Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O COMPLÔ - P.2 / Irving Wallace
O COMPLÔ - P.2 / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O COMPLÔ

Segunda Parte

 

Denise e as dezessete moças subiram ao palco. Medora bebeu um pouco de água mineral e juntou-se a elas. Ao passo que Michaud permanecia em sua cadeira, observando preguiçosamente Medora e a troupe, a condessa subiu também no palco. Durante quinze minutos, ensaiaram o velho número de antigas danças com coreografia da velha Sing, you sinners, depois a condessa deu indicações mais pormenorizadas em relação a Medora, e estabeleceu as marcações relativas às entradas e saídas.

Em seguida, o argelino ligou o som, e os alto-falantes encheram a sala de música. Sob o olhar severo de Michaud e seguindo os gestos e gritos indicadores da condessa Ribault, a troupe saracoteou, deslizou, saltou e rodopiou. Medora, gesticulando e bamboleando na frente, com um microfone portátil na mão, entoou os versos e por último fundiu-sc com o coro para a marcha de braço dado que marcava a saída do palco.

Da primeira vez, o número saiu vivo, mas horrivelmente desafinado, e Medora compreendeu que tinha de se esforçar mais. No terceiro ensaio, a coisa já estava melhor. Na quinta vez, quando os rins e a barriga das pernas começavam a incomodá-la, Medora sentiu que estava finalmente afinado e orou para que o ensaio terminasse depressa. Com um suspiro de alívio, ouviu os aplausos de felicitações da condessa. Michaud levantou-se:

— Obrigado, meninas. Por ora, basta. Até logo à noite.

A linha de formação da troupe quebrou-se, e houve falas e risos à medida que as coristas trocavam o palco pelos camarins. Um tanto fatigada, Medora dispôs-se a segui-las.

— Srta. Hart! — Era a voz de Michaud, e Medora voltou-se, vendo-o dirigir-se para a boca do palco. — Creio que sua atuação foi notável, apesar de tudo.

— Merci — disse com rudeza.

— Apenas uma coisa mais. Gostaria de conversar com você em particular, antes de sair. Trata-se de certos pormenores relativos à sua atuação e outros assuntos.

Medora hesitou:

— Se é importante...

— É indispensável.

Com um suspiro, Medora deixou o palco e entrou nos bastidores. Algumas componentes da troupe, entre as quais Denise Averil, estavam agrupadas à volta da máquina de refrigerantes, tagarelando. Denise viu-a, e suas sobrancelhas arquearam-se numa interrogação muda. Medora sorriu e gritou:

— Obrigada. Seu radar acertou.

Denise anuiu e formou um V com os dedos, sinal de vitória. Medora encolheu os ombros numa expressão de desânimo e dirigiu-se para as escadas.

Uma vez em seu camarim, tirou as sapatilhas e enrolou a roupa de ensaio branca. Sentiu cada centímetro do corpo nu dolorido, como sempre acontecia após qualquer ensaio ou estréia, e desejou poder tomar um chuveiro ou um banho de imersão, mas fá-lo-ia no hotel, depois de tratar rápida e sumariamente com o directeur sua pretensa entrevista de negócios. Enfiou a calcinha de náilon branca, ajeitou o cinto de elástico e voltou-se para o espelho para retirar a pintura.

Subitamente, ouviu um ruído breve à sua retaguarda, uma porta que se abria e fechava, e olhou para ver quem era. Já dentro do aposento, encostado à porta, estava Alphonse Michaud, que apreciava, pestanejando, seu corpo seminu.

Sua primeira reação foi gritar, mas a ousadia da entrada deixara-a sem fala.

— Desculpe, Medora — escusou-se —, mas...

Ela procurou qualquer coisa para se cobrir, mas as roupas estavam numa cadeira ao lado de Michaud e penduradas na porta atrás dele. Precipitadamente, ergueu as mãos para ocultar os seios, ao mesmo tempo em que perguntava, irritada:

— Que diabo pretende aqui?

— Estava impaciente. Não pude resistir. É preciso qu'e me ouça.

— Atrevimento não lhe falta! Não pode deixar uma mulher vestir-se em paz?

Ele sorriu pela primeira vez:

— Ora, minha querida, seja compreensiva. Não é nenhuma Floradora ou uma corista do Can-Can. Sua apresentação é mais respeitável agora do que o será amanhã no palco. O que eu vejo é muito menos do que aquilo que os clientes poderão contemplar nas próximas semanas.

As mãos de Medora cingiram-se mais ao peito, e ela teve consciência da transparência da calcinha. Nunca se sentira tão nua!

— Não gosto que invadam minha intimidade. E não me agrada sua insolência. Quem diabo pensa que é?

— O patrão — respondeu ele calmamente. — Sou também o diretor do clube.

— Isso não o autoriza a portar-se assim comigo. Não faz parte do maldito contrato.

— É mais bonita quando está zangada — observou Michaud —, e eu sou algo mais do que o patrão, Medora. Sou um homem terrivelmente apaixonado por você. Foi um amor à primeira vista. As moças vêm e vão. Fazem parte do meu negócio, da minha mercadoria, mal me apercebo delas como mulheres. Você é diferente. Causou-me uma profunda impressão. Sua beleza, juventude e personalidade deixaram-me louco.. . sem forças. Serei seu escravo, Medora. Sou rico, frequento os melhores círculos, mas vivo só... e sinto que há em você uma alma boa e compassiva. Peço-lhe que sejamos amigos.

— E eu lhe peço que saia daqui — disse Medora com fúria crescente — e guarde essas untuosas mentiras para as pobres e infelizes que têm medo de você.

Michaud retesou-se, ao ouvir as últimas palavras, e seu rosto transformou-se numa desagradável careta:

— Medora, aconselho-a a moderar-se e a reconsiderar quanto às nossas posições. Pretende fazer carreira, e eu posso ajudá-la. Posso dar-lhe uma vida muito confortável... se for compreensiva e cooperar.

Ela deixou cair os braços e cerrou os punhos.

— Não me interessa uma carreira suja, e não preciso de você para nada. Não é meu costume ir para a cama com o primeiro porco...

— Medora — interrompeu-a, firmemente —, sua pretensão à virtude parece-me um tanto duvidosa. Ambos sabemos que é tudo menos uma virgem pura como um lírio. — Havia em seu rosto um altivo desdém. — Acabemos com esta farsa. Sejamos francos, e chegaremos a um acordo. Você sabe tão bem como eu que tem pouco talento. Não sabe cantar. Não sabe dançar. Não sabe representar. Tudo o que tem para oferecer é um corpo estupendo. E mesmo isso não basta... há muitos!... mas seu encanto é realçado pela fama de devassidão com dúzias de homens, desde o nojento Jameson ao irmão mais novo de um membro do gabinete ministerial inglês. Não estou fazendo críticas. Sou francês e homem do mundo. Somos o que somos, não é verdade? Pois continuemos a sê-lo. Compreendamo-nos e sejamos agradáveis um com o outro. Para que fingir comigo? De que serve esta comédia? Posso fazer por você mais do que qualquer outro...

Deu um passo à frente, e ela ficou hirta.

— Saia daqui!

Ele parou e fitou-a.

— Se você não sair imediatamente — continuou ela —, saio eu, desisto de seu maldito espetáculo.

Ele bamboleou-se, estudando-a. Por fim, encolheu os ombros, voltou a deixá-los cair e fingiu-se derrotado:

— Ganhou, Medora, embora eu julgue que perdeu. Não voltarei a incomodá-la. Se quiser, terá de ir ter comigo.

— Pode ficar esperando!

— C’est la guerre — disse ele com um sorriso, desviando relutantemente os olhos do peito dela. — Mas continuo a afirmar que é bela.

Enquanto ele se voltava, tentando manter a dignidade, parou para apanhar o sutiã e atirou-o a ela. Já com a mão na maçaneta da porta, voltou-se uma vez mais e observou-a profissionalmente, vendo-a prender o sutiã. Seu tom de voz mudara. A lascívia desaparecera.

— Agora, falemos de negócios a sério. Será bom que fique avisada desde já, Medora. Há duas cláusulas em seu contrato, um tanto ambíguas mas importantes, e espero que as cumpra.

— Passe-me o vestido, por favor — pediu Medora.

Distraidamente, mais interessado agora no negócio do que no amor, Michaud tirou o vestido de lã azul do prego e estendeu-o a ela, prosseguindo:

— Em primeiro lugar, quero pedir-lhe, assim como às outras, que seja amável para com nossos clientes. São os melhores. Devido à conferência, nossas mesas se encherão de personalidades importantes. Se algum representante estrangeiro lhe enviar um cartão ou convidá-la para compartilhar uma garrafa de champanha no intervalo dos espetáculos, ou depois de sua atuação, seria vantajoso aceitar.

— Vantajoso para quem? — perguntou Medora, alisando o vestido.

— Para o Clube Lautrec, evidentemente. Não é o champanha extra, que venderemos, o que interessa, mas a boa vontade que a sua delicadeza poderá engendrar. E vantagem para você também. Creio que nunca foi avessa a confraternizar com políticos e diplomatas. É possível que venham a ser-lhe úteis.

— Não preciso de nenhum alcoviteiro — interrompeu ela, com irritação. — Nunca precisei.

Michaud corou, mas conteve-se:

— Não me ofereci para isso. Apenas lhe peço que coopere.

Medora pensou nos delegados britânicos que deveriam assistir ao espetáculo e que poderiam ajudá-la a contactar com Sir Austin, se fosse necessário, por isso concordou:

— Está bem, cooperarei.

— Obrigado. Segue-se o segundo ponto, de importância ainda maior. Nosso contrato estipula que terá de cooperar também nas atividades de propaganda e publicidade organizada pelo Clube Lautrec. Isso é sobretudo importante nesta altura, Medora. Geralmente, quando contratamos uma estrela, nós o fazemos com semanas de antecedência, para que o público tome conhecimento, através da publicidade, de sua atuação. Mas você chegou ontem à noite. Com exceção dos cartazes, das notícias e de alguns anúncios nos jornais, além de um artigo em Une Semaine à Paris, não tivemos tempo de chamar a atenção do público para você. Contudo, tivemos sorte. A Conferência de Cúpula trouxe a Paris um exército de jornalistas, muitos com contratos locais para suas reportagens. Meu pessoal pôs-se em contato com a imprensa e marcou algumas entrevistas. Espero que coopere.

— Está bem, assim farei. Agora, permite que eu me vista?

— Disse que coopera? Bonl Devo dizer-lhe que sua primeira entrevista já está marcada.

— Nesse caso, diga-me quando e onde, e lá estarei.

— Agora mesmo e aqui — respondeu Michaud. — Ela deve chegar... dentro de quinze minutos.

Medora encarou-o:

— Oh, que esperto! E que procedimento velhaco! Não podia ter me avisado com mais tempo? Não sei o que fazer. Creio que se precipitou. Sim, precipitou-se. Estou absolutamente estafada:

guiei toda a noite, ensaiei durante a maior parte da tarde, e agora me diz que tenho de receber uma horrível jornalista. Se fosse um nadinha decente, teria deixado que eu me recompusesse. Mas julgo que pode adiar isso.

O rosto de Michaud não disfarçou a decepção. Implorou:

— Medora, esta entrevista é vital para ambos. Não foi fácil marcá-la. Um adiamento irritaria a jornalista, e perderíamos a história. Já ouviu falar de Hazel Smith?

— Acho que não, não me lembro — respondeu Medora com petulância. — Apenas sei que estou cansada e quero que me deixem em paz.

— A srta. Smith é a mais famosa correspondente americana na Europa — defendeu-se Michaud. — Sua agência de notícias, a Atlas, publicará a entrevista com você em todo o mundo. Mas, para nós, o importante é que essa entrevista aparecerá na edição européia do Herald Tribune de Nova York, no France-Soir, e até no Die Welt, em II Messaggero e noutros que se vendem em todos os quiosques de Paris. A história atrairá...

— Ganhou — disse subitamente, abandonando a luta. — Mas diga-lhe que não lhe concederei mais de meia hora e...

Ele abriu a porta, gritando alegremente:

— Merci bien, Mlle Medora.

—.. . e não se esqueça de lhe dizer também que a entrevista será estritamente sobre minha carreira, compreendeu? Uma palavra acerca de Jameson e a entrevista será finie. Diga-lhe isso.

— Prometo. Juro. Está decidido.

Ele saiu rapidamente, e, quando a porta se fechou e Medora se viu finalmente só, deixou-se cair aliviada num tamborete. Acabou de retirar o resto da pintura, penteou as sobrancelhas e pintou levemente os lábios para se encontrar com a jornalista e poder ir, em seguida, para a rua. Logo que se viu pronta, pegou a bolsa de palha e desceu.

Ao entrar no cabaré, este lhe pareceu inesperadamente sombrio e abandonado como um recife de coral que rejeita tudo o que é vivo e animado. Cabarés vazios em tardes vazias provocavam sempre em Medora uma sensação de melancolia, como se ela deambulas-se por uma necrópole. Mas, ao passar pelo palco, notou que o vestíbulo não estava inteiramente deserto. Ao fundo, junto da entrada, três homens e uma mulher, envergando qualquer coisa semelhante a uma farda de prisão, estendiam toalhas nas mesas. E agora notava mais atividade no primeiro plano, em frente do palco.

Michaud, transpirando encanto, dirigia-se a uma mulher que tomava notas. Medora pensou que devia tratar-se da jornalista e, aproximando-se do par, conjeturou que a jornalista, uma americana, devia ser formidável. A mulher carregava um horrível emaranhado de cabelos cor de tijolo que se harmonizava de certo modo com o estreito nariz, mas que parecia irreal quando em contraste com o tom creme da pele. Era demasiado alta para o conjunto de saia e casaco que vestia, e, por isso, a saia fazia pregas. Tinha o bloco de apontamentos muito próximo do rosto, por isso Medora supôs que devia ser míope, mas demasiado vaidosa para usar óculos. Pelo menos era americana, e isso já era melhor do que ter de tratar com os jornalistas britânicos, cuja selvageria Medora suportara durante tanto tempo. Fez votos para que a entrevista fosse amena e rápida.

— Ah, aí vem a minha estrela das estrelas! — exclamou Michaud. Correu para dar o braço a Medora e conduziu-a galantemente até junto da jornalista. — Srta. Elart, srta. Hazel Smith, a célebre srta. Smith, da ana.

Medora cumprimentou a entrevistadora com constrangimento. Hazel Smith correspondeu coín um breve sorriso. Depois, inclinou a cabeça para o lado e examinou Medora como se se tratasse de uma nova peça de estatuária.

— Agora que já se conhecem — disse Michaud com exuberância —, creio que preferem ficar a sós para conversar.

— De fato, já não precisamos do senhor — concordou Hazel Smith.

— Bon! Seja como for, estarei em meu gabinete, à sua disposição — disse Michaud. — Dei ordens para que trouxessem café e bolos. Devem estar chegando. E agora, se me permitem, retiro-me.

— Já o devia ter feito — disse Hazel Smith.

Por instantes, Michaud pareceu embaraçado, mas logo se recompôs e, batendo no queixo, replicou:

— Sei que suas matérias são sempre boas, srta. Smith. — Sorriu abertamente para Medora e acrescentou:

— Mas não lhe conte tudo, minha querida.

Por último, afastou-se. Hazel Smith enterrou-se na cadeira e meneou a cabeça, desabafando:

— Que estúpido!

Tentando conter-se para não concordar, ou, pelo menos, não mostrar sua satisfação, Medora colocou a bolsa em cima da mesa e sentou-se mais à vontade. Depois de passar a mão pelo colar amarelo e pelos cabelos, ergueu os olhos e viu que a jornalista americana a observava atentamente. Sentindo-se um tanto desconfortável, Medora endireitou-se e puxou para baixo a bainha do vestido de lã.

— É muito atraente, srta. Hart — começou Hazel Smith. — Agora compreendo todo aquele barulho que se levantou na Inglaterra, há alguns anos.

Apanhada de surpresa, Medora não soube como reagir:

— Oh, não sei... Mas, em todo caso, obrigada.

Hazel Smith cruzou as pernas, abriu o bloco de notas sobre os joelhos e experimentou a caneta numa das páginas.

— Estou preparada, você está instalada, portanto comecemos. O que faz aqui, srta. Hart?

— O que faço aqui?

— Sabe perfeitamente a que me refiro. Por que veio para Paris, nesta altura?

— Para... para trabalhar no Clube Lautrec. Não é óbvio? Hazel Smith bateu impacientemente com a caneta no tampo da mesa:

— Vá, desembuche. Estamos sozinhas. Ninguém nos espia. Pode ser franca comigo. Facilite-me as coisas e será melhor para você.

— Não faço a mínima ideia daquilo que pretende, srta. Smith. Hazel Smith debruçou-se por cima da mesa, de cabeça para a frente, como uma galinha.

— Vou dizer-lhe o que pretendo. Procurei-a no nosso arquivo, na ana. Nos últimos anos, tem andado pelo continente, atuando em espeluncas. Estou certa de que não foi uma experiência agradável. De repente, ontem à noite, aparece como estrela de um grande cabaré de Paris. Se está em Paris pela primeira vez, só Deus o sabe. E eu perguntei:

por quê?

Medora respondeu com rudeza:

— Estou aqui porque Michaud precisava de uma atração que fosse conhecida pela maioria das delegações internacionais. Creio que a descobriu no meu nome.

— É uma explicação. Em resumo, queria a garota de Jameson. A mulher era terrivelmente desagradável, e Medora começou a detestá-la:

— Entenda-o como quiser — disse friamente.

— Acredite que o farei — resmungou Hazel Smith, ao mesmo tempo em que escrevia. — No entanto, ainda não respondeu à primeira pergunta. Por que está em Paris?

Irritada, Medora retorquiu:

— Já lhe disse.

— Não me disse nada, srta. Hart. Mas não me importo de colocá-la a par de minhas suspeitas. Desconfio que veio para Paris porque Sir Austin se encontra aqui por causa da conferência, acompanhado do irmão, e você quer encontrar-se de novo com eles. Presumo que conheça Sir Austin tão bem como o irmão, esse tal Sydney.

Medora sentiu o corpo trêmulo perante o ultrajante comportamento daquela mulher implacável.

— Srta. Smith, isso não é elegante, é uma atitude nojenta. Michaud prometeu-me que lhe diria que eu só falaria de minha carreira, nada mais.

Hazel apontou-lhe a caneta:

— É sua carreira que estamos discutindo, srta. Hart.

— Oh! Como... como se atreve?...

— Calma, srta. Hart. Seja franca com Hazel e não se arrependerá. Não sei se correu para aqui a fim de se encontrar com Sir Austin ou com Sydney Ormsby, mas julgo que é a primeira vez que está na mesma cidade que Ormsby, depois do escândalo Jameson. Não importa. O que estou perguntando é:

veio aqui para se encontrar com eles, para recordar tempos antigos, ou foram eles que a mandaram vir?

— Oh, que horror! — exclamou Medora. Quis prosseguir, mas não pôde. Começou a tremer, teve um ataque de tosse, depois pegou a bolsa de palha e levantou-se. Furibunda, incapaz de se dominar, olhou para seu carrasco:

— Não passa de uma cabra, e não falo mais com você. — Irreprimíveis, as lágrimas inundaram as faces de Medora, que soluçava:

— Como se atreve a trazer tudo isso à tona? Como ousa fazê-lo, depois do inferno por que passei?

Prestes a ter outra crise, Medora ergueu um punho para limpar as lágrimas. Vendo a cabeça desumana aproximar-se dela, desviou-se e gritou:

— Deixe-me.

Desatou a correr, tropeçou, bateu num canto de mesa, atravessou a coxia, passou pelos alarmados garçons do Clube Lautrec. Sempre soluçando, continuou a fugir, galgou o vestíbulo e correu para a Rue La Boêtie.

Livre da odiosa presença do passado, tentou dominar o choro convulso, que começava a despertar a atenção dos transeuntes. Descobrindo um lenço de seda, limpou os olhos e o rosto, assoou-se e, às cegas, caminhou ao longo da rua.

Quando chegou à esquina dos Champs-Élysées, parou para respirar e compor-se. Enquanto procurava a caixa de pó-de-arroz, tentou analisar sua histérica explosão. A alusão da jornalista americana ao passado de Medora tinha sido cruel e ofensiva, mas por toda a Europa, nos últimos anos, mais cedo ou mais tarde, tivera de encarar situações semelhantes, sem no entanto se desfazer em lágrimas. É certo que as insinuações grosseiras de Hazel Smith quanto aos motivos da presença de Medora ali e de suas intenções tinham sido inesperadas e brutais, resumindo, talvez com demasiada dureza, a opinião geral a seu respeito e a desgraça de nunca vir a ser outra coisa senão a garota de Jameson. Contudo, essas mesmas insinuações não haviam sido suficientemente provocantes para explicar tão terrível reação emocional.

Tentando manter firme a mão, segurou o espelho da caixa de pó-de-arroz e polvilhou as inestcticas marcas deixadas pelas lágrimas no rosto. Aos vinte e um anos, parecia uma velha, uma bruxa sem idade, um lixo, mas isso se compreendia, porque o era realmente. Se explodira com a jornalista, fora porque os anos de exílio forçado e a frustração haviam tomado conta dela. Além disso, tinha os nervos à flor da pele desde que decidira usar a pintura a óleo de Fleur feita por Nardeau para vergar Sir Austin às suas justas pretensões. Essa centralização de esperanças num único objetivo, a incerteza de agir combinada com a falta de descanso, a fadiga do ensaio e a repelente cena com Michaud provocaram a crise. As perguntas cruéis da jornalista apenas atuaram como catalisador.

Fechando a caixa de pó-de-arroz, recuperou o bom senso, embora não se sentisse melhor.

A mão que a agarrou pelo antebraço obrigou-a a estremecer. Ouviu alguém dizer “srta. Hart” e voltou-se.

Hazel Smith estava na sua frente, e a princípio Medora mal a reconheceu. Com exceção dos cabelos ruivos em desalinho e do amarrotado conjunto marrom, não parecia a mesma pessoa. Os olhos metálicos e inquiridores tinham se suavizado, as narinas estreitas agitavam-se, a boca sem lábios tornara-se feminina, o assustador bloco de notas e a caneta haviam desaparecido. Era como se a srta. Hyde tivesse se transformado incrivelmente na sra. Jekyll.

O mecanismo de reação automática de Medora — ira, luta — ficou inativo. Ela esperou em profundo silêncio.

Hazel Smith, pálida e concentrada, meneava desconsoladamente a cabeça e, quando falou, havia arrependimento em sua voz:

— Ainda bem que a alcancei, srta. Hart. Quero pedir-lhe desculpas. — Ergueu a cabeça, embaraçada. — Creia que me sinto envergonhada, o que não me acontecia há anos. Tem razão. Portei-me como uma autêntica megera. Aconteceu naturalmente. Talvez por motivos que deve compreender. — Fez uma pausa. — Seja como for, quando nos consagramos ao trabalho durante anos, para nos mantermos ocupados, para não pensarmos, para escondermos nossa vulnerabilidade, adquirimos o hábito de tratar os entrevistados como... bem, como se não fossem seres humanos. Esquecemos que têm sentimentos, porque nos esquecemos de que já os tivemos também. Torna-se mais fácil, assim, entrar direta e automaticamente no assunto, uma vez que consideramos autômatos os que estão em nossa frente. Creio que esta é a melhor maneira de conseguir histórias, torturando as pessoas, recusando reconhecer sua sensibilidade, sendo apenas brutalmente francos e rudes. Quero dizer que, se hesitamos por um instante e pensamos que as pessoas têm sentimentos, realmente, como seres humanos, então não conseguimos nada, as histórias desaparecem, e com elas o sonho de uma grande carreira. E uma grande carreira é tudo, quando não temos mais nada. Espero que compreenda, Medora, e me perdoe.

Durante essa fala tão sincera e direta, as emoções de Medora ficaram suspensas e de tal maneira alteradas que ela não ousou interromper. Dez minutos antes, teria desprezado aquela mulher de meia-idade. Agora, de pé, sob o sol dos Champs-Élysées, ouvindo-a e acreditando nela, sentiu compaixão não de si, mas de Hazel Smith.

— Eli é que deveria pedir-lhe desculpas — disse Medora, hesitante. — Não devia ter reagido assim e feito semelhante cena por causa de perguntas rotineiras... que já me fizeram tantas vezes.

— Não, Medora, a culpa foi só minha. Sua irritação foi uma bofetada salutar, trouxe-me à realidade, mostrou-me tal como sou. Quando fugiu, compreendi a ignomínia de minhas perguntas e também que rião era apenas uma desmiolada prostitutazinha que usava o corpo para explorar os homens e ser explorada por eles. Compreendi que era a única vítima, obrigada a rastejar e a sofrer, e vi em você algo de mim mesma... ainda que isso a surpreenda; compreendi que não era apenas um título, como eu não sou uma mera assinatura, mas uma pessoa dotada de coração, como eu, ou talvez não como eu, mas como qualquer coisa de mim também; e então decidi mandar para o inferno essa maldita história. O que queria era dizer-lhe que estou arrependida. Agora, já o sabe.

— Obrigada, srta. Smith. Eu apenas...

— Hazel... Sou Elazel, nas horas vagas.

Medora anuiu com gratidão:

— Obrigada, Hazel, mas repito-lhe que me descontrolei porque há muito que a pressão tinha atingido o máximo. Não é que me importe de falar dos Ormsbys... sobretudo de Sir Austin... ou do caso Jameson; simplesmente, ninguém me ouve como amigo... ninguém, acredite... e se eu quiser desabafar, não posso fazê-lo porque todos querem me utilizar ou tirar proveito do que lhes digo. Quando muito, tenho pequenos desabafos comigo mesma, mas isso não basta.

Hazel Smith sorriu com simpatia:

— Pode desabafar comigo, Medora. Talvez eu possa ajudá-la mais do que ajudei a mim mesma. — Fez uma pausa e prosseguiu:

— Ficará surpresa ao ver que não está só. Vou lhe dizer o motivo. A menos que tenha coisa melhor para fazer (eu não tenho e, mesmo que tivesse, não o faria), por que não vamos nos sentar em qualquer lugar, tomamos um café ou um drinque e conversamos? Estritamente confidencial. Nada de entrevistas. Simplesmente uma velha e uma jovem que procuram consolar-se mutuamente. É claro que escreverei uma matéria para contentar seu patrão e dar a você um pouco de publicidade, que talvez venha a lhe ser útil. Mas será rigorosamente a seu respeito, no sentido de uma jovem completa que saiu do nada para tentar uma grande carreira e que alcançou finalmente o cume numa sala de espetáculos em Paris. Apenas de passagem me referirei ao caso Jameson.

— Sendo assim, não me importo.

— Portanto, nada de papel nem lápis. Doem-me os joanetes, e você também não parece estar melhor. Há aqui perto um café. Vamos nos sentar.

Medora não opôs resistência. Permitiu que Hazel Smith a guiasse. Subiram os Champs-Élysées até o Café Français, um modesto oásis no passeio, entre uma loja de gêneros alimentícios com o letreiro “Solde” e outra com a insígnia “Tabac”, perto da vasta entrada do Lido Arcade.

Uma mesinha, na segunda fila do Café Français, estava relativamente isolada dos clientes preguiçosos que saboreavam seus cafés e croissants e liam os jornais en plein air, nessa tarde de domingo. Sentaram-se à sombra de um grande toldo e pediram sanduíches e chá. Ilazcl Smith acendeu o cigarro de Medora e o seu, e, após um breve silêncio, olharam uma para a outra.

— Medora — disse Hazel Smith —, não julgue que estou implorando ou estragando tudo, mas quer-me parecer que há qualquer coisa em seu envolvimento no caso Jameson que ninguém sabe. Quer falar sobre isso? Veja! — Estendeu as mãos abertas para Medora. — Nem lápis, nem papel. Como dizem os garotos americanos quando andam de bicicleta:

sem mãos. Decida.

— Tem certeza de que não se aborrecerá?

— Não se preocupe, contanto que não seja demasiado doloroso para você.

— Oh, não é nada doloroso! Será até agradável poder contar a alguém a verdade toda, nada mais do que a verdade. Se vamos ser amigas, ficarei grata por um conselho ou uma opinião.

— Há quanto tempo está longe de seu país, Medora?

— Desde o julgamento. Há três anos, mais ou menos.

— Quer dizer que andou circulando pela Europa todo esse tempo? Por quê? Por uma carreira?

— Não! Detesto o meu trabalho. Estou aqui porque esse filho da puta maldito que é Sir Austin Ormsby me ordenou que deixasse a Inglaterra, e, agora, não me deixa regressar.

Os olhos de Hazel Smith ficaram redondos de espanto:

— Sir Austin?

— Ele mesmo.

— Mas como?

— Bem — disse Medora —, é o que gostaria de lhe contar.

E, durante a meia hora seguinte, numa voz insípida e marcada pela desagradável familiaridade com acontecimentos de longa data, ela relatou o que acontecera.

Hazel Smith recusava-se a acreditar.

— Nunca ouvi uma coisa assim! Nem sequer em Moscou. Ele incriminou-a realmente?

— É verdade — disse Medora. E, sentindo a boca seca, bebeu o chá frio.

— Mas devia ter feito qualquer coisa — insistiu Hazel Smith.

— Foi um ultraje. Devia tê-lo gritado ao mundo inteiro, a toda gente com quem pudesse falar.

Medora suspirou:

— Tentei, Elazel, garanto-lhe que tentei. Ninguém me acreditou. Sabia o que pensavam de mim:

uma instável e uma imoral. Minha palavra era suspeita. Procurei convencer a imprensa a publicar a história. Todos a recusaram. Não havia provas.

— Eu a publicarei — decidiu Hazel Smith, agressivamente.

— Sem outras provas além de minha palavra? Não creio que sua empresa a aceite.

— Deve haver uma prova qualquer!

— Nem uma palavra escrita. Nada.

— Compreendo — disse Hazel Smith. — Tem razão. Seria tolice publicar a história toda, principalmente tratando-se de um importante tubarão como é seu antagonista.

— Foi sempre a palavra imaculada dele contra a minha palavra manchada. De forma que nunca houve uma oportunidade, e tive de fazer meu caminho.

— Como viveu, Medora? Como passou estes últimos anos?

Prontamente, sem restrição, quase como uma cascata, Medora confessou-lhe tudo, o círculo sem fim de clubes baratos e cheios de fumaça na França, na Alemanha, na Itália, as inúmeras filas de pavorosas assistências masculinas, de olhos arregalados e mãos ocupadas, a infindável lista de homens que ofereciam em troca de seu corpo o comércio de suas plateias, e que, uma vez na posse da mercadoria, lhe pagavam com vãs promessas.

Prestes a terminar, Medora enterrou-se na cadeira, exausta:

— Mas há mais. Não sei se alguém que não tenha passado por isso poderá compreender.

— Eu compreendo — disse com firmeza Hazel Smith.

Medora olhou com curiosidade para a americana:

— Fala como se soubesse. Quer dizer que passou por uma experiência análoga?

Hazel Smith cravou os olhos no vácuo:

— Não exatamente. Mas, em certo sentido, sim. Sei o que sente. — Parecia procurar as palavras mais apropriadas.. — Em certo sentido, vi-me tão abandonada como você, e exilada de uma vida normal de mulher. Tudo por causa de um homem, um gorducho estúpido, um verdadeiro filho de uma puta... (você não deve conhecê-lo de nome, era demasiado jovem nessa época) mas tão famoso como Sir Austin, e ninguém, quanto mais uma pobre moça como eu, era suficientemente bom para ele. Acuso-o de tudo, ou, antes, de quase tudo o que me aconteceu desde então. — Calou-se, dirigiu um pálido sorriso a Medora e concluiu:

— Como vê, compreendo, e se puder fazer alguma coisa para ajudá-la...

— Obrigada, mas julgo que agora serei capaz de agir sozinha. Não imagina quanto aprecio sua oferta, Hazel. É bom sabermos que há no mundo alguém que procura ajudar-nos, embora... — Ficou pensativa por instantes. — Quando nos encontramos, perguntou-me por que motivo eu estava em Paris. Sua suposição foi quase exata. Estou aqui para ver Sir Austin Ormsby. Ele não o sabe, mas é para isso que estou aqui. — Voltou a entusiasmar-se e aproximou a cadeira da de Hazel. — Disse-lhe há pouco que era bom conhecer alguém pronto a ajudar-nos. Referia-me a você. Mas há outra pessoa, um homem que fez uma coisa maravilhosa por mim, que me proporcionou a minha oportunidade. — Fez uma pausa. — Já ouviu falar do pintor Nardeau? Já? Então, vou dizer-lhe por que estou em Paris...

— Procuro Hazel Smith — disse ele. — Sou um velho amigo. Acabo de chegar a Paris para me encontrar com ela. Estará por aqui?

A secretária francesa passou a língua pelo lábio superior e pareceu confusa.

— Je ne comprends pas — disse, com enfado. — Répétez, s’il vous plait.

Espaçando e pronunciando lentamente as palavras, repetiu a pergunta:

— Procuro a srta. Hazel Smith, uma de suas jornalistas. Sou um velho amigo dela.

O rosto contraído da secretária francesa desanuviou-se imediatamente:

— Ah! Ay-zell Smith? — Ergueu um dedo. — Excusez-moi, monsieur! Attendez!

Bamboleou por entre as desarrumadas mesas do escritório principal da Atlas News Association, parou para consultar outra moça francesa que escrevia à máquina, depois dirigiu-se rapidamente para um gabinete ao lado.

Jay Thomas Doyle esperou nervosamente que ela reaparecesse na companhia de Hazel Smith. Como viu que demorava, perguntou a si próprio se Hazel não teria instruído a moça para dizer que não estava e dispensá-lo. Logo que desfez as malas no Hotel Georges V, Doyle pensou em telefonar a Hazel para lhe anunciar sua chegada e combinar um encontro. Mas rejeitou o telefonema, considerando de efeito mais seguro surpreendê-la em pessoa. Por telefone, ela podia desligar. Mas, em face de sua presença física, o máximo que faria era voltar-lhe as costas; saberia, porém, subjugá-la com sua ânsia, seu desejo, a necessidade de reatar um amor antigo.

Arquejando ainda por causa da corrida por quatro quarteirões, do Hotel Georges V ao edifício do New York Herald Tribune, na Rue de Berri, começou a respirar profundamente, num esforço desesperado para recuperar o equilíbrio. Sabia que parte daquele arquejar não provinha da corrida ou de seu peso excessivo, mas da ansiedade provocada pelo encontro em perspectiva. Nem no elevador que o transportara aos escritórios da ana, no sexto andar, Doyle conseguira aliviar as dificuldades de respiração. Não era por excesso de exercício ou de peso, mas por medo. Era por causa de Hazel Smith.

Apesar de todo aquele arquejar que o estrangulava, Jay Thomas Doyle sentia intata sua confiança interior. Realmente intata ou apenas papier mâché, pouco importava; isto é:

quer essa confiança assentasse solidamente em sua boa causa, quer fosse uma autoconfiança artificial, desenvolvida pelo moderador de apetite (uma cápsula amarela de quinze grânulos, que lhe causava náuseas só de pensar em comer e que compensava a falta de proteínas com doses de ânimo, energia e bem-estar), pouco interessava. O importante é que se sentia suficientemente forte para enfrentar Hazel, para esquecer os momentos escuros do passado e recordar os dias felizes de paixão. Ela teria de lhe dar o capítulo final de Os conspiradores que mataram Kennedy. Depois, juntos, conquistariam o mundo. .

Mas agora, enquanto percorria com os olhos o escritório da empresa jornalística, compreendeu que sua aritmética estava errada. A conquista do mundo por ambos significava que o fariam juntos. Mas a verdade é que um deles já o havia conquistado, e tinha sido Hazel, que se guindara às alturas; portanto, essa fantasia era apenas dele.

Observando a atividade na sala, sofreu um profundo choque ao relembrar o passado. Lá estavam as marcas dos cigarros, as mesas manchadas pelas bebidas, cada uma delas com os espetos cheios de relatórios recentes, memorandos e telegramas. Lá estavam as moças que escreviam rapidamente à máquina, os incansáveis mensageiros franceses que entravam e saíam, os editores estrangeiros e os correspondentes americanos na sala ao lado, que discutiam as notícias chegadas e por chegar, que determinavam atribuições e estratégias, que decidiam quem faria o turno da noite, quem se ocuparia da reportagem no Palais Rose, a quem caberia o próximo turno com o elegante arquivista do Herald Tribune chegado na semana anterior da Universidade Sarah Lawrence.

Um mundo maravilhoso, mais vivo do que qualquer outro, por estar integrado no tempo, com um pé no dia de hoje e outro no de amanhã. Um mundo muito superior à fama, ao dinheiro ou ao poder, contanto que aqueles que o habitavam soubessem apreciar sua boa sorte. Recordando sua experiência jornalística, Doyle sentiu saudades como se se tratasse da própria juventude, e foi dolorosamente que voltou à realidade. Era um estranho. E o vergonhoso livro de receitas que preparava fê-lo sentir-se ainda mais estranho. Só a obra sobre o assassinato de Kennedy poderia fazê-lo reentrar nesse mundo. Mas essa obra ainda não tinha nascido, e, portanto, ele continuaria a ser um desses estranhos que comprimiam o pobre nariz contra as vitrinas.

Ouvindo o súbito matraquear do teletipo, dirigiu-se para lá. Debruçando-se sobre o visor, hipnotizado pelas teclas automáticas que batiam no rolo de papel (comunicado.. . primeira parte

KÍNG KONG.. . LONDRES, PRIMEIRA CONTINUAÇÃO.. . XXX.. . mais), era como se espreitasse o interior de uma bola mágica que refletisse todas as atividades da raça humana num único dia. As teclas martelavam incessantemente. As notícias saíam em tropel do teletipo. Um incêndio. Uma inundação. Resultados de um campeonato de tênis. Julgamento de um assassino. Uma entrevista coletiva. Um relatório financeiro. Uma morte. Um nascimento. Depois um tilintar seguido por um comunicado do Palácio do Eliseu. O presidente chinês Shu-tung chegou bem a Orly, todos os chefes das cinco potências se encontravam agora em Paris.

Abatido, Jay Thomas Doyle desencostou o abdômen do teletipo. Era insuportável ser um leitor em vez de um fornecedor de notícias.

Quando se voltou, viu que a secretária francesa saía do gabinete ao fundo, não acompanhada por Hazel Smith, mas por um jovem americano, magro, com ar de marinheiro e em mangas de camisa, que segurava uma' folha de papel amarelo. A secretária apontou para Doyle, e o jovem jornalista avançou para ele através das mesas desarrumadas.

— Desculpe a demora. Estava atendendo uma chamada de Orly. Hoje, não nos dão sossego. Chamo-me Fowler, estou temporariamente na redação, pois em geral trabalho no exterior, por isso não conheço muito bem os escritórios. Mas em que lhe posso ser útil?

— Eu disse à garota que quero falar com Hazel Smith — disse Doyle.

— Foi o que entendi. Mas nunca se sabe. O inglês destas secretárias francesas é péssimo, assim como sua datilografia, embora possuam bonitas pernas. Mas nossa funcionária deu o recado corretamente. Disse-lhe que tinha um encontro marcado com a srta. Smith? É que se...

— Não — interrompeu Doyle. — Voei esta manhã de Viena para discutir com a srta. Smith um assunto particular. Somos velhos amigos. Quis fazer-lhe uma surpresa, por isso vim diretamente para cá.

— Compreendo — disse Fowler. — Vi-a por instantes quando cheguei, mas ela saiu. Creio que esteve fora toda a manhã. Vamos ver. Instalamos-lhe uma mesa provisória, e ela geralmente deixa uma nota em seu bloco, para o caso de querermos entrar em contato com ela.

Dirigiu-se com desenvoltura para uma pequena mesa de carvalho, no centro da sala, e remexeu os papéis. Ao regressar, acenava vitoriosamente com um pedaço de papel.

— Aqui está. Ora vejamos. — Leu em voz alta:

— “Das onze e trinta às doze e quarenta e cinco, almoço de entrevista com Legrande, no Méditerranée, Place de POdéon. À uma hora, visita da embaixada ao Palais Rose. Às duas e meia, entrevista com Mlle Plart no Clube Lautrec”. — Ergueu os olhos. — Pronto. Talvez ainda possa apanhá-la no Clube Lautrec.

— Fica perto dos Champs-Élysées, não fica?

— Rue La Boêtie. Não pode se enganar. Há um enorme cartaz de Medora Hart na fachada. Gostaria de ter sido eu a entrevistar essa srta. Hart. Tenho certeza de que passaria uns momentos agradáveis. — Meneou a cabeça para expulsar a momentânea divagação e prosseguiu:

— Seja como for, se não encontrar ali a srta. Smith, é provável que a veja aqui mais tarde. Pode deixar recado...

— É preferível — concordou Doyle.

— Um momento. — Fowler pegou num lápis e dispôs-se a escrever nas costas do apontamento de Hazel Smith. — Diga.

— Anote que vim procurá-la e que lhe telefonarei. Estou no Hotel Georges V.

— E seu nome?

— Oh, desculpe! Escreva que Jay Thomas Doyle deseja lhe falar.

O jovem correspondente começou a anotar o recado, quando, de repente, o lápis pareceu deslizar do papel. Abriu muito os olhos, e seu rosto refletiu admiração, como se Doyle fosse uma personalidade como Richard Harding Davis, Floyd Gibbons ou Ernie Pyle.

— Disse... disse Jay Thomas Doyle? É o Doyle, o Doyle de “Secreto e autêntico”?

— O próprio — anuiu Doyle, satisfeito como uma criança.

— Caramba! É uma grande honra conhecê-lo — disse Fowler, ao mesmo tempo em que sua agitação se transformava em cerimoniosa reverência. — Estudei-o no ginásio e na universidade. Seus artigos eram matéria de estudo nas aulas de jornalismo e ciências sociais. Meu velho admirava-o tanto como à Bíblia.

— Obrigado — condescendeu Doyle com arrogância, pois era agora o príncipe tolerante para com o pobre.

— Muitos de nós viemos para este negócio por sua causa, por havê-lo tornado tão famoso. Quando comecei a trabalhar, perguntava muitas vezes a mim mesmo o que acontecera à sua coluna. Pensei que tivesse se aposentado, mas.. .

O ego de Doyle, que até aí estivera flutuando, cresceu subitamente:

— Não. A verdade é que tenho estado mais ativo do que nunca. Estava farto de jornalismo e portanto decidi aproveitar o tempo para escrever livros. Vários editores andavam atrás de mim. Durante uma temporada trabalhei num projeto de um livro secreto.

— Caramba! Por essa eu não esperava! — exclamou Fowler. — Até me sinto doente. E quando sai?

— Oh, num futuro próximo, logo que eu o considere definitivo. — Pensou que seria melhor partir enquanto sua estatura se mantinha intacta. — Vou ver se ainda apanho Hazel Smith no Clube Lautrec. De qualquer modo, não se esqueça de meu recado, jovem.

— Com certeza. Caramba! Foi uma grande honra, sr. Doyle. Vou escrever ao meu velho. Ficará contente em saber que continua em atividade.

Escondendo o embaraço da última observação com um débil sorriso, disposto a escapar do jovem e de seu velho, Doyle despediu-se e caminhou penosamente para a saída.

Deixando o edifício do Herald Tribune, Doyle teve um ataque de asma, enquanto palmilhava a Rue de Berri, e jogou a culpa disso naquele psicossomático encontro lá em cima. Fervorosamente, esperava ter energias suficientes para ainda apanhar Hazel no Clube Lautrec. Tentou ensaiar o que lhe diria, distraiu-se por instantes com as fotografias de bailarinas seminuas no átrio de um cativante clube noturno, em frente do qual passava, depois voltou ao ensaio de seu encontro com Hazel.

Ao aproximar-se da entrada envidraçada do Hotel Lancaster, viu um Cadillac com as insígnias da embaixada dos Estados Unidos estacionado e um motorista que abria a porta de trás do carro. Dois homens e uma moça, americanos sem dúvida, saíram do hotel. Doyle estava quase alcançando-os quando um cavalheiro idoso e elegante, de quem estavam obviamente à espera, saiu às pressas do hotel. Reparando no emaranhado cabelo branco, no nariz de pugilista e no queixo rachado, Doyle identificou-o imediatamente. Era sem sombra de dúvida Emmett A. Earnshaw.

Earnshaw abrandara o passo para chamar alguém que estava dentro do hotel, e, ao fazê-lo, mudou de rumo. Doyle saltou para o passeio e, prevendo uma colisão, bateu de leve nas costas do ex-presidente.

Perplexo, Earnshaw manteve o equilíbrio e voltou-se para se desculpar.

— Desculpe... — começou, mas logo engoliu o resto da frase, meneou a cabeça enquanto inspecionava Doyle, e, de repente, seus olhos azuis iluminaram-se ao reconhecê-lo... — Não é... não é Doyle, Jay Doyle?

— O próprio, senhor presidente — respondeu Doyle, radiante com o fato de o ex-presidente se lembrar dele. — É um prazer vê-lo depois de tanto tempo.

Doyle aceitou um amigável aperto de mão do ex-presidente e dispunha-se a continuar seu caminho, mas Earnshaw não se moveu de sua frente.

— Um encontro inesperado — disse Earnshaw. — Quase não o reconheci.

— Já se passou um bom número de anos.

— Não é isso, é seu peso. Engordou muito desde a última vez em que o vi. Uma vida demasiado boa, hem?

Doyle tentou sorrir:

— Deve ser isso. O senhor parece mais moço do que nunca.

— Coma metade do que encomenda, Doyle, é esse o segredo.

Deite-se e levante-se cedo. Conhece minha comitiva? Carol! Callahan! Agente Secreto X! — Os três aproximaram-se rapidamente, e Earnshaw apresentou-os, sua sobrinha, o guia da embaixada, o agente do serviço secreto, a Jay Thomas Doyle, dando-lhes um complicado e impressionante resumo da fama de Doyle. — Agora, entrem nos carros. Estarei com vocês dentro de um minuto... Bem, Doyle, hã... . passamos bons momentos na Casa Branca.

— Quem dera estivesse lá ainda! — disse delicadamente Doyle. — Encontra-se aqui como delegado?

— Por Deus, não! Nem uma junta de muares me arrastaria para esta confusão. Deixemos que os jovens dêem os tiros. É o mundo deles. Mas é claro que estou aproveitando todas as cortesias e mordomias. Esta é a primeira visita de Carol, e quero que veja tudo, enquanto nossa embaixada e os franceses pensam que ainda me devem certas atenções. Hã... vamos ao Quai d’Orsay tomar parte em um desses ultratemperados almoços, que só me provocam azia. Depois, talvez uma hora de passeio pela cidade. E você, Doyle? Está aqui para a reportagem da conferência?

— Não, não — respondeu Doyle, embaraçado. — Nada de agitação, desta vez. Estou procedendo a investigações para um livro e... bem, vadiando um pouco.

— Ótimo. Foi bom encontrá-lo. Talvez possamos tomar um drinque noutra ocasião. Bem, boa sorte, Doyle.

Earnshaw entrou no automóvel, e o motorista fechou a porta. À frente, o agente do serviço secreto tinha se juntado a um colega que esperava num sedã. Com um vago sorriso para os ocupantes do carro, Doyle decidiu-se a prosseguir em seu caminho. Ouviu o motor pôr-se em funcionamento, parar abruptamente e alguém pronunciou seu nome.

Voltou-se, perplexo, e viu que Earnshaw saía do automóvel e o chamava:

— Doyle! Espere...

Doyle, ainda perplexo, ia dirigir-se para o carro, mas Earnshaw veio ao seu encontro. Passando-lhe paternalmente um braço pelos ombros, o ex-presidente levou-o para a beira da calçada.

— Hã... Doyle, assim que me sentei no carro, ocorreu-me uma ideia. Hã... esse livro que está preparando... não lhe toma todo o tempo, não é?

— Bem... não — respondeu Doyle, cautelosamente.

— Foi o que pensei. Para falar com franqueza, há um pequeno assunto para o qual preciso de uma pequena ajuda, algo do seu gênero de trabalho, e pensei que talvez lhe interessasse.

-— Depende...

— Vou dizer-lhe do que se trata. Hã... preciso de um redator que trabalhe em colaboração comigo a partir de amanhã, dia 16, até o encerramento da conferência, no dia 25. — Sorriu timidamente a Doyle. — Hã.. . diz o velho ditado que nós, mortais, somos uns loucos. Num momento de fraqueza, concordei em passar algum tempo em Paris como observador da Conferência das Cinco Potências, na qualidade de simples cidadão, e escrever comentários diários de quinhentas palavras para a Ormsby Press Enterprises, de Londres, e precisamente agora a nossa agência ANA acaba também de me contratar para uma coluna. Hã... que diabo, Doyle! Nunca tive pretensões a ser jornalista. Sabe-o muito bem. Por isso, pensei que o melhor seria arranjar uma espécie de assistente profissional que acompanhasse as reuniões da conferência, todos os dias, me relatasse o que se passa e escrevesse em meu nome, em troca da maior parte do dinheiro. Quando o vi, achei que me serviria perfeitamente. Não me parece que seja uma exploração para você. Arranjo-lhe credencial da imprensa, entrada em toda parte, montes de refeições gratuitas, competições desportivas, possibilidades de ver tudo e todos e, apenas para reforçar as vantagens, talvez lhe pague trezentos dólares diários durante os dez dias da conferência. Tenho certeza de que não passa de uma gota d’água para você, mas não deixa de ser dinheiro sonante. Além disso, o trabalho é pouco. Pode lhe sobrar tempo suficiente para continuar seu livro. — Observou o rosto de Doyle e inquiriu:

— O que lhe parece, meu amigo?

Doyle já tinha pesado os prós e os contras da oferta. Quanto aos primeiros, tudo o que havia a objetar era que aquele trabalho fantasma poderia interferir nas horas de ócio que destinava à procura de Hazel e provocar uma interrupção em seu livro. Mas havia também muitas vantagens. Por um lado, Hazel estaria ocupada a maior parte do tempo, e seria difícil vê-la, o que lhe deixaria muitas horas disponíveis. Além disso, e o mais importante, com as prestigiosas credenciais jornalísticas de Earnshaw em seu poder, credenciais passadas pela própria agência de Hazel, a ana, Doyle teria livre acesso a qualquer ponto onde Hazel se encontrasse, tanto na cidade como nos escritórios da ana. Finalmente, o dinheiro não era para desdenhar, e, na verdade, até poderia vir a ser muito útil, no caso de Hazel exigir pagamento por sua informação secreta acerca do assassinato de Kennedy.

— Disse ana? — perguntou Doyle.

— ANA e a cadeia Ormsby.

— E terei todas as credenciais de jornalista?

— Sem dúvida. Posso consegui-las antes do fim do dia.

O rosto cevado de Doyle abriu-se num sorriso. Ele estendeu a mão:

— Sr. Earnshaw, negócio fechado.

Earnshaw apertou entusiasticamente a mão estendida:

— Estou muito satisfeito. Tirou-me um grande peso... Bem, Doyle, por que não vai ao meu apartamento no Lancaster, por volta das cinco horas? Combinaremos todos os pormenores e já lhe poderei entregar as credenciais da nossa seção de imprensa. Às cinco horas, está bem?

— Lá estarei. E prepare o bourbon.

Encantado com sua decisão e a possibilidade de aquele emprego lhe permitir um contato constante e natural com Hazel, Doyle encaminhou-se para o Clube Lautrec. Chegando aos Champs-Élysées, deu as costas ao Arco do Triunfo e dirigiu-se para seu destino. Preocupado com o que o esperaria no cabaré, mal atentava nos casais e famílias franceses que passeavam indolentemente nessa tarde de domingo. As pesadas pernas transportavam seu bamboleante abdômen por entre a multidão de ociosos, aproximando-o cada vez mais da Rue La Boètie.

Ao chegar perto do Café Français, Doyle sucumbiu involuntariamente ao costume parisiense de esquadrinhar os habitués de todas as calçadas. Seus olhos passaram por cima dos que estavam atrás, moveram-se para os do centro e começaram a examinar os das filas da frente, quando, de súbito, pararam.

A uma distância de dez metros, lá estava ela. Com exceção do cabelo mais ruivo, do busto mais dilatado, do vestido mais moderno, o desgaste de uma dezena de anos poucos vestígios tinha deixado nela. Não havia erro possível. Sentada a uma das mesas da frente do café, em animada conversa com uma bonita jovem, estava Hazel Smith, havia tanto procurada.

A garganta de Doyle contraiu-se, e ele tentou aliviá-la. Não conseguia lembrar-se dos meios, somente dos fins. Passou as mãos trêmulas pelos cabelos, alisou as lapelas, puxou a calça, lamentando os milhões de calorias extras que constituíam sua única companhia desde a partida de Hazel. Resolutamente, dirigiu-se para ela.

Encobrindo-a com sua sombra, exclamou efusivamente:

— Meu Deus! Não pode ser! Llazel... como vai você?

Alarmada, Llazel estremeceu e olhou em redor. Antes que pudesse reagir, Doyle curvou-se, roçando a mesa e batendo numa xícara vazia, ao mesmo tempo em que tentava dar-lhe um beijo. O rosto de Hazel contraiu-se, horrorizado, e, quando os lábios dele quase a afloravam, recuou instintivamente, e o beijo perdeu-se no lóbulo da orelha.

Com um grunhido, Doyle endireitou-se:

— Foi uma sorte encontrá-la! Li que você estava em Paris, e, quando cheguei, minha primeira preocupação foi tentar descobri-la. — Sentiu o suor deslizar-lhe pela testa, mas prosseguiu:

— Parece mais jovem do que nunca, Hazel. Maravilhosa! Não mudou nada.

Ela examinou-o com frio nojo:

— O mesmo não posso dizer de você.

— Muito engraçado, ah! ah! — Tamborilou no abdômen e continuou:

— Há uma história antiga que diz que nos consumimos quando suspiramos por alguém. Às vezes, dá-se o contrário. Seja como for, fui à ana perguntar por Hazel Smith. Antes de mais nada, quero que saiba que tenho lido seus artigos de Moscou e de toda parte:

são primorosos, absolutamente primorosos. — Procurou uma cadeira atrás de si, descobriu-a e arrastou-a. — Importam-se que lhes faça companhia por uns minutos? A não ser que estejam tramando qualquer coisa de sensacional!

Hazel tentou ignorá-lo. No entanto, Doyle sentou-se com decisão, sorrindo estupidamente para ela e depois para sua jovem e bonita amiga. Seguiu-se um silêncio embaraçoso, até que finalmente Doyle engoliu em seco, acenou para a confusa e bonita jovem e disse:

— Não creio que tenhamos sido apresentados. Sou...

Azedamente, a voz de Hazel sobrepôs-se à dele:

— Srta. Medora Hart, sr. Jay Doyle. Desculpe, Medora, mas...

— Srta. Hart? Mas. claro! A famosa bailarina.

— Cantora — corrigiu, timidamente, Medora.

Hazel fitou Doyle e lançou um olhar aflito a Medora:

— Desculpe, querida. Estava contando alguma coisa...

Medora olhou com angústia de Hazel para Doyle e, pouco à vontade, voltou-se para a jornalista:

— Bem, creio ter-lhe dito quase tudo. Estou-lhe muito grata. Suponho que só me resta localizar Sir Austin Ormsby e... e convencê-lo a...

Doyle, ansioso por participar da conversa, aproveitou a frase interrompida, embora ela nada significasse para ele.

— Quer localizar Sir Austin Ormsby? — perguntou, rapidamente. — Posso ajudá-la. Acabo de chegar de avião, vindo de Viena, a fim de trabalhar com o ex-presidente Earnshaw numa coluna diária dedicada à conferência, e sabe para quem vou escrever? Para a ana e a agência de Sir Austin. Portanto, se quiser saber como entrar em contato com ele, estou certo de que.. .

— Ninguém lhe pediu nada. Por conseguinte, agradeço-lhe que fique de fora — atalhou Hazel com frieza. — É um assunto particular. — Voltou a atenção para Medora, que pegava a bolsa:

— Medora querida, terei a informação esta noite. Telefonar-lhe-ei. Poderá contatar Sir Austin amanhã de manhã.

— Agradeço-lhe profundamente, Plazel.

Hazel Smith já acenava ao garçom.

— Garçon! — Viu a conta debaixo da garrafa de água e quis pegá-la, mas Doyle adiantou-se e brandiu-a triunfalmente.

— O prazer será meu, minhas senhoras.

Num movimento rápido, a mão de Hazel arrancou a nota das mãos de Doyle.

— Não nos deve nada! — gritou, furiosa. E, enquanto procurava a bolsa para tirar os francos, Medora empurrou para trás sua cadeira.

— Tive muito prazer em conhecê-lo — disse timidamente a Doyle. E tocando no braço de Hazel:

— É melhor eu me apressar. Não sei como lhe agradecer.

Hazel encarou-a:

— Não foi apenas conversa, Medora. Estou do seu lado. Como lhe disse, telefonar-lhe-ei esta noite. — E, para que Doyle ouvisse, acrescentou:

— Terminaremos nossa conversa quando estivermos a sós. Podemos combinar um almoço, está de acordo?

Medora aquiesceu e, antes que Doyle pudesse se levantar, ergueu-se e dirigiu-se para os Champs-Élysées.

Deixando-se cair na cadeira, sempre com sua máscara dionisíaca e jocosa para disfarçar a ansiedade, Doyle viu Elazel pagar ao garçom e decidiu não deixá-la escapar.

Logo que o empregado se retirou e Hazel voltou a fechar a bolsa, Doyle aproximou a cadeira.

— Hazel, minha querida, não posso lhe dizer o quanto me alegra a visão desses seus olhos inflamáveis. A última vez em que a vi, era uma garota inexperiente. Agora, é uma mulher sofisticada e encantadora.

— Há pessoas que têm motivos para crescer da noite para o dia.

Fingindo não ouvir, Doyle prosseguiu:

— Seus êxitos enchem-me de orgulho, Hazel. Ainda me lembro de nossas longas conversas sobre jornalismo e acerca do seu futuro, quando vivíamos juntos. Agrada-me ver que a aluna ultrapassou o mestre.

— Também a mim.

Doyle soltou um longo suspiro:

— Já se passou muito tempo, não é verdade?

Os dentes serrilhados de Hazel, demasiado brancos e imperperfeitos, cerraram-se:

— Não para mim — replicou.

Aceitando o castigo, que sabia merecer, Doyle não desistiu da luta:

— Há uma eternidade que nos sentávamos assim, embora, com toda a franqueza, me pareça ter sido ontem. Tenho tanto para lhe contar, Hazel! E há tanta coisa que quero ouvir de você! Creio que o sabe. Ainda deve ter as cartas que lhe escrevi nestes últimos anos.

— Realmente? — caçoou ela. — Não sabia que continuava a escrever.

Desafiando-lhe o sarcasmo, ele prosseguiu:

— Ora, Hazel! Escrevi-lhe pelo menos cinquenta vezes para lhe dizer o quanto precisava de você.

— Escreveu? — perguntou, irônica. — Que surpresa! Julgava-o terrivelmente ocupado com suas cadelas da sociedade, como essa condessa Esterais de Viena ou qualquer coisa no gênero.

— Não... não sei a que se refere.

— Não sabe? Pois vou refrescar-lhe convenientemente a periclitante memória — disse Hazel com desdém. — Vejamos. A última vez foi em seu apartamento, não foi? No Hotel Imperial, em Viena. Você, uma personagem importante, eu, uma nulidade, estávamos juntos quando você disse qualquer coisa assim:

“Estou farto, portanto por que não conversamos razoavelmente, Hazel, e dizemos adeus ao passado? Volte para seu romântico russo e deixe-me só, pois tenho de mudar de roupa a fim de ir à ópera e porque deve estar chegando alguém, a condessa Esterais. Sua presença poderia tornar-se embaraçosa. Está bem, querida? Só assim é que podemos nos entender”. E eu respondi:

“Você é uma safado filho de uma puta e nunca mais quero vê-lo”. — Hazel calou-se por instantes, hirta. — Há quanto tempo foi, querido? Treze, catorze anos? Muito bem. Não respondi às cartas e continuo a não querer vê-lo, nem agora nem nunca.

Os pés, a máscara, o queixo, todas as banhas de Doyle estremeceram. Sua voz ensurdeceu e ele se lamuriou:

— Escute, Hazel... está enganada. Misturou tudo. É verdade que naquele tempo eu andava muito atarefado... mas uma coisa é certa:

amava-a, e nunca me interessei por outra mulher desde então, você foi sempre a única que amei. — Tentou um sorriso, falhou e prosseguiu:

— Estava brincando, não estava? Sem dúvida. O senso de humor foi sempre um de seus melhores argumentos. O que passou passou, Hazel; continuamos a viver e a aprender e é isso o que conta, temos um mundo de perspectivas à nossa frente. Se outrora tive defeitos, desapareceram, e, como disse, você viveu e aprendeu, eu aprendi e mudei. Seja compreensiva. Isto é uma reconciliação. Significamos muito um para o outro, para que estragar tudo agora? Devemos nos dar uma oportunidade, Hazel. Comecemos por jantar fora esta noite. Tenho tido saudades suas, acredite, Hazel.

Calou-se porque o frio rosto dela estava pálido e atormentado, ela tinha os lábios cerrados e seus olhos trespassavam-no como facas.

— Teve saudades minhas? — inquiriu raivosamente. — Estou vendo como sofreu e definhou! Tudo o que posso lhe dizer é que foi sempre um filho da puta insensível e que agora não só é filho da puta, mas também um estúpido insensível. Jantar, disse você? E o menu seria:

saborear meus miolos e trincar-me o coração! Vá para o inferno, Jay Doyle. Mas vá só. Não quero que me vejam com você onde quer que seja!

Passou por ele tão rapidamente que ele não teve tempo de se mover. Acabrunhado com seu completo fracasso, voltou-se e chamou-a:

— Hazel! Estou no Georges V, para o caso de... — a voz arrastou-se atrás da silhueta que se afastava — você mudar de ideia.

Deixou-se ficar ali, sentindo-se como alguém crivado de balas por um pelotão de fuzilamento, e por fim caiu na cadeira. Olhou inexpressivamente para a mesa, até que o garçom de avental chegou com um pano úmido e se pôs a limpá-la, ao mesmo tempo em que perguntava:

— Bebe alguma coisa, monsieur?

— Arsênico com gelo — começou a dizer, mas a voz saiu-lhe rouca. Sabia que seria difícil convencê-la, mas nunca julgara que fosse impossível. Esperava que estivesse zangada, mas não que fosse vingativa. Contava com uma cena, mas nunca como aquela. Sua esperança transformara-se numa sombria nuvem de desespero. No entanto, ambos estavam ali, em Paris, e trabalhavam para a ana. Tinha de haver um modo de obrigá-la a voltar ao que fora antes, a ser a sua Trilby. Tinha de descobrir um estratagema, mas não conseguia pensar, porque o sofrimento lhe debilitava o espírito e o estômago. A fome havia finalmente vencido o moderador de apetite, e agora atacava-o de tal maneira que ele não podia concentrar-se em mais nada e muito menos em Hazel Smith ou em si próprio. Era urgente acalmá-la, era urgente sobreviver, antes de se consagrar à ideia de uma triunfal reviravolta.

— O que há para comer? — perguntou ao garçom.

— A esta hora, monsieur, apenas sanduíches de presunto, rosbife, frango, salsicha, queijo...

— Venham os sanduíches — disse Doyle.

— Um sanduíche? Oui, monsieur. Qual deles?

— Todos, seu idota! — explodiu Doyle, raivosamente. — Um de cada. Et un verre de bière... non, une bouteille de bière1(1"E um copo de cerveja... não, uma garrafa de cerveja.” Em francês no original. - N. do E.). E rápido!

— Tout de suite, monsieur!2(2 "Imediatamente, senhor.” Em francês no original. - N. do E.)

Tem razão, com a breca, tout de suite, pensou Doyle, olhando severamente para um jovem casal francês que se abraçava e se beijava ao passar defronte do café. Seria bom que pensasse logo em qualquer coisa, tout de suite, ou acabaria por enlouquecer.

 

Com o desinteresse de um fugitivo que tivesse escapado com êxito aos muros da prisão, Emmett A. Earnshaw deixou o vasto vestíbulo do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e dirigiu-se rapidamente, sem olhar para os lados, ao longo do pátio, para o automóvel da embaixada. O motorista estava em seu posto, e Earnshaw sorriu-lhe distraidamente, parou para ver os dois agentes do serviço secreto entrarem no sedã estacionado à retaguarda e, depois, entrou no carro.

Uma vez a salvo no assento de trás, Earnshaw desabotoou o paletó, desapertou o cinto e lançou um olhar ao formidável Quai d’Orsay. Os outros — Carol, o guia Callahan e o chefe do protocolo do presidente francês, Pierre Urbain, uma peça de museu terrivelmente intelectual — tinham deixado o vestíbulo e estavam agora reunidos no pátio. Earnshaw viu Urbain apontar para o telhado de estilo italiano, para as varandas, para as colunas do Quai d’Orsay, e sentiu-se aliviado por estar fora de seu alcance.

Estava farto das minuciosas explicações de Urbain sobre o confuso interior do ministério, uma mistura de Luís XIV e Renascença, dos monólogos sem fim do chefe do protocolo francês em torno de cada precioso consolo, dos relógios de parede, dos candelabros, na maior parte emprestados pelo Louvre. Tudo aquilo enfastiara Earnshaw porque ele já tinha estado ali antes, havia ali dormido com Isabel, a querida Isabel (o Quarto do Rei, o Quarto da Rainha, o Salão Beauvais no seu real apartamento privado), em dias melhores, quando era presidente e seu hospedeiro, o presidente da França, e não um modesto acadêmico recentemente transformado em recepcionista governamental.

Earnshaw, porém, sabia que o que mais o fizera sofrer nas últimas duas horas não fora o aborrecido resumo histórico, mas uma espécie de insulto — bem difícil de suportar —, ou, antes, a degradação e a humilhação de ter sido convidado para um almoço oficial de segunda classe e fora de hora.

Irritado com isso e com a aguda consciência de sua infeliz queda na consideração pública, Earnshaw lamentava agora ter aceito o convite. É claro que o fizera pela sobrinha, por causa de sua compreensível excitação perante a possibilidade de admirar o fechado interior do Quai d’Orsay. Mas isso não fora o pior. Pierre Urbain começara por apresentar-lhe desculpas logo que entraram no Grande Salão de Jantar. O presidente francês, dissera Urbain, lamentava profundamente não poder estar presente. Tinha de receber o primeiro-ministro da Rússia e o presidente da República Popular da China, recentemente chegados. O presidente esperava receber Earnshaw mais tarde, com todas as formalidades.

Earnshaw sabia que tudo isso era lógico, pois o dever do presidente era atender os chefes mundiais em atividade, não os aposentados. Por outro lado, o repentino aparecimento de Earnshaw em Paris fora inesperado. Contudo, desde que Earnshaw se sentara a uma das duas mesas magnificamente decoradas, deixou de haver explicações capazes de aliviar seu sofrimento. A categoria dos outros convidados punha em relevo o tratamento B que lhe haviam destinado e não o tratamento A a que se tinha acostumado. Entre as duas dúzias de comensais presentes, não havia um único chefe de Estado, atual ou antigo. Via-se um destronado monarca Bourbon, um general inglês reformado, um ministro do Pasquistão, um embaixador de um pequeno país africano, um secretário da UNESCO, um prêmio Nobel italiano, um armador grego. E, entre eles, o ex-presidente dos Estados Unidos da América, Emmett A. Earnshaw.

Não se lembrava do cardápio, exceto que era ruim e demasiado condimentado, pelo menos para seu paladar regional, e o forte cheiro de flores e perfume tinha-lhe causado náuseas. Não se lembrava das conversas, exceto que não revelavam o mínimo interesse, desenvolvendo-se à margem da política graças aos esforços do sr. Urbain, mais à vontade nos domínios da arte, dos livros e da música. Quando a provação terminou, Earnshaw escapuliu do Ministério dos Negócios Estrangeiros com uma rolha de garrafa de champanha.

Espreitando uma vez mais através da porta traseira do automóvel, agora aberta, Earnshaw viu Carol aproximar-se, de rosto sardento e mãos irrequietas, conversando com Urbain e Callahan. Por instantes, a alegria da moça ofuscou o sombrio desagrado de Earnshaw e fê-lo sentir-se envergonhado de sua irritação. Vê-la assim era uma compensação suficiente. Além disso, para ser imparcial em relação ao presidente francês, tanto ele como Simon Madlock tinham tratado muitas vezes os convidados estrangeiros já aposentados da mesma maneira, durante sua permanência em Washington, principalmente quando havia chefes estrangeiros mais úteis em Blair House. Sabia que não podia esperar coisa melhor.

Os outros chegaram junto à porta do carro. Embaraçada, tentando reprimir o riso, Carol deixou que o chefe do protocolo francês lhe beijasse a mão. Foi efusiva em seus agradecimentos, e Earnshaw acrescentou mais alguns. Finalmente, Carol e Callahan instalaram-se ao lado dele, e o automóvel pôs-se em movimento.

Um passeio de hora e meia estava previsto para o resto da tarde. Earnshaw tentou adiá-lo para o dia seguinte, alegando que o esperavam no hotel, mas, antes que pudesse falar, Callahan já explicava a Carol que os Invalides ficavam ali perto e que uma visita ao túmulo de mármore vermelho, que continha o corpo de Napoleão Bonaparte, um túmulo metido no fundo de um poço, seria memorável.

— Oh! Adorarei vê-los! — exclamou Carol, ao mesmo tempo em que se voltava para Earnshaw. — Não acha fascinante, tio Emmett?

Com um sorriso cansado, Earnshaw concordou.

Deixaram para trás o Quai d’Orsay e o Sena, atravessaram a Rue de Constantin, passaram por entre as verdes árvores da ampla Esplanade des Invalides, deram a volta ao complexo de edifícios dos Invalides do século XVII, dominado pelo zimbório dourado em forma de torre.

Quando estacionaram na Avenue de Tourville, Earnshaw sentiu que a sobrinha lhe apertava o braço, murmurando:

— Aqui estamos, tio Emmett.

— Vá você, hã... vá com o sr. Callahan, minha querida — disse, deixando-se ficar sentado. — Já conheço os Invalides. Prefiro ficar com meu charuto. — Apercebendo-se da inquietação dela, acrescentou:

— Não se preocupe comigo. Divirta-se.

— Está bem, se não se importa — concordou Carol, desiludida, mas logo se animou:

— Já sei. Tem ciúmes por saber que vou admirar outro grande homem.

Earnshaw sorriu:

— Não tenho ciúmes de ninguém na posição dele. Dê um bonjour a Napoleão da parte do seu tio Emmett.

Assim que partiram e o motorista teve licença para sair e desentorpecer as pernas, Earnshaw olhou para trás. Sentiu-se aliviado ao ver que os enfadonhos agentes do serviço secreto se mantinham à distância. Descontraidamente, recostou-se no assento e gozou aquele instante de intimidade. Reacendendo o charuto, recordou o que dissera a Carol:

que não tinha ciúmes de ninguém na posição de Napoleão. Estava certo disso, porque muitas vezes se sentira como num túmulo. A diferença era que podia fazer qualquer coisa quanto a um funeral prematuro, principalmente um funeral sem honras, e logo seu espírito recordou o dr. Dietrich von Goerlitz e avaliou o que tinha feito, até então, nesse primeiro dia em Paris.

Com exceção de sua sorte em esbarrar com Doyle, tinha sido um dia frustrante e sem proveito. Logo que se instalou no Hotel Lancaster, nessa manhã, sua primeira preocupação foi contatar o dr. Dietrich von Goerlitz. Tomado de nervosismo, mas confiante, apesar de tudo, em que seu nome traria a voz do grosseiro e velho industrial até o extremo do fio, telefonou para os aposentos de Goerlitz no Hotel Ritz. Mas enganara-se.

Algucm que se identificara como Herr Schlager, diretor-geral das indústrias Goerlitz — falando uma incongruente mistura de alemão e inglês coloquial, embora correto —, atendera à chamada. Earnshaw disse seu nome, soletrou-o até, e enervou-o o fato de Schlager não parecer reconhecê-lo. Nesse instante, Earnshaw desejou ardentemente que Simon Madlock fosse vivo e que estivesse a seu lado, para dominar despreocupada e eficientemente o diretor-geral das indústrias Goerlitz, que era estúpido ou mal-educado. Infelizmente, não havia nenhum Simon Madlock, apenas ele. Irritado, Earnshaw explicou que era um velho amigo do dr. von Goerlitz e que precisava falar imediatamente com o industrial.

Schlager fora saber do paradeiro do patrão, e Earnshaw esperara febrilmente ao telefone, silencioso. Pouco depois, Schlager regressara para explicar de um fôlego que o dr. von Goerlitz estava numa reunião e que passaria as próximas horas ocupado, talvez todo o dia. Se o sr. Earnshaw quisesse, sugerira Schlager, ele poderia resolver o assunto. Earnshaw conteve-se para não replicar que não estava habituado a tratar com subordinados. Limitou-se a responder que seu assunto era estritamente particular, que apenas lhe interessava falar com o dr. von Goerlitz e que gostaria de lhe deixar recado.

— Diga ao dr. von Goerlitz que Emmett A. Earnshaw telefonou. Que tenho um assunto urgente a discutir com ele. Que estou no Hotel Lancaster.. . entendeu o nome? Lancaster. Que gostaria que me deixasse uma palavra no hotel, dizendo quando poderei vê-lo. A hora do encontro fica a seu critério. Compreendeu tudo?

Aparentemente, tudo tinha sido compreendido, e Herr Schlager escrevera o recado, pois o repetira em voz alta, prometendo transmiti-lo ao dr. von Goerlitz no início da tarde.

Ao regressar ao hotel, vindo do Palais Rose, a fim de se vestir para ir ao almoço no Quai d’Orsay, Earnshaw esperava encontrar uma mensagem de Goerlitz. Visto pensar — como confessara a Sir Austin — poder vencer a resistência de Goerlitz a retirar de suas memórias os trechos ofensivos, Earnshaw acabara por acreditar que o alemão não se esquivaria a um encontro pessoal. Mas quando chegou ao hotel no princípio da tarde, não havia qualquer recado de Goerlitz em seu escaninho, por trás da mesa do recepcionista, nem papel algum pendurado na porta de seus aposentos.

No entanto, aquele silêncio não significava necessariamente que Goerlitz quisesse evitá-lo:

podia dever-se ao fato de continuar em reunião. Contudo, a falta de resposta provocara em Earnshaw minutos de ansiedade. Já vestido para o almoço, decidira que a melhor estratégia consistiria em pedir uma entrevista de forma direta. Um recado telefônico transmitido por Schlager era sem dúvida menos persuasivo do que uma mensagem escrita pessoalmente. E assim, instalando-se na papelaria do hotel, dirigiu-se a:

“Meu caro Dietrich”. Evocou a antiga amizade de ambos, os saudosos jantares nas capitais da Europa, quando tinham negócios a tratar, as tardes sociais na Villa Morgen, nos subúrbios de Frankfurt. Recordou até o brilhante relatório que Simon Madlock lhe apresentara sobre o regresso de Goerlitz e sua excelente saúde havia quatro ou cinco anos. Em seguida, Earnshaw escreveu que esperava que a saúde do amigo continuasse excelente e que seus filhos prosperassem na vida. Quanto a si, acrescentou Earnshaw, a solidão dominava-o desde a morte da esposa e de seu dedicado conselheiro e secretário. A única consolação que lhe restava era sua carinhosa sobrinha Carol, que o acompanhava nessa sua digressão pelo continente europeu, e seu contínuo interesse em manter tanto a América como a Europa, e sobretudo a Alemanha Ocidental de Goerlitz, democráticas, fortes e livres do domínio estrangeiro. Ilavia dias, no decurso de sua viagem a Londres, prosseguia Earnshaw, soubera que o dr. von Goerlitz se encontrava em Paris. Imediatamente decidira visitar o amigo, não só para reatar uma velha amizade, mas também para discutir um assunto de mútuo interesse. Esperava que o dr. von Goerlitz pudesse recebê-lo o mais cedo possível. “Como sempre, cordialmente, Emmett Earnshaw.”

Isso se passara havia duas ou três horas. Tinha certeza de que Goerlitz, qualquer que fosse o disparatado agravo que tivesse em relação a Earnshaw, responderia sem perda de tempo. Goerlitz revelava muitos defeitos, mas, apesar de sua rudeza permanente e ocasional brusquidão, continuava a ser um aristocrata e um cavalheiro da velha guarda. Sem dúvida responderia ao apelo de Earnshaw e o receberia. Quando o encontro se tornasse realidade, e Earnshaw estava certo disso, meia batalha estaria ganha. É que Earnshaw persistia em acreditar em sua simpatia inata, um trunfo tão poderoso como um amuleto. Como tivera oportunidade de ler, seu encanto era capaz de fazer ruir as muralhas de Jericó. Também conseguiria dobrar, tinha certeza, a inflexível irritação de Goerlitz. Apenas precisava de uma oportunidade para exercer seu talento natural.

Com surpresa, Earnshaw viu que Carol e Callahan tinham regressado e ocupavam seus lugares no automóvel. Embora ansioso por dar por findo o passeio e voltar ao hotel, onde o aguardaria a resposta de Goerlitz, dominou-se e, apesar da preocupação, tentou corresponder ao entusiasmo da sobrinha pelos Invalides. Toda ela transpirava arrebatamento. O majestoso túmulo de Napoleão, em seu profundo poço, não era maravilhoso, visto do alto da balaustrada circular? O tio Emmett sabia que os franceses haviam levado sete anos para convencer os ingleses a permitir que o corpo do imperador fosse exumado de Santa Helena e trazido para Paris? Sabia que seis caixões, um de metal, outro de acaju, dois de couro, um de ébano e outro de cárvalho continham os restos de Napoleão? Sabia que os franceses tinham procurado por toda parte, durante seis anos, a pedra vermelha para o túmulo de Napoleão, e só vieram a encontrá-la (que ironia!) na Rússia, e que haviam levado mais três anos para talhá-la e transportá-la?

— Oh! Nunca me entusiasmei tanto, tio Emmett! Quando os garotos da escola ouvirem isto... O que vamos visitar a seguir? — Fez uma pausa e acrescentou, inquieta:

— Talvez esteja cansado, tio Emmett...

A última frase de Carol chamou Earnshaw à realidade, fazendo-o sentir-se envergonhado de sua abstração. Carol significava tanto para ele, e ele lhe dava tão pouco de si mesmo! Era sangue de seu sangue, por assim dizer, a filha que nunca tivera e que merecia seu paternal carinho.

— Creio que podemos visitar alguma coisa mais — disse com forçada animação. Callahan estava enumerando as possibilidades:

a Torre Eiffel, o Sacré-Coeur, a Place des Vosges, mas Earnshaw ignorou-o. — Por que não continuamos a rodar até a Margem Esquerda e decidimos depois?

Tinham passado a Torre Eiffel e seguiam ao longo do Quai Branly, junto ao rio, quando Earnshaw viu o conjunto maciço do Palais de Chaillot, na Place du Trocadéro, refletido na água. Alguma coisa despertou em sua memória, e, com excitação maior do que aquela que evidenciara durante todo o passeio, ele debruçou-se para a frente e disse ao motorista:

— Creio que é o... hã... Pont dTéna... julgo que é assim que se pronuncia... aquela ponte ali. Atravesse-a. Quando chegar à Avenue Kléber, dir-lhe-ei onde deve parar. — Voltou a recostar-se e piscou o olho para Carol. — Há uma coisa que quero que veja. Estou certo de que vai gostar.

O automóvel contornou a Place du Trocadéro e desembocou finalmente na Avenue Kléber.

Earnshaw, espreitando através da janela do carro, disse ao motorista:

— Agora, siga devagar... devagar... hum, sim, precisamente um quarteirão abaixo... isso mesmo, muito bem! — Endireitou-se. — Estacione em qualquer lugar.

Foi um problema encontrar lugar para estacionar, e quando o motorista, exasperado, acabou por parar na zona proibida, um agente da polícia materializou-se imediatamente. Callahan saiu do carro com suas credenciais da embaixada e despejou uma torrente de frases entrecortadas com o nome de Earnshaw e cerimoniosos gestos, e foi o agente da polícia que acabou por apresentar desculpas, deferente, abrindo a porta de trás do automóvel e fazendo sinal ao sedã dos agentes secretos.

Já na calçada, Earnshaw insistiu em que Callahan ficasse no carro c pediu-lhe que dissesse aos homens do serviço secreto que se mantivessem à distância:

— Há uma coisa especial que quero mostrar à minha sobrinha. É estritamente entre mim e Carol.

— Não posso imaginar o que seja.

— Não é nada de importante — disse Earnshaw.

— Seja o que for, adoro os mistérios. Posso levar a máquina fotográfica?

— Bem, talvez seja divertido.

Ela pegou a Kodak que Callahan lhe estendia, enganchou seu braço no de Earnshaw, dirigiram-se para a Rue de Longchamp e percorreram-na.

Earnshaw caminhava com determinação, e Carol tinha de saltar de dois em dois passos para acompanhá-lo. Finalmente, ele diminuiu o passo, e Carol perguntou, ofegante:

— Agora, que estamos praticamente sós, pode me dizer aonde vamos?

— Claro que posso. Trata-se de uma ninharia que talvez a divirta. Viu onde guardam Napoleão, não viu? Ora, pensei que gostasse de ver onde guardam seu velho tio. Vamos à Avenue Président Earnshaw!

Carol parou subitamente, de olhos esbugalhados:

— Avenue Président Earnshaw! Oh, não! Oh, é fantástico!

— Oh, sim! — riu ele com evidente prazer. — Os franceses deram meu nome à rua há uns cinco ou seis anos. Isabel e eu a visitamos na nossa primeira viagem, pouco depois. Não passa de uma rua qualquer, mas confesso que me impressionou.

— Também a mim! — exclamou Carol, preparando a máquina. — Vou carregá-la. Quero fotografá-lo bem debaixo da placa, para poder pendurar a fotografia na parede de meu quarto, e também farei uma cópia para a biblioteca. Ainda estamos longe?

Earnshaw ergueu os olhos para a placa da rua, na esquina.

— É aquela. Vamos.

Ambos se apressaram e, quando chegaram à esquina, Earnshaw apontou para a estreita rua de pedra que desembocava na Rue de Longchamp:

— Aqui está. E a placa...

Seguindo pelo passeio, contornou a esquina do prédio de granito e apontou para cima, mas a voz morreu-lhe na garganta.

Na alta placa quadrada, de metal, com letras brancas em fundo azul, lia-se:

“Rue Cathay”.

O rosto de Earnshaw, pendendo para trás, continuava a apontar para a placa da rua, mas ele sentiu o rubor invadir-lhe as faces:

— Ora essa!...

Carol estava desolada e furiosa:

— Deve ter-se enganado de rua, tio Emmett.

Lentamente, Earnshaw baixou os olhos e cravou-os, pensativo, no vácuo. Depois, meneou a cabeça:

— A rua é esta, Carol. Reconheço o pequeno café e aquela farmácia antiga. Não há dúvida, é... era a Avenue Président Earnshaw. — Puxou o lenço, assoou-se e voltou a metê-lo no bolso. Fez uma careta consternada a Carol e encolheu os ombros. — Como disse alguém... hoje aqui, amanhã acolá.

Desesperadamente, Carol tentava disfarçar o embaraço de ambos:

— Conhece os franceses. Disseram-me que eram como os camaleões, sempre mudando de opinião, de atitudes, uns cabeças-de-vento que... que trocam os nomes das ruas como se fossem manchetes de jornais. Ainda há pouco perguntei ao porteiro por uma loja de antiguidades na Rue de Trieste, e ele pôs-se a pensar, vendo se a localizava, depois perguntou-me de que ano era meu guia turístico, e, quando eu lhe disse, respondeu-me que estava ultrapassado, porque, na edição mais recente, a Rue de Trieste passara a ser Rue Mohammed. Achei o caso divertido, mas agora vejo como são estúpidos. — Olhou para a placa e, de repente, mostrou-lhe a língua. — Isto é para você, Rue Cathay!

Earnshaw viu-se obrigado a rir.

— Não se preocupe, Carol. Afinal, não tem importância.

A ira dela não se acalmou:

— Para mim tem, e muita. É uma coisa que não tem sentido. Para que mudar o nome de Avenue Président Earnshaw para esse disparate de Rue Cathay?

— Lógica francesa — respondeu ele, calmamente. — Cathay era o antigo nome da China. De Gaulle reconheceu a China vermelha, e a França tem sido sua aliada desde então. Hoje, a China está no ativo e Earnshaw, no passivo. Hoje, a China é importante e Earnshaw não é nada.

— Isso não é verdade!

— Pouco importa, querida. É a lógica deles. — Tomou-lhe o braço. — Vamos. — Olhou uma vez mais para a placa da rua e suspirou. — Lamento você não ter podido tirar a fotografia.

Caminhando sem pressa e silenciosos, voltaram para o automóvel. Dentro dele, Earnshaw já não tinha vontade de passear. No entanto, sentia relutância em aceder a seus desejos, pois não queria estragar o resto do dia da sobrinha. Mas ouviu Carol queixar-se, dirigindo-se ao motorista e a Callahan:

— Oh, meus pobres pés doloridos! Acho que por hoje chega. — E voltando-se para ele:

— E se regressássemos ao hotel, tio Emmett?

— Como queira, querida.

No meio da ignomínia, havia pelo menos uma coisa pura, pensou Earnshaw. Havia Carol, a filha de seu irmão e agora sua, para o resto da vida, uma jovem fiel e dedicada. Já era alguma coisa. Talvez fosse tudo. De novo, com maior ansiedade ainda, queria voltar para o hotel e saber o que o futuro lhes reservava, a ele e a sua filha.

Logo que o automóvel parou em frente do Lancaster, Earnshaw saiu e, com um gesto de despedida e agradecimento aos ocupantes, correu para o hotel. Na recepção, um dos gerentes esperava-o com a chave e a correspondência. Havia convites oficiais e avisos, entregues em mãos, mas nenhuma mensagem ou telefonemas do Hotel Ritz, onde o dr. Dietrich von Goerlitz estava hospedado.

Desiludido, dirigiu-se para o elevador, e Carol correu ao seu encontro.

Quando chegaram ao sexto andar, e depois de terem subido os poucos degraus que levavam aos apartamentos do sétimo, Carol perguntou:

— Há algum problema, tio Emmett?

— Problema? Hã... não, nada. Esperava notícia de uma pessoa, é tudo.

À entrada do apartamento, depois de se livrar da máquina fotográfica e da bolsa, Carol propôs-lhe um drinque. Com gesto cansado, Earnshaw aceitou-o.

Seguiu-a pelos atapetados degraus até a sala principal. Enquanto ela se dirigia para a mesa-bar de mogno, onde se encontravam as bebidas, os copos e o gelo, Earnshaw entrou no luxuoso retângulo de móveis estofados. Parou junto das amplas janelas e olhou por cima dos telhados de Paris, batidos pelos raios alaranjados do sol poente, contemplando os distantes e esbatidos zimbórios brancos, de estilo bizantino, da Igreja do Sacré-Coeur, que se erguiam de Montmartre como gigantescos cogumelos mágicos, coroando uma imaterial feiticeira. A beleza do panorama tornou mais viva a sensação de frustrada expectativa.

Voltou-se tristemente para pegar o bourbon que Carol lhe estendia, quando o telefone tocou.

— Vou atender — disse ela, correndo para o aparelho.

Sorveu a bebida e esperou que Carol atendesse a chamada.

Ela, apoiando o cotovelo na lareira, informou:

— Tio Emmett, é da portaria. Há alguém no vestíbulo que quer vê-lo. Creio que o nome é Goerlitz.

Ereto como alguém erguido por uma corda, subitamente arrancado de um profundo precipício por mão salvadora, correu para ela, derramando parte da bebida, e gritou:

— Mande-o subir... que suba imediatamente!

Repetida a ordem, Carol pôs o fone no gancho e voltou-se, perplexa:

— Goerlitz... Parece-me familiar. É... Não é aquele alemão das munições, que esteve preso?

— Um dos homens mais ricos e poderosos do mundo — acrescentou Earnshaw. Relanceou o olhar pela sala, depois contemplou-se no espelho. — Acha que está tudo em ordem?

— Não percebo o que quer dizer. Sim, está.

Earnshaw acabou a bebida.

-— É um homem importante, Carol, muito importante.

— Quer dizer... muito importante para você?

— Como? Sim. Temos licor suficiente? Não; licor, não... Bebidas não-alcoólicas? Cigarros? Acenda as luzes. Seria melhor você mudar de roupa... não, está bem assim. Pode ficar até ele entrar. Ele é... hã... bastante velho, deve andar pelos setenta anos, uma espécie de prussiano à antiga, talvez um tanto irritadiço, mas não muito. Conhecemo-nos há bastante tempo. Era a ele que eu esperava, ou um telefonema seu para marcar uma entrevista. Foi a ele que escrevi a mensagem. Mas ele preferiu atravessar toda a cidade para me ver. É bom sinal, muito bom sinal.

