava observando, foi essa a razão porque ele a acorrentou em um local tão visível. Mas você não sabia por quê. Bem, eu descobri. Ele observa as vítimas porque tem que fazer isso. Porque essa é a natureza dele.
— O que é que você quer dizer com isso?
— Venha cá.
Rhyme sugou duas vezes o controle de canudinho, que virou a cadeira Arrow. Em seguida, soprou com força e ela partiu para a frente. Foi até a calçada e sugou com força o canudo para parar a cadeira. Apertou os olhos enquanto olhava para todos os lugares em volta.
— Ele quer ver as vítimas. E aposto que ele queria ver também os paroquianos. De algum lugar que julgava seguro. Que não tivesse que varrer depois.
Olhava nesse momento para o outro lado da rua, para o único ponto isolado no quarteirão: o pátio externo de um restaurante em frente à igreja.
— Ali! Passe o aspirador por toda parte ali, Sachs.
Amélia inclinou a cabeça, inseriu um novo carregador na Glock, pegou os sacos de prova, uns dois lápis e o aspirador de pó. Ele observou quando ela atravessou correndo a rua e, em seguida, subiu com cuidado os degraus do pátio, examinando-os.
— Ele esteve aqui — gritou. — Há uma marca de luva. E uma pegada...
Desgastada igualzinha às outras.
Isso mesmo!, pensou Rhyme. Oh, essa sensação era boa. O sol quente, o ar, os espectadores. E a excitação da caça.
Quando você se move, eles não podem pegá-la.
Bem, se nos movermos mais rápido, talvez possamos.
Olhou por acaso para a multidão e notou que algumas pessoas o fitavam. Um número muito maior de pessoas, porém, observava Amélia Sachs.
Durante quinze minutos, ela vasculhou a cena e, quando voltou, trazia um pequeno saco de provas.
— O que foi que você encontrou, Sachs? A carteira de habilitação dele?
A certidão de nascimento?
— Ouro — respondeu ela sorrindo. — Descobri um pouco de ouro.
CAPÍTULO XXX
— Vamos, gente — gritou Rhyme -, vamos ter que começar a trabalhar nestas provas. Antes que ele leve a menina para a próxima cena. Eu estou dizendo: mexam-se!
Thom realizou uma operação de transferência para tirar Rhyme da Storm Arrow e recolocá-lo na cama, pondo-o momentaneamente empoleirado em cima de um aparador e, em seguida, deixando-o arriar suavemente na Clinitron. Sachs lançou um olhar para o elevador da cadeira de rodas, que havia sido instalado em um dos closets da sala — aquele que ele não quis que ela abrisse quando a orientou para o local onde estavam o estéreo e os CDs.
Rhyme ficou imóvel durante um momento, respirando profundamente para recuperar-se do esforço.
— As pistas desapareceram — lembrou ele. — Não há maneira de descobrirmos onde será a próxima cena do crime. De modo que vamos partir para a maior: a casa segura dele.
— Acha que pode achá-la? — perguntou Sellitto.
Temos escolha?, perguntou Rhyme a si mesmo e nada respondeu.
Banks subiu correndo a escada. Não havia sequer entrado na sala quando Rhyme perguntou em voz alta: — O que foi que eles disseram? Diga-me. Diga-me.
Rhyme sabia que o minúsculo pedaço de ouro encontrado por Sachs estava além da capacidade do improvisado laboratório de Mel Cooper. Ele tinha pedido ao jovem detetive que corresse até o departamento PERT da Superintendência local do FBI e que pedisse uma análise.
— Eles vão nos ligar dentro de meia hora.
— Meia hora — murmurou Rhyme. — Eles não deram prioridade à amostra?
— Pode apostar que deram. Dellray estava lá. Você devia tê-lo visto.
Ordenou que todos os demais trabalhos fossem suspensos e disse que, se o laudo da metalurgia não estivesse em suas mãos ONTEM, a mãe de alguém...
você pode imaginar o quadro... esta ria retorcendo as dela... você entende o resto do quadro.
— Rhyme — disse Sachs -, há outra coisa que Carole Ganz disse que pode ser importante. Ele disse que a soltaria se ela deixasse que ele lhe debulhasse o pé.
— Debulhar?
— Tirar a pele do pé.
— Esfolar — corrigiu-a Rhyme.
— Oh. De qualquer maneira, ele não fez nada. Ela disse que pareceu que, no fim, ele não conseguiu se obrigar a cortá-la.
— Exatamente igual à primeira cena do homem ao lado do leito da estrada de ferro — lembrou Sellitto.
— Interessante... — disse Rhyme, pensativo. — Pensei que ele tinha cortado o dedo da vítima para desencorajar qualquer pessoa de roubar o anel.
Vejam só o comportamento dele: cortar o dedo do motorista do táxi e sair andando com ele por aí. Cortando o braço e a perna da moça alemã.
Roubando os ossos e o esqueleto da cobra. Escutando enquanto quebrava o dedo de Everett... Há alguma coisa na maneira como ele vê as vítimas.
Alguma coisa...
— Anatômica?
— Exatamente, Sachs.
— Exceto no caso de Carole Ganz — lembrou Sellitto.
— Meu argumento — disse Rhyme. — Ele poderia tê-la cortado e ainda tê-la conservado viva para nós. Mas alguma coisa o deteve.
O quê?
— O que há de diferente nela? — perguntou Sellitto. — Não pode ser o fato de ser uma mulher. Ou de fora da cidade. A moça alemã também não era daqui.
— Talvez ele não tenha desejado machucá-la na frente da filha — sugeriu Banks.
— Não — disse Rhyme, um sorriso sombrio nos lábios -, compaixão não é com ele.
Subitamente, Sachs teve uma idéia: — Mas há uma coisa diferente nela. Ela é mãe.
Rhyme pensou na sugestão.
— Poderia ser isso. Mãe e filha. Não foi suficiente para que ele as soltasse. Mas impediu-o de torturá-la. Thom, anote isso. Com um ponto de interrogação. — Em seguida, voltou-se para Sachs: — Ela disse alguma coisa sobre a aparência dele?
Sachs folheou a caderneta de notas.
— O mesmo que antes. — E leu: — Máscara de esquiador, estatura mediana, luvas pretas, ele...
— Luvas pretas? — Rhyme olhou para a tabela na parede. — Vermelhas, não?
— Ela disse pretas. Perguntei a ela se tinha certeza disso.
— E aquele outro pedaço de couro era preto, também, não era, Mel?
Talvez esse pedaço tenha vindo das luvas. Nesse caso, de onde veio o couro vermelho?
Cooper encolheu os ombros.
— Não sei, mas encontramos umas duas peças disso. De modo que é alguma coisa que está junto dele.
Rhyme olhou para os sacos de prova.
— O que mais encontramos?
— Os vestígios que coletamos com o aspirador no beco e na porta.
Sachs derramou o conteúdo do filtro sobre uma folha de papel de jornal e Cooper passou a examiná-la com uma lupa.
— Um bocado de nada — anunciou. — Principalmente solo. Fragmento de minerais. Mica de xisto de Manhattan. Feldspato.
Que eram encontrados em toda a cidade.
— Continue a procurar.
— Folhas em decomposição. Isso é praticamente tudo.
— O que é que você me diz das roupas da Ganz?
Cooper e Sachs abriram o embrulho de papel de jornal e examinaram os vestígios.
— Principalmente solo — disse Cooper. — E alguns fragmentos do que parece pedra.
— Você não bate nunca à porta, Dellray? — perguntou Sellito.
— Perdi o hábito, você sabe.
— Entre — convidou Rhyme. — O que é que nós temos aí?
— O diabo me leve se eu sei. Não faz o menor sentido para este garotão aqui. Mas, também, o que sei eu?
Dellray leu alguma coisa no laudo e disse em seguida: — Pedimos a Tony Farco, do PERT... por falar nisso, ele mandou um “Oi” para você, Lincoln... que analisasse esse fragmento de PM que vocês encontraram. Descobrimos que é ouro em folha. Tem provavelmente de sessenta a oitenta anos de idade. Ele encontrou algumas fibras de celulose coladas, de modo que pensa que isso vem de um livro.
— Claro! Iluminuras douradas numa página — disse Rhyme.
— Mas ele encontrou também nela algumas partículas de tinta. Ele disse, estou citando agora o rapaz: “Não é incompatível com o tipo de tinta que a Biblioteca Pública de Nova York usa para marcar as extremidades de seus livros.” Ele não fala engraçado?
— Um livro de biblioteca — disse Rhyme pensativo.
— Um livro de biblioteca encadernado em couro vermelho — sugeriu Sachs.
Rhyme olhou-a fixamente.
— Isso mesmo! — gritou. — Foi de um livro que vieram os fragmentos de couro vermelho. Não de uma luva. E um livro que ele leva consigo. Pode ser a sua Bíblia.
— Bíblia? — perguntou Dellray. — Você está pensando que ele é algum tipo de maníaco religioso?
— Não a Bíblia, Fred. Ligue novamente para a biblioteca, Banks. Talvez tenha sido assim que ele desgastou os sapatos... na sala de leitura. Sei que é uma possibilidade muito remota, mas não temos muitas opções aqui. Quero uma lista de todos os livros de antiquários que foram roubados de locais em Manhattan no ano passado.
— É pra já.
O jovem coçou uma cicatriz de barba enquanto ligava para a casa do prefeito e, sem meias-palavras, pedia ao chefão que entrasse em contato com o diretor da Biblioteca Pública e lhe dissesse o que precisavam.
Meia hora depois, a máquina de fax zumbiu e vomitou duas páginas.
Thom destacou as páginas do rolo.
— Uau, os leitores devem ter dedos leves nesta cidade — disse ele, entregando as folhas a Rhyme.
Oitenta e quatro livros, de cinquenta anos de idade ou mais, haviam desaparecido de filiais da biblioteca nos últimos doze meses, 35 deles em Manhattan.
Rhyme percorreu a lista. Dickens, Austen, Hermingway, Dreiser...
Livros sobre música, filosofia, vinhos, crítica literária, histórias de fadas. O valor desses livros era supreendentemente baixo. Vinte, trinta dólares. Achou que nenhum deles era primeira edição, mas talvez os ladrões não soubessem disso.
Continuou a vasculhar a lista.
Nada, nada. Talvez...
Nesse momento, viu-o.
Crime in Old New York, de autoria de Richard Wille Stephans, publicado pela Bountiful Press em 1919. O valor era listado como 65 dólares e tinha sido roubado nove meses antes da filial da Biblioteca Pública de Nova York, na Delancey Street. Era descrito como um volume de cinco por sete polegadas, encadernado em couro vermelho, com páginas finais marmorizadas e bordas douradas.
— Quero um exemplar deste livro. Não quero saber como. Se tiverem que fazer isso, liguem para alguém na Biblioteca do Congresso.
— Eu cuido disso — prometeu Dellray.
Supermercados, gasolina, a biblioteca...
Tinha que tomar uma decisão. Havia trezentos investigadores disponíveis — policiais municipais, membros da polícia militar estadual e agentes do FBI — mas ficariam espalhados microscopicamente se tivessem que dar buscas nas zonas leste e oeste do centro de Nova York.
Olhou para a tabela do perfil.
Sua casa fica na West Village?, perguntou silenciosamente Rhyme ao 238. Você comprou a gasolina e roubou o livro no East Side para nos enganar? Ou esse é o seu verdadeiro bairro? Até que ponto você é inteligente?
Não, não, a pergunta não é até que ponto você é inteligente, mas até que ponto você pensa que é. Que confiança tem você em que nós nunca descobriremos esses pedacinhos minúsculos de você mesmo que M. Locard nos garante que deixaria para trás?
Finalmente, deu a ordem: — Concentrem-se no Lower East. Esqueçam a Village. Mandem todos para lá. Todas as tropas de Bo, todas as suas, Fred. O que vocês devem procurar é o seguinte: uma grande prédio em estilo federal, com cerca de duzentos anos de idade, fachada de mármore cor-de-rosa, lados e fundos de arenito-avermelhado. Pode ter sido uma mansão ou um prédio público em alguma ocasião. Com uma garagem ou cocheira contígua para carruagens. Um sedã Taurus e um Yellow Cab entrando e saindo dali nas últimas semanas.
Com maior frequência, nos últimos dias.
Olhou para Sachs.
Esquecendo os mortos...
Sellitto e Dellray deram seus respectivos telefonemas.
Sachs disse a Rhyme: — Eu vou, também.
— Eu não esperava nada diferente.
Quando a porta se fechou lá embaixo, ele disse baixinho: — Vá com Deus, Sachs. Vá com Deus.
CAPÍTULO XXXI
Três radiopatrulhas cruzavam lentamente as ruas do Lower East Side.
Dois vigilantes municipais em cada um deles. Olhos vasculhando o ambiente.
Um momento depois, apareceram dois coches pretos de quatro rodas... dois sedãs, era o que ele queria dizer. Sem marcas, mas os faróis ao lado das janelas do lado esquerdo não deixavam dúvida sobre o que eram.
Sabia que eles estavam concentrando a busca, claro, e que era apenas uma questão de tempo antes que lhe descobrissem a casa. Mas ficou chocado por estarem tão perto. E também especialmente perturbado quando os policiais desceram e passaram a examinar um Taurus prateado na Canal Street.
De que modo, com todos os diabos, eles haviam descoberto sua carruagem? Sabia muito bem que roubar um carro era um enorme perigo, mas pensava que a Hertz levaria dias antes de dar por falta do veículo. E mesmo que isso acontecesse, tinha certeza de que os vigilantes nunca o ligariam ao roubo. Oh, eles eram competentes.
Um dos policiais de olhar maldoso lançou a vista para seu táxi.
Olhando diretamente para a frente, o colecionador de ossos virou para a Houston Street e perdeu-se na multidão de outros táxis. Meia hora depois, abandonou o táxi e o Taurus da Hertz e voltou a pé para a mansão.
ELEMENTO DESCONHECIDO 238
Aparência Residência Veículo Diversos • Branco, homem, estatura baixa • Roupa escura • Luvas velhas, pelica, avermelhadas • Loção após barba: para encobrir cheiro?
• Máscara de esquiador? Azul-marinho?
• Luvas são escuras • Loção pós-barba = Brut • Cabelo não é castanho • Cicatriz profunda, dedo indicador • Roupa esporte • Luvas são pretas • Prov. tem casa segura • Localizada perto de: B'way & 82nd, ShopRite Greenwich & Bank, ShopRite 8th Ave. & 24th, ShopRite Houston & Lafayette, ShopRite • Prédio antigo, mármore cor-de-rosa • Pelo menos 100 anos de idade, prov. mansão ou prédio público • Prédio em estilo federal, Lower East Side • Táxi Yellow Cab • Seda modelo recente • Cinza claro, prateado, bege • Carro de aluguel, prov. roubado • Hertz, Taurus prateado, modelo deste ano • Conhece proc de CC
• Possivelmente tem antec. criminais • Conhece levantamento de impressões digitais • Arma = 32 Col • Amarra vít. com nós incomuns • O “Antigo” o atrai • Chamou uma vít. de “Hanna”
• Conhece alemão básico • Atraído por locais subterrâneos • Dupla personalidade • Talvez padre, assist. social, cons. psicológico • Desgate incomum nos sapatos. Lê muito?
• Escutou som com prazer, enquanto quebrava dedo de vítima • Deixou serpente como bofetada nos investigadores • Queria esfolar pé da vít.
• Chamou uma vít. de “Maggie”
• Mãe & Filha. Algum significado especial para ele?
• Livro Crime in Old NY como modelo?
A jovem Maggie ergueu a vista para ele. Ela estava com medo, sim, mas tinha deixado de chorar. Ficou pensando se não devia apenas ficar com ela. Arranjar uma filha. Criá-la. A idéia brilhou em sua mente durante um ou dois momentos e, em seguida, desapareceu.
Não, perguntas demais seriam feitas. Além disso, havia alguma coisa sobrenatural na maneira como a menina o fitava. Ela parecia mais velha do que seus anos. Ela se lembraria para sempre do que ele havia feito. Oh, por algum tempo, poderia pensar que tudo aquilo tinha sido um sonho. Mas, algum dia, a verdade apareceria. Isso sempre acontecia. Reprima o que quiser, mas, algum dia, a verdade aparecerá.
Não, não podia confiar mais nela do que confiava em qualquer pessoa.
No fim, toda alma humana nos decepciona. Podia confiar nisso. Podia-se confiar em osso. Tudo mais era traição. Agachou-se ao lado de Maggie e tirou-lhe a mordaça.
— Mamãe! — chorou ela. — Quero minha mamãe!
Ele nada disse, ficou simplesmente olhando, por muito tempo. Para o crânio delicado. E para os gravetos dos braços. Ela gritou como se fosse uma sirene.
O colecionador tirou as luvas. Os dedos pairaram por um momento sobre a menina. Em seguida, acariciou-lhe os cabelos macios.
(“Impressões digitais podem ser tiradas de carne, se isso for feito até 90 minutos depois do contato [Ver KROMEKOTE], mas ninguém conseguira ainda tirar e reconstruir cristas de atrito de cabelos humanos.” Lincoln Rhyme, Physical Evidence, 4ª ed. [Nova York: Forensic Press, 1994.) Levantando-se devagar, o colecionador subiu a escada, entrou na grande sala de estar do prédio, passou pelas pinturas nas paredes — os operários, as mulheres e crianças de olhos parados. Inclinou a cabeça ao ouvir um fraco som no lado de fora. Em seguida, mais alto — um ruído de metal.
Agarrou a arma e correu para os fundos do prédio. Puxando o ferrolho, abriu-a subitamente, caindo em postura de tiro com as duas mãos na arma.
A matilha de cães selvagens olhou para ele por um momento. E voltou rapidamente para o latão de lixo que tinha derrubado. Guardando a arma no bolso, ele voltou à sala de estar.
Novamente ao lado da janela com vidros de fundo de garrafa, olhou para o velho cemitério. Oh, sim. Ali! Lá estava outra vez aquele homem, vestido de preto, no cemitério. Ao longe, o céu era perfurado pelos mastros pretos dos veleiros clíperes e das escunas atracadas no East River, ao longo da praia da Out Ward.
Experimentou uma sensação esmagadora de pesar. Perguntou a si mesmo se havia acabado de acontecer alguma tragédia. Talvez o Grande Incêndio de 1776 tivesse destruído a maioria dos prédios da Broadway. Ou, quem sabe, a epidemia de febre amarela de 1795 dizimado a comunidade irlandesa. Ou o incêndio no barco de cruzeiro General Slocum, em 1904, matado mais de mil mulheres e crianças, destruindo o bairro alemão do Lower East Side.
Ou talvez estivesse captando tragédias prestes a acontecer.
Após alguns minutos, os gritos de Maggie pararam, substituídos pelos sons da velha cidade, o rugido dos motores a vapor, a batida de chocalhos, o pipocar de tiros com pólvora negra, o tro-pel de cascos nas ressonantes lajes das ruas.
Continuou a olhar fixamente, esquecendo os vigilantes municipais à sua procura, esquecendo Maggie, simplesmente observando a forma fantasmagórica descer a rua.
Outrora e agora.
Os olhos permaneceram por um longo momento voltados para fora da janela, perdidos em um tempo diferente. E por isso não notou os cães selvagens, que haviam empurrado a porta dos fundos, que tinha deixado entreaberta. Os cães olharam através da soleira da porta da sala de estar, pararam apenas por um momento, antes de darem a volta e correrem tranquilamente para os fundos do prédio.
Narizes enrugaram-se com os cheiros, orelhas se empinaram com os sons daquele estranho lugar. E principalmente com o choro baixo que vinha de algum lugar abaixo deles.
A separação dos Irmãos Hardy demonstrou o grau de desespero.
Bedding vistoriava uma meia dúzia de quarteirões em volta da Delancey. Saul trabalhava mais ao sul, Sellitto e Banks tinham cada um sua área de busca, como também as centenas de outros policiais, agentes do FBI, soldados da Polícia Estadual, indo de porta em porta, perguntando coisas sobre um homem baixo, uma criança pequena em lágrimas, um Ford Taurus prateado, um prédio em estilo federal abandonado, com fachada de mármore cor-de-rosa, o resto de arenito-avermelhado.
Hã? O que é que você quer dizer com federal?... Se vi uma criança?
Está perguntando se algum dia vi uma criança no Lower East? Ei, Jimmy, você já viu algum dia crianças por aqui? E ainda menos nos últimos sessenta segundos?
Amélia Sachs estava flexionando os músculos. Insistiu em fazer parte do grupo de Sellitto, o que ia visitar a ShopRite em East Houston que tinha vendido canela de vitela ao elemento desconhecido 238. E o posto que lhe havia vendido a gasolina. E a biblioteca onde ele tinha roubado o Crime in Old New York.
Mas não encontraram pistas nesses lugares e se espalharam como lobos a farejar uma dezena de cheiros diferentes. Cada um escolheu um trecho do bairro para trabalhar sozinho.
Ao dar partida no motor do novo VRR, a fim de tentar outro quarteirão, Sachs sentiu a mesma frustração que tinha experimentado em outras cenas de crime nos últimos dias: droga de prova demais, terreno demais para cobrir. A impossibilidade de fazer tudo isso. Ali, na rua quente e úmida, que se bifurcava em centenas de outras ruas e becos, passando por milhares de prédios — todos eles velhos -, descobrir onde ficava a casa segura parecia tão difícil como encontrar aquele cabelo de que tinha lhe falado Rhyme, colado ao teto pelo coice de um revólver .38.
Tencionava visitar todas as ruas, mas, à medida que o tempo passava e pensava na criança enterrada no subsolo, perto da morte, começou a procurar com maior rapidez, acelerando ruas abaixo, olhando à direita e à esquerda, procurando um prédio com fachada de mármore cor-de-rosa. Sentiu uma pontada de dúvida. Na pressa, teria deixado de ver um prédio? Ou deveria dirigir com a velocidade de um raio e cobrir mais ruas?
E assim por diante, sem parar. Outro quarteirão, mais outro. E, ainda, nada.
Após a morte do malfeitor, suas posses foram recolhidas e examinadas por detetives. O diário mostrava que ele assassinara oito bons cidadãos da cidade. Nem estava ele acima de violar sepulturas, pois se verificou nessas páginas (se as alegações dele são verdadeiras) que ele havia violado vários sagrados locais de repouso em cemitérios por toda a cidade. Nenhuma das vítimas lhe fizera a menor afronta — não, a maioria era de cidadãos respeitáveis, esforçados e inocentes. Ainda assim, ele não sentiu a menor dose de culpa. Na verdade, ele parece ter agido sob a louca ilusão de que estava fazendo um favor às vítimas.
O dedo anular da mão esquerda de Rhyme mexeu-se ligeiramente e o dispositivo virou a página em papel-bíblia do Crime in Old New York, que lhe havia sido entregue dez minutos antes por dois agentes federais, esse serviço acelerado pelo estilo inimitável de Fred Dellray.
A carne murcha e pode ser fraca”— (escreveu o malfeitor com mão implacável mas firme) — “O osso é o aspecto mais forte do corpo. Tão velhos possamos ser na carne, somos sempre jovens no osso. É um objetivo nobre o que eu tenho e está além do alcance de minha compreensão o motivo por que alguém pode ser contra. Pratiquei um ato de bondade com todos eles. Eles, agora, são imortais. Eu os libertei. Eu os reduzi até o osso.
Terry Dobyns tinha razão. O Capítulo 10, “James Schneider: o Colecionador de Ossos”, era uma virtual descrição do comportamento do Elemento Desconhecido 238. O modus operandi era o mesmo — fogo, animais, água, cozinhar vivas as vítimas. O 238 rondava os mesmos campos de caça que Schneider nos seus dias. Confundiu uma turista alemã com Hanna Goldschmidt, uma imigrante do século XIX, e foi atraído a uma residência alemã para encontrar uma vítima. E deu também à pequena Pammy Ganz um nome diferente — Maggie, aparentemente pensando que ela era a pequenina O'Connor, uma de suas vítimas.
Um desenho muito ruim no livro, coberto por papel de seda, mostrava um demoníaco James Schneider, sentado em um porão, examinando um osso.
Olhou para o mapa do Levantamento Randel, pregado na parede.
Ossos...
Lembrou-se nesse momento de um crime em que havia trabalhado.
Tinha sido chamado a um canteiro de obras na baixa Manhattan, onde alguns operários encontraram um crânio a poucos centímetros de profundidade em um lote vazio. Imediatamente, notou que o crânio era muito antigo e pediu a ajuda de um antropólogo da polícia técnica. Continuaram a cavar e a descobrir mais ossos e esqueletos.
Uma pequena pesquisa revelou que, em 1741, tinha ocorrido um levante de escravos em Manhattan e que certo número deles — e abolicionistas brancos militantes — foram enforcados em uma pequena ilha na Collect. A ilha tornou-se um local popular para enforcamentos e, em volta da área, surgiram vários cemitérios clandestinos.
Onde tinha sido localizado o Collect? Tentou lembrar-se. Perto do local onde Chinatown e o Lower East Side se encontram. Mas era difícil saber com certeza, porque a lagoa tinha sido aterrada há muito tempo. Tinha sido na...
Isso mesmo!, pensou, o coração batendo forte. A Collect tinha sido aterrada porque se tornara tão poluída que os comissários da prefeitura consideraram-na um grande risco para a saúde. E entre os principais poluidores figuravam os curtumes na praia leste!
Muito competente nesse momento com o dispositivo de discar, Rhyme não errou um único número e foi ligado com o prefeito na primeira tentativa. O secretário particular de Hizzoner, porém, disse que o prefeito estava em um brunch nas Nações Unidas. Mas, quando se identificou, o secretário disse “Um momento, senhor”, e, em muito menos tempo do que o necessário para dizer essas palavras, ele estava ligado com um homem que lhe disse, falando com a boca cheia: “Fale comigo, detetive. Como vocês estão indo, porra?”
— Cinco-oito-oito-cinco — disse Amélia, respondendo à chamada do rádio.
Rhyme percebeu o nervosismo em sua voz.
— Sachs.
— Isto não está nada bem — respondeu ela. — Não estamos tendo sorte nenhuma.
— Acho que o localizei.
— O quê?
— No quarteirão 600. East Van Brevoort. Perto de Chinatown.
— Como foi que você soube?
— O prefeito me pôs em contato com o chefe da Sociedade Histórica.
Uma escavação arqueológica está sendo feita nesse local. Um velho cemitério.
Do outro lado da rua, onde havia um grande curtume. E certa ocasião houve grandes mansões em estilo federal na área. Acho que ele está por perto.
— Já estou indo.
Através do fone-microfone chegou a Rhyme o chiado de pneus e, em seguida, o som de sirene.
— Liguei para Lon e Haumann — acrescentou Rhyme. — Eles estão indo para lá agora.
— Rhyme — crepitou a voz dela em tom urgente. — Eu vou tirá-la de lá.
Ah, você tem um bom coração de policial, Amélia, um coração profissional. Mas você ainda é uma recruta.
— Sachs? — chamou ele.
— Aqui.
— Estive lendo aquele livro. O 238 escolheu um tipo perverso para seu modelo de papel a representar. Realmente perverso.
Ela ficou calada.
— O que estou dizendo é que, esteja a menina lá ou não — continuou -, se o encontrar e ele sequer se mexer, mande bala nele.
— Mas se o pegarmos vivo ele poderá nos levar a ela. Poderemos...
— Não, Sachs. Escute-me. Prenda-o. Mas ao primeiro sinal dele de pegar uma arma, qualquer coisa... mate-o.
A estática reapareceu no rádio. Em seguida, ele lhe ouviu a voz firme: — Estou na Van Brevoort, Rhyme. Você tem razão. Parece que é a casa dele.
Dezoito carros de placas frias, dois veículos do UOE e o VRR de Amélia Sachs se reuniram perto de uma rua curta, deserta, no Lower East Side.
A Van Brevoort dava a impressão de que ficava em Sarajevo. Os prédios estavam abandonados — dois deles incendiados até o chão. No lado leste da rua havia um hospital de algum tipo, em ruínas, com o telhado caído para dentro. Ao lado, um grande buraco no chão, isolado por cordas, com uma tabuleta “Proibido Passar”, com o brasão de uma Corte Municipal — a escavação arqueológica mencionada por Rhyme.
No meio do outro lado da rua erguia-se uma casa de pedra com fachada de mármore ligeiramente rosado e uma cocheira contígua, apenas ligeiramente mais bem conservada do que as outras casas de cômodos decrépitas ao longo da Van Brevoort.
Sellitto, Banks e Haumann reuniram-se ao lado da van do UOE, enquanto vários policiais vestiam os coletes de Kevlar e pegavam seus M-l6s.
Sachs reuniu-se a eles e, sem pedir licença, arrumou os cabelos sob um capacete e vestiu um colete.
— Sachs — disse Sellitto -, você não pertence à unidade tática.
Batendo a correia de Velcro contra o corpo, ela fitou-o, as sobrancelhas erguidas altas, até que ele cedeu e disse: — OK. Mas você vai cobrir a retaguarda. E isto é uma ordem.
— Você será o Grupo Dois — decidiu Haumann.
— Sim, senhor. Posso conviver com isso.
Outro policial do UOE ofereceu-lhe uma submetralhadora MP-5. Ela pensou em Nick — no encontro de ambos no estande de tiro de Rodman's Neck. Eles haviam passado duas horas treinando com armas automáticas, disparando rajadas em Z através de portas, recarregando com carregadores pregados ao cano e com M-16 de varredura, para evitar os engasgos que eram a praga dos Colts. Nick adorava o staccato da arma. Sachs, porém, não apreciava muito o poder de fogo impreciso das armas poderosas. Sugeriu apostar contra elas, usando Glocks, e o venceu três vezes seguidas a uma distância de quinze metros. Ele riu e a beijou com força, quando a última das silhuetas vazias girou na extremidade do estande.
— Vou usar só a minha arma portátil — disse ela ao policial do UOE.
Os Irmãos Hardy chegaram correndo, agachando-se como se fossem atiradores de elite.
— O que descobrimos foi o seguinte. Não há ninguém por aqui. O quarteirão está...
— ...Inteiramente vazio.
— Todas as janelas desse prédio estão fechadas com barras de ferro. Há uma entrada nos fundos...
— ... que dá para um beco. A porta está aberta.
— Aberta? — perguntou Haumann, olhando para vários de seus policiais.
Saul confirmou.
— Não simplesmente destrancada, mas aberta.
— Armadilhas explosivas antipessoais?
— Não que a gente pudesse ver. O que não quer dizer...
— ...que não haja nenhuma.
— Algum veículo no beco? — perguntou Sellitto.
— Não.
— Duas entradas na frente. Porta da frente principal...
— Que parece ter ficado colada por tinta. A segunda é a porta da cocheira. Porta dupla, suficientemente larga para dois veículos. Cadeado e corrente.
— Mas no chão.
Haumann inclinou a cabeça.
— De modo que ele talvez esteja dentro da casa.
— Talvez — concordou Saul e acrescentou: — E diga a ele o que pensamos que ouvimos.
— Muito fraco. Podia ter sido choro.
— Podia ter sido grito.
— A menininha? — perguntou Sachs.
— Talvez. Mas depois o som simplesmente parou. Como foi que Rhyme descobriu este lugar?
— Diga você como a mente dele funciona — retrucou Sellitto.
Haumann chamou um de seus comandantes e deu uma série de ordens. Um momento depois, duas vans do UOE entraram no cruzamento e bloquearam a outra extremidade da rua.
— Grupo Um, porta da frente. Derrubem-na com cargas cortantes. Ela é de madeira, velha, de modo que usem uma carga baixa, certo? Grupo Dois, para o beco. Vou contar, quando chegar a três, entrem em ação. Entenderam?
Neutralizem, mas estamos supondo que a menina está lá, de modo que olhem bem, antes de apertar o gatilho. Policial Sachs, tem certeza de que quer participar disto?
Inclinação de cabeça, firme.
— Muito bem, meninos e meninas. Peguem ele.
CAPÍTULO XXXII
Sachs e cinco outros policiais do Grupo Dois correram para o beco escaldante, nesse momento bloqueado na outra extremidade pelos caminhões da UOE. Ervas daninhas cresciam profusamente entre as lajes e fundações rachadas. A desolação do local lembrou a Sachs a cova no leito da estrada de ferro, no dia anterior.
Ele alimentava a esperança de que a vítima estivesse morta. Para o bem dela...
Haumann posicionou soldados da Polícia Estadual nos telhados dos prédios em volta. Sachs viu os canos de suas Colts pretas eriçados ali em cima como se fossem antenas.
O grupo parou à porta dos fundos. Os outros policiais olharam-na quando ela examinou os elásticos em volta dos sapatos. Ouviu um deles sussurrar para o outro alguma coisa como superstição.
Em seguida, ouviu nos fones de ouvido: Líder do Grupo Um em frente à porta da frente, carga montada e armada.
Estamos prontos. Câmbio.
Entendido, líder do Grupo Um. Grupo Dois?
Entendido, líder do Grupo dois, em posição. Câmbio.
Entendido, líder do Grupo Dois. Ambos os grupos, entrada dinâmica. A contagem de três.
Sachs checou a arma pela última vez.
— Um...
A língua de Sachs tocou uma gota de suor pendurada no ferimento inchado do lábio.
— Dois...
OK, Rhyme, lá vamos nós.
— Três...
A explosão foi baixa, um pop distante e, em seguida, os grupos entraram em movimento. Rápido. Ela correu atrás dos soldados do UOE
quando eles entraram e se espalharam, as lanternas montadas nos canos das armas lançando feixes de luz brilhante que se cruzavam e saíam pelas janelas.
Sachs descobriu que ficou sozinha quando o resto do grupo se dispersou, examinando depósitos, closets e sombras por trás das estátuas grotescas que enchiam o local.
Virou-se para o canto. Um rosto pálido apareceu. Uma faca...
Um baque no coração. Postura de combate, arma para o alto. Aplicou dois quilos e meio de pressão no gatilho suado, antes de perceber que olhava para uma pintura na parede. Era de um açougueiro de aparência sobrenatural, de cara de lua cheia, segurando uma faca na mão e uma peça de carne na outra.
Irmão...
Que lugar mais bacana ele escolheu para morar!
Os soldados da UOE pisavam forte nos andares superiores, dando busca no primeiro e segundo andares.
Sachs, porém, estava à procura de outra coisa.
Encontrou a porta que dava para o porão. Entreaberta. OK. Desligue a lanterna. Você tem, em primeiro lugar, que dar uma olhada aí dentro. Mas lembrou-se do que Nick tinha lhe dito: nunca olhe para cantos no nível da cabeça ou peito — é aí que ele a está esperando. Caia sobre um joelho. Respire fundo. Vá!
Nada. Escuridão.
De volta à postura de defesa.
Escute...
No início, nada ouviu. Em seguida, percebeu um som nítido de alguma coisa arranhando. Batidas rápidas. Som de respiração rápida ou de um grunhido.
Ele está lá e está escavando uma rota de fuga!
No microfone, avisou: — Tenho atividade aqui no porão. Quero apoio tático.
— Entendido.
Mas não conseguiu esperar. Pensou na menininha, lá embaixo com ele. E começou a descer a escada. Parou e escutou novamente. Nesse momento, deu-se conta de que estava com o corpo inteiramente exposto da cintura para baixo. Praticamente saltou para o chão e caiu agachada na escuridão.
Respire profundamente.
Agora, faça o que tem de fazer!
A lanterna, na mão esquerda, lançou um brilhante feixe de luz através da sala. A boca da arma centralizou-se no centro do disco branco de luz que se movia da esquerda para a direita. Mantenha o feixe baixo. Ele estaria também agachado. Lembrou-se do que Nick lhe dissera: criminosos não fogem.
Nada. Nenhum sinal dele.
Um soldado da UOE apareceu no alto da escada.
— Não se mova — gritou ela para o homem.
A centímetros da menina, viu a matilha de cães selvagens, emaciados, cheirando-lhe o rosto, os dedos, as pernas. Os grandes olhos da menina saltavam de um cão para o outro. O peito pequeno subia e descia e lágrimas lhe escorriam pelo rostinho. A boca estava aberta e a ponta da língua rosada parecia colada ao arco direito do lábio.
— Fique aí em cima — disse Sachs ao policial. — Não os assuste.
Sachs escolheu alvos, mas não atirou. Poderia matar dois ou três, mas os outros poderiam entrar em pânico e atacar a menina. Um deles era suficientemente grande para quebrar-lhe o pescoço com um simples movimento da cabeçorra grande e cortada de cicatrizes.
— Ele está aí embaixo? — perguntou o soldado.
— Não sei. Traga um paramédico para cá. Para o alto da escada.
Ninguém desce.
— Entendido.
A mira da arma flutuava de um animal para outro. Lentamente, começou a avançar. Um após outro, os cães perceberam sua presença e se afastaram de Pammy. A menininha era simplesmente comida: Sachs era um predador. Roncaram e rosnaram, pernas dianteiras tremendo, enquanto as traseiras se contraíam, prontas para saltar.
— Estou com medo — disse Pammy agudamente, atraindo novamente a atenção dos cães.
— Shhhh, querida — disse Sachs em voz suave. — Não diga nada. Fique calada.
— Mamãe. Eu quero minha mamãe.
O grito alto irritou os cães. Eles se mexeram nos lugares onde estavam e, em seguida, viraram os focinhos machucados para um e outro lado, rosnando.
— Calma, calma...
Sachs moveu-se para a esquerda. Os cães estavam voltados para ela nesse momento, mudando os movimentos dos olhos dela para a mão estendida e a arma. Separaram-se em dois grupos. Um ficou perto de Pammy.
O outro moveu-se em volta de Sachs, tentando flanqueá-la.
Ela apontou para um local entre a menininha e os três cães mais perto dela.
A Glock oscilou de um lado para o outro, como se fosse um pêndulo, os olhos pretos dos cães na arma de cor preta.
Um deles, um sarnento de pelagem amarela, rosnou e aproximou-se da direita de Sachs.
A menininha continuava a choramingar: — Mamãe...
Sachs moveu-se lentamente. Inclinou-se, agarrou a camiseta da menina e puxou-a para suas costas. O cão amarelo aproximou-se mais.
— Xô — disse ela.
Mais perto ainda.
— Vá embora!
Os cães atrás do amarelo ficaram tensos quando ele arreganhou os dentes amarelos quebrados.
— Porra, vão embora daqui! — rosnou Sachs e bateu com o cano da Glock no nariz do cão. O cão pestanejou de medo, ganiu e subiu correndo a escada.
Pammy gritou e lançou os outros em movimentos frenéticos. Eles começaram a brigar entre si, um redemoinho de dentes estalando e baba. Um rottweiler cheio de cicatrizes jogou um vira-lata no chão em frente a Sachs. Ela bateu com o pé ao lado da esquelética criatura marrom, que se levantou rapidamente e correu escada acima. Os outros perseguiram-na, como galgos atrás de um coelho.
Pammy começou a soluçar. Sachs agachou-se ao lado dela e varreu o porão com a lanterna. Nenhum sinal do elemento desconhecido.
— Está tudo bem, queridinha. Vamos levar você logo pra casa. Você vai ficar bem. Aquele homem que esteve aqui? Você se lembra dele?
A menina inclinou a cabeça.
— Ele foi embora?
— Não sei. Eu quero minha mamãe.
Sachs ouviu outros policiais chamando-a. O primeiro e segundo andares estavam seguros.
— O carro e o táxi? — perguntou. — Algum sinal deles?
Um policial retransmitiu a pergunta.
— Desapareceram. Ele provavelmente fugiu.
Ele não estará lá, Amélia. Isso seria ilógico.
Do alto da escada, um policial gritou: — Porão seguro?
— Vou ter que checar — respondeu ela. — Espere.
— Nós vamos descer.
— Negativo para isso — respondeu Sachs. — Temos uma cena de crime muito clara aqui embaixo e quero que fique assim. Simplesmente, mande um paramédico aqui para examinar a menininha.
O jovem enfermeiro, de cabelos amarelados, desceu a escada e agachou-se ao lado de Pammy.
E foi nessa ocasião que Sachs viu a trilha que levava aos fundos do porão — para uma porta de metal baixa, pintada de preto. Foi até ela, evitando a trilha em si, para conservar quaisquer pegadas, e agachou-se. A porta estava entreaberta e parecia haver um túnel no outro lado, escuro mas não inteiramente, e que levava a outro prédio.
Uma rota de fuga. O filho da puta.
Com os nós da mão esquerda, abriu mais a porta. Que não rangeu.
Olhou para dentro do túnel. Luz fraca a sete, dez metros. Nenhuma sombra se movendo.
Se via alguma coisa na escuridão, era o corpo contorcido de T.J.
pendurado do cano preto, o corpo redondo, mole, de Monelle Berger enquanto o rato preto rastejava para sua boca.
— Radiopatrulha 5885 para PC — disse ao microfone.
— Continue, câmbio — respondeu a voz seca de Haumann.
— Descobri um túnel levando para o prédio ao sul do prédio do elemento desconhecido. Mande alguém cobrir as portas e janelas.
— Será feito, câmbio.
— Vou entrar no túnel — disse ela.
— No túnel? Vamos lhe dar apoio tático, Sachs.
— Negativo. Não quero que a cena seja contaminada. Simplesmente, mande alguém ficar de olho na menininha.
— Repita isso.
— Não. Nenhum apoio tático.
Apagou a luz e começou a rastejar para dentro.
Claro, o currículo da Academia não incluía trabalho em túnel de ratos.
As coisas que Nick tinha lhe dito sobre manter segura uma cena de crime hostil voltaram naquele momento. Arma junto ao corpo, não estendida muito longe, onde poderia ser jogada para um lado. Três passos — bem, arrastamentos — para a frente. Pare. Escute. Mais dois passos. Pare. Escute.
Quatro passos em seguida. Não faça nada previsível.
Merda, está escuro aqui.
A claustrofobia a envolveu como uma nuvem de fumaça oleosa e ela teve que parar por um momento, concentrando-se em tudo, menos na proximidade das paredes. O pânico diminuiu aos poucos, mas o cheiro ficou pior. Teve náuseas.
Calma, garota, calma!
Controlou o reflexo e continuou a arrastar-se.
Que barulho é esse? Alguma coisa elétrica. Um zumbido. Subindo e descendo.
Três metros até o fim do túnel. Através da entrada viu um segundo e grande porão. Escuro, mas não tão escuro quanto aquele em que estava Pammy. Luz entrava suja através de uma janela sebosa. Viu pontinhos de poeira movendo-se na escuridão.
Não, não, moça, a arma está muito à frente de você. Um pontapé e ela já era. Perto de seu rosto. Mantenha o peso baixo e para trás! Use os braços para fazer pontaria, o rabo como ponto de apoio.
Nesse momento chegou à porta.
Teve náuseas novamente e fez força para abafar o som.
Ele está me esperando, ou não?
Cabeça pra fora, um olhar rápido. Você está de capacete. Vai desviar qualquer coisa, menos uma bala de metal puro ou Teflon e, lembre-se, ele usa um .32. Uma arma de mulher.
Tudo bem. Pense. Olhar em primeiro lugar para onde?
O Patrolman Guide não ajudava em nada e, nesse momento, Nick não lhe dava nenhum conselho. Tire cara ou coroa.
Esquerda.
Projetou rápido a cabeça, olhando para a esquerda. De volta ao túnel.
Nada viu. Uma parede vazia, sombras.
Se ele está no outro lado, ele me viu e tem agora bom posicionamento do alvo.
OK, foda-se tudo. Simplesmente vá em frente. Rápido.
Quando você se move...
Sachs saltou para dentro do porão.
... eles não podem pegá-la.
Bateu com força no chão e rolou sobre si mesma.
A figura estava escondida nas sombras da parede à direita, sob a janela. Localizando o alvo, começou a atirar. Em seguida, parou, dura.
Amélia Sachs arquejou.
Oh, meu Deus...
Seus olhos foram inexoravelmente atraídos para o corpo da mulher, encostado na parede.
Da cintura para cima, ela era magra, de cabelos castanhos escuros, rosto encovado, seios pequenos, braços ossudos. Tinha a pele coberta por enxames de moscas — o zumbido que ouvira.
Da cintura para baixo, ela era... nada. Ossos sanguinolentos de quadris, fêmur, a base da espinha, os pés... Toda a carne tinha sido dissolvida no banho repulsivo próximo ao lugar onde se encontrava — um guisado horrível, marrom-escuro, pedaços de carne flutuando. Lixívia ou algum tipo de ácido. Os vapores picaram-lhe os olhos, enquanto o horror — e fúria, também — ferviam no seu coração. Oh, você, pobre coitada...
Vagamente, espantou as moscas que, nesse momento, metralhavam a nova intrusa.
As mãos da mulher estavam relaxadas, palmas para cima, como se estivesse em meditação. Olhos fechados. Ao lado, um uniforme de jogging de cor púrpura.
Mas não era a única vítima.
Outro esqueleto — inteiramente descarnado — estava ao lado de um tonel semelhante, mais antigo, sem sinal do ácido corrosivo, mas coberto por uma lama escura de sangue e músculos derretidos. Faltavam o antebraço e a mão. E, mais adiante, ainda outro — esta vítima esquartejada, os ossos cuidadosamente esfregados e sem carne alguma, limpos, arrumados meticulosamente no chão. Viu uma pilha de folhas de lixa ao lado do crânio.
A curva elegante da cabeça brilhava como um troféu.
Em seguida, ouviu o som às costas.
Respiração. Baixa mas inconfundível. O estalo de ar profundo em uma garganta.
Girou rapidamente sobre si mesma, furiosa com seu descuido.
Mas só viu mesmo o vazio do porão. Passou a luz da lanterna pelo chão, que era de pedra e onde as pegadas não apareciam com tanta clareza quanto no chão sujo de 238 no prédio vizinho.
Outra inalação.
Onde estava ele? Onde?
Sachs agachou-se mais uma vez, apontando o facho da lanterna para os lados, para cima e para baixo... Nada.
Onde, com todos os diabos, estava ele? Outro túnel? Uma saída para a rua?
Olhando novamente para o chão, notou o que lhe pareceu uma fraca trilha estendendo-se para as sombras da sala. Acompanhou-a.
Pare. Escute.
Respiração?
Sim. Não.
Idiotamente, girou de novo sobre si mesma e olhou mais uma vez para a morta.
Venha!
Olhou mais uma vez para trás.
Continuou a mover-se.
Nada. Como é que posso ouvi-lo, mas não vê-lo?
A parede à frente era maciça. Nada de portas ou janelas. Recuou de costas na direção dos esqueletos.
De algum lugar, voltaram-lhe as palavras de Lincoln Rhyme. “Cenas de crimes são tridimensionais.”
Subitamente, ergueu a vista, levantando a lanterna. Os dentes do enorme doberman refletiram a luz — deles pendendo pedaços de carne cinzenta. A sessenta centímetros de distância, em cima de uma alta laje. Ele estava à espera dela, como um gato selvagem.
Nenhum dos dois se moveu por um momento. Ficaram absolutamente imóveis.
Instintivamente, Sachs baixou a cabeça e, antes de poder erguer a arma, o cão lançou-se contra seu rosco, os dentes entrando em contato com o capacete. Segurando furiosamente a correia, ele a sacudiu com violência, tentando quebrar-lhe o pescoço quando ambos caíram para trás, à beira de um buraco cheio de ácido. A pistola voou para longe.
O cão continuou a prender o capacete com os dentes, enquanto as patas traseiras como que galopavam, as unhas lhe furando o colete, o ventre e as coxas. Sachs bateu nele com toda força dos punhos, mas era como se estivesse socando madeira. O cão não sentia absolutamente os golpes.
Soltando o capacete, o cão recuou e, em seguida, mergulhou para o rosto. Sachs lançou o braço esquerdo sobre os olhos e, enquanto ele lhe agarrava o antebraço e ela sentia os dentes penetrarem na pele, tirou o canivete do bolso e enfiou a lâmina entre as costelas do animal. Ouviu um ganido, um som alto, e ele rolou para longe dela, mas continuou a mover-se, rápido, em linha reta para a porta.
Sachs pegou a pistola e correu atrás dele um instante depois, andando quase às cegas pelo túnel. Saiu do outro lado a tempo de ver o animal correr diretamente para Pammy e o paramédico, que ficaram paralisados quando o doberman saltou alto no ar.
Sachs caiu agachadA e disparou dois tiros. Um deles atingiu a parte traseira do crânio do animal e a outra perdeu-se na parede de tijolo. O cão caiu em uma pilha trêmula aos pés do paramédico.
— Tiros disparados — ouviu ela no rádio e meia dúzia de policiais desceram correndo a escada, puxaram o cão para longe e tomaram posição em volta da menina.
— Tudo bem! — gritou Sachs. — Fui eu que atirei!
O grupo levantou-se da posição defensiva.
Pammy começou a gritar: — O cachorrinho está morto... Ela matou o cachorrinho!
Sachs embainhou a arma e puxou a menina para cima de seu quadril.
— Mamãe!
— Você vai ver logo sua mamãe — disse. — Vamos ligar para ela agora mesmo.
No andar superior, pôs Pammy no chão e virou-se para um policial do UOE que se encontrava próximo.
— Perdi minha chave de algema. Você poderia tirar, por favor, as algemas dela? Abra-as sobre um pedaço de papel limpo, embrulhe-as no papel e ponha toda a coisa dentro de um saco plástico.
O policial rolou os olhos para cima.
— Escute aqui, beleza, vá procurar um recruta para dar ordens.
E começou a afastar-se.
— Policial — berrou Bo Haumann -, faça o que ela mandou.
— Senhor — protestou ele -, eu sou UOE.
— Boa notícia — murmurou Sachs. — Você agora é Cena do Crime.
Carole Ganz estava deitada de costas em um quarto muito bege, olhando fixamente para o teto, pensando numa época, algumas semanas antes, quando ela, Pammy e um grupo de amigos estavam sentados cm torno de uma fogueira de acampamento em Wisconsin, na propriedade de Kate e Eddie, conversando, contando histórias, cantando.
A voz de Kate não era lá essas coisas, mas Eddie poderia ter sido um profissional. Podia mesmo tocar compassos inteiros. Apenas para ela, cantou Tapestry, de Carole King, e ela, Carole, acompanhou-o através de lágrimas, pensando talvez, apenas talvez, que estava realmente esquecendo a morte de Ron e dando prosseguimento a sua vida.
Lembrou-se da voz de Kate naquela noite.
— Quando estamos zangados, a única maneira de enfrentar isso é embrulhar a raiva e dá-la a alguém. Faça isso. Ouviu o que eu disse? Não a conserve dentro de você. Dê para alguém.
Bem, ela estava zangada nesse momento. Furiosa.
Um garotão — um merdinha débil mental — havia sequestrado seu marido e lhe dado um tiro nas costas. E, nesse momento, um louco tinha levado sua filha. Queria explodir. E precisou de toda sua força de vontade para não começar a jogar coisas na parede e uivar como um coiote.
Continuou deitada e, com todo cuidado, pôs o pulso quebrado em cima da barriga. Havia tomado Demerol, que aliviara a dor, mas não conseguia dormir. E por isso, nada mais fez além de permanecer ali o dia inteiro, tentando entrar em contato com Kate e Eddie e esperando notícias de Pammy.
Continuou a ver Ron, continuou a ver sua raiva, imaginando-se realmente colocando-a dentro de uma caixa, embrulhando-a com todo cuidado, fechando o embrulho...
Nesse momento, o telefone tocou. Olhou por um momento para o aparelho e, em seguida, tirou-o com um arranco do gancho.
— Alô!
Ouviu a patrulheira dizer que haviam encontrado Pammy, que ela estava no hospital, mas que estava bem. Um momento depois, a própria Pammy veio ao telefone e as duas choraram e riram ao mesmo tempo.
Dez minutos depois, Carole seguia para o Manhattan Hospital, sentada no assento traseiro de um sedã preto da polícia.
Carole praticamente correu em alta velocidade por todo o corredor até o quarto de Pammy e ficou surpresa ao ser detida por um policial de guarda.
Então não haviam capturado ainda o filho da puta? Mas tão logo viu a filha o esqueceu, e esqueceu o pavor no táxi e no porão insuportavelmente quente.
Lançou os braços em volta da menina.
— Oh, queridinha, como senti falta de você! Você está bem? Bem, de verdade?
— Aquela mulher, ela matou o cachorrinho...
Carole voltou-se e viu a policial alta, ruiva, de pé em um lado do quarto, a mulher que a havia salvado do porão da igreja.
— ...mas foi tudo bem, porque ele ia me comer.
Carole abraçou Sachs.
— Não sei o que dizer... Eu, simplesmente... Obrigada, obrigada...
— Pammy está bem — garantiu-lhe Sachs. — Alguns arranhões... nada grave... e um pouco de tosse.
— Sra. Ganz? — Um rapaz entrou nesse momento no quarto, trazendo a valise e a mochila. — Sou o detetive Banks. Trouxemos suas coisas para cá.
— Oh, graças a Deus.
— Está faltando alguma coisa? — perguntou ele.
Ela examinou com todo cuidado a mochila. Tudo estava ali. O dinheiro, a boneca de Pammy, o pacote de massa de modelar, o Sr. Cabeça-de-batata, os CDs, o radiorrelógio... Ele não havia tirado nada dali. Espere...
— Sabe, acho que está faltando uma foto. Não tenho certeza. Eu pensava que tinha mais do que essas aqui. Mas tudo que é importante está aqui.
O detetive deu-lhe um recibo para assinar. Um jovem médico residente entrou no quarto. Brincou com Pammy sobre o ursinho, enquanto lhe media a pressão.
— Quando poderemos sair daqui? — perguntou Carole.
— Bem, gostaríamos que ela ficasse aqui por alguns dias, apenas para termos certeza...
— Alguns dias ? Mas ela está bem.
— Ela está com um pouco de bronquite, que quero acompanhar. E... -
baixou a voz -, vamos trazer também um especialista em abuso sexual. Apenas para termos certeza.
— Mas ela ia ficar comigo amanhã. Nas cerimônias nas Nações Unidas.
Prometi a ela.
A policial disse: — Será mais fácil mantê-la sob guarda aqui. Não sabemos onde está o elemento desconhecido... o seqüestrador. Teremos também aqui uma policial para lhe fazer companhia.
— Bem, acho que sim. Posso ficar com ela por algum tempo?
— Claro que pode — respondeu o residente. — Pode passar a noite aqui.
Vamos mandar trazer outra cama.
E Carole ficou mais uma vez a sós com a filha. Sentou-se na cama e envolveu com os braços os ombros magros da criança. Teve um mau momento lembrando-se como ele, aquele louco, tinha tocado em Pammy, a expressão de seus olhos quando perguntou se podia esfolá-la... Carole estremeceu e começou a chorar.
E foi Pammy quem a trouxe de volta à realidade.
— Mamãe... me conte uma história... Não, não, cante uma musíquinha.
Cante pra mim a música do amigo. Por favooor, sim?
Acalmando-se, Carole perguntou: — Quer ouvir aquela, hã?
— Quero!
Carole puxou a filha para o colo e, em voz esganiçada, começou a cantar You've Got a Friend. Pammy acompanhou-a em alguns trechos da música.
Aquela canção era uma das favoritas de Ron e, nos dois últimos anos, após a morte dele, ela não conseguia ouvir mais do que alguns dos compassos sem prorromper em lágrimas.
Naquele dia, ela e Pammy terminaram juntas a canção, bem afinadas, olhos secos e rindo.
CAPÍTULO XXXIII
Amélia Sachs voltou finalmente para casa, para seu apartamento em Caroll Gardens, Brooklyn.
Que ficava a exatamente a seis quarteirões da casa dos pais, onde a mãe ainda morava. Logo que entrou, apertou o botão do telefone de ligação rápida da cozinha.
— Mãe? Eu. Vou levar você para um brunch no Plaza. Na quarta-feira.
Esse é o meu dia de folga.
— Por quê? Para comemorar sua nova designação? Como é Assuntos Públicos? Você não ligou.
Uma pequena risada. Sachs comprendeu que a mãe não fazia a menor idéia do que estivera fazendo no último dia e meio.
— Você vem acompanhando os noticiários, mãe?
— Eu ? Você sabe que sou admiradora secreta de Brokaw.
— Ouviu falar, nestes últimos dias, naquele seqüestrador?
— Quem não ouviu? ...O que é que você está me dizendo, amor?
— Eu conheço toda a história, por dentro.
E contou à espantada mãe a história — sobre o salvamento das vítimas, sobre Lincoln Rhyme e, com alguns cortes, sobre as cenas dos crimes.
— Amie, seu pai ficaria tão orgulhoso de você.
— De modo que você vai dizer que está doente na quarta-feira. O
Plaza. OK?
— Esqueça isso, querida. Economize seu dinheiro. Eu tenho waffles e Bob Evans no congelador. Você pode vir aqui pra casa.
— Não é tão caro assim, mãe.
— Não é caro? É uma fortuna.
— Bem, neste caso — disse Sachs, tentando parecer espontânea -, você gostaria de ir ao Pink Teacup, não?
Era um lugarzinho em West Village que servia, praticamente de graça, as melhores panquecas e ovos da Costa Leste. Uma pausa.
— Isso pode ser bom.
Essa era a estratégia que Sachs tinha usado com sucesso ao longo destes anos todos.
— Vou precisar descansar um pouco, mãe. Eu ligo amanhã.
— Você trabalha demais. Amie, esse seu caso... não foi perigoso, foi?
— Eu estava fazendo apenas trabalho técnico, mãe. Cena do crime.
Nada mais seguro do que isso.
— E eles pediram especialmente sua ajuda? — perguntou a mãe. E
repetiu: — Seu pai ficaria orgulhoso.
Desligaram, Sachs dirigiu-se para o quarto e despencou na cama.
Depois de ter deixado o quarto de Pammy, tinha visitado as outras vítimas sobreviventes do Elemento Desconhecido 238. Monelle Gerger, cheia de ataduras e com uma dose completa de vacina anti-rábica, tinha recebido alta e ia voltar para junto da família em Frankfurt “mas apenas pelo resto do verão”, explicou, durona. “Não para sempre.” E apontou para o aparelho estéreo e para a coleção de CDs no apartamento decrépito na Deutsche Haus, como para demonstrar que nenhum psicopata do Novo Mundo ia expulsá-la definitivamente da cidade.
William Everett continuava no hospital. O dedo quebrado não era problema sério, claro, mas o coração andou fazendo besteira, novamente.
Sachs, espantada, descobriu que ele tinha sido dono, anos antes, de uma loja na Hell's Kitchen, e que podia ter conhecido seu pai.
— Eu conhecia todos os policiais de ronda — disse. Ela lhe mostrou a foto que tinha na carteira, do pai em uniforme de gala. — Acho que sim. Não tenho certeza. Mas acho que sim.
As visitas foram sociais, mas tinha sido munida com a caderneta de notas. Nenhuma das vítimas, porém, pôde lhe dizer mais alguma coisa sobre o Elemento Desconhecido 823.
No apartamento, olhou nesse momento pela janela. Viu as nogueiras-do-japão e bordos balançarem sob o forte vento. Tirou o uniforme, coçou-se embaixo dos seios — onde sempre sentia uma coceira horrorosa, por ficar apertada sob o colete à prova de bala. Pegou um roupão de banho.
O Elemento Desconhecido não foi muito avisado, mas tinha sido o suficiente. A casa segura na Van Brevoort foi submetida a uma varredura completa com aspirador de pó. Embora o senhorio dissesse que ele havia se mudado para ali há muito tempo — no 1º de janeiro último (com uma carteira de identidade falsa, ninguém se espantou em saber), o Elemento Desconhecido 238 tinha ido embora com tudo que levou para ali, lixo inclusive. Depois que ela havia processado a cena do crime, as equipes de Impressões Digitais Latentes desceram no local e pincelaram com pó todas as superfícies existentes no local. Até esse momento, os relatórios preliminares nada tinham de animadores.
— Parece que ele usava luvas até quando cagava — disse o jovem Banks.
Uma unidade móvel encontrou o táxi e o sedã. Inteligentemente, o Elemento Desconhecido 238 os deixou estacionados perto da esquina da Avenida D com rua 9. Sellitto calculou que, com toda probabilidade, uma gangue local só precisou de sete ou oito minutos para reduzir os carros ao chassis. Quaisquer provas materiais que os veículos pudessem ter fornecido estavam nesse momento divididas por uma dezena de ferros-velhos espalhados pela cidade.
Sachs ligou a televisão e sintonizou os noticiários. Nada sobre os sequestros. Toda a matéria era sobre as cerimônias inaugurais da conferência de paz das Nações Unidas.
Olhou para Bryant Gumbel, olhou para o secretário-geral da ONU, olhou para algum embaixador do Oriente Médio, olhou com muito mais atenção do que seu interesse justificaria. Estudou até mesmo os comerciais, como se os estivesse memorizando.
Porque se havia alguma coisa em que ela definitivamente não queria pensar era em seu trato com Lincoln Rhyme.
O trato era claro. Estando Carole e Pammy em segurança nesse momento, era a vez dela de fazer o que tinha prometido: providenciar uma hora de Rhyme sozinho com o Dr. Berger.
Quanto a ele, Berger... Não havia gostado absolutamente da aparência do médico. Podia-se ver um ego enorme naquele corpo compacto, atlético, nos olhos evasivos. Nos cabelos pretos, penteados com perfeição. Nas roupas caras. Por que Rhyme não conseguia encontrar alguém como Kevorkian? Ele podia ser estranho, mas pelo menos parecia um vovô velho e sábio.
As pestanas se fecharam.
Esquecer os mortos...
Um trato era um trato. Mas, droga, Rhyme...
Bem, não podia deixar que ele morresse sem fazer uma última tentativa. Ele a pegou desprevenida no quarto. Ela estava irritada. Não pensara em nenhum argumento realmente bom. Segunda-feira. Tinha até o dia seguinte para convencê-lo a não fazer aquilo. Ou, pelo menos, esperar um pouco. Um mês. Droga, um dia.
O que poderia dizer a ele? Iria pôr no papel seus argumentos.
Escrever um pequeno discurso.
Abrindo os olhos, saiu da cama e foi procurar caneta e papel. Eu poderia...
Endureceu-se, a respiração entrando com um assovio nos pulmões, como o vento no lado de fora.
Ele usava roupa escura, a máscara de esquiador e as luvas eram pretas como óleo.
O Elemento Desconhecido 238 estava no centro de seu quarto.
Instintivamente, a mão dirigiu-se para a mesinha-de-cabeceira — a Glock e o canivete. Mas ele estava preparado. A pá desceu rápida e pegou-a em um lado da cabeça. Uma luz amarela explodiu em seus olhos.
Estava de quatro no chão quando o pé atingiu sua caixa torácica e ela caiu sobre o estômago, lutando para respirar. Sentiu as mãos sendo algemadas às costas e um pedaço de veda-juntas ser colado à boca. Ele se movia rápido, eficiente. Rolou-a de costas e o roupão se abriu.
Outro golpe no estômago. Ela sufocou e caiu imóvel, enquanto ele estendia as mãos. Levantando-a pelas axilas, puxou-a pela porta dos fundos para o grande jardim privativo atrás do apartamento.
Os olhos dele permaneceram presos a seu rosto, sequer olhando para os seios, para o monte-de-vênus com seus poucos pêlos ruivos encaracolados.
Poderia facilmente lhe ter dado aquilo, se isso lhe pudesse salvar a vida.
Mas, não. O diagnóstico de Rhyme estava certo. Não era desejo sexual que condicionava 238. Ele tinha outra coisa em mente. Deixou cair o corpo esguio, de rosto para cima, em um canteiro de susanas e paquissandras, longe da vista dos vizinhos. Pegou a pá e enfiou a lâmina na terra.
Amélia Sachs começou a chorar.
Esfregando a nuca no travesseiro.
Compulsivo, disse certa vez um médico após observar esse comportamento — uma opinião que ele, Rhyme, não tinha pedido. Nem queria.
Esse gesto, refletiu, era apenas uma variação do hábito de Amélia Sachs de rasgar as carnes com as unhas.
Esticou os músculos do pescoço, fazendo um movimento circular com a cabeça, enquanto olhava para a tabela do perfil na parede. Acreditava que toda a história da loucura daquele homem estava ali a sua frente. No cursivo preto, rápido — e nos claros entre as palavras. Mas não podia ver o fim da história. Não ainda.
Examinou novamente as pistas. Só havia algumas que permaneciam sem explicação.
A cicatriz no dedo.
O nó.
A loção após barba.
A cicatriz era inútil para eles, a menos que tivessem um suspeito cujos dedos pudessem examinar. E não haviam tido sorte na identificação do nó - apenas a opinião de Banks de que não era nó de marinheiro.
O que dizer da loção após barba barata? Supondo que a maioria dos elementos desconhecidos não toma banho de perfume antes de iniciar uma farra de sequestros, por que ele a usava? Só podia mesmo concluir que ele estava tentando esconder outro cheiro obscuro, revelador. Passou em revista as possibilidades: comida, bebida, produtos químicos, fumo...
Sentiu olhos fitando-o e olhou para a direita.
Os pontos pretos das órbitas oculares ósseas da cascavel fitavam a Clinitron. Esta era a única pista fora do lugar. Não tinha propósito, salvo atazaná-los.
Ocorreu-lhe uma coisa. Usando o trabalhoso mecanismo de virar páginas, voltou atrás no Crime in Old New York. Ao capítulo sobre James Schneider. Encontrou o parágrafo de que tinha se lembrado.
Um conhecido médico da mente (praticante da disciplina “psicologia”, que andou aparecendo muito nos noticiários nos últimos tempos) sugeriu que o objetivo final de James Schneider pouco tinha a ver com machucar as vítimas. Em vez disso — sugeriu o culto doutor -, o malfeitor procurava vingar-se daqueles que achava que lhe fizeram mal: o corpo de vigilantes da cidade, se não a Sociedade em geral.
Quem pode saber onde se encontrava a origem desse ódio? Talvez, como o antigo Nilo, suas nascentes fossem escondidas do mundo — e possivelmente do próprio malfeitor. Ainda assim, uma razão pode ser encontrada em um fato pouco conhecido: o jovem James Schneider, à tenra idade de dez anos, viu o pai ser arrastado por vigilantes apenas para morrer na prisão por um roubo que, descobriu-se mais tarde, ele não cometera. Em seguida a essa infeliz prisão, a mãe do rapaz caiu na vida das ruas e abandonou o filho, que foi criado em um asilo do Estado. Teria o louco cometido esses crimes para lançar seu ódio na face do mesmo grupo de vigilantes que lhe haviam inadvertidamente destruído a família?
Indubitavelmente, jamais saberemos.
Ainda assim, o que parece claro é que, ao zombar da ineficiência dos protetores dos cidadãos, James Schneider — o “colecionador de ossos”— estava se vingando tanto da própria cidade quanto de suas inocentes vítimas.
Lincoln Rhyme recostou-se outra vez no travesseiro e voltou a olhar para a tabela do perfil.
Terra é mais pesada do que qualquer outra coisa.
E a terra em si, a poeira de um núcleo de ferro, e ela não mata cortando o ar dos pulmões, mas ao comprimir as células até que elas morrem do pânico da imobilidade.
Sachs desejou que tivesse morrido. Rezou para morrer. Logo. De medo ou de um ataque cardíaco. Antes que a primeira pá de terra lhe atingisse o rosto. Rezou por isso com mais força do que Lincoln Rhyme rezava pelos comprimidos e pela bebida.
Deitada na cova que o elemento desconhecido tinha cavado em seu próprio quintal, sentiu o acúmulo da terra rica, densa e cheia de vermes acompanhando os contornos de seu corpo.
Sadicamente, ele a estava enterrando devagar, lançando apenas uma pá rasa de cada vez, espalhando cuidadosamente a areia em torno dela. Começou com os pés. Nesse momento, chegava à altura do peito, a terra entrando no roupão em volta de seus seios como se fossem os dedos de um amante.
Mais pesada, cada vez mais pesada, comprimindo, prendendo os pulmões: só podia sugar um pouco de ar de cada vez. Ele parou uma ou duas vezes para olhá-la e, em seguida, recomeçou.
Ele gosta de olhar...
Mãos por baixo do corpo, pescoço espichando-se para manter a cabeça acima da maré de terra que subia.
Finalmente, o peito foi coberto por completo. Os ombros, a garganta.
A terra fria subiu para a pele quente do rosto e foi comprimida em volta da cabeça, impedindo-a de mexê-la. Finalmente, ele se curvou e arrancou a fita da boca. Quando tentou gritar, ele lhe jogou um punhado de terra no rosto. Ela arrepiou-se, sufocada com a terra preta. Ouvidos ressoando, ouvindo, por alguma razão, uma velha canção da infância — The Green Leaves of Summer, uma canção que o pai tocava repetidamente no hi-fi. Triste, obcecante. Fechou os olhos. Tudo estava ficando preto. Abriu a boca mais uma vez e recebeu outra golfada de terra.
Esquecer os mortos...
E ficou embaixo da terra.
Inteiramente imóvel. Nem sufocando nem arquejando — a terra era uma vedação perfeita. Não tinha ar nos pulmões, não podia emitir som algum.
Silêncio, exceto pela melodia obcecante e o rugido cada vez maior nos ouvidos.
Em seguida, a pressão no rosto cessou quando o corpo ficou dormente, tão dormente quanto o de Lincoln Rhyme. A mente começou a fechar-se.
Escuridão, escuridão. Nenhuma notícia do pai. Nenhuma notícia de Nick... Nenhum sonho de passar da quarta para a quinta marcha e chegar a três dígitos no velocímetro.
Escuridão.
Esquecer os...
A massa pressionando-a, empurrando, empurrando. Vendo apenas uma imagem: a mão erguendo-se da cova na manhã de ontem, pedindo compaixão. Quando nenhuma compaixão seria oferecida.
Acenando para ela, para que a seguisse.
Rhyme, vou sentir falta de você.
Esquecer...
CAPÍTULO XXXIV
Alguma coisa bateu em sua testa. Com força. Sentiu a batida, mas não a dor.
O que, o quê? A pá? Um tijolo? Talvez, em um momento de compaixão, 238 tivesse resolvido que morte lenta era mais do que qualquer pessoa podia suportar e estivesse lhe procurando a garganta para cortar as veias.
Outro golpe, mais outro. Não podia abrir os olhos, mas estava consciente de luz crescendo em volta. Cores. Cuspiu com força um bocado de terra e tomou pequenas respirações, tudo que podia. E começou a tossir em um zurro alto, vomitando, escarrando.
Abriu subitamente as pálpebras e, com olhos lacrimejantes, teve uma visão borrada de Lon Sellitto ajoelhado a seu lado, além de dois paramédicos da UOE, um dos quais enfiou em sua boca dedos calçados de látex e puxou mais terra, enquanto o outro preparava uma máscara de oxigênio ligada a um tanque verde.
Sellitto e Banks continuaram a descobrir o corpo, afastando com as mãos musculosas a terra para longe. Colocaram-na sentada e o roupão ficou para trás, como se fosse uma pele descartada. Sellitto, velho divorciado que era, desviou castamente a vista do corpo de Sachs, enquanto punha o paletó em volta dos ombros. O jovem Jerry Banks olhou, claro, mas ela, afinal de contas, o adorava.
— Vocês... o...? — perguntou ela com um espirro e, em seguida, sucumbiu a um acesso de tosse dilacerante.
Sellitto olhou interrogativamente para Banks, o mais sem fôlego dos dois. Ele devia ter sido o que mais tinha corrido no encalço do elemento desconhecido. O jovem detetive sacudiu a cabeça.
— Escapou.
Espigando-se, sentada, Sachs inalou oxigênio durante um momento.
— Como? — perguntou ela. — Como foi que vocês souberam?
— Rhyme — respondeu ele. — Não me pergunte como. Ele lançou um 10-13 a todo o pessoal da equipe. Quando soube que estávamos bem, mandou-nos vir para cá. Para ontem, disse ele.
Nessa ocasião, o torpor desapareceu, de estalo, em um relâmpago. E, pela primeira vez, ela compreendeu o que quase tinha acontecido. Deixou cair a máscara de oxigênio, recuou em pânico, lágrimas escorrendo, o ganido de pânico tornando-se cada vez mais alto: — Não, não, não...
Começou a bater nos braços e coxas, frenética, tentando sacudir para longe o horror que se colava a ela como se fosse um enxame de abelhas.
— Oh, Deus, oh, Deus... Não...
— Sachs? — disse Banks, alarmado. — Ei, Sachs?
O detetive mais velho afastou o parceiro com um gesto.
— Está tudo bem.
Envolveu-lhe os ombros com os braços quando ela caiu de quatro no chão e vomitou violentamente, soluçando, soluçando, apertando em desespero a terra entre os dedos como se quisesse estrangulá-la.
Por fim acalmou-se e sentou-se sobre a bunda nua. Começou a rir baixinho no começo e, em seguida, mais alto e mais alto, histérica, atônita ao ver que os céus haviam se aberto e que estivera chovendo — grossos pingos de verão — e que ela nem mesmo tinha percebido.
Braços em volta dos ombros dele. Rosto colado ao dele. Ficaram assim durante um longo momento.
— Sachs... Oh, Sachs...
Amélia afastou-se da Clinitron e foi buscar uma velha espreguiçadeira em um canto da sala. Usando calça de lã da Marinha e uma camiseta do Hunter College — despencou na cadeira e passou as belas pernas sobre um dos braços, como se fosse uma escolar.
— Por que nós, Rhyme? Por que ele veio atrás de nós?
A voz era um murmúrio rouco, consequência de toda terra que engolira.
— Porque os sequestrados não são as verdadeiras vítimas. Somos nós.
— Nós, quem?
— Não tenho certeza. Talvez a sociedade. Ou a municipalidade. Ou as Nações Unidas. Voltei a ler a bíblia dele... o capítulo sobre James Schneider.
Lembra-se da teoria de Terry sobre o motivo pelo qual o elemento desconhecido deixava pistas?
— Como se fosse para tornar-nos seus cúmplices — disse Sellitto. — Para dividir a culpa. Para lhe tornar mais fácil matar.
Rhyme inclinou a cabeça, concordando, mas acrescentou: — Mas não acredito que a razão seja essa. Acho que as pistas foram uma maneira de nos atacar. Cada vítima morta era uma perda para nós.
Usando roupas velhas, os cabelos amarrados para trás em um rabo-de-cavalo, Sachs parecia mais bela do que em qualquer outra ocasião nos dois últimos dias. Mas os olhos estavam sombrios. Ela reviveria cada pá de terra, pensou Rhyme, e achou tão insuportável a idéia de ser enterrado vivo que precisou desviar a vista.
— O que ele tem contra nós? — perguntou ela.
— Não sei. O pai de Schneider foi preso por engano e morreu na prisão. Nosso elemento desconhecido? Quem sabe a razão? Só me preocupo com provas...
-... e não com motivos — disse Amélia, terminando a frase por ele.
— Por que ele passou a nos perseguir diretamente? — perguntou Banks, indicando Sachs com a cabeça.
— Nós achamos o esconderijo dele e salvamos a menininha. Acho que ele não nos esperava tão cedo assim. Talvez ele tenha simplesmente ficado puto. Lon, todos nós vamos precisar de babás durante as 24 horas do dia. Ele poderia simplesmente ter se mandado depois que salvamos a menina, mas ficou por aqui para fazer alguma maldade. Você e Jerry, eu, Cooper, Haumann, Polling, todos nós estamos na lista dele, pode apostar. Enquanto isso, mande os rapazes de Peretti à casa de Sachs. Tenho certeza de que ele a manteve limpa, mas talvez possa haver alguma coisa por lá. Ele foi embora muito mais rápido do que planejava.
— É melhor eu ir até lá — disse Sachs.
— Não — cortou-a Rhyme.
— Eu tenho que processar a cena.
— Você tem é que descansar um pouco — ordenou ele. — É isso que tem de fazer, Sachs. Se não se importa que eu diga, você está um lixo.
— Isso mesmo, policial — reforçou Sellitto. — É uma ordem. Estou lhe dizendo para ficar parada o resto do dia. Temos duzentos homens à procura dele. E Fred Dellray lançou na busca mais 120 federais.
— Eu tenho uma cena de crime no meu próprio quintal e vocês não vão deixar que eu percorra a grade?
— Resumindo, é isso aí — disse Rhyme.
Sellitto foi até a porta.
— Algum problema com isso, policial?
— Não, senhor.
— Vamos, Banks, temos trabalho a fazer. Quer uma carona, Sachs? Ou ainda estão lhe confiando veículos?
— Não, obrigado, tenho minhas rodas lá embaixo — disse ela.
Os dois detetives saíram. Rhyme ouviu as vozes ecoando pelo vestíbulo vazio. Em seguida, a porta foi fechada e eles saíram.
Rhyme notou que as luzes cegantes do teto estavam ligadas. Clicou vários comandos e reduziu sua intensidade.
Sachs espreguiçou-se.
— Bem... — disse ela, exatamente no momento em que Rhyme dizia “Assim...”
Sachs olhou para o relógio.
— É tarde.
— Claro que é.
Levantando-se, foi até a mesa onde tinha deixado a bolsa. Pegou-a.
Abriu-a com um estalido. Puxou o pó compacto e examinou, no espelho, o lábio cortado.
— Não parece tão ruim assim — comentou Rhyme.
— Frankenstein — respondeu ela, tocando o ferimento. — Por que eles não usam pontos cor de carne? — Guardou o espelho, pendurou a bolsa no ombro. — Você moveu a cama — notou ela. — Para mais perto da janela.
— Thom fez isso. Agora posso olhar para o parque. Se quiser.
— Oh, isso é bom.
Foi até a janela. Olhou para baixo.
Oh, pelo amor de Deus, pensou Rhyme. Faça isso. O que é que pode acontecer? Impulsivamente, perguntou: — Você quer ficar aqui? Quero dizer, está ficando tarde. E o pessoal de Impressões Digitais Latentes vai empoeirar seu apartamento durante horas.
E sentiu uma pontada forte de prelibação bem no coração. Bem, acabe com isso, pensou, furioso consigo mesmo. Até que o rosto dela se abriu num sorriso.
— Eu gostaria.
— Ótimo. — O queixo lhe tremia com a descarga de adrenalina. -
Maravilhoso. Thom!
Escutar música, beber um pouco de uísque escocês. Talvez ele contasse mais alguma coisa sobre cenas de crime famosas. O historiador nele estava também curioso sobre o pai dela, sobre o trabalho policial nas décadas de 60 e 70. Sobre a mal-afamada delegacia de Midtown South, nos velhos dias.
— Thom! — berrou Rhyme. — Pegue alguns lençóis. E um cobertor.
Thom! Não sei que diabo ele está fazendo. Thom!
Sachs ia dizer alguma coisa quando o empregado apareceu à porta e disse secamente: — Um único grito rude teria sido suficiente, como você sabe, Lincoln.
— Amélia vai passar a noite aqui outra vez. Você poderia arranjar alguns cobertores e travesseiros para o sofá?
— Não, o sofá novamente, não — protestou ela. — É a mesma coisa que dormir sobre pedra.
Rhyme sentiu-se apunhalado por uma lasca de rejeição. E pensou melancolicamente: faz alguns anos desde que senti essa emoção. Resignado, ainda assim sorriu e disse: — Há um quarto lá embaixo. Thom pode arrumá-lo pra você.
Sachs, porém, recolocou a bolsa na mesa.
— Tudo bem, Thom. Você não precisa fazer isso.
— Não é trabalho nenhum.
— Está tudo bem. Boa noite, Thom. — E dirigiu-se para a porta.
— Bem, eu...
Amélia sorriu.
— Mas... — começou ele, olhando dela para Rhyme, que cerrou as sobrancelhas e sacudiu a cabeça.
— Boa noite, Thom — repetiu ela, firme. — Cuidado com onde pisa.
Fechou a porta lentamente, quando ele saiu para o corredor, e trancou-a com um alto clique.
Sachs chutou para longe os sapatos, tirou o agasalho e a camiseta.
Usava um sutiã de renda e calcinha frouxa de algodão. Subiu para a Clinitron ao lado de Rhyme, demonstrando toda a autoridade que mulheres belas exercem quando a questão é subir na cama com um homem. Contorceu-se sobre as bolinhas e riu.
— Esta cama é danada de boa — disse, espreguiçando-se como um gato.
Olhos fechados, perguntou: — Você se importa?
— Não, absolutamente.
— Rhyme?
— O quê?
— Fale mais um pouco sobre seu livro, tá? Mais algumas cenas de crimes?
Ele começou a descrever um esperto maníaco sexual do Queens, mas, em menos de um minuto, ela pegou no sono.
Ele olhou de relance para baixo e notou os seios colados a seu peito, o joelho descansando em sua coxa. Cabelo de mulher aninhou-se em seu rosto pela primeira vez em anos. Fez cócegas. Havia esquecido que isso acontecia.
Para alguém que vivia tanto no passado, com uma memória tão boa, ficou surpreso ao descobrir que não podia lembrar-se exatamente quando tinha experimentado essa sensação pela última vez. O que podia lembrar era uma série de noites com Blaine, antes do acidente, pensou. Mas lembrou-se de fato de que havia resolvido suportar a coceira, e não empurrar para longe aqueles fios de cabelo, para não perturbar a esposa.
Naquele momento, claro, não podia afastar os cabelos de Sachs, nem mesmo se Deus tivesse pedido. Mas não pensaria em fazer isso. O que queria era justamente o oposto: prolongar a sensação até o fim do universo.
CAPÍTULO XXXV
Na manhã seguinte, Lincoln Rhyme ficou mais uma vez sozinho.
Thom foi fazer compras e Mel Cooper voltou a trabalhar no laboratório da DIRC, no centro. Vince Peretti tinha completado o trabalho de CC na mansão da East Van Brevoort e na casa de Sachs. Infelizmente, tinham encontrado pouquíssimas provas, embora Rhyme atribuísse a falta de PM à inteligência do elemento desconhecido, e não aos escassos talentos de Peretti.
Aguardava nesse momento o relatório sobre a cena do crime. Dobyns e Sellitto, porém, acreditavam que 238 havia se enfurnado em algum lugar -
pelo menos temporariamente. Não houve mais ataques à polícia e não houve denúncia de outras vítimas de sequestro nas últimas doze horas.
O guarda-costas de Sachs — um patrulheiro corpulento — a acompanhou até uma consulta com um otorrinolaringologista em um hospital no Brooklyn. A areia fez um grande estrago em sua garganta. O próprio Rhyme estava nesse momento com um guarda-costas — um policial uniformizado da 20ª Delegacia, estacionado em frente de sua casa — um policial simpático que conhecia há anos e com o qual gostava de discutir sobre os méritos da turfa irlandesa em comparação com a turfa escocesa na produção de uísque.
Estava em um excelente estado de espírito. Ligou para baixo pelo telefone interno: — Estou esperando um médico dentro de umas duas horas. Você pode deixá-lo subir.
O policial disse que tudo bem.
O Dr. Williarn Berger tinha garantido que, nesse dia, chegaria na hora marcada.
Rhyme recostou-se no travesseiro e percebeu que não estava inteiramente sozinho. No peitoril da janela, os falcões andavam de um lado para outro. Raramente agitados, eles pareciam nervosos. Outra frente fria estava se aproximando. A janela mostrava um céu calmo, mas podia-se confiar nas aves. Elas eram barómetros infalíveis.
Olhou para o relógio de parede. Onze horas da manhã. Ali estava ele, exatamente como dois dias antes, esperando a chegada de Berger. A vida é assim, pensou,um adiamento em cima de outro, mas, no fim, com alguma sorte chegamos aonde queremos estar.
Ficou vendo programas de televisão durante vinte minutos, procurando reportagens sobre os seqüestros. Todas as estações, porém, estavam exibindo reportagens especiais sobre a inauguração da conferência da ONU. Achou tediosa a cobertura e passou para uma reprise de Matlock, voltou a uma deslumbrante repórter da CNN do lado de fora do prédio da ONU e, em seguida, desligou a droga do aparelho.
O telefone tocou e ele iniciou a complicada gesticulação para atender.
— Alô.
Houve uma pausa, antes de ouvir uma voz de homem: — Lincoln?
— Sim?
— Jim Polling. Como está você?
Rhyme deu-se conta de que não tivera muitos contatos com o capitão desde o início da véspera, exceto pela entrevista coletiva na noite anterior, quando ele serviu de ponto de teatro para as respostas do prefeito e do chefe Wilson.
— Bem. Alguma notícia de nosso elemento desconhecido? — perguntou.
— Nada ainda. Mas vamos pegá-lo. — Outra pausa. — Ei, você está sozinho?
— Estou.
Uma pausa mais longa.
— Tudo bem se eu der uma passada por aí?
— Claro.
— Dentro de meia hora?
— Estarei aqui — respondeu jovialmente Rhyme.
Descansou a cabeça no grosso travesseiro e os olhos passaram para a corda de varal com o nó, pendurada ao lado da tabela do perfil. Ainda nenhuma solução sobre o nó. Era — e riu alto com a piada — um fio solto.
Odiou a idéia de deixar o caso sem descobrir que tipo de nó era aquele. Em seguida, lembrou-se que Polling era um pescador. Talvez ele reconhecesse...
Polling, refletiu Rhyme.
James Polling...
Era curioso que o capitão tivesse insistido para que ele se encarregasse do caso. E como lutou para mantê-lo nessa posição, em vez de Peretti — que, politicamente, era a melhor opção para ele, Polling. Lembrou-se também como ele perdeu a paciência com Dellray quando o federal tentou tomar, na marra, o caso do DPNY.
Agora que pensava sobre isso, todo o envolvimento de Polling no caso era um mistério. O 238 não era o tipo de assassino que uma pessoa se ofereceria para capturar — mesmo que estivesse à procura de casos suculentos para enfeitar o currículo. Eram grandes demais as probabilidades de perder vítimas, grandes demais as oportunidades de a imprensa — e os chefões -
caírem no couro do cara por ter feito merda.
Polling... Lembrou-se de como ele tinha passado rapidamente por seu quarto, perguntara sobre o progresso obtido e fora embora.
Claro, ele estava subordinado ao prefeito e ao chefe. Mas — e o pensamento aflorou subitamente à mente — haveria alguém mais a quem Polling prestasse contas?
Alguém que quisesse manter-se a par das investigações? O próprio elemento desconhecido?
Mas como, em nome de Deus, Polling podia ter qualquer ligação com 238? Parecia...
E nesse momento, uma luz.
Poderia Polling ser o elemento desconhecido?
Claro que não. Isso era ridículo. Risível. Mesmo pondo de lado motivo e meios, havia a questão da oportunidade. O capitão estava ali, em seu quarto, quando ocorreram os sequestros...
Estava mesmo?
Rhyme ergueu a vista para a tabela do perfil.
Roupa escura e calça comprida amassada de algodão. Polling usando roupa esporte escura nos últimos dias. Mas e daí? O mesmo acontecia com um bocado de...
No térreo, uma porta foi aberta e fechada.
— Thom?
Nenhuma resposta. O empregado não era esperado ainda durante horas.
— Lincoln?
Oh, não. Diabo. Começou a discar o ECU.
9-1—
Com o queixo, tocou e levou o cursor para 2.
Passos na escada.
Tentou nova discagem, mas, em desespero, empurrou a vareta para longe de seu alcance.
E Jim Polling entrou no quarto. Rhyme esperava que o guarda-costas ligasse primeiro de lá de baixo. Mas qualquer policial de ronda deixaria um capitão de polícia entrar sem pensar duas vezes.
O paletó escuro de Polling estava aberto e Rhyme viu a automática na cintura. Não pôde ter certeza se era uma arma regulamentar. Mas sabia que Colts .32 figuravam na lista de armas pessoais aprovadas do DPNY.
— Lincoln — disse Polling.
Estava evidentemente nervoso, cauteloso. Os olhos dele caíram sobre o fragmento esbranquiçado de coluna vertebral.
— Como vai você, Jim?
— Nada mal.
Polling, o homem que gostava de vida ao ar livre. Teria a cicatriz na impressão digital do dedo sido deixada por anos jogando uma linha de pesca na água? Ou por um acidente com uma faca de caça? Tentou olhar, mas Polling mantinha as mãos enfiadas nos bolsos. Estaria ele segurando alguma coisa ali? Um canivete?
Polling, sem a menor dúvida, conhecia trabalho de polícia técnica e cenas de crime — sabia como não deixar provas.
A máscara de esquiador? Se Polling era o elemento desconheeido, ele teria que usar a máscara, claro — porque uma das vítimas poderia vê-lo mais tarde. Quanto à loção após barba... e se o elemento desconhecido não tivesse usado absolutamente aquele produto, mas apenas levado um vidro consigo, borrifando algumas cenas de crime para levá-los a acreditar que usava Brut?.
De modo que, quando ele aparecesse por ali, não usando nenhuma loção, ninguém desconfiaria dele.
— Você está sozinho? — perguntou Polling.
— Meu assistente...
— O policial lá embaixo disse que ele ia demorar.
Rhyme hesitou por um momento: — Isso é verdade.
Polling era enxuto de corpo mas forte, um homem de cabelos amarelados. Lembrou-se das palavras de Terry Dobyns: uma pessoa prestativa, de boa reputação. Assistente social, conselheiro psicológico, político. Alguém que ajudava outras pessoas.
Como um policial.
E pensou nesse momento se estava prestes a morrer. E, com um choque, reconheceu que não queria isso.
Polling aproximou-se da cama.
Ainda assim, nada havia que pudesse fazer. Estava inteiramente à mercê daquele homem.
— Lincoln — repetiu gravemente Polling.
Os olhos se encontraram e a sensação de uma conexão elétrica tocou os dois. Fagulhas secas. O capitão olhou rapidamente pela janela.
— Você andou especulando, não?
— Especulando?
— Por que eu o queria à frente desse caso.
— Pensei que era por causa de minha personalidade.
Essas palavras provocaram um sorriso no capitão.
— Por que você me quis, Jim?
O capitão cruzou os dedos. Finos, mas fortes. As mãos de um pescador, um esporte que, sim, pode ser cavalheiresco, mas cujo objetivo é, apesar de tudo, arrancar um pobre animal de seu lar e abrir-lhe a barriga macia com uma faca afiada.
— Há quatro anos, o caso Shepherd. Trabalhamos juntos nele.
Rhyme inclinou a cabeça.
— Os operários encontraram corpo daquele policial na parada do metrô.
Um gemido, lembrou Rhyme como o som do Titanic afundando no filme A Night to Remember. Em seguida, uma explosão alta como um tiro, quando a viga caiu sobre seu infeliz pescoço e a areia lhe cobriu o corpo.
— E você processou a cena. Você mesmo, como sempre fazia.
— Fiz isso, sim.
— Sabe como condenamos Shepherd? Tivemos uma testemunha.
Uma testemunha? Rhyme nunca tinha ouvido falar nisso. Após o acidente, perdera qualquer contato com o caso, exceto saber que Shepherd foi condenado e que, três meses depois, acabou assassinado a facadas na ilha Riker por um agressor jamais capturado.
— Urna testemunha ocular — continuou Polling. — Ele reconheceu Shepherd na casa de uma das vítimas, tendo consigo a arma do crime. — O capitão aproximou-se mais da cama e cruzou os braços. — Encontramos a testemunha um dia antes de encontrarmos o último corpo... aquele no metrô.
Antes que eu pedisse que você processasse a cena do crime.
— O que é que você está dizendo, Jim?
Os olhos do capitão voltaram-se para o chão.
— Nós não precisávamos de você. Não precisávamos de seu relatório.
Rhyme ficou calado. Polling inclinou a cabeça.
— Entende o que estou dizendo? Eu queria tanto prender aquele canalha do Shepherd... Eu queria um caso à prova de qualquer dúvida. E você sabe o que um relatório de Lincoln Rhyme sobre cena de crime faz com advogados de defesa. Eles se cagam todos.
— Mas Shepherd teria sido condenado mesmo sem meu relatório sobre a cena do metrô.
— Isso é verdade, Rhyme. Mas é pior do que isso. Entenda, eu recebi um aviso da MTA Engineering, dizendo que aquele canteiro de obras não era seguro.
— O canteiro do metrô. E você me mandou trabalhar na cena antes que eles a tornassem segura?
— Shepherd era um matador de policiais. — O rosto de Polling contorceu-se de nojo. — Eu queria muito pegá-lo. Eu teria feito tudo para pegá-lo. Mas...
Baixou a cabeça para as mãos.
Rhyme permaneceu calado. Ouviu o gemido da viga, a explosão da madeira se partindo. Em seguida, o farfalhar de terra caindo em volta de seu corpo. Sentiu uma paz curiosa, quente, no corpo, enquanto o coração disparava de pavor.
— Jim...
— Foi por isso que quis você neste caso, Lincoln. Entende?— Uma expressão de sofrimento cruzou o rosto duro do capitão. Ele olhou fixamente para o disco de coluna vertebral sobre a mesa. — Continuei a ouvir essas histórias, de que sua vida era uma merda. Que você estava se acabando aqui.
Falando em se matar. E me senti horrivelmente culpado. Eu queria lhe dar de volta uma parte de sua vida.
— E você tem convivido com isso pelos três últimos anos — disse Rhyme.
— Você me conhece, Lincoln. Todo mundo me conhece. Prendo alguém, ele me causa alguma merda de problema, e ele morre. Sinto tesão por alguns criminosos. Não paro até que o filho da puta seja preso e condenado.
Não posso controlar isso. Sei que, às vezes, desgracei pessoas. Mas elas eram criminosos... ou suspeitos, pelo menos. Elas não eram minha gente, não eram policiais. O que aconteceu com você... isso foi um pecado. Foi simplesmente uma bosta de um erro.
— Eu não era nenhum recruta — disse Rhyme. — Não tinha que processar uma cena que considerasse insegura.
— Mas...
— Cheguei em hora errada? — disse da porta outra voz.
Rhyme levantou a vista, esperando ver Berger. Mas era Peter Taylor quem tinha subido a escada. Rhyme lembrou-se de que ele viria naquele dia para examiná-lo, após aquele ataque de disreflexia. Achava também que o médico ia lhe dizer o diabo sobre Berger e a Sociedade Lethe. Não estava no estado de espírito de tolerar isso, queria um tempo a sós... para digerir a confissão de Polling. No momento, ele estava simplesmente ali, entorpecido como a sua coxa. Mas disse: — Entre, Peter.
— Você tem um sistema de segurança muito engraçado, Lincoln. O guarda perguntou se eu era médico e me deixou subir. O quê? Advogados e contadores são chutados pra longe?
Rhyme riu.
— Estarei com você dentro de um segundo. — Virou-se para Polling. — É o destino, Jim. Foi isso o que me aconteceu. Eu estava no lugar errado, na ocasião errada. Essas coisas acontecem.
— Obrigado, Lincoln.
Polling pôs a mão sobre o ombro direito de Rhyme e apertou-o suavemente.
Rhyme inclinou a cabeça e, para desviar a gratidão embaraçosa, apresentou os dois: — Jim, este é Pete Taylor, um de meus médicos. E este aqui é Jim Polling. Trabalhamos juntos no passado.
— Prazer em conhecê-lo — disse Taylor, estendendo a mão direita.
Era um gesto generoso e os olhos de Rhyme o seguiram, notando, por alguma razão, a profunda cicatriz em forma de crescente no indicador direito de Taylor.
— Não! — berrou Rhyme.
— Então, você é um policial também.
Taylor agarrou firmemente a mão de Polling, enquanto enfiava a faca, mantida firme na mão esquerda, três vezes no peito do capitão, passando-a em volta das costelas com a delicadeza de um cirurgião. Indubitavelmente para não arranhar o osso precioso.
CAPÍTULO XXXVI
Em duas longas passadas, Taylor chegou à cama. Arrancou o controle ECU do dedo de Rhyme e jogou-o para o outro lado da sala.
Rhyme inspirou para gritar. O médico, porém, disse: — Ele está morto, também. O vigilante.
E indicou com a cabeça a porta, referindo-se ao guarda-costas. E ficou olhando fascinado enquanto Polling estrebuchava como um animal com a espinha partida, esguichando sangue pelo chão e paredes.
— Jim! — exclamou Rhyme. — Não, oh, não...
As mãos do capitão se dobraram sobre o peito ferido. Um gorgolejo repugnante saiu de sua garganta e encheu o quarto, acompanhado de batidas frenéticas dos sapatos no chão, enquanto morria. Os olhos vidrados, pintalgados de sangue, fitavam o teto.
Virando-se para a cama, Taylor manteve os olhos em Lincoln Rhyme, enquanto dava uma volta em torno dela. Circulou devagar, o canivete na mão.
Respirava com dificuldade.
— Quem é você? — arquejou Rhyme.
Em silêncio, Taylor deu um passo à frente, pôs os dedos em volta do braço de Rhyme, apertou várias vezes o osso, talvez com força, talvez não. A mão desceu para o dedo anular esquerdo. Tirou-o do ECU e acariciou-o com a lâmina gotejante do canivete. Enfiou a ponta aguda sob uma unha.
Rhyme sentiu uma leve dor, uma sensação fraca. Em seguida, mais forte. Arquejou.
Nesse momento, Taylor notou alguma coisa e imobilizou-se. Abriu a boca de espanto. Inclinou-se à frente. Olhou para o exemplar do Crime in Old New York, montado na armação de leitura.
— Então foi assim que... Você descobriu, realmente... Os vigilantes devem estar orgulhosos de contar com você em suas fileiras, Lincoln Rhyme.
Pensei que passariam dias antes que você chegasse à casa. Eu pensava que, a essa altura, Maggie já teria sido comida até os ossos pelos cães.
— Por que você está fazendo isso? — perguntou Rhyme.
Taylor, porém, não respondeu. Examinava-o com todo cuidado, falando baixo, em parte apenas para si mesmo: — Você não era tão competente assim, sabia? Nos velhos dias.
Naqueles tempos você deixou passar muitas coisas, não? Nos velhos dias.
Nos velhos dias... O que era que ele queria dizer com isso?
Sacudiu a cabeça com indícios de calvície, os cabelos grisalhos — não castanhos — e lançou um olhar ao manual de polícia técnica escrito por Rhyme.
Havia reconhecimento em seus olhos e, aos poucos, Rhyme começou a compreender.
— Você leu meu livro — disse o criminalista. — Estudou-o. Na biblioteca, certo? Na filial da Biblioteca Pública perto de sua casa: O vinte e três oito era, afinal de contas, um leitor.
De modo que ele conhecia os métodos usados em CCs. Esse o motivo por que varria com tanto cuidado o chão, por que usava luvas gastas, tocava em superfícies lisas que a maioria dos criminosos não teria pensado que conservaria impressões digitais, por que borrifava loção após barba nas cenas do crime — por que sabia, exatamente, o que Sachs procuraria.
E, claro, o manual não era o único livro que ele tinha lido.
Leu o Scenes of the Crime, também. Foi esse livro que lhe deu a idéia de deixar pistas propositadamente — pistas da Velha Nova York. Pistas que só Lincoln Rhyme poderia compreender.
Taylor pegou o disco de coluna vertebral, que tinha lhe dado oito meses antes. Apertou-o distraído entre os dedos. E Rhyme viu no presente, tão comovente naquele tempo, o horrível prefácio que de fato era.
Os olhos de Taylor estavam desfocados, distantes. Lembrou-se de que tinha visto isso antes — quando o examinou nos meses anteriores. Havia atribuído isso à concentração do médico, mas, nesse momento, sabia que era loucura. O controle que ele lutava para manter estava desaparecendo.
— Diga — pediu. — Por quê?
— Por quê? — murmurou Taylor, passando a mão pela perna de Rhyme, sentindo mais uma vez joelho, canela, tornozelo. — Porque você era algo notável, Rhyme. Único. Você era invulnerável.
— O que quer dizer com isso?
— Como é que podemos castigar um homem que quer morrer? Se o matamos, fazemos o que ele quer. De modo que tive de fazer você querer viver.
A solução ocorreu finalmente a Rhyme. Os velhos dias...
— Foi falso, não? — perguntou baixinho. — O laudo do óbito do legista de Albany. Você mesmo o escreveu.
Colin Stanton. O Dr. Taylor era Colin Stanton.
O homem cuja família tinha sido massacrada à sua frente nas ruas de Chinatown. O homem que ficou paralisado em frente aos corpos da esposa e dos filhos, enquanto sangravam até morrer, e que não pôde fazer a opção obscena sobre qual deles deveria salvar.
Você deixava passar coisas. Nos velhos dias.
O fato de ficar observando as vítimas: T.J. Colfax, Monelle e Carole Ganz. Ele se arriscou a ser capturado ao ficar por perto e olhar para elas — da mesma maneira que Stanton tinha ficado olhando para a família, vendo-os morrer. Queria vingança, mas era um médico, que havia jurado jamais tirar uma vida e, a fim de matar, tinha que se transformar em seu ancestral espiritual — no colecionador de ossos, James Schneider, um louco do século XIX cuja família tinha sido destruída pela polícia.
— Depois que saí do hospital de doenças mentais, voltei a Manhattan.
Li o relatório do inquérito, informando que você não percebeu a presença do assassino na cena do crime, que ele saiu do apartamento. Eu sabia que tinha que matá-lo. Mas não podia. Não sei por quê... Continuei a esperar, a esperar que acontecesse alguma coisa. Nessa ocasião, descobri o livro. James Schneider... Ele tinha passado exatamente pelo que passei. Ele tinha feito aquilo. Eu podia fazer o mesmo, também. Eu OS reduzi até o osso.
— O laudo cadavérico — disse Rhyme.
— Certo. Eu mesmo o redigi em meu computador e enviei-o por fax ao DPNY, de modo a que não pudessem suspeitar de mim. Em seguida, tornei-me outra pessoa. O Dr. Peter Taylor. Não compreendi até muito depois o motivo por que escolhi esse nome. Você consegue descobrir a razão? — Os olhos de Stanton desviaram-se para a tabela. — A resposta está lá.
Rhyme examinou o perfil.
• Conhece alemão básico.
— Schneider! — disse Rhyme, suspirando. — Ê a palavra alemã para taylor.
Stanton confirmou com um aceno de cabeça.
— Passei semanas na biblioteca, lendo tudo sobre trauma na coluna vertebral e, em seguida, liguei para você, disse que seu caso tinha sido recomendado a mim pela SCI, da Universidade de Columbia. Pensei em matá-
lo durante a primeira consulta, cortar sua carne em tiras, uma de cada vez, deixar que sangrasse até morrer. Isso poderia ter levado horas. Até dias. Mas o que foi que aconteceu? — Os olhos dele se escancararam. — Descobri que você queria se matar.
Inclinou-se mais para Rhyme.
— Puxa, ainda me lembro da primeira vez em que o vi. Seu filho da puta. Você estava morto. Eu sabia o que tinha que fazer... tinha que fazê-lo querer viver. Eu tinha, mais uma vez, que lhe dar um objetivo na vida.
Dessa maneira, não importava quem ele sequestrasse. Qualquer um serviria.
— Você nem mesmo se importava se as vítimas viviam ou morriam.
— Claro que não. Tudo o que eu queria era obrigar você a tentar salvá-las.
— O nó — perguntou Rhyme, notando a volta na corda de varal ao lado do pôster. — Era um ponto cirúrgico?
Ele inclinou a cabeça.
— Claro. E a cicatriz no seu dedo?
— Meu dedo? — Ele franziu as sobrancelhas. — Como foi que você... O pescoço dela! Você tirou a impressão digital do pescoço dela, de Hanna. Eu sabia que era possível. Não pensei nisso. — Ficou furioso consigo mesmo. - Quebrei um copo na biblioteca do hospital de doenças mentais. — E continuou: — Para cortar os punhos. Apertei-o tanto que o copo quebrou.
Como um louco, mostrou a cicatriz no indicador da mão esquerda.
— As mortes — disse Rhyme em voz calma — de sua mulher e das crianças. Foi um acidente. Um terrível acidente horroroso. Mas não intencional. Foi um erro. Sinto muito por você e por eles.
Em voz monótona, Stanton repreendeu-o: — Lembra-se do que você escreveu? No prefácio de seu manual? — E recitou com absoluta fidelidade ao original: — “O criminalista sabe que para cada ação há uma consequência. A presença do perpetrador altera todas as cenas de crime, por mais sutilmente que isso aconteça. É por esse motivo que podemos identificar e localizar criminosos e conseguir que a justiça seja feita.”
Stanton agarrou Rhyme pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para a frente. Estavam a centímetros um do outro. Rhyme sentiu o cheiro da respiração do louco, observou uma fina camada de suor sobre a pele cinzenta.
— Bem, eu sou a consequência de suas ações.
— O que vai conseguir com isso? Você me mata e eu não fico em pior situação do que agora.
— Oh, mas eu não vou matá-lo. Ainda não. — Soltou os cabelos de Rhyme e deu um passo para trás. — Você quer saber o que vou fazer? - perguntou baixinho. — Vou matar seu médico, Berger. Mas não da maneira como ele está acostumado a matar. Oh, para ele nada como analgésicos e bebida alcoólica. Vamos descobrir como é que ele vai gostar de morte no velho estilo. Em seguida, seu amigo Sellitto. E a policial Sachs? Ela, também.
Ela teve sorte uma vez. Mas eu a pego na próxima. Outro enterro para ela. E Thom, também, claro. Ele vai morrer bem aqui, na sua frente. Vou trabalhar nele até chegar ao osso... Com perfeição e devagar. — Stanton respirava acelerado. — Talvez a gente cuide dele hoje. Quando é que ele vai voltar?
— Eu cometi os erros. É minha... — De repente, Rhyme tossiu com força. Pigarreou e recuperou o fôlego. — Foi culpa minha. Faça o que quiser comigo.
— Não, todos vocês pagarão. E...
— Por favor. Você não pode...
Rhyme recomeçou a tossir. A tosse se transformou em um acesso.
Mas conseguiu controlá-lo. Stanton fitou-o.
— Você não pode fazer mal a eles. Eu farei o que quer que...
A voz de Rhyme prendeu-se na garganta. A cabeça voou para trás, os olhos se esbugalharam.
E a respiração de Lincon Rhyme parou por completo. A cabeça bateu, os ombros tremeram violentamente. Os tendões do pescoço endureceram como se fossem cordas de aço.
— Rhyme! — exclamou Stanton.
Cuspindo, saliva voando dos lábios, Rhyme tremeu uma, duas vezes, pareceu que um terremoto passava por todo seu corpo. A cabeça caiu para trás, sangue escorreu por um canto da boca.
— Não!— berrou Stanton, e bateu com as mãos no peito de Rhyme. - Você não pode morrer!
O médico ergueu-lhe as pálpebras e só viu branco.
Abriu violentamente a maleta de Thom, preparou uma injeção para controlar pressão arterial e aplicou-a. Puxou o travesseiro para longe e colocou Rhyme na horizontal. Inclinou para trás a cabeça mole, limpou os lábios e colou a boca à boca de Rhyme, soprando com força nos pulmões parados.
— Não! — disse furioso. — Não vou deixar você morrer! Você não pode morrer!
Nenhuma reação.
Mais uma vez. Examinou os olhos imóveis.
— Acorde! Acorde!
Outra respiração boca-a-boca. Batendo no peito imóvel.
Em seguida, recuou, paralisado pelo pânico e o choque, olhando, olhando, observando-o morrer à sua frente.
Finalmente, inclinou-se e, pela última vez, soprou profundamente na boca de Rhyme.
E quando Stanton virou a cabeça e baixou o ouvido para escutar o leve som de respiração, qualquer som taco de respiração, qualquer minúscula exalação, a cabeça de Rhyme projetou-se à frente como num ataque de serpente. Ele cavou os dentes no pescoço de Stanton, rasgando a carótida e cortando uma parte da própria espinha daquele homem.
Até o...
Stanton gritou e tropeçou para trás, puxando Rhyme por cima dele.
Juntos, caíram como uma pilha no chão. O sangue quente, vermelho-acobreado, jorrou e continuou a jorrar, enchendo a boca de Rhyme.
...osso.
Seus pulmões, seus pulmões de assassino, já haviam passado um minuto sem ar, mas ele recusou-se a aliviar nesse momento a mordida e respirar, ignorando as dores excruciantes dentro da bochecha, onde tinha mordido a pele tenra, tirando sangue para dar credibilidade a seu falso ataque de disreflexia. Rosnou de raiva — vendo Amélia Sachs ser enterrada na terra, vendo o vapor cobrir o corpo de T.J. Colfax — e sacudiu a cabeça, sentindo o estalo de osso e cartilagem que se quebravam.
Batendo violentamente no peito de Rhyme, Stanton gritou novamente, escoiceando para livrar-se do monstro que havia se plugado nele.
O aperto de Rhyme, porém, era inquebrável. Era como se o espírito de todos os músculos mortos de seu corpo tivesse subido para a mandíbula.
Stanton conseguiu arrastar-se para a mesinha-de-cabeceira e pegar o canivete. Enfiou-o no corpo de Rhyme, uma, duas vezes. Mas os únicos lugares que podia atingir eram as pernas e os braços do criminalista. A dor é que incapacita, e a dor era a única coisa à qual Lincoln Rhyme estava imune.
O torno das mandíbulas apertou ainda mais e o grito de Stanton foi cortado quando a traquéia cedeu. Ele enfiou fundo a lâmina do canivete no braço de Rhyme. Que parou quando atingiu o osso. Começou a puxá-la para atacar de novo, mas, nesse momento, o corpo imobilizou-se, entrou em seguida em espasmo violento e, mais uma vez e subitamente, amoleceu por completo.
Stanton tombou, puxando Rhyme por cima. Com um alto estalo, a cabeça do criminalista bateu no piso de carvalho. Ainda assim, não o soltou.
Apertou com força e continuou a esmagar o pescoço do homem, sacudindo-o, rasgando a carne como um leão esfomeado, enlouquecido pelo sangue e pela satisfação imensurável de desejo ardente satisfeito.
Parte 5
QUANDO VOCÊ SE MOVE, ELES NÃO PODEM PEGÁ-LA
“O dever do médico não é prolongar a vida, mas acabar com o sofrimento!”
DR. JACK KEVORKIAN
CAPÍTULO XXXVII
Segunda-feira, das 7:15 às 10:00 da noite
Já era quase noite quando Amélia Sachs cruzou a porta da casa de Rhyme.
Não usava mais o costume de malha, de ginástica. Nem uniforme.
Usava jeans e uma blusa verde-floresta. No belo rosto, Rhyme viu vários arranhões que não reconheceu, embora, dados os fatos dos três últimos dias, achasse que aqueles ferimentos não haviam sido auto-infligidos.
— Argh — disse ela, contornando a parte do piso onde Stanton e Polling haviam morrido. O local tinha sido tratado com alvejante — com o corpo do perpetrador ensacado, o trabalho de polícia técnica se tornava discutível — mas a ilha cor-de-rosa da mancha era enorme.
Rhyme a observou parar e inclinar a cabeça num frio cumprimento ao Dr. Berger, que se encontrava junto à janela dos falcões, tendo ao lado a infame pasta de documentos.
— De modo que você o pegou, não? — perguntou, indicando a mancha com a cabeça.
— Peguei — confirmou ele.
— Ele pegou.
— Tudo isso sozinho?
— Aquilo dificilmente foi uma luta leal — sugeriu ele. — Eu me obriguei a bancar o morto.
No lado de fora, a luz líquida e vermelha do sol poente incendiou os topos de árvores e a fileira de elegantes prédios ao longo da Quinta Avenida, do outro lado do parque.
Sachs lançou um olhar para Berger, que disse: — Lincoln e eu estávamos tendo uma pequena conversa.
— Estavam?
Caiu um longo silêncio.
— Amélia — disse ele -, resolvi ir em frente com aquilo. Já decidi.
— Compreendo. — Os lábios maravilhosos, prejudicados pelas linhas pretas de minúsculos pontos cirúrgicos, cerraram-se ligeiramente. A única reação visível dela. — Sabe de uma coisa? Odeio quando você usa meu primeiro nome. Odeio com todo ódio.
De que maneira poderia explicar-lhe que ela era a principal razão por que ia em frente com o projeto de suicídio? Ao acordar naquela manhã, com ela a seu lado, compreendeu com profunda mágoa que ela logo depois saltaria da cama, se vestiria e sairia porta afora — para levar sua própria vida, para uma vida normal. Ora, eles estavam tão condenados quanto amantes podiam ser -
se ousasse sequer pensar neles como amantes. Era apenas questão de tempo até que ela conhecesse outro Nick e se apaixonasse. O caso do 238 estava encerrado e sem aquilo para uni-los, suas vidas teriam que se separar. Era inevitável.
Oh, Stanton foi mais sabido do que poderia ter imaginado. Ele havia sido atraído mais uma vez para as fronteiras do mundo real e, sim, como se moveu nele.
Sachs, eu menti. Às vezes, não podemos esquecer os mortos. Às vezes, temos apenas que seguir com eles...
Mãos crispadas, ela foi até a janela.
— Eu tentei descobrir um argumento-bomba para convencê-lo a desistir disso. Você sabe, alguma coisa realmente boa. Mas não consegui. A única coisa que posso dizer é, apenas, que não quero que você faça isso.
— Trato é trato, Sachs.
Ela olhou para Berger.
— Merda, Rhyme.
Aproximando-se da cama, debruçou-se, pôs a mão no ombro dele, e acariciou-lhe a testa com os cabelos.
— Mas você fará uma única coisa por mim?
— O quê?
— Dê-me mais algumas horas.
— Não vou mudar de idéia.
— Eu compreendo. Só duas horas. Há urna coisa que você tem que fazer em primeiro lugar.
Rhyme olhou para Berger, que disse: — Não posso ficar aqui por muito mais tempo, Lincoln. Meu avião... Se quiser esperar uma semana, poderei voltar...
— Tudo bem, doutor — concordou Sachs. — Eu o ajudarei a fazê-lo.
— Você? — perguntou o médico, cauteloso.
Relutante, ela baixou a cabeça e disse: — Ajudo.
Essa não era a natureza dela. Rhyme podia compreender perfeitamente. Mas lançou a vista para os olhos azuis de Sachs, que, embora molhados, estavam notavelmente claros.
— Quando eu estava... — disse ela — ...quando ele estava me enterrando, Rhyme, não pude me mover. Nem um centímetro. Por um instante, quis em desespero morrer. Não viver, apenas acabar logo com aquilo. Sei como você se sente.
Rhyme inclinou devagar a cabeça e disse a Berger: — Está tudo bem, doutor. Você poderia simplesmente deixar... qual é o eufemismo do dia?
— Que tal “parafernália”? — sugeriu Berger.
— Você poderia deixá-la simplesmente aí, em cima da mesa?
— Tem certeza? — perguntou o médico a Sachs.
Ela inclinou mais uma vez a cabeça.
O médico pôs os comprimidos, o conhaque e o saco plástico em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, procurou alguma coisa na pasta de documentos.
— Não tenho aqui nenhum elástico, sinto muito. Para o saco.
— Tudo bem — respondeu Sachs, olhando para os próprios sapatos. -
Eu tenho alguns.
Berger aproximou-se mais da cama e pôs um braço no ombro de Rhyme.
— Eu lhe desejo uma tranquila autolibertação.
— Autolibertação — comentou ele ironicamente quando Berger saiu. E
em seguida, voltando-se para Sachs: — Agora, o que é isso que eu tenho que fazer?
Ela fez a curva a cinquenta por hora, raspou o chão e passou suavemente a quarta marcha.
O vento entrava forte pelas janelas abertas e lançava para trás os cabelos de ambos. As rajadas de vento eram brutais, mas, para Amélia Sachs, nem pensar em dirigir com janelas fechadas.
— Isto seria antiamericano — anunciou ela, rompendo a barreira dos 160 km.
Quando você se move...
Rhyme sugeriu que seria mais prudente fazer a corrida na pista de treinamento do DPNY, mas não ficou surpreso quando Sachs disse que isso era coisa de maricas. Tinha desistido da pista em sua primeira semana na Academia. Nesse momento, portanto, estavam na estrada para Long Island, com desculpas já preparadas para a polícia do condado de Nassau, ensaiadas, e marginalmente convincentes.
— A coisa a respeito de alta velocidade é que a quinta marcha não é a mais rápida. Ela é um dispositivo para medir quilometragem. Eu cago e ando para quilometragem.
Em seguida, pegou a mão esquerda dele, colocou-a sobre o cabeçote preto da alavanca de câmbio, cobriu-a com a sua e reduziu a marcha.
O motor uivou e eles saltaram para duzentos por hora, enquanto árvores e casas voavam para trás e cavalos inquietos pastando nos campos olhavam para o risco preto do Chevrolet.
— Este carro não é o máximo, Rhyme? — gritou ela. — Cara, melhor do que sexo. Melhor do que qualquer coisa.
— Posso sentir as vibrações — disse ele. — Acho que posso. No dedo.
Ela sorriu e ele achou que ela lhe apertara a mão com a sua.
Finalmente, acabou-se a estrada deserta, população apareceu e, relutante, Sachs maneirou, deu a volta e apontou o nariz do carro para o crescente indistinto da lua que se erguia sobre a cidade distante, quase invisível na fumaça de um quente dia de agosto.
— Vamos tentar 250 — sugeriu ela.
Lincoln Rhyme fechou os olhos e perdeu-se na sensação do vento, do perfume de relva recém-cortada, e da velocidade.
A noite era a mais quente do mês.
De sua nova perspectiva, Lincoln Rhyme podia olhar de cima para baixo para o parque e ver tipos esquisitos sentados nos bancos, os corredores exaustos, as famílias reclinadas em volta de fogueiras quase apagadas de churrasco, como sobreviventes de uma batalha medieval. Algumas pessoas que levavam cães para passear, incapazes de esperar que diminuísse o calor da noite, cumpriam suas rondas obrigatórias, levando nas mãos saquinhos para apanhar “aquilo”.
Thom pôs para tocar um CD — o elegíaco Adágio para Cordas, de Samuel Barber. Rhyme, porém, soltou urna risada de desprezo, declarou que aquilo era um lamentável clichê e lhe ordenou que substituísse aquela peça por um Gershwin.
Amélia Sachs subiu a escada e entrou no quarto. Notou que ele olhava para fora.
— O que é que você está vendo? — perguntou.
— Pessoas com calor.
— E as aves? Os falcões?
— Ah, sim, estão lá.
— Com calor, também.
Rhyme examinou o macho.
— Acho que não. Por alguma razão, eles parecem acima desse tipo de coisa.
Ela pôs a sacola ao pé da cama e tirou a compra, uma garrafa de conhaque caro. Ele lhe lembrou do uísque escocês, mas ela respondera que ia contribuir com a bebida. Colocou-a junto dos comprimidos e do saco plástico.
Parecia uma esposa doidivanas de professor universitário, voltando do Balducci com pilhas de verduras, frutos-do-mar e tempo de menos para transformá-los em um jantar.
Trouxe também um pouco de gelo, a pedido de Rhyme. Ele se lembrou do conselho de Berger, sobre o calor no saco. Tirou a tampa do Courvoisier, serviu-se de um cálice, encheu o copo de boca larga, e aprumou o canudinho na direção da boca de Rhyme.
— Onde está Thom? — perguntou ela.
— Saiu.
— Ele sabe?
— Sabe.
Tomaram pequenos goles de conhaque.
— Você quer que eu diga alguma coisa a sua esposa?
Rhyme estudou a pergunta por um momento, pensando: temos anos para conversar com alguém, falar impulsivamente e tresvariar, explicar nossos desejos, raivas e arrependimentos — e, oh, como desperdiçamos esses momentos. Conhecia Amélia Sachs havia três dias e eles tinham desnudado muito mais seus corações do que ele e Blaine em quase uma década.
— Não — respondeu. — Enviei a ela um e-mail. — Uma risadinha.
— Isso é um comentário sobre nossos tempos, diria eu.
Mais conhaque, a picada amarga na língua se dissipando, tornando-se mais macio, mais entorpecente, mais leve.
Sachs inclinou-se para a cama e fez tintim com o copo dele.
— Eu tenho algum dinheiro — começou Rhyme. — Vou dar uma parte muito grande dele a Blaine e a Thom. Eu...
Ela, porém, calou-o com um beijo na testa e uma meneio negativo da cabeça.
O estalido suave de pedras quando derramou na mão os minúsculos comprimidos de Seconal.
Instintivamente, Rhyme pensou: reagente de teste de cores Dillie-Koppányi. Adicione um por cento de acetato de cobalto em metanol ao material suspeito, seguido por cinco por cento de iso-propilamina em metanol. Se a substância for um barbitúrico, o reagente se transformará em uma bela cor violeta-azulada.
— De que maneira devemos usar isso? — perguntou ela, olhando para os comprimidos. — Realmente, não sei.
— Misture-os com a bebida — sugeriu ele.
Ela deixou-os cair no copo de boca larga. Os comprimidos dissolveram-se rapidamente.
Como eram frágeis. Frágeis como os sonhos que induziam.
Ela mexeu a mistura com o canudo. Rhyme olhou para as unhas machucadas de Amélia, mas nem por elas conseguiu sentir pena. Esta era sua noite e uma noite de alegria.
Teve uma recordação súbita da infância em um subúrbio de Illinois.
Ele nunca bebia o leite e, para obrigá-lo a fazer isso, a mãe comprava canudinhos com sabores na parte interna. Morango, chocolate. Não tinha pensado neles até esse momento. Era uma grande invenção, lembrou-se. Ele sempre esperava com prazer o leitinho da tarde Sachs aproximou mais o canudo da boca de Rhyme. Ele prendeu-o entre os lábios. Ela segurou-lhe o braço.
Luz ou sombra, música ou silêncio, sonhos ou a meditação de um sono vazio? O que é que vou descobrir?
Começou a sugar. O gosto não era realmente diferente da bebida pura.
Um pouco mais amargo, talvez. Era como...
Do térreo subiu o som de violentas batidas à porta. De pés e mãos, ao que parecia. Vozes gritando, também.
Lincoln tirou os lábios do canudo. Lançou una olhar ao escuro poço da escada.
Ela fitou-o, franzindo as sobrancelhas.
— Vá ver o que é — pediu ele.
Ela desceu a escada e, um momento depois, voltou, parecendo triste, seguida por Lon Sellitto e Jerry Banks. Rhyme notou que o jovem detetive fizera, com uma gilete, outro trabalho de açougueiro no rosto. Ele, realmente, teria que pôr aquilo sob controle.
Sellitto lançou um olhar para a garrafa e o saco. Seus olhos voltaram-se para Sachs, que cruzou os braços e permaneceu na sua, ordenando-lhe em silêncio que fosse embora. Esta não era uma questão de hierarquia, o olhar dizia ao detetive, e o que estava acontecendo não era da conta dele. Os olhos de Sellitto acusaram o recebimento da mensagem, mas ele não estava disposto a ir a lugar nenhum, não naquele momento.
— Lincoln, preciso falar com você.
— Fale. Mas fale rápido, Lon. Estamos ocupados.
O detetive sentou-se pesadamente na barulhenta cadeira de vime.
— Há uma hora, uma bomba explodiu nas Nações Unidas. Bem junto do salão de banquete. Durante o jantar de boas-vindas oferecido aos delegados à conferência de paz.
— Seis mortos e cinquenta e quatro feridos — acrescentou Banks.
— Vinte em estado grave.
— Deus do céu — disse Sachs baixinho.
— Conte a ele — murmurou Sellitto.
Banks tomou a palavra: — Para a conferência, a ONU contratou um bocado de empregados avulsos. O criminoso foi um deles... uma recepcionista. Umas doze pessoas viram-na levando uma mochila para o trabalho e colococando-a em uma sala de depósito perto do salão de banquetes. Ela deixou o local pouco antes da explosão. O esquadrão antibomba calcula que foi cerca de um quilo de C4 ou Semtex.
Sellito voltou a falar: — Linc, a bomba era uma mochila amarela, foi o que disseram as testemunhas.
— Amarela? Por que é que isso me parece coisa conhecida?
— O departamento de recursos humanos da ONU identificou a recepcionista como Carole Ganz.
— A mãe — disseram simultaneamente Rhyme e Sachs.
— Isso mesmo. A mulher que você salvou na igreja. Apenas, Ganz é um nome falso. O nome verdadeiro dela é Charlotte Willoughby. Era casada com Ron Willoughby. Isso lhe lembra alguma coisa?
Rhyme respondeu que não.
— Foi notícia há uns dois anos. Ele era um sargento do Exército que servia em uma força de paz da ONU na Birmânia.
— Continue — disse o criminalista.
— Willoughby não queria ir... achava que um soldado americano não devia estar usando uniforme da ONU e recebendo ordens de alguém, exceto do Exército dos Estados Unidos. Mas foi, de qualquer maneira. Não tinha ainda nem completado uma semana no local quando foi morto por algum sacana em Rangum. Baleado nas costas. Tornou-se um mártir conservador. O
Esquadrão Antiterror diz que a viúva foi recrutada por algum grupo extremista nos subúrbios de Chicago. Por tipos formados pela Universidade de Chicago que caíram na clandestinidade. Edward e Katherine Stone.
Banks reassumiu a narrativa: — O explosivo estava em um pacote de massa de modelagem de criança, juntamente com alguns outros brinquedos. Achamos que ela ia levar a menininha com ela, para que a segurança na entrada do salão de banquete não desconfiasse da massa. Mas, com Pammy no hospital, ela não tinha seu álibi, de modo que desistiu do salão e simplesmente plantou a bomba na sala de depósito ao lado. Mesmo assim, causou grandes danos.
— Deu no pé?
— Deu. Nern um único vestígio.
— E a menininha? — perguntou Sachs. — Pammy?
— Desapareceu. A mulher tirou-a do hospital mais ou menos na hora da explosão. Nenhum sinal das duas.
— A célula? — perguntou Rhyme.
— O grupo de Chicago? Sumiu, também. Tinha uma casa segura em Wisconsin, que está sendo pesquisada. Não sabemos onde eles estão.
— Então esse era o boato que o informante de Dellray ouviu -
comentou Rhyme, rindo. — Era Carole que ia chegar ao aeroporto. Ela nada tinha a ver com o Elemento Desconhecido 238.
Rhyme notou que Banks e Sellitto olhavam-no fixamente. Oh, novamente, o velho macete do silêncio.
— Esqueça isso, Lon — disse Rhyme, consciente demais do copo a centímetros dele, emitindo um calor convidativo. — Impossível.
O detetive mais velho soltou a camisa suada do corpo, arrepiando-se.
— Droga, está frio aqui, Lincoln. Jesus. Olhe aqui, simplesmente pense nesse caso. Que mal faz isso?
— Eu não posso ajudá-los.
— Houve um bilhete — disse Sellitto. — Carole escreveu-o e enviou-o ao secretário-geral por correio interno. Repetindo críticas ao governo mundial e à anulação das liberdades americanas. Um bocado de merda desse tipo.
Reivindicava também o crédito pelo ataque a bomba contra a UNESCO em Londres e dizia que haveria mais da mesma coisa. Temos que pegá-los, Lincoln.
Pegando a deixa, o “scarface” Banks continuou: — O secretário-geral e o prefeito pediram sua colaboração. O
superintendente do FBI em Nova York, Perkins, também. E você vai receber um telefonema da Casa Branca, se precisar de mais convencimento.
Certamente esperamos que isso não seja preciso, detetive.
Rhyme não comentou o erro relativo a seu cargo.
— A equipe PERT do FBI está pronta para agir. Fred Dellray está à frente do caso e pediu... respeitosamente, sim, foi essa mesma a palavra que ele usou... ele pergunta respeitosamente se você quer se encarregar do trabalho de perícia técnica. E a cena está virgem, exceto pelo trabalho de retirar de lá os mortos e feridos.
— Neste caso, ela não está virgem — respondeu secamente Rhyme. -
Está profundamente contaminada.
— Mais razão ainda por que precisamos de você — sugeriu Banks, acrescentando um “senhor” para desarmar o pavio do olhar furioso de Rhyme.
Rhyme suspirou, olhou para o copo e para o canudo. A paz estava tão perto dele nesse momento. E a dor, também. Somas infinitas das duas.
Fechou os olhos. Nem um único som foi ouvido naquele quarto por algum tempo.
Sellitto finalmente voltou a falar: — Se fosse simplesmente a mulher em si, bem, o caso não seria tão importante assim. Mas ela está com a menininha, Lincoln. Na clandestinidade com uma menininha? Você sabe que tipo de vida essa garota vai ter?
Eu o pego por essa também, Lon.
Descansou a cabeça no rico travesseiro. Finalmente, abriu de repente os olhos.
— Haverá algumas condições.
— Diga quais, Linc.
— Em primeiro lugar — disse ele -, eu não trabalho sozinho.
E olhou para Amélia Sachs.
Ela hesitou por um momento, sorriu, levantou-se e tirou de baixo do canudo o copo de bebida batizada. Abriu a janela de par em par e jogou o líquido fulvo naquele ar maduro, quente, acima do beco onde se localizava a casa, enquanto, a alguns centímetros de distância, o falcão ergueu os olhos, olhou zangado para o movimento de seu braço, inclinou para um lado a cabeça cinzenta e em seguida voltou a alimentar a companheira faminta.
Jeffery Deave
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