Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CONCÍLIO DE PEDRA / Jean Christophe Grangé
O CONCÍLIO DE PEDRA / Jean Christophe Grangé

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

  

 

 

 

Ao todo, Diane Thiberge dispunha apenas de quarenta e oito horas. Partindo do aeroporto de Banguecoque, devia chegar a Phuket através de um voo interno e depois meter-se à estrada em direcção ao norte para alcançar Takua-Pa, na costa do mar de Andamão. Aqui, devia passar uma breve noite no hotel e pôr-se de novo a caminho às cinco horas da manhã, mantendo o trajecto que definira. Ao meio-dia, estaria em Ra-Nong, na fronteira birmanesa, onde se embrenharia no mangai para recolher o objecto da sua viagem. Feito isto, bastar-lhe-ia percorrer o mesmo trajecto, em sentido inverso, e apanhar o voo internacional com destino a Paris, no dia seguinte à noite. A diferença horária jogaria a seu favor ganharia cinco horas pela hora de Paris. Poderia apresentar-se ao serviço na segunda-feira de manhã, 6 de Setembro de 1999. Como uma flor. Mas eis que o avião para Phuket nunca mais chegava. Eis que nada se passava conforme o previsto. Diane sentiu um nó no estômago e correu para os lavabos. Invadiu-a uma náusea e pensou: ”É a diferença horária. Não tem nada a ver com o projecto”. Logo a seguir, vomitou até as entranhas lhe subirem à garganta. O sangue latejava nas artérias, a testa estava gelada, o coração palpitava algures, em toda a parte, no seu torso. Olhou-se ao espelho. Empalidecera. As madeixas claras e onduladas pareciam-lhe mais incongruentes do que nunca naquele país de moreninhas de cabelo liso, e a sua Altura essa altura imensa que a enchia de complexos desde a adolescência ainda mais disparatada.

 Diane humedeceu a cara, limpou a argola de ouro que lhe furava a narina direita, depois ajustou os seus pequenos óculos de hippie. Regressou à sala de trânsito, flutuando como um fantasma dentro da t-shirt. O ar condicionado pareceu-lhe gelado.

 Tornou a esquadrinhar o ecrã dos voos de partida. Nenhum anúncio para Phuket. Descreveu uns quantos passos. O seu olhar deteve-se nos painéis de aviso afixados por toda a sala, redigidos em tai e em inglês: qualquer pessoa que fosse surpreendida na posse de drogas duras no território da Tailândia seria condenada à morte por enforcamento. Nesse instante passaram dois chuis atrás dela. Fardas de caqui. Revólveres de coronha quadriculada. Mordeu os lábios: tudo se lhe afigurava hostil naquele aeroporto sinistro.

 Sentou-se e tentou dominar os tremores. Pela milésima vez nessa manhã, reviu todo o périplo em pormenor. Tinha de ser bem sucedida. Era a sua escolha. A sua vida. Não podia voltar a Paris de mãos vazias.

 Por fim, às catorze horas, o avião para Phuket descolou. Diane perdera cinco horas e meia.

 À chegada é que encontrou realmente os trópicos. Foi um alívio. Nuvens azuladas estiravam-se ao longe, focos de prata irradiavam no céu. À beira da pista oscilavam árvores lívidas enquanto a poeira turbilhonava em espirais de inquietude. Acima de tudo, havia o cheiro. O cheiro da monção, ardente, sufocante, saturado de frutos, de chuva, de putrefacção. A embriaguez da vida quando ultrapassa o seu próprio limiar e se decompõe. Diane fechou os olhos de deslumbramento e por pouco não se estatelou na escada acoplada ao avião.

 

 

 

 

 

 Deu uma corrida até à agência de aluguer de automóveis, arrancou as chaves das mãos da recepcionista e meteu-se no veículo. Já na estrada, a chuva começou a cair. Primeiro umas gotas, em seguida autênticas trombas de água. O seu estrondo no tejadilho produzia um ruído ensurdecedor. Os limpa-párabrisas não eram suficientemente altos para aquela lama avermelhada. Diane guiava com o rosto colado ao pára-brisas, os dedos aferrados ao volante.

 

 Dezoito horas. Mesmo ao anoitecer, a bátega amainou. Ao crepúsculo, a paisagem tornou-se cintilante. Arrozais reluzentes, casas castanhas, erguidas sobre estacaria, búfalos de ouro e cornos afilados. Por vezes, também, templos cinzelados, de telhados arregaçados... E, sem cessar, o céu estriado de relâmpagos, matizado de negro, que se desdobrava agora, à direita, numa vermelhidão languescente.

 

 Ela alcançou Takua-Pa às vinte horas. Só então se descontraiu. Apesar do atraso, apesar do pânico, ainda ia a tempo.

 

 Encontrou um hotel no centro da cidade, perto de um alto reservatório de água, e jantou sob um alpendre. Sentia-se muito melhor. A chuva, que tinha recomeçado, revestia todo o seu ser de um halo de frescura benfazeja.

 

 Foi então que elas chegaram. Umas rapariguinhas demasiado maquilhadas, apertadas em mini-saias de skai, ataviadas de coletes de malha minúsculos. Diana observou-as. Dez-doze anos, não mais. Assemelhavam-se a ultrajes de salto alto. No outro extremo da sala, uns colossos louros já se acotovelavam uns aos outros. Alemães ou australianos, possantes como peças de carne. De repente, Diane apercebeu-se de uma espécie de hostilidade a seu respeito, como se a presença dela prejudicasse as manobras que ligavam todo aquele pequeno mundo.

 

 Sentiu a bílis queimar-lhe a garganta. Ainda hoje, com quase trinta anos, não podia encarar a simples ideia do sexo sem ficar sufocada por um mal-estar, uma náusea radical. Fugiu para o seu quarto, sem olhar para trás, sem sentir a mínima compaixão por estas miúdas entregues à avidez dos machos.

 

 Deitada sob o mosquiteiro, pensou uma vez mais no seu objectivo. Pouco antes de adormecer, tornou a ver o painel ameaçador do aeroporto, as fardas dos chuis, as coronhas das suas armas. Parecia-lhe ouvir tinidos de ferrolhos longínquos, zoadas de helicóptero ainda mais longínquas...

 

Às cinco horas da manhã estava já a pé. A sua perturbação sumira-se. O sol brilhava. A janela transbordava de exuberância, como a vigia de um navio aberta para uma tempestade vegetal. Diane sentia-se disposta a regressar à selva se fosse preciso.

 

 Retomou o caminho e chegou a Ra-Nong ao fim da manhã. Exactamente como previra. Descobriu o mar: era mais uma longa hesitação de pântanos insinuando-se no meio de entrelaçamentos de árvores à superfície da água. Algures, ao fundo deste labirinto aquático, perdia-se a fronteira birmanesa. Um pescador, sem uma palavra, aceitou levá-la. Deslizaram logo sobre as ondas negras. O calor, a luz, as muralhas verdes que desfilavam: Diane absorvia todas as sensações, estóica, com a garganta seca, a pele arrepiada ao máximo.

 

 Uma hora mais tarde, atingiram uma língua de areia sobre a qual se erguiam uns edifícios de cimento. Ela pousou o pé na areia e saboreou a sensação de triunfo como se fosse uma criança: já ali estava. Em sítio algum do planeta existia um lugar que ela não pudesse alcançar...

 

 À frente do dispensário algumas crianças armavam zaragata, indiferentes à fornalha do meio-dia. Diane observou as suas guedelhas negras, os seus olhos escuros sob o traço leve das pestanas. Penetrou no edifício principal e perguntou por Teresa Maxwell. Estava encharcada em suor. Parecia-lhe que transpunha um espelho. Um espelho gasto por si de tanto o sonhar.

 

 Surgiu uma mulher idosa envergando uma camisola azul-marinha donde sobressaía uma larga gola branca. Um modelo às três pancadas. Sob o cabelo curto e grisalho, o rosto, largo e bonacheirão, dir-se-ia fixado numa constante expressão de desconfiança. Diane apresentou-se. Mme Maxwell conduziu-a à extremidade de uma galeria rasgada por janelas, até um escritório, que à excepção de uma mesa cambada e duas cadeiras estava desprovido de mobiliário.

 

 Diane sacou da sua pasta, reduzida ao essencial. Teresa perguntou, num tom de suspeição:

 

 Não veio com o seu marido?

 

Não sou casada.

 

 O rosto crispou-se. A mulher observava a argola de ouro na narina.

 

 Que idade tem?

 

 Vou fazer trinta anos.

 

 É estéril?

 

 Não creio.

 

 Teresa folheou os documentos. Resmungou: ”Não sei o que eles andam a fazer em Paris...” Depois disse mais alto, cravando o olhar no de Diane:

 

 Não tem nada o perfil adequado, menina. É jovem, bela, solteira. O que a trouxe aqui?

 

 Diane empertigou-se, eléctrica. Tinha a voz enrouquecida, não falara nos últimos dois dias:

 

 Minha senhora, para chegar até si, levei quase dois anos. Tive que preencher uma data de papelada, sujeitar-me a interrogatórios. Espiolharam o meu passado, os meus rendimentos, a minha vida íntima. Tive que me submeter a exames médicos, a testes psicológicos. Tive que fazer seguros novos, vir previamente duas vezes a Banguecoque, gastar fortunas. Hoje, a minha documentação está o mais possível em ordem, perfeitamente legal. Acabo de percorrer quinze mil quilómetros e retomo o meu trabalho depois de amanhã. Sendo assim, se não se importa, é melhor passar ao essencial...

 

 Instalou-se um silêncio tenso no compartimento de cimento em bruto. De súbito, um breve sorriso apagou as rugas da velhota:

 

 Siga-me.

 

 Atravessaram uma sala de cujo tecto pendiam ventoinhas. Ao longo das janelas ondulavam cortinados e um cheiro a fenol pairava por ali como que transportado por ondas de febre. Entre as filas de camas de armação metálica havia crianças de todas as idades a gritar, a brincar, a correr, enquanto algumas vigilantes tentavam dominar a situação. A energia da infância parecia lutar contra uma atmosfera adocicada de convalescença. Não tardaram a surgir pormenores assustadores.

 

Enfermidades. Atrofias. Cicatrizes. O olhar de Diane deu com um bebé sem pés nem mãos. Teresa Maxwell comentou:

 

 Veio da índia do Sul, do outro lado do Andamão. Uns fanáticos hindus mutilaram-no depois de terem morto os pais, que eram muçulmanos.

 

 Diane sentia voltar a náusea. Ao mesmo tempo atravessou-a um pensamento absurdo: como é que esta mulher podia suportar um pulôver com tamanho calor? Teresa recomeçou a andar. Entraram numa segunda sala. Mais camas. E também balões coloridos que atravessavam o espaço. A mulher apontou para um grupo de raparigas, prostradas numa única cama:

 

 São karens. Os pais foram queimados vivos, num campo de refugiados, o ano passado. Eles...

 

 Diane apertou-lhe o braço, a ponto de lhe magoar a articulação.

 

 Minha senhora, ciciou ela, quero vê-lo. Agora. A directora sorriu, sem nenhuma alegria:

 

 Olhe, está ali.

 

 Diane virou a cabeça e descobriu, num recanto da sala, o combate da sua vida: um rapazinho isolado que brincava com fitas de papel crespão. Reconheceu-o imediatamente, tinham-lhe enviado polaróides. Os ombros dele eram tão franzinos que parecia que o vento o ajudava a aguentar a t-shirt. O rosto, muito mais pálido que o dos outros, exprimia uma concentração intensa, hirta, quase demasiado nervosa.

 

 Teresa Maxwell cruzou os braços.

 

 Deve ter uns seis ou sete anos. Como saber? Ignoramos tudo acerca dele: a sua origem, a sua história. É, sem dúvida, sobrevivente de um campo. Ou talvez o rebento de alguma prostituta. Encontraram-no em Ra-Nong, no meio da horda comum dos mendigos. Balbucia uma algaraviada que ninguém aqui compreende. Acabámos por apanhar duas sílabas, sempre as mesmas, ”Lu” e ”Sian”. Pusemos-lhe o nome de ”Lu-Sian”.

 

 Diane tentou sorrir, mas os seus lábios ficaram petrificados. Esquecera-se do calor, das ventoinhas, das náuseas. Arredou os balões que ainda esvoaçavam, ajoelhou-se ao pé da criança e quedou-se ali, a admirá-la. Murmurou:

 

 Lu-Sian, hem? Então chamar-se-á Lucien.

 

Diane Thiberge fora uma rapariguinha como as outras. Uma criança apaixonada que em tudo se aplicava, se concentrava, se empenhava cheia de fervor. Quando brincava, inclinando a fronte, era sempre com um tal ar de gravidade que os adultos hesitavam em importuná-la. Quando via televisão, era com uma tal concentração que se diria que ela procurava enfiar as imagens no fundo dos olhos. Até mesmo o seu sono se assemelhava a um acto de vontade, a um compromisso de toda a sua pessoa, como se tivesse jurado a si própria sair de manhã, das dobras do seu edredão, mais viva e resplandecente do que nunca.

 

 Diane crescia cheia de confiança. Deixava-se embalar pelas histórias que se sussurram às crianças quando a noite cai. Contemplava o seu futuro através dos filtros, coloridos e enganadores, dos desenhos animados, dos livros de estampas, dos teatros de marionetas. O seu coração estava cheio de plumas e os seus pensamentos cristalizavam-se, à maneira de uma neve de Abril, em torno de certezas felizes. Sabia que haveria sempre um príncipe para a levar, uma madrinha para a revestir de luz quando soasse a hora do baile. Estava tudo escrito algures. Bastava esperar.

 

 Por conseguinte, Diane esperou.

 

 Mas foram outras as forças que vieram arrebatá-la.

 

Aos doze anos, sentiu que uns desejos estranhos cresciam dentro de si. Experimentava a impressão de que o seu corpo se dilatava, se enchia de confusão. Já não tinha aspirações ligeiras, mas pulsões sombrias, angustiantes, que retalhavam no seu peito uma dor misteriosa. Falou nisto às amigas. As raparigas escarneceram, encolheram os ombros, mas Diane compreendeu que elas experimentavam exactamente as mesmas sensações. Simplesmente, haviam optado por esconder-se atrás de incertas tentativas de maquilhagem ou do fumo dos seus primeiros cigarros. Semelhantes estratégias não convinham a Diane. A adolescente queria fitar a realidade de frente, qualquer que ela fosse.

 

 Aliás, acometia-a uma lucidez implacável. Sentia-se agora capaz de desmascarar, instantaneamente, as mentiras, os compromissos das pessoas que a rodeavam. O universo dos adultos caía do seu pedestal. Os homens e as mulheres que lhe tinham sido sempre apontados como modelos revelavam-se simples criaturas de compromisso, pusilânimes, hipócritas, insidiosas.

 

 A começar pela mãe.

 

 Uma manhã, Diane decretou que a mulher com quem vivia sozinha desde que nascera não a amava, nunca a amara. Por mais que Sybille Thiberge dissesse ou fizesse, a adolescente já não acreditava nos seus enredos de mãe modelo. Pelo contrário: desconfiava cada vez mais. Demasiado loura. Demasiado bela. Demasiado sensual. Diane revia os pequenos pormenores que constituíam aos olhos dela os indícios da natureza artificial da mãe, totalmente voltada para si mesma e para os seus poderes de sedução. Aquela maneira de se requebrar assim que um homem a adulava um pouco mais de perto. Aquele modo de rir, extravagante, quando um homem rondava pelas cercanias. Na sua mãe, tudo era postiço, calculado, afectado. Não passava de um chorrilho de mentiras, e a sua vida comum era uma impostura.

 

 Teve a prova disto ao ocorrer o acidente, em Junho de 1983, quando Diane voltava sozinha do casamento de Isabelle Ybert, a sua madrinha. Sybille preferira não a acompanhar e ficar nos braços de um novo amante. ”O acidente”. O termo não convinha, mas era assim que Diane designava mentalmente o que lhe acontecera nas ruelas de Nogent-sur-Marne. Ainda hoje se recusava a relembrá-lo. Era apenas um instante em que brilhavam folhagens de salgueiros, luzes distantes, e em que se ouvia, muito próximo, o arquejo de um encarapuçado... E quando acabava por duvidar da própria realidade do acontecimento, bastava-lhe palpar as finas cicatrizes que lhe marcavam a pele sob os pêlos púbicos.

 

 A adolescente ignorava como um tal pesadelo pudera tornar-se real. Mas estava persuadida de uma verdade: tudo sucedera por causa da mãe. Por causa do seu egoísmo, da sua indiferença radical a propósito de tudo o que não fossem as suas nádegas bem musculadas e o sedento desejo dos seus amantes, o que constituía à volta dela uma espécie de círculo maléfico. Pois não é verdade que a deixara regressar sozinha por esta única razão, esquecendo-a pura e simplesmente? A agressão sofrida era o seu elemento de prova. O seu testemunho definitivo.

 

 Diane tinha catorze anos. Nada contou a Sybille. A sua vingança parecia-lhe mais perfeita, mais consumada, se deixasse a mãe na ignorância do drama. Tratou-se, sozinha, e selou a sua mágoa com este segredo. Em contrapartida, exigiu, mal o novo ano lectivo começou, o ingresso no internato. Sybille discutiu um pouco, por uma questão de pró-forma, mas anuiu ao seu pedido, muito contente, sem dúvida, por se desembaraçar daquela grande magricela taciturna, que principiava a fazer-lhe sombra no plano da sedução.

 

 Taciturna, é bem certo que Diane o era. E isso devia-se ao facto de reflectir, de tirar lições da sua experiência. O mundo, o autêntico, não era afinal senão violência, traição, malefício. A existência baseava-se nesta força irreprimível, neste núcleo duro de ódio, sempre pronto para se inflamar à mínima ocasião, no interior de cada ser humano. Diane decidiu estudar uma tal força. Apreender a violência estrutural do mundo, observá-la, analisá-la.

 

 Tomou duas resoluções.

 

 A primeira: consagrar-se, depois do liceu, à Biologia e à Etologia a ciência do comportamento animal. Já escolhera o seu domínio de especialização: os predadores. E, mais particularmente, as técnicas de caça e de combate que permitiam que as feras, os répteis, e até os insectos, reinassem no seu território e sobrevivessem graças à destruição. Era uma forma de ela mergulhar na própria essência da violência. Uma violência natural, alijada de toda a consciência, de toda a motivação exterior à simples lógica da vida. Era também, quiçá, um modo de legitimar o seu acidente pessoal, de lhe atenuar o horror, inserindo-o numa lógica mais vasta, mais universal.

 

 Eis no tocante à cabeça.

 

 Quanto ao corpo, Diane escolheu o wing-chun.

 

 Literalmente: a ”Primavera eterna”. O wing-chun era a mais rápida, a mais eficaz das escolas de artes marciais shaolin. Uma técnica que privilegiava o combate próximo e que, segundo se dizia, fora iniciada por uma monja budista. Ao reabrirem as aulas no ano escolar de 1983, Diane inscreveu-se num curso especializado, perto do seu internato, na região de Fontainebleau. Em apenas um ano, manifestou aptidões fora do vulgar. Nesta altura, já media mais de um metro e setenta e cinco e pesava uns escassos cinquenta quilos. Apesar da sua silhueta de ave pernalta, dava provas de uma agilidade de acrobata e de uma força muscular excepcional.

 

 Atentando no fenómeno, os instrutores ofereceram-se para lhe proporcionar uma formação mais aprofundada, incluindo uma iniciação no wou-te (a virtude, a disciplina marcial). Diane recusou. Não queria ouvir falar de filosofia nem de energia cósmica. Queria simplesmente forjar o seu corpo como uma arma, a fim de já não ser, nunca mais, a rapariga a quem se podia surpreender.

 

 Os mestres sábios e rígidos asiáticos ficaram desconcertados ao ouvir tais respostas agressivas. Mas sabiam que tinham ali uma campeã, e, com filosofia ou sem ela, ocasiões destas eram demasiado raras.

 

 O treino intensificou-se. As competições sucederam-se. Em 1986, a aluna Thiberge ganhou o campeonato de França na categoria júnior. Em 87, obteve o cinturão de prata nos campeonatos da Europa e depois, em 88, o cinturão de ouro. As suas vitórias eram fulgurantes. Os árbitros ficavam embasbacados, e o público ligeiramente decepcionado. Sempre próxima, sempre inclinada, Diane, com o olhar pregado nas mãos das adversárias, não as largava. Ainda as raparigas estavam à procura de uma abertura e já se viam derrubadas, de ombros colados ao chão.

 

 Nada parecia poder parar a ascensão da jovem atleta. No entanto, em 1989, Diane renunciou à competição. Tinha dezanove anos e, devido a uma espécie de milagre, o seu rosto nunca fora tocado nem o seu corpo atingido gravemente. Mais cedo ou mais tarde, esta sorte acabaria por mudar e, de resto, ela já alcançara o seu objectivo.

 

 Tornara-se aquilo em que resolvera tornar-se.

 

 Uma jovem perigosa sob todos os aspectos e que era preferível passar a evitar.

 

  Diane Thiberge escutava então Frankie goes to Hollywoonum walkman minúsculo, saturado de baixos. Adorava este grupo porque ele estava no cruzamento de várias tendências, aparentemente contraditórias, e todavia conjugadas aqui numa magia única.

 

 Em primeiro lugar, Frankie era um grupo de duros, de malandrins, vindos directamente de Liverpool. Era também um grupo pós-disco, que amadurecera um sentido de ritmo, o groove, capaz de enfeitiçar qualquer frequentador de pistas de dança. Enfim, Frankie era um grupo gay. E era o mais louco: essa deflagração de urros, de pulsações bárbaras, de slogans veementes, emanava de uma banda de malucas que pareciam acabadas de sair da Corte de Luís XIII. Semelhante característica dava a estes músicos uma ligeireza, uma mobilidade, uma destreza alucinantes. Assim, o quinto membro do grupo não tocava nenhum instrumento. Mal se poderia dizer que cantava... Dançava simplesmente, era ”o homem em movimento”, ao fundo do palco, rebolando as clavículas no seu blusão de cabedal. Diane até se arrepiava: sim, a sério, Frankie era um grupo encantado.

 

 O frenesim das suas noites de estudante limitava-se ao seu walkman. Não saía, não dançava, não se dava com ninguém. Concentrava-se nos livros de etologia, revendo em cada serão as obras de Lorenz ou de Von Uexkúll e consumindo hambúrgueres do MacDonalds uns atrás dos outros, no seu estúdio do bairro de Cardinal-Lemoine.

 

 No entanto, nessa noite, Diane decidira lançar-se.

 

 Nathalie a pequena peste dos trabalhos práticos de Biologia que sabia atrair às suas garras tudo o que a UER contava de mais apetitoso organizava uma festa e ela resolvera ir até lá.

 

 O momento de agir era agora ou nunca.

 

 O momento de saber.

 

 Mais tarde, Diane recordaria frequentemente esta noite crucial. A chegada ao prédio de pedra de cantaria, no boulevarSaint-Michel, o silêncio da vasta escadaria, atapetada de veludo. Em seguida a pulsação profunda, como que perseguida pelos graves, que descia dos andares superiores. Ela tentava reprimir os batimentos do seu coração, que percutiam o ritmo a contratempo, e cerrava os dedos sobre a garrafa gelada de champanhe, comprada de propósito. Atrás da grande porta de madeira envernizada, as batidas eram tão violentas que pareciam fazê-la saltar dos gonzos. ”Não é possível que me ouçam”, disse ela para si, carregando na campainha.

 

 Quase imediatamente, a porta abriu-se deixando passar torrentes de música. Reconheceu logo a voz de Holly Johnson, o cantor dos Frankie, que berrava: ”RELAX! DON’T DO IT!”. Era um bom presságio: o seu grupo fetiche acompanhava-a nesta prova. Uma morena de feições ossudas, reluzentes de uma maquilhagem exagerada, bamboleava-se no limiar da porta. Nathalie a Górgona, em pessoa:

 

 Diane? gritou ela. Estou super-contente por teres vindo...

 

 Sorriu da mentira enquanto a rapariga a mirava dos pés à cabeça. Diane trazia um casaco de malha preto com botões de nácar e umas calças justas e compridas de moletão escuro esta matéria reinava então em absoluto sobre o corpo das raparigas. Quanto ao resto, estava envolvida numa imensa capa acolchoada, também preta.

 

Vieste com o teu pijama e o teu edredão? escarneceu Nathalie.

 

 Diane beliscou entre dois dedos o vestido de tafetá preto da rapariga.

 

 Estás bem mascarada esta noite, não é?

 

 Nathalie deu uma gargalhada. Tirou-lhe das mãos a garrafa de champanhe e berrou:

 

 Entra. Põe as tuas coisas na sala ao fundo.

 

 Lá dentro, a festa estava no auge. Depois de se ter desembaraçado da capa, Diane postou-se junto ao buffet, ponto de encontro dos que não conheciam ninguém. Jurara a si mesma não tocar numa gota de álcool a fim de conservar maior lucidez em todas as circunstâncias. Todavia, após uma hora de aborrecimento, já ia na terceira taça. Bebia em pequenos goles, deitando breves olhadelas à pista de dança.

 

 Começara a contagem decrescente.

 

 Embora não possuísse uma grande experiência de convívios nocturnos, Diane conhecia de algum modo os seus rituais. À meia-noite começavam os preliminares. As raparigas dançavam, rodopiavam, exibiam, acentuando os efeitos dos movimentos do cabelo e do corpo, enquanto os machos, pelo contrário, se retraíam: olhares à socapa, sorrisos breves, gracejos de aproximação...

 

 Às duas horas da madrugada, abria-se um período de efervescência. A música subia de tom. O álcool varria as inibições. Todas as esperanças eram permitidas. Os rapazes passavam aos actos, vociferando por cima da barafunda, arremetendo para as suas presas. Foram de novo os Frankie que propulsaram a assistência até ao delírio. Two Tribes. Um canto de revolta contra a guerra, sustentado por uma rítmica selvagem, do qual Diane conhecia as mínimas notas, os mínimos riffs.

 

 Desta vez, abandonou-se à música. Lançou-se no meio dos outros, sendo as suas patas de gafanhoto a garantia do melhor que ela podia. Notou alguns olhares na sua direcção. Diane mal acreditava nisto. Tímida entre todas, sabia que intimidava ainda mais. A maior parte das vezes, a sua beleza, a cabeleira ondulada e a altura desmedida mantinham os pretendentes a boa distância. Mas naquela noite não havia dúvida: alguns temerários dirigiam-lhe a palavra.

 

 Sentia agora o seu corpo a desdobrar-se em espirais ligeiras, a pairar acima do ritmo, a circular entre os outros. Foi então que um tipo lhe pegou na mão para dançar um rock. Em todas as pistas do mundo, há sempre um gajo que se obstina em multiplicar os passes complicados seja qual for a batida da música. Diane recuou logo. O parceiro insistiu. Ela ergueu as duas palmas, ameaçadora. Não. Não dançava o rock. Não. Não lhe pegavam na mão. Ninguém lhe pegava em coisa alguma. O jovem desatou a rir e sumiu-se na multidão.

 

 Ela ficou petrificada por uns instantes, fitando a mão como se acabasse de ser queimada pelo contacto. Cambaleou, recuou, depois deixou-se escorregar ao longo da parede. Às apalpadelas, encontrou uma taça meio vazia pousada no chão. Bebeu-a de um trago e agarrou-a bem sem sair mais dali. A tristeza invadia-a. Esta cena acabava de lhe lembrar a cruel verdade: não suportava o mais pequeno afloramento de pele. Nem a mínima carícia, o mínimo toque. Sofria de uma fobia da carne.

 

 Às três horas da madrugada, a música adquiriu um cunho mais esotérico: O Superman, de Laurie Andersen. Uma estranha canção de embalar, entremeada de suspiros encantatórios. Era a hora da derradeira oportunidade. Na penumbra, já só restavam alguns fantasmas isolados, que se afundavam ao ritmo da melopeia. Caçadores teimosos. E umas pobres raparigas esfalfadas, que recusavam confessar-se vencidas.

 

 Diane escrutava os rostos esmaecidos, as silhuetas vacilantes. Tinha a impressão de contemplar um campo de batalha, coberto de feridos e de moribundos. Foi buscar a capa, depois ladeou discretamente a mesa do buffet juncada de garrafas vazias. O seu espírito já estava lá fora. Imaginava o ar gelado que a desembriagaria e lhe permitiria encarar plenamente o seu fracasso.

 

 Neste mesmo instante sentiu umas mãos a cingir-lhe a cintura.

 

 Rodou, apoiada à mesa, tensa como um arco.

 

Cercavam-na três tipos com o hálito carregado de álcool.

 

Eh! rapazes: a festa ainda não rendeu tudo o que tem a render.

 

 Um dos agressores estendia novamente as mãos. Diane esquivou-se ao gesto com um meneio e voltou-se para a mesa. Largou a capa, encontrou outra taça e fez menção de beber. Durante uns momentos, pensou que eles se tinham ido embora, mas um sopro alcoolizado rasou-lhe a nuca. A taça estalou entre os seus dedos. Um caco ostentava marcas de baton. Ela passou-lhe a palma da mão por cima e sentiu o vidro cortar-lhe a carne.

 

 Deixem-me em paz, murmurou. Nas suas costas, os tipos alardeavam:

 

 Oh, oh, oh! está a fazer-se cara...

 

 Lágrimas ardentes transpuseram as fronteiras da armação de tartaruga dos seus óculos. Distintamente, pensou: ”Não o faças”. Mas um dos bebedolas produzia agora ruídos de sucção mesmo ao pé do seu ouvido, tartamelando histórias de ratas, de grelos, de bimbas. ”Não o faças”, repetiu ela para si mesma. No entanto, acabava de tirar os óculos e já atava a madeixa caída num carrapito. Enquanto terminava o gesto, um dos fulanos introduzira as mãos sob o seu casaco de malha. Ela sentiu o calor dos dedos a roçar-lhe os seios ao mesmo tempo que a voz segredava por entre risos:

 

 Não me tentes, minha linda, tu...

 

 O estrondo feito pelo maxilar sobrepôs-se à música dos Art Of Noise.

 

 O rapaz foi catapultado contra a lareira, rasgando o rosto numa aresta de mármore. Diane desferira um ataque de cotovelo Jang tow. Pensou uma vez mais: ”NÃO”, mas a sua mão partiu num golpe contra as costelas do segundo adversário, esmagando-as num único estalido. Ele foi estatelar-se na mesa do buffet que vergou em mil tinidos e pregas de toalha.

 

 Diane já não se mexia. O wing-chun baseia-se na economia absoluta do gesto e da respiração. O último patife desaparecera. Só então ela tomou consciência dos rostos apavorados, dos murmúrios acabrunhados que a rodeavam. Pôs os óculos. Estava espantada não pela violência da cena nem pelo escândalo. Pela sua calma no meio daquilo tudo. À direita, a voz de Nathalie esbravejou:

 

 Tu... mas tu... estás doente ou quê?

 

 Diane virou-se devagar para a morena e declarou:

 

 Lamento muito.

 

 Atravessou a sala, depois ainda gritou de novo, por cima do ombro:

 

 Lamento muito!

 

 O boulevarSaint-Michel estava exactamente como ela esperara.

 

 Deserto. Gelado. Luminoso.

 

 Diane caminhava através das suas lágrimas, simultaneamente mortificada e liberta. Obtivera a prova que aguardara. A prova de que a sua existência decorreria sempre assim: fora do círculo, fora dos outros. E pensou uma vez mais no acontecimento inicial. Aquela cena atroz que rompera nela a pulsão mais natural e erguera em torno do seu corpo uma prisão transparente, incompreensível, e inviolável.

 

 Reviu os salgueiros, as luzes.

 

 Sentiu as ervas na boca, o hálito do encarapuçado.

 

 Viu surgir também, num reflexo de ódio, o rosto da mãe. Um sorriso de cansaço bailou-lhe nos lábios: nessa noite, já não tinha força suficiente para detestar ninguém. Chegou à Place Edmond-Rostancuja fonte resplandecia de luzes, tendo à esquerda as frondescências benevolentes do Jardim do Luxemburgo. Num impulso, deu uma corrida e tocou com os dedos nas folhas das árvores que assomavam do gradeamento negro e dourado.

 

 Sentia-se tão leve que lhe pareceu que nunca mais iria abrandar.

 

 Tudo isto se passava no sábado, 18 de Novembro de 1989. Diane Thiberge ainda não tinha vinte anos, mas já o sabia: acabava de enterrar para sempre a sua vida de rapariga.

 

 Não precisa, de nada? Não, obrigada. Tem a certeza?

 

 Diane ergueu os olhos. A hospedeira de bordo, de farda azul e sorriso púrpura, envolvia-a num olhar compadecido. Um olhar que acabou por a arreliar. Esfalfava-se a cortar os fritos da ”ementa júnior” que tinham sugerido ao garotito pouco depois da descolagem de Banguecoque. Sentia os talheres de plástico a torcerem-se sob os seus dedos, a comida a esmagar-se sob os seus gestos demasiado bruscos. Parecia-lhe que toda a gente a observava, reparava na sua falta de jeito, no seu nervosismo.

 

 A hospedeira eclipsou-se. Diane ofereceu mais um bocado à criança, que se recusava a abrir a boca. Ficou muito corada, inteiramente desamparada. Pensou novamente no espectáculo que estava a dar com o rosto afogueado, as madeixas em desalinho e o seu garoto de olhos negros. Quantas vezes teriam as hospedeiras contemplado esta mesma cena? Ocidentais desorientadas, trémulas, trazendo o seu destino na bagagem?

 

 A silhueta azul voltou à carga. ”Talvez uns bombons...”Diane esforçou-se por sorrir: ”Não, de verdade, está tudo bem.” Tentou mais uma ou duas colheradas; em vão. Os olhos da criança estavam pregados ao ecrã que difundia desenhos animados.

 

Ela convenceu-se de que uma refeição falhada não era um assunto de Estado. Afastou o prato, colocou os auscultadores nos ouvidos de Lucien e depois hesitou. Devia ligá-los ao inglês? Ao francês? Ou simplesmente à música? Cada pormenor a mergulhava na incerteza. Optou pelo menu musical e regulou o volume com precaução.

 

 A atmosfera apaziguou-se dentro do avião. Levaram os tabuleiros da refeição, as luzes baixaram. Lucien já dormitava. Diane deitou-o nos dois assentos livres, à sua direita, e instalou-se por sua vez, enfiando-se sob a manta regulamentar. Em geral, durante os voos de longa distância, era a hora que ela preferia: a cabina imersa na obscuridade, o ecrã luminoso a brilhar ao longe, os passageiros imóveis, encolhidos como casulos sob os cobertores e os auscultadores... Tudo parecia flutuar, pairar entre sono e altitude, algures acima das nuvens.

 

 Diane apoiou a cabeça no encosto e procurou permanecer imóvel. Aos poucos, os seus músculos descontraíram-se, os seus ombros descaíram. Sentiu a calma afluir outra vez às veias. De olhos fechados, deixou desfilar, sob a tela preta das pálpebras, as diferentes etapas que a haviam trazido até aqui a esta viragem capital da sua existência.

 

 Os seus êxitos desportivos e as suas proezas mundanas estavam longe. Diane obtivera o doutoramento em Etologia com distinção, em 1992: As estratégias de caça e a organização das áreas de predação entre os grandes carnívoros do Parque Nacional Masai Mara, no Quénia. Trabalhara logo a seguir para várias fundações privadas, que consagravam avultados fundos ao estudo e à protecção da natureza. Diane viajara pela África subsariana, pela Ásia do Sudeste e a índia, em especial por Bengala, no quadro de um programa de salvaguarda do tigre do Sundarband. Distinguira-se igualmente por um estudo de um ano sobre os costumes dos lobos canadianos, os quais seguira e observara, sozinha, até aos confins dos Territórios do Noroeste, parte mais setentrional do país.

 

 Levava por essa altura uma existência de estudo e viagens, ao mesmo tempo nómada e solitária, o mais perto possível da natureza, e, ao fim e ao cabo, em conformidade com as suas esperanças de criança. Contra tudo e todos, apesar dos seus traumas, apesar das suas taras secretas, Diane construíra uma espécie de felicidade bem sua, e erigira-se em força de independência.

 

 Contudo, no ano de 1997, via surgir uma nova etapa.

 

 Faria trinta anos em breve.

 

 Isto nada significava em si mesmo. Sobretudo numa mulher como Diane: o seu físico de grande pau-de-virar-tripas e a sua vida ao ar livre preservavam-na melhor que a qualquer outra das corrupções do tempo. Do ponto de vista biológico, porém, o número 3 assinalava uma barreira. Enquanto especialista em ciências da vida, ela sabia que era nesta idade que a matriz feminina começava, imperceptivelmente, a degenerar. Em boa verdade, mau grado os costumes em voga nos países industrializados, os órgãos genitais da mulher eram concebidos para funcionar muito cedo à maneira dessas pequenas mamãs africanas cuja idade andava por uns escassos quinze anos e com quem Diane tantas vezes se cruzara. Esta passagem à casa dos trinta lembrava-lhe, simbolicamente, uma das suas mais profundas verdades: nunca teria filhos. Pela simples e óbvia razão de que nunca teria um amante.

 

 Não estava pronta para esta nova renúncia. Pôs-se à procura de soluções. Comprou livros especializados e mergulhou, com um nó na garganta, em plena noite vermelha das técnicas de procriação assistida. Havia, primeiro, a inseminação artificial. No seu caso, deveria ponderar a fórmula ICI (inseminação com doador). As palhetas de esperma viriam de um banco especializado e seriam injectadas quer ao nível do orifício interno do colo, quer na cavidade uterina, durante o período do ciclo menstrual mais favorável à fecundação. Os médicos iriam então penetrar nela com os seus instrumentos pontiagudos, aduncos, gelados. A substância de um desconhecido iria insinuar-se no seu ventre, fundir-se no seio dos seus mecanismos fisiológicos. Imaginava os seus órgãos cavidade uterina, trompa de Falópio, ovários... a reagir, a activar-se em contacto com o outro”. Não. Nunca. A seus olhos, seria uma espécie de violação clínica.

 

 Inteirou-se da segunda técnica: a fecundação in vitro. Tratava-se, desta vez, de colher os óvulos por meio de uma punção e de os fecundar artificialmente em laboratório. A ideia desta operação à distância, nas brumas geladas de uma sala estéril, seduzia-a. Prosseguiu a leitura: recolocava-se então um ou vários embriões no útero da mulher, por via vaginal. Diane deteve-se e compreendeu, uma vez mais, a sua estupidez. O que imaginara ela: que a sua gravidez se desenrolaria numa proveta, atrás de um vidro embaciado de geada? Que veria o embrião formar-se a pouco e pouco, numa mutação desencarnada?

 

 As suas fobias tenazes erguiam um muro, uma parede indestrutível entre ela e qualquer projecto de parto. O seu corpo, o seu útero permaneceriam sempre estranhos a estes desígnios, a estes desenvolvimentos maravilhosos. Diane entrou num período de profunda depressão. Passou algum tempo numa clínica de repouso, em seguida refugiou-se na vivenda pertencente a Charles Helikian, o marido da sua mãe, na encosta do Mont-Ventoux, no Lubéron. Aqui, nesta doce estufa de sol e grilos, é que ela tomou uma nova resolução. Já que excluía qualquer tentativa orgânica, mais valia escolher uma nova via: a da adopção. Em definitivo, Diane preferia uma tal orientação, que era um autêntico”compromisso moral e já não uma tentativa distorcida de imitar a natureza. Na sua situação, era a decisão mais coerente e sincera. Perante si mesma. Perante a criança que partilharia da sua vida.

 

 No Outono de 1997, efectuou as primeiras diligências. Procuraram, a princípio, dissuadi-la por todos os meios. Em teoria, a adopção estava aberta aos solteiros. Na prática, era muito difícil obter o aval da DDASS em semelhante situação, que podia sugerir hábitos homossexuais. Diane recusou desanimar e redigiu o processo de pedido de deferimento. Começaram então longos meses de entrevistas, de requerimentos, de exames e pareciam rodar em circuito fechado e nunca mais chegar a bom termo.

 

 Perto de ano e meio após o seu primeiro requerimento, ainda nada se esclarecera. O padrasto ofereceu-se para intervir em favor dela. Podia, segundo dizia, dar um empurrão ao processo. Diane rejeitou sem rodeios. Esta intervenção constituiria uma ingerência, mesmo indirecta, da sua mãe no seu próprio destino. Depois mudou de ideias. As suas obsessões e cóleras não deviam interferir num projecto tão importante. Nunca chegou a saber o que Charles Helikian fez, mas, um mês mais tarde, recebia o assentimento da DDASS.

 

 Restava encontrar o orfanato que lhe proporia a criança. Diane sempre imaginara que se trataria de um rapazinho e que ele viria de um país longínquo. Consultou múltiplas organizações que apadrinhavam lugares de acolhimento nos quatro cantos do mundo, e sentiu-se de novo perdida. Uma vez mais, Charles serviu de intercessor. Sendo mecenas nas horas vagas, atribuía todos os anos alguns fundos substanciais à Fundação Boria-Mundi, que financiava vários orfanatos na Ásia do Sudeste. Se Diane aceitasse orientar-se para esta fundação, as últimas diligências poderiam decorrer bastante depressa.

 

 Três meses mais tarde, ia já a caminho do orfanato de Ra-Nong, após duas viagens sucessivas a Banguecoque para acertar os procedimentos administrativos. Charles supervisionara a escolha do pupilo e tivera em conta que, ao contrário da maior parte das mães adoptivas, Diane desejava recolher uma criança com mais de cinco anos. Habitualmente, as mulheres optavam por um recém-nascido porque supunham que a adaptação dele seria mais fácil. Esta tendência desagradava a Diane, até a revoltava: a ideia de que certos órfãos, privados de tudo, tinham ainda por cima a pouca sorte de crescerem demasiado ou de serem abandonados tarde de mais levava-a naturalmente a interessar-se por estes enjeitados...

 

 De repente, o garotito estremeceu ao lado dela. Diane abriu os olhos, descobrindo a cabina do avião ensolarada. Compreendeu que estavam prestes a aterrar. Cheia de pânico, apertou contra si o seu menino e sentiu o contacto dos trens de aterragem sobre a pista. Não eram os pneus que queimavam a pista, eram os seus próprios sonhos, os dela, que desafiavam agora a realidade.

 

 Entre muitas outras resoluções, Diane decidira respeitar, desde o primeiro dia, os seus horários de trabalho. Queria habituar Lucien, o mais depressa possível, ao ritmo da vida quotidiana que ambos levariam. Ora, naquele momento, estava enfronhada na redacção de um relatório sobre o ”ritmo circadiano dos grandes carnívoros, no Parque Nacional de Hwange, no Zimbabwe”. Devia acabar urgentemente o documento a fim de requerer novos fundos junto do WWF International, que já co-financiara a missão na África Austral. Eis porque se dirigia todas as manhãs ao laboratório de etologia da faculdade de Orsay, onde lhe tinham atribuído um pequeno gabinete ao pé da biblioteca para lhe ser possível verificar cada uma das suas referências científicas.

 

 Para tomar conta da criança, Diane contratara uma jovem tailandesa, estudante na Sorbonne, que falava um francês impecável e parecia talhada em doçura e ternura. Na primeira semana, cumpriu a sua promessa. Saía de casa às nove horas da manhã e voltava às seis da tarde. Todavia, na segunda-feira seguinte começou a falhar. Partia um pouco mais tarde todas as manhãs. Voltava um pouco mais cedo todas as tardes. Não cessava, apesar da sua resolução, de prolongar a sua presença em casa tal qual uma estação de amor que aumentasse as suas horas de luz.

 

Era uma felicidade absoluta.

 

 As suas angústias de mãe adoptiva recuavam à medida que os sorrisos do rapaz se multiplicavam, que a sua vivacidade infantil prevalecia sobre os receios iniciais por ela experimentados. À custa de gestos expressivos, de risos, de caretas, o miúdo conseguia fazer-se compreender e parecia insinuar-se sem dificuldade na sua nova pele de citadino. Diane aquiescia, respondia-lhe em francês e tentava, o melhor que podia, dissimular o seu próprio espanto.

 

 Imaginara tantas vezes este pequeno ser que acabara por o forjar segundo os seus próprios sonhos. Hoje, porém, a criança estava ali, e tudo era diferente. Tratava-se de um rapaz real, de rosto real, de temperamento real. Via cada uma das suas suposições voar em estilhaços frente a esta presença. Tudo se passava como se Lucien se arrancasse sem esforço ao invólucro fantasioso que ela esculpira e lhe oferecesse em troca toda a amplidão, toda a diversidade do seu ser, inesperado, surpreendente, e sempre infinitamente justo porque infinitamente verdadeiro.

 

 A hora do banho era um encantamento. Diane não se cansava de observar aquele torso tão pequenino, aquelas costas tão alvas, aquela ossatura de ave tensa de energia e delicadeza. Admirava aquela pele de leite, próxima da perfeição, tão diferente das outras crianças com quem se cruzara no orfanato, sob a qual palpitavam vénulas azuis e órgãos subtis. Lembrava-lhe um pintainho cuja silhueta fervente de vida aflorasse a sua ténue casca.

 

 Um outro momento de pura contemplação era a hora de deitar, quando Diane contava uma história na penumbra do quarto. Lucien nunca tardava a adormecer e era então a vez de ela se deixar embalar pelas delicadas sensações que fluiam sob os seus dedos. Aquele calor mimoso da pele. Aquela oscilação imperceptível da respiração. E aqueles cabelos tão finos, tão soltos que pareciam requerer uma atenção especial por parte dos dedos uma aptidão secreta do tacto. Donde podiam provir tais cabelos? De que floresta de genes? Algures. Era sempre esta palavra que lhe acudia aos lábios na obscuridade.

 

Algures. Cada traço, cada pormenor desse corpo lhe recordava as longínquas origens do rapazinho e parecia, não obstante, aproximá-lo dela, uni-lo à sua solidão parisiense.

 

A personalidade de Lucien erguia-se à maneira de um edifício de vidro que revelava ao longo dos dias a sua arquitectura, os seus meandros, o seu cume. Ela sempre imaginara que Lucien seria um ser turbulento, agitado, imprevisível. Era, pelo contrário, de uma doçura, de uma graça, desnorteantes. Apesar dos seus modos de selvagem comia com os dedos, resistia a lavar-se, ia esconder-se logo que surgia alguma visita, dava sempre provas, em profundidade, de uma sensibilidade, de uma intuição, que deslumbravam a jovem. Porquê negá-lo? Lucien assemelhava-se, sem tirar nem pôr, ao rapaz que ela teria gostado de dar à luz.

 

Diane encontrava todos os motivos de admiração numa actividade em particular, que solicitava tantas vezes quanto possível: as sessões de dança e canto de Lucien. O seu filho adoptivo, por gosto, por jogo, por dom natural, exprimia-se assim à mínima oportunidade. Ao descobrir esta paixão, ela comprara-lhe um leitor-gravador de cassetes vermelho-vivo, ligado a um microfone de plástico amarelo cor de limão. A criança gravava-se sempre a si mesma, batendo nestes momentos em tambores improvisados. A apoteose do desempenho era um bailado original. De súbito, uma perna erguia-se em ângulo recto, os dedos tacteavam sobre um véu imaginário, depois toda a silhueta rodopiava a fim de melhor recomeçar noutro registo. Encolhido, arqueado, fincado, o pequeno corpo abria-se como as asas de um escaravelho, para ondular logo a seguir ao sabor do ritmo.

 

Foi durante um destes números desenfreados que Diane ousou felicitar-se. Jamais lhe passara pela cabeça uma mais completa felicidade. Em três semanas, alcançara uma serenidade, um equilíbrio, que ela planificara no decurso de anos. Pela primeira vez na sua existência, estava a ser bem sucedida num assunto que dizia exclusivamente respeito à sua vida pessoal.

 

Nesse instante, atentou nos algarismos vermelhos da data assinalada no seu despertador de quartzo.

 

 Segunda-feira, 20 de Setembro.

 

 Talvez tudo corresse agora às mil maravilhas, mas tornava-se impossível adiar o terrível acontecimento.

 

 O jantar em casa da mãe.

 

 A porta blindada abriu-se para a silhueta

grácil. As luzes do vestíbulo desenhavam em volta do seu carrapito um halo avermelhado, mesmo por cima da nuca. Diante dela, Diane permanecia no limiar, hirta como um círio. Tinha Lucien, adormecido, nos braços. Sybille Thiberge bichanou:

 

 Está a dormir? Entra. Quero vê-lo.

 

 Diane ia dar um passo em direcção ao interior, mas estacou logo.

 

 Acabava de distinguir rumores de vozes no salão.

 

 Não estás sozinha com o Charles?

 

 A mãe assumiu uma expressão confusa:

 

 O Charles combinara um jantar importante para esta noite e...

 

 Diane deu meia volta a caminho das escadas. Sybille agarrou-a pelo braço, com essa mescla de autoridade e doçura que a caracterizava.

 

 Que fazes? Endoideceste?

 

 Disseste-me que era um jantar íntimo.

 

 Há obrigações que não podemos adiar. Não te armes em parva, entra.

 

 Apesar da penumbra, Diane enxergava a silhueta da mãe com precisão. Cinquenta e cinco anos, e sempre aquelas feições de boneca eslava, aquelas sobrancelhas louras, aqueles cabelos de ouro a esvoaçar como num cartaz de propaganda soviética! Trazia um vestido chinês pássaros furta-cores sobre fundo negro que favorecia a sua cintura fina e redonda. Um decote abria-se para uns seios irrepreensíveis. Não retocados: Diana sabia-o. Cinquenta e cinco anos, e a criatura não cedia uma polegada no território da sensualidade. Diane teve de repente a impressão de ser mais magra, mais desengonçada que nunca. De ombros abatidos, deixou-se guiar, mas murmurou apontando para Lucien: Se falares dele à mesa, dou cabo de ti. A mãe anuiu, não rebatendo sequer a violência de linguagem da filha. Diane seguiu-a através de um corredor muito comprido. Atravessou, sem neles reparar, os vastos compartimentos que conhecia de cor. Os móveis exóticos que projectavam as suas sombras sobre as tapeçarias  kilims, desdobradas como vertentes de céu. As telas contemporâneas, zebrando com as suas audácias coloridas as paredes perfeitamente brancas. E, espalhados pelas cantoneiras e as mesas baixas, os pequenos candeeiros mortiços e discretos que se assemelhavam a puras sentinelas de luxo.

 

 Sybille preparara uma cama de madeira pintada num quarto claro, cheio de seda e de tule. Diane receou de súbito que a mãe se apegasse ao seu papel de avó. No entanto, optou por uma trégua. Felicitou-a pela decoração e depôs Lucien com precaução sobre a cama. Por breves instantes, as duas mulheres uniram-se na contemplação do menino.

 

 No corredor, Sybille encetou logo as suas tagarelices habituais: mundanidades e advertências relativas ao jantar. Diane não escutava. No limiar do salão, a mulherzinha loura voltou-se e observou as roupas da filha dos pés à cabeça. O seu rosto exprimia consternação.

 

 O que foi? perguntou Diane.

 

 Vestia uma camisola muito curta, umas calças de pano imensas, pousadas em equilíbrio sobre as ancas, e um blusão de penas sintéticas pretas.

 

 O que foi? repetiu. O que se passa?

 

Nada. Lembrei-me simplesmente de que te coloquei à frente de um ministro em funções.

 

 Diane encolheu os ombros:

 

 Estou-me nas tintas para a política.

 

 Sybille condescendeu num sorriso ao abrir a porta do salão:

 

 Podes ser provocante, engraçada ou estúpida. Sê o que

 

 te apetecer. Mas não faças escândalo.

 

 Os convidados beberricavam um líquido com reflexos de um ocre pardacento, sentados em poltronas da mesma cor. Os homens eram grisalhos, idosos, barulhentos. Mais atrás, as respectivas mulheres entregavam-se a uma silenciosa contenda, avaliando as suas diferenças de idade como se estas fossem fossos cheios de crocodilos. Diane suspirou: aquilo anunciava-se mortal.

 

 Todavia, também reencontrava as pequenas manias, mais ou menos divertidas da mãe. Assim, a música dos LeZeppelin ronronava em surdina. Algures a mãe, desde a sua juventude doidivanas, só escutava harrock e free jazz. Avistava igualmente, sobre a mesa posta, os estranhos talheres em fibra de vidro. Sybille era alérgica ao metal. Quanto à ementa, sabia que seria essencialmente composta de um prato agridoce com mel, substância de que a mãe se servia para condimentar todos os pratos.

 

 Minha pequenina! Vem dar-me um beijo!

 

 Ela avançou, de sorriso nos lábios, para o seu padrasto que lhe estendia as mãos. Baixote, espadaúdo, Charles Helikian parecia um rei persa. Tinha a tez mate e usava barba em colar. O cabelo crespo aureolava-lhe o crânio e assemelhava-se a nuvens de trovoada com as quais os olhos escuros se harmonizavam de uma maneira estranha. ”Minha pequenina”: o homem teimava em chamá-la assim. Porquê ”pequenina”, quando afinal Diane já ia nos trinta anos? E porquê dele, se Charles a conhecera numa altura em que ela era uma adolescente de catorze anos? Mistério. Renunciou a decifrar estes requebros de ”linguagem e dirigiu-lhe um sinal amistoso com a mão, sem se debruçar. O homem não insistiu: sabia que a enteada não apreciava as efusões.

 

 O jantar foi servido. Como sempre, Charles conduzia a conversa com eloquência. Diane adorara logo à primeira este enésimo companheiro da mãe, que pouco tempo depois se tornava o seu padrasto oficial. Na vida profissional, o homem era uma eminência. Começara por abrir consultórios de psicologia de empresa e em seguida orientara-se para missões de aconselhamento, muito mais discretas, junto de grandes patrões e de personalidades políticas. Que conselhos dava? De que missões se tratava? Diane nunca entendera patavina desta actividade. Ignorava se Charles se limitava a escolher a cor dos fatos dos clientes ou se geria as suas empresas no lugar deles.

 

 Na verdade, Diane marimbava-se para o ofício e o êxito de Charles. Admirava-o mais pelas suas qualidades humanas: a sua generosidade, as suas convicções humanistas. Sendo um antigo esquerdista, jogava com as suas próprias contradições, ligadas à fortuna e à posição social. Vivendo embora naquele apartamento espaventoso, continuava a fazer discursos altruístas, a defender o poder do povo e a igualdade social. Não receava continuar a glorificar uma ”sociedade sem classes” ou a ”ditadura do proletariado”, as quais tinham no entanto provocado a maior parte dos genocídios e das opressões do século xx. Quando Charles Helikian usava estas palavras abominadas, elas recobravam todo o seu poder. Sem dúvida porque o homem tinha estilo e argúcia e conservava, no fundo do coração, uma fé, uma sinceridade, uma aurora, ainda intactas.

 

 Diane sentia uma secreta nostalgia destes ideais que não conhecera e que tinham feito vibrar a geração de sua mãe. Fazia lembrar alguém que nunca tocou num cigarro, mas aprecia o perfume refinado do tabaco. Apesar dos massacres, das opressões, das injustiças, ela nunca conseguira abdicar de um estranho fascínio pela utopia revolucionária. E quando Charles comparava o socialismo vermelho à Inquisição, quando lhe explicava que os homens se haviam apoderado da mais bela das esperanças e a tinham transformado num culto do pavor, ela escutava-o abrindo os olhos, igual à menina tão séria que fora noutro tempo.

 

Nessa noite, a conversa girava em torno das perspectivas imensas, luminosas, infinitas do sistema de comunicação Internet. Charles não concordava: via, sob a quinquilharia da tecnologia, um novo modo de alienação destinado a incitar toda a gente a consumir mais, a perder um pouco mais o contacto com a realidade e os valores humanos.

 

À roda da mesa, os convivas anuíam. Diane observava-os: estes patrões e estas figuras políticas, tal como Charles, riam-se certamente da Internet e do seu eventual poder de alienação. Estavam ali pelo simples prazer de escutarem opiniões insólitas declamadas com fervor, ou de se deixarem seduzir por aquele fumador de charutos que lhes recordava a sua juventude e as iras que eles ainda fingiam sentir.

 

De repente, o ministro dirigiu-se directamente a ela:

 

A sua mãe disse-me que é etóloga.

 

O homem tinha um sorriso de esguelha, um nariz aquilino, olhos móveis como algas japonesas. Ela sibilou:

 

Sim, é isso mesmo.

 

O político sorriu aos outros convivas, como se quisesse suscitar a indulgência deles.

 

Devo confessar que não sei de que se trata, disse ele. Diane baixou as pálpebras. Sentia-se corar. O seu braço

 

estava estendido em oblíquo, contra o canto de mesa. Explicou num tom neutro.

 

A etologia é a ciência do comportamento dos animais.

 

Que animais estuda?

 

As feras. Os répteis. As aves de rapina. Os predadores, essencialmente.

 

Não é um universo lá muito... feminino.

 

Ela ergueu os olhos. Todos os olhares estavam pousados na sua pessoa.

 

Depende. Entre os leões, só a fêmea caça. O macho fica ao pé das crias para as proteger dos ataques dos outros clãs. A leoa é, sem dúvida alguma, a criatura mais mortífera da selva.

 

Tudo isso é bastante lúgubre...

 

Diane bebeu uma golada de champanhe.

 

Pelo contrário. Trata-se de uma das vertentes da vida. O ministro riu para dentro:

 

O sempre iterno chavão da vida que se alimenta da morte.

 

Um chavão como os outros: que só espera uma ocasião para se confirmar.

 

Seguiu-se um silêncio. Em pânico, Sybille soltou uma gargalhada:

 

Que tal não vos impeça de saborear a minha sobremesa! Diane deitou-lhe um olhar trocista e descortinou um tique nervoso no rosto da mãe. Distribuíram-se os pratos, as colherzinhas. Mas o político levantou a mão:

 

Só mais uma pergunta.

 

Instantaneamente, os comensais imobilizaram-se. Diane compreendeu que o homem nunca cessara, durante o jantar, de ser para os outros um ministro. Ele prosseguiu, fixando-a com intensidade.

 

Para que é a argola de ouro na narina?

 

Diane abriu as mãos em sinal de evidência. As chamas das velas faiscavam nos seus anéis de prata lavrada.

 

É para me fundir nas massas, suponho.

 

A mulher do ministro, à sua direita, inclinou-se entre dois castiçais para dizer:

 

Não devemos pertencer à mesma massa!

 

Diane esvaziou a taça. Só então percebeu que bebera em demasia. Proferiu, virando-se para o político:

 

De todas as espécies de zebras, só algumas estão ainda bem presentes na natureza. Sabe quais?

 

É claro que não.

 

As zebras cujo corpo se acha inteiramente revestido de listras. As outras desapareceram: a sua camuflagem não era suficiente para provocar um efeito estroboscópico quando corriam no meio das ervas.

 

O ministro manifestou o seu espanto:

 

Qual é a relação com a argola que usa? Onde pretende chegar?

 

Quero dizer que, para as coisas funcionarem, uma camuflagem deve ser completa.

 

 Pôs-se de pé, mostrando o umbigo, também ele furado por uma haste de ouro lateral onde estava suspensa uma argola cintilante. O homem sorriu agitando-se na cadeira. A mulher dele recuou para a sombra, muito carrancuda. Um sussurro embaraçado derramou-se pela mesa.

 

 Diane encontrava-se agora no vestíbulo. Lucien ainda dormia nos seus braços, enrolado num cobertor de lã grossa.

 

 És louca. Pura e simplesmente louca.

 

 A mãe falava em voz baixa. Diane abriu a porta.

 

 O que disse de mal?

 

 São pessoas importantes. Toleram-te à mesa deles e...

 

 Estás enganada, mamã. Eu é que os tolerei. Tinhas-me prometido um jantar íntimo, lembras-te?

 

 Sybille abanava a cabeça, consternada. Diane volveu:

 

 Seja como for, pergunto a mim mesma o que diríamos uma à outra...

 

 A mãe remexia nas suas madeixas louras.

 

 Precisamos de falar, temos de almoçar juntas.

 

 Tens razão. Um dia destes almoçamos. Adeus.

 

 No patamar, apoiou-se contra a parede e ficou uns segundos em plena obscuridade. Finalmente respirava. Sentia o corpo morno do seu menino e este simples contacto tranquilizava-a. Tomou uma nova resolução. Devia absolutamente manter Lucien à distância daquele universo artificial. E, mais ainda, das suas próprias cóleras, ainda mais absurdas que os jantares mundanos.

 

 Posso vê-lo?

 

 Charles estava no vão iluminado da porta. Aproximou-se para ver o rosto adormecido.

 

 É muito bonito.

 

 Ela sentia o cheiro do homem mistura de perfume requintado e de eflúvios de charuto. O mal-estar começava a infiltrar-se dentro de si.

 

Charles passou a mão pelo cabelo de Lucien.

 

 Acabará por se parecer contigo. Ela meteu pela escada resmoneando:

 

 Bem. Vou a pé. Não suporto elevadores.

 

 Espera.

 

 Charles segurou-a bruscamente pelo braço e puxou-lhe o rosto ao encontro da sua boca. Diane recuou, mas demasiado tarde: os lábios do homem haviam roçado os dela. Num ápice, invadiu-a uma incoercível repulsa.

 

 Desceu alguns degraus às arrecuas, de olhos esbugalhados. No patamar, Charles mantinha-se imóvel. A sua voz já não era mais do que um sopro:

 

 Desejo-te boa sorte, minha pequenina.

 

 Diane fugiu pelas escadas abaixo, mais ligeira que uma aranha.

 

As luzes do túnel desfilavam à velocidade de uma cascata. Diane pensava em filmes de ficção científica. Perseguições em subterrâneos luminescentes. Armas que lançam feixes ofuscantes. Na faixa mais à esquerda do boulevarpériphérique, carregava a fundo no acelerador. Os vapores do álcool ainda lhe baralhavam os pensamentos.

 

 O seu único laço com a realidade parecia-lhe ser aquele volante nas suas mãos. Conduzia um Toyota Landcruiser. Um 4x4 todo-o-terreno, enorme, que ela recuperara quando terminara uma missão africana. Uma velha caranguejola, encimada por corta-ventos engradados, que não ia além dos cento e vinte quilómetros por hora, mas à qual Diane se afeiçoara.

 

 Saiu do túnel e reencontrou a chuva que batia num rumorejo metálico. Maquinalmente, deitou um olhar a Lucien através do retrovisor regulara o espelho pelo eixo dele. A criança dormia sem se mexer, na concavidade do seu banco sobrelevado.

 

 Concentrou-se no trajecto. Como de costume, apanhara o périphérique na Porte d’Auteuil e dirigia-se agora para a Porte Maillot. Este itinerário constituía um desvio, mas Diane evitava sempre o dédalo do décimo sexto bairro. Já milhentas vezes o Padrasto tentara explicar-lhe o caminho exacto. Milhentas vezes ela renunciara a compreender estas circunvoluções. Charles desistia então com uma gargalhada tonitruante.

 

 Charles.

 

 Que história fora aquela do beijo? Enxotou a recordação como quem cospe e debruçou-se para ver melhor o boulevarlacerado de chuva. Porque lhe fizera ele uma coisa assim? Seria mais uma das suas atitudes excêntricas? Uma das suas poses estudadas? Não: esse beijo não pertencia a um dos seus habituais maneirismos. O gesto possuía outro significado. De resto, era a primeira vez que ele a enlaçava daquela maneira.

 

 As vagas do aguaceiro açoitavam violentamente o pára-brisas. A visibilidade era quase nula. Diane tentou aumentar o rendimento dos limpa-pára-brisas. Em vão. Lançou uma olhadela ao retrovisor. Lucien ainda dormia. Os clarões alaranjados das lâmpadas de sódio estriavam-lhe o rosto. Esta imagem tranquilizou-a. O rapazinho selava o destino dela. Conferia-lhe uma força insuspeita. Nada mais contava de ora avante na sua vida.

 

 Quando o seu olhar voltou a fixar-se na estrada, ficou transida de pavor.

 

 Uma viatura pesada transpunha as cortinas imensas do aguaceiro, resvalando através das quatro faixas, como que entregue a si mesmo.

 

 Diane travou. O camião embateu contra o separador central, arrancou as lâminas de metal e, ao raspar, produziu um som agudo. A cabina saltou com violência, enquanto o reboque se estatelava nas outras faixas. A cabeça do engenho rodou a três quartos até bater nas barras laterais, desta vez com o flanco direito. Rangidos metálicos elevaram-se sob a chuva, misturados com girândolas de faíscas, ao mesmo tempo que os faróis do monstro varriam a tormenta.

 

 Ela quis gritar, mas o grito embargou-se na garganta. Travou ainda mais, mas o abrandamento transformou-se brutalmente numa aceleração descomedida. Diane estava paralisada. O seu carro deslizava a grande velocidade, de rodas bloqueadas por ter perdido qualquer espécie de aderência ao pavimento. O pesado derrapava num gigantesco pião.

 

O Toyota já só estava a uns metros do monstro. Ela travou outra vez. Tentando anular, a golpes breves de travão, o fenómeno de derrapagem na água. Nada a fazer: a velocidade continuava a aumentar. No entanto, este fragmento de instante parecia nunca mais ter fim.

 

 Viu-se de repente a chocar com o muro de ferralha. Viu-se, por assim dizer, a transpor o embate. A atravessar o metal e a encastrar-se nas estruturas do camião. Viu-se morta, esmagada, despedaçada numa lama de sangue, de carne e de ferro.

 

 Jorrou finalmente um urro da sua garganta. Deu uma guinada brutal de volante para a esquerda.

 

 O carro espetou-se nos separadores espatifados. O impacto cortou-lhe a respiração. A cabeça embateu no retrovisor. Tudo se velou de negro, enquanto no mesmo instante explodia um clarão no interior de si mesma. Mais uma pausa. Uma suspensão, sem contorno nem seguimento. Diane tossiu, soluçou, cuspiu mucos ensanguentados. Confusa, compreendeu, o seu corpo compreendeu: ainda estava viva.

 

 Abriu as pálpebras. A forma transparente que avançava para ela não era mais do que o seu pára-brisas comprimido pela distorção do habitáculo. Tentou mexer a cabeça e desencadeou um derramamento de vidro. A nuca estava entalada pelo tampo da bagageira que, arrancado, aterrara nos seus ombros à maneira de uma canga. Por entre a dor, Diane sentia subir dentro de si uma nova angústia. Algo não encaixava: o pára-brisas não se estilhaçara. Donde vinham as lascas de vidro?

 

 O seu primeiro pensamento consciente foi para Lucien. Voltou-se e ficou aturdida: o banco sobrelevado estava vazio.

 

 No lugar dele, milhares de partículas translúcidas e manchas de sangue maculavam o assento. O aguaceiro engolfava-se pelo vidro partido e encharcava o tecido do banco estampado com ursinhos. Às apalpadelas, as mãos feridas de Diane encontraram os seus óculos. Estavam rachados pelas colisões, mas confirmaram-lhe o horror: a criança já não se achava no carro. O choque catapultara-a através do vidro da retaguarda.

 

Diane conseguiu soltar-se do cinto. Empurrou a porta com o ombro e veio cá para fora. Caiu logo numa poça, rasgando o blusão contra a aresta dos separadores laterais. Apesar do atordoamento, captou a sensação da relva húmida, os odores a sebo queimado. Levantou-se e foi a coxear até à beira da estrada. Faróis rasgavam a noite. As buzinas elevavam-se num clamor vociferante. Ela não via nada de preciso. Exceptuando as poças de gasolina, no asfalto, que se irisavam sob os candeeiros como fragmentos de arco-íris.

 

 Tornou a cambalear, distinguindo aqui e além uns pormenores de apocalipse. A viatura pesada, disposta em V invertido a toda a largura da estrada. O logotipo berrante da companhia, a cobertura de lona a estralejar no meio da bátega. O motorista a saltar da sua cabina, com a cabeça entre as mãos, os braços a escorrer sangue. Mas ela não descortinava Lucien. Nem o mais pequeno vestígio do corpo.

 

 Aproximou-se mais do semi-reboque. Subitamente estacou. Acabava de descobrir um dos sapatos da criança, um ténis vermelho, depois, poucos metros mais adiante, a sombra fatídica. Estava ali. Na charneira da composição, apresado sob o sistema de sustentação do reboque, afundado nos cabos arrancados e nos jactos de vapor. Ela discernia agora cada um dos pormenores. O pequeno crânio assente num charco escuro, o corpo enterrado até meio do torso sob a ferragem, o blusão de malha grossa impregnado de gasolina e de chuva... Diane reuniu as suas últimas forças e avançou.

 

 Não vá lá... Uma mão retinha-a.

 

 Não vá. É melhor não ver aquilo.

 

 Diane fitava o homem, sem compreender. Uma outra voz ecoou à sua esquerda:

 

 Nada mais pode fazer, minha senhora...

 

 Cada timbre se diluía na zoada do aguaceiro. Ela não apreendia o significado das palavras. Uma voz:

 

 Vi tudo... Céus!... É inacreditável que esteja ilesa... O seu cinto é que a deve ter salvo...

 

 Desta feita, Diane entendeu o sentido implícito de tais palavras. Libertou-se das mãos que a retinham e voltou para junto do seu carro. Contornou o veículo, apoiando-se na carroçaria escaldante, em seguida alcançou a porta de trás do lado direito do Toyota. Conseguiu abri-la puxando com todas as suas forças. Observou cheia de atenção o banco sobrelevado, todo salpicado de vidro partido.

 

 A correia de policarbono repousava, intacta, ao lado do banco.

 

 Diane não pusera o cinto a Lucien.

 

 Por inadvertência, matara o filho.

 

 Sobreveio um rebentamento de trovoada no seu ventre. Relâmpagos. Um sorvedouro de electricidade.

 

 O solo alteou-se: era ela que caía de joelhos.

 

 Já não tinha pensamentos, nem consciência, nem nada. Só sentia o martelamento dos seus anéis, amalgamados em sangue e em chuva, à medida que batia no rosto com os dois punhos cerrados.

 

 O quarto de reanimação era constituído por três paredes envidraçadas que abriam para o corredor, ele próprio estriado pelas divisórias translúcidas dos outros quartos. Diane estava sentada no meio da obscuridade. Envergando uma bata e equipada com uma touca e uma máscara de papel, postava-se absolutamente imóvel diante da cama cromada. Parecia dominada por ela. Dominada por aquele bojo de metal repleto de cabos e de aparelhagens, ao fundo do qual repousava Lucien.

 

 Uma sonda de intubação, ligada a um respirador artificial, penetrava na boca da criança. Ao longo da sua mão direita, o tubo de uma perfusão conduzia a seringas eléctricas que permitiam, segundo lhe haviam explicado, injectar um tratamento doseado com uma precisão que ia até ao mililitro e ao minuto, durante as vinte e quatro horas do dia. No braço esquerdo, um cateter captava a tensão arterial, enquanto uma pinça, fulgindo na obscuridade como um rubi, apertava um dos seus dedos e avaliava a resposta de Lucien à ”saturação de oxigénio”.

 

 Diane sabia que também havia eléctrodos, algures sob os lençóis, que vigiavam o batimento do coração. Não via, tão-pouco e era preferível, os dois drenos cravados sob o enorme penso do crânio. Os olhos dela pousaram, como por reflexo, no ecrã suspenso à esquerda da cama. Sobressaíam ali umas ondas e uns algarismos, em verde luminescente, que não cessavam de assinalar a actividade fisiológica da criança em coma.

 

 Ao contemplá-los, Diane pensava sempre numa capela. Um lugar de recolhimento e de fervor, onde brilhassem tenuemente iluminuras de ícones, cibórios, círios... As curvas cintilantes, os algarismos de quartzo eram os círios dela. Lampejos votivos em que depositara as suas esperanças, as suas preces.

 

 Vivia quase permanentemente neste quarto do serviço de neurocirurgia pediátrica do hospital Necker. Desde o acidente ainda não dormira nem comera praticamente nada. Assim como não ingerira o mínimo calmante. Contentava-se em remoer sem descanso a mais pequena das suas recordações cada minuto, cada pormenor que se seguira à colisão.

 

 A chegada do primeiro veículo de socorro interrompeu a sua crise de desespero.

 

 Só nesse instante parou de se agredir e observou o carro que transpunha, de sirenes a uivar, o caos das viaturas imobilizadas. Vermelho. Cromado. Flanqueado por instrumentos de ferragem. Os bombeiros saíram de lá em uniforme à prova de fogo, enquanto surgia já um veículo marcado com as insígnias da polícia urbana, ao longo da via de urgência. Os agentes concentraram-se na circulação. Vestidos com oleados cor-de-laranja fluorescente, balizaram a estrada e canalizaram o fluxo dos automóveis para a fila mais à direita a única que o reboque não bloqueava.

 

 Diane pusera-se de pé, junto ao Toyota. Os bombeiros afastaram-na sem cerimónia e regaram logo o seu carro com espuma carbónica. Esgazeada, ela sentia-se rodeada de um número crescente de automobilistas, de murmúrios, de rumorejos de chuva. Mas nada mais ouvia senão as suas próprias palavras, que lhe martelavam a consciência: ”Matei o meu filho. Matei o meu filho...”

 

 Encaminhou-se para o camião e reparou, entre as silhuetas encarapuçadas que se recortavam contra a luz frouxa do túnel, num homem vestido de cabedal que se escapava da zona exacta onde o filho estava encarcerado. O instinto fê-la ir na sua direcção. O bombeiro meteu-se no carro de socorro e pegou num emissor de rádio. Quando Diane chegou a poucos metros dele, pôde ouvi-lo gritar de VHF em punho:

 

 O AVP do interior, aqui, Porte de Passy... Onde é que anda a unidade médica?

 

 Ela transpôs as finas agulhas de chuva. O homem berrava:

 

 Há uma vítima. Um miúdo. Sim... Respira, mas...

 

 O bombeiro não terminou a frase. Atirou o rádio e correu para o furgão que acabava de surgir sob as colunas de água. Diane discerniu as letras que brilhavam na carroçaria: SAMU de Paris, SMUR, Necker 01. Todos os circuitos do seu ser se inverteram. Uns momentos antes, ela flutuava, petrificada, esvaziada, como morta. Seguia agora cada pormenor com o coração a bater, vendo os homens do SAMU a acorrer, munidos de grandes mochilas. Uma esperança. Havia uma esperança.

 

 Indo no encalço deles, logrou contornar a linha dos chuis. Anichou-se o mais perto possível da cabina do pesado. Espalhara-se sobre o asfalto uma larga camada de óleo e de gasolina que recusava misturar-se com a água da chuva. Os vapores alaranjados dos candeeiros raiavam a sua superfície. Os homens estavam todos debruçados sobre a mesma zona. Diane já não via o filho.

 

 Abeirou-se e esforçou-se por observar melhor. O corpo tremia-lhe, mas havia um vigor a controlá-la, a obrigá-la a continuar a olhar. Finalmente enxergou a silhueta frágil. As suas pernas cederam quando atentou no crânio ferido, banhado numa poça negra. Por entre os cabelos arrancados, distinguiu uma crescente de pele vermelha, nua, em carne viva. Tombou sobre um joelho e surpreendeu, já no solo, um homem agachado sob o chassis do camião, perto de Lucien. Vociferava numa VHF:

 

  1. Tenho uma contusão cerebral. Sem dúvida bilateral.

 

Sim. Preciso de um pediatra com a maior urgência. Repito, com a maior urgência. Tomaram nota?

 

Diane cerrava os lábios. As palavras imprimiam-se na sua carne. O médico saiu do antro de aço. Vestia uma parca por baixo da qual aparecia uma bata branca.

 

Coma, sim... Score de Glasgow...

 

Com uma rapidez fulminante, abriu os olhos da criança, tacteou-lhe o pescoço, apalpou-lhe os pulsos: Entreabriu novamente os olhos da criança.

 

Confirmo: scorede Glasgow a quatro. Já saiu, o pediatra? Acrescentou, examinando apressadamente o braço direito de Lucien:

 

Tenho também uma fractura exposta no cotovelo direito. (Manipulou os cabelos ensanguentados.) Uma ferida no couro cabeludo. Sem gravidade. Continuação do balanço dentro de dez minutos.

 

A seu lado, um enfermeiro abria os velcros de uma mochila, enquanto outro enfiava cobertores dobrados entre a criança e as chapas retorcidas. Uns bombeiros estendiam toldos de plástico para os protegerem da chuva. Ninguém parecia reparar em Diane.

 

O médico friccionava agora os maxilares de Lucien, ao mesmo tempo que lhe desnudava o pescoço com extrema precaução. Um dos enfermeiros introduziu-lhe uma minerva debaixo da nuca. O clínico ajustou-a num só gesto.

 

  1. Entuba-se.

 

Na sua mão materializou-se um tubo translúcido que ele enfiou logo na boca entreaberta. Já o segundo enfermeiro implantava um cateter na mão esquerda de Lucien. Estes homens pareciam governados pelos reflexos condicionados da urgência e da experiência.

 

O que está aí a fazer?

 

Diane ergueu os olhos. O médico não lhe deu tempo de responder, como se adivinhasse, através da chuva, a resposta no seu olhar, lesse a sua aflição nas limalhas de ouro das suas íris.

 

 Que idade tem ele? perguntou.

 

 Ela balbuciou uma frase ininteligível, depois repetiu mais alto cobrindo o martelamento da chuva sobre o toldo:

 

 Seis ou sete anos.

 

 Seis ou sete anos? berrou o médico. Está a brincar comigo?

 

 É uma criança adoptada... Eu... acabo de o adoptar. Há poucas semanas.

 

 O homem tornou a abrir a boca, hesitou, depois absteve-se de retorquir. Desapertou o blusão de Lucien e soergueu-lhe a camisola. Diane ficou arrepiada. O torso estava negro. Ela levou alguns segundos a compreender que não era sangue: apenas óleo. Servindo-se de uma compressa, o clínico limpou o tórax. Sem erguer o olhar, perguntou:

 

 Tem antecedentes?

 

 O quê?

 

 Ele colocava pastilhas adesivas no peito nu. Resmungou:

 

 Doenças? Problemas de saúde?

 

 Não.

 

 Premiu as pastilhas com eléctrodos.

 

 Vacinou-o contra o tétano?

 

 Sim. Há duas semanas.

 

 Estendeu os fios ao segundo enfermeiro, que os ligou imediatamente à parte posterior de uma caixa revestida de pano negro. O médico já encerrava o bíceps do rapazinho na braçadeira de um tensímetro. Ressoou um bip. O homem deu novos cabos ao enfermeiro, que os conectou a um outro bloco.

 

 Surgiu um bombeiro sob o toldo. Trazia umas enormes luvas de pano e uma parca de capuz. Atrás dele aproximava-se lentamente um camião em marcha atrás. No seu flanco estava inscrito: DESENCARCERAMENTO. Avançavam mais silhuetas segurando instrumentos bárbaros ligados a cabos pneumáticos, empurrando macacos hidráulicos sobre carrinhos, enquanto outros, com equipamentos de fogo, se posicionavam em círculo, lanças e extintores na mão. Preparava-se um ataque organizado.

 

 Vamos?

 

 O médico, com as feições sulcadas pelo suor, não respondeu. Ouviram-se novos rasgamentos de velcro.

Apareceu um ecrã empunhado por um enfermeiro. Jorraram luzes verdes: sinuosidades, algarismos. Para Diane, foi como se o impossível acontecesse. A linguagem da vida oscilava neste monitor.

A vida de Lucien.

 

 O bombeiro bradou:

 

 Vamos ou não, merda?

 

 O clínico ergueu o olhar para o bombeiro enchumaçado:

 

 Não, ainda não. Estamos à espera do pediatra.

 

 Impossível (Apontou para o solo reluzente de gasolina.) Daqui a um minuto vai tudo...

 

 Já cheguei.

 

 Uma nova personagem acabava de se introduzir sob o toldo. Hirsuto, lívido, ainda mais mal amanhado do que o primeiro médico. Os dois clínicos trocaram umas palavras abstrusas onde abundavam as abreviaturas e as iniciais. O pediatra inclinou-se para Lucien e entreabriu-lhe as pálpebras:

 

 Bolas!

 

 O quê?

 

 A midríase. A pupila está dilatada.

 

 Impôs-se um breve silêncio entre os homens. O bombeiro virou costas. Os engenhos mecânicos aproximavam-se inexoravelmente.

 

 OK, pronunciou por fim o médico recém-chegado. Sedação geral. Um PentoCelo. Onde está a VHF?

 

 Enquanto o primeiro médico e os enfermeiros se afadigavam, apoderou-se do

emissor e entrou por seu turno nas vociferações de rádio.

 

 Novo balanço sobre o AVP. Preparem o bloco de neurocirurgia. Temos uma forte suspeição de hematoma extradural. Repito: um HEI num dos dois hemisférios! (Uma pausa.) Temos uma lesão neurocirúrgica e uma contusão cerebral...

 

(Outra pausa.) Mas eu cá não sei nada! A midríase já está presente, é tudo. Porra! trata-se de um garoto. Ainda não tem sete anos. Daguerre. Precisamos de Daguerre no bloco! Ninguém mais!

 

 O bombeiro reapareceu. O médico das urgências endereçou-lhe um breve sinal de assentimento. Em poucos segundos, instalou-se uma nova organização. Os enfermeiros envolveram a criança em cobertores de feltro e almofadas de lona. Mais adiante, as lâminas dos macacos deslizavam sob o chassis do camião.

 

É melhor sair daí, ciciou o primeiro médico a Diane.

 

 Ela olhou para o homem, de espírito vazio, depois aquiesceu, aturdida. A última visão que teve de Lucien foi a de uma silhueta rodeada de tábuas e de cobertores, provida de óculos de tecido acolchoado sobre os olhos.

 

 Um silvo agudo ressoou no quarto. Diane sobressaltou-se. Quase a seguir, surgiu uma enfermeira. Sem sequer olhar para a jovem, suspendeu uma nova bolsa de cloreto de sódio no suporte metálico e fixou-a à perfusão.

 

 Que horas são?

 

 A enfermeira virou-se. Diane repetiu:

 

 Que horas são?

 

 Vinte e uma horas. Julgava que se tinha ido embora, senhora Thiberge.

 

 Ela respondeu com um vago meneio de cabeça, depois fechou os olhos. Logo as pálpebras lhe arderam, como se lhe estivesse interdito o mínimo descanso. Quando os reabriu, a mulher sumira-se.

