Biblio "SEBO"
AS AMAZONAS
"Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pêlo, tapadas as suas vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um pouco menos, de modo que os nossos bergantins pareciam porco-espinho. "
Frei Carbajal
Diz a lenda que as índias icamiabas habitavam as terras localizadas perto das nascentes do rio Nhamundá. Existia ali um lago denominado Espelho da Lua, ou Iaci-uaruá, onde todos os anos as índias icamiabas realizavam a Festa de Iaci e lhe ofereciam um talismã retirado do fundo do lago Iaci-uaruá.
A festa durava vários dias, quando então as icamiabas recebiam os índios guacaris, que era a tribo mais próxima, e mantinham com eles relações sexuais.
Os filhos masculinos que nascessem dessa união eram sacrificados, sobrevivendo apenas os que fossem do sexo feminino. Pouco antes da meia-noite, mas depois do acasalamento, as índias mergulhavam no fundo do lago e retiravam de lá um precioso amuleto chamado muiraquitã, de cor esverdeada, que lhes era entregue, por Iaci, a Mãe das Águas, ainda mole, no formato que elas escolhessem. Quando elas voltavam à superfície, o talismã petrificava em contato com o ar.
Cada uma então presenteava o índio, com o qual tinha acasalado, com esse talismã, que tinha poderes mágicos.
Alguns desses artefatos estão espalhados pelos principais museus do mundo e também no museu de Santarém, no Pará, perto de onde habitavam as icamiabas. A pedra talvez seja classificada como jade ou nefrite, e os índios costumavam trazer o amuleto pendurado ao pescoço. É possível que as amazonas tenham se refugiado mais ao norte para fugir dos colonizadores, porém não foram mais encontradas. O amuleto de pedra verde continuou a ser fabricado pela tribo dos índios Uaboí, que também habitam a região de Nhamundá.
A lenda das mulheres guerreiras ou amazonas pode ter nascido na batalha de Termodonte, quando os gregos enfrentaram um exército de mulheres.
Para melhor manejarem o arco, as flechas e as lanças, elas queimariam ou cortariam, na puberdade, o seio direito. A palavra amazonas tem origem no grego, no qual o prefixo de negação "a" vem seguido da palavra "mazós" que significa peito. Daí "a-mazós", ou mulheres sem peito.
Francisco Orellana passou para a história como o primeiro homem branco a percorrer o rio Amazonas. Depois de granjear respeito na luta contra os incas, juntou-se a Francisco Pizarro, em Quito, para outra expedição que tinha por finalidade a busca do Eldorado.
Desencontrou-se porém de Pizarro e, com um pequeno navio construído na selva, chegou até o rio Napo, o qual desceu navegando até uma grande embocadura, que era a confluência do Napo com o rio Amazonas. Frei Gaspar de Carbajal acompanhava a expedição e relatou a viagem de Orellana, denominando inicialmente o rio Amazonas de "Mar Dulce".
Depois, impressionado por ter sido atacado por mulheres com arco, flecha e lanças, frei Carbajal as comparou às lendárias amazonas da mitologia grega e chegou mesmo a escrever que elas queimavam o seio direito para ter mais facilidade no manejo das armas.
No entanto, todas as representações das amazonas guerreiras apresentam-nas como mulheres bonitas, cheias de sensualidade e inteiras, com ambos os seios.
Já fazia quase uma hora que o monomotor havia saído da pista do Roosevelt e sobrevoava a selva amazônica.
O Bonanza veio preparado para a longa viagem e o piloto informou que no console na frente deles havia refrigerantes, água e sanduíches. Maurício dispensou polidamente a oferta do piloto, que no entanto insistiu para que tomassem pelo menos o refrigerante que se conservava gelado no isopor. Mas algo o incomodava. Lembrou-se do Príncipe da Beira e dos soldados dormindo.
Tinha trazido bananas e água da fazenda num cantil.
- A banana, tenente, é um alimento privilegiado. É fácil tirar-lhe a casca e descê-la até pouco abaixo do meio, para que fique como uma saia, e a gente tem então um alimento gostoso, nutritivo e limpo. Nem as mãos a gente suja. Sempre que faço longas viagens de carro, levo bananas. É muito prática.
Andava assustado e preocupado. Já não confiava nem mesmo no seu sexto sentido e procurava internamente o sétimo ou o oitavo sentidos para ter mais segurança. Será que não estava exagerando? Será que havia mesmo gente estranha na casa do Zelão, tentando completar o serviço que aquele sujeito do Chuvisco não conseguira? Pelo sim pelo não, tinha mesmo de ir atrás das outras fortalezas da época da colonização e fez bem em sair da Buritizal. Mas havia algo estranho com esse avião.
Alegrou-se ao ver que o tenente também alimentava suas próprias dúvidas.
A Fernanda podia ter mandado um avião de dois motores para fazer a gente flutuar aqui em cima dessa mata, o senhor não acha?
Será que ela sabe disso?
Percebeu que poderia levantar mais preocupações em momento impróprio e continuou falando antes que o tenente começasse a interpretar seus receios.
Um grande mistério cerca esse rio Amazonas. Ele é ao mesmo tempo desafio e mistério. Por que será que o desafio e o mistério nos impressionam tanto?
Rogério esqueceu o monomotor e olhou intrigado para o seu companheiro que continuou:
Acredito que as três maiores aventuras fluviais que o homem já fez tenham ocorrido no Brasil. E as três tiveram por destino o rio Amazonas.
As três maiores aventuras fluviais, aqui no Brasil? O senhor está falando do Orellana, Raposo Tavares, mas e a terceira?
Theodore Roosevelt.
Ah! O rio da Dúvida?
Isso mesmo! Orellana, Tavares e Roosevelt. Os três se aventuraram em direção ao mesmo rumo, o rio Amazonas. Mas quase não chegam. Foram aventuras espantosas. Nossa história é rica e heróica. Um português caçador de índios, um espanhol em busca de ouro e, por último, um presidente americano atrás da borracha, guiado por um dos mais ilustres brasileiros, o marechal Rondon. Roosevelt recebeu o prêmio Nobel da Paz por sua mediação no conflito russo-japonês, no ano de 1894, e Rondon foi indicado para o mesmo prêmio, pelo seu trabalho de pacificação dos índios. Ganhador da Legião de Honra e outras homenagens internacionais, teve vida longa. Morreu com mais de noventa anos.
Falava com naturalidade, como se estivesse apenas relembrando fatos históricos, mas olhava discretamente para o piloto. Também não tinha gostado de terem enviado um avião monomotor para aquela travessia da Amazônia e achava estranho que o piloto levasse uma mochila com a sua bagagem no banco do co-piloto.
Rogério olhava para baixo imaginando que, se acontecesse alguma coisa com o motor daquele avião, iriam cair naquele "inferno verde", que era muito bonito para ver de cima, mas não era bom pensar nas onças, jacarés, mosquitos e no desespero de estar lá perdido, se não morressem com a queda do avião.
O monomotor foi avançando sobre a floresta densa e os rios embaixo lhe davam a semelhança de um imenso serpentário desenhando estranhas geometrias cheias de curvas. Logo alcançaram o Madeira, grande, largo, que se enrolava e se esticava cortando a selva como gigantesca sucuri. Aproximavam-se de Manaus.
De onde estavam, já dava para ver um dos mais bonitos fenômenos da natureza.
Não há quem não fique extasiado ao ver de lá de cima o encontro portentoso do rio Negro com as águas barrentas do Solimões. As duas correntes fluviais deixam a impressão de que a natureza se revolta contra si mesma para entregar o rio Negro, o terceiro maior do mundo, ao Solimões.
Mas essa leitura superficial é enganosa. O Solimões se enfraquece na luta com o Negro e também perde a sua individualidade. Do envolvimento entre os dois gigantes, surge o maior rio do mundo, o rio Amazonas, ou, como era chamado, Amaru Mayu, a serpente mãe do mundo.
Rogério estava imaginando a tristeza do rio Negro, que é maior que o Sena, maior que o Danúbio, maior que o Tâmisa, o Reno, o Mississipi, o Missouri e, apesar da sua grandeza, não passa de um afluente. O rio Negro tem quilômetros de largura e abriga mais de mil ilhas apenas em dois arquipélagos. Anavilhanas, próximo de Manaus, e Mariuá, perto de Barcelos. São os dois maiores arquipélagos fluviais do mundo, se considerarmos que a ilha de Marajó está encostada no oceano.
Tenente, o senhor está vendo essa coisa maravilhosa aqui embaixo? Pois é. Em 1967 o Hudson Institute, dos Estados Unidos, apresentou um plano para a construção de sete lagos. Quatro deles seria no Brasil e três na Colômbia. Foi o chamado Plano Mar Mediterrâneo Amazônico. O plano foi imaginado por um tal de Hermann Khan, que inventou uma "ciência" chamada futurologia. Essa futurologia não teve futuro. O propósito dele aqui no rio Amazonas era gerar energia para a Europa e para os Estados Unidos.
O tenente tinha lido algo a respeito desse Hernann Khan, mas não dera muita importância, apesar de já representar na época uma tentativa de internacionalizar a Amazônia.
Pois bem - continuou Maurício -, faz apenas trinta anos que esse futurólogo previu que essa região seria um imenso parque industrial e gerador de infindáveis riquezas. O plano dele era acabar com o rio Amazonas e praticamente recompor o mar que existia aqui há milhões de anos. Segundo os geólogos, onde hoje é o rio Amazonas, existia um grande canal que ligava os oceanos Atlântico e Pacífico, e o sentido das águas era contrário à direção que as águas do rio têm agora. Parece que a elevação das montanhas que formam a Cordilheira dos Andes interrompeu a ligação dos dois oceanos e o canal ficou bloqueado. As águas salgadas foram aos poucos sendo substituídas pelas águas doces que vêm do alto das geleiras andinas, que se somam às águas dos atuais afluentes, tomando a direção do oceano Atlântico.
O tenente lamentou não ter-se informado melhor a respeito desse Hermann Khan. Achou que perdeu a oportunidade de mostrar mais interesse pela Amazônia, mas mesmo assim comentou:
Esse Hermann Khan e o Hudson Institute estavam pretendendo destruir toda essa natureza e não faz muito tempo. Por que será que agora, sem mais nem menos, eles querem que isso aqui fique exatamente como está, sem que nós, os proprietários, possamos planejar um meio de usar essas riquezas?
Sem deixar de observar a beleza das praias que se formavam com a seca nas margens dos rios, o tenente continuou:
Mudança muito brusca. Uma hora eles querem a nossa borracha, outra hora querem os nossos rios, outra hora precisam da madeira, ou então, como pretendeu esta organização Hudson, querem fazer aqui o maior parque industrial do mundo e gerar energia para todos eles. Agora querem a atmosfera e fazem algumas ONGs que vêm com um saquinho de dólares como se fôssemos pedintes.
O senhor tocou num ponto interessante. A cada hora eles levantam uma teoria nova. Veja essa seca que atinge agora a região. Dizem que é por causa do desmatamento. Segundo a imprensa, foi a maior seca dos últimos sessenta anos. Ora, se há sessenta anos não havia desmatamento e houve uma seca igual à deste ano, como os ambientalistas podem hoje ter certeza de que um desmatamento de apenas dez por cento tenha sido a sua causa?
Olhou para o grande tapete verde que se estendia sob eles.
Essa floresta é um grande orgulho nacional. Não estou defendendo a sua derrubada. Não me entenda mal. Mas desconfio muito desse repentino ambientalismo com que nos querem tomá-la.
Os interesses americanos na Amazônia são antigos. No século XIX, o governo americano já insistia na tese de que o rio Amazonas não era um simples rio e devia ser aberto à navegação internacional. Chegou a haver atrito diplomático quando, em 1850, no governo de dom Pedro II, uma canhoneira americana subiu sem autorização todo o rio, até chegar a Iquitos, no Peru.
Minha mulher costumava dizer que o homem só usa a inteligência para controlar a natureza. Segundo ela, o que distingue o homem dos outros animais é que ele usa a inteligência para modificar a natureza em seu próprio benefício. E tem sido assim desde o início dos tempos.
Pois é. Esse é o desafio. Como manter a nossa soberania sobre a Amazônia e usar as suas riquezas naturais de forma inteligente e responsável?
O aeroporto Eduardo Gomes tem duas alas separadas. O edifício destinado a aviões de grande porte é chamado de Eduardo e o edifício destinado a aviões do tipo Bandeirante e Brasília e aviões pequenos é o Eduardinho. Os dois edifícios são no entanto servidos pela mesma pista.
Já passava das três horas da tarde quando o Bonanza taxiou no pátio do Eduardinho. Desceram e esperaram o piloto desligar as hélices para pegar as mochilas que eram ainda a bagagem que tinham. Era preciso mandar lavar as poucas roupas, e iam tentar isso ainda que fosse para o hotel entregar na manhã seguinte.
O piloto entregou as mochilas e depois perguntou:
Os senhores vão para o hotel agora? Recebi instruções para ficar à disposição dos senhores.
Pegou um cartão com o número do telefone celular e entregou a Maurício.
Vou ficar na casa de um amigo, também piloto, que não vejo há algum tempo, mas os senhores podem me chamar a qualquer momento.
"Estranho! Será que a capitã se esqueceu de que havíamos combinado de trocar de piloto a cada vôo?"
Despediram-se e caminharam para o salão de desembarque.
Depois de andar uns cinqüenta metros, Maurício olhou instintivamente para trás e se lembrou então do detetive chinês Fu Manchu. A cena em que o detetive hospedara-se num castelo e, depois de ter cumprido as formalidades da recepção, estava indo para o quarto e olhou para trás, veio- lhe imediatamente à memória. Fu Manchu desconfiara do recepcionista e voltou-se sem que o outro esperasse.
Foi mais ou menos o mesmo agora. Numa espécie de curiosidade instintiva, voltou-se e o piloto estava parado olhando para eles, mas virou logo o rosto como se tivesse sido pilhado em flagrante.
"Parece que nos estava espionando. Não havia necessidade de ele virar o rosto assim, com essa rapidez, como se não quisesse que notássemos que ele estava nos acompanhando com o olhar."
Atravessaram o saguão do aeroporto e em direção ao ponto de táxi, quando viram um militar descer de uma viatura do Exército que estava parada no estacionamento, dirigiram-se a eles.
Doutor Maurício? Sou o tenente Alfredo e tenho ordens de acompanhá-los enquanto estiverem em Manaus.
Rogério entusiasmou-se:
A Fernanda está cuidando de nós, hein?!...
Sem dúvida — respondeu Maurício, laconicamente, como se o Fu Manchu não saísse de sua cabeça.
Entraram na viatura, onde um cabo fazia a função de motorista. A viatura tomou o caminho da cidade, pela avenida Presidente Kennedy, e se afastaram do aeroporto.
Maurício não estava gostando.
"Isso está cada vez mais esquisito. Não avisei ninguém que vinha para Manaus. Só avisei o piloto do nosso destino depois que entramos no avião lá na margem do rio Roosevelt."
"Será que o piloto falou pelo rádio com alguém? Será que recebeu ordens para avisar para onde iríamos? A capita não iria dar uma ordem dessas porque sabe o perigo que corremos. O rádio do avião pode ser ouvido por terceiros."
A viatura deixou-os num hotel de quatro estrelas, perto do Teatro de Manaus, e o tenente disse que estaria em frente do hotel, caso precisassem dele. Enquanto Rogério telefonava para a capita, Maurício disse que ia tomar umas providências e desceu.
Precisava localizar o forte e sair dali com urgência. Sentia que era arriscado permanecer muito tempo num lugar e, além disso, o tempo ia se esgotando.
"O que será que pode existir nesses fortes, que tenha alguma ligação com essa independência da Amazônia? Alguma coisa liga a filosofia dessas construções, talvez a lógica da sua localização. Mas o que será que isso tem a ver com esse grupo de imbecis que está querendo nos tomar a Amazônia?"
Não estava ainda convencido de que tinha entendido bem as recomendações do general e agora ele estava morto e não podia dar mais informações.
"Ou será que eles podem ser usados como esconderijo de armas e munições? Se for isso teremos de examinar também as redondezas, cavernas e outros pontos mais lógicos, porque os fortes, na verdade, estão abandonados."
Quando o tenente desceu, Maurício lhe informou que já tinha visitado, tempos atrás, o local onde provavelmente teriam construído o forte de São José. Aproveitaram a viatura do Exército e foram ao Instituto do Patrimônio Histórico Nacional.
Após explicarem ao guarda que estava atrás de uma mesa o propósito da visita, eles tiveram permissão para subir. Foram atendidos por uma arquiteta que se mostrou entusiasmada pelo interesse deles e disse:
Existe um local, bem aqui perto, onde parece ter sido construído o forte. Estão sendo feitos estudos arqueológicos e tudo indica que o forte era ali. É perto e eu vou com os senhores até lá.
Caminharam uns duzentos metros e a arquiteta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, mostrou a escavação onde havia paredões antigos, com alicerces de pedra largos e resistentes. As pesquisas arqueológicas levavam a crer que aqueles paredões eram do forte. As pedras eram próprias da região e os arqueólogos encontraram vestígios de um cemitério indígena daquela época em torno dos paredões.
A arquiteta tinha disposição para explicar.
A expedição de Orellana despertou interesse no Velho Mundo e começaram a chegar espanhóis, portugueses, franceses, ingleses, holandeses, tentando conquistar a região. Os portugueses tentaram então segurar as invasões e fundaram a cidade de Belém, junto ao forte do Presépio, e em 1669 foi criado o forte São José da Barra do Rio Negro, em torno do qual nasceu o arraial que deu origem à cidade de Manaus.
A explicação era interessante, mas Maurício não conseguia tirar da cabeça o piloto do Bonanza. Se estivesse certo sobre seus receios, havia perigo em todos os lugares. Isso significava que ele estava tendo um comportamento previsível, pois os bandidos tinham preparado outra armadilha, caso conseguissem sair ilesos da fazenda.
Estávamos na época subordinados a Belém, e a região era conhecida como Grão-Pará. Mas, como a distância era grande e havia dificuldades, foi criada, em março de 1755, a Capitania de São José do Rio Negro, que passou em 1833 para a categoria de Vila, com o nome de Manaus, em homenagem a tribo dos índios Manaós.
O mato tomava conta do local e em volta havia obras tentando destruir o que restava daquelas ruínas históricas.
Perguntou:
Como é que a senhora explica que uma obra histórica, que teve tanta importância para a consolidação do nosso território, possa ter ficado nesse abandono?
Ela respondeu com um sorriso melancólico. A pergunta despertou nela o gosto manaura de lembrar os tempos áureos do ciclo da borracha.
- Vocês vão visitar o teatro? Não deixem de fazê-lo. Mas atentem para um detalhe. O Brasil tinha apenas cinqüenta anos de independência quando ele foi construído. Prestem atenção na variedade de estilos, na arquitetura e no conjunto de obras de arte que veio de vários países.
Não podiam deixar de visitar o teatro, ainda porque podia estar ali algum elemento a considerar. Havia tempo para uma visita rápida e, depois de se despedirem da arquiteta e agradecerem a sua atenção, foram até o teatro. Um grupo de turistas estava sendo formado e tiveram tempo de comprar os ingressos e segui-los.
De fato, a obra era deslumbrante. A variedade de estilos foi composta de forma a harmonizar as quatro fachadas greco-romanas e cada conjunto despertava atenção pela beleza: a cúpula turca de 36 mil escamas de cerâmica esmaltada com as cores da bandeira brasileira, cristais da Boêmia e de Murano, cadeiras de couro russo, jarros japoneses, pinturas italianas, esculturas de ferro francesas, cortinas de Damasco, o lajedo em pedra lioz, de Lisboa, e escadas de mármore de Carrara.
Vieram telhas vidradas da Alsácia e as grades de ferro para camarotes, frisas e balcões vieram de Paris. A armação da cúpula e os móveis estilo Luís XV vieram da Itália. O vigamento de aço das paredes foi encomendado em Glasgow.
A beleza do salão nobre fica para sempre na memória de quem o visita. Uma bela tela representa o índio Peri salvando Ceei do incêndio, em homenagem ao romance O Guarani, de José de Alencar. No assoalho, tacos de madeira escura e amarela simbolizam o encontro das águas barrentas do Solimões com as do rio Negro.
O teatro não é a única construção de Manaus em estilo europeu e de arquitetura também rica, mas é, sem dúvida, uma jóia da belle époque amazonense, que surgiu com o processamento industrial de um produto que antes servia apenas de curiosidade.
Logo após o descobrimento, viajantes vieram ao Novo Mundo em busca de plantas medicinais. Descobriram que os índios costumavam fazer bolas com o leite que saía da casca de uma árvore. O material, no entanto, era quebradiço quando esfriava e se derretia com o calor. Os índios faziam bolas para brincar, mas o produto não tinha valor comercial.
Em 1839, Charles Goodyear, que daria nome à marca de pneu, descobriu o processo de vulcanização, fazendo da borracha um produto que não se alterava com a mudança da temperatura ambiente. A descoberta provocou outra revolução industrial. O produto passou a ter valor inestimável e surgiu o ciclo da borracha, que durou de 1879 a 1912, e tornou a Amazônia responsável por quarenta por cento das exportações brasileiras.
Foi tal a riqueza que Manaus passou a ser a capital mundial do comércio de diamantes. A renda per capita da Amazônia chegou a ser duas vezes maior que as de São Paulo e Rio de Janeiro, regiões que também se enriqueciam com a cultura do café. Os homens andavam de terno, colete e gravata e seguiam o figurino inglês, apesar do calor úmido de 40 graus. As mulheres importavam vestidos longos e portavam umbrelas, ao estilo parisiense.
A moeda corrente era a libra esterlina e as luxuosas roupas da elite local, importadas da Europa ou Estados Unidos, eram enviadas de navio para lavar e engomar em Lisboa. Os jornais eram impressos em inglês, francês, alemão e até árabe. Os amazonenses tinham dinheiro, cultura e uma sociedade sofisticada, mas faltava um palco. E assim surgiu o teatro de Manaus, construído em Paris e transportado em peças para ser montado na capital do Amazonas.
Em 7 de janeiro de 1897, o teatro foi inaugurado com a apresentação da Companhia Lírica Italiana, que encenou em avant-première a ópera La Gioconda, de Ponchielli.
No ano de 1876, um comerciante inglês, chamado Henri Wickham, levou vários barris de sementes da Hevea brasiliensis para o Jardim Botânico de Londres, para a produção de mudas que seguiram para a Malásia, Ceilão e Singapura, onde passaram a produzir em grande escala, acabando bruscamente com o esplendor amazonense.
Mas lá, no coração da Amazônia, ainda está uma das poucas obras da arquitetura humana que chegaram perto da perfeição. Solitário, inteiro, perfeito, é o testemunho melancólico daquele período, abruptamente interrompido com a decadência da produção da borracha amazonense.
Maurício não tinha ainda avisado o tenente que, enquanto ele telefonava para a capita, fizera reserva no vôo que saía às nove e meia da noite para Boa Vista, porque tinha receio de que ele falasse esse assunto ao telefone com a capitã e não era momento para transmitir preocupações.
Assim que voltaram ao hotel, explicou ao tenente que era melhor saírem dali, porque já tinham visto o suficiente.
O avião Brasília levantou vôo pontualmente com destino a Boa Vista, capital de Roraima. Ocupavam dois assentos perto das asas e o barulho dos motores facilitava a conversa a dois, sem ninguém mais ouvir.
Esses banquinhos são meio apertados, o senhor não acha? Aquele seu avião, o Sêneca, é mais confortável.
Acho que o senhor vai gostar de saber que o Carlão deve estar esperando por nós lá no aeroporto. Ele já morou em Boa Vista, tinha ali um aerotáxi para atender os garimpos. Assim que saímos da fazenda, ele também saiu e teve ainda o dia todo de hoje para chegar a Boa Vista.
Alguma razão especial para mudarmos de piloto?
Acho que o Carlão poderá ser mais útil.
Não engoliu a resposta e ficou pensando. "O que será que ele viu naquele piloto? Nem me ocorreu falar alguma coisa com a Fernanda, mas também esse sujeito é desconfiado demais. Deixa pra lá."
Franz Sauer olhava com curiosidade a folha de papel que tinha nas mãos. Nos últimos dias, alguém estava fazendo intensas pesquisas sobre ONGs e internacionalização da Amazônia.
Folheava os papéis e pensava.
A busca era frenética e acessava sites de várias ONGs e isso parecia perigoso. Grande número de ONGs cujo site estava sendo acessado havia sido criado pelo Comitê de Independência. Ele mesmo fora bastante prudente e criara algumas em lugares estratégicos, procurando assim aumentar o seu espaço no futuro país.
Eram ONGs atuantes e divulgavam a idéia de que os países desenvolvidos já estavam se preparando para tomar a Amazônia.
O plano revelado pelo Dílson em criar diversas ONGs interessadas na Amazônia, com sede em vários países, e essas ONGs terem o direito de indicar representantes para o Parlamento Amazônico era uma idéia genial. Com essa participação das ONGs no novo governo, todos os países influentes apoiarão com energia a proclamação da República da Amazônia.
Com certeza o mundo todo iria apoiar, mesmo porque a Inglaterra, a Bélgica, a França, a Itália e os Estados Unidos estariam representados dentro da Amazônia, pois para isso foram criadas muitas ONGs. Elas saberiam controlar a imprensa e a diplomacia em seus países.
Depois de proclamada a República e tomado o poder, as coisas então poderiam mudar. Mas por enquanto era necessário dar segurança aos grupos de apoio. Deixá-los acreditar que será mantido o antigo princípio do Direito latino Pacta sunt servanda. Depois que as coisas mudarem, os contratos não serão mais observados.
Quanto ao governo brasileiro? Ora, ora. A mídia vem cuidando disso faz tempo! A opinião pública nacional está catequizada e o governo está intimidado. Além disso, pessoas importantes nos meios universitários ou políticos estão fazendo um trabalho coadjuvante, muitos deles até mesmo sem saber. São os inocentes úteis. Bastante úteis, aliás.
As poucas reações de organismos brasileiros, principalmente militares, foram sufocadas com as acusações de que não é o "mico dourado" que está em extinção, mas grupos indígenas, os verdadeiros donos da terra.
Não foi difícil fazer também com que esses índios começassem a se dizer soberanos, que não eram brasileiros, mas sim "nações autônomas". A idéia virou um rastilho de fogo e o governo ficou sem reação. A timidez do governo brasileiro tem sido a melhor aliada.
Quando os europeus descobriram o Brasil, havia ali mais de seis milhões de índios. Mataram quase todos e agora talvez não existam mais do que trezentos mil em todo o país. Estão correndo o risco de extinção e nada mais fácil do que jogar a culpa e a responsabilidade em cima do governo brasileiro. A bem da verdade, não está havendo extinção de índios, mas miscigenação. Se for analisar o sangue dos brasileiros, com exceção de algumas colônias que ainda não se misturaram, o país não passa de uma grande tribo.
A idéia de proteção aos índios remanescentes na Amazônia está servindo para apaziguar a consciência de culpa dos descobridores. Difundir a preocupação humanitária de salvar uns poucos índios restantes foi um dos grandes sucessos do plano, principalmente quando se divulgou que esses silvícolas iriam preservar as grandes áreas de florestas de suas reservas e isso era indispensável para salvar o clima do planeta.
Num instante, surgiram grupos de artistas, os conselhos indigenistas religiosos, como o Conselho Indigenista Missionário, Cimi, as ONGs e aí Franz Sauer começou realmente a acreditar que a Amazônia seria autônoma. A Amazônia não é parte do Brasil. A Amazônia é uma coisa diferente, autêntica, tudo nela é diferente. Se ele, Franz Sauer, líder da Organização, não proclamar logo a República, outros o farão e ele perderá todos estes anos de trabalho e investimentos.
Mas parece que está havendo reação. Quem seria? O governo não é, porque a Organização está dentro do governo. Mas era previsível uma reação.
Estão tentando decifrar o código. Várias mensagens já foram passadas prontas para serem decifradas. Tudo está preparado para a hipótese de haver reação do governo brasileiro ou mesmo dos militares. Militares? Coitados! Andam muito desacreditados! Eles vêm falando da Amazônia há anos e, se ninguém deu bola para o que eles disseram antes, por que vão acreditar agora?
É preciso com urgência ir atrás desse pessoal que está bisbilhotando a Organização.
É claro que os guerrilheiros de antes não são mais os jovens daqueles tempos. Hoje trabalham com a cabeça e organizam as ações para que outros as executem. Também não são mais os amadores e idealistas que já foram. Planejam tudo com cuidado. Grupos paramilitares bem preparados podem fazer serviços com mais eficiência e sem que haja envolvimento direto. Executam os serviços e saem do país, sem despertar suspeitas.
Ele tinha as pessoas certas. Pessoas treinadas, desertores de outras organizações criminosas, insatisfeitos por essa ou aquela razão, ou membros descontratados dos serviços secretos de Israel, Rússia e outros. Já tinham feito serviços especiais para a Organização.
Para o serviço de agora, já havia contratado um grupo integrado por pessoas de várias especializações em espionagem, atentados, terrorismo e atos de guerra. Sabiam como rastrear satélites, farejar um intruso, matar em silêncio, sobreviver na selva, agir e fugir com rapidez.
Mas o outro lado tinha também um grupo estranho. Essa tal de Confraria!... Isso deve ser uma piada. Templários? Será que acreditaram nisso? Foi muito estranho o modo como morreu aquele pessoal no pesqueiro do rio São Lourenço. Muito estranho! Mas atribuir isso a uma Confraria?
Esses templários vão ter uma agradável surpresa. O grupo que ele escolheu era um grupo especial que se espelhou na seita dos assassinos, nos quais também se espelharam os templários. A seita xiita dos assassinos foi fundada em 1090, antes dos templários, e cinco anos antes da primeira Cruzada.
A palavra assassin deriva de hashishi (haxixe), porque o chefe deles, conhecido como "o homem mais velho das montanhas", fazia os seus asseclas absorverem haxixe, antes de uma missão assassina. Eles iam como num delírio religioso e, se preciso fosse, também morriam na ação, como os camicases japoneses ou os suicidas árabes.
Houve uma época em que as seitas dos assassinos e dos templários conviviam pacificamente, mas como os templários passaram a ser em maior número, começou a haver disputas. Para poderem continuar a existir, os assassinos passaram a pagar uma taxa de dois mil besarts, por ano, para os seus rivais.
Um dia os templários traíram os assassinos. Isso foi no ano de 1173, quando o rei cristão, Almeric, estava tentando um novo acordo entre eles e acabou sendo preso pelos templários. O rei tinha a esperança de converter os assassinos para o cristianismo e assim aumentar o exército para a luta contra os árabes. Mas o emissário enviado pelos assassinos para a reunião com os templários acabou sendo emboscado e morto. Quando o rei foi reclamar com o mestre dos templários, o próprio rei foi encarcerado. Dizem que os templários não queriam a paz porque perderiam a taxa anual de dois mil besarts.
Pois chegou a hora do confronto. Se essa Ordem voltou, também voltaram os "assassin", como eram chamados. E o confronto final. Os companheiros do rio São Lourenço serão vingados. A Organização dispunha de substitutos preparados para emergências. Às vezes era preciso eliminar um ou outro e então veio a idéia de um time reserva. Mas foi uma pena perder aquele grupo. Principalmente o chefe.
Quando ia ao Brasil cuidar das suas fábricas, usava o nome de Franz Sauer. Mas para cuidar dos assuntos da República, arranjava disfarces, passaportes falsos, e era sempre recebido por alguém da Organização.
Ora usava bigode, ora pintava os cabelos, ora usava perucas. Lentes de contato mudavam a cor dos olhos — enfim, vinha tomando providências. Por sorte falava bem vários idiomas e isso ajudava a ser turista francês, alemão, americano, e a dissimular as suas diversas personalidades.
Um carro da Arapari Turismo Ltda. o esperava.
Foi levado para o Hotel Hilton, onde tinha reservado apartamento com porta de comunicação com o apartamento do lado.
Entrou no quarto 813, que era conjugado com o 812. Gostava do número 813. Nunca esquecera a astúcia de madame Kesselback que quase venceu Arsène Lupin, no livro intitulado apenas 813. Precisava ter a mesma astúcia de Madame Kesselback, porque pode aparecer algum Arséne Lupin e tentar roubar tudo o que ele vinha construindo.
Organizou suas coisas e abriu a porta que dava para o quarto 812. Bateu de leve e a porta foi aberta por um sujeito alto, forte, troncudo. Ele entrou e havia outras pessoas, que, como o que abrira a porta, pareciam ser executivos com negócios na Amazônia.
Mas juntos, ali naquele ambiente fechado, o grupo era sinistro, e o mofo que vinha do ar-condicionado disfarçava o cheiro forte da morte.
Apesar do arrepio que sentia cada vez que se encontrava com aquela gente, tinha de ser objetivo e claro, porque eles não gostavam de muitas explicações e também não precisavam. Eram experientes e profissionais.
Foram pouco mais de trinta minutos para esclarecer as últimas dúvidas. Iam primeiro pegar os dois camaradas, o da PM e o da Receita. Com isso, a capita ficava isolada e fragilizada.
Mensagens cifradas e curtas serviriam apenas para preparar assuntos e marcar reuniões.
Depois que despachou o grupo de assassinos, Franz Sauer voltou ao seu quarto, trancou a porta de comunicação, sentou-se no sofá e ficou pensando.
Foram anos de trabalho demorado, meticuloso e cuidadoso. Agora já tinham o grupo completo de empresários envolvidos na Organização e o plano de investimentos preparado, a mídia sob controle, organização militar estruturada e até mesmo a minuta de Constituição da República da Amazônia.
Estava satisfeito porque tudo estava conforme planejado. Aquele general abelhudo, que devia agora estar queimando no inferno, quase estragou tudo. Mas ele, Franz Sauer, conseguiu tirar proveito da situação e as coisas acabaram ficando mais fáceis.
O Dílson foi muito importante para manter organizado o grupo de revolucionários que ia entregando tudo para a Rússia. Ainda bem que eles não conseguiram implantar o comunismo no Brasil. Fracassaram nesse ponto, mas mantiveram a organização ativa e agora poderiam ficar com a Amazônia e sem dever favores à Rússia.
Mas as coisas mudaram um pouco. Ele acabou assumindo a coordenação dos contatos internacionais, formou muitas ONGs, buscou o apoio de associações e instituições, conseguiu suporte financeiro, criou o seu próprio grupo de trabalho. Enfim, ele, Franz Sauer, é quem vai doravante assumir a liderança.
Sim, foi um trabalho astuto. Desde o início teve a percepção dessa oportunidade que lhe caíra nas mãos. Se não fosse ele, outra pessoa acabaria sendo envolvida e teriam chegado ao mesmo resultado, porque a Amazônia é um apelo irresistível.
O Poder. Haverá disputas internas. O Poder vai trazer fortunas para quem participar dele na Amazônia. Ouro, diamante, urânio, minérios de todo tipo, a riqueza florestal, sim, sim, sim, e aquela condição geográfica de estar no coração da América do Sul, ligada ao Pacífico e ao Atlântico.
Vai ser a maior jogada política do mundo moderno. Quem tiver a Amazônia vai ser cortejado pelos grandes. Não haverá mais espaço no planeta para outras conquistas como essa. Os próprios países desenvolvidos serão pegos de surpresa. E, antes que acordem, vários acordos já estarão feitos e a situação consolidada.
Franz Sauer sentia-se orgulhoso. Onde já se viu um território tão rico e tão grande ter apenas vinte mil soldados sem armas, sem aviões e sem gente para defendê-lo? E isso só foi possível porque o grupo estava no poder. Não há dúvidas quanto a isso. O grupo conseguiu boicotar as suspeitas que os militares levantavam, reduzir as forças de defesa e agora era só esperar o momento de colher os frutos de toda essa engenharia.
"O Conceito Zero." Até o código da ação instantânea para o êxito final - Conceito Zero - foi por ele criado. Conceito. Ora, conceito! O que importa é o zero, o fim de tudo e o reinicio.
Mas aqueles três camaradas eram perigosos. Depois que eles descobrirem que montaram num porco e que as mensagens eram falsas, também vão ficar desacreditados. Mas por quanto tempo? Talvez percam a confiança das Forças Armadas, mas e se essa Confraria lhes der apoio?
"Não, não podem continuar vivos. Bom, mas isso já está por conta dos mercenários contratados."
Abriu o minibar e pegou uma cerveja gelada. Belém é uma cidade quente. Quente e úmida. Tem suas curiosidades. Gostava de ver aquele imenso conjunto turístico que forma o mercado de Ver-o-Peso e os armazéns das docas, hoje transformados em centro de lazer. O Ver-o-Peso se transformou numa espécie de museu vivo das tradições do Pará, depois de quatrocentos anos de atividades ininterruptas. Os fiscais da coroa portuguesa tinham de "haver o peso" das mercadorias para cobrar os impostos.
Tomou a cerveja e desceu para o saguão do hotel, onde os "guias" da agência de turismo o esperavam para acompanhá-lo no seu passeio preferido.
Naquele ambiente caótico, destacava-se a ala das "feiticeiras". Eram as "mandingueiras", que vendiam remédios para todas as doenças e mandingas para todos os males. Chegou a conhecer dona Cheirosa, que durante 79 anos ficou ali no Ver-o-Peso. Dizia ela que estava ali desde criança e ajudava a mãe, que morreu aos 89 anos.
As miscelâneas de ervas curavam inflamações, cólicas, queda de cabelo, impotência, câncer e um "banho de descarrego" curava o mau-olhado. Pó de fígado de urubu para deixar de beber, dente e olho de boto e outras coisas que ia ouvindo por entre as duas mil barracas que formam aquele histérico espetáculo. Os nomes das ervas já indicavam para o que serviam: "hei-de-vencer", "comigo-ninguém-pode", "chama-tudo", "folha da fortuna", "dinheiro-em-penca", numa infalível distribuição de cura para todos os males do corpo e da alma.
Não tinha coragem de andar por lá sozinho, mas a sua "agência de turismo" providenciava os guarda-costas, que o acompanhavam como se fossem guias. O entardecer estava bonito e podia andar um pouco. Havia uma grandeza adormecida em todo aquele simbolismo.
Também não deixava de visitar o Teatro da Paz. Era uma homenagem ao rei Netuno, simbolicamente desenhado na abóbada do teatro, a indicar que o destino da Amazônia era europeu. O rei Netuno, europeu como ele, parecia lhe entregar o bastão da grande conquista da Amazônia. Estava na dúvida se a capital seria Manaus, cuja vantagem era a centralização geográfica, ou Belém, na entrada da Amazônia.
Ficou ali algum tempo olhando a imensidão das águas da baía de Guajará, formada pelo rio Guamá. Sentia como se aquilo tudo já fosse propriedade sua. Logo respeitariam Franz Sauer. Estava chegando o dia. Lembrou-se do rei Netuno. Poderia ser rei?
Estava confiante. Nem a CIA tinha como descobrir o plano final, porque não ia encontrar as bases do novo código. A CIA não tem nenhum elemento, nenhum dado, nenhum fundamento, no qual eles pudessem apoiar-se para decifrá-lo.
Na dúvida, ele mesmo, Franz Sauer, havia buscado um elemento indecifrável para criar o código. Todos ficaram espantados naquela reunião quando ele informou que só haveria um jeito de descobrirem aquele código: a traição. Por isso a mera suspeita de traição levava à morte. Ninguém do pequeno grupo que conhecia o código podia deixar que uma dúvida de traição recaísse sobre sua pessoa. Não haveria perdão.
Continuou pensando e às vezes sorria para si mesmo. Mas Franz Sauer sentia certa apreensão quando se lembrava daqueles três. Suas informações eram de que aquele sujeito tinha chegado até ele.
"Como ele conseguiu chegar até mim? Não importa. Esse sujeito precisa desaparecer e logo."
Sorriu confiante. Se os mercenários não o pegassem agora, ele já tinha de reserva uma arma poderosa que ia acabar com aquele cara da Receita. Ainda que escapasse desta vez, ficaria encurralado depois. Pena que não estaria presente para saborear o gosto adocicado da vingança.
Caminhou até o forte que ficava a uns quinhentos metros dali. Velho e abandonado, não ia adiantar muito. A melhor estratégia era concentrar-se no forte de Macapá, para bloquear a entrada para a Amazônia.
Numa sala de reunião do segundo andar do Forte São João, na praia Vermelha, de frente para o Oceano Atlântico, o diretor da Escola Superior de Guerra, almirante Roberto Fonseca, e duas pessoas estavam reunidos em volta de uma pequena mesa circular.
A Segunda Guerra Mundial despertou a preocupação para o desenvolvimento de uma política de segurança nacional, e, assim, surgiu, em 1949, a Escola Superior de Guerra, ESG, com a finalidade de desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários ao planejamento da Defesa Nacional.
A ESG está localizada no Forte São João, no bairro da Urca, na cidade do Rio de Janeiro, entre os morros do Pão de Açúcar e Cara de Cão.
A fortaleza fora mandada construir por Estácio de Sá, quando aportou no Brasil no ano de 1565, e marca a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Na beira do morro, em cima da grande laje de pedra que acompanha a orla do mar, a fortaleza de São João desfruta da belíssima paisagem, enquanto protege a entrada da baía da Guanabara.
O grande mérito da ESG é a formação de grupos de estudos compostos de representantes das diversas camadas da sociedade brasileira. Todos os anos, empresários, médicos, engenheiros, pesquisadores, militares, políticos, funcionários públicos, líderes, enfim, pessoas que se distinguiram em suas categorias, são convidadas a participar desses estudos de forma que cada tema acaba recebendo a contribuição das variadas camadas de pensamento que fluem da sociedade brasileira.
Pelo preparo das pessoas convidadas para os seus cursos e pelo aprofundamento com que se dedica ao estudo da realidade nacional, a ESG passou a ser chamada de Sorbonne brasileira.
As duas outras pessoas presentes naquela reunião eram o coronel Milton Gouveia e o professor Gaudêncio Pinheiro. O coronel já tinha feito os cursos de formação da ESG e do Estado-Maior das Forças Armadas. Tinha trabalhado como adido militar em vários países e era assessor especial para estudos de estratégia militar na Amazônia.
O professor Gaudêncio era catedrático de Direito Internacional Público da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também formado pela ESG, na qual passara a fazer palestras regulares.
Diante deles, uma mensagem com os seguintes dizeres:
"Solicito, com urgência e absoluto sigilo, a opinião dessa digna Escola de Estudos Superiores, sobre a possibilidade de justificativa jurídica, para a ocupação da Amazônia por forças internacionais, por ser enquadrada como espaço vazio e em abandono. Ass.) general Euclides Ribeiro, ministro do Exército."
O almirante Roberto Fonseca, diretor da Escola, iniciou a reunião:
Esta mensagem foi-me entregue ontem à noite pelo coronel Rodrigues, chefe de gabinete do excelentíssimo senhor ministro do Exército, que veio especialmente para esse fim. Não confiaram no correio, não quiseram telefonar, não mandaram e-mail, nem fax.
Deu assim ênfase ao pedido de sigilo do ministro.
O coronel Rodrigues disse que só os três ministros militares tinham conhecimento dessa mensagem, ou seja, nem o próprio ministro da Defesa, que é civil, foi informado.
E antes que os demais falassem alguma coisa:
Como é normal num caso como este, a urgência e o sigilo dispensam estudo completo. Querem apenas nossa opinião.
Eram pessoas que sabiam participar de reunião e por isso os outros dois aguardaram que ele lhes desse a oportunidade de falar. Por outro lado, o diretor era homem experiente e sabia que temas assim despertam ansiedade no grupo e era conveniente uma pausa para que cada um dissesse alguma coisa, ainda que para descarregar o estresse da comunicação.
A internacionalização da Amazônia não era tema para despertar surpresas. Mas o pedido de urgência e com sigilo, que inclui até o ministro das Forças Armadas e o próprio presidente da República, incomodava.
Mais disciplinado, o coronel Milton sabia que o diretor não tinha acabado de expor o assunto. O professor, no entanto, já tinha adquirido ao longo dos anos de magistério o hábito de dar e pedir explicações, até quando não é necessário.
Desculpe, almirante, mas esse assunto já está até mesmo gasto, por que o ministro do Exército pediu isso agora?
Os senhores devem estar lembrados do acidente que matou o general Antonio Ribeiro de Castro, diretor da Abin. Sabemos hoje que o general Ribeiro de Castro estava preocupado com fatos recentes que indicavam a possibilidade de iniciativas separatistas na Amazônia.
Então não se trata de internacionalização, e separatismo pressupõe apoio externo.
O professor estava na faixa dos cinqüenta anos, um pouco calvo, pele clara e queimado de sol. Afora isso, não apresentava aparência física que chamasse a atenção, mas seus olhos brilhavam diante de um desafio intelectual.
Fico muito honrado em ter sido convidado para esta reunião. Pelo que o senhor disse, é de se antever coisa complicada pela frente.
Cruzando as mãos sobre a mesa e olhando para um dos lados, pensativamente, ele disse:
Tenho receio de buscar o apoio no Direito Internacional.
O coronel dirigiu-se ao diretor:
Imagino que o senhor vá nos dar algumas horas para coleta dos principais argumentos. Presumo que o coronel Rodrigues esteja aguardando a resposta. A que horas o senhor pretende marcar a próxima reunião?
Agora são oito e trinta. Poderíamos nos reunir ao meio-dia. Os senhores terão tempo de resumir suas conclusões num único estudo e trazerem o memorando formalizado para se ganhar tempo.
No horário combinado, os três se encontraram novamente.
Embora antevendo a conclusão dos senhores, arrisco-me a perguntar: e então?
O professor olhou para o coronel, que estendeu ao diretor um envelope:
A mensagem é curta.
O diretor pegou o envelope e não o abriu de imediato. Ficou com ele entre as duas mãos batendo levemente na mesa e, depois de alguns minutos de silêncio, falou:
Sua excelência, o ministro do Exército, me pediu para evitar estudos, no momento, em relação a essas preocupações.
Era um salão nobre, espaçoso e o silêncio pesava mais do que normalmente. Ele abriu o envelope. Dentro estava uma mensagem dirigida por ele, diretor da ESG, para o excelentíssimo senhor ministro do Exército, com os seguintes dizeres:
"A Amazônia brasileira foi ocupada pelos portugueses de forma maliciosa e a definição de fronteiras é decorrente de diversos tratados e arbítrios, alguns ainda contestados. Durante séculos, esse território ficou esquecido. Os esforços de ocupação levados a efeito a partir de 1964 foram interrompidos. A velocidade de criação de reservas nos últimos anos e a entrega de imensas áreas para ONGs já abalaram o direito de soberania na região. O uso da terra para produção de alimentos vem sendo condenado como atos lesivos aos interesses de outros países, que responsabilizam o Brasil pelo abandono também das chamadas nações indígenas. A história mostra que não há necessidade de justificativas jurídicas para potências dominantes invadirem território alheio."
O diretor ficou um pouco em silêncio, enquanto os dois esperavam que ele se pronunciasse.
Potências dominantes!... - repetiu o diretor.
Como eu já tinha falado antes, não gostaria de colocar esse assunto no campo do Direito Internacional.
E, sem resistir aos vícios da cátedra:
Podemos resumir tudo numa única conclusão, numa única frase, e lamento muito não ter a oportunidade de dissertar sobre esse tema já que o ministro do Exército pediu para não falarmos sobre isso neste momento, embora a tentação seja grande.
O diretor sorriu compreensivo.
- Sim?
É o óbvio. Os senhores entendem que as condições do mundo hoje dispensam justificativas para atos de invasão para atender interesses dos Estados Unidos e de parte da Europa?
E acrescentou:
"Vae victis", disse Breno, chefe dos gauleses que saqueou Roma e que, para sair de lá, exigiu o pagamento do seu peso em ouro. No momento da pesagem, ele colocou a espada e o escudo no contrapeso e, diante das reclamações dos romanos, respondeu simplesmente: "Vae victis", ou seja, "Ai dos vencidos". Breno não sabia que estava ditando os fundamentos do Direito Internacional, que vigoram ainda hoje.
"Esses professores!" pensou o diretor, que estava pensando na reação do ministro do Exército. "O que será que está havendo? Será que a conclusão dos dois não é muito acadêmica?"
Mas achou melhor encaminhar o ofício, pois para um assunto "urgente e sigiloso" é melhor ser prudente. Não sabe por que, mas lembrou-se de uma vez quando foi mordido por um cachorro e foi ao pronto-socorro. O médico foi conclusivo: "Em matéria de raiva, dúvida é igual vacina". Era mais ou menos a mesma coisa: "urgência e sigilo, igual prudência", vamos encaminhar isso logo.
Encerrou a reunião com um comentário:
Lembrando-se de que o coronel tinha falado pouco, voltou-se para ele:
Creio que o senhor tenha mais informações sobre a segurança da área.
Sem dúvida, senhor diretor. Já venho me aprofundando nesse assunto e estou muito preocupado.
Bem, senhores, agradeço a ajuda, mas com certeza deveremos ter novas reuniões.
O diretor da ESG saiu e entregou o envelope lacrado ao coronel Rodrigues, que o estava esperando numa sala ao lado. O coronel pegou a mensagem, foi até o pátio de estacionamento do forte e entrou num veículo oficial, que o aguardava para levá-lo ao aeroporto Santos Dumont, de onde um pequeno jato da FAB o levaria para Brasília.
O veículo desceu a avenida Portugal que acompanha a orla do mar, com uma mureta protetora para os carros. O coronel ia apreciando a bonita paisagem do Morro da Urca, onde antes existia o famoso Cassino da Urca que revelou artistas como Carmen Miranda.
Em sua distração, nem chegou a ver quando os dois motoqueiros apareceram de repente e começaram a atirar nos pneus. Uma camioneta, que não pôde ver direito, veio por trás e colocou-se ao lado do carro, empurrando-o para o barranco, num local onde a mureta protetora havia sido propositalmente destruída.
Não houve tempo para reação e o veículo começou a descer e sacolejar com violência. O coronel bateu a cabeça contra a porta do carro, que foi deslizando, até parar numas pedras mais embaixo, e perdeu os sentidos.
Os motoqueiros correram para o veículo e atiraram no motorista quando ele ia saindo. Abriram a porta e pegaram a pasta do coronel. Ele continuava desmaiado e, como não opôs resistência, os dois o deixaram e subiram o morro levando a pasta.
A camioneta os esperava com o vidro aberto e eles jogaram a pasta dentro, pegaram as motos e saíram em velocidade.
Se tivessem prestado um pouco mais de atenção, teriam notado que o motorista da camioneta que havia empurrado o carro do coronel estava em silêncio, com a cabeça apoiada na direção e que logo depois um homem moreno, de roupas simples, que estava agachado no fundo da camioneta, abriu a porta e saiu com a pasta.
Tudo tinha sido muito rápido e os curiosos não tiveram tempo de raciocinar sobre o que tinham visto. Uma radiopatrulha chegou, pegou o homem moreno, e saíram dali também em velocidade.
Alguns populares chegaram até o carro e viram que o motorista estava morto e o oficial desmaiado. Não havia perigo de o carro deslizar e eles retiraram o militar, que acordou e compreendeu o que estava acontecendo.
Ainda zonzo, pegou o seu celular e ligou para o diretor da ESG. Em poucos minutos, o lugar virou um palco de guerra. Viaturas de todos os tipos, Polícia do Exército, Polícia Federal, Polícia Militar, ambulâncias, era o arsenal do desespero, como se pode chamar uma equipe dessas.
Houve explicações confusas sobre dois motoqueiros, que jogaram uma pasta dentro da camioneta, mas um homem de terno pegou a pasta e logo apareceu a viatura da Polícia Militar, que o levou.
A camioneta estava lá e os peritos constataram que o motorista tinha sido apenas atingido por um tiro de tranqüilizante e estava vivo. Podia dar explicações quando acordasse.
A perícia fez todo o serviço de praxe: tirou fotografias, impressões digitais do carro e da camioneta para tentar identificar os motoqueiros e talvez mais gente, vasculhou tudo, como exigiam as circunstâncias.
O diretor não estava tranqüilo. Afinal, se o envelope não tinha nada de especial, nada que comprometesse a ESG ou o Exército, não havia motivo para esse assalto. O que será então que estava acontecendo?
Quem fez esse serviço certamente esperava encontrar alguma coisa comprometedora. O diretor raciocinava se o coronel podia ter sido seguido desde Brasília.
"O ministro precisa saber disso agora", pensou.
Pegou o seu telefone e ligou. Quando o ministro atendeu, ele foi claro:
- Senhor ministro, o coronel Rodrigues teve um acidente suspeito e a resposta que o senhor estava esperando foi roubada. Assim que o coronel for liberado pelos médicos, eu sigo com ele para Brasília. Precisamos conversar ainda hoje, se me permite.
Liberado pelos médicos? O que houve com o coronel?
Ele bateu a cabeça na porta do carro, mas parece que está bem. O motorista do coronel Rodrigues, um oficial de confiança, foi baleado e morreu.
Do outro lado, houve alguns segundos de silêncio.
Espero-os na minha casa, não importa a hora que chegarem.
Perto das seis horas da tarde o Learjet da FAB pousou no aeroporto Juscelino Kubitschek em Brasília, levando o almirante Roberto, diretor da ESG, o coronel Milton, o coronel Rodrigues e o professor Gaudêncio. Uma carro oficial os aguardava e foram direto para a casa do ministro do Exército.
No escritório da casa do ministro, estavam também o ministro da Aeronáutica e o da Marinha.
Após cumprimentos formais, passaram, sem maior demora, ao assunto que os levara a essa reunião. Sentia-se o clima de tensão que ia dominar aquele encontro. O Brasil era um país pacífico e sempre se orgulhou disso. De repente, vêm o atentado contra o general Ribeiro de Castro, os atentados contra a capitã e agora o atentado contra o chefe de gabinete do ministro do Exército, com o roubo de mensagem secreta.
O diretor da ESG expôs de forma clara e completa os fatos, informou que o motorista da camioneta tinha sido reanimado, mas não esclareceu nada. Negava tudo e disse que tinha sido roubado. A camioneta estava amassada e com sinais de tinta do carro do coronel Rodrigues, mas o sujeito insistia que ele é que era a vítima.
O ministro do Exército era homem educado, falava polidamente, aparentava sessenta anos e achava que já devia ter ido para a reserva. Pele clara, queimada nas quadras de tênis, e a mente lúcida treinada no tabuleiro de xadrez.
Tomou a palavra.
— Não fosse o estranho episódio de uma terceira pessoa ter pegado a pasta, nós poderíamos estar acreditando nessa versão de acidente. Mas tudo indica que alguém seguiu o coronel até o Rio de Janeiro e esperou que ele pegasse a mensagem.
O diretor insistiu em dizer que a mensagem não trazia nada de novo, apenas o que já era sabido, no sentido de que a Amazônia pode ser considerada território sujeito a ocupação por outros países.
Alguém seguiu o seu chefe de gabinete, desde Brasília até a ESG e levou o nosso comunicado, talvez pensando que se tratasse de coisa mais séria. Seja lá quem for, estão preocupados com alguma coisa.
O ministro do Exército dirigiu-se ao professor:
Agradecemos a gentileza de o senhor ter vindo. Assim, nós podemos discutir esse assunto com mais amplitude. Se me permite, gostaríamos de ouvi-lo primeiro e depois nos reuniremos com o coronel Milton.
O diretor estava curioso para saber os motivos que levaram os três ministros das Forças Armadas a pedirem a opinião da ESG em caráter sigiloso, mas se não lhe disseram, também não ia perguntar. Talvez em outro momento, não agora na frente do professor, que assumiu uma pose de catedrático, notada por todos, e disse do alto da sua sabedoria:
É o óbvio ululante, do Nelson Rodrigues. A Amazônia é o símbolo do abandono. Tem uma história de abandono.
Esperou o tempo suficiente para que a sua filosofia inebriasse a sala:
Não vou estender-me em todos os assuntos. Apenas o necessário para criar um caminho lógico. Vejam os senhores o abandono dessas terras pela coroa espanhola, entregando-as aos portugueses, com a união das coroas de 1580 a 1640. O rei da Espanha deixou que o Exército português tomasse conta da Amazônia, por questões práticas. Ficava muito mais fácil para os portugueses chegarem até os Andes do que para os espanhóis atravessarem a cordilheira e ainda tomarem conta daquela imensa floresta, desde o Pacífico até o Atlântico. Já temos aí, portanto, o primeiro abandono.
Virou-se um pouco na cadeira e olhou para os ministros.
Depois vem a situação de ilegitimidade. E óbvio que, separando-se as coroas, o correto seria que fossem respeitados os limites do Tratado de Tordesilhas, devolvendo-se a Amazônia para a Espanha. Mas Portugal manteve a ocupação e construiu fortalezas nas desembocaduras dos principais rios, mantendo a posse de uma área que não era sua e cuja guarda circunstancial lhe fora confiada.
O professor sabia que falava sobre assunto conhecido, mas era importante para o seu raciocínio que aqueles homens tivessem um pouco de paciência. E, sem dar muito tempo para que o diretor interviesse, continuou.
Cristóvão Colombo teve de aportar em Lisboa, em 6 de março de 1493, quando voltou das Antilhas, e afirmou na época que tinha chegado à Índia, navegando em direção ao Ocidente. Dom João II, rei de Portugal, reivindicou os direitos da coroa portuguesa sobre aquelas áreas, que imaginavam ser a índia, e o assunto só foi resolvido com a intervenção do papa. Foi então assinado o Tratado de Tordesilhas que traçou uma linha divisória de pólo a pólo, distante trezentas e setenta léguas do arquipélago de Cabo Verde, para oeste, de forma que a parte ocidental pertenceria à Espanha e a oriental a Portugal.
Parou para respirar e olhou meio nervoso para o diretor com medo de que ele pedisse para resumir o assunto. Depois olhou para os ministros:
Pois bem, essa linha imaginária passava por Belém do Pará, ao Norte, e por Laguna, no Estado de Santa Catarina, ao Sul, de forma que o Brasil então seria apenas um país atlântico, pois toda a terra à esquerda, até o Pacífico, pertencia à Espanha. Nem mesmo Brasília está dentro do espaço geográfico que pertenceria ao Brasil.
Juntou as pontas dos dedos com as mãos em forma de oração diante dos botões da camisa, para pensar melhor, e continuou:
Ocorre que o Tratado de Tordesilhas fora sacramentado com uma bula papal e então, vejam os senhores, Portugal violou uma bula do próprio papa. Na época uma bula papal era documento mais importante que as decisões da ONU, que também ninguém respeita.
Recuperou-se do exagero e continuou.
Aí surge um problema sério com outras potências marítimas: a Inglaterra, a França e a Holanda reclamaram. Ficou famosa a frase de Francisco I, da França, que pediu para ver no testamento de Adão se a França estava excluída do direito a essas terras. A verdade é que Portugal e Espanha dividiram o mundo entre eles, e os outros países que ficaram excluídos passaram então a recorrer a invasões, pirataria e contrabando.
Passou a mão pelo rosto, pegou o copo de água que estava em cima da mesa e falou quase que para si mesmo:
Esses países continuam se baseando no testamento de Adão, que não deixou nada para ninguém, a não ser o pecado original, e tomaram grande parte do hemisfério Norte, como os Estados Unidos e o Canadá, e entraram nas Guianas e algumas ilhas do Caribe.
Notou que os outros já o estavam olhando como se demonstrassem que continuavam com a mesma paciência.
Os argumentos de Portugal para ficar com a Amazônia foram que, se um país dominasse a desembocadura de um rio, dominava toda a sua bacia, incluindo a longitude e os afluentes. Teoria aliás óbvia, mesmo porque os rios eram o único caminho.
Procurou pular alguns séculos.
É claro que isso gerou atritos com a Espanha, e Portugal começou a construir fortes em pontos estratégicos, para garantir essa ocupação. Em 1750, as duas coroas assinaram o Tratado de Madri, pelo qual a Espanha reconheceu os limites ocupados por Portugal e os fortes ficaram sem serventia. E aí, então, o que aconteceu?
O diretor da ESG respondeu:
Sim, professor, nós sabemos que esses fortes caíram no abandono. O Príncipe da Beira foi descoberto pelo marechal Rondon, completamente tomado pelo mato e ainda está em ruínas, como aliás acontece com o forte São Joaquim em Roraima, o forte São José do Rio Negro, em Manaus, e o forte São Francisco Xavier, em Tabatinga. Aliás, dos fortes de Tabatinga e Manaus nem vestígios existem.
Por favor, senhor diretor. Acho que esse pequeno resumo é importante para a conclusão, o senhor vai ver.
Muito bem, continue.
O fato é que, se os portugueses não tivessem construído aqueles fortes, o Brasil não teria as fronteiras que tem hoje. Seria uma faixa litorânea talvez igual ao Chile, seguindo as linhas do Tratado de Tordesilhas.
Esperou alguma reação, mas como não veio, comentou:
Os portugueses construíram esses fortes, graças à fantástica viagem de Raposo Tavares, que saiu de São Paulo, desceu o Tietê, pegou o Paraná, subiu o Paraguai e depois, ninguém sabe aliás como, alcançou o Guaporé e pôde assim chegar ao Madeira e ao Amazonas, aparecendo em Belém, depois de mais de três anos de viagem, enfraquecido e quase sem companheiros.
Falou em tom triunfante, mas os ministros foram pacientes.
Não vou criar fantasias e por isso peço que me escutem, por favor. Os senhores conhecem a lenda do El Dorado. Pois bem, existem pesquisas que indicam que as minas da lenda do El Dorado estariam no Estado de Roraima, na confluência dos rios Uirariquera e o Tacutus, onde foi construído o forte São Joaquim.
Essa é uma informação que corre pela internet e o professor não esperava mesmo que causasse algum impacto.
Os ingleses reivindicaram aquela área e nós quase a perdemos. Talvez a maior mina de ouro do mundo esteja lá por perto e até há pouco tempo havia mais de quarenta mil garimpeiros em apenas um garimpo, que devia ocupar uma área de quarenta e cinco mil quilômetros quadrados. Os senhores têm idéia disso?
O senhor está se referindo ao garimpo do Tepequém, que hoje está na reserva dos Ianomâmis, penso eu - disse o diretor.
Os ministros preferiram não comentar detalhes.
Pois bem, senhor diretor, o senhor talvez vá se espantar com o que vou dizer.
Fez um pouco de suspense e completou:
O mundo desenvolvido hoje não está muito preocupado com o ouro. Já esgotaram a África do Sul e outros países. Além disso o ouro deixou de ser lastro para a emissão de moedas e perdeu muito do seu valor. O Eldorado hoje é o direito de compensação atmosférica que a floresta amazônica representa.
Ele sentiu a inquietação dos presentes. Precisava defender a sua tese de forma objetiva.
Estima-se que os minérios existentes dentro da Reserva Ianomâmi possam valer, só elas, um trilhão de dólares, entre ouro, diamante, nióbio, ferro e outros que, sem dúvida nenhuma, são muito importantes para o Brasil e não podemos desprezar.
Parou um pouco para criar suspense.
No entanto, o que me parece que eles querem hoje é a atmosfera. Precisam da floresta para fabricarem uma quantidade de ouro muitas vezes maior que as minas de Roraima. O El Dorado que eles querem é a floresta, para que eles possam continuar poluindo o mundo.
Fingiu que estava escolhendo palavras para um platéia que parece ter ficado curiosa e disse:
Alguns estudos indicam que o valor anual dos benefícios que a floresta amazônica traz para o mundo é também de um trilhão de dólares. Estou falando de um trilhão de dólares anualmente!
O ministro do Exército perguntou:
Pelo seu raciocínio, os países ricos não precisariam pagar esse valor, pois, a partir do apossamento de áreas de floresta, por meio de ONGs e investimentos simbólicos em reservas, poderão alegar que estão fazendo a compensação atmosférica.
O professor estava realizado.
Os ministros da Marinha e da Aeronáutica aparentemente tinham delegado poderes para o ministro do Exército falar por eles. Mas o discurso do professor parece ter interessado ao ministro da Marinha, que então perguntou:
Seria um novo tipo de usucapião? A posse atmosférica? Pela sua tese, é de se pressupor que esses países não estão interessados apenas em nosso território, mas principalmente na posse do nosso oxigênio?
Conseguira algum sucesso. Os ministros olharam um para o outro e o diretor da ESG olhou para eles pensativo. O ministro da Marinha continuou:
O senhor está chamando a atenção para o fato de que, se países industrializados se apossarem da floresta amazônica, eles vão ter justificativas para continuar poluindo, enquanto que nós, brasileiros, não vamos poder criar um parque industrial condizente com as nossas dimensões e com as necessidades do nosso povo, porque não teremos o contraponto ambiental? Seríamos boicotados pelos outros. A sua tese é de que estão nos condenando à pobreza e à servidão, é isso?
Estava realizado. Conseguiu comover um ministro. "Quem sabe os outros também pensem do mesmo jeito."
Já, mais aliviado, reparou melhor naqueles homens. Notou que não se pareciam um com o outro. O da Marinha era moreno, forte, olhos escuros e parecia ser do Norte. O ministro da Aeronáutica era alto, claro, esbelto e tinha fisionomia simpática. O ministro do Exército era o típico jogador de tênis, preparado para o saque.
Será a nossa asfixia - respondeu depois de analisar os três homens.
O diretor ficou em silêncio. Queria fazer também algumas perguntas, mas preferia que os ministros fizessem.
O ministro da Marinha insistiu:
Então, na sua visão, essas ONGs poderão argumentar no futuro que, pelo fato de estarem protegendo a floresta, elas têm a sua posse?
E por que não? Já são mais de mil ONGs protegendo imensas áreas de floresta, seja em reservas ambientais, reservas indígenas, reservas extrativistas, enfim inventam vários nomes para se ocuparem das matas. Nem é preciso comentar as teses de "soberania compartilhada", "soberania dividida" e outros tipos de soberania que andam criando por aí para nos tomarem a Amazônia.
E por isso que os Estados Unidos não assinam o Protocolo de Kyoto. Estariam esperando a consolidação dessa posse?
Não tinham ainda pensado sob esse aspecto. A hipótese era nova, fantasiosa, mas possível.
A Europa não tem mais florestas. Os Estados Unidos têm alguns parques nacionais que não compensam a poluição atmosférica que produzem. Nós, no entanto, temos uma riqueza atmosférica imensurável que em breve teremos de perder ou compartilhar, sob o pretexto de que a abandonamos. Num determinado momento da história, cada país terá de limpar o seu ar ou pagar caro pelo ar compensatório e, então, o país que mantiver capacidade ociosa de seqüestro de carbono, ou cobrará caro por ele, ou ficará pobre, se outros dela se apossarem.
O diretor da ESG achou que era prestigiar demais aquele professor, mas o assunto estava interessante e assumiu uma humildade que não lhe era costumeira:
O senhor estaria sugerindo que estamos caminhando para o Uti Possidetis Atmosférico? Poderíamos estar agindo com ingenuidade e consolidando de forma permanente a presença estrangeira em território nacional? Estaríamos sendo passivos, omissos, coniventes?
Parecia que não estava satisfeito com a sua exposição e continuou:
Não estou encontrando as palavras certas para a minha preocupação, mas é sabido que os Estados Unidos têm desenvolvido teses de auto-defesa que incluem não apenas o ataque preventivo como ocorreu no Iraque, mas a prevenção da escassez de elementos naturais. Para sobreviverem, são capazes de tomar a natureza alheia, e para eles não importa se viermos a perecer.
Os ministros sabiam que isso aliás já poderia estar acontecendo. O general Ribeiro de Castro foi assassinado porque estava defendendo a Amazônia.
O professor compartilhou da preocupação do seu superior:
As tentativas para ocupação ordenada da Amazônia caíram no abandono. Rodovias, projetos de colonização agrária, os incentivos fiscais, tudo foi abandonado desde que a esquerda assumiu o poder.
Os ministros estavam achando um pouco de exagero, mas os acontecimentos chamavam atenção.
O ministro do Exército então perguntou:
E o senhor acha que esse eventual abandono justifica a invasão por outros países?
Quanto às justificativas jurídicas para essa invasão, a nossa própria Constituição as tem.
Acho que o senhor está enganado. Como pode a nossa própria Constituição autorizar invasões por outros países? — perguntou o ministro do Exército em tom irônico.
Queira desculpar-me, senhor ministro, mas, dependendo da interpretação, o artigo 231 da Constituição Federal pode levar a essas conseqüências.
Abriu a sua pasta e pegou a Constituição. Antes de ir ao aeroporto, tinham passado em suas casas para pegar uma valise com o indispensável e o professor trouxera alguns livros, que entendeu necessários.
- Esse artigo diz que São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,...
Enfatizou o "tradicionalmente ocupam" e continuou:
O que se observa é que não estão demarcando as terras que os índios "tradicionalmente ocupam", mas sim as terras que "antigamente ocuparam" e, além do mais, estão dando ao verbo "ocupar" interpretação elástica. Pelas dimensões territoriais, essa destinação só se justifica se os índios ainda fossem nômades.
Notou a curiosidade do grupo. O diretor achava esse professor meio pernóstico, mas concluiu que foi bom trazê-lo. Assim, essas dúvidas todas podiam ser levantadas e discutidas.
Ocupação implica o uso, a exploração, e nomadismo não se enquadra aí, por duas razões. A primeira é que hoje não existe mais nomadismo. A proteção pública aos índios já conflita com nomadismo. A Fundação Nacional do índio, Funai, extinguiu o conceito de nomadismo, substituindo-o pelo de protecionismo.
Achou que não era o momento de justificativas teóricas entre nomadismo e protecionismo e passou à segunda razão.
Ora, se nomadismo fosse motivo para reconhecimento de ocupação, então as tribos nômades do Afeganistão e da Mongólia seriam as proprietárias das terras por onde trafegam há milênios. Tenho certeza de que a Rússia e os países da Ásia não aceitarão essa tese. Então, em conclusão, nomadismo não é motivo para justificar hoje a ocupação de terras.
Aqueles homens ali reunidos representavam os mais altos escalões da segurança nacional. Não estavam interessados em transmitir ao professor as suas opiniões, mas sim conseguir dele o melhor raciocínio possível a respeito desse assunto e por isso o deixaram falar.
E o professor parece que estava gostando.
Vejam agora a malícia que deram à redação desse artigo da Constituição.
Ajeitou os óculos e leu a parte final do artigo 231:
"...competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus direitos."
Notem que é a União, ou seja, o governo federal, que tem o dever de proteger os índios e fazer respeitar todos os seus direitos. Ou seja, se garimpeiros, madeireiros, grileiros ou mesmo estrangeiros invadirem terras dos índios, o governo federal tem o dever imediato de ir lá e retirar esse pessoal. As polícias militares, as polícias dos Estados não podem sequer entrar nessas terras porque não fazem parte da União.
Esperou que entendessem o seu raciocínio, para então concluir:
Isso implica reconhecer que as reservas indígenas já são territórios autônomos e soberanos, um tipo de protetorado, onde nem a União pode entrar a não ser para protegê-los.
O ministro do Exército inquietou-se:
O senhor não está exagerando? A União, ou seja, o Brasil, não tem direitos sobre essas terras, só obrigações? É isso que o senhor quer dizer?
No exemplo que eu dei, se a União não retirar os garimpeiros e não impedir que madeireiros explorem os índios, isso significa que o Brasil não está cumprindo a sua obrigação para com as nações indígenas e entra aí então o que se chama, no Direito Internacional Público, de Direito de Ingerência. Hoje, não se fala mais em tribos, mas em "nações indígenas".
O diretor comentou:
Como fomos deixar isso passar?
Lembrou-se porém que era o período da redemocratização do país e a Constituição teve de atender às muitas correntes de pensamento que se sucederam ao regime militar, e preferiu voltar à realidade.
Nós criamos uma arma que pode ser usada contra nós mesmos. A expressão "todos os seus direitos" é de interpretação muito ampla. Estudos recentes da ESG indicam que mais de um milhão de quilômetros quadrados, ou seja, mais de doze por cento do território brasileiro, estão reservados para trezentos mil índios, num país de duzentos milhões de brasileiros. E uma área maior que os territórios da Alemanha, França e Itália, juntos.
O assunto também já estava muito debatido, mas deixaram que o professor dissertasse à sua moda sobre essa questão do Direito Internacional Público, que jamais se pensou pudesse justificar a invasão armada do país.
O Brasil sempre teve etnias, costumes, religiões e tradições de todos os tipos. De repente, o mundo passa a ter consciência das riquezas da imensidão amazônica, com seus rios, seus recursos minerais, sua floresta e toda a biodiversidade ali existente, e essa convivência pacífica e ordeira começa a correr perigo.
A cobiça internacional pode tirar esse povo da sua paz e dividir o Brasil, como tem feito com outros países. A teoria do Destino Manifesto foi lançada pelo presidente James Buchanan, no ano de 1857, quando deixou claro que a expansão dos Estados Unidos, desde o Ártico até o Pólo Sul é o destino dos Estados Unidos e nada irá detê-los.
Agora, as manifestações de domínio continental continuam e preocupam. O general Colim Powell também repetiu, em 2004, que o objetivo da Área de Livre Comércio das Américas, Alca, é garantir para as empresas americanas o controle de um território que vai do Pólo Ártico até a Antártida. Os americanos se julgam no direito de conduzir o mundo, como se fosse um destino que Deus lhes entregou, o chamado Destino Manifesto.
E eles vêm ampliando a consciência de que têm poderes universais, como esse conceito novo de "Nação Indispensável". Com o fim da guerra fria e a derrocada da União Soviética, os Estados Unidos dispensaram a diplomacia e as pressões econômicas, para aplicarem a força, para manter a "ordem jurídica" no mundo.
Antes, era só a América para os americanos. Agora é o mundo todo, conforme disse a secretária de Estado Madeleine Albright: "O sucesso ou o fracasso da política externa do povo americano permanece como o maior fator para moldar nossa própria história e o futuro do mundo. "
O professor se regozijava da sua aura intelectual. Aqueles ministros se comportavam como numa sala de aula.
"Não posso perder essa oportunidade. Vou assustá-los um pouco mais." - Não é só isso. A nossa legislação ambiental já transfere para as ONGs a soberania sobre a Amazônia.
O ministro do Exército assustou-se:
O senhor deve estar enganado, pois se nem a Constituição pode transferir a soberania nacional, menos ainda a lei ambiental.
Desculpe-me, ministro. Isso é o que o senhor pensa. Veja bem... Fernando Henrique Cardoso..., nada contra ele, mas a inocência pode comprometer o país, Fernando Henrique promulgou a Lei 9.985 em 2000, institucionalizando a internacionalização indireta da Amazônia. O artigo 30 dessa lei estabelece que "as Unidades de Conservação podem vir a ser geridas por organizações da sociedade civil de interesse público com objetivos afins aos da unidade, mediante instrumento a ser firmado com o órgão responsável por sua gestão".
"Unidades de Conservação"? Seriam áreas de conservação ambiental, presumo - disse o diretor.
Sim. Elas estão definidas no artigo 15 da mesma lei. São as chamadas Apas e assim definidas: "A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais."
O professor já estava cansado. Queria terminar logo aquilo, mas sentia-se realizado.
Pois bem, o que nós temos aí? A pura e simples transferência, para organismos não governamentais, do gerenciamento de área pública extensa, como diz a lei. O artigo 225 da Constituição Federal não autoriza, porém, que o Poder Público transfira a organizações estrangeiras atribuições próprias da soberania.
Ele percebeu o interesse dos ministros.
Os senhores querem um exemplo prático? O Conama: Conselho Nacional do Meio Ambiente é composto por ONGs nacionais e internacionais, que recebem dinheiro do exterior. O Conama produz legislação que o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, a Polícia Federal, o Poder Judiciário e todos os brasileiros são obrigados a seguir.
Pegou da sua pasta outra folha de papel.
Essa é uma proposta de resolução do Conama, que circula na internet. Não sei se foi aprovada ou não. Vou ler o primeiro "Considerando" dessa proposta:
"Considerando a divulgação de recentes relatórios de pesquisas feitas por organizações não-governamentais, tais como Greenpeace, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e Instituo de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), dentre outras, que demonstram que mais de 80% da madeira comercializada na região amazônica tem procedência ilegal..."
Olhem só. Estaria realmente o Conama baixando resoluções, com base em informações de ONGs estrangeiras e polêmicas?
Não tinham muito tempo para detalhes, mas essas revelações preocupavam porque se tratava de soberania nacional, e as Forças Armadas poderiam ser acusadas de omissão. A defesa do território nacional era atribuição das Armas.
No meu entender, já é grave o fato de que existe proposta de resolução do Conama, com base em informações de ONGs polêmicas.
O ministro da Aeronáutica deixou escapar o comentário de que os nomes dessas ONGs eram esquisitos e perguntou:
Argonautas, Fundação Rio Paraíba, Furpa, Associação Potiguar Amigos da Natureza, Aspoan. Quem são essas ONGs? Recebem dinheiro estrangeiro? Quem são os remetentes? Quais os interesses deles? E, se recebem dinheiro de entidades estrangeiras cujos objetivos são desconhecidos, para não dizer outra coisa, estas ONGs podem participar de órgãos que administram terras públicas?
E insistiu:
Então, na sua opinião, esses acordos com as ONGs e também as resoluções do Conama ou de outros órgãos de controle do meio ambiente no Brasil que tenham a participação das ONGs podem ser contestados?
Na minha opinião, sim. O Conama foi criado pela Lei 6.938 de 1981 e eu não vi em nenhum artigo dessa lei autorização para ONGs estrangeiras participarem de sua composição. Isso foi criado pelo artigo quarto, do Decreto 99.274 de 1990, que regulamentou a lei. O decreto foi além da lei e até mesmo este decreto não é claro quanto à participação de ONGs estrangeiras.
O diretor comentou como se estivesse falando para si próprio:
Sem pretender dar razão às teorias de fatalidade histórica, mas apenas raciocinando, eu pergunto: se alguma ONG, representando interesses externos, quiser criar dificuldades para o nosso desenvolvimento, pode utilizar-se do Conama?
O professor sentiu-se motivado e fez referência ao biólogo americano Thomas Lovejoy, que teria dito numa entrevista que:
O maior problema são esses malditos nacionalistas desses países em desenvolvimento. Esses países pensam que podem ter o direito de desenvolver seus recursos como lhes convém. Eles querem se tornar potências, estados soberanos e elaboram suas estratégias... Nós achávamos que podíamos controlar melhor as coisas argumentando com esses líderes, esses tolos nacionalistas. Superestimamos a nossa capacidade de controlar as pessoas e vamos ter que ajustar isso. Será um ajuste doloroso, sem dúvida. Não, o problema real é este nacionalismo estúpido e os projetos de desenvolvimento aos quais ele leva.
A ameaça é clara, como no seguinte parágrafo:
Os brasileiros — e eu sei disso de uma experiência de dezessete anos — pensam que podem desenvolver a Amazônia, que podem tornar-se uma superpotência. Vivem de peito estufado com isso. Portanto, você tem que ser cuidadoso. Você pode ganhá-los com pouco. Deixe-os desenvolver a bauxita e outras coisas, mas reestruture os planos para reduzir a escala dos projetos de desenvolvimento energético alegando razoes ambientais.
Depois de um certo momento de silêncio, causado pela aspereza das palavras atribuídas a Lovejoy, o ministro da Aeronáutica repetiu:
- "Você pode ganhá-los com pouco."
E continuou:
Esse senhor Lovejoy foi o primeiro ambientalista a receber a condecoração da Ordem do Rio Branco. Então, enquanto nós nos entusiasmávamos com essas idéias, na verdade eles estavam pensando longe.
O silêncio voltou. Um silêncio incômodo, que o ministro do Exército interrompeu:
O senhor tem algo mais a informar?
Nós temos hoje nas mãos a quarta e talvez última oportunidade de pagarem pelo que é nosso. A primeira oportunidade foi com a borracha, quando estávamos ficando ricos, mas sufocaram a nossa produção com as plantações da Ásia.
Sabia que ia tocar num ponto sensível, mas continuou.
A segunda oportunidade foi também com a borracha quando os Estados Unidos estavam em guerra, e a borracha da Ásia estava dominada pelos japoneses. Aí o Getúlio perdeu uma grande oportunidade.
Como que pedindo desculpas, olhou educadamente para o ministro do Exército:
Não podemos esquecer o "soldado da borracha".
O "soldado da borracha" era um tema desconfortável para o Exército brasileiro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão tomou a Malásia, o Ceilão e a Singapura, dominando toda a extração asiática da borracha. Os Estados Unidos ficaram sem saída. Só o Brasil poderia fornecer o látex para a borracha. Getúlio contentou-se com a implantação do parque siderúrgico nacional de Volta Redonda e dezenas de milhares de nordestinos foram convocados, às vezes à força, para irem trabalhar na Amazônia.
Famílias foram separadas, porque muitos homens foram pegos quando trabalhavam nos campos e não puderam sequer voltar para se despedir da mulher, dos filhos ou dos pais. O governo lançou uma grande campanha enaltecendo o sacrifício que esses nordestinos iam fazer pelo bem do país e eles passaram a ser chamados de "soldados da borracha".
Foram chantageados com a ameaça de que, se não fossem para os seringais, seriam mandados para a guerra. Prometeram-lhes salário que nunca receberam. Os Estados Unidos davam cem dólares ao governo para cada "soldado da borracha" que fosse para os seringais. Muitos morreram no meio da selva e os que não morreram não tinham mais como voltar. Os que se encontram vivos dizem que são "soldados da borracha", e sonham receber o soldo que lhes fora prometido.
Pois bem, ali o americano estava no sufoco e só nós podíamos salvá-lo. Bobeamos e é possível que estejam espalhados hoje na Amazônia centenas de milhares de nordestinos e seus descendentes, passando penúria. Eles formam hoje uma grande massa humana conhecida como o Povo do Meio. São ignorados e vivem à margem do país, como se não existissem, enquanto o americano ganhou a guerra com a nossa borracha.
O momento exigia reflexão e os ministros estavam curiosos para saber a respeito das outras oportunidades.
A terceira oportunidade foi quando o ouro, no começo dos anos 1980, atingiu o preço recorde de 850 dólares a onça na Bolsa de Londres. A Amazônia chegou a produzir cento e vinte toneladas de ouro por ano, atrás apenas da União Soviética e da .África do Sul, praticamente com exploração manual.
Deixou os ministros pensarem um pouco e comentou:
Perdemos a borracha e enterraram o nosso ouro e os outros minérios no meio de reservas de todos os tipos. Agora, corremos o risco de perder a nossa maior fortuna, que é a floresta. Vamos conservar a floresta, mas que paguem por ela o que ela vale.
E disse num tom enfático:
-Trilhões de dólares por ano, senhores ministros, trilhões de dólares por ano e ainda terão de pagar pelo passado, pagar pelo fato de que mantivemos o planeta Terra limpo para eles o poluírem. E o preço por mantermos a Amazônia.
O telefone interrompeu o entusiasmo do professor.
O ministro olhou para a mesa intrigado, porque dera ordens para não ser interrompido, a não ser em caso de urgência. Havia, portanto, uma urgência. Levantou-se e atendeu.
Pronto!
A mulher dele estava no aparelho.
A capitã Fernanda está aqui e diz que precisa falar com você agora. Ela diz que é urgente.
Estou indo.
Dirigiu-se aos demais:
A capitã Fernanda, da Abin, está aí com algum assunto novo.
Pensou um pouco e disse ao professor:
O senhor não se importaria de aguardar um pouco na sala ao lado?
Oh! Não há problema. Compreendo que os senhores devem ter assuntos sigilosos. Mas fico aguardando, caso ainda precisem de mim.
O ministro saiu com o professor e se encontraram com a capitã, que estava uniformizada e segurando uma pasta. O ministro pediu à sua mulher para trazer mais água e servir café para todos. A capitã Fernanda entrou na sala. Já a conheciam e ela prestou continência e esperou que o ministro do Exército lhe indicasse uma cadeira.
Bem, capitã, o que há de urgente agora?
Ela abriu a pasta e entregou ao ministro um envelope lacrado com o timbre da Escola Superior de Guerra.
Meu Deus, mas esse é o envelope que eu dei ao coronel Rodrigues, exclamou o diretor da ESG.
O embaixador estava concentrado nos papéis que a secretária lhe havia posto sobre a mesa. Era uma mulher eficiente, aparentava quarenta anos, americana e já estava trabalhando na embaixada do Brasil havia oito anos.
Discreta, culta e preparada, tinha sido secretária de embaixadas em mais de um país e sonhava ela mesma ocupar esse cargo.
O embaixador comentou, como se perguntasse:
De acordo com os seus registros, essas comunidades na internet aumentaram muito nos últimos dias.
Sim, todos os dias aparecem várias delas e repetem constantemente as mesmas informações. Por exemplo, esses textos sobre os programas áreas protegidas da Amazônia, Arpa, e o Fernando Henrique Cardoso, o Collor e a reserva dos Ianomâmis, as bases americanas nas divisas com o Brasil, o imenso valor da Amazônia e outras.
Sim, sim, eu sei. Mas a senhora parece que quer dizer mais alguma coisa.
Ela pensou um pouco, parecia hesitante:
O texto parece escrito por uma única pessoa, ou orientado por um centro de difusão. Não me parece lógico, nem mesmo verossímil que, de repente, uma quantidade tão grande de pessoas, de todos os cantos deste país, comece a criar comunidades na internet para divulgar o mesmo assunto. O senhor não acha estranho?
A senhora notou a insistência para que os dados fossem divulgados para outras comunidades?
A secretária saiu e o embaixador pegou o texto sobre a Arpa e o compromisso assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em Johannesburgo. Assustou-se.
"Quarenta por cento da Amazônia para essa Arpa?"
O informativo falava sobre a criação da Arpa, ou Áreas de Preservação Ambiental, e dizia que não esconderam nem mesmo a sua denominação inglesa que é um acrônimo de Amazon Regional Protected Areas, que fora concebido pela WWF com o objetivo de "conservar" mais de quarenta por cento da área da Amazônia brasileira.
"Quarenta por cento da Amazônia Brasileira? Só por conta de uma ONG estrangeira? Será que essa gente não percebe que isso pode ter reações perigosas? Podem aceitar isso hoje, mas e se outros não concordarem amanhã?"
O texto ridicularizava o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que engajou o Brasil nessa Arpa depois de ter recebido da rainha da Inglaterra o título de Cavaleiro da Ordem do Banho. Constava que, em 1997, quando ainda era presidente, Fernando Henrique teria assumido esse compromisso com o príncipe Philipe, presidente da WWF internacional.
O embaixador não se conformava. Quarenta por cento da Amazônia é nada mais nada menos que vinte por cento do Brasil.
"Mas o que será que esses ingleses estão querendo?"
"Além disso, tem essa história mal explicada da reserva indígena dos Ianomâmis."
Lembrou-se de que no governo Collor o príncipe Philipe esteve no Brasil e logo depois o príncipe Charles ancorou com o iate real Britânia no rio Amazonas. O séquito real trazia o ministro britânico do Meio Ambiente, o diretor da Comissão Ambiental da Comunidade Européia, e o presidente da British Petroleum. Os Estados Unidos mandaram o diretor da Agência de Proteção de Meio Ambiente. O ex-presidente Collor passou uma noite lá e logo depois assinou a reserva dos lanomâmis.
"Agora as coisas começam a clarear", pensou o embaixador e releu o texto sobre a descoberta do Eldorado.
"A Inglaterra sempre quis aquele pedaço de terra. O monte Roraima foi festejado por escritores ingleses importantes, como Conan Doyle e Newton. Esse Stevenson acusa Humboldt de ter feito os exploradores errarem de propósito o local do Eldorado, indicando outro lugar em vez de Roraima, para se vingar do governo brasileiro que não o deixou entrar no país. Depois veio aquela história do Schomburg, que descobriu o monte Roraima e fez mapas praticamente entregando o Estado de Roraima à Inglaterra. Será que os alemães e ingleses estão unidos para ficarem com a área? Tudo é possível, tudo é possível."
Andava inquieto. Os fatos que estavam vindo ao seu conhecimento o perturbavam.
"E se tivermos de pagar pelo passado também? Afinal, enquanto nós, países ricos, fazíamos indústrias, aviões, navios, televisões, caminhões e bombas para poluir o ar, o mar e fazer guerras, eles conservavam silenciosamente a natureza e agora nós queremos que eles continuem fazendo o mesmo, sem custos para nós. Será que isso não vai mudar um dia?"
Ficou preocupado com essa possibilidade. Olhou para o quadro da batalha de Gettysburg.
"Não será melhor resolver tudo isso agora e aderir a esse movimento?"
"Esses ingleses. Será que empurraram a nós, americanos, para o Iraque só para nos distraírem? O país que dominar a Amazônia e tiver capital e tecnologia para aproveitar todas as suas riquezas será por muitos séculos o dono do mundo. O meu amigo presidente precisa ser convencido disso. E com urgência. Nós vamos perder a hegemonia para esses europeus. Voltaremos a ser colônia deles, se bobearmos."
Levantou-se. Uma idéia preocupante inquietou seus pensamentos.
"Os Interesses Coletivos da Humanidade", pensou ele. "Os conceitos universais vêm mudando muito. Hoje existem os Tribunais Internacionais, a ONU, a Organização Mundial do Comércio, os arbítrios internacionais. E se amanhã surgir um Tribunal Internacional para que as nações ricas paguem a países como o Brasil, que conservaram suas florestas e seus rios, o valor real da compensação pela poluição industrial que estamos fazendo?"
Lembrou-se de estudos de pesquisadores americanos de que o custo para a recomposição do efeito estufa pode exigir quatro trilhões de dólares, se a floresta amazônica deixar de existir.
"Estamos fazendo pressões para os brasileiros deixarem a floresta intocável, mas e se tivermos de pagar por isso? Não acredito que enquanto a Amazônia pertencer a esses brasileiros a gente vá pagar alguma coisa. Ao contrário, podemos até tirar vantagem no momento certo. Mas e se essa massa florestal cair em mãos erradas?"
Voltou para a mesa. Olhou para os papéis.
"Não, não pode ser. Isso tudo é fantasia. A Amazônia não é o Iraque. O mundo ocidental tem receios do islamismo e pavor do terrorismo. Estamos unidos contra eles, porque eles estão unidos contra nós. A Amazônia pode ser o maior perigo para a paz mundial, porque o mundo não vai aceitar que um só país fique com ela."
A capitã Fernanda notou a surpresa do diretor da ESG. Suspeitara de que alguma coisa nova podia estar acontecendo, mas teve a sensatez de não abrir o envelope que lhe fora entregue por aquela estranha personagem, por isso foi direto aos seus superiores.
O ministro do Exército falou:
- A senhora chegou em boa hora. Estamos tratando de assunto para o qual pode dar alguma contribuição. Mas, antes, queira, por favor, nos explicar como esse envelope chegou às suas mãos.
A capitã já estava acostumada a reuniões com o alto escalão das Forças Armadas e explicou com clareza.
Um homem moreno, tipo comum, de terno marrom, me esperava na portaria do prédio. Entregou-me um envelope maior e, assim que o abri, ele saiu discretamente. Dentro do envelope havia esse outro da ESG, com este cartão.
Estendeu o cartão ao ministro do Exército, que o examinou e passou para os outros. O cartão estava com o timbre da Embaixada Americana, mas não trazia nomes, apenas o número de um telefone celular.
O ministro do Exército contou-lhe o que havia ocorrido no Rio de Janeiro e ela então disse:
Os senhores já sabem que o general Ribeiro de Castro tinha promovido dois encontros, digamos assim, casuais, com o embaixador dos Estados Unidos para jogar golfe.
Eles assentiram com a cabeça.
O general tinha seu jeito próprio de transmitir mensagem a outra pessoa, sem ser explícito, mas deixando a semente da dúvida. Não acreditávamos em participação americana nesse assunto e esperávamos que o embaixador pudesse ajudar.
O ministro da Aeronáutica perguntou:
A senhora acha então que é possível que esses americanos passaram a seguir nossos passos?
A partir de determinado momento, sim.
Se passaram a nos seguir apenas a partir de determinado momento que, presumo, deu-se após os encontros do general com o embaixador, é possível então admitir que eles não tinham conhecimento desse assunto?
Era uma situação de dúvida em assunto de alto risco. Acreditavam ou não acreditavam nesses americanos?
O ministro da Aeronáutica insistiu:
A senhora, como pessoa importante no setor de informações das Forças Armadas, o que sugere?
A pergunta pegou-a de surpresa. Era muita responsabilidade, mas também prova de confiança. Na verdade esses homens, como ela, estavam aturdidos.
Respirou fundo e respondeu:
Ainda não podemos confiar em ninguém. A devolução desse envelope indica que eles estão sabendo de algumas coisas e querem ajudar. Mas acho cedo para excesso de confiança.
Os ministros balançaram a cabeça, em concordância.
Estávamos para ouvir o coronel Milton, que é especialista em segurança da Amazônia. Gostaria que a senhora participasse.
O coronel entendeu que o ministro estava lhe passando a palavra.
Falar da segurança da Amazônia pode exigir anos de divagações, por isso vou ser pontual. Primeiramente, o óbvio já conhecido dos senhores: não temos efetivo suficiente para tomar conta daquela área, que é mais da metade do território brasileiro e tem apenas trinta e cinco mil homens com pouco armamento. São vinte e dois mil soldados do Exército, sete mil e quinhentos da Aeronáutica e uns quatro mil da Marinha.
Era assunto já conhecido dos presentes, mas o momento exigia revisão estratégica. O coronel fez uma pequena pausa e acrescentou:
A fragilidade desse defensivo pode ser avaliada pelos episódios ocorridos recentemente na capital do Estado de São Paulo, quando o Primeiro Comando da Capital, PCC, de dentro das prisões, comandou um ataque a alvos policiais. Num só dia morreram mais de cem pessoas. A Polícia Militar do Estado de São Paulo tem um efetivo de cento e quarenta mil homens bem armados e preparados.
Deu uma pausa e continuou:
Contra os nossos efetivos na Amazônia, os americanos instalaram vinte bases militares perto das nossas fronteiras, criando o chamado "arco amazônico", ou, como também dizem, um "cordão sanitário", que protege a área. Com que finalidade? Esse "cordão sanitário" alcança até o Pantanal Mato-grossense.
A revisão continuou.
O governo brasileiro nunca havia admitido bases estrangeiras em nosso território, até que, no ano 2000, foi firmado um acordo para ceder aos Estados Unidos a base de Alcântara, no Maranhão. Por esse acordo, o Brasil não poderia mais exercer atividades de testes, desenvolvimento, produção e lançamento de satélites, foguetes e outras atividades espaciais, não só em nosso território, como em qualquer outro país. É de imaginar o atraso que isso representaria para o nosso país, se o acordo fosse aprovado.
Os ministros continuavam ouvindo, sem interrompê-lo.
Questão duvidosa são as polícias militares dos Estados. Temos de considerar que qualquer movimento separatista da Amazônia tenderá a envolver os comandos dessas instituições.
O senhor acha que essas forças locais apoiarão um movimento separatista? - perguntou o ministro da Marinha.
No início, podem dividir-se, mas se o movimento aumentar, a tendência é de adesão. Resta ainda a ilusão de forças de resistência, como ocorreu no Vietnã e acontece agora no Iraque. As condições são diferentes.
No Vietnã, as forças de resistência eram movidas por uma ideologia. No Iraque, existe o fenômeno religioso. Não existe nada na Amazônia que possa unir a população em uma força de resistência. Ao contrário, as pressões ambientalistas e o abandono da área pelo governo federal aumentaram os focos de tensão, e a separação seria uma esperança.
O mapa do Brasil estava pendurado na sala do escritório. O coronel levantou-se e foi até ele.
O poderio militar das presumíveis forças invasoras é ilimitado. Além disso, a Amazônia é um território fácil de ser tomado por forças convencionais. Basta usar o mesmo princípio que os portugueses criaram para dominar as bacias fluviais.
Apontou para a foz do rio Amazonas.
Imaginem o seguinte quadro: navios de guerra e submarinos, com apoio da aviação, tomam conta da foz do rio Amazonas. A primeira conseqüência seria a formalização da Ilha das Guianas como território autônomo.
E mostrou o território rodeado pelos rios Amazonas, Orenoco e pelo oceano Atlântico. Esses rios dividiam uma imensa área que passou com o tempo a ser chamada de Ilha das Guianas e reivindicada pelos ingleses, holandeses e franceses.
Ora, se o rio Guaporé, que não é quase nada comparado com o Amazonas, é rio de fronteira, por que o rio Amazonas não seria?
Havia lógica no que ele falava.
-Agora vejamos o que acontece no Sul da Amazônia. O rio Paraguai dá caminho até o Pantanal Mato-grossense, podendo-se chegar ao Guaporé, ao Madeira e ao Amazonas.
Entenderam o que ele queria dizer. Quem dominasse o rio Amazonas, teria acesso ao interior da região através dos grandes rios navegáveis, como o Tapajós, o Xingu, o Madeira e outros. As estradas e as cidades seriam facilmente bloqueadas.
A capitã estava ansiosa e não resistiu:
Mas, pelo que o senhor está falando, uma força de resistência ficará isolada. Não poderemos apoiá-los por terra, por água, nem por ar. Não temos estradas no meio da floresta. De que adiantará então uma força de resistência? Que solução o senhor sugere para esse quadro?
A Amazônia é um grande espaço vazio despertando a cobiça internacional. Se não quisermos perdê-lo, temos de ocupá-lo antes que os outros o façam. Não foi esse o conselho de dom João VI para o seu filho: põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça?
Ela compreendeu que fez uma pergunta inocente. Mas não se arrependeu de ter feito.
Além disso, a população originária é pacata e dificilmente se envolverá em luta armada para evitar a criação de um país. Quando os americanos entraram no Vietnã, encontraram um povo acostumado à luta de guerrilhas contra os franceses e outros invasores. Defendiam a sua pátria, a sua terra. Desculpem se exponho essa visão sob o ângulo da estratégia de defesa, mas não vejo esse palco na Amazônia.
Era difícil imaginar seringueiros, ribeirinhos e pequenos lavradores formando exércitos de voluntários para defender uma área quase do tamanho da Europa Ocidental. Ficaram famosos os túneis subterrâneos que os vietnamitas cavaram no meio da selva e de lá saíam para combater tanques e grupos armados e depois voltavam correndo para neles entrar por causa dos bombardeios. Centenas de quilômetros em até três camadas de túneis, onde tinham de andar agachados e ali moravam e até crianças neles nasceram.
O coronel sabia que a população amazonense era formada de gente pacata, simples, vivendo o dia-a-dia e alheia às guerras. Para eles, a independência da Amazônia seria até vantajosa, se pudessem regularizar a sua posse, pescar, plantar e viver em paz.
O ponto mais preocupante, no entanto, são os empresários e investidores que foram induzidos pelo governo para irem para a Amazônia. Milhões de paulistas, gaúchos, paranaenses, catarinenses, mineiros e de outras regiões do país, inclusive de outros países, formam hoje na Amazônia um grupo forte que rejeita o excesso de regulação que Brasília manda para lá. Nós temos de nos preocupar com os inimigos internos.
Na década de 1960, durante o regime militar, milhares de empresas atenderam a convocação do governo para a ocupação da Amazônia. Acreditaram em incentivos fiscais, nas facilidades de aquisição de terras e de sua utilização.
As pressões internacionais aumentaram e os governos de esquerda que assumiram o poder criaram toda sorte de embaraços para o desenvolvimento econômico da região.
Milhares de serrarias foram instaladas regularmente e aos poucos foram surgindo exigências novas. A atividade rural, que antes era permitida em até cinqüenta por cento, passou a ser apenas de vinte por cento das glebas. As serrarias só podem comprar madeira em área com manejo aprovado pelo Ibama. Para vender a madeira serrada, passou-se a exigir uma guia expedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis, Ibama. Foram mudanças de atitudes muito bruscas, com exigências impeditivas de atividades empresariais até então lícitas. Olhou para os ministros. Gostava de falar por assunto, sem argumentações.
O senhores conhecem a novela. O Ibama começou a colocar dificuldades para aprovar os projetos de manejo e não dava as guias para transporte da madeira serrada, com o que surgiu um comércio de guias falsas, com a conseqüente prisão de empresários. Isso, digo apenas como exemplo, porque em todas as outras áreas, como a regularização das terras, a formação de pastagens, a pesca e até a simples roçada de pastos geraram multas e processos crimes contra pessoas que estavam apenas trabalhando.
Os ministros não comentaram e ele insistiu:
Temos outro ponto perigoso: as reservas indígenas. O número de índios é pequeno para um território que chega a ser metade da Europa.
O ministro da Aeronáutica perguntou:
Mas em que essas reservas indígenas oferecem risco de segurança, além é claro dos problemas de fronteira e aqueles que o professor já comentou?
Os índios são indefesos.
A resposta foi óbvia. De fato, uma reserva indígena nos Estados Unidos era bem diferente. Reserva indígena na Amazônia sem defesa era território sem dono.
O senhor acha possível que os dólares dessas ONGs possam estar servindo para financiar armamento no interior da floresta?
Nós não podemos descartar nenhuma hipótese.
Abriu a sua pasta e retirou um recorte do jornal O Estado de S. Paulo, do dia 24 de novembro de 2005.
Vou ler para os senhores:
A Câmara Baixa do Parlamento russo (Duma) deu ontem a aprovação inicial para um controvertido projeto de lei que restringirá fortemente o trabalho de organizações não-governamentais. A proposta foi endossada por 370 deputados e só teve oposição de 18. Pelo projeto, as ONGs terão de se registrar novamente nos órgãos do governo, que avaliarão seu trabalho antes de permitir que continuem operando. Entidades de origem estrangeira ou nacional que recebem dinheiro do exterior não poderão atuar.
E olhando para o ministro da Aeronáutica, que tinha feito a pergunta sobre a possibilidade de armazenamento de armas pelas ONGs:
Acho que isso aqui responde melhor a pergunta de Vossa Excelência:
Em julho Putim criticou as atividades políticas de ONGs financiadas com dinheiro do exterior. O chefe de segurança do Estado, Nikolai Patrushev, disse recentemente que serviços de segurança estrangeiros usaram ONGs para fomentar a Revolução Laranja na Ucrânia...
Para aqueles ministros o assunto era meio confuso, porque envolvia o abandono histórico da região, a controvertida conquista pelos portugueses, a questão indígena, o problema ambiental, tudo isso misturado a pressões internacionais.
Acho que a internacionalização da Amazônia, por meio de ONGs, é uma ameaça consistente, e o professor Gaudêncio já deu algumas sugestões. Quanto à invasão armada, ela oferece riscos reais. Seria uma invasão até mesmo muito simples e entendo que a defesa do território seria quase impossível.
Quase impossível? - perguntou o diretor da ESG.
Sim, senhor. Na situação atual, a Amazônia é indefensável.
As notícias sobre movimentação de tropas militares no Brasil começaram a aparecer no noticiário internacional. De início, foram os desfiles pela avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e demonstrações de força perante o Monumento à Independência, no bairro do Ipiranga, em São Paulo.
Ali está a única pira que fica acesa durante todo o ano, no Brasil, e o trânsito parou para assistir ao desfile militar que passou várias vezes diante do monumento como se quisesse ativar mais ainda o fogo patriótico que a pira representava.
As notícias foram ficando mais tensas e já se falava de um grande movimento de tropas. Alguns pronunciamentos de comandantes militares causaram receio. Esquadrilhas da Força Aérea faziam demonstrações sobre os céus das principais cidades como se estivessem caçando invasores do espaço aéreo brasileiro.
Franz Sauer estava entusiasmado. Enfim, caíram na armadilha. Por precaução, assim que tomou conhecimento de que os órgãos de segurança tinham decifrado o código, saiu do Brasil.
Estava ele agora num pequeno apartamento alugado em nome de uma terceira pessoa, na cidade de Positano, Costa Amalfitana, na Itália. Era um belo dia ensolarado e depois de ler os jornais brasileiros que lhe enviaram de Paris, colocou um short, passou creme de proteção solar e desceu com os seus mocassins de andar naquela praia pedregosa.
Gostava daquela região. Ela despertava nele uma certa ansiedade pelo luxo. Só não gostava das praias cheias de pedra e sem as areias infindáveis do litoral brasileiro. Estendeu o acolchoado sobre os pedregulhos desconfortáveis da praia e ficou apreciando o céu azul e o mar calmo. Enquanto estivesse ali, ninguém podia acusá-lo de nada.
Agora que tudo estava caminhando para um final feliz, evitava companhias e procurava lugares desconhecidos. Era cuidadoso em momentos de ações importantes. Mulheres e bebidas podiam ser perigoso. Um descuido, uma palavra a mais, e pronto, tudo perdido.
Durante os últimos dez dias, houve movimento de tropas militares que chamou a atenção de todo o mundo. Aquelas duas fragatas da Marinha, acompanhadas de um porta-aviões entrando na foz do rio Amazonas e subindo até Manaus deram um noticiário primoroso.
"Marinha Brasileira afronta o Mundo"
Não podia ser melhor aquele artigo. Lanchas da Marinha vasculhavam as margens do rio Amazonas e navios de guerra agiam ostensivamente na busca de inimigos. No entanto, o "...inimigo era o próprio governo brasileiro que está desafiando o resto do mundo e tenta impor a sua hegemonia sobre um patrimônio que pertenceria a toda a humanidade." Gostou de ler aquilo.
Todos os dias saíam notícias diferentes, deixando claro que as Forças Armadas do Brasil estavam atrás do inimigo invisível. Aviões da Força Aérea Brasileira ocuparam todos os aeroportos da Amazônia. Comandos militares foram alterados.
O senador Rocha Meira já estava colhendo assinaturas para uma Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI. A queda do preço das ações na Bolsa de Valores de São Paulo mostrava a preocupação dos investidores. O dólar subiu. Navios mercantes tinham receio de atracar e ficarem presos, enquanto empresários pressionavam o governo.
O presidente da República foi várias vezes à televisão para dizer bobagens. "Tratava-se de mero exercício das Forças Armadas. " Obviamente que ele estava sendo enganado.
As polícias militares ocuparam as praças principais de todas as capitais. As rodovias federais e estaduais passaram a ter vigilância severa e a ponte da Amizade, que une Brasil e Paraguai, foi interditada. O governo paraguaio protestou veementemente e não aceitou as desculpas de que o Brasil estava fazendo uma operação de combate ao tráfico de drogas.
Tanques de guerra desfilavam ostensivamente pelas ruas das cidades e um grande contingente do Exército foi deslocado para ocupar antigas fortalezas em ruínas que os portugueses construíram havia séculos.
A preocupação com novo golpe militar começou a agitar os meios políticos e empresariais. O ministro da Defesa não sabia o que dizer. Quando convocou os ministros militares para uma explicação, recebeu a resposta de que estavam em operações previamente informadas em reuniões anteriores e não compareceram à convocação.
Os países vizinhos também manifestaram preocupações, principalmente os países ligados entre si pela Amazônia.
Franz Sauer sabia que tinha vencido o primeiro round.
Apenas não entendia por que os militares não diziam abertamente que estavam agindo contra conspiradores que pretendiam proclamar a independência da Amazônia. O mais lógico era que, se esses militares tivessem de fato caído na armadilha, certamente teriam dito ao presidente da República ou ao ministro da Defesa, e estes não apareceriam diante da televisão com cara de bobos como se não soubessem de nada. Teriam dito à imprensa internacional que os órgãos de segurança do Exército haviam descoberto um plano de divisão do Brasil.
"Paciência. Esses militares são sempre muito reticentes. O importante é que houve movimento de tropas que está exigindo explicações desgastantes para a área militar. Agora é só aguardar um pouco e lançar o plano final. O Conceito Zero! Quero ver se vão bisbilhotar novamente a internet. Quero ver se vão descobrir o código verdadeiro", pensou triunfante.
Mesmo satisfeito com a sua obra, ainda havia coisas esquisitas.
"Não dá para entender também a reação desses americanos. Estão muito quietos."
O sol foi ficando mais quente e Franz Sauer buscou refúgio no Ristorante Del Mare. Apesar dos seus receios quanto a bebidas numa hora dessas, não resistiu a cerveja gelada com prosciutto di Parma.
EL DORADO
"A cada manhã ele lambuza seu corpo com um tipo de resina ou goma ao qual o pó de ouro adere facilmente, até que seu corpo inteiro esteja coberto, desde as solas dos pés até a cabeça. Assim, sua aparência é tão resplandecente como um objeto de ouro trabalhado pelas mãos de um grande artista."
Oviedo
Cronista espanhol da época dos descobrimentos
Talvez a mais fantástica lenda já vivida pelo ser humano seja a lenda do Eldorado. É a única lenda que continua viva para representar a fortuna em todas as suas formas. O Eldorado é a busca da felicidade, a busca de um sonho que parece inatingível.
Quando os descobridores espanhóis chegaram ao Novo Mundo, ouviram a história do cacique Chibcha, que ficou conhecido como O Homem Dourado, ou "O Dourado", que em espanhol é "El Dorado".
Alguns diziam, como o cronista espanhol Gonzalo Fernandez de Oviedo, que ele passava um ungüento no corpo e o cobria de ouro em pó. Outros informavam que suas armaduras e armas eram de ouro, ou então que as casas de sua cidade e o seu palácio eram de ouro maciço.
Para a infelicidade desse lendário rei e seu povo, o implacável conquistador farejou esses tesouros e avançou em direção ao reino de Chibcha, prendendo, torturando e matando índios, para que dissessem como chegar ao Eldorado.
O sonho do Eldorado foi alimentado pela lenda de que esse chefe indígena, ao perceber a aproximação dos espanhóis, embrenhou-se no interior da Amazônia, levando com ele imensos tesouros, e fundou o Reino de Paititi. Esse novo império ficaria perto do lago Manoa, também chamado Parimé.
O fato é que de repente a humanidade descobriu o símbolo de todos os sonhos e inúmeras expedições saíram em busca do Eldorado.
A primeira pessoa a empreender uma expedição atrás dessas minas foi Gonçalo Pizarro, que foi também o primeiro a acreditar que o Eldorado estava em terras da Amazônia brasileira. Em 1541, embrenhou-se pela floresta. Não encontrou as minas, mas conseguiu avançar quase mil quilômetros por dentro das matas, até a bacia do rio Uaupés, no Brasil. No ano seguinte, seu companheiro, Francisco Orellana, tentou fazer o caminho por via fluvial e descobriu o rio Amazonas, sem achar o ouro. Não encontrou o Eldorado, mas essa viagem deu origem a outra lenda cheia de mistérios, a lenda das Amazonas.
Posteriormente, começaram a surgir notícias de que o misterioso Eldorado se encontrava perto de um lago rodeado de montanhas, vindo a constar de um mapa cartográfico feito pelo inglês Thomas Hariot em 1595. Manoa que, na língua dos índios Acháua, significa lago, passou a chamar-se lago Parimé. São incontáveis as expedições que, na época, saíram da Europa em busca do lago Manoa ou Parimé.
Em 1800, o cientista alemão Alexandre von Humboldt foi impedido pelo governo do Pará de entrar no Brasil, depois de uma longa expedição pelo rio Orenoco. Consta que tenha ficado seis meses aguardando a permissão e teve de voltar para a Europa sem entrar no território brasileiro e sem descer o rio Amazonas, como pretendia.
Roland Stevenson levanta a hipótese de que, em represália, ele divulgou que o lago Manoa não existia e que as minas do Eldorado ficavam perto do lago Guatavita, desviando assim as pesquisas no território brasileiro, para que a coroa portuguesa perdesse interesse na região.
Uma surpreendente descoberta veio revelar que as terras das minas do Eldorado se localizam no território brasileiro.
Recentemente, um arqueólogo chileno, Stevenson, residente em Manaus, chegou a uma conclusão interessante. Para esse pesquisador, o Império Inca, embora riquíssimo em artefatos de ouro e prata, na verdade só possuía minas de prata. Como então poderia o Império Inca criar a lenda de minas inesgotáveis de ouro?
Stevenson estudou melhor a informação do próprio Gonçalo Pizarro, de que as minas do Eldorado deveriam estar na floresta amazônica. Interessou-se pelos desenhos de um caminho pré-colombiano que atravessava parte da Colômbia, passava por Roraima e ia findar no litoral atlântico do Amapá.
Percorreu os vestígios desse caminho e chegou a Roraima, onde descobriu uma grande planície, chamada de terras de lavrado porque não tinha árvores e era rodeada por montanhas. Notou então que essas montanhas apresentavam uma marca horizontal e uniforme, na altura aproximada de 120 metros em relação ao nível do mar.
Uma linha uniforme, na mesma altura do nível do mar, só podia ter sido feita por uma lâmina de água. Concluiu que se tratava de vestígios do nível da água do antigo lago Manoa, que havia desaparecido setecentos anos atrás e que por isso não era encontrado. Sempre citada como um sonho impossível, Stevenson pode ter trazido à realidade provas de que o tesouro de Eldorado estava em terras brasileiras, no Estado de Roraima.
As terras do lavrado deram ainda duas características próprias ao território.
Uma delas são os chamados cavalos selvagens, que correm soltos pelas terras do lavrado e que foram trazidos pelos portugueses em 1718, quando iniciaram a colonização do território, sendo abandonados durante o período em que Portugal se desinteressou pela conquista do Norte. São também chamados de cavalos lavradeiros e foram empregados pelos produtores de arroz. Até pouco tempo havia mais de trezentos mil cavalos selvagens galopando livres e em manadas pelas terras do lavrado. O governo tentou protegê-los, mas foram sendo dizimados. Ainda hoje se vêem manadas correndo pelo lavrado.
A outra característica é a qualidade do solo amaciado durante milênios pelas águas do lago Manoa e onde os arrozeiros passaram a produzir o "arroz do lavrado", que se firmou como outra grande riqueza do Estado.
Hoje as terras do lavrado pertencem à reserva Raposa Serra do Sol, e os arrozeiros foram arrancados de lá à força.
Maurício ia relembrando essas informações, que constavam dos impressos que o tenente havia compilado da internet, procurando mantê-los vivos em sua memória. O avião foi se aproximando do aeroporto de Boa Vista, onde pousaram às 11 horas da noite. Conforme havia dito ao tenente, Carlão já os esperava no salão do aeroporto e com hotel reservado.
Boa Vista é uma cidade moderna encravada no Norte do país. Com avenidas largas e arborizadas, partindo da praça central e formando um grande leque, surpreende o visitante com a sua beleza.
No dia seguinte, logo cedo, procuraram informações sobre o forte São Joaquim, construído pelos portugueses para defender a região. O recepcionista disse que tinham de descer o rio uns sessenta quilômetros. Carlão estranhou porque, embora nunca tivesse visitado o forte, sabia no entanto que existia uma construção antiga, porém, subindo o rio.
Maurício achou melhor ligar para o Exército. Era sábado de manhã e o sargento que atendeu o telefone disse que não podia dar informações. Eles teriam de ir ao Departamento de Relações Públicas, cadastrar-se e só então lhe seria dada autorização para essa visita. Mas isso só na segunda-feira, porque o departamento não funcionava aos sábados. Perguntou então onde era o forte, como podia fazer para chegar lá e o sargento disse que qualquer informação só podia ser dada após o cadastramento.
Mas que dificuldade! Será que o forte é um local tão protegido assim? - perguntou o tenente. Não podem sequer informar como chegar lá?
Carlão conhecia um pescador dos tempos em que morou em Boa Vista e foram atrás dele. Como era sábado, ele podia estar no cais esperando por algum cliente. Realmente, o barqueiro estava lá e sabia onde era o forte. Logo começaram a subir o rio Branco, em busca do forte São Joaquim. Era um rio largo, bonito, com aproximadamente seiscentos metros de uma margem à outra.
O tempo nublado e algumas rajadas de chuva tornavam a viagem ainda menos confortável. O barqueiro tinha lonas para proteger da chuva, que de vez em quando incomodava, e assim foram subindo o rio até que avistaram ao longe uma construção branca despontando do alto de um canto de terras situado na confluência formada por dois grandes rios, como se fosse uma forquilha.
Lá é a fazenda San Marcos. Era uma das fazendas nacionais. Hoje é reserva indígena. À direita é o rio Tacutus e à esquerda o Uirariquera. O forte fica à direita, à margem do Tacutus.
Olharam para a margem do rio e não viram nada.
Mas aí só tem mato! Onde é esse forte? — perguntou Rogério.
O barqueiro encostou a voadeira no barranco. Eles desceram e viram a poucos metros uma espécie de portão recém-construído, coisa parecida com entrada de fazenda de gado.
O forte é aqui.
Mas isso aqui é coisa nova! - exclamou Maurício. - Não pode ser o forte!
O senhor está vendo ali o muro de pedra?
E dirigiu-se ao local onde realmente havia um muro de pedras abandonado e coberto de vegetação. Foram então andando pelo mato e descobrindo os paredões de pedra.
O senhor está vendo a posição do forte? Conforme eu disse, esse primeiro rio que desce à direita é o Tacutus. Lá diante é o rio Uirariquera. Os dois se unem e formam o rio Branco, que começa aqui e vai até a margem esquerda do rio Negro, aproximadamente cinqüenta quilômetros antes de Manaus.
O rio Branco era bastante largo na junção dos dois afluentes que o formavam e a posição do forte era vantajosa, porque vigiava a desembocadura dos dois grandes rios que desciam do Norte.
O Brasil era grande demais para o reino de Portugal, e a foz do rio Branco só foi descoberta na metade do século XVII, porém quando os portugueses chegaram, tiveram a surpresa de encontrar por ali espanhóis, franceses, ingleses e holandeses. A chegada dos europeus foi um desastre para os índios. Foram caçados, escravizados, dizimados, torturados e vendidos como mercadoria.
Para escapar dos europeus, povos indígenas de outras regiões fugiram para a bacia do rio Branco e ali tiveram de lutar com as tribos locais, matando-se uns aos outros, a mesma crueldade de que tinham sido vítimas.
A conquista do território só foi possível com a construção do forte São Joaquim, em 1775, na confluência desses dois rios, a 32 quilômetros de Boa Vista. Para abastecer o forte e garantir a colonização, foram criadas as fazendas nacionais: a fazenda São Bento, no rio Uirariquera, a fazenda São José, no rio Tacutus, e a fazenda São Marcos, das quais só esta última ainda existe, e transformada em reserva indígena em 1909.
No ano de 1808, o general Junot, comandando tropas de Napoleão, invadiu Portugal e a família real fugiu para o Brasil. O Rio de Janeiro passou a ter as preferências da corte e a região do rio Branco ficou esquecida.
Os ingleses aproveitaram-se desse abandono e começaram a invadir o território brasileiro. Um geógrafo alemão chamado Robert Schomburg, que trabalhava para a Inglaterra, chegou até o forte São Joaquim, onde foi recebido com honras diplomáticas, mas fez relatórios recomendando que a Inglaterra ocupasse aquele "espaço vazio". Estimulada pelos relatórios e mapas de Schomburg, a Inglaterra avançou sobre o território brasileiro.
A disputa demorou meio século e o caso foi submetido a uma corte internacional presidida pelo rei Vitorio Emanuel III, da Itália. Joaquim Nabuco foi designado para acompanhar o julgamento e chegou a escrever 18 volumes sobre a questão, que impressionam pela força dos argumentos.
Apesar dos esforços de Nabuco, do Barão do Rio Branco e de Antonio Ladislau Monteiro Baena, o Brasil perdeu para os ingleses 19.630 quilômetros quadrados de território pertencente ao Estado de Roraima. Essa questão ficou conhecida como a questão de Pirara, em referência ao lago de Pirara, que o Brasil defendia como sendo seu.
Maurício contemplava a forquilha formada pelos três rios, quando lhe veio à memória a história do cientista Humboldt que foi preso na fronteira com a Venezuela. Portugal andava tão cismado com esses cientistas, que o vice-rei de Portugal no Rio de Janeiro deu ordens para prender Humboldt se ele entrasse em território português.
A maior frustração de Humboldt foi não ter podido descer o rio Amazonas — ele ficou na divisa com a Venezuela durante vários meses. Numa pescaria, levou um choque de enguia, o peixe-elétrico, que teve a honra ser batizado pelo próprio Humboldt com o nome de Electophorus electricus.
"Cientistas. Eles criam uma versão matemática das coisas e engessam a verdade. Parece que a situação atual não está diferente de antes. Estariam eles engessando a Amazônia? O que será que existe de verdade por trás de todo esse ambientalismo amazônico?"
Apenas dois por cento de todos os trabalhos científicos sobre a Amazônia, eram de cientistas brasileiros. E nem dois por cento das verbas destinadas a pesquisas no Brasil são destinados à Amazônia, apesar de o seu território corresponder a mais da metade do território brasileiro.
"Temos então de acreditar nas verdades que vêm de fora e que talvez sejam verdades que só interessem a eles, como os mapas de Schomburg."
Quem chega àquele local hoje admira-se de os portugueses terem construído aquele forte há mais de dois séculos, quando os barcos eram praticamente empurrados rio acima pelo remo. Era outro exemplo do espírito aventureiro da época. Não havia mapas, GPS, Sistema de Posicionamento Global, satélites, levantamento topográfico, rádio, faróis para orientar os barcos que subiam rios cheios de curva, remando contra a correnteza. Se entrassem no canal errado só iam descobrir depois de terem perdido muito tempo. Tinham então de voltar e começar de novo.
Apesar das dificuldades, chegaram até ali e construíram a pequena, porém resistente fortaleza. Não era uma obra portentosa como o Príncipe da Beira, mas era completo: casamata à prova de bombas, alojamento de soldados, depósito de munições e, ainda, a igreja, a residência do comandante real, do padre e cabanas de vaqueiros.
Mas hoje aquele monumento não passava de um monte de pedras abandonadas, tomadas pelo mato, e eles andavam ali com medo de escorregarem e quebrarem uma perna, serem picados por uma cobra, ou encontrarem um enxame de abelhas. Felizmente, o que encontraram de pior foram os carapanãs, que atacavam quando o movimento que faziam com a vegetação lhes tirava o sossego.
Até agora o que estou vendo de características comuns nesses fortes são apenas duas coisas: a estratégia e o abandono - disse Maurício. - Numa região dessas, o invasor só pode vir pela água. Nenhuma tropa suportaria atravessar essas florestas. Então a estratégia de defesa do território ou de sua posse é o caminho das águas.
Pelo que eu li - afirmou Rogério -, esse forte já foi até palco de casamentos da alta sociedade. Cerimônias importantes eram celebradas aqui.
Pois é. O que está me preocupando é esse abandono. Construir essas fortalezas naquela época, a essa distância, enquanto hoje não se interessam nem mesmo em manter este forte limpo? Agora entendo por que aquele sargento não queria que a gente viesse aqui. Não querem testemunho do abandono disso.
Os mosquitos começaram a atacar.
Que diabo de bichinho horroroso esse tal de pernilongo, muriçoca, borrachudo, carapanãs, seja lá que nome tenha, mas oh! bicho sacana - reclamou o tenente.
O barqueiro explicou que aquelas terras cultivadas em frente do forte eram destinadas à plantação de arroz.
Aí na frente passa a estrada do arrozal. Se os senhores quiserem, podem vir de carro, passando pela ponte que cruza o rio lá na cidade. A estrada depois da ponte vai dar em Georgetown, capital da Guiana Inglesa.
São estas terras que foram incluídas na reserva indígena?
Não, não. Isso que o senhor está pensando é a reserva da Raposa Dourada. O senhor nem imagina o prejuízo para o Estado. Quase toda a nossa plantação de arroz está lá dentro. Vai ser um prejuízo enorme para o Estado e para os fazendeiros.
O barqueiro falava como se expressasse os sentimentos do povo de Roraima.
Eles construíram casas, fizeram depósitos, benfeitorias, compraram máquinas, adubaram a terra, é uma tristeza. Hoje estão desempregados e sem terem como viver. Alguns talvez se tornem ladrões e invasores de terras alheias. As filhas se virando para arrumar dinheiro, os filhos indo para o tráfico de drogas e outras coisas. E eram gente séria, trabalhadora, produtores de arroz respeitados. Os gerentes de banco iam atrás deles.
Visto lá do Brasil litorâneo, parecia muito normal que houvesse reservas florestais, indígenas e outras, porque só se divulgava que era para salvar o planeta. Visto pelo povo da Amazônia, esses atos eram uma injustiça que transformava milhares de pessoas em candidatos ao programa Fome Zero.
E esse San Marcos? Vamos tentar chegar lá? Pelo menos passar em frente?
Saíram do local onde antes os portugueses haviam construído o forte São Joaquim, atravessaram o rio Branco e começaram a subir o Uirariquera.
Logo à direita estava o velho casarão estilo espanhol, tendo ao lado uma pequena igreja. Era a antiga sede da Fazenda Nacional San Marcos, agora propriedade dos índios Macuxis.
Será que a gente pode chegar até a casa? - perguntou Rogério.
Olha, uma vez estive aí perto, mas não desci do barco. Essa casa hoje é sede da Funai, e eles não gostam de perguntas. Mas vamos tentar.
O casarão distava aproximadamente duzentos metros da margem e, subindo o morro em direção à casa, um índio cuidava de um cavalo. Era o único movimento que se via. Aproximaram-se e o barqueiro desceu na frente para puxar a voadeira por uma corda até o barranco.
Subiram o morro e o índio veio na direção deles. Ao contrário do que pensavam, o índio estava simpático e sorridente. Disse que podiam visitar a casa. Era uma grande casa de alvenaria, construída em três segmentos, em forma de U, com varandas em arcos que rodeavam a parte externa da frente e as partes internas dos lados.
Ninguém da Funai estava por lá e o casarão parecia abandonado.
Havia uma pequena capela ao lado e estavam ali conversando, quando Maurício perguntou:
Você é índio macuxi?
Sim, sou macuxi e meus antepassados vieram de onde hoje é o monte Roraima.
Monte Roraima, a terra de Macunaíma?
O índio mudou de atitude. Ficou sério e olhou para o Norte, na direção do grande monte, que fica nas fronteiras do Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa, e começou a falar num tom solene e monótono, como se estivesse invocando deuses:
Roro-imã é um grande monte verde, mas, antes de ele aparecer, ali era o paraíso. Uma imensa planície. Sim, senhor, a terra era plana, muitos animais para caça, pássaros grandes à vontade, cheia de árvores frutíferas e em seus pântanos havia muito peixe, muito peixe. Os índios viviam felizes e não precisavam de nada. Não precisavam fazer força para viver bem e feliz. A vida era como no paraíso que os brancos de roupa longa contam hoje para nós. Um dia nasceu um paruru, árvore que os brancos também chamam de bananeira. Deu lindos cachos de fruta amarela, mas os pajés foram avisados por Paaba, o grande Deus, que se alguém tocasse naquelas frutas muitas desgraças aconteceriam. Os pajés informaram os índios das proibições de Paaba.
Talvez influenciado pelos ensinamentos dos padres sobre o martírio de Cristo, o índio abriu os braços e ficou como uma cruz se projetando contra o céu nublado e as águas do Uirariquera. Parecia repetir a história de Adão e Eva adaptada à lenda do monte Roraima.
Todos os índios passavam longe do paruru em respeito às ordens de Paaba. Um dia alguém cortou um cacho daquela fruta que estava tão amarelo como se fosse de ouro. Logo a terra começou a tremer e trovões, relâmpagos, nuvens escuras e uma forte tempestade fez as caças e as aves saírem correndo. Não se sabe até hoje quem cortou o cacho da paruru, mas, do fundo da terra começou a nascer uma montanha que foi crescendo, crescendo, até assustar os índios que corriam apavorados. As caças sumiram, não existem mais os pântanos cheios de peixes, e as aves também se foram. A natureza ficou triste, muito triste. Do alto do morro, ela chora jogando lágrimas que se transformam em pequenas cachoeiras que descem do monte Roro-imã e, quando essas lágrimas secam, Paaba manda as nuvens, que sempre circundam o monte Roro-imã, derramar mais lágrimas para que a tristeza nunca mais acabe.
O índio levantou os dois braços para os lados do monte e finalizou numa voz amargurada:
Vieram os brancos, levaram o ouro, mataram nossos velhos e escravizaram nossas mulheres e nossos filhos. Foi o castigo de Paaba.
Lendas e mistérios se escondem por baixo das neblinas do monte Roraima, onde o tempo não existe.
Aventureiros, como o corsário inglês sir Walter Leigh, que também fundou uma colônia, nos Estados Unidos, e deu-lhe o nome de Virgínia, em homenagem à rainha Isabel I, chamada de rainha Virgem, porque não se casou, levaram muitas histórias a respeito dessa região para o Velho Mundo. E foi baseado em seus relatos que Conan Doyle, o criador do famoso detetive Sherlock Holmes, escreveu a ficção O Mundo Perdido, que virou seriado de televisão.
O Paraíso Perdido, de John Milton, escrito com base nessas mesmas informações, virou clássico da literatura mundial.
O índio parou de falar e começou a andar vagarosamente em direção da casa. O barqueiro alertou:
É melhor a gente sair daqui. Estamos numa reserva indígena.
Foram para a voadeira e o barqueiro prudentemente afastou-se, descendo o rio pela outra margem do rio Uirariquera.
Aquele índio era estranho, pensou Maurício. Ou estava representando, ou já tinha perdido a sua cultura indígena. Macunaíma é o índio herói dos macuxis, filho do Sol e da Lua.
Diz a lenda que o Sol e a Lua estavam apaixonados, mas nunca se encontravam. Um dia o Sol se atrasou - os índios não sabiam o que era um eclipse - e então se deu o encontro dos dois e nasceu Macunaíma. Teve o monte Roraima por berço e cresceu esperto, cheio de magias e forte.
Foi quando então nasceu a bananeira e só Macunaíma podia colher os seus frutos e distribuir para os outros índios. Mas a ambição da tribo cresceu e, não se contentando com uma só árvore, arrancaram a sua folhagem e os frutos para plantar e aumentar a produção. A árvore morreu e Macunaíma queimou toda a floresta e petrificou a árvore, que está diante do monte Roraima e é onde repousa o espírito de Macunaíma.
Com a implantação das fazendas nacionais pela coroa portuguesa, os índios Macuxis se transformaram em hábeis vaqueiros e passaram a ser os peões das fazendas da região. Não se adaptaram a outros tipos de trabalho e hoje vivem sustentados pelo governo, por isso Maurício estranhara aquela misteriosa reação do índio, como se estivesse vivendo os tempos antigos da sua gente.
"Estariam programando alguma reivindicação contra a Funai? Ou os garimpeiros estavam de novo entrando em suas áreas?"
A voadeira foi descendo o rio, de volta a Boa Vista, e Maurício ouviu o tenente exclamar com entusiasmo:
Inacreditável! Então posso dizer para a Fernanda que encontrei as minas do Eldorado. Segundo as nossas pesquisas, o lago Manoa seria nessa região, na confluência desses dois rios para formar o Branco.
Carlão, que se mantinha calado, disse:
Se o Eldorado é aí, eu não sei. Mas eu tinha três aviões aqui em Boa Vista, buscando ouro do garimpo Tepequém. Ao todo, na cidade, havia quinhentos aviões e era comum a gente fazer três vôos por dia. Nos dias de chuva, o saguão do aeroporto enchia de pilotos esperando o tempo melhorar para sair. Eram cento e cinqüenta e até duzentos pilotos, sem ter o que fazer é cada um contando as suas proezas. Só se falava em ouro. As quantidades eram incríveis. Falava-se em ouro como um pedreiro fala em areia.
Quase quinhentos aviões? — perguntou Rogério. — Mas de que tamanho era esse garimpo?
Carlão pensou um pouco.
Devia medir uns duzentos quilômetros de comprimento, por cento e cinqüenta de largura. Havia mais de cem pistas, porque cada dono de setor tinha a sua pista própria. No total, eram mais de quarenta mil garimpeiros. A produção de ouro era impressionante.
E isso é reserva indígena hoje?
Foi tudo dado para os Ianomâmis. O senhor já imaginou uma mina de ouro com área de duzentos quilômetros de um lado por cento e cinqüenta de outro?
Nisso tocou o telefone celular e Carlão atendeu. Olhou preocupado para Maurício.
Doutor, acho que já falei para o senhor a respeito do Sílvio, que foi meu sócio naquele tempo. Ontem ele foi ao hotel para me ver. Ele é pessoa de confiança. Expliquei mais ou menos que o senhor estava numa investigação sigilosa. Pedi para ele ficar atento, principalmente por causa do avião.
Fala logo, Carlão. O que houve?
Ele está lá no hotel. Diz que uns desconhecidos perguntaram ao recepcionista por duas pessoas e deram a descrição do senhor e do tenente. O recepcionista informou sobre nós três e que tínhamos saído para ver o forte.
Ele ainda está no telefone? Pergunte se tem alguma idéia para evitarmos essa gente?
Carlão conversou com o seu ex-sócio.
São três pessoas, tipos estranhos, e saíram para o porto. Ele nos aconselha a passar pela outra margem do rio e descer até a ponte. Ele vai nos esperar, na beira da estrada, na margem oposta à da cidade.
Quem tivesse um binóculo podia vê-los de longe. O rio tinha ali uma largura de seiscentos metros e era difícil reconhecê-los a olho nu, e mesmo com binóculo não era fácil.
O tenente deitou-se no fundo da voadeira e se cobriu com a lona que serviu de proteção contra a chuva. Com isso, se estivessem esperando por três pessoas, poderiam ficar na dúvida e, naquele momento, até a dúvida podia ajudar.
A voadeira passou longe do bonito centro de convivência construído na beira do cais. "Ainda volto aqui para tomar uma cervejinha olhando para esse rio", pensou Maurício.
Toda beira de ponte tem caminho de pescador. O barqueiro encostou e eles subiram o barranco até chegar à rodovia onde Sílvio, que os esperava, gritou:
Entrem logo! Não sei o que está acontecendo. Parece que deu a louca no mundo. O Exército está desfilando nas ruas como se fosse o 7 de Setembro. Vamos embora.
Maurício já tinha pago o barqueiro, e a camioneta partiu acelerada, assim que eles entraram.
Conforme disse ontem, deixei o meu avião abastecido e pronto para sair. Vocês não podem voltar ao aeroporto.
Mas isso não vai complicá-lo?
Não. Nada disso. Fizemos uma troca de avião, ora essa. O Sêneca de vocês está uma tetéia. Eu aqui estou precisando de avião novo. No fim, não deu negócio e cada um continuou com o seu avião. A história não é boa?
Antes de ir ao hotel, Sílvio tinha feito plano de vôo em direção à sua fazenda, que ficava a sudeste, quase trezentos quilômetros na direção de Santarém. Ele tinha uma pequena pista homologada no sítio onde morava, de forma que foram direto para o avião. Fazia sempre essa viagem e muitas vezes aproveitava para levar passageiros a Santarém. Em poucos minutos, já estavam no ar, rumo ao baixo Amazonas.
Foram duas horas e quarenta minutos sobre a mata virgem do norte amazonense. Os afluentes barrentos que cortavam a floresta lembravam a lenda da Boiúna, a cobra gigante que ao rastejar pela terra formava os igarapés.
O rio Amazonas é uma paisagem que encanta e impressiona, não importa quantas vezes a gente a veja. Lá estava ele com sua largura de até sessenta quilômetros, engolindo outro gigante, o rio Tapajós, cujas águas azul-esverdeadas lutavam para não se misturarem com as águas sujas do Amazonas.
Maurício estava impressionado com a grandeza de tudo o que estava vendo. Havia pouco estavam no Estado do Amazonas, com uma superfície de 1.577.820 quilômetros quadrados, equivalente a quase três vezes o território da França, e agora estava no Estado do Pará com uma área de 1.253.165 quilômetros quadrados.
Haviam passado por florestas, tribos indígenas, igarapés, lagos, rios caudalosos, vilarejos e capitais. Estudaram museus, fortes, história, arte, folclore e culinária. Diante deles se descortinava uma paisagem cheia de cores, misturando o branco das praias do Tapajós com o verde-escuro das matas, onde as copas frondosas das castanheiras não diminuíam a beleza das suas companheiras da floresta.
Sentiu orgulho da grandeza da sua pátria e entendeu a ambição de países dominadores do mundo cujas riquezas naturais se esgotavam.
Era um fenômeno indescritível que se escondeu quando o avião pousou no aeroporto de Santarém, a Pérola do Tapajós, como é conhecida. Santarém é famosa pelas longas praias de areia branca, onde as tartaruguinhas recém-saídas dos ovos que ficam enterradas na areia descem em bando em direção ao rio, tentando fugir dos predadores. Poucas sobrevivem.
Ficaram no aeroporto o tempo suficiente para abastecer e logo em seguida levantaram vôo para pousarem depois de uma hora e meia no aeroporto de Macapá. Era outro espetáculo que não se podia descrever.
O piloto Sílvio não resistiu ao comentário:
- Vocês sabiam que a Ilha de Marajó é maior que a Suíça? Na verdade são mais de duas mil ilhas que formam o arquipélago e só a ilha de Marajó tem cinqüenta mil quilômetros quadrados.
Era outra demonstração da imponência do rio Amazonas.
Com o aperfeiçoamento da leitura por satélites, o Amazonas é reconhecido hoje como o maior rio do mundo, em extensão e volume de águas, sendo responsável por um dos mais estranhos fenômenos da natureza, a pororoca, que ocorre também com alguns dos seus afluentes, mas é mais violenta quando as águas do oceano tentam o seu domínio.
Com a maré crescente, as águas do mar avançam sobre o estuário, dando a impressão de que o grande rio foi enfim dominado. Mas o rio reage, se enfurece, ruge, e uma espécie de alergia se forma sobre a sua superfície, levantando ondas encrespadas que avançam e depois se acalmam, cansadas, sem força para ir mais longe.
O fenômeno ocorre de doze em doze horas, três dias antes e três dias depois das luas cheia e nova. A palavra pororoca vem da expressão indígena "poroc-poroc", que representa o estrondo de ondas de até quatro metros de altura, quebrando o silêncio das matas.
Macapá é a última cidade do rio Amazonas. A cidade tem esse nome por causa de uma palmeira nativa chamada maca-paba, antes abundante na região. Ali, os portugueses começaram a colonização do Norte do Brasil, com a chegada de um destacamento em 1738.
Entre os anos de 1764 e 1782, foi construído o forte de São José de Macapá, logo após o Tratado do Pardo ter revogado o Tratado de Madri de 1750, reacendendo as guerras territoriais entre Espanha e Portugal.
Rogério interrompeu as meditações de Maurício.
Aqui nós não temos um marco zero? O marco zero do Equador? Ele não atravessa a cidade?
Estive pensando nisso também. Mas nosso problema não é "marco zero", mas o "conceito zero". Tenho procurado analisar todos os detalhes, buscando combinações que possam ser úteis para decifrar o verdadeiro código, do qual não temos nenhuma pista ainda. Temos de ver esse forte e tentar sair daqui ainda hoje. Algo me diz que as coisas estão se precipitando.
O piloto disse que até as quatro e meia podiam decolar para Belém. Carlão preferiu ficar no aeroporto com o seu colega. Tomaram um táxi e o motorista levou-os ao forte.
Nunca havia estudado tanto a história do Brasil como nos últimos meses. Agora estava ali no Amapá e precisava descobrir se o forte São José de Macapá estaria escondendo algum mistério que o general não teve tempo de desvendar.
"O Contestado Franco-Brasileiro teria algo a ver com isso?"
Em 1895, forças francesas invadiram a cidade e foram rechaçadas pelas forças locais, comandadas por Cabralzinho, que recebeu o título de general honorário do Exército brasileiro pelo seu desempenho na luta contra os franceses. É um verdadeiro herói para o Amapá.
As disputas com a França pelas terras do Amapá eram grandes. Os franceses chegaram a nomear governador um antigo escravo, chamado Trajano, que proclamou a independência de uma área do Amapá, chamando-a de República do Cunani, nome de um peixe da Bacia Amazônica, muito apreciado, também conhecido por tucunaré.
A junta que governava o Amapá determinou a prisão de Trajano e, em represália, os franceses invadiram a capital para prender o chefe da junta, o Cabralzinho, e libertar Trajano. Consta que Cabralzinho tomou a arma do comandante francês e matou-o.
Mas os brasileiros ficaram sem munição e tiveram de se refugiar na mata. Sem poder levar Cabralzinho, os franceses promoveram verdadeiro massacre contra a população, matando mulheres, velhos, crianças e deixando uma bárbara esteira de sangue.
Durante o reinado de Napoleão III, a França chegou a propor a venda da Guiana Francesa, com o Amapá junto, para os Estados Unidos, por oito milhões de dólares. Os Estados Unidos estavam envolvidos com a Guerra da Secessão e preferiram adquirir o Alasca da União Soviética.
A disputa fronteiriça com a Guiana Francesa ficou conhecida como o Contestado Franco-Brasileiro e foi resolvida em primeiro de dezembro de 1900 com a arbitragem da Suíça, sendo assinado o Laudo Suíço, determinando o rio Oiapoque, como fronteira entre o Brasil e a França. Foi outro grande trabalho do Barão do Rio Branco.
Chegaram ao forte São José de Macapá, outra obra de arte que seguia os mesmos princípios do forte Príncipe da Beira. No entanto, as pedras não eram trabalhadas, eram pedras comuns, sem o capricho do Real Forte Príncipe da Beira, construído em homenagem ao herdeiro da Coroa.
Apenas os cantos das muralhas eram de cantaria. As guaritas e os detalhes do portão de entrada, o acabamento e o desenho tinham o mesmo estilo do outro. Mas ali o transporte era mais fácil e havia mais gente.
O tenente comentou:
O mais provável é que as pedras para a construção do Príncipe da Beira tenham vindo de Portugal, e essas pedras de cantaria que colocaram nos cantos dos muros deste forte são apenas sobras daquelas que seriam usadas no Guaporé.
Mas as explicações que buscavam para justificar as diferenças de construção não satisfaziam. Qual o mistério para que dedicassem tanto engenho e arte, como diria Camões, ao Real Forte Príncipe da Beira, ainda localizado num dos mais difíceis recônditos do país?
O forte de Macapá estava restaurado e em suas dependências havia um pequeno museu. Tiveram tempo de ouvir as explicações do funcionário e caminhar pelo pátio, onde havia também um buraco no centro, que deveria levar as águas das chuvas. Lembrou-se do desconforto da sua entrevista com a Confraria lá no Príncipe da Beira, mas o túnel do forte de Macapá servia apenas para conduzir as águas da chuva para o rio, pois era estreito, não dando passagem a uma pessoa.
O funcionário do museu mostrou o mapa do Brasil e a localização do Amapá.
Os senhores estão vendo onde fica o rio Oiapoque? Os franceses chegaram a fazer mapas dizendo que o rio Oiapoque seria onde é hoje o rio Araguari. O Barão do Rio Branco acabou provando que os mapas eram falsos e nós ganhamos a questão do Contestado Franco-Brasileiro.
É mais ou menos como aquela história dos mapas do tal de Schom- burg - disse o tenente.
Sempre se utilizaram de artifícios para tentarem tomar o território brasileiro. Agora o país enfrenta um dos artifícios mais perigosos. Não são mapas isolados de alguns geógrafos, mas organizações misteriosas, com apoio internacional, que movimentam fortunas imensas para se infiltrar no governo, na imprensa, nas comunidades científicas, na mente do cidadão comum.
A história do Amapá era muito rica e cheia de coisas interessantes, mas nada de especial chamava a atenção e eles tinham ainda de ver o marco zero.
Olhou mais uma vez atentamente a imensidão das águas barrentas do rio Amazonas e comentou com o tenente:
Quem dominar esta posição toma conta da Amazônia.
Quando o tenente Rogério estendeu a vista para a imensidão das águas que se abriam diante deles, Maurício suspirou profundamente e disse com certa tristeza:
Tenho a estranha sensação de que não se trata apenas de perdermos a Amazônia. Às vezes me dá a impressão de que precisamos reconquistar todo o país. O Brasil sempre respeitou a amizade e a integração entre os povos, mas parece ter-se descuidado da sua identidade.
Preferiu não estender esse assunto, com receio de não ser bem compreendido, e tomou a direção do portão de entrada para sair do forte, o que alegrou o tenente que não sabia o que dizer sobre esse inesperado comentário.
Macapá não é a única capital cortada pelo Equador. Quito, a capital do Equador; Entebes, à margem do lago Vitória em Uganda; Pontinak, em Bornéu, e Coquilhaville, no Congo, são as mais conhecidas.
O táxi levou-os até o marco zero, localizado a cinco quilômetros do centro da cidade, onde estava o complexo turístico construído sobre a linha imaginária que lhe dá o nome. A construção do mirante era grande e, em seguida a ele, foi construído o Estádio Zerão, com a linha do Equador passando bem no seu meio, de forma que, ao se realizar uma partida de futebol, cada time joga meio tempo no Hemisfério Norte e meio tempo no Hemisfério Sul.
Uma mocinha que trabalhava para a Secretaria de Turismo deu várias explicações sobre o fenômeno e disse que o equinócio da primavera é o mais bonito e muita gente vai assistir ao Sol passar sobre a linha demarcada no teto do complexo turístico.
Será mesmo verdade que esse efeito coriolis faz as águas das pias escoarem em sentido contrário, dos dois lados da linha do Equador? Aquela moça disse que, do lado do Hemisfério Norte, a água escoa no sentido do relógio, e, do lado do Hemisfério Sul, no sentido anti-horário. Pena que não temos tempo para comprovar isso — disse o tenente, pesaroso.
Mas Maurício estava pensando nas hipóteses do novo código.
Nos dias 21 de março e 23 de setembro, o Sol passa sobre a linha do Equador e então os dias e as noites duram exatamente doze horas, em qualquer lugar do globo terrestre. Daí o nome equinócio, que vem do latim aequinoctium, que significa noites iguais, e marca o início da primavera, no Sul, e o outono, no Norte.
"Será que esse equinoctium misturado com efeito coriolis estaria sendo usado? Parece tudo tão ridículo."
Saíram do marco zero e foram direto para o aeroporto. O motorista perguntou:
Os senhores são da polícia?
O tenente respondeu com outra pergunta:
Algum assunto em especial?
Os senhores têm jeito de quem anda procurando alguma coisa. Vieram estudar o problema da malária? O caso da universidade americana que está pagando doze reais por dia para a população de São Raimundo de Pirativa, aqui perto, ficar com os braços e as pernas expostas à picada do mosquito da malária?
Não tendo resposta, insistiu:
Todo mundo aceitou, é claro, porque aqui não tem trabalho. O assunto virou caso de polícia e o Ministério Público está analisando isso. Acho uma barbaridade uma coisa dessas. O povo já passa fome e ainda querem que fique doente?
O tenente olhou para Maurício e comentou:
É mais ou menos o que teriam feito aqueles antropólogos americanos James Neel e Napoleon Chagnon, que foram acusados pelo jornalista americano Patrick Tierney, no livro Trevas em El Dorado. Segundo esse jornalista os antropólogos teriam feito experiências com vacinas contra sarampo com os índios Ianomâmis, em 1968. Parece que vinte por cento dos Ianomâmis vacinados morreram. Será que agora estão pegando o povo pobre do Amapá para fazer experiências contra a malária?
O motorista mostrou-se interessado na informação do tenente.
Mas já fizeram isso antes? Mas não é possível! O que não aconteceria se uma universidade brasileira fosse fazer experiência de vacinas nos índios americanos?!... E, no entanto, eles chegam aqui, dão um dinheirinho para esses pobres coitados e o que os senhores acham que acontece? Nada! É uma vergonha!
Chegaram ao aeroporto e o avião estava abastecido, já com o plano de vôo para Belém. O Sêneca decolou e empinou em direção a Belém, passando sobre o rio Amazonas, que serviu de sepultura a Francisco Orellana.
Os amapaenses consideram-se mais brasileiros do que os demais porque, segundo eles, Deus os destinou a pertencer ao Brasil. E dizem isso porque Francisco Orellana retornou à região com uma carta de outorga dada pela Coroa da Espanha, mas morreu quando o seu barco naufragou nas águas do rio que descobrira, perto do Amapá.
Franz Sauer procurava organizar as reuniões da cúpula da Organização de forma a evitar que esses encontros levantassem suspeitas. Descobriu que as festividades, quando grupos turísticos chegam de lugares diferentes e distantes, eram a melhor forma de dissimulação.
Mudava também os locais dessas reuniões e preferiu desta vez escolher Parintins, capital da enorme ilha que leva o seu nome, a segunda maior do rio Amazonas, perdendo apenas para a ilha de Marajó, para assistir ao festival do boi-bumbá, que se realiza todos os anos, de 28 a 30 de junho.
Dentro de um barco, como se fossem turistas, podiam conversar à vontade e com segurança.
O boi-bumbá foi trazido por migrantes do Maranhão, que vieram para a Amazônia em busca de riqueza durante o ciclo da borracha. E uma variante do bumba-meu-boi, que apareceu no Nordeste na época colonial, com origem em festividades de Portugal.
Como nas lendas da mandioca e do monte Roraima, pode-se encontrar no boi-bumbá vestígios do sincretismo brasileiro, cujas culturas do índio e do negro são fortemente influenciadas pela cultura européia, ministrada pelos jesuítas, quase sempre representando a morte e a ressurreição.
Nessa época, a influência do cristianismo era grande, e a longa ocupação de Portugal e Espanha pelos mouros, que professavam a religião islâmica, infundiu o receio contra tudo o que não fosse cristão.
Há quem diga que os missionários procuraram adotar o efeito didático do teatro europeu, fazendo representações de lendas para ensinar o catecismo cristão a negros e índios. Outros acham que as danças africanas, que os escravos praticavam para esquecer o cativeiro e matar a saudade da terra original, agradaram aos índios, e foram então surgindo encenações sincréticas como a do boi-bumbá, em que o padre é auxiliado pelo pajé no ato da ressurreição.
Seja qual for a versão, o boi-bumbá se transformou, em apenas duas décadas, no maior festival folclórico de toda a Amazônia, e os bois Caprichoso e Garantido já fizeram Parintins conhecida em todo o mundo.
A encenação relata a história da Mãe Catirina, ou Catarina, que estava grávida e sentiu o desejo de comer a língua do boi mais bonito da fazenda, onde o negro Pai Francisco, seu marido, era administrador. Ele não teve dúvidas e matou o boi preferido do patrão, que manda prendê-lo, com a ajuda dos índios.
Mas o padre, com a fé, e o pajé, com a sua magia, ressuscitam o boi, e Pai Francisco é salvo, num simbolismo que une a salvação à ressurreição.
Mais de cinqüenta mil pessoas se reúnem no bumbódromo para assistir ao desfile dos figurantes de cada grupo, e as galeras, como são chamados os partidários do Caprichoso e do Garantido, deliram quando o seu boi-bumbá entra na arena.
Parintins talvez seja a única cidade do mundo onde a coca-cola é vendida em latas azuis, porque os partidários do Boi Caprichoso, que tem cores azul e branca, pararam de comprar coca-cola, que trazia as cores do Boi Garantido, vermelho e branco.
Quem assiste ao desfile pela primeira vez, se deslumbra. Cada bumbá é formado por três mil figurantes e cada bateria tem seiscentos músicos. Difere dos festejos de carnaval, nos quais existem várias escolas de samba, enquanto o boi-bumbá tem apenas dois grupos: o Caprichoso e o Garantido.
Franz Sauer não se interessava se o bumba-meu-boi foi usado como estratégia para catequização de índios e negros. O que o entusiasmava era ver ali na selva amazônica um delírio que não existia na Alemanha, onde o folclore comportado dos irmãos Grimm não se renovava. O ritmo daquelas baterias dominado pelos sons amazônicos, com influências africanas, o encantava.
Muitos barcos alojavam turistas que vinham para o festival, alguns do exterior, porque a cidade de Parintins não tinha hotéis suficientes. A população alugava suas casas, mas nem todas tinham condições de oferecer conforto e higiene.
A solução era então participar de grupos de turistas em barcos que fazem normalmente o roteiro, ou então alugar um barco próprio, como fez Franz Sauer, que podia, assim, tratar das ações finais do plano.
Ali, no meio do rio Amazonas, maior símbolo da nova República, presidia aquela reunião, saboreando o prazer de que em breve estaria presidindo reunião de ministros.
Precisamos nos apressar antes que o governo americano atrapalhe nossos planos. Sabemos que a CIA e o FBI já estão interferindo. Os militares diminuíram o movimento de tropas. Imagino que possam estar pensando que esses movimentos tiveram êxito. Também podem ter percebido, felizmente com atraso, que as informações não eram verídicas e estejam agora buscando justificativas pela vergonha que passaram.
Um dos participantes o apoiou:
-Também acho que o assunto já está bastante amadurecido e o momento é oportuno. Não é conveniente que o lado de lá descubra os planos e se prepare.
Preferia esperar um pouco mais para limpar alguns obstáculos remanescentes, mas a proclamação não impede que continuemos esse processo de limpeza. Esta reunião é a última. Após isso, o plano final será enviado. Todos estão de acordo?
O grupo começou a emitir expressões e fazer perguntas.
Todos sabemos que os Estados Unidos e a Europa têm interesse na Amazônia. Se tiverem certeza do nosso plano, antes da proclamação, eles podem invadir o território a pretexto de salvá-lo. O governo brasileiro anda muito desunido, chafurdando em denúncias de corrupção política e será pego de surpresa. Se esperarmos muito, poderemos perder anos de trabalho e todas as despesas já feitas.
Continuou:
-Tudo já está preparado. A União de Madeireiros da Amazônia fará um ato nacional de repúdio à opressão que os povos da região estão sofrendo e haverá greve geral em aeroportos, transportes urbanos, telefonia, correios e telégrafos. Haverá um dia de paralisação na Amazônia e essas manifestações justificarão a ação dos governadores que estão em nosso favor.
Gostava de criar um pouco de mistério e disse com voz estudada:
Além disso, está sendo preparado um fato inesperado que paralisará o governo brasileiro.
Percebeu entre eles a angústia da urgência.
Não precisavam discutir ali como iriam dividir o poder e as riquezas do território, porque isso já tinha sido objeto de concordância e essa distribuição de interesses tinha sido o motivo de aderirem e financiarem a causa. O momento era apenas de tomar o poder.
Não existe ainda unanimidade dos governadores. Temos dúvida quanto a alguns deles.
Adotou um tom emblemático na voz:
- Os senhores sabem que não podemos contar com ninguém que levante dúvidas. Aqueles que não estiverem conosco serão afastados da forma já conhecida.
Comportavam-se como turistas normais e não foi difícil chegar à conclusão de que o melhor era dar logo início à operação, seguindo as instruções que receberiam de Franz Sauer. Por segurança, nenhum deles sabia qual era o plano e quais as iniciativas que o velho Sauer ia tomar.
Deu mais alguns minutos para eles pensarem e, como não houve outras manifestações, encerrou a reunião.
De Macapá até Belém gastaram menos de duas horas.
Hospedaram-se no hotel Marajoara e o tenente ligou imediatamente para a capitã. Preferiram continuar em quartos separados e com todos os sentidos ligados contra eventuais perigos.
Desceu e ficou esperando por Rogério na recepção. Ele chegou animado.
Ela está preocupada. Foi bom falar com ela. Muito bom. Preciso sair vivo disso tudo, doutor Maurício, preciso sim.
Maurício sorriu paternalmente e disse:
Olha, já estive aqui antes, mas nunca na época do Círio de Nazaré.
A cidade está uma loucura. Gente demais.
O forte do Presépio não é longe daqui e hoje não adianta pensar em táxi. Ao lado do forte, existe um antigo palácio da aristocracia do açúcar cuja fachada tem onze janelas e por isso é conhecido como a Casa das Onze Janelas. Hoje é um espaço cultural e ali também está o Boteco das Onze, de onde a gente tem uma bonita vista da baía de Guajará.
Boteco das Onze. Gostei do nome. Vamos lá. Está claro ainda. O verão tem essa vantagem, os dias ficam mais longos.
Carlão ficou no hotel. Tinha de voltar com Sílvio para pegar o Sêneca em Boa Vista e levá-lo para a Buritizal. Agora não havia mais perigo, como o que imaginaram antes.
Deviam ser umas sete horas da noite, quando Maurício e Rogério saíram em direção ao Núcleo Cultural Feliz Luzitânia, composto pelo Forte do Presépio, a Casa das Onze Janelas, o Casario da Rua Padre Champagnat, a igreja de Santo Alexandre e o Museu de Arte Sacra.
Feliz Luzitânia foi o primeiro nome da cidade de Belém, fundada em 1616.
A praça da entrada do forte estava cheia de gente. Romeiros descalços, penitentes de joelho, mendigos, mulheres se oferecendo e bêbados.
Diz a lenda que em outubro de 1700, um caboclo chamado Plácido José de Souza, filho de português com uma índia nativa, estava caçando na região do igarapé Murutucu, onde hoje é o bairro de Nazaré, e encontrou a imagem sobre uma pedra na beira do riacho.
Também devoto da Virgem, Plácido levou-a para sua casa, mas a imagem voltou ao local onde fora achada e isso se repetiu por diversas vezes e o caboclo resolveu então erguer uma pequena ermida para ela junto ao igarapé. O episódio ficou conhecido e começaram a aparecer os devotos e a acontecer os milagres.
A imagem é uma réplica da Virgem de Portugal, uma estátua de madeira com 28 centímetros de altura. Nessa época, viajantes vinham do Maranhão em direção ao Alto Amazonas e provavelmente algum deles esqueceu a imagem, ao passar pelo riacho.
No ano de 1773, Belém foi colocada sob a proteção de Nossa Senhora de Nazaré. No ano seguinte, a imagem foi levada a Portugal para restauração e, no seu retorno, no mesmo ano, uma grande romaria recebeu a imagem no porto e essa romaria do retorno deu origem às festividades do Círio de Nazaré, que se tornou a maior festa religiosa brasileira e aconteceu no segundo domingo de outubro desde 1793.
Mais de dois milhões de pessoas, vindas de vários Estados do Brasil e também de outros países, participam dos festejos de Nossa Senhora de Nazaré, que duram quinze dias e dividem-se em três partes: a procissão, o arraial e o almoço do Círio, que tem, para eles, a mesma importância da ceia do Natal, quando são servidos pratos regionais como o pato no tucupi, a maniçoba e doces de cupuaçu e bacuri.
A Santa é também venerada como padroeira dos navegantes e, quando a romaria fluvial, que sai do porto de Icoaraci em direção a Belém, pára na baía de Guajará, a emoção toma conta da multidão que aplaude, reza e chora.
Desde os primeiros Círios, os fiéis queriam tocar a Santa, mas ela estava protegida e não podia ser tocada pela multidão, que em poucos minutos a destruiria. Aconteceu então que, no ano de 1855, uma enchente inundou a cidade e o carro de boi que transportava a imagem atolou perto de onde é hoje o mercado de Ver-o-Peso. Um barqueiro trouxe uma dessas cordas grossas de amarrar embarcações e com a ajuda da corda tiraram o carro do atoleiro.
A partir de então, uma corda grossa de quase quatrocentos metros é puxada pela Berlinda da Virgem, como se fosse parte da imagem, e os fiéis se empurram, tropeçam, caem e se levantam para continuar segurando a corda, como se estivessem tocando a imagem, numa comovente manifestação de fé.
Maurício e Rogério atravessavam a multidão como podiam e quase não conseguiram chegar ao forte, tanta era a gente. Empurrando uns e empurrados por outros, chegaram à velha fortaleza.
O tenente comentou:
Sei que o senhor vai dizer: "De novo o abandono".
Erosões estavam causando desmoronamentos e a restauração limitou-se ao que restou do belo forte do Presépio.
Maurício não disse nada e saíram em direção à Casa das Onze Janelas.
O Boteco das Onze fica logo à esquerda de quem entra na antiga mansão, mas eles preferiram atravessar a casa e sair no pátio onde havia mesas também servidas por garçons.
O bar estava cheio e foram servidos de pé, enquanto aguardavam por uma mesa. O entardecer estava úmido e sufocante. Diante deles as águas da baía de Guajará brincavam de pequenas ondas até alcançarem o oceano Atlântico a 120 quilômetros de distância.
A capitã deu alguma informação nova, quando o senhor falou com ela hoje, no hotel?
O que o senhor já sabia. Ela disse que a situação é inquietante e está com medo. Queria vir para cá. Fiquei com pena, muita pena. Prometi voltar logo.
Ela disse que a situação é inquietante. Não explicou por quê?
Conforme nós concluímos, todo o planejamento que deciframos naquele código era falso. As Forças Armadas admitiram que o plano podia mesmo ser falso e agiram com coerência, dando a entender que tinham caído na armadilha. O senhor viu os noticiários. Exército, Marinha, Aeronáutica, órgãos de informação, todos eles estão hoje sendo sabatinados. Enfim, se era para os conspiradores acreditarem que caímos na armadilha, o serviço está perfeito. Mas e agora?
Já ouviu falar do Nó Górdio?
Andei estudando isso para o Itamaraty. É aquela história de um caboclo chamado Górdio, que foi escolhido pelo povo para ser rei da Frígia? Pelo que me lembro é uma história bonita. Os oráculos diziam que o homem que seria ungido rei da Frígia ia chegar numa carroça e ser o primeiro homem a entrar no templo de Zeus, que acabava de ser construído.
O tenente olhou intrigado para Maurício, quis perguntar alguma coisa, mas continuou, depois de uns segundos de hesitação:
O caboclo Górdio chegou com sua carroça, a mulher e o filho. Entrou no templo e foi aclamado rei. Em homenagem a Zeus, amarrou a sua carroça com um nó tão difícil de desatar, que quem conseguisse desatá-lo, tornar-se-ia, segundo os oráculos, rei do mundo. Ninguém conseguiu, até que Alexandre Magno tomou a Frígia e foi tentar também. Achou difícil e então puxou a espada e o cortou.
E lá no Itamaraty eles sabem onde é a Frígia hoje?
E bem provável que não, mas, antes que me provoque, se não estou enganado, deve ser onde está a Turquia. Mas espera aí, o que esse Nó Górdio tem a ver com a Fernanda?
Pensando em Alexandre.
Se não podemos desatá-lo, então vamos cortá-lo... Cortar o nó ou o mal pela raiz, tanto faz. Ou então?... Espera aí, o senhor não está querendo cortar o nó, o senhor está querendo que o nó nos corte. E isso? E por isso que estamos aqui expostos?
Acho que o nosso nó está aqui. Aqui é o templo de Zeus. Cansei de ser procurado. O que acha de começarmos a caçar? Estou com aquela sensação de perigo e ao mesmo tempo me sentindo atraído por ele.
Também gosto do perigo. Mas prefiro conhecê-lo antes de me expor. Essa nossa situação faz lembrar histórias de fantasmas. Estamos sendo perseguidos por fantasmas, ou será que estamos inventando fantasmas? Não, não pode ser. Tivemos aquele camarada em Brasília, no hotel, que matou aqueles dois, depois essa Confraria estranha, o avião da CIA indo para Juína, tudo muito estranho. Mas e agora?
Estou com a sensação de que alguma coisa vai acontecer. É só nos mostrarmos e esperar.
No restaurante era permitido apenas entrarem alguns vendedores de flores, ou de pequenas lembranças do Círio, e representantes de entidades como aquela soldada do Exército de Salvação.
Lá no Itamaraty chegaram a perguntar algo sobre o Exército de Salvação?
Mas o senhor está implicado com esse Itamaraty hoje, hein?
Pois é. Estuda-se um passado de milhares de anos atrás, até mesmo um passado hipotético como esse do nó Górdio, que pouco vai interessar à diplomacia brasileira e, no entanto, pouco se sabe sobre entidades atuais que fazem trabalho humanístico como o Exército de Salvação.
A soldada, vestida de uniforme azul, distribuía pequenos cartões com trechos da Bíblia ou dos Evangelhos. Não pedia nada, apenas ia de mesa em mesa distribuindo os cartões com mensagens diferentes para cada uma das pessoas.
Maurício explicou:
- O Exército de Salvação foi criado em 1865, por William e Catherine Booth, na Inglaterra, e chegou ao Brasil em 1922. Eles pregam o Evangelho e ajudam os pobres. Seus pastores são chamados de oficiais e os demais membros de sargentos ou soldados e usam uniformes azuis. Costumam entrar nos restaurantes e distribuir pequenos bilhetes com trechos do Evangelho e da Bíblia. Eles não pedem, mas aceitam contribuições. Trabalhei há algum tempo no interior do Rio Grande do Norte e vi como eles ajudavam os pobres e os doentes.
A soldada foi distribuindo os cartões, colocando-os em cima das mesas ou entregando às pessoas e, quando chegou perto deles, ela se voltou para Maurício e entregou-lhe um cartão. Ao mesmo tempo ela abriu a palma da mão direita e ele viu o terço com a cruz de Santiago de Compostela.
"Não pode ser! A irmã Tereza?!"
No cartão que ela lhe entregou não estava escrito nenhum salmo ou trecho do Sermão da Montanha, mas uma advertência:
"Finja que não me conhece. Vocês correm risco de morte. Saiam agora e entrem no meio do grupo de romeiros que está passando em frente do restaurante. Lá estarão protegidos."
A surpresa foi desconcertante. Procurou recompor-se e raciocinar rápido. "A irmã Tereza? Não pode ser! O terço está comigo. Só dei um a ela." A soldada deu então outro papel para o tenente, que ficou mudo e olhou para ele.
No seu cartão estava escrito:
"Controle suas reações e siga as instruções do doutor Maurício."
O tenente quase se traiu.
Em seguida a soldada saiu do restaurante pela porta da frente.
Demorou um pouco para controlar-se. Com a mão meio trêmula, tomou um gole de cerveja e disse ao tenente:
Nós temos pouco tempo e precisamos agir com muita rapidez. Não olhe agora, mas nós vamos sair pelas escadas do lado esquerdo, com naturalidade e, assim que chegarmos ao alto da escada, vamos correr em direção à igreja do Carmo, por uma rua que fica à direita da praça. Acho que estamos correndo risco iminente. Pronto?
Chamou o garçom e pagou a conta.
Saíram pelos jardins dos fundos e subiram os degraus até dar na praça onde o grupo de romeiros, do qual falara a soldada do Exército de Salvação, carregava uma corda e imitava a procissão do Círio.
Assim que saíram na calçada ao lado do restaurante, começaram a correr, entrando pela rua Siqueira Mendes, que começa na praça Feliz Luzitânia e segue à direita, em direção à antiga igreja do Carmo. Corriam o mais rápido que podiam, trombando com romeiros e desviando-se de vendedores. Chegaram à praça do Carmo, onde havia um táxi parado, e Maurício teve a tentação de contratá-lo. Pensou melhor e continuaram a correr pela direita da igreja, saindo num local que antes se chamava Porto do Sal.
Quando tomaram a rua que descia em direção ao Porto do Sal, notaram que o táxi que estava parado no Largo do Carmo, passou a acompanhá-los.
"Deve estar procurando passageiros", pensou Maurício, mas continuaram a correr. Ninguém mais os acompanhava e ele estava com receio de que fosse encontrar os seus perseguidores quando saíssem da rua.
O táxi aproximou e buzinou pedindo passagem. Abriram espaço para ele passar, Rogério indo para a direita e Maurício pela esquerda, ambos com as armas nas mãos para evitar surpresas.
O táxi emparelhou-se com eles e o motorista gritou:
Entrem, depressa, eles estão vindo aí.
Foi outra surpresa. Olhou para o motorista, mas não era hora de fazer perguntas e Maurício abriu a porta de trás e pulou para dentro do carro que ia devagar. Rogério fez o mesmo do outro lado e o táxi saiu em disparada.
Atravessaram a praça do Arsenal, considerada a praça mais antiga de Belém, e seguiram pela rua da Estrada Nova, acompanhando os muros do Hospital da Marinha. Era uma rua muito habitada, cheia de entulhos e malcuidada. Duas grandes valetas nas laterais pareciam dois canais de água, enquanto gente andava pelas ruas, catadores de lixo puxavam carroças e carrinhos de mão. O táxi fazia malabarismos para se livrar de todos esses empecilhos e, num certo momento, virou à direita para estacionar no porto de Arapari.
Uma lancha os esperava e, assim que eles entraram, ela saiu em velocidade para atravessar o rio Guamá, mas, antes de chegar à outra margem, a lancha mudou de rumo e começou a descer o rio até alcançar um ancoradouro, na margem oposta, onde um perua blindada e com tração nas quatro rodas os esperava à beira da estrada que servia o porto.
Entraram na perua, que estava sem motorista. O agente do FBI tomou o volante e saiu em disparada. Maurício estava quieto, pensando. Rogério não resistiu:
Você de novo? Hoje o dia está demais. Então você veio até aqui só para explicar o que estava fazendo no hotel em Brasília, quando matou aqueles dois e eu levei a culpa?
Não vou mostrar minha identificação do FBI, porque isso pode ser falsificado. Além disso, não costumamos andar com essa identificação. Falaremos com calma daqui a pouco. Agora precisamos sair desta com urgência.
E, dizendo isso, continuou em velocidade, afastando-se cada vez mais da cidade. Num certo ponto, parou o carro e pediu para eles descerem. Logo em seguida outro veículo saiu do mato, o motorista desceu, trocaram de veículo e tomaram outro rumo.
Bom - disse Maurício -, acho que agora já pode explicar como é que estava lá em momento tão oportuno.
Simplificando, um grupo de assassinos profissionais está na cidade para eliminá-los. A CIA e a NSA estão trabalhando conjuntamente com o embaixador dos Estados Unidos para ajudá-los a desmontar essa conspiração para proclamar a República da Amazônia.
Maurício não demonstrou surpresa.
Ainda falta a explicação.
Cheguei ontem à tarde. Sabíamos que o senhor estava muito interessado nesse Franz Sauer e que ele esteve por aqui nestes últimos dias. Sabemos das suas pesquisas nos cadastros da Receita Federal. Acreditamos que ele não esteja mais por aqui, mas deixou um grupo de assassinos internacionais, procurados por vários países, com a missão de eliminá-los.
Então já estavam nos vigiando.
Acompanhamos as andanças de vocês dois pelo rio Paraguai, Manaus, Rio Branco, Macapá e, obviamente, Belém. Percebo que o senhor não está surpreso, porque nos pediu isso quando trocou de roupa com os vaqueiros. Desde então, seguimos todos os seus passos e ao mesmo tempo os passos desses assassinos.
E o piloto de Manaus?
O homem do FBI quase parou o carro para olhar para ele e perguntou espantado:
Como o senhor desconfiou dele?
Todos os pilotos guardam a sua maleta no bagageiro do avião. Não fazia sentido aquele sujeito levar uma mochila no assento da frente, a não ser que quisesse pular de pára-quedas. Por que um monomotor? Além disso, com exceção do meu piloto, haveria sempre troca de piloto e avião para cada viagem. No entanto, o piloto do Bonanza disse que ia nos esperar.
O agente sorriu, balançou a cabeça de um lado para o outro, e Maurício fez outra pergunta:
Mas o tenente Alfredo é outra artimanha sua, ou não?
É surpreendente a rapidez como percebe incoerências. O senhor havia nos enviado uma mensagem lá do córrego Panelas. Nós também estamos analisando os fatos e agindo com rapidez. Precisávamos comunicar-lhe que tínhamos captado a sua mensagem e achamos que o senhor entenderia que a recepção no aeroporto era uma resposta da nossa parte.
Posso imaginar que vocês também desconfiaram do Bonanza e o embaixador assustou a capitã e ela providenciou o apoio militar.
O tenente ouvia aquele diálogo como se fosse um desafio de inteligências, mas não se conteve:
Espera aí! Vocês estão dizendo que a intenção deles era nos jogar na floresta, mas se isso falhasse, então nos pegariam em Belém? Mas que gentinha!
O agente não teve tempo de completar o sorriso que esboçava, porque Maurício ironizou.
Mas o desempenho de vocês em Roraima me assustou. Só um perigo iminente poderia justificar perguntas diretas a um recepcionista de hotel. Por acaso, vocês têm estagiários de espionagem?
O agente respondeu um tanto frustrado:
De fato, alguma coisa saiu errada. Armamos uma operação para protegê-los em Boa Vista, mas vocês estão muito ariscos. Mas, mudando de assunto, como é que desconfiaram de uma soldada do Exército de Salvação e não caíram na armadilha preparada por eles?
Fatos anteriores. O senhor sabe da irmã Tereza?
Era contato do general Ribeiro de Castro. Ele mandou buscá-la porque achava que estava correndo perigo.
Imagino que saiba também a respeito da Confraria. Tenho a impressão de que o general mandou a Confraria retirar a irmã Tereza da região do rio Guariba, mas temo que a verdadeira irmã Tereza esteja morta. Essa aí é uma impostora. Não sei quem é. O senhor talvez saiba.
Temos informações de que uma antiga agente da KGB está fazendo parte desse grupo. Pode ser ela. Mas continue.
Depois que fiz o Caminho de Santiago, eu visitei a irmã Tereza e dei-lhe um terço benzido numa bonita cerimônia pelo cardeal de Santiago. Ficou muito emocionada e disse que nunca se separaria dele. Estive na casa dela no dia em que os dois monges da Confraria a levaram. O terço estava na parede. Achei que, como ela tinha saído às pressas, poderia tê-lo esquecido e então guardei-o, pensando em devolver-lhe se a visse novamente. A soldada do Exército de Salvação estava com o terço na mão para me convencer de que era ela. Na verdade, se não fosse o terço, talvez tivesse acreditado, porque era muito parecida com a irmã Tereza.
Mas mesmo assim, a sua decisão foi muito rápida, deve haver mais alguma coisa que o fez suspeitar.
Isso mesmo. Quando vi o terço e olhei para a mulher compreendi tudo na hora.
Parou um pouco. Estava evidentemente triste.
Lembrei-me de a caseira ter dito que a irmã tinha ficado doente e não podia tomar sol. Na época não me pareceu nada anormal, mas quando vi o terço comecei a ligar os pontos, achei que a doença da irmã Tereza era na verdade uma operação plástica para essa assassina se parecer com ela. Inclusive, uns meses antes ela arrumou uma desculpa para não me ver.
O tenente então perguntou:
Mas o que aquela fulana queria que a gente fizesse, que ainda não sei?
O senhor se lembra do grupo de romeiros que estava na praça, quando a gente saiu do restaurante? No meu bilhete está escrito que nós corríamos perigo e devíamos sair e entrar no meio dos romeiros, porque lá havia gente para nos proteger. Na verdade, não existe lugar melhor para eliminar alguém do que no meio de um grupo de pessoas cantando e gritando.
Mostrou o bilhete para Rogério e para o agente do FBI. Rogério também mostrou o bilhete que recebera para eles.
Então perguntou ao agente do FBI:
Falta o senhor explicar como poderia estar nos esperando naquela praça.
Foi também um pouco de sorte, mas, na verdade, vocês foram seguidos por uns dez agentes, desde o aeroporto. Não podíamos perdê-los de novo porque sabíamos do perigo.
Então?
Bem, eu não era o único taxista. Havia outros veículos, inclusive motocicletas, em vários pontos e preparados para emergências. Dois agentes estavam no restaurante descrevendo os tipos mais suspeitos e informando quem entrou depois de vocês. Hoje não é dia para soldados do Exército de Salvação aparecer. Esses romeiros vêm pagar promessas à Nossa Senhora de Nazaré, coisa que não combina com aquela soldada. E, como já sabíamos da assassina russa, alertei o pessoal. Em seguida fui informado de que vocês estavam saindo e vinham para a praça do Carmo, justamente onde eu estava.
Um instante de silêncio indicava a gravidade dos momentos que tinham passado. O agente preferiu quebrar a tensão:
Mas não fiquei frustrado porque não tomaram o meu táxi não.
O agente continuou falando. Estava dando explicações para conquistar a confiança dos dois.
Como eu disse, esse grupo tem uma antiga agente da KGB e o agente que entrou no restaurante descreveu-a como um tipo russo, de expressões sérias, que não combinavam com a face de uma voluntária de caridade. Gostaria de ver a cara desses bandidos agora. Vocês deram outra lição neles.
É! ... - disse Rogério. - Não se pode confiar mais nem em freiras.
Maurício não estava para sorrisos. Quieto, parecia meditar, enquanto o agente do FBI dirigia para um lugar qualquer. O tenente perguntou:
O senhor não me parece muito satisfeito. Alguma outra coisa estranha?
Não tenho muita certeza. Mas tenho a impressão de que o general mandou tirar a irmã Tereza de lá para vê-la de perto. Acho que ele também estava desconfiando dela. Pode ser que o tenham assassinado por causa disso. Estava chegando muito perto deles.
É bem possível - disse o agente.
A caseira disse uma coisa que também não se encaixa direito. Na manhã em que foi retirada de lá, ela recebeu um chamado de um certo Padreco ou Pacheco, ela não tinha certeza.
Não podia ser algum monge dessa Confraria?
Não, não acredito. Esses templários, vamos dizer assim, são muito silenciosos. Aparecem de surpresa. Acredito que esse chamado pelo rádio tenha sido dessa organização. Certamente ela estava avisando o grupo que a capita Fernanda ia buscá-la. Alguma emergência. Logo depois que ela foi retirada pelos monges, apareceu uma viatura da Polícia Militar. Ficaram irritados e reviraram toda a casa.
O agente do FBI levantou outra questão.
O que me estranha é essa urgência em quererem eliminá-los. Não me parece que o senhor seja pessoa que possa oferecer muito risco para eles. O senhor é um civil. O tenente é um policial qualificado, mas que poderes têm vocês para oferecer obstáculo a uma organização tão poderosa?
A não ser que... - ia dizendo Maurício, mas se calou diante da idéia absurda, que no entanto o agente do FBI completou:
A não ser que tenham alguma informação que eles não querem que passem adiante. Ou pelo menos estejam perto de alguma informação que não querem que descubram.
Precisava descobrir que tipo de informação os tornava tão perigosos para os planos dessa organização. Era um civil, como disse o agente americano, o tenente era um homem simples, que até poucos dias era sargento da PM de Brasília.
O agente do FBI continuou:
Os senhores precisam sair da área. Esse Franz Sauer não está aqui. Mas o grupo de assassinos é perigoso e não se compõe apenas desses quatro. Além disso, o senhor precisa descobrir por que querem matá-lo. Acho que, descobrindo isso, podemos chegar a conclusões importantes.
Confesso que não tenho a mínima idéia, a não ser o fato de já estar até o pescoço mergulhado nisso. Mas, a propósito, que tipo de intromissão vocês estão fazendo? Afinal, o senhor é um agente do governo americano? Ou não é?
Esperava por essa indagação. Vou resumir. Nós já estávamos detectando algo estranho, mas só depois que o tenente Rogério começou a entrar na internet, encaramos o assunto com mais preocupação.
Ah! Enfim, voltei a ser importante. Agora sei por que vou morrer.
Riram da despreocupação do tenente e o agente continuou:
A CIA decifrou o código, mas concluiu que era uma situação falsa. O governo americano achou melhor não se envolver até aquele momento. Felizmente os senhores decifraram o código e chegaram à mesma conclusão. Ficamos impressionados com o trabalho de vocês, mas com certeza as mensagens reais devem vir ou já estão chegando em outro código que desconhecemos.
Bom, e então?
A proposta é dividir tarefas. O governo americano vai colocar todos os seus meios de interceptação telefônica, satélite, criptógrafos, enfim a CIA, o FBI e a NSA farão esse trabalho de informação e decifração, enquanto os senhores continuam trabalhando na área. De qualquer forma, como os senhores sabem, gostem ou não, nós estaremos interferindo independentemente de o governo brasileiro querer, porque não sabemos até onde isso aí pode prejudicar os Estados Unidos. Então, o que dizem?
Mas o que significa trabalhar na área? Vocês têm satélites, rede de espionagem, dinheiro, equipamentos. Quem somos nós para esse trabalho? E esse grupo de assassinos? Como podemos trabalhar, se temos de nos preocupar constantemente com eles?
Bem - respondeu o agente -, um trabalho nessas circunstâncias fica mais excitante. Além disso... além disso, não sei quem aí é mais perigoso. Vocês têm dado trabalho para eles e para nós. E muito importante para nós prender esse grupo. A partir de agora estarão preocupados. Já sabem que não vão pegá-los facilmente e que estamos por perto.
Outra questão, senhor agente. O senhor fala muito bem o português e conhece bem a cidade de Belém e talvez outras. Pode me explicar como é que um agente do FBI...
Vou lhes contar um segredo. Peço que ninguém mais saiba disso.
Pensou um pouco, respirou e disse:
Sou brasileiro. Mineiro da xepa. Tricordiano, conterrâneo do Pelé. Aliás, até que eu era bom de futebol. Minha família morreu num acidente de ônibus e uma família americana me adotou. O resto faz parte da história de cada um. Numa missão, salvei a família do embaixador e ele me quer agora sempre por perto. Devido a essa minha condição, sou um especialista do FBI a respeito do Brasil.
CIA, embaixador, FBI, perseguições... Em que acreditar? - perguntou Maurício, desanimado.
Compreendo o que o senhor quer dizer. Para sua tranqüilidade, o próprio embaixador levantou suspeitas sobre o comportamento da CIA, devido ao caso de Juína. Aliás, como eu gostei daquilo! Naquele dia eu esperei vocês em Cuiabá. Estava na sacada do aeroporto e vi a troca de aviões. O agente da CIA não tinha mais como saber disso. Estava num Citation, mas eu também não ia dizer nada a ele.
O agente fazia questão de mostrar a rivalidade que existia entre a CIA e o FBI. Parecia até mesmo divertir-se.
O mais divertido foi lá no hotel. Paguei um sujeito para entrar na vaga que ele conseguisse no estacionamento, de forma que, quando ele conseguiu sair de lá, o assunto já estava resolvido.
Espera aí, você quer dizer que estava nos esperando no hotel e que o agente da CIA veio em seguida? - perguntou Maurício.
Ali era também uma questão de inteligência. O agente da CIA falhou. A única pessoa que estava sem proteção era o senhor. O tenente estava dentro do quartel e a capitã tinha seguranças do Exército. Parecia óbvio que eles queriam retirar do hotel os policiais que lhe davam proteção. Fiquei esperando.
Maurício passou a ter respeito e simpatia por aquele mineiro. Devia a vida a ele.
O agente, no entanto, comentou com certa humildade:
Mas olha, isso é minha profissão e minha especialidade. Mas o que espanta é que vocês não dispõem de todos os equipamentos e treinamentos que temos e, no entanto, estão agindo como profissionais de alto nível.
O tenente brincou de novo:
Muito obrigado, mas por enquanto o senhor pode me deixar na próxima esquina. Vou tomar o trem de volta para casa.
Humor às vezes ajuda, mas a situação era confusa.
O agente diminuiu a marcha. Uma placa na entrada de uma outra estrada indicava Fazenda Palmeiras.
"Em todo lugar existe uma fazenda chamada Palmeiras", pensou Maurício. "Só espero não ver monges de capuz."
O carro seguiu pela estrada e logo viram a enorme casa estilo americano com árvores floridas e o pequeno lago na frente da sua enorme varanda. A quinhentos metros da sede, viram uma pista de pouso. Dirigiram-se para lá e pararam perto do pequeno jato que estava preparado para sair.
O agente falou:
Cabe a vocês decidirem. Preciso deixá-los. Não posso perder o rastro desse grupo de assassinos e preciso relatar esses fatos ao embaixador.
Mas, se o senhor volta para Brasília, vai nos dar carona nesse avião?
Acho que vocês devem se deslocar para alguma outra área e deixar Belém, por enquanto. Nós temos certeza de que esse pessoal tem gente espionando em vários pontos da Amazônia. Não existe cidade ou ponto estratégico, inclusive dentro dos governos locais, que não tenha espião. Temos certeza hoje de que há anos eles vêm se preparando para isso.
Maurício não estava confortável diante daquela confusão. A conclusão a que chegou era quase absurda de tão perigosa. Por sorte, desconfiara em tempo da luz na casa do barqueiro e do fato de as crianças não irem à escola.
O senhor está querendo dizer que esse pessoal sabia então que nós vínhamos para cá?
Para ser sincero, doutor Maurício, nós soubemos que os senhores foram ao forte Coimbra porque a NSA detectou conversas cifradas por rádio levantando suspeitas de que um barco de pescadores desceu o rio Paraguai, mas não parou em lugar nenhum para pescar. Os pesqueiros da região estavam vigiados.
"Meu Deus!", pensou Maurício. "Eles já estão mais organizados do que eu pensava. E com certeza estão nos procurando agora."
O agente interpretou as dúvidas de Maurício e disse:
Não há motivos para preocupações, por enquanto. Eles foram pegos de surpresa e estão reavaliando a estratégia. Mas o tempo é curto. Precisamos localizar o Sauer e descobrir o que ele vai aprontar. Trata-se de pessoa astuta, rica e ambiciosa. Ele montou uma organização composta de gente influente e perigosa.
Franz Sauer - disse Maurício. - Por que teria saído do país agora? Onde estaria?
Não temos certeza de onde está. Ele também usa nomes diferentes e disfarces. Mas se ele saiu do país é porque deve estar preparando...
O Conceito Zero... - disse Maurício.
O agente olhou para ele e sorriu. Era fácil dialogar com pessoas de raciocínio rápido e coerente. O tenente não teve reação. Já conhecia o companheiro e não se espantava com mais nada. Mas ele tinha razão. Esse alemão podia estar preparando o golpe final e, para maior segurança do plano, saiu do país.
O agente continuou:
O Conceito Zero parece ser o objetivo. O que é esse Conceito Zero e quais ações serão desencadeadas para atingirem a condição zero? Acho que só vamos conseguir descobrir isso se descobrirmos o plano deles. Existe esse plano? Se existe, onde está? Ou será que esse plano será transmitido por código, do mesmo modo como foi transmitida a simulação que eles montaram?
Mas sem um texto codificado, o senhor acha que vale a pena ficar correndo atrás de hipóteses? — perguntou ao agente, que acrescentou:
Vou deixar com vocês um telefone de escuta indecifrável onde também podem receber texto pela internet. E só conectar numa impressora depois.
Escuta indecifrável? - perguntou o tenente.
Por acaso vocês já ouviram falar de alguma conversa telefônica do presidente dos Estados Unidos ter sido gravada? Nixon gravou as próprias conversas. E diferente. Nós usamos um sistema em que as palavras são desmanchadas em sílabas que correm por conexões diferentes para serem reagrupadas no aparelho receptor. A conversa só pode ser gravada se o aparelho receptor tiver gravador específico, próprio para esse tipo de mensagem que carrega dispositivo de segurança. Vou me comunicar com vocês por esse aparelho e vocês só devem se comunicar por meio dele.
Entregou o aparelho a Maurício e disse:
Não se separem dele.
Maurício pensou um pouco. Olhou para o tenente e disse:
Não temos saída. Estamos sós.
O agente pegou o aparelho e explicou como funcionava.
Este aparelho não precisa ser carregado. Ele tem dispositivo que o reali- menta automaticamente via satélite. Também acho desnecessário informar que, toda vez que esse telefone tocar, alguém estará na escuta lá na CIA e na NSA.
E entregou o telefone ao tenente, que o passou a Maurício que, ainda reticente, perguntou:
E se esse desmanche de palavras for descoberto e decodificado?
O agente riu.
O senhor está falando com FBI, CIA e NSA.
Mas ainda o senhor não me respondeu se vai para Brasília ou fica em Belém para prender esse povo.
O agente apenas disse:
Esse avião está à sua disposição para levá-los aonde acharem mais importante no momento. Os senhores compreendem que, quanto mais cedo saírem, é melhor.
Tomaram a decisão de irem para Tabatinga e o tenente ligou para a capitã. Fez um resumo dos acontecimentos sem mencionar, porém, os perigos que passaram e comunicando o novo destino.
Antes de se despedir, Maurício insistiu:
O senhor compreende então que é muito importante que, assim que tiverem uma mensagem cifrada, que pode ter relação com esse assunto, devem mandar imediatamente uma cópia por esse telefone, mesmo que a NSA seja a maior especialista em decifrar códigos. Tenho a impressão de que esse pessoal pode estar guardando uma surpresa para nós. O agente encarou-o com respeito e disse: - Nós sabemos disso.
Já era noite, mas a pista da fazenda era asfaltada e iluminada.
Azul-claro, com os beirais das janelas e portas pintados de branco, o casarão colonial devia ter sido construído em fins de 1800 e testemunhava o poder econômico da época. Era uma mansão de dois andares, alpendre, janelas e portas com grades indicando que os perigos de assalto a residências não são novidade.
Funcionava ali a agência de turismo Arapari. Num dos antigos quartos da casa, quatro pessoas estavam reunidas em torno de uma mesa retangular: uma mulher clara e três homens fortes, com a pele curtida pelo sol e pelo frio, de quem vem enfrentando intempéries como rotina.
Um deles, troncudo, do tipo atarracado, cabeça raspada, com um metro e setenta de altura e noventa quilos de músculos enrijecidos, olhar duro, a testa quase sempre franzida, perguntou à mulher:
Na sua opinião, ele desconfiou imediatamente? Mas como?
Não diziam nomes, chamavam-no de Atarracado. Ela passara a adotar o título de "soror", desde que assumira a identidade da irmã Tereza.
Não sei - respondeu a mulher. - Alguma coisa fez que ele raciocinasse com rapidez e tomasse outra atitude que a prevista. Também não entendo como aquele táxi apareceu de repente.
Será que foram alertados de alguma coisa? Eles não tiveram nem contatos nem tempo para isso. Algo fez com que ele desconfiasse. Quanto àquele táxi, tenho minhas dúvidas. Precisamos agir com rapidez e com mais cuidado. Agora eles sabem que os estamos procurando. Alguém tem alguma sugestão?
Os outros dois continuaram em silêncio. Mantinham a expressão fria e abanaram a cabeça, como se estivessem ali apenas para seguir instruções.
A mulher no entanto falou:
Eles devem ter abandonado a cidade. E nós também precisamos sair daqui. Fomos descobertos. As instruções são para que eles não se aproximem dos fortes. Por que, não nos interessa. Apenas não podem visitar fortes antigos. Se já foram a Coimbra, Príncipe da Beira, Manaus, Boa Vista e Belém, resta agora o forte de Tabatinga.
O "Atarracado" franziu mais a testa.
Não podemos ir a Tabatinga. O movimento de tropas é grande por lá. Temos de acompanhar o que estão fazendo e preparar-lhes a armadilha final.
É possível que tenham algum outro meio de ir a Tabatinga, porque não tomaram os rumos previsíveis. O táxi evitou todos os nossos contatos. Colocamos vigias no caminho do aeroporto, do porto, perto do forte e pessoas que pudessem segui-los, mas eles agiram como profissionais em fuga. Aquele táxi não foi coincidência.
Parecia uma caça a coelhos, mas está mais divertido, você não acha?
A mulher não sorria. Tinha uma face moldada e fria.
Eles vêm agindo de forma muito cautelosa. Mudam de roteiro, de identidade, de transporte. O que aconteceu em Manaus e Boa Vista, bem... Ou estão tendo apoio ou são mais espertos do que pensamos.
Muito bem - disse o outro. - Vamos seguir a rotina e agora com mais cuidado. Agilidade em disfarce, nenhuma informação para onde vamos, nem mesmo para nossa equipe. O comportamento deles é previsível e agora temos um trunfo valioso, que será usado na próxima ação. Não podemos perder tempo. Vamos ver se o pessoal de Tabatinga confirma nossas previsões.
Os outros dois elementos não falavam. Eram pessoas de ação que sabiam executar um plano e limitavam-se a ouvir atentamente, para memorizar instruções. Quem os visse não imaginaria que aqueles dois homens aparentemente rudes sabiam manejar armas, lutar e usar equipamentos técnicos e eletrônicos de alta tecnologia com habilidade.
O embaixador estava sentado em frente do notebook, com o queixo sobre a mão direita e o cotovelo apoiado na mesa.
Estava cansado e preocupado. O movimento militar dos últimos dias o desgastara bastante. Apesar de ter-se especializado em entrevistas e desmentidos, a situação brasileira era incomum e diferente de tudo o que vivera antes. Sabia que as Forças Armadas Brasileiras estavam simulando operações, mas não podia informar isso, porque o perigo era real. Não ficou bem para ele fugir de algumas entrevistas com a imprensa americana.
A quantidade de impressos das comunidades recém-criadas na internet, para proteger a Amazônia, também incentivava os brasileiros a se prepararem para uma guerra inevitável contra potências estrangeiras que queriam tomar mais da metade do país e roubar as suas riquezas naturais.
Uma comunidade dizia que as reservas minerais entregues aos índios Ianomâmis podem valer um trilhão de dólares em ouro, diamante, estanho, cassiterita, zinco, cobre, chumbo e fosfato, e rafium e itrium, que ele não sabia o que era, mas dizia a comunidade que são de altíssimo valor estratégico.
Outros estudos indicavam que o valor das reservas minerais conhecidas em toda a Amazônia podia passar de sete trilhões de dólares.
"Sete trilhões de dólares!", exclamou.
Segundo outras notícias, seriam necessários mais de três trilhões de dólares por ano para compensar o efeito estufa se a floresta amazônica fosse destruída, e incentivavam os brasileiros a exigir esse valor dos países ricos, para manterem a floresta em pé. Uma cifra mais modesta teria sido calculada pela Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, avaliando em um trilhão e cem bilhões de dólares anuais as vantagens da floresta.
Esses números o impressionavam.
"Será que esses ingleses estão nos fazendo de bobos? Eles costumam dizer que os americanos são molecões na arte da diplomacia. Mas o que então eles estão pretendendo? Aquele Blair não me engana. Ele foi quase subserviente quando apoiou os Estados Unidos na invasão do Iraque. Será que estava mesmo querendo que nós nos atolássemos lá no Iraque para que ele pudesse agir livremente por aqui?"
Controlou-se e leu a entrevista do pesquisador chileno Roland Stevenson. Dizia ter descoberto, em 1987, o local que deu origem à lenda do El Dorado. Um mês depois da sua descoberta, teriam chegado ao local da Ilha Maracá mais de duzentos pesquisadores ingleses. Constava que um vigia do local teria dito que "os ingleses tiravam toneladas e mais toneladas de material hermeticamente embalado, enviado de avião para a Guiana Inglesa e daí para Inglaterra".
"País fantástico esse Brasil! Nenhum outro país tem a floresta amazônica, o rio Amazonas, a cachoeira de Iguaçu e ainda as terras do Eldorado!.."
"E a Inglaterra? Do que vive a Inglaterra? Uma ilhota e uma rainha... Mas como é que eles souberam desse Eldorado e nós não? Por que não fui informado se eu estava aqui?"
Indignou-se de repente.
"Levaram da África e de quase toda a Ásia grandes riquezas arqueológicas e agora dão uma de puritanos!..."
Sentiu certo desconforto ao lembrar que o seu país estava destruindo o Paraíso Terrestre. Era religioso e acreditava na Bíblia. Ali, entre o Eufrates e o Tigre, está o Iraque e ali era o Paraíso Terrestre, onde Deus pôs Adão e Eva e os castigou depois.
"Não roubamos, mas destruímos. A História nunca esquecerá que nós destruímos um dos maiores patrimônios da humanidade, a terra onde Nabucodonosor construiu os seus jardins suspensos. Terra onde Deus pôs o primeiro ser humano."
Lembrou o Vietnã e a imagem daquela menininha nua com os braços abertos e chorando desesperada com a dor causada pelo napalm que os aviões americanos despejaram sobre eles.
Respirou fundo. "Napalm. Queimamos seres humanos, aves, animais, florestas, contaminamos os rios..."
O ruído do telefone quase o assustou. Olhou para o aparelho e reconheceu de onde vinha a chamada.
Bom dia, senhor diretor - disse ele com voz receosa de algum castigo.
Bom dia, senhor embaixador. Tenho informações. Houve um telefonema da cidade de Udaipur, na Índia, para o escritório de uma ONG ambientalista em Berlim. Nós estamos acompanhando todos os movimentos de ONGs ambientalistas, desde aquela nossa conversa.
Mas é ONG da Amazônia?
Não, não é. Aliás, o escritório propriamente nem é da ONG, mas é no mesmo edifício. Por precaução estamos vigiando as proximidades.
"Enfim estão mostrando algum serviço", pensou o embaixador.
A ONG tem uma área de proteção na Namíbia e o seu endereço é no andar de baixo. Mas constatamos que estranhamente ela recebe telefonemas no andar de cima, que é o escritório de uma imobiliária.
E então?
O telefonema foi curto. Apenas "Siga os planos. Conceito Zero".
Mas da Índia? Não é mais fácil identificar um telefonema desses? Será que estão ficando confiantes?
A índia é hoje o escritório do mundo, o senhor sabe. Até nós centralizamos por lá muitos dos nossos serviços. O que nos parece é que eles não usam sempre o mesmo ponto. Estão espalhados pelo mundo.
Incrível, mas vocês já pegaram assim, no primeiro telefonema?
Embaixador, há uma equipe de mais de seis mil especialistas atrás dessa sua República. Estamos quase sem comer e sem dormir.
"Velho imbecil, pensa que só ele raciocina e só ele trabalha", pensou o outro, que continuou:
—Toda a nossa atenção se concentrou na área desse telefonema. Algum tempo depois, mais precisamente vinte e sete minutos, houve outro telefonema para Buenos Aires. E Buenos Aires mandou fax para o gabinete do senador Rocha Meira, convidando-o para uma palestra sobre, veja só que pérola, "conceito zero em política".
Houve um momento de silêncio e o outro continuou:
Sei no que o senhor está pensando. Isso aí não representa muito. Existe outra coisa intrigante. De outro ponto de Berlim, saiu um e-mail com mensagem cifrada para um destinatário denominado "ep@ra.com.br". Esse e-mail foi aberto na cidade de Aveiro, no interior do Pará. Nossos agentes em Belém dirigiram-se imediatamente para lá, mas parece que a cidade está sem acesso e não chegamos a tempo de encontrar o receptor. E possível que tenham criado obstáculos para que ele saísse antes de ser identificado.
O embaixador pensava em silêncio e o outro logo perguntou:
Embaixador?
Sim, sim, estou pensando. Os senhores mandaram gente lá? Então essas informações datam de quando?
O diretor sorriu com satisfação e respondeu com superioridade:
Não se preocupe. Já passei a mensagem cifrada para os seus heróis, assim como os dados do fax que fora enviado ao senador.
Fico feliz que o senhor comece a acreditar neles. Mas a NSA não conseguiu ainda decifrar essa mensagem?
Esse é o problema. Normalmente, uma mensagem cifrada, desse tipo, não toma mais do que alguns minutos para ser traduzida. Mas nessa aí estamos com alguma dificuldade. Parece que falta um fundamento, uma base do ilogismo a ser decomposto.
"Ilogismo a ser decomposto. Acho que nem Champollion sacou uma dessas."
Obrigado, senhor diretor, vou me movimentar por aqui e espero que vocês consigam decifrar o texto, ou pelo menos... Mas espera aí, o senhor chegou a dizer aos "nossos heróis", como os chama, que a NSA não está conseguindo decifrar o código?
O senhor acha prudente dizer isso?
Diretor, estamos diante de uma urgência que, segundo o senhor mesmo, está tomando mais de seis mil funcionários seus. O que o senhor acha?
O outro não respondeu de imediato. Parece que respirou fundo e depois que o oxigênio clareou o seu cérebro ele respondeu, embora com relutância:
O senhor tem razão. Mas se aqueles candangos descobrirem os fundamentos do código antes da CIA, eu me demito. Até mais, senhor embaixador.
O embaixador se levantou e foi até a janela. Pensava melhor olhando para aquele céu azul. Seus pensamentos voaram para um passado longínquo. Gostava de raciocinar sobre o efeito da imigração na pujança do seu país. Mas, para esse sucesso, a colonização começou com um grupo ético, religioso, que assentou as bases morais da nação.
"Os peregrinos estabeleceram o Pacto do Mayflower para viverem juntos como 'um só corpo político e civil'. Só a união pode fazer o sucesso de um país. Se cada um ficar buscando apenas o próprio interesse, a sociedade fica frágil e até os interesses individuais ficam sem segurança."
Gostou da sua filosofia e continuou pensando.
"O Brasil iniciou com portugueses degredados e aventureiros, e as imigrações posteriores não ajudaram muito. Os italianos foram jogados nas plantações de café e tratados como os escravos que substituíram. Os alemães eram fugitivos de guerra. Os árabes têm origem no nomadismo e são comerciantes que durante séculos se acostumaram a fugir dos bandos de assaltantes que queriam roubar a sua mercadoria. E governo para eles não é coisa diferente."
"E não é mesmo. Onde já se viu pagar uma carga tributária de quase quarenta por cento e ainda ficar assistindo a essa roubalheira pela televisão? E os judeus? Bem, os judeus são um caso diferente. Sempre foram uma nação sem terra e agora eles têm uma terra disputada por outras nações."
"Os judeus? Será? Espera aí."
Revirou os seus papéis e lá encontrou uma das mensagens da internet indicando que no ano de 1948, quando foi proclamado o Estado de Israel, Oswaldo Aranha era o embaixador do Brasil na ONU. A mensagem dizia que ele votou rapidamente em favor da criação do Estado de Israel porque um grande número de judeus já habitava a Amazônia, que era então uma das possibilidades para a criação da nação judia.
"Mas Israel já existe. Não vão sair da Terra Santa, se lá eles já têm um Estado reconhecido."
Procurava uma lógica para os acontecimentos.
"É estranho. Logo agora acontece tudo isso? O país está imerso em escândalos de todos os tipos e até se fala em impeachment e processo crime contra o presidente."
"Era óbvio que as forças militares não se sentiam confortáveis com a presença dos Dirceus, das Dilmas, dos Genoinos e outros ex-guerrilheiros em posições estratégicas. Mas parece que o presidente está amarrado a eles por motivos que só eles sabem."
"Será que não estão percebendo que essa democracia está caindo sozinha? Qual é a diferença entre governos derrubados por golpes militares ou por impeachments? Golpes militares? Corrupção? O que é pior?"
"E essa Amazônia? Na verdade, um território sem definição. Pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia à Espanha, mas a Espanha não a ocupou e, quando percebeu o erro, era tarde, Portugal já estava lá. Veio então o Tratado de Madri que deu a Amazônia a Portugal, mas Portugal a abandonou. Construiu alguns fortes que ficaram em ruínas, porque não precisava mais deles."
"Mas aí veio a independência e durante um certo período o Brasil se interessou pela borracha e foi só. A Amazônia voltou ao esquecimento. Que tipo de gente existe hoje na Amazônia? E preciso pensar nisso. Homogeneidade étnica existe apenas nos ribeirinhos e nos índios. Sim, é isso aí. Aí está o perigo."
Começava a compreender.
"Vieram os gaúchos, os paranaenses, os catarinenses, os paulistas. Cariocas? Não. Cariocas não trocam Copacabana e Ipanema pela malária amazonense. Mas vieram as missões religiosas, as ONGs, os cientistas ou pretensos cientistas. Turismo científico, como já se fala. Também vieram as invasões, as ocupações irregulares, houve uma tentativa durante o regime militar de integrar a Amazônia ao Brasil... Integrar a Amazônia ao Brasil?!..."
O embaixador quase levou um susto com o seu raciocínio.
"É verdade. A Amazônia não está integrada ao Brasil. Continua sendo aquele pedaço que os portugueses ganharam com o Tratado de Madri, uma espécie de corcunda geográfica. Realmente, quando se fala em Sul, Leste ou mesmo Nordeste, não se tem a idéia de algo desentranhado, ou de algo que interesse ao resto do mundo. No entanto, quando se fala em Amazônia, é como se fosse uma coisa autônoma, ainda à deriva. Será que não estou exagerando?"
"Corcunda geográfica? Sim, é mais ou menos isso!"
"Se excluirmos os índios e os ribeirinhos, a quase totalidade do povo que está lá são como estrangeiros em busca da terra prometida. Catarinenses, gaúchos, paranaenses, empresas estrangeiras, ONGs, aventureiros, essa gente toda estaria em busca de um Estado novo. Se as leis que aprovam aqui em Brasília já não servem para São Paulo, menos ainda para a Amazônia."
Procurou na mesa o texto atribuído ao senador Cristovam Buarque, antigo reitor da Universidade de Brasília:
Leu: "Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!"
"Maneira estranha de dizer que a Amazônia é deles. Parece que nem ele está muito convencido. Diz como se estivesse concordando que é uma coisa disputada por outros. Não posso esquecer esse argumento. Eles mesmos raciocinam sobre a Amazônia como assunto inconcluso."
"E se alguém realmente conseguir proclamar a independência da Amazônia?"
Não gostara de ter lido aquele impresso dizendo que em 1850 já havia pressões nos Estados Unidos para criarem uma República Amazônica e que, quando o Brasil entrou na guerra contra o Paraguai, essas pressões aumentaram. Mas reconheceu que aquele seria um bom momento, porque o Brasil estava frágil, com a guerra.
Olhou para o quadro da batalha de Gettysburg. Não gostou do que viu. Um negro com expressão terrível no rosto.
"Pois é. A política expansionista de Theodore Roosevelt, o big stick. Aquele Rondon atrapalhou um pouco, mas nós quase conseguimos mandar os negros americanos para a Amazônia. Teríamos a borracha e um pretexto, sim, um pretexto."
"Bem, é melhor ser prático. No caso presente, se houver essa proclamação, temos três opções: ajudar o governo brasileiro, ou intervir militarmente e ocupar o território ou... ou negociar com os novos governantes. É preciso ser prático. A diplomacia americana gosta pouco de poesia."
Balançou a cabeça para afastar esses desvios de pensamento. Devia concentrar- se na emergência que estava para acontecer. Sabia o que fazer e ia começar a agir.
Ser prático é evitar uma situação cujas conseqüências são imprecisas.
Já era meia-noite quando chegaram a Tabatinga. O aeroporto estava tomado por forças da FAB, da Marinha e do Exército, que faziam a operação conjunta de segurança.
Antes de saírem de Belém, a capita informara que ia avisar o comandante do 8o Batalhão de Infantaria da Selva, em Tabatinga, também chamado de Comando da Fronteira do Solimões, da chegada dos dois e que eles estavam em missão especial e sigilosa pelas Forças Armadas. Precisavam de apoio e deviam ficar alojados no quartel.
Assim que o avião taxiou, uma viatura militar se aproximou, e o tenente Silveira apresentou-se dizendo que os estava esperando.
Foram levados ao quartel, onde o comandante, um coronel que parecia gostar de dar ordens antes mesmo de entendê-las, mostrou-se, pelo menos, afável. Prestou continência ao cumprimentá-los e disse:
Não sei qual a missão dos senhores num momento complicado como esse, mas estou às suas ordens para o que for preciso.
Maurício procurou ser também objetivo. Afinal estava com sono e precisava estar em forma no dia seguinte.
Agradecemos a sua compreensão. Vamos precisar de ajuda para visitar o forte São Francisco, amanhã cedo, e pode ser que a nossa estada aqui seja curta.
Forte São Francisco, hein!?... Vou deixar que os senhores mesmos tirem suas conclusões.
No dia seguinte, o tenente levou-os até um monumento de concreto erguido no lugar onde antes havia o forte de São Francisco Xavier. Eram três colunas ligadas por uma viga onde estava a inscrição: "Forte São Francisco Xavier - 1776 - 1932".
O tenente então explicou:
As três colunas indicam a fronteira dos três países: Brasil, Colômbia e Peru. Vocês estão vendo aquela ilha ali na frente? Pertence ao Peru. A esquerda é Brasil e lá adiante à direita é a Colômbia.
Rodearam o matagal no lado de cima do morro, onde estavam as três colunas simbolizando a união entre os três países, mas não encontraram nada. Nenhuma pedra, nenhum vestígio, nada restava do que fora antes um marco defensor do Brasil construído pelos portugueses. Nenhuma memória reverenciava a corajosa presença daqueles homens.
E onde fica Letícia?
Tabatinga e Letícia na verdade são uma mesma cidade separada pela fronteira entre Brasil e Colômbia.
Vamos ver se a gente encontra vestígios do forte, como restos de muralhas e depois vamos a Letícia.
Pouco depois, meio decepcionados, cruzaram Tabatinga pela rua principal e se aproximaram da fronteira. De fato, como havia dito o tenente, trata-se de um só conjunto urbano dividido em duas cidades. A mesma rua continuava para Letícia e no meio dela estavam os exércitos do Brasil e da Colômbia. O trânsito era bloqueado por cones de plástico dispostos em curva, para os carros diminuírem a velocidade. Soldados com metralhadoras apontadas para o chão vigiavam cuidadosamente.
Passaram pelas forças brasileiras e saíram do Brasil. Alguns metros depois estava o Exército colombiano fiscalizando a entrada em seu país.
Letícia é zona franca. Aqui é bom para fazer compra. Tudo é mais barato. A cidade também é melhor. Olhem aquele hotel, é ali que os turistas gostam de ficar. Do lado do Brasil, não existe hotel do mesmo nível.
De fato, o lado colombiano era mais agradável. Havia uma grande praça arborizada diante de uma igreja bem conservada, mas Maurício estava interessado em outro assunto.
Os guerrilheiros das Forças revolucionárias da Colômbia (Farc) andam por aqui?
A pergunta interessou o tenente.
Dizem que sim. Mas não sabemos quem são eles. Não se deixam conhecer. Mas a gente às vezes toma táxi e motorista de táxi é como barbeiro, gosta de falar. Aqui tem traficante, guerrilheiro, fugitivo, falsários. É o que dizem.
Mas você já ouviu algum boato de eles entrarem no Brasil?
No Brasil eles não entram não. Eles não querem criar problema com o Exército brasileiro. Sabem que nós temos uns mil soldados fazendo sempre exercícios na selva. Mas, se o Exército sair daqui, eles tomam tudo isso. O comentário é esse.
Não havia muito para ver ali. As histórias que corriam a respeito de Letícia não pareciam verdadeiras. A população simples, andando pelas ruas pacificamente da mesma maneira como do lado do Brasil, parecia ordeira e não despertava suspeitas.
E, então, doutor Maurício? - perguntou Rogério. - O que fazemos?
Embora tivessem começado cedo, a manhã passara rapidamente e o calor era forte. Rogério insistiu:
O senhor não acha bom a gente ver de perto esse rio?
Voltaram para Tabatinga e o tenente os levou a um restaurante de madeira no barranco alto do cais de onde podiam ver o rio Solimões e as terras do Peru e Colômbia diante deles. O rio tinha movimento contínuo de barcos indo e vindo.
A viatura do Exército ficou discretamente afastada do cais, mas soldados armados tomavam conta do restaurante. Ficaram por ali apreciando a paisagem e pensando em tudo que poderia acontecer. Começaram a fazer exercícios de memória, como se estivessem se preparando para algum vestibular. Fatos, nomes, lendas, os perigos que passaram, enfim repetiram tudo o que sabiam e que pudesse servir de elo para esse hipotético e ainda desconhecido código.
Como já era hora do almoço, o restaurante serviu ensopado de pirarucu, enquanto desvendavam o vasto mundo das hipóteses. Deixaram o tempo passar, aproveitando os momentos de segurança com a proteção do Exército, quando o celular os assustou.
Maurício pegou-o: "Mensagem urgente". Leu a mensagem e olhou para o tenente.
Precisamos de uma impressora. Isso está muito esquisito. É melhor ler com mais cuidado.
Foram até a viatura.
O senhor pode nos levar de volta ao quartel? Preciso de uma impressora com urgência.
O quartel tinha um escritório completo, com internet, impressora, off-set, computadores, telefones, enfim ali estava tudo de que precisavam.
Maurício imprimiu as mensagens em duas vias e passou uma para o tenente Rogério. O tenente Silveira manteve-se discretamente fora da sala e eles puderam conversar sem constrangimentos.
Pegou o celular e telefonou para a capitã.
Ela atendeu depois de três chamadas.
Capitã, como está a senhora, tudo bem?
Sim, aqui está tudo bem, e com vocês? Como está Rogério?
Ele está aqui do lado. Vou passar o telefone para ele e depois falo com a senhora. Até logo.
Entregou o celular para o tenente que o olhou agradecido.
Vou ficar ali fora e assim que terminar me chame.
Maurício saiu da sala e foi até o bebedouro de água. Tomou água e virou sobre o copinho de plástico um pouco do café da garrafa térmica que ficava na entrada da sala.
"Garrafa térmica. Coisa horrível!" Em outras circunstâncias teria parado de beber aquilo logo no primeiro gole.
Mas ficou pensando, o copinho de plástico na mão, os olhos parados como se escondessem uma grande tensão: "O que será esse EP? RA, sem dúvida, é República da Amazônia, mas EP..."
Pensou nas palavras do agente quando disse que ele devia saber de algo.
"EP"? Não conseguia raciocinar. Nisso viu que Rogério saía da sala com o celular na mão ainda sem desligar.
Mas o que o senhor tem? Está com dor de cabeça?
Maurício voltou à realidade.
Não, não, estou bem, apenas pensando. O senhor me empresta o telefone? Acho que vou falar com a capitã. Vamos lá?
Pegou o celular e falou:
E então, capitã, o tenente lhe adiantou alguma coisa?
Não, não, não tocamos em assuntos de sua área. Já temos os nossos segredos.
Maurício riu e acabou de se recuperar.
Capitã, é preciso fazer um levantamento completo do senador Rocha Meira. Telefones, contatos, empresas, sócios, locais visitados ultimamente, equipe de quando era presidente e se alguém dessa equipe...
Doutor Maurício, devagar, algumas dessas providências já estão sendo tomadas. O senhor viu as mensagens gravadas? De fato, trata-se de código muito diferente daquele que conseguimos decifrar. Lamentavelmente a CIA não conseguiu ainda decifrar essas mensagens. Dizem que falta um fundamento.
Estou sabendo disso. Mas onde é que vamos encontrar algum fundamento para eles decifrarem códigos, se eles é que são especialistas?
De novo sentiu aquele estranho estado de tensão. Seu cérebro queria lhe lembrar alguma coisa. Alguns neurônios estavam mais ativos que outros. Sabia que tinha de ficar calmo, deixar o cérebro acomodar as camadas de informações. Num certo momento a informação emergiria.
Precisamos pensar. Está faltando alguma coisa que não sei o que é, mas tenho a impressão de que devia saber. Se a senhora tiver algum dado importante sobre esse senador, por favor, me informe.
Não se preocupe. Soubemos do problema que vocês tiveram em Belém. Fiquei muito preocupada. Dá vontade de deixar isso aqui e ir aí com vocês. Mas a situação está evoluindo e não posso sair agora.
Não se preocupe, capitã. Nós estamos bem. Até um novo contato!
Despediram-se e Maurício saiu da sala. Os dois tenentes, um do Exército e outro da PM de Brasília, conversavam animadamente.
Rogério notou que Maurício estava mais preocupado quando saiu da sala. Não era nada animador que a própria espionagem americana não soubesse decifrar aquele código. A área do quartel chegava até a margem do rio Solimões e eles aproximaram-se do rio, onde podiam conversar sem a presença de outras pessoas.
Eu estou achando que se eu, tenente Rogério, for a um computador, vou descobrir esse código novo.
Maurício riu porque sabia que ele estava brincando. Se a NSA não conseguiu nada, o que eles poderiam fazer? Obviamente que os conspiradores não iriam usar o mesmo sistema do código falso que usaram antes, ainda que alterassem as letras em relação aos números. Se o tivessem feito, os americanos teriam descoberto com facilidade. Devia ser outra coisa.
Procurou pensar em voz alta, como se estivesse conversando com o tenente. Achou que assim poderia raciocinar melhor.
Temos duas informações, ainda que vagas, mas que dão algum indício de onde devemos procurar esses fundamentos. Uma delas são os fortes. O general tinha alguma informação, ou pelo menos, suspeita fundamentada de que os fortes escondiam alguma coisa. O que seria?
Rogério deixou-o pensar.
A segunda é a possibilidade de que estão querendo nos eliminar porque podemos ter alguma informação que os prejudicará, se nós a divulgarmos em tempo.
Permita-me corrigi-lo. O senhor tem essa informação. Eles podem pensar que eu também saiba de alguma coisa, imaginando que o senhor a tenha me transmitido. Mas é o senhor que teve contato com essa informação.
Parou de andar e olhou fixamente para Rogério:
É isso!... Acho que o senhor levantou uma hipótese válida. Sem dúvida que eu já devia ser um perigo para eles desde antes de conhecê-lo. O atentado do Chuvisco foi logo depois que voltei do forte Príncipe da Beira. Portanto, se o seu raciocínio estiver certo, eu deveria ter uma informação que me foi passada, ou a tenha descoberto, até aquele momento.
Estava agitado e procurando raciocinar em voz alta. Rogério achou melhor esfriá-lo.
E se o meu raciocínio não estiver certo?
Foi então que se lembrou da advertência do general de que devia estudar os fortes não apenas sob os aspectos de arquitetura e estratégia, mas tentar descobrir que segredos eles poderiam guardar.
Temos de retornar ao forte Príncipe da Beira! Eu tinha vindo de lá, quando ocorreu o atentado do Chuvisco. E também o atentado da casa que explodiu ocorreu antes de o senhor participar desses trabalhos. Preciso rever o forte. Foi lá o primeiro contato com a Confraria, e aquele forte é misterioso. Também não adianta ficarmos aqui parados e discutindo em pátio de quartel. Não adianta irmos para computador porque os melhores computadores do mundo estão cuidando disso.
Ainda bem que o senhor pediu para o piloto que nos trouxe esperar até amanha.
É. Hoje já está um pouco tarde. Preciso pensar e acho que o melhor lugar para a gente continuar conversando e clarear as nossas idéias é ainda lá no restaurante. O pôr-do-sol ali deve ser uma maravilha que não quero perder porque não sei se vou voltar por aqui.
A viatura do Exército levou-os de volta ao restaurante na beira do cais. Pediu para o tenente mandar alguém avisar os pilotos que eles iam sair de manhã, bem cedo.
Ligou para a capitã.
O senhor anda nervoso. Dá para perceber, e esse nervosismo me deixa com alguma esperança. Seu cérebro parece que ferve nessas horas.
Podemos continuar com o avião?
Sim. Pertence àquele pessoal e eles não estão fazendo questão de burocracia. Compreendem a urgência e respeitam o trabalho de vocês. Mas o senhor teve alguma idéia?
Nada, por enquanto. Estou procurando lembrar detalhes para encontrar alguma lógica, mesmo que seja absurda. Nos últimos dias estamos nos alimentando de absurdos.
Sentados ali, olhavam para o Solimões que descia em direção a Macapá, já perto do oceano, onde chegaria depois de milhares de quilômetros. O sol foi se pondo sobre a ilha de Santa Rosa, que pertencia ao Peru. Era imensa a distância de uma margem à outra. A mata, os barcos que iam e vinham, os pescadores, o pequeno mercado de peixes logo abaixo do restaurante, o entardecer lento e morno, tudo aquilo entrava pelos olhos e era como um bálsamo para a alma agitada dos dois.
Podíamos voltar aqui outro dia, para apreciar isso com mais sabor, não é uma boa idéia?
Maurício estava pensando a mesma coisa, mas com certo pessimismo e sem querer deixou escapar:
Se houver outro dia.
Rogério respeitou a preocupação dele. Não adiantava dizer frases do tipo: "Se Deus quiser vai dar tudo certo".
Maurício tentou corrigir seu pessimismo.
Quando estiver aqui com a capitã, vai ver que esse rio é mais bonito do que parece.
O tenente riu e disse:
Essa natureza é muito orgulhosa. Devemos olhá-la com respeito para conquistar a sua simpatia.
Ficaram ali, com a cerveja gelada e petiscos de pirarucu, depois jantaram e foram deitar-se para enfrentar um novo dia de desafios e surpresas.
Na manhã seguinte, logo cedo, o tenente Silveira levou-os ao aeroporto. O avião já estava abastecido e preparado para sair. Piloto e co-piloto devidamente uniformizados.
Minutos depois estavam a 28 mil pés de altitude e a uma velocidade de 650 quilômetros por hora. Pousaram em Ji-Paraná para abastecer, antes de seguirem para Costa Marques.
A pista do forte era preparada para todo tipo de aeronave, inclusive jatos da Força Aérea Brasileira. O Learjet pousou sem problemas.
O capitão Batista, comandante da 17a Brigada da Infantaria de Selva, já os esperava.
Bom dia, comandante!
Bom dia, doutor Maurício, parece que o senhor gostou mesmo do forte, não é?
Ficou olhando para o avião. Maurício apresentou o tenente Rogério como um amigo interessado na história das fortalezas antigas da Amazônia.
Pois é, capitão, preciso fazer mais umas pesquisas e, se o senhor puder nos ajudar, começaremos agora mesmo.
Claro! Vamos lá! Recebi ordens para atendê-lo no que for preciso.
Maurício foi anotando e comentando com Rogério.
Veja que obra de arte, abandonada e em ruínas. Olha o desenho. Será que esse desenho diz alguma coisa? Na verdade é um grande quadrado em cujos cantos foram incrustados outros quadrados formando losangos em relação ao desenho principal. Quatro laterais do forte e mais dezesseis lados dos baluartes o que dá um total de vinte. Vinte significa alguma coisa?
Rogério respondeu o que já era esperado.
Acho que isso teria sido descoberto pelo pessoal de lá.
Maurício fez que não ouviu. O capitão Batista os olhava com certa estranheza.
Comandante, quantos canhões tinha o forte?
Eram 56 canhoneiras, mas a disposição delas nas muralhas e nos baluartes fazia efeito maior. Naquela época os canhões eram fixos e o alvo é que se movia. O canhoneiro esperava o alvo ficar na direção do tiro para então disparar. E fácil entender isso quando a gente assiste a filmes com navios de guerra daquela época.
Sim, sim.
Os quadriláteros estão em ângulo um em relação ao outro. Dessa forma, não existe ponto cego. Se os canhões forem disparados ao mesmo tempo, não existe hipótese de o alvo escapar. Isso aumenta a eficiência.
Haveria como multiplicar essa eficiência para a gente chegar a um número?
Nem Maurício sabia por que estava fazendo essas perguntas, mas era preciso descobrir alguma coisa que, segundo os assassinos, ele devia saber. Era preciso fazer o brainstorming e levantar todo tipo de idéia, ainda que absurda, e, quem sabe?
Continuaram andando e vendo. Chegaram ao buraco no centro do forte. Lembrou-se daquela noite e sentiu arrepios. Pensou se não valia a pena descer até o fundo, mas não teve coragem de sugerir a descida. Naquela noite, com certeza, os templários haviam limpado o salão e estavam lá. Apesar dos seus receios, sabia que, se não encontrasse nada significativo na área construída da superfície, teria de entrar naquele buraco novamente. Perguntou ao comandante:
Os túneis? Existem mesmo esses túneis?
E o que dizem, mas eu pessoalmente ainda não entrei lá. Aliás, não entrei nem mesmo nesse buraco aí. O senhor comprou o vídeo daquela associação que anda estudando a possibilidade de o forte ter sido construído por alienígenas?
Comprei, mas não cheguei a nenhuma conclusão. Desculpe se estou fazendo muitas perguntas, mas só estou aqui de novo, porque precisamos terminar logo algumas pesquisas.
O capitão foi discreto, mas imaginou que se tratava de pesquisas urgentes. Pelo menos, o avião em que chegaram justificava a urgência e as ordens que recebera foram claras.
E os baluartes? - perguntou a Rogério. - O senhor se lembra dos nomes dos baluartes do forte de Macapá? Os quatro baluartes de lá também tinham nomes de santos. Lembro-me do baluarte São José, obviamente porque se chama forte São José do Macapá. Os outros eram Nossa Senhora da Conceição, São Pedro e... não me recordo do último.
Acho que é Madre de Deus. Mas por que o senhor quer lembrar isso agora?
Aqui também nós temos quatro baluartes com nomes de santos. Vamos ver que coerência podemos encontrar nesses nomes. Capitão, quais são mesmo os nomes dos baluartes daqui?
O capitão falou:
Temos também um que se chama Nossa Senhora da Conceição, mas os outros nomes não combinam: Santo Antonio de Pádua, Santo André Avelino e Santa Bárbara.
Maurício parecia angustiado. Os nomes dos baluartes não facilitavam muito. Não via coerência com os textos que recebera pelo celular. Também nada ligava a "EP". "Quem sabe a posição desses baluartes em relação ao Sol. Isso tudo é meio místico e talvez o misticismo fosse o caminho. Sim! Os astros. A posição dos astros, as constelações. Deve ser isso!" Procurava raciocinar com rapidez.
Precisava ver a posição desses baluartes em relação aos pontos cardeais. Quanto aos daqui não vai ser difícil identificar, mas como saber agora os pontos cardeais de cada baluarte do forte de Macapá? Será que a gente encontra um mapa de Macapá?
O capitão respondeu que ele tinha mapas na biblioteca do quartel, mas podiam também procurar na internet.
Voltaram pelo mesmo caminho da entrada, passando pelo corredor formado de paredes com portas e janelas de beirais de pedra trabalhados artisticamente. Os alojamentos ainda conservavam a estrutura antiga e as construções eram distribuídas harmonicamente pelos quatro lados. Quando se aproximavam da saída, o capitão mostrou as masmorras que ficavam do lado de dentro e faziam parte do pórtico de entrada.
Quando foi assinado o Tratado de Madri, o forte perdeu a sua função de defesa contra os espanhóis e foi transformado em presídio. E outro mistério. Estamos a três mil quilômetros do litoral e não faz sentido que escoltassem prisioneiros de lá até aqui.
Rogério perguntou:
Quanto tempo levariam para trazer prisioneiros de lá até este forte?
Imagino que de um ano a dois. Raposo Tavares demorou mais de três anos em sua viagem de São Paulo até Belém. Mas esses prisioneiros deviam ser pessoas de certa cultura, pois até poesia escreviam nas paredes. Vejam só o que resta de uma poesia entalhada na pedra.
Ali numa das paredes, meio alto, um verso estava escrito. Quase ilegível, mas dava para notar a caligrafia firme e inclinada com letras quase uniformes incrustadas com muita dificuldade. Era uma obra de arte. Uma grande parte da poesia tinha desaparecido.
O autor dessa poesia foi um certo Pacheco. Ficou conhecido como o Infeliz Pacheco, só que ele não devia ser muito letrado e escreveu "Enfeliz Pacheco". Pelo menos esse prisioneiro vai ser lembrado.
O comandante e Rogério já iam saindo. Dirigiram-se para a porta, porém notaram que Maurício estava parado, olhando para a parede de forma fixa e estranha.
"Tão simples. Estava ali, na sua frente, só podia ser isso. Agora tudo se explica. Por isso a falsa irmã Tereza ficou brava com a caseira. Não, não era padreco, era Pacheco mesmo. EP só podia ser o Enfeliz Pacheco. Por isso a NSA não tinha uma base para decifrar o código. Era uma poesia completamente desconhecida, incrustada numa masmorra. Deve ser coisa do Franz Sauer a raspagem do texto."
Distraído, só voltou a si quando Rogério o pegou pelo braço:
O senhor está sentindo alguma coisa? O senhor está tremendo, amarelo. O senhor anda tendo umas reações diferentes esses dias. Comandante, me ajude aqui, temos de levar o doutor Maurício para a enfermaria.
Maurício respirou fundo. Fez movimentos com os braços. Tentou sorrir. Ficou zonzo.
"Será que é isso, meu Deus? Será? Tomara que seja."
Capitão, o senhor tem aí a poesia por inteiro em algum lugar, não tem?
Sim, temos. Nós temos aqui um livro com a poesia. Foi há pouco tempo que ela foi raspada da parede. Acho que foi um grupo de turistas. Quando percebemos já era tarde. Por que alguém faria isso?
Maurício entendia. Sim, quem usou essa poesia para fazer o código, tratou de raspá-la. Só não conseguiu apagá-la por inteiro porque certamente surgiu alguém. Mas isso era mais um indício de que o Enfeliz Pacheco estava sendo usado indevidamente.
Tenente, por favor, me mostre esse livro, agora, sem falta. Não percamos tempo.
Foram o mais rápido possível ao museu que o Batalhão mantém sobre a história e arquitetura do Real Forte Príncipe da Beira. O tenente Rogério parecia meio confuso, mas estava também animado com essa descoberta de Maurício.
Lá no museu não encontraram a poesia.
Mas eu tenho essa poesia. Tenho certeza de que vi esse livro aqui. Cheguei a mostrá-lo ao meu superior, numa de suas visitas de inspeção.
Será que ele levou o livro e o senhor não sabe?
Não, não, ele não faria isso. Deve estar em algum lugar aqui. Vamos ao meu escritório. Tenho uma estante lá, quem sabe?
Foram ao escritório do comandante e lá na estante estava o livro: Fortalezas Portuguesas no Brasil, um exemplar como aquele que estava na casa da irmã Tereza.
Maurício pegou o celular que o agente do FBI lhe dera e discou.
Mineiro?
Doutor Maurício? Que bom que o senhor deu notícias! Já estava preocupado.
O seu pessoal está na linha? Estão gravando?
Com certeza!
Então vou ler uma poesia engraçada, tirada da parede do Real Forte Príncipe da Beira, na margem do rio Guaporé, divisa com a Bolívia.
Leu o seguinte texto alertando para a ortografia quando esta não conferia com a escrita atual:
"Nesta triste e Horrorosa prisão
Vive o pobre e Enfeliz Pacheco
Com groça e comprida corrente ao pescoço.
Mato Groço me prendeo
A Fortaleza me cativou
Preso e cativo estou
De quem tanto me favoreceo
Grande satisfação tevi
Quando em liberdade Agradecer a boa vontade Com que alguns senhores Me fazem seus favores
Nesta minha advercidade
Neste desterro desgraçado
Em que a çorte me lançou muito agradecido estou a tropa e o povo honrado agradecido e obrigado as esmolas que me teem feito
Capitão Cunha em meu peito o teu nome tenho gravado e nele conservado ca ahonde do Brasil o reino principia província de Mato Groço assim chamada nesta abobada imunda inabitada noite e dia com groça e comprida corrente fia tem seu colar no pescoço pendurada com dois mantos escolhidos e emprestados pelos maiores que na terra havia"
Mande o seu pessoal prestar atenção no Enfeliz Pacheco, talvez seja o nosso EP. Os erros de ortografia são originais.
O agente ficou mudo uns instantes. Parecia surpreso do outro lado.
Darei retorno.
Vou ficar aguardando aqui no forte. Preciso ter certeza antes de ir embora. Despediu-se e desligou.
Rogério ficou impassível. O capitão olhava para os dois com ar de quem estava sendo passado para trás, mas era disciplinado e havia recebido ordens. Apenas perguntou:
Os senhores vão permanecer conosco hoje, imagino. Vou providenciar dois alojamentos confortáveis.
Maurício agradeceu e perguntou se podiam voltar ao forte sozinhos:
Sem dúvida que podem. Fiquem à vontade, apenas tomem cuidado com desmoronamentos das pedras e principalmente não andem na beira da muralha.
Não se preocupe. Tomaremos cuidado.
Retornaram às ruínas do Real Forte Príncipe da Beira. Era imponente, majestoso e nobre como um velho cacique, que no rosto enrugado exibia a sua nobreza.
Na entrada principal, onde havia antes a ponte elevadiça, estava uma placa com a ordem de construção do forte:
A soberania e o respeito de Portugal impõem que neste lugar se erga um forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei, nosso Senhor e, como tal, por mais duro, por mais difícil e por mais trabalho que isso dê... é serviço de Portugal. E tem de se cumprir.
Governador Cáceres
Sabe, tenente? Acho que não existe mesmo o tal crime perfeito. Além disso, um plano desses, envolvendo tantas pessoas e durante tanto tempo, acaba caindo na suspeita de alguém. O general desconfiou do plano. Não sei de onde tirou essa suspeita, mas sabia que essas fortalezas tinham coisas a dizer e realmente disseram, como se elas estivessem hoje representando o papel que o Tratado de Tordesilhas lhes tirou em 1750.
Falava olhando para o portal de entrada do forte, como se sir Percival estivesse ali dentro, guardando o Santo Graal.
Acordei durante algumas noites e fiquei pensando que o mistério poderia estar guardado nesse portal. Queria vir de novo aqui para ver com calma essa inscrição, mas o mistério não estava nela, mas sim na poesia do Enfeliz Pacheco.
Pode não ter sido a inscrição, mas o senhor até que teve uma intuição bastante válida, porque o segredo estava neste forte e bem dentro do portal.
Alguns fatos estranhos ficam no cérebro da gente, como foi o caso do terço de Santiago de Compostela, que nos salvou a vida em Belém. Até parece que foi outro milagre do Santo, protegendo um seu peregrino.
"Lá vem ele com esse Santiago" - pensou o tenente, que estava curioso para saber o que o fez desconfiar tão depressa da falsa freira.
O general insistia que era preciso estudar os fortes. Ora, a irmã Tereza que eu conhecia nunca havia antes se interessado por fortes. No entanto, na estante da casa havia um livro igual a esse que o capitão nos mostrou. O subconsciente não deixou passar sem registro. Depois, a caseira ainda falou do tal Pacheco, que a falsa irmã Tereza disse que era Padreco, apenas para despistar.
Deu um descanso para o tenente acompanhar o seu raciocínio.
A verdadeira irmã Tereza sempre se comunicava comigo pelo rádio, quando sabia que eu estava na fazenda. No entanto, um dia passei por lá e ela havia saído. Achei estranho, porque eu tinha passado pelo vilarejo para ir a Aripuanã e a caseira sabia que eu ia voltar no dia seguinte. Ela nem estava lá e nem me deu resposta.
Falava com tristeza, porque sabia que a irmã Tereza talvez não existisse mais.
Depois veio a história da doença. Nunca soube que ela estivera doente. A história do rádio, quando a caseira a surpreendeu e ela não gostou. A irmã Tereza era educada, calma, e não se importava com essas coisas. A casa dela vivia cheia de gente e não fazia sentido esse nervosismo inesperado.
Imaginou o sofrimento que ela pode ter passado, balançou a cabeça e continuou:
Em Corumbá, perguntei pela irmã Tereza para a capitã e ela não tinha notícias da irmã. Por fim, o terço de Santiago de Compostela. Esse foi o maior erro da parte deles. Esqueceram o terço verdadeiro na casa da irmã e arrumaram outro. Foi uma falha grave e que nos valeu a vida.
O senhor falou desse terço para o agente do FBI. Como desconfiou tão depressa?
Lembrei-me na hora que a caseira me disse que a irmã Tereza estava fraca da memória. Ela tinha até mesmo esquecido que o terço era um presente meu. A caseira me disse que a irmã pegou o terço, examinou-o e pendurou na parede. A verdadeira irmã Tereza havia me dito que não ia se separar dele, porque era devota de São Tiago e aquele terço havia sido lhe dado por um peregrino do Caminho.
Devem ter pensado que o senhor não atentaria para esse detalhe, - disse o tenente, que não estava ainda satisfeito.
Mas quando o senhor veio aqui para essa tal cerimônia dentro daquele buraco, o senhor não viu essa poesia?
Sinceramente, vi. O capitão Batista estava ocupado e designara um soldado para me acompanhar. Ele mostrou o forte, falou da arquitetura, do buraco no meio do pátio e outras curiosidades. Mostrou também essa poesia, que já estava desse jeito, quase destruída. Lembro-me de ter achado curioso o nome Enfeliz Pacheco, mas depois veio aquele encontro horroroso com a Confraria, e o Enfeliz Pacheco foi para o subconsciente. Mas até aquele dia, não havia código para decifrar. Então, como eu ia ligar essa poesia com ep@ra.com.br?
Maurício relatou o que acontecera com ele dentro daquele buraco e os receios que teve naquela noite.
Pararam na entrada principal, no local da ponte elevadiça e o tenente mostrava-se ainda impressionado com aquela construção:
Quer dizer então que essas pedras não são originárias daqui e ninguém sabe de onde vieram! Uma obra dessas devia ter restauração cuidadosa. E uma preciosidade.
Nisso, um mensageiro veio correndo comunicar que o chamavam no telefone.
- Será que deu certo? - perguntou Maurício receoso.
- Claro, vamos lá. O senhor vai ver.
O CONCEITO ZERO
"Se as nossas autoridades não se preocupam com a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, ela se destacará do Brasil, natural e irresistivelmente, como se desprega uma nebulosa de seu núcleo, pela expansão centrífuga de seu próprio movimento."
Euclides da Cunha ( 1866-1909)
Escritor brasileiro
O embaixador estava distraído. Sua vida de trabalho tinha sido monótona, quase tudo não passara de rotina burocrática. Já estava cansado de recepções e cerimoniais. No entanto, os últimos dias tinham sido excitantes. Estava num palco de guerra. Comandava uma tropa e havia inimigos de verdade.
Quase pulou da cadeira, quando o telefone tocou. Era aquele sujeito de novo, sempre atrapalhando os seus melhores momentos de silêncio e nunca resolvia nada.
- Alô! Embaixador?
Sim, como está, diretor?
Vou lhe fazer uma pergunta e o senhor vai me responder com muita honestidade.
Ora, o que vem lá?
O senhor não gravou nenhuma de nossas conversas, não é?
"Estranha pergunta."
Qual o receio, diretor?
É que na nossa última conversa eu disse que pediria demissão, o senhor se lembra?
O embaixador pensou uns instantes e depois caiu numa risada histérica. Não parava de rir e contagiou o outro lado.
Eu não acredito, eu não acredito. Deus salve a América!
E parece que salvou, embaixador. O homem achou os fundamentos que dão coerência às traduções e estão chegando mensagens preocupantes.
É uma engenhosa articulação e o senhor vai precisar agir logo. Nós estaremos atentos e informando-o de todos os passos.
O embaixador não conseguiu falar. Estava emocionado e alegre.
Mais uma coisa, senhor embaixador.
O embaixador registrou o "senhor" que não havia saído antes.
- Sim?
Aliás, outra falha minha. Não o conheço pessoalmente.
O embaixador respondeu com elegância:
Mas o primeiro drinque sou eu que pago. Ou melhor, o contribuinte americano, se a gente tiver sucesso. Ele pode pagar.
Blue Label?
Maurício entrou na sala do comandante.
Telefonema para o senhor. Vou deixá-lo à vontade e saiu.
Pegou o telefone e antecipava a notícia de que o código tinha sido decifrado.
Alô, é Maurício falando.
Do outro lado, uma voz feminina em tom de desespero:
Papai, papai!? O que é que está acontecendo? Eu recebi suas cartas e vim correndo te ver.
"Cartas? Que cartas?" Maurício esfriou. Sentiu que algo terrível acontecera.
Suely, minha filha? Onde você está?
Uma voz masculina falou do outro lado.
Acho que não preciso explicar muito. Siga as seguintes instruções.
Estava atordoado. Foram buscar sua filha na Alemanha para conseguir atraí-lo a uma emboscada. Era agora a vida da sua filha. Mordia os lábios e seus olhos começaram a lacrimejar. Não conseguiu entender o que o outro falava.
O senhor entendeu? Vou repetir e preste atenção porque é a última vez. Pegue um papel e anote, se quiser, mas não esqueça.
Procurou se concentrar. Havia papel e lápis em cima da mesa do capitão. Anotou as instruções. O telefone foi desligado. Ele ficou imóvel.
Não conseguia pensar direito. Pôs a cabeça sobre as mãos com o cotovelo na mesa. Só então se deu conta de que estava esperando uma reposta pelo celular do agente do FBI e não pelo telefone do quartel.
Rogério notou a mudança. Algo aconteceu de muito grave para abalar o companheiro daquela mineira. Perguntou:
Doutor Maurício, o que aconteceu? O senhor está bem? Vou chamar o capitão.
Não, pelo amor de Deus, não faça isso! Minha filha foi seqüestrada. Está nas mãos daqueles bandidos.
O tenente sentiu o drama. Tinha cursos especializados em resgate de seqüestrados, mas agora estavam lidando com uma quadrilha de assassinos internacionais altamente treinados. Seu cursinho contra ladrões de galinha não ia servir para nada. Sabia que não podia contar também com as forças do Exército ali acantonadas porque esses recrutas não tinham esse tipo de experiência e isso só ia servir para expor ainda mais a menina.
Eles já disseram o que querem?
Maurício levantou-se. Envelhecera de repente e parecia frágil. Não era o mesmo homem de raciocínio rápido, atento a detalhes, buscando linha de coerência para tudo o que ia fazer, mas, não sabia por que, ainda confiava nele. "Precisa de alguns minutos de recuperação e em seguida começará a pensar. Tenho certeza."
Levantou-se e foi buscar um pouco d'água.
Nós vamos receber instruções complementares. Eles querem a nós dois. O senhor não tem obrigação de ir. E minha filha. Insistiram para irmos sozinhos, desarmados. Mas o senhor não precisa ir. O senhor não tem obrigação de arriscar sua vida pela minha filha.
Era perceptível o drama daquele homem que até poucos minutos atrás estava cheio de confiança.
Doutor Maurício, estamos juntos nisso. Pegaram hoje a sua filha. Amanhã vão pegar alguém da minha família. Eu estaria na mesma situação e sei que, se fosse comigo, o senhor não me abandonaria.
O senhor sabe que pode não haver volta.
Se não houver volta para nós, não haverá volta para a sua filha.
O capitão entrou na sala sem pedir licença.
Senhores. Desculpem, mas os senhores estão dentro de uma unidade de segurança do Exército brasileiro. E uma unidade de fronteira. Esse telefonema foi gravado e eu tive conhecimento de toda a conversa. E minha obrigação assumir essa operação de resgate da sua filha. O local do telefonema já foi identificado.
Maurício olhou para Rogério. Sorriu desanimado e abanou a cabeça:
Esteja certo de uma coisa, capitão: o local do telefonema é no mínimo uns mil quilômetros de distância de onde está minha filha. O senhor não conhece esse pessoal. Não iam cometer esse erro. A voz dela foi gravada apenas para eu saber que eles a tinham. Depois levaram a gravação para outra cidade, bem longe, e de lá alguém me ligou. Quem ligou não está com ela.
Mas isso está ocorrendo dentro de uma área militar e o senhor está sob nossa segurança. Não podemos deixá-lo ir, seja lá onde for, sozinho.
Maurício pegou o celular e ligou para a capitã. Ela atendeu. Com voz pausada para esconder a emoção que estava sentindo, falou:
Capitã, desculpe ligar de novo.
Antes de mais nada, doutor Maurício, o senhor está de parabéns. O código funcionou. Já temos informações importantes. O senhor está sendo considerado por aqui como um verdadeiro herói.
Capitã, minha filha, lembra-se dela?
A capitã sentiu na voz dele o peso de alguma coisa errada. Em vez de se alegrar, Maurício falava da filha, com tom misterioso.
Ela está na Europa, lembro-me, sim.
Acho que ela não está por lá. Foi seqüestrada e querem que eu e Rogério vamos buscá-la sozinhos.
A capitã quase perdeu o controle.
"Rogério? Mas o que ele tem a ver?... Não, não é justo. É a filha do doutor Maurício e ele está passando por isso por nossa culpa. E ela conhecia Rogério. Preferia ir ao sacrifício a deixar de cumprir o dever. Não deixaria o doutor Maurício sozinho ainda que ela implorasse."
Estou insistindo para o tenente Rogério não ir. O assunto é pessoal. Ele não deve ir. Se a senhora compreende.
"Ai, Deus, não posso perder o Rogério, mas não posso falar para ele não acompanhar o doutor Maurício."
Vou passar para o tenente, capitã, e a senhora fala com ele. Mas não desligue, tenho outro problema a resolver.
Maurício falava como se já estivesse planejando o enterro da filha. Sabia que aqueles assassinos não tinham sentimento algum. Matavam um ser humano como se mata uma formiga.
Rogério pegou o telefone.
Oi, Fernanda.
Maurício o ouvia repetir: "Sim, eu sei." - "Eu também te amo." - "Então, deu tudo certo? O doutor Maurício deu as pistas certas? Graças a Deus." - "O pessoal está contente" - "Não, não, não se preocupe." - "Ele não vai sozinho, ainda porque o pessoal não vai levá-lo sozinho, mesmo que ele queira. As instruções são claras. Querem nós dois" - "Ahn?! Como é? Fique tranqüila. Você sabe que eu me especializei em salvar a vida de vocês e não vou perder esta outra chance." - "Sim, sim, beijos"
Passou o telefone para Maurício, que falou para a capitã:
A senhora não conseguiu demovê-lo, pelo visto.
Nem falei isso com Rogério porque poderia ofendê-lo. O senhor não deve ir lá sozinho. E qual era o outro problema?
É um problema militar. A conversa foi gravada e o capitão disse que é obrigação dele assumir esse resgate. Acho isso perigoso porque as ordens foram claras. Se a polícia ou forças de segurança aparecerem, eles matam a menina. Então pediria que a senhora desobrigasse o capitão dessa responsabilidade.
Posso falar com ele?
Eram dois capitães, um homem e uma mulher. Ouviram a conversa, o capitão falou pouco e apenas pediu:
A senhora me manda então uma ordem superior por escrito?
Deve ter recebido a resposta positivamente, porque se despediu da capitã e passou o celular para Maurício.
Está tudo bem, doutor Maurício, mas eu acho que é desnecessário lembrá-lo de que toda essa nossa conversa está sendo ouvida por setores que farão de tudo para ajudá-lo. Nós aqui também não ficaremos parados, porém fique despreocupado porque nada será feito que coloque a sua filha em maior perigo.
Obrigado, capitã.
Saiu da sala e ficou andando no gramado em frente do escritório. Não havia o que fazer, a não ser esperar as instruções que deveriam chegar logo. Entendeu que a capitã, de certa forma, estava pedindo ajuda à CIA, mas ele sabia que nada podiam fazer.
O tenente Rogério estava pensativo. Seu companheiro olhava para os lados do rio Guaporé, como se estivesse vendo um ponto perdido no horizonte.
Sabia que eles não teriam chance alguma de chegar perto da moça seqüestrada. Se ainda estivesse viva, como foi o caso da irmã Tereza. Sabia também que esses camaradas queriam afastá-los do quartel. Assim que estivessem desprotegidos, seriam eliminados.
Mas como falar isso ao doutor Maurício? Ele ia fazer de tudo para salvar a filha, até mesmo acreditar que eles iam substituí-la pelos dois. Era agora a sua vez de ficar atento e agir com rapidez quando necessário. Teria de contar com a sorte e ainda esperar que o seu companheiro não tivesse perdido a lucidez.
A tarde já estava começando e eles não tinham almoçado. Rogério procurou o capitão e pediu um pouco desses tipos de nutrientes para esportistas e equipamentos de sobrevivência na selva.
O capitão explicou que o rio Guaporé é vigiado por lanchas com soldados bolivianos e americanos. São chamados de "leopardos". Essas patrulhas fiscalizam todo o movimento do rio para inibir o tráfico de drogas. Quem sabe eles poderiam ajudar?
Rogério descartou a hipótese. Não podia confiar em ninguém numa situação dessas. Além disso, os próprios seqüestradores podiam estar disfarçados de "leopardos". Era preciso solução mais eficiente, mas antes deviam esperar pelas instruções que estariam vindo.
Uns quarenta minutos depois uma voadeira aproximou-se do porto que fica em frente do forte Príncipe da Beira. O barqueiro era conhecido do quartel e tinha uma pequena empresa de barcos de pesca para turistas.
Cumprimentou o capitão e perguntou quem era o doutor Maurício. Ele tinha uma correspondência para entregar e devia levar dois passageiros. O capitão pegou o envelope fechado e entregou a Maurício, que já estava por perto. Afastou-se e leu:
"Alugue essa lancha e siga até a baía dos Piguás. É uma hora de viagem. Uma outra lancha está esperando lá. Nada de armas, polícia ou Exército. Qualquer atitude suspeita e vocês serão eliminados e sua filha torturada com requinte até a morte."
Rogério manteve discreta distância e esperou que Maurício o chamasse. Saíram de perto dos outros e o tenente leu a mensagem. Nem bem tinha acabado de ler e ouviu a seguinte pergunta:
- O senhor acha que vão tentar nos eliminar antes de chegar a essa baía, ou depois que pegarmos a outra lancha?
Rogério olhou para ele. Era uma pergunta de quem tentava recuperar-se. Tentou ajudar.
Enquanto estivermos vivos, sua filha estará salva. Acho que não adianta substituir o barqueiro por um soldado para nos ajudar. O rio está seco, cheio de pedras aparecendo, e ele tem experiência, para o caso de a gente precisar de velocidade. Além disso, se o contrataram para trazer a mensagem, é porque o conheciam. Colocar soldado no lugar dele levantaria suspeitas.
Também penso assim.
Peguei umas ferramentas, porque é claro que não vamos seguir todas as ordens deles. Tenho a impressão de que eles acham que não teremos tempo para usar nada, ou seja, assim que chegarmos, estaremos fritos.
Combinaram o preço com o barqueiro e Maurício pagou adiantado. O capitão parecia melindrado porque a sua autoridade local tinha sido esvaziada por um civil que tinha contatos inexplicáveis com o Alto Comando. Mas era homem disciplinado e submeteu-se resignadamente dizendo ao barqueiro que devia cumprir todas as ordens dos dois.
A voadeira tinha motor potente, com sessenta cavalos, e cortava as águas do Guaporé deixando um sulco volumoso de espumas e ondas que se alongavam até as margens.
As águas do rio estavam baixas e peixes pulavam assustando os dois que estavam com toda a atenção ligada a qualquer ruído ou movimento estranho. A natureza não se escondia e as suas manifestações causavam estranheza e sobressaltos.
O barqueiro ia explicando tudo a respeito do rio. Mostrava as areias das margens e elogiava a beleza daquelas praias. Mas para ele bom mesmo era o Festival de Praia que ocorre todos os meses de setembro em Costa Marques. Nenhuma lancha dos "leopardos" aparecera e já tinham passado cinqüenta minutos quando Maurício perguntou se ainda faltava muito.
É logo ali. O senhor está vendo aquela curva? Dá para perceber que a margem do lado esquerdo é uma ilha? A baía dos Piguás é pouco mais adiante.
Logo o rio se abriu em dois canais formando uma grande ilha, de onde um bando de pássaros pretos começou a voar baixo, quase ao nível da água. Não eram pássaros bonitos como os da sua Buritizal.
Por isso se chama baía dos Piguás. O senhor está vendo aquelas árvores de onde eles estão saindo? O branco de baixo é o esterco deles. Olha só a quantidade que existe por aqui. Aliás, o rio todo tem muitos piguás.
Foram-se aproximando e logo viram a voadeira encalhada na areia da margem direita, também grande e de motor potente. Mas ninguém estava por perto. Se alguém estivesse por ali, estava escondido no mato.
Ué - disse o barqueiro. - Não devia ter gente aí nessa voadeira? Vamos chegar mais perto para ver.
Não, não - disse Maurício. - Suba o rio um pouco mais. Não vamos descer sem que esse pessoal apareça. Pode ser que alguma sucuri os tenha devorado e não vai adiantar ficar por aqui.
O senhor tá brincando? Já aconteceu de o camarada estar dentro do barco, pescando, e a sucuri dar o bote e arrastá-lo para dentro da água. Não acharam nem o sujeito e nem a sucuri, que deve tê-lo arrastado para o fundo e saído na margem para engoli-lo. Isso não é difícil por aqui não. Onça também é outro perigo. Vamos então andar um pouco aí para cima.
Chegaram até outro banco de areia. Maurício pediu para o barqueiro encostar a voadeira. A lógica dizia que, depois que eles descessem e o barqueiro fosse embora, os seqüestradores iriam aparecer e seriam liquidados lá mesmo, onde estava a voadeira deles, e depois jogados no rio para os jacarés.
O sol estava quente e os mosquitos incomodavam. Um bando enorme de borboletas amarelas brincava na areia. Rogério perguntou ao barqueiro:
Pelos seus cálculos, qual a distância daqui até onde está aquela voadeira ancorada lá na areia dos Piguás?
Olha, eu vim devagar. Provavelmente, uns dez quilômetros por hora. Pelo tempo gasto, acho que um quilômetro, no máximo.
E você acha que, se entrarmos pelo mato, não vamos encontrar brejo que impeça a gente de chegar até lá?
Vocês estão pensando em voltar até lá a pé, pelo meio do mato? Mas o que é que está havendo? Quem são aqueles pilantras? E vocês? São da polícia?
Suponha que você esteja certo. Não esqueça as recomendações do capitão.
O barqueiro assustou-se:
Péra aí! Vocês não vão me envolver em nada não, não é? Não sabia que era perigoso.
Pode ser que seja perigoso para nós, não para você. Você apenas vai nos dar alguma informação e depois ir mais um pouco para a frente. Aquele pessoal é perigoso, mas nós temos um plano.
Maurício estava gostando de ver o tenente assumir a operação. Era óbvio que o tenente tinha pensado o mesmo que ele quando não viu ninguém na areia.
Está bem. Nesta época do ano, as margens do rio ficam secas. Dá para andar entre os arbustos seguindo o rio. Mas a vegetação é muito fechada. Os senhores são militares? Sabem andar na selva?
Sim, já fizemos de tudo um pouco, mas você tem alguma recomendação especial?
O barqueiro pensou um pouco. Era um tipo sulino, ainda novo e forte, que alugava barcos e gostava das aventuras que fazia com os turistas.
Foi até a voadeira e abriu o compartimento de pesca. Tirou de lá uma 765, que pôs na cintura, e uma cartucheira de cano serrado, cabibre 12. Calçou botas de borracha, pegou um facão, amarrou a voadeira num pedaço de pau enroscado na areia e virou-se para os dois:
O capitão não vai gostar de vocês terem entrado nesse mato sozinhos.
Maurício e Rogério não falaram nada.
Só tem uma coisa. Não sou supersticioso. Mas andam acontecendo coisas estranhas na região. Já viram fantasmas andando por aqui. Se escurecer, vou ter de rezar a todo minuto. Vocês têm preparo físico para andar depressa?
Maurício, que andava meio quieto, disse:
Rapaz, você tem idéia daquilo em que vai se meter?
O barqueiro fez uma careta e respondeu:
Talvez eu tenha um certo gosto pelo perigo.
Rogério comentou:
Alguns colegas meus abandonaram a farda porque corriam risco de morte por pouco dinheiro e estão trabalhando em ecoturismo.
Ele sorriu e respondeu:
É por aí. Estava sentindo falta. Às vezes o capitão me pede coisas que não tem coragem de pedir aos seus recrutas. É claro, tenho as minhas vantagens. Ninguém me perturba nas minhas "coisinhas".
"Coisinhas", pensou Rogério. "O que seriam essas coisinhas? Contrabando?"
Maurício gostou dessa ajuda inesperada e comentou:
Vou lhe dizer o que penso e, se estiver errado, vamos mudar de plano. Na minha opinião, devia haver gente naquela voadeira, mas como eles não estavam lá, podemos suspeitar que estão esperando em algum lugar ali por perto. Devemos chegar por trás, mas não quero mortes e nem tiros. Precisamos pegá-los de surpresa para nos levar ao resto do bando.
O resto do bando? Então é mais complicado do que pensei. Vamos acabar vendo fantasmas, estejam certos. Vamos logo para eles não desconfiarem. Eu vou na frente e vamos prestar atenção nos vestígios do chão ou no movimento dos pássaros.
Dizendo isso, embrenhou-se na mata, com Maurício e Rogério seguindo atrás. Mostrou que era mateiro experiente usando o facão apenas para cortar os cipós e espinhos que atrapalhavam a caminhada, com o menor barulho possível. No mais, ia olhando para o alto e para o chão. Quando se aproximava de uma árvore de copa e galhos maiores, parava antes de passar por ela.
Onças costumam ficar nos galhos das árvores. O Pantanal é conhecido também pela quantidade de cobras venenosas. Algumas se misturam na ramagem dos arbustos para pegar as suas presas e se assustam com a presença de animais maiores, picando no pescoço, no braço ou no rosto.
Andar no mato não rende. De dois a três quilômetros por hora, quando muito. O solo estava firme. Passaram por um riacho seco, mas o sinal de barro na vegetação de suas margens testemunhava que na época das águas ele tinha uns dois metros de profundidade.
Maurício não entendia muito bem como o desmatamento estava secando os rios da Amazônia, se a vegetação em toda aquela região estava intacta, e os rios no meio da floresta secam do mesmo jeito. Sem dúvida, o desmatamento apressa esse processo. Mas, durante as chuvas os rios enchem e durante as secas, secam, e isso vem desde Adão e Eva.
Depois de uns vinte minutos de caminhada, chegaram a uma clareira de onde se podia ver a outra margem do rio. O barqueiro parou, pensou um pouco e disse em voz baixa:
Estamos chegando. O que fazemos agora?
Rogério olhou para Maurício, que fez um sinal com a cabeça. Era uma típica operação policial e o tenente estava preparado para isso, além de contar com um ex-companheiro de farda, com vivência do local.
Eles devem estar perto da areia, escondidos em alguma moita. Não estão atrás de árvores grandes. Arbusto esconde melhor. Você consegue nos levar por trás deles, para os pegarmos de surpresa? Penso que são quatro pessoas e estão separadas, a uns dez metros de distância, em grupos de dois. O senhor concorda?
Maurício balançou a cabeça afirmativamente e o barqueiro recomendou:
Tudo agora vai depender de silêncio. Sei exatamente o ponto em que está a voadeira. Se eles são quatro, duvido muito que não haja mortes, mesmo que cheguemos de surpresa. Os senhores são bons de tiro? Eu garanto dois só com isso aqui.
E mostrou a cartucheira, calibre 12, de cano serrado.
Maurício pegou sua arma e examinou-a. Estava carregada com catorze balas e ele ainda tinha mais quatro pentes de reserva com catorze tiros cada um. O tenente tinha a mesma carga e estavam preparados para ir em frente.
Esgueiravam-se cuidadosamente por entre árvores e arbustos, evitando espinheiros porque não podiam usar o facão. Paravam de vez em quando para ouvir algum ruído estranho. Aquele pessoal devia estranhar a demora da voadeira, que passou em frente e não parou, mas com certeza ainda estavam lá. Sabiam esperar. Eram profissionais treinados para isso.
Quando estavam na direção da baía dos Piguás, o barqueiro fez gestos para andarem com cuidado e indicou as suas pegadas para que eles andassem sobre elas. Os bandidos deviam agora estar de costas, mas ainda a uma distância de cinqüenta metros. A vegetação era densa e não se via a margem do rio.
Foram chegando. Já dava para ver dois deles atrás de uma moita cheia de galhos. Estavam agachados, com espingardas também cartucheiras em posição de descanso, mas olhando atentamente o rio. Se eram quatro como previu o tenente, faltavam dois.
Pararam e tentaram ver através das folhagens onde estavam os outros. O barqueiro fez sinal para ficarem ali apontando suas armas para aqueles dois. Saiu silenciosamente, voltando sobre seus próprios passos, e desapareceu. Maurício e Rogério ficaram atentos. Passaram-se uns dez minutos e ouviram uma voz firme:
Não movam um músculo ou eu acabo com vocês!
Antes que os dois se recuperassem do susto, Rogério gritou:
Fiquem quietos! Vocês estão cercados. Qualquer movimento, atiramos.
Foi inútil. Eles se voltaram e antes que atirassem, Maurício e Rogério dispararam suas armas sem parar, até que os dois caíssem. Dois tiros de cartucheira acompanharam os estampidos de suas armas, seguidos de gritos, gemidos e pragas.
Os dois estavam imóveis no chão. Rogério correu até eles, chutou as armas e constatou pelo pulso que não viviam mais.
Gritaram para o barqueiro:
Você está bem?
Estou sim. Acho que tem um vivo aqui, não sei por quanto tempo...
Foram até lá. Dois homens deitados, um deles imóvel, o outro sangrando e gemendo.
Maurício disse para o tenente:
Matemática perfeita, tenente, parabéns! Foi como o senhor disse, eram quatro. Aliás, perfeita demais. Não gosto disso. Qual deles seria o piloto da voadeira?
Virou-se para o rio.
A voadeira!
Saiu em desabalada carreira, rompendo arbustos, tropeçando em tocos e olhando para todos os cantos para evitar surpresas. O tenente também saiu correndo, mas gritou para o barqueiro não sair de lá e tomar conta do bandido ferido.
Viram o vulto correndo em direção ao rio. Maurício saiu da mata gritando para ele parar e começou a atirar na areia perto da sua perna. Assustado e com pressa, o bandido ainda carregava a sua espingarda e Maurício sabia que aquela arma esparramava chumbo. Era perigosa, mas ele não queria matar o sujeito porque não sabia se o que estava vivo e machucado ia poder ajudá-los. Precisava de um deles vivo, mas tinha consciência do perigo.
O sujeito percebeu que Maurício não estava atirando para matar e parou de repente apontando a arma para ele. Rogério já vinha também correndo e começou a atirar, assustando o sujeito que ficou em dúvida. Maurício não era ruim de tiro. Treinava sempre e atirou na arma do bandido, que a apontava agora para Rogério, deixando-a longe do seu corpo.
A cartucheira espatifou e o sujeito soltou um palavrão.
-Você só está vivo porque vai nos levar ao esconderijo dos seus amigos. Veja o que aconteceu com os outros e pense no que pode acontecer com você.
Ele estava apavorado.
Pelo amor de Deus, não façam nada comigo! Eu só vim trazer essa gente aqui. Não sou bandido não!
Mas estava nos esperando com uma arma na mão, não estava?
Rogério pegou a corda que estava na voadeira dos bandidos e amarrou as mãos do sujeito atrás. Depois derrubou-o com uma rasteira e amarrou os pés nas mãos, como se fosse um bezerro em vaquejadas.
O senhor raciocinou em tempo que eles deviam ter alguém para dirigir o barco nesse rio, não é mesmo?
Maurício não respondeu e foi até onde estava o barqueiro. Um dos bandidos ainda estava vivo, mas talvez não vivesse muito. O estrago de uma cartucheira calibre 12 de cano curto não é pequeno.
Boa diversão, hein doutor?! Faz tempo que não participo de uma assim. Aqui para nós, parece que esses camaradas não vão muito com a cara de vocês. Puxa! Cinco sujeitos, armados com esses canhões. Mas vocês também não são de brincadeira. Cinco contra dois. Devem ser muito perigosos.
Rapaz, você não devia ter saído da polícia. Você é ótimo. Guiou-nos direitinho e ainda cuidou de três.
Três, não, um fugiu. Acho que vocês o pegaram vivo. Mas agora a questão é: o que fazemos com esses camaradas e o que vamos fazer em seguida, porque pelo jeito tem mais gente escondida por aí, não é?
O barqueiro tinha razão sobre a beleza das praias do Guaporé. Tanta gente se amontoando em Copacabana e esse rio cheio de margens arenosas formando praias macias e brancas. Podia estar saboreando aquelas delícias, mas sua filha corria perigo. Toda a sua atenção devia ser voltada para essa inesperada situação.
"Cartas? Então eles a enganaram com cartas, fazendo-a vir de volta até o Brasil, com algum argumento como o de que estaria precisando dela."
Sentiu uma pontada de felicidade. Afinal, a sua filhinha, que ele pensava que o tinha esquecido, se preocupava com ele. Como era bom saber isso agora, apesar do perigo que ela estava correndo.
A situação mudou um pouco - disse ele. - Devemos levar o ferido para o forte porque precisa de tratamento.
Olhou para o bandido que não sofrerá nenhum ferimento.
Em vez de nos levar até o esconderijo dos seus amigos, você vai entregar um recado para o seu chefe. Eu vou ficar no forte esperando a resposta.
Tinha levado papel e caneta e foi até a voadeira para ter apoio. Procurou escrever com letras grandes e com clareza:
Comunique Sauer que estou na prisão do Príncipe lendo o texto do Enfadado Prisioneiro. Espero resposta pelo mesmo telefone, mas cuidado: telefones com escuta.
Entendeu o que eu disse? Esteja certo de que, se você não entregar esse bilhete, quem vai cuidar de você são os seus próprios amiguinhos. O que está escrito aqui é muito importante para eles.
Rogério desamarrou o bandido, que pegou o bilhete e disse:
Vou precisar da voadeira. Não sei onde é o acampamento deles, mas sei que tinha de voltar até o igarapé dos Aflitos. Dá mais de uma hora daqui.
Você vai nos acompanhar com essa voadeira até onde está o barco do nosso amigo aqui e de lá segue sozinho.
O Sol já estava se pondo quando chegaram ao Príncipe da Beira. O capitão foi informado pelo soldado de vigia e foi recebê-los.
Maurício fez um relato simples e suficiente, sem deixar de valorizar o excelente trabalho do barqueiro. Os corpos e o ferido foram levados para a enfermaria do quartel e tiradas fotografias e impressões digitais. O médico de Costa
Marques é quem dava assistência àquela unidade militar; o capitão mandou buscá-lo para tratar do bandido com ferimentos e certificar a morte dos outros.
O capitão estava satisfeito com a operação. Tinha agora material para o seu relatório a respeito desse seqüestro. Embora não tivesse sido algum militar sob seu comando a ajudar os dois nessa emboscada, poderia enfeitar como quisesse porque ninguém ia desmentir. O barqueiro não se atreveria.
Maurício procurou o barqueiro para agradecer a ajuda.
Ia ser bem difícil e talvez nem mesmo tivéssemos êxito sem a sua ajuda. Ainda bem que pegamos um vivo. Era preciso que um deles voltasse ao acampamento e levasse a mensagem. Com todos mortos, nós mesmos é que teríamos de ir atrás dos outros, que a gente nem sabe onde estão.
Pois olha, gostei do serviço. Só não sei se foi uma boa deixar aquele sujeito ir embora. A gente ia acabar achando o acampamento deles, mas não importa, acho que o senhor tomou a decisão certa. Se precisar, estamos aqui ainda.
Voltarei aqui para pescar, não tenha dúvidas. Mais uma vez, muito obrigado.
Foi falha nossa. Falha do FBI, falha da CIA, falha da Abin, falha do próprio doutor Maurício. Ele tem filho, tem filha, tem neto, e a gente ficou cuidando de conspiradores e assassinos e não pensamos que eles poderiam se utilizar desse ponto fraco.
O embaixador notou que o seu agente estava muito nervoso. Não era normal da parte dele. Sempre fora frio, frio demais até em certas circunstâncias. Era melhor ficar em silêncio e esperar o outro desembuchar tudo o que tinha, mesmo porque ele não tinha solução para o caso.
Como costumamos dizer: situação obscura, siga seus instintos, situação assim exige ação imediata, ainda que não se saiba o que fazer, é preciso atordoar o inimigo. Atordoar o inimigo? Ação e omissão. A omissão é uma ação poderosa para iludir. Omissão, já que não há o que fazer.
O embaixador estava calmo. A missão dele era ver o que era mais importante para o seu país e, fosse qual fosse o resultado, ele saberia tirar proveito. Os Estados Unidos não iriam perder, mesmo que a CIA e o FBI tivessem falhado em sua estratégia. Mas o que será que esse camaradinha aí está querendo dizer com essa "omissão"?
Não teve tempo para melhor explicação quando o telefone tocou.
Boa tarde, senhor embaixador!
Não está muito boa e vejo que o senhor está me chamando de "senhor" embaixador, o que não é muito alvissareiro. Mas quem sabe o senhor tenha aí alguma notícia agradável? A inflação está caindo, o dólar está subindo contra o euro?
O outro riu. Mas voltou à seriedade.
Não, senhor embaixador, nada de novo, apenas...
Sei, sei, o senhor quer instruções para esse novo problema. Vai dizer também que é falha nossa etc. etc., mas estamos com o problema.
O outro esperou um momento.
Imagino que o agente do FBI esteja aí com o senhor. Pelo menos, posso deduzir isso pela sua maneira de falar. Estou certo?
Sim, está, e está ouvindo a conversa. Aliás, o senhor interrompeu uma grande locução que ele estava fazendo sobre uma tal de omissão. O senhor já ouviu essa palavra antes? O agente está querendo me convencer de que omissão e ação se confundem no campo da estratégia e que a diferença semântica não se aplica no presente caso.
O agente do FBI não gostou do comentário sarcástico do embaixador, mas não traiu suas percepções.
É sobre isso que eu queria falar com o senhor. O seu agente do FBI tem a vantagem de não precisar discutir certos assuntos em grupo. Essa teoria da dinâmica de grupo às vezes funciona, mas para certos casos...
Diretor, já chega a filosofia sobre omissão, agora o senhor não vai querer entrar no campo da dramaturgia, não é?
O agente do FBI enfim sorriu.
Entendo, entendo, e o único motivo pelo qual lhe estou telefonando é que chegamos aqui à conclusão de que não podemos desencadear uma contra-ação agora. É preciso estudar melhor a situação e ver de que modo podemos ajudar esse doutor Maurício. Não podemos tomar nenhuma iniciativa que prejudique ainda mais o problema. Imagino que seja essa a tese de doutorado do agente do FBI de omissão ativa.
"Ah! Vou alimentar essa discórdia."
Bom, senhor diretor — e enfatizou o "senhor". — Já que ele teve a oportunidade de ouvi-lo, imagino que o senhor tenha o mesmo direito. Muito bem, senhor FBI, é isso que o senhor queria me dizer?
O agente do FBI ignorou o estilo impróprio do embaixador para uma situação como essa e foi objetivo.
Boa tarde, senhor diretor.
E sem dar tempo para o outro responder, continuou:
As ações iniciais dos conspiradores começarão dentro de três a quatro dias, pelo que pude entender das mensagens. Ainda assim, não serão as ações finais, mas ações de preparo, estratégias iniciais. Na minha visão, em três dias esse doutor Maurício resolve essa situação.
O embaixador olhou espantado para o agente do FBI. O outro lado ficou mudo, sem entender muito bem. O agente do FBI, muito propositadamente, ficou esperando a reação.
Desculpe, senhor agente, o senhor acha mesmo que esse doutor Maurício tem condições de resolver a situação?
O agente do FBI gostou de ter um pensamento adiante da CIA.
Acredito que sim. Ele tem uma arma na mão e muito poderosa. Diria que ele tem um fator de negociação que vai pesar mais em favor dele do que o seqüestro dessa moça possa significar para eles.
O senhor pode explicar?
Simples. Esse grupo não sabe que ele já nos passou as bases do código. Aliás, o grupo nem sabe que ele encontrou os fundamentos. No momento certo, ele vai negociar. Enquanto isso..., bem, enquanto isso...
O embaixador enfim entendeu o poder da omissão. O outro lado começou a sentir urtigas pelo corpo. "Não é possível que esse sujeitinho me ponha a nocaute assim, mas tenho de reconhecer, esse Maurício tem o código e vai negociar. Obviamente ninguém sabe que nós já traduzimos todas as mensagens. Então, é só esperar até ver no que vai dar."
Assim pensando, o diretor achou melhor entrar na agenda positiva.
Nós já mandamos checar a origem do telefonema da filha dele. Foi de um imóvel vazio, para ser vendido ou alugado, no bairro da Aclimação, em São Paulo. Alguém chegou, abriu a porta, usou o telefone e depois sumiu, como nós também costumamos fazer.
Pois é, diretor, e agora?
O outro lado sentiu o abatimento do diplomata e procurou tranqüilizá-lo.
Qualquer novidade a respeito o senhor será comunicado imediatamente.
Ótimo - disse o embaixador. - Nós também lhe informaremos de toda novidade.
Entre o forte Príncipe da Beira e Guajará-Mirim, o córrego dos Aflitos desce até o Guaporé. Tem esse nome porque os negros que fugiam da escravidão dos garimpos de Cuiabá fundaram um quilombo na região.
Tem aproximadamente trinta metros de largura durante a seca, mas no período das chuvas alaga até vários quilômetros da margem do rio e chega a pontos mais elevados do morro do Gavião.
Toda a região é coberta de floresta densa e em alguns pontos se esconde por baixo do arvoredo que se dobra sobre ele. Mas quem sobe o morro do Gavião, durante a seca, vê um bonito espetáculo.
O córrego contorna o morro do qual descem caminhos de pedra formados pelas águas da chuva e o espectador consegue ver um longo horizonte que se estende até as águas do Guaporé. Se observar mais atentamente, verá cavernas que se formaram com o tempo. A maior delas é a caverna da Coruja Branca, com uns cem metros de comprimento de túneis internos, com poços de água cristalina.
Quando o córrego está cheio, o acesso pelo rio é fácil, porque as águas chegam até perto da entrada da caverna. No entanto, quando as águas baixam, é preciso subir as escadas de pedra feitas na saia do morro. Na frente da caverna, uma grande esplanada servia de heliporto.
A Science for Nature, uma das ONGs de Franz Sauer, tinha obtido autorização do governo brasileiro para desenvolver ali pesquisas científicas. Uma imensa torre de comunicação permitia a utilização de celulares, telefone e rádio-comunicação. Motores a diesel instalados do lado de fora geravam a energia de que precisavam.
Os "cientistas" fizeram seu acampamento na parte interna da caverna, perto da entrada e viviam confortavelmente, dominando o acesso pelo rio e podendo enxergar longe em qualquer época do ano.
Ninguém podia visitar a caverna, a não ser com autorização expressa da ONG, que tinha a concessão de estudos e pesquisas, fazendo relatórios regulares ao Ministério de Minas e Energia.
Esses relatórios não mencionavam certos poços, que também não eram mostrados a visitantes e onde nos últimos anos vinham sendo armazenadas armas e munições.
Ao redor de uma mesa, na sala do laboratório, estavam reunidas quatro pessoas. Do lado de fora, outras oito mantinham cuidadosa vigilância.
Uma mulher alta, forte, de tez clara, olhar firme e rosto decidido, estava com os antebraços em cima da mesa, olhando para o "Atarracado" do outro lado. Dois outros ostentavam aparente indiferença. Sabiam apenas matar e esperavam o momento para isso. Não tinham aquela ansiedade que domina o homem comum nos momentos de expectativa e tensão.
O outro, troncudo, de cabeça raspada, olhava o bilhete.
Quero eu mesmo matar esse sujeito. Mas não porque esteja com tanta raiva dele assim não. Quero perguntar como é que ele consegue sair dessas situações, sem ser profissional como nós?
A mulher falou com voz dura:
Eu disse que nós é que devíamos estar lá. Não tínhamos que mandar outro pessoal.
O "Atarracado" não gostou da observação, mas foi conciliador:
Não podemos nos descontrolar por causa desse sujeito. Devemos lembrar que o perdemos em Belém e lá éramos nós. Além disso, ele não está só. Vejam esse assunto de Tabatinga. Lá eles ficaram hospedados no quartel e eram protegidos por força especial. Agora, de repente, o barqueiro que nós contratamos se revelou experiente atirador e os ajudou. Parece que a sorte caminha a favor deles.
Nesse ponto a mulher concordou:
Esse barqueiro já tinha feito outros serviços para nós antes. Não podíamos imaginar essa mudança. Além do que, não tínhamos tempo para seleções.
Mas agora, com a filha e o neto dele em nosso poder, ele vai ter de vir até nós. Esse Maurício é melhor do que nos disseram e precisamos ter certeza de que completamos o serviço.
E comentou com certa preocupação:
Como é que ele conseguiu matar três dos nossos e ainda levar um ferido para o quartel? Fizemos muito bem em trazer gente de fora, que não conhece esta base, para fazer este serviço. O Sauer não vai gostar, mas tenho de informá-lo deste bilhete.
Olhou para o papel em sua mão.
O que será que existe de tão importante nesse texto que esse sujeito manda um bilhete assim? Quem será esse "Enfadado Prisioneiro"? Você sabe?
Não, não sei — disse a mulher. — Mas parece uma senha. Nós mesmos já formulamos códigos em textos desconhecidos.
Tinha recebido instruções de que devia eliminar os obstáculos e colher o que pudesse de informações úteis ou que achasse estranhas. Isso aí estava muito esquisito.
É possível que ele tenha alguma coisa que interesse ao Sauer e esteja propondo uma troca. Cabe ao alemão decidir. E, de qualquer forma, é mais uma razão para ele vir até nós.
Não pensou muito. Pegou o celular especial e ligou para o estabelecimento da ONG na cidade de Berlim.
Informou que era da base científica da Coruja Branca e que o doutor Baker havia descoberto uma inscrição interessante que precisava passar para a equipe de análise. E leu a mensagem.
No dia seguinte de manhã o telefone tocou no gabinete do capitão. Maurício foi chamado. Pegou o telefone e recebeu uma ordem:
Siga no avião que está com vocês até Rio Branco, capital do Acre. Alguém os pegará no aeroporto.
E desligou.
"Graças a Deus! Vai funcionar", pensou Maurício. Pegou o telefone celular e ligou para a capitã. Assim que ela atendeu, ele cumprimentou-a e disse:
Estamos indo para Rio Branco, no Acre. Até agora está indo tudo muito bem. A senhora sabe que esta chamada está sendo ouvida.
Sim.
Pois bem. Não pode haver precipitações.
Sim, sim, entendi e todos estamos atentos a essa circunstância.
Está bem capitã, que Deus nos ajude! Vou passar para o tenente. Logo que o tenente desligou, eles entraram no avião e seguiram para Rio Branco no extremo Oeste do país.
O agente do FBI acompanhava atentamente a conversa do diretor da CIA com o embaixador. Sentia-se culpado por ter perdido o grupo de assassinos em Belém e que devia agora estar em algum lugar do Acre.
-Tenho de reconhecer que aqueles dois não são ruins, não. Mas não fomos só nós, da CIA, que os subestimamos. Os conspiradores também não deram muito valor a eles e foram pegos de surpresa quando lhes armaram uma emboscada à margem do rio Guaporé.
O embaixador ouvia em silêncio. O agente do FBI estava satisfeito com a avaliação que ele tinha feito do doutor Maurício. O diretor continuou.
Parece que havia cinco homens bem armados, mas eles saíram do barco num outro ponto do rio e retornaram pela mata pegando os bandidos por trás. Deixaram um deles vivo para servir de mensageiro com o resto do grupo.
O embaixador não agüentou.
Mensageiro? E qual foi o recado que esse Maurício mandou?
Vou ler para o senhor. Veja só que obra de arte. O recado é:
Comunique Sauer que estou na prisão do Príncipe lendo o texto do Enfadado Prisioneiro. Espero resposta pelo mesmo telefone, mas cuidado, telefones com escuta.
O diretor achou melhor explicar logo e evitar perda de tempo alimentando a curiosidade do embaixador.
Vejam que ele não usou o "Enfeliz Pacheco", mas sim "Enfadado Prisioneiro" e não usou nenhuma palavra do poema, apenas deu a entender que descobrira o código. Com isso ele está querendo dizer ao outro lado que não passou as palavras "Enfeliz Pacheco" para ninguém e reforçou isso alertando com escuta de telefones.
O embaixador estava preocupado. O tal Maurício era inteligente. Enfadado Prisioneiro tem as mesmas iniciais que Enfeliz Pacheco.
O senhor quer dizer que ele está querendo ganhar tempo. É isso? Ele está querendo chegar à sua filha e lá tentar enrolar esse povo? Será que vai dar certo?
Ele não tem saída. Vai tentar de tudo para salvar a sua vida e a vida da sua filha.
O embaixador estava inquieto. O agente do FBI tentava adivinhar as preocupações do seu chefe. O diretor da CIA chamou:
Embaixador? Parece que algo o está preocupando.
O senhor disse que ele pode tentar de tudo. Até passar para o outro lado?
O agente do FBI considerou a situação. Esse Maurício era um homem
acuado hoje. Estava só. O Exército brasileiro o colocara numa situação muito difícil. Era quase impossível vencer o grupo de inimigos que estava de posse da sua filha. No momento em que ele se aproximasse desse grupo, seria logo cercado. Eram assassinos implacáveis.
O diretor da CIA também gastou uns segundos antes de responder:
Embaixador, sei o que o senhor pode pensar de nós, tanto da CIA como do FBI. A diplomacia dá muita ênfase aos erros dos órgãos de espionagem e segurança.
Não entendia a dificuldade do diretor em explicar o que tinha a dizer e preferiu ser lacônico:
- Sim?...
— Não me sinto muito confortável em dizer isso, mas tenho de reconhecer que o nosso parceiro do FBI tomou iniciativas que nos serão muito úteis. No momento, temos de confiar em certas providências que ele tomou. O embaixador olhou para o agente, que apenas sorriu misteriosamente.
Maurício olhava pela janela do Learjet da Bombardier, que rasgava os céus da Amazônia em direção ao aeroporto de Rio Branco, capital do Acre.
Rogério, sentado no assento da frente e no canto oposto, olhava também o céu azul e não sabia o que pensar. Era fácil de entender que eles foram seguidos também em Tabatinga e que o grupo de assassinos sabia que eles tinham ido ao forte Príncipe da Beira.
Tiveram tempo de preparar a armadilha no rio Guaporé e certamente tinham alguma célula no meio da mata do Acre para onde seriam levados.
Maurício lembrou-se de que o general falara com detalhes sobre a estranha história do Acre. O que será que poderia haver no Acre para que os seqüestradores o fizessem ir até lá? Procurou rememorar os dados mais importantes da sua história para tentar achar algum ponto que lhe pudesse ser útil.
Era grande o domínio territorial desses bandidos. De um momento para outro, deslocavam-se de Belém do Pará para o Vale do Guaporé e depois para o Acre.
Rogério não tinha coragem de interromper o silêncio de Maurício, mas ia também meditando.
"Não havia uma razão para os seqüestradores escolherem o Acre para essa negociação. Ou será que ali eles se sentiam mais seguros por estarem perto da fronteira com a Bolívia e com o Peru?"
Quase metade do Acre, incluindo a área da capital, estava dentro da reserva extrativista Chico Mendes. Em geral as áreas extrativistas são desabitadas, com poucas e malcuidadas estradas, gente condenada a viver vegetativamente, no sentido literal da palavra.
A entrevista do fazendeiro Darly Alves, que está na internet no site "Página 20", datada de 23 de dezembro de 2003, dava o que pensar.
"Será mesmo que as Comissões de Direitos Humanos não procuraram investigar o assassinato da mulher desse fazendeiro, quando a polícia cercou a casa para prendê-lo? Será verdade que a sua mulher, Francisca, grávida e com três filhos pequenos, foi mesmo obrigada a cozinhar para os policiais e depois foi encontrada morta, no banheiro, com uma faca no pescoço?"
Pensava em provocar investigações a respeito, quando voltasse às suas atividades em Brasília. Chico Mendes virou um mito, quase um Cristo do ambientalismo, e não era bom mexer nesse assunto. A sua consciência policial, no entanto, estava insatisfeita. Se o que aconteceu com essa senhora fosse verdade, o crime cometido contra ela e contra a criança que ia nascer, era, no seu entender, mais bárbaro que o assassinato do líder sindicalista. Prenderam os assassinos de Chico Mendes. Agora falta prender os assassinos dessa mulher.
Enquanto se afundavam em meditações, o avião aproximou-se de Rio Branco, logo aprumou em direção à cabeceira da pista, onde pousou com segurança, deslizando até a outra ponta, de onde voltou para o pátio do aeroporto.
Desceram e Maurício pediu para os pilotos ficarem aguardando. Provavelmente voltariam no dia seguinte. Logo que entraram no salão do aeroporto, perceberam que dois sujeitos se dirigiram para eles. Certamente já estavam ali quando o avião chegou e puderam identificá-los com facilidade.
Os dois pediram para os acompanharem e entraram numa camioneta Pajero com tração nas quatro rodas. A camioneta estava coberta de poeira e os pneus estavam sujos e barrentos.
"Devem ter viajado de madrugada para chegarem aqui a tempo e, pelo visto, o trajeto foi longo. Quantas horas? Três? É pouco. Preciso de mais tempo", pensava Maurício, enquanto tomavam a estrada que levava a Xapuri, terra de Chico Mendes.
"Estranho! Esse grupo de assassinos não tem nada a ver com o idealismo de Chico Mendes. Chico Mendes morreu pelo seu ideal, esses aí são assassinos com outros interesses."
Ia sentado na frente, ao lado do motorista, e Rogério no banco de trás, com o segundo sujeito que segurava uma arma apontada para ele. Depois que saíram da cidade, o motorista parou.
Vou revistá-los.
Não tinham armas, mas o motorista implicou com o celular de Maurício.
Você não vai precisar de celular.
O seu chefe pediu para eu trazer o celular porque ele pode precisar se comunicar comigo. Guarde-o com você, se quiser, mas é bom levá-lo porque foram ordens que recebi.
O motorista guardou o celular no bolso, demonstrando impotência e raiva.
Entraram na camioneta e Maurício continuou no banco da frente, com um dos bandidos atrás dele e Rogério foi sentado atrás do motorista.
Olha aqui. Vocês têm fama de valentes e já mataram alguns colegas nossos. Não façam nenhuma gracinha porque desta vez não escapam. Para mim vocês não passam de dois escrotos nojentos que eu quero matar com a minha mão. Aquele rapaz que está ferido no quartel em Costa Marques é meu irmão. Ai de vocês se ele morrer!...
Durante o trajeto, o motorista ia jogando um monte de ofensas. Xingou a família dos dois, as mães e toda a geração. As provocações eram intencionais. Era evidente que ele estava buscando coragem para se vingar do que aconteceu com o irmão, mas precisava de motivo para dizer aos seus superiores.
O veículo corria a uma velocidade que não interessava a Maurício. Rogério não sabia exatamente no que o seu companheiro estava pensando, mas tinha certeza de que algum plano maluco estava passando pela sua cabeça.
Tinham percorrido quinze quilômetros e se aproximavam de um riacho. A Pajero tinha ar-condicionado e os vidros estavam fechados por causa da poeira que se levantava da estrada de terra. O motorista diminuiu para evitar o solavanco do morrinho que sempre existe nos extremos dessas pontes de madeira.
Maurício abriu discretamente o vidro da janela. O motorista estava preocupado com a ponte e não deu importância ao detalhe, porque o barranco do riacho era alto e um acidente ali não era boa coisa. Como se quisesse olhar para fora, virou-se um pouco e ficou mais perto do motorista.
Ei! Desencosta de mim, seu idiota. Está querendo jogar o carro no rio? Seu burro, imbecil.
Maurício virou-se depressa para o motorista, como se tivesse levado um susto e, num gesto rápido, retirou a chave do contato e jogou-a pela janela. O carro foi parando lentamente e morreu.
O motorista pegou o revólver e apontou para a cabeça de Maurício. O outro fez o mesmo com Rogério.
O que você está pretendendo? Não está querendo ir até lá, hein? E a sua filhinha? Bonita ela. Gostei dela. Primeiro eu vou acabar com você. Ela vai ser a sobremesa. Você nem imagina como eu vou cuidar daquela garota. Agora você vai sair e buscar aquela chave ou então já sabe o que vai acontecer.
Maurício olhou para ele friamente e disse:
Sabe rapaz, esses carros modernos são complicados. Acho que nenhum de nós aqui vai saber fazer ligação direta. Pela sujeira deste veículo, nós ainda estamos longe, certo?
O motorista o olhava intrigado. Já sabia que se tratava de um sujeito cheio de artimanhas, mas o que será que ele ia aprontar agora?
Por outro lado, já estou enojado dessa sua conversa idiota. Eu não vou procurar a chave, vocês é que vão.
Rogério já começava a imaginar o plano. Eles tinham de descer do carro. Lá fora, o que será que podia acontecer? Alguma estratégia esse doutor Maurício tinha planejado para o momento em que ia descer do carro.
O motorista estava furioso. Sentia que estava começando a perder o domínio da situação. O carro estava sem chave e se ele fosse tentar fazer a ligação direta o seu companheiro ia ficar sozinho com aqueles dois.
O sujeito estava nervoso.
Seu imbecil, quem dá ordens aqui sou eu. Está vendo este canivete pontudo? Pois vou furar a sua orelha e cortar o seu nariz.
E dizendo isso encostou o revólver na testa de Maurício com a mão esquerda e, com a direita, fez um movimento brusco como se fosse cortar a orelha. Maurício não se moveu e disse:
Olha, rapaz, você não dá ordens a ninguém. Se fosse assim tão importante e tudo dependesse de você, já teria acionado esse gatilho. Além disso, eu vou fazer negócios com os seus chefes. Eles não vão gostar nada se esse negócio não der certo. Portanto, é melhor ter juízo. Vamos descer e procurar a chave.
O motorista olhava para ele entre perplexo e indeciso.
Anda, rapaz. Vai adiantar ficar aqui dentro?
O outro bandido falou para o motorista:
Ele tem razão, Soró. As ordens são para levar esses dois sem nenhum problema. Sei que o chefe precisa deles. Para que eu não sei, mas você viu o que aconteceu com o Marabá, ontem.
"Quem será esse Marabá e o que será que aconteceu com ele? Não deve ter sido boa coisa. O sujeito ficou calmo, de repente, e parece assustado."
Está bem, vamos procurar a chave, mas seja lá o que for que você está planejando, não vai dar certo. Levo vocês, nem que tenha de amarrá-los e arrastá-los até onde está o chefe.
Rogério entendeu que Maurício ia tentar alguma coisa na hora de sair do carro. Realmente, Maurício não perdeu mais tempo e abriu a porta.
O motorista gritou:
Ei! Não corra, senão eu atiro!
E sem pensar, começou a passar por cima do câmbio e do console para sair pelo mesmo lado de Maurício, que já esperava por isso. O outro não ia ter condições de uma mira precisa, principalmente se agisse rápido. Enquanto o motorista se apressava para acompanhá-lo, esticando o braço com a arma, fingiu que estava se apoiando na porta e, assim que desceu, bateu-a com força no outro, que gritou, e deixou cair o revólver. Puxou-o para fora, pegou o seu braço direito e não teve piedade. Um estalo e um grito agudo indicavam que havia quebrado o braço do motorista, que agora implorava pelo amor de Deus.
Fez dele um escudo e gritou para o outro que apontava a arma para Rogério e não sabia o que fazer:
Solte essa arma, senão eu quebro o pescoço do seu colega aqui. Depois disso, você vai ficar sozinho e ele vai me servir de escudo. Então, todo tiro que você der vai acertar no corpo dele, mas você está a descoberto.
Enquanto dizia isso, foi se aproximando da Pajero até chegar ao lugar onde a arma do motorista estava caída. Puxou a arma com o pé e obrigou o motorista a agachar, forçando-o com o braço quebrado, até pegá-la. O outro bandido teve a sensatez de raciocinar. Viu a frieza com que o Maurício quebrou o braço do seu colega.
Sei que o senhor não vai atirar, porque precisa de alguém que saiba onde está a sua filha.
E entregou a arma a Rogério, que pegou também as pistolas e a munição que eles tinham trazido.
Isso mesmo! Agora ligue o rádio que vocês têm aí na Pajero e chame o seu chefe.
O motorista gemia de dor. O outro ligou o rádio e chamou:
Pajero chamando, Pajero chamando.
Fala Pajero, o que houve?
Chame o chefe. O homem quer falar com ele.
Logo depois uma voz meio rouca e tom de quem não estava gostando chamou:
O que aconteceu?
Maurício falou:
Quero falar com minha filha. Agora. Não sei se ela está aí e não acredito em vocês.
Não era preciso pedir explicações. O outro lado entendeu logo que houve mudanças nas iniciativas. Era experiente, fora treinado para pensar rápido e raciocinar com coerência. Olhou para a russa e disse:
Traga a menina.
A mulher olhou para ele e disse em tom de censura:
Você está no comando, mas conhece a minha posição: não gosto de alternativas e aqui já houve demais.
Logo depois Maurício ouviu a voz aflita da sua filha:
Papai, papai, estou com muito medo! Essa gente vai me matar! Eles pegaram o meu filhinho, o seu neto, que você queria ver, lembra da sua última carta? Eles tomaram meu filho de mim!
E começou a chorar.
Rogério assistia àquela cena e olhava o rosto de Maurício. Nenhum músculo se contraiu. Nenhuma emoção.
"Ou esse homem está ficando muito perigoso, ou ele não acredita que alguma maldade contra a sua filha e o seu neto possa acontecer."
Filha?
Sim, papai!
Ouça bem. Não sabia que tinha um neto. Fique tranqüila porque nenhum mal vai acontecer a você. Eles prepararam uma armadilha e escreveram aquelas cartas. Eles só querem me pegar. Então fique sossegada.
Mas eles vão matá-lo, papai, ouvi isso várias vezes - e voltou a chorar.
Minha filha, eles não vão me matar. Eles não vão fazer mal a nenhum de nós. Agora preste atenção, porque isso é muito importante! Eu preciso ter certeza de que estou indo para o mesmo lugar onde você está. Entendeu?
Sim, entendi.
Então me diga se você está numa casa de madeira, perto de algum rio, ou seja lá o que for. Preciso saber se o lugar é o mesmo antes de chegar aí.
É um armazém velho de seringueiros, perto de um lugar com muitos buracos. Ouvi um deles dizer que os buracos eram de um antigo garimpo de diamante.
A voz rouca entrou outra vez no rádio.
Já houve muita conversa.
Só tem um problema. Estamos na ponte do córrego da Onça, pelo menos é assim que o motorista chama esse córrego.
E qual é o problema?
A estrada apresentava sulcos indicando que por ali passavam caminhões carregados de madeira.
Agora de manhã uma carreta pesada afundou a ponte. O motorista da carreta já chamou a prefeitura, que está fazendo os reparos na ponte para podermos passar. Podem demorar de três a quatro horas, segundo disseram. Acredito que não passa disso. Procuramos uma vau para tentar atravessar o córrego mas não dá. É muito alto. Temos de esperar. Quanto tempo daqui até o acampamento?
Agora são onze horas. Vocês só vão chegar aqui no entardecer. O problema é seu. A noite vamos embora. Câmbio final.
Rogério olhava intrigado para Maurício, que agora se mostrava tenso e abatido. A conversa com a filha foi muito triste. Não gostou também da facilidade com que o chefe dos bandidos aceitou aquela história. O lógico seria confirmar essas informações com um dos seus asseclas.
"Essa história da ponte. Por que será que ele preferia chegar apenas à noite?" Estava querendo entender, mas faltavam alguns pontos.
"Chegar à noite é pior. Seria melhor chegar com a luz do dia para avaliar toda a situação. Mas, se chegar de noite era pior, então por que não ir logo? E isso aí. Ele está ganhando tempo, mas para quê? Bom, ele sabe o que está fazendo. Se quiser me dizer alguma coisa, ele dirá. Pode não ter certeza e talvez queira correr algum risco assim mesmo. Afinal, estamos mesmo sem saída, e, portanto, um risco a mais um risco a menos. Ou então, espera aí? Será? Meu Deus, pode ser, talvez seja isso. Se for... Oh! Meu Deus tomara que seja isso!"
Maurício estava sentado à sombra de uma árvore, na beira do barranco. Levantou-se e consultou Rogério:
Acho que esse sujeito consegue chegar até a cidade. Ele vai ser apenas um estorvo.
Rogério concordou e ele falou para o motorista que gemia de dor:
Você só está vivo porque pensei que o seu colega ia reagir e eu tivesse de matá-lo. Então, sim, nós íamos precisar de um guia até o acampamento. Volte para a cidade e procure ajuda para o seu braço. Agora. Quero vê-lo caminhando até o fim desta reta.
Antes de ele ir embora, pegou o celular de volta.
Rogério mandou o outro entrar na Pajero e o amarrou com cordas que estavam no porta-malas. "Andam sempre muito bem prevenidos. Bem, não vamos precisar de motorista, mas sim de um guia." Depois disso, foi até Maurício.
O senhor está esperando um milagre? Ou tem algum plano?
Estou pensando. O tempo caminha a nosso favor. Eles só têm uma arma: a minha filha. Mas eles não a querem, eles querem a nós. Então, para que pressa? Terão de esperar. Acho que o tempo vai nos ajudar. Aceitaram muito facilmente a história da ponte. Estão muito seguros.
Disse isso, olhou para o tenente e sorriu com tristeza.
O tempo foi passando e, quando deu três horas da tarde, entrou na camioneta.
Acho que é hora de ir.
O tenente foi dirigindo, sem pressa, seguindo a orientação do bandido. Depois de três horas na mesma estrada, chegaram perto de um grande alagado, onde havia uma encruzilhada.
Lembrou-se das histórias de seu pai. "É na encruzilhada que o diabo aparece."
Nunca tinha visto o diabo, apesar de já ter passado por muitas encruzilhadas. "Talvez hoje seja o dia dele." Fazia exercícios mentais para afastar a tristeza. Pensava e repensava nos planos que tinha traçado. Ensaiava em silêncio as palavras e as atitudes para cada circunstância que pudesse enfrentar. Até agora o plano vinha dando certo. Planejara alternativas.
"Aquele agente do FBI não ia dar um celular assim sem outros interesses. Tem de ter mais coisa naquele aparelho. Um chip de localização. Só podia ser. Eles precisavam me seguir. Saímos de Costa Marques às seis horas da manhã. Já são seis horas da tarde e o dia ainda está claro. Se meu plano estiver certo, é melhor chegar à noite."
A estrada era ruim e logo chegaram a um pequeno lago e a estrada fez um desvio.
Quanto tempo você acha que falta?
O bandido respondeu:
Acho que mais meia hora. Não sei o que vai acontecer aí. Vocês são espertos e estão armando alguma coisa. Mas o pessoal lá também é muito preparado. Se eles conseguirem eliminar vocês, porque esse é o plano, eu também vou morrer. Eles não perdoam fracassos. Nós cometemos um erro que não se perdoa no nosso tipo de trabalho.
Você acha que não teremos chance - comentou Rogério.
Assim que vocês chegarem, vários homens se aproximarão apontando armas poderosas contra nós. Somos apenas três e vocês não vão confiar em mim, portanto não vai adiantar a estratégia que adotaram ontem na emboscada que preparamos contra vocês.
E então?
Aquela história da prefeitura fazendo trabalho na ponte. Vocês têm um plano e minha única oportunidade de sair vivo disso é esse plano dar certo.
E a única ajuda que você pode nos dar é dizer que não vamos sair desta.
Logo apareceu uma casa de madeira abandonada, que ficava do outro lado do lago, atrás de um arvoredo. Assim que a casa apareceu, Rogério diminuiu a velocidade e parou a Pajero. Já estavam perto e puderam ver a antena que despontava por de trás dos arbustos. O caminho estava com sinais de movimento de veículos. A vegetação em volta da casa protegia quem estivesse se escondendo. Não havia muito o que fazer. Se o bandido amarrado estivesse certo, logo teriam boas-vindas.
Vamos enfrentar o touro? - perguntou Rogério.
Segundo o nosso amigo aí, vai ser uma boiada e não um touro. Vamos devagar e com fé em Deus. Ele vai ter de nos ajudar. Tenho certeza de que vai.
E fez o sinal-da-cruz.
Foram chegando perto da casa. Nenhum sinal de vida. Tudo quieto, muito quieto. "Mas aí tem gente. Se não tivesse ninguém, pelo menos alguns pássaros sairiam voando com a nossa aproximação", pensou Maurício.
Estavam já a uns cinqüenta metros da casa quando homens armados apareceram e se aproximaram da Pajero. Rogério continuou devagar e eles abriram caminho apenas para chegarem perto do armazém velho do qual lhe falara sua filha.
Pararam. Maurício abriu a porta e desceu. Quatro homens apontavam cartucheiras de grosso calibre diretamente para o seu peito. "Quatro cartucheiras de dois canos, são oito tiros", mas não demonstrou medo ou preocupação.
Rogério desceu e do outro lado foi a mesma cena.
Um deles abriu as portas de trás e puxou o colega amarrado. Examinaram o veículo de todas as formas: porta-malas, pneus, bancos, por baixo, abriram o motor, o porta-luvas, enfim, um exame completo.
Dois deles se aproximaram do bandido e o desamarraram. Ele ficou solto das pernas e das mãos e levantou-se. Assim que ficou de pé, quatro tiros saídos daqueles canos o derrubaram de novo, para sempre.
Maurício não mostrou reação. Rogério apenas olhou para o coitado com olhar de quem está dizendo que cada um procura a sua profissão. Eles tinham agora que se preocupar com a sua própria vida e com a vida da menina seqüestrada. Sabiam que aquilo fora uma demonstração de como seriam tratados. O suplício começava.
Não entraram na casa. Foram conduzidos por uma picada até um barracão de madeira escondido no meio do arvoredo.
"A menina deve ter sido conduzida aqui de olhos vendados", pensou Maurício. "Se não, ela teria me falado desse barracão também. Mas pouco importa. O jogo vai ser difícil."
O barracão tinha uns dez metros de comprimento por uns oito de largura. Devia ser depósito de borracha antigamente e estava sendo usado como alojamento pelos bandidos. A eletricidade vinha de placas de energia solar que estavam sobre o teto. Havia rádios e outros equipamentos. O esconderijo parecia provisório, com coisas móveis para serem transportadas com facilidade, indicando que não ficavam muito tempo em cada lugar.
Lá no fundo estava a sua filha. Perto dela estava a russa, a mesma mulher que lhe entregara o cartão no restaurante em Belém, como se fosse uma soldado do Exército de Salvação. Apontava a arma diretamente para a cabeça da menina.
No outro ponto, em frente à parede central, um sujeito atarracado, aparentando quarenta anos, meio careca, forte, com cicatrizes no rosto, estava sentado sobre um tambor e segurava uma pistola.
Dois outros, um de cada lado das paredes do barracão, sentados nos colchões do chão e encostados na parede, bem armados e com cara de animais selvagens, completavam o quadro dentro do alojamento, mas havia ainda os guardas que ficaram do lado de fora.
Assim que entraram, a menina se levantou gritando:
Papai, papai... Eles levaram o Juninho...
A russa segurou-a pelo cabelo e a fez sentar dizendo ameaçadoramente:
Fica quieta aí, ou lhe arrebento a cabeça com o cabo deste revólver.
Afastou-se da menina mais um pouco e ficou com a arma apontada para a sua cabeça.
Ele quase se descontrolou, mas procurou manter a calma.
Freira, soldado do Exército de Salvação, assassina profissional? Qual dos diplomas a honra mais?
A russa não respondeu e o sujeito atarracado falou:
Para um coroa burocrata, você nos deu muito trabalho, sabe? Sempre que enfrento uma situação assim, lembro-me de um leitão que meu avô matou para o dia de Natal. Ele correu, correu muito, mas foi pego. Meu avô ajoelhou em cima dele, levantou a pata esquerda e enfiou-lhe uma faca afiada no peito. Eu era criança e fiquei com pena do bichinho, que gritou muito quando a ponta da faca foi entrando em direção ao coração. Nem mesmo comi leitão no Natal. Preferi o frango assado. Não tinha visto o frango morrer e por isso não fiquei com pena dele.
Maurício avaliava a situação. O sujeito estava falando muito. "Quanto mais falar, melhor. Preciso de tempo."
Sabe, seu burocrata, vou lhe ensinar uma coisa que talvez não saiba. O que sustenta a vida é a dor. Se morrer não doesse, muito mais gente se suicidava. Nossa especialidade é fazer uma morte dolorida, para que as pessoas se apeguem à vida e não queiram morrer. Não gostamos de matar gente sem sofrimento.
Não respondeu a provocação do outro, que continuou:
Você não imaginava que íamos trazer a sua filhinha, não é? Foi fácil escrever umas cartinhas e, quando ela chegou, nós a seguramos. Ah! Só tem mais um detalhe. Existe um menininho muito bonito que se parece com você em algum lugar por aí. Não queremos correr mais risco. Se alguma coisa sair errada aqui, já sabe.
O homem demonstrava a sua raiva por não tê-los pegado antes. Parecia não estar satisfeito de ter utilizado meios que demonstram a superioridade da outra parte. Não fora uma luta justa e eles eram profissionais que se sentiam desmoralizados. Maurício notou esse momento de fraqueza. Precisava tirar proveito disso.
Já estava escuro e as luzes acesas mantinham a claridade do ambiente.
Lamento dizer-lhe que a sua estratégia não deu certo. O senhor Sauer comunicou que fez alguns testes e o seu chute não colou. Você pode ter chegado perto, mas não conseguiu o objetivo. Essa foi a mensagem que me mandaram transmitir-lhe.
Maurício entendeu que devia alimentar as dúvidas:
Vocês é que estão enganados. Vou lhe dar uma prova. Diga a Franz Sauer que o Conceito Zero foi revelado.
O sujeito, até então calmo e dono da situação, levantou a cabeça e olhou assustado para ele. Percebeu o seu erro e logo em seguida voltou à normalidade.
Maurício continuou indiferente, como uma pessoa segura, que precisava transmitir ao outro a certeza de que iam cumprir suas determinações. O atarracado, porém, parece que tinha recebido ordens definitivas. A russa estava com a arma apontada para a cabeça da sua filha e os dois camaradas sentados no chão tinham armas apontadas para ele e para Rogério.
O atarracado recompôs-se e disse:
Sei que vou matar dois homens de coragem. Gosto disso. As ordens foram para isso, independentemente de quaisquer outras circunstâncias. Vou cumpri-las. E claro que antes vamos matar a sua filhinha. Quero ver a sua capacidade de resolver problemas numa situação dessas. Você vai gritar e implorar como o porquinho no Natal.
Maurício viu sua filha levar as duas mãos ao rosto e começar a chorar. Não estava agüentando mais aquilo. Ele próprio estava a ponto de desabar em crises nervosas, mas não podia fracassar. O atarracado sentiu o "chute" do "conceito zero", mas ele não estava sabendo como tirar proveito. Precisava continuar ganhando tempo. Sabia que não iriam poupar as vidas deles e nem da sua filha. Tinha de pensar em algo urgente.
"Mas que diabos, esse agente do FBI teve o dia todo para chegar até aqui. Será que eu estava errado a respeito desse celular? Será que ele não tem nenhum chip como pensei? Bem, de qualquer forma, não tinha saída. Tinha de tentar alguma coisa."
O atarracado levantou a pistola Beretta 9 milímetros e apontou com cuidado na direção da menina. Não precisa mirar nessa distância, mas queria ver a cara de desespero daquele burocrata metido a Elliot Ness. O homem parecia não ter medo da morte, mas estava quase caindo no desespero por causa da filha. Enfim, o doutor Maurício começava a fraquejar. Seu rosto tremia e os olhos estavam vermelhos. Era mais ou menos como os gritos do leitão. O atarracado estava vibrando com o prazer daquele momento.
Ouvi dizer que você faz exercícios de tiro ao alvo. Gosto desse esporte, mas prefiro praticá-lo de forma mais divertida. Agora, por exemplo, vou tentar acertar os brincos de sua filha. E claro que se ela fizer movimento com a cabeça, a culpa não será minha.
O bandido mantinha a arma apontada para a moça e saboreava o desespero do pai.
Rogério tentava lembrar todos os ensinamentos que teve para sair de situação de perigo, mas nenhuma estratégia se aplicava quando várias armas estavam apontadas para ele. Se fizesse algum movimento, seria imediatamente pulverizado pelos chumbos das cartucheiras daqueles dois, que o olhavam com a expectativa de que ele lhes antecipasse essa oportunidade.
"Será que esse Maurício tinha mesmo alguma estratégia?"
Já vi antes pessoas controladas como você. Elas ficam assim impassíveis, como se aquilo não estivesse acontecendo. Rezam interiormente, esperam um milagre. Você vai entender logo o que eu quero dizer. No primeiro tiro, quando a orelhinha da sua filha começar a sangrar, a sua coragem se acaba.
Tinha baixado a arma para falar e começou a levantá-la vagarosamente, fazendo mira na cabeça da menina.
Ia apertar o gatilho, quando, de repente, como se tivessem saído do fundo da terra, vozes estranhas começaram a cantar o Magnificat em gregoriano. Aquele som afinado, numa monotonia misteriosa, atravessava as paredes do barracão. A russa olhou para os lados e, quando se voltou novamente para a menina, viu uma espécie de assombração, vestida de monge, parada em frente da sua arma.
As vozes foram diminuindo e uma sombra entrou no barracão, por trás de Maurício, e se colocou na frente dele, protegendo-o da arma do atarracado.
O atarracado gritou:
Quem são vocês? Onde estão os meus homens?
Não se precipite, Augusto. Seus guardas estão dormindo e o barracão está cercado pelos Cavaleiros da Ordem dos Templários da Amazônia.
Maurício reconheceu aquela voz. Não ia nunca esquecê-la. O atarracado, porém, descontrolou-se:
Quem é você? Como sabe o meu nome? Diga logo, senão eu atiro.
Fora pego de surpresa e cometeu o erro de confirmar o seu nome. Mas quem seriam aqueles seres misteriosos que apareceram de repente? Se sabiam o seu nome, deviam saber mais coisas.
Vocês foram muito confiantes. Calculamos que, quando os prisioneiros chegassem, seus homens estariam entretidos com eles e cometeriam alguma distração. E foi o que aconteceu. Sentiram-se vitoriosos antes do tempo. Nós aprendemos com os índios a andar nessas florestas sem sermos percebidos.
O sujeito gritou nervoso:
Guardas! Guardas! Onde estão vocês?
Não adianta chamar por eles. Estão dormindo. Alguns tiros silenciosos com cápsulas de veneno feito de timbó, tingui e uirari-uva vão deixá-los dormir até a polícia chegar. Arte indígena. Muitos mistérios se escondem sob esta imensa floresta. Os índios arrastam nos rios um cesto de argila misturado com o sumo de um cipó chamado timbó e os peixes adormecem. Pescam assim. A uirari-uva é usada para fazer o curare. Você sabe o que é isso. O tingui também faz o mesmo efeito.
O atarracado não pareceu assustado, mas sua voz já não era a mesma quando disse:
Mas vocês estão sob a minha mira. Somos quatro aqui dentro e, se tivermos de morrer, vocês vão junto.
Nesse momento, o Magnificat aumentou de volume e outros vultos começaram a aparecer dentro do barracão. Maurício notou que a russa disfarçadamente colocava a mão que tinha a arma sob a blusa e a apontava para o monge, esperando posição de tiro.
Já faz muito tempo, mas você fez juramento diante do leito da sua mãe, quando ela estava morrendo. Lembra-se disso, Augusto?
Como você sabe meu nome? Como você sabe desse juramento? Quem é você?
Ela estava no leito do Hospital do Câncer e com voz bem fraca pediu que você prometesse que ia continuar sendo um bom menino e que, quando crescesse, ia procurar ser um homem bom como seu pai. Lembra? Naquele dia, deram-lhe permissão para ficar no hospital. Você começou a chorar e ajoelhou-se no pé da cama e pediu a Deus para não levar a sua mãezinha. Ela conseguiu ainda pôr a mão direita sobre a sua cabeça e morreu abençoando o único filho que teve.
O passado começou a atormentá-lo e aquela voz serena estava entrando pela sua alma, deixando-o paralisado. Não podia amolecer, não podia voltar ao passado, aqueles tempos se foram, mas sentiu que estava trêmulo.
Você não respondeu à minha pergunta. Eu perguntei quem é você. Vamos. Responda ou eu atiro.
Ela lhe explicou que seu pai tinha sido vítima de uma acusação falsa, mas era homem sério e você devia orgulhar-se dele. Você não esqueceu isso, esqueceu?
O atarracado estava pálido. Não conseguia entender. Um monge havia ficado entre a menina e a russa e outro entre ele e a menina, que já não servia mais para o propósito deles, mas confiava na russa que podia agir a qualquer momento.
Olhou para os dois que estavam sentados no chão e ainda apontavam as armas para Rogério e Maurício, mas pareciam duas estátuas. Estavam paralisados e não era para menos.
Aqueles monges pareciam figuras saídas do outro mundo e eles eram assassinos profissionais que passaram a vida correndo perigo e viviam assustados. Passaram a vida criando o medo e passando medo. Passaram a vida semeando a morte e se divertindo com ela, mas tinham medo dela. Tinham medo de dormir por causa dos pesadelos, e o medo é o alimento dos pesadelos.
Maurício rezava em voz baixa agradecendo a Deus. Queria correr para sua filha e abraçá-la, pedir perdão por tê-la colocado nessa situação, mas havia um clima de paralisia em todos eles. Rogério olhava para tudo aquilo espantado.
O bandido tentou recuperar o controle da situação e gritou para o monge:
Chega mais perto! Quero saber quem é você. Quero saber como é que você sabe dessas coisas. Ande, ande logo, senão vamos atirar em todos! Vocês dois aí no chão, seus palermas, levantem e se preparem!
Via-se que estava inseguro. O monge continuou falando, sem dar importância às ordens do atarracado:
Depois que sua mãe morreu, você seguiu com um grupo de budistas e nunca mais foi visto.
Meu pai morreu. Soube que ele se suicidou na prisão por causa da morte da minha mãe. Foi o que soube, mas tenho certeza de que o mataram, como mataram o Herzog e outros.
O canto gregoriano fazia o ambiente ficar como se fosse um lugar mal- assombrado. A própria russa, que já tinha enfrentado situações difíceis nos tempos da KGB, começou a sentir arrepios. Ela também foi criança um dia e também teve mãe. Agora estava no meio da selva amazônica e enfrentando fantasmas. "Que será que aconteceu com ela?", pensava, mas o momento não permitia fraquezas.
O monge não se adiantou. O atarracado apontou a arma para o peito dele.
Você cheira a milico. Vocês mataram meu pai, vocês mataram a minha mãe, é a única coisa de que eu me lembro. O regime militar, você sabe disso. Aqueles torturadores queriam que meu pai participasse daqueles crimes e ele não quis. Foi isso o que aconteceu e agora vocês vão pagar por tudo aquilo. Não importa se você é monge ou não.
Ele sabia que a situação mudara. Estava só, sem seus guardas, e os seus dois alvos estavam protegidos. Perdera o domínio da situação que até pouco mantinha com segurança.
Você se lembra das tardes de domingo em que seu pai o levava para pescar no rio Guandu? Lembra daquela traíra que mordeu o seu dedo e foi difícil tirar o dente dela?
O atarracado começou a fungar como para conter os soluços que aquelas lembranças lhe provocavam. O lábio superior começou a tremer.
Sim. Lembrava-se daquela tarde de domingo. Foi um entardecer bonito, meio chuvoso, com aquele bonito arco-íris no horizonte. Lembrou- se das brincadeiras do arco-da-velha como chamava o arco-íris. Seu pai dizia que no fim daquele arco colorido havia uma mala cheia de moedas de ouro.
Ele tinha fisgado uma traíra, mas na hora de tirar do anzol ela enfiou o dente em sua mão. Na semana anterior, um colega de classe chegou na escola com o dedo enfaixado porque fora pescar e a traíra mordera o dedo dele. Foi uma gozação geral e ele não queria passar por aquilo.
Maurício notou que ele estava desestruturado. Algo o atingira no âmago e o atarracado perdera o autocontrole.
Mas meu pai prometeu que nunca ia contar isso a ninguém. Nós tínhamos caçoado do vizinho porque uma traíra mordeu a mão dele. Então, então... Pelo amor de Deus, quem é você? Como você pode saber disso?
Mudara o tom de voz. Falava como se implorasse.
O Magnificat ficou como uma música de fundo, mantendo o clima misterioso. A russa estava calada. Sabia que o dr. Maurício tinha escapado de novo. A Confraria existia e eles não tinham dado importância a ela. Mas como foram aparecer ali, naquela hora, como sabiam onde encontrá-los? Parecia coisa do outro mundo, mas ela tinha uma missão a cumprir. Percebeu que seu companheiro não tinha mais condições de trabalho.
O monge tirou o capuz e a barba postiça. O vulto imponente de um homem meio calvo, de rosto sereno, queimado pelo sol, forte e alto, com a barba branca e rala indicando que passava dos sessenta anos substituiu a misteriosa presença do monge.
O atarracado olhou para ele e se aproximou trêmulo, olhando para aquela figura como se fosse um fantasma, sem acreditar.
Conseguiu dizer apenas:
Mas essa não é a voz do meu pai.
Haverá tempo para explicações. Você também não é o mesmo garoto daquela pescaria.
O atarracado chegou perto, olhou bem para ele e ajoelhou-se lentamente. Esticou os braços como se fosse num ritual religioso e colocou as mãos em cima de cada perna. Foi aos poucos dobrando a cabeça até encostá-la nos joelhos e ficar em posição de quem adora Buda e Maomé ao mesmo tempo. Maurício estranhou aquela posição. O monge havia dito que ele acompanhara um grupo de budistas, mas também ele fora para regiões do islamismo. O assassino que há pouco ia matá-lo e à sua filha transformara-se numa estátua mística que absorvera os receios de várias religiões.
O monge continuou imóvel, com o olhar frio e sem emoções, com aquele mesmo olhar que Maurício sentiu quando fez a confissão. A cena era patética.
Você é mesmo meu pai? Mas já vinguei a sua morte, já vinguei a morte da minha mãe. Sabia que um dia podia ser preso ou morto em combate. Mas ia morrer feliz porque ia me encontrar com vocês. Só faltava eliminar esses três para completar a minha missão. Logo nós três estaríamos reunidos novamente.
Falava com voz trêmula, contendo os soluços, mas fungava demonstrando que as lágrimas já desciam pelo nariz.
Maurício admirou a maneira como o monge fez seu filho chegar à conclusão de que era seu pai. Se tivesse feito essa revelação logo de início, o bandido poderia não acreditar. Mas o mestre chegou dizendo o nome do filho e depois lembrou fatos de infância que só os dois sabiam.
A russa aproveitou a comoção e com rapidez apontou a arma para Maurício, que por uns momentos estava na linha de tiro porque o monge havia agachado para pôr a mão sobre a cabeça do filho, mas um movimento às suas costas a fez voltar-se. Uma figura estranha a olhou fixamente e disse:
Você viu como sofrem as pessoas que caem na lagoa. Ontem vocês jogaram um companheiro lá. Cortaram as veias da perna para o sangue atrair as piranhas e o deixaram com metade do corpo fora da água para que os gritos dele servissem de lição aos outros. Nós assistimos a tudo e nosso Deus é infinitamente justo.
A russa abaixou a arma. Maurício correu para a sua filha e ela para ele, aos prantos:
Papai, levaram o meu filho. Onde está ele?
Uma voz atrás dela disse:
Seu filho está conosco. Nós vínhamos acompanhando esse grupo de pessoas e conseguimos recuperar a criança.
Mas onde ele está agora, onde?
Está esperando pela mãe, num hotel em Rio Branco. Duas freiras estão cuidando dele. Não se preocupe!
Maurício também não conteve as lágrimas enquanto abraçava a filha.
Rogério começou a acreditar em milagres. Compreendeu então o plano desse doutor Maurício. Ele desconfiara que havia um chip no celular e ficou ganhando tempo. Como é que ele, o tenente Rogério, especialista em informática, não tinha pensado nisso?
Agora o tenente vendo ali os pais, um procurando compreender os erros do filho assassino e o outro abraçando a filha, sentiu falta da sua capitã. Precisava ter uma família.
Apesar de a sala ser grande, o gabinete era sóbrio, decorado com móveis funcionais e com a beleza da simplicidade que só a arte consegue.
Era o gabinete do presidente da República, no Palácio da Alvorada, em Brasília, onde naquele momento estavam reunidos os ministros das Forças Armadas, o ministro da Defesa, o chefe da Abin, o chefe do Gabinete Militar da Presidência e o senador Rocha Meira.
Haviam sido convocados pelo presidente para tratar de assunto urgente.
O presidente mostrava-se bastante contrariado e começou a falar.
Senhores, convoquei esta reunião para tratar de assunto inacreditável. Recebi informações de que existe um grupo de traidores apoiados por forças estrangeiras que querem criar um novo país, chamado República da Amazônia.
O Ministério da Defesa concentrava os três ministérios militares e o homem que ocupava o cargo de ministro da Defesa era civil. Não entendia como o presidente tinha uma informação dessas e ele desconhecia. Olhou de forma inquisitorial para o chefe da Abin e comentou:
Mas essa é uma informação que as Forças Armadas desconhecem.
O chefe da Abin ficou em silêncio e o presidente continuou:
Sei que é uma informação surpreendente e talvez o senador tenha algo a falar a respeito. Então, senador?
O senador não foi pego de surpresa. Era político experiente, já havia ocupado o cargo de presidente da República e vivia sempre preparado para todo tipo de situação. Respondeu com segurança.
Desconheço, senhor presidente. Não acredito numa coisa dessas.
O presidente perguntou ao chefe da Abin.
E o senhor, coronel Medeiros? O que a Abin sabe a respeito?
A situação era delicada e não podia ser respondida como o presidente queria. Nem ele próprio, chefe da Abin, tinha certeza do que estava acontecendo. Desconfiava, mas não fazia perguntas demais, porque não queria perder o cargo.
Procurou ser cauteloso:
Senhor presidente, o senhor sabe, muitas notícias já saíram a respeito. Há informações de que um grupo de pessoas conspira para separar a Amazônia do país. Parece que existe até mesmo uma confraria que atua ilegalmente naquela área.
O general Ribeiro de Castro foi assassinado, não é verdade? Ele sabia dessa conspiração, não sabia?
O coronel continuou cauteloso.
A morte do general é ainda um mistério. As investigações não avançaram muito. A Abin é um órgão de informações e pode ser que o general tivesse realmente descoberto alguma coisa que colocaria em risco as pretensões desse grupo. Conspiração, terrorismo, tráfico, corrupção, todas as hipóteses estão sendo investigadas. Infelizmente, não chegamos ainda a uma conclusão. Por isso o senhor não foi informado.
O chefe da Casa Militar era general da reserva, que tinha sido secretário de Segurança do presidente, quando ele era ainda governador de Estado. Tinha plena confiança no seu chefe militar, que no entanto estava em silêncio e assim permaneceu. O senador arriscou:
Mas presidente, o senhor tem alguma evidência, alguma prova, alguma denúncia mais concreta de que existe essa conspiração?
"Grande velhaco", pensou o presidente.
Foi para isso que os convoquei. A embaixada dos Estados Unidos me encaminhou um cedê com a gravação de uma conversa muito reveladora. Vou colocar para os senhores ouvirem.
Dizendo isso, pegou um pequeno aparelho que estava oculto sob uns papéis e ligou. Começaram então a ouvir a conversa de duas pessoas ao telefone:
Alô, é Franz?
Sim, é ele. Quem fala?
Aqui é o senador Rocha Meira.
Como vai, meu futuro presidente?
Será que vou ser presidente de novo? Agora de outra nação?
Pois se prepare. Deixei recado para o senhor me ligar, porque os fatos estão se precipitando e o senhor precisa se preparar para a proclamação da independência da Amazônia, em breve.
Quanto a isso, não se preocupe. Estou preparado e só aguardo o momento.
A sua atuação quando os militares descobriram o código falso e fizeram aqueles movimentos de tropa foi brilhante. Agora estamos nas articulações finais e o senhor vai ter de ser firme de novo. Pode haver reações fortes.
Também estou preparado.
Parece que a CIA e o FBI estão investigando.
—Já suspeitava disso. Por isso falo de aparelho da beira de uma rodovia.
Ótimo. Ótimo. Por estes dias, não muitos, a República da Amazônia será unia realidade e teremos o apoio da mídia mundial. O senhor será reconhecido como o presidente da República da Amazônia, o homem que salvou a floresta. Será herói. Tudo já está preparado.
Então passará a existir um Brasil oceânico e um Brasil amazônico, do modo como a natureza fez. Deus e a sua divina sabedoria. Mas como vou saber o exato momento do pronunciamento?
Vinte e quatro horas antes. Não esqueça. Exatas vinte e quatro horas antes, o senhor receberá um fax convidando-o para fazer uma palestra em Buenos Aires sobre o "Conceito Zero". Vá então para Manaus e na hora certa faça o pronunciamento. Aquele é o momento do "Conceito Zero". Por enquanto, é só.
Então estarei aguardando.
Ouviu-se o clique do aparelho indicando que o cedê acabou. O senador suava frio e gaguejou:
Isso tudo aí é falso. Isso tudo aí é falso. É um gravação montada. Nunca falei essas coisas com ninguém.
O silêncio só era quebrado pela respiração ofegante do senador.
Mas o senhor ligou para ele, não ligou? No dia dessa ligação, o senhor saiu de carro e tomou a rodovia, voltando duas horas depois. Num aparelho dessa rodovia, em local coerente com a distância e hora que o senhor tomou essa estrada, houve um telefonema internacional para o aparelho desse Franz.
O senador não sabia o que responder. Seus lábios começaram a ficar roxos, começou a dizer coisas sem nexo. Tentou levantar-se da cadeira e colocou a mão na cabeça. Não conseguiu ficar de pé.
Numa casa confortável, no setor residencial sul de Brasília, perto do lago Paranoá, dois homens conversavam descontraidamente diante de dois copos de uísque.
Comentavam as notícias nos jornais de que o senador Rocha Meira, ex-presidente da República, estava hospitalizado na UTI do Hospital de Base. Sofrerá um derrame durante reunião no gabinete da Presidência e o seu estado de saúde era grave.
O anfitrião era um homem forte, moreno, olhos escuros, com aparência de nortista. O outro tinha a pele clara, olhos azuis e os cabelos já estavam ficando brancos. Foi ele a tocar no assunto.
Merecemos um brinde. Nem acredito que conseguimos chegar a esse ponto. Agora falta pouco. Eliminamos todos os obstáculos. O Franz foi de grande importância. Sabe de uma coisa? Eu acreditava nele, e até gostava do alemão. Ele nos ajudou muito. Fez um grande trabalho, mas se deixou dominar pelas ambições. Criou um grupo autônomo, fez besteiras, como aquela de eliminar o general. Se não tivesse se precipitado, não despertaríamos suspeitas e tudo podia sair melhor, de forma mais amadurecida. Mas, fazendo o balanço final, o que interessa mesmo é que tudo deu certo.
O moreno assentia com a cabeça, segurando o copo com as duas mãos entre os joelhos, e disse:
A prova é uma coisa séria. Suspeitas incomodam, mas era preciso a prova. Aquela sua idéia de lançar suspeitas sobre o senador foi ótima. Criar a história daquele convite para uma palestra na Universidade de Buenos Aires, com uma frase que combinava com outra que estava no código, gerou a prova para criarmos um culpado.
O outro sorriu com o elogio e deu seqüência ao tema.
Depois disso, foi só deixar por conta dos americanos fazerem montagem de conversação por computador com a finalidade de conseguir confissões. Eles gostam disso. O senador teve um derrame, mas era inocente. O bobão não sabia de nada. No entanto, o Franz estava comprometido. Como nós esperávamos, a CIA gravou a conversa que tive com ele por telefone. Era a prova de que precisavam para prendê-lo. Certamente vai revelar o plano para negociar uma pena menor, mas em poucas horas teremos um novo país e estaremos seguros.
O moreno balançou a cabeça.
Estou espantado com esse camarada da Receita Federal. O seqüestro da filha dele foi uma obra-prima do Franz, mas ali era a hora de negociar com esse sujeito. Precisamos de cérebros. Ele podia estar do nosso lado.
José Dílson, pois esse era um dos seus muitos nomes, pensou um pouco. Já não era mais o homem da primeira reunião com Franz Sauer. Mais cauteloso, correra riscos durante toda a vida e não podia deixar que nada estragasse o seu plano. Envolvera esse Franz Sauer, deu-lhe corda, conseguiu apoio, dinheiro e montou a equipe, criou a Organização, como chamava e saboreava agora o momento final.
Levantou o copo para o moreno.
Mas aquela sua idéia de esconder do Sauer que as Forças Armadas não caíram na armadilha do código foi excelente. Para ele, os movimentos que as Forças Armadas fizeram, depois que decifraram o primeiro código, eram movimentos autênticos. Ele acabou se precipitando e até mesmo se entregando.
Pois é. Mas agora temos de pensar em como administrar o "Espólio Sauer" e é assim que podemos chamar o grupo por ele criado. São pessoas indispensáveis para a República da Amazônia. Assim que a República for proclamada, precisamos reorganizar todos os contatos.
Dílson pegou a garrafa de Black Label e pôs uma "colorida", como costumava dizer.
O Sauer era meio inocentão. Será que ele estava mesmo acreditando que as ONGs iam administrar a República da Amazônia? Com a nova república, teremos uma nova Constituição, essas ONGs todas serão recadastradas e o que foi definido até agora será reavaliado.
Vários acordos para exploração das riquezas florestais, minerais, transporte, energia, telefonia, serviços bancários e outros já estavam firmados. A prisão de Franz Sauer pelo governo americano iria facilitar alterações.
José Dílson achara, porém, que a parte mais importante do plano foi o sistema de centralização no Banco da Amazônia, que seria o Banco Central da nova república, para onde iriam todos os depósitos existentes nas agências bancárias da Amazônia. Especialistas em informática tinham entrado nos sistemas de todos esses bancos e preparado um bloqueio geral.
"A informática é a arma mais poderosa do mundo moderno", pensou.
O Franz, no entanto, já estava fora. Fora ambicioso demais. Já estavam desconfiando dele e foi muito bom aquele camarada trazer informações que confirmaram as suspeitas.
Foi estupidez do Sauer mandar aquele sujeito falar comigo. As regras da Organização são claras. É terminantemente proibido introduzir pessoas novas a qualquer um dos membros, sem aprovação prévia. Pode ser que ele se sentisse muito seguro com esses momentos finais. Estava fora do país, cuidando do apoio externo, e preferiu mandar mensageiro da sua confiança.
Tomou um gole e respirou fundo.
Mas fico em dúvida ainda se devia ou não ter ido àquele encontro. O sujeito era estranho. Estava bem informado, falava espanhol com sotaque alemão, e é claro que fui disfarçado. Ele se apresentou dizendo que fora mandado pelo Sauer para receber instruções pessoais, porque estava com receio de estar sendo vigiado. De início desconfiei, mas parecia autêntico e ligado ao Sauer, que nem sabe da oportunidade que nos deu para que certas dúvidas e suspeitas ficassem esclarecidas.
Continuaram conversando. Dílson informou o outro.
- Esperava que o tratamento de saúde do senador fosse mais rigoroso e ele não agüentasse o choque. Mas está na UTI e não pode recobrar a capacidade de sair de lá vivo. Já providenciei isso também. Você vai ver nos jornais. Tudo será como se fosse morte natural.
Beberam e conversaram sobre o futuro. Já tinham obtido o êxito que esperavam. Agora era só o momento final. Tudo se encaixara tão bem, que se tivessem treinado os atores, não daria tão certo. Até os americanos fizeram o papel deles sem saber que estavam programados.
Pouco depois, o moreno conduziu José Dílson à adega, que ele atravessou até ficar diante da parede do fundo. O moreno acionou um dispositivo eletrônico que estava escondido entre as garrafas e a parede movimentou-se lentamente. Ele passou para um corredor escuro e a parede voltou à posição anterior.
Dílson acionou o interruptor da luz, que clareou o corredor até poder chegar a outro interruptor distante uns dez metros. Foi assim caminhando até encontrar outra parede que se abriu, quando apertou o botão do chaveiro que trazia consigo.
Maurício tomou o vôo 3722, da TAM, para Brasília. Ocupava um assento da janela, pouco atrás das asas e podia assim olhar para as nuvens de vez em quando. Não gostava do corredor porque as aeromoças passam com o carrinho de serviço e batem no braço do passageiro. No assento do meio ele se sentia espremido entre duas pessoas.
"Esses aviões de carreira estão ficando com os bancos dos passageiros cada vez menores." Pensou no avião que vinha usando. "Acho que não vou poder ficar com o Sêneca. Que pena!"
Seu cérebro era como um vídeo cheio de imagens que se atrapalhavam. Tinha acabado de deixar sua filha e seu neto no aeroporto de Cumbica, onde tomaram o avião para Frankfurt. Ia agora resolver a sua aposentadoria e conviver mais com os filhos.
Por pouco o destino ia fazendo com que ele não conseguisse mais vê-los. Os perigos foram grandes. República da Amazônia, Confraria, FBI, CIA, Conceito Zero, parecia impossível que aquilo tivesse acontecido com ele.
Sentiu uma leve sensação de esquisitice quando se lembrou do Conceito Zero. "Por que será que aquele sujeito troncudo e atarracado ficou tão abalado quando falei do Conceito Zero? Talvez nunca venha a saber", ia pensando.
"O que será que a Confraria fez com aquela gente?"
A aeromoça veio com um lanche quente e bebidas. Ele se serviu, pegou o jornal para passar o tempo, mas não conseguia ler. "Conceito Zero." Respirou fundo e olhou as notícias da primeira página.
"Senador Rocha Meira acabou morrendo no Hospital de Base de Brasília. Segundo o boletim médico, o ex-presidente da República estava se recuperando, porém teve uma parada cardíaca e morreu nesta madrugada".
Tirou os olhos do jornal e olhou para a janela. Pensou que foi uma pena o senador ter morrido, porque ele poderia esclarecer algumas coisas, inclusive esse Conceito Zero, que não saía da sua cabeça. Não tinha ainda digerido a reação daquele assassino internacional.
Fechou os olhos e tentou descansar. Logo mais estaria em Brasília e veria o tenente e a capitã, que o estavam esperando para a festa de noivado. O agente do FBI também tinha sido convidado. Ia aproveitar para devolver o celular.
O vôo parecia mais longo que o normal. Abriu o jornal de novo e continuou lendo as notícias da primeira página. A Agência Internacional de Energia Atômica estava mandando uma equipe de pesquisadores para visitar as usinas nucleares de Angra dos Reis e o projeto de submarino nuclear brasileiro.
O jornal informava que o Brasil era membro fundador da Agência Internacional de Energia Atômica, (AIEA), uma organização internacional independente, com sede em Viena e filiada às Nações Unidas. A AIEA foi fundada em 1957 e tinha por objetivo promover a cooperação para o uso pacífico da energia atômica e evitar a proliferação de armas nucleares. Para evitar o uso da energia nuclear para fins bélicos, a AIEA fazia inspeções regulares. Era o que chamavam de sistema de salvaguardas.
Lembrou-se da conversa que teve com a capita sobre o bigue-bangue. Se essa história não tivesse acabado, poderia imaginar que o Conceito Zero seria a explosão de uma das usinas de Angra dos Reis.
"Mas qual a vantagem que teria para a proclamação da República da Amazônia a explosão de uma usina nuclear? Só para criar um choque? Mas aí o mundo todo se voltaria contra esses conspiradores."
Franziu a testa. Havia certa lógica no choque nuclear.
"O Brasil está sob suspeita no desenvolvimento do seu programa nuclear. Podem acusar o governo de ter sido negligente se houver a explosão de uma usina atômica em seu território. O país ficará na defensiva, estonteado. Não haveria oportunidade melhor para separar as florestas da Amazônia de um país acusado de tal irresponsabilidade."
Achou que tinha de parar de ficar imaginando coisas. Já tinha cumprido o seu papel, ia se aposentar, o melhor mesmo era ficar quieto. Não tinha mais nada a ver com coisa alguma. O tenente e a capitã iam se casar, ele ia curtir o neto, inventar o que fazer - bem, pelo menos essa aventura serviu para trazer um pouco de felicidade.
Agora que ele tinha feito as pazes com a filha, quem sabe fosse melhor ter também uma companheira para acompanhá-lo na velhice que logo ia chegar? Sentia saudades da mulher, mas viver sozinho é muito melancólico.
A reação do atarracado, a morte do senador, a visita da AIEA, o Conceito Zero. Essas coisas se misturavam com outros pensamentos.
"Deve existir alguma coisa que ainda não foi revelada. E se for revelada tarde demais?" Assim pensava e entendia que deixara tudo esclarecido e podia agora viver em paz, mas não se sentia bem.
O tenente e a capitã estavam esperando por ele, sorridentes. Cumprimentou-os e a capitã disse que hoje eles estavam com um motorista particular, porque havia greve de táxis.
— Mas não se preocupe — disse ela —, porque é um motorista conhecido.
Saíram do saguão do aeroporto e entraram no pátio de veículos, onde um táxi, com o motorista sentado ao volante, os esperava.
Maurício o reconheceu logo. Olhou para a capitã e fez um leve sinal com a cabeça, indicando que reconhecera o agente do FBI e não fez mais comentários.
Logo estavam saindo da área mais movimentada do aeroporto e se dirigiam para a estrada que margeia o lago Paranoá. Maurício cumprimentou o agente.
Quer dizer que o senhor preferiu vir ao aeroporto para ter certeza de receber de volta o seu aparelhinho, é isso?
É, esse aparelhinho cumpriu missão muito importante — respondeu o agente com humor. — Vamos colocá-lo no museu do FBI. Mas o senhor, como vai? Sua filha terá vigilância por algum tempo e seu filho foi convocado para serviços especiais. Ele é um profissional responsável e o Pentágono ofereceu-lhe emprego. Com isso, ele ficará fora de perigo.
Maurício agradeceu.
Estou sabendo também que a capitã vai ser adida militar do consulado brasileiro em Nova York e o tenente vai ser convidado pela Universidade de Stanford, para um curso que ele ainda vai escolher. E tudo começou com uma corrida no Parque da Cidade.
O agente riu e explicou:
Não é conveniente vocês ficarem por aqui. Nós não temos ainda um conhecimento completo de toda essa conspiração.
Realmente, a morte do senador Rocha Meira ocorreu num momento inconveniente - disse Maurício com um tom de voz estranho.
Também - disse o tenente -, o susto que ele levou foi tão grande que não resistiu.
O agente do FBI era treinado para estudar a oportunidade de frases e palavras dentro de circunstâncias ainda não devidamente esclarecidas. Olhou para Maurício.
O que o senhor está querendo nos dizer?
Nada, nada. Apenas estive pensando que ele poderia ter esclarecido algumas coisas e agora já não pode mais.
A capitã não resistiu:
O senhor não vai querer começar tudo de novo como fez lá em Corumbá, não é?
Maurício não respondeu de imediato. Estava saboreando o clima de dúvidas que se instalou dentro do carro. O agente do FBI, que estava ao volante, diminuiu a velocidade, quase parando.
Continuaram em silêncio por alguns minutos e Maurício falou:
Bom, pela reação de vocês, posso presumir que a semente da dúvida começa a corroê-los.
Não souberam o que responder. O agente do FBI quebrou o silêncio.
O senhor tem mais informações a passar. Não iria dizer isso, assim, sem outras suspeitas.
Maurício comentou a reação do assassino atarracado quando falou do Conceito Zero. A capitã lembrou-se da explicação do bigue-bangue e admitiram que o Conceito Zero poderia estar ligado a algo assombroso. Se as dúvidas dele estiverem certas, o momento do Conceito Zero talvez fosse a inspeção da ONU. Nesse caso, estariam diante de uma emergência.
O agente do FBI procurou ser objetivo.
Não temos certeza de nada ainda, mas admito que precisamos investigar. Capitã, talvez seja mais fácil para a Abin verificar se o hospital tinha fitas de gravação da ala onde estava o senador.
Acho que posso cuidar disso.
Ela falou com tom de voz inseguro. Parecia absurdo o que estava pensando, o que aliás, ali, todos estivessem pensando. Maurício tentou facilitar as coisas.
A senhora tem informação de quais pessoas sabiam da ida do chefe do Gabinete do Exército até a ESG para buscar aquele documento?
Era uma dúvida que a capitã tinha. Somente os três ministros sabiam do portador que ia até o Rio de Janeiro com a mensagem sigilosa para o diretor da ESG.
Somente os três ministros militares e obviamente o coronel Rodrigues, que levou a mensagem.
Havia uma pessoa ali no carro que também foi ao Rio de Janeiro. Ele não esperou a pergunta:
Da mesma forma que nós, do FBI, tomamos a iniciativa de acompanhar os movimentos dos chefes militares, outros também podiam fazê-lo. Vejam, não é comum chefe de gabinete de um ministro das Forças Armadas de qualquer país sair por aí em dia de expediente num jato especial da FAB.
Uma pergunta. Já que vocês têm o poder da onisciência e ubiqüidade, será que essa NSA não pode fazer um levantamento dos possíveis contatos desses três ministros, seja por telefone, por reuniões pessoais, seja lá o que for?
Teve a impressão de que o agente do FBI não queria responder a essa pergunta.
"Será que já fizeram isso?", pensou.
A capitã não se sentia bem tendo de fiscalizar seus superiores e ainda suspeitando de que algum deles poderia ser acusado de traidor da pátria.
Sabiam que estavam quase às cegas, partindo de suposições, que, se fossem verdadeiras, seriam urgentes.
Logo depois da criação da Petrobras, em 1953, o americano Walter Link, que foi o primeiro geólogo-chefe da empresa, escreveu o famoso Relatório Link, afirmando que nossa plataforma terrestre era pobre em petróleo. Apesar dos grandes rios da Amazônia, o centro da produção nacional estava no litoral, onde a escassez de energia era um impasse para sustentar o crescimento econômico.
No ano de 1956, foi aprovado o programa nuclear brasileiro, com a criação da Comissão Nacional de Energia Nuclear, CNEN, e vem evoluindo lentamente. Mas os Estados Unidos se recusaram a cooperar e o Brasil optou pelos reatores alemães.
O plano previa a construção de oito usinas nucleares em Angra dos Reis, com vistas a atender três grandes centros urbanos: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
A crise do petróleo e a alta dos juros americanos sufocaram a economia brasileira e o Brasil não teve recursos para construir todas as unidades. Das oito usinas planejadas, foram construídas apenas duas.
O boicote americano dificultou até mesmo a contratação de técnicos e cientistas, e o Brasil teve de apelar para pesquisadores de todas as origens. Nessa época, o Irã estava com sua economia aquecida pelos preços do petróleo e o xá Reza Pahlevi era forte aliado dos Estados Unidos no Oriente Médio, mas também não descuidou da energia nuclear.
Da mesma forma que o Brasil, o Irã recorreu à Alemanha e iniciou o seu programa nuclear em 1968, mas com a revolução islâmica, a Alemanha se retirou e a Rússia ocupou o seu lugar.
O programa nuclear do Iraque foi conhecido após a Guerra do Golfo Pérsico, e em 1994 foi revelado o programa da Coréia do Norte. A índia e o Paquistão desenvolveram a bomba atômica e, desde então, as Nações Unidas e principalmente os Estados Unidos começaram a fazer pressões para a suspensão de novos programas nucleares. Líbia, Iraque, Sudão, Coréia do Norte, Ira, Brasil, Argentina e outros países ficaram tolhidos em seus projetos.
A suspensão ou limitação dos programas nucleares em diversos países deixou sem futuro muitos pesquisadores e cientistas que haviam abraçado a física nuclear por vocação ou por profissão.
Surgiu então um mercado de profissionais especializados ern energia nuclear que buscaram rumos diferentes. Alguns continuaram no mundo acadêmico em seus próprios países. Muitos, porém, ficaram frustrados e revoltados tornando-se alvo fácil do fanatismo ou do terrorismo.
Uma cuidadosa estratégia foi se aperfeiçoando para colocá-los dentro de instituições, universidades, empresas especializadas e até mesmo usinas de enriquecimento de urânio, para outros fins que não eram apenas científicos.
O doutor Hassan era um desses recrutados. Doutorou-se, com apenas trinta anos, em fusão de átomos, e seus trabalhos chegaram a ser disputados por revistas científicas internacionais.
Assistiu à queda do xá e passou a admirar Khomeini, que elevou o país a uma categoria de independência moral e econômica, desprezando as ameaças americanas. Mas essa independência custou muito. Generais, economistas, administradores, aviadores e todos os técnicos que manejavam os aviões e tanques sofisticados, vendidos pelos Estados Unidos ao Irã, emigraram para outros países. As empresas perderam seus administradores e o Irã passou por situação difícil.
Quando Sadam Hussein invadiu o Irã, não havia quem operasse os aviões e as armas sofisticadas que o xá havia adquirido dos Estados Unidos, e Sadam matou milhões de iranianos sem, porém, dominar esse povo, que reagiu valentemente. Sem vencidos ou vencedores, foi firmada a paz entre Sadam e Khomeini, com grandes perdas para ambos os lados.
Mesmo sem o capital que os empresários levaram embora, sem técnicos, administradores e cientistas, tendo sofrido uma guerra que durou dez anos e ainda enfrentando o embargo dos países ricos, o Irã acabou se recuperando lentamente e hoje é uma nova ameaça aos americanos, que podem destruir o seu país, com a mesma impiedade com que destruíram o Iraque.
A missão do doutor Hassan era impor um grande revés ao capitalismo ocidental, que utilizava o cristianismo para se infiltrar no mundo islâmico, fazendo pregações contra o Profeta, contra o Alcorão, mas com a finalidade única de impedir o desenvolvimento das nações que reverenciam o Profeta.
Sim, Cristo é o maior Profeta, depois de Maomé, mas os Evangelhos não diziam a verdade e o mundo ocidental criou uma filosofia perniciosa, que chamam de religião, e com ela vai impondo seus costumes, modificando os hábitos dos povos aonde chega, vendendo seus produtos, tomando as riquezas das outras nações e ameaçando o Reino de Alá.
Há quinze anos o cientista tinha vindo para o Brasil. Aprendera logo o português e começou a dar aulas em cursinhos para vestibular. Foi convidado para lecionar física nuclear em diversas faculdades e, daí, para trabalhar nas usinas nucleares de Angra dos Reis, foi questão de tempo. Nunca soube quem o encaminhava para essas funções e cargos, mas sabia que tudo estava planejado para que ele cumprisse sua missão neste mundo.
Em poucas reuniões, compreendeu que era preciso evitar que outros países capitalistas evoluíssem e aumentassem as pressões contra o islamismo. Países como o Brasil estavam desenvolvendo programas científicos que iam reforçar os infiéis.
Explicaram-lhe que não adiantava muito destruir usinas nos Estados Unidos ou na Europa porque esses países se recuperavam logo. Os países ricos tinham um mercado que lhes fornecia dinheiro suficiente para manter seu domínio. O mundo islâmico não estava preparado ainda para o confronto direto e a melhor estratégia era, então, destruir os seus mercados e deixá-los isolados até se enfraquecerem e serem destruídos também.
Lembrou-se do encontro com o aiatolá Ahmedes ad-Dim em Teerã.
- Alah el Akbar - fora o cumprimento do aiatolá.
E ele respondeu:
-Alah el Akbar.
Houve depois outros encontros casuais que estreitaram o relacionamento entre eles.
Num seminário sobre lixo atômico, na cidade de Oslo, um dos participantes lhe pedira para pesquisar trabalhos de cientistas árabes. Esses trabalhos sairiam na internet e no meio deles haveria uma frase. Ele saberia reconhecer a frase porque de um modo discreto fazia referência a pesquisas feitas por ele.
Teve a impressão de que o seu colega de seminário era parecido com aquele aiatolá, mas achou que foi coincidência.
Não havia como levar equipamentos ou materiais para dentro das usinas. Foi recebendo instruções, aos poucos, de como criar o apocalipse usando material que ele manipulava dentro das instalações da usina. No começo teve alguma dificuldade para entender o plano, mas era inteligente e foi assimilando as instruções.
Agora, enfim, chegara o momento.
Tinha pena do sofrimento que toda aquela gente ia passar. Mas orava por eles todos e pedia a Alá para levá-los também para o paraíso e lá ia poder revê-los e eles compreenderiam que tudo havia sido feito conforme as instruções que o Profeta deixou no Alcorão.
O apocalipse já tinha começado e Bin Laden dera o sinal destruindo as torres gêmeas e impondo pesado revés moral ao chefe dos infiéis.
Ele tinha apenas de chegar até o centro de pesquisas. A AIEA da ONU mandara desta vez um grupo importante de cientistas e investigadores. Havia suspeita de que o governo brasileiro estava desenvolvendo estudos para a fabricação de mísseis dotados de ogivas nucleares e o grupo estava visitando todas as dependências das usinas de Angra.
Ia ser muito simples. Ele era um dos cientistas que estavam acompanhando o grupo de investigadores da ONU e tinha a obrigação de dar explicações e responder perguntas.
Já tinham passado por vários setores. Analisaram os processos de explosão do átomo, de resfriamento da água e produção da energia. Estavam chegando ao laboratório onde trabalhava com outros cientistas e técnicos. Cabia a ele dar as explicações e fazer demonstração de como funcionam os diversos equipamentos da sala.
Ninguém ia supor que as lentes do seu microscópio estavam preparadas para reconhecer apenas as íris dos seus olhos.
Quando um daqueles investigadores abaixasse a cabeça e olhasse no vidro do microscópio, uma pequena lâmina ia refletir seus olhos no espelho dissimulado no metal do balcão.
Mensagens seriam enviadas ao centro de fusão de átomos e a cada mensagem a luz ficaria cem vezes mais quente e na quarta transmissão os fios da instalação interna não resistiriam e todo o sistema de segurança seria acionado.
Imaginava todos correndo para salvar suas vidas, ou executando os procedimentos de segurança que haviam aprendido em muitos exercícios. Teria de agir rápido para entrar correndo na sala de controle e gritar para o pessoal que o sistema de segurança estava invertido e a usina ia explodir. Era preciso convencer aquelas pessoas a deixá-lo dar nova leitura ao sistema, que agiria em sentido contrário e explodiria tudo como no início do Universo. Estava preparado para isso.
Alá Todo-Poderoso ia poder enfim livrar o mundo desses infiéis.
Ele foi dando as explicações de equipamento, de cada função, respondendo a perguntas ou deixando que outros colegas respondessem. O presidente da Nuclebrás, general Murilo Costa Filho, e outros militares estavam satisfeitos com as respostas e explicações.
Os investigadores da ONU também se revelavam despreocupados e aceitavam tudo como realmente tendo sido um projeto de utilização da energia nuclear para fins pacíficos, não havendo por que interpretar de maneira diferente.
Viu, no fundo do corredor, o laboratório. Mantinha a naturalidade e até mesmo se atreveu a fazer uma brincadeira, porque não era do seu feitio a seriedade em excesso.
Entraram. E, como de praxe, o segurança que ficava do lado de fora, fechou a porta. Ele abriu o painel de plástico que servia de lousa de explicações e fez um pequeno resumo dos lugares por onde passaram para então começar a explicar o laboratório.
Resumiu o roteiro percorrido, explicou as funções dos equipamentos, e então convidou o grupo a examiná-los um por um. Ele ia na frente, mostrava como funcionavam e pedia que um deles fizesse as verificações que quisesse.
Aproximou-se do microscópio de fabricação Wetwinter. Seu coração começou a bater. Era o momento do "Conceito Zero", como lhe tinham avisado. Uma nova ordem mundial ia começar a partir daquele momento, porque assim lhe fora dito pessoalmente pelo aiatolá Ahmedes ad-Dim.
A explosão da Usina Nuclear I de Angra dos Reis iria assustar o mundo ocidental, revelando que todos eles estavam inseguros. Ele ia provar que as pressões americanas para que o mundo árabe não construísse suas usinas eram infrutíferas. Assim como ele ia explodir Angra I, outros cientistas estavam preparados para fazer o mesmo em outros países, no momento oportuno.
Abaixou a cabeça e olhou no microscópio, falando calmamente sobre o que estava vendo e levantou-a em seguida. Afastou-se e olhou para o cientista alemão indicado pela ONU, esperando que ele olhasse no microscópio,
A princípio sentiu certo temor de que o outro não quisesse olhar, pois ele demorou um pouco. Parecia que estava desconfiando de algo. Procurou sorrir levemente e fez um movimento distraído com a cabeça, para transmitir calma e segurança.
O cientista abaixou-se e ele teve de se controlar para não respirar fundo e trair a sua emoção. Foi aos poucos afastando-se do microscópio, enquanto o outro perdia tempo na leitura de coisas que deveriam ser óbvias para ele. Talvez, por serem óbvias, tivesse demorado.
Mas o alemão percebeu o reflexo no alumínio do balcão e afastou-se depressa, assustando a todos. Olhou para os lados e percebeu o cheiro estranho de plástico aquecido. Enquanto o alemão olhava no microscópio e outros se distraíam com os equipamentos do laboratório, ele fora se esgueirando em direção à porta.
- Alguma coisa está errada! - gritou o alemão.
Mas era tarde. O alarme soou, o doutor Hassan abriu a porta e saiu correndo. Gritou para o guarda que ele ia ver o que havia acontecido, mas não devia deixar ninguém sair da sala. Precisavam ficar lá para maior segurança deles e da usina. Ele estaria de volta em poucos minutos.
Na mesma sala da casa do ministro do Exército, onde se dera a reunião com o diretor da ESG, estavam novamente reunidos os três ministros militares.
O ministro do Exército convocara a reunião. Dizia ter motivos para uma conversa apenas entre os três ministros militares. Não informara qual o assunto por telefone, mas dizia ser importante que se encontrassem naquela tarde.
Ainda não tinham se reunido desde a descoberta daquele complô e talvez estivessem sendo chamados para a reavaliação dos fatos.
O ministro do Exército foi objetivo:
Nosso trabalho para impedir a divisão do Brasil em dois países foi decisivo até agora. Temo, no entanto, que nossas preocupações não terminaram.
O ministro da Aeronáutica olhou para ele e perguntou:
O que o senhor quer dizer com isso?
O ministro da Marinha estava imperturbável. Não se manifestou e aparentemente demonstrava não se interessar mais pelo assunto.
Acho que vocês devem estar curiosos para conhecerem duas personalidades importantes dos últimos dias da história do Brasil.
Foi até a sala de visitas e voltou com a capitã Fernanda, o tenente Rogério e Maurício.
Vocês já conhecem a capitã Fernanda. Ela teve papel brilhante em todos esses fatos e, aqui para nós, acabou encontrando até um noivo, o tenente Rogério, agraciado com a medalha de herói pelo Exército Brasileiro, quando houve o atentado contra o general Ribeiro de Castro.
O tenente estava de uniforme, prestou continência e correspondeu ao cumprimento de mão de cada um dos ministros.
E aí está o doutor Maurício, que, graças a Deus, não estava do lado de lá.
Maurício sorriu com o elogio e pensou que talvez tivesse levado vantagem se mudasse para o outro lado.
Sentem-se, por favor! — E dirigindo-se aos seus colegas:
Alguns fatos sugerem que nossas conclusões anteriores sobre a divisão territorial do Brasil foram precipitadas.
Dirigiu-se a Maurício, que não havia ainda se sentado, e disse-lhe:
Acho que o senhor pode começar as explicações.
Era a primeira vez que Maurício se reunia com esses ministros e achou melhor adotar um ar professoral. Não podia perder tempo com excesso de polidez.
Vou tentar ser objetivo, porque o assunto é confuso. Uma coisa não me saiu da cabeça desde que entendemos que o caso estava encerrado. E o "Conceito Zero". Para os conspiradores o "Conceito Zero" deveria ser o início de tudo. Seria como o bigue-bangue na formação do Universo.
Após essa pequena introdução, olhou para os ministros, como fazia com os alunos.
Não sei se os senhores percebem o detalhe. Mudaram o código, mas não mudaram o princípio básico da ação: o Conceito Zero que, no meu entender, ainda não aconteceu.
Falava com voz firme e tentando chamar a atenção para os fatos principais.
No encontro final com o grupo de assassinos que haviam seqüestrado a minha filha, eu precisava ganhar tempo e disse para o sujeito que parecia ser o chefe deles para dizer ao Franz Sauer que o Conceito Zero não ia funcionar.
Não deixou que percebessem o pequeno arrepio de medo ao lembrar o perigo que ele e sua filha passaram naquele dia.
A reação dele foi de surpresa, como se tivesse levado um choque. Recuperou-se, mas já havia se traído. Naquela hora, eu estava preocupado demais em salvar a minha filha, o meu neto e até mesmo as nossas vidas, e deixamos aqueles celerados por conta da Confraria, que, graças a um celular do FBI, chegou a tempo, mas o fato é que acabei me esquecendo da reação daquele indivíduo.
Os ministros estavam atentos, compreendendo que o perigo ainda rondava o país.
Um fato muito sério nos chamou a atenção. O senador Rocha Meira foi assassinado.
A afirmação pesou no ambiente.
O que o senhor está afirmando? - perguntou o ministro da Marinha.
O ministro da Aeronáutica olhava-o estupefato e o ministro do Exército mantinha a testa franzida, como se já soubesse de todas aquelas informações.
Assim que cheguei a Brasília, depois de embarcar a minha filha para a Alemanha, transmiti essas preocupações à capita Fernanda. A Abin conseguiu cópias de fitas do Hospital de Base. Naquela madrugada em que o senador morreu, o médico, doutor Oto Salles, entrou no hospital. Esse médico já vinha tratando do senador e esteve no seu gabinete minutos antes de ele sair para a reunião com o presidente da República, quando, então, foi acusado de conspiração.
E esse médico entrou na UTI naquela madrugada? - perguntou o ministro da Aeronáutica.
Maurício esperava essa pergunta e balançou a cabeça afirmativamente.
O médico de plantão estava dormindo, provavelmente com algum sonífero que lhe aplicaram, e o doutor Oto Salles pegou a sua roupa, a sua máscara e o seu uniforme. Eles têm mais ou menos a mesma estatura. O tenente Rogério vai mostrar para os senhores.
O ministro do Exército havia providenciado uma tela e um projetor.
O tenente ajeitou o equipamento, colocou a fita e apertou o play. A fita começou a rodar e mostrou a chegada de um médico na frente do hospital, às três horas e doze minutos. Maurício chamou a atenção dos ministros para o tipo físico do médico e a roupa que estava vestindo. A calça meio esverdeada, o sapato preto e outros detalhes.
Terminada essa projeção, que mostrava a entrada do hospital, ela foi substituída por outra que filmava dentro da UTI. Um médico se aproximou da sala às três horas e quarenta e um minutos. Dirigiu-se ao leito do senador, segurou o pulso por um minuto mais ou menos, pôs o estetoscó- pio, caminhou pela UTI e saiu.
Uma terceira fita mostrava o médico que devia estar de plantão e com o mesmo uniforme. As comparações da estatura física, detalhes dos sapatos e da calça mostraram que, apesar das semelhanças, havia diferenças perceptíveis.
Pelos boletins médicos, o senador morreu às três horas e quarenta e seis minutos, ou seja, o doutor Oto Salles ministrou pelo pulso uma dose elevada do mesmo remédio que o senador tomava, indicado por ele mesmo. O laudo da autópsia do senador foi assinado por um médico da equipe do doutor Salles.
Mas e o outro médico? Aquele que devia estar de plantão. Por que não disse nada? — perguntou o ministro da Aeronáutica.
Imagino que ele não ia dizer que estava dormindo. Quando ouviu a informação de que tinha estado lá durante a noite, achou melhor ficar quieto, já que não fora acusado de nada irregular. Pior seria confessar sua negligência.
Mas como é que o senhor sabe que o senador foi envenenado com uma dose elevada do próprio remédio que tomava?
Fizemos a exumação do cadáver e uma nova autópsia.
Trazia uma pequena pasta com os exames e os entregou ao ministro do Exército, que os passou adiante sem examiná-los. Esperou que os ministros lessem o laudo feito por um capitão médico legista que assessora a Abin e comentou:
Os senhores podem ver que esse laudo mostra alguns produtos indutores de pressão alta que não constam do laudo apresentado pelo doutor Salles.
O ministro da Aeronáutica estava confuso.
Não sou investigador de polícia, mas por que matar o senador se ele era uma aliado deles? E o que tem a ver esse homicídio com esse Conceito Zero? O senhor chegou a alguma conclusão?
É possível que o senador não fosse aliado deles. Foi apenas outra vítima dessa conspiração diabólica.
Mas nós estávamos presentes quando o presidente da República colocou aquela gravação... Espera aí, o senhor está querendo dizer que aquela gravação foi montada só para comprometer o senador? Mas com que finalidade?
O ministro da Marinha revolveu-se na cadeira, demonstrando inquietação.
Foi uma artimanha bem planejada. O senador tinha realmente uma palestra marcada na Universidade de Buenos Aires sobre o tema: "Como o eleitor pode dar um conceito zero para um político". Veio o ofício da Universidade de Buenos Aires falando em "Conceito Zero" e comprometendo o senador, o que nos levou a montar uma acusação falsa para ver a sua reação. Como envolveram a Universidade de Buenos Aires nesse imbróglio, não sei.
Mas o senhor tem de admitir que houve uma gravação - insistiu o ministro da Marinha, que parecia sentir-se culpado pela morte do senador.
Maurício abanou a cabeça, concordando.
Não havia como produzir as provas que necessitávamos para interromper o processo da nova república. Havia a certeza de que esse alemão, o Franz Sauer, era um dos conspiradores. Eu mesmo levantei documentos nesse sentido. Os conspiradores tinham conhecimento de que nós já havíamos identificado o Franz Sauer. A partir de certo ponto eles passaram a ter certeza de que nós estávamos também atrás deles.
Os episódios de Belém do Pará... - disse o ministro da Aeronáutica.
Então o que fizeram? Aproveitaram o alemão Sauer para envolver o senador, com o envio daquele fax e a farsa da palestra em Buenos Aires. Esperavam que o senador morresse com a acusação e não poderia defender-se. A sua morte seria uma confissão de culpa e os órgãos de segurança poderiam imaginar que o perigo estava afastado.
Era um pouco confuso e ele estava encontrando dificuldade para explicar a malícia do plano.
Toda essa situação não foi montada de um dia para outro. Há anos esse grupo vem planejando a República da Amazônia. Criaram até essa estratégia de código falso para desmoralizar as Forças Armadas e poderem agir livremente. Escolheram um ex-presidente da República e senador por um Estado do Norte do país para desviar as atenções, no caso de suspeitas contra eles, como de fato aconteceu.
O silêncio continuava na sala.
Mas será que a saúde do senador estava assim tão abalada? E por que o derrame, se ele era inocente? — perguntou o ministro da Aeronáutica.
O senador já vinha sendo tratado pelo doutor Oto Salles para que ele sofresse um acidente de saúde fatal em momento de forte tensão emocional. Conforme já disse, pouco antes de o senador ir ao gabinete do presidente, o doutor Salles foi visitá-lo em sua sala no Senado. Naquele momento, deve ter medicado alguma coisa que causaria o derrame com a elevação da tensão emocional. Ao ser acusado de traição, ao mesmo tempo em que percebia que tinha sido vítima de uma conspiração, não resistiu.
Esperou uns segundos e fez outra revelação:
A CIA gravou uma conversa entre o Franz Sauer e um certo José Dílson. Foi um telefonema real com a finalidade de comprometer o alemão, que já estava sob investigação da CIA. Foi preso e, ao ouvir a conversa dele com o José Dílson, preferiu denunciar o plano para negociar uma condenação mais leve.
José Dílson? - perguntou o ministro da Aeronáutica.
Ele era uma espécie de coordenador das atividades dos conspiradores, diria eu que era a pessoa mais importante dessa Organização.
O ministro da Aeronáutica quis perguntar por que esse José Dílson ia cometer a imprudência de falar ao telefone com o Franz Sauer, numa situação dessas e depois de anos de cautela, mas preferiu aguardar as explicações.
Alguma coisa fez a Organização suspeitar do Sauer. Parece que já havia uma luta interna pelo poder. Quem tomaria conta da nova república? Esse Franz Sauer organizou grupos externos, criou várias ONGs para financiar a independência da Amazônia e passou a ser uma pessoa por demais importante.
A luta pelo poder faz parte de todas as organizações, mas não faz sentido o principal organizador se autodenunciar, comentou o ministro da Aeronáutica.
Pensamos nisso também e ficamos preocupados. Até a gravação da conversa do Franz Sauer com esse José Dílson, nós não tínhamos o nome do articulador no Brasil. Então, por que ele foi se comprometer?
Não estava seguro de que ia conseguir o resultado que esperava com essa explanação. Já se mostrava um pouco tenso, mas precisava manter o seu raciocínio claro para o ataque final.
Existe uma grande diferença entre a gravação feita para acusar o senador e a gravação da conversa do Sauer com esse Dílson. Na verdade, era comum o senador conversar pelo telefone com Franz Sauer, com quem chegou a ter entrevistas pessoais, para custeio de campanha política. Mas o senador não estava conspirando. Estava apenas sendo usado. Já os outros dois, ou seja, o Dílson e o Sauer, nunca se comunicavam pelo telefone. Não se comprometiam.
E, dirigindo-se ao ministro da Aeronáutica, que parecia esforçar-se para acompanhar o seu raciocínio:
Conforme o senhor mesmo concluiu, não havia razão para o Dílson ligar para o alemão. Mas ele ligou. Então cabe a pergunta: por que ele fez essa ligação, se sabia que a conversa seria gravada?
E antes que o ministro respondesse:
Imagino que por duas razões. A principal delas, conforme já foi dito, é que eles queriam que essa gravação fosse aproveitada. E foi o que fez a CIA. Montou outra conversa telefônica entre o Sauer e o Dílson, exatamente como este queria. Não foi nem preciso alterar a conversa, como foi feito com o senador, porque o Dílson soube usar as palavras certas. A segunda razão é que...
O ministro da Aeronáutica concluiu:
Os instantes finais. Já se sentem seguros. Não se importam em serem identificados. Nem mesmo com o fato de que o alemão sendo preso pudesse fazer uma confissão.
A hipótese era perturbadora.
Mas, se a CIA pegou o Franz Sauer, por que não pega esse José Dílson também? Ou o senhor quer dizer que ele não existe?
Obviamente o nome é falso. Embora já estejam perto do Conceito Zero, ainda usam alguns truques, como disfarces.
Então o grupo está solto. Tudo o que fizemos para evitar a divisão do país estava dentro do plano deles, nós agimos como marionetes.
Franziu a testa:
E agora temos duas dificuldades: não sabemos quem é esse José Dílson e não sabemos o que é o Conceito Zero. O senhor disse há pouco sobre bigue-bangue e não quero dizer no que estou pensando.
Levantou-se agitado:
Meu Deus! Precisamos tirar a população de Angra dos Reis. Precisamos evacuar a região. A intenção deles só pode ser a explosão de Angra dos Reis com os investigadores da AIEA dentro de uma das usinas, para criar o momento do "Conceito Zero", quando então aproveitarão a confusão e proclamarão a independência da Amazônia.
Ia continuar falando quando o telefone soou como se fosse uma sirene. O ministro do Exército levantou-se, ouviu com o rosto envelhecido e respondia com monossílabos. Desligou o telefone e voltou para o meio deles.
O ministro da Marinha não era pessoa de falar muito, mas mostrou-se também nervoso e tenso:
Será que não há tempo para retirarmos a população? Seria uma catástrofe pior que a de Chernobyl.
O ministro do Exército dirigiu-se a Maurício:
Por favor, doutor Maurício, precisamos ter uma conclusão. Maurício olhou para o tenente e para a capitã, que estavam sentados,
calados e o olhavam como uma espécie de última esperança. Sabiam que o José Dílson não podia fazer mais nada, mas tinham a esperança de que a lucidez voltasse ao país.
O assunto é delicado. Houve um episódio estranho que também estava sem explicação: o assalto ao coronel Rodrigues, chefe do Gabinete do ministro do Exército. Nós partimos do raciocínio de que somente os senhores sabiam da consulta feita à ESG. Só três pessoas sabiam do conteúdo da mensagem.
E, sem esperar qualquer reação, afirmou como se os estivesse acusando:
Essas três pessoas são os senhores aqui presentes.
O ministro da Aeronáutica levantou-se e apontou o dedo para Maurício.
O senhor não se atreva a continuar seu raciocínio.
O ministro do Exército pediu que ele se sentasse e disse:
O doutor Maurício já me falou tudo isso e gostaria que vocês ouvissem até o fim o que ele tem a dizer.
Pois bem — continuou Maurício sem rodeios como se quisesse mostrar a urgência da situação -, diante disso e como o tempo era curto, passamos a estudar a vida de cada um dos senhores. Uma dúvida nos perseguia. Se realmente algum dos senhores fazia parte do grupo, como é que até agora não foi registrado nenhum contato dos senhores com esse José Dílson ou com Franz Sauer? Deveria haver algum vestígio desses contatos, mas como? Onde?
O ministro da Marinha ficou inquieto.
Começamos então a estudar a vizinhança dos senhores, as pessoas, as atividades, o tempo em que moraram nas mesmas casas, enfim, um trabalho minucioso e cuidadoso. Nenhum vizinho do ministro do Exército levantou suspeitas. Eram pessoas que estavam rotineiramente em suas funções. Não encontramos vizinhos do ministro da Aeronáutica que também pudessem levantar suspeitas. Suas vozes foram gravadas e enviadas à CLA.
Percebeu que o ambiente estava hostil, mas concluiu:
Um vizinho do senhor ministro da Marinha chamou nossa atenção.
O senhor pode se explicar melhor? - reagiu o ministro da Marinha, em tom grave.
-Acho que o senhor já entendeu. Nós estudamos as plantas das casas de todos os moradores da redondeza, a profissão, os contatos, os telefonemas de toda essa vizinhança foram gravados, enfim, tínhamos pouco tempo, mas esmiuçamos a vida de cada um. Foi um trabalho frenético e exaustivo, para o qual tivemos ajuda. Acho que o senhor começa a me entender.
O ministro da Marinha estava ficando pálido.
Perto do senhor mora um engenheiro florestal que faz projetos de manejo na Amazônia. Ele viaja livremente pelo país e é também credenciado pelo Ibama para várias coisas.
Não estou entendendo aonde o senhor quer chegar.
—Na verdade, não faz projetos de manejo. E um subversivo treinado pelos serviços de inteligência da Rússia, de Cuba, da antiga Tchecoslováquia e trabalhou em serviços de espionagem para esses países. A casa onde mora está alugada em nome de Ariovaldo Telles de Alencar. Tivemos de pedir ajuda da CIA. Ele é muito cauteloso e cheio de artimanhas, mas já era alvo da CIA, do FBI e da NSA. Passamos a segui-lo e conseguimos gravar algumas das vozes que ele usa. Uma dessas vozes é igual à voz do José Dílson.
Então por que o senhor não mandou prendê-lo? — e olhou para a capitã. — A senhora andou investigando a vida de um ministro das Forças Armadas e lançando suspeitas sobre a honorabilidade de um alto oficial da Marinha.
Maurício desconheceu a observação e disse:
Ministro, o senhor acabou de convidá-lo para o costumeiro Black Label, em sua casa.
Eu não liguei para ninguém, isso é uma acusação tão falsa...
...quanto a que foi lançada contra o senador Rocha Meira, não é o que o senhor ia dizendo?
O ministro da Aeronáutica disse, quase gritando:
Mas, então, se vocês já prenderam esse assassino, vamos obrigá-lo a parar essa loucura...
Estava transtornado e parecia não ter percebido que o seu colega de ministério estava sendo acusado de traição. Para ele o mais importante agora era salvar a população.
O ministro do Exército olhou pesarosamente para ele e explicou:
Pelo que sabemos, o José Dílson já perdeu o controle sobre Angra dos Reis. Suspeitamos que alguém lá de dentro recebeu ordens definitivas e nem esse Dílson tem mais contato com ele. A explosão deve acontecer quando os inspetores estiverem lá dentro. E não sabemos se será em Angra I ou Angra II.
Mas alguém lá de dentro? Alguém que vai morrer também? Isso é ridículo! Aqui no Brasil!?...
Maurício responde:
O fanatismo, ministro, o fanatismo! Pensávamos estar imunes a isso, mas esse grupo foi longe. Muitos países tiveram programas nucleares interrompidos e surgiu um mercado de cientistas e técnicos de todas as origens. Alguns são frustrados, fechados dentro de si mesmos, desgostosos com a vida. Outros acreditam no suicídio como a maneira mais segura de chegar ao reino de Alá. A outros, cuja missão seria arregimentar os suicidas, foi prometida a República da Amazônia.
Disse em voz quase triste, com a certeza de que em breve todos ali tomariam conhecimento de uma grande catástrofe. Um silêncio de fazer herege meditar sobre a vida eterna tomou conta deles. Mas era preciso esclarecer todos os fatos.
-A capitã vai relatar mais um episódio. O avião que nos levou a Manaus havia sido solicitado pela capitã Fernanda ao ministro da Aeronáutica.
E, olhando para o ministro da Marinha:
O senhor se lembra disso, não se lembra?
Por que eu deveria me lembrar, se foi pedido à Aeronáutica?
O avião que devia nos levar a Manaus era um Baron 58, mas foi substituído por um monomotor. Algumas coisas naquele avião me deixaram cismado e a capitã poderá explicar melhor.
Mas como, pelo que eu sei... Mas o que eu tenho a ver com isso? Por que vocês não avisaram o ministro da Aeronáutica? Ou será que nós já estávamos sob suspeita antes?
Notava-se o esforço que fazia para manter a normalidade da voz.
Maurício olhou para a capitã e pediu que ela mesma relatasse o episódio. Ela olhou para o ministro do Exército, que fez um movimento com a cabeça, e começou a falar.
O piloto do Baron foi substituído. Um piloto com uniforme da Aeronáutica alegou que era questão de segurança nacional e ele devia ficar dois dias afastado. Deram-lhe as coordenadas de uma pista na margem direita do rio Tocantins, bem no meio da Amazônia. Ele ficou dois dias pescando. Na volta, as instruções que ele recebeu foi de que devia fazer todos os registros como se realmente tivesse cumprido as ordens originais. O piloto do Bonanza desapareceu, mas encontramos o avião, que estava preparado para que o piloto fosse ejetado com pára-quedas e o avião ficasse desgovernado, caindo em plena selva amazônica.
A capitã esperou que o ministro absorvesse a acusação e concluiu:
Isso explica também a explosão da casa onde eu e o doutor Maurício iríamos ter reunião com a Confraria. Somente os senhores poderiam saber daquela reunião.
Doutor Hassan correu em velocidade para a sala de controle. Sabia que ali estavam os computadores que regulavam as válvulas de aquecimento, já que o sistema de alarme era dotado de mecanismo que reajustava os equipamentos para mantê-los dentro da normalidade, até que o problema fosse sanado.
Era preciso desligar esse sistema de regulagem automática para que o aquecimento recebesse a carga de velocidade emitida pelos sinais que vinham do laboratório.
Pela janela de vidro fez sinal para os funcionários que olhavam preocupados para os movimentos de cada computador.
O físico doutor Orlando Morei abriu a porta e ele entrou correndo gritando para desligarem o equipamento no 29, porque o sistema estava invertido e a usina ia explodir, se não o desligassem.
Houve relutância dos funcionários que não imaginavam como aquilo poderia ocorrer e o doutor Orlando Morei contestou o doutor Hassan, mas este já estava com todos os argumentos preparados e foi mostrando o que estava acontecendo com cada equipamento.
Começaram a entender as suas preocupações e ele pôde enfim dirigir-se para o grande painel onde se concentravam os controles que ele precisava realinhar para criar a força invertida e a explosão da usina, enquanto o dr. Orlando se dirigia apressado para desligar o equipamento 29.
Os alarmes soavam com sons de advertência e luzes piscavam, dando a impressão de que tudo estava desgovernado. Os computadores indicavam os pontos de risco e situações semelhantes já foram objeto de simulações, de forma que cada técnico saberia o que fazer, não fossem as considerações trazidas pelo doutor Hassan. Era preciso, portanto, seguir as instruções do doutor Hassan, que corria em direção ao painel, em meio ao caos que se formou.
Nisso, ouviu-se uma voz forte e imperiosa que vinha da porta que ainda estava aberta. O novo personagem gritou para o doutor Hassan, mas em tom alto para que todos o ouvissem:
Pare, não toque nessa máquina!
O cientista olhou para trás e viu um homem atarracado, meio careca, uma barba estranha, que tirou o avental branco de cientista e deixou à mostra uma vestimenta estranha onde se via a emblemática Cruz dos Templários.
Ele não acreditava. Ali estava o seu colega de seminário na Noruega. Mas estava vestido como um dos Cavaleiros da Ordem do Templo, um templário. Ficou atônito olhando para aquela figura.
O templário aproveitou-se da sua confusão mental e falou com firmeza:
Lembra-se de Saladino? Quando perguntaram a ele qual a honraria que mais o agradaria no Ocidente, ele respondeu que não queria ser rei ou ser papa, queria ser templário. Ele admirava os templários por simbolizarem lealdade e bravura.
Ninguém estava acreditando no que via. Como aquele sujeito entrou ali? O que sabia ele do que estava acontecendo?
Você foi enganado. O aiatolá Ahmed não existe. Era um terrorista internacional com a maldade no coração. Quando você esteve no Irã, em 1990, para fazer uma palestra na Universidade de Teerã, uma pessoa que se identificou como aiatolá Ahmed o procurou. Passou a convencê-lo de muitas coisas, mas ele não era aiatolá. Ele era meu companheiro de lutas nas montanhas do Afeganistão. Recebia dinheiro para matar, assim como eu também recebia. Nós matávamos por dinheiro e não pelo Islã.
Todos escutavam aquele discurso tenso daquela figura estranha. Era como se o diabo tivesse saído do inferno e lançasse sons mais assustadores que os alarmes das sirenes.
É mentira, você é um impostor!
No dia 23 de novembro de 1998 você recebeu uma missão internacional. Lembra-se? Uma pessoa lhe pediu para acessar a internet. Você começou a receber instruções.
Você é um impostor, você é um impostor, um agente das forças do mal que quer impedir o reinado de Alá neste mundo.
O senhor tem razão, sempre fui um impostor. Doravante, não importa o que aconteça, não quero o mal, só o bem. Já pratiquei muita maldade. O senhor não deve fazer isso. O senhor foi enganado. Nós fomos pagos para criar o Conceito Zero, que tem por finalidade desorganizar o governo brasileiro para que pessoas interessadas apenas nas fortunas da Amazônia proclamem a independência da região e criem um novo país. Estamos ajudando as forças do mal, em vez de combatê-las.
Doutor Hassan olhava para ele espantado.
Nenhuma outra usina no mundo explodirá. Foi tudo planejado para induzi-lo a praticar essa barbaridade contra um povo bom e para fins mesquinhos. Eu mesmo lhe transmiti algumas das instruções para a criação do espelho no seu microscópio.
O maior mistério das emoções é a rapidez como elas se transformam. Doutor Hassan começou a suar. Como aquele sujeito sabia disso? Era inteligente e compreendeu tudo. Olhou para a máquina, olhou em volta os seus colegas de trabalho e uma lucidez estranha pesou sobre ele.
Sei que o senhor vai reverter o sistema de segurança, porque essa instrução eu mesmo a passei com um código criado usando versículos do Alcorão. O senhor foi enganado, mas eu era um mercenário terrorista e sabia que a explosão tinha por finalidade a divisão do país por um grupo de conspiradores brasileiros e com ajuda estrangeira.
O doutor Hassan compreendeu a situação. Ajoelhou-se na direção de Meca e começou a rezar para que Alá o iluminasse.
Levantou-se de repente:
O laboratório! Preciso ir até lá, me deixe passar!
Eu vou com o senhor.
Então vamos, então vamos!
Correram e o guarda estava ainda segurando a porta e apontando uma arma para os cientistas que ameaçavam arrombá-la.
Doutor Hassan entrou. Correu para o balcão onde ficavam seus equipamentos e foi alterando os registros. Aos poucos a calma foi voltando ao ambiente e o sistema de segurança deixou de soar os alarmes.
Quando se voltou para agradecer o estranho personagem, ele tinha desaparecido.
A capitã falava como se fosse uma advogada de acusação.
Chamou a atenção o fato de que a Marinha tivesse seguido todas as orientações que o coronel Milton falou naquele dia sobre o bloqueio da foz do rio Amazonas. Foi também muito estranho que, depois das simulações das Forças Armadas por causa do código falso, as unidades da Marinha não retornassem aos seus pontos originais, ao contrário da Aeronáutica e do Exército.
O ministro da Marinha levantou-se. Estava vermelho e falou com a autoridade de chefe de Estado, como se fosse o presidente da República da Amazônia:
É tarde! A Organização foi mais esperta que a CIA, que não conseguiu decifrar o código verdadeiro. Vocês não podem fazer mais nada. Se já não explodiram a usina, fá-lo-ão em breve. Os governadores, assim como os comandos das polícias militares dos Estados do Pará, Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia, Tocantins e Mato Grosso, serão substituídos a um sinal meu. A Marinha já tomou posições estratégicas nas desembocaduras dos rios Amazonas, Tapajós e em Manaus.
Falava como um dos cavaleiros do apocalipse.
A explosão da usina desviará as atenções, e a República será proclamada. Tudo já está preparado para que o governo brasileiro seja responsabilizado por mais esses danos à humanidade.
O ministro do Exército levantou-se também e falou com raiva contida.
O senhor se engana, ministro. Lamento chamar de traidor uma pessoa com quem convivi todo esse tempo. Uma frota de submarinos nucleares americanos aproxima-se da baía de Guajará e está pronta para ocupar a Bacia Amazônica, se vocês cometerem essa loucura.
E, balançando a cabeça de um lado para o outro, como se não acreditasse no que estava acontecendo:
Vocês estavam mesmo acreditando que o governo americano ia deixar que a Amazônia caísse em mãos de aventureiros oriundos de facções esquerdistas? Ou fosse entregue para grupos alemães? Logo que detectaram o movimento separatista, eles começaram a se aproximar da área. Assim que dessem o grito de independência, a Amazônia seria invadida. Não iriam fazer nada precipitado, mas também não hesitariam, foi o que tive de ouvir do embaixador dos Estados Unidos.
O ministro da Marinha sentiu o golpe, e o ministro do Exército continuou:
E o senhor também se engana em outra coisa. O código real foi decifrado. Os senhores sabiam que nós e o governo americano estávamos atrás desse Franz Sauer. Conforme o doutor Maurício explicou, vocês prepararam a armadilha para ele ser preso e esperaram a sua prisão para dirigir as mensagens aos destinatários responsáveis pelas ações finais.
Esforçava-se para conter a indignação.
Calcularam que não havia mais tempo para descobrirmos o verdadeiro plano e os nomes dos conspiradores. Enganaram-se, porque a CIA já enviou a eles novas mensagens, no próprio código EP, em nome dessa sua organização, comunicando que o plano falhou e que poderiam ser presos. No momento estão sendo vigiados. Infelizmente, o Sauer levou muito tempo negociando com a CIA a redução da acusação, em troca de uma confissão completa e nós também só percebemos o perigo do Conceito Zero, devido às conclusões do doutor Maurício.
Voltou-se para o ministro da Aeronáutica:
O senhor me perdoe. Tive de manter sigilo sobre isso. A descoberta do código foi decorrência de um eficiente trabalho do doutor Maurício e do tenente Rogério, mas desde aquele episódio com o roubo da mensagem da ESG, comecei a achar que nós três, os três ministros das Forças Armadas, estávamos sendo espionados. Para ser sincero, comecei a duvidar dos senhores. Peço desculpas se cheguei a ter essa impressão a seu respeito, mas o senhor pode ver que eu não estava totalmente errado.
Enfrentou o ministro da Marinha com um olhar firme:
As conversas do doutor Maurício conosco eram feitas por um aparelho de telefone celular cedido pelo governo americano e com dispositivos que não permitem escutas. Ele transmitiu o código através desse aparelho e pediu ao FBI para manter em segredo a informação de que havia descoberto os fundamentos do código. Alguns episódios não estavam ainda bem explicados.
O ministro da Marinha respirava com dificuldade, mas mantinha a sua altivez. O ministro do Exército foi até a escrivaninha e pegou algumas folhas de papel.
Se o senhor duvida do que estou falando, veja as cópias das mensagens que a embaixada americana me enviou. O senhor conhece os destinatários?
O ministro da Marinha leu. Estava pálido e trêmulo. Caíra numa armadilha. Estava dentro da casa do ministro do Exército e não tinha como fugir.
A voz do ministro do Exército entrou pelos seus tímpanos como uma coisa impossível.
Pode ser que não consigamos evitar a explosão da usina e milhares de mortes pesarão na sua consciência. Mas o Brasil não será dividido. Considere-se preso. Será submetido a uma corte marcial.
Parou de falar por uns segundos e disse num tom de voz significativo:
A não ser que tenha outra idéia.
O ministro da Aeronáutica olhava estupefato para o seu colega da Marinha e não conseguiu articular as palavras. Não podia acreditar naquilo.
O silêncio era pesado. O telefone soou como se fosse uma explosão e o ministro do Exército atendeu. Só ouvia. Estava nervoso e não falava. Desligou. Voltou-se aturdido para os demais, que esperavam a notícia da explosão.
Deus é brasileiro!
Estava quase em lágrimas.
Um fanático, com roupas de templário, salvou a usina. Deve ter sido aquele assassino convertido pelo pai. Ele sabia do Conceito Zero, como explicou o doutor Maurício.
O ministro da Marinha gaguejou:
Que garantias vocês dão aos meus subordinados?
O ministro do Exército pensou rápido.
Pelo que me consta e creio que aos demais presentes também e salvo provas que surjam, eles estão apenas cumprindo ordens de exercícios comuns - preferiu assumir o ministro do Exército, diante da possibilidade de apagar aquela página negra da história das Forças Armadas.
O ministro da Marinha recuperou a postura de dignidade que sempre exibiu. Pegou o telefone celular e discou.
Almirante, está tudo acabado. Não há possibilidade de vitória. Não, não. Dê ordens à frota para voltar às posições de rotina. Adeus, almirante. Agradeço seu companheirismo e sua lealdade. Não, não. O senhor será substituído no comando, mas sem complicações. Talvez vá para a reserva. O ministro do Exército está na minha frente garantindo isso. Não, não existe mais essa possibilidade. O plano vazou e a Marinha americana está próxima de vocês apenas aguardando ordens para afundá-los. Espero que o senhor não dê essa oportunidade a esses americanos. Adeus, almirante!
Voltou-se para o ministro do Exército:
E quanto a mim?
O senhor escreveu sua página na história. Como será lida, não sei.
O ministro da Marinha levantou a mão direita e pegou um comprimido no bolso da farda. Colocou-o sob a língua, ficou em posição de sentido e fez continência. Teve tempo de dizer:
Me perdoem - e caiu.
A capitã ficou branca e virou-se para o tenente, que a amparou.
Maurício pegou a capitã por um braço, o tenente a segurou pelo outro e saíram da sala, sem olhar para trás.
No bar do Hotel Lincoln, em Washington, o embaixador e o diretor da CIA enfim se conheceram. O diretor esperava sentado a uma mesa, com terno preto, camisa branca com finas listras escuras e gravata de cor vermelha, porém sóbria.
Havia passado a descrição da sua roupa e a mesa onde costumava ficar para o happy hour, de modo que o embaixador foi se dirigindo para ele com a face sorridente.
Caro diretor George, eu imaginava encontrar um garoto bem jovem, para tanto dinamismo.
Embaixador Williams, eu imaginava encontrar um senhor de idade, para tanta sabedoria.
O embaixador riu e sentou-se.
Estou vendo que o senhor é que deveria estar na diplomacia.
Pois eu não gostaria de encontrar um adversário como o senhor na espionagem.
Muito obrigado pelo elogio, meu caro George, mas estou curioso para saber como é que descobriu a Confraria e também conseguiu que o José Dílson telefonasse para o Franz Sauer.
Eu também estou curioso para saber como é que o senhor descobriu a identidade do José Dílson. Se não o identificasse, não conseguiríamos desmontar o golpe em tempo. Poderia ter havido uma grande confusão.
Então vamos começar assim, já que são dois os seus mistérios, o senhor conta como descobriu a Confraria e depois eu explico a minha linha de raciocínio para descobrir o Dílson.
O diretor chamou o garçom e pediu dois duplos de Blue Label, com gelo, à moda brasileira. Enquanto esperava o uísque, começou a dar suas explicações.
Nós tivemos grande participação no combate ao comunismo na América Latina e quando um militar de nível elevado era acusado de ajudar a esquerda e afastado do serviço, nós passávamos a acompanhar o que acontecia com ele, porque um militar de escalão superior é reforço considerável nas hostes inimigas.
O embaixador já estava imaginando o mestre da Confraria.
Houve um coronel do Exército, que era médico, mas não quis assinar o atestado falso de um estudante que havia morrido sob tortura, respondeu a inquérito militar, perdeu a patente, ficou preso uns tempos, saiu da prisão e desapareceu.
Mas os senhores o encontraram? Ou não?
De início, ele desapareceu. Chegamos a pensar que realmente tivesse morrido. De uns tempos para cá, começamos a suspeitar de fatos estranhos na selva amazônica. Pensávamos que se tratava do recrudescimento da guerrilha. Estávamos ainda na Guerra Fria quando a esquerda assumiu o poder no Brasil. O último presidente militar terminou o mandato em 1984 e o Muro de Berlim só foi derrubado em 1989. Os militares saíram desmoralizados com as crises econômicas e não tinham mais moral para combater a subversão socialista. Ficamos preocupados.
O embaixador não estava no Brasil, naquela época, mas conhecia bem os fatos.
Fizemos monitoramento intensivo por imagens na região onde poderiam estar esses grupos. Estudamos todos os garimpos e centros de exploração de borracha abandonados. As antigas construções de Fordlândia e Belterra, também foram investigadas.
O embaixador conhecia bem essa história. Em 1928, o empresário americano Henry Ford comprou uma imensa área de terras no alto Tapajós para tentar recuperar a produção de borracha e se livrar da dependência da Malásia. Numa área de um milhão de hectares Ford construiu duas cidades-modelo às margens do rio Tapajós, a trezentos quilômetros de Santarém.
Fordlândia era uma cidade animada, com cinemas, bailes, água encana- da e filtrada, hospital, onde, dizem, foi realizada a primeira cirurgia plástica do Pará. A população vivia com conforto, com bailes aos sábados e roupas compradas na filial das Lojas Americanas, e até clube de golfe.
O projeto não vingou e o sonho de Ford durou menos de vinte anos. Para a população local, no entanto, os americanos foram embora depois de esgotarem o ouro e os diamantes da região.
O diretor continuou:
Ficamos surpresos quando descobrimos que não se tratava de contrabandistas e traficantes, mas de uma ordem de fanáticos que se auto-denominavam Otam, ou Ordem dos Templários da Amazônia, que se sustentavam roubando traficantes e entregando-os à polícia.
Mas vocês sabiam de tudo isso e não me informaram? Ora, cheguei a pensar que a CIA...
Sei, sei, e compreendo o seu receio. Mas o senhor foi jogar golfe duas vezes com o general Ribeiro de Castro e também não falou nada sobre o que conversaram.
O general deu algumas informações vagas.
Fiquei com receio de pedir-lhes ajuda e cair no descrédito. Mas não deixei de pôr o meu agente, aquele rapaz do FBI, para confirmar os fatos. Bem, mas até aí o senhor não me disse como conseguiu fazer a Confraria ajudar aqueles três.
O diretor respirou fundo. Parece que não gostou de ouvir falar daqueles três.
Aqueles três. O senhor chegou a conhecer esse Maurício?
Não, não o conheci. Ele se aposentou e foi para a Alemanha passar uma temporada com a filha. O ministro do Exército o aconselhou a sair do país por uns tempos. Poderia haver represálias.
Ao final, coube a ele a glória de descobrir os fundamentos do código verdadeiro e ainda chegar à conclusão, sem a nossa ajuda, de que o Conceito Zero era a explosão da usina nuclear.
O embaixador compreendia a frustração do diretor. Uma instituição do nível da CIA acabou recebendo lições de um funcionário público civil brasileiro que ia aposentar-se.
Deu tempo para ele se recuperar e continuar sua explanação.
Quando descobrimos que a Confraria se alimentava de despojos de traficantes, nós começamos a ajudá-los. Lembra-se do Fantasma das histórias em quadrinhos? Existia um poço profundo perto do quartel da Patrulha da Selva, do Exército britânico, numa região da África, e ele deixava as suas mensagens no poço.
Parou de falar. Em criança, quando via as cenas do Fantasma entrando no túnel com a tocha acesa na mão, acreditava então que o Fantasma era imortal. Recuperou-se e continuou.
Tínhamos de encontrar um meio de comunicação com a Ordem dos Templários da Amazônia, que passou a ser o nosso Batalhão nas Selvas. Eles passaram a receber informações de quando e onde os traficantes iam fazer os seus negócios.
Não disfarçou o sorriso de triunfo quando perguntou:
O senhor não esqueceu o Plano Colômbia, esqueceu?
O embaixador olhou surpreso para ele.
Então... espera aí, os senhores... não acredito!
A Colômbia, na fronteira com o Brasil, vive meio século de conflitos armados nos quais o tráfico de drogas tem papel preponderante. Os Estados Unidos queriam apoio internacional para intervir militarmente na região e pôr um fim nisso. O Brasil e outros países foram contra. Alegaram questão de soberania. Ora, se não estavam conseguindo apoio para lutar contra os traficantes, não custava ajudar quem já estava fazendo esse trabalho.
Então a CIA passou a usar a Confraria para prender traficantes, já que não tivemos apoio para intervenção militar? E onde entra aí o nosso coronel?
O diretor riu, triunfante.
Tivemos a surpresa de descobrir que o mestre da Confraria era aquele coronel injustiçado. Foi fácil daí seguir os rumos da família. Ele quis saber sobre o filho. Dissemos a verdade. Tínhamos informação de que o filho estava querendo voltar ao Brasil para completar sua vingança. Como já era terrorista conhecido e tinha a vantagem de ser brasileiro, o Franz engajou-o. Tivemos de negociar com o mestre da Confraria e firmamos com ele uma espécie de tratado informal. Para que tivéssemos sua ajuda, deveríamos deixar o filho por conta dele. Se conseguisse recuperar esse assassino, nós teríamos de esquecê-lo. Foi a nossa sorte. Ao final, ele salvou a usina atômica.
O garçom trouxe o Blue Label e o embaixador ficou mexendo os cubos de gelo com o dedo indicador, como aprendera no Brasil.
Era isso então que o general estava investigando?
O diretor esperava pela pergunta e explicou:
O general desconfiou da Confraria, mas não tinha certeza. Começou a fazer muitas perguntas, fazer palestras sugestivas, enfim, ele poderia pôr tudo a perder com essas divulgações ou insinuações. Era importante que o trabalho de combate aos traficantes que a Confraria estava fazendo continuasse em segredo. Umas escutas telefônicas indicaram que o general ia se confessar na catedral de Brasília num determinado dia. Para surpresa dele, o padre que estava no confessionário era o mestre da Confraria.
O general me procurou antes da Páscoa dos Militares...
Já suspeitávamos dessa internacionalização da Amazônia, mas não era o momento de assustar a área diplomática. Por sorte, o senhor também foi discreto.
Então, por que aquela trapalhada de Juína?
O diretor balançou a cabeça, como que se desculpando.
Sabíamos que o código era falso, mas precisávamos seguir aqueles três. Não era um código difícil e eles poderiam decifrá-lo, como de fato aconteceu. O problema era o que eles iriam fazer depois. Não contávamos com toda aquela astúcia de mandar o nosso agente para Juína e eles seguirem para Cáceres. E é claro que os órgãos do governo logo embrulharam tudo e nos deixaram em má situação. Afinal, o que esperar de um governo chefiado por ex-guerrilheiros que nós ajudamos a derrotar?
Olhou para o embaixador.
Mas agora me diga, como é que o senhor chegou ao José Dílson?
Foi uma feliz intuição. No primeiro dia que o assessor Hawkins me procurou, fiquei indignado e fiz-lhe uma preleção sobre organizações militares e religiosas. Filosofei que só o ideal pode levar uma organização a ter disciplina rígida, e que na minha opinião só existiam duas organizações com essa disciplina: os militares, por causa do patriotismo; e os religiosos, que seguem a fé.
O embaixador segurou o copo de uísque.
Mas aquela conversa me deixou pensando. O que mais poderia manter uma organização unida por tanto tempo?
Ideologia?
Isso mesmo! O comunismo acabou, mas ideologia é como o patriotismo, como a fé, ou torcer para time de futebol. Comecei a fazer levantamentos dos principais esquerdistas da época. Aquele pessoal da Abin me ajudou. Eles tinham tudo catalogado. Quando chegamos a um círculo de suspeitos, o senhor completou o trabalho gravando a voz de todos eles. Aí foi fácil.
O embaixador sorriu ao acrescentar:
Mas eu pensava em tirar proveito disso, entregando o cabeça do movimento. Seria uma grande jogada. Mas não é que aqueles três chegaram a ele investigando a vizinhança? Foram objetivos e tiveram sorte. Desconfiaram do homem certo e o prenderam na casa do ministro da Marinha.
Riram e o embaixador disse:
Sem o serviço da CIA, porém, não seria possível desvendar esse plano. O senhor fez um serviço inestimável. Agora, por favor, como conseguiu que o Dílson telefonasse para o Franz?
O diretor sorriu.
Parece ironia. Mas os encontros desse Sauer em tantos lugares diferentes já tinham chamado a atenção da CIA. Começamos a investigar a possibilidade de estar envolvido com o tráfico e acabamos descobrindo essa conspiração. Procuramos criar uma prova que o obrigasse a confessar o plano. Preparamos um agente para que simulasse ser um dos empresários de confiança do Sauer. Até curso de teatro foi montado para que ele ficasse autêntico. Esse José Dílson era desconfiado, mas achou melhor ir ao encontro, que ele mesmo marcou e ao qual compareceu disfarçado.
Certo desconforto preocupou o embaixador. "Capacidade de Disfarce. Ideologia. Será que essa Organização foi mesmo desfeita?"
O senhor quer dizer que ele era especializado em disfarce?
O nosso agente gravou as conversas e percebemos os disfarces. Precisávamos criar uma situação real, mas para isso ele tinha de telefonar para esse Franz Sauer. O agente estava preparado e agiu como se o alemão viesse a ser o grande manda-chuva da República da Amazônia.
O senhor acha então que o Franz Sauer queria assumir o poder.
Por essas conversas e pelas informações que o agente nos passou, já havia forte desconfiança entre os dois lados. E, pelo que nosso agente depreendeu, nenhuma pessoa desconhecida poderia procurar esse Dílson pessoalmente.
Preparamos a armadilha. Ele assustou-se com esse atrevimento do Sauer e percebeu que precisava tirá-lo do caminho. Calculou que agiríamos da mesma maneira como agimos com o senador e telefonou para o Sauer.
Estava orgulhoso do seu trabalho e concluiu:
Em resumo: eles nos usaram para acusar o senador e nós os usamos para prender o Franz Sauer e desarticular todo o grupo.
Não vamos nos esquecer de que tive de prometer ao ministro do Exército que todos os contatos da CIA com a Confraria seriam informados à Abin. Ele concordou em não interferir nas atividades daquele pessoal, enquanto se mantiver no combate ao tráfico e não for feito um completo levantamento das ONGs envolvidas com o ambientalismo na Amazônia.
Não se preocupe! Faremos relatórios regulares para a embaixada.
O embaixador parou de falar, respirou fundo, pensou um pouco e disse:
Bem, o importante até este momento é que temos o que comemorar. Numa outra ocasião o senhor poderá me dizer que artimanhas usou para conseguir levar a Confraria até aquele local, nos cafundós do Acre. Por hoje, já houve muitas explicações e o momento é de celebração.
Com um sorriso irônico, levantaram os copos de Blue Label e disseram ao mesmo tempo:
América... para os americanos!
A. J. Barros
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