Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O COMEÇO DE TUDO
Segunda Parte
O jogo da carapaça
Quando se mudou para o alojamento em setembro, a primeira coisa que Thomas Tudbury fez foi pendurar a foto autografada do presidente Kennedy e a capa envelhecida da revista Time de 1944 com o Jetboy como Homem do Ano.
Em novembro, a foto de Kennedy estava toda furada pelos dardos de Rodney. Rod tinha decorado seu lado do quarto com uma bandeira confederada e uma dúzia de pôsteres centrais da Playboy. Ele odiava judeus, negros, curingas e Kennedy, e também não gostava muito de Tom.
Durante todo o semestre de outono, ele se divertiu; cobria a cama de Tom com espuma de barbear, escondia seus lençóis, sumia com seus óculos e enchia a gaveta de sua mesa com cocô de cachorro.
No dia em que Kennedy foi morto em Dallas, Tom foi para o quarto lutando para segurar as lágrimas. Rod tinha lhe deixado um presente. Ele usara uma caneta vermelha. Agora, toda a parte de cima da cabeça de Kennedy estava coberta de sangue e, sobre os olhos, Rod desenhara pequenos “X” vermelhos. Sua língua saía pelo canto da boca.
Thomas Tudbury olhou fixamente para aquilo por um bom, bom tempo. Não chorou. Não ia se permitir chorar. Ele começou a fazer as malas.
O estacionamento dos calouros ficava a meio caminho do campus. A fechadura do porta-malas de seu Mercury 54 estava quebrada, por isso ele jogou as malas no banco traseiro. Deixou o carro esquentar por bastante tempo no frio de novembro. Ele devia estar engraçado sentado ali; um cara baixinho e acima do peso, com corte de cabelo rente e óculos de armação de chifre com a cabeça apoiada no alto do volante como se estivesse prestes a vomitar.
Enquanto saía do estacionamento, viu o Old Cutlass novo em folha de Rodney.
Tom botou o carro em ponto morto e ficou ali parado por um tempo, pensando. Olhou ao redor; não havia ninguém à vista. Todos estavam em casa, vendo as notícias. Passou nervosamente a língua pelos lábios e tornou a olhar para o Oldsmobile. Os nós de seus dedos ficaram mais brancos, apertando o volante. Ele olhava dura e fixamente, então fechou a cara e apertou com força.
Os painéis da porta cederam primeiro, empurrados lentamente para dentro com a pressão. Os faróis explodiram com pequenos estampidos, um depois do outro. O friso cromado caiu ruidosamente no chão. O para-brisa traseiro se estilhaçou de repente e voaram cacos de vidro para todos os lados. Os para-choques entortaram e foram destruídos, o metal gritando de dor. Os dois pneus traseiros estouraram ao mesmo tempo, os painéis laterais foram empurrados para dentro, depois o capô; o para-brisa se desintegrou completamente. A caixa do motor cedeu, em seguida as paredes do tanque de combustível, e óleo, gasolina e fluido da transmissão formaram uma poça sob o veículo. A essa altura, Tom estava mais confiante e isso tornava tudo mais fácil.
Ele imaginava ter o Old preso em um punho gigante invisível, um punho forte, e apertava com toda a força. O barulho de vidro se quebrando e o grito do metal torturado encheram o estacionamento, mas não havia ninguém para ouvir. Ele esmagou metodicamente o Oldsmobile até virar uma bola de metal.
Quando acabou, engrenou a primeira e deixou a faculdade, Rodney e a infância para trás e para sempre.
Em algum lugar, um gigante chorava.
Tachyon despertou desorientado e enjoado, sua ressaca latejando ao ritmo dos gemidos mastodônticos. As formas no quarto escuro eram estranhas e desconhecidas. Será que os assassinos tinham vindo outra vez naquela noite, será que a família estava sendo atacada? Ele precisava achar seu pai. Zonzo, levantou-se e ficou de pé. A cabeça girava, e ele apoiou a mão na parede para se equilibrar.
A parede era perto demais. Aquele não era seu quarto, estava tudo errado, o cheiro... e então as memórias voltaram. Ele teria preferido os assassinos.
Ele se deu conta de que tinha sonhado com Takis outra vez. A cabeça doía, a garganta estava áspera e seca. Tateando pela escuridão, encontrou a correntinha do interruptor da luz do teto. A lâmpada balançou muito quando ele deu um puxão, fazendo as sombras dançarem. Ele fechou os olhos para deter o mal-estar em seu estômago. Sentia o gosto ruim no fundo da boca. Seu cabelo estava emaranhado e imundo; as roupas, amarfanhadas. E pior de tudo: a garrafa estava vazia.
Tachyon olhou ao redor, impotente. Um quarto de seis metros quadrados no segundo andar de uma pensão chamada QUARTOS, em uma rua chamada Bowery. Para confundir, a vizinhança ao redor antigamente também era conhecida por Bowery, Angelical lhe contou. Mas isso tinha sido antes.
A área agora tinha um nome diferente. Ele foi até a janela e abriu as persianas. A luz amarela da iluminação pública encheu o quarto. Do outro lado da rua, o gigante tentava agarrar a Lua e chorava porque não conseguia alcançá-la.
Baixinho, era como o chamavam. Tachyon achava que devia ser humor humano. Baixinho devia ter mais de quatro metros de altura, se conseguisse ficar de pé. Seu rosto era inocente e sem rugas, coroado com um emaranhado de cabelos escuros e macios. Suas pernas eram delgadas e de proporções perfeitas. E essa era a piada: pernas delgadas e perfeitamente proporcionais não conseguiam nem de longe suportar o peso de um homem de quatro metros de altura. Baixinho ficava sentado em uma cadeira de rodas de madeira, uma grande coisa mecanizada que deslizava pelas ruas do Bairro dos Curingas sobre quatro pneus carecas de um caminhão acidentado.
Quando viu Tach na janela, gritou incoerentemente, quase como se o reconhecesse. Tachyon se virou e se afastou da janela, tremendo. Mais uma noite no Bairro dos Curingas. Precisava de um
drinque.
Seus aposentos fediam a mofo e vômito, e era muito frio. QUARTOS não era tão bem aquecido quanto os hotéis que havia frequentado nos velhos tempos. Sem saber por quê, se lembrou do Mayflower em Washington, onde ele e Blythe... mas não, era melhor não pensar naquilo. Que horas eram, afinal de contas? Tarde o bastante. O sol já tinha se posto, e o Bairro dos Curingas nascia para a vida à noite.
Pegou o sobretudo no chão e cobriu-se com ele. Mesmo imundo, ainda era um casaco maravilhoso, de um belo tom de rosa, com dragonas douradas franjadas nos ombros e laços dourados de fios trançados para prender a longa fileira de botões. Um casaco de músico, dissera-lhe o homem do brechó de caridade da Goodwill. Ele se sentou na beira de seu colchão aos pedaços para calçar as botas.
O banheiro ficava no final do corredor. Sua urina soltou vapor ao jorrar contra as paredes do vaso sanitário; as mãos tremiam tanto que mal conseguia apontar direito. Ele jogou água fria cor de ferrugem no rosto e secou as mãos numa toalha imunda.
Quando saiu, Tach parou por um instante embaixo do letreiro rachado que dizia QUARTOS e ficou olhando para Baixinho. Ele se sentiu amargo e envergonhado. E sóbrio demais. Não havia nada a fazer em relação ao Baixinho, mas podia se ocupar com sua sobriedade. Deu as costas para o gigante choroso, meteu as mãos bem fundo nos bolsos do casaco e saiu caminhando apressado pela Bowery.
Nos becos, curingas e bêbados passavam sacos de papel pardo de mão em mão e encaravam quem passava com olhos embaciados. Tavernas, casas de penhores e lojas de máscaras estavam todas fazendo bons negócios. O Famoso Museu de Dez Centavos dos Cartas Selvagens do Bowery (eles ainda o chamavam assim, apesar de o ingresso agora custar 25 centavos) já estava fechado. Tachyon o havia visitado uma vez, dois anos antes, em um dia em que estava se sentindo especialmente culpado. Ao lado de meia dúzia de curingas de aparência especialmente bizarra, de vinte fetos de “bebês curinga monstruosos” flutuando em potes de vidro com formol e de um cine-jornal sensacionalista sobre o Dia da Carta Selvagem, o museu tinha uma exposição de dioramas com bonecos de Jetboy, dos Quatro Ases, de uma orgia no Bairro dos Curingas... e dele.
Um ônibus de turismo passou, rostos rosados comprimidos contra as janelas. Sob as luzes de néon de uma pizzaria ali perto, quatro jovens de jaqueta de couro preto e rostos cobertos por máscaras de borracha encararam Tachyon com grande hostilidade. Ele evitou seus olhares e mergulhou na mente do mais próximo: “Bicha magrela olha só aquele cabelo pintado com certeza ele acha que tá numa banda e gosta de tocar a porra da sua bateria mas espera merda tem melhor
vamos encontrar um bom pra gente essa noite e vamos arranjar um que vai gemer quando a gente bater nele”. Tachyon interrompeu o contato enojado e apertou o passo. Era notícia velha, e um esporte novo: vá até a Bowery, compre umas máscaras, dê uma surra num curinga. A polícia não parecia se importar.
O Chaos Club e seu famoso Show de Curingas estava cheio como sempre. Quando Tachyon se aproximava, uma grande limusine cinza parou junto ao meio-fio. O porteiro, que usava um fraque preto por cima da bela pelagem branca, abriu a porta com a cauda e ajudou um homem gordo de smoking a sair. Sua acompanhante era uma adolescente de seios fartos com um vestido de noite sem alça e um colar de pérolas, o cabelo louro num penteado alto e bufante.
Em uma soleira na quadra seguinte, uma mulher-cobra fazia propostas. Suas escamas reluziam nas cores do arco-íris.
– Não se assuste, Ruivo – disse ela. – Ainda é macio por dentro. – Ele balançou a cabeça.
O Funhouse ficava em um edifício comprido com enormes janelas panorâmicas para a calçada, mas o vidro transparente tinha sido substituído por vidro espelhado que não permitia ver o interior. Randall estava parado na frente, tremendo, de casaca, capa e máscara. Parecia perfeitamente normal, até que você percebia que ele jamais tirava a mão direita do bolso.
– Ei, Tacky – chamou ele. – O que acha de Ruby?
– Desculpe, mas eu não a conheço – disse Tachyon.
Randall franziu o cenho.
– Não, o cara que matou Oswald.
– Oswald? – disse Tach, confuso. – Que Oswald?
– Lee Oswald, o cara que atirou em Kennedy. Ele foi morto na TV esta tarde.
– Kennedy morreu? – disse Tachyon. Kennedy foi quem permitiu sua volta aos Estados Unidos, e Tach admirava os Kennedy. Pareciam quase takisianos. Mas assassinato era algo inerente à liderança. – Os irmãos dele vão vingá-lo – disse, e então se lembrou de que as coisas não eram feitas desse modo na Terra. Além disso, esse homem, Ruby, aparentemente, já o havia vingado.
Como era estranho que ele tivesse sonhado com assassinos.
– Eles prenderam Ruby – Randall estava dizendo. – Se fosse eu, dava uma medalha para esse filho da puta. – Ele fez uma pausa. – Uma vez ele apertou minha mão – acrescentou. – Quando estava disputando a eleição contra Nixon, ele veio ao Chaos Club fazer um discurso. Depois, na hora de ir embora, apertou a mão de todo mundo. – O porteiro tirou a mão direita do bolso. Era rígida e quitinosa como a de um inseto, e, no meio, tinha um agrupamento de olhos inchados e cegos. – Ele nem piscou – disse Randall. – Deu um sorriso e disse que esperava que eu me lembrasse de votar.
Tachyon conhecia Randall fazia um ano, mas nunca tinha visto a mão dele antes. Queria fazer o que Kennedy havia feito, segurar aquela garra retorcida, abraçá-la, apertá-la. Tentou tirar a mão do bolso do casaco, mas sentiu bile no fundo da garganta e, de algum modo, tudo o que conseguiu fazer foi desviar os olhos e dizer:
– Ele era um bom homem.
Randall tornou a esconder a mão.
– Entre, Tacky – disse com simpatia. – Angelical teve de sair para ver um homem, mas ela disse a Des que deixasse reservada sua mesa.
Tachyon assentiu e deixou que Randall abrisse a porta para ele. Lá dentro, entregou o casaco e os sapatos para a mocinha da chapelaria, uma curinga de corpinho magro cuja máscara de coruja com penas escondia o que quer que o carta selvagem tivesse feito com seu rosto. Então ele empurrou a porta interna e entrou, seus pés com meia deslizando com suave familiaridade sobre o piso espelhado. Quando olhou para baixo, outro Tachyon o encarava de volta, enquadrado por seus pés; um Tachyon muito gordo com a cabeça parecendo uma bola de praia.
Suspenso do teto espelhado, um lustre de cristal reluzia com centenas de pontos de luz, espalhando seus reflexos pelas lajotas do piso, pelas paredes e pelas alcovas espelhadas, pelos talheres e canecas prateados e até sobre as bandejas dos garçons. Alguns dos espelhos refletiam a verdade; outros eram espelhos distorcidos, de parque de diversões. Quando se olhava para o lado no Funhouse, nunca se sabia o que veria refletido. Aquele era o único estabelecimento no Bairro dos Curingas que atraía curingas e limpos em quantidades iguais. No Funhouse os limpos podiam se ver retorcidos e deformados e rir, e brincar de serem curingas; e um curinga, se tivesse muita sorte, podia olhar para um espelho e se ver como tinha sido um dia.
– Seu reservado está à sua espera, Dr. Tachyon – disse Desmond, o maître. Des era um homem grande e avermelhado; sua tromba grossa, rosada e enrugada estava enroscada em torno de uma carta de bebidas. Ele a ergueu e conduziu o olhar de Tachyon com um dedo que pendia de sua extremidade. – Vai tomar o conhaque de sempre esta noite?
– Vou – disse Tach, desejando ter algum dinheiro para a gorjeta.
Naquela noite, tomou o primeiro drinque por Blythe, como sempre, mas o segundo foi para John Fitzgerald Kennedy.
O resto foi para ele mesmo.
No fim da Hook Road, depois da refinaria abandonada e dos armazéns de importação e exportação, depois de passar pelo pátio da ferrovia com seus vagões de carga vermelhos esquecidos, pela passagem subterrânea sob a autoestrada, pelos terrenos baldios cheios de mato e lixo e pelos grandes tanques de óleo de soja, Tom encontrou seu refúgio. Estava quase escuro quando ele chegou, e o motor do Merc batia assustadoramente. Mas Joey saberia o que fazer com aquilo.
O ferro-velho erguia-se acima das águas poluídas de óleo da baía de Nova York. Por trás de uma cerca grossa de metal de três metros de altura encimada por três fileiras emaranhadas de arame farpado, uma matilha de cães de guarda acompanhou seu carro, latindo uma recepção barulhenta que teria apavorado qualquer um que não conhecesse tão bem os cães. O pôr do sol derramava uma estranha luz cor de bronze sobre as montanhas de automóveis enferrujados, amassados e arrebentados, os hectares de sucata, montanhas e vales de lixo e destroços.
Finalmente ele chegou ao largo portão duplo. De um lado, uma placa de metal avisava:
PROIBIDA A ENTRADA; do outro lado, outra placa alertava: CUIDADO COM OS CÃES. O portão estava fechado e trancado com uma corrente.
Tom parou e buzinou.
Logo além da cerca ele podia ver o barraco de quatro aposentos que Joey chamava de lar.
Havia um grande letreiro montado no topo do telhado de telhas de zinco corrugadas, com spots de luz amarela para iluminar as letras. Ele dizia: PEÇAS DE AUTOMÓVEIS E FERRO-VELHO DI ANGELIS. A pintura estava gasta e cheia de bolhas, resultado de duas décadas de sol e chuva; a própria madeira tinha rachado e uma das lâmpadas estava queimada. Ao lado da casa estavam estacionados um velho caminhão de lixo amarelo, um guincho e o orgulho e a alegria de Joey, um Cadillac cupê 1959 vermelho-sangue com barbatanas traseiras como as de tubarões e um motor envenenado monstruoso projetando-se acima do capô recortado.
Tom buzinou de novo. Dessa vez, com o sinal especial deles, buzinando o tema “Supermouse é seu amigoo, vai salvá-lo do perigoo!” dos desenhos animados do Supermouse que eles viam quando crianças.
Um quadrado de luz amarela se projetou pelo ferro-velho quando Joey saiu com uma cerveja em cada mão.
Os dois não se pareciam em nada, ele e Joey. Tinham origens diferentes, viviam em mundos diferentes, mas viraram melhores amigos no dia de levar os animais de estimação à escola no terceiro ano primário. Foi nesse dia que ele descobriu que tartarugas não podiam voar, o dia em que se deu conta do que era e do que podia fazer.
Stevie Bruder e Josh Jones o pegaram lá fora no pátio do colégio. Eles o faziam de bobinho jogando suas tartarugas de um para o outro enquanto Tommy corria entre eles, com o rosto vermelho e chorando. Quando se entediaram, arremessaram as duas no quadrado riscado no muro que indicava a área onde a bola devia ser lançada nos jogos de beisebol na rua. O pastor-alemão de Stevie comeu uma delas. Quando Tommy tentou segurar o cachorro, Stevie bateu em Tommy e o deixou no chão com os óculos quebrados e um corte no lábio.
Eles teriam feito pior não fosse por Joey Sucateiro, um garoto mirrado com cabelos negros despenteados, dois anos mais velho do que seus colegas de classe, mas que já tinha repetido duas vezes, mal sabia ler, e sempre diziam que fedia porque seu pai, Dom, era o dono do ferro-velho.
Joey não era tão grande quanto Stevie Bruder, mas isso não importava, nem naquele dia nem em qualquer outro. Ele só pegou Stevie pelas costas da camisa, sacudiu-o de um lado para o outro e lhe deu um chute no saco. Em seguida deu um chute no cachorro também, e teria chutado Josh Jones, mas Josh saiu correndo. Enquanto fugia, uma tartaruga morta se ergueu do solo e flutuou até o outro lado do pátio e o acertou bem na parte de trás de seu pescoço gordo e vermelho.
Joey viu o que aconteceu.
– Como você faz isso? – disse, surpreso. Até aquele instante, nem Tommy tinha se dado conta de que ele era a razão de suas tartarugas voarem.
Isso virou um segredo dos dois, o cimento que mantinha firme a velha amizade. Tommy ajudava Joey com o trabalho de casa e tomava suas lições para as provas. Joey se tornou o protetor de Tommy contra a brutalidade geral do playground e do pátio do colégio. Tommy lia revistas em quadrinhos para Joey até que a leitura de Joey melhorou tanto que ele não precisou mais de
Tommy. Dom, um homem de idade com cabelos grisalhos, barriga de cerveja e bom coração, se orgulhava disso; ele não sabia ler, nem mesmo italiano. A amizade durou por todo o primário e também o ensino médio, que Joey abandonou. Ela sobreviveu à descoberta das garotas, resistiu à morte de Dom DiAngelis e à mudança da família de Tom para Perth Amboy. Joey Di Angelis ainda era o único que sabia o que Tom era.
Joey arrancou a chapinha de outra Rheingold com o abridor de garrafas que trazia preso ao pescoço. Sob a camiseta sem mangas crescia uma barriga de cerveja como a de seu pai.
– Você é inteligente demais para ficar nesse trabalho de merda naquela loja de conserto de TVs – dizia ele.
– É um emprego – disse Tom. – Fiz isso no verão passado. Agora posso fazer em horário integral. Não importa o tipo de emprego que tenho. O que importa é o que faço com meu, uh, talento.
– Talento? – zombou Joey.
– Você sabe do que estou falando, seu otário. – Tom pôs a garrafa vazia em cima do caixote de laranjas ao lado da poltrona. A maior parte dos móveis de Joey não era o que pode ser chamado de elegante; ele os arranjava entre os objetos do ferro-velho.
– Tenho pensado no que o Jetboy disse no fim, tentando entender o que significa. Acho que estava dizendo que havia coisas que ainda não tinha feito. Ora, merda, eu ainda não fiz nada. Há muito tempo eu perguntei o que poderia fazer para o país, sabe? Bem, cacete, nós dois sabemos a resposta para isso.
Joey se balançou para trás na cadeira, bebendo sua Rheingold no gargalo e sacudindo a cabeça.
Atrás dele, a parede estava coberta de estantes que Dom fizera para os garotos quase dez anos antes. A prateleira de baixo tinha apenas revistas masculinas. O restante eram revistas em quadrinhos. Seus quadrinhos. Supermans e Batmans, Action Comics e Detective, Classics Illustrateds que Joey tinha usado nos trabalhos de literatura, quadrinhos de terror e policiais e quadrinhos de batalhas aéreas. E, o melhor de tudo, seu tesouro, uma coleção quase completa de
Jetboy.
Joey percebeu para onde ele estava olhando.
– Nem pense – disse ele. – Você não é a porra de um Jetboy, cara.
– Não – disse Tom. – Sou mais do que ele era. Sou...
– Um otário – sugeriu Joey.
– Um ás – disse solenemente. – Como os Quatro Ases.
– Eles eram um grupo negro de doo-wop, não eram?
Tom corou.
– Você não sabe nada. Eles não eram cantores, eram...
Joey o interrompeu com um gesto brusco.
– Sei que porra eles eram, Tuds. Dá um tempo. Eles eram uns merdas idiotas como você. Todos foram presos ou baleados ou algo assim, não foram? Menos a porra do dedo-duro, qual o nome dele? – Ele estalou os dedos. – Você sabe, o cara do Tarzan.
– Jack Braun – disse Tom. Ele tinha feito uma pesquisa sobre os Quatro Ases para a escola. – E aposto que há outros, escondidos por aí. Como eu. Eu sempre me escondi. Agora chega.
– Então você acha que vai simplesmente até o Bayonne Times e dar a porra de um espetáculo?
Seu babaca. É a mesma coisa que dizer a eles que você é comunista. Vão mandar você morar no Bairro dos Curingas e vão quebrar todas as janelas da casa de seu pai. Podem até convocar você para servir, otário.
– Não – disse Tom. – Eu já pensei em tudo. Os Quatro Ases eram alvos fáceis. Não vou deixar que saibam quem sou ou onde moro. – Ele usou a garrafa de cerveja que segurava para gesticular vagamente na direção das estantes. – Vou manter meu nome em segredo. Como nos quadrinhos.
Joey riu alto.
– Sensacional! E vai usar ceroulas justinhas também, seu burro?
– Droga – disse Tom. Ele estava começando a ficar aborrecido. – Cale a porra dessa boca. – Joey só ficou ali, balançando e rindo. – Você fala demais, vamos lá – disse com raiva enquanto se levantava. – Levante esse seu rabo gordo daí e vamos lá para fora. Vou mostrar a você como sou burro. Vamos, você que sabe tudo.
Joey DiAngelis ficou de pé.
– Eu tenho que ver isso.
Lá fora, Tom esperava com impaciência, alternando o peso do corpo de uma perna para a outra. Sua respiração soltava vapor no ar frio de novembro, enquanto Joey foi até a grande caixa de metal ao lado da casa e ligou um interruptor. No alto dos postes, as luzes do ferro-velho se acenderam. Os cães se reuniram ao redor, farejando, e os seguiram quando começaram a andar. O gargalo de uma garrafa de cerveja se projetava do bolso da jaqueta preta de couro de Joey.
Era apenas um ferro-velho, cheio de lixo, sucata e carros batidos, mas naquela noite parecia tão mágico quanto quando Tommy tinha 10 anos. Numa colina, com vista para as águas negras da baía de Nova York, um velho Packard branco assomava como um forte fantasmagórico. E ele tinha sido exatamente isso quando ele e Joey eram crianças; seu santuário, sua fortaleza, seu posto avançado da cavalaria e estação espacial e castelo, tudo numa coisa só. Ele reluzia ao luar, e as águas abaixo estavam cheias de promessas enquanto batiam contra a orla. Escuridão e sombras jaziam pesadas no ferro-velho, transformando as pilhas de lixo e metal em montanhas negras misteriosas, com um labirinto de vielas cinzentas entre elas. Tom os conduziu por aquele labirinto, passou pelo grande monte de lixo no qual brincavam de rei da montanha e duelavam com espadas feitas com peças do ferro-velho, passando pelo local dos tesouros onde tinham encontrado tantos brinquedos quebrados e pilhas de vidro colorido e garrafas retornáveis e uma vez até uma caixa de papelão cheia de revistas em quadrinhos.
Caminharam pelas fileiras de carros enferrujados e amassados empilhados um em cima do outro; Fords, Chevys, Hudsons e DeSotos, um Corvette com um capô destruído, amassado como uma sanfona, um monte de fuscas mortos, um carro funerário preto cheio de dignidade, tão morto quanto os passageiros que havia transportado. Tom olhou para todos eles com atenção.
Finalmente, ele parou.
– Aquele – disse ele, apontando para a carcaça depenada de um velho Studebaker Hawk. Ele não tinha mais motor, nem pneus; o para-brisa era uma teia de aranha de vidro quebrado, e mesmo no escuro eles podiam ver os pontos em que a ferrugem comera os para-choques e laterais. – Não vale nada, certo?
Joey abriu sua cerveja.
– Vá em frente, é todo seu.
Tom respirou fundo e olhou diretamente para o carro. Suas mãos se fecharam em punhos ao lado do corpo. Ele olhou fixamente e com força, concentrado. O carro tremeu um pouco. Sua dianteira se ergueu alguns centímetros vacilantes acima do chão.
– Uaaaauuuuuuu!!!! – disse Joey com ironia, dando um soco de leve no ombro de Tom. O Studebaker caiu com um estrondo metálico, e um para-choque se soltou. – Merda, estou impressionado.
– Droga, fique quieto e me deixe em paz – disse Tom. – Eu consigo, vou mostrar a você, só cale a porra da boca por um minuto. Eu tenho treinado. Você não sabe as coisas que posso fazer.
– Não vou dizer droga nenhuma – prometeu Joey, rindo. Ele deu um gole de cerveja.
Tom virou-se para o Studebaker. Tentou bloquear tudo, se esquecer de Joey, dos cães, do ferro-velho; o Studebaker encheu seu mundo. Seu estômago parecia uma bolinha apertada. Ele lhe disse que relaxasse, respirou fundo várias vezes, foi abrindo os punhos. Vamos lá, vamos lá, calma, não fique nervoso, vá em frente, você já fez mais do que isso, isso é fácil, fácil.
O carro se ergueu lentamente, subindo em meio a uma chuva de ferrugem. Tom o girou cada vez mais rápido. Então, com um sorriso de triunfo, arremessou-o a dez metros de distância. Ele bateu em uma pilha de Chevys mortos e fez tudo desmoronar em uma avalanche de metal.
Joey terminou sua Rheingold.
– Nada mal. Há alguns anos, você mal conseguia me fazer passar por cima de uma cerca.
– Estou ficando cada vez mais forte – disse Tom.
Joey DiAngelis assentiu com a cabeça e jogou de lado a garrafa de cerveja vazia.
– Bom – disse ele. – Então você não vai ter nenhum problema comigo, vai? – Ele deu um empurrão forte em Tom com as duas mãos.
Tom cambaleou um passo para trás, de cara feia.
– Pare com isso, Joey.
– Me faça parar – disse Joey. Ele o empurrou de novo, mais forte. Dessa vez, Tom quase caiu no chão.
– Droga, pare com isso – reclamou Tom. – Não tem nenhuma graça, Joey.
– Não? – perguntou Joey. Ele sorriu. – Eu acho engraçado pra cacete. Mas, ei, você pode me deter, não? Use seu maldito poder. – Ele chegou mais perto do rosto de Tom e lhe deu um tapa de leve na face. – Me faça parar, ás – disse ele e lhe deu um tapa mais forte. – Vamos lá, Jetboy, me faça parar. – O terceiro tapa foi ainda mais forte. – Vamos lá, super, está esperando o quê? – O quarto tapa machucou de verdade; o quinto quase virou a cabeça de Tom para trás. Joey parou de sorrir. Tom podia sentir a cerveja em seu hálito.
Tom tentou segurar a mão dele, mas Joey era forte demais, rápido demais; ele se livrou de Tom e deu outro tapa.
– Quer lutar boxe, ás? Vou fazer picadinho de você. Babaca. Bundão. – O tapa quase arrancou a cabeça de Tom e extraiu lágrimas de dor de seus olhos. – Me faça parar, otário – gritou Joey. Ele fechou a mão e deu um soco no estômago de Tom com tanta força que ele se dobrou ao meio e ficou sem fôlego.
Tom tentou se concentrar para agarrar e empurrar, mas era como no pátio da escola de novo, Joey estava em todo lugar, seus punhos o socando por todos os lados, e tudo o que ele podia fazer era levantar as mãos e tentar bloquear os golpes, e isso não adiantava muito, Joey era bem mais forte; ele o empurrava e socava, gritando o tempo todo, e Tom não conseguia pensar, não conseguia se concentrar, não conseguia fazer nada além de sentir dor, e estava recuando, cambaleante, e Joey vinha atrás dele, os punhos armados, e o acertou com um uppercut que pegoubem em sua boca com uma força que machucou seus dentes. De repente, Tom estava caído de costas no chão, com a boca cheia de sangue.
Joey estava parado de pé acima dele, franzindo a testa.
– Merda – disse ele. – Eu não queria machucar sua boca. – Ele se agachou, pegou Tom pela mão e o puxou com força para levantá-lo.
Tom secou o sangue do lábio com as costas da mão. Também havia sangue na frente de sua camisa.
– Olhe para mim. Estou horrível – disse ele, chateado, e olhou para Joey. – Isso não foi justo.
Você não pode esperar que eu faça alguma coisa enquanto está me socando, droga.
– Aham – disse Joey. – E enquanto você estiver se concentrando e apertando os olhos, acha que a porra dos vilões vão deixar você em paz, certo? – Ele deu um tapinha nas costas de Tom. – Eles vão arrebentar com todos os seus dentes. Isso se você tiver sorte e eles simplesmente não derem um tiro em você. Você não é nenhum Jetboy, Tuds. – Ele estremeceu. – Vamos, está frio pra cacete aqui.
Quando acordou na escuridão quente, Tach se lembrava de pouca coisa da bebedeira, mas era assim que ele gostava. Fez força para se sentar. Os lençóis sobre os quais estava deitado eram de cetim, macios e sensuais e, sob o odor de vômito velho, ainda conseguia sentir um traço leve de algum perfume floral.
Sem muita firmeza, se livrou das cobertas e se sentou na beira da cama com dossel. O chão sob seus pés descalços era acarpetado. Ele estava pelado, o ar desconfortavelmente quente sobre sua pele nua. Esticou a mão, encontrou o interruptor e apertou os olhos com a claridade. O quarto era rosa e branco, atulhado de móveis vitorianos, e tinha paredes grossas, à prova de som. Um quadro a óleo de John F. Kennedy sorria do alto, de cima da lareira; num canto havia uma estátua de gesso de um metro da Virgem Maria.
Angelical estava sentada em uma poltrona estofada de rosa, piscando de forma sonolenta para ele e cobrindo o bocejo com as costas da mão.
Tach se sentia enjoado e envergonhado.
– Tirei você de sua cama de novo, não foi?
– Tudo bem – respondeu ela. Seus pés repousavam sobre uma pequena banqueta. As solas de seus pés estavam feias e machucadas, negras e inchadas apesar dos sapatos com forro especial que usava. Fora isso, ela era linda. Seus cabelos negros soltos caíam até a cintura, e sua pele tinha uma qualidade radiante e corada, um brilho quente de vida. Seus olhos eram escuros e fluidos, mas a coisa mais impressionante, o que nunca deixava de surpreender Tachyon, era o calor que emanava, a afeição da qual ele não se sentia nada merecedor. Com tudo o que fizera a ela, e ao resto deles, de algum modo essa mulher chamada Angelical o perdoara e gostava dele.
Tach levou a mão à têmpora. Alguém com uma serra elétrica estava tentando remover a parte detrás de seu crânio.
– Minha cabeça – reclamou. – Com os preços que cobram, o mínimo que vocês deviam fazer era retirar as resinas e venenos dos drinques que vendem. Em Takis, nós...
– Eu sei – disse Angelical. – Em Takis desenvolveram vinhos que não dão ressaca. Você já me contou essa.
Tachyon deu um sorriso cansado. Ela parecia impossivelmente fresca, vestindo apenas uma túnica curta de cetim que deixava suas pernas expostas até a coxa. Era de um vermelho-vinho profundo, lindo contra sua pele. Mas quando ela se levantou, ele viu uma de suas faces, onde seu rosto tinha se apoiado sobre a poltrona enquanto ela dormia. O hematoma já estava escurecendo, uma mancha roxa em sua bochecha.
– Angel... – começou ele.
– Não é nada – disse ela e empurrou o cabelo para a frente para encobrir a marca. – Suas roupas estavam imundas. O Mal as levou para lavar. Por isso, você é meu prisioneiro durante algum tempo.
– Por quanto tempo eu dormi? – perguntou Tachyon.
– O dia inteiro – respondeu Angelical. – Não se preocupe com isso. Uma vez eu tive um cliente tão bêbado que dormiu por cinco meses. – Ela se sentou à sua penteadeira, pegou o telefone e pediu o café da manhã: torrada e café para ela, ovos, bacon e café forte com conhaque para Tachyon. Com aspirina para acompanhar.
– Não – protestou ele. – Essa comida toda. Vou passar mal.
– Você precisa comer. Nem homens do espaço podem viver só de conhaque.
– Por favor...
– Se quer beber, vai ter que comer – disse ela rispidamente. – Esse é o acordo, lembra?
Do acordo, sim. Ele se lembrava. Angelical lhe fornecia o dinheiro para o aluguel, comida e uma conta aberta no bar, toda a bebida de que precisasse para lavar suas memórias. Só o que tinha de fazer era comer e lhe contar histórias. Ela adorava ouvi-lo falar. Ele contou casos de família, discursou sobre costumes takisianos, encheu-a de casos, lendas e romances, com histórias
de bailes e intrigas e beleza muito distantes da sordidez do Bairro dos Curingas.
Às vezes, depois de fechar, ele dançava para ela, desenhando os movimentos intrincados da pavana de Takis pelo piso espelhado da casa noturna enquanto ela assistia e o incentivava. Uma vez, quando os dois tinham bebido vinho muito além da conta, ela o convenceu a demonstrar a dança nupcial, um balé erótico que a maioria dos takisianos só dançava uma vez, na noite de seu casamento. Foi a única vez em que ela dançou com ele, acompanhando os passos, hesitante no começo, depois cada vez mais rápido, balançando e girando pelo salão até que seus pés descalços ficaram esfolados e rachados e começaram a deixar manchas vermelhas sobre as lajotas de espelho. Na dança nupcial, o casal de dançarinos se juntava no fim, desabando em um abraço longo e triunfante. Mas isso era em Takis. Aqui, quando chegou o momento, ela parou de dançar e se afastou, e ele foi lembrado mais uma vez de que Takis estava muito longe.
Dois anos antes, Desmond o encontrou nu e inconsciente em um beco do bairro. Alguém havia roubado suas roupas enquanto dormia, e ele estava com febre e delirante. Des chamou ajuda para levá-lo até o Funhouse. Quando recobrou a consciência, estava deitado em uma cama de armar em um quartinho dos fundos, cercado por barris de cerveja e caixas de vinho.
– Você sabe o que estava bebendo? – perguntou-lhe Angelical quando o levaram até o escritório dela. Ele não sabia; tudo de que se lembrava era que precisava tanto de um drinque que sentia uma dor por dentro, e o negro idoso no beco generosamente oferecera para dividir com ele.
– Álcool puro – disse a ele Angelical. Ela mandou que Des trouxesse uma garrafa de seu melhor conhaque. – Se um homem quer beber, é problema dele, mas pelo menos você pode fazer isso com um pouco de classe. – O conhaque espalhou ramos delgados de calor por seu peito e fez com que suas mãos parassem de tremer. Quando esvaziou a garrafa, Tach a agradeceu efusivamente, mas ela recuou quando ele tentou tocá-la. Ele perguntou por quê. – Vou mostrar a você – disse ela, lhe oferecendo a mão. – Devagar – disse para ele. O beijo dele foi um leve roçar de lábios, não nas costas da mão dela, mas no interior de seu pulso, para sentir sua pulsação, a corrente de vida em seu interior, porque era tão linda, e boa, e porque ele a queria.
No instante seguinte, ele viu com triste desalento a pele dela escurecer, ficar roxa e então negra.
Mais uma das minhas, pensou ele.
Ainda sim, por alguma razão tornaram-se amigos. Não amantes, claro, exceto às vezes nos sonhos dele; os vasos capilares dela se rompiam à menor pressão e, para seu sistema nervoso hipersensível, até o toque mais leve era doloroso. Uma leve carícia a deixava preta e azulada; se fizesse amor, provavelmente morreria. Mas amigos, sim. Ela nunca lhe pedia nada que ele não pudesse dar, assim ele nunca iria decepcioná-la.
O café da manhã foi servido por uma negra corcunda chamada Ruth, que tinha penas azul-claras na cabeça em vez de cabelos.
– O homem trouxe isso para a senhora esta manhã – disse ela a Angelical depois de arrumar a mesa, entregando-lhe um pacote quadrado grosso, embrulhado em papel pardo. Angelical o aceitou sem comentários, enquanto Tachyon bebia seu café com conhaque e erguia a faca e o garfo para encarar com desânimo os implacáveis bacon e ovos.
– Não faça essa cara de chocado – disse Angelical.
– Acho que não contei a você da vez que a espaçonave da Rede chegou a Takis e o que minha bisavó Amurath disse para o enviado de Ly’bahr – começou ele.
– Não – disse ela. – Continue. Gosto de sua bisavó.
– Ela é uma de nós. Ela me apavora – disse Tachyon e contou a história.
Tom acordou bem antes do amanhecer, enquanto Joey ainda roncava no quarto dos fundos. Ele passou um bule de café em um coador velho e botou na torradeira um muffin Thomas. Enquanto o café coava, ele dobrou a cama de armar para dentro do sofá. Cobriu os muffins de manteiga e geléia de morango e olhou ao redor em busca de algo para ler. Os quadrinhos o atraíram.
Ele se lembrava do dia em que os encontraram. A maioria tinha sido dele, originalmente, incluindo a coleção de Jetboy que ganhou do pai. Ele amava aquelas revistas. Então, um dia em 1954, chegou em casa da escola e viu que eles haviam sumido, uma estante inteira e dois caixotes cheios de gibis haviam desaparecido. A mãe dele disse que umas mulheres da Associação de Pais e Mestres tinham ido lá e dito a ela como os quadrinhos eram coisas terríveis. Mostraram uma cópia do livro de um certo Dr. Wertham sobre como os quadrinhos transformavam as crianças em delinquentes juvenis e homossexuais, e como glorificavam ases e curingas, por isso sua mãe deixou que elas levassem a coleção de Tom. Ele berrou e gritou e deu um ataque, mas não adiantou nada.
A Associação de Pais e Mestres tinha recolhido quadrinhos de todas as crianças da escola.
Eles queimariam tudo no sábado, no pátio da escola. Aquilo estava acontecendo por todo o país; havia até rumores de uma lei que havia proibido as revistas em quadrinhos, ou pelo menos aquelas sobre horror, crimes e pessoas com poderes estranhos.
Wertham e a Associação de Pais e Mestres estavam certos: na noite de sexta-feira, por causa das revistas em quadrinhos, Tommy Tudbury e Joey DiAngelis se tornaram criminosos.
Tom tinha 9 anos; Joe, 11, mas ele dirigia o caminhão do pai desde os 7. No meio da noite, ele roubou o caminhão, e Tom fugiu para encontrá-lo. Quando chegaram à escola, Joey arrombou uma janela, e Tom subiu em seus ombros, olhou para o interior da sala de aula, se concentrou, agarrou a caixa com sua coleção, ergueu-a no ar e a fez flutuar até a caçamba do caminhão. Então aproveitou e pegou mais outras quatro ou cinco caixas. A Associação de Pais e Mestres nunca percebeu. Ainda tinham muito para queimar. Se Dom Di Angelis ficou curioso sobre a origem de todos aqueles gibis, nunca disse uma palavra. Apenas fez as estantes para guardá-los, todo orgulhoso do filho que sabia ler. A partir daquele dia, era a coleção deles, em conjunto.
Tom pôs o café e o muffin sobre o caixote de laranjas, foi até a estante de livros e pegou alguns números de Jetboy. Ele os releu enquanto comia, Jetboy na Ilha dos Dinossauros, Jetboy e o Quarto Reich e sua favorita, Jetboy e os alienígenas. Por trás da capa, o título era: “Trinta minutos sobre a Broadway”. Tom a leu duas vezes enquanto bebia o café que esfriava. Demorou-se em alguns dos melhores quadros. Na última página havia um retrato do alienígena Tachyon
chorando. Tom não sabia se aquilo tinha acontecido ou não. Ele fechou a revista e terminou seu muffin. Por um bom tempo ficou ali sentado, pensativo.
Jetboy era um herói. E o que era ele? Nada. Um fracote, uma titica de galinha. A porra de seu poder de carta selvagem não tinha feito merda nenhuma por ninguém. Era inútil, assim como ele.
Desanimado, vestiu o casaco sobre os ombros e saiu. O ferro-velho parecia frio e feio ao amanhecer, e soprava um vento gelado. Alguns metros a leste, a baía estava verde e encapelada.
Tom subiu até o velho Packard em sua colina. A porta rangeu quando ele a abriu. Lá dentro, os bancos estavam rachados e tinham cheiro de podre, mas pelo menos ele estava protegido daquele vento. Tom se jogou para trás encolhido, com os joelhos apoiados no painel e ficou olhando para o sol nascente. Ficou sentado imóvel por um bom tempo; do outro lado do ferro-velho, calotas e pneus velhos flutuaram no ar e saíram zunindo para mergulhar nas águas verdes encapeladas da
baía de Nova York. Ele podia ver a Estátua da Liberdade em sua ilha, e as silhuetas indistintas das torres de Manhattan a nordeste.
Eram quase 7h30, seus membros estavam rígidos, e Tom Tudbury tinha perdido a conta do número de calotas que havia arremessado quando se levantou e sentou com uma expressão estranha no rosto. O freezer com o qual ele estivera fazendo malabarismo a dez metros de altura caiu no chão com um estrondo. Ele passou os dedos pelos cabelos e tornou a erguer o freezer, moveu-o cerca de vinte metros e o deixou cair em cima do telhado de zinco corrugado. Então fez o mesmo com um pneu, uma bicicleta retorcida, seis calotas e um carrinho vermelho.
A porta da casa abriu de repente com grande barulho, e Joey saiu correndo no frio vestindo nada além de cuecas samba-canção e uma camiseta sem mangas. Ele parecia estar com muita raiva. Tom segurou seus pés nus, puxou-os do chão e o derrubou de bunda, com força; Joey xingou.
Tom o agarrou e o sacudiu no ar, de cabeça para baixo.
– Onde diabos está você, Tudbury? – gritou Joey. – Pare com isso, seu babaca. Me ponha no chão.
Tom imaginava duas mãos invisíveis e jogava Joey de uma para outra.
– Quando eu descer, vou bater tanto em você que vai ter de comer por um canudinho pelo resto da vida – prometeu Joey.
A manivela estava dura devido aos anos sem uso, mas Tom finalmente conseguiu baixar a janela do Packard. Ele botou a cabeça para fora.
– Oi, rapazes, oi, oi, oi – disse, às gargalhadas.
Joey balançava suspenso três metros acima do chão, brandindo o punho.
– Vou arrebentar você e essa sua mágica, seu cabeça de merda – gritou ele. Tom arrancou as cuecas e as pendurou num poste telefônico. – Você vai morrer, Tudbury – disse Joey.
Tom respirou fundo e baixou Joey até o chão, com muita delicadeza. Era a hora da verdade.
Joey veio correndo em sua direção, gritando obscenidades. Tom fechou os olhos, pôs as mãos no volante e subiu. O Packard se moveu embaixo dele. Gotas de suor cobriam sua testa. Ele se isolou do mundo, se concentrou, contou até dez, lentamente, de trás para a frente.
Quando finalmente abriu os olhos, meio esperando ver o punho de Joey batendo em seu nariz, não havia nada a contemplar além de uma gaivota empoleirada no capô do Packard, de cabeça encolhida enquanto espiava através do para-brisa rachado. Ele estava flutuando. Estava voando.
Tom botou a cabeça para fora da janela. Joey estava cinco metros abaixo dele, irritado, com as mãos nos quadris e uma expressão nada satisfeita no rosto.
– Agora – berrou lá para baixo. – O que foi que você disse ontem à noite?
– Espero que você consiga ficar aí em cima o dia inteiro, seu filho da mãe – disse Joey. Ele brandiu o punho sem o menor efeito. Cabelos negros e lisos caíam sobre seus olhos. – Ah, merda, o que isso prova? Se eu tivesse uma arma, você ainda estaria morto.
– Se você tivesse uma arma, eu não estaria com a cabeça para fora da janela – disse Tom. – Na verdade, seria melhor que eu não tivesse uma janela. – Ele refletiu sobre aquilo por um segundo, mas era difícil pensar enquanto estava lá em cima. O Packard era pesado. – Estou descendo – disse ele para Joey. – Você, ah, você está mais calmo?
Joey sorriu.
– Venha aqui ver, Tuds.
– Saia do caminho. Não quero esmagar você com essa porcaria aqui.
Joey se afastou para o lado, de bunda de fora e todo arrepiado, e Tom fez o Packard pousar tão suavemente quanto uma folha de outono em um dia sem vento. Ele estava abrindo a porta quando Joey estendeu os braços, o agarrou e puxou e o empurrou de costas contra a lateral do carro, sua outra mão fechada em um punho.
– Eu devia... – começou ele. Então sacudiu a cabeça, riu e deu um soco de leve no ombro de Tom. – Ô ás, devolve a porra da minha cueca – disse ele.
Quando estavam dentro de casa de novo, Tom requentou o resto do café.
– Vou precisar de você para fazer o trabalho – disse ele enquanto preparava para si mesmo ovos mexidos, presunto e mais alguns muffins. Usar sua telecinesia sempre lhe abria bem o apetite. – Você estudou mecânica e solda e toda essa merda. Eu faço a parte elétrica.
– Parte elétrica? – disse Joey, aquecendo as mãos sobre a xícara. – Mas, porra, para quê?
– As luzes e câmeras de TV. Não quero nenhuma janela pela qual as pessoas possam atirar. Sei onde podemos conseguir câmeras baratas, e você tem um monte de suportes aqui, eu vou consertá-los. – Ele se sentou e atacou os ovos com uma fome de lobo. – Também vou precisar de alto-falantes. Algum tipo de mesa de som e amplificação. Um gerador. Será que vai ter espaço lá para botar uma geladeira?
– Aquele Packard é grande pra cacete – disse Joey. – Se tirar os bancos, cabem três geladeiras.
– Não o Packard – disse Tom. – Vou achar um carro mais leve. Podemos cobrir as janelas com partes de portas e laterais velhas ou algo assim.
Joey afastou o cabelo dos olhos.
– Que se fodam as portas e laterais. Tenho blindagem militar. Da guerra. Eles desmontaram um monte de navios na base da Marinha em 1946 e 1947, e Dom fez um lance pelo metal e nos comprou vinte toneladas dessa porra. Um puta desperdício de dinheiro, quem diabos vai querer comprar blindagem de navio de guerra? Ainda tenho tudo, parado lá no fundo pegando ferrugem.
Você precisa de uma arma de 16 polegadas para penetrar aquela bosta, Tuds. Você vai estar tão seguro quanto... merda, sei lá. Enfim, seguro.
Tom sabia.
– Seguro – disse ele em voz alta. – Como uma tartaruga em sua carapaça!
Só restavam dez dias de compras até o Natal, e Tach estava sentado num reservado perto da janela bebericando um Irish coffee contra o frio de dezembro e olhando detrás do vidro espelhado para a Bowery. O Funhouse só abriria em uma hora, mas a porta dos fundos estava sempre aberta para os amigos de Angelical. No palco, um par de curingas malabaristas que se chamavam Cosmos e Caos jogavam bolas de um lado para outro. Cosmos flutuava um metro acima do palco em posição de lótus, seu rosto sem olhos sereno. Ele era totalmente cego, mas nunca perdia o ritmo nem deixava cair uma bola. Seu parceiro de seis braços, Caos, pulava de um lado para outro como um lunático, dando gargalhadas, contando piadas ruins e mantendo uma
cascata de pinos flamejantes voando às suas costas com dois braços enquanto os outros quatro jogavam bolas de boliche para Cosmos. Tach dispensou a eles apenas um breve olhar. Por mais talentosos que fossem, suas deformidades o incomodavam.
Mal deslizou para seu reservado.
– Quantos desses já bebeu? – perguntou o leão de chácara, olhando para o Irish coffee. Os pequenos tentáculos que pendiam de seu lábio inferior se expandiam e contraíam em uma pulsação cega de verme, e seu queixo grande mal barbeado e deformado dava a seu rosto uma expressão de desprezo agressivo.
– Não vejo como isso pode ser de sua conta.
– Você não serve para nada, não é mesmo?
– Eu nunca disse que servia.
Mal deu um resmungo.
– Você vale tanto quanto um saco de merda. Não entendo por que Angel precisa de um homem do espaço em roupas de bebê circulando por aí enxugando sua birita...
– Angel não precisa. Eu disse isso a ela.
– Você não pode dizer nada a essa mulher – concordou Mal. Ele fechou o punho. Um punho muito grande. Antes do Dia da Carta Selvagem, ele tinha sido o oitavo no ranking dos pesos-pesados. Depois disso, chegou até o terceiro lugar na lista de desafiantes ao título... até que baniram cartas selvagens dos esportes profissionais e acabaram com seus sonhos em uma só tacada. A medida tinha como alvo os ases, disseram, para manter a competitividade dos jogos, mas não foram feitas exceções para curingas. Mal agora estava mais velho, os cabelos ralos ficando grisalhos, mas ainda parecia forte o bastante para quebrar Floyd Patterson ao meio no joelho, e mau o bastante para encarar Sonny Liston de cima para baixo. – Veja só isso – rosnou aborrecido, olhando pela janela. Baixinho estava lá fora em sua cadeira. – Que diabos ele está fazendo aqui? Eu disse a ele para não vir mais aqui. Mal foi na direção da porta.
– Você não pode simplesmente deixá-lo em paz? – disse Tachyon quando ele se afastava. – Ele é inofensivo.
– Inofensivo? – Mal olhou para ele com atenção. – Os gritos dele assustam a porra de todos os turistas, e quem diabos vai pagar por toda a sua bebida grátis?
Mas então a porta se abriu, e Desmond surgiu ali parado, o sobretudo dobrado sobre o braço, sua tromba meio erguida.
– Deixe-o em paz, Mal – disse o maître enfadado. – Vamos, agora. – Resmungando, Mal se afastou. Desmond se aproximou e se sentou no reservado de Tachyon. – Bom dia, doutor – disse ele.
Tachyon fez um leve aceno com a cabeça e terminou o drinque. O uísque todo tinha ficado no fundo da xícara e o esquentou enquanto descia. Ele se viu encarando o próprio rosto no tampo espelhado da mesa, um rosto desgastado, envelhecido, acabado, duro, com olhos vermelhos e injetados, cabelos ruivos compridos emaranhados e gordurosos, os traços distorcidos pelo excesso de álcool. Aquele não era ele, não podia ser, ele era bonito, de feições agradáveis, marcantes, seu rosto era...
A tromba de Desmond serpenteou e seus dedos se fecharam em torno do pulso dele, puxando-o para a frente.
– Você não ouviu nem uma palavra do que eu disse, não é? – disse Des em voz baixa, com uma urgência provocada pela raiva. Exausto e meio atônito, Tach se deu conta de que Desmond estivera falando com ele e começou a murmurar desculpas.
– Deixe isso para lá – disse Des, soltando seu pulso. – Me escute. Eu estava pedindo sua ajuda, doutor. Posso ser um curinga, mas não sou um homem sem educação. Já li sobre você. Você tem certas... habilidades, digamos assim.
– Não – interrompeu Tach. – Não como você está pensando.
– Seus poderes estão muito bem documentados – disse Des.
– Eu não... – começou Tach, sem jeito. Ele estendeu as mãos. – Isso faz tempo. Eu os perdi, quero dizer, não consigo mais. – Ele olhou para baixo, para seus próprios traços envelhecidos, com vontade de encarar Des nos olhos, mas incapaz de suportar a imagem da deformidade do curinga.
– Você não quer, isso sim – disse Des. Ele se levantou. – Achei que se falasse com você antes de abrir, talvez conseguisse encontrá-lo sóbrio. Estou vendo que me enganei. Esqueça tudo o que eu disse.
– Eu o ajudaria, se pudesse – começou a dizer Tach.
– Eu não estava pedindo por mim – disse rispidamente Des.
Quando ele foi embora, Tachyon foi até o bar cromado e comprido e pegou uma garrafa inteira de conhaque. O primeiro copo o fez se sentir melhor; o segundo fez suas mãos pararem de tremer.
No terceiro, ele tinha começado a chorar. Mal se aproximou e olhou para ele enojado.
– Não sabia que um homem podia chorar tanto quanto você – disse ele, dando um lenço sujo para Tachyon pouco antes de ir ajudar a abrir a casa.
Ele estava no ar por quatro horas e meia quando a notícia do incêndio chegou estalando pelo rádio da polícia ao lado de seu pé direito. Não muito alto no ar, é verdade, apenas a uns dois metros do chão, mas isso era o bastante, dois ou vinte metros não faziam tanta diferença assim, descobrira Tom. Quatro horas e meia, e ele ainda não se sentia nem um pouco cansado. Na verdade, ele se sentia sensacional.
Ele estava seguro, preso com cinto ao assento anatômico que Joey arrancara de um Triumph TR-3 destruído e montara sobre um eixo bem no centro do VW. A única luz era o brilho pálido de uma série de telas de TV diferentes que o cercavam por todos os lados. Entre as câmeras e os motores que as movimentavam em seus trilhos, o gerador, o sistema de ventilação, o equipamento
de som, os painéis de controle, a caixa de válvulas sobressalentes, e a geladeirinha, ele mal tinha espaço para se mexer. Mas não havia problema. Tom era mais um claustrófilo que um claustrofóbico; ele gostava de ficar ali dentro. Em volta do exterior do fusca, Joey montara uma camada dupla de placas grossas de blindagem de navio. Era melhor que a porra de um tanque.
Joey já havia dado uns tiros ali com a Luger que Dom tomara de um oficial alemão durante a guerra. Um tiro de sorte talvez conseguisse acertar uma das câmeras ou luzes, mas não havia como acertar Tom dentro de sua carapaça. Ele estava mais do que seguro, estava invulnerável, e quando ele se sentia assim seguro e confiante, não havia limite para o que era capaz de fazer.
A carapaça ficou mais pesada que o Packard quando terminaram com ela, mas isso não parecia importar. Quatro horas e meia sem tocar o chão, deslizando de um lado para outro pelo ferro-velho em silêncio e quase sem esforço, e Tom não tinha nem mesmo começado a suar.
Quando escutou a notícia no rádio, foi tomado por uma onda de excitação. “É isso!”, pensou.
Ele devia esperar por Joey, mas Joey tinha ido até a Pompeii Pizza buscar o jantar (pepperoni, cebolas e queijo extra) e não havia tempo a perder, essa era a sua chance.
O círculo de luz na parte de baixo da carapaça projetava sombras duras sobre os montes de metal retorcido e lixo enquanto Tom erguia a carapaça mais alto no ar, três, quatro, cinco metros.
Seus olhos iam nervosamente de uma tela para outra, vendo o chão se afastar. Em uma tela feita com o tubo de imagem de uma velha TV Sylvania, a imagem começou a correr na vertical. Tom mexeu em um botão e parou com aquilo. As palmas das mãos estavam suadas. Seis metros, ele começou a avançar até a carapaça chegar à beira-mar. Diante dele havia só escuridão; a noite
estava enevoada demais para ver Nova York, mas ele sabia que ela estava ali, se pudesse chegar até lá. Em suas pequenas telas preto e branco, as águas da baía de Nova York pareciam ainda mais escuras que o normal, um oceano de nanquim encapelado e infinito assomando à sua frente.
Ele teria de seguir às cegas até ver as luzes da cidade. E se ele perdesse o controle lá fora, ia se juntar ao Jetboy e a JFK bem mais cedo do que planejava; mesmo se conseguisse soltar a escotilha rápido o bastante para conseguir evitar afundar, ele não sabia nadar.
Mas ele não ia perder o controle , pensou de repente Tom. Por que diabos ele estava hesitante? Ele não ia perder o controle nunca mais, ia? Ele tinha de acreditar naquilo.
Apertou os lábios e, com a mente, fez a carapaça avançar suavemente sobre a água. As ondas salgadas abaixo dele subiam e desciam. Ele nunca tivera de fazer força para erguer nada sobre a água antes; era uma sensação diferente. Tom sentiu um instante de pânico. A carapaça balançou e caiu um metro antes que ele se controlasse e a ajustasse. Fez um esforço para se acalmar, deu impulso para cima e subiu. Alto, pensou, ele chegaria pelo alto, apareceria voando como o
Jetboy, como o Águia Negra, como a droga de um ás. A carapaça seguiu em frente, cada vez mais rápido, deslizando através da baía com ágil tranquilidade à medida que Tom ganhava confiança.
Ele nunca havia se sentido tão incrivelmente poderoso, tão bem, tão certo, droga.
A bússola estava funcionando bem. Em menos de dez minutos, as luzes da região do Battery e de Wall Street erguiam-se à sua frente. Tom deu impulso para subir mais alto e flutuou acima da cidade, acompanhando a margem do Hudson. O túmulo de Jetboy surgiu e passou abaixo dele. Ele tinha ido até lá dezenas de vezes. Ficava parado olhando para o rosto da grande estátua de metal à sua frente. Ele se perguntou o que a estátua pensaria se pudesse olhar para o alto e vê-lo esta noite.
Ele tinha um mapa das ruas de Nova York, mas naquela noite não precisou dele. As chamas podiam ser vistas a mais de um quilômetro de distância. Mesmo dentro da carapaça Tom sentiu as lambidas das ondas de calor que o atingiram quando passou sobre o local. Ele começou a descer cuidadosamente. Seus ventiladores zumbiam, e suas câmeras foram direcionadas a seu comando.
Lá embaixo havia caos e cacofonia, sirenes e gritos, a multidão, os bombeiros apressados, os bloqueios da polícia e as ambulâncias, grandes caminhões com escadas retráteis que jogavam água naquele inferno. No início, ninguém o notou pairando 15 metros acima da calçada, até que desceu o bastante para suas luzes atingirem as paredes do prédio. Então ele os viu olhar para o alto e apontar: ele se sentiu zonzo de tanta excitação.
Mas teve só um instante para curtir a sensação. Então, no canto do olho, ele a percebeu em uma de suas telas. Ela apareceu de repente em uma janela do quinto andar, debruçada para fora e tossindo, o vestido já começando a pegar fogo. Antes que pudesse agir, as chamas a atingiram, ela gritou e pulou.
Ele a pegou em pleno ar, sem pensar, sem hesitar, sem refletir se conseguiria ou não fazer aquilo. Ele simplesmente fez, pegou-a, segurou-a e a desceu suavemente até o chão. Os bombeiros a cercaram, apagaram seu vestido e a levaram para uma ambulância. E agora, Tom via, todo mundo estava olhando para ele lá no alto, para a forma estranha e escura que flutuava no ar naquela noite, com seu círculo de luzes brilhantes. A faixa de rádio da polícia estava ativa; ele ouviu que estava sendo considerado um alienígena. Ele sorriu.
Um policial subiu em sua viatura com um megafone e começou a se dirigir a ele. Tom desligou o rádio para ouvir melhor em meio ao rugir das chamas. Ele estava mandando Tom descer e se identificar, perguntando quem ele era e o que era.
Isso era fácil. Tom ligou seu próprio microfone.
– Sou o Tartaruga – disse ele. O VW não tinha pneus nem rodas. Em seu lugar, Joey fixara os maiores alto-falantes que puderam encontrar, acionados com o maior amplificador do mercado.
Pela primeira vez, a voz do Tartaruga foi ouvida no solo, um retumbante “SOU O TARTARUGA!” que ecoou pelas ruas e pelos becos, um trovão em movimento com ruídos e estalos produzidos pela distorção. Mas o que ele disse não tinha soado muito bem. Tom aumentou o volume ainda mais e injetou um pouco mais de graves na voz.
– EU SOU O GRANDE E PODEROSO TARTARUGA – anunciou para todos.
Então voou uma quadra para oeste, chegou às águas escuras e poluídas do Hudson, e imaginou duas mãos invisíveis de cinco metros de largura. Ele as baixou até a água, juntou-as em concha e encheu, e as ergueu. Um jato de água projetou-se de volta pela rua. Quando ele despejou a primeira cascata sobre as chamas, gritos e aplausos altos vieram da multidão lá embaixo.
– Feliz Natal – declarou Tachyon, bêbado, quando o relógio marcou meia-noite, e o público recorde da noite de Natal começou a pular, gritar e bater nas mesas. No palco, Humphrey Bogart contava uma piada infame com uma voz estranha. Todas as luzes da casa se reduziram um pouco rapidamente; quando voltaram ao normal, Bogart tinha sido substituído por um homem corpulento de rosto e nariz redondos.
– Quem é ele, agora? – perguntou Tachyon à gêmea a seu lado.
– W.C. Fields – murmurou ela, e esticou e enfiou a língua dentro da orelha dele. A gêmea à direita estava fazendo algo ainda mais interessante por baixo da mesa, onde suas mãos de algum modo haviam encontrado o caminho para o interior das calças dele. As gêmeas eram seu presente de Natal de Angelical.
– Você pode fingir que elas são eu – dissera a ele, apesar de, é claro, elas não serem nada como ela. Boas meninas, as duas, de formas fartas e divertidas, e absolutamente desinibidas, apesar de um pouco bobas. Elas o lembravam brinquedos sexuais takisianos. A da esquerda tinha contraído o carta selvagem, mas vestia a máscara de gata até na cama, e não havia deformidade visível para perturbar o doce prazer de sua ereção.
W.C. Fields, quem quer que fosse ele, fez algumas observações cínicas sobre o Natal e criancinhas. O público o expulsou do palco sob vaias. O Projecionista tinha um repertório impressionante de rostos, mas não sabia contar piadas. Tach não ligava. Tinha toda a diversão de que precisava.
– Jornal, doutor? – O vendedor estendeu um exemplar do Herald Tribune sobre a mesa com uma mão grossa de três dedos. Sua carne era quase azul de tão negra e parecia oleosa. – Todas as notícias do Natal – disse ele, ajeitando a desconfortável pilha de jornais que levava embaixo do braço. Duas presas pequenas e curvas se projetavam dos cantos de sua boca grande e sorridente.
Sob um chapéu de abas estreitas, seu crânio era coberto de tufos densos de cabelos ruivos curtos.
Nas ruas, eles o chamavam de Morsa.
– Não, obrigado, Jube – disse Tach com dignidade embriagada. – Esta noite não estou com vontade de me divertir à custa da estupidez humana.
– Ei, vejam – disse a gêmea da direita. – O Tartaruga!
Tachyon olhou ao redor; momentaneamente confuso, perguntando-se como aquela enorme carapaça blindada podia ter conseguido entrar no Funhouse, mas claro que ela estava se referindo ao jornal.
– Você devia comprar para ela, Tacky – disse a gêmea da esquerda, rindo. – Senão ela vai ficar tristinha.
Tachyon deu um suspiro.
– Vou querer um. Mas só se não tiver que aturar nenhuma de suas piadas, Jube.
– Ouvi uma nova sobre um curinga, um polonês e um irlandês perdidos numa ilha deserta, mas só por isso não vou contá-la – respondeu o Morsa com um sorriso elástico.
Tachyon procurou moedas, mas não achou nada nos bolsos além de uma mão pequena e feminina. Jube piscou.
– Eu pego com Des – disse ele. Tachyon abriu o jornal sobre a mesa no momento em que a casa noturna irrompeu em aplausos quando Cosmos e Caos subiram ao palco.
Uma foto granulada do Tartaruga ocupava duas colunas. Tachyon achou que aquilo parecia um picles voador, um pepino pequeno cheio de protuberâncias e coberto de pequenos amassados. O Tartaruga tinha detido um homem que atropelou e matou um menino de 9 anos e fugiu sem prestar
socorro no Harlem, interceptando sua fuga e erguendo o carro cinco metros acima do solo, onde ele ficou flutuando com o motor funcionando e os pneus girando loucamente até que a polícia finalmente apareceu. Em um boxe, um porta-voz da Aeronáutica negava o boato de que a carapaça fosse um tanque voador robô experimental.
– Era de se pensar que eles a essa altura já tivessem arranjado algo mais interessante sobre o que escrever – disse Tachyon. Era a terceira grande reportagem sobre o Tartaruga naquela semana. As colunas de cartas, as páginas de editoriais, tudo era Tartaruga, Tartaruga, Tartaruga.
Até a televisão estava enlouquecida com especulações sobre o Tartaruga. Quem era ele? O que era ele? Como fazia aquilo?
Um repórter chegara a procurar por Tach para lhe fazer essa pergunta.
– Telecinesia – contou-lhe Tachyon. – Não é nenhuma novidade. Na verdade, é quase comum. – Telecinesia tinha sido a habilidade que mais se manifestara entre os infectados pelo vírus em 1946. Ele viu dezenas de pacientes que podiam mover clipes de papel e lápis, e uma mulher que podia erguer o peso do próprio corpo por dez minutos de cada vez. Até o voo de Earl Sanderson tinha origens na telecinesia. O que ele não contou foi que a telecinesia naquela escala era algo sem precedentes. Claro, quando a reportagem foi publicada, erraram metade do que ele disse.
– Ele é um curinga, sabia? – sussurrou a gêmea da direita, a de máscara de gata cinza prateada.
Ela estava debruçada sobre o ombro dele, lendo sobre o Tartaruga.
– Um curinga? – disse Tach.
– Ele se esconde dentro de um casco, não é? Por que ele faria isso se não fosse feio demais de se ver? – Ela tinha tirado a mão de dentro das calças dele. – Eu posso olhar esse jornal?
Tach o empurrou na direção dela.
– Agora todos o estão aplaudindo e incentivando – disse bruscamente. – Eles também aplaudiam e incentivavam os Quatro Ases.
– Era um grupo de negros, não era? – disse ela, voltando a atenção para as manchetes.
– Ela está fazendo um álbum de recortes – disse sua irmã. – Todos os curingas acham que ele é um deles. Estupidez, não é? Aposto que é só uma máquina, alguma espécie de disco voador da Aeronáutica.
– Não é, não – disse sua gêmea. – Diz bem aqui. – Ela apontou para uma reportagem ao lado com uma unha comprida e pintada de vermelho.
– Não ligue para ela – disse a gêmea da esquerda. Ela se aproximou de Tachyon, mordiscando seu pescoço enquanto a mão ia para baixo da mesa. – Ei, qual o problema? Você está todo mole.
– Mil desculpas – disse Tachyon, triste. Cosmos e Caos estavam jogando machados, facas e facões de um lado para outro do palco, a cascata reluzente multiplicada ao infinito pelos espelhos à sua volta. Ele estava com uma garrafa de um bom conhaque na mão e mulheres bonitas e receptivas dos dois lados, mas, de repente, por alguma razão que não poderia explicar, aquela, na verdade, não parecia assim uma noite tão boa. Ele encheu o copo até a borda e cheirou os inebriantes vapores alcoólicos. – Feliz Natal – murmurou para ninguém em especial.
A consciência voltou com os tons raivosos da voz de Mal. Tach, grogue, levantou a cabeça do tampo espelhado da mesa piscando para seu reflexo inchado. Os malabaristas, as gêmeas e o público tinham ido embora havia muito tempo. Seu rosto estava grudento por ter ficado em cima de uma poça de bebida derramada.
As gêmeas o divertiram e acariciaram, e uma delas havia chegado a ir para baixo da mesa e feito de tudo. Então Angelical apareceu e as mandou embora.
– Vá dormir, Tacky – disse ela. Mal se aproximara para perguntar se ela queria que ele arrastasse Tacky para a cama. – Hoje não – disse ela. – Você sabe que dia é hoje. Deixe que ele durma aqui até melhorar.
Ele não se lembrava de quando caíra no sono.
Sua cabeça estava prestes a explodir, e os gritos de Mal não estavam ajudando em nada.
– Não estou nem aí para o que prometeram a você, seu merda, você não vai vê-la – berrava o leão de chácara. – Uma voz mais suave disse algo em resposta. – Você vai receber a porra da sua grana, mas é só isso que vai levar – retrucou Mal.
Tach ergueu os olhos. Nos espelhos, viu sombriamente seus reflexos: formas retorcidas estranhas delineadas à luz pálida do amanhecer, reflexos de reflexos, centenas deles, lindos, monstruosos, incontáveis, seus filhos, seus herdeiros, a descendência de seus fracassos, um mar vivo de curingas. A voz suave disse mais alguma coisa.
– Ah, vá tomar nesse seu rabo de curinga – disse Mal. Seu corpo parecia um bastão retorcido, e a cabeça, uma abóbora. Aquilo fez Tach sorrir. Mal empurrou alguém e levou a mão às costas para pegar sua arma.
Os reflexos e os reflexos dos reflexos, as sombras delgadas e as inchadas, as de rosto redondo e as finas como facas, as negras e as brancas, todas se moveram ao mesmo tempo, enchendo o salão de barulho; um grito rouco de Mal, o estampido de tiros. Instintivamente, Tach se agachou para se proteger e bateu a testa com força na beira da mesa quando se abaixava. Ele piscou de volta lágrimas de dor e ficou ali encolhido no chão, espiando os reflexos de pés enquanto o mundo se desintegrava em uma cacofonia cortante. Vidro se estilhaçava e caía, espelhos se quebravam por todos os lados, lâminas prateadas voavam pelo ar, muitas até mesmo para Cosmos e Caos pegarem, estilhaços escuros devoravam os reflexos, tirando dentadas das formas de sombras retorcidas, respingadas de sangue contra os espelhos quebrados.
Tudo terminou tão repentinamente quanto começou. A voz suave disse algo e ouviu-se o som de passos e de vidro se quebrando ao ser pisado. No instante seguinte, um grito abafado veio de suas costas. Tach estava embaixo da mesa, bêbado e apavorado. Seu dedo doía: ele viu que estava sangrando, cortado por uma lasca de espelho. Tudo em que conseguia pensar era nas superstições humanas estúpidas sobre espelhos quebrados e azar. Ele pôs a cabeça entre os braços para que o pesadelo terrível fosse embora.
Quando acordou de novo, estava sendo sacudido com força por um policial.
Mal estava morto, disse a ele um detetive. Mostraram-lhe uma foto do corpo do leão de chácara estendido sobre uma poça de sangue e uma confusão de vidro quebrado. Ruth também estava morta, e um dos faxineiros, um ciclope pouco inteligente que nunca tinha feito mal a ninguém. Eles lhe mostraram um jornal. O Massacre do Papai Noel, era como estavam chamando aquilo, e a reportagem era sobre três curingas que tinham encontrado a morte aos pés da árvore na manhã de
Natal.
A Srta. Fascetti tinha sumido, disse-lhe o outro detetive, ele sabia alguma coisa sobre isso?
Achava que ela estava envolvida? Ela era criminosa ou vítima? O que podia dizer sobre ela? Ele disse que não conhecia aquela pessoa, até que lhe explicaram que estavam perguntando sobre Angela Fascetti e talvez ele a conhecesse melhor como Angelical. Ela sumira, e Mal fora baleado e estava morto, e a coisa mais assustadora de todas era que Tach não sabia de onde viria seu próximo drinque.
Eles o detiveram por quatro dias e o submeteram a interrogatórios insistentes, repassando várias vezes as mesmas coisas até que Tachyon começou a gritar com eles, reivindicando, exigindo seus direitos, exigindo um advogado, pedindo uma bebida. Eles lhe deram apenas o advogado. O advogado disse que eles não podiam detê-lo sem acusação, então o acusaram de ser testemunha material, de vadiagem, de resistência à prisão, e tornaram a interrogá-lo.
No terceiro dia, suas mãos estavam tremendo e ele tinha alucinações acordado. Um dos detetives, o bonzinho, prometeu-lhe uma garrafa em troca de sua cooperação, mas de algum modo suas respostas nunca os satisfaziam totalmente, e a garrafa não chegava. O mal-humorado ameaçou prendê-lo para sempre a menos que contasse a verdade. Achei que fosse um pesadelo, Tach lhe disse, chorando. Eu estava bêbado, estava dormindo. Não, eu não consegui vê-los, só os reflexos, distorcidos, multiplicados. Não sei quantas pessoas eram. Não sei do que se tratava.
Não, ela não tinha inimigos, todo mundo adorava Angelical. Não, ela não tinha matado Mal, isso não fazia sentido. Mal a adorava. Um deles tinha voz suave. Não, não sei qual deles. Não, não me lembro do que disseram. Não, não sei se eram curingas ou não, eles pareciam curingas, mas os espelhos distorcem, alguns deles, nem todos, entende? Não, eu não conseguiria identificá-los se os visse, na verdade, eu nunca os vi. Tive de me esconder embaixo da mesa, entende? Os assassinos tinham chegado, era isso que meu pai sempre me dizia, não havia nada que eu pudesse fazer.
Quando viram que ele estava lhes contando tudo o que sabia, retiraram as acusações e o liberaram. Para as ruas escuras do Bairro dos Curingas e o frio da noite.
Ele desceu a pé a Bowery sozinho, tremendo. O Morsa anunciava as edições noturnas dos jornais em sua banca na esquina da Hester.
– Leiam tudo sobre o assunto – gritava. – O Tartaruga aterroriza o Bairro dos Curingas. – Tach parou para encarar sem qualquer expressão as manchetes. POLÍCIA PROCURA O TARTARUGA, dizia o Post. TARTARUGA ACUSADO DE ATAQUE, anunciava o World-Telegram. Então os aplausos já tinham terminado. Ele deu uma olhada no texto. O Tartaruga tinha passado as duas noites anteriores rondando pelo Bairro dos Curingas, erguendo pessoas no ar a trinta metros de altura para interrogá-las, ameaçando soltá-las se não gostasse de suas respostas.
Quando a polícia tentou fazer uma prisão na noite da véspera, o Tartaruga depositou duas de suas viaturas no telhado do Freakers, na Chatham Square. DETENHAM O TARTARUGA, dizia o editorial no World-Telegram.
– Você está bem, doutor? – perguntou o Morsa.
– Não – disse Tachyon, largando o jornal. Não podia mesmo pagar por ele.
Barreiras policiais bloqueavam a entrada do Funhouse, e havia um cadeado trancando a porta.
FECHADO POR PRAZO INDETERMINADO, dizia a placa. Ele precisava de uma bebida, mas os bolsos de seu casaco de líder de banda estavam vazios. Pensou em Des e em Randall e se deu conta de que não tinha ideia de onde moravam, ou de quais seriam seus sobrenomes.
Arrastando-se de volta para a QUARTOS, Tach subiu as escadas, exausto. Quando parou no escuro, quase imediatamente percebeu que no quarto fazia um frio congelante; a janela estava aberta, e um vento cortante expulsava os velhos cheiros de urina, mofo e bebida. Ele tinha feito aquilo? Confuso, foi até lá, e alguém saiu de trás da porta e o agarrou.
Aconteceu tão depressa que ele mal teve tempo de reagir. O antebraço que apertava sua traquéia era uma barra de ferro, sufocando seu grito, e uma mão deu uma chave em seu braço direito às suas costas, com força. Ele estava sem fôlego; o braço, quase se quebrando, e então foi arrastado na direção da janela aberta, com velocidade, e Tachyon pôde apenas se contorcer sem muita força dentro de braços muito mais fortes que os seus. O batente da janela o acertou na boca do estômago e arrancou seu último fôlego, e de repente ele estava caindo, de ponta-cabeça, preso e indefeso no abraço de ferro de seu agressor, e os dois mergulhavam na direção da calçada lá embaixo.
Pararam repentinamente 1,5 m acima do concreto, com uma força que provocou um resmungo do homem às suas costas.
Tach tinha fechado os olhos antes do momento do impacto. Ele tornou a abri-los quando começaram a flutuar para o alto. Acima do halo amarelo da luz do poste pairava um círculo de luzes muito mais fortes dispostas em uma escuridão que cobria as estrelas de inverno.
O braço em torno de sua garganta tinha afrouxado o bastante para que Tachyon gemesse.
– Você – disse Tachyon com voz rouca enquanto faziam a volta na carapaça e se detiveram suavemente em cima dela. O metal estava gelado, sua temperatura penetrava o tecido das calças de Tachyon. Quando o Tartaruga começou a subir direto para o meio da noite, o captor de Tachyon o soltou. Ele inspirou profundamente ar frio, e se virou para ver um homem de jaqueta de couro com fecho de zíper, calças pretas e uma máscara de borracha de sapo. – Quem...? – engasgou ele.
– Sou o ajudante malvado do Grande e Poderoso Tartaruga – disse com certa alegria o homem de máscara de sapo.
– DOUTOR TACHYON, EU PRESUMO – ribombaram os alto-falantes da carapaça, muito acima dos becos do Bairro dos Curingas. – SEMPRE QUIS CONHECÊ-LO. LIA SOBRE VOCÊ QUANDO ERA CRIANÇA.
– Abaixe isso – reclamou Tach sem energia.
– AH, CLARO. Melhorou? – O volume diminuiu bastante. – Aqui é muito barulhento, e por trás de toda essa blindagem nem sempre consigo saber o volume de minha voz. Desculpe se o assustei, mas não podíamos arriscar que dissesse não. Precisamos de você.
Tach permaneceu exatamente onde estava, tremendo, abalado.
– O que vocês querem? – perguntou sem ânimo.
– Ajuda – declarou o Tartaruga. Eles ainda estavam subindo; as luzes de Manhattan se espalhavam em torno deles, e as torres dos edifícios Chrysler e Empire State se erguiam acima da cidade. Estavam mais alto que as duas. O vento estava frio e bem forte, e Tach se agarrou à carapaça para proteger sua vida.
– Me deixem em paz – reclamou Tachyon. – Não tenho nenhuma ajuda a dar a vocês. Não tenho ajuda para dar a ninguém.
– Merda, ele está chorando – informou o homem de máscara de sapo.
– Você não entende – disse o Tartaruga. A carapaça começou a deslizar para oeste, seu movimento firme e silencioso. Havia algo impressionante e assustador no vôo. – Você tem de ajudar. Já tentei por minha conta, mas não estou chegando a lugar nenhum. Mas você, seus poderes, eles podem fazer a diferença.
Tachyon estava perdido em sua própria autocomiseração, com frio, exausto e desesperado demais para responder.
– Eu quero uma bebida – pediu Tachyon.
– Merda – disse o cara de sapo. – Dumbo tinha razão sobre esse cara, ele não passa da porra de um bebum.
– Ele não está entendendo – continuou o Tartaruga. – Depois que explicarmos, ele vai compreender. Doutor Tachyon, estamos falando de sua amiga Angelical.
Ele precisava tanto de uma bebida que doía.
– Ela era boa para mim – disse ele, lembrando-se do perfume doce de seus lençóis de cetim e de suas pegadas sangrentas nas lajotas espelhadas. – Mas não há nada que eu possa fazer. Contei à polícia tudo o que sabia.
– Pare com essa merda, seu babaca – disse o cara de sapo.
– Quando eu era criança, lia sobre você nos quadrinhos Jetboy – explicou o Tartaruga. – Trinta minutos sobre a Broadway , lembra? Você devia ser tão inteligente quanto Einstein. Eu talvez possa salvar sua amiga Angelical, mas não vou conseguir sem seus poderes.
– Não faço mais aquilo. Não posso. Eu machuquei uma pessoa, alguém que eu queria muito, mas eu dominei sua mente, só por um instante e por um bom motivo, ou pelo menos eu achei que fosse um bom motivo, mas isso... a destruiu. Não posso fazer de novo.
– Buá, buá – troçou o cara de sapo. – Vamos jogá-lo lá embaixo, ele não vale porra nenhuma. – Tirou algo de um dos bolsos de sua jaqueta de couro. Tach ficou surpreso ao ver que era uma garrafa de cerveja.
– Por favor – disse Tachyon quando o homem tirava a chapinha com um abridor de garrafas pendurado em seu pescoço. – Um gole – suplicou Tach. – Só um gole. – Ele odiava o gosto de cerveja, mas precisava de alguma coisa, de qualquer coisa. Já fazia dias. – Por favor.
– Vá se foder – disse o cara de sapo.
– Tachyon – disse o Tartaruga. – Você pode obrigá-lo.
– Não, não posso – respondeu Tach. O homem levou a garrafa aos lábios verdes de borracha. – Não posso – repetiu Tach. Cara de sapo continuou a beber. – Não. – Podia ouvir a cerveja descer pela garganta dele. – Por favor, só um pouco.
O homem baixou a garrafa de cerveja e a sacudiu, pensativo.
– Só sobrou um gole – disse ele.
– Por favor. – Ele estendeu as mãos, trêmulo.
– Não – retrucou o cara de sapo. Começou a virar a garrafa de cabeça para baixo. – Claro que se você estiver mesmo com sede, pode simplesmente dominar minha mente, certo? Me obrigar a dar a porra da garrafa para você. – Ele inclinou a garrafa um pouco mais. – Vá em frente, eu o desafio a fazer isso, tente.
Tach observou o último gole de cerveja respingar sobre a carapaça do Tartaruga e escorrer para o vazio.
– Merda – disse o homem de máscara de sapo. – Você está mal mesmo, não é? – Tirou outra garrafa do bolso, abriu-a e a passou para Tach, que a agarrou com as duas mãos. A cerveja estava gelada e azeda, mas ele nunca provara nada nem de perto tão doce. Ele a enxugou inteira em um só gole demorado.
– Tem mais alguma ideia inteligente? – perguntou o cara de sapo ao Tartaruga.
À frente deles havia o negrume do rio Hudson, e as luzes de Nova Jersey um pouco para oeste.
Eles estavam descendo. Abaixo deles, com vista para o Hudson, havia uma construção ampla de
aço, vidro e mármore que Tachyon de repente reconheceu, apesar de jamais ter posto os pés em
seu interior: o túmulo de Jetboy.
– Aonde estamos indo? – perguntou ele.
– Vamos conversar com um homem sobre um resgate – disse o Tartaruga.
O túmulo de Jetboy ocupava toda a quadra, no local onde caíram as peças e pedaços de seu avião.
Ele também enchia as telas de Tom, que permanecia sentado na escuridão quente de sua carapaça, banhado em um brilho fosforescente. Os motores zumbiram quando as câmeras se moveram em seus trilhos. As grandes asas com aletas do túmulo se curvavam para cima, como se o próprio prédio estivesse prestes a decolar. Através de janelas altas e estreitas, eles tiveram alguns vislumbres da réplica em tamanho natural do JB-1 pendurada no teto, suas laterais vermelhas iluminadas por luzes escondidas. Acima das portas tinham sido gravadas as últimas palavras do herói, cada letra entalhada no mármore italiano negro e preenchida com aço inoxidável. O metal brilhou quando a luz branca dos refletores da carapaça deslizou sobre a legenda:
AINDA NÃO POSSO MORRER
EU NÃO VI SONHOS DOURADOS
Tom baixou a carapaça diante do monumento e pairou 1,5 m acima do amplo espaço calçado com mármore no alto das escadas. Ali perto, um Jetboy de aço de 6 m de altura olhava para longe, para além da West Side Highway e do rio Hudson, com os punhos em riste. Tom sabia que o metal usado na escultura viera de destroços de aviões acidentados. Ele conhecia o rosto da estátua melhor do que o de seu próprio pai.
O homem que tinham ido encontrar surgiu das sombras na base da estátua, uma forma escura e atarracada encolhida dentro de um sobretudo grosso, com as mãos bem fundo nos bolsos. Tom piscou uma luz para ele; uma câmera se posicionou para lhe dar uma visão melhor. O curinga era um homem corpulento, de ombros arqueados e bem-vestido. Seu sobretudo tinha gola de pele, e o chapéu de feltro estava puxado para baixo. Em vez de nariz, ele tinha uma tromba de elefante no meio do rosto. Sua extremidade tinha vários dedos, protegidos por uma pequena luva de couro.
O Dr. Tachyon deslizou do topo da carapaça, se desequilibrou e aterrissou de bunda no chão.
Tom ouviu a risada de Joey. Então Joey também desceu, num pulo, e ajudou Tachyon a ficar de pé.
O curinga baixou os olhos até o alienígena.
– Então, no fim das contas, vocês o convenceram a vir. Estou surpreso.
– Nós fomos convincentes pra cacete – disse Joey.
– Des – Tachyon disse, aparentando estar confuso. – O que está fazendo aqui? Você conhece essas pessoas?
O cara de elefante retorceu a tromba.
– De certa forma, desde anteontem, sim. Eles me procuraram. Era tarde da noite, mas um telefonema do Grande e Poderoso Tartaruga atiça o interesse de uma pessoa. Ele ofereceu sua ajuda e eu aceitei. Cheguei a contar a eles onde você morava.
Tachyon passou a mão por seus cabelos sujos e emaranhados.
– Sinto muito por Mal. Você tem alguma notícia de Angelical? Você sabe o quanto ela significa para mim.
– Sei exatamente, em dólares e centavos – disse Des.
O queixo de Tachyon caiu. Ele pareceu sentido. Tom sentiu pena dele.
– Eu queria falar com você – disse ele. – Eu não sabia onde encontrá-lo.
Joey riu.
– O nome dele está na porra da lista telefônica, otário. Não tem muitos caras por aí chamados Xavier Desmond. – Ele olhou para a carapaça. – Como, porra, ele vai achar a mulher se não conseguiu nem achar o amigo dele aqui?
Desmond assentiu.
– Um excelente argumento. Isso não vai funcionar. Olhem só para ele! – Sua tromba apontava. – Ele não vai servir para nada. Estamos perdendo um tempo precioso.
– Nós fizemos do seu jeito – respondeu Tom. – E não estamos chegando a lugar nenhum.
Ninguém fala nada. Ele pode conseguir a informação de que precisamos.
– Não estou entendendo nada disso – interrompeu Tachyon.
Joey emitiu um ruído de insatisfação. Ele tinha achado uma cerveja em algum lugar e estava abrindo a chapinha.
– O que está acontecendo? – perguntou Tach.
– Se você estivesse minimamente interessado em qualquer coisa além de conhaque e vadias baratas, talvez soubesse – disse friamente Des.
– Conte a ele o que você nos contou – ordenou Tom. Quando soubesse, sem dúvida Tachyon ajudaria, pensava ele. Ele tinha de ajudar.
Des soltou um suspiro profundo.
– Angelical era viciada em heroína. Ela sentia dor, você sabe. Não percebeu isso de vez em quando, doutor? A droga era a única coisa que a fazia aguentar o dia. Sem ela, teria enlouquecido com a dor. E seu vício não era igual ao de um drogado. Ela usava heroína pura, sem misturas, em quantidades que teriam matado um usuário normal. Você viu como isso a afetava minimamente. O metabolismo dos curingas é algo curioso. Tem ideia de como a heroína é cara, Dr. Tachyon?
Deixa para lá, estou vendo que não sabe. Angelical ganhava uma boa grana com o Funhouse, mas nunca era o bastante. Seu fornecedor lhe deu crédito até ela ficar completamente endividada, então exigiu... digamos que uma nota promissória. Ou um presente de Natal. Ela não tinha escolha.
Era isso ou ficar sem seu suprimento. Ela esperava conseguir o dinheiro, a otimista de sempre.
Não conseguiu. Na manhã de Natal, seu fornecedor apareceu para receber. Mal não estava disposto a deixar que a levassem. Eles insistiram.
Tachyon estava com os olhos apertados por causa do brilho das luzes. Sua imagem começou a correr para cima.
– Por que ela não me contou? – disse ele.
– Acho que não queria sobrecarregá-lo, doutor. Isso podia ter acabado com a diversão de seus porres de auto-comiseração.
– Você contou à polícia?
– A polícia, ah, sim. Os melhores de Nova York. Aqueles que parecem tão curiosamente desinteressados sempre que um curinga é espancado ou morto, mas tão competentes se um turista é roubado. Aqueles que regularmente prendem, abusam e brutalizam qualquer curinga que tenha o mau gosto de viver em qualquer lugar fora de seu bairro. Talvez pudéssemos consultar o policial que comentou que estuprar uma mulher curinga é mais se entregar a um prazer de gosto duvidoso do que um crime – disse com raiva Des. – Dr. Tachyon, onde o senhor acha que Angelical comprava suas drogas? Acha que algum traficantezinho comum de rua teria acesso à heroína pura nas quantidades de que ela precisava? A polícia era sua fonte. O chefe do esquadrão de narcóticos do Bairro dos Curingas, para ser mais exato. Ah, eu lhe garanto que é improvável que todo o departamento esteja envolvido. O Departamento de Homicídios pode estar conduzindo uma investigação de verdade. O que acha que eles diriam se contássemos a eles que Bannister é o assassino? Acha que iam prender um dos seus? Apenas pelo meu testemunho, o testemunho de um curinga qualquer?
– Vamos pagar essa promissória – disse bruscamente Tachyon. – Vamos dar a esse homem o dinheiro ou o Funhouse ou o que quer que ele queira.
– A nota promissória – disse Desmond, desanimado – não era pelo Funhouse.
– O que quer que seja, entregue a ele!
– Ela lhe prometeu a única coisa que ainda tinha e que ele desejava – disse Desmond. – Ela mesma. Sua beleza e sua dor. É esse o boato que corre nas ruas, se você souber ouvir. Vai haver uma festa de Ano-Novo muito especial em algum lugar da cidade. Só para convidados. Cara. Uma emoção única. Bannister vai possuí-la primeiro. Ele há muito tempo quer isso. Mas os outros convidados terão sua vez. Hospitalidade do Bairro dos Curingas.
A boca de Tachyon se mexeu sem fazer qualquer som por um momento.
– A polícia? – finalmente conseguiu dizer. Ele parecia tão chocado quanto ficou Tom quando Desmond contou para ele e Joey.
– Acha que eles nos amam, doutor? Somos aberrações. Somos doentes. O Bairro dos Curingas é um inferno, um beco sem saída, e sua polícia é a mais brutal, corrupta e incompetente da cidade.
Não acho que ninguém planejou o que aconteceu no Funhouse, mas aconteceu, e Angelical sabe demais. Eles não podem deixá-la viver, então, vão se divertir um pouco com sua boceta de curinga.
Tom Tudbury se inclinou na direção do microfone.
– Eu posso resgatá-la – disse ele. – Esses filhos da puta não viram nada como o Grande e Poderoso Tartaruga. Mas eu não consigo achá-la.
Des disse:
– Ela tem muitos amigos. Mas nenhum de nós consegue ler mentes, ou obrigar um homem a fazer algo que não queira.
– Eu não consigo – protestou Tachyon. Ele parecia se encolher para dentro de si mesmo a fim de escapar deles, e por um instante Tom achou que o homenzinho ia fugir. – Vocês não entendem.
– Que merda de fracote deprimente – gritou Joey.
Ao ver em suas telas Tachyon desmoronar, Tom Tudbury finalmente perdeu a paciência.
– Se você fracassar, fracassou – disse ele. – E se não tentar, também vai fracassar, então que porra de diferença isso faz? Jetboy fracassou, mas pelo menos ele tentou. Ele não era um ás, não era a merda de um takisiano, era apenas um cara com um jato, mas fazia o que podia.
– Eu quero. Eu... apenas... não consigo.
Des exprimiu sua insatisfação. Joey deu de ombros.
Dentro de sua carapaça, Tom estava sentado sem crer, atônito. Ele não ajudaria. Ele não podia ter imaginado isso, não podia crer. Joey o alertara. Desmond também, mas Tom tinha insistido, tinha certeza, aquele era o doutor Tachyon, claro que ele ajudaria, talvez estivesse enfrentando alguns problemas, mas, quando lhe explicassem a situação, quando explicassem o que estava em jogo e o quanto precisavam dele, ele teria de ajudar. Mas ele estava dizendo não. Era a última cartada.
Ele aumentou o botão do volume até o máximo.
– SEU FILHO DA PUTA – trovejou, e o som fez trepidar todo o local. Tachyon se encolheu. – SEU MERDA DE ALIENÍGENA QUE NÃO SERVE PARA PORRA NENHUMA! – Tachyon recuava pela escada aos tropeções, mas o Tartaruga deslizou atrás dele, com os alto-falantes berrando. – ERA TUDO MENTIRA, NÃO ERA? TUDO NAS REVISTAS EM QUADRINHOS, TUDO NOS JORNAIS, NÃO PASSAVAM DE MENTIRAS ESTÚPIDAS. DURANTE TODA A MINHA VIDA ME BATERAM E ME CHAMARAM DE BANANA DE MERDA, DE COVARDE, SEU BABACA, SEU CHORÃO DE MERDA, VOCÊ NEM TENTA, NÃO DÁ A MÍNIMA PARA NINGUÉM, NÃO DÁ A MÍNIMA PARA SUA AMIGA ANGELICAL NEM PARA KENNEDY NEM PARA O JETBOY NEM PARA NINGUÉM, VOCÊ TEM A PORRA DESSES PODERES TODOS E NÃO É NADA, NÃO VAI FAZER NADA, VOCÊ É PIOR QUE OSWALD OU BRAUN OU QUALQUER UM DELES. – Tachyon descia os degraus cambaleando, com as mãos nos ouvidos, gritando algo incompreensível, mas Tom não estava ouvindo. Sua raiva agora tinha vida própria. Tom partiu para cima dele e lhe deu um tapa na cara que fez sua cabeça girar. – BABACA! – gritava Tom – É VOCÊ QUE SE ESCONDE NUMA CARAPAÇA. – Golpes invisíveis caíram com fúria sobre Tachyon. Ele tropeçou, caiu e rolou um terço das escadarias, tentou ficar de pé outra vez, foi derrubado de novo e caiu de ponta-cabeça na rua. – BABACA! – trovejou o Tartaruga. – CORRA, SEU MERDA! VÁ EMBORA DAQUI, OU VOU JOGÁ-LO DENTRO DA PORRA DO RIO! CORRA, SEU MERDA, ANTES QUE O GRANDE E PODEROSO TARTARUGA FIQUE PUTO DE VERDADE! CORRA, DROGA! É VOCÊ QUEM ESTÁ NUMA CARAPAÇA! É VOCÊ QUEM ESTÁ NUMA CARAPAÇA!
E ele correu. Seguiu cegamente em disparada de um poste de luz a outro até se perder nas sombras. Tom Tudbury o observou sumir nas várias telas de TV da carapaça. Estava se sentindo mal e cansado. Sua cabeça latejava. Ele precisava de uma cerveja ou de uma aspirina, ou das duas. Quando ouviu sirenes se aproximando, ergueu Joey e Des e os pôs sobre sua carapaça, apagou as luzes e subiu direto noite adentro, alto, bem alto no interior da escuridão, do frio e do silêncio.
Naquela noite, Tach dormiu o sonho dos malditos, rolando de um lado para outro como um homem num sono febril, gritando, chorando, despertando várias vezes de pesadelos só para tornar a dormir e retornar a eles. Sonhou que estava de volta a Takis e que seu primo odiado Zabb estava se gabando de um novo brinquedo sexual, mas quando o mostrou, era Blythe, e ele a estuprou bem ali na frente de Tach, que observou tudo, impotente, incapaz de intervir; o corpo dela se contorcia embaixo do dele e escorria sangue de sua boca, de seus ouvidos e de sua vagina. Ela começou a mudar para as formas de mil curingas, cada um mais horrível do que o anterior, e Zabb seguiu em frente, estuprando todos em meio a seus gritos e sua luta. Mas depois, quando Zabb se levantou de cima do cadáver coberto de sangue, não era mais o rosto de seu primo, era o seu próprio, macilento e dissoluto, um rosto vulgar, com olhos avermelhados e inchados, cabelos ruivos compridos, emaranhados e gordurosos, feições distorcidas pelo excesso de álcool ou talvez por um espelho do Funhouse.
Ele acordou por volta do meio-dia, com o barulho terrível de Baixinho chorando perto de sua janela. Era mais do que podia aguentar. Foi aos tropeções até a janela, abriu-a e gritou para que o gigante ficasse quieto, para que parasse e o deixasse em paz, por favor, mas o Baixinho continuou e não parou, tanta dor, tanta culpa, tanta vergonha, por que não podiam deixá-lo sossegado, não aguentava mais, não, cale a boca, cale a boca, por favor, cale a boca , e de repente Tach soltou um grito, projetou sua mente e mergulhou na cabeça do Baixinho e o fez se calar.
O silêncio foi ensurdecedor.
A cabine telefônica mais próxima ficava em uma loja de doces a um quarteirão de distância.
Vândalos tinham feito em pedaços a lista telefônica. Ele discou para a telefonista e pegou o endereço de Xavier Desmond na Christie Street, a apenas uma curta caminhada de distância. O apartamento ficava no quarto andar de um prédio sem elevador acima de uma loja de máscaras.
Tachyon estava sem fôlego quando chegou lá no alto.
Des abriu a porta após a quinta batida.
– O Tartaruga – disse Tach. Sua garganta estava seca. – Ele conseguiu alguma coisa ontem à noite?
– Não – respondeu Des. Sua tromba se retorceu. – A mesma história de sempre. Eles já estão ligados nele, sabem que não vai deixá-los cair. Eles chamam isso de blefe. Além de realmente matar alguém, não há nada a fazer.
– Me diga a quem perguntar – disse Tach.
– Você? – disse Des.
Tach não conseguia olhar o curinga nos olhos. Ele assentiu com a cabeça.
– Deixe-me pegar meu casaco – disse Des. Ele saiu do apartamento todo agasalhado para o frio e carregando uma capa de pele e uma capa de chuva bege surrada. – Ponha seu cabelo para dentro do chapéu – disse ele para Tachyon. – E deixe esse casaco ridículo aqui. Você não quer ser reconhecido. – Tach fez o que ele disse. Quando estavam saindo, Des entrou na loja de máscaras para o toque final.
– Uma galinha? – disse Tach quando Des lhe entregou a máscara. Ela tinha penas amarelo vivo, um bico laranja protuberante e uma crista mole no alto.
– Quando a vi, soube que era perfeita para você – disse Des. – Vista-a.
Um guindaste grande estava se posicionando na Chatham Square para retirar os carros de polícia do telhado do Freakers. O clube estava aberto. O porteiro era um curinga de mais de dois metros de altura sem pelos e com presas. Ele agarrou Des pelo braço quando eles tentaram passar por baixo das luzes de néon da dançarina de seis seios que rebolava acima da porta.
– Não é permitida a entrada de curingas – disse ele bruscamente. – Cai fora, paquiderme.
Projete-se e agarre sua mente , pensou Tachyon. Antigamente, antes de Blythe, ele teria feito aquilo instintivamente. Mas agora ele hesitava e, hesitante, estava perdido.
Des levou a mão ao bolso traseiro da calça, sacou uma carteira e extraiu dela uma nota de cinquenta dólares.
– Você os via retirarem os carros de polícia – disse ele. – Nunca me viu passar.
– Ah, sim – disse o porteiro. A nota sumiu em uma garra que fazia as vezes de mão.
– Às vezes o dinheiro é o poder mais potente de todos – disse Des enquanto entravam na penumbra cavernosa do interior. Um público esparso de meio-dia estava sentado ali, comendo o almoço grátis e vendo uma stripper rodopiar por uma passarela comprida por trás de uma barreira de arame farpado. Ela estava coberta de pelos cinzentos sedosos, exceto nos seios, que tinham sido totalmente depilados. Desmond examinou os reservados ao longo da parede dos fundos. Pegou Tach pelo ombro e o conduziu até um canto escuro, onde um homem de japona estava sentado com uma caneca de cerveja.
– Eles agora estão permitindo a entrada de curingas aqui? – perguntou o homem mal-humorado quando eles se aproximaram. Ele tinha um ar sério e triste e um rosto com marcas de catapora.
Tach penetrou em sua mente. Porra, o que é isso agora? O homem-elefante do Funhouse e quem é o outro? Malditos curingas... de qualquer modo têm muita coragem.
– Onde Bannister está escondendo Angelical? – perguntou Des.
– Angelical é a mulher do Funhouse, certo? Não conheço nenhum Bannister. Isso é um jogo? Vá se foder, curinga, eu não quero jogar. – Em seus pensamentos surgiram imagens confusas; Tach viu espelhos estilhaçando, lâminas de prata voando pelo ar, sentiu o empurrão de Mal e o viu levar a mão às costas para pegar a arma, viu quando ele estremeceu e girou quando as balas o acertaram, ouviu a voz macia de Bannister dizer a eles para matar Ruth, viu o armazém perto do Hudson onde eles a estavam escondendo, as marcas lívidas em seus braços quando eles a agarraram, provou o medo do homem, medo de curingas, medo da descoberta, medo de Bannister, o medo deles. Tach estendeu a mão e apertou o braço de Desmond.
Desmond se virou para ir embora.
– Ei, espere aí – disse o homem com o rosto marcado pela catapora. Ele exibiu um distintivo enquanto saía do reservado. – Sou agente da Narcóticos disfarçado – disse ele –, e você está drogado, senhor, fazendo perguntas idiotas de merdas como essa. – Des ficou parado enquanto o homem o revistava de cima a baixo. – Vejam só – disse ele, mostrando um saquinho de pó branco de um dos bolsos de Desmond. – O que será isso? Você está preso, cara de aberração.
– Isso não é meu – disse calmamente Desmond.
– O cacete que não é – disse o homem, e em sua cabeça os pensamentos corriam um atrás do outro pequeno acidente resistiram à prisão o que eu podia fazer hein? os curingas vão gritar, mas quem dá ouvidos pra porra de um curinga mas o que vou fazer com o outro? Ele olhou para Tachyon. Nossa, olha como treme esse homem-galinha talvez o merda esteja mesmo sob efeito de alguma coisa isso ia ser ótimo.
Tremendo, Tach percebeu que a hora da verdade se aproximava.
Não sabia ao certo se conseguiria fazê-lo. Era diferente do Baixinho; aquilo tinha sido instinto cego, mas agora ele estava acordado e sabia o que estava fazendo. Antigamente era tão fácil, tão fácil quanto usar as mãos. Mas agora essas mãos tremiam e havia sangue nelas, e em sua mente também... ele pensou em Blythe e em como a mente dela se despedaçara sob seu toque, como os espelhos do Funhouse, e por um segundo longo e terrível nada aconteceu, até que o medo azedou em sua garganta e o gosto familiar do fracasso encheu sua boca.
Então, o homem com rosto marcado abriu um sorriso idiota, tornou a se sentar em seu reservado, apoiou a cabeça na mesa e dormiu como uma criança.
Des entendeu na hora.
– Obra sua?
Tachyon assentiu.
– Você está tremendo. Está tudo bem, doutor? – perguntou Des.
– Acho que sim – disse Tachyon. O policial tinha começado a roncar alto. – Acho que talvez eu esteja bem, Des. Pela primeira vez em anos. – Ele olhou para o rosto do curinga, foi além da deformidade e viu o homem por baixo dela. – Eu sei onde ela está – disse, e os dois pegaram a direção da saída. Na jaula, uma hermafrodita de seios fartos e barba tinha começado a dançar e se contorcer. – Temos de agir rápido.
– Posso reunir vinte homens em uma hora.
– Não – disse Tachyon. – O lugar onde a estão escondendo não fica no Bairro dos Curingas.
Des parou com a mão na porta.
– Entendi – disse ele. – E fora dele, curingas e homens mascarados chamam muita atenção, não é?
– Exatamente – disse Tach. Ele não externou seu outro medo, da retribuição que com certeza viria se os curingas ousassem enfrentar a polícia, mesmo policiais tão corruptos quanto Bannister e seus comparsas. Ele mesmo assumiria o risco, não tinha mais nada a perder, mas não podia permitir que fizessem isso. – Você consegue entrar em contato com o Tartaruga? – perguntou.
– Posso levá-lo até ele – respondeu Des. – Quando?
– Agora – disse Tach. Em uma ou duas horas o policial que dormia acordaria e iria direto falar com Bannister. E dizer o quê? Que Des e um homem com máscara de galinha tinham feito algumas perguntas e que ele estava prestes a prendê-los quando de repente ficou com muito sono? Será que ousaria admitir isso? Se admitisse, o que Bannister pensaria daquilo? O bastante para mudar Angelical de lugar? O bastante para matá-la? Eles não podiam arriscar.
Quando saíram da penumbra do Freakers, o guindaste tinha acabado de baixar na calçada o segundo carro de polícia. Soprava um vento frio, mas, por trás de sua máscara de galinha, o Dr. Tachyon tinha começado a suar.
Tom Tudbury acordou com o barulho baixo e abafado de alguém batendo em sua carapaça.
Ele afastou o cobertor surrado para o lado e bateu com a cabeça ao se sentar.
– Ah, droga – xingou, tateando na escuridão até encontrar a luz de leitura. As batidas continuaram, um bum bum bum surdo contra a blindagem que fazia eco. Tom sentiu uma pontada de pânico. “A polícia”, pensou, “eles me encontraram, vieram me pegar e prender por várias acusações”. A cabeça dele doía. Era frio e sufocante ali dentro. Ligou o aquecedor portátil, os ventiladores e as câmeras. Suas telas ganharam vida.
Lá fora era um dia claro e frio de dezembro, e a luz do sol pintava cada tijolo sujo com grande nitidez. Joey havia tomado o trem de volta para Bayonne, mas Tom tinha ficado; o tempo deles estava se esgotando, ele não tinha alternativa. Des encontrou um lugar seguro para ele, um pátio interno nas profundezas do Bairro dos Curingas, cercado por prédios residenciais de cinco andares em ruínas e cujas pedras do calçamento emanavam fedor de esgoto, totalmente escondido da rua. Quando aterrissou, pouco antes do amanhecer, suas luzes iluminaram por um instante algumas das janelas escuras, e rostos vieram espiar com cuidado o que havia entre as sombras; rostos cautelosos, assustados, não exatamente humanos, vistos brevemente e na mesma velocidade desaparecidos, quando decidiram que a coisa lá fora não era da conta deles.
Bocejando, Tom se ergueu em seu assento e examinou a imagem de suas câmeras até descobrir a origem da comoção. Des estava de pé ao lado da porta aberta de um porão, de braços cruzados, enquanto o Dr. Tachyon martelava a carapaça com um cabo de vassoura.
Aturdido, Tom ligou seus microfones.
– VOCÊ.
Tachyon recuou.
– Por favor.
Ele baixou o volume.
– Me desculpe. Você me pegou de surpresa. Nunca achei que fosse vê-lo de novo. Quero dizer, depois de ontem à noite. Eu não machuquei você, machuquei? Não era minha intenção, eu só...
– Eu entendo – disse Tachyon. – Mas agora não temos tempo para recriminações nem desculpas.
A imagem de Des começou a correr para cima. Maldito controle do vertical.
– Nós sabemos onde ela está escondida – informou o curinga enquanto a imagem corria na tela.
– Quero dizer, se o Dr. Tachyon pode mesmo ler mentes como foi anunciado.
– Onde? – perguntou Tom. A imagem de Des continuava correndo sem parar na vertical.
– Um armazém à beira do Hudson – respondeu Tachyon.
– Perto da base de um píer. Não sei dizer o endereço, mas eu o vi claramente nos pensamentos dele. Vou reconhecê-lo.
– Ótimo! – disse Tom com entusiasmo. Ele desistiu de seus esforços para ajustar o controle do vertical e deu um tapa na tela. A imagem firmou. – Então nós os pegamos. Vamos lá. – A expressão no rosto de Tachyon o tomou de surpresa. – Você vem, não vem?
Tachyon engoliu em seco.
– Vou – confirmou. Tinha uma máscara nas mãos e a vestiu.
Aquilo foi um alívio, pensou Tom; por um segundo, ali, ele achou que teria de ir sozinho.
– Suba – disse ele.
Com um grande suspiro de resignação, e as botas sem apoio arranhando a blindagem, o alienígena subiu no topo da carapaça. Tom agarrou os braços de seu assento com força e empurrou para o alto. A carapaça se ergueu com tanta facilidade quanto uma bolha de sabão. Ele ficou eufórico. Era exatamente aquilo que tinha o dever de fazer, pensou Tom; o Jetboy devia se sentir assim.
Joey tinha instalado uma buzina monstro na carapaça. Tom a tocou enquanto flutuavam acima dos prédios, assustando alguns pombos, alguns bêbados e Tachyon, com o som altíssimo característico: (...) Vai salvá-lo do perigoo.
– Talvez fosse inteligente ser um pouco mais sutil em relação a isso – disse diplomaticamente
Tachyon.
Tom riu.
– Não acredito, estou aqui com um homem do espaço que quase sempre está vestido como Pinky Lee montado em cima de mim, e ele me diz que eu devia ser sutil. – Ele riu de novo enquanto as ruas do Bairro dos Curingas se estendiam por toda a sua volta.
Fizeram a aproximação final através de um labirinto de ruelas nas docas. O último era um beco sem saída, que terminava em um muro de tijolos com os nomes de gangues e jovens amantes riscados. O Tartaruga se ergueu acima do muro, e eles emergiram na área de carga nos fundos do armazém. Um homem de jaqueta de couro estava sentado à beira do cais de carga. Pulou de pé quando eles apareceram flutuando. Seu pulo foi muito mais alto do que previu, cerca de uns três metros mais alto. Ele abriu a boca, mas, antes que pudesse gritar, Tach o havia dominado; ele caiu no sono em pleno ar. O Tartaruga o escondeu no alto de um telhado próximo.
Quatro grandes entradas de carga davam para o cais, todas fechadas com corrente e cadeado, seus portões de metal corrugado marcados com faixas largas e marrons de ferrugem. OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS, diziam as letras na porta lateral estreita.
Tach pulou para o chão e aterrissou com facilidade e na ponta dos cascos, seus nervos tinindo.
– Vou entrar. Me deem um minuto e então venham atrás de mim.
– Um minuto – disseram os alto-falantes. – Combinado.
Tach tirou as botas, abriu uma fresta na porta e deslizou para dentro do armazém com os pés envoltos em meias roxas, conjurando toda a discrição e fluidez de movimentos que havia muito tempo lhe ensinaram em Takis. Lá dentro, havia fardos de aparas de papel bem amarrados com arame fino e empilhados até uma altura de nove, dez metros. Tachyon caminhou furtivamente por uma passagem cheia de curvas na direção do som de vozes. Uma grande empilhadeira amarela bloqueava a passagem. Ele se curvou e entrou rastejando embaixo dela para espiar do outro lado de um enorme pneu.
Contou um total de cinco. Dois estavam jogando cartas, sentados em cadeiras de armar e usando uma pilha de livros de bolso sem capa como mesa. Um homem repulsivamente gordo estava ajustando uma máquina de picar papel gigantesca junto da parede dos fundos. Os dois últimos estavam debruçados sobre uma mesa comprida com sacos de pó branco empilhados em fileiras organizadas diante deles. O homem alto de camisa de flanela pesava algo em um pequeno conjunto de balanças. A seu lado, supervisionando, havia um homem magro e começando a ficar careca vestido com uma capa de chuva cara. Ele tinha um cigarro na mão, e sua voz era suave e macia. Tachyon não conseguia entender direito o que diziam. Não havia sinal de Angelical.
Ele mergulhou no esgoto que era a mente de Bannister e a viu. Entre a máquina de picar papel e a enfardadeira. Debaixo da empilhadeira, ele não conseguia ver o local, pois as máquinas obstruíam seu campo de visão, mas ela estava lá. Um colchão imundo tinha sido jogado sobre o chão de concreto, e ela estava deitada sobre ele, os tornozelos inchados e machucados onde as algemas esfolavam sua pele.
– ... 58 jacaré, 59 jacaré, 60 jacaré – contou Tom.
Os portões de carga eram grandes o bastante. Ele apertou e o cadeado se desintegrou em pedaços de ferrugem e metal retorcido. A corrente caiu com um tinido, e o portão estremeceu e se ergueu sob os gritos de protesto dos trilhos enferrujados. Tom acendeu todas as suas luzes enquanto a carapaça deslizava para a frente. Lá dentro, pilhas altas de papel bloqueavam o caminho. Não havia espaço para passar entre elas. Ele as empurrou, com força, mas quando estavam começando a desmoronar, lembrou-se de que podia passar por cima delas. Ele deu impulso para cima na direção do teto.
– Que porra é essa? – disse um dos jogadores de cartas quando ouviram o ruído alto e agudo do portão de carga se abrindo.
No instante seguinte, todos estavam em movimento. Os dois jogadores de cartas ficaram de pé; um deles puxou uma arma. O homem de camisa de flanela ergueu os olhos de suas balanças. O homem gordo virou-se da picadora de papel gritando alguma coisa, mas era impossível entender o que dizia. Fardos de papel começaram a desmoronar perto da parede mais distante, batendo nas pilhas vizinhas e as derrubando também, numa reação em cadeia que se espalhou por todo o armazém.
Sem hesitar um instante, Bannister foi na direção de Angelical. Tach dominou sua mente e o deteve no meio de um passo, com o revólver já sacado.
Então uma dúzia de fardos de papel picado despencou em cima da traseira da empilhadeira. O veículo se moveu só um pouco e esmagou a mão de Tachyon embaixo de um enorme pneu preto.
Ele gritou pelo choque e pela dor e perdeu Bannister.
Lá embaixo, dois homenzinhos estavam gritando para ele. O primeiro tiro o assustou tanto que Tom perdeu a concentração por uma fração de segundo, e a carapaça despencou mais de um metro antes que retomasse o controle. Então as balas começaram a acertar inofensivamente a carapaça e a ricochetear por todo o armazém. Tom sorriu.
– SOU O GRANDE E PODEROSO TARTARUGA – anunciou a todo volume enquanto fardos de papel caíam por todo lado. – SEUS BABACAS, VOCÊS ESTÃO FODIDOS, RENDAM-SE AGORA.
O babaca mais próximo não se rendeu. Ele atirou de novo e uma das telas de Tom ficou negra.
– AH, MERDA – disse ele, esquecendo-se de desligar o microfone. Agarrou o braço do sujeito e tirou a arma de sua mão, e pelo modo como o otário gritava, ele provavelmente deslocara seu ombro. Ele tinha de tomar cuidado com isso. O outro sujeito começou a correr e pulou por cima de uma pilha desmoronada de papel. Tom o pegou no meio do pulo, levou-o direto até o teto e o pendurou em uma viga. Seus olhos iam de tela em tela sem parar, mas uma delas agora estava escura, e na que havia ao lado, o maldito controle de vertical estava com problema de novo, por isso ele não tinha ideia do que estava acontecendo daquele lado. Não havia tempo para consertar aquilo. Um sujeito de camisa de flanela estava enchendo de sacos uma mala, ele viu na tela grande, e pelo canto do olho percebeu um cara gordo subindo na empilhadeira...
Com a mão esmagada embaixo do pneu, Tachyon se contorcia com a dor excruciante e tentava não gritar. Bannister... tinha de deter Bannister antes que ele alcançasse Angelical. Ele apertou os dentes e tentou expulsar a dor, juntá-la em uma bola e arrancá-la dele da maneira que lhe haviam ensinado, mas era difícil, tinha perdido a disciplina, podia sentir os ossos esmigalhados da mão, os olhos estavam turvos de lágrimas, e então ele ouviu o motor da empilhadeira dar a partida, e de repente ela começou a avançar, passou bem em cima de seu braço e vinha na direção de sua cabeça, os sulcos do pneu maciço parecendo uma parede negra de morte que corria em sua direção... e passou a centímetros do topo de seu crânio quando se ergueu no ar.
A empilhadeira fez um belo voo até a outra extremidade do armazém e se cravou na parede, com um empurrãozinho do Grande e Poderoso Tartaruga. O homem gordo saltou em pleno ar e aterrissou sobre uma pilha de livros de bolso sem capas. Só então Tom percebeu Tachyon estendido no chão no lugar onde estava a empilhadeira. Ele segurava a mão de modo engraçado, e sua máscara de galinha estava toda amarfanhada e suja; ele viu Tom e, enquanto se esforçava para
ficar de pé, gritava alguma coisa. Ele saiu correndo, mesmo cambaleante e sem firmeza. Aonde diabos ele estava indo com tanta pressa?
Fazendo uma careta, Tom deu um tapa na tela que não estava funcionando com as costas da mão, e a rolagem vertical parou de repente. Por um instante, a imagem na TV ficou clara e nítida.
Um homem de capa de chuva estava parado de pé em cima de uma mulher deitada em um colchão.
Ela era muito bonita, e havia um sorriso engraçado em seu rosto, triste e quase resignado, enquanto ele pressionava o revólver contra sua testa.
Tach, cambaleando, fez a volta na máquina de picar papel, sem firmeza nos tornozelos, o mundo apenas um borrão. Seus ossos esmigalhados se chocavam uns contra os outros a cada passo. Ele os encontrou ali, Bannister tocando-a de leve com a pistola, a pele já escurecendo no local onde a bala penetraria, e através de suas lágrimas e medos e uma névoa de dor, ele avançou sobre a mente de Bannister e a dominou... bem a tempo para senti-lo apertar o gatilho e recuar quando o revólver deu um coice em sua mente. Ele ouviu a explosão por dois conjuntos de ouvidos.
– Nãããããããããooooooooo! – gritou. Ele fechou os olhos, caiu de joelhos. Ele fez Bannister jogar a arma fora, mas isso agora não ia fazer nenhuma diferença, tarde demais, ele tinha chegado tarde demais, tinha falhado, falhado de novo, Angelical, Blythe, sua irmã, todo mundo que amava, todos mortos. Ele se encolheu no chão e sua mente se encheu de imagens de espelhos quebrados, da dança nupcial dançada em sangue e dor, e isso foi a última coisa em que pensou antes de ser tomado pela escuridão.
Ele acordou com o cheiro adstringente de um quarto de hospital e a sensação de um travesseiro sob a cabeça, a fronha dura de tão engomada. Abriu os olhos.
– Des – disse sem forças. Tentou se sentar, mas de alguma forma estava amarrado. O mundo estava borrado e fora de foco.
– Você está melhorando, doutor – explicou Des. – Seu braço direito estava quebrado em dois lugares, e a mão está pior do que isso.
– Sinto muito – disse Tach. Ele teria chorado, mas tinha ficado sem lágrimas. – Sinto tanto. Nós tentamos, eu... eu sinto muito, eu...
– Tacky – disse ela com aquela voz suave e rouca.
E lá estava ela, de pé ao seu lado, vestida com uma camisola de hospital, o cabelo negro emoldurando um sorriso estranho. Ela o havia penteado para a frente para esconder a testa; sob a franja havia um machucado roxo-esverdeado, e a pele em torno de seus olhos estava vermelha e esfolada. Por um instante ele achou que estava morto, ou louco, ou sonhando.
– Está tudo bem, Tacky. Estou bem. Estou aqui.
Ele ergueu os olhos para ela, estarrecido.
– Você está morta. Eu ouvi o tiro. Eu o havia dominado naquele momento, mas foi tarde demais, eu senti o recuo da arma na mão dele.
– Você sentiu um tranco? – perguntou-lhe.
– Tranco?
– Não mais que alguns centímetros. Justo quando ele atirou. Justo o bastante. Fiquei com queimaduras de pólvora muito feias, mas a bala penetrou no colchão a vinte centímetros de minha cabeça.
– O Tartaruga – disse Tach com voz rouca.
Ela assentiu.
– Ele desviou a arma no exato momento em que Bannister apertou o gatilho. E você fez o filho da puta jogar o revólver fora antes que pudesse atirar de novo.
– Você os pegou – disse Des. – Alguns homens escaparam na confusão, mas o Tartaruga entregou três deles, incluindo Bannister. Além de uma mala com dez quilos de heroína pura. E descobriram que o armazém pertence à máfia.
– À máfia? – perguntou Tachyon.
– O crime organizado – explicou Des. – Bandidos, Dr. Tachyon.
– Um dos homens capturado no armazém já fez acordo – disse Angelical. – Ele vai testemunhar sobre tudo, as propinas, a operação das drogas e os assassinatos no Funhouse.
– Talvez a gente consiga até uma polícia decente no Bairro dos Curingas – acrescentou Des.
Os sentimentos que tomavam Tachyon estavam muito além do alívio. Queria agradecer a eles, queria chorar para eles, mas nem as lágrimas nem as palavras saíam. Ele estava fraco e feliz.
– Eu não falhei – conseguiu dizer por fim.
– Não – disse Angelical. Ela olhou para Des. – Pode esperar lá fora? – Quando estavam sozinhos, ela se sentou na beira da cama. – Quero mostrar uma coisa a você, algo que eu devia ter lhe mostrado há muito tempo. – Ela o segurou diante dele. Era um medalhão com foto. – Abra.
Foi difícil abri-lo com uma só mão, mas ele conseguiu. Lá dentro havia uma pequena fotografia redonda de uma mulher idosa acamada. Seus membros eram murchos e esqueléticos, pareciam varas enroladas em carne sarapintada, e seu rosto estava horrivelmente contorcido.
– O que há de errado com ela? – perguntou Tachyon, com medo da resposta. Outro curinga, pensou, outra vítima de seus fracassos.
Angelical baixou o olhar para a velha retorcida, deu um suspiro e fechou o medalhão com um movimento rápido.
– Quando ela tinha 4 anos, em Little Italy, foi atropelada enquanto brincava na rua. Um cavalo pisoteou seu rosto e a roda da carroça esmagou sua espinha. Isso foi, ah, em 1886. Ela ficou completamente paralisada, mas viveu. Se você pode chamar aquilo de vida. Aquela garotinha passou os sessenta anos seguintes na cama, com gente para alimentá-la, banhá-la e ler para ela, sem nenhuma companhia além das irmãs de caridade. Às vezes, tudo o que ela queria era morrer.
Ela sonhava como seria ser bela, ser amada e desejada, poder dançar, conseguir sentir coisas.
Ah, como ela queria sentir. – Ela sorriu. – Eu devia ter dito obrigada há muito tempo, Tacky, mas é difícil para mim mostrar essa foto para qualquer pessoa. Mas sou grata, e agora eu estou duplamente em dívida com você, que nunca mais vai pagar um drinque no Funhouse.
Ele olhou fixamente para ela.
– Eu não quero beber – disse ele. – Não mais. Isso acabou. – E tinha acabado, ele sabia; se ela podia viver com sua dor, que desculpa ele poderia ter para desperdiçar sua vida e seus talentos?
– Angelical – disse de repente –, posso fazer para você algo melhor que heroína. Eu sou bioquímico, há drogas em Takis, posso sintetizá-las, analgésicos, anestésicos neurológicos. Se me deixar fazer alguns testes com você, talvez consiga fazer algo especialmente para seu metabolismo. Vou precisar de um laboratório, é claro. Montar tudo vai ser caro, mas a droga pode ser feita por centavos.
– Vou ter algum dinheiro – disse ela. – Estou vendendo o Funhouse para Des. Mas isso que você está dizendo é ilegal.
– Para o inferno com essas leis idiotas – exclamou Tach. – Se você não contar nada, eu também não conto. – As palavras jorraram uma atrás da outra, uma torrente: planos, sonhos, esperanças, todas as coisas que ele havia perdido ou afogado em conhaque e álcool puro, e Angelical estava olhando para ele, pasma, sorrindo, e, quando começou a passar o efeito das drogas que lhe haviam aplicado e o braço dele voltou a latejar, o doutor Tachyon se lembrou das velhas disciplinas e mandou a dor embora, e de algum modo pareceu que parte de sua culpa e pesar foram com ela, e ele estava inteiro outra vez, e vivo.
A manchete dizia: TARTARUGA E TACHYON DESMANTELAM REDE DE TRÁFICO DE HEROÍNA. Tom estava colando a reportagem no álbum de recortes quando Joey voltou com as cervejas.
– Eles não botaram a parte do Grande e Poderoso – observou Joey, deixando uma garrafa ao lado do cotovelo de Tom.
– Pelo menos meu nome apareceu primeiro – disse Tom. Ele limpou a marca dos dedos na grossa pasta branca com um guardanapo e afastou para o lado o álbum de recortes. Embaixo, havia alguns esboços que fizera da carapaça. – Agora – disse ele. – Onde diabos vamos botar o toca-discos, hein?
Interlúdio Dois
DE NEW YORK TIMES,
1.º DE SETEMBRO DE 1966
Clínica no Bairro dos Curingas abre no Dia da Carta Selvagem
A abertura de um hospital de pesquisa com financiamento privado, especializado no tratamento do vírus carta selvagem takisiano, foi anunciada ontem pelo Dr. Tachyon, cientista alienígena que ajudou a desenvolver o vírus. O Dr. Tachyon atuará como chefe da equipe na nova instituição, localizada na South Street, com vista para o East River.
O instituto será conhecido como Clínica Blythe van Renssaeler, em homenagem à falecida Sra. Blythe Stanhope van Renssaeler. A Sra. van Renssaeler, membro do Exóticos pela Democracia de 1947 a 1950, faleceu em 1953 no Sanatório Wittier. Ela era conhecida como “a Especialista”.
A Clínica Van Renssaeler abrirá as portas ao público em 15 de setembro, vigésimo aniversário da liberação do vírus carta selvagem sobre Manhattan. Serviço de pronto-socorro e tratamento psicológico de pacientes ambulatoriais serão oferecidos pelo hospital de 196 leitos. “Estamos aqui para servir à região e à cidade”, disse o Dr. Tachyon na tarde de coletiva de imprensa nos degraus do Túmulo de Jetboy, “mas nossa prioridade máxima será o tratamento daqueles que passaram tanto tempo sem tratamento, os curingas, cujas necessidades médicas singulares e com frequência desesperadas foram ignoradas em larga escala pelos hospitais existentes. O vírus carta selvagem foi disseminado vinte anos atrás, e essa ignorância deliberada e contínua sobre o vírus é criminosa e imperdoável”. O Dr. Tachyon comentou esperar que a Clínica Van Renssaeler possa se tornar o centro de pesquisa líder na pesquisa do vírus carta selvagem e encabeçar esforços para aperfeiçoar a cura para o vírus carta selvagem, conhecido como vírus “trunfo”.
A clínica será alojada em um prédio histórico construído em 1874 às margens do rio. O prédio já foi um hotel, conhecido como Refúgio do Marinheiro, de 1888 a 1913. De 1913 a 1942 foi o Lar do Sagrado Coração para Garotas Rebeldes, transformando-se em seguida numa pensão barata.
O Dr. Tachyon revelou que a compra do prédio e a restauração completa de suas instalações internas foram financiadas por uma doação da Fundação Stanhope de Boston, chefiada pelo Sr. George C. Stanhope. O Sr. Stanhope é pai da Sra. van Renssaeler. “Se Blythe estivesse viva hoje, sei que ela não iria querer nada mais do que trabalhar ao lado do Dr. Tachyon”, declarou o Sr. Stanhope.
Inicialmente, o trabalho na clínica será financiado por honorários e doações particulares, mas o Dr. Tachyon admitiu ter voltado há pouco de Washington, onde se reuniu com o vice-presidente Hubert H. Humphrey. Fontes próximas ao vice-presidente indicam que o governo está considerando o financiamento parcial da clínica do Bairro dos Curingas por meio dos escritórios do Comitê de Recursos Internos do Senado para Empenho dos Ases (CRISE-A).
Uma multidão de aproximadamente quinhentas pessoas, muitas das quais obviamente vítimas do vírus carta selvagem, aplaudiu com entusiasmo o anúncio do Dr. Tachyon.
A noite longa e obscura de Fortunato
Lewis Shiner
Ele só conseguia pensar em como ela era bonita quando estava viva.
– Vou pedir para o senhor identificar o cadáver – disse o legista.
– É ela – Fortunato respondeu.
– Nome?
– Erika Naylor. Erika com k.
– Endereço?
– Park Avenue, 16.
O homem assobiou.
– Classe alta. Parentes próximos?
– Não sei. Ela era de Minneapolis.
– Certo. É de onde todas vêm. O senhor acha que tem uma escola de putas ou alguma coisa assim por lá?
Fortunato olhou para o ferimento comprido e horrível na garganta da garota e deixou que o legista fitasse seus olhos.
– Ela não era puta – retrucou.
– Claro – disse o médico, mas deu um passo para trás e baixou os olhos para a prancheta. – Vou colocar aqui “modelo”.
Gueixa, pensou Fortunato. Era uma de suas gueixas. Brilhante, engraçada, linda, chef e massagista, além de psicóloga não licenciada, criativa e sensual na cama.
No último ano, a terceira de suas garotas a ser impecavelmente fatiada em pedaços.
Ele foi para a rua sabendo que sua aparência estava péssima. Media 1,95 m, era magro pelas anfetaminas, e quando estava curvado parecia que o peito afundava-se em sua espinha. Lenore esperava por ele, aconchegada em sua jaqueta preta de pele falsa, embora o sol tivesse finalmente saído. Quando ela o viu, colocou-o direto num táxi e deu seu endereço ao taxista, West 19th.
O olhar de Fortunato pairava lá fora sobre as garotas de cabelos longos em jeans bordados, os pôsteres de luz negra nas vitrines das lojas, no giz brilhante riscado sobre todas as calçadas. Era quase Páscoa, dois invernos depois do Verão do Amor, mas a simples ideia de primavera o deixava tão gelado quanto o piso ladrilhado do necrotério.
Lenore pegou sua mão e a apertou, e Fortunato recostou-se no banco e fechou os olhos.
Ela era nova. Uma de suas garotas a resgatou de um cafetão do Brooklyn chamado Willie Martelo, e Fortunato pagou 5 mil dólares por seu “passe”. Todos nas ruas sabiam que, se Willie tivesse discordado, Fortunato gastaria os 5 mil para acabar com ele, sendo esse o atual valor de mercado de uma vida humana.
Willie trabalhava para a família Gambione, e Fortunato havia batido de frente com eles mais de uma vez. Ser negro (mestiço de qualquer maneira) e independente deu a Fortunato um lugar de destaque nas fantasias paranoicas de Dom Carlo. A única coisa que Dom Carlo odiava mais eram os curingas.
Fortunato não teria pensado que a culpa dos assassinatos seria do velho, exceto por uma coisa: ele cobiçava demais a operação de Fortunato para mexer logo com as mulheres.
Lenore veio de uma cidade provinciana nas montanhas da Virgínia, onde os velhos ainda falavam o inglês elisabetano. Willie cuidou dela por menos de um mês, o que não foi suficiente para absorver o máximo de sua beleza. Tinha cabelos ruivos escuros até a cintura, olhos verdes néon, e uma boca pequena, quase delicada. Nunca vestia nada que não fosse preto e acreditava ser uma bruxa.
Quando Fortunato a entrevistou, ficou comovido com sua entrega, sua absorção completa à sensualidade, tanto que entrava em conflito com sua aparência descolada e sofisticada. Ele a aceitou para treinamento e ela estava com ele havia três semanas, tendo apenas um cliente ocasional, fazendo a transição de talentosa garota de programa para aprendiz de gueixa, que levaria no mínimo dois anos.
Ela o levou ao seu apartamento e parou com a chave na fechadura.
– Hum, espero que você não ache muito estranho.
Ele ficou na entrada enquanto ela caminhava pela sala e acendia velas. Cortinas pesadas pendiam da janela, e ele não via quaisquer eletrodomésticos, apenas um telefone – sem TV, relógios, sequer uma torradeira. No centro desértico da sala ela havia pintado uma imensa estrela de cinco pontas no meio de um círculo, direto no chão de madeira de lei. Por trás dos aromas sensuais de incenso e almíscar subia o leve fedor sulfuroso de um laboratório químico.
Ele trancou a porta de entrada e a seguiu até o quarto. O apartamento era inundado de sexualidade. Fortunato mal podia mover os pés pelo grosso carpete vinho; a cama tinha um dossel com cortinas de veludo vermelho, e era tão alta que havia degraus para subir nela.
Ela encontrou um baseado no criado-mudo, acendeu e passou para Fortunato.
– Volto num instante – ela disse.
Ele tirou a roupa e deitou com as mãos por trás da cabeça, o baseado pendendo da boca.
Tragou com vontade e ficou olhando os dedos dos pés se esticarem. O teto acima era azul-escuro, com constelações aplicadas em verde amarelado fosforescente. Signos do zodíaco, até onde ele sabia. Magia, astrologia e gurus estavam muito na moda. As pessoas em festas badaladas no Village sempre perguntavam umas às outras de que signo eram e falavam sobre carma. Ele achava que a Era de Aquário tinha sido apenas uma grande ilusão. Nixon estava na Casa Branca, crianças tomavam tiro no traseiro no sudeste da Ásia, e ele ainda ouvia a palavra “crioulo” todos os dias.
Mas tinha clientes que amariam aquele lugar.
Se o maluco com uma faca não acabasse com seu negócio.
Lenore ajoelhou-se ao lado dele na cama, nua.
– Sua pele é tão bonita.
Ela correu as pontas dos dedos sobre o peito dele, fazendo-o arrepiar.
– Nunca vi uma cor como essa antes. – Como ele não respondeu, ela disse: – Me disseram que sua mãe é japonesa.
– E meu pai era um cafetão do Harlem.
– Você está puto da vida, não é?
– Eu amo essas garotas. Amo todas vocês. Vocês são mais importantes para mim que dinheiro ou família ou… qualquer outra coisa.
– E?
Ele não achou que tinha qualquer outra coisa a dizer até as palavras começarem a brotar.
– Eu me sinto tão… tão desesperadamente impotente. Algum filho da puta pirado está matando minhas garotas e não há nada que eu possa fazer.
– Talvez sim – ela disse. – Talvez não. – Seus dedos se entrelaçaram nos pelos púbicos dele. – Sexo é poder, Fortunato. É a coisa mais poderosa do universo. Não se esqueça disso.
Com o pênis de Fortunato na boca, ela trabalhava gentilmente com a língua, como se ele fosse um picolé. Ele endureceu instantaneamente, e Fortunato sentiu o suor brotar da testa. Apagou o baseado com as pontas dos dedos úmidos e jogou-o para fora da cama. Seus calcanhares deslizavam na maciez gelada dos lençóis e seu nariz se enchia do perfume de Lenore. Pensou em Erika, morta, e isso fez com que ele quisesse foder Lenore forte e demoradamente.
– Não – falou ela, tirando a mão dele de seus seios. – Você me tirou das ruas, você me ensinou o que você sabe. Agora é minha vez.
Ela o empurrou para que ele deitasse de costas com os braços sobre a cabeça e com as unhas pintadas de preto percorreu a pele macia sobre suas costelas. Então começou a mover-se sobre seu corpo, tocando-o com os lábios, os seios, as pontas dos cabelos, até sua pele ficar quente o bastante para brilhar no escuro. E, finalmente, sentou com as pernas abertas sobre ele e deixou que ele a penetrasse.
Estar dentro dela lhe deu um barato, como o de um viciado. Ele avançava com os quadris e ela se apoiava neles, segurando o próprio peso nos braços, seu cabelo caindo como uma cascata em torno da cabeça. Então, lentamente, ela levantou os olhos e o encarou.
– Sou Shakti – ela falou. – Sou a deusa. Sou o poder.
Ela sorriu ao dizê-lo e, em vez de soar insano, fez apenas com que ele a quisesse ainda mais.
Então sua voz rompeu-se em suspiros curtos e agitados enquanto ela gozava, estremecendo, lançando a cabeça para trás e balançando com força para a frente e para trás contra ele. Fortunato tentou virá-la e terminar, mas ela era mais forte do que ele teria pensado ser possível, enterrando os dedos nos ombros dele até ele relaxar, acariciando-o novamente com vagar doloroso.
Ela gozou mais duas vezes antes de tudo ficar vermelho, e ele sabia que não conseguiria segurar mais. No entanto, ela sentiu também e, antes que ele soubesse o que estava acontecendo, ela se afastou e colocou a mão entre as pernas dele, pressionando um dedo na base do pênis. Era tarde demais e o orgasmo o tomou com tanta força que ele levantou o traseiro todo da cama. Ela empurrou o peito dele para baixo com a mão esquerda e continuou pressionando com a direita, parando o esperma antes que ele pudesse jorrar, forçando-o para que ele voltasse para dentro de Fortunato.
Ela me matou, ele pensou enquanto sentia o fogo líquido voltar com força para dentro de sua virilha, queimando por todo o caminho até a medula espinhal e acendendo-a como um pavio.
– Kundalini – ela sussurrou com o rosto suado e decidido. – Sinta o poder.
A centelha disparou coluna acima e explodiu em seu cérebro.
No fim, ele reabriu os olhos. O tempo surgiu das rodas dentadas do projetor e ele viu tudo em fragmentos únicos, desconexos. Lenore o abraçava. As lágrimas corriam de seu rosto e caíam sobre o peito dele.
– Eu flutuei – ele comentou, quando finalmente pensou em usar a voz. – Lá em cima, no teto.
– Achei que você tivesse morrido – Lenore falou.
– Consegui ver nós dois. Tudo parecia feito de luz. O quarto estava branco e parecia que continuaria para sempre. Vi linhas e ondulações em todo lugar.
Ele sentiu um pouco como se estivesse sob o efeito de muita cocaína, um pouco como se tivesse metido o dedo na tomada.
– O que você fez comigo?
– Ioga tântrica. Eu achei que… sei lá. Ia te dar um barato. Nunca soube de alguém ser tomado desse jeito antes. – Ela virou-se para ele. – Você saiu mesmo? Saiu do corpo?
– Acho que sim. – Ele conseguia sentir o cheiro de menta do xampu que ela usava. Pegou o rosto da mulher com as mãos e a beijou. A boca de Lenore era macia e úmida, e sua língua tremulava contra os dentes dele. Ele ainda estava duro como pedra e começou a se mexer como se a quisesse.
Rolou sobre ela, que o guiou para penetrá-la, e ele conseguiu senti-la queimando por dentro.
– Fortunato – ela sussurrou, seus lábios ainda tão próximos que roçavam nos dele quando se moviam –, se você gozar, vai perder a sensação. Ficará tão fraco que não vai conseguir se mexer.
– Que se dane, linda. Nunca quis tanto alguém como você. – Ele se ergueu sobre os antebraços para poder vê-la, seus quadris golpeando freneticamente. Cada nervo de seu corpo estava vivo, e conseguia sentir o poder tomando-o por inteiro para em seguida recuar aos poucos e se reunir em algum lugar no centro do corpo, a ponto de explodir para fora dele, deixando-o seco, fraco, indefeso, drenado…
Ele se afastou dela, rolou para o pé da cama e curvou-se, abraçando os joelhos.
– Meu Deus! – ele gritou. – Que porra é essa que está acontecendo comigo?
Ela queria ficar com ele, mas ele a mandou para a aula de gueixa mesmo assim. Ele estaria ali, prometeu, quando ela chegasse em casa.
O apartamento parecia vasto e vazio sem ela, e ele teve uma visão assustadora de Lenore sozinha na rua com o assassino de Erika ainda à solta.
Não, disse para si mesmo. Não aconteceria de novo, não tão rápido.
Encontrou um espalhafatoso robe oriental no armário e o vestiu, perambulou pelo apartamento, medindo o zunir inaudível do seu sistema nervoso. Por fim, parou na frente da estante de livros da sala de estar.
Kundalini, ela disse. Ele tinha ouvido o nome antes e, quando viu um livro chamado A serpente em ascensão, ligou os pontos. Pegou o livro e começou a lê-lo.
Leu sobre a Grande Irmandade Branca de Ultima Thule, que ficava em algum lugar na Tartária.
O Livro de Dyzan perdido e o vama chara, o caminho da esquerda. A kali yuga, a última e mais corrupta das eras, agora está sobre nós. “Faça o que desejar, pois dessa maneira você agrada a deusa.” Shakti. Sêmen como o rasa, o sumo, do poder: o yod. Sodomia que revivia os mortos.
Metamorfos, corpos astrais, obsessões implantadas que levam ao suicídio. Paracelso, Aleister Crowley, Mehmet Karagoz, L. Ron Hubbard.
A concentração de Fortunato era absoluta. Absorvia cada palavra, cada diagrama, folheava para trás e adiante para fazer comparações, estudar as ilustrações. Quando terminou, viu que haviam passado 23 minutos desde que Lenore saíra.
O tremor em seu peito era o medo.
No meio da noite, ele se esticou para tocar o rosto de Lenore e seus dedos voltaram molhados.
– Está acordada? – ele disse.
Ela rolou e aconchegou-se bem perto dele. O calor da pele nua o eletrificou e tranquilizou ao
mesmo tempo, como o gosto de um uísque caro. Deslizou os dedos pelos cabelos dela e beijou
seu pescoço perfumado.
– Por que está chorando?
– É idiota – ela respondeu.
– O quê?
– Eu acredito de verdade naquela coisa. Magick. A Grande Obra, como Crowley chamava. – Ela pronunciava magia com um a longo e Crowley com um o longo como em corvo. – Fiz ioga e aprendi a Cabala, o tarô e o sistema enoquiano. Jejuei e fiz o Ritual do Não Nascido, e estudei Abramelin. Mas nada aconteceu.
– O que você está tentando fazer?
– Sei lá. Ter uma visão. Samadhi. Queria ver algo além de um maldito ponto de ônibus da Greyhound na Virgínia, onde tentam linchar crianças por deixar o cabelo crescer. Queria sair de mim mesma. Queria que acontecesse comigo o que aconteceu com você hoje à tarde. E aconteceu com você, que nunca quis isso.
– Li alguns dos seus livros hoje à noite – ele disse. Na verdade, ele havia lido duas dúzias deles, quase metade da coleção de Lenore. – Não sei o que está havendo, mas não acho que seja mágica. Nada parecido com a mágica daquele cara, o Crowley. O que você fez comigo provocou aquilo, mas eu acho que era algo que já estava dentro de mim.
– Você diz aquela coisa de germe, não é? Aquele vírus carta selvagem? – Ela ficou tensa involuntariamente assim que disse aquilo.
– Não consigo pensar em outra coisa.
– Tem aquele doutor, não sei o nome dele. Ele pode te examinar. Provavelmente vai te curar, se for isso que você quer.
– Não – ele disse. – Você não entende. Quando li aqueles livros, pude sentir todos aqueles poderes dos quais eles falam. Como se você fosse um mergulhador e lesse sobre um mergulho complicado que você nunca fez, mas sabe que poderia fazer se praticar. Você disse que eu não queria, talvez não quisesse, não de primeira. Mas agora eu quero. – Havia uma imagem entre os órgãos sexuais gigantes e as contorções impossíveis em um livro de cabeceira japonês: o mágico
tântrico, testa inchada com o poder de seu esperma retido, dedos torcidos em mudras de poder.
Ele fitou essa imagem até os olhos arderem.
– Agora eu quero – ele falou.
– Sem dúvida, você tirou uma carta selvagem – comentou o homenzinho. – Um ás, eu diria.
Fortunato não tinha nada em especial contra os brancos, mas ele não conseguia suportar as gírias deles.
– Dá pra falar a minha língua?
– Sua genética foi reescrita pelo vírus takisiano. Aparentemente, estava adormecido em seu sistema nervoso central, provavelmente na espinha. A intromissão aparentemente deu um bom chacoalhão, suficiente para ativar o vírus.
– E agora, o que vai acontecer?
– Na minha opinião, você tem duas opções. – O homenzinho pulou sobre a maca que estava diante de Fortunato e botou os cabelos longos e ruivos atrás da orelha. Parecia que podia estar numa banda de rock ou trabalhando numa loja de discos. Não convencia como médico. – Posso tentar reverter os efeitos do vírus. Sem garantias, tive até agora trinta por cento de sucesso. Às vezes as pessoas acabam piores que antes.
– Ou?
– Ou pode aprender a viver com o seu poder. Você não estaria sozinho. Posso te dar o contato de algumas pessoas na mesma situação.
– Ah, é? Como o “Grande e Poderoso Tartaruga”? Assim eu posso voar por aí e tirar pessoas de carros esmagados? Melhor não, né?
– O que você faz com suas habilidades depende só de você.
– Que tipo de “habilidades” o senhor está falando?
– Não posso dizer ao certo. Parece que ainda estão surgindo. O eletroencefalograma mostra forte telecinesia. O cromatógrafo mostra um corpo astral muito poderoso que eu espero que você consiga manipular.
– Mágica, é o que o senhor está dizendo.
– Não, não exatamente. Mas é uma coisa engraçada do vírus carta selvagem. Às vezes ele precisa de um mecanismo muito específico para ser controlado conscientemente. Não me surpreenderia se você precisasse desse ritual tântrico para fazê-lo funcionar em você.
Fortunato levantou-se e tirou uma nota de cem do rolo em seu bolso.
– Para a clínica – ele disse.
O homenzinho olhou para o dinheiro por um longo tempo, e então enfiou na sua jaqueta Sgt. Pepper.
– Obrigado – ele soltou, como se doesse dizer aquela palavra. – Lembre-se do que eu falei.
Pode me ligar a qualquer momento.
Fortunato concordou com a cabeça e saiu do consultório para observar os esquisitões do Bairro dos Curingas.
Ele estava com 6 anos quando Jetboy explodiu sobre Manhattan, havia crescido com medo do vírus, com a memória dos 10 mil que morreram no primeiro dia do novo mundo. Seu pai foi um deles, deitado na cama enquanto sua pele se abria e se regenerava continuamente, todo o ciclo não demorava mais de um ou dois minutos. Até uma das rachaduras partir seu coração, espirrando sangue por todo o apartamento no Harlem. E, mesmo no caixão, onde o velho homem esperava deitado a sua vez para um funeral de dois minutos e uma cova coletiva, ele continuou se abrindo e regenerando, abrindo e regenerando.
A lembrança nunca se apagou, mas naquele momento ela foi deixada de lado pelas mais novas.
Aos poucos, Fortunato chegava a acreditar que nada daquilo estava acontecendo com ele. Para aqueles que o vírus não tocou, a vida continuava da forma que sempre foi.
Logo ele percebeu o que teria de fazer para se sustentar. Ouvindo sua mãe reclamar sobre as mulheres americanas, teve a ideia da prostituta como gueixa; aos 14 anos, trouxe para casa uma porto-riquenha estonteante do colégio para sua mãe treinar. Esse foi o começo de tudo.
Olhou para cima e viu que a noite havia chegado enquanto caminhava a esmo pelo Bairro dos Curingas. Os tons cinza e pastéis ficaram néon, as roupas dos transeuntes mudaram para estampas vivas e de oncinha. Bem diante dele, manifestantes bloquearam a rua com um caminhão-plataforma. Havia tambores, amplificadores e guitarras lá em cima, e um par de pesados cabos de extensão saindo das portas abertas do Chaos Club.
Naquele instante, o palco estava vazio, exceto por uma mulher com cabelos ruivos encaracolados e um violão acústico. Atrás dela, uma faixa com as letras S.N.C.C. (Comitê de Coordenação Estudantil Não Violento). Fortunato não tinha ideia do que seria aquela sigla. A mulher tinha um público que cantava junto com ela uma ou outra canção folk. Eles entraram no refrão umas duas vezes sem o violão, e então ela fez uma reverência, eles aplaudiram, e ela saiu por trás do caminhão.
Não era bonita como Lenore; o nariz era um pouco largo, a pele não era tão boa. Estava completamente uniformizada, de jeans azul e camisa de trabalho que não lhe favorecia. Mas tinha uma aura de energia que ele podia ver, mesmo sem querer.
As mulheres eram o fraco de Fortunato. Ele era como uma presa sob os holofotes. Mesmo tão para baixo como se sentia, não podia evitar parar e dar uma olhada nela e, antes que ele percebesse, ela estava em pé ao seu lado, sacudindo uma lata de café com algumas moedas no fundo.
– Ei, cara, que tal uma doação?
– Hoje não – respondeu Fortunato. – Não sou muito de política.
– Você é negro, Nixon é presidente, e você não é muito de política? Irmão, tenho notícias para você.
– Tudo isso por ser negro? – Fortunato não viu outro rosto negro na multidão.
– Não, cara, é sobre os curingas. Opa, pisei num calo ou algo assim? – Como Fortunato não respondeu, ela continuou: – Você sabe a expectativa média de vida de um curinga no Vietnã?
Menos de dois meses. Se você pegar o percentual de curingas na população americana e dividi-lo pelo percentual de curingas no Vietnã, sabe o que você terá? Quase cem vezes mais curingas lá.
Cem vezes, cara.
– Tá, tudo bem, e o que você quer que eu faça?
– Uma doação. Vamos contratar advogados para parar com isso. É o FBI, cara. O FBI e o CRISE-A. É como ter o McCarthy de volta. Eles têm listas de todos os curingas e estão mandando pra lá de propósito. Se conseguem andar e carregar uma arma, nem precisam fazer exame médico de verdade, é direto pra Saigon. É genocídio, puro e simples.
– Tá, tudo bem. – Ele pescou uma nota de vinte do bolso e jogou na lata.
– Sabe o que eu queria? – Ela nem havia percebido o valor da nota. – Queria que todos os ases desgraçados cuidassem dos seus, sabe? Que custaria pro Ciclone, ou um daqueles outros babacas, destruir esses arquivos? Nada, cara, nada mesmo, mas eles estão muito ocupados com as manchetes dos jornais.
Ela começou a se afastar e então olhou para a lata.
– Ei, obrigada, cara. Você é bacana. Olha, pegue um folheto. Se quiser fazer mais, é só ligar.
– Claro – respondeu Fortunato. – Qual o seu nome?
– Me chamam de C.C. – ela disse. – C.C. Ryder.
– É o mesmo C.C. ali de cima? – Ele apontou para a faixa com S.N.C.C.
C.C. balançou a cabeça.
– Você é engraçado, cara – ela disse, sorriu finalmente e desapareceu na multidão.
Fortunato dobrou o folheto, enfiou no bolso e virou-se para a direção do Bowery. Todo aquele papo sobre curingas o fez se sentir desconectado. Logo descendo a rua havia um clube com paredes espelhadas chamado Funhouse, cujo dono era um cara chamado Desmond, que tinha uma tromba no lugar do nariz. Era um dos clientes de Fortunato, sempre querendo uma gueixa com pele mais fina ou cabelo mais escuro ou um rosto mais delicado do que Fortunato conseguia encontrar para ele. Fortunato não podia suportar a ideia de vê-lo naquele momento.
Nas ruas laterais, as pessoas não usavam mais máscaras, e os olhos desafiadores em rostos de cabeça para baixo ou cabeças do tamanho de melões-cantalupo devolviam olhares. Seus novos irmãos e irmãs, falou para si mesmo. Para cada ás havia dez desses, espreitando em becos, enquanto os sortudos vestiam capas e falavam seu palavreado imperfeito, voando por aí, lutando entre si. Os ases ocupavam as manchetes e os programas de entrevista, e os esquisitos e aleijados, o Bairro dos Curingas. O Bairro dos Curingas e as selvas vietnamitas, se a história de C.C. for verdade.
Mas o único lugar para onde Fortunato desejava voltar era o apartamento de Lenore, e fazer amor com ela. E dessa vez ele gozaria, e se isso o deixasse fraco, não importava, e as coisas voltariam ao normal, como sempre foram.
Exceto que, cedo ou tarde, o assassino atacaria novamente. O Vietnã estava a meio mundo de distância, mas o assassino estava bem ali, talvez naquele mesmo quarteirão.
Ele parou, olhou para cima e viu que seu subconsciente o levou direto para o beco onde lhe disseram que encontraram Erika.
Pensou sobre o que C.C. disse. Usar o poder para cuidar dos seus.
Quando Lenore o arrancou para fora do corpo, ele viu coisas que nunca tinha visto antes, redemoinhos e padrões de energia que não conseguia nomear. Se pudesse sair de novo, poderia enxergar algo que a polícia perdeu.
Um bebum num sobretudo longo e sujo encarou Fortunato. Demorou um segundo para ele perceber que o homem tinha orelhas longas e moles de bassê e um nariz preto e úmido. Fortunato o ignorou, fechando os olhos e tentando lembrar a sensação.
Também poderia tentar pensar em si mesmo na Lua. Precisava de Lenore, mas tinha medo de levá-la até ali. Será que conseguiria fazê-lo no apartamento dela e voar até ali? Conseguiria manter por tanto tempo? O que aconteceria ao seu corpo físico se conseguisse?
Perguntas demais. Ligou para ela de um telefone público e lhe disse onde encontrá-lo.
– Você tem uma arma? – perguntou ele.
– Sim. Desde que… você sabe.
– Traga.
– Fortunato? Você está metido em alguma encrenca?
– Ainda não – ele retrucou.
No momento em que voltou ao beco com Lenore, atraiu uma multidão. Todos estavam vestidos com roupas doadas pelo Exército da Salvação: calças largas, camisas de flanela rasgadas e manchadas, jaquetas com cor de graxa ressecada. Uma velha baixinha parecia uma estátua de museu de cera que havia começado a derreter. À sua direita estava um adolescente, ao lado de uma pilha de latas de lixo, vibrando. Quando as vibrações chegaram a certo tom, as latas se chocaram como uma série de címbalos convulsivos, e a mulher se virou, furiosa, e as chutou. Os outros eram visivelmente menos deformados: um homem com ventosas nas pontas dos dedos, uma garota cujo rosto ficou anguloso com sulcos da pele endurecida.
Lenore agarrou o braço de Fortunato.
– E agora? – ela sussurrou.
Fortunato a beijou. Ela tentou se afastar quando a esquisita plateia começou um riso abafado, mas Fortunato insistiu, abrindo os lábios dela com a língua, passando a mão na parte inferior de suas costas, e, finalmente, ela começou a ofegar, e ele sentiu o poder se agitando na base de sua espinha. Ele desceu com os lábios para o ombro de Lenore, suas unhas compridas enterradas no pescoço dele, e então ele levantou os olhos até avistar o homem-cão. Sentiu o poder fluindo nos olhos e na voz, e disse, em voz baixa:
– Vá embora.
O homem-cão virou-se e saiu do beco. Mandou os outros embora, um por vez, e então disse:
– Agora. – E, guiou as mãos dela para dentro de suas calças. – Faça aquilo comigo, o que você fez antes. – Ele deslizou as mãos sob o suéter de Lenore e passou-as lentamente sobre os seios. A mão direita dela estava fechada sobre ele e a esquerda segurava sua cintura, confortando-o com o peso de sua pistola S&W calibre 32. Ele fechou os olhos quando o calor começou a se formar, deixando a parede de tijolos atrás dele suportar seu peso. Em segundos estava pronto para gozar, seu corpo astral sacudindo-se como um balão numa mão frouxa.
E então, como se pulasse de um carro em movimento, ele se libertou.
Cada tijolo e papel de bala cintilava com a claridade. Quando ele se concentrou, o rumor do tráfego diminuiu e foi abafado até ficar quase inaudível.
Encontraram Erika numa soleira de porta no fundo do beco, braços e pernas decepados, empilhados como lenha no colo, a cabeça presa ao corpo por menos da metade da espessura do pescoço. Fortunato podia ver as manchas do sangue bem fundo nas moléculas do concreto, ainda brilhando fraco com a essência da vida. A madeira do batente da porta ainda mantinha um traço de seu perfume, e um único fio de seu cabelo loiro acinzentado.
O murmúrio barítono da rua reduziu até uma vibração tão baixa que Fortunato conseguia sentir os picos de ondas individuais passando por ele. Agora podia ver a reentrância que o corpo de Erika havia feito no degrau de concreto, os rastros infinitesimais que seus sapatos deixaram no asfalto. E, além disso, as pegadas do assassino.
Elas levavam da rua ao corpo de Erika e voltavam, e no meio-fio encontraram as marcas de um carro. Ele não tinha ideia de que tipo de carro era, mas podia ver os rastros que deixou, densos, pretos e fibrosos, como se tivesse queimado pneu por todo o caminho.
Ele parou por um instante e olhou para trás, para o corpo material frio nos braços de Lenore.
Então deixou que os rastros do carro o puxassem para a rua, atravessando a Second Avenue, depois para o sul, até a Delancey. Sentia-se cada vez mais fraco, sua visão turvando, e os barulhos da cidade ao fundo começando a atrapalhar sua audição. Ele se concentrou com mais intensidade, arrancando as últimas reservas de força do seu corpo físico.
O carro virou para o norte na Bowery e parou diante de um decadente armazém cinzento.
Fortunato avançou para a calçada, viu as pegadas quando cruzaram do carro até a porta do prédio em frente.
Ele as seguiu escada acima. Sentiu como se tivesse preso a uma tira elástica gigantesca e esticada no limite. Cada degrau exigia mais dele que o último. Por fim, as pegadas desapareceram na entrada para um loft, e ele sabia que estava acabado.
O barulho do trânsito aumentou a velocidade em torno dele, e ele zuniu de volta pelo caminho que o levou até ali, irresistivelmente atraído para seu corpo. Exultante, exausto, como se tivesse drenado a si mesmo no sexo, sentiu-se como um mergulhador numa piscina. Lenore cambaleava sob seu repentino peso morto, e então ele deslizou para o chão, inconsciente.
– Não – disse ela e rolou para longe dele. – Não posso.
Ela tinha olheiras roxas sob os olhos e seu corpo estava lânguido de exaustão. Fortunato perguntou-se como havia sido capaz de colocá-lo em um táxi e ajudá-lo a subir as escadas até o apartamento.
– Não entendo – ele comentou.
– Você absorve uma carga e então o sexo pega tudo pra ele. Entende? O poder, o shakti.
Apenas com a magick tântrica você absorve a energia de volta. Não apenas a sua, mas qualquer energia que eu passe para você.
– Então, quando você goza, você entrega essa shakti.
– Exato.
– E você me dá tudo que você tem.
– Isso mesmo, garotão. Fico toda fodida.
Fortunato esticou a mão para pegar o telefone.
– O que você está fazendo?
– Sei onde o assassino está – disse ele, discando. – Se você não puder me dar a força para pegá-lo, vou ter que arranjá-la em outro lugar. – Ele não gostou do jeito que as palavras saíram, mas estava cansado demais para se importar naquele instante. Cansado e algo mais. Seu cérebro estava acelerado por conhecer seu poder, e sentia que ele o mudava, assumia o controle.
O telefone tocou do outro lado da linha, e então ele ouviu Miranda atendê-lo. Ele cobriu o bocal com a mão e virou-se para Lenore.
– Você vai me ajudar?
Ela fechou os olhos e fez algo com a boca que era quase um sorriso.
– Acho que uma puta deve ser esperta o bastante para não ter ciúmes.
– Gueixa – retrucou Fortunato.
– Tudo bem – Lenore disse. – Mostro pra ela o que fazer.
Eles cheiraram uma carreira de cocaína cada um e dividiram uma forte maconha vietnamita.
Lenore jurou que apenas ajudaria a sintonizá-los. Miranda, alta, cabelos pretos, exuberante, a mais fisicamente competente de suas mulheres, tirava devagar a cinta-liga, as meias e o sutiã preto tão fino que ele podia ver as formas ovais e escuras de seus mamilos.
Quarenta minutos depois, Lenore passou pelo pé da cama. Miranda, com a cabeça pendendo sobre a beirada, braços esticados imitando um crucifixo, fechou os olhos.
– Chega – ela sussurrou. – Não consigo mais gozar. Acho que nunca mais vou conseguir.
Fortunato ficou de joelhos. Estava coberto com um brilho uniforme de suor e pensou poder ver uma luz dourada irradiando sob sua pele. Olhou-se no espelho sobre a penteadeira de Lenore e não ficou alarmado, nem mesmo surpreso, quando viu que sua testa havia começado a inchar com o poder.
Ele estava pronto.
O táxi o deixou a duas quadras de distância, na Delancey. Por segurança, tinha a arma calibre .32
de Lenore enfiada na parte de trás da calça, escondida pelo seu blazer preto de linho. Mas, se pudesse, faria o serviço com as próprias mãos. De qualquer forma, os policiais não teriam chance de colocar o assassino de volta nas ruas.
Seus olhos não conseguiam focalizar direito e tinha de manter as mãos nos bolsos, pois não confiava nelas. Por algum motivo, não estava com medo algum. Sentiu-se com 15 anos de novo, como quando começou a fazer aquilo com as garotas treinadas por sua mãe. Por meses ele teve medo de tentar, por conta daquilo que sua mãe poderia dizer ou fazer; assim que ele se entregou, não se importou mais.
Era o mesmo agora. Estava descuidado, carregado com o aroma obscuro e a pressão quente e úmida do sexo, mal operando no mundo real. Vou enfrentar um assassino, disse a si mesmo, mas eram apenas palavras. No fundo, ele sabia que estava protegendo suas mulheres e era apenas isso que importava.
Subiu as escadas para o loft. Já passava da meia-noite, mas ele podia ouvir pela porta de aço um aparelho de som berrando “Street-Fighting Man”, dos Rolling Stones. Ele bateu na porta com o punho cerrado.
Engoliu em seco, e a garganta ficou gelada.
A porta se abriu.
Do outro lado surgiu um garoto de 17, 18 anos, pálido, magro, mas bem-definido. Tinha cabelos loiros e longos e um rosto que poderia ter sido bonito, exceto por uma erupção de espinhas em volta do queixo, disfarçada de modo tosco com maquiagem. Vestia uma camisa amarela com bolinhas pretas e calças boca de sino de brim.
– O que você quer? – perguntou ele por fim.
– Falar com você – retrucou Fortunato. Sua boca estava seca e seus olhos ainda não focalizavam direito.
– Sobre o quê?
– Erika Naylor.
O rapaz não reagiu.
– Nunca ouvi falar dela.
– Eu acho que já.
– Você é policial? – Fortunato não respondeu. – Então, cai fora.
Ele começou a fechar a porta. Fortunato se lembrou do beco, quando mandou os curingas embora.
– Não – ele falou, olhando com firmeza nos olhos sem brilho do rapaz. – Me deixa entrar.
O rapaz hesitou, olhando surpreso, mas não cedeu. Fortunato empurrou a porta com o ombro, lançando o rapaz para trás no loft e para o chão.
O cômodo estava escuro e a música, ensurdecedora. Fortunato encontrou um interruptor de luz e o acionou, em seguida deu um passo involuntário para trás quando seu cérebro registrou o que viu.
Era o apartamento de Lenore deformado à perversão, o ocultismo moderno e sexy transformado até o fim em tortura, assassinato e estupro. Como no apartamento dela, havia uma estrela de cinco pontas no chão, mas essa era apressada, desigual, riscada nas tábuas com algo afiado e então respingada com sangue. Em vez de veludo, velas e madeira exótica, havia um colchão listrado de cinza num canto, uma pilha de roupas sujas e uma dúzia ou mais de fotos Polaroid pregadas na parede com um grampeador industrial.
Ele sabia o que estava prestes a encontrar, mas andou até a parede de qualquer forma. Das 14 mulheres nuas e desmembradas, ele reconheceu três. A última, no canto inferior direito, era Erika.
Ele não conseguia pensar com a música rugindo na sua direção. Olhou ao redor, buscando o toca-discos, e viu o rapaz loiro erguer-se sobre pernas trêmulas e sair tropeçando em direção à porta.
– Pare! – gritou Fortunato, mas sem contato visual isso não significava nada.
Irado e em pânico, Fortunato atacou. Agarrou o garoto pela cintura e o levou até a parede de gesso vazia.
E, de repente, estava tentando segurar um animal furioso, cheio de joelhos e unhas e dentes.
Fortunato afastou-se por instinto e observou a lâmina de um enorme canivete reluzir entre eles, talhando a jaqueta, a camisa e a pele, saindo margeada de vermelho.
Vou morrer, pensou Fortunato. A arma estava enfiada na parte de trás de sua calça, muito longe para alcançá-la antes de a lâmina dar uma segunda estocada, cortando mais fundo, deslizando até o fim. Matando-o.
Ele olhou para a lâmina. Antes de saber o que estava fazendo, olhou firme para ela, concentrado, como havia feito ao ler os livros no apartamento de Lenore, como fez no beco do Bairro dos Curingas.
E o tempo desacelerou.
Ele conseguiu ver não apenas seu próprio sangue no canivete, mas o sangue dos outros, de Erika e de todas as outras mulheres nas fotografias, removido, mas ainda preso à memória do metal.
Ele se afastou do garoto loiro insano, movendo-se com lentidão de sonho pelo ar adensado, mas ainda assim mais rápido do que o garoto ou sua faca. Pôs o braço para trás, sentiu o cabo da arma sob os dedos. A música dos Rolling Stones, mais lenta, transformou-se num canto fúnebre, enquanto ele sacava a arma, apontava para o garoto, via os olhos pálidos arregalarem-se.
Não o mate, pensou repentinamente. Não até saber por quê. Deslocou o cano até apontar para o ombro direito do rapaz e puxou o gatilho.
O ruído começou como uma vibração na mão de Fortunato, acelerou como um foguete, tornou-se um rugido, um curto estrondo de trovão, e então o tempo voltou a andar, o rapaz tombando para trás com o impacto da bala – embora seus olhos não mostrassem isso –, tirando a faca de sua inútil mão direita com a esquerda e cambaleando para a frente novamente.
Possuído, Fortunato pensou com horror e atirou na altura do coração do garoto.
Cambaleando para trás, Fortunato abriu a camisa e viu que o corte longo e superficial atravessando seu peito já havia parado de sangrar, nem precisaria de pontos. Abriu com violência a porta do corredor e cruzou a sala para chutar a tomada do fonógrafo. Então, no silêncio abafado, virou-se para encarar o morto.
A energia formou ondas e cresceu em seu interior. Ele pôde ver o sangue das mulheres nas mãos do garoto morto, ver o rastro de sangue que saía do pentagrama tosco no chão, ver os rastros onde o rapaz ficara em pé, as sombras onde as mulheres morreram, e lá, palidamente, como se alguém tivesse apagado de alguma forma, as marcas deixadas por algo mais.
Linhas de energia ainda sobreviviam dentro do pentagrama, como ondas de calor cintilando numa autoestrada no deserto. Fortunato cerrou os punhos, sentiu o suor frio gotejar do peito. O que realmente aconteceu aqui? O garoto conjurou de alguma forma um demônio? Ou a loucura dele foi apenas um instrumento para algo imensamente maior, alguma coisa infinitamente pior do que alguns assassinatos aleatórios?
O rapaz poderia ter falado, mas estava morto.
Fortunato foi até a porta, pousou a mão na maçaneta. Fechou os olhos e recostou a cabeça contra o metal frio. Pense, disse para si mesmo.
Limpou as impressões digitais da pistola e a jogou perto do corpo. Deixe que a polícia tire suas conclusões. As polaroides devem dar muito o que pensar.
Ele virou para partir novamente, mas não conseguia deixar aquela sala.
Você tem o poder – ele pensou alto. – Pode sair daqui. Sabe que você tem o poder e se recusa a usá-lo?
O suor escorria de seu rosto e dos braços.
O poder estava no yod, no rasa, no esperma. Um poder incrível, mais do que ele saberia como controlar naquele momento. O suficiente para trazer os mortos à vida.
Não, ele pensou. Não posso fazer isso. Não só porque o pensamento o deixou enjoado, mas porque sabia que isso o mudaria. Seria um passo sem volta, o passo com o qual ele desistiria de uma vez por todas de sua humanidade.
Mas o poder já o modificara. Ele já viu coisas que, sem ele, nunca teria entendido. O poder corrompe, disseram a ele, mas agora ele viu como isso era ingênuo. O poder esclarece. O poder transforma.
Ele desafivelou o cinto do rapaz morto, abriu o zíper do jeans boca de sino e arrancou-o. O rapaz havia cagado e mijado neles ao morrer, e o cheiro fez Fortunato recuar. Lançou as calças num canto e virou o rapaz de bruços.
Não posso fazer isso, pensou Fortunato. Mas ele já estava excitado e as lágrimas rolavam em seu rosto quando ajoelhou entre as pernas do garoto morto.
Ele gozou quase imediatamente. Isso o deixou fraco, mais debilitado do que pensou ser possível.
Arrastou-se para longe do rapaz, puxando as calças para cima, nauseado, enojado e exausto.
O cadáver do rapaz começou a se contorcer.
Fortunato foi até a parede, pôs-se em pé. Estava zonzo e sua cabeça latejava de dor. Viu algo no chão, algo que havia caído das calças do rapaz. Era uma moeda, um centavo do século XVIII, tão reluzente que parecia avermelhada na luz implacável do loft. Ele enfiou a moeda no bolso, caso tivesse algum significado mais tarde.
– Olhe pra mim – disse ao cadáver.
As mãos do rapaz morto estavam cravadas no chão, arrancando lascas sangrentas. Devagar ele se ergueu sobre as mãos e os joelhos e, em seguida, levantou-se, cambaleando. Virou-se para Fortunato e encarou-o com olhos vazios.
Os olhos estavam horríveis. Disseram que a morte era o nada, que mesmo alguns segundos dela seriam demais.
– Fala – ordenou Fortunato. Sem ódio, mas a memória da fúria o fez continuar. – Bunda branca maldito, diz alguma coisa. Fale o que isso significa. Me diz por quê.
O cadáver encarava Fortunato. Por um instante, algo tremeluziu, e o rapaz morto disse:
– TIAMAT.
Apesar de sussurrada, a palavra foi perfeitamente clara. Então, o garoto morto sorriu. Com as duas mãos cravou os dedos na própria garganta e arrancou-a, rasgando a pele do pescoço e, enquanto Fortunato assistia, rasgou-o ao meio.
Lenore estava dormindo. Fortunato jogou as roupas no lixo e ficou no chuveiro por trinta minutos, até a água quente lavar tudo. Depois, sentou-se à luz das velas na sala de estar de Lenore e começou a ler.
Encontrou o nome TIAMAT num texto sobre os elementos sumérios da Magick de Crowley. A serpente, Leviatã, KUTULU. Monstruosa, maligna.
Sabia, sem hesitar, que havia encontrado apenas um único tentáculo de algo que desafiava sua compreensão.
E, por fim, dormiu.
Acordou com o som de Lenore fechando as fivelas de uma mala.
– Você não entende? – ela tentou explicar. – Sou como uma… uma tomada de parede a qual você se conecta para recarregar quando chega em casa. Como posso viver assim? Você conseguiu o que eu sempre quis, o poder verdadeiro para fazer Magick real. E teve sem nem querer. E todo o estudo, trabalho e prática que fiz durante a vida toda não significou merda nenhuma, porque não fui infectada por nenhum maldito vírus alienígena.
– Eu te amo – disse Fortunato. – Não vá.
Ela lhe disse para ficar com os livros, com o apartamento também se quisesse. Disse que lhe escreveria, mas não precisava de Magick para saber que estava mentindo.
E então ela foi embora.
Ele dormiu por dois dias, e no terceiro Miranda o encontrou, e eles fizeram amor até ele estar forte o suficiente para dizer a ela o que havia acontecido.
– Ao menos ele está morto – comentou Miranda. – O resto não me importa.
Quando ela o deixou naquela noite para encontrar um cliente, ele ficou sentado na sala de estar por mais de uma hora, incapaz de se mover. Logo, ele sabia, teria de começar a procurar por outro ser cujos traços ele viu no loft do garoto morto. Esse pensamento sozinho o paralisava de ódio.
Por fim, pegou o Magick, de Crowley, e o abriu no capítulo V. “Cedo ou tarde”, Crowley escreveu, “o crescimento suave e natural dá lugar à depressão – a Noite Obscura da Alma, um cansaço infinito e aversão à obra”. Mas, no final, viria uma “condição nova e superior, uma condição apenas possível pelo processo da morte”.
Fortunato fechou o livro. Crowley sabia, mas estava morto. Sentia como se fosse o último homem numa rocha estéril de um planeta.
No entanto, não era o último homem. Era um dos primeiros de algo novo, algo que tinha o potencial para ser melhor do que o humano.
Aquela mulher na manifestação, C.C. Ela disse que você devia cuidar dos seus pares. O que lhe custaria salvar centenas de curingas de morrer no calor e na umidade putrefata do Vietnã? Não muito. Não muito mesmo.
Ele encontrou o folheto no bolso da jaqueta. Devagar, com crescente convicção, discou os números no telefone.
Transfigurações
Victor Milán
O vento noturno de novembro açoitava suas calças, espetando as pernas finas como galhos, enquanto ele se esgueirava para dentro de um pequeno bar próximo ao campus. A escuridão latejava como uma ferida, pulsando em vermelho, azul e ruído. Ele parou, hesitando à porta com um desajeitado casaco xadrez laranja e verde com o qual a mãe o mandou para o MIT três anos antes, pendurando-o em seus ombros estreitos como um anão morto. Não seja covarde, Mark, disse a si mesmo. É pela ciência.
A banda investia com “Crown of Creation” e a despejava na pista, enquanto ele buscava instintivamente o canto mais escuro com uma xícara de chá na mão – ao menos havia aprendido que era antiquado pedir Coca ou café.
Fora isso, não aprendeu nenhum dos movimentos depois de semanas de pesquisa. Do jeito que estava vestido, com calças curtas e camisa de poliéster em tom pastel do tipo que sempre sobra dos lados como uma vela ao vento, poderia correr o risco de ser confundido com um policial da Narcóticos – como aquele caso no outono logo após Woodstock, no ano em que Gordon Liddy criou a Agência de Combate às Drogas, DEA, a fim de dar a Nixon um problema para desviar a atenção da guerra. Mas Berkeley e São Francisco eram cidades modernas, cidades universitárias; eles conheciam um aluno de ciências quando viam um.
O Glass Onion não tinha propriamente uma pista de dança; os corpos sacudiam-se no vermelho crepuscular e no incandescer índigo entre as mesas ou se espremiam num vão diante do minúsculo palco, com um chiado de miçangas e franjas de camurça, e o ocasional brilho opaco das jóias indianas. Ele permaneceu o mais longe possível do centro da ação, mas, sendo Mark, inevitavelmente trombava em todos por quem passava, deixando uma trilha de olhares tímidos de
“me desculpe” para trás. Suas orelhas salientes queimavam, estava prestes a alcançar seu objetivo, a pequena mesa bamba feita de uma bobina de cabos da empresa Ma Bell com uma única cadeira de auditório verde amassada atrás dela e, dentro de um pote de manteiga de amendoim, uma vela apagada que balançou quando ele passou tropeçando em alguém.
A primeira coisa que aconteceu foi que seus imensos óculos de tartaruga escorregaram da inclinação do nariz e desapareceram na escuridão. Em seguida, agarrou com as duas mãos a pessoa na qual trombou quando perdeu o equilíbrio. A xícara de chá atingiu o chão com estrondo e estardalhaço. “Oh, meu caro, oh, por favor, me desculpe, sinto muito…” lhe caía da boca como bolas de chiclete de uma máquina quebrada.
Ele percebeu que havia certa maciez na pessoa que suas mãos magras estavam agarrando com tanto fervor, e um cheiro de almíscar e patchuli destacava-se do miasma geral e abriu caminho até seu olfato. Ele praguejou para si mesmo: Você tinha de atropelar uma mulher bonita . Ao menos ela cheirava bonito.
Então ela deu um tapinha em seu braço, murmurando que sentia muito, e eles se agacharam juntos para recolher a xícara de chá e os óculos, enquanto os corpos rodavam e rodopiavam ao redor deles, e então as cabeças se chocaram e se encolheram entre desculpas, e os dedos febris de Mark encontraram os óculos milagrosamente intactos, e encaixaram-nos de volta na frente dos olhos, e ele piscou e se viu a dez centímetros de distância do rosto de Kimberly Ann Cordayne.
Kimberly Ann Cordayne: sim, a garota dos seus sonhos. Amor platônico de infância desde o primeiro momento em que colocou os olhos nela, de aventalzinho, aos 5 anos, pedalando seu triciclo ao descer a modesta rua numa área residencial ao sul da Califórnia, onde moravam. Ficou tão hipnotizado pela sua perfeição de cartão Hallmark que a bola de sorvete de framboesa caiu da casquinha para acabar derretendo na calçada quente, e ele nem percebeu. Ela pedalava com os dedos dos pés expostos e passava com o nariz arrebitado, sem nunca se dar conta da existência dele. Daquele dia em diante, seu coração se perdeu.
Esperança e desespero cresceram como uma onda dentro dele. Ele se empertigou, a língua enrolada demais para emitir palavras. E ela gritou:
– Mark! Mark Meadows! Porra, como é bom te ver. – E o abraçou.
Ele ficou ali parado, piscando como um idiota. Nenhuma mulher que não fosse parente o havia abraçado antes. Ele engolia em seco convulsivamente. E se eu tiver uma ereção? Muito atrasado, ele deu leves tapinhas nas costas dela, na altura da cintura.
Ela se afastou, segurando-o à distância de um braço.
– Me deixa olhar para você, cara. Uau, você não mudou nada.
Ele recuou. A gozação começaria agora, pela sua magreza, sua falta de jeito, seu corte de cabelo à escovinha, as espinhas ainda espalhadas por suas feições mirradas, supostamente pós-adolescentes – e seu defeito mais recente e mais agravante, sua incapacidade total e absoluta de sequer se aproximar de ser descolado. No colegial, Kimberly Ann evoluiu da indiferença para se transformar no seu principal tormento – ou melhor, uma sucessão de atletas em cujos bíceps
avantajados ela se pendurava, arrulhando elogios, assumiu esse papel.
Mas ali estava ela, puxando-o para aquela mesa de canto.
– Vamos lá, vamos falar dos velhos tempos ruins.
Era uma oportunidade pela qual ele esperou com ceticismo por três quartos de sua vida. Cara a cara com seu ideal de amor e beleza, enquanto a banda no palco atacava com “Blackbird”, dos Beatles – e ele não conseguia pensar em porcaria nenhuma para dizer.
Kimberly Ann, no entanto, ficou mais do que feliz em falar. Sobre as mudanças pelas quais passou desde a boa e velha escola Rexford Tugwell. Sobre as pessoas extraordinárias que conheceu na Universidade Wittier, como elas a deixaram ligada e abriram seus olhos. Como desistiu no meio do último ano e foi para lá, para a Área da Baía de São Francisco, a meca brilhante do Movimento. Como ela se encontrou desde então.
Talvez ele não tenha mudado, mas ela definitivamente mudou. O rabo de cavalo preto e liso, as saias plissadas, o batom pastel e as unhas pintadas foram embora, a perfeição careta de aeromoça da filha única de um promissor executivo do Bank of America. O cabelo de Kimberly havia crescido muito, passando bastante da altura dos ombros, uma cabeleira grande, excêntrica e volumosa à la Yoko Ono. Vestia uma bata com babados e enfeites de cogumelos e planetas, uma saia volumosa com um tingimento que lembrava a Mark dos shows de fogos de artifício da Disneylândia. Sabia que seus pés estavam descalços, pois tinha pisado em um deles. Ela parecia mais linda do que ele jamais poderia imaginar.
E aqueles olhos pálidos, olhos de céu de inverno, que o tinham gelado no passado, agora brilhavam para ele com tanta ternura que mal aguentava olhá-los. Era o paraíso, mas de alguma forma ele não conseguia aceitar. Sendo Mark, tinha de perguntar.
– Kimberly – ele começou.
Ela levantou dois dedos.
– Espere um pouco, cara. Deixei esse nome pra trás com meu estilo burguês. Agora me chamo Girassol.
Ele balançou a cabeça e mexeu o pomo de adão.
– Tudo bem… Girassol.
– O que traz você aqui, cara?
– É uma experiência.
Ela o encarou através da borda do copo de geleia cheio com vinho, subitamente desconfiada.
– Acabei de terminar meu trabalho de fim de curso no MIT – ele explicou num fôlego só. – Agora estou aqui para fazer o doutorado em bioquímica na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
– E o que isso tem a ver com esse lugar?
– Bem, estava trabalhando para entender como o DNA codifica as informações genéticas.
Publiquei alguns artigos dessas coisas. – Na verdade, ele era comparado ao Einstein no MIT, mas você nunca o flagraria dizendo isso. – Mas neste verão encontrei algo que me interessou muito mais. A química da mente.
Seus olhos, um vazio azul.
– Psicodélicos. Drogas psicoativas. Li todo o material: Leary, Alpert, a coleção do Solomon.
Isso realmente… como é mesmo a expressão? Realmente me deixou ligadão.
Ele se curvou para a frente, os dedos batendo instintivamente nas canetas hidrográficas alojadas no protetor plástico dentro do bolso em seu peito. Empolgado, ele espalhava perdigotos inconscientes sobre a mesa de bobina.
– É uma área vital de pesquisa. Acho que poderia nos levar a responder questões muito importantes: quem somos, como e por quê.
Ela olhou para ele com meia testa franzida e meio sorriso.
– Ainda não manjei nada.
– Estou fazendo um trabalho de campo a fim de estabelecer um contexto para minha pesquisa.
Na cultura das drogas… a, hum, contracultura. Tentando achar a maneira como o uso de alucinógenos altera a perspectiva das pessoas.
Ele umedeceu os lábios.
– É realmente estimulante. Existe todo um mundo que eu não sabia que existia bem aqui. – Um tique nervoso rodeava as fronteiras esfumaçadas do Onion. – Mas, de alguma forma, eu não consigo… bem, fazer contato de verdade. Comprei todos os discos do Grateful Dead, mas ainda me sinto um forasteiro. Eu… eu quase sinto que faria parte de todas essas coisas de hippie.
– Hippie? – ela retrucou com um riso de deboche refinado. – Mark, onde você esteve? Estamos em 1969. O movimento dos hippies morreu faz dois anos. – Ela balançou a cabeça. – Você já experimentou alguma dessas drogas que você está tentando estudar?
Enrubescido, ele respondeu.
– Não. Eu… bem… não estou pronto para chegar a esse estágio.
– Pobre Mark. Você está tão nervoso. Parece que este será o trabalho perfeito para mim, tentar mostrar a você o que está acontecendo, Mr. Jones.
A referência a Bob Dylan o deixou perdido, mas de repente seu rosto se iluminou, seu nariz e bochechas e outros traços se levantaram de alegria, e ele mostrou seus dentes cavalares.
– Quer dizer que vai me ajudar? – Ele agarrou a mão dela, tirando os dedos em seguida, como se temesse deixar marcas. – Você vai me mostrar as coisas por aí?
Ela concordou com a cabeça.
– Maravilha! – Ele pegou a xícara de chá, bateu contra os dentes de cima, percebeu que estava vazia e voltou a baixá-la. – Por quê? Quer dizer, eu… bem, você nunca, hum, falou comigo assim antes.
Ela pegou a mão dele entre as suas e ele achou que o coração pararia.
– Ah, Mark – disse ela terna, serena. – Sempre o analítico. É assim desde que meus olhos se abriram. Enxergo a beleza das pessoas do jeito que elas são, sem contar os porcos que oprimem o
povo. E eu vejo você… careta ainda. Mas não está totalmente vendido, cara. Eu consigo ver, consigo ler na sua aura. Ainda é o bom e velho Mark.
A cabeça dele rodopiava como um carrossel fora de controle. Cético, o lado esquerdo do cérebro trazia à tona hipóteses de que ela estava com saudades de casa, que ele era parte de sua infância e do passado do qual ela se desligou, talvez, de forma tão definitiva. Ele o ignorou. Era Kimberly Ann, invulnerável, inatingível. A qualquer momento ela reconheceria o impostor que ele era.
Não foi o que aconteceu. Eles conversaram noite adentro, ou melhor, ela falou e ele escutou, querendo acreditar, mas ainda incapaz de fazê-lo. Quando a banda fez um intervalo longuíssimo, alguém botou o lado A do novo álbum do Destiny na vitrola. A gestalt ficou marcada de uma vez por todas: a escuridão e as luzes coloridas dançando no cabelo e no rosto da mulher mais linda do mundo, e atrás dela o barítono rouco de Tom Marion Douglas cantava o amor e a morte e o
deslocamento de antigos deuses e destinos que era melhor não mencionar. Aquilo, aquela noite mudou Mark. Mas ele ainda não sabia.
Ele estava quase tão saciado com o milagre para ficar extasiado ou mesmo surpreso quando, no meio da segunda e exígua parte do show, Kimberly levantou-se de repente, agarrando a mão dele.
– Isso aqui vai ficar uma chatice. Esses caras não sabem pra onde vão. Por que não vamos pro meu apê, bebemos um pouco de vinho, ficamos um pouco altos? – Seus olhos o desafiavam, e houve um pouco daquela velha arrogância, o antigo gelo, enquanto ela calçava rapidamente as botas de couro com cadarços vermelhos. – Ou você é careta demais para isso?
Ele sentiu como se tivesse uma bola de algodão no meio da língua.
– Hum, eu… não. Ficaria mais do que feliz.
– Bacana. Ainda há esperança para você.
Atordoado, Mark a seguiu para fora do bar até uma loja de bebidas com uma imensa grade prisional correndo sobre as janelas, onde um proprietário careca e pálido lhes vendeu uma garrafa de vinho Ripple com tédio em seus olhos de peixe. Mark era virgem. Ele tinha suas fantasias, as revistas Playboy com as páginas grudadas empilhadas entre artigos científicos sob a cama caindo aos pedaços em seu apartamento nas proximidades de Chinatown. Mas nem mesmo em fantasia ele ousou imaginar-se dormindo com a resplandecente Kimberly Ann. E agora ele pairava pelas ruas como se não tivesse peso, sem nem perceber os malucos e os sem-teto que trocavam cumprimentos com Girassol quando eles passavam.
E mal percebeu os rumores vacilantes quando Girassol disse:
– … conhecer o meu velho. Você vai amar, ele é um cara muito legal.
Então as palavras chocaram-se contra o cérebro como um martelo de chumbo. Ele tropeçou.
Kimberly agarrou-o pelo braço, rindo.
– Pobre Mark. Sempre tão tenso. Venha, estamos quase lá.
Então, ele entrou no pequeno apartamento de um cômodo com fogão elétrico de uma boca e uma torneira vazando no banheiro. Numa parede, um colchão restaurado com uma colcha com estampa de madras estava recostado numa porta escorada em blocos de concreto. De pernas cruzadas na colcha embaixo de um pôster gigante do sagrado Che, estava sentado Philip, o Velho da Girassol.
Tinha olhos pretos e intensos e vestia uma camiseta preta esticada sobre o peito musculoso com um punho vermelho-sangue e a palavra Huelga escrita embaixo dele. Estava assistindo a vídeos de uma manifestação numa pequena TV portátil velha com uma antena feita de cabide.
– Bem na hora – ele disse quando entraram. – O Rei-Lagarto botou a cabeça no lugar. Esses ases de terno e gravata que lutam contra a guerra trabalhando pro sistema, como o Tartaruga, não sabem o que é enfrentar a Amérika fascista. Quem é você?
Depois de Girassol arrastá-lo para um canto e explicar com sussurros ríspidos que Mark não era um espião da polícia, mas um velho, velho amigo, e não me envergonhe, seu idiota, ele concordou em apertar a mão de Mark. Ao passar por ele, o rapaz esticou o pescoço para a TV; o rosto barbado do homem sendo entrevistado parecia familiar.
– Quem é ele?
Philip repuxou o canto da boca.
– Tom Douglas, quem mais? Vocalista do Destiny. O Rei-Lagarto.
Ele esquadrinhou Mark da cabeça aos mocassins.
– Talvez você nunca tenha ouvido falar dele.
Mark piscou, sem dizer palavra. Conhecia o Destiny e Douglas, pois em sua pesquisa comprou o novo álbum deles, Black Sunday, capa toda marrom dominada por um imenso sol negro. Mas ficou muito envergonhado para dizê-lo.
Os olhos de Girassol ficaram dispersos.
– Você precisava tê-lo visto hoje na manifestação. Enfrentando os porcos como o Rei-Lagarto.
Muito bacana.
Amenidades à parte, os dois arrumaram um dispositivo de vidro e tubos de borracha, fecharam o recipiente cheio de droga, e acenderam. Se Girassol tivesse oferecido um baseado para Mark, ele teria aceitado. Mas agora estava se sentindo novamente estranho e alienígena, como se sua pele não se encaixasse, e recusou. Foi para um canto, desengonçado, perto de uma pilha de Daily Workers, o jornal do Partido Comunista, enquanto seu anfitrião e sua anfitriã ficaram sentados na cama fumando a droga, e o atarracado e intenso Philip dava uma palestra ao rapaz sobre a Necessidade da Luta Armada até ele pensar que sua cabeça cairia do pescoço, e Mark tomou a garrafa inteira do vinho doce enjoativo – ele também não bebia – e, finalmente, Kimberly começou a se aconchegar ao seu Velho e a acariciá-lo de uma maneira que nitidamente inquietou Mark, e ele murmurou desculpas, tropeçou e de alguma forma encontrou seu caminho para casa.
Quando a primeira luz da aurora vazou pelas janelas de seu apartamento sombrio, ele regurgitou o conteúdo da garrafa de Ripple em sua privada rachada e custou 15 descargas até ficar limpa novamente.
E assim Mark começou a cortejar Girassol, nome de batismo Kimberly Ann Cordayne.
I want you… As palavras derramavam-se ao vento, insolentes, sugestivas, a voz vinda do radinho japonês, uma mistura de âmbar derretido e goles de uísque de todo o tipo de arruaceiros nas festas de Ano-Novo: Wojtek Grabowski fechou bem seu abrigo sobre seu peito largo e tentou não ouvir.
O guindaste deu ré como um dinossauro zumbi, balançou a viga mestra na direção dele. Ele fez um gesto para o operador com movimentos exagerados como se estivesse embaixo d’água. I want you… a voz insistia. Sentiu um lampejo de irritação. “A blast from the past, de 1966, e a primeira música do Destiny”, o locutor tinha piado com sua voz de adolescente profissional. Esses americanos, Wojtek pensou, acham que 1966 é história antiga.
– Desliga essa merda de boogie-woogie – alguém rosnou.
– Vá te catar – o dono do rádio retrucou. Tinha 20 anos, 2 m de altura e seis meses que voltara do Vietnã. Fuzileiro naval. Batalha de Khe Sahn. A discussão terminou.
Grabowski queria que o garoto desligasse o rádio, mas não gostava de ser afobado. Ele era tolerado – um trabalhador forte que conseguia beber mais do que o homem mais forte do lugar numa sexta-feira à noite. Mas ele se resguardava.
Enquanto a viga mestra descia, a equipe se juntava para colocá-la no lugar e o vento frio da baía atravessava o nylon fino e a pele envelhecida, ele pensou como era estranho estar ali – ele, o filho do meio de um próspero lar de Varsóvia, o fraquinho, o estudioso. Seria médico, professor.
Seu irmão Kliment – meio invejado, muito admirado, grande, arrojado, animado, com um bigode preto de soldado de cavalaria – iria para a Academia de Oficiais, seria um herói.
Então vieram os alemães. Kliment tomou um tiro nas costas do chefe do Exército Vermelho na floresta de Katyn. A irmã Katja desapareceu nos bordéis militares da Wehrmacht, o exército alemão. A mãe morreu no último bombardeio de Varsóvia, enquanto os soviéticos se escondiam no Vístula e deixavam os nazistas fazerem o trabalho sujo por eles. O pai, um funcionário menor do governo, sobreviveu à guerra por poucos meses até receber a própria bala na nuca, eliminado pelo regime “marionete” de Lublin.
O jovem Wojtek, com sonhos universitários destruídos para sempre, passou seis anos e meio como guerrilheiro nas florestas, terminando como fugitivo, exilado numa terra estrangeira com apenas uma esperança: manter o coração pulsando.
I want you. A repetição estava começando a encher a paciência. Crescera com Mozart e Mendelssohn. E a mensagem… Não era uma canção de amor, era uma canção de luxúria, um convite à prevaricação.
Amor significava mais para ele – um momento de umidade fresca, fluindo diante de sua visão, arrastado pela mão gélida do vento. Lembrou-se de seu casamento com Anna, sua garota guerrilheira, naquilo que os stukas, bombardeiros de mergulho alemães, deixaram da igreja de um vilarejo, e mais tarde o próprio padre estava enfiado na sua batina esfarrapada e executava a Tocata e fuga de Bach no órgão, milagrosamente intacto, enquanto uma garota esfaimada se contraía para controlar os foles. No dia seguinte eles caíram numa emboscada dos fascistas, mas naquela noite, naquela noite…
Outra viga mestra levantou-se. Anna foi embora antes dele, escondida por espiões britânicos solícitos em junho de 1945, seguindo para os Estados Unidos com um filho no ventre. Ele lutou o quanto pôde, então a seguiu.
Agora, ele morava numa terra que amava quase como uma amante. Nada mais restava. Em 23 anos, não encontrou sinal da mulher que amara e da criança que ela deve ter parido. E, Virgem Santa, como ele a procurou.
I waaaaaant you…
Ele cerrou os olhos. Se eu precisar aguentar essa letra ridícula mais uma vez… … to die with me.
A música diminuiu até virar um lamento sombrio. Por um momento, ele ficou paralisado, como se o vento tivesse transformado o suor em gelo dentro de sua camisa. O que parecia uma simples música açucarada era infinitamente mais… mais maléfica. Ali estava um homem, o porta-voz ungido da juventude, para quem as bajulações do amor… ou mesmo da luxúria… eram reduzidos a uma Totentanz, um ritual de morte.
A viga mestra bateu numa pilastra e soou como um sino rachado. Grabowski sacudia-se, gesticulando para o homem do guindaste parar. Ao mesmo tempo, ele se esforçou e ouviu o locutor dizer o nome: Tom Douglas.
Era um nome do qual ele se lembraria.
Mark esperava que fosse um galanteio. Dois dias depois, Girassol o encontrou vindo de uma reunião com seu orientador e o levou para um passeio no parque. Ela o levava a casas noturnas e sessões de bate-papo até tarde da noite, para reuniões de protesto no People’s Park, para shows.
Sempre como seu amigo, seu protegido, o amigo de infância que ela transformou em sua cruzada pessoal para resgatá-lo da caretice. Mas, infelizmente, não no papel elevado de seu Velho.
Mesmo assim, ele encontrou motivo para ter esperança. Nunca mais viu Philip, o machão. De fato, nunca viu nenhum dos namorados de Girassol mais de uma vez. Eram todos intensos, apaixonados, brilhantes (e me esforço para dizer isso a você). Comprometidos. E musculosos; aquela parte do gosto de Kimberly não havia mudado. Aquilo trazia a Mark muitos momentos de desespero, mas lá no fundo de seu peito magro ele acalentava a ideia de que algum dia ela sentiria a necessidade de um porto seguro, e viria para ele como uma ave marinha para a terra firme.
Mas, ainda assim, ele nunca, nunca cruzou o abismo que se abria entre ele e o mundo ao qual ansiava – o mundo que Girassol habitava e personificava.
Sobreviveu àquele inverno com a esperança e os biscoitos de aveia e gotas de chocolate que sua mãe enviou.
E com música. Veio de um lar onde cantavam junto com Mitch Miller, e Lawrence Welk ocupava o mesmo pináculo que Kennedy. Nunca se permitiu que o rock ’n’ roll maculasse o ar da casa de seus pais. Ele mesmo havia negligenciado tanto o rock como tudo que estivesse fora de seu laboratório e de suas fantasias secretas. Nunca soube da invasão dos Beatles, da prisão de Mick Jagger por licantropia no show da ilha de Wight, do Verão do Amor e da explosão do acid rock.
Naquele momento, tudo isso começou a invadi-lo. Os Stones. Os Beatles. Jefferson Airplane.
Grateful Dead. Spirit, Cream e os Animals e a santíssima trindade: Janis, Jimi e Thomas Marion Douglas.
Tom Douglas, principalmente. Sua música era depressiva como uma ruína antiga, escura, agourenta, meio oculta. Apesar de sua real afinidade ser o som mais suave de The Mamas & The Papas, de um tempo que já virara história, Mark foi atraído pelo toque de Douglas – humor negro, distorções obscuras –, mesmo que a fúria nietzschiana implícita na música o repelisse. Talvez esse Douglas fosse tudo que Mark Meadows não era. Famoso, vibrante, corajoso, descolado e irresistível às mulheres. E um ás.
Ases e o Movimento: de muitas maneiras, eles invadiram a corrente principal da formação flutuante da consciência pública como os pássaros de aço que o pai de Mark conduziu para a batalha ao norte do Vietnã. Havia mais ases no rock ’n’ roll do que em qualquer outro segmento da população. Seus poderes em geral não eram sutis. Alguns tinham a capacidade de projetar imagens estonteantes de luz, outros faziam música extravagante sem precisar de instrumentos. A maioria, porém, fazia jogos mentais com o público por meio de ilusão ou pura manipulação emocional. Entre eles, Tom Douglas – o Rei-Lagarto – era o mestre das viagens mentais.
A primavera chegou. O orientador acadêmico de Mark pressionou-o, querendo resultados. Mark começou a se desesperar, odiando-se pela falta de determinação, ou qualquer que fosse o defeito da humanidade que o impediu de precipitar-se à cena da droga, incapaz de continuar sua pesquisa até fazê-lo. Sentia-se como a mosca preservada num cubo de acrílico que seus pais inexplicavelmente possuíam quando ele era criança.
O mês de abril o viu se retirar do mundo para o microcosmo, para a realidade dos artigos dentro de suas paredes descascadas. Tinha todos os discos do Destiny, mas não podia tocá-los agora, ou dos Dead, dos Stones, ou do mártir Jimi. Eram uma provocação, um desafio que não podia enfrentar.
Comia seus biscoitos de chocolate e bebia refrigerante, e emergia do quarto apenas para satisfazer um vício nostálgico de infância: o amor pelos quadrinhos. Não apenas os antigos clássicos, fábulas do Super-Homem e do Batman dos dias de inocência, antes de a humanidade ser tomada pelo vírus carta selvagem, mas também seus sucessores modernos, que retratavam façanhas romanceadas dos ases reais, como livros baratos de Velho Oeste. Devorava-os com fervor de viciado. Satisfaziam por substituição o desejo que começara a corroê-lo por dentro.
Não eram os poderes meta-humanos; nada tão exótico. Nem sua ânsia de aceitação no misterioso mundo da contracultura, nem o desejo pelo corpo ágil sem sutiã da antiga Kimberly Ann Cordayne que o mantinha acordado após uma noite suada. O que Mark Meadows desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo era uma personalidade de fato. A capacidade de fazer, alcançar, deixar uma marca; boa ou má, pouco importava.
Numa noite próxima ao fim de abril, o refúgio de Mark foi invadido por uma batida na porta de seu apartamento. Ele estava deitado em seu colchão fino com lençóis nunca trocados, enterrando o longo nariz ainda mais nas páginas de um quadrinho da Cosh, o Tartaruga número 92. Sua primeira reação foi medo, então raiva pela intrusão. Decidiu que o mundo era demais para ele; resolveu deixá-lo quieto. Por que o mundo não fazia o mesmo com ele?
Novamente a batida, insistente, ameaçando o fino verniz da madeira sobre o vazio. Ele suspirou.
– O que você quer? – ele enfatizou as palavras com um choramingo.
– Vai me deixar entrar ou vou ter que derrubar essa coisa de papel machê que o porco do seu senhorio chama de porta?
Por um momento, Mark ficou lá, deitado. Então deixou a revista ao lado da cama no chão de madeira manchado e rumou para a porta com as meias encardidas e gastas.
Ela estava lá em pé com as mãos no quadril. Vestia outra saia com estampa de fogos de artifício de Quatro de Julho e uma blusa rosa desbotada, e contra o frio primaveril da baía ela trajava uma jaqueta jeans da Levi’s com a águia da União dos Trabalhadores Rurais estampada nas costas e um símbolo da paz costurado no lado esquerdo do peito. Irrompeu pela sala e bateu com força a porta.
– Olhe para esta merda – ela disse com um gesto que dividia as paredes no nível do peito. – Como um ser humano consegue viver desse jeito? Vivendo de açúcar processado – uma sacudida de cabeça apontando um prato com biscoitos meio devorados e um copo de refrigerante sem gás da semana anterior – e enchendo sua mente com bobagens autoritárias chauvinistas – outro gesto de lâmina afiada na direção das revistas do Tartaruga que jaziam amassadas numa pilha no chão.
Ela balançou a cabeça. – Você está se comendo vivo, Mark. Afastou-se dos seus amigos, as pessoas que te amam. Isso tem que parar.
Mark ficou lá, em pé, parado. Nunca tinha visto o olhar dela tão belo, embora ela o repreendesse, falando como a mãe dele – ou melhor, como o pai. E, então, seu corpo magro começou a vibrar como um diapasão, pois foi arrebatado por ela ter dito que o amava. Não era o tipo de amor ao qual ele ansiava e ardia por ela. Mas, emocionalmente, ele não estava em condições de escolher.
– É hora de você sair do casulo, Mark. Já pra fora do seu quarto-incubadora. Antes de você virar uma daquelas coisas de A noite dos mortos-vivos.
– Tenho trabalho pra fazer.
Ela levantou uma sobrancelha e empurrou a Tartaruga 92 com a ponta da bota.
– Você vem conosco.
– Aonde? – Ele piscava. – Quem?
– Você não ouviu. – Um balançar de cabeça. – Claro que não. Você está trancado aqui no quarto como uma espécie de monge. O Destiny está de volta à cidade. Vão dar um show no Fillmore hoje à noite. Meu pai mandou dinheiro. Tenho ingressos para nós, você, eu e Peter.
Então, pode se vestir; vamos sair agora para não ficarmos uma eternidade na fila. E, pelo amor de Deus, tente não se vestir como um careta.
Peter parecia um surfista e pensava que era Karl Marx. Parecia trazer para Mark a lembrança incômoda de um ex-namorado de Kimberly Ann, o capitão da equipe de futebol que estourou o nariz de Mark no colégio por ficar olhando a moça com muita avidez. Parado lá fora num casaco surrado de tweed e sua única calça jeans, respirando o ar úmido e a fumaça de carburador, ouvia Peter lhe dando a mesma palestra sobre o Processo Histórico que todos os namorados de Girassol lhe davam. Quando Mark não concordava com tanta empolgação – nunca via muito sentido nesses manifestos para formar uma opinião –, Peter lhe lançava um olhar azul nórdico e gélido, e resmungava Vou acabar com você.
Mais tarde, Mark descobriu que a fila era feita de plágios do velho barbudo comunista. Naquele momento, isso fez com que ele quisesse se enterrar na calçada gasta do lado de fora do auditório.
Não ajudava muito que Girassol ficasse lá sorrindo para os dois como se tivessem acabado de ganhar um prêmio para ela.
Felizmente, Peter entrou numa discussão aos berros com os policiais que os revistaram atrás de bebidas na porta, tirando sua ira de cima de Mark. Com consciência pesada, Mark desejou que os policiais espancassem a cabeça loura de Peter com um cassetete e o levassem em cana.
Mas o Destiny estava terminando a mais tumultuada de todas as suas turnês. Tom Douglas, cujo consumo de drogas e químicas alteradoras de consciência era tão lendário quanto seus poderes de ás, ficava bem bêbado antes de cada show. O Rei-Lagarto estava causando confusão; o show de New Haven na semana anterior havia culminado numa revolta que devastou o antigo campus de Yale e metade da cidade. De sua maneira desajeitada, os policiais estavam tentando evitar confrontos naquela noite. A revista não era o jeito mais astuto de fazê-lo, mas os policiais – e a gerência do Fillmore – não estavam interessados em deixar os garotos mais loucos do que Tom Douglas os deixaria de qualquer forma. Então, o público era revistado quando chegava, mas com cuidado. Peter e sua cabeça dourada passaram ilesos.
O primeiro show do Destiny de Mark foi tudo o que ele poderia imaginar elevado à décima potência. Douglas, como de costume, entrou duas horas atrasado no palco – da mesma forma como de costume estava tão chapado que mal conseguia ficar em pé, muito menos deixar de pular na multidão de fãs. Mas os três músicos que formavam o restante do Destiny estavam entre os mais talentosos artistas do rock. Sua experiência cobria uma profusão de pecados. E, aos poucos, em torno do esqueleto sólido de sua música, as incoerências e os gestos rudimentares de Douglas formavam algo mágico. A música foi uma explosão de ácido que dissolveu a prisão acrílica de Mark, até chegar à sua pele, e o atormentou.
No intervalo, as luzes foram apagadas como se uma grande porta fosse fechada. Em algum lugar, um tambor começou uma batida lenta, densa. Da escuridão irrompeu um choro agonizante de guitarra. Um único facho de luz azul caiu para iluminar Douglas, sozinho com o microfone no centro do palco, suas calças de couro reluzindo como pele de serpente. Começou a cantar, um lamento suave e baixo que aumentou em urgência e volume, a introdução de uma obra-prima, “Serpent Time”. Sua voz cresceu num grito repentino, as luzes e a banda surgiram de uma vez em torno dele, como uma borrasca contra as pedras, e eles foram lançados a uma odisseia nos domínios mais longínquos da noite.
Por fim, ele assumiu o aspecto do Rei-Lagarto. Uma aura preta pulsava dele como calor de uma fornalha e arrebatou o público. Seu efeito era ludibriador, ilusório, como uma nova e estranha droga: elevou alguns espectadores ao auge do êxtase, outros ele lançava num desespero profundo; alguns viam o que mais desejavam, outros encaravam direto a garganta do Inferno.
E no centro daquele esplendor da meia-noite, Tom Douglas parecia ficar maior do que a vida, e, naquele instante e novamente, tremeluziam, no lugar de suas feições vulgares e de certa forma belas, a cabeça e as abas reluzentes de uma cobra-real gigante, negra e ameaçadora, dando botes à esquerda e à direita enquanto ele cantava.
Quando a música chegava ao ápice em um uivo de voz, órgão e guitarra, Mark flagrou-se em pé com lágrimas correndo descaradamente sobre seu rosto magro, uma mão segurando a de Girassol, a outra a de um estranho, e Peter sentado, melancólico no chão com o rosto enterrado nas mãos, murmurando algo sobre a decadência.
O dia seguinte foi o último de abril. Nixon invadiu o Camboja. A reação alastrou-se nos campi da nação como uma bomba napalm.
Mark encontrou Girassol no caminho da baía, ouvindo discursos no meio de uma multidão enfurecida no parque Golden Gate.
– Não posso fazer isso – gritou ele por sobre o barulho da oratória. – Não posso passar da linha… não posso sair de mim mesmo.
– Ah, Mark! – retrucou Girassol com uma sacudida de cabeça furiosa e chorosa. – Você é tão egoísta. Tão… tão burguês. – Ela virou as costas e perdeu-se na floresta de corpos cantantes.
Aquela foi a última imagem que teve dela por três dias.
Ele a procurou, perambulando por grupos raivosos, as ondas de placas denunciando Nixon e a guerra, por entre a fumaça de maconha que pairava como perfume em torno de uma cerca viva de madressilvas. Seus trajes supercaretas atraíam olhares hostis; ele se esquivava de diversos encontros potencialmente feios apenas naquele primeiro dia sozinho, desesperando-se cada vez mais por sua incapacidade de se tornar um com a massa pulsante de humanidade em torno dele.
O ar estava carregado de revolução. Podia senti-la se formando como uma força estática, quase sentia o cheiro do ozônio. E não era o único.
Ele a encontrou numa vigília noturna, poucos minutos antes da meia-noite do dia 3 de maio.
Estava na posição de lótus numa pequena área de grama empalidecida que sobrevivera ao ataque violento de milhares de pés manifestantes, desafinando preguiçosamente num violão, enquanto ouvia os discursos gritados de um megafone.
– Onde você estava? – Mark perguntou, afundando até a canela na lama deixada por uma chuva passageira.
Ela apenas olhou para ele e balançou a cabeça. Nervoso, ele se jogou no chão ao lado dela com um pequeno chapinhar.
– Girassol, onde você estava? Procurei por você em todo canto.
Por fim ela o encarou, balançando a cabeça com tristeza.
– Estava com o povo, Mark – ela disse. – Onde é o meu lugar.
De repente, ela se curvou para a frente, pegou-o pelo braço com força surpreendente.
– Onde é o seu lugar também, Mark. É que você é tão… tão egoísta. É como se estivesse numa armadura. E você tem tanto a oferecer… agora, quando precisamos de toda a ajuda possível para combater o opressor antes que seja tarde demais. Liberte-se, Mark. Liberte-se.
Espantado, viu uma lágrima cintilando no canto do olho de Girassol.
– Estou tentando – ele respondeu com sinceridade. – Eu… parece que não vou conseguir.
Uma brisa soprava da baía, fria e um pouco insistente, às vezes afastando as palavras distorcidas do megafone. Mark estremeceu.
– Pobre Mark. Tão nervoso. Seus pais, as escolas, eles trancaram você numa camisa de força.
Você precisa se libertar. – Ela umedeceu os lábios. – Acho que posso te ajudar.
Entusiasmado, ele lançou o corpo para a frente.
– Como?
– Você precisa derrubar os muros, como na música. Precisa abrir a mente.
Ela fuçou por um momento num bolso da jaqueta jeans bordada, puxou de lá a mão fechada, com a palma para cima.
– Luz do sol. – Ela abriu a mão. Uma pílula branca indefinida jazia na palma da mão. – Ácido.
Ele ficou olhando para o comprimido. Lá estava, o objeto de seu longo e indireto estudo: investigação e objeto de investigação ao mesmo tempo. A dificuldade de se obter LSD licitamente – e sua relutância profundamente arraigada de tentar consegui-lo no mercado negro, junto com o medo instintivo de que a primeira tentativa de comprá-lo o lançaria na prisão de San Quentin – ajudou-o a adiar o dia do acerto de contas. Já tinham oferecido ácido a ele na fraternidade hippie; sempre recusou, dizendo a si mesmo que era porque nunca se podia saber o que havia na droga, secretamente porque tinha medo de ir além daquela porta complexa que a substância apresentava.
Mas naquele momento o mundo ao qual ansiava pertencer emergia na sua frente como o mar, a mulher que amava lhe oferecia desafio e tentação, e lá estava a droga, derretendo lentamente na chuva.
Ele pegou o comprimido dela, rápida e cuidadosamente, como se suspeitasse que aquilo queimaria seus dedos. Enfiou bem fundo no bolso da frente das calças pretas justas, agora tão completamente sujas de lama que lembravam uma experiência malsucedida com o tingimento do tecido.
– Vou pensar sobre isso, Girassol. Não posso apressar as coisas.
Sem saber o que mais dizer ou fazer, começou a desenroscar as pernas magricelas e levantou-se.
Ela o pegou novamente pelo braço.
– Não. Fique aqui comigo. Se for para casa agora, vai jogá-lo na privada e dar descarga. – Ela o puxou para baixo, ao lado dela, mais perto do que de fato já tinha estado antes, e de repente ele ficou completamente ciente de que o guerrilheiro vanguardista louro não estava em lugar algum por ali.
– Fique aqui, no meio do povo. Bem ao meu lado – ela soprou bem perto do ouvido dele. Seu hálito tremulava como cílios na ponta de sua orelha. – Veja o que você tem a ganhar. Você é especial, Mark. Poderia fazer tanta coisa que realmente importa. Fique comigo essa noite.
Embora o convite não fosse tão abrangente quanto gostaria, ele voltou a sentar-se na lama, e assim a noite passou numa comunhão gélida, os dois aconchegados na cobertura dúbia da jaqueta de Girassol, ombro a ombro, enquanto os oradores retumbavam a revolução – o confronto final com a Amérika.
Quando amanheceu, o protesto começou a se autodigerir. Eles foram juntos para uma pequena cafeteria 24 horas perto do campus, tomaram um café da manhã orgânico do qual Mark não conseguia sentir o gosto, enquanto Girassol falava apressada do destino que estava ao alcance dele:
– Se você ao menos conseguisse se libertar, Mark.
Ela se esticou e pegou uma das mãos longas e pálidas dele na sua mão pequena e bronzeada.
– Quando tropecei em você naquele clube no outono passado, fiquei feliz em te ver porque acho que estava com saudades dos velhos tempos, mesmo eles sendo ruins. Você era um rosto conhecido.
Ele baixou os olhos, piscando rapidamente, assustado com sua confissão aberta de que o procurou pelo que ele era e não por quem ele era.
– Isso mudou, Mark.
Ele ergueu os olhos novamente, hesitante como um cervo surpreendido num jardim no início da manhã, pronto para fugir ao primeiro sinal de perigo.
– Comecei a gostar de você pelo que você é. E pelo que poderia ser. Existe uma pessoa de verdade por trás daquele corte à escovinha, daqueles óculos de tartaruga e daquelas roupas de elite sem graça que você usa. Uma pessoa que implora por ser libertada.
Ela pousou a outra mão sobre a dele, acariciando-a de leve.
– Espero que você se liberte, Mark. Quero muito conhecê-lo. Mas chegou a hora de você decidir. Não consigo mais esperar. O momento da escolha chegou, Mark.
– Quer dizer… – A língua tropeçava. Para sua mente nublada pelo cansaço, ela parecia estar prometendo muito mais do que amizade… e, ao mesmo tempo, ameaçando terminar até mesmo com essa amizade se ele não conseguisse agir.
Ele a levou em casa, até o apartamento clandestino. No patamar da escada externa, ela omagarrou de repente pela nuca e beijou-o com ferocidade surpreendente. Então desapareceu no prédio, deixando-o para trás, piscando.
– Finalmente deram uma lição nos malditos comunas. É muito bem feito. Bem feito, idiotas.
Em pé ao lado das fundações do arranha-céu que estava sendo levantado, bebericando chá quente de uma garrafa térmica, Wojtek Grabowski ouvia seus colegas discutindo as notícias que tinham acabado de ouvir no onipresente radinho: a Guarda Nacional abriu fogo contra uma manifestação no campus da Universidade Estadual de Kent, em Ohio, causando a morte de diversos estudantes. Pareciam pensar que já era hora.
Ele também, mas as notícias o enchiam de tristeza, não de euforia.
Mais tarde, caminhando pelas altas vigas acima do mundo, refletiu sobre toda a tragédia. Os soldados americanos estavam lutando para defender valores americanos e resgatavam uma nação irmã da agressão comunista – e aqui estavam os camaradas americanos cuspindo neles, insultando-os. Ho Chi Minh era retratado como um herói, um aspirante a libertador.
Grabowski sabia que era mentira. Ele tinha sangrado para aprender o que os comunistas queriam dizer com “libertação”. Quando os ouviu aclamados como heróis, seus amigos e família assassinados levantaram num coro no fundo da sua mente, berrando denúncias.
Não era apenas o que os manifestantes defendiam, era quem eles eram. Crianças privilegiadas, na sua maioria esmagadora de classe média alta, gritando palavras de ordem com a petulância dos mimados contra o mesmo sistema que tinha lhes dado conforto e segurança sem igual na história da humanidade. “A Amérika está engolindo sua juventude”, gritavam, mas o que ele via era diferente: a América corria o risco de ser devorada por sua juventude.
Eram liderados por falsos profetas, desviados de forma pavorosa. Por homens como Tom Douglas. Ele havia lido sobre o cantor desde que sua música o deixou chocado, em novembro.
Sabia naquele momento que Douglas era um dos contaminados, marcado pelo veneno alienígena lançado naquela tarde de setembro de 1946, um filho da nova aurora do mal, cujo nascimento o próprio Grabowski testemunhou do convés de um navio de refugiados atracado na Governors Island. Não era de se estranhar que os filhos se erguessem como serpentes para atacar os mais velhos, pois eram aconselhados por homens que Satanás marcou como seus.
– Ei – gritou o imenso ex-fuzileiro com o rádio. – Os malditos hippies estão enchendo as ruas na frente da prefeitura, estourando janelas e queimando bandeiras americanas!
– Desgraçados!
– Temos que fazer alguma coisa! É a revolução, aqui e agora.
O jovem veterano vestiu sua jaqueta Levi’s e enfiou o capacete de aço sobre seus cabelos à escovinha.
– Fica apenas a dois quarteirões daqui. Não sei vocês, mas eu vou fazer alguma coisa sobre isso. – Ele deu uma corrida na direção do elevador de obra.
Grabowski teria gritado: Não, espere, não vá! Deixe isso com as autoridades – se irmão começar a combater irmão, as forças da desordem terão vencido. Mas foi impedido de falar.
Porque estava tão furioso quanto o resto, e temeroso, pois apenas ele tinha visto em primeira mão as consequências dessa revolução da qual todo mundo falava. E, em sua emoção, ele agarrou uma viga mestra com toda a força.
Seus dedos enterraram-se no aço, como se fosse a massa mole e grudenta que os americanos chamavam de sorvete.
Ele mesmo estava maculado pela marca da Besta.
Mark passou o resto do dia num atordoamento estranho composto de desejo, esperança e medo.
Perdeu as notícias sobre a Universidade de Kent. Enquanto o restante da América reagia com pavor ou aprovação, ele passou a noite trancado em seu apartamento com um prato cheio de biscoitos, estudando em profundidade seus artigos e livros surrados sobre LSD, pegando o comprimido de ácido, girando-o nos dedos como um talismã. Quando o sol surgiu bem fraco no céu, uma onda transitória de decisão fez com que ele jogasse a pílula na boca. Um rápido gole do
refrigerante de laranja sem gás mandou-a para dentro antes que o nervosismo pudesse fazê-lo fracassar novamente.
De sua leitura, soube que o ácido em geral levava entre uma hora e uma hora e meia até fazer efeito. Tentou fazer o tempo passar folheando da antologia de Solomon às revistas da Marvel, até os quadrinhos Zap Comix que ele arranjou na sua busca por compreensão. Após uma hora, nervoso demais para aguardar sozinho os efeitos da droga, ele deixou o apartamento. Tinha de encontrar Girassol, dizer a ela que encontrou sua humanidade, deu o passo derradeiro. Também teve medo de estar sozinho quando o ácido batesse.
Encontrar Girassol era sempre como correr atrás de uma pétala de flor levada pela brisa, mas ele sabia que ela gravitava pela UCB, que havia muito substituído o moribundo distrito de Haight como o local da cultura moderna da Área da Baía, e trabalhava às vezes numa tabacaria especializada em maconha próxima ao People’s Park. Assim, por volta das 9h30 da manhã de 5 de maio de 1970, ele perambulava no parque – e direto ao sentido do confronto mais espetacular entre ases de toda a época do Vietnã.
Por um breve e brilhante momento, todos – classe média e inimigos – sabiam que havia chegado a hora do combate nas ruas. Se a revolução estava chegando, chegou naquele momento, no primeiro jato quente de fúria que seguiu o massacre da Universidade de Kent. Os líderes radicais da Área da Baía chamaram aquela manhã de manifestação-mamute no People’s Park – e não apenas as forças policiais da Área da Baía, mas o próprio contingente da Guarda Nacional de Ronald Reagan havia aparecido para combatê-los.
Às 9h45, a política tinha se retirado do parque, formando um cordão de isolamento em torno da área do campus para evitar que a conflagração se espalhasse. Havia apenas alunos e alguns caminhões militares vazando homens da Guarda Nacional com trajes de batalha e máscaras de gás das suas coberturas de lona a quarenta metros de distância. Com um rangido barulhento e vago e um estampido de motor a diesel, um tanque M113 parou atrás da linha de baionetas fixas, os
sulcos dos pneus comendo terra como bocas. Um homem com patente de capitão estava sentado, empertigado e resoluto, na cúpula atrás de uma metralhadora de calibre .50, com um capacete que parecia o do jogador de futebol americano Knute Rockne.
Estudantes vazavam a linha divisória de combate como mercúrio da ponta do dedo. Eles gritavam para trazer a guerra para casa; como seus irmãos de Ohio, parecia que seu desejo tinha sido realizado. A Guarda era convocada regularmente para acabar com manifestações, mas o formato quadrado e feio do tanque representava algo novo, uma nota de ameaça que mesmo o mais tapado não conseguiria deixar de notar. A multidão perdia a confiança, espalhando o alarme.
No espaço entre as linhas entrou uma única figura, magra e vestida com couro preto.
– Viemos para ser ouvidos – disse Thomas Marion Douglas, sua voz soando para a linha de tiro – e vamos ser muito bem ouvidos.
Atrás dele, a multidão começou a se firmar. Ali estava uma estrela – um ás – resistindo com eles. Através da cerca viva de baionetas, os olhos dos soldados da Guarda Nacional piscavam nervosamente por trás das lentes grossas de suas máscaras. Eram, em sua maioria, jovens que se alistaram na Guarda para evitar serem mandados para o Vietnã; eles sabiam quem os estava enfrentando. Muitos tinham discos do Destiny, as feições arrogantes de Douglas encarando-os de pôsteres nas paredes de seus quartos. Era muito difícil, de alguma maneira, usar a baioneta ou a coronha do rifle contra alguém que você conhecia, mesmo que fosse apenas como um rosto numa capa de disco ou numa foto estampada na revista Life.
O capitão era mais truculento. Berrou uma ordem da cúpula. Armas de gás lacrimogêneo voaram, meia dúzia de pequenos cometas descreveram um arco sobre Douglas na direção da multidão que se lançava para unir-se a ele. Colunas de fumaça branca e espessa, e gás lacrimogêneo, tiraram o cantor de vista.
Tomando um atalho por uma viela, Mark conseguiu despistar os cordões de policiais. Naquele momento ele conseguiu ter uma visão lateral perfeita de seu grande ídolo em pé com a fumaça girando em torno dele, como um mártir medieval em perigo. Ele parou e encarou, boquiaberto, o confronto que se formava diante dele.
E o ácido bateu.
Sentiu os colágenos da realidade se dissolverem, mas a cena diante dele era muito intensa para ser uma alucinação. Quando a brisa teimosa da manhã rompeu as cortinas de gás, um homem com pernas firmes no chão e punhos levantados apareceu, cabelos vermelho-escuros esvoaçando para trás de um rosto largo que de alguma forma tremeluzia, entremeado com a cabeça de uma cobra gigante, escamas reluzindo negras, com as abas ao lado da cabeça abertas. Os homens da Guarda recuaram; o Rei-Lagarto estava entre eles.
O Rei moveu-se para a frente num deslizar sinuoso. Os uniformizados recuaram. Alguém o estocou com uma baioneta, ou talvez ele não tenha recuado rápido o suficiente. Um girar de pulso, parecendo preguiçoso e desdenhoso, mas feito com velocidade sobre-humana, e o rifle voou girando enquanto seu dono caiu de costas na grama com um uivo de pavor. O capitão em sua caixa de ferro gritava à rouquidão, tentando reunir as fibras esfiapadas da determinação de seus homens.
E quando assumia o aspecto de Rei-Lagarto, Douglas liberava seus jogos mentais sobre eles; seus olhos começavam a vaguear, buscando visões de beleza desesperada ou horror atordoante, cada um afetado da sua própria maneira pela aura escura do Rei-Lagarto.
A multidão avançava, cantando, gritando, ameaçando. O capitão da Guarda fez a única coisa que podia – seu dedão pressionou uma vez o gatilho de borboleta de sua arma calibre .50. A arma vomitou barulho de vidro estourando e uma chama de escapamento, lançando rastros de fumaça sobre as cabeças dos manifestantes.
Triunfante num piscar de olhos antes, a multidão se separou em pânico e aos berros. O ruído dos tiros atingiu Mark como um travesseiro gigante e o lançou de volta a corredores infinitos e tortuosos. Mas a cena permanecia diante dele, luz no fim do túnel, terrível e insistente. Ninguém tinha sido atingido pela rajada, mas os manifestantes, como o próprio Mark, depararam-se pela primeira vez com a realidade que seu profeta Mao tentou incutir neles: de onde vem o poder.
Tom Douglas estava em pé tão perto que o fogo do cano chamuscou suas sobrancelhas. Ele não se esquivou, embora o ruído o tenha atingido com uma força que nem um caminhão carregado de alto-falantes conseguiria se equiparar. Em vez disso, respondeu com um rugido que fez os guardas correrem, tropeçando como cachorrinhos assustados.
Um prodigioso salto e ele estava de pé sobre o tampo do blindado. Curvou-se, agarrou o cano da arma e a levantou. A pesada metralhadora Browning saiu de sua base como uma muda de planta arrancada pela raiz. Ele segurou a arma sobre a cabeça, com as duas mãos, então com um único solavanco de ombros e bíceps dobrou o cano quase ao meio. Tendo mostrado seu desprezo pelo sistema e por suas máquinas de guerra, lançou a metralhadora arruinada na direção dos soldados, agora em completa derrota, e avançou para agarrar pelos colarinhos o capitão apavorado na cúpula. Segurou o homem diante dele no alto, as pernas chutavam com fraqueza.
E foi derrubado pelas costas por uma pancada dada com toda a força extraordinária de um ás desconhecido.
Mark deu um pulo. Com um berro, sua alma desapareceu na escuridão vertiginosa. Seu corpo virou-se e correu cegamente.
Wojtek Grabowski viu a serpente sinistra de preto pular no blindado e arrancar a arma de sua base, e sabia que tinha sido a escolha certa a fazer.
Apenas o catolicismo fervoroso o impediu de lançar-se para a morte. Ele saiu apressado do canteiro de obras, já deserto, pois os trabalhadores haviam corrido para atacar os manifestantes, e foi até seu apartamento apertado para uma vigília noturna de angústia e oração silenciosa.
Com a aurora, chegou de fato a Luz; e ele soube com uma rapidez entusiasmada que sua aflição de ás fora enviada pelos céus, uma bênção, não uma maldição. A revolução ameaçava seu lar adotivo, guiada por aqueles que juraram lealdade às forças da escuridão. Ele se lavou, se vestiu, tomou o caminho do parque com paz no coração.
Mas naquele momento ele confrontava a besta que parecia ter muitas cabeças, e sabia que estava frente a frente com o odioso Tom Douglas.
A fúria explodiu dentro dele. A transformação de ás arrebatou-o, inchando seus músculos até encher suas roupas largas e quase rasgá-las. O capacete de aço de sua profissão na cabeça, um grifo de encanador de quase um metro na mão. As dúvidas insistentes sobre usar sua força contra seres humanos normais desapareceram; ali estava um inimigo à sua altura, um ás, um traidor – um servo do Inferno.
Ele avançou, saltando sobre o veículo enquanto a criatura de preto com cabeça de serpente arrancava o comandante da escotilha. Os estudantes tentaram avisar Douglas com gritos, mas ele não ouviu. O Operário ergueu o grifo e bateu na parte de trás de uma cabeça ora desgrenhada, ora preta, sem pelos e obscena.
O golpe teria esmigalhado o crânio de um homem normal, ou separado a cabeça dos ombros.
Mas as mudanças constantes da aparência de Douglas confundiram a mira de Grabowski. A pancada o desequilibrou. Douglas largou o oficial que se contorcia e caiu desconjuntado do veículo quando o impulso derrubou o grifo para entortar a blindagem superior como uma folha de papel-alumínio.
Imaginando que tinha matado o homem, Grabowski sentiu as forças evadirem. Precisava da fúria para ficar no estado meta, mas tudo que sentia era vergonha. Desesperado, virou-se para a multidão.
– Vão embora – gritava em seu inglês rouco, rude. – Vão embora agora. Acabou. Não precisam mais lutar. Obedeçam a seus líderes e vivam em paz.
Eles ficaram parados e o encaravam com rostos intimidados.
O orvalho da manhã sugou o gás lacrimogêneo e envenenou a grama. Alguns brotos já brancos de gás contorciam-se no chão como cobras agonizantes. As lágrimas corriam no rosto de Grabowski. Eles não ouvem?
Do fundo da multidão, um jovem gritou:
– Vai se foder! Vai se foder, seu fascista filho da puta!
Tendo aquele nome lançado em seu peito, um homem que ainda carregava balas fascistas na carne, por um fedelho mimado, insolente, ignorante – o ódio o encheu em abundância, e com ele aquela força sobre-humana.
Felizmente para ele, pois nesse momento Tom Douglas recuperou a consciência, levantou-se, pegou o Operário pelo tornozelo e puxou as botas por baixo dele. O capacete de Grabowski atingiu a cobertura como um címbalo gigante. Tão furioso quanto o homem que o derrubara, Douglas o agarrou quando ele caiu, o lançou contra o lado do veículo e começou a dar pancadas de bate-estaca nele com a própria força de ás.
Mas Grabowski também tinha mais do que a resistência de ser humano. Puxou o grifo entre seus corpos e lançou Douglas com violência para longe. Os pés de Douglas escorregaram uma vez na grama molhada, ele se recompôs com agilidade de serpente e avançou para o ataque – apenas para conter-se e ficar na ponta dos pés como um bailarino, enquanto um golpe de grifo zunia a poucos centímetros de seu abdômen.
Douglas mergulhou no arco mortal descrito pelo grifo. Ele agarrou o oponente, dando socos abaixo de suas costelas. Grabowski recuou com um passo rápido, pôs a mão no peito de Douglas e empurrou. Douglas retrocedeu um passo. O grifo voou, e dessa vez apenas os reflexos meta-humanos de Douglas o salvaram de a ferramenta bater em cheio na frente do seu crânio.
A ponta de aço da ferramenta raspou sua testa. O sangue caiu como cascata. Ele pulou para trás furiosamente, limpando os olhos com uma das mãos, enquanto a outra se debatia numa tentativa de defender-se da próxima investida.
O Operário balançou o grifo como um taco de beisebol e pegou Douglas embaixo do braço direito com um som que ecoou pelo parque como uma explosão de granada. Douglas foi ao chão.
O Operário ficou sobre ele com as pernas abertas, levantando o grifo lentamente sobre a cabeça como um carrasco preparando o golpe. O sangue escorria do canto de sua boca. Estava enlouquecido de ódio, além do remorso, além da compaixão, desprovido de qualquer coisa além da necessidade de esmagar o crânio do seu oponente como um caramujo na pedra.
Mas, enquanto o grifo reluzente e pingando sangue começou a descer, uma corrente dourada enrolou-se nele por trás e impediu o golpe antes de ele ser desferido.
Com um reflexo de lutador, o Operário instantaneamente relaxou os braços, fazendo com que o grifo viajasse na direção para onde foi puxado repentinamente. Então puxou com tudo a arma para a frente e para baixo, girando ao mesmo tempo para lançar todo o peso aumentado do seu corpo contra a folga. Mas enquanto ele se movia, uma sacudidela ondulou a corrente e a soltou, fazendo o grifo soltar um som musical. Com o movimento desenfreado pelo impacto esperado, o Operário deu um giro completo, balançando para a frente, continuou para o outro lado para encarar seu oponente diante de cinco metros de terra lamacenta e pisada.
Lá havia um jovem, magro e alto, cabelos loiros caindo sobre os ombros, balançando um medalhão da paz do tamanho de um pires numa longa corrente. Apesar do frio da manhã na baía, usava apenas calças jeans. Para o pequeno e escuro Grabowski, parecia nada mais do que uma figura saída de um pôster de recrutamento nazista.
– Quem é você? – rosnou o Operário. Percebendo que tinha falado em sua própria língua, repetiu em inglês.
O jovem franziu a testa levemente, como se perplexo.
– Me chame de Radical – ele disse com um risinho sarcástico. – Estou aqui para proteger o povo.
– Traidor! – O Operário avançou, sacudindo o grifo. Radical desviou num passo de dança. Não importava a fúria com a qual o oponente atacava, não importava como ele ameaçasse atacar, Radical escapava com aparente facilidade. Frustrado em suas tentativas de abater o jovem dourado, o Operário virou-se novamente para Douglas, que ainda gemia no solo. E Radical estava lá, o símbolo da paz formando uma figura dourada de oito no ar diante dele, defendendo-se dos golpes mais ferozes com faíscas cintilantes, enquanto os soldados e os estudantes permaneciam paralisados pelo espetáculo.
Mas se o Operário não conseguia atravessar o amuleto, Radical não parecia disposto ou capaz de contra-atacar. Vendo isso, o Operário afastou-se, balançando o grifo ameaçadoramente. Após um momento, Radical acompanhou, planando como névoa. O Operário rodava no sentido anti-horário. Radical mantinha o ritmo. Lentamente, o polonês arrastou seu oponente cabeludo para longe do Douglas deitado.
Com grande rapidez, ele se voltou para a esquerda e arremessou-se na direção dos observadores. Embora sua velocidade não fosse tão grande quanto a de Radical, era maior do que a de uma pessoa normal, e ele estava entre a multidão de manifestantes antes que qualquer um pudesse reagir, grifo levantado para esmagar. Pego de surpresa, Radical não conseguiu reagir a tempo.
O grifo ficou erguido, congelado como uma mosca no acrílico. Radical pulou para a frente, levado a atacar por desespero, girando o medalhão da paz por trás do pescoço grosso como tronco embaixo do capacete. Parecia uma tora de madeira abatida por um machado; uma pancada não tão poderosa quanto a que o Rei-Lagarto poderia ter desferido, sem nenhuma comparação com a força terrível do grifo de Grabowski, mas suficiente para embaralhar os sentidos do Operário, mandando-o de cara primeiro na grama, em seguida na lama e nas placas amassadas.
Radical pairava sobre ele, balançando o medalhão lentamente e em círculos ao seu lado. Um momento depois, Douglas juntou-se a ele, esfregando sua lateral e fazendo careta.
– Acho que ele quebrou umas costelas – rugiu em seu familiar tom arranhado barítono. – Que diabos é ele?
Enquanto observavam, a forma sobre-humana encolhida do Operário definhava num homem atarracado, calvo, em roupas largas, deitado com o rosto na lama, soluçando como se seu coração estivesse partido. Balançando a cabeleira desgrenhada, Douglas virou-se para seu benfeitor.
– Sou Tom Douglas. Obrigado por salvar minha vida.
– O prazer é meu, cara.
E então Douglas deu um passo à frente e abraçou o homem alto e louro, e aplausos emergiram da multidão. Os soldados da Guarda Nacional já estavam em retirada, deixando o tanque para trás. A revolução não aconteceria hoje, talvez nunca, mas os jovens foram salvos.
Quando as câmeras de televisão ligaram, Tom Douglas proclamou Radical seu companheiro de armas e convocou a celebração mais selvagem que a Área da Baía já vira. Enquanto a polícia mantinha o incômodo perímetro, e a Guarda Nacional lambia suas feridas, milhares de jovens invadiram o parque para saudar os heróis conquistadores. O M113 abandonado serviu logo de palco. Barracas pipocaram no parque como cogumelos coloridos. Música, drogas e bebida correram livremente, naquele dia inteiro e durante toda aquela noite.
No centro desse espetáculo, tudo animava Tom Douglas e seu misterioso benfeitor, cercados por mulheres belas e obedientes – nenhuma mais do que a graciosa morena com olhos de gelo que todos chamavam de Girassol, que parecia ter brotado do quadril de Radical como uma gêmea siamesa após o parto. O recém-chegado não deu outro nome além de Radical e desviou-se de todas as perguntas, quanto à sua origem e como aconteceu de ele estar naquele local naquele momento, com um sorrisinho e um tímido “Eu estava aqui porque eu era necessário aqui, cara”.
Na aurora do dia seguinte, ele fugiu em silêncio das festividades que minguavam e desapareceu.
Nunca mais foi visto.
Na primavera de 1971, as acusações contra Tom Douglas originadas do confronto do People’s Park foram retiradas – por recomendação do Dr. Tachyon, que havia sido convocado pelo CRISE-A para ajudar a investigar o incidente – bem quando o álbum do Destiny, City of Night, chegou às lojas. Pouco depois, Douglas eletrificou o mundo do rock ao anunciar que estava se aposentando – não apenas como músico, mas como ás.
Assim, ele se submeteu à cura “trunfo” experimental do Dr. Tachyon, e foi um dos 30% afortunados nos quais ela funcionou. O Rei-Lagarto desapareceu para sempre, deixando para trás Thomas Marion Douglas, um normal.
Que morreu seis meses depois. Seu uso exagerado de drogas e álcool alcançou tais proporções heroicas que apenas uma resistência de ás o manteria vivo. Assim que ela foi embora, sua saúde deteriorou-se rapidamente.
Morreu de pneumonia num hotel barato em Paris, no outono de 1971.
Quanto ao Operário – entrevistado pelo Dr. Tachyon no dia seguinte ao confronto, hospitalizado para observação com uma concussão leve –, Wojtek Grabowski insistiu que seus inimigos não o derrotaram. “All you need is love” estava na ordem do dia – e o amor o derrubou. Ou algo assim. Porque quando ele se arremessou contra a multidão, viu-se cara a cara com Anna, sua mulher, perdida dele por duas décadas e meia.
Não era bem Anna, ele disse entre lágrimas; havia diferenças, na cor do cabelo, no formato do nariz. É, claro, naquele momento Anna não seria uma mulher de vinte anos.
Mas seria sua filha. Grabowski estava convencido de que vira, no fim das contas, a filha que nunca conheceu. A perspectiva horrenda de que seu ódio quase o levou a destruir aquilo que ele mais adorava em todo o mundo arrancou suas forças num instante, de forma que o medalhão de Radical atingiu um ser em transição da força total de ás para o estado humano normal.
Emocionado, o Dr. Tachyon ajudou Grabowski a procurar sua filha na Área da Baía. Para ele, nunca encontraria a filha; no momento em que Grabowski acreditou tê-la visto, Tom Douglas estava se recuperando, seu aspecto de Rei-Lagarto ainda ativo. E aquela aura obscura poderia fazer as pessoas verem o que mais desejassem. Pelo que Tachyon sabia, ela fez.
Não foi surpresa para ele quando a busca deu em nada. De qualquer forma, ele podia dedicar pouco tempo a Grabowski, mesmo que a aflição do homem tivesse mexido tanto com ele. Voltou para o Leste após três semanas, ajudando Grabowski e os investigadores do CRISE-A. Alguns meses depois, soube que Grabowski havia desaparecido, sem dúvida para continuar a busca por sua família. Desde então, não se ouviu mais falar de Wojtek Grabowski, ou o Operário.
E quanto a Radical…
Nas primeiras horas da manhã de 6 de maio de 1970, Mark Meadows cambaleou para fora de um beco que dava para o People’s Park com a cabeça cheia de chiados, vestido apenas com um jeans. Não se lembrava do que havia acontecido com ele, mal sabia onde estava. Viu-se entre os remanescentes dos festeiros da noite anterior, com olhos pesados pela fatiga, mas ainda tagarelando sobre os fantásticos eventos das últimas 24 horas, como se estivessem loucos de anfetaminas. “Você tinha que ter estado lá, cara”, eles diziam a ele. E quando descreveram os eventos da manhã anterior, estranhos fragmentos de memória, surreais e desconexos, começaram a borbulhar na superfície da mente de Mark: talvez ele tivesse.
Será que ele se lembrava das próprias experiências? Ou era o restinho de ácido forjando imagens para combinar com as descrições ofegantes e vívidas que uma dúzia de testemunhas oculares despejava sobre ele de uma vez? Ele não sabia. Tudo que ele sabia era que o Radical representava a realização de seu sonho mais louco: Mark Meadows como Herói.
E quando viu Girassol em pé ali perto, cabelos desarrumados, olhos sonhadores, ela lhe disse:
“Oh, Mark, eu acabei de conhecer o cara mais fantástico de todos”, e ele soube que qualquer esperança que mantivesse de ser mais do que amigo de Girassol tinha ido por água abaixo. A menos que ele fosse, de fato, o Radical.
Ele sabia o que fazer, claro. Aprendeu mais do que havia percebido conscientemente durante seu estágio de rua com Girassol; quando a noite caiu, estava sentado com as pernas cruzadas em seu colchão entre biscoitos e quadrinhos, com as mãos cheias de LSD comprado com o equivalente a duas semanas de ajuda de custos. Estava tão empolgado quando tomou o primeiro comprimido que mal precisou da droga para entrar na viagem.
Que foi tudo que ele fez. Nenhuma transformação Radical. Nada. Ele apenas… viajou longe.
Por uma semana, não saiu do apartamento, vivendo de migalhas mofadas, mandando para dentro doses cada vez maiores de ácido tão rápido que os efeitos da última viagem diminuíram. Nada.
Quando por fim ele saiu para buscar mais drogas, tudo ficou turvo novamente.
E assim a aventura começou.
Interlúdio Três
DE WILD CARD CHIC
Tom Wolfe
Nova York, junho de 1971
Hummmmmmmmmm. Esses são deliciosos. Rolinhos recheados com carne de siri e camarão.
Muito saborosos. Um pouco gordurosos, na verdade. O que os ases fazem para tirar manchas de gordura dos dedos de suas luvas? Talvez prefiram cogumelos recheados, ou fatiazinhas de roquefort enroladas em nozes trituradas, tudo que lhes é oferecido neste exato momento em bandejas de prata por garçons altos e sorridentes em uniforme do Aces High… Essas são perguntas a se fazer sobre as noites Wild Card Chic. Por exemplo, o negro ao lado da janela, aquele cumprimentando Hiram Worchester em pessoa com um aperto de mão, aquele com camisa de seda preta e casaco de couro preto e aquela testa incrivelmente inchada, aquele negro com olhar ameaçador com pele cor de chocolate e olhos amendoados que saiu do elevador com as três mulheres mais impressionantes que qualquer um já viu, mesmo aqui, neste espaço cheio de gente bonita – é ele, um ás, um ás de verdade, indo pegar um rolinho recheado com camarão e carne de siri quando o garçom passa, e lançando-o goela abaixo, sem perder uma sílaba da genialidade culta de Hiram, ou ele é mais um cara que gosta de cogumelo recheado naquele…
Hiram é esplêndido. Um homem grande, um homem formidável, quase um metro e noventa e largo para todos os lados, na penumbra ele poderia passar por Orson Welles. Sua barba negra em forma de espada é tratada com perfeição, e quando ele sorri seus dentes são muito brancos. É um homem carinhoso, gracioso e cumprimenta os ases com o mesmo aperto de mão rápido e firme, os mesmos tapinhas no ombro, a mesma exortação familiar com a qual cumprimenta Lillian, Felicia e Lenny, e o prefeito Hartmann, e Jason, John e D.D.
“Quanto vocês acham que eu peso?”, pergunta a eles jovialmente e insiste para que adivinhem, 135 quilos, 160, 180. Ele dá risada das tentativas, uma risada profunda, uma risada ressonante, pois esse homem imenso pesa apenas 13 quilos e montou uma balança bem aqui, no meio do Aces High, seu novo e sofisticado restaurante no topo do Empire State, em meio a cristais e prataria e toalhas de mesa de um branco puro, uma balança igual àquelas que você poderia encontrar numa academia de ginástica, apenas para que pudesse provar sua afirmação. Ele sobe e desce dela com agilidade sempre que é desafiado. Treze quilos, e Hiram gosta dessa piadinha. Mas não o chame de Bolão nunca mais. Este ás que veio à tona agora é um novo tipo de ás, que conhece as pessoas certas e os vinhos adequados, que parece absolutamente ajustado ao seu smoking e possui o mais refinado, o mais chique restaurante da cidade.
Que noite! As mesas são postas em círculo, a prata reluzindo, as pequenas chamas tremeluzentes das velas refletiam nas janelas circundantes, uma escuridão inesgotável com milhares de estrelas, e este é o momento que Hiram ama. Parece haver milhares de estrelas dentro e milhares de estrelas fora, uma torre de Manhattan cheia de estrelas, a maior torre de todas, com pessoas maravilhosas caminhando pelos céus, Jason Robards, John e D. D. Ryan, Mike Nichols, Willie Joe Namath, John Lindsay, Richard Avedon, Woody Allen, Aaron Copland, Lillian Hellman, Steve Sondheim, Josh Davidson, Leonard Bernstein, Otto Preminger, Julie Belafonte, Barbara Walters, os Penn, os Green, os O’Neal… e agora, nessa temporada de Wild Card Chic, os ases.
Esta aglomeração de pessoas, este grupo de pessoas fascinadas, adoráveis e empolgadas com taças finas e altas de champanhe nas mãos e expressões extasiadas no rosto, entre elas, o objeto de toda a atenção é um homenzinho num smoking de veludo amarrotado, um smoking de veludo amarrotado laranja, com cauda, e uma camisa amarelo-limão com babados, e um cabelo vermelho longo e brilhante. Tisianne brant Ts’ara sek Halima sek Ragnar sek Omian era elogiado novamente, como devia acontecer em Takis no passado, e algumas das pessoas maravilhosas ao seu redor o chamam até mesmo de “príncipe” e “príncipe Tisianne”, embora não raro errem na pronúncia, e para a maioria delas, agora e para sempre, ele será o Dr. Tachyon. Ele é real, este príncipe de outro planeta, e sua simples ideia, um exilado, um herói aprisionado pelo Exército e perseguido pelo HUAC, um homem que viveu duas vezes uma vida humana e viu coisas que ninguém pode imaginar, que trabalha abnegadamente entre os miseráveis do Bairro dos Curingas; bem, a empolgação toma conta do Aces High como um hormônio defeituoso, e Tachyon parece instigado também, é possível dizer pelo jeito que seus olhos lilases deslizam até se demorarem na mulher oriental e esguia que chegou com aquele outro ás, Fortunato, o camarada de olhar ameaçador.
“Nunca conheci um ás antes”, é o refrão da noite. “É a primeira vez para mim.” A sensação vibra pelo ar do Aces High, até todo o octogésimo sexto andar ficar pleno dela, o meu primeiro, nunca conheci outro igual a você, o meu primeiro, sempre quis conhecê-lo, o meu primeiro, e, em algum lugar no solo úmido de Wisconsin, Joseph McCarthy revira-se no caixão com estalos finos e altos, e todos os seus vermes voltaram para casa para descansar. Não são impostores de Hollywood, nem políticos sombrios, nem flores literárias murchas, nem curingas patéticos implorando ajuda, eles são a verdadeira nobreza , esses ases, esses ases encantadores e eletrizantes.
Tão linda. Aurora, sentada no bar de Hiram, mostrando as pernas longas, tão longas que a tornaram celebridade da Broadway, os homens apinhados ao seu redor, rindo a cada piada que contava. Notáveis, seus cabelos vermelhos dourados, cacheados e perfumados, caindo pelos ombros nus, e aqueles lábios rachados, fazendo biquinho, e, quando ela sorri, as luzes ao norte piscam em torno dela, e os homens irrompem em aplausos. Ela assinou o contrato para seu primeiro longa-metragem no próximo ano, atuando ao lado de Redford, com direção de Mike Nichols. A primeira ás a estrelar uma grande obra cinematográfica desde… não, não queremos mencionar quem, certo? Não quando estamos nos divertindo tanto.
Tão surpreendentes. As coisas que eles podem fazer, esses ases. Um homenzinho elegante vestido todo de verde produz uma bolota e um punhado de terra para vaso, pega emprestado uma tacinha de conhaque do barman, e faz surgir um pequeno carvalho ali, no meio do Aces High. Uma mulher negra com traços finamente esculpidos chega de jeans e uma camisa de brim, mas quando Hiram ameaça mandá-la embora, ela bate uma palma e, de repente, está blindada da cabeça aos pés em metal preto que reluz como ébano. Outra palma, e ela está usando um vestido de noite, veludo verde, ombros à mostra, perfeito para ela, e até Fortunato dá uma segunda olhada. Quando o gelo do balde de champanhe quase acaba, um negro robusto como rocha dá um passo à frente, pega o Dom Perignon na mão e sorri maroto enquanto uma camada de gelo cobre a garrafa.
– No ponto – diz ele, quando passa a garrafa para Hiram. – Mais um pouco e endureceria. – Hiram ri e o parabeniza, embora ele não acredite que tenha a honra. O negro sorri, enigmático. – Croyd – é tudo que diz.
Tão romântico, tão trágico. Lá na frente, no fim do bar, com roupas de couro cinzento, aquele é Tom Douglas, não é? É ele, é ele, o próprio Rei-Lagarto, ouvi que simplesmente retiraram as acusações, mas de que coragem precisou, que compromisso e, diga, o que aconteceu com o companheiro Radical, que o salvou? Mas Douglas parece péssimo. Acabado, assombrado. Eles se amontoam em torno dele, e seus olhos piscam rapidamente e logo o espectro de uma imensa
cobra preta cresce sobre ele, contraponto obscuro às cores reluzentes de Aurora, e o silêncio ondula pelo Aces High até eles deixarem o Rei-Lagarto novamente sozinho.
Tão elegante, tão exuberante. Ciclone sabe como fazer uma entrada, não é? Mas é por isso que Hiram insistiu na varanda Sunset, afinal de contas, não serviria apenas para drinques sob as estrelas do verão e a vista gloriosa do ocaso sobre o rio Hudson, mas para os ases terem um lugar para pousar, e é natural que Ciclone fosse o primeiro. Por que andar de elevador, quando se pode andar nas nuvens? E a maneira como ele se veste – todo de azul e branco, o macacão de paraquedista o deixa tão ágil e extravagante, e aquela capa, o jeito como ela se pendura nos pulsos e tornozelos, e então se infla no voo quando ele atiça seus ventos. Assim que entra, cumprimentando Hiram com um aperto de mão, retira o capacete de aviador. É um líder fashion, o Ciclone, o primeiro ás a usar um uniforme genuíno, e já havia começado em 1965, muito antes desses outros ases que vieram depois, vestia suas cores mesmo naqueles dois anos sombrios de Vietnã, mas só porque um homem usa uma máscara não significa que deve ter o fetiche de esconder sua identidade, não é? Esses dias ficaram para trás, Ciclone é Vernon Henry Carlysle, de São Francisco, todo mundo sabe, o medo está morto, é a era do Wild Card Chic, quando todo mundo quer ser um ás. Ciclone viajou bastante para essa festa, mas a reunião não estaria completa sem o principal ás da Costa Oeste, certo?
Aliás – pensamento proibido esse, com estrelas e ases brilhando em todos os aspectos numa noite em que os olhos alcançam oitenta metros em qualquer direção –, realmente, a reunião não está bem completa, não é? Earl Sanderson ainda está na França, embora tenha mandado uma mensagem breve mas sincera de desculpas em resposta ao convite de Hiram. Um grande homem aquele, um grande homem bastante injustiçado. E David Harstein, o perdido Embaixador, Hiram até mesmo colocou um anúncio no Times, DAVID, VENHA PARA CASA, POR FAVOR!, mas ele também não está aqui. E o Tartaruga, onde está o Grande e Poderoso Tartaruga? Houve rumores de que nesta noite mágica e especial, neste momento tranquilo do Wild Card Chic, o Tartaruga sairia de seu casco, apertaria a mão de Hiram e anunciaria seu nome para o mundo, mas não, não parece que ele está aqui, não acha… meu Deus, não… você acha que aquelas velhas histórias são verdadeiras, e que o Tartaruga, no fim das contas, é um curinga?
Ciclone está dizendo a Hiram que acredita que sua filha de 3 anos herdou seus poderes eólicos, e o rosto de Hiram se ilumina, e ele aperta a mão do camarada, parabenizando o papai coruja, e propõe um brinde. Mesmo sua voz poderosa e cuidada não conseguiu sobrepujar a algazarra do momento, então Hiram fechou um pouco a mão e fez aquela coisa que faz com as ondas
gravitacionais e o torna ainda mais leve que 13 quilos, até ele flutuar na direção do teto. O Aces High cai em silêncio enquanto Hiram paira sobre o imenso candelabro art déco, eleva seu copo de Pimm’s e propõe seu brinde. Lenny Bernstein e John Lindsay bebem à pequena Mistral Helen Carlysle, a segunda geração de futuros ases. Os O’Neal e os Ryan erguem seus copos ao Águia Negra, ao Embaixador e à memória de Blythe Stanhope van Renssaeler. Lillian Hellman, Jason Robards e Broadway Joe brindaram ao Tartaruga e a Tachyon, e todos bebem ao Jetboy, pai de todos nós.
E após o brinde vêm as discussões. A Lei Cartas Selvagens ainda está em vigor, e hoje em dia isso é uma desgraça, algo precisa ser feito. O Dr. Tachyon precisa de ajuda, ajuda para sua clínica no Bairro dos Curingas, ajuda com sua ação judicial, por quanto tempo isso se arrasta, sua ação para recuperar a custódia de sua espaçonave injustamente apreendida pelo governo em 1946 – que vergonha, tomar sua nave depois de ele ter vindo de tão longe para ajudar, isso os deixa furiosos, todos eles, e claro que empenham seus esforços, dinheiro, advogados e influência. Com uma bela mulher de cada lado, Tachyon fala de sua nave.
– Ela está viva – comenta com elas – e agora certamente está solitária – e enquanto fala começa a chorar, e quando diz a elas que o nome da nave é Baby, as lágrimas brotam por trás das lentes de contato, ameaçando escorrer o rímel habilmente aplicado. E, claro, algo precisa ser feito sobre a Brigada Curinga, que é um pouco melhor que o genocídio, e…
Mas agora o jantar será servido. Os convidados rumam para seus assentos marcados, a distribuição de lugares que Hiram organizou é uma obra-prima, medida e temperada tão precisamente quanto sua gastronomia, em todo lugar o equilíbrio correto de riqueza e sabedoria, sagacidade e beleza, brilhantismo e celebridade, com um ás em cada mesa, claro, claro, senão alguém poderia ir embora sentindo-se enganado, neste ano e mês e hora do Wild Card Chic…
Bem fundo
Edward Bryant e Leanne C. Harper
Enquanto se esquivava dos táxis, cruzando a Central Park West e entrando no parque, Rosemary Muldoon sabia que adentrava uma tarde difícil. Manobrava distraidamente pela multidão dos passeadores de cachorros do fim de tarde reunidos na calçada e procurava Nômada.
Como estagiária do Departamento de Assistência Social de Nova York, Rosemary pegava todos os casos interessantes, aqueles com os quais ninguém mais conseguia lidar. Nômada, a enigmática andarilha que ela abordou naquela tarde, era a pior. Tinha no mínimo 60 anos e, pelo cheiro, parecia que havia trinta não tomava um banho. Era algo a que Rosemary nunca se acostumava. Sua família não era aquela que alguém poderia chamar de bacana, mas todos tomavam banho diariamente. Seu pai insistia nisso. E ninguém contrariava o pai.
Fora atraída pelos detritos da sociedade precisamente por sua alienação. Poucos tinham qualquer conexão com o passado ou a família. Rosemary reconhecia esse fato, mas dizia a si mesma que não importava qual fosse a razão; importante era o resultado. Ela poderia ajudá-los.
Nômada estava em pé sob um bosque de carvalhos. Quando Rosemary se aproximou dela, pensou ver Nômada gesticulando e conversando com uma árvore. Balançando a cabeça, Rosemary puxou o prontuário da mulher. Era curto. Nome real desconhecido, idade desconhecida, local de origem desconhecido, história desconhecida. De acordo com as informações esparsas, a mulher vivia nas ruas. A melhor suposição do assistente social anterior era que tinha sido devolvido Nômada para as ruas de um hospício estadual a fim de liberar espaço. Como Nômada se recusava a dar quaisquer informações, não havia como ajudá-la. Rosemary deixou a papelada de lado e marchou na direção da senhora vestida com camadas de trapos.
– Olá, Nômada. Meu nome é Rosemary e estou aqui para ajudá-la.
Sua abordagem falhou. Nômada virou a cabeça e olhou fixamente para duas crianças jogando frisbee.
– Não quer um lugar legal, seguro e quente para dormir? Com refeições quentes e pessoas para conversar?
A única resposta que recebeu veio do maior felino que tinha visto fora de um zoológico. Ele caminhou até Nômada e, naquele instante, encarava Rosemary.
– Você poderia tomar um banho. – O cabelo da pedinte estava imundo. – Mas eu preciso saber seu nome.
O imenso gato preto olhou para Nômada e, em seguida, encarou Rosemary com fúria.
– Por que não vem comigo para conversarmos? – O gato começou a rosnar. – Vamos…
Quando Rosemary esticou o braço na direção de Nômada, o gato saltou. Rosemary deu um pulo para trás, tropeçando na bolsa que deixara no chão. Caída de costas, ela ficou cara a cara com o felino muito enraivecido.
– Gatinho lindo, fique bem aí.
Quando ela começou a levantar, juntou-se ao gato preto uma gata malhada um pouco menor.
– Tudo bem. Vejo você outra hora.
Rosemary agarrou a bolsa, o prontuário e bateu em retirada.
Seu pai nunca havia entendido por que ela quis lidar com os pobres da cidade, os “sujos”, como ele os chamava. Mais tarde teria de aguentar outra noite acompanhada pelos pais e pelo noivo. Casamento arranjado, naquela época! Queria que fosse mais fácil enfrentar o pai e dizer não. Sua família era cria da tradição. Ela simplesmente não se encaixava.
Rosemary tinha o próprio apartamento que, até recentemente, dividia com C.C. Ryder. C.C. era cantora hippie. Rosemary conseguiu que o pai nunca encontrasse C.C. As consequências seriam terríveis demais para serem consideradas. Manter essas duas vidas separadas era primordial.
Era uma linha de pensamento quase dolorida para ela. C.C. foi embora. Desapareceu na cidade. Rosemary estava apavorada por C.C. e por si mesma, pelo que isso significava com relação à cidade.
Rosemary olhou por cima do banco do parque onde havia desabado. Era hora de levar o prontuário de volta para o escritório e partir para a aula na Columbia.
– Que noite magnífica.
Lombardo “Lumiado” Lucchese estava se sentindo ótimo, simplesmente ótimo. Após dois anos trabalhando com resultados financeiros e proteção de pessoas insignificantes, tinha finalmente conseguido transformá-la na primeira das Cinco Famílias. Elas conheciam o talento, e Lombardo tinha muito. Descendo a 81st Street na direção do parque com seus três amigos, ele estava no topo do mundo.
Tinha de prestar seus respeitos à noiva, Maria. Que idiota! Mas a idiota era a filha única de Dom Carlo Gambione, que poderia ser de muita valia nos anos vindouros. Mais tarde, celebraria com os companheiros. Agora tinha de pegar algum dinheiro para comprar flores para a Maria idiota e mostrar sua devoção. Talvez cravos.
– Vou descer. Pegar algum dinheiro – disse Lumiado.
– Quer companhia? – perguntou Joey “Sem Nariz” Manzone.
– Tá brincando? Depois da próxima semana vou ter uma grana preta. Quero fazer só mais um servicinho. Pelos velhos tempos. Até mais tarde.
Chapinhando em poças iridescentes de óleo, Lumiado assoviava enquanto balançava-se na direção do globo iluminado que indicava as escadas da estação de metrô da 81st Street. Nada poderia derrubá-lo naquela noite.
Que noite perfeitamente apavorante, pensou Sarah Jarvis. Aos 68 anos, a mulher nunca esperava em sua vida ser convidada para uma festa da Amway. Só de pensar… Levou horas para sua amiga e ela saírem. Claro, estava chovendo naquele momento e, claro, não havia um táxi livre por ali.
Sua amiga vivia no prédio ao lado. Sarah precisou atravessar de sul a norte até Washington Heights.
Sarah odiava o metrô. O cheiro rançoso sempre a nauseava. De qualquer forma, detestava as partes barulhentas da cidade, e o metrô estava entre as mais ruidosas. Hoje à noite, porém, tudo estava quieto. Sozinha na plataforma, Sarah estremeceu sob a jaqueta de tweed.
Espiando sobre a beirada da plataforma e dentro do túnel, pensou ter visto a luz do trem AA sentido norte. Havia algo ali, mas parecia mover-se devagar. Sarah virou-se e olhou para os cartazes publicitários. Examinou o pôster que convocava à reeleição daquele bravo Sr. Nixon.
Nas máquinas de venda de jornais ao lado, as notícias traziam assaltantes arrombando um hotel de Washington e um prédio. Watergate? Que nome engraçado para um prédio , ela pensou. O Daily News seguia com uma história sobre o que estavam chamando de Vigilante do Metrô. A polícia estava atribuindo as cinco mortes da última semana ao misterioso assassino. Todas as vítimas
eram traficantes de drogas e outros criminosos. Todos os assassinatos ocorreram no metrô. Sarah estremeceu. A cidade estava bem diferente daquela de sua infância.
Primeiro ela ouviu passos barulhentos escada abaixo, passando pela cabine de tíquetes deserta.
Então o assobio, um som peculiar, monótono, sem tom, enquanto a pessoa entrava na estação. Sem querer, foi surpreendida entre a apreensão e o alívio. De alguma forma envergonhada pela sua reação, decidiu que não ligaria se tivesse um pouco de companhia humana.
Assim que ela o viu, não ficou tão segura. Sarah nunca gostou muito de jaquetas de couro preto, especialmente quando usadas por homens jovens, levemente sebosos, com sorrisinho falso. Ela se virou de costas, resoluta, e concentrou-se na parede do outro lado dos trilhos.
Quando a senhora se virou de costas, Lumiado abriu um sorriso largo e tocou o lábio superior com a ponta da língua.
– Ei, senhora, tem fogo?
– Não.
Um canto da boca de Lumiado se torceu, enquanto ele se movia na direção da mulher de costas.
– Vamos lá, senhora, seja boazinha.
Ele não sentiu a tensão se acumulando nos ombros dela quando Sarah lembrou-se daquela aula de auto-defesa da qual participou no último inverno.
– Me dá a bolsa, senhora… aaiiie! – Ele gritou quando Sarah se virou e esmagou seu peito do pé com o salto do escarpim bege frágil, mas sofisticado. Lumiado pulou para trás e lançou um soco no rosto dela. Sarah desviou com um passo para trás e deslizou em algo escorregadio.
Lumiado deu seu sorrisinho e partiu para cima dela.
Um vento soprou neles do túnel quando o trem AA se aproximou da estação.
Mal percebeu que uma dúzia de pessoas tinha conseguido chegar à entrada do metrô simultaneamente. A maioria da multidão assistira a uma sessão noturna de O poderoso chefão e seguia numa discussão animada sobre se Coppola exagerou ou não na importância da máfia no crime moderno.
Um deles não estava no cinema, um funcionário do metrô que tivera um dia longo e difícil.
Queria apenas ir para casa e jantar, não necessariamente nessa ordem. Os jornais estavam agressivos novamente; nem mesmo aquele negócio dos Direitos dos Curingas conseguia mantê-los ocupados o tempo todo. O homem da ferrovia tinha sido tirado de suas obrigações regulares de verificar as linhas para gastar 18 horas procurando crocodilos em vão nos esgotos e túneis do metrô, dutos e bueiros. Mentalmente xingou seus empregadores por dobrarem-se à imprensa
sensacionalista, e especialmente os repórteres vigilantes dos quais ele finamente se livrou.
O funcionário ficou um pouco para trás, tentando sair da confusão, enquanto o grupo se atrapalhava com os bilhetes e passava pelas catracas. O pessoal que saiu do cinema tagarelava enquanto caminhava.
Com um rugido e o guincho de freio raspando metal contra metal, o AA local irrompeu no túnel.
Na plataforma, todo o tipo de gente se encarava. Blasfemando em italiano, Lumiado largou a vítima e buscou uma rota de fuga.
Os primeiros dois casais entraram e ficaram olhando a cena à sua frente. Um dos homens se moveu na direção de Lumiado, enquanto o outro homem agarrou sua companheira e tentou retroceder.
As portas do trem chiaram ao abrir. Naquela hora da noite, havia poucos passageiros no trem e ninguém saiu.
– Nunca tem um guarda do metrô quando a gente precisa – disse o suposto salvador.
Por um momento, Lumiado considerou pular no moleque e espancá-lo até apagar. Em vez disso, driblou o homem, então, meio mancando, meio correndo, seguiu para o último vagão. As portas se fecharam de repente e o trem começou a se mover. Poderia ter sido a luz, mas o grafite brilhante nas laterais parecia mudar.
De dentro do vagão, Lumiado sorria e gesticulava obscenidades para Sarah, que estava sentindo as contusões e tentando arrumar as roupas sujas. Lumiado fez um segundo gesto para os salvadores acidentais da mulher quando o grupo inteiro juntou-se a Sarah.
De repente, o rosto de Lumiado se contorceu de medo e, depois, com absoluto pavor quando ele começou a bater nas portas. O homem que havia tentado parar Lumiado olhou de relance enquanto este agarrava a porta traseira do vagão, e o trem avançava veloz na escuridão.
– Credo! – disse a namorada do suposto salvador. – Era um desses curingas?
– Não – respondeu seu amigo. – Só um maluco normal.
Todos congelaram quando ouviram os gritos vindos do túnel do metrô ao norte. Sobre o estrépito cada vez menor do trem, conseguiram ouvir os gritos desesperados e agoniados de Lumiado. O trem desapareceu. Mas os gritos duraram até no mínimo a 83rd Street.
O funcionário da via foi até o túnel central, enquanto o herói do momento era parabenizado pela quase ilesa Sarah, bem como pelo restante dos espectadores. Outro funcionário desceu as escadas na outra ponta da plataforma.
– Ei – ele gritou. – Jack Esgoto! Jack Robicheaux. Você nunca dorme?
O homem exausto o ignorou e passou pela porta metálica de acesso. Enquanto caminhava túnel adentro, começou a arrancar as roupas. Uma observadora poderia ter pensado que viu um homem agachando-se e rastejando no chão úmido do túnel, um homem cujo nariz virou um longo focinho cheio de dentes afiados e malformados, e um rabo musculoso capaz de transformar a espectadora em geléia. Mas ninguém viu o lampejo de escamas verde-cinzentas quando o até então funcionário do metrô mesclou-se à escuridão e desapareceu.
De volta à plataforma da 81st Street, os espectadores ficaram tão paralisados pelos ecos dos gritos agonizantes de Lumiado que poucos notaram o estrondoso rugido grave vindo da outra direção.
Fim da última aula, Rosemary caminhou, exausta, na direção do metrô da 116th Street. Mais uma tarefa concluída hoje. Agora, estava a caminho do apartamento do pai para ver o noivo. Nunca ficava entusiasmada para isso, mas nesses dias tinha pouco entusiasmo para qualquer coisa que fosse. Rosemary avançava nos dias, desejando que algo na sua vida se resolvesse.
Ela passou a pilha de livros para o braço direito enquanto, com a outra mão, buscava o bilhete do metrô na bolsa. Após passar pela catraca, ela parou, ficando de lado para sair do caminho dos outros estudantes. Julgando pelas placas carregadas por diversas pessoas, a última manifestação anti-guerra acabara havia pouco. Rosemary observou jovens aparentemente normais carregando faixas com o slogan informal da Brigada Curinga: ÚLTIMOS A IR – PRIMEIROS A MORRER.
C.C. sempre estava nessas manifestações. Até mesmo cantava suas músicas em algumas das reuniões menos violentas. Um dia ela chegou a trazer um camarada ativista para casa, um cara chamado Fortunato. Embora fosse bom que o homem estivesse envolvido com o movimento dos Direitos dos Curingas, Rosemary não gostava de cafetões em seu apartamento, seja de gueixas ou não. Isso causou uma das poucas brigas que teve com C.C. No fim das contas, C.C. concordou em consultar Rosemary antes sobre futuros convidados para o jantar.
C.C. Ryder tentava sempre convencer Rosemary a se tornar uma ativista, mas Rosemary acreditava que ajudar algumas pessoas diretamente poderia ser tão bom quanto andar por aí gritando acusações contra a “classe dominante”. Provavelmente, muito melhor. Rosemary sabia que ela tinha vindo de uma família conservadora. Sua colega de quarto raramente a deixava esquecer isso.
Rosemary suspirou profundamente e lançou-se na enxurrada de pessoas. Era evidente que todas as últimas aulas tinham acabado ao mesmo tempo.
Quando Rosemary entrou na plataforma, deu uma volta até o fundo da multidão para poder terminar no lado mais distante da área de espera. Não queria ficar tão perto do povo naquele instante. Momentos depois, sentiu o bafo do túnel úmido e tremeu por dentro do seu suéter molhado.
Ensurdecedor, depressivo, o trem local passou por ela. Todos os vagões estavam deteriorados, mas o último carro tinha uma decoração ainda mais peculiar. Rosemary lembrou-se da mulher tatuada no show dos Ringling Brothers que tinha visto no antigo Garden. Sempre pensava na psicologia da garotada que escrevia nas laterais dos trens. Às vezes, não gostava do que suas palavras revelavam. Nova York não era mais um lugar bom para se viver.
Não pensarei sobre isso . Ela pensava sobre isso. A imagem de C.C. deitada, em coma, na ala de UTI do hospital St. Jude cintilava em sua mente. Via o brilho dos aparelhos. Como C.C. não tinha parentes para avisar, Rosemary ficava lá mesmo quando as enfermeiras trocavam os curativos. Lembrou-se das escoriações, hematomas aterradores pretos e roxos que cobriam grande parte do corpo de C.C. Os médicos não tinham certeza de quantas vezes a jovem fora
estuprada. Rosemary queria mostrar compreensão, mas não conseguia. Não estava nem mesmo segura de como começar. Tudo que poderia fazer era esperar e ter esperança. E, em seguida, C.C. desapareceu do hospital.
O último vagão parecia estar vazio. Quando Rosemary seguiu na sua direção, olhou para o grafite. Parou petrificada, seus olhos rastreavam as palavras escritas na lateral escura do vagão:
Rose, Mary, Rosemary?
Tempo…
Tempo é para os outros, não para mim.
– C.C.! Como? – Sem se importar com as outras pessoas que esperavam o vagão desocupado, ela abriu caminho até as portas. Estavam fechadas. Rosemary derrubou os livros e tentou abri-las até o trem começar a sair devagar da estação.
– Não!
Os olhos de Rosemary se encheram de lágrimas na última visão do seu nome e outra das letras de música de C.C.:
Você não pode lutar até o fim,
Mas pode se vingar.
Rosemary não disse mais nada, apenas acompanhou o trem com a cabeça. Baixou os olhos para os punhos cerrados. A porta aparentemente de aço era fraca e maleável, morna. Será que alguém havia lhe dado ácido? Foi coincidência? Será que C.C. estava morando nos subterrâneos? C.C. estaria viva afinal?
Era uma longa espera antes de o próximo trem chegar.
Ele caçava na quase escuridão.
A fome o dominava; a fome que parecia nunca ter fim. E, assim, ele caçava.
De forma indistinta, muito esmaecida, ele se lembrava de uma época e de um lugar nos quais tinha sido diferente. Era outro – o que era? –, outra coisa.
Ele olhava, mas pouco via. Naquela penumbra e, especialmente, na água imunda repleta de detritos, seus olhos eram de pouca serventia. Mais importantes eram os gostos e cheiros, as pequenas partículas que lhe diziam o que estava a distância – refeições para buscar com paciência –, e as satisfações imediatas que pairavam, insuspeitas, bem depois do comprimento do seu focinho.
Ele conseguia ouvir as vibrações: os movimentos poderosos, lentos de um lado para o outro enquanto sua cauda musculosa rasgava a água; as ondas fortes, mas distantes, reverberando lá embaixo, vindas da cidade lá em cima; a miríade de pequenas agitações do alimento movendo-se furtivamente na escuridão.
A água suja batia contra seu focinho largo e chato, a corrente fluindo para dentro das narinas levantadas. Às vezes, membranas transparentes deslizavam para baixo, cruzando seus olhos salientes, para deslizar novamente para cima.
Mesmo com sua largura – mal cabia em alguns dos túneis que havia atravessado durante esse tempo de alimentação –, fazia muito pouco barulho. Hoje à noite, a maior parte dos sons que o acompanhavam veio da presa, que berrava durante o devorar.
Suas narinas davam-lhe a primeira pista do banquete vindouro, seguida logo pelas mensagens de seus ouvidos. Embora odiasse deixar esse santuário que cobria quase todo o seu corpo, sabia que precisava ir aonde estava a comida. A boca de outro túnel crescia para um lado. Havia pouco espaço na passagem, mesmo com um corpo flexível como o dele, para virar e adentrar a nova corredeira. A água ficou mais rasa e terminou por completo a dois corpos da entrada.
Não importava. Suas pernas trabalhavam bem o bastante e ele conseguia mover-se quase tão silenciosamente como antes. Ainda podia sentir o cheiro da presa aguardando por ele em algum lugar adiante. Mais perto. Perto. Muito perto. Conseguia ouvir os sons: guinchos, gritos, o chispar dos pés, o rascar dos corpos peludos contra a pedra.
Eles não o esperavam; eram poucos os predadores nesses túneis tão fundos. Estava sobre eles num instante, o primeiro esmigalhado entre suas mandíbulas, seu grito final alertando os outros. A presa sacudia-se em pânico. Exceto para aqueles sem escapatória, não houve tentativa de contra-ataque. Eles correram.
A maioria que sobreviveu mais tempo fugiu do monstro entre eles – e encontraram o fim murado do túnel. Outros tentaram correr em volta dele, um ousou até mesmo pular sobre suas costas
escamosas, mas a cauda chicoteante esmagou-os contra as paredes inflexíveis. Outros ainda correram direto para sua boca, encolhendo-se de medo apenas na fração de segundo antes de os imensos dentes se juntarem.
Os guinchos sofridos chegavam ao auge e diminuíam. O sangue escorria deliciosamente. A carne, os pelos e os ossos se alojavam de forma satisfatória no seu estômago. Dentre as presas, algumas ainda estavam vivas. Rastejavam para fora da carnificina o melhor que podiam. O caçador começou a segui-las, mas a refeição pesava. Por ora, estava muito saciado para seguir ou se importar. Ele foi até a beira d’água, e então parou. Agora, precisava dormir.
Primeiro ele quebraria o silêncio. Era permitido. Aquele era seu território. Era tudo seu território. As grandes mandíbulas se abriram e ele emitiu um rugido penetrante, estrondoso, que ecoou por muitos segundos pelo labirinto aparentemente infinito de túneis e dutos, passagens e corredores de pedra.
Quando o eco finalmente morreu, o predador dormiu. Mas ele era o único.
Rosemary disse oi para Alfredo, que estava no serviço de segurança daquela noite. Ele sorriu quando ela entrou e balançou a cabeça quando viu a pilha de livros que ela carregava.
– Deixe que eu a ajude com isso, Srta. Maria.
– Não, obrigada, Alfredo. Posso cuidar disso.
– Lembro-me de carregar seus livros quando era apenas uma bambina, Srta. Maria. A senhorita dizia que queria se casar comigo quando crescesse. Não mais, né?
– Desculpe, Alfredo, eu sou instável. – Rosemary sorriu e piscou para ele. Não era fácil fazer piada ou mesmo ser agradável. Queria que aquela noite, aquele dia, acabasse.
Estava sozinha no elevador e aproveitou para recostar a cabeça contra a parede por um momento. Lembrava-se de Alfredo carregando seus livros para a escola. Tinha sido durante uma das guerras da sua infância. Que família.
Quando as portas do elevador se abriram, os dois homens na frente da entrada da cobertura chamaram a atenção. Relaxaram quando ela se aproximou, mas pareciam estranhamente cerimoniosos.
– Max. O que aconteceu? – Rosemary olhou, questionadora, para o maior dos dois homens identicamente vestidos de preto.
Max balançou a cabeça e abriu a porta para ela.
Rosemary caminhou entre as paredes com painéis opressivos e escuros de carvalho até a biblioteca. As pinturas a óleo antiquíssimas não ajudavam a aliviar a escuridão.
Na porta da biblioteca, ela fez menção de bater, mas as portas pesadas e esculpidas abriram-se para dentro antes que ela o fizesse. Seu pai estava em pé na entrada, com a silhueta iluminada pelo abajur sobre a mesa.
Ele tomou as mãos dela e as segurou com firmeza.
– Maria, é Lombardo. Ele não está mais entre nós.
– Que aconteceu? – Ela encarava o rosto do pai. Tinha olheiras escuras. Seu papo havia crescido mais do que ela se lembrava.
O pai gesticulou.
– Esses jovens trouxeram a notícia.
Frankie, Joey e o Pequeno Renaldo estavam em pé, lado a lado. Joey literalmente baixou a cabeça, com o chapéu nas mãos.
– Falamos com Dom Carlo, Maria. Lumia… eh, Lombardo estava vindo direto para cá, mas parou por um minuto no metrô.
– Queria comprar um chiclete, eu acho. – Frankie ofereceu a informação como se ela tivesse alguma importância.
– Sim, mas isso não importa. Ele não voltou. Ficamos esperando – disse Joey –, então decidimos averiguar o que estava acontecendo quando ouvimos sobre um… problema na estação.
Quando chegamos lá, descobrimos o que havia acontecido.
– É, eles o encontraram em uma dúzia…
– Frankie!
– Sim, Dom Carlo.
– É tudo por hoje, rapazes. Vejo vocês pela manhã.
Os três jovens balançaram a cabeça, fizeram uma espécie de continência na direção de Rosemary para se despedir e saíram.
– Desculpe, Maria – falou o pai.
– Não entendo. Quem fez isso?
– Maria, você sabe que Lombardo trabalhava com os negócios da nossa família. Outros sabiam disso. E sabiam que ele estava prestes a se tornar meu filho. Achamos que pode ter sido alguém tentando me atingir. – A voz de Dom Carlo soava triste. – Houve outros incidentes, não faz muito tempo. Existem pessoas que querem tirar o que trabalhamos uma vida inteira para conseguir. – E a voz dele endureceu novamente. – Não vamos deixar por menos. Eu prometo, Maria!
– Maria, fiz uma lasanha ótima. Sua favorita. Por favor, tente comer – falou a mãe de Rosemary, das sombras. Surgiu para levar Rosemary para a cozinha, acompanhando-a com um braço sobre seus ombros.
– Mamãe, não devia ter feito jantar para mim.
– Não fiz. Sabia que você chegaria tarde, então guardei um pouco para você.
Rosemary disse para a mãe:
– Mamãe, eu não amava Lombardo.
– Psiu. Eu sei. – Ela tocou os lábios da filha. – Mas você começaria a gostar dele. Eu via como vocês se davam bem.
– Mamãe, eu não… – Rosemary foi interrompida pela voz do pai que as seguia da biblioteca.
– Devem ser os melanzanes, os negros! Quem mais nos atacaria? Devem estar vindo do Harlem pelos túneis. Querem nossos territórios há anos. Ainda mais uma susina como o Bairro dos Curingas. Não, curingas nunca ousariam fazer isso com as próprias mãos, mas os negros podem estar usando curingas para despistar.
Rosemary ouviu um silêncio, seguido por pequenos chiados vindos do telefone. Sua mãe a puxou pelo braço. Dom Carlo respondeu:
– Precisam ser parados agora, ou vão ameaçar todas as Famílias. São selvagens.
Outra pausa.
– Não estou exagerando.
– Maria… – disse a mãe.
– Amanhã de manhã, então – falou Dom Carlo. – Cedo. Muito bem.
– Viu, Maria? Seu pai vai cuidar disso. – A mãe levou Rosemary para a cozinha dourada com todos os utensílios brilhantes, as paredes forradas com uma coleção de quadros de bordões da terra natal. Ela pensou em falar para a mãe sobre C.C. e o metrô, mas parecia impossível naquele momento. Talvez fosse a imaginação dela. Não queria comer. Não conseguia aguentar mais nada naquela noite.
A mendiga virou-se durante o sono e um dos dois grandes gatos ao lado saiu do caminho. Ele levantou a cabeça e fungou para a companheira. Deixando a mulher com um gambá enrolado recostado na barriga, os dois gatos andaram furtivamente para dentro da escuridão do túnel do metrô. O atalho da negligenciada 86th Street os levava na direção da comida.
Os dois gatos estavam famintos, mas agora caçavam o café da manhã da mulher. Usando um túnel de drenagem, saíram no parque e debaixo das árvores para a rua. Quando um caminhão de entrega do New York Times parou num semáforo, o gato preto olhou para a malhada e apontou seu focinho para o caminhão. Quando o veículo deu partida, pularam a bordo. Acomodado na traseira do caminhão, o gato preto criou a imagem de pilhas de peixe e compartilhou com a malhada.
Assistindo aos quarteirões da cidade passarem, esperaram pelo cheiro revelador de peixe. Por fim, quando o caminhão desacelerou, a malhada sentiu o cheiro de peixe e, impaciente, saltou do veículo. Miando com raiva, o preto a seguiu pelo beco. Os dois pararam quando o odor de homens estranhos sobrepujou a comida. Bem no fim do beco estava uma multidão de curingas, paródias malfeitas dos seres humanos normais. Vestidos em farrapos, buscavam comida no lixo.
Um feixe de luz derramou-se no beco quando uma porta se abriu. Os gatos sentiram o aroma de comida fresca quando um homem bem-vestido, mais largo que qualquer dos abutres, carregou caixas para o beco.
– Por favor – o homem gordo falou para os curingas paralisados numa voz suave cheia de dor. – Tem comida aqui para vocês.
A cena congelada terminou quando os curingas correram juntos na direção das caixas de papelão e começaram a rasgá-las. Eles se acotovelavam e lutavam por uma posição para conseguir a comida deliciosa.
– Parem! – um curinga alto gritou no meio do caos. – Não somos seres humanos?
Os curingas pararam e se afastaram das caixas, permitindo que o homem gordo repartisse a comida a cada um deles. O curinga alto foi o último a ser servido. Quando o anfitrião lhe entregou a comida, ele falou de novo.
– Senhor, nosso muito obrigado ao Aces High.
Na escuridão do beco, os gatos observavam a refeição dos curingas. Virando para a malhada, o preto formou a imagem de uma espinha de peixe, e eles voltaram para a rua. Na Sixth Avenue, o preto mandou uma imagem de Nômada para a malhada. Trotaram para norte até um lento caminhão de hortifrúti lhes dar carona. Muitos quarteirões depois, o caminhão aproximou-se de um mercado chinês, e o preto reconheceu o perfume familiar. Quando o caminhão começou a frear, os gatos saltaram. Ficaram na escuridão além do alcance das luzes dos postes até chegarem à feira.
Ainda faltava muito para o raiar do sol, e os caminhoneiros estavam descarregando os produtos agrícolas frescos do dia. O gato preto sentiu o cheiro de frango recém-abatido; sua língua esticou-se para lamber seu lábio superior. Então, deu um ronronar curto para a companheira. A malhada pulou numa banca de tomates e começou a rasgá-los em pedacinhos com as unhas.
O proprietário gritou em chinês e atirou a prancheta na gata ladra. Errou. Os homens que descarregavam o caminhão pararam e encararam a felina aparentemente insana.
– Pior que no Bairro dos Curingas – um murmurou.
– Que gatona filha da puta – disse o outro.
Assim que as atenções deles estavam presas à gata malhada destruindo os tomates, o gato preto que aguardava pulou na traseira do caminhão e agarrou um frango com a boca. O preto era um gato muito grande, com no mínimo 18 quilos, e ele levantou o frango com facilidade. Pulando da guarda traseira, correu para a escuridão do beco. Ao mesmo tempo, a malhada esquivou-se de uma vassourada e seguiu o companheiro.
O gato preto esperava pela malhada a meio caminho do próximo quarteirão. Quando ela o alcançou, os dois miaram em uníssono. Tinha sido uma ótima caçada. Com a malhada ajudando o preto às vezes a levantar o frango sobre as calçadas, galoparam de volta para o parque e para a mendiga.
Nômada puxou em torno de si o sobretudo verde e chique que ela havia encontrado na caçamba de um prédio. Sentou-se com cuidado para não sacudir o gambá. Com o bicho aninhado em seu colo e um esquilo em cada ombro, ela cumprimentou os orgulhosos gatos preto e malhado com sua recompensa. Movendo-se com uma facilidade que teria surpreendido os poucos sem-teto que se pareciam com ela, a mulher esticou-se e afagou a cabeça dos dois gatos bravios. Quando ela o fez, formou a imagem em sua mente de um frango especialmente mirrado, já meio comido, sendo trazido de uma lata de lixo de restaurante pelos dois.
O gato preto esticou seu focinho no ar e rosnou macio, enquanto apagava a imagem na cabeça dele e de Nômada. A malhada mesclou um miado com um grunhido de medo fingido e esticou a cabeça na direção da mulher. Capturando os olhos de Nômada, a malhada repetiu a caçada como ela havia percebido: a malhada no mínimo do tamanho de um leão, cercada por pernas humanas mais parecidas com troncos de árvore móveis. A corajosa gata encontrando a presa, um frango do tamanho de uma casa. A feroz malhada pulando na garganta dos homens, presas à mostra…
A cena se dissipou quando Nômada de repente concentrou-se em outro lugar. A malhada começou a protestar, até uma pata preta e pesada derrubá-la de costas e prendê-la ao chão. A malhada cessou o protesto, cabeça torcida para o lado para observar o rosto da mulher. O preto estava rígido de expectativa.
A imagem formada nas três mentes: ratos mortos. A imagem foi apagada pelo pavor de Nômada. Ela se levantou, expulsando os esquilos e deixando o gambá de lado. Sem hesitar, virou-se e rumou para um dos túneis tangenciais, que levavam ao subterrâneo. O gato preto deu um pulo silencioso à frente dela para servir de guia. A malhada acompanhou a mulher.
Alguma coisa está comendo meus ratos.
Os túneis eram pretos; às vezes uma pequena bioluminescência emitia a única luz. Nômada não conseguia enxergar tão bem como os gatos, mas podia usar os olhos deles.
O preto sentiu um odor estranho quando os três estavam bem embaixo do parque. A única conexão que podia fazer era com uma criatura mutante que era meio cobra, meio lagarto.
Alguns metros à frente, depararam-se com um ninho de ratos destruído. Nenhum dos roedores sobreviveu. Estavam comidos pela metade. Todos os corpos mutilados.
Nômada e seus companheiros descobriram o túnel úmido. A mulher escorregou num degrau e viu-se afundada até a cintura na água nojenta. Pedaços não identificáveis batiam contra suas pernas na corrente moderada. Seu humor não melhorara.
O gato preto eriçou-se e projetou a mesma imagem que formara poucos minutos antes, mas agora a criatura era ainda maior. O gato sugeriu que os três saíssem naquele instante da galeria.
Quietos. Rapidamente.
Nômada bloqueou a sugestão enquanto tateava lentamente a parede lodosa até outro ninho devastado. Alguns ratos ainda estavam vivos. A simples imagem de seu algoz era a imagem sombria de uma serpente de tamanho e feiúra impossíveis. Ela bloqueou os cérebros dos agonizantes e seguiu em frente.
Cinco metros depois a passagem era uma alcova que oferecia drenagem para uma área do parque acima deles. A entrada ficava um metro acima do chão do túnel. O preto rastejou para lá, músculos tensos, orelhas para trás, gemendo baixo. Estava assustado. A malhada, desdenhosa, foi até a entrada, mas o preto a lançou de lado. O gato maior olhava para trás, na direção de Nômada, e enviava cada imagem negativa que ele conseguia.
Levada pela fúria, Nômada indicou que iria na frente. Tomou fôlego, engasgou, e engatinhou para dentro da alcova.
Era iluminada por uma grade no teto, uns seis metros acima. A luz cinzenta caía sobre o corpo nu de um homem. Para Nômada, parecia ter trinta e poucos anos, musculoso, mas nem tanto. Sem gordura. Nômada percebeu sem muita certeza que sua aparência não era tão acabada como a maioria dos indigentes que tinha visto. Por um momento, pensou que ele estivesse morto, outra vítima do misterioso assassino. Mas, enquanto sua mente se concentrava no homem, percebeu que ele estava apenas adormecido.
Os gatos a seguiram para dentro da câmara. O preto grunhia, confuso. Seus sentidos lhe disseram que o rastro da cobra-lagarto terminava ali – cessava onde o homem dormia. Nômada sentiu algo estranho sobre o homem. Em geral, não tentava ler mentes humanas; era muito difícil.
Suas mentes eram complexas. Elas tramavam, esquematizavam. Devagar, ajoelhou-se ao lado dele e estendeu a mão.
O homem acordou, percebeu a presença daquela pessoa de rua suja prestes a tocá-lo e se encolheu.
– Que você quer?
Ela o encarou.
Ele percebeu que estava nu e lançou-se para a entrada da passagem cavernosa… Ouviu um rosnado profundo, encolheu-se, mal se esquivou de uma investida das garras do maior gato que já vira. Por um momento, sentiu-se deslizando para dentro da escuridão da mente. Então, estava no túnel principal e desapareceu.
Os gatos choramingavam perguntas, mas Nômada não tinha respostas. Quase, ela pensou.
Dentro de sua mente. Eu quase senti… o quê? Desapareceu.
Nômada, a malhada e o preto procuraram por mais uma hora, mas não encontraram outro rastro do odor estranho. Não havia monstro no túnel.
Os transeuntes, indigentes, mendigas e outras pessoas de rua começavam seu dia cedo, quando encontravam as melhores latas de lixo e garrafas. Rosemary esgueirou-se para fora da cobertura bem cedo também. Mal havia dormido e naquela manhã, sabendo de quase tudo que certamente acontecia por trás das portas fechadas da biblioteca, quis sair de lá rápido. Os chefões da máfia estavam declarando guerra.
Com suas árvores, seus arbustos e bancos, o Central Park era o céu para certo número de pessoas de rua. Naquela manhã ensolarada, Rosemary procurava alguns que ela tinha prometido ajudar. Quando chegou ao segundo banco do parque depois da ponte de pedra, um homem com roupas rasgadas escondeu uma garrafa num arbusto ao lado do banco e ficou em pé num pulo.
Trajava uma jaqueta militar surrada com uma parte menos desbotada num ombro, onde a insígnia da “bucha de canhão” da Brigada Curinga fora costurada no passado. Rosemary sugeriu que não era prudente usar a insígnia neste lado da cidade.
– Olá, Rastejante – disse a assistente social. Com cerca de trinta anos (Rosemary não conseguia precisar a partir de seu rosto de veterano queimado de sol), ele ganhara o apelido por seu posto militar no Vietnã: rastejador de túneis. Realistou-se duas vezes. Então, Rastejante viu o bastante.
– Oi, Rosemary. Conseguiu meus novos óculos? – Rastejante usava um par temporário, barato.
Óculos de sol da 14th Street, os aros colados com fita adesiva branca encardida. Por baixo deles, Rosemary conhecia os olhos escuros e imensos, extraordinariamente sensíveis.
– Solicitei o financiamento. Vai demorar um pouco para conseguirmos. Sabe, burocracia… igual no serviço.
– Droga. – Mas o indigente ainda sorria quando deslizou um passo para o lado da moça.
Rosemary hesitou, então disse.
– Pode ver com a Associação dos Veteranos ainda, você sabe. Eles arrumam para você.
– Porra, não – retrucou Rastejante, soando alarmado. – Caras como eu vão para a A.V. e nunca voltam.
Rosemary ia falar “É bobagem”, mas pensou melhor.
– Rastejante, você conhece alguma coisa no subterrâneo? Sabe, túneis de metrô e essas coisas todas?
– Alguma coisa. Quer dizer, preciso de abrigo. Só não gosto de ficar lá embaixo. E também, tem coisas bizarras acontecendo lá. Ouvi gente falando de crocodilos, coisas assim. Talvez sejam os bebuns alucinando, mas nem quero saber.
– Estou procurando uma pessoa – Rosemary comentou.
Rastejante não ouvia.
– Só gente muito louca vive lá embaixo. – Ele murmurou algo. – … mais estranhas que lá no East Side… você sabe, o Bairro. Ela mora lá embaixo – Rastejante apontou para a coroa sentada no chão, embaixo de uma árvore. Ela estava a centenas de metros de distância, mas podia jurar que tinham pombos pousando na cabeça da mulher e um esquilo empoleirado no ombro. Rosemary ergueu a cabeça e olhou por trás do homenzinho.
– É só a Nômada – ela falou. – Não se preocupe com ela… – Rosemary percebeu que o Rastejante não estava mais ao seu lado. Estava pedindo esmola para um executivo bem-vestido que se exercitava caminhando até o trabalho. Ela balançou a cabeça num misto de desaprovação e resignação.
Quando Rosemary se virou de volta para a Nômada, os pombos e o esquilo haviam sumido.
Rosemary sacudiu a cabeça para clareá-la. Minha imaginação trabalha dia e noite mesmo, ela pensou, caminhando na direção da mendiga. Apenas mais uma alma perdida.
– Olá, Nômada.
A velha com cabelos desgrenhados virou o rosto e olhou para o parque.
– Meu nome é Rosemary. Falei com você antes. Tentei encontrar um lugar legal para você morar. Lembra? – Rosemary agachou-se para falar na altura de Nômada.
O gato preto que a assistente social vira antes aproximou-se de Nômada e começou a esfregar-se nela. Ela acariciou a cabeça do bichano e murmurou sons incompreensíveis.
– Fale comigo, por favor. Quero conseguir comida para você. Um lugar bom para você morar. – Rosemary estendeu a mão. O anel no terceiro dedo reluziu ao sol.
A mulher no chão encolheu as pernas e agarrou o saco de lixo cheio com seus tesouros. Ela começou a balançar para a frente e para trás e cantarolar. O gato preto virou-se para fitar Rosemary, e ela recuou com esse olhar ameaçador.
– Falo com você mais tarde. Volto para vê-la. – Rosemary levantou-se, tensa. Seu rosto retesou-se e, apenas por um momento, quis chorar para aliviar a frustração. Queria apenas ajudar.
Alguém. Qualquer um. Para sentir-se bem com alguma coisa.
Afastou-se de Nômada na direção da Central Park West e da entrada do metrô. O conselho de guerra do pai a deixara apavorada. Nunca gostou do que ele fazia, e por toda a vida parecia estar em busca da fuga e da redenção, expiação. Os pecados dos pais. Rosemary queria paz, mas sempre que pensara que a conseguiria, ela saía do seu alcance. C.C. tinha sido a última esperança.
Assim era com cada mendigo que não conseguia ajudar. Existia uma maneira de conseguir chegar em Nômada. Precisava existir.
Rosemary desceu os degraus, esperou, deslizou seu bilhete na catraca, desceu atordoada a segunda escadaria até a plataforma. O sopro de ar frio entrou na estação seguida pelo trem AA.
Rosemary mal tirou os olhos do chão e seguiu, tensa, no sentido do próximo vagão.
Quando estava prestes a entrar no trem, seus olhos se arregalaram e ela recuou para dentro da multidão, atraindo olhares furiosos e alguns xingamentos por interromper o fluxo. Aquele último vagão. Havia mais canções de C.C. pintadas na lateral num tom de vermelho que lembrava sangue. C.C. sempre foi um pouco maníaco-depressiva, e Rosemary sempre conhecia seu humor pelo que ela escrevia ou cantava. A C.C. que tinha escrito aquelas palavras estava deprimida
além do que Rosemary já vivenciara:
Sangue e ossos
Leve-me para casa
As pessoas ao meu lado
Aquelas pessoas irão
Comigo para o inferno
Comigo para o inferno
Aproximando-se do vagão, Rosemary viu palavras que ela sabia que não estavam lá segundos atrás.
Rosie, Rosie, bela Rosie
Vá embora e
Esqueça meu rosto
Não chore
Rosie, Rosie, bela Rosie
Vou encontrar você, C.C.
Vou salvar você.
Novamente Rosemary lutou para entrar no vagão que, naquele momento, ela percebeu, estava coberto com pedaços de canções de C.C., algumas ela reconhecia, outras provavelmente eram novas. Mais uma vez, o vagão a deixou de fora.
Ofegante, olhos bem abertos, Rosemary observou o vagão mover-se para dentro do túnel. Ela suspirou quando a lateral do carro de repente foi coberta por lágrimas de sangue.
– Santa Maria, mãe de Deus… – Rosemary lembrou-se, por mais ilógico que fosse, das histórias dos santos de sua infância. Por um momento, perguntou-se se o mundo estava acabando, se as guerras e as mortes, os curingas e o ódio realmente prenunciavam o Apocalipse.
Era meio-dia.
Os B-52 americanos estavam bombardeando Hanói e Haiphong. Quang Tri estava instável, pois os vietnamitas do norte estavam em marcha. Em Washington, D.C., os políticos trocavam telefonemas cada vez mais frenéticos sobre um roubo recente. A questão em algumas regiões era: o assessor político Donald Segretti é um ás?
O tumulto na parte central de Manhattan era feroz. Na Grand Central Station, Rosemary Muldoon buscava sombras esfarrapadas que pudesse seguir até a escuridão dos subterrâneos.
Uma dúzia de quarteirões ao norte, Jack Robicheaux cumpria suas tarefas habituais, percorrendo a escuridão permanente em seu pequeno carrinho elétrico, verificando a integridade dos trilhos túnel após túnel. E, em algum lugar sob o desvio da 86th Street, bem embaixo do terreno da parte sul do lago do Central Park, Nômada pairava à beira do sono, aquecida pelos gatos e outros bichos de sua vida.
Meio-dia. A guerra sob Manhattan estava começando.
– Vou citar a vocês um trecho do discurso feito certa vez pelo próprio Dom Carlo Gambione – comentou Frederico “Açougueiro” Macellaio. Ele analisou com cara fechada os grupos de capos e seus soldados reunidos em torno dele na câmara. Nos anos de 1930, o imenso galpão tinha sido uma oficina subterrânea de reparos para o metrô central. Antes da Grande Guerra, foi fechado e selado, quando o departamento de transportes decidiu reunir todos os pátios de manutenção além do rio. Logo a família Gambione tomou o espaço para armazenagem de armas e outros contrabandos, transferência de carga e velórios ocasionais.
O Açougueiro ergueu a voz e as palavras ecoaram.
– O que fará a diferença para nós na batalha serão duas coisas: disciplina e lealdade.
O Pequeno Renaldo estava em pé de um lado com Frankie e Joey.
– Sem contar as armas automáticas e artilharia pesada – falou ele, com um sorriso amarelo.
Joey e Frankie trocaram olhares. Frankie deu de ombros. Joey disse:
– Deus, armas e glória.
O Pequeno Renaldo comentou:
– Estou entediado. Quero atirar em alguma coisa.
Joey falou um pouco mais alto, de forma que o Açougueiro conseguiu ouvir:
– Ei, vamos botar alguns bebuns pra correr ou o quê? Quem é o alvo? Só os pretos? Curingas também?
– Não sabemos quem são os aliados – respondeu o Açougueiro. – Sabemos que não agiram sozinhos. Há traidores dentro da nossa própria raça, ajudando-os por dinheiro.
O sorriso maníaco do Pequeno Renaldo se abriu.
– Zona de tiro livre – ele disse. – É isso aí! – E baixou o chapéu militar, acomodando-o.
– Merda – retrucou Joey –, você nem tava lá.
Pequeno Renaldo fez sinal de positivo com o polegar.
– Vi aquele filme do John Wayne.
– Essa é a palavra do Cara, hein? – disse Joey.
O sorriso do Açougueiro era fino e frio.
– Acabe com qualquer um que dê problema.
Os grupos começaram a sair, sentinelas, esquadrões e pelotões. Os homens tinham M-16, escopetas, algumas metralhadoras M-60, granadas e lançadores, projéteis, gás lacrimogêneo, armas brancas, facas, e blocos suficientes de explosivos C4 para fazer qualquer tipo de demolição pesada.
– Ei, Joey – chamou o Pequeno Renaldo. – No que você vai atirar?
Joey deu um tapa no pente de uma AK-47. Essa arma não era do arsenal de Gambione. Era seu próprio suvenir. Ele tocou a coronha de madeira polida.
– Talvez num crocodilo.
– Hein?
– Não leu nenhum dos jornalecos que estão falando sobre crocodilos gigantes aqui embaixo?
O Pequeno Renaldo olhou para ele desconfiado e estremeceu.
– Os curingas selvagens são uma coisa. Não quero dar de cara com lagartões com dentes.
Foi a vez de Joey sorrir.
– É mentira, né? – disse o Pequeno Renaldo. – Você só tá tirando uma com a minha cara, certo?
Joey levantou o polegar para ele, animado.
Jack perdera toda a noção do tempo. Sabia que muito tempo se passara desde que ele desviou o veículo de manutenção de trilhos da linha principal para um ramal. Algo estava errado. Decidiu verificar algumas das rotas mais obscuras. Era como se um pedaço de gelo estivesse pressionado contra um ponto bem acima do seu cóccix.
Ele ouvia os trens, mas passavam ao longe. Os túneis que percorria naquele momento eram pouco usados, exceto por rotas desviadas durante grandes congestionamentos, incêndios na via ou outros problemas na linha principal. Também ouviu estampidos distantes que soavam como tiros.
Jack cantava. Preenchia a escuridão com zydeco, estilo musical inspirado no blues dos cajuns-negros que o lembrava de sua infância. Começou com “Chantilly Lace”, de Big Booper, e “Ay-Tete-Fee”, de Clifton Chenier, seguido de um medley de Jimmy Newman e de “Rainin’ in My Heart”, de Slim Harpo. Tinha acabado de puxar a alavanca e deslizava o carro por um ramal que ele sabia não ter sido verificado no último ano, quando o mundo explodiu num clarão de chamas
vermelhas e amarelas. Teve tempo apenas de cantar a última linha de “L‘Haricots sont pas sales” quando a escuridão se fragmentou, as ondas de pressão arrebentaram-se contra seus ouvidos, e o carro e ele voaram em direções diferentes, girando, volteando pelo ar.
Tudo que realmente teve tempo de dizer foi: “Que merda é essa…”, enquanto batia contra as pedras da parede ao fundo do túnel e despencava no chão. Por um momento, ficou abalado pelo choque e pela luz. Piscou e percebeu que conseguia ver a fumaça serpeando, e as luzes pequeninas que iluminavam a fumaça.
Ouviu uma voz dizer:
– Meu Deus, Renaldo! Não vamos atacar um tanque.
Outra voz comentou:
– Tipo, desculpe por isso. Odeio matar alguém soaria muito como Chuck Berry.
– Bem – soou uma terceira –, só podia ser mesmo um fantasma.
– Vá ver, Renaldo. O cara deve estar parecendo uma lata de presunto aberta, mas é melhor ter certeza.
– Certo, Joey.
As luzes chegaram mais perto, flutuando na fumaça que se dissipava.
Eles vão mi matá, pensou Jack, voltando ao dialeto de sua infância. À primeira vista, não houve emoção ao percebê-lo. Então, a raiva eclodiu. Ele deixou o sentimento lhe tomar. A raiva foi ao ponto da fúria. As agulhadas de adrenalina agonizavam seus nervos. Jack sentiu primeiro uma sacudida daquilo que costumava pensar ser um ataque da loucura de loup-garou, o lobisomem.
– Ei, acho que tô vendo alguma coisa! Na ponta do seu pé, Renaldo.
Aquele que chamava Renaldo se aproximou.
– Opa, eu peguei ele. Agora vou terminar o serviço. – Ele levantou a arma, mirando com a luz presa ao cabo da arma.
Aquilo levou Jack ao limite. Seu desgraçado filho de uma puta!
A dor, bem-vinda dor, o destroçou. Ele… se transformou.
Seu cérebro parecia girar, sua mente afundando-se infinitamente em si mesma até o nível réptil primitivo. Seu corpo se alongava, engrossava; suas mandíbulas se estenderam para a frente, os dentes crescendo em profusão. Sentia o comprimento de músculos perfeitamente tonificados, o balanço de sua cauda. O poder flagrante de seu corpo… ele o sentia completamente.
Então viu a presa na frente dele, a ameaça.
– Ai, meu Deus! – Pequeno Renaldo gritou. Seus dedos apertaram o gatilho da M-16. A primeira rajada de traçadores foi em vão. Não teve chance de disparar a segunda.
A criatura que antes fora Jack avançou, as mandíbulas fechando em torno da cintura de Renaldo, sacudindo e rasgando a carne. A luz da lanterna do homem girou, esmagada, e desapareceu.
Os outros homens começaram a atirar desenfreadamente.
O crocodilo registrou os lamentos, os gritos. O cheiro do terror. Ótimo. A presa era mais fácil quando dava sua localização. Soltou o cadáver de Renaldo e moveu-se na direção das luzes, os urros de seu desafio preenchendo o túnel.
– Pelo amor de Deus, Joey! Me ajuda!
– Espera aí. Não consigo ver pra onde você foi.
O corredor era estreito, os materiais, velhos e decadentes. Preso entre dois petiscos igualmente tentadores, o crocodilo girava no espaço confinado. Viu flashes de luzes, sentiu alguns impactos ardentes, principalmente na cauda. Ouviu a presa gritando.
– Joey, a coisa estourou minha perna!
Mais luzes. Uma explosão. Fumaça acre invadiu suas narinas. Pedaços irregulares de pedra caíram do teto. Vigas apodrecidas estilhaçaram-se. Cimento deteriorado foi ao chão. Parte do solo embaixo dele cedeu e seus três metros e meio de comprimento despencaram pesadamente sobre uma rampa. Choveram fumaça, poeira e escombros.
O crocodilo tombou e destruiu uma fina escotilha de metal que não tinha sido feita para aguentar tanta força. O alumínio rompeu-se como papel, e o monstro foi derrubado num túnel aberto. Caiu mais seis metros antes de chocar-se contra um entremeado de vigas de madeira. Por um tempo, alguns escombros o seguiram. Então, o silêncio por cima e por baixo. O crocodilo ficou parado na escuridão. Quando tentou mover seu corpo, nada aconteceu. Estava totalmente preso numa cama de gato de madeira. Uma estaca estava bem presa sobre o seu focinho. Não conseguia nem abrir as mandíbulas.
Tentou rugir, mas o som que saiu não foi mais que um grunhido abafado. Ele piscou, não via nada. Sua força definhava, o choque cobrando seu preço.
Não queria morrer ali. Queria terminar na água.
Pior, o crocodilo não queria morrer com fome.
Estava faminto.
Nômada sentiu algo que não vivenciava havia muito: simpatia por Rosemary Muldoon. Sabia que a assistente social queria ajudar, mas como poderia lhe dizer que não precisava de ajuda?
Confusa com aquela emoção, Nômada descobriu mais uma. Ela podia ficar feliz com o cuidado e a companhia de seus amigos, por mais que não fossem seres humanos.
Tinha um lugar quente para dormir. Sua casa sob o Central Park era próxima dos túneis de vapor. Nômada providenciou aos poucos o melhor que a rua tinha a oferecer. Uma cadeira de diretor vermelha e quebrada era a única mobília, mas havia trapos e cobertores cobrindo todo o chão. Uma pintura em veludo de leões na savana estava recostada numa parede, e uma imagem esculpida de um leopardo ficava num canto. Faltava uma das pernas do leopardo, mas ele ocupava um lugar de honra.
Cochilando lá no túnel de desvio da 86th Street, Nômada lembrou-se até mesmo da pessoa que fora no passado, Suzanne Melot… A onda de dor que atravessou sua mente interrompeu seus pensamentos. A força do grito fez com que o gato preto gemesse de dor. Quando a onda recuou, o preto mandou para Nômada a mesma imagem que recebeu da criatura que atacou os ratos.
Nômada concordou mentalmente. Nem ela conseguia se livrar da imagem. A criatura parecia um imenso lagarto, mas de alguma forma não era totalmente animal. E estava machucada.
Nômada suspirou e levantou-se.
– Temos de encontrá-lo se quisermos ter paz e tranquilidade.
O gato preto não era a favor dessa solução, até outra onda de angústia surgir. Ele resmungou e correu para o túnel à esquerda de Nômada. A malhada sentiu apenas a ponta da dor quando passou por Nômada e pelo gato preto. Nômada repetiu um pouco do grito de dor, e a malhada estirou-se no chão com as orelhas para trás. A imagem do gato preto apareceu na mente de Nômada, e a malhada seguiu às pressas para o túnel atrás dele. Nômada disse à malhada para esperar por ela, e começaram a rastrear o gato preto e a criatura ferida.
Demorou até os encontrarem. A criatura realmente lembrava nada mais, nada menos, do que um lagarto gigante. Ficou presa embaixo de um monte de madeiras num túnel não terminado. O preto rastejou alguns metros para longe, encarando aquela aparição.
Nômada olhou para a criatura imobilizada e riu.
– Então há mesmos crocodilos nos esgotos.
O crocodilo sacudiu a cauda, derrubando alguns tijolos pelo túnel.
– Mas este não é você de verdade, certo?
Não havia como ela e os gatos soltarem o crocodilo. Nômada ajoelhou-se e examinou as madeiras que aprisionavam a fera, enquanto chamava seus amigos para ajudá-la. Esticou o braço e acariciou a cabeça do crocodilo, acalmando-o com as imagens que ela enviava. Sentia a criatura pairando entre a consciência e a inconsciência.
Os animais chegaram em momentos diferentes. Uma paz inquietante se mantinha enquanto Nômada instruía cada um conforme suas habilidades. Ratos roeriam, um par de cães selvagens dariam força, os gambás e guaxinins carregariam as pequenas pedras para fora. O gato preto e a malhada ajudaram Nômada a controlar a mistura inconstante dos animais.
Quando os pequenos escombros foram retirados e madeiras e tábuas mexeram-se ou rangeram, Nômada começou a puxar o crocodilo. Entre os puxões dela e os esforços dele, Jack cavava seu caminho para a liberdade. Nômada terminou com um crocodilo exausto e machucado em seu colo.
O gato preto e a malhada disseram às criaturas que ajudaram para irem embora.
Os dois gatos observavam enquanto Nômada esfregava a parte de baixo da mandíbula do crocodilo, acalmando o animal. Enquanto ela o acariciava, o focinho e a cauda começaram a diminuir. As costas escamosas tornaram-se pele suave e pálida. Os membros atarracados alongaram-se em braços e pernas. Poucos minutos depois, Nômada estava segurando o corpo nu e ferido do homem que ela havia encontrado antes. Quando a mudança aconteceu, Nômada percebeu
que, num momento indefinível, ela não conseguia mais controlar a criatura ou ler seus pensamentos. De alguma forma ela perdera a divisão essencial entre o homem e a fera.
Ela se levantou e ergueu o homem, caminhando em seguida para o fim do túnel. A gata malhada a acompanhou. O preto ficou ao lado do homem.
Por quê?, pensou Nômada.
Por quê?, retrucou o gato preto. O trabalho que tinham acabado de fazer, visto pelos olhos do gato, girava na mente dela.
A malhada olhava de um para o outro. Não fora chamada para esta conversa.
Crocodilo, Nômada explicou, não humano.
Na sua cabeça, o crocodilo transformou-se num homem.
– Curiosidade… – Nômada falou alto pela primeira vez desde que a operação de resgate havia começado.
O preto enviou uma figura de um gato preto de costas com as patas para o ar.
Nômada sentou-se ao lado do homem. Em poucos minutos, ele começou a se mover. Dolorido, ele se sentou. Sob a luz fraca que vinha de cima, reconheceu Nômada, a velha que vira no dia anterior.
– Que aconteceu? Lembro de correr na direção de um punhado de malucos com armas, e então as coisas ficaram confusas. – Ele tentava se concentrar na coroa, que o tempo todo se dividia em duas imagens. – Acho que talvez eu tenha uma concussão.
Nômada deu de ombros e apontou para as vigas do telhado em pedaços atrás dele. Apertando os olhos, conseguiu ver o que pareciam centenas de pegadas de patas no chão e nas paredes em torno do desmoronamento. No centro da devastação, Jack também viu o rastro de uma cauda monstruosa.
– Deus do céu, de novo, não. – Jack voltou as costas para Nômada. – Quando a senhora chegou, o que viu?
Ela se afastou um pouco dele, ainda em silêncio. Ele viu a boca da mulher torcida num quase sorriso por baixo dos cabelos desarrumados. Era louca?
– Merde. Que vou fazer? – Jack quase ficou surpreso com o par de patas pretas que atingiu seu peito. – Calma, rapaz. Você é o maior gatinho que vi desde que deixei os pântanos. – Os olhos do gato preto encararam os de Jack com estranha intensidade. – Que foi?
– Ele quer saber como você faz aquilo. – A voz da senhora não combinava com a aparência.
Era jovial e mantinha um toque de humor. – Cuidado. Você está grogue, parece que está saindo de uma viagem de uma dose de cloropromazina. – Ela pegou o braço dele quando ele tentou se levantar.
Quando ele se ergueu, Nômada comentou:
– Você não vai longe assim. – E começou a tirar seu sobretudo.
– Mon Dieu. Obrigado. – Sentindo-se enrubescer, Jack enfiou-se no casaco verde e enrolou-se.
Ele o cobria do pescoço aos joelhos, mas deixava seus braços nus do cotovelo para baixo.
– Onde você mora? – Nômada olhava para ele sem expressão. Jack apreciava sua cordialidade.
– No centro. Para baixo da Broadway, perto da estação City Hall. Estamos perto de uma estação aqui? – Jack não estava acostumado a se perder e descobriu que odiava profundamente essa sensação.
Como resposta, Nômada tomou seu rumo para a entrada do túnel. Não olhou para trás para conferir se ele a estava seguindo quando virou à direita.
– Sua senhora, ela é um pouco estranha. Sem querer ofender – Jack comentou com o gato preto.
Este o acompanhou quando o homem seguiu a mendiga. O gato olhava para ele, farejava, e torcia a cauda.
– Quem sou eu pra falar, né?
Embora Jack tentasse acompanhar Nômada, logo foi deixado para trás. No fim das contas, a pedido do gato, ela voltou e ajudou o homem, colocando o braço dele em seus ombros.
Jack finalmente reconheceu os túneis quando chegaram na estação da 57th Street. Ficou surpreso com a mudança em Nômada, quando eles tomaram o rumo da plataforma. Apesar de ainda estar segurando o homem, a mulher parecia querer se afastar dele. Arrastava os pés em vez de dar passos largos, e mantinha os olhos pregados no chão. Aqueles que esperavam na plataforma abriram bastante espaço para eles.
O metrô chegou, o último carro estava coberto com grafite estranhamente brilhante. Nômada empurrou Jack na direção do vagão decorado de forma tão vívida. Jack teve tempo de ler algumas das frases mais coerentes que cobriam a lateral.
Você é incomum?
Sentiu mesmo o fogo?
Está ardendo por dentro?
As chamas nos devoram a todos,
Mas nunca nos deixam morrer.
Nunca acaba, sempre em chamas.
Jack achou que algumas das frases mudaram enquanto ele as observava, mas aquilo deve ter sido o efeito de seu cérebro abalado. Nômada o empurrou para dentro. As portas fecharam, deixando alguns usuários do metrô muito irritados do lado de fora.
– Estação?
Nômada é econômica demais com as palavras, Jack pensou.
– City Hall. – Jack deixou-se cair e pousou a cabeça no encosto do assento, fechou os olhos assim que o trem seguiu para o centro. Não percebeu que o assento se moldou ao corpo para confortá-lo enquanto dormia. Não percebeu que as portas não voltaram a abrir até ele chegar ao seu destino.
Os gatos não ficaram muito felizes com essa viagem de metrô. A malhada estava totalmente aterrorizada. Orelhas caídas, cauda em riste e eriçada, ficou recostada em Nômada. O preto pisava com cuidado no assoalho do vagão. A textura era familiar apenas em partes. Ele pensava no calor e no aroma confuso ao seu redor.
Nômada tentou manter a concentração no interior do vagão escuro. Não havia ângulos pontudos ali. Formas indistintas pareciam mudar sutilmente na sua visão periférica. Nunca senti nada assim antes, ela pensou, desde as viagens de ácido. Ela estendeu sua consciência além dos gatos e de Jack. Não conseguia definir o alguém que contatou por um breve momento. Mas sentia o conforto, o calor e a proteção impressionantes que os cercavam ali.
Cautelosa, acomodou-se em seu assento e acariciou a gata malhada.
– É aqui – Jack falou.
Tinha se recuperado o suficiente para conduzir seu pequeno comitê pela estação City Hall, além da sucessão impressionante de quartos de materiais de manutenção, e até outro labirinto de túneis não usados. Ele equipou seções das passagens com luzes que ligavam e desligavam conforme necessário quando prosseguiam na direção da casa de Jack. Quando abriu a última porta, pôs-se de lado e acenou para Nômada e os gatos entraram. Sorriu, orgulhoso, enquanto eles observavam o vasto espaço.
– Uau, cara. – Nômada hesitou quando percebeu os móveis e a decoração opulentos. A impressão imediata foi de veludo vermelho e divãs com pés esculpidos.
– Você é mais jovem do que aparenta. Essa foi minha reação também. Lembrou-me do camarote do Capitão Nemo…
– Vinte mil léguas submarinas.
– Isso mesmo. Você viu também. Um dos primeiros filmes que vi no teatro da paróquia.
Caminharam pelas escadas com carpete carmesim flanqueadas por balaústres dourados e cordas de veludo. Os gatos correram na frente dos dois, a malhada usando as poltronas vitorianas como obstáculos para saltar. A luz elétrica aumentou com o tremeluzir das chamas a gás que davam ao ambiente uma atmosfera de século passado. O gato preto galopava sobre os tapetes persas até o fim da plataforma e olhava para os dois seres humanos atrás dele.
– Ele quer saber o que é isso e o que tem atrás daquela porta. – Nômada parou Jack enquanto desciam lentamente a escadaria. – Você precisa se deitar.
– Logo mais. Esta é minha casa e atrás da porta é meu quarto. Se pudermos seguir naquela direção… – Eles começaram a atravessar a sala. – Este foi o primeiro metrô de Nova York, construído por um homem chamado Alfred Beach antes da Guerra de Secessão. Cobria apenas dois quarteirões. O “Chefe Tweed” não o queria, então mandou fechar, e ele foi esquecido.
Encontrei-o logo depois que comecei a trabalhar para o Departamento de Transportes… um dos benefícios do trabalho. Não sei por que ele se manteve tão bem, mas é um bom lugar para mim.
Leva pouco tempo para limpar. É isso. – Eles andaram para o outro lado da sala, e Jack esticou o braço para girar as maçanetas na porta ornada com bronze fundido. O círculo central abriu-se. – Costumava ser a entrada para o tubo pneumático.
– Nunca imaginei. – Nômada ficou surpresa ao descobrir que o interior do túnel era parcamente mobiliado. Havia uma cama improvisada feita com tábuas de pinho, uma estante também improvisada, e uma cômoda de madeira.
– Todos os confortos de um lar. Até mesmo minha coleção completa dos quadrinhos do Pogo. – Jack olhou com inocência para Nômada, e ela riu, parecendo surpresa com isso em seguida.
– Você tem iodo? – Nômada olhou em volta, procurando uma caixa de primeiros socorros.
– Não uso essas coisas. Pode pegar uma dessas para mim? – Jack apontou para cima, na direção das teias de aranha.
– Tá brincando.
– Melhor cataplasma do mundo. Minha avó que me ensinou.
Quando Nômada virou-se de volta para Jack, ele havia vestido shorts e estava com uma camisa na mão. Ela lhe entregou as teias de aranha e o ajudou com os curativos dos ferimentos maiores.
– Então, como você acabou aqui embaixo? – Jack estava deitado na cama, recuava um pouco, enquanto Nômada estava empoleirada cuidadosamente no canto. – Você com certeza não é dessas assistentes sociais.
Nômada observava os gatos que, lá fora, perseguiam um ao outro pela sala. Ela se virou para ele com um olhar aprovador:
– E eles gostam de você. Me levaram para fora da cidade um tempo atrás e eu acabei voltando.
Sem lugar para onde ir. Conheci o preto, comecei a falar com ele, e ele respondia. Fiz isso com muitos outros animais, quer dizer, com aqueles que não são seres humanos. Eu me viro. Não preciso das pessoas, não as quero por perto. Pessoas sempre me trazem má sorte. Posso falar com você também, quando você é aquele outro, sabe? Lá fora me chamam de Nômada. Tive outro nome, mas não lembro direito.
– Me chamam de Jack Esgoto – Jack falou com amargura, em contraste com a narração neutra de Nômada. O ataque de emoção que ela captou teve gritos, luzes brilhantes e medo, e o porto do pântano.
– Ela estava lá… a criatura. O que é você? – Nômada estava confusa; nunca tinha visto antes essa mistura de homem e animal, com quem ela só conseguia comunicar-se às vezes.
– Os dois. Você viu.
– Consegue controlar? Pode fazer a mudança?
– Já viu Lawrence Talbot como lobisomem? Mudo quando perco o controle ou quando deixo a fera assumir o controle. Não sou amaldiçoado pela lua cheia; sou amaldiçoado o tempo todo. O loup-garou é uma lenda de onde venho. Todos os cajuns acreditam nele. Quando eu era jovem, também acreditava. Tinha medo de que pudesse machucar alguém, então me distanciei o máximo que consegui. Nova York era um país estrangeiro; ninguém me conhecia nem me incomodaria aqui.
Seu olhos estavam voltados para ela nesse instante, e não no passado.
– Por que o teatro? Não tem mais de 45.
– 26. – Ela encarou Jack, pensando se aquilo importava. – Isso impede que eles me incomodem.
Jack olhou de relance a porta aberta e viu o relógio da ferrovia na parede oposta.
– Estou ficando com fome. E você?
Resgatar C.C. O que parecia ser uma ideia maravilhosa tornou-se um pesadelo. Rosemary seguiu alguns indigentes até os túneis de vapor embaixo da Grand Central Station. Em primeiro lugar, tentou perguntar a todos que conhecia sobre C.C. Mas, enquanto se movia cada vez mais para dentro das passagens úmidas, aqueles que viviam ali fugiam. Havia apenas a luz ocasional das grades na rua acima, ou das fogueiras esfumaçadas dos sem-teto. Sua fadiga e seu medo começaram a mostrar seus efeitos; sentia-se cada vez mais mergulhada na sujeira do chão dos túneis.
Num momento horrível, ela foi atacada por uma criatura suja que a arranhou, cacarejando. Ela revidou, mas sua bolsa fora levada. Rosemary estava desesperadamente perdida. Às vezes, ouvia sons que pareciam tiros e explosões. Estou no inferno.
À frente, havia dois pontos brilhantes que reluziam na sua direção dentro da escuridão. Eles recuaram quando ela se aproximou. As luzes verdes iridescentes a hipnotizavam.
Os pontos ficaram nítidos e Rosemary viu o gato encolhido na escuridão. Recuando alguns metros e rosnando, ele observava enquanto Rosemary se aproximava de um gato ferido, o camarada que ele guardava. Peito esmagado, uma perna quase separada do corpo, o gato machucado estava morrendo. O guardião não permitiria que lhe infligissem mais dor. Quando ouviu o choro baixo, ela ignorou os olhos do outro e ajoelhou ao lado do gato ferido. Rosemary percebeu que não havia nada a fazer, mas ela o segurou. O gato começou a ronronar antes de suspirar e morrer.
O guardião levantou a cabeça e uivou em luto antes de dar meia-volta e correr para a escuridão. Rosemary deitou o corpo no chão à sua frente e posicionou a cabeça e as pernas do bicho em posição confortável, sentou-se e começou a soluçar. Parecia que tinha chorado uma eternidade antes de recomeçar sua caminhada na direção dos sons de tiros, engasgando com seus soluços.
Após assaltar a geladeira – Nômada podia entender por que a companhia de energia elétrica ConEd nunca percebeu o desvio de energia, mas como ele chegou com uma geladeira aqui embaixo? –, Jack voltou ao quarto para dormir um pouco. Nômada e os gatos exploraram os domínios de Jack, o que incluiu se assegurarem de que poderiam destrancar a porta que ele havia trancado atrás deles.
Rapidamente descobriram os limites. Nômada sentou-se num sofá muito macio de crina de cavalo. O gato preto juntou-se a ela, enquanto a malhada continuou o jogo de cruzar a sala sem tocar o chão. Nômada ponderou e, pela primeira vez em anos, o preto não foi convidado a pensar com ela. Nômada estava surpresa com a maneira que Jack vivia. Fez com que sua vida de mudar-se de um lar temporário para outro, de uma pilha de trapos para outra, de repente parecesse errada e cheia de desconfortos que antes ela ignorava.
Ela e Jack discutiram a probabilidade de ambos serem ases. Que sorte. O vírus arruinou a vida dos dois. Ela nunca voltaria a ser a criança inocente que fora antes de o ácido e o vírus inundarem sua mente com as percepções alienígenas do mundo animal. Ela achou que teve uma infância miserável. Foi por isso que fugiu de casa. Mas para crescer pensando que era algo como um lobisomem, uma criatura amaldiçoada por Deus.
Por que tinha sido tão transparente com ele? Não havia outro ser humano ainda vivo na cidade que sabia tanto sobre ela quanto Jack naquele momento. Foi porque eram semelhantes; sabiam o que era ser diferente e tinham parado de procurar maneiras de ser como todo mundo.
As patas sobre as costas de sua mão arrancaram sangue antes de sua atenção voltar ao mundo real. Seus olhos encontraram os do gato preto, e imagens horríveis filtradas por outros olhos começaram a transbordar sua mente: ninhos de rato destruídos por tiros de metralhadora; homem aos berros assustando uma gambá, seus filhotes grudando em suas costas enquanto ela corria, um caiu para a morte; gatos fugindo, sendo alvejados, assassinados; uma gata lutando para proteger os filhotes antes de uma granada destruir a ninhada, deixando a mãe com uma pata estourada; uma mulher que parecia a maldita assistente social embalando um gato morto. O sangue – mais e cada vez mais – daqueles que eram seus únicos amigos.
– Os filhotes. Eles não podem! – Nômada levantou-se e flagrou-se tremendo.
– Que aconteceu? – Jack, acordado pelo grito de Nômada, surgiu do quarto ainda sonolento.
– Estão matando eles! Eu preciso pará-los. – Nômada cerrou os punhos, virando de costas para Jack. Ladeada pelos gatos, seguiu na direção das escadas.
– Não sem mim. – Jack correu de volta para seu quarto, agarrou o sobretudo verde de Nômada, lanternas e um par de tênis, e seguiu-os escada acima.
Atrasado, tentando amarrar os tênis enquanto corria, ele os alcançou na junção do primeiro túnel.
– Por aí não. – Jack parou o trio que entrava no túnel à direita. Ele jogou o sobretudo de Nômada para ela. Ele apontava uma das lanternas para a outra passagem.
– É como chegamos aqui. – Em seu pânico, Nômada perdera muito da confiança em Jack.
– Ele vai levar vocês direto até o metrô. Há um caminho mais rápido para voltar ao parque.
Tenho um carrinho de trilhos. Vem comigo? – Jack esperou Nômada concordar com a cabeça e mergulhou no túnel à esquerda num trote.
As cenas da carnificina ficavam cada vez mais nítidas na mente de Nômada com a aproximação do Central Park e quando deixaram o carrinho. Quando chegaram à próxima ramificação de túneis, Jack levantou a cabeça e farejou.
– Quem quer que sejam, estão usando pólvora para um exército inteiro. Qual é o plano?
– Precisamos descobrir quem são para saber como pará-los. Certo? – Nômada não tinha certeza do que fazer.
– Aposto que são aqueles mes amis armados, mas não tenho noção de quem seja o chefão.
Surgiu uma imagem da malhada andando com Jack, o preto com Nômada.
– Muito bem. – Nômada acariciou a cabeça do imenso gato preto. – Boa idéia.
– Que idéia?
– O preto acha que devemos nos dividir até descobrir o que está acontecendo. Se um dos gatos estiver conosco, podemos ficar, hum…
– Em comunicação. Sim. Ao menos você pode ver o que está acontecendo. – Jack balançou a cabeça, pensativo. – Eu costumava amar filmes de guerra, mas as antenas não funcionam lá em casa. Vamos lá, sargento – ele falou com a malhada, que pulou à sua frente. – Bonne chance.
Nômada acenou com a cabeça e seguiu na outra direção.
Numa escuridão profunda mal aliviada pelos fachos lançados dos capacetes de mineiro usados pelos homens armados, Dom Carlo Gambione inspecionava a desolação daquilo que era seu reino.
Seu tenente fez um comentário, quase um pedido de perdão.
– Dom Carlo, temo que nossas tropas ficaram entusiasmadas demais com a missão.
Dom Carlo olhou para os corpos iluminados à luz da lanterna do Açougueiro.
– Zelo numa questão como essa – disse ele – não é defeito.
– Encontramos os quartéis-generais deles – relatou o Açougueiro. – Nossos homens descobriram há menos de uma hora. – Ele pousou o dedo sobre o mapa. – Próximos da 86th Street. Embaixo do parque. Perto do lago do Central Park. Parece desabitado. Por isso chamei o senhor.
– Fico grato – respondeu o líder. – Quero estar presente quando a chama da rebelião de guerrilha mal concebida de nossos inimigos for extinta. Sabia que deveria haver um motivo para eles se levantarem agora. – A voz de Dom Carlo também se ergueu. O Açougueiro o encarava.
– Quero a cabeça deles – anunciou Dom Carlo. – Espetaremos em lanças na Amsterdam e na 110th Street. – Arregalados, seus olhos brilhavam com ferocidade, refletindo a luz elétrica.
O Açougueiro pousou uma mão com suavidade no pulso de Dom Carlo.
– Melhor irmos para o norte agora, Padrone. Disse para os homens esperarem no lugar, mas eles estão muito… entusiasmados.
Por um momento, o olhar de Dom Carlo pairou freneticamente sobre os corpos que jaziam no concreto sujo. Farrapos ensopados de sangue.
– Que tragédia! A dor, a dor… – Ele não tirava os olhos dos cadáveres aos seus pés. Havia um homem branco, braços desengonçados e pernas abertas como os membros de uma marionete quebrada. Não havia paz no rosto marcado e queimado pelo sol. Apenas a agonia refletia-se nos
olhos negros bem abertos. Óculos provisórios esmagados jaziam no sangue empoçado da cabeça do homem. Dom Carlo inconscientemente empurrou o ombro da jaqueta esfarrapada com a ponta de uma bota polida.
– Este aqui era um verdadeiro curinga das selvas… – Sua voz diminuiu.
Dom Carlo virou o rosto. Empertigou-se, tirando forças do conhecimento quase sagrado do que precisava fazer. Chegou bem perto do rosto sóbrio do Açougueiro.
– Essas coisas que fazemos… – ele disse. – São tristes, muito tristes. Mas às vezes precisamos atacar e até destruir o modo de vida que amamos para preservá-lo.
Apesar de sua ousadia – por que estou tentando impressionar aquela mulher esfarrapada? –, Jack movia-se pelos túneis no seu tempo. A longa jornada de volta ao parque fez com que o andar difícil e uma dor considerável voltassem. Sempre que ouvia um ruído, congelava. A malhada mostrou paciência notável. Seguia mais ou menos 15 metros adiante e voltava se tudo estivesse limpo. Jack desejava desesperadamente poder falar com ela.
Naquele momento, os sons não eram imaginários. Ficavam cada vez mais altos. Jack começou a ouvir gritos ininteligíveis. Pulava a cada tiro ou explosão. Desligou a lanterna, pois temia que alguém visse a luz. A malhada parou a alguns metros de distância. Jack esfregou sujeira no rosto para evitar os reflexos.
Botas se arrastavam contra o chão de concreto bem à sua frente. Ele começou a recuar e correu na direção de um dos caçadores, que ficou tão surpreso quanto ele.
– Que diabos! Joey! Joey, peguei um!
O homem de capacete com luz na testa arremessou a coronha da arma na cabeça de Jack.
– Onde ele está, Sly?
A coronha do rifle apenas esfolou o crânio de Jack. Ele conseguiu correr para fora da luz na direção de uma passagem aparentemente sem saída. Jack tentou moldar-se à parede e desejou poder se transformar em algo útil, como concreto ou sujeira. Quando o pensamento cruzou sua mente, reconheceu as agulhadas, o que significava que ele estava ficando escamoso. Jack tentou impedir, reduzindo a respiração e esforçando-se para controlar-se. Era tudo que ele precisava agora. Onde está a malhada?, ele pensou. A Nômada vai me matar se aquela gata se machucar.
– Está aqui embaixo, Joey. Não tem pra onde ir. – A voz soava como se tivesse a centímetros de distância.
– Jogue uma granada e dê o fora. A gente precisa fechar a base deles.
– Hum, Joey, vem cá.
– Sly, você tá doido, cara. Saia daí.
O som do metal batendo na pedra. Jack viu o cintilar da granada antes de a adrenalina apagar seu cérebro. Merde, foi seu último pensamento consciente.
O rugido explosivo foi acompanhado pela queda de algumas pedras, mas não havia muitas gambiarras ali. O teto aguentou.
– Vá ver, Sly.
– Está bem, Joey. Obrigado. – Sly era conhecido por ser quase tão maluco quanto o Pequeno Renaldo.
Por que eu?, Joey se perguntava.
– Não restou nada. Só uns farrapos e um tênis. Na mosca.
– Então vamos. Temos um longo caminho pela frente.
Nenhum dos homens percebeu que a malhada se esgueirou sobre uma pedra que se projetava do muro próximo ao teto. A gata desceu aos pulos e farejou as roupas rasgadas e ensanguentadas.
Mandou a cena para Nômada e partiu para encontrá-la.
Nômada ficou quieta, recostada à parede do fundo do desvio da 86th Street. Acariciou a malhada e fez sua melhor imitação de senhora inofensiva. O gato preto alertou que os mafiosos estavam a caminho, mas já estavam atrás dela quando tentou recuar. Muitos para combater, então ela agiu passivamente. Naquele instante, olhava silenciosa para a bagunça que tinham feito com sua “casa”. Seu único guarda estava de olho em Dom Carlo.
– De alguma forma, eles devem ter escapado – desculpou-se o Açougueiro.
– Eu os quero – retrucou Dom Carlo. Ele observava a grande pintura de veludo em sua moldura barata de madeira, um canto rasgado: uma manada de leões perseguia zebras na savana. – Eles estiveram aqui – ele comentou. – Selvagens.
– Dom Carlo, senhor, eu… – Joey começou a falar.
– O quê?
– É Maria, Dom Carlo. Encontrei com ela vagando aqui embaixo. – Joey escoltou Rosemary até o pai. Ela não parecia vê-lo ou registrar qualquer outra coisa. Seu rosto estava sem expressão, quase pacífico. Rosemary era uma boneca de pano dócil, perdida em algum lugar nos túneis.
Dom Carlo olhou para ela espantado e, em seguida, preocupado.
– Maria, o que aconteceu, mia? Joey, que aconteceu com ela?
– Não sei, Dom Carlo. Ela estava assim quando encontrei com ela.
Nômada ergueu os olhos sob seus cabelos desgrenhados.
– Rosemary, você não poderia ficar fora disso também, né? Assistentes sociais… Muito intrometidos. – Nômada falou num sussurro. O guarda virou-se quando ouviu o murmúrio, mas sacudiu a cabeça e voltou a atenção para o agito.
– Cuide dela para mim, Joey, até eu terminar com isso. – Virando-se para o Açougueiro, Dom Carlo disse: – A velha sabe de alguma coisa?
– É o que vamos descobrir. – A luz refletiu a lâmina do estilete do Açougueiro quando ele partiu para cima de Nômada. Então parou e ouviu com atenção.
Todos no túnel ouviam. O estrondo, que de início parecia apenas outro trem a distância, ficava muito alto, muito rápido. Gritos vieram do túnel oeste, foi um grito de dor quando o vagão de metrô surgiu da escuridão, viajando onde nenhum vagão poderia estar, sem nenhum terceiro trilho, em vias arruinadas. O carro reluzia com uma fosforescência branca, como um fantasma. No sinal de rota lia-se CC LOCAL. Parou no meio da reunião. Os desenhos espalhafatosos nas suas laterais mudavam com tanta rapidez que era impossível concentrar-se neles.
– C.C.! – Rosemary, que estava parada ao lado de Joey, livrou-se dele e correu para o vagão-fantasma. Ela estendeu os braços como se quisesse abraçar a coisa, mas quando tocou a lateral, esta se retraiu. Então Rosemary estendeu a mão para tocar aquilo que não era metal. – C.C.?
As cores irradiaram do ponto onde ela tocou o vagão, e então desapareceram. O carro tornou-se preto e quase desapareceu dos olhos dos observadores. Palavras apareciam como antes: letras de canções que C.C. havia escrito e apenas sua melhor amiga, Rosemary, tinha ouvido. Os observadores ficaram parados, espantados demais para se mover.
Você pode cantar a dor
Você pode cantar a tristeza
Mas nada trará um novo amanhã
Ou mandará o ontem embora
As imagens apareceram na lateral do vagão como se fossem projetadas sobre ele. A primeira cena foi de um ataque, um estupro numa estação de trem. Um leito de hospital com a imagem de Rosemary ao lado dele. Alguém em camisola hospitalar descia as escadas de incêndio.
– Foi assim que você saiu do hospital, C.C. Por que fugiu? – Rosemary olhava para cima e falava com o vagão como se ele fosse um amigo.
A próxima cena mostrou outra estação de metrô, outro ataque, mas a pessoa de camisola agora era testemunha. Tentou impedir o ataque e foi empurrada de lado, caindo nos trilhos. As cores da dor e da fúria. O lixo e praticamente tudo que não estava preso na plataforma desocupada – máquinas de venda automática, jornais descartados, um rato morto, tudo – foi sugado para os trilhos como se puxados para o coração voraz de um buraco negro. Um trem com seis vagões freava na estação. De repente, outro vagão juntou-se a ele. O agressor, fugindo, entrou no novo carro e... a cena ficou rubra, como se sangue lavasse o vagão-fantasma. Mais estações de metrô, mais vermelho. Outro agressor com jaqueta de couro, uma senhora.
– Lumiado? – Rosemary deu um passo para trás com a visão de seu noivo no meio de um assalto. – Lumiado?
– Lombardo! – Dom Carlo ficou lívido ao ver seu futuro genro entrar no vagão e ser massacrado. – Joey, leve Maria para longe desta… coisa. Ricardo, onde está a bazuca? Você vai ter sua chance agora. Frederico, leve a velha para o lado do carro. Quero todos destruídos.
Agora!
Rosemary debatia-se enquanto ele a arrastava para fora do lugar.
– Cristo – ele disse, não para ela, nem para ninguém em particular. – Como costumava ser nos vilarejos. Jesus.
Nômada foi em silêncio, segurando a gata malhada apertada em seu colo.
Ricardo mirou cuidadosamente a bazuca. Nômada se endireitou.
Com 18 quilos de fúria, o gato preto selvagem atingiu Ricardo bem nas costas. Ele caiu para a frente, o cano virou-se para cima e o foguete atingiu em cheio o teto. Explodiu numa chuva de centelhas vermelhas e douradas.
Rosemary afastou-se de Joey e correu para o vagão.
A água começou a jorrar no túnel. Os blocos de concreto rachados começaram a se separar em seus rejuntes selados, despejando ainda mais água.
– Ricardo, seu idiota, você abriu um buraco embaixo do lago do Central Park! – Frederico, o Açougueiro, gritou para alguém que não estava mais interessado. Os mafiosos espalharam-se nos túneis numa confusão.
– Entre no vagão. Vamos! – Rosemary agarrou Nômada.
– Maria, estou chegando. Espere. – Dom Carlo lutava contra a enxurrada crescente para salvar sua única filha.
– Papa, eu vou com a C.C.
– Não! Não pode. Isso aí é amaldiçoado. – Dom Carlo tentou seguir adiante, mas percebeu que sua perna estava presa. Puxou com as duas mãos dentro da água fria num esforço para se livrar e sentiu uma pele escamosa. Olhou para baixo e viu uma fileira de dentes de marfim. Os olhos implacáveis do réptil voltaram-se para trás, olhando para ele.
Rosemary havia colocado todos a bordo, até mesmo o gato preto. O vagão começou a se mover de volta para o túnel oeste.
– Espere, Jack ficou para trás. Não o deixe. – Nômada tentou abrir as portas. Rosemary agarrou seus ombros.
– Quem é Jack?
– Meu amigo.
– Não podemos voltar – disse Rosemary. – Sinto muito.
Nômada sentou-se no último banco, novamente acompanhada pelos dois gatos, e ficou olhando para trás, a água correndo pelo túnel atrás deles, enquanto se moviam para um terreno mais alto.
Quando o vagão de metrô escalou a rampa da 86th Street, as bordas de água escura os seguiam, lambendo as rodas flangeadas de C.C. No fim, ela alcançou uma elevação no túnel, onde a maré atrás dela deixou de segui-la. C.C. parou, começou a dar ré, travou os freios.
Os passageiros se reuniram na porta de conexão traseira, tentando ver qualquer coisa do que tinha ficado na escuridão.
– Deixe-nos sair, C.C. – apelou Rosemary. – Por favor.
O vagão obediente abriu as portas traseiras com um chiado. Os quatro, dois seres humanos e dois felinos, desceram ao leito dos trilhos e ficaram à beira dessa nova praia. A malhada farejou a beira da água e virou-se. Ela choramingou e olhou para Nômada.
– Espere – falou a mendiga. Um sorriso desacostumado abriu-se por um momento.
Rosemary se esforçou, concentrada, tentando espreitar no meio da escuridão. A última coisa que ela se lembrou de ver foi seu pai tentando alcançá-la. Então, apenas seus olhos. Finalmente, nada.
– Lá – disse Nômada, sem rodeios.
Todos tentaram distinguir algo.
– Não consigo ver nada – falou Rosemary.
– Lá.
Naquele momento todos viram algo: uma trilha de ondas em “v” de um largo focinho, parecido com uma ponta de pá. Viram o par de olhos blindados saindo da água, inspecionando o grupo às margens.
Os gatos começaram a miar de empolgação, a malhada pulava para lá e para cá, o preto sacudindo a cauda como um chicote peludo.
– É o Jack – Nômada falou.
Após um tempo, a poeira literalmente assentou, a água recuou, as feridas foram cuidadas, corpos enterrados, e as equipes da cidade que havia muito sofria fizeram seu melhor para limpar a bagunça como manda o figurino. Manhattan voltou ao normal.
O fundo do lago do Central Park foi selado novamente e a bacia, cheia de novo. As buscas pelos monstros do mar (mais adequadamente, monstros do lago) foram persistentes, mas sem sucesso.
Sarah Jarvis, 68 anos, finalmente percebeu qual identidade secreta certamente deve se esconder por baixo da fachada do presidente. Em novembro de 1972, votou em George McGovern.
A sorte de Joey Manzone cresceu, ou ao menos se alterou. Ele se mudou para Connecticut e escreveu um romance sobre o Vietnã, que não vendeu, e um livro sobre o crime organizado, que vendeu.
Rosa-Maria Gambione mudou seu nome legalmente para Rosemary Muldoon. Concluiu a faculdade de Assistência Social em Columbia e ajuda o Dr. Tachyon com a terapia de C.C. Ryder. Entrou na faculdade de Direito e está considerando assumir os negócios da família.
C.C. Ryder ainda é um dos casos mais difíceis do doutor, mas aparentemente há avanços no trabalho de trazer a mente e o corpo dela à forma humana. C.C. continua a criar canções belas e afiadas. Suas canções foram gravadas por Patti Smith, Bruce Springsteen e outros.
Às vezes – especialmente durante o mau tempo – Nômada e os gatos preto e malhada mudam-se para o túnel do metrô pneumático Alfred Beach com Jack “Esgoto” Robicheaux. Um arranjo confortável, mas precisou de algumas mudanças. Jack não caça mais ratos. Um lamento comum que se ouve na sala de jantar vitoriana é: “Que é isso agora, frango de novo?”
Interlúdio Quatro
DE MEDO E DELÍRIO NO BAIRRO DOS CURINGAS
Dr. Hunter S. Thompson
Rolling Stone, 23 de agosto de 1974
O dia está raiando no Bairro dos Curingas agora. Posso ouvir o estrondo dos caminhões de lixo embaixo da minha janela no hotel South Street aqui perto, próximo das docas. É o fim da linha, para o lixo e tudo o mais, o cu da América, e estou me sentindo próximo ao fim da minha linha também, após uma semana atravessando as mais vis e venenosas ruas de Nova York… Quando olho para cima, uma mão em forma de garra ergue-se sobre o peitoril, e um minuto depois é seguida por um rosto. Estou seis andares acima da rua, este é o Bairro dos Curingas, e aquele maluco idiota vem escalando a janela como se não fosse nada de mais. Talvez ele esteja certo: este é o Bairro dos Curingas, e a vida corre rápida e cruel aqui. É como perambular por um campo de extermínio nazista durante uma bad trip; você não entende metade do que vê, mas fica apavorado da mesma forma.
A coisa que passa na minha janela tem uns dois metros e pouco, com braços de juntas triplas de aranha que balançam tão baixo que suas garras criam sulcos no chão de madeira maciça, uma feição de Conde Drácula e um focinho que lembra o Lobo Mau. Quando sorri, todo esse horror abre meio metro de dentes verdes pontudos. O desgraçado ainda cospe veneno, o que é um bom talento para se ter quando se perambula pelo Bairro dos Curingas à noite.
– Tem anfetamina aí? – ele pergunta enquanto desce da janela. Espia a garrafa de tequila no criado-mudo, agarra-a com um de seus braços ridículos e dá um grande gole.
– Pareço o tipo de homem que toma remédios? – respondo.
– Acho que teremos que tomar do meu, então – Croyd diz e puxa um punhado de comprimidos pretos do bolso. Pega quatro e lança garganta abaixo com mais da Cuervo Gold…
… Imagine se Hubert Humphrey tivesse virado um curinga, pense no Hube com uma tromba enfiada no meio da cara, como uma minhoca rosa flácida onde deveria estar o nariz, e você terá uma boa idéia de Xavier Desmond. Seu cabelo é ralo ou já caiu, seus olhos são acinzentados e inchados, e seu terno, folgado. Ele está nessa há dez anos, e dá para perceber que está o consumindo. Os colunistas locais o chamam de prefeito do Bairro dos Curingas e a voz dos curingas. Isso é tudo que ele conseguiu em dez anos, ele e sua Liga Anti-difamação dos Curingas, digna de pena – alguns títulos inventados, certo status como o curinga favorito do Tammany, convites para algumas festas bacanas no Village quando a anfitriã não consegue um ás de uma hora para a outra.
Ele está na plataforma, em seu terno de três peças, segurando a porra do chapéu com a tromba, Deus do céu, falando sobre solidariedade dos curingas e campanhas de votação e policiais curingas para o Bairro, despejando seu velho lenga-lenga como se realmente significasse alguma coisa. Atrás dele, sob uma faixa caindo aos pedaços da LADC, está a organização mais miserável de perdedores patéticos que você nunca gostaria de ver. Se fossem negros, seriam os escravos da vez, mas os curingas não encontraram um nome para eles ainda… mas encontrarão, pode apostar sua máscara. Os membros da LADC se mantêm fiéis às máscaras, como bons curingas em qualquer lugar. Não apenas máscaras de esqui e máscaras dominó. Caminhe pela Bowery ou pela Chrystie Street, ou pare por um momento em frente à clínica de Tachyon, e você verá máscaras de algum pesadelo de uma cabeça cheia de ácido: máscaras de pássaro com penas, de caveira, caras de ratazanas de couro e capuzes de monge, e as “máscaras fashion” personalizadas com brilho e lantejoulas que custam uns cem paus cada. As máscaras são parte da cor do Bairro dos Curingas, e os turistas de Boise, Duluth e Muskogee garantem as suas comprando uma ou duas máscaras de plástico para levar como lembrança, e todo repórter idiota, meio cego e meio bêbado, que decide
fazer outro elogio boçal aos pobres curingas fodidos nota as máscaras imediatamente. A atenção está tão presa nas máscaras que não observam os uniformes quase transparentes do Exército da Salvação e as roupas com estampas gastas, parecidas com pijamas, que os mascarados estão trajando, e não notam o quão velhas algumas dessas máscaras estão ficando, e com certeza não entendem os jovens curingas, aqueles de jaquetas de couro e calças Levi’s que não usam nenhuma máscara.
– É como eu sou – uma garota com um rosto que parecia um pote de cus esmagados me disse naquela tarde do lado de fora de uma repugnante casa pornô do Bairro dos Curingas. – Tô me fodendo se os limpos gostam disso ou não. Tenho que usar uma máscara pra alguma vagabunda limpa do Queens não ficar com estômago embrulhado quando olhar pra mim? Quero que se foda!
Talvez um terço da multidão ouvindo Xavier Desmond esteja usando máscaras. Talvez menos.
Sempre que ele para a fim de esperar aplausos, as pessoas de máscaras batem as mãos, mas pode-se dizer que é um esforço, mesmo para eles. O resto deles está apenas ouvindo, esperando, e tem olhos tão feios quanto suas deformidades. Um bando de jovens malvados está lá fora, e um monte deles está usando cores de gangues com nomes como PRÍNCIPES DO DEMÔNIO e DEGENERADOS ASSASSINOS e LOBISOMENS. Estou em pé, meio de lado, imaginando se o Tach vai aparecer conforme anunciado, e não vejo quem começa, mas de repente Desmond se cala, bem no meio de uma declaração tediosa sobre como ases, curingas e limpos são todos filhos de Deus sob sua pele, e quando olho para trás, estão vaiando e jogando amendoins, arremessando amendoins salgados nele ainda com casca, lançando-os direto na cabeça e no peito e na maldita tromba, atirando-os dentro do chapéu, e Desmond fica apenas lá, em pé, espantado. Ele devia ser a voz desse povo, ele leu isso nos jornais Daily News e Grito do Bairro dos Curingas, e o velho coitado não tem a menor bosta de ideia sobre o que deu errado…
… é pouco depois da meia-noite quando saio do Freakers para mijar despreocupadamente na sarjeta, percebendo que é uma saída melhor do que o banheiro masculino, e as chances de um policial passar pelo Bairro dos Curingas àquela hora da noite são tão remotas que chegam a ser risíveis. A luz do poste está estourada e por um momento acho que é Wilt Chamberlain quem está em pé lá, mas então chega mais perto e eu percebo os braços, as garras e o focinho. Pele como marfim velho. Pergunto qual é o problema, e ele me pergunta se não fui eu quem escreveu o livro sobre os Angels, e meia hora depois estamos sentados num compartimento nos fundos de um bar que não fechava na Broome Street, enquanto a garçonete serve galões de café preto para ele. Ela tem longos cabelos louros e pernas bonitas, e em seu uniforme rosa está escrito Sally na altura do peito, e é bom olhar para ela; até notar seu rosto. Descubro que baixo os olhos para o meu prato sempre que ela se aproxima, o que me faz ficar enojado, triste e puto. O Focinho está dizendo algo sobre como ele nunca aprendeu álgebra, e não há nada de errado comigo que cerca de quatro dedos de uma dose de remédio não curaria e, após eu dizer aquilo, o Focinho me mostrou seus dentes e mencionou que, embora haja uma escassez definitiva de comprimidos eletrizantes por esses dias, por acaso ele sabe onde pode colocar as mãos em algumas…
– … Estamos falando de feridas aqui, estamos falando de feridas reais, venenosas, profundas e sangrando, do tipo que não podemos tratar com um maldito Band-Aid, e isso é tudo que Desmond conseguiu na tromba, apenas um monte de Band-Aids – o anão me disse após me dar o aperto de mão dos Irmãos Revolucionários da Droga, ou qualquer que fosse aquela porra maldita. À medida que os curingas vão embora, ele conseguia uma atenção respeitável – havia anões muito antes do vírus carta selvagem –, mas ele ainda está bem puto com a situação.
– Ele tá segurando esse chapéu na tromba há dez anos, e tudo o que acontece é que os limpos caguem dentro dele. Bem, isso acabou. Não pedimos mais, dizemos a eles, a CSJ está dizendo a eles, e vamos enfiar isso goela abaixo se precisarmos. – A CSJ é a Curingas por uma Sociedade Justa, e tem tanto em comum com a LADC como uma piranha tem com um daqueles peixes dourados brancos gigantes e com olhos saltados que vemos bamboleando em aquários decorativos na sala de espera dos consultórios de dentista. A CSJ não tem Capitão Tacky ou Jimmy Roosevelt ou Reverendo Ralph Abernathy para ajudar em sua diretoria – de fato, não tem uma diretoria, não vende filiações a cidadãos preocupados nem a ases compadecidos. O Hube se sentiria desconfortável demais numa reunião da CSJ, tivesse ele uma tromba na cara ou não…
… mesmo às quatro da manhã, o Village não é o Bairro dos Curingas, e isso é parte do problema, mas a maior parte é apenas porque Croyd está ligado e maluco com as anfetaminas do caralho e, pelo que posso dizer, não dormiu por uma semana. Em algum lugar do Village está o rapaz que começamos a procurar, um ás cafetão com metade do sangue negro que era conhecido por ter as mulheres mais maravilhosas da cidade, mas não conseguimos encontrá-lo, e Croyd continua insistindo que as ruas todas estão mudando, como se fossem vivas e traiçoeiras e estivessem prontas para pegá-lo. Os carros diminuem quando veem Croyd gingando calçada abaixo com aqueles passos compridos de pernas de aranha com juntas triplas, e aceleram novamente quando ele olha para eles e resmunga. Estamos em frente de um empório quando ele esquece tudo sobre o cafetão que devíamos encontrar e resolve que está com sede. Enrola as garras em torno da porta corrediça de aço, dá um pequeno grunhido, e logo arranca a coisa toda da frente de tijolos expostos da loja, e a usa para estourar a vitrine… no meio do caminho até a caixa de cerveja mexicana, ouvimos sirenes. Croyd abre seu focinho e cospe na porta, e a merda do veneno atinge o vidro e começa a queimar tudo de imediato.
– Estão atrás de mim de novo – ele diz numa voz cheia de maldição, ódio, paranoia e raiva de viciado em anfetamina. – Eles todos estão atrás de mim. – E então olhou para mim e é o que basta, sei que estou ferrado. – Você trouxe eles aqui – ele diz, e eu digo a ele que não, que gosto dele, alguns dos meus malditos melhores amigos são curingas, e os giroscópios vermelhos e azuis estão à frente quando ele pula, me agarra, e berra: – Eu não sou um curinga, seu merda, sou um maldito ás – e me joga pela vitrine, a outra vitrine, aquela cujo vidro ainda estava intacto. Mas não por muito tempo… enquanto estou deitado na sarjeta, sangrando, ele bate em retirada, direto da porta frontal com o engradado com seis garrafas de Dos Equis sob o braço, e os policiais deram um par de rajadas na direção dele, mas ele apenas ri da polícia e começa a escalar… Suas garras deixam buracos profundos nos tijolos. Quando ele alcança o telhado, uiva para a lua, abre o zíper da calça e mija sobre todos nós antes de desaparecer…
Fios
Stephen Leigh
A morte de Andrea Whitman foi totalmente culpa do Titereiro. Sem seus poderes, o desejo obscuro que um garoto retardado de 14 anos sentiu por uma vizinha mais nova nunca teria se deflagrado numa fúria branca e incandescente. Sozinho, Roger Pellman nunca teria atraído Andrea para o bosque atrás da Escola do Sagrado Coração nos arredores de Cincinnati e rasgado as roupas da garota apavorada. Nunca teria empurrado aquela estranha rigidez para dentro de Andrea até sentir um jorrar poderoso, relaxante. Nunca teria olhado para a criança e para a goteira de sangue escuro entre suas coxas e sentido um nojo incontrolável que o fez agarrar a grande rocha plana ao lado deles. Nunca teria usado aquela pedra para surrar a cabeça loura de Andrea, transformando-a numa massa irreconhecível de carne despedaçada e ossos partidos.
Nunca teria ido para casa com o sangue da garota sobre seu corpo nu.
Roger Pellman não teria feito nada disso se o Titereiro não estivesse se escondendo nos recessos da mente avariada do pobre Roger, alimentando-se das emoções que ali encontrou, manipulando o garoto e amplificando a febre adolescente que destruía seu corpo. A mente de Roger era fraca, maleável e aberta; o estupro que o Titereiro praticava nela não era menos brutal do que o ato de Roger contra Andrea.
O Titereiro tinha 11 anos. Odiava Andrea, odiava-a com a raiva horrível de uma criança mimada, odiava-a por tê-lo traído e humilhado. O Titereiro era a fantasia de vingança de um garoto infectado pelo vírus carta selvagem, um garoto que tinha cometido o erro de confessar para Andrea sua afeição por ela. Talvez ele tivesse dito para a garota mais velha que um dia pudessem se casar. Os olhos de Andrea se arregalaram e ela fugiu dele, dando risadinhas. Ele começou a ouvir os sussurros zombeteiros no dia seguinte na escola e soube, enquanto o rubor lhe queimava as bochechas, que ela havia falado para todos os amigos. Falado para todo mundo.
Quando Roger Pellman tirou a virgindade de Andrea, o Titereiro sentiu a tontura enfraquecedora daquele calor. Estremeceu com o orgasmo de Roger; quando o garoto golpeou com a pedra o rosto lacrimoso da garota, quando ouviu o estalar abafado dos ossos, o Titereiro teve um sobressalto. Cambaleou com o prazer que corria por dentro dele.
Seguro em seu quarto, a quatrocentos metros de distância.
Sua reação incontrolável àquele primeiro assassinato o assustou ao mesmo tempo em que o
atraiu. Pelos meses seguintes, desacelerou o uso daquele poder, com medo de perder o controle
de novo com tanto entusiasmo. Mas, como em todas as coisas proibidas, a compulsão o coagiu.
Nos cinco anos que seguiram, por diversos motivos, o Titereiro emergiu e matou mais sete vezes.
Ele imaginava aquele poder como uma entidade separada dele mesmo. Às escondidas, ele era o Titereiro – um emaranhado de fios pendendo de seus dedos invisíveis, sua coleção de marionetes grotescas dando cambalhotas nas pontas.
TEDDY, JIMMY AINDA NO PÁREO
HARTMANN, JACKSON, UDALL ESPERAM COMPROMISSO
Daily News de Nova York, 14 de julho de 1976
HARTMANN PROMETE BATALHA EM CONVENÇÃO POR QUESTÃO
DOS DIREITOS DOS CURINGAS NA PLATAFORMA
The New York Times, 14 de julho de 1976
O senador Gregg Hartmann saiu do elevador no hall do Aces High. Sua comitiva enfileirou-se no restaurante atrás dele: dois homens do Serviço Secreto, seus assistentes John Werthen e Amy Sorenson e quatro repórteres cujos nomes ele cuidou de esquecer no caminho até lá em cima. Foi uma viagem de elevador lotada. Os dois homens de óculos pretos resmungaram quando Gregg insistiu que eles poderiam fazer o trajeto todos juntos.
Hiram Worchester estava lá para receber o grupo. Hiram era uma visão impressionante em si, um homem de circunferência impressionante que se movia com leveza e agilidade surpreendentes.
Caminhava facilmente a passos largos pela área acarpetada da recepção, sua mão estendida e um sorriso furtivo dentro da barba cheia. A luz do sol poente derramava-se pelas janelas grandes do restaurante e reluzia de sua cabeça calva.
– Senador – disse ele, jovial. – Que bom revê-lo.
– Também acho, Hiram. – Então Gregg sorriu melancolicamente, balançando a cabeça para a turma atrás dele. – Acredito que conheça John e Amy. O resto desse zoológico terá que se apresentar. Parecem ser empregados permanentes a partir de agora. – Os repórteres riram, os guarda-costas permitiram-se sorrisos pequenos e breves.
Hiram forçou um sorriso.
– Temo que seja o preço que se paga por ser candidato, senador. Mas o senhor parece muito bem, como sempre. O corte desse terno está perfeito.
O homem imenso deu um passo para trás, afastando-se de Gregg, e olhou para ele de cima a baixo, avaliando-o. Então, aproximou-se e baixou sua voz de forma conspiratória.
– Você deveria dar a Tachyon umas dicas com relação a trajes. Realmente, o que o bom doutor
tem vestido aqui à noite… – Os olhos amendoados rolaram para cima com pavor fingido, e então Hiram gargalhou. – Mas você não precisa me ouvir tagarelando, sua mesa está pronta.
– Pelo visto, meus convidados já chegaram.
Essa fala retorceu a boca de Hiram, deixando seu rosto carrancudo.
– Sim. A mulher está bem, mesmo que beba demais pro meu gosto, mas se o anão não estivesse aqui como seu convidado, eu o teria expulsado. Nem tanto pela cena que ele criou, mas é extremamente rude com os ajudantes.
– Vou fazer com que ele se comporte, Hiram.
Gregg balançou a cabeça, correndo os dedos pelos cabelos louros acinzentados. Gregg Hartmann era um homem de aparência simples e medíocre. Não era um dos políticos bonitos e bem-vestidos que pareciam ser a nova safra dos anos 1970, nem era do outro tipo, os rechonchudos e convencidos das antigas. Hiram conhecia Gregg como uma pessoa amigável, objetiva, alguém que cuidava verdadeiramente dos eleitores e de seus problemas. Como presidente do CRISE-A, tinha demonstrado compaixão por aqueles afetados pelo vírus carta selvagem. Sob a liderança do senador, diversas leis restritivas relacionadas aos infectados pelo vírus foram atenuadas, riscadas dos anais ou ignoradas de maneira prudente. A Lei de Controle de Poderes Exóticos e o Recrutamento Especial ainda estavam legalmente em vigor, mas o senador Hartmann proibiu qualquer de seus agentes de executá-los. Hiram frequentemente admirava-se com o tratamento hábil da relação difícil entre o público e os curingas. “Amigo do Bairro dos Curingas” era como a Time o chamou num artigo (acompanhado por uma fotografia de Gregg apertando a mão de Randall, o leão de chácara no Funhouse – a mão de Randall era uma garra de inseto, e no centro da palma havia um agrupamento de olhos úmidos e feios). Para Hiram, o senador era aquele raro Bom Homem, algo anormal entre os políticos.
Gregg suspirou, e Hiram viu o profundo cansaço por trás da fachada de boa temperança do senador.
– Como vai a convenção, senador? – ele perguntou. – Que chances tem a pauta dos Direitos dos Curingas?
– Estou batalhando por ela com todas as minhas forças – respondeu Gregg e olhou para trás, para os repórteres, que observavam a conversa com interesse genuíno. – Descobriremos nos próximos dias, quando tivermos o voto dos delegados.
Hiram percebeu a resignação nos olhos de Hartmann, que deu a ele a informação de que precisava – fracassaria, como todo o resto.
– Senador – falou Hiram –, quando a convenção acabar, espero vê-lo novamente por aqui.
Prepararei algo especial apenas para você, para que saiba como apreciamos seu trabalho.
Gregg deu um tapinha leve nas costas de Hiram.
– Com uma condição – retrucou ele. – Você tem que me garantir que posso ter uma mesa de
canto. Só para mim. – O senador riu baixo. Hiram devolveu um sorriso forçado.
– É sua. Agora, para hoje à noite, recomendaria o filé ao vinho tinto... está muito suave. Os aspargos estão extremamente frescos e eu mesmo fiz o molho. De sobremesa, você precisa provar a mousse de chocolate branco.
As portas do elevador abriram-se atrás deles. Os homens do Serviço Secreto lançaram um olhar cauteloso para as duas mulheres que saíram. Gregg balançou a cabeça e apertou novamente a mão de Hiram.
– Você precisa cuidar dos outros clientes, meu amigo. Me ligue quando essa loucura acabar.
– Você vai precisar de um chef para a Casa Branca também.
Gregg riu com vontade daquilo.
– Vai precisar falar com Carter ou Kennedy sobre isso, Hiram. Sou apenas um dos azarões nesta campanha.
– Então estão ignorando o melhor – respondeu Hiram e se retirou a passos largos.
O Aces High ocupava a torre de observação do Empire State Building. Das janelas imensas, os comensais podiam ter uma vista da ilha de Manhattan. O sol tocava o horizonte além do porto da cidade; a cúpula dourada do Empire State lançava reflexos na sala de jantar. No pôr do sol verde e dourado, não era difícil encontrar o Dr. Tachyon sentado em sua mesa habitual com uma mulher que Gregg não reconheceu. Hiram estava certo, Gregg percebeu imediatamente – Tachyon vestia
um paletó de noite escarlate flamejante adornado com um colarinho de seda verde-esmeralda.
Lantejoulas púrpuras traçavam padrões grossos nas mangas e nos ombros; ainda bem que as calças estavam escondidas, embora uma faixa de laranja iridescente pudesse ser vista sob o paletó. Gregg acenou, Tachyon cumprimentou com a cabeça.
– John, por favor, leve nossos convidados para a mesa e faça as apresentações por mim. Estarei lá num segundo. Amy, poderia vir comigo? – Gregg costurou seu caminho pelas mesas.
O cabelo de Tachyon, na altura dos ombros, era do mesmo vermelho improvável de seu paletó.
Correu uma mão delicada pelos cachos encaracolados quando se levantou para cumprimentar Gregg.
– Senador Hartmann – ele disse. – Gostaria de lhe apresentar Angela Fascetti. Angela, este é o senador Gregg Hartmann e sua assistente, Amy Sorenson; o senador é o homem responsável por grande parte do financiamento da minha clínica.
Após algumas mesuras, Amy pediu licença. Gregg ficou aliviado quando a companhia de Tachyon entendeu a dica sem qualquer sugestão de Amy e deixou a mesa com ela. Gregg esperou até as duas mulheres estarem a algumas mesas de distância e virou-se para Tachyon.
– Pensei que você gostaria de saber que confirmamos o agente infiltrado em sua clínica, doutor.
Suas suspeitas estavam corretas.
Tachyon franziu o cenho, linhas profundas sulcaram sua testa.
– KGB?
– Provavelmente – Gregg respondeu. – Mas, pelo que sabemos, é relativamente inofensivo.
– Ainda o quero fora de lá, senador – Tachyon insistiu educadamente. Juntou a palma das mãos diante do rosto e, quando olhou para Gregg, seus olhos lilases estavam cheios de uma dor antiga.
– Tive dificuldades o bastante com seu governo e com a antiga caça às bruxas. Não quero passar por outra. Sem ofensas, senador, você tem sido um bom homem para se trabalhar e muito útil para mim, mas gostaria de manter a clínica totalmente longe da política. Meu desejo é o de ajudar os curingas, nada mais.
Gregg conseguiu apenas concordar com a cabeça. Resistiu a um impulso de lembrar o doutor de que a política que ele dizia querer evitar também pagara algumas das contas da clínica. Sua voz estava carregada de simpatia.
– Este é o meu interesse também, doutor. Mas se simplesmente despedirmos o homem, a KGB terá um novo infiltrado no lugar dele dentro de poucos meses. Existe um novo ás trabalhando conosco. Falarei com ele.
– Faça o que quiser, senador. Seus métodos não me interessam, desde que a clínica permaneça intacta.
– Cuidarei para que fique. – Do outro lado do salão, Gregg viu Amy e Angela seguirem na direção deles.
– Você está aqui para encontrar Tom Miller? – Tachyon perguntou, soerguendo a sobrancelha.
Ele acenou com a cabeça levemente na direção da mesa de Gregg, onde John estava fazendo as apresentações.
– O anão? Sim. Ele…
– Eu o conheço, senador. Suspeito que seja responsável por muitas das mortes e pela violência no Bairro dos Curingas nos últimos meses. É um homem amargo e perigoso, senador.
– Exatamente por isso quero freá-lo.
– Boa sorte – Tachyon retrucou secamente.
CSJ PROMETE VIOLÊNCIA SE PAUTA FOR DERRUBADA
The New York Times, 14 de julho de 1976
Sondra Falin sentiu emoções mistas quando Gregg Hartmann se aproximou da mesa. Ela sabia que enfrentaria essa dificuldade naquela noite e, talvez, tivesse bebido mais do que deveria. O álcool queimava em seu estômago. Tom Miller – “Gimli”, como ele preferia ser chamado na CSJ – estava agitado ao seu lado e ela estava com uma mão trêmula pousada nos músculos grossos de seu antebraço.
– Tira essas patas de mim – o anão rosnou. – Você não é minha avó, Sondra.
A observação a atingiu mais do que teria atingido em outra situação. Ela conseguia apenas baixar os olhos para suas mãos, para a pele seca e com manchas senis que pendia solta sobre os ossos finos, para as articulações inchadas e artríticas. Ele olhará para mim e sorrirá como um estranho e eu não posso lhe dizer. As lágrimas aguilhoavam seus olhos, limpou-as bruscamente com as costas das mãos, então virou o copo que estava diante dela. Era um uísque Glenlivet que
secava sua garganta.
O senador sorriu para eles. Seu sorrisinho era mais do que apenas a ferramenta profissional de um político… o rosto de Hartmann era natural e aberto, inspirava confiança.
– Desculpem a minha grosseria em não vir direto para cá – ele comentou. – Gostaria de dizer que estou muito feliz que os senhores tenham concordado em se encontrar comigo hoje à noite. O senhor é Tom Miller? – Gregg disse, virando-se para a imagem barbada do anão, sua mão estendida.
– Não, sou Warren Beatty e esta aqui é a Cinderela – Miller retrucou, mal-humorado. Sua voz tinha o som fanhoso do Meio-Oeste. – Mostre a ele seu sapatinho, Sondra. – O anão levantou a cabeça beligerante para Hartmann, sutilmente ignorando a mão.
A maioria das pessoas teria ignorado o insulto, Sondra sabia. Teria retirado a mão e fingido que nunca havia sido oferecida.
– Conheci o Sr. Beatty noite passada numa festa da Rolling Stone – disse o senador. Ele sorriu, sua mão sendo o foco de atenção em torno da mesa. – Consegui até apertar a mão dele.
Hartmann aguardou. Em silêncio, Miller resmungou. Por fim, o anão pegou os dedos de Hartmann com aquela pegada desajeitada. Com o toque, Sondra pareceu ver o sorriso de Hartmann esfriar por um momento, como se o contato o tivesse ferido levemente. Rapidamente, soltou a mão de Miller. Então, sua compostura voltou.
– Bom encontrá-los – Hartmann falou. Não havia traço de sarcasmo em sua voz, apenas uma cordialidade genuína, um alívio.
Sondra entendia como havia conseguido amar aquele homem. Não é você que o ama; é apenas a Súcubo. Ela é quem Gregg conhece. Para ele, você é apenas uma mulher enrugada para quem a política está em questão. Ele nunca saberá que a Súcubo é a mesma pessoa, não se você quiser mantê-lo. Tudo que ele verá é a fantasia que a Súcubo produzirá para ele. É aquilo que Miller disse que temos de fazer, e você lhe obedecerá, não é mesmo?
Não importa o quanto isso lhe machuque.
Agora era sua vez de apertar a mão de Gregg. Sentiu os dedos tremerem quando se tocaram.
Gregg também percebeu, por uma leve simpatia pareceu repuxar os cantos da boca. Ainda assim, havia apenas curiosidade e interesse em seus olhos azuis acinzentados, nenhum reconhecimento além disso. O humor de Sondra ficou obscuro novamente. Está se perguntando que coisas horríveis afligem a senhora. Perguntando-se qual feiura se acomoda dentro de mim, que horrores eu poderia revelar se ele me conhecesse.
Ela sinalizou, pedindo outro copo de uísque.
Seu humor continuou a piorar durante toda a refeição. O padrão da conversa parecia definido.
Hartmann introduzia um tópico, e Miller respondia com sarcasmo injustificado e desdém, que o senador, por sua vez, atenuava. Sondra ouvia a interação sem participar. Os outros, em torno da mesa, claro, sentiam a mesma tensão, pois o palco permanecia aberto para os dois atores principais, com os outros inserindo suas contribuições nos momentos corretos. O jantar, apesar da preocupação constante de Hiram, tinha gosto de cinzas na boca da mulher. Sondra bebeu mais, observando Gregg. Quando a mousse foi colocada de lado e a conversa ficou séria, Sondra estava bem bêbada. Tinha de balançar a cabeça para clarear as idéias.
– … preciso que o senhor prometa que não haverá manifestações públicas – Hartmann estava dizendo.
– Que merda – Miller retrucou. Por um momento, Sondra pensou que ele poderia mesmo cuspir.
As bochechas amareladas e cheias de cicatrizes sob a barba vermelha de Gimli se inchavam e seus olhos maníacos apertavam-se. Então, ele esmurrou a mesa, tremelicando os pratos. Os guarda-costas ficaram tensos em suas cadeiras, os outros em torno da mesa pularam com o som.
– É a mesma merda que todos vocês, políticos, oferecem – o anão rosnou. – A CSJ tem ouvido isso por anos. Seja bonzinho e role como um cãozinho amável que a gente joga uns restos de comida para você. É a hora de entrarmos no banquete, Hartmann. Os curingas estão cansados de sobras.
A voz de Hartmann, em contraste com a de Miller, era suave e razoável.
– Concordo com o senhor, Sr. Miller, Sra. Falin. – Gregg balançou a cabeça para Sondra, e ela apenas conseguiu franzir a testa como resposta, sentindo o repuxar das rugas em torno da boca. – É exatamente por isso que propus que o Partido Democrata acrescentasse a pauta dos Direitos dos Curingas à plataforma presidencial. Esse é o motivo pelo qual estou tentando agarrar pelo colarinho cada último voto que eu puder. – Gregg fazia gestos largos. Em outra pessoa, seu discurso poderia ter um tom vazio, falso. Mas as palavras de Gregg estavam cheias de horas longas e cansativas que ele gastou na convenção, e isso lhes conferia verdade. – Esse é o motivo pelo qual eu peço que tentem manter sua organização calma. Manifestações, especialmente de natureza violenta, vão voltar os delegados moderados contra vocês. Estou pedindo para que me dêem uma chance, para darem a vocês mesmos uma chance. Abandone seu plano de marchar até o Túmulo do Jetboy. Os senhores não têm permissão, a polícia já está sobrecarregada com as multidões na cidade e irá para cima de vocês, caso vocês tentem.
– Então, pare-os – Sondra disse. O uísque amolecia suas palavras, e ela sacudiu a cabeça. – Ninguém duvida que você se importa. Então, pare-os.
Hartmann fez uma careta.
– Não posso. Eu já aconselhei o prefeito a impedir essas ações, mas ele está irredutível.
Marchem e estarão pedindo confronto. Não posso ignorar a violação das leis.
– Rola, cachorrinho – Miller falou, bem devagar, então uivou ruidosamente, lançando a cabeça para trás. Ao redor deles, na sala de jantar, os clientes começaram a observá-los. Tachyon espiava-os com raiva franca, e o rosto preocupado de Hiram surgiu das portas da cozinha. Um dos homens do Serviço Secreto começou a se levantar, mas Gregg acenou para que ele se sentasse.
– Senhor Miller, por favor. Estou tentando ser honesto com os senhores. Há muito dinheiro e ajuda disponíveis e, se persistirem em antagonizar aqueles que os controlam, vão prejudicar apenas os senhores mesmos.
– E eu estou dizendo a você que a porra da “realidade” está nas ruas do Bairro dos Curingas.
Vá até lá e esfregue o nariz na merda, senador. Dê uma olhada nas pobres criaturas perambulando nas ruas, aqueles para os quais o vírus não foi bom o suficiente para matá-los, aqueles que, mutilados, se arrastam nas calçadas, os cegos, ou aqueles com duas cabeças ou quatro braços.
Aqueles que babam enquanto andam, aqueles que se escondem na escuridão porque o sol os queima, aqueles para quem o mínimo toque significa agonia – a voz de Miller se elevava, o tom era vibrante e profundo. Em volta da mesa, os queixos haviam caído. Os repórteres faziam anotações. Sondra também conseguia senti-lo, a força palpitante naquela voz convincente. Viu Miller levantar-se diante de uma multidão zombeteira no Bairro dos Curingas e, em 15 minutos, ela estava ouvindo quieta, concordando com suas palavras, balançando a cabeça. Mesmo Gregg se curvou para a frente, vidrado.
Ouça-o, mas cuidado. A voz dele é a da serpente, hipnotizante, e quando ele o capturar, dará o bote.
– Essa é a sua “realidade” – rosnou Miller. – Sua maldita convenção é apenas um teatro. E eu digo a você agora, senador – sua voz de repente tornou-se um grito –, a CSJ levará nossos protestos para as ruas.
– Senhor Miller… – começou Gregg.
– Gimli! – gritou Miller, e sua voz saiu estridente, toda sua força se esvaíra, como se Miller tivesse esgotado o estoque interno. – A porra do meu nome é Gimli! – Ele estava em pé, sobre a cadeira. Em outra pessoa, a postura pareceria ridícula, mas ninguém conseguia rir dele. – Sou uma merda de anão, não um de seus “senhores”!
Sondra puxou o braço de Miller. Ele deu de ombros, afastando-a.
– Me deixe em paz. Quero que eles vejam o quanto eu os odeio.
– O ódio é inútil – insistiu Gregg. – Ninguém de nós aqui odeia o senhor. Se o senhor soubesse as horas que eu empenhei pelos curingas, todo o trabalho duro que Amy e John enfrentaram…
– Vocês não vivem essa merda! – Miller berrou. Perdigotos voavam de sua boca, manchando a frente do paletó de Gregg. Todos na sala olhavam para eles agora, e os guarda-costas remexeram-se nas cadeiras. Apenas a mão de Gregg os reteve.
– O senhor não consegue ver que somos seus aliados, não inimigos?
– Nenhum dos meus aliados teria uma cara como a sua, senador. Você é normal demais. Quer sentir-se como um dos curingas? Então, deixe-me ajudá-lo a aprender o que é sentirem pena de você.
Antes que qualquer um pudesse reagir, Miller se agachou. Suas pernas grossas e poderosas o lançaram para cima do senador. Seus dedos torceram-se como garras ao chegar o rosto de Gregg.
O senador recuou com as mãos para cima. A boca de Sondra ficou aberta no início de um protesto inútil.
E, de repente, o anão caiu sobre a mesa como se uma mão gigante tivesse o abatido no ar. A mesa curvou-se e rachou sob ele, copos e louças caindo como cascata ao chão. Miller deu um guincho alto, patético, como um animal ferido quando Hiram, com a fúria fervilhando em seu rosto vermelho, correu pelo salão na direção dele, enquanto os homens do Serviço Secreto puxavam em vão os braços de Miller para imobilizá-lo no chão.
– Caramba, o merdinha é pesado – murmurou um deles.
– Fora do meu restaurante! – trovejou Hiram. Abriu caminho entre os guarda-costas e curvou-se sobre o anão. Pegou o homem como se fosse uma pena... Gimli parecia sacudir no ar, leve, sua boca trabalhando em silêncio, seu rosto sangrando com diversos pequenos arranhões. – Você nunca mais vai colocar os pés aqui! – Hiram rugia, um dedo gorducho em riste diante dos olhos perplexos do anão. Hiram começou a marchar na direção da saída, rebocando o anão como se puxasse um balão de gás e ralhando com ele o tempo todo. – Você insulta meu pessoal, comporta-se de forma abominável, chega a ameaçar o senador que está apenas tentando ajudar – a voz de Hiram diminuiu quando as portas do hall fecharam atrás dele, enquanto Hartmann limpava as lascas de louça de seu paletó e sacudia sua cabeça para os guarda-costas.
– Deixe-o ir. O homem tem direito de estar irritado… vocês também estariam se tivessem de viver no Bairro dos Curingas.
Gregg respirou fundo e balançou a cabeça para Sondra, que ficou embasbacada pelo anão.
– Senhora Falin, eu lhe imploro… se a senhora tiver qualquer controle sobre a CSJ e o Miller, por favor, segure-os. Estou falando sério. Vocês apenas arriscarão sua própria causa. De verdade. – Ele parecia mais triste que nervoso. Olhava para a destruição em torno dos seus pés e suspirava. – Pobre Hiram – ele disse. – E eu havia prometido a ele.
O álcool que havia consumido deixou Sondra zonza e lenta. Ela sacudiu a cabeça para Gregg e percebeu que todos estavam olhando para ela, esperando que ela dissesse algo. Ela balançou a cabeça grisalha e encarquilhada para eles.
– Vou tentar – foi tudo que ela conseguiu murmurar. E, em seguida: – Se me dão licença. – Sondra virou-se e fugiu do salão, seus joelhos artríticos reclamando.
Ela podia sentir o olhar de Gregg sobre suas costas curvadas.
VOTAÇÃO DOS DELEGADOS SOBRE
DIREITOS DOS CURINGAS HOJE À NOITE
The New York Times, 15 de julho de 1976
CSJ PROMETE MARCHA ATÉ O TÚMULO
Daily News de Nova York, 15 de julho de 1976
A célula de alta pressão caíra sobre Nova York nos últimos dois dias como uma imensa fera cansada, deixando a cidade excessivamente quente e úmida. O calor era denso e muito poluído, entrava nos pulmões como as doses de Jack Daniels que Sondra derramava na garganta – com uma ardência amarga. Ela estava diante de um pequeno ventilador empoleirado em sua cômoda, olhando para o espelho. Seu rosto afundava num jogo da velha de rugas, os cabelos secos e grisalhos estavam grudados pelo suor contra um escalpo com manchas amarronzadas, seus seios eram bolsas flácidas penduradas e pregadas no seu tórax ossudo. Seu penhoar gasto estava escancarado, e a transpiração gotejava pelas inclinações de suas costelas. Ela odiava aquela visão. Em desespero, virou-se de volta para o quarto.
Lá fora, na Pitt Street, o Bairro dos Curingas estava acordando totalmente na escuridão. Da sua janela, Sondra conseguia vê-los, aqueles sobre quem Gimli falara. Havia o Brilhante, muito visível com o eterno brilho da sua pele, a Cravo, um agrupamento de pústulas brilhantes estourando em sua pele como botões abrindo-se lentamente, Pisca, saindo da visão para a escuridão como se iluminado por uma lenta luz estroboscópica. Todos eles buscando pequenos alívios. A visão deixou Sondra melancólica. Quando se recostou na parede, seu ombro esbarrou num porta-retratos barato. A figura era de uma jovem, talvez com 12 anos, vestida apenas com uma camisola rendada que escorregava sobre um ombro para revelar o inchaço estimulante de seios púberes. A foto era claramente sexual – havia uma avidez assombrosa na expressão da menina e certa afinidade às feições corroídas da idosa. Sondra esticou o braço para levantar o porta-retratos, soluçando. A pintura coberta pela fotografia era mais escura que a das paredes, atestando quanto tempo ela estava ali.
Sondra pegou outra dose de Jack Daniels.
Vinte anos. Naquela época, o corpo de Sondra envelhecia duas vezes e meia mais rápido.
Sondra era a criança na foto, tirada pelo pai em 1956. Ele a estuprara um ano antes, seu corpo já mostrando os sinais da puberdade, embora ela tenha nascido cinco anos antes, em 1951.
Passos cuidadosos soaram na escadaria do lado de fora do apartamento e pararam. Sondra franziu a testa. Hora de se prostituir de novo. Sondra, sua idiota, sempre deixando Miller convencê-la. Idiota por sempre cuidar do homem que você deveria estar usando. Mesmo através da porta ela conseguia sentir o pungir fraco da ansiedade feromonal do homem, aumentada pelos seus sentimentos por ele. Ela sentiu o corpo pedir para reagir com simpatia e baixou a guarda. Fechou os olhos.
Ao menos aproveite a sensação. Ao menos fique feliz que por um pequeno momento você será jovem novamente. Ela conseguia sentir as mudanças rápidas movendo-se em seu corpo, a tensão nos músculos e tendões, levando-a a uma nova forma. A espinha endireitou-se, óleos cobriram sua pele de forma a perder sua fragilidade seca. Seus seios se ergueram quando o calor sexual começou a pulsar em seus quadris. Ela acariciou o pescoço e descobriu que as dobras flácidas desapareceram. Sondra deixou o penhoar cair de seus ombros.
Já. Tão rápido esta noite. Eles eram amantes há seis meses, ela sabia o que encontraria quando abrisse os olhos. Sim… seu corpo era magro e jovem com uma faixa de pelos louros na junção das pernas, seus seios pequenos como eram na foto. Essa aparição, essa imagem mental do seu amante. Era infantil, mas não inocente. Sempre o mesmo, sempre jovem, sempre claro, alguma visão do seu passado, talvez. Uma vagabunda virgem, vira-lata. A ponta do seu dedo esfregava
um mamilo que se alongou, engrossando enquanto ela suspirava com o toque, excitada. Já havia uma umidade entre suas coxas.
Ele bateu na porta. Ela conseguia ouvir seu fôlego, um pouco rápido demais após subir três lances de escada, e descobriu que seu ritmo batia com o dela. Ela já estava perdida nele.
Destrancou a porta, deslizou o trinco. Quando viu que não havia ninguém com ele no corredor, abriu a porta inteira e deixou que ele observasse sua nudez. Ele usava uma máscara – seda azul sobre os olhos e nariz, a boca fina embaixo dela erguia-se num sorriso. Conhecia-o… precisava
apenas da reação do seu corpo.
– Gregg – disse ela, e a voz era aquela da criança que se tornou. – Fiquei com medo de que você não conseguisse vir hoje à noite.
Ele deslizou para dentro do quarto, fechando a porta atrás de si. Sem dizer palavra, beijou-a longa e profundamente, sua língua encontrando a dela, as mãos acariciando o flanco do corpo.
Quando finalmente suspirou e afastou-se, ela deitou a cabeça sobre o peito dele.
– Foi um pouco difícil fugir – sussurrou Gregg. – Esgueirar-me pelas escadas dos fundos do meu hotel como um bandido… usando esta máscara… – Ele riu, um ruído triste. – A votação durou uma eternidade. Meu Deus, mulher, achou que eu te abandonaria?
Ela sorriu diante daquilo e afastou-se dele com passo afetado. Tomando-o pelo braço, guiou a mão dele entre suas pernas, suspirando quando o dedo dele entrou em seu calor.
– Estava te esperando, amor.
– Súcubo – ele suspirou. Ela riu suave, uma risadinha de criança.
– Venha para a cama – sussurrou ela.
Em pé ao lado do colchão surrado, ela afrouxou a gravata do homem e desabotoou a camisa, mordendo de leve os mamilos. Então, ela ajoelhou diante dele, desamarrando seus sapatos, tirando as meias antes de desafivelar o cinto e baixar suas calças. Ela olhou para cima, sorrindo para ele, enquanto alisava a curva ascendente do pênis. Os olhos de Gregg estavam fechados. Ela lambeu uma vez, ele gemeu. Ele começou a tirar a máscara e ela o impediu.
– Não, fique com ela – disse, sabendo ser isso que ele queria ouvir. – Seja misterioso. – A língua dela correu novamente a extensão do pênis e ela o enfiou na boca até ele arfar.
Empurrando-o no colchão e derramando-se delicadamente sobre seu corpo, o desejo dele aumentava o dela, até a mulher se perder num retorno espiralado, brilhante. Ele murmurou com o fundo da garganta e afastou-a, virou-a e abriu suas pernas, bruto. Ele investia dentro dela, golpeando, movendo-se, o brilho dos olhos por trás da máscara. Seus dedos enterravam-se nas nádegas dela até arrancar gritos. Não era gentil, a excitação dele era um redemoinho na mente dela, uma tempestade vertiginosa de cores, um calor sufocante que abatia os dois. Ela conseguia sentir o clímax dele se formando; instintivamente, ela seguiu naquele jorro escarlate, seus dentes travaram quando as unhas dele se cravavam em sua carne e ele entrava nela de novo e de novo e de novo…
Ele gemeu.
Ela pôde sentir como ele se esvaía dentro dela, e continuava a se mexer embaixo dele, encontrando seu próprio orgasmo um pouco depois. O turbilhão começou a arrefecer, as cores desbotaram. Sondra agarrou-se a essa memória, acumulando energia para que pudesse manter aquela forma por mais um tempo.
Ele a olhava por detrás da máscara. Seu olhar viajava pelo corpo dela… as marcas em seus seios, os sulcos vermelhos, inflamados, feitos por suas unhas.
– Me desculpe – disse ele. – Súcubo, me perdoe.
Ela o derrubou ao seu lado na cama, sorrindo, pois sabia que ele queria seu sorriso, perdoando-o, pois sabia que ele precisava ser perdoado. Ela manteve aceso o pavio de excitação nele para poder permanecer Súcubo.
– Não esquenta – ela o tranquilizou. Curvou-se para beijar o ombro dele, o pescoço, a orelha. – Você não fez de propósito.
Ela olhou em seu rosto, esticou o braço por trás da cabeça e soltou o cordão da máscara. A boca de Gregg apertou-se, seus olhos reluziam com seu pedido de desculpas. Toque-o, sinta o fogo nele. Conforte-o.
Sua puta.
Essa era a parte que Sondra desprezava, a parte que trazia lembranças dos anos em que seus pais venderam seu corpo ao ricaço de Nova York. Ela era Súcubo, a mais conhecida e mais cara prostituta na cidade entre 1956 e 1964. Ninguém sabia que ela estava apenas com cinco anos quando começou, que um curinga veio com o ás que ela tirou do maço de cartas selvagens. Não, apenas queriam que, como Súcubo, ela se tornasse o objeto de suas fantasias – homem ou mulher, jovem ou velho, submisso ou dominador. Qualquer corpo ou qualquer formato: uma Pigmaleoa dos sonhos masturbatórios. Um receptáculo. Ninguém sabia ou se importava que a Súcubo inevitavelmente desmoronaria em Sondra, que seu corpo envelheceria tão rapidamente, que Sondra odiava a Súcubo.
Ela jurou, quando fugiu do cativeiro de seus pais 12 anos antes, que nunca deixaria a Súcubo ser usada novamente – a Súcubo apenas daria prazer àqueles que tivessem pouca chance de ter prazer de outra forma.
Maldito Miller. Maldito anão por me envolver nisso. Maldito por me mandar para este homem. Maldita sou eu por achar que gosto tanto de Gregg. E o mais maldito de todos, o vírus que me força a ficar escondida dele. Meu Deus, aquele jantar ontem no Aces High…
Sondra sabia que a afeição que Hartmann afirmava ter por ela era autêntica, e ela odiava perceber isso. Ainda que sua preocupação com os curingas também fosse genuína e seu envolvimento com a CSJ fosse um compromisso sério. Conhecer o governo e, especialmente, o CRISE-A era essencial. Hartmann influenciou os ases que estavam começando a cooperar com as autoridades após muitos anos escondidos: o Sombra, o Terremoto, Estranheza, o Uivador. Por Hartmann, a CSJ conseguiu canalizar dinheiro do governo para os curingas – Sondra descobriu as menores licitações em diversos contratos governamentais, eles conseguiram vazar informações para empresas de propriedade de curingas. E mais importante, isso aconteceu porque ela controlava Hartmann, assim era capaz de impedir que Miller enfim transformasse a CSJ no grupo radical violento que o anão queria. Enquanto conseguisse atrair o senador pelas mãos de Súcubo, podia limitar a ambição de Gimli. No mínimo, essa era sua esperança – após o fiasco do Aces High, ela não tinha mais certeza. Gimli tinha ficado raivoso e mal-humorado no encontro daquela noite.
– Você está cansado, amor – ela disse a Gregg, seguindo a linha onde seu cabelo claro se afundava num bico de viúva.
– Você acaba comigo – retrucou ele. O sorriso devolvido, tentador, e então a lambida dela nos lábios dele.
– Você parece distraído, é isso. Foi a convenção? – A mão de Súcubo deslizava pelo corpo de Gregg, sobre a barriga que a idade começava a amolecer. Ela acariciou o meio das coxas dele, usando as energias de Súcubo para relaxá-lo, deixá-lo tranquilo. Gregg sempre estava tenso, e também havia aquela muralha em sua mente que ele nunca derrubaria, um bloqueio mental fraco que seria inútil contra a maioria dos ases que ela conhecia. Duvidava que Gregg sequer percebesse que o bloqueio estava lá, que ele também havia sido tocado, mesmo que de maneira suave, pelo vírus.
Ela sentiu o primeiro ressurgimento de sua paixão.
– Não foi muito boa – ele admitiu, abraçando-a.– O voto não teve chance, não com todos os moderados contra ele… todos eles têm medo de um levante dos conservadores. Se Reagan conseguir bater Ford na indicação, então todo o show estará pronto. Carter e Kennedy foram totalmente contra a pauta… nenhum dos dois quis se enrolar apoiando causas que não conheciam bem. Como os primeiros na corrida, o suporte deles negado foi um golpe duro. – Gregg suspirou.
– Não chegamos nem perto, Súcubo.
As palavras pareciam cobrir sua mente com gelo, e ela precisava lutar para se manter na forma de Súcubo. Naquele instante, os rumores já teriam se espalhado pelo Bairro dos Curingas. Ele organizaria a marcha para amanhã.
– Você não pode reapresentar a pauta?
– Não agora. – Ele alisou os seios de Súcubo, circulando as auréolas com o dedo indicador. – Súcubo, você não sabe como ansiei para vê-la depois de tudo isso. Foi uma noite muito longa e frustrante. – Gregg virou-se para ela, que se acomodou confortavelmente no corpo dele, embora sua mente estivesse a mil.
Refletindo, ela quase deixou escapar “… se a CSJ insistir, as coisas vão ficar bem ruins”.
A mão dela parou de se mover nele.
– É mesmo? – ela despertou.
Mas já era tarde demais. Já conseguia sentir o aumento da excitação dele. As mãos dele fecharam-se nas delas.
– Sente – ele diz. A rigidez dele pulsava na coxa dela. Novamente, ela começou a mergulhar nele, indefesa. A concentração a abandonou. Ele a beijou, e sua boca queimava, ela subiu no corpo de Gregg, guiando-o para dentro dela mais uma vez. Lá dentro, aprisionada, Sondra atacava Súcubo. Maldita, ele estava falando da CSJ.
Mais tarde, exausto, Gregg falou muito pouco. Foi tudo que ela conseguiu fazer para convencê-lo a ir embora antes de sua forma se deteriorar e ela voltar a ser uma velha.
SENADOR ALERTA SOBRE CONSEQUÊNCIAS, PREFEITO PROMETE AÇÃO
The New York Times, 16 de julho de 1976
CONVENÇÃO PODE ELEGER O AZARÃO
Daily News de Nova York, 16 de julho de 1976
– MAS QUE SACO! LEVE ISSO PARA LÁ. SE NÃO CONSEGUE ANDAR, VÁ ATÉ O CARRINHO DO GARGÂNTUA. OLHE, EU SEI QUE ELE É BURRO, MAS CONSEGUE EMPURRAR A PORRA DE UM CARRINHO, PELO AMOR DE DEUS.
Gimli pressionava os curingas perambulantes da carroceria de uma picape Chevy enferrujada, balançando seus braços curtos freneticamente, seu rosto enrubescido com o esforço dos gritos, suor pingando de sua barba. Eles estavam reunidos no parque Roosevelt, próximo à Grand Street, o sol cozinhando Nova York num céu sem nuvens, a temperatura do início da manhã já passando dos 26 graus e caminhando para mais de 35. A sombra das poucas árvores não aliviava o abafamento. Sondra mal conseguia respirar. Sentia a idade a cada passo até se aproximar da picape e de Gimli, manchas escuras de transpiração sob os braços de seu vestido de verão tricolor.
– Gimli? – disse ela, e sua voz era rouca e intermitente.
– NÃO, IDIOTA! LEVE PARA LÁ, ATÉ ONDE ESTÁ A CRAVO! Oi, Sondra. Está pronta pra caminhada? Eu poderia te usar para manter o fundo do grupo organizado. Vou te dar o carrinho do Gargântua e os aleijados… vou te dar um lugar para seguir que fique longe das multidões, e você pode manter os que estão na frente andando. Preciso de alguém que não deixe o Gargântua fazer nada muito idiota. Você está com o trajeto? Vamos descer a Grand para a Broadway e então passar pelo Túmulo em Fulton…
– Gimli – insistiu Sondra.
– Que foi, merda? – Miller pôs a mão na cintura. Usava apenas short estampado, expondo o peito forte e as pernas e os braços fortes, curtos e grossos, tudo generosamente coberto com pelos enrolados castanho-avermelhados. Sua voz grave era um grunhido.
– Dizem que a polícia está se reunindo perto dos portões do parque e montando barricadas. – Sondra encarou Miller, acusadora. – Falei que teríamos problema ao sair daqui.
– É. Merda. Foda-se, vamos de qualquer jeito.
– Eles não vão deixar. Lembra o que Hartmann disse no Aces High? Lembra o que eu te disse que ele mencionou na noite passada? – A velha cruzou os braços ossudos sobre a frente puída do vestido de verão. – Você vai destruir a CSJ se entrar numa briga aqui…
– Que é que tem, Sondra? Você chupa o pau do cara e engole toda essa porcaria política também? – Miller riu e pulou da picape para a grama ressecada. Ao redor deles, de duzentos a trezentos curingas se arrastavam próximos da entrada do parque, na Grand Street. Miller franziu o cenho para o olhar de Sondra e enterrou os dedos dos pés descalços na sujeira. – Tudo bem – ele comentou. – Vou dar uma olhadinha nisso, se te incomoda tanto.
No portão de ferro forjado, eles conseguiam ver a polícia levantando as barricadas de madeira diante do caminho pretendido. Diversos dos curingas chegaram até Sondra e Miller quando eles se aproximaram.
– Você vai adiante, Gimli? – perguntou um deles. O curinga não usava roupas, seu corpo era duro, coberto de cascas e seu caminhar era coxeado, claudicante, seus membros rígidos.
– Te falo num minuto, tá, Amendoim? – respondeu Gimli. Apertou os olhos para enxergar mais longe, seus corpos lançando longas sombras na rua. – Cassetetes, equipamento de tropa de choque, gás lacrimogêneo, canhão d’água. Esses porras estão equipados.
– Exatamente o que queremos, Gimli – respondeu Amendoim.
– Perderemos gente. Eles vão se machucar, talvez até morrer. Alguns deles nem conseguem carregar porretes, você sabe. Alguns podem ter reação com o gás lacrimogêneo – Sondra comentou.
– Alguns deles poderiam tropeçar sobre a porcaria dos próprios pés também. – A voz de Gimli retumbava. Mais à frente, na rua, diversos policiais olhavam na direção deles, apontando. – Desde quando você decidiu que a revolução é tão perigosa, Sondra?
– Quando você decidiu que tínhamos de machucar os nossos para ter o que você quer?
Gimli a encarou de volta, uma mão protegendo os olhos do sol.
– Não é o que eu quero – falou ele lentamente. – É o justo. Você mesma disse isso.
Sondra fechou a boca, rugas surgiram em torno de seu queixo. Afastou para trás uma mecha de cabelo grisalho.
– Nunca quis que fizéssemos desse jeito.
– Mas nós vamos. – Gimli respirou bem fundo e então urrou para os curingas que aguardavam.
– TUDO BEM. VOCÊS CONHECEM A ORDEM… VÃO EM FRENTE, NÃO IMPORTA O QUE ACONTECER. ENCHARQUEM SEUS LENÇOS. FIQUEM NAS FILEIRAS ATÉ CHEGARMOS AO TÚMULO. AJUDE SEU COMPANHEIRO SE ELE PRECISAR. MUITO BEM, VAMOS LÁ!
O poder estava na sua voz novamente. Sondra ouviu e viu a reação dos outros, o entusiasmo repentino, as reações berradas. Mesmo a velocidade de seu próprio fôlego aumentou ao ouvi-lo.
– Vem com a gente ou vai trepar com alguém?
– Isso é um erro – insistia Sondra. Ela suspirava, puxando o colarinho do vestido e olhando para os outros, que a encaravam. Não havia apoio deles, nem de Amendoim, nem do Charmoso, nem do Zona ou do Calvin, nem do Memória… nenhum daqueles que às vezes a defendiam durante as reuniões. Sabia que, se ficasse para trás agora, qualquer esperança de impedir Miller estaria perdida. De relance, ela olhou para trás, na direção do parque, para os grupos de curingas amontoando-se e formando uma fila tosca, os rostos carregavam apreensão, mas também estavam decididos. Sondra deu de ombros.
– Eu vou – disse ela.
– Fico tão feliz – falou Gimli arrastado, bufando seu escárnio.
TRÊS MORTOS E MUITOS FERIDOS NA REVOLTA DOS CURINGAS
The New York Times, 17 de julho de 1976
Não foi bonito, nem fácil. O comitê de planejamento do Departamento de Polícia de Nova York fez uma enxurrada de observações que supostamente cobririam a maioria das eventualidades caso os curingas decidissem marchar. Aqueles que estavam no comando da operação rapidamente descobriram que esse plano prévio era inútil.
Os curingas saíram em massa do parque Roosevelt e entraram na larga calçada da Grand Street.
O que, em si, não era um problema – a polícia havia bloqueado o tráfego em todos os cruzamentos próximos ao parque assim que os relatórios da concentração chegaram. As barricadas ficavam diante da rua, nem a cinquenta metros da entrada. Esperava-se que os organizadores da marcha simplesmente falhassem em montar uma manifestação ou, ao se depararem com as filas de policiais uniformizados com equipamentos de tropa de choque, voltassem para o parque, onde oficiais montados poderiam dispersá-los. Os policiais mantinham seus cassetetes prontos nas mãos, mas a maioria esperava não usá-los – afinal de contas eram curingas, não ases. Eram aleijados, doentes, aqueles que ficaram tortos e deformados: a escória inútil do vírus.
Avançavam na rua em direção às barricadas, e uns poucos homens nas primeiras fileiras da polícia sacudiam a cabeça abertamente. Um anão os liderava – que seria Tom Miller, o ativista da CSJ. Os outros seriam risíveis se não fossem dignos de pena. O monte de lixo do Bairro dos Curingas se abriu e esvaziou-se nas ruas. Não eram os bem conhecidos habitantes do Bairro:
Tachyon, Crisálida ou outros como eles. Esses eram figuras tristes que se moviam na escuridão, que escondiam os rostos e nunca emergiam das ruas daquele distrito. Saíram de lá pela incitação de Miller, com a esperança de que poderiam, com todo o seu horror, fazer com que a Convenção dos Democratas apoiasse sua causa.
Era uma parada que teria sido a alegria de um show de horror de carnaval.
Mais tarde, os oficiais indicaram que nenhum deles de fato queria que aquele conforto ficasse violento. Estavam preparados para usar o mínimo de força possível, enquanto ainda mantinham os manifestantes longe das ruas do centro de Manhattan. Quando as fileiras dianteiras dos curingas chegassem às barricadas, deveriam rapidamente prender Miller e mandar os outros embora.
Ninguém pensou que seria difícil.
Em retrospecto, perguntaram-se como puderam ser tão idiotas.
Quando os manifestantes se aproximaram da barreira de cavaletes atrás da qual a polícia esperava, eles desaceleraram. Por longos segundos, nada aconteceu, os curingas fizeram uma parada silenciosa e perturbadora no meio da rua. O mormaço que refletia da calçada brilhava nos rostos suarentos, os uniformes da polícia estavam úmidos. Miller encarava furiosamente a indecisão, então fez avançar os que estavam atrás dele. Miller empurrou de lado o primeiro cavalete. O resto seguiu.
A tropa de choque formou uma falange, ligando seus escudos plásticos, atados. Os manifestantes atingiram os escudos, os policiais empurraram para trás, e a linha dos manifestantes começou a se arquear, encurvando-se em si. Os que estavam atrás empurravam, rompendo as linhas frontais de curingas contra a polícia. Mesmo assim, a situação poderia ter sido administrável, uma bomba de gás lacrimogêneo poderia confundir os curingas o suficiente para mandá-los correndo de volta à segurança relativa do parque. O capitão encarregado concordou com a cabeça, e um dos policiais ajoelhou para lançar a bomba.
Alguém gritou no choque. Então, como pinos de boliche se espalhando, a primeira linha da tropa de choque foi abaixo, como se alguma miniatura de tornado a tivesse dizimado. “Meu Deus!”, um dos policiais gritou. “Que merda é…” Os cassetetes da polícia estavam a postos agora. Quando os curingas atingiram as linhas, eles começaram a ser usados. Um rugido baixo começou entre os prédios altos e alinhados da Grand Street, o som do caos se libertou. Os guardas rodavam de verdade os cassetetes enquanto curingas apavorados começaram a revidar, batendo com os punhos ou com o que tivessem à mão. O curinga com poder de telecinesia lançava-os para todos os lados, sem qualquer controle, curingas e policiais e espectadores, todos foram arremessados aleatoriamente para rolar nas ruas ou chocar-se contra os prédios. Projéteis de gás lacrimogêneo caíam e explodiam soltando uma névoa crescente, piorando a confusão.
Gargântua, um curinga monstruoso com uma cabeça comicamente pequena, avançava com seu corpo imenso, gemendo enquanto o gás ardente o cegava. Empurrando um carrinho de madeira com diversos dos curingas mais prejudicados dentro dele, o gigante infantil enfureceu-se, o carrinho adernando à sua frente com os passageiros agarrando-se em desespero às laterais.
Gargântua não tinha ideia para qual caminho correr, corria porque não conseguia pensar em nada melhor a fazer. Quando encontrou a fila de policiais reerguida, esmurrou freneticamente os cassetetes que o acertavam. Uma pancada daquele punho desajeitado e imenso foi responsável por uma das mortes.
Por uma hora, a batalha disforme arrastou-se por alguns quarteirões da entrada do parque. Os feridos caíam nas ruas, e as sirenes gemiam, ecoando. Qualquer visão de normalidade não pôde ser restaurada até o meio da tarde. A marcha foi interrompida, mas com alto preço para todos os envolvidos.
Naquela noite longa e quente, os policiais que patrulhavam o Bairro dos Curingas descobriram que suas viaturas foram atingidas com pedras e lixo, e as sombras fantasmagóricas dos curingas moviam-se nas ruas laterais e becos: lampejos de rostos distorcidos pelo ódio e punhos erguidos, xingamentos fúteis, frustrados. Na escuridão úmida, os moradores do Bairro curvavam-se nas escadas de incêndio e nas janelas abertas dos apartamentos para lançarem garrafas vazias, vasos de flores, lixo; esmurravam o teto dos veículos da polícia ou estilhaçavam os para-brisas. Os policiais, por precaução, ficavam dentro das viaturas, janelas e portas trancadas. Incêndios foram provocados em alguns prédios desertos, e as equipes de bombeiros que atendiam as chamadas foram atacadas a partir das sombras das casas próximas.
A manhã chegou numa atmosfera esfumaçada, num véu de calor.
Em 1962, o Titereiro chegou à cidade de Nova York e encontrou seu nirvana nas ruas do Bairro dos Curingas. Havia todo o ódio, raiva e aflição que tanto queria ver, havia mentes deformadas e afligidas pelo vírus, havia emoções já maduras e aquelas esperando para serem modeladas segundo suas intrusões. As ruelas, os becos obscuros, prédios onde pululavam os deformados, os inúmeros bares e casas noturnas servindo a todos os tipos de gostos desvirtuados, vis: o Bairro dos Curingas era uma fonte imensa com potencial para ele, e então começou a banquetear, primeiro aos poucos e, depois, com mais frequência. O Bairro dos Curingas era seu. O Titereiro via-se como o senhor sinistro e oculto do distrito. Não podia forçar nenhuma de suas marionetes a fazer algo que fosse contra sua vontade, seu poder não era tão forte. Não, precisava de uma semente já plantada na mente: uma tendência à violência, um ódio, um desejo… então conseguia pousar sua mão mental naquela emoção e alimentá-la, até a paixão romper todos os controles e inundar. Eram brilhantes e de tom vermelho, aqueles sentimentos. O Titereiro conseguia vê-los até mesmo quando se alimentava deles. Mesmo quando os tirava de sua cabeça e sentia a lenta formação de um calor que tinha intensidade sexual, quando a explosão pulsante e reluzente do orgasmo chegava enquanto a marionete estuprava, assassinava ou mutilava.
Dor era prazer. Poder era prazer.
O Bairro dos Curingas era onde sempre seria possível encontrar o prazer.
HARTMANN PEDE CALMA
PREFEITO DIZ QUE REVOLTOSOS SERÃO PUNIDOS
Daily News de Nova York, 17 de julho de 1976
John Werthen entrou no quarto do hotel de Hartmann pela porta de conexão com a suíte.
– Você não vai gostar disso, Gregg – ele disse.
Gregg estava deitado na cama, o casaco do paletó jogado de forma negligente sobre a cabeceira, as mãos sobre a cabeça enquanto assistia a Cronkite falar sobre a convenção que chegara a um impasse. Gregg virou a cabeça na direção do assistente.
– Que foi agora, John?
– Amy ligou do escritório em Washington. Como você sugeriu, eles deram o caso de infiltração soviética de Tachyon ao Sombra. Acabamos de ouvir que o infiltrado foi descoberto no Bairro dos Curingas. Foi estrangulado num poste e encontrado com um bilhete pregado no peito – pregado através do peito, Gregg. Ele estava totalmente nu. O bilhete descrevia o plano soviético, como eles infectavam “voluntários” com o vírus num esforço de conseguir seus próprios ases, e como simplesmente matavam os curingas resultantes. O bilhete foi para identificar o pobre coitado como agente. E é isso: o legista não acha que ele estava consciente durante a maior parte das coisas que os curingas fizeram com ele, mas encontrou pedaços do rapaz até uma distância de três quarteirões.
– Jesus – Gregg murmurou e deu um grande suspiro. Por um longo minuto, ficou lá deitado enquanto a voz potente de Cronkite seguia monótona sobre o voto final na plataforma e o impasse óbvio entre Carter e Kennedy para a indicação.
– Alguém falou com o Sombra desde então?
John deu de ombros. Soltou a gravata e abriu o botão do colarinho da camisa chique da Brooks Brothers.
– Ainda não. Ele dirá que ele não fez nada, você sabe, e, na visão dele, ele está correto.
– Calma lá, John – retrucou Gregg. – Ele sabia muito bem o que aconteceria se amarrasse o cara com aquele bilhete nele. Ele é um daqueles ases que pensam que podem fazer as coisas do jeito deles, sem se preocupar com as leis. Ligue para o Sombra, preciso falar com ele. Se ele não pode trabalhar do nosso jeito, então não vai trabalhar pra gente de jeito nenhum… ele é muito perigoso. – Gregg deu outro suspiro e jogou as pernas para o lado da cama, coçando o pescoço em seguida. – Algo mais? E a CSJ? Conseguiu encontrar o Miller?
– Nada ainda. Estão correndo boatos de que os curingas vão marchar hoje de novo… mesmo trajeto e tudo o mais, direto até a prefeitura. Acho que ele não é tão estúpido.
– Ele vai marchar – Gregg previu. – A fome do cara é estar sob os holofotes. Ele acha que é poderoso. Ele vai marchar.
O senador levantou-se e curvou-se em frente ao aparelho de TV. Cronkite ficou em silêncio no meio de uma frase. Gregg olhou pela janela. De seu posto privilegiado no Marriott’s Essex House, conseguia olhar a imensa faixa verde do Central Park presa entre as torres da cidade. O ar estava estagnado, imóvel, e a neblina de poluição escondia os domínios mais avançados do parque. Gregg podia sentir o calor mesmo com o ar-condicionado ligado. Lá fora devia estar
sufocante de novo. Nos aglomerados do Bairro dos Curingas, o dia seria insuportável, deixando os pavios ainda mais curtos.
– Sim, ele vai marchar – Gregg repetiu, baixo o suficiente para John não o ouvir. – Vamos para o Bairro dos Curingas – ele falou, virando-se de costas para o quarto.
– E a convenção? – perguntou John.
– Não vão resolver nada por dias. Ela não importa no momento. Vou me arrumar e logo vamos.
CURINGAS! VOCÊS ESTÃO EM PÉSSIMAS MÃOS!
– de um panfleto entregue por trabalhadores da CSJ
na manifestação de 18 de julho
Gimli clamava às multidões sob o sol radiante do meio-dia. Após a noite de caos no Bairro dos Curingas, o prefeito destacou a força policial em turnos duplos e cancelou todas as folgas. O governador deixou a Guarda Nacional em alerta. Patrulhas rondavam as fronteiras do distrito do Bairro dos Curingas e um toque de recolher foi imposto para a noite seguinte. Os rumores de que a CSJ tentaria uma nova manifestação até o Túmulo do Jetboy espalharam-se rapidamente pelo Bairro dos Curingas na noite anterior e, pela manhã, o parque Roosevelt estava fervilhando de atividade. A polícia manteve-se distante após as duas tentativas fracassadas de varrer os curingas para fora do parque terem resultado em cabeças quebradas e cinco policiais feridos. Havia simplesmente mais curingas dispostos a marchar com a CSJ do que as autoridades previam. As barricadas foram montadas novamente na Grand Street, e o prefeito fez um longo discurso aos curingas reunidos por um megafone. Foi completamente zombado pelos que estavam nos portões.
Do estrado vacilante que eles ergueram, Sondra ouvia Gimli, enquanto a voz forte do anão levantava os curingas em sua ferocidade.
– VOCÊS FORAM ESPEZINHADOS, CUSPIDOS, INSULTADOS COMO NINGUÉM MAIS NA HISTÓRIA! – ele exclamava, e os outros gritavam sua aprovação. O rosto de Gimli estava extasiado, brilhante de suor, os fios grosseiros da barba, escuros pelo calor. – VOCÊS SÃO OS NOVOS CRIOULOS, CURINGAS. VOCÊS SÃO OS NOVOS ESCRAVOS, AQUELES QUE IMPLORAM PARA SEREM LIBERTADOS DE UM CATIVEIRO TÃO RUIM QUANTO O DOS NEGROS. CRIOULOS. JUDEUS. COMUNISTAS. PARA ESTA CIDADE, PARA ESTE PAÍS VOCÊS SÃO TUDO ISSO! – Gimli apontou um braço na direção das defesas de Nova York. – ELES QUEREM QUE VOCÊS FIQUEM NO SEU GUETO, QUEREM QUE VOCÊS MORRAM DE FOME. QUEREM QUE VOCÊS SEJAM MANTIDOS NO SEU LUGAR PARA QUE POSSAM TER PENA DE VOCÊS, ASSIM PODEM DIRIGIR PELAS RUAS DO BAIRRO DOS CURINGAS EM SEUS CADILLACS E LIMUSINES E OLHAR PELAS JANELAS PARA DIZER: “MEU DEUS, COMO PESSOAS NESTE ESTADO PODEM VIVER?”.
A última palavra foi um rugido e ecoou pelo parque, todos os curingas erguendo brados com Gimli. Sondra olhou para a massa de pessoas que manchava a grama sob o sol incandescente.
Todos eles surgiram, os curingas, abalando-se das ruas do Bairro dos Curingas. Gargântua estava lá, seu corpo imenso cheio de curativos. Cravo, Pisca, Carmen, seguidos por cinco mil ou mais como eles. Sondra conseguia sentir a excitação pulsando durante o discurso de Gimli, sua própria amargura correndo como veneno no ar, infectando a todos. Não, ela queria dizer. Não, vocês não podem ouvi-lo. Por favor. Sim, as palavras dele são cheias de energia e brilho; sim, ele faz vocês levantarem os punhos e brandi-los ao céu enquanto marcham com ele. Ainda assim, vocês não conseguem ver que este não é o caminho? Não é a revolução. É apenas a loucura de um homem. As palavras ecoavam em sua mente, mas ela não era capaz de pronunciá-las. Gimli a enredou junto com os outros em seu feitiço. Conseguia sentir o arco de um sorriso nos lábios rachados, e em torno dela os outros membros do quadro gritavam. Gimli ficou em pé na frente do palanque, seus braços abertos enquanto os urros ficavam cada vez mais altos, quando um grito de protesto começou a surgir da imensa garganta da multidão.
Direitos dos Curingas! Direitos dos Curingas!
A batida martelava as fileiras dos policiais a postos, a multidão inevitável de observadores e os repórteres.
Direitos dos Curingas! Direitos dos Curingas!
Sondra ouviu a si mesma dizendo a frase com os outros.
Gimli saltou do estrado, e o anão robusto começou a liderá-los na direção dos portões. A multidão começou a mover-se sem uma pretensão de ordem. Derramaram-se dos portões do parque Roosevelt para as ruas paralelas. Gritavam insultos para a fileira de policiais a postos.
Sondra conseguia ver as luzes das viaturas piscando, conseguia sentir o rumor dos caminhões com canhão d’água. Aquele rugido estranho e indefinível que ouviu um dia antes surgia novamente, mais alto ainda do que os gritos contínuos dos manifestantes. Sondra hesitou, sem saber o que fazer. Então, correu até Gimli, suas pernas doíam.
– Gimli – ela começou, mas sabia que o apelo era inútil. O rosto dele tinha um olhar malicioso de satisfação, pois os manifestantes saíam aos montes do parque para a rua. Sondra olhou para baixo até avistar a barricada onde a fileira de policiais aguardava.
Gregg estava lá.
Estava na frente das barricadas, diversos oficiais e os homens do Serviço Secreto com ele.
Mangas de camisa enroladas, colarinho aberto e gravata solta, parecia esgotado. Por um momento, Sondra pensou que Miller passaria marchando pelo senador, mas o anão parou a alguns metros do homem – os manifestantes fizeram uma parada súbita e inquieta atrás dele.
– Saia da merda do caminho, senador – Gimli insistiu. – Saia do caminho ou vamos esmagá-lo com todos os seus guardas imbecis e repórteres.
– Miller, este não é o caminho.
– Não existe outro caminho e estou farto de falar disso.
– Por favor, deixe-me falar por alguns minutos. – Gregg esperava, olhando de Gimli para Sondra, para os outros da CSJ na multidão. – Sei que vocês estão furiosos com o que aconteceu na pauta dos Direitos dos Curingas. Sei que o jeito pelo qual os curingas foram tratados no passado é deplorável. Mas, caramba, as coisas estão mudando. Odeio pedir para que tenham paciência, mas é o que precisamos ter.
– O tempo esgotou, senador – disse Miller. Sua boca se abria num sorriso sarcástico, as coroas dos seus dentes eram escuras e esburacadas.
– Se for adiante, garanto confusão. Se você voltar ao parque, posso impedir que a polícia interfira além do que já fez.
– E de que bosta isso nos serviria, senador? Queremos fazer uma manifestação até o Túmulo do Jetboy, é nosso direito. Queremos subir naqueles degraus e falar sobre trinta anos de dor e tormento de nosso povo. Queremos orar por aqueles que morreram e deixar que todos nos olhem para verem como foram sortudos aqueles que morreram lá. É só isso… pedimos os direitos que qualquer outra pessoa normal tem.
– Vocês podem fazer tudo isso no parque Roosevelt. Todo mundo da imprensa nacional, todas as redes de televisão cobrirão, isso eu também garanto.
– É tudo o que o senhor tem para negociar, senador? Não é muito.
Gregg balançou a cabeça.
– Eu sei e peço desculpas por isso. Tudo que posso dizer é que, se você voltar com seu povo para o parque, farei o que estiver ao meu alcance para todos vocês. – Gregg estendeu bem as mãos. – É tudo que posso oferecer. Por favor, me diga que é suficiente.
Sondra observava o rosto de Miller. O alarido, os gritos de palavras de ordem continuavam atrás deles. Ela pensou que o anão riria, caçoaria de Gregg e abriria caminho para passar as barricadas. O anão arrastou os pés no concreto, coçou os pelos do peito largo. Encarava Gregg com fúria, ódio em seus olhos fundos.
E então, de alguma forma, deu um passo para trás. Os olhos de Gimli baixaram, e a tensão na rua parecia se dissolver.
– Tudo bem – ele disse. Sondra quase riu. Houve protestos espantados dos outros, mas Gimli virou-se para eles como um urso irado.
– Inferno, vocês me ouviram. Vamos dar uma chance ao homem… mais um dia, nada mais. Não vai custar nada esperar mais um dia.
Com um xingamento, Gimli abriu caminho na multidão aos empurrões, voltando para os portões do parque. Lentamente, os outros viraram-se para segui-lo. O grito de protesto recomeçou, sem entusiasmo, e então morreu.
Sondra fitou Gregg por bastante tempo, e então ele sorriu para ela.
– Obrigado – disse Gregg numa voz baixa, cansada. – Obrigado por me dar uma chance.
Sondra concordou com a cabeça. Não conseguia falar com ele, tinha medo de tentar abraçá-lo, beijá-lo. Você é apenas uma velhota para o homem, Sondra. Uma curinga como todo o resto.
Como fez aquilo?, ela quis perguntar-lhe. Como fez com que ele te ouvisse, se ele nunca me ouve?
Ela não conseguia montar as perguntas, não com aquela boca de velha, não com aquela voz de idosa.
Suspirando, mancando com os joelhos inchados, ela começou a percorrer o caminho de volta.
HARTMANN DESARMA TUMULTO
CONVERSA COM LÍDER DA CSJ PRORROGA MANIFESTAÇÃO
The New York Times, 18 de julho de 1976, edição especial
BAIRRO DOS CURINGAS NO CAOS
Daily News de Nova York, 19 de julho de 1976
A manifestação da CSJ voltou ao parque Roosevelt. Durante o resto do dia sufocante, Gimli, Sondra e os outros fizeram discursos. O próprio Tachyon apareceu a fim de falar para a multidão à tarde, e havia uma atmosfera estranha de festival naquela reunião. Os curingas sentaram-se nos outeiros gramados do parque, cantando ou conversando. Comida de piquenique foi dividida com os mais próximos, bebidas eram entornadas e oferecidas. A maconha rolava de mão em mão. Em certo sentido, a manifestação transformou-se numa celebração espontânea do “ser curinga”.
Mesmo o mais deformado dos curingas caminhava livremente. As máscaras celebradas dos curingas, as fachadas anônimas por trás das quais muitos dos moradores do Bairro dos Curingas estavam acostumados a se esconder, foram abandonadas por um tempo.
Para a maioria, foi uma bela tarde, algo para aliviar as mentes do calor, da pobreza de sua existência… dividir a vida com seus camaradas e, se seus problemas pareciam assoladores, havia sempre alguém a mais para quem olhar ou com quem conversar a fim de talvez fazer você sentir que, no fim das contas, as coisas não eram tão horríveis assim.
Após uma manhã que parecia condenada à violência e à destruição, o dia tornou-se tranquilo e otimista. O clima era de alegria, como se a maré tivesse acalmado e a escuridão tivesse sido deixada para trás. O sol não parecia mais tão opressivo. Sondra achou que seu humor havia melhorado. Ela sorria, brincava com Gimli, abraçava, cantava e gargalhava com o resto do pessoal.
A noite trouxe a realidade.
As sombras profundas dos arranha-céus de Manhattan deslizaram sobre o parque e fundiram-se.
O céu tomou uma tonalidade azul-marinho e em seguida estabilizou-se, quando o reluzir celeste das luzes da cidade impediram a escuridão total, deixando o parque numa penumbra nebulosa. A cidade irradiava o calor do dia de volta para o crepúsculo, não havia alívio para o calor, e o ar estava imóvel como a morte. Talvez a noite parecesse mais opressiva que o dia.
Mais tarde, o chefe de polícia se reportaria ao prefeito. O prefeito, por sua vez, se reportaria ao governador, cujo gabinete afirmaria que nenhuma ordem se originou de lá. Ninguém parecia ter certeza sobre quem exatamente ordenara a ação. E, mais tarde, isso simplesmente não importava – a noite do dia 18 explodiu em violência.
Com um grito e um ressoar de megafone, teve início a insanidade.
A polícia montada, seguida pelas fileiras que empunhavam cassetetes, começou a limpar o parque de sul a norte, enxotando os curingas para Delancey e, de lá, de volta ao Bairro dos Curingas. Os curingas, desorientados e confusos pelo ataque inesperado, e provocados pelo frenético Gimli, resistiram. Sucedeu-se uma batalha de cassetetes voadores, dificultada pela escuridão do parque. Para a polícia, qualquer um sem uniforme era alvo legítimo. Percorriam o parque, acertando qualquer um a quem pudessem tocar. Gritos e lamentos cortavam a noite. A tentativa de Gimli de organizar a resistência rompeu-se logo, e pequenos grupos de curingas foram arrebanhados para as ruas e eram espancados ou atacados com spray de pimenta. Aqueles que caíam eram pisoteados. Sondra viu-se em uma dessas multidões. Ofegante, tentando manter o equilíbrio na fuga acotovelada, mãos sobre a cabeça para proteger-se dos cassetetes, ela conseguiu encontrar segurança temporária num beco no fim da Stanton Street. De lá, assistiu como a violência espalhou-se para fora do parque, adentrando as ruas.
Pequenas cenas deslocavam-se diante dela.
Um cameraman da CBS estava filmando quando uma dúzia de policiais em motocicletas empurraram um grupo de curingas na direção de um gradeado que protegia a rampa de uma garagem subterrânea diante da rua onde Sondra estava. Os curingas corriam, alguns deles pularam sobre o gradeado. Brilhante estava entre eles, iluminando a cena com o brilho fosforescente de sua pele, alvo miserável incapaz de se esconder da polícia que chegava. Ele saltou sobre as grades em desespero, precipitando-se num fosso de mais de dois metros de profundidade. A polícia viu o cameraman – um deles gritou: “Pega a porra da câmera!” – e as motos corriam em volta com um rosnar gutural, os faróis reluzindo pelos prédios. O cameraman começou a fugir deles, ainda filmando. Um cassetete investiu quando a polícia passou, o homem rolou na rua, gemendo, enquanto a câmera tombava na calçada com a lente estilhaçada.
Um curinga tropeçou na entrada do beco, obviamente zonzo, segurando um lenço ensopado de sangue na têmpora, embora o corte passasse da orelha, encharcando o colarinho de sua camisa.
Era óbvio como ele tinha sido pego, suas pernas e braços estavam virados em todos os ângulos errados, como se tivessem sido colados ao seu tronco por um escultor bêbado. O homem mancava e cambaleava, as juntas pendendo para trás e para os lados. Três policiais chegaram andando rápido ao lado dele.
– Preciso de um médico – o curinga disse para um deles. Quando o oficial o ignorou, ele puxou a manga do uniforme. – Ei! – ele falou. O policial puxou uma lata de spray do coldre de seu cinto e lançou o conteúdo direto no rosto do curinga.
Sondra ficou boquiaberta e afundou-se mais ainda no beco. Quando a polícia continuou a caminhada, ela fugiu para o outro lado.
Noite adentro, a violência espalhou-se nas ruas do Bairro dos Curingas. Uma batalha em curso alastrava-se entre as autoridades e os curingas. Era uma profusão de destruição, uma celebração ao ódio. Ninguém dormiu aquela noite. Curingas mascarados confrontavam as viaturas à espreita, vencendo algumas delas, carros em chamas iluminavam os cruzamentos. Perto da orla, a clínica de Tachyon parecia um castelo sob cerco, ladeado por guardas armados com a distinta figura do doutor correndo para tentar manter algum resquício de sanidade na noite. Tachyon, junto com alguns assistentes de confiança, fez rondas nas ruas para recolher os feridos, curingas e policiais.
O Bairro dos Curingas começou a entrar em colapso, agonizando no fogo e no sangue. Os vapores de gás lacrimogêneo espalhavam-se pelas ruas, cáusticos. À meia-noite, a Guarda Nacional foi convocada e enviou munição viva. Os gabinetes do CRISE-A do senador Hartmann enviaram um pedido para os ases que estivessem trabalhando para o governo ajudarem a acalmar a situação.
O Grande e Poderoso Tartaruga pairou sobre as ruas como uma das máquinas de guerra do filme de George Pal, Guerra dos mundos, afastando os combatentes. Como muitos dos outros ases, parecia não escolher um lado no confronto, usando suas habilidades para interromper as batalhas em andamento sem aliviar para curingas ou policiais. Fora da clínica de Tachyon (onde por volta de uma da manhã as alas estavam quase cheias, e o doutor estava começando a acomodar os feridos nos corredores), o Tartaruga agarrou um Mustang destruído e em chamas e lançou o carro no East River como um meteorito flamejante, deixando um rastro de fagulhas e fumaça. Ele rondou a South Street, empurrando os revoltosos e os homens da Guarda à sua frente como se manejasse um arado gigante invisível.
Na Third Street, os homens da Guarda equiparam os jipes com coberturas gradeadas e encaixaram grandes estruturas de arame farpado na frente dos veículos. Usavam esses carros para mover as multidões de curingas para fora da avenida principal e para dentro das ruas laterais.
Incêndios espontâneos causados por um curinga escondido explodiam os tanques de gasolina dos jipes, e os homens da Guarda corriam gritando, seus uniformes em chamas. Tiros de rifle começaram a estalar.
Próximo da Chatham Square, o som do tumulto começou a inchar para proporções imensas, ensurdecedoras, enquanto o Uivador, vestido todo de amarelo, corria pelas ruas caóticas, sua boca aberta em um grito que continha tudo que ele ouvira, amplificado e redobrado. Por onde o Uivador passava, os curingas precipitavam-se de mãos nas orelhas, fugindo dessa torrente de barulho. Janelas estilhaçavam-se quando o Uivador erguia as frequências, paredes estremeciam quando ele gritava na frequência grave:
– PAREM COM ISSO! – ele rugia. – VÃO PARA DENTRO, TODOS VOCÊS!
O Sombra, que havia se revelado um ás apenas poucos meses antes, mostrou rapidamente suas afinidades. Por um tempo, assistiu aos conflitos em silêncio. Na Pitt Street, onde um bando de curingas sitiado lutava usando provocações e atirando garrafas e lixo contra um canhão d’água e um esquadrão de homens da Guarda utilizava baionetas fixas aos rifles, Sombra entrou na briga. A rua ficou preta instantaneamente por talvez seis metros em torno do ás com uniforme azul-marinho e máscara dominó laranja-avermelhado. A noite impenetrável persistiu por dez minutos ou mais.
Gritos vieram de dentro do poço de escuridão, e os curingas fugiram. Quando a escuridão desapareceu e as luzes da cidade refletiram novamente as calçadas molhadas, os homens da Guarda estavam caídos na rua, inconscientes, o canhão d’água sem ninguém para controlá-lo, vertendo água nas sarjetas.
Sondra viu aquele último confronto da janela do seu apartamento. A violência da noite a apavorou. Para escapar do horror, ela girou a tampa da garrafa de Jack Daniels na sua cômoda, despejando um longo e implacável gole na garganta. Ela engasgou, limpando a boca com as costas da mão. Cada músculo em seu corpo protestava. Suas pernas e mãos artríticas agonizavam quando ela se movia. Foi para a cama e deitou-se. Não conseguia dormir… os sons do tumulto adentravam a janela aberta, ela conseguia sentir o cheiro da fumaça dos incêndios próximos e ver as chamas tremeluzentes dançando nas paredes. Temia que tivesse de sair do prédio e perguntou-se o que ela tentaria salvar se isso acontecesse.
Houve uma leve batida na porta do apartamento. De primeiro, não tinha certeza de ter mesmo ouvido a batida. Repetia-se, baixa e persistente, e ela se levantou, lamentando.
Quando ela se aproximou da porta, soube quem era. Seu corpo sentiu. Súcubo sentiu.
Não, Sondra sussurrou para si mesma. Não, agora não. Ele bateu novamente na porta.
– Vá embora, por favor, Gregg – ela falou, recostando-se na porta, mantendo sua voz baixa para que ele não pudesse ouvir os tons da idosa.
– Súcubo? – A voz dele era insistente. A excitação a atraía, e ela se surpreendia com ela. Por que agora? Por que aqui? Deus, não posso deixá-lo me ver assim, e ele não vai embora.
– Só um minuto – ela disse e derrubou as barreiras que prendiam Súcubo. Seu corpo começou a mudar, e ela sentiu o turbilhão da paixão dele incitando a dela. Ela se despiu das roupas de Sondra, atirando-as num canto. E abriu a porta.
Gregg estava mascarado, a cabeça inteira coberta com um rosto de palhaço sorridente e grotesco. Ele a olhou com malícia enquanto a empurrava para dentro. Não disse nada, suas mãos já abriam o zíper da calça, puxando para fora o pau que endurecia. Não se preocupou em tirar a roupa, nem em entrar nas preliminares. Empurrou-a para baixo no chão de madeira maciça e lançou-se para dentro dela, investindo com fôlego ofegante enquanto Súcubo se movia embaixo dele, encaixando-se na ferocidade dele e cooperando com aquele estupro impiedoso. Ele era brutal: seus dedos enterravam-se nos seios pequenos e firmes, as unhas rasgando até sangrarem pequenos riscos na pele. Esmagava os mamilos entre o dedão e o indicador até ela gritar… desejava a dor dela naquela noite, precisava que ela se encolhesse e chorasse e, ainda assim, fosse uma vítima submissa. Deu um tapa no rosto dela, quando ela levantou as mãos para impedir que ele fizesse de novo, suas narinas pingando sangue, ele torceu os pulsos dela com crueldade.
E, quando ele terminou com ela, ficou em pé olhando para a mulher deitada, a cabeça de palhaço rindo para ela, seu próprio rosto ininteligível por trás da máscara. Ela conseguia ver apenas os olhos, cintilantes, fitando-a.
– Tinha de ser desse jeito – falou ele. Não havia arrependimento em sua voz. Súcubo concordou
com a cabeça, ela sabia daquilo e aceitou. Por dentro, Sondra chorava.
Hartmann subiu o zíper das calças. A frente da sua camisa estava imunda com sangue e fluidos.
– Você entende mesmo? – perguntou ele. A voz dele era gentil, calma, pedia para ela ouvir, se compadecer.
– Você é a única pessoa que me aceita sem eu ter que fazer nada. Você não liga que sou senador. Eu não tenho que… – Ele parou e limpou o paletó. – Você me ama. Posso sentir isso.
Cuida de mim, e não preciso pedir para você cuidar. Eu quero… – Ele estremeceu. – Eu preciso de você.
Talvez fosse porque ela não conseguia ver seu rosto. Talvez fosse porque sua brutalidade, quando antes ele sempre fora tão carinhoso, tivesse deixado a empatia de Súcubo por ele ainda mais profunda do que no passado. Mas conseguiu sentir os pensamentos dele por um momento quando ele a deixou estirada no chão, e o que ela sentiu a fez estremecer, apesar do calor horrível. Ele pensava na violência lá fora, e na mente do senador não havia ódio, nem nojo. Havia apenas um brilho de prazer, um sentimento de missão cumprida. Ela o fitou com espanto.
Foi ele. Desde o início, ele está nos usando, não ao contrário.
Na porta, Gregg virou-se e falou para ela.
– Súcubo, eu te amo. Não acho que você entenderia, mas é verdade. Por favor, acredite nisso.
Preciso de você mais do que preciso de todo o resto.
Por trás da máscara, ela conseguia ver o brilho de suas pupilas. Ficou surpresa ao perceber que ele estava chorando.
De alguma forma, com toda a estranheza que Sondra testemunhou durante aquela noite, aquilo não parecia tão estranho assim.
O Titereiro descobriu que sua segurança estava no anonimato, na aparência de inocência. Afinal, nenhuma das marionetes sabia que ele as havia tocado, nenhuma delas conseguia dizer a qualquer pessoa o que acontecera em sua mente. Elas simplesmente… se entregavam. O Titereiro apenas deixava que extravasassem seus sentimentos, sempre havia ampla motivação para quaisquer crimes que suas marionetes pudessem cometer. Se fossem pegas, não importava.
Em 1961, graduando-se na Faculdade de Direito de Harvard, ele entrou num prestigioso escritório de advocacia de Nova York. Em cinco anos, após uma carreira de sucesso como advogado criminalista, entrou na política. Em 1965, foi eleito intendente da cidade de Nova York.
Foi prefeito de 1968 a 1972, quando se tornou senador do estado.
Em 1976, viu a chance de alcançar a presidência. No passado, sempre pensava em 1980, 1984.
Mas a Convenção Nacional dos Democratas foi para Nova York no ano do Bicentenário da Independência, e o Titereiro soube que era o momento.
Toda a fundação estava estabelecida.
Ele se alimentou muitas vezes da taça profunda da amargura entranhada em Tom Miller.
Agora, ele a tomaria até a última gota.
QUINZE MORTOS NO INCÊNDIO DO BAIRRO DOS CURINGAS
The New York Times, 19 de julho de 1976
O sol da manhã estava encoberto pela fumaça escura. A cidade assava sob o calor renovado, pior do que nos dias anteriores. A violência não terminara com a manhã. As ruas do Bairro dos Curingas estavam mergulhadas na destruição, inundadas com detritos do tumulto noturno. Os revoltosos travaram batalhas de guerrilha com a polícia e os homens da Guarda Nacional, obstruindo seus movimentos pelas ruas, virando carros para bloquear cruzamentos, provocando incêndios, zombando das autoridades das sacadas e janelas. O Bairro dos Curingas em si estava cercado por viaturas do esquadrão, jipes e equipamentos anti-incêndio. Os soldados da Guarda, todos equipados, estavam estacionados a poucos metros da Second Avenue. Ao lado da Chrystie Street, os guardas reuniam-se em torno do parque Roosevelt, onde novamente os curingas se organizavam. A voz de Gimli podia ser ouvida no fundo da multidão, discursando para eles, dizendo que naquele dia marchariam, independentemente das consequências. Todos os candidatos democratas apareceram próximos da área cercada para serem fotografados com expressões preocupadas, graves, enquanto olhavam para a carcaça incendiada de um prédio ou falavam com um curinga menos deformado. Kennedy, Carter, Udall, Jackson – todos garantiam ser vistos, e então rumavam com suas limusines de volta para o Garden, onde os delegados realizaram duas rodadas não conclusivas de votos para a indicação. Apenas Hartmann foi e ficou próximo ao Bairro dos Curingas, conversando com os repórteres e tentando, sem sucesso, persuadir Miller a sair das profundezas da multidão para negociar.
À tarde, com a temperatura chegando perto dos 35 graus e uma brisa do East River trazendo o cheiro de incêndio para a cidade, os curingas saíram do parque.
Gregg nunca tinha lidado com tantas marionetes antes. Gimli ainda era a principal, e ele conseguia sentir a presença irritadiça do anão talvez a centenas de metros para dentro da massa de curingas que lotavam a Grand Street. Nessa bagunça vertiginosa, Miller sozinho não seria suficiente para fazer os curingas voltarem no momento certo. Gregg fez de tudo para conseguir apertar a mão dos líderes da CSJ nas últimas semanas. A cada vez, usou o toque para mergulhar
na mente diante dele e abrir os caminhos que permitiriam o acesso a distância. Um aglomerado era como qualquer rebanho de animais – se conduzisse bem os líderes, o resto aconteceria inevitavelmente. Gregg tinha a maioria deles: Gargântua, Amendoim, Charmoso, Memória, talvez outros vinte. Alguns deles, como Sondra Falin, ele ignorava – a idosa lembrava uma avó decrépita, e ele duvidava de sua capacidade de demover a multidão. A maioria de suas
marionetes já sentia algum medo – seria fácil usar aquilo, expandir aquele pavor até eles se virarem e fugirem. A maioria deles era de pessoas razoáveis, que queriam confrontos não mais que quaisquer outras. Foram provocadas, um feito de Hartmann. Agora ele desfaria aquilo e, no processo, se transformaria no indicado. A maré da convenção já se desviara de Kennedy e Carter.
Como os delegados liberavam naquele momento o primeiro compromisso de voto, estavam livres para eleger o candidato de sua escolha… no último escrutínio, Hartmann alcançou um terceiro lugar com tendência ao crescimento. Gregg sorria, apesar das câmeras apontadas na sua direção: o tumulto da noite anterior lhe deu um prazer que nunca pensou que sentiria – tanta paixão quase arrasou com ele, uma estranha combinação de desejos.
A fileira dos soldados da Guarda Nacional começou a se mover quando os curingas se aproximaram. Eles se esparramaram pela extensão da Chrystie Street, gritando frases e brandindo placas. Megafones estrondando palavras de ordem e xingamentos a torto e a direito. Gregg conseguia ouvir os insultos dos curingas, enquanto os homens da Guarda formavam uma fileira de baionetas. No cruzamento da Delancey Street, Gregg viu o casco flutuante do Tartaruga sobre os soldados da Guarda; lá, ao menos, os manifestantes eram mantidos para trás sem risco. Mais adiante, a sul na direção dos portões principais, onde Hartmann estava em pé num círculo de guardas, não estava tão fácil.
Os curingas avançavam, empurrando e se acotovelando, a massa dos que estavam atrás impulsionavam aqueles que poderiam ter, de outra forma, voltado para o parque. Os soldados da Guarda foram forçados a tomar uma decisão: usar as baionetas ou tentar empurrar os curingas para trás com braços dados. Escolheram a última opção. Por um momento, parecia que algum equilíbrio fora alcançado, então as fileiras dos homens da Guarda começou a se curvar lentamente. Com um grito, um grupo de curingas rompeu a linha e alcançou a rua. Aos berros, o restante passou pelo cordão. Novamente, seguiu-se uma batalha contínua, desorganizada e confusa. Hartmann, bem atrás do confronto naquele instante, suspirou. Fechou os olhos quando as impressões de suas marionetes começaram a chegar até ele. Se desejasse, poderia perder-se, poderia mergulhar naquele mar agitado de emoções e alimentar-se até se fartar.
Mas não podia esperar tanto tempo. Precisava movimentar-se enquanto ainda havia alguma forma de conflito. Gesticulando para os guardas, começou a seguir em frente na direção dos portões, na direção de Gimli.
Sondra estava com o restante dos membros principais da CSJ. Enquanto ultrapassavam o portão principal, ela tentou novamente contar a Gimli sobre aquela estranheza que sentiu em Hartmann na última noite.
– Ele pensou que estava controlando tudo isso. Eu juro, Gimli.
– Igual a qualquer outro político de merda, velhota. Além disso, achei que você gostava dele.
– Eu gosto, mas…
– Olha só, que diabos você tá fazendo aqui?
– Eu sou curinga. A CSJ é meu grupo também, concorde eu com o que vocês estão fazendo ou
não.
– Então cala a boca, cacete. Tenho muito a fazer aqui.
O anão lançou-lhe um olhar furioso e se afastou. Estavam andando num ritmo lento, de funeral, na direção dos soldados da Guarda, que esperavam. Então a visão desapareceu quando os curingas se juntaram nos limites dos portões; arrastando-se, mancando, abrindo caminho da melhor maneira possível. Muitos deles carregavam sinais da luta do dia anterior, cabeças enroladas em bandagens, tipoias… exibiam essas marcas aos homens da Guarda como medalhas
de honra. Os corpos à frente de Sondra de repente pararam quando alcançaram a fileira de soldados; alguém a empurrou por trás e ela quase caiu. Abraçou a pessoa diante dela, sentindo a pele encouraçada sob suas mãos, vendo escamas de lagarto cobrindo costas imensas. Sondra gritou quando foi espremida, afastando-se com braços fracos, os músculos balançando dentro da bolsa frouxa de pele. Ela cambaleava. O sol atingiu seus olhos em cheio, ela ficou cega por um momento. Na confusão, conseguiu ver punhos se agitando à sua frente, acompanhados por gritos e lamentos. Sondra começou a recuar, tentando encontrar um caminho para passar pelo conflito. Ela foi acotovelada e, quando revidou, um cassetete a golpeou ao lado da cabeça.
Sondra gritou. Súcubo gritou.
Sua visão perdeu-se num turbilhão de cores. Não conseguia pensar. Pôs as mãos sobre o corte e as mãos pareciam estranhas. Piscando atrás do sangue que escorria do corte da têmpora, ela tentou olhar para elas. Eram jovens aquelas mãos, e mesmo que estivesse boquiaberta por elas na confusão, sentia a intrusão repentina de outras paixões.
Não! Volte para dentro, maldita! Não aqui, não nas ruas, não com todas essas pessoas ao redor! Desesperada, Sondra tentou tomar as rédeas de Súcubo, mas sua cabeça zumbia com a concussão e ela não conseguia pensar. Seu corpo estava atormentado, mudando de forma de modo instável em resposta a todos que estavam ao seu lado. Súcubo tocava cada uma das mentes e tomava a forma de seus desejos sexuais. Primeiro mulher, depois homem, jovem e velha, gordo e magra. Súcubo uivou, confusa. Sondra corria, sua forma se alterava a cada passo, ela empurrava as mãos que a tocavam com desejos estranhos e repentinos. Súcubo reagia como devia, tomava a linha do desejo e a tecia em paixão. Num círculo que crescia cada vez mais, o tumulto terminou quando curingas e guardas viraram-se para perseguir a força do desejo. Súcubo conseguia senti-lo também, e ela tentava abrir caminho até Gregg. Ela não sabia mais o que fazer. Ele controlava aquilo, ela sabia disso desde a última noite. Ele poderia salvá-la. Ele a amava… ele disse.
Os cameramen seguiam o avanço do senador Hartmann na direção do portão onde algumas brigas estavam apenas começando. Quando os guarda-costas tentaram segurar o senador, ele afastou as mãos deles para o lado.
– Maldição, alguém precisa tentar – ouviram-no dizer.
– Ah, que ótimo – um dos repórteres murmurou.
Hartmann seguiu em frente. Os guarda-costas trocaram olhares, deram de ombros e seguiram-no.
Gregg conseguia sentir a presença da maioria das marionetes na área próxima ao portão. Com o Tartaruga segurando os curingas na outra ponta do parque, Gregg percebeu que esta seria uma ótima oportunidade. Fazer Gimli e os outros recuarem agora faria com que todos voltassem. Se o tumulto continuasse noite adentro novamente, não importaria, Gregg teria demonstrado generosamente sua firmeza numa crise. Os jornais ficariam cheios com a notícia na manhã seguinte e todas as televisões dariam destaque ao seu rosto e ao seu nome. Seria o suficiente para garantir a indicação com um grande impulso para a própria campanha. Ford ou Reagan, não importaria quem fosse a escolha dos republicanos.
Mantendo o rosto sério, Gregg caminhava a passos largos para o centro do conflito.
– Miller! – ele gritou, sabendo que o anão estava próximo o suficiente para ouvi-lo. – Miller, é o Hartmann! – Enquanto gritava, ele deu um puxão na mente de Miller e interrompeu aquele calor incandescente da fúria, lavando-o com o frio azul-celeste. Sentiu a libertação repentina, sentiu o início do nojo do anão pela visão ao seu redor. Hartmann deturpou a mente de novo, tocando a essência do medo no homem e impulsionando-o a crescer, uma palidez fria.
Está fora de controle, Gregg sussurrou ao homem. Você perdeu agora e não poderá voltar, a menos que vá até o senador. Ouça: ele está te chamando. Seja razoável.
– Miller! – Gregg chamou novamente. Ele sentiu o anão começar a virar, e Gregg empurrou de lado o homem da Guarda à sua frente para que pudesse ver.
Gimli estava à sua esquerda. Mas, mesmo quando Hartmann começou a chamá-lo, ele viu a atenção dos curingas voltando-se para o portão. Lá, perseguida por uma multidão de curingas e soldados da Guarda, Gregg a viu.
Súcubo.
Sua forma era errática, centenas de rostos e corpos intermitentes nela enquanto a mulher corria.
Ela viu Gregg naquele mesmo instante. Gritou para ele, seus braços abertos.
– Súcubo! – ele gritou de volta e começou a abrir caminho com os ombros na direção dela.
Alguém a agarrou por trás. Súcubo virou-se, mas outras mãos estavam sobre ela naquele momento. Com um grito estridente, foi ao chão. Gregg não conseguia mais vê-la. Havia corpos em volta dela, acotovelando-se, batendo um no outro na sua fúria para se aproximar de Súcubo.
Gregg ouviu o estalar grotesco e seco de ossos partindo.
– Não! – Gregg começou a correr. Gimli foi esquecido, o tumulto foi esquecido. Quando chegou próximo dela, conseguiu sentir o puxar de sua atração.
Eles se empilhavam sobre ela, a multidão pululante, colérica, golpeando-a, dilacerando Súcubo e uns aos outros numa tentativa de se libertar. Eram como vermes que se contorciam sobre um pedaço de carne, rostos tensos e violentos, mãos arranhavam enquanto espancavam Súcubo, empurrando. O sangue de repente jorrou de algum lugar por baixo da massa que serpenteava.
Súcubo gritava, uma agonia estridente, sem palavras, que de repente, de forma estranha, cessou.
Ele a sentiu morrer.
Aqueles que estavam ao redor dela começaram a recuar, com pavor no rosto. Gregg podia ver o corpo encolhido no chão. Uma mancha grossa de sangue espalhava-se ao lado dele. Um dos braços tinha sido arrancado, suas pernas estavam torcidas em ângulos estranhos. Gregg não viu nada daquilo. Olhou apenas para o seu rosto: ele viu o reflexo de Andrea Whitman deitado ali.
O ódio cresceu dentro dele. Sua intensidade varreu tudo que estava ao lado. Não conseguia ver nada ao redor… nem as câmeras, nem os guarda-costas, nem os repórteres. Gregg conseguia apenas vê-la.
Ela havia sido dele. Havia sido dele sem ter sido uma marionete, e eles a tiraram dele.
Zombaram dele, como Andrea tinha zombado anos atrás, como outros tinham zombado dele e também morreram. Ele a amou mais do que conseguiu amar qualquer outra pessoa. Gregg agarrou os ombros de um soldado da Guarda que estava em pé sobre o corpo com o pau pendendo das calças abertas. Gregg o empurrou.
– Seu imbecil! – Enquanto gritava, esmurrou o rosto do homem várias vezes. – Seu maldito imbecil!
A fúria se esparramava em sua mente, sem limites. Fluía para as marionetes. Gimli uivou, sua voz mais convincente que nunca.
– Vocês vêem! Veem como eles matam?
Os curingas ergueram-se aos gritos e atacaram. Os guarda-costas de Hartmann, de repente temerosos pela violência renascida, arrastaram o senador para longe do combate. Ele os xingou, resistindo, lutando para se soltar, mas neste momento foram irredutíveis. Puxaram-no de volta para o carro e o levaram até o quarto de hotel.
HARTMANN EM FÚRIA POR ASSASSINATO ATACA MANIFESTANTES
CARTER PARECE SER O VENCEDOR
The New York Times, 20 de julho de 1976
HARTMANN “PERDE A CABEÇA”
ÀS VEZES É PRECISO CONTRA-ATACAR, DIZ ELE
Daily News de Nova York, 20 de julho de 1976
Ele salvou o que pôde do fiasco. Disse aos repórteres de plantão que simplesmente ficou estarrecido com o que testemunhou, pela violência desnecessária causada à pobre Súcubo. Ele deu de ombros, sorriu com tristeza e perguntou se eles também não teriam ficado comovidos com aquela cena.
Quando finalmente o deixaram, o Titereiro retirou-se ao seu apartamento. Lá, na solidão do quarto, assistiu aos trabalhos na televisão, quando a convenção elegeu Carter como o próximo candidato presidencial do partido. Disse a si mesmo que não se importava. Disse a si mesmo que na próxima vez seria ele. No fim das contas, o Titereiro ainda estava seguro, ainda estava escondido. Ninguém conhecia seu segredo.
Na sua mente, o Titereiro levantou a mão e estendeu os dedos. Os fios esticados, as cabeças de suas marionetes levantadas. O Titereiro sentia suas emoções, provando o tempero de suas vidas.
Naquela noite, ao menos, o banquete era amargo e incômodo.
Interlúdio Cinco
DE TRINTA E CINCO ANOS DO VÍRUS CARTA SELVAGEM,
UMA RETROSPECTIVA REVISTA ASES!
15 DE SETEMBRO DE 1981
“Não posso morrer ainda, não vi Sonhos dourados.”
– Robert Tomlin
“São abominações para o Senhor, e em seus rostos carregam a marca da besta, e seu número na Terra é seiscentos e sessenta e seis.”
– folheto anônimo anticuringas, 1946
“Eles chamam de quarentena, não de discriminação. Não somos uma raça, eles nos dizem, não somos uma religião, somos doentes, então o correto é nos separar, embora eles saibam muito bem que o carta selvagem não é contagioso. A nossa é uma enfermidade do corpo, a deles, uma doença contagiosa da alma.”
– Xavier Desmond
“Deixe que digam o que quiserem. Eu ainda posso voar.”
– Earl Sanderson Jr.
“É minha culpa que todos gostem de mim e ninguém goste de você?”
– David Harstein (para Richard Nixon)
“Amo o gosto do sangue curinga.”
– grafite no metrô de Nova York
“Não me importo com a aparência deles, sangram vermelho como qualquer pessoa… ao menos a maioria deles.”
– Tenente-coronel John Garrick, Brigada Curinga
“Se eu fosse um ás, odiaria ver um dois de paus.”
– Timothy Wiggins
“Você quer saber se sou um ás ou um curinga? A resposta é sim.”
– O Tartaruga
Sou curinga, sou insano
E meu nome você não pode falar
À espreita nas ruas
Espero apenas a noite
Sou a serpente que vai arrancar
as raízes do mundo
– “A hora da Serpente”, Thomas Marion Douglas
“Estou extasiado, pois Baby voltou para mim, mas não tenho a intenção de deixar a Terra. Este planeta é minha casa agora, e aqueles que foram atingidos pelo carta selvagem são meus filhos.”
– Dr. Tachyon, pela ocasião da devolução de sua nave
“São os filhos demoníacos do Grande Satã, a América.”
– Aiatolá Khomeini
“Em retrospecto, a decisão de usar os ases para garantir o retorno seguro dos reféns provavelmente foi um erro e assumo total responsabilidade pela falha da missão.”
– Presidente Jimmy Carter
“Pense como um ás e poderá vencer como um ás. Pense como um curinga e o curinga aparecerá em você.”
– do livro Pense como um ás! (Ballantine, 1981)
“Os pais dos EUA estão profundamente preocupados com a cobertura excessiva dos ases e da exploração deles pela mídia. São mau exemplo para nossos filhos, e milhares ficam feridos ou morrem a cada ano ao tentarem imitar seus poderes bizarros.”
– Naomi Weathers, Liga dos Pais Americanos
“Até suas crianças querem ser como nós. Estes são os anos 1980. Uma nova década, cara, e somos um povo novo. Podemos voar e não precisamos de nenhum avião ridículo como aquele do limpo do Jetboy. Os limpos não sabem disso ainda, mas estão obsoletos. Estamos na era dos ases.”
– carta anônima no jornal Grito do Bairro dos Curingas
1o de janeiro de 1981
A garota fantasma conquista Manhattan
Carrie Vaughn
Jennifer não sabia aonde Tricia a estava levando até a amiga puxá-la para fora do vagão do metrô na plataforma da Second Avenue–Lower East Side. Sua preocupação aumentava cada vez mais nas últimas quatro estações – passou Midtown, passou Washington Square Park, passou por lugares que não tinham nada a ver com elas, e Tricia continuava dizendo:
– Ah, não, vamos sempre nos mesmos lugares, hoje quero tentar um lugar novo, vai ser divertido!
– Trish, você tá louca? Que estamos fazendo aqui? – Jennifer agarrou a amiga com as duas mãos e tentou reduzir seu avanço pelo saguão de entrada e escada acima até a Houston Street. Ela olhou em volta, chegando cada vez mais perto de Tricia. Nunca tinha visto tantos curingas em um só lugar. Metade das pessoas em pé na plataforma eram curingas. Ela vira curingas antes, não era possível morar em Nova York – mesmo se você nunca se afastou muito do campus da Columbia –
sem ver curingas. A maior parte do tempo você via apenas um ou dois, e suas deformidades eram leves – tinham penas no lugar do cabelo ou, talvez, orelhas de coelho. Mas, naquele lugar, os corpos eram inteiramente detonados, transformados, monstruosos. Um homem passou por ela e deixou um rastro de gosma no concreto. Jennifer tentou não ficar olhando.
Tricia puxou-a escada acima e até a rua, onde o caos aumentava.
– Ah, vai, os Fads vão tocar no CBGB e quero muito, muito ir, e se eu falasse antes você nunca viria. Certo? Ia fazer toda a ceninha e ficar de nariz empinado, como está fazendo bem agora.
– Não sou uma “nariz empinado” – disse Jennifer, tentando não fazer cara feia. Nunca tinha ouvido falar dos Fads.
– Vamos lá, viva um pouco. Não vai acontecer nada.
Obediente, Jennifer caminhava com a amiga, ainda se mantendo perto o suficiente para que seus braços se tocassem.
– Meus pais ficariam doidos se soubessem que estive num lugar próximo ao Bairro dos Curingas.
Tricia respondeu:
– Então não fale pra eles. Você não fala tudo para eles, né?
– Não. – De fato, Jennifer não falava. Tinha um grande segredo que mantinha guardado de absolutamente todo mundo. Até de Tricia. Não conseguia falar para Tricia que o grande motivo pelo qual ela não queria sair era porque tinha certeza de que um desses dias alguém descobriria.
Alguém olharia para ela e saberia.
Especialmente alguém no Bairro dos Curingas. Alguns deles não tinham apenas deformidades, as cicatrizes físicas do vírus carta selvagem. Alguns tinham poderes. Alguns deles conseguiriam ler sua mente e saberiam. Depois disso, Jennifer não sabia o que poderia acontecer. Nunca tinha ido tão longe nesses pensamentos. Melhor era fingir que não havia nada errado.
Se não fosse por Tricia, Jennifer nunca sairia para explorar a cidade. E, no fim das contas, elas se divertiam bastante.
Sob os apelos de Tricia, e confiando que a amiga não a levaria tão longe, Jennifer vestiu-se para uma noitada: vestido curto e preto tomara que caia, sandálias de salto alto, cabelos loiros com escova e laquê. Tricia estava usando calças com estampa de oncinha, camiseta longa com cinto dourado, e seus saltos eram ainda maiores.
– Estamos chegando! – disse Tricia, puxando o braço de Jennifer para apressá-la.
Talvez ela esperasse algo reluzente, pelo jeito que Tricia estava agindo. Como o Studio 54.
Mas, em qualquer outro dia, Jennifer teria passado direto pelo local sem percebê-lo. Não era nada de mais, apenas uma fachada grafitada com um toldo branco, próxima de um armazém de abastecimento para restaurantes. Não tinha nem mesmo uma marquise. Mas tinha uma multidão na frente, compartilhando a calçada com dois curingas sem-teto escorados no muro de tijolos à mostra.
Com Tricia à frente, elas abriram caminho no meio do povo até a entrada. Limpos e curingas formavam a aglomeração. Talvez até mesmo um ás ou dois, mas quem conseguiria dizer? Jennifer não apontaria ninguém ali.
Um cara na porta estava cobrando a entrada, e Jennifer estava fuçando a bolsa em busca de uma nota de cinco quando Tricia puxou seu braço.
– Você tem mais uma de cinco aí? Não consigo encontrar a minha. – Ela usou aquele olhar suplicante.
Jennifer suspirou e pegou mais uma nota. O suficiente para uma corrida de táxi até em casa.
Mas elas se arranjariam, sempre se arranjavam.
Lá dentro, as luzes eram fortes; as paredes eram pretas e cobertas de adesivos e tinta spray. Um balcão ocupava uma parede inteira, uma porta aberta para os fundos, e um palco estava enfiado num canto. Uma banda tocava. Num pôster escrito à mão, colado com fita adesiva na parede acima deles, era possível ler SONIC YOUTH. Eram muito jovens – um dos guitarristas era uma mulher com cabelo loiro e esvoaçante. Usavam máscaras e podiam ser punks, curingas ou ambos.
Jennifer provavelmente não conseguiria dizer se não chegasse mais perto.
A música estava alta, não era muito dançável, e ninguém estava dançando de verdade. Mas as pessoas se mexiam. Uma multidão delas, bem perto do palco, pulando, batendo umas nas outras, estendendo os braços na direção do palco. A guitarrista estava cantando, ou melhor, gritando as letras quase impossíveis de ouvir pelo barulho dos instrumentos: guitarras rugiam e a bateria estrondava. O suor voava dos cabelos da mulher. Com aquelas luzes, o lugar parecia um forno.
Tricia berrava e balançava no lugar.
– Não é… – e o resto era impossível de se escutar.
– Quê? – Jennifer berrou de volta.
– Ei! – falou um rapaz alto, magro, de cabelos escuros e camiseta preta com uma estampa desbotada escrita THE RAMONES, trocando de lugar para ficar na frente delas. – Posso pegar duas bebidas para vocês?
Tricia esgoelou-se de novo e agarrou o braço dele. Jennifer revirou os olhos.
Após ver alguns garotos de moicano na frente do palco, Jennifer esperava punks assustadores com cabelos espetados e jaquetas do exército, coturnos e camisetas pintadas com spray. Esperava correntes e brigas estourando. Mas não foi assim. Embora alguns punks reais fizessem parte da turma, muitos dos rapazes estavam entre o punk e o normal, com jeans rasgados, camisetas pretas e expressões rudes, mas não tinham cabelos esquisitos e todo o metal e os slogans. Várias garotas não se vestiam diferente dos caras, mas outras estavam produzidas, como Jennifer e Tricia.
Cabelos cheios de cores, modelados e com auréolas em torno da cabeça – fixadas com laquê –, saias curtas e calças justas, saltos altos e grandes brincos de argola, gloss rosa e sombras brilhantes nos olhos. Um casal incrivelmente bonito estava num canto próximo do palco. Tinham cabelos impecáveis, cortados e arrumados como modelos de revista. Ele vestia um terno branco que parecia bem caro e ela, um vestido de noite colado, joias prateadas e fumava de uma piteira.
Totalmente afetados, mas intrigantes ao mesmo tempo. E havia um monte de festeiros comuns – universitários jovens e normais, talvez com olhos um pouco vidrados, esperando o próximo barato da droga bater. Jennifer ficou preocupada em se destacar, que as pessoas saberiam que ela não fazia parte daquilo e lhe causariam problemas. Mas ela não se destacava, e ninguém lhe causou problema algum.
Cerca de um terço daquela multidão era de curingas, e Jennifer mal notou à primeira vista.
Porque eles também não se sobressaíam. Alguns deles usavam máscara. Ou poderiam ser limpos usando máscaras. Nem disso ela conseguia ter certeza. E parecia que não importava.
Jennifer percebeu de relance outro casal na outra ponta do balcão. Na superfície, se pareciam com o resto das pessoas ali, jeans e camiseta, despretensioso, a não ser por aparentarem dez anos mais velhos que a maioria do pessoal ali.
Então Jennifer ficou boquiaberta. Ela sacudiu Tricia.
– Não é o Mick Jagger e a Jeri Hall ali?
Tricia estava no meio de uma bebida e derramou parte daquilo que cheirava a gim-tônica goela abaixo, mas conseguiu olhar de qualquer jeito. Seus olhos ficaram arregalados.
– Ai, meu Deus, e ele está conversando com o David Byrne!
Jennifer não sabia quem era David Byrne.
Outra banda tocou antes dos Fads entrarem no palco. A essa altura, Tricia estava completamente bêbada, e Jennifer a segurava, pois a amiga esbarrava o tempo todo nas outras pessoas. Ninguém parecia ligar, e Jennifer tentou não se irritar, mas não tinha vindo para servir de babá de Tricia.
Não, pensou melhor, provavelmente tinha. Tricia provavelmente pediu para que ela viesse, pois Jennifer era responsável e levaria ambas para casa sãs e salvas. Jennifer ainda bebia o mesmo rum com Coca-Cola havia uma hora. Tinha certeza de que Tricia tinha tomado umas pílulas. Todo mundo parecia ter tomado.
O lugar estava quente como uma estufa, cheio de suor, fumaça de cigarro e bafo de álcool.
Parecia levar uma eternidade para uma banda sair do palco e outra assumi-lo, e quando Tricia percebeu que os Fads estavam lá, ela berrou e correu para a frente do palco, acotovelando as pessoas para passar, rindo quando tomava um empurrão de volta. Jennifer gritava com ela, mas
não conseguia nem ouvir a si mesma.
Os Fads eram três rapazes. Dois deles eram curingas – do tipo intrigante. O cantor tinha cabelo brilhante, tranças brancas e finas até o pescoço que se acendiam nas pontas como aquelas lâmpadas de fibra ótica de lojas kitsch. O guitarrista tinha muitos dedos em cada mão. Era até difícil contá-los, pois ele os movia com grande velocidade sobre as cordas de seu instrumento, criando um padrão bizarro de sons. O baterista parecia ser normal, um punk sem camisa com cabelo esbranquiçado e espetado e um alfinete de segurança na orelha esquerda.
A suposta música consistia mais num tamborilar maníaco do que numa melodia. O cantor gritava. Jennifer não conseguia entender muito das letras. Coisas sobre odiar os pais, botar fogo nas coisas e pensar quando as bombas cairiam.
Finalmente, a banda terminou. Houve um monte de gritos.
– Preciso fazer xixi – anunciou Tricia, agarrando a mão de Jennifer e puxando-a para os fundos da casa noturna. Jennifer a segurou, pois estava prestes a cair.
– Tem banheiro aqui? – perguntou Jennifer, em dúvida. Ela não estava certa se queria vê-los, levando em conta o que vira do resto do local. Tricia apenas revirou os olhos, numa expressão como se dissesse “é possível ser menos descolada que você?”.
O lugar era uma caverna, paredes pretas se estreitavam, o grafite somava-se à sobrecarga sensorial. Uma escada no fundo levava mesmo para baixo até os banheiros. Jennifer sentiu o cheiro antes de chegarem. O fedor de suor e mofo do resto do clube deu lugar a um vestígio de esgoto. Ela torceu o nariz.
Tricia mantinha o equilíbrio segurando-se em Jennifer, enquanto ela empurrava a porta e entrava no banheiro feminino: aqui, o cheiro de esgoto se espalhava sem interferências. O chão estava grudento, e Jennifer estava com medo de olhar as privadas nas cabines e o que, sem dúvida, transbordava delas.
A sujeira – no nível de risco grave à saúde – não impedia um aglomerado de mulheres de se apinhar na frente de um espelho marcado por grafites, passando spray no cabelo e retocando o delineador.
Tricia parecia ter esquecido sua necessidade de usar as instalações. Caiu contra a parede forrada de adesivos e pôsteres, e ergueu os olhos para alguma visão celestial.
– Foi incrível, foi tão incrível!
Ao lado delas, uma mulher de meia arrastão, saia plissada e bustiê de couro estava segurando um espelhinho, algumas linhas de pó branco impecavelmente enfileiradas sobre ele. Uma amiga com roupas semelhantes curvou-se ao lado dela e inalou a cocaína.
A primeira flagrou Jennifer olhando.
– Quer um pouco? – perguntou ela. – Tenho bastante.
Jennifer rapidamente sacudiu a cabeça e pensou sobre como ela não era mesmo descolada.
– Claro, aceito, obrigada! – disse Tricia, tombando para a frente enquanto a mulher segurava o espelho.
– Tricia… – disse Jennifer, mas a segunda linha de coca já havia escalado o nariz de Trish.
Será que a noite poderia piorar?
Tricia ergueu-se, seu rosto vermelho, esfregando o nariz e dando risadinhas.
– Ai, meu Deus, tive uma ideia ótima.
– Não, outra não – murmurou Jennifer. Estava respirando pela boca, pois o cheiro parecia estar piorando. A água gorgolejava de uma das cabines, e as outras garotas gritaram:
– Cara, você não deu descarga, deu? Caramba!
Tricia pegou a mão de Jennifer novamente e seguiu de volta para a porta.
– Quero segui-los.
– Seguir quem?
– Os Fads! Tony! Quero tentar um encontro com ele!
– Tony?
– O cantor! Ele não é demais?
– Trish, você sabe que horas são? É hora de ir embora!
– Só um minutinho, vai levar apenas um minutinho.
De alguma forma, Tricia as levou de volta escada acima, passaram por um corredor até uma porta desprotegida. As paredes eram cobertas com pôsteres e folhetos antigos que anunciavam shows ali, alguns deles de muitos anos atrás. Ela até reconheceu algumas das bandas. Uau, The Police tocou aqui? E Blondie? Sério? Mas Tricia estava numa missão, decidida. Ela se desprendeu, e Jennifer apressou-se para alcançá-la.
Parecia que tinham emergido da multidão, mas as pessoas as cercaram novamente no fim do corredor, que se abria para os bastidores, camarins e depósito. Jennifer reconheceu o cantor, estava autografando no verso de folhetos e ingressos, enquanto o que parecia, mais ou menos, uma dúzia de mulheres se espremendo em volta dele. Seu cabelo brilhante criava uma auréola, refletindo a luz no rosto. Os outros dois membros da banda estavam num canto, divertindo aqueles que não conseguiram chegar perto de Tony. Não deveria haver seguranças ali?
– Ei, você.
Tricia virou-se e viu um cara em pé atrás dela, sorrindo. Parecia um pouco velho para a multidão, com trinta em vez de vinte, rosto enrugado e gasto pelo tempo, bem barbeado, com cabelo preto cortado rente. Usava uma camiseta branca apertada e calça jeans que parecia cara, apesar de desbotada.
Tricia piscou para ele, sem saber se estava falando com ela.
– Você deve ser nova por aqui – disse ele.
– Quem, eu? – retrucou ela e, imediatamente, sentiu-se estúpida. – Não, estou aqui com uma amiga. – Ela apontou sobre os ombros. Tricia puxou seu top para baixo para deixar metade dos peitos à mostra, os quais o cantor estava assinando com um marcador de texto.
O rapaz abriu um sorriso mais largo.
– Quer uma? – Ele mostrou um estojo redondo de metal nas mãos, cheio de pequenas pílulas brancas.
De novo, não. Deu seu melhor para sorrir, enquanto afastava com a mão.
– Não, obrigada, estou bem.
– Amo essas festas, essas bandas conseguem as melhores drogas.
– Ah – ela disse.
– Esse é meu segredo terrível. Não ligo muito para a música. Mas não diga a ninguém. – Ele chegou mais perto e piscou.
Ele estava paquerando-a? Tentando se envolver com ela? Tricia não tinha certeza se saberia como reagir. Estava ao mesmo tempo apavorada e lisonjeada. Ficou tão vermelha e quente que poderia sentir o vapor saindo da cabeça.
– Pode deixar, não conto. Preciso mesmo ir com a minha amiga… – Mas quando ela viu, a banda tinha ido embora. Assim era Tricia.
– Tricia? – Jennifer chamou. Ela correu para a porta dos fundos, saindo num beco atrás do bar.
Um Cadillac feio e cheio de ferrugem estava estacionado ali. A banda estava entrando no carro, fazendo uma saída rápida.
O cantor com cabelos brilhantes agarrou Tricia pela cintura, quase levantando-a no ar, enquanto ela se contorcia e empurrava os braços dele. Estava dizendo algo, talvez gritando, embora Jennifer não conseguisse ouvi-la com a multidão gritando e o barulho ainda estrondoso do clube atrás dela.
– Tricia! – Jennifer fez uma concha com a mão à frente da boca e chamou.
Apesar do esforço, ela já havia sido puxada para dentro do carro.
Jennifer gritou novamente:
– Tricia! – E desceu correndo os degraus do palco, quase tropeçando nos saltos, com a intenção de correr atrás do Cadillac caindo aos pedaços. Em vez disso, correu para o meio da multidão que não a deixou passar. Jennifer era alta, conseguia ver sobre a maioria das cabeças. Mas não podia abrir caminho.
Um homem parrudo – um curinga, com presas projetando-se para cima de sua mandíbula e escamas pretas brilhando no lugar do cabelo – bloqueou seu caminho de propósito depois de ela se deparar com ele. Jennifer tentou contorná-lo, mas ele deu um passo para o lado a fim de prendê-la.
– Ei, neném, que pressa é essa?
– Meu camarada – insistiu ela, desesperada. – Levaram minha amiga. Não a viu? Ela não queria ir, eles simplesmente a levaram.
Ele sorriu. Suas presas faziam com que parecesse um buldogue.
– Meu amor, essa garota está aproveitando a vida.
Jennifer o encarou, horrorizada.
– Você a viu? – Ela apontou para o carro, agora avançando com sua amiga dentro. – Ela estava
tentando se livrar deles! Ela quase desmaiou de tão bêbada…
O curinga deu risada.
– Tá com ciúmes que eles não te levaram? Talvez você possa se divertir comigo.
– Ela precisa de ajuda!
O rapaz tentou agarrá-la, mas ela escapou, batendo nas mãos dele. Ele apenas ria. O carro virou a esquina.
Tricia foi sequestrada bem embaixo do nariz de Jennifer. Bem embaixo do nariz de todo mundo.
Jennifer recordou ter visto um telefone público ao lado dos banheiros. Ela correu de volta para dentro e desceu as escadas. Esperava que, devido ao seu azar, chegaria ao telefone e descobriria que estava quebrado, mas não estava. Contudo, pôs a mão em algo grudento no fone. Fazendo careta, passou a mão na parede para limpar o máximo que pôde. Agachando-se para fazer uma bolha de privacidade, bloqueando o ruído ao cobrir o ouvido, ela discou para a telefonista.
– Telefonista.
– Oi! Ligue para a polícia! – A linha estalava e crepitava com a estática. Ela mordia os lábios, certa de que havia perdido a conexão, até ouvir uma voz.
– Departamento de Polícia.
– Oi, sim? É minha amiga. Minha amiga foi sequestrada!
– Desculpe?
Jennifer mal podia ouvir. Estava gritando.
– Minha amiga! Ela foi sequestrada!
– Senhora, pode dizer o que aconteceu?
– Estávamos num bar. Alguns homens, uns caras da banda, puxaram ela pra dentro do carro. Ela estava tentando se soltar, não estava muito sóbria, e eles aproveitaram…
– Aguarde um minuto. – Agora o rapaz no outro lado da linha parecia se divertir. – Então vocês estavam numa festa e ela te abandonou para correr atrás da banda…
– Não, estou te falando, eles a arrastaram! Ela estava quase desmaiando e eles a levaram!
– Onde a senhora está?
Ela hesitou. Não estava indo bem e iria piorar.
– Estou naquele bar do Bowery…
O policial desligou o telefone.
Jennifer resmungou e bateu o fone no gancho. Por que Tricia não esperou por ela? Por que ela não revidou? E se ela não visse Tricia de novo? Sua amiga acabaria sendo estuprada e morta em uma sarjeta, e seria tudo culpa de Jennifer.
Ela tentou novamente, talvez por meio de uma central em vez da telefonista desse certo. O problema era que não tinha nenhum trocado na sua bolsa. Apenas algumas notas para drinques.
Ela suspirou. Então olhou em volta para ter certeza de que não havia ninguém olhando.
Rapidamente, ela pousou a mão no telefone público… então, atravessou-o. Sua mão ficou sem substância, passando pelo aparelho como se fosse ar. Apalpou por um momento e encontrou o compartimento do troco, agarrou algumas moedas e puxou a mão de volta para fora. As moedas flutuaram junto com ela. Agora, tinha dinheiro trocado.
De qualquer forma, seu poder de ás significava que ela poderia sempre usar um telefone público.
Cinco anos atrás, quando ela estava com 14 anos, aconteceu pela primeira vez. Serviu para si um copo de suco de laranja, pegou-o – e ele caiu. O copo escorregou da mão dela. Ou melhor, ela estava olhando para ele… quando ele escorregou através de sua mão. Ela ficou em pé por um longo tempo, o vidro quebrado e a poça de suco de laranja aos seus pés, encarando o contorno translúcido da mão e o chão da cozinha, visível através de sua carne não mais sólida. A mãe entrou, viu a bagunça, e perguntou se estava tudo bem, supondo ter sido um acidente normal.
Jennifer botou a mão rapidamente para trás. Quando olhou novamente, ela estava sólida. Normal.
Seguiram-se meses de medo e experimentação. Seu primeiro pensamento foi que estava desaparecendo, que no fim das contas sumiria. Teve insônia, medo de esvaecer durante o sono.
Mas, no final, ela aprendeu que podia controlar o poder. Conseguia passar por objetos sólidos.
Praticava passando por gavetas, armários de escola, o cofre de seu pai. Era um barato de ás. Não ousou contar a ninguém sobre isso.
Ela enfiou algumas moedas de dez centavos no telefone, discou o número e pediu pelo gabinete principal da delegacia mais próxima. Ela falou com alguém que parecia ser um sargento de plantão, contando toda a história de novo, tentando soar calma e desesperada ao mesmo tempo para que o oficial a levasse a sério.
O cara também desligou na cara dela.
Limpando as lágrimas dos olhos, Jennifer subiu as escadas pisando duro.
Outra banda estava tocando. Lá atrás, na parte principal da boate, ela se acotovelou num corredor lotado e entrou na muralha de música agressiva e estridente vinda do palco, sem parar quando alguém a chamava, livrando-se de mãos que a apalpavam. Poderia ter sido sua imaginação, poderia ter sido que o mundo de repente tenha ficado escuro e nefasto, mas a multidão parecia ter ficado mais desordeira. A confusão na frente do palco tinha ficado mais violenta. Jennifer ficou nos cantos e concentrou-se na frente do clube e na porta aberta, ignorando a massa de pessoas em torno dela e o tormento ácido em suas entranhas.
De que adiantava ser um ás se não poderia de fato fazer nada útil? Se não podia de fato ajudar alguém? Por que ela não podia ser uma psíquica, para poder saber para onde eles a levaram? Ou voar, para que pudesse seguir o carro?
Ela conseguiu chegar à porta da frente e sair para o ar – relativamente – puro. Uma multidão ainda se apinhava lá, pessoas indo e vindo, ficando por ali. Sem saber o que fazer, ela se recostou na parede de tijolos do bar e descansou, tirando o suor e o cabelo do rosto. Talvez se fosse até uma delegacia pessoalmente. Talvez se pudesse encontrar alguém que conhecesse a banda. Eles tinham de ter um empresário ou alguém que soubesse aonde poderiam ter ido.
– Ei, moça. O que houve?
Era o rapaz de camiseta branca com as pílulas. Devia estar o tempo todo ali fora, ou talvez tenha vindo simplesmente da porta da frente. Talvez ele a tenha seguido.
Ele se recostou desengonçado à parede, distante o suficiente para que não conseguisse esticar o braço e tocar nela. Isso tirou um pouco da suspeita dela contra ele.
– Por que o interesse? – Ela o olhou com fúria, depois virou o rosto, sem querer que ele pensasse que ela estava flertando com ele. Não que parecesse que ele estava flertando com ela.
Apesar disso, ela fungou profundamente e lágrimas rolavam sobre suas bochechas. Ela disse:
– Minha amiga, Tricia. Ela sumiu e ninguém se importa, ninguém quer fazer nada.
– Ela te deixou pra trás? – disse ele, abrindo um sorriso irônico.
– Não, é simples, ela foi sequestrada! A banda, eles a levaram, ela estava bêbada e eles a arrastaram para o carro, eu vi tudo!
– Tem certeza de que ela não decidiu ir farrear com a banda?
– Sem mim? Ela não faria isso. – Jennifer balançou a cabeça para enfatizar. Embora fosse sincera, ela esperava qualquer coisa de Tricia, que estava realmente bêbada. Ela suspirou para mais uma rodada de lágrimas.
– Ei – disse o rapaz. – Sei onde a festa continua. Posso te levar lá, se você quiser.
– Sério? – perguntou ela, desconfiada. Imaginou ela mesma sendo empurrada num carro enferrujado…
– Sim, é apenas a uns quarteirões daqui. Conheço o cara que dá a tal festa e, se você mostrar um pouco de perna, consegue entrar lá numa boa.
Ela virou o rosto, enrubescendo.
– É como eu disse, esses caras fazem as melhores festas com as melhores drogas. Vamos lá dar uma olhada, certo?
– Tem certeza de que Tricia vai estar lá?
– Se ela foi com a banda, sim, tenho. – Ele saiu da calçada e ofereceu a ela o apoio de seu braço, um gesto estranhamente doce e arcaico. Ela o seguiu, mas não lhe deu o braço; ele pareceu divertir-se com isso e não se ofendeu.
Caminharam, mais ou menos, um quarteirão. O barulho do CBGB desaparecia, substituído pelo ruído de outros bares, um pouco diferentes, as sombras de música e o sabor da multidão mudando a atmosfera punk. Seu olhar foi atraído pelos curingas que viu parados nas entradas e caminhando nas ruas. Eles a encaravam, e ela conseguiu não encarar de volta. Refugiou-se em si mesma, tentando ser discreta.
O rapaz da casa noturna não pareceu se importar com isso. Ele caminhava com passos fáceis, confortáveis, como se estivesse andando no Central Park num dia ensolarado.
– Qual seu nome? – perguntou ele após um período de silêncio.
– Jennifer – respondeu ela. Então se perguntou se deveria ter dito a ele algo mais. Em seguida, decidiu que era um nome comum demais, não importava, não era provável que ele pudesse investigá-la. Assim, ela percebeu que estava entrando no Bowery com um completo estranho.
– Jennifer. Prazer. Sou Croyd.
– Oi – disse ela, rindo de maneira nervosa.
– Percebo que você não passa muito tempo nesta parte da cidade.
– Na verdade, não. Eu estudo na Columbia. – Ela recuou. Por que tinha dito aquilo para ele?
– É mesmo? Que ótimo. Faculdade, você sabe. É bacana. E aqui estamos. Acho que é só subir essas escadas.
Não havia dúvida, o barulho de uma festa vinha do terraço. Jennifer estava esperançosa. A banda estaria lá, Tricia estaria lá, e Jennifer gritaria com ela por correr daquele jeito. Então, talvez pudessem finalmente ir para casa, e o zumbido em seus ouvidos pararia.
Croyd educadamente afastou-se para deixá-la entrar primeiro, e ela correu escada acima e para dentro de um cômodo que parecia um depósito. Faltava fazer bastante coisa naquele local ordinário: o chão era de concreto, o balcão era feito de mesas dobráveis, e as paredes precisavam de uma demão de tinta. Mas havia um rádio, um toca-discos e alto-falantes enormes despejando mais do mesmo tipo de música tosca do bar. Ninguém estava dançando – não havia muito espaço. Grupos de pessoas pareciam estar conversando aos berros, mas Jennifer não sabia se conseguiam se ouvir. Portas duplas em uma parede abriam para um terraço e a festa continuava lá fora.
Como encontraria Tricia naquela bagunça?
O rapaz que parecia estar à frente do bar era um curinga. Tinha peso e estatura média, mas era coberto por pelos azuis grossos; ela não conseguia ver suas feições. A boca e os olhos eram apenas sombras. Ele parecia olhá-la.
– Pode pegar o que quiser, só jogar alguma coisa no jarro, tá? – Ele apontou um jarro de picles grande recheado com dinheiro no canto da mesa.
– Tô procurando minha amiga. Ela está com a banda, eu acho. Os Fads. Estão aqui? Você a viu?
– Os Fads? – ele gritou, curvando-se para mais perto. Os pelos em volta da boca tremelicaram.
– Sim! Minha amiga, ela é mais baixa que eu, com cabelo castanho, você a viu?
– Não vi eles. Não passaram aqui, não.
Ela congelou. E agora?
– Tem certeza? Eles acabaram de tocar num bar aqui perto, o CBGB…
– Meu amor, eu conheço a banda, eu sei onde eles tocam, eles não vieram aqui, não vi sua amiga. Agora, você quer alguma coisa ou não?
Sem responder, ela deixou a multidão empurrá-la para longe da mesa. Olhando à sua volta, percebeu que também havia perdido Croyd e não sabia se aquilo a deixava nervosa ou aliviada.
Então, está bem. Isso não a deixava pior do que estava antes. Tinha apenas de encontrar alguém que conhecesse a banda e soubesse para onde tinha ido. Não estava tudo perdido. Determinada, ela se virou e abriu caminho às cotoveladas até o bar improvisado. Se o barman conhecia a banda, talvez dissesse onde estavam.
Ela perdeu o rumo quando uma mulher a atropelou. Jennifer tropeçou no salto, mas ficou em pé abrindo as pernas. Ela conseguiu até segurar a mulher, impedindo que as duas desabassem no chão.
A mulher tinha por volta de vinte anos, com traços bonitos, delicados, mas uma expressão cansada, assustadiça. Ela havia mordido os lábios e tirado todo o batom. Trajava um vestido tricotado com gola canoa.
Jennifer tentou atrair o olhar da mulher, mas ela continuava a fitar por sobre os ombros dela.
– Tudo bem?
Quando Jennifer falou, a atenção da mulher voltou-se para ela. Seus lábios apertavam-se, obstinados.
– Segura isto aqui pra mim? – disse ela e colocou uma chave numa argola com uma etiqueta de plástico na mão de Jennifer.
Seus dedos instintivamente fecharam-se em torno dela. A mulher empurrou Jennifer e desapareceu.
– Ei! – Jennifer a seguiu por um momento, observando seu cabelo preto e escorrido balançando num mar de gente, então ela sumiu, outra festeira anônima. Jennifer tentou segui-la, mas não conseguiu abrir caminho novamente com os cotovelos.
Quando o tiro estourou pelo ar, Jennifer pensou que fosse uma garrafa estourando no bar.
Apenas quando todos começaram a gritar e empurrar, ela percebeu que o ruído não era tão inofensivo. Mas com todos se debatendo e entrando em pânico antes de ela ter entendido o que estava acontecendo, ela foi deixada para trás, olhando ao redor como uma idiota.
Um grupo de homens estava parado no topo das escadas e se espalhou. Quatro deles, obviamente parte de alguma gangue, grandes e rudes. Usavam máscaras, daquele tipo barato de Halloween que poderiam ter sido compradas em qualquer lojinha do Bairro dos Curingas. Todos carregavam armas, um deles atirou para o alto, e ainda segurava o revólver para cima. Talvez fosse um curinga, ele era tão grande – braços e pernas volumosos, músculos que pareciam cabos, quase sem nenhum pescoço. Um deles era mesmo curinga, com braços peludos e garras no lugar das mãos. Os outros podiam ser normais ou curingas – as máscaras escondiam quaisquer deformidades que pudessem ter. Novamente, isso não parecia importar. Curingas ou limpos, eram grandes, maus e estavam nervosos.
Jennifer sabia que esse tipo de coisa só poderia acontecer daquele lado da cidade. Ela mataria Tricia por tê-la trazido ali. Se ela já não estivesse morta.
– A gente sabe que você tá aqui! – disse o grandalhão com a arma. Ele andou com imponência, examinando os rostos. – Entregue e ninguém vai se machucar!
O pânico arrastou a maioria da multidão para o terraço. A mulher que trombara com Jennifer havia sumido. Entregue… Jennifer inconscientemente olhou para a chave na sua mão. E isso foi um erro.
O brutamontes olhou para ela ali, em pé, com um pequeno objeto na palma da mão, sem dúvida, parecendo lívida e confusa. Sua expressão tornou-se resoluta, satisfeita, e ele marchou na direção dela.
O coração de Jennifer disparou, sua pele ficou fria, e ela deu um passo para trás… e caiu.
E continuou caindo.
Ela pensou por um momento que havia apagado, desmaiado, sua mente estilhaçando-se em pedaços. Sua visão escureceu e o corpo transformou-se em hélio, sem peso e disperso, zonzo.
Cada poro estava atordoado, às avessas. Ela não conseguia respirar.
Então, o mundo voltou, ela tomou fôlego e as paredes passavam rápido… ela estava realmente caindo, mas apenas por um segundo, até que atingiu o chão. Tudo havia mudado… o bar do terraço desapareceu, o espaço era escuro e vazio. O homem com a arma marchando à sua frente sumiu, o que foi um grande alívio.
Mas não, ninguém havia desaparecido. Ela olhou para cima, para o teto vazio, colunas e exaustor à mostra. Ela caiu de lá. E estava nua. Seus braços, costas e pernas estavam arrepiados.
Ela abraçou os joelhos, curvando-se para se esconder. Seu corpo inteiro havia vazado através chão, como um fantasma. Através das roupas. Estava nua e sentada no chão de linóleo daquilo que parecia o depósito de uma loja de bebidas. Caixas de papelão empilhadas com rótulos de Coors, Pabst e Hamm’s a cercavam. Por sorte, tinha caído no corredor que dava passagem da porta dos fundos até a frente da loja. O que teria acontecido se ela tivesse caído no meio de uma pilha de caixas? Se seu corpo tivesse se solidificado ali? Ela não conseguia nem imaginar.
Tremia.
Ficou olhando para o teto, incerta sobre o que havia acontecido, embora soubesse, apenas ela sabia. Como o copo de suco de laranja atravessando sua mão. Seu corpo todo atravessando o chão.
Posso atravessar paredes, ela pensou. E queria tentar, imediatamente. Exceto pelo fato de estar nua. De que serviria atravessar paredes se precisava estar nua?
Mas ainda estava segurando a chave no seu punho bem fechado com os dentes da chave enterrados na pele. Estava tão concentrada segurando-a que a trouxe consigo através do chão.
Quando a porta de trás abriu com tudo, escondeu-se atrás de uma torre de caixas. Ouviu passos pesados de botas e até rosnados. A gangue arrombou a porta, encontraram-na, e agora falariam coisas indizíveis para ela. Ela esperava poder atravessar o chão novamente, embora não tivesse certeza de como tinha feito na primeira vez.
– Ei, garota. Jennifer. Você está aqui? Não me diga que caiu até o esgoto.
Era Croyd.
– Estou aqui. Estou… Digo, minhas roupas não vieram comigo.
– Eu sei, estou com elas. Por que não me disse que era um ás?
– Porque não disse para ninguém. Ninguém sabe. Ao menos, ninguém costumava saber.
– Provavelmente, o mais inteligente a se fazer – comentou ele, naturalmente, nem um pouco chocado. – Mas você tem alguma ideia da utilidade de um poder desses? Eu me lembro da época, lá em 1953, os federais tentando me prender, mas eu fui sortudo e consegui escapar.
– Do que você tá falando?
– Deixa pra lá. Aqui. – Ele estendeu as roupas na direção da voz dela. Quando ela saiu de lá para alcançá-las, ele estava educadamente olhando para o outro lado.
Ela se apressou em se vestir. Ele conseguiu pegar o sutiã e as calcinhas também, pelo que ela ficou muito agradecida. Até os sapatos. Mas as joias se perderam. Ela precisava mesmo entender como fez aquilo, e como ela poderia fazer novamente sem perder tudo. Enquanto colocava o vestido, perguntou:
– O que aconteceu? Quem são aqueles caras?
– Ia te perguntar isso… por que ficaram tão interessados em você? O que você fez?
– Nada! Só dei aquela trombada e, bem, aquela mulher me deu isto aqui. – Ela lhe mostrou a chave. A etiqueta nela mostrava um número: 51337.
– Você tem o dom de estar no lugar errado na hora errada, não é?
– Só quero encontrar a Tricia e ir para casa. – Ela pulava enquanto prendia o fecho de sua sandália.
– Vamos – disse Croyd. – É melhor sairmos daqui.
– Quê? Por que…
Ela seguiu o olhar nervoso dele para a porta e para o corredor e teve a resposta… a gangue os seguira. O corpo imenso do líder bloqueava o caminho para fora, e ele parecia estar pronto para atirar nela e em Croyd.
Jennifer não sabia se conseguiria afundar novamente através do assoalho. E, se ela fizesse, onde acabaria? Talvez se corresse através da parede…
– Congela! – gritou Croyd para eles. E eles obedeceram. A boca do grandalhão líder estava aberta para falar, mas permaneceu em silêncio. Croyd deixou escapar um suspiro.
Jennifer olhou para ele. Admirada, ela disse:
– Você é um ás também.
Ele fez uma careta.
– É, hum, não é bem assim. Sou mais um dois de paus.
– Um o quê?
– Dura apenas cinco minutos. Vamos embora agora.
Ele a puxou entre os criminosos congelados. Eles correram.
Tomaram um caminho serpenteante, virando a cada esquina numa tentativa de tornar as coisas mais difíceis. Jennifer não sabia se isso ajudaria. Então, mais uma vez, estava ficando totalmente perdida. Talvez, agora, se ela chamasse a polícia, eles ajudassem.
Não que pudesse chamar alguém para ajudar. Não que estivesse sozinha numa rua escura com um estranho que ela não conhecia. Como pôde ser tão estúpida?
Croyd virou novamente num beco próximo de uma entrada de arenito escondida e condenada que, sozinha, ela teria ignorado. Deu-lhes uma oportunidade de respirar um pouco.
– Deixa eu olhar isso – falou Croyd, apontando a chave que ela ainda segurava na mão.
Relutante em entregá-la, ela a levantou onde ele conseguia vê-la. Após um momento, ele comentou:
– Parece de uma caixa postal de correio.
– E daí? – disse Jennifer, ainda tentando recuperar o fôlego. Ela esfregou o pé onde uma bolha estava se formando.
– Estou achando que é parte de uma entrega que deu errado. Provavelmente drogas, coisas roubadas ou algo assim. Aquela mulher tinha que entregar a chave. Os caras tinham que pegar a mercadoria ou a grana. Estamos no meio do fogo cruzado.
– Isso não me deixa mais tranquila – falou ela.
– Conheço alguém que pode nos dizer até onde isso vai. – Ele estendeu a chave, ela saiu do caminho dele.
– E a Tricia?
– Quem?
– Minha amiga que foi sequestrada.
– Tenho certeza de que ela está bem.
– Preciso encontrá-la!
– Presta atenção: você me deixa descobrir aonde essa chave leva, e eu ajudo você a encontrar sua amiga.
– Claro, você já ajudou tanto.
– Ei, dá um tempo – disse ele, com braços estendidos, numa tentativa frouxa de pedir desculpas.
– Essa garota, eu sei, não está longe. Vamos conferir esse negócio da chave, então ajudo a encontrar Tricia. Sei de mais alguns lugares onde podemos procurar por ela. Tá bom?
Ela fez bico e, como não sabia mais o que fazer, disse:
– Tá bem.
Croyd tirou uma pílula de seu estojo e disse:
– Bom. Vamos lá.
Eles prosseguiram. A vizinhança não melhorava em nada. Ela não viu um táxi em quarteirões.
Abraçou seu corpo e imaginou em que tipo de confusão havia se enfiado. Tentou garantir a si mesma que poderia escapar de qualquer um. Se alguém tentasse amarrá-la, ela se transformaria em fantasma e passaria pelas cordas. Caramba, ela conseguia atravessar paredes.
Croyd estava tentando puxar conversa, e Jennifer tentava ignorá-lo. Por fim, ele disse:
– Olha só, estou apenas tentando ajudar. Eu poderia te congelar e pegar essa chave.
– Não faria isso, pois tenho certeza que está tramando algum esquema pra me convencer a ajudar você a roubar um banco ou alguma coisa assim. – Quando ele não disse palavra, ela bufou.
– Você ia mesmo, não é? – Ela começou a andar mais rápido.
– Tá, tá bom, talvez eu fosse – ele confessou, correndo para alcançá-la. Se ela pudesse andar ainda mais rápido de salto, teria andado. – Mas você devia pensar nisso. Um poder como o seu não aparece todo dia.
– Você não entendeu? Não quero esse poder, queria que eu não tivesse.
– Peraí, eu achei que todo jovem queria ser um ás. Ter fotos nos jornais, ir a jantares chiques no Aces High…
– E fazer o quê? Ser uma esquisita? Sou uma garota educada de uma boa família de Long Island e só quero ser deixada em paz.
– Você devia se chamar Garota Fantasma – sugeriu ele.
– Garota Fantasma?
– Sabe, um nome de ás. Algo com que os jornais vão te chamar. Posso até ver: “Garota Fantasma, famosa ás ladra de joias, ataca novamente”. – Ele esticou os braços, imitando uma manchete.
– Não vou me chamar Garota Fantasma. – Com certeza ela poderia encontrar algo mais interessante que aquilo. Algo mais misterioso, mais atraente… – Você tem um nome de ás?
– Dorminhoco. – Seu sorriso desapareceu, como se não estivesse feliz com aquilo.
– É estranho. Pensei que seria algo como o Congelador.
Ele deu de ombros.
– Pois é.
Ele parou numa esquina, sem saber que caminho tomar. As luzes dos postes daquele bairro pareciam estar todas quebradas. Todas as lojas tinham pesadas grades de aço na frente. Aquilo não fazia com que ela se sentisse melhor. Se entrasse em alguma enrascada – seja como for, mais enrascadas –, esperava poder simplesmente desaparecer de novo.
Estavam bem no centro do Bairro dos Curingas, não apenas nas mediações. As pessoas olhavam para eles. Jennifer estava vestida, mas poderia também estar nua pelo jeito que se arrepiava quando olhavam para ela.
– Aqui não é muito seguro, né? – ela comentou, abraçando-se.
– Está falando sério? Olhe, se a gente continuar andando, ficaremos bem.
O esqueleto de um prédio queimado, estrutura de aço empretecido brotando de um canteiro de entulhos, ficava na próxima esquina. Um desastre das revoltas do Bairro dos Curingas que não foi reconstruído. Era um mundo muito diferente, um ao qual ela não tinha prestado atenção antes. E isso apenas pela graça de Deus… Ela não sabia como pegou o vírus carta selvagem. Não sabia como tirou um ás, e não um curinga. Nem queria pensar sobre aquilo.
Percorreram o caminho de volta a Bowery, mas bem mais ao sul. Ali, as ruas estavam quase abarrotadas, e Jennifer não esperava por aquilo, não no meio da noite. Bares e restaurantes estavam abertos, grupos instalavam-se em algumas esquinas, parecia até mesmo ter um grupo de mulheres num quarteirão – então Jennifer entendeu quem eram e o que estavam fazendo ali. A música de uma caixa de som estrepitava ruidosamente num beco. Sem policiais à vista, claro.
Uma luz de néon brilhava mais à frente e Croyd disse:
– Ali. Minha amiga é uma das atendentes do bar.
Um quarteirão adiante, Jennifer parou e ficou olhando.
Uma placa imensa de néon na frente do prédio mostrava uma mulher de seis seios em brilhos vermelhos e dourados. As luzes piscavam na sequência; quase parecia que os peitos balançavam, com fogos de artifício baratos explodindo em torno dela. Outra extensão de néon vermelho piscante declarava: FREAKERS. Placas impressas simples anunciavam GAROTAS CURINGAS! e XXX QUENTES XXX! A entrada era pelas pernas abertas de uma stripper de néon.
– Ai, meu Deus – disse Jennifer.
– Todo mundo tem essa reação – comentou Croyd, com um sorrisinho amarelo.
– Acho que não vou entrar, não.
– Ah, vai sim. – Ele a pegou pelo cotovelo e empurrou-a para a rua.
Eles tiveram de se desviar do tráfego – havia trânsito, mesmo àquela hora. Croyd caminhava com confiança para a porta da frente, bem no meio das pernas de néon da dançarina, que lançava um estranho brilho rosa sobre a calçada. Todos pareciam bronzeados.
Um curinga – com o que pareciam ser enormes chifres de bois saindo das têmporas e cascos pretos polidos no lugar das mãos – cruzou os braços e ficou na frente da porta para bloquear o caminho.
– Ei, Bruce, a gente pode entrar? – perguntou Croyd.
O segurança apertou os olhos.
– E você é…?
– Sou o Croyd.
– Prove.
– Lembra da última vez com os gêmeos azuis e a garrafa de tequila?
Os olhos do segurança arregalaram-se e deu um sorriso bobo pela lembrança.
– Ah, sim. Você está com uma cara boa hoje. – Ele se afastou e Croyd guiou Jennifer pela porta.
– Você o conhece? Por que não te reconheceu? – falou Jennifer.
– Longa história. Vamos cuidar do assunto da chave.
Jennifer precisou de um momento para que os olhos se ajustassem à escuridão cavernosa, até eles emergirem na pista principal, que era partida por luzes pisca-pisca e um globo de espelhos.
The Hall & Oates estrondando alto demais nas caixas de som era quase um alívio. Ao menos era mais familiar do que aquilo que ouviu na outra casa noturna. Ao menos conseguia dançar com isso. E a stripper no palco giratório no meio da pista também conseguia. A mulher era irreal – magra, furtiva, com uma imensa cabeleira vermelho-escura bem presa para trás e caindo costas abaixo. E isso foi antes de perceber a cauda fina e verde de lagarto serpenteando atrás dela, balançando para trás e para a frente, enrolando-se em seguida sensualmente em torno de um poste de latão, enquanto ela tombava para a frente e arrancava o pedaço de tecido preto que fazia as vezes de sutiã.
Jennifer olhava para todos os lugares, exceto para o palco, e viu um monte de limpos com bebidas, corpos inclinados para a frente, examinando a dançarina com o que parecia uma intensidade obsessiva. Croyd esgueirou-se até o bar, onde estava conversando com… custou a Jennifer uma segunda olhada para ver que era uma mulher. Ela não tinha uma cabeça. Ou melhor, sua cabeça parecia crescer do meio do peito, de forma que o queixo se apoiava no meio dos seios, aninhada no decote criado por um sutiã preto com bojo. Cabelos longos e pretos caíam sobre a linha reta entre seus ombros. Ela estava limpando o balcão com uma flanela e sorrindo para Croyd, que estava recostado num cotovelo e apostava num sorriso de flerte.
– Como está, Sheila?
– Estou bem, meu caro. Faz tempo que não te vejo.
– Sabe como é. Estou meio por fora.
– Bem, você está bonito dessa vez. Espero que tenha planos para aproveitar a oportunidade. – Ela balançou o quadril e deu uma piscadinha, um movimento que seria atraente se ela não fosse tão… esquisita. Jennifer cruzou os braços e tentou não ficar inquieta. Sheila, a atendente, olhava para ela de cima a baixo.
– Quem é sua nova amiga?
– Só alguém que estou ajudando – comentou Croyd. – Jennifer, pode mostrar a chave para ela?
Tudo bem, eu garanto.
Relutante, Jennifer estendeu a chave.
– Posso? – disse Sheila e tomou a chave quando Jennifer concordou com a cabeça.
A curinga fechou os olhos – e ninguém conseguiria de fato olhar em seus olhos sem encarar seus seios – e pressionou a chave na testa. The Hall & Oates terminou e a curinga com rabo de lagarto escorregou para fora do palco, substituída por uma que tinha pés com escamas e garras de pássaro. A próxima música: “Superfreak”.
Após um momento, Sheila disse:
– É da agência de correio do outro lado da Doyers Street. Acho que não consigo dizer mais que isso. – Ela deu de ombros, que se erguiam acima dos cabelos, prestes a passar a chave para Croyd. Jennifer interceptou-a e tomou à sua custódia. A curinga sorriu sem graça.
– Obrigado, neném – gracejou Croyd. – Te devo uma.
– Quando quiser, meu caro.
– Que foi aquilo? – perguntou Jennifer enquanto eles saíam de perto do bar.
– Sheila é psicométrica. Consegue sentir coisas sobre um objeto… de onde veio, de quem é, essas coisas.
– Isso é útil – falou ela.
– Quase tão útil quanto andar através das paredes. Se você usasse isso de verdade.
Em seu esforço de evitar olhar para o palco, Jennifer olhou de relance por uma porta para dentro de uma sala contígua privada. E jurou que viu o baterista de cabelos espetados dos Fads sentado lá. Ela se separou de Croyd e correu.
A sala era um pequeno lounge com um palco menor, particular, decorado com carpete preto de pelúcia e cadeiras vermelhas de veludo. A luz negra piscante trazia à tona desenhos fluorescentes nas paredes e os biquínis brancos reluzentes vestidos por um par de garotas dançando apenas para o baterista. Nenhuma delas era Tricia, o que de alguma forma foi um alívio.
Quando se aproximou, o cara esticou o braço para enfiar uma nota no elástico da calcinha de uma das garotas. A moça tinha uma pele brilhante que trocava de cor como aqueles anéis que mudam segundo o humor de quem o usa, azul para vermelho para laranja. E o rapaz era mesmo o baterista.
Jennifer o empurrou do palco para que pudesse encará-lo. Ele soltou a nota.
– O que vocês fizeram com a Tricia?
– Ei – falou a dançarina, cruzando os braços em protesto.
– Quem é você? – falou o baterista.
– Cadê o resto da banda? Onde a Tricia está?
– Hum… – respondeu o baterista.
Jennifer não havia terminado.
– E o que você está fazendo aqui? Vocês tinham tietes penduradas nas suas costas no clube, e agora você tá aqui, pagando por isso?
– Parece mais sacana quando você paga – comentou Croyd. Ele estava em pé ao lado, assistindo como se fosse um show. O baterista encolheu os ombros e piscou em aprovação.
Jennifer estava quase gritando.
– Onde está a Tricia?
– Olhe, meu amor, não sei de quem você está falando.
– A banda – disse Croyd. – Pra onde o resto da banda foi? Eles levaram a amiga dela.
– Ah, sim. A gata bem louca? Totalmente chapada?
Sim, aquela era Tricia. Jennifer suspirou.
– Ah… hum. Eles provavelmente foram pra casa do Tony.
– Onde?
– Não vou dizer pra você, deve ser alguma maluca perseguidora.
– Não, minha amiga Tricia é a louca. Eu só preciso encontrá-la…
– Ahn, Jennifer? – Croyd tocou o ombro e virou-a de frente para a entrada.
O brutamontes da gangue encheu a entrada. Ela conseguia ver o assassino em seus olhos através da máscara.
– Tem uma porta dos fundos – sussurrou Croyd. – A gente precisa aprovei…
Chega. Jennifer segurou a chave onde o grandalhão pudesse ver, então esticou o braço e jogou-a dentro da camiseta do baterista.
– Agora a gente aproveita – disse ela, e correu na frente de Croyd para a porta dos fundos.
O barulho do caos – mobília virada, mulheres berrando, tudo que se tinha direito – estourou atrás dela, e por mais que a cena provavelmente fosse divertida, Jennifer não ousou virar para olhar.
Eles seguiram por um corredor com camarins e saíram por outra porta para outro beco úmido.
– O que você fez, garota? – Croyd quis saber.
– A chave não era importante, agora que sabemos o que ela abre – disse Jennifer. – Mas temos que chegar ao correio antes deles.
– Quê? Ai, ai, lá vamos nós.
Eles correram em silêncio. Jennifer ainda esperava pelo som dos gritos e das passadas pesadas atrás dela. O tempo todo olhava para trás, mas eles pareciam ter atrasado a gangue, ao menos por um momento.
– Pare de olhar tão nervosa – disse Croyd à certa altura. – Parece suspeita.
Fácil para ele dizer. Ela tentou não prestar atenção àquilo que estava à espreita para atacá-la.
Precisava distrair-se.
– Assim, como se rouba um banco?
Ele a olhou de lado.
– É sério?
– Sim. – O tom dela fazia do pedido uma ousadia.
– Você não vai. Digo, não mais. Com toda a segurança e vigilância que estão lá agora não vale a pena. Em vez disso, você vai atrás dos cofres privados. Gatunice. Ou vai atrás de carros blindados quando estão transportando o dinheiro. Você espia a área, procura pontos fracos. Nada exagerado, seja seletiva, sabe? Pegue algumas partes do monte em vez dele inteiro. E, assim que você pegar, não se apegue, pense que você pode conseguir algo melhor. Aí está a parte delicada: repasse dos produtos roubados ou lavagem de dinheiro. Mas precisa ter gente por aí. Ajuda ter os contatos.
Ela concordou com a cabeça, pensativa. Fazia todo o sentido.
– Também ajuda ter um ás realmente poderoso – acrescentou Croyd, piscando. – Superforça, atravessar paredes.
Na frente deles, por uma rua estreita, vozes gritaram, e Jennifer parou. Quem quer que fosse, soou nervoso, e estavam correndo, chegando cada vez mais perto. De alguma forma, a gangue os encontrara e foi atrás deles, interceptando-os…
Croyd agarrou o braço dela, empurrou-a na direção do muro, apertou seu corpo contra o dela e a beijou. Completo fingimento, braços em volta dela, prendendo-a contra os tijolos. Nesse meio-tempo, uma gangue de adolescentes parou, gritando ofensas um para o outro e para o casal. Não era bem uma gangue, mas um bando de moleques.
Croyd ainda a beijava. Distraindo-a. Ela finalmente o empurrou.
– Que você pensa que está fazendo?
– Pensei que pareceria menos suspeito desse jeito – disse ele, rindo, mais arrogante que nunca.
Bufando de frustração, ela o empurrou de novo, ainda deu um tapa nele e marchou adiante. Ele apenas ria.
Descobriram que não estavam tão longe de chegar à agência de correio em questão. Apenas uns poucos quarteirões. O local era um bloco moderno de concreto enfiado entre prédios de tijolos à mostra nas cercanias de Chinatown. Um pequeno saguão que dava acesso às caixas postais ainda estava aberto, iluminado por uma luz fraca e amarelada na parede do fundo. Se fossem atacados por uma gangue raivosa, esse era o local onde aconteceria, Jennifer pensou.
Encontraram a caixa com o número da etiqueta. Croyd ficou de lado.
– Importa-se de fazer as honras?
Jennifer encarou a porta cor de latão por um momento, sem ter certeza de que queria saber o que estava lá dentro. Sem ter certeza de que queria entrar ali, ver o que estava oculto. Como se pudesse estar cheio de cobras venenosas ou ratoeiras. Era mais provável que estivesse cheio de correspondência indesejável de alguém.
Ela respirou fundo e atravessou a portinhola. Sua mão resvalou contra algo retangular, com textura de papel – um envelope muito cheio que parecia animador. Ela o segurou, desmaterializou-o com o restante de sua mão e puxou-o pela porta.
Ela e Croyd examinaram um envelope comercial cheio de dinheiro. Notas de cem dólares, dúzias delas.
– Meu Deus, deve ter uns trinta mil aí – disse Croyd.
Jennifer nunca tinha visto tanto dinheiro num único lugar, exceto em filmes. Por outro lado, Croyd conseguiu bater o olho e saber quanto tinha lá. Que significava aquilo tudo? Quem era a mulher que lhe deu a chave naquele momento? Que tipo de tramoia estava em curso? Eram drogas, contrabando, dinheiro de resgate, algo totalmente diferente? Sua imaginação a desapontava. O dinheiro parecia queimar sua mão.
Com a testa franzida, ela fechou o envelope, abraçou-o forte e saiu da agência. Croyd estava ao seu lado.
– Você não está se saindo mal na sua primeira noite como criminosa.
– Não sou uma criminosa. Vou levar isso para a polícia.
– Quê? Ah, não vai, não.
– Vou, sim.
A delegacia do Bairro dos Curingas devia estar por ali em algum lugar. Se qualquer um tentasse assaltá-la no caminho, ela simplesmente atravessaria a parede do prédio seguinte. Croyd falou:
– São os mesmos policiais que te ouviram com tanta simpatia quando você pediu ajuda com sua amiga, certo?
– É a coisa certa a se fazer.
– Minha cara, existe o correto e o correto. A polícia aqui da região, eles não são corretos. Você leva isso pra eles, vão fazer todo tipo de pergunta sobre de onde veio e não vão ouvir nenhuma de suas respostas. Vai acabar numa cela, não que isso seja problema para você. Mas vão te fichar e isso nunca é bom. Vão até a Columbia pra arrastar você de volta para a cadeia, e você pode dar adeusinho pra sua educação brilhante. Por outro lado, estamos mantendo esse dinheiro fora das mãos de gente realmente ruim: o Sr. Paredão e seus amigos. A gente podia tomar uns drinques com esse dinheiro, ir para a minha casa e fazer uma bela festinha a dois.
Ela quase disse sim. Tricia teria dito sim. Uma parte ínfima dela pensou sobre a grande aventura que seria. Mesmo que não soubesse quase nada sobre Croyd e não tivesse certeza de que gostava do que sabia.
A garota sensata de Long Island venceu. Apertou o passo, marchou para longe dele e disse, com um bufar indignado:
– Não!
– Jennifer, eu gosto de você. Eu realmente não quero fazer isso.
– Fazer o quê? – disse ela, olhando para trás ao mesmo tempo que Croyd disse:
– Congela!
E então ele desapareceu. Ela sacudiu a cabeça, limpando um resíduo de vertigem. Estava olhando para trás e então… que desgraçado. Aquele rato desprezível e desgraçado. Desapareceu, claro.
Tinha apenas cinco minutos de vantagem, mas era o suficiente para virar uma esquina e sumir nas ruas escuras. Não que ela tenha planejado caçá-lo. O que faria se conseguisse pegá-lo?
Ele tinha até mesmo deixado o envelope em seu decote. Bem enfiado, após ele ter tirado o dinheiro, como se fosse um tipo de lata de lixo. Provavelmente a tocou também. Como se fosse uma grande piada.
Mas não… ela puxou o envelope e ainda tinha dinheiro nele. Croyd pegou apenas o que parecia metade do dinheiro. Ela deu um sorrisinho. Um rato desgraçado e cavalheiro. Que homem estranho.
– Ei, você! – A silhueta familiar do Sr. Paredão e seus capangas viraram a esquina e partiram na direção dela. – Vamos acabar com você! – gritou o líder.
Ela correu. Estava aprendendo direitinho como correr de salto alto. Não que ela tivesse que ser capaz de manter o salto alto. Ela não conseguiria correr mais que os caras. Não sobreviveria se eles a pegassem. Aquilo não lhe deixava muitas opções. Ela mudou de direção, seguiu para a parede à sua direita e pensou, segura, segura, segura…
Seu sutiã, sua calcinha, o dinheiro. Ela conseguiu passar com aquilo tudo. Sutiã, calcinha, dinheiro, sutiã, calcinha, dinheiro. Ela atingiu a parede e seguiu adiante.
Entusiasmada pela adrenalina, o poder veio quase com facilidade. Ela se desmaterializou inteira. Conseguia sentir-se cada vez mais etérea, sentir as paredes sólidas movendo-se em torno dela como uma brisa forte. Podia até mesmo sentir o dinheiro na mão, como se segurasse uma sombra. E quando emergiu… estava numa sala cheia de gente. Jennifer ficou paralisada no tapete alto e voltou os olhos para duas dúzias de homens e mulheres bem-vestidos sentados em diversas mesas olhando de volta para ela. Parecia uma reunião pós-noitada num restaurante. Ao lado, um garçom parou com um prato de cheesecake no ar enquanto o tirava de sua bandeja. Diversas pessoas tinham garfos levantados diante de bocas abertas. Uma xícara estalou num tampo de mesa… alguém derrubou o café.
Ela deixou seu vestido e sandálias para trás, mas ainda estava com sutiã e calcinha. Com certeza destoava do figurino do lugar. Ela imaginou se estavam esperando algum espetáculo. No entanto, o mais importante é que ela ainda estava com o envelope de dinheiro. Apertando-o, ela deixou que ele o protegesse. Ignorando o rubor que começou a correr por sua pele, abriu um grande sorriso e deu um pequeno aceno para os convivas:
– Uma boa noite para vocês, pessoal! – Então, correu direto para a parede do outro lado do salão.
– Isso sim é Manhattan! – murmurou alguém enquanto ela desaparecia.
Jennifer descobriu que o poder não era apenas uma questão de passar por barreiras, mas de viajar por elas. Não precisava atravessar a calçada para terminar na plataforma de metrô da Grand Street, poderia afundar através da calçada, das paredes, e surgir onde quisesse. Não que isso tenha ajudado, pois quando saiu na plataforma e se rematerializou, dois dos grandes homens
do brutamontes estavam bem ali, mascarados e tudo o mais. De alguma forma, eles arrombaram o portão trancafiado do metrô. Quando correram na direção da moça, ela simplesmente recuou e entrou na parede novamente, desmaterializando-se, escondendo-se na matéria sólida.
Talvez pudesse ficar ali, parte da parede de concreto, até eles desaparecerem. Mas não, precisava continuar se movendo. Se ficasse parada, conseguia sentir um começo de dispersão, instabilidade. Como se suas células estivessem se espalhando. A sensação a deixava zonza e mal, então continuou em movimento. Fora do metrô e de volta às ruas, mas em vez de ficar na calçada, onde sem dúvida a gangue estava à sua procura, ela se deslocava na diagonal, como o corvo voa, atravessando prédios e becos. Seus pés ficaram cortados e feridos, correndo descalços pelas piores ruas que a cidade tinha a oferecer. Ela tremia, cada parte dela exposta ao frio.
Não sabia qual distância havia percorrido. Em princípio, estava preocupada em conseguir a maior distância possível entre ela e a gangue. Talvez meia hora tivesse se passado, sua garganta ardia. Sentia como se metade da noite tivesse ficado para trás.
Saindo de um prédio abandonado, ela se deparou com a vista do East River, que lhe deu uma idéia de quanto havia se deslocado. Talvez agora estivesse a salvo.
A vertigem sacudia seu campo de visão e fazia seu estômago revirar. Recostou-se à parede e, em vez de atravessá-la, apenas bateu contra ela, raspando o ombro. Tinha se esforçado demais, precisava descansar. Óbvio. O que aconteceria se ela ficasse fantasma? Continuasse a se tornar etérea, caminhando pelas paredes até esquecer como ficar sólida novamente, até suas moléculas começarem a se sacudir em brisas errantes? Ela conseguiu ver isso acontecer e ficou apavorada.
O fato de ela conseguir imaginar tão claramente parecia ser uma mensagem. Seu ás estava tentando lhe dizer alguma coisa.
Ela correu e, em vez de passar pelas paredes dessa vez, tomou o caminho mais longo virando a esquina, então seguiu para o norte ao longo do rio.
A escuridão penetrante e as sombras nas ruas foram rompidas por uma porta guardada por leões. Leões de pedra. No canto dessa grande entrada havia outra porta, mais larga, com uma luz branca reluzindo lá de dentro. A palavra EMERGÊNCIA cintilava em letras vermelhas em uma placa acesa sobre ela. Acima dos leões de pedra, outra placa estava iluminada por um refletor:
CLÍNICA BLYTHE VAN RENSSAELER.
Se não estivesse segura num hospital, não estaria mais em lugar nenhum.
Ela se aproximou da entrada de emergência, mas hesitou quando viu um curinga incrivelmente alto de pele verde na frente dela. Vestia um uniforme… e onde um homem com quase três metros encontraria uniformes de segurança? Guarda noturno, né?
Ela decidiu evitar a entrada e, em vez disso, deu a volta no quarteirão para atravessar uma parede de fundos. A tontura a perseguia. Não queria ter de fazer aquilo de novo tão cedo.
Felizmente, as luzes eram fracas e os corredores estavam vazios. Ela encontrou um armário de materiais destrancado onde, como esperava, achou uniformes. Encontrou até mesmo um par de sapatos – sapatos de cirurgia, na verdade, mas serviriam. A camiseta e as calças esverdeadas não eram o último grito da moda, mas a cobriam. Jogou um jaleco branco sobre as roupas por segurança.
Caminhou para a sala de espera da área de emergência e sentou-se na primeira cadeira que viu.
O lugar não era quieto. Uma voz arranhava num alto-falante num corredor ladrilhado, um homem bêbado reclamava com uma enfermeira no balcão, e adiante na sala uma mulher – com uma pele de lixa e cabelos parecidos com arames – estava embalando um bebê que chorava. A criança estava enrolada num cobertor, e Jennifer não conseguia dizer se era um curinga também.
Por mais estranho que fosse, apesar de tudo isso, a cena era pacífica. Nenhuma música estourando, ninguém a perseguia, ninguém a molestava. Ela expirou com força o ar e com isso mandou embora um pouco de sua ansiedade, afundou-se na cadeira e cochilou.
Ela começou a acordar quando uma sirene no lado de fora gritou – uma ambulância estacionando. Um momento depois, uma dupla de socorristas apressou-se pela porta principal empurrando uma maca. A pessoa que estava deitada mal cabia nela, seus membros imensos pendurados nas extremidades. Seus músculos trabalhados estavam tensos enquanto debilmente agarrava as pessoas que estavam tentando ajudá-lo. Jennifer reconheceu o formato do paciente, o brutamontes, o Sr. Paredão. Sangrava, manchando a camiseta, como se tivesse sido apunhalado. A maca desapareceu por trás de uma enfermaria acortinada, enquanto um médico e um enfermeiro corriam para atendê-lo.
Jennifer encolheu-se em seu assento, abraçando-se, tentando se esconder, com medo de quem atravessaria a porta e o que aconteceria se a encontrassem. Mas ninguém o fez. Ela não precisou se desmaterializar para passar por outra parede. Mas não relaxou novamente. Ficou olhando para a cortina, esperando o líder da gangue descer do leito e vir atrás dela.
– Minha querida, precisa de ajuda?
A voz veio detrás dela, e ela se esquivou.
Era um homem baixo, magro e bem impressionante: tinha cabelos vermelhos metálicos presos para trás num rabo de cavalo, feições finas e, sob seu jaleco branco, trajava uma camisa amarelo-limão com babados poéticos e justas calças verdes. Ela o ignorou.
– Perdoe-me, não quis assustá-la – disse ele, com as mãos fazendo um gesto de consolo. Seu sotaque era estranho, exótico e bem atraente.
– Não, tudo bem, é que… só estou cansada.
– Pensei primeiro que fosse uma enfermeira, mas não conheço você, não é mesmo?
– Não. – Ela virou o rosto, rindo.
– Parece que você está em perigo. Posso fazer algo para ajudar?
O rosto dele era bondoso e o sorriso, gentil. Ela gostava dele e resistiu ao ímpeto de cair em seus braços, soluçando, contando a ele absolutamente tudo.
– Não, eu-eu estou bem. Só preciso descansar, eu acho – disse ela.
Ele a examinou… seus olhos eram de um violeta dos mais estranhos. Por um momento, parecia prestes a dizer algo, a brigar com ela. Então, ele apertou os lábios e o momento passou.
– Tudo bem, então. Mas não hesite em chamar se precisar de algo.
– Obrigada.
Ele se afastou, elegante, mesmo de jaleco, mesmo que parecesse tão exausto quanto ela.
O bêbado veio para descansar a uns dez assentos de distância.
– Ele provavelmente acabou de ler sua mente, viu?
– O quê? – perguntou Jennifer.
– É o que ele faz. Ele lê mentes. É o Dr. Tachyon.
Claro que era. Então ele sabia. Olhou para ela, leu sua mente… e sabia que ela era um ás. Sabia tudo sobre ela. E não disse nada. Nada aconteceu. Ela quase riu.
Quando o céu fora das portas da sala de emergência começou a empalidecer, Jennifer decidiu que era hora de partir. Ainda não havia encontrado Tricia.
Mas, de acordo com o baterista, Tricia estava com Tony. Talvez ele estivesse na lista telefônica. Talvez ela pudesse apenas procurá-lo, ligar para ele, pedir para falar com Tricia…
Com certeza alguém no CBGB sabia onde ele morava. Ou seu telefone. Ela podia encontrar Tricia, não chegara ao fim da linha ainda.
Caminhou para oeste, na direção do Bowery. As luzes dos postes apagaram sem Jennifer perceber, e um caminhão de jornal passou roncando por ela. Já era de manhã. Ela correu durante toda a noite. Que aventura. Ela teve de sorrir.
O tráfego da manhã aumentou, pedestres surgiam nas calçadas, lojistas abriam as grades na frente das vitrines. Pessoas olhavam para ela – cabelo desgrenhado, sapatos frágeis, uniforme de hospital e um jaleco –, mas não a encaravam. Não parecia normal, mas para aquela parte da cidade, quem era? Ela decidiu que sentir-se constrangida com aquilo era inútil.
Lá na frente, viu uma placa de um restaurante que parecia ser popular, e seu estômago roncou.
Estava faminta, e um grande prato de ovos e panquecas soava como o remédio perfeito. E Jennifer tinha, mais ou menos, dez mil enfiados no bolso do jaleco para pagar por um bom café da manhã.
Talvez convidasse todo mundo no restaurante.
Passou na frente da vitrine até a porta da frente. Parou. Recuou alguns passos e olhou. Lá, no centro do reservado à direita, próximo à vitrine, estava Tricia. Sentados ao lado dela estavam os dois outros rapazes da banda, o cantor e o guitarrista, e uma outra tiete. O guitarrista estava tamborilando os vinte dedos na mesa; o brilho do cabelo do cantor parecia opaco e sem força à luz do dia. Estavam tomando café e rindo de algo como se não houvesse nada errado. Pratos vazios e uma jarra de café estavam atulhados sobre a mesa. Talvez tenham ficado sentados ali a noite toda.
Jennifer deu batidinhas suaves no vidro. A alternativa era arrebentar a vitrine com o punho.
Tricia olhou para cima, boquiaberta, e piscou com surpresa. Jennifer marchou até a porta da frente e entrou, seguindo para a mesa. Tricia ainda estava de olhos arregalados, pasma. Jennifer cruzou os braços. Os outros três no reservado recuaram com a cara feia.
Finalmente, Tricia cuspiu as palavras.
– Ai-meu-Deus, Jennifer, onde você estava? Você perdeu a melhor festa de todas!
Como se fosse sua culpa ter perdido a festa e não ter ficado abandonada no bairro mais miserável da cidade. Tantas coisas ela poderia dizer naquele instante.
Jennifer pensou por um minuto.
– Na verdade, acho que a minha festa foi melhor que a de vocês. – Ela abriu as pontas do jaleco, mostrando seu novo modelito. – Por que não me esperou, Trish? Por que não me disse ao menos para onde você estava indo? Corri pra todos os cantos procurando você.
Tricia contorceu-se no reservado, deu de ombros, inclinando-se, e piscou.
– Pensei que você estava bem atrás de nós. De verdade.
Jennifer não tinha nada a dizer. Já passava da hora de ir para casa. Ela se virou e saiu de lá.
Não esperava que Tricia fosse atrás dela, e Tricia novamente atendeu às expectativas. Mas a chamou:
– Jennifer, espere! Meu Deus, você não precisa ser tão quadrada.
Com o ombro recostado na parede, Jennifer permaneceu do lado de fora do restaurante, cansada demais para ficar irritada, entorpecida demais para pensar, sem saber o que fazer em seguida.
Correu a noite toda e o que tinha ficado de recordação? Pés cheios de bolhas. Um apreço recém-descoberto por seu poder de ás. E um envelope cheio de dinheiro.
Ela não poderia entregar o dinheiro à polícia. Não se sentiria bem se gastasse. O que mais poderia fazer, além de jogá-lo num bueiro para algum bêbado encontrá-lo e gastá-lo em bebida?
Ou talvez…
Ela voltou à clínica do Bairro dos Curingas. Lembrou-se de ver uma placa pendurada na parede perto da porta, próxima a uma urna com uma fenda. Estava escrito na placa DOAÇÕES, com um texto menor embaixo no qual se lia CADA CENTAVO AJUDA!
Jennifer deslizou para dentro e esgueirou-se pela parede, esperando não ser notada. O lugar estava quieto, a enfermeira que tinha visto na última noite estava no balcão, cabeça descansando sobre os braços. Seu turno estava quase acabando.
Em silêncio, Jennifer enfiou o envelope na fenda. Custou um pouco para fazê-lo – a fenda tinha sido feita para moedas e notas, não para salários anuais. Mas ela conseguiu, e o envelope caiu com um baque gratificante.
Por um momento, ela ficou olhando para a urna. Podia mudar de ideia. Podia arrancar o envelope dali. Então, novamente... não, ela não conseguiria. Como Croyd disse, havia o correto e o correto, e aquilo parecia mais correto do que qualquer coisa naquela noite toda.
Por outro lado, precisava de dinheiro para voltar para casa. Ela enfiou a mão-fantasma na caixa de doações, puxou uma única nota amassada. Então, pegou uma segunda para substituir as roupas e as jóias que tinha perdido. Era justo, não é? Estava com os dedos na metade do caminho para entrar na caixa e pegar uma terceira nota, quando parou a si mesma. Já era mais do que justo.
Quase fugiu da sala de emergência. Mãos nos bolsos do jaleco, ela subiu a rua, de cabeça erguida, sorrindo.
Chega o caçador
John J. Miller
“Se quiser encontrar a verdade clara, não se preocupe com certo e errado.”
– Seng-ts’an: Hsin-hsin Ming (Versos da fé na mente)
Brennan observou toda a cor desvanecer da paisagem enquanto o ônibus descia do frio calmo das montanhas para a umidade abafada de um dia de verão na cidade. As vagas de estacionamento asfaltadas e infinitas tomavam o lugar dos prados e dos campos relvados. Os prédios ficavam cada vez mais altos e juntos à estrada. Postes de luz cinzentos suplantaram as árvores no canteiro central e ao longo da rodovia. Mesmo o céu ficou melancólico e cinza, ameaçando chuva.
Ele desembarcou no terminal rodoviário Port Authority com outros passageiros. Eles se espalhavam para uma miríade de destinos, seus olhos desviavam-se à maneira habitual do morador da cidade grande, sem lhe lançar um segundo olhar. Não que houvesse algo nele que fizesse alguém olhá-lo novamente.
Era alto, mas nem tanto. Sua constituição era mais esguia que parruda. As mãos eram grandes.
Bronzeadas e com cicatrizes, veias e tendões destacavam-se nas costas delas como fios grossos.
O rosto era escuro, magro e comum. Vestia uma jaqueta de brim, surrada e desbotada, uma camiseta de algodão escura, calça jeans azul limpa e tênis de corrida pretos. Carregava uma bolsa de viagem pequena na mão esquerda e uma valise de couro fina na direita.
A 42nd Street estava cheia na altura do prédio do terminal rodoviário. Ele surgiu no fluxo do tráfego pedestre, deixando-se levar por ele para uma área de Manhattan que era apenas um pouco menos miserável do que algumas das melhores partes do Bairro dos Curingas. Separou-se da manada de pedestres após alguns quarteirões e subiu os degraus de pedra gastos do Ipshwhich Arms, um hotel desleixado que aparentemente servia à prostituição local. Parecia que os negócios iam mal. As pessoas, pelo visto, estavam indo para o Bairro dos Curingas por conta das loucuras.
Eram mais baratas lá e, mesmo se apenas uma fração daquilo que tinha lido fosse verdade, muito mais loucas.
O recepcionista olhou desconfiado quando ele chegou sozinho com bagagem, mas pegou seu dinheiro e deu as indicações para o quarto, que era tão pequeno e sujo quanto ele imaginou.
Fechou a porta, colocou a mala no chão e, cuidadosamente, deixou a valise de couro sobre a cama bamba.
O quarto era abafado, mas Brennan já havia estado em lugares mais quentes. Sentia-se confinado pelas paredes nuas e sujas ao seu redor, mas abrir a janela não teria ajudado. Deitou-se na cama e ficou olhando para o teto descascando sem perceber as baratas apostando corrida sobre sua cabeça. As palavras de uma carta que recebera no dia anterior ainda percorriam sua mente.
Capitão Brennan, ele está aqui. Eu o vi, mas temo que ele tenha me visto e me reconhecido também. Venha ao restaurante. Seja cauteloso, mas franco.
Não havia assinatura, mas reconheceu a caligrafia elegante e precisa de Minh. Não havia endereço, mas não precisava. Minh o escondera no seu restaurante por muitos dias quando voltara clandestinamente aos Estados Unidos três anos antes. E Brennan não tinha dúvida a quem o velho amigo se referia na carta. Era Kien.
Fechou os olhos e viu um rosto: masculino, magro, predatório. Tentou fazê-lo sumir. Tentou expulsá-lo de sua cabeça, conjurando das profundezas da mente o som de mãos batendo palmas.
Tentou, mas fracassou. O rosto sorria, zombando dele. E começou a rir.
Sentou-se na cama, esperando pela escuridão e pelo que ela traria.
II.
O ar estava parado, não se movia e entupia as narinas de Brennan com o miasma de 7 milhões de pessoas tão apinhadas. Após três anos nas montanhas, estava desacostumado com a cidade, mas ainda conseguia aproveitá-la. Um homem entre milhares, era visto, mas não notado, ouvido, mas não lembrado, enquanto caminhava para o restaurante de Minh na Elizabeth Street, carregando sua valise de couro fina.
Era início da manhã e as ruas ainda estavam lotadas com potenciais clientes, mas o restaurante estava fechado. Aquilo era estranho.
O vestíbulo, a única parte do interior do restaurante visível a partir da rua, estava escuro. A placa pendurada no lado de dentro da porta de vidro externa dizia “Fechado. Por favor, volte mais tarde” em inglês e vietnamita. Três homens, punks da cidade, descansavam na rua em frente ao prédio, implicando um com o outro.
Brennan foi até a esquina, esperando cobrir sua apreensão repentina com um manto de calma.
Fez uma série de exercícios de respiração que tinha sido a primeira lição de Ishida para ele quando decidiu dar um rumo à sua vida, estudando o Caminho. Apreensão, medo, nervosismo, ódio… nada disso faria bem a ele. Precisava da tranquilidade inefável de um lago montanhês calmo e claro.
Kien ainda estava vivo. Daquilo ele nunca teve dúvida. Kien era um sobrevivente astuto e implacável para quem a queda de Saigon fora um simples inconveniente. Teria custado a ele algum tempo, mas Brennan sabia que ele deve ter montado uma rede de agentes tão potente e incansável quanto sua rede no Vietnã. Esses agentes, pelos poucos dias que levou para a carta ser escrita, enviada e recebida, devem ter rastreado Minh.
Ele virou a esquina e, despercebido pelos outros pedestres na rua, deslizou para um beco lateral que ladeava o restaurante de Minh. Estava escuro lá, e tão quieto e denso quanto a morte.
Esgueirou-se até uma pilha de lixo não coletado, ouvindo e observando. Não viu nada quando seus olhos se ajustaram à penumbra mais profunda do beco, além de gatos fuçando o lixo.
Deixou a valise no chão e abriu as fivelas. Mal conseguia enxergar na escuridão, mas não precisava de luz para montar o que havia ali dentro. Encaixou e apertou os braços inferior e superior ao punho central e, com firmeza e prática, deslizou a corda sobre a extremidade inferior, deu um passo à frente e apoiou a ponta do braço inferior no pé, curvou o braço superior contra a parte posterior da coxa, e passou a corda sobre sua extremidade. Dedilhou o fio tensionado e sorriu com o ressoar baixo que ele produziu.
Tinha nas mãos um arco recurvo com um metro de comprimento, feito de camadas de fibra de vidro laminadas em torno de um núcleo de teixo. Brennan sabia que era um bom arco. Ele o tinha feito. Sua puxada era de 27 quilos, poderosa o suficiente para derrubar um cervo, um urso ou um homem.
A valise também continha uma luva de couro de três dedos, que Brennan encaixou na mão direita, e uma pequena aljava que ele prendeu ao cinto com faixas de velcro. Tirou uma flecha com sua ponta larga de caça com quatro palhetas afiadas como navalha. Encaixou-a frouxamente na corda tensionada e, mais silencioso do que os gatos arranhando o lixo, rumou para a porta de trás do restaurante.
Prestava atenção, mas não conseguia escutar nada. Testou a porta, estava destrancada, e abriu-a pouco mais de um centímetro. Um arco de luz esparramou-se, e ele avistou um pedaço da cozinha que também estava vazio e silencioso.
Deslizou para dentro, uma mancha silente de escuridão no cômodo de aço inoxidável e porcelana branca. Mantendo-se abaixado, movendo-se rápido, seguiu até as portas vaivém duplas que levavam para a área de jantar e, com cuidado, espreitou pela janela oval de uma das portas.
Viu aquilo que temia enxergar.
Os garçons, cozinheiros e clientes estavam amontoados num canto do salão sob os olhos vigilantes de um homem armado com uma pistola automática. Dois outros mantinham Minh preso de braços e pernas abertos contra a parede, enquanto um terceiro o espancava. O rosto de Minh estava ferido e sangrava, seus olhos, fechados pelo inchaço. O homem que o agredia metodicamente com um cassetete de couro também o interrogava.
Brennan escorregou para baixo da janela, dentes cravados, o ódio inchando as veias do pescoço e enrubescendo o rosto.
Kien reconhecera Minh e mandou que o caçassem. Era uma das poucas pessoas nos Estados Unidos que poderiam identificar Kien, que sabia que ele usara metódica e implacavelmente sua posição de general do Exército da República do Vietnã, o ERV, para trair seu país, seus homens e aliados norte-americanos. Brennan, claro, também conhecia Kien pelo que ele era. Também sabia que, onde quer que Kien tenha se estabelecido nos EUA, os que estavam no comando o respeitariam, ouviriam e, provavelmente, até mesmo o temeriam. Brennan, por sua vez, desde que, indignado, desertara do Exército durante o fracasso da queda de Saigon, era um fora da lei.
Ninguém entre as autoridades sabia que ele estava de volta aos Estados Unidos, e ele queria manter as coisas desse jeito.
Tirou do bolso de trás uma touca e vestiu-a, cobrindo suas feições do lábio superior ao topo da cabeça.
Esperou um momento para respirar fundo, afogar as emoções em um vácuo de inexistência, esquecer-se do ódio, do medo, do amigo, de sua necessidade de vingança, esquecer-se até de si mesmo. Tornou-se nada para que fosse tudo. Não estava nervoso nem calmo. Ergueu o pé silenciosamente e atravessou a porta; agachando-se sobre um joelho atrás de uma mesa, puxou sua primeira flecha.
As palavras calmas e seguras de Ishida, seu roshi, enchiam sua mente como o dobrar sonolento de um grande sino.
Seja simultaneamente o alvejador e o alvejado, o golpeador e o golpeado. Seja um receptáculo cheio esperando para ser esvaziado. Solte seu peso quando for o momento certo, sem pensar ou direcionar, e dessa maneira você conhecerá o Caminho.
Ele encarou sem ver, esquecendo se os alvos eram homens ou fardos de feno, soltou a primeira flecha, desceu a mão para a aljava no cinto, pegou a próxima flecha, encaixou-a, ergueu o arco, e puxou a corda enquanto a primeira flecha ainda estava no seu trajeto.
A primeira flecha atingiu seu destino enquanto ele mudava a mira para acertar o terceiro alvo. Perceberam que estavam sendo atacados no momento em que a segunda flecha acertou e a quarta foi lançada. Era tarde demais.
Escolheu a ordem de seus alvos antes de ficar submerso no vácuo. O primeiro foi o homem que vigiava os reféns com a arma sacada. A seta o atingiu nas costas, no alto à esquerda. Atravessou o coração, fatiou um pulmão e saiu trinta centímetros à frente do peito. O impacto o lançou à frente, pasmado, nos braços do garçom. Os dois fitaram a seta de alumínio sangrando que se projetava do peito. O atirador abriu a boca para amaldiçoar ou rezar, mas o sangue jorrou afogando as palavras. Despencou para a frente, suas pernas amoleceram, e o garçom o soltou.
O segundo que segurava Minh o soltou. Ele desabou no chão quando eles estenderam as mãos para alcançar as armas nos cintos. Uma de suas mãos ficou presa na barriga antes que ele pudesse sacar; a outra ficou pregada na parede. Ele soltou a pistola e agarrou a seta que o prendia como um inseto grudado no alfinete de uma prancha de secar. O último, aquele que estava interrogando Minh, girou e foi atingido na lateral. A flecha tomou um ângulo ascendente, deslizou entre as costelas, perfurando o coração, e atravessou o ombro direito.
Nove segundos passaram-se. O silêncio repentino foi interrompido apenas por um choro dolorido do homem pregado à parede.
Brennan cruzou o salão com uma dúzia de passos largos. Os reféns ainda estavam assustados demais para se mover. Dois dos brutamontes estavam mortos. Brennan não sentia prazer com as mortes, como não sentia prazer em matar cervos para conseguir carne para a mesa. Era algo que tinha de ser feito. Nem gastava sua piedade com eles.
O homem armado estava curvado no chão, inconsciente e em choque. O outro, pregado à parede pela seta que tinha perfurado seu peito, ainda estava alerta. O medo retorcia seu rosto e, quando encarou os olhos de Brennan, seus soluços cresceram num lamento.
Brennan o encarava sem remorso. Puxou uma seta de sua aljava. O homem começou a murmurar. Brennan deu o golpe. A ponta larga cortou a garganta do homem tão fácil como se fosse uma lâmina. Brennan desviou com frieza do esguicho de sangue, deslizando a flecha de volta para a aljava, e ajoelhou ao lado de Minh.
Ele estava muito machucado. Todos os membros estavam quebrados – deve ter sido agonizante ser erguido da forma que ele foi – e o dano interno provavelmente foi enorme. Sua respiração era leve e trêmula. Seus olhos ainda estavam inchados. Provavelmente não teriam foco, mesmo se ele conseguisse abri-los.
– Ông là ai? – ele suspirou ao toque gentil e avaliador de Brennan. – Quem é você?
– Brennan.
Minh abriu um sorriso horripilante. O sangue borbulhava nos lábios e brilhava nos dentes.
– Sabia que você viria, capitão.
– Não fale. Temos que encontrar ajuda…
Minh balançou a cabeça. O esforço foi demais, ele tossiu e fez uma careta de dor.
– Não, estou morrendo. Preciso te falar. É Kien. Essa é a prova. Querem saber se eu falei para alguém, mas eu não disse nada. Eles não sabem de você.
– Vão saber – prometeu Brennan.
Minh tossiu de novo.
– Eu esperava ajudar. Como nos velhos tempos. Como nos velhos tempos. – Sua mente devaneou por um momento e Brennan olhou para cima.
– Chame uma ambulância – ordenou ele. – E a polícia. Diga a eles que tem mais três lá na porta. Vai.
Um dos garçons correu para atender às ordens, enquanto os outros assistiam numa incompreensão muda.
– Ajude você – Minh repetia. – Ajude você. – Ficou em silêncio por um momento, então parecia fazer um esforço supremo para falar clara e racionalmente. – Você precisa ouvir. Cicatriz sequestrou Mai. Eu o estava seguindo, tentando conseguir uma pista do lugar aonde ele levou Mai, quando o vi junto com Kien no banco de trás de uma limusine. Vá até Crisálida, no Crystal Palace. Ela deve saber para onde ele a levou. Não consegui… des… cobrir. – A última frase foi interrompida por tosses convulsivas e sanguinolentas.
– Por que eles a pegaram? – perguntou Brennan num sussurro.
– Pelas mãos dela. Pelas mãos sangrentas dela.
Brennan limpou as gotas de suor da testa de Minh.
– Agora, descanse – ele disse.
Mas Minh não ouviu. Ele se levantou, agarrando-se ao braço de Brennan.
– Encontre Mai. Ajude. Ela. Recostou-se, suspirou. O sangue borbulhava em seus lábios.
– Tôi met – rouquejou ele. – Estou cansado.
Brennan cerrou os dentes pela dor e respondeu baixinho, em vietnamita.
– Descanse.
Minh balançou a cabeça e parou de respirar.
Brennan deixou-o cair lentamente e agachou-se, piscando rapidamente. Não foi mais um, ele disse a si mesmo. Não foi outra morte. Foi outro ato pelo qual Kien tinha de responder.
Levantou-se, olhou em volta e não viu nada além de medo no rosto das pessoas que resgatou.
Não havia sentido em esperar. A polícia faria apenas perguntas inoportunas. Como o nome dele.
Muita gente gostaria de saber que Daniel Brennan ainda estava vivo e de volta aos Estados Unidos, Kien era apenas um entre eles.
Precisava sair antes de a polícia chegar. Precisava seguir a pista ínfima que Minh deixara para ele. Crisálida. Crystal Palace.
Mas parou e virou-se para os reféns libertos.
– Preciso de uma caneta – disse ele.
Um dos garçons tinha um marca-texto, que passou a Brennan sem dizer nada. Ele parou por um momento. Queria que Kien acordasse à noite suando frio, pensando, refletindo. Não chegaria nele tão cedo, mas, com mensagens o bastante, agentes mortos o bastante, no fim das contas ele receberia o recado.
Rabiscou uma mensagem próxima do homem pregado à parede por sua flecha. Ela dizia: “Estou chegando, Kien.” Ele parou antes de assiná-la. Seu nome não apareceria. Se aparecesse, acabaria com o medo do desconhecido criado por seus ataques e daria a Kien, seus agentes e seus contatos do governo uma pista muito concreta para seguir. Ele sorriu quando teve uma inspiração súbita.
O codinome de sua última missão no Vietnã, quando Kien entregou Brennan e a sua unidade nas mãos dos norte-vietnamitas, era Operação Yeoman. Esse nome faria Kien pensar. Poderia suspeitar que era Brennan que estava atrás do nome, mas não teria certeza. À noite o nome o corroeria e salgaria seus sonhos com memórias de atos que acreditava há muito enterrados.
Também era um nome adequado de um jeito cruelmente irônico. Servia-lhe bem.
Assinou a curta mensagem como Yeoman e então, num arroubo final de inspiração, desenhou um pequeno ás de espadas, o símbolo vietnamita de morte e infortúnio, e o coloriu. Os garçons vietnamitas e ajudantes de cozinha murmuraram entre eles quando viram a marca, e o garçom de
quem Brennan havia tomado a caneta recusou-se a pegá-la de volta com um balançar rápido de cabeça, como um passarinho.
– Como quiser – Brennan comentou. – Como faço para chegar ao Crystal Palace?
Um deles gaguejou instruções, e Brennan voltou à cozinha para sair no beco escuro. Desmontou o arco, deslizando-o de volta à valise, e desapareceu antes de a polícia chegar. Ainda usando a máscara, ele continuou pelos becos e ruas escuras, passando por outras figuras fantasmagóricas na escuridão. Algumas o observavam, alguns estavam absortos com seus próprios problemas.
Ninguém tentou impedi-lo.
O Crystal Palace, na Henry Street, era parte de um conjunto residencial de três andares que ocupava o quarteirão inteiro. Cerca de metade do conjunto foi destruído na Grande Revolta do Bairro dos Curingas de 1976 e nunca fora reconstruído. Alguns dos escombros foram removidos, alguns permaneciam em grandes pilhas ao lado das paredes bambas. Quando Brennan passou, viu olhos, não conseguiu dizer se de homens ou animais, reluzindo através das rachaduras e fendas dentro dos montes de destroços. Não ficou tentado a investigar. Continuou descendo a rua até onde o conjunto de prédios ainda estava intacto, até a pequena escadaria de pedra sob uma entrada abobadada, atravessou uma antecâmara pequena e viu-se no balcão principal do Crystal Palace.
Estava escuro, apinhado e esfumaçado. Havia um ou outro curinga evidente, como o camarada pequeno, inchado e com presas distribuindo jornais ao lado da porta e o cantor bicéfalo no pequeno palco tirando acordes bonitos de uma canção de Cole Porter. Alguns eram normais o suficiente até alguém olhá-los de perto. Brennan percebeu um homem, normal, até bonito, exceto que lhe faltava o nariz e a boca e tinha, em vez deles, uma tromba longa e curvada que se estendia como um canudinho até a bebida enquanto Brennan observava. Alguns vestiam fantasias que chamavam a atenção pela estranheza, como se para proclamar sua infecção de forma desafiadora.
Alguns usavam máscaras para esconder suas deformidades, embora alguns que as usassem fossem não infectados, ou limpos, na gíria curinga.
– Você é vendedor?
Levou um instante para Brennan perceber que aquela pergunta era direcionada a ele. Olhou em volta para o final do longo balcão de madeira, onde um homem estava sentado num banco alto, balançando as pernas curtas e robustas bem longe do chão. Era um anão, cerca de um metro e vinte, tanto de altura como de largura. Seu pescoço era alto como uma lata de atum e grosso como a coxa de um homem. Observava de forma tão sólida e inexpressiva como uma laje de mármore.
– Essas são suas amostras? – ele perguntou, apontando a valise de Brennan com a mão que era duas vezes a de Brennan.
– Só ferramentas do meu ofício.
– Sascha.
Um dos atendentes, um homem alto e magro com bigode fino e cabelo frisado e oleoso caindo sobre a testa, virou-se para o anão. Brennan notou-o de relance, misturando e entregando bebidas com velocidade e segurança incríveis. Quando se virou para atender o anão, viu que ele não tinha olhos, apenas uma extensão branca, inteiriça de pele cobrindo as órbitas. O atendente virou a cabeça na sua direção e sacudiu-a rapidamente.
– Tudo bem, Elmo, tudo bem. – O anão balançou a cabeça e tirou os olhos de Brennan pela primeira vez desde que começara a falar. Brennan fechou a cara, estava prestes a falar, mas o barman foi mais rápido.
– Ela está ali.
Brennan torceu os lábios. O homem sem olho deu um sorrisinho e voltou a misturar as bebidas.
Brennan olhou na direção que o barman apontou e prendeu o fôlego.
Uma mulher estava sentada numa mesa de canto com um homem magro e negro vestindo um quimono vermelho cheio de dragões amarelos e enfeitado com o que Brennan achou ser uma fórmula mística. Era bonito, exceto pela testa saliente que desfigurava suas feições. A cadeira na qual estava sentado era comum. A cadeira da mulher era do tamanho de um trono, com uma estrutura de imbuia escura e almofadas de veludo vermelho. Ela baixou a taça de cristal do tamanho de um dedal do qual bebericava um licor cor de mel, olhou diretamente para Brennan e sorriu.
Vestia calças coladas à sua figura graciosa e um casaco transpassado amarrado no ombro direito, deixando metade do peito nu. Sua pele era totalmente invisível, expondo músculos vagos, indefinidos e os órgãos que trabalhavam embaixo deles. Brennan conseguia ver o sangue pulsando pelo sistema de veias e artérias que corriam pela carne, conseguia ver seus músculos fantasmas, semi-transparentes, deslocarem-se e deslizarem ao menor movimento, conseguia ver até mesmo levemente a batida do coração dentro da sua caixa torácica e a tremulação dos pulmões enquanto trabalhavam uniforme e incessantemente.
Ela sorriu para Brennan. Ele sabia que a estava encarando, mas não conseguia evitar. Parecia bizarra demais para ser bonita, mas era fascinante. Seu peito exposto era totalmente invisível, exceto pela rede fina de vasos sanguíneos entrelaçados e seu grande mamilo escuro. Seu rosto, bem, quem poderia dizer? Os olhos eram azuis, as bochechas, sob o revestimento do músculo mandibular, altas, o nariz, uma cavidade no crânio. Seus lábios, como os mamilos, eram visíveis.
Encorpados, convidativos e curvados num sorriso mordaz. Não contava com cabelos para esconder seu crânio branco. Ele costurou seu caminho até a mesa, e ela o observava com aquilo que parecia ser, se ele pudesse ler sua expressão esquisita, um divertimento desprendido. Ele observava o mecanismo do trabalho de sua garganta enquanto ela bebericava seu drinque.
– Me perdoe – ele começou e deparou-se com o silêncio.
Ela riu, bem-humorada, sem amargura, reprovação ou raiva.
– Perdão concedido, homem mascarado – ela respondeu. – Sou uma visão para se contemplar.
Ninguém ao me ver pela primeira vez consegue agir naturalmente. Sou Crisálida, proprietária do Crystal Palace, como você deve saber. Este aqui é o Fortunato.
O negro olhou para Brennan, e este conseguia ver o sangue oriental do homem no formato dos seus olhos. Eles se cumprimentaram com a cabeça sem falar nada. Brennan percebeu que havia uma aura de poder em torno daquele homem. Era um ás, disso Brennan teve certeza de repente.
– Qual o seu nome? – Crisálida perguntou.
Ela falava num sotaque britânico refinado, que teria surpreendido Brennan se já não tivesse gastado sua cota de espantos daquela noite. A voz dela tornou-se ponderada, sua expressão parecia calculista.
– Yeoman – Brennan disse, perguntando-se o quanto ele poderia ser honesto.
– Interessante. Não é seu nome verdadeiro, claro.
Brennan olhava para ela em silêncio.
– Você gostaria de saber isso? – seu companheiro questionou. Fortunato riu com indolência, e ela deu de ombros, sorrindo de volta evasivamente.
Fortunato olhou para Brennan. Seus olhos ficaram maiores, mais escuros. Brennan sentiu um turbilhão vertiginoso de poder crescendo neles, o poder que percebeu de repente era direcionado a ele. Ele piscava com ódio, punhos cerrados, e sabia que não conseguiria impedir que a capacidade dada a Fortunato pelo vírus penetrasse no fundo de sua mente. Havia apenas uma coisa a fazer.
Deu um suspiro profundo, segurou-o, e deixou todos os pensamentos escoarem de sua mente.
Estava de volta ao Japão, perante Ishida, tentando responder o enigma que o roshi propusera quando ele buscou pela primeira vez guarida no monastério.
– Ouve-se um som quando duas mãos batem palma. Qual o som de uma única mão batendo palma?
Sem palavras, Brennan lançou a mão para a frente, fechada num punho. Ishida concordou com a cabeça e o treinamento começou de verdade. Naquele instante, ele apelava para esse treino.
Mergulhou profundamente no zazen, estado de meditação no qual ele se esvaziava de todo pensamento, sentimento, emoção e expressão. Um tempo atemporal passou e, como se de um lugar muito distante, ouviu Fortunato murmurar “Extraordinário” e trouxe a si mesmo de volta.
Fortunato olhou para ele com uma pequena dose de respeito nos olhos. Crisálida observava ambos cuidadosamente.
– Você é do Zen? – perguntou Fortunato.
– Um humilde pupilo – Brennan murmurou, até sua voz soava como se viesse de um pico de montanha distante.
– Talvez seja melhor eu falar com Yeoman sozinha – disse Crisálida.
– Se prefere assim – Fortunato levantou-se.
– Espere. – Brennan sacudiu-se como um cão tentando se secar e voltou por inteiro para o local. Olhou para Fortunato. – Não faça isso novamente.
Fortunato apertou os lábios e balançou a cabeça.
– Com certeza vamos nos encontrar de novo.
Em seguida, saiu da mesa, abrindo caminho até o salão lotado.
Brennan ocupou sua cadeira enquanto Crisálida o observava com o que parecia ser uma expressão calculista.
– Estranho nunca ter ouvido falar de você – comentou ela.
– Acabei de chegar à cidade.
O olhar dela tornou-se penetrante, cativante. Brennan precisou esforçar-se um pouco para não encarar os olhos dela flutuando nus nas órbitas profundas.
– A trabalho? – perguntou ela. Brennan concordou com a cabeça e ela deu um gole na bebida, suspirou e baixou a taça. – Vejo que você não está a fim de bater papo. O que quer de mim?
– Seu barman – ele começou. – Como ele consegue atender tão bem sem olhos?
– Essa é fácil – comentou Crisálida, sorrindo. – Essa eu dou de graça. Sascha é um telepata, entre outras coisas. Não se preocupe. Quaisquer segredos que você esconda atrás de sua máscara estão seguros. Ele é um planador, consegue apenas ler os pensamentos superficiais. Torna o trabalho mais fácil e o Crystal Palace, mais seguro. Ele diz a Elmo quem são os perigosos, os doentes, os pervertidos. E Elmo se livra deles. Brennan balançou a cabeça, sentindo-se um pouco mais seguro. Ficou feliz em saber que a capacidade do barman era limitada. Não gostava da mente de ninguém fuçando seu cérebro.
– E o que mais? – questionou Crisálida.
– Preciso saber sobre dois homens. Um deles chama-se Cicatriz, e o chefe dele, Kien.
Crisálida olhou para ele e franziu a testa. Ao menos, os músculos de seu rosto se juntaram.
Como sua musculatura corporal, eles pareciam nebulosos, insubstanciais, como se aquilo que formava sua carne e pele totalmente invisível chegasse ao ponto da translucidez.
– Você sabe que eles estão ligados? Isso é algo que talvez apenas três pessoas fora do seu próprio círculo saibam. São amigos seus? – De repente, a fúria lampejou no rosto de Brennan, e ela hesitou.
– Não, acho que não.
Suas palavras trouxeram à vida memórias de traição e violência. Sascha virou seu rosto cego para o canto. Elmo ficou na ponta dos pés, suspendendo seu grosso pescoço. Em torno da sala, meia dúzia de pessoas silenciaram. Um homem pôs as mãos nas têmporas e caiu numa espécie de desmaio. Ele gania como um cachorro espancado, enquanto os outros em sua mesa tentavam tirá-lo do transe. Crisálida tirou os olhos de Brennan, acenou para Elmo se acalmar e a tensão começou, aos poucos, a se dissipar.
– Os dois são perigosos – ela falou com calma. – Kien é vietnamita, ex-general. Apareceu há, hum, oito anos. Rapidamente se infiltrou no ramo das drogas e agora detém grande parte do negócio. De fato, seus dedos estão na maioria das atividades ilegais da cidade, embora mantenha uma fachada de sólida respeitabilidade. Possui uma rede de estabelecimentos de lavanderias a seco e restaurantes. Faz doações a instituições beneficentes e partidos políticos adequados. É convidado para todos os grandes eventos sociais. Cicatriz é um de seus tenentes. Ele não responde diretamente a Kien. O general se mantém bem isolado.
– Me fale mais sobre o Cicatriz.
– Garoto daqui. Não sei seu nome verdadeiro. É chamado de Cicatriz por conta das tatuagens estranhas que espalhou por todo o rosto. Acredita-se que são marcas tribais maoris.
Brennan deve ter parecido incrédulo, pois Crisálida encolheu os ombros. Ele observou os músculos se deslocarem e os ossos rodarem nas juntas. O mamilo do seio exposto subiu e desceu na sua almofada de carne invisível.
– Dizem que recebeu a ideia de um antropólogo da Universidade de Nova York que estava estudando sua gangue de rua. Algo sobre tribalismo urbano. De qualquer forma, é um cara mau. É a principal força de Kien. Imbatível numa luta. – Ela o encarou com astúcia. – Você irá enfrentá-lo.
Era uma afirmação, não uma pergunta.
– O que faz dele imbatível?
– Ele é um teletransportador instantâneo. Pode desaparecer com mais velocidade do que qualquer um consegue se mover e reaparecer onde quiser. Em geral, atrás do oponente. Também é malvado como o diabo. Poderia ser um grande cara, mas gosta muito de matar. E de ser um dos tenentes de Kien. Não que ele faça o mal por si mesmo. – Ela brincou com sua taça por um momento, então olhou diretamente para Brennan. – Você é um ás?
Brennan não disse nada. Seus olhares ficaram fixos por um longo momento e então Crisálida suspirou.
– Você não tem nada, é um homem apenas. Um limpo. Que faz você pensar que pode pegar o Cicatriz? – ela repetiu.
– Como você disse, sou um homem. Ele sequestrou a filha de um amigo meu. Sou o único que sobrou para ir atrás dela.
– Polícia? – começou Crisálida, pensativa, então riu da própria sugestão. – Não. Cicatriz, por conta do Kien, tem proteção policial o suficiente. Suponho que você não tenha indícios sólidos de que o Cicatriz esteja com a garota, certo? Talvez um dos outros ases? O Sombra, Fortunato talvez…
– Não temos tempo. Não sei o que ele fará com ela. Além disso… – Ele parou por um momento e relembrou dez anos – … isso é pessoal.
– Imaginei.
Brennan voltou o olhar para o salão. Era difícil para ele encarar Crisálida.
– Onde posso encontrar o Cicatriz?
– Eu trabalho vendendo informações e já dei o bastante por conta da casa. Essa parte vai lhe custar.
– Não tenho dinheiro.
– Não preciso do seu dinheiro. Faço um favor a você, você me devolve um favor.
Brennan fechou a cara.
– Não gosto de ficar em dívida com ninguém.
– Então, procure informações em outro lugar.
A necessidade de fazer alguma coisa queimava em Brennan.
– Está bem.
Ela tomou um gole do seu licor e olhou para a taça de cristal mantida na mão cuja carne era tão transparente quanto a própria taça.
– Ele tem um casarão na Castleton Avenue, Staten Island. É isolado e cercado, num terreno imenso. Ele gosta de caçar. Homens.
– É mesmo? – perguntou Brennan, seu olhar pensativo, reflexivo.
– Por que o Cicatriz raptou a menina? Ela é especial de algum jeito?
– Não sei – comentou Brennan, balançando a cabeça. – Achei que era para manter o pai dela quieto, pois ele viu o Cicatriz e Kien juntos, mas a sequência dos fatos está toda errada. Minh os viu juntos quando estava seguindo o Cicatriz, tentando encontrar pistas sobre o sequestro. Ele me disse que eles a levaram pelas “mãos sangrentas”. Significa algo para você?
Crisálida negou com a cabeça.
– Pode pedir para ele ser menos críptico?
– Ele morreu.
Ela estendeu o braço e pousou a mão sobre a dele, e algo aconteceu entre eles.
– Com certeza você não se importará com meus avisos, mas vou dá-los de qualquer jeito.
Cuidado. – Brennan assentiu com a cabeça. A mão dela, invisível sobre a dele, era morna e suave. Ele via o sangue pulsando ritmicamente por ela. – É possível – ela continuou – que você goste de pagar sua dívida.
– Como? – Brennan perguntou, sentindo o desafio sutil no tom e na expressão de Crisálida.
– Se sobreviver ao encontro com o Cicatriz, volte ao Crystal Palace hoje à noite. Não se preocupe com o horário, estarei te esperando.
Não havia confusão no que ela quis dizer. Ofereceu enlaces que ele evitava por muito tempo, relacionamentos dos quais ele não queria participar havia anos.
– Ou você me acha repulsiva? – questionou ela de forma natural, quebrando o longo silêncio que se estendeu entre eles.
– Não – disse ele com mais brevidade do que pretendia. – Não é isso, não mesmo.
Sua voz soava grosseira em seus próprios ouvidos. Ficara isolado do contato humano havia tanto tempo que a ideia de entrar em qualquer tipo de relação íntima o apavorava.
– Seus segredos estão bem guardados comigo, Yeoman – assegurou Crisálida.
Ele deu um suspiro profundo, concordando com a cabeça.
– Bem – o sorriso dela voltou –, espero você.
Ele se virou sem dizer nada, e o sorriso esvaneceu do rosto dela.
– Se – disse Crisálida com tanta suavidade que apenas ela ouviu as palavras – você conseguir fazer o impossível. Derrotar o Cicatriz.
Havia, Brennan pensou, duas maneiras de fazê-lo. Podia entrar clandestinamente. Esgueirar-se para dentro da mansão do Cicatriz, sem saber qual sistema de segurança ele poderia ter, e entrar num quarto após o outro, sem saber o que encontraria em cada quarto, sem mesmo saber se Mai estava no local. Ou poderia apenas entrar, depositando confiança na sorte, na coragem e na sua capacidade de reagir com rapidez.
Tirou a máscara após sair do Crystal Palace e encontrou um táxi. O motorista relutou em levá-lo até Staten Island, mas ao ver algumas notas de vinte o taxista ficou todo sorrisos. Era uma
corrida longa, de táxi e balsa, e Brennan passou-a numa infeliz reminiscência. Ishida teria desaprovado, mas, então, Brennan sabia, ele nunca teria sido o melhor dos alunos do roshi.
O taxista o deixou a um quarteirão de distância do endereço na Castleton que Crisálida lhe dera, pagou a corrida e deu ao motorista uma gorjeta que esgotou a maior parte de suas reservas.
Quando o táxi se afastou, ele se moveu rapidamente pelas sombras até chegar à rua do Cicatriz.
Era como Crisálida havia descrito.
A casa em si era uma mansão grosseira de pedra construída a duzentos metros da rua. Algumas luzes brilhavam pelas janelas estilhaçadas em cada um dos três andares, mas não havia iluminação na parte externa. O muro que circundava o terreno era de pedra, com cerca de dois metros de altura, encimado por fios elétricos. A pequena guarita envidraçada que havia ao lado do portão de ferro forjado tinha um único sentinela. A segurança não parecia difícil de romper,
mas a mansão era mesmo grande demais para se buscar quarto a quarto.
Teria de haver audácia, coragem e sorte. Muita sorte, Brennan pensou, enquanto caminhava velozmente, saindo das sombras.
O homem na guarita estava assistindo num pequeno televisor a um programa de entrevistas apresentado por uma bela mulher com asas. Brennan, que não assistia à televisão desde seu retorno aos EUA, a reconheceu de qualquer forma como a Peregrina, uma das ases com maior visibilidade, a apresentadora do programa Pouso da Peregrina. Ela estava observando um homem imenso e barbado com roupas de chef cozinhando. Eles conversavam amigavelmente enquanto as grandes mãos dele se moviam com graça surpreendente, e Brennan percebeu que era Hiram Worchester, codinome Bolão, outro ás bastante famoso.
O guarda estava vidrado em Peregrina, que trajava uma fantasia inegavelmente atraente com um decote que chegava até quase o umbigo. Brennan teve de bater na porta de vidro da guarita para chamar a atenção, embora não tenha feito esforço algum para disfarçar a aproximação.
O guarda abriu a porta.
– De onde você veio?
– De um táxi. – Brennan fez um gesto vago por sobre o ombro. – Mandei-o embora.
– Ah, claro – disse o guarda. – Eu ouvi. O que você quer?
Brennan estava prestes a dizer que Kien o enviou pela garota, mas engoliu as palavras no último instante. Crisálida disse a ele que apenas poucos sabiam que Kien e o Cicatriz estavam envolvidos. Este lacaio com certeza não era um deles.
– O chefe me enviou. É sobre a garota – disse ele, mantendo-se o mais vago possível, enquanto mantinha sua voz segura e firme.
– O chefe?
– Chame o Cicatriz. Ele sabe.
O guarda virou-se, pegou um telefone. Após alguns segundos de uma conversa abafada, ele desligou e tocou um painel à sua frente. O portão de ferro forjado abriu-se em silêncio.
– Entre – ele disse, virando-se de volta à televisão, onde Hiram e Peregrina estavam comendo crepes de chocolate cobertos de açúcar com olhares deliciados. Brennan hesitou por um segundo.
– Mais uma coisa – falou ele.
O guarda suspirou, girou devagar, com os olhos ainda no televisor.
Brennan golpeou, de cima para baixo com a palma da mão, o nariz do guarda. Ele sentiu o osso ceder e estilhaçar com a força da pancada. O homem convulsionou quando as lascas do osso perfuraram seu cérebro e então amoleceu por completo. Brennan desligou a televisão quando Bolão e Peregrina estavam terminando os crepes e arrastou o corpo para a frente da casa, lançando-o atrás de uns arbustos. Arrependido, também deixou o estojo de seu arco escondido ali, mas, para não seguir totalmente desarmado, tirou uma corda de arco sobressalente e enrolou-a frouxamente na cintura, sob o cós de seu jeans.
Caminhou com rapidez até a mansão.
Cicatriz estava precisando de um jardineiro. O quintal era quase uma selva. A grama não fora cortada durante todo o verão, os arbustos haviam enlouquecido. Malcuidados, espalhavam-se sobre os limites originais e formavam uma vegetação rasteira bem densa sob as árvores grossas e não podadas. Pareciam mais 4 mil metros quadrados de floresta do que uma frente de casa e, por um momento, isso fez Brennan ansiar pela quietude das montanhas de Catskills. Em seguida, estava na porta de entrada e lembrou-se do que o havia trazido ali. Tocou a campainha.
O homem que atendeu tinha a insolência de um punk urbano, e a arma que carregava sob a axila em um coldre de ombro parecia grande o suficiente para derrubar um elefante.
– Entre. O Cicatriz está com um cliente. Eles estão com a garota.
Brennan franziu a testa quando o homem virou as costas a fim de conduzi-lo para dentro da mansão. O que estava acontecendo? Prostituição? Sexo pervertido? Queria perguntar ao homem que o levava para os fundos, mas sabia que era melhor manter a boca fechada. Logo encontraria as respostas.
Cicatriz cuidava um pouco melhor do interior da mansão do que fazia com o jardim, mas não muito. O piso de mármore estava imundo e havia odores de bolor coalhando o ar que deixaram Brennan enjoado. Temia respirar fundo demais e identificar algum dos odores. Uma escadaria levava aos andares superiores da mansão, mas eles ficaram no térreo, seguindo para os fundos da casa.
Seu guia virou à esquerda, passou por um detector de metal que apitou uma vez, e ele olhou para Brennan, que o seguia. O detector não emitiu mais ruído algum. O grandalhão aprovou com a cabeça e levou Brennan para uma sala bem iluminada, onde estavam outras quatro pessoas. Uma delas era um faz-tudo robusto idêntico àquele que atendeu Brennan na porta de entrada. A outra era uma mulher com longos cabelos louros. Usava uma máscara que cobria seu rosto inteiro.
A terceira era Mai. Olhou com enfado quando ele entrou no recinto e rapidamente reprimiu o olhar de reconhecimento que veio ao rosto quando ela o viu. Tornara-se uma jovem linda, pequena, delicada, com traços finos, cabelos grossos e brilhantes, e olhos escuros, muito escuros.
Parecia não ter sofrido, estava apenas terrivelmente cansada. Tinha grandes olheiras, e Brennan conseguia enxergar a exaustão em cada músculo pela postura da garota.
O último era o Cicatriz. Era alto e magro, vestido com camiseta e calça de sarja preta. Seu rosto era um pesadelo. Os padrões tatuados nele em preto e escarlate transformavam-no na face lasciva e bestial de um demônio. Seus olhos afundavam-se em fossas escuras, seus dentes, numa caverna vermelha. Brennan ficou surpreso ao ver, quando Cicatriz sorriu para ele, que seus dentes não eram pontudos.
– Qual o teu nome, cara? – perguntou ele no linguajar grosseiro do subúrbio. – Nunca te vi antes.
– Arqueiro – mentiu Brennan, automaticamente. – Que está acontecendo aqui?
Cicatriz abriu um novo sorriso. Seu rosto formava contorções estranhas que não mostravam humor algum.
– Cara, chegou bem na hora. A irmãzinha aqui vai demonstrar o poder dela, não vai?
Todos olharam para Mai, que baixara a cabeça em resignação silenciosa, esgotada.
– Ela pode fazer isso? – perguntou a mulher mascarada, sua voz estranhamente ansiosa e sibilante.
Cicatriz apenas concordou com a cabeça e fez um gesto na direção de Mai. Os dois gorilas assistiam sem muito interesse. O olhar de Cicatriz pairava entre Brennan, Mai e a mulher.
– Fala pro cara – disse ele, olhando Brennan mais de perto quando Mai aproximou-se da mulher – que eu ia contar pra ele tudo sobre ela. Estava apenas dando uma olhada.
Brennan balançou a cabeça com impaciência, indiferente e com olhar frio por fora, indeciso por dentro. Mai caminhou até a mulher sem voltar os olhos para ele. Seja lá o que aconteça, ele pensou, não pode ser muito ruim. Ela parecia estar levando as coisas com calma demais, e ele decidiu aguardar.
– Precisa tirar a máscara – disse Mai baixinho à mulher. Ela recuou um pouco e olhou para os homens que a observavam, mas obedeceu. Brennan observava impassível quando ela tirou a máscara; Cicatriz olhava de relance, com sorriso dissimulado. Estava claro que ela se envergonhava de seu rosto. Brennan tinha visto piores, mas foi o suficiente para arrancar sussurros maldosos dos homens de Cicatriz. Não tinha queixo; apenas uma pequena mandíbula inferior. Sem nariz, contava apenas com as fendas das narinas sobre sua boca sem lábios. A testa era mínima. Todo o rosto era esticado para a frente, como um réptil, completado pela textura de bolotas coloridas de sua pele. Parecia, de qualquer forma, um monstro-de-gila com cabelos longos e louros.
– Eu era bonita – disse ela, baixando o olhar.
Os homens do Cicatriz soltaram risos abafados, mas Mai tomou o rosto grosseiro da mulher entre as palmas das mãos e sussurrou:
– Você voltará a ser bonita.
A mulher levantou os olhos para ela, dentro deles, um mundo de dor. Mai a encarava com tranquilidade, seu rosto pálido com a serenidade de uma santa. Por um momento, nada aconteceu.
O olhar de Brennan pairava dela para Cicatriz, que assistia com atenção, então de volta para ela.
Então, onde as mãos de Mai tocaram o rosto curtido das bochechas, o sangue começou a correr em gotículas. Parecia brotar do rosto da mulher, das palmas das mãos de Mai, ou de ambos.
Pequenos filetes corriam entre os dedos de Mai, pelas mãos até os pulsos. Mai gemia, e Brennan a encarava enquanto seu rosto mudava. O queixo se retraiu, a mandíbula diminuiu. A testa encolheu e a pele tornou-se grossa, áspera e listrada de laranja, preto e vermelho. Levou alguns minutos. Brennan assistia com lábios apertados. Cicatriz via como ele observava. Sorriu com malevolência, seu rosto tatuado, uma máscara demoníaca.
As duas mulheres-lagarto se encaravam, uma loura, outra de cabelos pretos. A mulher fitava Mai com olhos arregalados, Mai devolvia um olhar tranquilizador. Ela suspirou alto, como um amante após o gozo, e começou a mudar. Sua pele perdeu a rugosidade, suas cores brilhantes. Os ossos por baixo dela voltaram às configurações normais. Seus lábios torciam-se levemente, talvez pela dor da metamorfose, mas não disse nada. Levou mais alguns momentos, mas a mulher loira também começou a mudar. Sua pele suavizou-se, embranquecendo. Os ossos mudavam como cera mole. Lágrimas rolavam de suas bochechas altas e finas, de dor e de alegria. Brennan não conseguia dizer. A transformação levou alguns minutos. Quando os pequenos filetes de sangue pararam de correr, Mai tirou as mãos do rosto da mulher. Ela estava certa. Foi e estava novamente bonita. Chorando em silêncio, ela tomou a mão de Mai e beijou-lhe a palma. Mai sorria para ela e cambaleava, exaurida. Brennan pôde ver que apenas a força de vontade a mantinha em pé. Cada linha e cada músculo de seu corpo exalava cansaço.
A mulher esticou a mão para pegar uma bolsa numa pequena mesa próxima de onde ela estava e tirou dela um envelope grosso. Cicatriz fez um gesto. Um de seus capangas com sorriso falso pegou-o, enfiando no bolso traseiro de suas calças, e acompanhou a mulher para fora da sala.
– Bem, e aí, camarada, o que acha?
– Fantástico – disse Brennan, ainda olhando para Mai. – O que é isso, manipulação genética?
– Não sei que merda é essa não – disse Cicatriz. – Só ouvi que ela estava curando os curingas da região e pensei: por que consertar esses curingas pobres quando posso arrumar curingas que pagam uma nota? Então eu catei ela.
Brennan tirou os olhos de Mai e encarou Cicatriz.
– Ela vale muito. Devia ter falado pro Kien sobre ela. Vou ter que levá-la para ele.
Cicatriz apertou os lábios tatuados numa consternação fingida.
– Vai? Você parece saber demais, cara. Como não sabe que eu disse pro homem sobre ela quando aquele vietnamitazinho viu a gente juntos na limusine do chefe? – Ele se virou, olhou para Mai, e acrescentou com malícia: – E então o homem acabou com o corno para ele não falar nada sobre isso.
– Meu pai? – perguntou Mai.
Cicatriz confirmou com a cabeça, como um diabo. Mai engasgou, vacilou e teria caído se um dos homens do Cicatriz não a tivesse agarrado com brutalidade pelo braço. Brennan se mexeu.
Lançou-se pela sala, arrancou a arma do coldre de ombro do homem, apertou o cano contra o peito dele e puxou o gatilho. Houve um estrondo imenso quando a explosão ergueu o homem e lançou-o contra a parede. Deixou um rastro vermelho quando despencou ao chão, seus olhos arregalados e incrédulos.
Brennan girou, mas Cicatriz havia sumido. Viu um cintilar de canto de olho e sentiu a dor lancinante quando Cicatriz acertou sua cintura, arrancando a arma da mão dele. Cicatriz esquivou-se do soco de Brennan, chutou a arma para um canto da sala e desapareceu, silenciosa e completamente.
Ele reapareceu entre Brennan e a arma, sorriso louco no rosto.
– Você precisa de uma arma para enfrentar o Cicatriz? Você é algum tipo de limpo doidão – disse ele. – Que nome vai querer na sua lápide? – Ele enfiou a mão no bolso da calça de sarja e, com um sacudir treinado de punho, abriu uma navalha de 15 centímetros.
Cicatriz desapareceu novamente, e Brennan sentiu uma pontada dolorosa no lado do corpo.
Ouviu Mai gritar, afastou-se, rolou no chão e levantou-se. O sangue corria onde Cicatriz abrira um corte longo e raso entre suas costelas. Mal teve tempo de se reerguer antes de Cicatriz aparecer novamente, abrir um talho no rosto de Brennan e sumir. Foi como Crisálida disse. Era rápido e preciso quando se teletransportava. E gostava do que fazia.
– Vou picotar você devagar, cara – disse ele, aparecendo com olhos sedentos de morte. – Vou te cortar até você me implorar para morrer. – Ele agitava o pulso, respingando o sangue de Brennan do fio de sua lâmina. Aquela sala era brilhante, brilhante e fechada. Brennan estava preso, confinado, e sabia que não tinha chance alguma. Cicatriz o cortaria em tiras, rindo, enquanto ele tentasse pegar a arma. Respirou fundo, acalmando sua mente galopante, recuando,
como Ishida o ensinou, para um estado de tranquilidade serena, e sabia o que tinha de fazer.
Cicatriz riscou suas costas quando ele se virou, correu e lançou-se pelas portas-balcão no fundo da sala. Saiu da luz para um pátio escuro.
Com um sorriso bastante contente, Cicatriz saiu para o pátio atrás de Brennan. Ele assobiava desafinado e observava Brennan correr pelo jardim e enfiar-se num canto denso com árvores.
– Ei, limpo? – gritou ele. – Cadê você, cara? Então, vou falar. Se você for uma boa caça, te corto um pouco e depois te mato de uma vez. Se me desapontar, corto suas bolas fora. Nem a cadela vietnamitazinha vai conseguir te dar um par novo.
Cicatriz gargalhou com a piada, então seguiu Brennan na escuridão. Parou por um instante e escutou. Não ouvia nada a não ser os sons do vento nas árvores e, ao longe, carros ocasionais que seguiam por ruas distantes. Sua presa desaparecera, sumira na noite. Cicatriz franziu a testa. Algo estava errado. Ele seguiu mais adiante, no meio das árvores.
E, de lugar algum, um fantasma silencioso entre as sombras, Brennan ergueu-se de seu esconderijo, sua corda encerada de nylon enrolada nos pulsos. Ele enrolou o fio na garganta de Cicatriz por trás, puxou com força e girou. Carne e cartilagem foram esmigalhadas, e Cicatriz desapareceu, ressurgindo a alguns metros de distância com a traqueia triturada. Tentava puxar o ar, mas nada chegava aos pulmões que se esforçavam. Abriu a boca para dizer algo para Brennan, para xingá-lo ou implorar ajuda, mas as palavras não saíram. Desvaneceu novamente para reaparecer microssegundos depois no mesmo lugar, seu rosto tatuado contorcido de dor e medo, sua concentração estilhaçada, seu controle, inexistente. Brennan o viu tremeluzir loucamente entre as árvores, desespero no rosto, teletransportando-se às raias da insanidade, sem lógica alguma.
Por fim, ele apareceu cuspindo sangue, recostado numa árvore, largou sua navalha e caiu de costas. Brennan aproximou-se com cuidado, mas ele estava morto. Agachou-se sobre ele e pegou a caneta que o garçom do restaurante de Minh havia lhe dado. Desenhou um ás de espadas nas costas da mão direita de Cicatriz e, para ter certeza de que Kien não deixaria de vê-lo, apoiou a mão sobre o rosto marcado de Cicatriz.
Refez seu caminho de volta para as árvores em silêncio, como o fantasma de um animal da floresta. Mai estava esperando por ele no pátio. Não pareceu surpresa quando ele surgiu das árvores. Ela o conhecia e sabia do que era capaz.
– Capitão Brennan, meu pai está mesmo morto?
Ele confirmou com a cabeça, sem conseguir dizer nada. Ela pareceu murchar, mais frágil, mais cansada, se isso fosse possível. Fechou os olhos e as lágrimas rolaram silenciosas por baixo de suas pálpebras.
– Vamos para casa.
Ele a levou para a escuridão providencial da noite.
Ele saiu depois de ela fazer curativos nele, prometendo voltar quando pudesse, a tristeza por ela brotando dentro dele, fundindo-se com a dor que ele sentiu na morte de Minh. Outro camarada, outro amigo, se foi.
Kien tinha de ser derrubado. Dependia dele, um homem, sozinho, com nada além da força de suas mãos e da sagacidade de sua mente. Levaria muito tempo. Precisava de uma base de operações e de equipamentos. Arcos especiais, flechas especiais. Precisava de dinheiro.
Brennan voltou às sombras da noite do Bairro dos Curingas, esperando por certo tipo de homem passar, um comerciante que trocava pacotes de pó branco por notas verdinhas amarrotadas num desespero suado.
Ele suspirou profundamente. O fedor da noite com os aromas incontáveis de 7 milhões de pessoas e sua miríade de esperanças, medos e desesperos. Era um deles agora. Deixou as montanhas para trás e retornou à humanidade, e sabia que este retorno traria com ele decepções, sofrimentos e esperanças perdidas. E conforto, uma parte dele dizia, pensando no toque morno da carne invisível e a imagem de um coração visível batendo cada vez mais rápido, com paixão crescente.
Um ruído repentino, um passo levemente arrastado chamou sua atenção. Um homem passou por ele. Estava vestido com elegância para uma vizinhança tão pobre e caminhava com arrogância vistosa. Era aquele pelo qual esperava.
Brennan deslizou em silêncio entre as sombras, seguindo-o. O caçador havia chegado à cidade.
Terceira Geração
Lewis Shiner
Jetboy rumou para o céu em seu jato reluzente, rastros de velocidade rugindo das asas aerodinâmicas. Canhões de 20 mm urravam uma caligrafia irregular, e o tiranossauro tombava enquanto as balas rasgavam sua carne.
– Arnie? Arnie, desliga essa luz!
– Tá bom, mãe – retrucou Arnie. Ele deslizou o especial de 54 páginas de Jetboy na ilha dos Dinossauros de volta para o saquinho plástico. Desligou a luminária de leitura, levou a revista em quadrinhos pela escuridão familiar de seu quarto e guardou-a no armário.
Tinha a coleção completa dos quadrinhos Jetboy em uma das caixas de papelão que usavam para mandar frangos às mercearias. Numa prateleira acima estavam empilhados cadernos cheios de recortes sobre o Grande e Poderoso Tartaruga, o Uivador e Jack Flash, o Saltador. E, próximos a eles, estavam os livros sobre dinossauros, não apenas aquelas coisas de criança com desenhos feiosos, mas livros de estudo sobre paleontologia, botânica e zoologia.
Escondida atrás de outra caixa de quadrinhos estava a Playboy na qual a Peregrina posou.
Pouco tempo atrás, olhar aquelas fotos fez Arnie sentir-se estranho, como se estivesse nervoso, excitado e culpado, tudo ao mesmo tempo.
Seus pais sabiam de suas obsessões, todas menos da Playboy. Era apenas o negócio sobre os cartas selvagens que os incomodava. O avô de Arnie estava na rua naquele dia, viu com os próprios olhos quando Jetboy explodiu para entrar na história. Um ano depois, a mãe de Arnie nasceu com um nível baixo de telecinesia, o suficiente para mover uma moeda alguns centímetros sobre uma toalha de mesa de plástico. Às vezes, Arnie desejava que ela fosse apenas normal.
Melhor do que ter um poder que não servia para nada.
Ele fez seu avô contar essa história diversas vezes.
– Ele queria morrer – dizia o velho. – Ele viu o futuro, e não estava nele. Não havia mais lugar para ele.
– Xiii, vovô – dizia a mãe de Arnie. – Não fale desse jeito na frente do Arnie.
– Eu sei o que vi – dizia o velhote, balançando a cabeça. – Eu estava lá.
Arnie engatinhou em silêncio de volta para a cama e deitou de bruços, agradavelmente ciente da pressão na virilha. Pensou sobre a ilha dos Dinossauros. Não havia dúvida em sua mente de que era real. Ases eram reais. Alienígenas eram reais, trouxeram o carta selvagem para a Terra.
Ele se virou de lado e encolheu os joelhos na direção do peito. Como seria? Quando estava com oito anos, viajou de carro com os pais por Utah e fez com que parassem em Vernal. Foram até a Trilha da Pré-História, e Arnie correu na frente para ficar sozinho com os modelos de dinossauro em tamanho real. A ilha dos Dinossauros deve ser assim, ele pensou, as montanhas irregulares cobertas de arbustos ao fundo, o diplódoco grande o bastante para que ele pudesse andar sobre sua barriga, o estrutionídeo como um avestruz imenso e escamoso, o pteranodonte encolhido como se tivesse acabado de pairar para um pouso.
Seus olhos fecharam-se e ele conseguiu vê-los se mover, não apenas os dinossauros horríveis que via na TV, mas os especiais: o pequeno e malvado deinonico, a “garra terrível”. Ou o repugnante e grumoso anquilossauro, um sapo chifrudo com mais de dez metros com uma clava na cauda que poderia esmagar uma placa de aço.
E, lá no fundo do seu cérebro, inflamado pela sopa endócrina temperada e efervescente na qual flutuava, o vírus carta selvagem pairou sobre uma célula, parou, bombeou sua mensagem alienígena e morreu. E, assim, seguiu adiante, espiralando-se por anos em uma dupla hélice de medo e êxtase, mutilação e mudanças milagrosas…
A ciência do vírus carta selvagem
EXCERTOS DA LITERATURA
… Temível além do imaginável, em muitos aspectos pior do que vimos em Belsen. Nove entre dez afetados por esse patógeno desconhecido morrem de forma horripilante. Nenhum tratamento ajuda. Os sobreviventes não têm sorte melhor. Nove entre dez deles são transformados de alguma forma, por um processo que não consigo sequer começar a entender, em algo diferente – às vezes, nem remotamente humano. Vi homens se transformando em efígies de borracha galvanizada, crianças com novas cabeças brotando… nem posso continuar. E o que é pior, eles ainda estão vivos. Ainda vivem, Mac.
O mais estranho de tudo isso, talvez, sejam os dez por cento de sobreviventes, um entre cem daqueles que de fato contraem a doença. Eles não mostram quaisquer sinais de alteração externa na maioria das vezes. Mas têm… devo chamá-los de poderes. Podem fazer coisas que seres humanos normais não podem. Vi um homem decolar na direção dos céus como um V-2, voando em círculos e voltando para pousar em pé suavemente. Um paciente furioso rasgou uma maca de aço pesado como se fosse um lenço de papel. Nem dez minutos atrás uma mulher atravessou uma parede do pequeno escritório deste espaço que no passado foi um armazém, onde me confino para uma folga de alguns minutos. Uma mulher nua, linda, tipo pin-up, brilhando com uma luz rosada que parecia vir de dentro do seu corpo, com um sorriso fixo e opaco.
Não estou pirando, Mac. Não estou batendo pino de loucura ou com a morfina. Não ainda.
Mesmo quando tenho sorte de ter uma hora ou duas de sono… e então o horror preenche meus sonhos, e fico quase feliz em sair do meu catre e enfrentar a realidade daquilo que aconteceu aqui.
Essas coisas estão acontecendo, são reais. Você poderá ler sobre isso algum dia, se a chefia não conseguir segurar as informações. Não entendo como conseguem… isso aqui é Manhattan, pelo amor de Deus, e as vítimas chegam às dezenas de milhares.
Graças a Deus não é contagioso. Graças a Deus. Pelo que podemos perceber, ele só se desenvolve naqueles diretamente expostos à poeira ou seja lá o que for… e não em todos eles, ou teríamos mais de um milhão. Desse jeito, a quarentena é impossível, mesmo o saneamento adequado. Tivemos um surto de gripe em nossas alas, esperamos tifo a qualquer hora…
Eles dizem que uma espécie de alienígena está por trás disso tudo, homens do espaço sideral.
Por tudo que vimos, isso não soa tão absurdo. Ouvi boatos nas altas escalas de que até pegaram um. Espero que seja verdade. Eles podem botar o desgraçado na forca com os chefes nazistas em Nuremberg e pendurá-lo como o animal que ele é…
– carta pessoal do Capitão Kevin McCarthy,
Unidade Médica do Exército dos Estados Unidos,
21 de setembro de 1946
Os números do incidente deixam claro que o receptáculo contendo o xenovírus Takis explodiu a uma altitude de nove mil metros, bem dentro da assim chamada corrente de jato. Em seu estado latente, o vírus fica envolvido numa cápsula proteica durável, os “esporos” mencionados com tanta frequência e incorretamente na imprensa leiga, cujos testes mostraram ser resistentes a temperaturas e pressão extremas para permitir sua sobrevivência em condições naturais de muitas dezenas de metros embaixo do oceano até os limites superiores da estratosfera. As partículas virais foram carregadas a leste pelo Atlântico na corrente de jato, caindo em intervalos aleatórios com gotículas de chuva, ou sedimentando-se naturalmente; os mecanismos precisos ainda aguardam demonstração ou observação. Isso causou a tragédia Queen Mary da Nova Inglaterra (17 de setembro de 1946), bem como os surtos posteriores na Inglaterra e no continente europeu.
(Nota: Persistem rumores de um surto de larga escala na URSS, mas o regime do primeiro-ministro Kruschev ainda mantém silêncio absoluto sobre a questão, assim como seus predecessores.)
As correntes eólicas e oceânicas causaram uma dispersão de curto prazo do vírus sobre uma área substancial a leste dos Estados Unidos (mapa 1). Até o momento, o mais alarmante foram as irrupções do vírus, apesar do fato de ele não parecer infeccioso, distribuídas através de distância temporal e geográfica. Apenas em 1946, houve mais de uma vintena de surtos reportados, e quase uma centena de casos isolados, estendendo o alcance pelos Estados Unidos e sul do Canadá (mapa 2).
A localização da maioria dos surtos internacionais principais oferece uma pista de um possível padrão: Rio de Janeiro (1947), Mombasa (1948), Porto Said (1948), Hong Kong (1949), Auckland (1950) para mencionar alguns dos mais notórios – todos os principais portos marítimos.
O problema foi como contabilizar as aparições do vírus, geralmente em incidentes isolados, em locais distantes do mar, como os Andes Peruanos e planaltos remotos do Nepal.
Como nossa investigação revela, a resposta claramente reside na durabilidade da cobertura proteica. O vírus pode ser transportado por quaisquer meios, humanos, mecânicos, animais ou naturais, e sobrevive indefinidamente, a menos que exposto a agentes destrutivos, como fogo ou produtos químicos corrosivos. A maioria dos surtos norte-americanos e as ocorrências relativamente grandes em portos marítimos foram rastreadas de forma convincente (McCarthy, Relatório ao Chefe de Saúde Pública, 1951) até os itens que aguardavam embarque nas docas e armazéns do distrito afetado de Manhattan. Outros foram atribuídos à precipitação de partículas virais em embarcações e veículos em trânsito. Indivíduos, mesmo pássaros e animais (que nunca são afetados), podem levar as partículas em si sem ter conhecimento. O surto nepalês mencionado acima, por exemplo, foi rastreado até um naik do clã Gurung, cujo regimento, os Fuzileiros Reais Gurkha, estava envolvido na tentativa de conter a violência comunal apavorante de 10 a 13 de agosto em Calcutá, Índia, na qual as comunidades hindus e muçulmanas culpavam-se mutuamente por um surto do vírus, tendo como resultado a morte de 25 mil pessoas; o próprio cabo gurkha nunca desenvolveu a doença.
… quantos depósitos do vírus latente permanecem, espalhados por cumeeiras, reunidos em sedimentos de rios e esgotos, enterrados em depósitos no solo, ainda carregados pelo ar na corrente de jato, não podem ser determinados. A seriedade que uma ameaça ainda representa para a saúde pública também continua impossível de avaliar. Nesse contexto, a incapacidade do vírus de afetar uma maioria assoladora da população deve ser mantida em mente…
– Goldberg e Hoyne, “O vírus carta selvagem: persistência e dispersão”,
Problemas na Bioquímica Moderna, Schinner, Paek e Ozawa, ed.
A capacidade do vírus carta selvagem de alterar a programação genética de seu hospedeiro lembra aquela dos herpes-vírus terrestre. Contudo, é muito mais abrangente, alterando completamente o DNA do corpo de seu hospedeiro, em vez de afetar e ser expresso em certo local – p. ex., lábios e genitália –, como age a família do herpes.
Sabemos agora que o xenovírus Takis-A afeta um percentual maior de uma população exposta do que originalmente se supôs – talvez bem mais do que meio por cento. Em muitos casos, o vírus simplesmente acresce seu próprio código ao DNA do hospedeiro; esta é a forma latente, na qual o vírus não tem existência objetiva, mas existe apenas como informação – outro traço que compartilha com os vírus herpetiformes. Pode permanecer passivo e não detectado
indefinidamente, ou algum trauma ou estresse do hospedeiro pode fazer com que ele se manifeste, em geral com resultados devastadores. Acrescentando-se a maneira pela qual ele “reprograma” o código genético do hospedeiro, o vírus (em forma ativa ou passiva) é realmente hereditário, como olhos azuis ou cabelos cacheados.
Aparentemente prevendo seu efeito com predominância letal, os cientistas takisianos que criaram o vírus desenvolveram-no para se perpetuar de fato como um “gene carta selvagem” recessivo. Recessivo porque um gene dominante que produziria mutações letais em noventa por cento da prole e apresenta outros nove por cento incapaz ou improvável de se reproduzir sobreviveria apenas a poucas gerações, mesmo que, conforme estimado, trinta por cento de todos aqueles com DNA modificado do xenovírus carreguem a forma latente.
Portanto, o carta selvagem segue regras convencionais da herança dos traços recessivos.
Apenas nos casos em que os pais carregam o código viral existe qualquer possibilidade de produzir uma prole afetada; mesmo assim, a chance é apenas uma em quatro, frente a uma chance de cinquenta por cento de produzir um portador com nenhuma chance de manifestar o vírus, e outra chance de uma em quatro de uma prole que não carregue o código…
– Marcus A. Meadows, Genética, janeiro de 1974, pp. 231-244
Apesar da paranoia da perseguição comunista no fim dos anos de 1940 e início da década de 1950 e das “descobertas” do Comitê da Câmara sobre Atividades Antiamericanas, os ases não se deram melhor por trás das Cortinas de Ferro do que neste país, e de fato foi consideravelmente pior para eles. A linha do partido, estabelecida por Trofim D. Lysenko, especialista semi-analfabeto da ciência estalinista, era que o “carta selvagem” supostamente alienígena era meramente uma máscara para um experimento capitalista-imperialista burguês diabólico. Na Coréia, americanos capturados foram obrigados a assinar confissões da guerra biológica, numa tentativa aparente de responsabilizá-los pelo surto de vírus que varreu aquela nação, Norte e Sul, em 1951. Enquanto isso, todos que apresentassem sinais de talentos meta-humanos dentro da esfera soviética simplesmente desapareciam, alguns nos campos de trabalhos forçados, outros em laboratórios – e muitos outros em covas rasas.
Com a morte de Stalin, em 1953, houve uma pequena atenuação. Kruschev reconheceu a existência dos ases, e eles começaram a “desfrutar” do status que tinham nos Estados Unidos, ou seja, tinham o privilégio de servir nas forças militares ou GPU (mais tarde, KGB), ou desaparecer no Arquipélago Gulag. Quando passaram os anos 1960, as restrições contra eles foram reduzidas, talvez da forma que eram nos Estados Unidos, e os super-heróis patrocinados pelo Estado conseguiram tornar-se personalidades da mídia, como os cosmonautas e as estrelas olímpicas.
Por que a rejeição inicial da realidade flagrante? O regime de Brezhnev-Kosygin admitiu em 1971 que Lysenko era um curinga, em quem o vírus se manifestou como desfiguração repugnante.
A existência de ases era uma afronta pessoal ao ex-fazendeiro. Quanto a por que Stalin engrossou a campanha antiases, a paranoia desenfreada dos últimos anos do ditador é, em especial, geralmente considerada explicação suficiente. Contudo, muitos desertores das altas esferas do final dos anos de 1960 e início dos anos 1970 repetiram o rumor de que o Camarada Nikita às vezes, tarde da noite em seus drinques com companhias íntimas, vangloriava-se de que tinha assassinado o antigo ditador com as próprias mãos na cela da Prisão de Lubyanka – enfiando uma estaca no seu coração…
– J. Neil Wilson, “De volta à URSS”, Reason, março de 1977
O xenovírus Takis-A, coloquialmente chamado de carta selvagem, foi um dispositivo orgânico experimental desenvolvido pelos Ilkazam, uma família proeminente entre os Lordes Psi de Takis.
Existe em seu DNA um programa escrito que lê o código genético do organismo hospedeiro e modifica esse código para aumentar as propensões e características inatas do hospedeiro. Essa otimização gratifica como nunca antes a grande motivação takisiana de cultivar a virtú pessoal (e, por extensão, familiar). Os takisianos já possuem grandes poderes mentais; por meio do carta selvagem, os Ilkazam buscavam promover uma multiplicidade de talentos espantosos em seus
membros, garantindo sua superioridade por muitos anos vindouros.
O desafio que os pesquisadores de Ilkazam enfrentaram foi o de produzir um programa que identificaria e melhoraria características desejáveis; ninguém queria ser um hemofílico melhor. A individualidade bioquímica entre os takisianos, contudo, é ainda mais acentuada que nos seres humanos, que são uma das espécies mais bioquimicamente diversas na Terra. Desenvolver um software capaz de identificar características favoráveis – um programa “inteligente” – e melhorá-las, e que pudesse ser implementado no DNA viral, exigiu experiências em escalas extravagantes.
Pela natureza da sociedade takisiana, havia sempre muitos indivíduos disponíveis para os ensaios mais drásticos, não tendo os takisianos, de modo geral, que se preocupar em insistir para que os indivíduos se voluntariassem. Contudo, mesmo em Takis faltava um contingente grande o suficiente de criminosos ou inimigos políticos banidos – sem uma distinção comumente apresentada naquela cultura – para fornecer o tipo de base ensaística necessária para desenvolver completamente tal ferramenta complexa. Felizmente, do ponto de vista takisiano, um conjunto de criaturas surpreendentemente similares em constituição genética existiam… na Terra.
… A maioria das melhorias do carta selvagem não é favorável à sobrevivência, ou são traços de sobrevivência levados a medidas letais, como acionar o sistema de lutar ou fugir da adrenalina num nível tão alto que o mínimo estresse força a vítima ao estado de atividade acelerada, queimando-a num único surto de frenesi terminal do efeito de anfetaminas. Nove entre dez sobreviventes tiveram características indesejáveis aumentadas, ou características desejadas
aumentadas de forma indesejável. O “curinga” assume formas que vão do repugnante ao doloroso, do patético ao simplesmente inconveniente. Uma vítima pode ser reduzida a uma bolha disforme de muco como um famoso morador do Bairro dos Curingas, o Homeleca, ou pode ser transformado numa figura parcialmente animal, como o taberneiro Ernie, o Lagarto. Ele pode adquirir um poder que, em outras circunstâncias, faria dele um ás, como a levitação limitada mas incontrolável do Pena. A manifestação pode ser bem menor, como a massa de tentáculos que formam a mão direita de Dorian Wilde, o laureado poeta decadente do Bairro dos Curingas.
Em certos casos, a distinção entre as classificações fica turva, como no Ernie acima mencionado, cuja força levemente maior do que a humana e a proteção oferecida por sua pele escamada são insuficientes para torná-lo um ás verdadeiro. Outro exemplo mais assustador é o incidente trágico da Mulher Incendiada do final dos anos de 1970, no qual o vírus afetou uma jovem mulher, fazendo seu corpo queimar com uma chama inextinguível, mas regenerar-se ao mesmo tempo que sua carne era consumida. A vítima implorava aos transeuntes para que a matassem, e por fim ela faleceu na Clínica Blythe van Renssaeler, aparentemente como resultado de eutanásia – uma acusação contra o Dr. Tachyon que foi revogada. Não é possível determinar se o carta selvagem a qualificava como curinga ou rainha negra.
Como ele é projetado para interagir com o código individual de seu hospedeiro, não há duas manifestações do carta selvagem idênticas. Além disso, seu comportamento difere de indivíduo para indivíduo…
… O fato de que mais de dez por cento daqueles que contraíram o vírus sobreviveram aos seus efeitos pode ser atribuído à capacidade do software genético takisiano e aos mestres do hardware. Para um teste em larga escala entre uma população de indivíduos diferente daquela para a qual ele foi originalmente projetado, a liberação do vírus na Terra foi um tremendo sucesso que teria agradado imensamente aos seus criadores, caso eles soubessem de seu resultado.
A Terra, por outro lado, teve um ponto de vista diferente.
– Sara Morgenstern, “Blues para o Bairro dos Curingas:
Quarenta Anos de Cartas Selvagens”, Rolling Stone, 16 de setembro de 1986
Excertos da Ata da Conferência da Sociedade Metabiológica Americana sobre Capacidades Meta-humanas
(Clarion Hotel, Albuquerque, Novo México, 14-17 de março de 1987)
Palestra apresentada em 16 de março de 1987 pela Dra. Sharon Pao K’ang-sh’i do Departamento de Metabiofísica da Universidade de Harvard
Nobres membros da sociedade, meu agradecimento. Vou direto ao ponto. Uma pesquisa de nossa equipe em Harvard indica que as capacidades meta-humanas, informalmente chamadas “superpoderes” e engendradas pelo vírus takisiano carta selvagem, são exclusivamente de origem psíquica e, em todos, exceto nos casos raros, são exercidos por meio da instrumentalidade da psi.
(Sessão aberta oficialmente pelo presidente Ozawa.)
Entendo que minha declaração anterior poderia ser considerada um excesso retórico do tipo perpetrado por alguns de meus predecessores, que fizeram com que o ainda incipiente campo da metabiofísica fosse considerado uma pseudociência do calibre da numerologia e da astrologia por diversos cientistas sérios. Ainda assim, a honestidade e a pressão da comprovação empírica obrigam-me a reiterar: as capacidades meta-humanas são formas especializadas de poder psíquico.
Agora temos uma ideia melhor do que exatamente o carta selvagem fez a suas vítimas. Nos casos conhecidos como “ás”, o vírus parece ter atuado primeiro pelo aumento de capacidade psíquica inata, que deu a direção ao avanço geral da reescrita do código genético. Isso explica os elevados graus de correspondência entre as personalidades e as inclinações de ases conhecidos e de suas capacidades meta-humanas – por que, por exemplo, pilotos devotados como o Águia Negra adquiriram poderes que incluem o voo, por que o obcecado “vingador da noite”, o Sombra, tem tal controle sobre a escuridão, por que o solitário Aquarius apresenta uma aparência metade humana, metade golfinho e pode, de fato, transformar-se num tipo de super-Tursiops. Uma telecinesia de microescala parece ser um dos mecanismos pelos quais o carta selvagem realiza suas mudanças, possibilitando ao indivíduo subconscientemente escolher, ou ao menos influenciar, a natureza da transformação que ela ou ele sofre.
Entendo a enormidade da implicação de as pessoas poderem, em algum sentido, ter “escolhido” tirar um curinga ou uma rainha negra. Uma especulação nessa direção está, contudo, além do escopo de nossas presentes pesquisas.
Um dos grandes enigmas da época pós-carta selvagem tem sido precisamente como o vírus alienígena, por mais avançada a tecnologia que o produziu, foi capaz de dar a certos indivíduos a capacidade de violar as leis naturais estabelecidas, com a conservação da massa e energia, a lei quadrado-cubo, a inviolabilidade da própria velocidade da luz. No momento em que o vírus foi disseminado, a ciência foi imutavelmente hostil à existência até mesmo de poderes psíquicos – justificável, dado à falta de corroboração experimental convincente desses fenômenos. Ela foi obrigada a aceitar pessoas sendo capazes de projetar fogo e luz, transformarem-se em animais, voar ou inventar dispositivos mecânicos que permitam a elas fazer coisas semelhantes em desrespeito flagrante aos princípios da mecânica e da engenharia.
Claro que, mesmo em 1946, havia pistas disponíveis nos domínios teóricos da física quântica.
De fato, a tecnologia moderna da época, até e inclusive as armas nucleares e os instrumentos de fusão no processo de desenvolvimento, baseava-se em grande parte na mecânica quântica, muito do trabalho sendo realizado com base na ideia de “sabemos que funciona, mas não sabemos como”. Dado o impulso da realidade do carta selvagem, foi atribuída aos poderes psíquicos rapidamente uma justificativa mecânico-quântica; “ação a distância” sem recorrer a forças
intensas, eletrofracas ou gravíticas como característica, por exemplo, da interconexão curiosa de partículas que interagiam, postulada por Einstein, Podolsky e Rosen em seu famoso “paradoxo”, e estabelecida com alguma finalidade pelo experimento de Aspect na França, em 1982…
… Uma instância bem óbvia do poder baseado em telecinesia é a mudança de forma. O indivíduo – em quase todos os casos subconscientemente – rearranja seus átomos componentes para produzir uma estrutura bruta que difere consideravelmente da original: por exemplo, a transformação perturbadora da Garota-Elefante em um Elephas maximus voador em aparente violação do princípio de conservação de matéria e energia. Ao menos no caso da Garota-Elefante, explica-se pela telecinesia subconsciente no nível subatômico; a Srta. O’Reilly pode aparentemente invocar ser uma nuvem de partículas virtuais e mantê-las em existência imensamente maior do que elas normalmente existiram. (Uma discussão sobre partículas virtuais também está, obviamente, além do escopo dessa apresentação, por exemplo, as partículas que “carregam” forte interação, e que por um instante infinitesimal violam o princípio de
conservação.) Como parte da restauração da sua aparência original, a Srta. O’Reilly permite que as partículas virtuais que formam a matéria “fantasma” caiam na não existência.
Foi a capacidade da Garota-Elefante de voar em oposição a todos os princípios aeronáuticos conhecidos que desencadeou a linha de pesquisa que levou às conclusões expressas neste artigo.
Em termos simples, o voo ou a levitação da Garota-Elefante, da Peregrina e de todos os ases conhecidos é simplesmente uma variação da telecinesia. Nesse sentido, o Grande e Poderoso Tartaruga é o ás voador arquetípico, já que voa reconhecidamente por meio de sua capacidade telecinética. Mas nenhum truque da física permitiria que as orelhas da Garota-Elefante ou mesmo as asas magníficas de Peregrina alçassem mesmo um ser humano pequeno para o vôo, muito menos um elefante asiático adulto. Elas, como o Tartaruga, voam apenas lançando mão de seus poderes mentais…
… As projeções energéticas apresentam outro problema espinhoso explicado de maneira simples – novamente – pela telecinesia. Jack Flash, o Saltador, parece projetar explosões de fogo da palma das mãos e, além disso, consegue manipular o fogo que produz de forma notável. Mas esse indivíduo não projeta de fato a chama, no sentido de que ela não é emitida de seu próprio corpo. Na verdade, não é chama no sentido estrito da palavra. Sua telecinesia permite que ele regule o movimento browniano do ar circum-ambiente. Ele cria um “ponto de calor” de partículas em elevado estímulo a aproximadamente um mícron da carne da palma da mão, e então utiliza a telecinesia para direcionar o fluxo resultante de gás incandescente.
… Os poderes de voo superlumínico apresentam um caso especial. Na maioria dos casos (e é importante manter em mente que cada transformação do carta selvagem é única), o indivíduo com a capacidade de viajar à velocidade da luz ou mais rápido que a luz tem a capacidade de emular um único fóton, ou táquion, numa instância posterior, para tornar-se um “macrofóton” ou um “macrotáquion” de forma semelhante aos dispositivos de “macroátomo” dos pesquisadores da Universidade de Sussex, sob a coordenação de Terry Clark, que podem emular o comportamento de um único bóson. As espaçonaves que transportaram o vírus carta selvagem para este planeta, bem como o alienígena humanoide conhecido como Dr. Tachyon, empregaram o mesmo princípio para seu impulso superlumínico – que levou a cunhar a palavra pelo qual o único residente da Terra não nascido neste planeta é conhecido hoje em dia.
A viagem mais rápida do que a luz mostrou-se apenas de utilidade limitada para os ases até o momento em virtude dos limites de duração e dos problemas de navegação em longas distâncias, até então insuperáveis para a nossa tecnologia. Ou assim inferimos, a partir do fato de que nenhum ás viajou para além dos limites do sistema solar (atual órbita de Netuno) e retornou…
… Uma característica considerável dos assim chamados “gadgets” – cintos antigravitacionais, portais dimensionais, vestes blindadas – é o fato de que nenhum deles pode ser replicado. Na desmontagem e análise, com frequência descobriu-se que não fazem nenhum sentido mecânico ou elétrico. Cada qual é um resultado irreproduzível. Isso explica por que nenhum mestre de gadgets empreendedor comercializou, digamos, um cinto de voo à velocidade da luz pessoal ou uma empilhadeira antigravitacional. Apenas o criador poderia fazer um daqueles funcionar. Em alguns casos, os componentes consistem em montagens ridículas de detritos, até, e, inclusive, restos de maçã, grampos de cabelo e os torsos de bonecas Barbie. Outros consistem apenas em um diagrama de um circuito que, como a máquina quimérica de Hieronymus, funciona como um
circuito verdadeiro “funcionaria”.
A explicação é, novamente, uma manifestação da habilidade psíquica. O criador, de fato, imprime-se sobre a obra num sentido metafísico (segundo o atual significado científico). Essa explicação esclarece o sentido do fenômeno observado com frequência de que parece haver um limite para a criatividade de certos “mestres de gadgets”, que às vezes terão de desmontar um antigo dispositivo para fazer um novo funcionar. Essa explicação também facilita a previsão de que as tentativas governamentais em todo o mundo de replicar o impressionante androide Modular estão fadadas ao fracasso, a menos que um ou mais contratem os serviços de seus próprios “talentos carta selvagem”…
… Uma característica de quase todos os ases é um metabolismo de energia maior do que os seres humanos “normais” possuem. Alguns parecem capazes de invocar energia para abastecer suas capacidades a partir de si mesmos ou (por falta de uma maneira melhor de descrever) a partir do cosmo. Outros precisam de fontes externas de energia para acionar seus talentos, ou se vêem auxiliados pela disponibilidade desses recursos. O homem forte conhecido como Martelo do Harlem, por exemplo, acredita ser necessário consumir uma quantidade substancial de sais de metais pesados em sua dieta para manter as reações de alto nível do seu metabolismo, bem como diversos “osteotrópicos”, como estrôncio-90 e bário-140, que parecem substituir o cálcio em seus ossos, conferindo-lhe durabilidade e força maiores que o normal. Jack Flash, o Saltador, tira força e subsistência da exposição ao fogo e ao calor. Outros derivam sua energia extra-humana de “baterias”, que em geral provam ser do mesmo gênero que os dispositivos do tipo de Hieronymus.
Qualquer que seja a fonte dessa energia, nenhum ás foi descoberto ainda que não pudesse exaurir seu suprimento, num tempo razoavelmente curto, por uso intenso de capacidades meta-humanas.
Alguns podem “recarregar” simplesmente descansando por um momento, outros de fato exigem uma fonte de energia externa. Novamente, cada caso é único…
Confirmação adicional da hipótese “psíquica” vem do caso do, assim chamado, Dorminhoco, que possui um conjunto diferente de meta-habilidades a cada vez que acorda. Seria difícil enquadrar qualquer outro modelo da função dos poderes de ás nesse fenômeno…
Em suma, meus colegas e eu estamos dispostos a avançar o quanto for necessário para afirmar que a psi pode ser responsável por todas as capacidades de ás observadas – e que nenhuma outra explicação pode…
George R. R. Martin
O melhor da literatura para todos os gostos e idades