Ainda perplexa, Carol perguntou:

— É uma conversa particular? Fico ou saio?

— Fica ou sai? Por tudo, peço-lhe que fique durante algum tempo. Creio que ele gostará de conhecê-la. Depois, hã... quando vir que começamos a falar de coisas sérias, hã... dará uma desculpa delicada e irá para seu quarto.

— Aproveitarei para ir fazer compras.

— Como queira — disse Earnshaw, abruptamente. — As lâmpadas... acenda as luzes.

Pousando o copo numa extremidade da mesa, Earnshaw foi para a entrada, esperar o visitante. Tinha os nervos tensos e sentia-se disposto a enfrentar o ancião. Esperava que sua carta comovesse o dr. Dietrich von Goerlitz, mas não que o trouxesse até ele. Era um bom augúrio, sem dúvida, e não havia motivo para se enervar antes do tempo.

A campainha tocou.

Earnshaw encaminhou-se para a porta da frente, sem prestar atenção aos protestos de suas trôpegas pernas. Segurando a maçaneta, com uma saudação na ponta da língua, endireitou-se e abriu a porta.

O que os olhos de Earnshaw viram foi tão inesperado que o queixo lhe descaiu, ao mesmo tempo em que o resto do corpo exprimia uma desolada irritação.

Tinha esperado deparar com o brusco, curvado e severo teuto, e o que via à sua frente era um elegante rapaz de seus vinte anos, um moço de cabelos louros, brilhantes olhos azuis, um jovem de rosto crestado de esquiador suíço, um mancebo empertigado em seu casaco azul-escuro com botões de metal e as insígnias de Heidelberg desenhadas num dos bolsos, de colete e calça de flanela cinzenta.

— Deve... deve ter-se enganado de quarto — foi tudo o que Earnshaw conseguiu articular.

Sem se perturbar, o rapaz inquiriu:

— Não é o presidente Earnshaw?

— Sou, mas...

— Telefonei-lhe do vestíbulo. Sou Willi von Goerlitz. O dr. Dietrich von Goerlitz é meu pai. Mandou-me transmitir-lhe um recado.

Recompondo-se da surpresa, Earnshaw compreendeu. Era o herdeiro que chegava com notícias. O velho Goerlitz não confiara a mais ninguém, a não ser ao próprio filho, as palavras de encorajamento.

— Compreendo, compreendo. Seu pai transformou-o em mensageiro. Ótimo. Desculpe minha reação inicial. Quando me informaram da recepção que Goerlitz me procurava, julguei que fosse seu pai. Nunca supus... — De repente, Earnshaw lembrou-se das boas maneiras. — Meu Deus, não fique aí de pé, no corredor. Entre, entre!

O jovem curvou-se cerimoniosamente:

— Obrigado, senhor. — Transpôs a porta. — Desculpe incomodá-lo. Só demorarei um minuto.

— Que disparate! Entre, sente-se e beba alguma coisa.

— Obrigado, mas...

Earnshaw conduziu o filho de Goerlitz até o salão.

— Além disso, gostaria que conhecesse minha sobrinha.

Carol estava de pé, muito senhoril, em frente da lareira, mas, ao dar com os olhos no visitante, não pôde disfarçar sua surpresa, ao mesmo tempo em que avançava, confusa e desconfiada.

— É o filho do dr. Goerlitz — disse Earnshaw. — Willi, minha sobrinha Carol Earnshaw.

Ela estendeu a mão desajeitadamente, à maneira européia, para apertar a de Willi, mas este pegou-lhe a mão com delicadeza e curvou-se numa vênia.

— Muito prazer em conhecê-la, srta. Earnshaw — cumprimentou, fitando-a de frente.

Ela evitou-lhe o olhar:

— Também tenho prazer em conhecê-lo.

— Bem, estão apresentados — comentou jovialmente Earnshaw. E dirigindo-se ao convidado:

— Que idade tem, meu rapaz? Carol já fez dezenove anos.

— Acabo de completar vinte e seis, senhor.

Earnshaw ficou pensativo.

— Sim, você cresceu. Conheci-o com cerca de... não devia ter mais do que quinze anos. Está um homem... Sente-se. Aqui, está bem?

Earnshaw enterrou-se no sofá macio, ricamente estofado, e Willi, ao tentar sentar-se na beira, caiu para trás com um baque, de pernas para o ar. Enquanto se esforçava por estabelecer o equilíbrio e a dignidade, Carol tapou a boca para abafar uma gargalhada. A pose de Willi desfez-se, e ele sorriu:

— Foi como se me sentasse num Edelweiss — disse a Carol.

— Ou sobre dentes-de-leão — replicou ela, rindo. Sentindo-se mais à vontade, acrescentou:

— Ainda não me refiz. Esperava alguém muito mais idoso, seu pai, e aparece-me você. É como se seu pai tivesse sido injetado com células de rejuvenescimento por um desses médicos milagrosos da Suíça.

— Mas ele tomou essas injeções — disse Willi, gravemente. Os olhos de ambos encontraram-se, e eles desataram a rir.

Earnshaw tossiu:

— Bem, jovem, segundo me recordo, frequentou uma espécie de colégio particular na Suíça.

— Exato, senhor — disse Willi von Goerlitz. — Depois, estudei em Paris e na Universidade de Heidelberg. — Olhou para Carol e prosseguiu:

— Mas não tenho cicatrizes, como vê. Era tudo gente pacífica. Formei-me em engenharia.

— O que faz agora, Willi? — perguntou Earnshaw.

— Estou na indústria, como meu pai chama às suas empresas. Estou subordinado ao sr. Schlager, o diretor-geral, que me prepara para a administração.

— Deve ser fascinante — observou Carol.

Willi von Goerlitz aquiesceu com entusiasmo:

— Sim, é como aprender a governar um país. É extremamente tentador. Meu pai, às vezes, considera-me demasiado inexperiente e romântico para isso, um cabeça-de-vento, e talvez tenha razão.

— Hã... seu pai —:

interveio Earnshaw. — Como está ele?

— De saúde? Está melhor, senhor. Não passou muito bem os últimos anos, mas creio que agora está mais forte, embora sem a vitalidade de outros tempos. Raramente viaja. Contudo, achou que devia vir a Paris, se bem que seus médicos considerassem a viagem demasiado fatigante. Vai ficar aqui uma semana.

— Hum, compreendo — murmurou Earnshaw. Levava o copo à boca quando reparou que estava sendo pouco correto com sua visita. — Hã... Willi, desculpe, esqueci-me do drinque que lhe prometi. O que deseja que Carol lhe prepare?

— Obrigado, mas agora não quero nada — escusou-se, irrequieto no sofá. Havia uma certa gravidade em suas feições saxônicas. — Tenho de lhe transmitir o recado de meu pai e ir-me embora.

— Sem dúvida. O dever acima do prazer — sentenciou Earnshaw, erguendo-se nervosamente e dirigindo-se para a poltrona. Olhou para o jovem e inquiriu:

— Tem uma mensagem de seu pai para mim?

— Sim, tenho. Não é por escrito, é oral.

— Compreendo, compreendo. Muito bem. Continue, Willi.

— Meu pai pediu-me que lhe transmitisse o seguinte:

que recebeu sua carta — começou, em tom monótono. — Que ficou surpreso ao ter notícias após tanto tempo. Que não ficará em Paris mais do que seis ou sete dias. Que está aqui para conferenciar sobre vários assuntos comerciais da maior importância. Que, visto ter tanto o que fazer e o tempo ser limitado, por causa de sua saúde, não pode visitar ninguém nem encontrar-se com quem quer que seja, a não ser com os interessados em seus negócios. Não tem um minuto livre. — Willi respirou fundo e concluiu apressadamente:

— Lamenta não poder encontrar-se com o senhor. Apresenta-lhe suas desculpas.

Tendo terminado, Willi cravou os olhos no tapete. Embora Earnshaw soubesse que nada mais havia na mensagem, não conseguiu resignar-se.

— Hã.. . Willi, é tudo? Tem certeza?

Willi pigarreou.

— Não esqueci nada, senhor. Transmiti-lhe toda a mensagem de meu pai. — Ergueu-se com desenvoltura, evitando os olhos de Carol. — É melhor retirar-me.

Carrancudo, Earnshaw levantou-se. Depois, enquanto Willi se inclinava cortesmente diante de Carol, disse de repente:

— Um minuto, Willi.

O jovem ficou na expectativa. Earnshaw prosseguiu:

— Não creio que seu pai tenha compreendido bem como é vital para ele encontrar-se comigo. Será melhor eu responder à sua mensagem com outra. Será capaz de repetir a seu pai, sem se enganar, o que vou lhe dizer? Ou prefere que escreva?

— Posso repetir, senhor.

— Ótimo. Hã... deixe-me pensar um pouco. Ponha-se à vontade... hã... converse com Carol, sim, você e Carol podem conversar. Conte-lhe suas impressões de Paris. Não me demoro.

Earnshaw atravessou o vestíbulo e entrou no quarto. Acendeu a luz e, notando que a porta do terraço, onde tomava o café da manhã, ainda estava aberta, dirigiu-se pensativamente para lá. A atmosfera estava deliciosamente amena e o zimbório principal do Saçré-Coeur era visível ao longe, mas isso não serenou o tumulto interior de Earnshaw. O dr. Dietrich von Goerlitz mandara dizer que estava muito ocupado para poder encontrar-se com ele. Nenhum homem podia estar assim tão ocupado. Uma vez que Goerlitz não suspeitava que Earnshaw tinha conhecimento de suas memórias, a recusa devia ter outras razões. Goerlitz recordava-se certamente com azedume de que Earnshaw, enquanto presidente, não o defendera quando o acusaram de criminoso de guerra. O alemão devia acalentar ainda esse antigo agravo, e não o perdoaria. Earnshaw compreendeu que só havia uma saída:

ser mais explícito, sacudir Goerlitz, revelando-lhe seu conhecimento das memórias. Talvez não desse resultado, mas era a única esperança.

Depois de refletir maduramente no assunto, Earnshaw voltou à sala e, ao entrar, notou que a sobrinha e Willi, sentados confortavelmente no sofá, estavam demasiadamente absorvidos em sua troca de impressões para se darem conta dele. Carol acabava de declarar que gostaria de ter estado em Paris pelo menos uma vez antes, como Willi, pois assim saberia como usar o tempo e tirar dele o máximo proveito. E Willi respondia que estudara em Paris dois anos, depois de ter frequentado um colégio na Suíça. Acabara por aconselhar Carol a visitar Les Halles ao romper do dia e a provar o porco grelhado com alho em Le Cochon Pieddi, um bistrot maravilhoso, com serragem no chão, na Rue du Jour. Carol preparava-se para responder animadamente quando Earnshaw, limpando a garganta, os interrompeu:

— Hã.. . Willi.

O rapaz pôs-se de pé, aprumou-se, como se estivesse na presença de um instrutor militar, e respondeu:

— Diga, senhor.

— Transmita esta mensagem a seu pai — disse Earnshaw. — Informe-o de que gostei de saber notícias dele e que compreendo que esteja demasiado ocupado para aceder ao que considera uma simples visita de cortesia. Mas diga-lhe que essa visita envolve mais de que uma troca de cumprimentos. Diga-lhe que se relaciona com um assunto... hã... bem, de importância vital para nossos mútuos interesses. — Calou-se, respirou fundo, depois entrou diretamente no âmago da questão:

— Diga-lhe que sei que está escrevendo suas... memórias, ou uma autobiografia. — Fez nova pausa. — Ele as está escrevendo, não está, Willi?

— É verdade, senhor.

— Pois muito bem. Diga-lhe que eu soube por uma fonte fidedigna que consagrou um capítulo inteiro à minha administração como presidente e, até, às minhas atividades como presidente. — Observou o filho de Goerlitz e inquiriu:

— Aposto que leu o original, não leu, Willi?

Willi meneou a cabeça vigorosamente:

— Não, senhor. Não li. Contudo, sei que esse livro existe.

— Bem, desculpe. Isso não lhe diz respeito. Seja como for, informe seu pai de que conheço, até certo ponto, o conteúdo do capítulo que me consagrou. Desejo vê-lo a fim de lhe dar informações mais amplas para esse capítulo, informações em primeira mão, que só eu posso fornecer, informações que ele não conseguirá de outra maneira. Posso ajudá-lo a ser... bem, a ser mais exato... e a evitar assim muitas contrariedades.

Carol levantou-se.

— O que o dr. von Goerlitz escreveu a seu respeito, tio Emmett?

Com um aceno de mão, Earnshaw afastou a pergunta da sobrinha:

— Não interessa. — Tinha os olhos fixos em Willi von Goerlitz. — É esta, em suma, minha mensagem. Acha que poderá repeti-la corretamente?

— Sem dúvida.

— Então transmita-a e eu aguardarei a resposta.

— Sim, senhor. Só verei meu pai ao jantar, mas nessa ocasião não me esquecerei. — Hesitou. — Agora, é melhor retirar-me.

Carol aproximou-se.

— Tio Emmett, importa-se que eu saia por uns momentos? Tenho umas compras a fazer urgentemente!

— Como queira — disse Earnshaw, distraído. — Duvido que encontre lojas abertas no domingo.

— O sr. von Goerlitz disse-me que havia um drugstore perto do Arco do Triunfo...

— Le Drug Store — corrigiu Willi, rapidamente. — Está sempre aberto. Vende de tudo. Terei muito prazer em mostrar-lhe onde fica.

— É muito amável — agradeceu Carol. — Mas se o incomoda. ..

— Não é incômodo algum, srta. Earnshaw. Será uma honra.

— Nesse caso, obrigada. — Dirigiu-se a Earnshaw. — Voltarei cedo.

— Não precisa correr — observou Earnshaw, pegando num charuto.

— E eu transmitirei seu recado! — reclamou Willi von Goerlitz com mais animação.

— Muito bem, meu rapaz.

Assim que partiram, Earnshaw tirou o papel do charuto, chegou-lhe um fósforo e pôs-se a percorrer melancolicamente a grande e solitária sala. Tentou recordar a conversa que tivera em Londres com Sir Austin, na noite anterior, e exatamente o que esse abstrato Goerlitz havia confiado ao original de seu livro. Não o conseguiu. Sabia apenas que era alguma coisa de mau, muitíssimo mau, e esperava que o jovem contribuísse de algum modo para pôr termo à sua profunda perturbação.

O telefone estava tocando. Earnshaw dirigiu-se para ele, hesitou um momento, e por fim atendeu. Da recepção, anunciaram-lhe que o sr. Jay Thomas Doyle estava lá embaixo e declarava que tinha um encontro marcado. Só então Earnshaw notou que havia se esquecido do convite feito a seu recente redator fantasma para escrever a coluna diária que devia estrear no dia seguinte.

Earnshaw vacilou. Não estava com disposição para subterfúgios. Não seria melhor adiar o encontro com Doyle para a manhã seguinte? Mas algo lhe ocorreu subitamente. Doyle era um correspondente famoso, com um agudo instinto para as notícias e um sem-número de conhecimentos. Como colaborador de Earnshaw, munido da credencial de imprensa fornecida por ele, Doyle poderia andar pela cidade e servir de pernas, olhos e cérebro a Earnshaw. Poderia vigiar as atividades diárias do dr. Dietrich von Goerlitz na azáfama da cidade e apresentar-lhe relatórios. Assim, se a mensagem confiada a Willi falhasse e ele não obtivesse uma resposta favorável, haveria Doyle para informá-lo dos passos de Goerlitz e lhe dizer onde poderia encontrá-lo “casualmente”. Seria mais um trunfo, e dois trunfos valiam mais do que um, como costumava dizer Simon Madlock.

— Sim, estou à espera do sr. Doyle — respondeu Earnshaw ao telefone. — Mande-o subir.

Na folha de papel amarelo, ainda na máquina de escrever portátil, ela tinha datilografado dois parágrafos e começava o terceiro:

“Paris, 15 de junho ("ana) — A noite caiu sobre Paris, e Paris dorme, enquanto um mundo ansioso e tenso espera o romper do dia, momento em que seus chefes acordarão para se reunir na perigosa rampa que é a Conferência de Cúpula.

Com a manhã, os erros vivamente gravados e as escarpadas barreiras que se erguem entre os chefes internacionais e o mais elevado objetivo da Terra, o objetivo da paz, serão completamente revelados. Às dez horas da manhã, o esforço comum para obter o que o homem nunca conseguiu antes começará finalmente.

Entretanto, nesta noite de aflição, nem tudo em Paris dorme... “

Fazia meia hora que Hazel Smith tinha escrito isso, e, desde então, nada mais datilografara. Em primeiro lugar, havia sido afastada da máquina pela breve visita do jovem Fowler, que viera entregar-lhe um exemplar recém-impresso da edição internacional da manhã seguinte do Herald Tribune de Nova York, e o aviso do editor do turno da noite da ana de que deveria ter o original pronto para entregar ao mensageiro, que iria buscá-lo em uma hora e meia. Em segundo lugar, ficou entretida em seu próprio apartamento.

Depois de ter deixado a máquina de escrever na mesa de fórmica da cozinha e passado à bem-decorada sala de estar, sentira repugnância em voltar ao trabalho. Achara a atmosfera da sala de estar sedutora, com a magnífica cômoda Jacob, os lustres de cristal Baccarat, a bergère Luís XV, o sofá forrado de damasco e, sobretudo, as convidativas vitrinas com peças de Limoges e Meissen, cerâmicas portuguesas, marfins japoneses e caixinhas de rapé inglesas. Era muito mais agradável do que estar numa cozinha, onde o aspecto funcional lhe lembrava o sombrio apartamento de Moscou, com as tábuas do soalho soltas, e os radiadores, os canos de água e os fios elétricos à mostra. Enquanto admirava a sala, bateu com as articulações dos dedos na madeira, agradecendo a sorte de estar ali.

O apartamento de dois andares — os quartos de dormir e de vestir ficavam em cima, aonde se ia por uma escada em caracol — estava situado na Rue du Téhéran, perto do Boulevard Haussmann, numa excelente posição estratégica para Hazel. Pertencia a uma famosa atriz francesa que, quando bem menos famosa e ao tentar abrir caminho no Festival Cinematográfico de Moscou, tinha se tornado amiga de Hazel. Ao partir para Atenas a fim de participar de um filme e ao saber que Hazel iria para Paris, a atriz insistira em que ela gozasse o conforto das sete peças de seu apartamento, poupando o dinheiro do hotel. Visto que levara a empregada para a Grécia, a atriz deixara a Hazel um molho de chaves, uma despensa bem guarnecida e uma dúzia de garrafas do melhor champanha. Agora, o luxo invulgar que a rodeava interferia no seu trabalho.

Após a saída de Fowler, decidida a gozar por mais alguns minutos a sala de estar, Hazel sentara-se num frágil divã e abrira o Herald Tribune da manhã seguinte para ver onde seu artigo vinha impresso e contar as linhas tipográficas. Quando acabou a leitura, reparou que era o único que havia escrito depois de ter deixado aquela pobre Medora Hart, e, então, lembrou-se de que prometera telefonar-lhe acerca daquele filho da puta que era Sir Austin Ormsby.

Hazel sabia que era seu dever acabar o que deixara na máquina de escrever antes de telefonar. Mas, nesse caso, Medora continuaria à espera junto do telefone, e Hazel sabia perfeitamente quanto isso custava.

Telefonou a Medora e disse-lhe que lesse o Herald Tribune do dia seguinte. Mas como Medora não quisesse esperar, Hazel leu-lhe a entrevista ao telefone. Sem mencionar o caso Jameson nem a brutalidade dos Ormsbys, contava a vida excitante de uma moça inglesa no estrangeiro, suas aventuras e triunfos, culminando como estrela do Clube Lautrec. Medora não soube como exprimir sua gratidão.

— Acha que Sir Austin lerá isso? — perguntou.

— Pode apostar a vida como lerá, minha cara. E não apenas ele, mas também a mulher e Sydney. Sabia que Sydney está na cidade?

— Não me interessa, Hazel. Só quero que Sir Austin saiba onde me encontro.

— Fique tranquila que saberá. Agora, o ponto número dois...

O ponto número dois dizia respeito às investigações feitas para descobrir o paradeiro de Sir Austin. Não tinha sido fácil, mas as fontes britânicas de Hazel eram as melhores. Foi com prazer que ela informou a Medora que, visto o primeiro-ministro e seu pessoal estarem instalados na residência do embaixador britânico, seus ministros tinham sido alojados no hotel de Paris mais frequentado pelos ingleses. Era, explicou Hazel, o elegante Hotel Bristol, na Rue du Faubourg St.-Honoré, perto da Place Beuvau. Sir Austin e sua mulher, Fleur, assim como os empregados, ocupavam um duplo apartamento no terceiro andar. Depois, desejando boa sorte a Medora e pedindo-lhe que lhe telefonasse no dia seguinte para lhe contar o que tivesse acontecido, Hazel desligou.

Erguendo-se do divã, resolvida a terminar o artigo antes do prazo estabelecido, Hazel compreendeu que não estava com disposição de voltar para a cozinha, e sabia o motivo disso. O que a impedira de trabalhar — e isso era fora do comum, visto ela ser uma jornalista objetiva e sem complexos — não fora a visita do jovem Fowler, nem o Herald Tribune, nem o conforto da sala de estar emprestada, nem a necessidade de telefonar a Medora Hart. A distração não se devia a nada disso, mas ao fato odioso de Jay Thomas Doyle ter-se incrustado em seu espírito e ela não conseguir expulsá-lo.

A aborrecida situação presente resultava claramente de seu acidental encontro com aquele maldito filho da puta que era Doyle e da recordação daquilo que poderia ter sido e que não era. Qualquer psicólogo amador lhe diria que ela não conseguira escrever normalmente nessa noite porque não desejava acabar o que tinha começado. Se acabasse cedo demais e considerasse o trabalho definitivo, ficaria sem nada para fazer. Continuaria naquele belo apartamento cozinhando para si, comendo sozinha, lavando a louça sozinha, lendo os jornais ou vendo televisão sozinha, dormindo sozinha, em Paris, na alegre Paris, onde a vida enchia as ruas e os bares, e onde ela estaria só, sem a companhia normal de um homem, condenada a um perpétuo onanismo intelectual.

É evidente que não era forçada a passar essa noite sozinha. Com um pretexto qualquer, como sempre, poderia telefonar a um amigo (apesar de todos aqueles anos, enervava-a citar-lhe o nome), e ele possivelmente viria por alguns momentos, um simples momento, mas isso teria sido degradante, principalmente nessa ocasião. Jay Thomas Doyle tinha-a convidado para jantar, e isso seria outro pretexto — mas pior do que o primeiro —, uma maneira de se ajoelhar perante aquele filho da puta, que a lançara naquela horrível situação, de se submeter a ele para fugir à solidão. Seria a perda da auto-estima. Por isso, ali estava, uma amargurada solteirona de trinta e quatro anos, não mais virgem, cheia de amor e sem ninguém a quem o dar.

O regresso de Doyle à sua vida ordenada era chocante. Após vários anos de obsessiva recordação da vida em comum, habituara-se à ideia de que ele representava tanto para ela como seu falecido avô. Contudo, a intervalos regulares, quando longe do amigo, Doyle reaparecia persistentemente em seu espírito e seus sonhos. E aí estava ele de novo, o que era terrível.

Esse sacana tivera sua oportunidade e a tratara ignobilmente.

A desfaçatez desse demônio, no café, ao fingir ter esquecido tudo o que lhe fizera, implorando-lhe que voltassem a viver juntos como se nada tivesse acontecido há doze anos! E, o que era pior, massacrando-a nos últimos anos com cartas e chamadas interurbanas, simplesmente porque queria servir-se dela para seu estúpido livro. E agora de novo, nessa tarde, atormentando-a. Como ousava, aquele desprezível imbecil?

Recordou o encontro no café e o aspecto dele. Era horrível! Parecia um... um Falstaff... uma gorda, disforme, repulsiva e cretina criança, cheia de indulgência para consigo mesma. O que a teria seduzido nele?

Então, passeando nervosamente pela sala de estar, começou a recordar pouco a pouco os bons tempos, o ano e meio, os dois anos em Nova York, em seu apartamento da Park Avenue, os atrativos dele, sua inteligência, as distrações de ambos, o amor. Nos primeiros tempos, tudo fora perfeito, e desde então nunca houvera nada de semelhante com ninguém, o sentimento de pertencer, o sentimento de possessivo orgulho por outro. O que tinha escrito outrora um certo francês? La Bruyère, sim, ela tinha-o sublinhado:

“Só nos apaixonamos realmente uma vez na vida, e essa é a primeira vez”.

Mas talvez, pensava Hazel, estivesse romanceando o passado, por ser já muito distante e porque era tudo o que tinha de realmente seu. Talvez o comportamento dele, antes de Viena e em Viena, pudesse explicar-se à luz de sua posterior perda de popularidade. Sob pressão, tentando gozar tudo da vida enquanto era possível, sacrificara-a para obter alguma coisa mais do que um precário e mesquinho triunfo, mas já então se encontrava à beira de um colapso nervoso ou de uma espécie de declínio. Os anos encarregaram-se de lhe comprovar o fato. Ele tinha se afundado. Ouvira comentários nos meios jornalísticos de que ele estava por baixo.

De repente, sentiu que não o odiava. Como odiar um ser que merecia compaixão e piedade? Doyle sempre tinha precisado de alguém como ela, que lhe fosse fiel, que se interessasse por ele. Com ela a seu lado para ampará-lo, essa pobre criança que se destruía não teria falhado. Doyle era a prova de que todos no mundo precisam de alguém, de uma amizade humana que lhes sirva de esteio na velhice. E ela não era diferente dos outros. Também precisava de alguém. Sem dúvida tinha sua amiga, isso era alguma coisa, mas não o suficiente para suas reservas de amor. Doyle poderia tê-las esgotado, se houvesse sabido apreciá-las. Talvez o compreendesse agora, após tantos anos difíceis. Talvez sua humanidade tivesse sido temperada por esses anos significativos. Porque se ele tivesse, se ele tivesse...

Parou de passear, olhou para o telefone, e, subitamente, o coração prevaleceu:

para o inferno com tudo, para o inferno com o orgulho.

Ligou para o Hotel Georges V, disse à telefonista que queria falar com o sr. Jay Thomas Doyle. Ouviu a campainha retinir no quarto dele, mas ninguém atendeu. Continuando a esperar (talvez estivesse no chuveiro), pensou:

esse doido é capaz de estar comendo até a morte em qualquer lugar, mas não o faria, com certeza, se tivesse alguém com quem desabafar, se não se sentisse só.

Quando a telefonista confirmou que o sr. Doyle não estava no quarto, Hazel pediu-lhe que tomasse nota de um recado:

— Diga ao sr. Doyle que a srta. Hazel Smith lhe telefonou. Diga-lhe que jantarei com ele... está tomando nota?... que jantarei com ele amanhã à noite. Que venha me buscar na Rue de Téhéran, número 27, às oito horas da noite. Às oito horas em ponto, entendeu? Obrigada.

Estava feito. Embora se sentisse melhor com a decisão tomada, isso não a tornava propriamente feliz. De qualquer maneira, estava com outra disposição para acabar o artigo.

Voltou à cozinha, sentou-se à mesa, curvou-se sobre a máquina portátil e releu a última linha que escrevera:

“Entretanto, nesta noite de aflição, nem tudo em Paris dorme...”

Então, continuou a datilografar:

“Os cinco grandes chefes mundiais, dos Estados Unidos, da Inglaterra, França, Rússia e China, dormem. Os membros de suas delegações dormem igualmente. Mas algures, em esconsos recantos da capital francesa, centenas de subalternos, os sherpas da conferência, mantêm-se acordados. São esses que, sem fanfarras e muitas vezes em segredo, preparam os trabalhos que tornarão possível a crucial e difícil conferência que amanhã começa.

Entre essas pessoas desconhecidas que não dormirão esta noite, que ficarão de pé até o romper do dia, nenhuma é mais importante e eficiente do que Maurice Quarolli, o superintendente divisional de uma seção de segurança da política, conhecida por Direction de la Sécurité du Président de la République et des Hautes Personnalités. Sobre os ombros de Quarolli e de sua força de cento e cinquenta agentes, recai a responsabilidade de proteger os chefes de Estado visitantes que se encontram em Paris, assim como seus ministros e outras importantes personalidades oficiais.

A seção da polícia do superintendente Quarolli raramente se faz ouvir ou notar. Ao fim da tarde de hoje, por um golpe de sorte, foi-me concedida uma entrevista de uma hora com Maurice Quarolli. À hora marcada, compareci a um anônimo, descolorido e até banal edifício administrativo no Quai de Gesgres...”

Hazel Smith parou de escrever, pegou um bloco aberto ao lado da máquina e, preguiçosamente, pôs-se a ler as páginas rabiscadas para refrescar a memória sobre o que se passara durante a importante entrevista e o que lhe era permitido utilizar.

Desistindo de decifrar suas notas críticas, recostou-se para reviver o que tinha sido uma audiência inesperada e uma hora verdadeiramente assombrosa.

 

A entrevista resultara de um golde de sorte. Seus contatos com certos funcionários do Palácio do Eliseu tinham-lhe sido valiosos. Para surpresa sua, Quarolli acedera em recebê-la, com a condição de que grande parte da conversa não aparecesse na reportagem. Amigos altamente colocados haviam-lhe dito que só por mero acidente político sua perseverança fora recompensada. O governo francês, sujeito a críticas constantes devido à sua recusa em se alinhar com os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Rússia na conferência de desarmamento com a China, por se negar a sair da neutralidade e limitar-se às funções de anfitrião, tinha sido acerbamente criticado pela imprensa vinda de quase todo o mundo. Agora, desejoso de ganhar os favores da imprensa, de fazer publicidade sobre seu papel ativo nos próximos debates da conferência, o comando do Palácio do Eliseu distribuíra a seguinte ordem:

“Cooperar com os jornalistas influentes dentro dos limites da segurança”. Sem dúvida, o superintendente Quarolli fora notificado dessa ordem. Com relutância, tivera de ceder.

Hazel Smith rememorava a entrevista desde o início. Para começar, vira-se obrigada a correr, ofegante, atrás de um agente da polícia que subia as escadas de quatro em quatro degraus. Depois, entrou com ele num elevador cujo botão estava oculto por um pequeno pano. A mão do policial insinuou-se por baixo do pano, e o elevador subiu até um dos andares superiores, sem número. O corredor que atravessaram, às pressas, era ostensivamente monótono.

Numa sala de espera mobiliada com severidade, Hazel Smith esbarrou num carrancudo indivíduo à paisana, que a escoltou até um espaçoso gabinete de restrita elegância. Ficou ali sentada, numa poltrona de couro preto e espaldar oval, em frente de uma mesa grande, na qual se viam um mata-borrão cinzento, retangular, uma folha de papel branco, um lápis, três telefones e um pequeno aparelho de televisão.

Pela porta ao lado, entrou calmamente um francês. Não tinha mais do que um metro e setenta de altura. O abundante cabelo preto, já um pouco grisalho e ondulado, estava penteado para trás. O rosto era duro, de nariz e queixo salientes, moreno, másculo e preocupado. O arcabouço atarracado, que parecia vulcanizado, enchia por completo o terno comum. Usava na lapela uma fita encarnada. Era Maurice Quarolli.

Não houve delicadezas nem amabilidades sociais. Seu comportamento era o de um servidor público que tinha coisas mais urgentes a fazer; no entanto, uma vez sentado atrás da mesa, fazia o possível por agradar. Sem esperar as perguntas de Hazel, começou por dizer, em sua voz baixa e autoritária, que ela não devia citá-lo diretamente, a não ser com autorização expressa. Podia reproduzir a conversa e nada mais.

O sistema da polícia francesa, fora da sede central e do gabinete do chefe de polícia, constituía uma rede demasiado complexa para ser explicada em tão pouco tempo. A entrevista limitar-se-ia aos serviços que tinham a seu cargo a proteção aos participantes da conferência.

Quando os chefes estrangeiros e os delegados chegavam a Paris, mas oficialmente ainda se encontravam fora da capital, por exemplo, no Aeroporto de Orly ou no novo Aeroporto Norte de Paris, ou quando saíam dos limites de Paris para ir a Chantilly ou a Versalhes, sua proteção cabia principalmente aos agentes da Compagnie Républicaine de Sécurité, conhecida por crs, e aos policiais comuns (impropriamente chamados gendarmes, familiarmente conhecidos por flics, realmente denominados agents de police), assim como à Garde Républicaine de Paris, disse ele. De igual modo, sempre que chefes ou delegados estrangeiros viajavam para fora de Paris, grande parte da responsabilidade por sua proteção cabia aos policiais à paisana do Service des Voyages Officiels e aos detetives da Sureté Nationale.

Enquanto Idazel se concentrava no bloco de notas, Quarolli prosseguia sem parar. Logo que o presidente, o primeiro-ministro e os ministros estrangeiros, assim como seus conselheiros, entrassem em Paris, a responsabilidade de sua proteção se estenderia a outras seções da Polícia Judiciária francesa. Mas os agentes altamente treinados da Direction de la Sécurité (“Quantos? Sugiro que indique um número qualquer, srta. Smith. Digamos, cento e cinquenta, de acordo?”) eram os principais responsáveis pela proteção dos convidados à conferência. Havia os agentes do Service de Documentation et Contre-Espionnage, conhecido por sdce (“Como a sua cia, srta. Smith”); havia os agentes da Direction de la Surveillance du Territoire, conhecida por dst; os agentes de sete pelotões de especialistas e seis unidades de inquérito às ordens do comissário de polícia; os homens dos Renseignements Généraux, que eram agentes do serviço secreto e que investigavam, como o fazia a seção de Quarolli, todos os passos dados pelos estrangeiros que visitavam ou residiam em Paris.

Impaciente com as generalidades, Hazel pediu respostas específicas. Quarolli evitou habilmente algumas perguntas, respondendo a outras. Explicou que em qualquer encontro oficial que envolvesse participantes da conferência, ou mesmo em qualquer recepção oficial, havia uma dúzia de membros da Garde Républicaine colocados em todas as entradas e vinte ou mais agentes à paisana das várias seções da segurança francesa espalhados pelo edifício. Todas as embaixadas estrangeiras estavam cercadas por agentes franceses. Todos os hotéis de Paris que abrigavam delegados estrangeiros tinham de dois a seis agentes que circulavam no seu interior e uma quantidade de agentes postados no telhado. Quando os delegados saíam de carro de suas embaixadas ou dos hotéis para o Palais Rose ou qualquer outro lugar, um motard — uma escolta motorizada — esforçava-se por precedê-los ou segui-los.

— O que pretende dizer com “esforça-se” por segui-los? — perguntou Hazel Smith.

O superintendente Quarolli encolheu levemente os ombros:

— Tentamos acompanhar nossos convidados, para sua proteção. Muitos não gostam de ser seguidos. Outros não querem que saibamos para onde vão. Talvez se dirijam para um encontro diplomático secreto. Talvez se trate de entrevistas particulares, perigosas portanto, e por isso tentam escapar a nossos muitos olhos, e às vezes o conseguem. Mas por pouco tempo, acredite. — Recostou-se na poltrona, e um relâmpago iluminou-lhe o olhar:

— Acredite que não são muitos os que nos escapam, Mme Smith. Sabemos tudo a respeito de todos os estrangeiros que neste momento se encontram em Paris. Sabemos tudo de todos. Sabemos como se apresentam, onde estão, para onde vão, com quem contatam. Nosso ofício é saber... conhecer e observar cada visitante, dia e noite, garantir a segurança daqueles que talvez possam garantir-nos a paz na Terra. Não somos infalíveis, mas tentamos sê-lo, e estamos perto de consegui-lo, muito perto... Mais perguntas, Mme Smith?

O orgulho de suas declarações e a convicção de que sua seção era quase perfeita irritaram Hazel Smith. Visto a entrevista estar quase no fim, ela achou que poderia ousar um diálogo:

— M. Quarolli, quando diz que sabem tudo a respeito de cada um — sublinhou o cada — dos estrangeiros que se encontram em Paris, presumo que inclui todos os visitantes e não apenas os chefes de Estado, suas famílias e os muitos delegados, não?

— Foi precisamente isso, madame, o que eu quis dizer.

— Nesse caso, não quero parecer cética... tenho grande admiração pela eficiência e engenho da polícia francesa... mas não vejo como o que afirma possa ser possível.

— Não? — perguntou Quarolli, endireitando-se e visivejmente divertido.

— Estou convencida, absolutamente convencida, de que o famoso serviço secreto e a polícia sabem de tudo o que é necessário acerca dos delegados das cinco potências e que realizam um trabalho notável para garantir a segurança dos que estão diretamente envolvidos na Conferência de Cúpula. Mas quanto a saber, pouco que seja, acerca de cada visitante estrangeiro... vou ser franca, monsieur.. . duvido e não acredito. Como é possível ter informações de cada visitante? Falta-lhe pessoal, não tem agentes...

Quarolli olhou menos divertido para Hazel:

— Temos milhares de agentes de segurança aqui mesmo, em Paris.

— Mas há muito mais visitantes do que habitualmente, tanto americanos como europeus:

jornalistas, artistas, editores... Meu Deus, como é possível?

— Mme Smith — disse asperamente Quarolli —, referi-me a nossos agentes oficiais. Mas há muitos outros, os não-oficiais. Por motivos óbvios, não posso entrar agora em pormenores. Dir-lhe-ei, porém, que cada porteiro, empregado de hotel, criada de quarto, garagista, criado de bar, prostituta da Place Pigalle, balconista de loja e motorista de táxi pode ser uma proveitosa fonte de informações. Compreende? Talvez agora esteja menos cética, não?

Como um tigre que defende a prole, neste caso a reportagem, Hazel brandiu o bloco:

— Compreendo melhor, evidentemente, mas ainda tenho dúvidas. Embora me arrisque a aborrecê-lo, não vejo como seus informantes podem fornecer fatos acerca de cada pessoa, de cada indivíduo alheio às delegações ou aos grupos de personalidades. Quando penso na multidão anônima, na variedade de visitantes que nada têm a ver com a conferência, que vejo ao longo do dia, não compreendo como pode estar a par de sua existência. Refiro-me, evidentemente, aos não importantes.

Viu que o tinha atingido. O rosto do superintendente Maurice Quarolli, bronzeado, tornara-se tricolor.

— Desculpe, mas vejo que é uma jovem bastante intratável e teimosa, Mme Smith. Talvez uma demonstração a convença.

— Uma demonstração?

— Tivemos outrora na França um grande detetive. Refiro-me a Alphonse Bertillon, diretor do Departamento de Identificação da Sureté. Havia muitos jornalistas que se mostravam céticos quanto a seus métodos para se manter a par das fotografias e dos dados dos criminosos. Quando viu que esses críticos não podiam ser convencidos de outra maneira, Bertillon decidiu fazer uma demonstração. Havia aqui em Paris um jornalista chamado Sarcey, que colocava frequentemente em ridículo os métodos de Bertillon, afirmando que nenhum criminoso poderia ser fotografado naturalmente, a não ser que a isso se prestasse. Bertillon levou esse cético Sarcey ao quartel-general da Sureté e conduziu o descrente através dos laboratórios para lhe mostrar as fotografias e outras provas de seus métodos. No final, Sarcey continuava cético, até que Bertillon lhe estendeu um envelope contendo três fotografias de Sarcey tiradas automaticamente alguns minutos antes por câmaras ocultas que haviam focalizado o jornalista no momento em que transpunha uma porta. Essas fotografias convenceram Sarcey mais eficazmente do que milhares de palavras. Talvez fosse sensato eu imitar meu antecessor.

Hazel, que tomava nota da história, ergueu os olhos:

— Que quer dizer?

— Que lhe ofereço uma demonstração semelhante, visto também ser uma descrente, madame. Falamos da segurança em torno da conferência, não foi? Afirmei que não vigiamos apenas os delegados oficiais, mas todos os visitantes que neste momento se encontram em Paris, não é verdade? A senhorita pôs em dúvida essa possibilidade.

— Mais do que isso, monsieur. Mostrei-me francamente cética.

— Très bien, madame, nous allons voir si nous sommes en mesure de dissiper vos doutes 1(1 "Muito bem, senhora, vamos ver se somos capazes de dissipar suas dúvidas.” Em francês no original. - N. do E.) — disse Quarolli, espalmando as mãos na mesa. — Falou da variedade de indivíduos que se encontram ao longo do dia. Disse que não compreende como a Direction de la Sécurité pode estar a par da existência desses turistas casuais, que nada têm a ver com a Conferência de Cúpula. Não foi isso o que disse?

— Foi.

— Muito bem, madame. Que estrangeiros encontrou hoje em Paris e que não têm nenhuma ligação com a conferência?

Colhida de surpresa, Hazel ficou por instantes atrapalhada:

— Bem, não sei... isto é... refere-se a qualquer pessoa que eu tenha encontrado hoje?

— Qualquer pessoa de que se lembre ou que queira mencionar e que tenha encontrado hoje. Turistas, estrangeiros que não estejam ligados com a conferência.

Pegou o lápis e seus olhos inquiridores pousaram nela, enquanto esperava. Hazel tentou lembrar-se, recuando àquela manhã, fazendo desfilar pela memória os acontecimentos do dia, depois decidiu-se:

— Bem... Talvez saiba alguma coisa a respeito de uma ou duas dessas pessoas, mas, quanto às outras, é ridículo, são simplesmente...

— Continue, madame — incitou o superintendente Quarolli, serenamente.

Hazel escolheu rapidamente os nomes, receando cometer alguma indiscrição, mas acabou por se convencer de que seriam, com uma ou duas exceções, absolutamente estranhos àquele superinformado diretor de polícia.

— Muito bem — disse ela, disposta a entrar no jogo. Dar-lhe-ei os nomes, sem ficha, sem número de série, sem nada, apenas os nomes. Quer tomar nota?

— Por favor.

Lentamente, dando tempo a Quarolli para que os escrevesse, citou:

— Emmett A. Earnshaw... Matthew Brennan... Medora Hart... Jay Thomas Doyle. — Fez uma pausa. — É claro que há mais, porém.. .

— Quantos quiser.

— Não, esses chegam. O que vai fazer agora?

— Demonstrar — disse ele, ao mesmo tempo em que apertava um botão atrás do telefone.

Quase imediatamente, abriu-se uma porta ao lado, e um jovem francês de rosto pálido e terno axadrezado apareceu e aproximou-se, rápida e silenciosamente. Quarolli estendeu-lhe a folha de papel.

— Cherchez-moi les dossiers de ces gens-là, André. Et dépéchez-vous l(1 "Procure-me os dossiês dessa gente, André. E apresse-se.” Em francês no original. - N. do E.) .

O funcionário civil chamado André fez uma ligeira vênia e abandonou a sala. Quarolli brindou Hazel com seu primeiro largo sorriso desde o início da entrevista, depois procurou algo no paletó, tirou uma cigarreira de prata e abriu-a com um estalido.

— Nous allons nous détendre un moment2(2 "'Vamos relaxar um momento.” Em francês no original. - N. do E.) Fume um Royale com filtro — disse amavelmente. — Também fumarei. — Hazel aceitou o cigarro e o fogo com invulgar nervosismo, ao mesmo tempo em que Quarolli, depois de acender o seu, observava:

— Não demorará mais de três minutos.

Simulando reler e emendar notas rabiscadas, ela fumava vagarosamente, de respiração suspensa, sentindo que tinha sido vítima de uma velhacaria e que havia de embaraçá-lo, embora não estivesse muito certa disso.

Fumaram em silêncio, e, antes de três minutos, a porta ao lado abriu-se e o funcionário André entrou vivamente no gabinete, carregando uma pilha de classificadores. Entregou-os a Quarolli, que lhe agradeceu e o despediu.

— Maintenant — disse Quarolli com divertida inocência, esmagando o cigarro —, madame, nous allons voir ce que nous avons ici.. . vejamos o que temos aqui.

Quarolli abriu um dos classificadores e colocou-o bem à vista, à sua frente.

— O primeiro dossiê. O primeiro nome que indicou. Voilà. Emmett A. Earnshaw. — Pegou uma folha de papel azul, examinou-a, depois leu-a em voz alta:

— “Earnshaw, 66 anos. Chegou às 11:01 da manhã do dia 15 de junho à Gare du Nord. Acompanhado pela sobrinha Carol, de 19 anos. Encontrou-se com um funcionário da embaixada americana, Callahan (ver dossiê Callahan, R. L.). Número do apartamento no Hotel Lancaster:

  1. Visitou o Palais Rose, onde concedeu uma inesperada entrevista coletiva. Breve encontro e troca de palavras com Matthew Brennan, antigo delegado e perito em desarmamento durante a administração de Earnshaw. Almoçou às 13:30 no Quai d’Orsay. Duas horas de passeio. Regressou ao Lancaster às 16:30. Recebeu a visita de Willi von Goerlitz, de 26 anos, filho do dr. Dietrich von Goerlitz, industrial alemão de Frankfurt, hospedado no Hotel Ritz. Goerlitz esteve 37 minutos com Earnshaw. Goerlitz e Carol Earnshaw foram a um estabelecimento dos Champs-Élysées. Às 17:15 Earnshaw recebeu Jay Thomas Doyle, jornalista americano atualmente inativo”.

Quarolli ergueu os olhos, voltou a baixá-los para a folha de papel e comentou:

— É evidente que há mais, porém seria indiscreto lê-lo em voz alta.

Hazel aquiesceu:

— Muito impressionante, sem dúvida. Mas Earnshaw é uma figura conhecida.

Quarolli fungou.

— Todo mundo é conhecido por alguém, madame. Contudo, quem considera menos conhecido?

— Assim de repente? Bem, o jornalista Doyle.

— Ora, vejamos. — Quarolli pegou outro dossiê, retirou outra folha azul e leu em voz alta:

— Jay Thomas Doyle, 45 anos, cidadão norte-americano. Chegou a Paris, Orly, no avião de carreira austríaco às 10:44 da manhã de 15 de junho. Hospedado no apartamento 323 do Hotel Georges V. Foi ao barbeiro e ao calista do hotel. Esteve na redação da Atlas News Association. Encontrou-se com E. A. Earnshaw na Rue de Berri, conversaram cerca de dez minutos. Em seguida, dirigiu-se para o Café Français. Aí encontrou uma correspondente americana em Moscou, Hazel Smith, e sua companheira Medora Hart, artista inglesa do Clube Lautrec (ver os dossiês Ormsby, Sir Austin, e Ormsby, Sydney). Breve altercação. Pouco depois, Doyle.. .

Hazel sentiu um formigamento nos braços enquanto ouvia e ergueu a mão para interromper o superintendente. Este desistiu da leitura e aguardou.

— Rendo-me — murmurou Hazel. — Estou convencida.

Quarolli fez uma careta.

— Vejamos, não quer saber o que há sobre seus outros conhecidos?

— Não é preciso. Já lhe disse que estou convencida. Sabem tudo, vêem tudo, são espantosos, e a conferência está a salvo.

Quarolli sorriu:

— Merci, madame.

— Apenas uma coisa mais e irei embora. Por que todo mundo? Por quê? Por que se preocupam com tantas pessoas sem importância? Na sua maior parte, elas são inofensivas, outras são ingênuas e loucas, gente fraca e tola, nada mais.

Quarolli mostrava-se simultaneamente cortês e pensativo. Refletiu nas palavras de Hazel e, ao fim de trinta segundos, ergueu-se e pôs-se a andar pelo gabinete.

— Madame, fui criado no pequeno porto de Paimpol, na Bretanha, e vivíamos como uma unida família católica na casa de meu avô. Ele tinha sempre a seu lado a Bíblia Sagrada, e todas as noites nos lia algumas passagens. Por que me preocupo com os ingênuos e os loucos? Porque me lembro de uma passagem que ele nos leu na Bíblia e que dizia:

“Bem-aventurados os pobres de espírito... ” — Quarolli sorriu novamente. — Os dias que vão se seguir são demasiado cruciais para que nos permitamos a menor distração.

— Posso citá-lo?

— Pode citar-me, madame.

Agora, horas depois, na cozinha do apartamento da Rue de Téhéran, Plazel Smith acabava de reviver essa entrevista, esboçada em seu bloco de notas. Colocando-o junto da máquina de escrever, passou os dedos pelas teclas e começou a datilografar rapidamente o que soubera durante seu encontro com o funcionário da Direction de la Sécurité. Em uma lauda e meia, resumiu os trabalhos e os métodos dos agentes franceses da segurança. Descreveu sua eficiência no recolhimento de informações a respeito de todo mundo, “o que me foi plenamente demonstrado por M. Quarolli”, mas não relatou em pormenor essa demonstração. Não fez citações diretas até o último parágrafo, e então concluiu:

“Assim, os chefes da conferência dormem mais tranquilamente esta noite, Paris dorme mais serenamente, e o mundo pode confiar nesses homens ignorados como Maurice Quarolli, que o protegem e, consequentemente, defendem a última esperança de paz para o mundo. Com Quarolli no caminho, nenhum fora-da-lei interferirá nos progressos da conferência. Com efeito, para homens como Quarolli, nenhum visitante de Paris será esta noite considerado demasiado insignificante, sem importância real, demasiado estúpido para não ser vigiado.

Como disse M. Quarolli, ao despedir-se de mim:

‘Por que se preocupa a nossa segurança com os ingênuos e os loucos? Porque me recordo de uma passagem que meu avô me leu na Bíblia Sagrada:

“Bem-aventurados os pobres de espírito’’. Os dias que vão se seguir são demasiado cruciais para que nos permitamos a menor distração’.”

Escreveu “—30—” na margem do artigo, arrancou a última lauda da máquina e, lançando um olhar ao relógio da cozinha, iniciou imediatamente a revisão.

De repente, aquela sensação de incômodo que se apoderara dela desde o princípio voltou com redobrada força, fê-la estremecer, e ela recostou-se, fechando firmemente os olhos. De repente, ocorreu-lhe que “eles” deviam ter informações completas a respeito dela, e, sendo assim, sabiam a verdade, o que a deixou horrorizada e terrivelmente receosa.


III

 

 

 

— Arrêtez ici, monsieur — ordenou Matt Brennan ao motorista de táxi. — Je veux descendre1(1 “Pare aqui, senhor. Quero descer.” Em francês no original. - N. do E.)

O motorista, cujo Citroen velho e ruidoso tinha vindo avançando pela Avenue Malakoff no meio do trânsito congestionado, apertou bruscamente os freios. O táxi estremeceu e imobilizou-se.

Espreitando por cima do ombro do motorista, através do pára-brisa, Brennan viu que não valia a pena continuar no táxi. Havia tentado chegar aos quartéis-generais da conferência o mais cedo possível, esperando estar à entrada ou no pátio por volta das nove e meia, quando Nikolai Rostov passasse. Mas o trânsito conspirava contra ele. Em primeiro lugar, a Avenue Foch estava vedada aos veículos particulares por barreiras de madeira e um cordão de policiais. Depois, ao tentar a Avenue Malakoff, perto do Palais Rose, o táxi mal tinha percorrido meia centena de metros quando foi apanhado num redemoinho de carros. Agora, à sua frente, havia mais barreiras e policiais, desviando o trânsito do Palais Rose para uma rua de mão única. E já não eram nove e trinta, mas nove e cinquenta. Concluiu que chegaria mais depressa indo a pé.

Desafiando a lei, buzinas irritadas berravam em uníssono à retaguarda. Rapidamente, Brennan pagou ao motorista e correu para a calçada, indo cair num turbilhão de transeuntes apressados que se empurravam e trocavam cotoveladas à medida que procuravam alcançar o Palais Rose, onde decorria a última das cerimônias do dia da abertura.

Avançou um pouco, mas havia uma fila interminável na esquina da Avenue Alphand, para a qual tinha sido desviado o trânsito. Finalmente, arriscando o pescoço ao tentar entrar por uma transversal, Brennan viu-se imobilizado, comprimido por uma massa compacta de corpos, tão densa e entrelaçada como centenas de vermes num frasco. Enquanto uma parte das pessoas furava a multidão para se juntar à fila de espectadores no passeio, os quais esticavam o pescoço para ver os motociclistas que escoltavam o último dos chefes mundiais até o local da conferência, os restantes espectadores mantinham a alternância entre uma imobilidade irritante e um movimento rastejante em direção ao Palais Rose.

Por fim, Brennan desistiu de forçar o avanço. Deixou-se arrastar pela multidão. Quando ela se movia, movia-se com ela. Quando parava, parava também. Um antigo e familiar fatalismo, mesclado de pessimismo, inundou-o e acalmou-lhe a frustração.

Aquele não era, indubitavelmente, seu dia de sorte, pensou.

Horas antes esperara o melhor. Uma manhã de domingo vem sempre acompanhada de promessas. Havia começado o dia muito mais cedo, bem-disposto e confiante. Tendo acordado de madrugada, deslizara da cama de Lisa sem acordá-la, visto terem adormecido tarde na noite anterior, depois de discutirem as perspectivas de um futuro comum e de se amarem. Em seguida, fechara à chave a porta de comunicação, num alarde de fingida virtude em relação às criadas, vestira-se apressadamente e descera ao salão de café da manhã do hotel. Uma xícara de amargo café francês dispersara-lhe a sonolência, e, por último, mais confortado, correra para o cubículo da telefonista, por trás da mesa do recepcionista.

— Por favor, ligue-me para o Hotel Palais d’Orsay — pediu.

Já dentro da cabina, começou a sentir-se como K., o herói de Kafka, em O castelo. Como K., com seu evasivo conde Westwest, Brennan compreendeu que sua tarefa era descobrir um igualmente evasivo Nikolai Rostov. Enfastiadamente, a telefonista do Hotel Palais d’Orsay afirmou que não havia registrado ali nenhum Rostov. Como Brennan teimasse em que devia estar enganada, ela o pôs raivosamente cm comunicação com a recepção. O empregado que o atendera inquiriu:

— Diz que há aqui um tal sr. Rostov?... Posso perguntar quem fala?

Brennan hesitou por instantes, mas acabou por identificar-se.

— Um momento, por favor. Vou ver no registro. — Fez-se silêncio, depois a voz do empregado soou clara e firme:

— Desculpe tê-lo feito esperar, sr. Brennan. Consultei o livro de hóspedes. Não há nenhum Nikolai Rostov registrado. Lamento.

Antes que Brennan tivesse oportunidade de replicar, a ligação foi cortada do outro lado.

Após esse incidente, Brennan perguntara-se se a informação de Neely não estaria errada ou se Rostov não teria se mudado para outro hotel. Ao mesmo tempo, o fato de Brennan conhecer os diplomatas russos convencera-o de que tanto Rostov como os outros delegados soviéticos haviam dado ordens para que suas residências e seus movimentos fossem mantidos secretos. Provavelmente, o hotel fora avisado de que não deveria divulgar a presença de nenhum dos delegados russos, a não ser em caso de chamadas especiais. Brennan não tinha certeza disso, mas concluíra que só havia uma coisa a fazer:

verificar por si mesmo.

Dirigira-se sem perda de tempo para a Rue de Berri e apanhara um táxi na Margem Esquerda. O trânsito, extraordinário para aquela hora, distraíra-o, e ainda não passava das oito e vinte minutos quando Brennan chegou em frente das douradas portas de ferro forjado do Hotel Palais d’Orsay, no Quai Anatole France.

Entrando sorrateiramente no vestíbulo, procurando passar tão despercebido quanto possível, Brennan ficou admirado com a falta de atividade que se notava no interior. Com exceção de um mensageiro que corria, o vestíbulo estava deserto. À sua esquerda, Brennan notou um velho de olhos remelentos e inchados, atrás da mesa do porteiro, separando a correspondência com gestos pachorrentos.

Brennan enfrentou o velhote e, calmamente, perguntou por Nikolai Rostov. O ancião percorreu a lista de hóspedes e meneou a cabeça:

— Não tenho aqui nenhum Rostov.

Piscando os olhos em sinal de compreensão, Brennan passou uma amassada nota de cem francos por cima do balcão. O gesto apenas suscitou no velho uma atitude de medo. Em voz baixa, explicou que o porteiro efetivo estava doente, que ele não passava de um modesto porticr que fazia aquele trabalho até a substituição do antigo porteiro por outro, recém-chegado de Biarritz, que iniciaria suas funções às nove horas. Mas esse novo porteiro não poderia ajudá-lo, explicara o portier, visto não fazer parte do pessoal regular do hotel, sendo um mero substituto durante aquelas atarefadas semanas, após o que voltaria para Biarritz.

— Mas vem às nove horas? — quis saber Brennan. — Tem certeza absoluta?

— Sim, tenho.

— Nesse caso, esperarei — disse Brennan, voltando a guardar a nota de cem francos.

Para passar o tempo e atenuar seu nervosismo, saiu e, a passo lento, passeou pela estação de trem deserta, procurou um jornal de Londres num quiosque, visitou o moderno bar de um café chamado Le Rapide e, finalmente, voltou ao hotel de Rostov.

O vestíbulo já tinha vida e regurgitava de hóspedes e mensageiros. O inchado e velho portier continuava sozinho atrás da mesa do porteiro. Brennan dirigiu-se para o extremo do vestíbulo, sentou-se numa cadeira forrada com uma imitação de couro, ao lado de uma coluna de pedra, e fingiu ler o jornal. Já tinha notado que dois desengonçados indivíduos de terno marrom, o primeiro com um rosto cor de calcário e outro, macilento, haviam interrompido seu passeio pelo vestíbulo para olhá-lo de soslaio e depois, conversando em voz baixa, tinham subido a escada central. Preocupado, Brennan observou-os, especulando sobre sua identidade:

seriam detetives do hotel, do dst francês ou do kgb russo? Pensou na possibilidade de o velho portier tê-lo informado do interesse manifestado por um estrangeiro em relação a Rostov, de seu tentador suborno, o que os levara a vigiá-lo e a relatar sua presença a alguém lá em cima.

Já passava das nove horas, e o portier continuava sozinho atrás da mesa. Nove horas e quinze minutos, e a substituição ainda não se verificara. Por volta das nove e vinte e cinco, Brennan começou e sentir-se extremamente nervoso e apreensivo. De repente, notou que havia duas pessoas atrás da mesa. A segunda, à qual o portier falava em voz baixa, era um francês de pele enrugada, cabelos cor de rato e óculos de lentes anormalmente grossas, que fixava com obstinação os botões de metal do comprido paletó do porteiro.

Brennan atravessou imediatamente o vestíbulo para ir falar ao novo porteiro.

— Bom dia, monsieur — saudou amavelmente o porteiro, mostrando os dentes amarelos. — Disseram-me que estava à minha espera. Acha que posso lhe ser útil?

— Espero que sim — respondeu Brennan.

— Informou-se junto do pessoal regular da recepção?

— Não.

— Hum! Bem, como sabe, não faço parte do pessoal permanente, de forma que não estou preso às mesmas obrigações, compreende?

— Compreendo.

Os dentes amarelos do porteiro luziram.

— Ótimo. Esse... esse hóspede que procura, não tenho certeza de que esteja hospedado aqui alguém com esse nome... não é fácil recordar.

— Talvez venha a lembrar-se — disse Brennan. Sua mão atravessou o balcão. — De qualquer maneira, quero agradecer-lhe.

Apertaram-se as mãos, e a nota de cem francos deixou de pertencer a Brennan.

A mão do porteiro viajou até o bolso e, um momento depois, voltou a erguer-se para coçar a testa. Seus olhos cinzentos, deformados pelas lentes convexas dos óculos, pousaram em Brennan com uma condescendência que antes não tinham.

— Agora que refleti melhor no caso, já me lembro. É uma coisa estranha. Na verdade, temos um Nikolai Rostov neste hotel, mas, por motivos de segurança, temos de ser discretos para com os visitantes. De outra forma, qualquer pessoa poderia entrar — o tom de sua voz baixou — nos quartos 214 e 215.

Brennan reteve um sorriso:

— Obrigado. Estará lá, agora?

— Desculpe. Tenho de ir ao bar telefonar.

Deixou a mesa, e Brennan recomeçou a fingir que lia o jornal. Quando voltava a página 8, que apresentava os resultados do críquete, o porteiro regressou. Depois de lançar os olhos para a recepção, pegou um lápis e uma lista telefônica de Paris e debruçou-se confidencialmente sobre o balcão:

— Tive uma conversa de dez francos com o criado de quarto. A sra. Rostov está no apartamento, vestindo-se. O sr. Rostov saiu. Viram-no abandonar o hotel antes das oito horas e ouviram-no dizer à mulher que ia para a embaixada soviética, mas que esperava estar no Palais Rose por volta das dez horas. — As pupilas por trás das grossas lentes pareciam ter-se dilatado. — Espero que isso lhe seja útil. Não sei mais nada. Bom dia, monsieur, e boa sorte.

Ao deixar o Hotel Palais d’Orsay, Brennan compreendeu que, embora tivesse perdido Rostov, o que era uma contrariedade, aquela visita matutina não fora inteiramente inútil. Pelo menos soubera onde Rostov estaria às dez horas. O itinerário seguinte de Brennan não apresentava problemas.

Dirigiu-se para a Rue de Lille, entrou no café Le Rapide e telefonou a Herb Neely, na embaixada dos Estados Unidos. Para grande alívio de Brennan, Neely ainda se encontrava em seu gabinete. Brennan fez-lhe um breve resumo de sua manhã, de seus planos e problemas.

— Não há qualquer problema — tranquilizou-o Neely. — Temos um número extra de credenciais de imprensa para correspondentes de jornais que não existem. São destinados à cia, ao FBI e a várias pessoas da embaixada que nos interessa ter no Palais Rose. Muito engenhoso, não acha, meu caro? Agora ouça. Vou mandar uma dessas credenciais ao seu hotel. Terá seu nome inscrito, a indicação de sua fictícia ocupação, e será assinada por mim e pelo embaixador. Tudo o que tem a fazer é colar-lhe uma fotografia de passaporte. Depois, é só apresentá-la e entrar. Se quiser apanhar Rostov no pátio, misture-se com os fotógrafos. Se não conseguir, dirija-se à ala da imprensa, coma qualquer coisa no bar e leia os comunicados. Quando os russos anunciarem sua entrevista coletiva, no fim da primeira sessão, não deixe de comparecer. Terá mais probabilidades de encontrar Rostov. E escute, Matt, se alguém o reconhecer, como essa vigarista da Hazel Smith, caso ela faça a cobertura das sessões do Palais Rose, mantenha o sangue-frio. Tem suas credenciais. Está acreditado. É um repórter. Vá me informando, está bem?

Tinham sido esses os primeiros acontecimentos daquela frustrada manhã, recordava Brennan, enquanto os franceses comprimiam seu corpo e cotovelos franceses lhe esmagavam as costelas, ao mesmo tempo em que se deixava arrastar pela multidão que deslizava pela Avenue Malakoff. No entanto, continuava esperançoso, sentindo a credencial de imprensa com seu retrato, em segurança, no bolso do paletó.

De repente, como uma massa gigantesca batendo contra uma parede de granito e voltando para trás, a ondulante multidão foi retida por um sólido revêtement de policiais franceses e obrigada a recuar. Enquanto Brennan se esforçava por manter o equilíbrio, viu os agentes da polícia abrirem um corredor através da chusma de curiosos, empurrando uns contra o portão de ferro negro e os outros na direção da avenida.

Livre por instantes, Brennan retirou do bolso a credencial de imprensa e, agitando-a, aproximou-se de um policial. Este relanceou os olhos por ela e apontou para o corredor. Brennan avançou rapidamente, acenando com a credencial na sua frente, como se fosse uma bandeira branca de trégua, até alcançar os portões de ferro do Palais Rose. Um comissário francês pegou a credencial, examinou-a cuidadosamente e conduziu Brennan para o pátio apinhado de fotógrafos, agentes de segurança, funcionários do governo e motociclistas parados ao lado dos automóveis oficiais.

Ao ouvir o ruído das motocicletas cada vez mais próximo e as ovações dos espectadores do outro lado dos portões, Brennan juntou-se ao grupo dos fotógrafos que procuravam instalar-se na escadaria de pedra em frente das portas de acesso ao Palais Rose.

O ruído das motocicletas tornou-se ensurdecedor, e logo uma escolta da polícia móvel francesa, protegida por capacetes, irrompeu pelos portões abertos, rodeando um sedã da marca Bandeira Vermelha, com as cortinas das janelas de trás descidas e a insígnia da República Popular da China flutuando num pára-lama. Brennan ainda não tinha visto o luxuoso automóvel do primeiro-ministro chinês, a não ser em fotografias dos jornais, onde lera que havia sido construído nos arredores de Pequim, que custara cerca de trinta mil yuans, ou doze mil dólares, que tinha três marchas e atingia cento e sessenta quilômetros por hora.

O barulho das motocicletas era ensurdecedor. As portas do Bandeira Vermelha abriram-se como asas, e meia dúzia de chineses saltou para o pátio. Todos vestiam impecáveis uniformes cinzentos e eram de idade indeterminada, com exceção do mais velho, que Brennan reconheceu imediatamente como sendo o presidente Kuo Shu-tung.

O chefe do Partido Comunista Chinês e do Politburo assemelhava-se mais a um patriarcal filósofo taoísta do que ao chefe de uma progressista nação lançada na industrialização de armas nucleares. Kuo Shu-tung atravessou a distância atapetada com surpreendente energia para uma pessoa de sua idade e de aparência frágil. Era o único da delegação que parecia divertido. À medida que avançava para o semicírculo de máquinas fotográficas apontadas, as fotos eram batidas em ritmo crescente. Os olhos vivos e irrequietos de Kuo Shu-tung, que sobressaíam de um rosto semelhante a um pergaminho, mostravam-se alerta e divertidos. A certa altura, talvez por causa das câmaras, retirou a mão tisnada do interior do uniforme, sem outros adornos além de três medalhas, e depois, intencionalmente, fez uma observação bem-humorada por cima do ombro a seus acólitos mais altos e mais jovens, que reagiram prontamente com um riso suave e em uníssono.

Enquanto o presidente chinês subia as escadas, viu-se envolvido pelos funcionários franceses do protocolo e pelos agentes de segurança franceses e chineses, depois todo o grupo desapareceu no interior do edifício. Um fotógrafo americano, que estava agachado perto de Brennan, ergueu-se e gritou a um colega:

— É o último, não é, Al?

O outro fotógrafo, um autêntico habitante do Brooklyn, gritou no meio da confusão:

— Sim, é. Já estão todos lá dentro, brincando com a bomba N!

A informação de que todos haviam entrado desanimou Brennan.

Uma vez mais, chegara demasiado tarde para interceptar Rostov. Agora, tanto Rostov como todas as personalidades da Conferência de Cúpula estavam inacessíveis, protegidos pelos muros do Palais Rose. Dentro de alguns minutos, os chefes se reuniriam no grand salon. Restava a Brennan seguir o conselho de Neely. Voltando-se para as portas de entrada, com a credencial entre os dedos, seguiu vários agentes de segurança até o amplo vestíbulo.

Minutos mais tarde, depois de ter sido abordado várias vezes para se identificar e após subir as escadas de mármore, Brennan dirigiu-se — orientando-se pelas indicações em quatro línguas — à sala de jantar do palácio e ao salão de fumar, no andar superior, que tinham sido transformados em escritórios de imprensa da conferência.

Inacreditavelmente, havia anjos por cima das portas, mas nem esses conseguiram preparar Brennan para a espantosa incongruência do interior da sala de imprensa. O teto pintado com nuvens cor-de-rosa e abobadado, as janelas de vidros foscos, os consolos Luís XIV e as colunas jônicas, verdes e douradas, dificilmente lembravam o Palais Rose anterior à conferência. Tudo na vasta sala chocava a vista, pois ela estava mobiliada com filas de mesas equipadas com máquinas de escrever e telefones e, dos lados, vários teletipos. Ao longo da parede do fundo, viam-se dois bares portáteis, um para as bebidas e outro para os sanduíches. Ao lado deles havia mais duas portas, uma falsa e outra verdadeira, sendo esta encimada por um nicho em forma de arco do qual fora retirada a estatueta.

De pé, à entrada, Brennan viu que devia haver pelo menos três dúzias de correspondentes na irreconhecível sala de jantar. Alguns estavam sentados às máquinas de escrever, outros rodeavam os bares e os restantes espalhavam-se pela sala, formando grupos. Na maioria, deviam ser americanos, ingleses e franceses, se bem que Brennan, ao aproximar-se de um grupo, notou alguns chineses e possivelmente russos, que entravam e saíam pela porta encimada pelo nicho, que comunicava com o também irreconhecível salão de fumar.

Sentindo-se pouco à vontade no meio daquele mundo estranho, densamente povoado por membros de um país que lhe era hostil, Brennan decidiu fingir-se ligado a ele. Com dificuldade, abriu caminho até uma mesa forrada de feltro e coberta de cópias de relatórios de imprensa e fichas em inglês, francês, russo e chinês. Pegando alguns relatórios em inglês e simulando estar absorvido por seu conteúdo, atravessou a sala em direção ao bar.

Pedindo um uísque com soda, perguntou-se quanto tempo demoraria a primeira sessão plenária, se os russos dariam sua entrevista coletiva logo a seguir (como supunha Neely) e se Rostov estaria presente. Perdido em seus pensamentos, foi notando pouco a pouco uma voz familiar de americano que pedia três sanduíches de presunto com queijo.

Brennan ergueu os olhos. No bar adjacente, um jornalista enorme, de rosto pouco visível, estava encostado ao balcão, apontando para a frente.

— Não, não são três pratos — dizia ele. — Ponha todos os sanduíches no mesmo prato. São para mim. Quero manter a linha, percebe?

Por fim seu rosto se tornou visível, e, embora as bochechas fossem mais balofas e as barbelas em maior número, Brennan reconheceu-o. Concluindo imediatamente que era um amigo e não um inimigo, cumprimentou-o:

— Olá, Jay Doyle!

Doyle retirou da boca o sanduíche meio consumido e, continuando a mastigar, olhou desconfiadamente em redor. Um misto de reconhecimento e surpresa iluminou-lhe as faces:

— Matt! Por Deus! Que raio faz aqui? É fantástico! Está na mesma, estupendo!

— Também você, Jay.

— Claro. Qualquer dia serei um perfeito bagaço. Meu Deus, há quanto tempo...? Eu sei. Não diga. Zurique. A Conferência de Zurique. Foi... hem?... há três, quatro, cinco anos?

— Quatro, Jay.

Doyle pousou o resto do sanduíche, comentando:

— De qualquer maneira, não o comeria. — Meneou afirmativamente a cabeça na direção de Brennan e prosseguiu:

— Quatro anos, é verdade. Julgo que tem boas razões para se lembrar, Matt. Eu... fiquei desolado com toda aquela confusão. Foi uma calamidade.

— Esqueça isso — disse Brennan. — O que tem feito? Continua na mesma tribuna?

— Bem, não... não exatamente. Eu lhe conto...

Com curiosa e forçada sinceridade, Doyle pôs-se a contar:

o descrédito surgido nos últimos anos, a obsessão de que um complô internacional tinha sido o responsável pela morte do presidente Kennedy, sua antiga ligação com Hazel Smith (o que deixou Brennan espantado), os esforços inúteis para conseguir a ajuda dela e a razão de sua presença em Paris.

Depois, como se estivesse num confessionário implorando perdão para seus pecados, Doyle acrescentou:

— Matt, eu não me abriria assim com você se não estivesse tentando descobrir alguma coisa que o afeta e que pode desabafar comigo.

— Alguma coisa que me afeta? Não vejo o que.. .

— Ouça-me um pouco mais. Quando fui a Zurique, eu já não estava nos píncaros. Tinha perdido minha coluna. Estava comprometido com uma pequena empresa jornalística que não valia nada e pagava mal. Não fui a Zurique para fazer a reportagem da conferência. Nessa altura, minhas posses não suportavam nem justificavam essa espécie de cobertura. A verdade é que fui, estive lá, porque esperava encontrar Hazel. Tinha certeza de que ela trabalhava para os russos. Mas não descobri nada. Então supus que talvez alguém de nossa delegação se interessasse por minhas alusões e indicações sobre o assassinato de Dallas, mas não consegui nada nem ninguém. De regresso a Washington, o presidente Earnshaw e Madlock continuaram a mostrar-se simpáticos comigo... alusões, certas indicações... enquanto estive nos píncaros, e Earnshaw até se mostrava meu amigo, mas Madlock sabia que eu já não era importante e não valia mais nada. Em Zurique, os funcionários do Departamento de Estado e alguns outros sabiam que eu já não tinha interesse para eles. Por isso, evitaram-me. E aqueles a quem me dirigi, quando souberam o que eu pretendia, trataram-me como a um trapo, um intruso. Você foi o único, Matt, que me levou a sério e se prontificou a me ajudar. Apresentou-me a Herby Neely e a outros que, devido a você, foram generosos comigo. Mostraram-se complacentes, embora nada fizessem a fim de reforçar minha teoria de um complô. Com isso, só quero lhe provar minha gratidão.

Brennan bebeu um pouco e tentou recordar-se. O professor Varney e Nikolai Rostov tinham-no absorvido de tal maneira em Zurique, e continuavam ainda a dominar-lhe tão completamente o espírito, que dificilmente conseguia lembrar-se de sua amizade com Doyle naquela ocasião.

— Jay, tenho certeza de que exagera o que fiz por você.

— Não exagero — replicou Doyle, sacudindo a enorme cabeça. — Sei o que estou dizendo. E. ,. — Hesitou. — Devo-lhe desculpas pela forma como agi depois.

— Não sei a que se refere.

Doyle engoliu um pouco de ar, as barbelas tremeram-lhe, e ele prosseguiu:

— Depois da deserção de Varney e da apertada vigilância de que você foi alvo, fiquei furioso. Você precisava de amigos, e eu era um amigo, acredite, mas... — encolheu os ombros e concluiu, em tom lamentoso:

— não pude ajudá-lo. — Olhou para o abdômen. — Matt, quando o senador Dexter e a Comissão de Segurança Interna começaram a massacrá-lo sem a mínima prova, só com insinuações, eu deveria ter ido para os jornais, expor o que sabia e defendê-lo, mas não o fiz. — Ergueu lentamente a cabeça. — Estava por baixo, e, como já disse, minhas últimas e importantes fontes de informação eram o presidente Earnshaw e o fantasma de Madlock. Senti que defendê-lo seria desencadear um ataque contra eles. Mas eles me eram necessários, e por isso, apesar de tudo o que fez por mim, fiquei de braços cruzados. A fim de resolver meu dilema, limitei-me a ir para um lugar qualquer, Chicago, creio eu, e trabalhar noutro assunto, enquanto o ódio se desencadeava sobre você. Não fiz a reportagem das audiências do Congresso. Acho que pensou que eu fugi de você em Washington, como já tinha fugido de Elazel, mas desde então não se passou um dia em que não me sentisse culpado e envergonhado. — Fez uma pausa e prosseguiu:

— Fui ignóbil, pois sabia que era quase um amigo e que poderíamos vir a ser bons camaradas. De modo que...

Comovido com as lamentosas desculpas do jornalista, Brennan cortou com firmeza:

— Jay, mesmo que tivesse ficado em Washington, pouco teria adiantado. Ninguém poderia ajudar-me, a não ser Madlock, Varney ou Rostov. Ora, Madlock morrera, Varney fugira, e o mesmo acontecera com Rostov. Não pense mais nisso. Éramos amigos e continuamos a sê-lo.

— Fico-lhe grato por isso, Matt. — Respirando fundo, Doyle apoderou-se de outro sanduíche e pô-se a mastigá-lo. — E que diabo faz aqui? Tornou-se repórter?

Brennan soltou uma risada.

— Deus me livre! Mal sei escrever meu nome. Não, trata-se de um subterfúgio. — Olhou em redor, depois murmurou:

— Neely conseguiu-me a credencial. Já lhe disse que Rostov era uma das pessoas que poderiam inocentar-me. Pois bem, ele está em Paris...

— Não sabia. Julguei que tivesse morrido.

— Muitos o julgaram morto ou exilado na Sibéria. Mas está aqui. Creio que lhe perdoaram devido a seu bom comportamento. O primeiro-ministro Talanski precisa de peritos capazes sobre a China, e é por isso que Rostov se encontra neste momento no Palais Rose, como ministro-assistente para os Negócios do Extremo Oriente. É uma espécie de promoção. No entanto, ainda não tive oportunidade de me encontrar com ele. Neely pensou que eu poderia apanhá-lo na entrevista coletiva desta manhã. Assim o espero. Os americanos podem assistir a ela, não é verdade?

— Sem dúvida. Os russos fornecerão seus comunicados diários num dos gabinetes deste andar, tendo à sua disposição o quarto branco e dourado da ala esquerda, encimado por uma grande placa com as iniciais “URSS”. — Sacudiu a cabeça de um lado para o outro e confidenciou:

— Matt, estou aqui representando Earnshaw, e isso tem certa importância. Se puder fazer alguma coisa...

— Obrigado, Jay, mas não é preciso. Se Earnshaw soubesse, despedi-lo-ia. Não, eu me arranjarei.

— E que importa que me despeça? Não tenho necessidade deste emprego. Acredite que é verdade, Matt. Gostaria de ajudá-lo, mesmo no aspecto informativo. Em tudo.

Brennan ponderou a oferta:

— Para ser franco, eu gostaria de ir aos locais onde possa acidentalmente encontrar Rostov. Gostaria, por exemplo, de saber se Rostov participará desta entrevista coletiva. É claro que é uma coisa que ninguém...

— Eu posso sabê-lo. Sem dúvida que posso — disse Doyle, fazendo estalar os dedos... — Tenho um amigo simpático entre a multidão de jornalistas russos. Não sei se já ouviu falar nele. É Igor Novik, do Pravda. Há muitos anos que nos encontramos nestas conferências. A amizade entre nós surgiu logo que nos vimos pela primeira vez. Ele me chama Henrique VIII e eu o trato por Balzac. É ainda mais gordo do que eu. Na verdade, a melhor maneira de esquecermos a Cortina de Ferro é comermos juntos um Chauteaubriand com sauce béarnaise. A propósito... já ouviu falar do grande gourmet francês, Claude Goupil? Pois convidou-nos a ambos, a Igor e a mim, para sermos seus convidados de honra no próximo banquete da Société des Gastronomes, o que acontece sempre que nos encontramos em Paris. Igor e eu estávamos precisamente falando sobre isso quando vi você. Ele está na sala ao lado. Vou perguntar-lhe se Rostov participará da entrevista coletiva dos russos.

Brennan viu Doyle transpor a porta de comunicação. Depois, acabou a bebida e pôs-se a ler os comunicados de imprensa.

Outros correspondentes, na maior parte ingleses, formavam um círculo junto ao bar, pelo que Brennan se afastou, esperando perto da entrada que dava para o salão de fumar, tentando distrair-se com os comunicados e pedindo a Deus que Doyle voltasse com notícias favoráveis.

Acabava de ler o primeiro comunicado quando Doyle surgiu maciçamente na sua frente.

— Parece que hoje não há nada para você, Matt — disse ele, meneando a cabeça. — Segundo Igor, os russos só darão a primeira entrevista coletiva amanhã. Hoje haverá apenas uma breve declaração do primeiro-ministro Talanski. Perguntei-lhe se Rostov se encontrava aqui, com o pretexto de colher certas informações para Earnshaw. Pois bem, nenhum dos delegados russos estará presente às entrevistas preliminares desta semana. Quanto a Rostov, terminado seu trabalho, seguiu para a embaixada russa. Sabe onde é? A poucos metros do Boulevard St.-Germain, Rue de Grenelle, 79.

— Duvido que me deixem entrar. Mas posso tentar telefonar para Rostov, marcar um encontro com ele.

— Nada se perde em tentar — observou Doyle, pensativamente. — Agora me lembro. Tenho de ir jantar com a... a senhorita de que lhe falei, Elazel Smith.

— Felicidades.

Doyle correspondeu com um débil sorriso:

— Preciso dela. De qualquer maneira, é mais um degrau. Mas o que me ocorreu há pouco foi que ela tem feito, nos últimos anos, a cobertura de todos os acontecimentos de Moscou. Deve conhecer a maior parte dos delegados russos. Posso lhe expor seu problema e ver se ela sabe onde...

Brennan interrompeu-o com um gesto.

— Não se preocupe. Nada significo para a srta. Smith.

— Não preciso mencionar seu nome.

— Esqueça isso. Não lhe deve faltar assunto para conversar.

— Deixe-me fazer alguma coisa por você — implorou Doyle, ao mesmo tempo em que refletia. — Espere. Parece-me que descobri. O que realmente deseja saber são os locais de Paris onde poderá encontrar Rostov, não é verdade?

— Sim, isso seria útil — concordou Brennan.

— Quando sair daqui, irei à ana pedir certos dados sobre o primeiro-ministro Talanski e o presidente Kuo. Nessa altura, darei uma olhadela nas últimas fichas sobre Nikolai Rostov. Deve haver qualquer coisa sobre o horário de suas atividades. Depois, perguntarei a certos informantes parisienses o que sabem. Se conseguir boas notícias, eu as enviarei para seu hotel, o Califórnia, não é?

— Fica em frente de seu escritório. — Brennan estendeu a mão a Doyle, que a apertou calorosamente. Brennan sorriu. — Obrigado, Jay.

— Jantaremos juntos ainda esta semana. Poderemos trocar impressões. Depois, telefono-lhe.

A promessa de Doyle de telefonar-lhe lembrou a Brennan que também tinha uma chamada a fazer. Quando se detivera por breves instantes no hotel para ir buscar a credencial de imprensa, havia uma nota de Lisa, rabiscada às pressas, pedindo-lhe que passasse pelo hotel algumas horas mais tarde para receber novos recados dela. Agora, perguntava-se o que significaria aquela nota crítica e que espécie de recado teria ela para lhe transmitir.

Deixando o Palais Rose, sentia-se desanimado pela impossibilidade de contatar Nikolai Rostov. Enquanto atravessava o pátio, Brennan compreendeu que esperara demasiado de sua viagem a Paris. De qualquer maneira, a descoberta de que Rostov estava vivo e em Paris fora uma compensação, talvez mesmo um trunfo para o futuro. Apesar do habitual cinismo que normalmente lhe destruía todas as ilusões, Brennan, no íntimo, acreditava que o simples fato de Rostov estar ao alcance lhe resolveria automaticamente o problema e mudaria o rumo de sua vida. Até então, não enfrentara a sério o fato de Rostov, devido a seu alto posto, a seu sobrecarregado horário, a sua dependência da segurança russa, manter-se invisível ou inacessível. Sobretudo, não levara plenamente em conta outro fato:

o de Nikolai Rostov talvez se recusar a vê-lo.

Na Avenue Malakoff, procurou em redor uma cabina telefônica. Antes de decidir qual seria a melhor maneira de abordar Rostov através da embaixada russa, tinha de satisfazer o pedido de Lisa.

Por fim, dirigiu-se a um restaurante, Le Berlioz, que se lembrava de ter frequentado em dias melhores. Entrou, localizou o telefone e ligou para o Hotel Califórnia. O que o surpreendeu não foi o fato de o porteiro, M. Dupont, ter um recado da srta. Collins, mas o de saber que esse recado era urgente.

Ouviu atentamente a leitura que M. Dupont lhe fez da mensagem de Lisa:

“Matt, se puder, tente vir ter comigo à Maison Legrande, ao meio-dia. É a casa de modas que fica na Avenue Montaigne. Darei instruções para que o deixem entrar. Esperarei por você junto ao balcão. Se se atrasar, procure-me na sala de desfiles. Creio que isto é importante. Trata-se do dito-cujo. Lisa”.

Brennan sentiu o coração pulsar aceleradamente, enquanto desligava. A mensagem dizia que ela queria vê-lo por causa do “dito-cujo”, e isso só poderia significar Rostov. No entanto, não tinha sentido. Rostov e Legrande não poderiam ter ligação um com o outro. Perplexo, apressou-se em sair do restaurante para chamar um táxi.

Quinze minutos depois, Brennan encontrava-se frente ao porteiro africano de balandrau e turbante, que guardava a entrada em forma de torre, verde-clara, da Maison Legrande. Do outro lado da porta, uma redoma de vidro exibia um nu de bronze de Giacometti, com as partes inferiores disfarçadas por uma faixa de seda.

Tendo-se identificado, Brennan penetrou num deslumbrante vestíbulo de espelhos bisotados e tapeçarias de brocado. Depois, atrás de um grupo de mulheres que tagarelavam em torno de um indivíduo desengonçado, viu Lisa, que esperava junto ao balcão. Aproximando-se ao longo do fofo tapete com flores estampadas, admirou uma vez mais seu lustroso cabelo negro, o perfil grego, o harmonioso corpo de cintura fina, as pernas compridas e perfeitas, e de novo abençoou sua sorte.

Lisa dirigiu-se a ele e estendeu-lhe a mão enluvada, levando-o para longe da tagarelice do grupo de mulheres.

— Estou tão contente de que tenha vindo, querido! — segredou. — Escute, é uma grande cartada, mas talvez não signifique nada. Refiro-me ao dito-cujo. — Calou-se e fitou-o nos olhos com súbita esperança:

— A não ser que já o tenha visto. Encontrou-o?

— Telefonei para o hotel. Disseram-me que nunca tinham ouvido falar nele. Fui lá. Por cem francos, passaram a conhecê-lo. Mas ele já havia saído. Fui ao Palais Rose. Já tinha saído também. Parece que está agora na embaixada soviética. É como tentar ver Kaaba em Meca, mas ainda mais difícil. Foi isso. Por hoje, nada.

Ela tocou-lhe na mão com simpatia:

— Sendo assim, talvez isto o ajude, ou talvez não passe de uma tolice. Há momentos, soube que a mulher do primeiro-ministro Talanski, Tânia, e... adivinhe quem?.. . a mulher de Rostov, Natacha... Natacha.. . Natacha Rostov... assistirão ao desfile de modelos Legrande. Devem chegar dentro de minutos. Consegui um bilhete de entrada para você. Não sei se isso pode ajudá-lo, mas...

— É interessante — disse Brennan lentamente. — Deixe-me pensar.

— Vou dizer-lhe o que me veio à cabeça. Talvez no intervalo eu consiga que Legrande o apresente a Natacha Rostov como...

como um velho amigo do marido. Então, poderá dizer-lhe que gos taria de falar com ele. Talvez seja melhor do que nada.

— Sim, talvez, Lisa.

Ela começou a empurrá-lo para o centro da sala.

— Creio que é importante apresentá-lo primeiro a Legrande. Conheci-o em sua última viagem a Nova York. Somos muito amigos. Acompanhe-me.

Conduziu-o até o círculo em que Legrande se via encerrado. Enquanto o famoso figurinista se dirigia às mulheres — representantes das revistas de moda e várias clientes —, gestos aéreos e esvoaçantes acompanhavam seu monólogo extravagante, rococó, por vezes calculadamente chocante. Suas ouvintes, mesmo as veteranas da Vogue, blarper’s Bazaar, Womerís V/ear Daily, seguiam encantadas o ritmado discurso.

Observando-o, Brennan viu uma reencarnação de Aubrey Beardsley, ilustrador de Salotné, de Oscar Wilde, e pequeno gênio de The Yellow Book. Contudo, apesar de sua extrema magreza, de sua graça efeminada, parecia ágil e musculoso como um jovem Nijinski. Por baixo dos longos cabelos encaracolados, o rosto de adolescente revelava astúcia e inteligência. Nem a pulseira num dos pulsos nem a camisa de seda folgada decepcionaram Brennan. O jovem figurinista francês era um homem de fibra.

Fragmentos do que Brennan lera a respeito de Legrande ou do que ouvira Lisa dizer, em Veneza, vieram-lhe ao espírito. Legrande tinha começado como discípulo de Balmain, depois de Balenciaga, até que uma grande empresa de perfumes lhe ofereceu a possibilidade de se estabelecer. Ao abrir sua maison com uma exposição de modelos no valor de trezentos mil dólares, sua ousadia, seu instinto em lembrar a todas as mulheres que seriam sempre jovens contanto que fossem femininas, haviam-no transformado no ídolo da imprensa e feito de sua casa a favorita das clientes americanas, assim como dos ricos compradores internacionais. E agora esse homem, símbolo do luxo e da decadência modernos, ia receber a companheira do chefe da proletária Rússia e sua amiga, a mulher de Rostov. Era inacreditável!

Brennan aproximou-se para ouvir Legrande, que dizia:

— Sim, minhas caras. Este ano, acentuo o busto porque é o ponto forte da beleza feminina. O rosto, o torso, os membros, podem revelar os anos, mas o busto preserva por mais tempo a juventude e os atrativos. Lembram-se do requintado pagão que foi Keats? “Formosos seios que os olhos meus animam.” O conceito de beleza varia de século para século. Reparem nos diferentes ideais da pintura flamenga, da Renascença italiana, do Expressionismo francês, e notarão que o único objeto que adoraram em comum, através dos tempos, foi o busto feminino. São meus mestres. Hoje, Legrande devolve a feminilidade a todas as mulheres.

Divertido, Brennan viu Legrande ajeitar os punhos da camisa, revelando abotoaduras de ouro em forma de pequenas tesouras, ao mesmo tempo em que concluía:

— Agora, a resposta à sua pergunta, minhas caras. Por que motivo Mme Tânia Talanski e Mme Natacha Rostov... (na verdade Rostova, no feminino russo, caso haja aqui algum purista, coisa que eu não sou, mas pouco importa) por que motivo estas respeitáveis senhoras decidiram honrar minha coleção? Por duas razões, creio eu. Em primeiro lugar, sua pátria emergiu do outro lado das estepes para estender a mão aos ocidentais, e com ela emergiu a feminilidade e o gosto pela moda da mulher russa. Em segundo lugar, levei uma modesta coleção a Moscou, há dois anos, e apresentei-a no auditório da gum, a gigantesca aglomeração de estabelecimentos da Praça Vermelha. Mme Talanski estava lá, e tivemos uma agradável conversa. Ela ficou encantada com meus figurinos e muito mais com minha honestidade. Assisti a várias exposições de coleções russas no Dom Modelei, a mais famosa casa de modas das trinta e tantas que há na Rússia, e disse a madame... Bem, minhas caras, para ser franco, disse-lhe que a moda e os figurinos russos eram horrorosos. Minhas caras, o comunismo é tal qual o cristianismo, embora andem sempre às turras, mas Presidiuns e Politburos não sabem desenhar vestidos. Eu disse a madame que é impossível fazer bons figurinos para as mulheres russas quando se exige que elas continuem a operar guindastes, a tratar das sementeiras ou a dirigir o trânsito. Avisei-a de que a natalidade na União Soviética acabaria por desaparecer, a não ser que as mulheres se vestissem, de fato, como mulheres, para os banquetes, as festas e para dormir. E acrescentei que a ideia de utilizarem aquelas robustas matronas como manequins, em vez de esbeltas e bonitas jovens, era errada (e isso enfureceu-me), como era um erro vesti-las de serapilheiras e bábuchkas. Durante todo o tempo de minha estada em Moscou, não vi o mais leve indício de busto feminino. Úberes, sim, mas nenhum busto cativante. Hoje, espero mudar essa lamentável situação do mundo bolchevista. Veremos, veremos! Mas quero crer que Mme Talanski veio aqui para ser convencida. E a partir de hoje, minhas caras, o romance renascerá na mãe Rússia, e a natalidade aumentará!

O círculo de mulheres soltou risadinhas e gorjeios, e Legrande fê-lo dispersar-se rapidamente.

— Depressa para o salão, minhas caras. O desfile dos modelos começa dentro de minutos. Tenho de ficar para receber minhas convidadas de honra.

Quando elas se retiraram, Lisa fez Brennan avançar, para apresentá-lo a Legrande e à austera mulher de meia-idade, de óculos escuros, que estava ao lado dele e estendia ao figurinista um lenço de renda. Legrande limpou a testa, reconheceu de repente Lisa, curvou-se, levando rapidamente a mão dela aos lábios, e depois mirou-a com ar crítico.

— Lisa, minha querida! — exclamou. — Mais divina do que nunca! Então, finalmente a deixaram voar pelos seus próprios meios?

— É verdade, Legrande.

— Ótimo — disse ele, tomando entre os dedos a costura do vestido de Lisa. — Uma bela cópia Legrande. Mas não é para a próxima estação. — Traçou um grande V da omoplata até a cintura e prosseguiu:

— Tiraremos tudo isto, e seu magnífico busto não ficará mais escondido. Daqui por diante, teremos Lisa Collins inteirinha. — Sorriu torvamente. — Uma vez, um deselegante jornalista italiano disse que uma mulher nua é como uma galinha depenada. O contrário é que está certo. Creio, como tantas vezes disse Courrèges, que uma mulher nunca é mais bela do que quando está nua. A arte do couturier está em saber despir decentemente a mulher. Por isso é que todos nós merecemos ver Lisa Collins inteirinha.

— Tentarei cooperar — disse Lisa, agarrando Brennan pelo braço. — Legrande, quero apresentar-lhe meu amigo Matthew Brennan. Sr. Brennan, Mme Demaillot, a directrice de Legrande.

Depois de os três se terem cumprimentado, Lisa acrescentou:

— Legrande, insisti com o sr. Brennan para que me acompanhasse ao desfile. É um velho amigo do marido de Mme Natacha Rostov, o...

A directrice puxou a manga de Legrande, e este olhou para uma vendeuse que gesticulava do outro lado do salão. Rapidamente, ordenou a Lisa:

— Vá para dentro. O desfile começou.

Lisa não escondeu seu desespero:

— Julguei que gostaria de apresentar o sr. Brennan a Mme Rostov.

Inteiramente distraído, Legrande limitou-se a comentar:

— Sim, Lisa. Vê-la-ei mais tarde.

Seguindo atrás da vendeuse que gesticulava, Lisa e Brennan entraram no salão principal de Legrande. Brennan esperava ser introduzido numa sala de exposições de plateia ordenada e serena, mas em vez disso viu-se num abafado e rumoroso mar de gente. Por toda parte, vendeuses de vestidos longos escuros que arrumavam peças de tecido, clientes do estabelecimento, famosos costureiros sentados em redor de um estrado atapetado.

Chocado com a súbita transição da solene atmosfera das sessões do Palais Rose para a frivolidade daquele carnaval da moda, Brennan tentou seguir Lisa até os lugares que lhes haviam sido reservados, na quinta fila, atrás do estrado. De repente, a voz forte da directrice, Mme Demaillot, anunciou o início do desfile de modelos Legrande, e logo a balbúrdia cessou e um silêncio pesado caiu sobre o salão.

Vinda dos cortinados de brocados, a voz de Mme Demaillot indicou, em francês e em inglês, o número e o nome do primeiro vestido. Um esbelto manequim louro, de olhos cor de amêndoa, faces redondas e lábios pálidos, entreabertos, surgiu por entre os cortinados. Atravessou o estrado com um vestido para a tarde, de um amarelo brilhante, com exceção dos adornos em forma de meia-lua, de um amarelo ainda mais brilhante, que rodeavam os seios. Parou em frente de Brennan, fazendo avançar uma perna bem-torneada, arqueando o corpo para trás, endireitando-se, dando meia-volta e retomando a marcha, desdenhosamente, seguida por uma estrondosa ovação. Logo apareceu outro manequim. A coleção Legrande estava lançada.

Enquanto Lisa se cansava fazendo anotações — aquilo custara à firma dois mil dólares para a caution do comprador que a tinha enviado àquele desfile —, Brennan, em estado de euforia, observava o vaivém dos esqueléticos manequins. Avançavam com provocantes olhos sombreados e úmidos lábios entreabertos, paravam, contorciam-se, tiravam os casacos, mostravam os vestidos de lantejoulas, crepe ou seda, sem alças ou com um decote de ombro a ombro. Arrastavam peles, eram aclamados. Durante quinze minutos, aquele desfile de belezas e tecidos roçagantes foi como que um calmante para Brennan.

Sua mente voltou a Rostov, à mulher de Rostov, vigiando constantemente a porta por onde ele e Lisa tinham entrado no salão. Mas, transcorrida meia hora, as convidadas de honra continuavam sem dar sinal de vida. De novo desanimado, deixou de se interessar pela porta e pelo estrado e mergulhou numa espécie de modorra. Não soube por quanto tempo ficou alheio ao que o rodeava. Tinha certeza de não ter dormitado, no entanto era como se a agitação e as conversas em volta o tivessem acordado, e sentiu a mão de Lisa apertar-lhe o braço, ao mesmo tempo em que lhe segredava:

— Matt, Mme Talanski e Mme Rostov estão atrás de você! Legrande acaba de trazê-las.

Ele se endireitou na cadeira a tempo de ver o grupo que penetrava no salão. Legrande apontava para várias cadeiras vazias da frente, e a mais idosa e corpulenta das duas mulheres meneava teimosamente a cabeça, recusando-as e dando a entender que preferia um lugar mais discreto. Atrás do grupo, via-se pelo menos uma dúzia de robustos policiais à paisana, e, pelo corte dos ternos, Brennan concluiu que quatro deles deviam ser agentes do icgb.

Com ar infeliz, mas continuando corajosamente a proferir amabilidades, Legrande conduziu o grupo até as cadeiras da última fila. Uma das mulheres, com seus sessenta anos, metida num vestido sem forma definida, cor de mostarda, seguia à frente, e, pelas atenções que despertava, Brennan soube que era Tânia Talanski, mulher do primeiro-ministro. A outra visão aérea de mulher, que não devia ter mais de quarenta anos, com um conjunto de saia e casaco xadrez e chapéu do mesmo tecido, e que parecia enervada, devia ser Natacha Rostov, concluiu Brennan. Observando-a, Brennan recordou-se de um jantar com Rostov, em Zurique. Já embriagado, Rostov lamentava que os homens fortes se casassem com mulheres baixas e frágeis:

“É como tentar verter um litro de vodca num copo de vinho”, comentava Rostov, “nunca se coloca o suficiente para se ficar satisfeito”. Brennan não duvidou de que aquela insignificante criatura fosse a mulher de Rostov.

Voltou-se para Lisa:

— Como poderei abordá-la?

— Dentro de dez minutos haverá um intervalo.

— Ótimo. — E logo acrescentou:

— Lisa, dê-me uma folha de seu bloco de notas. — Ela estendeu-lhe o papel e interrogou-o com o olhar ao vê-lo preparar o lápis. — Quando eu me encontrar com Mme Rostov — explicou —, tenho certeza de que ela não guardará uma única palavra de quanto lhe disser. É tudo muito confuso. Há pessoas e nomes demais. Vou escrever uma mensagem e pedir a ela que a entregue ao marido.

— É uma ideia estupenda.

— A melhor que já tive. — Começou a escrever. — Pode ser que dê resultado.

Enquanto Lisa voltava a concentrar a atenção no desfile, Brennan refletiu na sua mensagem e depois escreveu-a o mais rapidamente que pôde, endereçando-a a Nikolai e declarando que estava em Paris para discutir com ele certos assuntos particulares, pelo que lhe pedia um breve encontro, esperando que o velho amigo lhe telefonasse nesse sentido. Assinou seu nome por inteiro, seguido do endereço do hotel e do número do telefone.

Quando acabou, já não havia manequins na passarela, e as luzes tinham se acendido. Guardou a mensagem do bolso e levantou-se.

— Vamos, Lisa. Vejamos se Legrande me apresenta a ela.

Enquanto vários assistentes, já de pé, formavam grupos e classificavam de divino o desfile, a maioria mantinha-se sentada, tomando notas, servindo-se de champanha ou sucos de fruta, ou retirando salgadinhos das bandejas que lhes eram apresentadas por garçons de jaqueta verde.

Seguido por Lisa, Brennan abriu caminho por entre as filas de espectadores, desceu a irregular coxia até o fundo, e então o coração caiu-lhe aos pés. Legrande e suas convidadas russas estavam rodeados por uma muralha de jornalistas de moda, que pretendiam ser apresentados a Mme Talanski ou entrevistá-la.

A multidão em torno de Legrande e de suas convidadas aumentava cada vez mais em todas as direções.

Desalentado, Brennan olhou para Lisa, que também não disfarçava a decepção.

— Seriam necessários dois dias para lhes ver a cor dos olhos — comentou Brennan. — Não há nada a fazer, Lisa?

Lisa pôs-se na ponta dos pés:

— Espere... creio que sim. Veja, Matt.

Brennan espreitou por cima das cabeças e viu que Mme Talanski, a mulher do primeiro-ministro russo, era a vedete da festa. Para os outros, com exceção de Brennan, Mme Rostov não passava de uma criatura sem importância. Os ruidosos representantes da imprensa de moda queriam a mulher do primeiro-ministro, queriam a convidada número um e mais ninguém. A chusma de jornalistas metera-se entre as duas mulheres russas, separara-as, apoderara-se de Mme Talanski, isolara Mme Rostov, relegando-a rudemente para um canto. Então, a insignificante criatura, após um esforço inútil para manter sua posição, desistiu e retrocedeu, tentando escapar àquele turbilhão.

Brennan não esperou por Lisa. Ladeou o círculo de mulheres que gesticulavam e gritavam, depois deteve-se. Podia ver Mme Rostov com o chapéu caído, ofegante e tímida, apanhada entre os membros mais afastados da horda.

Empurrando para o lado duas agressivas jornalistas de moda, Brennan abriu uma passagem por onde a mulher de Rostov escapara. Ao ver-se livre, ela respirou, aliviada, mas, ao notar Brennan, que lhe bloqueava o caminho e parecia querer dirigir-se a ela, cobriu a boca e retrocedeu.

— Mme Rostov — explicou Brennan —, sou amigo de seu marido e gostaria...

Meteu rapidamente a mão no bolso do casaco para tirar a nota que havia escrito. Os olhos de Mme Rostov cravaram-se na protuberância do bolso e ela gritou:

— Niet! Niet! Kto ti?

Ele conseguira tirar a folha de papel e tentava explicar-lhe:

— Sou gospodin... gospodin... továrich. ..

Mas ela, protegendo-se desesperadamente com o antebraço, gritou por socorro em russo. Brennan agarrou-lhe a mão erguida e procurou obrigá-la a pegar na mensagem, mas ela fechou os dedos, esforçando-se por afastá-lo.

— Ouça, madame. Só quero...

Nesse instante, umas pesadas mãos, como se fossem grampos de aço, agarraram-no pelos ombros. Curvando-se, Brennan tentou voltar-se para dar uma explicação, mas as mãos prenderam-no pelas axilas e apertaram-no como se fossem tornos. Protestando, Brennan viu-se erguido do chão, como um boneco, e levado para fora do salão, até o vestíbulo deserto da entrada.

Atirado contra o balcão, Brennan mal conseguia respirar. Na sua frente estavam três policiais à paisana, de olhar duro, irritados, fortes e musculosos como levantadores de pesos, e um deles praguejava em russo. Vários agentes franceses da dst aproximavam-se correndo. O mais velho e autoritário, menos ágil do que os outros, esbarrou com os agentes do kgb, lançou-lhes uma pergunta em russo e recebeu na mesma língua uma torrente de respostas.

Com um gesto de assentimento, o francês chegou a poucos centímetros de Brennan, lançou-lhe um olhar crítico e disse:

— Je suis Vinspecteur Gorin, de la Sécurité Présidentielle. Quelle est votre nationalité?1(1 "Eu sou o inspetor Gorin, da Segurança Presidencial. Qual é sua nacionalidade?” Em francês no original. - N. do E.)

Ofegante, Brennan respondeu:

— Americano.

Imediatamente, o inspetor dirigiu-se a ele num inglês impecável:

— Seu passaporte.

Brennan entregou-o, e o inspetor, tendo-o examinado, ergueu os olhos e inquiriu:

— O que tinha na mão quando atacou a mulher do ministro soviético?

— Isto. — E Brennan deu-lhe a mensagem. O inspetor Gorin pegou-a com uma das mãos, enquanto com a outra apalpava os bolsos de Brennan, procurando uma arma. Tranquilizado, pôs-se a ler com vagar a nota, depois voltou a erguer os olhos:

— O ministro Rostov é seu amigo?

— Era. Conhecemo-nos como delegados na Conferência de Zurique.

— Pode prová-lo?

— Chame Rostov. Gostaria que o fizesse. Ou melhor, telefone para a embaixada dos Estados Unidos.

O inspetor fingiu não ter ouvido.

— Onde está hospedado?

— No Hotel Califórnia.

O inspetor dirigiu-se ao agente francês que se encontrava atrás:

 

— Voilà son passeport. Allez voir ce que nous avons sur lui, et revenez immédiatementl(1 “Aqui está o passaporte dele. Vá ver o que temos em relação a ele, e volte imediatamente.” Em francês no original. - N. do E.).

— À vos ordres, monsieur2(2 “Às suas ordens, senhor.” Em francês no original.- N. do E.) — respondeu o agente, que logo se afastou.

Brennan viu Lisa, assustada, espreitando-o da porta. Tentou acenar-lhe, mas o inspetor, notando o gesto, encaminhou-se para Lisa e começou a interrogá-la. Incapaz de ouvir o que quer que fosse, Brennan olhava-os, enervado. Quando o inspetor se despedia de Lisa, levantando o chapéu, e se dirigia de novo para Brennan, seu subordinado, que acabava de regressar, interceptou-o. Trocaram algumas palavras indistintas, que o inspetor acompanhou com gestos de assentimento, depois este chamou os homens do kgb e falou-lhes rapidamente em russo. Estes pareceram ficar satisfeitos com as explicações dadas, lançaram um último olhar a Brennan e voltaram para o salão.

Brennan adiantou-se:

— Então?

— J’ai des bonnes nouvelles pour vous3(3 “Tenho boas notícias para o senhor.” Em francês no original. - N. do E.) — respondeu o inspetor Gorin.

“On vous a innocenté. Está livre. Mas dou-lhe um conselho, monsieur. Não volte a tentar aproximar-se da esposa de um ministro ou de qualquer ministro, de forma tão abrupta e suspeita, enquanto durar a Conferência de Paris. Na próxima vez pode haver tiros primeiro e perguntas depois. Se quer falar com o ministro Rostov, procure-o. É a melhor maneira. Bom dia, M. Brennan.”

Finalmente a sós com Lisa, Brennan convenceu-a de que tudo estava em ordem. Como tinha perdido o interesse pela coleção de Legrande, insistiu em que ela regressasse a seu lugar e acabasse o trabalho. Quanto a ele, prometeu que não perseguiria Rostov nos próximos dias. Não voltaria a haver assaltos de surpresa a fim de apanhar Rostov. Iria para o hotel descansar e pensar na melhor maneira de prosseguir em suas diligências.

Com relutância, Lisa voltou ao salão principal de Legrande. Vendo-a sentar-se, Brennan encaminhou-se, pensativo, para a saída da casa de moda e seguiu a passo lento em direção ao hotel. Ao passar pela Avenue Montaigne, descobriu que sua temeridade e o emprego da força o divertiam mais do que o aborreciam. Mas o que sobretudo ele achava engraçado era o conselho do inspetor:

“Se quer falar com o ministro Rostov, procure-o pessoalmente. É a melhor maneira”.

 

A melhor maneira!

Era como aconselhar um turista, ansioso por descer da Torre Eiffel, a saltar. A melhor maneira seria saltar. Chegaria rapidamente aonde queria — nem que fosse de cabeça para baixo.

Não. Depois daquela breve experiência com o kgb, não podia se arriscar a saltar. Tinha de haver um caminho mais seguro e direto para chegar até Rostov. O que precisava fazer era orientar-se. Mas como? Mais do que nunca, sentiu-se perdido e muito menos confiante na possibilidade de vir a reencontrar o caminho.

Embora nenhuma delas fosse francesa, o garçom fez notar que as três formavam uma perfeita bandeira tricolor.

Riram, divertidas, sentadas no exíguo reservado, separadas dos outros por divisórias de madeira e vidro, cobertos por algumas cortinas. Enquanto Hazel Smith e Carol Earnshaw preparavam o fim da entrevista, Medora Hart brincava com a colher de sobremesa e tentava ver se, na verdade, formavam uma bandeira tricolor. Assim era, com efeito. Hazel vestia-se de vermelho, como se quisesse provar sua rebelde ousadia. Carol vestia-se de branco, como se pretendesse gritar sua virgindade. Medora vestia-se de azul, como se procurasse um complemento para sua melancolia.

Medora não estava arrependida de ter aceitado o convite de Hazel para almoçar. Tinha sido um almoço agradável, que a salvara da claustrofobia de seu quarto de hotel e do irritante telefone silencioso. Mas, infelizmente, o fato de ter companhia não alterara seu humor sem esperança.

Quando, duas horas antes, o telefone tocara, ela correra para ele certa de que era Sir Austin Ormsby. Mas tratava-se simplesmente de Hazel Smith, que queria saber se Medora tinha conseguido alguma coisa. A inutilidade de seus esforços para contatar Sir Austin levara-a a desabafar com Hazel, que, embora bastante atarefada, a ouvira com simpatia e condescendência.

Logo que, na noite anterior, soube que Sir Austin estava hospedado no Hotel Bristol, Medora não conseguiu se conter, como confessou a Hazel. Telefonou imediatamente para o hotel e pediu que ligassem para os aposentos dele. Alguém, no tom respeitoso de secretário de uma velha família, atendeu a chamada. Medora declinou seu nome e pediu para falar pessoalmente com Sir Austin acerca de um assunto estritamente confidencial. O bocal do telefone foi tapado do outro lado. Pouco depois, o secretário declarava que Sir Austin tinha saído, devia voltar cerca da meia-noite e então lhe telefonaria. Medora deu os números do telefone do hotel c de seu quarto.

Nem antes nem depois da meia-noite houve resposta, afirmou Medora a Hazel Smith. De manhã cedo, ela tentou telefonar de novo para os aposentos de Sir Austin, e alguém, provavelmente um criado, repetiu que Sir Austin não estava, acrescentando não saber quando ele regressaria. Uma vez mais, Medora -deixou seu nome e o número do quarto. Perto do meio-dia, completamente desnorteada, telefonou pela terceira vez e foi a telefonista do hotel quem a informou de que ninguém atendia nos aposentos de Sir Austin. A manobra era-lhe familiar, uma repetição do que acontecera havia três anos, depois do julgamento de Jameson, quando ela, em Paris, tentara se comunicar com Sir Austin, em Londres, sem o conseguir.

Excitada e encorajada pelo desespero, Medora compôs um desagradável telegrama dirigido a Sir Austin:

“Estou de posse de uma informação sobre sua família que lhe interessa. Aconselho-o a entrar imediatamente em contato comigo no Hotel San Régis”.

Preencheu dois impressos e mandou um para o Hotel Bristol e o outro para a embaixada britânica. Não recebeu resposta a qualquer deles.

— Desculpe aborrecê-la com tudo isso — disse a Hazel. — Da próxima vez, limite-se a perguntar-me pela saúde. Confesso que me sinto desesperada. De que me serve a pintura que Nardeau fez de Fleur Ormsby, se não consigo que Sua Graça a veja? Estou desnorteada.

— Acho que deveria falar sobre isso à imprensa — observou Hazel. — Obrigá-lo-ia a aparecer.

— Isso já me ocorreu, mas Nardeau só me autorizou a me servir de seu nome a título particular, isto é, para provar que o nu é realmente de Fleur Ormsby. Além disso, se eu publicasse uma reprodução do quadro, deixaria de ter um meio de coação sobre Sir Austin. Minha chance consiste em prometer não divulgá-lo, se ele fizer com que eu regresse à Inglaterra.

— Tem razão, Medora. É um problema intrincado.

— Demasiado, até para o meu pobre cérebro. Talvez fosse preferível eu me matar.

— Não diga tolices! — ralhou Hazel. — Deve haver uma maneira de obrigar Sir Austin a tomar conhecimento daquilo que você tem em seu poder. Tenho de me concentrar. Falaremos mais tarde. Agora, vou sair para um encontro... — Interrompeu-se abruptamente e perguntou:

— O que tem para fazer, Medora?

— Absolutamente nada, até a noite, quando estréio no Clube Lautrec. Continuarei a aguardar notícias de Sir Austin, que é o mesmo que esperar saber que você ganhou na loteria.

— Então ouça, Medora. Durante o almoço, vou entrevistar Carol Earnshaw. Ela está em Paris com o tio... Emmett Earnshaw, ex-presidente dos Estados Unidos.

— Oh, sim.

— Carol parece uma criança bondosa e pura. Deve ter a sua idade. Talvez seja mais nova. Creio que isso dará uma boa história. Bem, acaba de me ocorrer uma ideia. Pedi-lhe alguns esclarecimentos a fim de poder alinhavar o questionário. Perguntei-lhe se tinha conhecido pessoas famosas nesta viagem, e ela me falou de algumas, entre as quais Sir Austin Ormsby. Disse que o tio e Sir Austin eram amigos, que haviam se encontrado há dias em Londres e esperavam ver-se de novo aqui. Minha ideia é esta:

se Carol e o tio conhecem Sir Austin, talvez não fosse mau para você conhecer Carol. Podemos sondar o terreno. É possível que ela possa nos ajudar.

Medora duvidava:

— Por que ela aceitaria se comprometer comigo? Encontrei por toda a Europa algumas dessas pretensiosas e ricas moças americanas. Dir-se-ia que nasceram com cintos de castidade, de tal maneira olhavam para mim. Era como se eu estivesse suja e podre e isso fosse contagioso.

— Não, Medora. Não creio que Carol seja dessa espécie. Confie em minha intuição. Quero que venha. Por que não deixa esse miserável quarto e se junta a nós? Se nada de proveitoso conseguir, terá pelo menos uma refeição gratuita oferecida pela ANA e expulsará seu inimigo da mente durante uma hora. Não tem nada a perder.

— Não... não sei o que fazer...

— Decida-se, Medora. Siga o conselho da velha Hazel. Se continuar a se preocupar dessa maneira, acabará perdendo o juízo. Quero ajudá-la. Mas é preciso que comece por se ajudar a si mesma. Posso esperá-la daqui a uma hora?

Medora sentiu-se envergonhada. Continuava hesitante:

— Não se importa, realmente?

— Não tenho tempo para evasivas. Quero-a comigo e com Carol Earnshaw. Vamos nos encontrar no Restaurante Joseph, a poucos metros dos Champs-Élysées. Por volta da uma e meia. Espero você.

— Você é um amor, Hazel. Preocupa-se demasiado comigo. Se um dia eu voltar à Inglaterra, vou inscrevê-la para a Victoria Cross. Heroísmo contra o inimigo comum... Muito bem, estarei lá. E tenho certeza de que sua Carol é uma boneca.

Agora, no Restaurante Joseph, Medora Hart verificava que a intuição de sua amiga jornalista estava certa. Carol Earnshaw era uma boneca. Desde que Hazel as apresentara, cerca de uma hora antes, ela percebera isso.

Medora considerou o perfil de Carol, enquanto a jovem americana respondia, com eloquência e entusiasmo, à pergunta final feita por Hazel Smith. Analisou o penteado de adolescente de Carol, o nariz pequeno, os salpicos de sardas no rosto oval, fresco e puro, o vestido branco, simples è casto (vestido de primeira comunhão), e concluiu, com certa Inveja, que Carol era virgem. Devia ser maravilhoso, pensou Medora, ter dezenove anos, ser pura, gozar com excitação o presente e encarar com otimismo o futuro. Devia ser maravilhoso possuir todas essas vantagens, estar virgem e preparada para oferecer ao homem eleito uma alma transbordante de amor.

Medora sentiu os olhos marejarem-se de lágrimas de autocompaixão, e, receando estragar a pintura, decidiu não invejar Carol, desviando a atenção para o papel estampado de flores que forrava as paredes do restaurante. Depois, passeou o olhar pela sala do Restaurante Joseph até que o fixou numa grande planta verde colocada no centro.

Medora lembrou-se de que não podia comparar sua vida com a dos outros. Onde há vida, há esperança, disse consigo mesma, e, apesar do passado e de suas desilusões, ainda podia se sentir renovada e limpa por dentro, no caso de vir a encontrar um dia o homem ideal. Recordou uma peça americana a que assistira em Londres, na qual a heroína, já madura, depois de um passado “agitado”, acabava por encontrar seu verdadeiro amor, que, conhecendo-lhe o passado, sofria com isso. Então a heroína dissera ao herói que nunca imaginara que viria a conhecê-lo e amá-lo, e, por isso, não se guardara para ele. Mas agora que descobrira finalmente o homem com quem desejava viver para sempre, o passado não existia, ou não tinha qualquer significado, dado que nele não houvera amor, e só o presente contava e era significativo, porque ela estava apaixonada pela primeira vez, e, portanto, se considerava virgem em matéria de amor. Medora nunca esquecera aquelas frases. Mas, na sua atual situação, soavam-lhe falsas, pareciam apenas literatura.

— Garçon! — ouviu Hazel chamar, o que a fez voltar à realidade.

Hazel contava os francos para pagar o almoço, resmungando contra o hábito de os restaurantes franceses incluírem quinze por cento de serviço e ainda esperarem gorjeta.

— E quando se pensa que a palavra “tip” 1 deriva das iniciais de “to insure promptness” 2, fica-se derreado. — Mas logo que o garçom desapareceu com o dinheiro, Hazel sorriu. — É como se

1 “Gorjeta.”

2 "Para assegurar rapidez.” (N. do T.)

nos pisassem os calos — disse, ao mesmo tempo em que ajeitava o chapéu e pegava a bolsa. — Desisto da sobremesa. Já estou atrasada para outra entrevista. Fiquem à vontade, meninas, e aproveitem. Como até agora só eu falei, tenho certeza de que não lhes faltará assunto. — Levantou-se, alisou a amarrotada saia de tweed e concluiu:

— Obrigada pela entrevista, Carol. Prometo-lhe que agradará a seu tio... Medora, minha querida, não se preocupe. Vou me concentrar em seu problema. Devo me encontrar esta noite com certa pessoa... aquele homem que ontem nos interrompeu no café... e vou lhe contar o que se passa. Ele tem uma cabeça suficientemente grande para dar alguma ideia. Seja como for, falarei com você depois.

Viram-na sair apressada, e, quando ela desapareceu, os olhos de ambas se encontraram e elas sorriram desajeitadamente.

— Gostaria de ter a energia da srta. Smith — observou Carol.

— Ela deve adorar o seu trabalho.

— Acho que sim — respondeu Medora, mas, lembrando-se da confissão de Hazel, do que tinha sofrido por causa de um homem, acrescentou:

— É claro que nunca se sabe toda a verdade sobre as pessoas.

— Tem razão — concordou Carol —, nunca se sabe. — Parecia ansiosa por dizer mais alguma coisa, mas o garçom apareceu com as profiteroles glacées au chocolat, e ambas se sentiram aliviadas. A partida de Hazel abrira uma brecha que as deixava momentaneamente como estranhas. Em parte, porém, as profiteroles taparam essa brecha.

Quando Medora ergueu a cabeça, viu que Carol tinha acabado de comer e se dispunha a falar.

— Medora, quero lhe pedir desculpas por uma coisa que ignora — começou Carol. — Quando encontrei a srta. Smith e ela me disse que vocc almoçaria conosco, senti-me tão excitada como quando era criança e meu tio convidava uma estrela de cinema para jantar na Casa Branca. Disse à srta. Smith que estava ansiosa por conhecê-la, que na faculdade falávamos muito de você, porque era a mulher sedutora que todas sonhávamos vir a ser, com a diferença de que você não sonhava, vivia. Confessei à srta. Smith que não gostaria de voltar à faculdade sem tê-la visto. Portanto, foi com alegria que soube que você almoçaria conosco.

Surpresa, Medora disse:

— Sinto-me lisonjeada, Carol, mas não sou o que imagina.

— Fez uma pausa. — Talvez Hazel lhe tenha contado, não?

Carol engoliu às pressas e acenou afirmativamente:

— Contou. Espero que não se importe. Foi muito franca a seu respeito.

— Não me importo. Não é um grande segredo.

— Creio que ela o fez porque não queria que eu me comportasse com você como uma fã estúpida e de olhos esbugalhados. Pensou que isso pudesse embaraçá-la. Mas, francamente, gostei que ela me contasse. Assim, não só evitei portar-me como uma estúpida, mas compreendi como era ingênua e insensata. Não imagina como senti vergonha de mim mesma quando soube aquilo por que passou. Levianamente, todas nós, eu e minhas amigas, a julgávamos uma grande cortesã, capaz de subjugar os homens com um gesto ou uma palavra, todas essas loucuras, sem nunca supor o horror e a maldade que teve de suportar. Só quando a srta. Smith me contou foi que eu vi o caso Jameson sob uma nova luz e a considerei um ser humano, como eu, que suportava tudo isso na minha idade, e senti vergonha de minha infantilidade. E... bem, resolvi dizer-lhe.

Medora quis erguer-se e abraçar aquela moça, mas conteve-se.

— Foi muito amável cm contar-me isso, Carol. Fico-lhe grata.

Embaraçada, Carol retorquiu precipitadamente:

— Quando a gente é jovem e vive enclausurada, sob uma disciplina rígida, como eu, só sabe o que é ensinado e o que se lê nos livros. Até que a gente se emancipa e chega à conclusão de que a maior parte daquilo que aprendeu não passa de uma versão falsificada, feita de meias verdades. Recordo-me do que li sobre Mme Pompadour cm vários compêndios de leitura. Apenas fiquei sabendo que era uma mulher prendada e bonita e que, como amante do rei Luís XV, governou Versalhes durante vinte anos, possuindo tudo o que uma mulher pode desejar. Lemos essas coisas e somos levadas a concluir que a vida, a sedução, a condição de mulher, é isso. Há poucos meses, porém, li uma biografia honesta sobre Mme Pompadour, e meus olhos esbugalharam-se. Estava ali a verdade toda, o preto no branco. O rei Luís XV era um obcecado pelo sexo. Só pensava em fazer amor. E Mme Pompadour, essa pobre mulher, era frígida, não podia evitar isso, era realmente frígida, e o rei a importunava. Não é horrível? Ela detestava o contato sexual, no entanto era forçada a submeter-se para conservar sua posição de amante. Para isso, fez dietas especiais, tomou drogas excitantes e até implorou ao dr. Quesnay, o médico da corte, que a ajudasse. Ele a aconselhou a fazer mais exercício. Mas de nada adiantou. Sua vida privada era um verdadeiro horror. A maior parte das moças de hoje não sabem disso. Invejam-na como invejam você, Medora. Ainda bem que a srta. Smith me contou a verdade.

Ao ouvir aquela ingênua e simpática moça americana, e compreendendo que podia confiar nela como numa amiga, Medora inquiriu:

— Até que ponto Hazel lhe contou a verdade? Disse-lhe por que motivo me encontro em Paris?

— Sim, disse. Para ver Sir Austin. De fato, contou-me que você esperava convencê-lo em breve a deixá-la voltar a seu país.

— Hazel disse-lhe como eu esperava convencê-lo a me deixar voltar à Inglaterra?

— Não, não disse — respondeu Carol, hesitante.

— Como sabe, ele foi um dos que me expulsaram da Inglaterra com base na lei de imigração, embora o motivo real fosse uma acusação de imoralidade. É um dos responsáveis pelo meu exílio. Sabe de tudo isso?

— Sei. Acho isso tudo horrível. Não gostei dele quando o vi pela primeira vez em Londres. Tem qualquer coisa de egoísta e pouco sincero. Mas não posso dizer isso ao meu tio, que acredita em todo mundo e não imagina como o têm enganado. Quando a srta. Smith me falou de você, meu primeiro pensamento foi pedir ao tio Emmett que intercedesse junto a Sir Austin. Mas logo me lembrei de que o tio Emmett é um tanto antiquado e...

— Compreendo, e fico-lhe muito grata, Carol. Tem razão. Não daria resultado. Seja como for, não me importo de lhe confessar o que Hazel tão discretamente não quis dizer. Não vim a Paris para implorar a Sir Austin que me deixe regressar à minha pátria. Não o conseguiria, nem num milhão de anos. Estou aqui para obrigá-lo, por meio de chantagem, a me deixar voltar à Inglaterra.

Medora esperava que a companheira reagisse desfavoravelmente. Olhou-a de soslaio e notou com agrado que a única reação visível de Carol foi de intrigado espanto.

— Chantagem? — repetiu.

— Exatamente — confirmou Medora. — Pensei nisso, e é tão certo como Robin Hood ter roubado dinheiro aos ricos maus para ajudar os pobres oprimidos. Sir Austin usou seu poder para deturpar a lei, de forma a exilar-me. Agora, descobri a maneira de lhe conspurcar o nome, a não ser que ele revogue o que fez e se comporte com decência.

— Como? — perguntou Carol, ansiosa.

Medora contou toda a história de sua amizade com Nardeau e do nu de Fleur Ormsby que ele havia pintado. Viera a Paris, explicou Medora, com o único propósito de fazer um acordo com Sir Austin:

a garantia de poder regressar à Inglaterra em troca do escandaloso nu da mulher.

— Um plano perfeito, não acha? — inquiriu Medora. — Seria, na verdade, se não houvesse um óbice que não previ. Para que dê certo, tenho de ver Sir Austin. Pois bem, ainda não o consegui. Telefonei-lhe. Telegrafei-lhe. Nada. É um homem invisível. Não se pode negociar com uma pessoa que não se deixa apanhar. De forma que estou num beco sem saída.

— Talvez não — retorquiu Carol. — Por que não lhe manda uma carta, explicando-lhe exatamente aquilo que tem em seu poder? E por que não inclui uma fotografia da pintura?

— Pensei nisso, Carol. Mas não creio que ele desse atenção. Julgaria que é mais uma ficção de mulher histérica. Limitar-se-ia a rasgar a carta e a fotografia e ignorar-me. Além disso, minha intuição me diz que, se eu quiser vencer, o assunto terá de ser tratado calmamente e em particular entre mim e Sir Austin. Se minha carta e a fotografia fossem parar nas mãos de um terceiro, Sir Austin seria obrigado a contestá-las e exigiria de mim uma prova irrefutável. É certo que tenho Nardeau para me apoiar, mas não posso, isto é, não quero tornar pública a minha chantagem.

— Por que não escreve sinceramente a Sir Austin e o ameaça de divulgar o caso, se ele não concordar em encontrar-se com você?

— O resultado seria o mesmo, Carol, ou talvez pior. Como observou Nardeau, Sir Austin não é uma pessoa comum. É membro do gabinete inglês, convidado do governo francês. Pode participar minhas ameaças à polícia e fazer com que eu seja expulsa da França. Não quero correr esse risco. — Suspirou. — Oh! pensei em todas as possibilidades, em toda espécie de contratempos. Fui mais longe, até. — Refletiu por instantes, olhando para Carol. — Pensei em ir ter com Lady Ormsby, com a própria Fleur. É ela a principal vítima. Seu desejo de manter o nu secreto deve ser tão grande como o do marido. Talvez ela seja mais fácil de abordar. Se soubesse que tenho o quadro, faria tudo para reavê-lo e destruí-lo. Conseguiria que o marido levantasse a proibição da imigração que pesa sobre mim.

O entusiasmo de Carol foi imediato:

— É uma ideia excelente. Tem de aproveitá-la, Medora. Não deve ser difícil chegar até Fleur.

— Assim o espero — disse Medora —, mas não vejo como fazê-lo. Se lhe telefonar ou escrever, receberei o mesmo tratamento que o marido me deu:

o silêncio. Ela me conhece, sabe que fui sacudida do tapete da família. Procederá de modo igual, uma vez que também faz parte da família. Tive outra ideia, mas... — E a voz de Medora tremeu.

— Qual foi? — inquiriu Carol ansiosamente.

— Receio que lhe pareça fantástica. A Nouvelle Galerie d’Art vai apresentar uma grande exposição retrospectiva dos trabalhos de Nardeau, para comemorar seu sexagésimo aniversário. A inauguração é esta tarde, mas destina-se exclusivamente à imprensa e às celebridades. Esta manhã, recebi uma carta da Riviera, de Signe Anderson, atual modelo de Nardeau e também sua amante, como todos sabem. Fomos amigas. Signe escreveu-me dizendo que chegava hoje a Paris com novos óleos de Nardeau para a exposição. Convidou-me a ir à galeria para tomarmos uma taça de champanha.

Disse que contava comigo, mas é claro que não posso ir, pois coincide com as horas do meu trabalho. Então, lembrei-me de pedir a Signe que falasse com M. Michel Callet (chamam-lhe o “mau Michel”, é o vendedor dos quadros de Nardeau) e que o convencesse a expor o nu de Fleur como parte integrante da retrospectiva. Minha ideia era que Fleur, que se orgulha de ser uma famosa colecionadora de arte e admiradora de Nardeau, acabaria por visitar, mais cedo ou mais tarde, a exposição. Veria o nu (como não haveria de vê-lo?), reconhecê-lo-ia e ficaria terrivelmente aflita. Procuraria saber a quem pertencia. E M. Michel lhe diria. Então, ela seria obrigada a me receber para obter o nu. E eu imporia condições.

Se há alguém que tenha conseguido dançar sentado, esse alguém foi Carol Earnshaw.

— Medora! — exclamou com excitação. — É isso! Que ideia formidável! Por que não a põe em prática?

— Porque não daria resultado — respondeu Medora, fazendo uma careta. — Para isso seria forçoso que Fleur Ormsby visitasse a exposição. Ora, os rumores são de que ela não dispõe de tempo para isso. Não leu os jornais? Preside a vida social da Conferência de Cúpula. Dá recepções, vai a reuniões, tem encontros com celebridades, não pára um momento. Meu quadro ficaria pendurado lá, e eu à espera de que uma Fleur qualquer fosse admirá-lo. Entretanto, a conferência chegaria ao fim, ela regressaria a Londres, e eu teria perdido minha oportunidade.

Medora olhou para Carol, na expectativa de sua concordância, mas ficou desapontada ao notar que a companheira mal a escutava. Carol estava como que em transe, de olhos semicerrados, sobrolho franzido, mergulhada em seu mundo interior.

De repente, como se Carol fosse um boneco de molas, suas feições distenderam-se, os olhos se abriram e a boca revelou uma expressão de delírio:

— Achei, Medora! Já sei o que fazer!

Espantada, Medora murmurou:

— O quê?

— Sei como obrigar Lady Fleur Ormsby a ver seu próprio nu nessa tal galeria. — Agarrou Medora pelo braço. — Ouça, descobri como pôr as coisas em movimento, e posso fazê-lo. Como sabe, meu tio tem certa ligação com os Ormsbys. Estamos convidados para jantar com eles numa das próximas noites. Ainda não sei a data certa, mas isso não importa. O tio Emmett é a chave, e fará tudo para me ver feliz. Portanto, vou regressar ao hotel e dizer-lhe que estou ansiosa por ver a exposição de Nardeau, que a inauguração é hoje e que seria interessante convidarmos os Ormsbys, tanto mais que Fleur é uma admiradora de Nardeau e de sua pintura. Creio que dará resultado. O tio Emmett telefona a Fleur, convida-os a visitar a exposição e a jantar em seguida. É claro que, se Sir Austin estiver comprometido esta noite com os diplomatas, podemos adiar para amanhã ou depois. Mas Fleur é uma pessoa imprescindível nessas estréias sociais, e tenho certeza de que fará tudo a fim de ir hoje mesmo. Julgo-a até capaz de cancelar outros compromissos, só para agradar ao tio Emmett. — Carol largou o braço de Medora e sorriu-lhe. — O que lhe parece?

Medora não conseguia esconder seu nervosismo.

— Acha... acha cjue será possível, Carol?

— Sem dúvida que é! Consiga que o nu de Fleur seja incluído na exposição...

— Vou fazê-lo imediatamente.

—...e garanto-lhe que Fleur irá vê-lo.

Então, ligadas pela mesma intriga, deixaram o Restaurante Joseph, cada uma delas entregue a seus pensamentos. Separaram-se nos Champs-Élysées. Carol regressou ao Flotel Lancaster, a fim de convencer o tio Emmett a marcar .um encontro imediato com os Ormsbys; Medora voltou ao Flotel San Régis, de onde levaria o quadro para a sala da exposição.

Para Medora, os instantes que se seguiram tiveram a irrealidade de um sonho. Sua chamada telefônica apanhou Signe Anderson no momento exato em que se dispunha a dirigir-se à Nouvellc Galcrie d’Art, pela terceira vez naquela tarde, a fim de auxiliar M. Michel nos preparativos finais da grande inauguração. Medora pediu a Signe que passasse pelo San Régis antes de ir para a galeria. Não a reteria mais do que alguns minutos, apenas o tempo suficiente para tratar de um assunto pessoal, mas que interessava à exposição.

Quando Signe apareceu, pouco foi preciso explicar-lhe. Nardeau já tinha lhe falado da descoberta do nu de Fleur Ormsby e da forma como Medora tencionava utilizá-lo. Então, rapidamente, Medora expôs a Signe o plano que arquitetara com a ajuda de Carol. A modelo sueca, posta de parte toda a reserva nórdica, mostrou-se encantada com a complexa artimanha. Correu com o quadro debaixo do braço, disposta a intimar M. Michel a proceder à alteração de última hora, de forma a que o Nu no jardim, de Nardeau, ocupasse lugar de relevo.

Signe prometeu telefonar a Medora logo que tudo estivesse pronto. Medora, ingerindo um tranquilizante — suficiente para a manter calma, sem prejudicar sua atuação dessa noite no Clube Lautrec —, passeou pelo quarto do hotel, de olhos postos no telefone como se ele fosse um juiz prestes a lhe ditar a sentença.

Quando finalmente o telefone retiniu, Medora precipitou-se para ele. A voz tão esperada de Signe chegou-lhe ao longo do fio:

— Está na parede. É vistoso e muito nu.

Medora soltou um suspiro de alívio.

— Oh, Signe! Obrigada, mil vezes obrigada!

— Um momento, Medora. Michel está me chamando. — Sons abafados chegaram aos ouvidos de Medora, depois a voz de Signe retomou a conversação. — Medora? Era Michel. Quer saber se pode revelar o nome e o endereço do proprietário do nu, caso algum visitante se mostre interessado. — Signe soltou uma risada e acrescentou, divertida:

— Eu lhe disse que o proprietário até agradeceria... Agora, façamos uma figa e esperemos. A isca está lançada. É só aguardar o peixe.

Tanta emoção fizera com que o tranquilizante perdesse suas propriedades. Não havia droga, por mais forte que fosse, capaz de competir com a excitação de Medora, prestes a realizar seu grande sonho.

A isca tinha sido lançada. Era só aguardar o peixe.

Medora concentrou-se em Carol e desejou desesperadamente lembrar-se de uma única oração, mas não conseguiu. E isso era um grande pecado.

“Deus me perdoará”, pensou, “é Seu dever.”

Contudo, nunca tinha ouvido falar de ITeinrich Heine.

Enterrado no sofá da sala de estar de seu apartamento, com o fone preso entre o ouvido e o ombro, Emmett A. Earnshaw fazia chocalhar os cubos de gelo no copo de uísque e escutava, tentando acompanhar a fala apressada e pouco clara de Fleur Ormsby. Atento ao nervosismo da sobrinha e à sua ansiedade, fez um esforço e acabou entendendo.

— Evidentemente, Fleur, está muito bem — disse para o bocal. — Claro, sei como são essas coisas. Adeus.

Ainda não tinha desligado, e já Carol estava a seu lado.

— O que ela respondeu, tio Emmett? Não podem ir?

— Não podem ir? — repetiu Earnshaw, sorvendo o resto da bebida e colocando o copo em cima da mesa. — Sem dúvida que podem.

Carol soltou um grito de alegria e curvou-se graciosamente para dar um beijo no nariz do tio.

— Muito bem! — disse Earnshaw, satisfeito. — Vão julgar que me tornei um marajá, por convidá-los a jantar. Não há problema. Fleur tcncionava passar a noite no hotel, descansando, antes que comecem as recepções. Não pensava visitar a exposição desse pintor, por estar muito ocupada, mas, como se trata de ir conosco, achou que não perderia nada em assistir à inauguração. Antes pelo contrário, esse pintor é um de seus favoritos.

— Nardeau? Sim. Ela coleciona obras dele.

— Não importa. A única coisa que aborrece Fleur é que Sir Austin tem de estar na embaixada no fim da tarde. Para não perder a inauguração, perguntou-me se não nos importaríamos de que ela viesse nos buscar para irmos os três à exposição de Nar... hã... Nardeau. Mais tarde, reservará uma mesa num restaurante e arranjará uma maneira de Sir Austin ir nos encontrar lá. Oh, é verdade! Disse-me que ia arranjar convites para essa reunião artística. Está contente?

Carol ensaiou uns passos de dança e segredou-lhe por cima do ombro:

— Estou comovida, tio Emmett. Merci beaucoup.

Ele coçou uma sobrancelha e comentou:

— Não sabia que se interessava tanto por arte.

— Não é apenas a arte, tio Emmett. É Nardeau — explicou ela, pondo fim à sua solitária dança. — Quer dizer, é como ir a uma exposição de Gauguin enquanto ele ainda era vivo. Não se aborreça, tio Emmett. Verá que vai se divertir. Fleur vai nos explicar tudo o que não compreendermos. E há outra coisa. Não vai ser interessante estar com os Ormsbys e ouvir todos os mexericos da conferência?

— Sim, creio que sim — respondeu Earnshaw sem grande convicção. Estava emocionalmente exausto, embora pouco se tivesse fatigado nesse dia. Tinha passado todas aquelas horas em seu apartamento, à espera da reação de Goerlitz à sua urgente mensagem, comunicada no dia anterior por intermédio de Willi. Como a resposta ainda não chegara, a longa vigília o cansara. No entanto, teria sido incapaz de recusar o pedido de Carol para visitar a exposição de arte na companhia dos Ormsbys. Talvez, concluiu, pudesse dormitar um pouco, mais tarde.

— Vou preparar o vestido para esta noite — disse Carol.

Enquanto se dirigia para o quarto, Earnshaw perguntou-se se devia encomendar um ramo de flores para ela, e isso recordou-lhe outra coisa.

— Carol! Quase me esquecia. Chegou há pouco uma caixa de flores. Está na cadeira junto da mesa.

Carol correu para a comprida caixa cor-de-rosa, desatou a fita, retirou a tampa como se esperasse encontrar no interior o Koh-i-Noor, e exclamou:

— Rosas! Rosas vermelhas!

Pegou o cartão, leu-o e, ajoelhando-se, aspirou sonhadoramente as rosas.

Espicaçado pela curiosidade, Earnshaw ergueu-se do sofá.

— De quem são?

— De Willi von Goerlitz — respondeu Carol, sem levantar os olhos.

Confuso, uma vez que Earnshaw relacionava a família Goerlitz apenas consigo mesmo e com seus problemas, perguntou-se o que teria qualquer dos Goerlitz a ver com sua sobrinha.

— A propósito de que lhe manda flores?

Carol levantou-se e retirou da caixa a dúzia de rosas, ao mesmo tempo que respondia:

— Para me agradecer por ter ido jantar com ele.

— Jantou com o jovem Goerlitz ontem à noite? Pensei... —

Lembrou-se de que tinha se sentido demasiado fatigado para sair com Carol e, depois de comer um sanduíche, se retirara para seu quarto às oito horas. — Julguei que tivesse jantado aqui no hotel.

— Na verdade, fui para o salão de jantar. Mas, depois de o senhor ter-se recolhido, Willi von Goerlitz telefonou-me do vestíbulo. Disse-me que estava livre e que, se eu também estivesse, gostaria de me levar ao velho Les Halles.

As ideias de Earnshaw atropelavam-se. Ele tentou pô-las em ordem. O encontro de sua sobrinha com um Goerlitz surpreendia-o como se um membro de seu partido aceitasse a convivência com os membros do partido oposto. Por outro lado, também era como um embaixador tratando com um aliado potencial.

— Surpreende-me que você não tenha me dito nada.

— O senhor estava dormindo. E hoje estive todo o dia fora. Foi um jantar puro e simples, uma atitude muito simpática da parte dele.

Earnshaw tentou definir seu papel paternal e uma vez mais desejou dispor do conselho de Isabel, mas estava sozinho.

— Espero... bã... que ele seja um cavalheiro.

Carol corou:

— Francamente, tio Emmett! Está falando como um austero pai vitoriano da Wimpole Street. — Hesitou, depois acrescentou com sinceridade:

— Willi foi um perfeito cavalheiro. Tomamos sopa de cebola e comemos um bife no Au Chien qui Fume, conversamos, dançamos ao som de um acordeão e, em seguida, fomos de carro até os novos Les Halles, chamados Rungis, e passeamos pelos mercados, observando os forts e os clochards, ou seja, os carregadores e os vagabundos, uma coisa incrível! E, à meia-noite, voltamos para casa.

O problema pessoal de Earnshaw começava a interferir em seu papel de pai. Uma vez que tinham conversado e dançado, talvez Willi tivesse se referido ao pai e a sua mensagem. E daí, quem sabe? Se assim fosse, Carol teria mencionado o fato. Voltou a seu papel de guardião da filha do irmão:

— E hoje? Passou fora várias horas. Esteve outra vez com Willi?

— Não. Fui almoçar com uma jornalista que me entrevistou.

E fui cuidadosa no que disse, isto é, não falei de política. Oh, é verdade! Medora Iíart também participou do almoço. É a bête noire dos Ormsbys... aquela que esteve envolvida com Sydney, lembra-se?

Earnshaw lembrou-se súbita e distintamente.

— A prostituta — disse ele. — Isso revela insensatez, Carol. — Franziu a testa. — Não quero ser duro, mas confesso que me preocupa, Carol. Sua formação e educação são para mim uma grande responsabilidade. Está em Paris apenas há dois dias, e, assim que me deixa por uns minutos, vai conversar com uma das mais vergonhosas cortesãs. Além disso, passa metade da noite com um irrefletido rapaz, de quem nada sabemos, a não ser que o pai foi um criminoso de guerra nazista. O que sc passa com você, Carol?

O rosto dela estava tão corado como as rosas que segurava nos braços.

— Acho... acho que está sendo desagradável, tio Emmett, terrivelmente desagradável. Willi é muito simpático, como eu lhe disse. Até o senhor ficou impressionado, quando ele esteve aqui. Seja o que for que o pai dele tenha feito, nada tem a ver com ele. Quanto a Medora Hart, sofreu mais do que se possa imaginar, e conhecê-la foi para mim uma lição, aprendi a não acreditar em tudo o que dizem os jornais de escândalos. Ela... — Carol calou-se abruptamente. — Não estou censurando os Ormsbys. Se assim fosse, não iria com eles esta noite. Eu não... não conheço todos os fatos. Ninguém os conhece. Digo apenas que me sucedeu conhecer Medora, e isso foi interessante. É tudo. O que há de horrível nisso? Não fiz nada de mau. Surpreende-me que o senhor seja tão... tão... Oh, não sei... Afinal, o que provocou esta discussão?

Earnshaw preparava-se para entrar em explicações pormenorizadas sobre seus deveres de pai substituto, mas conteve-se. Havia entre ele e Carol uma amizade profunda e muito afetuosa. Ela era uma moça séria, e podia-se confiar nela, se bem que talvez fosse um tanto ingênua para o gênero de pessoas que a rodeavam numa cidade perigosa como Paris. Considerando os fatos, ele estava provavelmente sendo injusto. De qualquer modo, no meio de toda aquela imoralidade, as tentações não faltariam. Decidiu que, logo que seu caso ficasse resolvido, e quanto mais cedo melhor, tiraria Carol dali, fariam a combinada excursão à Escandinávia c regressariam o mais cedo possível à Califórnia.

Por ora, amaciaria sua desaprovação para não perder a confiança dela.

— Não pretendi criticá-la com severidade, Carol, embora tenha dado a entender isso. Deposito toda a confiança em você. Apenas tentava lhe mostrar que, entre companhias suspeitas, é fácil agir como elas. Podem meter-nos em confusões. Mas deixemos...

O telefone, sobre o tampo de mogno da mesa, retiniu, e Earnshaw abençoou aquela interrupção. O incidente estava sanado, e isso o deixou aliviado, como sempre acontecia, quando, na ala oeste da Casa Branca, uma urgência menor vinha pôr termo às intermináveis e enfadonhas reuniões com seu gabinete.

Carol atendeu o telefone. Seu rosto iluminou-se, ao mesmo tempo em que ela dizia:

— Alô, Willi... Sim, também gostei muito. Les Halles são exatamente como você os tinha descrito. Muito obrigada pelas flores. Não devia ter feito isso. Como soube que as rosas eram minhas flores prediletas? Como? Sim, seria divertido. Por que não me telefona?... Ótimo... Como? Ah, sim, está aqui ao meu lado... Não, agora está livre. Vou chamá-lo. — Tapou o bocal com a mão e com a outra acenou ao tio. — É Willi von Goerlitz, tio Emmett. O telefonema é para o senhor. Diz que é urgente.

Passou o fone a Earnshaw, que o agarrou ansiosamente. Ao ver-lhe o rosto meigo e jovem, consciente da maneira franca como ela falara a Willi em sua presença, lamentou a cena inútil de pouco antes. Cobriu o bocal com a mão e desculpou-se:

— Lamento tê-la magoado, Carol. Sou antiquado. Sei que compreende.

O sorriso dela foi instintivo e de perdão.

— Já esqueci isso. Espero que o senhor faça o mesmo. Vou dar uma olhada em meus vestidos. Quero um bem decotado para esta noite. — Piscou um olho e gracejou:

— Paris é o diabo! — E apontando para o telefone:

— Oxalá sejam boas notícias.

Correu para o quarto, e Earnshaw viu-se sozinho diante do aparelho. Sentiu relutância em tirar a mão do bocal. Detestava os momentos de irrevogável decisão. Se Willi tinha transmitido seu recado ao pai, a resposta agora deveria ser definitiva, sim ou não. Se fosse sim, seu futuro ficaria em suspenso; se fosse não, seria a ruína.

Ergueu o fone:

— Alô, Willi! Folgo em ouvi-lo. Como vai você?

— Muito bem. Espero que o senhor também. — A voz do outro lado chegava firme e cerimoniosa:

— Desculpe-me por não ter telefonado antes, mas meu pai esteve todo o dia reunido com seus colegas de negócios. Acabei agora mesmo de falar com ele. Transmiti-lhe sua mensagem. — Houve um breve silêncio, como o espaço em branco que precede um parágrafo. — Meu pai pediu-me que lhe transmitisse sua resposta. Diz que considerou cuidadosamente sua declaração de que havia informações erradas em determinada parte de suas memórias, que o senhor estava disposto a corrigir. Diz que, embora não tenha tempo para visitas sociais, pode lhe conceder uma breve entrevista de negócios, uma vez que o senhor a julga importante. Está pronto a conferenciar com o senhor durante uma hora, em seu apartamento do Hotel Ritz, se estiver de acordo.

Earnshaw esperou que Willi acrescentasse mais alguma coisa, mas Willi calou-se e esperou a resposta.

— Claro que estou de acordo, Willi. Diga a seu pai que não lhe tomarei mais de uma hora.

Depois que desligou, compreendeu que estava mais excitado do que irritado. Aquela hora ia ser a mais longa de sua vida. Ter de enfrentar o dr. Dietrich von Goerlitz mexia-lhe com os nervos. Não tinha, porém, outra solução. Tratava-se do encontro que tão ansiosamente desejara e já desesperava de conseguir, mas que finalmente se concretizava.

Com vagar, Earnshaw deixou a sala principal para ir mudar de roupa e preparar sua entrevista com o velho alemão.

Viu Carol 'sair do quarto com um vestido no braço, erguê-lo e observar:

— Vou mandar passá-lo a ferro. Está tudo bem? — perguntou, lançando-lhe um olhar inquiridor.

— Tudo bem? Oh, sim! Willi transmitiu-me a resposta do pai. O dr. Dietrich von Goerlitz vai me receber por uma hora. — Earnshaw abanou a cabeça. — Isso requer alguns preparativos.

— Estou contente pelo senhor.

Earnshaw olhou-a com repentina suspeita. Ela estava contente, mas não surpresa, como se já esperasse por aquilo. Uma dúvida atravessou-lhe o espírito.

— Carol — perguntou pausadamente —, tem alguma coisa a ver com isso?

Ele a observava, com severidade. Ela fingiu espanto ou estava realmente espantada:

— Não compreendo.

— Ontem à noite você saiu com o jovem Goerlitz. Talvez lhe tenha falado de mim, do interesse que manifestei em encontrar-me com o pai dele. Foi isso?

— Claro que não! É possível que tenhamos abordado o assunto de passagem. Falamos muito, e creio ter-lhe dito que era pena o senhor e o pai dele não se entenderem, tanto mais que são amigos de longa data, mas não houve mais nada, absolutamente nada.

— Está bem. — Earnshaw continuava cético e confuso. — Tenha ou não tentado me ajudar, e aceito sua palavra de que não tentou, mantenho minha opinião de que não deve perder tempo com o jovem Goerlitz. Talvez eu seja desagradável, mas tudo isso me preocupa. Vocês pertencem a mundos diferentes. As bases dele e as suas são completamente opostas. Tenho certeza de que seu pai a aconselharia, como eu, a ser prudente. Não quero me impor. Só espero que me prometa pensar um pouco no que lhe digo.

— Prometo — disse gravemente Carol.

— Hã... outra coisa. Desgostar-me-ia saber que fala de mim ou de meus assuntos, seja a que pretexto for, com outras pessoas. Não a quero envolvida em problemas de adultos. Terá muito tempo mais tarde.

— Está bem, tio Emmett.

— É melhor eu ir me arrumar. Gosto de ser pontual. Não que o encontro com Goerlitz seja assim tão importante. Pelo contrário, perdeu muito de sua atualidade, pouco importa o que você pense. É um indivíduo irritante, nada mais. Mas gosto de ter minha casa em ordem. Bem, hã... estarei de volta quando Fleur Ormsby chegar. Creio poder resolver a questão com Goerlitz em pouco tempo. De fato, estou convencido disso. Agora, tenha cuidado.

Earnshaw deixou o agente do serviço secreto no fundo do corredor e estava agora em frente das portas duplas do apartamento de Goerlitz, no primeiro andar do Flotel Ritz.

Tocou a campainha e, pouco à vontade, apoiou-se ora numa perna, ora noutra. Vagamente, a recordação de sua última visita ao Ritz, onde ocupara os melhores aposentos como presidente dos Estados Unidos, veio-lhe ao espírito. Durante essa visita, o que mais o impressionara fora a história do hotel, onde o rei Eduardo VII estivera hospedado, onde uma condessa fora convidada a retirar-se por causa de seu leão de estimação, que se havia tornado demasiado grande, onde um cantor de ópera inspirara a invenção dos brindes à Melba. Nessa época, recordou Earnshaw, era recebido com pombas e fausto. Infelizmente, comparou o passado com a recepção presente, sem ostentação, com sua entrada quase furtiva.

As portas foram abertas, e Earnshaw aprumou-se.

Um mordomo de abundante cabelo branco, muito parecido com o seu, de rosto alongado e fleumático, metido num paletó de cetim prateado e calças verdes, convidou-o a entrar.

— Guten Tag, Herr Pràsident — saudou o mordomo, pegando-lhe o chapéu.

— Bom dia — respondeu Earnshaw. De pé, à entrada do vestíbulo, notou que o local lhe era familiar. Para além do vestíbulo, se a memória não lhe falhava, havia três quartos para a criadagem. No principal, havia campainhas para chamar o criado ou a criada do hotel, mas também um botão com a indicação "Service privé”, de que os hóspedes se serviam para chamar seus criados particulares, alojados num dos pequenos quartos que comunicavam com a entrada. Não tinha esquecido aquele luxo nem o criado da Casa Branca, o secretário de Imprensa e seu assessor, que haviam ficado instalados naqueles aposentos.

Só quando entrou no primeiro e grande salão do apartamento é que Earnshaw teve a certeza de já ter estado ali. Era o mesmo apartamento que ocupara como presidente, numa época estranhamente remota. Era o apartamento que Hermann Gõring havia transformado em quartel-general, quando os nazistas ocuparam Paris, na Segunda Guerra Mundial. Era o apartamento que o dr. Dietrich von Goerlitz, um dos seis industriais mais ricos do mundo, ocupava agora.

Compreendeu que uma vez mais estava só. Goerlitz não se encontrava ali para saudá-lo. O mordomo de libré tinha desaparecido. Earnshaw examinou o salão que já conhecia:

os murais que representavam Napoleão no Egito, a lareira ornada de esfinges douradas, os magníficos móveis de estilo Império. E então recordou-se de que ele e Isabel, acompanhados por Simon Madlock, tinham deambulado pelo incrível complexo de salas daquele apartamento, que incluía um salão igual ao primeiro, seis quartos, quatro banheiros e os pequenos aposentos da criadagem. Involuntariamente, Earnshaw abanou a cabeça e admirou-se, tal como havia feito outrora, de que houvesse gente capaz de viver assim. Isso fê-lo sentir-se tão pouco à vontade como no passado, e compreendeu que tinha defendido, sem se comprometer, uma sociedade em que o capitalismo dominava, e que havia persistentemente atacado o governo autoritário, a prosperidade do Estado, todas as formas de socialismo que considerava funestas.

A imponência daquele apartamento do Hotel Ritz lembrou-lhe o poder de Goerlitz — como tratar com um homem que tinha tudo? —, que contrastava com sua posição duvidosa, exclusivamente apoiada em honrarias passadas e em nenhuma força presente.

Desalentado, meteu as mãos nos bolsos da calça e dirigiu-se para uma janela. Lá embaixo, podia ver o grande número de carros europeus, bichos mecânicos que giravam em torno da Place Vendôme. Contemplou o imponente obelisco ao centro, encimado por uma estátua de Napoleão em toga romana e coroa de louros na cabeça, e, de repente, Napoleão transformou-se em Goerlitz, e Earnshaw teve de desviar os olhos para os automóveis estacionados mais longe e para os estabelecimentos de luxo que ladeavam a margem sombreada da praça.

Não ouviu ninguém entrar no salão. Apenas experimentou a sensação — como quando alguém nos observa por trás ou fala de nós pelas costas — de já não se encontrar sozinho. Voltou-se. Um homem idoso, apoiado a uma bengala de malaca, estava na sala. Por instantes, Earnshaw não escondeu seu espanto perante o dr. Dietrich von Goerlitz, que, no breve espaço de alguns anos, se tornara muito velho e alquebrado.

— Bom dia, Emmett — grasnou o idoso alemão. — Então você veio!

— Como vai você, Dietrich? Já se passou muito, muito tempo.

Mentalmente precavido e preparado como um ator prestes a entrar no palco, Earnshaw apelou para seu encanto pessoal e delicadeza. Avançou como alguém que é desejado e bem-vindo, disposto a apertar a mão do alemão, mas, antes que esboçasse o gesto, a bengala de Goerlitz apontou para uma cadeira de estilo Império, entre a mesinha de café e o divã.

— Sente-se, Emmett — ordenou ele.

Perplexo e em certa medida desconcertado, Earnshaw dirigiu-se para a cadeira e sentou-se. Viu Goerlitz coxear em direção a uma poltrona — com ornatos dourados, parecendo um trono — do outro lado da mesa, instalar-se com um grunhido e murmurar:

— Maldita gota! — Pendurou a bengala no encosto da poltrona e inquiriu:

— Uma bebida? Champanha? Xerez?

— Não, obrigado, Dietrich. — E, evocando um jantar na Villa Morgen, a Stammhaus, nos subúrbios de Frankfurt, Earnshaw lembrou-se de que naquela época seu anfitrião era abstêmio.

Goerlitz franziu o sobrolho e cravou em Earnshaw seus olhos azuis.

— Não mudou — disse ele. — É a mesma abóbora saudável.

Earnshaw desejou retribuir o cumprimento com sinceridade.

Na verdade, embora o alemão estivesse menos alquebrado do que lhe parecera a princípio, tinha, contudo, o físico arruinado. Os cabelos grisalhos continuavam primorosamente penteados, mas a testa assemelhava-se a um acordeão, havia grandes bolsas por baixo dos olhos, veias escarlates sulcavam o nariz bulboso, as faces e o queixo acusavam a idade, o paletó e o colete, atravessado por uma corrente de ouro, eram largos demais para o peito magro.

— Seu aspecto não é mau, Dietrich — conseguiu articular Earnshaw. — Emagreceu, e isso o favorece.

— Se quer a minha dieta, sugiro que apele para o Tribunal Militar Internacional — resmungou Goerlitz. — É uma dieta de quatro anos, que só a Prisão Spandau de Berlim fornece.

Earnshaw contorceu-se e pôs-se a ajeitar o nó da gravata. Era evidente que, embora alquebrado fisicamente, Goerlitz não perdera as restantes faculdades. Sempre fora brusco, petulante, orgulhoso, finório, escarninho, e a essas qualidades, agora exacerbadas, juntava-se a autocompaixão e um certo veneno. Era ainda o descendente de uma dinastia que se tornara poderosa na época do chanceler Otto von Bismarck e, se bem que Goerlitz houvesse sofrido, podia zombar de seus carrascos, pois sua família não só sobrevivera à Segunda Guerra Mundial como até se tornara mais forte.

— Apraz-me que me julgue assim tão saudável — disse Earnshaw, tentando despertar um pouco de simpatia —, mas a verdade é que não tenho passado muito bem, Dietrich. Como sabe, não pude concorrer a outro mandato, devido a uma espécie de insuficiência cardíaca. Além disso, depois da morte de Madlock e de Isabel (lembra-se da minha mulher?), as forças me abandonaram.

— Mas ainda as teve suficientes para vir procurar-me em Paris.

— Como já expliquei, precisava vê-lo — disse Earnshaw, começando a suar. — Fiquei muito contente quando seu filho me telefonou dizendo que podíamos nos encontrar. Seu Willi é um rapaz muito simpático. Deve sentir-se orgulhoso.

Mas Goerlitz não deu mostras de ter ouvido a última frase. Procurou a bengala, agarrou-a pelo castão e fê-la descrever um arco. Acariciou-a com a mão enrugada e depois, como se falasse com a bengala e não com Earnshaw, disse:

— Insistiu em conversar comigo porque soube, por fonte fidedigna, como disse, que vou publicar minhas memórias e nelas incluo um capítulo consagrado às suas atividades como presidente dos Estados Unidos. Conhece o conteúdo desse capítulo...

— Até certo ponto — interrompeu Earnshaw.

— E, na sua opinião, julga-se apto a fornecer-me informações mais valiosas do que as que possuo...

— Informações mais exatas, Dietrich.

—.. . e, com este encontro, crê poder ajudar-me a evitar certas dificuldades legais. Está certo?

Earnshaw mudou de posição na cadeira.

— Não me referi concretamente a dificuldades legais. Creio que falei em livrá-lo de embaraços e da desnecessária controvérsia que resultaria de quaisquer erros cometidos.

— Portanto, já sabemos por que está aqui. Quer salvar-me. — No rosto enrugado, desenhou-se uma espécie de sorriso cruel. — Muito decente de sua parte, Emmett. Extremamente delicado.

Earnshaw sentia o colarinho da camisa úmido por dentro. Alargou-o com um dedo, evitando que aderisse ao pescoço.

— É evidente, Dietrich, que também tenho interesse nisso.

— Sem dúvida — concordou Goerlitz com sarcasmo. — Sim, sem dúvida. — Sopesou a bengala na mão, depois estendeu-a sobre os joelhos. — Como teve conhecimento desse capítulo de minhas memórias?

— Bem... hã... por um amigo inglês — disse Earnshaw nervosamente — que... hã... que é editor...

— Claro — cortou Goerlitz — que não estou interessado em suas fontes. O que recordo em minhas memórias não é segredo. Tem-no sido só para a imprensa, para que não venha a público uma versão distorcida antes do aparecimento do livro. Entre outros motivos, encontro-me aqui para estudar contratos relativos à edição. Logo que apareça nas livrarias, todos saberão o que decidi divulgar. Não, Emmett, não tenho segredos. Podemos falar francamente.

— Não desejo outra coisa.

Goerlitz tirou do bolso do colete um grande relógio antigo, lançou-lhe uma vista d’olhos e voltou a guardá-lo.

— Apesar de ter o dia todo ocupado, consegui reservar-lhe trinta minutos. Restam-nos vinte, pelo que o aconselho a que me diga exatamente o que pretende.

Earnshaw sentia a respiração tornar-se acelerada e irregular e perguntou-se se teria consigo o tubo de comprimidos. Procurou-o no bolso, não o encontrou, mas logo compreendeu que não podia perder tempo preocupando-se com um passageiro incômodo físico. Os minutos eram preciosos. O pano tinha subido. O espetáculo devia continuar, agora ou nunca.

— Nesse caso, se não se importa, falarei francamente, Dietrich. Somos... hã... somos velhos amigos, amigos de longa data, já vimos muita coisa e pouco tempo de vida nos resta. Creio que podemos ser francos de uma maneira... especial, estou convencido disso... hã... entre estas quatro paredes, não acha?

— Está perdendo seu tempo e o meu — replicou Goerlitz. —Fale.

Earnshaw aquiesceu nervosamente. Tirou um charuto do bolso, mas não o desembrulhou.

— Segundo compreendo, Dietrich, escreveu que eu fui... hã... que eu era negligente como chefe do poder Executivo. Disse que eu não me interessava por meu trabalho, que deleguei as decisões a meus subordinados, sobretudo a Madlock... Simon Madlock. Corrija-me se me enganar a respeito do que escreveu.

— Não está enganado. Foi isso o que escrevi. Contudo, é demasiado benévolo para você e para mim. Escrevi esses julgamentos em termos bastante mais duros.

— Muito bem. Seja como for, acusou-me de favorecer as aspirações da China vermelha como potência nuclear. Acusou-me e acusou Madlock pelo fato de a China estar de posse da bomba de nêutrons e de um arsenal de mísseis.

Goerlitz ergueu a bengala para interromper Earnshaw.

— Não o acusei por causa do aumento de poder da China. Acusar significa condenar alguém por seus atos. Não o acuso nem o condeno por ter ajudado a China a fabricar a bomba de nêutrons. Não sou como vocês, os americanos, Emmett. Não escolho os heróis e os vilões. É-me indiferente que seja seu país ou a China a ter a bomba. Tenho negócios com ambas as partes. Em minhas memórias, apenas afirmei que você em primeiro lugar e Madlock em segundo são os responsáveis pelo atual poderio chinês.

— Sabe perfeitamente o que isso significa — disse Earnshaw com um incontido lampejo de ira. — Em meu país, em meu mundo, semelhante afirmação equivale a acusar-me de traição.

— Não é traição, Emmett — contrapôs Goerlitz. — É inconsciência, fraqueza irresponsável, desinteresse. Tudo isso, no entanto, constitui crime por parte de um líder. Não, Emmett, não o acusei de um crime premeditado, para me servir de uma expressão de sua lei. Acusei-o de crime não premeditado, devido a indesculpável negligência.

— E eu argumento que está mal informado e prestes a publicar uma perigosa mentira — disse, acaloradamente, Emmett Earnshaw.

— Se é mentira — inquiriu Goerlitz —, onde está a verdade, Emmett, onde?

— A verdade está nos arquivos — respondeu rispidamente Earnshaw. — Pode lê-la tão facilmente como qualquer outra pessoa. Todo mundo conhece minha oposição e a oposição de meu governo em relação à República Popular da China e a Kuo Shu-tung. Só negociaria com eles se estivessem dispostos a renunciar a toda e qualquer agressão e a juntar-se a nós no esforço para o desarmamento nuclear. Essa foi a minha política de sempre.

— Parece que sua memória está falhando, Emmett. De acordo com todos os arquivos, você fez um pacto com a República Popular da China. Negociou amplamente com ela.

Earnshaw tentou compreender a insinuação do alemão. Quando julgou tê-la percebido, sentiu um alívio parcial.

— Oh! Refere-se às conversações preliminares que tivemos com eles em Varsóvia, Haia e Calcutá? Claro que tínhamos de nos manter em contato, de conservar essas vias abertas para conseguir trazê-los até a mesa da paz. E a conferência de Zurique? Sim, concordei com Simon Madlock em que era o máximo até onde poderíamos ir para chegarmos a um acordo. Mas não considero isso um pacto com os chineses. Não, não era...

— Emmett — interrompeu Goerlitz —, não me refiro a essas reuniões de contatos e propaganda. Falo do que aconteceu realmente, de seus negócios secretos.

Earnshaw empertigou-se:

— Negócios secretos? Que negócios secretos?

— Ora, ora! Estou de posse de documentos e cartas com sua assinatura que autorizavam minha firma na Alemanha a fornecer certos materiais, com a garantia do governo americano, à China vermelha, por intermédio de países como a Albânia. Algumas firmas alemãs fizeram-no ocasionalmente, como em 1966, quando venderam jatos Sabre, da Luftwaffe, ao Paquistão, por intermédio do Irã, para driblar o embargo de armas. Isso foi feito tanto por outros como por você.

Imediatamente Earnshaw recordou a noite no Hotel Dorchester, quando Sir Austin lhe mostrara as fotocópias desses documentos e cartas com sua assinatura. Goerlitz voltou a falar:

— Não nega a existência de tais documentos, não?

— Eu... hã... não... isto é, Dietrich — respondeu Earnshaw, confuso —, vi algumas fotocópias desses... hã... papéis que tem em seu poder. Sim, eram ordens para você executar e para serem pagas à margem do nosso fundo especial de defesa. Sim, recordo-me.

Goerlitz brincou com a bengala.

— Assinou-as ou não? Em que ficamos?

— Assinei-as. Mas acredite, Dietrich, que eu tinha esquecido completamente. Assinava tantas coisas! Isto é, estava a par da maior parte, mas muitos papéis eram de importância relativa. Simon Madlock limitava-se a amontoá-los em cima de minha mesa e ia me informando de seu conteúdo, enquanto cu os assinava. Possivelmente, algumas dessas ordens referentes a materiais enviados para a China encontravam-se entre os papéis por mim assinados. Mas o que lhes concedemos não podia ser importante, Madlock teria me avisado.

Earnshaw viu que seu anfitrião o observava com indisfarçável desdém. A cabeça de Goerlitz ergueu-se e baixou lentamente, ao mesmo tempo em que ele dizia:

— Era importante na medida em que favorecia o incremento da China até sua atual condição de potência. — Debruçando-se para a mesa ao lado do divã, abriu uma gaveta e retirou do interior uma pasta com papéis presos por um grampo, que atirou por cima da mesa na direção de Earnshaw. — Tem aí tudo, incluindo as fotocópias dos documentos reproduzidos em meu livro. Veja.

Com evidente nervosismo, Earnshaw apoderou-se da pasta. Momentos depois, concluía que todos aqueles papéis se encontravam no arquivo da Casa Branca. Alguns estavam assinados por ele, e outros, por Simon Madlock. Examinou-os com vagar, documento após documento, carta após carta, ordens de entrega de materiais — tudo referenciado por números — à Goerlitz Industriebau de Frankfurt sobre o Meno, para serem enviados, através da Albânia, para Xangai. Outros documentos autorizavam Goerlitz a combinar transações financeiras particulares em Frankfurt e noutras cidades européias e do sul da Ásia, entre os representantes dos Estados Unidos e da República Popular da China.

Não havia uma única página daquela correspondência que fosse familiar a Emmett Earnshaw. Entontecido, ele ergueu os olhos. Goerlitz observava-o.

— Emmett — disse ele —, essas assinaturas suas e de Madlock são autênticas?

— São.

— Portanto — continuou Goerlitz, acariciando o tapete com a ponta da bengala —, eis aí o seu processo.

Earnshaw deixou cair os papéis em cima da mesa. Sentia-se febril e a transpirar. Olhou para o alemão e, depois, abanou a cabeça:

— Não, Dietrich, não é o meu processo. Talvez não tenha sentido para você, mas não sei nada a esse respeito.

— Exatamente! — exclamou Goerlitz, batendo fortemente com a bengala. — É esse o ponto máximo de meu capítulo. Não acuso Madlock, mas a você. A você, Emmett. Devido à sua fraqueza, abdicou de seu mandato em proveito de Simon Madlock. Não estava interessado nesses assuntos vitais, mas ele estava. Você não agia, de forma que ele agiu em seu nome, decidiu em seu nome.

Protestando com energia, Earnshaw tentava encontrar as palavras apropriadas:

— Recuso-me a acreditar. Há alguma coisa que não cheira bem. Eu conhecia Simon como a um irmão. Ele seria incapaz de proceder dessa maneira às minhas costas.

Goerlitz resfolegou:

— Aconselho-o a ler Nietzsche:

“Onde quer que haja uma criatura viva, há a ambição do poder”. — O alemão fez uma pausa. — Talvez eu tenha conhecido seu amigo e assessor melhor do que você. Ele era leal, sem dúvida. Não lhe usurparia o poder. Apenas tentou preencher o vácuo que seu desinteresse pela administração abriu naturalmente. Fê-lo, como é óbvio, com sua própria política, substituindo-o com a melhor das intenções.

— Continua a não ter sentido. Por que havia de ajudar esses vermelhos da China? Ele não desejava outra guerra...

— Não, não desejava — interrompeu Goerlitz. — Era um homem de paz, a meu ver, um visionário, um idealista, de forma que agiu dessa maneira com o único intuito da paz. Teria ou não razão? Talvez a Conferência de Cúpula responda a essa pergunta. Não importa. Subsiste o fato de a situação do mundo de hoje se dever em grande parte a seu abandono da administração e às experiências pessoais de Madlock; e, uma vez que estive comprometido em toda essa confusão, creio ter motivos para publicar este pequeno episódio da história contemporânea.

A incrível revelação do papel desempenhado por seu amado e fiel assessor atordoou Earnshaw, que não sabia se devia protestar ou negar. Equilibrou-se no rebordo da cadeira, tão velho e macambúzio como seu anfitrião, retorcendo o charuto.

— Estou... estou tentando compreender, Dietrich, dando forma a suas acusações.

— Vou resumi-las rapidamente — disse Goerlitz. — Preste atenção. Lembre-se de que não sou seu Madlock. Enquanto você se entretinha na Casa Branca recortando bonecos de papel, jogando cartas e tagarelando sobre redução de impostos, seu assessor, sem um braço forte a dominá-lo, debatia-se em águas profundas e turvas, sem objetivo determinado. Com efeito, sem ninguém que o dominasse, Simon Madlock concluiu que sua política externa faria de você um grande homem da história. Era um indivíduo bem-intencionado, esse Madlock, mas estúpido, de mente fraca, um idealista, um evangelista disposto a contribuir à sua maneira para a paz de nossa época. Viu que o futuro de seu país estava para sempre ligado à China. Viu também que a China tinha de compreender isso, mas que não se mostraria satisfeita por muito tempo, o que seria desastroso para o imperialismo americano e seus negócios. Trabalhou em silêncio, às ocultas, para afastar a China da órbita da Rússia e incluí-la na órbita da América, demonstrando-lhe com argumentos tangíveis que a América era amistosa e apenas desejava a paz. Precisava de meios discretos para entrar em contato com a China. Não queria depender de outro país. Necessitava de um particular. Sabia que eu estava negociando com a China e, por conseguinte, pensou em mim para o papel de intermediário não oficial. Sua ideia era criar um Plano Marshall para a China. Sem entraves. Dar-me-ia ordens para os materiais e eu os passaria sob diversos disfarces, mas sem ocultar nunca o doador. Essas ordens representavam ajuda financeira, incluindo novos materiais para projetos de poderio nuclear. Conseguindo sua assinatura ou aprovação, mas assumindo por vezes toda a responsabilidade, utilizando quaisquer fundos autorizados pelo Congresso, de que não teria de prestar contas, Madlock implantou sua política. Os chineses eram desconfiados, mas receptivos. Talvez com o tempo viessem a ceder, e, nesse caso, você obteria uma enorme vitória diplomática. Madlock, porém, foi longe demais. Foi ele quem escolheu o professor Varney para ir à Conferência de Zurique, pois Varney era um sonhador como ele. Madlock estava firmemente convencido de que Varney era o último argumento capaz de trazer a China para o seu lado. Era um grande risco, e Madlock sabia disso, mas aceitou-o deliberadamente... em seu nome. Abasteceu Varney de informações selecionadas, certo de que impressionaria os chineses e os desarmaria o suficiente para levá-los à mesa da paz. Contudo, Madlock fez mal os cálculos. Varney subiu um degrau a mais, e desertou. E a China, momentaneamente acalmada por sua ofensiva de paz, acordou e mal acreditou em sua boa sorte. Da noite para o dia, a paz, segundo os termos de Madlock, ia por água abaixo. Da noite para o dia, a China estava apta a conseguir a igualdade nuclear e não mais discutiria a paz futura nos termos americanos, mas nos dela própria. Se alguém ousasse arriscar uma guerra nessa época, a China seria provavelmente a que estava mais bem equipada para correr risco, e sabia-o. Em minha opinião, se a União Soviética não tivesse concluído uma aliança com o seu país, é possível que estivéssemos, neste momento, vivendo num mundo cheio de plantações de arroz. Mas com a Rússia de seu lado, o fiel da balança é desfavorável à China. No entanto, trata-se de um acordo pouco consistente e temporário. A tensão internacional continua a se manifestar. É um homem apenas o responsável por esta perigosa situação? Duvido. Pode um homem só suportar a maior parte da responsabilidade? Creio que sim. Então, quem é esse homem? Simon Madlock? Não. Emmett Earnshaw? Sim. É você, Emmett, quem deve assumir a responsabilidade perante o tribunal da história, porque esteve desatento, mostrou-se desinteressado, abandonou seus deveres nesse período crítico de nossa época. Fui o primeiro a notar sua falta. Foi isso o que escrevi. Será isso o que publicarei.

Ofegante, o dr. Dietrich von Goerlitz inclinou-se sobre a bengala, como se fosse erguer-se, mas, vendo que Earnshaw não se movia, conteve-se e esperou.

Earnshaw tinha ficado em estado de choque ao saber das atividades independentes de Simon Madlock. Se bem que o industrial alemão tivesse dramatizado, essas atividades não podiam ser negadas. Havia a pasta com os documentos, ali em cima da mesinha de café. E o que aquilo representava não era a deslealdade de um assessor, mas o próprio fracasso de Earnshaw como líder.

O que ia seguir-se parecia difícil, mas não havia outra alternativa.

— Dietrich — disse calmamente Earnshaw —, vim pedir-lhe que retire esse capítulo a meu respeito. À luz do... hã... do que disse, talvez eu não devesse pedir tanto. Nesse caso, farei outro pedido. Com toda a franqueza, acho que deve modificar alguns de seus julgamentos. Não posso convencer-me de que aquilo que escreveu seja toda a verdade. Ambos sabemos que há mais; muito mais a favor de minha administração e... hã... chefia, que você omite. Disse que Simon era um homem bem-intencionado. Também eu, Dietrich, era um homem de paz e honra e, durante meu mandato, dediquei-me exclusivamente à paz na Terra para todos os homens e a honrar a causa de meu povo. Sabe que isto é verdade e creio que merece ser divulgado.

As rugas do rosto de Goerlitz tremeram, mas seus olhos azuis permaneceram inflexíveis.

— Apenas os fatos merecem ser divulgados. O arrependimento, as boas intenções, a benevolência sentimental não são fatos. São desculpas. Distorcem a verdade. Os únicos fatos estão nesses documentos. Que o mundo os veja e os interprete como quiser. Se pretende modificações em meu capítulo, fá-las-ei de boa vontade. Mas essas modificações terão de basear-se em fatos. Se possui documentos por mim ignorados, documentos que contradigam ou alterem os desta pasta, posso incluí-los em meu livro. Tem esses papéis?

— Bem sabe que não.

— Verzeihung! Nesse caso, terá de ser julgado agora, tal como eu o fui há alguns anos, somente por provas circunstanciais. Tem de ser julgado por mim, como eu o fui por seu Tribunal Militar Internacional na Alemanha. Fui julgado não com base em minha palavra, mas em frios documentos que me associavam a Hitler, que diziam que eu tinha utilizado oitenta mil prisioneiros dos nazistas como escravos em minhas fábricas, durante a Segunda Guerra Mundial. O fato de eu ter me oposto a usar esses trabalhadores, apesar da pressão sobre mim exercida, não constituiu atenuante para seu tribunal, porque não pude prová-lo. Tudo o que contava era o fato de esses operários escravos terem trabalhado em meus projetos. Apelei para quem de direito, apelei para você, para que confirmasse minha palavra, para que contradissesse aqueles frios documentos. Fui esquecido, de modo que paguei pelo que foi feito em meu nome. Paguei, Emmett! E agora, você também tem de pagar.

— Mas nossos casos são diferentes — protestou Earnshaw. — Eu não o julguei. Foi um tribunal internacional que o julgou. Por que se arroga o direito de julgar-me? — Respirou fundo e prosseguiu:

— Não compreendo seu motivo, Dietrich. O que lucra em sacrificar-me? Se tivesse um motivo político, eu compreenderia. Se fosse um antichinês e considerasse que eu traíra sua causa ao ajudar a China, compreenderia também. Mas não é antichinês, transaciona com eles todos os dias. Portanto, para que condenar-me? — Hesitou. — A não ser... que tenha desígnios secretos.

— Meus desígnios não são secretos — disse Goerlitz bruscamente. — Sou neutro. Os negócios são neutros. Sirvo àqueles que pagam as faturas, já não me interesso por causas. — Olhou por cima da mesa e continuou:

— Quer saber qual é o meu motivo? Não estou interessado em sacrificá-lo nem em condená-lo, como diz, devido a um desentendimento pessoal. Apenas quero a verdade, porque só a verdade poderá eliminar os que não merecem sobreviver, aqueles cuja fraqueza os destrói, não somente a eles, mas também aos fortes que com eles convivem. Que diz nosso filósofo? “Ensino-te o super-homem. O homem é qualquer coisa que se pode ultrapassar.” Mas o homem só pode ser ultrapassado se a fraqueza for revelada e aniquilada.

Earnshaw ouviu essas palavras, mas estavam longe de sua compreensão. Sabia apenas que soavam estranhamente sinistras.

— Dietrich... — começou ele, tentando um mútuo regresso à simplicidade e à compreensão. Mas Goerlitz, erguendo a mão, interrompeu-o:

— Deixe-me acabar. Estou tentando demonstrar, e agora serei mais franco, que você não era talhado para líder. A vaidade fez de seu governo um fingimento, e sua fraqueza envolveu-nos a todos numa grande catástrofe. Tal como meu pai e meu avô, aprendi a detestar a fraqueza e a opor-me a ela. Hoje, a fraqueza serve-se de muitos disfarces. Um deles é a indiferença. Outro é a estupidez. Outro ainda é a covardia. Você utilizou todos eles, incluindo a covardia, como quando apelei para que intercedesse em meu favor no julgamento e, de novo, quando lhe pedi que atenuasse minha sentença. Não agiu por fraqueza. Pôs sua política acima da integridade e da honestidade. Deixou que eu fosse sepultado atrás das paredes e do arame eletrificado da Prisão de Spandau. Permitiu que eu, um Goerlitz, a quem chamava amigo, sofresse o cativeiro entre baixos e desprezíveis criminosos de guerra nazistas, que vivesse como um animal num buraco, despojado de dignidade e liberdade, comendo restos como os porcos, sem outra companhia humana além desse horrível e mau Rudolf Hess. Suportei o cárcere durante quatro anos, quando sua força, em vez de covardia, poderia ter convencido os americanos a me libertarem daquele inferno. Por fim vieram os russos, com seu líder, Talanski, que se mostrou suficientemente forte para me soltar, tanto mais que precisava de minhas fábricas. Mas você... onde estava você, meu bom amigo? Exclusivamente preocupado com seu conforto e sua vaidade; e, assim como me ignorou, ignorou também seus sagrados deveres e abdicou da administração em favor de Madlock, que desse modo se transformou no instrumento que permitiu a deserção de Varney.

No silêncio que se seguiu, Earnshaw fitou o alemão. Depois, com voz trêmula, replicou:

— Agora já sei por que procede assim, Dietrich. Não é a verdade que procura. É uma vingança pessoal.

— Não, seu louco! — gritou Goerlitz. — Não me rebaixaria a uma vingança pessoal. Você não passa de um pobre de espírito, Emmett. Não pode compreender, nunca compreenderá. Mas tente, tente. Vou ler-lhe de novo e pela última vez meu original. — Falava em frases marteladas, pronunciando-as com clareza, como se se dirigisse a uma criança. — Há entre nós quem não acredite que o mundo possa depender de homens sorridentes, encantadores, representantes incompetentes das massas idiotas. Há entre nós quem acredite que os problemas do mundo possam ser resolvidos pacífica e eficazmente apenas por autoridades que sejam, além de especialistas, homens de decisão. Respeitamos e apoiamos os que movimentam, os que fazem, os que atuam. Há muitos homens desses em muitos países, e entre eles contam-se os dirigentes da China. Fazem, atuam e só por isso merecem sobreviver, pois tornarão o mundo melhor para muitos de nós ao forçarem o Ocidente a escolher homens que sejam seus iguais. Repito, não tenho política. Tenho minas de carvão, fornos, mercadorias em escala mundial, e, entre essas mercadorias, armas. Ofereço o que possuo a todas as nações da Terra, para que o usem como entenderem, convencido de que as mais aptas sobreviverão e implantarão a paz.

— Falou de tudo, menos das relações humanas — observou Earnshaw. — Isso não conta?

— Conta muito, se os amigos se apóiam na força. Houve tempo, quando você representava o escol americano, em que pensei que fosse um dos nossos. Depois, sucumbiu à euforia da popularidade, e vi que tinha me enganado. Escolhera servir-se a si próprio. Abandonou-nos, e agora tem de sofrer as consequências. — Os olhos azuis de Goerlitz estavam fixos em Earnshaw. — Compreende-me, agora?

Earnshaw sentiu finalmente que compreendia. Era uma compreensão emocional, difícil de definir intelectualmente. “Abandonou-nos”, dissera Goerlitz, e o “nos” era igual ao sombrio “eles” de que o povo se servia para indicar o superclube, o superculto, o supergoverno que não era exatamente um clube, um culto ou um governo. Era... o quê? Era “eles” — não uma chamada dos ausentes, não uma comunidade, mas um escol que influenciava e dirigia os problemas do planeta, um escol que não atendia a limites de nacionalidade, mas que governava mediante uma não apregoada, embora mútua, compreensão dos usos do poder em todas as áreas. Em suma, eles dominavam o mundo e só eles poderiam salvá-lo. E, segundo Goerlitz, houve tempo em que Earnshaw estivera qualificado para ser um deles. Mas depois, porque lhe faltava a dureza necessária para governar, recusara-se a ajudar um irmão de sangue, cometera um crime sem perdão. Traíra-os. “E agora tem de sofrer as consequências”, concluíra Goerlitz.

Earnshaw compreendeu, finalmente.

Tinha sido condenado. Não haveria apelação.

No entanto, um enigma menor importunava-o.

— Dietrich — disse ele —, sei que meu tempo passou. Uma última pergunta. Por que se incomodou em receber-me?

— Porque prometi que o faria, portanto cumpri a promessa.

— Prometeu? A quem?

— Eu... — Goerlitz fez uma pausa, olhou para a bengala e respondeu:

— Prometi a mim mesmo. Achei que merecia ser ouvido. Se tivesse me falado clara e sinceramente de seus fracassos, se os houvesse reconhecido e se mostrasse arrependido, se tivesse evidenciado um pouco de força de caráter, eu teria reconsiderado quanto à publicação do capítulo em causa. Mas você não mudou, Emmett, não mudou nada mesmo. — Lentamente, com visível esforço, Goerlitz pôs-se de pé. — Publicarei o livro tal como está.

Earnshaw levantara-se também.

— Faça como entender.

Goerlitz puxou um cordão junto da janela.

— Meu mordomo vai indicar-lhe o caminho.

Earnshaw dirigiu-se para o vestíbulo. Ouviu Goerlitz chamá-lo, parou e voltou-se.

— Vejo no seu rosto — disse Goerlitz — que ainda não compreendeu... Não leu Nitzsche? Pois devia lê-lo. Tudo está explicado em Nietzsche. — Depois, em tom roufenho, acrescentou:

— “O que é bom? Tudo o que aumenta o sentimento de poder, a vontade do poder, o próprio poder, no homem. O que é mau? Tudo o que resulta da fraqueza”. — Fez uma pausa e concluiu:

— Assim falou Zaratustra.

Só alguns minutos mais tarde, depois de deixar o Hotel Ritz e atravessar a Place Vendôme, é que a enormidade da derrota arrasou completamente Earnshaw. Sua mente debatia-se entre centenas de agravos e raivas. Sua mente passava do deplorável idealismo maldirigidò de Madlock para o fanático cinismo de Goerlitz. Agora, ao ar livre, seu espírito estava entregue a si próprio e à sua desconcertante debilidade de caráter.

A porta do automóvel estava aberta, mas Earnshaw sentiu relutância em entrar. O automóvel parecia-lhe um carro funerário.

Ali, de pé, desejou morrer, e não se importou que semelhante desejo fosse uma blasfêmia. Mas sabia que isso em breve se realizaria, e não estava em suas mãos impedi-lo. Dentro de doze dias, antes do final da conferência, um dos membros deles, a quem abandonara, cumpriria o ritual da fraternidade ao liquidar Emmett A. Earnshaw. Sua desgraça afetaria Carol, os companheiros dos jogos de cartas, os visitantes de sua biblioteca presidencial, a fé de seu partido político. Sua desgraça faria esquecer a pobre Isabel e o pobre Simon, cuja memória imaculada dependia da sobrevivência de seu próprio renome. Sua desgraça faria com que seu nome fosse riscado do quadro de honra da Terra para toda a eternidade.

Desapareceria, e dele apenas restaria uma placa tumular com duas palavras gravadas:

“Rue Cathay”.

Ao fim da tarde, a Margem Esquerda estava tão congestionada pelo trânsito como o estivera a Margem Direita no princípio da manhã, e Matt Brennan perguntou-se o que fazia ali. Encolhendo-se, quando seu louco motorista de táxi derrapou na frente de outro carro ao tentar mudar de direção, Brennan ainda viu o motorista entrar a salvo na Rue de Seine.

Embora soubesse que se tratava de uma caça aos patos selvagens — demasiado ridícula para contar a Lisa —, Brennan consolou-se com o virtuoso sentimento de que ia, finalmente, fazer alguma coisa.

No entanto, talvez não fosse inteiramente disparatado prosseguir naquele caminho. Jay Thomas Doyle assim o pensava, e, apesar de sua aberração quanto ao assassinato de Kennedy, não deixava de ser um indivíduo sensível.

Brennan tinha se encontrado com ele após o fiasco na Maison Legrande. Dera um longo passeio, ruminando sua situação, ao mesmo tempo em que admirava as vitrinas dos estabelecimentos, e já era quase noite quando regressara ao Hotel Califórnia. Penetrara no vestíbulo no momento exato em que Jay Doyle deixava um envelope para ele na recepção.

— Andava à sua procura — explicou Doyle, estendendo-lhe o envelope. — Prometi-lhe dar uma olhada nos arquivos da ana, a respeito de Rostov. Quando acabei meu trabalho para Earnshaw, fui bisbilhotar os arquivos. Como calculava, havia dados recentes sobre Rostov, embora não fossem muitos. Algumas páginas datadas de há um ou dois dias. Ao que parece, a redação está recolhendo informações completas sobre todos os delegados. Pedirei a Llazel Smith que me diga o que souber. A Rússia é seu campo de ação. De qualquer maneira, Matt, consegui a maior parte das informações biográficas sobre Rostov. E um parágrafo sobre seus gostos. Talvez lhe sirvam para alguma coisa. Confesso que não sei.

Ficaram andando pelo vestíbulo, enquanto Brennan abria o envelope, pegava as notas de Doyle e as examinava rapidamente.

Olhando por cima do ombro de Brennan, Doyle apontou para o último parágrafo:

— Isso é o melhor:

os gostos de Rostov. Aprecia a comida húngara. Ora, há vários e bons restaurantes húngaros em Paris. Pode encontrá-lo em qualquer deles. Também estão indicadas aí suas distrações favoritas:

cavalos e xadrez. É possível que ele reserve uma hora para ir ver os puros-sangues em Longchamp ou Neuilly, ou para ir a algum clube de xadrez... há cerca de uma dúzia em Paris, como a Caisse Brasserie des Templiers.. . se bem que não deva ter muito tempo para isso. Mas sua mania é colecionar manuscritos e livros raros. Ora, se for um verdadeiro colecionador, não deixará de ir às lojas de livros antigos da Margem Esquerda. São formidáveis! — Doyle estava sem fôlego. — É tudo, Matt. Desculpe. Creio que é demasiado vago para ser útil. Mas achei que devia informá-lo.

Uma recordação antiga ocupou o espírito de Brennan.

— Fez bem — disse ele. — Estou-lhe grato, Jay. Pode ser que descubra alguma coisa.

— Não está brincando? Não vejo o que possa descobrir.

— Tenho de pensar. Vejamos se me recordo. Quando Rostov e eu estivemos em Zurique, entendíamos-nos muitíssimo bem, porque tínhamos vários gostos em comum. Um deles era que ambos nos sentíamos atraídos por certas figuras históricas. Sou um leitor, gosto de me informar acerca dessas personagens. Rostov é, ou era, um colecionador, e gostava de possuir primeiras edições e cartas autografadas. Era um colecionador autêntico, e, como você tão justamente disse, deve achar os antiquários de livros de Paris irresistíveis. O pior é que... é quase como procurar agulha em palheiro. Onde descobri-lo? E quando? Desculpe, mas devo estar cansando-o. Eu me arranjarei.

— Cheio que vale a pena tentar — dissera Doyle.

— Em minha situação presente, Jay, tudo vale a pena. Estou-lhe sinceramente grato.

Depois que Doyle saíra, Brennan dirigira-se para o escuro bar do Califórnia e sentara-se a uma mesa. Enquanto bebia o uísque, acompanhando-o de pipocas, voltou a ler o último parágrafo.

Com um pequeno esforço, recuou quatro anos no tempo, até as tardes em que ele e Rostov se sentavam no Cabaré Voltaire ou no Kropf, em Zurique, discutindo política e gostos pessoais. Brennan relembrou várias conversas e sujeitou gradualmente a memória ao que ia recordando. Havia dois assuntos pelos quais Rostov se interessava com avidez. Um era Lorde Byron. O outro era Sir Richard Burton, explorador e arqueólogo, o Burton que visitara Meca disfarçado, que descobrira o lago Tanganica, que dera com Brigham Young em Salt Lake City e que escrevera ou traduzira pelo menos cinquenta livros, entre os quais o clássico Noites árabes. Brennan tinha certeza de que havia outros grandes homens pelos quais Rostov se interessava, mas Byron e Burton eram os mais vivos em sua memória, sobretudo o excêntrico e teimoso Burton.

Com maior dificuldade, Brennan tentou recordar-se das fontes da coleção de Rostov. Também haviam sido discutidas, tinha certeza, mas não lhe ocorriam no momento. Brennan pensou, tornou a pensar, e, por fim, o nome de um depósito de livros raros em Londres veio-lhe à memória, logo seguido por outro em Berlim, com o qual Rostov negociava por via postal. Também havia alguns em Paris, como é natural, pelo menos uma livraria da qual Rostov recebia com regularidade os catálogos, e Brennan recordou-se de que o nome desse estabelecimento lembrava vagamente uma célebre personalidade francesa. Pôs-se a rememorar nomes franceses, mas era um jogo enfadonho. Havia nomes demais. E, de repente, surgiu-lhe um indício:

a pedra Rosetta. Começou a associar os nomes ligados à pedra Rosetta. Quem tinha decifrado o hieróglifo? Champolion! Mas não, não era esse! Quem, então? Quem descobrira a pedra de basalto? Napoleão? Não. Um soldado de Napoleão, um oficial francês, um engenheiro, Boussard. Sim, mas também não era isso. Onde diabo fora encontrada a laje? Na cidade de Rosetta, no Egito... sim, mas não, antes numas escavações perto de um posto militar, um forte... um forte... o Forte Saint-Julien. Exato! Julien!

Pagando rapidamente a conta, Brennan atravessara o vestíbulo até a cabina do telefone. Aí, com o auxílio da telefonista, consultou a enorme lista telefônica de Paris. Cinco minutos depois, com um sorriso triunfante, escrevia num pedaço de papel:

"Librairie Julien, livres et aulographes, Rue de Seine”.

Uma caça aos patos selvagens, mas não importava, agora que já se encontrava na Rue de Seine.

Pela janela do táxi podia ver estranhas casas de antiguidades, livrarias, acanhadas mercearias, bares que desfilavam e, de repente, um velho letreiro:

“Julien”. Tocou no ombro do motorista e ordenou:

— Aqui, ici, desço aqui.

Abandonando o táxi, voltou a pé até a decadente livraria. Numa vitrina, entre montes de livros, afixada num painel de veludo, via-se uma carta com a data de 1766 e assinada por Jean-Jacques Rousseau. Na outra vitrina, dispostas em semicírculos, havia belas edições princeps, encadernadas, das obras de Mareei Proust.

Abrindo a porta e entrando, Brennan ouviu o som de uma campainha acima da cabeça. Viu-se numa pequena ante-sala mobiliada com três pequenas escadas e uma cômoda baixa com puxadores de tartaruga, sobre a qual descansavam um cinzeiro de bronze e uma pilha dos mais recentes catálogos do estabelecimento. Em frente, dois armários com quatro estantes cheias de volumes raros serviam de divisória, separando a ante-sala de um cubículo utilizado como escritório.

Uma cabeça de querubim, de cabelos grisalhos e óculos de aros dourados, espreitou por trás de um dos armários. Era o proprietário, que acenou com a cabeça, gritou “Tout de suite” e voltou a desaparecer.

Brennan aproximou uma cadeira da cômoda, sentou-se e pôs-se a consultar o último catálogo de Julien, relativo aos “Documents et livres historiques”. Os livros numerados para venda estavam em ordem alfabética de autores, seguindo-se os títulos e um resumo em francês dos assuntos, assim como algumas linhas explicando se se tratava de uma edição princeps, de uma simples reedição, de uma cópia autografada ou de um volume particular. Brennan abriu a lista de autores na página B e logo encontrou:

“Burton, Sir Richard Francis”. Havia duas edições princeps à venda:

Falcoaria do vale do Indo, Londres, J. van Voorst, 1852; Os planaltos do Brasil, dois volumes, Londres, Tinsley Bros., 1869. A seguir, Brennan procurou na lista “Byron, George Gordon, sexto barão Byron”. Havia “Butler, Samuel”, “Byrd, William”, mas nenhum Byron.

O fato de existir Burton e faltar Byron determinou imediatamente a estratégia de Brennan. Pediria para ver os volumes de Burton. Perguntaria se não havia outros à venda que não estivessem na lista. Casualmente inquiriria se eram muitos os colecionadores de Burton que frequentavam o estabelecimento, e, em caso afirmativo, se não fosse mencionado o nome de Rostov, ele o mencionaria. Afirmaria que Rostov era um amigo de longa data, que lhe recomendara aquela livraria e que ambos se correspondiam com frequência a propósito das aquisições de Burton. Tentaria saber se Rostov estivera no estabelecimento ou se era ali esperado, e quando, pois Brennan gostaria de surpreender o velho amigo e camarada bibliófilo. Era uma aventura, mas já era alguma coisa.

Ouviu uma voz dizer “Bonjour” e ergueu os olhos para fitar o indivíduo de cabeça de querubim, de corpo metido num avental cinzento, de pé, entre os armários.

Brennan levantou-se.

— M. Julien?

— Oui... Américan ?

— Exatamente. Eu...

— Seja bem-vindo — disse o proprietário, em inglês. — Em que lhe posso ser útil?

— Para ser franco, coleciono Sir Richard Burton. Eu...

— Claro, claro — cortou o sr. Julien. — Por aqui.

Brennan passou por entre os armários e penetrou no escritório.

À sua esquerda, via-se uma mesa em cima da qual estava um exemplar aberto de France Nouvelle, e uma mesa de refeitório coberta de veludo verde no centro da sala. As paredes estavam tapadas por estantes com livros antigos e armários trabalhados que continham originais manuscritos e diversas publicações particulares.

O proprietário dirigiu-se para a mesa ao mesmo tempo em que dizia:

— Estava à sua espera. Há meia hora que embrulhei os livros de Burton, sr. Peet.

Espantado, Brennan ia falar quando o proprietário, já perto da mesa, se endireitou e disse:

— Já me esquecia. Tem a lista, sr. Peet?

— Receio que esteja me confundindo com outra pessoa, monsieur — disse Brennan. — Não sou Peet. Meu nome é Matthew Brennan.

O sr. Julien pareceu decepcionado, mas logo recobrou a calma e encaminhou-se para a mesa forrada de veludo.

— Excusez-moi, queira desculpar meu erro. Como vê, estava à espera de outro americano, também colecionador de Sir Richard Burton. Encomendou-me os livros e disse-me que viria buscá-los, já se passaram trinta minutos. De modo que pensei... — E encolheu os ombros.

— Compreendo — disse Brennan.

— Então, em que lhe posso ser útil, monsieur?

— Como lhe disse, sou colecionador de Burton. Gostaria de ver os dois exemplares mencionados no catálogo.

— Foram vendidos.

— Oh, que pena! Bem, talvez tenha outros livros que não figurem no catálogo...

— Apenas os que seu compatriota encomendou previamente pelo correio — respondeu o sr. Julien. — Não há outros. Estão esgotados, lamento dizê-lo. — Sua mão apontou para as estantes. — É claro que temos muitos outros livros raros e interessantes...

— Não, só me interesso por Burton. Surpreende-me que tenha vendido esses artigos tão rapidamente. Nunca julguei que houvesse tantos admiradores de Burton. O que aconteceu? Está negociando com os participantes da conferência?

— Da conferência? — espantou-se o proprietário. — Esses delegados não vieram aqui à procura de livros, sua missão é massacrar os chineses. E, quando o tiverem feito, irão ao Folies e ao Clube Lautrec. — E com impaciência:

— Bom, monsieur, se não deseja mais nada...

A irritação do sr. Julien contra aqueles que “massacrariam os chineses” espicaçou Brennan. Será que o proprietário era meramente um francês simpatizante dos chineses ou um membro do Partido Comunista Francês? Se bem que sua tática tivesse falhado, hesitava em ir embora. Pensou num pretexto para ficar, e, então, lembrou-se do interesse de Rostov por Byron.

— Na verdade, há uma coisa que desejo. Tem...?

A campainha da porta tilintou e Brennan calou-se. O sr. Julien olhou para a porta, murmurou uma desculpa e dirigiu-se para a divisória que comunicava com a ante-sala. Brennan tinha se voltado de costas para a entrada, fingindo percorrer os títulos das estantes, quando ouviu uma autoritária voz americana, de acentuado sotaque do meio-oeste, perguntar com forçada agressividade:

— É o sr. Jul-iã? Sou Joe Peet. Telefonei-lhe há pouco, lembra-se?

— Certamente, M. Peet. Esperava-o mais cedo — disse o proprietário, num tom submisso e arrastado, usado para agradar aos clientes.

— Sim, eu sei. Desculpe. Atrasei-me. Foi impossível vir mais cedo. Cheguei no avião de Chicago há poucas horas, dormi um pouco, depois atirei-me logo ao trabalho. Surgiram contratempos. Seja como for, conseguiu os livros de Burton que lhe encomendei?

— Estão prontos, M. Peet. — Fez uma pausa. — Para ver se não me enganei na encomenda, tem a lista, monsieur?

—• Sem dúvida.

Ouvindo o diálogo através da divisória, Brennan foi tomado de súbita curiosidade. Intrigava-o o som da voz do cliente americano, Joe Peet, com quem o haviam confundido. Ao ouvido sensível de Brennan, o sotaque de Peet não sugeria um colecionador de qualquer gênero literário, a não ser o da revista True Detective ou da Mecânica Popular.

Brennan dirigiu-se ao centro da sala e espreitou por entre os armários, observando o cliente, antes de o proprietário se aproximar ainda mais, cortando-lhe o ângulo de visão. Nesse momento, Joe Peet tirava do bolso do paletó esporte uma carta que começou a desdobrar. O cabelo acastanhado de Peet estava empastado de fixador. O rosto pálido e comprido, salpicado de espinhas, era vulgar e inexpressivo, como o de centenas de mecânicos e empregados de bombas de gasolina disseminados pelos Estados Unidos. Era baixo, não devia ter mais de um metro e setenta, mas musculoso. Tinha aberto a carta, e foi nesse instante que o proprietário, inadvertidamente, cortou o ângulo de visão de Brennan.

Oculto atrás da divisória, Brennan escutava a leitura da lista dos pedidos feitos por Peet.

— Encomendei as edições princeps, se possível novas e completas, de três livros publicados por Sir Richard F. Burton, que são traduções de Burton — leu Peet em voz alta. — São os seguintes:

O livro das mil e uma noites, volume I, publicado em Benares, em 1885; Inteligência e sabedoria da África ocidental, publicado em Londres, em 1865; O jardim dos perfumes, a primeira impressão da edição revista, publicada postumamente em Londres, em 1890.

Apesar da leitura incerta de Peet, Brennan reconheceu cada um dos títulos, pois tinha feito parte do exaustivo exame final de Brennan na faculdade, havia muitos anos. Concentrando de novo a atenção, ouviu a voz do proprietário:

— Excelente, foi isso mesmo o que encomendou e pagou. Tenho os três livros no escritório, já empacotados.

Então, o proprietário dirigiu-se para a divisória formada pelos armários, e Brennan voltou a ocupar seu posto junto das estantes. Todo entregue ao negócio, o sr. Julien parecia ter esquecido a presença de outra pessoa no escritório. Inclinou-se para a frente, retirou da mesa um pesado embrulho e voltou lentamente para a ante-sala. Sua voz de verdadeiro profissional ouvia-se claramente:

— Aqui estão, M. Peet. O livro das mil e uma noites, Inteligência e sabedoria da África ocidental e O jardim dos perfumes. São todos edições princeps completas, tal como foram publicadas. Espero que o satisfaçam.

— Assim o espero, também — disse Peet. — Adeus. Muito prazer em vê-lo.

— Obrigado, M. Peet. Bom dia e obrigado.

A campainha por cima da porta tilintou, mas Brennan mal a ouviu. Um estranho pensamento atravessou-lhe o espírito, e sua memória reconduziu-o ao exame final da faculdade.

Ergueu os olhos para o proprietário, que, por sua vez, o fitava admirado.

— Quase me esqueci de sua presença, monsieur. Queira desculpar-me. Estou.. . à votre service. Antes de sermos interrompidos, o senhor dizia que talvez estivesse interessado em outros artigos.

— Não, não estou — respondeu Brennan com brusquidão. — Estive examinando as estantes. Não há nada para mim. O que me interessava seu cliente levou.

— Ah, monsieur! É uma lição a ter em vista:

agir sempre com antecipação e firmeza. É da maior importância.

— Assim o creio — disse Brennan. — Seja como for, obrigado. Bom dia.

Já na rua, olhou para todos os lados em busca de Peet, mas ele havia desaparecido.

Lentamente, Brennan dirigiu-se para o modesto café da esquina, sentou-se numa cadeira de vime ao fundo e, distraidamente, pediu meia garrafa de água de Evian.

Finalmente só, Matt Brennan reviu o curioso encontro entre o sr. Julien e Joe Peet. Reconstituiu o melhor que pôde o diálogo travado no estabelecimento de livros raros. Peet tinha encomendado as três edições princeps impressas de Sir Richard Burton. Encomendara, pagara e recebera O livro das mil e uma noites e a Inteligência e sabedoria da África ocidental. Encomendara, pagara e recebera O jardim dos perfumes.

Brennan recordou um parágrafo da segunda página do exame da faculdade, consagrado a Sir Richard Burton.

Cinco anos antes de sua morte, Burton iniciara uma nova tradução de um manuscrito da erotologia árabe, que esperava viesse a ser o mais célebre e escandaloso de seus livros. Tinha mandado um breve resumo a um amigo, ao qual escrevera:

“Você verá de que trata meu próximo trabalho. Mais de metade já está feita. Será um repositório maravilhoso da sabedoria oriental; como se fazem e se casam os eunucos; o que fazem no casamento; a extirpação do hímen; os felás que copulam com os crocodilos, etc. A sra. Grundy uivará até rebentar e devorará cada frase com imenso prazer”.

Burton completara o manuscrito em Trieste, e aí, a 20 de outubro de 1890, morrera. Pouco depois, a pudica viúva de Burton, Isabel, vira o fantasma do marido durante a noite. Consultara a esse respeito um padre camponês italiano, o qual lhe dissera que ela devia cumprir as ordens da visão. Assim, Isabel Burton rejeitara a oferta de seis mil dólares que um editor lhe fizera pela última obra do marido. E porque estava convencida de que o manuscrito era indecente e prejudicaria a memória dele, e porque a visão lhe ordenara que o destruísse, Isabel queimara página por página o único original existente do último livro de Burton.

E assim, recordou Brennan, o único exemplar do último livro de Sir Richard Burton tinha desaparecido da face da Terra, para nunca ser publicado nem lido.

E esse livro, recordou Brennan, intitulava-se O jardim dos perfumes.

No entanto, há minutos, num obscuro antiquário da Margem Esquerda do Sena, em Paris, numa livraria frequentada por um ministro russo chamado Nikolai Rostov, que colecionava obras de Burton, um americano chamado Peet pedira a um negociante francês chamado Julien três livros editados por Sir Richard Burton, recebera-os, levara-os consigo, e um desses livros era O jardim dos perfumes.

Inacreditável!

Alguém tinha vendido um livro, e alguém tinha comprado esse livro, um livro que não existia em parte alguma do mundo.

Por quê?

Brennan não sabia a resposta. Mas uma coisa era certa:

talvez aquilo não tivesse sido uma mera caça aos patos selvagens.

Os convites impressos para a primeira noite da tão desejada Exposição Retrospectiva, que comemorava o sexagésimo aniversário de Nardeau e mostrava quarenta anos de sua evolução do Impressionismo para o Fauvismo e, depois, para um estilo próprio (com reminiscências de Vuillard), tinha atraído um grande e entusiástico grupo de críticos de arte e celebridades à Nouvelle Galerie d’Art, na Avenue de Friedland.

Estavam presentes os críticos de arte de La Croix, do Paris Arts, do Le Monde, do Figaro Littéraire, da Paris-Match e da Réalités. Estavam presentes os correspondentes da imprensa estrangeira, representando jornais e periódicos tão diversos como The New York Times, Der Spiegel, Manchester Guardian, Marcha, de Montevidéu, e até Igor Novik, do Pravda. E havia outros, um Rothschild, um presidente da Câmara de Nice ou Marselha, um parente de Stavisky, um pretendente ao trono da Romênia chegado de Lisboa, três embaixadores, onze delegados que faltaram à sessão noturna da conferência, muitos colecionadores milionárips, numerosos negociantes que tinham representado Braque, Chagall, Valtat, Picasso, Giacometti, e que ainda cortejavam Nardeau. Todos estavam presentes e, com eles, Hazel Smith, da ana, em seu elegante vestido de noite, ornado de pérolas, e com uma estola.

Desafiando o movimento e a agitação dos convidados que ocupavam a galeria oblonga, Hazel Smith equilibrava na mão a comprida taça de champanha, conseguida no bufê instalado por trás do pedestal branco em que assentava a escultura de bronze de Nardeau que representava o busto de uma mulher.

Tinha estado observando o relógio de parede, acima da porta em frente. Seus olhos voltaram-se uma vez mais para o relógio. Eram exatamente oito horas e trinta e cinco minutos. Ela começava a se sentir preocupada por obrigar Jay Doyle a esperar tanto tempo, e pcrguntava-se se a farsa de Carol teria falhado, quando a porta se abriu e os três entraram na Nouvelle Galerie d’Art.

Momentaneamente aliviada, logo excitada, Hazel Smith abriu caminho através de dois grupos de convidados que bebiam champanha e procurou um posto de observação, a dois metros do quadro.

Com alegria, Hazel examinou o Nu no jardim, de Nardeau, o provocante e altivo rosto de adolescente que oferecia sensualmente o corpo nu, os pequenos seios firmes, uma perna erguida, a outra baixada, o contorno do umbigo, o atrevido púbis, tudo representado na pintura. Daquela abandonada Fleur Grearson da tela, os olhos de Hazel dirigiram-se para a entrada da galeria. Erguendo-se na ponta dos pés, pôde ver a madura e viva Lady Ormsby, friamente loura e aristocrática, com uma magnífica tiara de diamantes e um vestido de cetim branco sem ombros, de cima do qual tirara a estola de marta branca. O drama estava iminente, e Hazel não pôde reprimir um sádico sorriso de expectativa.

Viu o proprietário da galeria, Michel Callet, saudar Sua Senhoria, Earnshaw e Carol, e entregar-lhes catálogos, antes de conduzi-los até o primeiro quadro.

Llazel calculou mentalmente que só dali a cinco minutos estariam diante do Nu no jardim.

Mais à vontade agora, Hazel sorveu o champanha e esperou que a vítima caísse na armadilha. Já não estava arrependida de ter vindo à exposição. Tivera uma tarde fatigante e, portanto, esperava poder descansar um pouco antes do encontro enervante com Jay Doyle. Mas Medora telefonara para lhe agradecer por ter encorajado Carol a ajudá-la. Medora relatara-lhe o que acontecera no Joseph, depois que Hazel as deixara no fim do almoço, e descrevera-lhe seu plano. Quando Medora se lamentava por não poder presenciar o desenrolar do drama, Hazel propusera-se irrefletidamente a representar Medora.

Espicaçada por um antigo instinto de estar onde houvesse possíveis notícias, mesmo que estas não pudessem ser publicadas, Hazel aceitara a incumbência, mas logo sentiu remorsos de tratar Jay Doyle com tanta dureza. Este tinha combinado ir buscá-la para jantar às oito horas. Ela, porém, comprometera-se a ir à Exposição Retrospectiva de Nardeau, à mesma hora. Ainda pensara em levar Doyle com ela, antes do jantar, mas acabara por rejeitar a ideia. O encontro de ambos merecia a ausência de distrações públicas. Assim, telefonara para o Hotel Georges V a fim de deixar um recado, mas Doyle ainda se encontrava no quarto. Em breves palavras, ela lhe explicara que tinha prometido comparecer à exposição de arte para ajudar uma amiga e que se encontrariam mais tarde. O atraso não seria grande. Ele não se importava de adiar o jantar para as nove horas?

Após aquele telefonema, sentira-se ainda mais pesarosa com a interferência da exposição. Queria estar com Doyle o mais depressa possível, vencer a tensão provocada pela expectativa daquele encontro após tantos anos de separação, e ver se o futuro seria possível para ambos, do que começava a duvidar seriamente. Mas, uma vez no interior da Nouvelle Galerie d’Art, fora absorvida pelo suspense e esquecera Doyle.

Voltou a olhar em redor, e viu, com alívio, que os três, guiados pelo volúvel e acomodatício negociante de quadros francês, estavam perto dela.

Lady Ormsby, magnífica e impecável, dominava a multidão que a rodeava, segurando na mão enluvada um catálogo aberto. Acompanhando-a, mas um pouco recuado, via-se o ex-presidente Earnshaw, que parecia mais velho e mais grisalho do que durante sua improvisada entrevista coletiva do dia anterior, e também estranhamente perturbado. O faro jornalístico de Hazel perguntava-se por quê:

estaria ele sofrendo por algum deslize político do atual presidente, ou eram simplesmente os calos que o incomodavam? Mais atrás vinha Carol, solene, nervosíssima quanto ao êxito ou fracasso de seu estratagema. O olhar de Hazel cruzou com o de Carol. Com exceção de um leve pestanejar de compreensão, nada mais houve.

Estavam agora entre Hazel e o quadro, e Fleur Ormsby, que lia o catálogo, não parecia vê-lo. De repente, Carol colocou-se entre Fleur e o tio, agarrou cada um deles por um braço e, obrigando-os a parar, forçou-os a prestar atenção ao Nu no jardim.

Adiantando-se, Hazel pôde ouvir claramente a voz de Carol por cima do ruído da sala.

— Oh, Fleur, espere! Olhe para este.. . Como é belo! Já viu uma coisa assim?

Como espectadora, em posição de observar Lady Ormsby de perfil, Hazel esperou de respiração suspensa, aproximando-se automaticamente para ver melhor.

Sob as sobrancelhas pintadas em arco, os olhos de Fleur Ormsby tinham-se estreitado. Em silêncio, examinou o óleo.

— Nu no jardim — anunciou Carol, lendo o título ao fundo do quadro. — Nardeau pintou-o há uns dez anos.

Earnshaw aproximou-se do objeto causador da extática admiração da sobrinha.

— O que tem de especial? — perguntou, com uma careta. — Uma jovem sem-vergonha que resolveu despir-se. Isto não é arte, é uma fantasia... hã... pornográfica. Tenho certeza de que há coisas melhores para ver.

— Oh, tio Emmett, há tanto que ver neste! Tente compreender Nardeau. Estou certa de que Fleur poderia explicar-lhe tudo o que ele simboliza. — E voltando-se para Fleur Ormsby:

— É magnífico, não acha?

Atrás deles, Hazel continuava a fixar o perfil de Lady Ormsby. Esta não dava sinais de compreensão, não parecia disposta a reagir ou a fazer comentários. Mas Hazel não deixou de notar a crescente rigidez dos músculos ao longo do queixo.

— Muito interessante — concedeu Fleur Ormsby, voltando-se —, embora demasiado evidente, como sugeriu seu tio, Carol. Não pertence ao melhor período de Nardeau. É sem sombra de dúvida uma obra de transição. No entanto, a perfeição artística é esclarecedora. — Olhou indolentemente para Carol. — Na realidade, não é do melhor de Nardeau. Os contornos não são tão sutis como os do último período.

— Oh, não me referia à pintura em si! — interveio Carol, rapidamente. — Falava da modelo. É a mulher mais atraente que vi até hoje. Compreende-se que não pode haver homem que não a deseje, mas ela parece não se importar. — Carol voltou-se para a tela. — Uma moça de sorte. Quem me dera ser atraente assim!

Earnshaw franziu o sobrolho na direção da sobrinha, mas Fleur Ormsby estava de novo examinando o nu.

— Compreendo o que quer dizer — murmurou Fleur Ormsby, como se falasse consigo mesma.

— De fato — disse Carol, olhando alternadamente da tela para Fleur —, o que quero dizer, Fleur, não me leve a mal, é que há uma certa semelhança entre você e a moça do quadro. Isto é. ..

— Carol! — interrompeu Earnshaw. — O que se passa com você? Já teve melhores maneiras. ..

O sorriso contemporizador de Fleur Ormsby e seu gesto revelaram indulgência.

— A verdade é que me sinto lisonjeada, Emmett. Creio que Carol tem razão.

— Era um cumprimento — explicou Carol —, um elogio, nada mais. Não me refiro às partes nuas do corpo, mas ao rosto. É perfeito, tal como o seu.

— Obrigada, Carol.

— Gostaria de ver um retrato seu, quando tinha essa idade. Aposto que se parece com o quadro.

Fleur Ormsby forçou uma gargalhada:

— Eu era uma liliputiana horrivelmente gorda. — Apontou para a tela. — Se me parecesse com esse quadro, não teria derramado tantas lágrimas de autocompaixão no colégio.

— Não acredito — teimou Carol. — É tudo modéstia. — Hei de procurar retratos seus nos jornais.. .

As feições de Fleur Ormsby endureceram.

— Se eu fosse você, Carol, não pensaria nisso. Acredite que perderá seu tempo.

— De qualquer maneira — disse Carol, olhando longamente para o quadro —, se eu fosse assim, gostaria de possuir essa tela, para poder me admirar quando fosse velha e de cabelos brancos.

— Que caprichosa! — exclamou Fleur Ormsby com uma gargalhada breve, mas que soou seca aos ouvidos de Hazel.

— Se tivesse dinheiro, eu a daria de presente a você — insistiu Carol. — Não admitiria que alguém possuísse minha sósia e não a admirasse.

— É generosa, Carol, mas não se trata propriamente de minha sósia — disse Fleur, com um laivo de irritação.

— Seja como for, detestaria quem o possuísse.

O olhar de Fleur Ormsby desviou-se de Carol para a tela. Voltou a examiná-la em silêncio, depois confessou:

— Sim, tem um encanto buliçoso. É um Nardeau, e pode animar um recanto escuro de nossa casa de campo. Por nada deste mundo Austin consentiria que o primeiro-ministro o visse, tenho certeza, mas, de qualquer maneira, não está à venda.

Carol estava apontando para o catálogo:

— “Por empréstimo. Doador anônimo.” O que quer dizer?

Fleur Ormsby continuava a olhar para a pintura.

— Francamente, não sei.

— Vamos andando — resmungou Earnshaw. — Metade da imprensa dirige-se para cá.

— Sim? — inquiriu Fleur Ormsby, olhando nervosamente em redor e depois de novo para o quadro. — Tem razão, é melhor continuarmos.

Quando acabaram de percorrer a exposição, Hazel pôde verificar que, ao passo que Earnshaw se mostrava cada vez mais impaciente, Lady Ormsby parecia ter naufragado em seus pensamentos. Para surpresa sua, Hazel notou que Carol, que vinha atrás, lhe sussurrava:

— O que pensa disso? Fiz o melhor que pude, mas não sei.

— Eu também não — disse Hazel.

— Está muito, muitíssimo fria — continuou Carol. — Talvez não se reconheça.

— Pelo contrário, creio que se reconheceu.

— Tomara que sim! Fica mais um pouco?

— Bem, tenho...

Carol olhou em redor, depois aconselhou:

— Façamos figas.

— Boa sorte — desejou Hazel, mas Carol já tinha desaparecido.

O fim do ato fora desolador, sem interesse e ambíguo como o champanha que estava acabando, concluiu Elazel, embora tivesse certeza de que Fleur Ormsby se reconhecera em Fleur Grearson.

Abrindo caminho até a escultura de Nardeau, depois de passar por paisagens da Riviera, Hazel quis entregar a taça vazia no bufê e ir embora. Mas, ao pensar em Jay Doyle, que a esperava, sentiu-se irritada e estendeu a taça para que o garçom a enchesse uma vez mais com a dourada e espirituosa bebida. Esvaziando-a rapidamente, percorreu a galeria, a fim de lançar um último olhar aos atores daquele drama de caracteres. Finalmente, descortinou-os. Fleur Ormsby dirigia-se ao proprietário da galeria, Michel, vigiada de perto por Carol, ao passo que Earnshaw se deixara ficar um pouco para trás, desembrulhando calmamente um charuto.

A segunda taça de champanha fizera com que Hazel se sentisse mais confiante, se não no futuro de Medora, pelo menos na perspectiva de uma noite agradável e de recordações com Doyle. Pousando a taça, abriu a caixa de pó-de-arroz, examinou a pintura do rosto e encaminhou-se para a porta. Ainda não tinha dado meia dúzia de passos quando ouviu Carol chamá-la num murmúrio pleno de excitação:

— Srta. Smith... Hazel... estou atrás de você, mas faça de conta que não me vê.

Esta criança gosta de brincar de teatro, pensou Hazel, portanto, brinquemos.

— Está bem, Carol.

À medida que atravessavam a multidão, uma atrás da outra, Carol ia dizendo:

— É tremendamente fantástico. Nem vai acreditar. Quando chegamos ao outro extremo, Fleur olhou em volta, à procura do sujeito que administra a galeria, esse tal...

— Michel.

— Isso mesmo. Acabou por descobri-lo, e então...

Tinham chegado junto da porta. Hazel parou e voltou-se para Carol, a fim de ouvir o resto.

— Consegue vê-los por cima de meu ombro? — perguntou ansiosamente Carol.

— Não — respondeu Hazel, depois de espreitar.

— Julgam que fui ao banheiro... Oh, vai ficar espantada, Hazel! Fleur foi atrás desse Michel, o proprietário, e quis saber se havia alguma obra de Nardeau à venda. Michel disse-lhe que oficialmente não havia, mas que tinha motivos para acreditar que algumas pudessem ser vendidas não oficialmente. É claro, disse ele, que não sabia os preços, nem representava qualquer dos colecionadores que tão generosamente tinham cedido seus quadros para a exposição. Mas, se Sua Senhoria estava interessada em saber o preço de uma das telas em particular, teria muito prazer em lhe dar o nome e o número do telefone do respectivo colecionador. Disse-lhe também que teria de negociar e transacionar por conta própria. Então, ouça isto, Hazel, Fleur disse:

“Bem, há vários quadros que me interessam. Pode conseguir-me os nomes de seus possuidores?” Ele respondeu:

“Tem os títulos dos quadros?”, e Fleur:

“Sim, creio que os anotei”, e acrescentou:

“Podemos ir para seu gabinete? Há muito barulho aqui”. Pediu-nos licença e acompanhou-o. — Carol bateu orgulhosamente no peito. — Aposto que isso vai dar resultado. Neste momento, deve estar perguntando a quem pertence o Nu no jardim.

— Se assim for, é uma história dos diabos — disse Hazel —, e eu gostaria de escrevê-la. Principalmente se seu plano der resultado.

O rosto de Carol se ensombreceu.

— Quer dizer... acha que pode haver dúvida?

— Se se tratasse de outra pessoa, de uma esposa abandonada à beira de uma depressão nervosa, diria que tudo estava certo. Mas, como você disse, a nossa Fleur é uma mulher fria, não se perturba facilmente. Sabe enfrentar as dificuldades.

— Mas ela tem de pensar em sua posição, e aquele nu é chocante. O que aconteceria se alguém a reconhecesse naquela modelo tão nua como quando nasceu? Ela deve se preocupar com isso.

— Não creio, Carol. Mas pode ser. De fato, é possível que sim.

— Assim que chegarmos a casa e meu tio tiver se deitado, e depois de Medora haver terminado o espetáculo, vou telefonar a ela marcando um encontro para lhe contar exatamente o que acabo de lhe dizer.

Hazel sorriu à ansiosa jovem, que queria transformar o desejo em realidade.

— E que foi que me disse, Carol?

— Que há alguém disposto a apostar que Medora Ilart receberá um telefonema de Lady Fleur Ormsby amanhã de manhã. Aceita a aposta?

— Minha cara, não aposto em nada — disse Hazel — porque nasci azarenta. Se apostasse nas possibilidades de Medora, seria a melhor maneira de ela não receber nenhum telefonema amanhã de manhã. Portanto, ficarei de fora. Quanto a você, Carol, vá à Catedral de Notre-Dame e acenda uma vela, esta noite, por Medora Hart. Porque vai precisar de tudo o que for possível, de tudo, acredite.

Não uma, mas várias vezes, durante as duas horas e meia em que estiveram sentados à mesa do canto da sala de jantar do La Tour d’Argent, no terraço de um edifício de seis andares, Hazel Smith relembrara o aviso de despedida que fizera a Carol Earnshaw, e desejava que houvesse alguém bastante piedoso para acender um círio por ela. É que, ao olhar para o segundo prato principal de Jay Doyle, que o garçom retirava, sentiu que também ela iria precisar de tudo.

Aquela fora, pelo menos para Hazel e talvez por motivos ocultos e altamente pessoais, uma noite extremamente crucial.

Nos primeiros minutos que se seguiram à sua tardia chegada ao sexto andar, até o qual subira no pequeno elevador, pensara que tudo correria bem. O companheiro parecia disposto a fazer daquele encontro alguma coisa de promissor. Apesar de dois copos extraordinários de uísque e de sua obesidade, Jay Doyle estava elegante, cheirava a água-de-colônia, vestia-se impecavelmente, mostrava-se simpático, meigo até, e um pouco ansioso. O local escolhido era perfeito:

a adorável sala de um dos mais antigos restaurantes de Paris. Ali, em tempos passados, uma clientela que incluía o cardeal Richelieu, Alexandre Dumas, Napoleão III, Eduardo VII e Sarah Bernhardt tinha se visto rodeada pelas mesmas tapeçarias de Gobelin e de Aubusson que a rodeavam agora, e gozado o mesmo ambiente que ela e Doyle estavam gozando.

Instalaram-se a uma mesa perto de duas grandes janelas, e isso, sem mais nada, teria sido o bastante para fazer da noite um êxito. Antes, sempre que jantava no La Tour d’Argent, Hazel sentia-se invadida de romantismo devido às iluminadas torres góticas de Notre-Dame que se viam ao longe, às graciosas silhuetas do zimbório do Panteão, das cúpulas do Sacré-Cceur, da estátua dourada do Deus da Liberdade, na Place de la Bastille, das sombras recortadas pela luz do farol da Torre Eiffel.

Contudo, nessa noite, conversando com Jay Doyle, pela primeira vez não fazia caso da beleza existente para além das janelas, e havia esquecido totalmente o encanto da sala de jantar, porque tinha sido forçada a rever a primeira e esperançosa impressão da poderosa personalidade que amara outrora tão sinceramente, e depois odiara tão persistentemente em suas agridoces fantasias de amor e ódio.

O que transformara essa noite num martírio para ela, depois da constrangida e breve conversa preliminar, fora o espetáculo de Jay Doyle, o Fracassado.

Nos últimos anos, ouvira rumores a seu respeito da boca dos jornalistas que visitavam Moscou e de outros correspondentes encontrados em viagem, mas nunca acreditara nesses mexericos. Os rivais da irmandade do quarto poder eram impiedosos na maneira como falavam de outro rival, como aliás acontece com os rivais de todas as irmandades, quer sejam atores, políticos ou donas-de-casa. A única fotografia que tinha de Doyle representava uma figura poderosa e invencível, majestosa e autosuficiente, e nem as cartas humilhantes dos últimos anos (que esperto e astucioso cavalo de Tróia!, pensava ela) haviam alterado a antiga imagem.

Aquela noite fora uma decepção.

Nos primeiros minutos, o homem que estava à sua frente, apesar da gordura excessiva (que, como os alemães, ela associava à boa vida e aos repetidos êxitos), parecera-lhe a elegante reprodução de alguém que j;inha conhecido dominador, autoritário, superior e, por conseguinte, o mesmo a quem outrora dera seu amor. Mas, à medida que a noite avançava, uma transformação fora se operando perante seus olhos. Acabara por compreender que aquele não era o Doyle que recordava. Não era o mesmo homem a quem sua memória masoquista se agarrava, apenas tinha com ele uma grande semelhança. A imagem interior fora substituída pela daquele homem que era um estranho para ela, um usurpador que nada possuía de majestoso, ou apenas majestoso, se olhássemos para ele como César olhava para o esquisito e ranhoso bobo que era o imperador Cláudio. O Doyle que via era servil, tacanho, um fracassado (sem ao menos a coragem do fingimento). Com silenciosa amargura, tinha de se render aos mexericos da imprensa, ao evidente significado daquelas lamurientas cartas, à verdade singela de que Doyle, afastado de sua coluna e de seus leitores, se sentia tão desamparado, ineficiente e inútil como Sansão sem os cabelos.

A solidão arrastara Hazel para aquele encontro. Ansiosamente, desafiando a razão, quisera reconquistar o passado, ou o melhor dele, mas via com desgosto que o passado estava irremediavelmente morto e que só lhe restava o presente sem esperanças.

Ali estava Doyle, à sua frente, obeso e alagado em suor, respirando ofegantemente enquanto consultava o cardápio, de olhos empapuçados, perdidos nos encantos do La Tour d’Argent.

— E quanto à sobremesa? — perguntou ele.

— Não quero — respondeu Hazel em tom brusco.

— Não quer? — inquiriu ele, olhando por cima da mesa. — Vamos, Hazel. Coma qualquer coisa.

— Já disse que não.

— Tem de comer! Crêpes Suzette? Ou então, petits fours?

— Não. O que quer dizer n-a-d-a.

— Está bem. Não se importa que eu petisque? — Esboçou um sorriso gaiato. — Sou doido por doces, como sabe. É uma necessidade. — Olhou para o garçom. — Traga um soufflé Valtesse para um. E também um prato de petits fours. Ah! Antes disso, mais pão e manteiga.

Ao observá-lo e ouvi-lo, Hazel estava mais desiludida do que irritada. O cardápio tinha sido outra decepção. Duas horas antes, quando ele o consultara, dissertara acerca do dístico impresso em vermelho:

“La grande cuisine demande beaucoup de temps”, e, aceitando o conselho, discutira por muito tempo cozinha com ela. Quando encomendara o jantar, mostrara-se vivo, seguro, senhor de si, pondo de lado a sugestão de que deviam comer caneton à Tour d’Argent — dois dos assados de pato enumerados na lista — para insistir, pelo contrário, na poularde en papillote.

Enquanto Doyle escolhia, as esperanças de Hazel renasceram, mas depois, à medida que ele comia, essas mesmas esperanças frustraram-se. Encomendar galinha cozida com molho de vinho branco para ambos fora uma coisa. Mas encomendar, além disso, outro prato principal para ele — ou, antes, dois, filés de solha com molho aurora, depois um bife de lombo de vaca com molho de vinho do Porto e batatas —, sem contar a galinha (“A galinha, Hazel”, disse ele, “deixa-nos, como a comida chinesa, esfomeados”) —, fora para Hazel a maior das decepções. A autoridade com que encomendara o jantar acabara por não ser autoridade nenhuma, apenas o fruto de uma voracidade insaciável. Foi então que o vira tal como era:

não um homem, como o fora outrora (à sua maneira), mas um indivíduo doentiamente repugnante, irremediavelmente fraco, um voraz mamífero da família das Mustelidae.

Durante todo o jantar, Hazel dominara a conversa. Tinha razões para isso. Antes da refeição, fora ele quem falara, e isso desagradara a Hazel, porque o que ele lhe contara nos últimos anos era demasiadamente degradante, assim como era demasiado servil o orgulho que dizia sentir pelos feitos dela. Entre todas as personagens literárias que recordava, a que mais detestava era Uriah Heep, por causa de sua irritante humildade. Portanto, decidira conduzir o diálogo. Além disso, durante todo o jantar, ele tivera a boca sempre cheia, por isso Hazel se vira forçada a falar, pelo menos para abafar os ruídos de seu constante mastigar. Já quase no fim da refeição, ela continuava a tagarelar, pois receava pô-lo à prova.

Tinha imaginado essa prova de Doyle antes daquele encontro. Dissera consigo mesma que Doyle havia se descartado rudemente dela em Nova York, que a humilhara em Viena havia muitos anos. Só depois do assassinato de Kennedy é que Doyle tentara reatar as relações mediante chamadas interurbanas e volumosas cartas. Esperara que ele tivesse refletido e amadurecido e a procurasse como mulher. No entanto, suspeitara — ou, antes, soubera, se bem que não positivamente — que ele tentava entrar em contato com ela apenas porque ela possuía a solução para o seu sórdido livro. Mas, pelo menos durante aqueles dias e meses, nunca tivera certeza absoluta das intenções dele. Porém, ao preparar-se para aquele encontro, compreendeu que ia finalmente conhecer os verdadeiros sentimentos de Doyle, e o resultado da confrontação assustara-a.

No entanto, dissera para si mesma, tinha de saber a verdade. E fora assim que imaginara a prova. Deixá-lo-ia falar. Limitar-se-ia a ouvir. Se ele não fizesse referência a seu estúpido livro ou à informação sobre o complô que queria que ela lhe desse para incluir nesse livro, se limitasse a conversa a ambos e a outros temas, passaria no exame com boa nota. Ela voltaria a encontrar-se com ele. Acabaria até por confiar nele. Ainda haveria esperança. Mas se ele começasse a falar no livro ou a fazer referências diretas ao fato de ela poder salvar esse livro, reprová-lo-ia por tentar servir-se dela e explorá-la. Então, ela se recusaria a voltar a vê-lo. Não tivera, porém, coragem de escutá-lo para saber, de uma vez por todas, se ele passaria ou não no exame. E, por isso, não o deixara falar. Pelo contrário, comprometera-se numa solitária maratona verbal, numa espécie de embuste solitário, e só depois da chegada da sobremesa é que se calou.

Decepcionada, viu-o comer o soufflé. Não havia possibilidade de adiar por mais tempo a prova. Pegou um cigarro, acendeu-o e ficou silenciosa. Agora, era a vez dele.

Doyle acabou com satisfação o soufflé e só então pareceu notar que estava acompanhado. Limpou os lábios com o guardanapo e aproximou de si o prato de petits fours.

— Bem... bem... Deve ser maravilhoso conhecer e entrevistar tantas pessoas. É uma grande mudança.

— Mudança?

— Sim, entrar em contato com uma variedade de pessoas como essa desenhista de moda, a sobrinha do velho Earnshaw ou a bailarina do Clube Lautrec. É diferente, depois de tantos anos de russos e russos.

— Compreendo. É, na verdade, uma mudança agradável.

— No entanto, seu trabalho na Rússia foi bastante bom, Hazel. — Estava mastigando dois petits fours. — A propósito, estive bisbilhotando nos arquivos da ANA, esta tarde. Precisava de certos elementos para Earnshaw. — Serviu-se de vinho, a fim de abafar um arroto, depois, respirando com dificuldade, prosseguiu:

— Foi assim que descobri anotações sobre cada um dos membros da delegação. Foram feitas por você, Hazel?

— Sim. Foi o que consegui. Não tenho muito tempo, mas o chefe queria alguma coisa sobre cada um dos delegados.

— Nesse caso, obrigado em nome de Matt Brennan.

— De quem?

— Lembra-se de Matt Brennan? Ele...

— Claro que me lembro. Esbarrei ontem com esse estúpido filho da puta.

— Não é estúpido, Hazel. Ele é tímido e, além disso, um perseguido. Seja como for, Brennan é meu amigo. Está aqui para tentar entrar em contato com um membro da delegação russa que pode inocentá-lo. Brennan insistiu sempre em sua inocência. Acredito nele. De qualquer modo, só existe uma pessoa que pode provar isso. Trata-se de um delegado russo com quem Brennan trabalhou em Zurique, antes da fuga de Varney.

— Sim?

— Pois bem, encontrei os dados sobre esse delegado russo.

Chama-se Rostov. Entreguei uma cópia a Brennan. Ele me ajudou uma vez, e eu lhe devia esse favor. Espero que não se importe.

Hazel continuava a observar Doyle.

— Por que eu haveria de me importar? Apenas não compreendo para que Brennan precisa desses dados.

Os olhos de Doyle embaciaram-se, e ele acabou por arrotar.

— Desculpe. — Com gestos lentos, desapertou o cinto. — Brennan e esses dados? Bem, é que ele tem tentado, sem êxito, encontrar Rostov, de modo que precisava de informações sobre os hábitos dele, na esperança de encontrá-lo. Penso que há qualquer coisa relacionada com o fato de esse russo colecionar livros raros e procurar adquirir alguns, enquanto está em Paris. Brennan quer saber qual é a livraria.

— Uma criancice! — exclamou Hazel com mais dureza do que desejava. — Não entendo, Jay, como você pôde se ligar a esses vencidos. Não está certo. Quanto a Earnshaw, ainda compreendo que trabalhe para ele, embora deva ser como trabalhar numa fábrica de melaço. Mas Brennan, esse cabeça-oca! Mesmo como traidor, deixa muito a desejar. Não tem nem o estômago dos Rosenbergs nem a dignidade de Hiss.

Doyle molhou no vinho o último petit four.

— Não creio que Hiss fosse traidor. E também não acho que Brennan o seja. Infelizmente, nenhum deles pôde provar sua inociência, nem eu posso prová-la em nome deles. — Meneou a cabeça. — Há demasiada injustiça no mundo devido a emoções, provas circunstanciais, necessidade de vítimas, só para que tudo continue como está. É o caso de Lee Harvey Os...

Hazel viu-o fazer um esforço para dominar a língua. Ele abafara o sobrenome, evitando pronunciá-lo. Hazel recostou-se, sentiu o coração acelerar-se, porque a verdade estava próxima, como estavam próximas Viena, a chave do complô que ela lhe tinha dado ali e sua contribuição para aquele maldito livro.

A prova! Teria de classificá-lo com um R de reprovado.

Ele ficou meditativo, como um Buda que se tivesse empanturrado ao jantar e tentasse descobrir a sabedoria no meio das calorias.

— Caramba! — exclamou de repente. — Para que falar de vítimas numa noite tão bela!

Hazel suspirou, aliviada. Contudo, ainda não tinha acabado, continuava insatisfeita. Agressivamente, prolongou a prova.

— Não me disse por que motivo se encontra em Paris. Com certeza não é unicamente para trabalhar para Earnshaw.

— Não.

— Então, por que é?

Ele hesitou, depois respondeu:

— Já que quer saber, eis aí. Estou escrevendo um livro. Talvez consiga publicá-lo aqui.

Maldita prova!

— Um livro? — repetiu ela, surdamente.

— Sim. Custa-me dizer-lhe, mas conhecemo-nos bem demais para começarmos a fingir agora. — Fez uma pausa. — É um livro sobre cozinha, um livro de receitas para glutÕes.

Os cotovelos de Hazel quase caíram da mesa, devido ao súbito alívio de sua tensão nervosa.

— Um livro sobre cozinha! — exclamou com entusiasmo. — Não é nada de que deva se envergonhar, Jay. Acho maravilhoso! Estou ansiosa por vê-lo.

— Não estou muito interessado nesse gênero de literatura — disse ele tristemente, puxando para si o cestinho de pão torrado e a manteiga. — Preferia a antiga coluna. Política e ação. Era isso o que me apaixonava. — Com gestos rápidos, pôs-se a untar de manteiga um pão francês torrado. — Mas há outra razão que me trouxe a Paris, Hazel. Como lhe disse no café, soube que estava aqui, ao alcance da minha mão, e por isso vim procurá-la. Tenho sentido saudades suas. Quis vê-la...

— Não me venha com esse disco. Guarde-o para outras mulheres.

Ele acabou de mastigar a torrada e só então protestou:

— Não há outras mulheres, Hazel. Não tenho nenhuma, o que lamento. Talvez me fizessem ver como fui estúpido ao deixá-la escapar por entre os dedos. Meu Deus, como fui estúpido! Não a censuro por não ter me perdoado. Mas há pessoas que levam tempo a crescer, mais tempo do que outras. É o meu caso, Hazel. Agora, porém, creio que cresci. — Trincou outra torrada e prosseguiu:

— Gostaria que voltássemos aos bons tempos de outrora.

Ele passara na prova, fora aprovado no exame, e Hazel corou.

— Jay...

Ele se preparava para meter na boca o resto da torrada, mas de teve-se.

— Pare de comer, está bem?

Doyle baixou para a mesa a. mão gorda e largou o pão com manteiga.

— Desculpe, Hazel.

— Apreciei tudo o que disse. Também gostaria de recordar os velhos tempos. Vamos embora.

— Como queira.

— Vamos tomar ar. É tarde, e tenho uma entrevista amanhã cedo. Mas, se quiser, podemos tomar um drinque em meu apartamento, conversar um pouco, reviver e lamentar o passado... antes de eu ir para a cama. Está bem?

— De acordo.

— Onde fica o banheiro de senhoras? Pague a conta, enquanto vou me ajeitar.

Quinze minutos depois, já no Quai de la Tournelle, pensou em sugerir um passeio ao longo do Sena, na noite fresca. Mas os três pratos principais, além dos outros inúmeros pratos, pareciam ter imobilizado Doyle. Ele ficou de pernas abertas, tentando suportar o pesado abdômen, respirando com dificuldade, como um lutador vencido.

Hazel desistiu do passeio pelo Sena e dirigiu-se para o Volkswagen alugado. Deixou que Doyle a ajudasse, e foi com tristeza que o viu tentar entrar no assento a seu lado, no pequeno carro. Preocupada, porque precisaria de um guindaste para arrancá-lo dali, conduziu o Volkswagen através da ponte, até o Boulevard Haussmann.

Finalmente estacionaram na Rue de Téhéran, e Hazel esperou, aflita, que Doyle conseguisse se levantar do assento. Ele acabou conseguindo, deu a volta ao carro, fez um esforço galante para ajudá-la a sair, e depois, cambaleando, acompanhou-a até o edifício, onde eles subiram para o apartamento.

Na sala de estar, Hazel insistiu com ele para que tirasse o casaco e desapertasse o colarinho. Em seguida, levou-o do frágil divã para o sofá, mais sólido e confortável, que ficava em frente. Quando o viu instalado nas almofadas, murmurando agradecimentos, cirandou pela sala e apagou todas as lâmpadas, exceto as laterais. Depois, ligando o rádio nas ondas curtas, procurou música, sem erguer demasiado o som. Por fim, foi à cozinha preparar as bebidas e alguns canapês.

Ele espiava-lhe os movimentos, quando ela voltou para a sala de estar com a bandeja. Hazel podia ouvi-lo respirar pesadamente, enquanto colocava a bandeja na mesinha baixa. Perguntou a si mesma se aquele resfolegar seria paixão... ou enfartamento.

Passou-lhe um copo de uísque, pegou o seu e enroscou-se no sofá, ao lado dele.

— Aos bons dias do passado — brindou Hazel.

Ele fez tilintar seu copo contra o dela, mas com demasiada força, entornando um pouco de vodca do de Hazel, e brindou por seu turno, roucamente:

— Aos bons dias do presente.

Beberam em silêncio. Depois, ela decidiu falar com franqueza:

— Jay, era sincero o que você disse há pouco?

— O quê?

— Que teve saudades minhas.

— O que há de mais sincero — respondeu ele, em tom surdo. — Não houve noite, durante todos estes anos, em que eu não pensasse em você, em que não recordasse tudo, a primeira vez em que nos encontramos, a primeira vez que.. .

— Jay — pediu ela ternamente —, conte-me.

No canto do sofá, por entre a multiplicidade de dobras do pescoço, ele relembrou passagens da antiga paixão:

uma noite, uma manhã, um passeio, uma cavalgada, uma pequena cozinha, um restaurante, um recheio, um rondelet, um baile, um cachorro-quente, um bife, uma bebida suave, uma bebida forte, uma lágrima, uma discussão, um beijo, um apartamento, uma cama. Sua fala era melosa, as palavras eram roucas, mas para Hazel, que estava perto, eram como a canção de um trovador.

— Foi a única a quem amei — murmurou ele. — Simplesmente, só agora é que o descobri.

— Descobriu?

— Hazel — implorou ele —, quero vê-la sempre e sempre.

Arrebatada, Hazel curvou-se e roçou os lábios nos dele.

— Verá — prometeu, e sentiu o espírito reconfortado. — Vou me pôr mais à vontade. Volto já, querido. Não vá embora.

Alegremente, ela subiu a escada circular que dava para o quarto de dormir. Mal entrou, desabotoou o vestido, desembaraçou-se dele, penteou os cabelos ruivos e enfiou a camisola mais transparente e curta que possuía. Depois, vestiu o roupão licenciosamente decotado e saiu do quarto.

Outrora, fora uma jovem louca. Seria agora uma velha louca. Mas, pelo menos, seria alguma coisa.

Lenta e sedutoramente, desceu os degraus. Lenta e sedutoramente, atravessou a sala em direção ao sofá.

— Jay querido! — sussurrou por entre as sombras.

Não houve resposta. A grande massa informe não se moveu.

Perplexa, ia aproximar-se dele, quando de repente, como um tiro de canhão, o roncar de Doyle estilhaçou o silêncio da sala. Assustada, Hazel recuou. Por fim, recomposta, voltou a contemplar o monte estendido no sofá. A cabeça tinha resvalado, os olhos estavam firmemente fechados, o nariz resfolegava à medida que inspirava e a boca assobiava à medida que expirava.

Mal podendo acreditar, ela ergueu a bandeja até os joelhos. Os dois copos estavam vazios. Os dois pratos com amendoim e queijo estavam vazios. Nem uma migalha restava, apenas aquela ruína sobre o sofá.

Ficou de pé olhando para ele, muito tempo, indecisa entre rir e chorar.

Como podia voltar a apaixonar-se por aquilo? Mas não fora o amor que a fizera agir. Fora a compaixão. Ele precisava de alguém, desesperadamente. Ela sentiu compaixão, e esse sentimento era mais profundo e consistente do que o amor.

Com eficiência e ternura, tirou-lhe a gravata, desabotoou outro botão da camisa, desapertou-lhe o cinto, descalçou-o. Cuidadosamente, amparou-o dos lados e atrás com as macias almofadas. Foi buscar um tamborete e pôs-lhe os pés em cima. Em seguida, encontrou um cobertor no quarto da empregada e cobriu-o. Depois, rabiscou um bilhete e colocou-o na mesinha de café. Deu corda no relógio, regulou-o para despertar e colocou-o sobre o bilhete, na mesinha de café.

Voltou a contemplá-lo — bebê gordo, pobre querido —, deu-lhe um beijo na testa e foi para o seu quarto.

Não ia ser fácil dormir.

Estendeu-se na cama, com a cabeça cheia de pensamentos.

Sabia que aquela proximidade era perigosa, extremamente perigosa. O fato de Doyle passar ali a noite podia destruir o pouco que ela ainda tinha na vida. Podia destruir tudo o que era certo e seguro, se a chave desse inesperadamente a volta na fechadura em frente.

Aquele risco era uma loucura; mas tinha de corrê-lo, talvez valesse a pena. Com efeito, se Doyle precisasse dela como mulher e não como um meio que o guiasse até o dedo que puxara o gatilho na Biblioteca Escolar do Texas, então valeria a pena. Se ele a amasse sinceramente, ela aceitaria riscos maiores para vê-lo, para estar com ele, para assegurar o futuro de ambos.

Talvez, pensava Hazel, a Conferência de Cúpula viesse a significar uma virada em seu mundo particular, que poderia transformar-se num maravilhoso mundo de paz, ou, pelo contrário, num mundo de total devastação.

Ela e Doyle precisavam de tempo. Tinha de haver tempo, se antes disso a chave não desse a volta na fechadura da porta em frente.

Encolheu os ombros, puxou o lençol mais para cima e, finalmente, acalmou-se. Todos, disse consigo mesma, temos de viver com nossos riscos. Como escrevera num artigo naquela tarde, citando o ministro da Polícia de Napoleão, “a atmosfera está repleta de punhais”.

Hazel voltou-se na cama, ocultou profundamente a cabeça nas almofadas, para evitar os punhais, e esperou pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.


IV

 

 

 

LO fragor agudo das incursões aéreas e o silvo dos mísseis tinham feito durante tanto tempo parte de sua vida que seus reflexos estavam sintonizados para uma resposta imediata.

Logo que o grito agudo das sirenas retiniu em seu subconsciente, Jay Thomas Doyle acordou, de olhos arregalados pelo horror, ignorando se estava em Seul, Saigon, Calcutá, Damasco ou Leopoldville, mas tentando a todo custo recordar onde ficava o abrigo.

Com espanto, notou pouco a pouco a bonita sala, o papel dourado das paredes, as curiosas prateleiras repletas de cristais e marfim, os elegantes móveis, e gradualmente compreendeu que estava aninhado num leito acolchoado, de pernas apoiadas num tamborete, metido num terno amarrotado e não em pijama, e que o persistente grito de alarme vinha de um ridículo relógio colocado na mesinha a seus pés.

Já sentado para desligar o despertador, tentou lembrar onde estava e quem o teria levado para ali. Tateou, pegou o relógio, apertou o botão do alarme e logo o silêncio inundou a sala.

Afastou o cobertor, levantou-se do sofá, sentou-se no tamborete, desperto mas espantado. Passando os dedos pelos raros cabelos, esforçou-se por recordar o que tinha acontecido na noite anterior. Hazel, La Tour d’Argent, comida que dava para um porco. O Volkswagen dela, aquele apartamento, a ternura, o perdão, o beijo dela. Hazel segredando:

“Vou me pôr mais à vontade. Volto já, querido. Não vá embora”. As bebidas, os pires de canapês. O fato de deitar-se, cansado mas otimista. O desejo de saber o que resultaria daquela ressurreição do passado e o que significaria realmente. A expectativa. O vácuo.

Não se recordava de mais nada, e recusou-se a imaginar o que ela teria encontrado ao voltar para junto dele. Uma vergonha escaldante sufocou-o. Glutão repelente, abarrotado de comida, falhara em dormir com ela. Para uma mulher, era o pior dos insultos.

Seu olhar pousou no relógio. Mas não, Hazel tinha se referido a uma entrevista de manhã cedo. Consultou o relógio. Eram nove horas e quarenta e dois minutos. Demasiado tarde. Ela já devia ter saído.

Quando se dispunha a repor o relógio na mesa, Doyle notou pela primeira vez a folha de papel garatujada:

“Bom dia, Jay!” Pegou o bilhete e leu-o rapidamente.

“Espero que você tenha dormido bem. Regulei o despertador porque tenho de estar na rua às oito horas, e, portanto, não poderei acordá-lo mais tarde. Jay, tente sair antes das dez, pois regressarei a casa com convidados, e sua presença seria difícil de explicar. Obrigada pelo jantar. Da próxima vez, serei eu a convidar.

Sempre sua, Hazel.

  1. S. — Rasgue este bilhete e faça desaparecer os pedaços.
  2. P. S. — Esconda o cobertor.”

Voltou a ler o papel, como se fosse uma ordem. Seu desespero dissipara-se. Apesar da secura amarga da boca, da cabeça dolorida, da comichão causada por ter dormido de terno, sentia-se remoçado e cheio de vigor. Voltariam a encontrar-se. Era um sonho. Muito bem, Plazel, muito bem! O dia se anunciava pleno de esperanças. Diria isso a ela pelo telefone, logo que saísse do apartamento, pediria desculpas e insistiria num encontro aquela noite.

Mal se aguentando nos pés — meu Deus! devia ter engordado pelo menos três quilos da noite para o dia —, prometeu a si mesmo que aquilo não voltaria a acontecer e começou por executar as instruções de Hazel. Rasgou o bilhete e guardou os bocados no bolsinho da camisa. Dobrou o cobertor, abriu um armário e meteu-o numa das prateleiras superiores. Depois, aproximou-se do sofá, colocou-o no lugar, bateu nas almofadas e endireitou-as.

Enquanto calçava os sapatos, inspecionou a mesinha de café. Já tinha sido limpa. Pegou a gravata e o relógio, dirigiu-se para o banheiro, jogou os pedaços do bilhete de Hazel no vaso, penteou-se, pôs a gravata, alisou o amarrotado terno o melhor que pôde. Havia ainda um ritual a cumprir, o mais detestável de todos. Abriu a caixa dos comprimidos feita com antigas moedas de dólares de prata dos Estados Unidos e tirou uma pílula amarela. Com o entusiasmo de um convidado que aceitasse uma bebida das mãos de Lucrécia Bórgia, engoliu a pílula. Um amigo galês dissera-lhe um dia que um homem gordo tinha a alma pequena. Ora, Hazel merecia mais, pelo menos um homem mais magro e de alma maior.

Exatamente quatro minutos para as dez horas. Satisfeito por ter cumprido as ordens de HaZel^ Jay Thomas deixou o apartamento, confiante, mas pouco seguro de voltar a vê-lo.

Ao penetrar na claridade matutina da Rue de Téhéran, com a intenção de telefonar a Hazel nos escritórios da ANA, viu um café nas proximidades, a uns dez metros, perto da esquina do Boulevard Haussmann. Enquanto se dirigia para lá, ocorreu-lhe que a chamada telefônica para Hazel seria inútil. Ela não estava na redação. Deveria encontrar-se em qualquer lugar, entrevistando alguém, ou já a caminho de seu apartamento. No bilhete, ela dizia que estaria de volta “com convidados” cerca das dez horas. Por conseguinte, só havia uma coisa a fazer:

sentar-se a uma mesa do café, perto da janela, e espiar a chegada de Hazel. Quando ela subisse com os convidados, ele telefonaria para se desculpar, marcar um encontro e tentar de novo a reconciliação. Sim, isso seria sensato, tal como o café, visto o moderador de apetite ainda não ter produzido efeito e ele se sentir esfomeado por falta do café da manhã.

Felizmente, havia lugar na fila de mesas encostadas à janela e próximas da entrada. Dali, ele podia ver sem entraves o edifício de Hazel, e, ao mesmo tempo, manter-se parcialmente oculto. Depois de bater palmas para chamar o garçom, pensou em reduzir o café da manhã a uma xícara de chá, mas o irritado estômago (que a tardia pílula não conseguira ainda acalmar) exigia mais, e, por isso, encomendou um croissant, a que se seguiram mais dois, acabando por lhes acrescentar bacon com ovos (convencido de que, com tão bom desjejum, poderia dispensar a refeição seguinte).

Por momentos, enquanto esperava o déjeuner à la fourchette, manteve-se vigilante junto da janela, atento à chegada de Hazel e de seus convidados. Cerca de dez e quinze, como a refeição matinal demorasse, pôs-se a pensar no jantar de reconciliação da noite anterior.

Fizera bem, pensou, em não ter aproveitado a circunstância para trazer à baila o assunto dos Conspiradores que mataram Kennedy. Por várias vezes, quase sucumbira à tentação de discutir o livro, mas uma voz interior prevenira-o o tempo todo de que não o fizesse. Agora, um sexto sentido lhe dizia que procedera bem. Hazel já não era a companheira ingênua de outrora. Tinha adquirido experiência e não confiava nos homens, principalmente nele, desde que recebera suas inúmeras cartas. Certamente, devia ter-se perguntado se ele não a perseguira por outros motivos. Se tivesse posto a descoberto esses motivos, pensava Doyle, o orgulho feminino de Hazel teria se revoltado, e, daí em diante, ela evitaria os encontros. Mas, pelo contrário, sábio conhecedor do sexo frágil em geral e de Hazel em particular, tratara-a como a um objeto amado e não como fonte de informações. Graças a seu comportamento, conseguira romper-lhe as defesas. Desbaratadas estas, ele não teria de pedir-lhe ajuda. Ela o socorreria voluntariamente.

Felicitando-se, Doyle atirou-se ao bacon com ovos e aos croissants colocados à sua frente. Já estava no meio do bacon com ovos e havia comido um único croissant, quando ouviu o roncar do motor de um automóvel que desembocava a toda a velocidade na Rue de Téhéran.

Imediatamente, aproximou a cabeça da janela do café para espreitar e viu um sedã preto, de tamanho médio e radiador niquelado, parar defronte do prédio onde Hazel morava. De garfo suspenso, Doyle não tirava os olhos do carro.

A porta do lado do motorista abriu-se, e um indivíduo elegante, de chapéu à diplomata e sobretudo escuro, saltou. Quase ao mesmo tempo, a outra porta abriu-se igualmente, para dar passagem a uma mulher. A atenção de Doyle dividiu-se entre o motorista e a mulher, depois concentrou-se nesta, visto tratar-se de Hazel Smith.

Ela ficou na calçada, à espera do companheiro, numa atitude um tanto estranha. Apertava nervosamente a bolsa, perscrutando a rua, furtiva e preocupada, como se receasse ser vista. O homem elegante dirigiu-se para ela a passos rápidos, ocultando-a por instantes aos olhos de Doyle. Trocaram algumas palavras, depois ele tomou-lhe familiarmente o braço e conduziu-a à entrada do prédio. Pararam. Ele agarrou-lhe a mão, ao mesmo tempo em que dizia qualquer coisa. Ela acenou afirmativamente. Então, o homem beijou-a rapidamente, muito rapidamente, Hazel sorriu e desapareceu no interior do edifício.

Os olhos de Doyle estavam esbugalhados. Enquanto ele esperava que o homem se voltasse, seus maxilares cravaram-se num croissant.

O homem voltou-se. A testa escondida pelo chapéu, o ar de estrangeiro, o queixo quadrado, tornavam-no suspeito. De mãos nos bolsos do sobretudo, olhou para a rua na direção do café, girou os calcanhares para olhar no sentido oposto, depois dirigiu-se vivamente para o automóvel. Abriu com lentidão a porta, parou e ergueu a cabeça para contemplar o sol. Tinha o aspecto de um camponês que observasse as searas, ou, antes, de um camponês contemplando as leiras celestes. O rosto distinguia-se agora perfeitamente, e, antes que ele desaparecesse no interior do carro, Doyle teve certeza de que o conhecia.

O sedã preto pôs-se em marcha, executou uma curva em forma de U e desapareceu.

Foi precisamente nesse instante que a descoberta da identidade do mptorista fez Doyle estremecer. Desnorteado, tentou fazer face à descrença. Esquecendo o croissant, afastou a cadeira e fixou o ponto onde, segundos antes, Nikolai Rostov estivera.

Nikolai Rostov!

Não havia engano. Doyle tinha reconhecido os traços duros de fazendeiro russo do ministro soviético. Tinha visto aquele rosto mais de uma vez, nos jornais e, na véspera, quando procurava informações sobre Rostov nos arquivos da ANA para Matt Brennan. Sem dúvida se tratava de Nikolai Rostov. E só então compreendeu o que o tinha chocado. Não fora o fato de ver Nikolai, mas de vê-lo acompanhado de Hazel.

O espírito de Doyle recuou no tempo, voltou ao presente; de súbito, ele perdeu o interesse pela comida, mergulhando em suas cogitações.

Hazel e Rostov!

Mas era evidente! A surpresa inicial deu lugar à lógica do binômio Hazel-Rostov. A descoberta esclarecia os acontecimentos do passado, tornava o presente compreensível. Num instante, ele avaliou a grandeza e a importância de sua descoberta. Finalmente, encontrara a pessoa capaz de lhe fornecer a peça que faltava no quebra-cabeça de seu livro. Precisava apenas entrar em contato com ela, por intermédio de outra, para conseguir essa peça e resolver o enigma do assassinato de Kennedy; sua grande obra estaria então terminada e o futuro, assegurado.

Sentiu-se confiante, como o homem que controla os cordéis dos fantoches. Agora, sabia tudo acerca de seus títeres. Lembrou-se de Hazel em Viena, muitos anos antes, falando de seu novo amigo, seu “cavalheiresco amigo”, um delegado soviético “subalterno”, escolhido para assistente do primeiro-ministro Khruchov. Esse amigo havia se encontrado com ela, tinha dançado, bebido e conversado com eia acerca das confidências de um antigo condiscípulo que trabalhava num jornal russo e o incitara a participar de um grupo de funcionários desconhecidos, comunistas internacionais, que proclamavam que “Kennedy tinha de ser liquidado”. Quando Hazel lhe falara de sua “bomba”, recusara-se terminantemente a revelar o nome de seu novo amigo russo e informante. Doyle colocara-a em ridículo, e só depois do caso de Dallas é que se convencera da existência do amigo russo. O crime mostrara a Doyle que o amigo russo de Hazel tinha falado a verdade. E agora, na manhã parisiense, Doyle descobria finalmente quem era esse amigo russo.

Sua mente deixou Viena, acompanhou Hazel até Moscou, onde ela estivera durante anos, celebrizando-se com notícias “locais” que nenhum outro correspondente conseguia obter. Como teria sido isso possível? Bem, tudo era possível para uma moça americana que tivesse por amante um diplomata russo. Aquela cabra no cio e aquele porco sacana, pensou Doyle, recordando-os. Mas não se deixaria influenciar por considerações pessoais, antes tentaria reconstituir o itinerário do casal.

Rostov havia subido até a realização da Conferência de Zurique, que fora sua ruína, tal como o tinha sido para Matthew Brennan, o amigo de Doyle. Depois de Zurique, Rostov desapareceu da cena de Moscou, exilado provavelmente na Sibéria, e Hazel também deixara Moscou para se tornar correspondente da ana em Budapeste, Praga e várias cidades do Oriente Médio. Uma coincidência estranha, se a memória não o traía. Uma coincidência muito estranha. E então — tinha quase certeza! — Hazel regressara inesperadamente a Moscou havia um ano, provavelmente a pedido de Rostov, porque ele voltara às boas graças do governo de Moscou. Os amantes estavam de novo juntos. A rameira americana e seu amigo russo. Que beleza! E agora, minutos antes, Hazel e Rostov, muito a propósito em Paris, encontravam-se em frente do apartamento por ela ocupado. Uma beleza, não havia dúvida!

Uma vez mais, Doyle tentou abster-se de considerações pessoais, que poderiam apenas desencadear sua raiva. Num mundo de mentiras, de cadelas inconstantes, um homem tem de olhar por si, como Hazel olhava por ela. Oh! Não havia dúvida de que ela se servira de Doyle para aprender a profissão e se arvorar em jornalista. Tinha-se servido de Rostov para preparar o futuro e tornar-se uma jornalista famosa. Contudo, ele não estava certo dessa última parte, como não o estava da primeira. Afinal, fora ele quem abandonara Hazel; não fora ela quem o deixara. Além disso, se Rostov era o antigo “amigo” russo e continuava a manter relações com ela, dificilmente Hazel se conservaria presa durante tanto tempo a um homem sem amá-lo.

Uma dúvida atravessou o espírito de Doyle. Talvez Nikolai Rostov não fosse esse amigo. Talvez o russo de Viena tivesse sido outro. Talvez ela não se houvesse entregado a nenhum russo em Moscou para alcançar seus fins, talvez tivesse sido meramente uma jornalista de fama. Talvez não se encontrasse em Moscou quando Rostov lá estava, não houvesse fugido quando ele fora exilado e não tivesse regressado ao mesmo tempo que ele. Talvez ela e Rostov fossem simples conhecidos, uma jovem jornalista e um cidadão russo que ela acabava de entrevistar na embaixada soviética e que ele se prontificara, amavelmente, a levar até seu apartamento, a caminho do Palais Rose.

Mas então, revendo a cena da Rue de Téhéran, rejeitou sua dúvida e decidiu confiar em sua primeira dedução. Rostov tinha sido o amigo russo de Hazel em Viena e continuava a sê-lo em Paris. Minutos antes, nada houvera de platônico ou casual no comportamento de ambos. Rostov pegara-lhe familiarmente na mão. Hazel mostrara-se preocupada, não fosse alguém vê-los. (Ah, sim... Rostov era casado.) Tinham conversado em surdina. Ele despedira-se com um beijo. E, antes disso, houvera o bilhete para Doyle, pedindo-lhe que deixasse o apartamento em ordem e saísse por volta das dez horas. Para que tudo aquilo, a não ser porque esperava voltar com Rostov, um amante ciumento?

Agora, Doyle tinha certeza. Rostov era o tal amigo, o que estava a par do complô contra o presidente Kennedy, quando ainda não passava de projeto. Possuía a verdade, Hazel o possuía, e, no momento, Doyle possuía — ou quase — Hazel. Três era o número certo. Três-dois-um... e pronto!, ele sairia com a história e seria de novo o Rei da Montanha.

Para surpresa sua, a conclusão não o satisfez. Perguntou a si mesmo por que motivo. Tinha ido ali com o intuito de seduzir a velha Hazel, de utilizá-la e prosseguir em seu caminho predestinado. Procurara-a, não por estar interessado nela, mas por causa de seu livro. E, na noite anterior, havia desencadeado a caça com êxito. Hazel mostrara-se um amor. Por que se sentia agora exasperado?

De certa maneira, ela parecia ter escapado ao antigo e puro amor. Talvez Doyle se houvesse convencido de que alguém que se preocupara profundamente com ele não pudesse preocupar-se com outro homem. Surpreendeu-o a força de seu sentimento de posse. Hazel continuava a ser a sua garota, apesar das discussões da longa separação. Conhecia-a por dentro e por fora e sabia que ela era, no fundo, uma moça decente. Não se submeteria a um desconhecido, a um bárbaro estrangeiro, a qualquer um desse gênero, um russo, um comunista e, ainda por cima, um homem casado. Não era de seu temperamento. Quanto a Rostov, era um patife que se aproveitara sem escrúpulos da inocência de Hazel, se bem que Doyle não pudesse censurar o bom gosto do rival. Pelo menos, esse bom gosto de Rostov confirmava o que Doyle sempre soubera:

que uma moça franca e inteligente como Hazel — incapaz de agir de má fé e realmente esperta — valia mais do que qualquer das bonitas, elegantes e jovens bailarinas do balé moscovita. Mas para o diabo com todos esses pensamentos piegas. Se se tornasse sentimental e ciumento, nunca alcançaria a meta. Ora, no momento, sabia estar no bom caminho.

Deixando o café, sentiu-se uma vez mais confiante — o onipotente senhor de fantoches que segurava os cordéis —, na posse dos conhecimentos necessários para manipular seus títeres como bem entendesse.

Enquanto se dirigia para o Boulevard Haussmann, Doyle lembrou-se de que prometera a si mesmo telefonar a Hazel, a fim de se desculpar por ter adormecido na noite anterior e para marcar novo encontro. Considerou, porém, que isso poderia ficar para mais tarde, dado que algo mais importante lhe ocupava o espírito. Queria uma confirmação absoluta e cabal das relações entre Hazel e Rostov. Uma vez convencido de maneira absoluta de que Rostov existia desde Viena, teria encontrado o fim sensacional para seu livro sobre o crime de Dallas.

Caminhando ao longo da rua, Doyle considerou que os arquivos da ana em Paris eram demasiado deficientes para a sua busca final. Os arquivos mais completos de todos os jornais e os mais acessíveis eram os da redação do Figaro, que utilizara várias vezes. Aí encontraria as datas da permanência de Rostov em Moscou, de seu desaparecimento dessa capital, de seu regresso a ela, e confrontaria essas datas com os artigos de Hazel escritos de Moscou, de fora de Moscou e novamente desta cidade. Se as duas séries de datas coincidissem, todas as dúvidas se dissipariam; caso contrário, teria de mudar rapidamente de tática. Depois de ir ao Figaro, procuraria encontrar Matt Brennan. Em troca das informações conseguidas nessa manhã, Doyle pediria a Brennan que lhe falasse de sua convivência com Rostov na época de Zurique.

Satisfeito, gozou seu próprio sorriso.

Uma vez pronto, puxaria os cordéis, e os bonecos dançariam para ele alegremente.

Na esquina do Boulevard Haussmann, pensou que lhe seria fácil alcançar o Rond-Point e a redação do Figaro a pé, mas não teve paciência para tanto. Era rico. Iria de táxi.

Parou na rua e pôs-se a acenar energicamente a todos os táxis que passavam, e, quando viu um que se aproximava livre, acenou ainda mais freneticamente. O carro reduziu a velocidade.

Quando se dirigia para ele, uma flamejante moça loura saltou à sua frente e agarrou a porta do veículo.

— Ei! Espere aí, minha senhora! — protestou Doyle. — Esse táxi é meu.

— Fiz sinal primeiro — replicou ela, esforçando-se por defender seus direitos.

Enquanto ele a olhava, como se a reconhecesse — era demasiado bonita para ser esquecida —, a moça perguntou inesperadamente:

— É o sr. Doyle, não é? Não se lembra de mim? Hazel Smith apresentou-nos no café, anteontem. Sou Medora Hart.

— Claro que me lembro — disse Doyle, galantemente.

— Acredite que chamei primeiro o táxi, sr. Doyle. Importa-se? Estou atrasada para uma entrevista. É terrivelmente importante, uma questão de vida ou morte. Juro.

— Insisto em que fique com ele — disse Doyle, como perfeito cavalheiro.

Viu-a partir, acenar em agradecimento, a que correspondeu, e preparou-se filosoficamente para arranjar outro táxi.

Uma questão de vida ou morte, dissera ela. A ideia obrigou Doyle a ofegar. Se as pessoas soubessem, ao menos, o que se passava com as outras, como com ele, por exemplo, talvez compreendessem melhor o que significa uma questão de vida ou morte.

Enquanto o táxi deslizava para o local do encontro, em Saint-Germain-des-Prés, Medora Hart sentia-se cada vez mais alegre e confiante.

Desde a noite passada que o mundo se transformara para ela num lugar maravilhoso. Sua estréia no Clube Lautrec, perante uma casa cheia, fora um êxito esmagador. Não somente o espetáculo transcorreu calmo è sem uma falha, como também todos os seus números foram aplaudidos. No final, recebeu flores e convites para cear de pelo menos meia dúzia de clientes — dois deles riquíssimos, segredara-lhe Denise Averil —, mas ignorou-os a todos para voltar o mais cedo possível a seu quarto do San Régis e esperar o telefonema de Carol.

Depois da ligação apressou-se a ir ao encontro de Carol no bar do Lido. O relato dos acontecimentos na exposição de Nardeau excedera todas as suas previsões. Acordou cedo nessa manhã, na expectativa de uma chamada telefônica mais importante. O aparelho retiniu quando saía do chuveiro, e ela o atendeu com uma calma teatral. Marcou encontro na Margem Esquerda, onde tomariam um aperitivo antes do almoço e conversariam sobre o assunto em causa. Maravilhoso!

A manhã tinha ainda muitas horas para passar. Escreveu à mãe, durante o café da manhã, informando-lhe que esperava boas notícias para breve e que contava regressar à pátria dentro de duas semanas no máximo. Escolheu com cuidado o vestido para o encontro:

qualquer coisa simples, sem espalhafato. Decidiu-se por um conjunto marrom, um bolero cor de pele e uma saia não demasiado justa. Penteou o cabelo cor de estopa para os lados, à maneira das estudantes da Margem Esquerda. Com muito tempo ainda pela frente, deu um grande passeio até a Avenue de Friedland para ver, tão à vontade quanto possível, a Nouvelle Galerie d’Art e o local que o proprietário tinha reservado para o Nu no jardim. Depois, entrando no táxi disputado pelo gordo amigo de Hazel Smith, seguiu para seu crítico encontro.

Agora, enquanto o carro a deixava na esquina, podia ver o letreiro no toldo:

“Café de Flore”. Uma vez fora do veículo e na estreita faixa da calçada — o restaurante estava ocupado por mesas e cadeiras —, recordou o café de seus primeiros e difíceis dias em Paris. Era um antro frequentado por Camus e Sartre (tentara lê-los no original, mas não conseguira) e por toda espécie de indivíduos malbarbeados e maltrapilhos, no estilo dos do Soho, rapazes com casacos de couro e mulheres jovens e livres, de unhas sujas e revoltos cabelos de corte masculino. Um de seus admiradores dissera-lhe, nessa época, que lera num livro francês qualquer que o Café de Flore era “uma pedra que o Diabo arremessara certa noite no 6eme Arrondissement”. Agora, pensava ela, podia-se dizer que o Diabo arremessara qualquer coisa a mais nesse mesmo bairro.

Percorreu com o olhar as mesas da calçada. A maior parte não estaria ocupada antes da uma hora, quando os habitués do Flore acordassem para o café da manhã do meio-dia. Estavam ali sentados menos de uma dúzia de turistas malvestidos, estudantes ou escritores, e só dois deles eram mulheres, ambas de cabelos curtos e fumando cigarros Celtiques um atrás do outro, provavelmente as mesmas que estendiam o chapéu para esmolar, enquanto seus amiguinhos desenhavam Chagalls de quinta categoria nos passeios da Margem Direita.

Ou estava adiantada, pensou Medora, ou então a pessoa do telefonema da manhã esperava discretamente lá dentro. Medora passou por entre as mesas e penetrou no café. Com exceção dos garçons que conversavam junto ao balcão, de um velho enrugado que lia um jornal e de duas coradas senhoras francesas com sacos de compras, tagarelando em frente das cervejas alsacianas, o local estava deserto. Medora perguntou a si mesma se teria anotado corretamente o local do encontro.

Voltando-se na direção das escadas ao lado do bar, notou uma mulher nova, indubitavelmente inglesa, que fumava a uma mesa, perdida em seus pensamentos. Medora não a reconheceu logo. Esperava ver a elegante loura dos suplementos de domingo, e deparava-se com uma mulher de cabelo platinado, puxado austeramente para trás, formando um rabo, envergando um casaco esporte de corte quadrado e saia lisa, que destoava do conjunto de Medora, mas não muito, devido à discreta cor parda.

Então, a jovem mulher notou Medora, tirou os óculos escuros e levantou-se, muito aprumada e cerimoniosa. Sem os óculos, vista tal como era — os malares salientes, o nariz arrebitado, as narinas delicadas, a boca redonda e pequena, o delgado pescoço pré-rafaelita —, tornava-se familiar. Não havia engano:

era o Nu no jardim, mais velho.

Durante um breve segundo, o autocontrole de Medora falhou. Com esforço, ela refreou os nervos e encaminhou-se decididamente para a outra.

— Fleur Ormsby — disse, sem perguntar, e satisfeita por ter corajosamente cumprido sua decisão de não enobrecer a família da inimiga com o título de Lady. Era a primeira advertência, a que acrescentou sem sorrir:

— Sou Medora Hart.

As sobrancelhas de Fleur Ormsby arquearam-se com estudada surpresa, e ela estendeu a mão flácida:

— Foi amável em vir, srta. Hart. Sente-se, por favor.

Medora apertou a mão fria e largou-a rapidamente, irritada com os modos superiores da outra. Indolentemente, deixou-se cair na cadeira ao lado da mesa.

— Talvez seja melhor tomarmos alguma coisa — alvitrou Fleur. — Reconheço que a hora é imprópria, a não ser que ainda não tenha tomado o café da manhã.

— Já o fiz — disse Medora.

— Nesse caso, vou pedir um copo de xerez. E para você?

— Vinho — respondeu Medora sem hesitar. — Tavel.

Fleur Ormsby chamou um dos garçons. Entretanto, Medora tentava analisar a delegada de seu inimigo. A face lisa de Fleur estava quase isenta de pintura. Apenas um pouco de batom de tom suave, mais rosa do que vermelho, que, apesar de chique, lhe tornava os lábios pálidos e secos. Medora considerou a falta de pintura e a deselegância no vestir de Fleur para aquele encontro um pouco insultantes. Talvez fizesse aquilo para passar despercebida, a fim de não chamar a atenção para o fato de ser a esposa de um membro do gabinete inglês em companhia de uma artista famosa do striptease. Mais provavelmente, procedera assim por não sentir nenhuma consideração por aquela mulher inferior e estar convencida de que podia lembrar a Medora que não eram iguais, embora ela se apresentasse como tal. A rainha no baile anual dos criados. As maneiras dela, distantes, eram compostas e sociais, como se não estivesse ali por causa de um assunto nojento, como se sua simples presença bastasse para que a estúpida criança abandonasse a fantasia e metesse o rabo entre as pernas.

Medora pensou em lutar contra a carapaça de candura daquela mulher que não parecia uma senhora, mostrar seus trunfos, jogar todas as cartas e ganhar a partida. Antes que pudesse decidir, notou que o garçom já se afastara e que Fleur Ormsby a examinava com interesse por trás dos óculos escuros que voltara a pôr.

— Está há muito tempo em Paris, srta. Hart?

— Que dia é hoje? Terça-feira? Cheguei há três dias da Riviera, de automóvel. Estive com Nardeau antes de partir. Somos velhos amigos. Ele me deu um presente de despedida, o nu acerca do qual a senhora fez perguntas na exposição.

— Que felizarda! Isso explica tudo. — Fleur Ormsby esperou que as bebidas fossem servidas, depois prosseguiu:

— Visitei a exposição ontem à noite. Nardeau foi sempre um de meus favoritos entre os pintores contemporâneos. O estudo da adolescente no jardim é mais do que encantador. Não pertence ao melhor período de Nardeau, mas tem uma naturalidade, uma joi de vivre que me fascinaram. Quando o vi achei que combinaria muito bem com um Sisley que meu marido e eu possuímos. Cheia de curiosidade, perguntei ao proprietário a quem pertencia. Ele me deu o seu nome. Devo confessar que isso me espantou um pouco. A maior parte dos nomes daqueles que cederam seus quadros para a exposição me era familiar. São quase todos colecionadores de arte muito conhecidos. Nunca tinha visto seu nome entre os deles. Mas agora que o explicou, compreendo. — Ergueu o copo de xerez:

— Saúde!

— À sua! — correspondeu Medora, bebericando o tavel.

— Oh, delicioso! — murmurou Fleur Ormsby. Tirou os óculos. — Onde estávamos? Ah, sim, Nardeau... Foi muito gentil em oferecer-lhe um presente tão valioso! Deve gostar muito de você.

— Se gosta! A atração é mútua.

— Um encantador presente de despedida, confesso — disse Fleur Ormsby. — Creio que está em Paris para atuar nesse espetáculo de cabaré, não? Levei certo tempo para me recordar de seu nome, quando o citaram na Galerie. Devia tê-lo reconhecido logo. Tenho-o visto por toda parte, em todos os quiosques.

Medora estava cansada de fingir. Queria uma brecha e ali tinha uma:

— Não vim a Paris para atuar no espetáculo, sra. Ormsby. Isso foi apenas um pretexto e uma possibilidade.

— Ah, sim? Nesse caso...

— Vim a Paris para falar com seu marido.

— Meu marido? Tem certeza? — Pela primeira vez, a testa de Fleur Ormsby enrugou-se. — A que propósito?

— Pensei que talvez estivesse interessado em adquirir o Nu no jardim.

— Como pôde ter semelhante ideia? — Soltou uma risada melancólica. — Sir Austin é um perfeito idiota, quando se trata de arte. Pouco liga para'os meus gostos. — Fez uma pausa. — Vejo que soube de meu interesse por Nardeau e pensou que ele o partilhasse, não foi?

— Pensei que o interesse dele por esta pintura fosse especial.

Fleur Ormsby soltou outra risada melancólica:

— Minha cara, enganou-se redondamente. Ele não se interessa por arte. — Sorriu. — Eu, sim, como parece saber. Não duvido que tenha pensado que sugeri este encontro sem outro objetivo a não ser o de convencê-la a ceder-me esse quadro. Seja como for, acaba de declarar que veio a Paris para vendê-lo.

— É verdade.

— Então, não há problema, minha cara. E se discutíssemos os termos do negócio?

— De acordo.

— É evidente que a questão da autenticidade é um fator a considerar. Mas disse-me que recebeu o óleo das mãos de Nardeau, e, portanto, presumo que ele esteja disposto a comprová-lo.

— Quanto a isso, também não há problema — disse Medora.

— Mandou-me um documento em que não só reconhece o Nu no jardim como obra sua, mas em que também explica quando o pintou, onde e até o nome do modelo, tudo isso retirado de seus arquivos. Julgo possuir uma coisa de grande interesse para qualquer comprador, não acha?

Fleur Ormsby olhou-a:

— Muito bem. Estou quase satisfeita. Como tenho pressa, não vejo motivo para não estipularmos aqui mesmo as condições.

Medora sentiu vontade de prolongar o jogo. Até então, nunca tinha interpretado o papel do gato, no jogo do gato e do rato.

— Não seria preferível seu marido vê-lo primeiro?

— Não creio — atalhou Fleur Ormsby. — Tenho minha conta pessoal. Para não perdermos tempo, partirei do princípio de que você sabe que os Nardeau são atualmente muito cobiçados. Seus quadros, no gênero do seu em tamanho e assunto, atingem ocasionalmente o preço de seis mil libras na Sotheby’s. Evidentemente, como vende sem intermediário, não terá de desembolsar comissão. Portando, estou disposta a passar-lhe um cheque de cinco mil libras em troca de uma nota de venda e do documento referente à proveniência do quadro.

— Lamento — disse Medora, meneando lentamente a cabeça.

— Não é bem isso o que pretendo.

Fleur Ormsby franziu a testa:

— Espanta-me, srta. Hart. É muito dinheiro para qualquer pessoa, mas principalmente para quem... para alguém que está nesse instável mundo do espetáculo.

Fleur encarou Medora, esperando, mas Medora manteve-se calada, com um sorriso complacente pairando no rosto, esperando também.

— Oh, muito bem! — prosseguiu Fleur Ormsby. — Detesto regatear. Creio que você também. Acabemos com isso. Quando quero alguma coisa, quero mesmo. Minha maior oferta são seis mil e quinhentas libras. Negócio fechado?

O sorriso complacente de Medora acentuou-se.

— Não — disse ela. — Nada de negócio fechado.

— Minha cara...

— Não estou interessada em vendê-lo por dinheiro — explicou Medora.

— Não está interessada em vendê-lo por dinheiro? Então, por que diabo pensa trocá-lo?

— Por um visto de entrada na Inglaterra — disse Medora. — É esse o meu preço.

— Não compreendo o que está dizendo.

— Claro que compreende, sra. Ormsby. Sabe quem sou. Sabe o que se passou com Sydney, comigo e com o nojento Jameson. Sabe o que seu marido me fez. Se quer o quadro, consiga que seu marido cancele a proibição de entrada que pesa sobre mim, que me garanta a passagem, e, então, eu lhe entregarei a tela.

— Minha cara, o que está dizendo? Sem dúvida que conheço seu passado. Tentei não embaraçá-la, trazendo tudo isso à baila... e sei como Sir Austin a salvou, ao mandá-la para o estrangeiro. Nem eu nem Sir Austin temos culpa de que o governo não a considere cidadã britânica e a julgue moralmente indesejável. E agora quer que eu influencie Sir Austin para que torça a lei em troca de um simples quadro? Francamente, minha cara! Garanto-lhe que há milhares de quadros à venda nesta cidade...

— Mas existe um único de Lady Ormsby — interrompeu-a Medora —, a esposa do ministro dos Negócios Estrangeiros, posando nua como nasceu. Existe um único, e, minha cara, sou eu quem o possui.

Fleur Ormsby ficou imóvel, e Medora teve de admirar-lhe o sangue-frio. Os olhos de Fleur tornaram-se duros:

— Está muito segura de si.

— Sim, estou. Tenho o quadro. Tenho a declaração de Nardeau, escrita de próprio punho, de que foi a senhora o modelo.

Julgo que são duas peças que fariam as delícias da imprensa durante toda a semana.

— Presumo que conheça as penalidades contra chantagem.

Medora foi toda inocência:

— Chantagem? Como pode pensar numa coisas dessas, sra. Ormsby? Não é correto mostrar apreço por um favor, oferecendo um presente? Se a generosidade de Sir Austin remediar um erro cometido pelo Departamento de Imigração, terei muito gosto em agradecer-lhe enviando-lhe um quadro de sua esposa. — De repente, Medora sentiu nojo por tudo aquilo e confessou com raiva:

— Tem razão, é chantagem, ou como queira chamar-lhe, mas é muito menos criminoso do que aquilo que o demônio do seu Sir Austin me fez. Flá três anos que estou longe de meu lar. Quero regressar porque, caso contrário, garanto-lhe que também perderá o seu. Aí tem, sra. Ormsby. É esse o preço por um autêntico Fleur Grearson.

Fleur cerrou os lábios, pensativa. Seus olhos não se desviavam do rosto de Medora. Por fim, ela pegou a bolsa ao lado da mesa e proferiu:

— A senhorita é estúpida. Meu marido e eu não estamos interessados em suas condições.

— Mas a imprensa estará, acredite! Se eu não tiver o visto de entrada dentro de quarenta e oito horas, todos os jornais do mundo publicarão na primeira página a reprodução de meu quadro, representando a irrepreensível esposa de um membro do gabinete inglês. Uma jovem bastante formosa, devo acrescentar. Aposto como vai se preocupar mais com esse sujo escândalo do que eu me preocupei com o caso Jameson.

Fleur afastou-se da mesa, levantou-se e abotoou calmamente o casaco.

— Srta. Hart, está entrando numa grande confusão. — Seu sorriso tornou-se ácido e a voz, abafada. — Ninguém aceitará a palavra de um velho pintor senil e de uma vingativa prostitutazinha contra a de...

— Acreditarão na prostitutazinha assim que virem o quadro da grande prostituta que espera estendida na grama — cortou Medora. — Verá! Se dentro de quarenta e oito horas não...

Mas Lady Fleur Ormsby tinha girado nos calcanhares e saído do Café de Flore.

Então, sozinha, indiferente aos olhares da clientela e dos garçons, Medora compreendeu que seu blefe tinha falhado e que perdera.

A esperança era tão pouca que lhe deu vontade de chorar. Finalmente, cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a soluçar.

Havia quarenta minutos que estava na estrada, dirigindo-se pachorrentamente para o sudoeste de Paris, através dos campos verdes, e agora a placa retangular à frente, com o número da estrada e a província da França em caracteres pequenos, indicava em maiúsculas:

SACLAY.

Matt Brennan reduziu a velocidade do Chevrolet novo, cheio de pó, que alugara em Paris (a trinta cents por quilômetro), e entrou na rua principal de Saclay. Segundo o avisara seu amigo e porteiro, M. Dupont, era uma cidadezinha francesa comum e ignorada. No entanto, conduzindo lentamente o carro, Brennan sentiu-se cativado pelas lojas estranhas, a igreja, a suave atmosfera de paz rural. Isso lhe fez lembrar que aquela pachorrenta localidade, na margem serpenteante do Sena, era o centro do programa científico de pesquisa atômica da França.

O porteiro informara-o de que Saclay ficava a trinta e dois quilômetros de Paris — o velocímetro conformava-o —, e também que seu objetivo distava oito quilômetros da cidade. Guiando com uma das mãos, pôs a outra fora da janela do carro, procurando uma placa que lhe indicasse o caminho. Por fim, viu uma, e, mais seguro,porém um pouco relutante, deixou Saclay e acelerou na direção do castelo e dos edifícios de Gig-sur-Yvette, onde estava instalado o Centre National de Recherches Scientifiques, onde o professor Maurice Isenberg o esperava.

Para além da aldeia, o campo apresentava paisagens estranhas e contraditórias. Podiam-se ver casas disseminadas ao longo da estrada, tão novas e modernas como as dos subúrbios da Califórnia. Entre essas construções e a estrada, estendia-se um panorama de campos verdes, bem característicos da província francesa. Depois, entre o limite dos campos e a estrada, levantavam-se cercas de arame farpado. E isso recordava imediatamente o pouco da situação em que estava e o que nesse momento se passava em Paris, onde, dependendo das decisões de cinco homens, tudo podia mudar de um dia para o outro, ou, então, permanecer assim séculos afora. Coexistência ou não-coexistência, dissera Herb Neely na noite anterior.

O relógio do carro, na hipótese de estar certo, indicava a Matt Brennan que ele tinha muito tempo pela frente. Aliviou a pressão do pé sobre o acelerador e deixou que o espírito voltasse à noite anterior, recordando a conversa no decorrer da qual Herb Neely o encorajara a fazer aquela viagem.

Na véspera, à noite, Brennan e Lisa tinham sido convidados para um jantar informal na casa dos Neelys. Apesar de sua afirmação de que iria sentir-se à vontade, como se estivesse em casa, Lisa receava a impressão que poderia causar nos amigos dele. Mas logo que Herb e a mulher, Francês, a receberam com entusiasmo em seu modesto apartamento de Neuilly, nos fundos do Bois, a noite passou-se muito bem ou até melhor do que Brennan havia suposto. Talvez porque Brennan tivesse levado consigo alguém alegre e acessível, alguém ansioso por aceitar e ser aceito, mais do que sua antiga mulher, Stefani, que se mostrara sempre azeda, sarcástica, superiormente condescendente para com os Neelys, a quem considerava uns rústicos do Kentucky.

Brennan quisera manter aquela reunião nos limites do social, decidido a não introduzir seus problemas pessoais numa reunião sincera e despreocupada. Contudo, só o conseguiu até terminar o jantar.

Depois, quando os quatro se instalaram à volta da bandeja dos licores, na sala de visitas, Francês Neely, com o apoio do marido e de Lisa, obrigou Brennan a falar dos progressos de sua caçada. Francês estava, segundo dissera, positivamente intrigada e queria saber tudo.

Relutantemente, depois com crescente entusiasmo, Brennan pôs-se a falar à atenta e fascinada audiência, enumerando seus lamentáveis fracassos. Confessou aos anfitriões que chegara a um beco sem saída. Não fazia a mínima ideia do que sucederia a seguir. Imediatamente, os ouvintes propuseram mil e uma possibilidades. Unanimemente, concordaram em que lhe seria difícil encontrar Rostov sem um intermediário importante. Concentraram-se em nomes de intermediários qualificados, primeiro como hipóteses, depois nominalmente, a tal ponto que a discussão se transformou num jogo de palavras, como se se tratasse de descobrir a solução para um enigma particularmente difícil.

Por último, Neely resumiu as melhores possibilidades. Havia alguém, na comitiva do presidente dos Estados Unidos, que poderia ser útil, alguém que o presidente ouvia, capaz de convencê-lo a falar ao primeiro-ministro soviético, que por sua vez ordenaria a seu ministro-adjunto, Nikolai Rostov, que recebesse Brennan. Essa pessoa, acrescentou Neely, era Thomas T. Wiggins, um dos mais jovens e promissores auxiliares do presidente na Casa Branca, um homem a quem o presidente ouvia com frequência e que se encontrava agora na residência do embaixador americano em Paris.

Em seguida, Neely sugeriu que Brennan devia procurar alguém, pouco importava a nacionalidade ou o cargo, que estivesse oficialmente ligado à conferência, que simpatizasse com ele e tivesse acesso fácil a Rostov, de forma a poder interceder. Por mais que tentasse, Brennan não conseguia recordar ninguém nessa posição. Foi ainda Neely quem encontrou o intermediário ideal.

— Matt, durante as audiências do Congresso, quando você foi condenado, não houve um famoso cientista que concedeu uma entrevista em que atacou a Comissão do senador Dexter e defendeu você?

— Isenberg. O professor Maurice Isenberg — lembrou-se Brennan imediatamente.

— É isso! — exclamou Neely. — Ele é membro do grupo de conselheiros nucleares franceses que está na Conferência de Cúpula. Seu laboratório está instalado nos quartéis-generais do CNRS, Centre National de Recherches Scientifiques, perto de Saclay. É o chefe. Se há alguém que possa levá-lo a Rostov, é ele. Tem de tentar vê-lo.

Brennan concordou em que o professor Isenberg era uma possibilidade. Depois, Neely procurou se lembrar de outros intermediários, principalmente alguém que desejasse ver o nome de Brennan inocentado, que pudesse ter influência sobre delegados da Conferência de Cúpula. Alguém como Earnshaw. A verdade é que, no ano anterior, a administração de Earnshaw e Madlock tinha estado sob fogo cruzado da imprensa, e talvez agora o Ex compreendesse que a atual crise se devia em grande parte mais à sua fuga às responsabilidades do que a qualquer negligência por parte de Brennan.

— Talvez agora se mostre mais compreensivo — sugeriu Neely. — Ele pode falar às pessoas, que, por sua vez, falarão a Rostov. Pode consegui-lo, Matt.

— Duvido — replicou Brennan —, mas pensarei nisso, se me vir desesperado.

Essa noite findou da melhor maneira. Neely prometeu que a primeira coisa que faria, logo de manhã, seria conseguir que Brennan se encontrasse com "Wiggins, o colaborador do presidente. Brennan, por sua vez, telefonaria ao professor Isenberg, pedindo-lhe uma entrevista. Quanto a Earnshaw, Brennan preferia evitá-lo, se possível. Mas, de qualquer maneira, a noite tinha sido um êxito. Insuflara em Brennan e Lisa novas esperanças.

De manhã cedo, Neely telefonou dando boas notícias. Wiggins concordou em receber Brennan. Iria esperá-lo na residência do embaixador dos Estados Unidos, na Avenue de Iéna, 2, às dez e quarenta e cinco.

Numa inspiração, Brennan resolveu aproveitar a oportunidade para localizar o professor Maurice Isenberg. Após várias chamadas locais, soube que Isenberg passaria o dia em seu gabinete de Gifsur-Yvette. Brennan hesitou em fazer o último telefonema. Nunca tinha se encontrado pessoalmente com Isenberg. Quatro anos antes, aparecera aquela entrevista no Le Monde, transmitida pelos serviços telegráficos, na qual Isenberg punha publicamente em dúvida a intenção traidora de Brennan, minimizava a importância da fuga de Varney para a China e afirmava sem preâmbulos que Brennan estava sendo utilizado como bode expiatório político. Comovido por haver alguém na multidão, especialmente um cientista famoso a quem não conhecia, que proclamava sua inocência, Matt Brennan tinha escrito uma carta de agradecimento ao francês. E Isenberg, numa mensagem curta mas simpática, respondera que apenas havia cumprido seu dever e que lhe desejava felicidades.

Ficou por aí sua correspondência. Após quatro anos de trabalho, Isenberg provavelmente não se recordaria dele, e, mesmo que se recordasse, Brennan sentia que qualquer esforço para convencer aquele homem, seu admirador imparcial de outrora, era uma presunção. Uma voz viva, sem idade nem afetação, se identificou como sendo o professor Maurice Isenberg. Mal Brennan declinou seu nome, o francês lembrou-se dele imediatamente. Claro que teria prazer em receber Brennan! Quando? Nesse mesmo dia; talvez fosse melhor depois do almoço. O que mais agradou a Brennan foi o fato de o convite de Isenberg ter sido feito não com curiosidade, mas com hospitalidade.

Guiando o Chevrolet que alugara por um dia, Brennan dirigiu-se em primeiro lugar à residência do embaixador americano, uma casa imponente, de pedra, de três andares, escondida atrás de portões negros, na Avenue de Iéna. Logo que Brennan transpôs a porta encimada pelo escudo oval dos Estados Unidos, foi conduzido para uma sala de estar, onde esperou, ao lado da lareira, acima da qual se via um grande espelho, pelo mais jovem e influente conselheiro do presidente dos Estados Unidos.

Assim que Thomas T. Wiggins entrou na sala, dizendo que só lhe poderia dispensar cinco minutos e sugerindo que fossem direto ao assunto, Brennan compreendeu que pouco obteria. Wiggins, inexperiente e magro, recém-saído da Faculdade de Direito de Harvard, bem-sucedido o suficiente para avaliar tanto o fracasso como a caridade, mostrou-se desagradável e impaciente desde o princípio.

Quando Brennan, antes de fazer seu pedido, esboçou a narrativa da verdade acerca da fuga de Varney e de seu próprio papel em Zurique, o jovem colaborador presidencial interrompeu-o de chofre. Wiggins tinha estudado o caso para um doutoramento em ciências políticas. Ficara satisfeito com a objetividade dos juristas que haviam relatado o processo. A versão oficial bastava-lhe. Não lhe interessava a versão revista de Brennan.

Desiludido, Brennan insistiu em sua versão, explicando que, se a fuga de Varney tinha ajudado a China a adquirir poderio nuclear, a culpa fora muito menos sua do que do assessor do presidente Earnshaw, Simon Madlock. De qualquer maneira, se Wiggins ou seu chefe, o atual presidente, quisessem levar Brennan até Rostov, seria um ato de decência, e a história só teria a ganhar com a descoberta da verdade.

— Desculpe, sr. Brennan — interrompeu Wiggins —, mas nem o presidente nem eu temos tempo para esse velho caso, agora que estamos prestes a escrever uma nova e mais importante página da história/

— Mas a força de nossa versão está na verdade — replicou Brennan. — Se uma mentira se insinuou, pode ser retificada agora.

— Então quer nossa ajuda para provar que é um santo e Simon Madlock, um demônio? Não, obrigado. Se há coisa que não tolero é a deslealdade de um subordinado para com seu superior. Lamento, sr. Brennan. Adeus!

Ao sair, mais irritado do que derrotado, Brennan perguntava-se por que razão o arrogante rapaz se incomodara em recebê-lo. E então compreendeu o porquê daquele encontro. Wiggins quisera vê-lo pelos mesmos motivos por que as pessoas querem ver um espetáculo excêntrico que reforce sua superioridade e lhes sirva de assunto de conversa. Jovens bem-sucedidos, pensou Brennan, muito longe da morte, invencíveis e imortais, com poucos anos sobre a terra para terem experimentado a compreensão humana. Lamentou que o pobre Wiggins tivesse caído tão baixo, e, finalmente, acabou por sentir pena de si mesmo, de sua versão, que não podia ser revista.

A compaixão de Brennan por si mesmo e o desespero que conhecera nos tempos de Veneza juntavam-se às recordações da manhã e do almoço. Mas, assim que saíra dos limites de Paris e entrara no campo, para o encontro com um quase estranho que mostrara consideração por ele, sentira o desespero esfumar-se. Talvez o velho adágio — quem espera por sapatos de defunto morre descalço — refletisse o ponto exato das coisas. Mas, no caminho para Saclay, a esperança de uma solução renasceu.

Os oito quilômetros ficaram para trás, e ele estava agora em Gif-sur-Yvette.

Perguntando a um ciclista, soube que o castelo e as matas do centro de pesquisas atômicas ficavam logó adiante.

Viu imediatamente as seculares árvores do parque, parcialmente ocultas pelos velhos mas sólidos muros. O grande portão de ferro estava escancarado. Brennan entrou por ele e seguiu uma rua sinuosa por entre as árvores, vendo apenas de relance o castelo, até que chegou a uma clareira, um local tranquilo, rodeado de edifícios baixos e ultramodernos, que deviam ser os escritórios e os laboratórios.

Um porteiro, com um livro debaixo do braço, acenou-lhe e aproximou-se da janela do carro. Brennan declinou seu nome, mencionou o professor Isenberg e indicou a hora da entrevista. O porteiro consultou uma folha do livro e pareceu ficar satisfeito. Mostrou a Brennan o estacionamento e apontou para o edifício de um único andar que se erguia em frente.

Brennan saiu do carro, espreguiçou-se e depois, apressando-se, alcançou o porteiro, que manquejava em direção ao edifício. Brennan atravessou um vasto e asseado vestíbulo, seguiu por um corredor de paredes recentemente caiadas e viu-se subitamente num laboratório cheio de bancadas nas quais zunia uma complexa maquinaria em miniatura, enquanto técnicos de ambos os sexos, de uniforme branco, lidavam com os aparelhos e faziam cálculos.

Do lado oposto ao laboratório havia uma porta, tão bem encaixada na parede que dir-se-ia camuflada. O porteiro bateu duas vezes, abriu a porta com relutância e espreitou. Depois, fez sinal a Brennan para que o seguisse. Uma vez no espaçoso e austero gabinete, o porteiro anunciou:

— Isenberg est ici1(1 “Isenberg está aqui.” Em francês no original. - N. do E.). — E saiu respeitosamente.

A severidade do gabinete quadrado, de paredes brancas, surpreendeu Brennan. Na parede do fundo notou uma janela de tamanho considerável, que dava para o parque e fazia com que a sala parecesse mais acolhedora e serena. Na mesa de carvalho, havia um copo com lápis amarelos e bem-apontados, almofadas de carimbo e dois opacos cinzeiros sobre o mata-borrão cinzento. Ao lado da mesa viam-se quatro arquivos de metal, todos munidos de uma barra vertical de segurança. Do outro lado, havia um quadro-negro portátil, com um sem-número de fórmulas incompreensíveis. Com exceção de um telefone sobre um trabalhado consolo de faux- marbre1(1 “Imitação de mármore.” Em francês no original. - N. do T.), ao lado de uma pesada bergère forrada de veludo e de uma estante de cinco prateleiras repleta de velhos livros científicos e jornais, pouco havia na sala que desse uma ideia da personalidade de seu ocupante.

Então, na parede, ao lado de outra porta, Brennan viu uma porção de fotografias penduradas. Acendendo um cigarro, aproximou-se. O retrato principal era o de Albert Einstein, tirado em sua juventude e por ele assinado. Depois, havia fotografias de Marie Curie, Max Planck, Enrico Fermi, todas autografadas para o professor Maurice Isenberg. O último retrato, o menor, era um instantâneo de Isenberg e J. Robert Oppenheimer, ambos de calça e blusão, enlaçados pelos ombros, sorrindo com mútuo afeto. E foi então que Brennan compreendeu. Tinha de se aliar a Maurice Isenberg.

De repente, a porta ao lado de Brennan abriu-se com violência. Um homem alto e deselegante, de olhos ardentes e rosto magro e severo de profeta judeu do Antigo Testamento, alguém que El Greco teria transportado para a tela, entrou na sala, batendo a porta atrás de si.

Brennan recuou, mas o professor Isenberg já estava perto dele, batendo-lhe nas costas, sacudindo-lhe a mão, despejando uma torrente de palavras inglesas pronunciadas à francesa:

— Brennan? É Brennan. Desculpe, desculpe, meu caro senhor. Mon Dieu! Fui um louco ao concordar em almoçar com um grupo de estudantes da Politécnica e em levá-los a dar uma volta turística por nosso edifício. Assim que começo a falar e tenho quem me escute, não consigo parar. E como poderia resistir à Politécnica? Foi nessa universidade que me formei como especialista em física termonuclear, e, sempre que me chamam, é como o apelo de um pai:

sinto-me honrado e atendo. Lamento não ter estado aqui para recebê-lo. Desculpe, desculpe.

Quase à força, começou a arrastar Brennan para a mesa.

— Não tem de que se desculpar, professor Isenberg — disse Brennan. — Eu é que lamento roubar-lhe o tempo.

— Não, de maneira nenhuma. Sente-se aqui, sente-se, por favor.

Empurrou Brennan para uma grande cadeira, encarapitou-se na mesa, tirou o folgado paletó esporte, ficando apenas com o colete azul. Depois, arregaçou as mangas da camisa e puxou a cadeira giratória para seu lugar.

— Um charuto, meu caro? Ah, não. Vejo que prefere os cigarros. Uma bebida?

— Nada, professor, obrigado.

 

Isenberg abriu uma gaveta da mesa e pôs-se a remexê-la, ao mesmo tempo em que mantinha consigo mesmo um diálogo ininteligível, até que finalmente encontrou um par de óculos de lentes bifocais que plantou no nariz. A seguir, pegou um cachimbo de fornilho bem queimado e encheu-o com tabaco Dutch Cavendish Amphora.

Em seguida, com os óculos espetados no proeminente nariz e o cachimbo entre os dentes amarelecidos, acariciando com os dedos ossudos o queixo saliente, todo o seu aspecto pareceu sofrer uma metamorfose aos olhos de Brennan. O olhar febril de profeta judeu do Antigo Testamento desapareceu, e, em seu lugar, surgiu o do cientista, do pesquisador, uma espécie de Sherlock Holmes da Era Nuclear.

— Conversemos — disse Isenberg, aspirando com delícia a fumaça. — Está em Paris a negócios ou por prazer?

— A negócios que, se forem bem sucedidos, se transformarão em prazer — respondeu Brennan. — Lembra-se do meu caso, nos Estados Unidos, há quatro anos? Sem querer me lamentar, minha vida se alterou um pouco desde então. Passei a maior parte destes anos exilado em Veneza.

— O exílio! — exclamou Isenberg. — Pode transformar um simples homem num grande homem ou aniquilá-lo. Garibaldi, Sun Yat-sen, Lênin, Victor Hugo... todos alcançaram a grandeza no exílio. Mas os pobres Kosciuszko e Stefan Zweig foram aniquilados.

Brennan esboçou um tímido sorriso:

— Receio não ter encontrado no exílio condições de inspiração. Transformei-me numa espécie de paranóico. Não é uma situação agradável, como pode calcular. Mas referiu-se a Paris. Vim a esta cidade porque vi uma possibilidade de inocentar meu nome.

— Seu nome? Bon Dieu, aquilo foi um crime! — exclamou Isenberg, de olhos chamejantes. — Foi um crime sujo forçar alguém com sua inteligência e talento a desperdiçar energias na tentativa de inocentar um nome que não precisa disso. — Meneou a cabeça. — Não, meu amigo, não é um paranóico que sofra de mania de perseguição. Tem sido realmente perseguido. — Inclinou-se para a frente, apoiando os musculosos cotovelos na mesa. — Concordei com aquela entrevista porque, de longe, podia observar desapaixonadamente a fraude refletida nessas audiências do Congresso de seu país. Compreendi que você estava sendo vítima, como o fora nosso velho e querido amigo Oppenheimer. Compreendi que, se fosse sacrificado à ferocidade de políticos tiranos, para lhes garantir a eleição, todos nós, os outros cientistas, ficaríamos numa situação vulnerável. Por isso, falei. Gostaria cjue minhas palavras tivessem produzido melhor efeito. Creio, porém, que caíram em ouvidos moucos, porque seus perseguidores só ouviram o que lhes convinha. Mas você ouviu meu protesto e sua carta me sensibilizou.

— Voltou a menear a cabeça. — Minha opinião não se alterou. Repetiria essa entrevista hoje, se fosse necessário, mas sou delegado na conferência e, como tal, proibido de falar pelos serviços de segurança. Se houve um erro em Zurique, não foi cometido por você, mas por alguém num nível mais alto, em Washington. O confuso idealismo político do professor Varney não era segredo para ninguém. Eu conhecia seus trabalhos. Um homem brilhante. Mas sempre discuti seu pensamento político, assim como sempre discuti o comportamento de Bertrand Russell, que tentava salvar homens e não o homem. Se alguém tinha de ser censurado pela fuga de Varney, esse alguém seria quem o indicou. Uma vez que o indicaram e o mandaram ao estrangeiro para negociar com os chineses, ele se sentiu obviamente livre para proceder como entendesse, a não ser que o algemassem ou prendessem. Mas tudo isso, meu caro Brennan, é camuflar o verdadeiro objetivo. Com efeito, o objetivo real não foi e continua a não ser, de fato, a fuga de Varney, considerada de pouca importância. Se bem se recorda, apontei isso em minha entrevista. O fato de Varney ter desertado ou não para a China não podia ter mudado ou deteriorado em nada a corrida da evolução chinesa ou a história do mundo. Varney não deu à República Popular da China a bomba de nêutrons. Não lhe deu os meios de conseguir a bomba. Os chineses possuíam conhecimento para a sua fabricação. Ele nada mais poderia fazer do que confirmar os planos ou apressar o que já estava sendo feito na China. Em resumo, meu caro, você não podia ser acusado de cúmplice no crime, uma vez que não houve crime. Compreende?

Brennan ouvia-o com atenção, gozando uma sensação de alívio. Esperava ouvir Isenberg dar um veredicto sobre a culpabilidade ou a inocência, ou pronunciar-se sobre o grau de culpabilidade, e, em vez disso, ouvia-o declarar que não houvera crime contra a pátria. Era como se o anel de ferro da incômoda culpa que o oprimia se tivesse transformado em papier mâché.

— Tem certeza de que Varney não deu à China nada que ela já não possuísse? — perguntou Brennan, curioso. — Todos dizem que, se Varney não tivesse desertado, a China não teria o poder que tem nem seria uma ameaça, responsável pela crise atual que provocou a presente Conferência de Cúpula, cujos trabalhos têm um único objetivo em vista:

a sobrevivência da humanidade. Pensa realmente que Varney nada tem a ver com isso?

O professor Isenberg tirou o cachimbo da boca, meneou a cabeça e sorriu:

— Brennan, dou-lhe minha palavra de honra de que foi assim.

— Com gestos sóbrios, estendeu o cachimbo na direção de Brennan, entornando cinza e tabaco sobre a mesa. Enquanto limpava o mataborrão de algumas fagulhas, prosseguiu:

— Ouça, meu inteligente amigo. A China vermelha detonou sua primeira bomba atômica em outubro de 1964, perto do lago Lop Nor, no deserto chinês de Takla Makan. Foi uma bomba autêntica e poderosa, tanto como a sua bomba de Hiroxima. Como pôde a China, atrasada e industrialmente subdesenvolvida, fabricar essa primeira- bomba atômica? Vou lhe dar a resposta. Os chineses sempre tiveram queda para a ciência. Antes de Cristo, construíram a colossal Grande Muralha, de quatro mil quilômetros de comprimento, a única obra do homem que, segundo me disseram, poderia ser vista do planeta Marte. Há cerca de mil anos, os chineses inventaram a imprensa. Além disso, há muitos anos, também, descobriram a pólvora e fabricaram os primeiros foguetes, enchendo com aquele produto uma cana de bambu a que puseram fogo. Estava inventado o primeiro míssil, e eles o lançaram contra seus inimigos.

“Hoje, meu caro Brennan, esse mesmo espírito genial continua a existir na China. Nos nossos dias, a China possui uma equipe dos mais inteligentes cientistas nucleares da Terra. Refiro-me ao dr. Chien Sanchiang, que se formou na Universidade de Paris, e trabalhou com Mme Curie, no nosso Laboratório Curie, em Paris. Refiro-me a Wang Kanchang, que estudou na Alemanha e na Rússia e foi diretor-delegado do centro de pesquisa atômica russo, no Instituto Dubna, em 1959. Refiro-me a muitos físicos nucleares chineses, treinados por dez mil cientistas e técnicos russos que visitaram a China entre 1950 e 1960. Refiro-me aos sessenta mil chineses que passaram pela Academia Chinesa de Ciências e escolas semelhantes. Refiro-me a uma nova nação chinesa com grandes recursos de urânio extraído de Tachang, na província de Sinkiang. Refiro-me a uma nação capaz de construir complexos fabris de difusão gasosa em Sanchow e reatores de plutônio em Paotow. Refiro-me a uma nação tão ambiciosa e determinada que está disposta a sacrificar o bem-estar de sua população (o salário médio é de quinhentos francos, ou seja, menos de cem dólares por ano) de forma a poder consagrar um bilhão e meio de dólares ao desenvolvimento de sua primeira bomba atômica, num esforço para conseguir o respeito e o medo de um mundo que por tanto tempo a desprezou e explorou.

— Acha, então, que os chineses conseguiram sozinhos sua primeira bomba atômica? — perguntou Brennan.

— Não, não foi bem assim. Acabariam certamente por obtê-la, mas não tão depressa como aconteceu se a Rússia e os Estados Unidos não os tivessem ajudado. Quando Stálin pensou em utilizar Mao Tsé-tung como fantoche comunista a fim de chefiar um satélite da Rússia comunista, pôs a China no caminho para o desenvolvimento nuclear. Deu aos chineses um reator nuclear de água pesada, para fins pacíficos, mas a China conseguiu desenvolver nesse reator a primeira reação em cadeia em 1958. Em 1951, Stálin cogitou dar aos chineses uma bomba atômica de amostra, mas mudou de ideia. No entanto, a Rússia continuou a mandar para a China cientistas e matérias-primas, oferecendo mesmo aos chineses aviões a jato e bombardeiros supersônicos, até o dia em que os soviéticos compreenderam que a China estava decidida a igualar-se à Rússia como potência militar. Mas os Estados Unidos, Brennan, também contribuíram para a primeira bomba da China, muitíssimo antes da deserção de Varney.

— Já se referiu a isso, há pouco — observou Brennan. — Acha que foi assim?

— Com certeza. Em Los Alamos, onde os -Estados Unidos fabricaram a primeira bomba atômica da história, um dos membros de sua acreditada equipe de cientistas era o dr. Klaus Fuchs. Mais tarde, descobriu-se que o dr. Fuchs era um traidor que passava seus segredos para a Rússia, que, por sua vez, os compartilhava com a China vermelha. Outro traidor, Bruno Pontecorvo, trabalhou na Inglaterra com seus segredos nucleares e em 1950 fugiu para a Rússia; uma vez mais, seus segredos foram conhecidos pelos comunistas de Moscou e Pequim. Compreende, Brennan?

— Sim, compreendo.

— O resto foi fácil. Creio que mais ou menos assim:

logo que um homem agressivo seduz uma virgem, esta deixa de ter mistérios e segredos para ele. O homem pode prosseguir em sua conquista, exercitando o amor de várias maneiras. Mas é a penetração original do segredo que tem importância. Assim aconteceu com a China e a bomba. Logo que os chineses resolveram o primeiro mistério, o namoro mais intenso e a sedução dos segredos nucleares mais complexos tornaram-se fáceis. Seu prêmio Nobel, o dr. Urey, predisse nessa altura que a China comunista em breve fabricaria “bombas de hidrogênio por um processo relativamente secreto”. É claro que acertou. Com experiência e confiança crescentes, com informações vitais pescadas nos relatórios de uma rede de espiões de embaixadas, com o desaparecimento de análises de testes de vocês e dos russos, e sempre com o gênio de seus cientistas, a China pôde fabricar facilmente a bomba H. O objetivo seguinte em vista era a bomba N.

— O presidente Kuo Shu-tung precisava realmente da bomba de nêutrons? Nunca tive certeza.

— Sim, precisava, para se tornar um membro respeitado do Clube Nuclear. Atente na estratégia. Se a China tivesse unicamente a bomba de hidrogênio, poderia devastar um país inimigo, mas nada restaria para conquistar ou ocupar. Destruição, mas não uma vitória real. Porém, possuir a bomba de nêutrons significava ter a vantagem da mais sofisticada e sensível arma de extermínio da história. Pense nessa arma. A bomba de nêutrons é um invento de desintegração pura, disparado por meios eletromagnéticos e não por detonadores. É uma bomba de peso leve, capaz de varrer todos os seres vivos da área de alvo, deixando os edifícios intatos e os terrenos habitáveis. Assim, devido aos vários fatores que mencionei, a China já estava a caminho da fabricação da bomba N quando seu cientista nuclear Varney fugiu e se instalou em Pequim. Garanto-lhe, meu caro Brennan, que Varney pouco mais podia fazer do que confirmar a seus anfitriões que estavam no bom caminho. Acreditar que Varney entregou à China a bomba N e acusar você de cumplicidade é absolutamente ridículo.

Brennan sentiu-se como certa vez na juventude, quando julgara ter pecado gravemente e o padre o absolvera. Olhara para o padre como se ele fosse a reencarnação de São Pedro, salvando-o da morte.

— É muita bondade sua contar-me tudo isso, professor Isenberg.

O cientista pareceu surpreso.

— Apenas lhe expus os fatos. Mas há mais. Varney também foi acusado de ter ajudado a China a concluir um sistema de recuperação de suas ogivas de combate nucleares. Por isso, você também foi condenado, por tê-lo deixado fazer isso. É outra ficção ridícula. O sistema de recuperação da China, por estranho que pareça, foi desenvolvido pelos próprios chineses. Para começar, os chineses tinham amostras dos últimos foguetes russos para analisar. Em segundo lugar, conseguiram dados de precisão eletrônica por intermédio de fabricantes de países como a Alemanha e a Suécia, de amigos da Tchecoslováquia e do Japão e de nações que reconheceram seu novo governo, como a França. Mas o foguete mais valioso da China foi oferecido pelos Estados Unidos, na pessoa de um chinês chamado Tsien Hsue-shen. Ele trocou a China pelo seu país, como estudante. Obteve um diploma do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e doutorou-se pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia. O dr. Tsien tornou-se professor de propulsão a jato na Caltech. Contribuiu grandemente para o programa de foguetes nucleares dos Estados Unidos. Também trabalhou como conselheiro em sua marinha. Porém, mais tarde, o dr. Tsien foi acusado de ser comunista, e, embora negasse essa acusação, seu país deportou-o em 1965... presenteando assim a China vermelha com um dos mais competentes peritos em foguetes do mundo. Não muito tempo depois, os chineses experimentavam mísseis com um alcance de mil e cem quilômetros, em Chiuchan. Desses mísseis de alcance médio aos mísseis balísticos intercontinentais de longo alcance era um passo, como pode calcular. O dr. Chen, uma autoridade da China comunista que esteve na Universidade de Michigan, disse-nos uma vez que os chineses compensavam a falta de material com a inteligência, incutindo em seu povo uma vontade de trabalhar sempre maior. Disse-nos que os poderosos foguetes podiam ser fabricados sem necessidade de uma grande base industrial. Disse-nos ainda, se bem recordo suas palavras:

“Se alguém utilizar o padrão ocidental para medir a. capacidade chinesa no campo da produção de bombas e foguetes, é quase certo que cometerá um erro de avaliação”. Pessoalmente, nunca subestimei os chineses. Sempre soube que não precisavam de seu Varney para desenvolver seus mísseis. E, por isso, agora têm seus mísseis capazes de atravessar o oceano, ampliaram sua frota submarina de trinta para noventa submarinos numa década, têm stfas imitações de bombardeiros soviéticos TU-4, que lhes haviam sido emprestados, e possuem um sistema próprio de recuperação de suas ogivas nucleares de combate. E, como consequência, fomos obrigados a admiti-los na Conferência de Cúpula.

— Acha que podemos convencê-los a se desarmarem ao mesmo tempo que nós? — perguntou Brennan.

— Aí é que reside o problema. Se os Estados Unidos e a Rússia insistirem numa proibição nuclear, congelando os estoques atuais mediante o policiamento de um exército internacional de países neutros, creio que a China se recusará a aceitar essas condições, e a conferência falhará. Com efeito, nossos estoques são superiores aos deles, e, portanto, eles se sentirão inferiorizados; por outro lado, não confiam em nós, principalmente numa América que durante tanto tempo lhes contestou o Sudeste Asiático e que ainda os atordoa com bases equipadas de aviões nucleares, mísseis e submarinos Polaris. Mas se os Estados Unidos, a União Soviética e as outras potências concordarem num desarmamento nuclear total, que inclua não somente a destruição dos estoques de armas nucleares mas também a de todas as facilidades de fabricação de semelhantes armas, então duvido que a China não aceite. É que, nesse caso, as nações se enfrentarão com armas convencionais e soldados de infantaria, e a China sairá com certa vantagem, graças a seus três milhões de homens armados, que se enfileiram no Exército Popular de Libertação.

— Mas eles se comprometeriam realmente a respeitar os acordos de desarmamento? — inquiriu Brennan.

— Talvez. Não tenho certeza. — O professor Isenberg despejou a cinza do cachimbo e, pensativo, voltou a enchê-lo de tabaco novo. Depois de acendê-lo, prosseguiu:

— Há duas Chinas, assim como há duas Rússias, e tudo dependerá do que a China disser no Palais Rose. Já vimos que a China vermelha modificou suas ambições agressivas depois que Mao e os homens irados e vingativos se retiraram e os moderados, conduzidos pelo presidente Kuo Shutung, tomaram o poder. No tempo de Mao e dos antigos dirigentes, de uma maneira ou de outra, a China reconquistou ou voltou a dominar seus antigos territórios imperiais no Tibete, na Birmânia e na Indochina, conseguiu controlar a maior parte do Sudeste Asiático e neutralizar Formosa. Graças a esse controle, como o que a Rússia exerceu na Europa Oriental e os Estados Unidos, em suas ilhas marítimas e nas Américas Central e do Sul, o sentimento de orgulho e de segurança da China exacerbou-se. Seu atual presidente podia permitir-se adotar uma atitude mais indulgente para com o Ocidente e concordar em tratar conosco na conferência.

— Uma atitude mais indulgente? — inquiriu Brennan, recordando-se de que fizera essa mesma afirmação a Neely. Tinha curiosidade em saber se a reação de Isenberg seria diferente. — Foi aquele perigoso incidente na índia, e o fato comprovado de que a tentativa, pela ala esquerda, de um golpe de Estado no Japão fora financiada e dirigida pela China, que a trouxeram realmente à conferência.

O professor Isenberg sorriu:

— Sim. Isso se relaciona com o ponto que estou enfocando. O presidente Kuo Shu-tung é, na verdade, um homem de paz, segundo creio, mas também é astuto. Pode ter urdido essas recentes crises na índia e no Japão para aumentar seu prestígio na mesa de discussões, a fim de nos predispor para um compromisso. Por outro lado, essas crises podem ter significado alguma coisa mais. Eu lhe disse que havia duas Chinas, e a segunda é composta pelos filhos dos maoístas, os exaltados, os obstinados, os que pagam tributo a Lênin e à revolução mundial, os que estão ansiosos por mostrar seus músculos e até por usá-los, de modo a continuarem a espalhar o marxismo e a fazer com que o comunismo seja a ideologia dominante na Terra. Se eles representam a China e se servem dos moderados, como o presidente Kuo Shu-tung, apenas como figurantes, então devemos esperar complicações. Mas duvido disso. Penso que os maoístas não passam de um grupo relativamente pequeno de dissidentes. Creio que o programa do presidente Kuo Shu-tung, ao entrar em acordo conosco para pôr termo à corrida nuclear e à ameaça de guerra e ao juntar-se a nós para criar um mundo de paz, desviando créditos militares para apoiar o desenvolvimento interno, representa a verdadeira China, que prevalece no Palais Rose. Pelo menos, foi a impressão que tive em Pequim, há dois anos, e esse sentimento foi reforçado, há dias, pelos encontros que tive com meus colegas chineses no Palais Rose.

Brennan descruzou as pernas e endireitou-se:

— Esteve em Pequim há dois anos?

— Sim, estive. Flouve uma convenção de cientistas nucleares. Fomos tratados com todas as honras. Deram-me um quarto esplêndido no Hotel Hsin Hsiao. Nossos anfitriões chineses levaram-nos a passear. Sabem mostrar-se corteses e amáveis, sobretudo quando não tentam a propaganda, e é aí que quero chegar. Mal ouvi uma palavra sobre o imperialismo americano ou sobre os revisionistas russos que se tornaram penhores capitalistas das democracias. Meus anfitriões chineses mostraram-se confiantes, orgulhosos e realmente muito acessíveis.

— Ouviu alguma coisa a respeito do professor Varney?

— Ia falar nisso —' disse Isenberg. — Eu me perguntava se o mais famoso fugitivo do Ocidente ainda se encontraria lá, se estaria vivo ou morto. Gostaria de conversar com ele e saber sua opinião acerca da pátria que adotara, dois anos após sua deserção. Para ser franco, lembrei-me também de seu julgamento, e queria perguntar a Varney por você e, caso ele se mostrasse acessível, pedir-lhe um atestado que inocentasse seu nome, Brennan.

— Foi magnífico de sua parte, e estou-lhe muito grato.

— Nada tem a agradecer-me, porque nada ocorreu. Quando mostrei interesse em me encontrar com Varney, meus anfitriões responderam que ele estava demasiado senil e doente para receber visitas. Contudo, por certas coisas que ouvi, duvido que Varney estivesse assim tão senil e doente.

— O que ouviu?

— Oh, falava-se muito da nova Cidade Nuclear da Paz, uma central de poderosos reatores com uma comunidade própria, que a China estava construindo auxiliada pela indústria privada da Alemanha Ocidental. E uma vez que esse novo projeto nuclear envolvia avançadas técnicas de desintegração, que os cientistas chineses ainda não estavam aptos a dominar, era evidente para mim que precisavam de um estrangeiro capaz de dirigir ou administrar esse projeto. Não podiam servir-se de um alemão para esse trabalho principal, porque teria de ser um comunista ou um simpatizante do comunismo. Não podiam servir-se de um russo, porque tinham rompido com a Rússia. No entanto, para surpresa minha, havia cientistas russos na convenção de Pequim. Pode-se compreender isso, dado que os cientistas gostam de pensar que seu mundo é um mundo sem fronteiras nacionais. Seja como for, tive a sensação, enquanto lá estive, de que Varney, se ainda vive e goza de saúde, deve ser o chefe do projeto. Quis...

— Entre esses russos que encontrou em Pequim — interrompeu Brennan —, não havia um chamado Nikolai Rostov? É o...

Isenberg ergueu o cachimbo.

— Eu sei, Brennan. É outro dos implicados na deserção de Varney. Não. Rostov não esteve em Pequim.

— Sabe que ele se encontra em Paris?

Isenberg acenou afirmativamente:

— Sim, ouvi dizer.

— Foi isso o que me trouxe a Paris, professor Isenberg. Quero ver Rostov.

Isenberg tirou o cachimbo da boca, encarou Brennan, mas manteve-se silencioso.

— Apenas dois homens podem provar minha inocência — prosseguiu Brennan. — Um deles é Varney, mas não é possível chegar até ele. O outro é Rostov, e ele está aqui.

— Já o viu?

— Tentei. — Brennan meneou a cabeça. — Não tive sorte. Mostra-se inacessível.

— Hum... Bem, não me surpreende.

— Tenho de vê-lo! — disse Brennan com entusiasmo. — Todo o meu futuro depende disso. Mas compreendo que só poderei chegar até ele através de um intermediário. É esse o motivo por que vim falar com o senhor, professor Isenberg. O senhor acredita em mim. É delegado na Conferência de Cúpula, como Rostov. Este conhece-o e respcita-o. Scntir-se-á obrigado a escutá-lo. Se quisesse tentar... conseguir uma maneira de nos encontrarmos.. .

Isenberg colocou cuidadosamente o cachimbo no cinzeiro, sem olhar para Brennan. Recostou-se na cadeira giratória, de olhos fechados, com as pontas dos dedos na boca, refletindo no pedido. Ao fim de meio minuto, abriu os olhos, deixou cair as mãos sobre os braços da cadeira giratória e balançou-se.

— Brennan — disse ele —, eu faria tudo o que fosse possível por você. Contudo, receio que o que me pede me seja impossível. Minha posição oficial na conferência é delicada, limita minhas atividades. Estou sob vigilância, como todos os que estão ligados à pesquisa nuclear, e se tratasse com um delegado russo sem licença prévia poderia ser sujeito a interrogatórios e até preso. Não me encontrei com Rostov, e é provável que não chegue a vê-lo enquanto durar a conferência. Ele é diplomata e político de um país segregacionista. Eu sou um cientista e um conselheiro comprometido com os segredos de meu país. Rostov e eu não temos nada em comum. Fomos indicados para áreas diferentes e diferentes centros de atividade. Se tiver oportunidade de lhe falar oficialmente, não me esquecerei de seu caso. Mas essa oportunidade não deve surgir. Lamento, meu amigo.

Brennan sentiu-se embaraçado:

— Foi atrevimento meu ousar...

— De maneira alguma. Em seu lugar, eu teria feito o mesmo.

— O desespero leva os homens a proceder como nunca o fariam em condições normais. Meu pedido foi deselegante. Compreendo as restrições que o rodeiam. A experiência de meu passado deveria ter-me prevenido.

Brennan calou-se ao notar que Isenberg mal o escutava. O cientista, recostado na cadeira giratória, parecia ter-se concentrado num ponto fixo do teto. Subitamente, suas feições transformaram-se nas de um homem favorecido por uma revelação ou uma descoberta. Levantou-se lentamente e resmungou:

— Varney! — Abriu uma gaveta da mesa, tirou um livro de apontamentos com capa de couro e pôs-se a folheá-lo. Deteve-se em determinada página, meneou a cabeça, fechou o livro e voltou a guardá-lo na gaveta, murmurando para si mesmo:

— Claro! — Depois, sorrindo abertamente a Brennan, disse:

— Quase me esquecia, mas acaba de me vir à mente. A entrevista.. .

— Desculpe — interrompeu-o Brennan, levantando-se. — Sei que está muito ocupado. Já lhe roubei bastante...

— Não, não! É amanhã, não agora. Sente-se. Isto lhe diz respeito. Estive pensando nas pessoas que poderiam ajudá-lo, e de repente descobri. Um simples nome. Não pode fazer nada em relação a Rostov, mas pode prestar-lhe informações em primeira mão sobre o professor Varney...

— Agradeço — disse Brennan, encolhendo os ombros —, mas duvido que Varney possa...

— Nunca se sabe — cortou Isenberg. — É sempre bom ter um coelho de reserva na cartola. Se seu futuro contato com Rostov em Paris falhar, é muito possível que Ma Ming possa interceder por você junto de Varney, quando regressar a Pequim.

— Ma Ming? — inquiriu Brennan, julgando não ter compreendido bem o nome.

— Desculpe. Precipitei-me. Sim, Ma Ming. Um sujeito simpático. Entrevistou-me quando estive na China, e damo-nos bem, somos quase amigos. É extremamente bem-informado e muito distinto. Um sujeito encantador. Foi ele quem me introduziu na Sociedade Hung. Já ouviu falar dela?

— Creio que não.

— É uma organização fraternal, secreta e inofensiva, como os maçons, com quatro ou cinco milhões de membros espalhados pela China. As pessoas pertencentes à Sociedade Hung conversam com seus confrades apenas por mímicas, que os não-iniciados não podem compreender, uma linguagem feita de movimentos de mãos, atitudes do corpo e outros gestos, como a maneira de fumar um cigarro, de segurar uma xícara de chá, de transportar um embrulho. Fascinantes e não-pagãos, os chineses. Sou membro honorário da Sociedade Hung graças a Ma Ming. — Isenberg fez uma pausa. — Sim, tenho quase certeza de que o sr. Ma foi o primeiro chinês a quem falei de Varney, quando lá estive. E foi ele quem me disse que Varney estava doente e incomunicável. Talvez todos os jornalistas chineses fossem obrigados a declarar isso. Ou talvez seja verdade. Se é, Ma Ming deve saber em que ponto da China se encontra Varney. Se o sr. Ma simpatizar com você, e creio que simpatizará, e se se interessar por sua situação, procurará Varney e tentará arrancar-lhe uma espécie de declaração de inocência, como a que pretende de Rostov. Não sei. Também dependerá de Varney estar vivo, de espírito lúcido, e querer ou poder cooperar.

Brennan não conseguiu disfarçar seu ceticismo:

— Acha que um simples jornalista poderia...

Isenberg apontou um dedo ossudo para Brennan:

— Não há simples jornalistas na China, meu caro Brennan. Não, senhor. Ma Ming é o mais categorizado correspondente da Hsinhua, a Agência de Notícias Nova China, a repartição oficial que um dos ministros da Propaganda classificou de língua e olhos do Partido Comunista Chinês. Recordo que me disseram que o sr. Ma é amigo íntimo do presidente Kuo Shu-tung. Em todo caso, o sr. Ma foi amável comigo em Pequim, e tentarei retribuir-lhe a gentileza enquanto ele aqui estiver, apesar de meus afazeres. Recebo-o amanhã aqui que em Gif-sur-Yvette e ofereço-lhe um almoço. Terei muito prazer em falar de você a ele.

— Não quero incomodá-lo. Já fez mais do que o suficiente.

— Se não se importa, insisto. Falarei a Ma Ming de seu caso. Se ele estiver disposto a ajudá-lo, você gostaria de se encontrar com ele?

— Se gostaria? Eu o abraçaria. Veria todos os que...

— Muito bem. Não se esqueça do nome, no caso de ele lhe telefonar:

Ma Ming.

Brennan sorriu:

— Será impossível esquecer esse nome. — Levantou-se. •— Professor, estou-lhe profundamente grato por sua... bem, por sua amizade.

— Você merece mais — disse Isenberg, emocionado, ao mesmo tempo em que se punha de pé. — Sei que deposita as melhores esperanças em Rostov e não em Varney. Mas gostaria que encontrasse alguém que pudesse ajudá-lo. Terá de ser um diplomata importante ou um político, alguém acima de mesquinhas restrições. Com certeza conhece uma pessoa assim. Tomara! Desejo-lhe boa sorte. Entretanto, se eu lhe puder ser útil em mais alguma coisa...

Dez minutos depois, ao volante do carro sujo de pó, Matthew Brennan deixou Gif-sur-Yvette, de regresso a Paris. Continuava a sentir-se desanimado. No entanto, o último conselho de Isenberg não lhe saía da mente. Para falar a Rostov no caso de Brennan, o cientista francês sugerira um "diplomata importante ou um político, acima de mesquinhas restrições”.

E, agora, Brennan admitia que semelhante pessoa se encontrava em Paris, alguém que o conhecia, um político que não estava sujeito aos serviços de segurança. Seria ele, refletia Brennan, quem o levaria até Rostov. Mas também era alguém que, recordou-se Brennan, gostaria de vê-lo morto o mais depressa possível.

Todavia, sè o considerar praticamente morto, pensou Brennan, esse alguém se mostrará menos renitente e mais simpático.

Por outro lado, ele e o outro, a quem estava decidido a ver e falar sem marcar encontro, tinham algo em comum. Ambos eram criaturas esquecidas do mesmo passado. Cada um deles, à sua maneira, um como líder e outro como ser humano, podia ser francamente chamado de Ex.

Assim que Brennan colocou o maço de cópias na mesinha da sala de estar do apartamento de Earnshaw, no Hotel Lancaster, e se instalou no fofo sofá, pôde ouvir o ex-presidente dizer:

— Eu... eu lamento, mas não lhe posso conceder mais do que... hã... uns minutos, sr. Brennan, mas a verdade é que não esperava sua visita. Eu... hã... tenho um dia muito ocupado. O sr. Doyle deve estar chegando, para que eu lhe dite meu artigo, depois... hã... há outros assuntos. Se tivesse marcado previamente um encontro...

— Se eu o tivesse feito — disse Brennan, tentando conter-se —, o senhor não me receberia.

Earnshaw franziu uma sobrancelha e protestou:

— Ora essa, sr. Brennan! Se houvesse um bom motivo para se encontrar comigo...

— Não sei se o motivo é bom — objetou Brennan. — Sei apenas que tenho um problema que o atinge também, e que o senhor é a única pessoa que pode me ajudar a resolvê-lo.

— Bem, nesse caso... — A voz de Earnshaw sumiu. Ele agarrou-se à cadeira de braços que tinha ao lado e deixou-se cair nela.

Observando-o, Brennan ficou surpreso com o aspecto encanecido e alquebrado do ex-presidente. Três dias antes, ainda, quando haviam se encontrado no vestíbulo principal do Palais Rose, Brennan achara Earnshaw notavelmente bem-conservado e cheio de energia. Agora, ele revelava toda a sua velhice, mostrando-se tão débil e frágil como um veterano da secular Guerra Civil ou um sobrevivente do Grande Exército Republicano que Brennan costumava ver em sua mocidade, uma trêmula relíquia presa a uma cadeira de repouso, numa varanda de madeira, em frente da qual seu grupo passava sempre que ia à sorveteria. Brennan perguntou-se o que teria acontecido a Earnshaw naqueles três dias para que se operasse aquela transformação, mas deixou de especular sobre isso, mais interessado em amenizar o diálogo.

— Sei que minha vinda, sem me anunciar, foi indelicada —disse Brennan —, e talvez o melindre. Acredite que não o teria feito se não fosse necessário.

Os dedos de Earnshaw tamborilavam nervosamente nos braços da cadeira.

— Está enganado, sr. Brennan. Pessoalmente, nada tenho contra o senhor.

— Talvez continue a pensar que o enganei no caso Varney e que minha pessoa simboliza uma mancha negra em sua administração. É isso, não adianta protestar. Mas seja o que for que tenha acontecido no passado, que tenha sentido por mim e eu pelo senhor, formei uma opinião a seu respeito que se mantém intata. Sempre o considerei um homem de boa vontade e decente. Continuo a pensar assim. De outro modo, não ousaria apresentar-me aqui.

Os graves olhos azuis de Earnshaw pestanejaram. Com gestos lentos, ele pôs-se a esfregar o queixo, atento à objetiva exposição que Brennan lhe fazia.

— Como deve estar bem lembrado — prosseguiu Brennan —, quando testemunhei sob juramento, perante a Junta da Comissão de Segurança Interna do senador Dexter, expliquei que o senhor e Simon Madlock tinham insistido em que o professor Varney acompanhasse os delegados à Conferência de Zurique. Também me referi ao encontro particular que tive com Madlock. Sabia que Varney era um perigo para a segurança e pressenti que sua presença em Zurique podia ser desastrosa para nós. Pedi que não deixassem Varney ir. Madlock insistiu em que eu o levasse comigo. Recorda-se de eu ter testemunhado isso em minhas declarações há quatro anos?

— Hã... creio que sim.

— Depois, contei aos congressistas que aquilo que eu receava tinha acontecido. Varney desertara. A responsabilidade pertencia a Madlock, mas, quando regressei a Washington, Madlock tinha morrido. Não estava presente para suportar as acusações, que, estou convencido, não teria contestado. Assim, fui eu o acusado. Declarei tudo isso sob juramento. Lembra-se?

— Vagamente. Não estou bem certo.

Brennan estendeu a mão para o maço de cópias:

— Veja, sr. Earnshaw. Estão aqui as cópias de meu depoimento perante a Junta de Segurança Interna do Congresso. Alguma vez as leu?

— Não, não creio. Um presidente raramente tem tempo para esse gênero de leitura. Além disso, se bem me lembro, estava profundamente abatido com a morte de Simon. E havia também grande quantidade de assuntos executivos em atraso, que requeriam minha atenção imediata. Contudo, estava a par das audiências através de várias... hã... testemunhas. Não sei dizer se me relataram ou não todas as declarações.

Brennan manteve a mão sobre o maço de papéis:

— Gostaria que lesse algumas destas cópias, sobretudo aquelas em que falo do encontro particular que tive com Madlock, durante o qual ele me obrigou a levar Varney para Zurique, apesar de meus protestos.

— Não sei se terei tempo, sr. Brennan.

— Se puder fazê-lo, ficar-lhe-ei grato. A verdade é que esse encontro existiu, e sempre me perguntei por que motivo o senhor não tomou o lugar de Madlock para me defender, uma vez que ele já não vivia, e corroborar minhas declarações. Madlock relatou-lhe com certeza nossa conversa. — Brennan fez uma pausa. — Relatou, não é verdade?

— Não estou bem certo. Não me lembro.

— Seja como for, deve tê-lo feito.

Earnshaw agitou-se na cadeira e replicou:

— Não necessariamente. Andava muito atarefado... hã... era muito devotado a seu trabalho, esforçando-se por me aliviar de certos fardos, e nem sempre tinha tempo para me informar de todas as suas múltiplas atividades.

Brennan deixou aquilo passar em branco e prosseguiu:

— Se não tomou conhecimento do aviso prévio que fiz a Madlock, não poderia defender-me. Compreendo perfeitamente. E sabemos que Madlock morreu antes de poder depor a meu favor.

Mas quando ler esse testemunho, saberá que havia- outra pessoa que poderia ter me inocentado. Lembra-se do nome Nikolai Rostov?

— O russo de Zurique? Sim, de fato.

— Rostov poderia ter provado que, quando Varney nos ludibriou, deixou uma mensagem que nos inocentava. Rostov possuía essa mensagem, e desapareceu com ela. Tentei localizá-lo, apanhar essa prova, mas não o consegui. — Fez uma breve pausa e perguntou:

— Sabe que esse Rostov se encontra agora em Paris?

— Creio que me falaram nisso.

— Faz parte do pessoal do primeiro-ministro Talanski. Tentei surpreendê-lo, mas falhei. Contudo, uma palavra dele não só poderia inocentar-me, mas apagar a única mancha negra de sua administração como presidente. Tenho grande interesse em encontrar Rostov, e creio que o senhor também. É a única pessoa para quem posso apelar, a única que pode falar com o atual presidente dos Estados Unidos ou com seu secretário de Estado e pedir-lhe que fale a Rostov a meu favor, a nosso favor. Estou certo de que Rostov, sob tal pressão, não se recusará, e teremos finalmente a verdade.

Brennan olhou para Earnshaw, esperando uma reação, e o que viu embaraçou-o. O ex-presidente contorcia-se, pouco à vontade, aflito.

— Hã... claro, vejo aonde quer chegar, sr. Brennan... e, embora deseje tanto a verdade como o senhor, não tenho certeza de estar em posição de ajudá-lo. Se eu intervier... hã... se me aproximar do presidente nesta altura, podem julgar isso muito impróprio. Não seria correto.

Earnshaw parecia esperar compreensão e indulgência por parte de seu visitante, mas Brennan recusou-lhe esse consolo. Mostrou-se insensível e pouco disposto a cooperar.

Erguendo os olhos para o teto com ar infeliz, Earnshaw resumiu:

— Hã... há muitas dificuldades para uma pessoa na minha... hã... situação que não pode compreender. Há certas coisas...

hã... mais fáceis de dizer do que fazer. É como, bem...

Earnshaw se lamuriava. Brennan ouviu as divagaçÕes, as ambiguidades, as indecisões próprias do-Ex. Com desgosto crescente, compreendeu que o Earnshaw de sessenta e seis anos não era diferente do Earnshaw de sessenta e três anos, ou de outra época qualquer, e que esperar que um montículo se transformasse numa montanha era ser um idealista.

— Sr. Earnshaw — interrompeu Brennan —, compreendo sua posição. Talvez estas cópias lhe refresquem a memória e o senhor possa, então, apreciar melhor a situação. Olhe para mim, senhor. Sou uma peça de um caso suspenso de sua administração. Sou um processo pendente que o senhor e Madlock nunca resolveram. Se é um homem de boa fé, tente arquivá-lo, não somente por mim, mas também para assegurar seu lugar e o de Madlock na história.

Earnshaw estava de novo trêmulo, rolando os olhos, evitando Brennan.

— Hã... bem, não sei. Não posso prometer nada, porque, como já disse... mas nunca se sabe.... se a oportunidade se apresentar, ficarei de olhos abertos e ouvidos atentos, e, se alguma coisa puder ser feita, então, no momento próprio.. .

O desprezo de Brennan era total. Levantou-se.

— De qualquer maneira, obrigado, senhor. Sei que fará o que puder. Agradeço-lhe o tempo que me dedicou.

Logo que saiu do apartamento e entrou no elevador, Brennan sentiu todo o nojo daquela entrevista com Earnshaw.

O indivíduo que acabava de deixar era o mesmo que, alguns anos antes, tivera entre as mãos o destino dos Estados Unidos e do mundo livre. Essa ideia provocou em Brennan um arrepio. Se o povo conhecesse as fragilidades, as suscetibilidades, as fraquezas dos líderes amados, se pudesse contemplar o verdadeiro rosto que se escondia atrás das máscaras públicas de confiança, nunca mais dormiria tranquilo. Relacionando esse pensamento com os chefes e os ministros da Conferência de Cúpula, Brennan arrepiou-se uma vez mais.

Do berço à sepultura, pensava Brennan, nenhum homem aceita depender inteiramente de outros homens, porque todos se sabem vulneráveis e imperfeitos. E era assim desde o primeiro sopro de vida. Se as crianças, indefesas, olhando para seus piedosos pais através de uma perspectiva infantil, confiando suas inocentes vidas à infalível sabedoria desses pais, soubessem que sua mãe morria de aflição, que seu pai era complicado, que seus dois guardiães viviam inseguros, todas voltariam prontamente para o ventre materno.

Mas depois, já no elevador, outro pensamento ocorreu a Brennan, sobrelevando-se a seu desalento. Talvez cada um de nós exigisse demasiado dos mais velhos. Earnshaw tinha sido uma desilusão. No entanto, ele mesmo fora uma desilusão para seu filho Ted. Apesar disso, Brennan sabia que era superior ao que o filho pensava dele. E, portanto, talvez Earnshaw fosse mais do que Brennan supunha.

Após essa interrogação, perguntou-se por que motivo Earnshaw envelhecera tão depressa e parecia tão alquebrado e perdido...

Durante uma hora, Earnshaw deixou-se ficar no quarto iluminado, lendo calmamente. Depois, fechou a pasta com as cópias das declarações de Brennan perante a Junta da Comissão de Segurança Interna do Congresso e voltou a colocá-la sobre a mesinha de café.

O que acabava de ler com tanto pormenor era, em grande parte, novo para ele. E à luz do que lhe contara o dr. Dietrich no dia anterior, era profundamente aflitivo.

Earnshaw enterrou-se mais na cadeira para meditar morbidamente sobre essas revelações e para analisar sua atual situação. Era como se seu mundo ordenado tivesse começado a desintegrar-se, embora ele ainda acreditasse poder mantê-lo e restaurá-lo, e estivesse, apesar de todos os seus esforços, a ponto de ruir e desfazer-se em pedaços.

Sempre dera crédito às alusões indiretas, às insinuações, aos rumores que lhe segredavam aqueles que lhe estavam próximos, porque era para ele uma máxima que, onde houvesse fumaça, deveria haver fogo. Quando o senador Dexter afirmara — não acusara, mas afirmara — que a fuga do professor Varney fora devida não apenas a um funcionário público que negligenciara seus deveres, mas a um funcionário público de filiações extremistas, altamente suspeitas (que encorajara deliberadamente o plano de Varney a fim de forçar a China a um esquema urdido para garantir a paz).

Earnshaw, como presidente, aceitara a afirmação como um fato consumado. E, quando o traidor Brennan tentara atribuir a responsabilidade da fuga de Varney ao falecido Simon Madlock, Earnshaw considerara o subterfúgio de Brennan covarde e ignóbil. E mesmo agora, ao rever as antigas declarações de Brennan, Earnshaw compreendeu que continuaria a pensar de igual maneira.

Mas as revelações do dia anterior tinham abalado Earnshaw. Em sua entrevista com Goerlitz, vira a prova evidente das atividades de Madlock, atividades secretas e que ele desconhecia. Soubera com tristeza que seu outrora amado braço direito, à semelhança de um missionário transviado, tinha lançado mão de meios vergonhosos para atingir um objetivo louvável, o fim da guerra. Quaisquer que fossem os motivos, Simon Madlock fora pérfido e desleal, cometera uma espécie de traição política pela qual Earnshaw teria de pagar agora.

Ciente disso, considerou mais do que provável a honestidade do primitivo testemunho de Brennan. Sim, era provável que Brennan tivesse se encontrado com Madlock para pô-lo de sobreaviso contra Varney e que Madlock, no seu zelo messiânico, houvesse ignorado os avisos, determinado como estava a enviar a Zurique o mais famoso cientista pacifista para desarmar os chineses. Sim, era provável que fosse Madlock e não Brennan o bem-intencionado traidor de seu país. Se assim fora, então Brennan deveria ter sofrido horrivelmente. E, se assim fora, também — e as memórias de Goerlitz provavam-no em grande parte —, então Earnshaw seria a próxima vítima da estupidez de seu colaborador.

Earnshaw sentiu-se doente. Era demasiado tarde para as compensações. Nada havia a fazer em favor de Brennan, no caso de ser realmente inocente. Mas havia muito menos a fazer em favor do próprio Earnshaw, porque ele era verdadeiramente culpado de ter abdicado de suas responsabilidades na pessoa de um tolo idealista, cheio de boas intenções.

Tinha chorado a morte de Madlock. Havia chorado Isabel. E agora, naquele sombrio quarto de hotel, uma vez mais chorava sua própria morte, a pior das três, porque era uma morte lenta.

Perdido em sua autocompaixão, não notara que já não estava só. Ergueu com espanto os olhos, e viu Carol de pé à sua frente, observando-o, com o rosto jovem crispado pela preocupação.

— Carol — gemeu —, quando entrou?

— Tio Emmett, nunca o vi assim. Parece doente. O que aconteceu?

Ele tentou levantar-se, não conseguiu, e, deixando-se cair na cadeira, procurou sorrir, mas também em vão.

— Oh! Em breve estarei bem. Não martirize sua linda cabecinha. É um mal-estar passageiro. Todo mundo tem direito de se sentir neurastênico de vez em quando.

— Não o senhor, tio Emmett. Conheço-o muito bem. Deve ter acontecido alguma coisa.

— Apenas uma ou duas contrariedades. Vim a Paris para tratar de dois assuntos pessoais e... bem, não se resolveram como eu esperava. As pessoas às vezes são difíceis.

— Por que motivo certas pessoas se comportam como patifes? .— perguntou ela, iradamente. — Não sei como pode suportar, tio Emmett, os jornalistas que nos esperam na pátria, os políticos rivais e, aqui mesmo, esse horrível Goerlitz com seu estúpido, sujo e vicioso livro.

Subitamente desperto, Earnshaw repetiu:

— Livro?

Notou que a expressão dela passara de preocupada a assustada. Era como se tentasse apagar a última frase.

— Livro? — voltou a repetir Earnshaw, levantando-se. — O que sabe sobre isso?

— Sobre o quê? — inquiriu ela, esforçando-se desesperadamente por disfarçar.

Earnshaw deu a volta à mesinha de café para encará-la.

— O que sabe das memórias de Goerlitz?

— Bem... ouvi-o mencioná-las... O senhor falou nisso com Willi, quando ele esteve aqui para lhe transmitir o recado.

— Não, Carol! — protestou Earnshaw. — Falei no livro, disse que queria avistar-me com Goerlitz para convencê-lo a retirar certos parágrafos de suas memórias, mas não mencionei o fato de o seu original ser vicioso, como você disse, de ser idiota e sujo, escrito contra mim. Fiz questão de não discutir o conteúdo dessas memórias com você ou qualquer outra pessoa. Contudo, parece que está informada a esse respeito. É melhor dizer-me como o soube.

— Limitei-me a supor, isto é, deduzi-o da maneira como falou com Willi, de sua ansiedade em avistar-se com o pai dele... e até por ter mudado nosso itinerário para vir primeiro a Paris.

— Carol — pediu ele —, não minta.

— Na verdade, tio Emmett, eu...

— Exijo a verdade, Carol. Leu o livro?

— Não, não o li! Foi Willi quem o leu.

— Willi von Goerlitz leu-o? Compreendo. Nesse caso, também me mentiu. Disse-me que não o tinha lido.

— Não mentiu —• protestou Carol. — Foi depois de ter estado com o senhor que ele o leu. Contou-me ontem à noite. Estava muito embaraçado. Não conseguia conciliar o conteúdo das memórias do pai com a maneira como o senhor o recebeu. Quando me resumiu o teor dessas memórias, fiquei muito magoada e disse-lhe que tudo aquilo era mentira, que o senhor não era assim. Foi tudo o que se passou ontem à noite.

Algo mais parecia preocupar Earnshaw:

— E como se encontrou com Willi na noite passada? Você esteve toda a noite com os Ormsbys e comigo.

— Não estivemos fora até muito tarde, e, logo que o senhor adormeceu, lembrei-me de que tinha prometido me encontrar com a srta. Hart após seu espetáculo, no Bar Lido, para comermos um cachorro-quente. Quando me dirigia para o vestíbulo, o porteiro da noite disse-me que havia um recado para mim. Era de Willi. Queria falar comigo. Compreendi que já havia lido o livro do pai e queria discuti-lo. Foi assim que se encontrou comigo e Medora, e fomos os três ao Pub Renault. Sentamo-nos para conversar, e, depois de Medora ter se retirado, falamos do livro, naturalmente.

— A que horas voltou?

— Não sei. Entre duas e três.

— Entre duas e três! — imitou-a Earnshaw com ironia. A ira até então contida aflorou à superfície. — Quem julga que é para passar toda a noite fora, contra a minha vontade? E para vagabundear com esse garoto Goerlitz, quando estava proibida? Ordenei-lhe que não voltasse a vê-lo. Você prometeu. Contudo, sem que eu saiba, vai passear com o filho de alguém que quer me matar. — Gemeu e depois trovejou:

— Como ousou?

Carol empalideceu:

— Tio Emmett, o que... o que se passa com o senhor? Disse-lhe que Willi não era responsável pelo que fazia o pai, isto é, Willi é uma pessoa e o pai, outra. Willi pertence a outra geração, é mais educado, inteligente e simpático.

— Está falando como uma criança!

— Nada disso! Está irritado porque anda às turras com o pai dele, mas isso não diz respeito a Willi nem a mim.. .

— Willi e você? Isso é que é falar! Maldita conversa!

— Tio Emmett — implorou ela, num fio de voz —, o que está acontecendo? Não compreendo. Eu...

— Você perdeu a cabeça, pura e simplesmente. Está procedendo como uma louca, uma irresponsável. Se seu pai e sua mãe fossem vivos, não permitiriam semelhante... semelhante comportamento indecente. Por isso, também não o permitirei. Tenho responsabilidades para com eles e para com você. Talvez você não compreenda isso agora, mas um dia me agradecerá.

— Tio Emmett, está redondamente enganado. Porque o velho Goerlitz o magoou, quer vingar-se no filho e...

— Cuidado com a língua, menina!

— Não tem o direito de mandar, em mim. Não é justo. Se me agradar conversar com Willi, é o que farei.

— Faça isso e mando-a imediatamente para casa! — gritou ele. — Tenho sido muito paciente com você. Mas desta vez não, menina, desta vez não. Está decidido. E é uma ordem. Não voltará a encontrar-se com o jovem Goerlitz.

Ela olhou-o fixamente e pôs-se a tremer.

— Ainda bem que, ao menos uma vez, tomou uma decisão — disse, de lábios cerrados. — Nunca julguei que fosse capaz disso.

Earnshaw ficou imóvel, abatido, como se um tiro disparado por Carol o tivesse atingido. Fitou-a com profunda mágoa, irremediavelmente ferido, ao mesmo tempo em que lágrimas de arrependimento bailavam nos olhos dela.

De faces úmidas, Carol correu para ele, lançou-lhe os braços ao pescoço, apoiou a cabeça no seu peito e desatou a soluçar:

— Não queria dizer isso. Juro por Deus, por minha mãe e por meu pai que não queria.

Ele a amparou e a consolou por instantes, até as lágrimas desaparecerem. Depois, tirou do bolso seu grande lenço e entregou-o à sobrinha.

— Basta, Carol. Basta. Quer estragar meu melhor terno? Não disse nada de mau. Todos dizemos coisas das quais não medimos as consequências.

— Mas eu não o fiz de propósito — soluçou ela.

— Bem sei que não, querida. A culpa foi minha. Você queria me ajudar, eu me senti envergonhado e.. . disse um disparate. Tinha de desabafar com alguém, e aconteceu ser você a vítima. Tudo isso é muito desagradável. Foi um mau momento, mas já passou. Talvez seja melhor partirmos e regressarmos ao lugar a que pertencemos. Deixemos isto aqui, onde posso ser ferido e feri-la também.

— Como queira, tio Emmett.

— Sim. Acho que será melhor. Farei os preparativos amanhã. Hã... agora, se não se importa, gostaria de me deitar um pouco antes do jantar. E você, vá lavar esse rosto. Até logo.

Com um olhar sem expressão, Earnshaw dispunha-se a ir para seu quarto quando o telefone retiniu. Desatando a gravata, pegou o fone.

— Alô?

— É o sr. Earnshaw? Fala Jay Doyle. Estou na portaria e vou subir para começar a trabalhar já.

— Hoje não me sinto bem, Jay — ouviu-se dizer. — Pode ir embora e escrever o que quiser.

— Mas não deseja...

— Não, Jay. Trate de tudo. Escreva o que entender, o que achar mais conveniente... confio completamente em você... e assine meu nome.

E desligou.

Não, não se importava com o que ele dissesse sobre a conferência. Ou com o que escreveria em seu nome. Não se importava que salvassem ou não o mundo, visto tratar-se de um mundo hostil, no seio do qual já não desejava viver.

Tirou o paletó, desatou os cordões dos sapatos, descalçou-se e estendeu-se na cama.

Para o diabo com tudo e com todos, pensou, ao mesmo tempo em que lhe vinham ao espírito fragmentos de pregações ouvidas no passado:

“E ouviram-se vozes, trovões e relâmpagos; e houve um grande terremoto... um terremoto muito intenso e grande. E... as cidades das nações ruíram”.

Venha, Armagedon.

Tal era sua disposição.

Confuso pela recusa de Earnshaw em recebê-lo, Jay Thomas Doyle pegou a volumosa pasta, agradeceu à telefonista, voltou a atravessar o vestíbulo e parou na calçada, em frente do Hotel Lancaster.

A recusa de Earnshaw tinha sido inesperada, e seu mau humor era invulgar. Doyle perguntou-se o que lhe teria acontecido. Perguntou-se também que espécie de artigo iria escrever em nome do ex-presidente. Não que Earnshaw houvesse demonstrado ser um colaborador valioso durante seus raros encontros. Até ali, o método tinha sido o da simplicidade. Doyle procurava todas as informações possíveis sobre os progressos oficiais e não-oficiais da Conferência das Cinco Potências no Palais Rose. Investigava os fatos. Relatava suas descobertas a Earnshaw, que, por sua vez, as utilizava como tema a desenvolver no próximo artigo. Doyle sugeria-lhe discretamente um assunto, escrevia o artigo, obtinha a aprovação de Earnshaw, e, depois, a matéria era publicada. Earnshaw pouco tinha a fazer, mas não fazer absolutamente nada, como parecia ser sua intenção, agora, era abdicar por completo de sua responsabilidade.

Doyle, porém, não se preocupou com isso. Seria fácil encontrar um assunto incontroverso com respeito à última sessão sobre o desarmamento, e desenvolvê-lo no estilo não comprometido que tão bem refletia a personalidade de Earnshaw. Além disso, dispensado de encontrar-se com Earnshaw, Doyle dispunha de mais uma hora para se concentrar no que guardava na pasta e na mente.

Tinha passado muito tempo na sala de arquivos do terceiro andar do Le Figaro, consultando exemplares do jornal metidos em capas de cartolina e arquivados em armários fechados. Havia percorrido as melhores reportagens da última década, e metade delas dizia respeito a Nikolai Rostov. Conseguira que lhe tirassem fotocópias desses artigos. Gastara ainda mais tempo na redação da ANA em Paris, examinando reportagens de anos diferentes, que ostentavam abaixo dos títulos a assinatura de Hazel Smith, e também conseguira as respectivas fotocópias. Então, depois de procurar rotineiramente o material necessário para o artigo de Earnshaw, enchera uma pasta com suas descobertas, tencionando utilizar algumas delas quando se encontrasse com Earnshaw e analisar os documentos mais importantes com o maior cuidado, antes e depois de se avistar nessa noite com Hazel Smith. Havia-lhe telefonado cerca de uma hora antes, e ela concordara prontamente em sair com ele de novo para jantar. Ele se sentira contente, mas queria estudar seu material de pesquisa uma vez mais, antes de se encontrar com ela. Agora, cancelada a entrevista com Earnshaw, tinha essa oportunidade.

De'pé na calçada, estava quase decidido a ir para seu quarto de hotel quando viu o atraente e despretensioso Café-Restaurante Vai dTsère, do outro lado da rua. Com surpresa, notou que não pusera nada no estômago desde o tardio café da manhã, a não ser três ou quatro bebidas não-alcoólicas. O moderador de apetite surtira efeito. Estaria mais leve e alerta para seu encontro dessa noite com Hazel. Contudo, não deveria deixar-se enfraquecer. Poderia tomar um café e mastigar uma torrada no Vai dTsère, onde teria o sossego necessário para examinar com cuidado o conteúdo de seus documentos.

Atravessando a Rue de Berri, num passo menos pesado do que nos últimos dias e semanas — perdera três ou quatro quilos desde a manhã, disso tinha certeza —, chegou ao Vai dTsère, caminhou por entre as flores e as plantas verdes que separavam a calçada da rua e entrou numa sala de jantar que parecia mais fria devido aos cartazes de propaganda de esqui colados nas paredes.

Quando procurava um lugar vago, Doyle viu Matt Brennan sentado a uma das mesas do canto, em conversa com um garçom. Abriu caminho por entre os comensais, concentrados em seus aperitivos, e aproximou-se.

— Ainda bem que o vejo, Matt. Tencionava procurá-lo mais tarde.

— Estou ao seu dispor. Descanse um pouco. Preciso de companhia.

— Obrigado. — Doyle encostou a pasta a uma perna da mesa e sentou-se com um grunhido. — O que encomendou?

— Cicuta.

— Muito bem. Talvez eu possa fazê-lo mudar de ideia.

— Ótimo. Garçom, uma cerveja dinamarquesa. E para você, Jay?

Doyle calculou mentalmente as calorias, depois decidiu-se:

— A mesma coisa.

Quando o garçom se afastou, Brennan inquiriu:

— Não devia estar com Earnshaw? Foi o que ele me disse.

— Era o que estava combinado — respondeu Doyle. — Mas, coisa espantosa! Telefonei-lhe do vestíbulo, e ele não quis me receber. Disse-me que me retirasse e escrevesse o que quisesse. Nunca o vi de tão mau humor! Foi uma surpresa. É um homem de temperamento brando, mesmo quando as coisas lhe correm mal... Ei, o que quer dizer com isso de Earnshaw lhe ter afirmado que esperava por mim? Esteve com ele?

— Estive, e talvez tenha contribuído para o seu mau humor. Apresentei-me sem ser convidado.

— Bem, considerando-se o assunto, foi muito corajoso — observou Doyle, visivelmente impressionado.

— A coragem é tudo o que me resta, Jay. Mas também ela está começando a desaparecer, e creio que já não tenho muita. — Ofereceu a Doyle um cigarro, que ele recusou, e tirou do maço um para si. — Tentar apanhar Rostov tem sido como procurar o juiz Crater no continente da Atlântida, ou ainda mais difícil. As coisas não têm progredido desde ontem. Senti-me tão desesperado que me portei como um louco. Fui procurar Earnshaw sem me fazer anunciar, na esperança de que ele me ajudasse. São novidades para você, Jay. Um estouvado é sempre um estouvado.

Doyle estava interessado em saber mais:

— Importa-se de me contar o que aconteceu?

— Entre mim e Earnshaw? Com todo o prazer. Reforça meu masoquismo natural.

Brennan esperou que o garçom servisse as cervejas e se retirasse, depois resumiu sua entrevista com Earnshaw.

Doyle acenara com a cabeça durante todo o relato, e, quando acabou, disse:

— Isso explica tudo.

— Explica o quê?

— Seu mau humor. Sua recusa em receber-me. Pensando bem, parece-me uma atitude própria de um desesperado.

— Porque o aborreci falando de Madlock? E lhe assaquei toda a responsabilidade pela fuga de Varney? Ora, ora! Apesar de sua pretensa incerteza, ele sabia de tudo isso quando testemunhei no julgamento do Congresso.

— Não, não é só isso — replicou Doyle calmamente, ao mesmo tempo que refletia. — Era uma questão de tempo, Matt. Compreende, sei coisas que muito poucas pessoas sabem. Não me importo de dizê-las. Tenho ido muitas vezes ao apartamento de Earnshaw, e, com livros ou sem livros, julgo que continuo a ser um jornalista por vocação. Sempre tive bom ouvido, e ainda tenho. Também sei interpretar cartas, mensagens, conversas telefônicas. Vejo o que não devia ver. Sei como agir, usar o que tenho e descobrir mais. Uma vez de posse da bolota, não é difícil identificar a árvore. Talvez, outrora, só Deus pudesse criar essa árvore. Mas não atualmente, nesta época de jardinagem desenvolvida. De qualquer maneira, juntando o que ambos sabemos, vou dizer-lhe o que penso de Earnshaw. Tem tempo?

— Não se preocupe — respondeu Brennan. — Sou todo ouvidos.

— Ninguém o esperava em Paris. Julgava-se que ele ia deixar Londres para visitar a Escandinávia. De repente, mudou de ideia e veio para Paris. Por quê? Porque, como descobri, seu velho amigo, o dr. Dietrich von Goerlitz, está na cidade. Se ouviu falar de Zaharoff, Krupp, Wernner-Gren, também ouviu falar de Goerlitz.

— Sim, ouvi — confirmou Brennan.

— Por que Goerlitz está em Paris? Oficialmente, para se encontrar com os chineses por causa de uma coisa chamada Cidade Nuclear da Paz, que ele se comprometeu a construir, utilizando cientistas e técnicos alemães.

— Sim, um cientista francês falou-me nisso hoje.

— É essa, com efeito, a razão por que Goerlitz está aqui. É seu grande assunto oficial. Mas também veio por causa de outros assuntos, e estes não são oficiais. Veio para vender suas memórias. Estas atacam certeiramente, como um malho, seus antigos amigos, entre os quais Earnshaw.

Doyle passou a relatar o que descobrira das antigas relações entre Earnshaw e Goerlitz, do vingativo capítulo do alemão contra o ex-presidente dos Estados Unidos e da determinação de Earnshaw em persuadir Goerlitz a omitir ou a rever esse capítulo antes de sua publicação.

— Ontem, eu soube que Earnshaw se encontrou com Goerlitz no Hotel Ritz — prosseguiu Doyle. — Como descobri isso? Por intermédio do motorista de Earnshaw, que tenta convencer-me a escrever sua biografia. Pois bem! Ontem, Earnshaw encontrou-se com Goerlitz. Hoje, Earnshaw está meio morto. Não é preciso um computador para calcular o que se passou.

— Sem dúvida que não — concordou Brennan.

— E, precisamente agora, você se apresenta a Earnshaw e atira mais lenha na fogueira. Assim, Earnshaw começou apanhando uma sova do alemão e, agora, apanhou outra de você. Pela primeira vez, teve de enfrentar a verdade a seu respeito. Não admira que não estivesse com disposição para me receber.

— E não admira que não quisesse me ajudar — disse Brennan. — Presumo que tenha outros problemas, além do de me ajudar a descobrir Rostov.

— Rostov! — Doyle engasgou-se com a cerveja, salpicando o queixo de espuma. — Para o diabo com Earnshaw! Era de Rostov que eu queria lhe falar!

— Soube alguma coisa? — perguntou Brennan, ansiosamente.

Doyle, calmamente, limpou a espuma do queixo com um guardanapo.

— Se soube alguma coisa, irmão? — Afastou a cadeira de forma a poder curvar-se apesar da obesidade. — Matt, vi Nikolai Rostov em pessoa, esta manhã. Vi-o com meus próprios olhos.

Saboreando aquele momento, Doyle iniciou a narrativa dos acontecimentos da noite anterior:

que combinara um encontro com Hazel Smith, que Hazel Smith adiara esse encontro para ajudar Medora Hart, que ele acompanhara Hazel até seu apartamento, depois de saírem do La Tour d’Argent, que adormecera, acordara e vira o recado dela, descera até a rua para ir tomar o café da manhã, vira Hazel com um homem que a levara de carro até a porta, reconhecera no homem Nikolai Rostov, juntara todos esses dados e concluíra que tinham sentido.

Brennan, que tinha ouvido atentamente, observou:

— Acontece, portanto, que você é a única pessoa que conseguiu ver Rostov.

— Isso é confidencial, Matt.

— Claro.

— Compreende o que significa para mim o fato de Hazel e Rostov terem passado todo este tempo juntos? Significa que ele é o indivíduo que casualmente lhe deu, em Viena, a notícia da conspiração para assassinar Kennedy. Significa que conheço, finalmente, sua fonte de informação e que vou me encontrar com a mulher que pode me pôr em contato com essa fonte. Significa que quase tenho a última prova de meu livro, e que, se estou jogando bem meus trunfos, conseguirei publicar o maior depoimento da história.

— Tem razão — concordou Brennan. — É difícil pensar em Rostov como Lotário. Toda a sua esperança está no fato de eles terem sido íntimos durante anos.

— Exato. E eu precisava ter certeza. Mas consegui. — Colocou a pasta nos joelhos e abriu-a. — Vê estas fotocópias do Figaro? São os movimentos de Rostov. Vê estas da ANA? São os movimentos de Hazel. Já as comparei, mas voltarei a confrontá-las mais tarde. Pelo que já vi, a coisa é clara. Noventa por cento das vezes em que Rostov estava em Moscou, Hazel também se encontrava lá. Quando Rostov deixou ou foi obrigado a deixar Moscou, Hazel também saiu de lá. Quando Rostov regressou, Hazel fez o mesmo. — Ergueu os olhos. — É concludente, não acha?

— Tanto quanto pode sê-lo uma prova circunstancial. Creio que não há dúvida. Você está na pista certa. — Esboçou um pálido sorriso. — Bem que eu gostaria de estar assim tão perto!

— Ouça, Matt, juro por Deus que não o esqueci. Andamos ambos atrás do mesmo homem, e tenho certeza de que, embora eu esteja trabalhando para mim mesmo, também posso ajudá-lo. Conseguirei informações sobre Rostov por intermédio de Hazel. Ou talvez até me encontre com ele pessoalmente. De qualquer maneira, descobrirei alguma coisa útil para você ou, então, farei com que você o veja, quando chegar o momento.

— Desde já lhe agradeço, Jay.

— Você merece. Gostaria de poder fazer mais. — Afastou a caneca de cerveja e colocou a volumosa pasta em cima da mesa. — Pelo que me contou, depreendo que não teve sorte.

— Um zero total! — confessou Brennan. — Já lhe falei de Earnshaw. Antes disso... — Contou os resultados de suas entrevistas com Wiggins e o professor Isenberg, e acrescentou:

— Ontem não fui mais feliz.

Doyle recordou-se da troca de palavras no vestíbulo do Hotel Califórnia, na véspera.

— E quanto ao antiquário de livros frequentado por Rostov em Paris? Conseguiu descobri-lo?

— Consegui. E quero falar com você a esse respeito. Não o contei a ninguém, a não ser à garota que me acompanha, Lisa, mas pensei que talvez você gostasse de saber. Fui lá ontem. Foi tudo muito estranho. Sinto-me embaraçado de lhe contar o que aconteceu.

Doyle não escondia sua curiosidade:

— O que quer dizer? É a loja onde Rostov se abastece?

— Creio que sim. Mas ouça...

Brennan narrou em pormenores sua visita ao sr. Julien, o antiquário de livros e autógrafos. Depois, referiu-se ao aparecimento do americano Joe Peet e às suas aquisições.

— E aí tem, Jay. Em primeiro lugar, o proprietário me confunde com o sr. Peet. A seguir, o sr. Peet vem buscar seus três livros raros, escritos por Sir Richard Burton, um deles tão raro que nem sequer existe. Quem acreditaria nisso? Mas foi o que aconteceu. Não consigo descobrir uma explicação, embora seja exatamente isso o que vi e ouvi.

— Acredito, Matt — murmurou Doyle. Mas seu espírito de jornalista já o obrigava a remexer na pasta:

— Disse que o nome dele era Joe Peet?

— Sim... o que está fazendo? Esse nome lhe diz alguma coisa?

— Talvez — respondeu prudentemente Doyle. — Creio que sim. — Tirou as fotocópias dos artigos assinados de Moscou por Hazel e pôs-se a folheá-los rapidamente. — Peet não é um nome fácil de esquecer. Seja como for, sinto qualquer coisa no ar.

Enquanto Brennan o observava ansiosamente, Doyle continuou a examinar o conteúdo dos artigos de Hazel.

— Há cerca de um ano, mais ou menos — começou Doyle, ainda concentrado nos documentos —, um jovem americano foi à Rússia em viagem turística. Nessa altura, travou conhecimento com uma moça russa... bailarina ou garagista, não sei ao certo... e apaixonou-se por ela. Na hora do regresso, o moço americano não quis deixá-la. Pediu que lhe prolongassem o visto, mas os russos recusaram. Então, esse louco romântico convocou uma entrevista coletiva com a imprensa estrangeira e declarou que estava disposto a renunciar à cidadania americana e tornar-se cidadão soviético, se os russos o deixassem ficar para se casar com a moça. Os russos voltaram a dizer que não e puseram-no na fronteira. E então... Ei, veja! — Erguia triunfantemente uma fotocópia. — Aqui está, Matt, escrito pela própria Hazel, de Moscou, no ano passado. — Passou o papel por cima da mesa. — O seu Joe Peet.

Brennan leu rapidamente o artigo, releu-o, e largou a fotocópia.

— É boa! — exclamou. — Hazel Smith diz que Peet nasceu em Chicago, frequentou a Escola Superior Roosevelt durante dois anos, fez o serviço militar e foi mandado para o Vietnam, onde guiou caminhões de abastecimento. Depois, correu todos os empregos. Trabalhou como moço de recados nos bastidores do Lincoln Center de Nova York, quando o Balé Bolchói esteve lá. Os russos mostraram-se simpáticos, e ele correspondeu-lhes. Sempre pensou que seus pais fossem lituanos, mas depois descobriu que tinham emigrado da Rússia. Então... — Brennan voltou a consultar a fotocópia. — Ele disse a Hazel Smith que estava obcecado pela Rússia. Juntou dinheiro e iniciou essa breve viagem. Conheceu em Moscou uma jovem russa de vinte e três anos, chamada Ludmila, que trabalhava numa fábrica de automóveis. Tinha namorado algumas jovens americanas, estivera mesmo para se casar, mas essa Ludmila era a moça mais maravilhosa que havia conhecido:

tratara-o de maneira diferente das moças americanas, fizera-o sentir-se um homem. — Brennan ergueu os olhos:

— O que quer dizer isso? O certo é que Ludmila não foi autorizada a deixar a Rússia com Peet, por isso ele decidiu ficar, a fim de se casar com ela. Mas porque suas razões para se tornar cidadão russo eram decadentemente românticas e não saudavelmente ideológicas, os soviéticos recusaram-se a deixá-lo ficar. — Brennan consultou uma vez mais o artigo. — As últimas palavras de Peet a Hazel Smith foram:

“Vou insistir com meu governo e com o governo russo até conseguir”. É tudo, Jay.

— Guarde-a. Então, que lhe parece?

— Não sei — respondeu Brennan. — Talvez a Ludmila de Peet trabalhe na delegação soviética e ele tenha vindo aqui para se avistar com ela.

— Uma operária na delegação soviética?

— É mesmo, creio que não pode ser — disse Brennan.

— Seria mais provável que voasse até aqui por causa de alguns russos importantes que estão em Paris e cuja influência poderia ajudá-lo a voltar à Rússia.

— Parece mais lógico — concordou Brennan. — Mas o que não é lógico é eu ter ido ao antiquário de livros preferido por Rostov em Paris, para descobrir se ele havia estado lá ou se algum russo tinha ido lá comprar as edições princeps de Sir Richard Burton, e, em vez de Rostov, encontrei um americano inculto comprando essas mesmas edições raras de Burton.

Doyle teve uma ideia:

— Talvez ele tenha ouvido dizer que Rostov era um apaixonado por Burton e tenha comprado alguns de seus livros com a intenção de subornar Rostov ou algum de seus subordinados, para que eles depusessem a favor de sua pretensão de se tornar cidadão russo.

— É possível — admitiu Brennan. — Pelo menos, essa teoria liga Peet a Rostov. Empresta certo sentido a seus movimentos. Mas, nesse caso, por que comprar um livro que não existe, e como consegui-lo?

Doyle estava fascinado.

— Talvez tenha pedido esse livro inexistente e levado alguma coisa em seu lugar. Talvez o título seja uma contra-senha e esse antiquário de livros raros não passe de uma célula comunista.

— Uma célula de espionagem.. . sim, foi o que pensei, mas a ideia me pareceu demasiado fantasista, razão pela qual não alvitrei essa hipótese. Julien pode ser um comunista francês. Há muitos. Lembro-me de ter visto um exemplar do France Nouvelle na sala dos fundos. É o semanário oficial do Partido, não é? Mas daí a ser uma célula comunista.. . não sei.

—r Essas coisas acontecem — observou Doyle.

— Sim, acontecem — concordou Brennan. — Mas, de certa maneira, não tem sentido, não leva a nenhuma conclusão.

— Apenas porque você não sabe o suficiente — replicou Doyle. — Por que não procura saber um pouco mais sobre Peet?

— E descobrir o quê? Não, não quero brincar de detetive. Vim para me encontrar com Rostov, e está me parecendo que não conseguirei. Se Earnshaw fizesse alguma coisa imediatamente, talvez houvesse uma oportunidade. Mas é óbvio que, se ele não pode ajudar a si mesmo, muito menos poderá ajudar os outros. E por que o faria? Não, Jay, estou farto. Não quero ser um pombo de falsas esperanças, pelo menos aqui. Pertenço à Praça de São Marcos, com pombos autênticos, que todos sabem que não fazem mais nada senão dormir e, posteriormente, morrer. Receio que seja tudo o que terei para contar esta noite à minha jovem companheira. Mas você foi estupendo, Jay. Obrigado pela camaradagem. E boa sorte. Pelo menos, um de nós acabará apanhando Rostov.

Brennan tinha devolvido o carro alugado antes de anoitecer, e, às sete e quarenta e cinco, juntamente com Lisa, apanharam um táxi na Margem Esquerda a fim de irem jantar no restaurante que Doyle havia recomendado.

O táxi parou no cruzamento do Quai de la Tournelle com a Rue Maitre Albert, perto dos quiosques de madeira fechados que se alinhavam ao longo da amurada do Sena, ao sul da maciça Catedral de Notre-Dame. O motorista, grato pela generosa gorjeta, apontou para a ruela estreita e pouco iluminada e murmurou:

— Atelier Maitre Albert, monsieur.

Ajudando Lisa Collins a descer do táxi, Brennan lamentou vê-la tão bela e cheia de esperanças nessa noite. Os grandes brincos de ouro acentuavam-lhe o rosto grego, e o vestido de passeio de chartreuse chiffon fazia sobressair seu perfil clássico. Ela respirava vivacidade porque estava apaixonada, tinha vinte e dois anos e se encontrava em Paris. E o desgosto dele provinha de saber que não podia aspirar emocionalmente a ela, que tinha de perdê-la e, com ela, sua segunda oportunidade de viver, e que o jantar dessa noite seria de despedida. Pensou em dizer-lhe isso imediatamente, mas sua alegria, a expectativa de uma esplêndida noite, eram tão grandes que ele não teve coragem. Decidiu ocultar sua melancolia e deixar a noite correr, antes de destruí-la, assim como ao sonho dela.

Pegando-lhe o braço, Brennan conduziu-a para a rua transversal, ao mesmo tempo em que dizia:

— Doyle insistiu em que viéssemos aqui. Afirma que é um lugar único. Deve saber o que diz, pois é um fanático colecionador de restaurantes, um especialista em locais exóticos.

— Estou ansioSâ, querido.

— Aqui estamos.

Encontravam-se sob uma grande tabuleta retangular em que se lia:

“Atelier Maitre Albert — Bar — Rô tis serie — Galerie”. Brennan empurrou a porta e entraram.

Era realmente único.

Havia um salão-bar, e em vez de bancos de bar viam-se balanços de crianças, balanços autênticos, suspensos do teto por cordas. O maitre era atencioso, confirmou a reserva feita por Brennan, mas talvez madame e monsieur quisessem saborear primeiro uma bebida no bar.. .

De olhos muito abertos, Lisa observava vários clientes que, balançando-se e rindo, tentavam equilibrar os copos de uísque, que se entornavam.

— Oh, vamos! — propôs alegremente Lisa.

Demasiado sério e sem disposição para brincar, Brennan arrastou-a para a sala de jantar, desculpando-se:

.

— Fica para outra vez.

— Muito bem, Matt — disse ela, olhando-o de revés. — Lamento que não se sinta feliz.

— Perdoe-me, mas já sou demasiado velho para essas brincadeiras.

— Santo Deus! Acha que sim?

Atravessaram a sala de jantar. À esquerda, numa enorme lareira, o fogo crepitava. Em frente, os comensais rodeavam uma pesada mesa na qual se amontoavam pratos e tigelas com aperitivos. Alguns pedaços de salame, pendentes das vigas, dançavam acima da mesa. À direita, uma íngreme escadaria dava para a galeria de arte, em cima.

Era uma sala perfeita para namorados, pensou Brennan, decepcionado por não poder gozá-la. Traves de madeira cruzavam-se sob o teto. As paredes, de pedra, estavam cobertas por cortinas vermelhas, e, aqui e ali, via-se uma amostra de arte abstrata que lhes sorria.

A mesa deles era íntima, iluminada por velas metidas em garrafas vazias de Ballantine’s, recobertas de parafina.

— Gostaria de beber alguma coisa — disse Lisa. — Taças e taças de champanha.

Brennan tentou sorrir:

— Começaremos com uma garrafa. — Consultou o cardápio. — Vamos ver. — Chamou o garçom de jaqueta vermelha e encomendou:

— Clicquot rosé, 1955.

Lisa estava oculta pelo cardápio:

— Por que o mais caro, Matt? Custa tanto quanto dois jantares. — Espreitou por cima do cardápio. — Sente remorsos ou qualquer coisa no gênero? Encontrou outra mulher?

— Encontrei três. E falam francês.

— Eu também falo francês. Ouça. — Debruçou-se para a lista de pratos e leu em voz alta:

— “La table de hors-d’ceuvres et charcuterie. La grillade au feu de bois. Salade de saison. Vlateau de fromages. Dessert, glacé noisette au chocolat chaud...” Que tal? Estou aprovada?

— Agora, tenho quatro namoradas.

— Ninguém o ama mais do que eu, Matt. — Pôs de lado o cardápio. — Por que está tão abatido?

— Não estou.

— Está, meu caro. Conheço-o.

— Eis o champanha. — Calaram-se, depois ele disse:

— À sua saúde.

— Nem pense nisso! Retifiquemos. Está pronto? — Ergueu a taça. — À nossa.

Ele fingiu concordar com o brinde e, então, beberam.

— Faz cócegas no nariz — disse ela, deliciada. Depois, como se isso lhe ocorresse inesperadamente:

— Muito bem, Matt, desabafe. Teve um mau dia?

— Muito mau — admitiu ele.

— Conte.

Brennan falou-lhe de Wiggins, de Isenberg e de Earnshaw.

— Não o censuro por não ter querido andar de balanço no bar — disse ela. — Mas amanhã é outro dia, como diz o ditado.

— Sim, é. Amanhã estarei melhor. De fato, já me sinto melhor. Mais champanha?

Os primeiros drinques começaram a aliviá-lo da autocompaixão. Queria-a para sempre, mas amava-a o bastante para desejar fazê-la mais feliz. Queria para ela um jovem ambicioso, inteligente e brilhante — e já odiava esse jovem —, alguém mais de acordo com a idade dela, que pudesse ter uma visão jovem das coisas, que apenas vislumbrasse vitórias e triunfos à sua frente, que não visse nem experimentasse as emboscadas de Waterloo.

Mas nessa noite, nessa última noite, o jovem era ele, e -Lisa merecia o melhor, mais do que seus lamentos e confissões de derrota.

— Esqueçamos Rostov até amanhã — propôs. — Gozemos esta noite. Suponhamos que estamos nos balanços. Para começar, quero saber como passou o dia, as voltas que deu, as pessoas que encontrou, o que ouviu, o que pensou.

— Senti sua falta, e isso foi o principal. Não sou mulher para andar de um lado para outro. Fui feita para lhe dar filhos.

Aquela referência aos filhos comoveu-o, mas ele estava resolvido a proporcionar-lhe uma noite de divertimento, sem preocupações.

— Muito bem. Vamos pôr os filhos em nossa agenda de trabalho. Mas onde passou o dia? Fale-me do desfile de moda a que assistiu, conte-me tudo.

— Está realmente interessado, Matt?

Ele esvaziou a taça e voltou a enchê-la de champanha.

— Se participou disso, interessa-me. Vamos, Lisa.

Ela hesitou:

— Está bem, já que você quer.. . — Parecia ansiosa por distraí-lo, porquanto começou a narrar suas atividades desde que se levantara até se encontrarem nos respectivos quartos, antes de saírem para jantar.

Tinha ido lanchar no restaurante da Harper’s Bazaar e demorara-se participando de um coquetel da Vogue. Depois, correra para a casa de Legrande, que a havia convidado para um jantar informal no fim da semana, em seu castelo de Vaucresson. Legrande lembrara-se do amigo dela — “ou seja, de você, Matt” —, e ouvira falar da confusão desse amigo com a polícia, durante o desfile. O figurinista mostrara-se muito pesaroso e esperava que ela levasse Brennan à festa.

— Tem de me acompanhar, Matt, não se esqueça. As festas dele parecem ser fabulosas.

Antes de participar do coquetel, tinha visto três coleções, uma de Saint-Laurent, outra de Balenciaga e outra ainda de Givenchy. O desfile era fatigante, uma maçada; o melhor dele eram os intervalos, durante os quais se formavam grupos de pessoas para mexericar. Os compradores e os jornalistas de moda estavam sempre bem informados, formavam uma verdadeira multidão internacional, e os mexericos eram fantásticos. Se ela fosse uma jornalista como Hazel Smith, ou uma articulista, disse Lisa, escreveria um milhão de matérias.

— E teria um milhão de processos por difamação — acrescentou Brennan, dirigindo-se às duas Lisas criadas por quatro taças de Cliquot rosé, 1955. — Erga sua taça para que eu a encha.

Estendendo a taça vazia, Lisa continuou a tagarelar. Não, não teria muitos processos por difamação em consequência de suas reportagens porque a maior parte daquilo que ouvia poderia ser provada. As fontes eram as melhores. Gente da alta. Naquele mesmo dia, uma directrice dizia que um de seus manequins tinha recebido proposta do irmão de Sir Austin Ormsby, Sydney Ormsby, o indivíduo que estivera implicado no caso Jameson, mas a modelo rejeitara Ormsby por ele ser um sujeito horrível e arrogante.

— Isso me faz lembrar o que me contou acerca dessa Medora Hart, que eles têm perseguido — disse Lisa. — Agora, acredito.

Mas as clientes ricas eram as melhores fontes de mexericos, continuou ela, e muitas eram esposas ou amantes dos delegados da conferência, e, provavelmente, sabiam muito mais sobre as últimas conversações no Palais Rose do que os próprios chefes e ministros.

— A esposa de um ministro francês foi apresentada a mim durante o desfile da coleção de Balenciaga — disse Lisa —, e encontrava-se lá para comprar um vestido decotado, o último grito, porque queria seduzir um delegado inglês, a fim de obter uma informação para o marido. O que me diz disso?

— É bonito — respondeu Brennan, já um pouco tonto. — Chama-se a isso amor e devoção. Se você me amasse e me fosse dedicada, teria ouvido rumores acerca de Rostov.

— Bem que eu gostaria, Matt — disse ela, com ar sério —, mas não tive sorte. Contudo, se quiser saber alguma coisa sobre política, talvez eu possa ajudá-lo, nem que seja a propósito dos chineses. Esses impenetráveis chineses! Por exemplo, as esposas de dois delegados da China vermelha, que ouvi conversando esta tarde, 11a coleção de Givenchy ou de Saint-Laurent, não sei ao certo, falaram muito tempo, num belo inglês, sobre o fato de que a Alemanha aceitara construir uma espécie de cidade nuclear na China, e parece que já começaram, mas quando estiver pronta, a Rússia ocupará seu lugar. Não acha que isso seria novidade para a Alemanha?... O que se passa, querido? Oh! Estou aborrecendo-o.

Brennan pouca atenção tinha prestado, mas a última parte da fala penetrara-o através dos vapores do champanha que lhe anestesiavam o cérebro. Um sinal de alerta retiniu nas profundezas da massa cinzenta de sua memória. Lisa pareceu-lhe momentaneamente distante, porque na verdade ele a sentia distante, ouvia o professor Isenberg, ouvia Jay Doyle.

O cérebro de Brennan recordava as palavras de Isenberg:

“...nova Cidade Nuclear da Paz, fábricas de poderosos reatores com sua comunidade própria, que a China estava construindo com o auxílio da indústria privada da Alemanha Ocidental... que envolvia avançadas técnicas de desintegração, que os cientistas chineses ainda não estavam aptos a dominar... Não podiam servir-se de um russo... no entanto, para surpresa minha, havia cientistas russos na convenção de Pequim”.

O cérebro de Brennan recordava as palavras de Jay Doyle:

“Por que Goerlitz está em Paris? Oficialmente, para se encontrar com os chineses por causa de uma coisa chamada Cidade Nuclear da Paz, que ele se comprometeu a construir, utilizando cientistas e técnicos alemães”.

O cérebro de Brennan recordava as palavras de Lisa Collins:

“As esposas de dois delegados da China vermelha, que ouvi conversando esta tarde... falaram muito tempo, num belo inglês, sobre o fato de que a Alemanha aceitara construir uma espécie de cidade nuclear na China, e parece que já começaram, mas quando estiver pronta, a Rússia ocupará seu lugar. Não acha que isso seria novidade para a Alemanha?”

— Novidade para a Alemanha? E como, Lisa!

O cérebro de Brennan saltou para outro assunto. Novidade para o dr. Dietrich von Goerlitz também, que estava investindo uma fortuna na China. Novidade para Emmett A. Earnshaw também, que tentava ganhar Goerlitz para sua causa. Novidade para os dirigentes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França também, que acreditavam que a União Soviética houvesse cortado relações com a China vermelha e estivesse inteiramente ao lado das democracias ocidentais.

Novidades, “neios” — palavra formada com as iniciais de north, east, west, south. Mas seriam novidades os rumores ouvidos por uma desenhista de moda de Nova York, de vinte e dois anos de idade, no intervalo de um desfile de modelos de Givenchy ou Saint-Laurent, um mero e frívolo desfile de modelos?

— Lisa — perguntou Brennan com voz pastosa —, o que você disse há pouco?

— Bem-vindo à terra, astronauta Brennan... O que eu disse há pouco? Que o estava aborrecendo...

— Não! Antes disso. Eu estava ouvindo. Disse que as esposas de dois delegados chineses tagarelavam acerca da cidade nuclear que a Alemanha está construindo na China e que os russos...

— Oh, isso! — exclamou Lisa. — Estava apenas tentando descrever-lhe a espécie de...

— Conte-me tudo, tudo o que viu e ouviu, tudo.

— Tudo? Não sei se me lembro...

— Tem de se lembrar — interrompeu Brennan com rudeza.

Ela ficou por instantes penalizada e perplexa.

— Não... não creio que valha a pena. É assim tão importante, Matt?

— Talvez sim, talvez não. É possível que sim.

— Está bem — suspirou Lisa. — Como lhe disse, essas duas chinesas conversavam...

— Quem, por quê, sobre quê, quando e onde? Procure recordar-se de todos os pormenores. Não se esqueça de nada. — Afastou a taça de sua frente. — Onde estava quando ouviu essa conversa? Vamos, faça um esforço, Lisa.

— Sinto-me um tanto confusa, mas tentarei, embora não compreenda. Foi numa dessas casas de moda, por volta das duas horas, não, mais tarde... cerca das duas e meia, durante o intervalo. Eu tinha saído para ir ao banheiro. Fechei-me lá... é embaraçoso, Matt... entrei lá e fechei-me, e foi então que aquelas três mulheres chegaram.. .

— Três? Julguei que fossem duas.

— Não, três. Esqueci-me de lhe dizer, também havia uma aristocrata francesa muito simpática, a que chamarei condessa, pois pareceu-me isso, e que era uma espécie de guia das jovens, bonitas e embonecadas esposas chinesas, que pareciam ser suas convidadas.

— Mas como foi que conseguiu vê-las? Não disse que estava fechada?

— Claro . que estava! — irritou-se Lisa. — Francamente, Matt, é muito maçante! Nunca entrou num banheiro público? Pode-se ver através das fendas da porta. As mulheres estavam junto dos lavabos, penteando-se e pintando-se em frente dos espelhos, e eu as vi de relance. Mas ouvi a maior parte da conversa. A condessa francesa levara-as para ali alguns minutos depois de eu chegar, antes da afluência provocada pelo intervalo. Aparentemente, a condessa francesa não falava chinês, e as duas chinesas não falavam francês, mas todas falavam um inglês agradável e fluente, embora com sotaque, o gênero de inglês que os estrangeiros aprendem num colégio colonial britânico.

— Muito bem — interrompeu Brennan. — Elas conversavam, você estava lá, escondida, e as ouviu. E depois?

— As chinesas falaram de seus compromissos sociais para a semana, e uma delas disse que esperava que o jantar mais importante fosse o que o industrial alemão, dr. Dietrich von Goerlitz, ia oferecer à delegação chinesa no Ritz, na próxima semana. Então, a outra chinesa disse à condessa francesa:

“Meu marido considera esse jantar terrivelmente importante, porque nosso governo está em negociações com Goerlitz por causa de uma Cidade Nuclear da Paz, que os alemães vão construir na província de Honan...” — Lisa hesitou. — Sim, tenho certeza de que falou na província de Honan, e acrescentou um condado chamado Lankao. Enamorei-me dos nomes chineses desde que vi O Micado pela primeira vez. Ou era japonês? Seja como for, ela disse qualquer coisa acerca de esse novo centro nuclear vir a ser o maior de todos os que os chineses já possuíam em... em... oh, não consigo me lembrar!

— Lanchow e Paotow?

— Alguma coisa assim, e comentaram também que essa cidade, que os alemães vão construir, poderá significar o verdadeiro passo à frente da China.

— O que mais disse ela, se é que você se lembra? — insistiu Brennan.

— Deixe-me pensar. — Lisa acabou de tomar o champanha. — Sim, essa chinesa também declarou:

“O marechal Chen nomeou meu marido para ajudar a concluir as negociações e assinar os contratos com os alemães dentro de dois ou três dias, e o ato será celebrado com o jantar oferecido por Goerlitz. É uma grande honra para meu marido, e ele quer que eu me apresente o mais elegante possível nesse jantar de Goerlitz. Por isso, mandou-me sair a fim de escolher uma nova toalete. Quer que eu me vista à ocidental. Não me importo, se bem que tudo seja assustadoramente caro”. Então, a condessa francesa replicou asperamente:

“Eu não condescenderia em me vestir de maneira especial para agradar a Goerlitz ou a qualquer nazista alemão. Já os odiava antes da guerra, mas agora desprezo-os ainda mais. Antes, eram assassinos; agora, são sanguessugas econômicas”. Foi mais ou menos isso o que ela disse, Matt, e logo as duas chinesas ficaram na defensiva. Uma delas retorquiu:

“Oh, preocupamo-nos tanto com os alemães como a senhora. Estamos apenas nos servindo deles. O bem-estar de nosso país está acima de contratos de papel. Deixaremos que trabalhem para nós, mas não permitiremos que nos dirijam”. E a outra chinesa acrescentou:

“É verdade. Ouvi meu marido dizer que, logo que nos livrarmos dos alemães, chamaremos nossos amigos russos para administrar conosco o centro nuclear”. A condessa francesa continuou a protestar, mais ou menos nestes termos:

“Não me parece que os russos sejam muito melhores. Os alemães são arrogantes, mas os russos são uns selvagens em quem não se pode confiar”. As duas chinesas insurgiram-se com veemência. Uma delas disse:

“Não, está enganada. Conhecemos bem os russos. Seus cientistas são inteligentes, condescendentes e simpatizantes de nossa causa. É certo que tivemos algumas desinteligências. Não sei bastante de política para compreender os motivos, mas ouvi meu marido dizer que em breve seriamos de novo amigos”. Depois, começou a passar pó-de-arroz e a preocupar-se com o vestido que escolheria, até que saíram as três. Não sei por que escutei tão atentamente, mas creio que foi por nunca ter visto ou ouvido uma chinesa de perto. Fiquei fascinada e presa às palavras. Mas fico feliz por tê-lo feito, se isso é assim tão importante para você, Matt. Acha que contei tudo?

Brennan acenou afirmativamente e chamou o garçom. Pediu um pedaço de papel, e o garçom arrancou uma folha de seu bloco de notas. Brennan agradeceu, pegou a caneta e voltou-se para Lisa.

— Pode ser muito importante — disse ele.

— O que vai fazer? — perguntou ela, apontando para a caneta e o papel.

— Vou tomar nota do que acaba de me contar. Quero que repita tudo uma vez mais. Que repita frase por frase. Está bem?

— É necessário, Matt? Isso de me obrigar a recordar cada gesto e palavra me deixa nervosa.

— Por favor, Lisa, tente. Creio que fixei quase tudo, mas quero ter certeza.

— Está bem, mas preciso de mais champanha.

Brennan encheu-lhe a taça e ficou à espera, de caneta em punho.

— Vamos, querida. Imagine que não me contou nada. Estava no banheiro e apareceram a francesa e as duas chinesas. Uma das damas chinesas referiu-se a Goerlitz...

Com um suspiro, Lisa pousou a taça de champanha e voltou a recitar toda a história, alterando alguns pormenores ou completando outros, e, enquanto falava, Brennan escrevia calmamente, acabando por encher a folha de papel de ambos os lados.

— É tudo — disse Lisa —, e agora prometa que não vai me obrigar a repetir outra vez.

— Prometo. Você foi maravilhosa! — Olhou para o que tinha escrito. — Tome o champanha. Deixe-me pensar um momento.

Brennan sentia que a chave da verdade estava naqueles garranchos. A casualidade da conversa ouvida por Lisa, as inflexões femininas, a maneira como tudo concordava com o que Brennan soubera pelo professor Isenberg, eram provas de veracidade.

Goerlitz, como Krupp antes dele, estava construindo complexos fabris e, perto deles, cidades inteiramente pré-fabricadas para abrigar os trabalhadores. Brennan recordou-se de que, anos antes, Krupp tinha construído fábricas e cidades semelhantes, como a cidade de Djerba na Tunísia e a de Rourkela na índia. Krupp havia anunciado, em seus relatórios anuais, que essa cidade pré-fabricada estava à venda. Na índia, centenas de quilômetros a oeste de Calcutá, adquirira uma área subdesenvolvida — planícies, pântanos, montes, aldeias primitivas — e convertera essa área na próspera Rourkela, uma siderúrgica que produzia um milhão de toneladas de aço por ano e uma cidade moderna que possuía agora uma população de cem mil habitantes. Tinha sido um empreendimento notável. Então, o rival de Krupp, Goerlitz, tentara imitá-lo, e, com a Cidade Nuclear da Paz chinesa, esforçava-se por ultrapassar Krupp.

Brennan continuou a refletir. Goerlitz estava à frente de uma formidável indústria privada. Seu objetivo era o lucro. Estava construindo a cidade chinesa não apenas pelo dinheiro imediato que lhe renderia essa construção, mas também pelo dinheiro que lhe proporcionariam suas centenas de cientistas e técnicos alemães ocupados na elaboração de planos numa base permanente. Sob um ponto de vista a longo prazo, o maior lucro de Goerlitz proviria de seus peritos e desenhistas de planos, e do monopólio que Goerlitz possuía para fornecer, com equipamento novo e de substituição, as fábricas e instalações da cidade pré-fabricada. Para um dos mais poderosos industriais do mundo, era um investimento brilhante... contanto que seus contratos fossem cumpridos. Se não o fossem, então seria um desastre financeiro.

Mas ali estava a informação, vinda de Lisa, desconhecida ainda de Goerlitz ou de qualquer ocidental:

a China vermelha planejava secretamente romper seus contratos. Logo que os chineses tivessem sua cidade nuclear, confiscariam e nacionalizariam as fábricas, congelariam os pagamentos e expulsariam Goerlitz e seus alemães. Depois, visto precisarem de assistência para prosseguirem com os planos de reatores nucleares, os chineses retomariam as relações com a União Soviética e substituiriam os alemães por seus antigos camaradas russos.

As implicações eram fantásticas.

Brennan ouviu Lisa falar. Ergueu os olhos e viu-a a apontar para suas notas.

— Matt, o que vai fazer com isso?

Ele dobrou o papel cuidadosamente e meteu-o no bolso.

— Vou mandá-lo à Emmett A. Earnshaw.

— O que tem isso a ver com você?

— Tem muito a ver conosco — corrigiu Brennan. — Pode significar tudo ou nada.

— Sinto-me sufocar.

— Ajudarei você a respirar um pouco. Mas agora, Lisa, que Goerlitz está decidido a destruir Earnshaw, este não tem escapatória, a não ser que consiga alguma ascendência sobre Goerlitz que o dissuada de sua decisão, que o amanse e o torne seu devedor. Se Earnshaw puder utilizar sua informação para avisar Goerlitz, poderá obter deste o que quiser.

Ela abriu muito os olhos:

— Estou compreendendo. Pelo menos, assim me parece. Mas você... nós... O que lucramos com isso?

— Assim como Goerlitz ficará em dívida para com Earnshaw por causa desta informação, também ficará em dívida para comigo por tê-lo ajudado. Earnshaw ficará me devendo um favor.

— Qual?

— Uma passagem para Rostov, querida, compreende?

Lisa olhou-o vagamente e respondeu:

— Não. O champanha não me deixa compreender. — E acrescentou:

— Mas todo esse misterioso negócio é bom para nós?

— Muito bom — respondeu Brennan, tomando-lhe a mão.

Ele sentia-se feliz e contente por não lhe ter dito que aquele jantar era de despedida. Com efeito, deixara de sê-lo, transformara-se num jantar de regozijo.

— Está com fome? — perguntou.

— Não. Você me ama?

— Amo. Quer ir para os balanços do bar?

— Pode ser.

— Nesse caso, vamos agora — decidiu Brennan.

Para Hazel Smith, fora uma noite memorável, uma das melhores de que se recordava.

Uma placa de vidro na cobertura úmida em forma de cúpula do bateau-mouche, o luxuoso barco de excursão do Sena, tinha sido corrida, e uma brisa reconfortante entrava na sala de jantar, fazendo bruxulear as velas em cima das mesas de toalhas encarnadas e acariciando as faces e os ombros de Hazel. Ela cortou a última fatia de sua pintadeau régence, comeu-a e sentiu a carne tenra da galinha derreter-se na boca. Erguendo os olhos, viu Jay Doyle, perfeito e calmo, cheirando a água-de-colônia, comer frugalmente seu chateaubriand, ignorando os molhos, e sentiu-se tão orgulhosa dele como se ele fosse seu marido.

Notou que aquele passeio encantador pelo rio estava prestes a findar — havia cerca de duas horas que estavam no bateau-mouche, conversando, bebendo e comendo —, e lamentou-o sinceramente. Sorvendo o vinho, pôs-se a escutar a orquestra que interpretava uma seleção da Manon, de Massenet — descobriu que se tratava do “Adieu, notre petite table”, o adeus triste de Manon Lescaut à pequena mesa onde ela e o Chevalier des Grieux tinham jantado... e, de repente, compreendeu que era mais do que esse passeio pelo Sena o que ela não queria ver chegar ao fim.

Olhou pela cúpula transparente e viu as cepas que desciam pelas antigas muralhas e cais da Margem Direita até o rio. Viu, nos degraus de pedras corroídas pelo tempo, que ligavam a margem do Sena à cidade, um casal francês que se abraçava, e, por cima e para além das copas verdes das árvores, vislumbrou as torres de Notre-Dame, contra o céu escuro de Paris.

O bateau-mouche sulcava a água, Notre-Dame desapareceu, ficando apenas as estrelas. Passavam agora pelo Quai d’Orléans, na íle de Saint-Louis, e ficaram por instantes sob o Pont de Sully. Então, o iluminado barco branco descreveu uma ampla curva para regressar ao ponto de onde partira.

Observou os chorões que tocavam a água e, enquanto deslizavam sob a ponte metálica que ligava a íle de Saint-Louis à íle de la Cité, admirou as ilhas de que sempre tinha gostado.

— Jay — disse ela, continuando a admirá-las —, no alto da íle de la Cité há uma estátua. É do rei Henrique IV, a cavalo. Já a viu?

— Creio que não.

— Gosto dessa estátua porque amei Henrique IV a partir do dia em que um guia me disse, da última vez qúe estive aqui, que Henrique trocou a religião protestante pela católica a fim de poder ser aclamado rei, declarando que “Paris vale mais do que uma missa”. Não acha isso encantador? Mas sabe o que o tornou realmente popular? Refiro-me a Henrique IV. Foi ter anunciado que queria que cada francês pudesse ter uma poule ao domingo. “Poule” significa “galinha”, mas na gíria francesa quer dizer “prostituta”. A partir daí, adotaram-no.

Doyle riu, fazendo estremecer as dobras do pescoço:

— Fantástico, Hazel, absolutamente fantástico!

— Jay, estou contente por ter me trazido para jantar aqui!

— Também eu, mas o mérito lhe pertence, Hazel. Foi você quem sugeriu o bateau-mouche.

— Eu? — Era um desapontamento, mas recusou-se a admiti-lo em benefício do romântico juízo que fazia de seu cavalheiro. — A verdade é que nunca tinha passeado à noite num destes barcos, e pensei que gostaria que o fizéssemos juntos.

— Tem razão.

Agora ele estava ocupado com sua omelette norvégienne. Consciente de que ela o observava, parou de comer sua sobremesa de soufflé gelado e colocou-a resolutamente de lado.

Reparando nessa nova atitude espartana dele, satisfeita com sua força de vontade, Hazel disse:

— Nunca tinha jantado no bateau-mouche. E você?

— Também não. Foi uma excelente ideia.

— Agora me lembro como ela me ocorreu. Entrevistei alguns delegados acerca de seus locais preferidos em Paris. Este era um deles. Por isso, pensei que valia a pena aproveitá-lo para um possível artigo de propaganda. O diretor de publicidade me encontrou na escadaria da Place de PAlma e me convidou a dar um passeio turístico num dos barcos ali ancorados. Material colorido, muito bom.

— O que é isso?

— Paris foi sempre uma grande cidade de barcos. Mas quando construíram o metrô, os barcos de passageiros praticamente acabaram, com exceção de algumas unidades destinadas a excursões fluviais, que ficaram na Exposição de 1860. Seja como for, em 1930, mais ou menos, um estudante da Sorbonne chamado Bruel serviu-se de uma dessas velhas barcaças para dormir. Amava o Sena, sentia que era o coração de Paris, e, mais tarde, quando se tornou importante, criou uma flotilha de bateaux-mouche. Deu à sua primeira embarcação o nome de Jean-Sébastien Mouche, e até encomendou uma estátua de Mouche.

— Mouche? Quem era?

— Um homenzinho inexistente — respondeu Hazel, deliciada. — Um ser imaginário, criado apenas para dar nome a um incrível barco. Mas pergunte por ele a qualquer habitante de Paris, e provavelmente lhe responderão que M. Mouche foi o fundador da marinha francesa. — Pegou o copo de vinho. — De qualquer modo, obrigada a M. Mouche e obrigada a M. Doyle por este magnífico jantar.

Doyle ergueu seu copo de água Evian.

— E eu lhe agradeço por ser quem é.. . e agradeço-lhe também por ter-me deixado ficar em sua casa na noite passada, Hazel.

— Estava morta de sono como você, por causa de todas aqueIas coisas que comemos — disse ela. — Jay, gostei da maneira como arrumou meu apartamento. Estava impecável, quando lá cheguei de manhã, com os editores de moda que entrevistei.

— Quando precisar de uma faxineira, chame-me. Espero que tenha tido uma boa manhã.

— Oh, sim — respondeu ela, como que apanhada em falta, rezando para que Doyle não lhe falasse nas entrevistas.

Ele não prolongou a conversa. Parecia perdido em seus pensamentos, de olhos postos na janela, e isso a aliviou. Acendendo um cigarro, Hazel analisou seu perfil de suíno. Era simpático, mais simpático do que no passado. Tinha se vestido com patético esmero, como um estudante do ginásio para seu primeiro passeio. Dominara o apetite, controlara-o, comendo normalmente, possivelmente para lhe agradar. Mostrara-se cavalheiro durante todo o passeio, tal como na noite anterior. Ela se admirou da fraqueza e loucura que, na noite anterior, a induziram a fechar-se lá em cima e a trocar de roupa. Não o desejava agora. Talvez tivesse sido traída pelo passado, pela nostalgia do que ele fora e não mais voltaria a ser.

Sub-repticiamente, continuou a observá-lo. Ele era elegante, procedia com educação, mas não se parecia com o homem-monumento que ela outrora imaginara. Era uma ruína, devastado pela voracidade, descrente devido a muitos fracassos, perseguido por uma obsessão. Pouco havia nele que pudesse atrair uma mulher; não tinha força bastante para suportar o amor de alguém. Hazel chegara tarde demais para preservar o monumento.

Chorou sua perda, mas logo se dominou ferozmente, decidida a não perder a esperança. Por certo que haveria ainda alguma coisa nele, um resto de força sob as flácidas carnes, senão como poderia ter passado no exame da segunda noite? Nem uma única vez se referira ao livro sobre o assassinato, nem dera a entender que tencionava servir-se dela. Aparentemente, seu domínio era notável, uma virtude... ou talvez uma demonstração de afeto e estima por ela.

Voltou a examiná-lo, agora com mais benevolência. Via-o ali, de cara balofa à janela, silencioso e absorto, mas não conseguia descobrir se era a paisagem que o absorvia ou seus pensamentos. Olhou também para a janela, na esperança de descortinar o objeto de sua curiosidade.

Ao longo da margem do Sena, erguiam-se barracões para os barcos, e, nessa altura, o bateau-mouche passava sob o Pont de Bir-Hakeim. Enquanto contornava uma curva do rio, viam-se desfilar a réplica em miniatura da Estátua da Liberdade e as iluminadas vigas mestras da Torre Eiffel. Iam a caminho do ponto de partida.

Nesse momento, ela e Doyle deixaram a janela. A música tinha cessado. A vela que os separava apagara-se. E então soube que o rosto flácido, por cima do castiçal, estivera realmente absorvido em seus pensamentos.

Um ligeiro assomo de vergonha apoderou-se dela. Mostrara-se tão ansiosa por que ele passasse no exame dessa noite que evitara conscientemente interrogá-lo e encorajá-lo a falar de suas atividades. E, agora, o passeio estava quase no fim. Por causa de seus temores, fora desagradavelmente indelicada para com ele.

— Jay, não me falou de você hoje.

— Eu... bem, custa-me confessá-lo, mas não fiz grande coisa.

— Tem trabalhado em seu livro de receitas?

— Procedi a algumas pesquisas.

— O que tenciona fazer quando... quando deixar Paris?

— Não sei.

Havia tanto desespero e desilusão na resposta dele, que Hazel se sentiu chocada. Já não via à sua frente o rosto flácido de um homem fraco e autocomplacente, mas a face macerada e tensa de uma pessoa solitária e perseguida. Talvez a causa daquilo fosse a escuridão — todas as velas tinham sido apagadas e a luz de terra era mortiça —, talvez fosse seu coração ansioso, que via agora mais claramente do que seus olhos frios. Ele se sentia perdido, estava só. Tudo o que havia de racional nela se esfumou, todas as suas reservas desapareceram. Sentiu por ele a compaixão que experimentava por si mesma. Gostaria de protegê-lo, de aquecê-lo nos braços, de afogar para sempre a solidão de ambos.

— É melhor irmos andando, Hazel — disse Doyle, afastando a cadeira da mesa.

Confusa, ela seguiu-o em direção à prancha, cônscia dos passageiros que continuavam a beber lá atrás. Na estreita margem do cais, esperou que ele gratificasse o garçom de bordo, e, em seguida, dirigiram-se para o outro extremo da Place de 1’Alma.

Ainda um pouco tonta, Hazel tentou recordar-se de onde tinha estacionado o carro, mas logo se recordou de que não o trouxera, porque lhe parecera pouco romântico servir de motorista para um jantar de confraternização. Sentira-se farta de sua estridente independência, de sua exagerada auto-suficiência e perguntara-se se ainda seria capaz de se submeter a alguém. Gostaria de ser uma mulher desejada, não uma jornalista de cabelos ruivos que inspirava terror. Nem em Moscou, durante os anos ali passados, esse seu doloroso desejo fora satisfeito. Não passara esses anos sozinha, mas sentira-se como que abandonada. Era uma fêmea, mas não feminina. Doyle oferecia-lhe agora uma oportunidade de saber se ainda existiam nela vestígios de dependência. Talvez fosse por isso que mudara tão estouvadamente de roupa na noite passada. Talvez fosse por isso que não levara seu carro nessa noite. Talvez estivesse submetendo a si mesma à prova, e não a Doyle.

Conscientemente, deu-lhe o braço, ao mesmo tempo em que, com a mão livre, apertava o inocente lenço branco raiado de vermelho, que tinha impresso de um lado o cardápio do bateau-mouche e, do outro, o emblema dos barcos do rio:

um zuavo de jaqueta azul e calças encarnadas empunhando uma carabina. Era a primeira recordação que tinha desde seus tempos de garota da escola de Wisconsin. Feminilidade retardada, pensou. Mas feminilidade, apesar de tudo.

Doyle conduziu-a, por entre as barreiras de ferro que separavam os bancos, cadeiras e vasos enfileirados da margem do Sena das filas de automóveis estacionados, em direção às escadas que ligavam o cais à Place de 1’Alma.

— Jay — perguntou ela —, não sabe realmente o que vai fazer depois de deixar Paris?

— Não, não sei.

— Mas deve ter alguma coisa em mente.

— Não tenho certeza. Depende do que acontecer aqui.

Desesperadamente, enquanto caminhavam, ela tentou interpretar aquelas palavras. De que dependia o futuro dele? Do êxito que seu livro de cozinha alcançasse? Do bom trabalho que fizesse para Earnshaw? Ou... de Hazel Smith, voltando atrás, dar à sua vida um objetivo, uma finalidade?

Chegaram à escadaria e subiram em silêncio. Lá em cima, depararam-se com o trânsito intenso em volta dos círculos, triângulos e placas de sinalização da Place de PAlma.

Ainda ofegante da subida, Doyle olhou em redor.

— É melhor apanharmos um táxi. São onze e meia. Você deve estar morta de sono.

— Não estou. E o que você ia fazer?

— Bem.. . ia voltar para o hotel. Mas se...

— Irei com você — disse ela.

Olhando-a, admirado, Doyle ouviu-a acrescentar:

— Pode me oferecer um conhaque, não pode? O conhaque me ajuda a dormir.

— Com todo o prazer, Hazel.

Conseguiram atravessar a Place de PAlma e caminharam até arranjar um táxi. Cinco minutos depois, chegavam ao Hotel Georges V.

À frente de Doyle, Hazel transpôs a porta giratória, e eles entraram num vasto vestíbulo com uma grande mesa de laca escura, estilo Luís XV, e mesas e cadeiras de forro castanho, dispostas no pavimento de mármore recoberto pela grande tapeçaria oriental.

Doyle apontou em frente:

— O bar fica ao fundo daquele corredor.

— Não quero ir ao bar — disse Hazel sem se mover. — Prefiro o seu quarto. Estaremos mais à vontade. Importa-se, Jay?

— Se me importo? — Sua expressão acanhada desaparecera. — Não desejo outra coisa. Posso mandar vir bebidas, tiraremos os sapatos e conversaremos. Isto é, se não estiver muito cansada.

— Não estou nada cansada.

Ela retraiu-se, enquanto Doyle pedia a chave na recepção e recebia um recado telefônico das mãos do porteiro. Já no elevador, abriu a mensagem, leu-a e pareceu surpreso. Metendo o papel no bolso, tentou tranquilizar Hazel.

— Não é nada, Plazel. Foi Matt Brennan que telefonou há uma hora. Quer que lhe arranje uma maneira de se avistar com Earnshaw amanhã, a qualquer hora. Diz que é urgente, que me explicará tudo de manhã. — Encolheu os ombros. — Não vejo de que possa tratar-se.

— Brennan e Earnshaw? — inquiriu Hazel. — Deve ser uma combinação.

— Eu sei. Tentarei descobri-la um dia. — O elevador tinha parado. — Chegamos. Quinto andar. É um tanto humilde...

Quando ela entrou à sua frente no quarto, ficou surpresa por se encontrar numa suíte. Tinha se esquecido de que Doyle sempre vivera além de suas possibilidades.

Ele alcançou-a no salão. Gesticulando teatralmente, apontou a janela sobranceira ao pátio de mármore, o sofá de rico brocado e os candelabros que brilhavam no teto.

Bateu na máquina de escrever portátil que descansava em cima da mesa, ao lado da luminária verde, e informou:

— Meu escritório.

— Pelo amor de Deus! Quantos quartos tem, Jay?

— Apenas este — apontou para uma porta aberta —, o de dormir, e um banheiro.

Lentamente, ela entrou no quarto de dormir. Elegante, de teto cor-de-rosa e paredes cinzentas, com uma grande cama forrada de couro cinza-pérola e uma coberta de veludo cor de marfim, já dobrada. Perto da suntuosa cama e da luminária prateada, que provocava uma doce penumbra, via-se o despertador de Doyle, um relógio barato, de viagem. Era monstruoso.

— Um milhão de armários embutidos — disse ele com gesto teatral, atravessando o quarto. — O que lhe parece?

Ela acercou-se dele:

— O que há na cômoda?

— Nada — respondeu ele timidamente. — Apenas meu passaporte.

— O passaporte! — repetiu ela, surdamente.

Puxou uma das gavetas e viu algumas camisas. O colarinho da que estava por cima parecia amarrotado. Dirigiu-se para o armário embutido na parede e abriu-o. Apenas dois ternos ensebados, como aqueles que os condenados russos a trabalhos forçados vestiam no domingo, quando desciam a Karl Marx Prospekt ou mastigavam pirojki quente ao longo da Rua Górki.

Ela voltou-se para lhe dizer alguma coisa, mas ele acabava de sair do quarto, deixando-a sozinha. Examinou o quarto com tristeza e, pela primeira vez, notou a pasta suja, os montes de notas e folhas de papel em branco, os pobres chinelos, a lista telefônica aberta, as moedas estrangeiras empilhadas, a garrafa meio vazia de água de Evian, a miserável gravata pendurada nas costas de uma cadeira. De repente, o quarto deixou de ser luxuoso, era apenas a soberba cauda de um pavão. Parecia-se com as centenas de quartos das pessoas que nada tinham, nem destino, nem pátria. Era mais uma estação de quantos corriam sem descanso, com destino desconhecido. Era mais um, na fila interminável de quartos de Doyle, de quartos dela e de suas vidas, e sentiu vontade de chorar por ele, por ela, por ambos.

Decidida, encaminhou-se resolutamente para a sala. Ele estava ao telefone.

— O que está fazendo? — perguntou.

— Pedindo os conhaques. Ainda não os trouxeram.

— Desligue.

Espantado, ele obedeceu.

— Detesto conhaque — disse ela. — Não vim aqui para beber.

Ele olhou-a, incrédulo, vendo-a dirigir-se para ele e ficar de pé à sua frente.

— Mas, Hazel. ..

— Não compreende, Jay, seu tolo? Quero você!

— Hazel.. . meu Deus, Elazel...

Seus braços apertaram-na com fervor contra o peito de urso, e, através de todas as suas banhas, ela pôde ouvir as pancadas do coração dele e senti-lo tremer.

Teve de dominar-se para reter as lágrimas. Mas agora, aconchegada a ele, Hazel não lhe pedia que se dominasse, o que seria pouco feminino, queria ser o que era, isto é, feminina, feminina, feminina. Sentiu o gosto salgado das lágrimas, mas não se importou. Desejava apenas ser mulher, uma mulher que já não estava só.

— Jay — murmurou, ofegante —, ame-me.

Os primeiros raios do novo dia atravessaram os cortinados e a obrigaram a abrir os olhos. Ouvindo o tique-taque do relógio de cabeceira, ela agarrou-o e colocou-o à sua frente. Marcava seis e meia.

Sentiu-o ressonar e meteu o relógio debaixo dos cobertores, voltando-se para o outro lado, com a cabeça apoiada no travesseiro. Na penumbra, entre as últimas sombras e a primeira claridade do alvorecer, pôde distinguir a montanha a seu lado.

Jazia de costas como uma baleia na praia, de olhos fechados, narinas palpitantes, boca aberta, aspirando e expirando. Sabia que não devia analisá-lo quando estava assim sem defesa. Era deselegante observar e julgar alguém que dormisse ou comesse e não soubesse que estava sendo examinado, nem tivesse a proteção de sua máscara pública. No entanto, sentia prazer em vê-lo tão à vontade e feliz em seu gordo corpo. Era alguma coisa de bom.

Volveu os olhos para os quadrados cor-de-rosa do teto e considerou-se suficientemente rica para se enquadrar naquele ambiente luxuoso em que tão subitamente entrara.

Recordou o que obtivera seis horas antes, todo o conforto e segurança que experimentara nos braços dele, nua, desejada por si mesma e não por sua influência, por sua total feminilidade e não apenas pelo sexo. Não fora como no passado, quando ele era mais jovem, duro e forte. Mais velho agora, débil e flácido, seu amor não fora arrogante como outrora, mas mais ansioso e necessitado. E seu ofegar derivava da idade, não da paixão. Ou talvez de um pouco de paixão. Mas faltava-lhe fôlego para o resto. Tinha de emagrecer, fazer exercício. Precisava aprender a obedecer-lhe.

Não se mostrou perfeito, mas ela lembrou-se de que, na verdade, ele nunca o fora. Mais novo, triunfante, algumas vezes tinha feito amor sozinho, utilizando-a para seu prazer, convencido de que ela se devia considerar satisfeita só de sabê-lo satisfeito. Nessa noite, não fez amor sozinho nem com ela, mas como que para ela, para saciá-la, e se saciar. Porém, no fim, ele o fez para si mesmo, ela estava convencida disso, embora de maneira muito diferente da antiga. Com efeito, teve necessidade dela, de sua aprovação, para fazer amor, como uma criança mamando no seio da mãe.

Não, na pureza da madrugada, aquilo não fora fisicamente estimulante, nada que se parecesse com o amor selvagem do animal, com uma espécie de desespero e, portanto, com arrebatamentos inconscientes, como os que a haviam inundado nas noites dos anos que se seguiram ao jovem Doyle e anteriores ao Doyle atual. Não, essa noite não tinha sido como as outras, as noites russas, em que sua nudez havia resistido, ainda que solicitada, às roturas e repelões que tantas vezes separavam seu corpo do espírito. Não, o amplexo dessa noite, suave, tímido e apologético, não serviu para lhe saciar a sexualidade, antes tocou e atingiu alguma coisa de mais profundo, que devia ser sua feminilidade.

Sim, essa noite fora a melhor das que conhecera. Ela e Jay, estendidos lado a lado um contra o outro, mutuamente dependentes, confundidos — fora alguma coisa doce e deliciosa, alguma coisa familiar, confortável e íntima; pertencera a alguém que era dela, bem diferente de ser coberta por um touro estranho.

Sim, fora um amor calmo, embora pouco sensual, e ela soubera apreciá-lo, ajudara, dera tudo para torná-lo maior e regozijara-se com o prazer dele, porque provinha de si. Contudo, não fora o suficiente, pois, após a satisfação de Jay, ela exigira a sua também, e ele a ajudara, o que a tornara sua escrava até a libertação, e isso fora maravilhoso.

Jay foi o primeiro a adormecer. Ela ficou acordada, de olhos fechados, pensando no futuro dele. E então, antes de adormecer, tomou uma decisão. Jay precisava de sua ajuda de várias maneiras:

daquela e de muitas outras. Satisfizera uma parte; tinha de satisfazer as restantes. Por ele, para que se transformasse num todo. Pelos dois, para que pudessem continuar juntos. Bocejou e pensou no pouco que a vida lhe havia oferecido. Valia a pena correr um risco emocional para arrancar dela o máximo e usá-lo bem. E foi esse, segundo julgava, seu último pensamento antes de adormecer.

Agora, ao alvorecer, estava bem desperta, e o último pensamento voltava-lhe ao espírito.

Devagar, para não acordá-lo, saiu da cama, pois tinha muito que fazer antes que ele se levantasse.

Tomaria banho, vestir-se-ia, examinaria as coisas de Jay e, depois, faria aquilo que prometera a si mesma. Só então saberia se era possível.

Metodicamente e com zelo, Hazel seguiu seu plano. Cerca de duas horas mais tarde, Doyle acordou. Sentindo-o sair da cama, ela ergueu os olhos do sofá do salão, onde, sentada sobre os pés, estivera mergulhada na leitura.

Pela estreita abertura da porta do banheiro, chegou-lhe o ruído de água corrente. Levando uma das mãos à boca, chamou:

— Jay... já se levantou?

Ouviu sua voz rouca grasnar:

— Há muito tempo. Por que me deixou dormir tanto?

— Porque é um amor e precisava disso. Posso pedir o café?

— Sem dúvida. Ovos e café. Estou tomando banho. Não demoro.

Esperou até ouvir a porta do banheiro fechar-se e, então, encomendou o café da manhã para ambos. Depois, telefonou à ANA perguntando se havia algum recado para ela. Havia vários, e um deles era de Medora Hart.

Telefonou imediatamente a Medora, para o San Régis. Disse-lhe que não podia se demorar, pois estava falando de uma cabina, mas que conversariam durante o dia. Lembrando-se da exposição de Nardeau na antevéspera e suspeitando do motivo que levara Medora a telefonar-lhe, perguntou se o nu tinha impressionado Lady Fleur Ormsby. Então, Medora explicou-lhe seu mais recente plano. Se Hazel quisesse escrever um artigo sobre a Exposição Retrospectiva de Nardeau, fingindo ter entrevistado o proprietário da galeria, assim como Nardeau por telefone, e fazendo notar que a sensação do dia de abertura havia sido o Nu no jardim, que Nardeau afirmava ser um quadro para o qual a atual Lady Ormsby lhe servira outrora de modelo, talvez isso desmoralizasse Fleur. É claro que o artigo de Flazel não seria para publicação, mas Fleur não o saberia. Por intermédio de Carol, Medora mandaria uma cópia a Fleur, prometendo-lhe destruí-lo se aceitasse suas condições. Seria muito incômodo para Hazel?

— Incômodo? Que tolice! É uma ideia sensacional, Medora. E dará resultado, tenho certeza. Muito bem, minha cara. Vou daqui a pouco para a redação e lá o escrevo. Um mensageiro lhe levará uma cópia, no hotel. Vocês duas tratem do resto. Creio que em breve poderá regressar livremente a sua casa, querida. Aceite desde já meus parabéns.

Depois de ter desligado, Hazel sentiu-se encantada por poder contribuir para o triunfo de Medora. Agora, só lhe restava salvar seu amado Jay... e a si mesma.

Bateram à porta, foi abrir e esperou que o garçom pusesse a mesa. Quando ele saiu, sentou-se no sofá, pegou o original de Doyle e mergulhou na leitura das últimas páginas. Cinco minutos depois, tinha acabado. Recostando-se, pensativa e excitada, reviu o conteúdo do livro e meditou em seu plano.

De repente, notou que Jay estava na sala e avançava para ela. Lavado e bem-vestido, fitando-a como um Romeu com olhos de boi, sentou-se ao lado dela no sofá, tomou-a nos braços e beijou-a.

— Obrigado, Hazel — murmurou.

De certa maneira, a gratidão dele irritou-a. Nessa manhã, não queria homenagens, mas autoridade.

— O amor não se agradece, Jay. É mútuo.

— Só queria dizer... que me sinto feliz.

— Também eu.

— Foi como nos velhos tempos — disse ele. — Ou ainda melhor.

— Sim, foi — concordou Hazel.

— Bem, vamos ao café da manhã.

Puxou o carrinho para junto deles, e, ao fazê-lo, seus olhos pousaram no original que jazia na mesinha em frente de Hazel. Pestanejou, confuso, depois olhou para ela.

— Querida, o que significa isso?

Hazel sorriu ao verificar sua surpresa.

— É o seu livro — respondeu. — Os conspiradores que mataram Kennedy.

— Mas, Hazel... — inquiriu, ainda confuso — leu.. . você o leu?

Ela continuou a sorrir.

— De fio a pavio. Todo o primeiro capítulo. Todas as entrelinhas.

— Hazel — disse, subitamente sério —, eu não a trouxe aqui para isso. Eu...

— Jay, em primeiro lugar, não me trouxe aqui. Fui eu que decidi vir. E esta manhã procurei o livro, encontrei-o e li-o porque quis.

— Não queria aborrecê-la.

— Ouça, Jay. Eu quis lê-lo e estou contente por tê-lo feito. — Pegou-lhe o braço. — É uma obra-prima, Jay, o melhor trabalho que escreveu até hoje. Um monumento de informação, de prosa, de interesse. Como o conseguiu? Dei-lhe muito pouco para começar, em Viena, e veja o que fez! Não é apenas um livro, Jay. É um documento histórico. Será um êxito mundial, o maior best seller da história dos best sellers.

Ele ouviu-a de boca aberta e olhos rasos de água.

— Meu Deus, querida! Sabe o que está dizendo? — Apertou-a em seus braços enormes, contra o peito. — Hazel, fala sério?

Ela libertou-se e pôs-se a arrumar o cabelo.

— Muito sério, Jay. Sabe que sou boa crítica, mas não consigo dizer tudo. É um colosso. — Meneou a cabeça. — Depois de Dallas, mesmo depois de terem apanhado Oswald, comecei a pensar no que soube em Viena a respeito do complô. No entanto, você demoliu todas as provas que apontavam Oswald como assassino e reconstituiu o complô com suas incríveis deduções e interrogações, tão concludentes como fatos.

— É verdade, Elazel, é verdade?

Subitamente, ela endireitou-se e deixou de ser Hazel Smith, a mulher de coração terno, para se transformar em Hazel, a jornalista.

— Tomemos o café, Jay, e sejamos práticos.

Notou que a mão dele tremia, enquanto lhe estendia a xícara e o pires, e sua agitação crescia enquanto ele sorvia o café e a olhava, ansioso.

O café de Hazel já estava frio, mas ela não se importou com isso. Bebeu metade, pousou a xícara e o pires na bandeja e disse:

— Muito bem, Jay, você tem tudo aí, menos a prova final. Creio que sabe disso.

— Sim, Hazel.

— Estou decidida a dá-la a você. Seu livro merece isso, e você também, Jay. Não posso lhe garantir nada, mas quero ajudá-lo a descobrir essa prova final.

— Hazel, não... não sabe o que isso significa para mim! — exclamou ele, emocionado.

— Sei perfeitamente o que significa. Será famoso de novo.

— Seremos famosos — corrigiu ele, rapidamente.

Bom rapaz, excelente rapaz, quis ela dizer. Em vez disso, porém, murmurou um “ótimo”, e logo retomou seu tom prático:

— Estive em Moscou muito tempo, como sabe. Vi todo mundo, tive contato com pessoas importantes. Fazia parte de meu trabalho. Conheço muitos russos no governo, e alguns são meus amigos. — Fez uma pausa. — O russo de Viena, aquele que me falou do complô... ainda está lá, mais importante do que nunca, e felizmente continua a ser meu amigo.

Notou que Jay Doyle começava a suar. Notou, também, que começava a tornar-se abjeto.

— Hazel, não sei como lhe dizer...

— Não diga nada — interrompeu ela com rudeza. — Limite-se a ouvir. Esse meu velho amigo de Viena tornou-se, como eu lhe disse, muito importante. Tão importante que faz parte da delegação russa à conferência. Em outras palavras, encontra-se neste momento em Paris. — Falava agora mais lentamente, refletindo antes de abrir a boca. — Tentarei vê-lo e, se for possível, abordar esse assunto. É evidente que se trata de um assunto delicado. Nunca compreendi bem, nem em Viena nem depois, se ele estava ligado a um complô de inspiração russa para assassinar o presidente Kennedy ou se fazia parte de uma conspiração internacional comunista, a que se poderia chamar um novo Komintern, isto é, um grupo inspirado pela hierarquia mundial comunista em geral, pelo Partido ou simplesmente por um governo declaradamente comunista. Também nunca compreendi muito bem, pelo pouco que ouvi em 1961, se a conspiração era oficial ou não, simplesmente tramada por um grupo de fanáticos vermelhos extremistas. Não sei. É isso o que considero delicado. Se eu trouxer abruptamente o assunto à baila, ou mesmo que descubra uma maneira diplomática de abordá-lo, e se o complô tiver sido de inspiração russa e oficial, ver-me-ei metida em problemas. Meu informante soviético baterá asas. A última porta se fechará, Jay, e terá de desistir e esquecer.

Doyle concordou com um aceno.

— Compreende, não é? — continuou Hazel. — Por outro lado, se o crime não envolveu a União Soviética, se foi cometido por exaltados do Partido Comunista, sem sanção oficial, então é possível que meu amigo russo, meu informante, queira falar e brindar-me com mais alguma informação, além das que outrora me forneceu. Talvez me confie fatos novos,, simples alusões, indícios ou pistas que conduzam aos verdadeiros assassinos. Ou então aos nomes de alguns comunistas, vivos ou mortos, da Hungria, da Albânia, da Itália ou de Cuba.

— É tudo o que preciso, Hazel, tudo.

— Eu sei — disse ela, pensativa. — Mas não é fácil conseguir isso. A única coisa que tenho a meu favor... a nosso favor... é minha antiga amizade com... com esse informante. Prestei-lhe muitos serviços nos últimos anos, e chegou a vez de ele me retribuir... se isso não o puser em perigo e lhe for humanamente possível.

Ficou por instantes perdida em suas recordações de um passado recente, evocando as noites de Moscou e as tardes no campo, a alegria de ambos em frente de uma galinha com alho no Restaurante Aragvi, a compra de uma peliça para ele e roupas íntimas de renda preta para ela na gum, sua datcha secreta com banheiro ao ar livre, a complacência de ambos para o do dna! quando bebiam até mais não poder; suas horas sérias de ducha-duchi, essas conversas de alma a alma. Recordava, evocava favores prestados e recebidos, incerta quanto ao lado para que penderia agora a balança, incerta quanto ao que poderia fazer e ao que sucederia se o fizesse, sabendo apenas que precisava se decidir.

Deixara a toca do coelho e metera-se na de Jay Doyle.

— Está bem — disse ela. — Tentarei. Que dia é hoje? Terça-feira. Não, isso foi ontem. Estou confundindo tudo. Hoje é quarta-feira. Pois bem, vou lhe dar uma resposta definitiva ainda esta semana. Pense nisso.

— Não... não sei o que dizer, Hazel. Não sei por que você vai fazer isso por mim.

Hazel resmungou, ao mesmo tempo em que se servia de uma torrada:

— Porque o amo, seu tolo. Agora, tome seu café, antes que fique completamente gelado.


V

 

 

 

Tendo deixado relutantemente os aposentos de Doyle e de boa vontade o vestíbulo do Hotel Georges V (embaraçada pelos olhares dissimulados dos turistas e mensageiros, que observavam seu vestido de noite), Hazel Smith voltou para seu apartamento alguns minutos depois das dez horas da manhã.

Depois de ter mudado de roupa e vestido a indumentária de trabalho, um conjunto de saia e casaco mesclado de branco e preto e sapatos de salto baixo, instalou-se para fazer duas chamadas telefônicas.

Seu futuro com Jay Doyle continuava a ocupar-lhe a mente. E, assim, o primeiro telefonema foi para a embaixada da Rússia em Paris.

Uma vez mais, como já fizera centenas de vezes antes, em Moscou e em outras capitais européias, Hazel seguiu o processo que ela e Nikolai Rostov tinham havia muito combinado. Apresentou-se como secretária de alguém que a encarregara de transmitir um recado ao ministro Rostov. Ela era sempre secretária, mas as pessoas para quem trabalhava eram sempre fictícias, e ela lhes dava nomes de acordo com a cidade de onde telefonava.

Naquela manhã, era a secretária do sr. Gérard.

— Oui, madame, M. Gérard gostaria de deixar um recado ao ministro Rostov. Pede que lhe telefone. Trata-se de negócios acerca dos quais eles têm mantido correspondência. A melhor hora para o ministro Rostov poder entrar em contato com M. Gérard seria entre o meio-dia e as duas horas. Non, madame, não é necessário, porque o ministro Rostov tem o número do telefone particular de M. Gérard. Merci.

A seguir, Hazel pensou no futuro de Medora Hart, e, assim, o segundo telefonema foi para o Hotel San Régis.

Medora, que estava em seu quarto, esperava que Hazel lhe telefonasse, e ficou radiante por não ter se enganado.

Embora satisfeita com a aprovação de Hazel ao seu plano contra Fleur Ormsby, Medora sentia-se muito mais emocionada com a promessa de cooperação de Hazel. Tinham discutido pormenorizadamente os Ormsbys, e Hazel esboçara o conteúdo do hipotético artigo da ana. Prometera escrevê-lo como se se destinasse a uma escandalosa entrevista de primeira página.

Agora, ao telefone, Hazel explicava:

Nardeau, interrogado por sua entrevistadora, confessara que o êxito do Nu no jardim na Exposição Retrospectiva tinha tido um modelo, e que a moça que posara para o artista, uma jovem rebelde e atraente, não era outra senão a atual Lady Ormsby, esposa do ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Sir Austin Ormsby. Mais tarde, o sr. Michel Callet, proprietário da Nouvelle Galerie d’Art, onde o espantoso quadro dominava o salão central, admitira que essa tela estava desencadeando uma polêmica maior do que o nu Olympia, de Édouard Manet, quando de sua apresentação em Paris, em 1865, e que a escandalizada imperatriz Eugênia tapara com seu lenço.

Ao ouvi-la, Medora não escondeu a admiração:

— Parece tão autêntico!

— Obrigada, Medora, mas ainda parecerá mais autêntico quando Fleur, e talvez o marido, ler a cópia — disse Hazel. — A verdade é que eles também estão metidos no jornalismo. De fato, começo a pensar se tudo isso não será uma tolice. Ouça, vou deixar por ora o artigo, mas, como não tenho nada importante para fazer até o fim da tarde, darei um pulo à galeria da Avenue Friedland, falarei com M. Michel, darei outra olhadela na imbecil da Lady Ormsby desnuda e talvez faça umas perguntas a Michel, sem lhe dar a entender o que estamos tramando, apenas para tornar mais verídicas as citações que vier a inventar. Conseguirei assim dados reais, e poderei apoiar-me neles.

Tendo prometido a Medora que lhe entregaria o artigo antes do anoitecer, Hazel meteu na bolsa papel e lápis, deixou o apartamento e dirigiu-se para a Nouvelle Galerie d’Art.

Não ficava muito longe, apenas alguns quarteirões adiante, e ela percorreu a maior parte do caminho a passo lento, gozando o calor da manhã de verão e antegozando as novas promessas com que a vida lhe acenava.

Os nomes das ruas lhe eram familiares, e ela viu que estava nas proximidades da galeria. Relanceando os olhos, descobriu o cartaz da exposição a pouca distância, atravessou a rua e encaminhou-se para lá. Perto de um pequeno café, sua atenção incidiu sobre uma família americana de quatro membros, cujos filhos gêmeos se queixavam ruidosamente do atraso do café da manhã. O esquelético pai da família, com um Stetson puxado para a nuca, lançava olhares ameaçadores à sua estridente mulher e às barulhentas crianças, ao mesmo tempo em que, recostando-se na cadeira de vime, preparava-se para ler a edição parisiense do Herald Tribune de Nova York. Abriu completamente o jornal para se proteger da incômoda família e percorreu com os olhos os últimos resultados esportivos.

Enquanto ele mergulhava na leitura, Hazel olhou automaticamente para os títulos mais em evidência na primeira página. De repente, quedou-se, muda de espanto.

Tinha certeza de que a visão lhe havia pregado uma peça, mas precipitou-se para o jornal suspenso das mãos do turista. O título era agora perfeitamente legível e não deixava margem a dúvidas:

AUDACIOSO ROUBO DE ARTE EM PARIS CINCO PINTURAS DE NARDEAU ROUBADAS DA GALERIE A POLÍCIA DESORIENTADA

Gelada de apreensão, Hazel tentou ler nas entrelinhas. A primeira página dobrou-se, e a cabeça do texano, sem dúvida, espreitou por cima dela.

— Desculpe — disse Hazel rapidamente. — Eu não trouxe hoje o meu jornal, e há aí uma notícia na primeira página...

— É americana? — inquiriu o texano, com súbita camaradagem. — Sim, naturalmente. Já li essa parte. — Separou a parte do jornal e estendeu-a a ela. — Faça de conta que é seu.

Hazel pegou o jornal e pôs-se a ler a notícia, tão sensacional que relegara as reportagens sobre a conferência para a segunda coluna. Em breve seu olhar treinado apreendeu o essencial do fragmentário relato, da notícia relâmpago redigida na hora da saída do jornal. Uma faxineira tinha ido fazer limpeza na Nouvelle Galerie d’Art depois da meia-noite. Acabara o trabalho por volta das duas horas e fora procurar as chaves onde as havia deixado, para fechar a porta dos fundos. Então, lembrou-se de que se esquecera de guardar a vassoura. Ao voltar com ela para o depósito, ficou surpresa ao ver que duas grandes janelas tinham ficado abertas. Quando se dispunha a fechá-las, viu que as gelosias haviam sido forçadas. Trêmula e receosa, telefonou imediatamente ao sr. Michel e notificou o comissariado de polícia do bairro. E, então, o proprietário e as autoridades convergiram para a galeria, onde encontraram espaços em branco nas paredes. Para os jornais, foi declarado apenas que tinham desaparecido cinco valiosos Nardeau — o negociante de arte ainda não sabia dizer precisamente quais as pinturas roubadas — e que a polícia continuava examinando a casa exaustivamente, em busca de uma pista.

Hazel entregou o jornal ao texano.

— Mil vezes obrigada — gritou.

— Nós, os americanos, nos ajudamos uns aos outros — grunhiu ele.

Agora, Hazel não andava, corria. Ao chegar, sem fôlego, à Nouvelle Galerie d’Art, precipitou-se para o interior. Em contraste com a noite da inauguração, em que o vestíbulo estava abarrotado de festivas celebridades com taças de champanha, a sala principal estava ocupada por policiais uniformizados e austeros, enviados pelo comissariado do bairro, e atentos detetives à paisana da Brigade de la Voie Publique. Alguns agentes estavam reunidos em conferência secreta. Outros procuravam impressões digitais.

Hazel viu o confuso negociante Michel emergir de uma porta lateral. Correu a interceptá-lo.

— M. Michel, que pinturas roubaram?

— Quem é a senhora? — perguntou, olhando-a, desconfiado.

— Sou Hazel Smith, da ana, a agência americana...

— Não tenho nada a declarar — cortou ele, com rudeza. — Ainda não posso falar aos jornalistas.

Rodou nos calcanhares e avançou para um grupo de ocupados policiais. Hazel subiu alguns degraus em sua perseguição.

— Mas, monsieur, sou amiga de Medora Elart, e ela...

— Medora Elart? — repetiu alguém atrás dela.

Elazel voltou-se e viu-se na presença de uma moça escandinava alta, loura e magnífica, de calça e blusa.

— Sim — disse Hazel —, sou amiga da srta. Hart. Sou Hazel Smith.

O rosto solene da moça escandinava descontraiu-se.

— Ah! Ouvi falar de você, srta. Smith. Medora pôs-me a par de sua amabilidade.

— Acabo de telefonar a Medora — continuou Hazel. — Vinha aqui para ajudar, quando soube do roubo. O que aconteceu?

— Foi terrível, realmente terrível! — disse a moça escandinava. — Também telefonei para localizar Nardeau... Sou Signe Anderson, a modelo dele, e também amiga de Medora. Tentei toda a manhã, mas Nardeau não está na villa nem em St.-Paul. Está em algum lugar nas montanhas, e não regressará tão cedo. Mas o commissaire divisionnaire... aquele calvo que está com M. Michel... tomou o caso a peito, pois é amigo e admirador de Nardeau e está convencido, corno eu, aliás, de que se trata do roubo de um tesouro nacional francês.

— Signe, diga-me uma coisa — pediu Hazel. — O quadro de Medora ainda está aqui? Ainda se encontra aqui o Nu no jardim?

Signe Anderson não respondeu. Levantou o braço e apontou, por cima do ombro, para o centro da parede principal da sala de exposições.

O centro da parede estava a descoberto.

Havia óleos de Nardeau pendurados de um lado e de outro, mas no centro, onde antes estivera o Nu no jardim, havia apenas um gancho de metal e um espaço vazio.

Hazel ficou muda de espanto, cheia de raiva contra os perseguidores de Medora. Gostaria de revelar a quantos estavam na sala, à Polícia Judiciária, à brigada de detetives, ao negociante, à modelo, os nomes dos ladrões. Gostaria de gritar que a culpada era Lady Fleur Ormsby e seu marido, que não hesitavam diante de qualquer ato criminoso para preservar o nome dos Ormsbys. Embora tentada a fazê-lo, Hazel conteve a fúria.

Ouviu Signe, que lhe dizia:

— É uma pena! Lamento por Medora. Foi o próprio Nardeau quem lhe ofereceu o quadro, como presente de despedida, porque pensava que isso a ajudaria a regressar à pátria.

— Conhece a história de Medora com os Ormsbys? — perguntou Plazel.

Signe acenou afirmativamente.

— Conheço.

A mão de Hazel estendeu-se na direção da polícia francesa.

— Nesse caso, diga-lhes. Talvez possam fazer alguma coisa.

— Digo-lhes o quê, srta. Smith? O que se pode provar contra os Ormsbys? Que prejudicaram Medora? Que a exilaram? Que foram os autores desse roubo? Já pensei nisso, mas não, não há uma única prova. Conheço a polícia francesa, ela nos consideraria lunáticas. Além disso, srta. Smith, talvez não tenham sido os Ormsbys, mas quaisquer ladrões comuns que levaram o quadro, por simples acaso, ou por estar exposto no local mais em evidência.

— Sabe tão bem como eu que não é verdade — replicou, rudemente, Hazel. — Fleur encontrou-se ontem com Medora. Ficou assustada e foi obrigada a tomar uma decisão. Tem dinheiro e influência. Deve ter contratado um profissional, ou mesmo vários, para levar a cabo o assalto. Agora, tem o quadro e está a salvo. E Medora, a pobre Medora, não tem nada.

Signe ficou pensativa por instantes e depois afirmou:

— É possível que tenha razão, srta. Smith. Com efeito, é estranho. Os ladrões levaram o nu de Lady Ormsby e mais quatro.. . levaram cinco quadros que valem um milhão e meio de francos, mas deixaram outros muito mais valiosos. Há um do outro lado da sala, apenas um, emprestado pelo Jeu de Paume, que vale dois milhões de francos, e um outro, cedido pelo Museu Nacional de Arte Moderna, que vale outro tanto. Mas nesses eles não tocaram, contentaram-se com o de Medora e os outros quatro, pouco valiosos. Por quê? É o que me pergunto.

— Pergunte-o a mim — disse Hazel. — Fleur pagou aos vigaristas para roubarem o quadro a óleo de Medora, porque foram pagos para isso e bem pagos, pode ter certeza, sem terem de se incomodar procurando peças famosas de museus. E levaram os outros quatro para darem a impressão de que era um roubo rotineiro. Estou tentada a falar à polícia sobre Fleur Ormsby...

— Por favor, não o faça — pediu Signe precipitadamente. — Isso não ajudaria Medora. Talvez até a prejudicasse. A polícia não quer nada com ela, uma jovem inglesa escandalosa, indesejável no seu próprio país, alguém que se opõe a um famoso ministro do gabinete inglês que está aqui como convidado da França para a conferência. É impossível. E talvez fizesse com que Medora também fosse indesejável neste país.

O bom senso da jovem escandinava acalmou a fúria de Hazel. Signe tinha razão, e Hazel reconheceu isso.

— Mas, Signe, temos de fazer alguma coisa. Não podemos deixar essa pobre moça sem ajuda. — Fez uma pausa. — Medora já sabe?

— Ninguém lhe telefonou. Eu não tive coragem. Depois de falar com Nardeau, é possível que eu lhe telefone. Contudo, ela deve ter lido os jornais, se bem que eles ainda não se refiram ao seu quadro. Os títulos só foram comunicados mais tarde. — Lançou os olhos no vácuo, preocupada. — Não sei que progressos fizeram. Tiraram moldes de cera das marcas que ficaram nas gelosias, nos pontos em que foram forçadas. Também recolheram impressões digitais. O commissaire convocou todos os antigos ladrões de obras de arte que estavam em liberdade, em Paris, a fim de serem interrogados, e telefonou à Sureté Nationale de Nice para que ela interrogue todos os que têm cadastro na polícia da Riviera. Talvez isso dê algum resultado, mas...

Calou-se subitamente quando o sr. Michel se meteu entre elas, ignorando Hazel para se dirigir exclusivamente à modelo escandinava:

— Signe, se entrar em contato com Nardeau antes de mim, informe-o dos últimos acontecimentos. A polícia disse que se trata aparentemente de uma ação do exterior. Foi usado um macaco de automóvel para forçar as gelosias. Nos fundos, havia marcas de pneumáticos de um caminhão Citroen. A polícia está convencida de que isso é trabalho de um especialista que fez o mesmo antes e que voltou a fazê-lo por dinheiro, mas suficientemente esperto para não roubar as obras mais valiosas, que são difíceis de transacionar. Diga a Nardeau que o commissaire divisionnaire tenciona entrar em contato com certos informantes que podem conduzi-lo aos ladrões e aos quadros... Mon Dieu, todos os jornais telefonam para o meu escritório. Acredite que este é o maior crime no mundo da arte desde... desde quando?... desde há mais de meio século, quando um insignificante pintor de paredes italiano roubou a Mona Lisa do Louvre... Mas este tem sua importância. É uma vergonha. Temos de recuperar os quadros. Agora, preciso ir. Se houver mais notícias, eu lhe direi, Signe, antes de falar com Nardeau.

Assim que o negociante as deixou, Hazel agarrou a -mão de Signe.

— Obrigada. Ficarei na expectativa. Vou telefonar a Medora. Alguém tem de lhe dizer, antes que ela saiba pelos jornais. E, Signe, quero estar a par de tudo. Como sei que se manterá em contato permanente com Medora, saberei por ela as novidades que forem surgindo. — Hesitou. — Signe, temos de recuperar esse quadro. Se descobrirmos o quadro, tudo ficará resolvido. A vida dessa moça depende dele.

— Vamos tentar, srta. Smith. Se for preciso, Nardeau virá a Paris.

À porta, Hazel olhou para os policiais que entravam, saíam, pulavam e se ajoelhavam, e a galeria pareceu-lhe exibir não uma coleção de quadros de Nardeau, mas de personagens de Gaboriau. Abriu a porta e saiu. Precisava de ar fresco e puro para arejar as ideias, mas o dia estava quente e sufocante.

Decidiu voltar ao seu apartamento e telefonar de lá a Medora Hart. Iria lhe contar o sucedido e dar-lhe esperanças de que o quadro seria recuperado. No entanto, mesmo que não o fosse, ela lhe prometeria arranjar alguém para intervir junto dos Ormsbys, a favor de Medora.

E, então, Hazel fez votos para chegar a tempo. Telefonaria a Jay Doyle, na ana ou nos aposentos de Earnshaw, onde quer que estivesse, e tentaria encontrar-se com ele antes do meio-dia, a fim de lhe expor o problema e ver o que ele achava que se podia fazer. Isso era importante, subitamente tão importante como seu próprio problema. Ninguém tinha o direito de tratar quem quer que fosse de modo desumano. Todos possuíam direito à dignidade, à liberdade e à busca da felicidade. Não só ela, mas também Medora. Era preciso fazer alguma coisa. Não só por Medora, mas também por si mesma.

Satisfeita, Hazel dirigiu-se ao apartamento e pegou o telefone.

Recebendo o aparelho das mãos de Earnshaw, Doyle disse ao ex-presidente e a Brennan:

— Desculpem, é só um minuto. — Aproximou mais o fone. — Olá, Hazel. Como está? — Escutou durante algum tempo, depois respondeu:

— Sim, acabo de chegar. Não creio que haja muito trabalho. Logo ficarei livre. Por quê?

De sua cadeira junto à mesinha de café, Matt Brennan viu Earnshaw olhar para Doyle, e compreendeu que o ex-presidente estava embaraçado e pouco à vontade com sua presença nos aposentos dele, no Hotel Lancaster.

Brennan tinha passado uma noite maravilhosa e bem regada com Lisa, na véspera, e acordara naquela manhã com leves indícios de ressaca. Essa sensação de ressaca chamava-o sempre à realidade. À luz mortiça da manhã, a celebração da noite anterior parecera-lhe prematura. Contudo, depois de rever objetivamente o que Lisa lhe havia contado doze ou treze horas antes, sentiu que era o suficiente para obrigá-lo a agir.

Telefonou para o Hotel Georges V e ficou aliviado por encontrar Jay Doyle no apartamento. Sem entrar em pormenores, declarou a Doyle que tinha obtido certa informação que poderia ser muito útil a Earnshaw em suas relações com o dr. Dietrich von Goerlitz. Doyle, com um entusiasmo maníaco, mostrou-se ansioso por cooperar. Disse que, de qualquer maneira, precisava falar com Earnshaw para saber se o Ex queria retomar sua colaboração em seu comentário diário sobre a conferência ou se preferia que Doyle continuasse a escrevê-lo inteiramente em seu nome. Teria muito gosto em comunicar a Earnshaw o que Brennan acabara de lhe contar. Cinco minutos mais tarde, Doyle telefonou informando que, embora Earnshaw, apático e indiferente, não estivesse interessado em trabalhar no artigo, mostrava-se interessado em ouvir o que Brennan sabia a respeito de Goerlitz.

Meia hora depois, Brennan encontrou-se com Doyle no vestíbulo do Hotel Lancaster, e subiram juntos até os aposentos de Earnshaw. Logo que Earnshaw e Doyle se instalaram no cômodo sofá, Brennan compreendeu que o Ex esperava pouco daquela reunião. Era como se Earnshaw, depois de refletir, tivesse chegado à conclusão de que Brennan pretendia simplesmente impeli-lo para o que viria a revelar-se outra desilusão, como se estivesse convencido de que Brennan procurava servir-se de todos os meios a fim de se encontrar de novo com ele, num esforço persistente para utilizá-lo. Brennan perguntou-se como reagiria Earnshaw à informação que Lisa casualmente havia obtido para eles. A resposta, porém, fora adiada momentaneamente pela chamada de Hazel Smith para Doyle.

Doyle continuava ao telefone:

— Está bem, Hazel, claro. Seus amigos são meus amigos. Não sei, mas talvez eu possa ajudar. Vejamos... daqui a quarenta e cinco minutos, talvez menos. O que disse?... De acordo, querida, no Fouquet. Perfeitamente. Estarei lá.

Desligou, pedindo desculpas mais uma vez, ao mesmo tempo em que passava o telefone a Earnshaw, recostado no canto do sofá. Depois de colocar o aparelho na extremidade da mesa, Earnshaw pegou um charuto, tirando-lhe devagar o invólucro, evidentemente relutante em reiniciar a conversa.

— Alegra-me que tenha consentido em receber-me outra vez — disse Brennan ao ex-presidente. — Creio que não se arrependerá.

Earnshaw acendeu o charuto. Por instantes, seus perturbados olhos azuis revelaram amabilidade e benevolência.

— Pelo contrário, sr. Brennan. Eu é que lhe estou grato, pois Jay disse-me que está a par de minhas dificuldades e pensa que pode ajudar-me. Quero que saiba que lhe fico reconhecido.

— Como sabe — disse Brennan —, tive meu quinhão de problemas, por isso sou altamente receptivo aos problemas dos outros. Isso não quer dizer que uma pessoa em sua posição precise de minha ajuda, contudo... — Encolheu os ombros.

— Ninguém pode caminhar sozinho pela vida — sentenciou Earnshaw. — Muitas vezes, em meus discursos públicos, referi-me à parábola... hã... à parábola do Bom Samaritano. É uma das minhas preferidas. Nesse tempo... — Tirou mais uma baforada do charuto, colocou-o no cinzeiro e limpou a garganta.

— Creio que podemos ser francos, sr. Brennan. Meu bom amigo Jay Doyle, aqui presente, disse-me que o senhor havia descoberto alguma coisa acerca das memórias do dr. Dietrich von Goerlitz e... hã... acerca do infeliz capítulo dessas memórias sobre meu mandato. Lamento que tudo isso tenha transpirado, mas não posso dizer que esteja surpreso. Seja como for, não me parece que isso tenha grande importância, uma vez que Goerlitz em breve tenciona tornar públicas suas deturpações. — Fitou Brennan através da nuvem de fumaça. — Talvez saiba que me encontrei pessoalmente com Goerlitz, a fim de tentar injetar um pouco de sentimento de decência em sua cabeça teutônica. Não fui muito feliz. Goerlitz não quis me ouvir. Mostrou-se decidido a... hã... prejudicar-me.

— Acredito sinceramente — disse Brennan. — Espero que o que tenho a revelar possa obrigar Goerlitz a dar-lhe ouvidos.

Earnshaw esboçou um pálido sorriso.

— Duvido que haja alguma coisa capaz de chamá-lo à razão. Desculpe, mas conheço o homem. — Contemplou o charuto, depois ergueu os olhos. — Deixemos isso e vamos ao que interessa. Jay diz que descobriu alguma coisa, não compreendi ao certo o quê, mas alguma coisa que, segundo julga, pode me ajudar a exercer certa pressão sobre Goerlitz. É evidente que fiquei curioso. Juro-lhe, sr. Brennan, que não imagino qual seja sua ideia.

— Vou expô-la. — O momento tinha chegado, e Brennan entrelaçou nervosamente as mãos e inclinou-se para a frente. — Mas, compreenda, não posso revelar a fonte da informação que possuo. Terá de aceitar minha palavra de que se trata de uma fonte fidedigna. Foi-me dada por alguém muito chegado a mim, alguém que, com toda a inocência, a ouviu casualmente e sem fazer a mínima ideia de suas implicações. — Earnshaw e Doyle escutavam com ávido interesse. Mais confiante, Brennan arriscou uma pergunta:

— Além de tentar vender suas memórias, sabe por que motivo o dr. Dietrich von Goerlitz está em Paris?

— Sei — respondeu Earnshaw. — Por causa de um negócio importante... Agora me lembro:

está aqui para assinar contratos com representantes da República Popular da China... Está construindo um complexo nuclear e uma dessas comunidades pré-fabricadas adjacentes. Acertei?

Jay Doyle, até então calado, interveio:

— Uma Cidade Nuclear da Paz chinesa. Diz-se que será construída, mantida e dirigida pelos alemães.

— Tem razão — concordou Brennan. Olhou para Earnshaw. — Mas que me diz sobre esta informação, que o próprio Goerlitz não conhece? Simplesmente isto:

os chineses vermelhos tencionam assinar o contrato, mas não estão dispostos a cumpri-lo; tencionam servir-se de Goerlitz para construir esse complexo, de muitos milhões de dólares, e a respectiva cidade adjacente, mas mais tarde os nacionalizarão, confiscarão tudo e expulsarão os acólitos alemães de Goerlitz. O que me diz a isto?

Momentaneamente perplexo, Earnshaw tentou entender e digerir a informação. Por fim conseguiu, pois seus olhos azuis abriram-se, atônitos.

— Digo que é uma informação muito útil, se for verdadeira. Digo também que parece incrível que saiba isso, sr. Brennan, uma vez que o dr. von Goerlitz não sabe.

— Mas acha possível? — persistiu Brennan.

— Oh, certamente, tudo é possível! A cumplicidade existe. A má fé existe. No entanto...

— E se fosse verdade — perguntou Brennan —, e só o senhor soubesse, mas não Goerlitz, não acha que seria uma informação tão espantosa a ponto de ajudá-lo a encontrar-se de novo com Goerlitz e torná-lo seu devedor?

Earnshaw acenou vigorosamente:

— Se fosse verdade, ele gostaria de ver-me. Gostaria de ouvir-me. Mas é verdade?

— Ouça a história e decida por si mesmo. As esposas de dois delegados chineses, ignorando que estavam sendo ouvidas, revelaram o seguinte... — começou Brennan.

Consultando as notas tomadas quando interrogara Lisa, e sem enfeitá-las, Brennan repetiu a essência do que tinha sabido. Durante cinco minutos, Brennan falou sem interrupção, consciente do interesse de Earnshaw por cada uma de suas palavras. Concluindo, disse:

— É tudo o que sei. Os chineses responsáveis pela Cidade Nuclear da Paz tencionam ocupá-la inteiramente, livrar-se dos alemães, substituí-los por cientistas e técnicos russos e, juntamente com eles, prosseguir na exploração da fábrica, ou das fábricas. Isso custará milhões e milhões de marcos a Goerlitz. Poderá arruiná-lo, porque lhe será impossível recorrer a qualquer tribunal.

Olhou para Earnshaw, e foi quase como se observasse, atrayés de um crânio de plástico transparente, as lentas elucubrações do cérebro do Ex. Quando Earnshaw levantou a cabeça, era óbvio que estava excitado, embora instintivamente hesitante.

— E não lhe parece que Goerlitz sabe ou, pelo menos, suspeita disso?

— Se o soubesse, continuaria em Paris para negociar com os chineses? Contudo, está aqui. Vai oferecer um jantar no Ritz em homenagem a seus clientes chineses, neste fim de semana. Não creio que saiba o que lhe preparam, sr. Earnshaw.

O ex-presidente acabou por render-se, aceitando a estranha história. Seus olhos brilharam. Bateu com entusiasmo no joelho e exclamou:

— Sim, deve ser verdade! Com os demônios, não é uma grande notícia? Formidável, sr. Brennan, absolutamente formidável!

— Quando a ouvi, compreendi o que poderia significar para o senhor — disse Brennan. — Se o senhor a levar a Goerlitz, pode preveni-lo. Pode salvá-lo. Ele terá de considerá-lo sob outra luz, e se tornará seu devedor. Creio que nem sequer precisará lhe pedir que suprima de suas memórias esse desagradável capítulo.

— Tem razão, tem razão — concordou Earnshaw. Quando se pôs de pé, parecia ter rejuvenescido vinte anos. — Caramba! Talvez seja esse o milagre que eu esperava. — Começou a andar pela sala, falando em voz baixa, como se preparasse o futuro diálogo com Goerlitz.

Do sofá, Doyle, tão alegre como Papai Noel, interceptou o olhar de Brennan e piscou-lhe o olho com ar conivente. Brennan correspondeu com um meio sorriso, depois torceu-se na cadeira para se dirigir de novo a Earnshaw:

— É claro que em tudo isso há muito mais pessoas implicadas do que o senhor e Goerlitz. Talvez não tenha notado, mas as implicações são enormes.

Earnshaw interrompeu sua caminhada.

— O que quer dizer?

— Desde que cheguei a Paris, tenho ouvido e recolhido insinuações acerca dos chineses e dos russos — disse Brennan. — Quando Khruchov se desentendeu com Mao Tsé-tung, em 1960, a Eínião

Soviética e a China vermelha tornaram-se antagonistas, e nos anos que se seguiram distanciaram-se cada vez mais. Hoje, a China considera-se a guardiã da doutrina de Marx, o centro do comunismo internacional, a capital do novo Kominform, e continua a censurar a Rússia por ter se deixado corromper pelas potências capitalistas e imperialistas do Ocidente. Hoje, a China e a Rússia são inimigas, e, no Palais Rose, o primeiro-ministro da Rússia senta-se ao lado do primeiro-ministro da Inglaterra e do presidente dos Estados Unidos, o presidente da França senta-se no meio e o presidente da China senta-se sozinho. Logo, repito, a China e a Rússia são, publicamente, inimigas. Correto?

Earnshaw concordou com um aceno de cabeça, e Doyle confirmou:

— Correto, Matt.

— Muito bem — prosseguiu Brennan. — Inimigas. No entanto, nos últimos dias, ouvi insinuações dispersas que levam a crer que a China e a Rússia podem ser mais amigas do que se imagina. Ontem, estive conversando com um cientista nuclear francês. Ele esteve em Pequim recentemente. Para grande surpresa sua, encontrou-se com uma delegação de cientistas russos. Na noite passada, obtive a informação que acabo de lhes transmitir. Não só a China se prepara para enganar Goerlitz, mas também para substituir os técnicos alemães por técnicos russos. Repito, técnicos russos. Creio que isso é significativo e perturbador. Desconfio que os chineses estão procedendo com seus colegas da conferência como procederam com Goerlitz. Publicamente, concordam com o desarmamento, mas na intimidade preparam-se para enganar seus colegas da conferência. Fingem que, sem a Rússia como aliada, têm de se submeter à fiscalização de armas; contudo, deixam o Palais Rose a fim de tecer intrigas secretas com os russos e torpedear qualquer pacto ali assinado. E em breve, juntamente com os soviéticos, retomarão a expansão comunista internacional. Em resumo, parece haver provas circunstanciais de que, embora a China e a Rússia se detestem publicamente e pretendam exibir publicamente sua oposição, são aliadas secretas. Isso significa que qualquer possibilidade de paz conseguida na conferência será uma paz no papel, nada mais, e que, enquanto nos entretemos na ribalta, nos bastidores desenvolvem-se atividades contraditórias. — Fez uma pausa. — Digo-lhe francamente que estou preocupado.

Earnshaw tinha se aproximado de Breíinan e agora sorria com benevolência.

— Dir-se-ia que instruiu um processo, sr. Brennan, e confesso que por momentos me empolgou. Mas compreenda, se quiser ser objetivo, é improvável que essa aliança secreta... hã... essa aliança entre a China e a Rússia, de que falou, tenha alguma existência real. No final das contas, apesar das divergências políticas, a China tinha todo o direito de convidar cientistas de Moscou para Pequim e de contratar cidadãos russos para substituírem os alemães nesse complexo da província de Honan. Não se trata necessariamente de uma coligação política.

— Não penso assim — retorquiu Brennan. — Estou pensando nos cientistas e técnicos alemães de Goerlitz na província de Honan. São indivíduos de uma empresa privada. Mas na Rússia não há empresas privadas, não há cientistas privados para contratar. Seus especialistas só podem sair dos centros de pesquisa estatais com autorização do governo central.

— Não estou bem certo disso, sr. Brennan. As coisas estão muito mais brandas na Rússia. Oh! O senhor expôs um caso interessante, mas devo lhe dizer que, enquanto estive na Casa Branca, li toda espécie de casos inventados pela imprensa mundial, baseados em minhas atividades, discursos ou declarações. Isto é, havia intrusos que se apoderavam desta ou daquela indicação e forjavam uma notícia perversa relacionada com atividades ou políticas externas, deixando supor que meu gabinete e eu estávamos por trás delas. E sabe o que sucedia? Os especuladores e os vaticinadores de segunda ordem laboravam sempre em erro. Vi isso acontecer muitas vezes. Portanto, sr. Brennan, digo-lhe'que suas suspeitas têm certa lógica, baseiam-se nisto e naquilo, mas, porque lhes faltam fatos incontestáveis, creio que concordará que suas ideias são rebuscadas e que a situação não é tão alarmante como supõe.

A fé de Brennan em sua explanação, se bem que não fosse destruída, ficou abalada. Teria de revê-la.

— Talvez tenha razão — disse, indeciso. Depois, vendo Doyle erguer-se, Brennan abandonou a cadeira. Ficou de pé em frente de Earnshaw. — Seja como for, não me parece que a informação que lhe dei sobre Goerlitz seja absurda.

Hesitou, refletindo no que diria a seguir. Não tinha ido ali por amizade ao ex-presidente, mas como alguém que vai ao mercado para negociar. Havia fornecido a Earnshaw bens valiosos, que ele poderia transacionar com Goerlitz, e esperava obter em troca alguma coisa de igual valor.

Antes que pudesse falar, viu Earnshaw afivelar um sorriso contrito e amigável. Sentiu a mão de Earnshaw em seu braço e, surpreso, ouviu-o tratá-lo por Matt pela primeira vez.

— Matt — disse Earnshaw —, estou envergonhado pela forma como o recebi ontem, mas, como vê, eu estava enganado. Não fazia ideia do homem que você é, e, sobretudo, estava egoisticamente absorvido... hã... preocupado com meus próprios problemas, nada mais. Porém, mesmo antes de você vir aqui esta manhã, tive oportunidade, por algumas coisas que Goerlitz me disse e pela leitura da transcrição das audiências do Congresso que me deixou, de... hã... de rever algumas de minhas opiniões a seu respeito. Agora, bem, Matt... peço sinceramente que me perdoe e espero que seja bastante caridoso para aceitar minhas desculpas.

Com um sentimento de quase afeição por Earnshaw, Brennan balbuciou:

— Realmente, não tem de quê...

— Você me ofereceu espontaneamente a assistência que pode me salvar — prosseguiu Earnshaw. — Agora, se bem que você não tenha pedido, gostaria de ajudá-lo também, de lhe oferecer hoje o auxílio que ontem lhe recusei. Prometo-lhe que farei todo o possível, dentro de meus recursos, de meus modestos recursos, para favorecê-lo, Matt. Não sei se conseguirei alguém para falar a seu favor a Nikolai Rostov ou para levá-lo a ele. Não sei se descobrirei esse alguém, mas garanto-lhe que tentarei. — Sorriu palidamente. — Pode contar com isso. Dou-lhe minha palavra de que falarei de você, ainda esta semana, ao presidente dos Estados Unidos. E é tudo. Agora, ambos temos algo com que nos preocupar.

— Obrigado — disse Brennan.

— Obrigado digo eu, Matt — disse Emmett A. Earnshaw.

Depois que deixaram Earnshaw, Brennan se sentiu demasiado excitado para voltar ao quarto de hotel. Cheio de esperança, ansiava por contato humano, e acompanhou automaticamente Doyle até os Champs-Élysées.

Mas, assim que atravessaram a extensa via pública, viu Doyle olhar para o toldo e as cadeiras de vime da calçada do Café Fouquet. Isso lembrou a Brennan que Doyle tinha um encontro com Hazel Smith.

— Deixo-o aqui, Jay — disse, parando. — Vou dar um passeio.

— Que negócio é esse de me deixar aqui? Convido-o para uma bebida. Com o Ex de seu lado, temos algo para celebrar.

— Julguei que fosse se encontrar com Hazel Smith.

— De fato, mas pode juntar-se a nós.

Brennan meneou a cabeça.

— Não creio. Ela quer falar com você a sós.

— Tolice. Não há segredos entre nós. — Hesitou. — A não ser, evidentemente, que ela queira me falar em particular acerca de meu livro. Se for assim, ela o dirá, e, então, poderá se retirar. Mas parece-me que se trata de outra coisa, pois ela mencionou Medora Hart. Vamos.

Brennan não se moveu.

— Ouça, Jay, não sou o americano favorito dela...

— É por isso que quero que fique — cortou Doyle. — Quero fazer alguma coisa por você, e chegou o momento de começar. Matt, esta mulher está ligada à maior parte de minha vida adulta. Seus primeiros juízos sobre as pessoas são sempre filtrados através de confusas entrelinhas de sua mente. Quando ela o encontrou no Palais Rose, viu-o através das antigas baterias da traição. Era tudo o que tinha para julgá-lo. Sei que, se ela pudesse encontrá-lo socialmente e conhecê-lo como eu o conheço, sua atitude mudaria. Garanto-lhe. Hazel não é tão feroz como parece. Aquela carapaça exterior é uma proteção, sua concha de sobrevivência. De fato, é uma mulher assustada, sozinha, uma manteiga, ansiosa por amar e ser amada.

— Não sei — disse Brennan, pouco convencido.

— Eu sei — retorquiu Doyle, agarrando-o pelo braço. Começou a arrastar Brennan para o Fouquet. — Além disso — baixou a voz significativamente —, é uma amiga útil, graças a seus contatos, não sei se compreende o que quero dizer. Vai me ajudar a entrar em contato com Rostov. Pode ser que também o ajude.

— Muito bem — disse Brennan. — Você me convenceu.

Enquanto se aproximavam do café, Doyle murmurou:

— Uma advertência. Não mencione Rostov. Ela ignora que os vi juntos, e não desconfia que eu sei que Rostov é seu amiguinho.

— Meus lábios não se abrirão.

— Ótimo. Dar-lhe-ei a deixa quando surgir a oportunidade.

Estavam de pé, ao sol, diante das filas de cadeiras amarelas e vermelhas. Um terço dos lugares estava ocupado, e, como sempre, Brennan observou a diversidade dos frequentadores. Uma linda francesa, beaux yeux, de blusa de seda azul e saia branca plissada, tinha diante de si, em cima da mesa, um comprido pão e lia um exemplar do L’Express. Atrás dela, dois altos africanos de ternos cinzentos justos discutiam acerca de seus sanduíches. Perto deles, um francês gordo, de pince-nez e barbicha, falava ao engraxate debruçado sobre seu pontiagudo sapato Oxford, sentado na pequena caixa portátil. Alguns lugares adiante, uma graciosa indiana, de cabelos em tranças e sari cor de púrpura, estava comprando de um jornaleiro um exemplar do Evening Standard, de Londres. Ao lado, um policial de farda azul, brandindo distraidamente o cacetete branco, tagarelava com um garçom de gravata preta e jaqueta branca. E Brennan teve certeza de que aqueles dois estavam discutindo espécies de chantilly ou a loteria, e que aquilo era Paris, era o Fouquet, e que a vida valia a pena.

— Lá está ela — ouviu Doyle dizer.

Seguindo a direção do dedo de Doyle até a mesa escondida ao fundo, junto à parede do café-restaurante, Brennan distinguiu a massa de cabelos ruivos. Hazel Smith estava empoando o queixo saliente. Doyle dirigira-se para o corredor lateral mais próximo, e Brennan seguia-o, apreensivo.

Hazel olhou por cima da caixa do pó-de-arroz e sorriu.

— Ainda bem que veio, Jay.

— Desculpe por chegar tão tarde — disse Doyle. Afastou-se para dar passagem a Brennan, e, quando Hazel o reconheceu, seu sorriso apagou-se. — Estivemos trabalhando com Earnshaw — apressou-se Doyle a explicar —, e eu insisti com Matt para que me acompanhasse a fim de que vocês dois se conhecessem melhor. Devem fazê-lo. Têm muito em comum, a começar por mim. — E riu nervosamente.

Hazel não respondeu. Voltou a guardar na bolsa a caixa de pó-de-arroz.

Brennan não estava disposto a deixar arrefecer sua felicidade tentando comover uma geleira.

— Desculpe importuná-la, srta. Smith — interveio ele. — A culpa foi do excessivo entusiasmo de Jay, que continua trabalhando para o mundo único. — Hazel ergueu os olhos e fitou raivosamente Brennan. Ele sorriu e acrescentou:

— De qualquer maneira, três são demais quando há assuntos pessoais a discutir. Foi um prazer voltar a vê-la, srta. Smith.

Dispunha-se a sair, quando Elazel o interceptou:

— Não seja tolo, Brennan. Não estou com paciência para delicadezas. Isto aqui não é a Liga Ivy. Sente-se.

Doyle curvou-se e puxou uma cadeira para Brennan, que se sentou, enquanto ele mesmo procurava se instalar ao lado de Hazel.

— Muito bem, Hazel... — começou.

A atenção de Hazel continuava concentrada em Brennan.

— Não pedi a Jay que viesse aqui para discutirmos assuntos pessoais. Na verdade, o que tenho para lhe dizer nada tem de particular. Até me agrada que você ouça também. Já que os dois são unha e carne, não me importo que saiba. — Voltou-se para Doyle. — Leu as manchetes dos jornais de hoje?

— Não, ainda não.

— Pois então leia. — Apontou para os jornais da tarde amontoados na mesa, entre sua bolsa e o sifão de soda, e Doyle, seguindo o gesto, pegou um exemplar.

Brennan acendeu um cigarro, ao mesmo tempo em que observava Doyle, que abria o jornal, lia um título e percorria o respectivo artigo com um franzir de sobrancelhas. Quando acabou, Doyle estendeu o jornal a Brennan e voltou-se para Hazel.

Escutando enquanto lia o artigo sobre o roubo de arte, Brennan ouviu Doyle perguntar:

— Quer dizer que um dos cinco quadros roubados da Nouvelle Galerie d’Art era o Nardeau de Medora?

— A Fleur Ormsby de Medora — corrigiu Hazel. — Acertou. Com efeito, um dos cinco quadros era o dela, aquele intitulado Nu no jardim. Isso não lhe diz nada, Jay?

— Pode ser coincidência.

— Ora, Jay! Julguei que navegávamos no mesmo barco.

— Quer dizer que vê nisso a elegante e artística mão de Lady Ormsby?

— Tenho certeza absoluta.

Lido o artigo, Brennan colocou o jornal em cima da mesa, não ocultando seu espanto. Doyle lhe contara recentemente alguma coisa acerca da stripper do Clube Lautrec, Medora... Medora Hart, da perseguição que lhe moviam os Ormsbys e dos quadros de Nardeau, mas não se recordava dos pormenores.

Viu que Hazel o observava.

— Jay contou-lhe?

— Creio que sim. Tenho uma vaga ideia...

— Pois vou refrescar-lhe a memória, meu amigo, já que também participa desta reunião — disse Hazel. Interrompeu-se ao ver surgir o garçom, depois dirigiu-se a Doyle:

— Quero uma Coca-Cola com limão. — Esperou impacientemente que Doyle fizesse os pedidos e, então, voltou-se para Brennan. — Recorda-se do clamoroso caso Jameson, na Inglaterra, há uns três anos?

— Quem poderia esquecê-lo?

— Pois bem, Medora Hart — continuou Hazel — era uma das garotas de Jameson. Seu último amante foi o irmão mais novo de Sir Austin Ormsby, Sydney Ormsby, uma autêntica aberração; Sir Austin, o defensor do nome, do lar, da fortuna e da família, obrigou Medora a sair da Inglaterra, e agora recusa-lhe o visto de entrada, alegando algumas irregularidades técnicas.

Com indignação, Hazel expôs em pormenores a triste existência de Medora no estrangeiro e sua luta desesperada contra o clã dos Ormsbys, até que se lembrou de um certo quadro de Nardeau que representava um nu.

— Retratava — disse Hazel — a sublime e impecável Lady Ormsby, uma lady na horizontal, tendo como única indumentária um sorriso. Aquilo constituía para Medora seu grande meio de chantagem. Esta manhã, porém, o quadro desapareceu. Foi roubado durante a noite. Em suma, ontem Fleur tentou comprar o escandaloso nu de Medora, mas falhou; hoje, Medora já não tem nenhum quadro, porque ele desapareceu. Ora, digam-me, senhores juizes, quem é o culpado? Fleur é culpada ou inocente?

— Culpada — decretou Brennan.

— Seja o que for que tenha feito outrora, não deixa de ser um bom camarada, Brennan — disse Hazel. — Então, está do lado de Medora?

— Estou do lado de todos os fracassados — respondeu Brennan com um sorriso triste. — São a minha gente.

Hazel voltou-se para Doyle:

— E você, o que diz, Jay?

— Fleur é culpada, sem sombra de dúvida.

Hazel curvou-se e beijou-o na face:

— Adoro-o inleirinho, Jay... Portanto, o veredicto é unânime. Mesmo que não o fosse, eu continuaria a solicitar seu conselho, Jay. Medora precisa de um cérebro de confiança.

— Bem sabe que farei tudo por ela — disse Doyle.

— Mas não em atenção a mim, por favor, Jay. Faça-o por ela somente. Não estou sendo sentimental em relação a uma prostituta infeliz. Sofro por todos os jovens do mundo que são vítimas dos considerados mais fortes. Esta é uma boa moça, de coração puro, mais decente do que muitas virgens que se entregam nos filmes ou em sonhos. Medora está indefesa, perdida... não tem amigos. Precisa de músculos que a protejam. O inimigo é forte e ela necessita de armas iguais.

Hazel, que procurava um cigarro, aceitou o que Brennan lhe ofereceu e voltou-se de novo para Doyle.

— Tive de lhe dar a notícia do roubo esta manhã, e garanto-lhe que foi duro. A pobrezinha teve um ataque de nervos, e não posso dizer que me comportaria de maneira diferente, se visse falhar minha última esperança. Jay, não gostei do modo como ela falou pelo telefone. Receio que perca a cabeça, e não quero que isso aconteça. Prometi-lhe tudo, apenas para animá-la. Prometi-lhe que, se a polícia não conseguisse recuperar o quadro, eu descobriria uma maneira de forçar Sir Austin a capitular. Parece que deu resultado. Ela agarrou-se a essa nova esperança. Mas, agora, tenho de agir. Não quero responsabilizar minha consciência pela vida dessa moça. Não quero vê-la morrer. Tinha de fazer alguma coisa, e fiz. Chamei-o. Bem sei que não foi justo, Jay. Não tenho o direito de obrigá-lo a participar de minhas pieguices, mas é preciso que você me ajude a descobrir um meio de salvar a vida de Medora. Quer dizer:

vim da província e você conhece mais gente do que eu na cidade grande. O que diz, Jay?

Doyle acariciou sua cara de lua cheia, pensativo.

— Claro que farei o que puder, Hazel. A dificuldade está em saber o quê. — Ficou silencioso por instantes, depois acrescentou:

— Acho que o melhor é iniciarmos as investigações pelo círculo dos Ormsbys. Quem são os amigos e os inimigos de Sir Austin? Deve haver um grande número de jornalistas e diplomatas que lhe querem mal. Talvez possamos investigar também o círculo de Fleur Ormsby.

— E quanto a esse idiota do Sydney Ormsby? Ouvi dizer que ele está na cidade.

— Sydney? Tem razão. Encontrei esse tolo em Viena. Agora, está aqui. Estão todos aqui. Querida, deixe-me pensar um pouco. Dentro de alguns dias, voltaremos a falar nisto. Entretanto, tentarei descobrir uma solução. É possível que, então, possamos fazer alguma coisa por Medora.

— Mas não demore — implorou Hazel.

— Não demorará — prometeu Doyle.

Hazel recostou-se na cadeira de vime, exausta. E Brennan, que ouvira atentamente sua exposição e a consequente troca de palavras, compreendeu de súbito que sentia uma grande afeição por Hazel Smith. Sua mudança de atitude deixou-o espantado. Tinha ido ao Fouquet preparado para enfrentar uma cadela sem coração. Em vez disso, descobria não uma cadela, mas uma Madona ardente e sentimental. A imagem de Hazel Smith como Madona obrigou-o a sorrir, mas permanecia o fato de ela ter se sacrificado por outra alma, por alguém que era pouco mais do que uma estranha para ela e que não gozava de simpatia aos olhos do mundo.

Contudo, Brennan achou por bem não exteriorizar essa nova afeição que sentia despertar. Hazel Smith era o gênero de pessoa que via os outros sob um único prisma, sob uma única cor:

ou preta ou branca. Para Hazel, Medora era Joana d’Arc, a Branca. Para Hazel, Brennan continuava a ser Benedict Arnold, o Negro. No entanto, devido a sua recente afeição por ela, devido ao novo amor que sentia por sua própria vida, Brennan gostaria de se ver correspondido, gostaria de conseguir, pelo menos, a compreensão de Hazel, de lhe provar que, se era negro, isso não significava uma mancha de vilania, mas apenas a escuridão de um martírio imerecido.

Sobressaltou-o o fato de notar que tomava isso a peito. Era como se, liberto da anestesia, mergulhasse na dor da vida.

Viu Hazel retirar de cima da mesa a bolsa e os jornais, a fim de que o garçom servisse a Coca-Cola e os dois cafés.

Ela meteu o canudinho na bebida refrescante, afastou para o lado a casca de limão, acabou por tirá-la do copo e pôs-se a sorver calmamente o refrigerante pelo canudinho. Quando voltou a endireitar-se, parecia tão animada como se tivesse comido ambrosia.

— Agora, sinto-me melhor — disse ela. — Estava seca por dentro. Não sei se é do tempo ou se por estar preocupada com Medora. De qualquer maneira, para começar, Jay, pode me dizer o que você e Brennan falaram com Earnshaw?

— Sim.

— O quê? — Não esperou pela resposta de Doyle. Seus olhos cravaram-se em Brennan. — E você, o que fazia com o Ex? Julguei que ele fosse seu inimigo número um.

— A verdade — disse Brennan, pouco seguro de si — é que ele não é tão mau como parece, quando se. ..

— Assinou os papéis que o condenaram — interrompeu Hazel.

Doyle interveio imediatamente:

— Isso foi há quatro anos, querida. As pessoas mudam.

Hazel continuava fixando Brennan. Retorquiu:

— Mas seus atos ficam. Brennan e Earnshaw reconciliam-se. Não daria um bom artigo?

— Hazel, não.. .! — alarmou-se Doyle.

— Estou brincando, Jay. Por que não me conta? Não consigo imaginar sobre o que os dois teriam conversado.

— Nada que tenha a ver com as antigas desinteligências — apressou-se Doyle a esclarecer. — Acontece que Earnshaw precisava de informações e conselhos sobre determinado assunto, e eu lhe disse que Matt talvez pudesse ajudá-lo. Então, Earnshaw convidou-o. Hazel, Earnshaw não tomou parte ativa no julgamento de Matt pelo Congresso. Como sempre, deixou que Simon Madlock pensasse e decidisse por ele. Mas Madlock morreu, e Earnshaw não pôde fazer nada. Por isso, permitiu que o senador Dexter proferisse a sentença e atirasse Matt às feras.

Hazel não disfarçou seu ceticismo. Contudo, não fez comentários. Pôs-se a observar o trânsito dos Champs-Élysées.

— Olhem para aquela moça — disse ela. — Aquela de blusa branca folgada e saia azul. Aposto que não usa nada por baixo. É indecente. O que vêem vocês, homens, nessas garotas francesas?

— Não usam sutiã, quanto mais não seja — respondeu Brennan com um sorriso.

Hazel olhou-o de revés:

— Estou tentando me recordar. Continua casado?

— Não.

— Agora já me recordo. Não tinha certeza, mas aposto que já sei por que veio a Paris.

— Um homem não precisa vir a Paris para isso, srta. Smith.

— Suponho que não.. . Nesse caso, por que se encontra em Paris? O que faz aqui?

— Bem... — O terreno era escorregadio, e Brennan hesitou. Esteve tentado a proferir o nome que ele e Hazel conheciam, mas tinha prometido a Doyle calar-se. Pensou em evitar a pergunta, mas, antes que pudesse inventar uma mentira plausível, de caráter geral, Doyle correu em seu auxílio.

— Matt vem muitas vezes a Paris, Hazel. Trabalha para uma importante firma de importações e exportações, na Itália. Enquanto está aqui, aproveita para visitar velhos amigos do Departamento de Estado que participam da Conferência de Cúpula.

Hazel olhou para Brennan:

— Quer dizer que continuam sendo seus amigos?

— Não todos, srta. Smith, mas há alguns que ainda acreditam em mim. Gosto de vê-los, e, como é evidente, continuo tentando provar minha inocência.

— Se assim é, por que se recusou a conceder-me a entrevista que lhe pedi no domingo passado? — inquiriu Hazel. — O que você precisa, de início, é da simpatia da imprensa.

— Como poderia adivinhar que seria simpática comigo, srta. Smith?

— Não podia. Contudo, ainda exerce certo encanto sobre o Departamento de Estado. Além disso, muitos de nós, jornalistas, estamos quase sempre a favor das vítimas. O fato, porém, de nos tratar como animais ferozes não o ajuda muito.

— Srta. Smith — disse Brennan com seriedade —, histórias tristes não são notícia. Só contam acontecimentos reais, fatos novos. Se um dia conseguir provas concretas de minha inocência, além de minha palavra, isso constituirá uma notícia, e será a primeira a ser informada.

— Talvez nessa altura eu lhe agradeça, Brennan. Por ora, obrigada por nada.

— É que nada tenho a lhe dizer, srta. Smith. — De soslaio, Brennan viu Doyle, que suava como um adido de imprensa nervoso, sentado entre uma jornalista hostil e um entrevistado desagradável.

Doyle inclinou-se para a frente, decidido a evitar uma calamidade.

— A propósito, Matt, deve ter qualquer coisa que possa interessar a uma correspondente estrangeira tão astuta como Hazel. — E dirigindo-se a Eíazel Smith:

— Querida, ver Matt em ação fez-me lembrar uma coisa:

pode-se expulsar um homem da diplomacia, mas não se pode expulsar a diplomacia de um homem. Ao reatar suas relações com alguns delegados, gente de dentro, Matt apanhou certas conversas de bastidores que eu ou você, sem seu ouvido treinado, teríamos considerado sem importância.

— Oh, sim? — inquiriu Hazel. — Por exemplo?

Desnorteado, Brennan perguntou-se o que estaria preparando seu agente de imprensa e tentou detê-lo, a fim de evitar embaraços:

— Um momento, Jay. Ainda não tenho provas concretas, trata-se apenas de boatos. Talvez seja preferível não falar nisso por enquanto ...

Hazel fingiu não ouvir Brennan. Lançou a Doyle um olhar inquiridor:

— O que se passa por trás da conferência?

Erguendo a mão para tranquilizar Brennan, Doyle continuou a provocar Hazel:

— Hazel, você é um admiradora da União Soviética, mas creio que concorda em que, nos últimos anos, o primeiro-ministro Talanski tem mostrado tendência para se aproximar das democracias, considerando essa atitude a mais adequada para refrear a China vermelha e garantir a paz mundial. Como consequência, a China acusou a Rússia de trair o Partido e o socialismo e tem-na tratado como a um camarada desagradável ou a um amigo traidor. A China e a Rússia continuam estremecidas, e a China, forçada a caminhar sozinha, viu-se obrigada também a baixar a cabeça e a domar o orgulho ao vir para a conferência. Tudo por causa da desinteligência ideológica com a Rússia. É uma estimativa exata?

— Bastante exata — concordou Hazel.

— Pois bem. Matt Brennan tem provas, baseadas no que ouviu e deduziu, que contradizem inteiramente o que o mundo vê e aquilo em que acredita. Segundo Matt, embora os russos e os chineses se finjam inimigos em público, entendem-se secretamente. Em outras palavras, participam das conversações para um pacto das nações, para uma comunidade mundial consagrada à paz, mas planejam uma aliança comunista que será mantida sub-rosa depois da conferência. Se isso for verdade, se as descobertas e as deduções de Matt forem verdadeiras, então a conferência não tem sentido, será apenas uma fachada de Potiômkin erguida para ocultar às democracias as realidades das ambições comunistas. E, se assim for, isso lhe fornecerá a maior bomba do ano, Hazel. Creio que vale a pena averiguar. Estou certo de que Matt não se importa. De fato, tenho certeza de que ficará encantado e a encorajará a fazê-lo.

Hazel escutara-o de rosto tenso. Continuou a ignorar Brennan quando disse a Doyle:

— Em que seu amigo baseia suas deduções?

Doyle sentiu-se momentaneamente embaraçado:

— Bem... — E olhou para Brennan.

Brennan pareceu despertar:

— Prefiro não citar por enquanto minhas fontes ou provas.

— Veja se compreende, Hazel — interveio Doyle, precipitadamente. — Bem sabe, às vezes, que recusamos divulgar nossas fontes de informação. É a ética da profissão.

— Brennan não é um profissional — replicou Hazel.

— Mas tem amigos, querida. Já lhe indicou o caminho. É quanto basta para começar. Se eu fosse você, não deixaria de investigar. Tem ligações. — Fez uma pausa. — O que lhe parece, querida?

Lentamente, ela se voltou para Brennan, ao mesmo tempo em que dizia a Doyle:

— Creio que seu amigo perdeu o juízo.

Doyle protestou:

— Está exagerando um pouco, Hazel, mas... — Ansioso por aplacá-la, dirigiu-se a Brennan:

— É claro que, em outras palavras, foi o que Earnshaw pensou, também.

— Pois bem, pela primeira vez aquele tolo teve razão — disse Hazel. — Brennan, não me interessam os boatos que tenha ouvido. Os delegados políticos transportam rumores sem fundamento como a febre tifóide transporta bacilos, e, quando se tem a cabeça fraca, pode-se ser contagiado, porque de uma coisa estou certa, e isso é um fato:

conheço os russos. Entrei e saí do Kremlin dúzias de vezes. Entrevistei todo o Politburo. Compareci a jantares em que o primeiro-ministro Talanski falou abertamente. E sei que os dirigentes russos acreditam que seguir a China significa dividir o mundo, prosseguir na corrida às armas, chegar à guerra inevitável e à catástrofe total. Os dirigentes russos acreditam que, ao se afastarem da China para se aproximarem das democracias ocidentais, podem forçar a China a juntar-se a nós e garantir a paz. Não há uma única possibilidade de o primeiro-ministro Talanski renegar essa política franca. Se ouviu rumores em contrário, lembro-lhe de que não passam de rumores. Mas mesmo que algum deles tivesse fundamento, interpretou mal seu significado. Se os russos e os chineses estão combinando uma aliança para depois da Conferência das Cinco Potências, pode ter certeza de que não será mais do que um acordo, comercial ou econômico. No fim, uma vez encerrada a conferência, haverá desarmamento total e paz na Terra, não existindo motivo para que a Rússia ou qualquer outra nação não estabeleça termos amigáveis com a China. Entraremos todos desarmados no mesmo barco, devotados à mesma causa, a sobrevivência, o que significa que afundaremos ou nos salvaremos juntos. — Sorveu um pouco de Coca-Cola. — Desculpe, Brennan. Se espera alguma coisa de sua teoria, será melhor reunir fatos incontestáveis, o que eu duvido que consiga. Disse que só discutiria sua inocência quando tivesse fatos. Acredite em mim, e isto também se refere a você, Jay, não vá repetir esta conversa irresponsável. Ouça, Brennan. Se o fizer, piorará ainda mais sua reputação, se isso é possível.

Brennan pegou o maço de cigarros e o isqueiro e meteu-os no bolso. O que Hazel dissera tinha sentido, mas nem por isso deixara de irritá-lo.

— Obrigado pelo conselho — disse com rudeza. — É possível que tenha razão, mas não sabe o que eu sei. Há motivos para minhas suspeitas. Exercem-se aqui outras atividades inexplicáveis. Mas. ..

Subitamente, Doyle animou-se.

— Matt, talvez você pudesse falar a Hazel do antiquário de livros da Rue de Seine, que investigou, aquele que julgamos ser uma célula comunista...

— Que história é essa? — interrompeu Hazel.

Brennan meneou vigorosamente a cabeça:

— Não, Jay. No momento, a srta. Smith me considera um lunático. Se lhe contasse mais algumas de minhas aventuras, ela se convenceria de que estou maluco. Ponhamos uma pedra sobre o assunto, por ora, Jay. — Levantou-se. — Obrigado pelo café, Jay. E, uma vez mais, obrigado por seu conselho, srta. Smith. Mas não o seguirei. Gosto do cheiro da intriga política. Acho agradável estar no serviço ativo, embora na retaguarda e não oficialmente. Na próxima vez, discutirei com você minhas ideias, mas só se forem fatos e não teorias. Caso contrário, vou me submeter a seu desejo e admitir que perdi, como disse, o juízo. Agora, vou deixá-los.

— Vê-lo-ei mais tarde — disse Doyle.

Prestes a partir, Brennan hesitou:

— Só mais uma coisa, srta. Smith. Tentei dizer isso há pouco, enquanto falava de Medora Hart. Não a conheço, mas quero que saiba que estou com você. Não gosto que espezinhem gente indefesa. Tenho alguma experiência neste campo, e não é agradável. Por isso, aconteça o que acontecer, estarei ao lado de Medora, também. Se você e Jay não conseguirem nada, por favor, avisem-me. Quando falavam dela, ocorreu-me uma coisa. Uma ideia. Uma possibilidade. Nada de concreto, mas uma ideia, pelo menos. Se não conseguirem que ela regresse à pátria, talvez eu o possa tentar. Seja como for, avisem-me.

Pela primeira vez, Hazel teve um sorriso amigável e estendeu-lhe a mão. Brennan inclinou-se sobre a mesa para apertá-la.

— Muito bem, Brennan — disse ela. — Chamaremos a isso uma opção pela amizade de cada um de nós. Talvez você não seja a ovelha sarnenta que todo mundo, inclusive eu, pensa que é. Pode suceder que eu venha a gostar dè você. De qualquer maneira, Brennan, tem dois pontos a seu favor:

primeiro, Jay o estima; segundo, Medora obriga-o a agir. Portanto, não deve ser inteiramente mau. Veremos qual de nós terá a opção.

— Está combinado — disse Brennan.

Quando se voltou para sair do Fouquet, ouviu Hazel exclamar para Doyle:

— Meu Deus, veja as horas! Há alguém me esperando para uma entrevista. Desta vez, não posso chegar atrasada.

E Brennan, ao sair, perguntou-se quem seria o próximo felizardo que teria de suportar a língua viperina de Hazel Smith e de simular boa vontade...

Ofegante, Hazel Smith abandonou o táxi que a conduzira à Porte Maillot, na extremidade nordeste do densamente arborizado Bois de Boulogne, que era a entrada para o parque infantil, o recinto de diversões e o jardim zoológico, a que os parisienses chamam Jardin d’Aclimation.

Metendo-se na fila diante da bilheteria, Hazel teve certeza de que a aceleração de seu coração não provinha de uma excitação física ou do receio de chegar atrasada (pois estava na hora), mas da ansiedade derivada de seu novo e duplo papel. Avançando com a fila, experimentou simpatia por Gertrud Margaret Zelle, que se tornara Mata Hari e Agente H. 21 ao mesmo tempo. Ali estava ela, uma mulher chamada Hazel Smith para certo americano, e, para certo russo, a imaginária secretária de um imaginário sr. Gérard. Aquela seria sua primeira prova como personagem de lealdade dividida, e não estava certa de levá-la a bom termo. Uma vez mais, a nevoenta atmosfera francesa estava cheia de punhais.

Chegando à bilheteria, pediu uma passagem para o trem miniatura. Havia uma pequena entrada para o Jardin d’Aclimation, mas Hazel preferiu outro caminho, porque era mais longo e pitoresco. Precisava de alguns minutos extraordinários para acalmar os nervos e recobrar o ânimo. E precisava também de uma entrada mais espetacular e romântica no recinto de diversões.

Desde a mais tenra infância, quando o pai a levava às festas da Legião Americana na praia de Milwaukee, às ruas congestionadas e às loucas cavalgadas de White City, em Chicago, Hazel Smith tornara-se perita nesses recantos dos anos mais felizes e ingênuos. Como adulta, não consentia em que qualquer parque artificial prescindisse de sua presença. Descobrira a Disneylândia de Anaheim, a Coney Island de Brooklyn, os Jardins Tivoli de Copenhague, o Prater de Viena, o Parque Górki e o Parque Sokolniki de Moscou.

Mas o local preferido de todos era aquela parte do bosque nos arredores de Paris, que dava para o Jardin d’Aclimation. Sempre que ia a Paris, Hazel deixava que os outros visitassem obrigatoriamente o Louvre, o Sacré-Coeur, os Jardins do Luxemburgo. Quanto a ela, continuava a preferir o pequeno trem que a levava através de florestas encantadas para seu país de fadas.

Nunca conseguira perceber por que motivo lhe agradava mais uma visita ao jardim do que aos magníficos parques do mundo. Não possuía qualquer das grandes atrações de seus extravagantes rivais — não oferecia nada que se comparasse às gigantescas rodas-gigantes do Prater ou aos pavilhões do Parque Górki de Moscou —, no entanto continuava a ser o que mais satisfação lhe proporcionava. Isso fê-la pensar que os outros parques de diversões — como certos brinquedos de crianças — se destinavam principalmente a prender os olhos e os blocos de notas dos adultos. Sua finalidade era oferecer prazeres juvenis, mas o engodo destinava-se aos sofisticados adultos. Em contrapartida, o Jardin d’Aclimation não fazia concessões à maturidade cansada. Não alardeava ser mais do que era, um modesto recinto ao ar livre com passeios comuns, barracas de jogo baratas, pequenos e despretensiosos restaurantes, um minúsculo jardim zoológico, divertimentos corriqueiros, exatamente aqueles que poderiam ser absorvidos em algumas horas febris pelo espírito excitado de uma criança de oito anos. Hazel gostava dele porque naquele céu fácil da família trabalhadora francesa podia ser outra vez jovem, gozar os sonhos da infância e até acreditar na ilusão de que a vida podia se revelar em parte despreocupada e feliz.

Transpondo o portão, ocupou um assento de madeira no último vagão aberto do trem miniatura. Enquanto o chefe da estação soprava o apito e a locomotiva começava a puxar os vagões escassamente ocupados em direção à floresta imaginária, lembrou-se do motivo por que tinha de ir nessa tarde ao Jardin d’Aclimation. Não era a necessidade de um róseo paliativo juvenil ou mesmo de um sedativo mais forte que serenasse a confusão de seu espírito. Era a necessidade de um lugar seguro, impossível de ser visitado por turistas, especialmente numa quarta-feira, à hora do almoço, e no entanto um lugar suficientemente público e excitante para remover as pressões que uma entrevista íntima e privada provocaria. A entrevista íntima ocorreria dentro em breve. Mas, antes disso, precisava se preparar. Tinha de compreender seu novo e duplo papel. E precisava compreender a quem prestaria vassalagem. Tinha de ser positiva.

Ficou surpresa ao ver o trem miniatura chegar a uma estação no círculo de trilhos que era o fim da linha. Nunca antes havia feito a curta viagem sem tomar consciência do engraçado trem e das árvores ao longo do trajeto. Deixando-o, compreendeu o motivo. IToje, não se refugiara na infância. Hoje, teria de enfrentar a idade adulta e o que dela restava. Com desgosto, entregou seu bilhete, e sua juventude, ao porteiro. Sabia que o jardim nunca mais seria o mesmo.

Dirigiu-se rapidamente para a principal rua de acesso, escassamente povoada a essa hora de um dia de semana. À sua esquerda, deslizava o rio artificial, onde barcos sem remos flutuavam magicamente em torno de ilhas pequeninas, todos impelidos por uma única roda que agitava a água, e voltou a ver a réplica atrofiada da Torre Eiffel. À sua direita ficava o jardim exuberantemente colorido, com um relógio de flores no centro, e, a seguir, o palco e a entrada de um pequeno recinto de exposições.

Tinha chegado ao coração do jardim, um semicírculo de restaurantezinhos e barracas de jogos que davam para uma estrada murada francesa em miniatura, onde jovens conduziam pequenos carros a vinte quilômetros por hora, guiados por agentes da polícia de trânsito francesa. Aqui e além, nas barracas, podia ver pais que observavam seus rebentos, entretidos no tiro ao alvo ou arremessando bolas em bonecos. Podia ver uma babá e suas três crianças, que debicavam barbre à papa, o tão conhecido algodão-doce. Mas não podia ver aquele que desejava encontrar.

Então, olhando para a última curva do semicírculo de barracas, viu Nikolai Rostov.

Àquela distância, ele parecia muito mais baixo do que na véspera, quando de seu breve encontro, ou do que nos longos anos que haviam passado juntos em Moscou. Ao avançar para ele, notou que não era a distância que o fazia mais baixo, mas a corpulência dele, que, em espírito, ela comparava ao enorme volume de Jay Thomas Doyle.

Quando se aproximou, Rostov aumentou de tamanho. Era de altura mediana, atarracado, musculoso, e, embora o terno cor de carvão fosse demasiado escuro para aquela hora do dia e pesado demais para o tempo, tinha melhor corte do que a maior parte dos ternos usados pelos homens russos. O rosto largo, de aparência camponesa, estava parcialmente oculto por determinado papel. Os olhos astutos e penetrantes ergueram-se, e com uma das mãos ele ajeitou uma madeixa rebelde de cabelos grisalhos. Depois, subitamente, sua mão ergueu-se mais alto e ele pôs-se a acenar, à medida que ela se aproximava.

— Olá, Niki — saudou Hazel, ao chegar perto dele.

Imediatamente, um braço forte enlaçou-a, quase a arrancando do chão, e depois, sem deixar de mastigar, Rostov beijou-a na face.

— Milochka, querida, meu tesouro.

De dia, ele a chamava sempre de milochka, minha bem-amada, minha querida. À noite, chamava-lhe geralmente liúbov, meu amor. Raramente a tratava por Hazel, nome que achava difícil de pronunciar.

— Ajeite a gravata — disse ela. — O que você está comendo?

—• Um crêpe au confiture — respondeu Rostov, segurando entre os dedos o crêpe envolto em papel de embrulho. — Venha comer também. Deve estar esfomeada.

Passando-lhe um braço em redor da cintura, começou a arrastá-la para uma das barracas de guloseimas. Ela tocou-lhe nos dedos que lhe apertavam as costelas.

— Niki, não está sendo um pouco estouvado? O que diria sua mulher se nos visse assim?

Ele riu ruidosamente, mas recusou-se a largá-la.

— Minha mulher'... como é a canção?... foi para o campo, olaré, olaré... Não foi assim que me ensinou? Natacha partiu para uma excursão aos châteaux com Tânia Talanski e cerca de uma centena de guardas franceses. Estarão ocupadas.

Na barraca de guloseimas, Rostov pediu mais dois crêpes au confiture. Hazel manteve-se a seu lado, enquanto ele, com infantil prazer, observava a velha senhora francesa que estendia a massa batida na chapa escaldante.

— Quando é que Natacha regressa a Paris? — perguntou Hazel.

— Nem hoje nem amanhã, só depois de amanhã, na sexta-feira.

Pôs-se a observar os crêpes dourados que estavam sendo recheados de geléia, dobrados em dois e envolvidos em papel. Depois, tirou um punhado de moedas, escolheu alguns francos entre os rublos e os copeques e pagou. Estendendo um crêpe a Hazel, começou a mastigar o seu, ao mesmo tempo em que indicava o caminho ao longo da fila de barracas, cada uma delas com suas estantes repletas de mercadoria barata.

— Fome — disse ele, enchendo de novo a boca. — A verdadeira paixão, milochka, é dar a alguém um bom almoço para chegar a seu amor.

Era um urso selvagem que tinha de ser domado, pensou ela, ou melhor, um touro por vezes simpático.

— Está muito terno, hoje. Quando quer, sabe ser meigo.

— É que penso nos dias que se seguirão ao de amanhã. Telefonou deixando-me um recado, mas já tencionava entrar em contato com você. Quando soube que Natacha ia viajar, só pensei em minha milochka. Esperava encontrá-la esta noite. Mas... niet. Por causa das sessões, hoje tenho muito mais trabalho. Só me resta esta hora do almoço para ficar com você. Os franceses sabem proporcionar prazer. — Olhou para ela. — Às vezes, os americanos também. Esta noite, porém, não posso ficar com você. Estou louco de desejo, mas o primeiro-ministro ainda está mais louco com os debates no Palais Rose, pelo que tenho de ficar trabalhando.

O desapontamento de Hazel foi sincero:

— Que pena, Niki!

— Mas amanhã à noite — e seu rosto abriu-se num largo sorriso — será diferente. Estarei livre. Irei ao seu apartamento, por volta das nove horas. Passaremos a noite juntos.

— Oh, Niki, é maravilhoso! — Pegou as mãos dele e acariciou-lhe os pêlos dos dedos. — Foi por isso que lhe telefonei, exclusivamente. Ontem, estivemos apenas quinze minutos juntos, e isso me fez sentir saudades suas. Queria vê-lo para saber quando será possível estarmos juntos. Vai ser muito agradável. Poderemos conversar e. ..

Ele enlaçou-a:

— Faremos mais do que isso. — E beijou-a nos lábios.

Hazel tentou afastá-lo, conseguindo-o finalmente. Apesar dos crêpes, o hálito dele estava impregnado de um cheiro acre de arenque. Olhou nervosamente em redor e observou:

— Francamente, Niki! Mesmo que sua mulher esteja em viagem, há outras pessoas que nos podem ver. Como explicaria isso?

Ele riu:

— Daria a mesma explicação que na Rua Kirova. Sou um cossaco, e sempre beijo as mulheres bonitas, sobretudo as que me entrevistam.

— Demasiado simplista, Niki. Começo a não confiar em você. Aposto que não tem nada para fazer no Palais Rose. Parece-me que veio a Paris para andar atrás das moças francesas. Acertei, não é verdade? É por causa dessas francesas que não o vejo há tantas noites.

Rostov ofegava, ao mesmo tempo em que tentava levá-la na direção oposta.

— Moças francesas, você diz? Fogos de artifício! Rabos de foguete, de cabeleiras e roupas extravagantes, quadris falsos e perfumes malcheirosos em vez de água, sutiãs em vez de seios, nada de amor normal, tudo decadência, quer se trate de prostitutas de grandes pernas abertas ou de mocinhas católicas de pernas cruzadas, nada que se compare a uma mulher forte e honesta, a uma mulher russa. Você é uma mulher russa, milochka, seu sangue é de Moskvá Matuchka. Sempre lhe disse isso. É verdade. É a mulher autêntica para qualquer homem.

Um pouco espantada com aquela inesperada explosão de orgulho, depois penalizada e por último arrependida de sua infidelidade, Hazel caminhou silenciosamente ao lado de Rostov. Por fim, murmurou:

— Gostei do que você disse, Niki. Spassibo. Obrigada. Foi bom você ter vindo aqui.

Ela lhe lançou um prolongado olhar de soslaio. Ele a excitava. Não era nenhum Adônis. Suas sobrancelhas eram espessas, as feições, mongólicas, a cara, arrepanhada como se fizesse a barba com uma roçadoura, os ombros, descaídos e o corpo, atarracado. Não, não era nenhum Adônis. Nem tinha a imponência de um bolchaia chiska — um grande pinheiro. Fisicamente, era desagradável, um bruto, um primitivo. Fisicamente, evocava a imagem de virilia. Sentiu-se intimamente fraca, envergonhada e, uma vez mais, sufocada pela culpa.

— Gostaria de poder ficar mais tempo — disse Niki, consultando o relógio que herdara do pai. — Está quase na hora de voltar para salvar o mundo. — Franziu o nariz, a fim de mostrar que estava brincando, guardou o relógio no bolso e acrescentou:

— Ainda tenho dez minutos. Não sei aonde ir, mas creio que havia por aqui um jardim zoológico que gostaria de ver.

— Fica em frente.

— É bom ver os animais, depois de se ter estado com as pessoas — comentou Rostov.

— O que quer dizer com isso, Niki?

— Pessoas de cinco países encontram-se na mesma sala. Pessoas de cinco passados, cinco sentimentos, cinco ideias. Pessoas que olham para o mesmo globo, vendo cada uma delas uma imagem diferente. E, no entanto, há uma única imagem. Pessoas que se revelam perigosas, muito perigosas.

— Sim, compreendo. Eu... eu estava brincando quando falei das moças francesas. Pobre querido, sei que tem trabalhado muito.

— Dias difíceis e noites iguais.

Pararam diante de uma casa em miniatura, separada por uma cerca de arame, onde se instalara um pequeno reino de roedores, uns dormitando, outros brincando.

— Não são engraçados? — perguntou Hazel. — Olhe como são gentis brincando!

— Coloque um gato na jaula deles e acaba-se a brincadeira — disse Rostov.

Ela encarou-o:

— Está se referindo à China?

— Não menciono nomes — respondeu Rostov, encolhendo os ombros. Deu-lhe o braço e continuaram o passeio. — Às vezes, numa nação de roedores, há quem pense que os de fora também o são. Não acreditam em gatos. Quem sabe onde está a razão? — Largou-lhe o braço. — Mas o trabalho... sim, é difícil.

Ela pôs-se a interrogá-lo delicadamente, não como jornalista, mas como mulher que partilhara muitas de suas noites e que, uma vez ou outra, prudentemente, discutia suas atividades no Palais Rose e as reuniões ministeriais efetuadas diariamente no Quai d’Orsay. A maior parte das vezes, ele falava das conflituosas propostas de desarmamento e dos problemas levantados quanto à forma de satisfazer os compromissos, assim como das suspeitas que os chefes e os delegados alimentavam uns contra os outros e do choque de suas personalidades.

Na barraca de amendoins, ele comprou dois saquinhos, um para cada um. Descascou alguns para ela e para ele, depois disse com firmeza:

— Muita política. É o que tenho todo o dia. Você é a única coisa que me dá prazer. Não posso misturá-la com a política. O que fez ontem e hoje?

— Política — respondeu ela, com um sorriso trocista.

Rostov fez uma careta e comentou:

— Naturalmente. — Olhou para um fosso de ursos. —

Temos muitos em nossa pátria. Por mim, prefiro os macacos. São divertidos. Fazem-nos rir de nós mesmos.

Deram a volta ao recinto dos macacos, que saltitavam num monte artificial cercado por um fosso. Os macacos eram engraçados quando pediam alimento, e Hazel e Rostov puseram-se alegremente a atirar-lhes amendoins.

Apoiando-se à balaustrada, ao mesmo tempo em que alimentava os macacos, Rostov insistiu:

— Não me disse como passou o tempo.

— Como você, Niki, tive muito trabalho. Já lhe expliquei ontem. Uma Conferência de Cúpula atrai muita gente estúpida. — Atirou ao ar um amendoim, e um ágil bugio apanhou-o e deu uma cambalhota. — A maior parte de meus entrevistados não fica nada a dever a esses animais.

— Sim? Não tenho tempo para ler seus artigos. Vi apenas um, sobre a sobrinha do presidente Earnshaw. Ela parece encantada por ter um parente tão estúpido. O primeiro-ministro Talanski e o marechal Zabbin perguntaram-me o que ele faz aqui.

— Não faço a mínima ideia.

— Mas eu descobri. O que prova que o jornalista deveria ser eu e não você.

— Se um dia você ficar sem emprego, eu o contrato.

— Não voltarei a ficar sem emprego — disse ele, gravemente.

— Por que Earnshaw está aqui, Niki?

— Porque o dr. von Goerlitz também está. Goerlitz veio negociar com a nossa... a nossa difícil delegação chinesa. Está construindo para eles um reator para fins pacíficos. É bom sinal. Também está tentando vender suas memórias, nas quais se insurge contra as antigas idiotices de Earnshaw. Este tem-se esforçado por detê-lo... Milochka, olhe aquele macaco. Acumula os amendoins como um capitalista, mesmo quandos os filhos morrem de fome. A propósito, que outros macacos preencheram seu tempo?

— Oh, toda espécie de gente, muitas não diretamente ligadas à conferência. Coisas leves, sabe, para contrabalançar o pesado material político que sobrecarrega as linhas telegráficas. — Tentou distraí-lo e interessá-lo em histórias extraídas de suas entrevistas com Legrande, o figurinista de moda Claude Goupil, rei dos gastrônomos, e Maurice Quarolli, funcionário da segurança especial francesa.

Quando acabou, ele se manteve silencioso, continuando a alimentar os macacos até o saco ficar vazio.

— E prazer, milochka? — perguntou, atirando fora o saco. — Com quem janta, enquanto estou ocupado?

Esta última pergunta desconcertou-a. Tentou descobrir se ele a fizera casualmente, para dizer qualquer coisa e sem motivo, ou se estava brincando com ela, insinuando que conhecia suas relações com Jay Doyle, visto a embaixada russa ser composta por mil olhos e ouvidos. No entanto, seu rosto de kulak era franco, pouco curioso, e seu comportamento, desde que tinham se encontrado nessa tarde, não revelava desconfiança.

Rapidamente, evocou o nome de várias jornalistas amigas de Paris. Lembrou-se de Medora Hart e contou resumidamente a Rostov suas atribulações.

Ele escutou-a com deferência, ao mesmo tempo em que tirava o último amendoim do segundo saco, descascava-o e comia-o. Ela só havia falado das noites passadas com mulheres, e isso não era natural. Tinha de encontrar depressa um nome masculino, um nome não envolvido em seu trabalho.

Matt Brennan. Acabava de deixar Matt Brennan no Fouquet.

— Os outros homens não me interessam, Niki, quando posso esperar por você todas as noites — disse ela. — É certo que tenho alguns encontros casuais, porque é desagradável para uma mulher ir jantar sozinha em qualquer lugar decente. Ora, vejamos. Oh, sim! Alguém de nossa embaixada apresentou-me a um americano chegado da Itália, em viagem de negócios. Estivemos falando de Paris, e eu lhe disse que nunca tinha estado num bateau-mouche; por isso ele insistiu em que jantássemos num desses barcos. Foi ontem à noite. Meu Deus, que coisa enfadonha! Ele foi diplomata e, embora atualmente se ocupe de negócios, ainda gosta de pensar que é um especialista em política internacional. Está cheio de teorias erradas. Como todos, mostra-se excitado desde que chegou aqui e ouviu certos rumores... é um desses sujeitos que absorvem mais lixo do que um aspirador de pó.. . e está obcecado pela ideia de que a delegação russa e a chinesa apenas fingem ser inimigas, que são secretamente amigas e que nem a Rússia nem a China tencionam cumprir as resoluções da conferência. Não é ridículo? Agora, já pode compreender o que uma pobre moça que trabalha tem de suportar.

Rostov estava divertido, mas interessado:

— É o maior disparate que ouvi até hoje, e ouvi muitos, acredite. — Fez uma pausa. — Como se chama esse seu amigo negociante que meteu tais coisas na cabeça?

— Brennan, se não estou enganada. Isso mesmo:

Brennan.

Rostov pareceu surpreso.

— Matthew Brennan?

Subitamente, ao ouvir Rostov pronunciar com familiaridade o nome completo, Hazel notou que falara demais e impensadamente. Seu espírito, sempre ocupado em camuflar suas relações com Doyle, quase esquecido do passado de Rostov e do seu, recordava-se agora claramente de Rostov, depois de Zurique e antes da Sibéria, proferindo aquele nome com raiva.

Sentiu-se terrivelmente revoltada com sua estupidez. Por que não pensara noutro nome? Mas apenas dois lhe haviam ocorrido. O de Doyle, que não podia ser pronunciado, e o de Brennan, que acabava de encontrar e lhe parecera inofensivo. Fora um erro evocá-lo, um erro sem importância, pois estava decidida a transformá-lo numa vantagem, demolindo completamente Brennan.

— É verdade, Matthew Brennan — repetiu ela, toda inocência. — Esteve implicado num escândalo político... — Calou-se e tocou-lhe na manga do paletó. — Niki, não o conheceu outrora?

— Sim, para mal de meus pecados — respondeu Rostov com uma careta. — Mas não por muito tempo, apenas enquanto durou a Conferência da Suíça. Creio que lhe falei disso, há muito tempo. Brennan era o responsável por outro demente, o professor Varney. Era uma espécie de ama-seca, como vocês dizem. Foi então que Varney fugiu, e o ingênuo do Brennan se viu metido em problemas, arrastando-nos a todos para a dança... Então ele está aqui. E falou com ele?

— Um chato. Mas não podemos adivinhar o que nos espera. Uma mulher tem de aproveitar as oportunidades.

— Minha trágica milochka! E tudo por minha culpa, que não lhe consagro mais tempo. Então Brennan, o provocador capitalista, diz que estamos conspirando com os chineses e não tencionamos honrar a Conferência de Cúpula? Onde ele foi descobrir ideia tão louca?

— Rumores, Niki. Aqueles que nada têm a fazer colecionam rumores.

— O que lhe respondeu quando ele lhe falou nisso?

— Disse-lhe que estava doido. Assim mesmo.

Rostov jogou a cabeça para trás e riu às gargalhadas.

— Boa e excelente moça, a minha pequena milochka... Admira-me que esse sujeito se atreva a aparecer em público com nossos amigos americanos aqui.

— Creio que seu comportamento é semelhante ao de todos os exilados. Sonham com perseguições até se tornarem completamente paranóicos. Sua única preocupação consiste em imaginar uma solução para emendar os erros da humanidade. Estou convencida de que veio aqui para provar sua inocência. Como todos se recusam a ouvi-lo, tenta brincar de diplomata em disponibilidade, a fim de mostrar que é um patriota útil. Não passa de um pobre e inofensivo louco. Conheci outrora um homem de San Francisco, se não me engano, que se declarava imperador dos Estados Unidos e do México. Era patético. Todos troçavam dele.

Rostov concordou com um gesto de compreensão:

— Há lunáticos em todo o mundo. Também os tivemos na Rússia. A imperatriz Ana Ivánovna casou um de seus ministros com a mulher mais feia do império e mandou construir tim quarto de gelo para a lua-de-mel. Ivan, o Terrível, formou sua guarda pessoal com prisioneiros de guerra alemães vestidos de monges. A rainha Catarina mantinha o cabeleireiro preso numa cela, a fim de que ele não falasse de suas perucas. Catarina pagava cinquenta mil dólares a seu médico para que ele a inoculasse contra a bexiga, e tinha quinze mil vestidos no guarda-roupa. Todas essas pessoas eram lunáticas. Mas as nações podem dar-se ao luxo de permitir que seus chefes sejam um pouco lunáticos. Afinal, é possível que sejam metódicos no meio de sua loucura. Fingem-se lunáticos para atrair os lunáticos. Seu presidente, por exemplo... — Rostov tornou-se pensativo. — Não é desconhecida na América, ou noutras nações, a criação de falsos traidores e seu exílio, a fim de que sejam aceitos pele inimigo e se tornem agentes úteis. Quem me garante que Brennan não é um instrumento da cia?

— Oh, Niki, meu Deus, está falando sério? Brennan? Ele não passa de um fraco, um desvairado. E, acima de tudo, é um louco.

Ao pronunciar a última frase, lembrou-se da entrevista com o superintendente Quarolli, da Sécurité Présidentielle francesa, e da citação que o avô dele lhe fizera da Bíblia Sagrada. Lembrou-se textualmente:

“Bem-aventurados os pobres de espírito”.

Tentou moderar-se, mas logo lhe ocorreu outra coisa, uma troca de palavras entre Doyle e Brennan no Fouquet, antes de se despedirem.

— Sim, considerei-o louco e pueril desde o princípio — dizia Rostov. — Tem razão acerca de Brennan. Kakoi durak... um louco.

— Tenho certeza disso — reafirmou Hazel. — Nenhuma repartição governamental utilizaria um indivíduo que profere semelhantes imbecilidades em público. E há mais uma coisa que prova isso:

Niki, ele não só está tentando demonstrar que sabe mais acerca da Rússia e da China do que os delegados responsáveis, como corre Paris à procura de espiões.

— Espiões? — inquiriu Rostov, incrédulo.

— Exatamente. Brennan disse que tinha procedido a investigações num antiquário de livros da Rue de Seine, que lhe pareceu ser uma célula comunista, um local onde os espiões comunistas iam buscar ou depositar seus preciosos segredos. Não admiti isso e não tive paciência para ouvi-lo, embora ele o desejasse. Mas isto o convencerá, Niki, de que Brennan não passa de uma criança que brinca de polícia e ladrão. Não tem nenhum trabalho de homem para fazer, por isso faz esse. Seja como for, tanto melhor para meus maravilhosos encontros.

Rostov passou-lhe um braço pela cintura, e começaram a afastar-se do recinto dos macacos.

— Minha pobre querida — suplicou ele —, pode perdoar-me?

— Perdôo-o sempre — respondeu ela. — Conheço sua vida e conheço a minha. Está tudo decidido há muito, não é verdade? Não me lamento. — Reparou nas feições coradas dele e sorriu. — Acabaram-se os encontros com outros homens. Só você. Esperarei por você amanhã à noite. Não me desaponte, querido.

— Não a desapontarei. — Consultou o relógio. — E, agora, é melhor eu não desapontar o primeiro-ministro. São quase duas horas. Não posso chegar atrasado. Tenho de ajudá-lo a salvar o mundo.

— Espero que reserve uma parte de você para salvar a pobre Hazel — pediu ela. Esteve quase para dizer Hazel Doyle.

Separaram-se junto da Torre Eiffel em miniatura.

— Até amanhã à noite, milochka.

— Até amanhã.

Viu-o transpor apressadamente a entrada para o trem, em direção ao portão de saída do Jardin d’Aclimation.

Pouco depois, dirigia-se sozinha para o pequeno trem. Sabia que nunca mais viajaria pelo passado. Dois dias depois, só haveria o futuro. Perguntava-se por que motivo não se sentia feliz.

Quando Matt Brennan saiu apressadamente do Hotel Califórnia, faltavam dezesseis minutos para as cinco horas. Visto que esse era o tempo que lhe restava para a entrevista das cinco horas no Bois de Boulogne, não quis arriscar-se a chegar atrasado indo apanhar um táxi na Rue de Berri, que era de mão única, pois o táxi seria obrigado a percorrê-la até o fim, antes de voltar. Chegaria mais depressa dirigindo-se diretamente aos Champs-Élysées e tomando aí uma condução.

Quase correndo, chegou aos Champs-Élysées. Dois táxis estavam estacionados atrás do sinal, ao centro, ambos voltados para o Arco do Triunfo e o Bois de Boulogne, ao fundo. Sem esperar que o sinal abrisse, Brennan avançou por entre o trânsito. Chegou ao primeiro táxi precisamente quando um casal chinês entrava nele. Seu desânimo se transformou em agitação, quando olhou para o segundo táxi. Ninguém estava perto dele, e a bandeira libre estava erguida. Rapidamente, correu para o outro veículo.

— Bois de Boulogne — ordenou. Abriu a porta de trás do antigo Renault e instalou-se. Quando o sonolento e barbudo motorista se endireitou, Brennan enunciou pausadamente, mas com urgência:

— Estrada da Muette e Caminho da Cintura do Lago, lado leste. Perto dos campos de boule, corte pelo lago. Quase ao lado do Chalet des lies. É o restaurante que fica numa das ilhas do lago. Compreendeu?

— Oui — grunhiu o motorista, dando volta à chave de ignição.

Assim que o táxi avançou por entre o trânsito dos Champs-Élysées e arrancou em segunda, Matt Brennan recostou-se no assento, ainda ofegante, mas satisfeito com o iminente desfecho de sua desesperada busca.

Esse era seu momento mais excitante em Paris, a hora mais crítica que experimentava em quatro anos mortos.

A corrida para o seu destino levaria dez ou quinze minutos no máximo. No fim, encontraria Nikolai Rostov.

À medida que o táxi avançava, parava e voltava a avançar, Brennan tirou o cachimbo inglês do bolso do paletó esporte, pegou os óculos escuros e colocou-os. De olhos fechados por trás dos óculos, tentou recapitular a eletrizante sensação que o telefonema lhe provocara.

Estivera descansando, vestido, na cama de metal de seu quarto de hotel. O encontro com Earnshaw, a cena com Hazel Smith no Fouquet e o passeio que dera em seguida haviam-no deixado exausto. Visto que Lisa tinha saído, decidira conceder a si mesmo um breve descanso a fim de estar em boas condições na hora do jantar para o qual ele e Lisa haviam sido convidados por Herb Neely.

Ali, estendido na cama, pensava em sua intervenção junto de Earnshaw, especulando sobre as possibilidades de êxito de Earnshaw junto do presidente ou de qualquer outra pessoa com quem falasse. Procurava imaginar o que seria ver-se enfim frente a frente com Nikolai Rostov. Sentia-se maravilhosa e francamente otimista, a ponto de dormitar por duas vezes, e ia mergulhar no sono pela terceira vez quando a estridência da campainha do telefone quase estourou seus tímpanos.

Sentando-se na cama, de olhos pesados, procurou o fone, ao mesmo tempo em que via as horas e os minutos no despertador. Eram quatro e vinte e cinco.

Uma mulher falava do outro lado do fio, mas não era a voz de Lisa nem de alguém conhecido. Era uma voz feminina bem modulada, com um ligeiro sotaque inglês, e sua dona mostrava-se extremamente concisa.

— Sr. Matthew Brennan, por favor.

— É ele mesmo quem fala.

— Sr. Brennan, peço-lhe que ouça com atenção. Por favor, não me interrompa. Não faça perguntas. Limite-se a tomar nota do que vou dizer. Telefono-lhe da parte do ministro Nikolai Rostov. Tem lápis e papel? Responda. Tem lápis e papel?

— Sim... tenho...

— O ministro Rostov sabe que o senhor tem tentado entrar cm contato com ele nos últimos dias. Está convencido de que a resposta às suas mensagens em nada pode beneficiá-lo; contudo, há cerca de uma hora, um importante americano intercedeu a seu favor. O ministro Rostov não vê inconveniente em conceder-lhe alguns minutos. Fui encarregada de informá-lo de que o ministro Rostov concordou com um encontro, nos termos e nas condições que julga necessário impor.

— Claro. Tudo...

— O ministro Rostov não pode se avistar com o senhor pública ou oficialmente. Mas acede com prazer a uma conversa em particular. Queira tomar nota das instruções, sr. Brennan. Deve vestir calça e paletó esporte, pôr óculos escuros e fumar cachimbo. Deve tomar um transporte público para ir ao Bois de Boulogne. Há lá um lago artificial, o lago Inferior, com duas pequenas ilhas no centro. Irá pela passagem subterrânea, ao longo do lago, da parte oriental do Caminho da Cintura do Lago, até o cruzamento da Estrada da Muette. Aí, sairá do veículo e se encaminhará para os campos de boule, que ficam defronte ao Chalet des íles, situado no alto da ilha do lago. Convém que esteja lá às cinco horas. Ficará entre as árvores que margeiam os campos de boule e observará os jogos. Um sujeito com duas bolas de boule se aproximará e dirá:

“Quer juntar-se a nós para uma partida?” Deve responder afirmativamente, segui-lo até um carro estacionado e entrar no assento de trás. O ministro Rostov estará aí à sua espera. Compreendeu, sr. Brennan?

— Sim, mas. ..

— Às cinco horas, sr. Brennan. Bom dia.

Ouviu-se um estalido metálico, a que se seguiu um silêncio apenas interrompido pelo bater apressado de seu coração.

Desligara, ainda estonteado pela surpresa, e depois relanceara os olhos pelas notas que acabava de tomar. O bosque... às cinco horas... o ministro Rostov. Era realidade.

Antes de voltar para a cama, considerou a possibilidade de se tratar de uma brincadeira. Havia naquilo tudo os indícios característicos da violência e da ficção policial:

a chamada anônima de uma mulher, as complicadas instruções para se dirigir a determinado local de encontro, as ordens para se vestir e comportar-se de certa maneira, a urgência e o segredo desse encontro. Ao analisar tudo isso, Brennan sentiu-se indeciso.

Contudo, pulando da cama, encarou o problema sob outro aspecto. Recordou os anos durante os quais lidara com os russos através do mundo, antes de Zurique e em Zurique, e lembrou-se dos encontros específicos com diplomatas comunistas e com o kgb, das muitas vezes em que pensara que as invenções dos romancistas eram pálidas imagens comparadas com o potencial de prementes intrigas que descobria na realidade. O comportamento dos representantes do governo soviético, pelo menos a seus olhos, tinha sido sempre melodramático, sinuoso, secreto, e sua complexidade excedia de longe a ficção. Ao tratar com os soviéticos, a vida não imitava a arte, mas era um exagero da arte. Com base nesse conhecimento, Brennan considerou o telefonema de uma das secretárias de Rostov perfeitamente normal.

Enquanto vestia a calça e o paletó esporte, achou que a possibilidade de se tratar de uma brincadeira não tinha fundamento. Poucas pessoas sabiam de sua visita a Paris nessa semana. Tentara enumerar com precisão as pessoas que sabiam de seu interesse em encontrar-se com Rostov:

Lisa Collins, os Neelys, Doyle, um porteiro desconhecido e alguns membros do pessoal do Hotel Quai d’Orsay, Earnshaw, Wiggins, Isenberg, talvez algumas pessoas mais, assim como um jornalista chinês chamado Ma Ming (se bem que, nesse caso, a propósito de Varney). Brennan não conseguia imaginar que qualquer dessas pessoas fosse suficientemente sádica para inventar semelhante brincadeira. Era uma possibilidade que não tinha cabimento, e, portanto, expulsou-a de seu espírito.

Aquela chamada telefônica, prometendo um encontro secreto com Rostov, era real. Sentia-o nos ossos, e isso sobrepunha-se a toda lógica.

Depois de se vestir, recordou-se da voz feminina sem corpo que lhe dissera que um “americano importante intercedera” a seu favor, convencendo Rostov a finalmente encontrar-se com ele. Tentara descobrir quem seria esse americano. Neely ou Wiggins? Era pouco provável, a não ser que tivessem exposto seu problema ao secretário de Estado, que, por sua vez, decidira agir. Ou, então, Isenberg poderia ter falado de Brennan a um delegado americano que, por seu turno, teria entrado em contato com Rostov. Ou talvez não houvesse nenhum americano importante, e Rostov tivesse resolvido inventá-lo apenas para explicar sua imprevista mudança de atitude, depois de tantas evasivas. Ou, . finalmente, talvez Doyle tivesse, de algum modo... Mas então, pensando em Doyle, Brennan lembrou-se do ex-presidente Earnshaw e de sua promessa dessa manhã. Subitamente, tudo se tornou claro. Earnshaw realmente agira a seu favor.

Embora tivesse pouco tempo, Brennan não resistiu à curiosidade de telefonar a Earnshaw. Em vez deste, foi Carol quem atendeu ao telefone. Não, disse ela, seu tio não estava. Se era urgente... Bem, não sabia ao certo onde poderia encontrá-lo, mas ele tinha saído ao meio-dia para um almoço na residência do embaixador dos Estados Unidos.

— Não é nada de urgente — disse Brennan. — Quando seu lio voltar, dê-lhe o seguinte recado:

“Brennan agradece”. Ele compreenderá.

Desligando, sentiu-se tranquilo. Se Earnshaw estava com o embaixador desde o meio-dia, tinha sem dúvida tomado com êxito a defesa de Brennan durante esse tempo.

Prestes a deixar seus aposentos, Brennan notou que não tinha pegado os óculos escuros nem o cachimbo. Encontrou os óculos na mesinha-de-cabeceira e depois procurou o cachimbo na mala maior. Assim equipado, chamou um táxi para conduzi-lo ao seu decisivo encontro com Rostov.

O táxi estacou diante de um sinal de trânsito, atirando Brennan para a frente. Readquirindo o equilíbrio, ele olhou pelas janelas do Renault e ficou alarmado. Seu veículo estava no meio de um mar de automóveis, e, à sua esquerda, aparecia uma parte do Arco do Triunfo. À sua frente, bloqueando o caminho desde a Avenue des Champs-Élysées até a Avenue de la Grande Armée, estavam três carros grotescamente enganchados. Dois caminhões da polícia tinham acorrido, mas a colisão havia provocado a paralisação total do trânsito.

Brennan consultou as horas com impaciência. Faltavam cinco minutos para as cinco. E no Bois de Boulogne, às cinco em ponto, Nikolai Rostov estaria à espera.

— Motorista, não pode recuar e seguir por outro caminho?

— Non, c’est impossible. Vous ríêtes pas capable de vous en rendre compte vous-même? 1(1 "Não, é impossível. O senhor não consegue perceber isso sozinho?" Em francês no original. - N. do E.)

Brennan olhou pelas janelas e viu que era impossível. Estavam cercados por automóveis imobilizados em todas as direções. A continuar assim, não chegaria ao bosque nem às seis horas. Pensou em pagar ao motorista, atravessar por entre os veículos até o outro lado e apanhar um táxi que fosse para o norte. Mas compreendeu que não conseguiria transporte do outro lado, pois eram poucos os carros capazes de furar o engarrafamento.

Seu sentimento de frustração era quase divertido. Após anos de espera para se encontrar com Rostov, depois dos últimos dias de procura intensiva de um meio para se avistar com ele, via-se impossibilitado de atingir seu objetivo por causa de uma ridícula e típica batida francesa na Étoile. Perder aquela oportunidade de se defender, uma defesa que o restituiria à vida, porque três motoristas franceses tinham batido, devido à bebida ou à imprudência, era demasiado fantástico para ser admitido.

 

Agora, porém, seu motorista estendia para a frente um dedo curto e grosso:

— Regardez, ça a l’air de s’arranger. Ça ne va pas durer longtemps.1(1“Olhe, parece que estão resolvendo o problema. Não vai demorar muito.” Em francês no original. - N. do E.)

Brennan olhou através do pára-brisa, por sobre as capotas dos carros da frente, e viu que os três veículos enganchados estavam sendo removidos com a ajuda de um guincho e dos músculos dos policiais. Em breve, o trânsito estaria normalizado. Não seria demasiado tarde, afinal. Tinha certeza de que Rostov lhe perdoaria dez ou quinze minutos de atraso.

Mais tranquilo, recostou-se no assento do táxi e repetiu as instruções anteriormente dadas.

Conhecia perfeitamente o Bois de Boulogne. Outrora, quando sua mulher Steffi ainda não tinha se tornado odiosa, quando Ted era uma criança e Tracy, um bebê, Brennan visitara muitas vezes o bosque. A partir do momento em que Steffi comparara o bosque a um campo para piqueniques burgueses e começara a detestar os subúrbios (com exceção do elegante St.-Moritz), Brennan passara a ir visitá-lo com os filhos, mostrando-lhes o moinho de vento, as cascatas, o campo de pólo, deixando a pequena Tracy montar um camelo e ensinando ao jovem Ted as regras simples da boule. A maior parte das vezes ia ao bosque sozinho, vagueando pelos estreitos atalhos da mata, apanhando folhas com seu bordão basco, saboreando um sanduíche de queijo ou meramente refletindo em como a simplicidade daquele mundo era muito mais íntima do que o artificialismo do mundo de Steffi.

Sim, conhecia o Bois de Boulogne e sabia onde estaria dentro de alguns minutos. Entrariam nele pela Estrada de Suresnes e seguiriam por entre a espessa floresta, à esquerda, e as matas que escondiam parcialmente o lago Inferior, à direita. Aqui e além, em bancos situados junto à água, velhos franceses sonolentos e suas mulheres, ou românticos pares de jovens, alimentavam os patos e os cisnes. Havia o cais e a lancha que, por trinta centavos de franco por pessoa, levava nativos e turistas estrangeiros ao Chalet des íles, com telhado triangular e terraços descobertos, situado numa das ilhas artificiais, onde se podia saborear uma garrafa de beaujolais ou de bordeaux tinto.

Hoje, porém, não visitaria o Chalet des lies nem atravessaria s o lago. Não iria para o outro lado das águas. Ficaria antes, sob a densa folhagem das árvores, observando os jogos de boule, à espera do emissário de Rostov, que viria com duas bolas e o conduziria à intimidade de um automóvel estacionado nas proximidades.

 

Refletindo em suas instruções, surpreendeu-o o fato de a moça de Rostov lhe ter ordenado que esperasse junto da área de boule. Se bem que Rostov, tanto quanto Brennan se recordava, fosse mundano, não tivera qualquer prova em Zurique de que ele se interessasse por esportes, sobretudo por um esporte tão tipicamente francês como o jeu de boules. Por outro lado, a popularidade da boule parecia aumentar. O próprio Brennan, depois de se ter iniciado no jogo, no bosque, ficara seduzido por sua facilidade e seu encanto. Não havia regras. Bastava uma pequena superfície de terreno, de grama fechada ou terra batida, quatro pesadas boules de um quilo e um pequeno (não maior que uma bola de gude grande) cochonnet de madeira ou bola-alvo. Jogava-se individualmente ou em duplas; um jogador lançava ao ar a bola-alvo de madeira e os adversários corriam para ver qual das pesadas bolas de aço, atirada ou arremessada por cima ou por baixo do ombro, caía mais perto da bola-alvo de madeira. Os jogadores que arremessavam as bolas para mais perto da bola-alvo marcavam pontos. Mas eram os requintes do jogo que faziam dele um esporte. Quando um jogador colocava sua boule perto da pequena bola-alvo, o outro tinha o direito de tentar acertar na sua boule e desviá-la, ou de acertar na bola-alvo e afastá-la. Depois de aprender a jogar no bosque, Brennan foi à seção esportiva de Au Printemps e comprou dois conjuntos de boule, que mandou para sua casa em Washington. Mas, uma vez em casa, exceto num ocasional jogo de sábado com o jovem Ted, pouca oportunidade tivera de jogar. Steffi considerara o jogo vulgar e sem interesse, e preferira consagrar seu tempo ao tênis ou à equitação. Talvez ele tivesse sido severo com ela, mas fora assim que as coisas se passaram.

Sua mente recuara muito no tempo, e agora tentava se lembrar do que motivara essa digressão. De repente, recordou-se. A moça de Rostov ordenara-lhe que esperasse junto da área de boule, no bosque. Contudo, isso não era estranho para nenhum deles. Ele mesmo havia levado a boule para a América. Outros visitantes governamentais também. Na Itália, quando bem-disposto, participara, por vezes, do jogo das boccie, que era semelhante ao da boule. E supunha que os russos, que tinham estado tão frequentemente na França nos últimos anos, houvessem levado a boule para suas datchas nos subúrbios de Moscou, adaptando-a a suas tendências e proclamando-se em seguida seus inventores. Brennan nunca tivera a veleidade de subestimar a largueza de interesses exibida pelos russos e pelos chineses.. . e sobretudo por Rostov.

Sentiu que o táxi voltava a pôr-se em movimento.

Viu que os carros sinistrados tinham saído da frente e que o caminho estava livre. Circundavam a Étoile, aos solavancos e aos ziguezagues, para evitar o trânsito intenso que se escoava de doze ruas transversais e, finalmente, desembocaram na vasta extensão da Avenue de la Grande Armée. Deram a volta à Porte Maillot e seguiram ao longo da surpreendente orla verde que constituía um dos limites do Bois de Boulougne. Chegaria ao local da entrevista quinze minutos depois das cinco. Esperava que Rostov fosse bastante generoso para lhe desculpar esse atraso. Se ele estivesse lá, apertar-se-iam as mãos em menos de um ou dois minutos.

Aproximando-se dos bancos que rodeavam o lago, Brennan tomou consciência do silvo contínuo das sirenas da polícia francesa. Depois, de alguma parte, segundo lhe pareceu, um silvo mais rouco, vindo da retaguarda, sobrepôs-se aos desafinados sons da frente, e seu carro resvalou para a margem da estrada, ao mesmo tempo' em que passava uma ambulância com a insígnia da Cruz Vermelha.

Seu motorista diminuiu a marcha, debruçado no volante, com os olhos fixos à frente, e Brennan viu o mesmo que o motorista. A ambulância e o carro da polícia, que tinha surgido do lado contrário, estavam parados no cruzamento onde Brennan tencionava descer. Dúzias de pessoas, homens em mangas de camisa e mulheres de vestido, os frequentadores do bosque, corriam para o local.

— É melhor parar aqui — ordenou Brennan.

Tendo pago ao motorista, Brennan saiu do táxi e avançou a passo largo para a Estrada da Muette. Ignorando o tumulto causado pelos gritos dos circunstantes e da polícia, Brennan hesitou no cruzamento e reviu suas instruções:

“Atravessar o parque arborizado ao longo do lago e seguir para os campos de boule fronteiros ao Chalet des lies, localizado na ilha do lago... ficar entre as árvores junto dos campos de boule... observar um dos jogos em disputa. Cm sujeito com duas bolas de boule, uma em cada mao, se aproximará.. . “

Como um autômato obedecendo a comandos eletrônicos no meio do caos humano, Brennan atravessou a rua chamada Caminho da Cintura do Lago, até alcançar a sombra fresca das árvores que marginavam o lago. Penetrando no pequeno bosque, chegou finalmente a um descampado, e, à sua direita, numa das ilhas artificiais do centro do lago, pôde distinguir plenamente o maior de dois edifícios, o telhado triangular e as paredes de tijolo vermelho do Chalet des íles. Andando pela grama que acompanhava a orla das matas, chegou aos campos de boule. Ficaria entre as árvores, até alguém se aproximar.

Contudo, porque estava atrasado, avançou. Tentou descobrir os habituais jogadores, mas nenhum era visível. Olhou para os campos — que sabia não serem campos, mas apenas áreas utilizadas para os jogos — e, por último, aproximou-se. Para espanto seu, estavam desertos. Ficou ali, perdido e confuso. Tinham-lhe dito que havia jogos de boule para observar das árvores. Todavia, ninguém jogava. Tudo o que podia fazer era voltar para o meio das árvores e esperar.

Dirigiu-se para o bosque e, pela segunda vez, ficou surpreso. Dado que sua ideia fixa era obedecer às ordens, esquecera-se do acidente, das pessoas que corriam e da polícia, ignorara a balbúrdia e os silvos da ambulância. Mas agora via-se assaltado por uma confusão de sons, porque, através das árvores, para além da área onde estivera à espera, distinguira pelo menos uma centena de espectadores barulhentos, que esticavam o pescoço e interpelavam os policiais, que andavam de um lado para outro, assim como um grupo de homens que levavam uma maca, abrindo caminho por entre a multidão.

Brennan olhou para aquele mar de gente. Quinze minutos antes, não teria partilhado aquela área com tantas pessoas, talvez até a houvesse ocupado sozinho. Teria sido facilmente visto e identificado pelo homem de Rostov. Agora, porém, era pouco provável que isso acontecesse. Haviam-lhe ordenado que pusesse óculos escuros, usasse um paletó esporte e fumasse cachimbo. Mas havia dúzias de indivíduos com óculos escuros, muitos com paletó esporte e alguns de cachimbo, todos atraídos ali das áreas adjacentes do bosque para se informar de um acidente qualquer.

Desanimado, Brennan compreendeu que tinha de fazer um esforço para ficar no local que lhe haviam indicado. Afinal, talvez ninguém na multidão possuísse os três requisitos indispensáveis:

óculos escuros, paletó esporte e cachimbo. Também não era provável que houvesse na multidão alguém muito parecido com Brennan, e, com certeza, o emissário de Rostov devia ter uma descrição de sua pessoa.

De cachimbo na mão, Brennan dirigiu-se para a extremidade do bosque e daí ao círculo de espectadores protegidos pelas árvores. Ao chegar, o círculo abriu-se, e os espectadores recuaram a fim de dar passagem a um solene médico da polícia e a um taciturno comissário, que falava quase inaudivelmente.

Quando passaram por Brennan, este pôde ouvir a pergunta do comissário:

— C’est la boule qui l’a tué? 1(1 “Foi a boule o que o matou?” Em francês no original. - N. do E.)

Apenas uma parte da resposta do médico chegou aos seus ouvidos:

— Sans aucun doute... en cognant la tête... fracture du crâne... commotion cérébrale... il est mort sur le coup... quel malheureux accident par une aussi belle journée.. . Allons, continuez, je vous verrai au poste, Monsieur le Commissaire.2(2 "Sem dúvida alguma... ao bater a cabeça... fratura o crânio... co moção cerebral... morreu instantaneamente... que acidente infeliz para um dia tão bonito... Vamos, continue, eu o verei no posto, senhor comissário.” Em francês no original. - N. do E.)

Brennan analisou aquelas frases fragmentárias. Aparentemente, alguém morrera enquanto jogava boule, sofrerá uma fratura do crânio e um derrame cerebral. Espicaçado pela curiosidade, Brennan avançou alguns passos, através da multidão, até o local para onde todos os olhos convergiam.

No centro da clareira, de rosto voltado para baixo, jazia o corpo de um jovem elegante.

Para Brennan, vítima cultural de um sem-número de programas de televisão, filmes e peças, a vítima morta daquele acidente, jazendo inerte na clareira, era tão irreal como um ator. Brennan aguardou que o corpo se levantasse, mas isso não aconteceu.

Então, notou que o comissário, voltando ao seu dever, se movimentava. Obedecendo a um impulso interior, Brennan seguiu os passos do agente da polícia, ao mesmo tempo em que os espectadores fechavam o círculo atrás dele. Quando chegou ao centro, Brennan parou. Viu o comissário falar rapidamente com os enfermeiros da ambulância. A seguir, o comissário dirigiu-se aos dois agentes fardados e a um indivíduo à paisana que inspecionavam a área e recolhiam cuidadosamente pequenos objetos, que acomodavam numa maleta. Após ter observado aquele trabalho rotineiro e esboçado um gesto de aprovação, o comissário voltou para junto do cadáver, que um funcionário da polícia fotografava de vários ângulos.

Enquanto contemplava aquele triste espetáculo, Brennan olhou involuntariamente para o rosto do cadáver estendido. A nuca da vítima, parcialmente esmagada pela pancada, tinha um aspecto horrível. O cabelo negro, ensopado em sangue, formava uma pasta. Os ombros do paletó esporte da vítima também estavam salpicados de sangue, ainda rubro. O comissário ajoelhou-se, mas sem cortar o ângulo de visão de Brennan. Pegando um lenço, aproximou-se do rosto da vítima para retirar o que pareciam ser óculos e embrulhou-os cuidadosamente no lenço. Depois, ergueu um dos braços do morto e retirou outro objeto, que embrulhou igualmente no lenço.

O comissário levantou-se, fazendo sinal aos homens da ambulância. Estes corresponderam, carregando um deles uma maca dobrada e o outro, um cobertor. Com mãos experientes, voltaram o cadáver de costas. Não havia reverência em seus gestos. Não estavam manuseando um ser humano, mas um pedaço de carne. Brennan estremeceu.

Em breves segundos, enquanto o comissário dirigia os dois enfermeiros e o fotógrafo continuava a tirar suas desagradáveis fotos, Brennan lançou um olhar ao rosto da vítima. Era um rosto ossudo e anguloso, de olhos vítreos, nariz fino e comprido, sujo de terra, boca outrora atormentada e surpresa e agora imobilizada pela morte. Não era um rosto francês, mas inglês, alemão ou talvez americano. E, então, deixou de existir, pois o cobertor fora lançado sobre ele.

O rosto da vítima revelara a Brennan uma misteriosa familiaridade, pelo que evitou olhar para sua cabeça, enquanto o cadáver era içado para a maca desdobrada.

Os espectadores à volta de Brennan começaram a dispersar-se para voltar a seus bancos, a seus passeios ao sol, a seus piqueniques e jogos.

Brennan sentiu alguém empurrá-lo rudemente e voltou-se, aborrecido, deparando com um jovem americano de aspecto de colegial e cabelo à escovinha, que se desculpava, ao mesmo tempo em que tirava do bolso um bloco de notas.

— Interessante, mas cheguei atrasado. — Dirigiu-se diretamente ao comissário, apresentando-se:

— Monsieurj sou Fowler, da ana. Lembra-se de mim? Nós. ..

Aparentemente, o comissário lembrava-se, pois apertou a mão do repórter americano e mostrou-se amável:

— Sim, sr. Fowler. Como está?

— A informação chegou-nos da chefatura de polícia, mas incompleta. Foi homicídio?

— Um acidente, um acidente comum, mas único por causa de sua raridade.

Afastaram-se do campo de audição de Brennan, passeando lentamente em volta da clareira. Fowler interrogava e o comissário cooperava. Depois, aproximando-se outra vez de Brennan:

— É essa a história, sr. Fowler — concluiu o agente da polícia.

— Mas não sabe quem estava jogando boule com ele? Não há indícios? Algo de especial nesse lenço?

— Nada, nada — replicou o comissário. Estendeu o lenço na palma da mão e pegou os óculos partidos. — Simples objetos pessoais. E isto, também. — Indicou mais um objeto no lenço, que Brennan não conseguiu ver, um objeto em que o repórter não se mostrou interessado.

— Procure a chefatura de polícia, se o desejar, para mais informações. Até a vista, sr. Fowler.

O comissário afastou-se, e Fowler, debruçado sobre seu bloco, manteve-se no mesmo lugar, tomando notas afanosamente.

Nos últimos minutos, Brennan quase tinha se esquecido do motivo de sua presença no bosque. Alguma outra coisa lhe parecera mais vital. Lentamente, dirigiu-se para o ocupado repórter.

— Sr. Fowler?

O repórter olhou-o, surpreso.

— Ouvi-o dizer que era da ana — começou Brennan. — Acontece que tenho lá dois bons amigos:

Jay Thomas Doyle e Hazel Smith. Chamo-me Brennan.

Fowler mostrou-se subitamente respeitoso e atento.

— Como vai, sr. Brennan?

— Não quero roubar seu tempo. Sei que está com pressa. Mas sou curioso. O que aconteceu aqui?

Fowler guardou no bolso suas notas e o lápis.

— Pensamos que fosse um americano, foi por isso que me mandaram. Mas não nos interessa. O tipo que mataram é um inglês, chamado George Simmons, de trinta e cinco anos, engenheiro de Liverpool. Um turista comum, que nada tem a ver com a conferência, infelizmente. Apenas um pobre-diabo em férias.

— O que aconteceu? — repetiu Brennan.

— Um acidente estranho, talvez mereça dois parágrafos. Tanto quanto consegui apurar, ele andava passeando pelo bosque, admirando o panorama. Chegou até os jogos de boule e parou para olhar. Então, segundo duas testemunhas, um indivíduo com um par de bolas de boule aproximou-se dele, como se procurasse um quarto parceiro para uma partida. Parece que esse Simmons se mostrou interessado. Seguiram por entre as árvores, para a 'área de boule, e então, cerca de cinco minutos depois, duas crianças francesas, que andavam brincando no bosque, descobriram o corpo de Simmons aqui, nesta clareira, e, quando viram o sangue, puseram-se a gritar. Segundo a polícia, Simmons devia conhecer o jogo, mas, pouco experiente em boule, enquanto esperava sua vez, deve ter se precipitado para ver a posição de sua bola, ao mesmo tempo em que um dos outros arremessava outra bola com força. Ela atingiu Simmons na base do crânio. Ele morreu instantaneamente. Creio que caiu, e, quando seus parceiros se aproximaram e viram que estava morto, que já não poderiam fazer nada, fugiram. Ficaram assustados e'não quiseram ver-se envolvidos no acidente. Não procederam bem, mas isso é próprio da natureza humana. Não posso afirmar que me comportaria de maneira diferente.

— A que horas sucedeu isso? — perguntou ansiosamente Brennan.

— Não sei exatamente. As testemunhas supõem que ele tenha se embrenhado no bosque, para participar do jogo, por volta das cinco horas. Talvez um pouco depois... — O jornalista hesitou. — Bem, o melhor é regressar à redação.

— Só mais uma coisa, sr. Fowler.

— Diga.

— Estive observando-o, enquanto conversava com o comissário. O que havia no lenço?

— No lenço? Ah, sim. Nada de importante. Recolheu alguns objetos pessoais da vítima, como uns óculos escuros.

— Isso eu vi.

— E o cachimbo desse pobre-diabo. Era o outro objeto que estava no lenço.. . Vou para a cidade. Quer uma carona?

— Não, obrigado — agradeceu Brennan. — Vou dar uma volta.

— Não o censuro. Também adoro isso. É o lugar mais sossegado do mundo. Foi um prazer encontrá-lo. Até breve.

— Uma vez mais, obrigado — disse Brennan.

Ficou só na clareira, depois deu meia-volta e encaminhou-se para as árvores, até a orla do bosque. Parou em frente dos campos de boule. Ao longe, no lago, flutuavam cisnes e barcos.

Olhou para o relógio de pulso. Faltavam vinte minutos para as seis horas. Pensou em esperar, mas sabia que ninguém o procuraria, porque já tinha estado ali.

Parecia-lhe inacreditável o que lhe acudia ao espírito, se bem que não deixasse de pensar nisso. A imagem do rosto da vítima, que olhara de relance, continuava viva em sua memória. Havia a estranha familiaridade das feições. Compreendeu essa familiaridade. Era um rosto parecido com o seu, embora não pudesse enganar ou levar alguém que o conhecesse a confundi-lo, mas era um rosto que, por sua magreza e formas alongadas, se assemelhava ao seu. Um rosto que se parecia vagamente com o de Brennan, alguns anos antes. E ocorreu-lhe então que, se alguém tivesse mostrado uma fotografia sua, essa fotografia dataria de quatro anos antes, da época do julgamento do Congresso, quando era mais novo, mais parecido com aquele pobre inglês. Com efeito, não tinha nenhuma fotografia recente. Opusera-se sempre a que o fotografassem nos últimos quatro anos.

Vira os salpicos de sangue no paletó cinzento da vítima. Era um paletó esporte. Vira os óculos escuros quebrados. Disseram-lhe que a vítima fumava cachimbo. E outras coisas mais... O inglês, que observava um jogo de boule, tinha sido abordado por alguém com duas bolas de boule, que o convidara a participar duma partida. Isso se passara às cinco horas ou pouco depois. E ele... não ele mesmo, mas o inglês que confundiram com ele, embrenhara-se no bosque e fora encontrado morto alguns minutos mais tarde, devido a um acidente.

Brennan já não- sabia o que pensar. Seus vôos de imaginação e sua tendência para dramatizar tudo haviam sido postos em dúvida e ridicularizados por Earnshaw e Hazel Smith. Talvez a polícia francesa tivesse razão. Tratava-se de um acidente. Talvez suas desconfianças encontrassem explicação no puro acaso. Havia inúmeros estrangeiros que, como ele, visitavam o bosque, vestiam calça e paletó esporte, usavam óculos escuros, fumavam cachimbo, observavam os jogos de boule e eram convidados a participar deles. Talvez Simmons tivesse sido um deles e fosse vítima de um estúpido acidente. Quanto a ele, ninguém aparecera porque chegara atrasado à entrevista, terrivelmente atrasado. Muito provavelmente, estava enganado e alarmado sem motivo.

Mas continuava a duvidar.

Não conseguiu demorar-se mais tempo no bosque. A passos largos, foi à procura de um táxi.

Mais tarde, já a caminho do hotel, Brennan notou que estava arrepiado. Pensou que talvez fosse uma reação ao perigo potencial. Uma passagem de um livro popular, que lera e relera na escola, veio-lhe ao espírito:

“Não era, como bem o sabia por experiência, uma dessas pessoas que procuram o perigo por prazer. Havia nele um aspecto que por vezes lhe agradava, uma excitação, um efeito purgativo sobre emoções lentas, mas estava longe de sentir gosto em arriscar a vida... e, depois da guerra, onde quer que houvesse perigo, passara a enfrentá-lo com crescente falta de interesse, a não ser que o perigo prometesse extravagantes dividendos em emoções fortes”. Tratava-se de Glory Conway, o herói de um romance de sua juventude, o herói de Horizonte perdido, de James Hilton. Tratava-se também de Brennan como homem.

Ele era essencialmente um intelectual, um observador, um admirador da vida. Aceitara riscos, principalmente quando participara das conferências do Departamento de Estado, caíra em armadilhas e tivera medo de sua ousadia, mas tudo isso eram riscos e perigos de um combate puramente cerebral.

O perigo físico fora-lhe sempre estranho. Nunca, desde a escola — em que discutira com um jogador rival durante um treino, acabando por se engalfinharem e se esmurrarem até que o treinador os separasse —, tomara parte em uma violência física. Não era o medo de ser vencido ou de se machucar o que o levava a evitar a violência, mas sua crença em que o homem abdicava de seu papel como homem e se assemelhava a um animal quando preferia a força física ao poder da razão. Era devido a essa oposição à violência sem sentido que lamentava o sacrifício de seu irmão Elia no campo de batalha. Era por isso que tinha lutado contra as guerras e consagrado tanto de seu tempo à causa do desarmamento efetivo, que garantiria a paz.

Não compreendia pura e simplesmente o assassinato premeditado.

No entanto, nesse dia, fora violentamente atacado no bosque. Tinham falhado por milagre, mas a verdade é que fora atacado e não conhecia o inimigo, nenhum inimigo com o qual pudesse falar ou pactuar. Aliás, contra o costume, não desejava falar ou pactuar com esse inimigo. Uma súbita ira interior despertou-lhe a ânsia de atacar por seu turno, de se vingar por completo. Apaixonadamente — por Simmons, a verdadeira vítima, e por si mesmo, a vítima visada —, desejava ferir por sua vez, castigar, fazer justiça por suas mãos e mandar para o diabo a razão.

Mas não havia ninguém a quem ferir. Quem era o inimigo?

Não conseguia imaginar ninguém que se arriscasse a um crime para se livrar dele. Nem conseguia descobrir um único motivo por que um indivíduo ou um grupo, em Paris ou em outra parte, quisesse liquidá-lo pela violência. Não fora Rostov, com certeza. A voz ao telefone limitara-se a invocar Rostov como engodo para atrair Brennan à emboscada. E também não fora nenhum russo, chinês, americano, francês, inglês ou alemão. Tratava-se simplesmente de um inimigo não-identificado, de uma sombra da morte. O perigo vinha do desconhecido.

Só depois que Brennan entrou no quarto do hotel é que aflorou ao seu espírito outro aspecto do jogo de boule. Na boule, quando um jogador está mais perto da bola do que o adversário, este, se ainda tiver uma oportunidade, tentará afastar a bola do outro com a sua e substituí-la assim junto da bola-alvo. Ao adversário que consegue isso chama-se, em francês, 1’assassin.

O assassino!

E quando Brennan entrou em seus aposentos, dando-se conta de Lisa, que resmungava no quarto ao lado, enquanto se vestia para o jantar, algo de mais estonteante lhe ocorreu. Abalado pela crise de arrepios, tomara consciência do cachimbo vazio preso entre os dentes. Decidiu dar algumas baforadas e pôs-se a procurar a bolsa de tabaco. Mas não existia nem bolsa nem tabaco. Havia quatro anos que não tinha mais essas coisas. A última vez em que fumara cachimbo fora em Zurique. Ao regressar aos Estados Unidos, onde o esperava um injusto julgamento, perdera a paciência para com o suave odor do cachimbo e abdicara de seu uso, substituindo-o por cigarros. Tinha sempre um cachimbo em sua bagagem, como se pensasse em utilizá-lo de novo e adquirir a tranquilidade do passado, mas nunca se servia dele, fumando apenas cigarros, até as quatro horas e trinta minutos dessa tarde, quando a voz suave de uma moça ao telefone lhe ordenara que fosse ao bosque, recomendando-lhe:

“Leve seu cachimbo”.

Essa recordação fê-lo cambalear como a pancada de um assassino.

Seu cachimbo.

A voz ao telefone estava convencida de que ele ainda fumava cachimbo, como sempre o fizera até a época de Zurique. Alguém desconhecia inteiramente que abdicara dele havia quatro anos, depois de Zurique.

Quem estaria a par do uso do cachimbo em Zurique e nos anos anteriores, e quem, entre aqueles que então o conheceram, estaria agora em Paris?

Fez um inventário das possibilidades. Earnshaw, Doyle, Neely. Podiam estar a par disso, deviam sabê-lo mesmo, mas todos o tinham visto sem cachimbo. Formavam uma lista de impossibilidades.

Recordou mais um nome, e seu espírito tremeu perante essa possibilidade. Mais alguém sabia de seu hábito de fumar cachimbo em Zurique, e esse alguém estava agora em Paris, mas havia muito que não o via, e não podia estar a par de sua mudança de gostos. Havia alguém que podia estar convencido de que ele não mudara nos últimos quatro anos. Baixinho, murmurou o nome:

Nikolai Rostov.

Lógico.

Ilógico, também.

Nada tinha sentido, a não ser um fato. Em algum lugar, naquela grande cidade, havia caçadores. E ele, Matt Brennan, graças a Simmons, ainda continuava a ser caçado.

Distraidamente, fez rodar o velho cachimbo de tojo entre os dedos. Talvez não tivesse perdido completamente o dia. Era verdade que não havia falado com Rostov, mas vira a morte. Enquanto não descobrisse se Rostov e a morte se identificavam ou se eram uma pessoa e um espectro sem ligação, não deixaria Paris.

— Falta um número para o intervalo — disse Jay Doyle, baixando o volume. — Sing, you sinners, com Medora Hart e a troupe em primeiro plano. — Voltou a cabeça para Hazel Smith, que bebia champanha a seu lado, e viu que suas feições estavam contraídas pelo interesse. — Pergunto a mim mesmo onde terão se metido Matt Brennan e sua jovem amiga. Neely diz que convidou todo mundo para as oito horas em ponto. Esse atraso não parece típico dele. Já são — deixe-me ver — quase nove e meia. O jantar está quase acabado. O primeiro ato está praticamente no fim. O que terá acontecido?

— É fácil — respondeu Hazel, acabando de beber o champanha. — Seu brilhante amigo provavelmente está fechado com o primeiro-ministro Talanski e o presidente Kuo Shu-tung, avisando-os de que sabe a verdade e que é melhor que eles continuem inimigos ou qualquer coisa do gênero.

— Ora, Hazel! Ele é bem-intencionado. Até Neely está preocupado. Foi telefonar para o hotel de Matt. Ele pode estar doente ou coisa que o valha.

— Jay, não deixe o champanha esquentar.

Ergueu sua taça, e Doyle apressou-se em enchê-la. Assim reforçada, acomodou-se na cadeira, voltando metade das costas para Doyle. Não estava com paciência para assuntos mesquinhos, e concentrou a atenção no que a rodeava.

Estava desfrutando com todo o entusiasmo o Clube Lautrec, sobretudo depois das emoções dos últimos dias. Ao chegar ali, foi como se entrasse numa faustosa cave de hedonismo. Ao entregar o bilhete à entrada, foi como se entregasse também os cuidados e as preocupações e se submetesse aos serenos prazeres da comida, da bebida, da conversa fútil e das nuas e acrobáticas artistas. À sua frente, acotovelando-se nas mesas apinhadas, havia pelo menos mil gozadores da vida, que apreciavam a música vinda de cima, mas que não podiam se ver por causa da espessa nuvem de fumaça e da reduzida iluminação.

Sentia-se contente pelo fato de Herb Neely e a esposa os terem convidado para aquela noite festiva. Havia mais duas mesas ao lado com convidados de Neely, estando as três otimamente situadas, bem abaixo do palco, mas as outras duas mesas estavam exclusivamente ocupadas por jornalistas americanos que se encontravam na cidade por causa da Conferência de Cúpula. Hazel notou que Neely tratava seus convidados mais como anfitrião do que como adido de imprensa da embaixada dos Estados Unidos. Regozijava-se por estar na mesa de Neely. Compreendeu que isso se devia ao fato de Doyle ser amigo de Brennan, que, por sua vez, era amigo de Neely. De qualquer maneira, e em consequência dessa amizade, a atmosfera era mais íntima e calorosa do que a das frias reuniões mundanas. Tratava-se de uma bela noitada, porque era como se brincasse de mulher casada. Com efeito, era como se fosse realmente a mulher de Doyle e tivessem decidido divertir-se pela cidade com os colegas de trabalho e as respectivas esposas. Era uma ideia divertida.

Subitamente, a cave ficou às escuras. Viam-se apenas os feixes de luz dos holofotes. Da frente, de todas as direções, chegou o som rouco de uma orquestra que tocava o suave Sing, you sinners. Atenta, Elazel voltou-se para o palco, espreitando por cima da cabeça de Francês Neely.

As moças da troupe, de pernas compridas, invadiram o palco, entrando metade de cada lado, e deram-se os braços formando uma extensa fila. Vestindo casacos de raccoon exageradamente curtos, eram uma versão francesa das coristas americanas dos anos 20. Rodopiaram, saracotearam, executaram uma espécie de charleston e acabaram aos pulos, antes de desaparecerem atrás de uma cortina. De uma escadaria no centro, semelhante à dos estádios americanos de futebol, surgiu Medora Hart, com um curto casaco de pele semelhante aos das componentes da troupe, com a diferença de que o de Medora era de marta e não de raccoon.

Bamboleando à medida que saltava de degrau em degrau.

Medora pisou o palco, e a troupe fechou alas atrás dela. Todas se moviam e saracoteavam freneticamente, como os participantes de uma cerimônia religiosa. Agora, usavam turbantes, e, à medida que rodopiavam, a luz branca dava lugar a focos de cores variadas, que envolviam as dançarinas de vermelho, verde e púrpura. Subitamente, as luzes coloridas desapareceram, a desmaiada luz branca voltou, e Medora e a troupe surgiram sem peles, envergando apenas curtos vestidos de lantejoulas dos anos 20 da América, com a diferença de que as bainhas ficavam muito acima dos joelhos.

Segurando um microfone de mão, Medora adiantou-se, bamboleando-se, enquanto a troupe, silenciosa, formava um V atrás dela. Abanando a cabeça de cabelos louros caídos, rebolando os quadris com abandono, Medora começou a gritar os versos de Sing, you sinners.

De sua cadeira, Hazel sentia-se hipnotizada pelo espetáculo. Tentou ver Medora através dos cerca de dois mil olhos que estavam no clube noturno. Se mil desses olhos eram masculinos e acreditavam somente no que viam, contentando-se apenas com o que se podia ver, ao observar a desenvolta moça, de cabeça para trás e ventre para a frente, com seus desejos e fantasias, Hazel compreendeu que para eles Medora não passava de sexo vivo.

Com impaciência, afastou essa visão e concentrou-se em Medora. E, então, viu nela a mitificação de todas as mulheres. Medora era a mulher personificada, que oferecia a todos os homens falsas promessas. Havia a mulher exterior, de cabelos penteados ou em desalinho, de olhos falazes ou francos, de boca entreaberta e lábios vermelhos, de seios e pernas suaves e carnudos. Havia a mulher exterior, com seu perfume artificial, seu sorriso estudado, sua maneira afetada de falar. Havia a mulher exterior, com seus requebros de olhos, boca, mãos, quadris e pernas, uma fachada, esconderijos para seu segredo. Havia suas promessas de transportes a prazeres inimagináveis, de uma dádiva pura, fiel e concentrada.

Era, pensou Hazel, a Grande Mentira, a mentira que ocultava a mulher interior, a mulher autêntica, com suas inibições, seus medos, sua timidez, seus pesares e problemas, seu egoísmo, sua confusão, sua hostilidade para com a mãe, o pai e sua condição de ser humano.

Que o comprador se acautele, pensou Hazel. Comprou, com base nos invólucros, sexo e amor. Abriu o embrulho e, com grande espanto, o sexo era a parte menor do conteúdo, o amor fora roubado no peso, e o resto do conteúdo não tinha sido negociado e, portanto, não estava disponível.

Talvez, pensou Hazel, sua opinião acerca da metade feminina da raça humana fosse influenciada por seus próprios anos de frustração, por suas desilusões, por seu ceticismo. Mas não, porque sua prova maior estava no palco, representando verticalmente o que as outras mulheres em geral representam horizontalmente, despertando a libidinagem de todos os machos do clube (mesmo a de Doyle, esse pobre louco, tinha certeza), enquanto a fumaça azul se erguia até o teto em nuvens cada vez mais densas.

Ali estava a Medora do palco, da noite, o embrulho perfeito, comprada sem regateio por todos os machos sonhadores da assistência. No entanto, era a mesma Medora que Hazel conhecia intimamente, que nunca falava de amor, que detestava os homens e odiava o sexo, que estava obcecada pela insegurança, pelo rancor, pela mãe e a irmã, pelo regresso ao ventre pátrio. A grande, Grande Mentira. Pobre Medora, pensava Hazel, e pobre gente em toda parte. Só a verdade pode nos libertar, dizia consigo, mas continuaremos a ser escravas da mentira por toda a eternidade. A civilizada vida cristã na Terra deveria deixar de existir.

A atenção de Hazel voltou-se para o palco, atraída por outra mudança de luzes. A canção de Medora acabara, e agora ela e as moças da troupe eram iluminadas e precipitadas no escuro pelos coloridos feixes de luz dos holofotes, que se moviam como os fragmentos de vidro de um caleidoscópio. Quando a fantasia de luzes ,chegou ao fim e o palco ficou de novo banhado de branco, a assistência soltou um suspiro em uníssono.

Então, Medora e as moças da troupe despiram os vestidos de lantejoulas e mostraram uma seminudez mais provocante do que a nudez total. Com exceção das reduzidas calcinhas de adolescente, as coristas da troupe não envergavam mais nada. E Medora, a estrela, ainda envergava menos. Como as outras, tinha os seios expostos, mas, ao contrário das outras, eram uns seios perfeitos, e, também ao contrário das outras, usava uma tira em forma de G em vez de calcinha.

Fascinada, Hazel admirou o frenético final do primeiro ato. A orquestra guinchava e as moças imitavam-na. Havia carne feminina por toda parte. Medora e as dançarinas, todas de braços erguidos, faziam balançar os seios nus e arqueavam os dorsos, ao mesmo tempo em que gritavam:

“Sing, sing, sing, you sinners!”

Seguiu-se um instante de trevas antes de as luzes inundarem de novo a sala. Então, a música baixou, os garçons se apressaram, e o Clube Lautrec voltou a ser a Torre de Babel.

Hazel recostou-se é olhou para Doyle. Estava sentado tão ereto como um paxá admirando seu harém, de olhos perdidos no palco deserto. Sentindo o olhar dela, voltou-se e sorriu timidamente:

— Nada mau, para quem gosta de mulheres. Por mim, só aprecio uma, e chama-se Hazel Smith.

— Oh, claro! — exclamou ela, que nunca se considerara tão feia e com menos atrativos. Mas era simpático da parte dele mostrar-se amável. — O que pensa de nossa Medora?

— O mesmo que lhe disse da primeira vez, Hazel. Ao vê-la ali em cima, ninguém suspeitaria, nem num milhão de anos, quem ela é realmente e o que planeja fazer.

— É exatamente o que eu estava pensando, Jay — disse Hazel, satisfeita. Seu afeto por ele continuava a aumentar. Sentiu-se menos culpada por causa de seu encontro dessa tarde no Jardin d’Aclimation e mais conformada com a perspectiva da próxima noite, agora que tinha uma causa.

— Algumas dessas jovens são formidáveis — dizia Doyle. — Se eu tivesse um quadro de Nardeau, se minha vida dependesse dele e alguém me tivesse roubado, creio que nada no mundo me obrigaria a apresentar-me em público e a fingir que nada havia acontecido.

— É o trabalho dela, Jay. A propósito, ela deve estar se sentindo melhor. Telefonei-lhe antes de você ir me buscar. Não lhe disse? Tinha boas notícias.

— Realmente?

— Telefonei-lhe para lhe dizer que você, Brennan e eu nos reunimos no Fouquet e concordamos em descobrir uma maneira de ajudá-la. Nesse meio tempo, a Sureté localizou Nardeau na Riviera e informou-o do roubo. Ele ficou furioso, mais por causa da perda do quadro de Medora do que pela dos dele. Passou o dia telefonando para Paris. O resultado foi que, quando Nardeau telefonou a Medora, conseguiu encorajá-la um pouco. Disse-lhe que a polícia de Paris estava tentando comunicar-se com um indivíduo do submundo, um informante pago, que poderia denunciar o ladrão ou os ladrões de arte e ajudar a recuperar os quadros.

— É uma grande notícia.

— Seja como for, Medora estava um pouco mais animada esta noite. Nardeau chegou de manhã a Paris, no Train Bleu, e pediu a Medora que se avistasse com ele... A propósito, perguntei a Medora se ela queria juntar-se a nós depois do espetáculo. Até pulou de contente. Tem se sentido muito só, a pobrezinha. Esperaremos por ela no Bar Lido, onde beberemos qualquer coisa, ou então podemos ir para o meu apartamento. Espero que não se importe, Jay.

— Por mim está bem. Tomara que Matt.. . — Viu Francês Neely voltar de uma visita às duas outras mesas de seus convidados. Estava para se dirigir a ela, mas deteve se ao vê-la acenar a alguém que estava do outro lado da escada do palco. Quando ela voltou para a mesa deles, informou:

— Herb acaba de entrar. Traz o sr. Brennan e a srta. Collins a reboque. Estávamos muito preocupados. Herb fingiu que ia telefonar para o Hotel Califórnia, mas aposto que foi esperá-los no vestíbulo. — Voltou a acenar ao passar por Hazel. — Bem, graças a Deus chegaram, sãos e salvos.

Hazel voltou-se na cadeira e Doyle levantou-se ao ver Neely chegar vitoriosamente com Matt Brennan e Lisa Collins.

— Perdoem-me, perdoem-me — desculpou-se Neely. — Já poderiam estar aqui há meia hora, mas a culpa foi minha. Encontrei-os na entrada e, quando me explicaram seu atraso, retive-os no vestíbulo para podermos falar sem testemunhas. Ora, vejamos... — Empurrou Lisa e Brennan para a frente. — Conhecem todo mundo? — Rapidamente, apresentou Lisa Collins a Hazel e a Doyle.

Hazel olhou atentamente para Brennan. Ele tinha o rosto tenso, sério, fatigado. Trazia dois jornais franceses enrolados e apertava-os com força. A jovem Collins, morena, alta, encantadora, envergando um bonito vestido de brocado cor-de-rosa com a elegância de um manequim, também parecia preocupada. Revelava presença, mas sua graciosidade era forçada, e ela olhava ansiosa c constantemente para Brennan. Um corpo maravilhoso, observou Hazel, sem o espalhafato do de Medora ou dos das moças da troupe, mais delicado, esbelto e frio. Provavelmente, uma ótima companheira de cama, disse Hazel consigo, ao mesmo tempo em que se perguntava o que veriam essas jovens nos homens mais velhos.

— Antes que se sentem — dizia Neely a Brennan e a Lisa —, deixem-me apresentar-lhes meus convidados das outras mesas.

Como Neely se preparasse para empurrá-los à sua frente, Doyle, ainda de pé, chamou-o:

— O que foi que os reteve, Herb?

— Um crime — respondeu Neely por sobre o ombro. — Um crime estranho.

Hazel olhou para Doyle quando este voltou a sentar-se a seu lado.

— Que diabo significa isso?

— Não sei — respondeu Doyle, vagarosamente. — Mas garanto-lhe que ele não estava brincando.

Hazel bebeu em silêncio e, quando se voltou, viu que Brennan ajudava Lisa a sentar-se, instalando-se em seguida entre ela e Hazel.

— É do que está precisando, Matt — disse Neely, pegando uma garrafa de champanha gelado.

— Até transbordar — pediu Brennan, erguendo a taça de Lisa e depois a sua.

Enquanto servia, Neely sugeriu:

— É melhor pedir dois jantares.

— Não, obrigado — opôs-se Brennan. — Não tenho apetite.

— Nem eu — secundou-o Lisa.

Hazel viu Doyle debruçar-se por sobre a mesa.

— Por Deus, Matt, o que se passa? Herb disse qualquer coisa acerca de um crime. Estava brincando?

— Oxalá estivesse — respondeu Brennan. — Vou contar-lhe, mas primeiro... — Pegou os jornais que estavam ao lado do prato, desdobrou um e entregou-o a Doyle. Desdobrou o segundo, alisou-o e estendeu-o a Hazel. — Lisa e eu estivemos na ANA, à espera da última edição. Passeamos um pouco, enquanto Fowler telefonava para a chefatura de polícia. — Apontou para os jornais. — A notícia está no pé da primeira página. É a que se refere a um inglês morto no Bois. Leia isso. Depois, eu lhe conto o que aconteceu.

Admirada, Hazel leu vagarosamente a notícia de três parágrafos do jornal francês. “George Simmons, de trinta e cinco anos, engenheiro e cidadão britânico, foi encontrado morto no Bois de Boulogne, onde estivera jogando uma partida de boule. Tendo-se deslocado no caminho de uma bola arremessada com força, esta atingiu-o no crânio. A fratura provocou sua morte imediata, oficialmente atribuída a causas acidentais. Os parceiros do jogo, assustados, fugiram. A polícia continua a investigar, no sentido de descobrir suas identidades. Não há outras testemunhas. George Simmons residia em Liverpool, Inglaterra, e chegara a Paris há dois dias para umas férias de três semanas. Estava hospedado no Hotel Scribe. A embaixada britânica avisará a família, um irmão de Liverpool e três irmãs de Manchester.”

Mais admirada do que nunca, Hazel, ao erguer os olhos, viu que Brennan a observava.

— Um acidente estúpido, mas que nada tem de extraordinário — comentou Hazel. — Que relação tem com você?

— Antes de mais nada, há motivos para crer que não se trata de um acidente — disse calmamente Brennan. — Simmons foi morto, e o crime foi premeditado. Em segundo lugar, estou convencido, por diversos motivos, de que era eu a vítima visada. — Apontou de novo para o jornal. — O único acidente foi terem confundido Simmons comigo.

— Que disparate, Matt! — protestou imediatamente Doyle.

— Bem... — começou Brennan, mas deteve-se ao ver o ceticismo estampado no rosto de Hazel.

— Continue, Matt, conte-lhes exatamente o que me disse — aconselhou Neely do outro lado da mesa. — Já pus Francês a par do que lhe aconteceu.

— Mal posso acreditar — disse Francês Neely, emocionada.

Hazel estava convencida de que ele era louco, mas não queria estragar a festa, e, por isso, disse com certo ar de troça:

— Vamos, Brennan, conte-nos.

— Muito bem — replicou Brennan, em tom de desafio. — Tudo começou por volta das quatro e meia desta tarde. Uma moça, não faço ideia de quem fosse, com leve sotaque inglês, pediu para falar com Matthew Brennan. Respondi-lhe que era eu mesmo e então ela... — Calou-se. Seus olhos foram de Hazel para Doyle e voltaram a fixar-se em Hazel Smith. — É melhor explicar uma coisa antes, srta. Smith. Não é exatamente um segredo, mas não foi muito divulgado. As pessoas que me conhecem superficialmente julgam que estou em Paris para tratar de negócios. Assim é, mas não se trata da espécie de negócios que supõem. Estou aqui porque soube que determinado diplomata russo participa da Conferência de Cúpula. É um sujeito que conheci outrora, que estava comigo quando o professor Varney desertou, em Zurique. Como sabe, fui condenado por isso e suportei toda a responsabilidade. Ora, esse meu amigo russo, que esteve em Zurique comigo, pode me ajudar a provar minha inocência. Portanto, quando soube que ele se encontrava em Paris, vim imediatamente. — Involuntariamente, seus olhos desviaram-se de Hazel, mas logo voltaram a se fixar nela. — Você tem trabalhado em Moscou. Talvez o conheça de nome.

Hazel, fleumática e hirta, de mãos entrelaçadas à frente, /espondeu:

— Talvez.

— É o ministro assistente de Talanski para os Negócios do Extremo Oriente. Chama-se Nikolai Rostov. Conhece-o?

Para Hazel, era estranho ouvir o nome de Niki no meio daqueles seus novos amigos americanos e em frente de Doyle, seu amante passado e futuro. Era estranho e desagradável, porque se sentiu subitamente dividida entre aquele lugar e um outro. Não devia deixar transparecer nada, sobretudo diante de Doyle. Brennan fizera uma pergunta. Qual? Ah, sim...

— Se conheço Rostov? — repetiu Hazel. — Vagamente. Encontrei-o várias vezes no exercício de minha profissão, assim como à maior parte dos funcionários governamentais russos.

Brennan esboçou um gesto de compreensão e prosseguiu:

— É esse camarada que tenho tentado encontrar. Mas, por algum motivo que desconheço, ele tem me evitado. Por isso, apelei para várias pessoas importantes, na esperança de que pudessem intervir a meu favor e me conseguissem uma entrevista com Rostov. A verdade é que nada consegui até receber a chamada telefônica das quatro e meia desta tarde. A voz feminina desconhecida disse-me que alguém falara a Rostov a meu respeito e que ele concordara em se avistar comigo. Fui pormenorizadamente instruído de que deveria comparecer em determinado ponto do bosque.

Agora, todos os sentidos de Hazel estavam despertos. Ela se esforçava para não perder uma só das palavras de Brennan, mas, receando denunciar-se, disse pausadamente:

— Muito dramático. Não nos oculte nada.

— Conseguiu vê-lo? — inquiriu Doyle.

Brennan meneou a cabeça:

— Não, e creio que nunca esperei vê-lo, pois tinha quase certeza de que ele não estaria lá. Mas voltemos à chamada telefônica...

Enquanto Brennan relatava os acontecimentos da tarde, Hazel brincava distraidamente com o jornal, embora não perdesse nada do que ele dizia. Quando a narrativa se aproximou do fim, seu interesse diminuiu, convencida que estava de que Brennan sofria de mania de perseguição. Seu espírito alheou-se, até que ela notou um grande silêncio. Brennan tinha acabado. Olhava para os outros, estudando suas reações.

— Uma história horrível! — exclamou Francês Neely, tapando a boca com as mãos.

— Tenho medo por Matt — lamentou Lisa Collins. — Só de pensar que...

Herb Neely interrompeu-a:

— Matt, por que não me deixa entrar em contato com o fbi e a cia?

— Não, Herb, de maneira alguma — opôs-se Brennan. — Não acreditariam em mim. Nem sequer posso provar que recebi aquele telefonema. Seria a minha palavra contra a da polícia francesa. E ela afirma que foi um acidente.

— Matt — interveio Doyle —, bem sabe que pode ter sido um acidente. Uma coincidência. Talvez o telefonema não passasse de uma piada de mau gosto. Há muitas pessoas, delegados, jornalistas, que ainda o consideram um traidor. Uma delas pode ter ouvido dizer que precisava se encontrar com Rostov. Talvez Wiggins tenha dado com a língua nos dentes. Talvez se trate de um sádico que pretende desorientá-lo, fazê-lo correr, desiludi-lo, porque pensa que você traiu seu país e merece ser castigado por isso. Há gente capaz de tudo.

— E o crime no bosque? — perguntou Brennan.

— Talvez não fosse um crime, mas, repito, um acidente. São muitas as pessoas que todos os anos morrem acidentalmente, porque lhes fraturam a cabeça com objetos pesados como bolas de beisebol ou de boule.

Brennan refletiu por instantes, depois aquiesceu:

— É possível, Jay. No entanto, duvido que o telefonema e o acidente não estejam relacionados. Se tivesse passado pela mesma coisa, talvez compreendesse. Creio que há alguém que me persegue, que pretende matar-me. Contudo, não consigo imaginar por que razão. Se soubesse o motivo, saberia de quem se trata. Mas por que diabos alguém há de querer se livrar de mim? Sou inofensivo, um joão-ninguém.

O ceticismo de Hazel era agora evidente, pois cada vez se convencia mais de que ele era um paranóico. Então, sentiu todo o peso de Doyle contra si, quando este se inclinou na direção de Brennan.

— Matt, há quem não o julgue assim tão inofensivo. Ponhamos de lado o que eu disse. Demos crédito a sua versão baseada num telefonema anônimo. Concordemos em que alguém pretende afastá-lo do caminho, sem que você suspeite o motivo. Está certo?

— Está certo — repetiu Brennan.

— Ora, bem, Matt, lembra-se de ter estado ao meio-dia comigo e com Hazel no Fouquet? De eu o convencer a falar de suas desconfianças e suspeitas relacionadas com a conferência? Qualquer pessoa, entre as muitas centenas que se encontravam sentadas ao nosso lado, poderia tê-lo ouvido e considerado um agitador perigoso, ou, o que é pior, um indivíduo de credos políticos avançados.

— Quer dizer... quer dizer.. . ?

— Matt, disse-me que suspeitava do comportamento dos russos e dos chineses na conferência, porque acha que preparam alguma' trapaça nos bastidores. Acusou tanto os soviéticos como os chineses de perfídia. Levei-o até Hazel para que você repetisse a ela o que tinha me contado. Você contou a ela e não sei se a mais alguém. Hazel avisou-o de que não deveria espalhar semelhante história, porque era um disparate.

Hazel recuperou a voz:

— Apenas receava que se transformasse num palhaço, Brennan.

— É verdade, querida, foi isso o que disse — confirmou Doyle, com uma leve palmada no ombro de Hazel. Dirigiu-se de novo a Brennan:

— Mas suponhamos, Matt, que não fosse um disparate. Suponhamos que tenha descoberto uma autêntica trapaça política. Suponhamos que um estrangeiro, um comunista russo ou chinês o tenha ouvido. Suponhamos que o tenham ouvido, principalmente, declarar que vai prosseguir em suas investigações até pôr tudo em pratos limpos. O que acha que fariam?

— Tentariam calar-me — disse Brennan.

Doyle bateu as mãos rechonchudas:

— Exato. E quer melhor maneira de calar alguém do que matá-lo?

— Tem razão — disse Brennan, levando dois dedos aos lábios.

— Não quero dizer que foi isso o que aconteceu, Matt. Talvez você esteja prestes a desvendar o segredo da duvidosa amizade entre n Rússia e a China. Mas, ainda que esteja errado, o fato comprovado de andar divulgando isso, de ser tão provocador, pode ferir em certas pessoas. Há muita gente em Paris capaz de contratar por preço baixo autênticos profissionais treinados para esse gênero de irabalho. Sua única preocupação é a segurança. Para a preservarem, esmagam um ser humano como se esmaga uma formiga. — Ergueu os olhos:

— Não é assim, Herb?

Neely aquiesceu gravemente e dirigiu-se a Brennan:

— Ele não exagera. Devia sabê-lo por experiência própria, Matt.

Lisa pousou sua mão na de Brennan, que se quedou a contemplá-la. Depois, ele levantou a cabeça e olhou primeiramente para Neely e em seguida para Doyle, acabando por dizer:

— Muito bem. Admitamos que eu seja um provocador. Reconheço o perigo inerente a isso. Mas há uma coisa em que têm de acreditar. Não discuti minhas ideias com ninguém, além do nosso pequeno círculo. Posso contar meus confidentes pelos dedos. — Ergueu uma das mãos com os dedos muito separados, e, baixando lentamente um de cada vez, revelou os nomes daqueles que tinham ouvido suas suspeitas:

— Lisa sabia, LIerb não sabia. Só agora lhe falei no assunto. Portanto, Lisa, Jay Doyle... Vejamos. E Earnshaw também, esta manhã. São três, se não me engano.

— Esqueceu Hazel — lembrou Doyle.

— Desculpe. Tem razão. Com Llazel Smith são quatro. E é tudo. Ora, creio que não há entre vocês nenhum russo ou chinês comunista. Portanto, a quem provoquei?

Doyle estendeu as mãos:

— Castigue-me¹

As luzes tinham começado a baixar, e, à medida que as trevas envolviam o Clube Lautrec, os focos brancos dos holofotes entrecruzavam-se no palco. A confusão de vozes dos espectadores foi substituída pelo clangor musical do French cancan.

Matt Brennan sorriu e encolheu os ombros:

— Todos merecemos castigo. É outro dos insolúveis mistérios da vida. Talvez tenha razão, Jay. Começo a admitir sua teoria de falta de ligação entre o telefonema e o acidente. É a única interpretação que parece ter sentido... Bem, para o diabo com tudo isso! Desculpem-me por tê-los aborrecido, meus amigos. Podem voltar a Agatha Christie. Pelo menos, ela fornece as respostas. Enquanto isso, creio que o melhor é continuarmos a ver o espetáculo.

— Tem razão, querido — disse Lisa, aproximando mais sua cadeira e acariciando-lhe o braço estendido.

A troupe, com vestidos de plumas e seios nus, enchia o palco.

Todos os ocupantes da mesa de Neely estavam concentrados no espetáculo... todos, menos um.

Hazel Smith olhava para o jornal enrolado que tinha sobre os joelhos e não parecia admirada por vê-lo todo rasgado. Disfarçadamente, escondeu o jornal roto atrás da cadeira e sacudiu do vestido o papel esfarelado.

Mantinha-se silenciosa e abstrata, fitando a faca de sobremesa.

Minutos antes, Brennan, quando enumerara aqueles que estavam a par de suas descobertas e suspeitas de um conluio entre os chineses e russos, citara os nomes de Lisa Collins, Jay Doyle, Emmett Earnshaw e o dela, Hazel Smith, e dissera:

“São quatro, e é tudo. Creio que não há entre vocês nenhum russo ou chinês comunista”.

Naquele momento, Hazel sentira arrepios na espinha e ao longo dos braços. Agora mostrava-se aflita e desamparada, porque sabia que Brennan tinha errado apenas numa coisa. É que não eram quatro, mas cinco as pessoas que estavam a par de suas suspeitas. E o quinto era Nikolai Rostov, informado por ela no Jardin d’Aclimation. E Hazel recordou o diálogo entre os dois:

“Minha trágica milochka! Portanto, Brennan, o provocador capitalista, diz que estamos conspirando com os chineses e não tencionamos honrar a Conferência de Cúpula? Onde ele foi descobrir ideia tão louca?”

“Niki, ele não só está tentando demonstrar que sabe mais acerca da Rússia e da China do que os delegados responsáveis, como x corre Paris à procura de espiões... Disse que tinha procedido a investigações num depósito de livros da Rue de Seine... uma célula comunista...”

Não ouvia a música, apenas a censura à sua ridícula tagarelice e a grande gargalhada de Rostov.

Estava preocupada.

Às duas horas da tarde, ela e Rostov tinham se separado. Às quatro e meia, Brennan recebera um telefonema em que lhe marcavam um encontro com Rostov. Às cinco e cinco, um homem que estava no local onde Brennan deveria encontrar-se, que usava traje esporte, óculos escuros e cachimbo, como Brennan, foi morto com fratura do crânio. A polícia declarara que fora um acidente, Brennan afirmava que se tratava de um crime intencional:

“Mas por que diabo alguém há de querer se livrar de mim? Sou inofensivo”, dissera Brennan. “Matt, há quem não o julgue assim tão inofensivo”, replicara Doyle.

Instintivamente, Hazel massageou os braços para aquecê-los e se libertar dos arrepios.

Instintivamente, também, visualizou os dois homens.

Um deles era Brennan. Considerava-o agora algo mais do que um pobre paranóico. Considerava-o um indivíduo sólido, inteligente, sensível, capaz de detectar qualquer palavra-chave, alguém que seria bom começar a levar a sério.

O outro era Rostov. Considerava-o mais do que um amigo, um senhor, um amante, mais do que um homem meramente solícito, divertido, sentimental. Era um selvagem (como muitas vezes o provara na cama), um selvagem partidário comunista, manipulado por outros mais poderosos, que manipulavam os que lhe eram inferiores, capaz de tudo para preservar a Mãe Rússia.

Eram essas as possibilidades. Agora, Hazel as reconhecia. Talvez estivessem distorcidas por sua ira e por seu temor, talvez sua visão original dos dois homens — Brennan como paranóico e Rostov como amigo fiel e amante — fosse a correta. Mas, se não o fosse, se a nova visão dos dois — principalmente a de Niki — fosse a verdadeira, então o que a esperava, a decisão que em breve teria de tomar, seria mais fácil de conciliar.

Antes de mais nada, porém, precisava saber a verdade, que era o que Doyle procurava e o que Brennan pretendia, se bem que essas duas verdades fossem uma só. Com efeito, os homens que tinham assassinado o presidente Kennedy em Dallas também seriam capazes de tentar eliminar Matthew Brennan no Bois de Boulogne.

Embora suas futuras ações lhe surgissem com mais clareza, nem por isso se sentia melhor.

Tremia, e foi então que compreendeu.

Fora atacada pela doença do medo. Muito ririam dela seus antipáticos colegas, se o soubessem. A velha Hazel Smith, a intrépida e indomável Hazel Smith, com medo! E por que não? O que procurava não era uma reportagem comum. Era sua própria história. Só as pessoas assustadas ganham medalhas de mérito, dissera-lhe um dia um psiquiatra do exército. Só aqueles que lutam pela vida é que são obrigados a revelar valentia. Hazel nunca tivera medo, porque nunca se preocupara com o dia de amanhã. Agora, pela primeira vez, preocupava-se.

No dia seguinte à noite estaria com Rostov. Ela, ele e mais ninguém. E saberia a verdade. E saberia o que era sentir-se aterrorizada. Se Rostov fosse um animal, farejaria o medo dela. Recusou-se a imaginar o que resultaria daí.

— Não é formidável? — segredou-lhe Doyle ao ouvido.

— O quê?

— O espetáculo, Hazel. Não é formidável?

— Sim, é formidável — respondeu Hazel. — Tudo é formidável¹

Depois do espetáculo, agradeceram aos Neelys, despediram-se e misturaram-se aos grupos que abandonavam o Clube Lautrec. Seguiram pela Rue de la Boétie até os Champs-Élysées e depois viraram à direita.

Deixando que Matt Brennan e Lisa Collins, embrenhados em profunda conversa, caminhassem à frente, Hazel agarrou Doyle por uma manga do paletó:

— Jay, talvez eu não possa cear com você no apartamento nem em outro lugar. Dói-me um pouco a cabeça.

Ele disse com simpatia:

— Tenho algumas aspirinas em minha caixa de remédios.

— Quando chegarmos ao Bar Lido.

— Não quer que eu a leve diretamente a casa?

— Prometi a Medora que esperaríamos por ela. Já deve estar a caminho. Tomaremos um café, depois apresentarei minhas desculpas. Quero que ela conheça Brennan, pois pode vir a precisar dele.

— Se é isso o que deseja, muito bem. O que pensa da pequena aventura de Brennan?

— Não sei. Acho-a disparatada. O que lhe parece?

— Também não sei. Quando tenho dúvidas, apelo para o moço Billy, o Bardo. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha tua vã filosofia.” Tudo é possível.

— Suponho que sim.

— Espero que amanhã se sinta melhor, Hazel. Talvez possamos passar a tarde juntos.

Era a oportunidade que Hazel aguardava:

— Amanhã? Oh, querido, ia me esquecendo de lhe dizer! Desculpe, Jay, mas amanhã à noite estou ocupada. Eu... certos delegados russos vão se reunir num jantar e me convidaram. Eu gostaria que você também, fosse, mas não é possível. A mim eles aceitam, mas você é um estrangeiro.

— Compreendo, Hazel — disse ele, com sincero desapontamento.

— Mas estará comigo em espírito — apressou-se ela a acrescentar. — Pode ser que tenha oportunidade de conseguir alguma informação para seu livro.

— Não se arrisque, querida.

— Obrigada. Não se preocupe. Estarei entre amigos. Posso contar com você para depois de amanhã à noite?

— Todas as noites, Hazel.

Matt Brennan e Lisa Collins esperavam-nos à entrada do Lido Arcade. Passaram por entre a loja de discos de jazz e as filas de turistas que se preparavam para descer ao Clube Lido, para o último espetáculo que fazia parte das numerosas visitas turísticas de “Paris à Noite”.

A parte principal da Arcade, que ia dos Champs-Élysées ao último quarteirão da Rue du Ponthieu (onde ficava a entrada de serviço do Hotel Califórnia), era constituída por lojas elegantes de ambos os lados, uma confeitaria, um restaurante e uma moderna livraria no centro. Logo à direita da parte principal via-se a porta aberta de um estreito bar com um comprido balcão com bancos. Visto fechar às quatro horas da manhã, era muito frequentado pelo mundo do espetáculo, incluindo as coristas do Clube Lido e do Clube Lautrec. Tratava-se do Bar Lido, e cardápios pregados na parede anunciavam uma versão gaulesa de cachorros-quentes à americana e hambúrgueres.

Havia três bancos livres junto da caixa registradora, e Brennan insistiu em que Lisa, Hazel e Doyle se sentassem. Enquanto se instalavam junto ao balcão, Doyle disse para Brennan:

— Hazel e eu não estamos muito bem-dispostos. Importa-se de que adiemos a ceia para outra noite em que possamos começar mais cedo?

Brennan, que estava atrás de Lisa e Hazel, enchendo o cachimbo, respondeu:

— Ainda bem que falou nisso, Jay. Sou da mesma opinião. Por hoje, já tive minha cota.

— Também estou de acordo — disse Lisa por sobre a caixa de pó-de-arroz. — Matt, eu nunca o tinha visto de cachimbo. Fica-lhe bem. Completa seu olhar bondoso. Na maior parte dos homens, só se vê o cachimbo, o que é desagradável.

Brennan chegou um fósforo ao fornilho e comentou:

— Perdi quase por completo a prática. Outrora era fácil, comprava tabaco e...

— Mas, Matt, talvez não seja prudente.

— A hora é de desafio, querida. A partir de agora, andarei fardado de óculos escuros, paletó esporte e cachimbo.

— Você os está provocando, Matt — observou Doyle.

— Provocando quem?

— Não sei — respondeu Doyle, num murmúrio. — O melhor é encomendarmos alguma coisa, para justificar a ocupação deste espaço. Recomendo os cachorros-quentes américains. E para você, Hazel?

— Uma aspirina e uma Perrier.

Quando ambos lhe foram servidos e enquanto os outros esperavam pelos cachorros-quentes, Hazel disse a Lisa:

— Desculpe retê-la. Não o faria, se não fosse meu interesse em que você e Matt conheçam Medora. Se acha que isso lhe traz problemas, Lisa... Importa-se que eu a trate pelo primeiro nome? Acabei por transformar Brennan em Matt... ficar com cerimônias é muito aborrecido... Seja como for, Matt lhe falou de Medora Hart?

Lisa acenou com a cabeça e confirmou:

— Sim, falou. Lamento por ela. Fico sempre surpresa quando acontecem coisas desagradáveis a pessoas bonitas ou ricas.

— A verdade é que acontecem — observou Brennan. — Scott Fitzgerald estava enganado. Os ricaços não são diferentes de nós. Contudo, intitulou um livro The beautiful and damned.

— Nossa Medora — disse Hazel — é bela e certamente maldita, e, se Nardeau não mudar a última parte, nós a mudaremos.

— Sim, mudaremos — prometeu Brennan.

Hazel fez girar o banco e olhou em redor.

— Ela deve estar chegando. As artistas saem logo que o espetáculo termina. Disse que estaria aqui dez minutos depois de nós. Conversaremos um pouco com ela, e, em seguida, eu e Jay vamos levá-la para casa.

Quando os cachorros-quentes e as bebidas não-alcoólicas foram servidos, Hazel entreteve-se a olhar para os outros, que comiam, inal prestando atenção às banalidades que proferiam. Notou que não passavam dez, mas vinte minutos da hora prevista. Pensou na aventura de Brennan, no primeiro encontro dela com Rostov em Viena, havia muito tempo, nos dias passados em Moscou, e, antes de pensar na noite seguinte, a dor de cabeça tinha desaparecido. Reparou que já não havia cachorros-quentes e que encomendavam mais bebidas. Estavam ali havia cinquenta minutos, e Medora não aparecia. Perguntou-se se não teria havido algum mal-entendido quanto ao local de encontro, mas logo se lembrou de que fora Medora quem sugerira o Bar Lido.

Inquieta e quase decidida a ir procurar Medora ao longo dos Champs-Élysées, ouviu uma voz atrás de si:

— Lamento muito, Hazel.

Deu um pulo no banco para cumprimentar Medora Hart.

Sem a maquilagem do palco, as lantejoulas e as luzes coloridas, envergando uma blusa escura de gola alta, calça e sandálias, Medora parecia mais uma adolescente solitária do que a estrela de um clube noturno. Hazel apertou a mão de Medora, ao mesmo tempo em que esta, com a mão livre, atirava para trás os dourados cabelos.

— Folgo em vê-la, Medora — saudou Hazel. — Quero apresentá-la a nossos amigos e, a partir desta noite, seus aliados.

Ofegante, Medora cumprimentou Doyle e correspondeu calorosamente às apresentações de Lisa Collins e Matt Brennan. Todos a felicitaram por sua atuação.

— Obrigada, muito obrigada — agradeceu Medora, continuando a respirar com dificuldade. — Não saiu mal. Mas não é o espetáculo que me põe neste estado, é o que se tem de suportar depois... Como vêem, meu aspecto é lamentável. Quando vi como estava atrasada, não pude deixar de me preocupar. Desculpem tê-los feito esperar. Corri praticamente durante todo o caminho.

— Que tolice, Medora! — interveio Hazel. — Não havia motivo para preocupações. Foi outra vez seu patrão?

— Não. Desta vez foi um cliente.

— Ah, isso! — exclamou Hazel. — Bem, já deve estar habituada.

— Sim, estou — concordou Medora. — Se fosse eu apenas a envolvida, teria chegado na hora. Infelizmente, quem estava envolvida era minha única e verdadeira amiga no clube, e tive de lhe prestar um favor. Um presunçoso turistazinho americano está caído por minha amiga e pretendia armar confusão. Ela me pediu que a livrasse dele. O que eu podia fazer? Tive de acalmá-lo, antes de poder mandá-lo embora, de modo que fui obrigada a me sentar a seu lado, sabendo que estavam aqui à minha espera, e ouvir suas pequenas misérias. Por que será que todos têm misérias para contar? Pelo menos, esse era um pouco mais original. Está tentando ir para a Rússia, a fim de se casar com uma moça por quem se apaixonou. Quem pensa hoje em dia em se mudar para a Rússia? Seja como for, peço que me desculpem.

— E eu lhe peço que se sente — disse Hazel. — Esteve de pé toda a noite. Sente-se e tome alguma coisa.

Doyle ofereceu-lhe seu banco:

— Sente-se aqui, Medora.

— Não tenho muita fome — balbuciou Medora. — Mas se...

Hazel notou que Brennan fitava Medora de maneira estranha.

— Srta. Hart.. . — começou Brennan.

— Sem cerimônia, está bem? — propôs Hazel.

Sem lhe prestar atenção, Brennan inclinou-se para Medora:

— Por acaso, ele disse como se chamava?

— Quem? — inquiriu Medora, um tanto espantada.

— O homem que a reteve no clube — explicou Brennan. —

O sujeito que pretende se casar com uma moça russa. Sabe o nome dele?

— Creio que sim — respondeu Medora, surpresa. — É... — Tentou recordar-se. É um nome ridículo. Deixe-me pensar. — E logo acrescentou:

— Há na Irlanda uns pântanos escuros que são explorados para combustível. Quando ouvi o nome dele, vieram-me à mente.

— Esses pântanos chamam-se Peat, ou seja, turfeiras — disse Brennan, em voz baixa.

— Peet! — exclamou Medora, encantada. — É isso. O nome dele era Joe Peet.

— Bem que eu desconfiava — comentou Brennan.

— Conhece-o? — perguntou Medora, olhando-o, incrédula.

— Não exatamente — respondeu Brennan —, embora isso me agradasse.

Hazel tinha se debruçado para trás, a fim de que Doyle pudesse se aproximar de Medora e Brennan.

— Medora, onde está esse Peet? — inquiriu Doyle. — Ainda está no Clube Lautrec?

Medora negou com a cabeça:

— Creio que não. Deve ter sido levado para casa por um amigo. Aí está outra coisa estranha. Enquanto eu ouvia a história desse pobre sujeito, ansiosa por escapar, apareceu, como um Papai Noel, um amigo de Peet que lhe ordenou que acabasse com aquilo. IZntão, Peet seguiu atrás do amigo, e eu me vi finalmente livre para me encontrar com vocês.

Hazel notou que Brennan e Doyle trocaram olhares significativos e perguntou-se o que haveria por trás daquilo tudo.

— Se Peet é quem julgo — disse Hazel —, encontrei-o uma vez em Moscou.

— Eu sei — observou Brennan.

Espantada, Elazel inquiriu:

— Que tem ele a ver com tudo isso?

— É o que tentamos averiguar — respondeu Brennan.

— Explicar-lhe-ei mais tarde, Hazel — disse Doyle.

Brennan dirigiu-se novamente a Medora:

— Haverá algum inconveniente se eu lhe pedir que me conte o que Peet estava fazendo no Clube Lautrec e de que falavam?

— Não me importo de lhe contar — disse Medora —, embora isso pouco signifique.

— Pode ser que sim — retorquiu Brennan, ao mesmo tempo em que olhava ao redor. — Elá muita gente aqui. É melhor sairmos.

Irritada, Hazel intrometeu-se:

— Um momento, Matt. Não sei que idiotice é essa, mas permitam ao menos que a pobre pequena coma alguma coisa, nem que seja um sanduíche. Ela...

— Estou bem, Hazel — interrompeu Medora. — Não quero nada. Vim apenas para encontrar você e, em seguida, ir me deitar. Tenho de me levantar cedo por causa de Nardeau... Sim, sr. Brennan... Matt, não me importo de lhe contar o pouco que sei, se tiver paciência para me ouvir. É divertido. Vamos embora.

Os outros saíram do Bar Lido atrás de Brennan e Medora e seguiram ao longo da Arcade até a calçada dos Champs-Élysées, ainda repleta de transeuntes, apesar de já ser meia-noite.

— Quer ir para um café? — perguntou Brennan.

— Até lá, esquecerei o que se passou — respondeu Medora. — Conversemos aqui. Eis o que aconteceu...

Hazel, Doyle e Lisa formaram um apertado círculo em torno de Medora e Brennan.

— Quando o espetáculo acabou — disse Medora —, corri para o meu camarim. Denise estava lá à minha espera, muito perturbada.

— Quem é Denise? — quis saber Brennan.

— Denise Averil. Uma das melhores coristas da troupe. É de longe a mais atraente. E também a mais acessível. É de Marselha, meio francesa, meio tcheca. Fala perfeitamente o inglês. Está no Clube Lautrec há dois ou três anos. Você se lembra do número em que a troupe. aparece por trás de uma fonte? Denise era a ninfa que emergia da água.

— É difícil esquecê-la — observou acidamente Hazel. •— Pensei que fossem balões de gás que a trouxessem à superfície.

— Ela tem cento e dois centímetros de busto — disse Medora naturalmente, voltando de novo a atenção para Brennan. — Como ia dizendo, Denise estava à minha espera no camarim, visivelmente desesperada, e pediu-me auxílio. Havia um jovem no clube, uma autêntica lesma, que a tinha conhecido numa das últimas noites, e que queria um novo encontro. A primeira vez em que fora ao clube, creio que três ou quatro noites atrás, ele se sentira atraído por Denise e mandara-lhe um bilhete com... (espero que não se escandalizem) bastante dinheiro. Denise é uma estróina, aprecia a vida noturna, e tamanha generosidade excitou-a. Assim, saiu com o sujeito.

— Joe Peet? — inquiriu Brennan.

— Sim — respondeu Medora. — Não sei se será próprio entrar em pormenores, mas creio não trair quaisquer confidências, uma vez que Denise é franca com todo mundo... O certo é que me disse que foi com ele para um quarto de hotel, a fim de passarem a noite juntos.. . Ele pôs-se a fazer toda espécie de alusões lascivas, mas o que se seguiu foi simplesmente assombroso. Quero dizer que há indivíduos que não conseguem fazer amor, como se diz em certos livros, como os de Krafft-Ebing... bem, o senhor já tem experiência bastante para saber...

— Continue — pediu Brennan.

— Peet não podia fazer amor normalmente, ou não queria. Não sei ao certo, mas tentou obrigar a pobre Denise a prestar-se a toda espécie de... atos anormais, perversões... Ora, Denise é uma mulher de verdade, espantosamente vigorosa, mas conservadora, e percebeu o que Peet pretendia. Portanto, ao amanhecer, foi-se embora. E pensa que o animal a deixou em paz? Pois sim! Continuou a perseguir Denise, queria-a porque ela lhe lembrava seu verdadeiro amor, a moça russa que está em Moscou e para onde ele tenta ir, a fim de se casar. O certo é que Denise substituía em seu espírito essa moça russa. Na noite seguinte, Denise foi bombardeada com milhões de flores e bilhetes de arrependimento' e com uma enorme quantidade de presentes das Galeries Lafayette e Michel Swiss. Deixou-se seduzir uma vez mais por essas atenções, e, além disso, sentia pena do pobre infeliz, de modo que aceitou um segundo encontro. Dir-lhe-ei apenas que foi uma reedição do primeiro.

— Quer dizer que ela foi embora de novo? — perguntou Brennan.

— Exatamente. Peet não apareceu na noite seguinte, e Denise supôs que tudo tivesse acabado. Estava satisfeita por se ver livre dele. Esta noite, porém, durante o último ato, as flores e os presentes começaram a chover em seu camarim, acompanhados por um cartão um tanto incoerente em que ele dizia que morreria se não a visse, que sentia tanto a falta dela como a de Ludmila, a moça russa, e que não sairia do Clube Lautrec sem lhe falar. Noutras circunstâncias, Denise não teria se preocupado. Tem sangue-frio. Além disso, há uma saída pelos fundos; mas, esta noite, Philippe Eeron estava entre os espectadores. Deve conhecê-lo, é um célebre produtor do cinema francês. Alimenta certos projetos em relação a Denise e mandou-lhe um convite para ela se sentar à sua mesa, depois do espetáculo. Estava acompanhado por um grupo de gente do cinema que queria conhecer Denise. Ela estava entusiasmadíssima. Então, compreendeu que entre ela e Feron, que a convidara para a sua mesa, havia esse maníaco do Joe Peet. Não ousava mandar um bilhete a Feron, explicando-lhe que estava em apuros ou pedindo-lhe que se encontrassem noutro lugar. Tinha de ir para a ''mesa dele. Mas como, se Peet estava ali, disposto a provocar uma cena desagradável? Foi então que ela se lembrou de mim e me pediu que fosse ter com Peet, dizendo-lhe que ela não se sentira bem e saíra pela porta de serviço. Como livrar-se de Peet e avisar Denise de que o caminho estava livre? O que fazer? A amizade é assim. Denise descreveu-me Peet, indicou-me onde ele estava sentado e depois foi mudar de roupa, aguardando meu sinal. Não tive tempo para pensar. Preparei-me para a batalha com o sr. Peet.

— Reconheceu-o? — inquiriu Brennan.

— Tão facilmente como a um furão ou a uma doninha num grupo de pessoas — respondeu Medora. — Contudo, ele já não estava em sua mesa. Tentava abrir caminho para os bastidores, mas dois guarda-costas de Michaud o agarraram pelo colarinho, prendernm-lhe as mãos atrás das costas e preparavam-se para atirá-lo às urtigas, como dizem os americanos, quando eu intervim. Pedi-lhes que o largassem, que o deixassem comigo, e eles obedeceram. Peet íicou tão grato por eu o ter salvo de uma indignidade que quase senti pena dele. Transmiti-lhe o recado de Denise, e ele pareceu aceitá-lo calmamente, se bem que com certo ceticismo. Ficou tão desorientado que duvido que continue a perseguir Denise esta noite. Disse ine que precisava de alguns minutos para se recompor e insistiu em que eu tomasse uma bebida com ele, para que ele me demonstrasse seu apreço. Se eu aceitasse, prometia não arranjar mais confusões e ir-se embora em seguida. Pensei na pobre Denise, com cólicas lá em cima, à espera do sinal, de modo que concordei em beber com o pobre sr. Peet. Sentei-me à mesa dele, onde havia gar- inliis de Coca-Cola, bebemos um pouco de uísque, e então ele me Inlou de sua namorada de Moscou, com a qual esperava casar-se, da maneira como todo mundo o tratava e da tristeza que sentia por ter feito o que fizera, incomodando uma pessoa tão simpática como eu. Depois, pediu mais uísque, decidido a prolongar a conversa, o que me deixou desesperada, pois eu pensava na pobre Denise, que rangia os dentes lá em cima, e em vocês, que me esperavam no Bar Lido, mas não conseguia me ver livre daquele aborto da natureza.

— Ele lhe disse por que se encontra em Paris? — perguntou Brennan.

— Apenas que estava tentando regressar à Rússia, para se casar com a tal garota.

— Não falou de livros? — quis saber Brennan.

— Livros? — Medora encarou-o com pasmo.

— Se os lia, se os colecionava?

— Ele? — E Medora desatou a rir. — Tenho a impressão de que sua assinatura é uma cruz. Seja como for, veio a segunda rodada de uísque, e ele continuou a falar. Eu me sentia prestes a rebentar quando, de repente, um homem muito alto, envergando uma espécie de capote de gabardina, se abeirou da mesa. Nem sequer me cumprimentou. Limitou-se a pôr uma mão peluda no ombro de Peet e a dizer-lhe com voz grossa alguma coisa deste gênero:

“Meu caro Joe, garotas, sim, mas nada de bebidas”. Depois, se bem me recordo, acrescentou:

“Tenho estado à sua espera. Vamos, Joe, já é tarde. Vamos embora”. Peet ainda tentou protestar, mas, pensando melhor, agradeceu-me a companhia, deixou dinheiro para as bebidas, pediu-me que apresentasse seus cumprimentos a Denise, declarou que tinha outra entrevista de que se esquecera e partiu com seu gorila, o que foi minha salvação. Avisei Denise e vim imediatamente encontrar vocês.

— Muito bem, Medora — disse Brennan, pausadamente. Seus olhos se encontraram com os de Doyle:

— O que pensa disso, Jay?

— É interessante. Isto é, o seu salvador.

— Tem razão — disse Brennan. E sorrindo para Medora:

— Oxalá eu tivesse sabido que Peet se encontrava no Clube Lautrec, quando lá estivemos. Seu relato, porém, foi esclarecedor. A propósito, Medora, esse amigo que foi buscar Joe Peet falava com sotaque?

— Tenho certeza de que era estrangeiro.

— Não faz ideia de sua nacionalidade?

— Não, embora isso não abone muito minha inteligência.

— Outra coisa, sabe onde está hospedado esse Joe Peet?

— O hotel? Denise mencionou-o diversas vezes. — Fez estalar os dedos. — Já sei. É o Plaza-Athénée.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Ótimo! — exclamou Brennan. — Obrigado por tudo, Medora. Jay, importa-se de acompanhar Lisa até o Califórnia?

— Para onde vai? — quis saber Lisa.

— Penso em fazer uma visita ao sr. Peet.

Lisa agarrou-o por um braço:

— Não deve ir sozinho.

— Ela tem razão — interveio Doyle. — Podemos ir com você.

Brennan franziu a testa:

— Não deve ser fácil para mim apanhar Peet sozinho, quanto mais.. . — Encolheu os ombros. — Seja! Podem esperar por mim no bar do Plaza-Athénée.

— Meu carro está aqui perto — ofereceu Hazel. Mas logo se arrependeu:

— Agora me lembro. Só tenho três lugares, contando com Jay e eu.

— Só faltava essa! — comentou Doyle.

— Pegarei um táxi — disse Brennan. — Quer vir conosco, Medora? Encontramo-nos no vestíbulo do hotel, Jay. A partir de agora, acabaram-se os segredos. Conte a Hazel meu primeiro encontro com Joe Peet.

Hazel viu Brennan dirigir-se com as duas moças para um ponto de táxi nos Champs-Élysées. Depois, dando o braço a Doyle, encaminhou-se para seu carro, estacionado na Rue de Berri. A dor de cabeça tinha passado. Em seu lugar, fervilhava uma insaciável curiosidade de jornalista.

Só depois de estar sentada ao volante, a caminho da Avenue Montaigne, é que Hazel deu vazão à sua curiosidade.

— Muito bem, Jay, acabou-se a brincadeira. O que se passa entre Brennan e Joe Peet?

Doyle contou-lhe a história da aventura de Brennan no antiquário de livros e autógrafos de Julien, na Rue de Seine, que terminou com a aquisição, por Joe Peet, de uma obra inexistente de Sir Richard Burton, datada de 1890.

— Já sei — disse Hazel, quando ele se calou. — É o lugar que você e Brennan julgam ser uma possível célula comunista.

— Exatamente.

Com desespero, lembrou-se de ter falado naquilo a Rostov.

— E o que Brennan pensa? — perguntou ela. — Que Peet é um espião comunista?

— Ou um vagabundo. Não temos certeza. Mas estamos averiguando.

Hazel espreitou pela janela:

— Vou estacionar ali.

Conduziu o Volkswagen para uma vaga perto da embaixada canadense. Saindo do carro, juntou-se a Doyle na esquina, e encaminharam-se para o Hotel Plaza-Athénée.

— Seja o que for que pense acerca de Peet, esqueça-o — disse ela, molemente. — Não consigo explicar o episódio da Rue de Seine, mas uma coisa posso lhe dizer a propósito de Peet. Após sua entrevista coletiva em Moscou, levei-o para o meu apartamento, a fim de descobrir se haveria mais alguma coisa por trás de sua história. Enchi-o de bebidas e obriguei-o a falar, mas tudo o que fez foi evocar a namorada russa. Quer saber a verdade? Você já deve ter suspeitado, pelo que disse a amiga de Medora. Peet é um impotente que, durante umas férias casuais na Rússia, encontrou uma moça que não o assustou como o assustaram as americanas. Com essa russa, Ludmila, sentia-se alguém. E por isso, pela primeira vez em sua vida, atingiu seu objetivo. Essa moça foi uma bênção para ele. Já aconteceu antes com pessoas importantes, incluindo um rei de nossa época. Compreende o que quero dizer, Jay?

— Claro.

— A única coisa que interessa ao pobre Peet é encontrar de novo essa moça e sentir-se um homem. Caso contrário, não será nada nem ninguém. Um espião? Nem os comunistas, nem a cia, nem os chineses o aceitariam como cão de caça, quanto mais como espião. — Sorriu para Doyle. — Talvez seu amigo Brennan esteja outra vez com uma de suas manias. Mas está perdendo tempo... o dele e o nosso.

— Creio que tem razão — disse Doyle, um tanto desorientado. Apontou em frente:

— Ali estão eles.

À entrada do Hotel Plaza-Athénée, Brennan e as duas moças aguardavam-nos. Doyle tentou obrigar Hazel a apressar-se, mas Brennan já os tinha visto e, dando um braço a Lisa e outro a Medora, foi ao encontro deles.

Quando se aproximaram, Hazel notou a excitação no rosto de Brennan.

— Peet esteve registrado no Plaza Athénée — informou rapidamente Brennan —, mas foi embora há cerca de meia hora.

— Está brincando? — admirou-se Doyle. E soltou um assobio.

— Eu disse ao porteiro que era inquilino do irmão de Peet e que éramos grandes amigos — explicou Brennan. — Joe Peet tinha um quarto reservado no Plaza-Athénée para uma semana e meia. De repente, há uma hora, chegou com seu amigo, o porteiro afirma que já os vira juntos antes, e, momentos depois, telefonava do quarto dizendo que tinha de deixar imediatamente Paris. A gerência e o pessoal do hotel ficaram um pouco espantados, mas entregaram-lhe as bagagens, e ele e o amigo foram embora há trinta minutos.

— Deixou algum endereço? — perguntou Hazel, impressionada.

— Nenhum — respondeu Brennan. — Pergunta isso para o caso de ele estar à espera de correspondência? Não, não deixou nenhum endereço. Limitou-se a desaparecer. Digam o que disserem, acho isso muito estranho.

Hazel concordou silenciosamente em que era estranho. Esquecida do que havia dito a Doyle, começou a sentir certo respeito por Brennan.

— Sim, é estranho — disse ela. Alguma coisa lhe atravessou a mente. Olhou para Medora e, inesperadamente, ouviu-se dizer:

— Querida Medora, esse amigo de Peet, o homem alto que viu no clube e convenceu Peet a sair com ele...

— Refere-se ao meu salvador?

— Sim, seu salvador. Seria capaz de reconhecê-lo, se voltasse a vê-lo?

— Sem dúvida. É parecido com Paddy, com... com alguém que conheci em Londres. Não é precisamente um sósia, mas parece-se com ele.

— Pode descrever o amigo de Peet?

— É alto, como já lhe disse, mais ou menos um metro e noventa, e forte. Testa, queixo e pescoço curtos, nariz achatado, sobrancelhas espessas, terno cor de fuligem, bochechas coradas e com marcas de espinhas. Estrangeiro.

ITazel lançou a Brennan um olhar de soslaio.

— Creio que está pensando o mesmo que eu, Matt.

— E o que você pensa?

— Isso, exatamente. — Hazel olhou para Medora. — Pode se encontrar comigo e com Matt no estacionamento do Palais Rose, amanhã de manhã, por volta das nove e quarenta e cinco? É quando chegam os delegados.

— Julgo que sim — respondeu Medora. — Sim, com certeza. Vou esperar Nardeau, que vem de trem, mas terei tempo. Pode contar comigo no Palais Rose. — Uma ruga sulcou-lhe a testa. — Por que me quer lá?

— Por quê? — E Hazel voltou-se com deferência para Brennan:

— Explique-lhe, Matt. Diga-lhe por que a queremos lá.

Brennan olhou para Medora:

— Queremos que nos ajude a descobrir quem é realmente Joe Peet. As implicações podem ser importantes.


 

O Citroen que Medora chamara nessa manhã e a levara à Gare de Lyon, onde esperara o trem da Riviera em que Nardeau viajava, estava agora estacionado em frente do edifício da chefatura de polícia situado na Avenue du Palais Rose, na íle de la Cité, no meio do Sena.

Sentada atrás, Medora Hart cruzou as pernas, ajustou a blusa do confortável conjunto italiano de lã e recostou-se, contente consigo mesma. Apesar de não ter dormido por causa da excitação da noite anterior e de haver se levantado cedo, sentia-se fresca e plena de vigor.

Desde que Nardeau descera do trem, erguera-a nos braços e gritara carinhosamente “Maydor!”, seu espírito reanimara-se. Ele ordenara ao motorista que os levasse diretamente à chefatura de polícia. Ficara indignado com o roubo dos quadros, principalmente o do Nu no jardim, e estava resolvido a deslindar o mistério. Não se contentaria com um simples inspetor ou com o comissário de divisão do bairro onde se tinha verificado o furto. Não! Falaria pessoalmente com o secretário-geral ou o chefe de polícia. E a verdade é que conseguira uma entrevista, telefonando de Nice.

 

                                                                               CONTINUA 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades