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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMPLEXO DE ATLANTIDA / Eoin Colfer
O COMPLEXO DE ATLANTIDA / Eoin Colfer

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

       ERA uma vez um garoto irlandês que queria saber tudo sobre tudo que existe, por isso lia um livro depois do outro até ficar com o cérebro inchado de astronomia, cálculo, física quântica, poetas românticos, ciência forense e antropologia, além de uma centena de outros assuntos. Mas seu livro predileto era um volume fino que ele próprio nunca havia lido. Era uma velha publicação em capa dura que seu pai costumava escolher como história para dormir, intitulada O pote de ouro, falando de um garoto ganancioso que capturou um duende, no esforço inútil de roubar o ouro da criatura.

       Quando terminava de ler a última palavra da última página, que era "Fim", o pai fechava a gasta capa de couro, sorria para o filho e dizia:

       — Aquele garoto teve a ideia certa. Com um pouquinho mais de planejamento, ele conseguiria se dar bem. — E esta era uma opinião incomum para um pai. Pelo menos para um pai respon sável. Mas aquele não era um pai tipicamente responsável — era Artemis Fowl Sênior, chefão de um dos maiores impérios crimi nosos do mundo. O filho também não era comum. Era Artemis Fowl II, que logo também iria se tornar um individuo formidável, tanto no mundo dos homens quanto no das criaturas mágicas.

       Um pouquinho mais de planejamento, costumava pensar Artemis Júnior, enquanto o pai beijava sua testa. Só um pou quinho mais de planejamento.

       E caia no sono e sonhava com ouro.

       À medida que ia ficando mais velho, o jovem Artemis cos tumava pensar em O pote de ouro. Chegou ao ponto de fazer um pouco de pesquisa no horário da escola e ficou surpreso ao encontrar um bocado de provas confiáveis sobre a existência do povo das fadas. Aquelas horas de estudo e planejamento não passavam de distrações leves para o garoto, até o dia em que seu pai desapareceu no Ártico depois de um desentendimento com a Máfia russa. O império Fowl se desintegrou rapidamente, com credores saindo pelas paredes e devedores se enfiando nelas.

       Está por minha conta reconstruir nossa fortuna e encontrar meu pai, percebeu Artemis.

       Assim, tirou o pó da pasta com os documentos sobre os duendes. Iria pegar uma criatura das fadas e cobrar resgate de seu povo, em ouro.

       Só um gênio juvenil poderia tornar esse plano um sucesso, con cluiu Artemis corretamente. Alguém maduro o suficiente para captar os princípios do comércio, mas ao mesmo tempo ainda jovem para acreditar em magia.

       Com a ajuda de Butler, seu guarda-costas mais do que ca paz, aos 12 anos Artemis teve sucesso em capturar um elfo e mantê-lo cativo no porão reforçado da mansão Fowl. Mas esse elfo era um ela, e não um ele. E, além disso, era notavelmente humanoide. O que Artemis havia pensado anteriormente como uma detenção temporária de uma criatura inferior, agora pare cia, de forma bem desconfortável, o sequestro de uma garota.

       E havia outras complicações: aqueles entes mágicos não eram os atrasados dementais dos contos de fada. Eram criaturas carregadas de alta tecnologia, com atitudes e treinamento de um esquadrão policial de alto nível: a Unidade de Reconhe cimento da Liga de Elite da Policia, ou LEPrecon, para usar a sigla deles. E Artemis havia sequestrado Holly Short, a primeira capitã fêmea da história da unidade. Um ato que não o tornou querido no subterrâneo bem armado do povo das fadas.

       Mas apesar de uma consciência incômoda e de tentativas da LEP para atrapalhar seus planos, Artemis conseguiu que lhe entregassem o ouro obtido por meios ilegais e, em troca, libertou a capitã elfo.

       E bem está o que bem acaba?

       Na verdade, não.

       Nem bem a Terra se acomodou depois do primeiro impasse em décadas entre as criaturas do subterrâneo e a humanidade, a LEP descobriu uma trama para fornecer às quadrilhas de goblins fontes de energia de seus lasers Nariz-macio. Suspeito número um: Artemis Fowl. Holly Short então arrastou o garoto irlandês até a Cidade de Porto para ser interrogado, e descobriu, para seu espanto, que Artemis Fowl era mesmo inocente de alguma coisa. Os dois fizeram um trato incômodo, no qual Artemis concordou em rastrear o fornecedor dos goblins se Holly o aju dasse a resgatar o pai dele da quadrilha russa que o mantinha prisioneiro. Os dois grupos cumpriram o acordo e, no processo, desenvolveram um respeito e uma confiança mútuos que era frequentemente cutucada por um afiado senso de humor.

       Ou pelo menos era assim. Recentemente as coisas mudaram. Em certos aspectos, Artemis continua inteligente como sempre, mas uma sombra recobriu sua mente.

       Antigamente Artemis via coisas que ninguém mais podia ver, mas agora ele vê coisas que não existem...

 

 

 

 

 

 

       A Geleira de Vatnajökull é a maior da Europa, com uma área de mais de oito mil quilômetros de um branco-azulado brilhante. Na maior parte é desabitada e desolada e, por motivos científicos, era o local perfeito para Artemis Fowl demonstrar ao povo subterrâneo como, exatamente, planejava salvar o mundo. Além disso, um pouco de drama no cenário não faz mal a uma apresentação.

       O restaurante Grande Skua, nas margens da laguna da geleira, é uma das poucas partes da Vatnajökull que vê tráfego humano. O lugar atende a grupos de turistas que visitam a geleira entre os meses de maio e agosto. Artemis havia arran jado para se encontrar bem cedo com o proprietário em seu estabelecimento fechado para esta estação, na manhã de primeiro de setembro. Seu décimo quinto aniversário.

       Artemis guiava seu snowmobile alugado ao longo do litoral cheio de ondulações da laguna, onde a geleira descia para um poço negro pontilhado com um desenho de placas de gelo que brado que parecia uma calçada de pedras irregulares. O vento rugia em volta de sua cabeça como uma multidão empolgada num estádio, carregando projéteis afiados feitos de granizo que batiam em seu nariz e na boca. O espaço era vasto e implacável, e Artemis sabia que, caso se ferisse sozinho naquela tundra, sofreria uma morte rápida e dolorosa — ou pelo menos uma humilhação muito abjeta diante dos flashes dos turistas no fim da temporada, o que era uma morte ligeiramente menos dolorosa mas que durava mais tempo.

       O dono do Grande Skua, um islandês corpulento e possuidor orgulhoso de um bigode de morsa com a enver gadura de um cormorão de bom tamanho e o nome impro vável de Adam Adamsson, estava na varanda do restaurante, estalando os dedos e batendo os pés segundo um ritmo que só soava em sua cabeça e também achando tempo para rir do progresso irregular de Artemis ao longo do litoral con gelado da laguna.

       — Foi uma demonstração poderosa — disse Adamsson quando Artemis finalmente conseguiu bater o snowmobile con tra o deque do restaurante. — Diabos, harður maður. Não rio tanto desde que meu cachorro tentou morder o próprio reflexo.

       Artemis deu um sorriso azedo, sabendo que o dono do restaurante estava zombando de sua habilidade como piloto, ou da falta da mesma.

       — Hmmf— grunhiu ele, descendo do veiculo rigidamen te, como um caubói cujo cavalo havia morrido durante uma travessia de três dias com o gado gordo do rebanho.

       O velho riu de verdade.

       —Agora você até fez um som que nem o meu cachorro.

       Artemis Fowl não tinha o hábito de fazer aparições indig nas, mas, sem seu guarda-costas Butler à mão, fora obrigado a contar com as próprias habilidades de piloto, que tinham a fama de ser pouco sofisticadas. Um espertinho do sexto ano na escola St. Bartleby, herdeiro de uma fortuna em hotéis, tinha apelidado Artemis de Fowl Pé Esquerdo, como se ele tivesse dois pés esquerdos e não conseguisse chutar com nenhum dos dois. Artemis tolerou essa zombaria durante uma semana, depois comprou a cadeia de hotéis do jovem herdeiro. Isso acabou abruptamente com a provocação.

       — Está tudo preparado, não é? — perguntou Artemis, flexionando os dedos dentro de suas luvas solares patenteadas. Notou que uma das mãos estava desconfortavelmente quente; o termostato devia ter estragado quando bateu num obelisco de gelo um quilômetro e meio abaixo, no litoral. Puxou o fio da bateria com os dentes; não havia muito perigo de sofrer hipoter- mia, já que a temperatura outonal estava pouco abaixo de zero.

       —E olá para você, também — disse Adamsson. — E um pra zer finalmente conhecê-lo cara a cara, ainda que não olho a olho.

       Artemis não engoliu a isca de forjar relacionamento lançada por Adamsson. No momento não havia espaço na sua vida para outro amigo em quem não confiasse.

       —  Não pretendo pedir a mão da sua filha em casamento, Sr. Adamsson, por isso acho que podemos deixar de lado qual quer tentativa de quebrar o gelo que o senhor possa se sentir obrigado a fazer. Está tudo pronto?

       As tentativas de quebrar o gelo preparadas antecipadamen te por Adam Adamsson se derreteram em sua garganta e ele assentiu meia dúzia de vezes.

       —  Tudo pronto. Seu caixote está lá atrás. Mandei preparar um bufê vegetariano e sacolas de brindes do Spa Laguna Azul. Alguns assentos também foram arrumados, como foi requisi tado bruscamente em seu e-mail curto e grosso. Mas ninguém do seu grupo apareceu, a não ser você, mesmo depois de todos os meus esforços.

       Artemis pegou uma maleta de aluminio na caixa de baga gem do snowmobile.

       —  Não se preocupe com isso, Sr. Adamsson. Por que não volta a Reykjavik e gasta parte da quantia extraordinária que me cobrou por duas horas de uso de seu restaurante de terceira categoria e, quem sabe, encontra algum toco de árvore amigável para ouvir seus lamentos?

       Duas horas. Terceira categoria. Dois mais três é igual a cinco. Bom.

       Agora foi a vez de Adamsson resmungar, e as pontas de seu bigode de morsa tremeram ligeiramente.

       — Essa atitude é desnecessária, jovem Fowl. Nós dois somos homens, não é? Homens merecem um pouquinho de respeito.

       — Ah, verdade? Talvez devêssemos perguntar às baleias. Ou talvez ao vison?

       Adamsson fez um muxoxo, com o rosto queimado de vento se enrugando como uma ameixa.

       — Certo, certo. Captei a mensagem. Não precisa me res ponsabilizar pelos crimes dos homens. Vocês, adolescentes, são todos iguais. Vejamos se sua geração faz algo melhor com o planeta.

       Artemis estalou o fecho da maleta exatamente vinte vezes, antes de caminhar até o restaurante.

       — Acredite, nós, adolescentes, não somos todos iguais — disse enquanto passava por Adamsson. — E pretendo ser um pouquinho melhor.

       Havia mais de uma dúzia de mesas dentro do restaurante, todas com cadeiras empilhadas em cima, a não ser uma, que fora arrumada com toalha de linho e servida com água de geleira engarrafada e sacolas de brinde de spa para cada um dos cinco lugares.

       Cinco, pensou Artemis. Um bom número. Sólido. Previsível. Quatro vezes cinco são vinte.

       Recentemente Artemis havia decidido que cinco era o seu número. Boas coisas aconteciam quando o cinco estava en volvido. A lógica dentro dele sabia que isso era ridículo, mas ele não podia ignorar o fato de que as tragédias de sua vida tinham ocorrido em anos que não eram divisíveis por cinco: seu pai tinha desaparecido e fora mutilado, e seu velho amigo, o comandante Julius Raiz, da LEP, fora assassinado pela famosa duende-diabrete Opala Koboi, em anos que não terminavam em zero ou cinco. No sistema métrico inglês, ele media cinco pés e cinco polegadas, e pesava cinquenta e cinco quilos. Se tocasse alguma coisa cinco vezes ou em múltiplos de cinco, essa coisa permanecia confiável. Uma porta permanecia fechada, por exemplo, ou um amuleto iria proteger a passagem, como deveria fazer.

       Hoje os sinais eram bons. Ele fazia quinze anos. Três vezes cinco. E seu quarto de hotel em Reykjavik era número quarenta e cinco. Até o snowmobile, que o havia trazido incólume, tinha uma placa que era múltiplo de cinco, e possuía um motor de 50cc. Tudo bem. Só viriam quatro convidados para a reunião, mas incluindo ele seriam cinco. Portanto não havia necessidade de pânico.

       Uma parte de Artemis estava horrorizada com essa recém- descoberta superstição relacionada a números.

       Caia na real. Você é um Fowl. Nós não contamos com a sorte — abandone essas obsessões e compulsões ridículas.

       Artemis clicou o fecho da maleta para aplacar os deuses do número — vinte vezes, quatro vezes cinco — e sentiu o coração bater mais devagar.

       Vou acabar com esse hábito amanhã, quando o serviço estiver terminado.

       Demorou-se junto à bancada da recepção até que Adamsson e seu trator de neve desapareceram numa onda na neve que parecia uma coluna vertebral de baleia, depois esperou mais um minuto até que o rugido do veiculo tivesse diminuido a ponto de parecer a tosse de um velho fumante.

       Muito bem. Hora de fazer negócios.

       Desceu os cinco degraus de madeira até o piso principal do restaurante (excelente, bom presságio), passando por uma série de colunas onde estavam penduradas réplicas da máscara Stora-Borg, até chegar à cabeceira da mesa arrumada. As cadeiras estavam meio viradas para ele e um leve tremeluzir, como uma névoa de calor, passou sobre o tampo da mesa.

       — Bom dia, amigos — disse Artemis em gnomês, obrigando-se a pronunciar as palavras do povo do subterrâneo em tom confiante, quase jovial. — Hoje é dia de salvar o mundo.

       Agora a névoa de calor pareceu mais elétrica, com estalos de interferência brilhantes passando por ela e rostos nadando em suas profundezas como fantasmas saidos de um sonho. Os rostos se solidificaram e deles brotaram troncos e membros. Fi guras pequenas, como crianças, apareceram. Pareciam crianças, mas não eram. Aqueles eram representantes do Povo das Fadas, e dentre eles talvez estivessem os únicos amigos de Artemis.

       — Salvar o mundo? — perguntou a capita Holly Short, da LEPrecon. — É o velho Artemis Fowl de sempre, e eu digo isso com sarcasmo, já que salvar o mundo não faz nem um pouco o seu estilo.

       Artemis sabia que deveria sorrir, mas não conseguiu, de modo que em vez disso encontrou algum defeito, algo que não pareceria fora do seu estilo.

       —     Você precisa de um novo amplificador de campo, Potrus disse para um centauro que estava equilibrado desajeita damente numa cadeira destinada a humanos.    — Pude ver o ar tremeluzindo desde a varanda. Você se diz um especialista técnico? Quanto tempo tem esse que você está usando?

       Potrus bateu um casco, um tique nervoso que ele possuía, e motivo pelo qual jamais ganhava nos jogos de baralho.

       — É um prazer ver você também, Garoto da Lama.

       — Quantos anos?

       — Não sei. Talvez quatro.

       — Quatro. Pronto, está vendo? Que tipo de número é esse?

       Potrus projetou seu lábio inferior.

       — Que tipo de número? Existem tipos agora, Artemis? Esse amplificador ainda vai durar cem anos. Talvez precise de um pequeno ajuste, só isso.

       Holly ficou de pé e andou com passo leve até a cabeceira da mesa.

       — Vocês precisam começar a brigar tão cedo? Isso não está virando um clichê depois de tantos anos? Vocês parecem dois vira-latas marcando território. — Ela pôs dois dedos finos no antebraço de Artemis. — Deixe-o em paz, Artemis. Você sabe como os centauros são sensíveis.

       Artemis não pôde encará-la. Dentro da bota de neve es querda contou vinte batidinhas do dedão.

       — Muito bem. Vamos mudar de assunto.

       — Por favor — disse a terceira criatura que estava na sala. — Nós viemos lá da Rússia para isso, Fowl. De modo que, se pudermos passar para o assunto que viemos discutir...

       A comandante Raine Vinyáya obviamente não se sentia feliz em estar tão longe de sua amada Delegacia Plaza. Tinha assumido o comando da LEP alguns anos antes e sentia orgulho em participar de alguma forma em todas as missões.

       — Tenho operações para as quais voltar, Artemis. Os duendes-diabretes estão causando tumultos, pedindo que Opala Koboi seja libertada da prisão, e a epidemia dos sapos xingadores voltou. Por favor, faça-nos a cortesia de ir em frente com isso.

       Artemis assentiu. Vinyáya estava se mostrando antagônica de forma aberta, e essa era uma emoção na qual ele podia con fiar, a não ser, claro, que aquilo fosse um blefe e a comandante fosse secretamente fã dele, a não ser que fosse um blefe duplo e ela realmente se sentisse antagonista.

       Isso parece loucura, percebeu Artemis. Até mesmo para mim.

       Apesar de medir apenas um metro de altura, a comandante Vinyáya era uma presença formidável e Artemis jamais pre tendia subestimá-la. Apesar de ter quase quatrocentos anos de idade, em termos do povo subterrâneo mal estava na meia- idade, e era uma figura impressionante: magra e pálida, com as pupilas felinas ocasionalmente encontradas nos olhos dos elfos, mas nem mesmo essa raridade era sua característica mais especial. Raine Vinyáya tinha uma juba de cabelos prateados que pareciam prender toda a luz disponível e espalhá-la em ondulações por sobre os ombros.

       Artemis pigarreou e mudou o foco dos números para o projeto, ou, como ele gostava de pensar, O PROJETO. No fim, pensando bem, era o único plano que importava.

       Holly deu um soco de leve em seu ombro.

       — Você está pálido. Mais pálido do que o usual. Você está bem, aniversariante?

       Artemis finalmente conseguiu olhá-la nos olhos — um castanho, um azul — emoldurados por uma testa larga e uma franja castanho-avermelhada que Holly havia deixado crescer depois do cabelo curto.

       —  Quinze anos hoje — murmurou Artemis. — Três vezes cinco. E uma coisa boa.

       Holly piscou.

       Artemis Fowl murmurando? E nenhuma menção ao seu corte de cabelo: em geral Artemis captava imediatamente qualquer mudança fisica.

       —  Eu... ah... acho que sim. Cadê o Butler? Examinando o perímetro?

       — Não. Não, eu o mandei para longe. Juliet precisava dele.

       —  Nada muito sério?

       —  Nada sério, mas necessário. Negócio de família. Ele confia em você para cuidar de mim.

       Os lábios de Holly se apertaram como se ela tivesse comido alguma coisa azeda.

       —  Ele confia em outra pessoa para pastorear seu mestre? Tem certeza de que estamos falando do Butler?

       —  Claro. E, de qualquer modo, é melhor ele não estar aqui. Sempre que meus planos desandam, ele está por perto. É vital, imperativo, que esta reunião aconteça sem que nada dê errado.

       O queixo de Holly caiu de verdade, de puro choque. Era quase cômico de se ver. Se tinha entendido Artemis direito, ele estava culpando Butler pelo fracasso de tramas anteriores. Burler? Seu aliado mais fiel.

       — Boa ideia. Então vamos em frente. Nós quatro temos de colocar esse bloco na rua.

       Isso foi dito por Potrus, que falou o número temido sem pensar nas consequências.

       Quatro. Número muito ruim. O pior de todos. Os chineses odeiam esse número porque, para eles, tem o mesmo som da pa lavra que significa morte.

       Quase pior do que dizer o número quatro era o fato de só haver quatro pessoas na sala. Aparentemente o comandante Encrenca Kelp não pudera vir. Apesar da histórica aversão mútua, Artemis queria que o comandante estivesse ali.

       — Onde está o comandante Kelp, Holly? Achei que ele viria hoje. Seria bom termos sua proteção.

       Holly se levantou junto à mesa, absolutamente ereta em seu macacão azul, com o cacho de bolotas de carvalho brilhando no peito.

       — Encrenca... O comandante Kelp tem trabalho suficiente na Delegacia Plaza, mas não se preocupe. Há todo um esqua drão da LEPtática pairando acima, num lançador com escudo de invisibilidade. Nem mesmo uma raposa da neve poderia entrar aqui sem queimar a cauda.

       Artemis tirou o casaco de neve e as luvas.

       — Obrigado, capita. Fico encorajado com sua meticulosidade. Só para constar, quantos agentes fazem parte de um esquadrão da LEP? Exatamente?

       —  Quatorze — respondeu Holly, erguendo uma sobran celha fina.

       —  Quatorze. Hmm... isso não é tão... — Então uma luz se acendeu na sua mente. — E um piloto, presumo.

       —  Quatorze incluindo o piloto. É o bastante para dominar qualquer esquadrão humano que você queira lançar contra eles.

       Por um momento pareceu que Artemis Fowl iria se virar e sair correndo da reunião que ele mesmo havia organizado. Um tendão se repuxou em seu pescoço e um dedo indicador batucou no encosto de madeira da cadeira. Então Artemis engoliu em seco e assentiu com um nervosismo que escapou como um ca nário saindo da boca de um gato antes de ser engolido de novo.

       —  Muito bem. Quatorze terão de servir. Por favor, Holly, sente-se. Deixe-me falar sobre o projeto.

       Holly recuou devagar, examinando o rosto de Artemis em busca da presunção que geralmente morava nas linhas de seu risinho. Ela não estava lá.

       O que quer que seja esse projeto, pensou, é grande.

       Artemis pôs a maleta na mesa, abriu-a e girou a tampa revelando uma tela do lado de dentro. Por um momento seu deleite com engenhocas veio à superfície e ele até conseguiu dar um leve riso na direção de Potrus. O riso não esticou seus lábios mais do que um centímetro.

       —  Olhe. Você vai gostar dessa caixinha.

       Potrus deu um risinho.

       — Ah, minhas estrelas! Isso é... será que isso é... um laptop? Você deixou todos nós envergonhados com seu brilho, Arty.

       O sarcasmo do centauro provocou gemidos em todo mundo.

       —O que foi? — protestou ele. — E um laptop. Nem os humanos podem esperar que alguém se impressione com um laptop.

       —Se eu conheço Artemis — disse Holly—, alguma coisa impressionante está para acontecer. Estou certa?

       —     Vocês mesmos podem avaliar isso — respondeu Artemis, apertando o polegar contra um scanner na maleta.

       O scanner tremeluziu, avaliando o tal polegar, depois pis cou com uma luz verde, decidindo aceitá-lo. Nada aconteceu durante um ou dois segundos, e então um motor dentro do aparelho zumbiu como se houvesse um gatinho satisfeito se espreguiçando na barriga da maleta.

       —Motor — disse Potrus. — Grande coisa.

       Os cantos reforçados com metal da maleta se destacaram de súbito, soltando-se da tampa com um jorro de propelente, e se grudaram no teto. Simultaneamente a tela se desdobrou até ficar com mais de um metro de largura, com alto-falantes ao longo de cada borda.

       —Então é um telão — observou Potrus. — É simplesmente fantástico. Agora só precisamos de alguns óculos virtuais.

       Artemis apertou outro botão na maleta e os cantos de metal presos no teto se revelaram projetores, soltando jatos de digidados que se juntaram no centro da sala formando um modelo giratório do planeta Terra. A tela mostrava o logotipo das Indústrias Fowl cercado por vários arquivos.

       —  É uma maleta holográfica — disse Potrus, adorando permanecer calmo. — Nós temos isso ha anos.

       —  Não é uma maleta holográfica: a maleta é completamente real — corrigiu Artemis. — Mas as imagens que vocês verão são holográficas. Fiz algumas melhorias no sistema da LEP. A maleta é sincronizada com vários satélites, e os computadores que fazem parte dela podem montar imagens em tempo real de objetos que não estão dentro do alcance dos sensores.

       —  Tenho uma dessas em casa — murmurou o centauro. — Serve de vídeogame para os meus filhos.

       —  E o sistema é interativo, de modo que posso montar ou alterar os modelos à mão, se estiver usando luvas virtuais — continuou Artemis.

       Potrus fez uma careta.

       —  Certo, Garoto da Lama. Isso é bom. — Mas não pôde deixar de acrescentar um porém. — Para um humano.

       As pupilas de Vinyáya se contraíram à luz dos projetores.

       —  Isso tudo é muito bonito, Fowl, mas ainda não sei qual é o objetivo desta reunião.

       Artemis entrou no holograma e inseriu as mãos em duas luvas virtuais que flutuavam sobre a Austrália. As luvas eram ligeiramente transparentes, com dedos tubulares e um pouco sofisticado renderizador com aparência de poliestireno. De novo o sensor da pasta piscou pensativo antes de decidir acei tar as mãos de Artemis. As luvas soltaram um bip suave e se encolheram formando uma segunda pele ao redor dos dedos dele, cada nó dos dedos destacado por um marcador digital.

       -— A Terra — começou ele, ignorando o impulso de abrir a pasta de anotações e contar as palavras. Sabia o discurso de cor.

       — Nosso lar. Ela nos alimenta, nos abriga. Sua gravidade nos impede de voar para o espaço e congelar, antes de derre termos de novo e sermos assados pelo Sol, mas nada disso importa porque muito antes seriamos asfixiados. — Artemis fez uma pausa para os risos e ficou surpreso quando eles não vieram. — Isso foi uma pequena piada. Li num manual sobre apresentações que piadas servem para quebrar o gelo. E con segui colocar na piada a idéia de quebrar o gelo, de modo que havia camadas no meu humor.

       — Isso foi uma piada? — perguntou Vinyáya. —Já mandei policiais para a corte marcial por muito menos.

       — Se eu tivesse umas frutas podres, jogaria em você — acrescentou Potrus. — Por que não faz a ciência e deixa as piadas para quem tem experiência?

       Artemis franziu a testa, chateado porque havia improvisado e agora não podia ter certeza do número de palavras ditas em sua apresentação. Se terminasse com um múltiplo de quatro que não fosse também múltiplo de cinco, isso poderia ser muito ruim. Talvez devesse recomeçar. Mas isso seria trapaça e os deuses dos números simplesmente somariam os dois discursos e ele não estaria em melhor situação.

       Complicado. Muito difícil de acompanhar, até mesmo para mim.

       Mas continuaria porque era imperativo que O PROJETO fosse apresentado, agora, hoje, de modo que O PRODUTO entrasse em fabricação imediatamente. Assim, Artemis conteve a incerteza que havia em seu coração e se lançou na apresentação com empenho, mal parando para respirar, para o caso de sua coragem abandoná-lo.

       —  O homem é a maior ameaça à Terra. Nós arrancamos os combustíveis fósseis do planeta e depois viramos esses mesmos combustíveis contra o planeta através do aqueci mento global. — Artemis apontou um dedo virtual para a tela ampliada, abrindo um arquivo de vídeo depois do outro, cada um deles ilustrando um argumento. — As geleiras do mundo estão perdendo até dois metros de cobertura por ano, isso perfaz um milhão e trezentos mil quilômetros quadrados somente no oceano Ártico nos últimos trinta anos. — Atrás deles os arquivos de vídeo mostravam algumas consequências do aquecimento global.

       —  O mundo precisa ser salvo — disse Artemis. — Agora percebo finalmente que eu é que devo salvá-lo. Por isso sou um gênio. E minha raison d'être.

       Vinyáya bateu na mesa com o indicador.

       —  Há um lobby em Porto, com um bocado de apoio, dizendo para não ligarmos para o aquecimento global. Os humanos vão varrer a si mesmos da Terra e nós poderemos pegar o planeta de volta.

       Artemis estava preparado para isso.

       — Argumento óbvio, comandante, mas não são só os hu manos, não é? — Ele abriu mais algumas janelas de vídeo e as criaturas viram ursos polares magros presos em pequenos icebergs, alces no Michigan sendo comidos vivos por uma população cada vez maior de carrapatos e recifes de coral des corados, desprovidos de qualquer vida. — E cada coisa viva, em cima ou embaixo deste planeta.

       Potrus estava bastante entediado com a apresentação.

       — Você acha que nós não pensamos nisso, Garoto da Lama? Acha que esse problema especifico não está na mente de cada cientista de Porto ou de Atlântida? Para ser honesto, acho esse discurso bem paternalista.

       Artemis deu de ombros.

       — O modo como você se sente não é importante. O modo como eu me sinto não é importante. A Terra precisa ser salva.

       Holly se empertigou.

       — Não me diga que você encontrou a resposta.

       — Acho que sim.

       Potrus fungou.

       —Verdade? Deixe-me adivinhar: embrulhando os icebergs, talvez? Ou mandando lentes refratoras para a atmosfera? Que tal uma cobertura de nuvens orientada artificialmente? Estou ficando quente?

       — Todos estamos ficando quentes — disse Artemis. — Esse é o problema. — Ele pegou o holograma da Terra com uma das mãos e girou-o como uma bola de basquete. —Todas essas soluções poderiam funcionar, com algumas modificações. Mas elas exigem muita cooperação entre os Estados e, como todos sabemos, os governos humanos não são bons em compartilhar seus brinquedos. Talvez as coisas mudem em cinquenta anos, mas até lá será tarde demais.

       A comandante Vinyáya sempre havia se orgulhado da capa cidade de decifrar qualquer situação, e seus instintos estavam lhe incomodando tanto quanto o rugido das ondas do Pacifico. Esse era um momento histórico; o próprio ar parecia elétrico.

       — Continue, humano — disse ela baixinho, as palavras cheias de autoridade. — Diga.

       Artemis usou as luvas virtuais para destacar as áreas glaciais da Terra e rearrumou a massa de gelo, formando um quadrado.

       — Cobrir as geleiras é uma idéia excelente, mas mesmo que a topografia fosse simples assim, como um quadrado liso, seriam precisos vários exércitos durante meio século para fazer o serviço.

       —Ah, não sei — disse Potrus. — Os madeireiros humanos estão acabando com as florestas tropicais muito mais depressa do que isso.

       — Os que estão à margem da lei se movem mais rápido do que os que são limitados por ela, e é ai que eu entro.

       Potrus cruzou as patas da frente, o que não é fácil para um centauro sentado numa cadeira.

       — Diga. Sou todo ouvidos.

       — Direi — respondeu Artemis. — E agradeceria se você contivesse as expressões usuais de horror e incredulidade até eu concluir. Seus gritos de perplexidade a cada vez que eu apresento uma idéia são tremendamente cansativos e tornam difícil contar as palavras.

       — Ah, meus deuses! — exclamou Potrus. — Inacreditável.

       Raine Vinyáya lançou um olhar de alerta para o centauro.

       _ pare de bancar o troll irritado, Potrus. Eu viajei muito

       para chegar aqui e minhas orelhas estão geladas.

       — Será que devo beliscar um feixe de nervos do centauro para mantê-lo quieto? — perguntou Holly, praticamente sem rir. — Andei estudando como incapacitar centauros, além de humanos, para o caso de precisarmos. Eu poderia nocautear todo mundo aqui com um dedo ou um lápis grosso.

       Potrus tinha oitenta por cento de certeza de que Holly estava blefando, mas mesmo assim cobriu os gânglios acima das orelhas, com os dedos em concha.

       — Muito bem. Vou ficar quieto.

       — Bom. Prossiga, Artemis.

       — Obrigado. Mas mantenha seu lápis grosso à mão, capitã Short. Tenho a sensação de que pode haver alguma incredu lidade a caminho.

       Holly deu um tapinha no bolso e piscou.

       — 2B, grafite duro, não há coisa melhor para ruptura de órgãos.

       Holly estava brincando, mas não estava prestando atenção. Artemis sentiu que os comentários dela eram uma camufla gem para alguma ansiedade que a capitã estava escondendo. Ele coçou a testa com o polegar e o indicador, usando o gesto como disfarce para dar uma espiada na amiga. A testa de Holly estava franzida e os olhos, estreitados de preocupação.

       Ela sabe, percebeu Artemis, mas não podia dizer exatamente o que Holly sabia. Ela sabe que alguma coisa está diferente, que os números pares se viraram contra mim. Duas vezes dois são quatro criaturas do subsolo cuspindo azar nos meus planos.

       Então Artemis reviu essa última frase e, por um segundo, a loucura dela ficou clara e ele sentiu uma gorda cobra de pânico enrolada em seu estômago.

       Será que tenho um tumor cerebral?, pensou. Isso explicaria as obsessões, as alucinações e a paranoia. Ou seria simplesmente TOC, transtorno obsessivo-compulsivo? O grande Artemis Fowl derrubado por uma doença comum.

       Artemis parou um momento e tentou um velho truque de hipnoterapia.

       Visualize-se num lugar bom. Algum lugar onde você esteve feliz e em segurança.

       Feliz e em segurança? Já fazia um bom tempo.

       Artemis permitiu que sua mente voasse e se viu sentado num banquinho na oficina de seu avô. O avô parecia um pouco mais furtivo do que Artemis lembrava, e piscou para o neto de cinco anos, dizendo:

       Sabe quantas pernas há neste banco, Arty? Três. Só três, e esse não é um número bom para você. Nem um pouco. Três é quase tão ruim quanto quatro e todos sabemos como é o som de quatro em chinês, não é?

       Artemis estremeceu. A doença estava corrompendo até suas lembranças. Apertou o indicador e o polegar da mão esquerda um contra o outro até ficarem brancos. Era um gatilho que havia ensinado a si mesmo quando o pânico dos números ficava forte demais, mas recentemente o gatilho vinha funcionando cada vez menos ou, como nesse caso, não funcionava nem um pouco.

       Estou perdendo a compostura, pensou com um desespero silencioso. Essa doença está me vencendo.

       Potrus pigarreou, furando a bolha onírica de Artemis.

       — Alô? Garoto da Lama? Tem gente importante esperando. Anda logo.

       E Holly:

       — Você está bem, Artemis? Precisa fazer uma pausa?

       Artemis quase riu. Fazer uma pausa durante uma apresenta ção? Se fizesse isso, era melhor parar ao lado de alguém que tivesse uma camiseta com as palavras TÔ COM UM MALUCO.

       — Estou bem. Este é um projeto grande, o maior de todos. Quero ter certeza de que minha apresentação seja perfeita.

       Potrus se inclinou para frente até que sua cadeira, já pouco firme, oscilou perigosamente.

       — Você não parece bem, Garoto da Lama. Parece... — O centauro mordeu o lábio inferior, procurando a palavra certa. — Abatido. Artemis, você parece abatido.

       E era o melhor que ele poderia dizer.

       Artemis se esticou.

       —     Acho, Potrus, que talvez você não leia bem as expressões humanas. Talvez nossos rostos sejam curtos demais. Não estou aba tido de modo algum. Estou considerando cada palavra que digo.

       — Será que poderia considerar um pouquinho mais rápido? —propôs Holly gentilmente. — Estamos bastante expostos aqui.

       Artemis fechou os olhos, controlando-se.

       Vinyáya tamborilou na mesa.

       — Chega de delongas, humano. Estou começando a suspei tar de que você nos envolveu em um dos seus planos notórios.

       — Não. Esta é uma proposta genuína. Por favor, ouçam-me.

       —  Estou tentando. Eu quero. Viajei uma longa distância exatamente com esse propósito, mas tudo que você fez é se mostrar com sua maleta.

       Artemis levantou as mãos até a altura dos ombros, ativando com o movimento as luvas virtuais, e deu um tapinha na geleira.

       —  O que nós precisamos fazer é cobrir uma área significati va de todas as geleiras do mundo com uma capa refletora para reduzir o derretimento. A cobertura teria de ser mais grossa nas bordas, onde o gelo derrete mais depressa. Além disso, seria interessante se pudéssemos tapar os maiores buracos por onde a água se esvai.

       — Muitas coisas seriam interessantes num mundo perfeito

       —    disse Potrus, de novo violando sua promessa de ficar quieto.

       —    Não acha que seu povo ficaria um pouquinho chateado se pequenas criaturas brotassem do chão em espaçonaves e come çassem a acarpetar o quintal de Papai Noel com folhas reflexivas?

       —  Eles... nós... ficaríamos. E é por isso que a operação tem de ser feita em segredo.

       —  Cobrir as geleiras do mundo em segredo? Você deveria ter dito.

       — Acabei de dizer, e pensei que tinhamos concordado que você iria se segurar. Essa picuinha constante é cansativa.

       Holly piscou para Potrus, girando um lápis entre os dedos.

       _    O problema de cobrir os icebergs sempre foi como colo car o cobertor reflexivo — continuou Artemis. — Parece que o único modo de fazer isso seria desenrolar essa substância como se fosse um tapete, seja manualmente ou na traseira de algum tipo de veiculo de neve preparado para tanto.

       -— O que não é exatamente uma operação discreta — disse Potrus.

       — Exato. Mas, e se houver outro modo de colocar uma cobertura reflexiva, um modo aparentemente natural?

       — Trabalhar com a natureza?

       —É, Potrus. A natureza é o nosso modelo; sempre deveria ser.

       A sala parecia estar cada vez mais quente enquanto Artemis chegava mais perto de sua grande revelação.

       — Os cientistas humanos vêm lutando para tornar sua cobertura reflexiva suficientemente fina para ser trabalhável, mas ao mesmo tempo suficientemente forte para suportar os elementos.

       — Coisa idiota.

       — Equivocado, centauro. Não idiota, certamente. Os seus próprios documentos...

       — Eu considerei por breve tempo a idéia da cobertura. E como foi que você teve acesso aos meus documentos?

       Isso não era uma pergunta de verdade. Havia muito tempo Potrus tinha se resignado ao fato de que Artemis Fowl era um hacker no minimo tão talentoso quanto ele.

       —A idéia básica é boa. Fabricar um polímero reflexivo.

       Potrus mordeu os nós dos dedos.

       — Natureza. Usar a natureza.

       — Qual é a coisa mais natural aqui? — perguntou Artemis, dando uma pequena dica.

       — Gelo — sussurrou o centauro quase com reverência. — Claro, D’Arvit, por que eu não... Neve, não é?

       Artemis levantou as mãos com as luvas virtuais e uma neve holográfica choveu sobre eles.

       — Neve — disse, com a tempestade em redemoinho ao redor. — Ninguém ficaria surpreso com neve.

       Potrus estava de pé.

       — Ampliar — ordenou. — Ampliar e aumentar a resolução.

       Artemis bateu num floco holográfico, imobilizando-o no ar. Com dois puxões ampliou o falso floco até que sua irre gularidade ficasse clara. Ele era irregularmente regular, um circulo perfeito.

       — Uma nanopastilha — disse Potrus, esquecendo-se pela primeira vez de esconder como estava impressionado. — Uma nanopastilha de verdade. E inteligente?

       — Extremamente — confirmou Artemis. — Inteligente o bastante para saber qual é o lado de cima quando bate na superfície e se configurar para isolar o gelo e refletir o sol.

       — Então nós impregnamos a região de nuvens?

       — Exato. Até a capacidade máxima.

       Potrus foi batendo os cascos para dentro do clima holo gráfico.

       — E, quando a nuvem se romper, nós teremos a cobertura.

       — É um incremento, mas mesmo assim é eficaz o suficiente.

       — Garoto da Lama, eu o saúdo.

       Artemis sorriu, parecendo o Artemis antigo por um mo mento.

       — Bom, já estava na hora.

       Vinyáya interrompeu a festa de amor cientifico.

       — Deixe-me ver se entendi direito. Vocês lançam essas pastilhas nas nuvens e depois elas caem junto com a neve?

       — Exatamente. Nós poderíamos lançá-las diretamente na superfície, em situações extremas, mas acho que, por segurança, seria melhor se os semeadores pairassem, ocultos com escudos, acima da cobertura de nuvens.

       — E vocês podem fazer isso?

       — Podemos. O Conselho teria de aprovar toda uma frota de lançadores modificados, para não mencionar uma estação de monitoramento.

       Holly pensou numa coisa.

       — Essas pastilhas não se parecem muito com flocos de neve. Cedo ou tarde, algum humano com um microscópio vai notar a diferença.

       — Bom argumento, Holly. Talvez eu não devesse colocar você junto do resto da LEP, em termos de intelecto.

       — Obrigada... acho.

       — Quando as pastilhas forem descobertas, como aconte cerá inevitavelmente, vou lançar uma campanha na Internet explicando-as como um subproduto de uma indústria química na Rússia. Também vou apontar que, pela primeira vez, nosso lixo está ajudando o meio ambiente, e me oferecer para bancar um programa que ampliará a cobertura deles.

       —  Há algum fator de poluição? — perguntou Vinyáya.

       —  Dificilmente. As pastilhas são totalmente biodegra dáveis.

       Potrus estava empolgado. Andou batendo os cascos através do holograma, forçando a vista para a pastilha ampliada.

       — Parece bom. Mas será mesmo? Não se pode esperar que o Povo apoie o orçamento enorme e continuo para um projeto desses sem ter provas, Artemis. Pelo que sabemos, pode ser um dos seus sarcasmos.

       Artemis abriu um documento na tela.

       — Aqui estão meus registros financeiros. Sei que são exatos, Potrus, porque encontrei-os no seu servidor.

       Potrus nem se incomodou em ficar vermelho.

       —  Parecem estar corretos.

       —  Estou preparado para investir tudo que tenho neste projeto. Isso deve manter cinco lançadores no ar durante uns dois anos. Haverá lucro do outro lado, naturalmente, quando as pastilhas entrarem em produção. Nesse ponto devo recu perar meu investimento, talvez até mesmo obter um ganho respeitável.

       Potrus quase engasgou. Artemis Fowl arriscando seu próprio dinheiro num projeto. Incrível.

       — Claro que não espero que o Povo aceite tudo que eu digo.

       Afinal de contas no passado fui... — Artemis pigarreou — ... pouco aberto com relação a informações.

       Vinyáya riu, sem achar graça.

       —  Pouco aberto? Acho que, para um sequestrador e extorsionário, você está sendo um pouco gentil consigo mesmo, Artemis. Pouco aberto? Por favor. Eu até posso comprar seu discurso, mas nem todo mundo no Conselho é tão caridoso assim em relação a você.

       — Aceito sua critica e seu ceticismo, motivo pelo qual organizei uma demonstração.

       — Excelente — disse Potrus ansioso. — Claro que há uma demonstração. Por que outro motivo você nos traria aqui?

       — Por quê, mesmo?

       — Mais extorsão e sequestro? — sugeriu Vinyáya azeda mente.

       — Isso foi há muito tempo — disse Holly bruscamente, num tom que em geral não usaria com um oficial superior. — Quero dizer... isso foi há muito tempo... comandante. Artemis tem sido um bom amigo do Povo.

       Holly Short estava pensando especificamente numa situação de risco durante a rebelião dos goblins, quando as ações de Artemis Fowl salvaram sua vida e a de muitos outros.

       Aparentemente Vinyáya também se lembrava da rebelião dos goblins.

       — Certo. E hora do beneficio da dúvida, Fowl. Você tem vinte minutos para nos convencer.

       Artemis bateu cinco vezes no bolso do peito para verificar seu telefone.

       — Não vai levar mais do que dez — disse.

       Holly Short era treinada em negociações envolvendo reféns e descobriu que, apesar da importância do assunto, estava afastando rapidamente o foco das nanopastilhas e voltando-se para os tiques de Artemis Fowl. Apesar de fazer comentários ocasionais à medida que a apresentação progredia, era necessá rio um enorme esforço para não segurar o rosto de Artemis e perguntar qual era o problema.

       Eu teria de subir numa cadeira para alcançar o rosto dele, percebeu Holly. Meu amigo é quase um homem adulto, agora. Um humano completo. Talvez ele esteja lutando contra seus desejos sanguinolentos naturais e o conflito o esteja enlouquecendo.

       Holly examinou Artemis com atenção. Ele estava pálido, mais do que o usual, parecendo uma criatura da noite. Um lobo das neves, talvez. Os malares destacados e o rosto triangular faziam aumentar essa impressão. E talvez fosse gelo, mas Holly pensou que via uma risca de grisalho em suas têmporas.

       Ele parece velho. Potrus estava certo: Artemis parece abatido.

       E havia o negócio dos números. E os toques. Os dedos de Artemis não paravam. A principio parecia aleatório, mas, seguindo sua intuição, Holly contou, e logo o padrão ficou claro. Cincos ou múltiplos de cinco.

       D'Arvit, pensou. Complexo de Atlântida. Fez uma busca rápida na Wicca-pédia e encontrou um breve resumo:

       Complexo de Atlântida: é uma psicose comum entre criminosos assolados pela culpa, diagnosticado pela primeira vez pelo Dr. E. Dypess, da Clinica de Cerebrologia de Atlântida. Dentre outros sintomas estão: comportamento obsessivo, paranóia, ilusões e, em casos extremos, transtorno de personalidades múltiplas. O Dr. E. Dypess também é conhecido por sua música de sucesso. "Estou maluco por você".

       Holly pensou que essa última parte devia ser wicca-humor.

       Potrus havia chegado à mesma conclusão sobre Artemis e dito isso num torpedo que mandou para o capacete de Holly, que estava na mesa diante dela.

       Holly bateu na viseira para reverter o texto, e em seguida leu as palavras.

       Nosso garoto está obcecado. Atlântida? Holly baixou um teclado de gnomês no visor e digitou, lentamente, para não atrair a atenção. Talvez. Cinco? E mandou a mensagem. É. Cinco. Sintoma clássico. E segundos depois:

       Uma demonstração! Fabuloso. Eu V demonstrações. Holly conseguiu manter o rosto impávido, para o caso de Artemis parar de contar por tempo suficiente e olhar na sua direção. Potrus jamais conseguia se concentrar em qualquer coisa por muito tempo, a não ser que fosse um dos seus amados projetos.

       Talvez fosse coisa de gênio.

       Parecia que o clima da Islândia prendeu o fôlego para a de monstração de Artemis. O ar imóvel estava cortado por uma névoa pairando em lençóis que pareciam fileiras de gaze posta para secar.

       As criaturas do subterrâneo sentiram as bobinas térmicas da roupa vibrar um pouquinho enquanto seguiam Artemis para o lado de fora, nos fundos do restaurante. Os fundos do estabele cimento de Adam Adamsson eram ainda menos impressionantes do que a frente. Qualquer esforço precário que tivesse sido feito para tornar o Grande Skua hospitaleiro obviamente não se es tendia à parte de trás da construção. Um mural de baleias, que parecia pintado pelo próprio Adamsson, usando uma raposa do Ártico viva no lugar de pincel, parava abruptamente acima da entrada de serviço, decapitando uma infeliz baleia corcunda. E em vários pontos, grandes pedaços de reboco tinham se soltado da parede e ficado presos na lama e na neve.

       Artemis levou o pequeno grupo até uma lona que fora posta sobre um cubo grande.

       Potrus fungou.

       — Deixe-me adivinhar. Parece uma lona comum de jardim, mas na verdade é tecido de camuflagem com projeção traseira que faz parecer lona?

       Artemis deu mais dois passos antes de responder, em seguida gesticulou para que todos ficassem em seus lugares. Uma gota de suor escorreu pelas suas costas, gerada pela tensão de perder a batalha contra o humor obsessivo.

       — Não, Potrus. Isso parece uma lona porque é de fato uma lona — disse, e acrescentou. — É, uma lona.

       Potrus piscou.

       — E uma lona? Será que agora estamos numa opereta de Gilbert e Sullivan? — Ele inclinou a cabeça para trás e cantou: — Sou um centauro, é, um centauro é o que sou. Não parece o seu estilo, Artemis.

       — Potrus está cantando — disse Holly. — Sem dúvida isso é ilegal, não é?

       Vinyáya estalou os dedos.

       — Quietos, crianças. Contenham suas tendências naturais de fazer bagunça. Estou ansiosa para ver essas nanopastilhas em ação antes de pegar um lançador mais para perto do núcleo quente do nosso planeta.

       Artemis fez uma ligeira reverência.

       — Obrigado, comandante, foi muito gentil.

       Cinco de novo, pensou Holly. As provas crescem.

       Artemis Fowl girou a mão na direção de Holly Short como se estivesse se apresentando para uma platéia de teatro.

       — Capitã, será que poderia tirar o tecido? Você tem grande aptidão para arrancar as coisas.

       Holly ficou quase empolgada por ter algo para fazer. Teria preferido uma conversa séria com Artemis, mas pelo menos enfrentar um caixote não implicaria tentar compreender mais fatos científicos.

       —  Com prazer — respondeu, e atacou a lona como se ela houvesse insultado sua avó. De repente havia uma faca de dedo adornando sua mão direita, e, depois de três cortes certeiros, a lona caiu no chão.

       — Você poderia abrir o caixote, já que está com a mão na massa, capitã — disse Artemis, desejando ser capaz de enfiar uma palavra a mais para acertar a frase. Imediatamente Holly subiu no caixote e aparentemente dividiu-o a socos.

       —  Uau — soltou Potrus. — Isso pareceu excessivamente violento, até mesmo para você.

       Holly desceu praticamente sem produzir uma pegada na neve.

       — Não. E quase uma ciência. Cos tapa. O pé rápido. Uma antiga arte marcial baseada no movimento dos animais pre dadores.

       —  Olhe! — disse Potrus, apontando com alguma urgência para a vasta semiobscuridade cinza-aço. — Alguém que se importa com isso!

       Artemis ficou satisfeito com a zombaria, porque o distraiu de seu domínio cada vez menor sobre o mundo lógico. Enquan to as criaturas desfrutavam de suas disputas costumeiras, ele permitiu que sua coluna se curvasse por um momento, deixou os ombros baixarem, mas alguém notou.

       — Artemis.

       Holly, claro.

       —  Sim, capitã Short.

       — Capitã? Somos estranhos, Artemis?

       Artemis tossiu na mão fechada. Holly estava sondando. Ele precisava afastar sua atenção. Não tinha nada a fazer, a não ser dizer o número em voz alta.

       — Estranhos? Não. Nós nos conhecemos há mais de cinco anos.

       Holly deu um passo na direção dele, os olhos arregalados de preocupação por trás da viseira curvada laranja.

       — Essa coisa do cinco, Arty. Estou preocupada. Você não parece o mesmo.

       Artemis passou rapidamente por ela, indo até o invólucro que estava no caixote.

       — Quem mais eu poderia ser? — respondeu bruscamente, cortando qualquer possível discussão sobre sua saúde mental. Abanou impaciente a névoa de gelo como se ela o estivesse atrapalhando deliberadamente, depois apontou o celular para o invólucro, abrindo os fechos computadorizados. A embalagem parecia uma geladeira doméstica comum, baixa e perolada, e zumbia.

       — Exatamente do que precisam na Islândia — murmurou Potrus. — Mais refrigeradores.

       —Ah, mas é um refrigerador muito especial — disse Ar temis, abrindo a porta. — Um refrigerador que pode salvar as geleiras.

       —             Faz picolé também? — perguntou o centauro inocente mente, desejando que seu velho colega Palha Escavator estivesse ali para poderem fazer um high-five comemorativo, uma prá tica tão pueril e fora de moda que certamente enlouqueceria Artemis, se ele já não estivesse louco.

       —  Você disse que isso era uma demonstração — reagiu Vinyáya rispidamente. — Então demonstre.

       Artemis lançou um olhar venenoso para Potrus.

       —  Com grande prazer, comandante. Observe.

       Dentro do invólucro havia um aparelho cromado, que pa recia o cruzamento entre uma máquina de lavar e um canhão curto, afora o emaranhado de fios e chips aninhados sob a tigela.

       —  O Cubo de Gelo não é bonito, admito — disse Artemis, ligando o equipamento com um sinal infravermelho lançado do sensor de seu telefone. — Mas, achei melhor colocar a pro dução em movimento do que passar mais um mês arrumando o chassis.

       Todos formaram um circulo em volta do equipamento e Artemis não pôde deixar de pensar que, se um satélite obser vasse o grupo, eles pareceriam crianças brincando.

       O rosto de Vinyáya estava pálido e seus dentes batiam, ainda que a temperatura só estivesse logo abaixo do ponto de congelamento. Fria, em termos humanos, porém muito mais desconfortável para uma criatura do subterrâneo.

       — Anda, humano. Ligue esse tal Cubo de Gelo. Ponha logo o anão na poça de lama.

       Era uma expressão do povo subterrâneo com a qual Artemis não estava familiarizado, mas dava para adivinhar o significado. Olhou para o celular.

       _ Sem dúvida, comandante. Vou lançar a primeira bolsa de nanopastilhas assim que a aeronave não identificada que está passando pelo espaço aéreo for embora.

       Holly consultou o comunicador da viseira.

       — Não há nada no espaço aéreo, Garoto da Lama. Nada além de um lançador com escudo, cheio de dor para você, se estiver tentando fazer algum truque.

       Artemis não pôde conter um gemido.

       — Não precisa dessa retórica. Garanto, capitã, que há uma nave descendo pela atmosfera. Meus sensores estão captando claramente.

       Holly esticou o queixo.

       — Bom, meus sensores não estão captando nada.

       — Engraçado, porque os meus sensores são os seus sensores — contrapôs Artemis.

       Potrus bateu um casco, quebrando o gelo.

       — Eu sabia. Não existe mais nada sagrado?

       Artemis ajeitou os ombros.

       — Vamos parar de fingir que não passamos metade do tempo espionando um ao outro. Eu leio os seus arquivos e você lê os arquivos que eu permito que você roube. Há uma nave que parece estar vindo direto para nós, e talvez os seus sensores a identificassem se vocês usassem os mesmos filtros que eu.

       Holly pensou numa coisa.

       — Lembram-se da nave de Opala Koboi? A que foi com pletamente construida com minério invisível? Nossos técnicos de estimação não puderam detectá-la, mas Artemis conseguiu.

       Artemis arqueou as sobrancelhas como se dissesse até os policiais percebem.

       —  Eu simplesmente procurei o que deveria estar ali mas não estava. Gases ambientes, traços de poluição e coisas do tipo. Sempre que encontro um vácuo aparente, também encontro Opala. Desde então apliquei a mesma técnica às minhas buscas gerais. Estou surpreso porque você não aprendeu esse truquezinho, consultor Potrus.

       —  Vou levar uns dois segundos para sincronizar com nosso transportador e fazer um teste de ambientação.

       Vinyáya fez um muxoxo e sua irritação pareceu ondular no ar como uma onda de calor.

       —  Faça isso então, centauro.

       Potrus ativou os sensores em suas luvas e atarraxou um monóculo amarelo sobre um dos olhos. Ao se conectar, reali zou uma complicada série de piscadelas, franzidas de olho e gestos enquanto gerava uma interface com um sistema virtual invisível para todos, a não ser ele. Para um observador casual pareceria que o centauro tinha inalado pimenta enquanto regia uma orquestra imaginária. Não era uma coisa atraente, motivo pelo qual a maioria das pessoas tendia a permanecer com ferramentas físicas.

       Vinte segundos a mais do que dois segundos depois, os espasmos de Potrus pararam subitamente e ele pousou as mãos nos joelhos.

       —              Certo — ofegou. — Em primeiro lugar, não sou técnico de estimação de ninguém. E em segundo, pode haver um grande veiculo espacial não identificado vindo na nossa direção em alta velocidade.

       Holly sacou imediatamente sua arma, como se pudesse derrubar uma espaçonave que já estava caindo sobre eles.

       Artemis correu para seu Cubo de Gelo, os braços estendi dos de modo maternal, depois parou literalmente quando a suspeita o fez ferver.

       — Essa nave é sua, Potrus. Admita.

       — Não é minha — protestou Potrus. — Eu nem tenho nave. Venho trabalhar de quadriciclo.

       Artemis lutou contra a paranóia até que suas mãos come çaram a tremer, mas não parecia haver outra explicação para a chegada de uma nave estranha exatamente nessa hora.

       — Você está tentando roubar minha invenção. E exata mente como foi em Londres, em que vocês interferiram com a questão do Cubo-C.

       Holly manteve o olhar voltado para o céu, mas falou com seu amigo humano:

       — Eu salvei Butler em Londres.

       Agora o corpo todo de Artemis estava tremendo.

       — Salvou? Ou virou Butler contra mim? — As palavras o enojaram, mas pareceram abrir caminho entre seus lábios como escaravelhos saindo da boca de uma múmia. — Foi quando vocês fizeram sua aliança contra mim, não foi? Quanto você ofereceu a ele?

       Inspirando e expirando lentamente, Holly ficou sem fala. Depois conseguiu responder:

       —  Ofereci? Butler jamais trairia você. Jamais! Como pode pensar isso, Artemis?

       Artemis olhou furioso para os próprios dedos, como se es perasse que eles conseguissem vida própria e o estrangulassem.

       — Sei que você está por trás disso, Holly Short. Você nunca me perdoou pelo sequestro.

       — Você precisa de ajuda, Artemis — disse Holly, cansada de rodear o problema. — Acho que você pode estar doente. Pode ser uma coisa chamada Complexo de Atlântida.

       Artemis cambaleou para trás, trombando na anca de Potrus.

       —  Eu sei — disse devagar, olhando a respiração tomar forma à frente. — Ultimamente nada é claro. Eu vejo coisas, suspeito de todo mundo. Cinco. O cinco está em toda parte.

       —  Como se nós fôssemos fazer alguma coisa contra você, Artemis — disse Potrus, ajeitando os pelos que Artemis havia desgrenhado.

       — Não sei. Vocês fariam? Por que não? Eu tenho o trabalho mais importante da Terra, mais importante do que o de vocês.

       Holly estava chamando a cavalaria.

       —  Há um objeto na atmo — disse ao comunicador, usando o jargão de soldado que parecia mais confuso do que a fala comum. — Desçam até sete para evac. Câmbio.

       Um lançador do povo subterrâneo tremeluziu e ficou visível, sete metros acima. Foi surgindo placa por placa, do nariz à popa, com os soldados dentro visíveis por um breve momento antes de o casco se solidificar. A visão pareceu confundir Ar temis mais ainda.

       — É assim que vocês vão me levar? Me amedrontando para subir a bordo e depois roubar meu Cubo de Gelo?

       — São sempre com você cubos — observou Potrus um tanto aleatoriamente. — O que há de errado com uma bela esfera?

       — E você, centauro! — disse Artemis, apontando um dedo acusador. — Sempre no meu sistema. Você está na minha cabeça também?

       Vinyáya havia esquecido o frio. Deixou cair o casaco pesado para obter alguma facilidade de movimento.

       — Capitã Short. O humano louco é seu contato; ponha-o numa coleira até sairmos daqui.

       Foi uma expressão infeliz.

       — Colocar uma coleira em mim? É isso que você esteve fazendo esse tempo todo, capitã?

       Agora Artemis estava tremendo, como se uma corrente elétrica passasse por seus membros.

       — Artemis — disse Holly com urgência. — Você não gostaria de dormir um tempo? Simplesmente pousar a cabeça em algum lugar quente e dormir?

       A idéia ganhou forma em algum canto do cérebro de Ar temis.

       — E. Dormir. Pode fazer isso, Holly?

       Holly deu um passo lento adiante.

       — Claro que posso. Só é preciso de um pouquinho de mesmer. Quando você acordar, vai estar um homem novo.

       Os olhos de Artemis pareceram apagar.

       —  Um homem novo. Mas e O PROJETO?

       Com calma agora, pensou Holly. Pegue leve.

       — Nós podemos cuidar disso quando você acordar.

       Ela pôs uma finíssima camada de magia nos registros mais agudos; para Artemis pareceria como sinos de cristal tilintando em cada consoante.

       —  Dormir — disse Artemis, baixinho, para o volume não assustar a palavra. — Dormir, talvez sonhar.

       — Está citando teatro agora? — disse Potrus. — Nós temos tempo para isso?

       Holly silenciou-o com um olhar feroz, depois deu outro passo na direção de Artemis.

       — Só algumas horas. Podemos levar você para longe deste lugar, de qualquer coisa que esteja vindo.

       —  Para longe daqui — ecoou o garoto perturbado.

       —  Então poderemos falar sobre o projeto.

       O piloto do lançador afofou a chegada, cavando um buraco raso na superfície com o estabilizador de popa. A cacofonia das placas de gelo, finas como glacê, se quebrando bastou para fazer Artemis despertar.

       —  Não — gritou ele, com a voz aguda pela primeira vez. — Sem magia. Um, dois, três, quatro, cinco. Fique onde está.

       Uma segunda nave se juntou ao melodrama, aparecendo de súbito no céu distante como se chegasse bruscamente de uma dimensão alternativa. Gigantesca e esguia como uma casqui nha de sorvete espiralada, com impulsionadores extras presos atrás, um motor errante se destacando e girando na direção das pesadas nuvens cinza. Para uma nave tão gigantesca, fazia muito pouco barulho.

       Artemis ficou chocado com aquela visão.

       Alienígenas?, foi seu primeiro pensamento, e depois: Espera ai, não são alienígenas. Eu já vi isso antes. Pelo menos um desenho disso.

       Potrus estava tendo o mesmo pensamento.

       — Sabem, aquilo parece famíliar.

       Seções inteiras da nave gigantesca sumiam de vista à medida que ela se esfriava depois da íngreme entrada na atmosfera, ou reentrada, por sinal.

       — Isso ai é do programa espacial de vocês — disse Artemis, com um tom acusador.

       — É possível — admitiu Potrus, com um tom de vermelho culpado brotando nas bochechas traseiras, outro motivo para ele perder no pôquer. — E difícil dizer, com todos aqueles movimentos aleatórios, e tudo o mais.

       O lançador da LEP finalmente pousou, abrindo uma escotilha do lado de bombordo.

       —Todo mundo para dentro — ordenou Vinyáya—Temos de colocar alguma distância entre nós e aquela nave.

       Potrus estava três ou quatro passos adiante.

       — Não. Não, essa é uma das nossas. Ela não deveria estar aqui, mas mesmo assim podemos controlá-la.

       Holly fungou.

       — Claro. Até agora você está fazendo isso muitíssimo bem.

       O comentário era mais do que o centauro podia suportar.

       Finalmente perdeu as estribeiras, empinando-se de modo majestoso nas patas de trás, depois baixando os cascos da frente com força sobre o gelo fino.

       —  Chega! — rugiu ele. — Há uma sonda do espaço pro fundo descendo sobre as nossas cabeças. E mesmo se o gerador nuclear dela não explodir, só a onda de impacto bastará para destruir tudo num raio de vinte e cinco quilômetros, de modo que, a não ser que esse seu lançador possa viajar para outra dimensão, subir a bordo terá tanta utilidade quanto você numa convenção cientifica.

       Holly deu de ombros.

       —  É justo. O que você sugere?

       —  Sugiro que cale a boca e me deixe cuidar do problema.

       Geralmente o termo sonda traz à mente uma nave pequena, simples, talvez com alguns frascos de amostras no depósito e, quem sabe, uma fileira de células solares supereficientes presas às costas, mas essa máquina era totalmente oposta a uma imagem dessas. Era gigantesca e tinha movimentos violentos, sacudindo o ar enquanto passava desajeitada, em saltos bruscos, arrastando motores presos por cabos como escravos capturados.

       —  Essa coisa — murmurou Potrus, piscando para ativar seu monóculo — parecia mais amigável quando eu projetei.

       Os soldados receberam ordens de manter as posições, e todo o grupo só pôde ficar olhando enquanto a nave gigante vinha a toda a velocidade para cima deles, gritando mais alto ainda à medida que a cobertura à prova de som era queimada. A fricção atmosférica atacava a sonda com unhas afiadas, arrancando enormes placas octogonais do casco. E o tempo todo Potrus tentava controlá-la.

       —- O que estou fazendo é usar as antenas do lançador para fazer um bom contato com o computador da sonda, ver se posso encontrar o defeito e depois talvez possa programar uma bela parada planando a trinta metros. Um pouco mais de escudo também seria legal.

       — Menos explicação — disse Vinyáya com os dentes trin cados — e mais resultado.

       Potrus continuou falando enquanto trabalhava.

       — Ora, comandante. Sei que vocês, militares, prosperam nessas situações tensas.

       Durante toda a conversa, Artemis ficou imóvel como uma estátua, consciente de que, se liberasse os tremores, eles iriam engolfá-lo, talvez para sempre, e ele ficaria perdido.

       O que aconteceu?, pensou. Não sou Artemis Fowl?

       Então notou uma coisa.

       Aquela nave tem quatro motores. Quatro.

       Morte.

       Como se para confirmar esse pensamento, ou talvez ins tigado por ele, um raio de energia laranja apareceu na ponta da espaçonave que descia, maligno, parecendo um portador da morte.

       — Energia laranja — observou Holly, apontando para ele. — Você é o explicador, Potrus. Explique isso.

       — Não se preocupe, intelecto inferior — respondeu Potrus, os dedos parecendo um borrão sobre o teclado. — Essa nave está desarmada. É uma sonda cientifica, pelo amor de Deus. Aquele raio de plasma é um cortador de gelo, só isso.

       Artemis não conseguiu mais segurar os tremores e eles assolaram seu corpo magro.

       — Quatro motores — disse com os dentes batendo. — Q... quatro é morte.

       Vinyáya parou a caminho da prancha de entrada do lança dor. Virou-se, com uma mecha de cabelo cor de aço escapando do capacete.

       —  Morte? Do que ele está falando?

       Antes que Holly pudesse responder, o raio de plasma laranja borbulhou alegre por um momento e depois acertou direta mente o motor do lançador.

       — Não, não, não — disse Potrus, falando como a um es tudante malcomportado. — Isso está muito errado.

       Todos olharam com horror o lançador desmoronar numa bola de calor intumescido, deixando o casco de metal transpa rente apenas pelo tempo de revelar os tripulantes se retorcendo dentro.

       Holly se abaixou e mergulhou na direção de Vinyáya, que estava procurando um caminho através das chamas para chegar aos seus homens, lá dentro.

       —  Comandante!

       Holly Short foi rápida e conseguiu agarrar a luva de Vinyáya antes que um dos motores do lançador explodisse e mandasse Holly girando pelo ar superaquecido até o teto do restaurante Grande Sleua. Ela ficou se debatendo nas telhas de ardósia como uma borboleta presa num alfinete, olhando idiotamente para a luva que segurava. O software de reconhecimento de sua viseira havia se travado no rosto da comandante Vinyáya, e um ícone de alerta piscava suavemente.

       Dano fatal no sistema nervoso central, dizia um texto na tela. Holly sabia que o computador estava dizendo a mesma coisa em seu ouvido, mas não podia escutar. Por favor, isolar toda a área e chamar os serviços de emergência.

       Dano fatal? Isso não podia estar acontecendo de novo. Naquele nanossegundo ela retornou à morte de seu antigo comandante, Julius Raiz.

       A realidade voltou numa feroz onda de calor, vaporizando o gelo e fazendo estalar os sensores de calor em sua roupa.

       Holly cravou os dedos na neve sobre o telhado e ergueu o corpo. A cena ao redor parecia um filme mudo, já que os filtros de ruído do capacete se expandiram e se romperam no nanossegundo entre o clarão c o estrondo.

       Todo mundo no lançador havia partido... isso era óbvio.

       Não diga partido, diga morrido — porque é o que aconteceu.

       — Concentre-se! — reagiu em voz alta, batendo um punho no telhado para enfatizar cada silaba. Mais tarde haveria tempo para lamentar; essa crise ainda não havia acabado.

       Quem não está morto?

       Ela não estava morta. Estava sangrando, mas viva, com fumaça subindo das solas das botas.

       Vinyáya. Ah, deuses.

       Esqueça Vinyáya por enquanto.

       E, num monte de neve embaixo do beirai, viu as patas de Potrus fazendo um galope invertido.

       Isso é engraçado agora? Eu deveria estar rindo?

       Mas onde estava Artemis? De repente os batimentos do coração de Holly soaram altos demais em seus ouvidos, e o sangue rugia como as ondas arrebentando.

       Artemis.

       A viagem de Holly até uma posição agachada foi mais difícil do que deveria, e, nem bem seus joelhos encontraram apoio, os cotovelos cederam e ela acabou quase de volta ao ponto onde havia começado.

       Artemis. Cadê você?

       Então, com o canto do olho, viu o amigo andando pelo gelo com dificuldade. Aparentemente Artemis não estava ferido, a não ser por estar arrastando um pouquinho a perna esquerda. Estava se movendo devagar mas com decisão, para longe do lançador em chamas. Para longe dos estalos do metal que se contraia, ficando preto, e das gotas de minério de invisibilidade pingando feito mercúrio, finalmente chegando ao ponto de fusão.

       Aonde você vai?

       Ele não estava correndo, isso era certo. No mínimo, Artemis estava entrando diretamente no caminho da sonda espacial que continuava caindo.

       Holly tentou gritar um alerta. Abriu a boca mas só conse guiu tossir fumaça. Sentiu gosto de queimado e batalha.

       — Artemis — conseguiu gritar rouca, depois de várias tentativas.

       O garoto olhou para ela.

       — Eu sei — gritou ele, com a voz meio embargada. — Parece que o céu está caindo, mas não é isso. Nada disso é real, essa nave, esses soldados, nada. Agora percebo. Eu andei... andei tendo ilusões, veja bem.

       —Fique longe, Artemis — gritou Holly, com uma voz que não parecia sua, sentindo que o cérebro enviava sinais para a boca de outra pessoa. — Essa nave é real. Ela vai esmagar você.

       — Não vai, não. Você vai ver. — Na verdade, Artemis estava dando um sorriso benigno. — Transtorno de ilusão, é o que essa nave é. Eu simplesmente criei essa visão a partir de uma lembrança antiga, um dos projetos do Potrus que andei espiando. Preciso encarar minha demência. Quando eu puder provar que tudo isso está na minha cabeça, poderei manter os problemas lá dentro.

       Holly engatinhou no telhado, sentindo as entranhas zumbir enquanto a magia começava a trabalhar em seus órgãos. A força ia retornando, mas lentamente, e suas pernas pareciam feitas de chumbo.

       — Escute, Artemis. Confie em mim.

       — Não — rosnou Artemis. — Não confio em nenhum de vocês. Nem em Butler, nem na minha mãe. — Artemis encurvou os ombros. — Não sei em que acreditar nem em quem confiar. Mas sei que não pode haver uma sonda espacial despencando aqui, nesse exato momento. As chances contrárias são simplesmente astronômicas. Minha mente está me enga nando e preciso mostrar a ela quem é que manda.

       Holly registrou mais ou menos metade dessa fala, mas tinha ouvido o bastante para perceber que Artemis estava se referin do à própria mente na terceira pessoa, o que era um sinal de alerta, não importando em que teorias de médicos de maluco acreditasse.

       A espaçonave continuou a cair na direção deles, sem se afetar com a descrença de Artemis em sua existência, projetando ondas de choque à frente. Para uma lembrança, certamente parecia mui to verdadeira, cada painel cheio de texturas devidas às tribulações da viagem espacial. Longas estrias serrilhadas se desenhavam no cone do nariz, como cicatrizes de relâmpagos, e mossas se espa lhavam pela fuselagem. Faltava um naco semicircular numa das três barbatanas, como se uma criatura do espaço profundo tivesse dado uma mordida na nave que passava, e líquen de cor estranha se desenhava no quadrado onde antes houvera uma placa de casco.

       Até Artemis precisou admitir:

       —  Isso não parece particularmente etéreo. Devo ter uma imaginação mais vivida do que havia pensado.

       Dois silenciadores da nave explodiram numa rápida sucessão e o rugido do motor encheu a tigela do céu cinzento.

       Artemis apontou um dedo rígido para a nave.

       —  Você não é real! — gritou, apesar de nem mesmo ele ouvir as palavras. Agora a nave estava suficientemente baixa para Artemis ler a mensagem escrita em vários tipos de letras e pictogramas no cone do nariz.

       —    Eu venho em paz — murmurou, e pensou: Quatro palavras. Morte.

       Holly também estava pensando, imagens de tragédia e destruição passando como luzes de um vagão de trem, mas havia outra idéia se mantendo firme através do caos.

       Não posso alcançá-lo daqui do telhado. Artemis vai morrer e não posso fazer nada além de olhar.

       E em seguida outro pensamento histérico: Butler vai me matar.

        

       O Homem no Fiat 500 alugado xingou alto quando seu pé largo esmagou os minús culos pedais do freio e do acelerador, fazendo o carro empacar pela enésima vez.

       Talvez fosse um pouco mais fácil dirigir esse veiculo miniatura se eu pudesse sentar tio banco de trás de modo a não ficar com os joelhos enfiados embaixo do queixo, raciocinou. E com esse pensamento parou bruscamente na beira da laguna espetacular de Cancún. À luz refletida de um milhão de lâmpadas que piscavam nas sacadas de luxo, realizou um ato de vandalismo contra o Fiat que com certeza lhe custaria o depósito feito e possivelmente iria colocá-lo em primeiro lugar na lista negra da locadora Hertz.

       — Assim está melhor — grunhiu ele, e jogou o banco do motorista pela encosta abaixo.

       A Hertz só pode culpar a si mesma., pensou, num jorro de argumentação. É isso que acontece quando você insiste em dar um carro de brinquedo para um homem das minhas proporções. É como tentar usar balas calibre cinquenta num revólver Derringer de colocar na bota. Ridículo.

       Enfiou-se no veiculo e, dirigindo sentado no banco traseiro, entrou no fluxo de carros, que mesmo perto da meia-noite andavam mais juntos do que vagões de trem.

       Estou indo, Juliet, pensou, espremendo o volante como se ele fosse uma ameaça à sua irmã mais nova. Estou indo.

       O motorista daquele Fiat descuidadamente remodelado era, claro, Butler, o guarda-costas de Artemis Fowl. Mas ele nem sempre fora conhecido por esse nome. No decorrer de sua carreira como mercenário, Butler havia adotado muitos codinomes para proteger sua família contra recriminações. Um bando de piratas somalis o conhecia como Cavalheiro George, durante um tempo ele tinha vendido seus serviços na Arábia Saudita com o nome de Capitão Ferraz (mais tarde Artemis o acusou de ter uma queda pelo excesso de melodrama) e durante dois anos uma tribo peruana, dos índios isconahua, conhecia o misterioso gigante que protegia sua aldeia de uma agressiva corporação madeireira somente comoEl Fantasma de la Selva. Claro, desde que havia se tornado guarda-costas de Artemis, não existia mais tempo para projetos extras.

       Butler tinha viajado ao México por insistência de Artemis, se bem que não fora preciso muita insistência quando Butler leu a mensagem no smartphone de seu chefe. Os dois estavam no meio de uma sessão de artes marciais mistas, de manhã, quando o telefone tocou. Uma versão polifônica do Miserere de Morrícone, que significava a chegada de um torpedo.

       — Nada de telefones no dojo, Artemis — trovejou Butler. .— Você conhece as regras.

       Artemis deu mais um soco na almofada, um jab de esquerda que tinha pouca força e menos precisão ainda, mas pelo menos agora seus golpes estavam acertando a almofada. Até recente mente os socos de Artemis eram tão fora do alvo que, no caso de um combate de verdade, um passante casual correria mais perigo do que qualquer agressor.

       — Eu conheço as regras, Butler—disse Artemis, respirando várias vezes para dizer a frase. — O telefone está definitiva mente desligado. Eu mesmo verifiquei cinco vezes.

       Butler tirou uma das almofadas, que em teoria protegiam a mão do usuário contra os socos, mas que nesse caso protegiam os dedos de Artemis contra a palma de Butler, que parecia uma pá.

       — O telefone está desligado e mesmo assim toca.

       Artemis prendeu uma das luvas entre os joelhos e liberou a mão.

       — Está ajustado para alguma emergência. Nesse caso seria pouca responsabilidade da minha parte não verificar.

       — Sua fala está estranha — observou Butler — Meio entrecortada... Você está contando as palavras?

       — Isso é patentemente ridiculo... claro — disse Artemis, ficando vermelho. — Estou simplesmente escolhendo com cui dado. — Ele foi rapidamente até o telefone, que era projetado por ele mesmo, com uma plataforma operacional especializada baseada num amálgama de tecnologia humana e do povo sub terrâneo. — A mensagem é de Juliet — disse, consultando a tela de toque, com sete centimetros.

       A irritação de Butler se evaporou imediatamente.

       — Juliet mandando uma mensagem de emergência? O que ela diz?

       Sem responder nada, Artemis entregou o telefone, que pareceu encolher quando a mão enorme de Butler o envolveu.

       A mensagem era curta. Apenas cinco palavras.

       Tenho problemas, Domovoi. Venha só.

       Os dedos de Butler apertaram o telefone até que o plástico estalou. Os nomes de batismo de todos os guarda-costas da Diamante Azul eram segredos muito bem guardados, e o simples fato de Juliet ter invocado o nome dele para chamá-lo era indicação do tamanho da encrenca em que se encontrava.

       — Naturalmente eu vou com você — disse Artemis rapi damente. — Meu telefone pode rastrear essa ligação até o cen timetro quadrado mais próximo e podemos estar em qualquer ponto do mundo em menos de um dia.

       As feições de Butler escondiam a luta que grassava dentro dele, entre irmão mais velho e profissional distanciado. Por fim, o profissional venceu.

       — Não, Artemis. Não posso colocá-lo em perigo.

       .— Mas...

       _    Não. Eu devo ir, mas você vai voltar à escola. Se Juliet

       está com problemas, preciso agir depressa, e cuidar de você simplesmente dobraria minha responsabilidade. Juliet sabe como levo meu trabalho a sério e jamais pediria que eu fosse sozinho, a não ser que a situação fosse perigosa.

       Artemis tossiu.

       — Provavelmente não é perigosa demais. Talvez Juliet esteja mais incomodada do que correndo perigo real. Mas para o caso de você ter de ir logo...

       Ele pegou o telefone na mão de Butler e bateu na tela.

       — Cancún, México: o seu destino.

       Butler confirmou com a cabeça. Fazia sentido. No momento Juliet participava de uma trupe de luta livre mexicana, ganhan do reputação para sua personagem, a Princesa de Jade, e rezando por um telefonema mágico do grupo Luta Livre Mundial.

       — Cancún — repetiu ele. — Nunca estive lá. Não há muita necessidade de gente como eu. O lugar é seguro demais.

       —  O jato está à sua disposição, naturalmente — disse Artemis, e em seguida franziu a testa, infeliz com a frase. — Esperemos que essa coisa não passe de... um alarme falso.

       Butler olhou incisivamente para seu jovem patrão. Havia algo errado com o garoto, tinha certeza, mas no momento só havia espaço para Juliet no canto de seu cérebro destinado a preocupação com os outros.

       — Não é alarme falso — disse baixinho, depois, com mui to mais ênfase: — E quem fez com que essa mensagem fosse mandada vai se arrepender. — Para deixar claro o argumento, Butler permitiu que seu lado irmão mais velho chegasse à tona por um instante e deu um soco num boneco de treino com tanta força que a cabeça de madeira saiu voando e girou no tatami como um pião.

       Artemis pegou a cabeça e bateu no cocuruto meia dúzia de vezes, ou algo assim.

       — Imagino que isso já aconteceu — disse, a voz com o farfalhar de folhas secas.

       Assim, agora Butler estava progredindo numa lentidão agoni zante pelo tráfego noturno de Cancún, a cabeça e os ombros espremidos contra o teto do Fiat. Tinha deixado de reservar um carro, por isso precisara aceitar o que a mulher da Hertz tivesse no estacionamento. Um Fiat 500. Trêsmaneiro se você fosse um adolescente indo para o spa, mas não muito adequado para um gorila de cem quilos.

       Um gorila de cem quilos desarmado, percebeu Butler. Geral mente o guarda-costas conseguia trazer algumas armas para qualquer festa onde estivesse para penetrar, mas nesse caso o transporte público era mais rápido do que o jato dos Fowl. Por isso Butler fora obrigado a deixar seu arsenal em casa, até mesmo sua amada Sig Sauer, o que quase provocou uma lágrima. Tinha feito conexão em Atlanta, e os fuzileiros navais da alfândega não aceitariam de bom grado alguém levando equipamento pesado para os EUA, em especial alguém que parecia capaz de invadir a Casa Branca com alguns cintos de munição.

       Butler vinha se sentindo meio estranho desde que saíra de perto de Artemis. Durante mais de quinze anos, tinha passado a absoluta maioria do tempo em atividades relacionadas a Artemis. Ao se pegar praticamente sozinho na classe executiva de um voo transatlântico com várias horas de espera forçada, não conseguiu dormir de tanta preocupação com a irmã, e por isso seu pensamento deslizou naturalmente para Artemis.

       Nos últimos tempos seu patrão estava mudado — disso não havia dúvida. Desde que voltara depois de salvar espécies em perigo no Marrocos no ano passado, houvera uma clara mudança de humor. Artemis parecia ainda menos aberto do que o normal, e normalmente ele era quase tão aberto quanto um cofre suíço à noite. Além disso, Butler tinha notado que Artemis parecia obcecado com o posicionamento dos objetos, algo para o qual o próprio Butler era muito alerta, já que fora treinado para ver tudo que houvesse num prédio como arma potencial ou fragmento de explosivo. Frequentemente Artemis entrava num cômodo que o guarda-costas já havia verificado e limpado e começava a mover as coisas para o lugar onde estavam anteriormente. E a fala de Artemis parecia fora do tom. Em geral Artemis falava em frases quase poéticas, mas nos últimos tempos parecia se preocupar menos com o que dizia e mais com quantas palavras eram necessárias para se expressar.

       Enquanto o Boeing começava a descer em Atlanta, Butler decidiu que procuraria Artemis Sênior assim que voltasse à

       Mansão Fowl e expressaria com clareza suas preocupações. Ainda que fosse inegavelmente seu serviço proteger Artemis do perigo, era difícil fazer isso quando o perigo vinha do próprio Artemis.

       Eu protegi Artemis de trolls, goblins, demônios, gás de anão e até de humanos, mas não posso garantir que minhas habilidades o salvem de sua própria mente. O que torna imperativo encontrar Juliet e levá-la para casa o mais rápido possível.

       Por fim Butler se cansou do tráfego arrastado pela rua principal de Cancún e decidiu que iria mais rápido a pé. Parou brusca mente numa vaga de táxi e, ignorando os gritos indignados dos choferes, foi andando pela fileira de hotéis cinco estrelas a passos rápidos.

       Localizar Juliet não seria difícil; o rosto dela estava em dezenas de cartazes no centro da cidade.

        

       Butler não se importou muito com a foto de Juliet nos cartazes. O artista havia alterado o rosto bonito para fazer sua irmã parecer mais agressiva, e a postura era obviamente só para exibição. Poderia parecer boa num cartaz, mas estava toda errada e a deixava totalmente aberta para um gancho nos rins.

       Juliet nunca se aproximaria de um adversário assim.

       Sua irmã era a melhor lutadora natural que ele já vira, e era orgulhosa demais para pedir ajuda a não ser que não houvesse outra opção, motivo pelo qual sua mensagem era tão preocupante.

       Butler correu três quilômetros sem começar a suar, serpen teando em meio a multidões de pessoas que se divertiam, até chegar à fachada de vidro e estuque do Grand Theatre. Cerca de uma dúzia de porteiros de paletós vermelhos se amontoava ao redor das portas automáticas, assentindo e sorrindo para a multidão que chegava para o evento principal.

       Pelos fundos, decidiu ele. A história da minha vida.

       Deu a volta no prédio, pensando que seria legal, só uma vez, entrar pela porta da frente. Talvez fizesse isso em outra vida, quando ficasse velho demais para os negócios.

       Quantos anos preciso ter? Pensando bem, com todas as via gens no tempo e curas feitas pelo povo subterrâneo, nem sei mais quantos anos tenho.

       Assim que chegou à porta dos fundos, Butler tirou da mente todos os outros pensamentos, a não ser o serviço à sua frente. Chegar até Juliet, descobrir qual era o problema e arrancá-la com o mínimo de dano colateral. Ainda havia dez minutos antes do inicio do show, de modo que, com um pouco de sor te, poderia agarrar a irmã antes que o lugar ficasse apinhado demais.

       A única segurança na porta dos fundos era uma câmera de vigilância. Por sorte, o Grand era um teatro normal, e não o salão de convenções de um hotel, caso contrário haveria um bocado de piscinas junto à porta dos fundos, além de multidões de turistas, uma banda de salsa e possivelmente meia dúzia de detetives particulares disfarçados. Como era, Butler entrou sem ser notado no teatro e simplesmente acenou para a câmera ao passar, conseguindo encobrir o rosto.

       Não encontrou absolutamente nenhum obstáculo no ca minho pelos bastidores do teatro. Passou por dois lutadores fantasiados que tomavam um isotônico, mas os sujeitos mal o olharam, provavelmente presumindo que era um deles. Grande e idiota, pela aparência. Devia fazer papel de bandido.

       Como a maioria dos teatros, o Grand tinha quilômetros de corredores e passagens secundárias, que não apareciam nas plantas que Butler havia baixado em seu smartphone a partir da interpédia de Artemis, onde havia um site de plantas que continha qualquer projeto que já tivesse sido posto na rede, e alguns que o próprio Artemis havia roubado e disponibilizado. Depois de virar no corredor errado várias vezes, até mesmo o excelente sentido de direção de Butler estava falhando, e o guarda-costas sentiu-se tentado a simplesmente arrebentar as paredes e criar o caminho mais curto para onde queria ir: o camarim das lutadoras.

       Finalmente chegou à porta do camarim bem a tempo de ver o final do grupo de lutadoras indo na direção do palco, parecendo partes de um dragão chinês, com todo aquele monte de lycra e seda. Depois que a última lutadora passou, uma barreira de carne e músculos na forma de dois enormes seguranças fechou as portas do palco.

       Eu poderia dominá-los, pensou Butler. Isso não seria proble ma, mas eu só teria segundos para achar Juliet e tirá-la daqui e conhecendo minha irmã, ela vai querer ter uma conversa complicada e sem sentido antes de estar pronta para ir. Preciso pensar como Artemis, como o Artemis antigo, e agir com calma. Entrar de qualquer jeito pode fazer com que nós dois sejamos mortos.

       Butler ouviu os gritos e uivos da platéia quando os lutado res entraram. O ruído foi abafado pela porta dupla, mas era mais claro vindo do camarim. Enfiou a cabeça lá dentro e viu um monitor preso à parede, mostrando a ação no ringue. Conveniente.

       Chegou perto da tela e procurou sua irmã. Ali estava ela, no canto do ringue, fazendo um aquecimento espalhafatoso que era mais pela aparência do que para realmente se preparar. Se Butler pudesse ver suas próprias feições taciturnas naquele momento, ficaria surpreso com o sorriso carinhoso, quase tranquilo, que se demorou em seu rosto.

       Faz muito tempo que não vejo você, irmãzinha.

       Juliet não parecia correr nenhum perigo iminente; na ver dade, parecia adorar a atenção da platéia, levantando os braços para pedir mais aplausos e chicoteando o anel de jade no rabo de cavalo formando oitos no ar. A multidão também a adorava. Vários rapazes balançavam cartazes com a imagem de Juliet, e alguns tinham ousadia suficiente para cobri-la com corações de confete. Butler franziu a testa. Definitivamente ficaria de olho naqueles jovens em particular.

       Permitiu-se relaxar um pouco, um afrouxamento dos dedos que talvez cinco pessoas no mundo notariam. Ainda estava em alerta máximo, mas podia admitir para si mesmo que seu pior medo sempre havia sido de chegar tarde demais.

       Juliet está viva. E saudável. Qualquer que seja o problema, podemos resolver a partir dai.

       Decidiu então que o rumo de ação mais prudente seria vigiar a partir desse posto de observação. Tinha uma visão clara do ringue e, se necessário, podia chegar em segundos ao lado da irmã.

       A luta de abertura foi iniciada com um antiquado sino à beira do ringue e Juliet saltou alto, pousando como uma felina na corda de cima.

       — Princesa! Princesa!— gritava a platéia.

       Uma favorita da multidão, pensou Butler. Claro que é.

       A oponente de Juliet era obviamente a vilã da luta. Uma mulher enorme, com cabelo descolorido cortado à escovinha e uma fantasia de lycra vermelho-sangue.

       —  Buuu! — gritou a multidão.

       Como a maioria dos lutadores no circuito mexicano, a gi gante recém-chegada usava uma máscara que cobria os olhos e o nariz, amarrada atrás com um arame farpado de aparência maligna, que Butler suspeitou na verdade ser de plástico.

       Em comparação, Juliet parecia uma boneca, aparentemente fraca demais para a luta. Um pouco da presunção sumiu de seu rosto mascarado e ela apelou por ajuda de seu canto, mas recebeu um gesto de ombros encolhidos, feito por um treinador que era o próprio estereótipo, usando uma boina, que parecia recrutado do cenário de um filme de lutas.

       Essa luta é toda combinada, percebeu Butler. Aqui não há perigo.

       Puxou uma cadeira para perto da tela e se acomodou para assistir à irmã.

       O primeiro assalto foi bastante gentil com os nervos de Butler. Então, no segundo, Juliet chegou um pouco mais perto da oponente e foi agarrada com uma velocidade surpreendente.

       — Uuu — gritou a maior parte da platéia.

       —Parte ela ao meio, Samsonetta! — gritaram observadores menos caridosos.

       Samsonetta, pensou Butler. Combina com ela.

       Nesse ponto não estava preocupado. Pelo que podia ver, havia pelo menos uma dúzia de maneiras para Juliet se soltar de Samsonetta. A maioria ela poderia fazer sem sequer usar as mãos. Uma seria teoricamente possível combinando um espirro falso com uma queda súbita.

       Butler começou a se preocupar quando notou uma dúzia de homens com capas de chuva deslizando pela parede mais distante, indo na direção do ringue.

       Capas de chuva? Em Cancún? Por que alguém usaria uma capa de chuva no México, a não ser para esconder alguma coisa?

       A imagem não era nítida o suficiente para Butler captar os detalhes, mas havia algo naqueles caras e no modo como eles se moviam. Sinistros, objetivos, permanecendo nas sombras.

       Tenho tempo, pensou ele, já montando o plano. Isso pode não ser nada, mas pode ser tudo. Não posso me arriscar quando a vida de Juliet corre risco.

       Olhou o camarim ao redor para ver se havia algo que pu desse usar como arma. Não teve sorte. Só conseguiu encontrar umas duas cadeiras, muita purpurina e rimei, e um barril cheio de fantasias velhas.

       Não vou precisar da purpurina nem do rimei, pensou, en fiando a mão no barril de fantasias.

       Juliet Butler estava se sentindo meio claustrofóbica nos braços de sua oponente.

       —  Qual é, Sam — sibilou. — Você está me sufocando.

       Samsonetta bateu a sola do pé na lona, provocando estron dos surdos que ricocheteavam no auditório, ao mesmo tempo em que fingia apertar o pescoço de Juliet.

       — Essa é a idéia, Jules — sussurrou ela, com o sotaque de Estocolmo, esticando as vogais. — Eu chicoteio a multidão, lembra? E depois você me domina.

       Juliet virou o rosto para a multidão de três mil pessoas, soltando um dramático uivo de dor.

       — Mata ela — gritaram os bonzinhos.

       — Mata ela e parte ao meio — gritavam os não tão bon zinhos.

       — Mata ela, parte ao meio e pisa nos pedaços — uivaram os espectadores realmente malignos, geralmente fáceis de ser identificados pelos slogans violentos nas camisetas e pela baba escorrendo.

       —  Cuidado, Sam. Você está tirando a minha máscara.

       —  E é uma máscara tão bonitinha!

       A fantasia inteira de Juliet era suficientemente bonita para torná-la a favorita da platéia. Uma malha colante cor de jade e uma pequena máscara para os olhos, que na verdade era feita de gel coberto de purpurina.

       Se tenho de usar máscara, havia pensado Juliet, que pelo menos seja boa para minha pele.

       As duas se prepararam para o golpe que era a marca registra da de Samsonetta: um arremesso do alto, ajudado pela força de seus braços espantosos. Geralmente, se suas oponentes tivessem ao menos uma fagulha de energia depois dessa manobra, Sam simplesmente caia sobre elas e em geral obtinha sucesso. Mas como Juliet era a favorita do público, o movimento não era planejado para acontecer como sempre. Uma platéia de luta livre gostava de ver seu herói ficar por baixo o máximo possível sem ser derrotado.

       Sam anunciou o movimento perguntando se a multidão queria o arremesso.

       —     Vocês querrem? — gritou, exagerando o sotaque.

       —Queremos!— uivaram eles, batendo no ar com os punhos.

       —O arremesso?

       —     Arremesso! — entoaram eles. — Arremesso! Arremesso!

       Alguns cantaram outros slogans mais violentos, mas logo a segurança foi na direção deles.

       —     Vocês querrem um arremesso! Eu arremessa agorra! — Geralmente Samsonetta teria dito Eu arremessa logo!Mas Max, o empresário da Lucha Slam, gostava que ela usasse o máximo de "rr" possível, já que isso enlouquecia a platéia.

       Assim ela se curvou para trás, e lançou a infeliz Princesa de Jade para fora do ringue. Esse seria o fim se, de algum modo, a Princesa de Jade não tivesse girado no ar, pousando nas pontas dos dedos dos pés e das mãos — e essa nem foi a parte impressionante. A parte impressionante foi saltar de pé de novo e girar a cabeça, fazendo o anel de jade preso no rabo de cavalo louro acertar o maxilar de Samsonetta, que despencou de costas.

       Samsonetta gemeu e reclamou, esfregou o queixo para deixá-lo vermelho e rolou como uma morsa numa rocha quente.

       Era uma tremenda atriz, e por um momento Juliet se preo cupou, pensando que o anel de jade teria mesmo a machucado, mas então Sam lhe deu uma piscada secreta e ela soube que as duas ainda estavam representando.

       — Já chega, Samsonetta? — perguntou Juliet, saltando ágil sobre a corda de cima. — Quer um pouco mais?

       —  Não — balbuciou a suposta oponente; depois decidiu enfiar mas um "rr", para o Max. — Não querrer mais.

       Juliet se virou para a platéia.

       —  Devo dar um pouco mais a ela?

       Ah, não, disse uma platéia imaginária. Mais, não. Seria uma barbaridade.

       Mas a platéia de verdade gritou coisas como:

       —  Mata ela!

       —  Leva ela pro centro da cidade! — (O que quer que qui sessem dizer com isso: eles já estavam no centro.)

       _ Mostra a dor a ela. —A dor obviamente era mais feroz do que a dor velha e comum.

       Eu amo esse pessoal, pensou Juliet, e se lançou da corda de cima para dar o golpe de misericórdia.

       Seria uma coisa belíssima. Um lindo mortal duplo com uma bela cotovelada na barriga para provocar um uuuf, mas alguém saiu das sombras e agarrou Juliet no ar, jogando-a violenta mente no canto do ringue. Vários outros atacantes silenciosos e musculosos se empilharam em cima de Juliet até que tudo que ficou visível da garota era uma perna coberta de tecido verde.

       Nas sombras, de onde estava olhando atrás de um equipa mento de iluminação, Butler sentiu uma bola azeda de medo cair na boca do estômago e murmurou: — Essa é a minha deixa.

       O que o fez parecer tremendamente mais petulante do que ele se sentia.

       A multidão ainda estava aplaudindo o surgimento inesperado dos luchadores do Esquadrão Ninja, com suas características fantasias pretas escondidas por capas de chuva, que sem dúvida tinham aparecido para vingar a derrota recente de sua chefe nas mãos e nos pés da Princesa de Jade no QuadroSlam na Cidade do México. Convidados surpresa costumavam aparecer nas lutas, mas todo o Esquadrão Ninja era uma bonificação inesperada.

       Os ninjas eram uma massa de músculos se retorcendo, cada membro desesperado para acertar um golpe na Princesa de Jade, e não havia nada que a garota esguia pudesse fazer, a não ser ficar ali e absorver tudo.

       Butler entrou no ringue em silêncio. O elemento surpresa costumava ser a diferença entre a vitória e a derrota em situações em que as chances eram contrárias, mas se Butler fosse honesto consigo mesmo admitiria que, secretamente, costumava ter as chances a seu favor, mesmo nesse caso, em que eram doze con tra um. Doze contra dois, se Juliet ainda estivesse consciente, o que significava seis contra um, o que era praticamente pau a pau. Pouco antes, Butler havia se sentido meio sem jeito na fantasia emprestada, uma malha imitando urso, com máscara, mas agora todo o embaraço foi esquecido enquanto seu cérebro entrava naquilo que ele chamava de modo de combate.

       Essas pessoas estão machucando minha irmã, pensou enquanto um fio quente de raiva rachava sua casca gelada de profissio nalismo.

       Hora de trabalhar.

       Com um rosnado que tinha absolutamente tudo a ver com a fantasia de Urso Louco, Butler rolou para o ringue sob a corda de baixo, atravessou rapidamente a lona e começou a atacar os ninjas com uma evidente economia de movimentos. Não houve nenhum monólogo ameaçador, nem mesmo uma pisada firme para anunciar a chegada, o que não era nem um pouco educado. Simplesmente foi desmantelando os ninjas como se fossem um castelo de cartas.

       Seguiram-se trinta segundos de membros balançando e gritos agudos que deixariam orgulhosas as adolescentes histéricas no show de uma boy band, e então, finalmente, Juliet apareceu.

       Butler viu que a irmã estava intacta e sorriu por trás da máscara.

       — Olá, você ai. Consegui.

       E, em resposta por ter tido a vida salva, Juliet mandou quatro dedos rígidos contra seu plexo solar, tirando o ar do seu corpo.

       —Aarrk — grunhiu ele, e depois: — Uuuqustaf. — Que deveria ter sido O que você está fazendo?

       Dois ninjas tinham se recuperado e tentaram alguns de seus movimentos estilizados contra o atacante, mas foram recompensados com tapas casuais, de mão aberta.

       — Cuidado — disse Butler rispidamente, inspirando de novo e lançando um olhar maligno para eles. — Preciso de um minuto para a família.

       Algo tremeluziu no canto da visão de Butler, movendo-se com velocidade borrada, tremeluzente. Sua mão esquerda saltou num gesto automático para agarrar o anel de jade trançado no rabo de cavalo de sua irmã.

       — Uau — disse Juliet. — Ninguém nunca fez isso antes.

       — Verdade? — perguntou Butler, largando o anel de jade. — Ninguém?

       Os olhos de Juliet se arregalaram atrás da máscara.

       — Ninguém a não ser... Irmão, é você?

       Antes que Butler pudesse responder, Juliet deu um passo de lado e acertou uma cacetada com o antebraço num ninja que podia estar se esgueirando para cima deles, ou que na verdade podia estar tentando escapar do lugar que havia se tornado o ringue da dor real, em vez de o ringue da agonia fingida de modo convincente.

       — Vocês não ouviram esse cara? Precisamos de um tempo para a família!

       Os ninjas se encolheram de volta para a corda, gemendo. Até Samsonetta pareceu meio preocupada.

       — Irmão, estou no meio de uma luta feia. O que você veio fazer aqui? — perguntou Juliet.

       Muitas pessoas poderiam ter demorado mais alguns minutos para perceber que algo estava errado, mas não Butler. Anos protegendo Artemis Fowl lhe haviam ensinado a pegar a ficha antes que ela caísse.

       —  Obviamente você não mandou me chamar. Precisamos sair para eu deduzir a situação.

       Juliet fez um beicinho carrancudo, transportando Butler para dez anos no passado, quando ele proibiu que ela raspasse a cabeça.

       — Não posso simplesmente ir. Tenho fãs esperando que eu dê estrelas e faça meu golpe característico com você.

       Era verdade. Os seguidores da Princesa de Jade estavam pulando nas cadeiras, berrando pelo sangue do Urso Louco.

       — Se eu for simplesmente embora, pode haver um tumulto generalizado.

       Butler olhou para a tela gigante suspensa no teto e viu closes de sua cabeça olhando para cima, o que bastava para dar dor de cabeça em qualquer um.

       Uma voz trovejou saindo de quatro alto-falantes antiquados presos nos cantos da tela.

       _    Quem é esse cara, pessoal? Será que o Urso Louco veio derrubar sua velha inimiga, a Princesa de Jade?

       Juliet esticou o queixo.

       — Max. Sempre procurando a melhor abordagem.

       —     Juliet, não temos tempo para isso.

       -— Quem quer que seja — continuou Max —, não va mos deixar que ele saia daqui com a nossa princesa, vamos, amigos?

       A julgar pelos gritos altos e longos, os pagantes não gostavam da idéia de ver o Urso Louco simplesmente sair com a princesa. A linguagem era espalhafatosa e Butler poderia jurar que as paredes tremiam ligeiramente.

       Butler deu três passos rápidos para a lateral do ringue e ba lançou o dedo para um homenzinho que segurava o microfone.

       Ficou surpreso quando o homenzinho pulou em cima da mesa, pisou no próprio chapéu e depois gritou ao microfone:

       — Está me ameaçando, Urso Louco? Depois de tudo que fiz por você? Quando aqueles guardas florestais encontraram você vivendo com os ursos pardos, quem protegeu você? Foi o Max Schetlin, claro. E é assim que você quer pagar?

       Butler desligou a arenga.

       — Certo, Juliet. Precisamos sair daqui. Não temos tempo para isso. Alguém queria que eu ficasse fora do caminho. Pos sivelmente alguém que tem algo contra Artemis.

       — Você precisa ser muitíssimo mais especifico do que isso, irmão. Artemis tem mais inimigos do que você, e no momento você tem um bocado deles.

       Era verdade. A multidão estava ficando feia, boa parte era feiúra falsa, mas o olhar aguçado de Butler viu montes de fãs da luta livre nas primeiras filas que pareciam dispostos a invadir o ringue.

       Preciso fazer uma declaração, pensou. Mostrar a essas pessoas quem é que manda.

       — Para fora do ringue, Jules. Agora.

       Juliet obedeceu sem reclamar. Butler tinha aquela expressão no rosto. Na última vez em que tinha visto aquela expressão, seu irmão havia aberto um buraco no casco de um iate roubado por piratas da Somália, afundando a embarcação no Golfo de Aden.

       —  Não machuque Samsonetta — ordenou ela. — Nós somos amigas.

       Butler balançou a cabeça, desaprovando.

       — Amigas? Eu sabia que vocês duas estavam fingindo.

       Samsonetta e os ninjas estavam ocupados fazendo pose no

       outro canto do ringue. Batiam os pés, davam socos no ar e ameaçavam, sem atacar de verdade.

       Quando Juliet estava em segurança do lado de fora das cordas, Butler foi para o seu canto e mandou o ombro contra a almofada que cobria o poste do canto. O impacto chacoalhou o poste.

       —  O Urso Louco está louco de verdade — berrou Max. — Está batendo no ringue. Vocês vão aceitar isso, ninjas?

       Esse homem está desafiando o próprio símbolo de nossa herança esportiva.

       Aparentemente o Esquadrão Ninja estava preparado para aceitar um pouco de profanação de seu símbolo, se isso significava não ser atacado pelo homem-montanha que havia despedaçado sua pirâmide humana sem mais esforço do que uma criança precisaria para derrubar um castelo de cartas.

       Butler golpeou o poste de novo, desta vez arrancando-o da base. Sopesou a haste de metal, passou por baixo das cordas e começou a torcer o ringue.

       Esse movimento era tão sem precedentes que se passaram vários segundos até que alguém pudesse avaliar o que estava assistindo. Nos anos seguintes, a manobra passaria a ser co nhecida como o espremedor e elevaria o verdadeiro Urso Louco, que estava desmaiado, bêbado, no beco dos fundos, ao status de superastro luchador.

       Até a fanfarronice de Max Schetlin secou enquanto seu cérebro tentava processar o que acontecia.

       Butler aproveitou a imobilidade perplexa para girar rapi damente o poste do canto meia dúzia de vezes, arrancando mais duas bases.

       Não é tão difícil quanto parece, pensou Butler, vendo-se na tela gigante. Todo esse ringue é pouco mais do que uma barraca invertida. Um adolescente bem alimentado poderia derrubá-lo.

       Segurou os três postes com os braços, girando-os habilmente, apertando o ringue cada vez mais.

       Dois ninjas tiveram presença de espirito suficiente para sair enquanto podiam, mas a maioria ficou de queixo caído, e dois que acreditavam estar sonhando sentaram-se e fecharam os olhos.

       Butler assentiu para Samsonetta.

       —  Saia dai, moça.

       Samsonetta chegou a fazer uma reverência, o que era total mente inadequado, e passou por baixo da corda, junto com um ninja que foi inteligente o bastante para reconhecer a chance de fugir. O resto foi espremido enquanto Butler enrolava a corda. Cada giro provocava gemidos no rolo de corda velha e nas pessoas presas dentro. A multidão começava a perceber o que estava acontecendo e começou a aplaudir a cada giro. Vários estavam gritando animados para Butler espremer o ar para fora dos pulmões dos ninjas, mas o guarda-costas se con tentou meramente em esmagá-los como passageiros do metrô de Londres na hora do rush. E assim que estavam incapazes de se mexer, ele os empurrou para a lateral do ringue e plantou o poste de volta na base.

       — Agora vou indo — disse. — E aconselho vocês todos a ficarem quietinhos até eu sair do pais, no mínimo, porque se não fizerem isso vou ficar muito chateado.

       Butler não tinha o poder mágico do mesmer, mas mesmo assim sua voz era extremamente persuasiva.

       —  Certo, Urso, pega leve — disse o único ninja que tinha touca branca, provavelmente o lider. —Você está saindo muito do roteiro. Max vai pirar de vez.

       _ Deixe que eu me preocupo com o Max — aconselhou

       Butler. — Você deve se preocupar pensando se eu vou me preocupar com você.

       O franzido na testa do ninja ficou óbvio mesmo através da touca.

       —O quê? Por que devo me preocupar com você?

       Butler trincou os dentes. Os diálogos espertos não eram tão fáceis como os filmes faziam a gente acreditar.

       —     Só não se mexa até eu ir embora. Sacou?

       —     Saquei. Você deveria ter dito isso.

       —     Eu sei.

       Pela perspectiva de um guarda-costas, havia tantas coisas erradas naquela situação que Butler quase desanimou. Virou- se para a irmã.

       —     Já chega. Preciso ir para algum lugar e pensar. Algum lugar onde não haja lycra.

       —     Certo, Dom. Venha atrás de mim.

       Butler desceu da plataforma.

       —     Será que você pode parar de espalhar meu nome por ai? Ele deveria ser segredo.

       —Para mim, não. Eu sou sua irmã.

       —Pode ser. Mas há milhares de pessoas aqui e um número quase igual de câmeras.

       —Eu nem disse o nome inteiro. Não disse Dom-o...

       —     Não! — alertou Butler. — Estou falando sério.

       A porta do palco estava a apenas vinte metros e os ritmos conhecidos da briga de família aqueceram o coração de Butler.

       Acho que vamos conseguir, pensou num raro momento de otimismo.

       E foi então que a imagem na tela grande foi substituída por um gigantesco par de olhos vermelhos reluzentes. E ainda que os olhos vermelhos costumem ser associados a coisas malignas como vampiros, ardência por cloro e conjuntivite, aqueles olhos vermelhos em particular pareciam amigáveis e infinitamente confiáveis. De fato, qualquer um que olhasse para as profunde zas fluidas em redemoinho daqueles olhos sentia que todos os seus problemas estavam para ser resolvidos, se a pessoa fizesse o que o dono daqueles olhos mandasse.

       Butler percebeu inadvertidamente os olhos na periferia de sua visão, mas baixou a cabeça bem rápido.

       Magia do povo subterrâneo, percebeu. Toda essa multidão vai ser mesmerizada.

       — Olhem nos meus olhos — disse uma voz que saia de cada alto-falante no teatro. A voz até conseguiu invadir as câmeras e os celulares da platéia.

       — Uau — disse Juliet em uma voz monótona que não combinava com a palavra. — Preciso mesmo olhar para aqueles olhos.

       Juliet poderia relutar em fazer o que a voz sedosa ordena va se tivesse alguma lembrança de suas relações com o Povo subterrâneo, mas infelizmente essas lembranças tinham sido apagadas de sua mente.

       —  Bloqueiem as saídas — instigou a voz. — Bloqueiem todas as saídas. Usem seus corpos.

       Juliet tirou a máscara, que estava impedindo sua visão da tela.

       -— Irmão, precisamos bloquear as saídas com nossos corpos.

       Butler se perguntou como as coisas poderiam ficar muito piores à medida que centenas de fãs de luta livre, fascinados, jor rassem pelos corredores para bloquear fisicamente as passagens.

       Bloquear as saídas com os corpos? Aquela criatura estava sendo bem especifica.

       Butler não tinha dúvida de que outra ordem iria chegar, e duvidava que fosse agora deem as mãos e cantem cantigas de ninar. Não: tinha certeza de que nada de bom viria daquela tela.

       —Agora matem o urso e a princesa — disse a voz cheia de camadas, algumas das quais demoravam um tempo para chegar, o que deu umssss sibilante à palavra princesa.

       Matem o urso e a princesa. Que charmoso.

       Butler percebeu um brilho de intenção sombria nos olhos de sua irmã quando se deu conta que ele era o urso. O que Juliet faria, imaginou, quando percebesse o fato de que ela era a princesa?

       Não importa, percebeu. Nós dois podemos estar mortos muito antes de isso acontecer.

       — Matem o urso e a princesa — entoou Juliet num uníssono perfeito com a multidão mesmerizada.

       —E podem demorar para fazer isso — continuou a voz mágica, agora encharcada com uma nota de alegria. — Ar rastem a coisa um pouco. Como vocês, humanos, dizem: sem dor não há ganho.

       Grande humor, pensou Butler. Então não é Opala Koboi.

       — Preciso matar você, irmão — disse Juliet. — Desculpe. De verdade.

       Duvido muito, pensou Butler. Num dia bom, se ele estivesse drogado e vendado, talvez Juliet pudesse lhe infligir algum dano, mas em sua experiência sabia que o mesmer deixava as pessoas lentas e idiotas. Grande parte do cérebro era desligada e as partes que ficavam acordadas não seriam capazes de ganhar nenhum prêmio Nobel.

       Juliet tentou um chute giratório mas acabou perdendo o equilíbrio e caindo nos braços de Butler. De modo incômodo, seu anel de jade girou e acertou-o na orelha.

       Até mesmerizada minha irmã é irritante.

       Butler levantou Juliet com facilidade, depois retesou os músculos para fugir.

       — Vou matar você — murmurou sua irmã. — Desculpe. Eu preciso. — E depois: — Criaturas das fadas? Fala sério!

       Será que estava se lembrando do cerco à mansão Fowl? Será que o mesmer havia provocado acidentalmente a lembrança?

       Poderia investigar mais tarde, se houvesse um mais tarde para eles. Butler tinha fé considerável em sua própria capaci dade, mas duvidava que pudesse dominar um teatro cheio de zumbis, mesmo que eles não tivessem pés ligeiros.

       — Vão trabalhar, meus lacaios humanos — disse a voz que acompanhava os olhos vermelhos. — Mergulhem fundo nos recessos mais sombrios de seus cérebros, quaisquer que eles sejam. Não deixem nenhuma prova para as autoridades.

       Não deixar provas? O que eles deveriam fazer com as provas? Não valia a pena se esforçar procurando uma resposta. Se esforçar? Rá, rá, rá,pensou Butler, e depois: Que piada!E eu lá tenho tempo para piadas? Será possível que eu esteja abalado? Fica frio, cara. Você já passou por coisa pior.

       Se bem que, olhando as dezenas de psicopatas instantâne os que cambaleavam com os membros rígidos descendo dos balcões superiores, Butler não conseguia se lembrar de quando isso havia acontecido.

       Um homem gordo, de quarenta e tantos anos, com uma camiseta onde dizia Coveiro e usando um chapéu com suporte para cerveja, apontou para Butler do corredor.

       —             Uuurso! — berrou ele. — Uuuurso e princesa! Butler pegou emprestada uma palavra do dicionário do povo subterrâneo:

       —D'Arvit.

       ARTEMIS estava saltando entre psicoses. — Você não é real! — gritou contra a nave que descia. — Você não passa de uma ilusão, minha amiga!

       E dali saltava direto para a paranóia.

       — Você planejou isso — gritou para Holly. — Quem eram seus comparsas? Potrus, sem dúvida. Butler? Você virou meu guarda-costas de confiança contra mim? Alterou a mente dele e plantou suas verdades lá dentro?

       Do telhado, o microfone direcional do capacete de Holly captava apenas uma ou outra palavra, mas isso bastava para dizer que Artemis não era mais o sujeito lógico e meticuloso de antigamente.

       Se o velho Artemis pudesse ver o novo Artemis, o velho Artemis morreria de vergonha.

       Como Butler, Holly estava tendo dificuldade para controlar seu senso de humor rebelde nessa hora difícil.

       — Abaixe-se! — gritou. — A nave é real!

       —  E o que você quer que eu pense. Aquela nave não passa de uma engrenagem na sua conspiração... —Artemis fez uma pausa. Se a nave era uma engrenagem na conspiração, e a cons piração era real, então a nave devia ser real. — Cinco! — disse de repente, tendo se esquecido disso durante um minuto. — Cinco, dez, quinze!

       Apontou todos os dedos para a nave, balançando-os com fúria.

       Uma saudação com dez dedos. Certamente isso vai vaporizar essa visão.

       E pareceu que os dedos estavam tendo efeito. Os quatro motores em forma de disco, que vinham sendo arrastados atrás do corpo principal como marionetes impotentes presos ao manipulador fantasmagórico, de repente se viraram e começaram a emitir pulsos antigravitacionais que saltaram intermitentes na direção do chão em bolhas gordas, reduzindo a velocidade de queda da nave mais rápido do que pareceria possível para um aparelho de dimensões tão deselegantes.

       —  Rá! — grasnou Artemis. — Eu controlo minha reali dade. Viu isso?

       Holly sabia que, longe de controlar qualquer coisa, Artemis estava testemunhando a sequência de pouso de uma sonda do povo subterrâneo. Nunca tinha pilotado uma sonda de espaço profundo, mas mesmo assim sabia que ficar embaixo de um monstro daqueles enquanto as bolhas de antigravidade eram lançadas era mais do que suficiente para ser morto, e balançar os dedos como um mágico de feira não impediria isso.

       Preciso me levantar, pensou.

       Mas o ferimento nas pernas a segurava como um cobertor de chumbo.

       Acho que minha pélvis está quebrada, percebeu. Talvez um tornozelo também.

       A magia de Holly tinha uma potência incomum, graças a uns dois reforços de seu amigo, o demônio N°l, que estava se tornando o feiticeiro mais mágico que a universidade já havia contratado, e começou a trabalhar em seus ferimentos, mas a velocidade não era suficiente. Artemis tinha uns dois segundos antes que uma daquelas bolhas de antigravidade o despedaçasse ou que a própria nave pousasse em sua cabeça. E não era preciso ser um gênio para deduzir o que aconteceria em seguida, portanto era bom que Artemis não parecesse mais ser um gênio.

       — Assistência — gritou debilmente em seu comunicador. — Alguém. Tem alguém ai?

       Não havia. Qualquer um que tivesse estado dentro do lan çador estava para além de qualquer magia, e Potrus continuava de pernas para cima no monte de neve.

       Mesmo que houvesse alguém, ê tarde demais.

       Grandes padrões de rachaduras brotaram no gelo como golpes de marreta enquanto os pulsos de antigravidade se chocavam contra a superfície. As rachaduras se espalharam pela geleira com um barulho que parecia de galhos se par tindo, abrindo grandes sumidouros que iam até as cavernas subterrâneas abaixo.

       A nave era grande como um silo de grãos e parecia estar lu tando contra o empuxo dos motores a reboque, lançando ondas de vapor e jatos de liquido. O combustível de foguete encharcou Artemis, tornando difícil ignorar o fato de que o foguete era real. Mas se havia uma coisa que Artemis não tinha perdido era a teimosia, por isso ele ficou onde estava, recusando-se a ceder a esse último ataque de bom senso.

       —  Quem se importa? — murmurou ele.

       De algum modo Holly ouviu as últimas palavras e pensou: Eu me importo.

       Situações desesperadas pedem medidas desesperadas.

       Não há nada a perder, pensou Holly, abrindo o coldre na coxa.

       Tirou a pistola num arco ligeiramente mais irregular do que o normal. Essa arma era sincronizada com sua viseira, mas mesmo assim Holly não tinha tempo de verificar os ajustes. Simplesmente baixou o sensor de comando com o polegar e falou claramente ao microfone na lateral do cabo:

       — Arma. [Pausa para o bip.] Não-mortal. Concussivo de alcance amplo.

       —  Desculpe, Artemis — murmurou. Depois deu um bom disparo de três segundos contra o amigo humano.

       Artemis estava enfiado até o tornozelo na neve fofa e recla mando sem parar quando Holly puxou o gatilho.

       O raio acertou-o como um tapa de um peixe elétrico gigan te. Seu corpo foi levantado e jogado pelo ar antes de a sonda pousar com um estrondo de esmagar os ossos, arrasando o lugar onde ele estivera parado segundos atrás.

       Artemis caiu numa cratera como um saco de farinha e desapareceu da visão de Holly.

       Isso não é bom, pensou Holly. Depois viu suas fagulhas de magia pairar diante dos olhos como inquisitivos vaga-lumes com luzes âmbar.

       Estou apagando, percebeu. Minha magia está me fazendo dormir para me curar.

       Com o canto do olho Holly viu uma porta se abrir na bar riga da sonda e uma prancha descer sobre suportes hidráulicos. Algo estava saindo.

       Espero que eu consiga acordar, pensou. Odeio o gelo e não quero morrer de frio.

       Então fechou os olhos e não sentiu o corpo frouxo rolar do telhado e cair num monte de neve.

       Apenas um minuto depois, os olhos de Holly se abriram com as pálpebras tremendo. A sensação de acordar foi entrecortada e irreal, como imagens de documentário de uma zona de guerra. Holly não conseguia se lembrar de ter se levantado, mas de repente estava de pé, sendo arrastada por Potrus, que parecia extrema mente desgrenhado, possivelmente porque seu lindo topete fora totalmente chamuscado e se equilibrava no topo da cabeça como um ninho de pássaro. Mas principalmente ele parecia deprimido.

       —  Venha, capitã! — gritou Potrus, a voz parecendo ligei ramente fora de sincronismo com a boca. — Temos de andar.

       Holly tossiu fagulhas âmbar e seus olhos se encheram de água.

       Magia âmbar, agora? Estou ficando velha.

       Potrus sacudiu os ombros dela.

       —  Fique firme, capitã. Temos trabalho a fazer.

       O centauro estava usando psicologia de trauma. Holly sabia; se lembrava do curso de aprimoramento feito na De legacia Plaza.

       No caso de estresse de combate, apele ao profissionalismo dos soldados. Lembre a eles repetidamente do posto que ocupam. Insista em que cumpram o dever. Isso não terá um efeito de cura de longo prazo sobre qualquer problema psicológico, mas pode bastar para levá-los de volta à base.

       A comandante Vinyáya tinha dado o curso.

       Holly tentou ficar firme. Sua perna parecia mole dos joelhos para baixo e a cintura zumbia com a dor pós-cura conhecida como queimação mágica.

       —  Artemis está vivo?

       —  Não sei — respondeu Potrus bruscamente. — Eu construí essas coisas, você sabe. Eu as projetei.

       —  Que coisas?

       Potrus arrastou-a até uma rampa vítrea na geleira, mais escorregadia do que um rinque de patinação.

       —  As coisas que estão nos caçando neste exato instante. Os amorfobôs. As coisas que sairam da sonda.

       Escorregaram até o fundo do barranco, inclinando-se adian te para manter o equilíbrio.

       Holly parecia ter desenvolvido visão de túnel, apesar de sua viseira ser panorâmica. As bordas da visão estalavam com estática âmbar.

       Ainda estou me curando. Não deveria me mexer. Deus sabe que danos vou causar a mim mesma.

       Potrus pareceu ler seu pensamento, mas provavelmente era emparia das criaturas do subsolo.

       — Precisei tirar você de lá. Um dos meus amorfobôs estava indo na sua direção, sugando tudo no caminho. A sonda afun dou, só os deuses sabem para onde. Tente se apoiar em mim.

       Holly assentiu e tossiu de novo; o jorro foi absorvido ins tantaneamente pela viseira porosa.

       Cambalearam pelo gelo em direção à cratera onde Artemis estava caído. Ele estava tremendamente pálido e havia um fio de sangue escorrendo do canto da boca até a linha dos cabelos. Potrus baixou as patas dianteiras e tentou encorajar Artemis de volta à consciência falando rigidamente.

       —     Anda, Garoto da Lama — disse cutucando o antebraço de Artemis. — Não temos tempo para vadiagem.

       A reação de Artemis a essa bronca foi um movimento mal perceptível do braço. Isso era bom, pelo menos significava que Artemis ainda estava vivo.

       Holly tropeçou na borda da cratera e caiu no fundo.

       -— Vadiagem? — ofegou ela. — Isso ao menos é uma Palavra?

       Potrus cutucou Artemis de novo.

       —  E. E você não deveria estar matando aqueles robôs com seu lápis?

       Os olhos de Holly pareceram se iluminar.

       — Verdade? Eu posso fazer isso?

       Potrus fungou.

       — Certamente. Se seu lápis tiver um facho mágico super-maneiro em vez de grafite.

       Holly ainda estava grogue mas, mesmo além dos ferimentos e do estresse de batalha, era óbvio que a situação estava difícil. Ouviram estranhos estalos metálicos e pios, que pareciam de animais, soando pelo ar, a principio baixinho, depois subindo em ritmo e intensidade até chegar a um frenesi.

       O barulho raspava a testa de Holly como se sua pele estivesse sendo arrancada.

       —  O que é isso?

       — Os amorfobôs estão se comunicando — sussurrou Po trus. — Transferindo terabytes de informação sem fio. Cada um atualizando o outro. O que um sabe, todos sabem.

       Holly examinou os sinais vitais de Artemis através da viseira. As leituras luminosas informaram que ele tinha um leve murmúrio cardíaco e alguma atividade incomum no lóbulo parietal. Afora isso, a melhor coisa que seu computador de ca pacete podia concluir era que Artemis basicamente não estava morto. Se ela poderia sobreviver a esse último infortúnio, talvez Artemis também pudesse.

       —  O que eles estão procurando, Potrus?

       -— O que eles estão procurando? — repetiu o centauro, dando aquele sorriso histérico incomum que expunha gengiva demais.

       De repente Holly percebeu seus sentidos entrando em foco e soube que a magia tinha terminado de suplantar seus feri mentos. A pélvis ainda latejava e provavelmente continuaria latejando por alguns meses, mas ela era capaz de agir de novo, de modo que talvez pudesse levá-los de volta à civilização subterrânea.

       — Potrus, fique frio. Precisamos ter idéia do que essas coisas podem fazer.

       O centauro pareceu chateado porque alguém escolheria esse momento em particular para lhe fazer perguntas quando ele tinha tantas questões vitais para considerar.

       — Ora, Holly! Será que temos tempo para perguntas agora?

       — Corta essa, Potrus! Informações, dê logo.

       Potrus suspirou, com os lábios trêmulos.

       — Eles são bioesferas. Amorfobôs. Máquinas idiotas basea das em plasma. Recolhem amostras de vida vegetal e analisam com seu plasma. E simples. Inofensivo.

       — Inofensivo — reagiu Holly. —Acho que alguém repro gramou seus amorfobôs, centauro.

       A cor desapareceu das bochechas de Potrus e seus dedos estremeceram.

       — Não. Não é possível. Essa sonda deveria estar a caminho de Marte para procurar micro-organismos.

       — Acho que podemos ter quase certeza de que sua sonda foi sequestrada.

       —  Há outra possibilidade — sugeriu Potrus. — Eu poderia estar sonhando tudo isso.

       Holly continuou pressionando com as perguntas:

       —  Como podemos pará-los, Potrus?

       Era impossível deixar de ver o medo que surgiu rapidamente no rosto de Potrus, como um clarão de sol num lago.

       —  Parar? Os amorfobôs são construídos para suportar a exposição prolongada ao vácuo do espaço. Você poderia largar um deles na superfície de uma estrela e ele sobreviveria por tempo suficiente para transmitir alguma informação de volta à sonda mãe. Obviamente eu tenho um código de desligamento, mas suspeito que ele foi desativado.

       —  Deve haver um modo. Não podemos atirar neles?

       — Absolutamente não. Eles adoram energia. Ela alimenta suas células. Se você atirar, eles só vão ficar maiores e mais fortes.

       Holly pôs a palma da mão na testa de Artemis, verificando a temperatura.

       Gostaria que você acordasse, pensou. Seria bom ter um dos seus planos brilhantes.

       — Potrus — disse ansiosa. — O que os amorfobôs estão fazendo agora? O que estão procurando?

       —  Vida — respondeu Potrus simplesmente. — Estão fa zendo uma busca em grade, começando no local da queda e se afastando. Qualquer forma de vida que encontrarem será absorvida no saco, analisada e liberada.

       Holly espiou pela borda da cratera.

       — Qual é o critério de exame deles?

       — O padrão é térmico. Mas eles podem usar qualquer coisa.

       Térmico, pensou Holly. Assinaturas de calor. Por isso estão passando tanto tempo perto do lançador em chamas.

       Os amorfobôs estavam organizados em cantos de quadrados de uma grade invisível, afastando-se lentamente da carcaça fumegante do lançador. Pareciam bastante inócuos, bolas de gel rolantes com dois sensores vermelhos e reluzentes no centro. Como balões de gosma de uma festa infantil. Mais ou menos do tamanho de uma bola de esmagobol.

       Não devem ser tão perigosos assim. Umas bolhazinhas sono- lentas.

       Sua opinião se alterou rapidamente quando um dos amor fobôs mudou de cor, de um verde translúcido para um azul elétrico furioso e a cor se espalhou para os outros. Os pios fantasmagóricos se tornaram um zumbindo agudo e constante.

       Eles acharam alguma coisa, percebeu Holly.

       Todo o esquadrão de cerca de vinte robôs convergiu para um único ponto, alguns se fundindo para formar bolhas maiores, que fluíram sobre o gelo com uma velocidade e uma graça que até então estavam escondidas. O robô que havia mandado a mensagem aos outros permitiu que uma carga estalasse em sua pele, que ele então descarregou num montinho de neve. Uma infeliz raposa da neve saltou do vapor, com a cauda fumegando como um pavio, e disparou em direção à liberdade.

       E quase cômico. Quase.

       Os amorfobôs tremelicaram como se rissem e mandaram al guns raios de energia azul estalando atrás da raposa condenada, abrindo rasgos pretos no chão, guiando o animal aterrorizado para longe do abrigo do Grande Skua. Apesar da velocidade e agilidade naturais do bicho, os raios previam seus movimentos com precisão incrível, fazendo-o correr em círculos, os olhos se revirando, a língua pendurada.

       Só havia uma conclusão possível para aquele jogo de gato e rato: o maior amorfobô soltou uma ordem grave e impaciente através dos auto-falantes de gel quase invisíveis em seu corpo e se virou abruptamente para continuar a busca. Os outros foram atrás, deixando apenas o robô original para caçar a raposa. Ele se cansou depressa do esporte e agarrou a raposa no meio do salto com um raio de energia atirado como uma lança.

       Assassino, pensou Holly, com mais raiva do que horror. Potrus não projetou isso.

       De repente Potrus ficou na frente dela.

       — Você está com aquela expressão, capitã.

       —  Que expressão?

       — A da qual Julius Raiz sempre falava. A do tipo vou fazer uma coisa incrívelmente idiota.

       Não havia tempo para discussão.

       —  Preciso chegar ao caixote de Artemis.

       — Não pode. O que o manual da LEP sugere nesse tipo de situação?

       Holly trincou os dentes. Seus dois gênios eram inúteis; ela teria de fazer isso sozinha.

       — O manual, que você ajudou a escrever, me aconselharia a recuar para uma distância segura e construir um bivaque, mas, com todo o respeito, essas diretrizes servem tanto quanto pilha de janosta de troll.

       —     Uau. Belo respeito. Você sabe o que a palavra respeito significa? Não sou professor, mas tenho certeza de que com parar meu manual com uma pilha fumegante de janosta de troll não constitui respeito.

       —Eu não disse que era fumegante — respondeu Holly, depois decidiu que o tempo era curto e que podia pedir des culpas mais tarde. — Escute, Potrus. Eu não tenho conexão com a Delegacia Plaza. Existem robôs assassinos em forma de bolhas atrás de nós, e as únicas pessoas que poderiam conseguir uma solução estão dormindo a sono solto ou, no seu caso, sonhando acordados. Por isso preciso que você me dê cobertura enquanto corro até o caixote do Artemis. Acha que pode fazer isso?

       Holly entregou sua arma de reserva ao centauro. Potrus segurou-a cautelosamente, como se ela fosse radiativa, o que, até certo ponto, era.

       —Certo. Sei como essa coisa funciona, em teoria.

       —Bom — disse Holly, e se arrastou de barriga até o campo de gelo antes que pudesse mudar de idéia.

       Holly sentia o tronco entorpecido e rígido enquanto deslizava pela geleira. O gelo se estendia à frente, esculpido pelo vento em elegantes curvas e redemoinhos, um vento que vinha por trás, tornando o progresso relativamente fácil considerando que até pouco tempo ela estivera sofrendo com vários ossos quebrados.

       Salva de novo pela magia.

       Mas agora não lhe restava nenhuma fagulha.

       A carcaça da raposa estava fumegando num leito de neve, derretendo uma sepultura para si própria.

       Holly afastou o olhar dos olhos patéticos daquele mamífero, ainda virado de costas com a cabeça enegrecida, e em vez disso olhou para o caixote de Artemis, que permaneceu sem atrair a atenção dos robôs, mas do outro lado de sua linha de busca.

       Preciso atravessar essa linha sem ser notada. O sensor prin cipal deles é de calor. Vou lhes dar um pouco de calor em que pensar.

       Ligou o ar-condicionado de sua roupa, do qual restavam uns cinco minutos, segundo as leituras da viseira, depois escolheu o pacote de sinalizador em sua pistola Neutrino. Além disso, acidentalmente, também ativou o tocador de música no capa cete com uma série de piscadas trêmulas. Por sorte o volume estava no mínimo e ela conseguiu desligar o épico metaleiro de Grazen McTortur, "Crepúsculo dos Trolls" antes que os amorfobôs detectassem a vibração.

       A música de Grazen McTortur nunca matou ninguém antes. Ele provavelmente ficaria empolgado.

       Holly girou deitando-se de costas e olhou para um céu de piche e granito, com as barrigas das nuvens lambidas por chamas.

       Calor.

       Firmou a mão e tirou a parte destacável da luva que cobria o dedo do gatilho. Apontou a arma para o céu e lançou um jorro de sinalizadores em arco no ar.

       Sinalizadores. Se ao menos alguém pudesse vê-los e vir ajudar!

       Os pios relaxados dos amorfobôs se amplificaram até um zumbido e ela percebeu que era hora de se mexer.

       Holly estava de pé e correndo antes que seu bom senso tivesse tempo de impedi-la. Disparou a toda a velocidade na direção do caixote de Artemis, pegando o caminho mais direto possível, com a arma estendida na direção de sua linha de visão.

       Não me importa o que Potrus diz. Se um daqueles monstros de olhos vermelhos chegar perto de mim, vou descobrir o que uma granada de plasma faz com as entranhas dele.

       Os robôs, sem exceção, tinham apontado os sensores para os sinalizadores que desciam, chiando como um maçarico de oxiacetileno cortando as nuvens. Dos corpos maleáveis dos amorfobôs brotaram periscópios de gel e eles ficaram acom panhando o progresso dos sinalizadores como suricates mal definidos. Podiam ter notado uma fonte de calor inconsistente atravessando a geleira, mas estavam programados para dar prioridades.

       Não são tão espertos, afinal de contas.

       Holly correu o mais rápido que seus ossos quebradiços permitiam.

       O terreno era plano mas traiçoeiro. A neve de setembro, com pouco peso, havia coberto as fendas e Holly quase perdeu o pé numa trilha de trator. Seu tornozelo doeu mas não se partiu. Sorte.

       A pequena elfo sortuda Entrou dentro da caneca E o garoto humano bobão Achou que ela era uma boneca.

       Uma cantiga de ninar usada para ensinar as crianças a ficar imóveis se vissem um humano.

       Se uma árvore você pensar que quer ser, é isso que o homem da lama vai ver.

       Quero ser uma árvore, pensou Holly, sem muita convicção. Uma árvore pequena.

       Até agora, tudo bem: os robôs estavam ligados nos sinalizado res e não demonstravam nenhum interesse em sua assinatura de calor. Ela rodeou os destroços do lançador, tentando não escutar os gemidos do chassis nem notar o painel frontal de um maca cão de voo fundido no para-brisa. Mais adiante estava o grande experimento de Artemis. Um gigantesco canhão refrigerador.

       Fantástico. Mais gelo.

       Holly se ajoelhou na base do que Artemis havia chamado de Cubo de Gelo e localizou rapidamente o painel de controle, que por sorte tinha um onissensor, de modo que era simples sincronizá-lo com seu capacete. Agora o canhão refrigerador dispararia quando ela quisesse e no alvo que ela escolhesse. Ajustou um temporizador e partiu correndo segundos depois, direto pelo mesmo caminho de onde viera.

       Percebeu que os sinalizadores estavam durando bastante e que realmente deveria parabenizar Potrus pelos novos modelos. Nesse ponto, é claro, eles começaram a se apagar.

       Sem mais luzes bonitas no céu, os amorfobôs retornaram à busca metódica no local, em busca de sinais de vida. Um foi despachado para verificar a mancha de calor errática que atravessava sua grade. Ele rolou pela superfície, examinando o terreno, lançando fiapos de gel para verificar entulhos e até chicoteando uma língua como de um sapo-boi para agarrar uma gaivota de cabeça preta que voava baixo. Se houvesse uma trilha sonora para seus movimentos, seria tum-ti-tum-ti-tum. Um trabalho comum, sem preocupações. Então seu vetor se cruzou com o de Holly e os dois praticamente trombaram. Os olhos do sensor do robô piscaram e relâmpagos percorreram o interior de seu corpo globuloso.

       Só preciso de alguns segundos, pensou Holly, e acertou o robô com um facho estreito bem nas entranhas.

       O facho cortou o meio do corpo-bolha, mas foi desviado antes de chegar ao equipamento do centro nervoso. O robô ricocheteou para trás como uma bola chutada, zumbindo para atualizar os amigos.

       Holly não diminuiu a velocidade para ver qual seria a rea ção; não era necessário — sua audição de elfo lhe dava todas informações necessárias: eles vinham atrás dela. Todos vinham.

       Suas formas semissólidas golpeavam o gelo enquanto eles se moviam como rápidos solos de bongô, soltando aqueles pios pavorosos.

       Um robô que estava em seu caminho se desviou para o lado, com um buraco temporário de Neutrino aberto temporariamente no quadrante superior. Parecia que Potrus estava levando a sério o papel de fornecer cobertura, mesmo sabendo que sua arma não poderia matar aquelas coisas.

       Obrigada, senhor consultor.

       Agora os robôs estavam convergindo para ela, saltitando de todos os lados, arrotando e guinchando.

       Parecem personagens de desenho animado infantil.

       O que não impediu Holly de atirar contra a maioria daque las criaturas bonitinhas que pôde. Escutou vagamente Potrus gritando para ela, pedindo a gentileza de só atirar quando fosse necessário ou, para citá-lo integralmente:

       Holly. Em nome de todos os deuses, pare de atirar energia em seres totalmente feitos de energia. Até que ponto você consegue ser idiota?

       Os robôs estremeciam e se fundiam, ficando maiores e mais agressivos.

       — D'Arvit— bufou Holly, agora com a respiração difícil. O capacete informou, alegremente, que seu ritmo cardíaco era de mais de 240 batimentos por minuto, o que seria bom para um diabrete, mas não para um elfo. Normalmente uma corrida a toda a velocidade não seria incômodo para Holly, nem para qualquer criatura que tivesse passado no exame físico da LEP, mas aquela era uma corrida desesperada depois de uma enorme cura. Ela deveria estar num hospital tomando gosma de rejuvenescimento pelo canudinho.

       _____ Dois minutos para um ataque cardiaco — disse o capace te, impávido. — Cessar todas as atividades fisicas seria boa idéia.

       Holly gastou um nanossegundo desprezando a voz em seu capacete: a voz da cabo Fronde, o rosto glamouroso da LEP, toda loura e usando macacões justos, que recentemente havia rastreado sua linhagem sanguínea até Fronde, o Rei Elfo, e agora insistia em ser chamada de princesa.

       Potrus emergiu da cratera e agarrou o cotovelo da amiga.

       —               Venha, Holly. Temos segundos de vida antes que aquelas criaturas que você atraiu direto para nosso esconderijo nos matem como roedores.

       Holly correu o máximo que pôde, com os ossos estalando.

       —       Tenho um plano.

       Cairam por cima da geleira, de volta à depressão onde Artemis Fowl estava inconsciente. Os amorfobôs fluiram atrás deles como bolas de gude rolando pelo interior de uma tigela.

       Potrus mergulhou no buraco. Não foi um salto elegante — os centauros não são bons mergulhadores, motivo pelo qual não competem em eventos de natação.

       — Qualquer que tenha sido sua idéia, não está funcionan do — gritou ele.

       Holly mergulhou na depressão, cobrindo Artemis do melhor modo que podia.

       — Encoste o rosto no gelo — ordenou. — E prenda o fôlego.

       Potrus ignorou-a, com a atenção atraida para o Cubo de Gelo de Artemis, que estava girando na base.

       — Parece que o canhão de Artemis está para atirar — co mentou, com o interesse cientifico estimulado, apesar da morte horrível que se aproximava.

       Holly agarrou a crina do centauro, puxando-o com força para o chão.

       — Abaixe a cabeça, prenda o fôlego. Isso é difícil demais?

       — Ah — respondeu Potrus. — Entendi.

       Devia ter havido um aumento de calor em algum lugar, porque os robôs se imobilizaram por um momento, trocando pios curiosos. O barulho foi rapidamente abafado por uma pancada grave seguida por um assobio descendente.

       —  Uuuh — entoaram em coro os amorfobôs, fazendo brotar periscópios de gel.

       Potrus fechou um dos olhos e virou a orelha.

       — Morteiro — proclamou, e então, à medida que o assobio ficava mais alto, decidiu que talvez fosse boa idéia respirar e cobrir o máximo de orifícios possível.

       Isso vai doer de verdade, pensou, e por algum motivo deu um risinho, como um diabrete de quatro anos.

       Toda a depressão foi submersa por uma panqueca densa de nanopastilhas, que penetraram em cada rachadura, cobrindo os ocupantes do buraco e obliterando completamente qualquer assinatura de calor.

       Os amorfobôs saltitaram para trás, para longe daquela substância misteriosa, procurando ao redor os seres que haviam perseguido, depois encolheram seus ombros bolhosos e foram rolando atrás de sua nave mãe, que havia aberto caminho com força e calor até os vulcões subterrâneos abaixo.

       Sob aquele atoleiro grudento, duas criaturas do subterrâneo e um humano estavam imóveis, soprando bolhas com a respiração.

       — Deu certo — ofegou Holly por fim.

       —             Fecha essa cara — reagiu Potrus irritado. Holly soltou a cabeça dos fiapos de gosma.

       — O que você disse?

       — Não leve isso para o lado pessoal — disse Potrus. — Só senti vontade de ser grosseiro com alguém. Você faz alguma idéia de como vai ser tirar essa coisa da minha crina? Cavalina vai me raspar, sem dúvida.

       — Vai ralar você?

       — Raspar. O que foi, está surda?

       —             Não. Meus ouvidos estão entupidos com esse negócio. Holly saiu com Artemis da depressão, usando o sensor da

       luva para verificar os sinais vitais do humano. Ainda está vivo.

       Inclinou a cabeça dele para trás, para garantir que as vias aéreas estivessem livres.

       Volte para nós, Artemis. Precisamos de você. Os amorfobôs tinham ido embora, e os únicos sinais de que haviam estado na geleira de Vatnajõrkull eram as trilhas

       no gelo que marcavam sua passagem. O ar estava abençoa damente livre de pios, se bem que um pio ou outro poderia distrai-los dos estalos do veiculo de transporte de tropas que ainda queimava.

       Holly se separou de Artemis com um ruído que parecia um BAND-AID muito grande sendo puxado lentamente de um machucado aberto.

       Que desastre, pensou, com o peso do capacete coberto pela substância branca fazendo sua cabeça tombar. Que catástrofe completa!

       Holly olhou ao redor, tentando avaliar a situação. A coman dante Vinyáya tinha morrido, junto com os outros militares. Uma sonda marciana da LEP fora sequestrada por forças desconhecidas e parecia estar penetrando na crosta terrestre. A sonda bloqueava a conexão deles com Porto e era somente uma questão de tempo até que os humanos viessem investigar todos os sinalizadores e as explosões. E não lhe restava magia para se esconder com um escudo.

       — Anda, Artemis — disse, com o desespero se arrastando na voz. — Estamos mais encrencados do que nunca. Anda, você adora esse tipo de problema impossível. Desculpe ter atirado em você.

       Holly tirou uma luva e levantou os dedos no alto, inspecionando-os para ver se restava alguma fagulha.

       Nada. Nenhuma magia. Talvez seja bom. A mente era um instrumento delicado, e os contatos de Artemis com as artes das criaturas do subterrâneo provavelmente haviam provocado o

       Complexo de Atlântida. Se Artemis quisesse ficar bom, teria de jazer isso do modo antiquado, com comprimidos e eletrochoque.

       Eu já lhe dei o primeiro choque, pensou Holly, engolindo um risinho culpado.

       Artemis se remexeu no gelo, tentando piscar com o rosto coberto de nanopastilhas grudentas.

       —Anhhh — gemeu ele. — Eiii ga briii.

       —   Espera — disse Holly, tirando bocados da gosma do nariz e da boca do garoto. — Deixe-me ajudar.

       A invenção de Artemis escorreu pelos cantos de sua boca. Havia algo diferente nos olhos dele. Estavam da mesma cor de sempre, mas de algum modo pareciam mais suaves.

       Você está sonhando.

       —   Artemis? — disse ela, meio esperando uma típica respos ta cortante, do tipo: Claro que sou Artemis. Quem você estava esperando? Mas em vez disso ele simplesmente falou:

       — Olá.

       O que era bom, e Holly ficou bastante feliz, até que ele continuou:

       — E quem seria você?

       Aaahh, D'Arvit.

       Holly tirou o capacete.

       — Sou eu, Holly.

       Artemis sorriu deliciado.

       —   Claro que é. Artemis pensa em você o tempo todo. É embaraçoso eu não a ter reconhecido. E a primeira vez que nos encontramos.

       — Ah... Artemis pensa em mim. Mas você não?

       — Ah, sim, penso constantemente, mas devo dizer que você é mais fascinante ainda em carne e osso.

       Holly sentiu uma premonição se esgueirando como a sombra de uma tempestade de verão.

       — Então nós não nos conhecemos?

       — Não nos conhecemos per se — respondeu o jovem hu mano. — Claro que tenho consciência de você. Vi você de longe, já que estava submerso pela personalidade de Artemis. Obrigado por me libertar, por sinal. Eu vinha fazendo incur sões na consciência do anfitrião há algum tempo, desde que Artemis desenvolveu sua pequena obsessão por números, mas aquele choque da sua arma foi o que eu precisava para ter o estimulo necessário. Foi a sua arma, não foi?

       —  Foi, sim — respondeu Holly, distraída. — E você é bem-vindo. Acho. — Uma idéia súbita atravessou sua confu são. — Quantos dedos estou mostrando?

       O garoto fez uma verificação rápida.

       —  Quatro.

       —  E isso não incomoda você?

       — Não. Para mim um número é só um número. Quatro não é mais anunciador da morte do que qualquer outro número. Mas frações são meio arrepiantes.

       O garoto riu de sua própria piada. Um sorriso de bondade tão simples e santa que faria Artemis vomitar.

       Holly sentiu-se atraída pela psicose e teve de fazer uma pergunta:

       —Então, se você não é Artemis Fowl, quem você é?

       O garoto estendeu a mão que pingava.

       — Meu nome é Orion. E um enorme prazer finalmente conhecê-la. Claro, sou seu servo.

       Holly apertou a mão estendida, pensando que as boas maneiras eram ótimas, mas no momento eles precisavam de alguém astuto e implacável, e esse garoto não parecia lá muito astuto.

       —     Fantástico, hem... Orion. Verdade. Nós estamos com uma dificuldade aqui, e seria bom ter toda a ajuda possível.

       —     Excelente. Venho me inteirando da situação no banco de trás, por assim dizer, e sugiro que nos retiremos para uma distância segura e construamos algum tipo de bivaque.

       Holly gemeu. Que hora fantástica para Artemis desertar da própria cabeça!

       Potrus saiu do atoleiro de nanopastilhas, usando os dedos para afastar cortinas de gosma que obscureciam sua visão.

       —     Vejo que Artemis acordou. Que bom. Seria bom ter um dos seus característicos planos aparentemente ridículos porém engenhosos.

       —     Bivaque — disse o garoto que morava na cabeça de Ar temis. — Sugiro um bivaque, e talvez possamos juntar gravetos para uma fogueira e algumas folhas para fazer uma almofada para a bela dama.

       — Gravetos? Artemis Fowl acabou de usar a palavra grave tos? E quem é a bela dama?

       O vento aumentou de repente, levantando neve solta na superfície e lançando-a sobre o gelo. Holly sentiu flocos pousa rem no pescoço exposto, provocando um arrepio pela coluna.

       As coisas estão ruins, pensou. E vão piorar. Cadê você, Butler? Por que não está aqui?

       BUTLER tinha uma desculpa para não estar na Islândia, uma desculpa que serviria em qualquer tribunal e possivelmente até num bilhete para o professor. De fato tinha um monte de desculpas.

       Uma: seu patrão e amigo o havia mandado para longe numa missão de resgate que acabou se mostrando uma armadilha. Duas: sua irmã estivera numa encrenca falsa, mas agora esta va numa bem verdadeira. E três: ele estava sendo perseguido num teatro do México por alguns milhares de fãs de luta livre, que nesse momento pareciam zumbis, mesmo sem estarem apodrecendo.

       Butler havia lido na sessão de entretenimento da revista de companhia aérea que os vampiros tinham estado na moda, mas que esse ano era dos zumbis.

       E certamente estão aqui-, pensou. Um número muito grande deles.

       Falando estritamente, zumbis não era uma descrição muito boa para aquela massa de humanos insensatos andando de um lado para o outro no teatro. Claro, eles estavam mesmerizados, o que não é a mesma coisa, de jeito nenhum. A definição geralmente aceita de zumbi é: um cadáver reanimado e com fome de cérebros humanos. Os fãs de luta mesmerizados não estavam mortos e não sentiam desejo pelo cérebro de ninguém, muito menos por uma mordida dele. Estavam convergindo para o corredor, vindos de todos os lados, cortando qualquer rota de fuga possível, e Butler foi obrigado a recuar por cima do ringue desmoronado e subir na plataforma de luta. Esse recuo não estaria entre suas cem primeiras opções preferidas, mas nesse estágio qualquer ação que garantisse mais alguns batimentos cardíacos era preferível a ficar imóvel e aceitar o destino.

       Bateu na coxa da irmã, o que era fácil, já que ela continuava pendurada em seu ombro.

       —  Ei — reclamou ela. — Por que você fez isso?

       —  Só estou verificando seu estado mental.

       —  Sou eu, certo? Aconteceu alguma coisa com o meu cérebro. Estou me lembrando de Holly e de todas as outras criaturas.

       Lembrança total, supôs Butler. O contato dela com o mesirierizador havia molhado a semente de memória no cérebro da irmã, e ela havia brotado, trazendo tudo de volta. Era possível, supôs, que a força dessa reação em cadeia mental tivesse suplantado a tentativa de mesmerização.

       —Você consegue lutar?

       Juliet girou as pernas para o alto e depois saltou numa pose de luta.

       — Consigo lutar melhor do que você, velhinho.

       Butler se encolheu. Às vezes ter uma irmã duas décadas mais nova significava aguentar um bocado de comentários maldosos sobre a idade.

       — Meu lado de dentro não é tão velho quanto meu lado de fora, se você quer saber. Aquele Povo do subterrâneo, de que você está se lembrando, me deu uma recauchutada. Eles me tiraram quinze anos, e eu tenho o peito feito de Kevlar. Por isso posso cuidar de mim mesmo, e de você, se necessário.

       Enquanto discutiam, os irmãos giraram automaticamente para ficar costas com costas, e cada um cobrindo o outro. Butler falava para deixar claro à irmã que tinha esperança de conseguirem escapar disso. Juliet reagia mostrando ao irmão mais velho que não tinha medo, desde que ficassem lado a lado. Nenhuma daquelas mensagens não ditas era exatamente verdadeira, mas elas davam algum conforto.

       Os fãs de luta mesmerizados estavam tendo problemas para subir na plataforma, e seus corpos apinhados entupindo a beira do ringue como gravetos numa represa. Quando um conseguia subir, Butler jogava-o de volta, de costas, com o máximo de gentileza possível. Juliet não foi tão gentil em seus primeiros lançamentos e Butler ouviu alguma coisa definiti vamente estalar.

       —  Pega leve, irmã. Essas pessoas são inocentes. O cérebro delas foi prejudicado.

       —  Epa, desculpe — respondeu Juliet, sem parecer nem um pouco arrependida, e mandou a parte de baixo da palma da mão contra o plexo solar de alguém, alguém que provavel mente era uma dona de casa dedicada, quando não estava sob o mesmer.

       Butler suspirou.

       — Assim — disse com paciência. — Olhe. Você os pega e simplesmente faz com que deslizem por cima dos amigos. Impacto mínimo. — Ele realizou o movimento algumas vezes, só para dar a idéia a Juliet.

       Juliet atirou longe um adolescente babão.

       — Melhor assim?

       —  Muito. — Butler balançou o polegar para a tela no alto. — Aquela criatura mesmerizou todo mundo que olhou para os seus olhos e ouviu sua voz. Não é culpa deles estarem nos atacando.

       Juliet quase olhou para cima, mas parou a tempo. Na tela, os olhos vermelhos ainda ardiam, e no sistema de som aquela voz suave e hipnótica fluía através da multidão como mel quente, dizendo que tudo ficaria bem se eles simplesmente conseguissem matar a princesa e o urso. Se pudessem realizar aquele ato simples, seus sonhos se realizariam. A voz afetava os Butler, deixava seu sentimento de objetividade meio turvo, mas sem o contato ocular a voz não podia controlar seus atos.

       Mais pessoas da multidão estavam chegando ao palco, e era apenas questão de segundos até que a plataforma desmoronasse.

       —   Temos de apagar aquele cara — gritou Butler por cima do burburinho de gemidos mesmerizados. — Você consegue alcançar a tela?

       Juliet franziu os olhos, avaliando a distância.

       —   Posso chegar ao suporte, se você me der um pouco de impulso.

       Butler deu um tapinha num de seus ombros largos.

       — Suba a bordo, irmãzinha.

       —   Só um segundo — respondeu Juliet, despachando um caubói barbudo com um chute giratório. Em seguida subiu em cima de Butler com a agilidade de um macaco e se ergueu sobre seus ombros. — Certo, me levante.

       Butler soltou um grunhido que qualquer membro da família interpretaria como espere um momento, e com Juliet equilibra da em cima deu um soco na traqueia de um dos lutadores da equipe e deu uma rasteira em outro.

       Aqueles dois eram gêmeos, percebeu. E estavam vestidos como diabos da Tasmânia. É a luta mais estranha em que já estive, e olhe que já me embolei com trolls.

       — Vamos lá — disse a Juliet, desviando-se de um homem fantasiado de cachorro-quente. Butler pôs os dedos por baixo do pé dela. — Você consegue me levantar? — perguntou, man tendo o equilíbrio com a facilidade de uma ginasta olímpica, que Juliet poderia ter sido se conseguisse acordar a tempo das sessões de treinamento matinal.

       — Claro que consigo — reagiu Butler, que poderia ter sido um levantador de peso olímpico se não estivesse lutando contra goblins num laboratório subterrâneo quando chegou a época das últimas seletivas.

       Ele respirou pelo nariz, firmou-se e, com um jorro de força explosiva e um rosnado que não ficaria deslocado num filme do Tarzan, lançou a irmã mais nova direto para cima, na direção do suporte de metal de seis metros de altura que sustentava a tela e dois alto-falantes cônicos.

       Não havia tempo para verificar se Juliet havia conseguido, já que os zumbis haviam formado uma rampa feita de corpos, e os fãs de luta livre de Cancún jorravam para o palco, todos decididos a matar Butler devagar e dolorosamente.

       Esta seria uma hora prudente para acionar a mochila a jato que ele costumava usar por baixo do paletó, mas na ausência de uma mochila a jato, e do paletó, Butler achou que poderia ser boa idéia aumentar a agressividade de sua defesa, o bastante para ganhar alguns segundos para os dois.

       Avançou para enfrentar a turba, usando uma forma adap tada de t'ai chi para fazer a primeira fila tombar em cima do resto, construindo uma montanha de corpos que os fãs mes merizados teriam de escalar. Isso deu certo por cerca de meio minuto, até que metade do palco desmoronou, permitindo que os corpos inconscientes rolassem formando uma rampa eficaz para que os fãs subissem. Os fãs machucados não pareciam sentir nenhuma dor e se levantaram no mesmo instante, frequentemente se apoiando nos tornozelos torcidos e inchados. Os zumbis jorravam no palco com apenas um desejo na mente sequestrada.

       Matar o Urso Louco.

       Não adianta, pensou Butler, pela primeira vez na vida. Não adianta absolutamente nada.

       Não caiu com facilidade, mas acabou tombando sob o puro peso dos corpos que fluiam sobre ele. Seu rosto foi amassado por um traseiro gordo e ele sentiu dentes se fecharem no tornozelo.

       Vou ser morto por esmagamento, percebeu. E não por espan camento.

       Essa percepção não o fez sentir-se melhor. O que o fez sentir- se melhor foi o fato de que Juliet devia estar em segurança no suporte da tela.

       Butler caiu de costas, como Gulliver arrastado pelos lilliputianos. Sentiu cheiro de pipoca e cerveja, desodorante e suor. Seu peito estava comprimido, a respiração era difícil. Alguém lutava com suas botas por algum motivo, e de repente ele não conseguia mais se mexer. Era prisioneiro sob o simples peso dos corpos.

       Artemis está sozinho. Juliet vai saber que deve assumir meu lugar como guarda-costas.

       A falta de oxigênio fez o mundo ficar preto e o máximo que Butler pôde fazer foi enfiar o braço pela massa de corpos que o esmagavam e balançar os dedos num adeus à irmã.

       Alguém mordeu seu polegar.

       Então ele desapareceu completamente e a criatura na tela gargalhou.

       Juliet enfiou dois dedos da mão esquerda na borda inferior de uma trave do andaime e apertou para baixo com tanta força que quase pôde sentir as impressões digitais. Para noventa e nove por cento da população mundial, dois dedos simplesmente não seriam suficientes para suportar o peso do próprio corpo. A maioria dos meros mortais precisaria segurar firme com as duas mãos para se sustentar por não mais do que um minuto, e há uma grande porcentagem de pessoas que não consegui ria se erguer sem usar um sistema de polias e uma parelha de cavalos treinados. Mas Juliet era uma Butler e fora treinada na academia de guarda-costas de Madame Ko, onde houvera um semestre inteiro dedicado a vetores de peso corporal. Numa situação difícil, Juliet poderia se manter fora do chão usando apenas um dedo do pé, desde que nenhum passante maldoso decidisse fazer cócegas em seu ponto fraco sob as costelas.

       Uma coisa é se manter no alto, mas outra muito diferente é puxar-se para cima, mas felizmente Madame Ko havia feito alguns seminários sobre esse tema também. Isso não quer di zer que fosse fácil, e Juliet imaginou seus músculos gritando enquanto girava a outra mão para se segurar melhor, depois se puxava para cima da trave. Num outro dia teria parado para deixar que o coração diminuísse as batidas um pouco, mas com o canto do olho viu o irmão a ponto de ser engolfado por fãs de luta livre e decidiu que não era o dia certo para uma recuperação tranquila.

       Saltou de pé e correu pela extensão da trave com a confiança de uma ginasta. Isto é, uma boa ginasta, não daquelas que escorregam e batem dolorosamente na trave, exatamente o que aconteceu com uma técnica de iluminação mesmerizada que tentou interromper Juliet antes de chegar à tela.

       Juliet se encolheu.

       — Uuuu. Essa foi golpe baixo, Arlene.

       Arlene não comentou, a não ser que ficar roxa e cair para o vazio balançando os braços pudesse ser considerado um co mentário. Juliet sabia que não devia ter rido quando a queda da técnica foi interrompida comicamente por um amontoado de homens que cambaleava na direção de seu irmão, mas não conseguiu se segurar.

       Seu sorriso sumiu ao notar a massa de corpos se apinhando ao longo do corpo de Butler, soterrando-o. Outro técnico se aproximou dela, este um pouco mais esperto do que a predecessora; ele montou na trave, com os tornozelos cruzados embaixo. Enquanto se arrastava lentamente, batia com uma enorme chave-inglesa na trave, provocando fortes bongs e jorros de fagulhas.

       Juliet avaliou o tempo das pancadas, em seguida plantou um pé na cabeça do técnico e passou por cima dele como se ele fosse uma pedra no meio de um riacho. Não se incomo dou em derrubar o sujeito do poleiro. Quando ele se virasse, seria tarde demais para impedi-la, mas o sujeito teria um belo hematoma na testa para se preocupar, quando seus sentidos retornassem.

       A tela ficava à frente, sustentada por tubos de metal, e os olhos vermelhos a encararam flutuando no fundo preto, pare cendo emanar puro ódio.

       Ou talvez esse cara tenha ficado na gandaia até tarde.

       — Pare onde está, Juliet Butler! — disse a voz, e Juliet de re pente, achou que o timbre era de Christian Varley Penrose, seu instrutor na Academia de Madame Ko. A única pessoa, além de seu irmão, que ela havia considerado fisicamente à altura.

       "Alguns alunos me deixam orgulhoso", dizia Christian em sua voz de locutor. "Você me deixa desesperado. Que movi mento foi esse?"

       E Juliet invariavelmente respondia:

       "Uma coisa que inventei, mestre."

       "Inventou? Inventou? Isso não basta."

       Juliet fazia beicinho e pensava: Foi bom o suficiente para o Bruce Lee.

       E agora Christian Varley Penrose parecia ter uma linha direta com seu cérebro.

       —  Pare onde está! — disse a voz. — E, depois de parar, sinta-se livre para perder o equilíbrio e despencar lá embaixo.

       Juliet sentiu que a voz estava tomando conta de sua de terminação e torcendo-a como se fosse uma toalha molhada.

       Não olhe. Não ouça.

       Mas tinha olhado e ouvido, ainda que apenas por um segun do, e foi o bastante para que a magia traiçoeira cravasse algumas raízes no seu cérebro. Suas pernas se congelaram como se estivessem aparafusadas à tela, e a paralisia se espalhou tronco acima.

       — D'Arvit — disse Juliet, mesmo não sabendo exatamente por quê, e com a última gota de autocontrole girou os braços loucamente, lançando todo o corpo contra a estrutura tubular que sustentava a tela e os alto-falantes.

       A tela cedeu e, por um momento, pequeno pedaço da mente de Juliet ainda sob seu controle acreditou que o vidro não iria se quebrar. Então seu cotovelo, que Butler lhe havia dito na infância que era pontudo o bastante para abrir uma lata de ração do exército, atravessou o material, fazendo uma rachadura irregular se espalhar por toda a extensão.

       Os olhos vermelhos da criatura se reviraram e a última coisa que Juliet ouviu antes que seus braços estendidos agarrassem os cabos de sinal foi uma fungadela irritada. Ai ela estava caindo por um buraco através da tela subitamente vazia e despencando na direção da massa de corpos que se agitava em espasmos abaixo.

       Juliet usou o último segundo antes do impacto para se enrolar numa bola.

       Seu último pensamento antes de acertar a multidão foi: Espero que os zumbis sejam macios.

       Não eram.

       Assim que a criatura sumiu da tela, os fanáticos por luta escra vizados recuperaram gradualmente os sentidos.

       Geri Niebalm, uma esteticista aposentada de Seattle, descobriu que, de algum modo, tinha ido do fundo da platéia até o palco sem ajuda de seu andador. E mais, tinha uma vaga memória de ter saltado por cima de vários jovens perseguindo aquela lutadora bonita que tinha uma pedra no rabo de cavalo. Dois meses mais tarde, Geri faria terapia de regressão de memória no clube de sua amiga Dora Del Mar para trazer aquela lembrança à superfície e poder curti-la à vontade.

       Stu Toppin, o "Queijo", jogador de boliche semiprofissional de Las Vegas, acordou e descobriu que sua boca estava estufada com uma fralda fedorenta e as palavras mate o urso mate escritas em batom na frente da camisa. Isso deixou Stu bem confuso, já que sua última lembrança era do cachorro-quente suculento que estava para morder. Agora, com o gosto da fralda ainda na língua, decidiu que era melhor esquecer o cachorro-quente por um tempo.

       Ainda que Stu não tivesse como saber, a fralda em questão pertencia ao pequeno André Price, um bebê de Portland que de repente desenvolveu uma velocidade e uma graça desco nhecida no corpo de oito meses. A maioria das vitimas do mesmer se move de modo lento, mas André correu por cima das cabeças da turba e executou um triplo mortal perfeito a partir da mesa do comentarista, conseguindo cravar o dente único no polegar de Butler antes que o guarda-costas fosse completamente soterrado. André Price começou a falar alguns meses depois — infelizmente numa língua que seus pais não tinham como saber que, na verdade, era gnomês. Para alivio deles, o menino também aprendeu o inglês rapidamente, mas nunca esqueceu sua estranha primeira língua, e descobriu que vezes conseguia tacar fogo em gravetos se pensasse nisso com bastante força.

       Um enorme gemido estridente quase levantou o teto do teatro à medida que milhares de pessoas percebiam que não estavam onde deveriam estar. Apesar de, milagrosamente, não ter havido fatalidades, quando o último corte foi limpo com antisséptico houve uma contagem final de 348 ossos quebrados, mais de onze mil lacerações e 89 casos de histeria que precisaram ser tratados com sedativos, que, por sorte dos pacientes, eram muito mais baratos no México do que seriam nos Estados Unidos.

       E mesmo que esta fosse a era dos vídeos amadores, onde a maioria das pessoas que compareceram ao evento possuía pelo menos uma câmera, não houve sequer um único quadro de imagem para provar que a mesmerização em massa havia acontecido. De fato, quando a policia examinou os arquivos nas câmeras e celulares confiscados, descobriu que absoluta mente todos os instrumentos tinham sido reajustados para as condições em que sairam das fábricas. Não havia fotos. Com o tempo, o Evento de Cancún, como passou a ser conhecido, seria mencionado no mesmo âmbito da Área 51 ou da Migração dos Abomináveis Homens das Neves.

       Butler não sofreu de histeria, possivelmente não porque tinha ar suficiente nos pulmões para gritar, mas provavelmente porque já estivera em lugares mais apertados (uma vez havia compartilhado uma chaminé com um tigre num templo hindu durante várias horas), mas tinha sofrido mais de uma dúzia de lacerações, se bem que não quis esperar por tempo suficiente para que elas fossem acrescentadas à contagem.

       Quanto a Juliet, estava relativamente incólume, apesar do tombo. No momento em que recuperou o fôlego, começou a empurrar corpos para longe do lugar onde tinha visto o irmão submergir.

       —  Butler! — gritou. — Irmão! Você está ai embaixo?

       O topo da cabeça de seu irmão apareceu, liso como um pirulito. Juliet soube imediatamente que o irmão estava vivo por causa da veia pulsando na têmpora.

       Havia um bebê gorducho seminu enrolado no rosto de Butler e mastigando o polegar dele. Juliet desalojou o meni no gentilmente, notando que ele parecia muito suado para um bebê.

       Butler respirou fundo.

       — Obrigado, irmã. Aquela criança não somente mordeu meu polegar, mas tentou enfiar o punho numa das minhas narinas.

       O bebê gorgolejou feliz, enxugou os dedos no rabo de ca valo de Juliet e depois engatinhou por cima da pilha de corpos humanos em direção a uma senhora que chorava, esperando-o de braços abertos.

       —  Sei que a gente deveria gostar de bebês — disse Juliet, bufando enquanto agarrava pelos suspensórios um sujeito com pinta de banqueiro e o arrancava de seu poleiro em cima dos ombros de Butler — mas aquele carinha fedia e gostava de morder. — Ela segurou com firmeza uma senhora de idade cujo cabelo louro tinha tanto laquê a ponto de brilhar como um girassol. — Anda, moça. Saia de cima do meu irmão.

       — Ah — disse a mulher, com as pálpebras tremelicando enquanto tentava entender tudo. — Eu deveria pegar o urso. Ou algo assim. E tinha a pipoca, uma pipoca grande que eu acabei de comprar. Quem vai me compensar por isso?

       Juliet rolou a mulher por cima das barrigas de quatro caubóis vestidos de modo idêntico, usando camisetas onde estava escrito DESPEDIDA DE SOLTEIRO DO FLOYD sob os coletes bordados com strass.

       —                Isso é ridiculo — grunhiu ela. — Sou uma jovem glamorosa. Não posso ficar lidando com todo esse fedor corporal e esse suor escorregadio.

       De fato havia muito fedor e suor, boa parte relacionados a Floyd e sua despedida de solteiro, cujo cheiro fazia pensar que vinha acontecendo durante umas duas semanas.

       Isso foi confirmado quando o caubói que usava um crachá do FLOYD acordou de seu estupor com as palavras:

       —                Eca. Tô fedendo mais do que um gambá morto usando um terno feito de casca de banana.

       De casca de banana?, pensou Juliet.

       Butler girou a cabeça, abrindo espaço para respirar.

       —                Armaram para nós — disse ele. — Você fez algum inimigo por aqui?

       Juliet sentiu lágrimas súbitas escorrerem pelo lábio inferior. Tinha ficado tão preocupada! Tão preocupada! Os irmãos mais velhos não podem permanecer indestrutíveis indefinidamente.

       — Seu grandão idiota — disse ela, muito ao estilo Floyd. Para sua informação, eu estou bem. Salvei você e todo mundo.

       Butler usou os cotovelos gentilmente para sair do meio de dois luchadores usando malhas de lycra espalhafatosas e máscaras de couro.

       — Mais tarde terei tempo de lhe dar um tapinha nas costas, irmã. — Ele saiu do emaranhado de membros e se levantou no centro do palco. — Está vendo tudo isso?

       Juliet subiu no corpo do irmão e ficou de pé, leve, nos om bros dele, e então, para se mostrar, subiu com boa estabilidade na cabeça dele. Só com um pé; o outro ficou enfiado embaixo do próprio joelho.

       Agora que teve um segundo para apreciar a enormidade do que havia acontecido, ficou sem fôlego. Um mar de confusão se espalhava ao redor, gemendo e se retorcendo. Sangue escorria, ossos estalavam e lágrimas jorravam. Era uma área de desastre. Pessoas pegavam os celulares em busca de conforto e os sprinklers jogavam uma fina névoa que molhava o rosto de Juliet.

       — Tudo isso para nos matar — ofegou ela.

       Butler estendeu as mãos enormes e, como havia feito tantas vezes no dojo dos Fowl, Juliet subiu nas mãos do irmão.

       — Não foi só para nos matar. Dois disparos de uma Neutrino fariam isso. O que aconteceu foi diversão para alguém.

       Juliet deu um salto mortal no palco.

       _ Diversão para quem?

       No fundo do salão, uma parte da plataforma despencou, provocando uma nova rodada de gritos e sofrimento.

       — Não sei — respondeu o guarda-costas, sério. — Mas quem tentou nos matar queria deixar Artemis sem guarda. Primeiro vou vestir minha roupa, depois vamos descobrir quem Artemis incomodou desta vez.

       TORMABOL Raiz procurava diversão onde podia. As prisões de segurança máxima não costumavam ser cheias de alegria e distra ções fugazes. Os guardas eram carrancudos e pouco solícitos. As camas eram duras e não davam gosto de pular em cima, e o esquema de cores era simplesmente medo nho. Verde-oliva em toda parte. Nojento. Em ambientes assim, era preciso desfrutar de cada migalha de satisfação que surgisse.

       Durante meses depois de ser preso por seu irmão, o coman dante Julius Raiz, e por aquela ingênua metida a certinha, Holly Short, Tornabol simplesmente ficou fumegando. Na verdade passou semanas sem fim andando de um lado para o outro na cela, fazendo o ódio ricochetear nas paredes. Às vezes falava sozinho e ocasionalmente tinha ataques de fúria, despedaçan do completamente os móveis. Por fim percebeu que a única pessoa que ele estava machucando com aquilo era si mesmo. Esse ponto ficou claro quando ele desenvolveu uma úlcera, e como fazia muito tempo que abrira mão de sua magia através do abuso e da negligência, foi obrigado a requisitar um feiti ceiro médico para consertar os órgãos. O pirralho não parecia muito mais velho do que o uniforme de preso de Tornabol e foi condescendente demais. Chamou-o de vovô. Vovô! Esses pirralhos não se lembravam? De quem ele era? Do que tinha realizado?

       Eu sou Tornabol Raiz, trovejaria ele, se o processo de cura não tivesse minado totalmente suas forças. Capitão Tornabol Raiz, o flagelo da LEP. Tirei cada lingote de ouro do Primeiro Banco de Poupança dos Diabretes. Fui eu que armei a tramóia na Final do Campeonato Centenário de Esmagobol. Como ousa me chamar de vovô!

       —  Esses jovens de hoje, Leonor — murmurou Tornabol para sua ausente esposa amada, — não têm respeito.

       Então estremeceu enquanto pensava nessa declaração.

       —  Pelos deuses, querida. Estou mesmo parecendo velho.

       E usar expressões como pelos deuses não ajudava nem um pouco.

       Assim que se fartou da autocomiseração, Tornabol decidiu aproveitar a situação do melhor modo possível.

       Minha chance de estar com você acabará chegando de novo, Leonor. Até lá, por que não ficar o mais confortável possível?

       Não tinha sido difícil demais. Depois de meses de pri são, Tornabol abriu o diálogo com um supervisor, Tarpão Vinyáya, um sujeito maleável, recém-saido da universidade, que nunca havia lavado sangue de debaixo de suas unhas bem cuidadas, e ofereceu pequenos nacos de informação para ser mandados à sua irmã na LEP em troca de alguns confortos inofensivos. Tornabol não se incomodou nem um pouco em vender seus antigos contatos no submundo, e em troca disso teve permissão de usar a roupa que quisesse. Optou por seu antigo uniforme de gala da LEP, completo com a camisa de babados e o chapéu de três bicos, mas sem as insígnias. Trair dois falsificadores de vistos que trabalhavam em Cuba lhe garantiu um computador limitado à rede da prisão. E o endereço de um anão desgarrado que atuava como ladrão de residências em Los Angeles lhe garantiu uma colcha macia para a cama que parecia uma tábua. Mas o supervisor não pôde ser levado a trocar a cama. Isso tinha sido algo pelo qual a irmã dele acabaria pagando.

       Frequentemente Tornabol passava muitas horas felizes pen sando em como um dia mataria o supervisor, numa vingança por essa falha. Mas, para dizer a verdade, Tornabol não estava muito preocupado com o destino de Tarpão Vinyáya. Estava muito mais interessado em garantir a própria liberdade, e em olhar de novo nos fundo dos olhos de sua amada esposa. E para alcançar esses objetivos teria de bancar o bandido amaciado, fraco, por mais algum tempo. Já vinha bajulando o supervisor havia mais de seis anos, o que importavam mais alguns dias?

       Então vou me transformar no meu eu verdadeiro-, pensou fechando os punhos com força. E desta vez meu irmãozinho não vai estar por ai para me prender, a não ser que aquele jovem patife Artemis Fowl invente um modo de trazê-lo de volta à vida.

       A porta da cela de Tornabol chiou e se dissolveu quando uma carga de acionamento nuclear precipitou uma mudança de fase. Na porta estava o senhor Vishby, o guarda regular de Tornabol nos últimos quatro anos, e que ele tinha finalmente conseguido atrair para o seu lado. Tornabol não gostava de Vishby; na verdade detestava todos os elfos atlantes, com suas cabeças que pareciam de peixes, as guelras bambas e as línguas grossas, mas Vishby tinha as sementes do desconten tamento no coração e, sem saber, havia se tornado escravo de Tornabol. Tornabol estava preparado para tolerar qualquer um que pudesse ajudá-lo a escapar desta prisão antes que fosse tarde demais.

       Antes que eu perca você, querida.

       —  Ah, senhor Vishby—disse ele empolgado, levantando-se de sua cadeira de escritório, que normalmente seria proibida (tinha-a conseguido em troca de dedurar diabretes contraban distas de cavalinhas). — Você está com aparência ótima. Esse eczema na guelra está melhorando mesmo.

       A mão de Vishby foi até as tiras triplas abaixo de sua mi núscula orelha esquerda.

       —  Acha mesmo, Tornabol? — gorgolejou ele, com a voz densa e dificultosa. — Leeta diz que não suporta me olhar.

       Sei como Leeta se sente, pensou Tornabol. Houve um dia em que eu mandaria chicotear você por me chamar pelo primeiro nome- Capitão Raiz, por favor.

       £rn vez de verbalizar esses pensamentos pouco elogiosos, ele pegou Vishby pelo cotovelo escorregadio quase sem estremecer de repulsa.

       —Leeta não sabe como tem sorte — disse, com a voz untuosa. — Qualquer uma gostaria de pescar você, Vishby.

       Vishby não tentou esconder o tremor.

       —     P... pescar?

       Tornabol respirou fundo, cheio de culpa.

       —     Ah, sim, desculpe, Vishby. Os elfos aquáticos de Atlântida não gostam de pensar em ser pescados. O que quero dizer é que você é um belo espécime de elfo, e qualquer fêmea com a cabeça no lugar se consideraria felizarda em tê-lo como companheiro.

       — Obrigado, Tornabol — murmurou Vishby, aplacado. — Como está indo, afinal? O plano.

       Tornabol apertou o cotovelo do elfo aquático para lembrá-lo de que havia olhos e ouvidos em toda parte.

       —Ah, meu plano de construir um modelo do aquanauta Nostremius? Esse plano? Está indo muito bem. O supervisor Tarpão Vinyáyavem cooperando bastante. Estamos negocian do a cola. — Ele guiou Vishby até a tela de seu computador. — Deixe-me mostrar minha última planta, e será que posso dizer o quanto aprecio seu interesse? Minha reabilitação depende da interação com indivíduos decentes como você.

       —Ah... certo — disse Vishby, sem ter certeza se tinha sido elogiado ou não.

       Tornabol Raiz balançou a mão na frente da tela, acordan do um v-clado na mesa (madeira real: trocada por ladrões de identidade, Nigéria).

       —Aqui, olhe. Resolvi o problema dos tanques de lastro, está vendo?

       Então, com uma rápida combinação de três dedos, ativou o misturador que Vishby havia contrabandeado para ele. O misturador era um chip orgânico, cultivado na filial de Atlântida dos agora defuntos Laboratórios Koboi. O misturador tinha sido rejeitado e posto no lixo, mas só precisou de uma pitadinha de silício para voltar a funcionar.

       Há desperdício demais na indústria, tinha suspirado Torna bol para Vishby. Será de espantar que estejamos no meio de uma crise de recursos?

       O misturador minúsculo era vital para Tornabol, porque tornava todo o resto possível. Sem ele, não teria conexão com a rede externa; sem ele as autoridades ali das Profundezas po deriam registrar cada tecla acionada em seu computador e ver exatamente em que ele estava trabalhando.

       Tornabol bateu na tela. Estava dividida em duas partes. Uma mostrava uma gravação de algumas horas antes: uma arena apinhada de humanos mesmerizados se amontoando uns em cima dos outros. A segunda era a imagem em tempo real de um lançador em chamas numa tundra gelada, vista a partir dos olhos de um robô.

       — Um tanque se foi, e o outro está indo pelo mesmo ca minho, de modo que vou pegar uma fonte externa, em vez de perder mais tempo com isso.

       — Bem pensado — disse Vishby, que, pela primeira vez, estava começando a entender a expressão dos moradores da superfície: Não tô sacando bulhufas.

       Tornabol Raiz pousou o queixo numa das mãos, imitando um antigo ator posando para foto.

       — Sim, senhor Vishby. Muito em breve o meu modelo estará completo. Uma das partes principais está vindo cá para baixo, e quando chegar, não restará uma criatura em Atlântida... Quero dizer, não restará uma criatura desfascinada com meu modelo.

       Era uma emenda terrível, ele sabia. E será que a palavra desfascinada ao menos existia? Mas não era necessário entrar pânico, já que ninguém o vigiava mais. Não faziam isso havia anos. Ele não era mais considerado ameaça. O mundo em geral havia se esquecido do capitão Tornabol Raiz, que tinha caído em desgraça. Os que se lembravam achavam difícil acreditar que aquele velhote sem graça poderia ser realmente perigoso como sua ficha dizia.

       E Opala Koboi isso, Opala Koboi aquilo, costumava pensar Tornabol com amargura. Bom, veremos quem foge deste lugar primeiro.

       Tornabol baniu a tela com um estalar dos dedos.

       — Para frente e para fora, Vishby. Para frente e para fora.

       Vishby deu um sorriso súbito, o que nos elfos do mar era acompanhado por um ruído de sucção enquanto eles puxavam a língua para trás, abrindo caminho para os dentes. De fato, sorrir não era uma expressão natural para os elfos do mar, e eles só faziam isso para que os outros soubessem como estavam se sentindo.

       — Ah, boas novas, Tornabol. Finalmente recuperei minha licença de piloto, que tinha perdido depois da fuga de Palha Escavator.

       —  Bom para o senhor.

       Vishby tinha feito parte da escolta de Palha Escavator quan do ele escapou da LEP. Toda a tripulação dos sublançadores precisava ter qualificação de piloto, para o caso de o piloto principal ficar incapacitado.

       — Só para viagens de emergência. Mas dentro de um ou dois anos vou entrar no rodizio de novo.

       — Bom, por mais que eu saiba como você deseja pilotar um submarino de novo, esperemos que não haja evacuações de emergência, não é?

       Vishby tentou dar uma piscadela, o que era difícil porque ele não possuía pálpebras e logo teria de usar um spray para lavar a remela acumulada na borda inferior do olho. Sua versão de piscadela era inclinar a cabeça de lado, lepidamente.

       —  Evacuações de emergência. Não, não vamos querer isso.

       Remela, pensou Tornabol. Nojento. Esse garoto peixe é quase tão sutil quanto um rolo compressor com uma sirene em cima. E melhor eu mudar de assunto, já que alguém pode olhar por acaso os monitores de segurança. Seria um tremendo azar.

       — Então, senhor Vishby. Nenhuma correspondência para mim hoje, não é?

       — Não. Nenhuma correspondência pelo enésimo dia se guido.

       Tornabol esfregou as mãos como quem tivesse um negócio urgente.

       — Bom, então. Não devo manter o senhor longe dos seus deveres, e preciso fazer um pouco de modelagem. Eu me obrigo a ter uma programação, veja bem, e tenho que segui-la.

       — Está certo, Tornabol — disse Vishby, que havia muito tempo tinha esquecido que ele é que deveria encerrar a en trevista, e não o contrário. — Só queria que você soubesse que consegui a licença de volta. Porque isso estava na minha programação.

       Tornabol sempre mantinha o sorriso brilhante, e prometia a si mesmo que descartaria aquele idiota assim que não tivesse mais utilidade.

       — Bom. Obrigado pela visita.

       Vishby havia passado quase totalmente pela escotilha, mas se virou para soltar mais uma bela tirada.

       — Vamos esperar que não haja nenhuma evacuação de emergência, não é, capitão Raiz?

       Tornabol gemeu por dentro.

       Capitão. Agora ele me chama de capitão.

        

       O novo cara, Orion Fowl, estava verificando suas meias.

       —  Não são meias de compressão — declarou. — Fizemos várias viagens de avião nas últimas semanas, e no entanto Ar temis nunca usa meias de compressão. E sei que ele sabe sobre a possibilidade de trombose profunda; simplesmente opta por ignorar os riscos.

       Era a segunda arenga de Orion em dois minutos; a última detalhava o fato de Artemis usar desodorante que não era hipoalergênico, e Holly estava ficando cansada de ouvir as reclamações.

       —  Eu poderia sedar você — disse toda animada, como se fosse a ação mais razoável. — Nós colocamos um adesivo no seu pescoço e o deixamos no restaurante de humanos. Fim da discussão sobre meias.

       Órion sorriu gentilmente.

       —  Você não faria isso, capitã Short. Eu poderia morrer congelado antes que chegasse alguma ajuda. Sou inocente. Além disso, você nutre sentimentos por mim.

       —  Inocente! — engrolou Holly, e era preciso uma declara ção absurda de verdade para fazê-la engrolar. — Você é Artemis Fowl! Durante anos foi o inimigo público número um.

       — Não sou Artemis Fowl — protestou Órion. — Compar tilho o corpo dele e o conhecimento de gnomês, dentre outras coisas, mas tenho uma personalidade totalmente diferente. Sou aquilo que chamam de alter ego.

       Holly fungou.

       _ Não creio que essa defesa serviria de alguma coisa num tribunal.

       .— Ah, serve — disse Órion, animado. — O tempo todo.

       Holly se arrastou pela encosta coberta de gosma de pastilhas até chegar à borda da cratera em que o pequeno grupo estava abrigado.

       —Nenhum sinal de elementos hostis. Parece que desceram nas fendas subterrâneas.

       — Parece? — perguntou Potrus. — Não dá para ser um pouquinho mais especifica?

       Holly balançou a cabeça.

       — Não. Só posso contar com os olhos. Todos os nossos instrumentos estão fora do ar. Não temos conexão fora de nossa rede local. Imagino que aquela sonda esteja bloqueando as comunicações.

       Potrus estava ocupado se arrumando, arrancando do flanco longos fios de nanopastilhas grudentas.

       — Ela é projetada para emitir um embaralhador de amplo espectro se estiver sob ataque, derrubando todas as comu nicações e armas. Estou surpreso por o canhão de Artemis ter disparado, e imagino que suas armas já foram isoladas e desligadas.

       Holly verificou sua Neutrino. Completamente morta. Não havia nada na tela de seu capacete a não ser o ícone de uma caveira vermelha girando lentamente, que significava falha catastrófica dos sistemas.

       — D'Arvit—sibilou ela. — Sem armas, sem comunicações. Como podemos parar essa coisa?

       O centauro deu de ombros.

       — Ela é uma sonda, e não uma nave de batalha. Deveria ser fácil de destruir assim que o radar captasse. Se isso é a trama de alguma mente genial para destruir o mundo subterrâneo, não é uma mente tão genial assim.

       Orion levantou um dedo.

       — Acho que devo observar, e me corrijam se as lembranças de Artemis estiverem incorretas, mas, para começar, seus ins trumentos não falharam lamentavelmente em captar essa sonda?

       Potrus fez um muxoxo.

       — Eu estava começando a gostar de você um pouquinho mais do que do outro.

       Holly ficou ereta.

       — Precisamos seguir a sonda. Deduzir para onde ela está indo e, de algum modo, chegar a Porto.

       Órion sorriu.

       —  Sabe, senhorita Holly, você fica muito dramática desse jeito, iluminada por trás pelo fogo. Bem atraente, se é que posso dizer. Sei que você compartilhou um momentpassionné com Artemis, que ele em seguida estragou com seu compor tamento tipicamente grosseiro. Deixe-me propor uma coisa para você considerar enquanto estivermos caçando a sonda: eu compartilho a paixão de Artemis, mas não a grosseria dele. Sem pressão, só pense a respeito.

       Isso foi o bastante para provocar um momento de silêncio ensurdecedor até mesmo no meio de uma crise na qual Orion permanecia abençoadamente sem ser afetado.

       Potrus foi o primeiro a falar.

       — O que é essa expressão no seu rosto, capitã Short? O que está passando por sua cabeça agora? Não pense, só diga.

       Holly ignorou-o, mas isso não impediu o centauro de con tinuar falando.

       — Você teve um momento de paixão com Artemis Fowl? — perguntou ele. — Não me lembro de ter lido isso em seu relatório.

       Holly podia estar ficando vermelha, ou talvez fosse a ilu minação dramática mencionada anteriormente.

       — Isso não entrou no meu relatório, certo? Porque não houve momento de paixão.

       Potrus não desistia com tanta facilidade.

       — Então nada aconteceu, Holly?

       —Nada que merecesse ser mencionado. Quando voltamos no tempo, minhas emoções ficaram meio emboladas. Foi um negócio temporário, certo? Será que podemos nos concentrar, por favor? Deveríamos ser profissionais.

       — Eu, não — disse Órion, animado. — Sou só um ado lescente com os hormônios à solta. E devo dizer, jovem e bela dama, que eles estão à solta, indo na sua direção.

       Holly ergueu a viseira e olhou nos olhos do adolescente cheio de hormônios.

       — É melhor que isso não seja um jogo, Artemis. Se você não tiver alguma psicose séria, vai lamentar.

       —  Ah, eu estou maluco mesmo. Tenho um monte de psicoses — disse Orion, empolgadíssimo. — Personalidades múltiplas, demência delirante, distúrbio obsessivo-compulsivo. Tenho de tudo, mas, na maior parte do tempo, estou louco por você.

       — Não é uma frase ruim — murmurou Potrus. — Ele definitivamente não é Artemis.

       Holly bateu os pés para tirar a gosma das botas.

       — Temos dois objetivos. Primeiro, precisamos esconder dos humanos curiosos as provas de tecnologia do Povo subterrâ neo, isto é, o lançador, até podermos mandar uma equipe de recuperação da LEP para levar tudo para baixo. E o segundo objetivo é, de algum modo, ficar na cola daquela sonda e mandar uma mensagem à Delegacia Plaza dizendo que ela está aqui. — Holly olhou incisivamente para Potrus. — Será que isso poderia ser um defeito temporário?

       — Não — respondeu o centauro com total convicção. — E digo com certeza absoluta. Aquela sonda foi programada deliberadamente, e os amorfobôs também. Eles nunca foram projetados para serem usados como armas.

       —  Então temos um inimigo. A Delegacia Plaza precisa ser avisada.

       Holly se virou para Órion.

       —  E então, alguma idéia?

       As sobrancelhas do garoto subiram ligeiramente.

       _ Bivaque?

       Holly esfregou o ponto, em sua testa, onde uma dor de cabeça tinha acabado de brotar.

       — Bivaque. Fabuloso.

       De trás veio um súbito guincho de metal quando o lançador afundou um pouco mais no gelo, como um guerreiro derrotado.

       —     Sabe — observou Potrus —, aquele veiculo é bem pesado e a plataforma de rocha ali não é muito...

       Antes que ele pudesse terminar, todo o lançador desapare ceu na paisagem, levando junto o restaurante, como se ambos tivessem sido engolidos por um kraken subterrâneo.

       Segundos depois, o Cubo de Gelo de Artemis, ou canhão de nanopastilhas, despencou pelo abismo recém-formado.

       —Isso foi incrivelmente silencioso — disse Órion. — Se eu não tivesse visto, nunca saberia.

       —Esse terreno é que nem queijo de anão. Cheio de bura cos— respondeu Holly, depois se levantou e partiu, correndo pelo gelo em direção à nova cratera.

       Órion e Potrus se demoraram, caminhando pela geleira, batendo papo amigavelmente.

       —     Vendo pelo lado positivo — disse Potrus —, nosso pri meiro objetivo foi alcançado. A prova sumiu.

       Órion confirmou com a cabeça, depois perguntou:

       — Queijo de anão?

       — Queijo feito por anões.

       —  Ah — suspirou Órion, aliviado. — Eles fazem. verdade não é feito...?

       —  Não. Que pensamento horrível!

       —  Exatamente.

       O buraco na superfície do gelo revelava um submundo gigan tesco. Um rio subterrâneo pulsava, arrancando nacos do que restava do restaurante Grande Skua. A água era de um azul profundo e movia-se com tanta força que quase parecia viva. Grandes pedaços de gelo, alguns do tamanho de elefantes, soltavam-se das margens, rolavam na direção da corrente e depois se submetiam à sua vontade, ganhando velocidade até baterem no prédio, pulverizando o que restava. O único som era da água que corria furiosa; o prédio parecia se render sem ao menos um gemido.

       O lançador havia se cravado numa crista de gelo abaixo de um barranco no rio subterrâneo. Um barranco de gelo que não sobreviveria ao golpe das águas por muito tempo.

       O veiculo foi rasgado pela força brutal da natureza até que restasse apenas uma pequena seção, uma ponta de flecha de obsidiana cravada de cima para baixo no gelo e na rocha.

       —  O casulo de fuga do lançador — gritou Holly. — Claro.

       O objetivo dois, permanecer na cola da sonda, agora era possível. Se pudessem abordar o casulo, e se o casulo ainda tivesse alguma energia, eles poderiam seguir a sonda e tentar levar uma mensagem ao quartel-general da LEP.

       Holly tentou escanear o pequeno veiculo com seu capacete, mas seus raios de energia continuavam bloqueados.

       Virou-se para o centauro.

       _ Potrus? O que acha?

       Potrus não precisava que a pergunta fosse explicada. Só havia uma coisa em que pensar: o casulo de fuga cravado no gelo abaixo.

       —     Essas coisas são praticamente indestrutíveis e construídas para levar a tripulação inteira, em caso de dificuldade. Além disso a fonte de energia é um bloco de combustível sólido, de modo que não há muitas partes móveis para dar defeito. To dos os modos usuais de comunicação estão a bordo, além de um bom rádio antigo, que nosso inimigo desconhecido pode não ter pensado em bloquear, se bem que, considerando que ele pensou em mudar a fase do escudo da sonda para repelir nossos sensores, duvido que haja muita coisa em que não tenha pensado.

       Holly se arrastou adiante até ficar com o tronco pendendo sobre a borda, e os borrifos do rio subterrâneo embaçaram sua viseira.

       —     Então essa é a nossa saída, se pudermos descer até lá.

       Potrus bateu os cascos da frente.

       — Nem todos precisamos descer. Alguns de nós são um pouquinho menos ágeis do que os outros, os que têm cascos, Por exemplo. Você poderia dar um pulo lá embaixo, voar com 0 casulo de volta e pegar o resto de nós.

       —  Faz todo o sentido — disse Órion. — Mas eu é que deveria ir. O cavalheirismo exige que eu corra o risco.

       Potrus fez um muxoxo.

       — Anda, Holly. Por favor, bote esse idiota iludido para dormir.

       Órion pigarreou.

       — Você não está sendo muito sensível com minha doença, centauro.

       Holly pensou seriamente na sedação, depois balançou a cabeça.

       — Artemis... Órion está certo. Um de nós deveria ir.

       Holly soltou um cabo do carretei no cinto e enrolou rapi damente numa das hastes de aço expostas que restavam do alicerce do restaurante.

       —  O que você está fazendo? — perguntou Órion.

       Holly andou rapidamente até o buraco.

       —  O que você ia fazer dentro de uns cinco segundos.

       — Você não leu os clássicos? — gritou Órion. — Eu de veria ir.

       —  Isso mesmo — disse ela. — Você deveria ir. — E pulou na caverna subterrânea.

       Órion fez um ruído animalesco, como se o animal fosse um tigre em cujo rabo tivessem dado um nó, e chegou ao ponto de bater com os pés no chão.

       — Uau — disse Potrus. — Está batendo os pés. Você ficou com raiva mesmo.

       — É o que parece — respondeu Órion, espiando pela borda.

       — Geralmente o pé que bate é outro, já que normalmente você é quem deixa Holly maluca. O outro você.

       — Não posso dizer que estou surpreso — disse Órion, acalmando-se um pouco. — Posso ser mesmo insuportável.

       O garoto se deitou no gelo.

       —Você está num bom caminho, Holly — disse, quase consigo mesmo. — Sem dúvida não deve bater naquela grande parede de gelo.

       — Duvido — resmungou Potrus, e, por acaso, o centauro estava certo.

       A capita Short desceu mais rápido do que gostaria, o que foi motivado totalmente por um defeito do equipamento. Se o carretei em seu cinto não tivesse sido danificado durante o recente ataque dos amorfobôs, reduziria automaticamente a velocidade da descida e Holly poderia evitar o impacto que certamente viria. Como aconteceu, ela estava mais ou menos caindo à força de um g, sem nada para aliviar o impacto além de uma ligeira tensão no cabo.

       Um pensamento relampejou na mente de Holly mais rápido ainda do que o gelo podia passar junto à sua cabeça.

       Espero não quebrar nada; não me resta nenhuma magia para consertar.

       Então se chocou na parede de gelo com os joelhos e os cotovelos. Era mais dura do que pedra e mais afiada do que vidro, cortando seu uniforme como se fosse papel. O frio e a dor atravessaram seus membros e houve um estalo forte, mas era do gelo da superfície, e não de seus ossos.

       A parede se inclinava gradualmente até o barranco do rio glacial subterrâneo, e Holly Short deslizou desamparada, dando cambalhotas, pousando de pé por pura sorte. A última respiração saiu bruscamente dos pulmões enquanto o choque do impacto viajava pelas pernas. Ela rezou por uma fagulha de magia, mas nada veio aliviar a dor.

       Mexa-se, soldado, disse a si mesma, imaginando Julius Raiz dando a ordem.

       Engatinhou rapidamente pelo banco de gelo, vendo seu próprio reflexo distorcido encará-la de volta, arregalada, como um nadador desesperado preso sob um lago congelado.

       Olhe aquele rosto. Seria bom passar um dia num tanque de imersão de lama, pensou.

       Geralmente a idéia de passar um tempo num spa relaxando deixaria Holly horrorizada, mas hoje parecia uma perspectiva bem atraente.

       Lama regenerativa e máscara de pepino para os olhos. Ótimo.

       Mas não adiantava sonhar com isso agora. Havia trabalho a fazer.

       Foi com dificuldade até o casulo de fuga. O rio passava num jorro feroz, golpeando a fuselagem, martelando rachaduras no gelo.

       Odeio o frio. Odeio de verdade.

       A névoa saia da água e subia em nuvens geladas, cobrindo as enormes estalactites com uma tenda azul espectral.

       Tenda azul espectral?., pensou Holly. Talvez eu devesse escrever um poema. O que será que rima com esmagada?

       Holly chutou o gelo amontoado na base do casulo, libe rando a escotilha, grata porque a porta não estava totalmente submersa já que, sem sua Neutrino, não teria como liberá-la.

       A capitã canalizou todas as frustrações do dia nos minutos seguintes, chutando furiosamente. Bateu naquele gelo como se, de algum modo, ele fosse responsável por explodir o lançador, como se seus cristais tivessem a culpa pelo ataque da sonda. Qualquer que fosse a fonte da força de Holly, seus esforços deram frutos e logo a borda da escotilha estava visível sob um lençol transparente de gelo esmagado.

       Uma voz veio lá de cima.

       — Oláááá. Holly. Você está bem?

       Houve outra frase no final. Abafada. Será que esse tal de Órion podia tê-la chamado de bela dama de novo? Holly es perava fervorosamente que não.

       — Eu... estou... bem! — grunhiu, cada palavra pontuada por mais um golpe na casca de gelo.

       — Tente não se estressar demais — disse a voz, ecoando. — Faça alguns exercícios de respiração.

       E irreal, pensou Holly. Esse cara vive no fundo da cabeça de Artemis há tanto tempo que não faz idéia de como lidar com o mundo de verdade.

       Conseguiu enfiar os dedos na maçaneta embutida, tirando teimosos pedaços de gelo que a bloqueavam. A escotilha era puramente mecânica, de modo que não haveria problema com a interferência da sonda, mas isso não era necessariamente verdadeiro para os controles do casulo. A sonda desgarrada poderia teoricamente ter fritado os sistemas de orientação do casulo com a mesma facilidade com que havia impedido as comunicações.

       Holly firmou uma das botas no casco e abriu a escotilha. Um dilúvio de gel desinfetante cor-de-rosa saiu, empoçando- se em volta de sua outra bota, e rapidamente se evaporou em névoa.

       Gel desinfetante. Para o caso de o agente que destruiu o lan çador ser bacteriano.

       Enfiou a cabeça lá dentro e os sensores de movimento aque ceram duas placas fosforescentes nos painéis do teto.

       Bom. Pelo menos temos energia de emergência.

       O casulo de fuga estava totalmente invertido, apontando direto para o centro da Terra. O interior era espartano e feito pensando-se em soldados, e não passageiros.

       Orion vai adorar isso, pensou ela, prendendo-se no arnês do piloto. Havia seis cintos separados no arnês, já que essa nave tinha pouca coisa em termos de giroscópios ou suspensão.

       Talvez eu possa sacudir Artemis, fazendo-o sair do próprio cérebro. Nós poderíamos contar até cinco juntos.

       Ela flexionou os dedos e os manteve sobre o painel de controle.

       Nada aconteceu. Nenhuma ativação, nenhum súbito acio namento dos controles. Nenhum ícone pedindo um código de partida.

       É da idade da pedra, pensou Holly, e se inclinou adiante até o limite do arnês, enfiando a mão embaixo do console em busca de um bom e velho volante e de controles de propulsão manuais.

       Apertou o botão de ignição e o motor tossiu.

       Anda. Eu tenho coisas a fazer.

       Mais um aperto e o motor arrasado do casulo de fuga ligou, tão irregular quanto a respiração de uma pessoa agonizante, mas ainda assim ligou.

       Obrigada.

       Holly pensou nisso pouco antes que jatos de fumaça preta penetrassem na cabine através das aberturas de ventilação, fazendo-a engasgar.

       Há algum dano, mas devemos ficar bem.

       Abriu a escotilha de proa e ficou alarmada com a visão que se revelou de repente. Tinha esperado ver as águas azuis de um rio subterrâneo passando diante do polimero transparente, mas em vez disso viu um abismo. O casulo havia se cravado numa vasta caverna subterrânea que parecia atravessar a geleira numa queda estonteante que se estendia abaixo, iluminada pelas distantes luzes azuis dos motores da sonda abrindo caminho pelas profundezas da caverna.

       Lá está ela. Indo para baixo.

       Holly apertou o botão de derretimento do bloco de combustível e bateu os dedos impaciente enquanto ele se aquecia.

       — O que preciso agora — murmurou para si mesmo — é da marcha à ré. E depressa.

       Mas a marcha à ré não veio suficientemente rápido. O rio glacial atacou a crista de gelo que sustentava o casulo de fuga e rapidamente arrancou-a. Por um momento o casulo pairou no ar, depois despencou pelo buraco e caiu sem energia, direto para baixo.

       Alguns minutos antes, o garoto que usava o rosto de Artemis Fowl estivera parado na superfície, olhando para Holly Short. Apreciando seus esforços e admirando sua forma.

       — Ela é incrível, nest-cepas? Veja-a lutando contra os ele mentos.

       Potrus veio batendo os cascos até o lado dele.

       — Anda, Artemis. Você não me engana. O que está tra mando?

       O rosto de Orion estava tranquilo. Nele, as feições de Artemis pareciam abertas e dignas de confiança. Esse era um belo truque, considerando que, como Artemis, aquelas mesmas feições pareciam astutas e quase sinistras, e alguns diriam até furtivas. Na verdade, um professor de música usou essa exata palavra no relatório escolar de Artemis, o que foi uma coisa muito pouco profissional da parte dele. Mas, para ser justo, Artemis havia alterado o teclado do sujeito de modo que só tocava "Bate o sino pequenino", não importando quais teclas fossem apertadas.

       — Não estou tramando nada — respondeu Orion. — Estou vivo e estou aqui. Só isso. Tenho as lembranças de Artemis mas não o caráter dele. Acredito que devo meu aparecimento súbito ao que as criaturas do subterrâneo chamariam de Complexo de Atlântida.

       Potrus balançou um dedo.

       — Bela tentativa, mas o Complexo de Atlântida geralmente se manifesta através de compulsão e delírio.

       — Estágio dois.

       Potrus demorou um momento para consultar sua memória quase fotográfica.

       — O estágio dois do Complexo de Atlântida pode resultar em sinais de várias personalidades completamente definidas e distintas.

       — E? — instigou Órion.

       — O estágio dois pode ser provocado por trauma mental ou choque físico, tipicamente pela eletrocução.

       — Holly atirou em mim. Ai estamos.

       Potrus raspou a neve com um casco.

       — Esse é o problema com seres de intelecto corno o nosso. Podemos argumentar pontos de vista o dia inteiro sem obter nenhuma vantagem significativa. É o que acontece quando você é um gênio. — O centauro sorriu. — Olhe, eu raspei um P de Potrus.

       — Trabalho excelente — disse Órion. — Linhas tão pre cisas. É preciso controle do casco.

       — Eu sei — concordou Potrus. — E um verdadeiro talento, mas não há quorum para esse tipo de expressão.

       Potrus tinha toda a consciência de que estava falando so bre desenhos com o casco para se distrair da situação atual.

       Frequentemente havia ajudado Holly em uma crise ou outra. Mas raramente estivera no campo para testemunhar essas crises ao vivo.

       Os arquivos de vídeo raramente capturam a emoção-, pensou. Estou morrendo de medo agora, mas nenhuma câmera de capacete pode captar isso.

       Potrus estava morrendo de medo porque alguém havia con seguido invadir sua sonda espacial e reprogramar os amorfobôs. Morria de medo porque essa pessoa não tinha consideração pela vida, fosse de criaturas do subterrâneo, de humanos ou animais. E ficava totalmente aterrorizado porque — que os deuses não permitissem! — se Holly estivesse ferida ou coisa pior, ele e essa personalidade idiota Fowl teriam de avisar à cidade de Porto, e ele não tinha a mínima idéia de como seria qualificado para esse serviço, a não ser que os talentos de soltar frasezinhas espertas e a manipulação rápida de v-clados fossem necessárias. Artemis saberia o que fazer, mas pelo jeito Artemis não estava em casa agora.

       Potrus percebeu, com um tremor, que a situação atual estava bem próxima de se tornar seu pior pesadelo, especialmente se ela acabasse levando Cavalina a raspá-lo. Para Potrus, o controle era muito importante, e ali estava ele, preso numa geleira com um humano danificado, olhando sua única esperança de salvação lutar contra um rio subterrâneo.

       Seu atual pior pesadelo foi subitamente relegado ao segundo lugar quando o casulo de fuga, com Holly dentro, foi engolido inteiro pelo gelo. Pedaços soltos cairam rapidamente enchendo o buraco, e antes que Potrus tivesse tempo de ficar boquiaberto de choque, foi como se o veiculo jamais tivesse estado ali.

       Potrus se deixou cair sobre os joelhos dianteiros.

       — Holly! — gritou desesperado. — Holly.

       Órion ficou numa perturbação similar.

       —Ah, capitã Short. Havia tanta coisa que eu queria lhe dizer sobre o que nós sentimos, Artemis e eu. Você era tão jo vem, com tanta coisa a dar! — Lágrimas gordas rolaram pelas suas bochechas. — Ah, Artemis, pobre e tolo Artemis. Você tinha tanto, e não sabia.

       Potrus sentiu-se esvaziado por um sofrimento súbito e dilacerante. Holly se fora. A última chance de alertar Porto. Como ele poderia ter esperança de sucesso ajudado apenas por um Garoto da Lama doido de pedra que começava uma em cada duas frases com a interjeição "ah"?

       — Cala a boca, Órion! Cala a boca. Uma pessoa se foi. Uma pessoa de verdade. — O gelo estava duro sob os joelhos de Potrus e fazia com que a situação deles parecesse mais pe rigosa ainda.

       — Não tenho muita experiência com pessoas de verdade — admitiu Órion, deixando-se cair ao lado do centauro. — Ou com traduzir os sentimentos para o mundo. Mas acho que agora estou triste. E solitário. Nós perdemos uma amiga.

       Essas eram palavras vindas do coração, e Potrus sentiu que precisava demonstrar simpatia.

       — Certo. Não é sua culpa. Nós dois perdemos alguém especial.

       Orion fungou.

       —  Bom. Então, digno centauro, talvez você possa me dar uma carona na garupa até o povoado. Lá poderei ganhar alguns centavos com meus versos enquanto você constrói uma cabana para nós e faz truques de circo para os passantes.

       Essa foi uma declaração tão surpreendente que Potrus che gou a pensar em pular no buraco para fugir dali.

       — Aqui não é a Terra Média, sabe. Nós não estamos num romance. Eu não sou nobre, nem tenho um repertório de truques de circo.

       Orion pareceu desapontado.

       —  Pode ao menos fazer malabarismo?

       A idiotice de Orion era exatamente do que Potrus precisava para arrancá-lo temporariamente do sofrimento. Saltou de pé e andou em circulo ao redor de Orion, pisando firme.

       — O que você é? Quem você é? Achei que você compar tilhava as lembranças de Artemis. Como pode ser tão idiota?

       Orion não se perturbou.

       —  Eu compartilho tudo. Para mim, lembranças e filmes são igualmente reais. Você, Peter Pan, o monstro do lago Ness, eu. Tudo é real, talvez.

       Potrus coçou a testa.

       —  Estamos encrencados demais. Que os deuses nos ajudem.

       Órion se animou.

       — Tenho uma idéia.

       — E? — perguntou Potrus, ousando ter esperança de que uma fagulha de Artemis permanecesse.

       -— Por que não procuramos algumas pedras mágicas que possam conceder desejos? Ou, se isso não der certo, você po deria examinar meu corpo nu em busca de alguma misteriosa marca de nascença que signifique que na verdade sou o príncipe de algum lugar.

       — Certo — suspirou Potrus. — Por que você não começa com o negócio das pedras enquanto eu risco umas runas mágicas na neve?

       Órion bateu palmas com força.

       — Excelente idéia, nobre criatura. — E começou a chutar pedras, para ver se alguma delas era mágica.

       O complexo está progredindo, percebeu Potrus. Ele não estava tão delirante assim há alguns minutos. Quanto mais desesperadora fica a situação, mais ele se afasta da realidade. Se não conseguimos pegar Artemis de volta logo, ele irá embora para sempre.

       — Achei uma! — gritou Órion de repente. — Uma pedra mágica! — Ele se curvou para examinar a descoberta. — Não. Espera. E algum tipo de concha do mar. — Ele deu um sorriso de desculpas na direção de Potrus. — Vi aquilo ali e presumi...

       Potrus pensou algo que jamais achou que pensaria.

       Prefiro estar com Palha Escavator.

       Essa idéia o fez estremecer.

       Órion deu um berro e alguns passos atrás.

       —  Achei. Dessa vez é verdade. Olha, Potrus. Olha!

       Potrus olhou, mesmo contra a vontade, e ficou pasmo ao

       Ver que uma pedra parecia mesmo estar dançando.

       —  Não é possível — disse, e imaginou: Será que ele está me sugando para o seu delírio?

       Orion estava em júbilo.

       — Tudo é real. Eu estou lá fora, no mundo.

       A pedra saltou no ar, girando por cima do lago conge lado. No lugar onde ela estivera, o casco preto do casulo de fuga perfurou o gelo. Subiu sem parar, com um rugido grave de motores que fazia as placas de gelo vibrarem até se despedaçar.

       Potrus demorou um momento para perceber o que estava acontecendo, mas então ficou em júbilo também.

       —  Holly! — gritou ele. — Você conseguiu. Você não nos abandonou.

       O casulo de fuga chegou à superfície, depois tombou de lado. A escotilha de proa foi aberta manualmente e o ros to de Holly apareceu. Estava pálida e sangrando por uma dúzia de pequenos cortes, mas seus olhos brilharam com determinação.

       —  Demorou um tempo para os blocos de combustível derreterem — explicou, suplantando o barulho do motor. — Entrem, vocês dois, e prendam os cintos. Temos de pegar aquele monstro que solta fogo.

       Essa era uma ordem simples, e tanto Potrus quanto Orion podiam obedecer sem que suas realidades se despedaçassem.

       Holly está viva, pensou Potrus.

       Minha princesa vive, exultou Órion. E vamos caçar uni dragão.

       — Potrus — gritou ele. — Acho mesmo que deveríamos procurar minha marca de nascença secreta. Os dragões adoram esse tipo de coisa.

        

       Artemis não havia partido completamente. Estava confinado a uma pequena sala virtual em seu próprio cérebro. A sala era semelhante ao seu escritório na mansão Fowl, mas não havia telas na parede principal. Na verdade não havia parede. Onde suas várias telas de LCD e tevês digitais ficavam presas, agora flutuava uma janela para a realidade do seu corpo. Ele podia ver o que o idiota do Orion via, e podia ouvir as frases ridículas que saiam de sua própria boca, mas não podia controlar as ações do paspalho romântico que parecia estar no banco do piloto, para usar uma referência veicular que Butler e Holly apreciariam.

       Na sala de Artemis havia uma mesa e uma cadeira. Ele usava um de seus característicos ternos Zegna de tecido leve. Podia ver a trama dos fios no braço e sentir o peso do material como se fosse de verdade, mas Artemis sabia que todas essas coisas eram ilusões criadas por sua mente para colocar alguma ordem no caos em que estava seu cérebro.

       Sentou-se na cadeira.

       Diante de Artemis, no que ele decidira chamar de sua tela mental, os acontecimentos se desdobravam no mundo verdadei ro. Ele se encolheu enquanto o usurpador, Órion, desenrolava o charme desajeitado.

       Ele vai destruir completamente meu relacionamento com Holly, pensou.

       Agora Órion parecia estar tratando Potrus como se fosse algum tipo de bicho de estimação mítico.

       Órion estava certo com relação a uma coisa. Ele se encon trava no segundo estágio do Complexo de Atlântida, uma doença mental que havia provocado em si mesmo através de uma combinação de contato imprudente com a magia do Povo subterrâneo e os sentimentos de culpa.

       Eu trouxe a culpa para mim mesmo, também, expondo minha mãe a Opala Koboi.

       De repente Artemis percebeu que, enquanto estava preso na própria mente, os números não tinham domínio sobre ele. Nem sentia qualquer compulsão de reorganizar os objetos em sua mesa.

       Estou livre.

       Um peso metafórico foi tirado de seu peito alegórico e Ar temis Fowl sentiu que era ele próprio de novo. Vital, afiado, concentrado, pela primeira vez em meses. Idéias voavam para fora da mente, como morcegos saindo da boca de uma caverna.

       Tanta coisa afazer. Tantos projetos. Butler... preciso encontrá-lo.

       Sentia-se energizado e poderoso. Foi correndo da cadeira para a tela mental. Abriria caminho, forçaria a saída e mandaria esse tal de Órion de volta para o lugar de onde tinha vindo. Em seguida, em sua lista, viria um pedido de desculpas a Potrus e a Holly pela grosseria, e depois chegaria ao fundo daquele sequestro da sonda espacial. Seu Cubo de Gelo fora despedaçado pelo rio subterrâneo, mas poderia ser reconstruído. Em alguns meses o projeto estaria em condições de operar novamente.

       E quando as geleiras estivessem seguras, talvez ele se sub metesse a uma pequena terapia de regressão com um dos psicoterapeutas menos espalhafatosos do Povo. Certamente não aquele tal de Cumulus, que tinha seu próprio programa de entrevistas na tevê.

       Quando chegou à tela, Artemis descobriu que ela era menos sólida do que parecera a principio. De fato era funda e gosmenta, fazendo-o se lembrar do conduto de plasma pelo qual havia se arrastado nos Laboratórios Koboi, tantos anos antes. Mesmo assim foi em frente e logo se viu submerso num gel frio e viscoso que o empurrava para trás com dedos moles.

       — Não serei coibido — gritou Artemis, descobrindo que conseguia gritar dentro da tela mental. — Sou necessário no grande mundo exterior.

       E então.

       Coibido? Grande mundo exterior? Estou começando a falar como aquele idiota do Orion.

       O pensamento lhe deu forças e ele rompeu as cortinas de gosma que o mantinham prisioneiro. Era bom estar ativo e positivo. Artemis sentia-se como o herdeiro dos Fowl de anti gamente. Impossível de ser contido.

       Então viu algo no ar à sua frente. Brilhante e chiando como uma estrelinha de fogos de artificio. Havia mais, dezenas, a toda volta, afundando lentamente pelo gel.

       O que era aquilo? O que aquelas coisas poderiam significar?

       Eu os fiz, pensou Artemis. Eu deveria saber.

       Um instante depois, ele entendeu. As estrelas chiando eram na verdade minúsculos números dourados. Todos eram o mesmo número. Todos eram quatro.

       Morte.

       Artemis se encolheu, mas então se firmou de novo.

       Não. Não serei escravo. Recuso-me.

       Um minúsculo número quatro roçou seu cotovelo, provo cando um choque em todo o corpo.

       Isso é uma memória, nada mais. Minha mente está recriando o conduto de plasma. Nada disso é real.

       Mas os choques pareciam reais. Assim que os quatro mi núsculos perceberam que ele estava ali, juntaram-se como um cardume de peixes malignos, arrebanhando Artemis de volta para a segurança de seu escritório.

       Caiu de costas no chão, ofegando.

       Preciso tentar de novo, pensou.

       Mas agora, não. Os quatros pareciam vigia-lo, acompa nhando seus movimentos.

       Cinco, pensou Artemis. Preciso de cinco para ficar vivo. Vou tentar de novo em breve. Em breve.

       Sentiu um peso se acomodar no peito, e aquilo pareceu pesado demais para ser apenas sua imaginação.

       Vou tentar em breve. Esperem ai, amigos.

       O PRISIONEIRO 42 verificou o site oficial da LEP e achou divertido ver que não estava mais na lista dos Dez Mais Perigosos. Eles esqueceram o que fiz, pensou com al guma satisfação. Exatamente como planejei.

       Tornabol mandou um rápido v-mail para Leonor, um dos doze que enviava diariamente.

       Prepare-se para viajar, querida. Logo estarei com você.

       Esperou ofegante a resposta, e ela veio logo. Uma única palavra.

       Depressa.

       Tornabol ficou animado com a resposta rápida: mesmo depois de todos esses anos, um estava ligado à palavra do outro. Mas ficou um pouco preocupado também. Ultimamente todas as mensagens de Leonor eram breves, frequentemente não passavam de uma frase. Ele não acreditava que sua querida esposa não es tivesse com vontade de escrever mais — acreditava que ela devia estar demasiadamente fraca, que o esforço era doloroso demais.

       Tornabol mandou uma segunda mensagem para Ark Sool, um vira-casaca da LEP que ele havia empregado recentemen te para garantir que sua esposa e seus negócios fossem bem cuidados.

       Leonor fica mais fraca sem minha magia das fadas ao lado, senhor Sool. Cuide bem dela.

       Tornabol ficou subitamente sem paciência.

       Apenas horas nos separam, querida. Espere por mim.

       As autoridades estavam enganadas, claro. Tornabol Raiz era extremamente perigoso. Elas haviam esquecido que ele era o elfo que tinha roubado milhões do orçamento de armas da LEP. O elfo que quase havia conseguido destruir metade da cidade de Porto só para se livrar de um concorrente.

       E eu teria feito isso mesmo, pensou pela milésima vez. Se não fosse o meu irmão metido a santo.

       Baniu esse pensamento. Pensar em Julius só estimularia seus sinais vitais, e os carcereiros poderiam notar.

       Eu deveria me dar um presentinho, pensou, sentando-se diante de seu terminal. Pode ser o último antes de eu ir embora. Vishby virá me pegar logo, e então a LEP vai perceber o erro. Tarde demais, claro.

       Sorriu para seu reflexo na tela enquanto digitava uma men sagem breve para um certo site.

       Nunca se ê velho demais para intrigas-, percebeu Tornabol enquanto apertava o botão de ENVIAR.

        

       É uma lei universal que fugitivos costumam se juntar. Não importando o tamanho do bando que esteja em sua persegui ção, as pessoas em fuga sempre conseguem encontrar aquela espelunca vagabunda, com a birita mais barata, administrada pelo dono mais trapaceiro, da qual nem mesmo a policia tem noticia. Esses estabelecimentos geralmente têm portas de aço, os vidros das janelas pintados, mofo nos cubículos do banheiro e não servem nada que tenha mais de dois ingredientes. O Papagaio Bebum era um lugar assim.

       O dono era um certo anão chamado Barnet Charadas, que comandava o poleiro com certa bravata falastrona que o tornava um anfitrião agradável, de um jeito desleixado. E se a bravata falastrona não bastasse para acalmar algum encrenqueiro, Barnet a acompanhava com uma cacetada de um cassetete elétrico roubado da LEP.

       O Papagaio Bebum era um ponto de encontro de anões, e o lema do lugar era: Se você não é bem-vindo lá, é bem-vindo aqui, o que significava que cada criatura subterrânea exila da, criminosa ou vagabunda na América do Norte cedo ou tarde aparecia no Papagaio Bebum. Barnet Charadas era o anfitrião perfeito já que, por algum acaso da natureza, fazia parte da percentagem minúscula das criaturas do subsolo que mediam mais de l,20m de altura. E assim, desde que usasse um lenço para cobrir as orelhas, Barnet era o intermediário ideal para contato com os humanos, que lhe forneciam bebi da alcoólica, carne ligeiramente passada para suas quesadillas e o máximo de poder de fogo que ele pudesse negociar na sala dos fundos.

       As primeiras horas desta manhã no Papagaio Bebum eram praticamente iguais a todas as outras. Anões sentavam-se encurvados diante de canecas de cerveja num dos reservados. Dois diabretes jogavam vídeogame de esmagobol nos celulares e meia dúzia de mercenários elfos trocavam histórias de guerra perto da mesa de sinuca.

       Barnet Charadas estava conversando com um anão junto ao balcão.

       —  Ora, Lápide — falou ele de modo charmoso. — Compre uma ou duas armas. Pelo menos uma granada. Você só fica ai sentado, bebendo água de riacho. Não existe alguém em quem você queira dar uns dois tiros?

       O anão riu, mostrando seus característicos dentes que pareciam lápides.

       — A coisa está ficando assim, Charadas.

       Barnet não se desencorajou — afinal de contas, era um otimista nato. Quem mais montaria um bar para anões fotos- sensíveis na ensolarada Miami?

       É o último lugar em que o pessoal da LEP procuraria por nós, os fugitivos da justiça, explicava com frequência. Eles ficam congelando seus rabos da LEP na Rússia, e enquanto isso a gente engole cerveja aqui, num luxuoso ambiente com ar condicionado.

       Luxuoso era forçar a barra. Até mesmo limpo seria forçar a barra. Mas o Papagaio Bebum era um lugar onde os mercená rios do povo subterrâneo podiam se encontrar e trocar histórias de guerra de dia ou de noite, por isso estavam preparados para aceitar os preços exorbitantes e o constante papo de vendedor de Barnet.

       —  Que tal um implante de computador? — insistiu o dono do bar. — Hoje em dia todo mundo tem implantes. Como é que você se mantém atualizado com a LEP?

       Lápide puxou para baixo a aba do chapéu de feltro, de modo que lhe cobrisse os olhos.

       —  Acredite ou não, Charadas, não estou mais na lista quente. Você está olhando agora para um cidadão cem por cento legalizado. Imagine, tenho até um visto para estar acima do chão.

       —  Corta essa — disse Barnet, sem acreditar.

       Lápide empurrou um quadrado de plástico por cima do balcão.

       —  Leia e chore.

       Barnet franziu a testa para as palavras em gnomês e verificou o holograma oficial.

       — Parece bem verdadeiro — admitiu.

       —  É porque é verdadeiro, meu amigo que bota água na cerveja.

       Barnet balançou a cabeça.

       — Não saquei. Se você pode estar em qualquer lugar, por que está aqui?

       Lápide jogou um punhado de nozes de beezel na boca enor me e Barnet jurou que depois de cada mastigada havia um eco.

       — Estou aqui — disse Lápide finalmente — por causa da clientela.

       Barnet ficou mais perplexo ainda.

       — O quê? Ladrões, mercenários, extorsionários e falsários?

       O riso de Lápide era largo e brilhante.

       — E. O tipo de gente de que eu gosto.

       Barnet foi verificar uma jarra de gosma de sapo que ele estava fermentando para os diabretes.

       — Você é uma figura, Lápide. Sabia?

       Antes que Lápide pudesse responder, um papagaio de plás tico no balcão abriu o bico e guinchou.

       — Nova postagem — berrou sua boca animatrônica. — Nova postagem no blog.

       — Com liceeeença — disse Barnet Charadas com educação exagerada — enquanto eu verifico esse implante extremamente útil que tenho na cabeça.

       — Útil até você passar perto de um micro-ondas e perder dez anos de memórias — comentou Lápide. — Mas, afinal de contas, você passa tanto tempo aqui que provavelmente não sentiria falta da década perdida.

       Barnet não estava escutando. Seus olhos ficaram nevoentos enquanto ele verificava o implante ilegal conectado direta mente em seu córtex por um médico que perdera a licença. Depois de uns dois hmmms e um verdade?, ele voltou ao aqui e agora.

       — Como vão as células cerebrais? — perguntou Lápide em tom ameno. — Espero que a mensagem tenha valido a pena.

       — Não se preocupe com isso, senhor Cem Por Cento Lega lizado — respondeu Barnet rapidamente. — Essa é para nós, criminosos. — Ele bateu no balcão com seu cassetete elétrico, lançando fagulhas por toda a extensão do corrimão de latão. — Trambik — gritou para o outro lado da sala. — Você tem uma nave, certo?

       Um dos anões no último reservado levantou a cabeça gri salha. Espuma de cerveja caia de sua barba.

       —  E. Tenho um giro. Meio ruinzinho, mas funciona.

       Barnet bateu palmas, já contando sua comissão.

       — Bom. Apareceu um serviço no blog. Dois humanos. E para matar.

       Trambik balançou a cabeça lentamente.

       — Nada de matar. Podemos ser criminosos, mas não somos humanos.

       — O cliente aceita um apagamento completo. Você con segue engolir isso?

       — Apagamento completo? — interrompeu Lápide. — Isso não é perigoso?

       Barnet deu um risinho.

       — Não se você ficar com os dedos longe dos eletrodos. Dois humanos, irmão e irmã chamados Butler.

       Lápide estremeceu.

       —  Butler? Irmão e irmã?

       Barnet fechou um dos olhos, consultando seu implante.

       —  E. Vou mandar os detalhes para o seu giro, Trambik. É um serviço rápido. Uma grana preta, como diriam os Homens da Lama.

       O anão chamado Trambik verificou a carga em uma anti quada Neutrino bacamarte.

       —  Esses Homens da Lama não vão falar coisa com coisa quando eu acabar com eles. — E deu um soco na mesa para convocar seus guerreiros. — Vamos, meus bons amigos. Temos cérebros para sugar.

       Lápide se levantou rapidamente.

       — Vocês têm espaço para mais um?

       —  Eu sabia — riu Barnet Charadas. — Cem Por Cento Legalizado, acho que não. Assim que pus os olhos em você, falei: esse cara ai tem história.

       Trambik estava afivelando um cinto cheio de espetos, cartuchos e implementos de aparência perigosa com fusíveis e capacitores.

       —  Por que eu deveria levar você, estranho?

       — Você deveria me levar porque, se o seu piloto for morto por esses humanos Butler, eu posso ficar no lugar dele.

       Um anão de uma magreza pouco característica levantou o olhar do romance que estava lendo.

       -— Morto? — disse ele, com o lábio tremendo ligeiramente.      Ei, Trambik, isso é provável?

       —Já tive experiências com esses Butler — disse Lápide. — Eles sempre pegam primeiro o piloto.

       Trambik avaliou Lápide, captando suas mandíbulas pode rosas e as pernas cheias de músculo.

       — Certo, estranho. Ocupe a cadeira de copiloto. Vai receber uma parte de iniciante, sem resmungar.

       Lápide riu.

       —             Por que resmungar agora, se podemos resmungar depois? Trambik pensou nisso por um momento até que seu cérebro doeu.

       — Certo. Tanto faz. Todo mundo tome uma pílula de sobriedade e vamos lá. Temos alguns humanos para apagar.

       Lápide seguiu seu novo capitão.

       —             Seu equipamento de apagamento mental é bom? Trambik deu de ombros.

       —             Quem se importa? — respondeu com simplicidade.

       —            Gosto da sua atitude — disse Lápide quase imediatamente.

       Os Butler em questão, claro, eram os mesmos Butler que haviam escapado dos fãs de luta livre mesmerizados e que agora, trinta minutos depois de Trambik pegar seu novo copiloto, davam um tempo para recuperar o fôlego ao sol da manhã à beira da laguna de Cancún. Esses dois estavam sendo perseguidos por Tornabol Raiz mais por diversão do que pela possibilidade de poderem realmente interferir em seus planos, mesmo sendo possível que oponentes tão formidáveis quanto os Butler pudessem causar problema. E os planos de Tornabol eram suficientemente delicados: não precisavam de mais humanos encrenqueiros se metendo. Era melhor pelo menos apagá-los. Além disso, eles haviam escapado da primeira vez, de modo que Tornabol estava irritado, coisa da qual não gostava.

       Juliet se agachou perto da água, ouvindo sons de festa e tilintar de taças de champanhe vindo de um iate que passava.

       —  Tenho uma idéia, irmão — disse ela. — Por que não pedimos um milhão de dólares a Artemis e simplesmente nos aposentamos? Bom, eu gostaria de me aposentar. Você poderia ser o meu mordomo.

       Butler sentou-se ao lado dela.

       —    Francamente, não creio que Artemis tenha um milhão de dólares. Ele colocou tudo em seu último projeto. O PRO JETO, como ele chama.

       —  O que ele vai roubar agora?

       —  Nada. Artemis se afastou do crime. Hoje em dia está salvando o mundo.

       O braço de Juliet se imobilizou na metade do movimento para jogar uma pedra.

       —  Artemis Fowl se afastou do crime? O nosso Artemis Fowl? Isso não vai contra as leis da família Fowl?

       Butler não sorriu, exatamente, mas sua carranca ficou niti damente menos pronunciada.

       — Essa não é hora para piadas, irmã. — Ele fez uma pausa. — Mas, se você quiser saber, os estatutos dos Fowl agora determinam que qualquer membro da família apa nhado se desviando do caminho da lei pode ter confiscados seu manual do Dr. Maligno e suas ventosas de subir pelas paredes.

       Juliet deu um risinho.

       —     Ventosas.

       A carranca costumeira de Butler se refez rapidamente,.

       —     Sério, irmã. Esta situação em que estamos é sinistra. Perseguidos por criaturas do subterrâneo do outro lado do mundo, longe do meu chefe.

       —O que você está fazendo aqui, afinal? Quem mandou você nessa busca inútil?

       Butler estivera pensando nisso.

       —     Artemis me mandou. Ele deve ter sido coagido, apesar de não parecer. Talvez tenha sido enganado.

       —     Enganado? Artemis Fowl? Ele mudou mesmo.

       Butler franziu a testa, dando um tapinha no ponto onde seu coldre de ombro estaria normalmente.

       —     Artemis mudou. Você mal o reconheceria agora, de tão diferente que está.

       —Diferente? Como?

       A testa de Butler se franziu mais ainda, com um corte entre as sobrancelhas.

       —  Ele conta tudo. Passos, palavras, tudo. Acho que cinco é o número importante. E também fileiras. Agrupa todas as coisas que estão ao redor em pequenas fileiras. Geralmente cinco em cada fileira, ou dez.

       — Já ouvi falar de coisas assim. Transtorno obsessivo- compulsivo. TOC.

       —  E está paranoico. Não confia em ninguém. —A cabeça de Butler baixou. — Nem em mim.

       Juliet jogou a pedra longe, na laguna.

       —  Parece que Artemis precisa de ajuda.

       Butler confirmou com a cabeça.

       —  E você? Você andou metida numa bela encrenca na última hora.

       Juliet passou os dedos no chão, pegando pedrinhas.

       —  O quê? Você quer dizer coisas pequenas como ser per seguida por uma horda mesmerizada? E o fato de que existem criaturas mágicas do subterrâneo? Essas coisas minúsculas?

       Butler grunhiu. Tinha esquecido de como sua irmã zombava dele, e de como por algum motivo ele aceitava isso.

       —  E, essas coisas minúsculas — disse, dando-lhe uma cotovelada carinhosa.

       —  Não se preocupe comigo, irmão. Sou uma mulher mo derna. Nós somos duronas e inteligentes, não ouviu dizer?

       —  Saquei. Você está lidando com a situação, não é?

       —  Não, irmão. Eu estou bem. Os Butler estão juntos e nada pode nos vencer.

       — As novas lembranças não estão te baratinando?

       Juliet riu, e o som fez bem ao coração de Butler.

       —  Baratinando? Onde é que nós estamos, nos anos 1970? Não, as lembranças não estão me baratinando. Na verdade, elas parecem... —Juliet pensou na próxima frase durante um tempo. — Parecem se encaixar direito na minha cabeça. Estão no lugar certo. Como eu poderia ter me esquecido de Holly? Ou de Palha?

       Butler pegou um par de óculos escuros no bolso do paletó. Eram um pouquinho mais desajeitados do que a moda atual e tinham minúsculos painéis solares nas hastes.

       —  Com criaturas do subterrâneo na nossa cola, talvez precisemos disso.

       Juliet pegou-os, e o estimulo do contato trouxe lembranças num jorro.

       Artemis fez isso a partir de capacetes desmontados da LEP, para conseguirmos enxergar através dos escudos das criaturas. A LEP é esperta, mas Artemis é mais.

       — Eu me lembro desses óculos. Por que você trouxe?

       —  Regra de escoteiro número um. Estar preparado. Há criaturas ao nosso redor o tempo todo. Não quero atirar em uma acidentalmente, nem errar uma, por sinal.

       Juliet esperou que o irmão estivesse fazendo piada.

       —  Você não atiraria numa criatura do subterrâneo — disse ela, pondo os óculos no rosto.

       Imediatamente apareceu algo em sua visão, como se tivesse pulado de uma torradeira. O algo certamente não era humano. Pairava suspenso num arnês e estava apontando uma arma de cano bulboso para a cabeça de Juliet. O que quer que fosse, estava usando um macacão que parecia feito de uma substância viscosa parecida com piche, grudada no tronco que balançava e cobria cada pelo de sua barba crespa.

       — Atire na criatura! — gritou ela, chocada. — Atira.

       A maioria das pessoas podia presumir que Juliet estivesse brincando. Afinal de contas, quais seriam as chances de uma criatura aparecer no instante exato em que ela havia posto os filtros para enxergá-la? Para não mencionar o fato de que Juliet era conhecida por seu senso de humor inadequado e regularmente soltar piadinhas em momentos de perigo mortal.

       Por exemplo, quando Christian Varley Penrose, seu instrutor na Academia de Madame Ko, perdeu o ponto de apoio na face norte do Everest e despencou para a terra tendo apenas uma ga rota magricela entre ele e a morte certa, Juliet se firmou e gritou para seu sensei enquanto ele passava girando feito um pião: "Ei, Penrose! Salvar você deve valer uns pontos extras na prova."

       Desse modo, seria bastante razoável presumir que, quando Juliet gritou Atire na criatura, ela estivesse pregando uma peça no irmão mais velho, mas Butler não presumiu isso nem por um segundo. Era treinado para reconhecer os tons de estresse, mas mesmo que Artemis não o tivesse obrigado a ouvir aquela palestra em MP3 no carro, ele sabia a diferença entre uma Juliet genuinamente chocada e a Juliet fazendo piada. Assim, quando Juliet gritou "Atire na criatura", Butler escolheu um curso de ação agressiva no intervalo de tempo entre as batidas de asas de um beija-flor.

       Já não tenho arma, por isso não posso atirar, pensou. Mas há opções.

       A opção que Butler escolheu foi agarrar com firmeza o ombro da irmã e empurrá-la de lado, fazendo-a escorregar pela praia de pedrinhas, com o ombro abrindo um sulco nas pedras.

       Ombro arranhado. Vou ouvir isso durante semanas.

       Butler girou os dois braços para frente e usou o impeto para se lançar para cima e para frente num salto feroz contra o que quer que tivesse assustado Juliet. Nesse ponto ele só podia esperar que a coisa estivesse suficientemente perto para ser abalroada, caso contrário haveria uma criatura em algum lugar rindo na sua cara e apontando calmamente uma arma.

       Teve sorte. Fez contato com alguma coisa atarracada e gorda. Algo que lutou e se sacudiu como um porco num saco, e soltava um odor particular que uma pessoa poderia sentir caso tivesse a infelicidade de cair de cara numa poça de lavagem medieval.

       Conheço esse cheiro, percebeu Butler, segurando-se feroz mente. Anão.

       O que quer que estivesse sustentando o anão no alto ge meu e mergulhou, afundando até a cintura na água de laguna Butler e seu cativo, retorcendo-se. Para Butler, o mergulho foi bastante inofensivo; ele estava praticamente envolvendo o anão invisível, e na verdade a água fria foi bem refrescante, mas para a criatura vestida com o macacão tremeluzente o mergulho súbito foi catastrófico. O contato abrasivo com o cascalho do fundo da laguna furou sua roupa de camuflagem, rompendo a pele e liberando a carga.

       O anão Trambik ficou subitamente visível.

       — Arrá! — disse Butler, puxando Trambik das ondas — Cabeça de anão. Bom.

       Trambik havia aberto mão de seu dom de línguas, junto com o resto de sua magia, mas vivia entre os humanos por tempo suficiente para captar um pouco de várias linguagens, e a declaração simples de Butler era terrivelmente fácil de ser mal interpretada.

       Cabeça de anão? Esse Homem da Lama vai comer minha cabeça.

       Butler estava atrás do capacete, e não da cachola carnuda que havia dentro.

       — Vem cá, escorregadio — grunhiu o guarda-costas, intui tivamente abrindo os lacres do capacete e tirando-o. — Você tentou atirar na minha irmã?

       Reconhecendo a palavra atirar, Trambik olhou para as próprias mãos e ficou consternado ao ver que estavam vazias. Tinha largado a arma.

       Trambik era um criminoso profissional e tinha passado por muitas dificuldades sem perder a coragem. Uma vez havia dominado uma quadrilha de goblins bêbados armado apenas com uma loção contra queimadura e três tampas de garrafa, mas esse gigante sedento de sangue, com cara de fúria c sede de cérebro finalmente o fez perder as estribeiras.

       — Nããããão — berrou ele numa voz estridente. — Não morde meu cérebro.

       Butler ignorou o chilique e o fedor, e agarrou o capacete protetor com uma das mãos, como um jogador de basquete faria com a bola.

       Agora o crânio de Trambik estava totalmente exposto e o anão jurou que podia sentir o cérebro tremendo.

       Quando um anão se pega aterrorizado a esse ponto, uma de duas coisas tem probabilidade de acontecer. Uma: o anão desencaixa a mandíbula e tenta abrir caminho a dentadas. Essa opção não estava disponível a Trambik por causa do capuz de seu macacão. E duas: o anão aterrorizado libera a carga. Liberar a carga é um truque de aviador que implica jogar fora o máximo de carga desnecessária para manter a aeronave no ar. Os anões são capazes de se livrar de até um terço do peso corporal em menos de cinco segundos. Esse é obviamente um último recurso e só pode ser realizado uma vez a cada década, mais ou menos. Implica uma expulsão rápida de gordura fluida, terra de mineração ingerida e gases através do que as mamães dos anões chamam educadamente de túnel de baixo.

       Liberar a carga é na maior parte uma reação automáti ca e acontece quando os batimentos cardíacos passam de duzentos por minuto, o que aconteceu com Trambik no momento em que Butler perguntou se ele tinha tentado atirar na sua irmã. Nesse momento Trambik mais ou menos perdeu o controle de suas funções corpóreas e só teve tempo de berrar de novo "Não morde meu cérebro/" antes que seu corpo decidisse liberar a carga e usar a propulsão resultante para dar o fora dali.

       Claro, Butler não conhecia esses detalhes biológicos. Só soube que de repente estava voando para trás, subindo pel0 ar, seguro a um anão impelido por jato.

       De novo, não, pensou; possivelmente era o único humano que teria esse pensamento numa situação dessas.

       Butler viu Juliet diminuindo de tamanho à distância, a boca formando um circulo chocado. E nos olhos de Juliet parecia que seu irmão subitamente tinha desenvolvido a capacidade de voar enquanto lutava com um anão que vestia uma malha brilhante com capuz.

       Mais tarde me preocupo com Juliet preocupada comigo, pen sou Butler, tentando não pensar no jato brilhante e cheio de bolhas que os empurrava mais para o alto no céu e mais para perto de alguma aeronave na qual estavam suspensos. Cuidado ai embaixo.

       Butler tinha um problema mais urgente do que a preocu pação de Juliet com ele, coisa que percebeu depois de enfiar o capacete de Trambik na cabeça. Ele e Trambik estavam subindo na direção do girocóptero rapidamente, sem controle sobre a aproximação. Tudo que Trambik podia fazer era gritar algo sobre seu cérebro, de modo que estava por conta de Butler fazer com que os dois saíssem vivos daquilo. A altitude não era o problema. Não estavam suficientemente altos para sofrer danos reais, em especial com a laguna embaixo. O problema era a pá do rotor do girocóptero, que picaria os dois em fatias finas caso passassem por ele, e depois, sem dúvida, o girocóp tero explodiria e incineraria os pedaços. O motor não fazia praticamente nenhum barulho, mas dois corpos passando pela lâmina explodiriam os silenciadores rapidinho.

       Meu último ato na Tara seria expor o Povo do subterrâneo, e não há nada que eu possa fazer para impedir isso.

       E subiram, voando para trás, o vento agitando as roupas, gelando a pele. Os olhos do anão estavam arregalados e se revirando, e sua pele pendia em abas frouxas.

       Ele era gorducho antes. Tenho certeza.

       A lâmina do giro estava a metros de distância enquanto eles chicoteavam e pairavam por um nanossegundo, quando Trambik finalmente esgotou o vapor do túnel de baixo.

       — Ótimo timing — rosnou Butler. Depois eles caíram diretamente na direção dos rotores.

       Mesmo assim, pensou Butler. Fui morto salvando minha irmã de um anão assassino. Poderia ser pior.

       No último momento possível, o rotor do giro virou noventa graus, inclinando a aeronave dramaticamente, permitindo que Butler e Trambik penetrassem nela pelo lado de sotavento.

       Butler mal teve um momento para agradecer a suas estrelas da sorte quando foi lançado em outra situação perigosa.

       Parecia estar acontecendo uma luta séria entre toda a tri pulação de anões. A área de passageiros estava atulhada com criaturas inconscientes enquanto três anões restantes trocavam pancadas, dois contra um. O um estava com o nariz sangrando e uma estrela de fuligem no ombro, no lugar onde alguém o havia acertado com uma Neutrino, mas mesmo assim parecia bastante animado.

       — Já era hora de você chegar — disse ele a Butler com o canto da boca. — Esses caras estão com um bocado de raiva porque eu virei o girocóptero deles.

       — Lápide, seu traidor! — uivou um dos anões que restavam.

       — Lápide? — perguntou Butler, conseguindo gemer e falar ao mesmo tempo.

       — E — disse o velho amigo de Butler, Palha Escavator. — É o nome que eu uso nas ruas. E você tem sorte porque eu ando pelas ruas.

       Os estabilizadores do giro ajeitaram a aeronave e Butler se aproveitou do momento de paz para soltar Trambik, que foi jogado pela porta da aeronave.

       — Ah, Trambik — disse Palha. — Raramente conheço alguém com um nome tão adequado.

       Butler nem estava escutando. Se existia um momento para prestar atenção nas arengas de Palha, ele ainda não havia che gado lá. Em vez disso virou-se para o resto dos anões hostis.

       — Vocês dois — disse, lançando-lhes sua expressão mais feroz, uma expressão que um dia tinha feito um troll achar que talvez tivesse mordido um pouquinho mais do que con seguiria engolir.

       Os dois em questão se encolheram diante do olhar de Butler e se perguntaram, ansiosos, o que aquele gigante ordenaria que fizessem.

       Butler apontou o polegar na direção da porta da área de passageiros.

       — Pulem — disse, mantendo a coisa de modo simples.

       Os anões se entreolharam, e o olhar valia mil palavras.

       Será que devemos pular, na luz do dia, pensaram os anões, ou será que deveríamos ficar e lutar com esse aterrorizante homem-montanha?

       Eles se deram as mãos e pularam.

       Foram necessários apenas alguns instantes para Palha controlar os sistemas de voo e baixar o giro para pegar Juliet.

       — Olá, Princesa de Jade — gritou ele da cadeira do piloto. — Como vai a carreira na luta livre? Agora também tenho um alter ego. Eles me chamam de Lápide. O que acha?

       — Gostei — respondeu Juliet, beijando a bochecha de Palha. — Obrigada por nos resgatar.

       Palha sorriu.

       — Não estava passando nada na tevê. A não ser o pay-per-view e eu me recuso a comprar programas, por uma questão de princípios. Menos o daquele chef que fala um monte de palavrões. Adoro ele e o que ele consegue fazer com um peito de peru e duas vagens.

       As memórias recém-encontradas de Juliet a fizeram se lem brar da obsessão de Palha por comida.

       — Então você por acaso estava num bar quando esses caras foram chamados? — perguntou Butler, em dúvida, jogando alguns pacotes de ração de emergência para os anões à deriva lá embaixo.

       Palha segurou o joystick virtual, levando rapidamente o girocóptero para as nuvens.

       — É. É o destino, amigos. Me voltei contra minha própria raça por causa de vocês. Espero que apreciem isso. Ou melhor, espero que seu rico patrão aprecie.

       Butler fechou a escotilha, interrompendo o jorro de ar que entrava.

       — Pelo que lembro, eu fiz a maior parte do negócio de sal vamento.

       — Tudo que você fez foi estragar meu plano — fungou o anão. — Eu ia deixar que eles atordoassem vocês dois, iria puxá-los a bordo e depois agiria.

       — Plano brilhante.

       — Pior do que se jogar contra a lâmina do rotor do giro?

       — Aceito o argumento.

       Houve silêncio por um instante, o tipo de silêncio que você definitivamente não ouviria numa máquina voadora humana. Também era o tipo de silêncio que você consegue quando um pequeno grupo de pessoas imagina por quanto tempo con seguirá sair de certas situações mortais com uma quantidade razoável de vida no corpo.

       — Estamos entrando de novo, não é? — perguntou Palha por fim. — Em outra aventura para salvar o mundo no último minuto, arriscando nossos próprios fundilhos?

       — Bom, no espaço de uma noite nós fomos atacados por fãs de luta livre, zumbis e anões invisíveis — disse Butler carrancudo. — Certamente parece que sim.

       — Para onde? — perguntou Palha. — Espero que não seja um lugar tão ensolarado. Ou frio demais. Odeio neve.

       Butler descobriu que estava sorrindo, não exatamente com carinho, mas também não era como um lobo ameaçador.

       — Islândia — disse.

       O girocóptero deu um mergulho forte enquanto Palha soltava momentaneamente o joystick virtual.

       — Se você está brincando, Butler, devo dizer que não é engraçado.

       O sorriso de Butler desapareceu.

       — Não — disse ele. — Não é.

       ORION Fowl optou por se prender no arnês de evacuação de emergência diretamente atrás de Holly e falar no seu ouvido enquanto ela pilotava o casulo de fuga através do buraco de minhoca escavado no gelo pela sonda desgarrada.

       Alguém falar diretamente no seu ouvido é, na melhor das hipóteses, irritante, mas quando essa pessoa está soltando absurdos românticos enquanto a dona do ouvido tenta lutar com os controles de um casulo de fuga de vinte anos de idade numa perseguição acelerada é um pouquinho mais do que irritante — é uma distração muito perigosa.

       Holly esfregou a escotilha de proa com a manga de seu ma cacão. Lá fora, um único facho de luz saindo do nariz captava o caminho do buraco de minhoca.

       Reto, pensou ela. Pelo menos é reto.

       — Como eu vos amo? — meditou Órion. — Deixe-me ver. Eu vos amo passionalmente e eternamente... obviamente eternamente; nem preciso dizer.

       Holly piscou para afastar o suor dos olhos.

       — Ele está falando sério? — gritou ela para Potrus, sem se virar.

       — Ah, sem dúvida — disse o centauro, a voz tremendo junto com o movimento do casulo. — Se ele pedir para você procurar alguma marca de nascença, diga não imediatamente.

       — Ah, eu nunca faria isso — garantiu Órion. —As damas não procuram marcas de nascença; esse é o trabalho para os bons amigos, como a besta bondosa ai e eu. As damas, como a Srta. Short, fazem o bastante simplesmente existindo. Exalam beleza, e isso basta.

       — Não estou exalando nada — disse Holly através dos dentes trincados.

       Órion deu um tapinha no ombro dela.

       — Devo discordar. Você está exalando agora mesmo: uma aura maravilhosa. É azul-pastel com pequenos golfinhos.

       Holly apertou o volante com força.

       — Vou vomitar. Você acabou de dizer azul-pastel?

       — Com golfinhos, pequenininhos — disse Potrus, feliz o bastante para se distrair do fato de que agora estavam perseguindo a sonda que havia explodido seu lançador, o que era mais ou menos como um rato perseguir um gato; um gato militante e gigantesco, com olhos de laser e uma barriga cheia de gatinhos do mal.

       — Fique quieto, besta bondosa. Fiquem quietos vocês dois.

       Holly não podia se dar ao luxo de ser distraída. Assim, para apagar da consciência a fala ininterrupta de Orion, ficou dizendo a si mesma o que estava fazendo, registrando tudo no diário da nave.

       — Ainda atravessando o gelo, um veio incrivelmente espes so. Sem radar nem sonar, apenas seguindo as luzes.

       O show de luzes que aparecia através da escotilha era fan tasmagórico e colorido. Os motores da sonda lançavam fachos ao longo do gelo escavado, provocando arco-iris que tremeluziam nos planos lisos. Holly teve certeza de que viu todo um cardume de baleias preservado na geleira, e talvez algum tipo de enorme réptil marinho.

       — A sonda mantém o curso, uma descida diagonal. Estamos agora passando do gelo para a rocha, sem atraso discernível.

       Era fato; o aumento na densidade não parecia ter efeito sobre os cortadores a laser da sonda.

       Potrus não pôde resistir a um comentário presunçoso:

       — Eu sei construir isso.

       — Mas não sabe controlar — retrucou Holly.

       — Você desagradou à princesa — exclamou Orion, sacudindo-se em seu arnês. — Não fossem essas malditas amarras...

       — Você estaria morto — disse Potrus, completando a frase para ele.

       — Bem pensado — admitiu Órion. — E a princesa está calma agora, de modo que não houve mal, bondoso amigo Devo controlar meu temperamento de cavaleiro. Às vezes corro com impeto demais para a batalha.

       As orelhas de Holly coçavam, o que era puramente resulta do de estresse, ela sabia, mas isso não fazia com que a coceira parasse.

       — Precisamos curar Artemis — disse, desejando ter uma mão livre para coçar. — Não vou aguentar isso por muito mais tempo.

       A face de rocha passava lá fora numa fusão atordoante de cinza e azul-profundo. Cinza, pedra pulverizada e entulhos espiralavam pela parede do túnel, atrapalhando mais ainda a visão de Holly.

       Ela verificou o posto de comunicação do casulo de fuga, sem muita esperança.

       — Nada. Nenhum contato com Porto; ainda estamos bloqueados. A sonda já deve ter nos visto. Por que não fez qualquer ato de agressão?

       Potrus se remexeu num arnês construído para criaturas de duas patas.

       — Ah, sim, por que não fez nenhum ato de agressão? Como anseio por um ato de agressão!

       — Eu vivo para os atos de agressão! — trovejou Órion com voz esganiçada. — Ah, como rezo para que aquele dragão dê meia-volta, para eu poder esmagá-lo.

       — Esmagá-lo com quê? — perguntou Potrus. — Sua marca

       secreta de nascença?

       — Não zombe da minha marca de nascença, que eu posso

       ter ou não.

       — Calem a boca, vocês dois! — gritou Holly. — A luz mudou. Alguma coisa está vindo.

       Potrus apertou a bochecha contra a escotilha de popa.

       — Ah, sim. Eu esperava isso.

       — O que você esperava?

       — Bom, agora devemos estar abaixo do nível do mar, de modo que o que virá é um pedação do oceano. Agora veremos se eu projetei aquela sonda realmente bem.

       A luz que ricocheteava na parede do túnel havia ficado subi tamente opaca e tremeluzente, e um enorme uuumfz estrondeou vibrando nas paredes do casulo. Até Órion ficou atordoado quan do um tubo sólido de água jorrou para cima na direção deles.

       Por seus treinamentos, Holly soube que deveria relaxar os músculos e absorver o impacto, mas cada célula em seu corpo queria se retesar antes da pancada.

       Mantenha o nariz do casulo reto, disse a si mesma. Atravesse a superfície. Por baixo está calmo.

       A água se fechou em volta deles como um punho maligno e sacudiu o casulo, chacoalhando os ocupantes. Tudo que não estivesse preso se transformou num míssil. Uma caixa de ferramentas provocou um inchaço feio em Potrus e a testa de Órion foi perfurada por um garfo que deixou pontinhos minúsculos no lugar onde se cravou.

       Holly xingou feito um marinheiro enquanto lutava para manter o nariz do veiculo para baixo, lutando contra a fúria da natureza, falando com o casulo como se ele fosse um cavalo selvagem. Um rebite saltou do lugar e ricocheteou pela cabine, arrancando uma lasca do para-brisa e provocando uma teia de rachaduras brilhantes no vidro.

       Holly se encolheu.

       — D'Arvit. Isso não é bom. Isso não é bom.

       Órion pôs a mão em seu ombro.

       — Pelo menos enfrentamos essa grande aventura juntos, hein, donzela?

       — Por enquanto, não — disse Holly, nivelando os flaps de popa e fazendo o veiculo atravessar aquele tumulto e penetrar no oceano amplo e calmo.

       Por enquanto o para-brisa estava aguentando, e Holly se esforçava para enxergar através dele, procurando o clarão revelador do motor da sonda. Durante vários instantes não viu nada incomum no oceano Atlântico, mas então, a sul- sudoeste, cerca de dez braças abaixo, notou quatro discos azuis reluzentes.

       — Ali! — gritou. — Estou vendo.

       — Não deveríamos ir para a estação de lançamento mais próxima? — perguntou Potrus. — E tentar fazer contato com Porto?

       — Não — respondeu Holly. — Temos de manter contato visual e deduzir para onde essa coisa está indo. Se nós a perdermos, graças ao seu minério de invisibilidade, ela estará perdida, com um bocado de água onde se esconder.

       — Essa é outra provocação, jovem dama — disse Potrus, carrancudo. — Não pense que não estou contando.

       — Contando — comentou Órion. — Artemis costumava fazer isso.

       — Gostaria que tivéssemos Artemis agora — retrucou Holly, séria. — Mesmo com os cincos e tudo. Ele saberia o que fazer.

       Órion fez beicinho.

       — Mas você tem a mim. Eu posso ajudar.

       — Deixe-me adivinhar. Bivaque? — O rosto de Órion ficou tão desolado que Holly cedeu. — Certo. Escute, Órion, se quer mesmo ajudar, fique de olho na tela de comunicação. Se tivermos algum sinal, avise.

       — Não fracassarei convosco, bela donzela — prometeu Órion. — Esta tela de comunicação é agora meu santo graal. Meu desejo trará um sinal de seu frio coração de fios e capacitores.

       Potrus já ia exclamar e explicar que a tela de comunicação não tinha fios nem capacitores, mas quando viu o olhar vene noso de Holly decidiu ficar de boca fechada.

       — E você — disse Holly, num tom que combinava com o olhar—, tente deduzir como o grande Potrus foi enganado de modo tão patético, e talvez possamos obter o controle daquela sonda antes que mais alguém se machuque.

       Essa é outra provocação, pensou Potrus, mas foi suficiente mente sensato para não dizer isso em voz alta.

       Continuaram descendo num azul mais e mais escuro. A sonda se mantinha rigidamente no rumo, sem se desviar por rochas ou recifes, aparentemente sem perceber o minúsculo casulo de fuga que ia atrás.

       Eles devem nos ver, pensou Holly, pressionando o casulo até o limite só para manter a distância. Mas, se a sonda os viu, não deu qualquer sinal, apenas continuou mergulhando no oceano a uma velocidade constante, aproximando-se em linha reta de seu objetivo, qualquer que fosse.

       Holly teve uma idéia.

       — Potrus. Você tem um comunicador, não é?

       O centauro estava suando na atmosfera com pouco oxigênio, com a camisa azul-clara agora parecendo quase totalmente azul-escura.

       — Claro que tenho. Já procurei um sinal. Não há nada.

       — Eu sei, mas que tipo de aplicativos você tem nele? Algu ma coisa que sirva para navegação?

       Potrus pegou seu telefone e examinou os aplicativos.

       — Tenho um mi-p nav. Todo autocontido, sem necessidade de sinal. — O centauro não precisou que lhe dissessem o que fazer; soltou-se do arnês e pôs o telefone num onissensor do painel. A tela do telefone foi reproduzida instantaneamente numa pequena tela da escotilha.

       — Certo, admito que ela está fazendo um monte de coisas para as quais não foi projetada.

       — E então?

       Potrus fez alguns cálculos na tela, cálculos que Artemis poderia entender, se estivesse presente.

       — É possível — disse. — Nenhuma parte da sonda permane ceria intacta. Mas, a essa velocidade, ela poderia rachar a cúpula.

       Holly tentou conseguir mais um pouco de velocidade do casulo.

       — Precisamos alertar Atlântida. Órion, temos alguma coisa na tela de comunicação?

       O passageiro humano do casulo ergueu o olhar da tela.

       — Nem um pio, princesa, mas essa luz está piscando com muita urgência. Tem algum significado especial?

       Potrus espiou por cima do ombro dele.

       — O casco deve ter se rachado no túnel. Estamos ficando sem oxigênio.

       Por um segundo os ombros de Holly se afrouxaram.

       — Não importa. Vamos em frente.

       Potrus envolveu o crânio com as duas mãos, segurando os pensamentos.

       — Não. Agora vamos tentar sair da esfera de embaralha- mento da sonda. Devemos correr para a superfície.

       — E se ela mudar de rumo?

       — Então não baterá em Atlântida e ninguém vai se afogar nem ser esmagado. E mesmo que ela gire de volta, eles estarão preparados.

       Fugir ia contra os instintos de Holly.

       — Sinto que estamos abandonando as pessoas lá de baixo.

       Potrus apontou para a tela.

       — A essa velocidade, a sonda vai chegar a Atlântida em três horas. Nós vamos ficar sem oxigênio em cinco minutos. Vamos estar inconscientes em seis, mortos em doze, e não seremos úteis para ninguém.

       — Estou meio tonto — disse Órion. — Mas também mara vilhosamente empolgado. Sinto que estou à beira de encontrar uma rima para a palavra "laranja".

       — Privação de oxigênio — observou Potrus. — Ou talvez ele seja assim mesmo.

       Holly soltou o acelerador.

       — Será que vamos conseguir?

       Potrus digitou uma equação complicada.

       — Se formos na direção oposta agora mesmo. Talvez. Se quem está fazendo isso aumentou a capacidade do embaralhador, não.

       — O melhor que você consegue é um talvez?

       Potrus assentiu, cansado.

       — O máximo.

       Holly girou o casulo com três manobras hábeis.

       — É a melhor taxa de probabilidade que tive o dia inteiro.

       Agora era uma corrida, mas era uma corrida incomum, onde os competidores iam para longe um do outro. O objetivo era simples: agora que sabiam para onde a sonda ia, Holly tinha seis minutos para pilotar o casulo para fora da esfera da inter ferência nas comunicações. Além disso seria bom ter algum oxigênio para respirar. Por sorte, a sonda estava numa descida íngreme, de modo que o casulo poderia ir numa subida íngreme. Se conseguissem chegar à superfície antes que os seis minutos acabassem, ótimo. Eles fariam transmissões até que Porto captasse o sinal. Se isso não acontecesse, o casulo não estaria equipado com piloto automático nem com capacidade de transmissão, de modo que a sonda chegaria sobre as torres de segurança de Atlântida antes que elas ao menos notassem, e outro pequeno ponto negativo é que eles estariam mortos.

       Engraçado, pensou Holly. Não creio que meus batimentos cardíacos estejam muito mais acelerados. As situações de vida ou morte se tornaram quase normais para mim desde que conheci Artemis Fowl.

       Espiou de lado o romântico que usava o rosto de Artemis, e ele captou o olhar.

       — Um centavo por seus pensamentos, princesa. Ainda que eles valham o equivalente ao resgate de um rei.

       — Eu estava querendo que você fosse embora — disse Holly, na bucha. — E que devolvesse Artemis. Nós precisamos dele.

       Órion fez humm.

       — Esse pensamento não é tão valioso quanto eu havia imaginado. Por que você quer Artemis de volta? Ele é desagradável e maldoso com todo mundo.

       — Porque Artemis poderia nos tirar disso vivos e salvar o povo de Atlântida, e talvez descobrir quem assassinou todos aqueles agentes da LER

       — Com isso tenho de concordar — disse Órion, chateado. Mas os sonetos dele são insensíveis e aquele teatro de ópera que ele projetou foi somente para seu próprio prazer.

       — É, é disso que precisamos agora — cantarolou Potrus. A capacidade de projetar um teatro de ópera.

       — Ah, sim, traiçoeiro corcel — reagiu Órion cheio de irritação. — A capacidade de projetar sondas seria muito mais útil.

       Holly tocou rapidamente a campainha de alarme para atrair atenção

       — Com licença, cavalheiros. Toda essa discussão está consumindo oxigênio, então será que podemos ficar quietos por favor?

       — Isso é uma ordem, amada?

       — É — sussurrou Holly em tom de mau agouro — É, sim.

       — Muito bem. Então em silêncio ficarei. Eu prefiro cortar minha língua a proferir mais uma palavra. Preferiria me decapitar com uma faca de açougueiro do que falar uma única...

       Holly cedeu a um instinto primário e deu um soco no plexo solar de Órion.

       Isso foi errado, pensou enquanto o garoto tombava no arnês, tentando respirar. Mais tarde vou me sentir culpada.

       Se houver um "mais tarde".

       Restava bastante energia no bloco de combustível, o que não havia era ar nos tanques nem capacidade de reciclagem para tirar o dióxido de carbono do ar exalado. O casulo deveria ser uma opção de curto prazo. Não fora projetado para missões 

       de verdade; o casco poderia se rachar sob a pressão da subida vertical muito antes que o combustível terminasse.

       Há tantos modos de morrer, pensou Holly. Em algum momento um deles pega a gente.

       O mostrador digital estava girando para trás, a partir de dez mil metros. Estavam numa trincheira do Atlântico, jamais vista anteriormente por olhos humanos. Cardumes de estranhos peixes luminosos enxameavam ao redor, acompanhando-os com facilidade, batendo no casco com os bulbos carnudos e luminosos em suas barrigas transparentes.

       Então a luz mudou e aqueles peixes sumiram, afastando-se tão depressa que pareceram simplesmente se desmaterializar. No lugar deles havia focas, baleias e peixes que pareciam pontas de flechas prateadas. Um pedaço de gelo azul passou rolando e Holly viu o rosto da mãe nos planos e nas sombras do iceberg.

       Privação de oxigênio, disse a si mesma. É só isso.

       — Quanto tempo? — perguntou a Potrus.

       O centauro verificou os níveis de oxigênio.

       — Baseado em três seres conscientes, seres conscientes nervosos, devo acrescentar, e consumindo ar muito depressa, vamos ter carência em um ou dois minutos.

       — Você disse que nós poderíamos conseguir!

       — O buraco no tanque está se expandindo.

       Holly bateu o punho no painel.

       — D’Arvit, Potrus. Por que tem de ser sempre tão difícil?

       Potrus falou calmamente:

       — Holly, minha amiga. Você sabe o que precisa fazer.

       — Não, Potrus. Não sei.

       — Sabe, sim.

       Holly sabia. Havia três pessoas conscientes, respirando com dificuldade. Potrus sozinho consumia mais oxigênio do que um troll macho. Só era necessária uma pessoa para guiar a nave e mandar a mensagem.

       Era uma escolha difícil, mas não havia tempo para sofrer com ela. Holly tateou ao redor buscando um cilindro de metal grosso preso a uma das argolas do cinto e puxou-o.

       — O que é isso, doçura? — perguntou Órion, que tinha acabado de se recuperar do soco na barriga.

       Holly respondeu à pergunta com outra:

       — Você faria uma coisa por mim, Órion?

       O rosto do garoto pareceu se iluminar.

       — Claro. Absolutamente qualquer coisa.

       — Feche os olhos e conte até dez.

       Órion ficou desapontado.

       — O quê? Nenhuma tarefa? Nem mesmo um dragão para matar?

       — Se me ama, feche os olhos.

       Órion fez isso imediatamente e Holly cutucou-o no pescoço com uma Shokker alimentada a bateria. O garoto eletrocutado ficou frouxo no arnês, com duas queimaduras de eletrodos fumegando suavemente no pescoço.

       — Muito bem — disse Potrus, nervoso. — Para mim não no pescoço, se não se incomoda. 

       Holly verificou a Shokker.

       — Não se preocupe, eu só tinha carga suficiente para um.

       Potrus não conseguiu conter um suspiro de alivio e, quando olhou cheio de culpa na direção de Órion, sabendo que na verdade ele é que deveria estar inconsciente, Holly o acertou no flanco com a segunda carga.

       Potrus nem teve tempo de pensar sua elfo ignóbil antes de ficar largado no canto.

       — Desculpe, rapazes — disse Holly, e depois fez uma promessa silenciosa de não falar de novo até a hora de mandar a mensagem.

       O casulo continuou com toda a velocidade em direção à superfície, com a proa cortando a água. Holly o guiou através de um vasto cânion subaquático que havia desenvolvido sua própria ecologia totalmente a salvo da exploração humana. Viu enormes enguias ondulantes que seriam capazes de esmagar um ônibus, estranhos caranguejos com cascos luminosos e algum tipo de criatura de duas patas que desapareceu numa fenda antes que ela pudesse olhar direito.

       Pegou a linha mais direta que pôde através do cânion, encontrando uma chaminé de rocha que lhe permitiu sair em mar aberto.

       Ainda não havia nada no alcance de comunicação. Estava solidamente bloqueada. Precisava se afastar mais ainda.

       Realmente seria bom ter um pouco de magia de feiticeiro agora, pensou. Se o Número Um estivesse aqui, poderia jogar as runas e transformar dióxido de carbono em oxigênio. 

       Água, peixes e bolhas passavam rapidamente pela janela e... será que aquilo era um raio de luz vinda da superfície? Será que o veiculo havia chegado à zona fótica?

       Tentou o rádio de novo. Desta vez ouviu estática, mas talvez com alguma conversa no meio.

       Bom, pensou, mas sua cabeça estava tonta. Será que imaginei isso?

       Não, você ouviu direito, disse o Potrus inconsciente. lhe  falei sobre meus filhos?

       Privação de oxigênio. Era só isso.

       Por que atirou em mim, doçura perguntou o apagado Órion. Será que desagradei você?

       É tarde demais. Tarde demais.

       Agora Holly estava tremendo. Enchia os pulmões mas não se satisfazia com o ar fétido. De repente as paredes do casulo ficaram subitamente côncavas, dobrando-se para esmagá-la.

       — Isso não está acontecendo — gritou, violando seu voto de silêncio.

       Verificou as comunicações de novo. Agora havia algum sinal. Definitivamente eram palavras no meio da estática.

       O bastante para transmitir?

       Só havia um modo de saber.

       Bateu com os dedos nas opções da tela do painel e escolheu TRANSMITIR, mas foi informada de que a antena externa não estava disponível. O computador aconselhou-a a verificar a conexão. Holly encostou o rosto a estibordo e viu que a conexão estava praticamente morta porque toda a antena fora arrancada do suporte por algum dos impactos.

       Por que esse lixo de banheira da idade da pedra não tinha lima antena interna? Até os telefones adesivos têm antena interna

       Telefones! Claro.

       Apertou o botão de liberação do arnês no peito e tombou de joelhos. Escorregou pelo piso, indo na direção de Potrus.

       O cheiro está ruim aqui embaixo. Ar rançoso.

       Por um segundo, uma cabeça de cobra brotou num dos corrimões e sibilou para ela.

       Seu tempo está acabando, disse a cobra. Suas chances são pequenas, Short.

       Não ouça a cobra, disse Potrus, sem mover os lábios. Ela só está com raiva porque sua alma está presa num corrimão por causa de alguma coisa que aconteceu numa vida anterior.

       Ainda te amo, disse Órion adormecido, respirando devagar e em ritmo constante, praticamente sem usar oxigênio.

       Desta vez estou mesmo ficando louca, pensou Holly.

       Holly arrastou-se ao longo do corpo de Potrus e enfiou a mão no bolso da camisa dele para pegar o telefone. O centauro nunca ia a lugar nenhum sem seu precioso telefone e tinha orgulho da aparência desajeitada do aparelho, graças às modificações feitas.

       Eu amo esse telefone, disse Potrus com orgulho. Tem mais de cem mi-ps. Todos projetados por mim. Fiz um legal, chamado Prole. Suponha que você encontre o amor da sua vida, você só precisa  tirar uma foto sua e de seu amado, e o Prole vai mostrar corno serão seus potenciais filhos.

       Fascinante. Espero que você fale sobre isso de verdade uma hora dessas.

       O telefone estava ligado, de modo que não havia necessidade de senha, se bem que, conhecendo Potrus, Holly supôs que a senha dele seria alguma versão de seu próprio nome. A tela era um amontoado louco de mi-ps que provavelmente fariam sentido se você fosse um centauro.

       O problema com todas essas aplicações é que às vezes a pessoa só quer dar um telefonema rápido. Onde está o ícone de telefonar? Então os ícones começaram a acenar para ela.

       — Me escolha — cantavam em coro. — Aqui.

       Isso não é alucinação disse o Potrus apagado, com orgulho. Os carinhos são animados.

       — Telefone — gritou Holly no microfone do aparelho, esperando que ele tivesse controle por voz. Para seu alivio, um ícone turvo mostrando um antiquado fone cônico se expandiu para preencher a tela.

       Na verdade não é turvo. Minha visão está falhando.

       — Ligar para a Delegacia Plaza — ordenou ao ícone. O telefone tiquetaqueou por um minuto e perguntou:

       — Quer ligar para Telemania Pizza?

       — Não. Ligar para a Delegacia Plaza.

       A água passando do lado de fora era definitivamente mais azul, agora, cheia de bolhas e raios de luz refratados.

       — Você quer ligar para a Delegacia Plaza?

       — Quero — ofegou Holly. — Quero, sim.

       Houve mais sacudidas enquanto o casulo passava pela agitação da superfície e era girada pelas ondas.

       — Conectando você com a Delegacia Plaza.

       O telefone zumbiu suavemente enquanto tentava conectar, depois disse numa voz triste e cômica:

       — Ihhh. Seu sinal não tem força suficiente. Gostaria de gravar uma mensagem para eu mandar assim que o sinal tiver força?

       — Sim — grasnou Holly.

       — Você disse fim? Quer desligar?

       Holly se recompôs.

       — Eu gostaria de gravar uma mensagem.

       — Ótimo — respondeu o telefone, todo animado. — Comece a gravar depois do toque de sino, e lembre-se de que bons modos não custam nada, então sempre se apresente e no final diga adeus.

       Diga adeus, pensou Holly. Engraçado.

       Holly gravou uma mensagem concisa contendo o mínimo de tosses e perdigotos que pôde, identificando-se, como o telefone havia sugerido, e também identificando a ameaça que ia na direção de Atlântida. Quase no instante em que terminou, despencou de costas, balançando-se debilmente como um peixe fora d'água. Havia pontos diante de seus olhos, que ficaram maiores e viraram círculos pálidos, amontoando-se, obscurecendo a visão.

       Não viu as cores do lado de fora da escotilha mudar de azul para verde e depois para o branco opaco e perolado do céu do norte.

       Não ouviu as aberturas de ventilação se abrirem nem sentiu o ar frio inundando a cabine, e a capitã Holly Short não soube que, quinze minutos depois de chegar à superfície, sua mensagem para a Delegacia Plaza finalmente seria transmitida e alguma atitude seria tomada quase imediatamente.

       As providências teriam sido tomadas imediatamente se o diabrete que trabalhava na mesa telefônica, um certo Chix Verbil, não tivesse acreditado de inicio que a mensagem era uma brincadeira inventada por seu colega de pôquer, Crooz, para zombar de sua voz nasalada. Chix só decidiu passar a mensagem para o comandante Encrenca Kelp quando lhe ocorreu que poderia haver uma consequência ruim para sua carreira se ignorasse um alerta destinado a salvar Atlântida.

       Encrenca Kelp montou uma vídeo conferência de emergência com o Conselho do Povo, e a evacuação foi aprovada na mesma hora.

       Tornabol Raiz estava ocupado fingindo estar ocupado trabalhando em seu modelo do aquanauta Nostremius, de modo a parecer mais inocente ainda quando viessem pegá-lo, o que tinha certeza de que aconteceria muito em breve.

       Fingir estar ocupado gasta mais energia do que simplesmente me ocupar, percebeu Tornabol, e isso o animou tremendamente, já que era uma observação espirituosa, o tipo de coisa que seus eventuais biógrafos captariam. Mas agora as observações espirituosas precisariam esperar, com relação ao plano. Afinal de contas, as observações espirituosas seriam muito mais agradáveis quando ele tivesse alguém além de Vishby para ouvir. Leonor adorava suas pequenas tiradas e costumava anotá-las em seu diário. Os olhos de Tornabol perderam o foco e suas mãos se imobilizaram enquanto ele se lembrava do primeiro verão que os dois passaram juntos, naquela ilha linda no Pacifico. Ela, parecendo um menino usando colete e culote, ele bonito e jovial com seu uniforme de gala da LEP.

       — Isso nunca vai dar certo, capitão. Como poderia? Eu sou humana, afinal de contas, e você certamente não é.

       E, rápido como um raio, ele pegou as mãos dela e disse:

       — O amor pode romper qualquer barreira. O amor e a magia.

       Efo  então que ele fez com que ela o amasse.

       Leonor deu um pulinho, mas não afastou as mãos.

       — Estou sentindo uma fagulha, Tornabol — exclamou.

       Ele brincou.

       — Eu também senti. — E depois explicou: — É eletricidade estática, isso sempre acontece comigo.

       Leonor acreditou e se apaixonou pelo capitão.

       Ela teria me amado logo, de qualquer modo, pensou Tornabol contrariado. Eu simplesmente apressei o processo.

       Mas ele sabia, no coração, que tinha incrementado as emoções de Leonor com magia, e agora que ela estava tão além de seu fim natural, o controle sobre sua amada estava escorregando.

       Sem magia, será que ela vai me amar tanto quanto eu a amo?, pensava ele mil vezes por dia, e sabia que estava morrendo de medo de descobrir.

       Para manter seus sinais vitais estáveis, Tornabol voltou os pensamentos de novo para seu escravo, o senhor Vishby.

       Vishby era inegavelmente um sujeito repulsivo, e no entanto Tornabol Raiz tinha um ponto fraco pelo rapaz e talvez até decidisse deixá-lo viver quando tudo isso acabasse, ou pelo menos o mataria rapidamente.

       De todas as grandes tramas e roubos impossíveis em que Tornabol estivera envolvido como policial corrupto, fugitivo ou prisioneiro, o ato aparentemente simples de atrair Vishby para o seu lado fora o mais ambicioso. Tinha exigido uma noção de tempo perfeita, audácia e meses de trabalho. Tornabol pensava frequentemente nesse plano que havia posto em ação quase quatro anos antes...

       Não era como se Vishby fosse um humano com natureza já traiçoeira e egoísta. Vishby era uma criatura do subsolo, e a maioria delas, com exceção dos goblins, simplesmente não tinha inclinação para a vida criminosa. Os violadores da lei comuns, como aquele tal de Escavator, eram bastante corriqueiros, mas os criminosos inteligentes, com visão, eram raros.

       O ponto fraco de Vishby era que ele adorava reclamar, e à medida que os meses passavam baixou gradualmente a guarda com Tornabol Raiz e contou tudo sobre seu rebaixamento depois da fuga de Palha Escavator. Também exprimiu amargura com a LEP pela reprimenda, e desejou ser capaz de fazer alguma coisa para se vingar.

       Tornabol viu sua chance — a primeira chance verdadeira de fuga desde a prisão. Formulou um plano para recrutar Vishby.

       O primeiro estágio foi fingir simpatia pelo elfo aquático, ao passo que, na realidade, caso estivesse no comando, o teria descarregado por uma escotilha estanque devido ao desempenho no episódio com Escavator.

       Gosto muito das nossas conversas, disse na ocasião. Como gostaria que pudéssemos conversar mais livremente!

       Vishby se fechou em copas no mesmo instante, lembrando- se de que cada palavra estava sendo gravada.

       Na visita seguinte, Vishby entrou com a cabeça de peixe ligeiramente inclinada e Tornabol soube que seu plano teria sucesso.

       Desliguei o seu microfone, disse o guarda da prisão. Agora podemos falar sobre o que quisermos.

       E então Tornabol soube que o havia dominado. Só seria preciso um pouquinho da magia de Tornabol Raiz para tornar Vishby seu escravo.

       Só que Tornabol Raiz não tinha magia. Esse era o único preço irrevogável que os criminosos pagavam: a perda da magia, para sempre. Dessa penalidade não havia como escapar, e os criminosos exilados vinham tentando durante séculos. Compravam poções, tentavam feitiços, cantavam ao luar, dormiam de cabeça para baixo, banhavam-se em esterco de centauro, eslada funcionava. Uma vez que você tivesse violado as regras, sua magia acabava. Em parte era uma coisa psicológica, mas era principalmente resultado de feitiços antiquíssimos que as administrações sucessivas não sentiam vontade de desfazer.

       Essa recusa de seus direitos básicos de criatura do subsolo sempre havia irritado Tornabol, e durante seus anos como fugitivo ele havia gastado uma fortuna com dezenas de médicos feiticeiros e charlatães que afirmavam ser capazes de deixá-lo quente, com magia até a borda, se ele tomasse essa poção ou recitasse aquele feitiço de trás para a frente no meio da noite enquanto segurava um sapo mal-humorado. Nada deu certo. Nada, até que, um século atrás, Tornabol encontrou uma duende exilada que morava na cidade de Ho Chi Min, que de algum modo fora capaz de manter uma fagulha minúscula de poder, só o bastante para remover algumas verrugas ocasionais. Por um preço gigantesco, que Tornabol teria pago mesmo que fosse um milhão de vezes maior, ela revelou seu segredo:

       Raiz de mandrágora e vinho de arroz. Não vai trazer a doce magia de volta, capitão, mas a cada vez que você tomar as duas coisas, elas lhe darão uma fagulha. Uma fagulha quente de cada vez, e só. Use esse truquezinho co?7i sabedoria, meu capitão, ou a fagulha não estará lá quando você precisar.

       Esta pérola tinha vindo de uma duende alcoólatra.

       Era um truque que ele havia usado no passado, mas não desde que fora preso. Até agora. E assim, para o seu aniversário daquele ano Tornabol tinha pedido um jantar de baiacu com frutinhas vermelhas e raspas de mandrágora, seguido por uma garrafa de vinho de arroz e café artificial. Esse pedido foi acompanhado pela revelação do paradeiro de um notório grupo de contrabandistas de armas, o que seria ótimo para a ficha do supervisor da prisão. Tarpon Vinyáya concordou com o pedido. Quando Vishby chegou com a refeição, Tornabol convidou-o para ficar e conversar. E enquanto batiam papo, Tornabol brincou com a refeição, comendo apenas as aparas de mandrágora e tomando apenas o vinho, o tempo todo reforçando sutilmente as opiniões de Vishby sobre a LEP.

       É, caro Vishby, eles são palermas insensíveis. Quero dizer, o que você deveria fazer? Aquele bandido do Escavator não lhe deixou opção, além de sair correndo.

       E, quando chegou o momento certo, quando Tornabol sentiu uma única fagulha de magia se formar em suas entranhas, pousou a mão de leve no ombro de Vishby, permitindo que seu dedinho tocasse o pescoço nu do elfo aquático.

       Geralmente o toque no pescoço não é grande coisa. Raramente foram travadas guerras por causa de algum toque no pescoço, mas esse toque era cheio de malicia. Porque Tornabol havia pintado na parte carnuda do dedo, com seu próprio sangue, uma runa de escravidão de magia negra. Tornabol acreditava muito em runas. Idealmente, para obter a eficácia máxima, a pessoa que seria enfeitiçada deveria estar com braços e pernas arreganhados sobre uma plataforma de granito, molhada com óleo fermentado a partir de lágrimas de unicórnios e tatuada da cabeça aos pés com símbolos, e depois receberia pelo menos três minutos de magia na cara, mas a gente faz o que pode e espera o melhor.

       Assim Tornabol tocou Vishby no pescoço e transferiu sua única fagulha de magia através do contato.

       Vishby deu um tapa no pescoço como se tivesse ardido.

       — Ai! Ei, o que foi isso? Eu senti uma fagulha, Tornabol.

       Tornabol puxou a mão rapidamente.

       — Eletricidade estática. Isso sempre acontece perto de mim. Minha mãe tinha medo de me beijar. Aqui, Vishby, tome um pouco desse vinho, para compensar o choque.

       Vishby olhou o conteúdo da garrafa, cheio de cobiça. Geralmente as bebidas alcoólicas não eram permitidas na prisão, já que com o uso prolongado causam atrofia nos receptores mágicos. Mas algumas criaturas, assim como os humanos, não resistem ao que é ruim para elas.

       — Estou ao seu dispor — disse ele, aceitando ansioso o copo.

       Éy pensou Tornabol. Agora está mesmo.

       Tornabol soube que daria certo. Tinha dado antes, em mentes mais fortes do que a de Vishby.

       E assim Vishby descobriu que nunca podia dizer não a Tornabol Raiz. Tudo começou com pedidos simples e inofensivos: um cobertor extra, algum material de leitura que não estivesse no sistema da prisão. Mas logo Vishby se pegou totalmente amarrado nos planos de fuga de Tornabol, e mais: não parecia se importar com o envolvimento. Aquela parecia a coisa sensata a fazer.

       Nos quatro anos seguintes Vishby havia passado de guarda a cúmplice. Tinha feito contato com vários presos que ainda eram leais a Tornabol e preparou-os para a grande fuga. Fez várias incursões ao que na época eram os Laboratórios Koboi e usou seu código de segurança para obter acesso à instalação secreta de reciclagem, onde encontrou, dentre outras coisas, o chip do misturador e o infinitamente mais valioso orbe de controle para a sonda Marte. Em algum lugar no fundo da mente, Vishby sabia que alguém acabaria descobrindo esses roubos, mas não conseguia se obrigar a dar importância.

       A maior parte do que havia encontrado nos Laboratórios Koboi não tinha absolutamente nenhuma utilidade ou estava estragado demais para ser consertado, mas o orbe de controle só precisou de uma pequena descamação e da inserção de um novo onissensor. Essas eram tarefas tão simples que Tornabol mandava Vishby fazê-las em casa, com uma pequena supervisão pela webcam, naturalmente.

       Assim que tinha um orbe de controle original funcionando, para Tornabol foi relativamente simples sincronizá-lo com a sonda Marte antes da decolagem e começar a árdua tarefa de reprogramar seus parâmetros de missão. Essa não era uma tarefa que ele poderia terminar antes que a espaçonave deixasse a Terra, mas sem muito esforço conseguia pensar numa dúzia de maneiras pelas quais uma espaçonave desgarrada poderia ser útil. Mas não em Marte.

       Marte? Ah, não, Leonor. Isso fica longe demais e não serve para mim. Vamos esperar até que ela parta em sua missão e depois vamos fazer essa amigona dar meia-volta.

       Seu plano original para a sonda era absolutamente simples: usá-la como uma distração muito grande e muito barulhenta quando retornasse de Marte. Mas, à medida que as comunicações de Leonor ficavam mais escassas e, de algum modo, mais frias, Tornabol percebeu que teria de acelerar a programação e refinar a trama. Era vital que escapasse, porém era mais importante ainda reforçar seu controle sobre Leonor antes que a humanidade dela se reafirmasse por completo. Agora o envelhecimento dela era tão rápido que seria necessário uma magia muito especial para revertê-la. E só havia um local onde conseguir essa magia. Se Julius estivesse vivo, Tornabol teria se preocupado com a hipótese de seu irmão mais novo descobrir a farsa, mas mesmo com Julius fora do páreo ainda havia toda a LEP com que se preocupar. Ele precisava prejudicar a força policial, cortar a cabeça da serpente e talvez o rabo também.

       E assim Tornabol monitorou as comunicações do supervisor Vinyáya, usando a senha que Vishby havia roubado para ele. Tinha interesse especial nos contatos com a irmã do supervisor, a comandante Raine Vinyáya, da LEP.

       A cabeça da serpente.

       A comandante Vinyáya era uma criatura difícil de matar, em especial se sua arma fosse um instrumento rombudo que estava no espaço; e a comandante relutava em ir para a superfície, onde ficava vulnerável.

       E então, no mês anterior, ela havia feito uma ligação por vídeo para o irmão informando, numa voz cheia de risinhos que jamais permitia que outra pessoa ouvisse, sobre sua viagem à Islândia para se encontrar com o Moleque da Lama Artemis Fowl. Aparentemente o garoto estava planejando salvar o mundo.

       O infame Artemis Fowl a comandante Vinyáya e Holly Short, todos juntos num lugar. Perfeito.

       Tornabol ativou seu orbe de controle e mandou um conjunto totalmente novo de parâmetros de missão para a sonda Marte, parâmetros que a sonda sequer questionou porque vinham de seu próprio orbe. Parafraseando: volte à Terra e esmague a comandante e o máximo possível de membros de sua equipe de elite. Esmague-os, depois queime-os, depois eletrocute as cinzas.

       Que divertido!

       E havia o Artemis Fowl. Ele ouvira falar do garoto, e segundo todos os relatos, esse humano em particular era um pouco mais inteligente do que a maioria. Era melhor estudá-lo um pouquinho, só para o caso de o humano também ter planejado alguma traiçãozinha. Tornabol usou o código do supervisor para acessar os arquivos de vigilância da LEP de mais de duzentas câmeras infiltradas na Mansão Fowl e descobriu, para deleite completo, que Artemis Fowl parecia estar desenvolvendo Complexo de Atlântida.

       Atlântida é a palavra mágica para esta missão, pensou ele.

       Tornabol ficou igualmente preocupado com o gigantesco guarda-costas do Garoto da Lama, que parecia o tipo de pessoa capaz de caçar e matar o assassino do patrão.

       O famoso Butler. O homem que derrotou um troll.

       Por sorte, o próprio Artemis tirou Butler da jogada quando sua paranóia chegou ao auge e ele inventou um motivo para mandar o guarda-costas ao México.

       Mesmo que isso complicasse um pouco os planos, Tornabol decidiu ter uma pequena diversão com os Butler, só para cortar qualquer ponta solta que pudesse ser vingativa.

       Sei que você não aprovaria todas essas mortes, Leonor, pensou Tornabol enquanto sentava-se diante do computador, mandando instruções para o terminal de Vishby. Mas elas são necessárias se quisermos ficar juntos para sempre. Essas pessoas são desimportantes, comparadas com nosso amor eterno. E você nunca saberá qual é o preço de nossa felicidade. Tudo que saberá é que estaremos reunidos.

       Mas na verdade Tornabol sabia que gostava tremendamente de todas as maquinações e quase lamentou mandar as ordens de matança. Quase, mas não totalmente. Melhor ainda do que tramar seria todo o tempo que passasse com Leonor, e fazia muito tempo que não via o rosto lindo de sua esposa.

       Assim, mandou para a sonda as ordens de matar e se entupiu de mandrágora e vinho de arroz.

       Por sorte só era necessária uma fagulha mínima de magia para mesmerizar humanos.

       Porque eles têm vontade fraca e são estúpidos. Mas engraçados, como macacos.

       Quando Vishby chegou, naquele último dia de cadeia, Tornabol estava sentado sobre as mãos, esforçando-se para conter a empolgação.

       — Ah, senhor Vishby — disse quando a porta se dissolveu. 

       — Chegou cedo. Há alguma irregularidade com a qual eu deva me preocupar?

       O impassível rosto de peixe de Vishby estava um pouco mais emotivo do que o usual.

       — A irmã do supervisor morreu. A comandante Vinyáya e todo um lançador cheio de agentes da LEP explodiu. Nós fizemos isso?

       Tornabol lambeu a runa de sangue em seu dedo.

       — Se fizemos ou não, não é importante. Você não devia estar preocupado.

       Vishby coçou distraidamente o pescoço, onde uma fraca silhueta da runa ainda reluzia.

       — Não estou preocupado. Por que deveria estar? Isso não teve nada a ver conosco.

       — Bom. Fabuloso. Imagino que tenhamos um peixe maior para pescar.

       Vishby se encolheu diante da referência à pescaria.

       — Ah. Epa, desculpe, senhor Vishby. Eu deveria ser mais sensível. Mas agora diga, quais são as novidades?

       Vishby balançou as guelras por um momento, juntando as frases na cabeça. O capitão Raiz não gostava de gagueira.

       — Há uma sonda espacial vindo diretamente para Atlântida, por isso temos de evacuar a cidade. É provável que a nave não penetre na cúpula, mas o Conselho não pode se arriscar. Fui convocado para pilotar um transporte e você é um dos meus... é... p-passageiros.

       Tornabol suspirou, desapontado.

       — Ah... p-passageiros? Verdade? Vishby revirou os olhos.

       — Desculpe, capitão. Passageiros, claro, um dos meus

       passageiros.

       — Essa gagueira é muito pouco profissional.

       — Eu sei — disse Vishby. — Estou trabalhando nisso. Comprei um daqueles... é... au-audiolivros. Estou nervoso agora.

       Tornabol decidiu pegar leve com Vishby; mais tarde haveria tempo suficiente para disciplina, quando ele estivesse matando o elfo aquático. O castigo definitivo.

       — É natural — disse magnânimo. — O primeiro dia de volta à cadeira de piloto. E há essa sonda misteriosa, além disso você precisa transportar todos nós, prisioneiros perigosos.

       Vishby pareceu mais nervoso ainda.

       — Exato. Bom, o negócio é que... não quero fazer isso, Tornabol, mas...

       — Mas você tem de me algemar — completou Tornabol. — Claro. Entendo completamente. — Ele estendeu as mãos com os pulsos virados para cima. — Só que você não precisa apertar as algemas, não é?

       Vishby piscou e tocou o pescoço.

       — Não. Por que eu iria apertar? Seria uma barbaridade. O elfo aquático pôs um jogo de algemas padrão de polímero

       plástico ultraleve nos pulsos de Tornabol.

       — Confortável? — perguntou.

       De novo Tornabol estava sentindo-se generoso.

       — Vou ficar bem. Não se preocupe comigo. Concentre-se

       no transporte.

       — Obrigado, capitão. Esse é um dia muito importante

       para mim.

       Enquanto Vishby dissolvia a porta, Tornabol ficou pasmo ao ver como o subconsciente do guarda enfrentava o fato de estar traindo tudo em que acreditava. Vishby simplesmente fingia que tudo estava como deveria ser, até o momento em que não estivesse. De algum modo o elfo aquático conseguia manter duas vidas correndo simultaneamente, lado a lado.

       É incrível o que a pessoa faz para evitar a culpa, pensou Tornabol, acompanhando Vishby pela porta e respirando pela primeira vez em anos o ar puro reciclado.

       Atlântida era pequena, segundo os padrões humanos. Com apenas dez mil habitantes, nem se qualificaria como uma cidade para os Homens da Lama, mas para as criaturas do subterrâneo era o segundo centro de governo e cultura, já que o primeiro era a capital, a Cidade de Porto. Havia um lobby cada vez maior querendo demolir Atlântida completamente, já que a manutenção custava uma fortuna em impostos e era apenas questão de tempo antes que os humanos afundassem um dos seus robôs submarinos no lugar certo e descobrissem a cúpula. Mas o orçamento para um projeto de realocação e demolição desses era tão gigantesco que a manutenção continua parecia a opção mais atraente para os políticos. A longo prazo era mais caro, mas os políticos argumentavam que, quando o longo prazo chegasse, outra criatura estaria no comando.

       Vishby guiou Tornabol por um corredor tubular com paredes de perspex, através da qual ele podia ver dezenas de veículos fazendo fila nos vários portões pressurizados da cúpula, esperando para passar as fichas de crédito para a saida. Não parecia haver pânico. E por que haveria? Os atlantes vinham se preparando para um rompimento da cúpula desde o último, mais de oito mil anos atrás, quando um asteroide superaqueceu um tubo de três quilômetros de oceano antes de gastar o restinho de energia derrubando um pedaço da cúpula do tamanho de uma bola de esmagobol, e na época a cúpula não era à prova de estilhaçamento. Em menos de uma hora toda a cidade ficou submersa e houve mais de cinco mil baixas fatais. Foram necessários cerca de cem anos para construir a nova Atlântida em cima dos alicerces fornecidos pelas ruinas da velha, e desta vez uma estratégia de evacuação teve grande importância nas plantas da cidade. Tudo isso significava que, em caso de emergência, cada criatura do sexo masculino, feminino ou crianças pudessem estar fora da cidade em menos de uma hora. Exercícios eram feitos toda semana, e no jardim de infância a primeira cantiga que todo aluno aprendia era:

       A cúpula azul do mar 

       Protege nosso lar; 

       Se ela fizer um crac 

       Prepare-se para evac.

       Tornabol Raiz se lembrou dessa musiquinha enquanto seguia Vishby pelo corredor.

       Crac, evac? Que tipo de rima era essa?. E evac nem era uma pala vra de verdade, era só uma abreviação usada pelos militares. Exatamente o tipo de palavra que Julius usaria.

       Fico muito feliz porque Leonor nunca teve de conhecer meu irmão chato. Se tivesse, nenhuma quantidade de persuasão mágica poderia induzi-la a se casar comigo.

       Parte de Tornabol sabia que ele mantivera Leonor longe do Povo em geral porque uma conversa de dez minutos com qualquer criatura de baixo do mundo mostraria a Leonor que seu marido não era exatamente o nobre revolucionário que ele fingia ser. Por sorte, essa era uma parte de si mesmo que Tornabol havia decidido ignorar.

       Outros prisioneiros saiam trôpegos de suas celas atravessando pontes estreitas até a passarela principal. Cada um deles estava algemado e vestia um macacão verde, da prisão das Profundezas. A maioria soltava as bravatas, com o jeito presunçoso e os risinhos de zombaria óbvios, mas Tornabol sabia, por experiência própria, que os perigosos eram os de olhar plácido. Aqueles nem se importavam mais.

       — Venham logo, prisioneiros — gritou um diabrete tamanho jumbo com aparência Cro-Magnon, um tipo que às vezes surgia em Atlântida devido ao ambiente pressurizado. — Mexam-se ai. Não façam com que eu use o cassetete elétrico.

       Pelo menos estou usando meu uniforme de gala, pensou Tornabol, ignorando o guarda, mas não se sentiu muito consolado. Com ou sem uniforme, estava sendo levado por esse corredor como um prisioneiro comum. Acalmou-se com a decisão de que definitivamente mataria Vishby o mais breve possível e talvez mandaria um e-mail a Lita, parabenizando a namorada do elfo aquático por seu novo status de descompromissada. Ela provavelmente ficaria felicíssima.

       Vishby levantou um punho, fazendo a fila parar num cruzamento. Os prisioneiros foram obrigados a esperar como gado enquanto um grande cubo de metal, preso com faixas de titânio, passava por eles sobre uma carreta flutuante.

       — Opala Koboi — explicou Vishby. — Ela é tão perigosa que nem vão deixá-la sair da cela.

       Tornabol se eriçou. Opala Koboi. As pessoas aqui em baixo passavam os dias fofocando sobre Opala Koboi. O boato atual era que havia outra Opala Koboi em algum lugar, que tinha saído do passado para resgatá-la no presente. As pessoas poderiam fazer mais coisas se parassem de se obcecar com a porcaria da Opala Koboi. Se alguém devesse se preocupar com a Koboi, era ele. Afinal de contas, ela havia assassinado seu irmão mais novo. Por outro lado, era melhor não se preocupar — pensar no passado poderia causar a volta de sua úlcera.

       O cubo demorou uma eternidade para passar, e Tornabol contou três portas na lateral.

       Três portas. Minha cela só tem uma porta. Por que Koboi precisa de uma cela tão grande a ponto de ter três portas?

       Não importava. Ele estaria fora dali em pouco tempo e então poderia tratar de si mesmo como alguém da realeza.

       Leonor e eu voltaremos à ilha onde nos conhecemos de modo tão dramático.

       Assim que o cruzamento ficou livre, Vishby guiou-os na direção de sua área de embarque. Através do plástico transparente, Tornabol notou multidões de civis andando com rapidez, mas sem pânico visível, em direção aos casulos de resgate. Nos níveis superiores, grupos dos cidadãos mais ricos de Atlântida caminhavam para transportes de evacuação particulares que provavelmente custavam mais do que Tornabol seria capaz de roubar em uma semana.

       Os babados voltaram à moda, observou Tornabol com prazer. Eu sabia.

       O corredor se abriu para uma baia de carga onde grupos de prisioneiros esperavam impacientes perto das aberturas estanques que davam diretamente no mar aberto.

       — Isso tudo é tão desnecessário! — disse Vishby. — Os canhões de água vão despedaçar essa tal sonda. Todos vamos voltar para cá em alguns minutos.

       Nem todos, pensou Tornabol, não se incomodando em esconder um sorriso. Alguns não voltarão nunca.

       E nesse instante soube que era verdade. Mesmo que seu plano fracassasse, ele jamais voltaria. De um modo ou de outro, Tornabol estaria livre.

       Vishby bipou a porta do transporte com sua chave e os prisioneiros algemados entraram. Assim que estavam sentados, Vishby ativou barras de segurança parecidas com as dos brinquedos de parques de diversão, que também serviam para prender os passageiros no lugar. Os presos ficaram grudados em seus bancos e continuavam algemados. Totalmente impotentes.

       — Pegou rodo mundo, Peixby? — perguntou o diabrete Cro-Magnon.

       — Peguei. E meu nome é Vishby!

       Tornabol deu um risinho. Maus tratos por parte dos colegas, outro motivo para ter conseguido dominar Visbhy tão facilmente.

       — Foi o que eu disse, Frisbee. E agora por que não pilota essa banheira para longe daqui e deixe que eu tome conta desses condenados perigosos?

       Vishby se eriçou.

       — Ei, espera um minuto...

       Tornabol Raiz não tinha tempo para discussão.

       — Excelente ideia, senhor Vishby. Use bem aquela licença de piloto e deixe seu colega aqui vigiar a gente, os condenados perigosos.

       Vishby tocou o pescoço.

       — Claro. Por que não? Meu dever é tirar vocês daqui.

       — Exato. Você sabe que isso faz sentido.

       — Ande, Peixe-boy — zombou o guarda grandalhão, cujo crachá fora alterado para R-MAX. — Faça o que o prisioneiro diz.

       Vishby sentou-se diante dos controles e fez uma rápida verificação de pré-decolagem, assobiando baixinho através das guelras para não ouvir as zombarias de R-Max.

       Esse tal de R-Max não sabe em que encrenca se meteu, pensou Tornabol, e a idéia o agradou tremendamente. Sentia-se poderoso.

       — Com licença, senhor... R-Max, não é?

       R-Max franziu os olhos de um modo que achava ameaçador, mas o efeito verdadeiro era fazer com que parecesse miope e talvez com prisão de ventre.

       — Isso mesmo, prisioneiro. R da Max. O rei da segurança máxima.

       — Ah, sei. Uma alcunha. Que romântico da sua parte!

       R-Max girou seu cassetete elétrico.

       — Não há nada romântico em mim, Raiz. Pergunte às minhas três ex-esposas. Estou aqui para causar desconforto, só isso.

       — Epa — disse Tornabol em tom de diversão. — Desculpe ter falado qualquer coisa.

       Essa pequena troca de palavras deu a Vishby a chance de tirar o transporte da doca e a um dos outros ocupantes um momento para se orientar e perceber que seu velho lider estava para agir. De fato, dos doze espécimes durões e dispostos, trancados sob as barras de segurança do transporte, dez haviam servido a Tornabol em algum momento, e a maioria havia se dado muito bem com isso, até a captura. Assim que Vishby fora recolocado na ativa, garantiu facilmente que esses prisioneiros tivessem lugar naquele transporte.

       Vai ser bom o capitão ter amigos por perto num momento de crise, pensou ele.

       O amigo mais importante era o duende Unix B'lob, que estava sentado do outro lado do corredor vulcanizado, diante de Tornabol. Unix era um duende que não voava, com cotocos cauterizados no lugar onde as asas deveriam estar. Tornabol havia arrastado Unix para fora de um buraco de troll, e o duende serviu como seu braço direito desde então. Era o melhor tipo de tenente, o que jamais questionava ordens. Unix não justificava nem priorizava; estava igualmente preparado para morrer pegando um café para Tornabol ou para roubar uma ogiva nuclear.

       Tornabol piscou para o subordinado, dando a entender que hoje era o dia. Unix não reagiu, mas afinal de contas ele reagia raramente, a indiferença gelada era sua atitude com relação a praticamente tudo.

       Anime-se, Unix, meu velho, queria gritar Tornabol. A morte e o tumulto generalizado virão logo.

       Mas por enquanto teve de se contentar com a piscadela.

       Vishby estava nervoso, e isso era visível. O transporte avançou em saltos espasmódicos, raspando um para-choque na doca.

       — Muito bem, Vishby — rosnou R-Max. — Está tentando esmagar a gente antes que a sonda faça isso?

       Vishby ficou vermelho e segurou o manche com tanta força que os nós dos dedos reluziram verdes-brilhantes.

       — Tudo bem. Agora peguei o jeito. Sem problema.

       O transporte se afastou do abrigo das enormes barbatanas curvas que faziam afunilar para longe da cúpula as piores correntes subaquáticas, e Tornabol desfrutou da visão da nova Atlântida recuando. A paisagem era um amontoado turvo de torres e minaretes tradicionais ao lado de pirâmides de vidro e aço mais modernas. Centenas de casulos filtrantes parecendo persianas ficavam nos cantos dos gigantescos pentágonos de polímero que se juntavam para formar a cúpula protetora sobre Atlântida.

       Se a sonda acertasse um casulo filtrante, a cupula poderia desmoronar, pensou Tornabol, e depois: Ah, olha, eles usaram desenhos de crianças para decorar as barbatanas. Que divertido!

       E seguiram, passando pelos canhões de água eretos em seus suportes, só esperando as coordenadas.

       Adeus, minha sonda, pensou Tornabol. Você me serviu bem, e vou sentir sua falta.

       Uma flotilha fugia da cidade ameaçada: veículos de passeio e lançadores urbanos, transportes de tropas e prisioneiros, todos partindo na direção do marco de dezesseis quilômetros onde os cientistas garantiam que a onda de choque se dissiparia tornando-se uma simples ondulação. E ainda que a frota parecesse caótica, não era. Cada veiculo tinha um marco onde atracar no circulo de dezesseis quilômetros.

       A confiança de Vishby estava aumentando e ele rapidamente navegou pelas profundezas escuras na direção de seu marco, mas descobriu que uma lula gigante havia se prendido à boia pulsante, dando bicadas no farol que piscava.

       O elfo aquático virou o cano de descarga do transporte na direção da criatura, que partiu para longe numa fúria de tentáculos ondulantes. Vishby deixou o controle de estacionamento automático assumir, baixando o transporte em sua baia de atracação magnética.

       R-Max deu um riso de escárnio.

       — Você não deveria atirar nos seus primos, Peixe-boy. Assim

       não vai ser convidado para as festas de família.

       Vishby deu um soco no painel de instrumentos.

       — Já estou farto de você!

       — Eu também — disse Tornabol, e estendeu a mão, tirando com um movimento casual o cassetete elétrico do cinto de R-Max. Ele poderia ter dado um choque no diabrete jumbo imediatamente, mas queria que ele percebesse o que estava acontecendo. Isso demorou.

       — Ei — disse R-Max. — O que você...? Você acabou de pegar... — E então veio o momento em que a lâmpada se acendeu no cérebro. — Você não está algemado.

       — Garoto esperto — disse Tornabol, e mandou o cassetete contra a barriga de R-Max, fazendo dez mil volts estalarem pelo corpo do diabrete. O guarda estremeceu nas pontas dos pés como um bailarino clássico possesso, depois despencou num monte que parecia desossado.

       — Você deu um choque no meu colega policial — disse Vishby obedientemente. — E isso deveria me perturbar, mas para mim está tudo bem, mais do que bem, na verdade, mesmo que você não perceba pelo meu tom de voz.

       Tornabol deu outra piscadela para Unix, querendo dizer: Veja o gênio do seu chefe trabalhando.

       — Você não precisa sentir nada, Sr. Vishby. Só precisa soltar as barras três e seis.

       — Só a três e a seis? Não quer soltar todos os seus amig0s> Você ficou solitário por muito tempo, Tornabol.

       As barras três e seis subiram e Tornabol se levantou, esticando as pernas com prazer, como se tivesse ficado sentado por séculos.

       — Por enquanto, não, senhor Vishby. Alguns dos meus amigos podem ter me esquecido.

       Unix também foi libertado e passou a trabalhar imediatamente, tirando as botas e o cinto de R-Max. Em seguida tirou a metade de cima de seu próprio macacão e amarrou-o na cintura, de modo que as cicatrizes dos cotocos das asas pudessem pegar um pouco de ar.

       Tornabol sentiu uma pontada de inquietação. Unix era um sujeito perturbador, leal até a morte, mas estranho a mais não poder. Aqueles cotocos poderiam ser retirados com uma plástica, mas ele preferia mantê-los, como troféus.

       Se algum dia ele mostrar o menor sinal de deslealdade, terei de matá-lo como um cão. Sem hesitar.

       — Tudo certo, Unix?

       O duende pálido fez uma pequena reverência, depois continuou a revistar R-Max.

       — Muito bem — disse Tornabol, ocupando o centro do palco para seu grande discurso. — Senhores, estamos à beira do que a imprensa costuma chamar de fuga audaciosa. Alguns de nós vão sobreviver, e infelizmente alguns não vão. A boa noticia é que a escolha é de vocês.

       — Eu escolho sobreviver — disse Ching Mayle, um goblin carrancudo com marcas de mordida no crânio e músculos até nas orelhas.

       — Não tão depressa, Mayle. E necessário um pouco de fé.

       — Pode contar comigo, capitão.

       Isso quem disse foi Bobb Ragby, um anão que usava um elemento de contenção extra na forma de um anel bucal. Ele havia lutado com Tornabol em muitas escaramuças, inclusive a fatídica nas ilhas Tern, onde Julius Raiz e Holly Short finalmente prenderam Tornabol.

       Tornabol deu um peteleco no anel bucal de Bobb, que fez

       um ping..

       — Posso, senhor Ragby ou a prisão o amoleceu? O senhor ainda tem pique?

       — Basta tirar esse anel para descobrir. Vou engolir aquele guarda inteiro.

       — Que guarda? — perguntou Vishby nervoso, apesar da runa de escravidão que pulsava em seu pescoço.

       — Você não, Vishby — disse Tornabol tranquilizando-o. — O Senhor Ragby não falou de você, falou, senhor Ragby?

       — Na verdade, falei.

       Os dedos de Tornabol foram até a boca.

       — Que perturbador! Estou em conflito, senhor Vishby. O serviço que me prestou não foi pequeno, mas o Bobb Ragby quer comer você, e isso seria divertido. Além do mais ele fica mal-humorado se a gente não o alimenta.

       Vishby quis ficar aterrorizado, tomar alguma atitude radical mas a runa em seu pescoço proibia qualquer emoção além de uma leve ansiedade.

       — Por favor, Tornabol, capitão. Achei que éramos amigos

       Tornabol Raiz pensou nisso.

       — Você é traidor do seu povo, Vishby. Como posso ter um traidor como amigo?

       Até mesmo dopado pela magia, Vishby pôde ver a ironia daquilo. Afinal de contas, Tornabol não tinha traido sua espécie em numerosas ocasiões, até mesmo sacrificando membros da fraternidade criminosa em busca de confortos na cela?

       — Mas as peças do seu modelo. — questionou ele debilmente. — E o computador. Você entregou os nomes de...

       Tornabol não gostou do caminho que aquela conversa estava tomando, por isso deu dois passos e rapidamente deu um choque nas guelras de Vishby. O elfo aquático tombou de lado no banco do piloto e ficou pendurado no cinto de segurança, os braços balançando, as guelras ondulando.

       — Blá, blá, blá — disse Tornabol todo animado. — Todos esses guardas são iguais. Sempre pondo a culpa nos presos, não é, rapaziada?

       Unix girou a cadeira de Vishby e começou uma busca metódica, pegando qualquer coisa que pudesse ser usada, até mesmo um pequeno pacote de pastilhas para indigestão, porque nunca se sabe.

       — A escolha é a seguinte, senhores — disse Tornabol para sua platéia cativa. — Vão lá para fora comigo agora ou fiquem e esperem que uma acusação de agressão seja acrescentada à sua sentença.

       —  É só sair? — perguntou Bobb Ragby, meio rindo.

       Tornabol deu um sorriso fácil, charmoso como o diabo.

       — É isso ai, rapazes. Vamos sair para a água.

       — Eu li alguma coisa sobre a existência de pressão embaixo d'água.

       — Eu também li — disse Ching Mayle, lambendo um dos globos oculares. — Não vamos ser esmagados?

       Tornabol deu de ombros, adorando aquele momento.

       — Confiem em mim, rapazes. Tudo tem a ver com confiança. Se não confiam em mim, fiquem aqui e apodreçam. Preciso de homens em quem possa confiar, especialmente depois do que planejei. Pensem nisso como um teste.

       Houve vários gemidos. O capitão Raiz sempre tivera uma queda por testes. Não bastava ser um saqueador assassino: a pessoa tinha de passar por todos aqueles testes. Uma vez ele fez todos os membros do grupo comerem vermes fedorentos crus só para provar que estavam preparados para obedecer a uma ordem, por mais que fosse ridicula. Naquela semana o encanamento do esconderijo sofreu um bocado.

       Ching Mayle coçou as marcas de mordida no cocuruto.

       — Essas são as nossas opções? Ficar aqui ou ir para fora?

       — Dito de modo sucinto, senhor Mayle, sim. Às vezes um vocabulário limitado pode ser vantajoso.

       — Podemos pensar?

       — Claro, demorem o quanto quiserem — respondeu Tor nabol magnânimo. — Desde que suas reflexões não demorem mais de dois minutos.

       Ching franziu a testa.

       — Minhas reflexões podem demorar horas, em especial se eu tiver comido carne vermelha.

       A maioria das criaturas do subterrâneo achava carne animal uma coisa nojenta, mas cada enclave tinha sua facção onivora.

       — Dois minutos? Sério, capitão?

       — Não.

       Bobb Ragby teria coçado a testa se pudesse alcançá-la.

       — Graças aos deuses.

       — Agora são cem segundos. Rápido, pessoal. Tic-tac.

       Unix se levantou depois de terminar a busca e ficou parado sem dizer nada ao lado de Tornabol.

       — Um. Quem mais está disposto a pôr a vida nas minhas mãos?

       Ching assentiu.

       — Acho que sim. O senhor foi bom comigo, capitão. Eu nem havia sentido ar puro até me juntar ao senhor.

       — Conte comigo — disse Bobb Ragby, chacoalhando sua barra. — Estou com medo, capitão. Não vou negar, mas prefiro morrer como pirata do que voltar à prisão das Profundezas.

       Tornabol levantou uma sobrancelha.

       — E?

       A voz de Ragby estava gutural, de tanto medo. — E o quê, capitão? Eu disse que sairia.

       —  É a sua motivação, senhor Ragby. Preciso de mais do que uma relutância em voltar à prisão.

       Ragby bateu com a cabeça na barra.

       — Mais? Quero ir com o senhor, capitão. Honestamente. Juro. Nunca encontrei um lider como o senhor.

       — Verdade? Não sei. Você parece relutante.

       Ragby não era a inteligência mais afiada do mundo, mas suas entranhas lhe diziam que ir com o capitão era muito mais seguro do que ficar ali. Tornabol Raiz era famoso por lidar com evidências e testemunhas de modo severo. Corria uma lenda nos bares de criaturas fugitivas que uma vez o capitão queimou todo um complexo de compras só para se livrar de uma impressão digital que ele podia ter deixado numa mesa do Sandubas Sarados.

       — Não estou relutando, capitão. Me leve, por favor. Sou seu fiel Ragby. Quem foi que atirou naquela criatura em Tern Mór? Fui eu. O bom e velho Bobb.

       Tornabol enxugou uma lágrima imaginária no olho.

       — Seu pedido patético me comove, caro Bobb. Muito bem, Unix, solte os senhores Ragby e Ching.

       O duende mutilado obedeceu, depois soltou o cinto de segurança de Vishby e puxou-o para cima.

       — E o vira-casaca? — perguntou Unix.

       Tornabol levou um susto ao som da voz reptiliana de Unix. Percebeu que, em todo o tempo que haviam passado juntos, não tinha ouvido o duende falar mais do que uma centena ae palavras.

       — Não. Deixe-o. O vinho de arroz me faz mal ao estômago

       Outros tenentes poderiam pedir uma explicação para isso mas não Unix, que nunca queria saber coisas que não precisava saber, e até mesmo essa informação foi ejetada de seu cérebro assim que deixou de ser útil. O duende simplesmente assentiu e empurrou Vishby de lado, como um saco de lixo.

       Ragby e Ching se levantaram rapidamente, como se fossem repelidos pelos bancos.

       — Estou me sentindo esquisito — disse o goblin, enfiando o dedinho numa das marcas de dentes em sua careca. — É bom porque tô livre, mas meio ruim também porque posso morrer.

       — Você nunca teve um filtro muito grande entre o cérebro e a boca, senhor Mayle — gemeu Tornabol. — Não faz mal, eu é que sou pago para pensar. — Em seguida se virou para o resto dos prisioneiros. — Mais alguém? Restam vinte segundos.

       Quatro mãos se levantaram. Duas pertencentes à mesma pessoa, que estava desesperada para não ficar para trás.

       — Tarde demais — disse Tornabol, e fez um gesto para os três acólitos escolhidos ficarem ao seu lado. — Cheguem mais perto, precisamos de um abraço grupai.

       Abraço não era hábito ao qual ninguém que conhecesse Tornabol jamais iria associá-lo. Uma vez o capitão atirou num elfo por sugerir um high-five, de modo que foi um esforço para Bobb e Ching esconderem o choque do rosto. Até Unix levantou uma sobrancelha pontuda.

       — Ora, senhores, será que sou tão apavorante assim?

       É, quis gritar Bobb. Você é mais apavorante do que uma mãe anã com um rolo de pastel. Mas em vez disso torceu a boca em algo que se aproximava de um sorriso e foi abraçar Tornabol. Unix também chegou perto, assim como Ching.

       — Não somos um grupinho estranho? — perguntou Tornabol todo animado. — Honestamente, Unix. E que nem abraçar uma tábua. E você, senhor Ragby, o senhor fede um bocado. Alguém já lhe disse?

       Ragby murmurou uma admissão do fato.

       — Algumas pessoas. Meu pai, todos que trabalharam comigo.

       — Então não sou o primeiro, graças aos deuses. Não me importo de confirmar noticias ruins, mas não gosto de dá-las.

       Bobb Ragby sentiu vontade de chorar; por algum motivo aquela falação idiota era aterrorizante.

       Um estrondo atravessou o casco metálico do transporte. O barulho foi ficando cada vez mais alto até encher por completo, o pequeno espaço. Indo de nada a tudo em cinco segundos.

       — Os dois minutos acabaram — gritou Tornabol. — É hora de os fiéis saírem.

       De repente o casco acima da cabeça do pequeno grupo reluziu rubro enquanto alguma coisa o derretia pelo lado de fora. Vários alarmes pulsaram no mostrador do para-brisa.

       — Uau — gritou Tornabol. — De repente, é o caos completo. O que pode estar acontecendo?

       Agora a seção do teto estava derretida e deveria ter pingado sobre o grupo, queimando a carne de todos, mas de algum modo foi sugada para fora. Com uma bolha incandescente depois da outra, um grande circulo do teto foi sugado até não haver nada impedindo o mar de entrar, a não ser algum tipo de gel.

       — Devemos prender o fôlego? — perguntou Bobb Ragby, tentando não soluçar.

       — Não adianta muito, na verdade — respondeu Tornabol, que adorava brincar com as pessoas.

       É legal saber mais do que todo mundo, pensou, e em seguida quatro amorfobôs, que tinham se fundido numa única bolha gelatinosa, mergulharam um gordo tentáculo no interior do transporte e sugaram o capitão Raiz e sua turma, com tanta facilidade quanto um anão sugando um caramujo de dentro da casca. Num segundo estavam ali, e no outro não restava nada além de uma ligeira mancha no convés e o eco de um som de sugar molhado.

       — Estou feliz por ficar onde estou — disse um dos prisioneiros que permaneceram, e que jamais havia servido com Tornabol. Na verdade, tinha recebido sua sentença de seis anos por fazer cópias bem-feitas de colheres colecionáveis com desenhos de personagens de desenhos animados. — Aquela bolha pareceu assustadora.

       Nenhum dos outros falou, já que perceberam imediatamente como seria a catástrofe resultante do momento em que a coisa bolhosa se soltasse do enorme buraco no casco.

       Por acaso, a catástrofe esperada não teve chance de acontecer, porque, assim que os amorfobôs sairam do lugar, o buraco foi preenchido pela sonda desgarrada, que tinha se desviado subitamente do rumo para se chocar contra o transporte, era- vando-o no fundo do leito rochoso do oceano e esmagando-o completamente. Quanto às pessoas dentro do veiculo, foram na maioria liquefeitas. Meses se passariam antes que esses restos fossem identificados. A cratera de impacto tinha mais de quinze metros de profundidade e pelo menos a mesma largura. O choque ondulou pelo leito marinho, dizimando a ecologia local e empilhando meia dúzia de veículos de resgate como se fossem legos.

       A gigantesca amorfobolha levou Tornabol e seus capangas rapidamente para longe do local de impacto, imitando perfeitamente o movimento de uma lula gigante, até mesmo brotando tentáculos de gel que afunilavam a água num cone apertado atrás. Dentro do corpo principal do gel, duas criaturas estavam perfeitamente calmas: Tornabol poderia ser chamado de sereno e Unix permanecia tão imperturbável com aquela última surpresa quanto por qualquer coisa que tivesse visto em sua longa vida. Sobre Bobb Ragby, por sua vez, poderíamos dizer que estava aterrorizado além da capacidade de sua mente minúscula. Tornabol havia convocado os amorfobôs e tinha uma boa idéia do que esperar, mas para Ragby eles tinham sido engolidos por um monstro gelatinoso e estavam sendo carregados para o covil da fera, para serem consumidos durante um longo e tenebroso inverno. Ching Mayle só conseguia pensar repetidamente em uma frase: estou arrependido de roubar a bengalinha de açúcar, que provavelmente se referia a um incidente que só era significativo para ele e para a pessoa que perdera a bengalinha de açúcar.

       Tornabol estendeu a mão para o amontoado de equipamentos eletrônicos na barriga do amorfobô e pegou uma pequena máscara sem fio, que pôs sobre o rosto. Era possível falar através do gel, mas a máscara tornava isso infinitamente mais fácil.

       — Bom, bravos rapazes — disse. — Agora estamos oficialmente mortos e livres para roubar o recurso natural mais poderoso da LEP. Uma coisa verdadeiramente mágica.

       Ching largou sua lengalenga sobre a bengalinha de açúcar. Abriu a boca para falar, mas percebeu rapidamente que, ainda que o gel fornecesse oxigênio para os pulmões, não sustentava a fala muito bem, sem máscara.

       Gorgolejou um momento, depois decidiu deixar a pergunta para mais tarde.

       — Posso adivinhar o que ia dizer, senhor Mayle — disse Tornabol. — Por que, diabos, queremos nos meter com a LEP? Certamente deveríamos ficar o mais longe da policia que pudéssemos. — Uma luz âmbar na barriga do robô lançava sombras sinistras no rosto do capitão. — Digo que não. Digo que devemos atacar agora e roubar o que precisamos bem debaixo do nariz deles, e, já que estamos com a mão na massa, vamos espalhar um pouco de destruição e tumulto para encobrir os rastros. Vocês viram o que posso fazer mesmo preso numa cela. Imaginem o que será possível fazer nesse mundão.

       Era difícil questionar isso, em especial porque a criatura que apresentava o argumento controlava aquela coisa-robô de gelatina que mantinha todo mundo vivo, e ninguém mais sabia se podia falar ou não. Tornabol Raiz sempre escolhia bem o momento.

       O amorfobô mergulhou rapidamente atrás de um recife, escapando da maior parte da onda de choque. Lascas de pedra e pedaços de coral cairam pela água escura, mas foram rejeitados pelo gel. Uma lula se aventurou perto demais e levou uma lambida de um geltáculo eletrificado. E enquanto as paredes de um enorme penhasco submarino relampejava em tiras de cinza e verde, Tornabol suspirou em sua máscara, que amplificou e distorceu o som.

       Estou indo, amor, pensou ele. Logo estaremos juntos.

       Decidiu não falar isso em voz alta, já que até Unix poderia achar meio melodramático.

       Tornabol percebeu, com um tremor, que estava completamente feliz, e o custo dessa felicidade não o incomodou nem um pouco.

       ARTEMIS observava e pensava, confinado em seu próprio cérebro, olhando através da parede perigosa em seu escritório imaginário. A — situação era interessante, na verdade, era fascinante, e quase o distraiu de seus próprios problemas. Alguém tinha decidido sequestrar a sonda Marte de Potrus e apontá-la diretamente para Atlântida. E não poderia ser coincidência a sonda ter parado na Islândia para cuidar da comandante Vinyáya e seus melhores soldados, para não mencionar o aliado mais inteligente do Povo subterrâneo, seu único aliado humano: Artemis Fowl.

       Há um plano complexo sendo executado na nossa frente; isso não é apenas uma série de coincidências. 

       Não que Artemis não acreditasse em coincidências — ele só achava que uma série delas era difícil de engolir.

       Havia uma pergunta principal, para Artemis: quem se beneficiaria disso?

       Quem se beneficiaria se Vinyáya morrer e Atlântida for ameaçada?

       Vinyáya era bem conhecida por sua abordagem de tolerância

       zero ao crime — um número grande demais de criminosos adoraria tê-la fora do caminho —, mas por que Atlântida?

       Claro, a prisão! Deve ser Opala Koboi; essa seria sua aposta para a liberdade. A sonda  provoca uma evacuação que a leva para fora   da   cúpula.

       Opala Koboi, inimiga pública número um. A duende- diabrete que havia incitado os goblins a uma revolução e assassinara Julius Raiz.

       Deve ser Opala.

       Artemis se corrigiu: Provavelmente é Opala. Não tome conclusões precipitadas.

       Era de enfurecer, ficar preso dentro do próprio cérebro quando havia tanta coisa acontecendo no mundo. Seu protótipo de nanopastilhas, o Cubo de Gelo, tinha sido destruído e, mais urgentemente, havia uma sonda indo para Atlântida, uma sonda que poderia destruir a cidade ou pelo menos permitir que uma duende-diabrete homicida escapasse.

       — Deixe-me sair, está bem? — gritou Artemis para a tela mental, e os quatros tremeluzentes se arrumaram em quadrados e fizeram uma treliça de fios brilhantes relampejar na tela.

       Artemis teve sua resposta.

       Eu fui posto aqui pela eletricidade, e agora ela está impedindo a minha saída.

       Artemis sabia da existência de muitos institutos de boa reputação pelo mundo afora que ainda usavam a terapia de eletrochoque para cuidar de várias doenças psicóticas. Percebeu isso quando Holly disparou com a Neutrino e a carga deu força à personalidade de Órion, tornando-a dominante. É uma pena Holly não atirar em mim de novo.

       Holly atirou nele de novo.

       Artemis pensou ver dois garfos serrilhados feitos de relâmpago branco riscando o ar e tornando a tela branca.

       Eu não deveria sentir nenhuma dor, raciocinou com esperança, já que tecnicamente não estou consciente.

       Consciente ou não, Artemis sentiu tanta agonia quanto Orion. Era de se esperar, considerando como meu dia está se desenrolando, pensou enquanto suas pernas imaginárias se dobravam embaixo dele.

       OCEANO ATLÂNTICO NORTE, AGORA

       Artemis acordou algum tempo depois, com o cheiro de carne chamuscada nas narinas. Sabia que estava de volta ao mundo real por causa do arnês apertando seus ombros e dos sacolejos do mar, que o deixava nauseado.

       Abriu os olhos e se viu encarando a anca de Potrus. A perna traseira do centauro chutava espasmodicamente enquanto ele batalhava contra demônios do sono. Havia música tocando em algum lugar. Música familiar. Artemis fechou os olhos e pensou: Essa música é familiar porque eu a compus: "Canção da Sereia” da minha Terceira Sinfonia, inacabada.

       E por que isso era importante?

       É importante porque a coloquei como o toque do telefone para quando minha mãe me ligar. Ela está telefonando para mim.

       Artemis não deu tapinhas nos bolsos procurando o telefone, porque sempre o mantinha no mesmo bolso. De fato, sempre mandava os alfaiates costurarem um compartimento com aba de couro no bolso do peito, de modo que o telefone não ficasse solto por ai. Porque, se Artemis deixasse seu telefone solto por ai, isso seria um pouco mais sério do que se Zezinho Adolescente perdesse o último modelo com tela sensível ao toque, a não ser que o telefone de Zezinho Adolescente por acaso tivesse tecnologia suficiente para derrubar qualquer site do governo, um belo laser que podia cortar metal e o primeiro esboço das memórias de Artemis Fowl, que fazia um pouco mais do que revelar curiosidades superficiais.

       Os dedos de Artemis estavam frios e entorpecidos, mas depois de algumas tentativas ele conseguiu abrir o compartimento e tirar o telefone. Na tela, o telefone mostrava uma série de fotos de sua mãe, enquanto os primeiros compassos da "Canção da Sereia" chegavam pelos alto-falantes minúsculos.

       — Telefone — disse ele em tom claro, segurando um botão para ativar o controle de voz.

       — Sim, Artemis — respondeu o telefone com a voz de Lily pronde, uma voz que Artemis havia escolhido simplesmente para chatear Holly.

       — Aceitar a ligação.

       — Claro, Artemis.

       Um instante depois a conexão se completou. O sinal era fraco, mas isso não importava, porque o telefone de Artemis tinha um preenchimento automático de fala com noventa e cinco por cento de precisão.

       — Olá, mãe. Como vai?

       — Arty, você está me ouvindo? Estou escutando um eco.

       — Não. Não há nenhum eco deste lado. Posso ouvir perfeitamente.

       — Não consigo fazer o vídeo funcionar, Artemis. Você prometeu que nós iriamos nos ver.

       A opção de chamada por vídeo estava disponível, mas Artemis rejeitou-a porque não achava que sua mãe ficaria contente ao ver o filho desgrenhado pendendo num arnês num casulo de fuga meio destruído.

       Desgrenhado? Com quem estou brincando? Devo parecer um refugiado de uma zona de guerra, e é exatamente isso que sou.    

       — Não há rede de vídeo na Islândia. Eu deveria ter verificado.

       — Hmm — disse sua mãe, e Artemis conhecia bem aquela silaba. Significava que ela suspeitava de alguma coisa, mas não sabia exatamente do quê. — Então você está mesmo na Islândia?

       Artemis ficou feliz porque não tinha conexão de vídeo, já que seria mais difícil mentir cara a cara.

       — Claro que estou. Por que está perguntando?

       — Estou perguntando porque o GPS diz que você está no oceano Atlântico Norte.

       Artemis franziu a testa. Sua mãe havia insistido numa função de GPS no telefone, para deixar que ele viajasse sozinho.

       — Provavelmente é um bug no programa — disse Artemis, enquanto entrava no aplicativo de GPS e estabelecia manualmente sua localização para Reykjavik. —Às vezes o localizador fica meio ruim. Tente de novo.

       Silêncio por um momento, a não ser pela digitação das teclas, e depois outro hmmm.

       — Acho que é redundante perguntar se você não está aprontando alguma coisa, não é? Artemis Fowl está sempre aprontando.     

       — Isso não é justo, mãe. Você sabe o que estou tentando fazer.

       — Sei mesmo. Meu Deus, Arty, você não fala em outra coisa. O PROJETO.

       — Ele é importante.

       — Eu sei, mas as pessoas também são. Como vai Holly?

       Artemis olhou para Holly, enrolada em volta da perna de um banco e roncando baixinho. Seu uniforme parecia muito danificado e havia sangue escorrendo de um ouvido.

       — Ela está... é... bem. Meio cansada da viagem, mas totalmente no controle da situação. Eu a admiro, mãe, admiro de verdade. O modo como ela enfrenta tudo que surge na sua vida e nunca desiste.

       Angeline Fowl inspirou o ar com surpresa.

       — Ora, Artemis Fowl Segundo, esse deve ser o discurso não cientifico mais longo que já ouvi você fazer. Holly Short tem sorte de ter um amigo como você.

       — Não, não tem — disse Artemis, arrasado. — Ninguém tem sorte de me conhecer. Não consigo ajudar ninguém. Nem a mim mesmo.

       — Não é verdade, Arty — reagiu Angeline com ênfase. — Quem salvou Porto dos goblins?

       — Algumas pessoas. Acho que tive uma participação nisso.

       — E quem encontrou seu pai no Ártico quando todo mundo achava que ele havia morrido?

       — Fui eu.

       — Bom, então não diga que não consegue ajudar ninguém. Você passou a maior parte da vida ajudando. Você cometeu alguns erros, mas seu coração está no lugar certo.

       — Obrigado, mãe. Agora estou me sentindo melhor.

       Angeline pigarreou — com um pouco de nervosismo, pensou Artemis.

       — Está tudo bem? — perguntou ele.

       — Está, claro. Só há uma coisa que preciso lhe dizer.

       Artemis ficou subitamente nervoso.

       — O que é, mãe?

       Uma dúzia de revelações possíveis passou por sua cabeça. Será que a mãe havia descoberto alguma de suas operações mais sinistras? Ela sabia tudo sobre suas várias tramas relacionadas ao povo subterrâneo, mas havia muitas coisas humanas que ele não tinha confessado.

       Esse é o problema em ser um criminoso em fase de recuperação: você nunca se livra da culpa. A revelação está sempre apenas à distância de um telefonema.

       — Tem a ver com seu aniversário.

       Os ombros de Artemis relaxaram com alivio.

       — Meu aniversário. Só isso?

       — Eu comprei uma coisa... diferente para você, mas quero

       que você aceite. Eu ficaria feliz.

       — Se faz você feliz, tenho certeza que vai me fazer feliz também.

       — Então, Arty, você tem de prometer que vai usar.

       A natureza de Artemis tornava difícil prometer alguma coisa.

       — O que é?

       — Promete, querido?

       Artemis olhou pela escotilha. Estava preso no casulo de fuga arrebentado, no meio do oceano Atlântico. Ou eles iriam afundar, ou alguma marinha escandinava iria confundi-los com alienígenas e explodiria o veiculo.

       — Muito bem, prometo. O que você comprou para mim? Angeline fez uma pausa rápida.

       — Jeans.

       — O quê? — grasnou Artemis.

       — E uma camiseta.

       Artemis soube que, nas circunstâncias, não deveria ficar chateado, mas não conseguiu se conter.

       — Mãe, você me enganou.

       — Bom, sei que você não gosta de se vestir de modo casual.

       — Isso não é justo. No mês passado, naquela venda de bolos para a caridade, eu enrolei as duas mangas para cima.

       — As pessoas têm medo de você, Arty. As garotas ficam aterrorizadas por você. Você é um garoto de 15 anos que usa terno sem que ninguém tenha morrido.

       Artemis respirou fundo várias vezes.

       — A camiseta tem alguma coisa escrita?

       Um farfalhar de papel veio pelo telefone.

       — Tem. É tão legal! Tem a imagem de um garoto que, por algum motivo, não tem pescoço e só três dedos em cada mão, e atrás dele, num estilo meio de pichação, a palavra ALEATORIDADE. Não sei o que significa, mas parece estar bem na moda.

       Aleatoridade, pensou Artemis, e sentiu vontade de chorar

       — Mãe, eu...

       — Você prometeu, Arty. Foi o que você fez.

       — É. Prometi mesmo, mãe.

       — E quero que você me chame de mamãe.

       — Mãe! Você não está sendo razoável. Eu sou quem sou. Camiseta e jeans não fazem o meu estilo.

       Angeline Fowl jogou seu trunfo.

       — Bom, sabe, Arry querido, às vezes as pessoas não são quem elas acham que são.

       Essa foi uma cutucada não muito sutil sobre Artemis ter mesmerizado os próprios pais, algo que Angeline só ficara sabendo quando Opala Koboi ocupou seu corpo e todos os segredos do mundo subterrâneo passaram a ser conhecidos por ela.

       — Isso não é justo.

       — Justo? Espera ai, deixe-me chamar a imprensa. Artemis Fowl usou a palavra justo.

       Artemis percebeu que sua mãe ainda não havia superado o negócio da mesmerização.

       — Muito bem. Consinto em usar os jeans e a camiseta.

       — O quê?

       — Muito bem. Eu vou usar os jeans e a camiseta... mamãe.

       — Estou tão feliz! Diga ao Butler para separá-los dois dias por semana. Jeans e mamãe. Acostume-se.

       O que virá em seguida?, pensou Artemis. Bonés usados para trás?

       — Butler está cuidando bem de você, não é?

       Artemis ficou vermelho. Mais mentiras.

       — Está. Você deveria ver a cara dele nesta reunião. Está morrendo de tédio com toda a ciência.

       A voz de Angeline mudou, ficou mais calorosa, mais emotiva.

       — Eu sei que o que você está fazendo é importante, Artemis. Importante para o planeta, quero dizer. E acredito em você, filho. Motivo pelo qual estou mantendo seu segredo e deixando você saracotear pelo globo com o povo do subterrâneo, mas você precisa me prometer que está em segurança.

       Artemis tinha ouvido a expressão sentir-se um canalha, mas agora a entendia de verdade.

       — Sou o ser humano mais em segurança no mundo — disse lépido. — Tenho mais proteção do que um presidente. Além disso, estou mais bem armado.

       No entanto, veio outro hmmm.

       — Esta é sua última missão solitária, Arty. Você me prometeu. Você disse: "só preciso salvar o mundo, depois posso passar mais tempo com os gêmeos".

       — Eu lembro — disse Artemis, o que não era o mesmo que concordar.

       — Vejo você amanhã de manhã, então. O alvorecer de um novo dia.

       — Vejo você amanhã, mamãe.

       Angeline desligou e sua foto sumiu da tela de Artemis. Ele lamentou ter de deixar que ela se fosse.

       No convés, de repente Potrus girou.

       — Os listrados, não — disse ele bruscamente. — São só bebês. — Depois abriu os olhos e viu Artemis olhando-o. — Eu falei isso em voz alta?

       Artemis assentiu.

       — Falou. Algo sobre os listrados serem bebês.

       — Lembrança de infância. Já superei.

       Artemis estendeu a mão para ajudar o centauro a se erguer sobre os cascos.

       — Não quero sua ajuda — gemeu Potrus, dando um tapa na mão estendida como se ela fosse um marimbondo. — Já estou farto de você. Se ao menos pensar na expressão besta bondosa, vou chutá-lo direto nos dentes.

       Artemis bateu na fivela do peito, abrindo o arnês, com a mão ainda estendida.

       — Sinto muito por tudo aquilo, Potrus. Mas agora estou bem. Sou eu, Artemis.

       Agora Potrus aceitou a mão que o ajudava.

       — Ah, graças aos deuses. Aquele outro cara estava me dando nos nervos.

       — Não tão depressa — disse Holly, aparecendo, totalmente consciente, entre os dois.

       — Epa — reagiu Potrus, empinando. — Você não geme e resmunga quando está recuperando a consciência?

       — Não — respondeu Holly. — Treinamento de ninja da LEP. E esse cara não é Artemis. Ele disse mamãe. Eu ouvi. Artemis Fowl não diz mamãe, mãezinha, mamita nem mãezona. E o Orion tentando enganar a gente.

       — Sei como pareceu — disse Artemis. — Mas vocês precisam acreditar. Minha mãe exortou que eu falasse aquela expressão de apreço.

       Potrus deu um tapinha em seu queixo comprido.

       — Exortou? Apreço? É o Artemis, sim.

       — Obrigado por atirar em mim pela segunda vez — disse Artemis, tocando as marcas de queimadura no pescoço. —A carga elétrica me libertou dos quatros, por enquanto. E peço desculpas pelas baboseiras que Órion estava falando. Não faço idéia de onde aquilo veio.

       Teremos de falar sobre isso longamente — disse Holly, esbarrando nele ao ir até o painel. — Só que mais tarde. Primeiro vejamos se consigo falar com Porto.

       Potrus apertou um botão na tela de seu telefone.

       — Já estou cuidando disso, capitã.

       Depois de todo o drama das horas anteriores, parecia impossível que pudessem simplesmente telefonar para Porto e conseguir uma conexão com facilidade, mas foi exatamente o que aconteceu.

       O comandante Encrenca Kelp atendeu ao primeiro toque e Potrus colocou a conexão por vídeo no viva-voz.

       — Holly? É você?

       — Sim, comandante. Estou com o Potrus e com Artemis Fowl.

       Encrenca resmungou.

       — Artemis Fowl? Por que será que não estou surpreso? Deveríamos ter sugado o cérebro desse Moleque da Lama pelo ouvido quando tivemos a chance.

       Encrenca Kelp era famoso por sua atitude valentona, por isso e pelo fato de ter escolhido Encrenca como nome de formatura. Na Academia, corria uma história supostamente verdadeira dizendo que, quando era um jovem policial de rua, o agente Kelp entrou com sua motoneta antitumulto num beco em Bulatown durante o solstício e disse pelo alto-falante a frase imortal para uma dúzia de goblins vagabundos: Se estão procurando encrenca, vieram ao lugar certo. Depois que os goblins terminaram de gargalhar, deram uma surra em Kelp que ele não esqueceria tão cedo. As cicatrizes o deixaram um pouquinho mais cauteloso, mas não muito.

       Encrenca estava sentado à sua mesa na Delegacia Plaza, absolutamente ereto em seu macacão azul de comandante, com o cacho de bolotas de carvalho brilhando no peito. Seu cabelo escuro era cortado bem curto sobre as impressionantes orelhas pontudas, e os olhos de um roxo profundo espiavam irritados sob as sobrancelhas franzidas que se movimentavam rápidas como raios enquanto ele falava.

       — Olá, comandante — disse Artemis. — É um prazer ser tão querido.

       — Gosto mais dos piolhos do meu sovaco do que jamais gostarei de você, Fowl. Engula essa.

       Artemis podia pensar em meia dúzia de respostas cortantes para esse comentário, mas guardou-as para si pelo bem geral.

       Agora estou com quinze anos, é hora de me comportar com mais maturidade.

       Holly interrompeu as bravatas de macho.

       — Comandante, Atlântida está segura?

       — De modo geral — disse Encrenca. — Meia dúzia de naves de evacuação sofreram muito. Um transporte foi acertado diretamente, foi enterrado mais fundo do que o próprio inferno. Vai demorar meses para juntar os pedaços.

       Os ombros de Holly pareceram consternados.

       — Alguma baixa?

       — Sem dúvida. Não sabemos quantas ainda, mas com certeza dezenas. — A testa de Encrenca estava pesada com a pressão do comando. — É um dia sombrio para o Povo, capitã. Primeiro Vinyáya e seus soldados... agora isso.

       — O que aconteceu?

       O olhar de Encrenca se desviou para um ponto fora da tela enquanto seus dedos digitavam num v-clado.

       — Um dos cientistas de Potrus fez uma simulação. Estou

       mandando para vocês.

       Segundos depois um ícone de mensagem pulsou na tela do telefone de Potrus. Holly selecionou-o e um vídeo simples, em 2D, começou, mostrando a silhueta de uma sonda entrando na atmosfera da Terra, acima da Islândia.

       — Está vendo isso, capitã?

       — Estou.

       — Bom. Deixe-me explicar. A sonda marciana de Potrus apareceu logo abaixo do Circulo Ártico. Para isso estamos aceitando a sua palavra, já que não a detectamos, graças à nossa própria tecnologia de encobrimento. Escudos, minério de invisibilidade, tudo virado contra nós. Não preciso nem dizer o que aconteceu em seguida.

       Na tela, a sonda lançou um jato de laser contra um pequeno alvo na superfície, depois soltou alguns amorfobôs para cuidar dos sobreviventes. O veiculo mal diminuiu a velocidade antes de mergulhar pelo gelo, fazendo um curso a sudoeste em direção ao Atlântico.

       — De novo, essa parte da simulação foi feita sem dados de computador. Pegamos o que você nos disse e também extrapolamos a partir das nossas leituras.

       Artemis interrompeu:

       — Vocês tinham leituras? Em que ponto começaram a ter leituras?

       — Foi a coisa mais estranha — respondeu Encrenca, franzindo a testa. — Recebemos o alerta da capitã Short e fizemos uma varredura. Nada. Até que, cinco minutos depois, a sonda apareceu nas nossas telas. Sem escudos, sem nada. De fato ela estava liberando calor pelas aberturas, de modo que não pudéssemos deixar de ver. Até soltou as placas do motor. O negócio brilhava mais do que a Estrela do Norte. E, para o caso de não percebermos, recebemos uma dica vinda de um bar em Miami, imagine só. Tivemos tempo suficiente para fazer a evacuação.

       — Mas não o bastante para alcançá-la — observou Artemis.

       — Exato — disse Encrenca Kelp, que não teria concordado se lhe ocorresse que estava concordando com o arquicriminoso Artemis Fowl. — Só pudemos acionar os canhões aquáticos, esvaziar a cidade e esperar até que a sonda chegasse ao alcance.

       — E então? — instigou Artemis.

       — Então autorizei alguns disparos experimentais ao longo da trajetória antes que a sonda estivesse de fato ao alcance. Não deveria haver energia suficiente neles para causar danos, já que as ogivas de água se dissipam com a distância, mas uma delas deve ter mantido um pouco de energia porque a sonda saiu de curso e mergulhou direto contra o leito do mar, levando junto o transporte.

       — Opala Koboi estava naquele transporte, não estava? —- perguntou Artemis ansioso. — Isso tudo é coisa dela. Isso fede a Opala.

       — Não, Fowl, se fede a alguém, é a você. Isso tudo começou com sua reunião na Islândia e agora alguns dos nossos melhores agentes estão mortos e temos uma missão de resgate subaquático para fazer.

       O rosto de Artemis ficou vermelho.

       — Esqueça como se sente a meu respeito. Opala estava no

       transporte?

       — Não — trovejou Encrenca, e os alto-falantes do casulo vibraram. — Mas você estava na Islândia, e agora está aqui.

       Holly defendeu o amigo.

       — Artemis não teve nada a ver com isso, comandante.

       — Pode ser, mas há muitas coincidências, Holly. Preciso que você detenha o Garoto da Lama até eu conseguir o veiculo de resgate para vocês. Podem se passar algumas horas, portanto ponha um pouco de lastro nos tanques e baixe um pouco o nível de flutuação. Abaixo da superfície vocês não devem ser vistos.

       Holly não estava feliz com esse curso de ação.

       — Comandante, nós sabemos o que aconteceu. Mas Artemis está certo. Precisamos pensar em quem fez acontecer.

       — Podemos falar sobre isso na Delegacia Plaza. No momento minha prioridade é manter as pessoas vivas. É simples. Ainda há gente presa em Atlântida. Todos os veículos estanques que temos estão indo para lá agora mesmo. Podemos discutir amanhã as teorias do Garoto da Lama.

       — Talvez possamos construir um bivaque, enquanto isso "— murmurou Holly.

       Encrenca Kelp não gostava de engolir insubordinação Inclinou-se perto da câmera, a testa se esticando nas lentes minúsculas.    

       — Disse alguma coisa, capita?

       — Quem fez isso não terminou — respondeu Holly, também se inclinando um pouco. — Isso é parte de um plano maior, e deter Artemis é a pior coisa possível que o senhor poderia fazer.

       — Ah, verdade — disse Encrenca, rindo inesperadamente. — Estranho você dizer isso, porque na mensagem que você mandou antes, comentou que Artemis Fowl tinha enlouquecido. Suas palavras exatas foram...

       Holly olhou cheia de culpa para Artemis.

       — Não precisa dizer as palavras exatas, senhor.

       — Agora é senhor, não é? Suas palavras exatas foram, e estou citando, já que são suas palavras exatas: você disse que Artemis Fowl estava mais maluco do que um troll com sarna bebendo água salgada.

       Artemis lançou um olhar recriminador a Holly, como se dissesse: Sarna? Verdade?

       Holly descartou o comentário com um gesto de mão.

       — Isso foi antes. Desde então atirei duas vezes em Artemis e agora ele está bem.

       Encrenca riu.

       — Você atirou nele duas vezes. Assim está melhor.

       — O fato — insistiu Holly — é que precisamos de Artemis para descobrir o que é isso.

          — Como ele descobriu o que ia acontecer com Julius Raiz e a comandante Raine Vinyáya.

       .— Isso não é justo, Encrenca.

       Kelp não se abalou.

       — Você pode me chamar de Encrenca no clube dos oficiais no fim de semana. Até lá é comandante. E ordeno que você detenha o humano Artemis Fowl. Não estamos prendendo-o. Só quero que ele venha aqui embaixo para uma conversinha. O que não quero, certamente, é que façamos parte involuntariamente de uma das idéias dele. Entendido?

       O rosto de Holly parecia de pedra, e a voz saiu opaca.

       — Entendido, comandante.

       — Seu casulo tem energia suficiente para alimentar o localizador, não mais, portanto nem pense em ir para o litoral. Você está mais pálida do que a morte, capita, por isso acho que não lhe resta nenhuma magia para fazer escudo.

       — Mais pálida do que a morte? Obrigada, Crença.

       — Crenc, capitã? Crenc?

       — Eu quis dizer Encrenca.

       — Assim está melhor. Portanto tudo que quero é que você segure o Garoto da Lama. Sacou?

       As palavras de Holly tinham tanto mel que seriam capazes de encantar um urso.

       — Entendi direitinho, Encrenca. Capitã Holly Short, excelente babá, a seu serviço.

       — Hmmm — disse Encrenca, num tom que o filho de Angeline Fowl entendia muito bem.

       — Hmmm mesmo — respondeu Holly.

       — Fico feliz porque estamos nos entendendo — disse Encrenca, com um tremular numa pálpebra que poderia ser interpretado como uma piscadela. — Como seu superior, estou dizendo para você ficar parada e não fazer nenhuma tentativa de chegar ao fundo do que está acontecendo na verdade, especialmente com a ajuda de um humano, especialmente desse humano em particular. Fui claro?

       — Foi tremendamente claro, Encrenca — disse Holly, e Artemis entendeu que Encrenca Kelp não estava proibindo Holly de investigar mais, na verdade estava se protegendo na gravação em vídeo para o caso de as ações de Holly resultarem em tribunal, o que acontecia com frequência.

       — Para mim também o senhor foi tremendamente claro, comandante — disse Artemis. — Se é que isso faz alguma diferença.

       Encrenca fungou.

       — Lembra-se daquele piolho de sovaco, Fowl? A opinião dele faz mais diferença para mim do que a sua.

       E desligou antes que Artemis pudesse dar uma de suas respostas pré-preparadas. E, nos anos seguintes, quando o professor J. Argônio publicasse sua biografia de Artemis Fowl, o best-seller Foivl e o Povo, essa conversa em particular seria considerada significativa como uma das poucas ocasiões em que alguém disse a última palavra conversando com Artemis Fowl II.

       Holly fez um som que era meio parecido com um berro agudo, porém não como pirraça de menina, e mais como frustração.

       —  Qual é o problema? — perguntou Potrus. — Achei que a coisa correu bastante bem. Pareceu que o comandante Encrenca Kelp, vulgo seu namorado, deu luz verde para nossa investigação.

       Holly virou para ele os olhos de cores diferentes.

       — Em primeiro lugar, ele não é meu namorado; nós saímos juntos uma vez, e eu lhe contei isso em segredo porque achei que você era um amigo que não desembucharia na primeira oportunidade.

       — Não é a primeira oportunidade. Eu me contive naquela ocasião, em que tomamos aquele chá agradável.

       — Isso é totalmente irrelevante! — gritou Holly através das mãos em concha.

       — Não se preocupe, Holly, isso não vai sair desta sala — disse Potrus, pensando que seria uma hora ruim para mencionar que havia postado a fofoca em seu site, www. humorequino.gnom.

       — E, em segundo lugar — continuou Holly —, talvez Encrenca tenha me dado uma autorização disfarçada, mas de que isso adianta se nós estamos no meio do Atlântico num pedaço de metal morto?

       Artemis olhou para o céu.

       — Ah, veja bem, talvez eu possa ajudá-la nesse aspecto. Vai ser a qualquer segundo.

       Vários segundos se passaram sem nenhuma mudança significativa na situação.

       Holly levantou as palmas das mãos.

       — A qualquer segundo? Verdade?

       Artemis não pôde deixar de ficar meio aborrecido.

       — Não literalmente. Pode demorar cerca de um minuto. Talvez eu deva ligar para ele.

       Cinquenta e nove segundos depois, uma coisa bateu na escotilha do casulo, fazendo bong

       — Arrá — disse Artemis, de um modo que fez Holly sentir vontade de lhe dar um soco.

       — Esta não é uma nave ruim, por sinal — disse Palha Escavator, apertando alguns botões do veiculo roubado dos mercenários só para ver o que eles faziam. Quando um fez com que o conteúdo do reciclador de esgoto fosse jogado sobre uma inocente traineira escocesa que passava abaixo, o anão decidiu que pararia de fazer isso.

       (Um dos pescadores, por acaso, estava fazendo um vídeo sobre gaivotas para seu curso de mídia na universidade e captou todo o monte de esgoto caindo. Para qualquer um que visse, parecia que a massa fedorenta simplesmente apareceu no céu e caiu a toda a velocidade sobre os marinheiros infelizes. A Sky News passou o vídeo com a manchete: Pânico no Convés do Cocô. O filmete foi descartado como sendo alguma brincadeira de estudante.)

       — Eu deveria ter adivinhado esse — disse Palha sem ao menos um traço de culpa. — Há uma imagenzinha de um vaso embaixo.

       Juliet estava sentada, com as costas curvas, num dos bancos de passageiros enfileirados numa das laterais da área de carga, a cabeça roçando o teto, e Butler estava deitado do outro lado, já que era o modo mais prático para ele viajar.

       — Então Artemis andou deixando você de fora? — perguntou ela ao irmão.

       — É — respondeu Butler sem graça. — Eu juraria que ele não confia mais em mim. Juraria que ele não confia mais na própria mãe.

       — Em Angeline? Como alguém poderia não confiar na senhora Fowl? Isso é ridículo.

       — Eu sei. E vou mais longe ainda. Artemis não confia nos gêmeos.

       Juliet levou um susto, batendo a cabeça no teto de metal.

       — Aiii. Madre de dios. Artemis não confia em Myles e Beckett? Isso é simplesmente ridículo. Que terríveis atos de sabotagem aquelas crianças de três anos poderiam cometer?

       Butler fez uma careta.

       — Infelizmente, Myles contaminou uma das placas de Petri de Artemis quando queria uma amostra para suas próprias experiências.

       — Isso não é espionagem industrial. O que Beckett fez?

       — Comeu o hamster de Artemis.

       — O quê?

       — Bom, ele mastigou a perna do bicho durante um tempo. 

       — Butler se remexeu no espaço apertado. As aeronaves do povo subterrâneo não eram construídas para acomodar guarda-costas humanos gigantescos de cabeça raspada. Não que a cabeça raspada fizesse muita diferença.

       — Artemis ficou furioso, disse que havia uma conspiração contra ele. Instalou uma fechadura de segredo na porta do laboratório para manter os irmãos do lado de fora.

       Juliet riu, mesmo sabendo que não deveria.

       — Deu certo?

       — Não. Myles ficou diante da porta por três dias seguidos, digitando, até que descobriu a combinação correta. Usou vários rolos de papel higiênico anotando as possibilidades.

       Juliet quase teve medo de perguntar.

       — O que Beckett fez?

       Butler riu de volta para a irmã.

       — Beckett cavou uma armadilha no jardim e, quando Myles caiu lá dentro, ele trocou uma escada pelo código.

       Juliet assentiu, apreciando.

       — É o que eu faria.

       — Eu também. Talvez Beckett acabe sendo o guarda-costas de Myles. — O momento de leveza não durou. —Artemis não está atendendo aos meus telefonemas. Imagine só. Acho que ele mudou o cartão SIM, de modo que não posso rastreá-lo.

       — Mas nós estamos rastreando, não é?

       Butler verificou a tela sensível ao toque de seu telefone.

       — Ah, sim. Artemis não é o único que tem o número do telefone de Potrus.

       — O que aquele centauro furtivo lhe deu?

       — Um spray de isótopo. Basta borrifar numa superfície e depois rastrear com um dos mipes de Potrus.

       — Mipes?

       — Miniprogramas. Potrus usa esse para ficar de olho nos filhos.

       — Onde você borrifou?

       — Nos sapatos de Artemis.

       Juliet deu um risinho.

       — Ele gosta de que estejam brilhantes.

       — E, gosta mesmo.

       — Você está começando a pensar como um Fowl, irmão.

       Palha Escavator gritou da cabine de comando:

       — Que os deuses nos ajudem. É disso que o mundo precisa, de mais Fowls.

       Diante disso, todos compartilharam um sorriso culpado.

       O girocóptero mercenário acompanhou a Corrente do Golfo para o norte até o litoral da Irlanda, movendo-se a pouco mais do que o dobro da velocidade já alcançada pelo Concorde, depois girou num longo arco pelo noroeste, penetrando no Atlântico Norte, enquanto seu computador se orientava pelos calçados de Artemis.

       — Os sapatos de Artemis estão nos levando direto até ele — disse Palha, rindo de sua própria piada. Os Butler não se juntaram a ele, não por lealdade ao patrão, que gostava de piadas ocasionais, mas porque a boca de Palha estava cheia com o conteúdo do frigobar do veiculo, e eles não fizeram idéia do que ele tinha acabado de dizer. — Isso é que é! — continuou Palha, sujando o lado interno do para-brisa com milho verde mastigado. — Eu me esforço para falar humanês, e vocês dois, esnobes, nem riem dos meus esforços.

       O veiculo disparava a toda a velocidade, dois metros acima do topo das ondas, com seus pulsos antigravitacionais cavando cilindros periódicos na superfície do oceano. O barulho do motor era baixo e poderia ser confundido com o sopro do vento, e para qualquer mamífero inteligente que pudesse ver através dos escudos, o veiculo podia ser confundido com uma baleia corcunda muito rápida com uma cauda extralarga e uma área de carga.

       — Nós tivemos realmente sorte com essa banheira — comentou Palha, com a boca misericordiosamente vazia. — Ela mais ou menos voa sozinha. Eu simplesmente coloquei seu telefone na base, abri o mi-p e ela partiu.

       A aeronave funcionava mais ou menos como um cão rastreador, parando subitamente quando perdia o cheiro, depois virando a proa furiosamente até que o isótopo aparecesse de novo. Num determinado ponto mergulhou no oceano, descendo direto até que a pressão estalou as placas da fuselagem e eles perderam um metro quadrado de escudo.

       — Não se preocupem, Homens da Lama — tranquilizou Palha. — Todos os veículos do Povo têm motores para o mar.

       Quando você vive no subterrâneo, faz sentido construir naves estanques.

       Juliet não tinha parado de se preocupar; pelo que recordava, uma tranquilização vinda de Palha Escavator era tão confiável quanto um coquetel dado pelo Envenenador de Pittsburgh.

       Felizmente, o mergulho não durou muito, e logo estavam voando de novo sobre o topo das ondas, sem incidentes, a não ser pela ocasião em que Palha se esqueceu de sua promessa de não apertar botões misteriosos e quase fez com que se chocassem no mar pintalgado de sol ao liberar o cacho de mini- paraquedas que serviam como freio de emergência.

       — Aquele botão ficou me chamando — desculpou-se. — Não pude resistir.

       A parada brusca tinha feito Butler escorregar pelo banco. Deslizou por toda a extensão da fuselagem indo contra a divisória da cabine de comando. Somente seus reflexos rápidos o impediram de entalar a cabeça no corrimão.

       Butler coçou o cocuruto, que havia batido numa barra.

       — Pega leve, ou vai haver consequências. Você mesmo disse: nós não precisamos pilotar a nave.

       Palha deu uma risada, oferecendo uma visão horrenda de seu gigantesco tubo alimentar.

       — Verdade, Butler, meu amigo monstruosamente grande. Mas você certamente precisa de mim para pousá-la.

       O riso de Juliet foi agudo e doce, e pareceu ricochetear nas paredes curvas de metal.

       — Você também, Juliet? — perguntou Butler em tom de censura.

       — Ora, irmão. Isso foi engraçado. Você também vai rir quando Palha passar o vídeo.

       — Tem vídeo? — disse Butler, o que simplesmente fez os dois rirem de novo.

       Todo esse riso não atrasou em nada o encontro entre Butler e seu chefe, Artemis Fowl. Um chefe que não confiava mais nele e que provavelmente tinha mentido para ele, mandando Butler para outro continente e usando Juliet como garantia.

       Eu acreditei que minha irmãzinha estava em perigo. Artemis, como você pôde?

       Perguntas difíceis seriam feitas quando ele finalmente encontrasse Artemis. E era melhor que as respostas fossem boas ou, pela primeira vez na história do relacionamento centenário entre as duas famílias, um Butler poderia simplesmente abandonar seus deveres.

       Artemis está doente, racionalizou Butler. Ele não é responsável.

       Talvez Artemis não fosse responsável. Mas logo seria.

       Finalmente o veiculo dos mercenários parou com um tremor sobre um ponto do oceano vazio, logo acima do paralelo sessenta. Era um local que não parecia diferente dos quilômetros quadrados cinzentos que se estendiam em todas as direções, até que a coluna antigravitacional cavou dois metros de água embaixo, revelando o casulo de fuga em forma de ponta de flecha.

       — Adoro esse giro — grasnou Palha. — Faz com que eu pareça mais inteligente do que sou.

       As águas ao redor se agitaram e borbulharam enquanto os pulsos invisíveis testavam a superfície e compactavam as ondas o bastante para manter o veiculo pairando no mesmo lugar. Lá embaixo, as pulsações pareceriam toques de sino na pele do casulo.

       — Olá — gritou Palha. — Estamos aqui em cima.

       Butler enfiou a cabeça e os ombros na cabine, praticamente toda a parte dele que caberia ali.

       — Podemos falar com eles pelo rádio?

       — Rádio? — perguntou o anão. — Você não sabe muito sobre ser fugitivo, sabe? A primeira coisa que a gente faz quando rouba uma nave da LEP é tirar qualquer coisa que possa mandar um sinal para a Delegacia Plaza. Cada fio, cada fusível, cada lente. Tudo vai embora. Conheço caras que foram apanhados porque deixaram o sistema de som. É um velho truque do Potrus. Ele sabe que os bandidos adoram música alta, por isso instala um conjunto de alto-falantes da pesada em cada pássaro da LEP, todos eles cheios de gel rastreador. Praticamente não resta nenhum aparato técnico aqui.

       — E?

       — E o quê? — perguntou Palha, como se não tivesse idéia do que estavam falando.

       — Então como vamos nos comunicar com a nave lá embaixo?

       — Você tem um telefone, não tem?

       O olhar de Butler baixou para o chão.

       — Artemis não está atendendo aos meus telefonemas. Ele está estranho.

       — Isso é terrível — disse Palha. — Mas você acha que eles têm comida? Alguns daqueles casulos de fuga têm rações de emergência. São meio duras, claro, mas caem bem com uma bela garrafa de cerveja.

       Butler estava imaginando se essa mudança de assunto valia um peteleco na orelha, quando seu telefone tocou.

       — É o Artemis — disse ele, parecendo um pouco mais chocado do que quando foi cercado por zumbis luchadores.

       — Butler? — disse a voz de Artemis em seu ouvido.

       — Sim, Artemis.

       — Precisamos conversar.

       — É melhor que você seja convincente — disse Butler, e desligou.

       Foram necessários apenas alguns instantes para mandar uma corda com arnês até o casulo lá embaixo e mais alguns minutos para que os ocupantes do casulo subissem no transporte dos mercenários. Holly foi a última a subir, enquanto puxava a corda da escotilha e abria os tanques de lastro do casulo antes de sair, fazendo-o afundar.

       Assim que seu cotovelo se apoiou na borda da porta, Holly começou a dar ordens.

       — Monitore os canais da LEP pelo rádio — rosnou. — Temos de descobrir como estão indo as investigações.

       Palha riu na cadeira do piloto.

       — Bom, isso ai pode ser problema, já que essa nave é roubada e coisa e tal. Não tem grande coisa em termos de comunicações. E olá, por sinal. Estou bem, ainda vivo etc. e tal. Feliz em poder salvar sua vida. Além disso, de que investigação estamos falando?

       Holly acabou de subir, olhando com pesar o casulo que afundava com seu equipamento de comunicações que funcionava — até pouco tempo atrás.

       — Ah, bem — suspirou. — A gente trabalha com os recursos limitados que tem.

       — Muitissimo obrigado — disse Palha, cheio de indignação. — Vocês trouxeram alguma comida? Eu não como há... uau, deve fazer minutos.

       — Não, não temos comida — respondeu Holly. Em seguida abraçou Palha com força, uma das talvez quatro pessoas em todo o mundo que tocaria voluntariamente o anão, depois empurrou-o para fora da cadeira do piloto, ocupando seu lugar. — Em termos de amenidades, isso basta. Mais tarde compro um cesto cheio de churrasco para você.

       — Com carne de verdade?

       Holly estremeceu.

       — Claro que não. Não seja nojento.

       Butler sentou-se e demorou um instante assentindo para Holly, e depois voltou toda a atenção para Artemis, que se portava como o Artemis antigo, mas sem a presunção costumeira.

       — E? — disse Butler, enchendo a silaba única com implicações. Se eu não gostar do que ouvir, pode ser o fim da linha para nós dois.

       Artemis sabia que a situação merecia pelo menos um abraço, e algum dia no futuro, depois de anos de meditação, talvez ele pudesse se sentir confortável abraçando espontaneamente as pessoas, mas nesse momento só pôde pôr uma das mãos no ombro de Juliet e outra no antebraço de Butler. —  Desculpem ter mentido para vocês, amigos.

       Juliet cobriu a mão dele com a sua, porque esse era o seu jeito de ser, mas Butler levantou a dele como se estivesse sendo preso.

       — Juliet poderia ter morrido, Artemis. Fomos obrigados a brigar com uma horda de fãs de luta livre mesmerizados e uma nave cheia de anões mercenários. Nós dois corremos sério perigo.

       Artemis se afastou, tendo passado o momento de emoção.

       — Perigo de verdade? Então alguém andou me espionando. Alguém que conhecia nossos movimentos. Possivelmente o mesmo alguém que mandou a sonda para matar Vinyáya e atacar Atlântida.

       Nos minutos seguintes, enquanto Holly fazia uma verificação dos sistemas e estabelecia um curso para o local do impacto, Artemis colocava Butler e Juliet em dia, deixando para o fim o diagnóstico de sua própria doença.

       — Estou com um distúrbio que o povo subterrâneo chama de Complexo de Atlântida. É parecido com o transtorno obsessivo-compulsivo, mas também manifesta uma demência delirante e até personalidades múltiplas.

       Butler assentiu devagar.

       — Sei. Então, quando você me mandou para longe, estava sofrendo desse tal Complexo de Atlântida.

       — Exato. Estava no estágio um, que implica grande dose de paranóia como um dos sintomas. Você perdeu o estágio dois.

       — Sorte sua — gritou Holly da cabine. — Aquele tal de Órion era um pouquinho amigável demais.

       — Meu subconsciente construiu a personalidade de Órion como meu alter ego. Tenho certeza de que vocês se lembram de que Artemis era a deusa da caça. E, segundo a lenda, Órion era o inimigo mortal de Artemis, por isso ela mandou um escorpião matá-lo. Na minha mente, Órion estava livre da culpa que eu sentia por minhas várias tramas, especialmente a culpa por ter mesmerizado meus pais, sequestrado Holly e, de modo crucial, visto minha mãe possuída por Opala. Talvez, se eu não tivesse mexido com a magia, tivesse desenvolvido um ligeiro distúrbio de personalidade, talvez até a Síndrome da Criança Genial, mas, com meus caminhos neurais cobertos de magia roubada, sei agora que era inevitável sucumbir ao Complexo de Atlântida. — Artemis baixou os olhos. — O que fiz foi vergonhoso. Fui fraco e vou me arrepender pelo resto da vida.

       O rosto de Butler se suavizou.

       — Agora você está bem? O choque elétrico resolveu?

       Potrus estava ficando meio cansado de ver Artemis fazer

       todo o discurso, por isso pigarreou e ofereceu informações:

       — Segundo o mi-p de enciclopédia do meu telefone, o tratamento de choque é arcaico e raramente duradouro. O Complexo de Atlântida pode ser curado, mas só através de longa terapia e uso cuidadoso de remédios psicoativos. Em breve as compulsões de Artemis vão retornar e ele sentirá uma ânsia irresistível de completar sua missão, de numerar as coisas e evitar o número quatro, que, segundo acredito, tem em chinês o mesmo som da palavra morte.

       — Então Artemis não está curado?

       De repente Artemis ficou satisfeito porque havia mais cinco pessoas no transporte. Um bom presságio para o sucesso.

       — Não. Ainda não estou curado.

       Presságios? A coisa está recomeçando.

       Artemis chegou a torcer as mãos, sinal físico de sua determinação.

       Não serei derrotado por isso tão cedo.

       E, para provar, criou deliberadamente uma frase com quatro palavras.

       — Eu vou ficar bem.

       — Lulu — disse Palha, que sempre tinha problema para captar a seriedade das situações. — Quatro. É de dar medo.

       A primeira coisa era descer até o ponto do impacto, já que parecia óbvio para todo mundo, menos Palha, que a sonda espacial não tinha atravessado a atmosfera com precisão milimétrica só para se chocar acidentalmente contra um transporte de prisioneiros. Com Holly nos controles, o veiculo roubado logo estava cortando as profundezas do Atlântico, deixando jatos entrelaçados de bolhas de ar.

       — Tem alguma coisa acontecendo — disse Artemis em tom meditativo, segurando os dedos da mão esquerda para impedir que tremessem. — Vinyáya foi morta para prejudicar a LEP, depois a sonda entregou sua própria posição, e alguém telefonou dando uma dica permitindo que as autoridades de Atlântida tivessem tempo de evacuar a população, e depois a sonda caiu sobre um transporte. Azar dos ocupantes?

       — Isso é uma daquelas perguntas retóricas? — perguntou Palha. — Eu nunca saco isso direito. Além disso, já que estamos no assunto, qual é a diferença entre uma metáfora e um simile?

       Holly estalou os dedos.

       — Alguém queria que todo mundo no transporte estivesse morto.

       — Alguém queria que nós pensássemos que todo mundo no transporte estivesse morto — corrigiu Artemis. — Que modo de forjar a própria morte! Vão se passar meses até que a LEP possa juntar as peças, se é que vai juntar. É uma bela dianteira para um fugitivo.

       Holly se virou para Potrus.

       — Preciso saber quem estava no transporte de prisioneiros. Você conhece alguém de dentro da Delegacia Plaza?

       Butler ficou surpreso.

       — Alguém de dentro? Eu achava que vocês eram de dentro.

       — No momento estamos meio de fora — admitiu Holly. — Eu deveria estar detendo Artemis.

       Juliet bateu palmas.

       — Alguma vez você já obedeceu alguma ordem?

       — Foi uma espécie de ruão ordem, e de qualquer modo eu só obedeço ordens quando são sensatas. Nesse caso, seria ridículo ficar parada durante uma hora num casulo sem energia enquanto nosso inimigo, quem quer que seja, passa à fase dois.     

       — Concordo — disse Artemis, mantendo a voz sob controle.

       — Como podemos ter certeza de que existe uma fase dois? — perguntou Butler.

       Artemis deu um sorriso sério.

       — Claro que há uma fase dois. Nosso oponente é perverso e inteligente; nunca haverá um momento melhor para aproveitar a vantagem que ele tem. É o que eu teria feito, há alguns anos. — Sua calma normal se despedaçou por um momento e ele falou rispidamente com Potrus: — Preciso da lista, Potrus. Quem estava no transporte de prisioneiros?

       — Certo, certo, Garoto da Lama. Estou trabalhando nisso. Preciso dar uma volta grande, para minhas investigações não caírem na mesa de Encrenca. Esse é um negócio técnico, complicado.

       O que o centauro jamais admitiria era que estava pedindo a seu inteligente sobrinho, Mayne, para invadir o site da policia e lhe mandar um torpedo com a lista, em troca de um sorvete de casquinha extra grande quando ele voltasse para casa. 

       —  Certo. Já recebi, do meu... é... da minha fonte.

       — Basta dizer, Potrus.

       Potrus projetou uma tela de seu telefone na parede. Ao lado de cada nome havia um link para um banco de dados que diria tudo sobre o prisioneiro, até a cor da cueca, se você quisesse saber isso, e os psicólogos do Povo estavam ficando cada vez mais convencidos de que a cor da roupa de baixo era parte vital do desenvolvimento da-pessoa.

       Palha viu um nome conhecido, e não era de um criminoso.

       — Ei, olha, o velho Vishby estava pilotando. Devem ter devolvido a licença para ele.

       — Você o conhece, Palha? — perguntou Holly bruscamente.

       Para um ex-criminoso tão endurecido, Palha tinha coração mole.

       — Ei, por que está tão eriçada? Estou tentando ajudar. Claro que conheço. Seria bem esquisito eu dizer "Ei, olha, o velho Vishby, devolveram a licença dele" se não o conhecesse.

       Holly respirou fundo, lembrando-se de como Palha precisava ser tratado.

       — Você está certo, claro. Então, como você conhece o Velho Vishby?

       — Na verdade, é uma história engraçada — respondeu Palha, estalando os lábios, desejando ter uma coxa de galinha para acompanhar a história. — Eu escapei dele há alguns anos, quando você estava sendo acusada de assassinar Julius. Ele nunca superou isso. Ainda me odeia, odeia a LEP também, por tirar a licença dele. De vez em quando me manda e-mails raivosos. Eu mando de volta pequenos vídeos de mim mesmo gargalhando. Isso o deixa louco.

       — Uma pessoa com ressentimentos — disse Artemis. — Interessante. O informante perfeito. Mas quem o está controlando?

       Holly se virou para examinar a lista projetada.

       — Esse duende, Unix. Eu o prendi. É um dos rapazes do Tornabol Raiz. Um assassino a sangue-frio. — Holly empalideceu. — Bobb Ragby também está aqui. E o próprio Tornabol. Todos esses caras são do Tornabol. Como, em nome dos deuses, ele conseguiu colocar toda a quadrilha num único transporte? Isso deveria ter levantado uma dúzia de alarmes no computador.

       — A não ser... — disse Artemis, fazendo a lista correr na tela de Potrus. Em seguida bateu no link do banco de dados ao lado de Bobb Ragby. A foto e o arquivo dele se abriram numa janela separada e Artemis examinou-a rapidamente. — Olhem, não há qualquer menção a Tornabol Raiz. De acordo com isto, Ragby foi preso por fraude postal e não tem afiliações nem cúmplices conhecidos. — Ele bateu em outro link e leu em voz alta: —Arquivo atualizado pelo... Senhor Vishby.

       Holly ficou chocada.

       — É o Tornabol Raiz. Ele armou isso.

       A própria Holly fora responsável pela captura do irmão de Julius durante seu exercício inicial de Reconhecimento. Era uma história que havia contado muitas vezes a Potrus.

       — Parece que Tornabol é nosso adversário, o que não é boa noticia. Mas mesmo levando em conta seu intelecto e o domínio sobre esse tal de Vishby, ainda não sabemos como ele sequestrou uma sonda espacial.

       — Simplesmente não é possível — disse Potrus, acrescentando uma tosse equina para dar peso a uma declaração na qual nem mesmo ele acreditava.

       — Possível ou não, teremos de falar sobre isso mais tarde — respondeu Holly, nivelando a nave ligeiramente fora da horizontal. — Estamos no local do impacto.

       Todo mundo sentiu alivio porque o veiculo roubado havia chegado inteiro ao fundo. Os mercenários provavelmente haviam tirado o máximo das coisas de que não precisavam, para diminuir o peso, e foram, mais do que provável, um pouco imprudentes com os pés de cabra. Um rebite solto ou uma linha de solda rachada bastaria para deixar que algumas atmosferas passassem espremendo-se, e o veiculo seria esmagado como uma lata de refrigerante na mão de um brutamontes imensamente forte que não gostasse de latas de refrigerante.

       Mas a nave ficou firme, apesar de uma ondulação sinistra na fuselagem, que apareceu de repente.

       — Quem se importa? — disse Palha, como sempre deixando de ver o quadro geral. — Essa nave nem é nossa. O que aqueles mercenários vão fazer, processar a gente? — Mas, mesmo enquanto falava, o humor de Palha ficou tingido de sofrimento.

       Nunca mais vou poder voltar ao Papagaio Bebum, percebeu. E eles servem um cozido fantástico. Com carne de verdade.

       Abaixo deles, as naves de resgate de Atlântida moviam-se ao redor dos transportes danificados, esforçando-se para montar uma cúpula de pressão para que as equipes pudessem levar um pouco de magia aos feridos. Trabalhadores marítimos usando armaduras pressurizadas martelavam pedras e entulho no leito marinho para montar um lacre de espuma sobre o qual iam construir a cúpula. Por enquanto ninguém estava preocupado demais com o lugar do impacto propriamente dito. Os vivos vinham primeiro.

       — Eu deveria ligar para contar sobre essa teoria do Tornabol Raiz — disse Holly. — O comandante Kelp vai agir a partir disso.    

       — Nós temos de agir primeiro — retrucou Artemis. — As naves de Porto vão demorar pelo menos uma hora para chegar aqui. Até lá, será tarde demais. Precisamos encontrar provas, de modo que Encrenca possa ter argumentos para o Conselho.

       Os dedos de Holly hesitaram sobre o telefone de Potrus. Não havia tempo para começar uma discussão sobre estratégia com o comandante. Ela conhecia bem a mente de Encrenca; não era necessário muito tempo para conhecer. Se ligasse agora, Encrenca sugeriria uma estratégia que implicava esperarem até que ele chegasse e possivelmente alguma forma de bivaque.

       Assim, em vez de fazer uma ligação por vídeo, ela mandou um torpedo curto, enfatizando o nome de Tornabol Raiz na lista de passageiros que eles supostamente não deveriam ter e desligou o telefone.

       — O Encrenca deve telefonar de volta — explicou. — Vou ligar de novo quando tivermos alguma coisa para lhe contar.

       Potrus olhou-a irritado.

       — Vou perder a atualização sobre o campeonato de esmagobol — reclamou, e depois: — Sei que parece mesquinho, mas eu pago a assinatura.

       Artemis estava concentrado num problema para afastar a mente da parede de números quatro brilhantes que o seguiam a partir de sua tela mental e pareciam pairar a toda volta.

       Ai não, disse a si mesmo. Concentre-se no truque de desaparecimento.

       — Como Tornabol saiu desse transporte com vida? — perguntou em voz alta. — Potrus, podemos acessar a tevê de circuito fechado local?

       — Não com esse transporte. Esse foi, um dia, um lindo veiculo de emergência. Ajudei a criar o modelo. Isso é que é especialização; você poderia limpar completamente o local de um desastre só com essa belezinha, muito tempo atrás. Agora isso praticamente não tem tecnologia suficiente para evitar que batamos de frente numa parede.

       — Então não há como descobrirmos se alguma nave se encontrou com o transporte dos prisioneiros?

       — Daqui, não — respondeu Potrus.

       — Preciso saber como Tornabol escapou — gritou Artemis, perdendo a calma de novo. — De que outro modo vou encontrá-lo? Será que ninguém mais vê isso? Será que estou sozinho no universo?

       Butler se remexeu até sentar-se encurvado junto de Artemis, quase envolvendo-o com o corpo volumoso.

       — Você é que vê, Artemis. Esse é o seu dom. Nós somos os que chegamos lá mais tarde.

       — Fale por você — disse Palha. — Geralmente eu nunca chego lá. E, quando chego, jamais gosto, em especial quando Artemis está envolvido.

       Uma gota de suor se alojou nas rugas entre os olhos de Artemis.

       — Sei disso, velho amigo. Só preciso continuar trabalhando, essa é a única coisa que pode me salvar. — Ele pensou com intensidade por um momento. — Será que podemos fazer uma varredura para detectar a trilha de ferro de outra nave?

       — Claro — respondeu Potrus. — Nem mesmo essa banheira mutilada poderia se virar sem um onissensor. — Ele abriu um programa na tela e um filtro azul-escuro baixou sobre a visão deles. As trilhas de ions das naves de resgate apareceram como fachos espectrais acompanhando seus motores como minhocas reluzentes. Um desses fachos ia até o local do impacto vindo da direção de Atlântida, e outra coluna de luz, muito mais substancial, mergulhava de cima.

       — Aquele é do transporte da prisão e aquele é da sonda. Mais nada. Como ele conseguiu?

       — Talvez não tenha conseguido, não é? — sugeriu Juliet. — Talvez o plano tenha dado errado. Muitos gênios andaram se ferrando completamente nos últimos tempos, se é que você entende o que estou tentando dizer, Artemis.

       Artemis deu um meio sorriso.

       — Entendo o que você está tentando dizer, Juliet. Principalmente porque está dizendo com clareza e brutalidade, sem qualquer tentativa de poupar meus sentimentos.

       — Para ser justa, Artemis — disse Juliet —, nós quase fomos esmagados por fãs de luta livre mesmerizados, por isso acho que você pode aguentar algumas cutucadas. Além disso, eu não trabalho para você, de modo que você não pode ordenar que eu cale a boca. Acho que você poderia não pagar o salário do Butler, mas estou disposta a aguentar isso.

       Artemis assentiu para Holly. 

       —  Imagino que vocês duas não sejam parentes, não é? — Em seguida pulou de pé, quase batendo a cabeça no teto baixo da nave. — Potrus. Preciso ir lá embaixo.

       Holly bateu no mostrador de profundidade.

       — Sem problema. Eu posso ir para trás daquela crista e manter o veiculo escondido das naves de resgate. Mesmo que eles nos vejam, vão presumir que fomos mandados por Porto. Na pior das hipóteses, vão ordenar que a gente se afaste da cena do crime.

       — Eu quis dizer que preciso ir lá fora — esclareceu Artemis. — Há um traje pressurizado naquele cubículo, e eu preciso levar o telefone de Potrus e procurar pistas ao velho estilo. 

       —  Ao velho estilo — repetiu Palha. — Com uma roupa pressurizada futurística e um telefone do povo subterrâneo.

       Seguiu-se um jorro de objeções.

       — Você não pode ir. É perigoso demais.

       — Eu vou no seu lugar.

       — Por que tem de ser o meu telefone?

       Artemis esperou até que o clamor terminasse, depois enfrentou os protestos com seu estilo usual, conciso e paternalista:

       — Preciso ir porque o próximo estágio do plano de Tornabol obviamente implica mais perdas de vida, e a vida de muitos é mais importante do que a vida de poucos.

       — Eu vi isso em Jornada nas Estrelas — disse Palha.

       — Tem de ser eu — continuou Artemis. — Porque só há um traje e parece ser aproximadamente do meu tamanho. E se não estou enganado, coisa que seria tremendamente incomum, um ajuste correto é vital para as roupas pressurizadas, a não ser que vocês queiram que seus olhos saltem das órbitas.

       Se outra pessoa tivesse dito isso, a frase poderia ser considerada uma piada para animar o clima, mas saindo da boca de Artemis Fowl era a simples declaração de um fato.

       — E finalmente, Potrus, tem de ser o seu telefone porque, conhecendo seus padrões de construção como eu conheço, ele é feito para suportar grandes pressões. Correto?

       — Correto — respondeu Potrus, aceitando o elogio com um gesto curto do rosto comprido. — E também está certo com relação ao traje. Essas coisas não lacram direito se não gostarem das dimensões da pessoa.

       Butler não ficou satisfeito, mas no fim das contas ele era o empregado, embora Artemis não tenha usado esse argumento.

       — Eu preciso ir, Butler — disse Artemis com firmeza. — Minha mente está me comendo vivo. Acho que o principal problema é a culpa. Preciso fazer todo o possível para expiar.

       — E? — perguntou Butler, sem se convencer.

       Artemis estendeu os braços para que Potrus passasse as

       mangas do traje sobre eles.

       — E não vou ser derrotado por aquele asno.

       — Asno? — disse Potrus, magoado. — Meu tio favorito é um asno.

       Ha verdade o traje de pressão eram dois. A camada interna era uma membrana única tramada com os equipamentos de suporte de vida, e a casca externa era uma armadura com superfície volátil que absorvia a pressão da água e usava-a para alimentar os servomecanismos. Muito inteligente, como seria de se esperar de algo saído dos Laboratórios Koboi.

       — Koboi — murmurou Artemis, consternado, quando viu o logotipo. Até mesmo uma pessoa que não fosse obcecada por presságios ficaria meio incomodada com a assinatura de sua inimiga mortal gravada no traje que deveria salvar sua vida. — Não fico subindo pelas paredes com isso.

       — Você não deve mesmo subir pelas paredes — disse Potrus, baixando a bolha transparente do capacete. — Deve ir para o fundo.

       — Tenho quase certeza de que vocês dois acabaram de fazer piadas horríveis — disse Palha, mastigando alguma coisa que tinha encontrado em algum lugar. — Mas não tenho certeza porque acho que quebrei meu osso do bom humor.

       Nesse ponto, os comentários de Palha eram como ruído de fundo e tinham uma constância quase tranquilizadora.

       Potrus fixou seu telefone, um onissensor, na frente do capacete.

       — Seria necessário um golpe do rabo de uma baleia para soltar isso. Vai funcionar em qualquer profundidade que você provavelmente vai encontrar, e além disso vai captar a vibração de sua fala e converter em ondas de som. Mas tente enunciar com clareza.

       — Fique perto da face da rocha — disse Butler, segurando o capacete para garantir que Artemis prestasse atenção. — £ ao primeiro sinal de problema, eu vou dar a ordem de puxá-lo de volta, e não você. Entendeu, Artemis?

       Artemis assentiu. O traje era conectado a uma entrada no casco da nave através de um facho eletromagnético, que iria trazê-lo de volta para a base, em caso de emergência.

       — Só dê uma olhada no lugar com o telefone do Potrus e volte. Você só tem dez minutos, depois vai ter de seguir outra pista. Entendeu?

       Outra confirmação de cabeça da parte de Artemis, porém parecia mais que ele estava tentando não pensar em alguma coisa do que ouvir as palavras de Butler.

       Butler estalou os dedos.

       — Concentração, Artemis! Mais tarde vai haver tempo para seu Complexo de Atlântida. Nós temos a Trincheira de Atlântida do lado de fora dessa porta e nove quilômetros de água acima. Se quiser ficar vivo, precisa permanecer alerta. — Em seguida se virou para Holly. — Isso é ridículo. Vou cancelar.

       A boca de Holly estava rígida enquanto ela balançava a cabeça.

       — Regras da marinha, Butler. Você está no meu barco, portanto segue minhas ordens.

       — Pelo que lembro, fui eu que trouxe o barco.

       — É, obrigada por trazer o meu barco.

       Artemis aproveitou esse diálogo para chegar mais perto da escotilha estanque da popa, um espaço apertado onde Butler não poderia segui-lo.

       — Dez minutos, velho amigo — disse, com a voz robótica através do alto-falante do capacete. — Depois você pode me puxar de volta.

       De repente Butler pensou em como Angeline Fowl reagiria quando soubesse dessa última aventura.

       — Artemis, espere. Deve haver outro modo...

       Mas sua objeção ricocheteou numa parede de perspex enquanto a escotilha estanque deslizava para baixo com um ruído que parecia de bilhas rolando no fundo de uma lata.

       — Não gosto desse barulho de bilhas — disse Palha. — Não parece muito estanque.

       Ninguém discutiu. Todos sabiam o que ele queria dizer.

       Do outro lado da divisória, Artemis estava tendo algumas dúvidas, também. Tinha acabado de notar o nome que os mercenários haviam dado ao veiculo, que estava pintado no interior da porta oceânica com o que deveria parecer sangue, mas que não poderia ser, caso contrário teria sido lavado muito antes.

       Provavelmente é alguma solução baseada em borracha, pensou, mas a base da tinta dos mercenários não era o que o incomodava — era o nome em si, Saqueador, em gnomês, claro. O verbo saquear era qatrqatr, e o sufixo que muda o verbo para substantivo tem, em gnomês, o som de quat, o que implicaria que um é derivado do outro. Deixando de lado a aula de gramática, a pronúncia da palavra saqueador era mais ou menos quatro quatro quatro.

       Quatro quatro quatro, pensou Artemis, empalidecendo dentro do capacete. Morte morte morte.

       Nesse ponto a porta do casco subiu com mais ruídos de bilhas e o oceano sugou-o para suas profundezas escuras.

       Espere um momento, pensou Artemis enquanto a pele externa do traje vibrava e ativava os globos luminosos junto às suas têmporas, nas pontas dos dedos e nos joelhos. Não conte> não organize, só faça o que Butler aconselhou: concentre-se.

       Não se sentia embaixo d'água, mesmo sabendo que estava. O corpo não experimentava a resistência esperada do oceano, não havia embotamento das habilidades motoras e ele se sentia capaz de se mover com a mesma fluidez de sempre, se bem que Butler argumentaria que seus movimentos nunca eram fluidos.

       O que seria fantástico, se a lula gigante, cujo território ele acabara de invadir, não envolvesse aquele intruso com tentáculos enormes e o levasse para sua toca.

       Ah, a mítica lula gigante. Gênero Architeuthis, pensou Artemis, estranhamente calmo agora que estava diante de uma catástrofe digna de toda a preocupação que havia sentido. Não é mais tão mítica.

        TORNABOL Raiz conheceu Leonor Carsby na remota ilha havaiana de Lehua, no verão de 1938. Leonor estava lá porque havia caído com seu Lockheed Electra na encosta norte da crista vulcânica da ilha e despencou no canal natural que tinha uma forma estranha, conhecido como Buraco de Fechadura, e que atravessava a ilha. Tornabol estava lá porque mantinha uma residência de verão na ilha desabitada, onde gostava de tomar vinho e escutar discos de jazz enquanto planejava o próximo roubo.

       Formavam um casal improvável, mas o primeiro encontro aconteceu no tipo de circunstâncias extremas que frequentemente levava os corações a bater mais forte e se acreditarem apaixonados.

       Leonor Carsby era humana, herdeira de uma fortuna, moradora de Manhattan; mas também era sócia fundadora da Noventa e Nove, uma organização de mulheres aviadoras presidida pela primeira vez por Amélia Earhart. Quando Amé lia se perdeu no Pacifico, Leonor Carsby prometeu terminar a viagem que sua amiga e heroína havia começado. Em abril de 1938 partiu da Califórnia com um navegador e tanques de combustível extragrandes. Seis semanas depois, Leonor Carsby chegou ao Buraco da Fechadura sem nenhum dos dois, tendo perdido ambos para a cruel crista em forma de crescente da ilha Lehua. Foi um milagre ter sobrevivido, prote gida de modo improvável só pela bolha da cabine do Lockheed. Em sua patrulha diária, Unix encontrou a herdeira espar ramada numa pedra lisa à beira d'água. Ela não estava em boas condições: desidratada, uma perna com uma fratura feia, delirando e à beira da morte. O duende se aproximou, esperando receber a ordem de execução, mas algo no rosto da humana em sua tela interessou Tornabol. Este instruiu Unix a não fazer nada e esperar que ele chegasse. Tornabol se deu ao trabalho de fazer a barba, prender o cabelo num rabo de cavalo e colocar uma camisa com babados limpa antes de pegar o elevador da caverna subterrânea para a superfície. Ali encontrou Unix agachado sobre a criatura mais estupenda que ele já vira. Até mesmo retorcida de modo pouco natural e coberta de sangue e hematomas; para Tornabol ficou claro que ela era uma beldade exótica. Enquanto ele estava parado junto de Leonor, com o sol por trás, lançando sombras longas em seu rosto, a aviadora abriu os olhos, olhou Tornabol e disse duas palavras: — Meu Deus. — E então caiu no delírio de novo. Tornabol ficou intrigado. Sentiu que o coração congelado por décadas começava a derreter. Quem era essa mulher que havia caído do céu? — Traga-a para dentro — disse a Unix. — Use a magia que tivermos para deixá-la bem. Unix obedeceu sem comentar, como era de seu feitio. Mui tos outros tenentes poderiam questionar a sensatez de usar o suprimento cada vez menor de magia da quadrilha com uma humana. Havia um novato no grupo que ainda tinha meio tanque. Quando isso acabasse, quem sabia quanto tempo iria se passar até que tivessem energia de novo? Mas Unix não reclamou, nem os outros, já que todos sabiam muito bem que Tornabol não lidava bem com reclamações, e os reclamões tendiam a acabar perdidos em algum lugar desconfortável esperando que algo extremamente doloroso acontecesse. Assim Leonor Carsby foi levada para a caverna subterrânea e cuidada para recobrar a saúde. Tornabol não se envolveu demais durante os primeiros estágios, preferindo aparecer quando Leonor estava a ponto de acordar, de modo a fingir que estivera ali o tempo todo. Inicialmente, Leonor não fez nada além de se curar e dormir, mas depois de algumas semanas começou a falar, a principio hesitando, mas depois as perguntas jorravam dela tão rapidamente que Tornabol mal conseguia responder. — Quem é você? — O que você é? — Como me encontrou? — Pierre, o meu navegador, está vivo? — Quando estarei em condições de viajar? Geralmente Tornabol reagia a perguntas quase tão bem quanto reagia às reclamações, mas, vindas de Leonor Carsby, cada pergunta o fazia sorrir indulgente e responder com detalhes. Por que, isso?, pensava. Por que tolero essa humana em vez de simplesmente jogá-la aos tubarões, como normalmente faria? Estou gastando tempo e magia com ela em quantidades exageradas. Tornabol começou a pensar no rosto de Leonor quando não estava olhando para ela. Sinos de água o faziam se lembrar do seu riso. Às vezes tinha certeza de que podia ouvi-la chamando- o, mas estava do outro lado da ilha. Cresça, seu idiota, dizia a si mesmo. Você não tem um coração romântico. Mas o coração não mente, e Tornabol Raiz se pegou apaixo nado por Leonor Carsby. Cancelou dois ataques a depósitos de tesouros federais para ficar ao lado dela e transferiu o escritório para o seu quarto, para poder trabalhar enquanto ela dormia. E, de sua parte, Leonor também o amava. Sabia que ele não era humano, mas amava-o mesmo assim. Ele lhe contou tudo, menos sobre a violência. Tornabol se apresentou como revolucionário fugindo de um estado injusto, e ela acreditou. Por que não acreditaria? Ele era o herói ousado que a salvara, e Tornabol se certificava de que nenhum dos seus capangas estragasse essa ilusão. Quando Leonor ficou suficientemente boa, Tornabol levou- a ao monte Everest em seu lançador e ela chorou lágrimas de espanto. Enquanto ficavam pairando, encobertos pela névoa branca e fria, Tornabol fez a pergunta que vinha esperando havia dois meses. — Naquele primeiro momento, querida, quando seus olhos encontraram os meus, você disse: Meu Deus. Por que falou aquilo? Leonor enxugou os olhos. — Eu estava quase morta, Tornabol. Você iria rir e achar que sou boba. Raiz segurou sua mão. — Eu jamais pensaria isso. Jamais. — Muito bem. Vou contar. Eu disse aquelas palavras, Tor nabol, porque pensei que tinha morrido e que você era um anjo feroz e lindo que tinha vindo me levar para o céu. Tornabol não riu e não pensou que fosse bobagem. Soube naquele momento que aquela humana linda e pequena era o amor de sua vida, e que precisava possui-la. Assim, quando Leonor começou a falar sobre sua volta a Nova York e de como Tornabol seria a sensação da cidade, ele furou a parte carnuda do polegar com uma pena de escrever, desenhou uma runa de escravidão com o sangue e se preparou para uma refeição de mandrágora e vinho de arroz.   O amorfobô gigante levou Tornabol Raiz até sua amada, que o esperava no cais do porão da casa dos dois em Veneza. A casa tinha quatro andares e fora encomendada pelo próprio Tornabol em 1798, e construída com o mais fino mármore ita liano reconstituído, misturado com polímeros das criaturas do subterrâneo, que absorveria o afundamento gradual da cidade sem rachar. Demorou várias horas para fazer a viagem, tempo em que o amorfobô mantinha Tornabol e seus homens vivos subindo periodicamente à superfície para encher suas células com oxigênio e furando seus braços com soluções salinas para nutrição. Enquanto viajavam, Tornabol se conectou ao com putador da barriga do amorfobô para garantir que ele estivesse pronto para o estágio seguinte de seu plano. Tornabol descobriu que se sentia muito confortável traba lhando nesse ambiente abrigado, com o mundo passando a toda a velocidade. Estava isolado e ao mesmo tempo no controle. Seguro. Com o canto do olho, através da máscara de gel úmido, percebia que Bobb Ragby e Ching Mayle agora o observavam com algo que se aproximava da adoração, depois da natureza espetacular da fuga. Adoração. Ele gostava disso. À medida que se aproximavam do litoral italiano, Tornabol sentiu sua calma presunçosa abandoná-lo enquanto uma ser pente de nervosismo se arrastava em seu estômago. Leonor. Como senti saudade! Desde que Tornabol havia conseguido um computador, mal houvera um dia em que os dois não tivessem escrito um para o outro, mas Leonor se recusava a participar de ligações por vídeo e, claro, Tornabol sabia o motivo. Você sempre será linda para mim, querida. O amorfobô seguiu latejando por toda a extensão do Grande Canal de Veneza, desviando-se dos montes de lixos e cadáveres de príncipes assassinados até parar diante do único portão subaquático que tinha um onissensor. O robô piscou para o sensor e o sensor piscou de volta, e, agora que todo mundo estava se entendendo, o portão se abriu sem explodi-los com as lanças Neutrino engastadas nas colunas. Tornabol piscou para sua tripulação. — Graças aos deuses, não é? Às vezes aquele portão é meio agressivo. — Era difícil falar com o lento fluxo de gel por cima dos dentes, mas Tornabol achou que o comentário valeria a pena. Leonor gostaria. A tripulação de Tornabol não respondeu; sua acomodação dentro do robô gelatinoso era um pouco mais apertada do que a do capitão. Estavam espremidos juntos como lesmas salgadas numa casquinha de sorvete. O robô se alongou para fluir facilmente pelo canal estreito até a doca subterrânea de Tornabol. Faixas de luzes brilhavam na escuridão, atraindo-os para baixo da casa. Foram cada vez mais fundo até que finalmente o robô expeliu Tornabol gen tilmente numa rampa. Ele ajeitou o casaco, apertou o rabo de cavalo e subiu lentamente a rampa em direção à figura esguia que esperava nas sombras. — Ponha os outros para dormir—disse ao robô. — Preciso falar com minha esposa. Uma carga de plasma estalou através do robô, apagando as criaturas que estavam dentro. Unix mal teve tempo de revirar os olhos antes de desmaiar. Tornabol deu um passo hesitante, nervoso como um elfo adolescente em vias de fazer sua primeira viagem à lua. — Leonor? Querida. Voltei para você. Venha me beijar. Sua esposa saiu andando com dificuldade das sombras, apoiando-se pesada numa bengala com cabo de marfim. Seus dedos eram nodosos, com calombos reumatoides, o corpo anguloso e pouco natural, com ossos afiados fazendo esticar a renda pesada da saia. Um olho tinha a pálpebra caída e o outro estava completamente fechado, e as rugas do rosto eram riscadas profundamente pelo tempo e pretas com sombras. — Tornabol. Lindo como sempre. É tão maravilhoso ver você livre! — A voz de Leonor era um mero sussurro áspero, difícil e doloroso. — Agora que você está em casa — disse demorando uma eternidade —, posso finalmente morrer. O coração de Tornabol falhou. Ele teve palpitações e uma mancha vermelha, de calor, surgiu em sua testa. Tudo que havia feito parecia subitamente ter sido por nada. — Você não pode morrer — disse furiosamente, coçando a parte carnuda do polegar, aquecendo a ruiva. — Eu a amo, preciso de você. As pálpebras de Leonor estremeceram. — Não posso morrer — repetiu ela. — Mas por quê, Tor nabol? Sou velha demais para a vida. Só meu desejo de vê-lo de novo me manteve viva, mas meu tempo passou. Não me arrependo de nada, só de nunca mais ter pilotado um avião. Eu queria, mas não fiz... Por quê? Meu domínio está enfraquecendo. O velho feitiço morreu. — Você escolheu viver comigo, querida — disse, apressando-se nos últimos passos até ela. — Mas agora que encontrei o segredo da juventude eterna, você pode ser jovem outra vez, e logo vai voar para onde quiser. Tornabol sentiu uma pressão minúscula enquanto a mão frágil de Leonor apertava seus dedos. — Eu gostaria, querido. — Claro que sim — disse Tornabol, guiando a esposa até o elevador do porão. — E agora você deve descansar. Tenho muita coisa a organizar antes de partirmos. Leonor se permitiu ser guiada, sentindo-se, como sempre, impotente para resistir ao marido carismático. — Esse é o meu Tornabol. Sempre vindo me salvar. Um desses dias vou salvar você. — Você me salva — disse Tornabol, sincero. — Todos os dias. Uma farpa de culpa furou seu coração, já que ele sabia que nunca poderia permitir que Leonor pilotasse de novo. Porque se ela conseguisse fazer isso, poderia voar para longe. Tornabol ficou chocado e apavorado ao ver como Leonor tinha ficado frágil. De algum modo, o simples ato de se casar com uma criatura do subterrâneo havia diminuído seu processo de envelhecimento, mas agora parecia que ele não consegui ria mais adiar o declínio. Tornabol pegou o medo que sentia pela esposa, transformou-o em fúria e apontou-a contra sua tripulação. — Temos uma oportunidade histórica — gritou para o pequeno grupo reunido na biblioteca do segundo andar — de dar um golpe no coração de nosso antigo inimigo e também de garantir um suprimento de magia que jamais se esgote. Se um de vocês, seus ratos de cadeia inúteis, fracassar nessa tarefa que passei longos meses de solidão planejando, não haverá nada nesta terra que possa escondê-lo de mim. Vou caçá-lo e arrancar a pele de sua cabeça. Entendido? Eles entendiam. Historicamente, as ameaças de Tornabol em geral eram vagas e cheias de estilo — quando chegava a coisas especificas era porque o capitão estava no limite. — Bom. Bom. — Tornabol respirou fundo. —Tudo pron to, contramestre? O contramestre Ark Sool deu um passo adiante. Sool era um gnomo de altura incomum, que até pouco tempo atrás fora agente do departamento de investigações internas da LEP. Tendo sido rebaixado a soldado raso depois de uma investiga ção sobre a ética de seus métodos, Sool pegou a aposentadoria que lhe cabia e decidiu usar o conhecimento acumulado em décadas de investigações criminais para ganhar parte do ouro pelo qual os gnomos eram atraídos quase hipnoticamente. Anunciou seus serviços no Papagaio Bebum e logo foi escolhido por Tornabol, a principio anonimamente, mas agora estavam se encontrando cara a cara. — Tudo pronto, capitão — disse com a voz contida, as costas eretas. — O lançador que conseguimos tirar da LEP foi preparado como uma ambulância de Atlântida. Além disso consegui cortar um pouco o orçamento e tomei a liberdade de encomendar novos uniformes de gala para o senhor. — Excelente trabalho, contramestre — respondeu Torna bol. — Sua parte nos lucros acaba de aumentar em três por cento. Ter iniciativa dá resultado. Jamais se esqueça disso. Tornabol esfregou as mãos. — Quando podemos partir? — Assim que o senhor der a ordem, capitão. A ambulância está no cais e pronta para ir embora. — O laser? — Foi modificado como o senhor pediu. Suficientemente pequeno para caber no seu bolso. — Estou gostando um bocado de você, Sool. Continue assim e logo será sócio integral. Sool fez uma ligeira reverência. — Obrigado, senhor. — Alguma baixa enquanto você estava fazendo as compras? — Não do nosso lado, senhor. — E quem se importa com o outro lado, certo? Tornabol gostou da idéia do derramamento de sangue. Isso fazia todo o trabalho parecer que valia a pena. — Bom, todos sabemos que sou uma criatura egoísta, foi isso que nos manteve vivos e prósperos, a não ser pelo periodo recente que passamos aos cuidados do Conselho. Se eu conse guir o que quero, todos vamos prosperar. E o que eu quero é uma fonte de magia suficientemente forte para tornar minha esposa jovem de novo. E se essa fonte de magia também puder realizar os sonhos de vocês, tanto melhor. Até recentemente não existia fonte eterna, mas agora os demônios retornaram do Limbo trazendo um poderoso feiticeiro. Um jovem demônio que assumiu o nome incomum de Número Um. — Um carreiristazinho metido a besta — disse Sool. — Não presta continência nem usa uniforme. — Estou tirando de volta um por cento de sua parte por ter me interrompido — disse Tornabol gentilmente. — Faça isso de novo e eu tiro um braço. Sool abriu a boca para se desculpar mas, pensando melhor, decidiu que bastaria outra pequena reverência. — Você é novo. Vai aprender. E se não aprender, pelo menos o senhor Ragby terá uma bela refeição. Ele adora coxas. Ragby enfatizou o argumento mostrando os dentes enormes. — Então, continuando, sem ser interrompido, agora há um feiticeiro demônio em Porto. Se pudermos pegá-lo, ele vai nos escudar para sempre e trazer minha Leonor de volta para mim. Alguma pergunta? Bobb Ragby levantou um dedo. — Sim, senhor Ragby? — Esse tal de Número Um não vai ser difícil de pegar? — Ah, pergunta excelente, senhor Ragby. O senhor não é tão idiota quanto parece, afinal de contas. E está certo. Geral mente uma pessoa dessa importância estaria escondida como o último verme fedorento numa festa de piscina de anões, mas no caso de um desastre no mar, onde o pessoal médico é levado aos limites, um feiticeiro tão poderoso será pressionado a servir com os feiticeiros médicos. Assim vamos encontrá-lo no aquanauta Nostremius, o hospital flutuante. Um sorriso largo se abriu no rosto de Ragby. — E nós temos uma ambulância falsa. — Temos mesmo, Bobb. Você entendeu rapidamente. Ching também tinha uma pergunta. — Uma pessoa assim, com toda essa força... certamente a LEP vai atrás de uma pessoa dessas, não é? Era exatamente a pergunta que Tornabol queria que fizes sem. Adorou ver como a apresentação estava se desenrolando. — Deixe-me responder à sua pergunta com outra, só para fazer sua mente funcionar, porque tenho fé em que você não seja apenas um goblin estúpido. Sabe por que fiz a sonda espacial se chocar contra o transporte da prisão? O rosto reptiliano de Ching se contraiu, e ele lambeu distraído os globos oculares enquanto pensava. — Acho que o senhor fez isso para os LEProsos acharem que a gente morreu. — Correto, senhor Mayle. Eu orquestrei uma catástrofe gigantesca para que todo mundo acreditasse que nós morre mos. — Tornabol deu de ombros. — Não me sinto mal com isso. Estamos em guerra contra os LEProsos, como você diz. Se você toma partido numa guerra, pode virar alvo. Talvez eu me sinta um pouco mal com a próxima catástrofe. Sou meio sentimental com hospitais; eu nasci em um. Bobb levantou o dedo de novo. — Ah, capitão, isso foi uma piada? Raiz soltou um sorriso charmoso. — Ora, foi sim, senhor Ragby. Bobb Ragby começou a rir.   TRINCHEIRA DE ATLÂNTIDA, AGORA Artemis Fowl sentiu os tentáculos da lula gigante se aperta rem ao seu redor. Ventosas esféricas do tamanho de pratos se grudaram ao traje pressurizado, babando na r, procurando onde se fixar. Cada ventosa era cercada por dentes de queratina afiados como navalha, que tentavam morder malignos os membros e o tronco de Artemis protegidos pela roupa. Oito braços, se me lembro corretamente, pensou Artemis. Duas vezes quatro. Morra! Morra! Artemis quase riu. Mesmo no aperto de morte da maior lula jamais vista por um ser humano, ele estava insistindo em seu comportamento compulsivo. Não vai demorar muito até que eu comece a contar as palavras de novo. Quando as ventosas da lula não conseguiram acesso à car ne macia de dentro, ela segurou Artemis afastado do corpo gigantesco. O estágio seguinte do ataque da lula foi golpear Artemis com um dos dois tentáculos mais longos, que ela brandiu como se fosse uma clava. Artemis sentiu o golpe violento, mas seu traje não se rompeu. — Um dois três quatro cinco — gritou Artemis em desafio. — Com esse traje até brinco. Fazendo versos com números. Estou de volta ao inicio. Por mais três vezes a lula atacou, e depois puxou Artemis para perto usando as faixas enroladas de um tentáculo gordo e pegou toda a cabeça dele no bico. O ruído foi exatamente o que Artemis sempre havia imaginado que seria, caso uma lula gigante tentasse quebrar seu capacete subaquático. Se eu sair dessa., vou começar a pensar em garotas, como um sujeito normal de quinze anos. Depois de vários minutos apavorantes, a lula aparentemente desistiu e jogou Artemis num ninho de ossos e lixo marinho que ela havia juntado numa plataforma alta, na lateral de um penhasco submarino. Artemis ficou deitado de costas e viu a criatura expandir a cavidade do manto, enchê-la com centenas de litros de água do mar, depois contrair o manto, disparando para o negrume de água profunda mais próximo. Artemis sentiu que, naquelas circunstâncias, uma gíria seria justificada. — Caraca — ofegou — Dentre todas as coisas que quase me mataram, essa foi a mais horrível. Depois de vários minutos, seus batimentos cardíacos diminuíram o bastante para apagar o indicador cardíaco que piscava no traje, e ele sentiu que podia se mover sem vomitar. — Mudei de posição — disse no capacete, para o caso de o telefone de Potrus, que estava preso acima de sua testa, ainda funcionasse. — Pretendo me orientar, para que vocês possam vir ao meu resgate. — Mudou de posição? — respondeu a voz de Potrus, que estava se transmitindo débil mente por meio de vibração através do polímero do capacete, de modo que parecia vir de lugar nenhum. — Isso é um eufemismo. Vamos tentar alcançar você. — Procure marcos na paisagem — disse outra voz, a de Butler. — Podemos usá-los para triangular com o telefone de Potrus e descobrir a posição dele. Esse era um plano esperançoso, na melhor das hipóteses, mas Artemis sentiu que era melhor ter alguma coisa para fazer do que simplesmente esperar que o ar terminasse. — Na verdade, quanto ar eu tenho? Foi Potrus, claro, quem respondeu a essa pergunta técnica. —  O traje tem guelras funcionais que tiram oxigênio do oceano, de modo que ele vai continuar respirando muito depois de você estar morto, por assim dizer. Não que você vá morrer. Artemis se virou e ficou de quatro. Qualquer dificuldade que experimentasse era devido ao seu corpo estar em choque pelo ataque do cefalópode, e não pelo traje pressurizado, que continuava funcionando perfeitamente e que mais tarde ga nharia um prêmio da indústria pelo desempenho naquele dia. Dê cinco passos, instigou Artemis a si mesmo. Só cinco. In dependentemente de qualquer coisa, não pare no... um a menos do que cinco. Deu cinco passos arrastando os pés, tateando ao longo da plataforma, tendo cuidado para não dar um passo para o abismo. Provavelmente conseguiria sobreviver à queda, mas não queria ter de subir de novo. — Estou numa laje comprida e plana, na borda da trin cheira — disse baixinho, ansioso para não perturbar nenhuma criatura sensível a vibrações. Tubarões, por exemplo. Percebeu que a lula o havia deixado numa espécie de ninho. Talvez a criatura não dormisse ali, mas parecia se alimentar no local e recolher coisas que lhe interessavam. Havia vários esqueletos, inclusive os restos gigantescos de uma baleia espermacete, que a principio Artemis confundiu com um navio naufragado. Havia barcos pequenos, enormes hélices de latão, grandes nacos de quartzo reluzente, rochas fosforescentes, vários caixotes e até um submarino laranja, de mar profundo, danificado e com esqueletos sorridentes dentro. Artemis se afastou rapidamente daquela embarcação, ainda que seu intelecto lhe garantisse que os esqueletos não podiam lhe fazer mal. Perdão se não confio totalmente no meu intelecto esses dias. Notou que, em todo aquele entulho, não parecia haver artigos feitos pelo povo subterrâneo, mesmo que Atlântida estivesse logo adiante, do outro lado da crista. Então Artemis viu que estava enganado. Havia, a não mais de dez metros dele, um pequeno cubo computador metálico, com marcas inconfundíveis do Povo, que parecia flutuar logo acima da superfície. Não, espera, não está flutuando. Está suspenso em gel. Artemis cutucou o gel cautelosamente, e quando não hou ve reação, a não ser uma pequena fagulha, mergulhou a mão protegida dentro do gel, até o ombro, segurando o cubo por um canto. Com a ajuda dos servomotores da roupa, soltou-o com facilidade. Destroço da sonda, talvez, pensou, depois disse em voz alta: — Encontrei alguma coisa. Pode ser pertinente. Está vendo isso, Potrus? Não houve resposta. Preciso voltar à nave, ou para a cratera do impacto. Algum lugar longe da lula gigante que quer morder minha carne e sugar meu tutano. Artemis se arrependeu imediatamente de ter pensado a parte de sugar meu tutano, já que era explicita demais, e agora sentiu vontade de vomitar de novo. Nem sei para que lado ir, percebeu. Essa saída foi mal pen sada. Quais eram as chances de eu encontrar uma pista no fundo do oceano? Uma declaração irônica, por acaso, já que ele estava segu rando uma pista vital. Girou a cabeça para um lado e para o outro, tentando ver se qualquer coisa apanhada no facho de luz do capacete podia provocar uma idéia. Nada, só um peixe quase transparente im pelindo o corpo encaroçado com barbatanas curtas e filtrando plâncton através das narinas circulares. Preciso que alguma coisa aconteça, pensou um tanto deses perado. Ocorreu-lhe a idéia de que estava perdido sozinho, sob nove quilômetros de oceano esmagador, sem ao menos uma idéia do que fazer em seguida. Sempre havia funcionado bem sob pressão, mas geralmente era a pressão intelectual que uma pessoa experimentaria no fim de uma partida difícil de xadrez, e não o tipo de pressão capaz de rachar os ossos e espremer cada bolha de ar dos pulmões. Pressão de água. Por acaso, alguma coisa aconteceu: a lula voltou, e trazia preso aos tentáculos maiores o que parecia ser o cone do nariz da sonda espacial. Para quê ela vai querer isso pensou Artemis. É quase como se estivesse manipulando uma ferramenta. Mas com que objetivo? Que noz uma lula gigante quereria quebrar? — Eu — disse Artemis bruscamente. — Eu sou a noz. Artemis poderia jurar que a lula piscou para ele, antes de mandar o naco de cinco toneladas de espaçonave contra o naco de carne dentro da casca azul. — Eu sou a noz! — gritou Artemis de novo, deve-se dizer que um tanto histericamente. Recuou ao longo da laje, com os motores do traje lhe dando um pouco de velocidade. Só o número suficiente de metros por segundo para sentir a força do golpe mas não o metal em si. A proa da sonda cortou a rocha como um cutelo atravessando a carne macia, e cavou uma vala em forma de v que correu entre as solas dos pés de Artemis. Isso é que dá ser gênio, pensou Artemis com amargura. Faço um gesto grandioso e viro comida de peixe. A lula soltou sua arma da rocha e levantou-a bem alto, enchendo a cavidade de seu corpo com água para o próximo esforço. As costas de Artemis estavam literalmente contra a parede. Não tinha aonde ir e era um alvo fácil. — Butler! — gritou Artemis, puramente por hábito. Não tinha expectativa verdadeira de que seu guarda-costas pudesse se materializar milagrosamente ao seu lado; e, mesmo que ele fizesse isso, seria para morrer ali. A lula fechou um olho enorme, mirando com cuidado. Essas coisas são mais inteligentes do que os cientistas acham, pensou Artemis. Gostaria de ter condições de escrever um texto cientifico. A proa baixou com força, comprimindo a água e depois empurrando-a de lado. O metal preencheu a visão de Artemis e ocorreu-lhe que era a segunda vez que essa proa em particular quase o esmagava. Só que desta vez não é quase. Mas seria quase. Um circulo laranja pulsou na tela do capacete de Artemis e ele rezou para que fosse o sinal de que uma conexão eletromagnética tivesse sido estabelecida entre o traje e a nave. Era. Artemis sentiu um puxão suave, depois mais um, feroz, que o arrancou da laje diretamente para o veiculo mercenário que pairava lá em cima. À luz dos faróis de seu traje, pôde ver uma placa magnética na barriga da nave. Embaixo dele, a lula abandonou a marreta improvisada e partiu em perseguição. Provavelmente vou diminuir a velocidade antes de bater na quela placa, pensou com esperança. Não diminuiu, mas o impacto doeu muito menos do que um golpe de uma lula gigante armada. Em geral o mergulhador seria levado para dentro imediata mente, mas nesse caso Holly decidiu que seria melhor deixar Artemis onde estava e manter alguma distância entre ele e a lula. E mais tarde Artemis concordaria que era a decisão correta, ainda que estivesse gritando o tempo todo. Artemis girou a cabeça para ver a enorme cabeça da lula vindo como um jato atrás dele, os tentáculos ondulando como cordas de pular, cordas de pular que tinham ventosas com bordas cortantes como navalhas e força suficiente para esma gar um veiculo blindado, para não mencionar a capacidade de manipular ferramentas. —  Holly! — gritou ele — Se puder me ouvir, vá mais depressa! Aparentemente ela ouviu. Holly levou o veiculo para o fundo da cratera de impacto, e quando teve toda a certeza de que a lula estava fora da visão, virou a placa magnética e Artemis foi largado na escotilha estanque, ainda agarrando a caixa do computador junto ao peito. — Ei, olhem — disse Palha, assim que a escotilha estanque foi esvaziada. — É a noz. — E correu em pequenos círculos ao redor da escotilha, gritando: — Eu sou a noz. Eu sou a noz. — O anão parou para dar uma gargalhada. — Estou quebrado de tanto rir. Butler correu para perto de Artemis. — Dá uma folga, Escavator. Ele acabou de se embolar com uma lula gigante. Palha não ficou impressionado. — Uma vez eu comi uma daquelas. Uma grande, não uma miudinha que nem essa. Butler ajudou Artemis a tirar o capacete. — Alguma coisa quebrada? Consegue mexer os dedos das mãos e dos pés? Qual é a capital do Paquistão? Artemis tossiu e esticou o pescoço. — Nada quebrado. Todos os dedos estão com capacidade móvel e a capital do Paquistão é Islamabad, o que é digno de nota porque foi construída com o objetivo de ser a capital. — Certo, Artemis — disse Butler. — Você está bem. Não vou pedir que conte até cinco. — Eu preferiria contar de cinco em cinco, se você não se incomodasse. Potrus, parabéns por construir um telefone tão forte, com um excelente programa de rastreamento. Holly mexeu nos flaps aquáticos para diminuir a velocidade do veiculo. — Encontrou alguma coisa? Artemis estendeu o cubo. — Destroço da sonda. Isso estava coberto com uma espécie de gel. Textura interessante, cheio de cristais. É alguma coisa sua, Potrus? O centauro se aproximou batendo os cascos e pegou a pe quena caixa metálica. — É o coração de um amorfobô — disse com carinho. — Esses sujeitinhos eram os coletores perfeitos. Podiam absorver qualquer coisa, inclusive um ao outro. — Talvez tenham absorvido o tal de Tornabol e os coleguinhas dele — disse Juliet, meio de brincadeira. Artemis já ia explicar, em termos simples e paternalistas, por que isso não era possível, quando lhe ocorreu que de fato era possível — não só isso: era provável. — Eles não foram programados para atuar como veículos de resgate — disse Potrus. Holly fez uma careta. Se você disser mais uma vez que esses amorfobôs não foram programados para fazer alguma coisa, terei de raspar suas ancas enquanto você estiver dormindo. Artemis se arrastou até o banco de aço. — Está dizendo que vocês sabiam sobre esses amorfobôs o tempo todo? — Claro que sabiamos. Eles nos atacaram na Islândia. Lembra? — Não. Eu estava inconsciente. — Isso mesmo. Parece que foi há séculos. — Então eu fui atacado por uma lula, sem necessidade? — Ah, não foi sem necessidade. Eu teria demorado minutos para fazer a conexão, e mesmo assim seria apenas uma teoria — Potrus digitou um código em seu telefone, soltando-o do capacete do traje pressurizado. Ao passo que agora podemos verificar a programação. Potrus conectou o telefone ao cérebro do robô e ficou de liciado ao ver sua tela se iluminar. Fez algumas verificações e pôde facilmente identificar o programa oculto. — Isso é meio enigmático. O robô recebeu novos parâ metros de missão a partir do orbe de controle. De modo charmoso, ele está dizendo ao seu gel para matar todos nós agora. Por isso não detectamos nenhuma interferência externa: não havia. É um simples programa oculto, algumas linhas de código, só isso. Simples de apagar. — Ele fez isso com alguns toques do teclado. — Onde fica esse tal orbe de controle? — perguntou Artemis. — No meu laboratório, em Porto. — Podem ter mexido nele? Potrus nem precisou pensar nisso muito tempo. — Impossível, e não estou sendo meu eu típico e negando que meu equipamento seja responsável. Eu verifico aquela coisa quase todo dia. Fiz uma verificação de sistema ontem e não havia nada incomum no histórico do orbe. Quem armou isso vem passando instruções para a sonda há semanas, se é que não meses. Artemis fechou os olhos para bloquear os quatros brilhantes que tinham aparecido em sua visão, flutuando no interior do veiculo, sibilando de forma maligna. Eu consigo sobreviver a uma lula gigante e agora estou preo cupado com números quatro sibilando. Fantástico. — Preciso que todo mundo se sente em fila no outro banco, arrumados do menor para o maior. — Isso é o Complexo de Atlântida falando, Garoto da Lama — disse Holly. — Lute contra ele. Artemis apertou as mãos nos olhos. — Por favor, Holly. Por mim. Palha adorou aquele jogo. — Devemos dar as mãos? Ou cantar? Que tal: cinco me mantém inteiro, quatro me rala o traseiro? — Versinhos com números? — disse Artemis, cético. — Isso é ridículo. Por favor, sentem-se onde eu pedi. Eles sentaram-se, relutantes e resmungando, Potrus e Pa lha discutindo por um momento sobre quem era menor. Não houve discussão quanto a quem era o maior. Butler sentou-se encolhido no final, com o queixo entre os joelhos. Ao lado dele estava Juliet, depois Potrus, em seguida Palha e finalmente Holly, que havia posto o veiculo em ponto morto. Cinco, pensou Artemis. Cinco amigos para me manter vivo. Sentou-se ainda vestido com o traje de exoesqueleto pressurizado, olhando os amigos e ganhando força, deixando as idéias crescerem. Finalmente disse: — Potrus, devia haver um segundo orbe. Potrus assentiu. — Havia. Nós sempre temos um equipamento de reserva. Nesse caso usamos o clone porque o original estava danificado. Era um dano pequeno, certo, mas não se pode correr riscos quando se trata de viagem espacial. O primeiro foi mandado para a incineração. — Onde? — Em Atlântida. Os Laboratórios Koboi tinham o con trato. Isso foi obviamente antes de percebermos como Opala é maluca. — Então, se aceitarmos que Tornabol Raiz conseguiu pegar o segundo orbe e fez com que Vishby, ou quem mais trabalhasse para ele, o consertasse, a sonda obedeceria aos comandos daquele orbe? — Claro. Sem dúvida. As ordens poderiam ser mandadas por qualquer computador que tivesse conexão por satélite. Butler levantou um dedo. — Posso dizer uma coisa? — Claro, velho amigo. — Potrus. Sua segurança é uma porcaria. Quando vocês vão aprender? Há alguns anos os goblins construíram um lançador, e agora vocês têm prisioneiros comandando seu programa espacial. Potrus bateu um casco. — Ei, meu chapa, não vamos julgar tanto. Nós ficamos escondidos durante milhares de anos. Para ver como nossa segurança é boa. — Cinco, dez, quinze, vinte — gritou Artemis. — Por favor. Precisamos trabalhar depressa. — Podemos zombar de você por conta disso mais tarde? — disse Palha. — Tenho um material fantástico. — Mais tarde — respondeu Artemis. — No momento precisamos deduzir para onde Tornabol vai e qual é o objetivo final dele. Quando não houve discussão, ele continuou: — Se presumirmos que Tornabol usou esse orbe para con trolar a sonda e usou os tais amorfobôs para levá-lo embora, será que podemos rastrear os amorfobôs? O movimento de cabeça de Potrus foi um meio-termo entre uma confirmação e uma negativa. — Possivelmente. Mas não por muito tempo. Artemis entendeu. — O gel se dissipa na água salgada. — Isso mesmo. A fricção entre a água e os robôs desgasta o gel, mas assim que ele se separa do cérebro, começa a se dissolver. Não havendo carga, não há aderência. Eu diria que, com uma bolha do tamanho de um melão, poderíamos ter algumas horas. — Já se passaram algumas horas. Quanto tempo temos? — Talvez já seja tarde demais. Se eu pudesse sair dessa carteira escolar, poderia dizer. — Claro. Por favor. Potrus girou os braços para frente, levantando-se da incô moda posição sentada, e entrou na cabine onde rapidamente digitou a estrutura química do gel no computador rudimentar do girocóptero e baixou um filtro nas escotilhas. — Para nossa sorte, os mercenários decidiram deixar os scanners intactos. Cada um escolha uma janela. Fiz uma varre dura para uma radiação especifica e a trilha de gel deve aparecer como um verde-luminoso. Gritem se virem alguma coisa. Cada um escolheu uma escotilha, menos Holly, que se sen tou na cadeira do piloto, pronta para assumir qualquer direção para onde a trilha levasse. — Estou vendo! — disse Palha. — Não, espera. Na verdade é uma lula furiosa procurando sua noz pequenina. Desculpe. Sei que não foi apropriado, mas estou com fome. — Ali — gritou Juliet. — Estou vendo alguma coisa a bombordo. Artemis foi para a escotilha dela. Serpenteando a partir das profundezas da cratera havia um levíssimo fluxo de bolhas brilhantes que desapareceram enquanto eles olhavam, as de baixo se separando em bolhas menores, depois, perto do fim da trilha, algumas sumiam totalmente. — Depressa, Holly — disse Artemis, ansioso. — Siga aquelas bolhas. Holly acelerou. —  Essa é uma ordem que achei que nunca ouviria você dar — respondeu ela. Partiram na trilha dos mercenários a toda a velocidade, atrás do rastro de bolhas, apesar de Potrus ter argumentado que, tecnicamente, não eram bolhas, e sim glóbulos, e em troca dessa informação recebeu um soco no ombro dado por Juliet. — Ei, não precisa me dar um soco — protestou o centauro. — Tecnicamente isso foi um cascudo, e não um soco — corrigiu Juliet. —Já isso... isso é um soco. A trilha ficou mais fraca diante dos olhos deles, e Holly programava rapidamente um curso projetado sempre que os glóbulos mudavam de direção, para o caso de desaparecerem totalmente. Artemis sentou-se na cadeira do copiloto, com uma das mãos sobre um olho e a segunda diante do rosto. — Geralmente o polegar é considerado um dedo — disse a Holly. — Nesse caso estamos seguros, porque com isso são cinco dedos. Mas alguns especialistas argumentam que o polegar é totalmente diferente, e que ele é uma das coisas que nos separam dos animais, e nesse caso só temos quatro dedos em cada mão. E isso é ruim. Ele está piorando, pensou Holly ansiosa. Butler sentia-se aturdido. Se alguém estava ameaçando Artemis, a ação protetora correta geralmente era bem óbvia: Dar uma cacetada no bandido e confiscar sua arma. Mas agora o bandido era a própria mente de Artemis, e ela estava virando-o contra todo mundo, inclusive Butler. Como posso confiar numa ordem que Artemis me dê?, pensou o guarda-costas. Ela poderia simplesmente ser um ardil para me afastar. Como aconteceu no México. Agachou-se ao lado de Artemis. — Você confia em mim agora, não é, Artemis? Artemis tentou encará-lo, mas não conseguiu. — Estou tentando, velho amigo. Eu quero, mas sei que logo não terei forças. Preciso de ajuda. E logo. Os dois entenderam o que Artemis não quis dizer: preciso de ajuda antes de enlouquecer totalmente. Seguiram a trilha de gel para o leste, através do Atlântico, e rodearam o estreito de Gibraltar entrando no Mediterrâneo. No inicio da tarde, a trilha terminou subitamente. A última bolha verde estourou e, de súbito, eles estavam quinze metros abaixo d'água, a três quilômetros do golfo de Veneza, sem nada além de iates e gôndolas na visão do giro. — Tem de ser Veneza — disse Holly, levando a nave à alti tude de periscópio, aproveitando a oportunidade para encher os tanques de ar e equalizar. — Está bem na nossa frente. — Veneza é uma cidade grande — disse Butler. — E não é um lugar fácil para fazer uma busca. Como vamos encontrar esses caras? O cérebro do amorfobô, na mão de Potrus, soltou um bip de repente enquanto estabelecia uma conexão com os irmãos. — Acho que isso não vai ser problema. Eles estão perto. Muito perto. Muito, muito perto. Artemis não ficou feliz com essa declaração melodramática.   — Muito, muito perto? Verdade, Potrus? Você é um cien tista. A que distância, exatamente? Potrus apontou para a escotilha do giro. — Perto assim. Os dois minutos seguintes foram frenéticos e pareceram ser todo um dia de acontecimentos comprimidos em alguns instantes. Para Artemis e Potrus, a coisa toda foi uma série de clarões de cor e movimento turvo. Butler, Holly e Juliet viram um pouco mais, já que eram soldados com treinamento. Butler até conseguiu sair do banco, o que não lhe serviu absolutamente de nada. A escotilha do giro fez um som parecido com uma bolha de plástico gigante sendo pisada por um pé gigante, e depois simplesmente desapareceu. Ou melhor, pareceu desaparecer. Na verdade foi arrancada com grande força e depois lançada ao céu. A escotilha acabou se alojando no interior da torre do sino da praça de São Marcos, o que causou um bocado de consternação na cidade, em especial para o pintor cuja corda foi cortada pela escotilha que girava e que mergulhou trinta metros, pousando nas costas do irmão. Os irmãos já andavam brigando, e isso não melhorou a situação em nada. No giro, a água começou imediatamente a inundar o in terior, mas a maior parte do espaço disponível foi preenchido pelas formas de seis amorfobôs que fluíram para dentro, chian do e soltando sons eletrônicos enquanto escolhiam seus alvos. Tudo acabou em menos de um segundo. Os robôs partiram para cima dos alvos, engolfando-os rapidamente em gel túrgido, e levaram-nos para o azul do Mediterrâneo. Enquanto eram levados para a forma sombria de um vei culo do povo subterrâneo que estava nas profundezas, cada prisioneiro teve seus próprios pensamentos sobre o que havia acontecido. Artemis ficou pasmo em ver como esse sequestro o lembrava do tempo que tinha passado lutando através da tela mental em seu próprio cérebro. Holly se perguntou se sua arma funcionaria dentro daquela gosma ou se tinha sido inutilizada de novo. Potrus não conseguiu evitar algum sentimento de carinho pelo amorfobô que o havia aprisionado, afinal de contas ele havia crescido num béquer de seu laboratório. Juliet tentava manter Butler à vista. Enquanto pudesse enxergar o irmão, sentia-se razoavelmente segura. Butler tentou lutar por um momento, mas percebeu logo que seus esforços eram inúteis, por isso se enrolou como um recém-nascido, conservando a energia para um movimento explosivo. Palha também estava pensando num movimento explosivo. Talvez não conseguisse escapar, mas certamente poderia fazer aquela coisa bolhosa se arrepender de tê-lo pegado. O anão puxou os joelhos devagar até o peito e permitiu que o gás no seu interior se juntasse em grandes bolhas. Com o tempo, teria força suficiente para sair dali, ou então ficaria flutuando no que pareceria a maior lâmpada de lava do mundo. Tornabol Raiz estava quase se divertindo. Poderia estar se divertindo muito, não fosse o fato de que sua querida Leonor não se encontrava na condição que ele gostaria, e se preocupava com o fato de que, se conseguisse restaurar as faculdades de Leonor, ela rapidamente deduziria que ele não era exatamente o revolucionário cheio de princípios que sempre tinha fingido ser e deixaria de amá-lo. Leonor era extremamente ética e definitivamente reagiria mal à idéia de que ele prendesse um feiticeiro demônio para mantê-la eternamente jovem. Tornabol olhou para a runa de escravidão em seu polegar. As espirais in tricadas e os caracteres que tinham mantido Leonor presa, mas cujo poder estava enfraquecendo o tempo todo. Será que ela o teria deixado se aquilo não existisse? Talvez. Provavelmente. Tornabol era possivelmente o maior especialista em runas do mundo. Elas serviam à sua situação, já que só exigiam uma fagulha minúscula de magia para dar a partida e depois disso atuavam com o poder dos próprios símbolos. Pessoas diferentes reagiam de modo diferente ao controle das runas. Algumas podiam ser controladas por décadas, ao passo que outras rejeitariam a magia negra e ficariam loucas instantaneamente. Leonor fora a escrava ideal porque grande parte dela queria acreditar no que Tornabol lhe dizia. Com seu laser modificado, Tornabol podia escravizar quem quisesse, durante o tempo que quisesse, não importando como a pessoa se sentisse com relação a ele, e sem a necessidade de uma única fagulha de magia. Como os novos prisioneiros, por exemplo. Um verdadeiro baú de talentos à sua disposição. Nunca se sabe quando um gênio adolescente pode ser útil, ou um centauro técnico, es pecialmente quando se sabia que o pequeno demônio confiava nos dois. Com esses dois e o feiticeiro, ele poderia inaugurar seu próprio principado, se quisesse. É, estou quase me divertindo, pensou Tornabol. Mas logo estarei me divertindo muitíssimo. Só falta mais um conjunto de pessoas para matar. Talvez dois. Os amorfobôs tinham entrado na ambulância através da escoti lha estanque e se fundido dentro da única cela da ambulância. Na verdade o robô que segurava Palha Escavator foi excluído da fusão porque os outros robôs não conseguiram identificar o espectro químico das bolhas de gás dentro do corpo do anão e francamente não gostaram da aparência de Palha. E assim, mesmo que tentasse se fundir com os outros, o robô foi repelido e ficou quicando solitário no canto. Tornabol Raiz desceu a escada espiral vindo da ponte de comando e literalmente entrou com passo presunçoso na cela, para cantar vantagem. — Olhe aqui — disse a Unix, que estava ao seu lado, sério como sempre. — As melhores mentes humanas e do subsolo, todas reunidas numa única cela. Eles pairavam à sua frente, suspensos em gel inteligente, incapazes de fazer muita coisa além da respiração curta e de se mover como nadadores sonolentos. —  Nem se incomodem em tentar pedir socorro ou atirar para sair dai — continuou Tornabol. — Estou interferindo em seus telefones e suas armas. — Ele se inclinou perto da superfície reluzente do robô. — Aqui está um dos bichinhos de estimação do Julius. Nós já não atiramos nela, Unix? Um sorriso zombeteiro esticou o maxilar do duende, mas isso não o fez parecer uma pessoa melhor. — E o grande Potrus. Salvador do Povo. Não mais, meu pequenino pônei. Logo você será meu escravo e vai adorar. — Tornabol balançou os polegares para os cativos e eles puderam ver as runas vermelhas pintadas ali. — E o que temos aqui? — Tornabol parou diante dos Bu tler. — O Urso Louco e a Princesa de Jade. Vocês escaparam uma vez, mas isso não vai acontecer de novo. —  E eu? — conseguiu dizer Palha, e o robô traduziu as vibrações de sua laringe transformando-as em sons. — E você? —  Eu não recebo uma descrição? Também sou perigoso. Tornabol riu, mas baixinho, de modo que o barulho não acordasse Leonor, que dormia na cabine acima. — Gosto de você, anão. Você tem moral, mas mesmo assim vou matá-lo, já que não tem utilidade para mim, a não ser que queira o cargo de bobo da corte. Um bobo da corte gordo e fedorento. Obviamente estou presumindo que você fede. Certamente parece feder. Tornabol virou-se para Artemis. — E, claro, Artemis Fowl. Ex-gênio do crime e atualmente psicótico. Como vai o Complexo, Artemis? Aposto que você teve um número ruim. Qual é, cinco? Quatro? — Artemis deve ter se encolhido, porque Tornabol soube que tinha adivinhado. — Quatro, então. E como sei que você sofre do Complexo de Atlântida? Você deveria perguntar ao seu amigo Potrus. É ele que me fornece imagens. Artemis não ficou totalmente surpreso ao ver que parte de sua paranóia era justificada. Tornabol andou ao longo da fila, como um general fazendo discurso antes da batalha. — Sinto um prazer enorme em vocês estarem aqui, um prazer genuíno. Porque vocês podem ser úteis para mim. Vejam bem, minha esposa está muito idosa, e para salvar a vida dela e trazer sua juventude de volta preciso de um mago muito poderoso. Os olhos de Artemis se arregalaram. Ele entendeu imedia tamente. Tudo isso era para atrair o N° 1 para fora de Porto. — Seu amigo Número Um vai ajudar a tratar dos feridos do Nostremius e nós vamos entrar lá, disfarçados de pacientes, e traze-lo para fora com meus lasers modificados supermaneiros, mas sempre pode haver o probleminha incômodo de o sujeitinho talvez soltar um raio de magia antes de eu escravizá-lo. Mas agora, Holly Short, uma das suas melhores amigas em todo o mundo, vai pegá-lo para mim. Tornabol se virou para Unix. — Diga ao robô para cuspir a capita Short. Unix consultou uma imagem computadorizada do robô e seu conteúdo numa tela de parede. Com um movimento rápido do dedo, arrastou Holly para fora do gel. Quase instantane amente o robô fez o mesmo. Holly sentiu que era vomitada da barriga de uma fera no chão de metal frio. Ficou deitada, ofegando, enquanto os pulmões se acostumavam a respirar ar puro de novo. Abriu os olhos e viu Tornabol rindo, inclinando- se sobre ela. — Estou me lembrando cada vez mais de você, à medida que o tempo passa — disse ele, e deu-lhe um chute forte nas costelas com a bota preta. — E lembro que você me colocou na prisão. Mas não faz mal, não é? Agora você pode compensar fazendo o bem para mim. Holly cuspiu um bocado de gel no convés. — Não é provável, Tornabol. Tornabol chutou-a de novo. — Você vai se dirigir a mim citando meu posto. Holly falou com os dentes trincados: — Duvido. — Eu, não — respondeu Tornabol, e firmou a bota no pescoço dela. Do bolso tirou o que parecia uma lanterna miniatura. — Isso parece uma lanterna miniatura, não c? Holly não conseguia falar, mas estava adivinhando que o cilindro fino fosse algo mais sinistro do que uma lanterna. — Sim, é um pouquinho mais do que isso. Você pode ter adivinhado que as runas de magia negra são uma espécie de passatempo para mim. Isso é ilegal, certo, mas quase tudo que eu faço é ilegal, então por que começar a me preocupar com isso agora? O que esse pequeno laser faz é queimar a runa diretamente na pele da pessoa que eu quero escravizar. Não é necessário magia. Desde que eu tenha a runa correspondente na minha pessoa, você é minha escrava para sempre. Tornabol mostrou o polegar a Holly, o polegar onde a runa de Vishby ainda estava gravada na parte carnuda, cuja magia podia ser transferida para ela, agora que Vishby estava morto. — E adivinhe só, minha cara! Acaba de se abrir uma vaga na minha organização. Raiz ativou o laser e cantarolou um momento até que a ponta ficou vermelha, depois apertou-o no pescoço de Holly, gravando sua runa de domínio. Holly se sacudiu e gritou num ataque de magia negra. — Não é tão gentil quanto o toque — observou Tornabol, saindo do alcance de vômito, só para garantir. O ataque durou menos de um minuto, deixando Holly rígida no chão, respirando numa velocidade anormal, as pálpebras estremecendo. Tornabol lambeu a runa de sangue em seu polegar. — Agora, senhorita Short, que tal irmos sequestrar um feiticeiro? Holly se levantou, os braços rígidos ao lado do corpo, olhos desfocados. —  Sim, capitão — respondeu ela. Tornabol deu-lhe um tapa nas costas. — Assim está melhor, Short. Não é libertador não ter esco lha? Você simplesmente faz o que eu mando e nada é sua culpa. — Sim, capitão. É tremendamente libertador. Tornabol entregou-lhe uma Neutrino. — Sinta-se livre para matar qualquer um que entre no seu caminho. Holly verificou habilmente o nível da bateria. — Qualquer um que entrar no meu caminho, eu matarei. — Gosto desses lasers — disse Tornabol, girando a caneta de runa. —Vamos fazer com outra pessoa. Diga ao robô para soltar o jovem Fowl de sua bolha, Unix. Vai ser bom ter um gênio de estimação. Unix passou o dedo pela tela sensível ao toque e Artemis caiu no chão, ofegando como um peixe fora d'água.   AQUANAUTA MOSTREMIUS, TRINCHEIRA DE ATLÂNTIDA O jovem demônio feiticeiro que optava por ser chamado de N°1 estava se sentindo extremamente triste. Era um sujeitinho sensível, se bem que você não pensaria isso ao olhar para seu tronco coberto pela placa blindada cinza e a cabeça pequena que parecia abrir caminho para fora dos ombros volumosos, mas ele sentia a dor dos outros, e essa característica, segundo seu mestre, era o que o tornava um feiticeiro tão excelente. Hoje havia muita dor no mundo subterrâneo. Os desastres com a sonda marciana na Islândia e na Trincheira de Atlântida foram os piores acontecidos em tempos recentes. Para os huma nos, um sofrimento nessa escala provavelmente nem sairia nas grandes redes de noticias, mas o povo subterrâneo era muito menor em número e era cauteloso por natureza, de modo que ter dois desastres relacionados a uma sonda num único ciclo era horrível. Mas pelo menos uma catástrofe ainda maior fora evitada pela evacuação eficiente de Atlântida. O N°1 mal havia começado a sofrer a perda de seus amigos na Islândia quando a LEP o informou que Holly, Potrus e Artemis tinham sobrevivido. O comandante Encrenca Kelp pediu que ele fosse a Atlântida no navio-hospital Nostremius para ajudar na cura dos feridos pela onda de choque da sonda. O pequeno demônio concordou imediatamente, esperando ser capaz de se distrair pelo menos por um curto período, usando seus poderes para ajudar os outros. E agora haviam vazado noticias de que o casulo de fuga de Holly tinha afundado no Alar e que todos os ocupantes poderiam estar mortos. Era coisa demais a ser processada: mortos, vivos, depois mortos de novo. Se Holly tivesse alguma magia no organismo, o N°1 talvez fosse capaz de senti-la em algum lugar, mas ele não conseguia sentir nada. Assim, durante as últimas horas, o N°1 havia trabalhado incansavelmente estendendo as mãos para os feridos. Tinha emendado ossos, lacrado talhos, consertado órgãos rompidos, tirado água salgada de pulmões, colocado véus de calma sobre histeria e, em alguns casos extremos, apagado todo o trans torno da memória das pessoas. Pela primeira vez desde que havia brotado como feiticeiro, o N°1 estava se sentindo meio exaurido. Mas não poderia sair agora, já que havia acabado de chegar a noticia, pelos alto-falantes do aquanauta, de que outra ambulância havia atracado. Preciso dormir, pensou cansado. Mas não sonhar. Eu só so nharia com Holly. Não consigo acreditar que ela morreu. E algo o fez levantar os olhos naquele momento, e ele viu Holly Short andando pelo corredor em direção à porta da quarentena. A visão foi tão inesperada que o N°1 ficou estra nhamente calmo. É Holly mas está se movendo de modo estranho. Como se estivesse embaixo d'água. O N°1 terminou de emendar o osso no qual estava traba lhando, depois deixou uma enfermeira fazer a limpeza. Foi rapidamente em direção à porta da segurança, onde a retina de Holly estava sendo examinada. O computador aceitou credenciais da LEP e abriu a porta com um sibilo pneumático O N°1 saiu para impedir Holly de entrar. — Temos de manter essa área livre de germes— disse lamentando que essas tivessem de ser as primeiras palavras que pronunciava para a amiga ressuscitada — e você parece ter acabado de escapar de um monte de lixo tóxico. — Depois abraçou-a com força. — E está fedendo a lixo tóxico, mas está viva. Felizmente. Diga, Potrus sobreviveu? Por favor, diga que sim. E Artemis? Não pude suportar quando ouvi dizer que todos vocês haviam morrido. Holly não o encarou. — Artemis está doente. Preciso que você venha. O N°1 ficou imediatamente desolado, com o humor mu dando rapidamente, como o de uma criança pequena. — Artemis está doente? Ah, não. Traga-o e vamos cuidar dele aqui. Holly se virou na direção de onde tinha vindo. — Não. Ele não pode ser removido. Você precisa vir comigo. O N°1 correu atrás da amiga Holly sem hesitar ao menos um instante. — É um osso quebrado, não é? Artemis não pode ser re movido? Potrus está bem? Aonde vocês foram? Mas não houve respostas para o pequeno demônio, e tudo que ele podia fazer era seguir os ombros quadrados de Holly através da multidão de feridos de pé e das maças que tinham sido postas nos corredores. O cheiro de desinfetante ardia nas narinas e os gritos dos feridos cortavam seu coração. Vou dar um jeito em Artemis rapidamente. Talvez me deite por um minuto, depois volto ao trabalho. O N°1 era uma boa alma, e nem por um instante lhe ocorreu sondar Holly um pouco, para se certificar de que ela estivesse no dominio de si mesma. Jamais lhe passou pela mente que sua amiga mais intima pudesse estar levando-o para uma vida de servidão. Tornabol estava sentado junto à cama de Leonor na ambulância roubada, segurando sua mão enquanto ela dormia. Sentia-se meio tonto por ter mudado o plano no último minuto. Era um passo arrogante, e o jorro de adrenalina lembrou-o de seus dias de juventude. — Antes de eu ir preso, tudo era meio improvisado — confi denciou a Leonor, que dormia. — Eu era capitão da LEP e ao mesmo tempo comandava a clandestinidade. Para ser honesto, não havia exatamente uma clandestinidade antes de eu aparecer. De manhã, eu comandava uma reunião da força-tarefa que estava tentando me prender, e de noite fazia negócios no mercado negro com as quadrilhas de goblins. — Tornabol sorriu e balançou a cabeça. — Bons tempos. Leonor não reagiu, já que Tornabol tinha achado melhor lhe dar só uma gota de sedativo até que o feiticeiro tivesse restaurado sua juventude. Sabia, pelas falas dela sobre a morte, que estava perdendo o domínio sobre a esposa e que ela não tinha forças suficientes para sobreviver a outra runa de escravidão. Então durma, querida. Durma. Logo tudo será como antes Assim que a capitã Short retornasse com o demônio. E se ela não retornasse? Ele abordaria o Nostremius e pegaria o demônio à força. Talvez perdesse um tripulante ou dois, mas eles ficariam felizes em morrer pela esposa do capitão. Um andar abaixo, na prisão do veiculo, Bobb Ragby estava de guarda, um serviço do qual gostava tremendamente, já que o considerava uma vingança por todos os anos em que fora maltratado pelos guardas. Para Bobb não importava que seus prisioneiros em gel não fossem as pessoas que o tinham vigiado antes; azar deles. Estava sentindo um prazer especial em provocar Palha Escavator, que durante muito tempo ele havia considerado concorrente na competição de maior anão criminoso, uma competição que ele travava na mente durante as longas horas passadas no toalete graças a uma dieta de co mida processada. Tornabol havia ordenado que ele separasse os amorfobôs por segurança, e agora cada um pendia num canto da cela, como o saco de ovos de uma aranha gigante. Se algum deles fizer alguma coisa, use o aparelho de choque segundo sua vontade, dissera Tornabol. E se eles tentarem sair usando as armas, não deixe de gra var isso em vídeo, para darmos umas boas gargalhadas mais tarde. Ragby tinha decidido que definitivamente usaria o ins trumento de choque à primeira provocação, talvez antes da primeira provocação. — Ei, Escavator, por que não tenta comer um pouco do gel, para eu ter a desculpa de lhe dar um choque? Palha não desperdiçou a energia falando; simplesmente mostrou os dentes enormes. — É? — disse Ragby. — Eles não são tão grandes. Quanto mais olho para você, Escavator, menos acredito em todo aquele lixo que suas tietes espalhavam lá no Papagaio Bebum. Você não me parece um grande ladrão, Escavator. Acho que você é um cara fajuto. Uma fraude, um contador de lorotas. Palha levou a mão ao rosto. Bocejo. Artemis tinha sido devolvido ao seu amorfobô assim que a gravação da runa terminou, e sem ter o que fazer além de pensar dentro daquele espaço úmido, pôde sentir o que resta va de sua personalidade abalada escapulindo. A runa em seu pescoço havia dominado sua força de vontade num aperto de aço e, ainda que ele pudesse pensar e falar no momento, era necessário muito esforço e ele achava que só continuava com essas funções rudimentares porque Tornabol ainda não tinha lhe dado nenhuma instrução especifica. Assim que recebesse ordens, ficaria impotente para resistir. Tornabol será capaz de ordenar que eu faça qualquer coisa, percebeu. Através do campo de gel que criava distorções, Artemis podia ver Ragby provocando Palha e pensou que talvez fosse boa idéia participar da discussão. Falar através do gel era um negócio complexo, que implicava formar as palavras com os dentes trincados, o que mantinha o gel do lado de fora mas permitia que ele captasse as vibrações da garganta. — Olá, senhor Ragby — disse. O amorfobô fez brotar um alto-falante de gel e transformou as vibrações em palavras. — Ei, olha — disse Ragby. — O escravo fala. O que você quer, Garoto da Lama? Um choquezinho, é o que você quer? Artemis decidiu que uma discussão intelectual não era o modo de lidar com aquela pessoa, e decidiu partir direto para o insulto pessoal. — Quero que você vá tomar banho, anão. Você fede. Ragby adorou ter uma pequena distração. — Uau. Isso até parece papo antes de briga de adultos. Sabe que o seu guarda-costas está fora de combate? Se Butler estivesse equipado com olhos de laser, Bobb Ragby teria buracos atravessando o crânio. O que você está tramando, Artemis? pensou Butler. Esse tipo de insulto não faz o seu gênero. — Não preciso de guarda-costas para me livrar de você, Ragby — continuou Artemis. — Só de um balde de água e uma escova de aço. — Engraçado — respondeu Ragby, mas pareceu achar um pouco menos divertido do que antes. — Talvez um pouco de desinfetante, para seus germes não se espalharem. — Eu tenho fungo — disse Ragby. — É um problema de saúde, e você falar disso me magoa muito. — Aaah — reagiu Artemis. — O anão grande e durão está tristonho, é? Ragby já estava farto. — Não tanto quanto você — disse, e instruiu o robô a mandar uma carga elétrica através de seu saco de gel. Artemis foi atacado por lascas de relâmpago branco. Estre meceu por um momento como uma marionete nas mãos de uma criança pequena, depois relaxou, flutuando inconsciente no gel. Ragby gargalhou. — Agora não está achando tão engraçado, não é? Butler resmungou, o que seria ameaçador se os alto-falantes de seu robô não traduzissem isso como um ronronar robótico, e então começou a fazer força. Deveria ser impossível para ele causar qualquer impacto sem ter tração, mas de algum modo conseguiu distender o gel, fazendo o robô chilrear como se estivesse sentindo cócegas. — Vocês são hilários — disse Ragby, e permitiu que Butler se cansasse durante alguns minutos, antes de se entediar e dar um choque no guarda-costas. Não o bastante para apagar o humano grandalhão, mas certamente o bastante para acalmá-lo um pouco. — Dois apagados — disse cheio de animação. — Quem é o próximo? — Eu — respondeu Palha. — Eu sou o próximo. Bobb Ragby se virou e descobriu Palha Escavator enrolado como uma bola, com a extremidade traseira apontada direta mente para Bobb. A extremidade traseira não estava cobert ou, em outras palavras, era um traseiro pelado, e isso era uma coisa séria. Ragby, também sendo anão e assinante da revista mensal Onde o vento sopra, sabia exatamente o que estava para acontecer. — Não acredito — ofegou. Deveria dar um choque em Palha, sabia, mas aquela era uma diversão grande demais para deixar passar. Se as coisas saissem do controle, ele poderia apertar o botão, mas até lá não fazia mal olhar. No último instante se lembrou de apertar o botão de gravação das câmeras de segurança, para o caso de o capitão querer olhar mais tarde. — Anda, Escavator. Se você conseguir se soltar, eu apresento meu próprio traseiro para ser chutado. Palha não respondeu; era muito difícil respirar dentro do gel, para desperdiçar energia preciosa trocando insultos com Bobb Ragby. Em vez disso, enrolou os antebraços em volta das canelas e forçou o cólon, que estava inflado como um enorme balão em forma de cobra. — Vai, Palha! — gritou Ragby. — Dê orgulho ao seu povo. Só para você saber, isso vai estar na Eternet dentro de uns cinco minutos. A primeira bolha a sair era do tamanho de um melão. Entre os anões que abriam túneis essas bolhas grandes eram conhecidas como rolhas, desde os tempos em que as rolhas eram usadas para tampar garrafas. Frequentemente uma rolha precisava ser liberada antes que o fluxo principal pudesse começar. —  Bela rolha — admitiu Bobb Ragby. Assim que a rolha saiu de seu organismo, Palha a fez acom panhar por um jorro de busca-pés que emergiram com uma velocidade inicial alta, que foi rapidamente contida pelo gel do robô. — Só isso? — gritou Bobb, meio desapontado, para dizer a verdade. — É só isso que você tem? Não era só isso. Mais uma centena de busca-pés variados seguiram-se rapidamente, alguns em forma de esfera, alguns elipsoides, e Ragby jurou ter visto um cubo. — Agora você só está querendo se mostrar! — disse ele. As bolhas continuavam saindo em vários tamanhos e for mas. Algumas eram transparentes, algumas com opacidade suspeita e umas poucas tinham fiapos de gás que estalavam ao bater no gel. O robô chilreou nervoso, com o coração de metal relam- pejando em laranja à medida que seu espectrômetro interno lutava para analisar os componentes dos gases. — Isso ai eu nunca vi — disse Bobb, com o dedo pairando acima do botão de choque. As bolhas continuavam saindo, inflando o amorfobô até o dobro do tamanho original. Seus chilreios subiram pelas oitavas até alguns béqueres médicos que estavam ali perto, arrebenta ram e subiram até cumprimentos de onda ultrassônicos, agudos demais para os ouvidos dos humanos e das criaturas do subsolo. Os berros pararam, pensou Bobb. Isso deve significar que  perigo passou. Não podia estar mais errado. Agora Palha estava praticamente invisível atrás das bolhas a imagem retorcida e refratada pelas superfícies curvas. Mais e mais bolhas eram produzidas. Palha era o equivalente anão de um carro de palhaços que podia conter mais passageiros do que a lei da física permitiria. O amorfobô estava esticado até o limite e sua superfície ficou manchada devido à pressão. Ele começou a quicar no mesmo local, soltando jorros daquele misterioso gás esfumaçado. — Bom, Palha, foi divertido — disse Bobb Ragby, e aper tou com relutância o botão de choque. O que, por acaso, foi a coisa errada a fazer. Até mesmo o amorfobô tentou recusar-se a obedecer, mas Ragby insistiu, apertando o botão várias e várias vezes, até que a fagulha famíliar saltou de dois nódulos em seu coração metálico. Qualquer aluno de química no primeiro dia de aula pode ria dizer a Ragby para nunca botar fagulhas perto de um gás misterioso. Infelizmente Ragby nunca havia se encontrado com alunos de química no primeiro dia de aula, por isso foi uma surpresa completa para ele quando o gás soltado por Palha Escavator se acendeu, bolha após bolha, numa reação em cadeia de mini explosões. O robô se expandiu e se rompeu, com jatos de gel brotando da superfície. Em seguida ricocheteou do chão ao teto e depois ficou pulando através da cela, atropelando Ragby como um pneu gigante. Era uma prova do projeto e dos elevados pa drões de Potrus o fato de que o amorfobô manteve a integridade mesmo sob circunstâncias tão extremas. Ele passou a transferir gel de partes não queimadas e colocá-los em áreas arruinadas. Ragby ficou atordoado no convés enquanto o robô ia pa rar do outro lado da escotilha, estremecendo e arfando. Em casos assim, ele possuía uma ordem de preservação enraizada profundamente, que Tornabol não tinha pensado em retirar. No caso de uma amostra coletada por um dos amorfobôs se mostrar perigosa aos seus sistemas, o objeto era ejetado imedia tamente. Aquele anão fedorento era definitivamente perigoso, por isso o amorfobô danificado vomitou Palha Escavator no convés enegrecido, onde ele ficou deitado, soltando fumaça. — Eu não deveria ter comido todo aquele cozido de rato — murmurou, depois apagou. Bobb Ragby foi o primeiro anão a se recuperar. — Isso foi incrível — disse ele, depois cuspiu um bocado de gel chamuscado. — Você saiu, olha só. Por isso acho que, por direito, eu deveria apresentar meu traseiro para ser chutado. Ragby baixou seu traseiro amplo na direção do rosto in consciente de Palha, mas não obteve qualquer reação. — Não quer? — disse. — Bom, você não pode dizer que eu não ofereci. — Aqui — disse uma voz atrás dele. — Deixe que eu faça isso para você. Ele girou o pescoço bem a tempo de ver uma bota enorme indo em direção ao seu traseiro, e atrás daquela bota havia uma cabeça furiosa, que apesar de estar meio fora de foco devido à perspectiva de Bobb, pertencia inconfundivelmente ao humano Butler. Palha jamais havia acreditado que sairia da barriga do amor fobô, mas esperava distrair Bobb Ragby durante alguns ins tantes para que Potrus bolasse algum dos seus planos de gênio tecnológico. E foi exatamente o que aconteceu. Enquanto Ragby estava ocupado assistindo à gastrobacia de seu colega anão, Potrus se manteve ocupado sincronizando o núcleo de robô que Ar temis havia apanhado no local do impacto com o núcleo de seu próprio amorfobô. Num laboratório ele demoraria cerca de dez segundos para fazer a conexão e mandar uma linha de código para apagar as instruções mandadas pelo orbe con trolador roubado, mas, suspenso dentro de um amorfobô, o centauro demorou pelo menos meio minuto. Assim que a tela piscou em verde, Potrus criou uma rede com os outros robôs e instruiu-os a se dissolver. Meio segundo depois, Juliet e Potrus cairam no chão, com lágrimas nos olhos e gel nas traqueias. Artemis estava caído imóvel, ainda inconsciente devido ao choque elétrico. Butler caiu de pé, cuspiu e atacou. O pobre Bobb Rabgy não teve a mínima chance, não que Butler fizesse grande coisa com ele. Só foi necessário um chute, e o terror do anão tomou conta e mandou-o como um jato contra a borda de um catre de metal. Ele desmoronou com um gemido surpreendentemente infantil. Butler se virou rapidamente para Artemis e verificou sua pulsação. — Como está o coração de Artemis? — perguntou Juliet, curvando-se para verificar o estado de Palha. — Está batendo — respondeu seu irmão. — É praticamente só isso que posso dizer. Precisamos levá-lo ao tal navio-hospital. O Palha também. O anão tossiu, depois murmurou algo sobre torta de queijo e cerveja. — Você quis dizer torta de queijo acompanhada de cerveja ou torta feita de queijo e cerveja? —Juliet olhou para o irmão. — Palha pode estar delirando. É difícil dizer. Butler tirou a arma do cinto de Bobb Ragby e jogou-o em cima das costas largas de Potrus. — Certo. A estratégia é a seguinte: vamos levar Artemis e Palha à enfermaria do Nostremius, e então recupero Holly, se necessário. A cabeça de Juliet girou rapidamente. — Mas o Potrus pode fazer... —  Andando — trovejou Butler. — Vá imediatamente. Não quero falar sobre isso. — Certo. Mas se você não estiver conosco em cinco minu tos, vou atrás de você. — Eu ficaria agradecido — disse Butler, colocando Palha nas costas de Potrus, depois Artemis inconsciente. — E se você puder trazer algum soldado que encontrar no caminho seria ótimo. —  Soldados num navio-hospital? — perguntou Potrus tentando ao máximo não sentir o cheiro do que estava nas suas costas. A língua de Palha saiu da boca, pousando no pescoço do centauro. — Mmmm — murmurou ele. — Cavalo. Gostoso. — Vamos — disse Potrus, nervoso. — Vamos logo. A ambulância era uma nave pequena, comparada com o gigan tesco aquanauta que pairava acima deles. A pequena embarcação tinha dois andares: uma enfermaria com cela embaixo; no topo da escada espiral, um passadiço com uma pequena cabine de caminhoneiro, e, afora alguns escaninhos para armazena mento e reciclagem, e da sala em que tinham sido aprisionados, era só. Por sorte de Butler e dos outros, o corredor umbilical que ia até o Nostremius estava no andar de baixo. Ching Mayle espiava o corredor, obviamente esperando o retorno de Holly com o demônio feiticeiro. — Por favor — sussurrou Juliet quando viram o goblin junto à escotilha. — Permita-me. Butler estava firmando Artemis e Palha nas costas de Potrus. Com Bobb Ragby, não estava tão preocupado. —  Sirva-se — disse ele. — Ou melhor, sirva ao outro cara. Sendo praticante de luta livre, Juliet não podia simplesmente correr até Ching Mayle e derrubá-lo: tinha de acrescentar um pouco de drama. Correu pela passagem gritando histericamente. — Socorro, senhor Goblin. Me salve. Ching retirou os dedos das marcas de mordidas no crânio, que ele vivia coçando, o que, é claro, significava que elas jamais se curavam direito. — Ah... Salvar você de quê? Juliet fungou. — Tem um goblin grande e feio tentando impedir que a gente saia da ambulância. Mayle levou a mão à arma. — Tem o quê? — Um goblin grande e feio, com um monte de feridas infeccionadas na cabeça. Ching lambeu os globos oculares. — Feridas infeccionadas? Ei, espera um minuto... — Finalmente — disse Juliet, e fez pirueta como uma pati nadora artística, acertando Ching Mayle com seu característico golpe do anel de jade. Ele despencou no corredor umbilical, deslizando até o ponto mais baixo. Juliet pegou sua arma antes que ela batesse no convés. — Mais um fora de combate — disse ela. — Você não podia simplesmente dar uma cacetada na cabeça dele? — resmungou Butler, passando por ela junto com Potrus. — Buá. Me ajuda, sou uma menina. Que tipo de mulher moderna você é? — Inteligente — respondeu Juliet. — Ele nem conseguiu dar um tiro. Butler não ficou impressionado. — Ele nem deveria ter levado a mão à arma. Da próxima vez, só acerte o goblin. Você tem sorte porque ele não mandou uma bola de fogo. — Ah, não — disse Potrus, passando por uma cortina de cordas que parecia coberta de desinfetante, e entrando na passagem umbilical. — Nada de chamas perto do umbilical. É um tubo pressurizado com uma mistura de oxigênio e hélio, com muito oxigênio por causa da pressão. Basta uma fagulha aqui e, primeiro, nós explodimos, depois o tubo se rompe e o oceano nos achata. Entraram um a um no umbilical. Era um equipamento incrível. Um tubo de pele dupla, feito de plástico transparente superforte, reforçado com uma malha de fio octogonal. Bombas de ar zumbiam alto por toda a extensão, e orbes de luz atraiam criaturas do mar profundo, inclusive a lula gigante de Artemis, que havia se enrolado na parte central da passagem umbilical e estava mordendo a malha de arame com o bico. Suas ventosas cercadas de quitina raspavam o plástico, espalhando longos remendos ao longo do tubo. — Não se preocupem — disse Potrus, confiante. —Aquela criatura não pode passar. Fizemos milhares de testes de resistência. —  Com uma lula gigante de verdade? — perguntou Juliet, compreensivelmente preocupada. — Não — admitiu Potrus. — Então foram testes de computador, certo? — Absolutamente não — respondeu Potrus, ofendido. — Nós usamos uma lula normal e um modelo umbilical mi núsculo. Funcionou bastante bem até que um dos meus anões assistentes sentiu vontade de comer frutos do mar. Juliet estremeceu. —  Eu tenho uma sensação estranha com lulas gigantes. — Não é com todo mundo? — disse Potrus, c passou por ela, através do corredor umbilical. A passagem tinha cinquenta metros de comprimento, com uma ligeira inclinação nas duas extremidades. O caminho sob seus pés era coberto com uma substância ligeiramente grudenta para impedir qualquer fagulha, e havia bombas de extintor de incêndio a intervalos regulares, que cobririam automaticamente o tubo com pó, para o caso de o fogo irromper. Potrus apontou para uma das bombas anti-incêndio. — Com toda a honestidade, isso é só para constar. Se ao menos uma fagulha surgir aqui, nem a lula vai sobreviver. Continuaram até o aquanauta, sentindo o frio do oceano se irradiar pelas paredes, respirando o ar rico em oxigênio. O navio-hospital Nostremius pairava acima, com quatro andares de altura, paredes verdes e curvas salpicadas com mil escotilhas reluzentes, ancorado ao leito do mar por uma dezena de âncoras do tamanho de ônibus. Corredores umbilicais se estendiam de várias aberturas, e figuras sombreadas podiam ser vistas indo de seus navios até o Nostremius. Era uma imagem sombria, irreal. Potrus ia na frente, reclamando a cada passo e carregando Artemis, Palha e Bobb Ragby, que roncava sem parar. — Passageiros. Centauros não carregam passageiros. Só porque temos tronco de cavalo não significa que temos temperamento de cavalo. Isso é humilhante, sério mesmo. Nem Juliet nem Butler se incomodaram. Estavam num momento perigoso e qualquer confronto precisava ser contido rapidamente, caso contrário significaria uma tumba aquática para todos. Na garupa de Potrus, Artemis gemeu e se remexeu. Butler deu um tapinha no ombro dele. —  Fique dormindo, rapaz. Não precisa acordar agora. Por mais respeito que Butler tivesse pela capacidade de Artemis, não conseguia pensar em como ela poderia ajudar na situação, em especial com aquela runa de aparência furiosa gravada a fogo em seu pescoço. Estavam a dois terços do caminho quando a escotilha do lado do Nostremius se abriu deslizando e Holly passou, seguida pelo N°l. Não havia emoção nos olhos de Holly, mas ela avaliou cal mamente a situação e sacou a Neutrino do coldre, apontando rapidamente para a testa de Butler. Pela sua expressão, era como se estivesse para atirar um dardo num alvo de barraca de feira. — Não, capitã Short — disse a voz de Tornabol vinda de trás de Butler. — Nada de armas aqui. Tornabol estava junto à entrada da ambulância junto com Unix de um dos lados, como sempre, e Ark Sool pairando do outro. Juliet estava na retaguarda. — É o pirata feliz — gritou para o irmão. — E seus alegres idiotas. Acho que, sem armas, estamos em boa situação. Devo ir até lá e arrancar um pouco de respeito deles a pancada? Butler levantou dois dedos. Espere. Aquela era uma situação de pesadelo para qualquer guarda- costas: presos no meio de um tubo transparente, vários quilômetros embaixo d'água com um bando de fugitivos assassinos numa das pontas e uma policial escravizada mas ainda tremendamente hábil na outra. O pobre N°1 não fazia idéia do tipo de drama em que havia se metido. — Holly, o que está acontecendo? Estamos no meio de uma das suas grandes aventuras? Devo apagar alguém? Holly ficou impassível, esperando ordens, mas Butler ouviu o que o N°1 tinha dito. — Nada de magia, Número Um. Uma fagulha poderia fazer explodir toda esta plataforma. O N°1 suspirou. — Vocês não conseguem simplesmente fazer um piquenique, ou algo assim? Sempre tem de haver explosões? Artemis gemeu de novo, depois escorregou de trás de Palha, na anca de Potrus, e caiu no piso do tubo. Parado à porta da ambulância roubada, olhando para baixo pelo corredor umbilical na direção de Butler, Tornabol percebeu que tinha algumas cartas marcadas em seu baralho. — Ah — disse ele. — Meu pequeno gênio desperta. Isso deve tornar nosso jogo interessante. Butler se virou de lado para se tornar um alvo menor Não haveria armas naquela briga, mas poderia haver facas. —  Volte para dentro — gritou para o N°l. —Volte e feche a escotilha. O demônio feiticeiro deu um tapinha no ombro de Holly — Devo entrar, Holly? Seria a melhor coisa a fazer? Holly não respondeu, mas com aquele toque o N°1 sentiu o feitiço da runa que se escondia como um parasita na mente dela. Para ele, pareceu uma coisa roxa e maligna, e de algum modo consciente. Em sua imaginação, a runa reptiliana es condida no cérebro de Holly rosnou para ele e mordiscou com dentes venenosos. — Ah — disse o N°l, afastando o dedo rapidamente. Eu poderia desfazer o feitiço, pensou. Mas seria um trabalho delicado para evitar danos no cérebro, e definitivamente haveria fagulhas. Deu um passo lento para trás, mas Holly rodeou-o rapida mente e bateu com a mão no mecanismo da porta, lacrando-a pelo tempo necessário até a manutenção mandar alguém para consertar. O que seria tempo demais. — Nada de fugir, jovem senhor demônio — gritou Torna- bol. — Preciso de sua magia. Minha magia, pensou o N°l. Deve haver algo que eu possa fazer. O mesmer não exige fagidhas. — Ouça, Holly — disse o demônio feiticeiro, a voz coberta por múltiplas camadas de magia. — Olhe nos meus olhos. E foi só até ai que chegou, antes que Holly baixasse a lateral na mão numa cutilada que acertou o N°1 exatamente entre as placas blindadas do peito e do pescoço. Bem na traqueia. O demônio desmoronou no chão, ofegando. Iriam se passar minutos até que ele pudesse ao menos guinchar. Tornabol riu com crueldade. — A runa vence o mesmer, eu diria. Butler tentou ignorar as circunstâncias mais extremas, como o gás explosivo que estavam respirando e a lula gigante que o olhava com ar maligno do lado de fora do tubo umbilical, e tratar a situação como uma briga de beco, comum. Já estive nessa situação uma dúzia de vezes. Supostamente estamos flanqueados, mas Juliet e eu poderíamos dominar esses ai e mais urna dúzia. Holly sabe lutar, mas está mesmerizada e isso vai diminuir sua velocidade. Por que Tornabol tem tanta confiança tendo só um gnomo e um duende do seu lado? — Pronta, irmã? — perguntou. — É só dizer. — Eu pego Tornabol e os amigos dele. Você controla Holly sem causar nenhum dano, se puder. — Certo, irmão. — O que eu devo fazer? — perguntou Potrus, tentando não relinchar. — Tome conta de Artemis e Palha. Mantenha-os em segu rança. — Muito bem, Butler — disse o centauro, sentindo-se absolutamente desamparado, como sempre ficava em situações violentas. — Pode contar comigo. Butler e Juliet trocaram de lado, tocando as mãos breve mente ao passar um pelo outro. — Tenha cuidado. Holly é rápida. — Você também. Não confio naquele tal de Tornabol. Mas essas declarações iriam se mostrar verdadeiras em pouco tempo. Infelizmente Butler havia formulado o plano de ação sem ter duas informações vitais. Em primeiro lugar, Holly não estava mesmerizada, estava escravizada por uma runa, e ainda que o mesmer diminuísse a velocidade da pessoa dominada, as runas não faziam isso. De fato elas davam à viti ma mais acesso à força vital do que elas teriam normalmente, motivo pelo qual os escravos de longo prazo não deviam ter permissão de se empolgar por tempo demais, caso contrário se esgotariam literalmente. A segunda informação que Butler não possuía era o fato de que Tornabol tinha previsto que talvez precisasse lutar através de uma passagem umbilical e estava armado para isso. Os Butler cairam com diferença de segundos. Juliet correu a toda a velocidade para Holly, sem conversa fiada nem movi mentos exagerados de luta livre: Holly era uma oponente séria. A oponente séria ficou parada, os braços pendendo até o último instante possível, depois se abaixou, tão depressa a ponto de parecer que uma imagem fantasma pairou no espaço onde ela estivera, e puxou as pernas de Juliet. Juliet bateu a cabeça com força no piso e, quando sua visão clareou, Holly estava sobre seu peito com a Neutrino apontada para sua cabeça. — Nada de fagulhas — ofegou Juliet. — Nada de fagulhas. — Nada de fagulhas — repetiu Holly obedientemente, depois enfiou o cano pela frente da malha da Princesa de Jade e puxou o gatilho. Juliet teve um espasmo e apagou. Não houve fagulhas. Na outra ponta do tubo, Butler não havia corrido com tanto prazer. Se as coisas fossem como pareciam, ele poderia derrotar facilmente Tornabol e seus pequenos capangas. Talvez uma abordagem ameaçadora bastasse para fazer com que eles fugissem. Tornabol pareceu meio irritado e nem um pouco ame drontado. — Senhor Butler, como serviçal de um grande estrategista, não lhe ocorreu que outro grande estrategista, como eu, poderia ter previsto esse momento, ou outro parecido? O estômago de Butler se encolheu. Tornabol está armado.   A única opção de Butler era cobrir a distância que restava antes que Tornabol conseguisse apontar sua arma. Quase conseguiu, mas, afinal de contas, numa luta o quase é quase tão útil quanto agulhas de borracha num concurso de tricô. Tornabol soltou uma arma curta presa numa correia às costas e atirou em Butler oito vezes no peito e na cabeça. Os olhos do guarda-costas se reviraram para trás, na cabeça, mas seu ímpeto lançou-o adiante, e Tornabol teve de se desviar habilmente de lado para não ser esmagado. Ark Sool e Unix não tiveram tanta sorte. Butler pousou sobre eles como um meteoro, arrancando todo o ar dos corpos e partindo várias costelas. — Olé! — disse Tornabol, que fazia questão de frequentar as touradas sempre que estava na Espanha, não parecendo muito perturbado com a perda dos tripulantes. As vibrações acionaram uma das bolsas de pó do extintor de incêndio, que devia estar ligada a um disparador ultra-sensivel, e encheu o corredor umbilical com pó branco flutuante. — Ah, o tempo lá fora está horrível— cantou Tornabol, apontando sua arma para Potrus, que pelo menos tentava parecer corajoso. — Gosta da minha arma? Foi desenvolvida para controle de multidão durante os primeiros tumultos dos goblins. Puramente química. Dispara bolotas de tartrato de zolpide feitas especialmente para nocautear. Acionadas por gás, com cartuchos solúveis. Sem fagulhas. Às vezes o melhor é usar baixa tecnologia. De repente Artemis inalou uma enorme quantidade de ar, como se tivesse acabado de romper a superfície do oceano. — Ah, meu gênio chega à superfície. Levante-se, Artemis. Eu ordeno. Artemis ficou de pé num espasmo, a cabeça e as roupas cobertas de pó branco. —  Sufoque esse centauro para mim, certo? Seguiu-se um minuto desconfortável enquanto Artemis tentava encontrar algum ponto de apoio no largo pescoço de Potrus, depois espremia com toda a força dos dedos, que não era muita. Potrus ficou mais sem graça do que machucado. Tornabol enxugou uma lágrima do olho. — Ah, isso é demais. Mas não posso me demorar com essa diversão: Leonor está esperando. Venha cá, Artemis, e você também, capitã Short. Traga o demônio. Devemos sair daqui antes que o gerador da ambulância exploda. Artemis e Holly obedeceram com a emoção de autômatos. Holly puxou o pobre e ofegante N°1 pelo colarinho da túnica e Artemis passou por Potrus sem olhar. Do lado de fora do tubo, os peixes e a lula permaneciam atentos àquela distração fascinante que os afastava da monotonia pavorosa da vida subaquática. De repente Tornabol ficou impaciente para ir logo embora. — Venham, meus escravos. Onde está a velocidade pela qual vocês são famosos? Artemis acelerou mesmo, demonstrando uma agilidade que qualquer um que o conhecesse não associaria a ele. — Assim está melhor — disse Tornabol. — Talvez eu mantenha você, Artemis. — Isso é bom — respondeu o garoto humano. — Vou dizer a ele quando encontrá-lo. — Hrrmm — reagiu Tornabol, perplexo, e então o garoto que se parecia com Artemis Fowl golpeou Tornabol na barriga usando os dedos enrijecidos. — Butler mostrou isso mil vezes a Artemis — disse o ga roto. — Ele não prestou atenção, mas eu, sim. Tornabol quis dizer alguma coisa, mas estava sem fôlego, e mesmo que não estivesse, não tinha idéia do que diria. — Porque eu não sou Artemis Fowl, vilão dos elfos —,disse Órion, arrancando a arma dos dedos de Tornabol. — sou o jovem romântico que sempre soube que seu dia chegaria por isso prestei atenção a Butler e estou preparado. Tornabol conseguiu ar suficiente para uma palavra: — Como? — Artemis sabia que precisava escapar do poder da runa, que controlava sua mente, mas não a minha, por isso instigou o seu lacaio cretino a lhe dar um choque, que me libertou. Tornabol apertou a barriga. Claro. Complexo de Atlântida, estágio dois. Em seguida apoiou os dois cotovelos nos joelhos e disse num tom rouco para Holly: — Mate-o. Mate o garoto. Órion deu um giro e apontou a arma para Holly. — Por favor, doce donzela. Não force minha mão, porque atirarei pelo bem de todos. Holly empurrou o N°1 de lado e correu a toda a velocidade, de um lado para o outro. — Artemis jamais poderia atirar — rosnou ela. Órion ajeitou os ombros e estendeu as mãos, sustentando a direita com a esquerda. Tanto Artemis quanto Órion eram ambidestros mas, diferentemente de Artemis, Órion favorecia a mão direita. Lembrou-se do que Butler falava repetidamente. Mire ao longo do braço. Solte a respiração e aperte o gatilho. A primeira bolota acertou Holly na bochecha, a segunda na testa e a terceira no ombro, demorando um segundo para penetrar. A velocidade de Holly levou-a até a metade da parede curva antes que seu corpo cedesse e ela escorregasse de volta, de rosto para baixo. Órion se virou para Tornabol, que estava se esgueirando atrás dele.                                                                                                                                                     . — Fique imóvel, demônio imundo. — Ei — disse o N°l, que estava recuperando o fôlego. — Sinceras desculpas, gentil mago — respondeu Órion. — Estava me referindo ao meu piratesco inimigo. — Quatro — disse Tornabol, com algum desespero. — Quatro quatro quatro. Órion deu uma sonora gargalhada de herói. — Deu azar, Tornabol Raiz. Seus planos malignos foram frustrados. Aceite o destino. O rosto de Tornabol ficou lentamente roxo, uma característica de família. — Preciso do demônio — berrou ele, com cuspe voando dos lábios. — Entregue-o ou morreremos todos. — É tarde demais para ameaças vazias, amigo. Você foi suplantado. Agora sente-se quietinho enquanto meu compadre, o nobre garanhão, amarra suas mãos. Tornabol respirou com força e permaneceu ereto. — Não. Tenho uma última carta para jogar. A ambulância está preparada para explodir. O piloto automático foi danifi cado e o gerador exposto, não há como voltar atrás. Dê-me o demônio e eu pilotarei o veiculo ate o fundo da trincheira e em seguida escaparei na barriga de um amorfobô. Há espaço para mais uma pessoa, além de Leonor. Posso levar você, em vez de o Número Um. Potrus chupou os lábios. — Ah. Ok. Há um probleminha com esse plano. Eu dis solvi os robôs. — Então essa era a sua trama — disse Órion ferozmente, brandindo a arma como se fosse um alfanje. — Você levaria o que desejava e enterraria as provas na explosão. Tornabol deu de ombros, subitamente calmo. Sempre sou bera que um dia assim iria chegar. — Já deu certo para mim, antes. — Em seguida consultou um cronômetro em seu computador de pulso. — Dentro de cinco minutos o veiculo explode e todos morremos. Se me der licença, devo ir para perto da cama da minha esposa. Ele se virou e encontrou a esposa um pouco mais perto do que esperava. Leonor estava de pé, emoldurada pela cortina do corredor umbilical, apoiando-se pesada em sua bengala, o rosto pálido à luz dos orbes de iluminação. — Tornabol, o que está acontecendo? — perguntou ela, com a respiração dificultosa, mas os dois olhos estavam abertos e muito límpidos. Mais límpidos do que haviam estado desde o dia em que os dois se conheceram. Tornabol correu para o lado dela, sustentando-a com um dos braços. — Sim, querida. Você deveria se deitar. As coisas vão me lhorar logo. Leonor reagiu como não fazia há muito tempo. — Você acabou de dizer que o veiculo vai explodir. Os olhos de Tornabol estavam arregalados de surpresa— sua amada esposa nunca havia gritado com ele — mas manteve um sorriso gentil nos lábios. — O que importa, desde que estejamos juntos? Nem mesmo a morte vai nos separar. Em algum lugar Leonor encontrou a força para se man ter ereta. — Estou pronta para meu longo sono, Tornabol. Mas você é jovem, essas pessoas são jovens, e isso a que estamos ancorados não é um navio-hospital? — É, é sim. Mas essas pessoas são minhas inimigas. Elas me perseguiram. — Tornabol lambeu a runa em seu polegar, mas agora Leonor estava além de seu poder. — Acho que talvez você não estivesse isento de culpa, que rido, mas eu fiquei cega de amor. Sempre amei você, Tornabol. Sempre amarei. Órion estava ficando ansioso. Os segundos passavam tique- taqueando e ele não tinha desejo de ver sua amada Holly no centro de uma explosão. — Fique de lado, senhora — disse a Leonor. — Devo pilotar este veiculo até o fundo da trincheira. Leonor levantou a bengala, trêmula. — Não. Eu farei essa jornada sozinha. Ultrapassei o tem po em que era bem-vinda nesta terra e fechei os olhos para o que acontecia ao meu redor. Agora, finalmente, voarei para onde nunca achei que seria possível. — Ela acariciou o rosto de Tornabol e beijou-o. — Finalmente posso pilotar de novo Tornabol. Tornabol apertou com ternura os ombros da esposa. — Você pode pilotar, e fará isso. Mas não agora. Esse voo é a morte, e eu não posso viver sem você. Você não quer o que nós tínhamos? — Aquele tempo se foi respondeu Leonor simplesmente. — Talvez nunca devesse ter existido. Agora você deve deixar que eu vá; caso contrário, terá de tentar me impedir. Esse é um ultimato que Tornabol vinha temendo desde que havia aplicado a runa pela primeira vez no pescoço de Leonor. Ia perder a esposa e não havia nada que pudesse fazer. Suas emo ções surgiram no rosto, e uma rede de rugas apareceu em volta de seus olhos, como se desenhadas por uma caneta invisível. — Preciso ir, Tornabol — disse Leonor baixinho. —  Voe, meu amor — respondeu Tornabol, e naquele mo mento pareceu tão velho quanto a esposa. — Deixe-me fazer isso por você, amor. Deixe-me salvá-lo, como você me salvou há tantos anos, está bem? — Leonor beijou-o de novo e recuou, passando pela cortina. Tornabol ficou parado um instante, os ombros tremendo, o queixo abaixado, depois recuperou o auuocontrole. Encarou Órion e apontou um polegar para a ambulância. — Preciso ir. Leonor nunca vai conseguir subir a escada de novo sozinha. E, com uma declaração tão comum, foi embora, deixando a escotilha se fechar. — Falou pouco mas falou bem — disse Órion. — Uma bela saída. Os irmãos Butler estavam inconscientes, o que seria fonte de provocações e embaraço mais tarde, por isso não viram a ambu lância roubada se destacar do corredor umbilical e se afastar do Nostremius, com Leonor e Tornabol claramente visíveis na cabine de controle. E perderam completamente o veiculo mergulhando no fundo da Trincheira de Atlântida num arco longo e gracioso. — Aquela mulher é uma tremenda pilota — disse Órion. — Imagino que agora estejam de mãos dadas sorrindo cora josamente. Instantes depois uma flor de fogo infernal subiu das pro fundezas da trincheira, mas a explosão foi extinta rapidamente pelos milhões de toneladas de água acima. Porém as correntes de choque dispararam pela crista elevada, deslocando corais com centenas de anos e ondulando a ponta solta do corredor umbilical como uma criança pulando corda, e fazendo a lula fugir em busca de segurança. Os ocupantes do tubo foram embolados, heróis e vilões juntos, e varridos para a porta do Nostremius, que instantes depois foi aberta por dentro, por um confuso policial técnico, um endurecido gnomo do mar que, para sua vergonha eterna, guinchou como um bebê diabrete quando se viu cara a cara com um humano gigante coberto de pó branco. — Zumbi — guinchou ele, e, infelizmente, dois de seus colegas de turno estavam na escotilha estanque atrás. E comprar o silêncio deles lhe custou três semanas de ração de pudim.

 

       ARTEMIS acordou e encontrou Holly e Potrus inclinados em cima dele. Holly parecia preocupada, e Potrus o examinava como se ele fosse uma experiência de laboratório.

       Não estou sentindo dor, pensou Artemis. Eles devem ter me dado alguma coisa.

       E depois: Eu deveria aliviar o clima.

       — Ah, minha princesa. Nobre garanhão. Como foi que esta bela manhã encontrou vocês?

       — D’Arvit — disse Holly. — É o cavaleiro de armadura brilhante.

       — Hmm — reagiu Potrus. — Para ver como é o Comple xo de Atlântida. Nunca podemos prever o que vai produzir à medida que progride. Achei que o coquetel de medicamentos traria Artemis de volta, mas pelo menos Órion nos dirá o que Artemis está tramando. — Em seguida se inclinou mais perto. — Órion, nobre jovem. Por acaso sabeis a senha do firewall de Artemis?

       — Claro que sei — respondeu Artemis. — É J-U-M-E-N T-Á-O.

       Potrus já estava escrevendo metade da palavra quando a caneta caiu.

       — Ah, rá, rá, Artemis. Que hilário! Eu sabia que era você o tempo todo.

       Holly não riu.

       — Isso não foi engraçado, Artemis. O Complexo de Atlântida não é piada.

       À simples menção da doença, Artemis sentiu o ninho de quatros malignos se remexendo no fundo da cabeça.

       De novo não, pensou.

       — Seria muito bom se vocês dois trocassem de lugar — disse, tentando parecer calmo e controlado. — Além disso, será que podiam fechar aquelas duas persianas das escotilhas até o final? Ou abrir até o final, mas não deixar no meio assim. Não faz sentido.

       Holly quis sacudir Artemis até que ele saísse daquilo, mas tinha conversado com o Dr. Argônio, da Irmandade Psicológi ca, e ele havia dito para serem condescendentes com o humano até que pudessem interná-lo na clinica.

       O antigo quarto de Opa/a Koboi ainda está livre, dissera o doutor, todo animado, e Holly suspeitou de que ele já estivesse pensando em títulos para o livro inevitável.

       Por isso disse:

       — Certo, Artemis. Vou fechar as persianas.

       Enquanto Holly apertava o pequeno ícone do sol ao lado da persiana, clareando o vidro, notou os cardumes de peixes exóticos aproveitando o casulo de luz das barbatanas de popa do Nostremius.

       Todos estamos nadando em direção à luz, percebeu ela, e depois se perguntou quando havia ficado tão filosófica. Pensar demais foi uma das coisas que colocaram Artemis onde ele está agora. Precisamos enfrentar esse problema.

       — Artemis — disse, forçando um tom de otimismo na voz — o doutor Argônio perguntou se você tinha algum registro de...

       — Minha descida à loucura? — completou Artemis.

       — Bom, na verdade ele disse: da progressão do Complexo. Ele disse que manter algum tipo de diário é comum entre os afetados pela doença. Eles sentem grande necessidade de ser compreendidos depois...

       Outra vez Artemis completou a frase.

       — Depois de morrermos. Eu sei. Ainda sinto essa compul são. — Ele tirou o anel do dedo médio. — É meu comunicador do povo subterrâneo, lembra? Eu mantenho um diário em vídeo. Deve ser aterrorizante de olhar.

       Potrus pegou o anel.

       — Deixe-me mandar isso para o Argônio. Isso vai lhe dar algumas informações antes de amarrar você na cadeira de ma lucos. — O centauro percebeu o que tinha dito. — Desculpe. Cavalina vive dizendo como sou insensível. Não existe cadeira de malucos, é mais parecida com um sofá ou um futon.

       — Nós entendemos, Potrus — disse Holly. — Muito obrigada.

       O centauro foi lepidamente até a porta automática do hospital.

       — Certo. Vou despachar isso. Vejo você mais tarde, e cui dado com aqueles quatros malignos.

       Artemis se encolheu. Holly estava certa: o Complexo de Atlântida não era engraçado.

       Holly sentou-se na cadeira ao lado da cama. Era uma cama de alta tecnologia, com estabilizadores e almofadas anti-impacto, mas infelizmente um pouco curta.

       — Você está crescendo, Artemis — disse ela.

       Artemis deu um sorriso débil.

       — Eu sei. Não suficientemente rápido, em alguns sentidos.

       Holly segurou a mão dele.

       — Você pode tentar se preocupar se quiser, mas não vai conseguir. Potrus aplicou sedativos suficientes para fazer um cavalo dormir.

       Os dois sorriram por causa disso por um momento, mas Artemis estava com o humor melancólico.

       — Essa aventura foi diferente, Holly. Em geral alguém vence e nós ficamos numa situação melhor no final. Mas desta vez muitas pessoas morreram, pessoas inocentes, e ninguém se beneficiou. E tudo por amor. Nem consigo pensar no Tornabol como um vilão: ele só queria a esposa de volta.

       Holly apertou os dedos de Artemis.

       — As coisas seriam muito piores se nós não estivéssemos por perto. O Número Um está vivo, graças a você, para não mencionar todo mundo neste navio-hospital. E assim que pusermos você do seu jeito antigo, poderemos continuar o trabalho de salvar o mundo com seu Cubo de Gelo.

       — Bom. Isso ainda é minha prioridade, mas talvez eu queira renegociar meus termos um pouquinho.

       — Hmm. Achei que você poderia fazer isso.

       Artemis tomou um gole d'água num copo que estava sobre

       o armário.

       — Não quero voltar a ser eu completamente. Meu eu antigo foi o que provocou o Complexo de Atlântida.

       — Você fez algumas coisas ruins, Artemis. Mas não as faria de novo. Deixe para lá.

       — Verdade? Você consegue deixar as coisas para lá?

       — Não é tão fácil, mas você pode conseguir, com nossa ajuda, se é o que quer mesmo.

       Artemis revirou os olhos.

       — Poções e terapia, que o céu me ajude.

       — O doutor Argônio é um vendido, mas é bom. É o melhor. Além disso, tenho certeza de que o Número Um pode lhe fazer uma desintoxicação mágica, tirar o resto daquelas fagulhas do seu organismo.

       — Parece doloroso.

       — Talvez. Mas você terá amigos por perto. Bons amigos.

       Artemis sentou-se apoiado nos travesseiros.

       — Eu sei. Cadê o Palha?

       — Onde você acha que ele estaria?

       — Creio que na cozinha. Talvez dentro de uma das geladeiras.

       — Acho que você provavelmente está certo.

       — E Juliet?

       O suspiro de Holly foi afetuoso e frustrado.

       — Programou uma luta livre com um diabrete jumbo que fez um comentário sobre o rabo de cavalo dela. No momento estou fingindo que não sei de nada disso. Tenho que ir acabar com o negócio logo.

       — Sinto pena do diabrete — disse Artemis. — E o Butler? Acha que algum dia ele vai confiar em mim de novo?

       — Acho que já confia.

       — Preciso falar com ele.

       Holly olhou para o corredor.

       — É melhor você esperar um minuto. Ele está dando um telefonema difícil.

       Artemis podia adivinhar para quem Butler estava ligando. Ele também teria de dar um telefonema semelhante.

       — Então — disse tentando parecer mais animado do que se sentia, com o Complexo de Atlântida borbulhando na base do lóbulo temporal.

       Arrume isso, dizia o Complexo.

       Conte aquilo.

       Cuidado com o quatro. Quatro é a morte.

       — Ouvi dizer que você saiu com o Encrenca Kelp. Vocês dois estão planejando se esconder num bivaque uma hora

       dessas?

       Butler achou que poderia estar ficando com claustrofobia. Definitivamente parecia que as paredes estavam se fechando. Não ajudava em nada o fato de o corredor onde estava agachado ser construído para pessoas com metade do seu tamanho. O único lugar onde podia ficar de pé normalmente era o ginásio esportivo, e aquele não era de fato o local perfeito para dar um telefonema particular, já que sua irmã mais nova provavelmente estava enchendo um diabrete jumbo de pancada lá dentro, exibindo-se para a multidão de pacientes e médicos que logo adorariam a Princesa de Jade.

       Butler deslizou pela parede até sentar-se, e segurou o telefone de Artemis.

       Talvez não tenha sinal, pensou com esperança.

       Mas tinha. Quatro barras. Artemis havia construído aquele telefone para acessar todas as redes disponíveis, inclusive as militares e as do povo subterrâneo. Seria necessário estar na lua para o telefone de Artemis não conseguir sinal.

       Certo. Para de embromar. Telefone.

       Butler abriu a lista de contatos e selecionou o número do celular de Angeline Fowl. Demorou alguns segundos para completar a ligação, já que precisava passar pela cida de de Porto e subir até um satélite antes de descer de novo para a Irlanda, e quando tocou, foi o bip triplo do povo subterrâneo.

       Talvez ela esteja dormindo.

       Mas Angeline atendeu ao segundo toque.

       — Artemis? Cadê você? Por que não ligou?

       — Não, Sra. Fowl. Sou eu, Butler.

       Angeline percebeu que Butler estava ligando do tele fone de Artemis, e naturalmente chegou à pior conclusão possível.

       — Ah, meu Deus! Ele morreu, não é? Eu nunca deveria ter deixado que ele fosse.

       — Não, não. Artemis está bem — respondeu Butler rapi damente. — Não tem nem mesmo um arranhão.

       Angeline estava chorando ao telefone.

       — Graças a Deus. Eu iria me culpar. Um garoto de quinze anos saindo para salvar o mundo, com criaturas mágicas. O que eu estava pensando? Agora chega. Acabou. De agora em diante é vida normal.

       Nem me lembro do que seja normal, pensou Butler.

       — Posso falar com ele?

       Vamos lá.

       — No momento, não. Ele está... é... sedado.

       — Sedado! Mas você disse que ele não foi ferido, Butler. Disse que não tinha nem um arranhão.

       Butler se encolheu.

       — Ele não tem sequer um arranhão. Pelo menos não por fora.

       Butler jurou que podia ouvir Angeline Fowl fumegando.

       — O que isso quer dizer? Está virando metafórico depois de velho, homem? Artemis está ferido ou não?

       Butler preferiria enfrentar uma equipe da SWAT do que dar essa noticia, por isso escolheu as palavras com cuidado.

       — Artemis desenvolveu um problema de saúde, um pro blema mental. É um pouco parecido com TOC.

       — Ah, não — disse Angeline, e por um momento Butler pensou que ela havia largado o telefone, depois ele a ouviu respirando, uma respiração rápida e curta.

       — Isso pode ser controlado — explicou. — Agora mes mo estamos levando-o a uma clinica. A melhor clinica do povo subterrâneo. Ele não corre absolutamente nenhum perigo.

       — Quero vê-lo.

       — Vai ver. Eles estão mandando alguém pegá-la. — Não era exatamente verdade, mas Butler se prometeu que seria, segundos depois de desligar o telefone. — E os gêmeos?

       — A babá pode passar a noite com eles. O pai de Artemis está numa conferência de cúpula em São Paulo. Terei de contar tudo a ele.

       — Não — disse Butler rapidamente — Não tome essa decisão agora. Primeiro fale com Artemis.

       — E.. ele vai me reconhecer?

       — Claro que vai.

       — Muito bem, Butler. Vou preparar uma mala agora. Diga a quem vier me buscar para avisar quando estiver a dez minutos de distância.

       — Farei isso.

       — Butler?

       — Sim, Sra. Fowl?

       — Cuide do meu menino até eu chegar. A família é tudo, você sabe.

       — Sei, Sra. Fowl. Farei isso.

       A ligação terminou e a foto de Angeline desapareceu da telinha.

       Família é tudo, pensou Butler. Se você tiver sorte.

       Palha enfiou a cabeça pela porta, com algum liquido grosso pingando da barba, que parecia ter nabos inteiros pre sos. Sua testa estava coberta por gel azul para queimadura. —  Ei, guarda-costas. É melhor descer até o ginásio. O tal diabrete jumbo está matando sua irmã.

       — Verdade? — perguntou Butler, sem se convencer.

       — Verdade. Juliet não parece ser ela mesma. Não consegue fazer dois movimentos seguidos. Na verdade é patético. Todo mundo está apostando contra ela.

       — Sei — disse Butler, empertigando-se o máximo que podia naquele lugar apertado.

       Palha segurou a porta.

       — Quando você aparecer para ajudar, as coisas vão ficar interessantes de verdade.

       Butler riu.

       — Não vou ajudar. Só quero estar lá quando ela parar de fingir.

       — Ah — disse Palha, com a compreensão baixando no rosto. — Então devo mudar minha aposta para Juliet?

       — Sem dúvida — respondeu Butler, e foi andando pelo corredor, desviando-se de uma poça de sopa de nabos.

 

 

                                                                                                    Eion Colfer

 

 

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