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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMODORO - P.3 / Patrick O'brian
O COMODORO - P.3 / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

- Agora esses Pengelley têm duas fazendas em suas terras, ambas de propriedade vitalícia do ancião Frank Pengelley, e a última vez que o capitão esteve em Dorset justo antes de zarparmos, o ancião Pengelley lhe disse que estava preocupado com o arrendamento se morresse antes do retorno do barco à Inglaterra, isto é, preocupado por sua família, pois era um arrendamento por duas gerações e ele já era a segunda. O muito filho de seu pai, se entende a que me refiro. - Bonden assentiu. Os arrendamentos por uma, duas ou três vidas não eram alheios ao canto da Inglaterra do qual provinha. - Bem, pois parece que quando o capitão subiu ao seu cavalo (aquele enorme saco de pulgas cinzento, lembra-se dele?) disse que se encarregaria do direito dos jovens Pengelley, pelo que o ancião Frank entendeu que se referia a seus filhos.
Mas quando o velho Frank morreu quando ainda não estávamos a um ano fora, a senhora entregou Weston ao seu filho mais velho William, e Alton Hill, com todos seus caminhos de gado, ao jovem Frank, sobrinho e apadrinhado do velho, deixando com as mãos vazias ao outro irmão, Caleb.

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- Esse Caleb era um bêbado ocioso e inútil, que não servia para cuidar da terra. Ainda que tinha uma filha muito bonita.
- Sim. Mas quando voltamos para casa, resultou ser que o capitão se referiu aos filhos quando falou dos jovens Pengelley, assim que a senhora e ele tiveram umas palavras a respeito. Discutiram encarecidamente mais de uma vez. E também discutiram sobre outros mudanças que ela levara a cabo. Ao que parece morreu muita gente em Dorset durante o tempo que estivemos fora. - Killick titubeou, incapaz de distinguir a expressão de Bonden na escuridão, antes de continuar: - Sim, esse Caleb tinha uma filha preciosa que se chama Nan, e resulta que Nan é criada em Ashgrove. Conhece a Ned Hart, aquele que trabalha nosso jardim?
- Claro que sim. Claro que o conheço. Fomos companheiros de rancho. Perdeu um pé no velho Worcester.
- Pois bem, Ned e Nan pretendem se casar. E se Caleb puder obter esse arrendamento diz que cuidará deles. É por esse motivo que estou a par, porque Nan explica a
Ned o que Caleb pretende, e Ned me diz por eu ser próximo ao capitão.
- É verdade. Mas suponho que não brigariam por algo assim.
- Não. Mas uma coisa se somou à outra e cada vez discutiam mais. Diziam-se de tudo e mais. Recorda-se daquele pároco, Hinksey?
- Aquele cavalheiro que cortejou a senhorita Sophie faz tempo, o que jogava críquete?
- O própio. Pois bem, resultou ser que foi o pároco Hinksey que aconselhou o arrendamento e tudo o mais, todas as coisas pelas que discutiram. Ia a Ashgrove pelo menos uma vez por semana enquanto estivemos fora, foi o que Ned disse, e agora se senta na poltrona do capitão.
- Oh.
- Ao que parece, a senhora Williams e sua companheira de trança o atendem como se fosse o senhor da casa; e as crianças também. Como um rei.
Bonden assentiu secamente. Ao que parece, o negócio atravessava um momento pouco promissor.
- De modo que trocaram palavras, e o pároco Hinksey foi citado uma e outra vez, porque Hinksey os visitava com muita freqüência. Mas isso não foi nada, nada em absoluto,
comparado com o que passou quando o capitão esteve em Londres e ela foi comer em Barham, onde a senhora Oakes cuida da estranha filha do pobre doutor...
- Não é estranha... É uma daminha encantadora como nunca seus olhos viram outra, fala com Padeen em sua língua, e como uma cristã conosco. Ri a gargalhadas quando
o casca-de-noz faz avante, trepa no cesto da gávea aos ombros do velho Mould, nunca enjoa e adora o mar. Tivemos ocasião de levar ela e a senhora Oakes ao Quebra-mar
a bordo da escuna. Uma donzelinha adorável, isso é o que é, e o doutor está contente como uma... - Mas antes de que pudesse definir a alegria do doutor, Killick
o interrompeu.
- Nan não pôde me explicar o que se passou exatamente, mas teve algo a ver com aquela seda que o capitão comprou em Java, a seda com a qual fizemos o traje de noiva
para a senhora Oakes.
- Eu costurei o corpete - lembrou Bonden.
- Bem, para esse vestido só necessitamos de uma parte do total, e o restante terminou em casa tal e como se havia planejado em primeira instância. De modo que a
senhora A. o estreou no jantar, ao qual também compareceram o pároco Hinksey e outro cavalheiro. Pois quando voltou para casa o fez em pedaços e assegurou que jamais
na vida voltaria a pôr aquele trapo, ela o deu para sua criada - que mostrou a Nan uma peça, - que assegurou jamais ter visto na vida uma tecido mais bonito.
- Não sei que conclusão sacar de tudo isto - admitiu Bonden.
- Eu tampouco soube o que pensar - admitiu po sua vez Killick. - Não até que o ocorrido passou da criada particular da senhora A., a Clapton, a suas amigas, e depois
a Nan. Ao que parece, quando o capitão voltou para ficar um dia, depois do almoço, tinha uma carta a respeito do arrendamento esperando-lhe, uma carta que não pôde
chatear-lhe mais, e ao repreender à senhora A. pelo fato de ver muito ao pároco Hinksey e por levar mais em conta sua opinião que a de seu marido, e pode ser que
também tenha dito algo mais porque se deixou levar, acho. Seja como for, foi mais, muito mais do que estava disposta a agüentar e brigou com ele como um tártaro
faria, como um selvagem, dizendo-lhe que se ia tratá-la dessa forma, acusá-la assim, ao mesmo tempo que não se privava da companhia de prostitutas, apesar de comportar-se
educadamente com ela, que maldita fosse se tinha nada mais que ver com ele; tirou o anel e lhe disse que podia... não, de fato não o disse, ainda que jogou o anel
pela janela. Mas bem poderia tê-lo dito, e pior ainda: quem teria previsto que seria capaz de pôr-se tão furiosa, de fazê-lo ir de um lado a outro, sem uma lágrima
nem uma palavra mais alta que a outra e sem quebrar nada de passagem. Enfim, isso foi justo antes de jogar-nos ao mar. Ele passou os últimos dias dormindo no caramanchão,
enquanto que a senhora se encerrou com chave no closet. Ao despedir-se não houve palavras carinhosas, embora as crianças o acompanharam até a falua e agitaram a
mão em sinal de despedida, e...
Um dos pagens a bordo assomou a cabeça por cima do anteparo do cesto da gávea.
- Senhor Killick, senhor - disse. - Grimble pergunta se já quer que sirva o pato, ou se espera pelo senhor. Diz que, de outra forma, a janta do comodoro irá para
o espaço.
 
- Killick - disse o comodoro ao mesmo tempo que lhe estendia uma molheira vazia, - diga ao meu cozinheiro que a encha com algo que se pareça, ainda que vagamente,
a um molho, ou que se atenha às consequências. O céu e a terra se associaram contra este infeliz pato ressecado - acrescentou, voltando-se para Stephen.
- O pato que carece de unção perde o direito a que o considerem como tal - admitiu Stephen. - Ainda que aqui temos algumas aiguillettes (como poderíamos chamá-las
em inglês?) procedentes do lado interno de uma criatura, que cairão muito bem acompanhadas por um trago deste Hermitage.
- Já eu gostaria de saber trinchar com tanta habilidade - disse Jack ao observar como a faca de Stephen fatiava as compridas e finas tiras. - Minhas aves costumavam
voar, espalhando o molho da maneira mais desastrosa tanto sobre a mesa como sobre o colo de meus convidados.
O único barco que me atrevi a governar virou ignominiosamente de boca para baixo - replicou Stephen. - Sapateiro a seus sapatos, já dizia Platão. Isso é o justo.
Chegou o molho, talvez um pouco claro e líquido mas adequado. Jack comeu e bebeu.
- Imagino que quererá um pouco mais - disse. - Aí tens a ave, ante você, ou, pelo menos o que resta dela. Outra taça de vinho?
- Não. Estou mais que satisfeito; e tal e como já havia dito devo guiar-me como um espartano. O mais provável é que amanhã me espere um dia terrível que, por certo,
começará a primeira hora. Mas lhe acompanharei quando sirvam o vinho do porto.
Jack comeu sem recato; eram velhos amigos, de tamanho, peso, capacidades e necessidades muito diversas, mas tampouco demonstrou ter muito apetite.
- Permite-me outra apreciação de Platão? - perguntou Stephen.
- Eu lhe peço - respondeu Jack com um sorriso fugaz que iluminou seu rosto.
- Você gostará, pois é boa. Hinksey a citou quando comi com ele em Londres e discutíamos o cardápio. "A caligrafia", disse Platão, "é a manifestação física de uma
arquitetura da alma." Se for verdade, a minha é por necessidade uma alma submetida a um contínuo puxa e afrouxa, pois até um gato rueiro repudiaria minha letra.
A sua, pelo o contrário, sobretudo no que se refere a suas cartas de navegação, possue uma clareza e uma harmonia das mais elegantes: a forma externa de uma alma
que poderia ter-se concebido no Partenón.
Jack inclinou a cabeça educadamente, e nesse momento serviram o pudim: cachorro manchado{18}. Ofereceu em silêncio uma porção a Stephen, que sacudiu a cabeça, e
comeu mecanicamente durante um tempo antes de afastar de si o prato.
Killick trouxe o vinho do porto, além de uma tigela cheia de amêndoas, nozes e uns bolinhos gelados. Jack lhe disse que podia voltar por onde havia entrado e fechar
as portas tanto da sobrecâmara como da cabine dormitório, sem reparar na surpresa com que perguntou se não tomaria café.
- Não sabia que havia comido com Hinksey - disse ao sentar-se de novo.
- Certamente que não o sabia. Foi quando tive que ir a Londres a toda pressa na escuna, e você já estava no mar. Tropecei com ele na alcova do negócio de Clementi,
aonde tinha ido comprar partituras para pianoforte e clave. Eu o achei muito entendido na matéria, capaz de trocar de opinião no tocante a Bach o velho, e eu o levei
ao Blacks, onde desfrutamos de um estupendo ágape. Teria sido ainda melhor se os soldados que abarrotavam a mesa vizinha não tivessem começado a rugir e a uivar
como possessos. Porém, concluímos a noitada em muito bons termos, conversando a respeito de Bendas na biblioteca: talvez quando terminemos o vinho poderíamos tocar
alguns dos duetos que trrouxe comigo.
- Oh, Stephen - disse Jack, - não tenho mais ânimo para a música do que tenho para a comida. Não tenho tocado o violino desde que largamos amarras. Porém, voltando
a Hinksey que opinião faz dele?
- A sua é uma companhia da mais agradável: é um erudito e um cavalheiro com grande educação, e a verdade é que se comportou muito amavelmente com Sophie quando estivemos
fora.
- Oh, não sabia, eu lhe agradeço muito, disse Jack, e em voz baixa, com um gemido, acrescentou: - Já me agradaria não ter tanto que agradecer-lhe; sem ir mais longe,
preferiria não ter que agradecer-lhe o par de cornos que me colocou.
Stephen não pareceu ter ouvido, tinha a cabeça em outra parte.
- Lembro - disse finalmente - que jogavam ao críquete e que alguém golpeou ou pegou a bola com tal destreza que se produziu um burburinho de aprovação. O cavalheiro
que estava a meu lado comentou: "Quem foi? Quem foi?", ao mesmo tempo que saltava para cima e para baixo.
"Foi esse cavalheiro tão agraciado", respondeu seu acompanhante. "O senhor Hinksey." Ao que parece o tem por um homem atraente.
- As ações falam mais alto que as palavras - disse Jack. - Pergunto-me o que verão nele.
- Oh, suponho que sua figura atlética, certamente, e sua amabilidade. Acho que reúne todas essas qualidades capazes de comprazer a uma jovem mulher. Ou a uma mulher
de certa idade, para o caso.
- Pergunto-me o que verão nele - repetiu Jack.
- Talvez minha imaginação voe com outras asas, meu amigo. Contudo, seja como for, ao que parece essa senhorita Smith, Lucy Smith, vê o suficiente nele para ter aceitado
sua proposta de matrimônio. Ele mesmo me disse, não sem certo triunfalismo modesto, ao concluir a refeição. Antes de separar-nos me confessou que o pai da dama,
um dos principais da Companhia de Índias Orientais, aprova o enlace tão decididamente que há recorrido a toda sua influência para que se nomeie bispo de Bombaim
ao senhor Hinksey, um bispo anglicano, certamente. Pode ser em Bombaim, pode ser em Madras ou Calcutá, ainda que possa ser que tenha me dito bispo sufragâneo, não
sei porque tinha a mente um pouco enturvada depois de tantos brindes. De qualquer maneira, um nobre posto nas Índias para ele e sua esposa. Jack, seguimos na região
da cerveja, né?
- Cerveja? Oh, claro que sim, vamos, eu acho... Stephen, não posso lhe dizer o quanto me alegra que me o tenha contado. Então ele vai se casar? Tive tanto medo...
Stephen, aí está o vinho do porto... Estive a um tris de despampanar-me... estupidamente, pequenas idéias mais desonrosas.
- Alegro-me de que não o tenha feito, irmão. Nem a amizade mais íntima suportaria semelhante tensão: os resultados sempre são desastrosos.
- Estou tão contente - observou Jack após um tempo; e era óbvio que se desinflava por momentos. - Porém, que me dizia da cerveja?
- Eu lhe perguntava se seguíamos na região da cerveja, no domínio, nessa parte do oceano em que a cerveja que estivamos no porto e que servimos ao ritmo diário,
absurdo, criminoso, de um galão (oito pintas!) por cabeça, segue estando disponível. Ou se por acaso a cerveja cedeu seu posto ao grogue, beberagem perniciosa onde
quer que seja?
- Acredito que seguimos com a cerveja. Não costumamos ficar sem ela até avistarmos o cume de Tenerife. Quer um pouco?
- Se é tão amável. Hoje em particular necessito desfrutar de um bom descanso; a cerveja, a respeitável cerveja de um barco, é o melhor remédio conhecido para proporcionar
sono.
Após um tempo, Jack regressou com um recipiente de quarto de galão, do qual tomaram tragos alternativamente enquanto permaneciam sentados com o olhar voltado para
popa, observando a comprida esteira iluminada pela luz da lua.
- Sabe? - disse Jack. - Não fiz nenhuma acusação direta.
- Irmão - disse Stephen, - poderia dar um chutão extraordinário no traseiro de uma mulher, e depois sustentar sem nenhuma dúvida que não esbofeteou seu rosto.
- Mesmo assim - seguiu Jack meia pinta depois, - ela não devia ter dito aquilo de sua prostituta", quando resulta que, como bem sabe, sou totalmente inocente a esse
respeito.
- Nesse caso... Mas em quantos outros não foi tão culpado como lhe permitiram sê-lo suas fraquezas? Que vergonha buscar evasivas desse modo. Foi desafortunado; mas
isso não lhe concede a superioridade moral. Nem a mais mínima superioridade moral. Seu único rumo de ação consiste em se arrastar de barriga para baixo entre bramidos
de Peccavi enquanto se golpeia no peito. E vou lhe dizer algo. Jack, tanto Sophie como você estão machucados, profundamente machucados, devido a esses condenados
ciúmes, a essa falha perniciosa que perverte a vida tanto interior como exterior; e se não se apressar pode ser que acabe por se arrepender de verdade.
- Sempre tive motivos para orgulhar-me de não ser zeloso - disse Jack.
- Durante muito tempo me orgulhei de minha beleza superior, mais ou menos por motivos iguais; ou mesmo por mais motivos que os seus - replicou Stephen, e beberam
a cerveja. Depois, quando regressou à cabine procedente do jardim de popa, acrescentou: - Mas me alegro de que não ter lhe dito. Depois me teria jogado na cara e,
de qualquer maneira, não poderia ter lhe agradado com toda a compaixão que você se achava merecedor. Pela manhã devo abrir um paciente afetado de pedra, e qualquer
desacordo matrimonial, sobretudo se se fundamenta em uma cadeia de equívocos, acho supérfluo se comparo submeter alguém a uma litotomia em alto mar, e a uma morte
mais que provável acompanhada por um medo terrível, um sofrimento sem par e a aflição... A uma aflição atroz.
CAPÍTULO 7
O senhor Gray se submeteu à operação com uma integridade sem par. Fisicamente não tinha outra opção, pois estava imobilizado e atado a uma espantosa cadeira, com
as pernas separadas e a barriga desnuda à mercê da navalha. Sua integridade parecia provir de outro plano, e apesar de que Stephen havia aberto mais de um paciente
- paciente na acepção que entendemos por sofredor, - jamais em toda sua vida vira nada parecido ao firme tom de voz de Gray, nem ao agradecimento tão coerente que
lhe deu ao livrá-lo das correias de couro, quando seu rosto emocionado, pálido e suado deu mostras de perder a consciência, coisa que finalmente fez.
Para Stephen lhe doía profissionalmente perder a vida de um de seus pacientes; e amiúde também lhe pesava de um ponto de vista pessoal, e o fazia durante longo tempo.
Não achou que perderia a Gray por mais que seu caso fosse tão desesperado; contudo, a infecção que arraigou no mais fundo de seu organismo foi adquirindo forças
apesar de tudo que o doutor Maturin fez, e o enterraram a duas mil braças de profundidade pouco depois de que a esquadra pegasse os alísios do nordeste. O vento,
ainda que entabulado, soprou a princípio com suavidade, e o comodoro obteve uma prova excelente das qualidades marinheiras de seus barcos: quando navegavam com brio
sem descuidar das respectivas posições, o Bellona superava ao Stately carregado de sobrejoanetes, alas e rastreiras inferiores; a Aurora podia andar mais que os
navios de duas pontes, mas a Thames quase não conseguia se manter à altura. Jack não achou que fosse devido a seu casco, nem ao relaxamento dos marinheiros que trepavam
depressa para aplicar as velas, senão bem mais pela ausência de um oficial que compreendesse as sutilezas da navegação. Escotas tesas para popa pela força bruta,
as amuras das velas para baixo e com brio, e as bolinas tesas como corda de violino desde que o vento vinha um pouco pelo través de proa: essas eram as máximas universais
de seus oficiais, seus axiomas, ainda que certamente superavam a todos os demais no referente ao brilho do metal e à pintura; não se tinha mais remédio que admitir
que já disparavam um pouco mais rápido, ainda que sua pontaria não tivesse melhorado nem um pouco. Os barcos de menor porte, a Camilla de vinte canhões de Smith,
e a Laurel de Dick Richards, de vinte e dois canhões, eram, contudo, uma delícia. Ambas contavam com um governo extraordinário, e ambas possuíam muitas das virtudes
de sua amada Surprise, pois eram boas embarcações, veleiras e tão carentes de abatimento como era possível em um barco de aparelho redondo.
- Vou lhe dizer do que se trata, Stephen - disse Jack, estando ambos de pé na galeria de popa, rodeados de estatuetas douradas pertencentes a outros tempos, de quando
se usavam casacas longas, - o barômetro disparou como uma mulher caprichosa, e nestas águas não recordo que sucedesse tal coisa sem vir acompanhada por uma calmaria
ou algo muito parecido. Durante a guarda do segundo quartilho... Oh, Stephen, sempre que pronuncio essa palavra me recordo de como o descreveste uma vez, acho recordar
que, conforme você, o quartilho era uma guarda mas esquartejada, claro, esquartejada em quatro partes, oh, ah, ah, ah, ah! Não sabe a quantidade de vezes que já
terei rido sozinho. Bem, se meus cálculos, os de Tom e os do piloto são acertados, a essas alturas teríamos que ter cruzado o paralelo trinta e um, momento em que
romperei o selo das ordens secretas. Conforme a medição que fizemos ao meio-dia nos encontrávamos tão cerca perto que poderia tê-lo feito nesse momento, mas sinto
um temor reverencial e supersticioso por tais assuntos. Não sabe como anseio encontrar boas notícias nelas: ordens de buscar ao inimigo, algo que se pareça a navegar
de verdade em tempo de guerra, coisa que com uma esquadra deste tamanho não seria estranho, em lugar de lutar em escaramuças pontuais para liberar a um punhado de
miseráveis escravos.
- Talvez esses miseráveis escravos também sejam dignos de consideração - observou Stephen.
- Oh, creio que sim. Sou o primeiro em afirmar que em nenhum caso quereria ser um escravo. Ainda que Nelson mesmo disse que se se abolisse o tráfico... - Calou pronunciando
um "Contudo", já que aquele era um dos escassos particulares nos quais diferia completamente de Nelson. - Não creia, Stephen - acrescentou pouco depois, tempo que
a Ringle aproveitou para cruzar sua esteira. Como era o navio de apetrechos do Bellona não tinha por que observar uma posição concreta na linha, desde quando se
mantivesse sempre à distância de buzina, coisa que Reade conseguia oferecendo um autêntico recital das qualidades da embarcação. - Não creia que estou descontente,
que gemo ou me mostro ingrato por desfrutar deste esplêndido comando. Mas tive pensado, refletindo e ponderando...
- Irmão - interrompeu Stephen, - com está prolixo.
-... E cheguei à conclusão de que esta esquadra é muito esplêndida para o trabalho que nos encarregaram. Além disso, há certos detalhes que não me agradei desde
o início: sua existência correu de boca em boca como se fosse celebrar-se uma partida de bola, e os jornais publicaram manchetes deste tipo: "Soubemos graças a um
cavalheiro próximo ao Ministério que este decidiu empreender uma série de medidas decididas contra o desprezível tráfico de negros, e que o valente capitão Aubrey,
disposto a que a liberdade reine tanto nos mares como em terra, encarregar-se-á de comandar uma poderosa esquadra", e o infeliz vai e dá os nomes de todos os barcos,
bagagens e portes. E esse jornal, além do Post e do Courier, também assinalou, o que era muito verdade, que a presente seria a primeira vez que se despachariam navios
de linha para cumprir semelhante missão. "Vai se empreender um esforço inflamado para varrer de uma vez por todas este vil comércio de carne humana, que redundará
em benefício do Ministério." Isso eu li em Lisboa; e depois dúzias de notícias similares. Falatórios demasiados e confusão desnecessária, amiúde excessiva e desagradavelmente
centrada em minha pessoa... chamativa. Como pretendem que os peguemos de surpresa se não fazem outra coisa além de revelar tudo aos gritos? Mas o que pretendia dizer
desde o princípio era que, quer sejam boas ou más notícias, estou tão convencido como se pode ficar de qualquer coisa que tenha a ver com o mar, que o vento cairá
ou que haverá calmaria, de tal maneira que me propus a convidar para almoçar aos capitães de navio. Pois é impossível conseguir uma esquadra um pouco eficiente sem
que exista certo grau de compreensão mútua.
- Se o que deseja é congraçar-se com o Imperador Púrpura, bastará que lhe fale de lorde Nelson, do comércio de escravos e da Armada Real. Seu cirurgião consultou
comigo a respeito da saúde de sua majestade imperial: examinei o paciente, que compartiu comigo a opinião que tem da presente empresa. Conforme ele, é uma bobagem
tentar guardar semelhante extensão de costa de norte a sul com uma esquadra de nosso tamanho. E mesmo se nos limitarmos à área geral de Whydah, por exemplo, nenhum
navio de linha nem as escassas fragatas de que dispomos poderiam apresar um barco negreiro, exceto que se faça em condições de tempo muito duro. Até o momento quase
todos eles são escunas de convés baixo, muito marinheiras, construídas sobretudo para a velocidade e governadas por marinheiros dos melhores. Porém, ainda que esse
não fosse o caso, de que serviria? Depois de resgatadas as desgraçadas criaturas, provenientes de todo tipo de tribos do interior, que não dispõem de uma linguagem
comum para entender-se entre elas e amiúde se detestam de morte, serão conduzidas a Serra Leoa ou a algum outro lugar cheio de boas intenções, onde serão informadas
do que devem fazer para pagar o devido; essa gente não há trabalhado na vida e comem tipos diferentes de alimentos. Não, não. Conforme ele, seria muito melhor, mais
bondoso, deixar que viajem amontoados, que cheguem em um abrir e fechar de olhos às Antilhas, e que ali os vendam a pessoas que não só cuidarão deles, pois qualquer
que olhe para seu própio interesse cuidará do que tanto lhe há custado, como que também os converterão em cristãos, que era o melhor de tudo, pois pelo menos os
escravos se salvariam, enquanto que o resto de congêneres que fiquem na África ou que sejam devolvidos para lá serão condenados por toda a eternidade. Então repetiu
aquilo que disse com respeito à que a abolição da escravidão suporia a destruição da Armada, e terminou dizendo que as Sagradas Escrituras aceitavam a escravidão.
Contudo, estava totalmente disposto a cumprir com suas ordens até onde fosse necessário, pois esse é o dever de qualquer oficial.
- E o que respondeu a tudo isso, Stephen?
- Não disse nada, eu juro. Houve poucos momentos nos quais pude intercalar palavra, mas de vez em quando fiz um ou outro gesto ambíguo com a cabeça. Então lhe prescrevi
uma dose que talvez o apazigue; estou seguro de que pelo menos bastará para purgar seus humores mais malignos.
- Talvez a partir de agora seja melhor companhia. Deve ser muito fatigoso isso de estar consumido em um perpétuo estado de raiva ou, pelo menos, a ponto de acender-se
ante a menor contrariedade. - O ouvido de Jack captou o imperceptível som metálico do mecanismo do relógio que Stephen guardava no bolso. - A segunda guarda do quartilho
- exclamou, e dirigindo-se à cabine fez soar a sino para chamar um guarda-marinha. - Senhor Wetherby - disse, - seja o senhor tão amável de apresentar meus respeitos
ao capitão Pullings e de comunicar-lhe que me agradaria saber a distância que percorremos desde a medição deste meio-dia.
- À ordem, senhor - disse o jovem cavalheiro, que ao cabo de um minuto já estava de volta com um pedaço de papel. Jack o observou, sorriu, entrou na cabine do piloto
para fazer uma última comprovação, e se dirigiu a passo leve para a caixa forrada de ferro que guardava em seu armário: ferro com lastro de chumbo, para todos aqueles
documentos que não deviam cair em mãos do inimigo, entre os quais se contavam sinais, códigos e correspondência oficial; caixa que afundaria de imediato sem risco
algum de que pudessem ser recuperados. Suas ordens secretas eram as mais volumosas que recebera em toda seu carreira, e comprovou com um prazer entusiasta que incluíam
os comentários e observações daqueles comandantes que o haviam precedido desde 1808, encarregados da mesma missão, pois sua relação com essa costa praticamente reduzira
a navegar ao largo tão longe e tão rápido como lhe foi possível daquele canto tão extraordinariamente insalubre do mundo, e a sofrer ventos variáveis, penosas correntes
e calmarias quando esteve perto.
Depois de inspecioná-las pela frente e por trás, acariciou com o olhar o texto escrito e a meia leitura seu rosto se iluminou com um sorriso de puro prazer. Compreendeu
com extraordinária rapidez que, após fustigar aos negreiros, devia dirigir-se em uma data concreta a uma longitude e a uma latitude determinadas, onde tinha que
reunir aos barcos listados na margem e adotar um rumo concreto, com objetivo de interceptar e destruir uma esquadra francesa que partiria de Brest em uma data igual
à sua e que, inicialmente rumaria para as Açores, mas que depois, próximos a, ou em torno dos vinte e cinco graus de longitude oeste, mudaria seu rumo para a baía
Bantry. Toda esta informação ia acompanhada por certa quantidade de reservas, às quais Jack estava acostumado. Havia captado o cerne no mesmo instante e seus olhos
repassaram o parágrafo que rematava a maioria das ordens que havia recebido. Em seu empenho podia contar com os conselhos do doutor Stephen Maturin - o qual poderia
transmitir-lhe datas e posições mais precisas, dados que este receberia através dos canais adequados - para tudo aquilo que tivesse aspecto político ou diplomático.
Ignorou a garantia conforme a qual se fracassasse ou se descuidasse de uma parte ou a totalidade do assinalado responderia por sua conta e risco (último e grato
detalhe de suas senhorias), e chamou a Stephen desde a galeria de popa, a parcela mais atraente da arquitetura naval. Apenas Stephen compareceu e o resplendor que
iluminava o rosto de Jack, no sorriso, em seus olhos, desapareceu devido a duas ou três possibilidades que lhe ocorreram. Seguro de que os franceses pretendiam levar
a cabo outra invasão da Irlanda, ou "libertação", tal como eles a chamavam, e então sentiu certo receio na hora de tocar no tema. Stephen nunca havia defendido suas
opiniões com veemência, jamais as expusera com injuriosa clareza, mas Jack sabia perfeitamente bem que preferia que os ingleses se limitassem a permanecer na Inglaterra
e deixassem o governo irlandês cuidar dos seus.
Maturin observou como mudava a expressão, contida em um rosto basicamente ruborizado, apesar de sua pele morena, rosto de olhos azuis que expeliam um brilho peculiar,
um rosto cinzelado para o bom humor, e também observou os papéis que tinha na mão.
- Creio que já saberá tudo a respeito, Stephen. - Este inclinou a cabeça. - De qualquer forma, há uma carta para você - disse estendendo-a. - Quer que visitemos
a popa?
Mesmo para um comodoro de primeira classe com um capitão sob seu comando, por muito que tal comodoro exibisse um chapéu de contra-almirante, a intimidade resultava
um bem apreciado a bordo de um barco repleto de gente tão dada à curiosidade e aos falatórios. Sobretudo tratando-se de um navio de guerra que contava entre os seus
com marinheiros tão perguntões como Killick e seu ajudante Grimble, cujas obrigações lhes permitiam aceder a lugares sagrados, e que eram grandes conhecedores de
que gradeado dava para que lugar, e que corrente de ar arrastava melhor as palavras.
O castelinho, majestoso com cerca de uns cinqüenta pés de largura por vinte e oito de comprimento, livrou-se da presença do cabo de sinais e de seus amigos, de tal
forma que Jack e Stephen puderam passear pelo convés durante um tempo.
- Não sabe por onde começar, querido - disse Stephen quando haviam dado doze voltas, - de modo que vou lhe explicar do que se trata. A questão irlandesa, tal e como
a gente a conhece graças aos jornais, poderia resolver-se a meu entender mediante a implantação de duas medidas muito simples. Primeiro, a emancipação católica.
Segundo, a dissolução da União. É possível que com o tempo se possa conseguir sem necessidade de violência. Mas se os franceses desembarcarem em solo irlandês e
se empenharem em proporcionar armas aos descontentes, armar-se-á uma população extrordinária, não haverá mais que violência e mais violência, e mesmo se isso sucedesse
poderia inclinar-se a balança a favor desse diabo do Bonaparte. Em tal caso, em que posição ficaria a Irlanda? Em uma situação muito pior, submetida a uma tirania
tão eficiente como carente de escrúpulos, católica só de nome e notavelmente ávida de butim. Pense em Roma, Veneza, Suiça, Malta... Não. Ainda que possa doer a muitos
de meus amigos, empenharei todas minhas forças em impedir o desembarque do francês. Servi por tempo suficiente na Armada como para saber quando se deve escolher
entre dois males, e eleger o mal menor.
- Não duvido disso, irmão - disse Jack olhando-lhe com afeto. - Certamente me aconselharam recorrer a você para resolver todos os pontos difíceis que possam surgir,
e quando tenha um momento lhe mostrarei toda a documentação; ainda que permita-me dizer que o Almirantado, depois de fazer notar que amiúde se produzem muitas baixas
nas costas da África Ocidental, assinala que durante a primeira fase da operação podemos reunir a bordo de um mesmo barco a todos os enfermos graves da esquadra,
e que, depois, esse barco pode rumar para a ilha Ascensão, onde durante a estação apropiada encontrará consolo nas tartarugas, além de água fresca e certas verduras.
- Ah, Ascensão... - disse Stephen, ansioso.
- E também me informaram de que o atual governador de Serra Leoa é meu velho companheiro de rancho James Wood. Recorda-se de James Wood, Stephen? Uma bala lhe atravessou
a garganta em porto Vecchio, e em lugar de falar se diria que ofega. Nós o visitamos a bordo da Hebe quando esteve nos Downs, e ele passou alguns dias em Ashgrove.
- Aquele cavalheiro tão alegre que encheu o barco com uma quantidade inconcebível de cabo, tinta e outros?
- O mesmo. Não é muito amigo dos formulários, mas gosta de jogar-se ao mar em um barco bem armado, ainda que isso suponha confraternizar com a gente de mestrança
até um ponto que lhe pareceria surpreendente. Também tem boa mão para jogar uíste.
- Lembro-me dele perfeitamente.
- É claro que sim - disse Jack, sorrindo ao rememorar a jovialidade com que subornava o capitão Wood, concretamente em uma ocasião em que adquiriu uma das âncoras
de respeito do navio almirante. - E como sabe tudo a respeito da segunda parte, não aprofundarei mais nisso - continuou dizendo em pouco mais que um sussurro, -
não direi uma palavra, melhor mantê-lo na sombra. Mas lhe falarei da primeira, que insiste na necessidade de dar um bom golpe na cabeça desses negreiros. Ordenaram-nos
fazer um estrondo de mil demônios e deixar boquiaberto a todo aquele que possa estar observando nossas idas e vindas, assim como libertar a tantos escravos como
nos seja possível. Não tenho nenhuma experiência no tocante ao último, e ainda que tenha olhado os escassos comentários dos comandantes anteriores gostaria de saber
muito mais, e acredito que perguntar será a única forma de averiguá-lo. Não é possível formular perguntas a um livro ou a um informe, mas em troca umas palavras
com o tipo que os escreveu bastarão para tirar muitas dúvidas. De modo que me propus a reunir todos os capitães e perguntar-lhes tudo o que saibam; vou convidá-los
para almoçar amanhã. - Apertou o passo e gritou em direção ao castelo de popa. - Capitão Pullings!
- Senhor?
- Vamos hastear o sinal de reunir a todos os capitães.
- À ordem, senhor. Senhor Miller - disse ao oficial de guarda. - Chame a bordo a todos os capitães.
- À ordem, senhor. Senhor Soames... - E desta guisa passou a ordem do tenente de sinais ao guarda-marinha de sinais até o suboficial encarregado de içá-lo fisicamente,
que teve tempo de sobra de preparar a adriça. Ordem a todos os capitães para que compareçam a bordo do navio insígnia. Pouco depois se desdobrou no tope, e os bergantins
repetidores de sinais o repetiram ao longo de toda a linha. A dita ordem causou consternação em mais de uma cabine. Os capitães se livraram das calças de trabalho
e das casacas de nanquim (dia caloroso aquele, com vento de popa) e vestiram suados os calções brancos, as meias brancas e o colete não menos branco, rematado o
conjunto com uma casaca azul de pano fino e rebordos dourados.
Sua chegada não respeitou uma ordem particular, ainda que foram pontuais; contudo, a falua da Thames chegou um pouco tarde, e pôde se ouvir seu capitão maldizer
ao guarda-marinha, ao timoneiro e a "esse bastardo que estava de proeiro" durante seus bons cinco minutos. Quando todos estavam reunidos no castelinho, que pareceu
a Jack um lugar mais arejado e informal que o castelo de popa, este lhes disse:
- Cavalheiros, devo informar-lhes de que minhas ordens requerem que a esquadra leve a cabo uma demonstração de força ao chegar à costa. Disponho dos informes e observações
dos comandantes anteriores que serviram neste posto, mas também me agradaria conversar com todos aqueles oficiais que tenham navegado nestas águas. Não sei se posso
contar com algum dos senhores, ou, talvez, com algum dos oficiais que estejam sob seu comando.
Burburinho geral. Cruzamento de olhares, e Jack, voltando-se para o capitão Thomas, que servira durante muito tempo nas Antilhas, onde também possuía uma propriedade,
perguntou-lhe se tinha algo em particular a dizer.
- Eu? - exclamou Thomas. - E por que eu teria algo em particular a dizer com respeito à escravidão? - Então, ao ver o pasmo desenhado nas faces dos que o rodeavam,
conteve-se, tossiu e acrescentou: - Peço-lhe perdão, senhor, se me mostrei um tanto brusco: estou nervoso depois de comprovar o quão estúpida que é a dotação de
minha falua. Não, não tenho nada em particular a dizer a esse respeito. - chegado a este ponto voltou a morder a língua, e Stephen e o senhor Adams trocaram uma
olhada esquiva; a expressão de seus rostos não se viu alterada em nem um pouco, ainda que ambos tiveram a certeza de que as palavras que se havia tragado teriam
servido de apologia ao comércio e, certamente, à própia escravidão.
- Bem, lamento que tudo isto tenha sido completamente em vão - disse Jack, observando a todos para constatar o uniforme olhar de estupidez nos rostos de seus capitães.
- Contudo, os informes de meus predecessores deixam perfeitamente claro que boa parte do serviço terá lugar perto da margem, este é um negócio que se resolve desde
os botes, de tal maneira que devo pedir a todos os oficiais presentes que se assegurem de que suas embarcações auxiliares estejam disponíveis e em bom estado, e
que contem com dotações familiarizadas em tratar com paus e navegar a vela cobrindo distâncias consideráveis. Senhor Howard, diria que anteontem lhe vi arriar o
bote com uma brusquidão inusitada.
- Isso mesmo, senhor - respondeu Howard, sorrindo. - Foi coisa do idiota do pajem de limpeza. Arpoou um bonito com tanto zelo que atravessou a portaló das miras
de proa para cair sobre o peixe, tudo isso sem soltar o arpão, cujo chicote tinha ao redor da munheca. Por sorte o bote pendia do pescante e estávamos a ponto de
estivá-lo, de modo que o devolvemos ao mar e recuperamos a única arma decente que levamos a bordo.
- Muito bem - elogiou Jack, - mas vamos, foi muito bem feito, sim senhor. E a palavra arma me recorda o seguinte: jogar rapidamente os botes na água e governá-los
bem é muito importante, mas não deve, sob nenhum pretexto, afetar nossos exercícios com os canhões, cujos resultados, como todos sem dúvida reconhecerão, ainda deixam
muito a desejar. Sem dúvida amanhã será um dia excepcional; e espero e confio que apesar do exercício os senhores disporão de tempo suficiente para acompanhar-me
durante o almoço.
Soaram duas badaladas. Killick, seu ajudante e três serventes se deslocaram com sumo cuidado até a escada do castelinho, armados os dois primeiros de bandejas com
jarras que continham as bebidas mais apropiadas para tais horas, e os outros dos copos para desfrutar delas.
A medida que se despedia dos capitães com o clamor dos apitos, Howard, amigo de Stephen, aproximou-se dele e lhe perguntou:
- Por certo, Maturin, o senhor que conhece ao comodoro infinitamente melhor que eu, saberá sem dúvida quão preciso é em o uso do termo "oficial".
- Bastante, acho. É muito sencível quanto ao costume de classes e títulos. Assim como Nelson, não suportava a sir Sydney Smith, cavalheiro da Suécia. Contudo, o
comodoro é um homem muito razoável.
- Certamente, certamente. Não sabe quanto me surpreendeu a convicção, a ordem e a clareza do estudo sobre a nutação que apresentou ante a Royal Society (Scholey
me levou), e diria que durante alguns dias não só compreendi a natureza da nutação, como inclusive a precessão dos equinócios.
- Não posso dizer que me surpreenda. É o melhor astrônomo do mundo.
- Sim. Mas voltando ao assunto. Tenho na Aurora um ajudante do piloto de derrota que já é algo veterano, chama-se Whewell. E um ajudante do piloto de derrota, como
o senhor bem saberá, não é um oficial no sentido estrito da palavra, não é um oficial de guerra. Serviu a tempos, foi aprovado no exame público, ou semi-público,
de tenente, mas foi reprovado no de cavalheiro; em resumo, depois dos oficiais que o examinaram conferenciarem em particular, decidiram que não era um cavalheiro,
e que, portanto, não podiam conceder-lhe o certificado de tenente, de modo que seguiu onde estava. Contudo, é um bom marinheiro e sabe muito de barcos negreiros
e de seus costumes.
- Em tal caso, estou completamente seguro de que o comodoro amará entrevistar-se com ele.
- Não poderia encontrar a ninguém melhor. Whewell nasceu na Jamaica, é filho de um armador. Embarcou pela primeira vez em um dos mercantes de seu pai que transportava
mercadorias e alguns escravos, e então Dick Harrison lhe levou ao castelo de popa da Euterpe. Durante a paz serviu de segundo em um dos barcos negreiros de Thomas
que cobriam habitualmente a rota, mas se encheu disso e se alegrou de voltar para a Armada. Antes de servir comigo esteve na Euryalus, de John West.
- Não sabia que o capitão Thomas fosse proprietário de escravos.
- É um negócio de familia; contudo, desde que se proibiu por lei o comércio de escravos se mostra muito sensível a respeito, e não lhe agrada que se saiba.
 
Whewell compareceu a bordo ao cabo de dez minutos, apesar de que havia tido que se barbear e pôr o melhor uniforme que tinha. Era baixinho, arrogante, tinha a cabeça
redonda, tinha em torno de trinta e cinco anos e estava longe de considerar-se atraente: a varíola lhe havia marcado o rosto com fúria, e a explosão de um cartucho
de pólvora salpicara de pontos negros seu rosto, ali onde a doença lhe havia perdoado. Tinha dentes insalubres, falhados e descoloridos. Apesar de tudo, esta feiúra
relativa não justificava sua posição atual na Armada, talvez a mais incômoda de todas, pois Jack sabia de guardas-marinhas de piores aspectos que haviam obtido a
ascensão ao serem aprovados no exame de tenente em Somerset House. Não. O problema era o tom acobreado da escassa tez que Whewell podia considerar como tal, legado
evidente de sua tataravó africana.
- Sente-se, senhor Whewell - convidou Jack, levantando-se ao vê-lo entrar na câmara. - Sem dúvida o senhor será consciente de que nossa esquadra se propôs a acabar
com o comércio de escravos, ou, pelo menos, desalentar todo o possível aos que o praticam. Disseram-me que o senhor possue um conhecimento considerável na matéria
e lhe rogo que me faça um relato breve de sua experiência. Ao doutor Maturin, aquí presente, também agradaria saber algo sobre o assunto; compreenda o senhor, nada
relacionado com a náutica ou as particularidades dos ventos que sopram no golfo de Benín, mas sobre quaisquer aspectos gerais que lhe possam ocorrer.
- Verá, senhor - disse Whewell, olhando para Jack diretamente nos olhos enquanto ordenava seus pensamentos, - nasci em Kingston, onde meu pai possuía alguns mercantes,
e quando era menino costumava amiúde embarcar em qualquer um deles para fazer o comércio com as ilhas até os Estados Unidos, ou atravessar o Atlântico até a África,
ao cabo Palmas e diretos ao golfo para buscar óleo de palma, ouro se podíamos conseguir, pimenta de Guinéu e marfim; e alguns negros se ocorresse, mas não muitos,
pois não costumávamos dedicar-nos ao comércio de escravos, ainda que sim nos convinha tratar com eles amiúde. Foi assim como cheguei a conhecer aquelas águas toleravelmente
bem, sobretudo as do golfo. Um tempo depois meu pai disse a um velho amigo seu, o capitão Harrison, que eu ardia em desejos de alistar-me em um barco de guerra,
e teve a amabilidade de levar-me ao castelo de popa da Euterpe, fundeada em Kingston naquele então. Servi a bordo durante três anos e depois segui a meu capitão
quando baldeou para a Topaze, onde me qualificou como segundo do piloto. Isso foi justo antes da paz, e por causa desta a fragata foi desarmada em Chatham. Eu me
virei para voltar à Jamaica e me dediquei ao que pude (meu pai havia deixado os negócios por então), em sua maior parte pequenos mercantes que cobriam a rota de
Guinéu e ao sul, até Cabinda, ou que cruzavam ao Brasil. Alguns negros, como de costume; mas ainda que estivesse familiarizado com os negreiros e a seus procederes,
sobretudo aos barcos grandes de Liverpool, nunca naveguei a bordo de um até que me alistei no Elkins, na baía de Montego. Os propietários tinham acordado que levasse
mestiços, descobri que era um dos principais da linha no mesmo instante em que pus um pé no convés.
- E como foi que se deu conta disso, senhor? - perguntou Stephen.
- Porque o fogão transbordava em todas as direções, senhor. Geralmente, um barco conta com caldeirões suficientes para satisfazer à dotação (neste caso, ponhamos
trinta marinheiros), mas aqui o tinham calculado para manter com vida a quatrocentos ou quinhentos escravos durante quatro ou cinco mil milhas de passagem de escravo.
Ponhamos um par de meses. E a água estava à altura. Claro que também estava aquela coberta de escravos, a prova definitiva.
- Não acho que sei a que se refere.
- Verá, não se trata de uma coberta no sentido estrito da palavra, senão a um conjunto de gradeados que cobrem todo um espaço reservado aos escravos e que permitem
arejá-la um pouco; amontoam-se debaixo destes gradeados, a uns dois pés ou dois pés e meio quando muito, sentados ou, melhor, encolhidos, geralmente em filas que
escorriam até a popa: na frente os homens, acorrentados aos pares, e as mulheres na popa.
- Quase não poderão sentar-se ainda que sejam dois pés e meio, e menos ainda pôr-se em pé.
- Não, senhor. E costuma ser menos.
- Quantos costumam levar, aproximadamente?
- Para que nos entendamos, direi que quantos possam meter. A conta habitual contempla a três escravos por cada tonelada de arqueio do barco, assim que o Elkins,
o barco no qual eu ia, podia carregar com uns quinhentos, pois seu arqueio ascendia a um total de cento e setenta toneladas. Nesse caso o podem fazer rápido. Mas
há quem os obriguem a ficar tão apertados que ninguém pode se mover, a menos que todos o façam; ademais, se não têm bom vento durante a travessia, os resultados
são terríveis.
- Quando os deixam sair?
- Não saem sob nenhum pretexto enquanto estão à distância de nado da costa. Em alto mar, saem em grupos e sempre de dia.
- E o que me diz do sanitário noturno?
- Não há tal, senhor; nenhum em absoluto. Alguns barcos varrem com a mangueira a merda e levam pessoas às bombas durante a guarda da manhã; há quem obriga os negros
a limpá-lo e, depois, a limpar o convés (todos eles andam por ali desnudos como Deus os trouxe ao mundo) com água e vinagre. Mesmo assim, um barco negreiro fede
a uma milha ou mais a sotavento.
- Não me admira - disse Stephen, - e com semelhante imundice, tanta gente respirando um ar viciado e o calor, imagino que contrairão doenças.
- Sim, senhor, isso mesmo. Ainda que os negros não sofram muito quando os capturam, depois, quando caminham até a costa e os prendem no barracão, e mesmo se não
têm que sentar-se debaixo dos gradeados durante uma semana inteira, enquanto aguardam para que se complete a carga, a fluxão se desata amiúde no terceiro ou quarto
dia, mais ou menos para quando superam os enjôos, momento em que costumam começar as mortes. Às vezes, conforme parece, morrem de pura tristeza. Mesmo a bordo de
um barco razoavelmente cuidadoso, onde açoitavam aos escravos que se negavam a comer e os obrigavam a correr pelo convés para arejar-se e estirar as pernas, recordo
sem esforçar-me muito que em alguns dias jogávamos a vinte pela borda, após uma semana de ter partido de Whydah. Não se considera extraordinário perder uma terça
parte do carregamento.
- E não prevê o patrão do barco, se é inteligente, adotar uma política mais humana com vistas a obter um benefício maior? Afinal de contas, um homem forte pode oscilar
entre as quarenta e as sessenta libras na plataforma onde se realiza o leilão.
- Esses são minoria, senhor; são aqueles que se orgulham de apresentar um gado de primeira, tal como eles dizem. Alguns inclusive possuem fazendas onde os engordam,
submetidos a cuidados médicos. Mas a maioria não o acha necessário. Os benefícios, mesmo com um terço de perdas, são tão grandes agora que o comércio é ilegal, tanto,
que o melhor para eles é carregar o barco até os topes por maior que seja o risco que corram. Sempre existe a possibilidade de que tenham bom vento no golfo e uma
travessia rápida e saudável.
- Que tipo de barcos estão presentes? - perguntou Jack.
- Bem, senhor, depois de aprovar a lei que abolia o comércio, e a chegada de uma esquadra para impô-la, a maioria dos barcos abandonaram a carreira. Há alguns poucos
bergantins muito veleiros na baía, ou na travessia de Rio desde o golfo, para não mencionar os antigos portugueses do sul da Linha, que estão protegidos, mas a maioria
dos negreiros dispõem de escunas, que navegam rápido e são muito marinheiras, e de embarcações de pouco calado. Também desfrutam dos novos clípers de Baltimore de
trezentas toneladas que hasteiam bandeira espanhola, amiúde falsa, com mais ou menos dotação americana e um patrão que diz ser espanhol, pois os espanhóis não estão
condicionados a nossa legislação. Na atualidade, parece que alguns veteranos voltaram ao negócio, depois da esquadra inglesa ter se retirado; consertaram seus barcos,
mais ou menos, para fazer a corrida da Havana. Geralmente conhecem a costa como a palma de sua mão, também aos chefes, e amiúde se aventuram lá onde nenhum estrangeiro
se atreveria a ir. Isso não impede que as embarcações de maior calado tenham que transportar aos escravos em canoas em muitos pontos da costa. Costa abaixo até o
golfo de Biafra se trabalha perto da margem porque é costa de pouca braceagem. Pântanos de mangue e lodo formam a paisagem por centenas de milhas, e há uns mosquitos
tão grandes que quase não se pode respirar, sobretudo na estação das chuvas. Constantemente se encontra uma enseada, pequenos buracos no bosque se se sabe onde buscar,
e ali se encostam as escunas pequenas, que às vezes embarcam todo o carregamento em um só dia.
- Conhece toda a costa, senhor Whewell? - perguntou Jack.
- Não lhe direi que serviria de piloto da costa entre o cabo López e Benguela, senhor, mas estou muito familiarizado com o resto.
- Então demos uma espiada na carta, e vamos descendo desde o norte. Gostaria que o senhor me proporcionasse uma idéia aproximada das condições imperantes na zona,
as correntes, os ventos, certamente, os mercados mais ativos e tudo isso. Depois, outro dia, com o capitão Pullings, o piloto e meu secretário para que tome as notas
necessárias, procederemos mais detalhadamente. Vejamos, aqui temos Serra Leoa e Freetown... Doutor - disse, - certamente o senhor pode ficar se desejar; contudo,
devo advertir-lhe que a partir de agora nossa discussão versará sobre os aspectos puramente náuticos, negócio chato para um homem do interior.
- E o que lo faz o senhor considerar-me como tal, comodoro, diga-me, eu lhe rogo? A água salgada corre por minhas veias como se fosse um arenque em escabeche. Contudo,
a enfermaria me reclama - acrescentou consultando seu relógio. - Tenha um bom dia, senhor Whewell. Espero que um dia destes tenha tempo para falar-me um pouco dos
mamíferos da África Ocidental. Tenho entendido que existem não menos que três espécies de pangolim.
 
No dia seguinte devia celebrar-se o almoço do comodoro em companhia de seus capitães. Foi um dia esgotador, muito mais do que puderam expressar com palavras quem
se alojava a popa, devido à incessante, esquiva e conflituosa atividade do despenseiro do comodoro, Preserved Killick, seu ajudante Grimble, os cozinheiros do capitão
e do comodoro e tantos marinheiros como puderam recrutar-se para esfregar, enxugar, abrilhantar, substituir e levar a cabo os preparativos com o maior rigor, tudo
isso rematado por uma bateria de maltratos e injúrias formuladas uma atrás da outra, geralmente gritando. Jack foi desterrado ao castelo de popa, onde aproveitou
para mostrar aos mais jovens o modo correto de manejar um sextante e examinar a quem morava no camarote dos guardas-marinhas sobre os conhecimentos que possuíam
das estrelas principais para a navegação astronômica. Stephen não teve mais remédio que refugiar-se na coberta dos alojamentos, onde leu com atenção as anotações
de seus ajudantes, até que irrompeu o pajem de limpeza, que lhe informou de que o cirurgião do Stately havia transbordado com a intenção de ver-lhe.
O senhor Giffard e Stephen tinham uma boa relação, suficientemente boa, em todo caso, para que o senhor Giffard se sentisse incômodo quando tentou convencer a Stephen
de que a sua não era uma visita normal, que não fora para lhe pedir emprestado uma garrafão de melaço de Veneza ou a centésima parte de uma arroba de sopa portátil
e um pouco de tripa. Depois de manter uma tediosa discussão sobre os alísios, Giffard lhe perguntou se poderiam conversar em particular. Stephen o levou de volta
à coberta dos alojamentos, para sua diminuta cabine; uma vez lá, foi Giffard que iniciou a conversa.
- Acho que poderia considerar-se este tema adequado para dois homens de medicina: confio em não atraiçoar ou ofender a discrição profissional se lhe digo que nosso
capitão é um pederasta, que introduz de noite em sua cabine aos marinheiros mais jovens do traquete, que os oficiais estão muito preocupados, pois estes jovens são
muito favorecidos, coisa que com o tempo socavará por completo a disciplina. A coisa já anda muito frouxa, mas titubeiam sobre se devem empreender ou não medidas
oficiais, o que acabaria necessariamente em um enforcamento ignominioso, além de dinfamar a embarcação. Confiam na possibilidade de que umas palavras em particular
com o comodoro obtenham o efeito desejado. Um homem de medicina, um amigo e velho companheiro de tripulação...
- Não vou fingir que não lhe entendi - disse Stephen, - mas devo informar-lhe que detesto a um delator tanto ou mais como possa detestar a um sodomita, isso se é
que realmente detesto aos sodomitas, evidentemente, porque basta pensar em Aquiles e em uma centena de sodomitas ilustres como ele. É verdade que em nossa sociedade
tais relações se encontram fora de lugar a bordo de um navio de guerra... Apesar disso, o senhor não aduz nada além de um sem-fim de probabilidades. Por caso a reputação
de um homem deve ver-se esfregada pelo chão por uma simples relação de possibilidades que, além disso, são de segunda mão?
- Pense no bem da Armada - aduziu Giffard.
- Certo - disse Stephen, que interrompeu sua réplica para elevar o tom de voz: - Entre.
- Por favor, senhor - disse um pajem de limpeza. - O senhor Killick me encarrega de perguntar-lhe se não pensa em pôr a camisa de babados. Está com ela na mão a
meia ampulheta ou mais.
- Jesus, Maria e José - exclamou Stephen, levando a mão ao lugar onde devia encontrar-se o relógio que havia esquecido no jardim de popa. - Senhor Giffard, peço
que me perdoe... Acha adequado que lhe informe mais adiante de minha decisão, quando tenha podido considerá-la com mais calma?
 
A capacidade de confeccionar com celeridade uma camisa de cambraia sob medida e enfeitá-la com um peitilho de babados, para depois passar esse mesmo peitilho até
conferir-lhe uma tensa perfeição, parecia coisa bastante improvável em alguém tão tosco como Killick; contudo, era um marinheiro, e mais hábil com a agulha do que
um homem de sua profissão costumava ser, de modo que nem ele nem ninguém o consideraram fora de lugar.
Portanto, Stephen aguardou de pé no castelo de popa do Bellona a chegada dos convidados, vestido com tão elegante camisa. Os nomes das embarcações foram anunciados:
a Thames, a Aurora, a Camilla, a Laurel, a medida que os capitães destas chegavam na falua correspondente, um atrás do outro, saudados com o toque do apito a modo
de boas-vindas. Estavam todos presentes quando apareceu a falua do Stately, governada pelo orgulhoso timoneiro de Duff, acompanhado por um guarda-marinha com um
chapéu adornado por um laço dourado e vogada por dez jovens remadores, enfeitados até o paroxismo da elegância e o esplendor náuticos: calções brancos apertados
com galões nas costuras, camisas com bordados, lenços de pescoço vermelhos, chapéus de palha de aba larga e tranças serpenteantes. Com as palavras de Giffard em
mente, Stephen os observou com atenção. Separadamente não havia nada que chamasse a atenção naqueles marinheiros, mas considerou algo estranho o fato de que usarem
um mesmo uniforme. E não foi o único. Jack Aubrey deu uma espiada na falua depois de cumprimentar ao capitão Duff, riu com vontade e disse:
- Palavra, senhor Duff, que o senhor terá que cuidar do aparelho dessas senhoritas, antes que algum grosseiro comece a ter idéias cômicas a respeito. Já acho ouvir-lhes
dizer: "sodomizai-los amanhã" e citar depois o Artigo vigésimo nono. Oh, ah, ah, ah!
O almoço foi às mil maravilhas, e mesmo o Imperador Púrpura, consciente de sua capacidade para meter a pata e fiel devoto de seu estômago, havia se proposto a mostrar-se
agradável. Uma sessão de pesca das aberturas da câmara dos oficiais servira para fazer-se com um esplêndido exemplar jovem de peixe espada; o gado do comodoro, três
pares de aves e uma ovelha; sua adega, uma quantidade considerável de clarete, forçosamente quente mas com a qualidade suficiente para fazer as honras; e o novilho
de Jérsei, um doce frio feito com nata, licor e suco de limão; também se serviu um queijo aceitável e bolos de amêndoas, com os quais os convidados puderam contornar
a tormenta provocada pelo vinho do porto.
Stephen desfrutou muito da refeição sentado, a um lado, junto a Howard - com quem pôde conversar sobre Safo e as alegrias que lhe havia proporcionado o sino de imersão,
- e, pelo outro, com um oficial da infantaria da marinha que conhecia a um número surpreendente de membros do mundinho literário londrino e que, para seu enorme
prazer, falou-lhe do romance do senhor John Paulton, romance que todo mundo elogiava nesse momento, obra dedicada, curiosamente, a um cavalheiro que tinha o mesmo
nome que o doutor Maturin e que sem dúvida devia tratar-se de algum familiar de Stephen.
O capitão Duff estava sentado em frente dele e tiveram ocasião de trocar algumas palavras amistosas; mas não mais, já que a mesa era muito esplêndida e o rumor da
conversa não fazia honra a tal apelativo. Apesar de tudo, em ocasiões, quando seus interlocutores estavam empenhados em outro assunto, Stephen aproveitou para inspecionar
seu rosto, seu comportamento e conversa: Duff era um homem inusualmente atraente e de aspecto viril, de uns trinta e cinco anos e mais corpulento que a maioria,
sem um só indício dos traços que costumam associar-se aos afetos pouco ortodoxos; a grosseria do comodoro não pareceu afetar-lhe nem um pouco, e em ocasiões Stephen
se perguntou se os oficiais do Stately não estariam completamente equivocados. Era óbvio que se tratava de um homem cordial, tanto como costumavam os oficiais de
guerra ser, disposto a comprazer e a ser comprazido. Definitivamente, um bom interlocutor. Stephen sabia que havia combatido em um de seus comandos, uma fragata
de trinta e dois canhões de doze libras, e que o fizera com distinção. Contudo, houve alguns momentos nos quais lhe pareceu observar certa ansiedade, certo desejo
de aprovação.
"Se seus oficiais estão certos - refletiu Stephen quando tiveram que brindar à saúde do rei, - quanto anseio que o comentário aparentemente cândido e inocente de
Jack lhe sirva de advertência."
Todos os presentes tomaram o café no castelinho, de pé com as xícaras na mão, desfrutando da brisa. Antes de despedir-se do comodoro, Duff se aproximou de Stephen
para dizer-lhe que esperava poder ver-lhe em terra, quando chegassem a Serra Leoa.
- Eu também o espero, verdade que sim - respondeu Stephen, - ainda que também espero poder observar algumas das aves, bestas e flores desta zona. Levamos a bordo
a um jovem oficial bom conhecedor do ambiente, a quem pedi que me fale de tudo isso.
 
Mas passou muito, muito tempo antes de que o senhor Whewell pudesse contar ao doutor tudo o que sabia com respeito à fauna da África Ocidental, já que dia atrás
de dia esteve encerrado com o comodoro e seus oficiais em chefe enquanto a esquadra singrava lentamente para o sul. Geralmente, aquela era a parte mais agradável
da viagem em um barco estanque, empurrado pelos alísios sob um sol intenso que ainda não merecia o qualificativo de sufocante, pois não fazia falta tocar uma escota
ou uma braça e os marinheiros no convés confeccionavam de dia a roupa de verão, enquanto que de noite bailavam no castelo de proa. Contudo, as coisas haviam mudado,
haviam mudado muito, haviam mudado mais do que o mais veterano dos marinheiros era capaz de recordar. O comodoro, imitado pela maioria de seus capitães, começara
a preparar a esquadra: "Não há um minuto a perder", observou depois de ordenar que hasteassem o sinal correspondente para que a Thames largasse mais trapo; e estava
claro que tinha razão. Nem mesmo seu própio barco, superior em capacidade artilheira graças à presença de um forte contingente de antigos marinheiros da Surprise,
era tão rápido como a Thames na hora de jogar, dotar e armar todos os botes, e mais de uma palavra inconveniente trocou o capitão Pullings com seus tenentes, segundos
do piloto e guardas-marinhas, palavras que passaram de uns para os outros, às vezes impregnadas de um aquecimento excessivo. Todo o negócio de jogar os botes ao
mar com prontidão, assim como envergar os mastaréus de joanete em treze minutos e cinqüenta e cinco segundos, ou desenvergá-los em dois minutos vinte e cinco segundos,
era algo de tantos exercícios de porto com que destacava qualquer comandante do posto das Antilhas. Ainda que as gentes da Thames não pareciam conscientes do que
fazer quando se encontravam na água embarcadas nos botes (além de vogar), sua velocidade deixava em ridículo o restante dos componentes da esquadra.
Dia atrás de dia suavam muito com os exercícios de artilharia, com as práticas de armas leves e com esse exercício de jogar os botes, embarcar e vogar que, amiúde,
incluía também o transbordo de caronadas nas embarcações auxiliares de maior calado. Todas estas atividades, que não só deviam ser, como que eram adequadamente cronometradas,
eram realizadas junto com o resto dos trabalhos habituais, e ainda que afundaram os marinheiros em um estado parecido com a letargia durante os primeiros dias, produziu-se
uma descida considerável em toda a esquadra do número de tripulantes que faltavam ao dever, inclusive em um barco desafortunado como a Thames: quase não houve bêbados,
nem brigões, nem burburinhos (o pior crime de todos).
Desde o princípio entrou em jogo o afã de emulação, feito com brvura, e em uma ocasião Stephen viu a Joe Plaice, seu amigo alto, gordo e calvo, jogar o chapéu no
convés e saltar em cima lançando um juramento desmedido, quando o guarda-marinha do cúter azul, depois de comparar as marcas, afirmou que a Laurel os tinha superado
em seis segundos na hora de cruzar as vergas superiores. Certamente, Jack Aubrey, testemunha dos olhares pétreos com que os outros receberam a bordo a dotação da
falua, às vezes se perguntava se a rivalidade não estaria alcançando um ponto sem retorno; contudo, não tinha tempo para pensamentos abstratos, pois passava a maior
parte do dia com Whewell, John Woodbine - piloto do Bellona e excelente navegante, - o senhor Adams e, em ocasiões, o própio Tom Pullings, repassando as cartas,
anotando os comentários de Whewell, cotejando-os com a documentação do Almirantado, e tentando em seu foro íntimo planejar uma breve e surpreendente jogada de abertura
para a campanha contra os negreiros, campanha destinada a impressionar à opinião pública. Breve, breve, por força tinha que ser breve. Estava obcecado com temor
de faltar a seu encontro com os franceses, verdadeiro objetivo da expedição, e sabia - quem melhor que ele para sabê-lo? - que praticamente toda a costa africana
que lhe concernia era pouco confiável do ponto de vista do vento, em particular os temíveis golfos. Se tudo se desenrolasse como esperava mas se ao pôr rumo norte
a esquadra se visse presa nas calmarias, com as velas flácidas, sem fazer avante, enquanto que os franceses navegavam para o noroeste, para a Irlanda, procedentes
de algum ponto próximo às Açores - pois fintariam nessa direção, como se sua intenção fosse a de atacar as Antilhas, - estava disposto a enforcar-se do pau maior.
Por outro lado, tinha que fazer o possível por cumprir com suas ordens, e não só isso, também tinha que deixar-se ver e ouvir enquanto cumpria com seu dever.
A morte de Gray abrira uma vaga entre os tenentes do Bellona, e seu modo de solucioná-lo foi proporcionando uma capacitação temporal a Whewell. Sabia que alguns
de seus jovens cavalheiros se sentiriam muito agravados por isso, pois uma capacitação temporal concedida por um comodoro tinha todos os reflexos de ver-se confirmada
pelo Almirantado; mas não podia passar sem os excepcionais conhecimentos e os contatos de Whewell, sua compreensão dos assuntos tanto tribais como mercantis em toda
a costa, e sua capacidade para as línguas. Além disso, simpatizava com Whewell antes de ter se acostumado ao seu desagradável sorriso, e não só por ter idéias claras,
uma inteligência aguda e uma compreensão do mar própia de um oficial, mas por sua forma de ser. Aquelas reuniões de planejamento amiúde solapavam as horas estabelecidas
para as refeições, assim que Jack e seus colegas as celebravam ali mesmo sem interrupção, e inclusive chegaram em ocasiões a prescindir por completo do sacrossanto
almoço.
Tudo isto devolveu a Stephen ao lugar que por natureza devia ocupar na economia doméstica a bordo: o cirurgião era mais um membro da câmara dos oficiais. Ainda que
a câmara do Bellona fosse um apartamento longo e atraente, com uma esplêndida galeria de popa própia, amiúde lhe parecia excessivamente concorrida. Na qualidade
de navio insígnia levava um tenente e um oficial da infantaria da marinha a mais, de modo que quando Stephen fazia ato de presença, geralmente tarde, era o décimo
terceiro a sentar-se à mesa, o que tirava de suas rotinas a seus companheiros de rancho e aos membros do serviço. Raras vezes comera antes ali, assim que a duras
penas todos sabiam do que gostava. Todos sabiam que que era amigo íntimo tanto do capitão como do comodoro, e se dizia que era mais rico que ambos, o que constituia
outro motivo de reserva, tanto mais porque não parecia amigo de falatórios e amiúde parecia completamente ausente.
Resumidamente, sentia-se um tanto coibido em companhia dos presentes, companhia que, curiosamente, ou pelo menos isso lhe pareceu, não incluía a nenhum de seus antigos
companheiros de tripulação. Pois também considerava insuportável o papo furado e as anedotas intermináveis de dois dos tenentes de infantaria da marinha, para não
mencionar os truques de mágica que o contador se empenhava em fazer, optou por apresentar-se no final da refeição, ou levar algo em um lenço para a cabine do cirurgião,
situada abaixo, bem longe, na enfermaria da coberta dos alojamentos.
Desde a viagem a A Corunha, Stephen se sentira arrebatado por uma profunda felicidade, tanto dormindo como acordado. A sua felicidade era subjacente, disposta a
aflorar à superfície em qualquer momento. Contudo, mais que tigida se via acompanhada de certa saudade pela vida no mar que conhecera até o presente, a vida de um
povoado onde se conhece ao restante dos habitantes, onde, a força de tratá-los continuamente, o normal era dar-se bem praticamente com todos eles. Um povoado cuja
geografia, a pesar de complexa, seguia uma lógica marítima, própia, e que, com o tempo, tornava-se tão íntima como a de um lar.
Contudo, um navio de duas pontes era uma cidade, e se necessitaria de um período de serviço extenso para vislumbrar uma pálida sombra da mesma liberdade e companheirismo
entre seus seiscentos habitantes (incluídos os supernumerários), se é que isso podia chegar a ser possível. Aí estava o caso do Worcester, como não, e do horrível
e velho Leopard; mas sua passagem pelo primeiro foi uma experiência breve e variada, enquanto que o segundo, pouco maior que uma fragata pesada, havia desembocado
em tal riqueza de conhecimentos em filosofia natural, tanto das criaturas como da escassa vegetação do Antártico, que quase não estavam à altura de figurar como
exemplos do que sentia no momento presente.
"Não só a disparidade de tamanhos é o que marca a diferença - refletiu deixando sua cabine para desfrutar de um pouco de ar fresco antes de fazer a ronda, - também
a marca a presença desta outra dimensão, este piso adicional, ou coberta."
A medida que as palavras apareciam em sua mente e que seus passos lhe conduziam escadas acima até que sua cabeça assomou por cima da coberta em questão, teve uma
nova oportunidade desde que vivia no mar de admirar e se maravilhar. Todas as portalós dos canhões estavam abertas de par em par; a luz intensa do sol minguante
se refletia em um mar calmo e ondulado que inundava com sua claridade todo seu campo de visão; a cena estava banhada por um tom de luz dourado, sutilmente matizado
pelos paus, e a cada lado se encontravam dispostas as filas precisas formadas pelos enormes canhões de trinta e duas libras, enquanto que o extremo ficava coberto
pela proteção de lona que protegia a enfermaria. Todo o conjunto, em sua perfeita e simétrica simplicidade, desenhava um enorme natureza-morta tão satisfatório como
jamais o tinha visto.
- Que tipo de exercício terá desembocado nesta maravilhosa pompa? - perguntou em voz alta. Todo tipo de exercícios tinham lugar continuamente nos barcos da esquadra,
coisa que sabia perfeitamente bem, dado o número de baixas que acabavam na enfermaria: entorses, fraturas de pé, os habituais casos de hérnia, e as queimaduras provocadas
pelo uso da pólvora; contudo, ignorava o que havia motivado aquela esplêndida vacuidade luminosa, aquele odor de sal, breu e de mecha de combustão lenta.
A natureza-morta mudou ante seu olhar, trocou de forma surpreendente depois da irrupção de um garoto que surgiu em sua totalidade por uma escotilha situada na proa,
a estibordo, e que passou a correr para a popa.
- Finalmente lhe encontro, senhor! - exclamou para assegurar-se de contar com toda sua atenção. - Estive procurando-lhe por toda parte. O comodoro me pediu que lhe
transmita suas saldações, e me ordenou comunicar-lhe quanto o alegraria ver ao doutor Maturin no castelinho, contanto que lhe vá bem ao senhor.
- Obrigado, senhor Wetherby lhe peço que comunique ao comodoro com todos meus respeitos que assim que tenha dado uma espiada na enfermaria terei a honra de esperá-lo
acima.
 
- Ah, Stephen, aí está - exclamou Jack. - Faz séculos que não o vejo. Como anda?
- Admiravelmente bem, obrigado. A enfermaria me produz uma satisfação enorme. Mas não acredito que possa lhe felicitar pelo bom aspecto que tem - acrescentou empurrando
Jack par baixo da luz para poder observar bem seu rosto.
- Que eu recorde, nunca felicitou por meu aspecto. Acho que me sentiria muito incômodo se começasse a fazê-lo agora.
- Não. Acontece que superou com folga a palidez doentia que a sisuda reflexão costuma provocar em um homem, coisa à qual, efetivamente, não estou acostumado. Esteve
trabalhando em excesso: muito estudo e demasiada observação. Deixe-me ver a língua. Seca, muito seca, diabo, como está seca! O hálito está um pouco fedido. Deixou
talvez de tomar seu banho matinal, de subir ao meio-dia aos diversos cestos da gávea, de passear três milhas antes de retirar-se para a cabine?
- Sim, isso mesmo. Em primeiro lugar porque há uma quantidade grande de tubarões; Whewell assegura que abundam nas rotas dos negreiros. Em segundo e terceiro lugar,
porque quase não tive ocasião de estirar as pernas fora da cabine. Estive terminando um plano de campanha com muita atenção e urgência, porque, verá, ainda que tenha
me proposto a fazer tudo o que razoavelmente possa ser feito no tocante à escravidão, quero fazê-lo rápido, deixando todo o tempo possível para o resto, você sabe.
Ficaremos como palhaços se faltamos ao nosso encontro.
- Espero de todo coração que esteja satisfeito com os progressos.
- Bem, Stephen, pode lhe parecer uma gasconada mas devo admitir que sim. Com a ajuda desse excelente jovem, Whewell, Tom, o senhor Woodbine e eu planejamos uma série
de movimentos que, com um pouco de sorte, nos proporcionarão a vitória. Só o que lamento de verdade é que não vejo nem a mais remota possibilidade de produzir uma
prodigiosa bulha nada ao chegar, tal e como suas senhorias me ordenaram.
Antes de continuar, baixou o tom de voz e conduziu o doutor para a popa, até situar-se junto a um dos esplêndidos faróis que havia ali, farol que se balançava e
cabeceava ao ritmo cadenciado do barco.
- Se me deseja miserável, inclusive blasfemo, dizer que minhas ordens poderiam ter sido escritas por um bando de homens do interior, acostumados à regularidade da
viagem em carro postal, ou à navegação por um canal interno. Apesar de tudo, por outro lado, uma parte de suas senhorias são simples políticos de água doce, se bem
as ordens chegam finalmente às mãos do secretário, aquele asno de Barrow, assim como a certo número de auxilares que nunca pisaram no convés de um barco, mas deixe
estar. Não será a primeira vez que recebo ordens que não levam em conta nem o vento nem a maré, assim como ocorre com o restante dos oficiais da Armada. Não me queixo.
Mas o que me custa horrores compreender é como diabo pretende o ministério que pegue aos negreiros de surpresa quando nossa expedição foi anunciada aos quatro ventos
em meia dúzia de diários de todo o mundo, incluído o TheTimes. E não me diga que esses parágrafos apareceram publicados sem conhecimento prévio de Whitehall. Não,
só o que me ocorre é realizar um exercício em toda regra com os canhões longos, quando chegarmos diante da população. Pelo menos ouvirão um estrondo de mil demônios.
O que não poderia ser mais irritante, porque Whewell me disse que quando a esquadra inglesa anterior se retirou, os negreiros voltaram à carga, inclusive no rio
Galinhas e na ilha Sherbro, junto a Freetown, e com um pouquinho de discrição poderíamos aprisionar a meia dúzia embarcando escravos no estuário. Contudo, amanhã
despacharei a Ringle para dispor de um barco na zona. Com este vento, quase não tardará um dia em chegar.
- Não estará cometendo uma injustiça com o ministério, meu amigo? Imagino que devem ter pensado que se bem alguns agentes de Inteligência franceses figuram entre
os leitores mais atentos do Post e do The Times, poucos negreiros figurarão entre seus subscritores; enquanto que os franceses, convencidos de que se encontra ocupado
ao sul da linha do trópico - convicção reforçada por informes do estrondo que tanto lhe preocupa, - teimarão com suas tretas truhanescas, quer dizer, seus planos,
apesar da presença em águas próximas desta esquadra.
- Oh! - exclamou Jack. - Realmente acha que poderia tratar-se disso?
- Não seria a primeira vez que uma estratagema parecida colha êxito. Isso sim, deve fazer-se com toda a delicadeza possível, ao risco de que quem se excede se veja
excedido.
- Eu é que me excedi, ainda que acredite ter um conhecimento tolerável do mundo. Sem dúvida Whitehall conta com alguns cérebros mais entendidos que eu, e melhor
será que me dedique à navegação e ao violino. Deus, aqui me tens - disse rindo com vontade, - disposto a jogar a política. - Seguiram caminhando um pouco e acrescentou:
- Eu lhe serei sincero, Stephen: a música ferve em meu interior desde o preciso instante em que me falou desse honesto e simpático cavalheiro, Hinksey. Deseja que
toquemos esta noite?
 
O doutor Maturin possuía muitas das virtudes própias de um homem de medicina: escutava tudo aquilo que seus pacientes lhe diziam; desejava de boa fé que mesmo os
mais repulsivos se recuperassem, desde quando se submetessem a seus cuidados; não importava o que lhe pagassem; e, afinal de contas o que tinha lido e de tudo o
que havia experimentado, era plenamente consciente de suas limitações, consciência que amiúde dissimulava, ainda que só fosse com objeto de preservar seu ânimo em
todo o possível: acreditava firmemente nos poderes curativos da alegria, ou, melhor, da hilaridade. Apesar de tudo tinha seus defeitos, e um deles era o costume
de medicar a si mesmo, geralmente movido por seu afã filosófico, tal e como fez, por exemplo, durante o período em que inalou ingentes quantidades de óxido nitroso
e vapor de cânhamo indiano, para não mencionar o tabaco, todas as variedades do bhang, que é como conhecem na Índia ao cânhamo, do betel de Java e ilhas vizinhas,
do cat narcótico do mar Vermelho e dos cáctus alucinógenos da América do Sul, ainda que em ocasiões também o fez movido pela angústia, como quando se tornou viciado
em ópio em qualquer de suas formas. Agora se envenenava com a folha de coca, cujas virtudes havia descoberto no Peru.
Ele as mastigava com um traguinho de lima; levava as folhas em uma bolsa de couro, e a lima em uma caixa peruana em forma de coração, ainda que de um tempo para
cá observara que seus efeitos diminuíam, coisa que atribuía ao tempo que fazia que as tinha. Não parecia experimentar os mesmos efeitos anestésicos em sua boca e
faringe. Podia ser que não fosse mais que o resultado de ter se habituado à substância, mas decidiu que quando a esquadra chegasse ao Brasil conseguiria mais para
abastecer-se de novo e, aquela noite, pois desejava tocar bem, tomou uma dose inusualmente forte. Tocou bem. Ambos o fizeram, e também ambos desfrutaram da música.
Porém, quanto o comodoro, agoniado pelo trabalho, o vinho do porto e o queijo, adormeceu de imediato assim que sua cabeça repousou no travesseiro de sua balançante
maca, Stephen descobriu que as folhas de coca lhe haviam despertado como sempre. De fato, superavam em muito ao café na hora de tirar da cabeça de um a vontade de
dormir. Como desejava escrever suas notas pela manhã, tomou um trago de um potente sonífero, além de um bolo de mandrágora de Java, e introduziu umas bolinhas de
cera em seus ouvidos para evitar ouvir os ruídos do barco, a troca da guarda, o eventual esfregar com pedra arenito do convés, e o rangido e estampido das bombas.
A prática tinha desenvolvido certa habilidade neste exercício; contudo, era, de certa forma, uma criatura muito simples, e não percebera que, ao despertar a cada
novo dia, tinha envelhecido um dia mais, e que, portanto, seu corpo de meia idade dificilmente poderia assimilar uma combinação como aquela, própia de um jovem vigoroso.
Normalmente era difícil despertá-lo em tal estado. E naquele dia resultou ainda mais complicado.
- Peço que me perdoe, senhor - disse Wilkins, o ajudante do piloto de maior antiguidade, - mas não há forma de despertá-lo. Tirei os lençóis, mas fez gesto de morder-me,
e depois voltou a se enrolar, por mais que tenhamos gritado ao seu ouvido e sacudo sua maca.
Foi Killick que o levou por fim ao convés, a meio vestir, mas sem barbear; estava abobado, ressentido e pestanejava devido à luz.
- Ah, o senhor está aqui, doutor! - exclamou Jack em voz muito alta. - Bom dia. Confio em que tenha podido dormir a gosto.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, olhando ao seu redor com o cenho enrugado. A esquadra estava a pairar, e em metade da formação, amainadas as gáveas, viu
um mercante desproporcional de bandeira espanhola, situado um pouco a barlavento do Bellona. Enquanto o observava o vento trouxe um fedor nauseabundo que se estendeu
por todo o convés, de modo que não lhe surpreendeu nem um pouco ouvir Jack dizer que era um negreiro.
- O senhor Whewell conhece esta embarcação, a Nancy, que pertenceu a Kingston antes de que a vendessem. O patrão não tardará em subir a bordo. Gostaria que o senhor
fizesse o possível para distinguir a que nação pertence, e que dê uma espiada em sua documentação caso seja estrangeira. (Deus, quanto anseio que seja mais falso
que Judas) - acrescentou em voz baixa, de tal forma que só Stephen pudesse ouvi-lo.
A bordo do navio negreiro tinham aceso a fumaça dos fogões; havia muitas mulheres nuas e crianças negras no convés; jogaram lentamente o bote ao mar, e quando a
borda do sol refulgiu sobre o horizonte, o patrão do mercante subiu a bordo com os papéis do barco e um intérprete.
- O senhor fala inglês, senhor? - perguntou o capitão Pullings.
- Muito pouco, senhor - respondeu o patrão com sotaque estrangeiro. - Ele traduzirá.
- Porém, o senhor fala espanhol? - perguntou Stephen nessa língua.
- Oh, sim, sim, senhor - respondeu ao mesmo tempo que ria.
Trocaram algumas frases. Stephen pegou o passaporte que levava e depois de dar-lhe uma espiada o jogou na água. O homem soltou um uivo e fez gesto de jogar-se atrás
da documentação, mas se conteve em vistas do povoado que estava o mar.
- É um impostor - disse Stephen. - Um inglês. Não sabe nada de espanhol. Sua documentação é falsa. O senhor pode aprisionar tranqüilamente o barco. - E a Jack: -
Subamos a bordo.
Jack consentiu e chamu a Whewell.
- Nada como o amanhecer para estes descobrimentos - disse ao mesmo tempo que os remadores manejavam a falua. - Quantas vezes terei encontrado uma presa a sotavento,
justo antes das primeiras luzes.
Mas mudou o tom de sua voz por completo quando se aproximaram do mercante: o fedor se intensificou, a água parecia mais hedionda, e guardou um abrupto silêncio ao
ver que jogavam a duas meninas mortas, de pele macilenta, pela borda. Por um instante, alguns tubarões um pouco maiores que as meninas disputaram a presa com vontade,
até que um tubarão enorme, que surgiu por baixo da quilha, despedaçou-as.
Os negros não compreendiam o que estava sucedendo: não o entenderam como um resgate, mas como uma mudança em seu estado de cativeiro, provavelmente para pior; estavam
assustados e também tinham uma fome e uma sede desesperadas. Whewell tentou tranqüilizá-los recorrendo a línguas variadas e também à língua franca da costa: além
de algumas crianças, ninguém lhe acreditou.
Ainda não haviam soltado os homens, mas ao levantar os gradeados apareceu o primeiro grupo pela escada, gaguejando. Caminhavam retorcios e inclinados, depois de
passar toda a noite espremidos em um espaço diminuto, com dois pés e seis polegadas no máximo até dar com a cabeça contra o teto. Jack, Stephen, Whewell e Bonden
desceram sob o convés, onde imperava um fedor irrespirável, vigiados pelos inquietos marinheiros do negreiro, que empunhavam os chicotes com torpeza e indecisão.
Os escravos que estavam mais a popa saíram, quase sem dirigir-lhes o olhar, esfregando-se joelhos, cotovelos e cabeças encarniçadas; iam acorrentados aos pares.
Em geral, suas expressões eram quase inumanas - transluziam apatia e um temor subjacente, - apesar de que era difícil adivinhar em seus rostos uma só emoção que
fosse visível.
A procissão parecia interminável: dezenas e dezenas de homens inclinados, descarnados e humilhados, desnudos, de um colorido negro sem luz. Contudo, ao cabo de um
tempo a procissão rareou quase até cessar por completo.
- Agora, sem dúvida, só nos restam os enfermos. Sempre os levam para proa, onde entra um pouco de ar pelos escovéns. Talvez o senhor queira me acompanhar para dar
uma espiada, doutor?
Stephen, que havia visitado algumas enfermarias de prisão horripilantes, para não falar de manicômios e hospícios, dispunha de certa couraça profissional. Assim
como Whewell, dado o tempo que este servira a bordo de navios negreiros. Mas Jack, não, nem ao menos a coxia da segunda bateria imersa em plena batalha de linha
- lugar conhecido com o nome de "matadouro", - havia lhe preparado para essa visão; sua cabeça girava. Empenhou-se em seguir-lhes e aproximar-se da proa com eles,
e se inclinou sob os vaus: ouviu Stephen dar ordens para que livrassem os escravos das correntes, viu-lhe examinar com luz tênue e o ambiente estancado a vários
homens muito débeis para se moverem, achou compreender que certificava casos de disenteria, que necessitava de homens, água e esfregões.
Subiu ao convés, onde os marinheiros do navio negreiro o observaram consternados, e com voz estrangulada e feroz ordenou a seis marinheiros que descessem à coberta
inferior com baldes e esfregões, a outros seis que fossem às bombas, e a outros quatro que trabalhassem com brio na cozinha. Jogaram todos os chicotes pela borda.
Alguns dos escravos o observaram sem mostrar muita curiosidade; alguns já estavam se lavando; a maioria seguia sentada no convés, agachada.
- Bellona! - gritou.
- Senhor?
- Envie-me a esse tipo com seus homens. Um grupo de infantes da marinha e um oficial; ao armeiro e a seu ajudante. E também aos ajudantes do cirurgião.
Pediu aos gritos a presença do despenseiro de bordo, a quem ordenou estender no convés todas as macas que encontrasse nas cabines, e a medida que subiram aos enfermos,
quer fosse no ombro ou em macas, ordenou também estendê-los nas macas. O patrão do Nancy voltou a seu barco.
- Pegue este esfregão - disse Jack, que se inclinou sobre seu rosto espantado quando o viu assomar pelo costado. - Pegue este esfregão e vá abaixo para limpar. Abaixo
para limpar. Abaixo para limpar!
Em nenhum momento se questionou ou desobedeceu em nem um pouco a autoridade do comodoro a bordo do navio negreiro, pelo contrário, pois os marinheiros se comportaram
com um zelo asqueroso e turvo. Depois, quando os infantes da marinha já haviam formado no convés em fila dupla, a estibordo pela popa, com os mosquetes ao ombro,
a comida surgiu da cozinha em baldes para dez, e os escravos formaram seus bandos habituais, quase enchendo por completo o convés. Haveria uns quinhentos, como mínimo.
- Senhor Whewell - disse Jack. - Poderia dizer-lhes que não vamos feri-los e que não serão vendidos como escravos, aliás serão liberados quando chegarmos a Serra
Leoa dentro de dois dias?
- Eu tentarei, senhor, com as noções que tenho. - E assim o fez, alto e claro, em diversas versões. Meia dúzia de homens negros mostraram interesse, talvez inclusive
lhe compreenderam. O restante devorava a comida e cravava o olhar no nada, ou em um mundo de divagações inescrutáveis.
- Senhor Whewell - disse de novo Jack, - que opinião tem do fato de livrá-los de suas correntes?
- Acho bom, senhor, desde que os infantes da marinha permaneçam a bordo. Contudo, acredito que os marinheiros deveriam ser levados para baixo antes do cair da noite:
um pedaço de fumo impedirá que haja problemas na escuridão.
- Se o doutor precisar de algo - disse Jack, - botes, padiolas, macas ou coisas assim, informe ao capitão Pullings de imediato. (Stephen havia improvisado uma enfermaria
na cabine do patrão). O senhor será substituído antes do final da guarda. Davies - chamou um dos marinheiros de sua falua, homem violento, grande e feio que lhe
seguira de barco em barco, - encarregue-se de que esses tipos das bombas sigam com o trabalho. Pode assustá-los se ficarem moles.
Voltou a bordo do Bellona, tirou toda a roupa, ficou um bom momento debaixo de um jorro de água limpa e se retirou para sua cabine, onde sentou-se a considerar a
situação, a avaliar as opções que surgiam diante de si, a pensar carrancudo, a tomar notas e a escrever duas cartas para o capitão Wood em Serra Leoa, uma oficial
e outra particular.
Durante a maior parte deste lapso de tempo, Stephen sentou-se em companhia de Whewell no cabrestante do mercante negreiro, com o vento pela alheta e o céu limpo
a medida que a esquadra marchava rumo sudeste. Estava razoavelmente satisfeito do estado de seus pacientes; aliviara com ungüento e linho limpo muitos, muitos pulsos
mordidos pelos grilhões, e no convés bem alimentado se respirava um ambiente mais humano.
- O senhor diria que encontramos o barco em um estado terrível, dada sua experiência? - perguntou.
- Oh, não, em absoluto - respondeu Whewell. - Para um barco que partiu há catorze dias de Whydah, eu diria que o encontramos razoavelmente bem. Não. Estava distorcida
a coisa, certamente, e acredito que o comodoro teve uma surpresa; mas havia poucos casos de disenteria, e os que foram diagnosticados se encontravam em um estágio
inicial da doença, de modo que poderia ter sido pior, muito pior. Talvez o pior que vi foi um bergantim chamado Góngora, ao qual perseguimos durante três dias frente
à costa. Durante todo esse tempo mantiveram os escravos abaixo, certamente, sem comida e com ventilação escassa, e quando por fim o apresamos abrimos as escotilhas
e encontramos duzentos cadáveres na coberta inferior: disenteria, fome, asfixia, miséria, e sobretudo o fato de que lutaram entre si armados com as correntes, antes
de debilitar-se por completo. Aquele infeliz bergantim levava partes iguais de Fantis e Ashantis, inimigos mortais que haviam estado em guerra, e os dois bandos
venderam seus prisioneiros no mesmo mercado, de modo que os apertaram a todos ali dentro.
- Peço que me perdoe, senhor - disse o ajudante do piloto de derrota, um homem alto que assomou pela borda, - mas vim substituir o senhor Whewell. O comodoro deseja
ver-lhe quando tenha se lavado e trocado de roupa.
 
- Senhor Whewell - cumprimentou Jack, - corrija-me se me equivoco, mas acredito que é norma em Serra Leoa dispor dos negreiros capturados e condenados de tal maneira
que a estimativa do preço de leilão seja distribuída como butim de presa.
- Isso mesmo, senhor. Faz um tempo, os comerciantes recuperavam os barcos muito marinheiros, que voltavam a empregar no negócio.
- Muito bem. Também nos falou ao doutor e a mim dos kroo, descritos como marinheiros excelentes, pilotos experimentados e conhecedores da costa, inteligentes e de
confiança.
- Sim, senhor. Sempre tiveram essa reputação, e constatei por experiência própia que a merecem e que inclusive a descrição lhes faz jus. Conheço-os bem, desde que
era menino. E além do mais, a maioria deles fala bem o inglês da costa e o compreendem ainda melhor.
- Alegra-me ouvir isso. Verá, aqui tem duas cartas para o capitão Wood, o governador. Nelas peço que condene de imediato este barco, o Nancy, sem julgamento prévio,
e que permaneça ancorado na enseada após ser esvaziado. Também peço que prepare um barco de apetrechos carregado com pólvora até os topes, para quando a esquadra
chegar ao porto. Se me compraz, e não me cabe a menor dúvida de que o fará, quero que o senhor recrute pelo menos um bom kroo para cada uma das embarcações auxiliares
que fazem parte da esquadra, a partir dos cúteres de seis remos, contanto que possam guiar aos nossos de noite e assaltar a ilha Sherbro e, talvez, o rio Galinhas.
Acha isso possível, senhor Whewell?
- Com este vento entabulado que sopra o acho perfeitamente possível, senhor. E não tema pelos kroo. Há um povoado kroo em Serra Leoa que conta com algumas centenas
deles, homens com quem tratei durante os últimos vinte e cinco anos. Detestam a escravidão e farão o possível para combatê-la.
- Alegra-me muito ouvir-lhe dizer isso. O senhor Adams lhe entregará suas ordens e o dinheiro que o senhor julgue necessário para os kroo. Subirá a bordo da Ringle
assim seja possível e rumará para Serra Leoa sem perder um só minuto. Leve o senhor Reade, que a governa como ninguém. E cubra-se de lona, senhor Whewell. Tenha
o senhor um bom dia.
CAPÍTULO 8
Escuras nuvens na entrada da tarde, escuras, escuras nuvens que começaram por cobrir as colinas em cujo sopé se estendia Freetown, e que depois avançaram empurradas
pelo vento durante uma hora até que a metade do céu se tornou negro e o calor se fez ainda mais asfixiante. Depois sucedeu igual ao oeste, em mar aberto, ainda que
ali as nuvens eram mais negras se cabe, negras como a piche; e a medida que o vento para fora se fixava, as nuvens devoraram por completo o sol poente e se apressaram
a tingir todo o céu com um pano mortuário, sufocante e ameaçador.
O vento para o mar também levou consigo cinco embarcações, escurecidas pela distância ainda que não o bastante como para não distinguir que se tratava de navios
de guerra com rumo a O Cabo e à Índia. O barco de apetrechos carregado de pólvora que partira do arsenal rumava com intenção de abastecê-los. Dado que certo número
de kroo haviam subido a bordo de uma escuna, era muito provável que entre eles houvesse um mercante, aproveitando sua proteção até pôr rumo leste e percorrer a costa
do Cereal, a costa de Marfim e a costa Dourada para obter pimenta, óleo de palma, marfim e pó dourado. Corriam certos rumores estúpidos a respeito do regresso da
esquadra inglesa, rumores baseados na chegada sob custódia e imediata condenação do Nancy, que agora fundeava na enseada. Estes rumores foram contudo desviados sobre
a base de que o Nancy tinha chegado ao porto escoltado pela escuna do governador, que sem dúvida atuara na qualidade de corsário. O capitão Wood, assim como seus
predecessores, podia conceder uma patente, e quem mais apto para isso que tão meritório oficial? Ademais, quem recordava que a esquadra inglesa incluísse um navio
de duas pontes? Apesar da luz, uma luz que muito bem podia pressagiar o fim do mundo, não havia apenas um, mas dois barcos de duas pontes que qualquer pessoa poderia
avistar.
- É o pai das mentiras - disse um mercador sírio. - Nada aparece sob esta luz, ou, seja, sob esta escuridão visível. Ainda que admito que parece o fim dos tempos.
- Então você é o broto de uma toupeira impotente e um morcego - replicou seu amigo. - Distingo perfeitamente duas pontes no segundo a contar da frente; e também
no terceiro. Parecem ir diretos para buscar o Nancy.
- Não parecem - disse o primeiro mercador. Mas apenas pronunciou estas palavras quando o primeiro barco que formava em linha virou para estibordo até que seu costado
ficou paralelo ao do Nancy, e a uma distância de duzentas jardas abriu fogo com toda a artilharia do costado, cujas brilhantes labaredas iluminaram toda a capa de
nuvens e cuja voz, depois de ensurdecer a toda a população, achou eco entre as colinas. Pelo espaço de três exclamações de assombro, nem uma a mais, repetiu-se todo
este processo mesmo com mais força, com estocadas mais potentes e compridas de fogo e o fundo vozeirão dos canhões de trinta e duas libras. Assim o imitaram um depois
do outro todos os barcos da linha até chegar ao último. O silêncio, com a fumaça da pólvora que ondeava sobre a baía, resultou não menos surpreendente, e as aves
voaram em todas as direções. Mas depois de uma breve pausa se alçou por todo o povoado um estrondo generalizado causado pelos gritos de assombro, pelas conjeturas:
Seria o francês? Anunciaria a bulha o retorno do patriarca Abraão? Seria o capitão de um navio de guerra inglês, disposto a impor a lei vigente contra a escravidão?
Havia pegado a esse desgraçado Nancy navegando com bandeira espanhola, haviam acorrentado ao patrão e a todos seus homens ao pau maior e nesse momento reduziam o
barco a lascas e a eles os queimavam na fogueira. Esta explicação foi a que ganhou mais adeptos a medida que a esquadra virava em redondo e voltava a mudar de bordo,
envolvida no estrondo de seus barcos que agora disparavam aos pares, de tal forma que os espectadores, toda a população de Freetown, quase não podiam ouvir o som
de suas própias vozes por muito que gritassem. E durante a pausa entre uma virada e a seguinte, quando de novo as baterias de estibordo lançaram seu prolongado e
deliberado rugido (apenas o Bellona vomitava setecentas e vinte e seis libras de ferro por descarga) correu a notícia de boca em boca que Kande Ngobe, propietário
de um telescópio, havia distinto claramente às vítimas mutiladas, atadas ainda com correntes: também Amadu N’Diaje, homem de vista aguda; também Suleiman bin Hamad,
que afirmou também que alguns seguiam com vida.
Também seguia com vida o maltratado barco, cujo costado fora crivado rigorosamente, mas que continuava flutuando, ainda que muito baixo sobre o mar calmo, se é que
não havia afundado nem um emborno a mais abaixo da linha d’água. Depois, após outra prodigiosa descarga que iluminou o céu e o povoado, e que tarugou as ruas de
sombras, a linha fechou para fazer uso das caronadas de curto alcance, momento em que se pôde ouvir outra das muitas vozes que tem a guerra, o agudo estalido da
genuína descarga que tudo quebrava, disparada em uma cadência maior que as peças grandes apesar de ser carregada com uma bala mais pesada que a maioria, tão rápida
e tão potente que o navio negreiro não pôde agüentar por mais tempo e empreendeu sua última travessia ao deslizar a pique no mar, que estranhamente havia cuspido
uma areia grossa como mingau, resultado do conflito que haviam entabulado a maré mutável e a corrente.
- Batiportar{19} a artilharia aí, batiportar a artilharia - ouviu-se gritar ao longo da linha de barcos, e as sorridentes dotações trincaram tesos e bem tesos os
acesos canhões. Por fim se serviu a janta, surpreendentemente tarde. Ainda sorriam quando todos os marinheiros contribuiram para ancorar os barcos em águas de vinte
e cinco braças e se completou com a troca da guarda: disparar com brio e fazê-lo contra semelhante alvo era um dos trabalhos mais gratificantes para qualquer marinheiro.
- O ministério não poderia ter desejado maior estrondo, maior fragor - opinou Stephen, que ainda falava em voz alta, sentado na cabine reconstituída onde ainda se
respirava o odor de pólvora. - Nem tampouco uma prova mais convincente da presença da esquadra.
- Foi como na noite de Guy Fawkes{20} - disse Jack. - Não sabe quanto agradeço a James Wood que tenha disposto tudo com tanto tino e discrição. Havia um punhado
de detalhes nos quais eu nem sequer havia pensado, qualquer um deles poderia ter revelado o truque. Sem ir mais longe, aí tem essa brilhante jogada de despachar
a sua própia gente para trazer o Nancy ao porto.
- Uma jogada brilhante, sem dúvida. Brilhante.
- Sim. Mas se o vento se entabular na costa, tal e como juram e perjuram que sucederá, acho que nossa noite de Guy Fawkes não será nada comparado com o que ocorrerá
amanhã pela tarde. Acredito que poderemos dar semelhante dano ao comércio de escravos que Wilberforce e... como se chama?
- Romilly?
- Não. O outro.
- Macaulay.
- É isso. Que Wilberforce e Macaulay pularão, aplaudirão e se embebedarão como Lordes.
No dia seguinte, muito antes da guarda do primeiro quartilho, todos os homens formaram nos postos de combate em todas e em cada uma das embarcações que Jack Aubrey
tinha sob seu comando. Os marinheiros não tiravam o olho do cabo que fechava a baía, já que ao redor deste, ao redor do cabo de Serra Leoa, seus amigos, que se haviam
escapulido aproveitando a algaravia do festim, não tardariam em reaparecer empurrados pelo suave vento que soprava, trazendo consigo a licença em terra e, talvez,
a promessa do dinheiro do butim que pudesse fazer da licença algo mais prazeroso. Contudo, deixando de um lado o dinheiro do butim, era a liberdade em si o que resultava
mais agradável: a deliciosa visão dos palmeirais para todo aquele que nunca teve a oportunidade de vê-los..., e se dizia que as jovens da costa não podiam ser mais
amistosas. A castidade pesava como um lastro em todos os marinheiros; também poderiam arrumar frutas frescas. Tal como estavam as coisas nesse momento, contudo,
os barcos que fundeavam justo diante da baía nem sequer cheiravam a liberdade. Os únicos condenados botes se apetrechavam para levar somente a um oficial em cada
viagem, ou, como muito, a dois que fossem magros. E é que sem os botes maiores a esquadra não podia sequer sonhar com nada parecido à liberdade.
A bordo da Aurora, que fundeava ao mar da linha, desatou-se a algaravia, e rapidamente se estendeu por toda a esquadra quando apareceram os botes recortados na distância,
escoltando um inesperado número de presas. Pelo menos havia cinco escunas, dois bergantins e um barco.
A escuna do governador largou amarras de porto para guiar as presas diante do atento olhar de todo o povo reunido, mais surpreendido se couber nesta ocasião que
durante a noite anterior. Jamais se tinha visto semelhante captura, nem nada remotamente parecido. Aqueles que tinham interesses no comércio de escravos, que não
eram poucos, empalideceram ou amarelaram como era de esperar, silenciosos, toscos e entristecidos, pois reconheceram todas as embarcações aprisionadas; era impossível
não fazê-lo. Contudo, a maioria dos habitantes da cidade estava excitada, cheios de satisfação, sorridentes, tagarelas, e não devido ao apoio que prestavam à causa
abolicionista - excetuando o caso dos kroo, - mas pelo cândido e sincero prazer de pensar no dinheiro que sairia dos bolsos dos marinheiros. O butim de sessenta
libras por escravo liberado, de trinta libras por mulher liberada e de dez libras por cada criança suporia uma soma considerável ainda que só contassem ao Nancy.
Mas com esta redada sem comparação, a soma seria prodigiosa por mais que não incluísse às embarcações condenadas. Pois Freetown estava acostumada ao comportamento
dos marinheiros em terra, os habitantes, em particular os taberneiros e as casas de má fama, ansiavam recebê-los com os braços abertos.
Todos a bordo sentiam com mais força tão encantadora esperança e, quando em resposta ao sinal do comodoro, a Ringle e muitos de seus botes puseram proa ao ancoradouro
e aos navios aos que pertenciam, foram recebidos com mais aplausos e gritos de alegria. Em um visto e não visto os botes se converteriam em embarcações de liberdade,
dispostos e desejosos por levar voando a Jack para terra; diversos membros da guarda que não estava de serviço se apressaram a embelezar-se, enquanto que outros,
menos seguros de poder desfrutar da sobremesa, pediram a seus guardas-marinhas ou suboficiais que podia fazer-se no terreno da súplica, da deferência, com a esperança
de que pudessem adiantar-lhes quatro peniques.
Quando mais animadamente comentavam as alegrias que iam desfrutar, começou a difundir-se um rumor horrível. Primeiro um jovem segundo do contramestre disse triste
que "Nada de liberdade", ao mesmo tempo que lascava o pé no convés e rasgava o lenço de seda de Barcelona que tinha exibido amarrado ao pescoço. "Nada de permissões
em Serra Leoa após a meia-noite. Essas são as fodidas ordens do doutor."
Disseram que estava enganado, ou que a ordem só se aplicava a ele devido a sua má conduta, a ter os pés tortos e a esse rosto negro de Jonas que tinha. Era um absurdo
dizer que não haveria liberdade. Contudo, a notícia correu de boca em boca e foram tantos os marinheiros que se informaram dela que já não havia ninguém que não
acreditasse. Nada de permissões em terra em toda a costa após a meia-noite: ordens do doutor, confirmadas pelo capitão e o comodoro.
- Maldito seja o doutor.
- Oxalá o doutor apodreça.
- Espero que o doutor apodreça no inferno - ouviu-se na coberta inferior, no camarote dos guardas-marinhas e na câmara dos oficiais.
O doutor em questão se esforçava em costurar o braço de Whewell, que tinha recebido um talho como consequência de um encontrão (o exibia vendado com um farrapo da
camisa que arrancara de um negreiro falecido), enquanto escutava seu relatório, o informal relatório verbal que relatava ao comodoro. Depois de consultar com o tenente,
com os guardas-marinhas e com os oficiais do mar havia dividido a flotilha em quatro grupos de força igual, mantendo os companheiros de rancho juntos desde que pôde,
dois para Sherbro e dois para Manga e Loas, perto do continente.
- Primeiro nos aproximamos do mercado ocidental de Sherbro. O chefe kroo do bote guia os cumprimentou sem trejeitos e lhes perguntou como andavam as coisas; enquanto
os distraía, o outro bote atracou. Quando subiram a bordo encerramos a guarda do porto sob o convés, travamos as escotilhas e os ameaçamos com uma passagem para
o inferno se ao menos pensasse em mover um só dedo; depois cortamos o cabo e nos jogamos ao mar com um vento estupendo. Foi tão fácil como beijar minha mão. - Whewell
riu comprazido. - Não tinham guarda, e acho que não esperavam problemas, e tampouco eles nos deram. Sucedeu igual com os três barcos seguintes, escunas de primeira
(quase não podíamos acreditar) e assim foi a coisa até que chegamos ao barco. Tardamos um pouco em ganhar o convés porque não estava ancorado e tinha todos os homens
preparados, e aí houve algum ou outro problema (foi lá onde ganhei esta ferida) - disse mostrando o braço com um gesto da cabeça. - Mas no final não deu em nada,
e depois de ter despojado Sherbro de oeste a leste, reunimo-nos com os outros em alto mar e rumamos para Manga e Loas, onde fizemos mais ou menos o mesmo, ainda
que me alegra dizer-lhe, senhor, que ali sim nos dispararam.
- Muito bem - disse Jack satisfeito, pois qualquer barco que abrisse fogo contra uma embarcação de guerra, ainda que não fosse mais que um cúter de quatro remos,
incorria em ato de pirataria e, portanto, fossem quais fossem suas cores ou nacionalidade, seria condenado sem direito de desfrutar de uma defesa. - Confio em que
não teve maiores consequências.
- Feridas limpas, senhor. Quando o primeiro bergantim, português, abriu fogo iluminou o céu e puderam ver quantos éramos, com as presas e tudo. Um tentou fugir,
mas não serviu de nada. Os outros, que estavam acordados, jogaram-se sobre os botes que rebocavam ou que tinham atracados para perder-se na costa. Depois de limpar
esses dois lugares, senhor, prendemos sua gente na coberta inferior das as embarcações capturadas e rumamos para a esquadra. Nós os mantivemos todo o caminho a sotavento,
para o caso de algum ter a estúpida idéia de escapar.
- Muito bem, senhor Whewell, excelente - aplaudiu Jack, que acrescentou depois de uma pausa: - Diga-me, o que o senhor fez com a documentação?
- Verá, senhor, lembro tudo aquilo que o governador disse a respeito da sofisteria legal se entrometer com o que era obviamente justo, e acho que, em sua maior parte,
os papéis acabaram destruídos durante os combates, quando não foram jogados pela borda. Só salvei um par de manifestos de carga e registros pertencentes a capitães
portugueses, por aquilo do que dirão: não é que isso mude muito as coisas, porque os portugueses não contam com proteção ao norte da Linha. Dos piratas nem sequer
me preocupei, ordenei logo acorrentá-los. E agora que o penso, senhor, havia alguém na sede do governo, um dos cavalheiros que formavam parte do tribunal do Contra-almirantado,
acho, que observou que todo aquele que não tivesse documentação, cujo barco não tivesse papéis, e que não fosse capaz de identificar com certeza à pessoa que o prendera
estava perdido: nem sequer pode expor uma defesa, por muito que conte com a ajuda de profissionais na matéria, ou tenha a seu favor alguma estúpida cláusula legal.
- Acho que também era essa sua opinião, doutor - disse Jack.
- Aí, senhor Whewell - observou Stephen ao cortar a linha, fazendo caso omisso da indiscrição de seu amigo. - Aí. Eu lhe recomendo que leve o braço em uma tipóia
durante alguns dias e que evite no possível cometer excessos com a carne ou a bebida. Recomendo um prato de ovos para almoçar, ou pescado grelhado, acompanhado por
um pouco de fruta; e uma tijela de mingau antes de retirar-se, mingau fino, mas não me entenda mal, que tampouco sejam muito. E isto daqui servirá muito bem como
tipóia - acrescentou com o olhar no melhor lenço de cambraia superfina de Jack, que repousava sobre o respaldo da cadeira, recém passado por Killick. - Bom, assim
- disse ao introduzir o braço ferido com a facilidade que dá a prática. - Agora permita-me pedir-lhe que me recomende a um kroo de meia idade e de confiança, que
não seja dado a caprichos nem à bebida, para que me guie por Freetown, aonde irei depois do pôr do sol. Meu querido comodoro, o senhor me proporcionaria um meio
de transporte adequado?
- Meu querido doutor - respondeu Jack. - Não lhe proporcionarei tal coisa, nem tampouco o fariam o capitão Pullings ou o senhor Harding, nem ninguém que lhe queira
bem. Se alguém o visse em terra meia hora depois de proibir o mesmo lazer às companhias dos barcos que estão sob meu comando, seria sem dúvida o homem mais odiado
de toda a esquadra. Não serei eu que lhe direi que sua segurança física estaria em perigo, mas o afeto que lhe têm desapareceria por completo como que me chamo Jack
Aubrey.
- Nesse caso, se amanhã pela manhã lhe convier, senhor - interveio Whewell, - tenho o homem de que necessita, que se aproximará precisamente com toda a documentação
que o senhor Adams e eu devemos assinar com relação aos escravos libertados. Trata-se de um kroo veterano, de nome... Bem, custa-nos muito pronunciar seus nomes,
de modo que amiúde os chamamos Harry Presto, ou Gordinho, ou Conde Howe. Ao meu o conhecem em toda a costa como John Quadrado. É justo o homem de que necessita.
 
O nome de Quadrado era uma hipérbole marinheira, ainda que somente um pedante teria posto objeções a Retangular, pois o kroo de Whewell era um homem de ombros e
peito largos, de pernas curtas e braços largos. Cobria a cabeça redonda com um pedaço de lã cinzenta e exibia no rosto duas linhas azuis na testa e outra, mais larga,
que sulcava seu rosto de orelha a orelha, ainda que para ele nenhum destes detalhes nem seus incisivos afiados pareciam mais bizarros que um europeu em camisa. Era
tão negro, ou mesmo negro azulado, como um homem podia ser, o que conferia a seu sorriso um brilhantismo particular; contudo, estava claro e bem claro que não era
alguém com quem se pudesse cruzar.
Apareceu ao amanhecer, remando em uma dessas flexíveis canoas de aspecto frágil que os kroo empregavam para desembarcar depois de evitar o fluxo de ondas monstruoso
que beijava a costa. Trepou pelo costado ágil como um garoto e cumprimentou o castelo de popa.
- Documentação para o tenente Whewell, senhor, se é tão amável - disse com uma tremenda voz de baixo.
Não pôs a menor objeção ao fato de levar Stephen ao povoado e mostrar-lhe tudo quanto quisesse ver em Freetown; e uma vez embarcados na canoa, enquanto negociavam
as ondas da marejada que a levantavam e enterravam, Stephen lhe perguntou se conhecia o interior, a paisagem selvagem, e os animais que viviam ali. Respondeu que
sim, que de menino vivera em Sino, em território kroo, na costa, mas como tinha um tio que vivia rio acima passou alguns anos com ele quando teve idade suficiente
para caçar. Seu tio lhe mostrara toda sorte de criaturas: quais eram lícitas, quais eram sagradas ou estavam, pelo menos, amparadas pelo yuyu, quais eram impuras,
quais eram impróprias para um jovem solteiro de sua condição; e esta sabedoria, preciosa e necessária em si própia, foi de muita ajuda quando ao cabo de um tempo
um naturalista holandês lhe contratou para que mostrasse as serpentes da região, contrato que lhe permitiu comprar a sua primeira esposa, bailarina esplêndida e
ótima cozinheira.
- Somente serpentes?
- Oh, não, não. Céus, não. Elefantes também, e musaranhos, morcegos, aves e escorpiões gigantes; mas principalmente que serpentes, e quando lhe mostrei a píton kroo,
de três braças de comprimento, enroscada ao redor de um de seus ovos, deu-me sete xelins do satisfeito que estava. Sete xelins e um estupendo chapéu vermelho de
lã.
- Confio em que tenha escrito um livro. Oh, não sabe quanto confio em que tenha escrito um livro. Quadrado, como se chamava o cavalheiro em questão?
- Senhor Klopstock, senhor - respondeu Quadrado sacudindo a cabeça. - Não livro.
- Não o escreveu?
- Senhor Klopstock morreu - disse sacudindo a cabeça de novo. Suspendeu a canoa com confiança sobre a lombada de uma onda de consideração; encolheu-se até assumir
um tamanho inferior ao que tinha, tremeu convulsivamente e fez o gesto de quem vomita nos últimos estádios da febre amarela, tudo isso com uma verossimilhança total
e nos escassos segundos que necessitou a onda para quebrar-se, estender-se sobre a costa e depositar a canoa sobre a areia. Quadrado desembarcou quase sem molhar
os pés, ofereceu a mão a Stephen e arrastou a canoa até afastá-la da margem, ordenando a um garoto kroo que vigiasse a embarcação e o canalete com seu preciso e
singular inglês. Contudo, o garoto kroo não entendeu nada do que lhe disse, de modo que se viu obrigado a repeti-lo no dialeto do lugar.
- Nada de livro, senhor - disse Quadrado, sério, enquanto caminhavam pela praia. - Mas era um homem muito bom, e foi amável comigo. Ensinou-me inglês, inglês de
Londres.
- Achei ter-lhe entendido que era holandês.
- Sim, senhor, mas falava bem o que inglês, e estava muito contente de vir aqui porque pensava que nós também falávamos inglês. Inglês de Londres. Isso sim, mostrou-me
as pegadas de cobras, pangolins e musaranhos, quando não as desenhou ele mesmo, e me disse como se chamavam em inglês de Londres. Foi assim como me acostumei a sua
forma de falar. Falava como um missionário. Vejamos, senhor, aonde gostaria de ir?
- Gostaria de visitar por cima a cidade, passar pela casa do governador, o forte e o mercado. Depois me agradaria ver ao senhor Houmouzios, o cambista.
Tratava-se de uma povoação espaçosa e em expansão. A maioria de casas ficavam separadas umas das outras e dispunham de seus própios cercados, amiúde com palmeiras
que assomavam por cima dos muros. Cruzaram com pouca gente enquanto caminhavam pelas suas ruas.
- E também conheci a outro naturalista quando era criança - seguiu John Quadrado ao ver que Stephen parecia desejoso de conversar: - Senhor Afzelius, um sueco; ele
também falava muito bem o inglês de Londres. Era um botânico. Tampouco livro, ainda que passou anos aqui.
- Tampouco escreveu nenhum livro?
- Não livro, senhor. Quando os franceses tomaram a cidade no ano noventa e quatro queimaram sua casa com as outras, com todos seus papéis e seus espécimes dentro.
Isso iludiu a seu coração tão cruelmente, que nunca escreveu seu livro.
Ambos se limitaram a mostrar sua desaprovação com um gesto e depois caminharam um pouco em silêncio até que chegaram ao mercado. Então, ao dobrar a esquina, penetraram
em um mundo completamente distinto, um mundo concorrido, agitado, barulhento e alegre, cheio de cor. Havia barracas repletas de frutas e verduras de todas as naturezas
e cores, deslumbrantes sob o sol: tanchagem, banana, mamão, goiaba, laranja, lima, melão, abacaxi, guandu, abelmosco, graviolas, coco..., e cestas de vime transbordantes
de arroz, milho, searas do paraíso, assim como batata, mandioca e cana-de-açúcar. Abundava o pescado de brilhantes escamas: tarpón, cavala, salmonete, castanhola,
tuna, peixe coelho (pesca de água doce em opinião de Quadrado, ainda que alimentícia), e, certamente, montanhas e montanhas de ostras. Viram árabes de rosto sério,
enfaixados de branco, e alguns casacas vermelhas do forte, e a maioria das barracas tinham um cachorro ou um gato. Porém, em geral o panorama era de cor negra. Havia,
contudo, diversos graus de negritude, desde o ébano reluzente do kroo até um acobreado característico do chocolate com leite.
- Aí tem a uma zandi de Welle que vem do Congo - disse Quadrado ao mesmo tempo que indicava discretamente a zandi em questão, que regateava em um apaixonado inglês
de Serra Leoa por um peixe coelho que, conforme ela, não pesava mais de um oitavo. "Niminy-piminy, nada de nada", exclamava a mulher.
"E ali alguns yoruba. Aos agbosomi sempre se reconhece pelas tatuagens: falam ewe, parecido ao attakpami. Olhe as cicatrizes tribais kondo nessas bochechas: parecidos
a os dos grebo. Há um kpwesi daqui falando a um mahi de Dahomey - informou Quadrado enquanto apontava para outros pontos. - Todas as nações que tenham podido ser
vendidas na costa ou até Moçambique vivem aqui. E ali tem, senhor, a alguns negros de Nova Escócia. Ainda que suponho que saberá tudo o que há que saber sobre Nova
Escócia, senhor.
- Calro que não - respondeu Stephen.
- Bem, senhor, foram os escravos americanos que lutaram ao lado do rei. Quando os homens do rei foram derrotados, os trasladaram para Nova Escócia; então, depois
de uns vinte anos, aqueles que ainda seguiam vivos depois de toda essa nevada foram trazidos aqui. Alguns aprenderam gaélico por esses lares.
- Que Deus os bendiga - disse Stephen. - Agora me agradaria cumprimentar ao senhor Houmouzios, se é tão amável.
- À ordem, senhor. Por aqui - disse Quadrado. - Seu posto fica ali ao fundo, debaixo da marquise ou toldado, como se diga.
O senhor Houmouzios era um grego descendente de alguma distante diáspora africana. Encontraram-no sentado sob o toldo, ante uma mesa atapetada de pratos que tinham
uma grande variedade de moedas, de objetos pequenos de cobre até os joes portugueses que valiam quatro libras a moeda, além de um ábaco e uma balança. A sua esquerda
estava sentado um garoto negro, e a sua direita um cachorro calvo tão enorme que podia pertencer a outra raça, um cachorro que não parecia interessado no que sucedia
ao seu redor exceto quando alguém se atrevia a roçar a mesa.
- Monsieur Houmouzios - Stephen cumprimentou em francês. - Bom dia. Trago uma carta de troca para o senhor.
Houmouzios o observou com amabilidade por cima dos óculos e respondeu na mesma língua com fluidez, adotando uma versão do Levante curiosa e fora de moda. Deu-lhe
as boas-vindas a Serra Leoa, comprovou o documento, disse que nunca levava somas tão importantes ao mercado e, no inglês do lugar, ordenou ao garoto que fosse buscar
Sócrates, um escrevente ancião. Uma vez que este chegou, Houmouzios conduziu Stephen a uma casa árabe de uma beleza esplêndida, com persianas gastas e uma fonte
no pátio. Depois de rogar-lhe por favor que se sentasse em uma tarima atapetada, observou que nesse tipo de transações era necessário certo grau de identificação.
Desejava que o doutor lhe desculpasse por respeitar uma norma tão desnecessária, mas era uma superstição própia de gentes de sua condição.
- Oh, certamente - disse Stephen com um sorriso. Levou a mão ao bolso e procurou algumas moedas. Ao não encontrar nenhuma, teve que pedir-lhe emprestados seis peniques
ingleses, que a seguir dispôs em duas linhas, antes de alterar a posição de três de tal maneira que, sem perder o contato umas com as outras, formassem um círculo
com um terceiro movimento.
- Muito bem - disse Houmouzios. Pegou uma bolsa debaixo de sua camisa, contou cinqüenta guinéus e acrescentou: - Meu chefe me explicou que poderia ter a honra de
receber mensagens do senhor de vez em quando. Tenha a completa segurança de que também as guardarei em meu peito.
- Uma insignificância mais - disse Stephen. - Poderia recomendar-me um mercador de Freetown que disponha de correspondência no Brasil ou Buenos Aires?
- Agora que o comércio é ilegal não há muito trato que digamos; contudo, mantenho certos contatos no âmbito bancário com companhias exportadoras da Bahia: quina,
borracha, chocolate, baunilha e essas coisas.
- Folhas de coca?
- Certamente.
- Então lhe rogo que tenha a amabilidade de encomendar para mim uma arroba da melhor folha pequena de coca, a peruana que cresce nos altiplanos. Aqui tem o senhor
cinco guinéus pelo incômodo.
- Certamente. Farei isso imediatamente, e não acredito que tarde mais de um mês ou seis semanas em tê-la em suas mãos.
- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, e depois de tomar uma xícara de café se despediu dele, satisfeito de tê-lo conhecido. Sucedia tão amiúde que estes
contatos, estes contatos, revelavam mais de uma mesquinhez. Em certas ocasiões, a vida de um agente de inteligência era muito perigosa, mas o que era de certa forma
mais irritante era que quase sempre tinha que se lidar com personagens de moral duvidosa, amiúde póximos na criminalidade, cujo companheirismo afetado e sorrisos
de conivência resultavam profundamente desagradáveis. Contudo, em assuntos desta índole, que amiúde tinham um ar de tratos financeiros sombreados, de correspondência
adúltera, este tipo de personagem era muito importante. As falatórios eram comuns inclusive em uma embaixada, delegação ou consulado que se regesse conforme as normas,
e tanto era assim que um meio de comunicação paralelo se convertia em um mal absolutamente necessário. Maturin não estava disposto, muito pelo contrário, a pôr em
perigo o êxito da atual expedição (que para ele tinha muita importância) por confiar ao empreendedor governador ou a seus subordinados uma informação de caráter
confidencial.
- John Quadrado - disse enquanto caminhavam de volta à praia. Tinha encontrado o kroo do lado de fora, sentado em cima de uma pedra, - se não tem o senhor nenhum
compromisso durante as próximas semanas, gostaria que navegasse comigo para mostrar-me toda a vegetação, as aves e os animais que possa, quando nos seja possível
desembarcar. Eu lhe pagarei o mesmo que recebe um marinheiro de primeira, e pedirei ao capitão Pullings que anote seu nome no rol de tripulantes na qualidade de
supernumerário.
- Feliz, senhor, muito feliz - respondeu Quadrado. Apertaram-se as mãos para selar o acordo.
- Acho ter visto um bonito pântano do outro lado da cidade - disse depois de caminhar outras duzentas jardas e remoer o assunto. - Se me programo para despachar
as rondas a uma hora decente, poderíamos aproximar-nos esta mesma tarde. Já ao longo dos próximos dias poderíamos subir aquela colina empinada ali.
O capitão Pullings estava mais que disposto a aceitar a Quadrado a bordo na qualidade de supernumerário em troca da comida - sem contar o tabaco, ou o contador gemicaria
e gemeria até que desarmassem o barco no porto. - Disse que podia guardar a canoa no bote, pois era embarcação mais recomendável para desembarcar o doutor em uma
costa tão agreste.
O acordo não poderia ser mais satisfatório, tanto quanto a alegria quase universal que se respirou a bordo quando os botes se amadrinharam para desembarcar os homens
que tinham licença. Ouviram-se algumas risadas anônimas, acompanhadas pelos gritos de: "E agora, velho Saturnino?", apelido que alguns marinheiros malteses e dissolutos
tinham dado a Maturin, mas em geral todos se desfizeram em sorrisos e inclinações de cabeça, já esquecida a veemência do dia anterior. Inclusive a grande maioria
de seus antigos companheiros de tripulação lhe perguntaram se desejava que lhe trouxessem algo da cidade.
Contudo, suas rondas não foram tão satisfatórias. Apesar da demonstração de força com os canhões não ter matado os negreiros que governavam o Nancy - notícia estendida
por toda Freetown, - feriu diversos principiantes pertencentes à esquadra, os mais desajeitados, os mais impetuosos, apesar da freqüência com que haviam praticado
o exercício.
Ainda que a enfermaria do Bellona estivesse tão limpa e ventilada como se podia desejar em um navio de linha pertencente à frota, nem aquela intensa umidade nem
o calor asfixiante eram recomendáveis para quem não tinha mais remédio que repor-se ali. As mangueiras de ventilação, por mais distribuídas e eficientes que fossem,
não podiam refrescar o ar que fazia os marinheiros do convés ofegarem e secarem a testa. Diversas feridas e queimaduras ameaçavam piorar, e depois do almoço que
se celebrou na câmara dos oficiais - Jack e seus capitães desfrutavam de um convite do própio governador, - entre cujos pratos se contavam entre outros uma fatia
de pudim de fígado, Stephen voltou a fazer outra ronda acompanhado por seus ajudantes, jovens amáveis sem dúvida, mas lentos e com pouca experiência. Assim continuou
a coisa até que, justo quando administrava o último calmante em forma de solução de heléboro, Stephen ouviu o som da falua ao atracar-se à embarcação, seguido pelo
lamento dos apitos do contramestre quando o comodoro e o capitão subiram ao convés, e pelo sapateado e fragor dos infantes da marinha que apresentavam armas.
- Bem, cavalheiros - observou, - acho que poderíamos deixar os pacientes descansarem. Evans - disse ao assistente, um ferrador veterano que havia se alistado para
fugir de seu lar e da megera que o regia, - chame o senhor Smith se surgir alguma emergência. De minha parte, vou visitar o pântano que há atrás da povoação - acrescentou.
 
- Há, querido, então já está de volta? - disse ao entrar na câmara, onde encontrou Jack em mangas de camisa, sentado na janela de popa, com os calções desabotoados
tanto nos joelhos como na cintura. - Confio em que tenha desfrutado da refeição.
- James Wood nos rendeu as honras de Pomposo Pilato, que Deus o bendiga - respondeu Jack. - Quatro horas, e creia-me se lhe digo que não passei um só minuto sem
um copo na mão. Meu Deus, às vezes me dou conta de que já não tenho vinte anos. Não acha que faz um calor infernal? Úmido, denso, asfixiante. Suponho que não, visto
que está de abrigo.
- Não acho que este calor seja tão exorbitado nem desagradável; ainda que admito que esteja úmido. Vocês os sujeitos majestosos sentem mais que nós os magros ou
que temos uma figura mais grácil. Mas console-se, disseram-me que a estação seca está passando; o ar, a pesar de quente, se torna seco, tanto que os negros ungem
o corpo com óleo de palma para impedir que sua pele resseque, ou, na falta de óleo de palma, com sebo. Seco, sim, e em ocasiões vem acompanhado por um vento do mais
interessante, o harmattan; ainda que pode ser que esse nome também faça referência à estação em si. Com respeito a meu abrigo, eu o pus porque tenho intenção de
passear pelo pântano que há atrás da povoação, e preferiria não me molhar.
- Querido Stephen, em que está pensando? Esqueceu das ordens que deu para não permitir ninguém desembarcar depois do pôr do sol? Claro que, agora que o penso, não
nos disse o porquê. Não acho que seja pelas chuvas torrenciais, já que não ocorrem em tabernas ou nas casas de prostitutas, que é aonde iriam parar os marinheiros
guiados por seu instinto, como o cervo ao arroio.
- É por causa da miasmata.
- Refere-se às miasmas?
- Vem a ser o mesmo, asseguro, Jack; e os piores casos se contraem depois do pôr do sol.
- Olhe bem - disse Jack, assinalando com a cabeça para o oeste, além da janela de popa, onde o sol reluzia vermelho com um brilho atenuado devido à atmosfera densa
e carregada. - Ele se porá antes de que tenha oportunidade de contemplar seu pântano durante cinco minutos. Não, Stephen. O que é justo é justo, já sabe. Não pode
negar aos homens a liberdade, e depois ir embora perseguir corujas e aves noturnas sozinho.
A sinceridade e o prumo de Jack se impuseram aos protestos de Stephen, a seus gritos quando os proferiu, às excessões feitas à letra de qualquer norma, excessões
que, conforme ele, deviam dar-se por sentadas.
- Bem, de toda forma não teria podido ver muito - aceitou finalmente. - Além disso, amanhã terei ocasião de aproximar-me.
- Stephen - disse Jack. - Lamento dizer, mas quanto a seu lamaçal pantanoso não haverá um amanhã. Levaremos âncoras quando troque a maré. O governador me disse que
com este vento as notícias de nossa chegada e nossas cambalhotas ainda não terão chegado à ilha Philip, onde ao que parece encontraremos vários navios negreiros
a ponto de encher por completo seu carregamento; também me disse que poderíamos pegá-los no ato.
- Oh, certamente - disse Stephen, surpreendido.
- Devemos aproveitar a vantagem que temos, antes de que toda a costa saiba de nossa presença. Não há nem um momento a perder, e tão logo a maré mude poderemos vencer
a corrente e franquear a baía.
Stephen não pôde senão mostrar-se de acordo, e depois de passar alguns minutos falando pragas de sua própia estampa por tão absoluta e imperativa tolice, por ser
impulsivo e carecer de moderação, pelas exceções e a ausência de certas excessões em favor do bem comum, foi ao convés, onde em primeiro lugar se sentiu confortado
ao ver uma revoada extraordinariamente numerosa de peixes voadores que roçaram as águas a certa distância da superfície, mas que acabaram por dar-se com as fregatas
à luz do anoitecer, que voaram visto e não visto entre eles com uma celeridade capaz de deixar a qualquer um sem fôlego; e em segundo lugar, pelo fato de que o rio
da ilha Philip tinha um caudal em toda regra que Quadrado conhecia como a palma de sua mão. Este lhe explicara que no ponto culminante da estação das chuvas o rio
fluía ao largo e o fazia com rapidez, tanto que cobria o pé das árvores do bosque dando lugar a uma catarata em sua embocadura e também a uma bonita barra. Mas quando
cessavam as chuvas começava a encolher, desimpedindo a margem, ao longo da qual se podia caminhar através do bosque, onde amiúde podiam ver-se chimpanzés, e mais
além, a campo aberto, era zona frequentada por elefantes. Também lhe falara de uma pequena planície situada sobre um segundo conjunto de cataratas, quase atapetada
por inteiro de baobás, onde viviam catorze espécies diferentes de morcegos, alguns enormes e de rosto monstruoso.
Pensava nas inumeráveis possibilidades que surgiam ante ele: a coruja da África Ocidental, o turaco gigante, os multicolores e exóticos pássaros tecelões e os nectarinídeos,
inclusive provavelmente os potto, quando ouviu gritar "Gente ao cabrestante para recolher a âncora!", ordem inesperada seguida de imediato pelo toque do apito do
contramestre e os gritos de seus ajudantes que rugiam "Gente ao cabrestante para recolher a âncora!" através de todas as escotilhas. Stephen se apressou a afastar-se
do caminho. Conhecia sobradamente as temíveis pressas e a atividade que seguiam a esta ordem: as quadrilhas de homens que corriam pelo convés sem contemplações e
que arrasavam a quem pudessem encontrar em seu caminho, a gritaria, o puxão que davam nas cordas. Ao entrar na cabine encontrou a Jack sentado placidamente sobre
um baú, trocando as cordas de seu violino.
- Há, Stephen - disse levantando o olhar. - Não sabe quanto lamento ter arruinado seus planos com relação a esse fétido pântano. Eu me atreveria a dizer que a miasma
não faz distinções entre doutos e indoutos.
- Nada disso, meu amigo - replicou Stephen. - Estava pensando nos prazeres que me aguardam no Sinon, o rio que atravessa a ilha Philip. Refleti a respeito da variedade
de espécies de plantas e animais, e na possibilidade inclusive de topar-me com um potto, e não demorei nada a recuperar o entusiasmo que me caracteriza.
- O que é um potto?
- O Perodictius potto é uma pequena criatura peluda que dorme de dia como uma bola com a cabeça entre as pernas e que depois caminha muito, muito lentamente de noite,
no alto das árvores, comendo com calma as folhas e espreitando os pássaros quando estes dormem, para comê-los também. Possui olhos imensos, o que acho muito compreensível.
Há quem o chame de lêmure, e outros o conhecem por preguiça, mas errôneamente, porque não têm nada em comum além de seu comportamento recatado e sua inofensiva existência.
De um ponto de vista anatômico, o potto é o primata mais interessante. Adanson o estudou e dissecou, e eu anseio ter a mesma sorte.
- Adamson, o da Thetis?
- Não, não. Adanson, com "n". Era francês, ainda que não me admiraria nada que fosse de origem escocesa. Mas, Jack, nunca lhe falara de Adanson?
- Acho que o ouvi mencionar seu nome em alguma ocasião - respondeu Jack, com toda sua atenção concentrada na cravelha correspondente à corda do ré, cravelha escolhida
para o violino de batalha que levava consigo a bordo para dar-lhe problemas, sobretudo quando havia muita umidade.
- Foi um naturalista magnífico, tão zeloso, prolífico e trabalhador como desafortunado. Quando era jovem o conheci em Paris, e o admirava muitíssimo; Cuvier também.
Naquela época já era membro da Académie des Sciences, mas foi muito amável conosco. Viajara ao Senegal quando jovem, onde permaneceu cinco ou seis anos observando,
armazenando, dissecando, descrevendo e classificando. Depois reuniu todos seus estudos em um breve mas eminente e respeitável compêndio de história natural do país,
do qual aprendi quase tudo o que sei da flora e da fauna africanas. Um livro valiosíssimo, certamente, resultado de um trabalho intenso e minucioso; ainda que não
me atreveria a pô-lo à altura de sua obra fundamental: vinte e sete enormes volumes dedicados a um elenco sistemático de seres vivos e substâncias, assim como às
relações existentes entre eles, junto a cento e cinqüenta volumes mais de índicadores, descrições precisas e científicas, ensaios e um glossário. Cento e cinqüenta
volumes, Jack, com quarenta mil ilustrações e trinta mil espécimes. Tudo isso apresentado ante a Academia. A instituição elogiou sua obra, mas nunca chegou a publicá-la.
Apesar disso, seguiu trabalhando na pobreza e na velhice, e gostaria de acreditar que estava satisfeito de tão enorme projeto, e do fato de contar com a admiração
de grandes homens como Jussieu e o Institut em geral.
- Creio que sim - disse Jack. - Estamos nos movendo - exclamou quando o barco empreendeu um movimento mais garboso;
Stephen, ao seguir o olhar de seu amigo virou para a popa, viu a Thames, a Aurora e a Camilla marear as gáveas e buscar a esteira do Bellona enquanto a esquadra,
encabeçada pelo Stately, avançava rumo sudeste adentrando-se na noite, debaixo de um aguaceiro repentino e violento.
Jack afinou o violino. Conversaram um pouco da arte da afinação e de como alguns defendiam de cómo o lá devia soar.
- Não posso suportá-lo - disse Jack depois de esfregar a corda ao ar. Odeio pensar que nossos avós tocassem de forma tão insossa, com tão poucos bemóis. Após um
tempo riu entre dentes, ao reparar no duplo sentido da expressão, e acrescentou: - Que bom, Stephen, não acha? "Com tão poucos bemóis." Não havia percebido, né?
Mas imagina a Corelli tocando com esse tom de lamentos, como se gemicasse? - Então mudou por completo o tom de sua voz e continuou: - Vou lhe dizer uma coisa, Stephen:
exercer um posto equivalente a um oficial de bandeira supõe um trabalho muito duro, tudo são coitas, um esforço tremendo e infinitamente solitário, e se a expedição
não corresponde às expectativas de um punhado de tipos que nunca navegaram em toda sua vida, executam-lhe na forca e lhe enterram em um cruzamento de caminhos com
uma estaca cravada no coração. Contudo, tem suas compensações. Aí tem a Tom e a todos os demais que nos acompanham a bordo, a todos os que governam os barcos do
rei que tenho sob meu comando, saltando de um lado para outro, empapados até a bunda. Olha quanto navega bem agora! Com vento de alheta, puxam desses cabos, arrebatam
as escotas sem esquecer de aduchar os cabos como Deus manda, enquanto nós permanecemos aqui sentados como pessoas importantes, ah, ah, ah! Há, mas agora se lhe convém.
Permita-me pedir umas velas, afine o violoncelo e toquemos uma melodia.
 
Às quatro e meia da manhã um inquieto senhor Smith despertou a Stephen: Abel Black, gavieiro do traquete que fazia parte boletim da guarda de estibordo e que tinha
uma fratura de perônio - ao que parece havia tropeçado no escuro em um balde que não devia estar em seu lugar, - estava a ponto de se arrebentar. Tinha sofrido de
retenção de urina devido a uma causa totalmente alheia à fratura, cálculo comum, desde o instante em que o levaram para a enfermaria. Era homem tímido, e o fato
de achar-se longe de seus companheiros de rancho, deitado entre um par de marinheiros da guarda de bombordo, homens do interior lotados na popa, empurrou-lhe a não
dizer nada a princípio, enquanto que nas guardas noturnas preferiu não molestar aos doutores, de tal maneira que seu recato o levara por fim a sofrer uma morte elegante
onde as tenha. Stephen não era precisamente alheio a essa situação, freqüente companheira de outros males da marinharia; também estava acostumado a tratar com as
selvagens e complexas naturezas que adotava a finura nos marinheiros, de modo que voltou para cama depois de labutar com aquela peculiar confusão. E não para dormir,
já que, nada mais deitar-se na maca que se balançava suavemente, uma terrível voz que surgiu de seu íntimo lhe disse: "Maturin, Maturin, olha que ter chateado ao
pobre Jack Aubrey como se não houvesse Deus com sua tediosa descrição do Michel Adanson de anos atrás, falando quase sem parar para pegar ar e com o mesmo entusiasmo
durante nada menos que meia hora, enquanto ele seguia ali sentado, sorrindo e dizendo educadamente: "Oh, verdade?" e "Céu santo", que vergonha. Envergonhe-se, anda,
ainda que fazê-lo não te servirá de nada. Simples remorso de consciência".
Foi incapaz de recordar a longitude ou a latitude, nem sequer em que oceano o havia feito. Ainda que sim pôde ouvir o som de sua própia voz empenhada em falar, falar
e falar, e as respostas educadas de Jack. "Será que o faço amiúde? - perguntou-se na escuridão. - É habitual, Deus não o queira, ou somente um sintoma da idade?
É um homem simpático e cortês, uma criatura sem par, mas poderá meu coração perdoar sua superioridade moral?"
Por fim se adormeceu, ainda que ao despertar suas reflexões o fizeram com ele, vívidas e recentes. Para dissipá-las se asseou e barbeou pondo um particular esmero
em tudo o que fazia; afinal de contas, era domingo, e ao terminar subiu ao convés para respirar um pouco de ar fresco. Para sua surpresa não se avistava terra por
bombordo, nem tampouco nenhuma das embarcações de menor porte. A esquadra havia se reduzido aos dois navios de duas pontes e as fragatas, embarcações que formavam
uma linha exata e igualmente espaçada, aproadas com rumo sudoeste, largadas as joanetes e com um vento franco de uma ou duas quartas. Um guarda-marinha cantava a
medida depois de jogar a barquilha: "Oito nós e meia braça, senhor, com sua permissão. O senhor Woodbine estima que a corrente vai direto para o leste, a um nó de
velocidade". O oficial, o senhor Miller, fez um comentário que Stephen não ouviu, pois havia colocado toda sua atenção em um redemoinho de vento do traquete que
arrastou um aroma de café e torradas, de bacon e, talvez, de peixe voador recém frito.
Dirigiu-se para a popa. Tinha intenção de imbuir-se de certo porte, levado pelo caminho do navio e o brio da corrente, mas a gula e o afeto puderam mais.
- Bom dia, Jack - exclamou, - que Deus e a virgem Maria estejam contigo; eu me perguntava se por acaso esse odor é de peixe voador recém frito.
- Muito bom dia, Stephen. Sim, isso mesmo. Eu rogo que me permita servir-te um par.
- Jack - disse Stephen após um tempo, - fiquei muito surpreso quando não avistei a costa nem nossas acompanhantes mais modestas. Seria impróprio de minha parte se
lhe perguntasse o porquê? Finalmente perderam o norte na escuridão da noite? Temo que seja o mais provável.
- Eu muito temo que sim - respondeu Jack com um sorriso que confundiu a Stephen. - Ainda que estou seguro de que pelo menos uma delas dispunha de bússola a bordo;
seja como for, ainda que estivesse quebada, poderiam ter-se guiado por nossos faróis. Dispomos de três esplêndidos faróis verdes na popa, como sem dúvida terá tido
oportunidade de apreciar, e me arriscaria a assegurar que alguém deve tê-los acendidos. - Então elevou o tom de sua voz: - Killick, Killick. Esquente outra cafeteira,
pode ser?
- Já a tenho pronta, ou não o vê? - replicou este no dintel da porta.
- Quer outra xícara, Stephen?
- Se é tão amável.
- Nós nos separamos quando o vento rolou três quartas durante a segunda guarda. Os bergantins e as escunas, que orçam muito, navegam como podem ao longo da costa
rumo à ilha Philip, e quando não, viram por avante para afastar-se da costa. A Laurel e a Camilla os seguem, um pouco mais afastadas da costa; enquanto nós percorreremos
um bom trecho rumo sudoeste, com intenção de mudar de bordo durante a guarda da tarde, fechar sobre a costa que há atrás da ilha e arremeter contra qualquer selvagem
que pretenda escapar, ou dar uma mão se surgirem problemas no porto, coisa que duvido.
Stephen digeriu esta informação durante um momento.
- Jack, ontem à noite me dei conta de repente de que já lhe falara de Adanson em uma ocasião - disse, - e muito, mais: seu zelo, seus inumeráveis livros, seu azar.
Peço que me perdoe. Não há nada mais chato, nem mais triste, que prestar atenção a alguém que se repete.
- Nisso eu concordo contigo, pelo menos em geral. Mas lhe asseguro, Stephen, que neste caso nem sequer me dei conta. Para dizer a verdade, estava tão concentrado
na corda do ré, que não parava de patinar, que temia que pudesse considerar descortês minha falta de atenção. Porém, vou lhe revelar do que realmente se trata, Stephen:
estive falando com Whewell, e decidi o plano de campanha. Gostaria de conhecê-lo?
- Se é tão amável.
- Pois bem, faz tempo que acho esta operação essencialmente costeira, coisa que concordo com Whewell e todos os oficiais que estiveram em Sherbro e outros. Os navios
de linha e inclusive as fragatas estão fora de jogo, a menos que estas últimas sejam tão marinheiras e velozes como a Surprise, exceto, evidentemente, se se dedicassem
ao mesmo propósito que esses jogadores de críquete que se adiantam um bom trecho, como a longa parada ou os extremos: refiro-me aos que se situam no mar e a barlavento
das rotas de fuga mais prováveis, em particular para Havana. Não tem sentido ficar a pairar com a costa à vista: a altura de nossos paus nos delataria de longe,
tanto mais tendo em conta que a última vez que a esquadra inglesa esteve nestas águas, tinham vigias apostados, situados nas alturas e trepados em árvores muito
altas. Adotarão de novo esta medida, assim que tenham conhecimento de nossa chegada. Além disso, os negros vêem muito melhor do que nós, como saberá.
- Creio que sim.
- De modo que quando terminarmos com a ilha Philip pretendo estacionar os navios de duas pontes e a Thames em alto mar, longe de possíveis olhares indiscretos da
costa, mas à distância necessária para comunicar-se mediante sinais, tanto entre si como com outras embarcações de menor porte situadas convenientemente no meio.
Com isso conseguiremos cobrir um área impressionante. Ao mesmo tempo, os outros percorrerão a costa com rapidez, desde escondidos para ir à frente da notícia de
nossa situação nestas águas, enquanto nós nos mantemos perto da costa, desde o cabo Palmas até o golfo de Benín.
- "Olho espreitador, guarda-te do golfo de Benín, pois por cada um que sai, entram mil." - recitou Stephen.
- O que você está pensando, Stephen - exclamou Jack em um tom de genuíno desagrado. - Como diabo lhe ocorre cantar, ou gemer, uma canção tão velha e desafortunada
como essa a bordo de um barco que se dirige ao golfo? Depois de tantos anos no mar, realmente não compreendo.
- Vamos, Jack, lamento tê-lo ofendido. Sabe Deus onde a aprendi. As palavras aparecera em minha mente por si mesmas, por simples associação de idéias. Não tema,
não voltarei a cantá-la, eu lhe prometo.
- Não é que seja supersticioso - disse Jack, nada apaziguado. - Uns mais outros menos, qualquer um que saiba um pouco do mar sabe que se trata de uma canção que
se canta naqueles barcos que saem do golfo, e que tem por objeto zombar de quem está a ponto de entrar. Eu lhe peço que não volte a cantá-la até que rumemos para
casa. Poderia atrair-nos má sorte, e lhe asseguro que incomodaria aos homens.
- Lamento de verdade e lhe asseguro que não voltarei a fazê-lo. Mas fale-me deste golfo, Jack. Há sereias ao longo de suas costas, ou talvez terríveis arrecifes?
E onde fica?
- Quando passemos para a cabine do piloto lhe mostrarei exatamente nas cartas onde fica - respondeu Jack, - mas de momento - disse ao mesmo tempo que se munia com
lápis e papel, - farei um esboço para que faça uma idéia. Faço de um lado da costa do Cereal porque a confusão que armamos em Sherbro e a que armaremos também na
ilha Philip porá todo o país de sobre aviso; porém aqui, para o leste, encontra-se a costa do Marfim, cuja geografia desfruta de diversos estuários e lagunas, nada
mais promissor; depois seguiremos rumo leste e um pouco para o nordeste, justo no golfo, pela costa Dourada, onde passaremos por lugares tais como Dixcove, Sekondi,
cabo Coast Castle e Winneba, mercados de primeira todos eles, e assim até chegar à costa dos Escravos desta gigantesca baía, que de fato é o golfo de Benín (o de
Biafra se encontra mais além), onde os ventos se arrebatam, há uma forte corrente do leste e a febre é mau negócio. Más águas, exceto para as embarcações de aparelho
de velas de cuchillo. Mas aí é precisamente aonde se dirigem a maioria de navios negreiros, a Grand Popo e Whydah. Não acredito que possamos ir muito mais longe.
Contudo, Whydah, ainda que situada em terreno de mangue, tem ali as Brass and Bonny e as Calabares, as velhas e as novas. Mas a essas alturas acho que teremos que
empreender a volta de fora se é que podemos, pôr rumo ao sul para a Linha e aproveitar os alísios do sudeste na ilha Saint Thomas, que fica livre da influência dos
golfos e de seus acalmados e maus ventos. Esse é meu plano, ainda que esqueci de dizer que a Ringle e a escuna Active navegarão da margem ao alto mar para informar
continuamente, quer seja de viva voz ou mediante sinais, à Camilla ou a Laurel, que por sua vez repetirão os sinais a este navio insígnia, pois pairarão entre nós
e as embarcações que vigiam a costa. E, por certo, acredito que partirei o coração de Dick quando lhe ordene trocar seu esplêndido mastaréu de navio de guerra por
mastaréus maltratados, e o mesmo à Camilla, de modo que quem possa vê-los de terra os tomem por mercantes normais e comuns.
- Então, tal e como eu o vejo - disse Stephen, que não parecia comovido pela angústia que estava a ponto de sofrer o capitão Richardson, - esta embarcação, o Bellona,
não terá oportunidade de ver a costa durante o transcurso de toda a expedição.
- Só no improvável caso de que os bergantins, a Camilla e a Laurel, que entre todos contam com um total de mais de sessenta canhões, não possam resolver o que nos
ocupa. Claro que, de vez em quando, avistam-se de soslaio as montanhas dos vaus do mastaréu de joanete.
Stephen deu a costas para Jack e apoiou o braço no respaldo da cadeira.
- Diria que lamenta perder a oportunidade de ver seu potto - disse Jack depois de um silêncio incômodo. - Mas amanhã pela manhã terá oportunidade de desembarcar
e acampar a vontade, depois que tenhamos descoberto o que nos espera no porto da ilha Philip. E inclusive me atreveria a dizer que talvez possa acompanhar à Ringle
quando se aproxime para apresentar seu relatório ou quando vá levar ordens de volta para a esquadrilha que patrulha a costa. Ainda que, se isso lhe aflige, acho
que poderia trocar seu posto com o cirurgião da Camilla, da Laurel ou de qualquer dos bergantins.
- Não, me têm atado à estaca: não posso voar, apenas lutar contra a maldição que me acossa - respondeu Stephen com um sorriso louvável. - Não é uma maldição terrível,
apesar de tudo. É só que fiquei muito mimado nas Índias Orientais, em Nova Holanda, no Peru... Não, em absoluto. Agora tomarei outra xícara de café e sairei, pois
tenho que atender ao meu cálculo, matéria que resulta quase sempre um tema espinhoso onde os tenha.
- De repente passou a gostar de cálculo? - exclamou Jack. - Não sabe quanto me alegro, estou assombrado, fico sem fala. Como se refere ao cálculo, creio que se refere
ao diferencial e não ao infinitesimal. Se posso ser de alguma ajuda...
- É muito amável, querido - respondeu Stephen, que largou a xícara na mesa antes de levantar-se, - mas me refiro ao cálculo de vesícula, nada mais. O que se conhece
vulgarmente como pedra na vesícula. Até aí alcançam minhas matemáticas. Tenho que ir.
- Oh - disse Jack um tanto abatido. - Não terá esquecido que hoje é domingo - advertiu a seu amigo, enquanto se afastava.
 
Era pouco provável que Stephen pudesse esquecer que era domingo, já que não só Killick tirou e lustrou a melhor peruca que tinha, recém cacheada e empoada, a segunda
melhor casaca recém escovada e um bom par de calções, como o assistente de cirurgião teve ocasião de perguntar-lhe se havia esquecido, com sua permissão, que era
domingo, enquanto os dois ajudantes, em separado e não sem certo tato, perguntaram também se se recordava.
- Qualquer um diria que sou um monstro e um idiota incapaz de distinguir o bem do mal, ou o domingo de qualquer outro dia normal e comum da semana - protestou; mas
sua indignação se amenizou ante a consciência de que, certamente, havia se levantado da maca sem reparar em tão interessante distinção, e que se barbeara por pura
casualidade. - Ainda que não teria tardado muito em dar-me conta, porque a atmosfera que se respira aos domingos a bordo de uma embarcação de guerra não é, nem de
longe, a mesma de qualquer outro dia.
E assim era, pois quinhentos ou seiscentos homens se asseavam, barbeavam ou se deixavam barbear, e também trançavam a trança do companheiro, pegavam as macas limpas,
punham seus melhores trajes para celebrar a passagem de revista por divisões e depois ouvir a missa, tudo isso com muita pressa, tudo isso em um espaço tão reduzido,
tão caloroso e úmido que poderiam ter chocado ovos, e tudo isso depois de ter posto o barco, e tudo o que era visível nele, em um estado exemplar de elegância quando
se tratava de madeira, e de brilhantismo se fosse metal.
A natureza anglicana do domingo não afetou Stephen, mas a limpeza ritual sim, e acompanhado por seus ajudantes e o assistente se apresentaram, discretos mas vestidos
com propriedade, com os instrumentos dispostos, refulgentes, e os pacientes deitados e esticados nas macas, quando o capitão Pullings e o imediato, o senhor Harding,
aproximaram-se para inspecionar a enfermaria. Também lhe afetou o costume de almoçar com o capitão e os oficiais, se bem que esta refeição não se celebrou até depois
de aparelhar a "igreja", ou seja, até que se estendeu o toldo para proporcionar sombra ao castelo de popa, coberto com um par de baús com uma bandeira que serviria
de pulpito para o sermão ou a súplica se o barco tivesse um capelão a bordo. Como este não era o caso do Bellona, a responsabilidade recaía no capitão, ainda que
um capitão da Armada podia optar pela leitura do Código Militar. Definitivamente, Stephen teve tempo de sobra, após a inspeção da enfermaria, de dirigir-se ao castelinho,
de onde pôde ver com clareza os soldados do real corpo de infantaria da marinha, quase uma centena, dispostos em fila, imbuídos de todo o esplendor de seus uniformes
de casacas vermelhas, de seus calções branqueados, e da longa e às vezes trêmula linha de marinheiros, limpos e barbeados, com seu ar descontraído, seus ombros carregados,
que cobriam o convés de proa a popa. Era um espetáculo que sempre lhe proporcionava certo prazer.
Durante o serviço religioso reuniu-se sob o castelo de proa com outros católicos para rezar o rosário de santa Brígida. Eram de todas as cores e origens imagináveis,
e alguns se sentiram momentaneamente confusos ante o inusual número de ave-marias, ainda que por mais remoto que fosse seu lugar de procedência o latim era reconhecível,
era o mesmo. A sensação de que estavam em casa os envolvia, e rezaram em um agradável uníssono enquanto na popa se alçava o som dos hinos e dos salmos anglicanos.
Concluíram ambos mais ou menos ao mesmo tempo, e Stephen dirigiu-se ao castelo de popa, alcançando o capitão Pullings quando este se dirigia para a câmara onde se
alojava, pois se vira na obrigação de ceder a cabine para o comodoro.
- Bem, Tom - disse, - vejo que sobreviveu à provação? - Como capitão do Bellona acabava de ler ante os homens um dos sermões mais breves de South.
- Isso mesmo, senhor. Pouco a pouco vou ganhando confiança, tal como o senhor me disse; ainda que em certas ocasiões me agradaria que não fôssemos mais que uma corja
de pagãos. Meu Deus, não me importaria de levar algo ao estômago, nem de dar um trago.
 
O almoço, quando foi celebrado, foi de uma qualidade excepcional, e durante boa parte de uma hora antes de sentar-se os oficiais e convidados do Bellona soprou um
vento cálido procedente de terra, cálido mas surpreendentemente seco, de tal forma que o uniforme não se colou aos corpos e seu apetite recebeu renovadas forças.
- Hei aqui os primeiros suspiros da estação seca - disse Whewell; que conversava com Stephen através da mesa. - As duas se picarão e mudarão pelo menos pelo espaço
de uma semana ou duas, e depois me atreveria a dizer que imperará um harmattan em toda regra, as cobertas se cobrirão de pó marrom e tudo se rachará, antes do dia
da Virgem.
A conversa versou sobre a estação seca, muito preferível à úmida, e se prolongou no regozijo de poder satisfazer uma sede enorme, até que Stephen, voltando-se para
o tenente de infantaria da marinha do Stately, que se sentava ao seu lado, disse quanto admirava a resistência que tinham os soldados para suportar ambos extremos,
quer fosse permanecendo de pé como estátuas sob o sol ou ante um frio terrível, ou desfilando, dando meia volta e desfilando em perfeita simetria.
- Invade-me uma sensação sumamente agradável quando presencio semelhante autocontrole, ainda que poderia chamá-la de renúncia do eu própio, quando assisto à formal
precisão rítmica, ao redobrar do tambor, ao estampido metálico das armas. Não sei se guarda ou não relação com a guerra, mas confesso que esse espetáculo me deleita.
- Não poderia estar mais de acordo com o senhor, senhor - respondeu o infante da marinha. - Sempre achei que a disciplina do exercício tem outro objetivo além do
simples adestramento na fé e obediência devidas à voz de comando. Pouco sei da dança pírrica, ainda que me compraz imaginá-la como nossas manobras, só que com uma
atribuição sagrada claramente reconhecível. A Guarda real oferece um claro exemplo do que me refiro, desde que seus soldados desfilam ondeando suas bandeiras.
- A duras penas poderia rebater-se o elemento religioso da dança. Afinal de contas, David bailou ante a Arca da Aliança, e naquelas zonas da Espanha onde sobrevive
o rito moçárabe ainda que faça parte da missa uma dança comedida. - chegado a este ponto, o capitão Pullings cominou a Stephen a beber um copo de vinho, enquanto
que seu vizinho, o tenente de infantaria da marinha, uniu-se a um animada bate-papo originado no extremo oposto da mesa que versava sobre a preservação da caça.
A refeição seguiu adiante. O imediato trinchou um quarto traseiro de carneiro e depois uma pata, e o fez de tal guisa que os do Bellona se orgulharam; enquanto isso,
as jarras de clarete correram de mão em mão. A essas alturas, contudo, já haviam esgotado o tema de enforcar tanto aos faisões como aos caçadores clandestinos.
- Recordo-me um detalhe com respeito à dança pírrica, é que a bailavam vestidos com a armadura - disse Stephen ao encontrar desocupado o seu oficial da infantaria
da marinha.
- Alegra-me muito ouvir-lhe dizer isso, senhor - disse o jovem com um sorriso (era um jovem notavelmente atraente), - porque não faz senão reforçar minha convicção
de que nós fazemos o mesmo. Quer dizer, admitimos a degeneração que teve lugar desde tempos de Héctor e Lisandro, e reduzimos nossos avios em proporção; mas mutatis
mutandis, ainda seguimos levando a cabo o adestramento, a dança, embutidos em armadura.
- Verdade? - perguntou Stephen. - Pois não havia percebido.
- Olhe isto, senhor - disse o infante da marinha, ao mesmo tempo que dava uma palmada na gorjeira, uma peça prateada em forma de lua crescente que pendia do peito
de sua casaca vermelha, - a isto o chamamos peitoral. É um pouco menor que o peitoral que Aquiles usava, ainda que também o são nossos méritos. - Rompeu a rir alegremente
e pegou uma jarra ao vôo, disposto a encher tanto o copo de Stephen como o seu. Não havia apurado nem a metade de seu conteúdo quando Tom Pullings levantou a mão
e no silêncio que seguiu pôde ouvir-se claramente o grito do vigia do tope, que atravessou as escotilhas abertas e as portalós.
- Convés! Terra à vista! Terra à vista pela amura de bombordo!
- Senhor Harding, o senhor terá que me perdoar, mas devo reunir-me com o comodoro. Cavalheiros, peço que prossigam com a refeição. Em caso de que não possa regressar,
queira agradecer-lhes por sua hospitalidade.
Não regressou. E como não tinha muito sentido deixar que a carne esfriasse para avistar terras distantes, continuaram. O vento quente, quase abrasador, soprava com
força e ainda que alguns dos oficiais pediram aos gritos o Negus ou a limonada, outros mataram a sede crescente com a ajuda do clarete, com o que uma dúzia dos presentes
teve que ser arrastada para cima.
Ao cabo de um tempo, devido à ausência do capitão e à presença de um imediato recém ascendido que naturalmente emanava escassa autoridade, o bate-papo ganhou em
tom e perdeu em formalidade. Stephen e seu infante da marinha tiveram que elevar a voz para entender-se: seus argumentos ainda versavam em temas como a sutil dança
da última época em França e no adestramento, tanto no concernente à cavalaria como á Armada, e Stephen percebeu, para seu pesar, que seu interlocutor bebia e havia
bebido demais e que sua atenção tinha divagado até parar na conversa que tinha lugar no extremo da mesa ocupado pelo contador, lugar onde várias pessoas falavam
ao mesmo tempo de sodomia.
- Digam o que queiram - disse o tenente alto e magro, segundo oficial da Thames, - mas nunca serão homens feitos. Talvez sejam educados, tenham lido muitos livros
e tudo isso, mas em um combate seriam incapazes de agir como Deus manda. Quando servi de guarda-marinha no Britannia tive dois na brigada que servia um canhão, e
quando as coisas se punham feias se escondiam entre a pipa d’água e o cabrestante.
Ouviram-se outros pontos de vista, outras convicções e experiências, algumas tolerantes, inclusive conciliadoras, ainda que a maioria de interlocutores se manifestaram
mais ou menos de forma agressiva e contrária aos sodomitas.
- Neste ambiente não acho que convenha mencionar a Patroclo ou à Legião Tebaica - murmurou Stephen, mas seu infante da marinha estava muito atento à salada de vozes
ouvir-lhe. Encheu outro copo e o apurou sem tirar o olho do grupo reunido ao redor do contador.
- Digam o que queiram - repetiu o tenente alto e magro. - Porém, ainda que eu tivesse os mesmos gostos, lamentaria de verdade ter que entrar em ação a bordo de um
barco comandado por um deles, por mais augusto que fosse.
- Se se trata de um insulto contra meu barco, senhor - exclamou o infante da marinha, empurrando a cadeira para trás para erguer-se, pálido - devo pedir-lhe que
o retire de imediato. A combatividade do Stately está fora de toda dúvida.
- Não sabia que o senhor pertencesse ao Stately, senhor - disse o tenente.
- Já vejo que há quem também seja incapaz de agir como Deus manda - disse o infante da marinha. A seguir se alçou o alvoroço; preocupados com a situação, alguns
mais outros menos tentou-se separá-los. Após um tempo embarcaram em botes diferentes, o do Stately governado por algumas das desgraçadas senhoritas de seu capitão.
 
A costa se avistava com total clareza: o vento cálido soprava tão forte e entabulado como se poderia desejar, e o Bellona, o Stately e a Thames se aproximavam ao
ponto no qual deviam interceptar qualquer possível fugitivo da ilha Philip. Já se trocavam sinais de inteligência hasteados pelos bergantins destacados na costa,
e o faziam por mediação da Laurel. Não havia fugitivos a interceptar, o porto estava vazio, os negreiros não apareceriam até transcorridos três dias, pois haviam
se demorado em Takondi, mas ao desembarcar encontraram muitos negros enclausurados nos barracões e nos currais onde se encerrava aos escravos, estes já haviam sido
libertados.
Jack Aubrey ordenou mudar o rumo, e graças à maré e ao vento que soprou ao anoitecer seus três barcos navegaram direto para o porto, dirigidos por Quadrado, que
conhecia as pequenas enseadas e ancoradouros como a palma de sua mão. No Bellona hasteou-se o sinal para chamar a bordo a todos os capitães, e se fez antes de largar
a âncora. Os botes se atracaram debaixo do rápido crepúsculo tropical.
- Tenho intenção de ir de novo para alto mar e perder-me atrás do horizonte - confessou Jack a Stephen depois de conversar com eles. - Despacharei os bergantins
e as escunas ao longo da costa até a laguna Muni para interceptar e deter a qualquer embarcação costeira ou canoa que possa informar do sucedido, e também para armar
uma emboscada para esses tipos quando se aproximem ao porto. Conforme as profecias de Whewell e Quadrado (excelente marinheiro, esse Quadrado) e também do barômetro,
existe a possibilidade de que possamos pegá-los. Trata-se de três holandeses e um dinamarquês, que rumarão para Havana. De modo que se deseja desembarcar esta noite
com Quadrado, poderia desfrutar de uns dois dias de naturalismo nesse seu rio. Há um pequeno povoado kroo onde poderá passar a noite, mas terá que se apresentar
na costa, disposto a partir sem perder um minuto com a maré-cheia da quarta-feira.
- E quando será isso? - perguntou Stephen, que resplandecia por dentro.
- Às sete da tarde, certamente - respondeu Jack não sem certa impaciência. Mesmo a essas alturas considerava a incapacidade da mente de Stephen, para adaptar-se
ao ritmo da lua e da maré, inacreditável em alguém de seu intelecto. Fez uma pausa, considerou a questão, e então, em um tom muito diferente, acrescentou: - Claro
que, bem, Stephen, não posso senão recordar o que já lhe disse sobre a licença em Freetown depois do anoitecer, tudo isso das miasmas e dos eflúvios nocivos, de
modo que lhe rogo que tenha muito cuidado, que permaneça resguardado e que só ande por aí durante o dia.
- Agradeço sua preocupação, meu amigo - disse Stephen, - mas não permita jamais que o clima aflija seu generoso coração. Freetown conta em seus arredores com um
pântano cheio de febres mortíferas. Nem sequer os cavalos agüentariam muito em Freetown. Pelo contrário, eu passearei junto a um amplo rio de generoso caudal que
tem suas pertinentes cascatas, e não devo temer à miasma desde que a água corra. É a água estancada que engendra a febre. Agora devo ocupar-me de meus sacos para
a coleta e das folhas de papel, escolher a vestimenta mais adequada - haverá sanguessugas? - e conversar com o bom do Quadrado para planejar nossa rota. Em dois
dias, a bom passo, poderíamos atravessar a planície repleta de baobás e morcegos de tamanho monstruoso, e alcançar o território onde talvez encontremos tanto ao
potto como ao pangolim de Temminck!
CAPÍTULO 9
Stephen não pôde desfrutar de uma tarde tranqüila em sua cabine até vários dias depois de abandonar a ilha Philip. Só então pôde dedicar-se a organizar as apressadas
notas e alguns dos espécimes botânicos que recolhera, e começar um diário detalhado de sua viagem rio Sinon acima. Certamente já havia contado a Jack tudo relativo
a seus encontros: o hipopótamo pigmeu, o javali, o veloz elefante que lhe perseguiu até uma árvore baobá, os macacos de coxa amarela, os chimpanzés (curiosos mas
tímidos), uma orquídea terrestre mais alta que ele, repleta de flores rosas, ou a píton kroo que Quadrado cumprimentou com um cântico respeitoso e que os observou
virando a cabeça quando passaram ao seu lado e em paz, cabisbaixos. Também as sete espécies diferentes de cálaos, os dois pangolins, a rica variedade de escaravelhos
e um escorpião que media sete polegadas e meia, além dos nectarinídeos e dos pássaros tecelões.
- E o seu potto? - perguntou Jack. - Espero que tenha tido ocasião de encontrar a seu potto.
- Eu o vi, claro que sim - respondeu Stephen. - Estava trepado em um galho pelado, recortado contra a lua, e me observou com olhos redondos e grandes. Eu me atreveria
a dizer que avançou um pé ou mesmo dezoito polegadas ante meu olhar.
- Disparou nele?
- Não. Não sou naturalista o bastante. Você tampouco o teria feito. Mas disparei contra um cárabo, inseto que me interessa muito; se demonstro que se trata de uma
espécie não catalogada, e confio em que o farei, eu o batizarei com o nome deste barco.
Durante aqueles primeiros dias na ilha e na costa imperou uma atividade constante. Foram registrados alguns casos de malária entre quem havia assaltado Sherbro,
e ainda que os negreiros capturados - que tinham entrado no porto com toda a confiança do mundo, sem adotar precaução alguma - não levavam a bordo mais que a metade
do carregamento, muitos dos negros haviam embarcado na Antiga Calabar e alguns se encontravam muito mal. Imediatamente se despachou para Freetown aos dois mercantes
holandeses e ao dinamarquês, com suas correspondentes tripulações de presa. De sua parte, os dois navios de duas pontes, junto com a Thames e a Aurora, lentas e
pouco marinheiras, tinham recolhido âncoras de noite, proa para o alta mar com rumo leste para o golfo de Benín, com a intenção de pôr em marcha o plano do comodoro.
Pela manhã, quem se encontrava no castelo de popa do Bellona pode distinguir as humildes gáveas da Laurel pelo través de bombordo, e é que a Laurel estava em contato
com os bergantins que cruzavam a costa; tudo estava em marcha. O barco voltou a recuperar a rotina diária, e Stephen pôde por fim dispor seus espécimes com certa
ordem, esfolar as aves e etiquetar tudo antes de que a enorme quantidade - pois a sua fora uma expedição muito proveitosa - constrangesse sua falível memória. Contou
para isso com a ajuda inestimável e eficaz de John Quadrado; mas estava sozinho quando se sentou depois de almoçar para dedicar-se à tarefa de escrever um relato
exato. Geralmente, quando se impregnava da atitude adequada e reunia suas recordações, costumava escrever bastante rápido; mas agora, ainda que tivesse em mente
a imagem daquele bendito rio, a limpa praia que mediava entre a margem e os bosques, e o cárabo que voava no alto, os nomes, a hora do dia e a seqüência do sucedido
eram farinha de outro saco; não o recordaria por mais que se esforçasse. Languidez. Dor muscular. Uma dor de cabeça incipiente. Atordoamento.
Tinha tomado um par de copos de vinho para acompanhar a refeição, e uma xícara de café depois, e no suposto de que esta xícara não bastasse para contrariar o peso
dos alimentos se dirigiu à câmara, onde encontrou a Jack Aubrey ocupado ante sua escrivaninha, com uma xícara de café ao seu lado.
Com a ajuda de mais dois cafés pôde escrever um ou dois parágrafos esforçadamente, o que não era nada comparado com o desinibido fluxo espontâneo que o dia anterior
havia circulado por sua cabeça. Uma bolinha de folha de coca - pois dosava o puco que dispunha - quase não esporeou o verbo, ainda que ao cabo de um tempo aproximou-se
do espelho e olhou sua língua. Estava escarlata, tal como suspeitara; e seus olhos, ainda que brilhantes, tinham um cerco escuro ao seu redor, enquanto que os lábios
pareciam atritados com pedra arenito. Tomou seu pulso: rápido, muito rápido. Mediu sua temperatura com um termômetro Fahrenheit: levemente acima dos cem, um pouco
além da temperatura que imperava no ambiente. Refletiu um pouco a respeito às implicações de seu estado e depois desceu para o ambulatório, onde encontrou ao senhor
Smith preparando as pílulas.
- Senhor Smith - disse, - sem dúvida em Bridgetown o senhor teve ocasião de contemplar muitos casos de febre amarela.
- Oh, sim, senhor - respondeu Smith. - Foi a maior causa de mortandade. Os oficiais jovens contavam com ela para a ascensão. Em ocasiões a denominavam "vômito negro".
- Diria o senhor que a febre facial é um dos sintomas típicos da doença?
- Sim, certamente que sim, senhor: se couber, mais que em nenhuma outra doença.
- Nesse caso, tenha a amabilidade de avisar-me quando tenha terminado com esse surtimento de pílulas, para ver se o senhor pode examinar-me sob uma boa luz.
Nenhuma luz podia ser preferível à que se filtrava pela portaló do canhão aberta para seu lado, e tampouco Stephen teria podido encontrar um jovem médico mais convincente
que o senhor Smith. Observou a Stephen com toda a atenção e a objetividade do mundo, tanto foi assim que assumiu com total naturalidade as liberdades própias de
qualquer físico: levantou suas pálpebras, ordenou-lhe que abrisse a boca, tomou seu pulso na carótida e lhe fez diversas perguntas.
- Com todas as reservas possíveis devidas à minha falibilidade e à relativa inexperiência que possuo, senhor - disse finalmente, sério como uma estátua, - eu diria
que, com excessão de uma, possue o senhor todas as características de um paciente no primeiro estádio da febre amarela; ainda que rogo a Deus que me equivoque.
- Eu lhe agradeço sua sinceridade, senhor Smith. A que excessão se refere?
- A inquietação visível e a opressão sentida da praecordia, cuja ausência nunca tinha presenciado em nenhum dos casos que já vi, e que, em Barbados, tem-se pela
mais significativa.
"Acho que talvez o senhor nunca tenha examinado um paciente fortalecido pela coca", pensou Stephen, ao que acrescentou em voz alta:
- Apesar de dita ausência, senhor Smith, afrontaremos esta indisposição como se se tratasse de um caso de febre amarela e me portarei de acordo com isso. Resta-nos
raiz de calumba?
- Eu duvido, senhor.
- Em tal caso, a Radix serpentariae virginianae responderá muito bem. Também ingerirei uma quantidade considerável de infusão de casca. E no caso de que a doença
se manifeste, eu lhe instruo formalmente para que não leve a cabo neste caso nenhuma sangria, nem tampouco a purgção, já que não há pletora. Tanta água quente (com
umas gotinhas de café) como queira, desde que não me cause incômodos. E esponja, simplesmente esponja, nada de afusões estúpidas, isso me resultará muito benéfico
quando a febre alcance seu estágio mais alto. O senhor está disposto a seguir minhas instruções ao pé da letra, William Smith?
- Sim, senhor. - Esteve a ponto de acrescentar algo, mas pensou melhor.
- Além disso, uma luz tênue junto a toda a tranqüilidade que possa proporcionar um navio de guerra no mar, e minha bolsa de folhas de coca ao meu lado: isso é tudo
o que necessito. Apesar da inestimável opinião do doutor Lind e de tantos outros, não acredito que a febre amarela seja infecciosa. Contudo, antes de preocupar meus
companheiros de tripulação, prefiro recolher-me em minha cabine da enfermaria. Aquele caixotinho se encontra mais ou menos em condições, porém lhe ficaria sumamente
agradecido se o senhor se encarregasse de que o varram, não que o lavem, mas que o varram, pois a barata marrom e bonita do África Ocidental, ainda que seja uma
espécie interessante, torna-se irritante em certas quantidades; temo que já se aninha no barco.
- Muito bem, senhor. Voltarei quando a cabine esteja pronta e ventilada.
Sozinho, Stephen dirigiu-se lentamente pela deserta câmara dos oficiais e esperou sentado junto ao reservado, olhando para popa. A coberta não desfrutava de uma
galeria de popa, mas possuía um elegante respiro em forma de janelões que penduravam diretamente sobre o branco alvoroço da esteira do Bellona, nada mais hipnótico,
e durante um tempo sua mente se abstraiu em uma sonhadora imprecisão familiar, antes de recuperar o fio de seus pensamentos, estruturados de forma sequencial.
A febre amarela era mortífera: difícil precisar um cálculo de possibilidades satisfatório, se bem que tivera notícia de informes verificados que indicavam uma mortandade
do oitenta por cento dos casos. Quanto aos aspectos legais, ditara o que o senhor Lawrence denominou "um testamento férreo" antes de partir da Inglaterra, e disposto
como depositários a alguns cavalheiros de confiança que cuidariam de Diana, Brigid, Clarissa e dos outros. No aspecto menos tangível do assunto, sua experiência
como médico lhe havia demostrado que em condições similares os pacientes que cediam, quer fosse por medo, dor, falta de espírito ou pouca vontade de viver, não sobreviviam,
enquanto que aqueles com um desejo urgente de viver sem perder nem um minuto, aqueles que tinham uma filha encantadora, uma extensa fortuna, uma coleção de fanerógamas
de espécies desconhecidas...
- O que foi? - perguntou.
- O comodoro deseja que lhe cumprimente de sua parte - disse um jovem ruivo, tão jovem que ainda mudava os dentes, - e que lhe peça que vá vê-lo quando possa.
- Transmita todos meus respeitos ao comodoro - respondeu Stephen mecanicamente, - e diga-lhe que irei imediatamente. - Permaneceu sentado durante alguns minutos
e depois se levantou, sacudiu a poeira, endireitou sua peruca e gravata, e subiu lentamente pela escada até chegar ao castelo de popa, e dali acedeu à câmara, consciente
da estranha fraqueza de seus joelhos.
- Ah, está aí, Stephen - exclamou Jack enquanto Tom Pullings se levantava como ativado por uma mola, disposto a aproximar-lhe uma cadeira, - que amável de sua parte
vir tão cedo. Tom e eu queríamos que desse uma espiada neste relatório de nossas ações desde que chegamos ao posto. Talvez pudesse arrumar duas ou três frases e
dar-lhes um tom mais elegante. O senhor Adams tem a mão quebada, mas redigindo não é muito melhor do que nós se nos comparamos com a elegância que possuem suas frases.
- É somente um rascunho, doutor - observou Tom.
Stephen o leu durante um momento.
- A que se referem com "expeditivamente"? - perguntou. - "Procedemos tão expeditivamente como nos foi possível."
- Bem, é que navegamos tão rápido como pudemos - disse um deles.
- Como "urgência", já sabe - disse o outro. - Com a maior urgência possível.
- Não lhes agrada "tão rápido como pudemos navegar..." - começou a dizer Stephen.
- Não - disse Tom. - "Tão rápido como pudemos navegar" acho que não é dizer muito.
- Então, ponham "com a maior celeridade possível" - sugeriu Stephen.
- Celeridade. Grande palavra - disse Tom sorrindo. - Como se soletra, senhor? - Uma pausa. - Como se...? Está bem, senhor?
Ambos o observaram sobressaltados e com preocupação enquanto Stephen permanecia sentado, boqueando. Jack puxou a corda do sino e ao aparecer Grimble lhe ordenou:
- Encarregue-se de que procurem por todo o barco ao ajudante do cirurgião. Diga a Killick que prepare uma maca, uma camisola e um urinol.
Os dois ajudantes do cirurgião compareceram em menos de um minuto, seguidos alguns segundos depois por Killick, e na disputa que seguiu o débil Stephen, débil de
corpo e mente, viu-se avassalado pela amável insistência dos presentes.
- Às favas com a infecção - disse o comodoro. - Eu mesmo tive febre amarela na Jamaica quando era uma criança e me curei. Além disso, não é infecciosa.
- Doutor, o senhor está muito pálido - disse Tom Pullings. - O que o senhor necessita é de um pouco de ar fresco, homem, não ficar lá metido naquela enfermaria hedionda.
Avassalado. Depois de tanta atividade acompanhada por um ruído comedido, encontrou-se deitado em sua maca de sempre, sob uma escotilha escurecida, com um pote de
água morna tigida de café ao alcance de sua mão, e com as folhas de coca. A febre subia: seu pulso era firme e rápido, rápida, a respiração. Um agradável sopro de
brisa marítima acariciou seu rosto, e se dispôs a submeter-se ao acúmulo de adversidades que se aproximavam.
 
O primeiro estágio: sonolência no dia em que se inaugura a doença, o dia mais benigno, e devido ao calor corporal moderadamente elevado o paciente sofre de arrepios.
Neste momento a língua fica úmida e áspera. A pele, úmida, e amiúde se experimenta uma sudoração profusa.
 
- Por favor, senhor Smith, faça-me um breve relato dos três estágios desta doença, e dos fatos por separado. Seria muito conveniente que o senhor Macaulay pudesse
escutar-lhe e observar os sintomas a medida que o senhor os nomeie - disse Stephen.
- Bem, senhor, este é o segundo dia do primeiro estágio, e cabe esperar uma descida do calor corporal, acompanhado por incômodos e agitação crescentes. Observaremos
que a urina é turva, agitada, provavelmente com algum resto de sangue... Em todo caso, escura. E ainda que as dores musculares e a forte sudoração de ontem possam
diminuir, o paciente se desanima por momentos.
- Resulta muito adequado, muito valioso, o fato de que o paciente esteja informado de tudo isto. Cavalheiros, devem considerar que se o paciente é consciente de
que sua tristeza obedece a causas, digamos, mecânicas, de que é devida a um processo a mais da doença, comum a todos que a sofrem, e não a um desenlace razoado dos
trabalhos de sua própia mente, e ainda menos de um princípio de melancolia ou mesmo de um resultado de um fatídico sentimento de culpa, estará muito melhor armado
para combater seus ataques.
- Sim, senhor - disse Smith. - Mostre-me a língua, por favor. Exatamente. Este é o segundo dia, e tem a metade de cor marrom. Quer que lhe sustente a bacia, senhor?
- Se é tão amável.
- Amanhã cederão a secura e o mau colorido. Mas lamento dizer-lhe que amanhã, terceiro dia do primeiro estágio, o senhor também sofrerá de violentos vômitos e de
uma fraqueza sem comparação.
- A fraqueza já é apreciável. Por favor, aproxime o copo de vinho de meus lábios. Quase não posso com ele, e menos ainda evitar que derrame.
 
Uma quadrilha de marinheiros ocupados em entesar o conjunto de amantilhos do cesto da gávea do traquete, frouxo devido ao início da estação seca, observou seu guarda-marinha
servir-se de um gradil para deslizar-se até o convés, provavelmente para ir ao beque. Relaxaram, e um dos mais tontos, voltando a retomar os falatórios que corriam
pelo barco, disse:
- Assim que o doutor não nos permitiu desembarcar por medo da febre essa feliz, e resulta que é ele que a pega, oh, ah, ah, ah! Não nos deixou ir e agora ele a tem:
Deus nos assista.
- É melhor que não diga nada a esse respeito diante de Barret Bonden - advertiu outro, - ou lhe porá a cara como pôs em Dick Roe, que agora ri pelo revés, pela nuca.
Grande cara lhe pôs.
 
Segundo estágio: pulso fraco e queda, ausência de febre; o calor corporal se situa abaixo do normal. Inquietação extrema e difusão amarela dos olhos e da pessoa.
Vômito negro. Maior abandono. Prostração. Delírio. Este estágio dura um número indeterminado de dias antes de cessar por completo ou fundir-se com os sintomas própios
do terceiro estágio.
 
Foi graças a esta prostração e ao delírio, um delírio moderado, contido pela folha de coca e mais póximo de um estado de sono de vigília que ao desvario fruto da
febre elevada, pelo qual Stephen foi consciente em todo momento da presença de Jack, presença reconfortante. Jack se movia pela habitação de um lado para o outro,
falando de vez em quando em voz baixa, dando-lhe de beber, cuidando-lhe na doença. Também, em um de seus muitos intervalos de lucidez, ouviu dizer a um marinheiro
do castelinho:
- Nem pense respirar perto da escotilha, companheiro: aí abaixo têm ao cirurgião, e o ar que sai daí é letal por si só. Há uma árvore em Java sob a qual é fatídico
ficar-se adormecido. Pois isto é o mesmo.
- Killick diz que não é contagioso.
- Se não fosse contagioso, por que o pobre diabo leva a comida a toda pressa contendo o fôlego com um pedaço de carvão na boca, e depois sai correndo para esfregar-se
a cara com vinagre e licor de Gregory, pálido e trêmulo? Que não é infeccioso? Porra nenhuma! Eu os vi morrer a dúzias em Kingston, até que os caranguejos de terra
arrebentavam e se enchiam de devorar seus cadáveres.
 
Terceiro estágio: o pulso, já débil, torna-se imperceptível e desigual; a temperatura perto da região precordial aumenta muito, a respiração se faz dificultosa,
com freqüentes suspiros; o paciente se torna ainda mais nervoso e extraordinariamente inquieto; o suor flue pelo rosto, pescoço e peito; a deglutição fica difícil,
subsultus tendinum, o paciente dorme muito. O estado de inconsciência pode durar oito, dez ou doze horas antes de que se produza a morte.
 
E então, outro dia (mas quantos depois?) ouviu umas vozes altas e claras, claras como em um sonho: "O assistente os ajudou a limpá-lo com a esponja. Afirma jamais
ter visto um corpo tão amarelo: como uma guinéu todo ele, repleto de manchas púrpuras. Os doutores dizem que se não levantar a cabeça em dois dias terão que jogá-lo
pela borda no domingo no máximo, para quando aparelhem a igreja".
 
Chegou o domingo e ao pôr do sol não se celebrara nenhum funeral, e na terça-feira Smith e Macaulay se aproximaram da cabine.
- Senhor, agora estamos convencidos de que saiu do terceiro estágio. É um prazer sentir-lhe o pulso, pois ainda que continue fraco é regular e perceptível. Também
é um prazer inspecionar seus excrementos. Os derrames internos de sangue são uma minúcia desde a sexta-feira, e o senhor já está recuperando as forças; quase pode
levantar um copo meio cheio. Sua voz se ouve na galeria de popa. Passará muito, muito tempo antes de que possa voltar a vagabundear por esses seus bosques, mas mesmo
assim já podemos felicitar-lhe e nos alegrar por sua recuperação.
- Alegrar-nos, senhor, alegrar-nos por sua recuperação - disse Macaulay, e ambos apertaram suavemente sua mão.
 
Passou muito, muito tempo antes de que Stephen pudesse caminhar pela cabine, mas quando pôde voltar a fazê-lo, e fazê-lo nessa coberta instável com suas pernas finas,
não só recuperava forças rapidamente, como também um apetite elogiável. Antes de ir por seus própios meios à galeria de popa, teve oportunidade de queixar-se do
estado de invalidez em que se encontrara consumido.
- A doença implica inumeráveis misérias, muitas das quais você mesmo conhece de sobra, meu amigo - disse um dia que Jack e ele se sentaram juntos na cabine, - e
entre elas, de certa forma a pior de todas é o total e absoluto egoísmo de quem a padece. Indubtavelmente, um corpo empenhado em fazer o possível para sobreviver
só se dedica a si mesmo; mas a mente que habita nesse corpo é tão proclive a dar-se um banquete de indulgência que, logo, quando a necessidade desaparece, segue
a seu ar. Com amarga vergonha devo admitir que sou completamente alheio ao êxito de nossa expedição, e inclusive a seu paradeiro atual. De vez em quando me falou
de passagem de diversas capturas, emergências, tormentas, inclusive do por todos temido harmattan, mas confesso que pouco foi o que ouvi, e pouco o que retive, de
tal forma que não pude elaborar uma narração continuada dos fatos. Seria tão amável de paçar-me outra rodela de abacaxi?
- Veja, o senhor Smith nos disse que seria preferível não se excitar nem molestar, sobretudo o primeiro, e de qualquer maneira desde que sucedeu algo interessante,
como quando a Aurora e a Laurel aprisionaram aquela enorme escuna de Havana, não tardava nada em adormecer.
- Diabo, sim, quanto dormi. Um banho saudável dentro e fora de um estado de rósea hibernação, não há nada mais reparador. Porém, por acaso não pensa em me dizer
como foi esta parte de nossa missão, que estágios já alcançamos, e se até o momento suas expectativas se cumpriram?
- No que concerne ao estágio, quase completamos nosso percurso da costa. Chegamos tão ao interior do golfo como havia planejado, talvez mais do que podia permitir-me,
e o fizemos a tempo, até o golfo de Benín. Agora nos encontramos a pairar frente à costa dos Escravos, e amanhã ou depois confio que os bergantins costeiros porão
as mãos em cima de Whydah e seu enorme mercado de escravos. Uma vez resolvido isso, entregarei a Henslow o comando das embarcações destacadas na costa. Henslow é
o comandante de bergantim de maior antiguidade.
Nós poremos proa para Saint Thomas, com o objetivo de aproveitar os alísios do sudeste.
- Agora recordo: dali a Freetown e ao norte!
- Isso mesmo. Com relação a nosso êxito, não acho que ninguém pudesse ter esperado mais ou, nem sequer, tanto. Aprisionamos dezoito navios negreiros e os enviamos
com as respectivas dotações de presa. Todos, ou a grande maioria, serão condenados, e é que pegamos de surpresa à maior parte destas embarcações ao adiantar-nos
às notícias de nossa presença, e como nos dispararam serão condenadas por atos de pirataria.
- Bom trabalho, por minha honra! Pelo menos terá libertado a cinco mil negros. Não me ocorrera que conseguiria semelhante façanha.
- Seis mil cento e vinte, contando com as mulheres. Ainda que houve alguns portugueses aos quais não tivemos mais remédio que deixar ir, pois possuíam uma documentação
especial e carregavam aos escravos para assentamentos portugueses. Também tivemos alguns duvidosos; veja, qualquer comandante que aprese uma embarcação que não descumpra
a lei é susceptível de ser demandado por danos, por tremendos danos e prejuízos. Apesar disso, tudo foi às mil maravilhas. Há alguns oficiais excelentes e muito
ativos a bordo das embarcações que seguiam a costa, assim como nos botes. Whewell é um deles, certamente. Amanhã virá para pegar as ordens referentes a Whydah, e
se você estiver com força suficiente lhe pedirei que lhe leia o diário de bitácula, que descreve por ordem todos os combates. Ele participou neles, enquanto que
eu não pude nem cheirá-los, exceto na tomada da presa de Havana.
- Não me ocorre nada que possa desejar mais. Porém, mesmo assim, irmão, apesar de tão surpreendente êxito, eu lhe vejo triste, abatido e inquieto. Não queria pecar
de excesso de confiança e se minhas palavras lhe parecem indiscretas, tal e como temo, não ache que lhe acusarei de mostrar-se circunspecto. Mas seu violino, que
me manteve com vida durante todas estas semanas desde a galeria de popa, fala piano, suavemente e sempre em ré menor. Tem este pobre barco uma entrada de água oculta
que não se possa solucionar? Perecerá?
- Triste, sim, nunca gostei de liderar desde a retaguarda - confessou Jack depois de olhá-lo largamente; - e não sabe o quanto me aflige a morte de tantos jovens
aos quais enviei ao interior. Cansado e inquieto: tenho dois motivos, duas razões de peso para estar cansado e inquieto. A primeira é que os ventos, depois de ter-nos
sido tão favoráveis até o momento, tornaram-se cruéis e desconcertantes, assim como no golfo de Benín, e temo (assim como Whewell) que possam permanecer assim durante
meses, impedindo-nos de alcançar Saint Thomas até que seja tarde demais. A segunda é que se conseguir levar minha esquadra até o ponto de reunião a tempo de enfrentar-nos
ao francês, não estou seguro de como se manejarão meus barcos. Lamento muito dizer isto, Stephen, ainda que tendo em conta que um barco é como uma caixa de ressonância
imagino que nada disto seja uma novidade para você. O fato é o seguinte: duas embarcações, que supõem quarenta por cento de nossa capacidade total em libras por
descarga, não estão em condições. Graças a todo o exercício que realizamos podem disparar toleravelmente bem, e também podem jogar os botes na água com tolerável
celeridade, o que não me impede de dizer que não estão em boas condições. Nenhum destes dois barcos desfruta do que você denominaria de harmonia; e ambos estão sob
o comando de homens que não estão preparados para assumir tamanha responsabilidade. Um é um sodomita, ou tem fama de ser, e essa suspeita o faz ficar em muito maus
termos com seus oficiais, enquanto que a disciplina entre seus marinheiros deixa muito a desejar; o outro é um maldito tirano, amigo do chicote, que pouco tem de
marinheiro. Se não o controlasse constantemente, agora mesmo estaria lidando com um motim, um motim em toda regra, dos feios.
Jack fez uma pausa, cortou com ar ausente outra rodela de abacaxi para Stephen e lhe ofereceu. Stephen agradeceu com uma inclinação de cabeça, mas não disse nada.
Não queria interromper o fio de seu discurso.
- Odeio ter que empregar tão chocarreira palavra para referir-me a Duff, que é de meu agrado além de ser um bom marinheiro, e me importa nada o fato de que seja
ou não sodomita. Mas tal como tentei fazer-lhe compreender, é preciso se conter a bordo de um navio de guerra. Uma garota a bordo é mau negócio. Meia dúzia de garotas
converteriam qualquer barco em um manicômio. Mas se um homem, um amante de outros homens, é um sodomita desenfreado, toda a dotação do barco se converte em sua presa.
Algo ruim. Tenho tentado fazê-lo compreender, mas não sou um tipo muito douto nisto de falar e me atreveria a dizer que levou a mal porque é discreto ao extremo,
e é que ao que parece só o que lhe importa é que sua hombridade, sua coragem, sua conduta como nós dizemos, possa ser posta em dúvida. Quando estava disposto a atacar,
fossem quais fossem suas possibilidades de sair garboso, tudo ia às mil maravilhas. É muito complicado. Seus oficiais querem prendê-lo para levá-lo ante um conselho
de guerra, pois estão muito alterados com tudo isso dos favoritos. Dizem que têm testemunhas e provas. Se o declaram culpado o enforcarão: esta é a única sentença
possível nestes casos. A coisa está negra. Negra para a Armada, muito negra em mais de um sentido. Fiz o possível para trocar seus oficiais: depois da febre e das
baixas resultantes surgiram várias vagas a cobrir, mas seu barco segue... - Sacudiu a cabeça. - E com relação ao Imperador Púrpura, que, por certo, nem sequer dirige
a palavra a Duff e quase não o faz quando se dirige a mim, conseguiu reunir uma camarilha de oficiais muito próximos a sua forma de pensar: não há um só marinheiro
entre eles, e inclusive o piloto necessita de duas guardas para fazer que o barco fique em um estado cristão. Isso tudo e a disciplina das Índias Ocidentais: cuspir
nos metais e poli-los durante todo o santo dia, e pendurar até o último homem da verga, tudo isso combinado, como não, com uniformes de qualidade, uma ignorância
extrema da profissão e um desprezo absoluto por qualquer capitão que demonstre ter outros interesses. Jamais na vida havia me topado com semelhante bando de incompetentes
reunidos em um barco de sua majestade.
- Talvez com a longa travessia para o norte que nos espera - Stephen aventurou-se a dizer, depois de Jack permanecer em silêncio durante um bom momento, - com o
exercício constante e mares mais frios, estas duas embarcações enfermas recuperem certa saúde.
- Espero que sim, não sabe como - disse Jack. - Mas necessitaremos de uma travessia incrivelmente comprida para conseguir que alcancem o nível de exigência de Nelson,
e que todos os homens troquem de quilha como uma luva. Com alguém como o Imperador Púrpura não há mudanças que valham: não há nada o que mudar, tão somente um conjunto
de atitudes ostentosas. Creio que o exercício e os mares frios podem operar um milagre, ainda que nós, por nossa posição longe da costa, estivemos muito ociosos.
Stephen, acredita que se pudesse contar com a ajuda de algumas almofadas poderia sustentar o violoncelo? Temos mar plano. Com um par de cabos à altura do peito nem
sequer notará o balanço.
 
Quando Whewell subiu a bordo do cúter do Cestos encontrou no castelo de popa tanto ao comodoro como ao capitão com aspecto comprazido. Depois de trocar os cumprimentos
de rigor, perguntou como estava o doutor; o comodoro assinalou a popa com um gesto de cabeça e Whewell, ao prestar atenção, ouviu a voz profunda e melodiosa, ainda
que um pouco instável, do violoncelo.
- Eu já sabia que uma simples febre amarela não poderia com ele - disse o comodoro. - Acompanhe-me e, depois de apresentar-me o relatório, eu o farei entrar. O doutor
ansia saber como foram as coisas em terra.
Ambos se dirigiram para a popa.
- Meu relatório não poderia ser mais breve, senhor. Whydah está vazia. Por fim as notícias nos adiantaram, e não resta um só negreiro na enseada que possamos aprisionar.
- Não sabe como me alegra ouvir isso - confessou Jack, e ao entrar na câmara encontraram a Stephen atado com correias a uma poltrona, com aspecto de um menino que
tivesse crescido de repente. - Doutor - exclamou Jack, - aqui tem ao senhor Whewell, que acaba de informar-me de que encontraram Whydah vazia. Alegro-me de todo
coração porque não podemos destinar mais oficiais e marinheiros para as dotações de presa. Com tantos em Freetown passeando já andamos bastante abaixo do complemento.
E que, ademais, isso nos permite abandonar esta costa infernal de uma vez por todas, rumar para Saint Thomas e para qualquer lugar cujo ar possamos respirar. Porém,
o vento já anda mais esticado que um rato preso na bodega, e tem pinta de seguir assim até que o sol se ponha, aí partiremos, diremos adeus aos bergantins e escunas
e, depois, daremos tal saldação a esses sevandijas da cidade e aos barracões que saberão o que significa exatamente a Ira de Deus. Senhor Whewell, eu lhe enviarei
os esboços das anotações que figuram no caderno de bitácula, de modo que o senhor possa informar ao doutor de todos os combates entabulados, e possa fazê-lo na devida
ordem.
 
As ordens puderam ser ouvidas no convés, e também o tamborilo dos pés que ressoava acima de suas cabeças enquanto se dispunham a içar as bandeiras de sinais. Já
haviam metido o leme para sotavento, o barco virava, virava, e ao pôr rumo para a costa seu movimento passou de forma gradual do balanço ao cabeceio.
- Olhe, senhor, aquele recruta do diabo - exclamou Whewell assinalando a Thames, a dois cabos de distância pela popa e na esteira do Bellona. Stephen distinguiu
que algumas das velas ondeavam, e também apreciou certo desvio de ambas faixas da esteira que traçava o navio insígnia; mas seu conhecimento do mar não lhe permitia
pôr um nome ao crime cometido, por muito vil que este pudesse ser.
Chegaram os esboços das anotações, mas antes de lê-los, Whewell perguntou por Quadrado e pela viagem que haviam feito Sinon acima.
- Quadrado era o que eu podia desejar - admitiu Stephen. - Não sabe quanto agradeço ao senhor por recomendá-lo; e ainda que minha pequena expedição tenha sido muito
breve, tive ocasião de contemplar muitas maravilhas e trouxe comigo um sem-fim de espécimes.
- Pergunto-me se o senhor viu ao seu potto. Recordo que tinha um interesse particular em topar-se com ele por esses lares.
- Vi um, estou seguro disso; e contemplá-lo não pôde ser mais gratificante. Mas fui incapaz de trazê-lo comigo.
- Em tal caso, o senhor saiba que tenho um a bordo do Cestos, se é que ainda está interessado. Mas temo que é da espécie Calabar, carece de calda: um anguantibo.
Um potto fêmea. Pensei no senhor quando o vi no mercado.
- Nada, nada neste mundo me comprazeria mais - exclamou Stephen. - Sinto-me em dívida com o senhor, não sei como compensar-lhe por seus incômodos, querido senhor
Whewell. Um potto Calabar a duas ou três horas de navegação, ou menos com esta esplêndida brisa doce que sopra. Que alegria.
As atividades na esquadrilha que servia na costa ocuparam mais ou menos a hora que precedia ao almoço, tempo que Whewell desfrutou em companhia do comodoro, do capitão,
do imediato e de um guarda-marinha imaculado que também parecia mudo. Tomaram o café no castelinho depois de ajudar a Stephen a subir pela escada. A essas alturas,
podia ver-se à proa um extenso pedaço da África, lagunas que cintilavam na costa, palmeiras altas como torres quase não visíveis, e verdor, um verdor amiúde escuro
que se estendia pelo interior até fundir-se com o céu e um horizonte indefinido. O guarda-marinha desculpou-se ruborizado antes de desaparecer. Os oficiais superiores
o seguiram depois de tomar um copo de conhaque.
- Ali, na margem mais afastada da laguna - assinalou Whewell, - a meio caminho, mais ou menos, fica Whydah. Quer a luneta?
- Se é tão amável. De modo que aí temos o grande mercado de escravos, mercado no qual, por outro lado, não vejo nem gente nem porto.
- Isso mesmo, senhor. Whydah não tem nada disso. Tudo tem que ser desembarcado ou levado consigo apesar do temível fluxo de ondas, observe como rompe, depois, praia
acima e através da laguna. Os mina, é que fazem tudo, dispõem de esplêndidos botes para superar este fluxo de ondas; mesmo assim não é nada estranho perder alguns
bens.
- Que curiosa disposição para um povoado que atua como centro comercial.
- Sim, senhor. Verá, há poucos portos reais ao longo da costa. E também são Dahomey o que vem a supor que praticamente tudo o que buscamos o poderíamos encontrar
mais para o interior. Sua capital fica situada nas montanhas. Nada sabem do mar e a costa lhes desagrada, porém são uma nação muito aguerrida, sempre andam assaltando
a seus vizinhos para capturar escravos para trocar por produtos europeus. De modo que comparecem a Whydah, que se encontra mais ou menos sob seu controle, por ser
o lugar mais próximo e por mais inconveniente que possa parecer. Pois exportam milhares e milhares de negros anualmente, converteu-se em um lugar bastante grande,
com bairros ingleses, franceses e portugueses, além de alguns árabes e yorubas.
- Vejo muito verde entre as casas.
- Laranjeiras, limeiras e limoeiros por toda parte, senhor, um autêntico gozo depois de uma longa viagem. Recordo que a primeira vez que estive aqui esprimi uma
vintena em uma tijela e joguei diretamente no papo. Naquele então as coisas não estavam tão bem organizadas, e era necessário levar a mercadoria por todo o caminho
até Abomey, a povoação do rei, ou a Kana, sob um sol a pino, que também pertence ao rei mas que é um lugar menor, como uma residência de descanso.
- Não acredito já ter lido sobre uma descrição real de uma povoação africana. Refiro-me a um povoado negro, não a um árabe.
- É um espetáculo muito curioso, senhor. Abomey tem um muro de seis milhas ao a redor, de vinte pés de altura e seis portas. Lá fica a casa do rei, um lugar espaçoso
como poucos, surpreendentemente alto, com caveiras alinhadas por toda parte. Crânios nas paredes, crânios em postes, crânios por toda parte, e também queixadas.
Certamente o senhor encontrará certo número de casas ewe - todo mundo fala ewe por estes lares, - que são feitos de barro e têm teto de palha; e algumas casas às
quais o senhor chamaria de palácios, uma praça de mercado de talvez quarenta ou cinqüenta acres, e um sem-fim de barracões que se perdem na distância.
- Como sua gente trata a um?
- Os Dahomey são honrados e bravos, ainda que reservados; contudo, tive a impressão de que me olhavam por cima do ombro, nada mais verdadeiro, certamente, já que
são mais altos, mas me refiro a uma questão de arrogância. Mesmo assim, não recordo que nenhum dos homens se comportasse de um modo que me parecesse digno de crítica;
e pois levara comigo uma dúzia de baús de um ferro de primeira e capacetes para suas amazonas, o rei ordenou que me dessem um fetiso de ouro que pesava um quarto
de libra.
- Disse suas amazonas, senhor Whewell?
- Sim, senhor. As amazonas Dahomey. - E ao ver que Stephen não parecia entendê-lo, acrescentou: - as unidades mais efetivas do exército do rei são compostas por
mulheres jovens, senhor, valentes a mais não poder e umas verdadeiras feras. Nunca vi mais de um milhar, quando alguns bandos em particular marchavam a bom passo;
mas estou seguro de que havia muitas mais. Foi para elas para quem levei os capacetes de ferro, os chapéus de guerra.
- Suponho que são guerreiras, não? Não se limitam a seguir aos homens à guerra.
- Certamente que são guerreiras, senhor, e conforme se diz são terríveis. Desconhecem o medo e são terríveis. Sempre ocupam o posto de honra na batalha, e são as
primeiras a atacar.
- O senhor me surpreende.
- A mim também me surpreendeu, senhor, quando um punhado do que eu suponho eram mulheres sargento me obrigaram a ir a sua tenda e dar-lhes os chapéus de guerra.
Eu então era jovem, e não era tão feio como agora, e lhe direi que me usaram de uma maneira vergonhosa. Ainda me ruborizo ao recordá-lo. - Inclinou a cabeça, lamentando
ter dito a anedota.
- Com relação a esse potto com que o senhor me presenteia tão amavelmente, senhor Whewell, é tão estritamente noturno como seu parente o potto comum?
- Senhor, não tenho a menor idéia. Estava ali, no mercado, feito um novelo debaixo de um feixe de palha que havia no piso de uma esplêndida jaula de cobre, e quando
perguntei o que era, a anciã me disse: "Potto". Não teria sido satisfatório para ninguém se não regateasse um pouco, de modo que lhe ofereci o equivalente a quatro
peniques por não ter calda; mas ao final obteve um preço que a fez rir comprazida e disse que ao potto acrescentava também alguns livrinhos e gravuras. Fora a governanta
de um missionário papal, já vê o senhor, e vendia tudo o que lhe restava. Tudo já desaparecera, excetuando esses livros, os documentos e o potto, do qual suspeitavam
todas as nações de Whydah, inclusive os hausas, que se tratava do fetiso romano, capaz de ofender aos espíritos do lugar. Levei-a a bordo do Cestos e justo antes
de fazê-lo vi que se aferrava a mim com os olhos abertos como pratos, mas o fato é que não parecia agradar-lhe o que via, e se encolheu de novo quase de imediato
entre a palha por mais que tenha lhe oferecido uma banana. Isso é tudo o que sei dela, exceto que a teriam servido amanhã assado se não chegasse a encontrar o dono.
- O senhor não o terá nesse elegante barco, querido senhor Whewell?
- Oh, não. O movimento parece inquietá-lo, e tivemos que superar uma marejada de proa. O que trouxe comigo foram as gravuras e os livros.
Os livros eram um De situ orbis, de Elzevier Pomponius Mela, um breviário quase reduzido a um estado de destruição total e um grosso caderno repleto de notas em
algumas margens de equivalências entre diversas línguas africanas, e, em outras, de reflexões pessoais e o que pareciam ser esboços de correspondência. As gravuras
eram esmeradas e inexpertas representações do potto em diversas atitudes, sem calda e inquieto.
- Lamento decepcionar-lhe - disse Whewell, - mas a esquadra anda a seus bons oito nós. Olhe, ali, a estibordo, pode ver nossos bergantins e escunas. Dentro de alguns
minutos devo apresentar-me com as ordens. Todos os barcos e embarcações têm instruções de realizar a saldação real dos vinte e um canhonaços.
- E por que, pelo amor de Deus? Que eu saiba hoje não é o dia do Oak Apple{21} nem corresponde a nenhuma outra ocasião célebre.
- Objetiva impressionar a toda Whydah e ao rei Dahomey: e pode justificar-se alegando que é o aniversário de um membro da família real..., bem, quase. O senhor Adams
esteve buscando algo ao que se agarrar no livro e achou um tal duque de Habachtsthal, que ao que parece nasceu hoje. É um primo próximo, acho. Seja como for, é o
bastante régio para o propósito que nos ocupa.
Aquele infeliz nome nunca andava muito longe dos pensamentos de Stephen, mas o fato é que aquele dia parecia mais remoto do que nunca, e sua súbita e inesperada
menção correu um véu sobre a felicidade de Stephen.
Whewell empreendeu o caminho de volta para a baía de Whydah, deixando as gravuras e outras coisas nas mãos de Stephen. Este pegou o caderno e ao folhear as últimas
páginas encontrou de repente um pequeno desenho do potto e de uma criatura muito parecida que supôs seria o Lemur tardigradus, com o seguinte texto, ao que parece
escrito por outro membro da Congregação do Espírito Santo:
 
Em seus modos se mostra geralmente amável, exceto na estação fria, quando seu temperamento parece mudar totalmente. Seu Criador o fez tão sensível ao frio, ao qual
deve ter sido exposto em seus bosques originários, que lhe proviu de uma grossa pelagem que em poucas ocasiões encontramos em animais própios destes climas tropicais.
Não só o alimento constantemente, como que o banho duas vezes por semana em água morna conforme a temperatura da estação. Ele me reconhece, e se mostra agradecido
em todo momento, ainda que quando o pertubava no inverno costumava indignar-se e parecia repreender-me a incomodidade que sofria, por muito que tivesse adotado todas
as precauções possíveis para mantê-lo na temperatura adequada. Em todo momento se mostra comprazido quando o acaricio sua cabeça, e de maneira freqüente tem que
agüentar que toque seus afiadíssimos dentes; de gênio sensível, quando se incomoda sem motivo aparente expressa seu ressentimento mediante um burburinho similar
ao de um esquilo.
No espaço compreendido entre a meia hora depois do nascer do sol e a meia hora antes de pôr-se dorme sem interrupção, feito um novelo, como um porco espinho. E quando
acorda, começa a se preparar para os trabalhos de uma nova jornada: lambe-se e se veste como um gato, operação que a flexibilidade de seu pescoço e extremidades
lhe permitem realizar perfeitamente. Está preparado para um desjejum leve, depois do qual costuma desfrutar de uma breve sesta; recupera toda sua vivacidade quando
o sol se põe. Pouco antes do amanhecer, quando minhas prematuras obrigações me permitem frequentemente ter a oportunidade de observá-la, parece solícita de minha
atenção, e se lhe aproximo um dedo, ela o lambe ou o rói com muita suavidade, e come fruta quando lhe ofereço, ainda que nunca muita durante a refeição matinal.
Quando o dia ganha terreno de novo para a noite, seus olhos perdem seu lustre e vigor, momento em que lhe esconde para desfrutar de um sonho de dez ou onze horas.
 
Era difícil compreender a letra do missionário, pois era irregular e trêmula, parecia escrita pela mão de um homem de idade avançada, talvez enfermo, e quando Stephen
chegou ao pé da página, o Bellona, seu consorte e todas as embarcações que serviam em trabalhos costeiros haviam formado uma linha paralela com relação à praia,
pairar sob a carícia de um vento suave e em franca acalmada a pouco mais que uma distância à queima-roupa da imensa multidão que atapetava a praia. Ouvira as ordens
de sempre, o grito rouco de Meares, do contramestre e de seu ajudante, e sabia que estavam a ponto de executar a saldação. Contudo, nada teria podido preparar-lhe
para o prodigioso e estrondoso rugido que seguiu à primeira descarga do Bellona. A gente que havia na praia parecia igualmente surpreendida, inclusive mais, e vários
milhares se prostraram de joelhos levando as mãos à cabeça.
O ruído não foi tão memorável, nem os penachos de fumaça tão densos como foram em Freetown, mas o caso é que tudo estava mais concentrado. Quando Stephen pôde atender
de novo o fluxo de seus pensamentos, pensou que Jack Aubrey tinha provavelmente razão e o comércio de escravos em conjunto havia sofrido um revés muito maior que
o custo em pólvora (porque não se utilizaram balas). Não estava muito preocupado com relação ao potto. As criaturas que viviam nessa zona sacudida pelas tormentas
tropicais, com aquele homérico trovão que rugia sobre suas cabeças, podiam suportar qualquer coisa que a Armada Real tivesse em seu arsenal, particularmente se dormiam
durante todo o dia com a cabeça entre os joelhos.
Este era o caso daquele potto em questão. Quando Whewell e Quadrado o trouxeram a bordo e o levaram à diminuta cabine de Stephen na enfermaria da coberta dos alojamentos
- pois desconfiava que Jack falando em voz alta e aos sopapos não lhe cairiam bem até que se acostumasse com a vida do barco, - sentou-se com ele um bom momento
sob a luz de um lustre. Ao cair o sol saiu da jaula um pouco nervoso, disso estava seguro, igual que o faria qualquer outro potto selvagem ao encontrar-se em um
novo ambiente, ainda que não parecia nem constrangida nem aterrorizada. Não quis ter nada a ver com a banana que lhe ofereceu, menos ainda com o dedo, mas se asseou
até certo ponto - era uma criatura esplêndida - e um pouco antes de que Stephen saísse descobriu que uma das muitas baratas do lugar entrava em sua jaula. Seus imensos
olhos se iluminaram estranhamente febris: ficou completamente imóvel até que a teve ao alcance, momento em que a pegou com as mãos. Contudo, para comer o inseto,
coisa que fez em um alarde de autêntico apetite, recorreu a uma só de suas mãos, a esquerda.
- Boa noite, querido potto - disse ao fechar a porta ao sair. Percorreu a enfermaria e o camarote dos guardas-marinhas, cheio naquele momento de uma dúzia de meninos
e jovens, comprometidos em desfrutar da janta, jogando-se pedaços de bolacha e gritando uns para os outros. Todos eles saltaram ao ver o doutor, perguntaram como
se achava, disseram que se alegravam muito de ver-lhe caminhar sobre seus pés, mas que não devia fazer esforços, sobretudo tão cedo e a sua idade, e que devia andar
com atenção. Com esse terral bendito de gáveas a barco cabeceava no fluxo de ondas como o cisne de Leda, e os dois ajudantes de maior antiguidade do piloto de derrota,
Upex e Tyndall, insistiram em levar-lhe escada acima até a coberta da segunda bateria, cada um em um cotovelo, depois ao convés principal, e de ali ao castelo de
popa, onde lhe considerariam a salvo e capaz de chegar-se à popa, com ajuda, isso sim, do imediato, até a cabine.
- Céus, Stephen - exclamou Jack. - Achei que estava dormindo. Estive caminhando na ponta dos pés e bebendo o xerez sem fazer ruído.
- Estava sentado com meu potto, na enfermaria - explicou Stephen, - porque é uma criatura noctâmbula. Que amáveis são os jovens do camarote.
- Pois Sim. Agora já estão mais tranqüilos e são menos incômodos: inclusive há um ou dois que poderiam converter-se em marinheiros de verdade se perseverassem nos
próximos quinze anos, mais ou menos. Mas pequena façanha subir desde a enfermaria no estado em se encontra. Creio que lhe deram uma mão.
- Melhor dizendo, nós nos demos mutuamente - disse Stephen. - Recupero a força em arrancadas. Em arrancadas - repetiu a expressão náutica com certa complacência.
E se bem era verdade que por um lado mentia como um velhaco, por outro dizia a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade. Dia após dia aquele maravilhoso
vento soprava com força e levava a esquadra coberta de lona para longe do infeliz golfo, em uma ocasião até o ponto de marear as monterillas a bordo da Thames depois
de repetir-se três vezes o sinal de forçar vela, a terceira repetição enfatizada com um canhonaço para barlavento. Com o transcurso dos dias, Stephen se tornava
mais ativo, mais ágil, e, como o potto, mais glutão.
Muitos dos enfermos que haviam servido nas embarcações costeiras se encontravam nesse momento no Bellona e em outros barcos da esquadra. A maioria deles sofria febres
de um ou outro tipo: terçãs em sua maior parte, terçãs duplas, remitentes e quartãs, ainda que também se registraram três casos de febre amarela. O doutor Maturin
não tardou muito em recuperar o costume de fazer suas rondas matinais, acompanhado por Quadrado, que o ajudava a mover-se pela convés, onde permaneceria durante
o tempo que levava em apurar-se meia ampulheta, mais ou menos, desfrutando em companhia de Jack, Tom e todos os marinheiros presentes da atual marcha da esquadra,
enquanto o vento assobiava ora pela amura de estibordo, ora pela de bombordo. Já não era o vento cristão que havia soprado pela alheta de estibordo como no primeiro
dia que se aproximaram à praia, ainda que tampouco os desviava de seu rumo, de modo que navegavam a orçar rumo à Linha, sem necessidade de mudar de bordo mais que
de guarda em guarda.
- Conforme os guineanos mais veteranos, jamais se vira sorte semelhante - assinalou o senhor Woodbine, o piloto, - e alguns marinheiros afirmam que seu potto trouxe
boa sorte ao barco.
- Meu assistente Joe Andrews me há dito que muitos dos marinheiros africanos dizem que não há nada como um potto para atrair a boa sorte - comentou um oficial da
infantaria da marinha, presente no castelo de popa. - Afinal de contas, há um campo do potto na Bíblia, não é assim?
- É verdade que Barker e Overly estão melhorando? - perguntou Jack a Stephen.
- Isso mesmo - respondeu Stephen, que havia permanecido horas inteiras sentado com eles, convencendo primeiro a seus vizinhos de que a febre amarela não era infecciosa,
apesar de não trocarem palavras com os enfermos, cuidarem muito para não respirar o ar que estes respiravam e permanecerem todos dando-lhes as costas. Depois assegurou
aos pacientes que tinham muitas possibilidades se se aferrassem à vida com todas suas forças e não se abandonassem ao desespero. Ninguém a bordo teria mais autoridade
neste particular, e ainda que o terceiro, avançada a doença, morreu quase de imediato, o mais provável era que Barker e Overly encontrem finalmente outro modo de
reclamar o Céu.
- Ah - disse Jack assentindo com a cabeça, - bom truque trazer a bordo esse potto.
- Que o diabo leve sua débil alma, Jack Aubrey. Está agindo como um pagão ímpio e um infame cachorro supersticioso - exclamou Stephen, profundamente irritado.
- Oh, peço que me perdoe - disse Jack muito ruborizado. - Não era isso o que pretendia. Em absoluto. Só queria tranqüilizar aos homens. Estou seguro de que seus
cuidados também os ajudaram a se recuperar. Não me resta a menor dúvida.
Navegaram à orçar, à orçar e sem demora com ventos em sua maior parte procedentes do sudoeste, ventos que amiúde rolavam mas que jamais acalmavam: não apareceu nenhuma
condenada calmaria do golfo com as densas brumas portadoras de febres que sopravam desde a costa. Quando alcançaram Saint Thomas viram uma nuvem coroando o cume
que se destacava no horizonte a setenta léguas a su-sudoeste quarta leste; Stephen tinha ganhado catorze libras de peso e seus calções se mantinham em seu lugar
sem necessidade de recorrer ao alfinete.
- Hei aí nossa salvação - exclamou depois de que lhe arrancaram de um plácido sono reparador para que pudesse ver o cume em questão.
- A que se refere? - perguntou Jack com desconfiança. Mais de uma vez lhe havia afastado da rota, ou se vira tentado a fazê-lo por culpa de ilhas remotas nas quais
se rumorejava que aninhava um primo do fênix, curiosa galinha sem dúvida, ou os lagartos partenogenéticos (aquilo foi no mar Egeu), e não tinha a menor intenção
de desembarcar ao doutor Maturin em Saint Thomas para que levasse a cabo outra de suas intermináveis expedições. Qualquer marinheiro teria reparado no particular
acúmulo de nuvens que se formavam pela amura de estibordo, empurradas pelos alísios do sudeste.
- Meu querido comodoro, como pode ser tão esquecido? Não lembra que lhe disse uma e mil vezes ao longo de toda esta mortífera semana que quase não me resta um dracma
de quinino no ambulatório, já sabe, a infusão de casca de jesuíta. Meus pacientes afetados de febres a consumiram de dia e de noite. Além disso, não terá esquecido
que os outros barcos me hão privado de vários quartos de Winchester? Não recorda que a esse pastrano, ao que não vamos nomear, não lhe ocorreu outra coisa que jogar
por terra todas meus garrafões de reserva? Não é Saint Thomas a melhor ilha do mundo para conseguir casca da melhor qualidade, casca que nos garantirá livrar-nos
de enfermos em um abrir e fechar de olhos? E não só casca, como os amáveis frutos da terra, cuja carência se torna cada dia mais evidente.
- Isso implicará em perder um dia - disse Jack. - Ainda que devo admitir ter ouvido algumas queixas a respeito da casca, tanto pela quantidade como pela qualidade.
- A infusão de casca de jesuíta é um específico soberbo para combater a febre - disse Stephen. - É necessário que nos rebasteçamos com essa casca.
Em circunstâncias que não poderia recordar com exatidão, provavelmente durante uma festa celebrada em Keppels Head, em Portsmouth, Jack havia dito que a "infusão
de casca de jesuíta era pior que sua mordedura", comentário acolhido com grande algaravia e admiração cordial. Sorriu ao recordá-lo e ao observar o rosto inocente
e sério de seu amigo (nada mais afastado do de um lagarto partenogenético) disse:
- Muito bem. Mas será chegar e partir, o tempo necessário para desembarcar a toda pressa, comprar uma dúzia de garrafas de infusão e de volta a bordo. - E acrescentou
para si: - O que eu não daria para que as coisas fossem tão simples.
E não o foram, certamente. Nunca o eram tratando-se de portos que não pertencessem a sua majestade. Primeiro estava a questão da saldação, pois nenhuma das embarcações
do rei podia efetuar a saldação devida a um forte estrangeiro, a um governador ou a um dignatário local sem ter-se assegurado antes de que lhes devolveriam o cumprimento
com o mesmo número de canhonaços. Isso supunha despachar a um oficial, acompanhado de um interprete; sorte que o senhor Adams tinha certos conhecimentos de português.
Também estava a questão da prática..., mas depois de que os quinze canhonaços de rigor reverberassem ao longo da baía Chaves, um homem enviado pelo capitão do porto
apareceu em uma bela galera, e ao ouvir que a esquadra vinha da costa dos Escravos adotou um porte sério e observou que, como havia registrado um brotamento de praga
em Whydah há três dias, teriam que submeter-se a uma quarentena antes de que alguém pudesse desembarcar. Stephen raciocinou com ele em particular, convencido como
estava da possível lassitude das regulamentações a esse respeito. Finalmente se decidiu que o doutor e um pote de cada um dos barcos poderiam passar umas horas em
terra, mas ninguém se adentraria a mais de uma centena de passos da margem.
Tal e como mais de um esperava na esquadra, o segundo tenente da Thames e o jovem oficial da infantaria da marinha do Stately, que haviam compartido com Stephen
aquela conflituosa refeição, aproveitaram a ocasião, a primeira que se apresentava, para resolver seus desacordos. Eles e seus assistentes se adentraram a mais de
cem passos da margem, mas não muito mais, ao ver que havia um conveniente coqueiro a mão. Ali se mediu o terreno, e ao cair o lenço ambos efetuaram um disparo no
estômago do adversário. Foram levados de volta ao bote, e a questão da hombridade e a combatividade do Stately seguiu em suspenso.
- Você sabia algo desta refrega, Stephen? - perguntou Jack naquela noite, quando Saint Thomas se afundava no extremo sul do mar e o Bellona recuperava o tempo perdido
mareando as alas e as rastreiras, estendidas para aproveitar a carícia dos alísios do sudeste.
- Palavra que estive presente quando se efetuou a provocação.
- Devia ter me dito, poderia tê-lo impedido.
- Bobagens. Produziu-se uma ofensa em toda regra, e o infante da marinha do Stately tinha todo o direito do mundo de responder a ela. Não se ofereceu uma desculpa,
não se retirou a ofensa. Não havia outra saída, como creio que poderá compreender.
Jack não pôde negar.
- Espero que esse jovem não morra - disse sacudindo a cabeça. - Se morrer, o mais provável é que o pobre Duff se enforque. Acha que se recuperará? Refiro-me ao do
Stately.
- Sabe Deus. Não o vi. Terminou antes de que tivesse saído da botica, e só o que vi foi seu sangue na areia. Mas normalmente as feridas no abdomem têm um desenlace
fatal, se as vísceras são feridas.
Os dois jovens morreram em conseqüência do duelo, mas não antes do segundo tenente, por insistência do capelão da Thames, ter reconhecido que estava equivocado e
enviasse a mensagem de rigor a Willoughby, o infante da marinha, que respondeu agradecendo e desejando-lhe uma pronta recuperação. Contudo, a reconciliação foi limitada
a quem havia se enfrentado em duelo. Aumentou a hostilidade entre os dois barcos, fato patente a julgar pelos gritos de "Há! Os do barco de maricas!" desde quando
houve possibilidade de que os ouvissem, ou "Cuidado com essas crianças!" quando não a havia, tudo isso por parte da Thames. O Stately chamava o outro por "Lassitude
de estais!", ou o cominava "A cubrir-se de lona aí!". Não é que se apresentassem muitas ocasiões para mostrar-se rudes, pois embora tenha variado a intensidade dos
maravilhosos alísios, o vento nunca chegou a cair até o ponto de não poder navegar, tal como costumava suceder nas zonas de calmarias equatoriais, o que teria facilitado
as visitas de cortesia entre os barcos, assim como os convites entre os diversos grupos de oficiais: tampouco o comodoro forçou uma calmaria artificial ao ordenar
pôr-se a pairar, nem mesmo no domingo. A verdade é que estava obcecado com a possibilidade de chegar tarde, e ainda que em dias menos ventosos que o normal chamava
a Ringle para que percorresse a linha e perguntasse a seus capitães como andavam, insistia constantemente em sua máxima de "Não perder nem um minuto: não há um minuto
a perder", e a obedecia até o ponto de proibir aos barcos que visitava diminuissem vela para que pudesse subir a bordo com mai facilidade. Em uma ocasião comeu a
bordo do Stately, e ainda que dera o comando de um bergantim ao imediato, o mais teimoso em advogar contra o capitão Duff, que havia querido prendê-lo, lamentava
encontrar uma mostra tão evidente de tensão na mesa do capitão: os oficiais não pareciam muito cômodos, e Duff, ainda que fosse um bom anfitrião, mostrava-se nervoso
e carente de autoridade.
- É um tipo bom, amável e governa o barco como um marinheiro de primeira, mas parece incapaz de aceitar um conselho - disse Jack ao voltar.
Contudo, aquele foi o único dia triste de um total de dez, pois dez dias, nem mais nem menos, levaram para chegar a Freetown - se não fosse pela pouco marinheira
Thames, a coisa teria ficado em oito, - e o restante do tempo desfrutaram de uma deliciosa travessia, de um mundo ao qual haviam se acostumado nos vastos confins
do Pacífico e ao qual voltavam como se volta ao seu ambiente natural, composto pelos devidos rituais e cerimônias a bordo, todos eles separados pelo toque das correspondentes
badaladas, como num monastério. Oito badaladas para a guarda de meia, momento em que quem tinha a obrigação de apresentar-se embaixo do sol com um convés imaculado
devia abandonar suas macas: exatamente duas horas antes de que o astro aparecesse; oito badaladas para a guarda de oito às doze da manhã, quando os oficiais mediam
a altura do sol ao meio-dia e à força de apito se chamava para o rancho. Sinos e apitos todo santo dia, e também um pouco de música: o toque do tambor seguindo a
melodia do Corações de carvalho para anunciar o almoço na câmara dos oficiais - ainda que na Aurora, cujo oficial da infantaria da marinha organizara uma banda entre
seus homens, faziam em grande estilo, - de novo o tambor para o alarme e os preparativos de guerra, e durante muitas noites os violinos, as gaitas ou o diminuto
pífano que tocavam para os marinheiros que bailavam no castelo de proa. Mais badaladas durante toda a noite, talvez algo emudecidas. Estas medidas formais haviam
existido, certamente, durante as esgotadoras jornadas em que se arrastaram pelas costas do Golfo: sucedia amiúde que o Bellona pairava, ocioso. Mas somente agora
recuperavam todo seu significado, e em um tempo surpreendentemente curto esta parte da viagem pareceu ter durado uma eternidade.
Para Jack e Stephen a noite também recuperava sua habitual estrutura repartida entre a janta e a música. De vez em quando disputavam uma partida de xadrez ou jogavam
cartas, sobretudo se o mar se empenhava em impedir que Stephen controlasse o violoncelo; ou conversavam animados sobre os amigos que tinham em comum, sobre as viagens
que haviam feito juntos; raras vezes falavam do futuro, causa de zelos para ambos, tema do qual costumavam fugir se fosse possível.
- Jack - disse Stephen quando o cabeceio do barco o obrigou a render o arco. Mostrou-se diminuído porque sabia o muito que desagradava a Jack tratar de qualquer
tema que pudesse jogar uma mácula sobre sua profissão, - afligir-lhe-ia muito falar-me um pouco mais da sodomia na Armada? Geralmente ouve-se coisas, e a perpétua
repetição do Código Naval com essa alusão ao "pecado detestável e contra a natureza da sodomia" faz que forme parte do mundo naval. Contudo, aparte de seu primeiro
comando, o bergantim Sophie...
- Era uma corveta - propôs Jack, irritado.
- Mas tinha dois mastros. Lembro perfeitamente: um na frente, e o outro, se me segue, atrás. Pelo contrário, uma corveta, tal e como nunca cessa de me repetir, tem
só um, mais ou menos no meio.
- Ainda que não tivesse um só mastro, ou cinqüenta, seguiria sendo uma corveta desde o momento em que li minha nomeação a bordo. Eu era comandante, ou seja, um tenente
que ainda não foi ascendido a capitão de navio. Qualquer coisa que esteja sob o comando de um comandante se converte instantaneamente em uma corveta.
- Bem, nessa embarcação havia um marinheiro que não podia conter sua paixão. Naquele caso foi por uma cabra, se não me engano. Mas além disso não recordo nenhum
outro exemplo, e olhe que a esta altura já estou feito todo um lobo do mar.
- Não me surpreende que seja assim. Mas quando um se detém a pensar como são as coisas abaixo do convés, com trezentos ou quatrocentos homens apertados, a quantidade
de coisas que se vê quando se dobram as macas e a natureza pública dos beques, resulta difícil imaginar um lugar menos adequado para tais travessuras. Ainda que
se dê de vez em quando nos poucos buracos e cantos que possue um barco de guerra, e também na intimidade das cabines. Recordo um caso horroroso que sucedeu em Córsega
no ano noventa e seis. A Blanche, ao comando do capitão Sawyer, e a Meleager, ao comando do capitão Cockburn, George Cockburn, ambas fragatas de trinta e dois canhões
de doze libras, haviam navegado de conserva no ano anterior e sucedeu algo disso no qual Sawyer estava envolvido. Recorda-se de George Cockburn, Stephen?
- Sim. Um homem excelente, um marinheiro de raça.
- Pois reuniu a todos os homens de ambos barcos que estavam a par e os fez jurar que guardariam silêncio sobre aquele assunto. Foi isso que ele fez. Mas resultou
que no ano seguinte Sawyer voltou à carga, chamando os garotos do traquete para sua cabine e apagando a luz. E, certamente, favorecia a esses tipos e não permitia
que seus oficiais os instassem no cumprimento do dever, de modo que a disciplina começou a ir ao diabo. Depois de fazer de sua capa um saio, o imediato solicitou
a formação de um conselho de guerra, que lhe foi concedido, e a Sawyer não ocorreu outra coisa para defender-se senão fazer acusações contra quase toda a câmara
dos oficiais. O pobre George Cockburn se viu arrastado a uma situação terrível. Dispunha de certas provas da culpa de Sawyer graças à correspondência particular
que lhe havia dirigido, que o própio Sawyer lhe havia dirigido. Mas eram privadas, tão confidenciais como a correspondência de qualquer um pode ser. Por outro lado,
se Sawyer se safasse, todos seus oficiais enfrentariam a ruína, e um capitão que nunca deveria ter recebido o comando de nada seguiria estando. De modo que pelo
bem do serviço pegou as cartas, pálido como a morte quando o fez e muito depois. Os juízes deram voltas e mais voltas nas provas, como uma âncora pequena sobre o
cabo, e declararam inocente a Sawyer do ato em si, apesar de declará-lo culpado de indecência, de modo que não o enforcaram mas o expulsaram da Armada. D’Arcy Preston,
um conterrâneo seu, conforme acredito...
- Dos Gormanston. Lembre-me de lhe falar algum dia de sua morte. Por favor, continue.
- D’Arcy Preston o substituiu durante um tempo, e então Nelson, comodoro naquele então, nomeou Henry Hotham, um disciplinador daqueles, para o comando da Blanche,
que ainda estava em muito más condições. Como não podia ser de outra forma, a marinharia havia desfrutado tanto da desobediência e da lassitude que não estavam dispostos
a mudar as coisas. Acusaram-no de ser um condenado tártaro, e disseram que não estavam sequer dispostos a ouvi-lo ler sua nomeação a bordo: apontaram para popa os
canhões do castelo de proa e o jogaram do barco. Após um tempo, Nelson em pessoa subiu a bordo, levando Hotham consigo. Lembrou à dotação da Blanche que tinham a
melhor reputação de todas as fragatas da Armada Real - depois de tudo, tinham aprisionado duas fragatas pesadas em justo combate, - e lhes perguntou se realmente
queriam rebelar-se agora. Se o capitão Hotham os maltratasse, só teriam que escrever-lhe uma carta e ele os apoiaria. Ao ouvir aquilo lançaram três hurras e voltaram
a suas atividades, enquanto que ele regressava ao seu barco deixando Hotham ao comando. Mas não durou. A dotação havia se preguiçoso a perder, a podridão tinha se
arraigado no mais fundo, e quando chegaram a Portsmouth solicitaram que lhes designassem outro capitão ou outro barco.
- Tal petição lhes foi concedida?
- Certamente que não. Foram repartidos entre toda uma série de barcos que andavam com falta de homens. Com respeito ao caso que nos ocupa, ou pelo menos o que parece
perfilar-se como nosso caso, eu falarei com James Wood quando chegarmos a Freetown, para ver o que se pode fazer com uma reorganização cuidadosa e completa e, talvez,
alguns traslados mais. Mas por enquanto tomemos outra taça de vinho - o vinho do porto agüenta perfeitamente bem este calor, não lhe parece? - e voltemos a concentrar-nos
em nosso querido Boccherini.
Assim o fizeram, mas Jack tocou com desânimo, seu coração já não estava inclinado para a música, e Stephen se perguntou como podia ter se mostrado tão chato, sabendo
a devoção que sentia seu amigo pela Armada, para mencionar o tema apesar de seus própios receios. Consolou-se pensando que a água salgada cura tudo, que outras cem
milhas de navegação perfeita levantariam o ânimo de seu amigo Jack, e que em Freetown poderiam resolver-se suas dificuldades.
 
Noite limpa em Freetown, cujo imenso porto estava manchado de barcos pertencentes à Armada Real - além de alguns mercantes de Guinéu, - que cumprimentaram ao galhardete
do comodoro Aubrey com a prontidão própia das pessoas do mar. Havia despachado a Ringle na frente para que informasse ao governador de sua chegada, e quando o Bellona
estava ancorado adequadamente e toda a esquadra esteve em condições, com as vergas perpendiculares em relação ao casco, Jack, seguido por seus comandantes subordinados,
desembarcou com estilo para aguardar a chegada de sua excelência. Uniforme de primeira, espadim do uniforme de gala, chapéu de rebordo dourado e a medalha do Nilo.
O edifício do governo hasteou o sinal o sinal de reconhecimento do barco convidando a ele e a seus capitães para almoçar. A falua do Bellona constituia um espetáculo
precioso, recém pintada como estava, vogada por um conjunto de marinheiros tão limpos como caiba desejar, pois a maior parte deles havia seguido Jack de barco em
barco, e Bonden a governava, sério, consciente da ocasião, exatamente com a mesma pinta que Tom Allen, timoneiro, em tempos, do própio Nelson, com quem também se
parecia; ao seu lado ia o senhor Wetherby, oficial da infantaria da marinha, a quem havia tido que explicar-lhe como devia portar-se em tais circunstâncias.
A falua do Bellona - era um bote, de fato, mas ao ser governada pelos tripulantes da falua se convertia nesta e assumia uma importância um pouco mais esplêndida
- contava com catorze remos, e quando estes catorze homens faltavam à exata regularidade da remada se voltavam para a popa com certo olhar de desaprovação: o cirurgião
e seu guia haviam se convidado para a viagem, e seu aspecto desmerecia de certa forma a pulcritude do conjunto: descuidado, sem esmero, e levando um pára-sól de
cor verde, mal aferrado.
- Não entendo por que esse velho sodomita de Killick o terá permitido sair com essa pinta de pisa-verdes - sussurrou o proeiro.
- Não há problema - resmungou o companheiro. - Ele não irá ao palácio.
Quadrado e ele tinham intenção de passar pelo mercado para entrevistar-se com Houmouzios quando surgisse a ocasião, antes de ir sem perder um minuto ao lamaçal,
onde tomariam assento debaixo do pára-sól e contemplariam as ancudas aves de pernas longas, inclusive talvez algum cárabo, com sua luneta. Sentiu-se peculiarmente
abatido quando, ao chegar à barraca do cambista, só encontraram a Sócrates, que lhes informou que o senhor Houmouzios se achava ausente devido a uma viagem que fizera
ao interior, mas que voltaria na sexta-feira.
Stephen se sentiu peculiarmente abatido e contrariado. Contudo, depois de considerá-lo durante um tempo deu permissão a Quadrado para que fosse ver a sua família
e caminhou lentamente em direção ao fétido pântano, empobrecido na estação seca, mas fétido e pântano afinal de contas, e com as aves concentradas em uma zona pequena.
O que podia suceder? Adanson trabalhara muito duro, mas o fizera longe, ao norte, nas margens do Senegal; e mesmo Adanson não inspecionara todos e cada um dos ovos
que encontrou em sua passagem.
- Doutor, doutor! - exclamou alguém que gritava ao longe.
"Valha-me Deus. Que criaturas, imagine só chamar a um doutor - pensou. - Onde pretenderão encontrá-lo? O açor chega tão ao sul?"
- Doutor, doutor! - gritaram, roucos e correndo, até que finalmente se detiveram.
- O comodoro lhe roga que compareça de imediato - informou um guarda-marinha, quase sem fala. - Sua excelência lhe convidou para almoçar.
- Transmita meus mais sinceros cumprimentos e agradecimentos a sua excelência - disse Stephen, - mas digam-lhe que lamento não poder aceitar seu convite. - E se
dirigiu decidido pela fetidez do pântano.
- Vamos, senhor, não seja assim - disse um sargento alto. - O senhor vai nos meter em uma grande enrascada. Temos ordens de escoltá-lo de regresso, e nos castigarão
e nos açoitarão se não o fizermos. Vamos, senhor, se é tão amável.
Stephen observou a três ofegantes mas decididos ajudantes do piloto, depois olhou para o musculoso infante da marinha, e finalmente cedeu.
- Querido senhor - exclamou o governador. - Peço que me desculpe pelo pouco tempo que lhe dei, o pouco cerimonioso que foi meu convite, mas a última vez que o senhor
esteve aqui não tive o prazer, a honra, de conhecê-lo. Quando minha esposa se informou de que o doutor Maturin, o doutor Stephen Maturin, estivera em Serra Leoa
sem passar por aqui para almoçar não sabe quão mal ficou, o desolada que estava, o contrariada... Permita-me apresentá-la. - Conduziu Stephen ante a presença de
uma jovem muito atraente, alta, loira, agradavelmente roliça, que lhe sorriu com toda a amabilidade do mundo.
- Peço que me desculpe, senhora, por apresentar-me com este aspecto...
- Por favor - exclamou ela, pegando-lhe as mãos. - O senhor está coberto, coberto de louros. Sou a irmã de Edward Heatherleigh e li todos seus adoráveis livros e
ensaios, incluída a conferência que deu no Institut, que monsieur Cuvier teve a amabilidade de remeter para Edward.
Edward Heatherleigh, jovem muito tímido, era naturalista e membro da Royal Society, ainda que se deixasse ver em raras ocasiões. Possuia uma fazenda situada ao norte
da Inglaterra, onde vivia tão discretamente como era possível em companhia de sua irmã. Ambos colecionavam, desenhavam, dissecavam, e, acima de tudo, comparavam.
Tinham esqueletos articulados de todos os mamíferos ingleses, e Edward dissera a Stephen, um de seus escassos amigos íntimos, que ela sabia mais de ossos do que
ele, e que, além disso, era invencível em matéria de morcegos.
Tudo isto passou de través, ou, melhor, apareceu em sua mente com tal velocidade que não teve pausa alguma antes de que articulasse sua resposta da seguinte guisa:
- Senhora Christine! É um prazer conhecê-la. E saiba que agora já não lamento em absoluto o meu aspecto.
O capitão James Wood, o governador, possuía uma mulher que havia procurado seu entretenimento oficial antes do matrimônio, o que estava muito bem; pois se bem a
senhora do governador jamais esquecesse de cumprir com seu dever, e o fazia, poucos marinheiros podiam atrair sua atenção de verdade quando andava perto de um famoso
filósofo naturalista.
- Definitivamente o senhor tem que voltar amanhã - disse quando se despediram, - e lhe mostrarei meu jardim e meus animais: tenho um açor e um porco-espinho de calda
de broxa! Talvez o senhor queira ver meus ossos.
- Nada no mundo poderia comprazer-me mais, creia-me - disse Stephen, apertando sua mão. - E talvez possamos ir dar um passeio pelo pântano.
 
- Há, Stephen, que sorte você tem, palavra - disse Jack quando caminhavam para o bote. - A única mulher bonita da festa e a monopolizou por completo. No salão se
aproximou para sentar-se a seus pés e não trocou palavra com ninguém mais durante horas.
- Tínhamos muito do que falar. Sabe mais sobre ossos e das variantes existentes entre diversas espécies que qualquer outra mulher que conheça; muito mais, certamente,
que muitos homens, por muito anatomistas que se façam chamar. É a irmã de Edward Heatherleigh, a quem terá visto nas reuniões da Royal. É uma jovem estupenda.
- Que prazer. Encanta-me falar com mulheres assim. Caroline Herschel e eu costumávamos conversar até bem entrada a noite sobre o sedimento pomerano e dos últimos
estágios do espelho de um telescópio. É sábia e também é uma mulher preciosa, que benção. Ainda que não posso entender como foi que se casou com James Wood. É um
estupendo marinheiro, homem prático e um tipo excelente, mas nunca teve uma só idéia original em toda sua vida. E pelo menos tem o dobro de sua idade.
- Os casamentos dos outros costumam ser uma constante fonte de espanto - assinalou Stephen.
Seguiram caminhando, recusando a princípio a oferta que lhes fizeram de uma liteira, e depois a de uma rede pendurada em um pau carregado entre dois homens, meio
de transporte habitual por aqueles lares.
- Você também parecia divertir-se muito em sua ponta da mesa - disse Stephen após um tempo.
- E foi assim. Havia algumas pessoas da corte do Vice-almirantado, além do secretário civil, e não deixaram de nos dizer o bem que tinhamos feito, pelo que haviamos
superado aos outros, o ricos que seríamos quando tudo estivesse resolvido, sobretudo se nenhum dos americanos ou dos espanhóis processados ganhassem o recurso interposto
contra suas decisões, o que é muito improvável, ou o muito que desfrutarão nossos marinheiros quando recebam sua parte, que já se encontra preparada em bolsas de
lonita no tesouro, butim pronto para sua entrega. E, Stephen, agora que estamos na estação seca não seguirá empenhado em mantê-los toda a noite a bordo?
- Não. Mas bem sabe qual será o resultado. Percebo certa alegria que emana de você e que jamais atribuiria ao dinheiro do butim, por muito que o adore. Por casualidade
não terá recebido notícias do Almirantado?
- Oh, não. Não espero nada. Poupamos uma quantidade considerável de tempo no último trecho. Não. Ocorre que tenho correspondência de casa - disse ao mesmo tempo
que dava palmadas em seu peito, - e você também, mas da Espanha.
 
A carta de Stephen era de Ávila. Clarissa lhe informava de que levavam uma vida tranqüila e agradável, falava também de sua saudável, afetuosa e invejável filha,
agora toda uma tagarela e toleravelmente correta falando inglês. Brigid tinha aprendido um pouco de castelhano, mas preferia o gaélico que falava com Padeen. Aprendia
o alfabeto sem maiores problemas, mas não sabia com que mão devia escrever as letras. A tia de Stephen, Petronilla, era muito atenta com Brigid, com ambas. Algumas
das damas que viviam no convento tinham carruagens e as levavam de passeio, envolvidas em peles. Aquele era um inverno duro, e dois dos primos de Stephen, um procedente
de Segovia e o outro de Madri, ouviram lobos perto da estrada, ao meio-dia. Ela estava bem, era bastante feliz, lia tudo quanto não pudera ler em anos e lhe agradavam
os cantos das monjas: às vezes se aproximava com Padeen - que lhe enviava lembranças - da igreja beneditina para o ouvir o canto gregoriano. Adjuntava um pequeno
pedaço de papel, não muito limpo, com um desenho de um lobo com dentes e algumas palavras que Stephen não pôde distinguir até que se deu conta de que se tratava
de gaélico escrito foneticamente: "Oh, meu pai, espero que esteja bem, Brigid".
Permaneceu sentado em sua cabine, saboreando aquelas notícias e bebendo um suco de lima durante longo tempo, antes de que Jack aparecesse procedente da galeria de
popa com aspecto igualmente alegre.
- Recebi umas cartas encantadoras de Sophie: ela lhe envia todo seu carinho e tenho intenção de responder-lhe agora mesmo. Há um barco mercante que está a ponto
de largar amarras rumo a Southampton. Stephen, como se soletra peccavi?
Christine Heatherleigh havia deslumbrado ao doutor Maturin, que jazeu em sua maca naquela noite, sacudindo-se a mercê da agitação do Atlântico, pensando em tudo
o que havia sucedido naquela tarde. Entesourava uma viva imagem dela falando das clavículas dos primatas com os olhos extraordinariamente abertos. "É possível que
sua presença física tenha despertado umas emoções que acreditava adormecidas faz tempo em meu, digamos, peito?", perguntava-se. A resposta "Não. Meus motivos são
totalmente puros" chegou no preciso instante em que outra parte de sua mente considerava o suave aperto de sua mão como um gesto de... amabilidade? Por um amigo
de seu irmão? Como de certo interesse? "Não - respondeu de novo, - como meus motivos são totalmente puros, sente-se perfeitamente a salvo comigo, sou de meia idade,
malformado, magro pela febre amarela e pôde mostrar-se tão desenvolta como o faria em companhia de seu avô; ou, pelo menos, de um tio. Apesar de todo o respeito
que eu possa lhe ter, e também ao senhor governador e ao posto que ostenta, pedirei a Killick que recupere, cacheie e empoe minha melhor peruca, com vistas à visita
de amanhã."
Aquela manhã despertou cedo, dizendo-se: "Não me barbearei até depois de ter cumprido com minhas rondas e de ter tomado o café da manhã, quando tenha luz suficiente
para apurar todo o possível". Mas quando terminou as rondas, que demorou devido a novos casos de brotoejas intratáveis como nunca havia visto na vida, a luz ainda
era escassa. No caminho para o convés se encontrou com Killick, e elevando o tom de sua voz para impor-se ao curioso ruído ambiental lhe pediu que se encarregasse
tanto da peruca como de passar os calções de cetim e uma camisa limpa, acrescentando também que pediria ao imediato um bote para aquela mesma manhã.
- Nem pela manhã nem a tarde, senhor. Há fumaça por toda parte, e quase não se pode respirar no convés. Tampouco poderiam jogar o bote na água. Harmattan, dizem
alguns, uma fumaça de Guinéu. Não quererá a peruca para nada. - Não. E se a levasse a teria perdido. E quando assomou a cabeça à altura do castelo de popa seus exíguos
cachos sofreram um golpe pelo sudoeste e compreendeu que o ruído que ouvia era fruto de um curioso e intenso vento do nordeste, cálido, extraordinariamente seco,
e tão carregado de poeira avermelhada que em ocasiões quase não se podia ver a vinte jardas pelo costado. E essas jardas visíveis do mar sofriam o embate contínuo
e espumante do fluxo de ondas.
- Fumaça, senhor - disse Quadrado. - Mas não é grande coisa, e amanhã ou depois será história.
- Espero que tenha razão - confessou Stephen. - Gostaria de poder visitar o senhor Houmouzios. - E ao mesmo tempo que falava sentiu a poerira avermelhada entre os
dentes.
Dia decepcionante aquele, um dia de uma sede extraordinária. Contudo, também teve suas alegrias. Jack, que por costume levava a cabo todas as medições possíveis
(observações relacionadas com a temperatura da água a diversas profundidades, salinidade, umidade do ar e tudo isso para seu amigo Humboldt), mostrou a Stephen seu
baú, que subiram da entrecoberta para que o carpinteiro pudesse acrescentar uma gaveta ou bandeja adicional, baú forte, certamente, que tinha presenciado e sobrevivido
a todas as condições climáticas que o mundo podia oferecer; a todas menos ao harmattan, que partira a tampa. O baú apresentava uma ampla fenda de um extremo a outro.
- Estamos molhando os botes com a mangueira de incêndios para mantê-los inteiros - observou antes de lançar uma sonora gargalhada.
 
Quadrado estava certo com relação à duração, e na quinta-feira deu passagem a um mundo coberto por um pó vermelho de um pé de altura nos lugares abrigados, pó geralmente
áspero, um dia onde pelo menos imperava a calmaria. Stephen Maturin, barbeado cuidadosamente e vestido com esmero, desembarcou em terra procedente de um mar sujo
mas suave. Pois levava um presente em forma de nectarinídeo, ou, melhor, sua pele disposta com as penas para fora, tão bonito como um ramo de flores e muito mais
duradouro, tomou uma liteira para ir ao edifício do governo. Lá teria chamado à porta como um bom cristão se não fosse porque a própia senhora Wood levantou a janela
ao mesmo tempo que lançava um berro, para depois perguntar-lhe como se encontrava.
Desceria em um minuto, disse; e assim foi, pois demorou o suficiente para calçar-se e cobrir-se com um xale de casimira muito conveniente.
- Lamento tanto este odioso harmattan - disse. - Arrasou por completo meu jardim. Quando tenhamos tomado um pouco de café talvez queira dar uma espiada nos espécimes
dissecados, e também nos ossos.
Valia a pena ver aqueles ossos, dispostos de forma esplêndida, amiúde articulados com uma destreza que muitos poucos podiam conseguir.
- Quando éramos jovens - disse ela, diante do que Stephen sorriu, - Edward e eu costumávamos incluir o morcego entre os outros primatas. Mas agora já não o fazemos.
- Creio que fazem o correto - disse Stephen. - São criaturas muito amáveis, ainda que eu consideraria os insetívoros como seus parentes mais próximos.
- Isso mesmo - exclamou ela. - Basta observar sua dentadura e hióides, por muito que Linneo se empenhe. Os primatas são muito mais interessantes. Quer que os vejamos
primeiro? As gavetas dali e o armário estão cheios de primatas. Suponha que quiséssemos começar pela espécie inferior até chegar ao orangutango. Aqui está o potto
comum. Perodicticus potto - disse abrindo a gaveta inferior.
- Ah, quanto ansiava ver estas falanges - disse Stephen, que pegou com delicadeza a mão esquelética. - Sabe por casualidade se em algum ponto de sua vida conta esta
tentativa de dedo indicador com uma unha?
- Não tinha unha a pobre criatura, e, creia-me, parecia muito consciente disso. Eu o surpreendi amiúde observando-se a mão, pasmado.
- Entendo que vivia com a senhora.
- Sim. Durante dezoito meses quase, e não sabe quanto desejaria que seguisse com vida. Desenvolve-se um absurdo afeto pelo potto.
Stephen examinou os ossos em silêncio durante bastante tempo, sobretudo a curiosa disposição da vértebra anterior dorsal.
- Eu queria, senhora Wood... - disse finalmente. - Poderia pedir-lhe que fosse muito amável comigo?
- Querido senhor Maturin - respondeu ela, ruborizada, - o senhor pode pedir-me o que queira.
- Eu também sinto um afeto absurdo por um potto - disse, - um potto sem calda da antiga Calabar.
- Um anguantibo! - exclamou a senhora Wood, enquanto se recuperava da surpresa.
Stephen inclinou a cabeça.
- Não me sai da cabeça desde que abandonamos aquelas paragens. Minha consciência me impede de levá-lo ao norte da linha dos trópicos; tampouco tenho o arrojo necessário
para sacrificá-lo e dissecá-lo. Abandoná-lo em qualquer árvore do lugar, em terreno desconhecido, suporia agir contra minhas convicções.
- Oh, não sabe como lhe compreendo - disse pegando sua mão em um gesto de amabilidade. - Deixe-o e cuidarei dele tanto como me seja possível, tanto por seu bem como
pelo do senhor; e se morrer, como o meu querido potto morreu, o senhor também terá seus ossos.
 
Era sexta-feira e o mercado estava mais abarrotado do que era habitual; também a inquietação de Stephen por encontrar a Houmouzios era mais intensa do que teria
sido normal. O harmattan não só havia partido a tampa do baú de marinheiro do comodoro, como também um número considerável de objetos a bordo do Bellona, entre eles
a caixinha onde Stephen guardava seu modesto resto de folhas de coca. As insaciáveis e onívoras baratas de Guinéu haviam irrompido na caixinha e posto a perder tudo
o que não devoraram. Stephen já começava a sentir falta das apreciadas folhas. Havia, contudo, um grande número de marinheiros e infantes da marinha que vagabundeavam
pelos arredores; e também uma tribo de homens muito negros, altos e fortes, procedentes de alguma região onde era costume usar lanças de folha larga e um tridente
brilhante, que observavam o mercado maravilhados por ser aquela sua primeira visita à cidade. Quadrado os afastou de um lado com suavidade, abrindo passagem como
se faz com uma manada de bois, seguido por Stephen. Ali, por fim, além do encantador de serpentes, viu a figura familiar da barraca, o cachorro calvo e, hurra, a
Houmouzios. Sócrates também estava presente, de modo que o cambista o deixou a cargo da barraca e levou de imediato a Stephen para sua casa. Logo após cumprimentar-lhe
disse que havia recebido as folhas brasileiras, mas não foi até que a porta se fechasse que informou das três mensagens que recebera para o doutor Maturin.
Stephen lhe agradeceu cordialmente pelos incômodos, pagou as folhas e guardou as mensagens no bolso.
- O senhor foi muito amável comigo. Permita-me recomendar-lhe a aquisição de ações da Companhia das Índias Orientais, quando estejam cotadas abaixo de cento e dezesseis.
Despediram-se tão amigos, e Stephen, acompanhado por Quadrado, que carregava o saquinho, empreendeu o caminho de regresso para a praia, ao bote, ao barco e à intimidade
de sua cabine e de seu livro de senhas. Contudo, não tinham percorrido um estádio{22} quando encontraram a estrada bloqueada por uma agitada multidão de marinheiros,
a maioria bêbados, brigando, a ponto de fazê-lo ou animando a quem já etava envolvido: marinheiros da Thames e do Stately, como não?, que resolviam assim suas diferenças.
Por sorte apareceu um grupo moderadamente sóbrio, composto por marinheiros do Bellona, alguns deles antigos companheiros de tripulação de Stephen, que formaram em
ordem fechado ao redor do par e avançaram gritando: "Abram passagem aí!", até que os deixaram para trás sem um só arranhão.
Quando subiu a bordo, Stephen caminhou apressadamente para sua cabine, fechou a porta atrás de de si e abriu as mensagens na ordem em que foram enviadas. Todas elas
provinham, como não podia ser de outra maneira, do escritório de Blaine. A senha lhe era tão familiar que quase pôde lê-la sem necessidade de recorrer ao livro de
códigos: as duas primeiras eram muito tranqüilizadoras e não revelavam nada especial. O plano francês seguia seu curso; haviam se produzido duas mudanças sem importância
no comando de duas embarcações menores, e haviam substituído um barco por outro de igual porte. A terceira nota, contudo, informava de que uma petição para Holanda
lhes proporcionara transportes melhores e mais rápidos, de tal forma que toda a operação ia ser adiantada em uma semana ou dez dias, e que um terceiro navio de linha,
o César, de setenta e quatro canhões, vinha da América para reunir-se com a esquadra francesa nos 42° 20' N, 18° 30' O. Podia produzir-se, contudo, uma redução no
número de fragatas francesas. A mensagem terminava expressando a esperança de que não lhe chegasse tarde demais, e incluía uma quarta folha escrita de punho e letra
de Blaine, conforme a fórmula que empregava em sua correspondência particular e pessoal. Stephen reconheceu sua letra, reconheceu a forma das sucessões, mas não
entendeu nada da mensagem, ainda que estava quase completamente seguro de que um grupo de elementos correspondia à combinação que sir Joseph empregava para referir-se
a Diana. Procurou no livro, livro que, de toda forma, conhecia de memória, mas não encontrou uma solução evidente.
Largou a mensagem de lado para um posterior estudo e foi procurar Jack, a quem encontrou na cabine do piloto com Tom. Os três observavam os cronômetros com visível
inquietação; as horas não concordavam, os mecanismos estavam secos e cheios de poeira, de modo que o mais provável era que estivessem danificados. Para certos assuntos,
Jack era rápido como um lince: bastou um olhar para o rosto de Stephen para que ambos se encontrassem ao cabo de um instante na câmara, onde escutou em silêncio
tudo o que seu amigo queria lhe dizer.
- Graças a Deus que nos informamos a tempo - disse. - Tenho que pôr-me em marcha assim que seja possível. Por favor, encarregue-se dos apetrechos médicos de imediato.
- Chamou a Tom. - Tom, é necessário que larguemos amarras dentro de doze horas, com o despontar da maré-cheia. Vamos com falta de dotação e com tantos marinheiros
em terra, difíceis de encontrar e de trazer de volta, teremos autênticas dificuldades. Despache os botes aos últimos mercantes que acabam de chegar ao porto e recrute
à força quantos homens possa. Os apetrechos estão em condições, além dos do condestável, mas a aguada deve realizar-se de imediato. Nada de permissões, certamente.
Hasteie o sinal para chamar a atenção de todos os capitães e outra para os barcos de pólvora. Ordene a todos os infantes da marinha que vão buscar aos que estão
de licença, que eu me encarregarei de pedir ao governador que nos proporcione a ajuda de seus soldados.
Stephen, seus ajudantes e o potto em sua escura jaula desembarcaram no meio de uma intensa atividade. Enquanto os jovens se dedicavam a adquirir tudo quanto fosse
necessário para a farmácia, Stephen visitou apressadamente à senhora Wood para entregar-lhe seu protegido e despedir-se; uma despedida forçada, tal como observou
muito penalizado. Nenhuma outra jovem teria se mostrado mais amável.
De regresso a bordo viu como desamarravam os barcos de apetrechos que levavam a pólvora, e como no castelo os marinheiros de barcos mercantes forçosamente transbordados
eram designados a uma guarda e posto. Em questão de onze horas e meia depois de Jack dar a ordem, a bandeira azul ondeou no tope do traquete: um ou dois botes e
algumas canoas chegaram evitando freneticamente um fluxo de ondas moderado, e ao dar as doze horas a esquadra se jogou ao mar formando em perfeita linha, rumo oeste
noroeste com um forte vento de gáveas a uma quarta da popa do través, enquanto a banda de músicos da Aurora cantava alto e claro:
 
Vamos, para cima com esse ânimo, garotos, que para a glória rumamos
Para acrescentar algo de novo a este maravilhoso ano:
Em nome da honra chamamos vocês, não para tratá-los como escravos,
Quem é mais livre que nós, filhos dos mares?
CAPÍTULO 10
O comodoro Jack Aubrey subira até a cruzeta do maior do Bellona, a uns cento e quarenta pés de altura acima de um mar amplo e cinza. Frágil suporte aquele para alguém
de seu peso, e apesar do moderado balanço e cabeceio suas duzentas e poucas libras se moviam continuamente traçando uma série de curvas irregulares que poderiam
ter assombrado a um macaco, pois somente o balanço lhe sacudia setenta e cinco pés. Ainda que sabia que a guarda de estibordo aferrava a gávea de capa à verga que
tinha debaixo - e é que o barômetro descia por momentos, - não parecia consciente do movimento, das diversas forças centrífugas que entravam em jogo, nem do vento
que uivava em seus ouvidos, e estava ali de pé, com tanta naturalidade como se tivesse plantado no modesto patamar das escadas de Ashgrove Cottage. Voltou-se para
o nordeste, onde pôde distinguir as gáveas da Laurel sobre o horizonte, a quinze milhas de distância; o vigia desta embarcação dominava um horizonte ainda mais extenso,
um horizonte onde se encontrava a Ringle, justo no limite para manter a comunicação com boa visibilidade. Contudo, a Laurel não hasteava sinal algum. Com a luneta
pendendo de uma correia, trocou o braço que o sustentava ao amantilho de joanete e rondou para observar o oceano para o sudoeste. Encontrou o céu coberto de nuvens,
tal e como esperava, ainda que ainda podia distinguir o lampejo branco do bergantim Orestes, em contato com o cúter Nimble, que distava três léguas. Portanto, nesse
momento encontrava-se na metade de um círculo que se estendia por cinqüenta milhas ao redor, no qual não podia navegar nenhum barco que escapasse a sua atenção.
Contudo, quando seus barcos mais distantes e as embarcações de menor calado fechassem distâncias, o sol se ocultaria atrás dos nimbos do sudoeste e a noite cairia,
quase certo acompanhada por um tempo de tristeza. Sem lua, nada.
Estava a oito dias esperando ali em companhia de toda a esquadra, depois de uma acidentada travessia desde Serra Leoa, a uns quarenta graus de latitude. Havia chegado
aos 42° 20'N, 18° 30'O oito dias antes da primeira data prevista no informe de Inteligência para o encontro da esquadra francesa com o setenta e quatro canhões,
o navio de linha proveniente do oeste. Durante estes oito dias de ventos favoráveis e tempo limpo cruzara lentamente para o nordeste até o meio-dia, e voltado ao
sudoeste até o pôr do sol de ambos perímetros do círculo. Não havia visto nada excetuando a um mercante com destino a Bristol, que passara recentemente e que lhes
informara de que não tinha avistado uma só vela desde a boca do Canal; ao que parece se encontrava nesse canto perdido do mar por culpa de uma condenada escuna americana
de corso que lhe perseguia ao sul. Aqueles oito dias tinham incluído suas correspondentes sete noites, e a oitava estava próxima.
Voltou a dar uma espiada para o nordeste e viu que a Laurel já rumava para reunir-se com a esquadra, navegando à orça pela amura de bombordo. Outra espiada, mais
longa, para o sudoeste, dado que era o quadrante vital. Se não interceptasse o navio de setenta e quatro canhões, e se o comandante francês soubesse como se governava
um barco, sua esquadra, em franca desvantagem, afrontaria a desgraça.
Girou, baixou de novo a luneta e desceu para o convés com sumo cuidado. Stephen o ouviu conversar com Tom Pullings na sobrecâmara, cobriu seu livro de cifras e as
inumeráveis variantes da mensagem de Blaine que havia obtido depois de trocar números, letras e combinações com a esperança de descobrir onde se originava o erro
de seu velho amigo, e poder averiguar do que queria informar-lhe. Até o momento, depois de alguns dias de atento exame, apenas alcançara a firme convicção de que
o grupo de caracteres que acreditou reconhecer após do primeiro golpe de vista fazia referência a Diana. Fechou a tampa da escrivaninha, dissimulou a inquietação
de seu rosto e regressou à câmara. Ao entrar, Jack lhe encontrou sentado ante uma bandeja de peles de ave e etiquetas. Stephen levantou o olhar.
- Para uma mente atormentada, não há nada, acho, mais irritante que o conforto - disse após um momento. - Além de outras considerações, implica amiúde uma sabedoria
superior por parte de quem conforta. Mas lamento de verdade por suas preocupações, meu amigo.
- Obrigado, Stephen. Você sempre diz que há um amanhã, e olhe, acho que deve meter seu calendário pela garganta.
Submergiu em um sono enquanto Stephen seguia dispondo e etiquetando peles. Tinha a íntima convicção de que o navio de setenta e quatro canhões passara despercebido
de noite proveniente do oeste, e de que as possibilidades de que o francês derrotasse à esquadra eram muito elevadas. Isso não era novo na Armada. Sir Robert Calder,
ao comando de quinze navios de linha, havia se enfrentado ante a costa de Finisterre com a frota franco-espanhola de vinte navios comandada por Villeneuve. Julgaram-no
em conselho de guerra e o culparam por ter aprisionado tão somente dois barcos. Claro que havia deixado desprotegida a costa inglesa, e se lhe julgou por ter calculado
mal e não por ter-se comportado mal; mas mesmo assim... Nelson, com nove navios de setenta e quatro canhões, um dos quais encalhou, tinha caído na baía Abukir sobre
Brueys que contava com dez, incluídos três navios de oitenta canhões além do esplêndido navio insígnia, L’Orient, para um total de catorze navios de linha. Nelson
atacou de imediato e queimou, aprisionou e destruiu a todos com excessão de dois. E a outra escala totalmente diferente, ele mesmo, ao comando de um bergantim de
catorze canhões, tinha abordado e capturado uma fragata espanhola armada com trinta e dois. Claro que Nelson conhecia a seus capitães, conhecia a seus barcos e também
conhecia ao inimigo. "Não se preocupe com a manobra - havia dito a Jack durante uma noitada memorável, vá sempre para cima deles."
Sim, mas naquele momento o inimigo não contava na realidade com marinheiros sobressalentes, pois levava anos encerrado num porto e suas dotações não estavam acostumadas
a trabalhar com brio em um barco em péssimas condições atmosféricas - geralmente tampouco saíam garbosos por muito favoráveis que fossem estas, - nem a disparar
os canhões com decisão; e sem falar da melhor disciplina. Como haviam mudado as coisas. Nelson nunca teria aconselhado ao capitão da Java que fosse direto para a
Constitution, fragata dos Estados Unidos, sem pensar em absoluto na manobra.
Nelson conhecia a seus capitães. O jovem Jack Aubrey havia conhecido intimamente à tripulação da Sophie, depois de conviver juntos na corveta durante um longo cruzeiro.
Apesar de todas suas faltas e a freqüência com que se embebedavam, podia confiar neles para que atuassem sem titubeios chegado o momento do combate, durante o combate
em si, e também para enfrentar-se a um inimigo superior em número. O Jack de agora, em troca, não conhecia a seus capitães, além de Howard do Aurora, e a Richardson
da Laurel. Em quanto a Duff, não duvidava de sua coragem; o problema residia na possibilidade de que a disciplina houvesse tocado fundo e pesasse como um lastro
na marinharia na hora de fechar sobre o inimigo, e durante o combate em si. Não sabia o que pensar com respeito a Thomas, da Thames, o Imperador. Os brutos podiam
mostrar-se corajosos no combate, mas também era verdade que se lutasse não o faria de maneira inteligente, coisa que garantia sua falta de sensibilidade, assim como
sua falta de experiência. Para Jack não lhe preocupava muito o espírito de luta de sua dotação. Haviam alcançado um nível razoável quanto ao manejo da artilharia,
e sempre acreditara que quando um barco se envolvia em combate, os serventes que atendiam as peças trabalhavam com brio, todos juntos e com a bala rasa voando por
toda parte; o estrondo dos canhões e a fumaça da pólvora bastavam e sobravam para tirar qualquer receio que os menos promissores tivessem. Talvez em certas ocasiões
se livravam de oficiais tiranos (quer fosse de forma acidental, ou de propósito), mas jamais os vira deixar de lutar, a menos que o barco se visse obrigado a arriar
a bandeira.
Não. Neste combate, já que haveria combate por muito que os outros navios de setenta e quatro canhões chegassem a tempo de participar nele, o xis da questão residia
na manobra, no governo do barco; com a escassa disciplina que reinava no Stately, e a falta de destreza marinheira da Thames, Jack não podia evitar sentir-se aflito,
tanto era assim que quando sua mente não impunha a calma, não parava de elucubrar um plano de ataque que reduzisse por completo a incerteza do que pudesse suceder.
- Não acredito que haja ocupação mais fútil do que dar voltas e mais voltas ao que se deveria fazer em um combate no mar - disse em voz alta, - pelo menos até conhecer-se
tanto a direção do vento como sua força, o número de combatentes de ambos os lados, suas respectivas posições, o estado do mar, e se o combate terá lugar de dia
ou de noite. Por Deus, Stephen, juro que acabo de sentir o cheiro de queijo torrado. Que eu recorde, faz muito que não comemos queijo fundido antes de tocar.
Produziu-se uma breve pausa quebada pela voz de Killick que, a certa distância, entremesclada com o odor que o mar desprende, a reverberação confusa da exárcia tesa
e o rangido da madeira, dizia a seu ajudante:
- Já ouviu, Art. Que eu saiba não tem flanela nos ouvidos. Eu disse que abra a porta com seu traseiro e me deixe passar.
Quase de imediato, Killick entrou de costas com uma esplêndida bandeja de prata que incluía alguns pratinhos de queijo fundido. Depositou-a na mesa de jantar com
uma expressão de triunfo no olhar.
- Esse tipo de Bristol deu um pouco ao despenseiro do contador. É Cheddar, e o confisquei.
 
Stephen raspou a superfície do segundo prato tanto como pôde, armado com um pedaço de bolacha seca; depois, apurou o vinho.
- Falarei de certo assunto que está rondando minha cabeça desde o do golfo de Benín, quando você me falou do incômodo que lhe causava pensar em dois dos barcos.
Veja, não sou precisamente um estrategista naval...
- Oh, eu nunca diria isso.
Stephen inclinou a cabeça.
- Nem sequer um especialista em tática...
- Enfim, tudo na vida é relativo.
- Apesar disso, um dos barcos em questão é uma fragata, e eu tinha entendido que quando se enfrentam navios de linha, a fragata tem o dever de permanecer a certa
distância, levar mensagens, repetir sinais, recolher os sobreviventes que possam aferrar-se ao destroço e, depois, perseguir e fustigar às fragatas do outro bando
quando tentem escapar. Achava que não deviam tomar parte no combate sob nenhuma circunstância.
- O que me diz concerne a batalhas entre navios de linha. Estes não abrem fogo sobre as fragatas durante um combate, ainda que recordo uma excessão que presenciei
durante a batalha do Nilo, desde quando as fragatas não lhes disparem antes. Afinal de contas, os cachorros não mordem a raposa, e vem a ser mais ou menos o mesmo.
Mas nós não contamos com a capacidade de uma frota, pois dois barcos não formam uma linha de batalha. Tudo depende do vento e do tempo, da luz, da escuridão e do
mar que tenhamos. Quando esquadrilhas de barcos se enfrentam pode dar-se uma mêlée na qual se envolvem as fragatas e, inclusive, as corvetas. Seja um bom menino
e alcança-me seu colofônio para que possa encerar meu arco, pode ser? - A esta altura, ambos se dispunham a tocar.
- Pergunto-me (e tenho minhas própias razões para fazê-lo), se acaso um homem de seu poder, inclusive diria que de sua riqueza e de sua posição, um membro do parlamento
cujo nome figura em boa posição na lista de capitães de navio, bem relacionado com a corte, não pode ou não quer proporcionar-se um pedaço de colofônio.
- Tem que considerar que sou um homem de família, Stephen, com um menino ao qual educar e umas filhas ás quais proporcionar um dote, e roupa, por não falar das botinas,
duas, e, mesmo, três vezes ao ano. Pelerines. Quando comeces a se preocupar pela fortuna de Brigid e pelas pelerines de Brigid, você também economizará em colofônio.
Sim, sim. Não lhe parece que o queijo cai maravilhosamente no estômago? Acredito que esta noite dormirei profundamente.
- Tenho essa mesma impressão - admitiu Stephen. - Tenho prescindido de minha habitual dose de folha de coca e bebi dois copos de um extraordinário vinho do porto.
Acho que minhas pálpebras já tendem a fechar-se. Passe-me a partitura, por favor, que ainda não consegui dominar o adágio.
A duras penas pode se considerar ao queijo fundido com torradas como um soporífero, mas quer fosse a hora, o tempo ou alguma virtude inerente ao queijo, houve um
algo que relaxou suas mentes, por outro lado esgotadas pela ansiedade, e que fez que Stephen dormisse como um bendito até que se chamou a dotação para o café da
manhã; enquanto que Jack, com uma pausa quando seu catavento interno sentiu refrescar o vento do noroeste de tal forma que obrigou ao oficial que estava de guarda
a pôr um riz na maior e na gávea do traquete, dormiu roncando placidamente até que uma silhueta borrada ao seu lado gritou com o timbre de voz própio de um adolescente:
- Senhor, senhor! A Laurel hasteou o sinal de que avistou o inimigo ao nor-noroeste, a umas cinco léguas em direção sudoeste.
- Quantos? Transportes?
- Não, senhor. O céu está mais bem coberto ao nor-noroeste.
- Obrigado, senhor Hobbs. Subirei diretamente ao convés.
E assim o fez. Reuniu-se com os oficiais e guardas-marinhas, e também com os integrantes da segunda guarda que ainda usavam camisola e se cobriam com a casaca. Todos
os olhares haviam se voltado para a amura de bombordo, onde se distinguia o casco da Laurel debaixo da tênue luz do cinzento amanhecer. Convés de lona, seu quebra-mar
fendia as águas, e da adriça de sinais pendiam as bandeiras de inteligência.
Na chegada do comodoro, os homens se afastaram e lhe deram o bom dia.
- Peça que ela pergunte à Ringle se tem alguma idéia de seus portes - ordenou ao tenente encarregado dos sinais.
Houve uma pausa, durante a qual a tormenta dominou o horizonte, ao noroeste.
- Negativo, senhor - informou finalmente o tenente de sinais.
- "Laurel, repita a seguinte ordem para a Ringle: Fechar sobre o inimigo com bandeira americana. Averigue número e porte das embarcações. Destrua suas gáveas que
navegam rumo sudeste. Informe... - Jack olhou fixamente para o céu -... dentro de uma hora. Não responda a este sinal." E agora, ordem para a esquadra: "Rumo este
nordeste duas quartas este, com pouca vela". - Ouviu-se a primeira badalada da guarda da manhã, e Jack acrescentou: - Capitão Pullings, se os seus se parecem em
algo comigo, a estas alturas estarão famintos como lobos. Vamos comer.
Foi o agudo apito e o retumbar dos passos no convés o que finalmente conseguiu despertar ao doutor Maturin. Sentou-se à mesa antes de ninguém, pois não prestava
mais atenção ao asseio, à escova e à navalha de barbear que os monges de Thebaid. No castelo de popa, Jack encaminhou-se à popa para a cabine do piloto de derrota,
seguido por Tom, o imediato e o própio piloto e, ao entrar, o sol irrompeu através das nuvens que se estendiam ao leste.
 
- Bom dia, comodoro - cumprimentou Stephen, já envolvido com os ovos e o esplêndido bacon cortado pelo açougueiro de bordo. - Bom dia, Tom. Vou fazer um resumo da
situação. Dormi muito, faltei às minhas rondas matinais, o café está praticamente frio e essa gente não para de correr de um lado para o outro, gritando: "Oh, oh,
o inimigo está vindo para cima. O que faremos para nos salvar?" É isso verdade, meus amigos? - Temo que sim - respondeu Jack, que inclinou a cabeça penalizado. -
E lamento muito dizer que se encontram a umas trinta milhas, talvez menos.
- Não se preocupe, doutor - disse Tom. - O comodoro tem um plano que sem dúvida confundirá sua política.
- Pergunto-me se estará em condições de expô-lo. De expressá-lo em termos que sejam compreensíveis inclusive para alguém dotado de uma extrema ignorância a respeito.
- Permite-me terminar o bife de cordeiro enquanto ordeno meus argumentos - pediu Jack, - e se quer que o explique em termos compreensíveis, acho ser seu homem. Bem,
o que posso oferecer é muito teórico, está no ar, vamos, como não poderá ser de outra forma até que averigüemos de que forças dispõe o inimigo - disse depois de
limpar a boca. - Contudo, parto das três seguintes suposições: primeira, que anda em busca do setenta e quatro desaparecido. Segunda, que não entrará em combate
a menos que não possa evitar, lastrado como está com a responsabilidade de cuidar dos transportes. Terceira, que este vento do noroeste, providencial para ele neste
instante mas pouco comum nestas águas, rolará até converter-se ao anoitecer, ou pouco depois, em um vento do sudoeste, muito mais comum, convicção esta que é a pedra
angular de meu plano.
- Isso mesmo - consentiu Tom.
- Supondo que todos estes presupostos sejam certos, rumaremos para o leste do lés-noroeste, sem perdê-lo de vista se o tempo a seguir se estabelece limpo, com a
Ringle a pairar digamos que a umas dez milhas, como se fosse um barco comum, incapaz de levantar suspeitas; um modesto corsário americano. Há dúzias de embarcações
assim, com o mesmo casco e aparelho idêntico. A Laurel repetirá os sinais. Então, quando o comodoro francês se encontre ao sul de nós... Tom, pode me passar a cesta
do pão? - Fez uma bolacha em cacos, limpou um pedaço da mesa e exclamou: - Gorgulhos! Tão rápido? Estes daqui somos nós, rumo leste. Estes, os franceses, por cima
de nosso horizonte e sem fragatas que façam a descoberta: dirigem-se a um ponto de reunião. Quando o alcancem, o que deveria suceder hoje mesmo com este vento...,
quando o alcancem e não vejam em nenhuma parte ao setenta e quatro, virarão em redondo e rumarão para a Irlanda. Com toda probabilidade, a essas alturas o vento
terá rolado para su-sudoeste, outro bom vento para eles. Sim, mas aqui estamos nós - disse tamborilando com a polpa do dedo um pedaço da bolacha, - e quando tenham
ultrapassado o paralelo do ponto em que os vimos pela primeira vez, assim que estejam ao norte de nós, o barlavento será nosso, certo que sim! Teremos o barlavento,
e em princípio poderemos entabular combate com eles por mais que queiram evitá-lo.
- Isso é muito satisfatório - opinou Stephen, observando os pedaços de bolacha. - E sumamente claro. Porém, que necessidade mais odiosa - acrescentou sacudindo a
cabeça.
O desprezo que Stephen sentia pelo fato de matar amiúde molestava a Jack, pois essa era sua profissão.
- Claro que esta é a seqüência ideal de acontecimentos - Jack apressou-se a matizar. - Poderiam suceder um milhar de coisas, por exemplo que o vento seguisse entabulado
para o noroeste ou que caísse totalmente, que algum cachorro corsário nos visse e informasse ao francês de nossa presença, que recebesse reforços, que chegasse outro
navio de linha, que uma tormenta nos desaparelhasse... seja como for, minhas profecias têm uma forte influência do Velho Moore...
- Desculpe, senhor - disse um guarda-marinha ao dirigir-se ao capitão. - O senhor Soames deseja que lhe transmita seus respeitos, e que informe que a Laurel informou
da presença de dois navios de linha, provavelmente de setenta e quatro canhões, duas fragatas que navegam em conserva, e de uma fragata ou corveta a uma légua da
proa, além de quatro transportes, dois deles longe, a popa.
- Obrigado, senhor Dormer - disse Tom Pullings. - Agora mesmo irei vê-lo. -Presenteou a Stephen com um sorriso de orelha a orelha e, quando o garoto havia saído,
comentou: - Não acredito que as profecias do comodoro tenham nada a ver com o velho Moore, senhor. Acho que os temos...
- Silêncio, Tom - disse o comodoro. - Terá ouvido em alguma parte isso de que da mão para a boca desaparece a dama.
- E quão verdade é, senhor - disse Tom, tocando a cesta de madeira onde serviam a bolacha de barco. - Estive a ponto de dizer uma impropiedade. - Levantou-se, agradeceu
pelo café da manhã e se dirigiu apressadamente ao castelo de popa.
Em geral, as previsões do vento que Jack fizera resultaram muito acertadas, como também o foram suas reservas. O vento rolou em direção su-sudoeste antes do que
esperava, pelo que a esquadra francesa teve que navegar de bolina e dar bordejada atrás de bordejada rumo ao ponto de reunião. Então, o comodoro Esprit-Tranquil
Maistral, sobrevivente da ambiciosa expedição do ano noventa e seis com destino à baía Bantry, expedição que contou com não menos de dezessete navios de linha e
treze fragatas, decidiu aguardar ao setenta e quatro canhões proveniente da América até o dia catorze, dia particularmente afortunado. Nem sequer então se deu à
vela até a hora que achou mais propícia, as onze e meia, de tal forma que, em uma noite escura e impenetrável, com o forte vento de joanetes pela alheta de bombordo
que os empurrou com brio, ele e seus barcos estiveram a ponto de deixar para trás a seus perseguidores.
Durante este tempo, se pode chamar-se assim a um período tão carregado de ansiedade, o Bellona e seus companheiros se limitaram a serpentear rumo oeste para buscar
a esteira do francês, que fez avante rumo nor-nordeste para a Irlanda durante três ou quatro dias. Ocuparam o tempo com as inumeráveis tarefas que exige qualquer
barco no mar, além de pescar pela borda, não sem certo êxito.
Informou-se tanto à Ringle como à Laurel da posição na qual a esquadra pairaria, um pouco ao sudeste do ponto que confiavam alcançar os franceses em questão de três
dias no máximo. Contudo, em quase o dobro desse lapso de tempo, o oceano rebelde, o mau tempo e a falibilidade humana privou ao tropo do significado que lhe correspondia,
e foi somente quando Maistral estava no mar desde o dia catorze que a Ringle se aproximou navegando de bolina por entre o mar encrespado e a negra tormenta às sete
badaladas da guarda da manhã, para informar a voz em grito que havia visto aparecer o casco do francês, pelo nordeste com rumo nordeste, meia hora depois do anoitecer
do dia anterior.
Pelo espaço do último dia e meio, Jack Aubrey passara boa parte do tempo no convés ou subido ao tope, parco de palavra, sem apetite, pálido e esgotado. Por fim voltava
a respirar. A partir desse momento se ouviu o rangido constante dos contraestais, das braças, dos amantilhos e estais que permitiriam ao barco suportar a pesada
lona de capa que a marinharia mareava em um alarde de destreza.
Contudo, esta urgência requeria ao barco e à esquadra de toda a energia marinheira existente. Era sua intenção evitar repreender a si mesmo o excesso de confiança
demostrado em seu própio julgamento. Boa parte desta atividade, assim que o Bellona esteve em condições de empreender a caça, dedicou à Thames. Passou um dia inteiro
a bordo desta embarcação, mostrando a seus oficiais como conseguir um, inclusive dois nós ou três braças de velocidade. E embora tenha notado certa melhora, não
teve mais remédio que admitir que, mesmo fazendo todo o possível, aquela embarcação seguia mostrando-se lenta para uma fragata. Nada poderia curá-la, exceto medidas
radicais. Não lhe pareceu que seu casco estivesse particularmente malformado, embora fosse verdade que não poderia navegar melhor com seu lastro e disposição atuais.
Para aproveitar suas linhas, teria que ficar pelo menos a um pé e meio para a popa. Para melhorar seu aspecto, a bodega, o lastro, a água, as bagagens... tudo isso
teria que ser estivado de tal forma que seus paus estivessem encavilhados e esticados, perpendiculares para proporcionar uma melhor catadura. Amiúde Thomas dizia
que era o barco mais elegante, com suas vergas bracejadas e os paus no ângulo adequado, perpendiculares em relação ao mar. Em mais de uma ocasião o príncipe William
havia elogiado o mesmo. Jack não compartiu com o capitão a opinião que lhe merecia a perícia marinheira do príncipe William, mas sim disse que quando estivessem
na enseada de Cork tentariam ganhar um emborno na popa e levar a cabo algumas comparações. Logo depois lhe deu bom dia e abandonou a fragata de melhor humor. Apenas
havia chegado no convés do Bellona quando a Thames, em um excesso de zelo para comprazer-lhe, perdeu o mastaréu de joanete.
Fosse como fosse, pelo final da guarda do meio-dia da segunda manhã, o céu limpou um pouco e apareceram as velas francesas como tênues lampejos brancos recortados
contra o quadrante nordeste do horizonte. Jack as contemplou durante um bom momento do tope, para proporcionar-se uma idéia geral de suas qualidades marinheiras.
Finalmente, ao deser topou com o rosto desagradável e esquivo de Killick.
- Vejamos, senhor, sua melhor camisa e o uniforme de almirante estão a meia ampulheta estendidas - disse em seu habitual tom lamuriento. - Não terá esquecido que
hoje convidara para almoçar a toda a câmara dos oficiais? Nem mesmo o doutor esqueceu, e se trocou por vontade própia.
O nervosismo da caça havia atuado maravilhas no cozinheiro da câmara, que tinha usado os ingredientes mais excelentes, caros e peculiares: xerez na sopa de tartaruga,
vinho do porto para o molho do leitão, conhaque em um dos pratos favoritos do comodoro, o fufú, geralmente cozinhado com alho e melaço, regado agora com mel e conhaque.
Jack comeu esplendidamente pela primeira vez em muito tempo. A caça, a audível velocidade do barco, pois a água assobiava em voz alta ao passar pelos lados, a sensação
da madeira tensa... Tudo isso contribuiu para minimizar a tensão habitual imposta pela presença de um uniforme de comodoro sentado na cabeceira da mesa, de modo
que não tardaram muito em começar uma conversa animada e espontânea. Vários oficiais tinham presenciado - ou ouvido, - algo sobre a desastrosa tentativa de Hoche
no ano de noventa e seis na baía Bantry com sua enorme e ingovernável frota, e se bem a maioria evitou dar por concluído o assunto, todos tinham coisas interessantes
que dizer sobre essa costa de ferro, com seus mares de medo submetidos a tormentas do sudoeste - a rocha de Fastnet, a marejada frente às Skellings, - comentários
que não poderiam ter sido introduzidos em melhor momento se não estivesse soprando como soprava semelhante vendaval, e se o barômetro em franca descida não sugerisse
que não tardaria em soprar com mais força ainda.
Depois de tomar o café, Jack sugeriu que Stephen colocasse o sudoeste - um gorro para o mau tempo que não podia ter um nome mais apropriado - e o abrigo de lonita,
que lhe acompanhasse ao castelo de proa onde desfrutariam de uma vista estupenda, e que certamente não esquecesse a luneta. Reinava a umidade no castelo de proa
e os chuviscos e inclusive a água verde dos mares que os seguiam banhavam o convés até misturar-se com a água que o Bellona embarcava pelas amuras, ao balançar-se
até os escovéns. Contudo, a vista não podia ser mais imperfeita, de modo que Jack propôs o cesto da gávea do traquete e chamou a Bonden.
Stephen protestou. Afinal de contas, achava-se totalmente recuperado e se sentia com forças para empreender tão simples e familiar subida. Jack elevou o tom de voz
e Bonden se aproximou a passo ligeiro.
- Terei ocasião de que me subam sem tropeçar, sem quase nenhum esforço, a tamanha altura, sem que isso suponha menosprezo para minha autoestima - observou Stephen
para si.
A tamanha altura alcançava os oitenta pés, de onde desfrutaram de uma esplêndida visão do oceano cinzento, sulcado de frisos brancos e açoitado pelo vento. Lá, ao
noroeste, encontravam-se as ansiadas velas brancas. Não só carregavam as gáveas, às vezes também as maiores, e em uma ocasião se alçou um casco por cima do horizonte.
O Bellona não fora buscar de todo a esteira, pois o modo mais rápido de consegui-lo seria convergir sobre ela em uma linha tão reta como fosse possível, em lugar
de traçar um vê no mar. Portanto, desde cesto da gávea do traquete desfrutavam de uma vista de perspectiva da linha francesa. Jack ofereceu a luneta a Stephen.
- Dois navios de duas pontes e outra embarcação de menor porte longe, a proa - confirmou Maturin. - Seguida por quatro barcos que suponho serão os transportes de
tropas, e duas fragatas.
- Sim - disse Jack. - Como são bem manejados esses transportes: não há nem um fora de posição. Seu comodoro deve ser um homem de talento. São rápidos, inclusive
muito rápidos por tratar-se de transportes, mas não me resta a menor dúvida de que os alcançaremos. - virou a rosca da luneta que separava as duas metades de uma
lente dividida, e acrescentou: - A seguir, verá duas imagens do navio de duas pontes no extremo da fila, duas imagens que praticamente se tocam: se continuam assim,
é que vamos à mesma velocidade; se se separam, a presa anda mais rápido; se se sobrepõem, ganhamos terreno. É necessário esperar um pouco para perceber o efeito.
Stephen observou e observou. Depois de longo tempo, que aproveitou para assinalar um petrel que picava o lado de uma enorme onda coroada de espuma, voltou a concentrar-se
e exclamou:
- Elas se uniram. Sobrepõem-se!
- Aí está, ganhamos terreno e com rapidez. Acredito que se deixássemos a Thames, poderíamos alcançá-los no meia da manhã, à vista da costa. Estou convencido de que
seu comodoro se poria a pairar ali mesmo para entabular combate antes de aproximar-se mais daquelas perigosas rochas e de uma costa desconhecida. Além disso, isso
lhe permitiria desembarcar as tropas, protegidas por uma ou ambas fragatas.
- Nossas própias fragatas não as destruiriam?
- Pode ser. Mas o mais provável é que estejam em desvantagem no que se refere à capacidade de fogo. Diria que um desses franceses é uma fragata de trinta e seis
canhões, e quase com toda certeza armada peças de dezoito libras. A outra é uma de trinta e duas, com o mesmo. A pobre e velha Thames dispõe tão somente de canhões
de doze libras, enquanto que a Aurora não tem mais que canhões de nove libras.
Stephen fez algumas observações mais, ainda que Jack, mais atento ao inimigo, não prestou atenção.
- Tal como estão as coisas agora - disse por fim, - quanto antes entrarmos em combate, melhor. - Voltou-se para chamar a atenção de Meares, ocupado na popa do castelo:
- Peço que supervisione essas cunhas de pontaria, condestável, porque amanhã mesmo as provaremos.
- Se se afogarem, senhor - respondeu o condestável, olhando-lhe com um sorriso torcido, - o senhor pode afogar a mim também, e em ainda esquartejar-me, se quiser.
Jack riu de boa vontade; mas no convés disse a Stephen em um aparte:
- Acho recordar que o francês tinha ordens de dirigir-se à baía Bantry ou ao rio Kenmare. Conhece esses lugares, ou as profundas enseadas que há ao longo de suas
costas?
- Muito pouco, e o pouco que sei não lhe serviria de muito, dado que tenho o ponto de vista de um homem do interior. Quase não conheço a parte ocidental de Cork.
Em uma ocasião me alojei na casa dos Whites, não os Whites de Bantry mas alguns de seus primos, Skibbereen e Baltimore. Corria o rumor na região que exemplares da
águia de calda branca se reuniam na ilha Clear, e foi isso o que me levou ali. Não lhe serviria de nada como guia, e muito menos como piloto, pelo amor de Deus.
- Não poderia ter as idéias mais claras, desde quando as coisas sigam assim - disse Jack.
 
Mas as coisas não seguiram assim: o vento esfriou e rolou para o oeste, de tal forma que não puderam largar as joanetes senão com rizes; inclusive assim o vento
os empurrou como alma que o diabo leva. Fazia uma noite tão escura como caiba imaginar, o céu estava completamente coberto de nuvens que quase não permitiam distinguir
o tope, e caía uma chuva constante, amiúde em forma de aguaceiro. Não havia a menor possibilidade de tirar as medições de rigor e pouco se podia confiar na estimativa.
Os três faróis de popa do Bellona ardiam, e de vez em quando Jack Aubrey abandonava o violino ou a partida de cartas que jogava com Stephen para situar-se entre
os faróis, de onde observava a chuva iluminada pela luz, ou auscultava a escuridão com a esperança de distinguir o restante dos componentes de sua esquadra. Ao dar
as oito badaladas, achou ver um fulgor mortiço quando mudou a guarda a bordo do Stately, e em uma ou duas ocasiões acreditou ver uma diminuta luz no que supôs seria
o través da Ringle. Contudo, quase todo o tempo não houve mais que uma escuridão como o breu, outro plano da existência. Ao cabo de um momento esquadrinhando a escuridão
dessa forma, as luzes da bitácula brilhavam com tal intensidade que ao regressar ao castelo de popa lhe bastava um mero reflexo para reconhecer ao guarda-marinha
de guarda, por muito enterrado que estivesse sob a roupa e o chapéu impermeáveis.
- Noite feia, senhor Wetherby - disse. - Confio em que não umedeça seu ânimo.
- Oh, não, senhor - respondeu o garoto, que a seguir soltou uma risada nervosa. - Não estará o senhor de brincadeira?
Passeava a cada intervalo de poucas badaladas, às vezes com certa dificuldade, pelo castelinho, consciente das forças mutáveis do ar e do mar. No dia seguinte subiria
a maré do equinócio, e a essas alturas pensou que já podia perceber os primeiros indícios de sua presença nas incontáveis forças que atuavam sobre o casco.
- Praticamente o vento já sopra para o oeste - disse a Stephen ao voltar de um de seus passeios, quase no final da noite. Contudo, Stephen dormia sentado em uma
poltrona; sua cabeça acompanhava o vaivém e o cabeceio do barco, que avançava através da escuridão.
Jack seguiu seu exemplo pelo espaço do que lhe pareceram alguns minutos, pelo menos até que ouviu o grito do vigia postado no castelo de proa.
- Arrebentação pela amura de estibordo!
Este grito penetrou no cochilo de Jack, que ganhou o convés antes de que o mensageiro pudesse ir até ele. Miller, o oficial de guarda, já tinha aventado escotas
para reduzir a marcha do barco, e Jack e ele permaneceram de pé, atentos a qualquer ruído. Por cima do estrondo generalizado do vento e do choque daquela marejada
surgiu a grave batida constante da onda ao romper contra a costa, ou contra um arrecife.
- Dois foguetes azuis - ordenou Jack. Era o sinal combinado. Naquela ocasião, apesar do vento e do onipresente açoite da chuva que tudo molhava, os foguetes subiram
vôo de imediato, mostrando uma espectral luz azulada.
- Vejo que não há tanta nuvem, quase está limpo - observou o tenente.
- Dentro de meia ampulheta será de dia - disse o piloto de derrota. - Se olhar bem o senhor poderá distinguir uma luz trêmula, ao leste.
A luz trêmula se estendeu; o vento do oeste, apesar de seguir sendo forte, trouxe menos chuvas e mais nuvens, e pouco depois seus olhos, acostumados à escuridão
da noite, distinguiram primeiro um cabo a bombordo, cuja altura de uma centena de pés as nuvens ainda cobriam. Algumas ilhas se estendiam no extremo do mar adentro.
Depois, a estibordo, viram o promontório muito mais extenso e mais nublado, em cuja parede ocidental o mar rugia com uma solenidade tremenda, rítmica. Situada entre
ambos, distinguiram uma estreita baía rochosa que penetrava terra adentro até perder-se nas trevas. A medida que aumentou a luz e a água perdeu a escuridão, viram
outra ilha redonda a certa distância, perto da costa norte. Neste lado da ilha havia dois barcos. Jack pegou a luneta de Miller. Eram os navios franceses de setenta
e quatro canhões, e ao enfocá-los, intensamente concentrado, convenceu-se mais e mais de que não tinham muita certeza aonde desembarcar as tropas. Obviamente, com
semelhante visibilidade, tinham uma dúzia de lugares entre os quais escolher. Supôs que confiavam nos sinais combinados de antemão e na ajuda de pilotos aliados,
pois em seus paus ondeava uma bandeira verde.
- Não toquem o sino - ordenou, com o que veio a interromper a rotina de bordo. Nesse momento, não estava de humor para cerimônias matinais.
- Nada de badaladas, senhor - disse o cabo.
- Se é tão amável, senhor - disse Miller assinalando a primeira ilha, situada pelas costas do braço norte da baía, ilha que ao olhá-la com atenção resultou ser um
pequeno conjunto de barcos.
- Já vejo - disse Jack. - Excelente. - Em uma enseada tão adequada, abrigada e oculta como caberia desejar se encontravam os transportes e as duas fragatas; a enseada
era invisível do mar e também da outra baía.
Calibrou a situação com intenso prazer. A estreita baía estendia-se diretamente para o nordeste. Caso o comodoro francês metesse bem a sua esquadra, com este vento
resultar-lhe-ia impossível sair. Tentava assegurar-se se aquele seria seu verdadeiro destino ou não, quando reparou que já haviam entrado em águas perigosas.
Todos os oficiais se encontravam presentes no convés.
- Não nos resta nenhum piloto familiarizado com águas irlandesas? - perguntou Jack.
- Não, senhor - respondeu Miller. - Até Michael Tierney morreu no golfo de Benín. Contudo, o piloto está teimando em encontrar alguém, e também quer inspecionar
as cartas com toda a atenção possível. Ordenou jogar a sondareza.
- Dá no mesmo - disse Jack. - Toque para preparativo de combate. - Correu para o castelinho, sem descolar a vista da popa. Exceto a Thames, que vadiava ao leste,
além da ponta que fechava a baía, comprovou que todos seus barcos estavam presentes. O Stately se encontrava a um cabo de distância, e a Ringle, obediente barco
de apetrechos, se alçava e caía a mercê do fluxo de ondas, apenas a cinqüenta jardas pela alheta do Bellona.
- Bom dia, William - cumprimentou a voz em grito. - Como anda?
- Bom dia tenha o senhor, senhor - respondeu Reade. - Às mil maravilhas, senhor, muito obrigado.
Ao voltar, Jack fez primeiro sinal para a Thames para que se reunisse com ele, seguida de outro sinal para a Stately para que se situasse à distância de um grito.
O navio de sessenta e quatro canhões se chegou a sotavento do Bellona.
- Capitão Duff, ali estão os navios franceses de duas pontes - informou Jack com seu vozeirão. - Nós os atacaremos sem contemplações; e enquanto pomos rumo a eles,
aproveitaremos para comer algo. Eu atacarei o navio insígnia, se o senhor e a Thames se encarregarem do outro.
- Será um prazer, senhor - respondeu Duff sorridente, e sua dotação lançou três hurras.
Antes de ir coberta abaixo, Jack deu ordens para a Aurora, a Camilla e a Laurel para que mantivessem entre as ilhas uma vigilância discreta dos transportes e sua
escolta. Hospedava esperanças de aprisioná-los sem danos nem baixas, desde que conseguisse o que queria na baía.
Um fogareiro de álcool e uma mente disposta podem fazer maravilhas, mesmo submetidas a um mar de cuidado e a uma tormenta de morte. Jack Aubrey, que permitiu a Stephen
levar a cafeteira até a cabine, regressou ao convés tonificado e alimentado. Ia apetrechado com a vestimenta habitual: uma velha casaca surrada de uniforme, um chapéu
forrado de latão, que lhe havia salvado de mais de uma estocada, um pesado sabre de cavalaria em lugar do espadim ou do alfanje de rigor, botas e meias de seda -
muito melhores em caso de sofrer uma ferida. - Passeou o olhar pelo convés, que encontrou em perfeita ordem de batalha que o capitão Pullings proporcionava tão bem.
Olhou para o lado oposto da baía, onde a Thames avançava bem. Depois observou os franceses, que de sua parte haviam se deslocado das ilhas pelo que parecia ser um
povoado envolto em bruma, situado na parte sul, onde pairaram atravessados entre o vento e a maré, talvez com a âncora pequena arriada. O Stately se mantinha a popa,
a um cabo de distância, e o seguia com as gáveas rizadas, com um aspecto tanto ou mais competente.
- Companheiros - disse Jack em tom coloquial, tom que se impôs ao uivo do vento, - nós pretendemos atacar desde o barlavento ao navio insígnia, enquanto o Stately
faz o mesmo com seu companheiro. Este barco entabulará combate tão perto que nossa bala rasa atravessará ambos os costados, para assim decidir logo o negócio. Que
um raio parta ao primeiro que dê ordem de separar-se!
O estrondoso rumor dos vivas reverberou nas cobertas do Stately, e de imediato se elevou em espiral a fumaça das mechas de combustão lenta, uma para cada peça, que
desprendiam um odor quase tão intenso como a da pólvora.
A que velocidade cobriram as últimas centenas de jardas! Houve um momento em que podiam distinguir ainda as gaivotas, ou a essa condenada bobona da Thames, mas de
repente se acharam em meio do ensurdecedor rugido do combate penol a penol. As descargas perderam toda unidade, fundidas em um contínuo uivo destrutivo. Os barcos
se juntaram uns com os outros, e os franceses tentaram a abordagem, gritando ao atacar. Foram rechaçados. Depois se ouviu um grito mais alto, triunfal, seguido de
outro quando o pau mezena inimigo caiu pela borda à altura de coberta, arrastando pela frente o mastaréu do maior. O barco já não pôde aproar face ao vento, e virou
para bombordo. Contudo, como ainda respondia ao governo do leme andou para o nordeste seguindo o traçado da praia, mantendo o fogo por seu costado incólume até que,
com a maré-cheia, onze minutos depois de efetuado o primeiro disparo, arriou a bandeira ao mesmo tempo que sulcava as águas que rompiam sobre a parede rochosa, justo
ao pé do povoado.
Jack ordenou fechar sobre o barco e pediu aos gritos que se rendesse; e isso fez depois de titubear. Poderia ter apresentado os canhões para atacá-los, mas o fato
de achar-se em semelhante posição com relação à rocha e com aquele fluxo de ondas reduzia a nada toda a esperança. Apesar de tudo, a essa altura da baía e com águas
de tão escassa profundidade, o fluxo de ondas era muito menos perigoso do que parecia. Os botes transportaram o comodoro francês e seus oficiais sem a menor dificuldade,
e levaram de volta a tripulação de presa, incluída a pessoa de Stephen Maturin, a pedido do francês; o cirurgião de bordo havia morrido por querer presenciar a batalha.
Além da dotação de presa de rigor, Jack ordenou também o transbordo de um modesto destacamento de infantes da marinha, pois embora não esperasse que surgissem problemas
a bordo da presa, sempre era melhor prevenir do que remediar. Debaixo das nuvens acabava de ver que o Stately tentara uma esforçada mas perigosa manobra, ao andar
e mudar de bordo por avante de repente, ante as amuras do francês, disposto a varrer sua proa com uma descarga depois da outra. Mas tanto seu barco como a perícia
de seus homens o puseram em má situação: o Stately não completou a virada, e ficou ali a mercê da maré e do vento enquanto o francês o atacava com vontade e rendia
seus mastaréus do maior e da mezena. Finalmente recuperou sua posição anterior, amurado a estibordo. Certamente o inimigo andava um pouco e por sua vez varreu-lhe
o convés.
Se não fosse pela aproximação do Bellona, o francês poderia tê-lo destruído ou aprisionado. Em vista do aspecto que tomava a situação, marejou as gáveas e partiu
de bolina até o extremo do promontório situado ao sul, e depois para o mar aberto, salvando seu paus e suas correspondentes velas para desaparecer rumo leste e cobrir-se
de lona sem ao menos preocupar-se pelos companheiros que haviam ficado encurralados na enseada.
O motivo da fuga se descobriu pouco depois, quando dois navios de linha ingleses de setenta e quatro canhões dobraram o cabo acompanhados de uma fragata. Jack ordenou
hastear o sinal de pôr-se a pairar, ordem que sublinhou com um disparo de canhão. Pediu a Tom que atendesse ao Stately e, caso pudesse deixar o navio sem escolta,
avançasse pela enseada onde se refugiavam os transportes de tropas. Depois, foi para a Ringle.
Subiu a bordo do setenta e quatro mais próximo, o Royal Oak, onde receberam sua falta de elegância e sua roupa manchada de sangue com grande entusiasmo e todos os
respeitos devidos ao seu galhardetão.
- Cavalheiros, vou informar-lhes às pressas - disse. - Há uma enseada situada entre aquele conjunto de ilhas dali - assinalou, - que oculta quatro transportes franceses
de tropas e duas fragatas. Eu mesmo os aprisionaria, mas tenho quatro pés de água na sentina que estão aumentando, tudo isso resultado do combate contra aquele que
encalhou ali, um oponente muito enérgico, por que negá-lo? Neste momento, meu barco não está em condições, é lento e pesado.
Trataram-no com infinita consideração, e certamente lhe asseguraram que cumpririam suas ordens. Felicitaram-lhe de todo coração pela vitória conseguida, desejaram
que não tivesse sofrido muitas baixas e agradeceram ao Céu por terem sido despachados do porto de Bere devido ao rumor do combate. Depois lhe conduziram à cabine,
onde perguntaram se desejava um chá. Chocolate? Talvez genebra e água quente, ou o uísque que se consumia por esses lares. Durante todo esse tempo os barcos se aproximaram
da enseada, e chegado esse ponto os capitães de fragata de Jack subiram a bordo, ansiando notícias, lamentaram o maltratado estado do Bellona, barco ao qual puderam
ver inclinar-se na água e cujas bombas expulsavam para sotavento água em abundância.
Uma das fragatas francesas da enseada optou por fugir. Cortou o cabo da âncora, abriu passagem como facilmente pôde através de um improvável buraco e partiu para
o leste ante a tormenta, com toda a lona de que dispunha, para reunir-se com o barco de linha em sua rota de regresso à França. O restante se rendeu diante de semelhante
força, já que a essas alturas o Bellona havia se unido a os demais navios na enseada.
- William - disse Jack Aubrey a Reade, ao regressar ao navio de apetrechos, - peço que vá correndo ver o doutor e lhe informe que o capitão Geary nos emprestará
alguns marinheiros para que nos ajudem com as bombas; este capitão cuidará de que regressemos à baía Bantry para as reparações, enquanto o Warwick rebocará ao desgraçado
Stately. Diga-lhe que tudo foi bem e que espero voltar cavalgando em um dia ou dois. Há um trecho curto por terra, é por isso que se soube em Bantry da notícia de
nossa presença; ao que parece, um garoto montado em um asno avisou que finalmente os franceses haviam chegado.
 
Por fim os franceses haviam chegado, tanto ansiaram por sua ajuda, prometida fazia tempo. A situação parecia ir por mau caminho; contudo, ali estava finalmente o
esplêndido barco francês, carregado de gente e de armas.
A maré se retirou, para longe, incrivelmente longe, e o barco francês tocou fundo com a madeira malferida rangendo e inclusive cedendo sob seu peso. Encerrou-se
a maioria dos prisioneiros debaixo do convés, ainda que alguns deram uma mão à dotação de presa em diversas tarefas, e outros ajudaram a Stephen a trasladar aos
feridos para o hospital do Sagrado Coração, situado no alto, além de Duniry. Alguns habitantes do povoado faziam parte de um ou outro dos regimentos irlandeses que
serviram sob a bandeira francesa antes da Revolução, e não haviam esquecido a língua; foram eles que descobriram o propósito da expedição e a natureza do carregamento
que o barco transportava. A notícia se espalhou, e quando Stephen voltou do hospital acompanhado pelo padre Boyle encontrou uma multidão ruidosa e ameaçadora junto
ao barco encalhado, cujo lado, que dava para a costa, estava praticamente seco. Havia se colocado uma espécie de escada, e em uma plataforma a seus pés formava a
guarda dos infantes da marinha do Bellona, com aspecto cruzado e aprensivo, já que não só os do povoado se sentiam tentados a apedrejá-los, como também, a praia
transbordava algas, barro e todo tipo de imundice, e as mulheres, que já haviam soltado o cabelo, eram perfeitamente capazes de jogar-lhes o que fosse necessário,
e estragar seus uniformes.
As pessoas abriram passagem para o padre Boyle e para Stephen.
- Temo que pretendem subir pelo lado - um jovem oficial lhes sussurrou.
- Homens de Duniry, são as armas o que desejam - disse Stephen em gaélico, ao virar-se enquanto subia a escada.
- Isso mesmo, e as conseguiremos - gritaram a modo de resposta.
- Se vocês fazeis com essas armas, armas que provêm do mesmo homem que manteve o santo padre prisioneiro, que se tornou turco no Cairo e que rendeu culto a Maomé,
converter-se-ão em vossa ruína e em vossa morte; Deus se interpõe entre nós e o mal. Não sabiam que toda a baronia se levantou em armas ao conhecer a chegada do
francês? Os propietários rurais de todo Cork Ocidental e do condado de Kerry estão em pé de guerra, e se enforcará a todo aquele que seja pego em posse de um mosquete
deste barco. Ao anoitecer não encontrarão mais que forcas em sua passagem, e nem um só telhado cuja palha não arda. - Voltou-se ao cura e exclamou: - Mors in olla,
vir Dei: mors in olla. Pelo amor de Deus, convença-os a se tranquilizarem, querido padre, ou amanhã a estas horas haverá dúzias de viúvas. - Recorreu de novo ao
gaélico para dizer: - Houve um profeta chamado Elíseo, tal e como nosso bom padre Boyle poderia contar, que, em companhia de seus discípulos, foi convidado para
uma refeição no deserto. Contudo, alguém exclamou com uma voz retumbante, que surgiu como um rugido do interior de seu peito: "Não a toqueis, oh, homem de Deus,
que o cozido está envenenado!". Conterrâneos, esse maldito barco será para vós como o mortífero cozido do profeta. E assim será caso se atrevam a tocá-lo, que Deus
não o queira. - E subiu até chegar ao convés da presa, deixando-os em silêncio.
Depois, ao longo daquela noite e durante toda a manhã seguinte, os propietários, a milícia e os soldados, com o aparato habitual de triângulo, amarras e fogo, revistaram
Duniry, além de todas as propriedades e cabanas das proximidades. Não encontraram nada além de certa quantidade de licor ilícito, que beberam.
No dia seguinte, na missa, Stephen foi recebido com o respeito devido a um representante da coroa no condado, e provavelmente com mais afeto. Mais de um lhe perguntou
se honraria sua casa provando seus manjares, e muitos mandaram ao barco presentes em forma de pudim, creme e geléia. A essas alturas levara a cabo todas as operações
cirúrgicas de urgência, e os médicos do lugar haviam se encarregado do restante dos pacientes. Dispunha de tempo livre, tempo para passear pelos arredores, e sucedeu
que um dos muitos cavalheiros do lugar, que se aproximaram para ver o barco francês, chamou sua atenção desde um cabriolé.
- Maturin! Quanto me alegro de vê-lo! Terão passado anos... Venha, acompanhe-me a esta taberninha ilícita e tomemos um trago de xerez; ou prefere um gole de aguardente,
do que poderá confiar mais? Como está? Por minha honra que me alegra ouvir isso. Eu também, eu também. Certamente se dirigia para visitar a Diana. Saí com ela a
finais de março, com os cachorros de Ned Taaffe. Bom dia, matamos duas raposas. Taberneiro. Taberneiro: duas taças de xerez, se é tão amável, e algo sólido para
acompanhá-las. Não terá o senhor anchovas por alguma casualidade?
Stephen observou o vinho, levantou a taça, e disse fazendo uma reverência:
- Que Deus lhe abençoe. - Pegou seu elegante relógio, colocou-o sob a luz e observou atentamente o ponteiro dos segundos até que este completou uma volta.
Seu amigo lhe observava por sua vez, também com toda a atenção do mundo.
- Sem dúvida está tomando-se o pulso - disse.
- Isso mesmo. Recentemente padeci uma miríade de emoções fortes, e queria atribuir um cálculo ao efeito geral, ao efeito físico, dada a impossibilidade de que a
qualidade possa ser medida. Meu cálculo alcança os cento e dezessete por minuto.
- Esse é o número mais afortunado do mundo, conforme acredito; número primo, impossível dividi-lo por outro.
- O senhor está no certo, Stanislas Roche: nem muito nem pouco. Escute. Seria tão amável de fazer-me um favor? Levar-me-ia a Bantry em seu elegante carro, até que
possa alugar um cavalo ou um calesín{23}?
- Vou fazer melhor que isso, dado que Bantry se encontra na direção contrária pelo menos em metade do caminho. Eu lhe levarei a Drimo, não lhe parece encantador
de minha parte?
- Um ato digno de inscrever-se com letra dourada - respondeu Stephen com ar ausente.
E ausente, muito ausente, foi a conversa que mantiveram durante todo o trajeto. Por sorte, Stanislas tinha conversa de sobra para dois. Descreveu os pormenores da
jornada de caça com os cachorros de Ned Taaffe, a destreza de Diana ao eludir uma quantidade prodigiosa de desníveis e arroios no lombo de um castrado árabe e, enfim,
até o menor detalhe de uma longa caçada através de um terreno que Stephen desconhecia por completo, caçada que terminou de forma tão surpreendente como inesperada.
- Não lhe parece assombroso? - perguntou Stanislas.
- Estou profundamente assombrado - respondeu Stephen sem faltar um pingo à verdade. Contudo, lentamente resolvia seu estado de confusão, dotava de certa ordem a
seus assuntos, quase mentalizado de que em questão de alguns minutos podia ver aquilo que mais desejava seu coração, fossem quais fossem as consequências. Ao que
parece, Diana residia já fazia tempo com o coronel Villiers, um ancião parente de seu primeiro marido. Ainda que Stephen não recordava se era um tio, ou um tio de
segundo grau, sabia que o cavalheiro servira na Índia, e que era um grande amante da pesca.
- Já chegamos - disse Stanislas ao puxar das rédeas. - E não demoramos nada. Agora o senhor seria tão amável de abrir o portão? Quase nunca encontro a ninguém na
casinha do guarda. Oh, antes de que me esqueça, como oficial ao serviço do rei deveria informar-lhe de que, em certa maneira, teria que estar de luto. Está manhã
estive em Bantry, tal e como já lhe disse, observando ao Bellona e ao Stately, e lhe tinham posto uma espécie de mastro, refiro-me ao Stately. Para desgosto meu
vi que ondeava uma bandeira a meio mastro. Enviei alguém para perguntar se isso supunha que o valente capitão Duff havia morrido. Não, disseram; somente perdeu a
perna. A bandeira, que certamente ondeava também nas outras embarcações, coisa que pude comprovar ao observá-las, devia-se à morte de um membro da realeza, bem,
quase da realeza, o duque de Habachtsthal, dono do castelo Rossnacreena, representante da coroa neste condado. Ao que parece se degolou em Londres na quinta-feira
passada, e a notícia acaba de chegar.
Este comentário acrescentou assombro ao conjunto de emoções, um assombro que não tinha tanta importância como o anterior, certamente, mas que era assombro afinal
de contas. Com a morte desse homem não teria dificuldade alguma para obter os perdões de Padeen e Clarissa, e a fortuna de Stephen estaria a salvo em qualquer lugar.
Se a aceitasse, poderia presentear a Diana com uma coroa de ouro.
- Stanislas - disse Stephen da margem do caminho. - Não abrirei o portão. Despeço-me do senhor neste momento e lhe agradeço o bem que me fez. Não tenho visto a Diana
há tanto tempo e tantos milhares de milhas marítimas... queria vê-la sozinho.
- Claro, claro. Entendo perfeitamente. Ela também levará uma surpresa.
- Que Deus lhe bendiga, Stanislas.
Acedeu a um amplo pátio ao atravessar o postigo, um pátio um pouco estragado por um muro desmoronado de pedra cinzenta de vinte pés de extensão, e pelo esqueleto
de um bergantim de duas toneladas escorado junto à fonte que havia no centro. Detrás do pátio, a casa que se estendia ante seus olhos sob o sol brilhante tinha duas
alas e um bloco central de três pisos, com um pórtico clássico e uma estupenda escadaria, inteiros a maioria dos degraus.
estava a ponto de chegar á escadaria, entre cujos degraus crescia uma curiosa hepática, quando a porta se abriu e se ouviu a voz de Diana:
- É o senhor o do pão?
- Não - respondeu Stephen.
Diana surgiu da escuridão, com uma mão sobre os olhos, a modo de sombrinha.
- Stephen, meu amor, é você? - desceu a escadaria, tropeçou ao chegar ao último degrau e caiu em seus braços com lágrimas nos olhos.
Sentaram-se ali mesmo, muito juntos.
- Grande costume você tem de aparecer de surpresa, quando coincide que tenho seu nome nos lábios e sua imagem em minha cabeça. Porém, Stephen, querido, você está
amarelo e magérrimo. Não lhe têm dado de comer? Esteve doente? Estará de licença, suponho. Deve ficar aqui, o coronel lhe agradará com salmão, enguia e truta defumadas.
Chegará antes da hora de almoçar. Meu Deus, quanto me alegra ver-te, meu amor. Agora iremos descansar; tem um aspecto lamentável. Venha, acompanhe-me para a cama.
- A sua cama?
- A minha cama, claro que sim. E não deve abandoná-la jamais. Stephen, nunca mais deveria fazer-te ao mar.
X
X
X
X
X
{1} Navegar de conserva: em companhia de outras embarcações para auxiliar ou defender-se.
{2} Pompey: era como os marinheiros britânicos antigamente chamavam a Portsmouth.
{3} Cinquillo: m. jogo de baralho no qual a carta inicial é o cinco.
{4} Galhardetão: Galhardete rematado em duas pontas, mais curto e largo que o ordinário.
{5} Groera: Mar. Buraco feito em uma prancha ou uma chapa, para dar passagem a um cabo, a um pinzote, etc.
{6} Ordem da Liga: Ordem militar inglesa, instituída por Eduardo III no século XIV, chamada assim por sua insígnia, que era uma liga.
{7} Membro da câmara dos lordes.
{8} Calesín: Carruagem leve, de quatro rodas e dois lugares puxada por um só cavalo.
{9} Taba: jogo em que se joga ao ar uma astrágalo de carneiro ou um objeto desta forma, cujo resultado depende do lado em que caia.
{10} Empulgueras: Instrumento que servia para torturar apertando os dedos polegares.
{11} Em Cambridge, conhece-se ao laureado em matemáticas como Wrangler, voz que em suas acepções mais comuns alude a brigão e querelador.
{12} Seven Dials: zona de Londres conhecida antigamente por sua pobreza e sordidez.
{13} Vela de cuchillo: Mar. A que é envergada em cabos ou perchas colocadas no plano longitudinal do navio.
{14} Sands Goodwin: banco de areia de 10 km de comprimento no Canal Inglês.
{15} Berlinga: Mar. Tronco inteiriço de árvore, descascado ou não, que por seu especial tamanho serve para a construção de peças de mastreação, vergas, botalós, alavancas, etc.
{16} Empalletado: Mar. Espécie de colchão que se formava no costado das embarcações quando iam entrar em combate, pondo juntos numa rede as trouxas da roupa dos marinheiros, e servia para defesa contra a fuzilaria inimiga.
{17} Batiportar: Mar. Trincar a artilharia de modo que as bocas das peças se apoiem no canto alto alto das portalós respectivas.
{18} Cachorro com manchas: pudim de sebo com passas.
{19} Batiportar: Mar. Trincar a artilharia de modo que as bocas das peças se apoiem no canto alto das respectivas portalós.
{20} Noite de Guy Fawkes: em 5 de novembro de 1605 os católicos fracassaram em sua tentativa de voltar ao Parlamento inglês, como protesto às leis ditadas contra eles e como parte de um complô ("Conspiração da pólvora") para acabar com Jacobo I. Seu lider, Guy Fawkes, foi capturado e executado. Os protestantes comemoram essa data queimando pela noite um boneco de palha que o representa.
{21} Oak Apple: feriado público formal celebrado na Inglaterra no dia em 29 de maio para comemorar a restauração da monarquia Inglesa em maio de 1660. Foi abolido no ano de 1859.
{22} Estádio: Medida de longitude equivalente a 201,2 metros.
{23} Calesín: Carruagem ligeira, de quatro rodas e dois lugares, do qual puxava uma só cavalgadura.

 

 

                                                                                                    Patrick O'brian

 

 

 

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