 

 Mais uma vez as suas recordações a arrancaram ao presente.

 

 Tem a certeza de que não quer ir para o meu gabinete? Diane fitava o Dr. Eric Daguerre, em pé junto à superfície do negatoscópio. No painel de luz desdobravam-se as radiografias e os scanners do crânio de Lucien. As imagens reflectiam-se no rosto do cirurgião.

 

 Ela disse que não com a cabeça e proferiu numa voz sem timbre:

 

 Como é que correu?

 

 A intervenção durara três horas. O médico enfiou as mãos nas algibeiras da bata.

 

 Fizemos o que pudemos.

 

 Por favor, doutor. Dê-me uma resposta clara.

 

 Daguerre não tirava os olhos dela. Toda a gente a elucidara: era o melhor neurocirurgião do hospital Necker. Um virtuoso que já trouxera dezenas de crianças das margens sem retorno do coma. Ele explicou:

 

 O seu filho sofria de um hematoma extradural. Uma bolsa de sangue situada no hemisfério direito. (Indicava a zona numa das radiografias.) Abrimos a têmpora a fim de ter acesso ao hematoma. Aspirámos o sangue empastado e coagulámos toda essa região. É o que se designa por hemóstase. Tornámos a fechar, deixando um dreno pelo qual irão evacuar-se os resíduos de sangue. Deste ponto de vista, tudo correu perfeitamente.

 

 Deste ponto de vista?

 

 Daguerre aproximou-se do vidro iluminado. Era impossível dar-lhe uma idade precisa entre trinta e cinco e quarenta anos. As suas feições aceradas eram de uma extrema palidez, mas esta tez não evocava a doença. Pelo contrário: era uma espécie de luz. Uma claridade decisiva, que irradiava de todo o rosto. Deu uma pancadinha com o indicador em cortes do cérebro.

 

 Lucien padece de outro traumatismo. Uma contusão bilateral, contra a qual não podemos grande coisa.

 

 Alguma zona do cérebro ficou lesionada? O cirurgião esboçou um gesto vago.

 

 É impossível dizer. Por ora, o nosso problema é de outra ordem. O cérebro, como qualquer outra parte do corpo, tende a inchar sob o efeito de um choque. Como sabe, a caixa craniana é fechada: não permite a mínima dilatação. Se o órgão se comprimir com demasiada força contra as paredes ósseas, já não poderá desempenhar o seu papel vital. Dar-se-á uma morte cerebral.

 

 Diane apoiou-se na secretária. Os reflexos azulados das chapas vacilavam sobre os traços do médico. O calor da sala, acentuado pelas emanações dos néones, era insuportável.

 

 Não... não pode fazer mais nada?

 

 Implantámos sob o crânio um segundo dreno, que nos permite sondar em permanência a pressão do cérebro. Se ela continuar a aumentar, abriremos o conduto e evacuaremos uns mililitros de líquido cefalorraquidiano. É a única maneira de aliviar o órgão.

 

 Mas o cérebro não vai dilatar-se indefinidamente, pois não?

 

 Não. As crises irão atenuar-se, depois desaparecer. Compete-nos a nós geri-las, até as coisas retomarem o seu curso normal.

 

 Doutor, seja franco: Lucien... enfim... pode salvar-se? Recuperar a consciência?

 

 Novo gesto vago.

 

 Se a pressão intracraniana diminuir rapidamente, seremos bem sucedidos. Mas se as dilatações se repetirem demasiadas vezes, nada mais poderemos fazer. A morte cerebral ocorrerá inevitavelmente.

 

 Houve um silêncio. Daguerre concluiu:

 

 É preciso esperar.

 

 Há nove dias que Diane esperava. Há nove dias que ela acabava, todas as noites, por regressar a casa, trocando uma solidão por outra, no seu apartamento da rue Valette, próximo da place du Panthéon, cuja desarrumação já só lhe reenviava a imagem do seu próprio abandono.

 

 Atravessou o pátio principal do hospital. O campus formava uma autêntica cidade, com os seus edifícios, as suas lojas, a sua capela. Durante o dia reinava nestes lugares uma agitação! enganosa, que por pouco não fazia esquecer a razão de ser das construções, os tratamentos, a doença, a luta contra a morte. De noite, porém, quando o espaço se entregava ao silêncio e à solidão, as edificações recobravam o seu recato fúnebre e pareciam assediadas de muito perto pela inquietude, as doenças, o aniquilamento. Ela meteu pela última álea que conduzia ao portão principal.

 

 Diane!

 

 Estacou e franziu os olhos.

 

 Sobre os globos de luz do relvado, destacava-se a sombra da sua mãe.

 

Como está ele? perguntou Sybille

Thiberge. Posso ir vê-lo? Faz como quiseres. A pequena silhueta, sempre aureolada pelo seu carrapito demasiado alvo, volveu baixinho: O que foi? Cheguei atrasada? Esperavas por mim mais cedo?

 

 Diane fixava um ponto vago, muito longe, para além de Sybille. Acabou por dizer, olhando a interlocutora do alto da sua estatura, excedia-a uns bons vinte centímetros: Sei o que pensas. O que é que eu penso? Imperceptivelmente, a voz de Sybille subira um tom. Diane declarou: Pensas que eu não devia ter adoptado a criança. Eu é que te aconselhei essa solução! Não, foi o Charles.

 

 Tínhamos falado um com o outro. Pouco importa. Pensas que eu não

só teria sido incapaz de o educar, de o tornar feliz, mas ainda por cima o matei pura e simplesmente. Não fales assim.

 

 Diane desatou subitamente a berrar:

 

Então não é a verdade? Não fui eu que me esqueci de lhe pôr o cinto de segurança? E que me espetei contra a barra lateral?

 

O motorista do camião adormeceu. Ele próprio o admitiu. Não tiveste culpa nenhuma.

 

E o álcool? Se Charles não se mexesse para abafar os resultados do teste de alcoolemia, talvez estivesse agora no chilindró!

 

Meu Deus! Fala mais baixo.

 

Diane inclinou a cabeça e apalpou os pensos que lhe barravam a testa e as têmporas. Sentia-se desfalecer. A fome, a fadiga rompiam as bases do seu equilíbrio. Tomava a direcção do portão principal sem sequer se despedir da mãe quando, bruscamente, voltou atrás e disse:

 

Quero que saibas uma coisa.

 

O quê?

 

Passaram duas enfermeiras a empurrar uma cama. Distinguia-se vagamente um corpo, sob uma manta, ligado a uma perfusão.

 

Quero que saibas que a culpa de tudo isto é tua. Sybille cruzou os braços, pronta para o confronto.

 

É fácil falares assim.

 

Diane elevou novamente a voz:

 

Nunca perguntaste a ti mesma porque motivo eu andava neste estado? Porque é que a minha vida era um naufrágio tão grande?

 

Sybille adoptou um jeito irónico:

 

Decerto que não. Vejo a minha filha soçobrar desde os quinze anos, mas estou-me completamente nas tintas. Levo-a a todos os psicólogos de Paris, mas é só para salvar as aparências. Esforço-me por lhe falar, por arrancá-la ao seu mutismo, mas é apenas para ficar de consciência tranquila. (Agora gritava.) Há anos que tento saber o que se passa contigo! Como podes dizer isso?

 

Diane escarneceu:

 

E a história do

argueiro no olho do vizinho.

 

Que dizes?

 

É no teu olho que se encontra a tranca.

 

 Houve um novo silêncio. As folhagens restolhavam na obscuridade. Sybille não cessava de remexer no carrapito, sinal evidente da sua perturbação.

 

 Já falaste de mais, minha querida, atalhou ela. Agora tens de ir até ao fim.

 

 Diane foi acometida de uma vertigem. O passado ia finalmente brotar à luz do dia.

 

 Estou em semelhante estado por tua causa, balbuciou ela. Por causa do teu egoísmo, do teu desprezo radical por tudo o que não seja a tua pessoa...

 

 Como podes atirar-me isso à cara? Criei-te sozinha e...

 

 Falo-te da tua verdade profunda. Não do papel que representas à superfície.

 

 O que conheces da minha verdade profunda?

 

 Diane tinha a impressão de seguir um fio abrasante, mas continuou:

 

 Tenho a prova do que afirmo...

 

 Uma pausa. Uns instantes de rebate. A voz de Sybille fremiu:

 

 A... prova? Que prova?

 

 Diane procurou falar devagar: queria que todas as sílabas acertassem no alvo.

 

 O casamento de Nathalie Ybert, em Junho de 1983. Foi aí que tudo se decidiu.

 

 Não percebo nada. De que estás a falar?

 

 Não te lembras? Não me admiro. Preparámo-nos durante um mês, não falávamos senão disso. E depois, ainda mal tínhamos chegado, meteste-te não sei onde. Largaste-me ali, com o meu vestido, os meus sapatinhos, as minhas ilusões de rapariga...

 

 Sybille parecia incrédula: Já quase não me recordo dessa história... Algo se quebrou dentro do corpo de Diane. Sentiu subir aos olhos umas lágrimas que refreou imediatamente.

 

 Deixaste-me sozinha, mamã. Saíste já não sei com quem...

 

 Com o Charles. Conheci-o nessa tarde. (A voz subiu de novo.) Achas então que eu devia sacrificar-te sempre a minha vida pessoal?

 

Diane repetia, obstinadamente:

 

Deixaste-me sozinha. Ali, sozinha sem mais nem menos! Sybille pareceu hesitar, depois aproximou-se abrindo os braços.

 

Escuta, disse mudando de tom. Se essa história te feriu, peço-te desculpa. Eu...

 

Diane deu um salto para trás:

 

Não me toques. Ninguém me toca.

 

No mesmo instante, ela compreendeu que não lhe contaria o acidente. Esta verdade não transporia a fronteira dos seus lábios. Ordenou:

 

Esquece tudo o que te disse.

 

Sentia-se mais dura que o aço, rodeada de partículas de força. Era o único benefício da sua provação de outrora: uma mágoa, uma angústia que se tinham a pouco e pouco transmudado em cólera fria, em domínio de si. Com um aceno de cabeça, apontou para o bloco de cirurgia infantil, as janelas debilmente alumiadas do serviço de reanimação.

 

Se ainda tens lágrimas, guarda-as para ele.

 

Quando desandou, afigurou-se-lhe que o sussurro das árvores a envolvia num manto maléfico.

 

Houve ainda outros dias, outras noites. Diane já não os contava. Só os alertas do quarto de reanimação pautavam o seu quotidiano. Desde a última zanga com a mãe, tinham aparecido quatro novas midríases. Quatro vezes as pupilas da criança se tinham fixado, assinalando a iminência do fim. A cada crise, os médicos haviam eliminado, graças aos drenos, alguns mililitros do líquido cefalorraquidiano e aliviado o órgão. Só assim conseguiram evitar o pior.

 

Ela vivia suspensa dos lábios dos clínicos. Interpretava a mínima das suas palavras, a mínima das suas inflexões de voz e desgostava-se amargamente de uma tal dependência. Só estas interrogações habitavam o seu espírito e vinham a todo o momento importuná-lo, à maneira de uma tortura lancinante. Dormia intermitentemente, inconsciente a ponto de por vezes já não saber se vivia ou sonhava. A sua saúde estava em queda livre e ela recusava-se sempre a tomar qualquer medicamento. Na realidade, esta mortificação acabava por alvoroçá-la, aturdi-la, como um transe religioso, e permitia-lhe não encarar a verdade de frente. Já não havia esperança. A vida de Lucien só assentava num monte de máquinas e numa tecnologia insensível.

 

Para pôr termo a tudo, bastaria carregar no interruptor eléctrico.

 

Nesse dia, por volta das quinze horas, foi o seu corpo que cedeu. Diane perdeu os sentidos nas escadas da unidade pediátrica e desceu um andar aos trambolhões. Eric Daguerre injectou-lhe uma dose de glicose por via intravenosa e ordenou-lhe que fosse para casa dormir. Sem discussão possível.

 

À noite, porém, cerca das vinte e duas horas, já Diane empurrava a porta da unidade médica, obstinada, enraivecida, doente mas presente. Invadia-a um obscuro pressentimento; tinham soado as derradeiras horas. Parecia-lhe que cada pormenor lhe confirmava esta verdade. A atmosfera sufocante no seio do edifício. Os néones mortiços do rés-do-chão. O olhar distante de um enfermeiro com quem ela se cruzou, achando-o ambíguo. Outros tantos sinais, outros tantos presságios: a morte andava ali, muito perto, a seu lado.

 

Quando entrou no átrio do segundo andar, avistou Daguerre e compreendeu que a sua intuição estava certa. O médico avançou. Diane parou.

 

O que sucedeu?

 

Sem responder, o cirurgião pegou-lhe no braço e levou-a até uma fileira de cadeiras pregadas à parede.

 

Sente-se.

 

Ela deixou-se cair, ciciando por entre os lábios:

 

O que sucedeu? Não... não é o fim, pois não? Eric Daguerre acocorou-se a fim de ficar à sua altura.

 

Acalme-se.

 

Diane conservava os olhos abertos, mas não o via. Não via nada, excepto o vazio. Não era sequer uma visão, era a ausência de qualquer visão, de qualquer perspectiva. Pela primeira vez na sua vida, Diane já não conseguia projectar-se até ao instante seguinte, conceber o segundo que viria depois do anterior. Já pertencia, por defeito, à morte.

 

Diane, olhe para mim.

 

Ela concentrou-se no rosto ossudo do cirurgião. Ainda não via nada. A sua consciência já não analisava as imagens captadas pelas retinas. O médico agarrou-lhe nos pulsos. Ela abandonou-lhos; já não tinha a força das suas fobias. O homem murmurou:

 

Esta tarde, durante a sua ausência, Lucien sofreu mais duas midríases. Em menos de quatro horas.

 

Diane ficou petrificada. Os seus membros estavam amarrados, tolhidos pelo pavor. O cirurgião acrescentou, após um minuto de silêncio:

 

Tenho muita pena.

 

Desta vez, ela cravou o olhar no clínico e encarou-o através da sua ira.

 

Ainda não morreu, pois não?

 

Veja se compreende. Já por seis vezes, Lucien apresentou os sintomas de uma morte cerebral. Não pode regressar a um estado de consciência. E ainda que admitíssemos um milagre e ele manifestasse sinais de despertar, as sequelas seriam demasiado graves. O seu cérebro está fatalmente danificado, percebe? Não podemos desejar uma coisa assim: não passaria de um ser vegetativo.

 

Diane fitou Daguerre durante uns segundos. A beleza do médico impressionou-a de repente. A sua voz estrondeou de raiva:

 

Quer que ele morra, é isso, não é? O cirurgião endireitou-se. Tremia.

 

Não tem o direito de me falar assim, Diane. A mim, não. Luto todos os dias, todas as noites para os tirar daqui. Pertenço à vida. (Apontou para o corredor de vidro, atrás da porta envidraçada.) Pertencemos à vida, todos nós! Não peça à morte que exista no meio de nós.

 

Ela atirou a cabeça para trás e fechou os olhos. O crânio bateu na parede. Uma vez, duas vezes, três vezes. O calor sufocava-a. A brancura dos tubos fluorescentes queimava-lhe as íris através das pálpebras. Sentia o seu corpo desabar, abrir-se num buraco negro, aspirar a sua consciência neste esvaimento.

 

Todavia, num último esforço, conseguiu levantar-se. Sem uma palavra, pegou na carteira e caminhou até ao serviço de reanimação.

 

O serviço dos pequenos corpos imóveis.

 

Para lá da porta, estava tudo deserto.

 

Diane meteu-se no quarto de Lucien, tirou os óculos e tombou de joelhos. Com a cabeça pousada nos lençóis, à beira da cama, debulhou-se em lágrimas. Em inesperada violência. Era a primeira vez, desde o acidente, que o corpo lhe concedia esta libertação. Os músculos desenlearam-se, os nervos descontraíram-se. Os soluços sufocavam-na, a mágoa asfixiava-a, mas ela também sentia abrir-se dentro de si um alívio, uma surda fruição, como uma flor nefasta que anunciava o último apaziguamento.

 

Sabia que não sobreviveria à morte de Lucien. Esta criança fora a sua derradeira oportunidade. Se desaparecesse, Diane renunciaria a perdurar. Ou então a sua razão voaria em estilhaços. De uma ou de outra maneira, descarrilaria.

 

De repente, apercebeu-se de uma presença. Ergueu o olhar corroído pelo sal das lágrimas. Sem óculos, nada via, mas tinha a certeza: havia alguém por entre a escuridão.

 

Então, docemente, misteriosamente, uma voz elevou-se:

 

Posso fazer algo por si.

 

Diane limpou os olhos a uma manga e pegou nos óculos. Estava um homem de pé, a poucos metros. Compreendeu que ele já se encontrava no compartimento quando ela entrara. Tentou acalmar-se.

 

O homem aproximou-se. Era um verdadeiro colosso, com perto de dois metros de altura, envergando uma bata branca. O pescoço enorme era rematado por uma cabeça não menos larga, coroada de uma trunfa branca. A ténue luz do corredor iluminou momentaneamente o seu rosto. Tinha a pele avermelhada, os traços vagos de um tronco desgastado. Uma certa docilidade emanava da sua face. Diane reparou nas pestanas compridas e levantadas. Ele repetiu:

 

Posso fazer algo por si. (Virou-se para o menino.) Por ele.

 

A voz era calma, em harmonia com as feições, e possuía um ligeiro sotaque. Mais uns segundos e já Diane dominava a sua surpresa. Olhou de relance para o crachá dele, preso na bata.

 

É... é aqui do serviço? interrogou.

 

Ele avançou um passo. Apesar da corpulência, os seus movimentos não provocavam qualquer ruído.

 

Chamo-me Rolf van Kaen. Sou anestesista-chefe. Venho de Berlim. Hospital pediátrico Die Charité. Desenvolvemos um programa franco-alemão com o Dr. Daguerre.

 

O seu francês era fluente, polido como um seixo que ele tivesse guardado durante muito tempo na algibeira. Diane levantou-se e puxou a única cadeira visível. Instalou-se desajeitadamente. Nenhuma enfermeira passava no corredor. Ela volveu:

 

O que é... o que é que faz aqui? Quero dizer: neste quarto?

 

O médico pareceu reflectir, pesar a mínima das suas palavras.

 

Informaram-na esta noite da evolução do estado de saúde do seu filho. Eu próprio li os resultados. (Deteve-se e depois:) Julgo que a preveniram. Do ponto de vista da medicina ocidental, já não há esperança.

 

Do ponto de vista da medicina ocidental?

 

Diane arrependeu-se logo da pergunta feita. Lançara-se sobre a opinião do homem com demasiada presteza. O alemão prosseguiu:

 

Podemos tentar outra técnica.

 

Que técnica?

 

A acupunctura.

 

Diane sibilou por entre os lábios.

 

Pisgue-se daqui para fora. Não sou assim tão crédula. Irra! Suma-se antes que eu corra consigo.

 

O anestesista permanecia imóvel. A largura dos seus ombros recortava-se contra os reflexos de vidro. Murmurou:

 

A minha posição é difícil, minha senhora. Não disponho de tempo para a convencer. Mas o seu filho ainda tem menos tempo...

 

Diane surpreendeu na entoação uma inflexão natural, espontânea, que a sensibilizou. Era a primeira vez que uma voz referia sem embaraço nem condescendência a sua relação mãe-filho com Lucien. O médico continuou:

 

Sabe do que sofre o seu menino, não sabe? Ela baixou a cabeça e balbuciou:

 

Afluxos de sangue que...

 

Vão asfixiar o seu cérebro, sim, é isso mesmo. Mas sabe donde provêm tais afluxos?

 

Foi o embate. O choque do acidente. O hematoma provoca este fenómeno e...

 

 Sem dúvida. Mas mais profundamente? Sabe o que motiva a corrente de sangue? Qual é a força que propulsa a hemoglobina em direcção ao cérebro?

 

 Ela mantinha-se em silêncio. O médico debruçou-se.

 

 E se eu lhe disser que posso agir sobre esse mesmo movimento? Que posso abrandar a impulsão?

 

 Diane fez o possível por se exprimir com calma, mas era apenas no intuito de pôr cobro à conversa:

 

 Ouça. Acredito que esteja cheio de boas intenções, mas o meu filho foi aqui tratado pelos melhores médicos. Não vejo o que...

 

 Eric Daguerre trabalha sobre os fenómenos mecânicos da vida. Por mim, posso agir sobre a outra vertente, sobre a energia que activa estes mecanismos. Posso atenuar a força que drena o sangue do seu filho e o vai matando gradualmente.

 

 Ora, deixe-se de tretas.

 

 Escute!

 

 Diane sobressaltou-se. O médico quase gritara. Ela deitou um olhar ao corredor: ninguém. O andar nunca lhe parecera tão deserto, tão silencioso. Começava a experimentar um medo confuso. O alemão voltou à carga, mais baixo.

 

 Quando olha para um rio, vê a água, a espuma, as ervas que se agitam entre as ondas, mas não vê o principal: a corrente, o movimento, a vida do curso de água... Quem ousaria sustentar que o corpo humano não funciona do mesmo modo? Quem ousaria dizer que, sob a complexidade da circulação sanguínea, das pulsações cardíacas, das secreções químicas, não existe uma simples corrente que anima tudo isto: a energia vital?

 

 Ela ainda negava com a cabeça. O homem já só estava a escassos centímetros. O diálogo entre os dois adquiria uma ressonância confessional:

 

 Os rios têm a sua nascente, as suas redes subterrâneas, invisíveis ao olhar. A vida humana também possui as suas origens secretas, os seus lençóis freáticos. Toda uma geografia profunda que escapa à ciência moderna, mas se organiza no interior do nosso corpo.

 

Diane quedava-se imóvel, com o rosto mergulhado na sombra. O que o homem ignorava é que ela conhecia este discurso: quantas vezes ouvira os seus mestres de wing-chun discorrer sobre o chi, a energia vital, o yin e o yang e todas essas coisas! Mas não era adepta. Pelo contrário, o seu triunfo, nos tatamis, demonstrava a seus olhos a vacuidade de semelhantes teses: era possível ser-se uma campeã de artes marciais shaolin e estar completamente nas tintas para tais valores. No entanto, a voz instilava-se na sua consciência:

 

A acupunctura pertence à medicina tradicional chinesa. Uma medicina várias vezes milenar, que não assenta em crenças, mas em resultados. E, por certo, a medicina mais empírica de todas, pois ninguém pôde alguma vez explicar o porquê da sua eficácia. A acupunctura actua directamente sobre as redes da nossa fonte vital, aquilo a que chamamos os meridianos. Minha senhora, peço-lhe que confie em mim: posso travar o processo de contusão no seu filho. Posso limitar o corrimento de sangue que está a matá-lo!

 

Diane olhou para o corpo de Lucien. Minúscula silhueta estreitada entre ligaduras, gesso e cabos, dir-se-ia agora esmagado, controlado por uma maquinaria hostil, já inumado num sarcófago complexo e futurista. Van Kaen ainda cochichava:

 

O tempo urge! Se não confiar em mim, confie ao menos no corpo humano. (Empertigou-se e voltou-se para Lucien.) Dê-lhe tudo o que é possível. Quem sabe como ele reagirá.

 

Diane arrepanhou as madeixas, estavam encharcadas em suor. As suas referências, as suas convicções estalavam sob o crânio como taças de cristal sob o efeito de uma onda insidiosa.

 

Elevou-se na sala um arquejo surdo. Diane levou um décimo de segundo para entender que se tratava da sua própria voz:

 

Com mil diabos, pronto! Experimente o seu sistema. Faça-o voltar à vida!

 

Ao primeiro toque do telefone, Diane compreendeu que estava a sonhar. Via o médico alemão a afastar os lençóis e depois a desenrolar os pensos de Lucien. Tirava os fios, os eléctrodos, extirpava o braço do molde de gesso. A criança estava agora nua. Só o penso na cabeça e a perfusão a ligavam ainda à medicina ocidental. Ao segundo toque, acordou.

 

 No silêncio que se seguiu ao trinado electrónico, inundou-a um rasgo de lucidez. O seu sonho não era um sonho. Ou, pelo menos, alimentava-se de um facto real. Revia distintamente a silhueta de Rolf van Kaen, que palpava, friccionava, alisava cada um dos membros de Lucien. O seu rosto estava inclinado, atento. Diane, nesse instante, experimentara a seguinte sensação: o acupunctor ”o corpo maneirinho e pálido. Decifrava-o, como se conhecesse um código ignorado pelas outras medicinas. Instaurava-se um diálogo silencioso entre o gigante de cabelos brancos e o rapazinho inconsciente, quase morto, mas que ainda parecia poder murmurar alguns segredos a um iniciado.

 

 Van Kaen sacara das suas agulhas e disseminara-as na epiderme de Lucien. À medida que as espetava no torso, nos braços, nas pernas da criança, estas pontas pareciam acender-se, imbuir-se da luminosidade verde do ecrã de vigilância, que sobranceava a cena. Na extremidade da cama, Diane mostrava-se subjugada. Aquele corpo tão franzino, claro como o giz, eriçado de agulhas que brilhavam tal qual pirilampos numa escuridão de vidro...

 

 Terceiro toque.

 

 Na penumbra, Diane vislumbrou as reproduções de quadros que decoravam o seu quarto: quadrados a pastel de Paul Klee, simetrias mais vivas de Piet Mondrian. Baixou o olhar para a mesinha-de-cabeceira. O despertador marcava 03.44. A sua certeza voltou em força. Cinco horas antes, um misterioso médico praticara uma sessão de acupunctura no seu filho. Antes de desaparecer, dissera simplesmente: ”É uma primeira etapa. Hei-de voltar. A criança tem de viver, compreende?”

 

 Quarto toque.

 

 Diane encontrou o auscultador e levantou-o.

 

Está!

 

 É a senhora Thiberge?

 

 Reconheceu a voz de uma das enfermeiras, Mme Ferrer:

 

 O professor Daguerre pediu-me para a avisar.

 

 O tom era de uma neutralidade absoluta, mas Diane percebia a hesitação da enfermeira. Gemeu:

 

 Acabou-se tudo, é isso?

 

 Houve um breve silêncio e depois:

 

 Pelo contrário, minha senhora. Temos um sinal de melhoras.

 

 Diane sentiu afluir dentro de si a indizível força do amor.

 

 Um sinal de despertar, continuou a enfermeira.

 

 Quando?

 

 Há cerca de três horas. Fui eu que notei que os dedos dele mexiam. Chamei os internos de serviço a fim de verificarem por eles mesmos. São categóricos: Lucien apresenta sinais de regresso à consciência. Chamámos o professor Daguerre. Este autorizou-me a preveni-la.

 

 Diane perguntou:

 

 Informou o Dr. van Kaen?

 

 Quem?

 

Rolf van Kaen. O médico alemão que trabalha com Daguerre.

 

 Não sei de quem está a falar.

 

 Não faz mal. Vou já para aí.

 

 No quarto de Lucien, a atmosfera fazia lembrar uma vigília fúnebre, mas de certo modo às avessas. Em torno do corpo falava-se em voz baixa; no entanto, os sussurros eram joviais. E se a penumbra ainda reinava, já por outro lado um verdadeiro fervor animava os rostos. Havia ali cinco médicos e três enfermeiras. Ninguém usava máscara e, sob a influência da febrilidade do instante, os internos quase se tinham esquecido de vestir a bata.

 

 Apesar de tudo, Diane estava desiludida. O filho continuava na mesma posição, inerte, enfiado na concavidade da cama. Na sua excitação, ela chegara a ter esperança de o ver sentado, de olhos abertos. Mas os médicos sossegaram-na. Perante os sinais já observados, entusiasmavam-se, incapazes de refrear as suas próprias expectativas.

 

 Ela contemplava o filho e pensava no misterioso colosso. Notou que as ligaduras estavam de novo postas, bem como o gesso, os eléctrodos e os captadores. Ninguém poderia suspeitar que o alemão se entregara ao desnudamento e ao diálogo interior com o pequeno corpo. Diane voltou a ver as pontas verdes que oscilavam ao sabor da respiração de Lucien, os dedos pujantes que faziam rodar as agulhas na carne.

 

 Preciso de o ver, disse ela.

 

 Quem?

 

 O anestesista de Berlim que trabalha convosco. Houve olhares embasbacados, um silêncio embaraçado entre os médicos. Um deles aproximou-se e murmurou-lhe com um sorriso nos lábios:

 

 Daguerre é que gostaria de a ver a si.

 

Lembre-se do que eu lhe disse, Diane. Nada de falsas esperanças. Lucien pode sair completamente de coma, mas ter sofrido danos cerebrais irreversíveis...

 

 O gabinete do cirurgião era uniformemente branco, como que irradiado de luz. Até mesmo as sombras pareciam mais claras, mais leves que em qualquer outro sítio. Sentada em frente do médico, Diane retorquiu:

 

 É um milagre. Um incrível milagre.

 

 Daguerre não cessava de brincar com um lápis, num movimento que parecia canalizar todo o seu nervosismo. Prosseguiu:

 

 Diane, estou muito feliz por causa do seu filho. Assistimos a algo de realmente... extraordinário, é bem certo. Mas, uma vez mais, não devemos regozijar-nos demasiado depressa. O retorno à consciência também pode revelar graves traumatismos. E este retorno não é uma certeza.

 

 Um milagre. Van Kaen salvou Lucien. Daguerre suspirou:

 

 Fale-me desse homem. O que lhe disse ele exactamente?

 

 Que vinha de Berlim e trabalhava consigo, aqui.

 

 Nunca ouvi falar dele. (Enervava-se.) Como é que as enfermeiras puderam deixar entrar um tal energúmeno no serviço de reanimação?

 

 Não estavam lá enfermeiras.

 

 O cirurgião dava mostras de uma agitação cada vez maior. O tamborilar da borracha ressoava com regularidade.

 

 E afinal o que fez ele a Lucien? Uma sessão clássica de acupunctura?

 

 Não posso dizer-lhe: era a primeira vez que eu presenciava este género de manipulação. Tirou-lhe as ligaduras e espetou agulhas em diferentes partes do corpo.

 

 Mesmo a contragosto, o cirurgião deixou escapar uma risada. Diane cravou o olhar nele:

 

 Faz mal em rir. Repito-lhe: esse homem salvou o meu filho.

 

 O ar de escárnio eclipsou-se. O médico atacou num tom meio calmo, meio admoestador, o que se utiliza para chamar à razão uma criança:

 

 Diane, sabe quem eu sou. Conheço o cérebro humano, numa perspectiva neurobiológica, como só mais uma dezena de especialistas em todo o mundo o conhecem.

 

 Não ponho em causa a sua experiência.

 

 Ouça: o sistema cerebral é de uma inacreditável complexidade. Sabe quantas células nervosas ele abriga?

 

 Continuou, sem aguardar resposta:

 

 Cem mil milhões, ligadas entre si por miríades de conexões. Se uma tal máquina se pôs de novo em movimento, pode crer, é porque devia funcionar outra vez. Foi o organismo do seu filho que decidiu por si mesmo, compreende?

 

 Agora, é fácil dizê-lo.

 

 Não se esqueça que o operei.

 

 Desculpe.

 

 Diane acrescentou, mais amenamente:

 

 Por favor, doutor, perdoe-me. Mas estou convencida de que esse médico desempenhou um papel nas melhoras de Lucien.

 

 Daguerre largou finalmente o lápis para juntar as mãos. Ajustou a voz pelo tom da sua interlocutora:

 

 Escute. Não sou um médico obtuso. Até exerci no Vietname.

 

 Bailou-lhe nos lábios uma espécie de sorriso voltado para o interior, para o seu passado, os seus sonhos antigos.

 

 Depois do internato, dediquei-me um pouco ao humanitarismo. Estudei acupunctura por lá. Sabe em que consiste esta técnica? Em que consistem os famosos pontos solicitáveis?

 

 O homem falou-me dos meridianos...

 

 Sabe a que correspondem esses meridianos, fisicamente?

 

 Diane calou-se. Procurava recordar-se das palavras do alemão. Daguerre respondeu por ela:

 

 A nada. Fisiologicamente, os meridianos não existem. Ensaiaram-se análises, radiografias, scanners. Nunca saiu qualquer resultado destes trabalhos. Os pontos de acupunctura  não correspondem sequer a zonas específicas da epiderme, ao contrário do que se alega. Do ponto de vista da fisiologia moderna, o acupunctor pica onde lhe apetece. São lérias sem a mínima consistência.

 

 O discurso de van Kaen acudia-lhe de novo ao espírito. Ela interveio:

 

 O médico falou-me da energia vital que circula no nosso corpo e...

 

 E essa energia seria acessível assim sem mais (fez estalar os dedos) à superfície da pele? E só a medicina chinesa teria achado a geografia desta rede? É ridículo!

 

 Bateram à porta do gabinete. Mme. Ferrer entrou e declarou, ligeiramente esbaforida:

 

 Doutor, encontrámos o homem que penetrou na unidade.

 

 O rosto de Diane resplandeceu. Ela virou-se toda com um cotovelo apoiado no espaldar da cadeira:

 

 Contaram-lhe do Lucien? O que disse ele?

 

 Mme. Ferrer ignorou a pergunta e dirigiu-se novamente ao médico.

 

 Há um problema, doutor.

 

 O cirurgião pegou outra vez no lápis e fê-lo girar em torno do indicador, à maneira de uma varinha de majorette. Tentou gracejar:

 

 Um só: tem a certeza?

 

 A enfermeira nem sequer esboçou um sorriso.

 

 Doutor, o homem está morto.

 

 Diane esperava agora no segundo andar do edifício Lavoisier. De acordo com as indicações dos painéis informativos, estava nos corredores do serviço de investigação genética. Porque a tinham trazido para aqui? Porquê a genética? Mistério. Mantinha-se de pé contra a parede, apoiada sobre as mãos cruzadas, e não cessava de oscilar entre acessos de alegria, relacionados com as melhoras do filho, e abismos de estupor, provocados pela morte de van Kaen. Eram cinco horas e trinta da manhã e ainda ninguém lhe dissera nada. Nem a mais pequena informação sobre as circunstâncias do falecimento dele. Nem a mais pequena palavra sobre a maneira como o corpo havia sido descoberto.

 

 Diane Thiberge?

 

 Voltou-se para a voz. O homem que se aproximava excedia sem custo o metro e oitenta e cinco. Ela pensou no gigante alemão. No fundo, era bastante agradável estar rodeada de gente da sua altura. O recém-chegado anunciou logo:

 

 Patrick Langlois, tenente da polícia.

 

 Devia andar pelos quarenta anos. Um rosto seco, escalavrado, com a barba por fazer. Inteiramente vestido de preto: sobretudo, casaco, camisola rente ao pescoço, e jeans. O cabelo e a barba que despontava eram de um grisalho crespo, autêntica palha d’aço. Se acrescentássemos as orlas vermelhas dos olhos, obteríamos uma espécie de quadro de cores gélidas. Um Mondrian preto-cinzento-vermelho, articulado numa simples silhueta esgalgada e num sorriso de malícia.

 

 Disse ainda: ”Brigada criminal.” Diane estremeceu. O chui ergueu uma mão em sinal de apaziguamento.

 

 Nada de pânico. Estou aqui por engano.

 

 Diane teria preferido guardar silêncio, demonstrar que controlava a situação, mas perguntou, contra a sua própria vontade:

 

 A que chama ”por engano”?

 

 Ouça. (Uniu as duas palmas uma contra a outra, como quem reza.) Vamos proceder de acordo com as normas, combinado? Antes de mais, explique-me o que se passou exactamente esta noite.

 

 Em poucas frases, Diane resumiu as últimas horas que acabava de viver. O chui anotava as respostas dela num pequeno bloco de folhas ligadas por uma espiral, deitando levemente a língua de fora e para o lado. A expressão parecia tão incongruente neste rosto agreste que ela julgou tratar-se de uma mímica voluntária, de um esgar paródico. Mas a língua sumiu-se assim que ele acabou de escrever.

 

É curioso, opinou.

 

 Sem largar o bloco, pôs-se a imitar com as mãos os dois pratos de uma balança imaginária e adoptou uma voz de comando:

 

 De um lado, a vida que volta, do outro, a morte que se abate e...

 

 Diane lançou-lhe um olhar estupefacto. O polícia sorriu de um modo ostensivo, como se o júbilo só estivesse à espera de uma oportunidade para alastrar sob os seus traços.

 

 Talvez eu devesse deixar-me de grandes frases...

 

 Pelo menos, ao pé de mim.

 

 Langlois moveu os ombros dentro do sobretudo.

 

 Muito bem. Digamos então, simplesmente, que estou muito contente pelo seu filho.

 

 Pode explicar-me como descobriram van Kaen?

 

 Ele pareceu hesitar. Revolveu os cabelos eriçados, olhou para os dois lados do corredor, depois ordenou enquanto se encaminhava para o elevador:

 

Venha comigo.

 

Saíram para a frescura do alvorecer, contornaram o edifício e dirigiram-se para o bloco seguinte. A pequena cidade de Necker começava a animar-se. Diane viu uns grandes camiões, estacionados na álea central, que despejavam imensos carrinhos onde se empilhavam centenas de tabuleiros-refeição cobertos de inox. Nunca lhe passara pela cabeça que o hospital encomendasse as refeições no exterior.

 

O tenente avançava para um outro edifício. Só as janelas do subsolo estavam iluminadas. Entraram pela porta principal e cruzaram-se com vários polícias fardados. Os habituais eflúvios químicos eram aqui substituídos por um cheiro a comida. Langlois comentou:

 

As cozinhas do hospital.

 

Apontou para uma porta entreaberta e meteu por ali. Diane foi atrás dele. Desceram uma escada estreita e atingiram uma vasta sala na cave, com as paredes pintadas de azul. Fileiras de embalagens desdobravam-se de ambos os lados do espaço deserto. Sem parar de andar o polícia proferiu então:

 

Por ora, eis o que podemos imaginar. Cerca das vinte e três horas e trinta, o homem que diz chamar-se van Kaen acompanha-a ao limiar do edifício de neurocirurgia. Em seguida, dá a volta, atravessa o pátio e mete-se aqui, nas cozinhas. A essa hora, não há muita gente. Ninguém repara nele.

 

Langlois continuava a caminhar. Com um gesto largo, arredou um cortinado de tiras de plástico.

 

Atravessa esta sala...

 

As paredes de cimento eram agora cor-de-laranja. Uns fornos imponentes, rematados por descomunais panos de chaminé, desferiam reverberações de prata. O homem removeu outro cortinado.

 

...e chega às salas frigoríficas.

 

Abriu-se um corredor de cor verde, ladeado de portas cromadas. O frio intensificava-se. No tecto, os néones assemelhavam-se a estalactites horizontais. A atmosfera nua e colorida do lugar evocava um jogo de cubos que tivesse dimensões de bunker.

 

 O investigador estacou diante de uma das faces, montada sobre uma calha de ferro lateral. Por cima, à direita, estava inscrita a menção: 4a GAMA. Dois chuis, envergando as parcas regulamentares, guardavam o local. Frisos de cristais remordiam as bordas dos seus bonés. A confusão de Diane não cessava de aumentar. Com um gesto, Langlois mandou arrancar a fita amarela que barrava a porta de metal.

 

 Tirou uma chave do bolso e introduziu-a num ferrolho colocado bastante alto.

 

 Van Kaen escolheu este compartimento frigorífico.

 

 Ele... tinha uma chave?

 

 Possuía uma igual a esta. Roubara-a sem dúvida no escritório do chefe de serviço.

 

 Diane estava aterrada. E ainda não fizera a pergunta essencial: como é que o homem morrera? O chui fez girar a estrutura de aço. No momento de abrir a porta, voltou-se para ela e encostou-se à superfície de inox.

 

 Devo preveni-la: é deveras impressionante. Mas não é sangue.

 

 O que é então?

 

 O tenente deitou a mão ao puxador, segurou-se firmemente e fez deslizar a porta sobre a calha. Saltou-lhes à cara uma aragem fria. Ele repetiu:

 

 Lembre-se do que lhe digo: não é sangue.

 

 Fez um aceno, convidando-a a segui-lo. Diane deu um passo em frente e parou de chofre. Defronte de recipientes de plástico cinzentos, uma parede de cimento branco estava vaporizada de vermelho. Crostas purpurinas aglutinavam-se, estrias escarlates riscavam a superfície e salpicos castanhos espalhavam-se sobre o solo em bruto, até ao limiar da sala. Este compartimento de cinco metros por cinco, repleto de caixas plastificadas, parecia ter sido palco de um verdadeiro massacre. Mas o mais espantoso e o mais enjoativo era o activo cheiro a fruta que pairava no frio.

 

 Patrick Langlois apanhou, no alto de uma pilha de caixas, um pacote envolvido numa película transparente e estendeu em seguida o objecto a Diane.

 

 Mirtilos. (Fez menção de ler o rótulo da embalagem.) Frutos vermelhos. Importados da Turquia. Após a sua intervenção, van Kaen veio aqui para se regalar com uma orgia de bagas.

 

 Diane avançou no compartimento, persuadindo-se de que os seus tremores provinham do frio.

 

 O que... o que significa isto?

 

 O chui sorriu com um ar desolado.

 

 Apenas o que acabo de dizer. A prioridade de Rolf van Kaen, depois da curta sessão de acupunctura, não consistiu em desaparecer, mas em vir aqui morfar pacotes inteiros de mirtilos. (Deitou um olhar em redor.) Consumidas de um modo selvagem.

 

 Ela balbuciou:

 

 Mas... de que morreu?

 

 Langlois atirou a caixa plastificada para cima de um dos empilhamentos.

 

 De indigestão, suponho eu.

 

 Lançou uma olhadela à sua interlocutora e continuou:

 

 Desculpe: não tem graça nenhuma. Ao fim e ao cabo, ainda não se conhece a causa do óbito. Mas tratou-se, sem dúvida alguma, de uma morte natural. Aquilo a que eu chamo ”natural”. Segundo as nossas primeiras observações, o corpo não apresenta qualquer vestígio de ferimento. Van Kaen talvez tenha sucumbido a uma crise cardíaca, a uma ruptura de aneurisma ou a uma doença, sei lá que mais...

 

 Langlois indicou a porta entreaberta. Reinava um silêncio opressivo.

 

 Isto explica-lhe o facto de as cozinhas terem sido postas de quarentena. Imagine o efeito de um cadáver, porventura doente, no meio destas instalações. Bem vistas as coisas, as refeições das crianças são preparadas aqui mesmo. Vindo morrer nesta sala, o nosso alemão pôs o Necker em polvorosa.

 

 Diane apoiou-se num dos recipientes. O cheiro dos frutos e do açúcar subia-lhe à cabeça.

 

Vamo-nos embora, murmurou. Não aguento mais aqui... pode crer...

 

 O vento da aurora revigorou-a um pouco, mas precisou de vários minutos para retomar a palavra. Por fim, inquiriu:

 

 Porque me conta tudo isto?

 

 Langlois ergueu as sobrancelhas em sinal de surpresa.

 

 Porque está no cerne da história! Na falta de assassínio, resta-nos o exercício ilegal da medicina, a intrusão no hospital, sem dúvida uma usurpação de identidade... (esticou o indicador). A partir daqui, é a nossa queixosa.

 

 Diane sentia-se agora mais calma. Arranjou a força necessária para declarar:

 

 Não entendeu nada, tenente. Esse homem, seja qual for a sua identidade e quaisquer que tenham sido as suas motivações, salvou a vida do meu filho. Indirectamente, também salvou a minha. Sendo assim, pouco me importa o método utilizado. A minha única tristeza, neste momento, é não poder agradecer-lhe, está a perceber? E não creio que o seu inquérito possa ajudar muito neste aspecto.

 

 Langlois teve um gesto de enfado.

 

 Sabe perfeitamente onde eu quero chegar. Há mais de um mistério neste caso. Na minha opinião, a história ainda só agora começou. De resto, eu...

 

 A estridência de uma série de bips ecoou então. O tenente soltou do cinto um minúsculo mostrador e leu aí uma mensagem. Estendeu o objecto a Diane e segredou:

 

 O que lhe dizia eu?

 

Diane sabia que se tratava de acontecimentos reais, mas recebia-os com uma incredulidade que lhe permitia mantê-los à distância, não assumir totalmente a demência deles. Mais tarde, poria ordem em tudo isto. Mais tarde, tentaria encontrar aqui uma lógica. Por ora, captava cada facto, cada informação, com o recuo e a impotência de uma pessoa que sonha.

 

 Langlois levou-a de novo para o edifício Lavoisier. Ficaram desta vez no rés-do-chão. Diane reconheceu imediatamente a sala para onde se encaminhavam: a sala da TAG, a mesma onde Lucien se submetera aos primeiros exames.

 

 Já no limiar, Diane hesitou em entrar, parecia-lhe que, uma vez lá dentro, seria assaltada por recordações lancinantes. Mas o polícia empurrou-a sem rodeios e fechou a porta atrás deles. Os terrores que ela temia não aconteceram, pela simples razão de que a sala mudara completamente de atmosfera.

 

 Reinava aqui uma agitação singular. Diante da consola dominada por monitores e negatoscópios, dois homens, de blusão, tamborilavam sobre teclados de computador e materializavam nos ecrãs umas formas coloridas. Do outro lado do vidro, sob uma luz coada, iam e vinham silhuetas em torno da roda imponente do scanner e manipulando engenhos cromados. Outras desligavam cabos no solo, apagavam monitores suspensos, reajustavam tubos e ópticas bizarras. Era evidente que suprimiam os traços da sua passagem.

 

 Nenhuma destas pessoas usava bata branca.

 

 Diane reparou noutras anomalias. Os homens pareciam ter todos menos de trinta anos e a maior parte deles ostentavam à cintura uma pistola automática, metida num coldre com fecho de velcro.

 

 Chuis.

 

 Ela compreendeu por que a tinham feito esperar no segundo andar deste edifício: os polícias haviam instalado aqui o seu quartel-general, apoderando-se por algumas horas do material de imagiologia médica. Langlois perguntou-lhe de repente:

 

 Sabe o que é a paleopatologia?

 

 Diane voltou-se para o investigador. Respondeu numa voz cansada:

 

É uma técnica que se utiliza em arqueologia, a qual consiste em colocar uma múmia ou outros vestígios orgânicos num scanner, num instrumento IRM ou num qualquer aparelho de imagiologia, a fim de analisar as suas componentes internas sem as deteriorar. Tornou-se possível autopsiar, de modo virtual, alguns mortos finados há milénios.

 

 Langlois sorriu:

 

 Excelente, não se poderia descrever melhor.

 

 Sou cientista. Leio as revistas especializadas. Mas não vejo...

 

 No nosso serviço médico-legal, temos um craque neste domínio. Um pequeno génio que é capaz de sondar uma múmia sem desenrolar a mais pequena faixa.

 

 Diane deitou uma mirada assustada ao outro lado do vidro. Discernia uma forma alongada sob um lençol, no interior da máquina. Balbuciou, de olhos pregados no lençol:

 

 Quer dizer que aplicaram o scanner ao corpo de...

 

 Tínhamos o material à mão. (O polícia sorriu outra vez.) Eis o interesse de descobrir um morto num hospital...

 

 É louco!

 

 Diga antes apressado. Graças a este engenho, pudemos praticar uma autópsia virtual ao van Kaen. Vamos agora entregá-lo à administração médico-legal. Nem visto, nem achado.

 

 Afinal que género de chui é você?

 

 Langlois ia responder quando a porta que separava as duas cabinas se abriu.

 

 Metemos água.

 

 O tenente rodopiou na direcção do jovem que acabava de entrar. Cabelo louro encaracolado, pele acinzentada, olhar ardente: assemelhava-se a um charuto consumido. Repetiu:

 

 Metemos água, Langlois.

 

 O quê?

 

É um assassínio. Um assassínio assombroso.

 

 O polícia lançou uma olhadela a Diane. Ela julgou ler nos seus pensamentos e articulou:

 

 Optou por me arrastar consigo para todo o lado. Assuma então os seus métodos. Não abandonarei esta sala.

 

 Pela primeira vez, as feições do chui contraíram-se, para se desanuviarem logo a seguir. Passou as duas mãos pelo rosto, como para aí repor a sua máscara de malícia.

 

 Tem razão. (Dirigiu-se novamente ao médico legista.) Explica-te lá.

 

 Quando iniciámos os cortes tomográficos do torso, esperávamos descobrir sinais de necrose nesta região. Uma superabundância de enzimas cardíacas ou outros indícios de um enfarte...

 

 Chega de palavrório. O que encontraste?

 

 O perito médico-legal pareceu desconcertar-se. Ao mesmo tempo, havia nele algo de coriáceo, de incorruptível. As suas pálpebras pestanejaram rapidamente, depois largou a bomba:

 

 Este tipo tem o coração rebentado. O sangue concentrou-se no órgão, a ponto de lhe fazer estourar os tecidos.

 

 Langlois rugiu, revelando desta vez a sua verdadeira natureza de caçador:

 

 Porra! Disseste-me que ele não tinha nenhum ferimento! O legista baixou a cabeça. A sombra de um sorriso perpassou sob os seus caracóis louros.

 

 E não tem. Tudo aconteceu no interior. No interior do corpo. (Apontou para o computador.) Gostava que visses as imagens.

 

 O tenente ordenou aos outros chuis, sem sequer os fitar:

 

 Ponham-se a milhas. TODOS!

 

 A cabina esvaziou-se. O legista disparou o programa do computador, depois ofereceu uns óculos de plástico fumado a Diane e a Langlois.

 

 É melhor que ponham isto; o software é a três dimensões. Imitando os dois homens, Diane colocou a armação sobre as suas próprias lentes e descobriu o sinistro espectáculo que se exibia no ecrã principal.

 

 A imagem em relevo de Rolf van Kaen, torso nu desprovido de pilosidade, seccionado à altura do umbigo. Sentando-se em frente do monitor, o médico iniciou a sua exposição:

 

 Eis a reconstituição em 3da vítima.

 

 O busto rodava sobre si mesmo, depois voltava logo à posição inicial, como no âmbito de uma demonstração de infografia.

 

 Como já disse, repetiu o cientista, abordámos em primeiro lugar o órgão cardíaco. Quarenta segundos de digitação tomográfica bastaram-nos para recriar o relevo de...

 

 OK, OK. Anda lá!

 

 O médico tamborilou no teclado.

 

 Eis o que descobrimos...

 

 A partir dos ombros, a carne digitalizada desapareceu aos sacões. Antes de mais surgiram as artérias, em seguida um troço inteiro de órgãos e de fibras, massas avermelhadas e arabescos azuis entrelaçados. Tudo isto continuava a girar, numa espécie de carrossel abjecto. Diane estava agoniada, e simultaneamente fascinada.

 

 Num ápice, ela percebeu o que o médico pretendia mostrar: o coração já não era mais que uma explosão fixa de sangue e tecidos. Uma mancha negra derramada entre os meandros das veias e dos alvéolos pulmonares. O homem disse:

 

 Posso isolá-lo.

 

 Bateu numa nova tecla e apagou de uma só vez tudo o que não era os vestígios do órgão. O coração rebentado apareceu, perfeitamente circunscrito, no ecrã. Assemelhava-se a um recife de coral, com os seus braços acastanhados e as suas ramificações petrificadas. Um arbusto de pura violência. Numa voz rouca, Langlois perguntou:

 

 Como foi possível fazerem-lhe isto?

 

 A voz do médico legista mudou, como se viesse de mais longe, do fundo de uma análise fria:

 

 Fisiologicamente, é bastante simples. Basta dobrar a aorta, a fim de impedir o sangue de se ejectar do coração, como uma mangueira, se quiseres. A partir daqui, o líquido vital, afluindo das veias cavas e das veias pulmonares, obstrui-se até saturar o órgão cardíaco.

 

 Manejou de novo os comandos do teclado. Os outros órgãos e as redes sanguíneas reapareceram no ecrã.

 

 Vê-se aqui nitidamente a torção. (Clicou no seu cursor). aqui também. (Novo clique.)

 

 Langlois parecia incrédulo:

 

 Como é que se pode ter acesso a esta artéria, no interior do torso?

 

 O homem parou e virou-se para ele, cruzando os braços como se quisesse barrar o caminho à náusea e ao medo que o ameaçavam.

 

É o mais estapafúrdio de tudo: o assassino mergulhou a mão nas vísceras da vítima até alcançar a aorta.

 

 O médico rodou outra vez na direcção do monitor e accionou uma nova função. O torso de van Kaen reconstituiu-se, afundando-se as entranhas sob a carne cinzenta e brilhante. A imagem focalizou-se no eixo do esterno, acima da cavidade abdominal. Surgiu uma fina incisão.

 

 Eis o ferimento, prosseguiu a voz. É tão afilado que o não tínhamos assinalado, entre a pilosidade, por ocasião do exame externo.

 

 Foi por aqui que o assassino enfiou a mão?

 

 Sem sombra de dúvida. O golpe não ultrapassa os dez centímetros de largura. Se atendermos à elasticidade da pele, é amplamente suficiente para introduzir um braço. Desde que se trate de um homem de pequena estatura. Eu diria um metro e sessenta, mais ou menos.

 

 Van Kaen era um colosso!

 

 Então foi atacado por vários. Ou a vítima estava drogada. Não sei.

 

 Debruçado sobre o ecrã, Patrick Langlois tornou a perguntar:

 

 E durante a eventração, o sujeito ainda se encontrava VIVO?

 

 Vivo e consciente, sim. A explosão do órgão assim o comprova. Enquanto o patife escarafunchava nas vísceras, o coração desvairou-se e precipitou o seu mecanismo de bombeamento. A saturação de sangue deve ter sido breve e muito violenta.

 

 O tenente murmurou:

 

 Esperava um problema, mas não um quebra-cabeças deste calibre...

 

 No mesmo instante, os dois homens deram a impressão de se lembrar da jovem. Voltaram-se num único movimento. Langlois pronunciou:

 

 Diane, peço muita desculpa. Pode crer, nós... Diane? Sente-se bem?

 

 Por detrás dos seus óculos escuros, ela mantinha-se petrificada, com os dois olhos presos ao monitor. Disse numa voz sumida:

 

 O meu filho. Quero ver o meu filho.

 

 Conhecia estes jardins tão bem como aos seus próprios sonhos. Em criança, passara todas as tardes junto daquela fonte, rodeada pelas alamedas verdejantes. No entanto, não sentia qualquer nostalgia particular a propósito dos Jardins do Luxemburgo. Parecia-lhe que este parque lhe proporcionava apenas uma certa paz.

 

 Havia mais de quarenta e oito horas que o milagre se produzira. E os sinais de melhoria de Lucien persistiam. Ontem, a criança mexera repetidas vezes o indicador e o dedo médio da mão direita. Diane iria mesmo jurar que, na sua presença, o punho direito se soerguera. Os exames médicos haviam demonstrado que os sinais de contusão do cérebro recuavam. E as funções fisiológicas retomavam o seu curso normal. Até mesmo o doutor Daguerre parecia admitir que a criança estava agora no caminho de um autêntico despertar. Já aventava a possibilidade de tirar os drenos nos próximos dias.

 

 Diane, em princípio, deveria estar cheia de felicidade. Mas houve aquele assassínio, aquela violência insondável, aquelas imagens no ecrã do scanner que a tinham arrasado. Como fora possível uma tal atrocidade? Porque motivo o homem que salvara o seu filho viera a morrer nestas condições, exactamente algumas horas após a intervenção? Posso sentar-me?

 

 Diane ergueu os olhos. O tenente Langlois estava diante dela, tal qual o encontrara na antevéspera. Sobretudo preto, jeans pretos, t-shirt preta. Adivinhava que o homem possuía esta panóplia em vários exemplares, como outros tantos cadáveres num armário. Aliás, ele não cheirava a eau de toilette, mas a um curioso odor a engomado. À laia de resposta, Diane levantou-se:

 

 E se andássemos um bocadinho, hem?

 

 O chui anuiu. Ela tomou a direcção dos canteiros de árvores superiores. Três áleas de relvado que subiam em declive suave. Ele comentou num tom jovial:

 

 É uma boa ideia, esta vinda aqui.

 

 Gosto muito. Moro ao lado.

 

 Treparam os degraus de pedra. Sob o dia encoberto, as veredas estavam quase desertas. As árvores pareciam acolher o vento fresco na sua folhagem com afectação, do mesmo modo que uma mulher segura a saia por cima de uma grelha de metropolitano. O polícia inspirou profundamente e declarou:

 

 Julguei que isto nunca me aconteceria.

 

 O quê?

 

 Abordar uma jovem bonita num destes bancos.

 

 Ora, ora..., ciciou Diane, assumindo um ar meio divertido, meio melindrado.

 

 Toda a angústia e toda a ameaça pareciam ter desaparecido dos seus dois corações. Ela pensou, com alguma repulsa, no irredutível egoísmo dos vivos perante os mortos. Agora, as folhas lustrosas, a frescura do vento, os gritos longínquos das crianças constituíam o único presente de ambos e a recordação de van Kaen não pesava muito face a esta realidade. O tenente contou:

 

 Quando estava no internato da escola de inspectores, escapulia-me todos os fins-de-semana para assistir às aulas de Filosofia na Sorbonne. À tardinha, vinha aqui, ao Luxemburgo. Nessa época, tinha a impressão de haver escapado a uma catástrofe natural: o desemprego. Mas já me via confrontado com outra catástrofe, ainda pior.

 

 Qual?

 

Ele abriu as mãos, em jeito de evidência!

 

 A indiferença das parisienses. Passeava por aqui e observava-as pelo canto do olho, sentadas nas cadeiras de ferro, a ler, a guindarem-se a alturas inexpugnáveis. E dizia com os meus botões: ”O que poderei contar-lhes? Como poderei abordá-las?”.

 

 Diane sorriu. Uma linha ténue nos seus lábios, cúmplice da brisa.

 

 E então?

 

 Nunca encontrei a resposta.

 

 Ela inclinou a cabeça e adoptou um tom de confidência.

 

 Agora, pode sempre sacar do seu cartão tricolor.

 

 Sim, isso mesmo. Ou vir com uma brigada para filar toda a gente.

 

 Diane desatou a rir. Caminhavam para o portão da rue Auguste-Comte. Em frente, avistavam-se outros jardins, mais estreitos, mais escondidos. Langlois perguntou:

 

 Como vai o Lucien?

 

 Continua a melhorar. Verificaram-se impulsões nos quatro membros.

 

 De facto, é fantástico. Ela interrompeu-o:

 

 A vida. A morte. Já me falou nisto.

 

 Langlois esboçou um sorrizinho. O malicioso ar conferia-lhe um encanto infantil. Prosseguiu numa voz grave:

 

 Queria dar-lhe notícias. Identificámos o misterioso doutor. Van Kaen era o seu nome autêntico.

 

 Diane esforçou-se por dissimular a impaciência:

 

 Quem era ele afinal?

 

 Contou-lhe a verdade: chefiava o departamento de anestesia do serviço de cirurgia pediátrica do hospital Die Charité. Uma coisa enorme, no género do Necker. Também possuía uma cátedra de Neurobiologia na Universidade Livre de Berlim. Van Kaen organizava colóquios sobre a neuroestimulação e os seus laços com a acupunctura. Uma verdadeira vedeta, ao que parece.

 

 Diane tornou a ver o colosso de cabelo branco em pé no meio da penumbra do quarto, as suas mãos que faziam rodar as agulhas na carne da criança. Inquiriu:

 

 Onde aprendera ele a técnica da acupunctura?

 

 Não sei ao certo. Mas passou uns dez anos no Vietname, durante a década de oitenta.

 

 Ao caminhar, o tenente tirara da algibeira uma pequena pasta de cartão que consultava de vez em quando.

 

 Van Kaen era um alemão do Leste. Vinha de Leipzig. Foi por isso que pôde residir no Vietname, que era um país absolutamente fechado.

 

 Quer dizer que pôde ali viver na qualidade de comunista?

 

 Exactamente. Nessa época, era muito mais fácil a um alemão do Leste instalar-se na Cidade de Ho Chi Minh do que ir fazer compras a Berlim Oeste.

 

 Patrick Langlois folheou mais umas páginas:

 

 Por enquanto, há apenas uma zona de sombra na sua carreira: entre 1969 e 1972. Ninguém sabe onde esteve durante este período. Após a queda do Muro, voltou à Alemanha e instalou-se em Berlim Oeste. Não levou muito tempo a demonstrar as suas competências e a ser acolhido pela inteligentsia da antiga RFA.

 

 Diane regressou ao presente.

 

 Não tem nenhuma pista para o homicídio?

 

 Pelo menos, ainda não há móbil. Toda a gente admirava o indivíduo. Excepto que tinha uma atitude algo excêntrica.

 

 Excêntrica em que sentido?

 

 Era muito galanteador. Em cada Primavera, seduzia as suas enfermeiras da mais estranha das formas.

 

 Como?

 

 Cantando Árias de ópera. Este canto enfeitiçava todo o pessoal feminino do hospital, segundo parece. Um autêntico Casanova. Mas não acredito no móbil do ciúme...

 

 Acredita em quê?

 

Num ajuste de contas. Tipos do Ocidente vingando as suas famílias que ficaram no Leste, este género de história...

 

Neste caso específico, van Kaen já saíra de tal engrenagem, visto que vivia no Vietname. E nada prova que se tenha dado com o poder comunista. Mas ando à procura neste filão.

 

 Transpuseram o alto gradeamento da rue Auguste-Comte, depois penetraram nos jardins do Observatório. Constrangido pelos prédios, abrigado pelas folhagens, este parque parecia encolhido na sombra e no frio.

 

 Em boa verdade, disse o chui ao cabo de alguns instantes, há uma questão que me interessa tanto quanto o próprio homicídio, é o motivo por que este homem veio tratar o seu filho.

 

 Diane estremeceu.

 

 Quer estabelecer um laço entre o assassínio e Lucien?

 

 Ena! Não exageremos. A intervenção dele faz parte do enigma... E pode ajudar-nos a definir melhor a personagem.

 

 Não vejo como.

 

 Langlois usou de um tom persuasivo:

 

 Eis um médico reputado, uma referência no seu país, que larga bruscamente o serviço, corre para o aeroporto de Berlim a fim de apanhar o primeiro voo com destino a Paris; pudemos reconstituir precisamente cada etapa da sua viagem. Chegado a Roissy, precipita-se a caminho do hospital Necker, forja um crachá, surripia chaves, tem a esperteza de chamar as enfermeiras ao andar do Dr. Daguerre para melhor se insinuar na unidade de reanimação...

 

 Ela recordava-se da atmosfera silenciosa do corredor: van Kaen tomara por conseguinte todas as precauções. O tenente continuava:

 

 Tudo isto para quê? Para aplicar a sua misteriosa técnica em Lucien, com a maior das urgências. É a história de um salvamento, Diane. E este salvamento estava inteiramente centrado no seu rapazinho.

 

 Ela escutava em silêncio. As perguntas de Langlois vinham ao encontro das suas próprias interrogações. O que levara o alemão a interessar-se por Lucien? Quem o prevenira do estado crítico da criança? Alguém o ajudara dentro do hospital?

 

 O tenente indagou, como se acompanhasse mentalmente os pensamentos de Diane:

 

 Não terá sido alguma pessoa das suas relações que entrou em contacto com ele?

 

 Diane negou sem demora abanando a cabeça. O polícia envolveu-a num olhar de aprovação. Ela supôs que Langlois já verificara por si mesmo. Este acrescentou, abrindo a porta do terceiro jardim:

 

 Estamos a interrogar o pessoal do Necker. Os médicos, as enfermeiras. Talvez alguém o conhecesse. Pessoalmente, ou apenas por reputação. Por seu lado, os chuis alemães analisam todos os seus telefonemas, todas as suas mensagens. Uma coisa é certa: foi prevenido logo após a última crise de Lucien, quando os clínicos franceses baixaram os braços.

 

 Prosseguiam o passeio debaixo da sombra impassível das árvores. O leve rangido do cascalho sob os sapatos marcava a cadência dos passos. Diane perguntou:

 

 E sobre a técnica do crime, tem alguma novidade?

 

 Não. A autópsia, a verdadeira, confirmou os dados do nosso mergulho virtual. A violência do homicídio é espantosa. Dir-se-ia um acto... sacrificial, uma coisa assim. Averiguámos se existiam antecedentes em França. Nenhum, já se vê. Quanto ao resto, nem um indício, nem um rasto, nada. O único elemento novo que a autópsia revelou foi a circunstância de van Kaen padecer de um mal singular.

 

 Qual?

 

 Uma atrofia do estômago, que o obrigava a ruminar os alimentos antes de os engolir completamente. É assim que se explicam as manchas nas paredes da sala frigorífica. Quando foi agredido, van Kaen expectorou todos os frutos vermelhos que tinha no esófago.

 

 Parecia a Diane que as palavras de Langlois penetravam directamente dentro de si, sob a sua carne, como ínfimos cristais de medo. Uma realidade oculta insinuava-se no seu ser, adquirindo a pouco e pouco a forma de um puro pesadelo.

 

 Acabavam de atingir a fonte do Observatório: oito cavalos de pedra empinavam-se sob as cascatas impetuosas. Todas as vezes que aqui chegava, quando as árvores se abriam ao vento e o ar se carregava de gotículas de água, Diane experimentava a mesma tristeza e o mesmo vazio. Hoje, porém, a sensação tinha uma intensidade particular.

 

 Langlois abeirou-se dela para cobrir o rumorejo da fonte:

 

 Diane, só mais uma pergunta: o seu filho adoptivo poderá ser de origem vietnamita?

 

 Ela voltou-se lentamente para ele e entreviu-o, como de muito longe, através do véu das suas lágrimas. Não estava decepcionada, nem sequer sentida. Descobria simplesmente a razão deste passeio matinal. Não, respondeu logo. Langlois pareceu irritar-se contra tal silêncio e, quiçá, contra a sua própria pergunta. Pronunciou então num tom mais forte:

 

 Van Kaen passou dez anos no Vietname. Não posso afastar esta possibilidade! Lucien talvez pertença a uma família que ele conheceu, sei lá...

 

 Diane parecia agora de gelo. O polícia repetiu numa voz autoritária:

 

 Responda, Diane. Lucien poderá ser de origem vietnamita?

 

 Ela contemplou de novo os cavalos reluzentes de água. As gotas borrifavam-lhe o rosto, o fino chuvisco pespegava-se nos seus óculos.

 

 Não sei nada. Tudo é possível.

 

 A voz do polícia tornou-se menos veemente:

 

É capaz de se informar? De interrogar as pessoas do orfanato?

 

 Diane olhou para longe. Mais além do boulevarPort-Royal, o céu tormentoso desdobrava os seus cortejos monótonos. Deu consigo cheia de saudades das nuvens da monção que descarregavam na sua memória autênticas chamas de mercúrio.

 

 Vou telefonar, disse por fim. Vou procurar. Ajudá-lo-ei.

 

 No caminho de regresso, Diane entregou-se às mais fantasiosas suposições. No boulevarPort-Royal, convenceu-se de que Lucien era realmente de origem vietnamita. Na rue Barbusse, decretou que ele não era uma criança anónima. Rolf van Kaen conhecera a sua família. De uma forma misteriosa, o menino fora abandonado e, de um modo ainda mais misterioso, o médico alemão tinha sido avisado da sua presença em França. Na rue Saint-Jacques, imaginou que a criança era o filho secreto de uma personalidade importante, a qual contactara o acupunctor com toda a urgência. O código do seu prédio fê-la interromper de chofre tais delírios.

 

 Recuperou a calma dentro do apartamento. As sensações familiares, destiladas pelas suas pequenas três divisões, contribuíram para a apaziguar. Observou demoradamente as paredes brancas, o parque de acaju, as compridas cortinas imaculadas que pareciam guardar na memória o sol, os dias de chuva. Respirou longamente o cheiro da cera e os odores a lixívia que pairavam aqui desde que ela arrumara a fundo a sua casa. De facto, no dia a seguir à noite miraculosa, Diane limpara tudo, apagando o mínimo traço que pudesse lembrar-lhe a mágoa e a desolação das duas últimas semanas. Este odor a limpeza serenou-a e fortaleceu-a na sua resolução.

 

Consultou o relógio e calculou o desfasamento horário com a Tailândia. Meio-dia em Paris. Dezassete horas em Ra-Nong. Foi buscar o seu portefólio ”e depois instalou-se no quarto, sentada no chão, encostada à cama. Para lutar contra a emoção, centrou a respiração o mais baixo pôssível no seu corpo, poucos centímetros acima do umbigo uma técnica clássica de descontracção, utilizada no wing-chun. Quando o ar se dissolveu no seu sangue e convergiu para este ponto misterioso, quando a calma a encheu como um grande vazio apaziguador, ela soube que estava pronta.

 

 Levantou o auscultador e marcou o número do orfanato da fundação Boria-Mundi. Após uns toques tremelicantes, respondeu-lhe uma voz fanhosa. Diane pediu para falar com Teresa Maxwell. Esperou uns bons dois minutos e depois ouviu um ”está lá!” que estalou como uma porta a entalar dedos. Diane perguntou, mais alto do que desejaria:

 

 Mme. Maxwell?

 

 Sim, sou eu. Quem fala?

 

 A ligação estava má. A voz da directora ainda era pior.

 

 Daqui é Diane Thiberge, começou ela. Vimo-nos há cerca de um mês. Fui ao seu centro no dia 4 de Setembro. Sou a

 

 pessoa que...

 

 A argola de ouro? Isso mesmo.

 

 O que pretende? Há algum problema?

 

 Diane lembrava-se do rosto bonacheirão e dos olhos inquiridores. Mentiu sem hesitar:

 

 Não, de modo nenhum.

 

 Como vai a criança?

 

 Muito bem.

 

 Telefona-me para dar notícias?

 

 Sim... Enfim, não exactamente. Gostaria de lhe fazer umas perguntas.

 

 Só as interferências ressoavam do outro lado da linha. Ela continuou:

 

 Quando nos encontrámos, disse-me que não sabia donde vinha a criança.

 

Tem razão.

 

 Não conhece a sua família?

 

 Não.

 

 Nunca viu sequer a mãe dele?

 

 Não.

 

 E não faz a mais pequena ideia da sua etnia de origem? Ou da razão de ter sido abandonado?

 

 Após cada interrogação, Teresa Maxwell intercalava um breve silêncio, carregado de hostilidade. Indagou por seu turno:

 

 Porquê tantas perguntas?

 

 Ora... sou a mãe adoptiva. Tenho o direito de saber, para compreender melhor o meu filho.

 

 Há aí um problema. Não me está a dizer tudo.

 

 Diane tornou a ver a pequenina criatura coberta de pensos, pejada de máquinas e de tubos de perfusão. Com um nó na garganta, ainda encontrou forças para dizer:

 

 Não lhe escondo nada! Só quero saber um pouco mais sobre o meu menino e...

 

 Teresa Maxwell suspirou e volveu, ligeiramente menos agressiva:

 

 Disse-lhe tudo durante o nosso primeiro encontro. Há garotos que erram pelas ruas de Ra-Nong, sem pais, sem cuidados. Quando deparamos com um deles em estado lastimoso, recolhemo-lo, é tudo! Lu-Sian era um destes.

 

 O que tinha ele?

 

 Sofria de desidratação. E de má nutrição.

 

 No momento em que fui buscá-lo, desde há quanto tempo o mantinham no orfanato?

 

 Mais ou menos dois meses.

 

 E não descobriram mais nada acerca dele?

 

 Não efectuamos inquéritos.

 

 Ele nunca recebeu visitas?

 

 As interferências voltaram em força. Diane teve a impressão de que a arrancavam à sua interlocutora, de que lhe retiravam qualquer possibilidade de obter informações. Mas a voz guinchou de novo:

 

 Acautele-se, Diane.

 

Esta sobressaltou-se. A voz parecia de repente mais próxima. Balbuciou:

 

 Com... com quê?

 

 Consigo mesma, segredou a directora. Tenha cautela com esse desejo de saber mais, com essa tentação de indagar sobre Lu-Sian. O garoto é agora seu filho. Você é a única origem dele. Não tente ir mais atrás.

 

 Mas... porquê?

 

 Isso não a conduzirá a sítio algum. É uma verdadeira doença que ataca os pais adoptivos. Há sempre um momento em que desejam saber, em que procuram, espiolham. Como se quisessem apanhar esse tempo misterioso que não lhes pertenceu. Mas tais crianças têm um passado, não podem impedi-lo. É a parte de sombra delas.

 

 Diane nada mais podia acrescentar. Sentia a garganta demasiado seca. Teresa continuou:

 

 Sabe o que é um palimpsesto?

 

Hum... sim... julgo que sim. Apesar de tudo, Teresa explicou:

 

 São pergaminhos da Antiguidade que os monges da Idade Média raspavam para aí inscrever outros textos. Estes documentos eram recobertos por novos escritos, mas conservavam, na sua espessura, a mensagem antiga. Uma criança adoptada reproduz a mesma situação. Há-de educá-lo, ensinar-lhe uma data de coisas, inculcar-lhe a sua cultura, a sua personalidade... Por baixo, no entanto, haverá sempre outro manuscrito. A criança possuirá sempre as suas próprias origens. A herança genética dos pais, do seu país. Os poucos anos vividos no seu meio de origem... Deve aprender a viver com este mistério. Respeite-o. É o único modo de amar verdadeiramente o seu filho.

 

 A voz ríspida de Teresa tingira-se de doçura. Diane imaginava o orfanato. Sentia os seus perfumes, o seu calor, a sua atmosfera de convalescença. A directora dizia a verdade. Mas ignorava tudo do verdadeiro contexto. Diane devia obter respostas precisas às suas perguntas:

 

 Diga-me só uma coisa, concluiu. No seu entender, Lucien... enfim, Lu-Sian, poderá ser vietnamita?

 

Vietnamita? Santo Deus! Porquê vietnamita?

 

 Bem... O Vietname não é assim tão longe e...

 

 Não. É impossível. Aliás, falo essa língua. O dialecto de Lu-Sian não tinha nenhuma semelhança.

 

 Diane murmurou:

 

 Obrigada. Eu... depois telefono outra vez... Desligou e deixou ecoar dentro de si, como numa nave gelada, as palavras da directora.

 

 Foi então que uma recordação longínqua lhe atravessou o espírito.

 

 Era em Espanha, por ocasião de uma missão de levantamento, nas Astúrias. Numa das suas horas vagas, Diane visitara um mosteiro. Uma construção gigantesca e pardacenta, que ainda vivia no tempo das meditações e dos sussurros de pedra. Na biblioteca, desencantara um objecto que a fascinara. Atrás de uma vitrina, um pergaminho estava suspenso por filamentos de aço. O seu aspecto rugoso e rosado conferia-lhe um cunho orgânico, quase vivo. A escrita gótica desfilava ali em linhas cerradas, aplicadas, concedendo às vezes um espaço para uma delicada iluminura.

 

 Mas o facto cativante estava algures.

 

 A intervalos regulares, um néon de luz ultravioleta iluminava o pergaminho obliquamente, fazendo aparecer, sob as letras negras, uma outra escrita, fluida e sanguínea. Os traços de um texto anterior, datado da Antiguidade. Como uma marca deixada na própria carne do pergaminho.

 

 Diane, agora, compreendia: se o seu filho era um palimpsesto, se o passado dele era uma espécie de texto meio apagado, então ela dispunha de alguns fragmentos antecedentes. Lucian. E as poucas outras palavras que ele não cessara de repetir durante as três semanas em que vivera junto de si, em Paris. Essas palavras que Teresa Maxwell não entendia.

 

Uma das dependências do Instituto Nacional das Línguas e Civilizações Orientais situava-se na rue de Lille, mesmo por detrás do museu de Orsay. Era um vasto edifício, sombrio e autoritário, marcado por essa majestade que caracterizava, aos olhos de Diane, os belos prédios do sétimo bairro.

 

 Atravessou o átrio de mármore, depois esgueirou-se entre o dédalo de escadas e de salas de aula. No primeiro andar, encontrou o departamento das línguas do Sudeste Asiático. Explicou sumariamente a uma secretária que era jornalista e preparava uma reportagem sobre as etnias do Triângulo de Ouro. Seria possível falar com Isabelle Condroyer? Descobrira este nome no volume da Plêiade consagrado à etnologia: a cientista devia ser a melhor especialista dos povos dessas regiões.

 

 A secretária respondeu-lhe com um sorriso. Diane tinha sorte: Mme. Condroyer acabava justamente uma aula magistral, ali mesmo. Bastava aguardá-la na sala 138, no rés-do-chão: iriam prevenir a professora.

 

 Diane desceu logo até à sala. Era um compartimento minúsculo, situado na sobreloja, cujos respiradouros de vidro folheado se abriam rente à terra, num pátio interior. As pequenas mesas encostadas umas às outras, o quadro preto, o cheiro a madeira envernizada relembraram a Diane o tempo dos seus estudos. Sentou-se ao fundo da sala, movida por um antigo reflexo de aluna solitária, depois absorveu-se, quase contra vontade, nas recordações de faculdade.

 

 Quando evocava este período da sua vida, não pensava nas horas passadas nas aulas, mas já nas missões que haviam pautado os seus últimos anos de doutoramento. Nunca fora uma aluna estudiosa. Nem tão-pouco um espírito sequioso de análise e teoria. Diane apaixonava-se exclusivamente pelo trabalho de terreno. Morfologia funcional. Auto-ecologia. Topografia dos espaços vitais. Dinâmica das populações... Estes termos e estas disciplinas só tinham desempenhado para ela o papel de pretextos a fim de partir de espreitar, de observar, de apreender a vida selvagem.

 

 Desde a sua primeira viagem, Diane conduzia uma única busca: compreender a barbárie da caça, a violência dos predadores. Vivia na obsessão deste enigma, que se resumia ao estalar de uma mandíbula sobre carne viva. Mas talvez não houvesse nada para compreender somente para experimentar. Quando observava as grandes feras de atalaia, ocultas pelo matagal, imóveis a ponto de se fundirem com a vegetação, a ponto de escavarem, de se embutirem na própria textura do instante, Diane experimentava uma certeza: um dia, de tanto se concentrar, ela mesma se tornaria nesta fera, nesta emboscada, neste instante. Já não se tratava de compreender o instinto animal. Era preciso insinuar-se no seu cerne. Transformar-se nessa pulsão cega, nesse movimento de destruição que não conhecia outra lógica senão a sua...

 

 A porta abriu-se de repente. Isabelle Condroyer tinha as maçãs do rosto bem altas, ao jeito de quem anda de saltos altos. Sob uns cabelos castanhos cortados curto, os seus olhos eram levemente em bico, mas as íris eram de um verde cor de chá. Autênticas amêndoas, ainda muito frescas sob a folhagem. Uma gota de elixir asiático diluíra-se no sangue desta mulher para lhe dar não um encanto de boneca exótica, mas antes uma dureza de montanha, uma rugosidade de altitude. Diane levantou-se. A cientista declarou imediatamente:

 

 A minha secretária disse-me que era repórter. De que jornal?

 

Diane notou que a etnóloga usava um camiseiro vermelho demasiado estreito. O tecido abria-se em pequenas frestas indiscretas. Procurou sorrir:

 

 Quer dizer... Foi só um pretexto para falar consigo...

 

 Como?

 

 Preciso de uma informação. Uma informação muito urgente...

 

 Está a brincar? Julga que não tenho mais nada que fazer?

 

 Por breves instantes, Diane teve vontade de lhe responder no mesmo tom, mas reconsiderou. Uma técnica de combate consistia em utilizar o ímpeto do adversário contra ele mesmo. Optou por tentar amainar a agressividade da mulher tocando numa corda sensível.

 

 Acabo de adoptar uma criança, explicou. Na Tailândia, próximo de Ra-Nong. Conhece, sem dúvida, esta região. A criança tem seis ou sete anos.

 

 E então?

 

 Pronuncia algumas frases soltas. Gostaria de saber a língua que ela fala, qual é o seu dialecto de origem.

 

 A etnóloga pousou a pasta sobre a secretária que ficava em frente das carteiras dos alunos. Cruzou os braços. As aberturas do seu camiseiro alargaram-se mais nitidamente sobre o brilho do soutien. Diane continuou, imperturbável:

 

 Tivemos há pouco um acidente de automóvel. A criança esteve quase a morrer. Permanece inconsciente, mas os médicos pensam que irá despertar.

 

 A mulher observava Diane com uma nova expressão. Parecia perguntar a si mesma se estava na presença de uma louca ou se, pelo contrário, uma tal história fazia sentido. A mentira, clara e precisa, tomava forma no espírito de Diane:

 

 Eis o que se passa. Os médicos acham que será bom, quando o menino recuperar a consciência, que alguém lhe fale a sua língua natal. Só está em Paris há poucas semanas, compreende?

 

 Isto parecia tão legítimo que ela perguntou de súbito a si mesma se não estaria a pronunciar uma verdade, algo que se deveria realmente ter em conta. O tom da professora atenuou-se:

 

 A sua história é... Enfim... Em que estado se encontra ele?

 

 Há poucos dias, parecia condenado. Hoje, porém, os médicos estão optimistas. Vários sinais tendem a demonstrar que irá sair do coma. Resta o problema das sequelas.

 

 Isabelle Condroyer sentou-se. O seu rosto mantinha-se duro, mas já não era hostil. Era grave. Articulou:

 

 Mas se ele não fala, como quer que eu...

 

 Repetia sempre as mesmas palavras. Duas sílabas, principalmente. Lu-Sian...

 

 Não dispõe de nenhuma outra informação sobre a sua origem étnica?

 

 Nenhuma. Apenas estas sílabas.

 

 A etnóloga fitou demoradamente a interlocutora. Diane trazia um casaco a três quartos, cintado, de cor crua, blocos de quartzo à laia de colar, uma agulha de prata a suster a sua guedelha num carrapito. A professora disse finalmente, de novo num jeito douto e frio:

 

 Sabe quantas línguas e dialectos falados existem na região das ilhas do Andamão?

 

 Ao certo, não.

 

 Mais de doze.

 

 Estou a falar-lhe de uma região muito reduzida. Um ponto no mapa. O orfanato é em Ra-Nong e...

 

 Com os movimentos nascidos dos conflitos birmaneses, das guerras da droga, as migrações vindas do Triângulo de Ouro e das índias, o número dos idiomas eleva-se a uns vinte. Talvez mesmo a trinta.

 

 Volto a dizer-lhe que só possuo estas duas sílabas. Mas deve certamente conhecer especialistas para cada dialecto. Posso...

 

 O tom da cientista tingiu-se de exasperação:

 

 De nada nos servem uns escassos vocábulos! Sobretudo se forem pronunciados por si. Só na língua tai, a mesma palavra pode ter vários significados diferentes, consoante a tónica é colocada nesta ou naquela sílaba e conforme a própria palavra se situa no começo ou no fim da frase.

 

 Lá fora o crepúsculo alastrava. A janela de vidro folheado refulgia de um vermelho ardente. A cólera da mulher parecia ter irradiado o vidro. Concluiu de uma maneira abrupta:

 

 Lamento muito. Sem a pronúncia, a sua diligência é absurda. Não posso ajudá-la em nada.

 

 Diane exibiu um largo sorriso.

 

 Tinha a certeza de que iria dizer isso mesmo.

 

 Tirou da carteira um gravador de um vermelho-vivo. O instrumento de karaoke no qual Lucien gravava as suas próprias canções. Diane sabia que era impossível identificar um dialecto sem lhe ouvir a tónica e a pronúncia. Recordara-se então da voz conservada naquela cassete.

 

 Diane carregou na tecla Play. De repente, o timbre nasalado de Lucien elevou-se na sala. As suas sílabas entrecortadas, ligeiramente guturais, destacaram-se como bolhas de infância no silêncio da tarde. Isabelle Condroyer parecia siderada.

 

 Diane ganhara. Mas não saboreava a vitória. A voz da criança também a surpreendia a ela. Não tornara a escutar a cassete desde o acidente. A modulação que ali vogava, ocupando de súbito o espaço, atapetando-o com a presença de Lucien, do seu rosto, dos seus gestos aéreos, trespassara-a como uma lâmina. Num ápice, a mágoa soltou-se, libertou uma pulsão abrasadora em direcção aos seus olhos.

 

 Baixou a cabeça, escondeu a fronte com a mão. Não queria chorar. Encolheu-se, enquanto a voz não cessava de se derramar na sala banhada de púrpura.

 

 Sobreveio então um silêncio repentino.

 

 Diane ergueu os olhos. A etnóloga acabava de parar o aparelho, compreendendo o que se estava a passar. Diane entreabriu os lábios, mas a professora já se levantara, pousando-lhe a mão no ombro. A sua voz, tão dura, tão desabrida ainda poucos segundos antes, sussurrou:

 

 Deixe ficar a cassete. Vou ver o que posso fazer.

 

 As mãos coladas. Era a técnica do wing-chun em que Diane era a mais hábil, a mais rápida. Uma técnica onde a proximidade com o adversário era de tal ordem que se devia desferir ou esquivar os ataques permanecendo em contacto com ele. Socos. Cotoveladas. Golpes com a mão de través. A chuva de violência abatia-se sem que nunca se pudesse fintar nem recuar continuava-se sempre colado ao inimigo.

 

 Diane devia sentir-se nauseada com estes múltiplos toques, mas tratava-se agora de combate, e o sinal da sua fobia não se desencadeava em semelhante contexto. Pelo contrário: o contacto provocava nela uma fruição surda. Como se saboreasse interiormente a inversão deste gesto a carícia convertida em pancada.

 

 Por outro lado, Diane possuía um segredo. Se primava neste confronto de proximidade, era por ser míope e porque a sua melhor probabilidade de vencer consistia em permanecer sempre num campo muito chegado, no qual distinguia o mínimo pormenor. Transformara a sua desvantagem em força, aprendera a lutar o mais perto possível, apostando tudo na velocidade, correndo riscos cuja intensidade desorientava os adversários.

 

Nessa mesma noite, a sessão de treino, no dojo de Maubert-Mutualité, constituía o escape ideal para as emoções do dia. Depois do telefonema a Teresa e do encontro com a etnóloga, Diane fora directamente para o hospital. Lucien sujeitava-se a exames e tinham-na proibido de o ver. Primeiro, enfurecera-se, mas em seguida percebera que o Dr. Daguerre tencionava retirar os drenos já na manhã seguinte.

 

 No entanto, ao regressar a casa, Diane não conseguira alegrar-se completamente. O homicídio de van Kaen prevalecia sobre tudo o resto até mesmo sobre a cura do filho. Ela não cessava de pensar nessa atrocidade. Na mão que torcera as vísceras. Nos mirtilos aglutinados nas paredes. No ecrã cintilante que pusera a nu as entranhas profanadas do acupunctor. Tudo se confundia no seu espírito. Já não conseguia dissociar mentalmente o assassínio e as melhoras do seu filho.

 

 De resto, o edifício pediátrico estava agora vigiado por polícias fardados. Quando interrogara Mme. Ferrer sobre tal presença, a mulher respondera-lhe simplesmente ”segurança”. Que segurança? Face a que perigo? Continuaria um assassino a rondar pelos corredores do Necker? Em vez de se esgotar em torno destas interrogações, preferira reatar com o cheiro a suor e os golpes do dojo. As mãos coladas. Uma maneira como qualquer outra de exsudar as suas angústias...

 

 Em casa, Diane tomou um duche muito quente, depois escutou o atendedor. Sempre as mesmas chamadas a sempre eterna lista dos amigos ou conhecidos que pediam notícias e repetiam as palavras de conforto. Havia igualmente as mensagens da mãe. Todavia, sempre que reconhecia a voz detestada, Diane carregava na tecla Next.

 

 Passou à cozinha. De cabelo ainda a escorrer e faces afogueadas, preparou um Darjeeling bem escuro e dispôs sobre um tabuleiro a chaleira, uma tigelinha de palmitos e iogurtes alimentava-se quase exclusivamente de biscoitos e lacticínios. Depois instalou-se no seu quarto com os livros que comprara durante a tarde.

 

Restava-lhe explorar uma pista. Uma pista vaga, indirecta, mas que a preocupava profundamente: a acupunctura. Queria compreender o modo como van Kaen agira sobre o corpo de Lucien. De uma forma confusa, adivinhava que esta técnica tinha uma ligação com os outros elementos da noite fatídica.

 

 Bastou-lhe uma hora de leitura para confirmar vários factos.

 

 Em primeiro lugar, Eric Daguerre tinha razão. Fisiologicamente, o acupunctor não picava nenhum ponto particular. Nem nervos, nem músculos, nem sequer zonas cutâneas mais sensíveis pelo menos, nem sempre. Nunca fora possível pôr em realce, de um modo físico, a existência dos meridianos no interior do corpo. Alguns estudos só haviam demonstrado que a agulha libertava por vezes endorfinas hormonas possuidoras de efeitos analgésicos. Outras pesquisas tinham posto em evidência as propriedades eléctricas de certos pontos. Mas nenhuma destas ilações podia ser generalizada, e elas só constituíam epifenómenos em comparação com os prodigiosos resultados alcançados por Rolf van Kaen.

 

 O médico alemão também falara verdade: a acupunctura, segundo a medicina chinesa, abarcava uma entidade misteriosa, que os praticantes designavam por ”energia vital” e que o anestesista equiparara a uma espécie de impulso originário uma fonte primeva. Porque não, bem vistas as coisas? Apesar do seu sólido racionalismo, apesar da sua formação de bióloga, Diane estava disposta a admitir tudo perante a evolução de Lucien. Era evidente que o acupunctor influenciara os seus mecanismos fisiológicos a um nível que as medicações e os instrumentos da medicina ocidental não haviam sabido atingir.

 

 Diane prosseguiu a leitura. O que a interessava agora era a geografia destas forças misteriosas. O alemão referira-se a ”lençóis freáticos”e deixara entender que a dita energia vital possuía, no seio do corpo humano, os seus ”riachos”: meridianos que seguiam uma topografia subterrânea. Horas a fio, Diane estudou estes fluxos complexos e os seus jogos de correspondências.

 

 O mais espantoso era que tal energia parecia situar-se simultaneamente no interior do corpo e no exterior. Não se tratava apenas de reaquecer, de apaziguar, de solicitar um determinado meridiano, mas sobretudo de equilibrar esta corrente com as forças de fora. Em suma, as agulhas funcionavam como minúsculos relês apontados ao universo, que iriam servir para ”o organismo com uma hipotética potência cósmica. Diane interrompeu a leitura: estes conceitos e este vocabulário incomodavam-na; tudo lhe fazia recordar a gíria dos espiritualistas e os discursos destinados a almas perdidas com a mania dos gurus. Contudo, ela lembrava-se das agulhas, verdes e vivas, que haviam juncado a epiderme do seu filho. Ela própria, nesse momento, pensara em passadiços, em relês voltados para forças misteriosas e indizíveis.

 

 Diane apagou a luz e reflectiu. Estes livros sobre a medicina chinesa não lhe tinham proporcionado nada, exceptuando a seguinte ideia: talvez a criança, em virtude da sua herança cultural, fosse mais sensível do que qualquer outra à acupunctura. Talvez existisse uma espécie de aquisição genética que permitira que o seu corpo reagisse melhor a essa técnica. Mas afinal o que sabia ela das leis dos atavismos? Não seria uma suposição gratuita? A qual, ao fim e ao cabo, não facultava nenhuma informação precisa sobre o nascimento de Lucien.

 

 Tornou a ver mentalmente a sessão de van Kaen nos mais ínfimos pormenores. Acudiu-lhe à memória uma frase. Uma frase a que não prestara atenção na tormenta da noite, mas que adquiria agora uma ressonância singular. Antes de a deixar, o médico dissera: ”A criança tem de viver, compreende?” Esta reflexão, na altura, parecia exprimir unicamente a determinação do acupunctor. Mas também podia significar que Lucien, por uma razão que ela desconhecia, devia sobreviver a todo o custo.

 

 O alemão falara como um homem detentor de um segredo uma realidade a propósito da criança. Talvez uma origem excepcional, conforme Diane se deliciara a imaginar durante a tarde. Ou uma particularidade fisiológica. Ou então uma missão, uma obra que Lucien teria de realizar quando fosse mais velho...

 

A doença das teorias absurdas estava a apoderar-se novamente dela. Ao mesmo tempo, ainda ouvia, como um eco, a entoação do médico. Sentia a extrema tensão, a angústia velada que ele se esforçara por esconder ao longo da sessão. Este clínico sabia alguma coisa. Lucien não era uma criança como as outras. E Langlois, com o seu faro de chui, já o percebera. Eis porque se interessava tanto por Lucien e pela origem dele.

 

 Loucura por loucura, Diane imaginou outra possibilidade.

 

 Um motivo tão imperioso para salvar uma criança podia, de igual modo, constituir um motivo para a destruir... E se van Kaen tivesse sido assassinado por, justamente, ter despertado o rapazinho?

 

 Se uma ameaça pairasse sobre Lucien?

 

 Deteve aqui as interrogações. Uma última hipótese acabava de lhe cortar a respiração.

 

 E se esta ameaça já tivesse sido exercida?

 

 Se o acidente do boulevarpériphérique fosse mais do que uma simples casualidade?

 

Segunda-feira, 11 de Outubro. Diane circulava pelos contrafortes do monte Valérien, em Suresnes.

 

 Atravessara o cemitério americano, estriado de cruzes brancas, depois percorrera os outeiros verdejantes que sobranceavam o Bosque de Bolonha. Não era o seu caminho, mas devia ter-se enganado algures, nas imediações da ponte de Saint-Cloud. A bordo do carro alugado, descia agora a rue dês Bas-Rogers, retomando o negrume da cidade. Debaixo de chuva, reencontrou o tédio monótono dos arrabaldes, as suas avenidas tristonhas, as suas ruelas desengraçadas. Um tédio que custava a suportar.

 

 Diane lançara-se a fundo no inquérito. Aproveitara o fim-de-semana para levar a cabo umas investigações, mas era agora que ia penetrar no cerne das suas interrogações. Passou por baixo de um aqueduto de granito, contornou uma rotunda que anunciava altivamente a entrada do bairro do Belvedere, depois descortinou, à direita, a rue Gambetta. Dominada pela via-férrea, a artéria apresentava uma fileira de moradias apertadas umas contra as outras, que davam a impressão de ir perdurar assim através dos tempos.

 

 O número 58 era uma casa de dois andares, suja e danificada, revestida de tijolos e flanqueada por varandas de ferro preto. Diane estacionou sem dificuldade e penetrou no interior. Descobriu uma entrada vetusta, caixas do correio sebentas, uma escada toldada de sombra. Até mesmo o cheiro a mofo dos caixotes do lixo condiziam com o quadro era uma espécie de azedume, rezingão e violento, acaçapado sob o vão da escada, que parecia resumir toda a história do prédio.

 

 Ela accionou o interruptor e verificou que a luz não vinha que não viria nunca. Acercou-se de um painel de cartão bafiento onde se podia ler a lista dos inquilinos, e encontrou, graças à claridade do exterior, o nome que procurava o nome que conseguira extorquir a Patrick Langlois, ao telefonar para casa dele na véspera à noite.

 

 Degraus rangentes, corrimão pegajoso: as aguardadas sensações prosseguiam. Diane envergava um impermeável comprido de um azul cor de petróleo, que chiava a cada um dos seus passos. Os ombros iam perlados de gotinhas de chuva e a presença destas migalhas líquidas tranquilizava-a. Alcançou o segundo andar e bateu à porta da esquerda.

 

 Nenhuma resposta.

 

 Voltou a tocar.

 

 Passou mais um minuto. Diane preparava-se para arrepiar caminho quando se ouviu o ruído de um autoclismo.

 

 A porta abriu-se finalmente.

 

 Um homem postava-se no limiar. Vestia um fato de treino com capuz, sem forma nem cor. Diane não distinguia o seu rosto por entre as sombras. Só podia notar que a personagem era mais jovem que na lembrança dela. Uns trinta anos, quando muito. Também mais magro. O que lhe chamou sobretudo a atenção foi o cheiro a cânhamo que saía pela fisga da porta entreaberta. O jovem estava em plena curtição de erva. Daí o ruído de água na casa de banho. Ela perguntou:

 

 O seu nome é Marc Vulovic, não é?

 

 O rosto sombrio não se mexeu. Depois elevou-se uma voz roufenha: O que pretende?

 

 Diane ajeitou melhor os óculos. Este timbre cavo confirmava o pior o homem não devia drogar-se apenas com liamba.

 

Chamo-me Diane Thiberge. Silêncio do homem. Ela acrescentou:

 

 Sabe quem sou, não sabe?

 

 Não.

 

 Sou a condutora do 4x4 da noite do acidente.

 

 Vulovic ficou calado. Passou um minuto. Ou tão-somente

 

 alguns segundos. No seu estado de nervosismo, Diane não tinha a certeza de nada. Ele ordenou:

 

 Entre.

 

 Diane atravessou um vestíbulo exíguo, pejado de CD’s e de cassetes vídeo, depois deparou com uma cozinha, à direita, revestida de linóleo e de fórmica. Com um gesto, o homem convidou-a a sentar-se. A luminosidade descorada difundia-se através dos cortinados cor de cinza. Um lava-loiça, um esquentador: duas manchas lívidas submersas sob a loiça suja. E o cheiro a droga que saturava a atmosfera. Diane descobriu uma cadeira no eixo da janela entreaberta. Sentou-se rapidamente, desencadeando um novo torvelinho de reflexos no seu impermeável.

 

 O homem imitou-a, escolhendo um banquinho, do outro lado da mesa. Tinha um rosto comprido e seco, que brotava do seu capuz descido como um tubérculo amarelado. Cabelo louro, cortado em rabo de pato, e uma barbicha encrespada que se assemelhava a fibras de milho. Já não trazia pensos. Só algumas crostas castanhas, na testa e nas arcadas. Resmungou, cabisbaixo:

 

 Queria ir ao hospital, mas...

 

 Deteve-se e ergueu a cara. Os olhos verdes assemelhavam-se a pequenas vigias abertas para um mar gelado. Perguntou:

 

 Ele está... Enfim, o menino... está...

 

 Diane compreendeu que ninguém lhe dera notícias. Titubeou:

 

 Está melhor. Ninguém esperava, mas apresenta melhoras. Vamos então falar de outra coisa, concorda?

 

 Vulovic meneou vagamente a cabeça, observando a interlocutora com indecisão. Tinha o corpo torcido, os ombros alçados. Um toxicodependente prisioneiro do seu mal íntimo. Perguntou:

 

 Porque veio aqui?

 

 Quero voltar consigo às circunstâncias do acidente. Saber o que lhe aconteceu ao volante.

 

 O motorista fez cara torta. Um clarão de desconfiança perpassou-lhe nas pupilas. Diane não lhe deu tempo para falar:

 

 Disse que, naquela noite, vinha do parque de estacionamento da avenue de La Porte d’Auteuil. O que fazia ali? Descansava?

 

 O homem sorriu a contragosto. Um lampejo lascivo recortou-se nas suas íris.

 

 Nunca foi lá? Quero eu dizer: à noite?

 

 Diane imaginou uma avenida anónima, entalada entre o boulevarpériphérique e o estádio de Roland-Garros, que conduzia directamente ao Bosque de Bolonha. De súbito, visualizou este mesmo quadro, à noite, e compreendeu o que as suas próprias obsessões lhe haviam escondido até ao momento: as putas. Este homem tinha simplesmente ido às putas.

 

 Ele acenou com a cabeça, dando a entender que adivinhara as deduções de Diane.

 

 É um hábito muito frequente antes de uma partida. Devia ir à Holanda. Hilversum. Ida e volta. Vinte e quatro horas de estrada.

 

 Diane atalhou:

 

 Pois sim. Mas li estatísticas sobre a hipovigilância. Oitenta por cento dos acidentes de viaturas pesadas ligados ao adormecimento acontecem entre as vinte e três horas e a uma hora da madrugada. Segundo os mesmos números, este tipo de acidentes nunca acontece no boulevarpériphérique. Por natureza, a proximidade da capital ”os motoristas... Se saía do...

 

 Anda a fazer um inquérito? interrompeu subitamente o tipo, num tom agressivo.

 

 Só quero compreender. Compreender como pôde adormecer, à meia-noite, quando acabava de visitar uma prostituta e se preparava para iniciar vinte e quatro horas de estrada.

 

Vulovic contraiu-se. As suas mãos vibravam em cima da mesa. Diane refreou o seu próprio nervosismo e mudou brutalmente de direcção:

 

 O que toma para se manter acordado?

 

 Café. Levamos termos.

 

 As narinas de Diane estremeceram alusão muda ao odor que reinava nessa cozinha pútrida.

 

 Também fuma, não é?

 

 Como toda a gente.

 

 Refiro-me ao haxixe.

 

 O homem não respondeu. Ela continuou:

 

 Nunca pensou que isso podia derreá-lo completamente? Adormecê-lo?

 

 Vulovic esticou o pescoço. Latejava-lhe sob a pele uma rede de veias.

 

 Todos os motoristas precisam de uma pedrada para aguentar. Cada qual tem os seus planos. Entendido?

 

 Diane debruçou-se por cima da mesa. Estes ares de rufia não a impressionavam. Passou ao tratamento por tu:

 

 Não tomas mais nada?

 

 O camionista fechou-se no silêncio. Diane insistiu:

 

 Anfetaminas, coca, heroína?

 

 Ele olhou de soslaio na sua direcção. Dois globos de ferro, luzidios como balas, sob umas pálpebras veladas. Um sorriso lerdo veio bailar-lhe nos lábios.

 

 Já percebi. Quer causar-me chatices. Despediram-me. Tiraram-me a carta de condução. Estou sujeito a ir de cana, mas a si não lhe basta. Quer ver-me já na prisa. Por muitos anos.

 

 Diane travou-o com um gesto.

 

 Procuro a verdade, é tudo. Vulovic berrou:

 

 A verdade está escrita tim-tim por tim-tim no relatório da bófia! Submeti-me ao teste de alcoolemia. Fiz exames no hospital. Não encontraram nada. Chiça! eu estava limpo. Juro que estava limpo na altura do acidente!

 

 Dizia a verdade. Já haviam mencionado estas análises à sua frente.

 

OK, volveu Diane num tom menos alto. Então porque adormeceste naquela noite?

 

 Não sei. Não me recordo de nada. Ela empertigou-se.

 

 Como é possível?

 

 O homem hesitou. Suava por todos os poros. Murmurou: Juro-lhe. Por mais que puxe pela cabeça, a partir da Porte d’Auteuil não me lembro de mais nada... Nem mesmo sei se dei uma pirocada. Devia estar moído de cansaço. Não sei. Não tenho qualquer recordação até ao choque...

 

 Diane via desenhar-se uma verdade subterrânea. Uma realidade assustadora de que ela suspeitara e que tomava forma sob o seu olhar. Indagou:

 

 Alguém tocou no teu café?

 

 Está a delirar ou quê? Porque me pergunta uma coisa dessas?

 

 Falaste com alguém no parque de estacionamento? Ele negou com a cabeça. O capuz ia ficando empapado de transpiração.

 

 Não saímos da cepa torta. Não me lembro de nada. Merda! Foi um acidente. Não vale a pena matutar mais, embora eu ache tudo muito estranho.

 

 Diane puxou a cadeira e aproximou-se. Apesar dos cabelos húmidos, apesar da chuva sobre a nuca, a pele ardia-lhe.

 

 Não entendes como tudo isto é grave para mim? Tenta lembrar-te.

 

 Vulovic abriu a gaveta da mesa de cozinha. Sacou de lá um estojo de fazer charros: cigarro, papel OCB, barra de haxixe envolvida em papel de alumínio. Declarou, começando por pegar em duas folhas de enrolar:

 

 A porta é atrás de si.

 

 Diane atirou os objectos ao chão varrendo-os com as costas de uma mão. O homem levantou-se de um pulo, agitando o punho. Olha que levas, garina!

 

 Diane encostou-o à parede. Era mais alta que ele. E mil vezes mais perigosa. Esboçou uma espécie de sorriso interior. No fundo, preferia assim. Preferia que este gajo fosse capaz de a esbofetear, de lhe bater. Preferia que tivessem utilizado um biltre na tentativa de matar o seu filho. Articulou:

 

 Ouve-me bem, imbecil. Durante nove dias, o cérebro do meu filho não cessou de se dilatar, de se asfixiar no seu próprio sangue. Durante nove dias, acompanhei estas palpitações de morte. Hoje, ainda não sei em que estado ele vai recuperar os sentidos. Talvez fique normal. Ou porventura mais lento que os outros. Ou, quem sabe, simplesmente um vegetal. Imagina um pouco a vida que iremos ter os dois, ele e eu.

 

 O motorista baixou a cabeça. Liquefazia-se nas mãos de Diane. Ela deixou-o esparramar-se no banquinho. Inclinou-se, falando sempre numa voz calma:

 

 Sendo assim, se achas que houve algo de suspeito antes do acidente, se, lá no teu íntimo, tens a mais pequena suspeição, irra! é agora a altura de falares.

 

 De rosto descaído, a escorrer suor e lágrimas, o homem tartamelou:

 

 Não sei... Não sei... Tenho a impressão de que me fizeram uma coisa...

 

 Que coisa?

 

 Não sei bem. Adormeci de repente... Como se...

 

 Como se o quê?

 

 Como se alguém comandasse... Foi a sensação que tive...

 

 Diane reteve a respiração. Era um abismo de sombra, e ao mesmo tempo uma luz. A ideia jorrou dentro dela, clara e difusa: de uma ou de outra maneira, o tipo havia sido influenciado. Pensou na hipnose. Não sabia se era viável uma manipulação de tamanha envergadura, mas, em caso afirmativo, teria sido necessário que um sinal desencadeasse a atitude programada.

 

 Estavas a ouvir rádio?

 

 Não.

 

 Tens um walkman?

 

 Não!

 

 Viste alguma coisa na berma da estrada?

 

Absolutamente nada!

 

 Diane recuou um bocadinho. Retroceder a fim de recomeçar em força.

 

 Falaste nisso aos chuis?

 

 Não. Não tenho a certeza de nada. Porque me fariam aquilo? Porque iriam organizar uma coisa assim?

 

 Vulovic não dizia tudo. Um núcleo de pavor, algures dentro dele, pulsava febrilmente. Por fim, balbuciou:

 

 Quando penso em tudo aquilo, só tenho uma sensação.

 

 O que é?

 

 Verde.

 

 A cor?

 

 Verde caqui. Como... como o pano militar.

 

 Diane meditou. Não sabia de que modo utilizar este indício, mas sentia que ele constituía o embrião de uma verdade. O homem soluçava, de mãos a apertar as têmporas.

 

 Meu Deus... O seu garotinho... penso nele todas as noites... Peço-lhe perdão. Oh! peço-lhe perdão!

 

 Imóvel, Diane disse unicamente:

 

 Nada tenho a perdoar-te.

 

 Sou ortodoxo, continuava o tipo. Rezo a São Sava por ele, eu...

 

 Repito que nada tenho a perdoar-te. A culpa não foi certamente tua.

 

 O camionista ergueu os olhos. As lágrimas nublavam-lhe o olhar.

 

 O quê... o que é que disse? Diane sussurrou:

 

 Não sei o que digo. Ainda não sei.

 

 A meio da manhã, o parque de estacionamento da avenue de La Porte d’Auteuil nada oferecia de particular. As construções do estádio Roland-Garros assemelhavam-se às muralhas de uma cidadela interdita. Quanto ao boulevarpériphérique, zunia mais abaixo sem que se pudesse avistá-lo do parapeito. Todavia, no momento em que Diane ali estacionou ao fim da manhã, pôde imaginar logo a atmosfera dúbia de que o local se revestia ao anoitecer. As carnes iluminadas pelos faróis, os carros em plena caçada, os habitáculos dos veículos parados em lugar retirado, sombrios e encasulados sobre os instintos libertados. Ela arrepiou-se. Parecia-lhe sentir esses desejos nocturnos, vê-los adejar, entrelaçar-se ao longo do asfalto, quais bichos crispados e ameaçadores...

 

 Tirou o relógio, prendeu-o ao volante, pôs em marcha a função ”cronómetro”, depois arrancou. Subiu a avenida e

 

 virou à direita. Ladeou o Jardim dos Poetas e seguidamente os jardins das estufas de Auteuil antes de alcançar a Porte Molitor. Ia a uma velocidade razoável: a cadência de um veículo

 

 pesado em plena noite. Por fim, entrou na estrada circular e tomou a direcção Porte Maillot/Auto-Estrada de Ruão.

 

 Tinham decorrido dois minutos e vinte.

 

 Diane acelerou, mantendo-se na fila da direita. Por sorte, a circulação era fluida tão fluida como naquela noite. Noventa quilómetros à hora. Era a primeira vez que Diane rodava de novo no périphérique. As suas mãos grudaram-se ao volante: não queria ceder à perturbação.

 

 Porte de Passy. Três minutos e dez. Tornou a acelerar. Cem quilómetros à hora. O camião de Marc Vulovic não podia exceder esta velocidade. Quatro minutos e vinte. Meteu por baixo do túnel da Porte de Muette.

 

 Recordava-se das cataratas de luzes, dos seus pensamentos enevoados pelo champanhe.

 

 Voltou novamente ao ar livre.

 

 Setecentos metros mais adiante, transpôs outro túnel.

 

 Cinco minutos e dez.

 

 Quando Diane viu surgir o último túnel antes da Porte Dauphine, soube que estava em vias de franquiar uma outra realidade. E que a sua própria culpabilidade talvez tivesse um segredo para lhe murmurar...

 

 A cem metros do antro de betão, fechou os olhos e guinou violentamente para a extrema-esquerda. Ouviu rangidos de pneus, buzinadelas. Reabriu os olhos in extremis, para travar ao longo das barras de metal que separavam os dois eixos do périphérique.

 

 Com um gesto, parou o cronómetro.

 

 Cinco minutos e trinta e sete segundos.

 

 Encontrava-se exactamente no local do acidente. Os separadores de segurança acabavam de ser mudados e as fissuras na pedra, à entrada do túnel, provocadas pelo reboque do camião, ainda eram visíveis.

 

 Cinco minutos e trinta e sete segundos.

 

 Tal era a primeira parte da verdade.

 

 Integrou-se novamente no tráfego e esperou pela Porte Maillot a fim de meter pela saída, atravessar a praça a toda a pressa e seguir na direcção oposta. Chegou assim à Porte Molitor. Deixou outra vez a artéria e enveredou pelo boulevarSuchet. Abrandou junto ao número 72 a morada da mãe. Receava um novo mal-estar, um novo fluxo de recordações. Nada veio. Procurou lembrar-se do sítio onde estacionara naquela noite. O pormenor reavivou-se na sua memória: avenue du Marechal-Franchet-d’Esperey, ao longo do hipódromo de Auteuil.

 

 Encaminhou-se para a avenida, parou nas imediações da zona de que se lembrava e em seguida pôs o cronómetro a funcionar. Meteu logo pela artéria arborizada até virar, um quilómetro mais adiante, à direita, na praça da Porte de Passy. Exactamente como fizera na noite fatídica. Seguiu então pelo boulevarpériphérique.

 

 Olhadela ao relógio: dois minutos e trinta e três. Diane adoptou voluntariamente a velocidade média do Toyota Landcruiser. Cento e vinte quilómetros à hora. Porte de La Muette. Quatro minutos.

 

 Viu, acima dos contrafortes da circular, os edifícios longilíneos da embaixada da Federação Russa. Quatro minutos e cinquenta. As construções da Universidade de Paris IX. Cinco minutos e dez...

 

 Enfim, a entrada do túnel fatal. Desta vez, Diane imobilizou-se à direita, na faixa de paragem de emergência, depois de ter acendido as luzes de emergência. Sem espalhafato nem travagens a fundo. No entanto, quando pegou no mostrador do relógio, a sua mão tremia: cinco minutos e trinta e cinco.

 

 Não poderia imaginar uma sincronia mais pura. Quer do parque de estacionamento da avenue de La Porte d’Auteuil, quer da avenue du Marechal-Franchet-d’Esperey, eram precisos cinco minutos e trinta e cinco para atingir o ponto exacto do acidente. Bastava, pois, que Marc Vulovic, ”de uma qualquer maneira, arrancasse no momento em que Diane e o filho se metiam no seu próprio carro, para que os dois veículos se encontrassem à entrada do último túnel antes da Porte Dauphine.

 

 Diane admitiu seriamente a hipótese de uma armadilha. Uma armadilha à base de sono, de chuva e de chaço lançado a toda a velocidade. Uma tal cilada pressupunha uma sentinela ao pé do prédio do boulevarSuchet, espreitando a sua partida, enquanto outro homem, pela hipnose ou por uma outra técnica a esclarecer, (desencadeava) no mesmo instante Marc Vulovic. Bastava que os dois homens estivessem ligados por uma comunicação VHF ou simplesmente por telemóvel. Até aqui, nada de impossível.

 

 Havia em seguida o problema do adormecimento, que devia acontecer no preciso momento em que o 4x4 se cruzava com a trajectória do camião. E era aqui, justamente, que a ratoeira parecia concebível: se ela tivesse razão, os algozes puderam calcular o ponto de cruzamento e preparar, nessa zona, um sinal que provocaria o sono do motorista...

 

 Diane fechou os olhos. Ouvia o rasto vertiginoso dos carros que seguiam pelo périphérique. Talvez cedesse ao pleno delírio, talvez perdesse totalmente o seu tempo, mas sabia agora que, nos confins extremos da razão, uma tal emboscada era admissível.

 

 Restava um pormenor sem o qual nada teria sido possível. Um pormenor que, desde o início, não encaixava. Diane accionou o pisca-pisca e insinuou-se novamente no trânsito.

 

 Meteu rapidamente as velocidades e tomou a direcção da Porte de Champerret.

 

 Se quiser chatear alguém, minha menina, é melhor esperar pelo chefe. Do outro lado do vidro, Diane podia observar a oficina de mecânica. As paredes estavam tão negras que pareciam absorver as luzes que vinham das lâmpadas do tecto. Instrumentos de ferro martelavam ao longe. Macacos de automóveis engordurados chiavam algures, como pulmões torturados. Ela sempre sentira uma obscura aversão a oficinas. A essas correntes de ar que enregelavam os ossos. A esses fedores a gordura que atacavam as narinas. A essas mãos sujas que manipulavam objectos cortantes e frios. Lugares tão duros, tão sombrios, que já ali se não lavavam as mãos em água, mas em areia.

 

 Por trás do balcão, o tipo gordo em fato de ganga repetiu o seu estribilho:

 

 As autorizações não são da minha conta. É melhor falar com o chefe.

 

 Quando é que ele volta?

 

 Foi almoçar. Estará aqui dentro de uma hora.

 

 Diane simulou uma intensa contrariedade. No fundo, aguardara cuidadosamente o período do meio-dia para ir ali, na esperança de dar com um empregado subalterno no género daquele a quem se dirigia. Era a única hipótese de se aproximar do seu próprio carro, cuja contraperitagem ainda não fora efectuada. Suspirou:

 

 Ouça. O meu filho está no hospital. Gravemente ferido. Tenho que ir vê-lo sem demora, mas, antes disso, preciso de um certificado técnico que está no meu carro!

 

 O mecânico batia com os pés de irritação. Parecia não saber como desenvencilhar-se da situação.

 

 Lamento muito. Enquanto o perito não vier, ninguém pode entrar na carripana. É um problema de seguros.

 

 É precisamente a minha companhia de seguros que me pede esse documento!

 

 O homem tornou a hesitar. Um camião, que rebocava um automóvel sinistrado, desceu rapidamente a rampa, num estrondo de gás, a poucos metros do serviço. Diane sentia o seu mal-estar amplificar-se. O sujeito acabou por segredar:

 

 Tem as chaves?

 

 Ela fê-las tilintar no bolso. Ele bichanou:

 

 Número 58. Segundo subsolo. O parque do fundo. Despache-se. Se ainda lá estiver quando o meu patrão chegar, nem sabe...

 

 Diane esgueirou-se por entre os carros e depois atravessou a oficina. Ladeou as paredes de betão escuro, evitou as poças de óleo, passou por pontes elevatórias. Nesta penumbra, a luz dos néones parecia encerrar um significado secreto, esotérico nos antípodas da claridade do dia.

 

 Desceu um declive suave e alcançou um novo parque de estacionamento. Os carros assemelhavam-se a monstros frios, dormindo um sono de metal. Diane sentia-se cada vez menos à vontade. Tinha as solas besuntadas de gordura. Um cheiro a carburante queimado infiltrava-se na sua garganta. Via desfilar os números meio apagados no solo. A simples ideia de enfrentar o seu Toyota destroçado apertava-lhe o estômago. Mas tinha de verificar um pormenor.

 

 O pormenor do cinto de segurança.

 

 O menino fora projectado do banco porque o cinto não estava apertado. Os assassinos, se existiam, contavam então com uma eficácia máxima neste ponto. Como podiam ter a certeza de que Diane não prenderia a criança, não efectuaria tal gesto de protecção?

 

 O Toyota Landcruiser surgiu, a poucos metros. Diane discernia o capô metido para dentro, o pára-brisas comprimido, o lado esquerdo amolgado em vergões brutais. Teve de se apoiar numa coluna. Dobrou-se toda e julgou vomitar, mas, gradualmente, o sangue concentrou-se sob a sua testa inclinada e conferiu-lhe uma espécie de equilíbrio, de inesperada estabilidade. Reunindo forças, abeirou-se do carro e atingiu a porta direita da retaguarda.

 

 Tirou da carteira uma lanterna de halogéneo, acendeu-a, depois abriu a porta. Uma vez mais, o abalo. O sangue negro e seco nas bordas do banco de criança. As pequenas pérolas de vidro espalhadas sobre ele.

 

 Duas imagens contraditórias sobrepuseram-se no seu espírito.

 

 Via a correia de tecido e a fivela de metal jazendo ao lado do banco de Lucien. Um cinto que, pelo que parecia, não fora fechado. Mas via-se também a si mesma, a afivelar este sistema depois de ter instalado a criança na cadeira. Não era uma novidade. Ao longo dos dias, a sua convicção arreigara-se com nitidez, apesar das provas em contrário: ia jurar que fechara o cinto. Agora, perante o interior do carro, já não havia qualquer dúvida.

 

 Como é que estas duas verdades podiam coabitar? Segurou a lanterna com os dentes e penetrou no carro. Observou atentamente o sistema de fixação. Pensava agora numa sabotagem: uma correia cortada, um rebite serrado... Mas não: estava tudo intacto. Deslizou ao longo do banco de trás. Amontoavam-se ali pastas de cartão que guardavam estudos fotocopiados, caixas de plástico que continham clips de marcação, uma coberta de penas caqui desdobrada até ao solo. Todos estes objectos se tinham esmagado contra as costas do banco no momento da colisão. Ela observou-os, soergueu-os, arredou-os. Nada encontrou.

 

 Prosseguiu a busca. Com um joelho sobre o estofo, passou o torso por cima do encosto na direcção da bagageira. A potência da colisão arrancara o tampo da mala. Diane recordava-se de ter levado com este painel de compósito na nuca. Debruçada sobre o espaço, passeou o seu pincel de luz: mais pastas de cartão, um velho saco de pano, sapatos de marcha, uma parca embebida em gasolina. Nada de estranho, nem de suspeito.

 

 Todavia, lentamente, um pensamento formava-se na sua consciência. Uma hipótese impossível, mas que ela não conseguia remover. Apagou a lanterna e chegou-se ao banco da frente. Para verificar esta suposição, devia interrogar a única testemunha da cena.

 

 Ela própria.

 

 Tinha de reavivar as suas recordações pessoais a fim de decidir se estava ou não a perder o juízo, ou se este caso ultrapassava os limites do possível.

 

 Ora só existia uma técnica para empreender semelhante mergulho dentro de si mesma.

 

 E um único homem para a ajudar.

 

 A seguir a um vestíbulo de mármore, o restaurante abria para uma grande sala forrada de veludo escuro decorada por colunas brancas. Algumas mesas encontravam-se em nichos construídos em arco. A laca de um piano brilhava na meia-luz, quadros crepusculares lançavam os seus reflexos castanho-avermelhados e, através dos longos vãos envidraçados, os jardins dos Campos Elísios respondiam ao luxo do local por um contraponto delicado de folhagens e de fachadas claras. Hoje, o céu de trovoada difundia uma luz lisa, nacarada, que se harmonizava às mil maravilhas com a amenidade da sala, atravessada por clarores atenuados. A esta parcimónia de tons e de luzes acrescentava-se um tipo específico de silêncio: um sussurro modelado por tinidos de cristal, tinidos de prata, risos compassados.

 

 Diane seguiu o chefe de mesa. Sentiu alguns breves olhares à sua passagem. A maioria dos convivas eram homens vestidos com fatos escuros e sorrisos baços. Ela não se iludia: por detrás desta branda atmosfera e destes rostos plácidos batia o coração secreto do poder. O restaurante era um dos lugares de prestígio onde à hora do almoço se jogava o destino político e económico do país.

 

 O chefe de mesa fez uma vénia e largou-a em frente do último nicho, o mais perto possível das janelas amplas. Charles Helikian estava ali. Não lia o jornal. Não conversava com um outro homem de negócios sentado a uma mesa vizinha. Esperava por ela, o que parecia bastar-lhe amplamente. Diane ficou-lhe grata por este testemunho implícito de respeito.

 

 Ao sair da oficina, ligara para o telemóvel do padrasto uma dezena de pessoas, quando muito, deviam possuir este número em Paris. Pedira-lhe para a receber logo que pudesse. Charles respondera com uma gargalhada, tal qual se cede ao capricho de uma criança, e sugeriu um encontro no sítio onde deveria almoçar com um dos seus clientes. Diane só tivera tempo de ir a casa para apagar os cheiros a haxixe e a óleo queimado no seu cabelo, e surgir ali envolvida, como convinha, em indolência e descontracção.

 

 Charles levantou-se e instalou-a no banco arredondado. Diane despiu o impermeável. Trazia agora um vestido de stretch preto, sem mangas, tão simples que parecia não possuir qualquer costura. Só um colar de pérolas rutilantes lhe constelava as clavículas, correspondendo como gotas de água aos brincos da mesma natureza. Um perfil altíssimo, à maneira de Diane.

 

 Estás... Soberba?

 

 Charles sorriu. Diane propôs:

 

 Magnífica?

 

 O sorriso alargou-se. Os seus dentes perfeitos ressaltaram do rosto moreno. Ela sugeriu ainda:

 

 Fascinante? Sexy? Encantadora?

 

 Tudo isso ao mesmo tempo.

 

 Diane suspirou e entrelaçou os seus compridos dedos por baixo do queixo.

 

 Então porque hei-de ser eu a única a considerar-me uma grande magricela desengonçada?

 

 Charles Helikian tirou um charuto do bolso.

 

 Em todo o caso, a culpa não é da tua mãe.

 

 Ouviste-me dizer isso?

 

 Ele fez estalar as folhas castanhas entre os dedos.

 

 A Sybille falou-me da vossa pequena... conversa.

 

Fez mal.

 

 Não temos segredos entre nós. Desde o acidente, ela telefona-te, deixa-te mensagens e...

 

 Não quero falar-lhe.

 

 Ele lançou-lhe um olhar grave.

 

 A tua atitude é absurda. Primeiro, recusaste toda a compaixão da sua parte. Agora que Lucien está melhor, ainda te afundas mais no teu mutismo e...

 

 Pára lá com isso, importas-te? Não vim para falar dela.

 

 Charles ergueu a palma da mão aberta, como uma bandeira branca. Depois chamou um empregado e encomendou. Café para ele. Chá para ela. Inquiriu na sua voz áspera:

 

 Querias ver-me, e parecia ser coisa inadiável. O que desejas?

 

 Diane olhou-o de esguelha. A recordação do beijo voltou-lhe ao coração. Sentiu uma perturbação afluir dentro de si, uma incandescência afoguear-lhe as faces. Concentrou-se no seu discurso para recalcar o mal-estar:

 

 Um dia, na minha presença, falaste de hipnose. Contaste-me que recorrias por vezes a esta técnica para tratar os teus clientes.

 

É verdade. Para problemas de nervosismo, de elocução. Porquê?

 

 Disseste que a hipnose possuía poderes quase ilimitados para vasculhar a memória.

 

 Charles adoptou um tom irónico:

 

 Às vezes, armo-me em especialista.

 

 Lembro-me perfeitamente. Explicaste que, graças à hipnose, se podia utilizar a própria memória como uma câmara orientada para as recordações. Acrescentaste que, sem o saber, guardávamos no nosso inconsciente os mínimos pormenores das cenas que vivíamos. Pormenores que nunca afloravam a nossa consciência, mas permaneciam aqui (bateu com um indicador na têmpora), inscritos na nossa cabeça.

 

 Eu estava inspirado.

 

 Não brinques. Na tua opinião, a hipnose pode permitir reviver cenas passadas e parar num determinado instante, focar este ou aquele pormenor. Utilizar o próprio espírito à maneira de um magnetoscópio. Proceder a paragens, a zooms em certos recantos da imagem...

 

 Charles cessou de sorrir e perguntou:

 

 Onde pretendes chegar? Diane ignorou a pergunta.

 

 Falaste igualmente num psiquiatra, prosseguiu. O melhor hipnólogo de Paris, em teu entender. Um especialista deste tipo de sessões.

 

 Ele repetiu, numa voz mais forte:

 

 Não percebo onde queres chegar.

 

 Gostava que me desses o endereço dele.

 

 O empregado depôs uma pesada bandeja de prata sobre a mesa. Brilho negro do café. Doçura suave do Earl Grey. As cores harmonizavam-se com finura, ao passo que os perfumes envolviam o delicado ritual do serviço. O homem vestido de branco eclipsou-se. Charles quis logo saber:

 

 Para quê?

 

 Diane proferiu numa voz calma:

 

 Quero reviver a cena do acidente sob hipnose.

 

 Estás doida!

 

 A minha mãe contagia-te. É essa a sua fórmula preferida a meu respeito.

 

 O que procuras?

 

 Ela pensou no olhar perdido de Marc Vulovic e na operação de cronometragem. Encarou novamente a sua hipótese: uma tentativa de assassínio disfarçada de acidente, organizada por vários homens. Disse simplesmente:

 

 Há factos que não se encaixam uns nos outros neste acidente.

 

 Que factos? Ela articulou:

 

 O cinto de segurança. Tenho a certeza de que o fechei. Charles pareceu quase aliviado. Respondeu numa voz tranquilizadora:

 

 Escuta. Compreendo que essa história te apoquente, mas...

 

Não. Tu é que tens de me escutar.

 

 Diane colocou os dois cotovelos na mesa e debruçou-se.

 

 A sério, achas mesmo que sou chanfrada?

 

 Nem por sombras.

 

 Sabes que me submeti várias vezes a tratamento devido a este género de problemas. Tu próprio me ajudaste a camuflar os internamentos clínicos no meu processo de pedido de adopção. Por isso mesmo, quero saber como me achas actualmente. Na tua opinião, estou curada a valer?

 

 Sim.

 

 O tom da resposta traía uma reticência.

 

 Mas...

 

 Continuaste... original.

 

 Espero de ti uma resposta clara. Julgas que conservei sequelas dos meus distúrbios? Ou, pelo contrário, recuperei verdadeiramente o equilíbrio?

 

 Charles demorou-se a soprar o fumo do charuto.

 

 Sim, volveu finalmente, estás perfeitamente curada. Perfeitamente equilibrada. És o oposto de uma excêntrica, de uma lunática. És terra-a-terra. Pragmática. Até mesmo maníaca, no teu gosto pelas coisas que devem seguir bem a direito. Uma autêntica cientista.

 

 Diane sorriu pela primeira vez. Sabia que ele falava com toda a sinceridade. Perguntou então:

 

 Sendo assim, como explicas que me tenha esquecido de fechar o cinto do garoto?

 

 Bebemos muito, era tarde, nós...

 

 Diane bateu com o punho na mesa. As chávenas retiniram. Os últimos convivas olharam na direcção deles.

 

 Lucien é a resolução de toda a minha vida, gritou Diane. A melhor coisa que fiz desde que cheguei à idade de tomar decisões. E por causa de algumas taças de champanhe, iria esquecer-me do mais elementar gesto de prudência? Iria depô-lo na retaguarda do meu carro como uma vulgar mochila?

 

 Charles apertou o charuto entre os dedos.

 

 Fazes mal em repisar tudo isso. Deves virar a página.

 

 Tu...

 

Diane pegou no impermeável.

 

  1. Julgava poder contar contigo, enganei-me. Não há-de ser difícil encontrar na lista telefónica um...

 

 Chama-se Paul Sacher.

 

 Charles sacou de uma avantajada caneta com tampa de marfim e escreveu o endereço nas costas de um dos seus cartões-de-visita.

 

 Tem uma grande clientela, mas se lhe telefonares da minha parte, receber-te-á imediatamente. Tem cautela: é um sedutor. Quando ensinava, apropriava-se sempre da rapariga mais bonita da aula. Os outros alunos só tinham o direito de calar o bico. Um verdadeiro chefe de matilha.

 

 Diane meteu o cartão na algibeira. Não agradeceu. Não esboçou o mínimo sorriso. Em vez disto, declarou:

 

 Há outra coisa que pode ter-me perturbado naquela noite.

 

 O quê?

 

 O facto de me teres beijado, já na escada.

 

 As sobrancelhas arredondaram-se em sinal de indecisão. Charles Helikian cofiou o colar de barba.

 

 Oh, isso..., murmurou. Diane não largava o olhar dele.

 

 Porque me beijaste?

 

 O homem de negócios agitou-se no seu luxuoso fato.

 

 Não sei. Foi... espontâneo.

 

 Charles Helikian, o grande consultor em psicologia. Tenta arranjar algo de melhor.

 

 Ele parecia cada vez mais embaraçado.

 

 Não, a sério, o gesto resultou do instante. Havia aquela criança adormecida. Tu, muito aprumada na penumbra, sempre estóica. E o serão em que tinhas sido tão diferente. Tão... livre. Queria desejar-te boa sorte, nada mais.

 

 Diane pegou na carteira e levantou-se.

 

 Nesse caso, fizeste bem, concluiu. Porque sinto que vou precisar muito dela.

 

 Virou costas e abandonou o rei persa no seu nicho. Atravessou a sala em poucas passadas. O restaurante estava agora deserto. Só os quadros dourados e as vidraças açoitadas pela chuva brilhavam no claro-escuro.

 

 Diane!

 

 Já ela alcançara o átrio de mármore. Deu meia volta. Charles acorria.

 

 Valha-me Deus! De que andas à procura? Não me disseste tudo.

 

 Diane aguardou que ele estivesse junto de si para repetir:

 

 Procuro simplesmente saber. Resolver este problema do cinto.

 

 Não, retorquiu ele. Procuras reviver o acidente porque pensas que não se tratou de um acidente.

 

 Diane sentiu uma súbita admiração pelo psicólogo. Ele lera na sua alma como se ela envergasse um vestido de papel vegetal. Mesmo para além do racional, seguira os seus pensamentos. Confirmou:

 

É verdade. Penso que a colisão apresenta uma relação com o homicídio de van Kaen. Qualquer pessoa o pensaria. Não pode ser um acaso. Estou convicta de que Lucien se situa no cerne de um caso ainda incompreensível.

 

 Charles ciciou:

 

 Céus!...

 

 E não me digas que estou doida.

 

 O homem do cabelo encarapinhado perdera a sua tez tisnada.

 

 O acidente seria... uma tentativa de assassinato?

 

 Não, reuni todos os indícios.

 

 Que indícios?

 

 Não sejas impaciente.

 

 Diane desandou. Ele agarrou-a pelo braço. As suas pálpebras pestanejavam como asas de borboleta.

 

 Ouve-me bem. Conhecemo-nos há dezasseis anos, tu e eu. Nunca interferi na tua educação. Nunca intervim nas tuas relações com a tua mãe. Desta vez, porém, não te deixarei fazer disparates. Há limites!

 

 Ela teve um sorriso insolente, um sorriso de miúda ladina.

 

Se tudo isto existe apenas dentro da minha cabeça, não tens nada a recear.

 

 Tolinha! Talvez estejas a brincar com o fogo e nem sequer te apercebes!

 

 Falara aos berros. À sua esquerda, Diane sentiu o olhar dos empregados, ali especados: era sem dúvida a primeira vez que viam Charles Helikian em tal estado.

 

 És inconsciente, continuou ele num tom mais baixo. Admitindo... friso bem: admitindo que tenhas razão, não podes implicar-te no assunto. Isso compete à polícia.

 

 Perguntou depois, sem lhe dar tempo de retorquir:

 

 E o cinto? De que modo pode ser um indício de outra coisa? Não, estava fechado: o relatório do perito é categórico a tal propósito. Sendo assim, o que é...

 

 Tenho a certeza de que o fechei.

 

 Uma vaga sombria enevoou o rosto de Charles.

 

 Então o quê? Foi Lucien que...?

 

 Lucien dormia a sono solto. Eu observava-o pelo retrovisor.

 

 O que presumes? Ter-se-á aberto sozinho?

 

 Diane aproximou-se. Charles não lhe chegava senão aos ombros. Ela cochichou, em tom de confidência:

 

 Deves conhecer a fórmula: depois de se esgotarem todos os possíveis, o que resta? O impossível.

 

 Charles fitava-a, com a testa luzidia, o olhar carregado.

 

 Que impossível?

 

 Diane inclinou-se mais. Voltou a ver o interior do carro: o sangue, o vidro, as zonas de sombra, a coberta de penas amarrotada. A sua voz era suave, langorosa, e ao mesmo tempo velada de pavor:

 

 O impossível é que eu não estava sozinha com o menino dentro do carro.

 

 Cá fora, os jardins dos Campos Elísios teciam um bailado de chuva e luz. O aguaceiro acentuava os raios de sol que furavam aqui e além. As folhagens estalejavam ao vento, respondendo às cordas de chuva mediante finos arabescos verdejantes. Diane pôs os óculos escuros e hesitou um pouco no patamar que dava para a rua.

 

 Estava transtornada por ter revelado a sua hipótese em voz alta. A de um homem escondido dentro do carro, decerto sob a coberta de penas ou na bagageira, e que desapertara o cinto de Lucien durante o trajecto. Uma espécie de homem-suicida, pronto a morrer no receptáculo de metal para simplesmente se assegurar de que o rapazinho não beneficiaria de qualquer protecção.

 

 É claro que isto não tinha ponta por onde se lhe pegasse. Quem se exporia a um tal risco? Porque havia de se sacrificar encerrando-se no âmago de uma armadilha? De resto, após o acidente, não se encontrara o mais pequeno rasto de outro passageiro. No entanto, Diane não abdicava desta convicção. O porteiro apareceu e disse, precipitadamente:

 

 O seu carro vem já, minha senhora.

 

 O tom da voz e o semblante exprimiam exactamente o contrário. Diane perguntou:

 

 Que se passa?

 

O homem de uniforme deitou um olhar desesperado ao parque de estacionamento.

 

 Foi o seu amigo. Disse que se encarregava de tudo...

 

 Que amigo?

 

 Um senhor alto que estava à sua espera. Disse que ia manobrar até aqui, mas... (deitava olhadelas desesperadas para todos os lados) eu... não o vejo...

 

 Diane avistou o carro a trinta metros, sob a copa de uma tília. Atravessou o terreiro de cascalho a toda a pressa. Nos reflexos ondulados do pára-brisas, distinguiu a silhueta de Patrick Langlois que batalhava com a chave de ignição. Bateu no vidro. O chui sobressaltou-se e depois sorriu enleado. Abriu a porta.

 

 Esqueci-me de que estes chaços de aluguer têm um código. Desculpe. Queria fazer-lhe uma surpresa...

 

 Diane não sabia bem se estava furiosa.

 

 Chegue-se para lá, disse.

 

 O gigante passou com dificuldade para o banco do lado. Ela meteu-se lá dentro e perguntou:

 

 Que raio veio fazer aqui? Anda a seguir-me? O polícia tomou uma expressão melindrada.

 

 Mandei um dos meus rapazes buscá-la para almoçar comigo. Quando ele chegou ia você a sair. Não resistiu. Veio atrás de si até aqui e telefonou-me.

 

 Porque não entrou no restaurante? Ele apontou para a gola rente ao pescoço.

 

 A gravata. Não previ que fizesse falta.

 

 Diane sorriu; não estava evidentemente furiosa. O polícia acrescentou logo:

 

 Eu sei: devia ter sacado do meu cartão e tentado a passagem à força.

 

 Ela desatou a rir. Em contacto com este homem e a sua aparente despreocupação, sentia-se mais leve, mais límpida, como que lavada das angústias. Todavia, Langlois inquiriu, indicando o restaurante:

 

 Entende-se bem com o seu padrasto? O tom da pergunta desagradou a Diane.

 

O que está para aí a imaginar?

 

 O homem tamborilou no vidro com a ponta das unhas, lançando uma mirada distraída aos jardins.

 

 Não estou a imaginar nada. Vejo muita coisa, é tudo. (Os seus olhos sorriam.) No meu trabalho, quero eu dizer.

 

 Diane dirigiu por seu turno o olhar para os jardins. A chuvada enxotara os transeuntes, as mães que passeavam os filhos, os vendedores de selos. Só restava uma paisagem cintilante, animada de reflexos. Poças imóveis. Ondas de verde. Fachadas de pedra envernizadas de chuva. Pensou numa praia durante a baixa-mar. Experimentou de súbito um desejo de doçura, de convalescença, de guloseimas e de rebuçados de mentol. Interrogou:

 

 Porque pretendia ver-me?

 

 O chui exibiu uma mancheia de papéis entre as mãos.

 

 Queria dar-lhe notícias. Comunicar-lhe as minhas hipóteses.

 

 Rebuscou no meio das fichas. Langlois parecia pertencer a essa nova escola, snobe e desfasada, que recusava o ascendente da tecnologia sobre a vida quotidiana. O género de tipo que podia lançar-se na apologia do caderno de folhas ligadas por espiral ou negar-se a possuir um telemóvel. Principiou:

 

 Neste caso, as aberrações não têm fim. Há a selvajaria do homicídio. A força aparente do assassino. Ao mesmo tempo, a sua suposta altura: não mais de um metro e sessenta. Mas ainda subsiste outro mistério. Puramente anatómico.

 

 Langlois deteve-se. A chuva tamborilava sobre o tejadilho uma sarabanda ligeira. Com um aceno, Diane incitou-o a prosseguir.

 

 Ignoro como o homicida pôde encontrar a aorta, às apalpadelas, no seio das vísceras. Segundo os nossos legistas, nem mesmo um cirurgião experimentado o conseguiria... (Inspirou fundo e depois:) São impossibilidades a mais. De modo que optei por outra perspectiva. Perguntei a mim próprio se não se trataria de um rito, de uma técnica de sacrifício praticada, por exemplo, no Vietname.

 

 O que descobriu?

 

A princípio, nada de tangível. Pelo menos, na Ásia do Sudeste. Mas um etnólogo do museu do Homem orientou-me para a Ásia Central: Sibéria, Mongólia, Tibete, noroeste da China... Falei com outros especialistas. Um deles informou-me de que uma técnica desses países pode muito bem coincidir com o método do homicídio.

 

 A que se refere? A um modo de sacrifício?

 

 Não. Uma prática bastante mais prosaica. É assim que se mata o gado. Efectua-se uma incisão sob a caixa torácica, enfia-se o braço no interior do animal e torce-se a aorta só com a mão.

 

 Algo acudiu então ao espírito de Diane. Isto evocava-lhe de repente umas recordações vagas. Langlois prosseguia:

 

 Segundo o etnólogo, trata-se de uma técnica muito usada na Mongólia. É a melhor maneira de matar um carneiro ou uma rena sem derramar uma gota de sangue. Nesses países frios, economiza-se a mais ínfima parcela de energia do animal. Parece que há também, subjacente, um temor do sangue. Um tabu.

 

 Diane perguntou num tom céptico:

 

 O assassino veio então da Ásia Central?

 

 Talvez. Ou pode ter residido lá e conhecer estes costumes. O médico legista explicou-me que a nossa anatomia não é assim tão diferente da de um carneiro.

 

 Acho isso muito impreciso, desabafou ela.

 

 Eu também, exceptuando um elemento.

 

 Diane voltou-se para o chui. Ele estendeu-lhe a fotocópia de um formulário em papel timbrado de uma agência de viagens, redigido em alemão.

 

 Rolf van Kaen preparava-se para partir para a Mongólia.

 

 Como?

 

 O BBK está a investigar na Alemanha. Verificaram todas as chamadas telefónicas do acupunctor. Van Kaen pedira informações sobre os voos para Ulan Bator, capital da...

República Popular da Mongólia.

 

 O polícia deitou um olhar surpreendido a Diane.

 

 Conhece?

 

Só de nome.

 

 Van Kaen também se informou sobre os voos internos com destino a uma pequena cidade do extremo norte... (leu nas suas notas) Tsagaan-Nuur. Visivelmente, a única coisa que ainda não decidira era a data da partida. Em resumo, se pensarmos na técnica utilizada, isto pode constituir uma ligação. Fraco, mas apesar de tudo uma ligação...

 

 Langlois calou-se e depois perguntou com muito cuidado:

 

 E quanto a si, tem alguma novidade?

 

 Ela encolheu os ombros, novamente virada para os jardins. A chuva abatia-se sobre o pára-brisas em vagas tremeluzentes.

 

 Não. Telefonei ao orfanato. Não sabem de nada.

 

 Só isso?

 

 Dei a uns especialistas uma cassete onde Lucien canta na sua língua de origem. É provável que reconheçam o dialecto.

 

 Bem visto. Nada mais?

 

 Diane pensou na sua hipótese de acidente criminoso, na sua ideia de assassino kamikaze que se teria insinuado dentro do carro.

 

 Não, nada mais, respondeu. Langlois quis saber:

 

 Por que motivo me pediu a morada do camionista? Ela estremeceu, mas esforçou-se por não deixar transparecer nada.

 

 Queria apenas falar-lhe. Dar-lhe notícias de Lucien.

 

 O homem suspirou. A chuva entremeava o silêncio de longos frémitos metálicos.

 

 As pessoas desprezam sempre a nossa experiência. Diane virou-se, atarantada.

 

 Porque diz isso?

 

 Vou dizer-lhe o que penso: anda a fazer a sua investigação pessoal.

 

 Foi você que mo pediu, não foi?

 

 Não se arme em idiota. Estou a falar-lhe de uma investigação sobre o assassinato de van Kaen.

 

 Porque havia eu de o fazer?

 

Começo a conhecê-la um bocadinho, Diane, e, francamente, o que mais pergunto a mim mesmo é por que o não faria...

 

 Ela ficou silenciosa. O tom do chui tingiu-se de gravidade:

 

 Acautele-se. Não conhecemos nem sequer a décima parte deste caso. Pode rebentar-nos na cara de um momento para o outro. E de uma maneira que estamos longe de imaginar. Por conseguinte, não brinque às Alices detectives.

 

 Diane aquiesceu com ar de criança resignada. Langlois abriu a porta. Uma rajada de chuva engolfou-se no interior do carro. O polícia concluiu:

 

 Da próxima vez, sou eu que a convido para almoçar. Apeou-se e acrescentou:

 

 Os chuis conhecem os melhores fast-foods de Paris. Os milk-shakes não têm todos o mesmo gosto, sabia? Uma verdadeira escola do cambiante.

 

 Diane compôs uma expressão de alegria:

 

 Tentarei estar à altura.

 

 Langlois debruçou-se mais, enquanto as gotas lhe batiam nas costas.

 

 E lembre-se: nada de imprudências, nem de heroísmos de menininha. À mais pequena coisa duvidosa, telefone-me. Entendido?

 

 Diane anuiu com um último sorriso, mas quando a porta se fechou, pareceu-lhe ouvir como que a tampa de um caixão.

 

 Olhava-o como uma fonte de luz, mas através das suas próprias trevas. O penso dele estava modificado. Mais apertado, menos espesso: rodeava-lhe o crânio como uma simples película de gaze. Os drenos tinham sido tirados, sem dúvida nessa mesma manhã. Era um passo decisivo: Lucien já não sofria a ameaça de uma hemorragia.

 

 Aproximou mais a cadeira e, com a ponta do indicador, acariciou a testa da criança, os contornos do nariz, a fímbria dos lábios. Recordava-se dos primeiros serões de ambos, quando ela lhe contava histórias em voz baixa e a sua mão aflorava na obscuridade as feições que se distendiam, os relevos daquele corpo enlanguescido, docemente soerguido pelas vagas da respiração. Sentia-se novamente pronta para esta viagem ao longo dos cimos minúsculos, dos valezinhos misteriosos... Adivinhava cheia de delícia a vida a palpitar, a precisar-se, a afirmar-se através do corpo sob o penso.

 

 Mas uma dor podia esconder outra. Agora que o perigo mortal estava afastado, Diane via despontar dentro de si novos tormentos. Do mesmo modo que os sofrimentos despertam num corpo quando se esbate a contusão principal, assim descobria ela graus suplementares na sua mágoa. Ressentia cada ferimento, cada hematoma do filho na sua própria carne, cheia de raiva e impotência. Diane estreava um novo desespero o da dor por procuração.

 

 Acima de tudo, não podia remover de si mesma esta certeza do espírito: algures, ao redor deles, pairava uma ameaça. Uma tal convicção ia-se convertendo em obsessão. Jamais poderia enfrentar o futuro se não contribuísse para resolver estes enigmas. Eis porque a sua determinação se reforçara ainda mais. Eis porque acabava de marcar uma consulta com o hipnólogo Paul Sacher para essa mesma tarde, às dezoito horas.

 

 Reparou subitamente no painel, suspenso da armação da cama, que indicava as doses de medicamentos administradas em cada dia e a temperatura de Lucien. Arrancou a folha de papel milimétrico. A linha desenhada indicava três picos de febre entre a véspera, às vinte e três horas, e essa mesma manhã às dez horas. Não eram uns picos quaisquer: todos os três ultrapassavam os quarenta graus.

 

 Diane levantou o auscultador do telefone mural e marcou o número de Eric Daguerre. O cirurgião estava no bloco operatório. Ela chamou então Mme. Ferrer. Um minuto mais tarde, os cabelos grisalhos apareceram por detrás dos vidros do corredor. Ainda antes de poder abrir os lábios, a enfermeira avisou-a:

 

 O Dr. Daguerre pediu-me para não lhe falar do assunto. Achou que era inútil inquietá-la.

 

 Diane insurgia-se:

 

 Não acredito!

 

 As subidas, só duraram alguns minutos. Foi uma reacção benigna.

 

 Brandiu o diagrama.

 

 Benigna? Quarenta e um graus?

 

 O Dr. Daguerre considera que as subidas de febre não passaram de repercussões dos choques da criança. O sinal indirecto de que o seu metabolismo está a retomar um funcionamento normal.

 

 Num gesto de puro nervosismo, Diane inclinou-se e aconchegou os cobertores da cama.

 

 Aconselho-a a prevenir-me se acontecer a mais pequena coisa. Entendido?

 

 Com certeza. Repito-lhe, porém, que isto não tem qualquer gravidade.

 

 Diane alisava os lençóis, ajustava a bata de papel. De repente, desatou num riso agressivo, à beira das lágrimas:

 

 Não tem gravidade, hem! Mesmo assim, suponho que o Dr. Daguerre deseja falar comigo...

 

 Logo que saia da sala de operações.

 

  Está tudo a correr bem, Diane. Faço questão de lhe dizer isto antes de mais nada. Era o preâmbulo mais desastrado que ela alguma vez ouvira.

 

 E os acessos de febre? replicou.

 

 Eric Daguerre afastou a alusão com um gesto despreocupado. Estava de pé, na sua bata branca, atrás da secretária.

 

 Não têm importância. O estado de Lucien não cessa de melhorar. Todos os sinais nos confirmam a cura dele. Tirámos os drenos hoje de manhã. Vamos, em breve, mudá-lo de serviço.

 

 Algo soava a falso neste regozijo. Diane fixou as pupilas que brilhavam no fundo das órbitas. Os anarquistas em Ana Karenina, os que atiravam bombas à passagem dos príncipes, deviam ter uns olhos assim. Ela interrogou, ao acaso:

 

 Que mais tem a dizer-me?

 

 O médico meteu as mãos nos bolsos e deu uns passos. De dia como de noite, o seu gabinete estava iluminado com a mesma intensidade.

 

 Gostava de lhe apresentar Didier Romans, disse finalmente. É antropólogo.

 

 Diane dignou-se virar a cabeça para a terceira pessoa presente na sala e que ela ignorara até então. Era um homem mais jovem que Daguerre. Moreno, delgado, hirto como uma vara, usava óculos laçados de cor preta sobre um rosto absolutamente fechado. Ao vê-lo, pensava-se numa equação ou numa fórmula abstracta.

 

 O médico continuava:

 

 Didier é antropólogo no sentido moderno do termo. Um especialista da biometria e da genética das populações.

 

 O homem de traços herméticos meneou a cabeça. Um sorriso tímido procurou insinuar-se no seu rosto, mas recuou quase imediatamente. Daguerre perguntou a Diane:

 

 Sabe o que é?

 

 Sim, mais ou menos.

 

 Daguerre deitou um sorriso ao cientista.

 

 Não lhe disse? Ela é formidável!

 

 O tom jovial parecia cada vez mais fictício. O cirurgião prosseguiu:

 

 Falei do Lucien a Didier. Pedi-lhe que efectuasse algumas análises.

 

 Diane exaltou-se.

 

 Análises? Espero que...

 

É claro que não se trata de exames clínicos. Limitámo-nos a comparar alguns traços fisiológicos do seu filho com outros critérios, digamos, mais gerais.

 

 Não entendo.

 

 O antropólogo interveio:

 

 A minha especialidade é o polimorfismo, minha senhora. Trabalho sobre a caracterização das diferentes populações mundiais. Em cada povo, cada etnia, certos traços ocorrem mais frequentemente que outros. Ainda que nem todos os membros da comunidade lhes correspondam, existem sempre médias que nos permitem traçar um retrato geral da família étnica.

 

 O médico sentou-se e pegou-lhe na palavra:

 

 Pareceu-nos interessante comparar os caracteres fisiológicos de Lucien com as médias das populações que habitam as regiões donde ele vem. Talvez este método possa elucidar-nos sobre a sua origem... exacta.

 

A cólera de Diane aumentou uns graus, mas era uma cólera virada contra si mesma. Devia, ela própria, ter pensado nisto mais cedo! Contactara o orfanato. Submetera a uma especialista as palavras que Lucien pronunciava. Tentara compreender melhor a técnica que o salvara. Mas não se lembrara de estudar outro sinal evidente: o seu corpo. Esse corpo que talvez comportasse traços fisiológicos, mesmo ínfimos, susceptíveis de caracterizar a etnia donde ele era originário.

 

 Voltou-se para Romans e perguntou de um modo mais calmo:

 

 O que encontrou?

 

 O antropólogo tirou um maço de folhas de dentro da pasta.

 

 Comecemos pela estatura, se não se importa. Aquando da hospitalização, a senhora indicou que Lucien tinha seis ou sete anos de idade. Ora, se observarmos a sua dentição, verificaremos que ele ainda possui todos os dentes de leite. O que significa que deve ter, isso sim, cinco anos.

 

 Passou a outro documento. Diane reconheceu a folha de admissão que preenchera na noite do acidente.

 

 Anotou aqui, vejamos, que Lucien pertence às etnias do litoral do mar de Andamão.

 

 Ela abriu as mãos num gesto vago.

 

 Não sei bem... Segundo a directora do orfanato, as poucas palavras que ele pronunciava não pertenciam ao tai, nem ao birmanês, nem a um dialecto conhecido nessa região.

 

 Romans lançou uma breve olhadela por cima dos óculos e depois volveu:

 

 Mas acha que ele é oriundo dessa parte do mundo compreendida, digamos, entre a Birmânia, a Tailândia, o Laos, o Vietname e a Malásia?

 

 Diane hesitou:

 

 Eu... decerto, sim. Não tenho razões para pensar de outra maneira.

 

 Os olhos do antropólogo desceram como um cutelo.

 

 Se nos centrarmos nas regiões à beira do mar de Andamão, disse ele, e até mesmo se estendermos a nossa zona de pesquisa ao golfo da Tailândia e ao mar da China, só encontraremos etnias tropicais e florestais. Novo olhar-disparo a Diane.

 

 O Eric disse-me que é etóloga. Sabe, pois, que o meio natural exerce uma forte influência sobre a estatura dos seus habitantes. Na floresta, homens e animais são muito mais pequenos que num outro ambiente, por exemplo nas planícies.

 

 Ela retribuiu-lhe o olhar. Óculos contra óculos. Romans

 

 concentrou-se nas suas notas.

 

 A estatura dos habitantes das florestas intertropicais da Ásia do Sudeste cabe actualmente num intervalo entre os cento e quarenta e dois e os cento e sessenta e cinco centímetros. Podemos então deduzir que, aos cinco anos de idade, os filhos destas famílias medem cerca de setenta centímetros.

 

 Nova mirada por cima das lentes.

 

 Sabe quanto mede o seu filho, minha senhora?

 

 Mais de um metro, creio eu.

 

 Um metro e doze, mais precisamente. Quer dizer, quarenta e dois centímetros acima da média.

 

 Continue.

 

 Romans fez estalar uma nova folha.

 

 Passemos à pigmentação cutânea. Têm sido efectuados numerosos estudos sobre a cor de pele das populações, se bem que tal critério seja espinhoso de definir e arriscado de utilizar, não preciso de adiantar mais. Em geral, medimos esta luminosidade graças a uma técnica específica: a reflectometria. Projectamos um raio luminoso sobre a epiderme do sujeito e medimos os fotões reflectidos pela superfície. Quanto mais clara é a pele, mais elevada é a quantidade de luz reenviada.

 

 Diane reprimia a irritação. Começava a ver onde Romans queria chegar.

 

 Praticámos este teste em Lucien, prosseguiu ele. Obtemos um resultado oscilante entre setenta e setenta e cinco por cento de luz reflectida. A epiderme do seu filho reenvia quase completamente o raio. A pele dele é de uma brancura deslumbrante. Muito afastada das tezes escuras intertropicais.

 

A título de exemplo, a média da zona das ilhas Andamão é de cinquenta e cinco por cento.

 

 Diane tornou a ver a extrema palidez do rapazinho, aquele corpo diáfano sob o qual serpeavam finas vénulas, quando lhe dava banho. Como é que estes motivos de maravilhamento podiam tornar-se agora fontes de angústia? O homem continuava, virando as páginas:

 

 Eis outro estudo. Sobre os mecanismos fisiológicos de Lucien. Tensão arterial. Ritmo cardíaco. Taxa de glicemia. Capacidade respiratória...

 

 Diane interrompeu-o:

 

 Possui estatísticas para cada um desses critérios?

 

 O antropólogo deixou escapar um sorriso de orgulho.

 

 E para muitos mais outros.

 

 Comparou-as com as do meu filho? Ele confirmou:

 

 Lucien apresenta um resultado surpreendente num destes domínios. Apesar do seu estado de convalescença, pudemos medir a sua capacidade respiratória. E devemos dizer que ele tem uma peitaça estupenda. Ora, como por certo sabe, a amplitude pulmonar de um homem está directamente ligada à altitude do lugar onde vive. As populações das montanhas possuem um volume respiratório superior, assim como uma concentração de hemoglobina mais forte que as populações dos vales, por exemplo. Estes traços constituem uma adaptação ao seu meio de origem.

 

 Por favor, passemos aos factos! O cientista abanou a cabeça.

 

 Em todos estes domínios, Lucien atinge taxas que evocam a vida em elevada altitude. Não tem nada a ver com os números das populações do litoral e da floresta.

 

 O silêncio pulsava sob as têmporas de Diane. Um silêncio fechado, que não podia traduzir-se em palavras nem em suposições. Didier Romans continuava na sua voz monocórdica:

 

 Se adicionarmos os três resultados respeitantes à estatura, à pigmentação e às capacidades fisiológicas, obteremos uma equação que associa as planícies, o frio e a altitude...

 

Diane murmurou numa voz surda:

 

 É tudo?

 

 O homem soergueu o conjunto das folhas.

 

 Isto continua assim por mais de cinquenta páginas. Estudámos tudo: grupo sanguíneo, grupos teciduais, cromossomas. Nem um resultado, friso bem: nem um só, corresponde às médias das regiões do mar de Andamão.

 

 Diane balbuciou:

 

 E suponho que os seus resultados delineiam outra origem...

 

 Turco-mongol, minha senhora. A criança possui todos os traços dominantes das populações siberianas extremo-orientais. Lucien não é um menino dos trópicos: é um rapazinho da taiga. Nasceu, sem dúvida, a vários milhares de quilómetros do sítio onde o adoptou.

 

 Diane demorou mais de vinte minutos a procurar o carro. Atravessou a rue de Sèvres e chegou à rue du Général-Bertrand. Meteu pela rue Duroc, aventurou-se na rue Masseran e depois na avenue Duquesne. Estava sem fôlego, o coração batia-lhe descompassadamente. Tentava reflectir. Em vão. Demasiadas perguntas e nenhuma resposta. Como é que uma criança turco-mongol pudera ir parar à poeira abrasada de Ra-Nong, na fronteira birmanesa? Como é que um homem como Rolf van Kaen pudera ser informado da agonia desta criança quando ele próprio, segundo tudo levava a crer, se preparava para partir para aquela região do mundo? E como é que um garoto de cinco anos, donde quer que viesse, podia suscitar tais acções, as maléficas maquinações de que Diane suspeitava?

 

 Avistou finalmente o carro junto da place de Breteuil. Enfiou-se lá dentro como num refúgio. Os pensamentos caracolavam na sua cabeça. Baques surdos que não conduziam a nada.

 

 No entanto, sob estas palpitações, distinguia uma luzinha.

 

 Vislumbrava de repente o meio de avançar em direcção à verdade. A recordação do mosteiro espanhol acudiu-lhe de novo à memória o feixe de ultravioletas que desvelava aos poucos a escrita secreta do palimpsesto. Também ela possuía o seu próprio feixe para discernir a face oculta de Lucien. Pegou no telemóvel e marcou o número de Isabelle Condroyer, a etnóloga a quem pedira para identificar o dialecto do filho. A cientista reconheceu-a logo:

 

 Diane? Ainda é muito cedo para lhe dar notícias. Entrei em contacto com vários investigadores do Sudeste Asiático. Vamos organizar uma reunião em volta da cassete e...

 

 Tenho elementos novos.

 

 Novos?

 

 Levaria demasiado tempo a explicar-lhe, mas há fortes probabilidades de Lucien não ser oriundo da zona tropical onde o adoptei.

 

 Que história é essa?

 

 O menino provém, sem dúvida, da Ásia Central. Algures na Sibéria ou na Mongólia.

 

 A etnóloga resmungou:

 

 Isso muda tudo...Não é, nem de longe, a minha especialidade ou a dos meus colaboradores...

 

 Talvez conheça linguistas que trabalhem nas regiões que lhe mencionei...

 

 O laboratório deles situa-se na Faculdade de Nanterre e...

 

 Pode falar-lhes?

 

 Sim. Conheço um, em particular.

 

 Faça-me esse favor. Conto absolutamente consigo.

 

 Diane desligou. O ritmo dos seus pensamentos ia-se temperando suavemente. Olhou para o relógio. Dezassete horas e trinta. Chegara o momento.

 

 O momento de mergulhar no interior de si mesma. De reviver, plenamente e em pormenor, o acidente no périphérique.

 

 Paul Sacher devia andar pelos sessenta anos. Era alto, descarnado, e vestia com uma elegância rebuscada, quase espalhafatosa. Envergava um fato cinzento em gradações furta-cores, reluzente como o gume de um machado. Por baixo, entrevia-se o brilho às avessas de uma camisa preta e as linhas cambiantes de uma gravata de seda. O rosto não destoava: traços verticais, acentuados por rugas, mas exibindo toda a indolência, toda a pretensão de um sangue raro. Sob as sobrancelhas eriçadas, os olhos eram vivos, verdes, orlados de negro e como que cheios de transparência. O mais espantoso eram as suíças: o homem tinha ao longo das faces uns prolongamentos encaracolados, provindos directamente do século XIX, realçados nas têmporas por madeixas aneladas. Este pormenor conferia-lhe algo de animal, de selvícola, que agravava a perturbação e o assombro provocados pela sua presença.

 

 Diane sentia subir dentro de si um riso perdido. O homem que estava postado no limiar da porta assemelhava-se a um hipnotizador tal qual o imaginamos nos filmes de terror. Só lhe faltavam a capa e a bengala com castão de prata. Era impossível que um fabiano destes fosse um clínico sério, um psiquiatra a quem Charles enviava os seus clientes mais importantes. Estava tão surpreendida que não ouviu a primeira frase dele. Como? gaguejou.

 

O homem sorriu. Os ornamentos de barba solevaram-se.

 

 Só a convidei a entrar.

 

 Para coroar tudo isto, Sacher alardeava um sotaque eslavo. Carregava nos r à maneira de um velho fiacre, nas brumas da noite de Walpurgis. Desta vez, Diane recuou um passo.

 

 Não, disse ela. Obrigada. Vendo bem, não me sinto com a disposição mais...

 

 Paul Sacher agarrou-lhe no braço. A doçura da voz atenuou ligeiramente a brutalidade do gesto.

 

 Venha, peço-lhe. Já que fez a viagem até aqui...

 

 A viagem: Diane não empregaria este termo para designar os quatrocentos metros que percorrera desde casa para chegar ao consultório situado na rue de Pontoise, perto do boulevarSaint-Germain. Esforçou-se por compor um ar sério: receava agora vexar este homem que aceitara recebê-la no próprio dia em que lhe telefonara.

 

 Penetrou no apartamento e sentiu um leve alívio. Nada de cortinados negros. Nem de objectos exóticos ou de estatuetas lúgubres. Nem de odores a incenso ou a pó. Paredes estritas, cor de tabaco, lambris brancos, um mobiliário sucinto e moderno. Seguiu a personagem por um corredor, atravessou uma sala de espera e depois entrou no consultório.

 

 O compartimento estava banhado pela luz do fim de tarde. Pontificavam ali uma secretária de vidro e uma estante perfeitamente ordenada. Desta feita, Diane podia imaginar políticos ou chefes de empresa ali instalados, impacientes por resolverem os seus problemas de stress.

 

 O hipnólogo sentou-se e dirigiu-lhe um segundo sorriso. Diane começava a habituar-se ao vestuário prateado e aos olhos de guru. Já não tinha vontade de rir. Agora até sentia uma pontinha de angústia só de pensar nos poderes de Paul Sacher. Poderia ele ajudá-la realmente a vasculhar na memória? Iria ela abandonar-lhe verdadeiramente o seu espírito? O médico proferiu umas sílabas:

 

 Tenho a impressão de que a divirto, minha senhora. Diane engoliu em seco.

 

 Bem... Eu não esperava...

 

Alguém assim tão pitoresco?

 

 Sabe... (Acabou por sorrir, confusa.) Peço muita desculpa. Tive um dia difícil e...

 

 A sua voz sumiu-se por si mesma. O médico pegou num pisa-papéis de resina preta e pôs-se a manipulá-lo.

 

 O meu aspecto de velho mago só me desfavorece. Contudo, sou um racionalista. E nada é mais racional do que a técnica da hipnose.

 

 Pareceu a Diane que a entoação gutural diminuía um pouco ou então era ela que se ia habituando. O encanto da personagem agia como círculos na água, em ondas concêntricas. Diane reparava agora nas molduras alinhadas nas paredes: fotografias de grupo, onde Sacher se salientava no papel de docente soberano. Em todas, sem excepção, a mais formosa das alunas surgia ao lado dele, envolvendo-o num olhar de adoração. Charles dissera: ”Um verdadeiro chefe de matilha.”

 

 Em que posso ser-lhe útil? perguntou, largando o pisa-papéis com todo o vagar. Charles preveniu-me quanto ao seu telefonema.

 

 Diane endireitou-se.

 

 Que lhe disse ele?

 

 Nada. A não ser que se tratava de uma pessoa por quem tem muito afecto. Uma pessoa que requer... todos os desvelos. Repito a minha pergunta: em que posso ser-lhe útil?

 

 Gostaria, em primeiro lugar, de lhe colocar uma questão bastante precisa sobre a hipnose.

 

 Diga.

 

 É possível condicionar alguém a fim de o levar a efectuar um acto contra a sua vontade?

 

 O psiquiatra pousou os antebraços nos apoios cromados da cadeira. Os seus dedos ostentavam vários anéis: turquesa, ametista, rubi.

 

 Não, replicou ele. A hipnose nunca é uma violação da consciência. Todas essas histórias de assassinos condicionados, de mulheres abusadas são balelas. O paciente pode sempre resistir. A sua vontade fica intacta.

 

 Mas... adormecer alguém? Pode adormecer uma pessoa por meio desta técnica?

 

Sacher estendeu o lábio inferior, as patilhas acompanharam o movimento.

 

 O adormecimento é um problema diferente. Constitui um estado de abandono, muito próximo do transe hipnótico. Isto, sim: podemos provocá-lo.

 

 E à distância? Seria capaz de adormecer alguém à distância?

 

 O que entende por ”à distância”?

 

 Ser-lhe-ia possível programar um sujeito para ele adormecer algum tempo após a sessão de sugestão, mesmo não estando já presente?

 

 O homem admitiu:

 

 Sim. É possível. Bastaria repetir o sinal combinado durante a sessão.

 

 Diane interrogou:

 

 Que género de sinal?

 

 Minha senhora, não compreendo lá muito bem as suas perguntas.

 

 Que género de sinal?

 

 Pois bem, pode ser uma palavra-chave, por exemplo. Por ocasião de uma sessão, depomos esta palavra no fundo do inconsciente do sujeito e associamo-la ao estado de adormecimento. Mais tarde, basta pronunciar a mesma palavra para reactivar o condicionamento.

 

 Ela lembrava-se do que lhe dissera Vulovic: ”Quando penso em tudo aquilo, só tenho uma sensação... Verde... Como o pano militar...” Perguntou então:

 

 O sinal poderia ser visual?

 

 Certamente.

 

 Uma cor?

 

 Sem dúvida nenhuma. Uma cor, um objecto, um gesto, seja o que for.

 

 E em seguida, de que se recordaria o sujeito?

 

 Depende do grau de profundidade do trabalho hipnótico, durante a sessão.

 

 Poderia esquecer-se de tudo?

 

 Em caso de hipnose muito profunda, sim. Mas está a conduzir-me ao extremo limite da nossa actividade. A nossa deontologia é rigorosa e...

 

 Diane já não o escutava. Sentia, nas fibras da sua carne, que se aproximava da verdade. Era possível que um homem tivesse hipnotizado Marc Vulovic no parque de estacionamento da avenue de la Porte d’Auteuil e que um sinal viesse a provocar, mais tarde, o adormecimento. Também pensou em Rolf van Kaen, colosso na força da idade, que deixara que lhe abrissem o ventre sem opor resistência. Porque não sob hipnose? O homem declarou:

 

 Charles disse-me que a sua intenção era antes submeter-se a uma sessão de...

 

 Sim, é verdade. Quero entrar em estado de sugestão.

 

 Em que contexto? As suas perguntas são um tanto estranhas. Em geral, os meus pacientes têm um problema com o cigarro ou uma alergia e...

 

 Quero reviver um episódio da minha vida.

 

 Sacher sorriu. Retomava pé num terreno que conhecia bem. Recostou-se no assento, inclinou a cabeça de lado um pintor que escruta o seu modelo, e perguntou:

 

 De que se trata? De uma recordação muito antiga?

 

 Não. O acontecimento data de há pouco mais de duas semanas. Julgo, porém, que o meu inconsciente oculta determinados pormenores. Charles afirmou-me que pode ajudar-me a lembrar-me destes factos.

 

 Não há qualquer problema. Descreva-me, primeiro, o ambiente geral e...

 

 Espere.

 

 Diane compreendeu que estava aterrada com a ideia de abrir o espírito a este homem. Disse, pois, a fim de retardar o início da operação:

 

 Antes de tudo, explique-me... Como vai recuar na minha memória?

 

 Nada receie, será um trabalho de equipa.

 

 Um trabalho de equipa deve assentar na confiança. Diga-me precisamente como irá entrar na minha cabeça.

 

Sacher rezingou:

 

 Temo não poder explicar-lhe.

 

 Porquê?

 

 Quanto mais souber acerca do método utilizado, mais resistência manifestará.

 

 Vim aqui de livre vontade.

 

 Refiro-me ao seu inconsciente. A esse inconsciente que se recusa a fornecer-lhe certas informações. Se lhe der armas para ele se defender, creia que há-de servir-se delas.

 

 Não posso... oferecer-lhe assim o meu cérebro...

 

 O psiquiatra guardou silêncio. Parecia medir a amplidão do que estava em jogo para Diane. Pegou novamente no pisa-papéis, pousou-o e depois murmurou:

 

 A hipnose é apenas uma forma de concentração muito intensa. Vamos evocar juntos algumas sensações físicas: a sua circulação sanguínea, por exemplo, que irão progressivamente captar as suas faculdades de atenção. Vai esquecer-se de tudo, salvo destas mesmas sensações. Já não terá senão uma percepção muito longínqua do seu meio ambiente. E um tipo de ”que sobrevêm às vezes na vida quotidiana. Por exemplo, se estuda intensamente um assunto, todo o seu espírito é captado por esse trabalho. Um insecto pica-a: nem sequer o sente. Está em estado de hipnose, de transe. É o que se passa por ocasião das cerimónias religiosas onde se atravessam provações físicas. O cérebro já não recebe ”a mensagem do sofrimento.

 

É graças a semelhante estado que o senhor pode anular as barreiras do inconsciente?

 

 Sim: porque não é ele que ergue defesas, mas a própria consciência. Ora, chegados a um certo estado de concentração, já não passamos pela esfera da razão. É uma questão privada entre o hipnólogo e o inconsciente do sujeito.

 

 Diane pensou no acidente da sua adolescência. Consagrara uma parte da existência a apagar esta recordação, a transformar, justamente, a sua memória em cofre-forte. Indagou:

 

 Até onde se pode recuar assim?

 

Não há limite. Ficaria admirada com o número de pacientes que reinvestem, nessa poltrona, a sua identidade de bebé. Põem-se a pairar. O seu olhar é dessincronizado, como o do lactente poucos dias após o nascimento. Pode-se mesmo ir ainda mais além.

 

 Além?

 

 Até à memória que conservamos em nós. A memória das nossas vidas anteriores.

 

 Diane tentou rir.

 

 Tenho muita pena. Não acredito na reencarnação.

 

 Não me refiro a recordações de existências precisas. Estou a falar-lhe dessa memória natural de que somos os receptáculos. De uma certa forma, a genética não é mais do que uma memória. A da nossa evolução, incrustada na nossa carne.

 

 É apenas uma maneira de falar. O que nos interessa aqui são recordações concretas...

 

 Pode tratar-se de recordações muito concretas! Veja o exemplo dos bebés-nadadores. Os lactentes, quando são mergulhados na água, têm o reflexo imediato de fechar as cordas vocais. Donde lhes vem tal reflexo?

 

 Do seu instinto de sobrevivência.

 

 Ao fim de escassos dias?

 

 Diane pestanejou. O hipnólogo prosseguiu:

 

 Este reflexo vem-lhes de tempos imemoriais em que o homem ainda não era homem, mas uma criatura anfíbia. Em contacto com a água, a criança lembra-se dessa época. Mais exactamente: é o seu corpo que se recorda, aquém da consciência. Quem sabe se a hipnose não poderá trazer este tipo de recordações, mais precisamente ainda, até à nossa consciência?

 

 Diane sentia-se invadida por uma perturbação. Já não tinha a mínima certeza de querer ficar, de efectuar ali o grande salto. Um pormenor acabava de a alarmar: o dia findara e o gabinete enchera-se de sombra. Ora, os olhos do hipnólogo nunca haviam brilhado tão intensamente. Parecia-lhe mesmo que as suas pupilas desencadeavam esse reflexo peculiar de certosanimais nocturnos, como os lobos, que possuem plaquetas prateadas, situadas entre a retina e a esclerótica, as quais lhes permitem acentuar a luz. Sacher tinha este mesmo olhar de prata... Ela decidiu-se quando ele propôs:

 

 E se agora me falasse da cena que deseja reviver? Diane resignou-se. Voltou a ver-se a si mesma no quarto de hospital, poucas horas antes, a tomar a resolução. Aninhou-se na poltrona e pronunciou numa voz calma:

 

 Na quarta-feira, 22 de Setembro, por volta da meia-noite, tive um acidente de viação com o meu filho adoptivo no boulevarpériphérique, junto à Porte Dauphine. Escapei indemne, mas o menino ficou entre a vida e a morte durante quinze dias. Julgo que se encontra agora livre de perigo, mas...

 

 Diane hesitou.

 

 Quero rememorar os minutos que precederam o acidente, acrescentou por fim. Preciso de reviver cada gesto, cada pormenor. Quero ter a certeza de que não cometi nenhum erro.

 

 Um erro de condução?

 

 Não. O acidente foi provocado por um camião que se atravessou na estrada. Não tive culpa. Mas... bebera um pouco. E gostava de me certificar de que fechei realmente o cinto de segurança da criança.

 

 Nova hesitação; em seguida:

 

 Devo esclarecer que, no momento da colisão, o cinto já não estava preso.

 

 Sacher cruzou as mãos sobre a superfície cintilante da secretária e inclinou-se para Diane. As suas íris brilhavam em reflexos simétricos.

 

 Se não estava apertado, quer dizer que não o fechou, não acha?

 

 Sei que o fechei. E pretendo verificá-lo aqui, sob hipnose.

 

 O médico parecia reflectir. Experimentava, sem dúvida alguma, o mesmo espanto que Charles Helikian.

 

 Admitamos que tomou essa precaução, disse ele. Como explicar então que o cinto estivesse aberto aquando do acidente?

 

Penso que o desapertaram durante a viagem.

 

 O seu filho?

 

 Diane tinha que o dizer. Tinha que revelar a sua hipótese. Articulou em voz baixa:

 

 Suspeito de que ia lá dentro um homem. Um passageiro clandestino que se meteu no carro. Desconfio que o acidente foi preparado, organizado, realizado nos mais pequenos pormenores.

 

 Está a brincar?

 

 Faça como se fosse uma brincadeira e hipnotize-me.

 

É absurdo. Porque havia alguém de tramar tudo isso?

 

 Hipnotize-me.

 

 Julga que um homem iria correr o risco de estar consigo, dentro do carro, no momento do acidente?

 

 Diane compreendeu que nada obteria do psiquiatra. Pegou nas suas coisas e levantou-se.

 

 Espere, ordenou ele.

 

 Paul Sacher esboçou um gesto cortês na direcção da poltrona. Sorria com afabilidade, mas Diane apercebeu-se de que ele tremia.

 

 Sente-se, disse. Vamos começar.

 

 A primeira sensação foi a da água. O seu espírito flutuava num meio líquido. Pensou num fardo esquecido no porão inundado de um cargueiro. No caroço de um fruto numa polpa demasiado fluida. Balouçava agora no interior do seu próprio crânio. A segunda sensação foi a de que era duas. Ou dupla.

 

 Como se a sua consciência se tivesse separado em duas entidades distintas, uma das quais podia observar a outra. Sonhava e podia contemplar-se a sonhar. Concentrava-se e podia observar-se, à distância, no próprio acto de concentração.

 

 Diane, está a ouvir-me?

 

 Estou.

 

 O mergulho no estado hipnótico fora imediato. Paul Sacher começara por lhe pedir que se concentrasse numa linha vermelha, pintada na parede, e depois que sentisse o peso dos seus membros. Diane caíra num estado de intensa consciência. Experimentara a inércia das mãos, dos pés. A massa dos seus membros parecia tornar-se mais pesada a cada instante, enquanto o seu espírito, pelo contrário, levantava voo, libertando-se.

 

 Vamos evocar a recordação do acidente.

 

De costas bem direitas, mãos pousadas nos braços da poltrona, Diane aquiesceu movendo a cabeça.

 

 Sai do prédio da sua mãe. Que horas são?

 

 Aproximadamente meia-noite.

 

 Onde está, ao certo, Diane?

 

 Estou no átrio do número 72, boulevarSuchet.

 

 Ruído de chuva. Linhas translúcidas. Milhares de incisuras na superfície negra da calçada. Fachadas altas de pedra refulgente. Candeeiros azulados, resfolegando brumas como bocas impacientes.

 

 Que tal se sente?

 

 De olhos fechados, ela sorri sem responder.

 

 Champanhe nas veias, como rios subterrâneos que se riem do aguaceiro, lá fora. Diane ouve as gotas, ligeiras e densas, sussurrar sobre a sua nuca. Sente-se bem. Sente-se solta. Esqueceu a cólera do jantar. O beijo de Charles. Está somente aconchegada no instante.

 

 Diane, como se sente neste minuto?

 

 Perfeitamente bem.

 

 Está sozinha?

 

 Entre os seus braços, o calor da criança cristaliza-se. A nuca tépida, a fluidez do corpo. A quietude do sono que a chuva não consegue perturbar.

 

 Estou com o Lucien, o meu filho adoptivo.

 

 O que faz agora?

 

 Atravesso o boulevard.

 

 O que acha do trânsito?

 

 O boulevarestá deserto.

 

 O seu carro: onde ficou estacionado? Junto ao hipódromo de Auteuil.

 

 Lembra-se do local preciso?

 

Avenue du Marechal-Franchet-d’Esperey.

 

 Dê-me outros pormenores. Qual é a marca do seu carro?

 

 É um veículo todo-o-terreno. Um modelo antigo. Um Toyota Landcruiser datado dos anos oitenta.

 

 Está a vê-lo agora?

 

 Sim.

 

 A poucos metros dali, o carro desenha-se sob a chuvada. Diane é agora agitada por um pressentimento. Aflige-a um remorso, uma dor. Lamenta ter bebido. Ter cedido a este ritual que ela abomina. Gostaria de regressar, acto contínuo, a uma perfeita lucidez, de assumir plenamente cada segundo.

 

 A voz de Sacher ressoou no compartimento, a um tempo longínqua e próxima:

 

 O que faz agora?

 

 Abro a porta.

 

 Que porta?

 

 A porta direita de trás. A de Lucien.

 

 E em seguida?

 

 Ainda antes de precisar o seu pensamento, o corpo facultou-lhe as respostas, sensações muito nítidas, quase demasiado agudas.

 

 A chuva a fustigar-lhe as costas. O calor a exalar-se da abertura do blusão. O seu corpo a dobrar-se com Lucien para o interior do carro.

 

 A voz do hipnólogo tornou-se mais forte:

 

O que está a fazer, Diane?

 

 Instalo Lucien no banco de criança...

 

 Esse instante é muito importante, Diane. Descreva exactamente cada um dos seus gestos.

 

 Entre os dedos, ouviu-se um breve ruído. O ”do cinto. Ela experimenta logo esse júbilo ténue, secreto, egoísta, que remata cada um dos seus actos, inclusive os mais ínfimos, quando se destinam a proteger o filho.

 

 Mais alguns segundos. A voz de Diane elevou-se finalmente:

 

 Apertei... apertei o cinto de segurança.

 

 Tem a certeza?

 

 Absoluta!

 

 O timbre grave de Sacher insinuou-se nela:

 

 Detenha-se agora nessa recordação. Observe o interior do carro com atenção.

 

 A parte consciente de Diane compreendeu que a sua câmara mental estava a desbloquear-se. Passeava agora o olhar pelo cerne da imagem memorizada.

 

 O espaço escuro do habitáculo. Os bancos puídos, juncados de objectos diversos. A coberta de penas cor de caqui amarrotada e desdobrada no chão. O tampo que sustém velhas revistas. As portas de chapa, sem revestimento nem tecido...

 

 Podia, literalmente, percorrer a sua recordação, palmilhá-la, sulcá-la. Podia perscrutar estes pormenores que não observara na altura, mas que a sua memória retivera sem ela saber.

 

 O que vê, Diane?

 

 Nada. Nada de especial.

 

 O silêncio de Paul Sacher era tenso. Confusamente, Diane sentia que o psiquiatra estava à espreita. Perguntou:

 

 Continuamos?

 

 Continuamos.

 

 O tom retomou a sua neutralidade:

 

 Segue agora pelo boulevarpériphérique? Ela aquiesceu com um aceno de cabeça.

 

 Responda em voz alta, peço-lhe.

 

 Sigo pelo boulevarpériphérique.

 

 O que vê?

 

 Luzes. Séries de luzes.

 

 Seja mais explícita. O que vê precisamente?

 

De ambos os lados das têmporas, as luminárias desfilam sob o seu escudo de vidro. Diane pode quase distinguir a textura das vidrarias folheadas, abrasadas pela incandescência do sódio.

 

 As enfiadas dos néones, murmurou ela. Encandeiam-me.

 

 Onde está agora?

 

 Vou a ultrapassar a Porte de la Muette.

 

 Há outros veículos no périphérique?

 

 Muito poucos.

 

 Em que fila segue?

 

 Na quarta, à extrema-esquerda.

 

 A que velocidade vai?

 

 Não sei.

 

 O tomilho da voz estreitou-se:

 

 Olhe para o painel.

 

 Diane observou o conta-quilómetros no interior da sua recordação.

 

 A cento e vinte quilómetros à hora.

 

 Muito bem. Vê algo de singular na estrada, à sua volta?

 

 Não.

 

 Nunca olha para trás, na direcção do seu filho?

 

 Olho. Até regulei o meu retrovisor interno pelo eixo dele.

 

 Lucien está a dormir?

 

 Silhueta opaca e leve no banco de criança. Intensidade e profundidade do sono. Cabelos pretos misturados com as trevas. Desalinho de cabelos formando um berço de quietude.

 

 Dorme profundamente.

 

 Não se mexe?

 

 Não.

 

 Não há nenhum movimento na retaguarda? Diane varreu o campo de visão do retrovisor.

 

Não, nenhum.

 

 Volte para a estrada. Onde está?

 

 A chegar à Porte Dauphine. Já vê o camião?

 

 Um prelúdio de pavor sob a pele.

 

 Sim. Eu...

 

 Que aconteceu?

 

 Por entre o furor da chuvada, as paralelas da estrada baralham-se. Não: não são as paralelas. É o camião. O camião acaba de sair da sua faixa parece arrastar atrás de si a estrada inteira. Não tem pisca-pisca ligado. Nenhum sinal. Atravessa obliquamente às linhas de chuva e de luz...

 

 Diane ergueu-se na poltrona. A voz de Sacher soa mais alto:

 

 Que aconteceu?

 

 O camião... está... está a desviar-se para a esquerda.

 

 E depois? perguntou o hipnólogo.

 

 Entra na quarta fila...

 

 O que faz você?

 

 Travo!

 

 Que se passa então?

 

 As minhas rodas bloqueiam-se por cima das poças. Deslizo, eu...

 

 Diane berrou. A força da recordação estava a dilacerá-la.

 

 O camião bate nos separadores de protecção. Gira num fragor de ferros. A cabina vira, esfrangalhando os faróis contra o pára-brisas de Diane.

 

 O que vê?

 

 Nada, já não vejo nada! As brumas de água rodeiam-me. Eu... travo. Travo!

 

 O pesado vacila sobre as suas estruturas. Suspiros obstinados de vapor. Estridulação dos travões. Retalhos de ferro irrompendo do caos...

 

Diane sentiu uma mão apertar-lhe o ombro. A voz de Sacher, muito próxima:

 

 E Lucien, Diane? Não deita um olhar a Lucien?

 

 Claro que sim!

 

 A sua recordação voltou com uma pureza de cristal. Mesmo antes do choque, mesmo antes de embater brutalmente contra a barra de segurança, Diane virara-se na direcção do filho.

 

 O rosto frágil, adormecido. E de repente as pálpebras que se abrem. Meu Deus! Ele desperta. Vai ver o que se passa...

 

 Diga-me o que vê!

 

 Ele... ele desperta. Despertou! Agora, Sacher gritava:

 

 Vê o cinto? Ainda está preso?

 

 O rosto da mãe amedrontada... os olhos arregalados... as pupilas dilatadas pelo terror...

 

 Diane, olhe para o cinto! Lucien está a abri-lo?

 

 NÃO POSSO!

 

 Diane já não podia tirar os olhos de Lucien. A voz de Sacher, em ressaca de terror!

 

 Olhe para a estrada, Diane! Volte para a estrada! Num gesto reflexo, ela rodopiou sobre si mesma. Um urro

 

 jorrou da sua garganta. Um grito cuja força a propulsou da poltrona:

 

 NÃO!

 

 Esbarrou contra os estores da janela. Sacher precipitou-se sobre ela.

 

 O que vê, Diane? Ela gritou outra vez:

 

 NÃO!

 

 O QUE VÊ?

 

Diane não podia responder. A voz do psiquiatra mudou de registo. Mais calma, mais totalmente dominada, ordenou:

 

 Acorde.

 

 Ela estremeceu, agitada por espasmos, encolhida ao pé dos estores.

 

 ACORDE! Sou Eu QUE lho ORDENO!

 

 Diane entrou em plena consciência. As suas pálpebras bateram. Uma fasquia de estore deve tê-la ferido: corria-lhe sangue no rosto, misturando-se com as lágrimas em doces riachos. Sacher debruçava-se sobre ela.

 

 Acalme-se, Diane. Agora está aqui, ao pé de mim. Corre tudo bem.

 

 Ela tentou falar, mas as cordas vocais recusavam-se a funcionar.

 

 O que viu? perguntou o médico.

 

 Os lábios fremiram-lhe: nenhum som saiu. Ele insistiu, num tom benevolente:

 

 Havia um homem no seu carro? Diane negou, abanando a cabeça:

 

 Não, dentro do carro, não.

 

 As feições do psiquiatra exprimiram o estupor. Diane tentou continuar, mas as palavras ficaram embargadas na garganta.

 

 A sua última visão voltou então para lhe fustigar a memória.

 

 No exacto momento em que se virara para a estrada, vira-o: à direita, a cem metros dali, entre as moitas do périphérique, um homem surgia sob a chuva. Vestido com um comprido capote de cor caqui, capuz apertado sobre o rosto ossudo, estendia o indicador para a viatura pesada, como se desencadeasse por meio deste simples gesto a fúria do acidente.

 

 Diane estava segura, reconhecera o seu casacão verde: uma parca anti-radioactiva do exército russo.

 

 Assim? O informático acrescentou umas maçãs do rosto salientes ao retrato-robô. Diane anuiu. Era meia-noite. Havia duas horas que trabalhava com um técnico fisionomista do Quai dês Orfèvres a fim de estabelecer o retrato da personagem do périphérique. Após a sessão de hipnose, apesar das perguntas instantes de Paul Sacher, Diane abandonara-o e dirigira-se logo para a brigada criminal.

 

 E a boca?

 

 No ecrã do computador, Diane viu desfilar as diferentes formas de lábios. Auréolas carnudas. Oval curta. Comissuras alçadas. Ela seleccionou uns lábios finos, rectilíneos, de contornos acentuados.

 

 E os olhos?

 

 Houve um novo desfile no monitor. Diane escolheu uns losangos de pálpebras baixas, para os quais optou por íris escuras e azuladas uns olhos iguais a berlindes coloridos e pesados, como os que tilintam nos bolsos das crianças. Era absurdo definir com tanta precisão um rosto que ela avistara a mais de cem metros de distância. Todavia, quase iria jurar: os olhos do matador, tal como os outros pormenores que seleccionara, eram desta natureza.

 

 E as orelhas?

 

Diane respondeu:

 

 Ele trazia um capuz.

 

 Que género de capuz?

 

 Um capuz contra as intempéries. Apertado em torno do rosto.

 

 O técnico traçou em volta da cara uma sombra pregueada que simulava perfeitamente o invólucro de pano. Diane recuou ligeiramente, franziu os olhos: o rosto tomava forma. Uma testa alta, desguarnecida de cabelo. Umas maçãs do rosto semelhantes a sílex, cercadas de rugas. Uns olhos azul-escuros que possuíam, sob a preguiça das pálpebras, um brilho de ágata. Diane gostaria de surpreender neste rosto uma monstruosidade, uma marca de crueldade mas tinha de inclinar-se perante a beleza dos traços.

 

 Patrick Langlois apareceu. Deitou uma olhadela ao ecrã e depois encarou Diane. Um vinco de inquietude barrava-lhe a testa.

 

 Está parecido? perguntou.

 

 Diane assentiu. O tenente observava o retrato sem convicção. Aceitara, às dez horas da noite, regressar ao seu gabinete e convocar um fisionomista para construir este rosto. Sentou-se num canto da secretária, mantendo estreitada contra si a sua pasta de cartão.

 

 E diz que ele envergava uma parca militar?

 

 Sim. Um casacão soviético. Uma fibra anti-radioactiva.

 

 Como pode estar tão certa?

 

 Há cinco anos, efectuei uma missão no Kamtchatka, na Sibéria extremo-oriental. Estávamos num acampamento militar e assisti, por acaso, a uma manobra de alerta nuclear. Pude ver de perto estes casacos. Atam-se de viés e a gola fixa-se...

 

 O tenente interrompeu-a com um gesto. Pediu ao informático que imprimisse o retrato-robô e depois levantou-se, dirigindo-se a Diane:

 

 Siga-me.

 

Caminharam ao longo de corredores para onde davam portas entreabertas e lucarnas sombrias. Ela vislumbrava gabinetes soturnos, nichos em desalinho onde alguns chuis ainda trabalhavam.

 

 Langlois abriu uma porta forrada de veludo. Penetrou lá dentro e acendeu uma lâmpada halogénea. O gabinete fazia lembrar um antro de oficial de diligências, a abarrotar de velhas papeladas e de peças de couro usadas. Apontou para uma cadeira e depois sentou-se do outro lado da mesa. Tamborilou uns momentos sobre a superfície de madeira antes de erguer o olhar.

 

 Devia ter-me prevenido, Diane.

 

 Queria ter a certeza.

 

 No entanto, eu avisara-a: nada de Alices detectives.

 

 Foi você mesmo que me encarregou de investigar sobre Lucien.

 

 Com um meneio de ombro, o polícia ajeitou o casaco e declarou:

 

 Resumamos. No seu entender, o acidente teria sido, na realidade, uma tentativa de homicídio, é o que pensa?

 

 Sim.

 

 O motorista do camião teria sido adormecido por uma ordem dada, por uma força exterior, ou sei lá que mais...

 

 Por hipnose.

 

 Por hipnose, admitamos. Como é que se poderia provocar a colisão naquele sítio exacto, no momento em que você chegava à fila esquerda?

 

 Calculei os itinerários. O camião vinha de um parque de estacionamento da avenue de la Porte d’Auteuil, nas imediações do Bosque de Bolonha. Bastava que se pusesse a caminho pouco antes de eu própria arrancar. Atendendo às nossas velocidades respectivas, o nosso ponto de encontro era fácil de calcular.

 

 E o adormecimento do motorista: como é que foi provocado precisamente nesse instante?

 

É possível condicionar uma pessoa para que ela adormeça de repente, ao surgir um sinal.

 

 Que sinal, no caso que nos interessa agora? Diane passou a mão pela testa.

 

O motorista lembra-se de uma cor verde. Talvez se trate da parca militar. O homem do capote estava à entrada do túnel.

 

 O tenente continuava a fitar Diane. Os seus olhos negros brilhavam sob a franja cinzenta.

 

 Acha então que os assassinos trabalhavam em equipa, volveu ele.

 

 Julgo que sim.

 

 À maneira de uma operação militar? Uma operação militar. Justamente.

 

 E toda esta operação teria sido organizada com a única finalidade de eliminar o seu filho adoptivo?

 

 Diane aquiesceu, mas avaliava todo o absurdo da sua versão dos factos. Langlois inclinou-se para ela e olhou-a bem no fundo da alma.

 

 Na sua opinião, o que os levaria a quererem matá-lo? Ela afastou as madeixas e murmurou:

 

 Não sei.

 

 Langlois refastelou-se novamente na cadeira e atacou noutro tom, como se quisesse abrir outro capítulo:

 

 E diz-me igualmente que Lucien não é originário da Tailândia? Que se trata afinal de uma criança vinda da Sibéria ou da Mongólia? Como foi parar ao litoral das ilhas do Andamão?

 

 Não sei.

 

 Após uns momentos, Langlois declarou numa voz incomodada:

 

 Diane, como hei-de dizer-lhe...

 

 Ela ergueu os olhos acima da curva dos óculos.

 

 Pensa que sou louca?

 

 Não dispõe da mínima prova do que afirma. Nenhum indício, nem nada. Tudo isto pode não existir senão na sua cabeça.

 

 E o motorista? Ele não percebe como pôde deixar-se adormecer e...

 

 Como havia de dizer o contrário?

 

 E o homem? O homem da parca: não posso tê-lo inventado, pois não?

 

 O polícia preferiu seguir outro rumo.

 

Se eu aceitar a sua história, concluirei que estes mesmos homens é que mataram Rolf van Kaen...

 

 Ela hesitou novamente.

 

 Julgo que sim; de certo modo, os assassinos castigaram o alemão por este ter salvo o Lucien.

 

 E quem preveniu o acupunctor quanto ao acidente?

 

 Não sei.

 

 Os polícias do BBK ainda não encontraram o mais pequeno rasto de um telefonema ou de uma mensagem a propósito do seu filho. Van Kaen parece ter sido chamado pelo Espírito Santo.

 

 O que poderia ela acrescentar? Langlois começou por respeitar o seu silêncio; em seguida declarou em voz baixa:

 

 Informei-me acerca de si.

 

 Em que aspecto?

 

 Telefonei aos seus colegas, aos seus pais, aos médicos que a trataram.

 

 Diane explodiu:

 

 Como é que pôde...?

 

É o meu trabalho. Neste caso, você constitui a minha testemunha principal.

 

 Patife!

 

 Porque não me disse que se submeteu a várias psicoterapias, hospitalizações, curas de sono?

 

 Devia então trazer um letreiro pendurado ao pescoço? Já podia ter-lhe feito a pergunta antes, mas... o que a levou a adoptar o Lucien?

 

 Não são contas do seu rosário.

 

 Ainda é tão jovem...

 

 O rosto dele franziu-se num sorriso embaraçado. As suas rugas desmultiplicaram a expressão de confusão.

 

 OK, tão bela. Era o que eu queria dizer. (Agitou os dedos no ar.) É uma coisa que não me entra na cabeça. Diane: porque optou por este procedimento de adopção? Porque não tentou antes... enfim, bem sabe: arranjar um marido, formar um lar, a via clássica, em suma?

 

 Diane cruzou os braços sem responder. Langlois curvou-se e juntou as mãos em forma de prece, como da primeira vez, lá no hospital.

 

 Segundo a sua mãe, você tem dificuldade em... ligar-se. Deixou a frase em suspenso, aguardou uns instantes, depois prosseguiu:

 

 Ela diz que nunca lhe conheceu um noivo.

 

 Isto é uma terapia ou quê?

 

 A sua mãe...

 

 A minha mãe não me liga nenhuma e eu pago-lhe na mesma moeda.

 

 O tenente encostou-se à parede, entalou o pé contra o cesto e sorriu.

 

 Foi o que eu julguei compreender, sim... E o seu pai?

 

 Do que anda à procura?

 

 Langlois abandonou a sua posição e recolheu-se novamente em si mesmo.

 

 Tem razão. Não são assuntos da minha conta. Diane contou de uma assentada:

 

 Não cheguei a conhecer o meu pai. Nos anos setenta, a minha mãe vivia em comunidade. Escolheu um tipo no grupo e fez-se fecundar. Tinham combinado os dois. Ele nunca procurou ver-me. Nem sequer sei o seu nome. A minha mãe queria educar um filho sozinha. Evitar o espartilho do casamento, a sujeição machista... Tinha as ideias da época. Era uma feminista convicta.

 

 Acrescentou:

 

 Há os filhos do circo. Eu sou uma filha dos hippies.

 

 Perpassou um sorriso no rosto do chui, esse frémito de ironia de que Diane tanto gostava. A sua expressão rasgou-lhe o coração porque ela sabia estar a contemplar uma paisagem proibida. Sentiu-se de súbito prisioneira de um glaciar, emparedada numa prisão de geada. O tenente deve ter percebido esta tristeza: estendeu a mão, mas ela evitou-a.

 

 Ele imobilizou-se, deixou correr alguns segundos, depois disparou o que trazia engatilhado:

 

 Diane, o termo ”diz-lhe alguma coisa?

 

Ela não procurou esconder a surpresa:

 

 Não. O que é?

 

 É uma abreviatura. Significa: câmara magnética de corrente. No fundo, é russo.

 

 Russo? Porque... me fala disso?

 

 Langlois abriu a pasta: havia um fax colocado em evidência. Diane entrevia caracteres cirílicos e uma vaga fotografia de identidade, desfocada pela impressão da telecópia.

 

 Talvez se lembre de que existe uma espécie de buraco negro no destino de van Kaen...

 

 ”Sim, de 1969a 1972.

 

 Os chuis do BBK abriram hoje um cofre que o médico possuía no Berliner Bank. O cofre só continha estes documentos.

 

 Brandiu a fotocópia.

 

 Papéis de identidade soviéticos, que demonstram que o alemão trabalhou num Tokamak durante esse período.

 

 Mas... de que se trata?

 

 É um sítio de pesquisa revolucionária. Um laboratório de fusão nuclear.

 

 Diane pensou na parca anti-radioactiva do matador.

 

 Não será antes fissão nuclear? rectificou ela. O tenente esboçou um gesto de admiração.

 

 É realmente espantosa, Diane. Tem razão, eu informei-me: a actividade tradicional das centrais baseia-se na fissão dos átomos; aqui, porém, trata-se justamente de uma outra técnica, fundada na fusão. Uma técnica inspirada directamente na actividade do Sol, inventada pelos Soviéticos nos anos sessenta. Um projecto desmedido, que os obrigava a construir fornos que atingiam até duzentos milhões de graus. É inútil dizer-lhe que tudo isto ultrapassa as minhas competências.

 

 Diane quis saber:

 

 Qual é a relação com os acontecimentos de hoje?

 

Ele virou a fotocópia na sua direcção e tomou uma expressão de evidência.

 

O Tokamak em que van Kaen trabalhou, o TK 17, era o mais importante que os russos alguma vez construíram. Era um sítio absolutamente secreto. E adivinhe onde estava implantado... No extremo setentrional da República Popular da Mongólia, na fronteira da Sibéria. Em Tsagaan-Nuur, ali mesmo onde o médico parecia decidido a ir.

 

 Ela estudava o documento escurecido, distinguindo na fotografia de identidade enegrecida as feições de um van Kaen jovem, de olhar fechado. Langlois interrogou-se em voz alta:

 

 Porque desejaria ele voltar lá? Não tenho a mais pequena ideia, mas tudo isto forma um todo. É óbvio.

 

 O informático entrou no gabinete depois de bater à porta. Sem uma palavra, depôs vários exemplares impressos do retrato-robô e eclipsou-se. O tenente observou a fácies e concluiu:

 

 Vamos ver se os nossos ficheiros reconhecem o seu fulano. Não acredito muito nesta possibilidade, mas nunca se sabe. Paralelamente, vamos orientar as nossas investigações para as comunidades turco-mongóis de Paris. Verificar os vistos de entrada e tudo o mais. É a única boa notícia, porque não devem ser muitos.

 

 Levantou-se e viu as horas:

 

 Vá dormir, Diane. Já passa da uma hora da manhã. Vamos reforçar a guarda do quarto de Lucien: nada receie.

 

 Acompanhou-a à porta. Apoiando-se no alizar, acrescentou:

 

 Francamente, não sei se é louca, Diane, mas, de qualquer modo, esta história é-o muito mais do que você.

 

 Compartimentos brancos. Quadros a pastel. Sinal vermelho do atendedor. Diane atravessou o seu apartamento sem acender a luz. Penetrou no quarto e deixou-se cair sobre a cama. O claror rubro do atendedor, ao pé dela, tomava proporções de farol acima de um mar de sombra. Recordava-se de ter desligado o telemóvel antes da sessão de hipnose. Talvez alguém tivesse procurado falar consigo durante a noite...

 

 Carregou na tecla de escuta e só ouviu a última mensagem: ”Sou a Isabelle Condroyer. O meu relógio marca vinte e uma horas. Diane: é fantástico. Identificámos o dialecto de Lucien! Telefone-me.”

 

 A cientista dava os elementos para ela a contactar em casa ou através do telemóvel. Na obscuridade, Diane memorizou o primeiro número e marcou-o. Ressoaram vários toques deviam ser duas horas da manhã, depois elevou-se uma voz estremunhada:

 

 Está sim?

 

 Boa-noite. Daqui fala Diane Thiberge.

 

 Diane, ah! sim... (parecia arrancar-se aos seus sonhos). Já viu as horas que são?

 

 Ela não tinha forças nem vontade de se desculpar.

 

Só agora cheguei a casa, disse simplesmente. Estava demasiado impaciente.

 

 Com certeza... (A voz recuperava alguma clareza.) Apurámos o dialecto do seu filho.

 

 Isabelle deteve-se para ordenar ideias, em seguida explicou:

 

 O menino fala um idioma de origem samoieda, usado exclusivamente na região do lago Tsagaan-Nuur, no extremo setentrional da República Popular da Mongólia.

 

 Lucien provinha exactamente da região do laboratório nuclear. O que significava isto? Diane não conseguia ordenar os seus pensamentos. Isabelle Condroyer perguntou:

 

 Diane, está a ouvir-me?

 

 Estou, sim.

 

 A etnóloga retomou o fio do discurso, a excitação transparecia na sua voz:

 

 É incrível. Segundo o especialista que consultei, trata-se de um dialecto muito raro, falado por uma etnia extremamente reduzida, os tsevens.

 

 Diane quedava-se tão muda como um túmulo. A cientista indagou outra vez:

 

 Está a ouvir-me, Diane? Julgava que ia ficar entusiasmada ao...

 

 Estou a ouvi-la.

 

 Há também as tais duas sílabas, Lu e Sian, que o seu rapazinho não cessa de repetir na cassete. O meu colega é categórico: estes dois fonemas formam uma palavra muito importante para a cultura tsevena. Significam: o ”Vigia”. A ”Sentinela”.

 

 O... Vigia?

 

 É um termo sagrado. Designa uma criança eleita. Uma criança que desempenha o papel de mediador entre o seu povo e os espíritos, sobretudo durante a estação da caça.

 

 Diane repetiu num tom vago:

 

 A estação da caça.

 

 Sim. Durante este período, a criança torna-se o guia do seu povo. Ela é simultaneamente quem atrai os favores dos espíritos e quem decifra as suas mensagens, na floresta. É capaz, por exemplo, de determinar as áreas propícias à captura dos animais. A criança parte na dianteira, e os caçadores do grupo seguem-na a boa distância. É um batedor, um batedor espiritual.

 

 Diane estendeu-se sobre a cama. Discernia, alinhados na parede, os quadrados a pastel de Paul Klee, longe, muito longe, do lado da vida normal e sem perigo. A etnóloga parecia intrigada pelo seu silêncio. Ao cabo de alguns segundos, disse:

 

 Sinto que há um problema.

 

 Diane, com a nuca afogada nos cabelos esparsos, respondeu:

 

 Julguei adoptar uma criança natural da Tailândia. Fundar um lar com um rapazinho que não tivera sorte à nascença. Vejo-me agora com um xamã turco-mongol que espreita os espíritos silvestres. Acha que não é um problema?

 

 Isabelle Condroyer suspirou. Parecia desiludida. Todos os seus efeitos estavam reduzidos a nada. Voltou a um tom doutoral:

 

 O seu filho deve ter permanecido durante bastante tempo na terra natal para poder memorizar este papel. Ou, pelo menos, o nome deste papel. É uma história extraordinária. O etnólogo que decifrou a cassete gostaria de falar consigo. Quando poderá vê-la?

 

 Não sei. Telefonar-lhe-ei a si amanhã de manhã. Para o seu telemóvel.

 

 Diane despediu-se bruscamente da mulher e desligou. Virou-se para a parede e encolheu-se toda, em posição fetal. Apoderou-se dela uma obscura alucinação. Sentia-se rodeada de sombras. Visualizava silhuetas vestidas de parcas anti-radioactivas que a seguiam, a observavam sob a chuva. Quem eram? Porque pretendiam eliminar Lucien, o pequeno ”Vigia”? Qual podia ser o laço entre uma criança xamã e uma paisagem nuclear?

 

 A fim de contrariar esta visão confusa, procurou recordar-se dos homens que eram seus aliados. Chamou a imagem de Patrick Langlois, mas nada viu. Tentou relembrar-se do doutor Eric Daguerre, mas nenhum rosto apareceu. Pronunciou o nome de Charles Helikian, mas nenhum eco se repercutiu no seu espírito. Sentia-se sozinha, desesperadamente sozinha. Contudo, no momento em que ia mergulhar no sono, assaltou-a uma verdade: não podia estar assim tão isolada, numa tormenta de tamanha amplidão.

 

 Alguém, algures, devia partilhar do seu pesadelo.

 

 Alguns anos atrás, ela inscrevera-se num curso de teatro a fim de tentar vencer a timidez e dar-se com os outros. Sem resultado. Conservara, porém, uma estranha nostalgia no tocante a esta actividade. Recordava-se dos cenários, que cheiravam a serradura e a poeira. Da atmosfera vagamente inquietante da sala mergulhada em sombra onde, num palco iluminado, uns aprendizes de actores declamavam textos de Sófocles ou de Feydeau, praticamente no mesmo tom. Recordava-se da compaixão atenta dos outros alunos, que seguiam em silêncio os esforços dos condiscípulos. Havia algo de oculto, de ritual em semelhante disciplina. Como se os ensaios se destinassem a invocar forças misteriosas, deuses ignotos que só podiam ser solicitados por estas falas desafinadas e por estes gestos canhestros.

 

 No rés-do-chão do bloco A do edifício da Faculdade de Letras de Paris X-Nanterre, Diane entrou na sala 103 e compreendeu que acabava de franquear o limiar de um desses templos arcaicos. Era um compartimento de vinte metros de lado, sem janela, quase vazio, à excepção das filas de cadeiras dobradas, encostadas à parede da direita. Ao fundo elevava-se um palco de tonalidades foscas, emoldurado por cortinados negros, onde uns rudimentos de cenário se recortavam numa claridade salpicada de partículas. Uma mesa, uma cadeira, formas imprecisas, talhadas em polistireno escuro, sugerindo uma árvore, um rochedo, uma colina.

 

 Eram dez horas da manhã.

 

 Isabelle Condroyer dera-lhe este único endereço para se encontrar com Claude Andreas, o etnólogo especialista em dialectos turco-mongóis.

 

 Interrogou uns actores que conversavam junto ao palco. Entre eles, estava o homem que Diane procurava. Alto e magro, envergava uma camisola leve de gola e umas calças justas de cor preta. Ela pensou num pergaminho finamente enrolado um pergaminho que abrigasse alguns segredos de alquimia sumamente opacos. Apresentou-se em poucas palavras. Ele desculpou-se com um sorriso:

 

 Desculpe este traje de combate. Estamos a ensaiar À Espera de Godot.

 

 Andreas indicou uma mesa à direita:

 

 Venha. Quero mostrar-lhe um mapa dessa região. A sua história é deveras... incrível.

 

 Diane anuiu, por simples pró-forma. Nesta manhã, anuiria a tudo. Apesar das horas que dormira ainda não recobrara as suas forças profundas: a mescla de agressividade e de nervosismo que constituía a sua mais segura maneira de existir.

 

 Café? ofereceu o homem brandindo um termos. Diane recusou com um gesto. Andreas estendeu-lhe uma cadeira, serviu-se de uma chávena de café e sentou-se do outro lado da mesa assente em dois cavaletes. Ela observava-o. O seu rosto assemelhava-se a um desenho colorido de criança: olhos de cor turquesa muito afastados, um nariz arrebitado, uma boca fina, delineada de um só traço tudo isto rodeado de uma abundante guedelha sal e pimenta, que se assemelhava a um capacete de personagem Play-Mobil.

 

 Pousou a chávena e desdobrou um mapa. Todos os nomes estavam escritos em caracteres cirílicos. Mostrou com o indicador uma região no alto do documento, perto de uma linha fronteiriça.

 

 Penso que o dialecto do seu filho pertence a esta região, no extremo setentrional da Mongólia Exterior.

 

Isabelle falou-me de uma etnia, os tsevens...

 

 Em boa verdade, é difícil ser tão categórico. São regiões de acesso muito difícil, que ficaram sob a influência soviética durante cerca de um século. Mas eu diria que sim; atendendo à pronúncia e à utilização de certas palavras, estamos perante o dialecto tseven. Uma população de origem samoieda. Criadores de renas, em vias de extinção. Até me espanta que ainda subsistam alguns. Onde é que foi adoptar uma criança assim?

è...

 

 Fale-me dessa história do Vigia e da caça.

 

 Andreas sorriu por causa do tom abrupto. Parecia compreender que hoje não seria ele a fazer as perguntas. Esboçou um gesto de desculpa pela sua indiscrição. Tinha a untuosidade de uma sombra chinesa.

 

 Uma vez por ano, no Outono, os tsevens organizam uma grande caçada. Esta caçada obedece a regras muito estritas. Os homens do grupo devem seguir um jovem batedor. A criança jejua na noite anterior e depois parte sozinha, ao alvorecer, em direcção à floresta. Só então os caçadores se põem em marcha e seguem o ”Vigia”. O ”Lú-Si-An”, no dialecto tseven.

 

 As palavras do etnólogo perdiam-se no espírito de Diane. Ela olhava fixamente o mapa. Verde. Imensidades de verde, rasgadas aqui e além pelas pequenas manchas azuis dos lagos. Eram estas planícies de ervas curtas, estas florestas infinitas de abetos, estes lagos límpidos que corriam no sangue de Lucien. Recordava-se dos momentos de intimidade em que a criança adormecia no arco da sua axila e em que ressoava no seu espírito a palavra mágica ”algures”. Como um marulhar longínquo, as explicações de Andreas chegaram de novo aos seus tímpanos.

 

 Se o seu filho adoptivo é realmente um Vigia, se foi designado pelo seu povo, isso significa que possui dons de vidência. Uma das faculdades agrupadas sob a sigla inglesa ESP, que quer dizer extrasensory perception, percepção extra-sensorial.

 

 Espere.

 

 Diane observava o seu interlocutor com um olhar frio.

 

Devo concluir que as pessoas dessa etnia julgam que tais crianças possuem dons paranormais?

 

 O homem da gola alta sorriu. Teve um gesto de paciência que a irritou.

 

 Não, murmurou ele. Não foi isso que eu quis dizer. Nem por sombras. Penso que os Vigias possuem, realmente, esses poderes. De acordo com testemunhos muito sérios, são capazes de captar fenómenos absolutamente inacessíveis aos cinco sentidos humanos.

 

 Mas que sorte a sua: calhara-lhe um pírulas. Um homem que permanecera demasiado tempo junto de etnias supersticiosas. Fez o possível por se acalmar:

 

 A que fenómenos se refere?

 

 Os Lúú-Si-An, por exemplo, podem prever o itinerário da migração dos alces. Também pressentem outros factos mais espectaculares, como o aparecimento de estrelas cadentes ou cometas. Ou ainda o advento de certas mudanças climáticas. São videntes, não há a mínima dúvida. E os seus dons anunciam-se desde a mais tenra idade...

 

 Diane interrompeu-o:

 

 Tem a noção do que está a dizer?

 

 Apoiando um cotovelo sobre a mesa, enquanto a outra mão rodava devagar a colher na chávena de café, o cientista limitou-se a responder:

 

 Existem dois tipos de etnólogos, minha senhora. Os que analisam as manifestações espirituais de uma etnia de um ponto de vista estritamente psíquico. Para eles, os poderes xamânicos, as experiências de possessão só correspondem a simples desvios mentais: histeria, esquizofrenia. Para a segunda categoria de etnólogos, na qual me insiro, estas experiências representam as manifestações das forças cujo nome ostentam, ou seja, dos espíritos.

 

 Como pode aderir a tais crenças? Sorriso. Círculo no café.

 

 Se soubesse o que já me foi dado ver ao longo da minha carreira... Considerar as manifestações xamânicas como simples doenças mentais é algo que se me afigura excessivamente redutor. Faz lembrar um musicólogo que apenas se preocupa com o volume sonoro de uma orquestra, sem cuidar da música em si mesma. Há os materiais, os instrumentos. Há, em seguida, a magia que deles emana. Recuso-me a rebaixar as crenças religiosas de um povo à categoria de meras superstições. Recuso-me a considerar os poderes dos feiticeiros como puras ilusões colectivas.

 

 Diane calava-se. O seu espírito era agitado por recordações. Também ela assistira a cerimónias estranhas, designadamente em África. Nunca aprofundara o seu próprio sentimento na presença de tais factos. Mas adquirira uma certeza: nesses momentos, estava em jogo uma força. Uma força que lhe parecia situar-se ao mesmo tempo no interior e no exterior do homem, e sobretudo, curiosamente, na sua orla. Como se estivesse diante de um contacto sagrado, de um limiar indizível que era transposto.

 

 Claude Andreas pareceu aperceber-se da sua perturbação. Disse baixinho:

 

 Vejamos as coisas de outra perspectiva, se não se importa.

 

 Deixemos o lado religioso dos fenómenos paranormais e interroguemo-nos sobre a sua veracidade concreta, física.

 

 Não faz sentido, interrompeu Diane. Isso não existe. A voz do etnólogo tornou-se mais grave:

 

 Nunca teve sonhos premonitórios?

 

 Como toda a gente. Umas impressões vagas.

 

 Nunca recebeu uma chamada telefónica de uma pessoa em quem acabava de pensar?

 

 Os acasos da vida. Escute: sou cientista. Não posso deixar-me embalar por tal género de coincidências e...

 

 Muito bem, é cientista: sabe então que existe um limiar onde os acasos se transformam em probabilidades. E ainda outro limiar onde estas probabilidades se tornam axiomas. Há muito tempo que me interesso por tais questões. Existem hoje em dia laboratórios científicos na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, onde estes limites são regularmente transpostos, onde as experiências de telepatia, de vidência, de precognição se repetem com êxito. Tenho a certeza de que já ouviu falar de tudo isto.

 

 Diane não demorou a retorquir:

 

 É verdade. No entanto, se bem que os protocolos dos testes sejam rigorosos, a análise dos seus resultados dá sempre lugar a discussão.

 

 Sim, é o que dizem a maior parte dos cientistas. Porque as implicações destes resultados seriam demasiado importantes. Admitir a validade de tais anomalias equivaleria a pôr em causa a física moderna e o estado actual dos conhecimentos.

 

 Oh! está a fantasiar completamente...

 

 Sabe bem que não. Falamos de competências subterrâneas do homem. Falamos de aptidões que talvez se achem exacerbadas no seu filho. Aptidões que desafiam as leis ordinárias do universo sensível.

 

 Diane não precisava de mergulhar em novas vertigens. No entanto, uma força retinha-a. Um murmúrio segredava-lhe que estas faculdades talvez fossem o objecto de todo o caso... Andreas continuou, sempre num tom inalterável:

 

 Vejamos as coisas ainda de outra forma. É etóloga, não é? Trabalha sobre os modos de percepção dos animais.

 

 E então?

 

 Muitas destas percepções apresentaram-se-nos durante bastante tempo como misteriosas, incompreensíveis, porque não conhecíamos a sua fonte morfológica. O voo dos morcegos na escuridão era um mistério. Até ao dia em que descobrimos os ultra-sons, graças aos quais estes voláteis nocturnos se guiam. Cada uma das percepções possui a sua explicação física. Não há nada de sobrenatural.

 

 Está a falar do meu trabalho. Não vejo a relação com as pretensas faculdades psíquicas do homem e...

 

 Quem lhe diz que demos a volta inteira aos nossos aparelhos de percepção?

 

 Diane zombou:

 

 O famoso sexto sentido... (Levantou-se.) Lamento muito, senhor Andreas: julgo que estamos os dois a perder o nosso tempo.

 

O etnólogo também se levantou e barrou-lhe, muito brandamente, a passagem.

 

 Quem lhe diz que as crianças de quem falamos não possuem um trunfo que nós já não possuímos?

 

 Que trunfo?

 

 Acendeu-se um sorriso no rosto dele, uma vírgula no seu rosto de papel.

 

 A inocência.

 

 Diane tentou dar uma gargalhada, mas sentiu um nó na garganta. Claude Andreas insistiu:

 

 Nos laboratórios de que lhe falei, ficou demonstrado que os melhores resultados são sempre alcançados por ocasião dos primeiros testes, e em especial pelas crianças. Por causa da sua espontaneidade.

 

 Onde pretende chegar?

 

 Os nossos preconceitos constituem a principal barreira à emergência das faculdades psíquicas. O cepticismo, o materialismo, a indiferença podem ser considerados autênticas poluições, escórias que obstruem o espírito, o impedem de exercer o seu poder. Um desportista que não esteja convicto da sua força parte já vencido. A nossa consciência funciona exactamente da mesma maneira. Um céptico não tem acesso às suas próprias competências mentais.

 

 Diane contornou a longa silhueta. Invadia-a uma dúvida lancinante. Ele perguntou:

 

 Não tem filhos, pois não?

 

 Tenho o Lucien.

 

 Quero eu dizer: nunca deu à luz, pois não?

 

 Ela desviou a cabeça a fim de o não deixar ler a expressão do seu rosto.

 

 Porque mo pergunta?

 

 Todas as mães de família lhe dirão: elas comunicam com O filho durante a gravidez. O feto experimenta os sentimentos da mulher que o traz na barriga. Ora, já se trata de duas identidades distintas. A gravidez é o próprio berço da telepatia.

 

 Diane sentia-se mais à vontade neste terreno fisiológico. É falso, respondeu. Aquilo que qualifica de transmissão paranormal assenta em suportes físicos efectivos. Se uma mulher grávida recebe uma notícia que a transtorna, as hormonas específicas, como a adrenalina, libertam-se imediatamente no seu sangue e são assimiladas pelo embrião. Em tal estádio, não podemos considerar a mãe e o filho como dissociados. Estão, pelo contrário, em permanente contacto físico.

 

 De acordo. Mas depois do parto? A comunicação prossegue, minha senhora. É um facto confirmado. A mãe ainda percepciona as necessidades do filho no preciso instante em que ele as sente. O laço não é rompido. Que nome dá a isto? Instinto materno? Intuição feminina? Certamente. Mas onde acaba a intuição? Onde começa a vidência? Esta relação não será igualmente uma pura comunicação parapsicológica, que não assenta em qualquer outro suporte a não ser o amor?

 

 Diane esboroava-se como pólen. As alusões à relação mãe-bebé aniquilavam-na. Ao mesmo tempo, estas palavras enchiam-na de uma serenidade estranha. Ela mesma o sentira: alguma vez comunicara melhor com Lucien do que nesses momentos encantados, banhados de silêncio, em que o menino dormia nos seus braços?

 

 Fala bem, senhor Andreas, mas não creio ter avançado tanto quanto desejaria sobre a identidade do meu filho adoptivo.

 

 Avançará quando Lucien recuperar a consciência. Se é verdadeiramente um Vigia, saberá persuadi-la destas realidades.

 

 Diane despediu-se do homem e encaminhou-se para a porta. Sentia um nó de tristeza a dilatar-se no fundo da garganta. O etnólogo chamou-a:

 

 Espere.

 

 Acrescentou, avançando na direcção dela:

 

 Lembrei-me de repente de alguém. Um homem que poderá esclarecê-la melhor sobre as particularidades psíquicas de Lucien. Foi uma estupidez não ter pensado nele mais cedo. Viajou por aquelas regiões. Mais ninguém o fez, bem vistas as coisas. Devo confessar que também nunca lá fui. Só trabalhei com as fitas gravadas pelos políticos deportados na época, os cientistas do gulag.

 

 Andreas já procurava na sua agenda os elementos sobre a pérola rara. Anotou o nome e a morada no verso de uma pequena folha quadriculada.

 

 Chama-se François Bruner. Conhece os tsevens. E conhece a questão da parapsicologia.

 

 Ela pegou na página e leu.

 

 Vive num museu? perguntou.

 

 É o conservador da sua própria fundação, sim, em Saint-Germain-en-Laye. Possui uma fortuna colossal. Vá visitá-lo. É uma personagem fascinante. Gastará escassas horas na viagem. E essas horas talvez elucidem o resto da sua vida.

 

 Correu tudo muito depressa. Ela foi primeiro ao hospital a fim de descobrir o novo quarto de Lucien; em seguida, telefonou para o homem da fundação. O acolhimento revelou-se caloroso: François Bruner parecia intrigado pela presença de um Vigia em França. Dava igualmente a impressão de estar impaciente por expor as suas recordações e os seus conhecimentos a propósito de uma região que ele fora um dos raros europeus a palmilhar. Marcaram encontro para esse mesmo dia, às dezanove horas.

 

 Diane calculou que precisaria de aproximadamente uma hora para chegar a Saint-Germain-en-Laye, nos subúrbios a ocidente de Paris, e pôs-se a caminho, por precaução, logo às dezassete horas e trinta. Depois de atravessar Neuilly, contornou o Bairro da Defense pelo boulevarpériphérique e meteu pela Nacional 13, interminável linha recta que devia conduzi-la ao destino.

 

 No caminho, cessou de se interrogar sobre a sua investigação. O espírito dela estava inteiramente absorvido pelas palavras de Claude Andreas e pelas concepções gerais que implicavam. Diane Thiberge, etóloga diplomada, era um espírito racional. Apesar de ter ficado perturbada com a misteriosa eficácia da intervenção de Rolf van Kaen, apesar de as suas leituras sobre a acupunctura terem inflamado a sua imaginação, nunca acreditara, em profundidade, numa verdade que pudesse subverter a sua própria concepção da realidade.

 

 Como a maioria dos biólogos, Diane pensava que o mundo, na sua extrema complexidade, se resumia a uma sequência de mecanismos, físicos e químicos, implicando elementos concretos e identificados, desdobrando-se numa escala desde o infinitamente pequeno até ao infinitamente grande. É claro que ela não negava a existência do espírito humano, mas concebia-o como uma entidade à parte, cuja função consistia em perceber e compreender. Uma espécie de espectador espiritual, sentado nos camarotes do universo.

 

 Diane sabia-o: era uma visão redutora e ultrapassada dos mecanismos do cosmos. Uma visão, herdada dos pragmatistas do século xix, que excluía implicitamente a consciência humana da lógica do real. Ora, cada vez mais cientistas pressentiam que o espírito, por mais invisível e impalpável que fosse, pertencia tanto à realidade quanto uma molécula ou uma estrela de neutrões. Que a consciência se inseria, de um modo ainda inexplicado, no seio da grande cadeia do vivo, da mesma maneira que qualquer elemento tangível. Alguns pensavam mesmo que esta consciência não era uma entidade passiva, antes influenciava directamente, para lá dos actos que podia suscitar, o mundo objectivo, enquanto força pura.

 

 Diane concentrou-se no trajecto. Atravessava Nanterre, onde renques de plátanos desempenhavam o papel de tapa-misérias, dissimulando o habitual bricabraque dos arrabaldes mistura baça e desgraciosa de prédios velhos, de moradias desaprazíveis, de construções demasiado modernas, rutilantes e geladas.

 

 Em Rueil-Malmaison, a paisagem modificou-se. Os choupos substituíram os plátanos, compridas hastes buliçosas de folhinhas que pareciam trazer em si promessas de água e de verdura. Na avenue Bonaparte, nas cercanias da Malmaison, ergueram-se vedações, as pedras cobriram-se de vinha-virgem, os portões coroaram-se de delicados alpendres. As altas mansões pareciam remirar o fluxo dos carros, lá de cima das suas cercas, com ares de grão-duques, como se o orgulho do castelo Malmaison tivesse contaminado todas as vivendas e solares em redor.

 

 O trânsito era fluido. Diane rodava sem constrangimento. Os seus pensamentos fixaram-se novamente na investigação. Lucien seria um Vigia? Os seus supostos poderes existiriam deveras? Abarcariam uma dimensão insuspeitada da realidade? Rolf van Kaen dissera: ”Esta criança deve viver”. Não havia dúvida de que conhecia a verdade em torno de Lucien e de que esta verdade explicava a sua própria intervenção. O que esperaria dele? Diane não possuía qualquer resposta, mas estava persuadida de avançar na direcção certa. Devia concentrar-se nessas faculdades psíquicas ainda que não lhes desse crédito, ainda que, para ela, tais histórias não passassem de quimeras. O que contava, agora, não eram as suas convicções, mas as dos assassinos do périphérique e de Rolf van Kaen.

 

 Em Bougival, atingiu as margens do Sena, enxergando ao longe umas compridas ilhas arborizadas que se reflectiam nas águas do rio. Uma ponte de pedra mostrava a inscrição ”eclusas de Bougival”. Diane entreteve-se a observar as barcas, as péniches, as ondulações rasas de quietude. Tudo parecia aqui respirar vilegiatura, almoços sobre a erva, tréguas roubadas ao tumulto parisiense.

 

 Rodou mais vinte minutos e chegou à Grande Place do castelo de Saint-Germain-en-Laye. Soavam dezoito horas e quarenta e cinco no relógio da igreja. Percorreu largas avenidas que pareciam patentear ainda a marca dos coches e dos desfiles régios, depois tomou, conforme Bruner lhe recomendara, a direcção da floresta propriamente dita. Embrenhou-se em estradas estreitas, bordejadas por muros com fulgores de gipso e gretas de hera. O dia declinava acima das sebes, as árvores pareciam agitar-se de impaciência, como que exaltadas pela aproximação das trevas. Diane renunciou a acender os faróis a fim de captar melhor a luz do exterior, a qual dava a impressão de se tornar mais intensa, mais precisa, à medida que a noite descia.

 

 Por fim, parou em frente de um portão de grades altas e negras. Ao sair do carro, admirou-se da frescura do ar: um invólucro invisível que lhe despertava os sentidos e lhes conferia uma nova acuidade. Eram dezanove horas e a escuridão ia chegando em enormes rolos de sombra. Diane pensou uma vez mais no seu rapazinho. De súbito, a sua convicção adquiriu uma ressonância definitiva: dentro de poucas horas, possuiria uma parte do segredo.

 

 Carregou no interfone encimado por uma câmara. Nenhuma resposta. Fez uma nova tentativa. Em vão. Sem reflectir, empurrou o portão de ferro, que girou vagarosamente. Abotoou o seu casaco de camurça, cuja gola formava uma fina escova de lã, e enveredou pela álea de saibro. Caminhou assim durante vários minutos, ladeando vastos relvados. Estava tudo deserto. Não distinguia senão as pequenas casquinadas dos regadores automáticos, invisíveis na escuridão. Finalmente, do outro lado de um cômoro de relva, avistou o bloco sombrio do museu.

 

 O edifício devia datar do início do século. Todo ele em linhas de força e ângulos brutos, e parecia ter sido fundido nos mais pesados materiais. Verdete dos bronzes. Ocre castanho dos cobres. Negro mate do aço. Diane abeirou-se. A dupla porta principal estava fechada. As janelas da fachada, emolduradas por metal, não deixavam transparecer qualquer luz. Recordou-se de que François Bruner a aconselhara a contornar o edifício a fim de alcançar a porta das traseiras, que abria directamente para os seus aposentos privados.

 

 O parque estava cercado por árvores e trevas. As copas, sacudidas pela ventania, produziam uma sinfonia amarfanhada de folhas. Ao chegar à fachada oposta, bateu a uma porta, mas não obteve resposta alguma. O professor tê-la-ia esquecido?

 

Arrepiou caminho, retomou a direcção do portão exterior, mas mudou de ideias. Dirigiu-se de novo para a entrada principal, subiu os poucos degraus da soleira e tentou puxar para si a pesada porta.

 

 Contra todas as expectativas, esta abriu-se.

 

 Diane penetrou num vestíbulo nimbado de sombra, depois descobriu a primeira sala. Jamais imaginaria que um tal compartimento pertencesse ao bunker ameaçador lá de fora. As paredes, o chão e o tecto eram brancos. Refractavam com intensidade a claridade da lua, que se coava pelas janelas. Só por si, estas superfícies nuas constituíam uma carícia para o olhar. Mas, acima de tudo, havia os quadros. Lucarnas de cores variadas, flamejantes, que se assemelhavam a aberturas para um outro mundo. Diane avançou e compreendeu que a fundação consagrava uma exposição à obra de Piet Mondrian.

 

 Não era realmente uma especialista da arte pictórica, mas admirava particularmente este artista neerlandês de quem possuía numerosas reproduções. Ao longo das paredes, identificou logo as obras do primeiro período do pintor: moinhos desgrenhados, de asas fantasmagóricas, que se recortavam nos céus abrasados e pareciam anunciar uma iminente combustão do mundo.

 

 Na segunda sala, Diane encontrou outras telas do mesmo período. Árvores, desta vez árvores de Inverno, lôbregas, hieráticas, polvilhadas de cintilâncias, abrigando nos interstícios da sua casca os mais loucos dos tons. Havia também árvores primaveris pretas e vermelhas, como que injectadas de fogo, parecendo prestes a fundir-se numa explosão pastoril. Diane sempre pensara que esta seiva ardente, estes céus de fornalha traziam dentro de si uma promessa. Que eles já encerravam a profunda mutação da arte de Mondrian.

 

 Sabia que, na terceira sala, se abriria uma tal mutação.

 

 Transpôs o limiar e sorriu ao contemplar as telas da maturidade. A partir dos anos vinte, as árvores de Mondrian haviam-se estirado, alinhado, depurado, os seus céus tinham-se ordenado, alisado, e a verdadeira Primavera do pintor eclodira. Não em flores ou em frutos, mas em quadrados, rectângulos, formas geométricas de uma absoluta pureza. A partir deste momento, Mondrian nunca mais pintara senão composições ascéticas, reunindo figuras estritas e cores monocromas. Costumava-se falar de ruptura na sua obra, mas Diane não concordava. Aos olhos dela, era, pelo contrário, uma alquimia natural. Ao cabo do lirismo incandescente dos primeiros anos, no fundo das suas paisagens de terra e fogo, o artista encontrara a quinta-essência da sua própria pintura. A geometria perfeita dos eixos e das cores.

 

 Deslumbrada, Diane avançava sem medir o absurdo da situação. Estava, sozinha, num museu privado onde devia encontrar-se com o especialista de uma etnia turco-mongol. Deambulava, sem vigilância, sem constrangimento, no meio de telas que valiam certamente várias dezenas de milhões de francos cada uma. Passou a uma nova sala, contando já contemplar os famosos Boogi-Woogie, as derradeiras obras do artista, realizadas em Nova Iorque e...

 

 Um ruído fê-la virar a cabeça.

 

 Duas silhuetas erguiam-se na sala anterior. Ela pensou que fossem guardas, mas reconsiderou logo a seguir. Os dois homens, vestidos de negro, traziam amplificadores de luz e empunhavam cada qual uma espingarda de assalto encimada por uma mira laser. Jorrou uma certeza no seu espírito: os cúmplices do périphérique. Haviam-na seguido até aqui e iam assassiná-la, no interior desta sala de exposição.

 

 Deitou um olhar para trás de si. Nenhuma porta, nenhuma saída. Os homens avançavam com lentidão. Diane recuou. As armas deles desferiam um feixe vermelho. De uma maneira absurda, Diane sentiu-se impressionada pela beleza da cena: as telas que reflectiam a claridade azulada da lua, os dois atacantes de olhar de escaravelho, o ponto rubro das suas espingardas que brilhava naquelas trevas de cré.

 

 Diane não sentia medo nenhum. Já outro pensamento se formava no seu espírito: este confronto, de uma maneira obscura, aguardara-o durante quinze anos. Era a sua hora de verdade. A hora de demonstrar que já não era a rapariga vulnerável de Nogent-sur-Marne. Tornou a ver os salgueiros, as luzes vítreas. Sentiu a terra fria contra as ancas. As duas sombras continuavam a aproximar-se. Já só estavam a poucos metros.

 

 Mais um passo.

 

 Viu uma das mãos enluvadas carregar no gatilho.

 

 Era tarde de mais.

 

 Para eles.

 

 Diane saltou e bateu com a mão de lado são fut shu. O primeiro homem foi atingido em cheio na garganta e baqueou. O segundo apontou a espingarda, mas já ela rodopiava, distendendo a perna num pontapé revirado. O matador foi propulsado para trás. Diane ouviu o ”da arma munida de um silenciador que arrancava a pedra de uma parede. Logo a seguir, sobreveio o silêncio. Mais nada mexia. A tremer dos pés à cabeça, ela acercou-se dos dois corpos inertes.

 

 Um golpe metálico derrubou-a. Uma onda de sofrimento inundou-a. Procurou levantar-se apoiada num joelho, mas um novo choque acertou-lhe no rosto. Os seus óculos voaram. A boca verteu sangue. Ela desmoronou-se, deduzindo com um tempo de atraso que havia um terceiro homem, escondido no ângulo morto da sala. As pancadas começaram a chover. Punhos fechados, martelamentos de botas, esquinas de coronha. Os dois outros homens tinham-se posto de pé e juntado à execução. Com as mãos a proteger a cabeça, Diane só pensava numa coisa: ”A minha argola. Vão arrancar a minha argola.”À laia de resposta, sentiu um fluxo morno a escorrer dos lábios. Encolheu-se e apalpou o nariz, para sentir a pele fendida e o septo nasal em carne viva. Esta simples ideia desbaratou as suas últimas forças: dobrou-se ainda mais, já nem sequer estremecendo sob os golpes que a bombardeavam.

 

 Houve uma breve pausa. Ela rastejou, estendeu a mão para se agarrar à parede. Não pôde concluir o gesto. Um sapato ferrado bateu-lhe em pleno torso, cortando-lhe de chofre a respiração. A asfixia violentou todo o seu ser. Deu-se uma suspensão, um puro nada de tempo e espaço, depois Diane soçobrou, sentindo-se vomitar em espasmos. Um punho enluvado apanhou-a pelos cabelos e virou-a, assentando-lhe os ombros sobre o cimento. O homem desembainhou uma faca de dentro de um estojo atado à perna. A lâmina denteada aproximou-se, reluzindo ao luar. O último pensamento de Diane foi para Lucien. Pediu-lhe perdão. Perdão por não ter sabido defendê-lo. Por não ter compreendido o seu segredo. Por não ter sabido manter-se viva para lhe prodigar todo o amor que...

 

 A detonação ecoou.

 

 Surda, abafada, profunda.

 

 Sob o amplificador de luz, a expressão do algoz mudou.

 

 As suas feições pareceram cair, inteiriçar-se.

 

 De novo, a detonação rasgou o silêncio.

 

 O assassino vergou-se, com os lábios arredondados num esgar de estupor.

 

 Diane levou um segundo a entender que era ela que disparava. Enquanto pronunciava mentalmente a prece, o seu corpo, ainda lutando para viver, procurara uma outra via. As suas mãos haviam tacteado, perseguido, encontrado a automática do matador, deslizado no seu cinto. Com o polegar, levantara o fecho do coldre que retinha a arma. Com os outros dedos, arrancara a pistola, orientara o cano e premira o gatilho.

 

 Disparou outra vez.

 

 O corpo vibrou pesadamente. Desabou sobre Diane quando ela já se posicionava, de braço esticado, para visar os dois outros adversários. Haviam desaparecido. Só teve tempo de enxergar as estrias das miras laser que passavam na sala das Composições. Empurrou o cadáver, apanhou a espingarda de assalto e atravessou o espaço em diagonal. Postou-se num ângulo morto, de espingarda apertada contra o torso. Apesar do estado de choque, apesar do sangue que lhe empapava as roupas, sentiu o seu corpo apontar um único caminho: venderia cara a vida. De qualquer modo, desse lá por onde desse, livrar-se-ia de apuros.

 

 Deitou uma olhadela à entrada e teve então uma ideia.

 

 Os quadros.

 

 Os quadros iam salvar-lhe a vida.

 

Já utilizara amplificadores de luz para observar o comportamento nocturno das feras na selva africana. Sabia que o campo de visão destes aparelhos era banhado por uma luminosidade verde e só oferecia uma débil distinção entre as cores. Lembrou-se das miras laser essas miras vermelhas que os algozes tinham de fixar para disparar e que deviam ser menos precisas no halo esverdeado. Se conseguisse perturbar a nitidez de tais pontos passando exclusivamente diante das telas vermelhas, obteria alguns segundos de folga, os quais talvez lhe bastassem para atravessar a sala.

 

 Lançou-se sem reflectir mais. Viu logo os dois sulcos convergir para ela e ultrapassá-la os dois assaltantes estavam escondidos, conforme previra, de ambos os lados do vão. Apontou sem demora para a Composição número 12, onde se apresentava um quadrado vermelho, depois arremeteu na direcção de uma Composição com Vermelho, Amarelo e Cinzento. Via revolutear os dois pontos escarlates, tal qual umas moscas cruéis. Correu mais. A sua técnica funcionava. Os matadores nada viam. Seguiu ao longo dos carmins do quadro mais próximo e descortinou o limiar da sala seguinte. Ganhara!

 

 Nesse instante, resvalou. A sua cabeça bateu no cimento. Explodiram-lhe estrelas sob o crânio. Uma dor atravessou-lhe o tornozelo. Voltou-se prontamente: os assassinos estavam quase em cima dela. Fincou-se no flanco direito, carregou no gatilho da espingarda de assalto entalada na dobra do seu braço. A potência do recuo projectou-a contra a parede, mas viu, no clarão azulado do silenciador, uma sombra a estremecer em arquejos de morte.

 

 O segundo agressor parou. Ela tornou a disparar. O milagre não se repetiu; a espingarda estava encravada. Largou a arma, desembainhou com a mão direita a automática que enfiara no cinto e apontou ao homem que já só estava a um metro. De novo, um clique atroz substituiu a esperada detonação. Diane ficou estupefacta. Acabara tudo para si. O matador visou-a. Ela entreviu as suas grevas, lembrou-se da lâmina de comando, lançou-se sobre o estojo. Arrancou a faca, arremessou-se de um salto e enterrou-lhe a lâmina na garganta. Urrou para não ouvir o metal a ranger nas carnes abertas.

 

 Afastou-se num só movimento, abandonando a faca na laringe lacerada. Esgazeada, coberta de sangue, recuou, pousando o pé esquerdo no solo e sentindo, acto contínuo, um sofrimento agudo. Saltitou sem sair do mesmo lugar, semelhante a uma grande garça-real a patinhar numa poça pardacenta, em seguida avistou uma porta, à direita, que se materializava como por milagre. Orientou-se nesta direcção, ao pé-coxinho, caiu outra vez, ergueu-se sobre um joelho e empurrou a porta. Compreendeu, num caos de pensamentos convulsivos, que acabava de entrar no apartamento de François Bruner.

 

 Não distinguia o mínimo ruído, o mínimo frémito. Já não se mexia, de espinha contra a madeira, cravada sobre o cóccix. Os homens de olhos de insecto teriam assassinado François Bruner? Ou ele conseguira fugir?

 

 Diane tentou levantar-se. Este movimento simples provocou-lhe horríveis sofrimentos. O seu corpo arrefecia. Daí a poucos minutos, as pancadas que ela apanhara aprofundar-se-iam e formariam coágulos de dor. A partir de então, já não poderia efectuar o mínimo gesto. Devia, pois, actuar depressa, descobrir uma saída para fugir.

 

 A manquejar, embrenhou-se na escuridão, mantendo a mão sobre o nariz que sangrava abundantemente. Sem óculos, evoluía num mundo de formas incertas e blocos indistintos. Só umas ténues lâmpadas, lá no alto, a guiavam nos seus tacteios. Ao fundo do corredor, deparou-se-lhe uma sala rectangular, onde se rasgava um tanque sem profundidade. Para transpor este obstáculo, era necessário seguir por um passadiço de ferro, mesmo por cima das águas, e depois subir alguns degraus até aos compartimentos seguintes. Diane encetou a prova sem se deter na singularidade da arquitectura. Atravessou a ponte de placas de metal, notando que lá em baixo flutuavam copetos de óleo, encimados por um pavio aceso. Autênticos nenúfares de fogo.

 

Atingiu um novo compartimento, um quadrado perfeito. O seguinte era um rectângulo, de paredes brancas e parqué negro. Os raios de luar, infiltrando-se por uma comprida abertura envidraçada, iluminavam esboços alinhados ritos de sacrifício desenhados a tinta-da-china, cujo papel parecia ter sido torturado pela caneta.

 

 Noutras circunstâncias, Diane espantar-se-ia do rigor e da beleza do lugar. Naquele instante, porém, chorava e esforçava-se por não derramar demasiadas gotas vermelhas que se esmagavam no chão tão pesadamente como cera quente. Começava a desesperar de encontrar uma saída qualquer, quando viu, ao fundo de um corredor, uma porta entreaberta para um raio de luz. Reverberações e rumorejo de pingos de água esclareceram-na: uma casa de banho. Era uma solução intermédia: parar a fim de enxaguar o rosto, para partir mais enérgica.

 

 O compartimento estava concebido sob o signo do jade e do bronze. Blocos e placas, talhados nestes materiais, desdobravam-se através do espaço. Pesados vidros coloridos erguiam-se ao longo das paredes, como anteparos de água do mar. Via-se uma banheira escavada numa pedra polida e esverdeada. Sobre barras pretas, umas toalhas emitiam cambiantes de algas escuras. E por toda a parte, ao longo das janelas, ao longo das vidraças, na vertical dos sanitários e das faianças brancas, hastes de bronze, dobradas em paralelas, pululavam até se perderem no jogo infinito dos espelhos.

 

 Diane descobriu o lavatório e abriu a torneira. O jorro de frescura fez-lhe bem. A hemorragia atenuou-se, as dores esbateram-se. Reparou então que a água, no fundo da bacia, continha fibras transparentes membranas minúsculas. Levantou a cabeça e enxergou, à esquerda, na banheira enxuta, estas mesmas películas a enrolar-se, a espiralar-se em fiapos diáfanos. Pensou num filme plástico, mas, ao pegar num dos fragmentos, compreendeu que a textura era orgânica.

 

 Pele.

 

 Pele humana.

 

 Voltou-se e procurou instintivamente a origem desta nova aberração. Aquilo que observou arrancou-lhe um grito. No centro do compartimento, destacava-se uma mesa de massagem de mármore preto. Sobre o tampo, via-se um corpo estendido, recoberto por um cortinado de duche de cor esmeralda. Através das pregas transparentes, podia discernir a forma de um homem muito magro. François Bruner? Com uma mão trémula, puxou o cortinado que caiu no chão. O corpo surgiu de repente, em toda a sua nudez.

 

 O homem estava deitado, de braços cruzados sobre o torso. Tinha a posição das estátuas de cavaleiros que jazem nas capelas edificadas durante a Idade Média. A comparação ia mais longe: este corpo envelhecido, descarnado, cujos ossos ressaltavam sob a pele, parecia manter um laço, uma conivência estética com a decoração simétrica da casa de banho, tal como os cavaleiros esculpidos partilham com a arquitectura gótica um ar de inalterável solenidade.

 

 O cadáver aparentava pelar-se, literalmente. Peles muito finas pendiam de ambos os lados dos seus membros, ou amarfanhavam-se sobre o torso, revelando por baixo uma pele absolutamente nova rosada. Diane esforçou-se por não perder os poucos resquícios de sangue-frio que ainda possuía e avançou. Sofreu um novo abalo. Agora que já só estava a um metro do corpo, podia distinguir muito nitidamente o seu abdómen e a fina incisão que lhe traçava a carne, mesmo por baixo do esterno.

 

 François Bruner fora morto do mesmo modo que Rolf van Kaen.

 

 O que significava isto? Quem se encarregara de tal execução? Os três pulhas das espingardas de assalto? Diane não o julgava: não era o estilo deles. E porque teriam colocado em seguida a vítima sobre o bloco de mármore?

 

 Ia a recuar quando notou o que devia ter notado desde o início e que redistribuía todos os elementos: o rosto do velho. A testa desguarnecida de cabelo. As maçãs do rosto em sílex. As pálpebras pesadas.

 

 Era o homem da parca anti-radioactiva.

 

 O homem que tentara matá-los, ela e o filho, três semanas antes.

 

 Exceptuando a cama, o seu quarto de hospital não continha qualquer mobiliário. O compartimento estava mergulhado na obscuridade. Deitada com um braço dobrado sobre o rosto, Diane Thiberge só podia vislumbrar, sob o recorte iluminado da porta, os pés do chui que montava guarda. Viu as horas. Seis da manhã. Dormira então toda a noite. Fechou novamente as pálpebras e pôs as ideias em ordem. Na sala de jade e bronze, no preciso momento em que reconhecera o homem com pele de serpente, luzes giratórias tinham brotado ao fundo do parque. A polícia. Nesse instante, Diane sentira um estranho alívio: era o primeiro elemento racional de toda a aventura. Queria dizer que havia um sistema de alarme no museu. Os quadros estavam protegidos era bom que estivessem. O confronto provocara um alerta, uma chamada para a esquadra de Saint-Germain-en-Laye. Ela lembrara-se então dos corpos, das suas próprias impressões digitais nas armas abandonadas. Quem acreditaria que uma jovem conseguira eliminar três matadores equipados de espingardas de assalto? Podia evitar confessar os seus crimes. Afinal de contas, só utilizara as automáticas deles...

 

 Muito a custo, regressara à sala das Composições e dispusera as armas e os corpos respeitando a trajectória das balas que disparara. Também encontrara os óculos. Intactos. Esta descoberta contribuíra para lhe aclarar as ideias. Descalçara as luvas aos homens e colocara as suas respectivas impressões digitais sobre cada uma das coronhas. Quando os chuis entraram no museu, só viram uma mulher prostrada, rodeada de cadáveres e de quadros de Mondrian.

 

 O seguimento fora ainda mais fácil de representar. Dentro do carro, bastara-lhe entregar-se ao seu efectivo abatimento. Os investigadores tinham formulado tantas respostas quantas as perguntas, deduzindo eles próprios que os três homens se tinham morto uns aos outros depois de a terem agredido. Curiosamente, pareciam persuadidos de que ela não fora o motivo do confronto. Diane não insistira, mas pressentia que os chuis já tinham identificado os algozes.

 

 Na clínica do Vésinet-Le Pecq, o médico de serviço mostrara-se tranquilizador. Ela só padecia de hematomas. Quanto às dores no tornozelo esquerdo, tratava-se apenas de uma ligeira entorse. Os seus únicos verdadeiros ferimentos estavam ligados aos adornos: a argola de ouro rasgara a asa direita do nariz até às cartilagens. Quanto ao rebite incrustado no umbigo, fora necessário uma meia hora de cirurgia sob anestesia local para o recuperar.

 

 Depois de lhe administrarem sedativos, haviam-na instalado naquele quarto fechado. Adormecera imediatamente, mas agora, entorpecida pelos analgésicos, sentia-se pairar no espaço sem sentir a mais pequena dor. Só uma lucidez intensa, quase irreal de tanta clareza, passara a habitá-la. Podia, assim, estabelecer uma lista das suas convicções.

 

 No dia 22 de Setembro de 1999, François Bruner, conservador da Fundação Bruner, grande viajante, especialista dos Tsevens e da parapsicologia, tentara assassinar Lucien, organizando, com os seus cúmplices, um acidente no boulevarpériphérique parisiense.

 

 No dia 5 de Outubro de 1999, Rolf van Kaen, anestesistachefe do serviço de cirurgia pediátrica do hospital Die Charité, praticara uma intervenção clandestina na criança, esperando salvá-la graças à técnica da acupunctura.

 

Estes dois homens conheciam uma verdade em torno de Lucien que Diane ignorava - talvez a verdadeira natureza do seu poder, a qual exigia de um que o destruísse e intimava o outro, pelo contrário, a salvá-lo.

 

Que poder seria este? Diane deixou a pergunta sem resposta a fim de se concentrar na sua última convicção. Talvez a mais terrível.

 

Existia outro assassino em acção.

 

o homem que triturara o coração de Rolf van Kaen nas cozinhas do hospital Necker, durante a noite de 5 de Outubro de 1999. o homem que efectuara a mesma operação, no dia 12 de Outubro de 1999, no interior do corpo de François Bruner, sem dúvida poucas horas antes da chegada de Diane ao museu.

 

o tinido da fechadura ressoou. Dois polícias fardados entraram no quarto, aureolados pela luz do dia. Atrás deles surgiu uma silhueta alta. Diane pôs os óculos. Reconheceu a camisola preta, o cabelo de palha-d’aço. Patrick Langlois parecia ainda mais agreste do que habitualmente.

 

Ao ver o rosto tumefacto de Diane, soltou um assobio de admiração e depois ameaçou:

 

- Talvez seja tempo de pôr cobro aos disparates, não acha?

 

 Dentro do carro, o primeiro reflexo de Diane foi o de baixar a pala para se proteger do sol e contemplar o seu rosto no espelho. Um hematoma azulado partia da têmpora esquerda e descia até ao queixo. Do mesmo lado, a face já inchava, sem no entanto chegar a deformar as suas feições angulosas. O branco do olho esquerdo, velado de sangue, dava-lhe um curioso olhar bicolor. Quanto ao ferimento do nariz, os fios e as crostas castanhas eram camuflados por um penso hemostático. Esperara pior.

 

 Sem uma palavra, Langlois arrancou e meteu-se no fluxo do trânsito matinal. Não se esquecera, no átrio da clínica, de lhe dar uma ensaboadela a propósito da sua imprudência e da sua atitude solitária. Diane confiava que ele não repetisse a dose a sua enxaqueca não o toleraria. Ao primeiro sinal vermelho, no entanto, Langlois sacou da pasta de kraft um maço de folhas e depô-lo nos seus joelhos.

 

 Leia isto.

 

 Diane nem sequer baixou o olhar. Ao cabo de uns minutos, sem deixar de se conservar atento ao tráfego, o tenente indagou:

 

 Que mais temos agora?

 

 Ela continuava a fixar a estrada.

 

 Não posso ler em andamento. Fico agoniada.

 

Langlois resmungou. Parecia farto dos caprichos de Diane.

 

 OK, suspirou, vou explicar-lhe. Essa documentação é a do seu retrato-robô.

 

 François Bruner?

 

 Chamava-se, na realidade, Philippe Thomas. Bruner era um nome falso. É uma coisa bastante corrente entre os espiões.

 

 Espiões?

 

 Ele pigarreou, de olhar posto na estrada.

 

 Quando submetemos este rosto ao nosso trombinoscópio, obtivemos imediatamente algo, no sector da DST, a Direcção de Vigilância do Território. François Bruner/Philippe Thomas estava fichado desde 1968. Nessa época, o homem era professor de Psicologia na Faculdade de Nanterre. Um prodígio, com escassos trinta anos de idade. Um especialista em Cari Gustavjung. Devia ter-me lembrado do seu nome. (Esboçou um sorriso de desculpa.) Eu próprio tive o meu período Jung. Em suma, em 1968, Thomas, que é inicialmente filho de boas famílias, torna-se um dos principais agitadores comunistas das barricadas.

 

 Diane revia o homem do capote verde a espetar o indicador. O seu rosto açoitado pela chuva no meio dos arbustos do périphérique. Langlois prosseguia:

 

 Em 1969, o cavalheiro desaparece. De facto, desiludido pelo fracasso da revolução, Thomas decidira passar-se para o Leste.

 

 O quê?

 

 O intelectual transpôs a Cortina de Ferro. Instalou-se no sítio onde a causa do povo triunfava: a URSS. Imagino muito bem a cara do pai, um dos maiores advogados de negócios da França gaulista, ao ser informado da notícia.

 

 E depois?

 

 Sabe-se pouco do que ele fez por lá. Mas é seguro que viaja pelas regiões que nos interessam, em especial a República Popular da Mongólia.

 

 O carro percorria a Nacional 13 na faixa da esquerda. O sol banhava os cimos das árvores avermelhados, que pareciam destilar no ar uma névoa purpurina. Diane olhava distraidamente os gradeamentos dos parques, os vastos solares, os prédios claros, submersos sob as folhagens. Já não encontrava a realidade e a precisão do seu périplo da véspera. O tenente da polícia continuava:

 

 Em 1974, é o grande regresso. Thomas bate à porta da Embaixada de França, em Moscovo. O sistema soviético aniquilou-o. Implora ao governo francês que o acolha de novo. Nessa época, tudo é possível. Assim, o trânsfuga que passara para o Leste cinco anos antes pede agora asilo político... ao seu próprio país!

 

 Langlois brandiu os documentos em jeito de elemento de prova, ao mesmo tempo que segurava o volante com a outra mão.

 

 Juro-lhe que tudo isto é verídico.

 

 E... depois?

 

 Tudo se torna ainda mais dúbio. Reencontramos Thomas em 1977, é capaz de adivinhar onde? no seio do exército francês, na qualidade de conselheiro civil.

 

 Em que domínio? Langlois sorriu.

 

 Trabalha, como psicólogo, num instituto de saúde do exército, especializado em medicina aeronáutica. Em boa verdade, este instituto é uma fachada que encobre o acolhimento e o interrogatório dos dissidentes comunistas que pediram asilo político à França.

 

 Diane começava a entender a reviravolta da situação.

 

 Quer dizer que é ele que interroga então os trânsfugas soviéticos?

 

 Exactamente. Fala russo. Conhece a URSS. É psicólogo. Quem, melhor do que ele, poderia avaliar o grau de franqueza e de credibilidade dos refugiados? De resto, julgo que não tem outra escolha. Paga, assim, a sua dívida ao governo francês.

 

 Langlois calou-se durante uns segundos, retomando o fôlego, e depois concluiu a narrativa:

 

 Nos anos oitenta, a atmosfera começa a desanuviar-se entre o Leste e o Oeste. É o tempo da glasnost, da perestroika. As autoridades militares dão rédea larga a Thomas, que recupera a sua liberdade. Ainda não tem sequer cinquenta anos. Acaba de herdar uma colossal fortuna familiar. Não volta ao ensino. Prefere investir em quadros de mestres e criar a sua própria fundação, que também acolhe exposições temporárias, como a de Mondrian nesta altura. Thomas já não esconde o seu passado de trânsfuga. Pelo contrário, faz conferências sobre as regiões da Sibéria que visitou e sobre os seus povos, pois é um dos raros europeus que os conhece, em especial os tsevens, a etnia do seu filho.

 

 Diane reflectiu. Estas informações volteavam-lhe na cabeça. Os nomes. Os factos. Os papéis. Cada elemento se integrava e dava consistência a uma verdadeira lógica. Ela acabou por perguntar:

 

 O que pensa de tudo isto? Langlois encolheu os ombros.

 

 Volto à minha primeira teoria. Uma história que data da guerra fria. Um ajuste de contas. Ou um caso de espionagem científica. Acredito cada vez mais nisso à medida que estudava o laboratório nuclear, onde...

 

 O Tokamak?

 

 Sim. Segundo compreendi, a fusão nuclear ainda não é uma tecnologia afinada, mas já promete muito. É uma técnica que representa, inclusivamente, o futuro da energia nuclear.

 

 Porquê?

 

 Porque as centrais actuais consomem urânio e porque se trata de um material limitado no nosso planeta. Em contrapartida, a fusão controlada consome produtos vindos da... água do mar. Por outras palavras, dispõe-se de um combustível ilimitado.

 

 E então?

 

 Então, estamos a falar de apostas enormes, de interesses mundiais. Em meu entender, neste caso, tudo gira em torno dos segredos do Tokamak. Van Kaen trabalhou lá. Thomas deve ter passado por lá, é quase certo, quando viajava pela Mongólia. E acabo de saber que o chefe do TK 17, Eugen Talikh, também se asilou no Ocidente, em 1978. Instalou-se em França, com a bênção de Thomas!

 

 Isso está a tornar-se um bocado complicado para mim.

 

 É complicado para toda a gente. Mas de uma coisa tenho a certeza: eles andam todos por aqui.

 

 Eles, quem?

 

 Os antigos membros da unidade nuclear. Em França ou na Europa. Lancei uma investigação sobre Eugen Talikh. Trabalhou nos primeiros centros de fusão controlada que se construíram em França, nos anos oitenta. Está hoje aposentado. Convém desencantá-lo o mais depressa possível. Caso contrário, não ficarei admirado se descobrirem o seu cadáver algures, com o coração em fanicos.

 

 Mas... porque assassinam estes homens? E da maneira que o fazem?

 

 Ignoro completamente. Só uma coisa é segura: o passado está a vir à tona. Um passado que provoca não só homicídios, mas obriga os antigos cientistas a regressar.

 

 Diane manifestou surpresa. Langlois agitou uma nova folha fotocopiada.

 

 Encontrámos estas notas em casa de Thomas: horários de voos com destino a Moscovo e à República Popular da Mongólia. Ele também se aprestava a partir para a RPM. Como van Kaen.

 

 Diane sentia redobrar os efeitos dos analgésicos. Voltando às suas inquietudes, interrogou:

 

 E o meu filho adoptivo? O que tem ele a ver com tudo isto?

 

 Mais uma vez, não faço a mínima ideia. Averiguei, um pouco ao acaso, as actividades da fundação graças à qual adoptou Lucien...

 

 Diane sobressaltou-se:

 

 O que concluiu?

 

Nada. Têm a transparência dos cristais. Na minha opinião, foi tudo organizado sem eles saberem. Julgo que se deixou simplesmente a criança nas proximidades do estabelecimento a fim de ser recolhida ali.

 

Langlois virou de repente à esquerda e enveredou por uma via rápida. Meteu outra velocidade e entrou, a fundo, num largo túnel apetrechado de fileiras suspensas de hélices. Diane já não tinha a certeza das suas hipóteses. Talvez estivessem todas erradas. Talvez este caso não se relacionasse em nada com os pretensos poderes de Lucien, mas convergisse antes para as pesquisas nucleares. No entanto, Langlois acrescentou, como se quisesse reatar com a pista da parapsicologia:

 

 Há um último facto, acerca de Philippe Thomas, que me preocupa... Parece que o intelectual era dotado de poderes psíquicos.

 

 Diane susteve a respiração.

 

 Em que sentido?

 

 Segundo vários testemunhos, ele era capaz de deslocar objectos à distância, de torcer o metal. Coisas à maneira de Uri Geller. Os especialistas chamam a isto a psicocinese. Estou em crer que Thomas era sobretudo um gajo hábil, uma espécie de manipulador, e...

 

 Espere. Quer dizer que ele podia influenciar a matéria pelo pensamento?

 

 O chui deitou uma mirada divertida a Diane.

 

 Pensava que esta ideia a faria rir. Na qualidade de cientista, você...

 

 Responda à minha pergunta: ele podia influenciar a matéria?

 

 É o que diz aqui na papelada, sim. Teriam sido ensaiadas várias experiências segundo um protocolo muito rigoroso com objectos sob pírex selado, por exemplo, e...

 

 Diane disfarçou o alvoroço. Este momento marcava uma viragem decisiva nas suas próprias investigações: ou recusava a vertente paranormal do caso e abandonava a investigação, ou então mergulhava naquela realidade obscura e dava um passo de gigante.

 

 Com efeito, se admitisse o poder de Philippe Thomas, o último mistério do acidente tinha finalmente explicação. Graças ao poder do seu espírito, o homem do capote pudera abrir, à distância, o fecho do cinto de segurança de Lucien.

 

Um fecho de metal.

 

 Diane sentia-se aterrada. Não podia acreditar em tal prodígio, e, ao mesmo tempo, admitir que esta realidade conferia uma nova coerência aos acontecimentos. Assim, como não supor que um homem capaz de semelhante milagre estava, em compensação, convicto dos poderes da criança Vigia? Como não supor, de novo, que o móbil da tentativa de assassinato se achava ligado a uma eventual faculdade psíquica de Lucien?

 

 Diane, não me ouve?

 

 Ela emergiu das suas reflexões:

 

 Ouço, sim.

 

 Os chuis de Saint-Germain identificaram os três homens que se mataram uns aos outros no museu.

 

 -Já?

 

 Conheciam-nos. No final do mês de Agosto, Thomas mandou vir da Federação Russa três antigos militares de elite spetsnaz reconvertidos para tarefas de vigilância. Oficialmente, contratou-os para reforçar a segurança da sua fundação durante a exposição de Mondrian. Todavia, de acordo com averiguações efectuadas, estes tipos já trabalharam para diferentes mafias russas. A história não diz como Thomas os arranjou, mas, em meu entender, ele mantivera ligações a Moscovo.

 

 Diane tornou a ver a violência da última noite: as botas ferradas a encarniçar-se contra o seu rosto, as silhuetas a estertorar sob as suas balas. Como pudera ela sobreviver a tudo isto? Langlois prosseguia:

 

 É evidente que Thomas os escolheu, antes de mais, para organizar o ”do périphérique. Mas também julgo que ele temia algo. Ou alguém. Como o assassino que conseguiu infiltrar-se no museu ontem à tarde...

 

 Voltou-se para ela e frisou bem a continuação da frase:

 

 O ”assassino, Diane. O que eliminou Rolf van kaen. A partir daqui, os acontecimentos da noite passada são fáceis de reconstituir: ao entardecer, os três russos descobriram o corpo e colocaram-no na casa de banho. Em seguida discutiram, decerto por questões de dinheiro: deviam sentir-se tentados a levar um ou dois quadros com eles. Nisto, você chega e ainda deita mais lenha na fogueira. Eles matam-se então com as suas próprias armas. Foi isto que contou aos chuis, não foi?

 

 Sem tirar nem pôr.

 

 Acho que bate mais ou menos certo.

 

 Porque diz ”mais ou menos”?

 

 Falta reconstituir a cena, verificar as posições dos corpos, a trajectória das balas. Desejo-lhe que tudo coincida.

 

 A voz de Langlois estava carregada de incredulidade, mas Diane fingiu não se aperceber. Os seus pensamentos iam-se tornando cada vez mais confusos. Nestas águas turvas sobrenadava uma nova recordação: o cadáver de Philippe Thomas, róseo e abjecto, amarfanhado de finas peles mortas. Ela perguntou:

 

 O que sabe da doença de Thomas? Langlois espantou-se:

 

 Viu o corpo?

 

 Diane metera o pé na argola. Era demasiado tarde para recuar.

 

 Depois da carnificina, sim, disse ela. Entrei no apartamento e...

 

 E regressou em seguida ao museu?

 

 Sim.

 

 Declarou isso aos chuis de Saint-Germain?

 

 Não.

 

 Anda a brincar com o fogo, Diane. É absurdo.

 

 Thomas tinha uma doença, não é verdade? O tenente suspirou:

 

 Chama-se uma eritrodermia descamativa. Um género de eczema muito intenso, que provoca autênticas peladas. Se bem entendi, Thomas mudava regularmente de pele.

 

 Diane cogitou de repente que talvez o homem vestisse o capote a fim de proteger o corpo em plena muda. Mas os seus pensamentos desvaneciam-se. Sentia-se vencida pelo sono. Percebeu que estavam a chegar à Porte Maillot. A circulação ia-se tornando muito mais densa e Langlois, sem hesitar, aplicou um farol giratório magnético no tejadilho do carro. Subiu assim a avenue de la Grande-Armée, com as sirenes a uivar. Ela aninhou-se no fundo do assento e abandonou-se ao seu próprio torpor.

 

 Quando acordou, o carro atravessava a place du Panthéon. Sem saber porquê, agradava-lhe a ideia de ter dormido enquanto o polícia sulcava a capital a toda a velocidade. Patrick Langlois parou à entrada da rue Valette e tirou um jornal dobrado da algibeira do seu casaco.

 

 O mais bonito ficou para o fim, Diane: o Le Monde de ontem à tarde.

 

 Ela viu logo o artigo que ele lhe mostrava, na página da direita. O vespertino relatava em pormenor o homicídio de Rolf van Kaen, na noite de terça-feira, 5 de Outubro. O jornalista evocava igualmente a cura milagrosa de Lucien e o acidente de Diane Thiberge, enteada de Charles Helikian, ”importante personalidade do mundo dos negócios e da política. Langlois comentou:

 

 O seu padrasto está furioso. Até telefonou ao Prefeito. Diane ergueu o olhar.

 

 Donde provém a fuga?

 

 Não faço ideia. Talvez do hospital. Ou então dos nossos serviços. Francamente: estou-me nas tintas. Nem sei mesmo se isto não irá ajudar-nos. Pelo menos, há-de suscitar reacções.

 

 Langlois arrumou a documentação. Diane reparou que ele também possuía um estojo de cabedal, contendo uns Stabilo e lápis de cor. Numa voz sumida, perguntou:

 

 Não é lá muito dado à tecnologia, pois não? O polícia levantou uma sobrancelha.

 

 Está enganada. Simplesmente, para cada técnica, o seu domínio. Nos meus inquéritos, prefiro os antigos métodos. Papel, caneta, Stabilo. Guardo o computador para o resto.

 

 O resto?

 

 A vida quotidiana, os lazeres, os sentimentos.

 

 Os sentimentos?

 

No dia em que tiver alguma confidência para lhe fazer, Diane, enviá-la-ei por e-mail.

 

Ela saiu do carro. Patrick Langlois imitou-a. Lá no alto, a imensa cúpula do Panteão assemelhava-se a uma concha monstruosa. O polícia abeirou-se.

 

 Diane, se eu lhe disser: Heckler & Koch, MP 5, isto lembra-lhe alguma coisa?

 

 Não.

 

 E Clock 17, calibre 45?

 

 São armas, não são?

 

 Aquelas com que os russos se mataram uns aos outros, sim. Lá na selva, durante as suas viagens de estudo, nunca utilizou armas automáticas?

 

 Estudo as feras. Não faço tiro ao alvo.

 

 Sob a franja argêntea, o rosto iluminou-se num sorriso.

 

  1. Perfeito. Queria ter a certeza.

 

 Certeza de quê?

 

 De que nada tem a ver com aquele massacre. Vá dormir. Telefono-lhe logo à noite.

 

 O primeiro pormenor em que ela reparou ao entrar no seu apartamento, foi a luz vermelha do atendedor que ainda piscava no quarto. Não sabia bem se queria escutá-lo. Da última vez que tomara conhecimento das mensagens, desencadeara-se uma reacção em cadeia que a propulsara até à fundação Bruner e à violência subsequente. Atravessou a sala, chegou ao quarto, depois sentou-se na cama, exactamente como na véspera, observando o sinal luminoso que pulsava como um coração. Já ouvia, mentalmente, as mensagens da mãe, tão breves como disparos. Ou as chamadas dos seus confrades cientistas, alertados casualmente pelo artigo do Le Monde. Esta última ideia veio recordar-lhe que não punha os pés no serviço desde... é verdade, desde há quanto tempo?

 

 O telefone tocou. Diane deu um salto sobre a colcha. Sem reflectir, levantou o auscultador.

 

Miss. Thiberge? ouviu do outro lado do fio. Era uma voz desconhecida.

 

 Quem fala?

 

Chamo-me Irene Pandove. Telefono-lhe a propósito do artigo publicado ontem à tarde no Le Monde, sobre a morte de M. Rolf van Kaen.

 

 Co... como obteve o meu número?

 

Vem na lista.

 

 Diane pensou, bastante nesciamente: ”Está bem, venho na lista.”A mulher acrescentou, num tom grave e calmo:

 

 Não se acautela o suficiente, e faz muito mal. Um formigueiro arrepiou-lhe a nuca.

 

 O que deseja? perguntou cheia de hostilidade.

 

 Gostava de a ver. Possuo informações que podem interessar-lhe.

 

 Conhecia Rolf van Kaen?

 

 Só indirectamente. Mas não é dele que pretendo falar-lhe.

 

 Diane manteve o silêncio. Pensou: ”Talvez seja uma tarada, que quer dar-me cabo dos nervos. Ou apenas extorquir-me dinheiro”. Interrogou:

 

 Então de quem é?

 

 Quero falar-lhe do rapazinho que adoptei, há cinco semanas.

 

 O frio entranhou-se-lhe na pele. Sentiu que as suas veias eram nervuras atulhadas de seiva gelada.

 

 Onde... onde o adoptou?

 

 No Vietname. No orfanato Huai.

 

 Através da Associação Boria-Mundi?

 

 Não. Pupilos do Mundo. Mas isto não é o mais importante.

 

 O que é então?

 

 Irene Pandove ignorou a pergunta e continuou no mesmo tom plácido:

 

 É melhor vir cá. Não posso deslocar-me. O meu filho não tem passado bem nos últimos dias.

 

 Nas artérias de Diane, a seiva desceu ao zero absoluto.

 

 Que tem ele? Sofreu um acidente? inquiriu.

 

 É febre. Torrentes de febre.

 

 Lembrou-se de Lucien. Dos picos de temperatura que tinham sobrevindo, de Daguerre que lhe garantia que o fenómeno não apresentava qualquer gravidade. Acudiu-lhe de súbito o pressentimento que a acometera duas noites antes, quando adormecia: alguém, algures, devia partilhar do seu pesadelo... Irene Pandove prosseguiu:

 

 Venha visitar-me. O mais cedo possível.

 

 Onde está? Qual é a morada?

 

 A mulher habitava a uns mil quilómetros de Paris, na região de Nice, em Daluis. Diane tomou nota da morada e das indicações dela. Já começava a reflectir. Primeiro voo da manhã. Carro de aluguer. Nenhum problema. Assegurou:

 

 Estarei aí amanhã, a meio do dia.

 

 Espero por si.

 

 A voz transbordava de uma doçura inquietante. De repente, Diane teve uma iluminação e perguntou:

 

 Que nome deu ao seu menino?

 

 A doçura, o sorriso, mais do que nunca presentes:

 

 Se me faz essa pergunta, é porque não compreendeu o que está a acontecer.

 

 Diane murmurou por entre os lábios, como quem sopra uma vela, renunciando a toda a esperança:

 

 Lucien...

 

 Diane aterrou em Nice às oito horas e trinta. Meia hora mais tarde, rodava em direcção ao interior sem sequer ter avistado o Mediterrâneo. Ao longo da Nacional 202, fileiras de casas, de centros comerciais, de sítios industriais sucediam-se ao sabor dos valezinhos e dos outeiros. Nas cercanias de Saint-Martin-du-Var, a paisagem modificou-se, as construções espaçaram-se, o verde-escuro e a penedia ganharam terreno, até que por fim irromperam as montanhas.

 

 Navegou então numa pura paisagem de altitude: pinheiros cerrados contra vertentes abruptas, cúpulas negras unidas ao céu, trilhos sombrios e profundos dos rios escorridos... O firmamento estava coberto. Já não reinavam a amenidade, o ar marinho, nem sequer a vegetação provençal. Eram a pedra e o frio que dominavam agora os lugares. Diane continuava a rodar pela nacional, acima do leito enxuto do Var.

 

 Ao cabo de uma hora de caminho, depois de ter andado por intermináveis estradas em ziguezague, descobriu finalmente a paisagem que aguardava: um lago no sopé de um vale, que se assemelhava a um espelho reflectindo a luz da trovoada. A superfície oscilava entre o cinzento e o azul. Eriçavam-se aí pequenas ondas parecidas com lâminas de aço. Ao redor espraiava-se um rendilhado de esmeralda. As coníferas, ergui”das como facas, davam a impressão de ferir as nuvens. Diane estremeceu. Podia sentir a crueldade de cada cume, de cada reflexo, de cada pormenor, aguçado pelo sol febril que rasgava o negrume do céu.

 

 Depois de uma curva, avistou uma clareira. Casas em toros de madeira formavam uma aldeola a poucos metros da margem. Irene Pandove dissera: ”Um rancho em forma de U, à beira do lago.”Diane meteu pela estrada que serpeava até ao vale.

 

 Apareceu uma tabuleta com o nome de ”Centro de Arejamento do Ceklo”, a assinalar uma vereda de saibro mais abaixo. A cada curva, Diane via precisarem-se as casas de madeira. Era um vasto conjunto de construções de cor acastanhada, rodeadas por uma cerca. À esquerda, estendiam-se pastagens que acolhiam certamente cavalos durante o Verão. À direita, pórticos coloridos marcavam as áreas de jogos.

 

 Estacionou o carro sob os abetos. Inalou a frescura do ar a plenos pulmões, os perfumes de resina, os eflúvios de erva cortada. O silêncio imperava como senhor absoluto. Nem o mais leve pio de ave, nem um zumbido de insecto. Seria a trovoada? Diane avançou para o edifício principal, esforçando-se por esconjurar as suas apreensões.

 

 Transpôs a porta de toros e atravessou um alpendre revestido de madeira, munido à direita de uma fiada de pequenos cabides. Através dos vãos envidraçados, à esquerda, ela enxergava um pátio grande, enquadrado pelas duas áleas do rancho, que se prolongava até a um morro fechado por um troço de floresta. Mais além, adivinhavam-se as águas lisas do lago. O silêncio e o vazio pareciam aqui mais graves, mais pesados, nestes espaços concebidos para a barafunda infantil.

 

 Diane descobriu um corredor que abria para vários compartimentos. Introduziu-se por aí em passos prudentes. Nas Paredes de madeira estavam penduradas, em jeito de quadros, umas mantas tecidas com desenhos ingénuos. Ela também entrevia, pelas portas abertas, uns tamboretes redondos, papéis pintados todos cor-de-rosa ou violeta, lustres em papel de arroz. O conjunto lembrava os ambientes dos anos setenta. O local agradaria à sua mãe.

 

Avançou mais. Surgiram-lhe salas de jogos, ocupadas pOr mesas de pingue-pongue, matraquilhos. Uma outra divisão onde pontificava uma televisão, com o chão coberto de coxins. Ao fundo do corredor, tropeçou numa pequena gaiola, cujos grãos e serradura se espalhavam pelo solo. Diane parou uns instantes junto ao objecto; o seu ocupante porquinho-da-índia ou hamster também já desandara dali.

 

 Chegou finalmente a um gabinete amplo; o coração administrativo do rancho. O seu receio transmudou-se então em certeza. Uma vez mais, vinha demasiado tarde. O compartimento fora revolvido de alto a baixo. Uma mesa de carvalho havia sido derrubada, as cadeiras estavam espalhadas, os armários esventrados, os arquivos arrancados, os ficheiros caídos por terra.

 

 Diane pensou em Irene Pandove e não ousou ir mais longe nos seus pensamentos. Nesse momento, reparou numas molduras fixadas na parede que tinham escapado à tormenta. Os retratos representavam sempre as duas mesmas personagens: uma mulher loura, com uns cinquenta anos, e um homem de tipo asiático, muito pequeno, de cara enrugada e sorriso malicioso. Nalgumas fotografias, o homem e a mulher estavam abraçados. Noutras, davam as mãos. Estas imagens irradiavam uma estranha alegria de viver. E uma ligeira impressão cómica a mulher excedia em quinze centímetros o homem que vestia, em todas as imagens, uma parca de astracã com as duas abas erguidas. Sem poder explicar o seu gesto, Diane apoderou-se de uma moldura, quebrou o vidro num canto da mesa e meteu uma das fotografias no bolso.

 

 Ao levantar os olhos, atentou num artigo encaixilhado sob vidro. O texto, publicado na revista Science, grande referência em matéria de publicações científicas, era assinado pelo Dr. Eugen Talikh. Diane arrepiou-se: era o nome pronunciado por Langlois. O nome do chefe do TK 17 que se passara para o Ocidente em 1978. Desprendeu o caixilho e percorreu em diagonal os parágrafos redigidos em inglês. Não percebia nada falava-se de física nuclear e de isótopos de hidrogénio, mas não ficou surpreendida quando olhou para o retrato do autor: era o baixote de olhos em bico das fotografias. Encontrava-se em casa do físico trânsfuga.

 

Esta descoberta abriu outras pistas no seu espírito. Primeiro, compreendeu que Eugen Talikh não era um russo caucasiano, como se poderia supor, mas um asiático, por certo de origem siberiana. Também depreendeu, sem deduzir todas as implicações, que este homem acabava de adoptar, juntamente com a mulher, um rapazínho vindo das terras do Tokamak. Porquê? o que esperava da criança? Diane voltou a partir o caixilho de vidro e guardou o artigo no bolso.

 

Continuando a vasculhar, achou fotocópias de horários de voos para Ulan Bator, com escala em Moscovo, mas nenhum vestígio de reserva de lugares bem definida. Tal como Rolf van Kaen ou Philippe Thomas, Eugen Talikh aprestava-se a regressar à República Popular da Mongólia, mas parecia indeciso sobre a data de partida.

 

Nesse instante, ouviu um gemido.

 

Diane rodopiou. Alguém se mexia atrás da secretária derrubada. Aproximou-se do tampo de madeira, depois, devagarinho, arriscou um olhar. Uma mulher, estendida no chão, repousava numa imensa poça negra, sob um dilúvio de papelada. Diane não se recordava de alguma vez ter visto tanto sangue

- mesmo na Fundação Bruner. o corpo estava perfeitamente imóvel, voltado para o tabique. Diane lembrou-se de um antigo costume judaico, que consistia em orientar o rosto do moribundo para a parede, a fim de não poder ver os traços da Morte.

 

Contornou a mesa e amparou suavemente o ombro da vítima a fim de a virar para si. Reconheceu-a acto contínuo: era a mulher dos retratos. o seu abdómen abria-se em dois beiços de carne. A ferida começava no umbigo e subia até aos seios. As roupas e as carnes amalgamavam-se numa salgalhada imunda. Diane chamou a compaixão com todas as forças, mas nenhum sentimento conseguia superar o seu próprio medo. Pensou no assassino de van Kaen e de Thomas. Aquela ferida não correspondia ao estilo dele. Teria falhado o golpe? Ou fora Irène que se debatera?

 

Aquilo que se lhe deparou fê-la submergir-se num terror ainda mais profundo.

 

 Irene Pandove empunhava uma faca com lâmina dentada enegrecida de sangue, na sua mão direita.

 

 De repente, soergueu-se sobre um cotovelo e sussurrou:

 

 Ele veio... Eu não podia... Não podia contar-lhe. Completamente aturdida, Diane compreendeu que Irene

 

 golpeara o seu ventre sob o olhar do agressor. Matara-se para não falar, para não revelar as informações que o intruso lhe arrancaria sem sombra de dúvida. Apesar da desordem dos seus pensamentos, Diane reparou na beleza do rosto, sob o carrapito em desalinho e as madeixas ensopadas em sangue. Irene repetiu:

 

 Não podia falar-lhe.

 

 A quem? Quem é que veio aqui?

 

 Os olhos... Eu não conseguiria resistir-lhes... Não podia dizer-lhe... onde está Eugen...

 

 ”Os olhos”: quem seria assim designado? O violador de entranhas? Outros homens de mão, enviados por Thomas? Ou ainda mais alguém? Havia, porém, outra urgência. Diane debruçou-se e perguntou a Irene:

 

 Lucien... Onde está Lucien?

 

 A moribunda fez um sorriso que mais parecia uma careta. Apesar de tudo, dir-se-ia feliz por ver Diane, por ouvi-la pronunciar este nome inocente. Moveu os lábios. A boca encheu-se de sangue. Diane limpou-o com a manga. O gorgolejo formou-se numa única palavra:

 

 A península.

 

 O quê?

 

 Filamentos negros voltaram a correr. Os lábios ciciaram:

 

 No lago. A península. É para ali que vai sempre... Reprimindo os soluços, Diane tentou sossegá-la:

 

 Vou telefonar para o hospital. Há-de salvar-se.

 

 Irene agarrou o pulso de Diane. Esta sentiu o sangue esguichar entre os seus dedos estreitados. Fechou as pálpebrasQuando as reabriu, já tudo acabara: as íris de Irene tinham-se fixado num pasmo eterno.

 

 Diane contornou a álea direita do rancho, transpôs a cerca e subiu a vereda que serpenteava até ao outeiro de abetos. A chuvada rebentara. Diane avistava a intervalos a superfície brilhante da água sob os relâmpagos. Desceu depressa a encosta da colina e depois alcançou a margem. Uma comprida sebe de árvores e de canas interpunha-se entre o carreiro e o lago. Impossível passar. Instintivamente, Diane seguiu pela direita e pôs-se a correr.

 

 Não tardou que a terra perdesse em firmeza. Os odores dos vegetais tornaram-se mais pesados e, simultaneamente, mais intensos, mais agudos. As águas do lago pareciam ter-se insinuado entre as ervas para transformar a margem num longo pântano. Ao correr, Diane ia-se impregnando desta metamorfose. A claridade verdejante do matagal, a indolência da flora, lasciva, solta, que emitia cada vez mais amiúde, entre duas pregas de ervas ou de folhas, uns resplendores de transparência. Ela disse consigo que a água era aqui o perfume da terra. Um dedo sobre uma nuca de húmus, enfiado por baixo de uma cabeleira de ervas daninhas... E agradeceu mentalmente à paisagem a sua força, a sua omnipresença: impedia-a de pensar em qualquer outra coisa.

 

 À esquerda, rasgou-se uma fenda entre as moitas: uma vereda. Diane meteu por aí, internou-se sob a abóbada vegetal.

 

Já não sentia a chuva, antes captava as milhentas carícias dos juncos, dos caniços, dos raminhos. Só então atingiu o areal e descobriu a superfície do lago. Do seu ponto de observação era mais um mar. Uma imensidade cinzenta e furta-cores, que crepitava sob a chuva, sem riba nem orla.

 

 Divisou então a península.

 

 À direita, a uma centena de metros, uma língua de terra arenosa destacava-se da margem, prolongando-se em seguida à superfície da água até uma pequena floresta rumorejante. Uma península de água doce, nem sequer assente em sal, tão-somente sobre transparência. Seria possível que o menino estivesse escondido sob aquelas árvores?

 

 Diane guardou os óculos e descalçou os sapatos. Atou os atacadores um ao outro e pendurou-os ao pescoço. Retomou o caminho. À sua frente, tudo era fluido, verdejante, fantasmal. Ela chafurdava agora nas ondas do lago, misturadas com as ervas e a terra. Enterrava os joelhos na mordedura fria das profundezas, contrastando com a tepidez da chuvada. Impregnava-se, escorria, gotejava. Sentia-se ao mesmo tempo aspirada pelo lago e esmagada pela chuva. Era, literalmente, a mulher entre duas águas.

 

 Finalmente, alcançou as moitas da península. Embrenhou-se sob os salgueiros, fendeu as ervas, curvada, esbaforida, solidária com cada interstício, cúmplice de cada folha. Onde estava Lucien? Avançou mais. Bocas de água, com os seus lábios sôfregos e verdes, abriam-se e retinham-na. Ela imergia-se até às ancas, balouçando os braços de trás para diante. Á sua volta, já avistava as escamas furtivas de peixes transviados no meio destes labirintos ervosos. De repente, sentiu a terra consolidar-se sob os seus pés. Chegara ao extremo da península sem nada ter visto nem... Estacou de chofre.

 

 O menino estava ali.

 

 Viu-o sentado, de costas, a vinte metros dela, no limite da terra, face ao céu.

 

 Mal o distinguia, mas a sua primeira sensação foi de alívio. A silhueta dele não se assemelhava à de Lucien o seu. Sem o confessar a si mesma, imaginara obscuras possibilidades de gemeidade, de clonagem, de um produto monstruoso dos trabalhos secretos soviéticos que tivessem decorrido no Tokamak.

 

 Ora as duas crianças eram completamente diferentes. Esta devia ter, pelo menos, mais dois anos de idade. Diane recobrou o fôlego e esboçou um novo passo. Ele continuava imóvel, sentado com as pernas cruzadas. Diane contornou-o e discerniu os seus olhos congestionados, o seu rosto escarlate: estava em transe. Os seus membros pareciam mais rígidos que barras de metal. Tremia, mas era uma fremência imperceptível, eléctrica. Como uma onda prisioneira do seu corpo.

 

 Diane estendeu a mão para a testa dele e sentiu um calor de forno. Nunca supusera que um ser humano pudesse atingir uma tal temperatura.

 

 Aproximou-se ainda mais, depois parou. Diante da criança dispunha-se um santuário: um círculo de pedras brancas em cujo centro se erguia uma urdidura de galhos em pirâmide, sobre os quais estavam atadas fitas minúsculas. No topo dos ramos equilibrava-se um pequeno crânio. O crânio de um hamster ou de um porquinho-da-índia, recentemente esfolado. Diane lembrou-se da gaiola vazia no rancho e compreendeu: o menino sacrificara o animal no decurso de um rito xamânico.

 

 Verificámos uma excitabilidade neuromuscular muito elevada, traduzida em acessos de contracturas e espasmos musculares... De novo, o hospital. De novo, o discurso de um médico.

 

 Em poucos minutos, Diane regressara a casa de Irene Pandove, envolvera o menino numa das mantas murais e, em seguida, agasalhara-se num velho impermeável. Dirigira-se depois a toda a pressa para Nice e procurara o serviço de urgência do hospital Saint-Roch. Eram apenas catorze horas, mas tinha a impressão de ter envelhecido vários anos. O clínico continuava:

 

 Há também a febre excepcional. A criança atingiu quase os quarenta e um graus. Por enquanto, não identificámos as causas patogénicas destes fenómenos. O exame externo não acusou nada. A colheita de sangue não revela qualquer vestígio de infecção. Convém aguardar os resultados das outras análises. Também podemos considerar a via crónica. Mas os sintomas não são os da epilepsia e...

 

 Está em perigo?

 

 De pé junto à sua secretária, o homem parecia ter dormido com a bata, de tão amarrotada que esta se apresentava. Ele adoptou uma expressão de dúvida:

 

 Em princípio, não. Tem uma idade em que não são de tomar em conta os riscos de convulsões. E a febre já está a descer. Quanto ao estado cataléptico, parece recuar igualmente.

Eu diria que a criança atravessou de certo modo uma espécie de crise, mas que o pior já passou. Resta-nos definir a origem de tudo isto.

 

 Diane via novamente o círculo de pedras, o crânio sobre a armação de ramos. Devia explicar ao médico o que acontecera? Devia revelar-lhe que o rapazinho tinha, sem dúvida, sofrido um transe xamânico? O médico perguntou:

 

 Qual é, ao certo, o seu laço com esta criança?

 

 Já lhe disse: é filho adoptivo de uma amiga minha. Ele observou a ficha.

 

 Irene Pandove, é como se chama a sua amiga?

 

 Diane dera este nome no serviço de urgência. Queria que pudessem identificar o menino depois de se ir embora. O médico insistiu:

 

 E onde está a Mme. Pandove?

 

 Não sei.

 

 Mas a criança... encontrou-a assim? Estava sozinha? Diane repetiu a sua história: a visita à amiga, a casa vazia, a descoberta de Lucien nos pântanos. Omitira falar da morta. Não receava contar meias verdades: dentro de poucos minutos estaria lá fora. Alguém se vira quando se encontra de costas para o precipício?

 

 O médico dava mostras de cepticismo. Analisava reiteradamente o impermeável encharcado da sua interlocutora, as marcas no rosto dela, a cicatriz castanha no nariz perdera o penso. Diane disse de súbito:

 

 Preciso de telefonar.

 

 Perdera o telemóvel durante a corrida em redor do lago. O homem apontou para o aparelho que estava à sua frente:

 

 Não há problema. Pode ligar, eu... Preferia ficar sozinha.

 

 Passe para o gabinete aqui ao lado. A minha secretária marcar-lhe-á o número. Sozinha. Por favor.

 

O clínico resmungou, indicando a porta com um gesto vago:

 

 Há cabinas lá fora, no átrio.

 

 Diane levantou-se. Ele acrescentou, de sobrolho carregado:

 

 Espero-a aqui. Vamos ter de conversar muito, nós os dois.

 

 Ela sorriu.

 

 Com certeza. Volto já.

 

 Ouviu levantar o auscultador ainda antes de fechar a porta. ”Os chuis, disse para consigo. O imbecil está a chamar os chuis.”Meteu pelo corredor e acelerou o passo.

 

 Atingiu o átrio de entrada do hospital e comprou um cartão telefónico no quiosque de jornais. Refugiou-se numa cabina e marcou o número directo de Eric Daguerre. Atormentava-a uma nova angústia. E se Lucien, por uma razão que ela não sabia explicar, tivesse entrado igualmente em transe? Pressentia uma espécie de simultaneidade nos acontecimentos. Um jogo de ecos entre os dois rapazinhos e os seus sintomas.

 

 Respondeu-lhe a central: o cirurgião estava a operar. Em desespero de causa, pediu para falar com Mme. Ferrer. Esta confirmou-lhe as suspeitas: Lucien acabava de sofrer um forte acesso de febre, com sinais de catalepsia. Mas tudo entrara já na ordem a febre descia, os músculos abrandavam. O Dr. Daguerre prescrevera uma série de exames. Aguardavam-se os resultados. A enfermeira acrescentou, em jeito de conclusão, que Didier Romans procurava falar-lhe com a maior urgência. Diane perguntou:

 

 Onde está ele?

 

 Aqui. Num dos gabinetes.

 

 Chame-o.

 

 Um minuto depois ressoou a voz do antropólogo:

 

 Mme. Thiberge, tem de vir imediatamente ao hospital!

 

 O que sucedeu?

 

 Um fenómeno extraordinário.

 

 Refere-se ao transe de Lucien?

 

 Sim, houve uma espécie de transe. Mas há agora outra coisa.

 

O QUÊ?

 

O homem pareceu captar as ressonâncias inquietantes do seu discurso.

 

 Nada receie, apressou-se a dizer. O seu filho não corre nenhum risco.

 

 Diane repetiu articulando cada sílaba:

 

 O que sucedeu?

 

 Levaria muito tempo a explicar-lhe por telefone. É melhor ver pessoalmente. É muito... visual.

 

 Diane atalhou:

 

 Estarei aí dentro de três horas.

 

 Desligou. Sentia-se de repente sufocada na atmosfera sobreaquecida do hospital. Tinha as madeixas coladas pela chuva, a gola empapada em suor. Uma nova voragem nos seus pensamentos: como é que os dois rapazinhos haviam podido entrar em idêntica crise a oitocentos quilómetros de distância? E qual seria o novo fenómeno observado pelo antropólogo?

 

 Catorze horas e trinta. Deitou uma olhadela às portas do átrio. Esperava ver surgir agora uma brigada de gendarmes. Homens que iriam interrogá-la sobre a origem de Lucien, a morte de Irene Pandove, cujo corpo não tardaria a ser descoberto.

 

 Tinha de regressar a Paris. Tinha de ver o seu filhinho. Tinha de contar tudo a Patrick Langlois só ele podia dar-lhe cobertura, protegê-la da máquina judiciária. Marcou o número do telemóvel do tenente. O chui nem sequer a deixou falar.

 

 Santo Deus, onde está desta vez? perguntou.

 

 Em Nice.

 

 O que anda a fazer aí?

 

 Precisava de ver uma pessoa...

 

 O tom deu mostras de algum alívio.

 

 Julguei que batera a asa para sempre...

 

 Porque havia de bater a asa?

 

 Consigo, nunca se sabe.

 

 Diane esperou uns segundos. Subitamente, naquele silêncio, instalou-se dentro de si uma confiança, uma proximidade como ela nunca experimentara com ninguém. Disse precipitadamente, para não desatar a soluçar:

 

 Patrick, estou metida numa alhada.

 

 Não quero crer.

 

 A sério, não é brincadeira. Tenho de o ver. De lhe explicar.

 

 Daqui a quanto tempo pode estar em Paris?

 

 Três horas.

 

 Espero por si no meu gabinete. Também lhe contarei umas novidades.

 

 O quê?

 

 Primeiro, venha.

 

 Diane percebia uma angústia de outra intensidade na voz do tenente. Insistiu:

 

 O que aconteceu? O que descobriu?

 

 Dir-lhe-ei de viva voz. Mas tome muita cautela consigo.

 

 Porquê?

 

 Talvez esteja mais profundamente implicada neste caso do que eu pensava.

 

 De... de que modo?

 

 Espero-a aqui na Prefeitura.

 

 Diane saiu da cabina e encaminhou-se para as portas de abertura automática. Lá fora, a avenida estava juncada de folhas avermelhadas, secas, encarquilhadas. Quando entrou no seu carro, pareceu-lhe que era o próprio Outono que lhe armava uma emboscada.

 

 Diane Thiberge chegou ao hospital Necker por volta das vinte horas. Didier Romans aguardava-a num estado de extrema agitação. Ela pediu para ver Lucien, mas o antropólogo retorquiu: ”Corre tudo bem, garanto-lhe. Temos algo de mais urgente.”Iam já a caminhar em direcção ao edifício Lavoisier. Era com ansiedade que Diane encarava este trajecto. Acudiam-lhe ao espírito demasiadas recordações, demasiadas atrocidades.

 

 Quando, no interior, se orientaram para a sala da TAG, ela sentiu aumentar a sua ansiedade. Via desfilar as paredes brancas, os néones ofuscantes e era como uma nova linha recta ao encontro da violência. O cientista inteirou-a durante o trajecto:

 

 Por ocasião das minhas primeiras pesquisas, já notara algo neste aspecto, mas não queria assustá-la.

 

 Pouco faltou para Diane dar uma gargalhada. Toda a gente parecia ter jurado nunca a inquietar, quaisquer que fossem as circunstâncias. Era uma espécie de conspirata da serenidade.

 

 Entraram na cabina repleta de consolas e de monitores. Romans sentou-se em frente do computador principal, exactamente como o médico legista na noite do homicídio de van Kaen. Clicando no rato, disse:

 

 As imagens falarão melhor por si mesmas do que grandes discursos. Diane apoiava-se num dos pórticos de metal. Esperava ver surgir no ecrã as vísceras profanadas do alemão. para sua grande surpresa, no entanto, foram os contornos contras tados de duas mãos que apareceram. Mãos de criança, finas e brancas, como que envernizadas pela luminescência do computador.

 

 Sem uma palavra, Romans premiu as teclas e fez aparecer a mesma imagem do lado das palmas. Focalizou o enquadramento sobre a extremidade dos dedos, revelando as impressões digitais.

 

 No âmbito do meu estudo antropológico, já estudara os dermatóglifos de Lucien. Distingui uma espécie de cicatrizes que me tinham parecido bastante antigas, situadas sob as primeiras camadas da epiderme. Como se... como se a pele tivesse tornado a crescer por cima, está a ver?

 

A imagem dos sulcos ampliava-se. Diane observava algumas linhas minúsculas, verticais ou oblíquas, que não correspondiam ao desenho habitual das sinuosidades digitais. O antropólogo acrescentou:

 

 Na altura das crises de febre, Mme. Ferrer notou que estas anomalias se tornavam mais pronunciadas. Os sulcos geométricos permaneciam brancos, enquanto a extremidade dos dedos se avermelhava. Daguerre em pessoa verificou o fenómeno e chamou-me. Compreendi então o que se passava.

 

As impressões digitais ocupavam agora toda a superfície do ecrã: as estrias eram manifestas. Assemelhavam-se a riscas, a rasuras...

 

 Estas cicatrizes estão efectivamente situadas sob as camadas superficiais da epiderme. E se continuam esbranquiçadas é porque se trata, creio eu, de cicatrizes de queimaduras. Peles mortas, onde o sangue já não passa. A subida da febre acentua o contraste entre a temperatura da carne irrigada e estas cicatrizes frias. É uma manifestação bastante clássica: certos estigmas são mais visíveis quando se tem febre.

 

Diane não cessava de perscrutar as finas riscas: era difícil não pensar numa escrita. Ao mesmo tempo, as letras pareciam meio apagadas, e sobretudo invertidas, como que lidas num espelho. o antropólogo deu mostras de captar instantaneamente o raciocínio de Diane:

 

- Primeiro, lembrei-me de letras que teriam sido escritas

com a ajuda de uma ponta em brasa, explicou. Mas estes motivos estão invertidos: pensei assim que era preciso decifrá-los em impressão sobre papel, «revirados» por uma tal manobra. Tentei impregnar os sinais com uma almofada de tinta para carimbos...

 

A imagem, no ecrã, modificou-se: os sulcos digitais, embebidos em tinta, irromperam.

 

- Eis o resultado. Como vê, a escrita ainda está invertida. É um problema insolúvel.

 

Diane apertou os punhos sobre as estruturas de metal. Sentia brotar dentro de si uma arborescência de fogo. Romans accionou um comando no teclado: apareceu uma nova representação. As duas mãos inteiramente negras, sobre as quais surgiam distintamente os traços minúsculos, a branco.

 

- Eis uma imagem infravermelha. Vê-se muito melhor a escrita, em virtude da diferença de temperatura entre a carne viva e as cicatrizes. Foi desta maneira que entendi do que se tratava.

 

- O que é?

 

- Não são letras latinas, mas caracteres cirílicos.

 

Um grande plano dos sinais, escritos em cada dedo da criança, encheu todo o ecrã: algarismos e sílabas do alfabeto eslavo. Diane perguntou numa voz rouca:

 

- o que... o que significa isto?

 

- Trata-se de uma data escrita em russo. Mandei traduzi-la.

 

Novo clique. Nova imagem:

 

20 DE OUTUBRO DE 1999 o antropólogo concluiu:

 

- Este menino traz uma mensagem dentro de si. Acrescentou numa voz tímida onde vibrava o medo:

 

- Uma mensagem que foi gravada a fogo e que está, ousemos a palavra, «programada» para aparecer em caso de febre, absolutamente... incrível. De facto, o único meio de decifrar esta data é a febre de Lucien.

 

 Diane já não escutava as explicações. As suas próprias respostas explodiam na sua consciência. Tinha a certeza de que o segundo Lucien trazia as mesmas queimaduras. Ambos ”apresentavam, na ponta dos dedos, uma data que só aparecia no momento do seu transe. Eram mensageiros. Mas a quem se destinava esta data? E o que significava ela?

 

 Dando voltas à imaginação, Diane formulou a primeira resposta: sem dúvida alguma, esta data destinava-se a homens como Rolf van Kaen, Philippe Thomas e Eugen Talikh. Homens que tinham pertencido à equipa do Tokamak e aguardavam a mensagem para regressar aos lugares do passado.

 

 Afluíram outros pensamentos ao seu espírito. Estes rapazinhos tinham chegado incógnitos à Europa, por intermédio de organizações de adopção, que não deviam pelo menos assim o julgava estar no segredo dos deuses. As fundações eram apenas instrumentos, entre outros, de toda a trama como ela própria o fora ao adoptar o pequeno Lucien. Por outro lado, se Irene Pandove conseguira adoptar o Vigia de Eugen Talikh, já Rolf van Kaen não beneficiara da mesma vantagem. Diane Thiberge, jovem desconhecida, é que herdara esta responsabilidade. Eis porque o acupunctor alemão dissera: ”A criança tem de viver.”Ele aguardava, simplesmente, o surgimento da mensagem que lhe era destinada, e que jamais chegaria se Lucien morresse antes do transe.

 

 Havia outro facto cuja lógica era evidente: ao provocar o acidente no périphérique, Philippe Thomas, o espião marxista, tentara excluir van Kaen do encontro aprazado, ao impedi-lo de conhecer a data. Era algo de demente, de absurdo, de medonho, mas Diane sabia que não se enganava: não só estes homens se achavam ligados pelo seu passado, mas ainda uns obscuros enredos tinham levado um deles a excluir um dos seus alter ego, procurando destruir o seu mensageiro.

 

Ainda mais profundamente, Diane delineava esta última evidência: um outro homem tentara igualmente impedir o regresso dos membros do Tokamak ao país. E da forma mais radical de todas: fazendo-lhes rebentar o coração.

 

 Do fundo destes poços negros, Diane contemplava, apesar de tudo, duas luzes distintas.

 

 Em primeiro lugar, pressentia que Lucien, o seu Lucien estava fora de perigo. Tinham tentado impedi-lo de mostrar a sua mensagem, mas a data estava agora revelada. Logo, Lucien encontrava-se fora de jogo. Por assim dizer, ele terminara a sua missão.

 

 A outra luz estava paradoxalmente ligada à natureza da mutilação das crianças: as suas mãos queimadas. Era atroz, abjecto, revoltante mas não era mágico. Não havia aqui nada de paranormal. Os Vigias eram apenas uns rapazinhos marcados para todo o sempre.

 

 Atordoada, vacilante, Diane pensou no tenente Langlois e nas suas confidências. Tinha a certeza de que ele possuía elementos que iriam imbricar-se nestas vertigens e conferir-lhes uma nova coerência. Murmurou, dirigindo-se ao antropólogo:

 

 Voltarei mais tarde.

 

 Diane preencheu o registo das visitas e transpôs o pórtico antimetal. Eram vinte e duas horas e os corredores da prefeitura de polícia estavam desertos. Mais do que nunca, estes gabinetes cheiravam a couro e a papelada velha. Eram odores tão fortes, tão enleantes, que faziam lembrar, antes de mais, eflúvios animais. Diane tinha a sensação de caminhar no ventre de uma baleia. Os couros vermelhos das portas recordavam-lhe paredes orgânicas, e as sombras transversais do vão de escada as barbas do cetáceo essas lâminas córneas que se erguem verticalmente na boca do monstro.

 

 Diane alcançou o gabinete número 34. Um pequeno cartão ostentava o nome do tenente Patrick Langlois, mas ela já reconhecera a porta forrada de veludo. Um raio de luz escapava-se do compartimento. Bateu. O seu gesto foi abafado pela superfície de tecido. Empurrou então a porta com dois dedos.

 

 Pensava já não poder ser surpreendida pelo medo, nem mesmo por qualquer outra emoção. Julgava ter definitivamente engendrado à sua volta uma seda delicada e invisível, tão infalível quanto a das aranhas com a qual se fabricam os coletes à prova de bala. Enganava-se. Uma vez mais, naquele compartimento banhado pela escuridão, onde só uma pequena lâmpada halogénea iluminava de perto a superfície da secretária de madeira polida, o pânico apossou-se dela.

 

Patrick Langlois tinha a cabeça pousada de lado sobre a secretária. Os seus olhos pretos haviam conservado o brilho de malícia, mas já não pestanejavam. Nem tão-pouco se mexia o corpo, vergado sobre o assento. O primeiro reflexo de Diane foi o de recuar. Todavia, chegada ao limiar, mudou de ideias. Deitou um olhar a ambos os lados do corredor: ninguém. Voltou ao gabinete, fechou a porta e acercou-se do cadáver.

 

 O rosto do polícia repousava numa poça de sangue que se coagulava a pouco e pouco, tal qual o alcatrão. Diane obrigou-se a respirar com lentidão, pela boca. Pegou em duas folhas de papel e soergueu mansamente a cabeça, lançando um breve olhar ao ferimento, situado sob o queixo. O homem tinha a garganta cortada. O golpe abria-se como um bico negro sobre os enlaçamentos da laringe, viscosos e escuros. Sem saber bem porquê, Diane conservava uma espécie de distância frente a este sinistro espectáculo e ao seu significado. Só contava os segundos, cada um dos quais desfiava uma nova pergunta: quem assassinara o polícia? Estaria ela de novo no rasto do mesmo matador solitário? O triturador de corações? Ou tratar-se-ia de um cúmplice dos russos da fundação? Sentia-se assombrada com a audácia do crime: um assassino ousara eliminar um tenente da polícia no próprio seio do edifício da Prefeitura.

 

 Lembrou-se dos documentos: aqueles maços de folhas de que o investigador nunca se separava e que encerravam uma parte da verdade. Começou a deslocar os objectos ensanguentados, a percorrer os papéis maculados que jaziam sobre a secretária. Não cessava de murmurar, como uma litania mística: ”Lucien, Lucien, Lucien...”Tudo o que fazia, era por ele que o fazia. Colhia aí a sua força, como numa fonte viva. Abriu as gavetas, espiolhou os escritos, examinou cada elemento. Rebuscou na pasta do polícia, nos dois armários que se erguiam por entre a sombra. Nada. Não encontrava nada. Sabia que procurava por simples formalidade, que o matador levara tudo consigo. Assassinara, precisamente, para destruir estas provas e estes indícios.

 

 Voltou-se uma última vez para o rosto do homem de cabelos prateados que se reflectia no espelho de sangue. Ele dissera ao telefone: ”Talvez esteja mais profundamente implicada neste caso...”O que descobrira afinal? Diane estava apavorada perdida. Pensou em Irene Pandove. Em Rolf van Kaen. Em Philippe Thomas. Nos três homens que ela matara. Como explicar um tal campo de mortos? E a sua presença naquela hecatombe? Visualizou-se a si mesma como uma flor funesta que destruía tudo de que se aproximava. A ardência dos soluços aflorou-lhe às pálpebras. Reteve as lágrimas e embrenhou-se no corredor, como uma sombra.

 

 Enquanto caminhava, ia pensando no registo das visitas que preenchera poucos minutos antes. Estava tramada: era, claro como água, a última pessoa que se encontrara com a vítima. Devia fugir. Fugir a toda a pressa.

 

 Diane atravessou o pátio interior e escapou-se discretamente do recinto por um portão lateral. Palmilhou num passo rápido o cais dos Orfèvres, depois o cais do Marché-Neuf. Atingiu a praça da catedral de Notre-Dame acelerando, parou diante do hospital Hôtel-Dieu. O casarão brilhava de cima a baixo: através das altas janelas abobadadas, as luzes aureolavam as fachadas claras e destilavam um estranho ar de festa, a um tempo solene e leve.

 

 O pensamento de Lucien trespassou-a como uma lâmina. Não podia abandoná-lo, ainda que estivesse convencida de que ele não corria perigo. Quando despertasse, quem o acolheria no país dos vivos? Quem cuidaria dele? Com quem falaria antes de Diane regressar, se porventura regressasse? Lembrou-se da rapariga tailandesa das primeiras semanas.

 

 Seguidamente ocorreu-lhe outra ideia. Encontrou uma cabina telefónica e meteu-se lá dentro. Podia avistar, através dos vidros, as telas que cobriam os andares de Notre-Dame, erguidas como altíssimos biombos na escuridão. Aos pés delas, os clarores suspensos dos candeeiros assemelhavam-se a figos túrgidos de luz. Por breves instantes, pensou na acupunctura e nos seus pontos primordiais, onde se libertava a energia vital do corpo humano. Na tipologia parisiense, o adro de Notre-Dame poderia ser um destes pontos. Um lugar de liberdade e de absoluto divertimento.

 

Marcou o número de um telemóvel. Três toques, depois ouviu-se a voz familiar. Diane segredou simplesmente: ”Sou eu ”Sobreveio logo um dilúvio de injúrias e de gemidos. Sybil Thiberge lançava mão de todos os registos cólera, indignação, compaixão, combinando-os com um bocadinho de indiferença a fim de dar a entender que, apesar de tudo, permanecia senhora da situação. Aliás, Diane distinguia nitidamente, qual pano de fundo sonoro, os rumores de um jantar. Interrompeu-a:

 

 OK, mamã. Não te telefonei para discutirmos. Escuta-me atentamente. Quero que me faças uma promessa.

 

Uma promessa?

 

 Quero que me prometas que te encarregas de Lucien.

 

 Lucien? Mas... certamente, o que é que tu...

 

 Deves cuidar dele. Acompanhá-lo até à cura. Protegê-lo, haja o que houver.

 

 Não percebo nada do que dizes. Tu...

 

 Promete-me! Sybille parecia atónita:

 

 Eu... prometo-te. Mas, tu, o que é que tu...

 

 Sou obrigada a partir.

 

 O quê? Partir?

 

 Uma viagem, não posso adiá-la.

 

 Vais em trabalho?

 

 Não te posso dizer.

 

Minha querida, o Charles contou-me que andas a... Diane fora louca em confiar no padrasto. Ele correra logo a repetir tudo à mulher e deviam discorrer os dois, cheios de solicitude, sobre a razão claudicante de Diane. Visionou-os mentalmente como duas víboras enlaçadas, patéticas.

 

 Sem se dar ao trabalho de explicar a situação, Diane evocou o segundo Lucien. Um menino de sete anos, recentemente adoptado, mas que acabava de perder a mãe de tutela. Ditou os nomes e as coordenadas e fez Sybille prometer que se informaria sobre este segundo órfão.

 

 Devia igualmente prevenir a mãe do que podia acontecer em seguida: as suspeitas da polícia a seu respeito, a lista de mortos que deixava atrás de si. Mas já não dispunha de tempo. Ainda hesitou. Afloraram aos seus lábios algumas palavras. Palavras de desculpa, de perdão, pela sua agressividade, a sua sanha, a sua hostilidade, mas as maxilas recusaram descerrar-se. Concluiu:

 

 Conto contigo.

 

 Desligou. Um gosto a cinzas enchia-lhe a garganta. Ficou imóvel, encostada ao vidro da cabina, fazendo uma vez mais a si mesma a pergunta que a obsidiava desde a adolescência: teria razão em tratar assim a mãe? Esta mulher seria verdadeiramente responsável pelo seu destino falhado? À laia de resposta, Diane só pôde murmurar injúrias ininteligíveis.

 

 Dois carros de chuis subiram a rue de la Cite, com as sirenes a uivar. Ela viu aqui uma espécie de aviso. O corpo de Langlois ia ser descoberto. Marcou o número das informações telefónicas e pediu:

 

 É capaz de me ligar directamente aos serviços de reserva do aeroporto de Roissy-Charles-de-Gaulle?

 

 Diane ouviu logo novo toque, depois uma voz feminina. Observava a sua mão esquerda. Unhas negras de sangue. Veias salientes. Uma mão de velha, já tão cedo. Perguntou:

 

 É possível saber qual o próximo voo, seja de que companhia for, para um determinado destino?

 

 Com certeza, minha senhora. Que destino? Diane voltou a sondar os dedos, as palmas. Uma mão de velha.

 

 Mas uma mão que já não tremia. Respondeu:

 

 Moscovo.

 

 

Cheremetievo 2, sala das chegadas. Aeroporto internacional de Moscovo. Duas horas da madrugada, sexta-feira, 15 de Outubro de 1999.

 

 Diane seguiu a massa dos passageiros e tomou a direcção da zona das bagagens, tiritando dentro da sua parca. Apanhara o último voo da Aerojlot, às vinte e duas horas e trinta, e estava agora em território russo. O seu único trunfo era o facto de conhecer a capital moscovita. Já aqui viera por duas vezes. A primeira, em 1993, para assistir a um congresso sobre a fauna siberiana, organizado pela Academia das Ciências de Moscovo. A segunda, dois anos mais tarde, em trânsito a caminho de uma expedição no Kamtchatka. Na volta, Diane permanecera uma semana na cidade, entregando-se a uma visita romanesca e sonhadora. Era pouco. No entanto, lembrava-se pelo menos do nome do hotel onde se alojara: o Ukrainia.

 

 Cerca das três horas da madrugada, as bagagens chegaram. O átrio, de tecto baixo, mal iluminado, tinha um aspecto de sepulcro. Os passageiros, debruçados sobre o amontoado das malas, praguejavam baixinho enquanto procuravam os seus bens à luz de isqueiros.

 

Diane encontrou rapidamente o seu saco. Em Paris, ainda tivera tempo de passar por casa para levar uma braçada de roupa, não se esquecendo também de um modelo de telefone-satélite que uma companhia especializada lhe emprestara. Trouxera igualmente a sua pequena reserva de dólares oitocentas notas e esvaziara a conta bancária através de uma caixa multibanco: sete mil francos. Experimentara então uma singular sensação de libertação. A que deve sentir o suicida quando se lança do telhado de um prédio.

 

 Ao sair do aeroporto, compreendeu que tomara o avião no Outono, mas aterrara no Inverno. O frio já não era uma simples circunstância entre outras: era uma presença aguda, implacável, que estreitava o crânio e roía as mãos, à maneira de umas garras reviradas. Brumas estagnadas pareciam aprisionar o asfalto brilhante. Ao longe, a terra e o céu uniam-se entre as trevas, numa longa juntura de gelo.

 

 Não havia táxis, mas Diane nem sequer os procurou. Conhecia as regras. Afastou-se dos turistas e depois, ao passar o primeiro carro anónimo, agitou os braços no ar. O veículo continuou o seu caminho. Ela teve de repetir estes manejos três vezes antes de ver parar um Jiguli com os faróis apagados. O nome do hotel e a cor dos dólares decidiram o condutor. Diane repimpou-se num assento de skai surrado, com o saco nos joelhos, gorro enfiado até às sobrancelhas, e seguiu logo através da noite escura.

 

 O automóvel enveredou por uma estrada solitária balizada por bétulas espectrais, deixou para trás bairros residenciais soturnos e atingiu a via de cintura interna. Os fumos de fogueiras provenientes de terrenos baldios e os gases carbónicos dos camiões substituíram o nevoeiro dos campos. Sem faróis, a visibilidade do veículo não alcançava os cinco metros. De vez em quando, o estrondo ensurdecedor de uma viatura pesada, com os eixos a bater no pavimento, irrompia mesmo ao lado. Diane sentia nascer dentro de si uma angústia ressurgida do passado a recordação do acidente. O condutor, que não abrira a boca desde o início e cujo rosto estava tapado por uma carapuça, pareceu aperceber-se do nervosismo da sua passageira. Ligou o rádio. Um violento trecho de hardrock veio acrescentar-se aos altibaixos do macadame para fazer trepidar o jigoli Diane estava quase a urrar quando o homem meteu pela rampa de saída e penetrou na cidade.

 

 Ela lembrava-se da direcção a tomar: era preciso descer a Avenida Leninegrado a partir do norte. Surgiram miríades de luzes: montras aparatosas, exibindo tesouros à maneira de cavernas preciosas. Logotipos e slogans publicitários lançavam os seus apelos ao consumo. Toda a cidade se enfeitava de néones e de fluorescência. Este frenesim de electricidade era como uma piscadela nocturna do capitalismo que todos os dias ganhava aqui terreno. Uma espécie de consumo obrigatório, de esbanjamento imposto, demonstrando que os tempos já não requeriam economias nem restrições apesar de a maioria dos moscovitas não terem o que comer.

 

 Diane admirava-se agora de o condutor continuar a rasgar as brumas em direcção ao sul. Devia ter-se orientado para oeste, na direcção de Minsk... De repente, fez-se de novo escuro. Naquele bairro, as igrejas multiplicavam-se a ponto de se sucederem lado a lado no mesmo passeio, ou então de se defrontarem nas ruelas. Discerniam-se as suas fachadas erodidas, os seus arcos negros, os seus portais fundidos na sombra. Sob os panos dos andaimes, havia estátuas que estendiam os cotos desfalcados, os rostos carrancudos, as togas pesadas, petrificadas como um manto molhado. Diane começava a inquietar-se, perguntando a si mesma se o motorista não iria armar-lhe uma cilada à esquina de uma rua tenebrosa.

 

 O carro virou então e entrou na Praça Vermelha. Foi como se Diane recebesse uma bofetada. Avistou o Kremlin, com as muralhas carmins, as cúpulas polvilhadas de ouro. O condutor desatou a rir. Diane compreendeu que ele quisera mostrar-lhe a jóia da sua cidade. Cabisbaixa dentro da parca, queixo apertado pela gola, teve de render-se à evidência: sentia-se feliz Por estar aqui. O automóvel voltou pelos cais ao longo do Moscova. Entrou em seguida na perspectiva Kutuzovki, atravessou

a praça Lubianka. Diane recordava-se dos nomes, até que Por fim veio parar sob as letras luminosas do Hotel Ukrainia, que se espargiam na noite como um gigantesco comprimido efervescente em água salobra.

 

Diane despedi-se do companheiro quando os acordes de Stairway to Heen dos LeZeppelin enchiam o interior do carro. Não lhe ouvira uma só palavra nem lhe entrevira o rosto. No balcão da recepção, preencheu o registo de entrada e foi de elevador até ao oitavo andar. Já no quarto, não precisou de acender a luz. A sede do Parlamento, situada mesmo em frente estava iluminada com tamanha intensidade que difundia pela vizinhança uma claridade deslumbrante.

 

 O quarto coincidia com a sua recordação. Quatro metros quadrados. Cortinas e uma colcha talhadas na mesma musselina vermelha. Um cheiro misto de gordura queimada, bafio, pó. O grande chique à russa. Só a casa de banho ostentava faianças novas e belas canalizações exteriores. Diane enfiou-se sob o queimor do duche: só necessitava disto. Amassada pela água cálida alquebrada de fadiga, meteu-se debaixo dos lençóis ásperos e adormeceu imediatamente.

 

 Uma noite sem sonhos nem pensamentos.

 

Já não era mau.

 

Quando Diane abriu os olhos, um sol ardente salpicava as paredes do quarto. Viu as horas no relógio: dez da manhã. Praguejou várias vezes, tropeçou no seu saco, depois esbarrou contra um canto da mesa antes de chegar à casa de banho. Tomou outro duche, vestiu-se rapidamente e abriu a janela.

 

 A cidade estava ali.

 

 Diane olhou de relance para o Moscova, cujas águas negras cintilavam na luz matinal. Também discernia as igrejas ortodoxas, os arranha-céus estalinistas, os prédios em construção, rodeados de gruas que pareciam querer rivalizar em altura e hieratismo. Antes de mais, ela impregnava-se do rumor troante da cidade. Essa espécie de vaga confusa, de ramerrão, de fragor, de odores ácidos mesclados que caracteriza todas as megalópoles e que talvez se mostrasse aqui ainda mais bruta, mais poderosa. Baixou os olhos em direcção à perspectiva Kutuzovki, onde circulavam centenas de carros. Cerrou as pálpebras e uniu-se mentalmente a esta onda palpitante, com um prazer que lhe demonstrava que havia de permanecer para sempre, apesar das viagens, apesar da sua paixão pela vida animal, uma citadina pura.

 

 Quando o frio já a transia até aos ossos, Diane fechou a janela e concentrou-se na sua investigação. Possuía agora uma única certeza: tudo, neste pesadelo, estava ligado ao Tokamak. O regresso dos seus membros ao local das instalações. O papel singular dos Vigias, enviados por alguma autoridade misteriosa para prevenir estes homens. E inclusivamente os homicídios, que pareciam atingir, um após outro, os que haviam frequentado o laboratório nuclear. Ela imaginara uma estratégia para encetar a investigação. Uma estratégia muito simples, mas realista. Primeiro que tudo, mandou vir o pequeno-almoço, depois entrou em contacto com a Embaixada de França. Pediu para falar ao adido científico todas as unidades diplomáticas abrigavam, ao lado dos tradicionais adidos culturais, um responsável pelas ciências. Após um minuto de espera, ressoou uma voz autoritária no auscultador. Diane apresentou-se. Deu o seu verdadeiro nome e, em seguida, explicou que era jornalista.

 

 Para que magazine? cortou a voz.

 

Hum... Sou free-lance.

 

 Free-lance para que magazine?

 

 Free-lance para mim mesma. O homem rosnou:

 

 Ah! Já estou a ver o género. Diane mudou de tom:

 

 Quer informar-me ou não?

 

Diga lá.

 

 Ando à procura de informações sobre os Tokamaks. São fornos nucleares que...

 

 Sei perfeitamente de que se trata.

 

 Óptimo. Talvez saiba então onde posso consultar os arquivos destes laboratórios... Deve existir uma academia em Moscovo onde...

 

 O Instituto Kurchatov. O conjunto dos documentos relativos aos sítios de fusão controlada estão aí depositados.

 

 Importa-se de me dar a morada?

 

 Fala russo?

 

 Não.

 

 O adido científico desatou a rir.

 

Que espécie de investigações pensa levar a cabo? Diane esforçou-se por ficar calma. Perguntou num tom humilde:

 

 Conhece algum intérprete?

 

 Melhor do que isso. Conheço um jovem russo, especialista em fusão termonuclear. Kamil Gorochov: fala perfeitamente a nossa língua. Efectuou várias viagens a França.

 

 Acha que ele aceitará ajudar-me?

 

 Tem dinheiro?

 

 Um pouco.

 

 Dólares?

 

 Sim, dólares.

 

 Não há problema. Vou telefonar-lhe imediatamente. Diane deu o seu endereço e agradeceu ao interlocutor. Um minuto depois, chegava o pequeno-almoço. Sentada de pernas cruzadas sobre a cama, devorou os pãezinhos duros e saboreou o chá demasiado infuso. Vinha servido num copo com uma asa de prata cinzelada. A seus olhos, este simples pormenor valia todos os croissants do mundo. Sentia-se estranhamente leve, apaziguada. Como se o voo nocturno tivesse erguido entre ela e os acontecimentos de Paris uma fronteira irreversível.

 

 O telefone tocou: Kamil Gorochov esperava por ela lá em baixo.

 

 O átrio do Ukrainia ainda exibia os sinais da grandeza estalinista. Pelas altas janelas, o sol transformava os cortinados transparentes em puras estalactites de brancura, enquanto o chão de mármore chamejava de luzes irisadas. Diane deu com um tipo ainda jovem que passeava em frente do balcão, enterrado num anoraque demasiado grande para ele. Deitava em todas as direcções uns olhares de malfeitor fugido à polícia.

 

 Kamil Gorochov?

 

 O homem voltou-se. Tinha olhos de gato e uns compridos cabelos de seda negra. Em jeito de resposta, varreu nervosamente uma madeixa para a testa. Diane apresentou-se, em francês. O russo escutou-a numa postura meio desconfiada, meio agressiva. Ela hesitou: já não estava certa de falar com a pessoa indicada. Mas o felino inquiriu de súbito, num francês vigoroso:

 

 Interessa-se pelos Tokamaks? Diane esclareceu:

 

 Interesso-me pelo TK 17.

 

 O pior de todos. Em que aspecto?

 

 O mais potente. O único que atingiu, durante alguns milésimos de segundo, a temperatura de fusão das estrelas.

 

 Soltou uma casquinada inquietante sob o seu bigode de cossaco, depois envolveu o átrio num olhar irreverente, como se invocasse o testemunho da sala inteira. A sua beleza parecia alimentar-se exclusivamente de ideias negras.

 

 Conhece o mito de Prometeu? perguntou de repente.

 

 Um russo a mencionar à queima-roupa um mito grego junto de uma desconhecida, no átrio de um hotel poeirento: Diane já estava por tudo. Decidiu entrar no jogo:

 

 O homem que tentou roubar o fogo do céu aos deuses? Novo ricto, novo gesto para arredar a madeixa. Kamil não parecia sequer reparar nas contusões e nos pensos de Diane não era o mundo dele.

 

 Na época dos Gregos, prosseguiu, tratava-se de uma lenda. Hoje, é uma realidade. Os homens tentam verdadeiramente roubar os segredos às estrelas. Os arquivos do TK 17 encontram-se num anexo do Instituto Kurchatov, a sul da cidade. Levo-a lá se me pagar o depósito cheio.

 

 Diane deitou-lhe um sorriso radioso. Já ele virava costas, encaminhando-se para a porta giratória irradiada de luz. Ela foi no seu encalço ao mesmo tempo que vestia a parca. O bom humor não a abandonava agora. Bem o adivinhava: esta visita a Moscovo seria fértil.

 

 Kamil conduzia um R 5 muito estafado, do qual parecia poder tirar o máximo. Após umas circunvoluções, chegou a uma avenida de oito faixas. Diane lembrava-se do bairro de igrejas e de brumas que atravessara na noite anterior: agora era bastante diferente. De ambos os lados da artéria, blocos de tijolos, cubos com fachadas de vidro, autênticos arranha-céus alinhavam-se bem a direito, numa perspectiva sem fim.

 

 Transpuseram o rio, depois alcançaram uma grande praça onde o estrépito da circulação era enorme. Cidades-dormitório sucediam-se a edifícios colossais, alardeando tonalidades descoradas que pareciam absorver o sol para nutrir unicamente a sua amargura. Deixaram para trás casinos, uma estação com fachada de mármore, depois o estádio do Dínamo. Seguiram então por uma nova avenida para a qual abriam vias pedonais.

 

 Diane extasiava-se a contemplar a multidão. Afluentes de chapkas, rios de gorros, riachos de estolas, de pelicas, de golas levantadas faziam desfilar todas as matérias, todos os calores: lã, feltro, cabedal, peles... Através dos vidros embaciados, as manchas de cor, como que cristalizadas pelo frio, ganhavam em precisão, em vibração. Existia uma frase feita sobre os rostos abatidos, as silhuetas tristes dos habitantes de Moscovo. Ela não encontrava nada disto. Pelo contrário, ao observar a multidão, experimentava uma sensação vivificante. Uma mordedura de frio e de júbilo, tal como a que proporcionam certos cálices gelados que já encerram, ainda antes de estarem cheios, uma esperança de embriaguez.

 

 Kamil perguntou, sem tirar os olhos da estrada:

 

 O que sabe afinal sobre o TK 17?

 

 Nada, ou quase, admitiu Diane. Tratava-se do maior forno termonuclear da URSS. Uma tecnologia inventada pelos soviéticos no intuito de substituírem, a prazo, a fissão nuclear. Sei que a unidade fechou as portas em 1972 e que era chefiada por um físico de origem asiática, chamado Eugen Talikh. Um homem que se passou para o Ocidente por volta dos anos oitenta.

 

 O jovem físico alisou rapidamente o bigode.

 

 Porque motivo tudo isso lhe interessa? Diane improvisou:

 

 Estou a realizar uma reportagem sobre os vestígios da ciência soviética. Os Tokamaks constituem um domínio pouco conhecido e...

 

 Porquê o TK 17?

 

 Ela reflectiu, apanhada desprevenida. Acudiu-lhe de súbito à memória a lembrança do homenzinho da fotografia, com a chapka engelhada na cabeça.

 

 É sobretudo Eugen Talikh que me interessa, respondeu. Quero traçar o seu retrato, a título de exemplo dos cientistas da época.

 

 O russo enveredou pela via de cintura interna. Sob o sol, as nuvens de gases enegrecidos e as cores ensebadas dos veículos pareciam ainda mais sinistras que na véspera. Kamil replicou, a sua ausência de sotaque era extraordinária.

 

 Talikh é de certo modo atípico na paisagem russa. Representava, só por si, a desforra dos povos asiáticos sobre o Império Soviético. Em toda a história do comunismo, não houve outro exemplo deste calibre. Talvez Jugdermidiin Gurragtcha, o primeiro cosmonauta mongol, mas era em 1981 e os tempos já tinham mudado...

 

 Talikh é de que origem?

 

Ora... é tseven. Diane empertigou-se:

 

 Quer dizer que ele nasceu na própria região do Toka-mak?

 

 O condutor soltou um suspiro a meio caminho entre a irritação e o gozo.

 

 Estou a ver que é preciso começar pelo princípio. Inspirou e decidiu-se:

 

 Nos anos trinta, a opressão estalinista atingiu os confins da Sibéria e os territórios da Mongólia. O objectivo era aniquilar tudo o que pudesse barrar o caminho ao poder do Kremlin. Os lamas, os grandes proprietários de gado e os nacionalistas foram presos. Em 1932, os Mongóis sublevaram-se. O exército soviético esmagou a insurreição com blindados e carros de assalto. Os nómadas iam a cavalo e só possuíam espingardas e bastões para combater. Sucumbiram perto de quarenta mil pessoas. Restava apenas um povo sem chefe, sem ideias, sem religião. Em 1942, os soviéticos impuseram por decreto a língua russa e o alfabeto cirílico.

 

 ”A partir desta época, todas as crianças das estepes e da taiga foram escolarizadas. O projecto tinha em mira fundir os mongóis e as etnias satélites no seio do grande povo soviético. Assim, no final dos anos cinquenta, na região de Tsagaan-Nuur, situada no extremo setentrional da Mongólia, um garoto entre muitos outros viu-se enviado para Ulan Bator a fim de ser alfabetizado. Tem doze anos e deram-lhe o patronímico russo de Eugen Talikh. Não tarda a manifestar aptidões excepcionais. Aos quinze anos, parte para Moscovo. Integra o Komsomol as Juventudes Comunistas e ingressa na Faculdade de Ciências, curso de Matemática. Aos dezassete anos, orienta-se para a Física e a Astrofísica. Dois anos depois, conclui uma tese de doutoramento sobre a fusão termonuclear do trítio. Talikh torna-se o mais jovem doutor em Ciências da URSS.

 

 Diane sentia um impulso de simpatia por este filho da floresta, que se revelara igualmente um filho do átomo. Kamil continuava:

 

 Em 1965, o sobredotado é enviado para os arredores de Tomsk, onde se incorpora na equipa do TK 8. Nessa altura, os ensaios de fusão consomem deutério, outro isótopo do hidrogénio, mas começa-se a pensar que o trítio ofereceria melhores resultados. É a especialidade de Talikh. Dois anos mais tarde, é mudado para um sítio crucial: o estaleiro de construção do TK 17, o maior forno termonuclear alguma vez construído no mundo. É inicialmente integrado na equipa principal, que supervisiona a concepção e as regulações da máquina; depois, em 1968, dirige em pessoa os primeiros ensaios. Não se esqueça de uma coisa: ele só tem então vinte e quatro anos.

 

 O russo rodava então na auto-estrada, sendo impossível de adivinhar em que direcção. Diane via passar as tabuletas, escritas em cirílico. No entanto, confiava no físico: sentia que, sob uma aparência agressiva, ele estava feliz por partilhar a sua paixão.

 

 O mais incrível, prosseguiu Kamil, é que este sítio se achava justamente implantado na região natal de Talikh, em Tsagaan-Nuur.

 

 A que se deve a escolha?

 

 Uma precaução suplementar dos russos. Do lado ocidental, começava-se a determinar a posição dos seus centros de pesquisa secretos, essas cidades industriais e militares da Sibéria que nunca eram mencionadas por qualquer mapa, mas albergavam milhões de habitantes, como Novosibirsk. Instalar um sítio na Mongólia era a garantia de ficar realmente a coberto de todos os olhares, de todas as observações. Talikh, o pequeno nómada, voltou então à terra natal na pele de um grande director. Do pé para a mão, passou a ser o herói do seu povo.

 

 Avançavam agora por uma estrada mal alcatroada, fissurada pelo regelo dos sucessivos Invernos. Campos negros, como que engelhados nos seus sulcos, desdobravam-se a perder de tristeza. Por vezes surgiam mulheres de lenços violentamente coloridos, quais imprevistas flores. A dada altura, Kamil enveredou por um caminho de terra. Estupefacta, Diane descobriu um portão alto cinzelado de ouro. Do outro lado, dispunham-se passeios e canteiros de relva mais ou menos bem cuidados.

 

Ao fundo, erguia-se um vasto palácio, cor de parma, que devia datar do século xix. Nunca ela imaginara que tais arquitecturas ainda pudessem estar de pé na Rússia pós-comunista.

 

 Não faça essa cara, comentou Kamil ao estacionar no pátio de saibro. Os Soviéticos não estragaram sistematicamente tudo.

 

 Não era exactamente uma mansão, antes um grande pavilhão de caça, ostentando janelas com contornos de pedra branca, pórticos de colunas, ornatos de estuque, enquadrado por estreitas torrinhas de telhados arredondados. Subiram uns degraus e atingiram o terraço, coberto de brita clara. À esquerda, um homem fardado estava anichado numa guarita. Kamil saudou-o vagamente e abriu uma das portas envidraçadas do patamar: possuía as suas próprias chaves.

 

 Entraram para um amplo vestíbulo hexagonal e revestido de mármore. Um lustre cristalino resplandecia no tecto. À esquerda, uma larga escada em arco encurvava-se até ao primeiro andar. Lá em cima, portas entreabertas patenteavam grandes fotografias a preto e branco, representando instalações industriais. Também se distinguiam turbinas de cobre reluzentes, pousadas em pequenos pedestais como se de Vénus se tratasse. Diane adivinhou que este andar abrigava um museu da Fusão Controlada.

 

 Sem hesitar, Kamil seguiu pela direita. Atravessaram várias salas de paredes gretadas, mas onde nunca faltavam os lambris e as estátuas. Diane reconhecia as alcovas onde as jovens condessas esqueciam outrora os seus lenços, as poltronas onde os príncipes abandonavam as suas redes de caçar borboletas...

 

 Kamil não parava de andar, afogado no seu anoraque. Assemelhava-se a um bichano abandonado pelos donos numa morada que conhecia bem. Desceram uma estreita escada. O frio intensificou-se de súbito. Lá em baixo, uma grade fechada a cadeado vedava o espaço. Mais além, um compartimento abobadado perdia-se na penumbra, estriado por estruturas de metal que suportavam arquivos. Kamil murmurou ao abrir o gradeado:

 

Mantém-se cuidadosamente o microclima indispensável à conservação do papel. Dezassete graus de temperatura. Cinquenta por cento de humidade. É muito importante.

 

 Acendeu uma lâmpada fosca no tecto.-As pastas cinzentas surgiram aos milhares. Aglutinadas nas prateleiras. Encafuadas em armários de ferro. Amontoadas no chão. Havia igualmente colecções inteiras de livros, cujas lombadas lavradas a ouro cintilavam nos recantos de sombra. Jornais antigos, atados em maços, subiam ao assalto das abóbadas.

 

 Caminharam mais e alcançaram uma última sala. Kamil procurou o interruptor às apalpadelas. Um halo irreal, de cor roxa, revelou o cenário: uma pequena divisão sem janela, comportando carteiras alinhadas, guarnecidas de fórmica. O físico sibilou:

 

 Não saia daqui.

 

 Eclipsou-se para reaparecer quase a seguir, carregando com os braços uma enorme caixa de papelão que pousou sobre uma mesa. Tirou de lá vários processos bolorentos, fechados por tiras de pano. Abriu-os e folheou-os com destreza, absolutamente indiferente ao pó que de lá se escapava. Diane sentia os pequenos grãos de tempo a estalar sob os seus dentes.

 

 Por fim, ele estendeu uma fotografia a preto e branco a Diane, pronunciando cheio de orgulho:

 

 A primeira foto aérea do TK 17, a máquina de igualar as estrelas.

 

 Era um círculo. Um gigantesco círculo de pedra, com uns cem metros de diâmetro, situado junto a contrafortes rochosos. Em volta, edifícios mais reduzidos disseminavam-se até à orla das florestas circundantes, formando uma cidadela geométrica e cinzenta. Também se distinguiam, a noroeste do sítio, as altas turbinas de uma central eléctrica, encostada às torrentes que se despenhavam das paredes montanhosas. Kamil perguntou:

 

 Sabe como isto funcionava?

 

 Já lhe disse: não faço a mínima ideia. O físico riu-se e depois apontou para o anel de betão com o indicador.

 

 No interior deste anel, explicou ele, corria uma câmara de vácuo, directamente alimentada pela central eléctrica que aqui vê. Imagine um monstruoso curto-circuito, um cabo eléctrico que mordesse a própria cauda, e terá assim uma ideia do que era este Tokamak. A corrente chegava, com uma potência de vários milhões de amperes, difundida por arcos magnéticos, e aquecia, numa fracção de segundo, o circuito a mais de dez milhões de graus. Os investigadores injectavam então uma mistura gasosa de átomos de trítio. Instantaneamente, os átomos agitavam-se e corriam no interior da câmara a ponto de se aproximarem da velocidade da luz. Dava-se então o milagre: os electrões abandonavam os seus núcleos e atingiam o quinto estado da matéria, o plasma. A temperatura ainda subia mais e, finalmente, realizava-se o segundo prodígio: os núcleos de trítio uniam-se e transformavam-se noutros átomos, isótopos de hélio. Na realidade, como já lhe disse, isto só aconteceu uma vez.

 

 Qual era o interesse da experiência?

 

 A prazo, a transmutação atómica conseguida devia difundir uma energia titânica, superior à das nossas centrais nucleares actuais. E que não consumiria senão materiais provenientes da água do mar. Infelizmente, o sítio encerrou em

1972 e os Russos parecem ter-se desinteressado desta técnica a partir daí. Os Europeus revezaram-nos, mas ainda ninguém alcançou resultados verdadeiramente eficientes neste domínio.

 

 Diane procurou engolir a saliva, mas o pó secava-lhe a garganta. Entretanto, perguntou:

 

 E... era perigoso? Quero eu dizer: radiactivo?

 

 Na sala, sim. O bombardeamento de neutrões tornava radiactivos os materiais que compunham as estruturas da máquina, como o cobalto, por exemplo. E esta radioactividade podia durar vários anos. Contudo, do lado de fora, não havia qualquer perigo. As paredes da própria sala, em chumbo e cádmio, absorviam os neutrões.

 

 Diane não conseguia imaginar Rolf van Kaen, médico acupunctor, e Philippe Thomas, psicólogo trânsfuga, inseridos em tal ambiente.

 

 Tenho o nome de duas pessoas que, segundo creio, trabalharam neste sítio. É capaz de verificar se eles pertenceram às equipas da época?

 

 Não custa nada.

 

 Diane soletrou os patronímicos dos homens e resumiu as suas especialidades. Kamil folheou as listas. As papeladas felpavam entre os dedos dele como pergaminhos.

 

 Não estão aqui, disse finalmente.

 

 As listas estão completas?

 

Sim. Se trabalhavam dentro do Tokamak, deviam figurar nelas.

 

 Não estou a perceber.

 

 As instalações do TK 17 eram imensas. Uma autêntica cidade. Milhares de pessoas laboravam ali. E existiam ainda departamentos anexos.

 

 Fez-se luz no espírito de Diane.

 

 Que género de departamentos? O perfil de van Kaen e o de Thomas poderiam corresponder a uma outra especialidade do sítio?

 

 Kamil tamborilou nos processos. Um clarão de malícia brilhava nos seus olhos amendoados.

 

 Um acupunctor e um psicólogo: talvez pertencessem à unidade mais secreta do TK 17. A que se consagrava à parapsicologia.

 

 O quê?

 

 O sítio possuía um laboratório de psicologia experimental. Uma unidade que se interessava pelos fenómenos de percepção e de influências não explicados. Telepatia, vidência, psicocinese... Naquela época, existiam vários centros deste género na URSS.

 

 Era como uma porta que Diane não imaginara e que se abria de repente para uma claridade ofuscante. Interrogou:

 

 Em que consistiam as experiências levadas a cabo nesses laboratórios?

 

 O homem fez uma boquinha indecisa.

 

 Não sei rigorosamente. Não é o meu domínio. Julgo que alguns psicólogos e físicos buscavam provocar estados modificados de consciência, por exemplo sob hipnose, e suscitar fenómenos psíquicos, como relações telepáticas ou curas por magnetismo. Estudavam-nos de um ponto de vista fisiológico, mas também magnético, eléctrico...

 

 Por que existia um laboratório assim ao pé do Tokamak? Kamil deu uma gargalhada.

 

 Por causa de Talikh! Era um entusiasta destes domínios. Ele mesmo, paralelamente às suas actividades sobre a fusão, trabalhava naquilo a que chamava a ”bioastronomia”. A influência das estrelas sobre o corpo humano, sobre os temperamentos.

 

 Como a astrologia?

 

 Numa versão mais científica. Por exemplo, interessava-se pela suposta interacção entre o cérebro e o magnetismo solar. Segundo parece, existe do ponto de vista estatístico uma relação entre a actividade do Sol e a multiplicação de acidentes, de suicídios, de crises cardíacas... Contaram-me que o próprio Talikh possuía dons autênticos. Podia prever fenómenos estelares, como os eclipses. No entanto, francamente, caímos aqui no lado misterioso da personagem. Pela minha parte, não acredito em tais histórias. Dão-me antes vontade de rir.

 

 Diane não se ria. Começava, pelo contrário, a captar um aspecto insuspeitado do caso: Eugen Talikh, prodígio da fusão nuclear, era também um tseven, um filho da taiga, que crescera no seio de uma cultura xamânica atravessada por fenómenos inexplicáveis. Ao tornar-se físico, persuadira-se sem dúvida de que poderia estudar racionalmente estes fenómenos. Chamara então os melhores especialistas em tais domínios, como Rolf van Kaen, virtuoso da acupunctura, ou Philippe Thomas, trânsfuga francês apaixonado por psicocinese.

 

 Diane estava convencida de que tocava aqui no cerne da verdade. Precisava de aprofundar este filão, de estudar o contexto que permitira semelhante projecto.

 

 Há uma coisa que não entendo, volveu ela. A era do marxismo foi o século do materialismo, do pragmatismo absoluto. O século em que se encerraram as igrejas, em que a História se baseou no mais estrito realismo. Como é que as autoridades soviéticas podiam levar a sério estas histórias do paranormal?

 

 Kamil franziu as sobrancelhas para exprimir a sua desconfiança.

 

 Interessa-se assim tanto pela parapsicologia?

 

 Tudo o que se refere à ciência soviética tem interesse para mim.

 

 O físico pareceu descontrair-se.

 

As relações entre a Rússia e a parapsicologia davam para escrever um romance.

 

 Faça-me um resumo.

 

 Ele apoiou-se nas velhas embalagens de papelão e pareceu ficar mais descontraído. As lâmpadas continuavam a emitir reflexos violáceos sobre os seus traços agudos.

 

 Tem razão. De um lado, o comunismo fundou o século mais pragmático, mais racional de todos. Ao mesmo tempo, os Russos continuam a ser os Russos. Estão fortemente impregnados de espiritualidade. Não só de religião, mas também de crenças ancestrais, de temores supersticiosos. Por exemplo, eles sempre pensaram que a vitória de Estalinegrado foi favorecida por espíritos xamânicos, libertos na região do Volga. De igual modo, sempre julgaram que a conquista espacial se deveu à ajuda de potestades celestes.

 

 O jovem cruzou os braços, em jeito de resignação.

 

 Costumamos dizer que é a faceta asiática do nosso povo. Ao fim e ao cabo, a maioria do nosso território está coberto pela taiga, o reino dos espíritos...

 

 Diane interveio:

 

 Entre as crenças populares e os laboratórios de pesquisa, há uma margem, não é verdade?

 

 Sim. Mas também existe uma tradição científica da parapsicologia no nosso país. Nunca se deve esquecer que o nosso grande Prémio Nobel é Ivan Petrovitch Pavlov, o homem dos reflexos condicionados, o inventor da psicologia moderna. Ora Pavlov admitia certos estados distintos da consciência. Nos anos vinte, o seu Instituto comportava mesmo um departamento consagrado à vidência.

 

 Kamil dava a impressão de experimentar uma mescla de ironia e fascínio a propósito deste tema. Prosseguiu:

 

 Nos anos quarenta, as depurações estalinistas e a Segunda Guerra Mundial aniquilaram estas pesquisas. Todavia, após a morte de Estaline, a vaga da parapsicologia reapareceu, como se nunca tivesse saído do espírito profundo dos Russos, Vou contar-lhe um episódio que resume bem a mentalidade dos anos sessenta. Conhece a história do nosso país?

 

Não muito bem.

 

 A sua expressão de cepticismo ressurgiu.

 

 Nunca ouviu falar do vigésimo segundo congresso do Partido Comunista, em 1961?

 

 Não.

 

 É um congresso muito célebre. Nesse ano, pela primeira vez, Nikita Khruchtchev evocou em público os crimes estalinistas. Deixou entender que Estaline talvez não tivesse sido o guia esclarecido que se dizia, mas um tirano que perpetrara erros criminosos. O líder caiu do seu pedestal. Algum tempo mais tarde, o seu corpo mumificado seria extraído do mausoléu onde repousava ao lado de Lenine.

 

 Qual é a relação com o paranormal?

 

 Durante o mesmo congresso, interveio uma deputada, Darya Lazvirkina. Explicou, com o ar mais sério deste mundo, que Lenine lhe aparecera na véspera, num sonho, e lhe afirmara que sofria por estar ao lado de Estaline no mausoléu. As palavras de Lazurkina foram exaradas nas actas oficiais do congresso e posso garantir-lhe que o seu testemunho contribuiu tanto para a decisão de deslocar o corpo quanto o discurso de Khruchtchev. Eis como são os russos. A ideia de um homem morto se exprimir através do sonho de uma mulher idosa não espantou ninguém e, de certa maneira, Lenine participara assim no congresso.

 

 Diane já vira imagens destas missas solenes do Partido a sala imensa, arranjada em bancadas ocupadas por milhares de deputados comunistas, os senhores de uma das nações mais poderosas da época. Perturbava-a a ideia de um simples sonho ter podido contar-se entre as preocupações dos comissários do Partido. Assim, uma luz sombria ainda brilhava no fundo das consciências. Sob o receio do poder humano, continuava a reinar um outro receio: o do universo, do desconhecido, dos espíritos, que pareciam espreitar os russos através da taiga siberiana.

 

 E mais? ciciou ela.

 

 A partir dessa época, a psicologia e depois, na sua esteira, a parapsicologia regressaram em força. Abriram-se laboratórios em todo o território. Os mais célebres eram o Instituto Neurocirúrgico de Leninegrado, onde se estudavam as experiências psíquicas através dos sonhos, o Instituto de Psiquiatria e de Neurologia de Kharkov, onde os cientistas procuravam eventuais partículas psíquicas que pudessem explicar os fenómenos de telepatia ou de psicocinese. E também o departamento número 8 da Academia Siberiana das Ciências, em Novosibirsk, onde alguns investigadores tinham tentado experiências telepáticas com os oficiais de um submarino atómico. Muito sinceramente, nada disto apresenta grande seriedade. Diane voltou ao objecto do seu inquérito:

 

 O que sabe do TK 17 em tal domínio?

 

 Nunca li nem ouvi nada. Nem uma palavra, nem uma linha sobre essa unidade.

 

 Como se explica um tão profundo silêncio? Kamil encolheu os ombros.

 

 A bem dizer, pode significar tudo. Ou os investigadores não encontraram absolutamente nada, nem sequer o bastante para redigir um relatório. Ou então, pelo contrário, efectuaram descobertas relevantes. Descobertas que merecem ser dissimuladas.

 

 Diane compreendeu que possuía a resposta a esta pergunta. Sim: algo de notável fora descoberto naquele laboratório. Algo de relativo à natureza das faculdades psíquicas, mas que ainda por cima permitia desenvolvê-las.

 

 Ela não se esquecera dos prodígios que haviam assinalado as últimas semanas. Um acupunctor que salvava um menino condenado pela medicina tradicional. Um psicólogo que abria um fecho de metal com a simples força do seu espírito. E agora Eugen Talikh, que manifestava uma verdadeira clarividência em matéria de fenómenos cósmicos. Como não pensar que tais homens tinham descoberto nos seus laboratórios, entre

1969 e 1972, uma técnica susceptível de isolar e dominar as forças ocultas do homem? Como não imaginar que eles partilhavam este segredo único desde há trinta anos?

 

 Recordava-se agora dos dedos de Lucien marcados com a data de 20 de Outubro de 1999. Brotou nela uma nova certeza.

 

Os homens em questão deviam encontrar-se no Tokamak. E

 

 este encontro mantinha um laço com um novo mistério a inexplicável aquisição de poderes paranormais.

 

 Diane viu a data no mostrador do seu relógio: 15 de Outubro. Só havia uma maneira de apurar a natureza daquele encontro. Ouviu-se a si mesma perguntar:

 

 Importa-se de me levar ao aeroporto?

 

 A partir de Moscovo, era necessário percorrer uns oito mil quilómetros em direcção a leste para chegar a Ulan Bator, a capital da República Popular da Mongólia. O voo efectuava-se de noite, com uma única escala em Tomsk, na Sibéria Ocidental. Durante a viagem, uma só paisagem alastrava à superfície da terra: a floresta. Uma infinidade gelada de álamos, de ulmeiros, de bétulas, de pinheiros, de lárices, agrupados alternadamente em bosques com clareiras ou em matagais inextricáveis. Diane lembrava-se do mapa de Claude Andreas e da sua intensidade monocroma. A taiga: um eremitério que tinha as dimensões de um continente e apenas nas cercanias da Mongólia se abria para uma outra vastidão as estepes.

 

 Kamil nada mais soubera dizer-lhe sobre a viagem no interior das terras: nunca pusera os pés na Mongólia. Os seus conhecimentos acerca do TK 17 eram meramente teóricos e isto ainda o fazia admirar mais a determinação de Diane. Oferecera-se para lhe arranjar os bilhetes, em Cheremetievo.

 

 Ela escolhia agora roupas quentes na loja principal do aeroporto, traçando mentalmente a lista do que já possuía. Ao experimentar uma chapka forrada de peles, em frente de um espelho, verificou que os seus hematomas se esbatiam. Sentia-se forte, nervosa, revigorada. Em boa verdade, estava inebriada pelo seu próprio projecto. E esta embriaguez era perigosa porque a impedia de medir os reais perigos da expedição.

 

 Fica-lhe muito bem,

 

 O olhar amendoado de Kamil apareceu no espelho. Dir-se-ia que o físico apreciava o espectáculo do rosto de Diane, emoldurado por madeixas fantasiosas, barrado por uma viseira de peles. Não dava mostras de ver as marcas, as cicatrizes, os pensos. Brandiu um maço de bilhetes de um azul deslavado e preveniu:

 

 É melhor não se demorar. O último voo com destino a Tomsk descola dentro de quarenta minutos.

 

 Kamil introduziu-se com Diane na zona de embarque. Ao reparar nos seus companheiros de voo, ela sentiu uma nova apreensão: os passageiros pareciam mortificados. Permaneciam imóveis, com as mãos agarradas às malas, lançando de vez em quando um olhar resignado na direcção do aparelho que manobrava lá fora.

 

 Porque fazem aquela cara? perguntou Diane.

 

 Para eles, a Mongólia é mais ou menos sinónimo de fim do mundo.

 

 Porquê?

 

 Kamil franziu de novo o sobrolho, eco invertido do bigode que sorria.

 

 Ouça, Diane, a Mongólia já nem sequer é a Sibéria. É ainda mais longe, e já não existe lá nenhum poder russo. Em Ulan Bator, tudo o que aguarda estas pessoas é a solidão, o frio, a penúria e o ódio. O país constituiu uma colónia soviética ao longo de uns cem anos. Hoje em dia, os Mongóis são independentes e detestam-nos mais do que qualquer outra coisa no mundo.

 

 Diane esquadrinhava a multidão que transpunha o balcão de embarque: silhuetas desmazeladas, rostos de êxodo. Saltou-lhe aos olhos um pormenor.

 

 Por que motivo não se vê nenhum mongol entre os passageiros? indagou.

 

 Os Mongóis têm a sua própria companhia. Preferem cortar um braço a viajar na Aeroflot. O ódio: sabe o que isto quer dizer?

 

 Ela sorriu cheia de lassidão.

 

 A coisa promete.

 

 Adeus, Diane. Não perca o ânimo.

 

 Ela não conseguia persuadir-se de que, daí a um instante, este gatinho jovem iria desaparecer e deixá-la outra vez sozinha. Sozinha de um modo que não lhe era possível conceber. O homem virou costas e depois lançou, por cima do seu capuz contra as intempéries:

 

 E lembre-se: os deuses não gostam que alguém procure imitá-los.

 

 O velho Tupolev oscilava como um comboio. Diane abandonava-se ao estranho torpor do voo nocturno. Indiferente ao desconforto do aparelho, às migalhas de biscoito a fingir de refeição, às luzes demasiado vivas que recusavam apagar-se, ou acender-se, consoante os lugares, ela também não sentia a frialdade que parecia trespassar a carlinga vibrante.

 

 Em Tomsk, fizeram-nos sair do aparelho, depois guiaram-nos pelo meio da escuridão até um entreposto, no fim da pista. O lugar fazia lembrar um lazareto onde os isolassem com receio de alguma contaminação. Instalaram-se, sem uma palavra, em bancos adossados às paredes. À luz de uma lâmpada nua, Diane entrevia umas enormes fotografias a preto e branco, penduradas nas paredes. Mineiros apanhados numa postura hierática, de alvião em punho. Vales abundantes em minério, semelhantes aos desfiladeiros do Colorado. Instalações eléctricas, cercadas de torres e de cabos. Todo um sonho de produÇão e planificação, de que até a textura fotográfica parecia incrustada de sujidade e carvão.

 

 Viu as horas no seu relógio: dez da noite em Moscovo. Três da madrugada em Ulan Bator. Mas aqui, em Tomsk, que horas seriam? Voltou-se para os vizinhos do lado e fez-lhes a pergunte em inglês. Ninguém falava esta língua. Interrogou outros passageiros. Os russos nem sequer levantavam o rosto de entre a gola. Por fim, um velho respondeu-lhe, num inglês aproximativo:

 

 Que interessar hora de Tomsk?

 

 A mim, interessa-me. Gosto de saber o terreno que piso. O homem baixou os olhos e não tornou a erguê-los. Diane

 

 avistou a sua própria sombra, distendida, filiforme, a destacar-se sobre as fotografias de mineiros. Foi sentar-se e sentiu de repente uma dor lancinante no peito, como uma pedra que tivesse percutido o seu torso.

 

 A imagem de Patrick Langlois acabava de irromper-lhe na memória. Os seus olhos de laca preta. A sua pequena franja prateada. O seu odor a roupas demasiado limpas. A mágoa abateu-se sobre Diane. Sentia-se sozinha, perdida, desamparada naquele território sem limites. Mais ainda, no entanto, perdida no interior de si mesma...

 

 Apetecia-lhe chorar. Chorar como quem vomita. Ao pensar que este homem poderia amá-la, a morte dele afigurou-se-lhe de súbito duas vezes absurda, duas vezes inútil. Porque se o polícia ainda vivesse, depressa se aperceberia de que Diane era a mulher do impossível. As suas propostas resvalariam sobre ela como água sobre uma poça de gasolina. Diane jamais poderia responder ao seu desejo. Jamais o desejo dela poderia fixar-se num objecto. Era como um animal furioso, um fogo subterrâneo que corria sob a sua pele sem nunca encontrar qualquer saída.

 

 Diane contemplou os ponteiros do seu relógio, que giravam no meio de nenhures. ”Não brinque às Alices detectives”, dissera-lhe o tenente. Um sorriso subiu a corrente das suas próprias lágrimas. Ela já não era uma Alice. Nem sequer uma detective.

 

 Tão-somente uma jovem perdida numa floresta de fusos horários.

 

 A caminho do continente-monstro.

 

 Foi a luz que a acordou. Endireitou-se no assento e colocou a mão contra a vigia. Há quanto tempo dormia? Quebrantara-se assim que entrara no aparelho. E estava agora encandeada pela aurora. Pôs os óculos e olhou para a janela. Descortinou então, na luz violenta do alvorecer, o que não existia sem dúvida em nenhuma outra região do mundo, o que açoitava o coração do viandante quando transpunha as derradeiras nuvens acima da terra da Mongólia: a estepe.

 

 Se a cor verde pudesse flamejar, engendraria por certo uma tal luz. Um ardimento verdejante, fremente. Uma luz que jorrava da terra, revolta de escalrachos. Um braseiro que tinha os contornos do horizonte, mas possuía, nos seus mínimos interstícios, a intimidade de um suspiro.

 

 O sol bem podia bater: jamais subverteria uma tal frescura.

 

 Diane procurou os óculos escuros a fim de discernir melhor o relevo daquela imensidade. Era estranho. Parecia-lhe ter conhecido sempre esta desmesura de ervas daninhas. Estas colinas que saltavam ao eixo na sua solidão maravilhada. Esta folia das planícies, como que ébrias de si mesmas, avançando Para um eterno encontro com o horizonte.

 

 Aproximou-se da vigia até lhe tocar com a testa. Apesar da distância, apesar do fragor dos reactores, o seu pensamento podia arremessar-se até ao nível do solo para perceber o rumorejo das pastagens, o estridor dos insectos, o ínfimo pulsar da natureza quando as rajadas de vento se apaziguavam. Sim, era uma terra para escutar. Como um búzio. Uma terra de que se podia apreender todas as subtilezas, à superfície, e depois discernir lá mais em baixo o eco longínquo do galope dos cavalos de crina curta. E quiçá, ainda mais profundamente, o surdo coração do mundo...

 

 O aeroporto de Ulan Bator era uma sala de cimento em bruto, onde se marcavam as bagagens a giz e onde os balcões das partidas e das chegadas se resumiam a uma simples carteira de madeira, sobre a qual pontificava o computador do edifício. Através dos vidros, Diane distinguia, no meio de alguns carros, os primeiros cavaleiros nas suas montadas. Todos envergavam um traje tradicional, vibrante de cor e cingido de seda.

 

 Diane não tinha a mínima ideia do que devia fazer agora. Para ganhar tempo, imitou os outros viajantes e pegou numa ficha de identificação. Dispôs-se a preenchê-la, de pé, apoiada contra uma parede. Foi então que leu, no cabeçalho do documento, umas linhas em inglês que lhe lembraram uma evidência em que até ao momento não pensara.

 

 Uma voz perguntou nas suas costas:

 

 O seu nome é Diane Thiberge?

 

 Sobressaltou-se. Um jovem ocidental sorria-lhe. Vestia uma parca de marca inglesa, umas calças de veludo de caçador e umas botas de cano. Diane pensou: ”Não pode ser um chui. Não é possível aqui.”

 

 Recuou a fim de melhor o observar. Tinha um rosto pueril, cabelo castanho encaracolado, óculos com aros dourados muito finos e uma barba de três dias que acentuava a sua tez tisnada. Não obstante a barba, desprendia-se destas feições, desta pele morena, destas roupas impecáveis, uma nitidez, uma regularidade de que Diane teve imediatamente inveja afligia-a sempre a impressão de ser macilenta e andar vestida às três pancadas.

 

O homem apresentou-se com uma leve pronúncia que arrulhava sob a sua língua:

 

 Giovanni Sands. Sou adido na embaixada italiana. Habituei-me a acolher todos os cidadãos europeus. Vi o seu nome no computador das chegadas e...

 

 O que deseja?

 

 Ele pareceu espantado com tamanha agressividade.

 

 Mas... ajudá-la, aconselhá-la, guiá-la, respondeu. Não estamos num país fácil e...

 

 Obrigada. Há-de correr tudo bem.

 

 Diane retomou a redacção da sua ficha, ao mesmo tempo que o observava pelo canto do olho. Em compensação, o jovem adido examinava as feridas do seu rosto. Insistiu, com doçura:

 

 Tem a certeza de que não precisa de nada?

 

 Obrigada. O meu périplo está perfeitamente preparado. Não há problema.

 

 Um hotel? arriscou o italiano. Um tradutor? Diane virou-se e interrompeu-o:

 

 Quer realmente ajudar-me?

 

 Giovanni inclinou-se, à maneira de um fidalgo veneziano. Ela brandiu a ficha de identificação com um ar maldoso:

 

 Então, ouça: não tenho visto para entrar neste país.

 

 Os olhos do italiano arregalaram-se numa expressão de puro assombro.

 

 Não tem visto? repetiu.

 

 As suas sobrancelhas arquearam-se ainda mais, em duas abóbadas suspensas. Era uma expressão de surpresa de tamanha intensidade, carregada de tanta inocência, que Diane desatou a rir. Compreendia que esta careta perfeita desenhava a natureza das suas relações vindouras.

 

Giovanni seguia a uma velocidade vertiginosa na pista rectilínea que conduzia a Ulan Bator. Conseguira resolver o problema administrativo em menos de uma hora. Diane entendera então diante de quem estava: um mago da papelada, um homem que falava a língua mongol tão fluentemente como o francês e o italiano. Encontrava-se agora sob a responsabilidade da embaixada italiana era uma espécie de convidada intempestiva e esta nova situação não a incomodava. Pelo menos, ainda não.

 

 Abriu a janela e esticou o rosto para o exterior. A poeira branca da estrada secava-lhe a garganta. Sentia os lábios a gretar, a pele a secar ao sabor do vento. Ao longe, distinguia a cidade, plana e cinzenta como um escudo, sobranceada pelas duas imensas chaminés de uma central térmica.

 

 Diane fechou os olhos e respirou, a plenos pulmões, aquele sopro árido. Berrou, para cobrir o ruído do veículo todo-o-terreno:

 

 Não sente o ar?

 

 Porquê?

 

 É tão... seco.

 

 Giovanni riu-se, metido na gola da sua parca. Gritou em resposta:

 

 Nunca viajou pela Ásia Central?

 

Não.

 

 O primeiro mar deve situar-se a mais de três mil quilómetros. Nunca surge aqui uma corrente húmida ou um alísio que venha atenuar as diferenças de temperatura. Os invernos descem a cinquenta graus negativos. Os verões pulam a quarenta positivos. Num só dia, pode haver quarenta graus de amplitude. É um clima hipercontinental, Diane. Um clima puro e duro, sem qualquer cambiante.

 

 O seu riso explodiu de alegria:

 

 Bem-vinda à Mongólia!

 

 Ela fechou de novo os olhos e deixou-se embalar pelos solavancos da pista. Quando os reabriu, já o carro penetrava na cidade. Ulan Bator era uma urbe de arquitectura estalinista, rasgada por artérias largas, às vezes alcatroadas, mais amiúde em terra batida, eriçadas de edifícios colossais onde se abriam janelas afiadas como lâminas de navalha. À sombra destes gigantes, pequenos bairros residenciais, uniformes e tristes, repartiam entre si o resto do território. Tudo parecia ter sido concebido, desenhado e construído de uma única vez, por arquitectos apressados em aplicar os grandes princípios da urbanização socialista: imponência e poderio para a administração, simetria e repetição para o mundo humano.

 

 No entanto, a população que caminhava nas ruas desmentia este projecto global. Muitos habitantes traziam a deel tradicional, como lhe chamava Giovanni: uma veste acolchoada, com botoeiras oblíquas, mantida por um cinto de pano. Outros avançavam a cavalo, no meio dos carros de marca japonesa e de alguns Tchaikas pretos que pareciam ter-se enganado de época. Este contraste anunciava o duelo implícito do país: Estaline contra Gengiscão. E comparando as fissuras das paredes com o brilho dos fatos, não havia qualquer dúvida sobre a identidade do vencedor.

 

 Diane viu um grande hotel cujo parque de estacionamento estava ocupado por vários autocarros. Perguntou:

 

Não paramos aqui?

 

 Não vamos para o hotel. Não cabe lá mais ninguém. Um congresso de não sei quê. Não se preocupe: tenho uma solução alternativa. Irá alojar-se no mosteiro budista de Gandan, às portas da cidade. Os monges possuem quartos arranjados para acolher hóspedes de passagem.

 

 Alguns minutos mais tarde, chegaram a um vasto bloco de betão, rodeado por um muro de um vermelho envelhecido. O edifício nada tinha de especial, à excepção do seu telhado de beiral revirado, no mais puro estilo chinês. No interior do recinto, em contrapartida, cada pormenor rivalizava em encanto. As paredes de pedra exibiam uma patina de cor ocre. O pátio, banal superfície de cimento, era varrido por folhas secas que restolhavam como chamas rente ao solo. Os contornos das janelas, castanhos e descamados, assemelhavam-se a misteriosas molduras que lhe davam vontade de ali se debruçar para mergulhar nos segredos do mosteiro. Em poucos segundos, transposto o imponente portão de barrotes, o lugar metamorfoseava-se num berço de ouro que enfeitiçava o olhar e deixava no coração uma poalha cintilante e preciosa.

 

 Diane deu uns passinhos e logo avistou, à direita, sob um alpendre, os moinhos de orações. Uns gigantescos tonéis verticais que rodopiavam sem descanso sobre o seu eixo. Ela já os tinha contemplado na China, junto à fronteira do Tibete. A simples ideia destes papelinhos escritos e depostos pelos fiéis, amalgamados, misturados, afundados naquelas pipas como parcelas de fervor, era algo que a cativava.

 

 Surgiram uns monges. Não se pareciam com os bonzos rapados e requintados de Ra-Nong, na Tailândia. Usavam uns buréis vermelhos e botas de couro com a extremidade retorcida. Sorriam a Giovanni, mas pareciam ter dificuldade em se separar da sua melancolia natural uma dureza de cavaleiros isolados demasiado tempo nas estepes. Por fim, o italiano, com uma piscadela, deu a entender a Diane que estava tudo organizado.

 

 Instalaram-na num quartinho revestido de madeira, onde ela reencontrou cheia de contentamento a sua solidão. Giovanni prometera tratar das autorizações necessárias para ir ao norte do país. Ela tivera de dar algumas explicações sobre o seu projecto. Alegara desta vez que andava a preparar um livro sobre os vestígios dos estabelecimentos científicos soviéticos na Sibéria e na Mongólia. A ideia agradara ao intelectual: ”Estou a ver, replicara ele: arqueologia contemporânea.”E oferecera-se logo para a acompanhar. Numa primeira fase, Diane recusara, mas depois rendera-se às razões dele. Não tinha a mínima hipótese de alcançar sozinha, e a tempo, o Tokamak.

 

 Cerca das dezasseis horas, desceu ao pátio do mosteiro. Queria saborear a quietude da esplanada. Nenhum odor, excepto o perfume de ervas queimadas que provinha das estepes circundantes. Nenhum ruído, a não ser alguns galopes longínquos, ressoando por detrás dos muros castanho-amarelados. Nenhum rosto, a menos que fitasse os raros monges que passavam de vez em quando, à sombra da varanda, atabafados na sua túnica cor de tijolo.

 

 Reinava aqui uma evidência, uma pureza impressionantes. Sol. Frio. Madeira. Pedra. E nada mais. Os grandes tonéis verticais gemiam por vezes, rodando devagarinho, e acalentavam esta quinta-essência de sensações. Diane sorriu. Tudo naquele lugar lhe era estranho, e no entanto sentia uma familiaridade singular com o terreiro recoberto de folhas carmesins, com o sol que estirava as sombras. Tornava a ver o alpendre da sua escola primária, os pormenores minerais nos quais aplicava toda a sua concentração, buscando entrar em contacto com a textura secreta do mundo. Redescobria aqui essa mesma mescla de dureza e de intimidade, de frieza e de doçura, que a açambarcava totalmente durante os recreios da sua infância.

 

 Repentinamente os pombos voaram. O batimento de asas ressoou dentro de Diane como uma lucarna de papel que alguém tivesse aberto de um modo brusco. O instante afigurou-se-lhe tão nítido, tão íntimo, que se diria jorrar da sua própria expectativa, do seu próprio desejo.

 

 Passos, atrás dela.

 

 Giovanni surgiu no patamar, enfarpelado na sua parca, cofiando a barba com as costas da mão. Era uma personagem que irradiava uma autêntica candura. Diane pensou num rapazinho a quem tivessem dado demasiados rebuçados. Ou então numa dessas trattorias italianas, mal iluminadas, onde brilham atrás das montras uns bolos demasiado coloridos. Todo o seu ser evocava um pendor doce, o pequeno estalido de gulodice que nos colhe ao baterem as cinco horas...

 

 Ela julgava que o jovem ia pronunciar umas palavras magníficas frases perfeitamente certas que se inscrustariam na pedra do instante. Mas o italiano colocou a mão sobre a barriga e perguntou:

 

 Não tem um bocadinho de larica?

 

Giovanni conduziu-a directamente ao refeitório do mosteiro. Os monges confeccionavam, segundo ele dizia, os melhores booz da cidade tratava-se de uma especialidade mongol: raviolis recheados de carne de carneiro. De tarde, o italiano reunira todas as autorizações necessárias e organizara a partida para o dia seguinte de manhã cedo. A fim de ganhar tempo, resolvera dormir numa das celas do piso de cima. Concluiu as suas explicações com um firme sorriso: parecia determinado a nunca mais se afastar, nem sequer um passo, de Diane.

 

 Ela não teve ânimo para lhe responder. A intimidade que se tecia entre ambos incomodava-a, até a irritava. Ainda se sentia profundamente impregnada pela presença de Patrick Langlois a sua voz grave, o seu odor esmerado, os seus gestos matizados de humor. A intrusão do italiano atropelava estas reminiscências, profanava de certa forma as suas recordações. Na cantina, estava sentada do outro lado de uma grande mesa, em frente de Giovanni, de acordo com um eixo ligeiramente divergente. Não teria sido possível a duas pessoas jantarem juntas e ao mesmo tempo ficarem mais afastadas uma da outra. O diplomata não fez qualquer observação parecia ter-se habituado aos mistérios de Diane. Achou preferível mergulhar a mão na travessa de booz, atacando os raviolis cheio de apetite. Por seu lado, ela serviu-se apenas de pãezinhos, negando-se a tocar nos avantajados nacos gordurentos que constituíam o prato principal.

 

 O italiano não cessava de falar. Era, na realidade, etnólogo. Redigira uma tese, nos anos noventa, sobre as perseguições do poder comunista contra as etnias siberianas, designadamente os Tunguses e os lacutos. Tentara, em seguida, partir para a tundra do Círculo Polar, mas as ordens de missão haviam tardado a chegar. Voltara-se então para a diplomacia e acabara por arranjar este lugar em Ulan Bator que não interessava a ninguém. Lançara-se com o maior entusiasmo no estudo das etnias do território envolvente.

 

 Diane escutava distraidamente as suas explicações. Havia outro pormenor que a preocupava: na sala deserta, mal iluminada por uns quantos candeeiros incertos, jantava uma curiosa personagem. Parecia ocidental e usava óculos escuros. Aparentava andar pelos sessenta anos, mas o seu cabelo penteado para trás era de um amarelo cor de nicotina que não condizia com nenhuma idade. Giovanni não dava sinal de ter reparado na estranha figura. Empurrou os pratos e tirou da sua mochila um computador portátil.

 

 Tracei o nosso itinerário no meu computador. Quer deitar uma olhadela?

 

 Diane deu a volta à mesa e inclinou-se para o ecrã cintilante. Recortava-se aí um mapa da República Popular da Mongólia. Todos os nomes estavam escritos em caracteres cirílicos. Giovanni indicou com o cursor um círculo negro no centro do espaço. ”Estamos aqui.”Seguidamente, estendeu um longo traço oblíquo para o alto, atingindo um ponto azul que representava sem dúvida um lago, perto da fronteira russa.

 

 Vamos para ali. É Tsagaan-Nuur. O Lago Branco.

 

 O risco atravessara quase toda a superfície do documento.

 

 E... assim tão longe? perguntou Diane.

 

 Mil quilómetros a noroeste, sim. Vamos primeiro apanhar um avião até Mõrõn. Aqui. Depois outro até à aldeia de Tsagaan-Nuur. Em seguida, compramos renas para alcançar o lago propriamente dito.

 

Renas?

 

 Não há qualquer pista. Nenhum veículo pode chegar lá.

 

 Mas... porque não cavalos?

 

 Seremos obrigados a passar um desfiladeiro a mais de três mil metros. A esta altitude surge a tundra. Já só crescem musgos e líquenes. Nenhum cavalo pode sobreviver ali.

 

 Diane começava a aperceber-se das proporções do périplo. Como se quisesse tranquilizar-se, procurou um pormenor, um objecto familiar. O seu olhar fixou-se no termo pousado em cima da mesa. Um recipiente laçado a vermelho e que ostentava umas flores chinesas estampadas. Ela serviu-se de uma nova chávena de chá e contemplou as longas folhas castanhas que boiavam no líquido fulvo. Voltou a perguntar:

 

 Quanto tempo levaremos de Ulan Bator até à aldeia de Tsagaan-Nuur.

 

 Um dia. Se não tivermos de esperar entre os dois voos.

 

 E depois, quanto tempo para atingir o lago? Julgo que um dia.

 

 E do lago ao Tokamak?

 

 Só umas horas. O laboratório situa-se nas proximidades, para lá da primeira montanha da cordilheira Khoridol Saridag.

 

 Diane pensava na data fatídica 20 de Outubro e fez as contas. Partindo na manhã seguinte, 17 de Outubro, poderia chegar a tempo e dispor, inclusive, de um dia de avanço. Bebeu um gole de chá e volveu:

 

 Nunca foi lá?

 

 Nunca ninguém lá foi! Até meados dos anos noventa, era ainda uma zona interdita e...

 

 O que sabe a propósito do Tokamak? inquiriu ela. Giovanni esboçou uma expressão indecisa.

 

 Pouca coisa, respondeu. Era um sítio consagrado à fusão nuclear, segundo creio. Mas não posso adiantar-lhe mais. Não é realmente a minha especialidade.

 

 Sabia que o TK 17 abrigou um laboratório de parapsicologia?

 

Não. É a primeira vez que ouço falar no assunto. Também lhe interessa esse domínio?

 

 Interessa-me tudo o que se refere ao sítio. Giovanni ficou de repente pensativo. Murmurou, ao cabo de uns instantes:

 

 é engraçado ouvi-la falar disso.

 

 Porquê?

 

 Porque já vi mencionados laboratórios do mesmo género quando redigia a minha tese de doutoramento.

 

 Diane espantou-se:

 

 Julgava que os seus trabalhos incidiam sobre a perseguição das etnias siberianas.

 

 Justamente.

 

 Justamente o quê?

 

 O italiano adoptou um ar de conspirador. Deitou um breve olhar ao homem dos óculos escuros e depois chalaceou:

 

 Cuidado com os espiões eslavos.

 

 Aproximou-se mais, cravando os dois cotovelos na mesa.

 

 Escute. Um capítulo da minha tese era consagrado às perseguições religiosas, entre os anos cinquenta e sessenta. É costume afirmar que o período Khruchtchev foi mais liberal, mas, no plano religioso, trata-se de uma ideia errada. No fundo, a opressão voltou-se especificamente contra as confissões minoritárias: os baptistas, por exemplo, entre os cristãos, e também os budistas ou os animistas, nas etnias que povoavam a taiga e a tundra. Khruchtchev mandou então prender todos os lamas, todos os xamãs, e em seguida queimar os templos e os santuários.

 

 Qual é a relação com os laboratórios de parapsicologia?

 

 Para a minha tese, em 1992, pude consultar os arquivos do famoso arquipélago do gulag. Norilsk, Kolyma, Sacalina, Tchukotka... Em suma, recenseei todos os xamãs que tinham sido internados nestes campos de trabalho. Era uma tarefa fastidiosa, mas fácil: a origem de cada recluso estava assinalada nos registos, bem como o motivo da sua detenção. Foi então que, gradualmente, descobri uma coisa incrível.

 

 O quê?

 

A partir de finais dos anos sessenta, muitos destes xamãs, iacutos, nenets, samoiedos, foram transferidos.

 

 Transferidos para onde?

 

 O italiano lançou uma nova mirada ao homem do cabelo amarelo, absolutamente imóvel.

 

 É neste ponto que o caso se torna escaldante, retorquiu ele. Segui o seu rasto e descobri que não tinham sido enviados para outros campos, mas para laboratórios.

 

 Laboratórios?

 

 Sim, como o departamento número 8 da Academia Siberiana das Ciências, em Novosibirsk. Laboratórios de parapsicologia.

 

 O italiano parecia fascinado pela sua própria investigação. À superfície dos óculos, o brilho das luzes ricocheteava nas suas pupilas. Acrescentou e a sua voz já não era mais que um sopro:

 

 Compreende, não é? Para fazer experiências, os parapsicólogos precisavam de sujeitos psíquicos, de seres humanos tidos como possuidores de dons telepáticos, faculdades de percepção paranormais. Ora, deste ponto de vista, o gulag constituía um autêntico viveiro, dado que encerrava inúmeros feiticeiros asiáticos.

 

 Diane não podia admitir esta nova história.

 

 Nada nos diz que os xamãs possuíam o mais pequeno poder!

 

 Tem razão. E de qualquer modo, não os vejo a revelar os seus segredos aos cientistas russos. Mas estes homens estavam familiarizados com os transes, a hipnose, a meditação... tudo o que se agrupa sob o nome de estados modificados de consciência. Constituíam, pois, sujeitos privilegiados para experiências parapsicológicas.

 

 Diane sentia-se sem pinga de sangue. Lembrou-se do TK 17 e Perguntou de novo a si mesma: seria possível que os investigadores do laboratório tivessem encontrado o meio de decifrar e arrebatar os poderes dos xamãs por eles estudados na sua unidade? Interrogou então:

 

 O que descobriu sobre essas experiências?

 

É um dos sectores mais secretos da ciência soviética. Nada do que pude ler mencionava o mais pequeno resultado sensível. Mas quem sabe o que se terá passado em tais laboratórios? Não gostava nada de me ver no lugar dos xamãs. Os russos trataram-nos certamente como vulgares cobaias.

 

 Diane imaginava estes homens arrancados às suas terras, internados em campos gelados, depois manipulados no âmbito de experiências ocultas. A náusea subia-lhe à garganta, tal qual uma maré negra.

 

 No TK 17, quis ela saber, devem ter utilizado xamãs tsevens, não acha?

 

 Giovanni não escondeu a sua surpresa:

 

 Como tomou conhecimento desse nome?

 

 Informei-me sobre a região. Julga que eles se serviram de tsevens?

 

 Quanto a isso, não há qualquer perigo.

 

 Porquê?

 

 Porque já não existe povo tseven desde os anos sessenta.

 

 O que diz?

 

 A verdade. É um facto comprovado; vários etnólogos mongóis demonstraram recentemente que assim aconteceu. Os tsevens não sobreviveram à colectivização.

 

 Dê-me pormenores.

 

 A colectivização só se tornou efectiva na Mongólia Exterior no final dos anos cinquenta. Em 1960, uma assembleia decretou que já não existia um único proprietário privado no país. Todo o território foi devassado, emparcelado, organizado em kolkhozes. Os nómadas viram-se sedentarizados. Construíram-se casas para substituir as suas tendas. Confiscou-se e redistribuiu-se o seu gado. Os tsevens não aceitaram esta situação. Preferiram matar os animais pelas suas próprias mãos em vez de os cederem ao Partido. Era Inverno: a maior parte deles morreu de fome. Repito-lhe: esta etnia já não existe. Hoje em dia, restam sem dúvida alguns indivíduos da mesma origem, mas aculturados e casados com mongóis.

 

 Diane visualizava planícies juncadas de renas ensanguentadas. Um massacre consentido contra os próprios recursos.

 

Uma espécie de suicídio colectivo. Imaginava as mulheres, as crianças tsevens a desaparecerem no frio e na fome. Cada passo que ela dava aproximava-a um pouco mais do epicentro do Mal.

 

 Ao mesmo tempo, este facto não se coadunava com as suas informações. Diane detinha a prova de que os tsevens, e as tradições deles, ainda existiam. A simples existência dos Lúú-Si-Anassim o atestava. Eram de origem tsevena. Falavam a língua tsevena. Eram Vigias, que tinham sido iniciados por xamãs. Logo, Giovanni enganava-se, mas ela renunciou a explicar-se. Tratava-se apenas de um novo mistério, a acrescentar ao monte de enigmas e de impossibilidades que traçavam o seu caminho.

 

 O italiano procurava agora uma tomada telefónica a fim de consultar as suas mensagens electrónicas. Esta deambulação despertou no espírito de Diane uma recordação longínqua, sepulta, quase esquecida mas que brilhava de súbito como um diamante agudo. Quando Patrick Langlois a deixara à porta de casa, após o massacre de Saint-Germain-en-Laye, dissera-lhe: ”No dia em que tiver alguma confidência para lhe fazer, enviá-la-ei por e-mail”.

 

 E se o polícia lhe tivesse escrito uma mensagem electrónica, no dia seguinte, quando julgava que ela se pusera definitivamente em fuga? Apontou então o queixo para o computador de Giovanni e perguntou:

 

 Posso consultar a minha caixa do correio no seu computador?

 

 Instalaram-se numa das salas de estudo do mosteiro. As paredes estavam revestidas de madeira e o chão era constituído por um parque de ripas largas. Algumas carteiras introduziam outras tonalidades de madeira. Uma lâmpada anémica difundia uma claridade encarniçada sobre estas superfícies castanhas. Tudo parecia ainda habitado pela paciência e a concentração dos monges, diariamente debruçados sobre os seus livros naqueles escassos metros quadrados, como astros da pura meditação.

 

 Ligaram o computador à única tomada telefónica. Por cortesia, Giovanni deu a precedência a Diane na consulta das suas mensagens. Utilizavam o mesmo software de pesquisa e de comunicação. Em poucas manobras, ela conseguiu acesso ao seu ficheiro central e abriu a caixa do correio. As mensagens acumulavam-se numa lista de nomes e de siglas familiares.

 

 Bastaram-lhe alguns segundos de pesquisa. Entre os e-mails de 14 de Outubro, um era assinado por Langlois. A mensagem fora recebida às treze horas e trinta e quatro, ou seja, meia hora antes de ela o contactar por telefone, a partir do hospital de Nice. Diane não se enganara: o polícia, julgando-a fugida, deixara-lhe umas linhas electrónicas na esperança de a informar sobre as suas descobertas.

 

Ela clicou no pequeno ícone e viu a mensagem abrir-se. Sentia, literalmente, o coração a bater no peito.

 

 De: Patrick Langlois Para: Diane Thiberge

14 de Outubro de 1999

 

 Diane,

 Onde está? Há várias horas que todos os meus homens andam à sua procura. Que mais lhe passou agora pela cabeça? Onde quer que esteja e independentemente do que tiver decidido, é bom que conheça as últimas informações. Depois de ler esta mensagem, deve telefonar-me sem demora. O único caminho que lhe resta é o da confiança.

 

 Diane clicou no rato, a fim de desenrolar o texto:

 

 Os investigadores alemães entraram em contacto comigo esta manhã. Apuraram que van Kaen efectuou várias transferências bancárias para um jovem casal de Potsdam, nos arredores de Berlim. Após as averiguações, parece que a mulher, Ruth Finster, foi operada às trompas no hospital Die Charité, tendo aqui conhecido van Kaen, em 1997. É evidente que o homem se tornara seu amante.

 

 Mas o mais importante não é isto. Sabemos que esta mulher, ao ficar estéril após a operação, acaba de adoptar um pequeno vietnamita, no passado mês de Setembro, num orfanato de Hanoi, largamente financiado por van Kaen em pessoa.

 

 Diane tinha de crispar cada músculo do rosto para não urrar. Novo clique. Novo movimento de texto:

 

 Fiz logo averiguações a propósito de Philippe Thomas, aliás François Bruner. Numa hora, encontrei o que procurava: também em 1997, o antigo espião tomou sob a sua égide uma das suas colaboradoras, Martine Vendhoven, de trinta e cinco anos, especialista em pintores ”fauves”. Sinal particular: a mulher, casada, sofre de uma insuficiência ovárica e não pode ter filhos. Adoptou um pequeno cambojano em finais do mês de Agosto, num centro de Siem-Reap, próximo dos templos de Angkor. A adopção foi organizada por uma fundação cambojana, da qual Philippe Thomas é um dos principais doadores.

 

 Diane não largava as linhas. Cada palavra tinha a violência de um prego enterrado na sua carne.

 

 É claro que tantas similitudes não podem ser simples coincidências. Estes homens, antigos comunistas, partilhando de um passado ligado à Mongólia e ao Tokamak, arranjaram-se de modo a mandar vir, nas mesmas datas, crianças asiáticas. Sem dúvida alguma, Vigias, originários da região do sítio nuclear.

 

 Diane: é inegável que adoptou, sem o saber, uma criança por conta de um dos seus íntimos. Um homem de certa idade que pode ter um passado soviético. Quem será? Compete-lhe a si procurar, e depois dizer-mo.

 

 Deve, sobretudo, entrar em contacto comigo o mais depressa possível.

 

 Carl Gustav Jung dizia que não são os autores que escolhem as suas personagens, mas as personagens que escolhem os seus autores. Julgo que acontece o mesmo no que toca ao destino. Quando fecho os olhos, tento imaginá-la casada, feliz, mãe de vários filhos sem história. Não leve a mal, mas não o consigo. E é um elogio. Telefone-me.

 

 Um beijo.

 

 Patrick.

 

 Accionando um comando no teclado, Diane apagou o documento. Giovanni, que se mantinha por discrição a uns metros dali, abeirou-se e perguntou:

 

 As notícias são boas?

 

 Ela não foi capaz de erguer os olhos. Respondeu simplesmente:

 

 Vou deitar-me.

 

 Tudo se passara na vivenda do Lubéron, à hora em que os insectos finalmente se calam. Diane recordava-se sobretudo das cores, que, se intensificavam à medida que anoitecia. O ocre das pedreiras, acima dos ulmeiros e dos pinheiros. A cor de malva do céu que se irisava aos poucos no crepúsculo. E o azul demasiado duro, demasiado artificial, da piscina que marulhava a escassos metros dali.

 

 O homem falara na sua voz grave, por entre duas baforadas de charuto, enquanto ela via as volutas de fumo a perderem-se na tarde. Fantasiara quimeras de poderio, ressonâncias de poder, instiladas por entre a natureza indiferente.

 

 Nesse mês de Agosto de 1997, ele aconselhara-a a adoptar uma criança. Diane já pensara em tal solução, mas este lusco-fusco selara a sua escolha.

 

 Cerca de um ano mais tarde, em Março de 1998, ele propusera intervir pessoalmente a fim de acelerar as diligências. Podia telefonar ao director da DDASS. Podia dizer uma palavrinha ao ministro dos Assuntos Sociais. Podia tudo. Diane recusara inicialmente, mas depois, ao compreender que a sua candidatura ficava no tinteiro, aceitara o apoio dele com a condição de a mãe não ser posta ao corrente.

 

 Uns meses mais tarde, obtivera deferimento e pudera planear um procedimento de adopção internacional. O homem orientara-a então para um orfanato patrocinado por uma organização que ele próprio financiava: a Fundação Boria-Mundi.

 

 No mês de Setembro, Diane voara para Ra-Nong e recolhera Lucien. Acudia-lhe ao espírito uma recordação bem precisa: na noite do acidente, quando levara a criança a casa da mãe, o homem acompanhara-a ao patamar e observara o menino. Parecera transtornado e logo a seguir, sem que nada deixasse prever este gesto, beijara-a. Na altura, ela não compreendera porquê. Não podia admitir uma vulgar ofensiva de sedução da parte dele, e tinha razão. O beijo abrigava uma outra realidade. A de um homem de rosto escondido, que acabava de receber o seu Vigia. Um homem com um passado medonho que aguardava, por detrás do sorriso indecifrável, uma data precisa para voltar às terras obscuras da sua juventude.

 

 Charles Helikian, cinquenta e oito anos. Proprietário de vários gabinetes de consultoria em psicologia de empresa. Conselheiro pessoal de grandes patrões franceses, consultor estratégico de alguns ministros e personalidades políticas. Um homem de imagem e de influência, que se movimentava nas mais altas esferas do poder, mas que nunca perdera uma parte do seu altruísmo, da sua humanidade.

 

 Diane nada conhecia do seu passado, excepto uma faceta que podia representar um laço com o caso: Charles fora esquerdista, de tendência trotskista. Era, pelo menos, o que ele proclamava ao relembrar de olhos brilhantes a sua juventude atormentada. Mas não teria sido antes um comunista puro e duro, filiado no Partido, sobejamente fanático para transpor a Cortina de Ferro, em 1969, como Philippe Thomas? Helikian era suficientemente inteligente para confessar hoje uma meia verdade e neutralizar assim qualquer outra inquirição a propósito do seu passado.

 

 Diane imaginava-o bastante bem, jovem e esbelto, a rugir a sua raiva nas barricadas de Maio de 68. Também imaginava o seu encontro com Philippe Thomas nos bancos da Faculdade de Psicologia, em Nanterre. Após o malogro da insurreição parisiense, os dois homens deviam ter juntado os seus fervores num projecto insensato: instalar-se no coração do continente vermelho. Por certo que também partilhavam a mesma paixão pelas potencialidades psíquicas e esperavam aprofundar tais estudos na URSS.

 

 O quadro começava a delinear-se. Chegados à União Soviética, os dois trânsfugas haviam integrado o laboratório de parapsicologia do Tokamak. Tinham então participado nas experiências do TK 17 e pertencido a esse círculo de homens em busca do impossível.

 

 No seu quarto minúsculo, Diane não acendera a lamparina. Enfiara-se, completamente vestida, sob a coberta de penas e enroscara-se toda com as pernas dobradas contra o torso. Há mais de três horas que reflectia. E as suas convicções não cessavam de se arreigar. Fora enganada, manipulada, utilizada pelo padrasto, que encontrara nela a presa ideal. A mãe perfeita para o seu Vigia.

 

 Tentava agora articular os outros factos, sobrevindos desde a chegada de Lucien a Paris. Por uma razão que ignorava, Philippe Thomas e Charles Helikian eram hoje inimigos. Eis porque o conservador de arte tentara destruir o mensageiro de Helikian quisera assim impedi-lo de conhecer o dia do encontro e, por conseguinte, de estar presente no Tokamak. Qual o motivo desta atitude? Dar-se-ia o caso de Charles constituir um perigo para o outro? Se também ele possuía um poder paranormal, qual seria? Diane supunha que o padrasto é que avisara Rolf van Kaen, outro companheiro do círculo, pedindo-lhe que tentasse uma intervenção por meio da acupunctura. Ela via desenharem-se alianças e rivalidades entre os antigos membros do laboratório mas em nome de quê?

 

 Charles Helikian estaria ainda vivo?

 

 Se estava, encaminhar-se-ia igualmente para o círculo de pedra?

 

 Era o facto mais fácil de verificar. Diane sentou-se na cama e olhou para o seu relógio. Na escuridão, as agulhas fosforescentes indicavam três horas da manhã. Queria então dizer que eram vinte horas em Paris.

 

Levantou-se e aproximou-se da parede às apalpadelas. Pegou no seu telefone por satélite. Sempre às escuras, orientou o auscultador para o pequeno quadrado azul-nocturno da janela. No ecrã de quartzo, verificou que a ligação não passava.

 

 Sem se dar ao trabalho de calçar os sapatos, Diane saiu para o corredor.

 

 Estava tudo deserto. Ela sentia as tábuas mal esquadriadas a oscilar sob os pés. A pouco e pouco, os seus olhos habituaram-se à penumbra. Discerniu, ao fundo do corredor, a fulgência lunar de um caixilho envidraçado: exactamente aquilo de que precisava.

 

 Ao chegar à janela, deitou a mão ao batente e abriu-o. O vento gelado fustigou-a cheio de violência, mas pareceu-lhe, em compensação, que reatava o contacto com o mundo distante dos satélites. Estendeu o auscultador para o exterior e perscrutou o ecrã: o aparelho captava o sinal. Num só gesto, marcou o número do apartamento do boulevarSuchet. Nenhuma resposta. Marcou os números do telemóvel da mãe. Umas estridências electrónicas, três toques longínquos e depois o ”familiar ressoou.

 

 Prolongou o silêncio e logo Sybille perguntou:

 

 Diane, és tu?

 

 Sim, sou eu.

 

 A mãe disparou abruptamente: Com mil diabos! Que sucedeu? Onde estás? Não posso dizer-te. Como tem passado o Lucien?

- Desapareces, a polícia anda à tua procura e telefonas-me assim, sem mais explicações?

 

 Como tem passado o Lucien?

 

Diz-me primeiro onde estás.

 

 O milagre da tecnologia operava em pleno. Dez mil quilómetros de distância e as duas mulheres quezilavam com toda a naturalidade.

 

 Debruçada sobre o parapeito da janela, Diane pronunciou

 

 mais alto:

 

Nunca mais sairemos desta teima. Repito que não te posso dizer nada. Preveni-te do que ia acontecer. Sybille parecia ofegante. Continuou:

 

 O polícia que se ocupava do caso...

 

 Eu sei.

 

Dizem que estás envolvida nisto e também na morte de uma mulher, eu...

 

 Pedi-te que confiasses em mim. A voz da mãe esmoreceu:

 

 Olha lá, não tens consciência do que está a acontecer? Sybille começava a acusar o toque. Diane voltou à carga:

 

 Como tem passado o Lucien?

 

 A voz enfraqueceu ainda mais, a respiração entrecortava-se

 

 a cada palavra:

 

 Muito bem. As melhoras são constantes. Despontam sorrisos nos seus lábios. Na opinião de Daguerre, já não devem faltar muitos dias para ele despertar.

 

 Uma onda de calor correu nas veias de Diane. Tornou a ver as pequenas comissuras dos lábios que se alçavam num assomo de alegria. Talvez um dia estivessem novamente juntos, no meio da quietude e da felicidade. Perguntou:

 

 E a febre?

 

 Desapareceu. A temperatura é estável.

 

 E... no hospital? Não aconteceu nada de esquisito?

 

 Que mais queres tu ainda? Não sofreste já o bastante. Diane via confirmarem-se todas as suas suposições. Já não estavam em causa o transe nem a crise. Os Lúú-Si-An encontravam-se agora fora da maquinação, fora de perigo. O móbil deslocava-se de ora avante para o Tokamak. A mãe gritou outra vez. Como podes fazer-me uma coisa assim? Estou preocupadíssima.

 

Diane lançou um olhar à cidade confusa, por entre as trevas. Descortinava a grande avenida que marginava o mosteiro, os faróis de alguns veículos japoneses, brancos de poeira, atravessando a noite gelada. Do outro lado da ligação, por detrás da voz da mãe, ela distinguiu o rumor do tráfego. Imaginou as carroçarias resplandecentes, as luzes modernas das ruas parisienses. E agora a questão crucial:

 

 Charles está aí contigo?

 

 Vou neste momento ter com ele.

 

 Vinte horas. A hora inicial de todos os serões. Diane percebia por que motivo a mãe estava ofegante: dirigia-se, sem dúvida em grandes passadas, para um local de encontro, um jantar ou um qualquer espectáculo. Quis saber:

 

 Como vai o Charles?

 

 Anda inquieto, como eu.

 

 Não há nada de especial a seu respeito?

 

 Onde queres chegar?

 

 Não sei: não parte em viagem?

 

Mas... de maneira nenhuma. Que mais estás para aí a inventar?

 

 A sua hipótese desmoronava-se de novo. As suas suposições conduziam a impasses. Diane avaliou de súbito a vacuidade de todas as conjecturas. Como pudera associar o padrasto ao caos da sua aventura? Implicar esta vida parisiense, calma, serena, nas engrenagens do seu próprio pesadelo?

 

 Ouviu um ruído atrás de si. Deitou uma olhadela ao corredor, que se abria à sua esquerda. Ninguém. Mas o ruído repetiu-se, agora


com maior precisão. Ela sussurrou, antes de desligar: Volto a telefonar-te.

 

 No mesmo instante, apareceu uma sombra a cerca de vinte metros. Um homem de pequena estatura, de costas, vestindo um casaco comprido e uma chapha mal ajustada. Num relâmpago, Diane reviu a fotografia do físico tseven, com o mesmo chapéu na cabeça. Murmurou: Talikh...

Foi-lhe no encalço. A silhueta vacilava ligeiramente, apoiando-se de vez em quando às paredes. Intrigou-a um pormenor: a manga direita estava arregaçada até ao cotovelo. O homem atingiu a extremidade do corredor. Inclinou-se para a bomba de água que equipava cada andar e constituía uma espécie de casa de banho comum. Diane aproximou-se mais. A sombra accionava o mecanismo com a mão esquerda, ao mesmo tempo que erguia o braço direito sob o bico de folha-de-flandres. A água ainda não brotava.

 

 Diane imobilizou-se. Movida pela intuição, virou a cabeça para a parede da direita e descobriu a marca de uma mão minúscula: uma marca de sangue. No mesmo instante, olhou de novo para a silhueta curvada e viu os reflexos negros do seu antebraço esticado. Siderada, compreendeu a situação: o assassino estava ali, a poucos metros dela. Acabava de matar, dentro do mosteiro.

 

 O homem da chapka voltou-se para ela. Envergava uma cogula preta. Através dos orifícios na lã, Diane fixou os olhos, ou melhor, o seu brilho, a fulgurar na noite como duas gotas de verniz. Teve a impressão de que o homicida lera, acto contínuo, nos seus pensamentos, de que ele contemplara, como num espelho, a sua própria identidade de assassino no olhar da mulher. Um momento depois já se sumira. Sem saber bem o que fazia, Diane deu uma corrida. Virou na primeira curva do corredor e só encontrou o vazio. Tinha mais de cinquenta metros à sua frente. O assassino não pudera cobrir esta distância em poucos segundos. Os quartos. Ele escondera-se numa das celas do piso de cima...

 

 Diane abrandou a marcha, sondando as portas à direita e à esquerda. Bruscamente, sentiu um frio mais intenso e ergueu os olhos. Havia uma lucarna entreaberta. À esquerda, a parede revestida de ripas irregulares oferecia uma escada perfeita. Num único impulso, ela içou-se através do vão, apoiando-se com ambas as mãos no alizar de madeira.

 

 O esplendor da noite submergiu-a. O céu anilado, crivado de estrelas. As telhas descendo em declive suave. O aspecto revirado do beiral, arqueando-se face ao vazio tal qual uma proa de navio antigo. Afigurou-se-lhe que acabava de transpor uma parede de papel de arroz, de atravessar o avesso de um quadro asiático. Evoluía agora como um pincel de tinta sobre um esboço na própria essência da graça.

 

 Não havia ninguém. Só a chaminé oferecia um refúgio. Diane subiu na direcção do cume. Apesar do medo, apesar do frio, o encantamento não se dissipava. Ela experimentava a sensação de caminhar sobre um mar de terracota, em pequenas ondas vermelhas. Alcançou a aresta e aproximou-se da chaminé. Deu-lhe lentamente a volta. Ninguém. Nenhum ruído, nenhum frémito.

 

 Nesse momento, viu mesmo em frente a si a sombra de um homem encolhido, no topo da chaminé. Apoderou-se novamente de si a impressão de que o matador lia os seus pensamentos e de que ela própria, em compensação, decifrava a resolução dele: teria de a matar para a impedir de falar. O tempo de perceber isto, e já o núcleo de sombra crescia, se estirava num traço negro. Depois um terrível peso esmagou-a. Diane caiu, mas uma mão imediatamente a segurou. Levantou os olhos: ele estava ali, agarrando-a pela camisola, agachado sobre o cume como um animal. As abas da sua chapka recortavam-se no azul cru da noite.

 

 Diane não teria coragem para lutar. A fadiga e o desespero aniquilavam-na, mais ainda que o terror. E também algo de mais surdo, de mais confuso, que se amplificava: o sentimento de ter já vivido esta cena. Entreabriu os lábios, talvez para gemer, talvez para suplicar, mas o homem arrancou-a à sua posição e levou-a até ao cimo do telhado. Deu consigo de costas.

 

 O monstro debruçou-se por cima dela e abriu a boca de um modo desmesurado. Devagar, como num gesto encantatório, aproximou os seus dedos ensanguentados dos lábios. Diane viu subitamente o que a mão procurava: metida sob a língua, uma lâmina de x-acto faiscava. Ela ergueu-se bruscamente. Não podia morrer assim. As telhas soltaram-se sob os seus passos. Uma esperança louca rompeu dentro dela: resvalar ao longo do telhado, lançar-se no vazio. Uniu as pernas e arremessou-se contra o torso do homicida. Rolou para a direita, rolando sobre as escamas de barro. Os segundos converteram-se em sacões. A sua velocidade acelerou-se. Já só sentia as saliências das telhas, o frio da noite, a amplidão do abismo que a esperava, a aspirava. A morte. A paz. As trevas.

 

 Precipitou-se para lá do beiral e imbuiu-se da sensação do corpo a cair.

 

 Mas não caiu. Algo nela se aferrara à borda. Esquírolas sob os dedos, o vento gelado que balouçava da direita para a esquerda, e as suas mãos que se recusavam a largar a vida... A consciência de Diane nada mais podia: o corpo decidira por ela. Era uma coligação dos seus músculos, dos seus nervos, para sobreviver.

 

 De repente, duas mãos agarraram-lhe os pulsos. Ela sufocou ao erguer o olhar. Um pouco acima, o rosto de Giovanni, e essa expressão de pasmo de que ele tinha o segredo, recortaram-se no céu. O italiano desapareceu outra vez. Diane ouviu os seus arquejos de esforço e depois sentiu-se içada de um só ímpeto. Tombou sobre o telhado como um saco, derreada, abatida.

 

 Está bem? perguntou Giovanni. Ela só conseguiu balbuciar:

 

 Tenho frio.

 

 Ele despiu a camisola e cobriu-lhe os ombros. Interrogou-a:

 

 O que aconteceu?

 

 Diane enovelou-se toda sem responder. Giovanni ajoelhou-se. A sua voz vibrava na noite:

 

 Os monges... Descobriram... um morto num dos quartos...

 

 Apertando os joelhos entre os braços, ela balanceava-se com lentidão, de trás para a frente:

 

 Tenho frio.

 

 O italiano hesitou; em seguida, segredou:

 

 É melhor descer. A polícia não tarda aí.

 

 Diane olhou-o, quase espantada com a sua presença. Fitou aquelas feições delicadas de menino mimado, aquele espanto de homem normal vivendo no seio de um mundo normal. Por fim, bichanou:

 

 Giovanni... vai ter de aprender...

 

Aprender?

 

 Ela adivinhava que as lágrimas iluminavam as suas faces:

 

 Aprender a conhecer-me.

 

 Os monges, ensonados, estavam sentados lado a lado ao longo do corredor mal iluminado. Os polícias ou militares, Diane não sabia bem haviam optado por uma rusga maciça, esvaziando o mosteiro da sua população e levando toda a gente para um edifício administrativo algures em Ulan Bator. Era um gigantesco cubo de cimento, atravessado por compridos corredores, e disposto em pequenas divisões de paredes nuas e janelas de vidraças partidas, colmatadas com cartão. O soalho estava todo esburacado e os tabiques tão fendidos que desenhavam, na penumbra, os contornos de árvores fossilizadas.

 

 Diane e Giovanni tinham beneficiado de um tratamento especial. Aguardavam no gabinete de um oficial, junto de uma salamandra enegrecida e desesperadamente apagada. Encapuchados, tiritavam sem que conseguissem aquecer-se. Por alguma razão misteriosa ou por causa da barafunda, encontravam-se sozinhos no compartimento, tendo por única companhia a mala e as roupas retiradas do quarto da vítima. Após um breve olhar pela fisga da porta, Diane aproximou-se destes objectos.

 

 O que está a fazer?

 

 A voz de Giovanni, na obscuridade gélida, possuía um cunho irreal, quase mágico. Ela respondeu, sem sequer o olhar:

 

É fácil de perceber, estou a vasculhar.

 

 Diane mergulhou a mão nos bolsos do casaco de lã preta, pescou um passaporte de capa verde-azeitona. Identificou a sigla dourada e as letras gravadas: República Checa. Folheou as páginas e leu o nome: JOCHUM HUGO. Reconheceu a fotografia sem custo: era o velho de óculos escuros que jantara atrás deles, poucas horas antes, na cantina do mosteiro. Um rosto engelhado e acobreado, com a testa malhada de manchas castanhas.

 

 Sem sombra de dúvida, outro membro do Tokamak a caminho do anel de pedra. Rebuscou nas restantes algibeiras, mas não encontrou nada. Giovanni aproximara-se:

 

 Endoideceu ou quê?

 

 Diane manipulava agora a mala. Não estava fechada à chave. Em poucos gestos rápidos, remexeu no conteúdo. Roupa cara, pulôveres de caxemira, camisas de marca. O homem parecia dispor de meios muito acima da maioria dos checos. Continuou à procura. Dois pacotes de cigarros. Um envelope contendo dois mil dólares. E, no meio dos tecidos, um livro redigido em alemão, da autoria de Hugo Jochum, publicado por uma editora universitária. Giovanni sussurrou:

 

 Não está boa da cabeça, ainda vamos...

 

 Conhece a língua alemã?

 

 Hem? Sim... mas, eu... Ela atirou-lhe o livro:

 

 Traduza-me isto. A contracapa. A apresentação do autor. O italiano deitou um olhar na direcção da porta. Reinava um silêncio completo para lá do limiar: ninguém diria que umas trinta pessoas estavam ali sentadas, à espera de um hipotético interrogatório. A tremer, Giovanni concentrou-se na leitura.

 

 Diane prosseguia as suas buscas. Nem uma arma, nem mesmo uma faca, nada. O homem não era desconfiado. E conhecia o país: a sua mala não continha qualquer guia nem o mais pequeno mapa. Giovanni disse subitamente:

 

É incrível.

 

Ela voltou-se. O contrário é que a teria espantado. Fez um sinal convidando-o a explicar-se melhor.

 

 Era professor de Geologia no Instituto Politécnico Carlos, em Praga.

 

 Porque acha incrível?

 

 Também era feiticeiro. Segundo esta nota, tinha o dom de detectar nascentes profundas na terra. Falam aqui de um verdadeiro poder sobrenatural. Na qualidade de cientista, Jochum estudava estes fenómenos no seu próprio corpo.

 

 Mentalmente, Diane completou a lista dos parapsicólogos do TK 17: Eugen Talikh e a bioastronomia, Rolf van Kaen e a acupunctura, Philippe Thomas e a psicocinese. E agora, Hugo Jochum e o magnetismo humano.

 

 Surgiu uma silhueta no limiar do compartimento.

 

 Diane só teve tempo de fechar a mala depois de Giovanni ter atirado o livro lá para dentro. Os dois companheiros voltaram-se, de mãos atrás das costas.

 

 O recém-chegado era o homem que comandara a rusga no mosteiro: um colosso de gorro preto, enfarpelado num casaco de cabedal. O chefe da polícia ou coisa parecida. Empunhava os passaportes dos dois europeus, como se quisesse dar a entender quem era o gato e quem eram os ratos.

 

 Dirigiu-se directamente a Giovanni, em língua mongol, sílabas marteladas e contrapontos guturais. O adido de embaixada anuiu cheio de solicitude. Em seguida, manuseando os óculos sobre o nariz como se fossem um instrumento de cirurgia fina, disse muito baixinho a Diane: |

 

 Deseja que vamos ver o corpo com ele.

 

 Não era uma morgue, nem sequer um hospital. Diane supôs que se tratava antes da Faculdade de Medicina ou da Academia das Ciências de Ulan Bator.

 

 Entraram num anfiteatro intensamente iluminado. O chão era de terra batida. As filas de assentos sobrelevados por carteiras escalonavam-se em círculo até ao tecto. À esquerda, por cima de um quadro preto, uns vastos painéis ainda ostentavam os perfis de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Hitch Lenine.

 

 No centro da plateia, havia uma mesa de ferro pregada ao solo.

 

 E sobre esta mesa, achava-se o corpo.

 

 De ambos os lados, estavam postados dois enfermeiros, imóveis. Envergavam compridos aventais de plástico que cobriam as suas vestes tradicionais. Junto deles, polícias de casaco acolchoado, à maneira chinesa, boné bordado a ouro e vermelho, batiam com os pés na terra gelada, soprando nas mãos para se aquecerem.

 

 O chefe da polícia aproximou-se, seguido por Diane e Giovanni. Ela não compreendia o motivo pelo qual o mongol os trouxera aqui. Não podiam ser considerados suspeitos neste caso, nem mesmo testemunhas ela nada dissera do seu confronto com o assassino. Supunha que o chui de casaco de cabedal os associava à vítima, pela simples razão de que eram os únicos outros ocupantes de origem caucasiana do mosteiro.

 

 Com um gesto brusco, o homem destapou o rosto e o torso de Hugojochum.

 

 Diane observou o rosto magro, de traços angulosos, aureolado de cabelo amarelado. A carne, esticada sobre os ossos, tinha a cor amarela do âmbar fossilizado. Um pormenor, todavia, atraía toda a sua atenção: o cadáver tinha a pele constelada de manchas castanhas. No peito, estas marcas de velhice multiplicavam-se. Negras, granuladas, desenhando uma geografia incansável sobre a carne. Por breves instantes, ela pensou na pelagem de um leopardo.

 

 Em seguida, reparou na ligeira incisão sobre o eixo do esterno a marca do assassino. Cerrando os punhos dentro dos bolsos, Diane debruçou-se e examinou a ferida. O peito de Jochum estava levemente abaulado, como que solevantado a partir do interior. Este busto ainda exibia a marca do braço que passara sob as costelas, para atingir o coração através do calor dos órgãos.

 

 Ela ergueu os olhos: todos os homens a olhavam. Leu nos seus rostos consternados uma nova evidência. Em Paris, a técnica dos assassinatos nada significava, a não ser a patologia demente de um homicida. Em Ulan Bator, era diferente. Toda a gente conhecia esta cicatriz. Toda a gente estava familiarizada com semelhante método. O assassino matava, voluntariamente, as suas presas do mesmo modo que mataria animais. Rebaixava, mediante tal ferimento, as suas vítimas à categoria de bichos. Lembrou-se de Eugen Talikh e da convicção que a assaltara no corredor do mosteiro. Se era realmente ele o culpado, como explicar que um físico inofensivo se tivesse transformado num matador selvagem? Exerceria alguma vingança? Qual podia ser a falta destes homens para serem mortos como animais?

 

 O polícia deu um passo e colocou-se à frente de Diane. Ainda segurava os dois passaportes. Dirigiu-se a Giovanni sem tirar os olhos dela. O italiano aproximou-se por seu turno e falou-lhe numa voz sumida:

 

 Ele quer saber se conhece este homem.

 

Diane disse que não com a cabeça. Temia agora que o polícia os retivesse ali, em nome do inquérito ou de um qualquer procedimento. Ora, a verdade é que já só dispunha de três dias para chegar ao Tokamak. Em voz baixa, conta os seus receios a Giovanni. O diplomata encetou um breve diálogo com o gigante. Contra todas as expectativas, o colosso desatou a rir e concluiu por uma concisa réplica. Diane interrogou:

 

 O que disse ele?

 

 Temos as autorizações oficiais. Não há qualquer motivo para nos reter.

 

 O que o levou a rir-se assim?

 

 Julga que, dê lá por onde der, não teremos hipótese de nos escapulir.

 

 Porquê?

 

 O italiano endereçou um sorriso cortês ao polícia e depois olhou para Diane de soslaio.

 

 Ele disse, textualmente: ”Pode-se sempre escapar de uma prisão. Mas da liberdade?

 

O Tupolev já nem sequer possuía assentos nem cabina. Era um avião de carga, de fuselagem cinzenta, com um comprimento de cem metros e munido de redes para as pessoas se agarrarem ou meterem as bagagens. Apertados uns contra os outros, várias centenas de mongóis estavam ali instalados, torcidos sobre os seus sacos, as suas caixas de cartão, as suas trouxas, tentando refrear crianças e carneiros.

 

 Diane acocorara-se no meio da multidão. Mostrava um desassossego que tocava as raias da histeria. Não dormira, mas não sentia a mínima fadiga. Nem sequer a afligiam dores após o confronto sobre o telhado. A violência da noite parecia tê-la atravessado de lado a lado sem deixar vestígios aparentes, excepto um intenso nervosismo, uma vibração no interior do corpo.

 

 Apesar do homicídio, apesar dos mistérios do mosteiro, apesar do facto de Diane, com toda a evidência, lhe haver revelado um pouco menos de dez por cento da verdade, Giovanni não se esquivara queria conduzir este périplo até à fronteira siberiana. Despachando-se a fechar o saco, a beber um chá bem quente, os dois parceiros tinham logo tomado o caminho do aeroporto a fim de apanharem o voo semanal para Mõròn, terriola situada quinhentos quilómetros a noroeste da capital.

 

O avião voava há mais de uma hora. O ronco dos reactores ensurdecia os tímpanos, entorpecia os membros. Nem mesmo os carneiros se mexiam, petrificados como estatuetas. Só Diane continuava a agitar-se, levantando-se, anichando-se de novo entre os sacos e os passageiros. Procurava recobrar a calma observando os homens e as mulheres que a rodeavam.

 

 Os rostos já não eram os mesmos que em Ulan Bator. Os homens apresentavam a tez trigueira, a pele escalavrada, ao passo que as mulheres e as crianças possuíam uma cútis diáfana, imaculada. Diane também contemplava os tons deslumbrantes das deels. Havia ali gamas de azul, de verde, de amarelo, esplandecências de branco, de vermelho, restolhadas de laranja, de rosa, de violeta...

 

 Diane indicou um garoto sentado ao pé de si, numa caixa de cartão amolgada, e perguntou a Giovanni:

 

 Qual é o nome dele?

 

 O italiano interrogou a mãe, escutou a resposta e depois traduziu:

 

 Khoserdene: Dupla Jóia. Na Mongólia, todos os nomes próprios possuem um significado.

 

 E o daquele? quis saber Diane.

 

 Apontava agora para um menino mais jovem, aconchegado nos braços de uma mulher com um turbante cor de anil.

 

 Sol de Março, traduziu o adido.

 

 E aquele ali?

 

 Armadura de Ferro.

 

 Diane pôs cobro ao jogo das perguntas. Fixava agora os lenços das mulheres, que lhes cingiam as cabeleiras pretas. Entre os motivos estampados, reconhecia alguns animais. Renas de chifres soberanos, águias cujas asas terminavam em debruns de ouro, ursos cujas patas se ramificavam em frescos castanhos. Quando olhava melhor, distinguia ainda outra coisa. Graças aos reflexos de seda, os chifres, as asas, as patas tornavam-se braços, silhuetas, rostos humanos... Na verdade, em cada tecido eram possíveis as duas leituras. Tratava-se de uma espécie de segredo de duas faces, cúmplice da luz. Diane pressentia que este efeito de óptica era propositado e tinha a sua importância.

 

 Na taiga, explicou Giovanni, o homem e o animal identificam-se. Para sobreviver na floresta, o caçador inspira-se sempre na fauna. Colhe aí os seus próprios métodos de adaptação. O animal é simultaneamente uma presa e um modelo. Um inimigo e um colaborador.

 

 O italiano falava muito alto para cobrir o ronco do avião:

 

 No caso dos xamãs, a coisa vai mais longe. Segundo as crenças antigas, eles têm o poder de se transformar verdadeiramente em animais. Quando lhes incumbe comunicar com os espíritos, vão para a floresta, abandonam os hábitos dos homens já não comem carne cozida, por exemplo, e depois sofrem a última transmutação a fim de entrarem no mundo dos espíritos.

 

 O adido calou-se por momentos para retomar o fôlego; em seguida abeirou-se de Diane, como se quisesse confiar-lhe um segredo. As paredes cinzentas da carlinga receberam o sol nos vidros, assim transformados em dois vasos de bronze.

 

É muito conhecida uma tradição tsevena: na época em que ainda existiam, os xamãs de cada clã deviam comparecer em lugares secretos e defrontar-se, sob a forma do seu animal fetiche. Estes combates apavoravam os tsevens e representavam para eles um lance crucial.

 

 Porquê?

 

 Porque o xamã vencedor adquiria os poderes do vencido e trazia-os para o seio do seu clã.

 

 Diane fechou os olhos. Havia mais de dez anos que estudava os predadores, analisava os seus comportamentos, espreitava as suas reacções. O intuito de tais pesquisas era só um: compreender a violência destes animais e, porventura, descortinar o fundamento dela.

 

 Semelhantes tradições xamânicas não estavam assim tão longe das suas próprias preocupações. E seduzia-a a ideia de um duelo sem misericórdia travado por homens-animais. Ela mesma se refugeara no espírito dos predadores para sobreviver, moralmente, após o acidente da sua adolescência.

 

Reabriu os olhos e contemplou, através da luz polvilhada do avião, os passageiros enroupados nas deels variegadas, os lenços furta-cores das mulheres. De um modo estranho, experimentou o sentimento de que também ela tinha encontro marcado nos confins da taiga.

 

 Encontro marcado consigo mesma.

 

 Ao fim da tarde, quando viajavam a bordo do segundo avião um biplano minúsculo, vacilante nos ventos e nas nuvens, a estepe cobriu-se abruptamente de florestas imensas. As colinas elevaram-se em vertentes de vermelho e ouro, as clareiras aprofundaram-se em matizes escuros, a terra pôs-se a cintilar em centenas de ribeiros. Estavam a chegar à fronteira setentrional do país. Às portas da Sibéria.

 

 Em vez de sentir uma renovação de energia face a tanta beleza, Diane sentia o cansaço que sobre ela se abatia. Giovanni, pelo contrário, exaltava-se perante a visão de tal paisagem. ”A região dos lagos. A Suíça mongol!”berrou ele aproximando-se da vigia. Sacou de um mapa, recostou-se ao fundo da carlinga e fez os seus comentários em voz alta, sempre a gritar para cobrir o estrépito das hélices: ”Vai ser uma viagem incrível. Somos pioneiros, Diane!”

 

 Dezoito horas. Aterragem na planície. Tsagaan-Nuur só comportava umas trinta barracas: isbás pintadas em tons pastel. Se os passageiros do avião de Mõròn não haviam manifestado o mais pequeno interesse pelos viajantes europeus, a atenção dos autóctones despertou bruscamente aqui, sobretudo no tocante a Diane e ao seu cabelo louro enrolado em espiral que transbordava da chapka.

 

 Enquanto Giovanni conversava com um velho criador de renas, Diane aproximou-se da cerca que abrigava os cervídeos. Pequenos, mosqueados de preto ou de branco, lembravam modelos reduzidos, oscilando entre o animal em pelúcia e a figurinha de granito. Só as hastes lhes conferiam alguma nobreza. Cada bicho tinha a cabeça coroada de galhos revestidos de uma espécie de veludo cinzento, que se esfiapava nesta estação.

 

 O etnólogo veio explicar a situação a Diane. O criador podia alugar-lhes seis ou sete montadas, mas com uma condição: queria primeiramente avaliar a aptidão deles para cavalgar as renas. Ferido no seu amor-próprio, Giovanni resolveu montar logo um dos animais. À terceira queda, pareceu farto dos risos dos mongóis, agrupados em massa para assistir ao espectáculo. À quinta, verificou o equipamento: porque motivo não estava a sela fixada? À sétima, admitiu em voz alta a possibilidade de uma viagem a pé. Por fim, o proprietário dignou-se dar algumas explicações. A pelagem das renas era tão lisa que não aderia a nenhum material tornava-se assim impossível prender a mais pequena cilha. Ao invés, devia-se deixar os arreios livres e afazer-se ao andamento do animal flutuar sobre o seu dorso, imprimindo a direcção por meio do cachaço. Juntando os actos à palavra, o criador cavalgou um dos bichos e deu uma volta ao cercado.

 

 Diane e Giovanni iniciaram a aprendizagem. Houve novas quedas, novos risos. Encharcados, enlameados, os dois viajantes entregaram-se à atmosfera jovial da aldeia. Diane, quando largava as estribeiras, era tão alta que podia cavalgar a montada e pousar os pés no chão. Esta desmesura provocava a hilaridade dos espectadores. No meio da explosão de alegria, os companheiros pareciam finalmente harmonizar os seus humores.

 

Acima de tudo, depois de cada mergulho, depois de cada riso, apoderava-se de ambos uma secreta melancolia. Erguiam os olhos e descobriam as elevadas escarpas da cordilheira Khoridol Saridag que fechavam o horizonte, num silêncio de Quartzo. O vento dourado do crepúsculo recuperava de repente os seus direitos, fustigando os rostos afogueados de ambos.

 

O olhar de Diane cruzava-se então com o de Giovanni e eles percebiam subitamente, quando a erva se deitava em longas vagas langorosas, o que lhes murmurava cada rajada: canções tristes de corações magoados, de distância sem regresso. Ao anoitecer, sabendo finalmente montar os pequenos dorsos cinzentos, tinham ainda surpreendido outro segredo: a nostalgia inquieta da taiga.

 

 O périplo começou ao alvorecer. Diane e Giovanni eram afinal escoltados pelo criador de renas e o seu filho. Sete montadas compunham a caravana, três das quais transportavam a bagagem: espingardas, gamelas, lonas e estacas de tendas militares soviéticas, quartos de carneiro envolvidos em panos e uma data de elementos que Diane renunciara a identificar. A cadência era lenta. As renas avançavam em pequenos passos, fendendo a ondulação das planícies, insinuando-se sob a folhagem avermelhada, firmando-se sobre os primeiros morros de pedra, em estampidos de cascalho. Era um ambiente sossegado, sem perigo, e poderia até ser monótono se a tortura do frio não se fizesse sentir.

 

 Este infiltrava-se no mínimo interstício das roupas, revestido a pele de uma membrana de gelo, petrificando os membros, gelando os dedos dos pés e das mãos. A cada hora, era indispensável parar a fim de andar um pouco, fazer movimentos, beber chá tentar reviver. Enquanto os mongóis raspavam o interior das pálpebras com uma faca, Diane e Giovanni permaneciam imóveis, tiritantes, incapazes de dizer uma palavra, batendo com os pés dormentes no chão. Nem pensar em tirar as luvas a mais pequena superfície de pedra gelada arrancar-lhes-ia as palmas. Também se devia evitar ingerir bebidas muito quentes, pois o esmalte dos dentes estalava sob uma grande amplitude térmica. Quando os cavaleiros subiam finalmente para as renas, com o corpo ainda pouco solto, pesava-lhes no coração um gosto a derrota, a morte invencível: o frio não os abandonara.

 

 Outras vezes, pelo contrário, o sol abatia-se em tórridos raios. Cada viajante devia então encapuchar-se para se proteger da fornalha, como em pleno deserto. O escaldão do vento tornava-se tão cruel, tão voraz, que parecia inverter o seu próprio movimento, descolar a epiderme do rosto em finas películas calcinadas. Depois, de repente, o disco ofuscante eclipsava-se e a montanha reencontrava a sua profundeza funesta. O frio vinha outra vez aferrolhar-se em torno dos ossos, à maneira de uma canga de gelo.

 

 Ao princípio da tarde, atingiram o desfiladeiro a três mil metros de altitude. A paisagem metamorfoseou-se. Sob as nuvens, tudo se tornou negro, lunar, estéril. As ervas crisparam-se em musgos e líquenes. As árvores espaçaram-se, descarnaram-se, depois desapareceram completamente, cedendo o lugar a rochedos cor de azebre, abismos de pedra, flechas austeras. Por vezes, o desfiladeiro atravessava pântanos monótonos, cobertos por algumas coníferas. Outras vezes, a paisagem parecia literalmente sangrar, revelando pequenas áreas de urze cujas flores violáceas se assemelhavam à hemoglobina. A tundra, a terra de entranhas geladas, inacessível e esquecida, envolvia-os como uma maldição.

 

 No céu, Diane observava as aves migradoras, que voavam na direcção inversa ao encontro do calor. Via-as a afastarem-se com um manso orgulho. Lábios esbranquiçados por um baton protector, óculos apertados sobre as têmporas, estava mais do que nunca decidida a subir as montanhas. Encaixava cada sensação, cada sofrimento, retirando mesmo um prazer ambíguo. Via em tal périplo uma espécie de prova legítima. Precisava de calcorrear estes flancos de penedia, suportar o frio, a fornalha, este deserto de granito e de aspereza.

 

 Na realidade, tratava-se da terra de Lucien.

 

 Parecia-lhe recuar às origens da criança. Os alcantis que a rodeavam, os obstáculos que se erguiam, as gretas que laceravam a sua pele formavam as etapas necessárias de uma espécie de parto. Os laços que a uniam ao filho adoptivo reforçavam-se neste corredor de granito. A viagem implacável, sem piedade, era o seu modo de dar à luz. Um parto de geada e de lume, que iria abrir-se para uma união total com o menino se ela sobrevivesse.

 

 Notou de repente que a paisagem voltava a transformar-se. Uma amenidade, um rumorejo atenuavam agora a dureza do meio. Flocos gráceis pairavam no ar e cobriam aos poucos a tundra. Uma brancura imaculada salpicava os ramos, abrandava os ângulos, modelava cada forma, cada contorno como uma obra dulcificada, íntima. Diane sorriu. Estavam a chegar ao alto da encosta e pisavam desde já o domínio sagrado da neve. A caravana evoluía no seio de uma claridade cada vez mais ténue, cada vez mais transparente, na exacta fronteira da terra, da água e do ar.

 

 Insensivelmente, o cortejo afrouxou, enlanguescendo ao ritmo dos passos silenciosos das renas. O criador mongol começou a gritar. Os bichos, esgotados, bramiram por seu turno, tomaram outra cadência, transpondo a fronteira branca e aproximando-se gradualmente do outro lado da montanha. A terra aplanou-se, pareceu hesitar, fundiu-se num declive, primeiro suave, depois íngreme, que desceu através dos montões de neve juntados pelo vento e dos tapetes de musgo. A erva reapareceu, as árvores multiplicaram-se. Nisto, os cavaleiros alcançaram a vertente que se abria, lá em baixo, para o último vale.

 

 Os cimos das larices desdobravam-se em brumas abrasadas. As folhas das bétulas derramavam-se em ocre e púrpura ou por vezes, já secas, torciam-se em cinzelados cinzentos. Os abetos borbulhavam de sombra e de verde. Mais abaixo, as pastagens desferiam tal resplendência, tal frescura, que suscitavam um sentimento absolutamente novo um espanto infantil, uma renovação do sangue. Antes de tudo, ao fundo deste imenso berço, havia o lago

Tsagaan-Nuur.

 

O Lago Branco.

 

 Por sobre as águas imaculadas, erguiam-se as montanhas da cordilheira Khoridol Saridag, azuis e brancas, ao passo que por baixo delas, nas vagas destas águas absolutamente imóveis, os mesmos cumes se desdobravam, de cabeça para baixo, parecendo prostar-se perante os seus modelos e, ao mesmo tempo, superando-os em pureza e majestade. Havia uma paz. Um amor. Selado num amplexo perturbante, ali onde as verdadeiras montanhas e as suas raízes de água se uniam numa linha dúbia e misteriosa.

 

 O cortejo estacou, atónito de deslumbramento. Só ressoavam os tinidos dos estribos e a respiração rouca das renas. Diane teve de fazer um esforço para se manter em equilíbrio na montada. Enfiou o polegar sob as lentes para limpar as gotinhas de condensação que lhe turvavam a vista.

 

 Mas não o conseguiu.

 

 Na verdade, eram lágrimas que escorriam das suas pálpebras de gelo.

 

 Nessa noite, instalaram-se à beira do lago. Armaram as tendas sob as ramagens dos abetos e depois jantaram cá fora, apesar do frio. Depois de uma prece aos espíritos, os dois mongóis prepararam a sua ementa tradicional: carneiro cozido e chá aromatizado com gordura animal. Nunca Diane julgaria ser capaz de tragar tais iguarias. No entanto, nesse jantar, como na véspera, devorou a sua parte, sem uma palavra, aninhada junto à fogueira.

 

 Por cima deles, o céu estava de uma pureza absoluta. Diane admirara muitas vezes céus nocturnos, designadamente nos desertos de África, mas não se lembrava de ter contemplado um espectáculo de uma nitidez, de uma proximidade tão violentas. Experimentava a sensação de se achar situada exactamente por baixo da explosão inicial. A Via Láctea desdobrava as suas miríades de estrelas numa sarabanda sem limites. Por vezes, as concentrações estelares eram tão intensas que fervilhavam de fogos ofuscantes. Outras vezes, pelo contrário, estiolavam-se em brumas de nácar. Noutros pontos, ainda, os bordos extremos da ronda perdiam-se em cintilâncias frementes, como que prestes a evaporarem-se na imensidade intersideral.

 

 Baixando os olhos, Diane apercebeu-se de que os guias, sentados a uns metros de distância, conversavam com um recém-chegado encoberto pela sombra. Decerto algum criador de renas solitário que avistara o lume e viera até ali para partilhar da comida. Ela pôs-se à escuta. Era a primeira vez que ouvia atentamente a língua mongol, uma sequência de sílabas roucas, singularmente pautada por jotas espanhóis e vogais onduladas. O recém-vindo estendia o braço na direcção do céu.

 

 Giovanni?

 

 O italiano, encolhido no fundo do seu anoraque, levantou a borda do gorro. Ela perguntou:

 

 Sabe quem é?

 

 Giovanni meteu novamente as mãos nos bolsos.

 

 Uma pessoa daqui, suponho eu. Tem uma pronúncia esquisita.

 

 Compreende o que ele diz?

 

 Está contar velhas lendas. Histórias tsevenas.

 

 Diane endireitou-se.

 

 Acha que é um tseven?

 

 Que teimosa! Já lhe disse e repito-lhe que esse povo se extinguiu!

 

 Mas se ele conta umas...

 

Fazem parte do folclore da região. Ao transpor o desfiladeiro, penetrámos no território das etnias turcas. Aqui, toda a gente tem um pouco de sangue tseven. Ou, pelo menos, toda a gente conhece estas velhas histórias. Não significa nada de especial.

 

 Mas não pode perguntar-lhe?

 

 O italiano suspirou, levantando-se por sua vez. Giovanni começou por fazer as apresentações. O visitante chamava-se Gambokhuu. Dir-se-ia uma velha máscara de papel encarquilhado. Sob o claror das estrelas, a sua fácies abrigava sombras inquietantes. O etnólogo traduzia as respostas:

 

 Diz que é mongol. E que é pescador no Lago Branco. Já cá estava quando o Tokamak funcionava? Giovanni dirigiu-se ao pescador, em seguida esclareceu:

 

 Nasceu aqui. Recorda-se perfeitamente do anel. Diane sentia correr uma nova febre sob a pele: pela primeira vez, encontrava-se diante de um homem que fora testemunha do círculo de pedra em funções. Prosseguiu:

 

 O que sabe ele acerca das actividades do Tokamak?

 

 Diane, com franqueza, é um pescador. Não pode...

 

 Pergunte-lhe!

 

 Giovanni obedeceu. O vento gelado agitava os abetos, insuflando na noite um perfume de resina tão forte, tão grave que irritava a garganta como o fumo de uma fogueira. Diane sentia-se cercada, impregnada pela textura da taiga. O velho mongol abanava a cabeça.

 

 Não quer falar, explicou o italiano. Aos olhos dele, o local era maldito.

 

 Maldito porquê? (Diane elevava o tom.) Insista: é muito importante para mim!

 

 O etnólogo observou-a cheio de suspeição. Diane acrescentou de uma maneira mais calma:

 

 Giovanni, por favor.

 

 O italiano continuou o diálogo com o pescador. Com um só gesto, o homem sacou de um cachimbo, uma espécie de chave metálica dobrada em cotovelo, atafulhando-o pacientemente de tabaco. Depois de se servir da sua minúscula acendalha, consentiu em falar. Giovanni efectuou uma tradução simultânea:

 

 Ele refere principalmente o laboratório de parapsicologia. Recorda-se dos grupos que chegavam da fronteira siberiana por via-férrea. Comboios atestados de xamãs, que eram levados para um dos edifícios do recinto. Toda a gente falava destas vindas. No entender dos operários, não podia haver profanação mais atroz. Aprisionar feiticeiros era desafiar os espíritos.

 

 Pergunte-lhe se sabe ao certo o que se passava no laboratório.

 

 Giovanni fez a pergunta, mas o visitante já não se mexia. O seu cachimbo aceso piscava à semelhança de um farol longínquo.

 

 Não quer responder, concluiu o italiano. Limita-se a repetir que o lugar era maldito.

 

Porquê? Por causa das experiências?

 

 Diane quase berrara. Inopinadamente a voz de corda velha retomou a palavra entre duas palpitações das brasas.

 

 Afirma que o sangue correu, informou o etnólogo. Que os cientistas eram loucos, que eles faziam experiências horríveis. Não sabe mais nada. Repete que o sangue correu. E que foi por isso que os espíritos se vingaram.

 

 Como é que se vingaram?

 

 Gambokhuu parecia agora decidido a ir até ao fim. Falava sem esperar pela tradução de Giovanni. O etnólogo resumiu o fluxo de palavras:

 

 Provocaram o acidente.

 

 Que acidente?

 

 A expressão de Giovanni endureceu na noite. Segredou:

 

 Na Primavera de 1972, o anel de pedra explodiu. Um relâmpago atravessou-o.

 

 Pareceu a Diane que este relâmpago a rasgava a si mesma. Centrara sempre a sua atenção no laboratório de parapsicologia, pensando que o drama original sobreviera por ocasião das pesquisas sobre os estados de fronteira. Mas a derradeira tragédia brotara na realidade da máquina infernal. Perguntou então:

 

 Houve vítimas?

 

 Giovanni interrogou o homem e ficou a ouvir a resposta, lívido.

 

 Fala de cento e cinquenta mortos, pelo menos. Diz que todos os operários estavam presentes no anel quando a máquina explodiu. Uma operação de manutenção, não compreendi bem. O plasma atravessou o conduto e queimou-os vivos.

 

 Gambokhuu não cessava agora de repetir a mesma palavra, uma palavra que Diane reconhecia.

 

 Por que fala dos tsevens? quis ela saber.

 

 Todos os operários eram tsevens. Os últimos da região. Sendo assim, Diane e Giovanni tinham ambos razão. O povo solitário fora inicialmente aniquilado pela opressão soviética, mas alguns dos seus membros haviam sobrevivido. Sedentarizados, prostrados num kolkhoze, tinham-se convertido em operários subjugados, votados à morte nuclear. O etnólogo prosseguia:

 

 Ele diz que alguns sobreviventes amparavam os intestinos nas mãos, que as mulheres se recusavam a cuidar dos maridos porque os não reconheciam. Diz que muitos moribundos berravam, apesar das feridas, que tinham sede. Quando morreram, as suas maxilas quebraram-se como vidro. Havia tantas moscas sobre os agonizantes que já não se sabia se eram queimaduras ou bicharocos que pululavam sobre os seus corpos...

 

 Diane pensava nos outros sobreviventes, nos que haviam julgado escapar à queimadura. Não conhecia as consequências exactas da radioactividade do trítio, mas estava a par das sequelas da radiação por urânio. Em Hiroxima, os aparentemente salvos tinham compreendido, durante as semanas subsequentes à explosão, que a própria noção de sobrevivência não pertencia ao mundo do átomo. Tinham começado por perder o cabelo e depois padecido de diarreias, vómitos, hemorragias internas. Apareceram então as doenças irreversíveis: cancros, leucemias, tumores... Os operários tsevens deviam ter enfrentado estes mesmos tormentos. Para já não falar das mulheres que, meses após a explosão, tinham parido monstros, ou das que nunca mais tinham engravidado, pois a infecção atómica destruíra as células seminais.

 

 Diane perscrutou o céu. Negava-se a toda a compaixão. Não devia desalentar-se nem apiedar-se, mas conservar as suas faculdades de dedução a fim de arrancar alguma luz a estes factos novos. A recordação de Eugen Talikh surgiu na sua memória: indirectamente, o físico lançara a desgraça e a morte sobre o seu próprio povo ao organizar ensaios nucleares. O cientista genial, o grande herói tseven provocara a extinção da sua própria etnia...

 

 Entretanto, ocorreu-lhe outra ideia. Admitindo que Eugen Talikh não se implicara directamente no ensaio fatal, supondo que o acidente não fora da sua responsabilidade, não haveria aqui um irredutível motivo de vingança? Diane forjou uma nova hipótese. E se, por uma razão que ela ainda ignorava, a culpa do abrasamento tivesse sido dos investigadores do laboratório de parapsicologia? Talikh, o plácido trânsfuga, não poderia porventura transformar-se num feroz assassino ao tomar conhecimento de que os investigadores iam voltar ao lugar do crime?

 

 Diane acordou à primeira claridade do dia. Vestiu-se, enfiou umas sobrecalças estanques e agasalhou-se na parca, antes de se cobrir com um poncho impermeável. Preparou a mochila: lanterna halogénea, cordas, gancho, pilhas sobresselentes. Não possuía nenhuma arma: nem sequer uma faca. Por breves instantes pensou em roubar uma espingarda aos mongóis que dormiam debaixo de uma das tendas ali ao pé, mas desistiu logo: era demasiado arriscado. Pôs a mochila ao ombro e saiu para a manhã.

 

 A geada envolvia tudo. A erva estava branca, sendo às vezes atravessada por charcos azulados. As gotas de orvalho reluziam na sua imobilidade gelada. Frágeis estalactites pendiam dos ramos das árvores. Todas estas cintilações pareciam mais vivas, mais luminosas por causa das brumas que as rodeavam, as afagavam, as cingiam de uma leve opacidade.

 

 Ao longe, ela adivinhava a presença das renas. Ouvia os seus cascos que faziam estalar as crostas de gelo, o seu bafo grave que escavava zonas de calor naquele mundo de frieza total. Imaginava-as ali, cinzentas, invisíveis no meio do nevoeiro, buscando o sal ao longo das pedras, dos líquenes, da casca dos troncos. Mais longe ainda, captava o marulhar constante do lago. Diane inalou o ar frio e observou o acampamento. Nem um movimento, nem um ruído: toda a gente dormia.

 

Embrenhou-se na mata, esforçando-se por não quebrar as moitas de cristal. Cem metros mais adiante, teve de parar a fim da fazer as necessidades, insultando-se a si mesma por não haver pensado nisto mais cedo, antes de se enroupar completamente. Atrás das árvores, desembaraçou-se o melhor que pôde das sobrecalças e agachou-se. Farejando o sal contido na urina, as renas acorreram imediatamente na sua direcção, causando um alarido de manada entre os ramos gelados. Ela só teve tempo de tornar a vestir-se e safar-se a toda a pressa. A boa distância] abrandou e desatou a rir. Um riso nervoso, crispado, silencioso, mas que a libertou. Meteu os polegares sob as correias da mochila e pôs-se em marcha. Ao chegar à beira do lago, sondou, à direita, a encosta do monte para além do qual, segundo os guias mongóis, se situava o Tokamak. Deviam ser uns dois quilómetros. Internou-se sob as larices e começou a subida. A sua respiração não tardou a tornar-se dolorosa, o corpo alagou-se em suor. As gotas de nevoeiro perlavam como jóias sobre o poncho. O seu bafo caía em chuva cristalina. Avistou covas de sombra no meio das ervas. Aproximou-se. Eram os leitos nocturnos de corças ou de gamos, ainda mornos da sua presença. Diane descalçou uma luva e acariciou os contornos deles com os dedos nus. Depois o seu olhar atardou-se nas raizes castanhas que lhe corriam entre os pés. Também as aflorou, saboreando a rugosidade. Continuou a subida. Só então se lembrou das palavras da Gambokhuu. A descrição da catástrofe atómica e da agonia das vítimas. As suas conclusões da véspera aprofundaram-sa desde logo. Por um motivo que ignorava, os parapsicólogos partilhavam de uma responsabilidade no falhanço do Tokamak. De uma ou de outra maneira, estavam ligados a este acidente. De súbito, despertaram no seu espírito uma série da recordações. Reviu a pele malhada de manchas castanhas da Hugo Jochum. A epiderme rosada de Philippe Thomas, cujo eczema provocava autênticas mudas. Lembrou-se igualmente de um pormenor sepulto na sua memória: a estranha atrofia do estômago de Rolf van Kaen, que o obrigava a ruminar frutos vermelhos...

 

 Como não pensara nisto ao ouvir o velho mongol?

 

 Os parapsicólogos também haviam sido atingidos pelas radiações.

 

 Todos eles traziam em si a marca da mordedura atómica, a qual deviam ter sofrido a maior distância e, logo, com menos força. Os estigmas da radioactividade podiam surgir ao cabo de decénios, sob a aparência de disformidades ou de doenças. A singularidade das sequelas destes homens explicava-se sem dúvida pela novidade da experiência. Na realidade, nunca ninguém fora exposto a uma radiação de trítio.

 

 Diane desenvolveu a sua hipótese: e se a explosão atómica, do mesmo modo que transtornara o metabolismo destes homens, tivesse modificado algo no seu espírito? O átomo talvez pudesse amplificar a suposta potência de uma consciência desenvolver poderes paranormais...

 

 Numa tal circunstância era difícil acreditar no acaso. Sendo assim, não ficaria mal imaginar que os investigadores se haviam voluntariamente exposto às radiações. Que eles tinham notado, paralelamente às suas próprias experiências, alguns sinais nos operários tsevens susceptíveis de levar a pensar que a exposição ao trítio provocava mutações mentais. Então os parapsicólogos haviam desencadeado o raio atómico no âmbito de uma experiência extrema. Algo falhara, um certo número de homens um povo tinham morrido, mas os aprendizes de feiticeiros haviam conseguido o resultado esperado. Os seus poderes aumentaram sob o efeito do átomo. Estes homens eram magos. Magos da era nuclear.

 

 Caminhando num passo resoluto através da floresta, aquecendo o sangue ao ritmo dos passos, Diane instalava-se gradualmente no cerne desta verdade. Agora todos os elementos se iam colando uns aos outros. O acidente resultara de uma sabotagem organizada por um punhado de cientistas. Eis porque Talikh os perseguia actualmente, tratando-os como animais no limiar da morte.

 

E assim, muito naturalmente, estes homens regressavam ao anel de pedra. Para renovar a experiência: expor-se à radiação e regenerar os seus poderes...

 

 Diane parou. Chegada ao topo do monte, via através do nevoeiro a depressão do novo vale.

 

 E no centro desta clareira, a imensa coroa do Tokamak.

 

 Diane pensou numa cidade. Em volta do anel de pedra, desdobrava-se por vários hectares um dédalo de edifícios, de estruturas enferrujadas cuja altura se perdia nas brumas. À direita, confinando com a montanha, erguiam-se as turbinas da central eléctrica que alimentara o circuito termonuclear. Continuou a descida e discerniu, para lá dos edifícios, abertos entre as paredes rochosas, os trilhos meio apagados de estradas e de vias-férreas. Graças a estas infra-estruturas, os soviéticos tinham transportado as equipas e o material indispensável à construção da obra. Diane sentia uma vertigem: quantos engenheiros, operários e rublos haviam sido tragados por este projecto que terminara numa labareda mortífera?

 

 Contornou a coroa pelo flanco ocidental. Sob os seus pés, as lajes de cimento substituíam a pouco e pouco a erva do solo. Galgou escombros, pedaços de ferralha, depois penetrou no primeiro edifício. No interior, o espaço estava compartimentado por divisórias nas quais se rasgavam aberturas com os vidros partidos.

 

 Ao fundo de um corredor, Diane emergiu num pátio de cimento em bruto cujas fissuras se enchiam de gelo e onde o pavimento abarrotava de cascalho e de agulhas de pinheiro. Ao aproximar-se, viu levantar voo gaivinas de bico vermelho.

 

O batimento das asas repercutiu-se nas paredes de betão, riscando de um traço carmim as superfícies esverdeadas. Não sentia medo algum. Este lugar era tão gigantesco, tão abandonado, que lhe parecia irreal. Enveredando pela esquerda, penetrou num bloco cujas janelas deixavam entrar a luz da aurora. Ia avançando sempre, ladeando muros rachados onde cresciam estevas e murtinhos.

 

 Passou por novas salas que abrigavam enxergas esfaceladas, utensilagens colossais, máquinas obscuras. Mais longe, deparou-se-lhe uma escada que descia para um nível inferior. Acendeu a lanterna. No fim dos degraus, Diane foi travada por uma fiada de barras verticais. Empurrou a grade, que estava aberta. Dominando a apreensão, mergulhou na galeria escura. Parecia-lhe que a sua própria respiração enchia todo o espaço.

 

 Era óbvio que se encontrava dentro de uns calabouços. O clarão da lanterna desvendava filas de celas repartidas por ambos os lados da sala. Simples compartimentos, separados por tabiques, onde ainda se viam correntes presas ao chão. Diane pensava nos xamãs ”das prisões e dos campos siberianos. Pensava nos asilos psiquiátricos russos onde tinham sido tratados milhares de dissidentes. O que sucedera naquele sítio secreto? A prisão ainda parecia ecoar dos gritos, dos gemidos dos feiticeiros tiritantes, apavorados, à espera de conhecerem a sua sorte ali no meio da escuridão.

 

 Ela distinguiu de repente, no feixe da lanterna, uma inscrição lavrada na parede. Aproximou-se. Eram letras cirílicas que Diane reconheceu imediatamente por já as ter contemplado nos arquivos do Instituto Kurchatov. Formavam o nome de TALIKH. Ao lado, estava gravada uma palavra que ela não compreendia, mas à qual se seguiam algarismos: 1972. Na sua consciência repercutiu-se um ruído branco, uma espécie de toada aturdida. Eugen Talikh, o grande chefe do Tokamak, também ali estivera encarcerado. Partilhara dos sofrimentos dos outros xamãs.

 

 Diane tentou conceber uma explicação. No fundo, este facto resolvia mais problemas do que levantava. Se o TK 17 fora teatro de experiências sádicas efectuadas sobre os feiticeiros, Eugen Talikh não pudera aprovar semelhantes práticas. Devia, ao invés, ter-se insurgido, ameaçado os torcionários de se queixar às instâncias do Partido. Tudo se invertera então. Os parapsicólogos, sem dúvida associados aos militares do sítio, haviam aprisionado o físico alegando um qualquer pretexto de antipatriotismo. Afinal de contas, um tseven era sempre um tseven. E os soldados russos deviam ter-se congratulado por poderem esmagar o orgulho desta pequena criatura de olhos em bico. Diane passou os dedos pela inscrição. Parecia-lhe sentir, incrustada na pedra, a cólera do investigador. Apesar de não saber decifrar aquelas patas de moscas, estava segura de que a data rondava a do acidente, na Primavera de 1972.

 

 Por conseguinte, não se enganara: no momento da explosão, Talikh já não dirigia o Tokamak estava na prisão, como um simples prisioneiro político.

 

 Diane tornou a subir os degraus e seguiu ao acaso, atordoada por esta descoberta. Levou algum tempo a notar que a arquitectura ganhava em grandeza. Os vãos das portas elevavam-se, os tectos guindavam-se a alturas desmedidas. Diane aproximava-se do Tokamak.

 

 Deu finalmente com uma porta blindada, rodeada de aço, equipada com um volante de abertura, como a de uma câmara submarina. Acima do alizar, estava pintada uma sigla vermelha já meio apagada: a hélice que anuncia, em todos os países do mundo, a proximidade de uma fonte de radioactividade.

 

 Diane colocou a lanterna entre os dentes e deitou as suas mãos enluvadas ao volante. À custa de grandes esforços, conseguiu desbloqueá-lo. Porfiando ainda mais, soltou-o completamente e depois puxou-o para si, de músculos tensos, rasgando os liames de líquen ao longo do alizar. A parede afastou-se subitamente e, em seguida, deslizou lateralmente sobre uma corrediça. Diane admirou-se: a espessura do bloco composto de duas partes iguais de betão e de chumbo devia exceder um metro.

 

 Transposto o limiar, aguardava-a nova surpresa: o corredor estava iluminado. Tubos fluorescentes difundiam uma violenta luz branca. Como é que a electricidade podia funcionar num lugar assim? Lembrou-se então dos outros membros do Tokamak. Já teriam chegado homens à rotunda? Nem mesmo isto a fazia recuar, agora que se achava tão perto do objectivo. Cheia de prudência, penetrou no círculo de pedra.

 

Diane encontrava-se num corredor circular de quinze metros de largura. No centro de tal artéria corria um conduto cilíndrico, círculo dentro do círculo, submerso sob aglomerados de fios, de bobinas, de imanes. Acima deste agregado elevavam-se arcos magnéticos que pareciam oferecer um patrocínio de aço a um tão estranho oleoduto. Dir-se-ia que tudo fora aqui concebido sob o signo do círculo, da curva, da sinuosidade...

 

 Ela abeirou-se. Os cabos enredados pendiam como lianas. As bobinas de cobre desfibravam-se com regularidade ao longo do circuito. Reluziam de um rosa-velho que destilava na boca um gosto a bombom já rançoso. Por baixo, geometrias de metal preto sustentavam o conjunto. Diane só estava a uns passos do conduto. Discernia, através da complexidade dos equipamentos, o casco de aço liso e preto, a câmara de vácuo onde, outrora, o plasma se aproximara da velocidade da luz, atingindo a temperatura de fusão das estrelas.

 

 Retomou a sua marcha prudente, procurando não causar ruído algum, restolho algum por entre o entulho que juncava o solo. Nunca se sentira tão minúscula, tão miserável. Aquela máquina pertencia a outra escala, a outra lógica. Diane experimentava uma angústia confusa diante deste edifício inteiramente forjado pela megalomania do homem pela vontade de violar as leis terrestres, de subverter a matéria nas suas mais profundas estruturas. Kamil evocara Prometeu, o ladrão do fogo celeste. Gambokhuu falara dos espíritos que se tinham vingado da audácia dos homens. Independentemente dos desafios lançados naquela rotunda, Diane compreendia que o Tokamak fora palco de uma profanação, de uma bravata contra forças superiores.

 

 Andou assim durante vários minutos, seguindo a curva do corredor, depois pensou em arrepiar caminho. Nada havia para ela dentro do círculo. Estes delírios tecnológicos não lhe ofereciam o mínimo indício e... O urro soou como uma vociferação de metal.

 

 Levou as mãos aos ouvidos. Logo este grito se repetiu ainda com mais violência. Era uma onda aguda, um volteio insustentável. Em estado de choque, Diane compreendeu então que a estridência não era um urro, mas um sinal de alarme: o Tokamak recomeçava a funcionar.

 

 Como uma confirmação maléfica, uma porta blindada que se recortava na parede, à direita, fechou-se violentamente e aferrolhou-se. Diane viu o volante rodar enquanto um farol vermelho se acendia acima do alizar. Parecia-lhe que todo o anel recobrava vida. Na verdade, todos os sítios de alto risco operavam do mesmo modo: em caso de alerta, a primeira medida consistia em isolar a zona perigosa, em cortar todas as saídas ainda que se sacrificasse uma presença humana. Assim tinham sido queimados vivos os tsevens. Assim iria ela morrer.

 

 Pensou na outra porta blindada que deixara aberta. Virou costas e deu à sola. Correu, correu, correu, de olhos afligidos pelos faróis giratórios, os ouvidos violentados pelo alarme. Ladeou várias portas que se encerravam sistematicamente à sua passagem. Teria alguma hipótese de correr mais depressa que este mecanismo de segurança?

 

 De repente, um estrondo vibrou sob os seus pés: o circuito punha-se em marcha. Os pensamentos agitaram-se na sua cabeça. Poderia desencadear-se uma onda eléctrica? Restariam gases de trítio na câmara de vácuo? Dentro de quanto tempo os átomos iriam transformar-se num arco de vários milhões de graus? Ela continuava a correr ao longo do anel com o coração em alvoroço. O ribombo amplificava-se. O tremor fazia oscilar as paredes, o chão, os cabos, traduzindo-se no seu corpo em ondas de terror. Vislumbrou finalmente a porta por onde entrara: ainda estava aberta. No mesmo instante, viu-a deslizar sobre a corrediça. Os rodízios negros giravam, os gonzos deslocavam-se lateralmente e depois a espessura de betão blindado veio encaixar-se no eixo do alizar.

 

 Diane deu um salto sobre-humano, passou pela fisga e sentiu a esquina de betão roçar-lhe as costelas. Tropeçou na soleira de aço, caiu, anichou-se logo contra a enorme porta que acabava de se aferrolhar. Esbaforida, incapaz sequer de pensar, não cessava no entanto de berrar, batendo com os calcanhares, descarregando os punhos contra o solo. O pânico libertava-se nela um pânico que vinha de longe, de todas as provações que já enfrentara.

 

 A sacudidela culminou e cortou-lhe a voz. A parede deu a impressão de saltitar verticalmente, tal qual a membrana de um recinto sonoro. Diane encolheu-se mais, de músculos contraídos, maxilares cerrados, sentindo o chão levantar-se numa vaga poderosa. Tudo isto não durou mais do que um instante. Um fragmento, uma migalha de segundo. Depois o silêncio impôs-se, rechaçou o tropel ensurdecedor do alerta. A sirene amainou. O chão recuperou a estabilidade. Diane permanecia imóvel, prostrada, de olhos fixos.

 

 Devagarinho, formaram-se novamente pensamentos no seu cérebro. Um facto, um murmúrio, subia lá longe, muito longe, do fundo da sua consciência: tudo acabara. A laboração do Tokamak só durara uns momentos. Os mecanismos de segurança, vestígios de outra época, haviam travado o ímpeto destruidor. Diane apercebeu-se de que encarava o circuito termonuclear como se este fosse uma entidade autónoma bicho ou vulcão. A verdade era diferente. Uma mão de homem provocara o novo arco eléctrico. Quem? E porquê? Para a matar a ela? Estava demasiado cansada para se interrogar mais. Demasiado esgotada para novas perguntas.

 

Fincou-se bem e ergueu-se. Notou então que o seu poncho se derretera do lado direito. Arrancou-o. A parca também estava enegrecida, rasgada numa comprida abertura. Diane mergulhou a mão no interior da abertura e encontrou a lã grossa, as fibras de poliéster. Igualmente queimadas. Com um só movimento, destapou o seu flanco. Da virilha ao sovaco, a pele ainda crepitava das marcas de lume. Engelhada e vermelha, a pele estava estriada e fazia lembrar as gravuras anatómicas do corpo humano com os músculos a nu. Diane não entendia. E a ausência de dor ainda a espantava mais.

 

 Baixou-se e sondou a porta blindada, à altura em que estava sentada infinitas fissuras verticais sulcavam o material. O gelo dos invernos, o escaldão dos estios tinham acabado por alterar a impermeabilidade do chumbo. A radiação atómica infiltrara-se e atingira-a através destes interstícios, sem poupar os seus constituintes mais últimos. Recuou, estupefacta. Julgava ter escapado à morte. Enganava-se. De cabo a rabo. Porque não estava apenas queimada.

 

 Estava sob o efeito das radiações.

 

 Virtualmente morta.

 

 O sol erguia-se sobre o vale. As planícies verdejantes subiam ao assalto do horizonte, emolduradas, à direita, pelas florestas da colina, e, à esquerda, pelos contrafortes da montanha ainda velados de névoa. Diane avistou, a cem metros dali, um ponto que se destacava. Franzindo os olhos, reconheceu a silhueta de Giovanni que avançava na sua direcção, de espingarda a tiracolo. A pradaria afogava-o até meio da perna, em longos rolos lascivos.

 

 Que aconteceu? gritou ele. Senti uma vibração e...

 

 Uma borrasca engoliu a continuação das suas palavras. Vacilante, Diane caminhou ao encontro dele. Não sentia a queimadura, mas notava com precisão as rabanadas de vento que lhe fustigavam a face, as carícias das ervas nas suas pernas, os perfumes de frescura que se elevavam em colunas até à sua alma.

 

 Devia ter esperado por mim, ralhou o italiano quando ficou mais próximo. Que sucedeu?

 

 O Tokamak começou a funcionar. Não sei o que...

 

 E você? indagou ele. Parece estar bem.

 

 Diane sorriu para reprimir os soluços e depois replicou:

 

 Tem um óptimo poder de observação.

 

 Deitou a mão à guedelha e puxou, sem esforço, um punhado de cabelos. A radiação já estava a actuar em pleno. Os milhares de milhões de átomos que a compunham não mais parariam de se desintegrar, provocando uma reacção em cadeia que a acompanharia até à sua decomposição total. Quanto tempo duraria o processo? Alguns dias? Semanas? Murmurou:

 

 Encontrava-me dentro da máquina, Giovanni. Recebi as radiações. Até ao osso.

 

 O etnólogo reparou finalmente no rasto negro que lhe fendia a parca. Com dois dedos, afastou as abas de tecido e descobriu a queimadura avermelhada a pele começava a estalar, a esfarrapar-se em retalhos. Balbuciou:

 

 Vamos... vamos tratar de si, Diane. O principal é não se assustar.

 

 Ela não o ouvia. Não desejava atolar-se na esperança nem na angústia. Só lhe interessava o tempo que ainda lhe restaria. Tinha de viver o suficiente para desmascarar os demónios, encontrar a verdade e assegurar uma definitiva quietude ao filho adoptivo.

 

 Vamos tratá-la, repetia obstinadamente o italiano.

 

 Cale-se!

 

 Garanto-lhe que iremos repatriá-la rapidamente e... Já lhe disse que se calasse!

 

 Giovanni emudeceu. Diane acrescentou:

 

 Não ouve?

 

 O quê?

 

 A terra treme.

 

 Estaria o Tokamak a arrancar outra vez? Ela imaginou o vale pasto das chamas sob o sopro atómico. Em seguida percebeu que a vibração não provinha do sítio, mas dos antípodas do vale. Dirigiu o olhar bem em frente, entre a colina e a falésia de pedra. Uma imensa nuvem de poeira, uma espécie de neblina de terra e talos de erva varria o horizonte.

 

 Foi então que os viu.

 

 E logo os reconheceu.

 

 Os tsevens.

 

 Não dez.

 

 Não cem.

 

 Mas milhares.

 

Uma miríade de cavaleiros, sobranceando uma profusão de renas cujos dorsos inumeráveis brilhavam sob os espelhos das nuvens oscilação incessante de espinhaços e de reflexos. Uma torrente sem limite descia as encostas, fundia-se na planície, desdobrava-se, estuante de vigor, de tumulto, de beleza. Já não surgiam cores: os homens envergavam exclusivamente deels pretas e, em seu redor, as renas caracolejavam em tons brancos e cinzentos. Corriam, roçando os seus flancos empoeirados e mosqueados, entrechocando os seus chifres de veludo semelhantes a arbustos animados, a corais fantásticos, a concreções de vento e de vida.

 

 Diane já não sabia onde pousar o olhar, de tal modo o deslumbramento a arrebatava, a avassalava, a sufocava. Procurava um ponto preciso onde pudesse centrar a sua atenção quando, de súbito, o encontrou. Se tivesse de morrer naquele instante, seria com esta visão gravada no fundo das íris:

 

 As mulheres.

 

 Eram elas, e só elas, que pastoreavam os animais nos dois extremos da horda. A maior parte montava cavalos. Berravam, de faces afogueadas e calcanhares cravados nos estribos. Diane adivinhava os desenhos nos seus lenços, que deviam representar as transmutações mágicas que ela descortinara no avião de carga. Agora, era como se estes seres lendários tivessem irrompido da seda para calcar a terra, exaurir a clareira à força de torrões desentranhados, de ervas extirpadas.

 

 Elas rodavam nas suas montadas, voltavam atrás, partiam de novo com o ventre e as coxas colados ao cavalo, parecendo atravessar o próprio corpo do animal para se propulsarem do solo, num pincho de raiva, num salto de graça uma explosão de vitalidade que subia até ao céu.

 

 Cobrindo o fragor do galope, Giovanni gritou:

 

 Que mais vem a ser isto? Ainda nos esmagam! Diane retorquiu, afastando as suas madeixas espiraladas:

 

 Não. Julgo... julgo que vêm buscar-nos.

 

 Avançou então por entre as ervas altas. Diante dela, a linha de renas, neve e cinza, fendia as vagas vegetais e não abrandava o galope. Diane continuava a andar. Atrás dos cavaleiros, enxergava agora as crianças, em equilíbrio nas selas de madeira, em cima de animais mais pequenos. Os seus rostos purpurinos apareciam de vez em quando, ao acaso das ramificações de hastes. Bem agasalhados, pontificavam como príncipes nas suas montadas cor de trovoada.

 

 A turba já só estava a uma centena de metros. Diane vislumbrou um homem que precedia os outros. A sua postura, a sua presença possuíam um garbo específico, que indicava ser ele o chefe do cortejo. No entanto, era apenas um rapaz quase uma criança com a cabeça coberta por um largo chapéu preto. Invadiu-a uma convicção: este menino rei era um Vigia, um Vigia chegado a homem, venerado pelo seu povo. Pensou em Lucien. Confusamente, viu desfilar acontecimentos caóticos, roubos de crianças, sinais a abrasar carnes, fronteiras transpostas entre a vida e a morte, assassínios, torturas... tudo isto acabaria por reunir-se. E, por ora, ela não queria saber de nada. Em boa verdade, no fundo deste turbilhão, no fundo deste povo surgido dentre os mortos, ela via uma luz a brilhar.

 

 Se este povo ainda vivia, então talvez existisse uma esperança para si mesma...

 

 Como um mar refreado pelo areal, todas as montadas estacaram num só movimento. A vinte metros de Diane. Ela avançou. As primeiras renas já esticavam o pescoço a fim de buscarem o sal ao longo das suas faces maculadas de lágrimas. Exausta, cambaleante, perguntou a si própria o que podia dizer, e em que língua, para entabular o contacto.

 

 Mas foi inútil.

 

 O adolescente rei já lhe indicava um animal ajaezado, que a observava com os seus grandes olhos plácidos.

 

A imensa caravana tomou logo a direcção dos contrafortes da montanha. O rebanho ia agora a passo, cheio de docilidade. Não tardou que a horda recobrisse o cascalho, insinuando-se através da vegetação, movendo-se ao longo do matagal, contornando as últimas árvores até alcançar a paisagem lívida da tundra. O cortejo entrou então num vasto planalto coberto de uma erva basta, orlado de blocos de granito que se assemelhavam a peitoris de altitude. Dezenas de homens e de mulheres armavam tendas, suspendendo peças de lona militar em altas pirâmides de ramos. Giovanni, que escoltava Diane, sussurrou: São urts, as tendas tsevenas. Nunca me passou pela cabeça poder vê-las um dia.

 

 Outros grupos formavam cercas servindo-se de troncos de bétulas, enquanto as renas se iam agrupando lá dentro. Redenhos de animais, essas membranas orgânicas que envolvem as vísceras, secavam como lençóis sobre estacas de madeira. Diane deixava-se guiar pela montada. A sua pele electrizava-se de arrepios, endurecia em placas exangues, ao passo que a queimadura se precisava sob a carne, confundindo-se na sua aspereza com as dores do frio.

 

 Ela não podia arrancar-se ao seu fascínio. Contemplava este povo surgido de nenhures, por certo escapado até então a toda a observação aérea mercê das brumas que coroavam as montanhas. Os rostos eram largos, duros, gretados. Feições devastadas pelo vento e o frio. Caras aguçadas, fortificadas pelo rigor do clima, mas também desgastadas pelos atavismos, a proximidade do sangue. Todos homens, mulheres, crianças  envergavam deels escuras com matizes de violeta ou de anil. Mas era principalmente a diversidade dos chapéus que assinalava o seu carácter único: chapéu de gaúcho, chapka de pele, barrete frígio, sombreiro de feltro mole, cogula... uma autêntica sarabanda ressaltando nos crânios ao sabor dos solavancos das montadas.

 

 Quando chegaram ao centro do acampamento, várias mulheres obrigaram Diane a apear-se. Ela não opôs a mínima resistência. Só teve tempo de murmurar a Giovanni: ”Não te preocupes”. As mulheres guiaram-na até uma tenda isolada, a mais de cem metros dali, perto dos rochedos da periferia. No interior, o espaço desdobrava-se por vários metros quadrados. Não havia nada no chão, excepto erva e algumas rochas cobertas de musgo. Diane ergueu o olhar: pendiam pedaços de carne gelada das estruturas da uris. À direita, viam-se objectos rituais pendurados ou depostos sobre mesinhas de madeira: grinaldas de crina, ninhos de aves, uma enfiada de pequenas mandíbulas que deviam ter pertencido a renas bebés. Também distinguiu formas hirtas e enegrecidas que se assemelhavam a patas e pénis de animais ressequidos.

 

Duas das suas aias despiram-na enquanto a terceira lançava no forno do fogão de aquecimento uns pêlos de crina de cavalo e gotas de vodca. Em poucos segundos, Diane ficou nua, deitada numa enxerga de couro mais dura que uma placa de ferro. Tiritava, de olhos pregados no seu próprio corpo que parecia desmedido, esquelético, descorado sobre aquele leito negro. Três homens penetraram na urts. Diane encolheu-se. Mas os intrusos não lhe dirigiram qualquer olhar. Tiraram os chapéus gorro de esqui, cogula, sombreiro de feltro mole e pegaram em tambores, colocados junto do santuário. Elevou-se imediatamente o batuque. Pancadas duras, abafadas, sem ressonância. Diane recordou-se de um pormenor mencionado por Giovanni: os tambores rituais, na taiga, eram sempre esculpidos na madeira de árvores fulminadas.

 

 Notou-se uma progressão no ritmo: um arquejo gutural insinuava-se entre as pulsações, tecendo um murmúrio desfasado, um eco ensurdecido face à linha dos tambores. Os homens três fácies de fraga, trajando deels pretas já surradas, oscilavam de um pé para o outro erguendo as baquetas. Pareciam ursos taciturnos, ainda pintalgados da floresta.

 

 As mulheres forçaram Diane a estender-se. Ela esboçou um gesto sobressaltado para tapar a sua nudez, mas apercebeu-se de que o fumo do fogão se tornara tão denso que a carne já não era visível. Uma das aias polvilhou-a de talco no torso, enquanto outra a fazia ingerir uma bebida muito quente. As sensações irrompiam dentro dela sem que nenhuma prevalecesse: frio, pânico, sufocação... Pousou a cabeça sobre o couro e compreendeu que era demasiado tarde para recuar. De olhos fechados, as mãos a palpitar sobre os ombros, deu consigo a rezar. A desejar que aquilo acontecesse verdadeiramente. Que a magia tsevena a transportasse e salvasse...

 

 As batidas amplificaram-se. Em contraponto, a floresta de sopros crescia, jorrando dos lábios fechados, produzindo uma pulsação obsidiante. Contra a sua própria vontade, Diane reabriu os olhos. Estava alagada em suor. Os homens, sombras vagas no meio do fumo espesso, deslocavam-se lateralmente, flectindo as pernas a cada modulação do tambor. As mulheres tinham-se sentado sobre os calcanhares, em volta de Diane. De pálpebras fechadas, inclinavam-se, endireitavam-se, tornavam a inclinar-se, com as mãos postas em oferenda sobre os joelhos. Um pormenor chamou-lhe a atenção: os brincos delas desenhavam silhuetas de aves migradoras.

 

 De súbito, o encadeamento da cerimónia dissipou-se. As mulheres acabavam de tirar flautas das suas mangas e sopravam em uníssono nestes tubos de como. Os trilos eram tão agudos, tão insistentes que pareciam prestes a vencer os tambores no terreno do tumulto. Sempre sentadas, as músicas retesavam-se, rodopiavam sobre si mesmas, como uns piões de sons, de seda e de lume. Os seus lábios davam a impressão de estar atarraxados aos instrumentos maléficos. As faces inchadas pareciam incensórios onde se guardavam brasas adormecidas.

 

 Então, lá do fundo deste estrépito, através dos vapores, ela surgiu.

 

 Um gorro eriçado de penas de águia derramava-se em franjas de tecido sobre o seu rosto. A sua silhueta minúscula desaparecia sob um manto guarnecido de pesadas peças de metal. Fechada em si mesma como um punho, ela avançava em passinhos cadenciados, apertando nas mãos um objecto misterioso. Uma espécie de bolsa revestida de peles. Diane viu-a aproximar-se, inteiriçada. Uma estridência inaudita cobriu o ritmo dos tambores e o ondulamento das flautas. Ao cabo de poucos segundos, compreendeu que se tratava de um grito. A princípio pensou na feiticeira, que talvez vociferasse sob as suas franjas, depois reparou melhor: não era a xamã que berrava, mas a cabaça de peles entre as suas mãos.

 

 A coisa vivia.

 

 Um roedor de pêlos negros compridos retorcia-se de pavor entre os punhos da velha. Diane escondeu-se no fundo da tenda, acossada por estas imagens convulsas: os homens balouçando furiosamente o torso de trás para a frente, as mulheres arqueadas sobre os seus pífaros, e a maga, de braços levantados, aureolada de franjas como uma ave, brandindo a bocarra uivante do mamífero.

 

 Tinha de fugir deste pesadelo, esquecer este... Os ombros dela foram violentamente encostados à enxerga. As aias haviam largado os instrumentos para a imobilizarem. Quis gritar, mas engolfou-se-lhe na boca uma baforada de fumo. Quis debater-se, mas o pânico arrasou-a: o rosto das músicas tinha mudado. Os seus olhos estavam injectados de sangue, como que lustrados de vermelho. Diane compreendeu que a cerimónia entregava os corpos ao caos original, ao transbordamento da vida primitiva. Todos os corações se alucinavam, todos os vasos sanguíneos estalavam.

 

 A xamã estava agora ali, muito perto. O bicho continuava a berrar entre os seus punhos, avançando umas presas afiadas, veementes. A velha aproximou o monstro da queimadura. Diane baixou os olhos para o ventre empoado de talco. Sob os traços brancos, a pele empolara, sulcada, rebentando já aqui e além sob a acção irreversível da putrescência. Num derradeiro arqueamento, ela quis escapar-se, mas a estupefacção paralisou-a.

 

 A feiticeira acabava de pespegar o animal sobre a chaga, esmagando o corpo felpudo sobre a carne purulenta. Num ápice, os olhos do roedor velaram-se de uma película escarlate um filme de sangue. A xamã passava e repassava a bola de pêlos sobre a chaga com afinco, obstinação uma espécie de aplicação desenfreada.

 

 Tal era a obscura lógica da intervenção: a maga procurava apagar os estigmas do átomo por meio do roedor. Utilizava o animal como uma esponja de sofrimento, um íman curativo que iria varrer as marcas do fogo e aspirar a morte.

 

 Nisto, o animal começou a crepitar. Jorraram faíscas das suas felpas. Diane não podia acreditar: o mamífero, em contacto com as queimaduras, incendiava-se. O seu corpo fumegava entre os dedos encurvados da feiticeira.

 

 Tudo se desenrolou então em poucos segundos.

 

 A xamã brandiu o animal-archote em direcção às alturas da tenda. Girou sobre si mesma, provocando um chinfrim de franjas e de metal, depois assentou o bicho sobre um rochedo, de garras para o ar. No mesmo movimento, retirou um facalhão da sua manga e cortou, do sexo à garganta, o corpo do animal. Diane viu o ventre abrir a sua bolsa de vísceras fumegantes. Viu os dedos recurvados da xamã a remexer nas entranhas; em seguida, discerniu entre as formas escuras dos órgãos um fervilhamento mais negro, uma geração de células malsãs que ressumavam fibras e tecidos. Grãos de medo. Indícios de sofrimento. Um caviar de morte.

 

 Diane compreendeu a verdade antes de desmaiar.

 

 O cancro.

 

 O cancro do átomo passara para o corpo do animal.

 

 Quando Diane acordou, o dia consumia as suas últimas horas. Ela estirou-se, sentiu os músculos soltarem-se até às mais finas extremidades, depois saboreou o calor do fogão que ronronava no centro do espaço. Ouvia ao longe os rumores do acampamento. Tudo se mostrava tão doce, tão familiar...

 

 Estava sob uma urts, ocupada tão-somente por algumas selas de madeira, uma armação de fiar e os inevitáveis rochedos cinzentos, que desempenhavam o papel de mobiliário. Já não havia rasto de xamanismo, exceptuando figurinhas suspensas, com vestidos cosidos em peles de orelha, e colares de focinhos de pequenos roedores. Ao erguer os olhos, avistou o céu através da fresta do telhado. Lembrou-se das palavras de Giovanni: as tendas mongóis mantinham-se sempre abertas para o alto, a fim de que o lar permanecesse em contacto com o cosmos.

 

 Sentou-se na enxerga e afastou o cobertor de feltro. Vestia roupa interior nova. Os jeans e a camisola de gola alta estavam ali ao pé dela, cuidadosamente dobrados. Não faltavam tão-pouco, a refulgir entre as ervas, os óculos ao alcance da mão. Pô-los maquinalmente no nariz e depois levantou a t-shirt para observar a queimadura. O que descobriu não a surpreendeu. Sentiu-se inundada de reconhecimento, atravessada por uma força de amor como um rio pelo sol. Acabou de se vestir e depois saiu da uris.

 

 A instalação do acampamento terminara. Umas quarenta tendas disseminavam-se na clareira. A paisagem da tundra, sob a luz rasante do entardecer, parecia mais lunar do que nunca. Todos os nómadas se entregavam às suas ocupações. Sob as urts, as mulheres preparavam a comida. Alguns homens escoltavam os últimos rebanhos até aos cercados. Corriam crianças em todos os sentidos, rasgando os fumos, sulcando o ar fusco com os seus risos.

 

 Um sorriso subiu aos lábios de Diane quando descobriu Giovanni, sentado junto de uma fogueira solitária. Foi acomodar-se ao pé dele, entre as selas e os embrulhos. O italiano estendeu-lhe um copo de chá.

 

 Como se sente?

 

 Ela aceitou a bebida, aspirou o fumo, mas não respondeu. Giovanni não insistiu. Agasalhado na sua parca, espevitava o lume com um ramo seco. Por fim, Diane murmurou:

 

 Nunca mais seremos os mesmos, Giovanni. O italiano fingiu não ouvir. Repetiu:

 

 Como se sente?

 

 Diane prosseguiu, de olhos orientados para as chamas:

 

 No Ocidente, julga-se que os conhecimentos xamânicos não passam de superstições, de crenças ingénuas. Têm-se estas convicções na conta de fraquezas. Fazemos mal: a fé deles é uma força.

 

 Para disfarçar o embaraço, o etnólogo debruçou-se a fim de soprar as brasas. As ervas incendiadas enrolavam-se em filamentos alaranjados, criando um minúsculo bailado de incandescência. Ela repisou:

 

 É uma força, Giovanni. Compreendi-o hoje. De facto, quando o espírito acredita, abre-se-lhe logo o acesso ao poder. Talvez seja ele próprio o poder. A vertente humana de uma potência que todos os elementos do universo partilham entre si.

 

 O italiano empertigou-se bruscamente. Estava hirsuto, como que emboscado por detrás da barba.

 

 Diane, entendo a sua emoção, mas não acredito em...

 

Já não há que acreditar ou deixar de acreditar.

 

 Soergueu a camisola e a t-shirt, desnudando o ventre: a pele estava branca, lisa, quase indemne. Apenas se notava uma leve vermelhidão no ponto onde a carne estivera esfacelada pelo fogo poucas horas antes. Giovanni ficou boquiaberto.

 

 A feiticeira conseguiu sarar a minha queimadura, continuou Diane. Ela conseguiu bloquear os efeitos da radioactividade. Erradicou o cancro por meio de um roedor inflamado. Dá-lhe o nome que quiseres: bruxaria, poder psíquico, intervenção dos espíritos. O certo é que a força espiritual de que eu falo é de uma pureza insuspeita. Foi esta força que me salvou.

 

 O tratamento por tu viera-lhe espontaneamente. Já não evoluíam numa dimensão onde se dizia ”você”. Giovanni entreabriu os lábios para responder, com um lampejo de incredulidade no olhar, até que por fim se rendeu:

 

 Está bem. De resto, pouco importa: sinto-me muito feliz, Diane.

 

 Apanhou uns pedaços de casca e lançou-os na fogueira. A ronda dos filamentos reatou-se mais intensamente.

 

 Agora, prosseguiu ele, vais contar-me tudo. E quando digo ”tudo”, não é uma simples maneira de falar.

 

 Diane bebeu um gole de chá, demorou um longo momento a pôr as ideias em ordem e depois começou. Descreveu a adopção de Lucien, a armadilha do périphérique, a intervenção de Rolf van Kaen. A origem da criança e os homens que se interessavam por ela. Mencionou o Tokamak, a sua equipa, a unidade de parapsicologia. Contou como os Vigias tinham sido encarregados de revelar na ponta dos dedos a data de um encontro enigmático. Explicou como lhe adviera a convicção de que os investigadores do TK 17 haviam descoberto um segredo que lhes permitira adquirir e desenvolver poderes psíquicos. E concluiu com a seguinte certeza: estes homens regressavam hoje por causa do mesmo segredo. Tinham encontro marcado no Tokamak, a 20 de Outubro de

1999, ou seja, dentro de poucas horas, para regenerarem as suas próprias faculdades mentais.

 

 Giovanni não a interrompera. Não exprimira qualquer sinal de espanto, nem esboçara nenhum gesto de incredulidade. Limitou-se a perguntar, no fim da narrativa:

 

 Como é que esses homens puderam adquirir tais poderes? Como é possível alguém desenvolver faculdades... impossíveis?

 

 Diane sentia o lume no rosto, ao passo que o frio do crepúsculo a assaltava pelas costas. Imaginava o seu sangue em plena fusão. Via-o tomar a cor laranja de uma resina ardente.

 

 Não sei exactamente, murmurou. O que posso dizer é que, até agora, me enganara redondamente.

 

 Porquê?

 

 Ela inspirou mais ar. O fumo acre encheu-lhe a boca como um trago de incenso. Pensou na cerimónia que a curara e disse:

 

 A minha primeira conjectura era que os parapsicólogos tivessem efectuado uma descoberta significativa ao estudar os xamãs vindos da Sibéria.

 

 Tudo leva a crer que assim aconteceu, não achas?

 

 Mas não da forma que podemos conceber. Não foram essas investigações que lhes conferiram os poderes.

 

 E porque não?

 

 Por vários motivos. Em primeiro lugar, imagina os xamãs exaustos, depois de passarem anos em campos, em prisões. Como é que os cientistas teriam descoberto algo a seu respeito? Como conseguiram suscitar neles certos estados mentais privilegiados, desde os transes aos sonhos acordados?

 

 Talvez os tenham simplesmente interrogado.

 

 Os feiticeiros não diriam nada.

 

 Os soviéticos possuíam métodos persuasivos.

 

 É verdade, mas, uma vez mais, no meu entender, estes xamãs estavam acabados, depauperados. Longe da sua cultura, longe das suas potencialidades, eles nada tinham para revelar aos parapsicólogos. Ainda que assim quisessem.

 

 Então o quê?

 

 Diane bebeu um gole de chá.

 

 Esta manhã, imaginei outra hipótese. A aquisições dos Poderes talvez tenha sido provocada por um facto exterior.

 

Um acontecimento que nada tinha a ver com as pesquisas psíquicas.

 

 Que acontecimento?

 

 A explosão do Tokamak. Se a radioactividade pode transformar as estruturas do corpo humano, porque não há-de transformar a consciência, a força mental?

 

 Os investigadores teriam sofrido igualmente radiações?

 

 Não estou segura. Mas os que morreram apresentavam estigmas estranhos. Doenças de pele, atrofias, anomalias que podem ter sido causadas pelas radiações. Até pensei que eles talvez tivessem provocado o acidente para se exporem voluntariamente.

 

 E já não o crês?

 

 Não. A explosão do Tokamak desempenhou um papel muito diferente. Um papel de revelador.

 

 Não percebo.

 

 Diane debruçou-se por sobre as chamas e fitou Giovanni bem nos olhos.

 

 O acidente de 1972 revelou, indirectamente, os poderes assombrosos que reinavam neste vale.

 

 Contemplou o acampamento e os tsevens que se afadigavam no meio dos véus de fumo que se uniam à noite para absorver a paisagem.

 

 Olha para estes homens e estas mulheres, Giovanni. Donde vêm? Como é que um povo pôde sobreviver em segredo à opressão, à colectivização, à fome? Uma coisa é certa: nos anos setenta, existiam dois tipos de tsevens. Os que tinham conseguido abrigar-se nas montanhas e os que, permanecendo no vale, foram submetidos, sedentarizados, aculturados. Foram estes últimos que integraram o estaleiro do Tokamak e aceitaram as tarefas mais perigosas. Foram eles que arderam na coroa, durante a Primavera de 1972. No entanto, sou capaz de conceber o que então se passou.

 

 Giovanni fez um trejeito.

 

 Eu cá, não.

 

 Faz um esforço. Imagina estes operários queimados, atingidos pelas radiações, moribundos. Imagina as suas mulheres desesperadas, que sabiam perfeitamente que os socorros soviéticos jamais chegariam. O que julgas que elas fizeram? Atrelaram as renas e partiram para as montanhas em busca dos xamãs tsevens, dos homens que ainda possuíam prodigiosos poderes de cura.

 

 Estás a brincar?

 

 Nem por sombras. Os tsevens do vale souberam sempre que uma parte da sua etnia vivia lá no alto, de um modo tradicional, e conservava uma relação profunda com os espíritos.

 

 Julgo que toda esta história te deu volta ao miolo...

 

 Ouve bem! As mulheres alcançaram os cumes. Explicaram a situação aos feiticeiros. Imploraram-lhes que descessem ao vale a fim de praticar uma cerimónia e salvar os que podiam sê-lo. Os xamãs aceitaram. Correram o risco de ser encontrados, presos, mas organizaram uma sessão xamânica para tratar os seus irmãos. Uma sessão que foi muito bem sucedida, pois a maioria dos homens queimados curaram-se.

 

 Como podes estar assim tão segura?

 

 Diane abriu-se num largo sorriso, carregado de enlevo.

 

Se sobrevivi hoje à radiação, isso significa que tudo se passou exactamente da mesma maneira em 1972.

 

 As feições do etnólogo fixaram-se numa expressão de assentimento. Começava a ficar convencido.

 

 Em tua opinião, o que aconteceu em seguida? interrogou.

 

 Teve início para os tsevens o verdadeiro pesadelo. Fosse como fosse, os parapsicólogos devem ter-se apercebido do milagre das curas. Compreenderam esta verdade extraordinária: as faculdades que eles procuravam captar desde há três anos, estudando xamãs vindos dos gulags, existiam a escassos quilómetros do seu laboratório. Ao alcance da mão. E num grau inimaginável! Concluíram então que se achavam no próprio berço dos poderes que cobiçavam desde há tanto tempo.

 

 E prenderam os xamãs?

 

 Tinham em seu poder uns virtuose. Umas pérolas raras.

 

Retornaram as experiências com tais homens e, desta vez, saíram-se bem. Conseguiram arrancar-lhes o seu saber xamânico.

 

 Como?

 

É o elemento que me falta. De qualquer modo, os investigadores conseguiram conquistar estes poderes. Eis porque detêm actualmente faculdades fora do comum. Eis também porque a minha investigação está balizada por fenómenos inexplicáveis. E eis, enfim, o motivo por que eles regressam hoje: para recomeçar a sua experiência, a experiência que lhes permitiu, na época, adquirir tais faculdades.

 

 O italiano abanava lentamente a cabeça.

 

 É de loucos...

 

 Sim, pelo menos, parece. Possuo agora uma última certeza: este roubo de segredos é o verdadeiro móbil dos assassínios. Eugen Talikh vinga o seu povo, mas não no sentido em que eu julgava. Não vinga, especificamente, o genocídio dos operários do anel, mas, de uma forma mais geral, a pilhagem da sua cultura. Vinga uma profanação. Aqueles patifes roubaram os dons dos tsevens. E estão a pagá-lo caro.

 

 Porquê só trinta anos depois? O que os levou a esperar que regressassem ao Tokamak?

 

 A resposta deve pertencer ao elemento da história que não possuímos, à técnica que eles utilizaram para captar esses poderes. Ao tal encontro indicado pelos meninos dos dedos queimados...

 

 Ela levantou-se. O etnólogo observava-a.

 

 E agora? O que vai suceder? O que vamos fazer? Diane enfiou a parca. Sentia-se ébria de vida, ébria de verdade.

 

 Vou voltar ao sítio. Tenho de encontrar o laboratório deles. Foi lá que tudo se decidiu.

 

 Anoitecia. Giovanni trouxera duas lâmpadas de acetileno à prova de intempérie, dotadas de reflectores que ambos transportavam nos braços. Assemelhavam-se assim a mineiros de um outro século, perdidos num dédalo de galerias esquecidas. Quando mudaram a recarga de carbureto, tomaram consciência de que já deambulavam há mais de três horas. Partiram de novo sem uma palavra, descobrindo outras máquinas, outros reactores, outros corredores. Mas sem nunca avistarem o mínimo vestígio de um lugar que pudesse corresponder ao que procuravam.

 

 Por volta da meia-noite, pararam numa sala de paredes nuas, absolutamente vazia. O frio abateu-se sobre eles, ao passo que a fadiga e a fome começavam a causar-lhes vertigens. Esgotada, Diane deixou-se cair sobre um monte de caliça. Giovanni ciciou:

 

 Só há uma zona que ainda não inspeccionámos.

 

 Ela aquiesceu. Sem mais comentários, retomaram o caminho e dirigiram-se para o círculo de pedra. Depois de enveredar por novos corredores e de atravessar outros pátios, atingiram uma sala que Diane reconheceu imediatamente: a antecâmara do Tokamak. À esquerda, descortinou um compartimento que se assemelhava a um vestiário. Encontrou aí uns capotes iguais ao que Bruner envergava no périphérique.

 

Também viu máscaras, luvas e contadores Geiger. Os dois companheiros vestiram e recolheram instrumentos de medição.

 

 Penetraram na coroa. Desta feita, os néones não se acenderam. Giovanni aproximou-se de um grande interruptor e fez menção de o accionar. Diane agarrou-lhe no braço e murmurou, através da máscara:

 

 Não. Só as nossas lâmpadas.

 

 Continuaram a avançar, apertando no punho a lanterna que balançava à cadência dos seus passos, transpondo brumas de pó na escuridão. Ladearam o muro curvo e decrépito, à procura de um orifício, de uma abertura que mostrasse um espaço secreto.

 

 Ali.

 

 Giovanni estendia a mão enluvada para uma porta, encastrada na parede interna do círculo. Tiveram de combinar os esforços para a desaferrolhar. Diane hesitou um pouco diante da boca de sombra que se abriu. O etnólogo passou à frente, empunhando a lanterna em jeito de batedor. Após algum tempo, ela foi-lhe no encalço e fechou a porta. Num espaço intermédio, deitou um olhar ao contador: a agulha já não se movia a radioactividade fora absorvida. Arrancou a máscara e avistou uma escada em espiral que o seu parceiro já descia. Os degraus seguiam a curva de um enorme pilar de sustentação. Estavam a passar sob o tabuleiro do Tokamak, entre as fundações da máquina.

 

 Chegaram a um portal duplo, já não de ferro nem de chumbo, mas de cobre. Empurrando com o ombro, Giovanni afastou os batentes e introduziu-se lá dentro. Diane imitou-o. Nos halos cruzados das suas lâmpadas à prova de intempérie, apareceu uma sala circular onde se desenhavam instrumentos que, finalmente, possuíam uma dimensão humana. Máquinas simultaneamente brutais e complexas, que podiam sugerir trabalhos de psicologia experimental. Instintivamente, Diane soube o que haviam encontrado. O círculo do espírito situava-se debaixo do círculo do átomo. Ali onde ninguém se lembraria de o procurar: sob a rotunda infernal.

 

 Despiram os capotes e avançaram. A parede estava coberta de um líquen luminescente, que revelava as sombras oblíquas de correntes suspensas do tecto. Os elos tilintavam com uma regularidade lúgubre, numa arfada de navio fantasma. Giovanni procurou um interruptor.

 

 Diane não se opôs: não se podia visitar um lugar assim no meio das trevas. Após um crepitar hesitante, os néones acenderam-se. A sala surgiu em toda a sua imensidade. A parede circular não dispunha de qualquer abertura, exceptuando o portal. No tecto, entre cabos meio soltos, os tubos fluorescentes estavam distribuídos em círculo, abandonando à sombra tudo o que se situava fora do seu halo.

 

 Nada parecia ter sido pilhado, como se os salteadores não tivessem ousado entrar. Os primeiros acessórios em que Diane reparou foram umas armaduras de Faraday. Caixas quadradas, de cobre, com um metro de lado, que permitiam um total isolamento electrostático. Ela ajoelhou-se e espreitou o interior de uma delas. Viam-se eléctrodos sobre o chão castanho avermelhado: tinham posto homens lá dentro. Tornou a levantar-se e descobriu, poucos metros mais adiante, umas cadeiras de espaldar alto, semelhantes a estalas de igreja, equipadas com braceletes de ferro e correias de couro. Ao lado, uns contadores enegrecidos estavam ligados a ventosas, deixando pressagiar sessões brutais de electrochoques. No chão, saltaram-lhe à vista uns tufos de cabelos enviscados no meio dos cogumelos e da poeira tinham-se rapado crânios a fim de se lhes colocar mais facilmente os eléctrodos.

 

 Mais uns passos. Diane deu então com uns caixotões de isolamento sensorial sarcófagos de água salgada, com cerca de dois metros de comprimento. Baixou-se: flutuavam ossadas à superfície. Ossos de pequena dimensão, vestígios de homens minúsculos ou de crianças. Pensou em Lucien e sentiu-se desfalecer a sua consciência era atravessada por eclipses. Giovanni, atrás dela, declarou inopinadamente:

 

 Não aguento mais. Não posso ficar aqui.

 

 Podes, sim, disse ela cheia de autoridade. Temos de continuar a procurar, de compreender o que se passou aqui.

 

Não custa muito a compreender! Uns chanfrados torturaram uma gente desgraçada, nada mais!

 

 Diane passou a língua pelos lábios. A atmosfera estava carregada de sal, como que saturada de amargura. Ela distinguiu outro espaço ao fundo do compartimento, separado por biombos de metal. Atravessou a divisão e descobriu uma mesa de aço inoxidável, móveis de ferro sobre os quais havia boiões estalados pelo gelo. Avançou. Os seus passos rangiam sobre as lascas de vidro. O bafo jorrava dentre os seus lábios, criando à volta dela um halo de irrealidade. No fundo dos boiões já não restavam senão poças enegrecidas, órgãos pardacentos, embalsamados pelo frio e a solidão.

 

 Diane começava a entender a lógica do local. Cada utensílio, cada máquina havia sido pervertida do seu objectivo inicial a fim de se praticarem sessões de tortura. Os pulhas, não obtendo qualquer resultado pelos métodos tradicionais de estudo, tinham-se transformado em carrascos, tentando arrancar verdades mediante o sofrimento, perseguindo no fundo da dor e da dissecação uma realidade que lhes escapava. Teria sido assim que tinham conseguido arrancar os segredos dos xamãs tsevens? Diane achava que não. Era impossível que os parapsicólogos devessem as suas faculdades psíquicas a uns métodos tão violentos, tão absurdos. Mesmo aqui, faltava um último elo.

 

 Entreviu, próximo da mesa de operações, uns blocos com rodas sobre os quais jaziam pontas, lâminas, ganchos. Estes objectos oscilavam entre a arma e o instrumento cirúrgico. Os seus cabos, encurvados, eram revestidos de materiais raros marfim, nácar, chifre... e lavrados em finos arabescos.

 

 Diane imobilizou-se. Conta-se que, às vezes, quando um raio atinge um homem, o fenómeno é tão rápido que a combustão não tem tempo de sobrevir. A vítima não arde: é literalmente transida pelo fogo. As fibras íntimas da sua carne recordam-se então para todo o sempre desta fulgurância, desta possessão. Diane sentia-se exactamente no mesmo estado. Outrora, o clarão fulminara-a, impregnara-a de uma maneira latente eis que o relâmpago despertava em cada interstício do seu ser.

 

Acabava de reconhecer estes instrumentos cinzelados. Pertenciam ao seu próprio passado. Ia desmaiando, mas agarrou-se in extremis à mesa. Giovanni acorreu:

 

 Não estás bem?

 

 Diane apoiou ambas as mãos contra um dos blocos de ferralha. Os instrumentos acerados espalharam-se no chão, entre as estilhas de boiões. Tinidos de ferro contra tinidos de vidro. As cintilações dançaram sob as suas pálpebras palpitantes. Maquinalmente, o italiano olhou para as lâminas caídas por terra e perguntou:

 

 O que foi?

 

 Eu... conheço estes instrumentos, balbuciou ela.

 

 O quê? Como é possível? Já os utilizaram em mim.

 

 Giovanni envolveu-a num olhar pasmado e, ao mesmo tempo, moído pelo cansaço. Diane hesitou uns instantes, mas era demasiado tarde para recuar.

 

 Passou-se tudo em 1983. Uma noite abrasadora do mês de Junho. Ia fazer catorze anos. Voltava de um casamento, a pé, através das ruelas de Nogent-sur-Marne, nos subúrbios de Paris. Caminhava ao longo do rio quando me agrediram.

 

 Calou-se e engoliu a saliva.

 

 Não vi quase nada, acrescentou. Dei comigo de costas no chão. Um homem encapuçado esmagava-me o rosto, metia-me ervas na boca, despia-me. Eu sufocava, tentava gritar, eu... Só via salgueiros, ao longe, e as luzes de umas casas.

 

 Sem fôlego, aspirou profundamente o ar repleto de sal e secou ainda mais a garganta. Experimentava, porém, um estranho alívio. Nunca pensara que tais palavras pudessem algum dia transpor o limiar dos seus lábios. O italiano atreveu-se a perguntar:

 

 O que te fez esse homem? Ele...

 

 Violou-me?

 

 As suas feições amoleceram num sorriso.

 

 Não. Na altura, só senti uma forte queimadura. Quando levantei os olhos, já ele desaparecera. Eu estava ali, à beira do rio, em estado de choque. Tinha as pernas inundadas de sangue... Consegui regressar a casa. Desinfectei a ferida. Apliquei um penso. Não chamei o médico. Não disse nada à minha mãe. E cicatrizei. Muito mais tarde, recorrendo a livros de anatomia, compreendi o que o malandro me fizera.

 

 Interrompeu-se. Avaliava agora a atroz familiaridade desta recordação. Apesar de todos os seus esforços, apesar de toda a sua ânsia de apagar o horror, vivera com este trauma cada minuto, cada segundo da sua vida. Pronunciou então as palavras interditas seixos ao rubro na sua boca:

 

 O meu agressor excisara-me.

 

 Ergueu o olhar e apercebeu-se de que o italiano estava petrificado, como que mantido em respeito pelo seu próprio estupor. Ele pronunciou finalmente:

 

 Mas... qual é a relação com o Tokamak? Com estes instrumentos?

 

 Diane volveu numa voz enrouquecida:

 

 Nessa noite, a única coisa que vi foi a arma do meu agressor, apertada na sua mão enluvada. (Empurrou com o pé um dos bisturis caídos.) Era um instrumento assim: mesmo cabo de marfim, mesmos cinzelados...

 

 A razão de Giovanni pareceu insurgir-se perante este último enigma.

 

 É... é impossível, desfechou ele.

 

 Pelo contrário, tudo é possível. E lógico. O meu papel neste caso decorre da primeira agressão que te contei. A menos que seja a inversa: a minha agressão fora apenas um elo da história, escrita sob o signo do anel de pedra. Nasci, enquanto mulher, com este dilaceramento. E um tal dilaceramento é que talvez venha a revelar-nos a chave do inquérito.

 

 Diane emudeceu repentinamente.

 

 Uns aplausos discretos acabavam de ressoar na sombra da sala.

 

 O homem que surgiu no halo de luz não exibia qualquer vislumbre de pilosidade. Sob uma larga chapka castanha, as suas têmporas revelavam uma ausência total de cabelo. Não possuía tão-pouco pestanas nem sobrancelhas. Só brilhavam, sob a claridade dos néones, as saliências duras do rosto. A proeminência das arcadas, a aresta curta do nariz e a pele intensamente branca. O batimento destas pálpebras nuas fazia lembrar o pestanejo implacável de uma ave de rapina.

 

 Admiro o poder da sua imaginação, disse o homem em francês. Mas receio que a verdade ainda seja mais assombrosa...

 

 A personagem empunhava uma pistola automática, meio preta, meio cromada. Dentre todos os motivos para se admirar, Diane, por ora, só retinha um: a língua falada pelo intruso, só ao de leve flectida por um ligeiro sotaque eslavo. Ela perguntou:

 

 Quem é o senhor?

 

Evguenei Mavriski. Médico. Psiquiatra. Biólogo. (Inclinou-se com ironia.) Diplomado pela Academia das Ciências de Novosibirsk.

 

 O russo avançou. Baixo, atarracado como um estere de madeira, vestia um dólman cinzento com gola de pele estreitada sobre o pescoço largo. Devia andar pelos sessenta anos, mas o rosto imberbe possuía uma espécie de intemporalidade assustadora. Diane declarou não chegava a ser uma pergunta:

 

 Pertenceu ao laboratório de parapsicologia? Mavriski confirmou sacudindo a sua viseira de peles.

 

 Chefiava o departamento consagrado aos curandeiros. A influência do espírito sobre a fisiologia humana. Aquilo a que alguns chamam a bio-psicocinese.

 

 E também é curandeiro?

 

 Na época, só possuía umas magras faculdades, irregulares, inapreensíveis. Como todos nós, aliás. Num certo sentido, foi o que causou a nossa desgraça...

 

 Diane tremia. As perguntas latejavam-lhe nas têmporas.

 

 Como conseguiu adquirir verdadeiros poderes?

 

 À laia de resposta, ecoaram outros rangidos de vidro. Ouviu-se uma voz grave:

 

 Não se inquiete, Diane: merece uma explicação pormenorizada.

 

 Ela reconheceu logo o homem que transpunha a orla de luz: Paul Sacher, o hipnólogo do boulevarSaint-Germain.

 

 Como tem passado, senhorita?

 

 Diane procurava desesperadamente ajustar os seus pensamentos à velocidade dos acontecimentos. No fundo, porém, a presença do homem não era assim tão surpreendente. Sacher tinha o perfil ideal para pertencer ao círculo dos sábios: checo, trânsfuga, especialista numa vertente oculta da consciência humana a hipnose. Ela também compreendia agora que fora Sacher quem a precedera em casa de Irene Pandove, sem dúvida à procura de Eugen Talikh. Quando a mulher dissera: ”Os olhos... Não poderia resistir-lhes...”, evocava certamente o olhar irresistível do hipnólogo.

 

 Ele veio colocar-se ao lado de Mavriski. Trazia um gorro branco de malha apertada, uma parca azul-escura e luvas de goretex. Dir-se-ia chegar das pistas de Val-d’Isère. A não ser que empunhava igualmente uma pistola-metralhadora na mão direita.

 

 Diane sentia voltar os seus tremores. A presença de Sacher evocava-lhe irresistivelmente a imagem de Charles Helikian. A antiga ideia apoderou-se do seu espírito. O fumador de charutos podia ter pertencido a esta ronda infernal? Efectuara a viagem em quarenta e oito horas? Estaria ali mesmo ao pé? Ou já morto?

 

 O médico checo começou numa voz neutra:

 

 Desconfio que conhece agora as grandes linhas da nossa história...

 

 Diane enchia-se de um estranho orgulho ao alardear os seus conhecimentos. Contou tudo, misturando certezas e suposições. O sítio consagrado à parapsicologia iniciado por Talikh, em 1968. O recrutamento dos especialistas, através do bloco de Leste, incluindo um ou vários trânsfugas franceses. A perversão do laboratório ao orientar-se a pouco e pouco para a tortura e o sofrimento. A rebelião de Talikh e a sua detenção, efectuada com a cumplicidade das forças armadas russas. Em seguida, o acidente do Tokamak, sem dúvida ligado à ausência de Talikh no comando. O salvamento dos operários pelos seus irmãos revelara então o segredo daquelas montanhas: a presença de um povo absolutamente puro, que abrigava nas suas fileiras alguns xamãs detentores de uma potência superior.

 

 Calou-se, já fatigada. Mavriski meneava lentamente a cabeça, fazendo cintilar sob as luzes a sua face de marfim. Fez uma boquinha em sinal de admiração.

 

 Felicito-a. Efectuou um trabalho de investigação... notável. Ressalvando uns pormenores, as coisas passaram-se assim.

 

 Que pormenores?

 

 O acidente do Tokamak. Não foi desse modo que ele aconteceu. Os nossos engenheiros carecem de rigor, é verdade, mas não ao ponto de desencadearem por inadvertência uma máquina destas. Até mesmo na URSS, os sistemas de segurança eram numerosos e fiáveis.

 

 Então quem pôs o engenho em marcha?

 

 Eu. (Apontou para Sacher.) Nós. A nossa equipa. Devíamos, a todo o custo, desembaraçar-nos dos operários tsevens.

 

 Fizeram... uma coisa dessas? Mas porquê?

 

Sacher tomou a palavra num tom de censor:

 

 Não imagina o lugar que Talikh ocupava no coração daqueles homens. Era o seu amo. O seu deus. Quando souberam que o tínhamos aprisionado, planearam sem demora libertá-lo à força. Não nos interessava nada uma rebelião nesse momento. Como hei-de explicar-lhe? Sentíamos a presença de um poder, aqui, no laboratório. Sentíamo-nos à beira de uma imensa descoberta. Devíamos, absolutamente, prosseguir as nossas pesquisas...

 

 E tiveram medo de uns operários desarmados? Mavriski sorriu.

 

 Vou contar-lhe um episódio. Em 1960, o exército russo atingiu os confins da Mongólia e forçou todas as etnias à colectivização. Já o sabe: em vez de entregar os seus animais, os tsevens preferiram dar-lhes morte. Os oficiais soviéticos estavam siderados. Descobriram, uma manhã, milhares de renas esventradas, juncando a planície. Quanto aos tsevens, tinham desaparecido. As tropas efectuaram buscas, mas sem resultado. Concluíram que os nómadas tinham fugido para as montanhas. Por outras palavras, que eles tinham escolhido a morte. Era Inverno, ninguém poderia sobreviver na tundra, naquela época do ano, sem carne nem gado. Os soldados foram-se embora, pensando que as montanhas serviriam de túmulo aos tsevens. Enganavam-se. Os nómadas não tinham fugido. Estavam simplesmente escondidos, sob os olhos deles.

 

 Diane sentia o coração a acelerar-se.

 

 Onde?

 

 Nas renas. Nos corpos das renas esventradas. Homens, mulheres, crianças tinham-se metido entre as vísceras dos animais, à espera de que os brancos se sumissem. Acredite no que lhe digo, há tudo a recear de um povo capaz de semelhantes actos.

 

 Cada facto soava com implacável justeza. Diane pensava na técnica dos homicídios: um braço mergulhado nas entranhas da vítima. Andava tudo ligado. Todos os elementos se relacionavam entre si. Ela captava outra verdade.

 

Em 1972, clamou, utilizaram o Tokamak como uma máquina mortífera. E recomeçaram, ontem, para me eliminar a mim.

 

 O russo meneou a cabeça vagarosamente.

 

 Bastava abrir a barragem da torrente para accionar as turbinas e os alternadores. No momento em que a electricidade jorrou, libertei muito simplesmente os resíduos do trítio. A câmara continuava sob o vácuo: a radiação estava assegurada.

 

 Porque não se limitaram a abater-me?

 

 A nossa história escreveu-se sob o signo do círculo. Matámos graças ao Tokamak. Pareceu-me lógico utilizá-lo outra vez.

 

 Não passam todos de uns assassinos.

 

 Diane deitou uma breve mirada a Giovanni. Mostrava um ar atordoado e, ao mesmo tempo, cativado por este caudal de informações. Sabiam-no ambos: iam morrer. No entanto, só pensavam numa coisa: conhecer o seguimento da história.

 

 O hipnólogo retomou a narrativa:

 

 No dia seguinte ao acidente, vedámos o espaço contaminado pelas radiações e prosseguimos as nossas experiências. Foi então que se deu um prodígio. Soldados incumbidos de vigiar os entrepostos onde tinham sido colocados os sobreviventes verificaram umas curas miraculosas.

 

 Diane roubou-lhe a palavra.

 

 Vocês compreenderam então que, ao provocar o acidente, tinham forçado alguns xamãs tsevens a sair do seu refúgio. Que o vale abrigava forças como nenhum de vós ousara outra vez esperar. Que os poderes de que andavam à procura, importando velhos xamãs dos quatro cantos da Sibéria, se encontravam ali, a poucos passos do vosso laboratório, num grau de pureza extraordinário.

 

 Sacher dignou-se sorrir.

 

 É toda a ironia da nossa história. Pudemos apanhar os feiticeiros quando eles subiam de novo para as montanhas, com os seus ”pacientes”. Estávamos convencidos de que, graças a eles, iríamos finalmente desvendar os segredos de uma outra realidade. Os segredos do universo psíquico.

 

Diane fechou os olhos. Alcançara o derradeiro limiar.

 

 Como é que roubaram os poderes deles? perguntou. Foi a voz de Mavriski que respondeu, trémula de exaltação:

 

 Os dois franceses é que o decidiram.

 

 Ela reabriu as pálpebras. Não esperava esta resposta.

 

 Que franceses?

 

 Sacher interveio num tom mais baixo:

 

 Maline e Sadko: eram os seus patronímicos russos. Dois trânsfugas psicólogos, que partilhavam dos nossos ideais. Até aqui, tinham-nos seguido nos nossos trabalhos sangrentos, mas de uma forma algo passiva. Quando os feiticeiros tsevens chegaram, eles propuseram-nos outra técnica de estudo.

 

 Que técnica?

 

 Era a ideia de Sadko: visto que o poder destes xamãs consistia em algo de puramente mental, só havia uma única maneira de descobrir os seus segredos. Penetrar no espírito deles. Estudá-los... a partir do interior.

 

 Como?

 

 O russo agitou-se.

 

 Devíamos transformar-nos em xamãs.

 

 Mavriski parecia um marinheiro demente que tivesse zarpado das margens da razão. Sacher revezou-o num tom mais calmo:

 

 Tal era a ideia dos franceses: precisávamos de nos iniciar nos ritos tsevens. Devíamos tornar-nos feiticeiros a fim de passar para o outro lado da consciência. Sadko insistia. Era agora ou nunca o momento de tentar a grande passagem.

 

 Diane estava pronta para assimilar esta loucura. De uma certa forma, era a explicação mais plausível. Mas a lógica dos acontecimentos ainda lhe escapava. Perguntou:

 

 Como podiam esperar que os xamãs prisioneiros vos iniciassem? O que vos levava a supor que estes homens vos confiariam os seus segredos?

 

 Tínhamos um intercessor.

 

 Quem?

 

 Eugen Talikh.

 

 Diane deu uma gargalhada meio tresloucada.

 

Talikh? Depois de o prenderem? Cujos irmãos tinham matado?

 

 Mavriski adiantou-se de novo. Já só estava a escassos centímetros ela podia estudar o mínimo relevo da sua fácies de águia.

 

 Tem razão, disse o russo numa voz imprevistamente muito plácida. Esse patife jamais aceitaria negociar connosco. Fomos obrigados a utilizar outro método.

 

 Que método?

 

 O método doce.

 

 Que método doce?

 

 O homem seguia o seu próprio raciocínio:

 

 E foi Sadko quem assegurou esse papel.

 

 Onde quer chegar? Como é que Sadko podia ameigar Talikh?

 

 Mavriski recuou. As suas arcadas alçaram-se bruscamente numa expressão de surpresa. Disse, num tom divertido:

 

 Apercebo-me de que omiti mencionar-lhe um pormenor essencial.

 

 Diane berrou. A sua raiva debatia-se contra o frio, o seu juízo contra a insanidade.

 

 QUE PORMENOR?

 

 Sadko era uma mulher.

 

 Diane repetiu, crucificada de estupefacção:

 

 Uma... uma mulher?

 

 Ouviram-se passos à direita. Diane virou-se para a zona de sombra, para lá dos néones. Ao longo de toda a aventura, dera mostras de força, de inteligência, de sangue-frio. Todavia, neste instante, voltou a ser a rapariga muito alta, curvada, desajeitada e hesitante da sua adolescência.

 

 Inquiriu então olhando para a silhueta que se perfilava na luz:

 

 Mamã?

 

 Nunca ela lhe parecera tão bela. Vestia uma dessas roupas brancas que se vestem depois de esquiar, feita por uma grande marca italiana. Nem uma sombra, nem um vinco nesta elegância acrílica. Foi só à altura do rosto que Diane notou as falhas. Sob o gorro vermelho, as madeixas louras da mãe apresentavam-se quase brancas, esvaziadas de cor e de vida. E os seus olhos, sempre tão claros, tão azuis, assemelhavam-se agora a umas bolhas de gelo. Diane gostaria de encontrar uma réplica adequada à situação, mas só pôde repetir:

 

 Mamã? O que fazes aqui?

 

 Sybille Thiberge respondeu com um sorriso:

 

 É a história de toda a minha vida, queridinha.

 

 Diane viu que a mãe, tal como os dois outros, carregava uma pistola automática. Reconheceu o modelo: uma Glock igual à que ela própria utilizara na Fundação Bruner. Inexplicavelmente, colheu novas forças neste pormenor. Ordenou:

 

 Conta lá. Deves-nos a verdade.

 

 A sério?

 

 Sim. Pela simples razão de que viemos até aqui para a ouvir.

 

Sorriso. Essa fenda tão lisa, tão familiar, que Diane detestava desde a adolescência.

 

 É verdade, admitiu Sybille, mas receio que leve demasiado tempo...

 

 Diane abarcou a sala num único olhar: as correntes, os sarcófagos, a mesa cirúrgica.

 

 Temos a noite toda à nossa frente, não temos? Suponho que a vossa experiência só começará ao nascer do dia...

 

 Sybille aquiesceu. Os dois eslavos rodeavam-na agora. O bafo deles reduzia-se a finas parcelas de cristal. A chapka castanha de um e o gorro branco do outro cintilavam de geada. O espectáculo destes dois homens imóveis, flanqueando a mãe, atingia uma perfeição medonha. Mas não era isto que tolhia Diane: era o olhar de adoração que os torcionários lhe dirigiam.

 

 Não estou segura de que compreendas a essência do meu destino, continuou Sybille. As suas motivações. As suas razões primordiais.

 

 Porque não?

 

 Sybille deitou um olhar distraído a Giovanni e depois voltou a cravar os olhos nos da filha.

 

 Porque se trata de uma época que ignoras. De um anseio de que não fazes a mais pequena ideia. A vossa geração não passa de um invólucro vazio, de uma cepa morta. Não tem sonhos, nem esperanças, nem sequer remorsos. Nada.

 

 Como é que sabes?

 

 A mãe continuava, como se falasse consigo mesma:

 

 Vivem na era do consumo, de materialismo dourado. Já só estão obcecados pelo vosso mísero umbigo. (Suspirou.) Ao fim e ao cabo, talvez tenham herdado esta falta de imaginação do nosso próprio ardor. Éramos tão apaixonados, tão exaltados, que vos tirámos tudo...

 

 Diane sentia subir dentro de si uma cólera que já conhecia bem.

 

 A que te referes? A que sonho renunciámos?

 

 Houve uma pausa. Um silêncio cheio de espanto, como se a mãe se desse conta de um abismo na ignorância da filha. Em seguida articulou, arredondando os lábios numa curva de respeito:

 

 À revolução. Refiro-me à revolução. O fim das desigualdades sociais. O poder do proletariado. Os bens finalmente restituídos aos que manejam os meios de produção. A morte da exploração do homem pelo homem!

 

 Diane estava atónita. Assim, a pedra angular do edifício, o número de ouro do pesadelo, cabia em quatro sílabas. O discurso da mãe fluiu mais depressa:

 

 Sim, minha filhinha. A revolução. Não era uma ilusão. Era um arroubo, uma evidência. Era possível derrubar o sistema que estruturava as nossas sociedades, que alienava os nossos espíritos. Podíamos libertar o homem da sua prisão social e mental. Criar um mundo de justiça, de generosidade, de lucidez. Quem poderia afirmar que este sonho não era o maior, o mais maravilhoso de todos?

 

 Diane não podia acreditar que estas palavras saíam da boca da burguesa do boulevarSuchet. Tentava associar o que ouvia a alguma realidade que lhe tivesse sido dada observar noutro tempo. Mas a mãe nunca lhe falara de comunismo, nem sequer de política. Desistiu de procurar. A resposta já não tardava. A resposta resumia a história toda:

 

 Eu tinha vinte e um anos em 1967. Frequentava o curso de Psicologia na Faculdade de Nanterre. Ainda não era mais do que uma pequena burguesa, mas dedicava-me de corpo e alma à minha época. O comunismo e a psicologia experimental entusiasmavam-me. Esperava, com o mesmo fervor, ir a Moscovo para me impregnar dos preceitos do socialismo e em seguida estudar no campus de Berkeley, nos Estados Unidos, onde alguns químicos mergulhavam em zonas inexploradas do cérebro graças ao LSD ou à meditação.

 

 ”O meu herói chamava-se Philippe Thomas. Era um dos professores de Psicologia mais reputados de Nanterre, mas também uma figura marcante do Partido Comunista. Eu assistia a todas as suas aulas. Ele parecia-me magnífico, imaterial, inacessível...

 

 ”Quando soube que andava à procura de pacientes para se submeterem a testes no seu laboratório de psicologia, no hospital de Villejuif, ofereci-me como voluntária. Thomas pesquisava nessa altura em torno do inconsciente e da emergência das faculdades paranormais. Iniciara uma série de estudos parapsicológicos, na esteira dos que certos hospitais americanos praticavam. No princípio de 1968, comecei a ir a Villejuif. Foi uma decepção: os testes eram fastidiosos era preciso adivinhar, no essencial, a cor de cartas escondidas e Thomas nunca vinha a esta unidade.

 

 ”No entanto, uns meses mais tarde, o mestre em pessoa convocou-me. Os meus resultados eram estatisticamente significativos. Thomas propôs-me que iniciasse uma série de exames mais aprofundados, consigo mesmo no papel de experimentador. Não sei o que me causou maior choque naquele momento: o facto de ficar a saber que era uma médium, ou o de ir passar umas semanas na intimidade do meu ídolo,

 

 ”Lancei-me a fundo nestes trabalhos. Saboreava todas as horas vividas ao pé do homem a quem agora tratava por Philippe. Contudo, a sua atitude inquietava-me. Tinha a impressão de que ele auscultava em mim uma força, um fenómeno que o fascinava. Em breve compreendi que ele julgava possuir igualmente uma faculdade. Não um poder de percepção extra-sensorial, mas um poder de psicocinese. Considerava-se capaz de influenciar a matéria à distância, designadamente os metais. No fundo, devia ter alcançado uma ou duas vezes este resultado, mas era incapaz de provocar tal faculdade de forma voluntária. Aos poucos, convenci-me de uma verdade: ele tinha inveja dos meus dons.

 

 ”Rebentaram então os acontecimentos do Maio de 68. Philippe e eu tornámo-nos amantes nas barricadas. Eu tinha a sensação de afagar a carne de um sonho, de um ideal que mostrava possuir um corpo. Todavia, uma onda de terror ergueu-se logo entre nós. Através de um só olhar, durante os segundos-séculos em que ele ejaculou em mim, vi brilhar nos seus olhos o lampejo do ódio.

 

 ”Só mais tarde percebi o que estava a acontecer. Thomas era
um ser de teoria. Uma personagem que se sonhava a si mesmo como um fluxo de ideias, de aspirações superiores, de forças espirituais. Ora, eu chamara-o à sua realidade trivial: não passava de um homem, possuído pelo meu corpo. A seus olhos, eu era o instrumento da sua própria queda, da sua própria decadência. Um objecto de malefício.

 

 ”Bastaram umas semanas para a insurreição chegar ao fim. Os operários retomaram o trabalho e os estudantes acalmaram-se. Thomas perdeu a esperança de qualquer acção revolucionária na Europa. Alguns dos nossos camaradas, desgostosos, abandonaram o combate político, outros, ao invés, aderiram à luta armada: o terrorismo. Philippe concebeu outro projecto: passar-se para o Leste. Ir ao encontro das terras comunistas, experimentar o sistema que preconizara durante tanto tempo. Na realidade, queria acima de tudo investigar nos laboratórios de parapsicologia russos. Estava persuadido de que, lá longe, conseguiria suscitar o seu próprio poder psicocinético. O problema é que não tinha nada para oferecer aos Soviéticos. Quem desejasse transpor a Cortina de Ferro, naquela época, devia demonstrar a sua utilidade para o sistema. Thomas percebeu então que detinha uma moeda de troca: eu.

 

 ”A pretexto de uma viagem oficial a Moscovo, fomos várias vezes à embaixada da URSS. Thomas conhecia diversos responsáveis diplomáticos. Assim, sujeitámo-nos a testes parapsicológicos num desses característicos gabinetes cinzentos de cortinas sebentas. Thomas falhou, mas eu obtive resultados excepcionais. Os russos procuraram inicialmente desmascarar alguma astúcia, mas por fim compreenderam que estavam na presença do mais poderoso sujeito psíquico que haviam conhecido até então. A partir desse momento, as coisas precipitaram-se.

 

 ”Tínhamos combinado que eu acompanharia Philippe. Ainda que o seu estado mental não cessasse de declinar. Num único ano, vira-se obrigado a tratar-se duas vezes numa clínica. Não cessava de oscilar entre fases maníacas e depressivas. Estava obcecado pela dor, a violência, o sangue. Não obstante, talvez mesmo por causa disto, eu amava-o ainda mais.

 

”Em Janeiro de 1969, assistimos a um congresso de ciências cognitivas em Sofia, na Bulgária. Homens do KGB entraram em contacto connosco e deram-nos documentos de identidade soviéticos, sob os nomes de Maline e de Sadko. Era brutal, sombrio, inquietante, mas era tudo o que esperávamos. Quarenta e oito horas depois, chegávamos à URSS.

 

 ”As primeiras impressões foram uma decepção completa. Julgávamos que nos acolheriam como heróis: tinham-nos na conta de espiões. Sonháramos com um mundo igualitário. Só descobríamos ali um universo de injustiça, embuste e opressão.

 

 ”O rancor de Philippe recaiu sobre mim. Tornou-se irascível, cruel. Desejava-me mais do que nunca, e este desejo era para ele uma humilhação permanente. De manhã, quando eu acordava, descobria incisões na minha pele. Era o próprio Philippe que me feria durante o meu sono, servindo-se das agulhas e das lâminas que usava nas suas experiências psicocinéticas.

 

 ”Eu definhava a olhos vistos. As torturas de Thomas, o frio, a subnutrição, o isolamento, e os testes psíquicos a que devia submeter-me todos os dias em laboratórios imundos: tudo contribuía para me destruir. Perdia a cabeça. Perdia o meu corpo. E já nem sequer possuía o que constituíra até então a minha identidade de mulher: já não tinha o período. Há várias semanas que sabia que estava grávida.

 

 ”Em Março de 1969, os homens do Partido anunciaram-nos a nossa transferência para um laboratório situado a oito mil quilómetros de Moscovo, algures na Mongólia. Esta nova perspectiva petrificou-me. Philippe, pelo contrário, recuperou a confiança. Quando lhe revelei que estava à espera de um filho, mal me ouviu. Só via uma coisa: íamos mudar-nos para o instituto mais secreto do Império Soviético. Poderíamos, finalmente, pesquisar os fenómenos paranormais, tirar proveito dos conhecimentos dos Russos neste domínio.

 

 ”Eu sabia que o meu parto em Moscovo não seria um primor de tecnologia, mas não contava com um tal grau de barbárie, de violência. Encontrava-me demasiado debilitada para dar à luz normalmente. Não conseguia contrair os músculos do diafragma, do abdómen. A dilatação do colo uterino não se efectuava o suficiente. As enfermeiras, desnorteadas, chamaram o médico de serviço que apareceu completamente bêbedo. O seu hálito carregado de vodca era mais forte que os eflúvios de éter que pairavam na sala. E este borrachão, com os seus gestos trémulos utilizou então o fórceps.

 

 ”Sentia os seus instrumentos de metal a apartar-me, a arranhar-me, a ferir-me até ao fundo das entranhas. Urrava, debatia-me e ele voltava a mergulhar no meu ventre com as suas tenazes de ferro. Finalmente, optou por uma cesariana. Mas a anestesia não surtiu qualquer efeito em mim. A validade dos produtos já tinham caducado.

 

 ”Restava uma única solução: fazer a operação a frio. Abriram-me a barriga quando ainda estava consciente. Senti a tremenda queimadura da lâmina, depois vi o meu sangue esparrinhar as batas e as paredes, desmaiei. Ao acordar, doze horas mais tarde, tu repousavas a meu lado, num berço de plástico. Ainda não sabia que a operação me tornara estéril, mas esta notícia ter-me-ia enchido de júbilo. Nesse momento, se não estivesse demasiado fraca para me mexer, ter-te-ia projectado com todas as minhas forças contra o chão ladrilhado.

 

O tu mortificou Diane. Fora afinal assim a sua entrada no mundo. Pelas portas do sangue e do ódio. Havia, enfim, uma certeza que lhe dizia respeito: era filha de dois monstros: Sybille Thiberge e Philippe Thomas. Sentiu um estranho calor, uma espécie de consolo. Através deste caos, só via uma verdade: escapara ao atavismo deles. Atravessara o determinismo genético como se este fosse um leve véu, uma cortina sem consequências. Desequilibrada, amalucada, bizarra, era bem possível: mas de modo nenhum se parecia com estes dois animais selvagens.

 

 Já a mãe acrescentava:

 

 Partimos para a Mongólia dois meses depois, no Outono de 1969. Conheci o frio absoluto. Descobri a imensidão do continente, onde uma mesma floresta podia desfilar durante vinte e quatro horas sem que nada nem ninguém aparecesse entretanto à nossa vista. As gares rachadas pelo gelo assemelhavam-se a acampamentos militares. Era tudo caqui, hostil, entremeado de dólmanes e kalachnikovs. Dir-se-ia que estava tudo amarrado pelos cabos telegráficos ou o arame farpado. Tinha a impressão de me enfiar num gulag sem fim.

 

 ”Ainda me lembro do ruído dos vagões que se entrechocavam, do incansável martelamento dos carris. Era uma espécie de respiração de aço, que se confundia com o meu próprio sopro. Eu mesma me convertera numa mulher de metal, formada por uma liga inflexível. Metal dos instrumentos que haviam vasculhado no meu ventre. Metal que Philippe utilizava para me atormentar todas as noites. Metal que eu agora conservava sempre em mim para me defender dele e dos outros. Já só me habitava um constante desejo de vingança. E eu bem o sabia, assim me confidenciava a minha intuição psíquica: lá nos confins da taiga, havia de consumar a minha vingança.

 

 O calor dos néones já não bastava para combater a mordedura do frio. Diane sentia os membros entorpecidos, paralisados. Iria aguentar até ao fim da história? Até ao alvorecer?

 

 Mavriski e Sacher não se mexiam. Ouviam as palavras de Sybille Thiberge como se de um verdadeiro discurso das origens se tratasse. Os seus rostos estavam imbuídos de uma gravidade de estátua. Só os olhos lhes reluziam sob as cristas de geada dos chapéus. Diane pensava nesses animais de pedra que vigiam o limiar dos templos chineses.

 

 A mãe amaldiçoada prosseguiu:

 

 Quando chegámos ao Tokamak, os parapsicólogos já tinham pervertido os seus trabalhos. Thomas sentiu-se logo seduzido pela crueldade de tais manipulações. Eu via aqui tão-somente uma nova etapa da minha própria execração. Vivia tudo isto com uma fria indiferença.

 

 ”Mesmo assim, quando eles aprisionaram os xamãs tsevens, decidi agir. Em dois anos, as relações de força entre mim e os outros investigadores tinham-se invertido completamente. Apesar da sua loucura, apesar da sua crueldade, apaixonaram-se uns atrás dos outros por mim. Eu é que lhes ensinei a língua francesa. Eu é que recolhia as suas confissões alcoolizadas. Era ainda eu que lhes oferecia algumas parcelas de ternura.

 

Adoravam-me, veneravam-me e respeitavam-me mais que tudo naquele inferno.

 

 Diane imaginava estes torcionários eslavos. A mãe apareceu-lhe como uma Górgona demente.

 

 Convenci-os de que nada alcançariam com os seus métodos sanguinários, de que o único meio de ter acesso a esses poderes era iniciar-nos por nosso turno. Sabia como persuadir Talikh a ajudar-nos...

 

 Diane interrompeu-a bruscamente:

 

 Não acredito. Vocês matavam feiticeiros siberianos, metiam Talikh na prisão, queimavam todos os seus irmãos, e bastaria afinal que fosses fazer-lhe olhinhos na sua cela para ele executar as tuas ordens? Estás-me a contar lérias.

 

 As feições de Sybille crisparam-se.

 

 Subestimas os meus encantos, queridinha. Mas é verdade: eu estava enganada. Naquela altura, Eugen já possuía outro plano.

 

 Que plano?

 

 Sê paciente. Respeita a cronologia da história.

 

 Paul Sacher tomou a palavra. Era o homem da exactidão:

 

 No fim do mês de Abril, libertámos Talikh e os xamãs tsevens. Nove, ao todo. Reunimo-nos aqui mesmo, nesta sala. Ainda estou a vê-los. Os seus rostos emaciados, a sua pele dura como casca, as suas deels pretas e gastas. Fechámos o círculo com todos nós lá dentro. O concílio pôde começar.

 

 O concílio? Sybille esclareceu:

 

 O iluk, em língua tsevena. Um conselho religioso, como as reuniões dos bispos do Vaticano, excepto que neste caso se tratava de xamãs. Os xamãs mais poderosos da Mongólia e da Sibéria. Juntávamo-nos numa coroa de pedra: os tsevens designaram o nosso encontro por ”concílio de pedra”.

 

 O etnólogo despertou em Giovanni, que perguntou:

 

 Como se desenrolou a iniciação?

 

 Sybille envolveu o italiano num olhar desdenhoso.

 

 Adquirir um segredo é passar para o outro lado de uma linha. Revelá-lo é voltar aquém. Fomos guiados pelos xamãs na floresta. Gradualmente, deixámos os hábitos dos homens, esquecemos a palavra, alimentámo-nos de carne crua. Por consequência, a taiga penetrou-nos, rasgou-nos, destruiu-nos. A experiência representou uma verdadeira morte, mas, no termo da provação, regressámos à vida com as mãos carregadas de poder.

 

 Diane perguntou:

 

 Que poder, ao certo?

 

 A iniciação permitiu-nos aprofundar o dom que já possuíamos, até ao seu paroxismo.

 

 Ela recomeçava a tremer. O frio e a verdade injectavam-se no seu sangue. Sabia que, neste estádio físico, o corpo perde um grau de três em três minutos. Iriam todos morrer de frio? Voltou a perguntar:

 

 O que fizeram aos xamãs tsevens?

 

 Mavriski inclinou-se, adoptando uma expressão de falso arrependimento.

 

 Matámo-los. A nossa história era a história da infâmia. A história de um poder e de uma ambição sem limites. Queríamos ser os únicos a possuir estes segredos.

 

 E Talikh? berrou Diane. Sacher replicou:

 

 A conjuntura já não era propícia a que lutássemos entre nós. Os comissários do Partido iam chegar, com novas tropas a fim de procederem a averiguações sobre o acidente nuclear. Só nos escapou Suyan, a feiticeira que te salvou.

 

 Diane dirigiu-se à mãe:

 

 Como é que tu e o Thomas regressaram a França?

 

 Do modo mais simples possível. Depois de termos passado despercebidos em Moscovo durante algum tempo, conseguimos entrar em contacto com a Embaixada de França. Limitámo-nos a representar o papel de trânsfugas arrependidos.

 

 E os Russos deixaram-vos partir?

 

 Dois parapsicólogos franceses, saídos de um laboratório que não dera o mais pequeno resultado... Na Rússia de Brejnev, havia gente mais graúda para perseguir.

 

Diane imaginou a continuação em voz alta:

 

 Regressaram então ao vosso país de origem, anónimos entre os anónimos, como van Kaen, Jochum, Mavriski, Sacher... Durante todos estes anos, as vossas faculdades psíquicas permitiram-vos acumular poder e fortuna.

 

 Sybille soltou uma risada. Os seus olhos pareciam velados de febre.

 

 Jamais compreenderás o que possuímos, o que abrigamos em nós mesmos. A realidade material não tem a mínima importância a nossos olhos. Nunca nos interessámos senão pelas nossas próprias faculdades. Estes mecanismos maravilhosos que estão em acção no nosso espírito e que podemos escrutar, observar, manipular segundo a nossa vontade. Lembra-te de uma coisa: só existe uma maneira de estudar as faculdades psíquicas, possuí-las. Jamais poderás conceber tais horizontes.

 

 Diane retorquiu com lassidão:

 

 No fundo, pouco importa. Mas há um último enigma.

 

 Qual?

 

 Ela abriu as mãos. As frieiras começavam a roer-lhe a extremidade dos dedos. Compreendeu por este sinal que o seu coração já abrandava os batimentos e deixara de irrigar a pele e os membros.

 

 Porque voltaram hoje aqui?

 

 Por causa do duelo.

 

 O duelo?

 

 A mulher do gorro vermelho deu uns passos. Parecia insensível ao frio. Com a ponta da luva, afagou um dos instrumentos cirúrgicos esquecidos sobre a mesa de ferro; em seguida, declarou:

 

 O concílio legou-nos poderes. Em paga, devemos seguir as suas regras até ao fim.

 

 Que regras? Não percebo nada.

 

 Desde tempos imemoriais, os feiticeiros tsevens defrontam-se aqui e põem em jogo os seus poderes. O vencedor de cada confronto arrebata o poder do outro. Sempre soubemos que um dia, mais cedo ou mais tarde, seríamos obrigados a bater-nos, a arriscar os nossos poderes neste vale. Soou a hora. Viemos defrontar-nos.

 

 Diane e Giovanni fitaram-se. Durante a viagem no avião de carga, o etnólogo contara-lhe: ”Os xamãs de cada clã deviam comparecer em lugares secretos e defrontarem-se, sob a forma do seu animal fetiche.”

 

 Deslumbramento.

 

 Pavor.

 

 Estes iniciados eram Faustos.

 

 Tinham pactuado com os espíritos e deviam agora pagar o preço da sua iniciação submeter-se à lei da taiga. A lei do combate.

 

 Se admitíssemos tal postulado, tudo coincidia. Se estes xamãs se aprestavam a lutar entre si sob a forma simbólica de um animal, então, de certo modo, o seu duelo constituía uma caçada. Tudo devia, por conseguinte, desenrolar-se como nas antigas caçadas tsevenas.

 

 Era necessário que o duelo fosse anunciado e guiado por Vigias.

 

 Eis porque estes feiticeiros modernos haviam recolhido os filhos da taiga. Eis porque tinham aguardado que a data fatídica se inscrevesse nos seus dedos queimados, por ocasião de um transe. Assim era o rito. Assim era a lei. O Vigia devia revelar-lhes o dia do duelo, o dia do regresso.

 

 Um outro facto correspondia perfeitamente à simbólica animal. Eugen Talikh matava as suas vítimas triturando-lhes o coração dentro do corpo. Utilizava o método consagrado na Ásia Central para matar os animais.

 

 De súbito, os pensamentos de Diane tomaram outro rumo. Ela pensava nas particularidades de comportamento dos iniciados. Patrick Langlois dissera-lhe que Rolf van Kaen seduzia as mulheres cantando árias de ópera. Acrescentara mesmo que este canto seduzia todo o pessoal feminino do hospital. Diane também se recordava de uma reflexão de Charles Helikian a propósito de Paul Sacher: ”Tem cautela: é um sedutor.

 

Quando ensinava, apropriava-se sempre da mais linda rapariga da aula. Os outros alunos só tinham o direito de calar o bico. Um verdadeiro chefe de matilha.”

 

 A atitude perante o sexo era um formidável revelador da psicologia profunda de um homem. Estes aprendizes de feiticeiro não desmentiam a regra. Diane acabava de adquirir uma certeza: tais homens, na sua possessão, tinham adoptado os comportamentos de determinados animais.

 

 E não de uns quaisquer animais.

 

 Em van Kaen, Diane, a etóloga, reconhecia a conduta específica dos cervídeos. Pensava na brama. Os veados, as renas, os caribus eram os únicos mamíferos capazes de desencadear a excitação sexual na fêmea graças ao seu grito. Por muito alucinante que tal pudesse parecer, o alemão comportava-se como uma rena ao fascinar por meio do canto.

 

 Quanto a Sacher, Helikian desvendara a chave da sua atitude: um chefe de matilha. Sim, um homem que se apropriava da mais bela criatura das suas aulas e dominava todos os outros podia ser comparado a um lobo. A um ”alfa”, conforme se chamava ao macho dominador da alcateia, que fecundava a fêmea e não admitia senão respeito e submissão da parte dos outros membros.

 

 Em seguida, Diane lembrou-se da armadilha de Philippe Thomas. Uma cilada cuidadosamente preparada, baseada na hipnose e na dissimulação, assente numa infinita paciência e numa intervenção fulminante. Semelhante técnica trazia-lhe à memória uma outra espécie animal: as serpentes, que capturavam as suas presas, erguidas sobre a cauda, graças à fixidez do seu olhar de pálpebras não móveis.

 

 Desde a iniciação, desde que tinham o fim de renascer para a vida selvagem, apadrinhados pelo espírito de um animal fetiche, estes homens xamãs tinham adoptado o comportamento do seu ”amo”. Estavam possuídos pelo seu próprio totem.

 

 A rena para van Kaen.

 

 O lobo para Paul Sacher.

 

 A serpente para Philippe Thomas.

 

Uma nova revelação explodiu então no espírito de Diane. Lembrava-se repentinamente de outros factos, de outros pormenores. Indícios físicos que ela assimilara, por erro, a sintomas de radiação nuclear, mas que podia agora analisar de um ponto de vista muito diverso.

 

 Rolf van Kaen sofria de uma atrofia do estômago que o forçava a ruminar a comida. O polícia apresentara este fenómeno como uma deficiência, uma anomalia inexplicável. Diane supunha agora o inverso: van Kaen obrigara-se sem dúvida, anos a fio, a regurgitar os alimentos até ao momento em que a sua morfologia se adaptara a este hábito insensato. O estômago acabara por deformar-se. O corpo modificara-se e ele passara a assemelhar-se, no próprio seio das entranhas, ao seu mentor selvagem: A RENA.

 

 Diane conservava igualmente uma recordação precisa da sessão de hipnose em casa de Paul Sacher. Por entre a penumbra, surpreendera no fundo dos olhos do homem um reflexo inesperado, coruscante igual ao que é desferido pelas retinas do lobo, dotadas de plaquetas que amplificam a luz. Como explicar esta particularidade? Lentes de contacto? Uma deformação natural, de tanto haver perscrutado as trevas? Sacher detinha aqui, em todo o caso, o seu atributo, o ponto de semelhança com o seu totem: O LOBO.

 

 Philippe Thomas apresentava um exemplo ainda mais evidente. Ela não se esquecera do corpo aveludado e das suas peles mortas, na casa de banho em bronze. Pela sua simples força mental, o conservador de arte lograra contrair uma doença psicossomática: um eczema que lhe secava a pele a ponto de renovar regularmente a sua epiderme, como se fosse uma muda. À custa de vontade, de obsessão, ele tornara-se A SERPENTE.

 

 Assombrada, Diane continuava a aplicar esta lógica. Revia agora o corpo abominável de Hugo Jochum, malhado de inúmeras manchas castanhas. O velho geólogo devia ter provocado esta doença dermatológica expondo-se regularmente ao sol. O seu objectivo: obter o corpo pintalgado de uma fera. Como O LEOPARDO.

 

Quais eram os ídolos selvagens de Mavriski, de Talikh? A quem se esforçavam por se assemelhar? Uma mirada ao russo forneceu-lhe a resposta. O rosto imberbe punha em realce o seu nariz aquilino, como um bico. As suas pálpebras privadas de pestanas acentuavam o movimento de abrir e fechar os olhos. Ao rapar totalmente o rosto, este homem favorecera a sua parecença natural com uma ave de rapina. Evguenei Mavriski era A ÁGUIA.

 

 A voz da mãe ressoou bruscamente:

 

 Vejo que a minha pequenina Diane voou para longe daqui. Estás a sonhar, querida?

 

 Diane tiritava, mas sentia o sangue a voltar aos membros. Conseguiu balbuciar:

 

 Vocês... tomam-se por animais.

 

 Sybille brandiu a lâmina com punho de nácar e fê-la brilhar à luz. Adoptou então um tom de cantilena infantil:

 

 Quente, minha querida, quase a escaldar. Mas se sou um animal, já adivinhaste qual?

 

 Diane apercebeu-se de que excluíra involuntariamente a mãe do círculo infernal. Rememorou as recordações que se referiam à vida íntima de Sybille. Não via nada. Nem um gesto, nem uma mania, nem um sinal físico que lhe fizesse lembrar, mesmo de longe, um animal. Nada que lhe indicasse a identidade do ídolo, a não ser...

 

 De repente, uma série de indícios ofuscaram-na.

 

 A mãe a lamber os dedos besuntados de mel. A mãe a arrumar pacientemente os seus frascos de apicultor.

 

 A mãe e as suas famosas pílulas de geleia real. O mel. Ela tinha o gosto do mel no sangue. No corpo. No coração. ”

 

 Diane lembrava-se igualmente dos estranhos beijos que a mãe lhe dava em criança. Beijos onde assomava sempre a língua, dura e rugosa. Em verdade, Sybille nunca beijara a filha lambia-a, segundo uma técnica muito peculiar de um animal. Diane avigorou a voz e disse: Tu és O URSO.

 

 As máscaras tinham caído. Três sobreviventes. Três animais. Três combatentes. Deitou uma olhadela ao relógio: quatro horas da madrugada. O sol nasceria daí a uma hora. Começaria então o duelo. Sob que forma? De mãos nuas? Com as armas de cabo de marfim? Com as pistolas automáticas?

 

 Diane pensava agora nos Lúú-Si-An. Podia imaginar como aqueles homens haviam raptado as crianças aos tsevens, que agora os veneravam à imagem dos seus próprios xamãs. Podia entrever como se tinham empenhado em dispersar metodicamente os Vigias pelos orfanatos que eles mesmos financiavam. Compreendia até o cuidado posto em fazê-lo no final do mês de Agosto, no momento que os centros são esvaziados pelos pais adoptivos que aproveitam as férias escolares para vir buscar um pupilo.

 

 Faltava-lhe, porém, o elemento essencial: o que levara tais homens a decidir, todos no mesmo momento, a organização daquela rede? Como haviam podido saber, pelo menos dois anos antes, que chegara a altura de recolher Vigias e que a data inscrita nos seus dedos corresponderia ao Outono de

1999? Sacher respondeu:

 

 Veio tudo através dos sonhos.

 

 Sonhos?

 

A partir de 1997, começámos a sonhar com o círculo de pedra. Ao longo das noites, o sonho foi ganhando em precisão. O Tokamak enchia o nosso espírito. Compreendemos a mensagem: devíamos agir. O duelo estava iminente.

 

 Como admitir uma tal explicação? Aceitar a ideia de que sete homens, ao mesmo tempo, nos quatro cantos da Europa, tiveram o mesmo sonho? O hipnólogo continuou:

 

 Na Primavera de 1999, os sonhos atingiram tamanha intensidade que compreendemos estar muito próxima a data do duelo. Era urgente recolher os meninos eleitos e procurar a data exacta nos seus corpos...

 

 Porque não os adoptaram pessoalmente?

 

 Os Vigias são tabu, respondeu Sacher. Não podemos tocar-lhes. Só olhá-los. Sendo assim, restava-nos aguardar, discretamente, o aparecimento do sinal no seio de um lar que nos fosse familiar.

 

 Diane pensou na mãe, que sondara, observara Lucien, mas nunca o beijara, nem acariciara. No hospital, ao sabor das visitas, esperava simplesmente a emergência do sinal. Ela abeirou-se então de Sybille.

 

 Porque te lembraste de mim para adoptar o teu Vigia? Sybille Thiberge estremeceu. O seu olhar pousou com indolência na filha.

 

 Ora... escolhi-te desde sempre.

 

 Quer dizer que sempre soubeste que seria eu a desempenhar este papel?

 

 A partir do momento em que tomei conhecimento das regras do concílio.

 

 Como sabias que eu aceitaria adoptar uma criança? O que te fazia pensar que eu não estava em condições de ter um filho no meu próprio ventre, de...

 

 Diane calou-se, transtornada. Acabava de perceber a última evidência. Fora a mãe que a agredira e mutilara, num entardecer de Junho, à beira do Marne. Fora a mãe que empunhara os instrumentos cinzelados do Tokamak. Caiu de joelhos no meio das estilhas de vidro.

 

Meu Deus, mamã, o que me fizeste?

 

 A xamã inclinou-se para ela. A sua voz tornou-se cortante como uma lâmina:

 

 O mesmo que me fizeste outrora. Nunca mais esqueci os padecimentos que me rasgaram quando tentavam arrancar-te do meu ventre. Contigo, matei dois coelhos de uma cajadada. Vinguei-me e preparei-te para o futuro. Tinha de me assegurar de que jamais possuirias amantes. Que ninguém te fecundaria. A excisão anula todo o prazer físico e, além do mais, transforma qualquer relação sexual numa autêntica tortura se a infecção fechou os pequenos lábios. Golpeei-te de modo a obter este resultado. Esperava que o teu traumatismo te desviasse para sempre das relações sexuais. Devo confessar que reagiste muito para lá das minhas expectativas, minha linda.

 

 Diane soluçava, sem lágrimas. Elevou-se então a voz de Mavriski:

 

 Vamos, está na altura de começar.

 

 Diane ergueu os olhos, abismada: os dois homens, de armas em punho, recuavam para a porta de pedra. Gritou:

 

 Não! Esperem!

 

 Os feiticeiros olharam-na. A mãe não se mexera. Ela bradou:

 

 Quero entender os últimos pormenores. Devem-me isto! Sybille fixou os olhos na filha.

 

 Que mais queres saber?

 

 Diane esforçou-se, uma derradeira vez, por se concentrar na cronologia dos factos. Era a única maneira de não ir pelos ares. Disse então:

 

 Quando os Lúú-Si-An chegaram à Europa, nada se passou de acordo com o previsto.

 

 A mãe desnaturada escarneceu:

 

 É o mínimo que se pode dizer.

 

 Thomas tentou excluir-te do duelo destruindo o teu Lúú-Si-An.

 

 Thomas era um cobarde. Só a cobardia pode explicar semelhante violação. Quis romper o círculo.

 

Depois do acidente, quando compreendeste que já não havia a mínima hipótese de salvar Lucien, chamaste van Kaen. Entraste em contacto com ele por telepatia: eis porque ninguém encontrou o mais pequeno rasto de um telefonema.

 

 Era tudo o que eu podia fazer.

 

 Talikh jogou então a sua cartada, interrompeu Diane. Resolveu eliminar-vos uns atrás dos outros...

 

 A voz de Sybille fremiu de cólera:

 

 Talikh manipulou-nos sempre, desde o primeiro dia. Sabia que mataríamos os outros xamãs. Sabia que a única esperança de salvar a sua cultura, que é exclusivamente oral, consistia em iniciar-nos. Durante todos estes anos, tornámo-nos os garantes, os receptáculos da magia tsevena. Bastava assim a Talikh aguardar o dia do duelo sagrado, para nos vencer e retomar estes poderes.

 

 Concentrada em si mesma, Diane sentiu uma imensa satisfação: conhecia finalmente o móbil de Talikh, o homem que pretendera salvar o seu povo. Mas um grão de areia encravava a máquina. Afirmou:

 

 Há um facto que não se ajusta. Talikh não esperou pelo duelo, visto que matou van Kaen e Thomas em Paris, e Jochum em Ulan Bator. Porquê?

 

 Houve um silêncio, depois a feiticeira murmurou:

 

 A resposta é simples: não foi Talikh quem matou os xamãs.

 

 Quem foi?

 

 Eu. Diane berrou:

 

 Estás a mentir! É impossível que tenhas morto Hugo Jochum.

 

 Porquê?

 

 Eu encontrava-me lá, no corredor do mosteiro. Surpreendi o assassino quando ele saía do quarto de Jochum.

 

 E então?

 

 E então eu estava a falar contigo ao telefone, em Paris!

 

 Quem te diz que eu te respondia de Paris? São os pequenos milagres da tecnologia, minha querida. Estava a escassos metros de ti, no quarto de Jochum.

 

Diane caiu das nuvens. A voz ofegante da mãe. O ruído da circulação, que coincidia com a de Ulan Bator: muito simplesmente, os mesmos carros. Houvera em seguida aquela impressão confusa, no telhado, de já ter vivido essa cena. E com justa razão: a mesma mulher agredira-a de novo, após dezasseis anos de intervalo. Disse, numa voz sumida:

 

 Tu... tu é que mataste Langlois?

 

 Ele descobrira a existência dos Vigias de van Kaen e de Thomas. Bisbilhotara no passado de Thomas e descobrira uma ”Sybille Thiberge”entre os seus antigos alunos. Convocou-me imediatamente. Cortei-lhe as goelas no seu gabinete e roubei a documentação toda.

 

 Mas... e os poderes? Matando os outros, já não podias adquirir os que eles detinham...

 

 Estou-me nas tintas para os poderes. Basta-me a minha vidência. Quero ficar viva e sabê-los mortos. Só isto. Hoje, somos apenas três dentro do círculo, e a taiga decidirá do vencedor absoluto.

 

 O tempo urge!

 

 Mavriski abriu a porta de chumbo um raio de luz provinha das escadas: a claridade do dia. Diane ainda gritou:

 

 Onde está Talikh?

 

 Talikh morreu.

 

 Quando?

 

 Talikh teve a mesma ideia que Thomas, mas mais cedo. Entre todos os adversários do concílio, só temia realmente um: eu. Quis eliminar-me do círculo, excluir-me do combate. Tentou atacar-me de surpresa, durante o mês de Agosto, nas imediações da nossa casa do Lubéron. Senti a sua presença ainda antes de ele se aproximar. Li nele, mentalmente, como num livro aberto. E servi-me da minha arma íntima. (Um sorriso insinuou-se no seu rosto.) Sabes do que estou a falar.

 

 Diane voltava a ver a lâmina escondida sob a língua da mãe. Pensava nos seus beijos de urso, essas pequenas lambidelas que lhe dava em criança e que já traziam em si uma carga mortífera. Já estava tudo escrito. Mavriski encaminhou-se para as escadas e virou-se ao pisar o limiar rangente.

 

São horas.

 

 Não!

 

 Agora, Diane suplicava. Dirigiu-se à mãe:

 

 Há uma coisa... A coisa mais importante a meu ver. (Fixou as suas íris na delicada silhueta de gorro vermelho.) Quem queimou os dedos dos meninos? Quem vos marcou encontro aqui?

 

 Sybille pareceu admirada:

 

 Mas... ninguém.

 

 Alguém deve ter inscrito a data nas impressões digitais deles, não achas?

 

 Ninguém tocou nos dedos dos meninos. Eles são sagrados.

 

 Abria-se sob os seus passos uma última voragem. Insistiu:

 

 Quem decidiu da data do duelo?

 

 A mãe esboçou um gesto de desagrado:

 

 Não percebeste nada na nossa história. Pactuámos com forças superiores.

 

 Que forças?

 

 Os espíritos da taiga. As forças que dominam o nosso universo.

 

 Não compreendo.

 

 É o segredo da nossa iniciação. O espírito preexiste à matéria. O espírito habita cada átomo, cada partícula. O espírito é a partitura do universo. A força imaterial que forja a realidade concreta.

 

 Não compreendo.

 

 A voz da mãe tornou-se mais doce:

 

 Lembra-te dos dedos dos Vigias. Lembra-te das anomalias físicas de van Kaen, de Thomas, de Jochum... Lembra-te do cancro que brotou do teu ventre para ir alojar-se no do animal...

 

 Diane via tudo a tremer diante dos olhos. Via de novo os estigmas dos investigadores, os seus corpos atrofiados que ela julgara comandados por uma obsessão, uma vontade malsã. Sabia agora que se enganara. A mãe repetia:

 

O espírito controla a carne. Tal é a nossa maldição: mantemo-nos aquém da matéria. E regressámos para a última transmutação.

 

 Que... transmutação?

 

 A gargalhada da mulher ecoou no anel grandioso:

 

 Não entendeste a lei do concílio, minha filha? Não entendeste que tudo é verdade?

 

 As ervas altas pareciam afagar o vento cínzeo com as suas ténues extremidades, enquanto a alvorada, devagarinho, as abrasava como uma seiva escarlate. Os três xamãs avançaram na clareira, a alaa, e afastaram-se uns dos outros, já não desviando o olhar, já não se deslocando senão com uma desconfiança fremente, desenhando aos poucos, pelas suas simples silhuetas, os três pontos de um triângulo perfeito. Diane permanecera, juntamente com Giovanni, num dos montículos de cimento do Tokamak. Os adversários tinham-nos abandonado ali, não cuidando senão do seu próprio combate.

 

 Diane tentava discernir cada personagem à superfície da planície, mas só via os caules inclinados, as hastes verdejantes que davam gradualmente a impressão de os beber, de os absorver, de os dissolver. Quando ficaram a mais de cem metros uns dos outros, sobreveio uma imobilidade, uma fixidez de pedra. Uma espécie de suspensão na polpa da aurora.

 

 Os três xamãs despiram-se. Diane vislumbrou carnes pálidas, pontas ossudas. Instintivamente, concentrou-se na mãe. Viu os seus ombros, redondos e musculosos, que se misturavam com a ondulação vegetal. Viu as suas madeixas brancas que oscilavam ao vento. Depois apercebeu-se de que era a mulher inteira que vacilava no movimento da clareira. A mãe estava a adormecer. Resvalava para esse estado escondido, intermédio, crucial, que ergue uma ponte espiritual com os espíritos...

 

 Diane ainda se recusava a compreender a verdade quando o impossível aconteceu.

 

 Aflorou-a uma sombra. Ela ergueu o olhar. A dez metros de altura, sobrevoava-a uma águia gigantesca. Uma vasta cruz de penas, como que pousada sobre o céu, numa perfeita postura de atalaia. No instante imediato, ressoou um rugido de entranhas, cujas notas graves pareciam soerguer as profundezas da terra. Diane dirigiu o olhar para o ponto de vacilação que a mãe escavara ao pegar no sono.

 

 Um urso colossal empinava-se no meio dos entrelaçamentos vegetais. Um urso castanho um grizzli cujo corpo ultrapassava os dois metros de altura. A sua pelagem castanha refulgia em mil reflexos. A corcova das costas assemelhava-se a um contraforte pujante e a sua focinheira negra, lôbrega, soberana, onde se rasgavam dois olhos ainda mais negros, era indecifrável. ”Uma fêmea”, pensou Diane sem hesitação. O animal dobrou-se para trás e urrou, como se o mais pequeno elemento da taiga devesse a partir de agora contar com a sua ira.

 

 Diane não sentia qualquer medo, qualquer pânico. Estava para lá destes sentimentos. Voltou-se para o terceiro pólo, onde Paul Sacher desaparecera entre as ervas. Já não procurava o velho dândi, mas o espinhaço eriçado do lobo, o canis lúpus campestris característico da taiga siberiana.

 

 Não viu nada, mas distinguiu uma qualidade particular do ar, como lhe acontecera tantas vezes por ocasião das suas expedições. O odor da caça, saturado de fome e de tensão, parecia encher a mínima parcela do instante. Ouviu um sussurro à esquerda. Diane avistou simultaneamente: o busto branco e preto, lançado a toda a velocidade, o focinho afilado, fendendo as ervas, e os olhos, aqueles olhos debruados a negro, brilhantes de inebriamento, que se diria possuírem já um tempo de avanço sobre o ataque.

 

Diane agarrou Giovanni pelo braço e arrastou-o na sua corrida. Ladearam a clareira, afastando-se dos edifícios do laboratório. De repente o chão desapareceu sob os seus pés. Caíram ao longo de um declive abrupto, feriram-se em arestas de pedra, depois esbarraram contra a terra móvel. Diane apalpou logo a zona que a rodeava: perdera os óculos. A poucos metros dali, Giovanni estava na mesma posição. Este simples pormenor esmoreceu-a: dois pobres humanos, pitosgas, empoeirados, vulneráveis, face a animais superpoderosos. Todavia, quando as suas mãos encontraram as cangalhas, reparou que o lobo se sumira. O caçador renunciava, por ora. Giovanni tartamelava, encavalitando as suas próprias lentes no nariz:

 

 O que se passa? Mas o que sucedeu?

 

 Diane já avaliava a distância que os separava da área onde a mãe transpusera o limiar último. À primeira vista, quatrocentos metros bem a oeste. Era arriscado, mas não havia outra solução. ”Espera por mim aqui”, ordenou ela. Fincou-se ao longo da encosta, deitando a mão a raízes para lhe ser mais fácil a subida. ”Nem penses nisso”, replicou Giovanni, indo atrás dela.

 

 Treparam juntos e mergulharam de novo nas vagas vegetais. Diane não possuía um sentido de orientação muito seguro, mas a recordação do urso ardia na sua memória. Rastejaram os dois, entre as ervas, até ao local da transmutação. Diane encontrou as roupas da mãe. Rebuscou e desencantou sem custo a Glock. Calibre 45. Retirou o carregador da coronha e contou: quinze balas, mais uma na culatra. Pensou nas armas dos dois outros adversários. Valeria a pena ir buscá-las? Não: demasiado perigoso. Sem um ruído, sem um restolho, deram meia volta e desceram outra vez a encosta de terra.

 

 Diane esforçou-se por analisar a situação. Eram três. Três predadores guiados pelo seu puro instinto de caçadores. Três animais de poderio e destruição. Bichos intuitivos, sensitivos, dotados de captores omniscientes. Combatentes perfeitamente ordenados, perfeitamente adaptados ao seu meio. Até mesmo esta ideia era inexacta: não estavam adaptados à natureza, eram a própria natureza. Partilhavam das leis, das forças e dos ritmos dela. Uma tal vibração era a sua razão de ser. Mais ainda, era o seu ”ser”.

 

 Diane virou-se para o companheiro:

 

 Giovanni, ouve-me com atenção. Só poderemos salvar-nos se deixarmos de apreender o nosso meio ambiente como o faria um ser humano, percebes?

 

 Não.

 

 Não existe uma floresta única, prosseguiu ela, mas tantas florestas quantas as espécies animais. Cada animal assimila, destrinça, analisa o espaço em função das suas necessidades e das suas percepções. Cada animal constrói o seu próprio mundo e nada vê para além disso. É aquilo a que se chama, em etologia, o Umwelt. Se quisermos salvar a pele, devemos antes de tudo tomar em consideração o ponto de vista dos nossos inimigos. O Umwelt do urso, do lobo, da águia. Porque tais são os nossos verdadeiros terrenos de combate, e não a paisagem que captamos com os nossos cinco sentidos humanos. Entendido?

 

 Mas... nada sabemos de...

 

 Diane não pôde reprimir um sorriso de orgulho. Há quanto tempo estudava estes mecanismos? Até que ponto penetrara estes sistemas de percepção, estas estratégias de confronto? Sob a queimadura gelada do vento, deu-se ao trabalho de descrever o perfil de cada adversário.

 

 A ÁGUIA: a ave via tudo. O seu olho, de forma tubular, permitia-lhe efectuar prodigiosas ampliações. Sobrevoando a floresta a cem metros de altura, era capaz de focar a atenção num minúsculo roedor até este último ocupar totalmente a superfície da sua retina. A partir daqui, podia realizar outro milagre: aplicar a sua acuidade visual em duas direcções diferentes. Ao mesmo tempo que se concentrava no alvo, situado bem a direito, podia de igual modo observar por baixo de si, no eixo das garras, a fim de preparar o movimento de captura.

 

 Funcionava então, em pleno, a amplitude das suas asas cerca de três metros. A águia despenhava-se sobre a presa a uma velocidade de oitenta quilómetros à hora, mas, ao chegar perto dela, afrouxava em escassas fracções de segundo até chegar ao andamento da passada humana, tudo no mais absoluto silêncio. A vítima nem sequer sentia a morte. Bico e garras enterravam-se-lhe no lombo ainda antes de ela se sobressaltar. A única falha da ave de rapina era a sua dependência da luz. A extrema profundidade do olho ensombrecia o seu campo de visão e não lhe permitia ver senão no meio de uma grande claridade. Logo, a águia atacaria de dia. Aos primeiros instantes do crepúsculo, daria por findo o combate. Era uma fraca consolação. De facto, daí até lá, nada nem ninguém escaparia à acuidade do seu olhar.

 

O LOBO: a noite, ao invés, constituía o seu espaço de força, o seu território privilegiado. Os olhos do lobo só dispunham de uma visão monocroma, mas possuíam outro trunfo: um tecido particular sobre a retina, o tapetum lusidum, que lhe conferia uma visão perfeita, inclusive na escuridão total. Também o favorecia uma percepção excepcional do movimento. Capaz de detectar, a mais de um quilómetro, a deslocação de uma mão, podia captar até mesmo o grau de nervosismo dela. O mínimo traço de ansiedade, de fraqueza, desencadeava então o seu reflexo de ataque. Além de que, acto contínuo, o seu olfacto lhe permitia analisar as moléculas odoríferas inerentes à transpiração e, mais visceralmente, ao medo.

 

 Sim: o lobo aguardaria a noite para passar ao assalto. Era o que Diane repetia a si mesma, a fim de se prover mentalmente de uma certa folga. Na realidade, não tinha a certeza de nada, pois o animal já os perseguira ao vislumbrar a sua vulnerabilidade. Esta primeira fulgurância demonstrava que o espécime era um alfa, um chefe de matilha, que não hesitaria em atacar de novo, ao mais pequeno sinal de medo, de fadiga ou ao mínimo ferimento. Diane observava Giovanni, que tremia da cabeça aos pés, e deduzia que o canis lúpus campestris iria segui-los através da floresta como num trilho de evidência.

 

O URSO: não via nada, ou quase, e o seu ouvido não era nada de especial. Mas o seu sentido olfactivo não tinha rival. A superfície da mucosa, pela qual captava os odores, era cem vezes maior que a do homem. O grizzli era capaz de reencontrar o seu caminho a mais de trezentos quilómetros, orientando-se apenas pelo olfacto, ou mesmo seguir uma ínfima fragrância, legada pelo vento, enquanto nadava numa torrente.

 

 Contudo, o principal perigo do urso vinha de outro lado: muito simplesmente, da sua força. O grizzli era o mais poderoso dentre todos os animais. Capaz de quebrar a coluna vertebral com o balanço de uma patada, ou de estourar os membros de um caribu apertando-os entre as maxilas, o urso era o inimigo que mais se devia evitar. Um bicho solitário, tão pouco habituado aos comportamentos sociais que o seu focinho nunca denunciava o seu estado de espírito. Um animal pujante, cruel, implacável, habituado a reinar no seu território, que não temia nenhum outro antagonista para além dos seus próprios congéneres. As fêmeas sabiam-no: todas as primaveras, tinham de brigar com o macho para o impedir de devorar as crias.

 

 Giovanni escutava o discurso de Diane. Estava lívido, como que transido de pânico. Todavia, no fim da explicação, só fez uma pergunta, manifestação de um único espanto:

 

 Como sabes tudo isso?

 

 Diane tinha a garganta seca, o palato recamado de terra.

 

 Sou etóloga. Os predadores constituem a minha especialidade desde há doze anos.

 

 O italiano não cessava de a olhar fixamente. Ela inclinou-se para ele.

 

 Ouve uma coisa, Giovanni. Não existem dez pessoas no mundo que possam safar-se de uma encrenca destas. Sendo assim, sorri, porque eu sou uma delas.

 

 Mas... e os tsevens, não virão... ajudar-nos?

 

 Ninguém nos ajudará. E os tsevens menos que os outros. É um combate sagrado, compreendes? Só há dois parasitas nesta clareira: nós. E os animais hão-de procurar eliminar-nos primeiro que tudo. Enquanto se tratar de nos destruir, permanecerão aliados. Só depois se defrontarão, no espaço purificado.

 

 Fechou a sua parca e endireitou-se:

 

 Preciso de encontrar um ribeiro, de verificar uma coisa.

 

 A encosta acabava, mais abaixo, num novo declive da floresta. Deslizaram até às primeiras sarças; em seguida, embrenharam-se entre as árvores. Uns minutos mais tarde, atingiram uma torrente que formava espuma branca. Diane ajoelhou-se. Entrevia nas águas vivas as chamas cor-de-rosa prateadas dos salmões. O italiano perguntou:

 

 O que procuras?

 

 Tenho de conhecer o sentido da migração dos salmões.

 

 Porquê?

 

 Instintivamente, o urso irá subir na mesma direcção, em busca do lugar onde os peixes pululam.

 

 É infalível?

 

 Não. Nunca se pode prever inteiramente a reacção de um animal.

 

 ”Sobretudo no caso destes bichos, pensou Diane, de uma espécie tão particular.”Qual seria a sua parte de instinto animal? A sua parte de instinto humano? Qual seria a ressonância do xamã no seio do bicho? Ela ciciou, voltando-se:

 

 Giovanni, tu...

 

 O assombro dilacerou-lhe o coração. O homem estava retraído em si mesmo, com o rosto exangue, o torso empapado de vermelho. A águia envolvia-o nas suas asas imensas. As garras cravavam-se nos ombros, e já o bico golpeava a nuca cheio de voracidade. Diane sacou da arma. O italiano e a ave rodopiaram. Uma das asas varreu-lhe a mão. A pistola foi parar a vários metros. Ela correu para a 45. Quando olhou de novo, o homem cambaleava à beira de água, agitando os braços. Diane procurou um eixo de tiro, depois urrou de um modo absurdo:

 

 Baixa os braços!

 

 Giovanni tombou, de cabeça para a frente. A ave não o largava. De súbito, arrancou com o bico um pedaço de carne.

 

A chaga abriu-se num fluxo escarlate. Diane já só via o dorso da ave. Era impossível disparar.

 

 Mergulhou na luta. Insinuou-se sob a asa da ave de rapina, aninhou-se sob as penas, conseguindo aproximar o braço ao peito palpitante do bicho. Virou então o seu punho armado e disparou. A ave vergou-se. Giovanni gritou. Diane carregou novamente no gatilho.

 

 Tudo cessou. O silêncio alastrou. As rémiges pretas planavam lentamente. Ela tornou a disparar, duas vezes, sentindo a sua mão entranhar-se no calor da ferida. Por fim, a águia esparramou-se, arrastando Diane e Giovanni na sua queda. Os três corpos rebolaram até à extremidade da margem. Quando ouviu uma das asas abater-se surdamente no ribeiro, Diane compreendeu que tudo acabara.

 

 O olho redondo da ave de rapina fixava-a. Uma mira de morte no cerne de um alvo. Mas as garras ainda estavam fincadas nas costas do italiano. A ave começava a ser levada pela corrente. Diane enfiou a arma no cinto e tratou de extrair os ganchos de como. Giovanni já não reagia. Ao terminar a operação, Diane descobriu que os golpes eram menos profundos do que julgara. Em contrapartida, o ferimento na nuca era mortal. O sangue corria a jorros, em pulsações vagarosas. Diane sentia-se sufocada de mágoa, de repulsa. Mas aprumou-se e retesou de novo os músculos. Só o combate devia ocupar o seu espírito.

 

 Uma outra urgência a preocupava agora. O odor do sangue, sinal de fraqueza entre todos, iria atrair o lobo. Devia abafar esta fonte. Vinte metros a montante, avistou uma superfície de madeira, em ruptura com o relevo da margem. Ajeitou os óculos e dirigiu-se para a placa escura: era uma cavidade com três metros de comprimento e coberta por cinco madeiros negros.

 

 Conseguiu soerguer um dos tabuões. A cova tinha uma profundidade de cerca de um metro. Estava revestida de um engradado de ramos apertados uns contra os outros. Os pescadores do Lago Branco deviam secar o peixe ali dentro. Era um refúgio perfeito. Diane voltou para junto do italiano. Agarrou-o, por baixo dos sovacos e puxou-o. Giovanni berrou. Com a cara coberta de suor, pôs-se a salmodiar litanias precipitadas. Por breves instantes, ela julgou ouvi-lo rezar em latim. Enganava-se: o etnólogo gemia apenas na sua língua natal. Diane arrastou-o até ao esconderijo, esforçando-se por não ouvir os seus gritos. Insensivelmente, forjava um Umwelt para si mesma. Um mundo de percepções, de reflexos aplicados à situação imediata, centrados exclusivamente neste único fito: sobreviver.

 

 Levantou outra tábua, penetrou na escavação e depois puxou o corpo. Por fim, fechou novamente o telhado sobre a cabeça de ambos. Envolveu-os a escuridão. Só as frinchas muito estreitas entre as pranchas proporcionavam alguma luz. Era o sítio ideal para esperar. Esperar o quê? Diane não fazia a mínima ideia. Pelo menos, poderia conceber aqui uma nova estratégia. Deitou-se ao lado de Giovanni, passou o braço por baixo da nuca dele, em seguida aconchegou-o contra si, tal como faria a uma criança. Com a outra mão, acariciou-lhe o rosto, enlaçou-o, mimou-o era a primeira vez que tocava voluntariamente na pele de um homem. E já não havia lugar no seu coração para as habituais obsessões. Não cessava de bichanar ao ouvido dele:

 

 Vai tudo correr bem, hás-de ficar bom...

 

 De repente ressoaram passos ligeiros por cima de ambos, entrecortados por uma respiração ofegante. O alfa estava ali. Caminhava sobre a madeira, metendo o nariz ao longo das ranhuras, enchendo as mucosas com os eflúvios de sangue.

 

 Diane cingiu Giovanni o mais que pôde. Não parava de lhe falar em linguagem de bebé, procurando cobrir os passos do lobo, cada vez mais rápidos, cada vez mais frenéticos. Ele arranhava agora a madeira com as garras, a poucos centímetros dos seus rostos.

 

 Nisto, ela vislumbrou por entre as tábuas a sua fuça branca e preta, tensa, atenta, ávida. Discerniu o brilho das pupilas verdes. Giovanni balbuciou: ”O que é?”, Diane continuou a sussurrar palavrinhas meigas enquanto reflectia na resistência das pranchas: quanto tempo decorreria antes de a fera abrir passagem? ”O que é?”. Os tremores sacudiam o corpo do italiano. Diane estreitou-o com todas as suas forças, enviscada no sangue dele. Com a outra mão, pegou na Glock.

 

 Era impossível disparar. As pranchas de madeira eram demasiado espessas para as balas as atravessarem. Os projécteis até podiam ricochetear e vir furar-lhes a pele. Soou um novo ruído. Uma raspagem regular na outra ponta da escavação. Diane olhou para lá. O lobo esgaravatava a terra, procurando insinuar-se pelo fundo da cavidade. Não faltavam muitos segundos para que conseguisse entrar. O seu corpo maleável introduzir-se-ia no refúgio e as suas presas rasgá-los-iam.

 

 Não tardou que um orifício de luz espargisse a cova. As garras do animal irromperam, escarafunchando frenéticas. ”Diane, o que aconteceu?”Giovanni tentou erguer a cabeça, mas ela reteve-o com uma mão sobre a testa. Um beijo, uma carícia, depois reuniu forças e rastejou até à extremidade do refúgio, onde o lobo ia avançando. Já só estava a cinquenta centímetros do adversário. Distinguia as pastas mosqueadas de branco, as garras que escavavam, escavavam, escavavam. Respirava o cheiro dele, enleante, pesado, ameaçador. Nunca uma exalação lhe parecera mais afastada do homem, mais estranha ao seu próprio odor.

 

 A trinta centímetros do buraco, com os cotovelos apoiados, Diane engalfinhou os punhos na 45 e alçou duas polegadas o cão da arma.

 

 Iam defrontar-se dois mundos.

 

 Umwelt contra Umwelt.

 

 O lobo arredava os torrões, totalmente a descoberto, não esboçando sequer um recuo prudente. O cheiro a sangue enlouquecia-o. Quando Diane viu despontar o focinho emporcalhado de terra, fechou os olhos e carregou no gatilho. Sentiu um esguicho tépido. Reabriu as pálpebras por reflexo e viu, em contraluz, o focinho esfolado. Visou um olho, desviou a cabeça e disparou outra vez, fazendo a cápsula ressaltar no seu rosto.

 

 Esperava receber um golpe de garras, um rasgão de presas.

 

Não se passou nada. Uma vez mais, arriscou um olhar. Os fumos dos gases dissipavam-se. No eixo de luz, o corpo materializou-se, de patas posteriores esticadas, como num gesto de estiramento. O bicho estava inerte. Decapitado.

 

 Diane empurrou-o, fechou o buraco, depois recuou novamente até ao rosto de Giovanni. Beijou-o, ao mesmo tempo que segredava: ”Demos cabo dele, sim, acabou-se...”Chorava e ria simultaneamente, enquanto ejectava o carregador da coronha, a fim de contar as balas que lhe restavam. Ia sempre repetindo: ”Demos cabo dele, pronto! acabou-se...”e pensava que, até agora, não tinham sido afinal os seus conhecimentos de etologia que os haviam salvo.

 

 Foi então que brilhou o sol.

 

 Tudo apareceu de uma só vez. O céu. A luz. O frio. E as sombras oblíquas das pranchas de madeira, que iam sendo arrancadas da sua posição uma a uma. Diane urrou, largando a pistola e o carregador. Mas os seus gritos nada eram em comparação com os rugidos do urso, erguido sobre a cavidade, varrendo os últimos tabuões como se fossem simples fósforos. O animal arqueou-se na direcção da cova, estendeu o cenho negro e soltou um novo bramido, encrespando a pelagem castanho-avermelhada e rasgando o vento com a sua ira.

 

 Diane e Giovanni apertavam-se na outra ponta do refúgio. A fera continuava debruçada, fustigando o ar com as garras. De costas contra a parede, Giovanni conseguiu levantar-se, todo curvado. Ela deitou-lhe um olhar estupefacto. Ele, porém, agarrou-lhe na gola e disse-lhe:

 

 Pisga-te! Foge para longe. Eu, de qualquer modo, já estou perdido.

 

 Logo a seguir já Giovanni cambaleava sobre as grades que cobriam o chão, na direcção do monstro. Diane ficou atónita. Precisou de alguns segundos para entender que Giovanni, o etnólogo bonachão, o jovem de físico franzino, se sacrificava por ela.

 

 Viu-o claudicar frente ao animal, enquanto ela se içava à superfície apoiando-se nas mãos. Mal efectuara este gesto e já ouvia um novo ruído. Ergueu os olhos. Na outra extremidade da escavação, a pata do urso propulsou o homem a dois metros dali. Agachada sobre o rebordo da cova, Diane não conseguia fugir. Num novo ímpeto de furor, o grizzli lacerou o peito da vítima. Ela viu, em imagens convulsas, o borbotão de sangue a golfar dos lábios do amigo.

 

 Foi a sua vez de gritar: ”NÃO!”

 

 Saltou de novo para dentro da escavação, pegou na Glock, meteu o carregador na coronha. O urso devorava o rosto do italiano. Diane atravessou a vala. Tomou um derradeiro balanço e apoiou os pés nas ripas de madeira a fim de ressaltar ao nível do animal.

 

 O urso endireitou-se segurando entre as presas a máscara de carne. Diane atirou-se a ele, de frente, de pernas afastadas, e apanhou-lhe a nuca com a mão esquerda. Enfiou a direita de arma em punho na bocarra, sentindo o sorvedouro abrasador do palato misturado com farrapos da fácies humana. Premiu o gatilho. Viu o alto do crânio explodir em destroços ensanguentados. Disparou outra vez. Os miolos esparrinharam o céu. Disparou vezes sem conta e continuou a carregar no gatilho, mesmo quando o seu gesto nada mais produzia que uns cliques absorvidos pelos bramidos de fera. E parecia-lhe que ainda disparava quando o urso morto lhe arrancou o braço e o arrastou na sua queda até ao sítio mais profundo do ribeiro.

 

 O sol derramava-se pelo quarto como leite quente. Os revestimentos de madeira do gabinete lançavam reflexos cor de chocolate, enquanto o parque difundia cintilações fulvas, como se alguém o tivesse pintado com chá. Uma autêntica decoração de pequeno-almoço, onde ainda pairava o enternecimento da manhã, nutrido de sonhos e de emoções vagas.

 

 Não compreendo, repetiu a mulher. Quer mudar o nome próprio do seu filho, é isso?

 

 Diane contentou-se em dizer que sim com a cabeça. Encontrava-se na Conservatória da Administração do 5° Bairro. A empregada volveu:

 

 Não é uma diligência muito corrente.

 

 A funcionária não cessava de fitar o braço ligado da sua interlocutora, as cicatrizes no rosto dela. Murmurou, abrindo uma pasta:

 

 Nem mesmo sei se é possível...

 

 Deixe lá.

 

 Como diz?

 

 Diane levantou-se num ápice.

 

 Não se preocupe. Já não estou bem certa. Depois telefono-lhe.

 

 No limiar do edifício, estacou, respirando o ar gelado do mês de Dezembro. Contemplou as leves grinaldas de luzes que revoluteavam acima da place du Panthéon. Gostava da fragilidade um tanto antiquada das decorações de Natal frente à grandeza do túmulo.

 

 Desceu a rue Soufflot e retomou o fio dos seus pensamentos. Vivia desde há vários dias com uma obsessão: dar a Lucien os nomes dos dois homens que tinham morrido devido ao caso do concílio de pedra. Todavia, na presença da empregada da Conservatória, apercebera-se do absurdo do seu projecto.

 

 Lucien não era uma placa de mármore na qual se gravassem os nomes de heróis defuntos. E, para ser sincera, não apreciava estes nomes nem Patrick, nem Giovanni. Acima de tudo, não precisava de actos simbólicos para se lembrar dos amigos que perdera na tormenta. Permaneceriam para todo o sempre vivos na sua memória como as únicas vítimas inocentes, juntamente com Irene Pandove, da história do Tokamak.

 

 Ao regressar a Paris, Diane não tivera qualquer dificuldade em ilibar-se do homicídio de Patrick Langlois. No fundo, nunca fora considerada culpada deste acto criminoso, nem tão-pouco suspeita do massacre da Fundação Bruner ou do ”de Irene Pandove. Só suscitara alguma surpresa o facto de ter ido refugiar-se em Itália, conforme afirmara. Hoje, o caso estava arquivado. O juiz de instrução encerrara o processo emitindo a confusa hipótese de um ajuste de contas entre trânsfugas comunistas numa questão de pesquisa nuclear.

 

 Ninguém descobrira, apesar do seu desaparecimento, o papel central de Sybille Thiberge em toda a intriga. Charles Helikian começara por inquietar-se e depois supusera que a mulher fugira com algum amante. Diane via-o de vez em quando. Evocavam juntos a misteriosa partida da mãe. Ela defendia então a tese de uma existência oculta. Estas teorias mergulhavam o homem em abismos de desespero aos olhos de Diane, porém, tratava-se de um mal menor: conhecia outros abismos, outras verdades que de maneira nenhuma lhe confessaria.

 

Atravessou a place Edmond-Rostane penetrou nos Jardins do Luxemburgo. Seguiu ao longo do peitoril do lago central, depois subiu os degraus conducentes à área do teatro de robertos, do bar, dos baloiços. Reparou num círculo de pedra, sob os ramos despidos dos castanheiros. Pensou no Tokamak, no laboratório circular, nos sete xamãs que haviam concluído um pacto com os espíritos e o tinham pago com a sua alma. Mas era apenas um espaço de areia onde se espolinhavam umas crianças encapuçadas. De súbito, avistou-o com o gorro de lã grossa na cabeça, concentrado nas suas construções de areia dique, fossos e fortaleza.

 

 Recuou para trás de uma árvore e, através do bafo da sua própria respiração, contemplou-o pelo simples prazer de o ver. Nos primeiros dias de Novembro, Lucien despertara. No dia

22 do mesmo mês, saíra do hospital Necker. Nas duas primeiras semanas de Dezembro já retomara os seus jogos preferidos. No dia 14, pronunciara pela primeira vez as duas sílabas simultaneamente temidas e esperadas: ”mamã”. Diane compreendera então que se encontrava definitivamente ao abrigo do passado.

 

 Jurara a si mesma nunca mais pensar nas vertigens de crueldade que tivera de enfrentar, nas inconcebíveis experiências que desvendara nesses gonzos do universo que vira saltar sob o seu próprio olhar. À medida que as semanas iam passando, uma nova convicção se forjara nela. Uma ideia que lhe proporcionava um conforto íntimo. Lembrava-se de Eugen Talikh, o homem que desejara reconquistar os poderes do seu povo. Diane considerava que instaurara uma espécie de continuidade espiritual com ele. Beneficiava, em troca, de uma clareza, de um conhecimento difusos. Apesar do sangue, apesar da loucura, a provação do círculo iniciara-a. Graças a isto, iria tornar-se a melhor das mães para Lucien. Entrara em contacto com os lares que haviam adoptado os outros Vigias entre os quais a família de Irene Pandove, que recolhera o menino do lago. Acalentava o desígnio de os aconselhar, de os socorrer se o crescimento das crianças fosse marcado pela emergência de poderes estranhos.

 

Saiu do esconderijo e encaminhou-se para o recinto de areia. Lucien estava de novo sob a guarda da rapariga tailandesa do Instituto França-Ásia. Ele avistou-a e correu ao seu encontro. Diane reprimiu um grito quando o rapazinho se apoiou com toda a força no seu braço suturado, mas procurou logo a frescura das faces dele. Diane só tinha uma certeza: continuava em convalescença e não existia melhor filtro para curar que o desta proximidade infantil, uma peneira de malhas tecidas pelos desejos despreocupados de Lucien. Cada pormenor a purificava. Até mesmo o tamanho das mãos, dos pés, das roupas constituía para ela uma nova textura, uma quinta-essência particular, diáfana e leve.

 

De repente, desatou a rir e rodopiou com o filho sob as copas do parque. Sim, só lhe restava agora uma missão: ajustar-se a esta clareira de inocência, a esta vertente de ternura que compunha o único círculo do seu destino. Fechou os olhos e só viu partículas de luz.

 

 

                                                                  Jean Christophe Grangé

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades