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Grecia, 7382 AC
Acheron sentiu uma presença a suas costas. girou-se, preparado para investir, esperando encontrar outro Daimon em busca de combate, mas não havia nenhum. Em seu lugar, encontrou ao Simi pendurando cabeça abaixo de uma árvore, com suas asas de morcego, cor borgoña, pregadas ao redor do miúdo corpo. Vestia uma túnica solta e um manto que a brisa noturna agitava brandamente. Seus olhos de cor vermelha sangre lançavam brilhos espectrais na escuridão, enquanto a larga e escura trança se balançava desde sua cabeça até o chão.
Acheron se relaxou e colocou de novo um dos extremos de sua vara sobre a erva úmida, observando-a com atenção.
-Onde estiveste, Simi? -perguntou com brutalidade. Levava mais de meia hora chamando o demônio Caronte.
-OH, me balançando por aí, akri! -Respondeu-lhe, sonriendo enquanto se balançava no ramo- É que akri me sentiu falta de?
Lançou um suspiro. Gostava de muito Simi, mas desejava ter a um demônio muito mais amadurecido como companhia. Ninguém, nem ainda tendo três mil anos, entendia o funcionamento de um pequeno demônio de cinco anos.
-Entregaste minha mensagem? -perguntou-lhe.
-Sim, akri -respondeu ela, refiriéndose a ele com o término usado na língua dos Atlantes para designar ao "amo e senhor"-. O entreguei tal e como me ordenou, akri.
Acheron sentiu que a pele da nuca lhe arrepiava. Algo no tom do Simi não acabava de lhe gostar.
-O que tem feito, Simi?
-Simi não fez nada, akri. Mas...
Esperou enquanto o pequeno demônio olhava, nervosa, a seu redor.
-Mas? -interrompeu-a.
-Simi sentiu fome enquanto retornava.
O terror o deixou gelado.
-A quem te comeste esta vez?
-Não foi um humano, akri. Era algo com chifres na cabeça como meus. Realmente havia um montão deles. Todos com chifres e fazendo um som estranho, algo assim
como: muuu, muuu.
- Refere às vacas? Alimentou-te do gado?
-Isso, akri. Alimentei-me do gado.
-Não está mal de tudo.
-Não, de fato está muito bem, akri. por que não disse nada ao Simi sobre as vacas? Assadas estão muito saborosas. Ao Simi gostou de muito.
-E do que se preocupa então?
-Porque esse homem tão alto que tem um só olho, saiu de uma caverna gritando ao Simi. Disse que Simi era muito malote por haver-se comido as vacas e que teria
que pagar por isso. O que significa isso, akri? O que é pagar? Simi não sabe o que é pagar.
Acheron desejou poder dizer o mesmo.
-Esse homem tão alto, era um ciclope?
-O que é um ciclope?
-Um filho do Poseidón.
-Ah, já entendo! Isso foi o que disse. Mas não tinha chifres, só uma enorme e calva cabeça.
Acheron não estava interessado em discutir sobre a enorme e cortada cabeça do ciclope com seu demônio. O que precisava era saber a forma de emendar o desastre
que sempre causava a voracidade da pequena.
-O que foi o que te disse o ciclope?
-Que estava muito zangado com o Simi por haver-se comido o gado. Disse que as vacas com chifres pertenciam ao Poseidón. Quem é Poseidón, akri?
-Um Deus grego.
-OH, já o entendo! Simi não está em problemas. Só tenho que matar ao Deus grego e tudo irá bem.
-Não pode matar a um Deus grego, Simi. Não está permitido.
-Lá vai outra vez, akri, sempre dizendo que não ao Simi. Não te coma isso, Simi. Não mate aquilo, Simi. Vá aos Katoteros, Simi e espera que te chame -cruzando
os braços sobre o peito lhe olhou com o cenho franzido-. Eu não gosto que me digam que não, akri.
Acheron fez uma careta ante a dor que começava a sentir na parte inferior do crânio. Desejava que lhe tivessem agradável um louro como mascote o dia de seu
vigésimo primeiro aniversário. Este demônio Caronte ia custar lhe a vida... outra vez.
-E para que chamava o Simi, akri?
-Quero que me ajude com os Daimons.
Ela se relaxo e voltou a balançar-se no ramo.
-Não parece necessitar nenhum tipo de ajuda, akri. Simi acredita que já o faz bastante bem sozinho. Eu gostei em especial aquela vez que fez a um Daimon dar
uma volta no ar antes de acabar com ele. Foi muito bonito. Não sabia que quando exploravam causavam tantos colorines.
baixou-se dando uma cambalhota do ramo, e se colocou a seu lado.
-Onde vamos agora, akri? Levará outra vez ao Simi a um sítio gelado? Eu gostei do último sítio onde estivemos. A montanha era muito formosa.
Acheron?
deteve-se o escutar a chamada da Artemisa e exasperado, deixou escapar outro enorme suspiro. Levava ignorando-a dois mil anos. E ainda assim, persistia em suas
chamadas. Houve um tempo em que ela o tinha procurado utilizando sua forma "carnal", mas lhe tinha impedido de seguir utilizando aquela habilidade. Não pôde fazer
o mesmo com o vínculo telepático.
-Vêem, Simi -disse ao pequeno demônio, começando a viagem que lhe levaria de volta ao Therakos. Os Daimons se estabeleceram ali de forma permanente e estavam
devorando aos pobres gregos de um pueblecito próximo.
Acheron. Necessito sua ajuda. Meus novos Caçadores Escuros necessitam um instrutor.
As palavras da Artemisa lhe paralisaram. Caçadores Escuros? Que demônios significava isso?
-O que tem feito, Artemisa? -seu murmúrio viajou no vento até o Olimpo, onde ela esperava em seu templo.
Vá, se me falar e tudo. Sua voz soou aliviada para ouvidos do Acheron. Começava a me perguntar se voltaria a escutar sua voz.
Acheron franziu os lábios. Não tinha tempo para isto.
Acheron?
Ignorou-a. Mas ela pareceu não captar a indireta.
Não pode te ocupar você sozinho dos Daimons, sua ameaça cresce muito rápido. Necessita ajuda e eu lhe proporcionei isso.
Fez-lhe graça imaginar-se a Artemisa ajudando a alguém. Desde o começo dos tempos a deusa grega jamais tinha feito nada por ninguém que não fosse ela mesma.
-me deixe em paz, Artemisa. Você e eu terminamos. Tenho trabalho que fazer e não disponho de tempo para isto.
Muito bem. Enviarei-os a lutar com os Daimons sem preparar. Se morrerem não importa, depois de todo quem se preocupa com um humano? Posso criar mais para que
sigam lutando.
Um engano. E em suas vísceras, Acheron sabia que não era tal. Provavelmente a deusa criaria mais Caçadores Escuros; se já os tinha criado, definitivamente nada
lhe impediria de fazê-lo de novo. Especialmente se com isso o fazia sentir culpado. Maldita Artemisa! Teria que ir de novo a seu templo. Embora, se lhe dessem a
escolher, preferiria que o estripassem. Jogou um olhar a seu demônio.
-Simi, preciso fazer uma visita a Artemisa. Retorna ao Katoteros e não te meta em confusões até que volte a te chamar - o demônio fez uma careta.
-Ao Simi não gosta de Artemisa, akri. Eu gostaria que deixasse ao Simi matá-la. Simi quer lhe arrancar esse comprido corto vermelho.
Acheron entendia muito bem a seu demônio. Simi só tinha visto a Artemisa em uma ocasião, quando ele era ainda mortal. E o encontro tinha resultado desastroso.
-Sei Simi. Por isso quero que fique no Katoteros -lhe disse enquanto se afastava. Voltou a cabeça para lhe dizer uma última coisa-. E pelo Archon, faz o favor
de não te comer nada até que eu retorne. E menos se se tratar de um humano.
-Mas...
-Não, Simi. Nada de comida.
-Não, Simi. Nada de comida -se burlou ela-. Ao Simi não gosta disto, akri. Katoteros é muito aborrecido. Não há modo de divertir-se. Só gente velha que quer
voltar aqui. Ora!
-Simi... -começou com uma implícita advertência na voz.
-Sou todo ouvidos, akri. Escuto e obedeço. Mas Simi não há dito que vá obedecer tranqüilamente - Acheron moveu a cabeça com impotência ante o incorrigível demônio
e se teletransportó da terra até o templo da Artemisa no Olimpo.
deteve-se sobre a ponte de ouro que atravessava um te serpenteiem rio. O som da água reverberava sobre as escarpadas saias da montanha que se elevava a seu
redor. Tudo seguia igual depois de dois mil anos. A área da cúpula estava semeada de resplandecentes pontes e passeios. Uma névoa tornasolada cobria os caminhos
que levavam para os templos dos distintos deuses. As estadias do Olimpo eram opulentas e excessivas. Morada-las perfeitas para o ego dos deuses que as habitavam.
O templo da Artemisa era feito de ouro, coroado por uma cúpula e com colunas de mármore branco. Da sala do trono podia contemplar uma arrebatadora vista do
céu e do mundo que se estendia a seus pés. Ou ao menos, assim lhe tinha parecido em sua juventude. Mas isso foi muito antes de que o tempo e a experiência tivessem
azedado sua visão das coisas. Já não existia nada espetacular nem formoso para ele. A seu redor só via a vaidade, o egoísmo e a frieza dos habitantes do Olimpo.
Estes deuses novos eram muito diferentes a aqueles com os que Acheron tinha crescido. Todos os deuses Atlantes, exceto um, tinham sido compassivos. Neles havia
amor, bondade e perdão. Em uma só ocasião permitiram que o medo lhes guiasse; e o engano lhes havia flanco suas vidas imortais e permitiu aos deuses Olímpicos substitui-los.
Um dia desgraçado para os humanos, em mais de um sentido.
Acheron se obrigou a cruzar a ponte que levava até o templo da Artemisa. Dois mil anos atrás, tinha abandonado este lugar jurando que jamais retornaria. Deveria
ter suposto que, cedo ou tarde, ela as arrumaria para lhe fazer voltar. As vísceras lhe contraíram pela ira. Usou sua habilidade telequinética para abrir as gigantescas
portas douradas. Imediatamente, foi recebido por um clamor de gritos que ameaçaram lhe perfurando os tímpanos. As faxineiras da Artemisa; pouco acostumadas a que
um homem penetrasse nos domínios privados de sua deusa. A deusa vaiou ante o estridente som e as fez desaparecer a todas.
-mataste às oito? -perguntou Acheron.
Artemisa se esfregou os ouvidos.
-Isso deveria ter feito; mas não. Simplesmente as arrojei ao rio.
Muito surpreso, Acheron a olhou fixamente. Isso era impróprio da deusa que ele recordava. Possivelmente os últimos dois mil anos lhe tivessem ensinado a mostrar-se
compassiva e piedosa. Embora conhecendo-a, resultava bastante improvável.
Assim que estiveram sozinhos, Artemisa se levantou do trono de marfim rodeado de almofadas e se aproximou dele. Vestia um diáfano peplo branco que se aderia
a cada uma das curvas de seu voluptuoso corpo. Seus cachos, de um vermelho profundo, lançavam brilhos sob a luz. Os brilhantes olhos verdes lhe dispensavam uma cálida
bem-vinda. Seu olhar o transpassou como uma lança. Ardente. Agudo. Dolorosa. Sabia de antemão que voltar a vê-la ia resultar duro. Tinha sido uma das razões para
ignorar suas chamadas. Mas sabê-lo e experimentá-lo eram duas coisas muito diferentes. Não estava preparado absolutamente para as emoções que lhe embargavam agora
que voltava a vê-la. O ódio. A traição. E o pior de tudo: o desejo. A fome. O desejo. Uma parte dele ainda a amava; desejava perdoá-la. Tudo, inclusive sua morte.
-Que bom aspecto tem, Acheron. Possivelmente está ainda mais arrumado que a última vez que nos vimos -disse alargando um braço para lhe tocar. Ele retrocedeu
um passo.
-Não vim a conversar, Artemisa. Eu...
-Estava acostumado a me chamar Artie.
-Estava acostumado a fazer muitas coisas que já não faço -respondeu, lhe dirigindo um duro olhar destinado a trazer para sua memória tudo o que lhe tinha arrebatado.
- Ainda está zangado comigo.
-Isso crie? -os olhos da deusa ardiam com um fogo esmeralda que lhe fez recordar o demônio que habitava no interior do corpo divino.
-Sabe perfeitamente que poderia te haver obrigado a vir. fui muito tolerante com sua atitude desafiante. mais do que tivesse devido.
Acheron apartou o olhar, consciente de que dizia a verdade. Artemisa controlava a fonte de alimentação que ele necessitava para sobreviver. Se permanecia muito
tempo sem comer, convertia-se em um assassino incontrolável. Um perigo para todo aquele que lhe aproximasse. Só Artemisa tinha a chave que o fazia manter-se cordato
e inteiro. Que o fazia ser misericordioso.
-por que não me obrigou a vir? -perguntou-lhe.
-Porque te conheço. Se o tivesse tentado, faria que os dois pagássemos as conseqüências.
De novo estava no certo. Seus dias de submissão ficavam muito longe. Tinha tido suficiente durante sua infância e sua juventude. Uma vez teve provado o que
eram a liberdade e o poder, decidiu que gostava de muito para retornar ao que tinha sido sua existência anterior.
-me fale destes novos Caçadores Escuros -lhe disse-. por que criaste mais seres como eu?
-Já lhe disse isso. Necessita ajuda.
-Não necessito tal coisa.
-Tanto o resto dos deuses como eu assim acreditam.
-Artemisa... -pronunciou seu nome em um grunhido, sabendo que ela mentia. Ele era muito capaz de controlar e matar aos Daimons que se cevavam nos humanos- Te
juro que...
Apertou os dentes ante a lembrança dos dias seguintes a sua conversão. Não tinha tido a ninguém que lhe mostrasse o caminho. Ninguém que lhe explicasse o que
precisava fazer. Como sobreviver. As regras que o atavam de noite. Os novos Caçadores estariam perdidos. Confundidos. E o pior de tudo, seriam tremendamente vulneráveis
até que aprendessem a usar seus poderes. Maldita Artemisa!
-Onde estão?
-Esperando no Falossos. ocultam-se em uma caverna que os protege do sol. Mas não estão seguros do que devem fazer nem de como achar aos Daimons. Necessitam
um líder.
Acheron não queria fazê-lo. Não precisava guiar a ninguém, do mesmo modo que não queria estar sob as ordens de ninguém. Não queria entendimentos com outras
pessoas. Quão único tinha querido durante toda sua vida era que lhe deixassem sozinho. Quando pensava em tratar com outros... Lhe gelava o sangue. Tentava-lhe a
idéia de seguir seu próprio caminho, mas sabia que não podia fazê-lo. Se não treinava aos homens na arte da luta contra os Daimons, acabariam mortos. E morrer sem
alma era uma existência pouco agradável. Ele, mais que qualquer outro mortal, podia assegurá-lo.
-De acordo -disse-. Os treinarei.
Artemisa sorriu. Acheron saiu disparado do templo, retornando ao lugar onde esperava Simi para lhe dizer que aguardasse um pouco mais. O demônio seria uma complicação
extra a já dificultosa missão. Uma vez se convenceu da obediência do Simi, se teletransportó ao Falossos. Encontrou aos três homens acurrucados na escuridão, tal
e como Artemisa lhe havia dito. Falavam em voz baixa entre eles, agrupados ao redor de uma pequena fogueira em busca de calor; o resplendor das chamas lhes irritava
os olhos, que se viam chorosos. Já não eram olhos humanos e não suportavam o brilho procedente de nenhuma fonte de luz. Tinha muito que lhes ensinar. aproximou-se
deles, surgindo das sombras.
-Quem é? -perguntou o mais alto dos três logo que o viu. Sem dúvida era um Dorio. De corto comprido e negro, alto, de constituição musculosa e ainda vestido
com sua armadura de guerra, que necessitava claramente ser reparada.
Os outros dois homens eram gregos, ambos os loiros e com armaduras em estado similar a do primeiro. O mais jovem, tinha um buraco no centro do peitilho ocasionado
pela fêmea de javali que lhe tinha atravessado o coração. Estes homens não podiam sair e mesclar-se com os humanos vestidos assim. Precisavam cuidados e descanso.
E instrução. Acheron se baixou o capuz, deixando-a descansar sobre o manto negro e olhou a cada um dos três homens. Quando perceberam o brilho prateado de seus olhos,
todos eles empalideceram.
-É um deus? -Perguntou o mais alto- Nos hão dito que os deuses nos castigarão com a morte se nos apresentemos ante eles.
Sou Acheron Parthenopaeus -respondeu tranqüilamente-. Artemisa me envia para lhes instruir.
-Sou Callabrax do Likonos -disse o mais alto. Assinalou ao homem que se encontrava a sua direita-; Kyros do Seklos -e por último ao mais jovem do grupo- e Is
da Groesia.
Is permaneceu um pouco mais atrás que os outros dois, tinha os olhos escuros e muito fundos. Acheron podia escutar os pensamentos do homem com a mesma claridade
que os seus próprios. A dor daquele homem o assaltava e fazia que seu estômago se contraíra.
-Quanto tempo faz que foram criados? -perguntou-lhes.
-Umas quantas semanas em meu caso -respondeu Kyros. Callabrax assentiu com a cabeça.
-No meu também.
Acheron olhou a Is.
-Faz dois dias -respondeu o interpelado com voz inexpressiva.
-Ainda sofre os estragos da conversão -comentou Kyros-. Eu demorei quase uma semana antes de poder... me acostumar.
Acheron suprimiu o apresso de lançar uma risada amarga. "Acostumar-se" era uma boa palavra para defini-lo.
-matastes já algum Daimon? -perguntou-lhes de novo.
-Tentamo-lo -respondeu Callabrax-, mas é muito diferente a matar soldados. São mais fortes, mais rápidos. Não é fácil acabar com eles. perdemos a dois dos nossos
lutando contra esses seres.
Acheron se estremeceu ante a idéia de dois homens sem preparação enfrentando-se aos Daimons e da espantosa existência que lhes aguardava depois de mortos. Então
apareceu em sua mente a lembrança de sua primeira luta... O apartou.
-comestes já esta noite? -Os três homens assentiram com a cabeça a modo de resposta- Então me sigam e lhes ensinarei o necessário para que aprendam a matá-los.
Trabalhou com eles até que o amanhecer esteve perto. Compartilhou tudo o que foi possível lhes ensinar em uma só noite: novas táticas, os lugares mais vulneráveis
de um Daimon, e a forma de alcançar esses pontos débeis. Quando a noite se afastava, acompanhou-lhes de volta à caverna.
-Encontrarei um lugar mais apropriado para que lhes ocultem da luz do dia -lhes prometeu.
-Sou Dorio -lhe respondeu Callabrax com orgulho-. Não necessito mais que o que agora possuo.
-Mas nós não -replicou Kyros-. Uma cama nos viria muito bem a Is e a mim. E um banho ainda mais.
Acheron inclinou a cabeça e fez um gesto a Is para que saísse da cova. Esperou a que o homem passasse junto a ele e lhe seguiu, lhe mostrando suas intenções
de manter uma conversação longe do alcance de seus companheiros.
-Quer ver de novo a sua esposa -disse Acheron sem nenhum preâmbulo. Is lhe olhou perplexo.
-Como sabe?
Não lhe respondeu. Ainda quando era humano tinha odiado as perguntas muito pessoais, posto que a maioria delas desembocavam em conversações nas que não estava
interessado. Traziam para a mente lembranças que preferia manter enterrados. Fechou os olhos e deixou que sua mente vagasse, cruzando o cosmos até encontrar à mulher
que atormentava a mente do grego. Liora. Uma mulher formosa de cabelo negro como a asa de um corvo e olhos de um azul tão claro como o mar. Não era de sentir saudades
que Is a sentisse falta de. Nesse momento, Liora se encontrava chorando, prostrada de joelhos.
Por favor -rogava aos deuses-; por favor, me devolvam a meu amor. Por favor, deixem que meus filhos voltem a ter a seu pai em casa.
Ao Acheron caiu em graça a mulher ao ser testemunha de seus temores. Ninguém lhe tinha contado o acontecido. Ela rogava pela segurança de um homem que já não
se encontrava nas filas dos vivos. O assunto obcecou ao Acheron.
-Compreendo sua tristeza -confessou a Is-. Mas não pode deixar que lhe vejam em seu atual estado. Se voltar para casa despertará seu medo. Tentarão te matar.
Os olhos do homem se encheram de lágrimas e quando falou, as presas se afundaram levemente em seus lábios.
-Liora não tem a ninguém que a cuide. Era órfã e meu irmão morreu um dia antes que eu. Não há ninguém que vele por meus filhos.
-Não pode retornar.
-por que não? -Perguntou Is com zango-. Artemisa disse que podia me vingar do homem que me matou e uma vez cumprida minha vingança poderia seguir vivendo para
servi-la. Não disse nada de que não pudesse retornar a casa.
Acheron aferrou com mais força sua vara.
-Is, pensa um instante. Já não és humano. Como crie que reagiria a gente do povo se retornasse com umas presas enormes e os olhos negros? Não pode sair à luz
do dia. Deve-lhe lealdade a toda a humanidade, não só a sua família. Ninguém pode assumir essas duas responsabilidades de uma vez. Jamais poderá retornar.
Os lábios do grego tremeram, mas assentiu ao compreender.
-Salvarei aos humanos enquanto minha família, que é inocente, morre de fome porque não tem a ninguém que lhes proteja. Então, esse é o trato?
Acheron apartou o olhar ante a dor que sentiu no coração pelo sofrimento de Is e sua família.
-Volta dentro com os outros -lhe disse. Observou como o grego entrava na caverna enquanto repassava a conversação em sua cabeça. Não podia deixar isto assim.
Ele podia arrumar-lhe sozinho, mas os outros... Fechou os olhos e se transportou frente a Artemisa.
Esta vez, a deusa paralisou as cordas vocais de suas faxineiras antes de que as mulheres pudessem chiar.
-nos deixem -lhes ordenou.
As mulheres se apressaram para a saída tão rápido como lhes permitiram suas pernas, e deixaram que a porta se fechasse atrás delas com uma sonora portada. logo
que ficaram a sós, Artemisa lhe dedicou um sorriso.
-tornaste. Não esperava verte tão logo.
-Não comece, Artemisa -advertiu refreando as paqueras da deusa antes de que tivesse opção de dizer mais-. Basicamente retornei para te lançar uns quantos gritos.
-Para que?
-Como ousa mentir aos homens que toma a seu serviço?
-Eu jamais minto.
Acheron arqueou uma sobrancelha. Repentinamente incômoda, Artemisa se esclareceu garganta e se acomodou em seu trono.
-Você foi diferente e não te menti. Simplesmente esqueci te mencionar um par de coisas.
-Deixa de recursos semânticos, Artemisa, não se trata de mim. Estamos falando do que tem feito com estes homens. Não pode abandonar a esses pobres bastardos
como o tem feito.
-E por que não? Não te custou trabalho sair adiante por seus próprios meios.
-Eu não sou igual a eles, e você sabe muito bem. Não havia nada em minha vida que me fizesse desejar retornar a ela. Nem família nem amigos.
-Com uma exceção. Acaso eu não era nada?
-Um engano que estive lamentando durante os últimos dois mil anos.
O comentário fez que o rosto da Artemisa avermelhasse; desceu do trono e descendeu dois degraus até chegar à altura do Acheron.
-Como te atreve a me falar assim!
Acheron se tirou o manto de um puxão e o jogou em um rincão da estadia junto com a vara; estava zangado.
-me mate por minha insolência, Artemisa. Vamos. nos faça um favor aos dois, libra me da desdita em que vivo.
A deusa tentou lhe esbofetear, mas Acheron capturou sua mão e a olhou fixamente aos olhos. Artemisa contemplou o ódio naquele olhar, a dura condenação. Seus
coléricos fôlegos se mesclaram e o ar que lhes rodeava estalou com fúria ante o choque de seus respectivos poderes. Mas não era sua fúria o que ela procurava. Não,
sua fúria jamais. Passeou o olhar por seu corpo, pelos perfeitos ângulos de seu rosto, seus afiados maçãs do rosto, seu nariz aquilino. Seus olhos se detiveram na
negrume de seus cabelos, no espectral brilho prateado de seus olhos. Jamais houve mortal que pudesse equiparar a perfeição física do Acheron. E não só sua beleza
conseguia atrair às pessoas. Não foi sua beleza o que a cativou. Foi aquele estranho carisma, seu poder, sua força, seu encanto, sua inteligência, sua determinação.
Contemplá-lo era querê-lo. Observá-lo era desejar suas carícias. Tinha sido criado para agradar e treinado para proporcionar prazer. Absolutamente tudo em sua pessoa
-dos definidos músculos até a profunda e erótica inflexão de sua voz- seduzia a qualquer que se encontrasse com ele. movia-se como um animal selvagem e letal, seus
movimentos exsudavam perigo e poder. Virilidade. Prometiam um gozo sexual supremo. E o cumpria à perfeição. Era o único homem que tinha conseguido debilitá-la. O
único homem ao que tinha amado. E tinha o poder de acabar com ela. Ambos eram conscientes dessa realidade. E o fato de que não utilizasse esse poder sempre lhe tinha
resultado intrigante e provocador. Erótico e sedutor. Tragou saliva e recordou a primeira imagem que teve dele. Sua força. A paixão. plantou-se de pé, em seu templo,
rendo-se desafiante enquanto ela ameaçava matando-o. E ali, diante de sua estátua, atreveu-se a fazer o que nenhum outro homem tinha feito antes nem depois... ainda
podia saborear aquele beijo. Ao contrário que o resto dos homens, ele jamais a tinha temido. Agora, o calor da mão do Acheron sobre sua carne a abrasava, mas sempre
tinha sido assim. Nada desejava mais que o sabor de seus lábios, que o fogo de sua paixão.
E um simples engano lhe havia flanco sua perda. Queria chorar de desilusão. Em uma ocasião, muitos anos atrás, tinha tentado fazer retroceder o tempo para desfazer
os sucessos daquela manhã. Para voltar a ganhar a confiança e o amor do Acheron. As Parcas a castigaram com severidade por sua audácia. Durante os últimos dois mil
anos o tinha tentado tudo para atrai-lo de novo a seu lado. Nada tinha dado resultado. Nada tinha obtido que ele a perdoasse nem que voltasse para seu templo. Até
que lhe ocorreu algo ao que Acheron jamais poderia negar-se: salvar a alma de um humano. Ele faria algo por salvá-los. Seu plano de fazê-lo responsável pelos Caçadores
Escuros tinha funcionado, e agora estava ali. Se tão somente pudesse lhe reter...
-Quer que os libere? -perguntou-lhe. Faria algo por ti.
-Sim.
Mas você não faria nada por mim. Não, a menos que o obrigasse.
-O que faria por mim, Acheron? Já conhece as normas. Um favor requer outro em troca.
Ele a liberou com uma furiosa maldição, retrocedendo para afastar-se.
-aprendi muitas coisas bastante mais importantes que este jueguecito.
Artemisa se encolheu de ombros com uma indiferença que realmente não sentia. Nesse momento estava em jogo o que mais lhe importava. Se Acheron dizia que não,
destruiria-a.
-De acordo. Seguirão sendo Caçadores Escuros então. Sem ninguém que lhes ensine o que precisam saber. Sem ninguém que se preocupe com o que possa lhes acontecer.
Acheron deixou escapar um comprido e cansado suspiro. Queria consolá-lo, mas sabia que rechaçaria o mais leve roce de sua mão. Sempre rechaçava o consolo. Ninguém
tinha direito a possuir essa fortaleza. Quando seus olhos se encontraram, o olhar chapeado lhe provocou um eloqüente e sensual calafrio.
-Se devem te servir a ti e ao resto dos deuses, necessitam certas coisas, Artemisa.
-Como o que?
-Armaduras, por exemplo. Não pode enviá-los a lutar sem o adequado. Necessitam dinheiro para comprar comida, roupa, cavalos e inclusive serventes que os vigiem
durante o dia enquanto descansam.
-Pede muito.
-Só o necessário para assegurar sua sobrevivência.
-Jamais pediu nada disso para ti mesmo -e isso a feria. Mas ele nunca pedia nada.
-Não necessito comida e meus poderes me permitem conseguir algo. E tenho ao Simi para me proteger. Não sobreviverão sozinhos.
Ninguém sobrevive sozinho, Acheron. Ninguém. Nem sequer você. Nem eu.
Artemisa elevou o queixo, decidida a mantê-lo a seu lado sem pensar nas conseqüências.
-De novo te pergunto, o que me dará em troca de todo isso?
Acheron apartou o olhar, suas vísceras se contraíram. Sabia o que ela procurava, e não tinha nenhuma intenção de entregar-lhe -Todo es para ellos, no para mí.
-Tudo é para eles, não para mim.
A deusa se encolheu de ombros.
-De acordo, podem seguir adiante sem nada, posto que não possuem nada com o que negociar.
A fúria estalou no mais profundo de seu ser ante a indiferença da Artemisa pelas vidas e o bem-estar daqueles homens. Não tinha trocado.
-Maldita seja, Artemisa.
Ela se aproximou lentamente.
-Quero-te, Acheron. Quero que volte a ser o mesmo de antes.
estremeceu-se em seu interior, ao sentir a mão da Artemisa sobre sua bochecha. Jamais voltariam a compartilhar o que tiveram antigamente. Tinha aprendido muito
após. Sua traição tinha sido muito grande. Poderia dizer de si mesmo que aprendia devagar, mas não era de tudo certo. Tinha estado tão desesperado por encontrar
a alguém que se preocupasse com ele, que tinha ignorado a faceta escura do caráter da deusa. Até que lhe deu as costas e lhe deixou morrer. Algumas costure resultavam
farto difíceis de perdoar. Seus pensamentos retomaram o rumo de novo, voltando para os homens da caverna. Homens que não sabiam nada a respeito de sua nova existência
nem de seus inimigos. Não podia lhes abandonar assim. Já era o culpado da morte de muitas pessoas. Não podia, não, permitir que perdessem suas vidas nem suas almas.
-Está bem, Artemisa -continuou-; minhas condições são as seguintes: pagará-lhes uma quantidade todos os meses que lhes permita comprar algo que necessitem ou
desejem. Como já te disse antes, necessitarão Escudeiros que os cuidem de modo que não tenham que preocupar-se com a comida, pelas roupas nem pelas armas. Não quero
que nada disso lhes distraia de seu trabalho.
-De acordo, procurarei alguns humanos que lhes sirvam.
-Vivos, Artemisa. Quero serventes que lhes ajudem livremente; nada de mais Caçadores.
-Com quatro dos seus não há suficiente. Necessitamos mais para ter aos Daimons em xeque.
Acheron fechou os olhos ao compreender que com isto, sua relação não teria fim jamais. Via o futuro com total claridade e até onde chegavam as conseqüências
das decisões que se estavam tomando nesse momento. A maior número de Caçadores, mais poder teria Artemisa sobre ele. Não havia forma de impedir que o mantivera pacote
a ela eternamente. Ou sim a havia?
-Muito bem -lhe respondeu-. Cederei neste ponto se estiver de acordo em encontrar o modo de liberar os de seu serviço.
-O que quer dizer?
-Quero que encontre o modo de que os Caçadores Escuros recuperem suas almas, de forma que não estejam submetidos a sua vontade se algum dia escolhem ser livres.
A deusa retrocedeu uns passos. Isto não o tinha previsto. Se o concedia, também ele poderia liberar-se.
Poderá me abandonar.
Tinha esquecido quão vil Acheron podia chegar a ser; quão bem conhecia as regras do jogo e quão capaz era das manipular para obter sua colaboração. Era seu
igual em tudo. E de todos os modos, se não lhe concedia este último desejo, deixaria-a. Não tinha outra opção, e ele sabia. Não obstante, ainda havia coisas que
o manteriam a seu lado. Ela conhecia a maneira de assegurar-se sua companhia para toda a eternidade.
-Estupendo. Fixemos as regras para controlá-los -ao dizer isso, os pensamentos do Acheron voltaram para Is e ela o percebeu claramente. Compadecia ao pobre
soldado grego que ainda amava a sua esposa. A piedade, a misericórdia e a compaixão seriam sempre seu ponto débil.
-Em primeiro lugar: devem morrer para poder reclamar suas almas.
-por que? -inquiriu ele.
-Uma alma só pode abandonar seu corpo no momento da morte. Do mesmo modo, só pode voltar para um corpo que não tenha vida. Enquanto estes homens sigam "vivendo"
como Caçadores, não poderão recuperar suas almas. Não sou eu a que estabeleceu estes princípios, Acheron, é simplesmente a natureza das almas a que faz que o processo
seja assim.
Acheron franziu o cenho.
-E como pode morrer um Caçador Escuro imortal?
-Bem, podemos lhe cortar a cabeça ou expô-lo à luz do sol; mas posto que esses métodos deixam o corpo ferido além de qualquer padre, não nos servem.
-Não tem nenhuma graça.
E o que lhe pedia tampouco. Não queria liberar a esses homens, queria lhes manter a seu serviço. Não queria liberá-lo a ele.
-Terá que despojar os de seus poderes -lhe informou-. Fazer que seus corpos imortais sejam vulneráveis aos ataques físicos e depois conseguir que seus corações
deixem de pulsar. Só então morrerão da forma adequada para que suas almas possam voltar a habitar seus corpos.
-Muito bem, posso consegui-lo.
-Em realidade, você não pode.
-E isso o que significa?
Artemisa se obrigou a ocultar o sorriso que lhe produzia a satisfação do ter onde queria.
-Há umas quantas premissas sobre as almas que deve conhecer, Acheron. Alguém é que o dono deve abandoná-la voluntariamente; posto que sou eu quem possui suas
almas...
Acheron soltou um juramento.
-Terei que negociar contigo cada vez que queira liberar uma alma.
Ele assentiu. Não parecia muito contente com a confissão. Mas o aceitaria ao seu devido tempo. Definitivamente teria que aceitá-lo...
-Que mais? -voltou a perguntar.
E agora a premissa que o uniria a ela para toda a eternidade.
-Só um coração puro e nobre pode devolver a alma a seu corpo. Essa pessoa deve querer ao interessado por cima de tudo; e o Caçador deve confiar nela.
-por que?
-Porque a alma necessita uma motivação para mover-se ou ficará onde está. Eu utilizei a vingança para ficar com elas. Só uma emoção igualmente capitalista fará
que a alma volte para seu corpo. E como sou eu a que escolhe que emoção deve ser, escolhi o amor: a mais nobre e formosa das emoções. Quão única merece ser correspondida.
Acheron observava com atenção o chão de mármore enquanto as palavras da deusa flutuavam a seu redor. Amor. Confiança. Muito fácil de dizer. Dois conceitos poderosos.
Invejava a aqueles que conhecessem seu verdadeiro significado. Ele não os tinha experiente nunca. Em seu lugar, conhecia a traição, a dor, a degradação, a suspeita
e o ódio. Essa era sua existência. Isso era o que lhe tinham ensinado. Uma parte dele queria largar-se dali e não voltar a ver a Artemisa jamais.
"me devolva a meu amado. Por favor, farei algo para voltar ao ter em casa..."
As palavras da Liora ressonavam em sua cabeça; ainda podia escutar seu pranto e sentir seu sofrimento. E o de Is cada vez que pensava em sua esposa e em seus
filhos, preocupado por seu bem-estar. Ele nunca tinha conhecido essa classe de amor desinteressado. Nem antes de sua morte, nem depois.
-me dê a alma de Is.
Artemisa lhe olhou, arqueando as sobrancelhas.
-Está disposto a pagar o preço que peça por ela e a cumprir os términos que dispus para que todas as demais sejam liberadas?
Sentiu que seu coração se afundava ante aquelas palavras. Recordava o inexperiente que tinha sido tanto tempo atrás.
"Tudo tem um preço, moço. Nada é grátis".
Seu tio se encarregou de lhe ensinar o que custava sobreviver. E tinha pago com acréscimo por todo o necessário, da comida, até a roupa, ou um lugar onde viver.
Tinha pago com sangue e suor. Havia coisas que não trocavam jamais.
-Sim -respondeu-. Estou de acordo. Nota promissória.
A deusa sorriu.
-Não esteja tão triste, Acheron. Prometo-te que vais passar o bem.
De novo, lhe retorceram as tripas. Já tinha escutado essas palavras antes.
Estava entardecendo quando retornou à caverna. Não ia sozinho; junto a ele caminhavam dois homens e quatro cavalos.
-O que é tudo isto? -perguntou Callabrax.
-Seu escudeiro e o do Kyros. vieram a lhes escoltar até as vilas onde ides viver. Ocuparão-se de todas suas necessidades. Eu voltarei mais tarde para finalizar
o treinamento.
-E eu o que? -perguntou Is.
-Você te vem comigo.
Acheron esperou até que os outros dois estiveram em seus monturas e partiram antes de voltar a falar com Is.
-Está preparado para voltar para casa?
O homem parecia genuinamente surpreso.
-Mas disse que...
-Estava equivocado. Pode retornar.
-E o juramento que fiz a Artemisa?
-Já me encarreguei que isso.
Is o abraçou como a um irmão. Acheron se encolheu ante o contato, mais que nada porque tinha as costas coberta de moretones. Mas mais lhe doeram os da alma.
Sempre tinha odiado que o tocassem. Muito amavelmente, apartou a Is.
-me acompanhe, vamos levar te a casa.
Acheron teletransportó a Is até a pequena granja. Sua esposa acabava de deitar aos meninos. Seu formoso rosto perdeu a cor ao vê-los junto à chaminé.
-Is? -Perguntou enquanto piscava-. Me disseram esta manhã que tinha morrido.
O homem negou com a cabeça. Seus olhos brilhavam.
-Não, meu amor. Estou aqui. voltei para casa, a seu lado.
Acheron respirou fundo ao ver is aproximar-se como uma exalação a sua esposa para abraçá-la com força. Passou muito tempo antes de que se acalmasse a dor de
suas costas.
-Ainda há um par de detalhes, Is -murmurou Acheron.
Is se separou de sua esposa franzindo o cenho.
-Sua esposa deve devolver sua alma a seu corpo.
Liora o olhou carrancuda.
-O que?
-Jurei servir a Artemisa -explicou seu marido-, mas vai liberar me para poder retornar junto a ti.
A mulher parecia confundida ante aquelas palavras.
-O que temos que fazer? -perguntou Is.
-Terá que passar de novo o transe da morte.
O homem perdeu a cor do rosto.
-Está seguro?
Acheron assentiu e tendeu sua adaga a Liora.
-Terá que atravessar seu coração.
Liora estava horrorizada e, certamente pálida ante a idéia.
-O que?
-É a única forma.
-Isso é um assassinato. Pendurarão-me.
-Não, prometo-lhe isso.
-Faz-o, Liora -a insistiu Is-. Quero retornar a seu lado.
Com uma expressão cética no rosto, a mulher tomou a adaga e tentou cravar-lhe a seu marido no peito. Não funcionou. A folha unicamente arranhou a pele.
Acheron sorriu ao recordar as palavras da Artemisa sobre os poderes dos Caçadores Escuros. Nem um humano extraordinariamente forte poderia ferir um deles com
uma adaga. Mas ele sim. Agarrando a adaga da mão da Liora, atravessou limpamente o coração de Is.
O homem se cambaleou para trás, ofegando.
-Não te assuste -lhe disse Acheron enquanto o ajudava a tender-se no chão junto ao fogo-. Já te tenho.
Acheron alargou o braço e arrastou a Liora junto a seu marido. Tirou de sua bolsa o medalhão pétreo que continha a alma de Is.
-Tem que agarrar isto quando mora, para que sua alma seja liberada e retorne a seu corpo.
-Como? -perguntou ela.
-Apura o medalhão sobre a tatuagem em forma de arco e flecha.
Esperou até que o homem estava a um passo da morte e tendeu o medalhão a Liora. Ao recebê-lo, a mulher gritou e o jogou no chão.
-Está ardendo! -gritou dolorida.
Is ofegava lutando por manter-se com vida.
-Recolhe-o -ordenou Acheron a Liora enquanto ela soprava sobre sua mão e agitava a cabeça expressando sua negativa.
-O que passa contigo mulher? -Perguntou Acheron-. vai morrer se não o salva. Recolhe sua alma.
-Não.
-Não? Como que não? Escutei seus rogos pedindo que voltasse junto a ti. Disse que daria algo em troca de que seu amado retornasse.
Liora deixou cair a mão e lhe lançou um frio olhar.
-Is não é meu amado. É Lycantes. Por ele rezava e agora está morto. Disseram-me que o fantasma de Is o matou em vingança, posto que foi ele quem lhe deu morte
em metade da batalha. Dessa forma poderíamos estar juntos e criar a nossos filhos.
As palavras da Liora deixaram ao Acheron estupefato, incapaz de falar. Observou a Is e viu refletido a dor em seus olhos antes de que a morte os deixasse inexpressivos.
Com o coração martilleando, recolheu o medalhão e tentou liberar ele mesmo a alma. Não funcionou. Furioso, paralisou a Liora e lhe deu morte por suas más ações.
-Artemisa! -gritou olhando ao teto.
A deusa apareceu na cabana.
-Salva-o.
-Não posso modificar as regras, Acheron. Expu-te as condições e esteve de acordo.
Ele se aproximou até a mulher que agora parecia uma estátua humana.
-por que não me disse que ela não o amava?
-Ao igual a você, não tinha modo se soubesse -seus olhos perderam o brilho e continuou falando-, inclusive os deuses cometem enganos.
-por que não me disse ao menos que o medalhão lhe queimaria a mão?
-Porque não sabia. Não me queimou, e a ti tampouco. Jamais o havia sustenido um humano.
Acheron sentia um forte zumbido na cabeça, provocado pela culpa e a dor. Pelo ódio que sentia para si mesmo e para a Artemisa.
- O que acontecerá a Is agora?
-É uma Sombra. Sem corpo nem alma, sua essência está apanhada no Katoteros.
Acheron rugiu de dor ante suas palavras. Acabava de matar a um homem e de sentenciá-lo a um destino muito pior que a morte. E por que? Por amor? Por piedade?
Pelos deuses! Era tão estúpido... devia ter formulado as perguntas adequadas; ele, melhor que ninguém, sabia que não terei que confiar no amor de outra pessoa.
Maldita seja! É que não ia aprender alguma vez? Artemisa se aproximou e tomou o queixo, lhe elevando a cabeça para olhá-lo diretamente aos olhos.
-Me diga, Acheron. Confia o suficiente em alguém para que libere sua alma?
Sherrilyn Kenyon
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