Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CONFESSOR / Taylor Caldwell
O CONFESSOR / Taylor Caldwell

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CONFESSOR

 

Esta é uma história verdadeira. Pode ser a sua história, leitor, e certamente é a do seu vizinho. Talvez você encontre aqui a sua própria imagem e isso o deixe irritado. Espero que assim seja. A raiva é um agente purificador.

A mais desesperadora necessidade do homem atualmente não é uma vacina contra qualquer doença nem uma nova religião, muito menos um novo modo de viver. O homem não precisa ir à Lua nem alcançar outros sistemas solares. Ele não necessita de maiores e melhores bombas e mísseis. Não irá morrer se não morar melhor nem tiver mais vitaminas. Não vai definhar de frustração se for incapaz de comprar as engenhocas mais modernas e mais reluzentes e se nem todos os seus filhos puderem ingressar na faculdade. As necessidades básicas do homem são poucas e não custa muito obtê-las, apesar do que dizem os publicitários. Ele pode sobreviver com uma pequena quantidade de pão e sob o mais humilde dos abrigos. É o que sempre aconteceu com ele.

A verdadeira necessidade do homem, sua necessidade mais premente, é de alguém para ouvi-lo, não como um paciente e sim como uma alma humana. O homem precisa dizer a alguém tudo o que pensa, as coisas espantosas que encontra ao tentar descobrir por que nasceu, como deve viver e onde está o seu destino. As perguntas que ele faz aos psiquiatras não são as que estão em seu coração e as respostas que recebe não são as de que ele necessita. O homem é uma urna lacrada, mesmo quando sob o efeito de drogas ou extremamente embriagado. Sua semântica não é a semântica de ninguém mais, nem mesmo do psiquiatra.

Nossos pastores ouviriam se lhes déssemos tempo para tal. Mas nós os sobrecarregamos com tarefas que deveriam ser exclusivamente nossas. Exigimos que eles fossem não apenas os nossos pastores como também assumissem os nossos problemas triviais, as nossas aspirações sociais, a diversão dos nossos filhos. Exigimos que eles se tornassem hábeis homens de negócios, políticos, contadores, companheiros, orientadores da comunidade, bons sujeitos, juizes, advogados e encarregados da solução às disputas locais. Deixamos-lhes muito pouco tempo para ouvir - e também não os ouvimos. Devemos oferecer-lhes ajuda concreta e assumir as nossas próprias responsabilidades.

Esquecemos que eles são homens também, freqüentemente exaustos, sempre incompreendidos, algumas vezes desolados, normalmente assustados, preocupados, ansiosos, solitários, aflitos. Eles não são super-homens, imunes às agonias e aos anseios humanos. Impiedosamente, nós os negligenciamos a não ser quando desejamos que nos sirvam sob formas materiais, quando os seus caminhos deveriam ser apenas os de Deus. Exigimos deles o que não nos atrevemos a pedir a ninguém mais - nem mesmo a nós próprios. Não lhes damos tempo para ouvir - quando a necessidade mais premente de nossos espíritos é ter alguém que nos ouça, sem pressa, sem a marcação dos ponteiros de um relógio.

Até libertarmos nossos pastores da insistência para que sejam nossos servidores, precisamos lembrar-nos de que há alguém que ouve. Ele está sempre à disposição de todos nós, durante todo o tempo, no decorrer de toda a nossa vida. É o Ouvinte.

Temos apenas que falar com ele. Agora. Hoje. Esta noite. Ele compreende a nossa língua, a nossa semântica, nossos terrores, nossos segredos, nossos pecado, nossos crimes, nossa dor, nosso arrependimento. Se você for velho e lhe falar saudosamente sobre o passado, ele não irá considerá-lo um sentimental. Não irá repeli-lo se você for um mentiroso, um ladrão, um assassino, um hipócrita, um traidor. Ele sempre o ouvirá. Não se mostrará impaciente se você ficar sentimental ou chorar de piedade, se você for um covarde ou um tolo. Durante toda a sua vida ele tem ouvido pessoas assim - e continuará a ouvi-las.

Enquanto ele o ouve, você descobrirá que os seus próprios problemas estão resolvidos. Ele também irá falar-lhe? Quem sabe? Talvez. Certamente se você lhe pedir - e se estiver também disposto a ouvir.

 

 

O OUVINTE

Os repórteres estavam impacientes de tanta curiosidade.

- Ora, Doutor, conte logo de uma vez! Quem está atrás dessa cortina? Um clérigo? Vários clérigos se revezando? O... como é mesmo o nome que dá a isso?... fica aberto vinte e quatro horas por dia, não é? É verdade que aplicou aqui as economias de toda a sua vida? Isto é mármore de Carrara genuíno, não é? Mas quem está atrás da cortina?

O velho John Godfrey tinha oitenta anos. Um advogado medíocre numa cidade grande dificilmente consegue ganhar muito dinheiro, especialmente se é honesto - e o velho John era ao mesmo tempo medíocre e honesto. Era viúvo. Tirando alguns poucos amigos devotados, seu nome não era muito conhecido. Antes de mais nada, nunca quisera ser advogado, mas o pai e a mãe, que haviam trabalhado arduamente para proporcionar-lhe uma educação, haviam escolhido essa profissão para o filho único.

Eles eram imigrantes, nunca tinham aprendido a ler e escrever. Na sua antiga terra, um homem da lei possuía a maior importância, sendo até mais respeitado que o médico. Era ele o homem que se devia procurar em busca de ajuda para deixar o país e seguir para a América. Era ele quem preenchia os pedidos, os formulários, fazia viagens misteriosas à cidade grande, certamente para encontrar-se com autoridades soturnas e cônsules.

Era o homem que não tinha a menor dificuldade em procurar o clero e obter certificados de batismo, o homem que arrancava da polícia uma declaração escrita de que o provável emigrante tinha uma vida regrada. Amigo do prefeito e do burgomestre, não tinha a menor dificuldade em obter vistos extras e passaportes. Se freqüentemente levava até o último boi ou porco do cliente, como pagamento por seus serviços úteis e necessários, que importância isso tinha? As pessoas enriqueciam na América quase da noite para o dia.

John, cujo sobrenome não era Godfrey, mas algo impronunciável na língua inglesa, nunca contou a ninguém que sempre desejara ser poeta. Nascera naquela grande cidade americana, apenas dois meses depois da chegada dos pais. Uma de suas professoras, uma jovem tímida, suspeitara de sua ambição e da propensão natural que ele possuía, encorajando-o. Mas seus pais jamais teriam compreendido - e ele era filho único e amava-os demais, não querendo desapontá-los por nada no mundo. E assim ele se tornou advogado, detestando cada momento da sua profissão.

Conseguiu conquistar um padrão de vida razoável. Naturalmente austero jamais ansiara pelos prazeres materiais em excesso. Livros de prosa, poesia e história, um pequeno órgão, quatro acres nos arredores da cidade onde construíra uma casinha de madeira comum e plantara um magnífico jardim, um cachorro, um gato, dois canários e uns poucos amigos: era mais do que suficiente para qualquer homem, especialmente alguém como John Godfrey.

Ele não sentia a menor atração pela parte vistosa da advocacia, contentando-se com uma prática tediosa, que não ocupava sua mente e deixava-o livre para pensar, orar e meditar, para cuidar do seu jardim. A liberdade, acima de todas as coisas, a liberdade da alma. da mente e do corpo, era a coisa mais importante da vida para John Godfrey. Cedo se familiarizou com os livros de Emerson e Thoreau e daqueles quatro acres fizera a terra dos sonhos que o último descrevera em uma de suas obras.

Casara-se aos trinta anos com a filha de imigrantes amigos de seus pais. Não nasceram filhos da União. Poucos haviam conhecido a Sra. Stella Godfrey, que possuía uma estranha semelhança com a professora tímida que fora a primeira a descobrir que John era um poeta, quando ele tinha apenas seis anos de idade. Stella, apesar de nascida e educada na América, sempre mantivera um sotaque acentuado mas suave, sendo extremamente reservada, gentil e tímida. Até mesmo os poucos amigos de John achavam-na insípida. Quando ela morreu, após dez anos de casamento, eles não sentiram a sua falta. John raramente a mencionava e os amigos acreditaram que ele também não sentia muita falta da esposa. Ela fora enterrada ao lado dos pais dele, naquele estranho e velho cemitério de estrangeiros.

Se John, visitava-lhes os túmulos ou não, os amigos não tinham a menor idéia. Ele era um homem sereno, com um sorriso encantador, nada tendo de loquaz. Preferia ouvir os outros. Nenhuma de suas características se alterara ou definhara com a morte da esposa; todos, portanto, concluíram que a pobre Stella não deixara a menor marca na vida de John. Foi um alívio geral.

Havia, porém, algo de estranho com relação a John Godfrey. Ninguém, nem mesmo seu amigo mais íntimo, Walter Baker, jamais o chamara de Jack. Ele era sempre John, com toda a dignidade, sendo ao mesmo tempo bondoso, prestativo, compreensivo, jamais perturbado, apressado ou atormentado. A cidade cresceu em torno dos seus quatro acres, mas ele não os venderia por preço algum. Os prédios de apartamentos ergueram-se diante das janelas de sua sala de estar, uma escola surgiu atrás do seu jardim murado, uma rua barulhenta foi aberta a pouca distância de seu quarto. Mas ele manteve intactos os seus quatro acres, pintando a velha casa, aparando o gramado, cuidando pessoalmente das flores - até mesmo ao chegar aos oitenta anos.

Ele jamais contou a ninguém, nem mesmo a Walter Baker, eminente urologista e que era o seu melhor amigo, sobre o sonho que acalentava há cinqüenta anos. No dia seguinte àquele em que completou oitenta anos, quatro arquitetos foram procurá-lo com um projeto nas mãos e passaram várias horas a discuti-lo. Saíram sorridentes, mas silenciosos, balançando a cabeça um para o outro em sinal de surpresa.

Ninguém soube de nada até John Godfrey mudar-se para um pequeno hotel residencial nas proximidades e a velha casa ser demolida. Os amigos fizeram-lhe perguntas, mas ele limitou-se a sorrir. Quando chegou a primeira partida de mármore da melhor qualidade, os jornais se aperceberam de que algo estranho estava acontecendo, mas John recusou-se a responder a qualquer pergunta, gentilmente, mas com firmeza. Foram escavadas as fundações do novo prédio. As pessoas vinham ver as obras e especulavam: seria uma biblioteca pública, um museu, uma escola de música? Ninguém sabia ao certo. John, agora aposentado, ficava de pé a observar tudo, um homem alto e de cabelos brancos, as mãos sob as abas o paletó, um charuto na boca, o rosto pensativo. Pela primeira vez em toda a sua vida ele estava sendo misterioso.

Logo ficou patente que o prédio seria quadrado e teria apenas dois cômodos, com uma porta grande na frente e outra menor nos fundos. Um dos cômodos teria seis metros por seis, sendo o outro um pouco maior. As placas de mármore branco transformaram-se em teto. Os jardins foram ampliados e as árvores agonizantes substituídas por outras jovens e vigorosas. Rasgaram-se caminhos de lajes vermelhas, os canteiros de flores foram aumentados.

- Uma espécie de templo - comentaram alguns vizinhos desdenhosamente. - Será que ele vai rezar lá dentro?

Mas ninguém sabia ao certo.

Os curiosos, espiando através da porta. já que a estranha construção não tinha janelas, descobriram que o chão do cômodo menor estava sendo coberto por um tapete azul-marinho, espesso e macio. Ali foram colocados logo depois mesas, cadeiras e abajures, tudo da melhor qualidade, tudo muito caro. Não podiam ver além daquele cômodo, pois havia uma porta de carvalho larga e alta a separá-lo do outro. A porta da frente, de bronze, importada do Velho Mundo, foi logo instalada, por baixo de um arco, no qual se gravou em letras douradas: O Confessor.

Encravada no chão de mármore branco, havia uma placa de bronze com a inscrição: Em memória de Stella Godfrey.

O prédio finalmente ficou pronto e John Godfrey permitiu o acesso da imprensa, pois era necessário que o público soubesse. Os jovens repórteres invadiram a sala agradável e tranqüila, com suas lâmpadas incandescentes, as mesas de vidro cobertas de revistas e muitos vasos com flores. Nas paredes de mármore branco não havia murais nem quadros, e o chão era todo atapetado. Era bastante repousante aquele ambiente, calmo, apropriado para se esperar. Mas esperar por quem?

John, sorrindo, tocou uma sineta perto da porta de carvalho na extremidade da sala. O toque era dos mais suaves. Ele apontou para uma fenda perto da porta e disse:

- É por aqui que os pedidos serão feitos.

Os repórteres ficaram esperando impacientes até que, dez minutos depois, a porta se abriu automaticamente. Eles entraram então na outra sala e logo estacaram, surpresos. Nada havia na sala a não ser uma cadeira alta de mármore, cheia de almofadas azuis de veludo. A cadeira ficava de frente para uma reentrância arredondada, tapada por uma cortina azul bem grossa. Ao lado da reentrância havia uma placa de bronze, com os seguintes dizeres: Se deseja ver o homem que acaba de ouvi-lo, aperte o botão acima. Verá então o rosto dele. Ele ficará contente se você lhe agradecer, mas isto não é necessário.

Os repórteres imediatamente perguntaram:

- São clérigos que se revezarão aí dentro?

Eles sabiam que o prédio jamais ficaria fechado. A única resposta de John foi um sorriso. Os fotógrafos tiraram fotos dele, na sala de espera, na sala vazia de mármore, iluminada por uma luz indireta embutida no teto branco, Um repórter muito jovem e impetuoso foi até o botão junto à cortina azul, mas John interveio com uma aspereza inesperada.

- Não! Ainda não.., pelo menos para você!

Ele mostrou aos repórteres a caixa que ficava embaixo da fenda que se abria na sala de espera, informando:

- As pessoas depositarão aqui o seu pedido para serem ouvidas. Depois tocam a sineta e esperam dez minutos. A porta então se abrirá, para um de cada vez. Ao final, a pessoa sai pela porta dos fundos.

- É um advogado, uma orientadora social ou um psiquiatra que vai ficar atrás da cortina? - perguntou o jovem e impetuoso repórter.

Mas John apenas sorriu.

- As pessoas que aqui vierem logo nos contarão o que encontraram - disseram os repórteres. - Não será um segredo por muito tempo, Dr. Godfrey.

John continuou apenas sorrindo.

- O que espera que as pessoas digam aqui dentro? - indagou outro repórter, no momento em que se batia mais uma foto do velho advogado.

- Elas saberão o que dizer antes de virem - respondeu John, acrescentando depois de uma breve pausa: - Um dos aspectos mais terríveis do mundo atual é que ninguém mais ouve ninguém. Se você está doente ou até agonizante, não tem ninguém para ouvi-lo. Se você está desnorteado, assustado, perdido, desolado, solitário, não há ninguém para ouvi-lo. Até mesmo os cléricos vivem cansados e apressados. Fazem o melhor possível e trabalham exaustivamente, mas o tempo tornou-se fragmentado e parece que não possui mais substância. Ninguém tem tempo de ouvir os outros, inclusive aqueles que o amam e que morreriam por você. Seus pais. seus filhos, seus amigos - ninguém tem tempo. E isso é terrível, não acham? De quem é a culpa? Não sei. Mas o fato é que parece não haver mais tempo para nada.

- E acha então que a pessoa que vai ficar ai atrás, quem quer que ela seja, terá tempo?

John pareceu levar algum tempo meditando sobre a pergunta, a cabeça baixa.

- Terá, sim. Acho que terá. tempo, todo o tempo que houver.

John fez uma pausa, olhou para os repórteres, um a um, e reiterou:

- Todo o tempo que restar.

Os repórteres julgaram-no velho, enfadonho, enigmático. Estavam certos de que conheceriam toda a história pelo primeiro homem ou mulher que ali entrasse sozinho para falar, que ficasse a sós naquela sala de mármore branco, de luz indireta e cortina fechada. Olharam para a caixa de bronze ao lado da fenda. Era tudo muito simples. Os semi-analfabetos de mentalidade curta jogariam seus bilhetinhos ali e um clérigo, agente social ou psiquiatra os leria, retirando-se então para trás da cortina, de onde daria um pomposo conselho.

Alguns repórteres mais velhos disseram que seria tudo muito delicado e moderno. O homem por trás da cortina nem mesmo veria quem lhe estava falando e assim ficaria tudo em termos confidenciais. Velhos tolos poderiam expor livremente os seus pequenos dramas, inteiramente isolados, saindo dali confortados. A verdade é que ninguém de fato se dava ao trabalho de ouvir-lhes as queixas. Os repórteres tinham certeza de que logo saberiam de tudo. Era certamente um novo tipo de tratamento psiquiátrico, sem cobrança da consulta.

Mas ninguém jamais contou coisa alguma. John Godfrey morreu dois meses depois de o prédio ter sido aberto ao público. Em vida ele se contentara com pouco - e assim deixara uma imensa fortuna, pois havia especulado no mercado de valores a fim de obter recursos para a realização do seu sonho. Os amigos riram afetuosamente e disseram:

- Quem haveria de imaginar que o velho John estivesse metido em especulações?

Sua fortuna foi legada ao prédio, para que dele se cuidasse para sempre. Os faxineiros curiosos logo descobriram que não conseguiam. deslocar a cortina na reentrância. Era como se o veludo fosse entremeado de aço, firmemente cravado ao chão. Todos finalmente concluíram, com alguma procedência, que eram as vozes dos desesperados que acionavam alguma espécie de impulso elétrico, fazendo com que a cortina se abrisse depois de terminarem suas confidências e ao apertarem o botão.

Mas os que vinham com falsas confidências, movidos apenas pela curiosidade, descobriram que a cortina não se abria ao tocarem o botão. Muitos meses depois, descobriu-se que o velho John estudara eletrônica, dedicando-se ao assunto por longos anos. Somente as vozes genuínas de dor, arrependimento, desespero e solidão conseguiriam fazer com que a cortina se abrisse.

O botão era apenas um impulso a mais.

Notou-se que os que saíam pela porta dos fundos tinham nos rostos expressões radiantes, de paz ou de meditação. Alguns saiam em lágrimas, outros caminhavam resolutamente, como se estivessem prestes a iniciar uma longa jornada. Alguns gritaram:

- Era isso mesmo! Eu havia esquecido!

Os repórteres foram consultar o clero, católico, protestante e judeu.

- Mas o que é afinal esse embuste? Os senhores aprovam o que está sendo feito?

Os sacerdotes todos começaram por sorrir. Alguns disseram que nada sabiam a respeito do homem que ficava por trás da cortina de veludo resistente como aço. Outros franziram o rosto e falaram em superstição nesta época da bomba de hidrogênio e do império da ciência. Um sacerdote bem moderno declarou:

- Nada sei a respeito nem quero saber. Já leram o último livro do Professor Blank, sobre a natureza do Universo físico? É um livro bastante esclarecedor, mas só está ao alcance dos intelectuais, é claro... Arrasa para todo o sempre com a superstição.

O sacerdote acendeu um excelente Havana e acrescentou rapidamente:

- Não que eu seja contra a religião, pois afinal de contas sou um sacerdote, não é? Mas o fato é que a ciência avança e o conhecimento se expande...

Um sacerdote muito velho declarou:

- Eu mesmo conversei com o homem atrás da cortina. Ele me respondeu tudo o que eu desejava. Tornou-me possível continuar, quando eu já pensava que isso era impossível.

- E o que foi que ele disse?

O sacerdote fitou o jovem repórter pensativamente e respondeu:

- Ora, ele disse tudo!

Os jornais de todo o país mandaram seus repórteres à cidade em ondas sucessivas, mas nenhum conseguiu descobrir mais do que já se sabia. O homem comum foi entrevistado nas ruas e suas sensatas opiniões foram devidamente registradas. Não havia a menor dúvida de que o camarada atrás da cortina era um psiquiatra.

A mãe da moça vizinha estivera lá e contara todos os seus problemas, tendo-lhe o Doutor dado alguns bons conselhos. A moça cheia de problemas que morava a dois quarteirões recebera do agente social a indicação do que devia fazer e aonde ir em busca de auxílio. Havia também o caso da viúva com cinco filhos, um dos quais era delinqüente juvenil. O agente social também a ajudara. Havia também o caso do homem que sofria de câncer e estava apavorado. O agente social enviara-o para um hospital, onde recebera tratamento gratuito e agora estava curado.

Ora, não resta a menor dúvida de que o sujeito atrás da cortina é um sacerdote. Ele disse a um homem que fora procurá-lo que confessasse seu crime à policia. Ei, o velho John Godfrey não era católico? Alguém disse que ele era judeu e logo se descobriu que havia inscrições em hebraico por trás da cortina. Mas o que os judeus queriam? Não acreditem nisso! O homem por trás da cortina é um cientista cristão. Pode curar qualquer coisa com a Bíblia, entende?

Outras opiniões, igualmente inteligentes, foram formuladas. Havia um gravador por trás da cortina. Alguns falaram em comunistas e outras coisas. Talvez o homem fosse socialista, republicano ou democrata.

Essas coisas acontecem hoje em dia, não é? A propaganda é um negócio infernal, está por toda parte. Já soube da mulher que saiu de lá inteiramente fora de si? Tiveram que levá-la para o hospital estadual. Eu? Não entraria lá nem que me pagassem! Alguém deveria acabar com aquele lugar. Sabe o quanto vale uma propriedade naquela zona? E estamos precisando tanto de escolas e coisas assim...

Um sacerdote indagou a um repórter:

- Já entrou lá com a devida disposição?

- E qual é a devida disposição, senhor?

O sacerdote sorriu.

- Tenho certeza de que um dia acabará por descobrir.

Um rabino disse a um repórter:

- Eu próprio ainda não entrei lá, mas algumas pessoas da minha sinagoga já lá estiveram. Mas não adianta perguntar-lhes, pois elas nada responderão.

Um psiquiatra declarou:

Não sei o que há por trás daquela cortina. Um dos meus pacientes mais difíceis esteve lá e não me quis dizer. Mas uma coisa é certa: ele agora está curado. Houve tentativas de entrar no santuário à força, porque correram rumores de que os visitantes deixavam dinheiro na caixa. Mas, por alguma razão desconhecida, as portas resistiram a toda espécie de pressão e força - e não havia janelas para arrombar.

ALMA UM

A Confissão

E o sacerdote a trará para perto de si e a colocará diante do Senhor.

Números 5:16

A Sra. Merrul Sloane entrou na sala de espera com alguma relutância. Usava um casaco de tweed de aspecto severo, uma echarpe cor de areia e carregava uma bolsa de couro. Tinha cinqüenta anos, cabelos grisalhos e rosto fino, o corpo ainda esbelto. Na cabeça, um chapéu que usava há cinco anos e que ainda daria para mais outros cinco. Era de feltro, com a aba caída. Pisou firme no tapete grosso e olhou altivamente para os outros que estavam na sala. Ninguém olhou em sua direção. Murmurando algo desdenhoso para si mesma, como que envergonhada de suas emoções, tirou uma nota dobrada da bolsa e caminhou até a fenda junto à porta de carvalho, jogando-a ali. Depois ficou esperando. Nada aconteceu. Os homens e as mulheres de todas as idades continuaram a ler as revistas e os livros de poesia deixados sobre as mesinhas. Ela sentou-se, bastante tensa.

Por que fora tão estúpida de ter ido até ali? Inquieta, tirou as luvas e olhou para o diamante que tinha no dedo. Estava, porém, mais preocupada com o fato de suas mãos parecerem murchas, encarquilhadas, deformadas. Todas as mulheres de sua família sempre haviam tido mãos suaves, macias e brancas, mesmo ao chegarem aos oitenta ou noventa anos. Por que as suas eram tão secas, enrugadas, com a juntas tão inchadas? Ela tornou a olhar para os outros que estavam na sala. O ambiente ali dentro estava agradável e fresco, embora fosse março lá fora e não houvesse nenhuma corrente de ar ou alguma fonte de calor visível. Um dia de primavera! Ela lembrou-se subitamente de um dia de primavera e a visão da sala em que estava tornou-se indistinta. Deixou pender a cabeça, esquecendo por completo seus silenciosos companheiros. Teve a vaga noção de que um a um foram-se todos levantando, sendo admitidos além da porta de carvalho. Finalmente ela era a última. Ouviu a sineta tocar e levantou-se, sentindo uma fraqueza repentina nas pernas, passando em seguida para a outra sala.

Era apenas uma sala de mármore, toda branca, com uma iluminação suave. Havia uma cadeira de mármore, com almofadas de veludo. O que seria aquela alcova escondida pela cortina azul? A Sra. Sloane franziu o rosto. Aquilo tudo era um absurdo. John Godfrey, a quem nunca conhecera, era um europeu - e possivelmente também decadente como quase todos os europeus. Começou a recordar os rumores ao sentar-se na cadeira, empertigada como um pinheiro. Ficou esperando - e o silêncio reinante também esperou. Oh, sim, ela podia dizer o que desejasse e alguém por trás daquela cortina ouviria. A Sra. Sloane não mais se conteve e desatou a chorar.

- Por favor, perdoe-me. É que estou com um pequeno resfriado, que me atormenta há bastante tempo. Talvez seja sinusite. Acabo de sair do consultório do Dr. Bundy, mas infelizmente ele não é um médico dos mais competentes. Esta minha sinusite é bastante dolorosa. A cabeça dói o tempo todo. Às vezes tenho a impressão de que me dói o corpo inteiro. A dor...

O homem que estava por trás daquela cortina não devia estar interessado em sua sinusite, conseqüência das chuvas e do frio que ameaçava eternizar-se. Por isso, ela fez um esforço para controlar-se e procurou comportar-se com toda dignidade:

- Devo confessar que não sei exatamente por que estou aqui. Tenho certeza de que o meu pastor não aprovaria, pois não se cansa de deplorar as superstições. Ele não concordaria com a minha vinda - e nem eu mesma sei por que vim. É uma tolice tão grande!

O silêncio paciente continuou esperando. Não houve pressa, não houve nenhum suspiro, não houve o barulho de alguém mudando de posição. Na alcova reinava o silêncio, sem os ruídos do tráfego, dos aviões a jato, de muitos pés caminhando. Nenhuma porta se abriu ou fechou Não se ouvia o tique-taque de um relógio, o menor movimento. Não havia a menor impaciência. A Sra. Sloane observou em tom aprovador:

- É de fato repousante. Lembra-me...

O homem atrás da cortina continuou esperando. Tinha todo o tempo do mundo. Ele ouvia, atentamente. A Sra. Sloane assoou o nariz, murmurou, enxugou os olhos.

- Lembra-me...

Ela hesitou novamente, mas terminou completando a frase:

-... um dia no princípio de maio.

Ela começou a soluçar, como uma torrente de primavera, e gritou:

- Não agüento mais viver! Não posso mais suportar!

Ela apertou as mãos Pos joelhos, horrorizando-se com o eco de sua explosão. Olhou ao redor da sala de mármore, encolhendo-se de medo. Não era possível que a Sra. Merrill Sloane gritasse daquele jeito, não a Sra. Sloane que dirigia com mão de ferro a Liga Juvenil, a Liga do Hospital de Doenças Reumáticas, o Conselho das Debutantes e o Clube Municipal. Aquilo não condizia com a Sra. Merrill Sloane, a mulher admitida nos mais altos círculos da sociedade local, que logo seria escolhida para o Conselho da Filarmônica, para a Junta Diretora do Hospital das Crianças Aleijadas, para o Country Club - a Sra. Merrill Sloane, cujo marido podia comprar e vender a cidade.

Comprar e Vender. O homem atrás da cortina continuou esperando. Ela fitou a cortina, completamente imóvel. Pôde sentir a imensa paciência, a simpatia extrema do homem que estava ali. atrás.

- É por acaso alguém que eu conheça?

O homem continuou esperando.

- Suponho que não...

Ela fez uma pausa, acrescentando em seguida, inesperadamente:

- Ninguém me conhece!

Experimentou a estranha sensação de que o homem por trás da cortina conhecia-a bastante bem, com afeição e compreensão, que podia confiar nele.

- Espero poder confiar no senhor. Afinal, tenho uma posição a zelar... Posso ter plena confiança?

Teria uma voz respondido que sim? Ela não teve muita certeza.

- Tudo isso é uma tolice muito grande.

As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto.

Eu não devia ter vindo. Mas todo mundo estava falando, dizendo que o senhor ouvia... Ninguém mais ouve a gente. Minha mãe ouvia-me, mas morreu quando eu tinha dez anos. Desde então nunca mais encontrei ninguém que desejasse ouvir-me, nem mesmo meus próprios filhos!

Ela inclinou-se na direção da cortina, angustiada.

- Minha história é uma tolice. Já conversei com meu médico e ele se mostra indulgente! Será que ele ao menos imagina que a sua indulgência significa bater uma porta na cara de alguém? Conversei também com o meu pastor. Ele é um homem muito culto, faz sermões maravilhosos. É por acaso um sacerdote? Se é, desculpe-me, pois não quero absolutamente ofendê-lo. Mas o que o meu pastor faz é pronunciar conferências. Quando tentei conversar com ele, disse qualquer coisa a respeito do meu tempo de vida. Será que existe um tempo de vida quando a pessoa não está em agonia? Tenho certeza de que não!

Ela retorceu as luvas nas mãos suadas.

- Já pensei até em matar-me!

Olhou receosa para a cortina. Mas ela não se agitou, não houve o menor movimento, nenhum sinal e protesto ou censura.

É uma história muito tola... Não sei por que vim desperdiçar o seu tempo com uma bobagem destas. Tenho um encontro marcado às...

O homem atrás da cortina continuou em silêncio. Ela insistiu:

- Tenho um encontro marcado.

De repente, recomeçou a chorar.

- E o que significa um encontro? Não significa absolutamente nada! Todas as pessoas têm encontros! Com quê? Com quem? Para quê? Com a morte?

Ela fez uma nova pausa e logo tornou a falar, agora baixinho:

- Isso é bem estranho. Ocorreu-me de repente que todos nós temos um encontro marcado com a morte. Nunca antes havia pensado nisso. A morte... Quando a gente começa a pensar nisso, tudo o mais parece pura tolice. A não ser, talvez, um dia de primavera em maio. Afinal, a coisa que realmente tem importância.

Uma nova pausa, o silêncio continuava.

- Minha família é muito antiga e realmente distinta aqui na América. Dela saíram muitos sábios, professores, advogados, médicos, financistas. Há também em minha família três governadores e quatro senadores. Meu pai podia entrar e sair da Casa Branca na hora que desejasse, bastando apenas avisar que estava seguindo para Washington. Enviei todas as suas cartas para a Biblioteca do Congresso, assim como as dos Presidentes que lhe escreveram. Minha tia casou-se com um duque inglês. Somos, de fato, uma família muito distinta.

Se o homem atrás da cortina ficou impressionado, não deu o menor indício. A Sra. Sloane ficou muito pequena na cadeira de mármore, encolheu visivelmente, virando quase uma menina indefesa.

- Todo mundo tem obrigações...

A luz suave que vinha do teto despejava-se sobre ela.

- Todo mundo tem deveres - repetiu a Sra. Sloane. - Ninguém deve esquecer-se disso, não acha?

Será mesmo que o homem dissera não, com uma voz suave e gentil? Ela tornou a inclinar-se na direção da cortina.

- Compreende b que estou querendo dizer, não é? Mas estou realmente tomando o seu tempo com a minha história tola. O que foi mesmo que eu disse antes? Ah, sim, estava falando sobre o encontro marcado com a morte.

Ela parou por um momento para pensar a respeito.

- Li certa vez, em algum lugar, que ficamos íntimos da morte quando amamos. Sou muito estranha, não acha? Sinto vergonha de mim mesma. Meu marido tem pelo menos oito milhões de dólares; por que eu deveria queixar-me de alguma coisa?

Mas não consigo esquecer-me daquele dia em maio. Compreenda, eu conhecia Clyde Bennett desde criança, fomos criados juntos. Ele era também de uma família muito distinta. Construiu uma casa em cima de uma árvore no lugar em que costumávamos passar o verão. Subíamos até lá em cima e passávamos horas a conversar sobre as coisas mais pueris possíveis - como uma folha que caíra da árvore, por exemplo. Examinávamos as folhas do olmo em que ele construíra a casa, cheia de veias. Era maravilhoso pensar na seiva que fluía em cada folha. Clyde tinha uma lente de aumento e púnhamo-nos a olhar tudo com ela. As folhas, verdes e vivas. Pegávamos um inseto e o espiávamos através da lente de aumento. Ele parecia assustado como uma criança, nós ficávamos com pena e o soltávamos. Fico imaginando o que o inseto sentia, pois tenho certeza de que sentia alguma coisa. Nunca antes havia pensado nisso, nunca me preocupei em saber se os insetos - e as pessoas - sentem alguma coisa importante. Mas, afinal, o que é importante?

Ela esperou e a única resposta foi o silêncio. Mas uma sensação de vigor surgiu nela, como as recordações da infância. Ela riu, o rosto marejado de lágrimas.

- Ora, tudo é importante, não é? Não há a menor dúvida. Tudo é importante em face de... de...

Ela escondeu o rosto nas mãos e terminou a frase num sussurro:

- Deus.

Depois de um longo tempo,. levantou a cabeça e enfrentou a cortina, decidida.

- Realmente não sei por que me estou queixando! A família de Clyde perdeu todo o dinheiro que tinha, assim como a nossa. Portanto, não havia mais como se pensar em casamento! Recordo-me muito bem da última vez em que o vi. Estávamos na casa da árvore, era um dia de primavera, em maio, e estava chovendo. Tem idéia de como é a chuva sob uma árvore? As folhas sussurram, gotejam, rebrilham, o único barulho que se ouve é o da chuva. Tudo é verde, silencioso, seguro. Clyde e eu tínhamos então dezoito anos. Ele pediu-me que o esperasse. Tinha um tio em Hartford que poderia ajudá-lo. Eu nunca soube o que lhe aconteceu. Sabia apenas o que meu pai dissera fia noite anterior.

Ela fez uma pausa e foi lentamente que recordou as palavras do pai:

- Clyde está indo embora, talvez por um longo tempo. Nossa família é muito distinta e famosa. Você tem um dever a cumprir: é minha única filha e tem .três irmãos menores que precisam ser convenientemente educadas para alcançarem o nosso padrão de vida. As famílias antigas e tradicionais como a nossa nunca devem desaparecer, pois têm uma obrigação para com o país. Somente o dinheiro pode salvá-las - e nós não temos mais dinheiro. Em meu escritório há um jovem chamado Merrill Sloane. Ë um rapaz do interior, filho de um rico aventureiro. A família não tem a menor tradição, é claro. Foram piratas, vilões de toda espécie. Mas a família hoje tem muito dinheiro - e ele quer casar-se com você.

A Sra. Sloane mordeu os lábios. As lágrimas queimavam-lhe o rosto.

- Eu conhecia Merrill. Era um jovem grandalhão e desajeitado, sempre hesitante. Ele tinha um diploma Universitário. Eu simplesmente não podia imaginar que tipo de educação se estava ministrando, quando um homem como Merrill conseguia se formar - e com mérito! Summa cum laude. Imagine só. Eu sempre pensara que não havia a menor possibilidade de suborno nas Universidades, mas agora duvidava por causa de Merrill. Além do mais, ele não possuía a elegância e a delicadeza de Clyde, a sua sensibilidade de caráter. Um verdadeiro bruto!

Ela fitou a cortina atentamente antes de continuar.

- Um homem sem família importante, sem a menor tradição. Uma família sem cultura, sem a vivência de gente fina... Eram realmente camponeses. Summa cum Laude, como se ele fosse um sábio! Não é ridículo? Merrill - um sábio! Ele pelo menos teve inteligência suficiente para jamais tentar aparentá-lo. Ficou muito quieto quando o encontrei no escritório de papai. Já contei que papai possuía uma companhia madeireira? O pai dele comprara-a como uma espécie de piada. Vovô era banqueiro e executara a hipoteca de uma excelente fazenda, repleta de matas. Foi assim que papai se tornou interessado pelo negócio de madeira se é que isso realmente lhe interessava. Creio que gostava mesmo era de porcelana Maissen, da qual tinha uma excelente coleção. É claro que a companhia não dava praticamente lucro algum e eu também jamais me interessei pelo assunto.

Merrill fora trabalhar como assistente de papai. São assim as piadas na família - primeiro a serraria; depois Merrill... Mas devo reconhecer que Merrill tinha... tem... uma afinidade Com a madeira. Em suas horas vagas, ele esculpe coisas muito bonitas em madeira. Quanto ao mais, porém, ele não possui o menor dom social. Não pertence a nenhum clube, a não ser nominalmente. Contudo, as pessoas gostam dele, não consigo entender por quê.

Mas, por favor, perdoe-me. Esqueci-me de dizer que me casei com Merrill ao completar dezenove anos. Por seu dinheiro, por papai. Ele salvou-nos a todos nós. Meus irmãos foram paia Harvard e fizeram excelentes casamentos Merril - e quanto a isso sou obrigada novamente a dar-lhe o crédito que merece - nunca pareceu dar muita importância ao dinheiro que possuía. Deu aos meus irmãos mesadas substanciais e permanentes, estipulando fundos especiais para seus filhos. Mas isso era desnecessário. Eles próprios poderiam tentar ganhar dinheiro. Afinal, cada um tem que ter um pouco de independência. Creio que Merrill assim agiu apenas...

A Sra. Sloane deixou cair o lenço úmido e exibiu inteiramente o rosto tenso e surpreso.

- Acho que Merrill fez isso por mim! Por mim! Para agradar-me! Eu nunca havia pensado nisso antes!

Ela tornou a prorromper em lágrimas, baixando a cabeça e soluçando desesperadamente.

- Eu nunca tinha pensado nisso! Ele fez isso apenas para agradar-me. por pensar que era uma coisa que eu queria!

Ela encolheu-se ainda mais na cadeira de mármore.

- Merrill! Casei-me porque ele disse que me amava! E eu sempre o desprezei, tenho-o desprezado ao longo de todos estes anos. Sempre achei que era apenas um bruto, que herdara o seu dinheiro imundo do pai. Nunca consegui conversar com ele a respeito de coisa alguma. Mas por que não pude? Summa cum lauda... Sempre achei que isso não passava de uma piada. Mas será que era mesmo? Oh, meu Deus, será que era mesmo?

Ela levantou-se e aproximou-se da cortina, tremendo.

- Fui tão solitária durante todos estes anos! Mas agora me pergunto se Merrill também não se terá sentido solitário. As crianças, e nossos filhos, adoram Merrill. Conversam muito com ele, coisa que eu jamais consegui fazer. De vez em quando lhes pergunto, rindo, o que conseguem conversar com o pai. Mas eles nunca riem em resposta. Olham para mim como se me desprezassem, como se eu fosse bruta e estúpida... Oh, meu Deus! Continua a ouvir-me?

Meus filhos me detestam! Eles nunca têm nada para dizer-me. As meninas evitam-me, os rapazes são indiferentes. Mas eles estão sempre fazendo companhia a Merrill. Eu não tenho ninguém. Ouço-os rindo quando estão com ele e sempre conversando, conversando interminavelmente. Enquanto isso, eu vivo na solidão, numa terrível solidão!.

Ela gaguejou, chorou, soluçou.

- Merrill... Será que você se sente tão solitário quanto eu? O que já lhe dei além do meu desprezo? Merrill, pobre Merrill! Por que tem sido tão paciente? Por que já não me deixou há muito tempo? O que sou para você?

Ela aproximou-se ainda mais da cortina. Bastava estender a mão para tocá-la.

- O que sou afinal para você, a quem tanto tenho ofendido e magoado? Será que pode perdoar-me? Oh, meu Deus, Vós podeis perdoar-me?

A mão trêmula adiantou-se e apertou o botão. A cortina se mexeu. Ela ainda Conseguia ver, através dos olhos toldados de lágrimas. A cortina sacudiu-se como que sob o impulso de uma suave brisa. Finalmente abriu-se e uma luz brilhou. A Sra. Sloane ficou em pé onde estava, olhando em silêncio. A luz iluminava-a numa aura.

- Sim, sim sussurrou ela, fitando o homem que se lhe revelava inteiramente. - Vós me perdoastes. Espero que Merrill também me perdoe.

Ela tornou a olhar e murmurou alguma coisa. Depois caminhou para a porta dos fundos, coma se fosse uma jovem que Corre para alguém que está à sua espera, uma jovem que se sente livre, com muita alegria e amor no coração. Uma jovem sentindo a primavera dentro de si.

 

ALMA DOIS

O Desprivilegiado

Não cabe aos mortais determinar o sucesso. Mas faremos mais do que isso, Sempronius haveremos de merecê-lo.

Addison

- Ora, então o negócio é assim! - disse Tab Shutts, juntando as mãos calosas sobre os joelhos. - Está certo, mas terá que me ouvir - e não dou a mínima que fique chateado! Aposto que nunca trabalhou um só dia em sua vida. Si como são todos vocês, saídos das faculdades. Eu nunca passei do primário. Talvez o senhor não possa compreender caras como eu, não é? Não me importa, pois todo mundo diz que o senhor ouve a gente. E que diabo, quem é que gosta de ouvir a gente? Ao que eu saiba, ninguém. Por isso, vai ter que me ouvir agora. E acho que vai ficar com o ouvido doendo, seu moço, cem todos os seus, diplomas.

Eu nunca tive uma chance. Assim que saí da escola, entrei logo num trabalho. Sabe o que veio depois? O maldito Exército! Mas talvez seja melhor eu falar um pouco sobre os meus pais.

Papai também nunca teve uma chance. Trabalhava doze horas por dia, seis dias por semana. Depois ficou doente. E isso foi tudo. Tinha oito filhos. Não sei como consegui ter tantos, trabalhando do jeito que trabalhava.

Tab resmungou, irritado.

- Mamãe também trabalhava, lavando roupa para fora. Talvez eles se encontrassem num portal, só que é difícil imaginar qual, pois o buraco em que a gente morava era cheio de crianças, inclusive o portal.

 Aí apareceu um padre e perguntou por que as crianças não estavam na escola. Mamãe respondeu: ‘Padre, todas elas trabalham, assim como Joe e eu.’ O padre fez uma cara de triste. Ele também não parecia ser muito bem alimentado. Ainda era jovem e magro, pálido como um fantasma. Ele disse: ‘Nosso Senhor também trabalhava.’ A resposta do padre não era meio idiota? Cristo sabia que Ele era Deus - mas nós, o que sabemos? O padre disse: ‘Ele era carpinteiro.’ É o tipo da resposta estúpida.

Meu nome não é realmente Tab. É Timothy. Foi um santo. Mas eu não sou nenhum santo. Há anos que não comungo nem vou à missa. Por que iria? O que um cara corno eu tem para viver? Aqui estou eu: tenho trinta e dois anos e trabalho numa fábrica, mas nem ao menos consigo operar uma máquina. Agora está começando a aparecer a tal automação e não haverá mais utilidade para gente como eu. Para onde será que nos varrerão? - Ele deu uma risada.

- Para debaixo do tapete? É bem possível.

A luz branca irradiou-se sobre ele. Tab olhou-a, in.quieto.

- É verdade que eles dizem que vão treinar-nos, preparar-nos para novos empregos. Mas para que eu preciso de treinamento, na minha idade? Tudo o que quero é trabalhar, como sempre fiz, ganhando a vida decentemente. Não quero saber de fantasia. Pensando bem, para que trabalhar, afinal de contas? No fundo, não passo de um refugo. Um pobre coitado... As crianças estão pedindo uma televisão e ainda estou devendo os tubos pela geladeira e pela máquina de lavar. A única diversão que tenho é tomar uma cerveja e conversar com outros camaradas que também têm do que reclamar.

Agora deixe-me falar sobre meus velhos. Papai morreu quando eu tinha quatorze anos. A lei dizia que eu devia freqüentar a escola até os dezesseis anos. Mas arrumei uma autorização especial e fui lavar carros no posto de gasolina. Havia aquela garota. O pai também trabalhava numa fábrica, mas ela usava batom, jeans e tinha um corpo daqueles! Conheci-a quando eu tinha dezessete anos e ela quinze. Fomos da mesma turma, a da Irmã Dominic. Meu Deus, nunca vi uma pessoa tão cansada! Também não era de admirar, tendo que enfrentar todas aquelas crianças! Mas não Sentíamos fome. E quem ainda pode sentir fome, com esses programas de previdência social e tudo o mais? Tomávamos o nosso suco de laranja e as devidas vitaminas, tínhamos lanches e muito leite. Éramos grandes como cavalos e os nossos pais pareciam anões comparados conosco. A Irmã Dominic era a metade do nosso tamanho. Acho que ela também nunca teve uma chance.

Tab fez uma pausa e seu rosto moreno ficou ainda mais inquieto. Ele mudou impacientemente de posição na cadeira de mármore.

- Ninguém jamais teve uma chance. E o senhor aí, atrás dessa cortina, qual foi a chance que teve? Seus velhos tinham dinheiro, não é? Mandaram-no para a faculdade, não é? Claro, claro! Agora pode ficar sentado aí, ouvindo pessoas broncas como eu e sorrindo para si mesmo. Nada significamos para o senhor. Mas a verdade é que é pago para nos ouvir, não é? Durante todo o tempo do mundo!

Voltando a falar dos velhos: mamãe continuou a lavar roupa para fora, até morrer de repente. Até hoje não sei do que ela morreu. Deixou oito filhos, alguns mais moços do que eu, outros mais velhos. Mas quem se ia importar com a gente? Passamos o diabo. Eu tinha aquele emprego, que me dava quinze dólares por semana e um dia de folga. Não era o suficiente para viver. Aí fui trabalhar numa fábrica. Uma nova guerra estava começando. Ia-se ganhar muito dinheiro, todo o dinheiro que havia. A guerra duraria para sempre. Era isso o que o capataz vivia a nos dizer. Mas então eles me apanharam para o Exército. Qual é a chance que um cara pode ter desse jeito?

Não sei o que estou fazendo aqui, falando com você. Mas Fran - ela é minha esposa, aquela mesma garota de batom, jeans e corpo bonito - disse que eu viesse até aqui. E o que tenho a perder, abrindo a boca aqui? O senhor pelo menos me fica ouvindo. Mas me diga: o que afinal o senhor está fazendo aí atrás dessa cortina? Ouvindo? Mas o que pode saber de caras broncos como eu, que nunca tiveram uma chance na vida?

E lá estava eu no Exército. Para que era a guerra da Coréia? Não tenho a menor idéia e acho que ninguém se importa com isso. Diverti-me muito lá em Tóquio. Se eu tivesse recebido uma boa educação, poderia ter ficado por lá, mima casa bacana daquelas, com empregadas e ganhando muito bem do governo. Mas eu não tive nenhuma chance e eles me embarcaram de volta. Além disso, tinha também aquela garota a minha espera. Nós dois saímos por aí. Ela era muito bonita, para quem gosta do tipo que ri mostrando os dentes de cima e a língua, aperta os olhos e fica tentando parecer com as garotas de Hollywood que a gente vê no cinema. E logo a gente descobriu que havia uma criança a caminho. Eu quis tirar o corpo fora, mas ela apareceu com um padre muito diferente de tipo que eu conhecia, magro e doente. Era um cara grandalhão, que não se deixava enganar. Tinha mãos imensas, como um cara disposto a quebrar o pescoço da gente se disséssemos alguma coisa de que ele não gostasse. E assim a gente teve que casar. Virei um homem casado, coisa que eu não queria. Mas, na idade que eu tinha então, meu pai já tivera três filhos. Quem vai querer receber uma instrução e ficar sentado num escritório, ganhando talvez uns trinta dólares por semana? Podia ir trabalhar numa fábrica e ganhar três vezes isso, somando os benefícios. Aí eu fui, mas Fran reclamou e acertei-a no queixo. Os tiras então apareceram e peguei uma condenação, com suspensão condicional da pena. Ninguém se incomodou quando papai bateu em mamãe, exceto nós, as crianças. Meu Deus, como nós gritamos! Lembro-me de que mordi papai na perna - e eu tinha só quatro anos!

Tab riu, mas logo franziu o rosto, pensativo.

- Mas por que será que ele bateu em mamãe? Ela estava fazendo o melhor possível, não é? Além do mais, era a metade do tamanho dele. Por que será que as pessoas fazem tantas coisas nojentas assim? Deve ser porque nunca tiveram uma chance na vida.

Tab olhou ao redor da sala, com uma expressão beligerante. Mas não havia ninguém ali. A luz fluía em cima dele, acolhedora e suave.

- Diabo!

Tab fez outra pausa, mas o silêncio permaneceu inalterado.

- Agora tenho três filhos e eles estão sempre querendo coisas. Fran diz que eles não podem ter. Ela sempre se prende ao tal do orçamento. Cuida também dos filhos dos outros, como se já não tivesse trabalho suficiente! Ela acha que todo mundo devia ter dinheiro no banco. Mas para quê? O dinheiro foi feito para se gastar e para a gente se divertir enquanto é tempo. Mas não é isso o que Fran acha. Pensando bem, ela agora já não é mais tão bonita. Está ficando velha embora tenha apenas trinta anos. Mas acho que já é idade suficiente para urna dama - ela vive lendo e ouvindo as notícias. Detesta esporte. Isso não vale alguma coisa?

O que ganho eu? Uma coisa posso dizer-lhe: ganho mais que os professores de escola primária, apesar de ser (ele fez uma pausa e sorriu envergonhado), apenas um cara que não tem função específica na fábrica. É isto mesmo! Pense só nisto! Mas acha que Fran está satisfeita? Não, não está. Ela quer que eu vá para a tal escola de automação que a fábrica criou. Ela diz que preciso aprender alguma coisa. E fica mostrando-me os malditos livros que pega na biblioteca. Sabe de uma coisa? As mulheres me cansam. Estão sempre querendo ser melhores do que são e nunca fazem as coisas da maneira certa. Elas não sabem que hoje em dia um homem não tem a menor chance!

A sala continuou imersa em silêncio. Tab olhou para a cortina.

- Um desses espremedores de crânios, não é? Ficam ouvindo e depois escrevem livros sobre nós, caras broncos que nunca tivemos uma chance. Mas para que estou aqui? Já estou cansado de tudo isso. Acho que vou cair fora, procurar o meu próprio caminho, enquanto Fran e as crianças vivem na base de um desses programa de assistência social. Por que não? Afinal, é para isso que se pagam impostos, não é? Além do mais, do jeito que estão jogando as bombas atômicas hoje em dia, daqui a pouco não vai restar mundo nenhum para se viver. Ou talvez seja a bomba de hidrogênio - ou então os mísseis. Então por que não aproveitar ao máximo o pouco tempo que nos sobra? Mas Fran parece que sabe o que estou pensando e disse: Vá até aquele lugar que o Dr. Godfrey construiu. Eu disse que não, mas ela implorou e chorou. Que diabo a gente pode fazer com as mulheres? Ei, o senhor não é um sacerdote? Ouvi dizer que era judeu. Sabe o que eu penso dos judeus? Havia um cara no Exército... Mas quem se importa com isso? Estou cheio até em cima de nunca ter tido uma chance nem coisa alguma. Um cara me disse que os judeus ficaram com todo o dinheiro do mundo. E a fábrica está cheia de negros e porto-riquenhos. Um branco atualmente não tem a menor chance.

Ele fitou a cortina com uma expressão irritada.

- Talvez você esteja pensando naquele bônus especial que recebi do governo. Mas Fran nada tinha a ver com aquilo. Diverti-me até o fim. Eram quatrocentos dólares... Uma pessoa tem o direito de divertir-se pelo menos uma vez na vida, não é? Afinal, o que tenho eu para viver? Aposto que o senhor nunca viu um torno nem um martelo em toda a sua vida. O que pessoas como o senhor sabem sobre trabalhar? Eu trabalho quarenta horas por semana e depois estou caindo de cansaço.

- Mas meu pai trabalhava doze horas por dia, seis dias por semana. Era um otário... Fico imaginando como é que ele agüentava. Isso mesmo, é incrível como ele agüentava: já experimentou trabalhar doze horas por dia?

O silêncio na sala pareceu aprofundar-se e. assim, contê-lo. Tab esfregou o queixo, pensativo.

- Mas Fran. até que não é má. Não me estou queixando, o problema é que eu nunca tive uma chance. Talvez Fran nunca tenha tido também. Ela também dava duro, sempre deu. Agora tem as crianças. Molly até que é bem esperta, mas os dois meninos berram o tempo inteiro.

Tab riu.

- Assim como eu e meus irmãos berrávamos. Não é de admirar que papai e mamãe costumassem bater na gente. Mas Molly é uma garota esperta. Estava linda no Natal em que fomos a St. Aloysius, parecia um anjo. Ela é muito parecida com Fran. Pensando bem, as mulheres não enfrentam tantas dificuldades como os homens. Elas ficam bonitas e depois se. casam...

Ele olhou para a cortina. Levantou-se subitamente, as mãos caídas ao longo o corpo, o -rosto inclinado para a frente. E disse suavemente:

- E depois se casam com caras broncos como eu. É exatamente isso o que elas fazem: casam-se com caras broncos como eu!

A expressão alterou-se, ficou séria, um pouco sombria. Tornou a esfregar o queixo.

- Pobre mamãe! Pobre Fran! Pobre Molly!

Aproximou-se da cortina.

- Mas acho que o senhor nunca teve mãe e nada sabe a respeito das mulheres.

A cortina não se mexeu. Tab pareceu indeciso, acabando por gritar:

- Por que não fala? Por que não me diz o que devo fazer? Tenho que pensar em Fran e Molly, não é?

Ele apertou o botão furiosamente. A cortina abriu-se suavemente e a luz que havia atrás dela iluminou-o. Ele ficou ali parado,. olhando, no mais completo silêncio. E então seus olhos ficaram cheios de lágrimas, que começaram a escorrer pelo rosto, como se ele voltasse a ser uma criança.

- É, acho que sabe tudo a respeito das mulheres, sobre mamãe, Fran e Molly. Acho que sabe tudo mesmo. Será que ainda há uma chance para mim? Será que existe uma chance de verdade para caras broncos como eu? Quase já me tinha esquecido sobre mamãe, mas o senhor não sabe se esqueceu, não é?

Ele estendeu a mão, e o rosto hostil e mal-humorado suavizou-se.

- Acho melhor eu, ir embora agora. É muito tarde para mamãe, mas Fran esta esperando Não se vá esquecer de O Desprezado e Rejeitado mim, está certo? Não se esquecerá mesmo? Amanhã vou entrar naquela escola de automação Sinto muito ter dito que não sabia nada a respeito de trabalho pesado, o senhor deu duro durante toda a sua vida, não é? E tudo isso por caras broncos como eu desprezado e rejeitado da convivência dos homens.

Era um dia extremamente quente, mas o ar na sala de espera era fresco e puro. O jovem estava todo vestido de preto. Parou junto à entrada, enquanto a porta de bronze se fechava atrás de si. Olhou para os homens e mulheres que estavam esperando, preparando-se para a expressão inevitável de repugnância e aversão com que seria recebido. Mas ninguém pareceu notá-lo, imersos que estavam todos em seus próprios pensamentos. Odiou-se por seu comportamento apologético, ao seguir na ponta dos pés até a fenda na parede do outro lado e ali jogar o seu bilhete, fechado. Depois endireitou os ombros, escolheu cuidadosamente uma cadeira longe dos outros e ficou esperando. Ninguém olhou em sua direção. Pegou uma revista em cima da mesinha e folheou-a. Mas não conseguia concentrar-se. Levantou a cabeça e examinou a sala de espera com frieza. Apesar disso, contudo, seus olhos eram tímidos.

Ficou pensando no que o homem por trás daquela porta pensaria de seu bilhete. Sorriu desdenhosamente. Que importância podia’ ter agora o que alguém pensasse? E por que Viera até ali? Teria sido motivado por uma palavra que alguém dissera ao acaso, por alguma coisa já meio esquecida que lera num jornal? Aquele não era um lugar para ele.

Se ao menos houvesse alguns quadros naquelas paredes imaculadamente brancas... Mas não! Aparentemente era-se obrigado a ficar entregue aos próprios pensamentos. E como eram agradáveis! Seus pensamentos... Contemplavam-no de cada superfície reluzente como se fossem perguntas. Tentou respondê-las, com raiva, mas as perguntas continuaram a atormentá-lo. Tentou manter a raiva, mas ela também se transformou numa pergunta. Examinou seus companheiros na sala de espera furtivamente. Por que estariam ali’ Quais seriam os problemas daquele homem gordo e rosado, num caríssimo terno leve para o verão? E o que estaria atormentando aquela jovem de lindo rosto pálido e cabelos louros? Ou aquele rapaz com a maleta nos joelhos? Ou aquela tranqüila matrona que costurava enquanto esperava? Que agonia poderiam sentir, comparada com a sua?

A sineta soou e um a um todos entraram na sala misteriosa por trás da porta de carvalho. O jovem esforçou-se para ouvir as vozes lá dentro, uma queixosa, a outra suavemente tranqüilizadora. Mas nada pôde ouvir. Será que do outro lado havia uma capela? Se assim fosse, ele trataria imediatamente de voltar. Não havia lugar para ele numa capela, não havia como se enquadrar na hipocrisia e no bom senso superficial. Ele próprio era um amaldiçoado. Odiava-se e odiava aqueles que o odiavam.

A sineta tocou então para ele. Estremeceu, correu os olhos pela sala agora vazia e levantou-se. Começou a caminhar na ponta dos pés, mas depois pisou firmemente no chão, esperando que o tapete grosso não abafasse totalmente o som dos seus passos enérgicos. O chapéu em bom estado estava na mão. Atravessou a porta de carvalho e viu apenas uma sala nua, com uma iluminação suave, a cadeira de mármore com as almofadas de veludo e a alcova cercada por uma cortina azul. Ao vê-la, sorriu amargamente. Era um psiquiatra, como suspeitara, ou um desses atarefados agentes sociais ou então um sacerdote. Sentou-se.

- Boa tarde - murmurou em sua voz sonora.

Não houve resposta, mas ele sentiu imediatamente que seu cumprimento fora retribuído. Não tinha importância! Ele estava cansado da delicadeza deles, de como dissimulavam, fingindo que ele não era o que era. Disse com frieza:

- Sou um negro. Tenho vinte e cinco anos. Meu nome é Gideon Cowles e nasci nesta cidade. Formei-me na Universidade daqui, há quatro anos, com as natas máximas.

Fez uma pausa e acrescentou solenemente:

Trabalho agora na cozinha do melhor hotel da cidade, como ajudante de cozinheiro e lavador de pratos.

A sala continuou em silêncio, mas ele pode sentir a paz reinante e uma extrema atenção. Soube que havia alguém a ouvi-lo.

- Isso mesmo - confirmou ele, tentando rir. - Eles o chamam de O Confessor. inclusive o que está gravado em cima da porta. Isso é esplêndido! Fico contente por querer ouvir-me. Ninguém antes me ouviu, nem mesmo no asilo de órfãos onde fui criado. Nem mesmo um sacerdote. Espero que não se sinta ofendido, se for um sacerdote. Sei como todos vivem sobrecarregados, pois não há sacerdotes em quantidade suficiente. Às vezes me pergunto se não será este o grande problema do mundo. Não há sacerdotes em quantidade suficiente para atender a todos...

Ele inclinou-se, e por algum tempo meditou no assunto, com uma expressão surpresa.

- Mas quem vai querer virar sacerdote nos dias de hoje? Vocês são muito mal remunerados, não são tidos em alta consideração; não têm a menor influência nem dinheiro. Não conhecem os políticos poderosos. Percorrem as ruas de suas paróquias, chamando pelas suas ovelhas - mas quem O ouve? Perdoe-me a divagação, mas é que descendo de uma raça poética. Sabia que os negros são poetas por natureza? Ë verdade, eles são mesmo.

Vocês, sacerdotes, clamam nos portões e ninguém os abre para lhes dar passagem. Gritam nos púlpitos e as pessoas bocejam. Falam na Paternidade de Deus e na Fraternidade Humana - e cada um faz que sim com a cabeça e volta para sua casa, a fim de continuar a odiar o próximo. Andam por toda parte e ninguém ouve seus passos. Muitos SO desesperadamente pobres, tão pobres quanto Cristo - e ninguém se importa com isso. Ficam em seus altares e contemplam os bancos vazios da igreja. São apenas uma voz solitária em plena selva - e são tão ouvidos quanto um mudo. Oferecem a Comunhão com seu Deus e os lábios que a aceitam são profanos. Cantam os Salmos de Davi, enquanto as mulheres estão pensando apenas no almoço de domingo e os homens no beisebol. As crianças se agitam e impacientam-se, pois querem voltar correndo para a televisão. Há todo um mundo de maldade e violência fora de suas igrejas, tocando sinos e soprando cometas, batendo tambores e zunindo cordas, num alarido infernal, gritando com suas vozes vigorosas e tolas. E que efeito pode ter a voz de um sacerdote no meio de toda essa balbúrdia? Não passa do canto tímido de um passarinho.

 E o que querem as suas ovelhas? Querem tudo - exceto vocês. E também não querem o seu Deus. Vocês são desprezados e rejeitados pela comunidade dos homens.

Ele pôs a mão sobre os olhos e acrescentou em voz baixa:

- Assim como eu também sou desprezado e rejeitado.

O silêncio continuou a esperá-lo. O jovem suspirou e deixou cair as mãos magras e pretas sobre os joelhos.

- A minha própria gente ri de mim. Os que têm diplomas Universitários entre nós são amargos e revoltosos. Pode culpá-los por isso? Eles não têm o que fazer com seus diplomas e devem contentar-se com os empregos mais humildes. Que casa bonita irá abrigá-los? Qual o homem branco inteligente que irá recebê-los em sua casa, beber e comer com eles? Muitos se tornam comunistas, de pura amargura, porque os comunistas mentem para eles e asseguram que no mundo soviético serão todos iguais. Iguais a quê? Iguais a quem? Somos os desprezados e rejeitados, sabemos como os homens são mentirosos.

Sabe o que significa ser desprezado e rejeitado, sei escarnecido, amaldiçoado, odiado? Algum homem já o tratou como eu tenho sido tratado? Já. sentiu alguma vez um olhar de repugnância abater-se sobre o senhor como um soco? Está acostumado a ouvir apupos e zombarias à sua passagem? Algum homem já disse que as pessoas da sua raça eram menos do que animais? Alguma vez já o expulsaram de algum lugar ou lhe recusaram comida e abrigo? Alguma vez já suplicou a seu Deus, perguntando por que o abandonava?

Gideon levantou-se, chorando, as mãos cruzadas no mais extremo desespero.

- Já sentiu próprio sangue em seu rosto e nas suas mãos? Pior ainda: já sentiu alguma vez seu coração sangrar irremediavelmente? Já sentiu a necessidade de encontrar ao menos uma pessoa que c aceitasse? Compreende agora por que não posso mais continuar a viver?

Foi envolvido pelo silêncio e pela luz suave, como um manto de misericórdia, amor e compreensão. Começou a chorar, incapaz de conter-se.

- Desculpe-me. Sei que é um sacerdote, um pregador, posso senti-lo por trás dessa cortina. Eu insultei-o. Desculpe-me. Mas a verdade é que, como homem branco, não pode saber o que significa ser desprezado e rejeitado.

Ele aproximou-se da cortina e timidamente apertou o botão. A cortina abriu-se e ele viu a luz e quem estava sob ela.

Prorrompeu em soluços, estendendo as mãos.

- Perdão! Vós sabeis de tudo, não é?

Ele esperou humildemente, sussurrando depois:

- Sempre soube que deseja ser um sacerdote, falar para o meu povo com a autoridade da fé e o amor de Deus. Mas eu sentia raiva do homem - e de Deus. Como eu poderia falar ao meu povo sobre a bondade de Deus, quando ele podia ver diariamente o ódio dos homens? Há um seminário teológico aqui e eles não irão rejeitar-me. Fizeste-me agora ver meu coração e o que realmente desejo. Apontaste-me o caminho onde reconheço ser necessário, pois Vós nunca nos desprezastes.

Ele sorriu, um sorriso que não era mais arrogante nem tímido. Era o sorriso de um filho aceito, que sabia que seu pai sempre o amara.

ALMA QUATRO

O Traído

Eu não sei quem é este homem de que estás falando.

Marcos 14:71

O homem que estava sentado na cadeira de mármore não era de meia-idade nem velho, O seu casaco grosso de tweed era de boa qualidade, se benzi que já estivesse começando a ficar puído. Os sapatos eram feitos a mão, embora estivessem visivelmente gastos. A gravata cara mostrava indícios de ter sido passada a ferro muitas vezes. Ele sentava-se ali com grande dignidade, os cabelos grisalhos bem penteados, o rosto rígido e amargurado.

Ele sorriu desdenhosamente para a cortina. Toda essa superstição infantil! Era inacreditável aquela psiquiatria amadora, aquela história de auto-diagnóstico! Ele, Clive Summer, conhecia todo o jargão da psiquiatria e os seus métodos aclamados. O paciente expunha os seus problemas para um ouvido supostamente simpático - pago por hora e a um preço altíssimo - encontrando a sua própria solução nos balbucios de sua língua. O novo confessionário! O meio mais moderno de descobrir o seu ego idiota, como se fosse algo muito precioso! Ele já não o tentara? Chegara a gastar três mil dólares, um dinheiro que não podia agora dar-se ao luxo de desperdiçar, Na verdade, fazia bastante tempo que ele não podia dar-se ao luxo de desperdiçar um tostão sequer. Tinha que pagar as contas médicas da artrite de Célia e ainda havia o filho idiota... Não, George não chegava a ser um idiota, mas estava muito perto disso, em seus entusiasmos tolos.

A sala branca e silenciosa ficou esperando. O Sr. Summers olhou ao redor, curioso. De onde será que vinha o calor que amenizava aquele dia rigoroso de inverno e a luz? Ele não podia ouvir o murmúrio de nenhum ventilador a renovar o ar, nem via nenhum conduto para um sistema de calefação. Ele não conhecera John Godfrey, um advogado insignificante que nunca entrara na Companhia Metalúrgica Summers. Não teria passado além do porteiro, a não ser que levasse algum mandado judicial. Até assim não seria muito provável que chegasse até ele. E, no entanto, Godfrey ganhara bastante dinheiro para construir aquele pseudo-templo pomposo e criar aquela atmosfera religiosa e piegas. Aquilo era ótimo para donas-de-casa lamurientas, para fracassados, empregados de baixo nível e místicos insignificantes, que precisavam de um ouvido como outros precisavam de um laxante. Mas então..

Em voz firme e cautelosa, ele disse:

- Boa tarde.

Ninguém respondeu.

- Sou Clive Summers. Se o senhor mora nesta cidade, deve reconhecer o meu nome. Não há aqui quem não me conheça ou não tenha ouvido falar de mim.

Ele olhou para a cortina e endireitou Os ombros, que nos últimos cinco anos tinham a tendência a descaírem constantemente. A cortina permaneceu imóvel.

O Sr. Summers pensou nos psiquiatras que conhecera socialmente e em particular no que conhecera tanto social como profissionalmente. Seu rosto ficou vermelho, Um deles estava por trás daquela maldita cortina! Será que poderia confiar nele? Não se pode confiar num homem, a menos que se tenha comprado esse homem. E muitas vezes, nem mesmo assim.

- Espero que tudo o que seja dito aqui venha a ser encarado como confidencial - disse ele, com frieza. - Por falar nisso, depositei vinte dólares em sua caixa. .. de oferendas, com o meu bilhete, o qual, a esta altura, certamente já leu. O dinheiro não é uma oferenda pois sei que aqui não Se pede tal coisa. Mas, como paguei por seu tempo como um consultor profissional, o senhor fica eticamente comprometido a não revelar as confidências.,, do seu paciente. No que eu me considere um paciente, em qualquer sentido da palavra. O problema é que estou ficando cego, apesar do que dizem os médicos.

Não houve resposta. O Sr. Summers queria ficar irritado, mas descobriu que, ao invés disso, estava-se relaxando na cadeira de mármore. Em tom de advertência, disse então:

- Mas asseguro-lhe que tenho meios de descobrir quem trai minhas confidências.

Novamente ele esperou, mas o silêncio permaneceu. Riu constrangido.

- Mas quem consegue ouvir, a não ser um psiquiatra pago, que dificilmente encara o cliente como um ser humano, se ele está com problemas? O cliente se transforma apenas num caso, uma mente perturbada. E, portanto, meio desequilibrada. Como pode ver, sei de tudo a respeito de sua profissão. Muito bem, agora ouça o que tenho a lhe dizer.

Mas ele não conseguiu falar durante algum tempo. Ficou atento ao ruído de uma caneta naquele silêncio profundo, ao farfalhar de uma folha de papel, ao som de pés mudando de posição, uma cadeira rangendo. Mas nada Ouviu, O rumor do tráfego não chegava àquela sala, não se ouviam passos, nenhuma voz, por mais distante que fosse. O silêncio era como a eternidade. Ele abriu as mãos até então cerradas.

De repente era bem mais fácil falar.

- Vou destruir um homem, vou destruí-lo completamente. Pretendo destruí-lo tão impiedosamente que ele será obrigado a deixar a cidade, sem um tostão, se eu o conseguir. É possível até que um homem como ele prefira matar-se quando eu realizar o meu intento, o que deverá acontecer em breve. E espero que ele o faça mesmo! Será o meu prazer final, a satisfação completa! É isso mesmo, eu espero que ele se mate. Pois ele me traiu!

O Sr. Summers olhou para o relógio.

- Vinte dólares pagam pelo menos meia hora, não é? Caso contrário, pode mandar-me a conta.

Ele falava de forma arrogante - mas toda a sua arrogância caía na quietude da sala como a mais leve pluma.

- Ainda moro na Avenida Humberson.

Ele fez uma pausa e logo acrescentou:

- Mas receio que não por muito tempo mais. A casa vai ser vendida.., para pagar os impostos atrasados.

Subitamente a sua voz foi dominada por um tom de desespero.

- Célia e eu construímos aquela casa. Ela era professora e, portanto, tinha pouco dinheiro. Eu era um jovem engenheiro químico. trabalhando a trinta e cinco dólares por semana. A Depressão estava no auge. Mas, de certa forma, éramos até afortunados, pois tínhamos onde morar, o suficiente para comer, o suficiente para vestir. Apenas o suficiente, contudo. Ambos odiávamos a pobreza. Sabe o que significa ser pobre, desesperadamente pobre? Nossos pais eram pobres assim e por isso sabíamos o que é a pobreza, opressiva, negra, dolorosa. A maioria dos homens não se importa com a pobreza porque não tem imaginação. Nas tardes, de domingo passeávamos pela Avenida Humberson, um lugar que sempre conservou a sua classe. Olhávamos os poucos lotes ainda vagos e sonhávamos com o dia em que possuiríamos um deles e construiríamos a nossa casa Planejamos exaustivamente cada quarto a cor das paredes, as arvores que plantaríamos no jardim dos fundos, a forma exata das pedras que usaríamos no caminho, a fonte, as salas, o quarto das crianças, o vestíbulo com um lustre imenso.

Levei muitos anos, mas finalmente realizei o meu sonho Inventei um novo processo metalúrgico. Não vou cansá-lo com os detalhes, pois nada lhe significariam. Recebi muitas propostas para vender a patente, mas mantive-a, pois acreditava no processo. Comecei com uma pequena oficina, em pregando apenas um único homem, além de mim mesmo. Há cinco anos a minha empresa possuía quinhentos empregados. Tínhamos a nossa casa, tínhamos um filho, George, que é também engenheiro-químico. Ele nunca combinou comigo e constituiu-se num terrível desapontamento. É um tolo, cheio de entusiasmos. Diz que quer começar assim como eu comecei. A voz do Sr. Summers voltou sofrer uma transformação sem que ele percebesse o tom de relutante orgulho.

- Célia e eu não pudemos dar-nos ao luxo de criar uma família até já ser quase tarde demais. Todas as nossas economia foram investidas na minha primeira oficina e no equipamento. Queríamos ter filhos, mas não havia tempo nem dinheiro. Precisávamos de cada tostão disponível. Célia

Continuou a lecionar e eu trabalhava noite e dia, praticamente me esquecendo de comer e dormir. E, de repente, descobrimos que Célia já estava com trinta e oito anos e eu com quarenta e um - e tínhamos dinheiro suficiente para comprar o lote e construir a nossa casa. Estávamos ricos!

Foi somente no dia em que Célia completou trinta e oito anos que subitamente tivemos tempo para compreender que estávamos ricos!

Compreendemos também que Célia já. não era mais nenhuma garota e que, se desejávamos de fato ter filhos, devíamos começar imediatamente a tomar as devidas providências. E assim tivemos George, mas Célia ficou sem poder ter outros filhos. Ela quase morreu quando George nasceu, pois já estava um pouco velha para o primeiro filho. A casa ainda não estava totalmente concluída quando nos mudamos. Mas as mulheres são sentimentais e Célia quis que a criança nascesse em nossa própria casa, pela qual havíamos lutado por tantos anos.

Riu secamente, ficou surpreendido com o som e levou os dedos cuidadosamente aos lábios, como se tivesse cometido alguma obscenidade. Mas logo sacudiu a cabeça repetidas vezes e os cantos da boca amargurada se contraíram novamente num sorriso seco.

- Era inverno e apenas quatro cômodos podiam ser aquecidos. O equipamento ainda não estava todo instalado, o reboco ainda estava úmido, não havia papel de parede nem pintura. De certa forma, era parecido com a vida que leváramos em criança, todos amontoados em busca de calor, um fogareiro velho aquecendo temporariamente o quarto, uma mesa nua na cozinha, as janelas sem cortinas. Era tudo improvisado. Nunca ouvi Célia rir tanto. Ela inclusive nunca mais tornou a rir daquela maneira.

Ele próprio riu, um ruído rouco como o estalejar de um pergaminho. Esqueceu onde estava, recordando.se. Mas logo voltou a si e fitou aturdido a cortina fechada. E disse em voz também rouca:

- Estou vendo que o senhor é um homem muito paciente. Obrigado. Não me lembro de, em nenhuma ocasião, ter falado tanto assim. Sempre fui muito ocupado, ocupado demais até para conversar. Célia deve ter levado uma vida bastante solitária, apesar dos clubes em que ingressou depois que ficamos ricos e de suas atividades comunitárias. O famoso filho único era cuidado por gente experiente, nunca aceitamos uma babá analfabeta. É, deve ter sido uma vida muito solitária a dela!

Ele fez outra pausa, franziu o rosto, sacudiu a cabeça.

- Acho que é uma conclusão meio estúpida. Célia tinha agora tudo aquilo com que sempre sonhara: peles, carros lazer, uma existência sem o menor esforço, viagens. É i claro que eu sempre estava muito ocupado para viajar com J ela. Célia tinha uma irmã mais velha, Ethel, que era viúva e viajava em sua companhia. Mas Ethel morreu há cerca de dez anos e desde então Célia não tem mais ninguém.

Ele fez outra pausa e mudou de posição na cadeira de mármore.

- Mas isso é bobagem. Devo estar perdendo o juízo. Célia tinha tudo - e todos. Tinha amigas. A casa estava sempre fervilhando com reuniões femininas, ela vivia entretida nos assuntos da igreja, do Comitê Feminino da Filarmônica, nos conselhos de diversos hospitais. É claro que Célia sempre foi um pouco tímida, eu costumava dizer para ela que era a sua personalidade de professora primária. Não lhe era fácil integrar-se. É verdade que ela estava em desvantagem, pois todas as outras mulheres estavam metidas naquilo desde a juventude. Célia provavelmente era encarada como uma arrivista e havia talvez um certo grau de esnobismo social... As pessoas são muito tolas, não acha? Mas suponho que deve saber disso muito bem em sua profissão. Somos todos uns tolos!

A palavra ecoou nas paredes brancas como se fosse uma acusação. O Sr. Summers disse apressadamente:

- Célia começou a sofrer de artrite... Ou talvez fosse neurite, sei lá. De qualquer forma, é muito dolorosa para ela andar atualmente, apesar de ter apenas sessenta e quatro anos. Malditos médicos! Ficam falando em drogas milagrosas e novos tratamentos, mas as pessoas continuam doentes tão freqüente e misteriosamente como no tempo em que era garoto. A minha pobre Célia passa agora a maior parte do tempo na cama. E...

Ele hesitou, mas acabou dizendo numa voz envergonhada:

- Temos apenas uma empregada para todo o serviço e mesmo assim ela não fica o dia inteiro. Até isso é atualmente muito dispendioso para nós.

Ele esperou por um murmúrio de superioridade saído de trás da cortina, por alguma manifestação de condescendência. Não houve, porém, o menor ruído. O Sr. Summers, no entanto, tornou-se subitamente consciente de que alguém O ouvia atentamente, com simpatia, compreensão. Tirou os óculos e ficou algum tempo a limpá-los, pois haviam-se embaçado.

- Espero não perder a vista na barganha, pois isso poderia acabar com tudo.

Ele tossiu - e a tosse era como um soluço.

Começou então a falar rapidamente:

- Como eu desejaria poder fazer alguma coisa por Célia! Sabe que eu passei praticamente quase sem vê-la, até bem recentemente? Deve estar pensando que perdi o juízo. mas o que estou querendo dizer é que estava sempre ocupado demais para fazer-lhe companhia. Para mim, ela era apenas Célia. Foi mais ou menos há. uns seis meses que passei a vê-la de verdade. Fiquei chocado. Afinal de contas, sessenta e quatro anos não são muita coisa, quando se leva em consideração as vitaminas, a ginástica, salões de beleza. Mas, quando tornei a ver Célia, ela estava velha, muito velha. Não tanto fisicamente.

Ele fez outra pausa brusca.

- Mas que digo? Não tanto fisicamente... É claro que era fisicamente! Os cabelos estavam pintados e a pele macia, por causa desses cremes que as mulheres atualmente usam, e corpo continuava esbelto. Mas, apesar de tudo isso, ela estava velha, mais até do que eu. E isso é bem engraçado, pois ela é três anos mais moça. claro que as mulheres envelhecem mais depressa, mas havia algo estranho em Célia, como se ela estivesse sem vida. Isso mesmo, sem vida, inerte. A sensação que tive foi de que ela há muito tempo estava assim. Oh, meu Deus! Devo realmente estar perdendo o juízo - ou então estou ficando cego!

A sua voz se alteou, ficou áspera e brutal.

- Agora posso compreender. Era tudo preocupação por minha causa. Célia está com medo, receia ser pobre novamente. Foi o que Henry Fellowes fez a mim.., a Célia. Fez com que ficássemos pobres novamente. Oh, minha pobre Célia!

Ele levantou-se, cheio de ódio e raiva, e começou a andar de um lado para o outro, e os passos ecoaram no chão de mármore. O turbilhão que havia em seu espírito espalhou-se pela sala.

- Mas não entendo como posso estar falando assim, quando ainda não disse a coisa mais importante da minha vida. Nem Célia nem George, aquele garoto idiota, nenhum dos dois tem nada a ver com isso. Não tinha a menor intenção de falar-lhe a respeito de Célia e George e assim toma o seu tempo. Se eu não tivesse parado a tempo, estaria agora a dizer-lhe que nunca vi os jardins que plantamos. Saíram fotografias deles numa grande revista de circulação nacional. Célia sentia o maior orgulho dos resultados, pois trabalhou lado a lado com os jardineiros. George e Célia posaram juntos para as fotografias. E, para você compreender como eu estava, basta dizer que indaguei a mim mesmo:

Será que é de fato o meu filho George que está com o braço sobre os ombros de Célia? A princípio não o reconheci. Há anos que eu não via George, há anos que não o via de verdade. Não havia tempo para mais nada que não fosse o trabalho, mas George tinha tudo o que eu podia dar-lhe. Tudo mesmo... Mas provou ser um filho ingrato, pois jamais me agradeceu. Há anos que está zangado comigo, pois não tive tempo de ir a Boston assistir a sua formatura em Harvard. As crianças hoje em dia são muito ingratas. Tentei explicar-lhe que tinha de cumprir um contrato com o governo, mas ele simplesmente se recusou a entender. Agora ele próprio tem um contrato do governo, muito pequeno, sem nenhuma importância...

O Sr. Summers tornou a tirar os óculos e limpou-os vigorosamente.

- Maldição! Será que estou ficando com catarata? Tudo parece sempre um pouco embaçado!

Sentou-se na cadeira, decidido.

- Estou tomando muito seu tempo. Mas não se preocupe, basta mandar-me a conta. É que é bem reconfortante falar assim. Há anos que realmente não falo com ninguém. Fui educado numa era em que os homens valorizavam cada hora e sabiam que deveriam realizar alguma coisa. Lembro-me do que aprendi na escola dominical a respeito dos talentos que o rei dava aos seus servos e de como amaldiçoava aquele que receava investir o talento recebido e enterrava-o no chão -- onde certamente não podia gerar outros talentos! A gente precisa utilizar devidamente cada minuto!

Ele fez uma pausa brusca e logo concluiu:

- E agora eu nada posso utilizar!

Cerrou as mãos, num gesto de raiva.

- Henry Fellowes. Ainda não lhe contei a sua história. Foi o primeiro homem que trabalhou comigo. Tornou-se meu sócio. Fora meu colega de escola, formara-se junto comigo, engenheiro-químico também. (Por falar nisso, sabia que durante a guerra recebi uma citação do governo em reconhecimento aos excelentes serviços prestados à nação? De que me adianta isso agora? Não sei, nem me importo!)

A sua voz tornou-se profunda, virou quase um gemido.

- Acho que estou ficando velho. Mas vamos deixar isso de lado e voltar a Henry Fellowes. Não creio que precise contar-lhe os detalhes. Confiava em Henry Fellowes como se fosse um irmão. Era meu sócio, trabalhamos arduamente juntos, negando-nos todos os confortos. E juntos ficamos ricos. Henry fez a maior confusão de sua vida. Divorciou-se de uma mulher estúpida depois de outra, cinco delas. Elas queriam apenas o seu dinheiro. Tentei dizer-lhe que se casasse com alguém como Célia, mas de nada adiantou. Henry fora tão pobre quanto eu e Célia. Ele queria mulheres cintilantes e exuberantes. Era como um garoto que não tem dinheiro e fica olhando a vitrina de uma loja de doces. Quando arruma algum dinheiro, corre a comer tudo o que consegue, ficando logo doente. Devo esclarecer que Henry normalmente não é um tolo, mas é incrível pensar nas mulheres que teve! Eram todas brilhantes, insinuantes, bonitas.., e vulgares. Devia haver nele alguma atração pela vulgaridade. Não conseguia fartar-se das cadelas desse tipo!

O Sr, Summers riu por um momento antes de continuar:

- É muito engraçado. Ele pensava, cada vez que se casava, que a mulher iria ser como Célia, fixando-se numa casinha e dando-lhe filhos. Mas isso nunca aconteceu, é claro. Elas queriam era o dinheiro dele, peles, jóias, muitas viagens, festas intermináveis. E todas tiveram muitos amantes. Henry sempre acabava descobrindo, mas não se corrigia, pois possuía uma personalidade adolescente. Célia quis ajudá-lo, apresentando-o a amigas suas, viúvas solitárias. Mas eu lhe disse: Cuide da sua própria vida, Célia. Um homem sempre sabe. o que quer. Henry não se interessaria pelas suas amigas bem-nascidas. É claro que eu tinha razão. Henry queria mulheres que tivessem o que se convencionou chamar de glamour.

O Sr. Summers fez uma nova pausa, pensativo.

- Pelo menos, é o que eu penso que ele queria. Henry nunca teve qualquer divertimento em sua vida quando era jovem. E não tinha o menor discernimento, pois jamais, teve alguém como Célia que lhe pudesse dar um senso de valores.

Ele percebeu o que acabara de dizer e ficou aturdido,

Franziu o rosto, assumiu uma expressão sombria, bateu com o punho fechado no braço da cadeira de mármore.

- Mas o que tem isso a ver com a minha presença? j Não tinha a menor intenção de contar-lhe toda essa podridão. Tudo o que precisa saber é que Henry está pagando pensão a pelo menos cinco mulheres, todas sem filhos. São mulheres dispendiosas, como sanguessugas, que tentam tirar tudo o que Henry possui. Essa situação não era nada agradável, mas ele sempre foi do tipo animado, esperançoso, como uma criança. E então aconteceu o inevitável. Eu tive pneumonia, passei muito mal. Fiquei cinco meses de cama e depois segui para Montego, a fim de completar minha recuperação. Quando voltei, descobri que Henry me havia roubado, arruinado, tirado praticamente tudo o que eu tinha. Fizera-o com a ajuda de uma equipe de advogados astuciosos. Os detalhes não interessam. O que importa é que ele me traiu, a mim, seu amigo, o homem que o ajudou a começa.r, que lhe deu a chance de ficar rico.

O Sr. Summers estremeceu na cadeira, uma expressão impetuosa no rosto, embora também magoada e aturdida.

- Quando convidei Henry a trabalhar comigo, ele estava ganhando vinte e cinco dólares por semana. Ele nunca teve o menor senso de oportunidade, mas éramos velhos amigos e queria tê-lo ao meu lado. Era como uma criança. Disse-lhe que se tornasse meu sócio, que juntos faríamos grandes coisas. Ele hesitou. desconfiado. Vamos, Henry, insisti, temos o mundo todo para nós e estou contando com você para criar alguma coisa. Devo ter então atingido o seu coração, pois ele fitou-me cheio de confiança: Está querendo dizer que você me quer? Respondi que mais que qualquer outra pessoa, renovando o convite.

Ele aceitou. Anos depois, traiu-me miseravelmente. Os detalhes não têm importância. Agora me restam menos de cinco mil dólares no banco e nenhuma companhia - perdi a minha própria companhia. Todos os meus amigos me abandonaram e estou absolutamente sozinho. Fui traído por Henry, em quem eu confiava cegamente, com cujo apoio construí toda a minha vida. Sabe o que eu soube recentemente? Ele estava num desses clubes aos quais antigamente eu pertencia e que atualmente não me posso dar ao luxo de freqüentar. Alguém perguntou-lhe: ‘O que aconteceu com Clive Summers, seu sócio? Ele era seu sócio, não era?’

 E Henry disse: ‘Clive Summers? Clive Summers? Ah! Sim, Clive Summers. Não sei que fim levou.’ E depois se afastou. Foi isso o que me contaram. Ele nem sequer se lembrava de mim, depois de tantos anos e de tudo o que fiz por ele! Chegou a deixar implícito que nem sequer me conhecera!.

O Sr. Summers voltou a bater com os punhos fechados nos braços da cadeira.

- Ele nem mesmo se lembrava de mim, o homem que ele traiu!

Ele levantou-se e gritou:

- Mas pensa que acreditaram nele? Não! Um dos meus antigos amigos - ele mal me conhece atualmente - disse:

Ora, você e Clive foram sócios durante muitos anos! Onde quer que eu o visse, ele estava junto. Mas Henry negou que fôssemos amigos, disse tratar-se apenas de uma associação de negócios, uma sociedade, sem um vínculo maior. Quem será que ele pensava estar enganando? Henry Fellowes... Eu gostava dele como se fosse meu irmão. não podíamos ser mais íntimos!

Ele baixou a voz e. quase sussurrando, repetiu:

- Não podíamos ser mais íntimos...

O Sr. Summers ficou quase colado à cortina imóvel.

- Mas o que o senhor sabe a respeito de traição? Num sentido acadêmico, é claro, deve saber de tudo, não tenho dúvida. Deve ter pensado no assunto como uma das facetas da natureza humana. Mas alguém já o traiu alguma vez? Acha que ele me fraudou apenas no dinheiro? Não, está enganado. Foi a negativa de nossa amizade, o fato de ter-me abandonado. Foi o pior de tudo, o mais terrível. Ele nem mesmo me reconheceu!

A cortina permaneceu imóvel. A sala parecia sorrir. O Sr. Summers gritou:

- O que o senhor sabe sobre traição? Quem alguma vez o traiu, seu presunçoso, que se esconde atrás dessa cortina?

Ele apertou subitamente o botão e a cortina se abriu, sob uma luz ofuscante. O Sr. Summers deu um passo para trás, olhando. Depois curvou-se, como que abalado - mas sem conseguir tirar os olhos do que via.

Depois de um longo tempo, disse:

- É claro que Vós sabeis tudo a respeito de traição. Quem poderia saber mais do que Vós? Perdoai-me.

Sentiu as pernas fracas e caiu de joelhos, cobrindo o rosto com as mãos. Outro século se passou. Ele podia sentir a luz ao seu redor, inundando a sala. Tornou a falar. em sussurros, entremeados por longas pausas.

- Sinto muito por Henry. Compreendei, posso arruiná-lo agora. Tenho todos os fatos e provas necessários para isso. A princípio eu fiquei doente e perplexo, mas depois providenciei as provas e arrumei advogados. Posso processá-lo e jogá-lo na cadeia, por fraude e apropriação indébita de fundos, além de uma dúzia de coisas. Mas não vou fazê-lo.

Ele tem outra esposa e eu soube que é pior do que todas as demais. Está desesperado, mesmo com todo o dinheiro que tomou de mim através de fraudes e muitos ardis. Está quase perdendo o juízo. Talvez sinta remorsos. Afinal, é tão velho quanto eu. Um homem jamais rejuvenesce. Ele deve ser muito solitário - tão solitário quanto George e Célia.

O que quer que Henry tenha feito, deve viver com os seus pensamentos. Eu pelo menos estou limpo de uma coisa dessas.

O Sr. Summers tirou as mãos do rosto e perguntou humildemente:

- Estais-me ouvindo? Mas Vós sempre ouvis, não é? Já não estais cansado?

Tão solitário quanto George e Célia... É estranho pensar nisso, não achais? Estou começando a lembrar-me de Célia antes de construirmos aquela casa. Ela costumava rir e cantar em nosso pequeno apartamento. Concordava comigo em que seria maravilhoso ter a casa imensa. . . algum dia. Sabeis de uma coisa? Não creio que ela se importasse muito com isso. Era apenas bondosa e participava do meu sonho por achar que era exatamente isso o que eu desejava. Talvez fosse mesmo, quando eu era mais jovem. Um dia consegui realizar o sonho, só que não mais tive Célia para mim. E o que é pior: nem mesmo senti falta dela até perder tudo o que tinha. Não pensei no meu filho, entregue à sua governanta, depois na escola e na Universidade. É verdade que me sentia orgulhoso de suas notas, mas nunca cheguei realmente a conhecê-lo. Enterrei meu talento no chão e acho que ainda continua no fundo da terra.

Ele deixou cair as mãos.

- Não havia tempo algum para as coisas sem valor. nunca houve.

Levantou-se decidido, como um jovem, rindo inesperadamente.

- George tem uma idéia louca sobre a transmissão de energia através de metais. Mas Vós conheceis mais sobre essas coisas do que nós, não é? Ele tem procurado interessar-me no negocio, está querendo um sócio. Vou ser esse sócio, com meus cinco mil dólares. Vou voltar a trabalhar numa oficina com am jovem, só que ele é meu filho e não me trairá. Nunca. Meu filho... Meu filho jamais irá trair-me.

Agora tenho que voltar para casa e contar tudo a Célia. Estou com um pressentimento meio estranho: acho que, no momento em que contar, ela vai levantar-se da cama e não mais estará doente. Às vezes me surpreendo com a paciência de mulheres boas como ela. E Vossa mãe, ela também era paciente? Sei que era. Deve ter sido a mais pa ciente de todas as mulheres. Por favor, apresentai-lhe os meus respeitos.

ALMA CINCO

A Casa do Pai

- Não sabes que devo cuidar da casa do meu pai?.

Lucas 2:49

- Quer dizer que o senhor ouve, não é? - disse Barney Sefkowitz impetuosamente. - É um desses doutores, um psiquiatra.. Mas o que há para ouvir? Eu há quarenta anos que estou ouvindo. Tenho um açougue, de carne kosher, preparada de acordo com os rituais hebraicos. O Bife Barney: é o que está escrito em cima da porta da minha loja, assim como você também tem o seu anúncio. Escute aqui uma coisa, posso perfeitamente pagar-lhe. Não aceito nada grátis de ninguém. Trabalhei toda a minha vida, até mesmo na Rússia. Já esteve na Rússia? É a pátria do Comunismo. É o que eles dizem. O tal de Khruschev é apenas mais um dos velhos czares. Czar Alexandre, Czar Nikita. Qual é a diferença? Os nomes apenas são diferentes, as pessoas são as mesmas. É o que tento dizer aos meus fregueses. Mas não adianta. Eles lêem os jornais, enquanto eu não tenho tempo para isso.

Ele era um homem baixo mas corpulento, cabeça calva arredondada, rosto vermelho, olhos grandes e azuis.

- Isso mesmo. Há muito tempo que venho ouvindo. Ouço os meus fregueses, os donos, das lojas vizinhas. Uma vez ouvi uma ópera sobre um camarada chamado Fígaro. Fígaro isso, Fígaro aquilo, Fígaro, Fígaro! Eu sou assim. Ouço todos os problemas dos outros, principalmente das mulheres. E como elas têm problemas! Mas pensando bem: quem não os tem? A gente pode contar nos dedos da mão os que não têm problemas. Mas ninguém se mete em tantos problemas como eu!

Ele tirou um lenço do bolso e enxugou a testa.

- Eu tenho problema de verdade. Mas há pelo menos lima, coisa boa: minha esposa já morreu. Se ela estivesse viva, as coisas seriam muito piores, pois eu teria que me preocupar também com ela sabe, o maior problema é o nosso filho, Morris.

Mudou de posição na cadeira de mármore, pouco à vontade. Tomou a enxugar a testa, como se transpirasse p todos os poros.

- Toda mãe judia quer que o seu filho seja médico ou advogado. Um dentista também pode ser, mas ser médico é muito melhor. Nós pensamos neles como em nossa velha terra, em suas carruagens, com cavalos magníficos, casacos com gola de peles, luvas de couro. Um médico... É como se fosse um rabino, entende? Um trata da alma, o outro do corpo. A gente fica sem saber quem é que cura os males dos outros mais facilmente. (O senhor é um psiquiatra, não é, como uma porção de rapazes judeus inteligentes?) Mas esse negócio de psiquiatria até que é um pouco novo. Morris é apenas um especialista em câncer. Trabalha com muitas máquinas, como se fosse uma fábrica. Tem trinta e cinco anos e ainda não se casou, pois sempre esteve ocupado demais a tratar dos outros.

Ele suspirou e correu Os Olhos pela sala branca e reluzente.

- Isto aqui parece um templo...

Baixou os olhos para o chapéu sobre os joelhos.

- Ouvi dizer que a gente pode vir aqui e o senhor fica ouvindo, durante todo o tempo que for preciso ouvir.

Bertha e eu trabalhamos muito para que Morris pudesse ir para a faculdade de medicina. Bertha também trabalhava na loja. Todo dinheiro que sobrava era depositado no banco, para Morris e a Universidade. Era um bom menino. Até na. escola os professores diziam que ele era um bom menino, um estudante dos -melhores. Nunca foi como eu, nunca disse uma palavra que não fosse certa. Não vivia gritando, como Os outros meninos. Quando era garoto, ficava na loja e levava a carne para os fregueses. Era delicado como um príncipe e algumas daquelas mulheres!.

 Eu não devia queixar-me! Se não fosse pelas mulheres, Morria não teria ido para a Universidade. Todo ano elas perguntavam: Como vai a conta bancária do Morris? Os tempos eram ruins, a gente dava crédito. Os tempos melhoravam, todo mundo pagava. É tudo gente pobre. Em Shelton Street havia uma loja que vendia de tudo e era lá que as damas ricas iam. Elas pagavam quando se lembravam disso e não era sempre que pensavam em dinheiro, coisa que nada significa para elas.

Talvez o senhor tenha todo o tempo do mundo, mas eu não tenho. Tenho que voltar para ficar junto do telefone. Sabe, tudo aconteceu quando faltavam três dias para a formatura do Morris, com aquele chapéu engraçado que eles colocam sobre a cabeça. Bertha tinha saído para comprar um vestido novo e o garoto veio no carro e atropelou-a. No hospital, ela disse para mim: ‘Não se preocupe, Barney. Você vai à formatura como se eu estivesse lá. E talvez eu vá também’. Assim, depois do funeral... Talvez não saiba, mas eu sou ortodoxo. Enterramos os nossos mortos antes do pôr-do-sol. Morris estava a mais de mil quilômetros de distância e durante dois dias não conseguiu lugar em nenhum avião. Era o período de feriados, a Páscoa. Mas que importância isso tinha? Bertha não podia mais comparecer, mas fizemos o que ela queria. Afinal, ela tinha direito a fazer um pedido, não é? E assim eu fui à Universidade e depois da formatura Morris desatou a chorar em meus braços. Depois fomos para o templo e ele disse um kadefish.

Morris queria ser um especialista em câncer. Foram mais oito anos. Eu trabalhava, ele trabalhava, os oito anos passaram. Aí eu lhe perguntei: ‘O que me diz de uma boa garota para se casar, Morris?’ Ele se limitou a sorrir, tinha muito trabalho a fazer. Não tinha consultório, foi trabalhar num hospital grande como interno. Passaram-se mais dois anos e ele entrou para a equipe do hospital, com um belo salário.

O senhor precisava conhecer Morris, o meu menino. Ele é muito dedicado, como as pessoas costumam dizer. Os olhos são como os de um profeta. E fica emocionado quando me diz: Haveremos de encontrar uma abertura, papai. Então saberemos o que provoca o câncer e, em decorrência, como curá-lo. Precisava ver os meninos que chegam ao hospital, papai. As pessoas pensam que o câncer é uma coisa que só dá nos velhos. Mas quer saber de uma coisa? Morrem mais crianças de câncer antes dos quinze anos do que em conseqüência de qualquer outra doença. Precisamos de mais dinheiro, pois o cíclotron e os isótopos custam muito caro - e precisamos encontrar a solução!

A gente chega até a pensar que ele está. fazendo tudo sozinho. O meu Morris não para nunca de trabalhar. Seu salário fica cada vez maior, mas ele doa tudo para o fundo de pesquisas sobre o câncer. Eu não poderia ficar com um dente, apesar de ele haver-me oferecido por diversas vezes. O que eu tinha na vida a não ser Morris? E fiquei o tempo todo esperando que ele encontrasse uma boa moça e tivesse filhos. Um homem precisa de um neto, era o que eu não parava de insinuar-lhe. Ele se limitava a sorrir e falava do cíclotron e da necessidade de dinheiro. