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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMBOIO DO NATAL / David Baldacci
O COMBOIO DO NATAL / David Baldacci

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Tom Langdon nunca se lembraria de viajar de comboio, mas naquele Inverno não teve outra alternativa. Uns dias antes do Natal, tem de fazer uma viagem de quase quatro mil e quinhentos quilómetros desde a capital, Washington, até Los Angeles.

Procurando tirar o melhor partido desta situação desagradável, resolve aproveitar o tempo para escrever, reflectir e pôr as ideias em ordem.

Acontece que, com uma equipa de cineastas, um coro de rapazes, uma vidente, um casal de noivos e uma maestrina a bordo, a realidade vai ser muito, muito diferente.

 

 

 

 

                                      CAPÍTULO UM

Tom Langdon era um jornalista que andava às voltas pelo Mundo porque estava-lhe na massa do sangue andar sempre de um lado para o outro. Passara a maior parte da carreira em países estrangeiros, cobrindo guerras, insurreições, fomes, praticamente todas as desgraças terrenas. O seu objectivo fora simples: quisera mudar o Mundo chamando a atenção para os seus males, mas depois de publicar todos aqueles acontecimentos terríveis e ver as condições da Humanidade piorarem cada vez mais, regressara à América completamente desiludido. Procurando um antídoto para a melancolia, começara a colaborar em revistas femininas, escrevendo pequenas histórias e artigos sobre decoração de interiores, jardinagem e coisas do género. Agora, .depois de ter enaltecido as maravilhas do estuque e dos soalhos de madeira de fácil aplicação, não se sentia muito realizado. O Natal aproximava-se, e o problema mais premente de Tom era ir da Costa Oriental até Los Angeles para passar o Natal com a namorada, Lelia Gibson, que era actriz. Ao fim de vários anos a aparecer em filmes de terror de terceira categoria, ela começara a fazer trabalhos de dobragem, e era a sua voz que se ouvia numa grande quantidade de filmes de desenhos animados, muito populares nas manhãs de sábado. Ninguém imitava as vozes das criaturinhas dos bosques com mais habilidade do que Lelia Gibson. A prová-lo, tinha uma prateleira cheia de prémios, um rendimento escandalosamente elevado e uma salutar quantidade de direitos de autor.

Tom e Lelia tinham começado a relacionar-se durante um voo nocturno do Sudeste da Ásia para os Estados Unidos. Ao princípio, ele pensou que a coisa se devia ao muito álcool que ingerira, mas quando lhe passou a euforia da bebida, umas horas antes de chegarem a Los Angeles, ela continuava linda e interessante, embora um tanto pateta e excêntrica, e parecia continuar atraída por ele. Tom passou um tempo na Califórnia, ela foi visitá-lo à Costa Oriental e desde então tinham uma relação agradável, embora informal, ora numa costa, ora noutra.

O facto de não viverem juntos durante todo o ano era uma vantagem inegável, segundo a opinião de Tom, no que dizia respeito aos complexos obstáculos que se deparam aos casais que coabitam. Fora casado durante pouco tempo, mas não tivera filhos. Actualmente, a ex-mulher não aceitaria uma chamada telefónica dele a pagar no destino, nem que ele estivesse na rua a morrer com uma hemorragia. Tivera uma oportunidade de uma vida maravilhosa com uma outra mulher, Eleanor Cárter, mas o relacionamento acabara. Compreendia agora perfeitamente que não ter casado com ela ia ficar para sempre como o maior erro que cometera na vida. Tinha quarenta e um anos e acabava de perder a mãe devido a uma trombose; o pai morrera há uns anos. Sendo filho único, encontrava-se agora verdadeiramente só. Já passara metade do tempo que havia de andar por este mundo, e apenas tinha para apresentar um casamento falhado, uma ligação informal com uma californiana perita em dobragens, uma carrada de reportagens e alguns prémios. Era uma justificação miserável para a sua razão de viver.

Contudo, sendo o homem de acção que sempre fora e sentindo uma vez mais o prazer de andar de terra em terra, Tom ia apanhar o comboio para Los Angeles, a fim de lá passar o Natal. Porquê o comboio, poderia perguntar-se, havendo óptimos aviões que o levariam lá num curto espaço de tempo? Bem, nos aeroportos uma pessoa vai condescendendo em deixar uma série de varas de detecção de metais vasculharem lugares sacrossantos ou revistarem os sacos que leva até acabar por espatifar uma. Foi o que aconteceu. Tom espatifara uma bem grande no Aeroporto de La Guardiã.

Acabara de chegar de Itália de avião, depois de ter andado a fazer uma pesquisa pouco relevante, dessa vez acerca do fabrico de vinho. Estava cansado, irritadiço e de ressaca. Dormira três horas no apartamento de um amigo em Nova Iorque antes de ir para o aeroporto, a fim de apanhar o avião para o Texas. Tinham-no incumbido de escrever sobre dez concursos de beleza que lá se realizavam.

No posto de segurança de La Guardiã, alguém munido de uma vara de detecção danificara uns objectos frágeis de Tom, dos quais não vinha nenhum mal ao Mundo. Entretanto, outro funcionário da segurança tratou de esvaziar todo o conteúdo do saco de Tom para cima da passadeira rolante, e, sem poder fazer nada, ele ficou a ver os seus bens pessoais rolarem em frente de desconhecidos curiosos.

Para acabar em beleza aquele momento muito especial, foi então informado de que fora posto um grande aviso a chamá-lo para se identificar. Sendo assim, em vez de apanhar o avião para dallas, ia gozar da companhia de uma quantidade de pessoal do FBI, da Direcção de Investigação e Tráfico de Estupefacientes, da CIA e da Polícia de Nova Iorque por um período de tempo indeterminado. Aquilo fê-lo transbordar e, portanto, a lava do vulcão jorrou cá para fora. Usando uma linguagem que não costumava a menos de seis quilómetros de uma igreja, atirou-se à equipa de controle, arrebatou a vara de detecção e partiu-a ao meio. Não se orgulhava do seu ataque de violência, mas os aplausos dos outros passageiros levantaram-lhe bastante o ânimo.

Graças a Deus, recebeu apenas uma grave admoestação do magistrado perante o qual teve de comparecer e instruções para frequentar um curso de aprendizagem do controle da ira, o que aliás pensou fazer logo que se extinguiu o impulso incontrolável de dar cabo do homem da vara de detecção. Contudo, a outra consequência da sua explosão foi ter sido proibido de andar de avião para onde quer que fosse, dentro dos Estados Unidos, durante os dois anos seguintes.

E foi isto que deu origem à sua epifania. Ficar impedido de andar de avião foi um presságio divino. Ia apanhar o comboio para Los Angeles e escrever uma história sobre o comboio. Para além de passar as férias com Lelia, Tom Langdon tinha ainda outra forte motivação, que era o seu vago grau de parentesco com Olivia Langdon, uma pessoa encantadora mas profundamente trágica que ganhou fama duradoura por se ter casado com o prolífico escritor conhecido pelos amigos como Samuel Clemens, mas pelo Mundo como Mark Twain.

Tom já há muito tempo que tinha conhecimento desse parentesco e isso inspirara-o a ganhar a vida através da escrita. Twain também fora jornalista, começara por trabalhar no Territorial Enterprise, em Virgínia City, no Nevada, antes de ter fama, de adquirir fortuna, de ter ido à falência e de ter novamente ganho fama e fortuna.

Embora tivesse ganho muitos prémios, Tom não estava convencido de ser um escritor com capacidade para criar uma prosa memorável que se mantivesse imortal para todo o sempre. Não se assemelhava a um Mark Twain, mas ter uma ligação, embora remota, ao criador de Huckleberry Finn fazia-o sentir-se tremendamente especial.

Pouco antes de morrer, o pai de Tom dissera-lhe que, de acordo com a lenda, durante a segunda parte da sua vida Mark Twain fizera uma viagem transcontinental de comboio na quadra do Natal. Teria provavelmente tirado numerosos apontamentos acerca da viagem, mas, por qualquer razão, não os convertera numa história. E era isso que o pai de Tom lhe pedira para fazer. Queria que ele apanhasse o comboio, escrevesse uma história, acabasse o que Mark Twain nunca acabara e desse orgulho ao seu ramo de família Langdon.

Quando ouviu o pedido que o pai, já com dificuldade em pronunciar as palavras, lhe fez entredentes, Tom ficou sem fala. Atravessar o país de comboio durante o Natal para acabar algo que Mark Twain alegadamente não acabara? Achara que o pai estava a delirar devido ao sofrimento final, e por isso deixou o desejo dele por satisfazer. Contudo agora, que já não podia andar de avião sob pena de lhe tirarem as impressões digitais e o algemarem, ia finalmente fazer a viagem em atenção ao seu velho pai e talvez a si próprio também. Percorrendo quase quatro mil e quinhentos quilómetros de um lado ao outro da América, ia tentar encontrar-se a si próprio e limpar a porcaria em que transformara a sua vida.

Porém, se Tom tivesse sabido que, apenas duas horas após ter entrado no comboio, lhe ia acontecer algo capaz de lhe alterar a vida talvez tivesse optado por ir a pé até à Califórnia.

 

                                         CAPÍTULO DOIS

Tom saiu do táxi em frente à Estação Union, em Washington, capitall do distrito da Colúmbia, onde ia iniciar a sua viagem de comboio. Reservara um compartimento numa carruagem-cama do Capitol Limited até Chicago, a fim de fazer a primeira etapa da viagem até à Costa Ocidental. A segunda etapa, muito mais longa, seria feita no venerando Southwest Chief.

Como preparação para a viagem, Tom embrenhara-se na vida, obra e talento de Mark Twain. Relera The Innocents Abroad, relato de uma viagem de cinco meses da Europa à Terra Santa num navio a vapor, e achou que era um dos exemplares de literatura de viagens mais divertidos e irreverentes que jamais fora escrito. Tom não ia para o estrangeiro, mas, de certo modo, tal como Sam Clemens, proveniente do Oeste Selvagem, sentia-se um peregrino a viajar no seu próprio país, visto que, ironicamente, conhecia muito mais do resto do Mundo do que da América.

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O Cap, nome pelo qual o Capitol Limited era carinhosamente conhecido, ia partir de Washington às 4.05 da tarde em ponto, fazendo doze paragens antes de chegar a Windy City, pontualmente, às 9.19 da manhã seguinte.

Tom foi levantar os bilhetes, entregou o equipamento de esqui ao bagageiro - Lelia e ele iam passar o Natal a Tahoe, uma elegante estância de Inverno - e observou a grandiosidade da estação de Washington.

Dentro em pouco seria o embarque, por isso dirigiu-se à zona própria. Muito embora algumas estações de caminho de ferro tivessem implementado recentemente a vistoria das bagagens, continuava a poder chegar-se literalmente no último minuto e fazer a viagem. Não havia locais de verificação para segurança, varas de detecção bisbilhoteiras, nem perguntas tolas do género: «Autorizaria um desconhecido a meter um pequeno dispositivo termonuclear no seu saco enquanto ia à casa de banho?» Nada. Era só saltar lá para dentro e partir. No mundo moderno, de infinitas regras, aquela simplicidade era refrescante.

Tom sentou-se e começou a observar os companheiros de viagem. Ao lado de Tom, de mãos dadas, estava um jovem casal encantador com um ar muito nervoso. A seguir a eles, encontrava-se um velho clérigo a passar pelas brasas, com os pés apoiados no saco de viagem. Sentada à frente do padre, uma mulher magra de feições angulosas. Tom não conseguia calcular com precisão a idade dela porque trazia um grande lenço multicor na cabeça, quase como um turbante. Trazia também umas socas do tamanho de uns halteres de quinze quilos. Espalhadas no banco a seu lado, estavam umas cartas de taro que ela lia atentamente. Quando alguém passava, levantava os olhos de um modo que parecia dizer: «Sei tudo a seu respeito», o que era enervante. Uma vez, nas ilhas Virgens, Tom deixara um velho ler-lhe a sina. Ele prometera-lhe uma longa vida com muitos filhos, uma esposa amantíssima e nada que não fosse bom. Tom já pensara muitas vezes em ir à caça do mentiroso para ele lhe devolver o dinheiro.

Passados uns minutos, agarrou nos sacos e dirigiu-se à plataforma. O imponente Capitol Limited chamava pelo seu nome.

O ar estava muito frio, e nuvens gordas prometiam neve ou, pelo menos, saraiva. Com um tempo daqueles, quem viajava de avião preocupava-se com atrasos no voo e asas com gelo, mas aqueles rigores climatéricos não tinham significado para o vigoroso Cap com destino a Chicago. A disposição de Tom começou a melhorar rapidamente. O começo de uma viagem aumentava-lhe sempre o nível de adrenalina, e ele sentia-se desesperadamente pronto para uma aventura.

Foi até à parte da frente do comboio e observou as duas locomotivas a diesel. Lera qualquer coisa acerca daqueles monstros. Cada uma pesava uns espantosos cento e trinta e quatro mil quilos, activava dezasseis cilindros e tinha uma potência de quarenta e dois mil cavalos.

Naquele dia, o Cap compreendia duas locomotivas, uma carruagem de transporte de bagagens, três carruagens normais, duas carruagens-cama, uma carruagem-restaurante e uma carruagem dormitório de passagem. Era aqui que a maior parte do pessoal de serviço estava alojada. Tinha portas em cima e em baixo que permitiam às carruagens de dois pisos terem acesso às carruagens de um só piso, daí o termo «de passagem».

Tom procurou o encarregado das carruagens-cama e mostrou-lhe o bilhete.

- É a carruagem a seguir. Regina está lá para o ajudar - disse-lhe o homem.

Regina estava de pé em frente da Superliner, uma impressionante carruagem de dois pisos de quatro metros e oitenta de altura, a carruagem de passageiros mais pesada do Mundo. Tinha um ar impecável e uma tez castanho-escura, e Tom achou-a demasiado nova para trabalhar onde quer que fosse. Trazia um barrete de Natal vermelho e branco e acabara de atender o jovem casal nervoso. Tom deu um passo em frente e mostrou-lhe o bilhete, e ela deu baixa do nome dele na lista.

- Muito bem, Mr. Langdon, fica no piso superior. Compartimento D. As escadas são à direita e depois é à esquerda ao fundo do corredor.

Tom agradeceu e pôs cautelosamente um pé no imponente Capitol Limited. A sua experiência, no que dizia respeito a carruagens-cama, limitava-se ao filme Intriga Internacional, do realizador Alfred Hitchcock, que tinha no elenco um impecavelmente elegante Cary Grant e um James Mason muito sinistro. Pelo filme, deduziu que o seu compartimento ia ser muito bem posicionado e grande, com espaço para duas camas, um estúdio acolhedor, uma pequena sala de estar para receber visitas formais e uma bela casa de banho com uma banheira que fazia remoinhos de água.

Começou a subir as escadas de acordo com as instruções de Regina, o que, com a bagagem, se tornou um bocado difícil, uma vez que faziam ângulos apertados de noventa graus. Quando olhou para cima, compreendeu que ia enfrentar um considerável obstáculo.

Era velha, parecia estar de camisa de dormir, embora ainda não fossem 4 horas, e balouçava-se no degrau mais alto, preparando-se para descer. Faltavam dois degraus para Tom chegar lá acima.

- Com licença - disse ele.

- Estou a descer - anunciou a mulher com uma voz de barítono atroadora.

- Se me permitisse esgueirar-me até aí acima ... - pediu Tom. Mas aquilo estava fora de questão. Não era tão alta como Tom,

mas, para pôr a coisa em termos delicados, tinha uma silhueta consideravelmente mais larga.

- Olá, Regina! - disse a mulher, falando lá para baixo.

- Olá, Agnes Joe! - cumprimentou Regina.

Sem que qualquer deles se decidisse a descer, Tom e Agnes encontraram-se a dançar o tango desastradamente, um pé para a frente e um pé para trás.

- Agnes Joe - disse Tom finalmente -, eu sou Tom Langdon e estou no compartimento D. Se puder recuar por um segun...

Não chegou a acabar a frase porque, em vez de recuar, ela deu-lhe uma pequena cotovelada com um braço forte que o fez rolar pelas escadas abaixo e cair em cheio de costas no chão.

Tendo-se visto livre do seu obstáculo, Agnes Joe desceu e foi suficientemente educada para não pisar a carcaça prostrada dele. Depois, entregou dinheiro a Regina.

- Aqui tem, minha querida. Obrigada por me ter levado as malas.

Tom ficou com sérias dúvidas de que Mark Twain tivesse começado daquela maneira a sua viagem de comboio pelo país. Levantou-se e dirigiu-se a Regina, deitando um olhar irritado à velhota quando passou por ela.

- Já levo as suas malas, Mr. Langdon. Deixe-as aí enquanto verifico as entradas de todos.

- Obrigado, mas trate-me por Tom - disse ele, dando a Regina alguns dólares. - Então, trabalha neste comboio há muito tempo? - perguntou.

- Há quatro anos.

- É muito tempo.

- Nem por isso. Há pessoas que trabalham neste comboio há vinte anos.

Tom deitou um olhar a Agnes Joe, que estava outra vez a subir as escadas vagarosamente.

- Então, conhece Agnes Joe? - perguntou

- Oh, com certeza, ela viaja neste comboio há cerca de uns dez anos, mais ou menos, segundo ouvi dizer.

- Dez anos! Deve gostar muito de viajar.

- Eu acho que vai visitar família - retorquiu Regina, rindo-se. - Ela é simpática.

Tom esfregou o sítio onde a «simpática» Agnes Joe lhe dera a cotovelada.

- Ela está nesta carruagem-cama?

- Sim, precisamente no compartimento a seguir ao seu.

«Oh, alegria das alegrias!», pensou Tom, voltando à escada onde Agnes Joe ainda estava, inexplicavelmente, no mesmíssimo degrau.

- Agnes Joe, precisa de ajuda?

- Estou bem, querido. Dê-me só um tempinho.

- E se eu subisse primeiro e a puxasse?

O plano de Tom era subir em primeiro lugar, passar como uma seta e fechar-se à chave na sua sumptuosa suite, enquanto Cary Grant montava guarda lá fora.

- Dê-me só algum espaço, filho - disse ela, dando-lhe outra cotovelada que, de certo modo, atingiu o rim esquerdo de Tom.

Quando a dor lhe passou e Tom conseguiu endireitar as costas, já Agnes Joe desaparecera. Como é que não havia de sentir vontade de voltar a ser correspondente de guerra?

 

                                       CAPÍTULO TRÊS

Depois de dar dois passos dentro do compartimento D, Tom esbarrou contra a parede. Havia um lavatório, um armário pequeno, uma cadeira junto de uma mesa desmontável e um grande espelho na parede em frente à cama. A janela era enorme e proporcionava uma bela vista do exterior; começara a nevar, fazendo-o sentir o espírito do Natal. Não era mau de todo, pensou. Para falar verdade, o espaço era bem maior do que o de uma primeira classe de avião.

Esta impressão durou até abrir a porta para a casa de banho privativa. Segundo indicação no seu interior, tratava-se de retrete e chuveiro. Ele calculou o perímetro e voltou a olhar para o cubículo, ficando razoavelmente convencido de que, à força, havia de conseguir enfiar-se lá dentro. É claro que, uma vez lá dentro, iam ser precisos três ou quatro homens fortes munidos de maquinaria pesada para o fazerem sair.

Voltou-se, e estava prestes a sentar-se quando viu uma claridade aparecer e desaparecer na parede em frente da cama. Como foi muito rápido, ao princípio não deu importância, mas a coisa repetiu-se. Era Agnes Joe. Como é que podia ser? Aquilo era um compartimento privado. Depois, percebeu. Os tabiques entre os compartimentos podiam ser abertos por uma questão de manutenção ou por qualquer outra razão e, consequentemente, ele estava a olhar para dentro do quarto da mulher. Na sua vida de jornalista, pernoitara fora de portas com camelos sujos que se babavam, com nómadas do deserto e outras pessoas que não se lavam, mas não queria de todo dormir com Agnes Joe.

Quando se encaminhou para a divisória para a fechar, espreitou pela abertura e deu de caras com a mulher.

- E melhor não se pôr a espreitar-me, meu menino - disse ela. - Estou certa de que não quer ver o meu velho esqueleto, queridinho. Procure uma rapariga com idade mais próxima da sua.

«Esta mulher é uma excêntrica!», pensou Tom. Resolvido a brincar com ela, retorquiu:

- O seu esqueleto perece-me bem bonito.

- Não tente vir para cá com falinhas-mansas, não resulta porque eu não sou desse género. Mas, depois do jantar, podíamos tomar um copo na sala de estar na companhia um do outro para nos conhecermos - disse ela, fazendo olhinhos.

- É um convite que eu seria louco se recusasse.

- Desculpe tê-lo deitado pela escada abaixo, Tom - disse ela com um sorriso brincalhão. - A minha mão deve ter escorregado.

- Se tinha que acontecer, fico contente por ter sido consigo. Tom voltou-se e viu Regina à porta com as suas malas na mão.

- A parede está estragada outra vez? - perguntou ela, deitando um olhar à parede e abanando a cabeça. - Eu disse ao encarregado da manutenção para a consertar.

- Olá, Regina! - saudou Agnes através da abertura, e, apontando para Tom, aconselhou: - Tenha cuidado com esse menino, olhe que ele é lisonjeiro!

- Eu tenho - respondeu Regina. Deixou as malas de Tom lá dentro e repôs a divisória no lugar. - Peço desculpa pelo incómodo.

- Não tem importância. Ela parece bastante inofensiva.

- Eu não teria tanta certeza disso - disse Regina. Sentou-se na beira da cama e tirou um bloco de apontamentos. - O restaurante abre às cinco e meia, mas, se não quiser fazer a reserva, pode comer qualquer coisa no bar, que se situa na sala de estar, a seguir ao restaurante, no piso de baixo. Só precisa de mostrar o seu bilhete a Tyrone, que é o assistente da sala de estar. É tudo grátis para os passageiros da carruagem-cama.

- Vou comer no restaurante. Às sete está bem? Regina tomou nota.

- Com certeza. E enquanto estiver a jantar, eu venho aqui fazer-lhe a cama.

- É preciso alguma indumentária especial para entrar no restaurante?

- Bem, neste comboio já vi pessoas vestidas de todas as maneiras possíveis - respondeu Regina com ar divertido.

Tom interrogou-a acerca da exiguidade da casa de banho, e ela explicou-lhe que havia casas de banho maiores no piso inferior, mas as pessoas tinham de fazer fila.

- A maior parte das pessoas fisicamente capazes optam por ir lá abaixo - acrescentou ela diplomaticamente.

Quando Regina se levantou para sair, Tom disse:

- Sabe, sou jornalista e vou escrever a história desta minha travessia do país.

- Vai apanhar o Califórnia Zephyr para São Francisco ou o Southwest Chief para Los Angeles? - perguntou ela com um ar muito interessado.

- O Southwest Chief para Los Angeles.

- É um belo comboio com um bom historial. E encontram-se pessoas maravilhosas a bordo. Vai gostar. A maioria das pessoas que trabalham no Chief não querem perder o lugar.

Tom puxou do bloco de apontamentos e começou a escrever umas notas.

- Pela maneira como você fala deles, os comboios quase parecem gente.

- E, de certo modo, são. Quero dizer, passamos tanto tempo dentro deles que aprendemos os seus truques. É o mesmo que ter um relacionamento. Sei que parece estranho, mas é isso que acontece.

- Bem, depois de alguns relacionamentos que já tive, um namoro com um diesel de cem toneladas deve ser agradável para variar.

Regina riu-se.

- A minha mãe, Roxanne, trabalha no Southwest Chief, é chefe dos serviços de bordo. Vou encontrar-me com ela quando chegarmos a Chicago e digo-lhe que você vai no comboio. Vai ver que ela tem umas histórias para lhe contar.

- Isso é frequente? Quero dizer, há mesmo muitas pessoas da mesma família a trabalharem na Amtrak?

- Bem, a minha mãe trabalha para a companhia, e não sei quantos tios, tias e primos também trabalham espalhados por aí. Foi através da família que eu soube o que era trabalhar nos comboios. E o meu filho também trabalha na Amtrak. É ele que faz a limpeza das carruagens.

- O seu filho? - perguntou Tom, surpreendido. - Você parece que acabou de sair do liceu ...

- Agnes Joe tem razão. Você é mesmo lisonjeiro - retorquiu ela, sorrindo. - Mas agradeço o elogio. - Pôs uma expressão séria e acrescentou: - No sítio onde moro, trabalhar num comboio é considerado uma coisa especial. As pessoas respeitam-nos, sabe?

Tom acenou com a cabeça afirmativamente. Aquele pormenor interessava-lhe verdadeiramente. Ia introduzi-lo na história.

- Acha que as pessoas aqui no comboio podem ajudar-me?

- Tenho a certeza que sim.

Quando Regina saiu, Tom sentiu o comboio começar a andar. Consultou o relógio. Eram exactamente 4.05. O lendário Capitol Limited iniciara a viagem.

Autorizado a partir pelo controle do tráfico ferroviário, o comboio deslizou sobre os carris de metal e madeira em direcção a oeste. Também o jovem Mark Twain seguira para oeste quando se pusera a caminho desde o Missuri até ao Nevada numa mala-posta que balouçava, dormindo em cima dos sacos do correio à noite e viajando no topo durante o dia. Embora tivesse deparado com coisas lindas e raras, tivera no entanto de enfrentar facínoras, obstinados cães pug mexicanos, comida má e tédio. Em contraste com ele, Tom Langdon era transportado por uma força de mil toneladas de cavalos-vapor e usufruía de uma cama confortável, instalações sanitárias e da companhia de Agnes Joe no quarto ao lado. Tom ainda não concluíra quem tivera mais sorte: se ele ou Mark Twain.

Falou com Lelia pelo telemóvel. Ainda não lhe dissera que ia ter com ela de comboio porque queria fazer-lhe uma surpresa e, na verdade, ela ficou surpreendida, mas não exactamente do modo que ele pensava.

- Estás dentro de um comboio e vais atravessar os Estados Unidos de um lado ao outro? - gritou ela. - Estás doido?

- É o que outras pessoas sempre fizeram, Lelia.

- Sim, na Idade da Pedra.

- Tenciono escrever uma história de Natal. - Não queria confessar-lhe qual a outra razão por que o fazia porque não tinha bem a certeza do papel dela no seu futuro, o que, aliás, tinha esperança de vir a descobrir naquela viagem.

- Aluguei um jacto particular que parte às seis horas em ponto na véspera de Natal - disse ela.

- Trouxe os meus esquis, lá estarei. O comboio chega a Los Angeles de manhã.

- E se chegar atrasado?

- Ora, é um comboio. Vamos parar nas estações, apanhar passageiros, continuar a rolar e chegamos a Los Angeles muito a tempo.

Tom ouviu-a dar um longo suspiro. Ultimamente, dava muitos suspiros longos. Tinham uma relação aparentemente ideal. Iam comer fora muitas vezes, davam passeios românticos pela praia de Santa Mónica, faziam compras na Quinta Avenida, dormiam até ao meio-dia e depois não se viam um ao outro durante alguns meses. Tom acreditava firmemente que, se mais casais se estruturassem daquela maneira, a percentagem de divórcios diminuiria. Portanto, perguntava a si próprio a que é que se deveriam aqueles suspiros todos que ela dava ultimamente.

- Vê se chegas a tempo. Eu não quero estragar os planos de toda a gente.

- Toda a gente? Quem é toda a gente?

- As pessoas que vão connosco para Tahoe. Aquilo era novidade para ele.

- Que pessoas? - perguntou.

- Amigos de trabalho: o meu agente, o meu gestor e outros. Já falámos nisso.

- Não, não falámos nisso. Pensei que íamos só tu e eu. Foi o que fizemos nos últimos dois anos.

- É verdade, e eu pensei que seria agradável uma mudança.

- O que é que isso quer dizer? Que estás a ficar farta de estar sozinha comigo?

- Eu não disse isso.

- Nem precisavas. O exército de gente que convidaste para o nosso Natal di-lo alto e bom som.

- Não quero discutir sobre isso. Apenas pensei que seria divertido juntar um grupo de gente simpática para passar o Natal em Tahoe. Não significa que não vamos passar algum tempo sozinhos porque vamos. Reservei só um quarto para nós dois, querido. E comprei-te um ursinho novo. Tem uma melodia de Natal muito brejeira - acrescentou ela, ofegante.

Sempre o aborrecera as mulheres pensarem que podiam ganhar uma discussão com um homem apelando simplesmente aos seus instintos mais primários. E, contudo, ouviu-se a si próprio dizer:

- Olha, querida, eu também não quero discutir. Vou chegar a horas, juro.

Desligou e, por instantes, teve visões de ursos brejeiros a dançarem dentro da sua cabeça. «Às vezes, sou mesmo parvo!», pensou, irritado.

 

A primeira paragem foi em Rockville, no estado do Maryland, apenas vinte e cinco minutos após a partida de Washington. Perto de Rockville, ele avistou a igrejinha branca onde F. Scott Fitzgerald se encontra enterrado, em cumprimento do seu pedido para ficar sepultado naquele estado para toda a eternidade. Tom fez um apontamento mental para deixar escritas instruções bem específicas a respeito do seu próprio enterro, depois abriu o computador portátil e acrescentou algumas observações à sua história, embora até então não tivesse escrito grande coisa.

Levantou-se para ir ver com quem poderia falar. O comboio retomou novamente o andamento, e ele encostou uma mão à parede para se apoiar. Ao passar pelo compartimento A, o velho padre que vira antes na sala de espera saiu e esbarrou com ele.

- Olá, Sr. Padre! - cumprimentou Tom.

- Já estou reformado - disse o santo homem amistosamente -, embora continue a vestir-me de padre porque não tenho outra roupa além de um fato castanho de poliéster comprado nos anos de 1970 e que já me envergonho de vestir. Sou o padre Paul Kelly.

- Tom Langdon. Vai passar o Natal a Chicago?

- Não. Sigo para Los Angeles. A minha irmã e os filhos vivem lá. Vou passar as férias com eles.

- Então, vai apanhar o Southwest Chief, julgo eu.

- Esse mesmo.

- Eu também. Podíamos encontrar-nos no salão depois do jantar. Podemos reduzir a cinzas uns charutos que eu trouxe - disse Tom, que vira a cana de um cachimbo a sair do bolso do casaco do padre.

- Deus o abençoe, meu filho - disse o padre, tocando-lhe ao de leve na manga do casaco. - Os comboios são uma maneira civilizada de viajar, não são? E talvez também possamos ver por lá essa gente do cinema.

- Que gente do cinema?

O padre Kelly aproximou-se mais.

- Chegaram num carro magnífico que quase entrou pelo comboio dentro. Como sou curioso por natureza, perguntei discretamente quem poderiam ser. Pelo que consegui perceber, ele é um realizador famoso ou produtor, ou qualquer coisa assim, ela é actriz ou talvez guionista. Vão atravessar o país para fazer um filme sobre uma viagem de comboio.

- Que coincidência! - disse Tom. Explicou depois que estava a escrever uma história acerca de uma viagem de comboio.

O padre pareceu satisfeito por ouvir aquilo.

- Bem, você escolheu o tema certo. Apanhei muitos comboios durante a minha vida, e estão sempre recheados de surpresas.

Depois de deixar o padre Kelly, Tom atravessou a outra carruagem-cama, de classe turística e sem casas de banho privativas. Ali, os compartimentos mais pequenos sucediam-se de ambos os lados da carruagem e havia um corredor ao meio. Tom viu duas mãos agarradas uma à outra que tapavam a passagem do corredor. Quando se aproximou, constatou que se tratava do jovem casal nervoso.

- Bom, tenho de pagar portagem para atravessar? - perguntou ele a brincar.

Ambos lhe retribuíram o sorriso.

- Desculpe - disse o rapaz, enquanto a rapariga desviou o olhar timidamente.

Tinham cerca de vinte anos, cabelo louro, tez clara e pareciam irmãos.

- Então, vão a caminho de Chicago para passar a quadra do Natal?

- Para falar verdade ... - começou o rapaz com um ar um tanto envergonhado.

- Steve! - interrompeu a rapariga. - Nós nem sequer o conhecemos.

- Bem - disse Tom -, dentro do comboio é diferente. O facto de fazerem uma longa viagem juntas faz as pessoas abrirem-se. Eu falo primeiro. Sou jornalista e estou a escrever um artigo acerca de uma viagem através do país. Esta é a minha história. E então, qual é a vossa?

Eles olharam um para o outro, e Steve disse:

- Bem, na verdade vamos casar.

- Parabéns! - disse Tom, estendendo a mão a ambos. - Que bom! A propósito, eu chamo-me Tom.

- Steve. A minha noiva chama-se Julie.

- Então, vão dar o nó em Chicago?

- Oh, não, vamos casar no comboio - disse Steve.

- No comboio? Neste comboio?

- Não - disse Julie. - No Southwest Chief, a caminho de Los Angeles. Parte amanhã de tarde.

Tom achou que o sotaque dela era sulista, enquanto o de Steve lhe pareceu da Nova Inglaterra.

- Que bom! Eu também vou nesse comboio. E então, a vossa família já está a bordo ou estão à vossa espera em Chicago?

- As nossas famílias não sabem nem aprovam a ideia de nos casarmos - disse Julie, esfregando os olhos com as costas da mão.

- Por isso, vamos casar sozinhos - disse Steve, olhando para Tom e tentando mostrar-se despreocupado. - Porque nos amamos.

- A família dele não gosta de mim - explicou Julie. - Acham que lá porque eu sou de uma cidadezinha do estado da Virgínia nos montes Apalaches sou uma espécie de lixo branco. Ora, embora o meu pai tenha trabalhado nas minas desde os dezasseis anos e a minha mãe também não tenha completado o secundário, mesmo que os pais dele pertençam à alta sociedade do Connecticut, a minha família não é lixo. É tão boa como a dele.

- E então, a sua família aprova o casamento? - perguntou Tom a Julie, tentando reduzir um pouco a tensão.

- Eles gostam muito de Steve, mas acham que sou demasiado jovem. Estou na universidade. Estamos os dois na Universidade George Washington, em Washington. Foi lá que nos conhecemos. Querem que eu termine os estudos antes de casar.

- Bem, isso compreende-se, especialmente porque eles nunca tiveram oportunidade de ir para a universidade. Tenho a certeza de que só querem o melhor para si.

- O melhor para mim é Steve. - Ela sorriu a Steve, e Tom compreendeu que o coração do jovem sofria com aquilo por que estava a passar. Podiam ser novos, mas eram suficientemente adultos para estarem loucamente apaixonados. - Eu vou acabar os meus estudos - continuou Julie - e depois vou para a Faculdade de Direito na Universidade da Virgínia. Vou dar orgulho aos meus pais, mas vou fazer tudo isso sendo mulher de Steve.

- Bem - disse Tom -, a vida é sua e acho que deve seguir o seu coração.

- Obrigada - disse Julie, dando-lhe uma palmadinha na mão.

Se Tom tivesse seguido aquele mesmo conselho com Eleanor Cárter, podia ter sido tudo diferente. Por ironia do destino, também eles os dois se tinham conhecido na universidade. Frequentavam o último ano de Jornalismo e decidiram trabalhar em conjunto logo após a licenciatura. Tinham feito trabalhos de investigação nos Estados Unidos e escrito alguns artigos de vulto antes de darem o salto e assinarem contrato em conjunto com uma agência ultramarina que ia abrir um serviço noticioso. Tinham reunido as experiências de uma vida inteira, melhor dizendo, de várias vidas. Tal como Steve e Julie, tinham-se apaixonado. Deveriam ter ficado noivos e ter-se casado, mas a relação acabara tão abruptamente que Tom ainda sofria ao pensar nos últimos momentos que haviam passado juntos.

- E o padre vai no comboio?

Por um momento, Tom pensou que o padre Kelly pudesse realizar a cerimónia, mas ele dissera que estava reformado e, além disso, teria certamente mencionado o casamento.

- Entra em Chicago - respondeu Steve -, assim como os padrinhos.

- Então, desejo a ambos boa sorte. Os passageiros, presumo, estão todos convidados? - perguntou ainda.

- Esperemos que venha alguém ...

- Deus queira! - disse Julie. - Caso contrário, será um casamento muito solitário.

- Nenhuma noiva gostaria. Eu vou lá estar e levo os passageiros amigos - prometeu Tom. Ainda não tinha amigos entre os passageiros, mas seria assim tão difícil fazer amigos no Cap?

- Vai ser na sala de estar às nove horas da manhã - disse Steve.

- O nome da estação é La Junta.

- Junta, em espanhol, significa «ponto de união» - disse Julie.

- Parece um sítio apropriado para um casamento.

- Só uma pergunta, por curiosidade - insistiu Tom. - Porque é que o comboio foi a primeira opção?

- É capaz de parecer tolice - esclareceu Julie, rindo-se -, mas quando o meu avô voltou da II Guerra Mundial, a minha avó foi esperá-lo a Nova Iorque. Tinham ficado noivos antes de a guerra começar, mas haviam adiado o casamento porque o meu avô se recusara a deixá-la viúva. Dissera que, se conseguisse sobreviver à guerra, seria uma maneira de Deus lhes dizer que deviam ficar juntos. Bem, ele sobreviveu, é claro, e a minha avó, que estivera à espera durante quatro longos anos, foi a Nova Iorque com ideia de se casar lá, mas havia tantos soldados a fazerem o mesmo que teriam de esperar semanas. Por isso, pagaram a um padre para ir no comboio com eles e casaram-se logo que entraram no estado da Virgínia.

- Presumo que deu bom resultado.

- O casamento durou cinquenta e cinco anos. Morreram há dois anos com uma semana de intervalo.

- Desejo-vos o mesmo - disse Tom. Em seguida, dirigiu-se ao bar da sala de estar.

Quando atravessou a carruagem-restaurante, Tom baixou a cabeça para cumprimentar os empregados que pareciam atarefados a preparar as mesas para o jantar, pelo que resolveu não os importunar com muitas perguntas. Avançou até à sala de estar, onde algumas pessoas estavam sentadas a ver televisão ou a contemplar ociosamente a paisagem que se ia desenrolando lá fora.

Desceu a escada de caracol e encontrou Tyrone, o encarregado da sala de estar, a trabalhar num espaço pequeno mas bem organizado. Havia armários frigoríficos com sanduíches, gelados, doces sortidos e máquinas de bebidas quentes e frias.

Tyrone tinha cerca de trinta anos, a mesma altura de Tom e era parecido com Elvis, só que era negro. Tom gostou do efeito.

- Vou abrir dentro de vinte minutos mais ou menos - disse Tyrone. -As minhas entregas chegaram atrasadas. A esta hora costumo andar de um lado para o outro. Quando abrir, eu aviso através do altifalante.

- Não há problema, Tyrone.

Enquanto arrumava as provisões, Tyrone mirou Tom com atenção e interesse e perguntou:

- Ouça, o senhor é o jornalista de quem Regina me falou?

- Sim, sou eu mesmo.

- Porreiro! Então, o que é que quer saber?

- Para começar, quero saber se você é fã do Elvis.

- Foi o cabelo, não foi? - disse ele a rir. - É sempre o cabelo.

- Sim, foi o cabelo.

- Thank you, thank you very much - cantarolou Tyronne, esticando a cabeça e abanando-a. - Sei de cor todas as canções e todos os movimentos de anca. O tipo era o que se pode chamar um branco vaidoso.

- Trabalha neste comboio há muito tempo?

- Há cerca de sete anos. Trabalho na Amtrak desde 1993.

- Aposto que já viu muita coisa.

- Ora, de facto, já vi alguma coisa. As pessoas entram para um comboio e é como se perdessem o gene da inibição, ou coisa assim. Olhe, quer uma soda ou qualquer outra coisa?

- Só se me arranjar uma bebida mais forte, e espero mesmo que arranje.

Tyrone abriu-lhe uma cerveja, e Tom encostou-se à parede.

- Então, posso concluir que gosta de trabalhar aqui?

- É um emprego como outro qualquer, mas é agradável. É um trabalho de rotina que me entretém. Divirto-me com os passageiros, especialmente com os miúdos. Há qualquer coisa entre os comboios e os miúdos. Combinam muito bem, percebe o que quero dizer? - Continuou a falar e a trabalhar ao mesmo tempo. - Gosto disto aqui. A nossa tripulação forma uma equipa, trabalhamos todos com energia, ajudamo-nos uns aos outros como uma família.

- Tenciona continuar no Cap?

- Não sei. O que estou realmente a pensar é fazer a escalada até chegar onde se ganha realmente bem.

- E onde é isso? Na gerência? Tyrone riu-se.

- Gerência? Falemos a sério. O dinheiro entra é quando se anda de boné encarnado. Aos bagageiros, a gente de dinheiro dá gorjetas como se tivessem uma máquina de imprimir notas.

- Quero uma bebida e já.

Ambos se voltaram para ver quem falara: um homem de ar infeliz e fato de três peças às riscas.

- Como está, Mr. Merryweather? - cumprimentou Tyrone, revirando os olhos.

- Não estou mesmo nada bem e quero uma bebida. Um whisky com soda e gelo. Imediatamente.

- O bar ainda não está aberto. Se pudesse voltar ... Merryweather deu um passo em frente.

- Este cavalheiro tem uma cerveja que julgo ter-lhe sido dada por ti. Portanto, se te recusas a abrir o bar para mim, eu ... - passou os olhos pela chapa identificativa com o nome de Tyrone -, bom, Tyrone, sugiro que comeces a procurar outro emprego porque, logo que eu ponha o pé fora deste comboio, ficas sem este. - Consultou o relógio. - Estou à espera, Tyrone.

- Com certeza, vou já arranjar, não há problema.

Tyrone preparou a bebida e entregou-a ao homem. Merryweather bebeu um gole.

- Mais whisky! Vocês nunca deitam o suficiente. Estás a roubá-lo para ti?

- Ouça lá! - disse Tom. - Porque é que o senhor não é mais bem-educado?

- Sabe, por acaso, quem eu sou? - perguntou Merryweather, voltando-se.

- Sei, é um imbecil e é óbvio que até faz gala nisso. Merryweather fez um sorriso tão tenso que pareceu que as bochechas lhe iam rebentar.

- Diz-lhe quem eu sou, Tyrone.

- Olhe, estou a servir-lhe uma boa quantidade de whisky. Porque é que não fazemos tréguas?

- Chamo-me Gordon Merryweather e sou perito em interpor processos judiciais. Ponha-se a andar ou levo-o a tribunal e fico-lhe com tudo o que tem, embora pela sua aparência manifestamente não tenha muito.

Tom deu um passo em frente de punhos cerrados.

- Oh, espero que faça isso - disse Merryweather. - Assim, posso também metê-lo na prisão.

Tyrone meteu-se entre os dois.

- Está tanto frio! - disse ele. - É como se estivesse a nevar mesmo aqui dentro do comboio. Vamos todos sair daqui agora. Estamos no Natal, como sabem. O senhor vai a casa passar o Natal, Mr. Merryweather, vai ver a sua esposa e os seus filhos? Aposto que lhes leva muitos presentes.

- Eu sou divorciado. Os meus filhos são uns fedelhos mimados que não merecem nem o meu afecto nem a minha generosidade.

Dizendo isto, Gordon Merryweather afastou-se, bebendo o seu whisky. A meio caminho do corredor, ouviram-no rir.

- Estou surpreendido por você não ter dito «Cale-se, seu aldra-bão!» - disse Tom, olhando para Tyrone.

- Não queira meter-se com aquele homem - disse Tyrone, abanando a cabeça. - Ele embrulha-o em tribunal durante anos. O retrato dele está no dicionário ao lado da palavra «pesadelo».

- Acredito. Mas porque será que o «perito em processos judiciais» anda de comboio? Provavelmente, tinha capacidade monetária para ter um jacto particular.

- Pelo que ouvi dizer, o «valente» Mr. Merryweather tem medo de andar de avião. Quem me dera que ele comprasse um comboio particular e se mantivesse longe do meu!

- Bem, então agradeço-lhe ter-me impedido de lhe enfiar aquele whisky pela garganta abaixo. Para dizer a verdade, tenho planos para a minha vida que não incluem a prisão. Obrigado pela informação e pela cerveja.

Tyrone sorriu.

- Não há problema. Sempre às ordens. Volte depois do jantar. Eu sirvo umas bebidas fortes.

 

                                 CAPÍTULO QUATRO

Tom regressou ao seu compartimento e olhou pela janela. Já estava escuro às 5.15. Acabavam de passar por Harpers Ferry, na Virgínia Ocidental, localidade imortalizada quando John Brown fez o seu famoso ataque às tropas federais antes do começo da Guerra Civil e foi mandado para a forca.

Achando que eram finalmente horas de ir à caça dos cineastas, Tom percorreu as carruagens na direcção oposta da carruagem-restaurante e encontrou-se na outra secção das carruagens-cama. Tinha a certeza de que a gente de Hollywood só viajava em primeira classe, por isso dirigiu-se para ali, esperando que saíssem do esconderijo.

A cortina do primeiro compartimento estava bem fechada e não conseguiu ver nada, embora ouvisse alguém às voltas lá dentro. Reparou que no compartimento a seguir a cortina estava ligeiramente aberta. Parou e deu uma espreitadela rápida. Andando de um lado para o outro no pequeno espaço, avistou um jovem alto de cabelo rapado no cimo da cabeça e camisola de gola alta escura. Quando ele se virou, Tom viu que tinha um auricular posto e um telemóvel dentro de uma bolsa no cinto.

Não podia ser o famoso realizador, pois não? Não tinha ar de realizador. Tinha de ser actor ou escritor. Era parecido com os jovens guionistas em voga, tão procurados em Los Angeles.

Tom dirigiu-se ao compartimento seguinte. Estava prestes a espreitar quando um homem fez deslizar a porta para a abrir e quase colidiu com ele.

- Desculpe - disse o desconhecido. - Acabo de saber que não posso fumar no meu compartimento.

Tom olhou de relance o cigarro apagado que ele tinha na mão e depois deitou um olhar rápido ao homem. Era de altura média, tinha sessenta e poucos anos, cabelo espesso e grisalho e um bronze saudável, característico da Califórnia. Vestia roupa cara: calças pretas, camisa de seda branca, casaco de tweed e sapatos Bruno Magli. Tinha ar de milionário despretensioso.

- Há uma sala de fumo no piso de baixo - informou Tom.

- Bem, então acho que é para lá que eu vou. Já tentei cem vezes acabar com este vício. Pus os adesivos, até fiz hipnose. Não deu nada.

- Eu fumava dois maços por dia, mas agora limito-me a um charuto de vez em quando.

- Como é que conseguiu isso? - perguntou o outro, interessado.

- Bem, a minha vida estava dependente disso.

- Compreendo. Quem é que quer morrer de cancro do pulmão?

- Não, não é isso que eu queria dizer. Fui correspondente de guerra. Uma vez ia num comboio de jornalistas que foi atacado por terroristas, e quando fugíamos para as montanhas, um tipo da Reuters de cerca de cinquenta anos e que fumava muito não conseguiu correr. Caiu no chão, provavelmente devido a um ataque cardíaco. O meu próprio coração e os pulmões estiveram quase a rebentar, parecia que todo o fumo que eu já inspirara regressara para me condenar. Desde então, nunca mais toquei num cigarro.

- Uau, mas que história! Correspondente de guerra, disse você?

- Agora, já não. As coisas mais ousadas que relato hoje em dia são a maneira de um casal organizar os armários por forma que o marido sobreviva ou o terrível perigo de fazer grelhados em casa.

O homem riu-se e estendeu a mão.

- Boa piada. A propósito, chamo-me Max Powers.

Tom pensara que o conhecia, e quando ele disse o nome, fez-se luz. Era um realizador muito famoso que figurava regularmente no top das dez pessoas mais poderosas de Hollywood. Era famoso pelos enormes sucessos de bilheteira, mas, além disso, fora nomeado várias vezes para os prémios da Academia e levara o grande prémio para casa há uns anos.

- Tom Langdon. Vi muitos dos seus filmes, Mr. Powers. De facto, o senhor sabe contar uma história.

- Obrigado. É exactamente isso que tento fazer. E trate-me por Max. - Meteu o cigarro apagado no bolso da camisa e olhou em redor. - Estamos a tentar fazer uma história acerca deste meio de transporte.

- De facto, o comboio tem qualquer coisa.

- É isso mesmo. O meu pai foi maquinista de um comboio de passageiros, o Santa Fé, nos bons velhos tempos, em que era na verdade o melhor meio de transporte. Ele arranjou as coisas de modo a eu poder viajar com o maquinista e, deixe-me que lhe diga, não há sensação que se lhe compare. Desde então, sinto que hei-de contar uma história acerca de uma viagem sobre carris, e agora vou finalmente fazer por contá-la.

Tom falou-lhe da história que andava a escrever e de algumas das suas impressões acerca daquela viagem de comboio.

- Não se trata de ir daqui para ali, o que interessa é o que se passa no entretanto, é todo o espectáculo - acrescentou. - Este comboio tem vida e há coisas que deviam ser vistas e ouvidas.

Max agarrou-se ao braço de Tom, empolgado.

- Você compreende perfeitamente aonde é que eu estou a tentar chegar. - De repente, bateu na testa. - Acabo de ter uma inspiração inacreditável. Olhe, você sabe escrever, já viu muita coisa por esse mundo fora ... Você e a minha guionista deviam associar-se, quero dizer, para fazerem a pesquisa para a história desta viagem. Deviam trocar apontamentos, contar um ao outro as histórias que ouviram. E não estou a dizer que vai trabalhar de graça. Eu pago. Acho muito bem que escreva a sua história, mas o mesmo material que anda a reunir para escrever a sua história pode servir de ajuda à minha guionista para escrever o enredo do filme. Perfeito. Matamos dois coelhos de uma cajadada. Entende?

Tom acenou afirmativamente com a cabeça, embora não estivesse a perceber como é que se encaixava naquela conversa o rapaz do auricular. Mas, para sua surpresa, Max passou pelo compartimento do dito fulano do auricular, seguiu até ao compartimento seguinte e bateu no vidro.

- Estás apresentável? É o Max.

A porta abriu-se, e Tom ficou sem respiração. Tinha à sua frente Eleanor Cárter!

- Eleanor Cárter, Tom Langdon. Tom, Eleanor - disse Max, fazendo as apresentações.

Tom e Eleanor ficaram a olhar um para o outro durante tanto tempo que Max acabou por perguntar:

- Vocês já se conhecem?

- Há uns anos - respondeu Eleanor rapidamente.

Estava mais encantadora do que da última vez que Tom a vira e já naquela altura o era bastante. Era alta e esbelta, continuava com o cabelo castanho pelos ombros e sexy. O rosto, bem, tinha algumas rugas, mas os grandes olhos negros continuavam a censurá-lo violentamente e levaram Tom a desejar encontrar uma cadeira para se sentar antes de cair redondo no chão. Eleanor estava de calças de lã cinzentas, sapatos modernos de salto baixo e camisola branca, com o colarinho de uma camisa azul por fora.

- Como tens passado? - perguntou Eleanor friamente.

- Tenho andado a trabalhar. A maior parte das vezes, durante o último ano, aqui nos Estados Unidos - conseguiu Tom dizer.

- Eu sei. Li o artigo que escreveste para o Jornal de Arquitectura acerca do mobiliário Duncan Phyfe. Foi o primeiro artigo sobre móveis antigos que me fez rir. Estava bom.

Tom sentiu um aperto no estômago e a garganta secou-lhe quando aqueles enormes olhos de esmeralda o penetraram. A sensação de morte iminente foi, de certo modo, consoladora, desde que o final fosse rápido e relativamente indolor.

- Já sei que és guionista - conseguiu finalmente articular.

- É um dos segredos mais bem guardados de Hollywood - disse Max. - Tirou o mestrado de guionista. Sabe o que acontece quando um guião tem problemas graves e é preciso um milagre? Eleanor corrige-o por magia. E eu acabei por lhe dizer para fazer um guião original.

- Não me surpreende. Ela sempre escreveu muito bem.

Tom não ouviu nada em resposta ao elogio. Sentia os pés pesados como chumbo.

- Afinal, o que é que queria de mim, Max? - perguntou Eleanor. Era óbvio que ela não queria reviver o passado. Queria pôr um ponto final rápido naquilo tudo, ou seja, em Tom.

Max explicou-lhe a sua «ideia brilhante», enquanto Tom permaneceu de pé a pensar se devia atirar-se para baixo das rodas do Cap. Viu-se perfeitamente que Eleanor não ficara nada satisfeita com a ideia luminosa do realizador, no entanto disse:

- Deixe-me pensar nisso, Max.

- Com certeza. Olha, eu digo-te como fazemos. Mais logo, podemos ir tomar um copo. Disseram-me que se bebe bem neste comboio.

- É verdade - disse Tom. - De facto, o comboio é todo um bar - acrescentou, gracejando. Olhou para Eleanor, mas ela estava simplesmente a olhar para longe.

- Então, está combinado. Vamos tomar um copo. A que horas? Às oito? - perguntou Max.

- Está bem. Aqui também servem jantares. Tenho uma reserva para as sete, sabem? - disse Tom olhando para Eleanor, tentando levá-la a dizer que ia jantar com ele.

- Almocei tarde em Washington - disse ela. - Não janto.

- Sim, Tom, jantar também não me faz bem- disse Max. - Tenho uns telefonemas para fazer.

- Bem, veja lá, não morra de fome.

- Não se preocupe. Kristobal trouxe as comidinhas de que eu gosto. Na verdade, gosto mais de petiscar.

- Quem é Kristobal?

- O meu assistente. Vai aí ao lado - disse Max, apontando para o compartimento onde Tom vira o tipo do auricular.

Ao ouvir o seu nome, Kristobal saiu do quarto e perguntou:

- Precisa de alguma coisa, Mr. Powers?

- Não, estou bem. Este é Tom Langdon. Pode ser que venha ajudar-nos no nosso projecto.

Kristobal era jovem, belo e bem constituído. Provavelmente, ganhava mais numa semana do que Tom num ano. Além disso, parecia eficiente e inteligente, e, por todas essas razões, Tom antipatizou imediatamente com ele.

- Óptimo - disse Kristobal.

Tom estendeu a mão e cumprimentaram-se.

- Bom, está combinado - disse Max. - Eleanor vai pensar no assunto e vamos todos tomar um copo às oito. E agora tenho de ir fumar antes que comece a ficar superagitado - continuou, olhando em redor, sem atinar com o caminho.

- É por ali, no piso inferior, duas carruagens adiante. Atravesse o restaurante, entre na sala de estar, desça as escadas, vire à direita e logo vê a porta onde está escrito «Sala de fumo».

- Obrigado, Tom, você é uma jóia. Sei que isto vai resultar. É um bom pressentimento. «Um encontro de sorte», disse o homem que me leu a sina. E olhe o que me aconteceu! - Meteu o cigarro na boca e afastou-se apressadamente.

Kristobal regressou ao seu compartimento, e só então Eleanor e Tom ficaram a sós. Durante uns momentos, ficaram ali especados, recusando-se a olharem um para o outro.

- Não posso acreditar que isto está realmente a acontecer - disse Eleanor finalmente, abanando a cabeça devagar. - Com tanta gente que se encontra neste comboio ...

- Bom, a mim também me apanhou de surpresa - disse Tom. Depois, acrescentou: - Estás com óptimo aspecto, Ellie!

Os olhos de Eleanor pousaram nele.

- Não vou estar com rodeios. Max é um realizador muitíssimo dotado, mas às vezes sai-se com umas ideias disparatadas que não resultam. Estou convencida de que esta é uma delas.

- Bom, não quero que faças uma coisa contra vontade.

- Então, posso dizer a Max que não estás interessado?

- Se é isso que queres, Ellie, está bem.

- É exactamente o que quero - disse ela, voltando para dentro do compartimento e fechando a porta.

Ali de pé, Tom interrogou-se se seria demasiado tarde para obter o reembolso do bilhete de comboio baseado na recente ocorrência de ser um morto em pé.

Tom regressou ao seu compartimento a cambalear e deixou-se cair em cima da cama. Eleanor no mesmo comboio que ele? Não era possível. Nunca lhe passara pela cabeça partilhar a viagem de auto-descoberta com a pessoa cuja ausência da sua vida era provavelmente a principal causa que o levara a fazer a maldita viagem. E, contudo, de quem era a culpa da ausência dela? Ele nunca lhe pedira para ficar, pois não?

Quando se sentou e olhou para a escuridão lá fora, deixou de repente de estar no comboio que se dirigia para Chicago. Estava em Telavive. Escolhera aquela cidade devido à sua proximidade do Aeroporto Ben Gurion, o que significava nunca estarem a mais de duas horas de avião do género de histórias que Eleanor e Tom tinham para cobrir. No Médio Oriente, tudo se previa e tudo era imprevisível. Sabia-se que algo iria acontecer, mas não se sabia onde nem em que moldes.

Durante os anos que tinham vivido em Israel, haviam andado pelo país à procura de histórias. Tinham visitado Jerusalém e nadado no Jordão. Tinham-se também aventurado a ir até Belém porque Eleanor quisera ver o lugar onde o Filho de Deus nascera e entrara no mundo pecador. Embora Tom não fosse particularmente religioso, o acontecimento fazia-o sentir-se também humilde.

Os dois jornalistas americanos pertenciam a um grupo muito restrito em Israel que celebrava o dia mais santo das festas cristãs. Todos os anos faziam uma pequena árvore de Natal no apartamento, preparavam uma ceia natalícia e abriam presentes. Depois, contemplavam a escuridão do Mediterrâneo, viam a paisagem e aspiravam os cheiros do clima desértico antes de adormecerem nos braços um do outro. Aqueles natais em Telavive tinham sido das coisas mais maravilhosas da vida de Tom. A excepção do último.

Eleanor saíra do apartamento para fazer umas compras de última hora. Quarenta minutos depois, regressou e disse que queria voltar para casa, que estava cansada de cobrir os perigos daquele mundo estranho. A princípio, Tom pensou que ela estava a brincar, mas ela começou a fazer as malas e depois telefonou para a agência para arranjar um voo de regresso. Tentou também reservar um bilhete para Tom, mas ele recusou-se e disse que não partia. Uma hora antes, tudo lhe parecera maravilhoso e naquele momento toda a sua vida ruiu.

Tom perguntou-lhe o que é que a fizera tomar aquela grande decisão, capaz de alterar uma vida inteira sem se dar ao trabalho de o consultar. A única resposta que ela lhe deu foi que era altura de voltar para casa. Começaram por falar e depois a conversa transformou-se em discussão, e daí para diante foi de mal a pior. Quando ela acabou de fazer as malas, estavam a gritar um com o outro, e Tom ficara tão confuso e magoado que desde então não conseguia lembrar-se de metade do que dissera.

Eleanor apanhou um táxi para o aeroporto, e Tom foi atrás dela. Finalmente, chegou o momento de ela entrar para o autocarro que a levaria ao avião. Foi então que Eleanor, num tom de voz calmo, pediu uma vez mais a Tom para ir com ela. Se realmente a amava, teria de ir com ela. Ele lembrava-se de ter ficado especado, de lágrimas nos olhos, sentindo apenas uma profunda teimosia alimentada de raiva. Disse-lhe que não, que não ia. Viu-a subir as escadas do avião e voltar-se para trás uma vez com uma expressão tão triste, tão infeliz, que quase chamou por ela para lhe dizer que esperasse, que ele ia. Mas as palavras não lhe saíram. Em vez disso, deu meia volta e deixou-a, tal como ela estava a deixá-lo.

Fora a última vez que vira Eleanor, até há cinco minutos antes. Continuava a não ter ideia do que acontecera para a levar a ir-se embora. E continuava a não ter uma explicação racional para não ter ido com ela.

O calor do compartimento, o zumbido e o chiar das rodas, a sua mente exausta e a escuridão exterior combinaram-se para o empurrar para um sono agitado.

O que quer que fosse devia ter batido directamente na carruagem-cama de Tom. Fez um grande estrondo, parecia uma bala de canhão a bater de lado. Tom quase caiu da cama. Viu as horas. 6.30. Deviam estar a abrandar a marcha. Depois, o poderoso Capitol Limited parou completamente e, olhando para fora da janela, Tom viu que estavam longe da civilização. Sentiu um cheiro a queimado.

Na escuridão exterior, viu luzes aqui e ali enquanto o pessoal do comboio verificava os estragos.

Tom saiu para o corredor e viu o padre Kelly.

- Ouviu aquilo? - perguntou o padre.

- Acho que chocámos com qualquer coisa. Talvez houvesse qualquer coisa na linha e o comboio lhe tenha passado por cima - respondeu ele.

Regina passou por eles com um ar preocupado, levando um enorme maço de jornais enrolados.

- Então, Regina, o que é que aconteceu?

- Batemos contra qualquer coisa, tenho a certeza. Mas vamos seguir viagem dentro de pouco tempo.

- Estou a ver que está muito interessada na leitura - disse Tom, olhando para os jornais.

- Alguém os meteu na lata do lixo. Não sei de onde vieram. O único jornal deste comboio é o Toledo Blade e só o recebemos amanhã de manhãzinha - disse ela, afastando-se.

Tom estava a começar a ficar preocupado com um eventual atraso na chegada. Pareceu-lhe que era o que ia acontecer. Quando Twain era vivo, uma viagem de três mil quilómetros na mala-posta, desde St. Joseph, no Missuri, até à Califórnia durava cerca de vinte dias. Embora Tom tivesse de percorrer mais mil e quinhentos quilómetros do que Twain, estava a ser transportado por algo um pouco mais potente do que a força de um cavalo, mas mesmo assim começava a pensar em pequenas ilhas onde pudesse esconder-se de Lelia quando não aparecesse para passar o Natal.

Agnes Joe juntou-se-lhes. Continuava de camisa de noite, mas agora com um roupão por cima.

- Chocámos com qualquer coisa - disse ela.

- É o que parece - disse Tom, procurando espaço para passar por ela, mas quando Agnes Joe se voltou de frente para ele, chegou à conclusão de que o corpo dela ocupava realmente toda a largura do corredor. A Amtrak precisava de mandar fazer os comboios mais largos, a contar com o tamanho dos Americanos.

Agnes tirou uma maçã do bolso e começou a comê-la ruidosamente.

- Lembro-me de uma vez há três, não, há quatro anos, em que estávamos mais ou menos neste sítio quando ouvimos um barulho e o comboio parou.

- Ai sim? E o que é que aconteceu? - perguntou Tom.

- Porque é que não vêm até ao meu compartimento, instalam-se confortavelmente e eu conto-lhes?

O padre Kelly e Tom entreolharam-se, e depois o padre procurou a segurança da sua toca e deixou o repórter por sua conta. «E é este o apoio que a Igreja oferece em tempos de crise!», pensou Tom.

- Bem, eu gostava, mas tenho de ir arranjar-me para o jantar. Tenho mesa reservada para as sete.

- Eu também.

O olhar que ela lhe deitou, levou Tom a pensar que, na verdade, tinha algum interesse por ele. Apenas foi capaz de lhe fazer um ligeiro sorriso quando finalmente conseguiu encolher-se e passar por ela, sentindo-se a salvo dentro do seu compartimento. Fechou a porta à chave, correu a cortina e teria empurrado a cama contra a porta se ela não estivesse presa à parede.

Mais tarde, quando dava uma vista de olhos à carruagem-restaurante, o pensamento de Tom fugiu-lhe novamente para a Intriga Internacional. No filme, ao fugir da Polícia e do maquinista, Cary Grant - um pobre foragido à justiça que por isso não tinha bilhete - entra na elegante carruagem-restaurante. O chefe de mesa, muito bem vestido, leva-o até à mesa de Eva Marie Saint, arrebatadoramente atraente. Vem a saber-se que ela tinha dado uma gorjeta ao empregado para sentar Cary junto de si. Era o que as mulheres bonitas sempre faziam a Cary Grant... Eva Marie faz, ali mesmo à mesa, uma espécie de sofisticada conversa de preliminar numa cena de filme erótico como jamais se vira. Naquele momento, no papel de Eva Marie, Tom só conseguiu ver Eleanor. E não era patético, perguntou a si próprio, que não houvesse qualquer possibilidade de se tornar realidade?

Ficou sentado à frente de duas pessoas, um homem de meia-idade de fato e gravata e uma mulher que, infelizmente, não se parecia nada com Eleanor nem Eva Marie. Do outro lado da sala, estavam Steve e Julie conversando em voz baixa e parecendo ainda muito nervosos.

O assunto do comboio parado dominava as conversas.

- Este é o segundo comboio em que estive esta semana onde aconteceu qualquer coisa - disse a mulher sentada em frente de Tom. Apresentou-se como Sue Bunt, do Wisconsin. Tinha cinquenta e qualquer coisa anos, era alta e forte e usava o cabelo muito curto.

- Então? - perguntou o homem de fato sem se apresentar.

- Não costumo viajar de comboio, mas os aviões deixaram de ser convenientes para o meu circuito - explicou ela.

- O que é que faz? - perguntou Tom.

- Sou delegada comercial de uma companhia de comida macrobiótica - disse ela, barrando o pão com uma grande quantidade de manteiga.

- Boas-festas! - disse a empregada, que apareceu e os presenteou com umas tacinhas com uma gemada de boas-vindas, uma tradição do Cap, segundo explicou.

- Boas-festas! - retorquiram eles, e depois Sue pediu informações à empregada sobre a situação do comboio.

- O condutor disse que íamos estar em forma e a caminho dentro de pouco tempo. Passámos apenas por cima de qualquer coisa que estava na linha.

Fizeram os pedidos. Tom pediu uma costeleta do lombo e uma bebida como aperitivo. Estava a levar o cocktail à boca quando se sentiu empurrado para o lado contra a parede da carruagem. Voltou-se e viu Agnes Joe a forçar um lugar junto dele, deixando-lhe cerca de quinze centímetros para comer o seu jantar.

- Olá, Agnes Joe! - disseram o homem e Sue em uníssono. Quando Tom olhou bem para ela, ficou surpreendido. Agnes Joe

arranjara o cabelo, tinha o rosto maquilhado e não parecia tão velha. A transformação fora tão perfeita que Tom ficou a olhar.

- Olá, Agnes Joe! - disse a empregada. - Quer o mesmo de sempre?

- Boa ideia. Traga também cebolas.

- Pelo que vejo, você viaja muito de comboio - disse Tom quando a empregada se afastou.

- Olhe, eu amo este comboio e as pessoas que viajam nele. Durante algum tempo, andei de avião. Para dizer a verdade, tenho o brevet de aviação comercial, mas prefiro os comboios.

Para Tom, a visão de Agnes Joe enfiada dentro da carlinga de um Cessna de dois lugares com os dedos fortes à volta do manche e os pés enormes em cima dos pedais pareceu-lhe uma alucinação.

Pediu outra bebida para suavizar o efeito da primeira, saboreou a costeleta, que estava óptima, e olhou em redor. Numa das mesas, uma afro-americana aceitava os avanços de um belo jovem coreano. Noutra mesa, um grupo de executivos jantavam com a mulher das cartas taro, que as espalhara em frente dos restos de frango. Era a união fácil do poder comercial com as caprichosas cartas taro após um bom festim. Talvez um comboio tivesse mesmo algo de especial, reflectiu Tom, deslumbrado.

 

                                       CAPÍTULO CINCO

Logo que o jantar acabou, Tom apressou-se a ir até à sala de estar, e não demorou muito tempo a saber que esta era conhecida por todos os passageiros habituais como carruagem-bar. Tyrone preparou-lhe uma bebida, e ele sentou-se com ela no piso superior. O comboio ainda não estava em movimento, mas, pelo menos, já não cheirava a fumo.

A televisão estava ligada e a passar o filme O Grinch que Roubou o Natal, e um bando de miúdos com os respectivos pais tinham-se reunido à frente do aparelho para o ver. Noutros cantos da carruagem, encontravam-se pequenos grupos a conversar e a beber, e algumas pessoas mais introvertidas olhavam para a sua própria imagem reflectida na escuridão das janelas. Tom foi bebendo o seu gin e concentrou a atenção num grupo de adultos sentados perto de si. Um homem lia, uma senhora tricotava e outra pessoa ouvia música com auscultadores.

- Vão passar o Natal a algum sítio? - perguntou ele, fazendo o que esperava ser uma expressão amistosa. Achava que o gin fazia sempre uma pessoa parecer descontraída e feliz, embora um tanto toldada.

A senhora que ia a tricotar levantou os olhos e sorriu.

- South Bend, no estado de Indiana. Vou passar a quadra de Natal com o meu neto. Provavelmente, vou acabar por cozinhar, fazer limpezas e lavar-lhe a roupa. Mas não me importo. São tarefas de avó. E sendo Natal, quem é que gosta de ficar sozinha?

- Sou da mesma opinião - disse Tom, apresentando-se em seguida.

A senhora esticou-se e apertou-lhe a mão.

- Pauline Beacon. Você vive mesmo em Washington?

- Sim, em Washington.

- Não sei como vocês aguentam lá o trânsito! - Quem falou foi um homem que estivera a ler um livro. Tinha uns quarenta e cinco anos, o cabelo a escassear e era um pouco balofo. - Eu estou de regresso a Toledo. Fui a Washington tratar de negócios e tive de alugar um carro e andar às voltas naquela circular que vocês têm. Não sei como é que se arranjam. É o mesmo que andar no Oeste Selvagem sobre rodas. É de endoidecer. - Abanou a cabeça. - Chamo-me Rick - disse, sorrindo. - Trate-me por Toledo Rick.

- Posso concluir que gostam de comboios? - perguntou Tom.

- De avião é que eu não gosto de andar - disse Pauline. - Os comboios fazem-me lembrar a minha infância. E você?

- Eu já andei muito de avião - disse Tom. - Mas estou a ficar cansado. Pensei que devia experimentar uma maneira mais civilizada de viajar.

- Bem - disse Rick -, normalmente, também ando de avião, mas achei que era boa ideia comprar um bilhete de comboio. - Franziu o sobrolho e acrescentou: - Só que agora não me parece ter sido uma ideia assim tão boa, mas, pelo menos, vou estar em casa a passar esta quadra.

- Tem família?

- Mulher e seis filhos. Quatro são adolescentes, e três deles são raparigas. Não consigo perceber nada do que lhes diz respeito.

Nesse momento, Agnes Joe entrou com uma cerveja na mão e instalou-se junto deles. Não se apresentou. Tal como no restaurante, parecia que toda a gente já a conhecia.

- E você, Tom? - perguntou Rick. - Para onde é que vai? Tem família?

- Na verdade, não tenho ninguém - respondeu Tom, abanando a cabeça.

- Ora, toda a gente tem família algures - disse Pauline.

- Nem toda a gente - retorquiu Agnes Joe. - Eu também sou uma solitária.

- Eu não disse que era solitário. Sou jornalista. Andei por todo o Mundo. Devo ter amigos nuns sessenta ou setenta países diferentes.

- Amigos são amigos, mas família é família - declarou Pauline com certa razão.

- É divorciado ou nunca casou? - perguntou Agnes Joe, olhando para o dedo dele sem aliança, em resposta ao olhar surpreendido de Tom.

- Divorciado, embora o meu casamento tenha sido tão breve que nunca cheguei a sentir-me realmente casado.

- Bem, então, é óbvio que não casou com a pessoa certa - disse Pauline.

- Como é que se tem a certeza disso? - perguntou Toledo Rick.

- De muitas maneiras - aventurou-se Agnes Joe. - Primeiro que tudo, porque se sente. Por exemplo, uma pessoa não se interessa por comer, beber, dormir ou até respirar desde que esteja com essa pessoa. - Deitou um olhar a Tom. - Alguma vez sentiu isso por alguém?

Olharam todos para Tom à espera da resposta.

- Bem, isto está a tornar-se um bocado íntimo - disse ele evasivamente.

- Olhem, não há dúvida de que um comboio é um sítio especial- observou Pauline com um sorriso, ao mesmo tempo que tricotava desembaraçadamente uma malha e apanhava duas.

Tom olhou pela janela durante um momento.

- Como é que ela se chamava? - perguntou Agnes Joe em voz baixa.

- Eleanor - disse ele finalmente.

- Não a vê há muito tempo?

- Para falar verdade, vi-a não há muito tempo. Mas o que passou, passou. Vou a caminho de Los Angeles passar o Natal com a minha namorada, Lelia.

- É actriz ? – perguntou Pauline, excitada.

- De certo modo, sim. Já viram Cuppy, o Castor Mágico, na televisão ao sábado de manhã?

Pauline olhou para ele sem compreender e deixou cair uma malha ou duas do tricô. Tom resolveu deixar morrer o assunto.

Todos viraram a atenção para um dos assistentes vestido de Pai Natal, que entrou na sala de estar. Como um relâmpago, todos os miúdos, mesmo os mais velhos, puseram o Grinch de parte e rodearam o homem de fato vermelho.

- Que simpático! - disse Tom quando o Pai Natal distribuiu doces por toda a gente.

- Fazem isto todos os anos - elucidou Agnes Joe.

Tom olhou para ela. Lembrou-se então de que Regina lhe dissera que Agnes Joe andava muito de comboio, que ia visitar a família, pensava ela. E, no entanto, Agnes Joe acabara de confessar que era uma solitária. Então, para onde ia ela quando viajava em todos aqueles comboios?

- Você vai mesmo até Chicago? - perguntou-lhe ele.

- Sim, vou.

- Vai lá passar o Natal?

- Não. Vou para Los Angeles no Southwest Chief. Como você. «Agnes Joe durante cerca de dois dias no Chief!», pensou Tom,

perguntando a si mesmo o que aconteceria se saltasse do comboio naquele momento enquanto ainda não estava em movimento. Precisamente quando ia falar, o Cap deu um solavanco e começou novamente a andar. Ouviu-se uma aclamação, seguida da voz de alguém que prestava assistência aos passageiros: «Pedimos desculpa pela demora, mas está tudo sanado. Temos uma equipa técnica à nossa espera na próxima estação. Vamos fazer uma paragem de certa demora para nos certificarmos de que está tudo bem e depois seguimos normalmente. Já fizemos os contactos necessários para que ninguém perca as respectivas ligações. Agradecemos a vossa compreensão.»

Toledo Rick e Pauline pediram licença e saíram.

Agnes Joe inclinou-se, de modo a ficar mais perto, e disse:

- Do Southwest Chief podemos desfrutar de paisagens maravilhosas das montanhas e planícies. A caminho da costa, o comboio atravessa oito estados.

- Que interessante! - disse Tom, convencido de que ela lhe revistara o compartimento e encontrara o bilhete dele do Chief. Resolveu então montar uma armadilha por cima da porta do seu compartimento usando o objecto mais pesado que conseguisse arranjar.

- É uma boa viagem. Uma boa maneira de chegar a Los Angeles.

- É mesmo - disse Tom, pousando a bebida. - Então, o que é que vai fazer a Los Angeles?

- Tenho lá amigos. Visitamo-nos uns aos outros no Natal. Este ano é a minha vez de ir para oeste.

- Parece-me uma bela tradição. Regina disse-me que viaja muito de comboio. E parece que todas as pessoas a conhecem.

- Eu gosto de fazer amizades. Sempre fui assim. Lá por uma rapariga ser pequena e naturalmente tímida, não quer dizer que tenha de ser uma flor de estufa acabrunhada.

Ao princípio, Tom pensou que ela estava a falar a sério, mas depois Agnes sorriu da sua própria graça, e ele concluiu, relutantemente, que ela não era tão má como ele julgava. Se se conservasse afastada dos seus rins e bens pessoais, tudo iria correr bem.

- E então essa rapariga que você vai visitar é coisa séria?

- Depende do que você considera sério - respondeu Tom. - Já lá vão três anos, mais ou menos, desde que começámos a passar uns tempos juntos de quando em quando.

- De quando em quando? É à moda da Califórnia?

- É à nossa moda.

- Bem, eu não o aconselhava a casar-se. Já experimentei duas vezes e nenhuma delas resultou.

- Tem filhos?

- Tenho uma rapariga, já adulta, evidentemente. É filha do meu primeiro casamento. Conheci o meu marido número um quando trabalhámos ambos nos Irmãos Ringling. Eu era uma das artistas. Andava a cavalo, fazia ginástica e até fui equilibrista quando era jovem.

- No trapézio?!

- Naquele tempo, eu era um pouco mais leve - disse ela, fitando-o. - A minha filha ainda trabalha no circo.

- Vê-a muitas vezes?

- Não.

Ao dizer aquilo, Agnes agarrou na cerveja e foi-se embora. Tom deveria ter ficado aliviado, mas não ficou. Aquela mulher estava a subir na sua consideração, talvez não pelas razões mais agradáveis, mas a subir. E havia inconsistências no passado dela que intrigavam o jornalista de investigação que existia dentro de si.

Ficou ali sentado e sentiu o comboio atravessar velozmente o Túnel Graham e pouco depois abrandar ao aproximar-se de Cumber-land, no estado do Maryland. Com desenvoltura, o Cap desceu pelo meio da rua principal da cidade.

Dentro de pouco tempo, iriam entrar na Pensilvânia. Ali, as fronteiras do estado tinham uma configuração estranha, de modo que em certos locais a locomotiva e a cauda do comboio podiam encontrar-se no Maryland, enquanto as suas carruagens do meio se encontravam na Virgínia Ocidental.

Quando estava sentado a olhar para a neve a cair, entraram Elea-nor e Max, seguidos pelo fiel Kristobal. Tom respirou fundo, acabou a bebida e pensou pedir ao seu amigo Tyrone uma série de cocktails. Achou que ia precisar de todas as gotas de álcool possíveis para sobreviver àquilo.

Eleanor trazia uma saia comprida azul-esverdeada, uma camisa de sarja branca e uma corrente à volta da cintura fina. Prendera o cabelo em cima. Talvez, pensou Tom, tivesse tomado um duche com a água fumegante e o sabão a escorrer-lhe pelo longo e curvilíneo ... não, não podia de modo nenhum ir por ali se queria manter a sanidade mental. Contudo, o facto de ela se ter refrescado e estar ali para se encontrar com ele foi maravilhosamente reconfortante até ao momento em que reparou na expressão dela. «Suicídio», foi o que lhe ocorreu.

- Tom! - chamou Max num tom entusiástico que apregoava a sua riqueza e alegria de viver. - Desculpe chegarmos atrasados. Eleanor e eu tivemos umas coisas a acertar. Caramba, até agora foi cá uma viagem!

- Bem, pelo menos já estamos a caminho - disse Kristobal, olhando a escuridão lá fora.

- É a primeira vez que viaja de comboio, Kristobal? - perguntou Tom.

- E espero que seja a última.

- Ele pertence a outra geração - disse Max, dando uma palmada brincalhona no braço do assistente. - Não é homem de comboios, não é como você e eu.

- Bem, Ellie e eu andámos bastante de comboio quando estávamos noutro continente - disse Tom. - Lembras-te, Ellie?

- Agora, tratam-me por Eleanor. E, não, na verdade não me lembro.

O gin aquecera Tom desde a ponta dos pés até à boca, que se transformara num pequeno canhão de oitenta milímetros.

- Com certeza. Não há dúvida de que é uma coisa do passado, Ellie. Fora o passado. Viva o presente e o progresso. - Olhou para Max. - Ia a dizer que Eleanor e você tinham conversado.

- Sim, discutimos o assunto. E, se quiser, vocês dois podem começar imediatamente.

- Eu pensei... - disse Tom, confuso, olhando para ela.

- Quando Max fica excitado com alguma coisa, o entusiasmo dele alastra rápida e avassaladoramente - explicou ela em voz tensa e sem o olhar de frente.

- Bem, como é que vamos começar? - indagou Tom simpaticamente.

- O que é que você descobriu até agora? - perguntou Max. Tom recostou-se e pegou no copo com a mão aberta.

- Bem, há a bordo uma mulher disparatadamente louca chamada Agnes Joe. Pesa mais do que eu e, contudo, trabalhou em tempos no trapézio com os irmãos Ringling. - Apontou para Steve e Julie. - Aqueles dois vão casar-se a bordo do Southwest Chief. E, olhe, Elvis Presley ressuscitou na pele de um negro chamado Tyrone que serve uma bebida forte a que chamam Boiler Room na sala de estar. E há um padre a bordo que poderá ter de ministrar-me os Últimos Sacramentos se não chegarmos a Los Angeles a horas, porque a minha namorada mata-me.

Ao dizer aquilo, Tom olhou de frente para Eleanor. Afinal de contas, fora ela que o abandonara. Ela pestanejou. Na verdade, a dama pestanejou. Tom não percebeu se era uma reacção ao que ele dissera, mas aquilo animou-o um pouco.

- Uau! - disse Max. -Você já fez bastante.

- Uma vez jornalista de primeira qualidade, sempre jornalista de primeira qualidade. Tal e qual Ellie, ou seja, Eleanor.

- Na verdade, ela nunca falou dessa parte da vida dela. Eleanor interrompeu Max.

- Talvez Tom e eu devêssemos começar a trabalhar, Max. Não temos assim tanto tempo. Pode ser que eu tenha de sair em Chicago e apanhar o avião para Los Angeles. É um problema pessoal, Max, que acaba de surgir.

«Aposto que surgiu e que sou eu», pensou Tom, pousando a bebida. Max não pareceu satisfeito com a mudança de planos de Eleanor, mas depois olhou para Steve e Julie.

- Você disse que eles iam casar-se no Chief?

Tom contou o que se passava com as respectivas famílias.

- Coitada da rapariga! - disse Eleanor, lamentando com sinceridade. - Não é assim que se fazem os casamentos.

Enquanto se discutiam casamentos, Tom deitou um olhar rápido à mão de Eleanor. Não tinha aliança nem anel de noivado. Era difícil acreditar que não tivesse encontrado alguém.

- Então, qual é o ângulo do teu guião? - perguntou a Eleanor.

Não percebia nada da indústria cinematográfica, mas pôs-se a tentar dar ares de empresário de cinema amadurecido.

- Depende do que virmos a bordo. Max quer uma comédia romântica, mas eu inclino-me para um policial com uma boa dose de mortos.

- Porque não ambas as coisas? Se for bem feito, não há nada mais engraçado do que um monte de cadáveres dentro de um comboio.

Max apontou para Tom e olhou para Eleanor.

- Vês? Eu gosto deste tipo. É do melhor. Já alguma vez pensou em escrever para cinema, Tom?

- Até há cerca de duas horas atrás, não - respondeu Tom, olhando para Eleanor.

- Não é tão fácil como parece - disse ela.

- Ora, o que é que é fácil? - retorquiu ele.

Max pediu licença e dirigiu-se a Steve e Julie, seguido de Kristo-bal. Começou a falar animadamente com eles, mas Tom não conseguiu ouvir nada. Contudo, devia ser qualquer coisa excitante, porque Steve e Julie pareciam estupefactos com o que quer que fosse que o realizador estava a dizer-lhes.

- Max está a tramar qualquer coisa? - perguntou Tom.

- É o costume - respondeu Eleanor.

- Eu nunca imaginaria que fosses parar a Los Angeles!

- Todos nós temos de ir parar a algum lado - disse Eleanor, levantando os olhos para ele. -Olha para ti! Não vieste de Beirute e foste trabalhar na Duncan Phyfe?

- Cobrir guerras é trabalho de jovens, e eu já não sou assim tão novo - disse Tom. - Além disso, de quantas maneiras se pode escrever sobre pessoas que se matam umas às outras? Esgotei os adjectivos todos há cerca de cinco anos.

- E conseguiste mudar o Mundo?

Embora a pergunta em si parecesse sarcástica, a maneira como ela a fez não o foi.

- Olha em volta e terás a resposta - disse Tom.

- Levaste mais tempo a chegar lá do que a maioria das pessoas. «Mais tempo do que tu», pensou Tom.

Eleanor fez uma pausa e depois perguntou:

- Como estão os teus pais?

- Já perdi ambos. A minha mãe muito recentemente.

- Lamento, Tom. Eram boas pessoas.

Tom pensou contar a Eleanor a razão por que viajava de comboio, mas acabou por decidir não contar. Deixara de haver intimidade entre ambos.

Viram Max e Kristobal afastarem-se apressadamente, deixando o estupefacto casal encalhado no seu remoinho.

- Por onde é que havemos de começar? - perguntou Eleanor finalmente.

- Parece-me bem começar por ali - respondeu Tom, apontando para Julie e Steve.

Depois de Tom lhes ter apresentado Eleanor, ora Steve, ora Julie explicaram, num tom de voz amedrontado, o que Max lhes propusera.

- Ele vai encarregar-se do acontecimento na totalidade, incluindo decorações. E também vai arranjar música - disse Julie.

- E paga as despesas todas - acrescentou Steve num tom aliviado. - Disse que ia tratar do assunto com a Amtrak.

- É mesmo o famoso realizador? - perguntou Julie.

- É - respondeu Eleanor. - E tem um coração quase tão grande como o ego - acrescentou.

- Sinto-me como se tivéssemos ganhado a lotaria - disse Steve, agarrando na mão da futura mulher.

- De que parte de Virgínia é você? - perguntou Eleanor a Julie.

- Provavelmente, nunca ouviu falar. Sou do Dickenson County.

- O meu pai foi viver para Clintwood High. Duas das minhas tias vivem em Grundy, na Virgínia.

- Fantástico! - disse Julie. - Nunca conheci ninguém que soubesse sequer onde fica.

- Eu cresci numa quinta tão pequena no Kentucky que podia fazer Clintwood High parecer uma metrópole - disse Eleanor, olhando para ambos. - Acho que é preciso serem valentes para fazer o que vão fazer.

- Não nos sentimos muito valentes - disse Steve, rindo nervosamente.

- Se vocês se amam mesmo, vão ficar surpreendidos com o que podem realizar.

- Você veio de onde eu vim, e olhe no que se transformou - disse Julie, agarrando a mão de Eleanor. - Põe-me louca o facto de os pais dele não compreenderem que não importa de onde se vem, mas para onde se vai.

- Você não vai casar-se com os pais de Steve - disse Eleanor. - E pode ser que eles pensem que ninguém é suficientemente bom para o filho deles, mas dê-lhes tempo e pode vê-los mudar de opinião. E, se não mudarem, quem perde são eles.

Nesse momento, entrou o padre Kelly e perguntou-lhes se queriam reunir-se-lhe na sala de estar do piso inferior, onde estava a decorrer um jogo de póquer com apostas altas. Suspenderam a conversa relativa ao casamento e dirigiram-se à secção dos adultos no bar.

 

Ao longo da sua vida, Tom entrara em muitos locais onde se jogava póquer a sério. Esses lugares costumavam ser frequentados por jornalistas reservados, de expressão fechada e mal pagos, à procura de um complemento de ordenado. À primeira vista, o grupo da sala de estar parecia bastante inocente, mas ele sabia que era do tipo que precisava de ser vigiado.

Como as «fichas» usadas no jogo não passavam de rodelas de batata frita, compraram vários pacotes e, aceitando o desafio de Tom, Eleanor até pediu um Boiler Room do bar de Tyrone. Bebeu-o de um só trago e sentou-se para jogar as cartas.

- Aquilo é possível? Você conhece bem aquela senhora? - perguntou Tyrone em voz baixa.

- Não tenho bem a certeza - respondeu Tom.

Puseram-se a jogar póquer, blackjack e gin rummy e acabaram quase com as mesmas batatas com que tinham começado e um monte de material não só para a história de Tom como para o filme de Eleanor. Um dos jogadores era um tipo com seis dedos que ganhou muito mais do que perdeu, e Tom desconfiou de que aquilo tivesse a ver com o sexto dedo, embora não pudesse prová-lo. Havia também um tipo asqueroso que fazia troça dos jogadores quando cometiam erros. Eleanor inclinou-se e sussurrou ao ouvido de Tom:

- Este tipo vai ser morto com requinte na primeira parte do filme. Quando se levantaram para ir embora, Tom sacou dos seus havanos e fez sinal ao padre Kelly, que se mostrara um exímio jogador de cartas.

- A sala de fumo chama-nos, padre.

Eleanor seguiu-os, embora Tom soubesse que ela não fumava; pelo menos na altura em que se davam, não fumava. Olhou para ela com uma expressão inquiridora.

- Max é que manda - disse ela, encolhendo os ombros. - Perdida por um, perdida por mil.

A maioria dos lugares da sala estavam ocupados, mas encontraram três cadeiras ao fundo. O padre Kelly e Tom acenderam os charutos ao mesmo tempo, e Eleanor recostou-se e fechou os olhos.

- Cansada? - perguntou Tom entre baforadas. - Ainda deves estar no horário da Costa Oriental.

- É verdade. Passei uma semana em Washington antes de partirmos.

- Quem é que tens em Washington?

- Alguém - respondeu ela sem abrir os olhos.

Tom baixou o seu havano e deixou o olhar vaguear. Alguém. Eleanor tinha alguém. E por que razão não podia ter alguém? Ainda era jovem, elegante e linda. E, de certo modo, ele tinha alguém.

O interesse de Tom por Eleanor começara no momento em que a vira na universidade. Quando ela passara por ele, achara que tudo o mais deixava de ter sentido e que só existiam os dois no Mundo inteiro. Não se tratava apenas da beleza dela, mas sim do porte, da maneira como falava, como olhava uma pessoa nos olhos e ouvia com atenção o que a pessoa tinha para dizer. Contudo, aconteceu ainda mais do que isso. Tal como Agnes Joe dissera, Tom deixou de interessar-se por comer, dormir ou até respirar, desde que Eleanor estivesse por perto. A sua maneira de ser tornava-a atraente. Tinha opiniões muito suas e defendia-as com uma firmeza terrível. Quase sempre uma zanga entre ambos era seguida por um toque suave da mão dela e pelos lábios dela de encontro aos seus, porque, finalmente, ele conquistara-lhe o coração em detrimento de vários rivais.

A meditação de Tom foi interrompida por um homem que apareceu à porta. Tinha um metro e oitenta de altura, cerca de vinte e cinco anos e era magro. Avaliou-os a todos com um ar superior. Tinha uma barbicha à moda e usava umas calças de ganga desbotadas, e, no entanto, a camisa de seda era de marca. Um pateta alegre, deduziu Tom.

Debaixo do braço, trazia um tabuleiro de xadrez e uma caixa com as peças. Tom viu-o montar a tenda metodicamente e, durante a hora que se seguiu, derrotar todos os que se apresentaram para jogar. O tipo era bom, mesmo bom. Em média, cada partida demorava dez minutos. Após cada derrota, quando o adversário se retirava envergonhado, ele ria-se. Depois, chamava em voz alta, num tom condescendente:

- A próxima vítima!

Se Tom tivesse qualquer possibilidade de derrotar o tipo, teria ido ter com ele, mas até o jogo das damas era de grande dificuldade para ele.

Passado algum tempo, o padre Kelly saiu. Tom não esperava vê-lo regressar porque fumara bastante.

- Se tivesse de dizer missa agora, não sei se conseguiria. Nem tenho bem a certeza de poder dizer-vos quantos elementos tem a Santíssima Trindade.

Tom desejou-lhe uma boa noite e depois viu Eleanor levantar-se e desafiar o rei do xadrez, cujo nome, como ficaram a saber, era Slade. Todos os olhos se viraram para ela quando se sentou à frente daquele homem odioso e fez a primeira jogada. Tom já nem se recordava se Eleanor jogava xadrez, mas depois lembrou-se. Quando viviam em Israel, tinham-se tornado amigos de um rabi que era um jogador de xadrez excepcional. Ele ensinara a Eleanor uma estratégia infalível.

Ao fim de três jogadas, Tom viu Eleanor sorrir subtilmente e deu consigo a retribuir-lhe o sorriso conspirador. Quatro jogadas depois, o poderoso Slade olhava, incrédulo. Eleanor dera-lhe um xeque-mate; o rei dele não podia ser movimentado para lado nenhum. Os fumadores aclamaram-na de pé. Estimulado pela bebida e pela emoção, Tom bateu as palmas até ficar com as mãos vermelhas. Slade agarrou no tabuleiro e nas peças e pôs-se a andar, murmurando qualquer coisa acerca da sorte dos principiantes. Se Eleanor não tivesse alguém em Washington, Tom tê-la-ia provavelmente beijado.

 

                                 CAPÍTULO SEIS

A pessoa que entrou no compartimento de Tom ia vestida de preto e decidida a roubar uma caneta que parecia cara. A seguir, foi surripiada a cruz de prata do padre Kelly. Depois, o ladrão passou rapidamente para as outras suites da primeira classe e deitou a mão à mola das notas de ouro de Max, à escova de prata de Eleanor e aos óculos escuros de marca de Kristobal. O último alvo foi a suite de Gordon Merryweather, onde o ladrão roubou o relógio, dinheiro e o palm top do advogado. Os roubos levaram ao todo dez minutos, e na altura em que Regina apareceu no corredor, já o ladrão desaparecera.

Tom e Eleanor ficaram a conversar lá fora, à porta da sala de fumo.

- Deste baile ao tipo! Ficou com cara de parvo - disse Tom, dando-lhe um abraço que ela só retribuiu parcialmente. - Graças a Deus pelo rabi de Telavive que jogava xadrez! Como é que ele se chamava?

- Não me lembro - respondeu ela calmamente.

Tom fitou-a, e toda a sua boa disposição se derreteu. Rabi Qualquer Coisa, Telavive, a cena do último encontro, ou seja, a batalha

504

final sangrenta. Não devia fazê-lo, sabia que não devia fazê-lo, mas, de qualquer maneira, ia fazê-lo. Perguntou:

- Podes dizer-me agora, visto que tiveste todos estes anos para pensar, porque fugiste de mim?

- Estás a dizer que não sabes porquê?

- Como é que podia saber? Nada do que disseste fez o menor sentido.

- Porque não estavas a ouvir, como de costume.

- Isso é uma desculpa, e tu sabe-lo bem.

- Não sou obrigada a ficar aqui de pé a ouvir-te divagar como um louco.

- Tens razão. Senta-te no chão, e eu continuo. Tive anos para me preparar. De facto, posso continuar a divagar até o velho Southwest Chief chegar ao oceano Pacífico daqui a três dias.

- Eu percebi que isto ia acontecer. Logo que te vi. Não mudaste nada.

- Porque é que fugiste de mim?

- Tom, se nesta altura ainda não percebeste porquê - disse Eleanor, abanando a cabeça com ar cansado -, então não há nada que eu possa dizer que te esclareça.

Ele olhou-a fixamente.

- Desculpa, estou um tanto enferrujado no que diz respeito ao código do discurso feminino. Podes ajudar-me a compreender? Que raio acabas de dizer?

- Mesmo passados todos estes anos, ainda não conseguiste!

- Consegui o quê?

- Crescer - disse ela bruscamente.

Antes de Tom poder responder, ouviram cantar. Imediatamente a seguir, um grupo de cantores formado pela tripulação e pelos passageiros juntou-se em redor deles, comandados por Tyrone, numa interpretação calorosa de Vil Be Home for Christmas.

- Vocês dois querem juntar-se a nós? - perguntou Tyrone. - Uma senhora que é capaz de beber um Boiler Room daquela maneira é uma pessoa que eu gostava de cumprimentar.

Eleanor afastou-se em passo imponente e com os braços cruzados sobre o peito.

- Olha - disse Tyrone, olhando para Tom -, foi alguma coisa que eu disse?

- Não, Tyrone, foi uma coisa que eu disse - explicou Tom, afastando-se também.

Quando voltou ao seu compartimento, Tom ouviu risos vindos do piso inferior. Risos. Bem que precisava de rir! Apressou-se a descer as escadas e foi direito aos compartimentos da classe turística. Ao fundo do corredor, viu Regina e a senhora das cartas taro a conversarem à porta de um compartimento. Regina acenou-lhe. A senhora das cartas taro ainda estava com o mesmo turbante multicor, mas agora calçava chinelos. Pareceu-lhe então bastante pequena. Os olhos, de um azul intensamente luminoso, eram cheios de malícia e encanto. Tom achou que o cheiro de incenso que se espalhava pelo corredor vinha do compartimento dela.

- Presumo que é aqui que está instalada - disse-lhe ele.

- Estou a ver que tem poderes psíquicos, Mr. Langdon - retorquiu ela com um riso gutural.

- Como é que soube o meu ... - Calou-se e olhou para Regina. - Já sei, não é preciso ser muito esperto. Foi você que lhe disse.

- Apresento-lhe Drusella Pardoe, Tom - disse Regina. - Não é preciso dizer nada a Drusella, ela sabe tudo.

Drusella estendeu uma mão delicada.

- Os meus bons amigos tratam-me por Misty. E eu já sei que vamos ser bons amigos, portanto trate-me assim também - disse Misty com um sotaque sulista acrescido de algo um pouco mais vivo.

- É de Nova Orleães? - perguntou ele.

- Via Baltimore. Parabéns, Tom!

- Ouvi dizer que vai trabalhar com os cineastas, Tom - disse Regina.

- Aquele homem é mesmo Max Powers? - perguntou Misty. - Adoro os filmes dele.

- E quem é a mulher que está com ele? - perguntou Regina. - Na lista dos passageiros está como Eleanor Cárter, mas acho que deve ser uma estrela de cinema ou qualquer coisa semelhante que viaja, sabe como é, incógnita. Aquela senhora tem classe! E é verdadeiramente deslumbrante. É uma estrela de cinema, Tom?

- Por acaso, até a conheço. É guionista, não é actriz. No entanto, concordo consigo quando diz que ela é verdadeiramente deslumbrante. Fizemos umas reportagens juntos aqui há uns anos.

- Ouvi dizer que fizeram um bocadinho mais do que isso - disse Misty.

Tom olhou para ela, espantado.

- O que é que sabe acerca disso?

- As palavras correm mais depressa num comboio do que em qualquer outro sítio, excepto, talvez, na igreja. As pessoas ouvem coisas sem querer.

- Agora, tenho de me ir embora, minhas senhoras - disse Tom.

- Eu também - disse Regina. Quando iam a afastar-se, Misty chamou:

- Olhe cá, Tom!

Ele voltou-se, e ela abriu as cartas taro em leque.

- Tenho um pressentimento de que, seja como for, os nossos caminhos vão juntar-se.

- Misty, ele tem uma namorada em Los Angeles com quem vai passar o Natal - disse Regina. - É ela que faz a dobragem de Cuppy, o Castor Mágico, na televisão.

- Como é que sabe isso? - perguntou Tom, olhando para ela, espantado.

- Foi Agnes Joe que me disse.

Irritado, Tom olhou para as duas mulheres e disse:

- Com vocês duas, para que é que precisamos da CIA?

- Ora, Tom - disse Misty, arrastando as palavras -, um homem adulto precisa de uma mulher adulta. Os desenhos animados não o aquecem à noite, querido.

- Aquela Misty é uma espertalhona - disse Tom a Regina depois de terem subido as escadas.

- É apenas uma sulista afável, mais nada - retorquiu Regina, sorrindo.

- Estou a ver que ela anda muito de comboio.

- Oh, sim. Prediz o futuro das pessoas, lê-lhes a sina e deita cartas. Tudo de graça. Tem uma lojinha no Bairro Francês, logo à saída da Jackson Square. Já lá estive. É gira.

- Parece que você conhece bem os seus passageiros.

- Significam muito para mim. Na realidade ...

- Sua ladrazinha!

Regina e Tom olharam para cima e viram Gordon Merryweather a dirigir-se-lhes em grandes passadas.

- Fui roubado e aposto que foi você. De facto, você é a única pessoa que poderia tê-lo feito. Mas eu faço-a perder o emprego e passar o Natal na prisão - berrou ele.

- Pare com isso! - disse Regina. - Não gosto do seu tom nem da acusação. Se deu por falta de alguma coisa, eu registo a sua queixa.

- Não me venha com conversinhas - ripostou Merryweather. - Quero que me devolva as minhas coisas e que o faça imediatamente.

- Bem, como não sei que coisas são nem quem as levou, isso vai ser um bocado difícil.

Tom meteu-se entre ambos.

- Olhe, Gord, eu não sou um advogado famoso como você, mas sei de fonte segura que, a menos que você tenha uma prova concreta de quem lhe roubou as suas coisas, o que está a fazer é a levantar uma calúnia a esta mulher na presença de uma testemunha, e isso pode custar-lhe caro.

- O que é que você percebe disso? - perguntou Merryweather, olhando-o.

- Chamo-me Tom Langdon, sou jornalista de investigação. De facto, ganhei um Prémio Pulitzer. Escrevi uma história acerca de um advogado americano na Rússia com uma conduta errada. Neste momento, ele está a redigir o seu próprio recurso. Mas há uma coisa que eu sei que tem ainda mais força do que um processo judicial: uma reportagem que possa ser saboreada pelo Mundo inteiro.

Merryweather interrompeu-o bruscamente.

- Desapareceu-me o meu palm top no valor de duzentos dólares e o meu relógio Tag Heuer. Quero-os de volta antes de sair deste comboio em Chicago, caso contrário vão rolar cabeças - disse ele, dirigindo-se a Regina. Depois, retirou-se.

- A minha mãe ensinou-me a amar toda a gente porque nunca conheceu Gordon Merryweather - disse Regina por entredentes.

Eleanor entrou no compartimento e fechou a porta à chave. Sentou-se em cima da cama, que Regina fizera, apagou a luz e ficou às escuras, observando a neve que caía mais intensamente. Não era grande problema para o Cap, pois o comboio parecia cavalgar a toda a brida. Os dedos dela moveram-se sobre o vidro frio, desenhando complexos arabescos na superfície lisa.

Em espírito, foi transportada para Telavive. Na quadra de Natal fora tão feliz lá e, ao mesmo tempo, tão infeliz que a natureza esquizofrénica da sua existência quase a levara à loucura, e talvez a tivesse levado realmente naquela manhã de Natal em que pusera fim ao seu futuro com o homem que amava. Continuava a lembrar-se de virar a cabeça para trás para olhar para ele enquanto subia as escadas de avião e de o ver a virar-lhe as costas e deixá-la. Ao recordar aquilo, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, e o forte controle com que tinha governado a sua vida ruiu. Ela achara-o incapaz de alguma vez fazer aquilo e, contudo, ele fizera-o com não mais do que um olhar e uma ou duas palavras. Sentiu-se desamparada.

Ouviu bater à porta e ficou tensa, sustendo a respiração. Ainda nãoj estava preparada para voltar a vê-lo, nem naquele momento, nem provavelmente nunca.

- Eleanor? Não estás a dormir, pois não?

Respirou aliviada. Era Max, não Tom.

- Só um minuto.

Acendeu a luz, limpou o rosto com uma toalha húmida, passou os dedos pelo cabelo e abriu a porta.

Max entrou rapidamente e fechou a porta atrás de si.

- Estás bem? Parece que não estás muito bem.

- Devo estar apenas cansada.

- Bem, está tudo combinado, o assunto do casamento. Falei com a gente da Amtrak e não puseram qualquer problema.

- Isso é maravilhoso - disse Eleanor calmamente.

- E como é que vão as coisas com Tom? Estão a recolher bom material?

- Óptimo material. Vou alinhavar umas linhas brevemente.

- Queres falar-me desse Langdon? - perguntou ele, olhando para Eleanor ternamente. - Se queres saber a minha opinião, acho que vocês os dois eram muito mais do que colegas.

- Lembra-se, quando começámos a trabalhar juntos, de me ter perguntado o que me fez desejar escrever, o que me levou a isso?

- Com certeza que me lembro. Pergunto o mesmo a todos os que escrevem para mim.

- Bem, Tom Langdon é a resposta para essa pergunta. Eu amava-o, Max. Amava-o com todo o meu ser. Quando aquilo terminou lá, ficou este vazio, este buraco dentro de mim, tão grande como uma estrela morta. A minha única válvula de escape foi a escrita.

- A sorte foi minha, mas para ti não foi tão bom - disse Max em voz baixa. - Então, tu amava-lo, e ele vê-se que te ama. O que é que aconteceu?

Eleanor levantou-se e começou a andar naquele pequeno espaço.

- Duas pessoas podem amar-se uma à outra sem desejarem as mesmas coisas. E então a ligação não resulta, mesmo quando se amam muito.

- E o que é que Tom quer?

- Tenho a certeza de que nem mesmo ele sabe. E eu sei o que ele não quer: sentir-se preso a um sítio ou a uma pessoa.

- E tu, sabes o que queres?

- Quem é que sabe, Max? Quem é que sabe realmente o que quer?

- Bem, eu não sou a melhor pessoa para te fazer esta pergunta. Os meus interesses estão sempre a mudar, mas acho que faz parte da vida. Talvez ser feliz, talvez seja isso o que todos andamos à procura.

- Muitas pessoas nunca conseguem, e talvez eu seja uma delas.

- Eleanor, tu és uma mulher elegante, talentosa, bem-sucedida e linda e estás no apogeu da vida.

- E talvez essa mulher não precise de um homem na sua vida para se sentir completa - disse ela.

- Não estou a dizer que toda a gente tem de casar para ser feliz. Mas também não deduzas daí que não precisas de alguém na tua vida para seres feliz.

Max saiu e foi ao compartimento de Kristobal, onde encontrou o assistente a vasculhar tudo.

- O que é que estás a fazer? - perguntou Max.

- Estou à procura dos meus óculos de sol.

- Óculos de sol? Olha lá para fora. É noite.

- É que eles desapareceram.

- Então, compra outros.

- Estes custaram-me quatrocentos dólares.

- Hum. Olha, o assunto do casamento já está resolvido.

- Formidável. O senhor é um génio.

- E o que estás sempre a dizer-me Agora, não quero que estragues nada.

- Já alguma vez o deixei ficar mal, Mr. Powers?

- Eu sei, mas, olha, ninguém é perfeito, e só não quero que a primeira vez que falhares seja esta. Está bem?

- Eu compreendo.

- És bom rapaz, mas quando chegarmos a Los Angeles, vou baixar-te o ordenado.

- Porquê? - perguntou Kristobal, surpreendido.

- Porque nem mesmo eu gasto quatrocentos dólares nuns óculos de sol.

Tom adormecera durante algum tempo, mas estava agora bem acordado. Levantou-se e agarrou no bloco de apontamentos, mas não conseguiu encontrar a caneta. Era a que Eleanor lhe oferecera quando tinham atravessado o oceano juntos pela primeira vez. Procurou por toda a parte e acabou por desistir e, ouvindo música, saiu para o corredor. A canção vinha do compartimento de Agnes Joe Foi até à soleira da porta e espreitou cautelosamente. Agnes estava sentada completamente vestida, e em cima da mesa desdobrável encontrava-se um velho gramofone. Tom reconheceu a música. Era Silent Night.

Agnes Joe levantou os olhos, viu-o e pareceu um pouco embaraçada por ter sido descoberta.

- Espero que a música não esteja a incomodá-lo - disse ela.

- Ora, o que há de melhor do que cânticos de Natal em época natalícia?

- Costumo levar este pequeno gramofone para todo o lado onde vou. Era da minha mãe. Venha cá ouvir!

Tom sentou-se no sofá, e ela olhou-o com interesse.

- Regina contou-me como você a ajudou a desembaraçar-se daquele advogado terrível. Fez uma boa acção, Tom. Fez de anjo-da-guarda.

- Olhe, dizem que há mais anjos-da-guarda durante a quadra do Natal do que em qualquer outra altura.

- Nunca ouvi dizer isso. É invenção sua?

- Por acaso, é, acho que sim.

Ficaram sentados a ouvir outros cânticos animadores. O compartimento cheirava a sabonete de lilases e estava muito limpo. Tom reparou num saco de viagem muito cheio encaixado entre a cadeira e a parede parcialmente coberto por um cobertor. Quando levantou os olhos, viu Agnes Joe fitando-o com uma expressão triste. Precisamente nessa altura, uma família de quatro elementos, pai, mãe e dois filhos, passou no corredor a rir.

- Os comboios são lindos no Natal. São um óptimo meio de transporte para as famílias viajarem juntas.

- Então, porque é que não vai passar o Natal com a sua família? - perguntou Tom.

- Uma menina não vai a uma festa sem ser convidada, pois não?

- Então, você e a sua filha não se dão bem?

- Eu dou-me muito bem com ela, ela é que parece que tem algum problema comigo.

- Tenho pena, Agnes Joe, tenho muita pena.

- Mas olhe que tenho muitos amigos no comboio. Costumo dizer que a família está onde a encontramos. O que é preciso é ter os olhos abertos. Como você.

- O que é que quer dizer com esse «como você»?

- Estou a pensar naquela cineasta, Eleanor. É a Eleanor do seu passado, não é? O único amor da sua vida?

- Já nem sequer somos amigos.

- Mas podiam ser. E muito mais.

- Não, é demasiado tarde - disse ele, abanando a cabeça.

- Está enganado. Já vi muita coisa neste mundo para saber que duas pessoas capazes de se fazer tão infelizes uma à outra devem amar-se muito.

Tom não tinha intenção de perder tempo com uma coisa que se via nitidamente que não ia acontecer. Perdera Ellie uma vez, o que o deixara de rastos; nunca iria arriscar-se a ser novamente ferido. Agradeceu a Agnes Joe o interlúdio musical e regressou ao seu compartimento.

O padre Kelly assomou à porta.

- Não viu uma cruz de prata caída por aí, pois não? Não consigo encontrá-la.

- É estranho! A mim falta-me uma caneta.

O padre encolheu os ombros e afastou-se quando o telefone tocou. Tom consultou o relógio, viu que já passava da meia-noite e atendeu o telefone.

- Está?

Era Lelia a telefonar de Los Angeles.

- Tenho estado a seguir-te pela Internet. De acordo com o horário, estás em Pittsburgh, não estás?

Tom olhou pela janela. Sentiu o comboio abrandar e leu a indicação fornecida pelo sistema de mensagens ao público: Connellsville. Estavam longe de Pittsburgh. Deviam ter parado novamente enquanto estivera a dormir.

- Sim. Daqui avista-se o estádio - disse ele. - Sabes que pela minha hora já passa da meia-noite?

- Não é possível dormires no comboio. Não é demasiado barulhento e não anda aos solavancos?

- Para dizer a verdade, faz-se uma óptima viagem, e eu estava mesmo a dormir - mentiu ele.

- Podes instalar-te aí mesmo, Erik - disse Lelia a alguém.

- Erik, quem é Erik? - perguntou Tom.

- É o meu TTC.

- TTC? Parece o nome de uma doença.

- Terapeuta para todo o corpo. É a última moda por estas bandas. Erik vai tratar-me do traseiro, da curva dos joelhos e dos pés.

- Do traseiro e da curva dos joelhos! E de mais nada que fique pelo meio?

- O quê?

- Estás vestida durante o processo?

- Não sejas pateta! Tenho uma toalha por cima.

- Já é um alívio. Diz lá, porque é que precisas que esse tipo vá a tua casa fazer-te isso tudo? Eu julgava que frequentavas o ginásio.

- As minhas costas têm-me doído, e as minhas unhas dos pés precisam realmente de ser tratadas com urgência. Amanhã, vou calçar uns sapatos de salto alto abertos à frente.

- Sim, acho que se pode chamar a isso uma crise. Como é que conheceste esse Erik?

- É o meu instrutor de kickboxing. Trabalha como TTC nas horas vagas.

Quando Tom a acompanhara a uma das suas sessões de kickboxing em Los Angeles, vira que os frequentadores eram, na sua maioria, contabilistas, advogados, actores e chefes de cozinha, que andavam para ali às voltas vestidos com equipamentos desportivos de marca a malhar nuns sacos de borracha com os pés e os punhos. Dois ou três educadores de infância meio desabridos poderiam tê-los derrotado a todos.

- É o Adónis suíço de um metro e noventa e olhos azuis, é esse o Erik? O tipo está neste momento em tua casa e tu estás com uma toalhinha em cima?

- Estás com ciúmes. Gosto disso, é saudável num relacionamento. E olha que Erik é norueguês.

- Óptimo, podes passar o telefone ao Erik da Noruega, se faz favor? Gostava de fazer uma marcação com ele para quando aí chegar. Acho que as minhas costas vão precisar de umas massagens depois desta viagem de comboio.

- Mas tens de prometer que não vais ser mauzinho. Sei que às vezes consegues sê-lo. Prometes?

- Com certeza. Sabes, as costas doem-me, e eu gosto tanto de um TTC como qualquer outra pessoa - disse Tom, e ficou a ouvi-la passar o telefone ao outro com algumas palavras de explicação.

- Ya, daqui fala Erik. Em que posso ajudá-lo?

- Erik? Daqui fala Tom Langdon. Antes de fazer uma marcação, estava justamente a pensar se você tem alguma política de protecção contra a transmissão de doenças contagiosas.

- O quê? Nunca ouvi falar nisso.

- Está em grande voga por toda a parte, excepto possivelmente aí. Deixe-me explicar-lhe em termos simples. Uma vez que você trabalha com o corpo das pessoas e está em contacto com a pele delas, corre o risco de ficar infectado com algumas doenças contagiosas graves que pode, potencialmente, transmitir a outros clientes, como eu. Por isso, eu queria saber que precauções de segurança toma. Por exemplo, tenho a certeza de que Lelia lhe deu conhecimento da hepatite Z que ela tem e dos sérios riscos associados à doença.

- Hepatite!

- Embora não haja, evidentemente, cura, as novas terapias medicamentosas fazem maravilhas, e os efeitos colaterais são bastante reduzidos: náusea, perda de cabelo, impotência, esse género de coisas. De facto, a morte só ocorre em cerca de metade dos casos, mas têm de ser detectados bastante cedo.

Tom ouviu o telefone cair e depois os passos de alguém a correr pelo soalho de madeira bastante polido da casa de Lelia. A seguir, ouviu-a gritar freneticamente:

- Erik, Erik, volte aqui!

A porta bateu, e Tom ouviu o telefone a ser levantado do chão.

- Conta-me lá exactamente tudo o que lhe disseste! Olha que eu disse «exactamente». Ouvi distintamente ele pronunciar a palavra «hepatite».

- Hepatite? Lelia, eu falei em «gengivite». Perguntei-lhe se ele sofria de gengivite porque a minha antiga massagista sofria, e devo dizer-te que, na verdade, não era nada agradável sentir aquele mau hálito durante uma hora. Estou a ver que o inglês de Erik não é assim tão bom.

- Não acredito em ti, Tom Langdon. Percebes o que fizeste? As costas doem-me tremendamente ... E o que é que hei-de fazer às minhas unhas dos pés?

- Experimenta usar Tylenol e uma lima.

- Isso não tem graça nenhuma - gritou ela.

- Olha, eu telefono-te quando chegarmos a Pittsburgh.

- O quê? Pensei que estavas em Pittsburgh.

Quando deu pelo erro que cometera, Tom bateu na testa. Debaixo de enorme pressão, pôs em prática o que lhe pareceu um plano brilhante.

- Lelia? - Bateu no telefone. - Lelia, está ...? Não consigo ouvir-te.

- Tom, não te atrevas a tentar fazer-me de parva.

Tom falou em voz alta, como se estivesse a falar com uma idiota meio surda:

- No caso de ... Estás a ouvir-me?... Eu vou ... telefonar ... quando chegarmos a Chicago.

Desligou e voltou a sentar-se. O telefone tornou a tocar, mas ele não atendeu. Ouviu a mensagem e depois desligou.

O comboio abrandou. Tom olhou pela janela e, no meio da escuridão, conseguiu distinguir as lápides de um pequeno cemitério. Amedrontado pela proximidade de tantas almas do outro mundo, levantou-se e começou outra vez a andar de um lado para o outro. Nunca andara tanto como desde que pusera os pés naquele comboio.

A maioria dos compartimentos estava às escuras àquela hora tardia, e Tom não viu ninguém nos corredores. Na sala de estar, as luzes tinham sido diminuídas, e, pelo que lhe pareceu, estava vazia. O comboio começou novamente a andar, e ele equilibrou-se apoiando-se no encosto de uma das cadeiras. Tocou em alguém e retirou a mão. Tão surpreendida quanto Tom, Eleanor levantou os olhos para ele. Tinha na mão uma chávena de café.

- Meu Deus! - exclamou. - Nem sequer te ouvi entrar.

- Também continuas a ter insónias? - perguntou Tom, apontando para a chávena.

Ambos tinham sofrido de insónias, talvez devido a demasiados fusos horários e demasiados horrores que voltavam para os torturar durante o sono.

- É engraçado, julguei que já tinham passado - disse ela, esfregando as têmporas. - Parece que ultimamente voltaram outra vez.

- Pois, estou a perceber a insinuação. Posso ir à procura de outro sítio para matutar sobre o meu futuro verdadeiramente sem limites.

- Não, eu saio - disse ela.

- Olha - disse Tom -, somos ambos adultos. Acho que podemos coexistir num sítio do tamanho de um comboio, pelo menos durante algum tempo.

- Isso mostra realmente muita maturidade da tua parte.

- Tenho os meus momentos.

Ficaram os dois calados enquanto o Cap ganhava novamente velocidade, rodando nos carris aproximadamente a cento e vinte quilómetros por hora.

- Tenho perguntado a mim mesma por que razão te encontras neste comboio - disse Eleanor. - Sempre gostaste de viajar da maneira mais rápida possível.

- Eu já te disse qual é. Estou a escrever uma história acerca de uma viagem de comboio, coisa que é um bocado difícil de fazer sem se viajar num.

- Só por isso?

- E porque não?

- Porque te conheço demasiado bem, acho eu. Mas não és obrigado a dizer-me.

Mesmo assim, Tom falou-lhe do desejo do pai e do que estava a fazer para o satisfazer. Depois, acrescentou:

- Olha, como eu sou jornalista de investigação do tipo desconfiado, paranóico e conspirador, tenho de dizer-te que a tua presença neste comboio parece o diabo de uma coincidência.

- Tencionávamos apanhar este comboio ontem. - Olhou para o relógio. - Bem, visto que já passou um dia, tencionávamos apanhá-lo anteontem, mas parece que os planos de Max mudaram. Chegou a Washington com um dia de atraso e tivemos de apanhar o comboio em que tu vinhas. Podes crer que, se eu tivesse sabido que vinhas neste comboio, não teria embarcado.

- Queres dizer que foi assim tão mau?

- Olha, connosco não resultou. Acontece a milhões de pessoas. Algumas pessoas não são do género de se casarem.

- Eu fui casado uma vez.

- O quê? - perguntou Eleanor, atordoada com a notícia.

- Bom, acabou tão depressa, o casamento, quero dizer, que quase não me lembro dele.

Eleanor levantou-se, mal conseguindo conter a fúria.

- Alegra-me que tenhas amado uma mulher o suficiente para realmente a pedires em casamento, seja qual for o tempo que tenha durado.

- Ellie, não é nada disso. Foi a pior decisão da minha vida.

Eleanor voltou-lhe as costas e saiu. Ele viu-a sair, sentiu o Cap fazer uma paragem e disse a si próprio em silêncio: «Na verdade, foi a segunda pior decisão da minha vida.» A seguir, disse em voz alta:

- Que diabo se passa agora? Eu conseguia chegar a Chicago mais depressa se fosse a pé.

- O que se passa é que está um comboio de mercadorias em cima dos carris lá à frente, bloqueando o caminho ao Cap - disse uma voz vinda de um canto.

Na escuridão, levantou-se um vulto que pareceu flutuar em direcção a ele. Tom pensou que estava prestes a enfrentar o Fantasma de último Natal, mas quando o homem entrou no pequeno espaço de ambiente proveniente da janela, respirou aliviado. Era alto e magro tinha cabelo grisalho, cerca de sessenta anos e feições belas bem delineadas. Trazia uma camisa branca, gravata e calças vulgares. Trazia também o que parecia ser um boné de condutor.

- Trabalha neste comboio? - perguntou Tom.

- Não - disse ele, tirando o boné para cumprimentar e estendendo a mão. - Trabalhei, mas agora estou reformado. O meu nome é Herrick Higgins.

Tom apresentou-se e sentaram-se.

- Quanto tempo trabalhou na Amtrak?

- Às vezes, parece-me que trabalhei a vida inteira. Na verdade, comecei quando ela foi fundada, em 1971. Entrei para os caminhos de ferro logo que comecei a tomar conta de mim, tal como o meu pai. Ele trabalhava na Union Pacific. - Higgins olhou lá para fora. - Esta linha foi construída sobre uma antiga estrada com portagem. George Washington possuía acções da companhia que a construiu. Pergunto muitas vezes a mim próprio o que diria ele se visse o Cap a andar para cá e para lá sobre o mesmo trilho. Mas talvez não por muito mais tempo. O futuro não parece muito auspicioso para comboios de passageiros de longa distância. O Governo anda a falar em acabar com a Amtrak, privatizando-a e alterando o traçado do Corredor Nordeste.

- Pois é, a América é um país tão grande que viajar de comboio não faz muito sentido.

- Com certeza, se você tiver em conta apenas o destino, e não a viagem em si. A minha experiência diz-me que para a maior parte das pessoas que apanham o comboio o que importa é a viagem em si e as pessoas que encontram ao longo do trajecto. Repare, em cada paragem, um pedacinho da América, um pedacinho do seu país, entra e apresenta-se. É por isso que os comboios são tão populares no Natal. As pessoas vêm predispostas a fazer amizades. O que é que interessa o dinheiro? - Higgins esfregou o queixo e olhou para o chão. - Não estou a dizer que viajar de comboio vai mudar a sua vida ou que um dia os comboios de passageiros vão ser uma grande fonte de receita. Mas mesmo tendo em consideração a pressa que temos de ir de um lado para o outro, não haverá um tempinho para uma pessoa apanhar um comboio onde possa sentar-se descontraidamente e sentir-se humana por momentos? Só por momentos. Será assim tão mau?

Quando Tom deixou Herrick Higgins e regressava vagarosamente ao seu compartimento, o Cap pôs-se novamente em movimento. Sobrepondo-se aos ruídos do comboio que rolava sobre os carris, Tom ouviu qualquer coisa, algo que o fez correr pelo corredor e descer as escadas.

Sentada encostada ao tabique que separava o compartimento dela do seguinte, abraçada por Eleanor, estava Julie a soluçar.

- O que é que se passa? - perguntou Tom.

Com a voz entrecortada pelos soluços, Julie explicou que os pais de Steve tinham telefonado. Haviam descoberto aquilo que estavam a planear fazer e tinham ameaçado renegar e deserdar Steve se ele se casasse com ela. Steve, segundo parecia, não se mostrara muito determinado a dizer-lhes que ia com a sua avante. De facto, começara com tanta conversa que ele e Julie tinham tido uma séria discussão, e ela fugira.

- Onde está ele? - perguntou Tom.

Julie disse-lhe que Steve voltara para o seu compartimento.

- Vou lá ter com ele - disse Tom.

Tom deixou-as e logo encontrou o jovem Steve a olhar desoladamente pela janela. Durante os dez minutos seguintes, Tom pregou-lhe um sermão, e as vozes e os ânimos inflamaram-se de ambos os lados.

- Você ama-a? Ama? - perguntou Tom finalmente. - A coisa é tão simples como isso.

- Sim - respondeu Steve com determinação.

- Então, case com ela sem reservas nem hesitações. Case com ela sem condições impostas por ninguém, porque isso é que é amar alguém. Se deixa essa mulher sair da sua vida, faz mal. Pode ser a única mulher do Mundo inteiro que o fará feliz. Se deixa ir tudo pelos ares, não tem possibilidade de voltar atrás, Steve, é o que lhe digo.

- Eu amo-a, Tom, amo-a mesmo.

- Então, só precisa disso, não precisa de mais nada.

Steve desviou o olhar de Tom para olhar em frente. Tom voltou-se e viu Eleanor e Julie de rosto vermelho. Pareciam ter ouvido muito do que fora dito. Julie lançou-se nos braços de Steve.

Tom saiu e fechou a cortina que lhes daria privacidade. Quando se afastava com Eleanor, ela disse:

- Agiste muito bem. Estou comovida.

- Porque é que havemos de ficar de braços cruzados a ver outra pessoa a dar cabo da vida?

Nesse momento, apareceu Kristobal com um ar deprimido.

- Meu Deus, Eleanor, tenho andado à tua procura por todo o lado. Max vai baixar-me o ordenado. Podes falar com ele?

- Porque é que ele vai baixar-te o ordenado?

- Ora, por causa de um pequeno mal-entendido acerca de um par de óculos que perdi.

Tom olhou para Kristobal.

- A mim falta-me a minha caneta, e ao padre Kelly, uma cruz.

- A mim também me desapareceu uma escova de prata - disse Eleanor.

- E Mr. Powers disse que lhe desapareceu a mola de ouro de prender as notas - acrescentou Kristobal.

- E aquele imbecil, o Merryweather, também deu por falta de qualquer coisa - disse Tom. - Acho que temos um ladrão a bordo. Vou dizer à Regina, e ela vai apresentar queixa à Polícia da Amtrak quando chegarmos a Chicago.

O Cap chegou finalmente a Chicago às 11.30 da manhã do dia seguinte. Tom apeou-se com as malas, agradeceu a Regina e deu-lhe uma gorjeta generosa.

- Acho que quem fica em dívida sou eu - disse ela. Trocaram abraços. - Eu apresento-o à minha mãe na sala de espera da estação.

- Estou ansioso por conhecê-la. - Viu Herrick Higgins a sair do comboio um pouco adiante, apontou para ele e disse a Regina: - Aquele homem é um tipo interessante. Foi pena ter de se reformar. Adora comboios.

- Herrick não se reformou - disse Regina. - Foi despedido temporariamente. Cortes de orçamento. Dispensaram-no a ele e a outros duzentos condutores. É pena porque o homem sabe mais de comboios que qualquer outra pessoa. Viaja à custa dele. Se tivéssemos espaço, deixávamo-lo acomodar-se na carruagem-dormitório connosco. É triste, muito triste.

Tom viu Max e Kristobal ao longe, foi ter com eles e perguntou:

- Onde está Eleanor?

- Já está lá dentro - respondeu Max, parecendo irritado. - Acho que está a tentar arranjar um avião para Los Angeles. Não me agrada nada. Não pode falar com ela, Tom?

- Se quer mesmo que ela apanhe o avião, eu falo, não me custa nada - disse Tom, rindo. - Senão, acho que devo ficar fora disso.

Com a neve a cair ainda mais intensamente, procuraram o calor da movimentada sala de espera da estação. Tinham pela frente uma viagem de quase mais três mil e setecentos quilómetros - quase três vezes a distância que tinham acabado de percorrer - e mais vinte e seis paragens. Curiosamente, Tom sentia-se preparado para tudo.

Tal como veio a provar-se, bem precisava de sentir-se.

 

                                   CAPÍTULO SETE

Dirigiram-se para a sala de espera da Metropolitan, encontraram um espaço vazio e instalaram-se. Tom sentou-se com ar sonolento; Kristobal pôs-se a fazer um sem-número de chamadas telefónicas, e Max foi ter com Steve e Julie e várias outras pessoas para tratarem dos preparativos para o casamento.

O funcionário da Polícia da Amtrak chegou na companhia de Regina, e Tom e os outros apresentaram queixa dos roubos. Foi-lhes dito que estava em curso uma busca ao ladrão ou ladrões e que era provável que houvesse mais de uma pessoa envolvida devido à quantidade de artigos roubados. Muito provavelmente, a quadrilha saíra do comboio antes de Chicago. Tom ficou com pouca esperança de tornar a ver a caneta ... ou Eleanor. Ficou, portanto, muito admirado quando, cerca de uma hora depois, a viu entrar na sala de espera com Kristobal e afundar-se num banco ao lado de Max.

- A que horas parte o teu avião? - perguntou-lhe Max.

- Não parte. Os lugares estavam todos reservados. Ironicamente, agora o meio de transporte mais rápido para chegar a Los Angeles é o comboio.

Max recostou-se na cadeira e piscou o olho a Tom.

- Que pena! Vais mesmo ter de confraternizar connosco, que não prestamos para nada.

Minutos depois, Regina apareceu com uma mulher que devia ser a mãe, contudo as duas não eram nada parecidas, excepto nos olhos. Embora fosse difícil, aquela mulher fazia Agnes Joe parecer pequena.

- Esta é Roxanne, a minha mãe - disse Regina antes de Roxanne tomar conta da situação com uma voz de trovão.

- Estou a ver que vocês, meus queridos, se sentem com frio, cansados, deprimidos e defraudados! Bem, não é isso que nós queremos. Deus não vai permitir que continuem nesse estado.

Passados minutos, reapareceu com cobertores, almofadas, refeições ligeiras e outras coisas, o que foi muito apreciado por todos eles. Até Eleanor pareceu melhorar de disposição.

Roxanne instalou-se no meio deles e olhou para a filha.

- Então, Regina, tu não tens um comboio para tratar? Pensas que o pequeno e velho Cap vai tratar dele próprio sozinho sem o teu carinho?

- Já vou, já vou - disse Regina, sorrindo. Roxanne voltou-se para eles.

- Regina disse-me que temos um parzinho que vai enforcar-se e que aquela velha que lê a sina e se chama Misty viaja connosco. Oh, pensei que estaria no comboio de Nova Orleães, a caminho de casa, querida.

Voltaram-se todos para ver com quem Roxanne estava a falar e viram Misty, com todo o seu esplendor de profetisa, de braços levantados para o tecto.

- Acabei de ter um pressentimento de que o meu destino nesta quadra festiva estava no Oeste e não no Sul, não é verdade, querido? - disse ela, fazendo olhinhos a Max.

O realizador, obviamente muito atraído por ela, fez um sorriso e retorquiu:

- Nunca me leram a sina tão bem nem tão energeticamente como ontem à noite.

- Como tem passado, Misty? - perguntou Roxanne. - Lembra-se da sina que me leu da última vez, menina?

- Quando lhe disse que ia encontrar um enorme séquito de rapazes na sua vida?

- Essa mesmo. Bem, meu amor, tornou-se realidade. Embora, para lhe dizer a verdade, minha querida, eu estivesse à espera de gente um pouco mais próxima da minha idade. - Apontou para uma fila de jovens afro-americanos fardados que estavam a entrar para a sala de espera. - Pertencem ao Coro Masculino do Centro Juvenil de Los Angeles. Actuaram no Carnegie Hall e agora vão a caminho de casa passar o Natal. Conto com vocês para fazerem que cheguem lá intactos. Desculpem, dêem-me um instante.

Viram Roxanne dirigir-se ao grupo de rapazes e tentar captar a atenção deles. Tinham um ar cansado, aborrecido e estavam dispostos a fazer tudo, excepto obedecer às ordens de mais um adulto.

Roxanne deu um enorme berro. Os miúdos formaram imediatamente duas filas indianas, com os olhos abertos e cheios de medo. Roxanne fê-los marchar até um canto da sala e falou com eles em voz baixa. Um minuto depois, voltou-se para a multidão que estava na sala de espera.

- Querem ouvir alguns cânticos enquanto esperam pelo comboio? - perguntou.

Toda a gente respondeu que gostaria muito.

Roxanne voltou-se para os garotos que lhe tinham sido confiados, fez alguns aquecimentos vocais e depois conduziu-os ao longo de uma série de canções de Natal clássicas.

- São formidáveis! - disse Max. Misty sentou-se ao lado dele.

- Roxanne rege o coro de uma das maiores igrejas baptistas de Chicago e é diácona. Canta gospel e blues como nunca ouvi ninguém no Mundo, e olhe que vivo em Nova Orleães. E mais, qualquer passageiro que viaje num comboio com ela torna-se uma pessoa melhor.

Quando os cânticos terminaram, Roxanne fez sair os rapazes em fila, como se estivessem a dançar a conga, cantando e imitando os sons de um comboio, enquanto a audiência aplaudia vivamente. Os trabalhadores da Amtrak, que tinham saído dos escritórios para ouvir, sorriram e aplaudiram juntamente com as outras pessoas.

Só Steve e Julie, que pareciam estar em estado de pânico, não aplaudiram. O padre já chegara, mas o padrinho e a madrinha, um casal amigo que também frequentava a universidade, acabavam de telefonar. Tinham tido um acidente de viação por causa da neve numa estrada do Michigan. O padrinho partira uma perna e estava numa cama de hospital, e a mulher, evidentemente, não ia abandoná-lo.

- Eu sabia que isto não ia resultar - lamentou-se Julie. Abanou a cabeça, depois parou e olhou para Eleanor. - Importa-se de ser minha madrinha? Faz-me esse favor? Eu sei que posso contar consigo.

Eleanor ficou surpreendida, mas depois concordou. Que outra coisa podia fazer?

Depois, Steve olhou para Tom e disse:

- Bem, se não fosse o que me disse no comboio, talvez não houvesse casamento nenhum. Não quer ser meu padrinho?

Tom olhou para Eleanor e acabou também por concordar. Quando isso aconteceu, Eleanor levantou-se e saiu.

O Southwest Chief era um comboio comprido com muitas carruagens panorâmicas e um limpa-neves reluzente montado na locomotiva dianteira. Para sua surpresa, Tom chegou à conclusão de que, devido a qualquer erro que já não podia ser corrigido porque o comboio estava cheio, os seus aposentos de luxo haviam encolhido e tinham-se transformado num compartimento económico para dormir. Durante os próximos três mil e tal quilómetros, não só teria de usar o chuveiro comum, mas também a retrete comum, o que nunca aconteceria a Cary Grant nem a Eva Marie Saint.

O assistente da carruagem-cama, Barry, chegou. Tinha trinta e muitos anos e um físico impressionante. Era educado e profissional, mas, depois de se lidar com Regina e Roxanne, ele era uma desilusão.

Tom resolveu telefonar a Lelia. Ela não atendeu, o que o levou a agradecer a Deus. Deixou uma mensagem pedindo desculpa pelo que se passara com Erik e do mal-entendido acerca da gengivite.

Para afastar o pensamento dos seus problemas, Tom começou a pensar nos roubos. Muitos dos compartimentos de primeira classe tinham sido alvo deles, com uma excepção, o de Agnes Joe. Ela não aparecera quando a Polícia anotara as queixas, portanto, provavelmente, o ladrão tinha passado ao largo do compartimento dela. Mas porquê? A não ser que o ladrão fosse ela ... Seria muito estúpido, no entanto, roubar toda a gente, à excepção de si própria! Ou talvez não fosse estúpido e sim brilhante... porque a maior parte das pessoas iria tirar a mesma conclusão que ele. E ele vira no compartimento dela um saco de viagem atulhado até ao cimo ...

Enquanto se entregava a esta meditação, o Chief saiu da estação, e Tom consultou o relógio. Eram 3.15, a hora exacta da partida.

Nessa altura, Kristobal entrou com um videogravador.

- Mr. Powers pediu-me para tirar umas fotografias ao comboio, às pessoas e a outras coisas. Disse que poderíamos vê-las mais tarde, e elas poderiam dar-nos algumas sugestões para a história. Já me esquecia: Eleanor pediu-me para lhe perguntar que roupa vai usar no casamento.

- Pediu-lhe para me perguntar? Está bem, óptimo. Vou vestir um Armani. Visto sempre fatos dele nos casamentos em comboios. Ela sabe muito bem.

Kristobal ficou encantado.

- Giro! Também vou vestir um Armani - disse ele. Pôs a máquina ao ombro e foi-se embora.

O Chief roncou e seguiu calmamente em direcção a sudoeste, fazendo quatro paragens rápidas no Illinois antes de atravessar o poderoso Mississipi. Encontravam-se no Iowa. A única paragem naquele estado era em Fort Madison, o que aconteceu às 7.30. Quando seguiam em direcção ao Missuri, Tom dirigiu-se à carruagem-restaurante, onde partilhou a refeição com o padre Kelly, Misty, Steve e Julie.

- Você e Max estão com ar de quem está a dar-se bem, mas olhe que ele parece do género de ter muitas amiguinhas - disse Tom, olhando para Misty.

- Olhe, querido, eu sei que isto é uma coisa temporária. Os comboios têm o dom de juntar pessoas muito diferentes, mas logo que a viagem acaba, a atracção também acaba. E eu já deixei de ficar de coração perdido por um homem, se é isso o que está a pensar.

- É, e fico contente por ouvi-la falar assim - disse Tom.

- Tenho de dizer-vos que até hoje nunca assisti a um casamento num comboio - confessou o padre Kelly a Steve e Julie. - Acho que este deve ser o primeiro.

- Na realidade, não é.

Olharam todos para o outro lado da coxia, onde Herrick Higgins estava a jantar.

- Já aconteceu em 1987 no Texas Eagle. Chamavam-lhe o Comboio do Amor porque havia um condutor lendário que se chamava Zeb Love. Tinha um coração de ouro e a arte de um bom entertainer. Ora, no dia 4 de Julho de 1987 houve um casamento a bordo do Texas Eagle. Zeb Love estava lá, e até foi celebrar com os convidados quando chegaram a Forth Worth.

- Bem, tenho esperança de que o nosso casamento tenha pelo menos metade do encanto desse - disse Julie.

- Vai ter - disse Higgins. - Pelo que percebi, Roxanne Jordan está encarregada da música. Com aquela mulher envolvida, vai sair tudo certo. Acreditem.

LÁ À frente, na costa nordeste do Pacífico, estava a ocorrer um acontecimento meteorológico significativo. Frentes de altas e de baixas pressões muito frias e muito quentes e ventos fortes que iam aumentando para velocidades enormes estavam a misturar-se e a começar a deslocar-se em direcção a leste. Uma confluência semelhante de elementos atmosféricos verificara-se aproximadamente naquela região durante uma das viagens que Mark Twain fizera através do Território do Nevada há cerca de cento e quarenta anos. O resultado fora uma nevasca como nunca ninguém vira, nem mesmo no Oeste Selvagem. Se acreditarmos na história - e, nesse aspecto, nem sempre dava para acreditar muito no senhor Mark Twain -, o episódio esteve à beira de custar a vida do estimado escritor.

Passando bastante desapercebida aos meteorologistas, a terrível tempestade virou para sul, chocou com a superfície dura das Montanhas Rochosas e desceu pela cordilheira. O seu alvo parecia ser precisamente a linha do Southwest Chief.

JÁ a noite ia avançada, o ladrão fez mais uma vez o assalto às carruagens-cama, desta vez ainda mais cautelosamente devido ao acrescido estado de alerta. O seu esforço foi reduzido devido ao facto de muitas pessoas se encontrarem ou a jantar no restaurante ou na sala de estar a assistirem a um acontecimento muito especial. De pé, Roxanne cantava uma e outra vez. As crianças do Coro Masculino do Centro Juvenil de Los Angeles também não tinham ido cedo para a cama, e também a ouviam atentamente.

Tom estava num canto afastado da sala cheia de gente, acompanhando a música a meia voz. Quando o espectáculo terminou, os passageiros aplaudiram de pé e depois as pessoas começaram a movimentar-se, discutindo em voz alta e em pormenor tudo o que tinham visto e ouvido.

Entretanto, de regresso ao seu compartimento, Eleanor tomava apontamentos acerca de potenciais enredos, mas fazia-o com dificuldade em concentrar-se. Continuou rabiscando o bloco até que se apercebeu de que estava a escrever «Tom Langdon» em letras gordas de três dimensões. Arrancou a folha de papel, atirou-a fora e depois deitou-se de costas com a mão sobre o rosto.

- Problemas?

Eleanor olhou para a porta e viu Roxanne de pé a limpar o suor do rosto com um toalhete.

- Devo estar apenas um bocado frustrada, acho eu - disse Eleanor, sentando-se.

- Olhe que perdeu um bom espectáculo na sala de estar.

- Não, eu ouvi. Foi transmitido pelos altifalantes. Você foi magnífica.

Roxanne olhou para o chão, que estava pejado de papéis amarrotados.

- Como é que vai a história? Um dia, podíamos vir a usar um filme de sucesso de Max Powers sobre comboios para fazer o Governo interessar-se por nós novamente.

- Bem, tenho de confessar que não percebo muito de comboios - disse Eleanor com um sorriso embaraçado. - Não voltei a andar de comboio desde o meu tempo de estudante universitária, pelo menos dentro do país.

Roxanne sentou-se na beira da cama.

- Olhe, eu trabalho nestes comboios há mais tempo do que a maioria dos meus colegas e ainda não aprendi tudo. Acho que é por isso que gosto tanto do meu emprego, todos os dias há qualquer coisa nova. Às vezes, é boa, outras vezes, não é tão boa, mas faz-me andar de um lado para o outro e usar a cabeça, o que é bom.

- Há quanto tempo trabalha neste comboio?

- Olhe, eu e o Chief namoramos vai para vinte e um anos. Conhecemos bem a salva-das-boticas do Novo México, as searas de trigo do Kansas e até conhecemos alguns agricultores pelo nome próprio. Dizemos-lhes adeus quando passamos por eles.

- Aposto que os agricultores retribuem o adeus - disse Eleanor, iniciando uma nova folha do bloco e tomando apontamentos.

- Menina, eu tive três propostas de casamento nos últimos dois anos. Um dos pretendentes atou um dístico ao John Deere e fez uma corrida com o comboio. Dizia: «Casas comigo, Roxanne?»

- Que criatividade! É bom ser popular.

- Sim, os agricultores gostam das mulheres gordinhas, e eu estou de acordo com o padrão. - Levantou-se. - Se está com dificuldade em arranjar ideias, porque não vem fazer as rondas comigo? Garanto-lhe que isso vai estimular as suas faculdades criativas.

Depois do espectáculo de Roxanne, Tom resolveu ir dar uma volta. A sala de estar continuava cheia, e o restaurante estava a servir a última refeição do dia; por conseguinte, muitos dos compartimentos da carruagem-cama estavam vazios. Era a ocasião perfeita para o ladrão voltar a atacar, e Tom quis ver se o patife do Capitol Limited conseguira introduzir-se no Southwest Chief. Queria também fazer uma vistoria a um compartimento em especial.

Bateu à porta e, como não obteve resposta, enfiou a cabeça no compartimento de Agnes Joe. Estava vazio. O gramofone encontrava-se em cima da mesa desdobrável e poucos mais objectos pessoais estavam à mostra. Havia duas malas encostadas à parede. Tom não se importou com elas, estava mais interessado no saco de viagem, enfiado entre a parede e a cadeira e coberto com um cobertor.

Fechou a cortina de separação e correu o fecho do saco. Lá dentro, estavam jornais enrolados, exactamente iguais ao maço que Regina tinha no Cap. Passou os olhos por alguns. Eram jornais da Costa Oriental. Incapaz de compreender a existência daquilo, continuou a revistar o saco, até que encontrou uma fotografia de Agnes Joe e de alguém que supôs ser a filha dela. Pareciam felizes ou, pelo menos, cordiais. Perguntou a si mesmo o que teria corrido mal depois de a fotografia ter sido tirada e por que razão a mãe não ia passar o Natal com a filha única.

Colocou a fotografia novamente no saco e saiu sorrateiramente. Foi até à outra secção da carruagem-cama, parou de repente, meteu-se dentro de um compartimento vazio e espreitou para o corredor cautelosamente. Agnes Joe ia a sair de um dos outros. Olhou em redor para se certificar de que ninguém a via e depois encaminhou-se na direcção oposta. Tom saiu sorrateiramente, foi pelo corredor e espreitou para dentro do compartimento onde ela estivera. Estava prestes a entrar para saber quem dormia ali, mas ouviu pessoas a aproximarem-se e fugiu. Contudo, decorou a letra do compartimento e concluiu que seria fácil descobrir a quem pertencia.

Ao atravessar a sala de estar, viu Herrick Higgins a espreitar ansiosamente pela janela.

- O que é que aconteceu? - perguntou Tom. - Você parece um tanto preocupado.

Higgins sorriu-lhe, mas Tom reparou que não era um sorriso sincero.

- Ora, não é nada de importância. Estou só a ver a neve a cair.

- Bem, a neve não faz mal a um comboio.

Higgins não sorriu nem acenou com a cabeça em concordância.

- Vamos engatar-nos a uma terceira locomotiva em La Junta antes de atravessarmos o desfiladeiro de Raton - disse ele.

- É um procedimento normal ou é por causa da neve?

- Oh, é normal. Sabe, há uma subida bastante grande e uma terceira locomotiva ajuda bastante. - Observou outra vez a neve que caía lá fora e ficou novamente com ar preocupado.

Tom afastou-se, mas voltou a cabeça nervosamente para olhar para o velho ferroviário, tentando, sem êxito, ler-lhe o pensamento.

Quando Roxanne e Eleanor entraram na carruagem onde estavam os rapazes do coro, Roxanne tirou uma lata de Lysol e começou a pulverizar todos os cantos.

- Ouçam, meninos! Agora, não tentem enganar Ms. Roxanne porque ela tem cinco filhos e muitos netos e está formada naquilo a que gosta de chamar «síndroma dos rapazes malcheirosos», e isso é proibido no comboio de Ms. Roxanne. Percebemos todos? - Todos os miúdos acenaram com a cabeça afirmativamente. - Bom, eu tenho dois chuveiros reservados para vocês durante a próxima hora e vamos aproveitar bem o tempo, não vamos? - Todos disseram que sim, acenando outra vez com a cabeça. - Cada um tem três minutos para tomar duche, porque este comboio faz muitas coisas maravilhosas, mas não produz água a partir do ar. E vamos sair de lá sem um único dedo sujo, porque vai haver inspecção, podem ter a certeza de que vai. E o bom Deus vai olhar cá para baixo, vai vê-los a todos limpinhos e vai abençoá-los neste Natal como em nenhum outro.

Quando os rapazes saíram, Eleanor perguntou:

- Como é que se tornou a guardiã destes rapazes?

- São bons rapazes, com muito potencial, mas também com muitos problemas, especialmente nas famílias às quais vão regressar. Mas todos eles hão-de triunfar. Neste Verão, vou tirar férias durante um mês inteiro e vamos viajar, eu e estes miúdos. Vamos actuar nalguns sítios, e eles vão ver umas coisas que os farão encaminharem-se para o lado bom da vida. Vão sonhar o que nunca pensaram sonhar, e a velha Roxanne vai estar lá a ampará-los até já não precisarem de mim como de uma mãe.

- É um projecto muito ambicioso! - disse Eleanor.

- Mas eles merecem, não acha?

- Acho que merecem e muito - disse Eleanor, sorrindo. - Você tem a certeza de que não é um anjo caído em cima do Southwest Chief? Parece demasiado boa para ser deste mundo. E digo isto com todo o respeito.

- Olhe, querida, sou uma mulher de sessenta e três anos, gorda, de pés doentes, tensão alta e princípio de diabetes. Não me sobra muito tempo para viver, e ou passo esse tempo a queixar-me das coisas que nunca tive na vida, ou faço uma coisa de que gosto e ajudo as pessoas a percorrerem o seu caminho. Resolvi que ia continuar a trabalhar activamente até cair.

Entretanto, pararam em frente de um banco, e Roxanne pôs as mãos nas ancas.

- O que é que vem a ser isto, seu ordinário?

Reclinado num banco, completamente nu, encontrava-se um jovem de cerca de vinte e cinco anos. Felizmente, o lugar ao lado dele estava desocupado, a carruagem encontrava-se escurecida porque eram horas de dormir e mais ninguém reparara.

- Sinto-me bem assim - disse o jovem.

- Estou a ver que sim, mas estás em pêlo.

- Sabe, eu sou do Arizona, e é assim que toda a gente dorme no Arizona.

- Ai sim? - Eleanor desviara o olhar, mas Roxanne sentou-se mesmo ao lado do homem. - Agora, deixe-me ir direita ao assunto, seu manhoso. Não estamos no Arizona, estamos no Missuri, e se você não se veste imediatamente, é expulso deste comboio antes de chegarmos a Kansas City.

- Isso é que era bom! - retorquiu o jovem com um risinho tro-cista. - La Plata foi a última paragem e não há mais nenhuma até chegarmos a Kansas City.

- É verdade, não há, pois não? - perguntou Roxanne, fitando-o com ar de poucos amigos até ele começar a vacilar.

- Não ia expulsar-me no meio de um descampado?! Não me fazia isso - disse ele com uma voz atabalhoada.

- Eu não diria que o meio do estado do Missuri é um descampado. Quero dizer, há gente que aí vive. Por isso, será nalgum sítio. Eu sei que as quintas ficam a alguma distância e que estamos em Dezembro e que o frio é de rachar, mas não é um descampado. De facto, do sítio onde vamos expulsá-lo apenas terá de percorrer cerca de quarenta e cinco quilómetros a pé para sul e procurar um motel que por lá há, ou qualquer coisa do género, se a memória não me falha.

- Quarenta e cinco quilómetros? Vou gelar.

- Não gela se estiver com as calças vestidas. E encare a vida com optimismo! Não tolero gente choramingas. Você é jovem, provavelmente sobrevive.

- Provavelmente? - perguntou o homem, revirando os olhos.

Roxanne tirou o walkie-talkie. Não carregou no botão, e Eleanor reparou nisso, mas o rapaz não.

- Daqui assistente-chefe a falar para condutor e o maquinista. Estamos em situação de alerta, operação um-quatro-dois, repito um-quatro-dois. Precisamos de fazer uma paragem para expulsar um passageiro. Fim de mensagem.

- Espere, espere! - disse o homem, tomado de pânico. - O que é o um-quatro-dois?

- Olhe, querido, é uma maneira de nos referirmos a um passageiro que não colabora. Nos grandes aviões de luxo, eles limitam-se a amarrá-lo e ficam de olho nele porque não podem abrir as portas àquela altitude. - Sorriu com ar doce. - Mas na Amtrak damos-lhe um pontapé no rabinho e pomo-lo lá fora onde quer que nos apeteça. Olhe, damos-lhe uma lanterna e uma bússola para o ajudar a orientar-se. É esta a política da Amtrak, que aliás acho muito boa. - Olhou pela janela. - Deus nos acuda! A neve aumentou outra vez, parece a nevasca habitual.:- Depois, disse para o walkie-talkie: - Fala novamente a assistente-chefe. Em relação ao passageiro da situação um-quatro-dois, tragam uma pá e uma caixa de primeiros socorros com creme para as úlceras provocadas pela geada. Fim de mensagem.

- Eu vou vestir-me, vou pôr a roupa - gritou o jovem. - Pode cancelar esse tal um-quatro-dois.

Roxanne olhou para ele com ar solene e abanou a cabeça repetidamente.

- Desculpe, mas a viagem é longa e você pode fazer esse disparate novamente.

- Juro que não - disse o jovem, vestindo-se a toda a pressa. - Não volto a despir-me. Durmo com roupa. Prometo.

- Não sei. Está a sentir? O comboio já está a abrandar, e o maquinista é capaz de ficar irritado se eu lhe disser que já não é preciso parar.

- Por favor, por favor. Eu prometo. Não pratico mais nudismo. Roxanne suspirou profundamente e depois então falou para o walkie-talkie:

- Fala novamente a assistente-chefe. Vamos cancelar a operação, repito, vamos cancelar a operação um-quatro-dois. - Olhou para o jovem. - E agora, ouça com atenção: se eu vir a mais pequena coisa que não deva ver, você vai porta fora, seja qual for o sítio onde nos encontrarmos. Não há mais condescendências, estamos entendidos?

O jovem acenou afirmativamente e com humildade e depois puxou o cobertor para cima da cabeça.

- Boa noite, Arizona - disse Roxanne quando saiu dali com Eleanor.

As duas mulheres desceram para o piso inferior e sentaram-se à mesa.

- Você tem tido uma noite ocupada - observou Eleanor.

- Ora, minha querida, isto não foi nada. As coisas que eu podia contar-lhe ...

- Quem me dera que contasse!

- Bem, talvez possamos passar um tempo juntas quando a viagem terminar.

Eleanor estava a começar a pensar que podia contratar Roxanne como consultora para a realização do filme.

- Quantos filhos tem para além de Regina?

- Nove. Todos crescidos, evidentemente. E vinte e três netos. - Roxanne lançou um olhar a Eleanor. - Você tem filhos?

- Nem sequer fui casada - respondeu Eleanor, abanando a cabeça.

- E não quer explicar-me como é que uma mulher bonita, elegante e bem-sucedida como você nunca encontrou um homem bom que a amasse?

- Talvez eu não seja realmente assim tão bonita, elegante e bem-sucedida.

- Querida, olhe-se ao espelho! E duvido de que estivesse a trabalhar com um homem como Max Powers se também não fosse dotada de miolos e talento.

- Bem, isso acontece, você sabe. Há uma data de pessoas que acabam sozinhas.

- Sim, e também há sempre uma razão para isso acontecer. Importa-se de me dizer qual é a sua? - Eleanor desviou o olhar e fez figas enquanto Roxanne a observava minuciosamente. - Espere um minuto, deixe-me adivinhar. Você encontrou um bom homem que a amava, só que a coisa não resultou. Talvez ele nunca tivesse feito a tal pergunta importante, e você acabou por escolher caminhos separados. - Acrescentou em voz baixa: - Até que o encontrou outra vez neste comboio. - Eleanor deitou-lhe um olhar penetrante. - A maneira como você e Tom Langdon agem um com o outro é bastante significativa. Além disso, a má-língua e os boatos estão bem vivos neste comboio.

- Meu Deus! - exclamou Eleanor, corando. - Se eu tivesse sabido que disfarçava tão mal ... - Respirou fundo. - Tom Langdon não é homem para assentar arraiais. Sempre foi assim e sempre será.

Está sempre tão desejoso de mudança como as outras pessoas de comida. É o género de pessoa incapaz de comprometer-se com alguma coisa, mesmo que a vida dele dependa do compromisso. E a resposta à sua pergunta é não: ele nunca me pediu para casar com ele.

- Mas ouvi dizer que você não o via há anos. Talvez ele tenha mudado.

- Os homens como ele não mudam - disse Eleanor, abanando a cabeça. - Tem andado a viajar pelos Estados Unidos a escrever coisas de menor interesse em vez de cobrir guerras, mas não vai ser por muito tempo. Daqui a seis meses, vai lá para fora outra vez fazer qualquer coisa. Vivi uns anos com ele, conheço-o bem. - Fez uma pausa e acrescentou: - E tem uma namorada em Los Angeles.

- Acha que está comprometido com ela?

- Duvido.

- O que você quer dizer é que tem esperança que não - disse Roxanne. Eleanor desviou o olhar. - Deixe-se guiar pelo seu coração, minha menina. Se realmente o ama, aconselho-a a dar-lhe outra oportunidade.

 

                                   CAPÍTULO OITO

Em Kansas City, a paragem era mais longa. Entravam e saíam muitas pessoas, e o comboio era reabastecido de combustível e provisões. Tom aproveitou a oportunidade para sair e respirar ar puro antes de começar a festa de despedida de solteiro. Nevava intensamente, e ele procurou abrigo debaixo de um dos telhados. Foi com surpresa que viu Eleanor descer do comboio e dirigir-se-lhe.

- Está um bocado abafado lá dentro - explicou ela.

- Está.

Ficaram ambos ali, desajeitadamente, até que ela disse:

- É difícil explicar o choque que tive quando te vi.

- Durante todos estes anos, pensei um milhão de vezes em contactar-te, mas nunca o fiz. Chama-lhe orgulho, teimosia ou estupidez. Escolhe, foi de tudo um pouco.

- Bem, da maneira que a coisa terminou, acho que não posso culpar-te.

- Acreditas em segundas oportunidades? - perguntou ele, aproximando-se mais.

- Tom, eu não quero magoar-me outra vez. Não posso - retorquiu ela, recuando um pouco.

- Foste tu que me deixaste, lembras-te?

- Depois de todos aqueles anos em comum, era a altura de pegar ou largar- disse ela abruptamente. - Eu precisava de um compromisso e não o tinha. Concluí que a tua carreira era mais importante do que qualquer outra coisa.

- As pessoas podem mudar, Ellie.

- Foi o que ouvi dizer. Tu tens uma namorada com quem vais passar o Natal. Estás preparado para te comprometeres com ela?

- O meu relacionamento com ela não é desse género.

- Com certeza que não, tu não és um homem desse género - disse ela, abanando a cabeça e olhando para longe.

Tom agarrou-a pelo ombro e virou-a de frente para ele.

- Não é esse género de relacionamento porque eu não a amo. Há só uma mulher a quem sempre amei, Ellie, tu sabes isso. Nada na minha vida foi tão bom como o que tivemos. Nada. Durante estes anos todos, tenho andado à procura de algo.

- Tom, não me faças isso, por favor.

- Então, porque é que vieste cá para fora com este frio de rachar?

- Eu ... não sei.

- Eu não acredito nisso. Eu acho que sabes perfeitamente porque foi.

- Talvez saiba. Também tenho andado à procura e não encontrei - disse ela.

- Encontrarmo-nos no comboio não pode ter sido apenas uma coincidência. É um bom presságio, não vês? Tinha de ser.

- Pareces Misty a falar. O amor não funciona assim, não é um pó de varinha de condão, é uma coisa que se constrói dia a dia.

Quando a intensa energia daqueles olhos cor de esmeralda caiu sobre ele, o olhar de Eleanor tornou-se algo tão hipnótico e embriagador como Tom nunca experimentara. Aproximou-se mais e, com a mão, afastou-lhe do rosto uma madeixa de cabelo castanho despenteado. Depois, passou-lhe suavemente os dedos pelas faces. Ela não fez nada para o impedir.

- Bem, talvez tenha chegado a hora de eu começar a construí-lo - disse ele. Respirou fundo, levantou os olhos por um segundo, avistou um vulto a dirigir-se-lhe e abanou a cabeça, incrédulo. Era o segundo choque que recebia em pouco mais de vinte e quatro horas. A quantos mais meteoritos iria conseguir sobreviver?

Era Lelia. Dirigia-se para o comboio em grandes passadas à frente de uma caravana de bagageiros que rebocavam a sua prodigiosa bagagem.

Tom afastou-se um pouco de Eleanor, que fechara os olhos e cujos lábios procuravam os dele sem os encontrar.

- Ellie! - exclamou ele.

- O que se passa? - perguntou ela, abrindo os olhos.

- Imagina o momento mais inoportuno que é possível imaginar.

- O quê? - perguntou Eleanor sem perceber.

Tom deitou outro olhar a Lelia. Estava a aproximar-se. Tom não tinha a certeza se ela já o vira, mas era uma questão de minutos.

- Queres conhecer a minha espécie de namorada de Los Angeles? - perguntou, apontando para Lelia. - É aquela. Lelia Gibson.

Eleanor voltou-se e ficou a olhar para o grupo que se aproximava.

- Sabias que ela ia apanhar este comboio?

- Não, isto pode considerar-se o maior choque de toda a minha vida.

Eleanor cruzou os braços e afastou-se de Tom no preciso momento em que Lelia embateu contra o alvo.

- O que é que estás a fazer aqui, Lelia?

- É só isso que tens para me dizer, depois de eu ter percorrido esta distância toda para te fazer uma surpresa? Sabes que não se consegue um avião directo de Los Angeles para Kansas City? Que raio de pergunta! Tive que apanhar um avião via Denver. Foi um pesadelo. E só ouço: «O que é que estás a fazer aqui, Lelia?» - Deu-lhe um abraço e um beijo, e ele sentiu-se extremamente culpado porque, afinal de contas, eram namorados. O encontro com Eleanor quase o fizera esquecer-se disso.

- Desculpa, foi a surpresa de ver-te.

- Porque é que não entramos no comboio e eu depois conto-te tudo? - sugeriu ela.

- Tudo? Que tudo?

- Mais logo, depois de arrumar as malas - disse ela, entregando o bilhete a um dos bagageiros para eles porem as malas a bordo e gratificando-os generosamente não só com dinheiro, mas também com um sorriso deslumbrante. Estava vestida à moda de Hollywood, ou seja, com roupa cara e vistosa. O pobre batalhão de bagageiros de Kansas City nunca mais ia ser o mesmo, disso tinha Tom a certeza.

Quando se dirigiram para o Chief, Lelia enfiou o braço no de Tom.

- Sabes, eu nunca andei de comboio, mas, já que estamos de férias, até é giro. Têm serviço de massagens a bordo?

- Não, não têm.

- Bem, talvez tu me possas dar uma... uma massagem, é claro. Olha, trouxe-te o teu ursinho brejeiro - acrescentou ela com coquetismo, encostando-se muito a ele.

Ao entrarem no comboio, Tom viu Eleanor pelo canto do olho. Não tirava os olhos deles, e por uma de poucas vezes na sua vida Tom sentiu-se completamente impotente.

Lelia instalou-se no seu compartimento, mas não sem algumas queixas a respeito da falta de espaço e fazendo perguntas quanto à possibilidade de arranjar outro com casa de banho privativa. Barry, o assistente da carruagem-cama, irremediavelmente encantado com ela, saiu determinado a arranjar tudo o que ela pedira. Tom passou por lá depois de ela se instalar.

- Gosto da maneira como arranjaste isto - disse ele, sorrindo.

- Onde é que fica o teu?

- No dormitório dos pobres, ao fundo da estrada.

- Bem, podes dormir aqui hoje.

Tom sentou-se na beira da cama, que já fora aberta.

- Olha, tenho uma coisa para te dizer.

- Acho que sei o que vais dizer - interrompeu ela, pondo a mão sobre a dele. - É por essa razão que eu vim de avião até aqui.

- É? - disse ele. «Como é que ela podia ter sabido da existência de Eleanor?», pensou.

- Afinal de contas, andamos já há algum tempo e há decisões que têm de ser tomadas.

- Não posso estar mais de acordo.

- Não quis dizer-te ao telefone e não conseguia esperar até ao Natal porque isto pode mudar os nossos planos de férias.

- Nesse ponto, acho que pensamos da mesma maneira - disse Tom, suspirando, aliviado.

- Tom, eu quero casar-me - declarou ela, pondo ambas as mãos nos ombros dele.

- Com quem? - Foi tudo o que Tom conseguiu dizer.

- Contigo, pateta!

- Queres casar comigo? Vieste de tão longe para me dizeres que queres casar? Comigo? - Levantou-se, muito perturbado. - Lelia, isso não tem nada a ver com o facto de nos encontrarmos algumas vezes por ano para nos divertirmos, passarmos uns bons tempos.

- Achas que não sei isso? - disse ela» levantando-se. - Os anos vão passando e o meu relógio biológico não está propriamente a fazer-se sentir. O alarme é que está a tocar, e eu já o desliguei tantas vezes que já nem trabalha.

- Estás a dizer que queres ter filhos?

- Sim. Tu não queres?

- Como é que sei se quero filhos? Não sabia que vinhas cá propor-me isso esta noite. Deixa-me respirar, está bem?

- Sei que isto foi repentino - disse ela, passando os braços à volta dele -, mas fazemos um bom par, Tom, muito bom. Tenho muito dinheiro e podemos fazer tudo o que quisermos. Vamos viajar, jogar, gozar a vida e depois fixamo-nos e arranjamos uma grande família.

- Grande? Uma família grande? Quantos filhos?

- Bem, eu tenho sete irmãos.

Tom olhou para a pequena estatura dela.

- Trabalhas seis horas por dia. Estás a dizer-me que vais deixar o teu corpo inchar oito vezes? Mesmo que só tenhamos um filho de dois em dois anos, terás sessenta anos na altura em que a última euforia se esgotar, Lelia ... - disse ele, passando a mão pelos cabelos com vontade de os arrancar. - Não posso crer!

- Sei que isto é demais para ti, mas faltam dois dias para chegarmos a Los Angeles. Tens muito tempo para pensar e depois dizes-me o que resolveste.

- Queres que te diga dentro de dois dias se quero casar-me e ter oito filhos?

- Bem, dependendo da tua resposta, vamos ter muito que fazer, portanto, sim, agradeço que respondas prontamente. - Beijou-o no rosto e agarrou-lhe nas mãos. - E agora, o que é que vais dizer-me?

Tom ficou um bocado a olhar para ela de boca aberta e depois voltou-se para sair.

- Aonde vais?

- Ao bar - conseguiu ele articular.

Enquanto Tom se dirigia, cambaleante, para a sala de estar com ideia de emborcar tantos cálices de tequila quantos conseguisse até levantar o ânimo, o Chief continuava a deslocar-se a grande velocidade para Lawrence, no Kansas. Iam chegar lá cerca da 1.30 da manhã e seguir-se-iam Topeka, Newton, Hutchinson, Dodge City e Garden City. Esta seria a última paragem dentro do estado do Kansas antes de entrarem no Colorado. La Junta, o local do casamento, era a segunda paragem do Colorado e ficava a cerca de duas horas do desfiladeiro de Raton.

A tempestade direccionava-se então para o Sul, embatendo contra o vulto inamovível das Montanhas Rochosas. A neve caíra naquela região com uma intensidade acima do normal, e os cumes das montanhas estavam profundamente engrinaldados de branco, mas não havia registo de prejuízos sérios, e enquanto os meteorologistas fossem seguindo a massa de vento e de humidade em movimento, não havia razão para pensar que aquela tempestade ia ser diferente de inúmeras outras.

Tom foi interceptado por Max e Misty antes de conseguir chegar à sala de estar.

- Preciso de uma bebida - disse ele a Max. - Necessito tremendamente de uma bebida. Sem tomar uma bebida, não me responsabilizo pelos meus actos.

- Tenho no meu compartimento todas as bebidas que você possa imaginar, bem como uma grade de vinho fresco. Vamos começar a fazer a festa de despedida de solteiro agora, já. E, olhe, resolvi que não íamos limitar a entrada aos homens.

- Para falar verdade, também acho boa ideia - disse Misty.

- Como é que conseguiu essas bebidas todas?

- Bastou-me telefonar para Kansas City e disse para porem na minha conta. Não se trata de alta tecnologia, miúdos.

- Eu adoro ouvi-lo tratar-me por «miúda» - disse Misty. - Faz-me sentir jovem.

- Temos um casamento amanhã, e você, Eleanor e os outros vão ter um papel primordial, por isso também temos de ensaiar.

- Neste momento, acho que não é muito boa ideia, Max - disse Tom.

- Não seja pateta. Acredite em mim. Eu sei o que estou a dizer. É assim que ganho a vida. Você tem de ensaiar, caso contrário estraga tudo. Agora, venham, meninos, o tio Max é sempre bem-sucedido.

Avançou pelo corredor aos saltinhos, manifestamente divertido. Misty seguiu-o, o que deixou a Tom ocasião para se arrastar penosamente atrás deles.

Max mandou Kristobal chamar Steve, Julie, Eleanor, Roxanne e o padre que ia realizar a cerimónia. Este era alto e bem-parecido, tinha cabelo grisalho curto, expressão inteligente e olhos bondosos.

O compartimento de Max era uma suite com dois quartos.

- Como é que conseguiu arranjar isto? - perguntou Tom, medindo todo aquele espaço com os olhos.

- Ele chama-se Max Powers - disse Misty. O realizador distribuiu uns papéis agrafados.

- Bom, aqui têm o guião para amanhã, incluindo todas as cenas, quero dizer, todas as partes do casamento.

Tom aproximou-se de Kristobal, que estava de serviço ao bar que fora montado a um canto.

- Tem um whisky? - perguntou-lhe.

- Só temos um Macallan's malte de vinte e cinco anos. É o preferido de Mr. Powers.

- Bem, acho que serve, não é?

Beberricou o whisky e olhou para Eleanor, que estudava o guião atentamente e esforçava-se por evitar o contacto visual com os outros, especialmente com ele. Acabara de arranjar coragem para se dirigir a ela quando Lelia entrou bruscamente.

- Vejo que estão a fazer uma despedida de solteiro - disse Lelia, cujo olhar caiu sobre Max Powers. Tom reparou que, logo que o realizador viu Lelia, tentou esconder-se por detrás de Misty.

- Max? Max Powers? - disse Lelia. - Meu Deus, é mesmo você!

Max voltou-se, fingindo-se surpreendido, e exclamou:

- Lelia!

- Vocês conhecem-se? - perguntou Tom.

- Há uns anos - disse Max calmamente.

- Mas parece que foi ontem, Max - disse Lelia. - Fui fazer uma audição para um dos filmes dele, um papel secundário. Foi há uns anos, mas ele já era uma lenda - acrescentou ela num tom de voz respeitoso.

- Ora, Lelia - disse Max nervosamente -, o meu ego já é suficientemente grande ...

- Não fiquei com o papel - continuou ela como se não o tivesse ouvido. - Lembra-se do filme, Max?

- Não, querida, na verdade não me lembro. Perdi algumas células cerebrais desde então.

- Fall of Summer. Era sobre um jovem casal que ora se apaixonava, ora se zangava durante umas férias de Verão. Nunca cheguei a saber por que razão não fiquei com o papel da melhor amiga da protagonista, Bambi Moore.

- É óbvio que foi um dos meus maiores erros, Lelia. Cometi muitos no início da minha carreira.

- Bom, pelo menos teve a decência de me levar a jantar fora uma noite. Lembra-se?

- Com certeza. Fomos jantar. Foi encantador.

- E o jantar prolongou-se até ao pequeno-almoço. Tenho a certeza de que se lembra dessa parte da audição - disse Lelia, levantando as sobrancelhas e fazendo boquinhas.

- Bom, vamos interromper as bebidas e pôr este ensaio em marcha - gritou Max.

Max obrigou-os a ensaiarem uma e outra vez, até que Tom pediu para fazerem um intervalo, o que não agradou a Max, mas Tom foi imediatamente secundado pelos outros todos.

Lelia dirigiu-se a Eleanor, e Tom aguardou a colisão iminente.

- Já sei que você é a madrinha, e Tom, o padrinho. Que divertido e conveniente deve ser para si!

- Acha? - retorquiu Eleanor. - Não são esses os adjectivos que me ocorreriam.

- Tom e eu vamos passar o Natal a Tahoe - disse Lelia.

- Você foi de avião de Los Angeles até Kansas City e meteu-se num comboio que volta para Los Angeles para ir a Tahoe passar o Natal? Que trajecto tão sinuoso!

- Bem, eu tinha uma coisa importante para pedir a Tom.

- E o que era?

- Casar comigo. - Eleanor olhou para Tom com ar feroz. Lelia continuou: - Alguém me disse que você e Tom andaram em tempos. Olhe, tem graça, Eleanor ... é Eleanor, não é? Tom nunca me falou de si. Acho que não foi uma relação que lhe deixasse saudades.

- Tenho a certeza de que ele mencionou o meu nome - disse Eleanor. - Provavelmente, foi quando estavam os dois na cama.

Lelia ficou com a boca de tal maneira aberta que Tom conseguiu ver que ainda conservava as amígdalas.

- Então, alguém precisa de uma bebida? - Foi tudo que Tom conseguiu pensar para dizer qualquer coisa.

- Não se preocupe, querida, você pode ficar com ele todo - disse Eleanor, lançando a Tom outro olhar feroz. Depois, saiu intempestivamente, e Tom quis ir atrás dela, mas Lelia agarrou-o.

- Tu ouviste bem o que ela me disse? - Tom estava a seguir Eleanor com o olhar e viu-a desaparecer no corredor. - Tom, estás a ouvir?

- Lelia, cala a boca! - respondeu ele, olhando-a finalmente. Lelia girou nos calcanhares e desapareceu.

Quando as pessoas começaram a sair a pouco e pouco, Tom estava com um ar tão infeliz que Max finalmente aproximou-se dele.

- Você está com ar de quem precisa de outra bebida.

Fez dois cocktails e sentaram-se ambos. Max deu uma palmada na coxa de Tom.

- Foi uma pena não haver uma rapariga a sair do bolo da festa.

Mas eu achei que não seria propriamente adequado na presença de senhoras.

- Então, você ... digamos ... andou com Lelia?

- Bem, na verdade, eu não diria «andar com». Foi só uma vez, tanto quanto me lembro. A minha memória já não é o que era. Olhe, ouvi bem? Lelia pediu-o em casamento?

Tom acenou com a cabeça afirmativamente.

- Que raio, parece que as mulheres hoje em dia fazem isso. E então isso significa que, se vocês se divorciarem, ela terá de lhe pagar a si uma pensão de alimentos?

- Ela não vai ter de me pagar nada. Não vamos casar-nos.

- Olhe, Tom, eu não estou a tentar intrometer-me, nem nada que se pareça, mas Lelia é mesmo bonita. Não se apresse a decidir, você pode não ter outra oportunidade. Sem ofensa, você já não é muito novo.

- Tem razão, ela é rica, ela é linda ... mas eu não a amo. Max deu um longo suspiro.

- Até hoje, já assinei o papel quatro vezes. Quem sabe? Talvez haja uma quinta - disse o realizador com uma expressão melancólica.

- Patty foi a minha primeira mulher, casámo-nos logo que saímos do liceu. Tivemos quatro filhos do sexo masculino. Éramos extremamente pobres, mas ela nunca se queixou nem uma vez. Era capaz de esticar os tostões mais do que qualquer outra pessoa que eu tenha conhecido. Eu estava precisamente a começar a singrar na indústria cinematográfica quando ela morreu. - Ficou calado a olhar para a paisagem que desfilava lá fora. - Sim, eu amava Patty com todo o meu ser. Hei-de amá-la sempre. As minhas três ex-mulheres? - Encolheu os ombros.

- De certo modo, amei-as. Mas não como amei Patty. Acho que há qualquer coisa de especial em relação ao primeiro amor. Agora, ando com umas e com outras e divirto-me. Sabe como é?

- Sei - respondeu Tom, acenando com a cabeça afirmativamente.

- Porque é que você e Eleanor não estão juntos? - perguntou Max em voz baixa, aproximando-se mais de Tom.

- Você viu o que aconteceu. Ela saiu daqui furiosa.

- Bem, não lhe deite as culpas. A sua namorada vem de avião de Los Angeles para lhe propor casamento. Ora, Deus sabe que não sou perito em assuntos do coração, mas não é exactamente a maneira ideal de reconquistar o amor da sua vida.

- Eu tentei, Max, tentei mesmo.

- Bem, sabe que mais? Se ela é realmente a sua Patty, eu continuava a tentar.

Eleanor regressara ao seu compartimento e estava prestes a engolir um soporífero de enorme diâmetro quando alguém lhe bateu à porta.

- Eleanor? Sou eu.

Tentou identificar a voz através dos filtros embotados da sua mente exausta.

- Julie? - perguntou. Foi até à porta, abriu-a e viu diante de si a jovem noiva em perspectiva com lágrimas nos olhos e um porta-fatos na mão.

- O que é que aconteceu? Os pais de Steve telefonaram outra vez?

Julie abanou a cabeça.

- E os meus também não. Posso entrar por uns minutos?

- O quê? Oh, com certeza - respondeu Eleanor, enfiando o comprimido no bolso.

Sentaram-se as duas na beira da cama.

- Então, os seus pais não telefonaram e você está triste porque ... - disse ela, bondosa e pacientemente.

- Bem - começou Julie -, acho que, na sua imaginação, uma rapariga vê os pais no seu casamento. Imaginamos o nosso pai a fazer a entrega da sua filhinha e a nossa mãe a dizer-nos que vai tudo correr bem. E eu não vou ter nada disso. - Desatou a chorar e soluçou durante algum tempo, com Eleanor a abraçá-la com força. Quando finalmente parou, limpou os olhos e ficou com um ar embaraçado. - Desculpe, eu sou uma mulher adulta e devia ser capaz de lidar com esta situação, mas sinto-me realmente muito só.

- Tem todo o direito de se sentir assim, e eu acho que tenho sido uma péssima madrinha.

- Ora, você nem sequer me conhece.

- Isso não importa. Somos ambas mulheres, você vai ser a noiva de amanhã. É só disso que eu me devia ter lembrado.

- Já alguma vez foi casada?

- Não - disse Eleanor baixinho -, mas tenho pensado muito nisso. Já imaginei tudo em pormenor, desde os aperitivos até aos arranjos florais, embora já não sonhe tanto como costumava sonhar. Conforme os anos passam, as oportunidades de que isso aconteça vão certamente diminuindo.

- Só precisa de alguém que a ame e cujo amor retribua. Eleanor sorriu, embora na verdade lhe apetecesse chorar copiosamente, mais do que Julie chorara.

- Pois é, é apenas disso que preciso - confirmou ela, tocando no saco que Julie pusera em cima da cama. - O que é isto? - perguntou.

- É o meu vestido de noiva. Não o vesti desde que o comprei. Pensei que talvez, percebe ...

- Que bela ideia! - disse Eleanor.

- Tem a certeza de que não se importa? É tarde e com certeza está cansada.

- Para falar verdade, estava cansada, mas agora já não estou.

Eleanor ajudou Julie a vestir-se. Era um vestido simples e elegante, branco-creme, e assentava-lhe perfeitamente. Quando Julie ia pôr o véu na cabeça, mudou de ideia e pô-lo na cabeça de Eleanor. Ficaram então lado a lado em frente do espelho alto de parede.

- Está linda, Julie!

- E você também.

Começaram a rir histericamente. Enquanto Julie foi à casa de banho, Eleanor ia guardar o vestido no saco, mas, em vez disso, levantou-o, pô-lo à sua frente e viu-se ao espelho.

- Ellie?

A porta do compartimento entreabrira-se devido às curvas e à aceleração do Chief. Eleanor olhou para lá e viu Tom a contemplá-la ali de pé, escondida atrás do vestido de noiva de outra mulher. Nesse momento, Julie saiu da casa de banho e ficou a olhar para ambos.

- Desculpem se interrompi alguma coisa.

Eleanor baixou o vestido e guardou-o cuidadosamente enquanto Tom a observava. Entregou o saco a Julie, deu-lhe um abraço e disse-lhe com um grande sorriso:

- Durma bem, o dia de amanhã vai mudar a sua vida inteira. Para melhor.

Julie beijou-a, voltou-se e passou por Tom, que continuava ali especado com um ar tão desajeitado como confuso.

- O que é que queres, Tom? - perguntou Eleanor.

- Estavas um encanto com aquele vestido, Ellie.

- Já é tarde, não devias estar com Lelia?

- Eu não amo Lelia.

- Bem, parece que ela te ama. Presumo que lhe deves ter mostrado algum afecto ou feito alguma promessa, porque acho difícil de acreditar que aquela mulher tenha feito todo aquele percurso para te pedir que cases com ela só por amizade ou bondade. O que é que a fez vir lá de tão longe? - perguntou ela, cruzando os braços e ficando ansiosamente à espera de uma resposta.

- Como é que queres que eu saiba? Ela é maluca.

- Há quanto tempo é que vocês começaram a andar?

- Há cerca de três anos - gaguejou Tom -, mas só de quando em quando.

- De quando em quando? E estavas à espera de que ela se contentasse com isso? - Tom ficou a olhar sem compreender, e Eleanor continuou: - Então, ela queria um compromisso e tu não querias. Sentias-te completamente feliz a apareceres e a desapareceres, partilhando os bons tempos, mas não os maus, e fazendo a tua vida sozinho quando te apetecia?!

- Isso não é assim, Ellie. Eu já não sou assim.

- Com certeza que não és. Tu não mudaste nem um bocadinho.

- Seria diferente com a mulher certa. Eleanor esfregou as têmporas.

- Ouve, temos um casamento amanhã. O casamento de outra pessoa. Preciso de dormir.

- Não podemos deixar isto assim.

- Ai isso é que podemos e vamos deixar. Amanhã, vamos cumprir o nosso dever, depois chegamos a Los Angeles e seguiremos caminhos diferentes. Desta vez, para sempre.

- Ellie!

- Adeus, Tom - disse ela, fechando a porta de correr.

A manhã despontou nas planícies altas do Colorado, perto da fronteira do Novo México, mas o Sol ficou completamente escondido por um vasto tecto de nuvens ameaçadoras. A neve espessa cobriu o solo e a omnipresente salva-das-boticas. A maior parte das pessoas juntou-se para tomar o pequeno-almoço cedo porque se espalhara a notícia da realização do casamento. À medida que o comboio se aproximava de La Junta, a excitação crescia, e quase todos os passageiros e pessoal se amontoaram na sala de estar para assistir à cerimónia. Uma orquestra que Max contratara e que embarcara de manhã cedo tocou a Marcha Nupcial e outras músicas. Kristobal filmou todo o acontecimento, e Max dirigiu-o, sem que a maior parte dos passageiros se apercebesse de que aquilo era, ao mesmo tempo, uma produção de Max Powers. Tom e Eleanor representaram os respectivos papéis, embora Tom, num momento de embaraço, não conseguisse encontrar a aliança e a seguir, num momento de maior embaraço ainda, parecesse estar a enfiá-la no dedo de Eleanor em vez de a entregar a Steve.

A noiva e o noivo beijaram-se quando o comboio parou em La Junta, e toda a gente a bordo lhes atirou arroz. Uma terceira locomotiva a diesel foi engatada ao Chief para ajudar o comboio a atravessar o desfiladeiro. A multidão que estava nas plataformas deu vivas quando leu uma tabuleta com a indicação de «Recém-casados» que alguém pendurara na última carruagem do Chief com latas atadas por baixo.

Então, começou realmente a festa no comboio, abrilhantada com o enorme banquete encomendado por Max. Depois de o fotógrafo contratado para o casamento ter tirado as fotografias, surgiu Roxanne, arrebatadora, com um fato flamejante sem qualquer semelhança com a farda da Amtrak. Atrás dela, vinha o Coro Masculino do Centro Juvenil de Los Angeles, igualmente trajando a rigor. A multidão fez silêncio, e Roxanne e o coro começaram a cantar. Cantaram canções clássicas, depois blues e uma série de músicas de Nat King Cole para Sinatra. Roxanne fez a sua melhor interpretação dramática de Aretha Franklin, cantando a plenos pulmões a composição que imortalizou a rainha do soul, ou seja, Respect. Os presentes entusiasmaram-se tanto que se levantaram e cantaram com ela, gritando uma a uma as letras da palavra «Respect».

Max deixou-se ficar sentado atrás, sorrindo. Roxanne olhou para ele, obrigou-o a levantar-se e dançaram os dois, no que foram seguidos por todos os outros.

Lelia arrastou Tom, mas ele conseguiu libertar-se rapidamente, dizendo que estava enjoado, o que não era totalmente mentira. A pobre Lelia, sentindo-se abandonada, olhou em volta e avistou Kristobal, que guardava o equipamento de vídeo.

- Dança? - perguntou-lhe.

Kristobal fitou-a e ficou de olhos esbugalhados, visivelmente deslumbrado perante tal beleza.

- Você trabalha para Mr. Powers, não trabalha? - Kristobal acenou com a cabeça afirmativamente. - Sou Lelia Gibson:

Kristobal abriu ainda mais os olhos e disse de repente:

- Lelia Gibson, a voz de Cuppy, o Castor Mágico? Era o meu programa preferido quando era miúdo. O meu irmão mais pequeno ainda o vê. Você é formidável!

- Via quando era miúdo? - disse Lelia com ar excitado. - Meu Deus, eu já trabalho assim há muito tempo?

Empolgado, Kristobal pôs de parte todo e qualquer simulacro de dignidade profissional.

- E também faz de Sassy Squirrel, de Freddy Futon e de Petey Pickle? São todos clássicos. Olhe, não quero perder a cabeça, mas quase não consigo acreditar que você se encontra neste comboio. Seria um grande abuso pedir-lhe um autógrafo? O meu irmão ia ficar radiante.

- Porque não? Com certeza que pode ter o meu autógrafo. O seu nome é...?

- Oh, que mal-educado! O meu nome é Kristobal Goldman - disse ele, dando-lhe um aperto de mão tão entusiástico que quase fez a pequena Lelia levantar do chão os sapatos abertos, escandalosamente caros, com uns saltos de sete centímetros e meio.

- Ouça, Kristobal, eu autografo tudo o que quiser se você dançar comigo.

Espantado, Kristobal fez uma vénia e começaram a dançar.

Enquanto as pessoas celebravam o casamento, cerca de mais vinte compartimentos foram assaltados e vários artigos roubados, desde relógios e anéis a pulseiras, e até desapareceram os sapatos Bruno Maglis de Max. Uma vez mais, o ladrão escapuliu-se sem ser visto, misturando-se com celeridade na multidão de participantes da festa.

Na véspera do casamento, à noite, a tempestade fixara-se na fronteira entre o Colorado e o Novo México. Presas ali em virtude de um sistema de altas pressões, as nuvens encontravam-se naquele momento tão cheias de humidade que algo tinha de acontecer, e aconteceu cerca das 3 da manhã, com o Chief ainda a oito horas de distância daquele lugar. Os indicadores de queda de neve encheram-se ao fim de uma hora; os vigorosos postes existentes para medir a velocidade do vento foram derrubados em trinta minutos. Todos os aviões comerciais receberam instruções para cancelarem os voos, e todas as estâncias de esqui das proximidades fecharam. Por volta das 7 horas da manhã, as condições eram quase negras. Depois, às 9.30, houve uma súbita acalmia, e os meteorologistas previram que a tempestade se dissiparia rapidamente.

Alguém disse uma vez a Mark Twain, por ocasião de uma súbita carga de água, que tinha esperança de que a tempestade parasse, ao que Mark Twain respondeu que havia boas probabilidades disso visto que sempre tinham parado. Mark Twain nunca se interessou muito pela previsão do tempo, sem dúvida por concluir sensatamente que a ciência de prever as intenções da Mãe-Natureza era uma patetice.

O que é certo é que as condições atmosféricas não tinham mudado e, apesar da existência de satélites, radar Doppler e outros instrumentos sofisticados para os ajudar, os meteorologistas que seguiam aquela tempestade enganaram-se. A nevasca estivera simplesmente estacionária. Naquele momento, toneladas de humidade e rajadas de vento do Pacífico combinavam-se para dar que falar.

 

                                   CAPÍTULO NOVE

A maioria dos participantes da festa tinham dispersado, mas Max e Misty, Kristobal, Lelia e Herrick Higgins continuavam sentados na sala de estar vendo o comboio iniciar a subida do desfiladeiro de Raton. Conforme o declive se tornou mais íngreme e o profundo chiar das três locomotivas aumentou, houve um mal-estar crescente entre os passageiros. As enormes quantidades de neve que estavam a ser retiradas do trilho pelo limpa-neves da locomotiva da frente viam-se em cada curva. Era de admirar que o maquinista conseguisse ver alguma coisa com aquela brancura toda a pairar no ar.

- O que é que acontece se uma das carruagens se soltar? - perguntou Kristobal. - Caímos no abismo?

- Não - explicou Higgins. - O sistema de travagem automático é accionado e a carruagem pára. A tecnologia dos comboios está muito avançada. - Apontou lá para fora. - Vamos subir até dois mil e trezentos metros de altitude.

- Que altitude! - exclamou Kristobal.

- Olhe que não é o percurso mais elevado deste país. O mais alto é o Califórnia Zephyr, depois de Denver, com pouco mais de dois mil e oitocentos metros. Vamos atravessar um túnel de oitocentos metros que passa por baixo do desfiladeiro de Raton e logo que chegarmos ao fim estamos no Novo México. Depois, descemos pela encosta oriental das montanhas do Sangue de Cristo e entramos na montanha Raton, que se eleva a dois mil metros de altitude.

Misty ficou com um ar aflito e agarrou-se ao braço de Max.

- Disse dois mil metros? Tem a certeza de que a altitude é essa? Rigorosamente essa?

- Sim, minha senhora - disse Higgins, olhando para ela por cima da chávena de café.

- Oh, meu Deus!

- Qual é o problema, querida? - perguntou Max.

- Não vês? Se convertermos os metros em pés são 6666? É a pior combinação de algarismos possível, é ainda pior que 666.

- Tens razão - disse Max, empalidecendo. - É a marca do Demónio e ainda mais outro 6. Um carma muito mau.

- É assim tão mau? - perguntou Kristobal, nervoso.

- Do meu ponto de vista profissional, não há pior - disse Misty enfaticamente. - Podemos parar o comboio?

- Não há uma corda que se puxa para travar como nos filmes? - perguntou Lelia, sentada ao lado de Kristobal e agarrada ao braço dele com ansiedade.

- Ora, agora já não há disso - disse Higgins. - Mas acalmem-se, vai tudo correr bem. O Chief faz esta rota duas vezes por dia em direcção a oriente e a ocidente. - Consultou o relógio. - Vamos entrar no túnel daqui a pouco, mas não ficamos lá dentro muito tempo. Entramos e saímos num abrir e fechar de olhos e depois estamos no Novo México.

Tom olhou para o anel de diamantes que tinha na mão. Era da mãe, e ele usava-o desde que ela morrera. Meteu-o no bolso, ajustou a gravata que Kristobal lhe emprestara para a cerimónia, respirou fundo e bateu à porta do compartimento de Eleanor.

Eleanor correu a cortina, viu-o e voltou a fechá-la. Tom ouviu o barulho do fecho da porta e bateu outra vez no vidro.

- Ellie, preciso muito de falar contigo. É urgente.

- Vai-te embora.

- Preciso de pedir-te uma coisa e vou pedir agora mesmo. Eleanor abriu a porta com tanta veemência que fez um estrondo.

- Pensei que me tinha feito entender perfeitamente.

Tom enfiou a mão ao bolso à procura do anel e começou a ajoelhar-se, tremendo.

Os acontecimentos que se seguiram sucederam-se de modo terrivelmente inesperado. O interior do comboio ficou imerso em escuridão quando este entrou no túnel. A neve que cobria o topo da montanha do lado sul desprendeu-se sob a pressão das rajadas do vento implacável e de toneladas de neve recém-caída. A avalancha desceu pela encosta da montanha com tremenda velocidade e embateu na barreira de metal localizada entre a vertente da montanha e a linha do comboio, com tal força que não só amachucou a barreira como a arrancou dos suportes.

A colisão fez accionar o envio automático de um pedido de socorro urgente à Amtrak, e, em resposta, a companhia comunicou imediatamente com o maquinista do Southwest Chief, dando-lhe ordem para parar o comboio.

O Chief acabara de sair do túnel situado por baixo do desfiladeiro de Raton quando o pedido foi enviado, e o maquinista nem precisou do aviso da Amtrak porque viu o terrível espectáculo através do pára-brisas. A onda gigantesca de neve e pedras foi tão intensa que o homem murmurou uma rápida despedida à mulher e aos filhos.

Quando o comboio parou com um solavanco, toda a gente se apercebeu de que não era uma paragem normal. Felizmente, não podiam ver aquilo que o maquinista via, mas todos ouviram um rumor surdo e prolongado, imediatamente identificado por alguns passageiros.

- É uma avalancha - gritou Tom, olhando pela janela.

- Meu Deus! - exclamou Eleanor, empalidecendo.

Tom agarrou Eleanor, atirou-a ao chão, puxou o colchão da cama e cobriu-a com ele, e depois protegeu o colchão com o seu corpo, enquanto o comboio continuava a estremecer e o barulho da avalancha a deslizar pela montanha abaixo se tornava ensurdecedor.

Na sala, toda a gente se atirou para debaixo das mesas. Max e Misty agarraram-se um ao outro; Lelia e Kristobal fizeram o mesmo.

Milagrosamente, a enorme quantidade de neve que se movimentava com toda a força parou antes de arremessar o comboio para fora dos carris. Contudo, quando o maquinista abriu finalmente os olhos, a única coisa que viu foi um muro de neve impenetrável. Conseguiu fazer o relato à Amtrak e disseram-lhe que uma segunda avalancha, na outra ponta do túnel, levara consigo outra barreira de protecção. Se tivesse acontecido um ou dois minutos antes, o Chief estaria no fundo da ravina. Encontrava-se agora bloqueado entre os dois acessos, incapaz de mover-se para qualquer dos lados, e, aparentemente, a tempestade ainda estava no começo.

Os meteorologistas não previam que amainasse tão depressa. A região estava a ser açoitada por uma tempestade de Inverno como não se via há trinta anos.

Higgins, que também se enfiara debaixo de uma mesa, olhou para o céu na altura em que ventos fortes começaram a varrer a montanha, socando o Chief com tal violência que o comboio, apesar do seu enorme peso, balouçava para trás e para a frente de modo inquietante. Olhando pelas janelas da esquerda, ninguém podia deixar de ver que o abismo era grande. Com a neve a continuar a cair, não estava fora de hipótese outra avalancha. E a próxima podia arrastar consigo o Southwest Chief.

Uma hora depois, Roxanne fez uma comunicação através dos altifalantes do comboio explicando o que acontecera e o que estava a ser feito para ajudar o comboio bloqueado. Com as duas montanhas de neve travando não só o caminho para Los Angeles como o caminho de regresso a Chicago e uma tempestade castigando a região com ventos fortes e neve, o melhor seria as pessoas manterem-se calmas dentro dos respectivos compartimentos.

Herrick Higgins fora falar com o maquinista e regressara com ar preocupado. Tom e Eleanor tinham ido ter com Misty e Max à sala de estar, e, ali, ora olhavam pela janela do lado direito vendo um lençol de neve branca e inquietando-se sempre que o vento batia contra a parede do comboio, ora espreitavam pela janela da esquerda para o buraco de seiscentos metros.

- Eu sabia que isto ia acontecer - disse Misty. - Com o algarismo seis repetido quatro vezes, como é que não havia de acontecer?

- Bem, eu andei por aqui durante muito tempo e nunca aconteceu. O comboio é o meio de transporte mais seguro para se viajar - disse Higgins.

- Pode vir aí outra avalancha? - perguntou Misty.

- A Mãe-Natureza é que sabe - respondeu ele. - Portanto, tudo é possível, mas acho que, como já houve duas, a maior parte da neve que tinha de descer já desceu.

- Então, como é que alguém chega até nós? - perguntou Tom ao velho ferroviário. - Nós não podemos ficar à espera do degelo da Primavera.

- Pois não, não podemos. Com o caminho bloqueado por aquela neve toda e o tempo da maneira como está, não há muita coisa que a companhia de transportes possa fazer. E também não há espaço para um avião pequeno ou um helicóptero aterrarem, mesmo que o tempo fique estável.

Roxanne apareceu com um ar exausto. Na última hora ou mais, andara a acalmar os passageiros, a consolar os rapazes do coro, a instalar as pessoas confortavelmente. Sentou-se e respirou fundo.

- Olhem, e para somar a isto tudo, parece que o ladrãozeco que assaltou o Cap entrou a bordo do Chief. Uma data de gente apresentou queixa de artigos roubados.

- É espantoso! - disse Max, abanando a cabeça e trocando olhares com Misty.

- O que nos vale - disse Higgins - foi terem atrelado uma terceira locomotiva em La Junta, portanto temos uma fonte de energia suplementar para nos ajudar.

- O que é que quer dizer com isso? - perguntou Max.

- A energia eléctrica que nos dá luz, calor e outras coisas vem dos geradores eléctricos que estão dentro das locomotivas, que são alimentados por motores diesel.

- Então, quando se acaba o combustível, acaba-se a electricidade – concluiu

Tom.

- Basicamente, é isso, mas uma locomotiva extra dá-nos mais tempo.

- Quanto tempo mais? - perguntou Max.

- É difícil dizer. Metemos combustível em Kansas City, mas o Chief reabastece-se em Albuquerque, a cerca de quatrocentos quilómetros daqui.

- E gasta muito combustível para subir o desfiladeiro, por isso os depósitos não estão bem cheios - disse Tom. Higgins acenou com a cabeça afirmativamente. - Então, podíamos ficar aqui durante horas até a energia acabar, não é verdade?

- Bem, o maquinista está a fazer tudo o que é possível para poupar combusttível.

- Não podíamos meter os passageiros todos nalgumas carruagens e desligar a energia das outras? - sugeriu Max.

- Não, o sistema não funciona assim. Quer as locomotivas estejam a fornecer calor a três ou a dez carruagens, o consumo do combustível é o mesmo.

- E porque não desligam algumas das locomotivas? - perguntou Eleanor.

- Porque se gasta muito combustível para as pôr a trabalhar novamente - elucidou Roxanne.

- E temos de manter as locomotivas a funcionarem para impedir que os canos congelem. Com uma temperatura baixa como esta, se se desligar a locomotiva e não houver calor, em menos de meia hora os tubos começam a congelar. E depois não há água para beber nem condições sanitárias.

- Ainda bem que tivemos um reabastecimento de comida em Kansas City - disse Roxanne. - Vamos começar a racioná-la imediatamente porque não fazemos ideia de quanto tempo vamos aqui estar. - Levantou-se para regressar ao trabalho. - Em caso de necessidade, tenho a certeza de que posso contar com vocês, não posso?

Acenaram todos com a cabeça em sinal de concordância. Ela sorriu corajosamente e afastou-se com dificuldade.

Quatro horas depois, caiu a noite. A maior parte das pessoas regressou aos seus compartimentos e tapou-se com os cobertores.

Tom foi até ao compartimento do padre Kelly, que estava a ler a Bíblia.

- Olhe, padre, não gostava de fazer um serviço religioso no comboio para levantar o moral das pessoas?

- Desculpe, mas estou um bocado enferrujado.

- É como andar de bicicleta, nunca esquece.

Tom encontrou Max e Misty na suite de luxo ternamente aninhados. Misty ainda estava deprimida, mas Max readquirira a sua jovialidade, mesmo no que dizia respeito ao desaparecimento dos sapatos Bruno Maglis.

- Imagino que a pessoa que os levou precisa deles mais do que eu. Eu depois compro outros. Mas deixe que lhe diga, tudo o que aconteceu dá para fazer um grande filme ... se eu viver tempo suficiente para poder realizá-lo.

- Obrigada, Max, isso é muito encorajador - ralhou Misty.

- Ora, vá lá, Misty, está tudo escrito nas estrelas. Diz-me qual é o teu vaticínio. O que é que as cartas te dizem?

Misty suspirou, tirou as cartas taro, baralhou-as e depois começou a expô-las uma de cada vez. Uma ruga profunda vincou-se-lhe na testa. Finalmente, disse:

- Tem graça. Parece que vamos ser salvos.

- Que boa notícia! - disse Max. - Como?

- Bem, por algo com seis pernas.

- Seis pernas? - perguntou Tom, incrédulo.

Max levantou-se e dirigiu-se ao bar, no canto da sala.

- Bem, até chegarem as seis pernas, preciso de outro whisky. Também bebe, Tom?

- Talvez mais daqui a bocado. Agora, tenho umas coisas a fazer.

- Que coisas?

- Vou procurar algo com seis pernas, é isso.

A história do comboio bloqueado no túnel chegou a todos os noticiários nacionais e internacionais, e o Mundo ficou a aguardar o seu desfecho. Na sede da Amtrak faziam-se preparativos para a operação de salvamento a toda a velocidade. Estabelecera-se contacto com a companhia de transportes proprietária do terreno onde se encontrava o Chief, e as duas organizações planeavam uma estratégia que iria ser posta em prática quando o tempo melhorasse. Por enquanto, contudo, parecia que ia continuar a piorar. Como o comboio ainda tinha combustível, calor e provisões, a situação, embora grave, ainda não ameaçava a perda de vidas. «Sentem-se e mantenham a calma», diziam-lhes, «e o auxílio há-de chegar.»

A maioria DAS pessoas preferiu não ir jantar à carruagem-restaurante e ficar nos compartimentos, onde comeram qualquer coisa leve ou mesmo nada, o que ajudou a fazer o racionamento. O Chief só tinha comida para mais um dia e pouco mais. E o problema do combustível era ainda pior.

- Quando o combustível se esgotar - explicou Higgins a Tom e a Eleanor -, vamos ter muitos problemas e a situação vai piorar rapidamente. Deixamos de ter água, os canos rebentam, e não temos aquecimento.

- E se ficarmos sem combustível, mesmo que eles cheguem até nós, como é que o comboio se desloca? Isto não é como na Força Aérea, que é possível fazer o reabastecimento no ar - disse Tom.

- Nesse caso, atrelam ao Chief locomotivas com os depósitos atestados e puxam o comboio. Mas, tal como disse, primeiro têm de chegar até cá.

- Então, se calhar, em vez de esperarmos que a ajuda chegue até nós, precisamos nós de chegar até eles. A ajuda.

- Onde? - perguntou Eleanor. - Estamos num descampado.

- Tem alguma ideia, Herrick? - perguntou Tom. - Você deve conhecer a rota da Amtrak melhor do que ninguém.

Higgins meditou durante algum tempo e finalmente abanou a cabeça:

- Não, não ia resultar - disse ele.

- O quê? Diga lá.

- A coisa não ia resultar - insistiu o homem.

- Herrick, neste momento aceito a sua ideia mais maluca. Talvez possamos fazer que resulte.

Higgins encolheu os ombros.

- Há uma estância de Inverno perto daqui chamada Dingo. É um sítio bonito, muito bem equipado e com imenso potencial humano. O problema é que é preciso atravessar terreno muito irregular para lá chegar, andar talvez umas quatro horas a pé. Uma pessoa em boas condições físicas e com bom tempo é capaz de o fazer, mas com esta tempestade ia ser impossível.

- Com esquis não era impossível - disse Tom, olhando-o de frente.

- Você tem esquis? - perguntou Higgins.

- Eu ia passar o Natal a Tahoe. Também tenho botas, luvas, foguetes luminosos, bússola, capacete com luz e outras coisas que você sabe.

- O terreno é deveras irregular, Tom.

- Já esquiei em tudo quanto é lugar, Herrick, nas mais diferentes condições. Só preciso que me dê as indicações.

- Acha mesmo que pode conseguir?

- Posso prometer-lhe o meu melhor esforço. E o que é que tenho a perder?

- A tua vida não conta? - perguntou Eleanor.

- Bem, a vida é minha, não é? Não tenho ninguém que chore a minha morte.

Ao ouvir aquilo, Eleanor levantou-se e saiu.

Higgins reuniu rapidamente o condutor, Roxanne e o maquinista para discutirem o assunto com Tom em pormenor. O condutor não gostou nada do plano.

- Você é um passageiro. E, embora eu aprecie a sua oferta, Tom, se lhe acontecer alguma coisa a responsabilidade é minha. Não posso deixá-lo ir. Só precisamos de ficar quietos e manter a calma e a ajuda há-de chegar.

- Talvez possamos contactar os proprietários da estância e eles possam mandar cá alguém - disse Higgins ao maquinista.

O homem abanou a cabeça negativamente.

- As tempestades impedem que haja rede. A minha última chamada para a Central foi há horas. Não consegui voltar a contactá-los.

- Temos tentado falar pelos telemóveis - acrescentou Roxanne - e ninguém conseguiu rede. Não conseguimos falar com a sede da Amtrak nem com a estância. É como se estivéssemos na Idade da Pedra.

- Olhem, eu não vou ficar aqui sentado de braços cruzados e deixar a tempestade destruir-nos. Eu assino qualquer documento que vocês queiram ilibando-os de toda a responsabilidade. - Olhou-os Fixamente um a um. - Deixem-me só tentar. É tudo o que peço. Se eu conseguir lá chegar, depois volto, é tão simples como isso.

Olharam uns para os outros, e por fim o condutor e o maquinista acenaram com as cabeças vagarosamente.

- Está bem.

Tom foi com Roxanne à carruagem das bagagens para trazerem o equipamento de esqui. De regresso ao seu compartimento, estava a aprontar a saída quando sentiu alguém atrás de si. Era Eleanor.

- Não quero que vás! - disse ela.

- Pára lá com isso! Eu vou mesmo.

- Acho que pensas que vais salvar o comboio e as pessoas todas que cá estão.

- Sim, esse é o plano geral - disse ele friamente.

- Não te passa pela cabeça que, em vez disso, podes estar antes a fugir?

- Vou sair daqui no meio da nevasca e arriscar a minha vida para obter auxílio e tu estás a chamar-me cobarde? Que diabo! Obrigadinho.

- Queres mesmo saber por que razão eu te deixei em Telavive?

- perguntou Eleanor, não diminuindo o seu ataque verbal. - Talvez fosse bom saberes, uma vez que podes não regressar.

Tom fitou-a durante algum tempo e finalmente disse:

- Bem, devo dizer que o momento que escolheste é tão pouco oportuno como o meu, mas, está bem, diz lá.

- És um individualista, Tom, e fazes gosto nisso. Só te sentes responsável por ti próprio e por mais ninguém. - Ele começou a mexer-se, mas Eleanor imobilizou-o com o olhar. - Esperei anos para te dizer isto e vou dizê-lo e tu vais ouvir-me. - Fez uma pausa.

- Eu amei-te, Tom, com todo o meu ser. Amei-te. Tiveste-me total e completamente.

- Estás a dizer que tive, no pretérito perfeito.

- Não percebes que, enquanto estivemos juntos, foste raptado, feito prisioneiro e quase foste morto por três vezes? Mas continuaste a correr aqueles riscos loucos sem nunca pensares no que estavas a fazer-me. Cada vez que saías pela porta fora, eu não sabia se ias voltar. Eu só queria regressar a casa. Não queria ver-te partir para outra missão e ficar a pensar se voltaria a ver-te. Eu almejava uma cerca de tábuas brancas, um jardim nas traseiras e um marido que trabalhasse das nove às cinco. Só que tu nunca me perguntaste o que eu queria. Acho que andar de um lado para o outro era mais importante para ti do que a minha pessoa.

- Tu fizeste-me um ultimato, Ellie. Deste-me apenas uns minutos para tomar uma decisão que alterava toda uma vida.

- Não, não é verdade. Há anos que andava a pedir-te, só que tu não querias ouvir. Quando te disse que queria partir naquela manhã, não foi uma coisa espontânea. Levei semanas a ganhar coragem. Bem, já tenho a minha resposta - acrescentou Eleanor, preparando-se para sair. - Agora, podes ir tentar salvar o comboio. Partes para outra aventura totalmente entregue a ti próprio. Espero que tudo corra bem e escrevas uma grande história baseada nela. Mas não penses que vais fazer isso por amor de alguém senão de ti próprio.

Saiu, deixando Tom sentado a olhar para a porta com a mão no bolso, inconscientemente a dar voltas ao anel.

O restaurante encheu-se para o pequeno-almoço, e Roxanne, preocupada, via as provisões diminuírem na cozinha. A comida da sala de estar esgotara-se na noite anterior e os ânimos tinham começado a azedar-se. Havia muitas crianças a bordo, e quando fraldas e leite começaram a escassear, os choros puseram toda a gente nervosa.

O padre Kelly arranjou finalmente coragem para fazer um serviço religioso na sala de estar, o que foi bem aceite por todas as comunidades religiosas. Gaguejou de vez em quando, mas o esforço era sincero e a seguir as pessoas foram ter com ele e agradeceram-lhe por lhes ter levantado o ânimo.

Quando Higgins acabou a reunião com a tripulação do comboio para combinarem a melhor maneira de fazer durar o combustível e a energia, enfrentou o mau tempo lá fora e meteu-se debaixo das carruagens para verificar pessoalmente se os canos estavam a congelar. Quando regressou, eram horas do almoço e, enquanto bebia o café, fez as delícias dos frequentadores do restaurante contando histórias do Oeste Selvagem. As crianças, bem como os adultos, ouviram-no com os olhos esbugalhados de medo.

Agnes Joe estivera a olhar pela janela da carruagem-restaurante durante algum tempo. Quando Roxanne lhe perguntou o que estava a ver, a mulher apontou para qualquer coisa que a outra, devido à neve que caía, só viu depois de piscar os olhos.

- Como sabe, é véspera de Natal - disse Agnes Joe.

- Tem razão, querida - disse Roxanne, baixando a cabeça afirmativamente.

Pouco tempo depois, Eleanor entrou no restaurante e foi para junto de Agnes Joe e de Roxanne. Elas olhavam pela janela, e Eleanor seguiu-lhes o olhar.

Dois homens muito bem agasalhados esforçavam-se para carregar para dentro do comboio uma coisa coberta com uma lona. O primeiro homem era Barry, o assistente das carruagens-cama. Ao entrar no comboio, segurando uma das pontas da carga, deixou escorregar o oleado, e Eleanor viu que se tratava de um pinheiro. Quando o segundo homem subiu para bordo, caiu-lhe o capuz, e ela ficou surpreendida ao reconhecer Tom.

- O dia merece uma árvore de Natal - explicou ele. - Para dizer a verdade, foi ideia de Agnes Joe.

Colocaram a árvore na sala de estar, num suporte arranjado à pressa, e as crianças enfeitaram-na com tudo o que lhes veio à mão, desde bijutaria até bonecos do Action Man e um longo fio prateado que uma mulher levava para um Natal de família em Albuquerque. Algumas crianças fizeram uma grande estrela com papel e cola, pintaram-na de prateado e penduraram-na no cimo da árvore.

Tom sentara-se com uma chávena de café à frente e observou a árvore a ultrapassar a sua modesta origem.

- Está linda! - disse Eleanor, olhando para a árvore e depois para ele. - Importas-te que eu me sente?

Tom apontou para o lugar vazio.

- Pensei que já te tinhas ido embora - disse ela.

- Pois, sabes, às vezes os planos alteram-se. Resolvi que não ia. Resolvi ficar por aqui. Um por todos e todos por um.

- Devo dizer que estou surpreendida - disse Eleanor, sentando-se. - Não pensei que qualquer coisa que eu pudesse dizer ... - A voz falhou-lhe.

- ... pudesse entrar na minha cabeça dura? - disse ele, terminando a frase por ela. - Olha, Ellie, eu resolvi que ia ficar por aqui e dar uma ajuda. Na altura em que eu chegasse à estância de Inverno, se lá chegasse, a tempestade provavelmente já teria acabado e a tropa tinha chegado. - Fez uma pausa. - E se não tivesse, bem, então era melhor eu estar também aqui.

Os olhos de ambos encontraram-se por um longo momento e depois Tom levantou-se bruscamente.

- Aonde vais? - perguntou ela.

- Tenho uns assuntos a tratar e até já estou muito atrasado. Alguns minutos depois, Tom passou pelo compartimento de Lelia

para lhe comunicar que a sua decisão acerca do casamento era não.

- Eu gosto de ti, mas não vou casar-me contigo nem ter oito filhos. Espero que compreendas.

Lelia pareceu não ter compreendido nada. As lágrimas correram-lhe pela cara abaixo, e ela agarrou-se ao braço de Tom e perguntou:

- Há alguma coisa que eu possa dizer ou fazer para tu mudares de ideias?

- Eu não te amo, Lelia - disse ele, abanando a cabeça. - E tenho a certeza absoluta de que, se pensares bem, vais ver que também não me amas.

- Mas já andamos há tanto tempo ...

- Prazer não é o mesmo que amor.

- Não sei, talvez tenhas razão - disse ela, fungando e com a voz trémula.

Naquele momento, Kristobal saiu da casa de banho e ficou a olhar para ambos.

- Kristobal!? - exclamou Tom, visivelmente surpreendido.

- Estou a interromper alguma coisa? - perguntou o jovem.

- Não, pelos vistos eu é que estou - disse Tom.

Lelia olhou para ele com ar inocente.

- Kristobal tem estado a ajudar-me a passar estes momentos difíceis. E faz umas massagens maravilhosas às costas.

- Não duvido.

Tom saiu e percorreu o corredor, sentindo-se mais aliviado do que nunca, agora que Cuppy, o Castor Mágico, ia deixar de contar com ele. Sentiu pena de Kristobal, mas eleja era crescidinho.

Ocorrera entretanto um acontecimento positivo, embora surpreendente. Todos os artigos que tinham sido roubados no Chief e muitos dos que tinham sido tirados durante a viagem do Cap haviam sido restituídos aos donos! Ninguém vira nada e ninguém sabia explicar a razão por que o ladrão tivera uma mudança de atitude tão drástica. Roxanne e o padre Kelly atribuíram simplesmente a causa a um milagre de Natal.

Depois do jantar, foi pedido a toda a gente que se reunisse na sala de estar, onde, a um canto, fora montado um palco improvisado. Max assumiu o papel de apresentador, deixando a multidão em grande expectativa quando disse em voz alta:

- Estou a ouvir alguma coisa? Estou a ouvir alguma coisa especial que vem a caminho?

As atenções concentraram-se no palco, e uma criança gritou excitadamente:

- É Cuppy, o Castor Mágico.

- E o Petey Pickle está ali! - gritou outro miúdo.

A seguir, os populares Sassy Squirrel e Freddy Futon subiram ao palco, juntando-se aos outros fantoches seus amigos. E a festa começou assim.

A manusear os fantoches atrás do palco, encontravam-se Lelia e Kristobal. Lelia andava sempre com os bonecos, para o caso de ter algum encontro com crianças, e muitas vezes presenteava-as com eles.

O Pai Natal chegou exactamente à hora marcada. Foi encarnado por Barry, e os presentes foram, com o devido respeito, entregues pelos duendes: Tom, Eleanor, Max e Misty. Os passageiros contribuíram com presentes embrulhados que tinham levado. Toda a gente participou com boa vontade e humor, e as crianças sentiram-se felizes e riram, o que aliviou imensamente a tensão dos adultos.

O coro do Centro Juvenil entoou cânticos de Natal com Roxanne, e toda a gente os acompanhou o melhor que sabia. Como a noite se prolongou e as crianças começaram a bocejar com uma frequência crescente, as pessoas despediram-se e os desconhecidos bateram nas costas uns dos outros, afirmando que fora uma bela noite de véspera de Natal. E foram dormir.

Eleanor e Tom acompanharam Roxanne quando ela foi deitar as crianças. Estavam prestes a sair quando um dos rapazes chamou Roxanne.

- O que foi? - perguntou ela, sentando-se ao lado do garoto, que se chamava Oliver.

Oliver costumava ser bem-disposto, mas naquele momento parecia preocupado.

- Patrick disse que não há Deus - queixou-se.

- O quê? - disse Roxanne, surpreendida. - Patrick, vem cá, meu rapaz!

Patrick saiu da cama com o seu pijama às riscas e de óculos. Era um dos mais velhos, alto e esbelto, com um ar muito seguro de si.

Roxanne levantou-se para falar com ele, pôs as mãos nas ancas largas e disse-lhe:

- Explica-te lá, menino! Porque é que lhe disseste aquilo?

Os outros rapazes esticaram todos os pescoços para ver e ouvir. Tom e Eleanor entreolharam-se.

- Trata-se de um simples processo de eliminação - disse ele, ajustando os óculos. - Na verdade, é um ciclo evolutivo.

- Explica lá isso.

- Bem, começa com a História do Coelhinho Dentuças. Cai-nos um dente, nós pomo-lo debaixo da almofada e na manhã seguinte o dente já lá não está e no lugar dele aparece dinheiro. A maioria dos miúdos descobre que é um mito quando tem oito anos ou mais, embora eu tenha descoberto muito mais cedo.

- Tu agora tens dez anos, Patrick - disse-lhe Tony, o irmão -, e ainda pões os dentes debaixo da almofada...

- Faço isso porque preciso de dinheiro, Tony, e não por continuar a acreditar - disse Patrick. Depois, voltou-se para Roxanne. - E a seguir temos a História do Coelhinho da Páscoa. Outra mentira. E a seguir temos o Pai Natal. Aquele tipo que fez de Pai Natal hoje à noite, por exemplo, não era um dos ...?

Roxanne olhou para as crianças mais novas, que pareciam prestes a chorar com o que Patrick estava a dizer, e interrompeu-o:

- Vai direito ao assunto, Patrick! E Deus?

- Muito bem. Se houvesse um Deus da Bondade, então porque é que ele ia deixar que uma coisa destas acontecesse? A estas horas, já devíamos estar em casa a passar o Natal com as nossas famílias. Em vez disso, estamos aqui, no meio de uma tempestade de neve e com falta de combustível e comida.

Roxanne apercebeu-se de que, apesar do seu ar confiante, Patrick estava tão assustado como os outros garotos. Sentou-se com ele ao lado e Oliver ao colo.

- Olha, o teu erro de raciocínio é julgares que estar aqui preso é uma coisa má. Analisemos a situação. O que é que aconteceu esta noite?

- A neve continuou a cair e na cozinha a comida acabou.

- E para além disso?

- Celebrámos a véspera de Natal e abrimos presentes. Isso foi bom - declarou Oliver.

- Podíamos ter feito isso com as nossas famílias - contra-argumentou Patrick.

- É verdade - disse Roxanne -, mas as vossas famílias iam sentir-se assustadas e com fome se estivessem num sítio estranho e com pessoas desconhecidas?

- Acho que não - disse o garoto depois de pensar.

- Vês? Por isso, pergunto-te: é assim tão mau um grupo de pessoas assustadas, esfomeadas e desejosas de passarem o Natal noutro sítio qualquer, mas não aqui, acabarem por passar a noite juntas e divertirem-se tanto que lhes dê para rirem, cantarem e darem presentes a pessoas que nem sequer conhecem? - Olhou para Tom e Eleanor.

- Vocês dois divertiram-se muito hoje à noite, não é verdade?

- Foi uma das melhores vésperas de Natal da minha vida - respondeu Eleanor, sorrindo às crianças.

- Bem, nesse ponto tem razão - admitiu Patrick.

- Talvez - acrescentou Tom - Deus se tivesse certificado de que vocês estavam neste comboio para cantar e fazer as pessoas assustadas esquecerem-se dos problemas ao ouvirem a vossa linda música.

- Nesse ponto também tem razão - concordou Patrick.

- Vês? - disse Roxanne. Enfiou Oliver na cama, aconchegou-lhe a roupa e acompanhou Patrick no regresso à cama. - Diz-se muitas vezes que Deus escreve direito por linhas tortas. O que tens de pensar realmente é no que Ele está a tentar fazer. Não podes apenas acreditar em Deus. É preciso disposição de espírito, fé e paixão para realmente acreditar. Como a maior parte das coisas que valem a pena na vida, tu acabas por ter a recompensa daquilo que investiste. Tem fé e a recompensa será muito maior. - Puxou a roupa e tapou-o. - Mais alguma pergunta?

- Só mais uma, Miss Roxanne - disse Oliver, levantando a mão.

- Pode ir comigo à casa de banho?

Naquela noite, mais tarde, Tom e Eleanor encontravam-se ao lado um do outro a olhar pela janela para a neve.

- Bem - disse Tom -, é quase Natal e não ouço nada a mexer-se, nem sequer um rato.

- Vou mandar uma equipa de salvamento ao tejadilho para trazer o velho Pai Natal e as renas, cujos passos estou a ouvir.

- Onde está o teu espírito aventureiro, o teu romantismo?

- Gastei-o contigo - retorquiu ela, tocando-lhe no braço. - Porque é que não foste? Diz-me a verdade.

- Esqueci-me de olear os esquis.

- Estou a falar a sério, Tom. Tom olhou para ela.

- Ellie, tentei convencer-me de que vinha fazer esta viagem para satisfazer os desejos do meu pai, mas na verdade vim porque há um grande vazio na minha vida e não sei como preenchê-lo. Existe há muito tempo, e o facto de eu escrever para o Ladies' Home Journal não o preenchia. - Fez um esforço para continuar. - Mas a razão por que não fui - continuou, apontando lá para fora - foi o que tu me disseste. Sabes, durante todos estes anos estive convencido de que fugiras de mim, de que me abandonaras. Nunca vi que era exactamente o contrário. - Fez uma pausa. - Desculpa, Ellie, lamento muito.

Eleanor estendeu a mão devagar e agarrou a dele. Tom olhou em redor, confuso, e disse:

- Eu não estava a brincar. Há mesmo demasiado silêncio.

Não podiam sabê-lo, mas a última gota de combustível da última locomotiva a diesel esgotara-se e, enquanto estavam ali de pé, as luzes fornecidas pelo gerador extra extinguiram-se. O Southwest Chief mergulhou finalmente no silêncio e na escuridão.

E a seguir o silêncio foi abalado por um rumor surdo, o Chief começou a abanar e começaram a ouvir-se gritos nas carruagens. Tom e Eleanor olharam um para o outro.

- Meu Deus! - disse ela. - É outra avalancha.

 

                                               CAPÍTULO DEZ

A neve que se precipitara embateu do lado direito do comboio e amontoou-se a um nível tal que impedia a visibilidade pela janela. Depois, o seu peso esmagador de encontro ao Chief começou a incliná-lo. Em resposta a esta crise, arranjou-se um plano simples, ou seja, a total evacuação do comboio, o que, dadas as circunstâncias, era muito mais

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fácil de dizer do que de fazer. Contudo, trezentos e quarenta e um passageiros passaram de carruagem em carruagem até chegarem à última, enquanto o pessoal da Amtrak contava cabeças e vasculhava todos os cantos e recantos a fim de não deixar ninguém para trás.

Agasalhada com cobertores e guiada pela luz das lanternas de bolso, a longa fila de gente deslocou-se no túnel. Os passageiros de idade e os deficientes foram transportados ou, pelo menos, ajudados. Ninguém ficou agastado ou irritado com o lugar que ocupava na fila.

Água, cobertores, almofadas, estojos de primeiros socorros, toda a espécie de comida que sobrara e todos os artigos passíveis de ser transportados à mão foram retirados do comboio. O maquinista, que se chamava Ralph Perkins e se culpabilizava por não ter feito recuar o comboio dentro do túnel enquanto ainda tivera combustível, não queria então abandonar o seu posto. Depois de Roxanne e Higgins falarem com ele e de o ex-ferroviário lhe ter feito ver que, de qualquer maneira, a neve amontoada à retaguarda poderia ter impedido aquela manobra, o maquinista acabou por concordar em abandonar o comboio.

Tom, Eleanor, Max, Misty, Kristobal, o padre Kelly e Agnes Joe trabalharam tanto como a tripulação. Transportaram pessoas e coisas, ajudaram e consolaram, rebocaram até ficarem todos instalados em segurança dentro do túnel.

Tom foi buscar os esquis e o equipamento, e Eleanor pediu emprestados os de uma passageira que também planeara passar uns dias em Tahoe. Passando por cima da neve amontoada, ambos transportaram relativamente depressa uma grande quantidade de provisões.

Dentro do túnel foi montado um acampamento, e Tom fez o ponto da situação: a iluminação era escassa, o nível de alimentação, baixo, os cobertores, muito poucos. O pior problema, contudo, era o frio. Com a falta de oxigénio motivada pela altitude e o túnel a funcionar como um funil para o vento, tornou-se evidente que nem os passageiros idosos nem os muito jovens poderiam sobreviver ali durante muito tempo. A conclusão era inevitável. Tom foi ter com o maquinista e com Roxanne e falou com eles em voz baixa.

Eleanor, que estava a ajudar as pessoas a instalarem-se, viu-os de relance e percebeu que estavam a fazer uma reunião. Juntou-se-lhes a tempo de ouvir Roxanne dizer:

- Você não é obrigado a fazer isso, Tom, mas a sua atitude faz-me gostar de si.

- Eu vou contigo.

Voltaram-se e viram Eleanor.

- Não, não vais - disse Tom.

- Fui eu que lhe ensinei tudo o que ele sabe de esqui - disse Eleanor, olhando para os outros.

- Eleanor, não posso permitir que vás comigo.

- Eu não estou a pedir-te permissão. Se queres ir sozinho, então vai, mas eu vou ter o café pronto e à tua espera na estância para beberes quando lá chegares.

- Acho que você seria muito mais esperto se formasse equipa com esta mulher do que tentando ir sozinho - disse Roxanne, levantando as sobrancelhas.

Tom olhou para uma e para outra e finalmente deteve o olhar em Eleanor.

- Mais uma missão juntos?

- Vamos a isso!

Depois de se despedirem, Tom e Eleanor pegaram no equipamento e dirigiram-se para nordeste saindo pelo túnel. De memória, Higgins desenhara um mapa rudimentar da zona com indicações para chegarem a Dingo. Tom levou-o dentro do bolso embrulhado num plástico.

O ar estava frígido e muito rarefeito, e em breve começaram a sentir dificuldade em respirar. O túnel encontrava-se mergulhado em completa escuridão, por isso tinham ligado as luzes de pilha dos capacetes. Tiveram de carregar os esquis enquanto percorriam o túnel.

- Pelo menos, não temos de recear a chegada de nenhum comboio ... - disse Tom.

- Olha, eu estava mesmo a pensar que a nossa sorte não era tão má como isso.

Percorreram os oitocentos metros até à ponta do túnel de mãos dadas e bem apertadas. Ao chegarem aí, calçaram os esquis.

- Estás pronta? - perguntou Tom. Eleanor acenou com a cabeça afirmativamente.

Partiram, sujeitos às mais duras condições, e subiram até uma fenda na montanha, manejando com dificuldade os batons dos esquis. Minutos depois, envoltos pela tempestade, tinham desaparecido completamente, sentindo os corpos enregelados e os membros cada vez mais entorpecidos.

Tiveram frequentemente de firmar os membros e os batons na encosta rochosa das vertentes a fim de conseguirem içar-se. Por vezes, até tiveram de descalçar os esquis e subirem juntos com o auxílio de uma corda. Depois de fazerem frente a todos aqueles obstáculos, chegaram a terreno liso e avançaram depressa sobre os esquis, apesar da luta contra o vento, que parecia aumentar de cada vez que enterravam os batons.

O primeiro desastre ocorreu quando Tom deslizou sobre uma camada fina de gelo e se enfiou por um buraco de cerca de três metros. Com Eleanor a puxar uma corda que lhe atirara lá para baixo, Tom conseguiu saltar para fora, mas perdeu o telemóvel e estragou a bússola.

Chegaram a pensar em retroceder, mas decidiram continuar. Tom sabia orientar-se bem, achava ele, e anotara alguns pontos de referência para o ajudarem a manter a rota correcta.

Cada passo era difícil, e continuaram a ter de parar e voltar as costas ao vento para conseguirem respirar. O peito ardia-lhes e as roupas não eram adequadas para fazerem frente ao entorpecimento.

- Talvez devêssemos acampar aqui - disse Eleanor quando começou a escurecer.

- Boa ideia! Não podemos estar assim tão longe da estância. Pelo menos, ele tinha esperança de que não...

Montaram uma tenda, e Tom acendeu uma pequena fogueira que usaram para fazer um jantar rápido e também para descongelar a água. Comeram e depois deitaram-se bem juntos debaixo dos cobertores, vendo a neve amontoar-se à roda da tenda. A tempestade pareceu amainar e ficou tudo silencioso. Puderam então falar sem terem de gritar.

- Quero que saibas que disse a Lelia que não. Ela aguentou muito bem.

- Isso surpreende-me.

- Também me surpreendeu a mim, mas só até perceber a razão. Lelia tem um novo namorado.

- O quê? Quem?

- Kristobal.

- Kristobal? Deves estar a brincar.

- Tenho a certeza de que vão ser muito felizes. Ficaram calados e aninharam-se um de encontro ao outro.

- Temos de conservar o calor do corpo - explicou Tom.

- Com certeza - disse ela, suspirando. - Olha, se não regressarmos ...

- Vamos pensar de modo positivo - disse ele, tapando-lhe a boca. - Provavelmente, Misty chamaria a isto uma aura de energia avermelhada.

Eleanor agarrou-lhe a mão.

- Se não conseguirmos regressar, quero que saibas que nunca deixei de te amar. Nem ao fim de todos estes anos.

-Vamos conseguir regressar - disse ele, rodeando-a com o braço. Como Eleanor estremeceu, Tom apertou-a nos braços, tentando transmitir-lhe o calor do seu corpo.

- Quem havia de pensar que íamos encontrar-nos ao fim de tanto tempo e morrer numa montanha no meio de uma nevasca! - disse ela.

Tom meteu a mão no bolso com fecho de correr da camisa e tirou de lá qualquer coisa.

- Como já te disse uma vez, eu sou perito em escolher mal as ocasiões. - Levantou-se, depois ajoelhou-se num só joelho e enfiou-lhe cuidadosamente o anel no dedo.

Eleanor fitou-o de olhos esbugalhados de espanto.

- Tenho consciência de que levou tempo, demasiado tempo, é verdade. Mas és a única mulher que eu alguma vez amei e vou fazer tudo o que puder para te fazer feliz. Aceitas-me com todos os meus defeitos, fraquezas, idiossincrasias, teimosia e completa estupidez? - Parou, respirou profunda e regularmente e acrescentou: - Casas comigo, Eleanor?

Ela disse que sim e desatou a chorar.

 

Logo que acabaram de trocar um beijo para oficializar o noivado, a tenda foi levada pelos ares e um monte de neve abateu-se sobre eles, quase os soterrando vivos. Tom desenvencilhou-se das várias camadas de neve e puxou Eleanor para fora.

- Temos de procurar abrigo - gritou-lhe ele acima do vento. Continuaram a andar com dificuldade, e Eleanor foi ficando tão

fraca que Tom quase a transportou ao colo durante cerca de meio quilómetro até ele próprio perder as forças. Deitou-a, despiu o casacão e tapou-a com ele. Depois, disse uma oração e estendeu-se por cima dela, tirando partido do tamanho do seu corpo para bloquear a neve. Descalçou-lhe a luva e apertou-lhe firmemente a mão.

Parecia que tinham ficado ali deitados durante horas, com o vento a uivar. Depois, em espírito, Tom viu um miúdo procurando chegar junto dele. Era ele próprio em criança, procurando chegar à idade adulta, puxando-o para a relativa segurança da infância. Aquilo significava, concluiu ele, após os numerosos reveses da sua carreira de altos e baixos, que chegara finalmente a hora de partir. Olhou para Eleanor e beijou-lhe os lábios. Ela não reagiu, e Tom deixou finalmente as lágrimas correrem-lhe pelas faces enregeladas.

A figura do rapazinho tornou-se cada vez mais nítida. Tom até sentiu efectivamente os dedos dele no seu rosto e depois esfregou-lhe o cabelo. O miúdo falava com ele e perguntava-lhe se estava bem. A visão tornou-se mais real, mais forte do que em qualquer outro sonho. Tom continuou a agarrar a mão de Eleanor com força, mesmo quando estendeu a sua ao jovem Tom.

A criança tocou-lhe outra vez, e os olhos de Tom estremeceram antes de se abrirem, fecharam-se e depois abriram-se novamente. O brilho da luz do Sol magoou-o.

- O senhor está bem? - perguntou o garoto, acocorando-se a seu lado.

Tom conseguiu sentar-se e olhou em redor. O céu era imenso e azul, o sol, quente, e o ar, fresco e puro. Olhou com espanto para o rapaz, sem saber se aquilo era realmente o céu.

- O que é que estás a fazer aqui no meio do nada? - conseguiu finalmente perguntar.

- Eu vivo aqui - respondeu o garoto, apontando para trás de Tom. - Em Dingo.

As enormes construções de madeira vermelha da famosa estância de Inverno estavam ali em toda a sua beleza. Eleanor e ele quase tinham morrido a um metro e meio de distância de lareiras acolhedoras, chocolate a ferver e banheiras de água quente ...

Tom levantou-se com as pernas trémulas e acordou Eleanor delicadamente.

- Estamos mortos? - perguntou ela, de olhos ainda fechados.

- Não, mas é bom que saibas que estás noiva de um idiota - disse Tom.

Pegou-lhe ao colo e estava a levá-la para o edifício principal quando uns adultos os avistaram e se aproximaram a correr para os ajudar.

Ambas as extremidades do túnel estavam repletas de luz do Sol. A tempestade passara, e Higgins, Roxanne, o condutor, Max, Misty, Lelia, Kristobal, o padre Kelly e Agnes Joe estavam sentados no chão a discutir o que fazer em seguida.

- Acho que devia ser feito um serviço fúnebre em memória de Tom e Eleanor, não acham? - disse o padre.

- Ainda é cedo para isso, padre - retorquiu Max de mau humor.

- Se eles tivessem conseguido chegar a Dingo, nós nesta altura já saberíamos - disse o maquinista. - Ninguém conseguia sobreviver este tempo todo ao relento. Eu nunca devia tê-los deixado ir. A culpa é minha.

- Eram duas das pessoas mais corajosas que eu conheci - disse Roxanne, puxando um lenço e limpando os olhos.

Nessa altura, Barry, o assistente da carruagem-restaurante, dirigiu-se ao grupo e gritou:

- Venham depressa, têm de vir ver isto. - O grupo seguiu-o ao longo do túnel até à extremidade mais afastada. - Olhem! - disse Barry.

Ficaram a olhar para o longo e impressionante cortejo de cavalos, cavaleiros e grandes trenós. Era como se tivessem sido transportados para o passado e se tratasse de um comboio de carros de pioneiros ao encontro de novas vidas no Oeste. Um dos cavaleiros que vinha à frente levantou o chapéu para os cumprimentar.

- É Tom! - disse Roxanne.

A pessoa que cavalgava ao lado dele acenou.

- E aquela é Eleanor - gritou Max, precipitando-se para a frente, a escorregar e a deslizar, no intuito de os abraçar.

- Seis pernas! - disse Misty, falando consigo própria.

- O quê? - perguntou Kristobal.

- Fomos salvos por seis pernas. Quatro do cavalo e duas do cavaleiro. Seis pernas - explicou ela, berrando e correndo atrás de Max com o longo cachecol a brilhar à luz do Sol.

A oportuna chegada de comida trazida pela gente de Dingo levantou o ânimo de todos. Enquanto comiam e bebiam, as pessoas amontoavam-se à volta de Tom e Eleanor para os ouvirem contar a assombrosa história da sua sobrevivência.

- As pessoas da estância conheciam este trilho de cavalos e carroças que vem dar à linha do comboio. É um bocado mais fácil do que o caminho por que nós fomos, mas, por causa da tempestade, nem sequer o vimos - disse Tom, abanando a cabeça. - Estávamos a um metro e meio da entrada e nem demos por ela! Nunca tive tanta sorte.

- Não foi sorte, Tom - disse o padre Kelly. - Foi um milagre. Eu pedi a Deus um milagre especial para si.

O walkie-talkie do maquinista deu sinal.

- Escuto - disse ele, carregando no botão.

- Fala Central da Amtrak para Southwest Chief. Diga se me ouve!

- Daqui Southwest Chief - respondeu o maquinista quase aos gritos.

- Onde estão os passageiros todos? - perguntou a mesma voz.

- Evacuámos o comboio. Estamos dentro do túnel. Qual é a posição da equipa de salvamento?

- Olhe para fora do túnel! - disse a voz. O maquinista dirigiu-se apressadamente para a extremidade do túnel e ouviu o barulho ensurdecedor de dois helicópteros que pairavam por cima da cumeeira. - Temos um comboio de substituição a oeste do deslizamento com três locomotivas atestadas de combustível - disse a voz do walkie-talkie. Mas como é que chegamos até junto de vocês? - perguntou o condutor. - Há uma barreira de neve entre nós.

Não por muito tempo. Já estamos a trabalhar nisso há bastante tempo. Mantenham-se calmos! Mensagem recebida.

Alguns minutos depois, o maquinista ouviu uma série de estalos ruidosos e viu o muro de neve de seis metros de altura que barrava o caminho do Chief ruir e deslizar inofensivamente pela montanha abaixo. Pequenas cargas de explosivos cuidadosamente colocadas em pontos-chave tinham actuado como por magia. Para lá do muro que desaparecera, ficou então visível o comboio de substituição, com as suas potentes locomotivas a trabalharem. Centenas de voluntários saíram do comboio de substituição e começaram a limpar o resto da linha, enquanto os passageiros entravam vagarosamente a bordo do Chief.

No dia seguinte, de manhã cedo, a linha ficou desimpedida, as locomotivas novas foram engatadas e, pela primeira vez desde há algum (i-inpo, as rodas do Southwest Chief começaram a rolar. Tinham sido feitos reajustamentos especiais, de modo que o Chief fizesse apenas algumas das paragens assinaladas no horário, incluindo uma longa paragem em Albuquerque. Quando o comboio retomou o caminho pela montanha abaixo para atravessar o Novo México e depois entrar no Arizona, os passageiros puderam finalmente descansar.

Pararam em Albuquerque durante cerca de três horas para reabastecimento de combustível e de mais provisões e para deixar os passageiros darem um passeio e gozarem a luz do Sol.

Tom e Eleanor comunicaram aos outros que tinham ficado noivos, e Max mostrou-se especialmente contente. Lelia até deu um abraço a Tom e desejou-lhe o melhor. Pela maneira como andava colada a Kristobal e pelo ar apaixonado do jovem, Tom concluiu que era apenas uma questão de tempo até anunciarem formalmente o casamento.

Perto da estação, havia um mercado onde as índias nativas vendiam bijutarias e outros artigos, e Tom e Eleanor foram até lá passear ao sol, fazendo projectos para o futuro.

- A propósito, tu nunca me disseste quem foste visitar a Washington - disse Tom. - Tens um Lelia na tua vida?

- Não exactamente. Trata-se da minha avó.

Pararam num cafezinho e beberam e comeram qualquer coisa. Agnes Joe juntou-se-lhes, felicitou-os e bebeu uma limonada fresca ao sol.

- Às vezes, eu penso em reformar-me e vir viver para aqui - disse ela.

- Reformar-se? - perguntou Tom, lançando-lhe um olhar perscrutador. - Pensei que estava reformada.

- Muito brevemente - respondeu ela enigmaticamente.

- E o que é que faz?

- Ora, uma coisa aqui, outra ali.

- É um ladrão engraçado, este nosso ladrão que devolve os artigos roubados como presentes na véspera de Natal - disse ele.

- É a coisa mais maluca que já ouvi - disse Agnes Joe, de pleno acordo.

- Foi muita generosidade da parte do ladrão - comentou Eleanor.

- Não foi assim tanta generosidade, visto que ele estava apenas a restituir às pessoas aquilo que lhes pertencia - argumentou Agnes Joe.

- Ele ou ela ... - disse Tom em voz baixa.

À noite, depois do jantar, muitas pessoas, incluindo Steve e Julie, foram à sala de estar ver o vídeo da cerimónia de casamento que Kristobal e Max tinham preparado. Tom achou que Steve estava com um ar exausto e reparou, com um sorriso, que logo que o filme acabou Julie lhe agarrou na mão e o levou para a suite.

A noite já ia avançada quando entraram no Arizona, e Tom chegou à conclusão de que não conseguia dormir. Foi até ao compartimento de Eleanor, mas ela dormia profundamente e não quis acordá-la, por isso começou a andar pelos corredores.

Enquanto andava por ali a deambular, o comboio abrandou a marcha e depois parou. Tom espreitou pela janela. Estavam numa estação, mas ele pensava que já não haveria mais nenhuma paragem antes de Los Angeles. Encolheu os ombros e continuou a andar até chegar à porta do compartimento de Agnes Joe. O gramofone da mulher continuava a tocar cânticos de Natal. O compartimento estava às escuras e ele deduziu que ela teria adormecido ao som da música. Depois, o gramofone começou a saltar, repetindo sempre a mesma música. Tom bateu no vidro da porta e chamou-a. Como não obteve resposta, fez deslizar a porta e abriu-a.

- Agnes Joe?

Os olhos dele habituaram-se à escuridão, e Tom viu que o compartimento estava vazio. Bateu ao de leve na porta da casa de banho e não obteve resposta. Viu o saco de viagem a um canto e sentiu-se tentado a revistá-lo outra vez. Puxou o fecho e meteu a mão lá dentro. Não encontrou os jornais, mas tirou lá de dentro vários artigos, incluindo um relógio, um par de brincos e uns óculos caros. Estava de pé, decidindo o que havia de fazer, quando ouviu passos. Voltou a colocar os artigos no saco, puxou o fecho, fechou a porta do compartimento e enfiou-se na casa de banho.

A porta do compartimento foi aberta, e a luz, acesa. Tom deixara uma nesga da porta da casa de banho aberta e espreitou pela abertura.

Era Agnes Joe. Trazia um papel na mão e tinha uma expressão séria. Como havia ele de escapulir-se dali? Esperando que ela adormecesse? Ia sentar-se na retrete quando o comboio retomou a marcha. A oscilação fez que perdesse o equilíbrio. Tom bateu contra a parede e, ao levantar a mão para se apoiar, agarrou acidentalmente no chuveiro e abriu-o. Recebeu um jacto de água fria que o levou a proferir em voz alta alguns palavrões.

Conseguiu desligar a água a tempo de ver Agnes Joe, que abrira a porta e estava a observá-lo como se fosse um animal de raça estranha no jardim zoológico.

- Importa-se de me dizer o que faz na minha casa de banho? Tom saiu, limpou-se com uma toalha e explicou-lhe que ouvira o

gramofone, entrara e ficara atrapalhado quando ouvira passos. A história poderia tê-la convencido se ele tivesse puxado o fecho do saco até ao fim, mas com pouca luz não conseguira fazê-lo. Agnes Joe olhou para o saco e voltou a olhar para ele.

Tom decidiu-se por uma abordagem totalmente frontal.

- Importa-se de me explicar o que está a fazer com estas coisas? - perguntou ele, abrindo o saco e tirando para fora os artigos. - Estou à sua disposição para ouvir.

Agnes Joe meteu a mão ao bolso e o que de lá tirou fez Tom dar um passo atrás com uma expressão de total surpresa.

Alguns minutos depois, um Tom de rosto pálido bateu ao de leve à porta de Max. O realizador demorou uns minutos a responder e depois mais um ou dois a abrir a porta.

- Precisamos da sua ajuda - disse Tom. - E da de Kristobal também.

Max olhou para trás de Tom e viu Agnes Joe.

- É importante - acrescentou Tom.

Foram à suite de Lelia buscar Kristobal, acordaram Roxanne e trouxeram também o padre Kelly. Quando se reuniram todos na sala de estar, sentaram-se à mesa e Tom mostrou os óculos de marca de Kristobal, os sapatos Bruno Maglis de Max e a cruz do padre Kelly, colocando cada item em frente do respectivo dono.

Um dos homens ficou totalmente desnorteado com o que viu à sua frente, tão confuso que nem reparou que Agnes Joe se inclinava sobre ele. Quando as algemas se fecharam à volta dos seus pulsos, o padre Kelly deu um grito e tentou levantar-se, mas ficou preso entre Max e Kristobal.

Agnes Joe mostrou as suas credenciais, repetindo o gesto que deixara Tom estupefacto uns minutos antes no compartimento dela.

- Eu sou da Polícia da Amtrak. Agente à paisana. E você é o nosso ladrão, John.

- John? - perguntou Tom, olhando para ela. Agnes Joe acenou com a cabeça afirmativamente.

- Suspeitei dele e tirei as impressões digitais que ele deixou num copo de cerveja antes de ficarmos bloqueados no desfiladeiro de Raton. Durante uma das paragens, enviei um pedido de identificação. Na estação que acabámos de deixar, recebi a resposta ao meu pedido. O nome verdadeiro dele é John Conroy e não é padre.

- E as coisas todas que encontrei no seu saco, Agnes Joe? - perguntou Tom.

- Foi Roxanne que mas trouxe como provas de que poderíamos vir a precisar. Eu envolvi-os nisto, Max e Kristobal, para podermos levar Conroy sem ninguém o molestar nem suspeitarem dele. Fui eu que tirei a cruz do compartimento dele. Quando lha pus à frente, pensei que ele ficaria suficientemente surpreso para eu conseguir algemá-lo sem grande luta. Você já não é novo, Conroy, mas eu tenho mais experiência do que julga.

- Detesto ter de admitir isto, mas tinha revistado o seu saco de viagem e só encontrei jornais - disse Tom.

- Eu sei, percebi logo que alguém o tinha revistado - retorquiu Agnes Joe. - Os jornais que Regina foi deitar no lixo eram do saco de Conroy. Ele tinha-o atafulhado com eles para fazer parecer que o saco estava tão cheio quanto era possível, mas uma vez dentro do comboio deitou os jornais fora, ficando com o saco relativamente vazio para poder enchê-lo com o que pilhasse.

Chamaram Barry para ficar de guarda e dirigiram-se ao compartimento de Conroy, onde encontraram dentro do saco uma série de artigos roubados.

- O que não percebo é a razão por que ele devolveu tantas coisas - disse Tom.

- Até dá vontade de rir - disse Roxanne -, mas, pelo menos, apanhámos o nosso ladrão. Agora, vamos todos dormir um pouco.

Foi o que Tom fez até às 6 da manhã, altura em que alguém lhe bateu à porta. Acordou e foi abri-la.

Agnes Joe estava de pé com duas chávenas de café quente.

- Pensei que era melhor trazer isto como pedido de desculpa por vir acordá-lo tão cedo - disse ela.

Estava de calças e camisola azuis e com um ar fresco e eficiente.

- Você dava uma grande actriz - disse Tom. - Não tive a mínima suspeita de que você fosse outra coisa a não ser, bem, quero dizer ...

- Uma velha excêntrica sem sítio para onde ir durante as festas? Sim, é um bom disfarce. Já prendi traficantes de droga, burlões, criminosos, malfeitores e outros devido ao meu aspecto desconcertante e aos meus vestidos estúpidos.

- Bem, acho que agora já não vai poder servir-se desse disfarce.

- É verdade, eu não estava a brincar quando disse que ia reformar-me. É altura de mudar de vida.

- E o resto da história? Era verdade?

- Trabalhei com os Irmãos Ringling não como trapezista, mas como amazona. Fui casada duas vezes e tenho realmente uma filha adulta. E vivemos vidas apartadas.

- Lamento.

- Bem, ela soube que o Chief tinha ficado bloqueado no túnel e ontem à noite telefonou para se certificar de que eu estava bem. Há bastante tempo que já não sabia nada dela. Vamos encontrar-nos quando eu chegar a Los Angeles e recuperar o tempo perdido.

- Fico contente por si. É um presente de Natal atrasado. Então, diga lá o que queria de mim!?

- Bem, estou com um pequeno dilema e queria o seu conselho. Tive mais informações acerca do nosso falso padre. Há uns anos, foi preso por pequenos delitos, quero dizer, há trinta e quatro anos. Desde então, tem-se portado bem, teve mesmo um emprego e essas coisas todas.

- Por que razão voltou a roubar ao fim destes anos todos?

- A mulher com quem casou há mais de trinta e três anos acaba de falecer. Com o desaparecimento dela, ele ficou sem saber o que fazer. Estava sozinho. Tiveram dois filhos, mas um morreu num acidente, e o outro, de cancro.

- Mas que desgraça! E, pelo que parece, a vida criminosa que levava parou quando se casou com ela.

- Exactamente. Sabe, tenho lidado com todos os tipos de criminosos e ouvido muitas histórias choramingas e não vou nessa conversa. O meu dilema é por causa de outra coisa que ele me contou.

- O quê?

- Na véspera de Natal, ele devolveu coisas roubadas como presentes. As únicas que não devolveu, aquelas que nós encontrámos nos sacos, não tinham qualquer valor, e ele deixou dinheiro mais do que suficiente para as pagar. Eu confirmei isso com os passageiros a quem pertenciam. Ele não teve o intuito de prejudicar ninguém. Só falou da mulher. E, para sermos honestos, ele deu uma boa ajuda quando o comboio ficou bloqueado.

- Estou a ver o seu dilema - disse Tom, respirando fundo.

- O que é que você faria?

- Bem, eu tive uma segunda oportunidade nesta viagem e talvez Conroy também mereça uma - respondeu Tom depois de reflectir. - Já telefonou à Polícia?

- Já, mas não lhes dei pormenores.

- O comboio vai fazer mais paragens?

- Pode ser que faça em Fullerton, umas horas antes de chegarmos a Los Angeles.

- Talvez o Chief devesse parar em Fullerton.

- Talvez devesse. Não creio que Conroy vá envolver-se numa vida de crime. Na realidade, conheço umas pessoas perto de Fullerton que eram capazes de lhe dar uma ajuda. - Levantou-se. - Obrigada, Tom. Acho que tomámos a decisão certa.

- Mas diga-me lá qual é o seu verdadeiro nome - pediu ele com um sorriso.

- Se eu lhe dissesse, deixava de ser segredo, não deixava, meu querido?

Em Fullerton, o comboio parou, e um homem velho com ar cansado apeou-se já sem a indumentária de padre. Esperavam-no uns amigos de Agnes Joe, que o levaram de carro na esperança de o encaminharem para uma vida melhor.

Tom foi ao balneário público para se lavar antes de chegar a Los Angeles. Quando ia a entrar, encontrou o noivo, Steve, que ia a sair. Entrou no vestiário e, quando começou a tirar a roupa, viu uma carteira no chão debaixo do balcão. Inclinou-se para a frente a fim de a apanhar, pensando que devia pertencer a Steve, e caíram umas coisas.

Ajoelhou-se para as apanhar e olhou de relance para um dos cartões que caíra ao chão. Era um cartão de membro da Associação de Artistas em nome de Samuel Samuels. Tom fez uma rápida inspecção ao resto da carteira. Encontrou a carta de condução de Steve, emitida na Califórnia, e as fotografias confirmaram que era ele mesmo, só que não era estudante da Universidade de George Washington. Era membro da Associação de Artistas ...

O Southwest Chief entrou na linda estação do terminal de Los Angeles, em art deco, minutos antes da hora prevista no horário.

Herrick Higgins foi recebido por vários executivos senhores da Amtrak, que lhe deram os parabéns e lhe agradeceram o auxílio. Depois, foi-lhe oferecido o antigo emprego, que consistia em viajar e resolver os problemas, oferta que ele imediatamente aceitou.

Max Powers apeou-se e respondeu a inúmeras perguntas dos jornalistas. Viu Roxanne e o Coro Masculino do Centro Juvenil a fazerem o mesmo.

- Olá! - disse ele em voz alta. - Eu depois contacto-vos, contem com isso!

- Fico à espera, querido, fico à espera - retorquiu Roxanne, sorrindo.

A seguir, ele e um grupo de passageiros, incluindo Kristobal, Le-lia e Misty, saíram da estação e entraram na comprida limusina que os esperava lá fora.

Dentro da limusina, Max tirou três envelopes e entregou-os um a um a Steve, a Julie e ao padre que os casara. Depois, abriu uma garrafa de champanhe e encheu os copos.

- Bom trabalho, miúdos - disse Max. - Vocês vão entrar todos no meu próximo filme. Quem sabe, talvez seja sobre o comboio.

- Max, quando me contaste o que tinhas feito, eu nem queria acreditar! - disse Misty.

- Bem, querida, embora tivesse acabado de te conhecer, percebi que eras capaz de guardar um segredo.

- Você é que nem queria acreditar - disse Lelia a Misty. - Como é que acha que eu me senti? Max Powers telefona-me ao fim de tantos anos e pede-me um favor. E que favor? Apanhar o avião para Kansas City e fazer uma falsa proposta de casamento! Não sei o que teria feito se ele aceitasse ...

- Eu conhecia o meu homem, Lelia. Tinha a certeza absoluta de que ele não ia aceitar - disse Max.

- A certeza absoluta?

- Eu tinha a certeza de que ele não te amava e tu não o amavas - disse ele, irradiando alegria. - Mas és uma óptima actriz. E vê o que ganhaste com o meu planozinho.

Lelia deu uma palmadinha no braço de Kristobal.

- O senhor nunca me disse que contactara Lelia e a incluíra no plano - disse Kristobal. - Eu não fazia ideia de quem ela era até me dizer como se chamava.

- É que eu tenho uma necessidade insaciável de surpreender as pessoas.

- E fizeste isto tudo por Eleanor? - perguntou Misty. - E ela não sabe de nada?

- Absolutamente nada - respondeu Max, abanando a cabeça. - Eleanor é a filha que eu nunca tive. Faria o que quer que fosse por ela. Durante todo o tempo que nos conhecemos, ela nunca se mostrou verdadeiramente feliz. Eu sabia que havia qualquer coisa no seu passado. Andei a bisbilhotar e descobri que Tom Langdon era o grande desgosto da sua vida. Ela não conseguia esquecê-lo. Portanto, andei a seguir-lhe o rasto durante cerca de seis meses. Quando ele reservou esta viagem, ofereceu-me a oportunidade ideal, porque, na realidade, eu queria fazer um filme sobre um comboio.

- E o casamento? - perguntou Misty.

- Que melhor ocasião para obrigar duas pessoas que deviam ter           -se casado a repensarem o que deveria ter acontecido senão juntá-las num casamento? Julie tem o mesmo tipo de origem geográfica de Eleanor, e Tom chama Steve à razão quando ele começa a vacilar na sua decisão, o que também dava para o outro lado, porque Tom podia enfiar a carapuça. É claro que estava tudo planeado. De cada vez que Tom e Eleanor estragavam a coisa, nós arranjávamos outra saída.

- E eles estragaram muitas vezes - disse Kristobal com ar cansado -, mas era só uma questão de deixar passar e irmo-nos mantendo ao corrente.

- Tu portaste-te muito bem, Kristobal. Já não te vou baixar o ordenado.

- Tiveste imenso trabalho com os pormenores, querido - disse Misty.

- Eu sou realizador, querida. Vivo de pormenores.

- Bem, Mr. Powers, não encomendou também a avalancha, pois não? - indagou Kristobal.

- Ora, não sou assim tão bom. Ouviram bater ao de leve na porta.

- Deve ser a bagagem - disse Max, abrindo a janela.

Tom inclinou-se lá para dentro e olhou para eles todos.

- Olá, Tom! - disse Max, nervoso. -Vou só dar uma boleia aos noivos até ao palácio onde vão passar a lua-de-mel.

- Com certeza - disse Tom, e entregou a carteira a Steve. - Deixou-a cair na casa de banho. Tem lá dentro a carta de condução e o cartão da Associação de Artistas. Achei que podiam fazer-lhe falta.

- Tom, eu posso explicar - disse Max. Tom levantou uma mão.

- Só tenho uma coisa a dizer-lhe: obrigado. - Apertou a mão a Max e passou o olhar por todos. - Feliz Natal e Boas-festas!

Afastou-se da limusina e foi ter com Eleanor, que observava a cena cheia de curiosidade.

- Quem é que estava naquela limusina? - perguntou ela quando Tom chegou junto de si.

- O Pai Natal - respondeu ele, olhando para o carro que partia.

- O Pai Natal? Ora, já somos um tanto velhos para acreditarmos no Pai Natal.

Começaram a andar, e Tom pôs o braço à volta dela.

- Sabes, durante a quadra do Natal acreditar em magia pode ser uma coisa boa. Pode ser que os nossos desejos se tornem realidade. 

 

                                                                                David Baldacci 

 

 

                                         

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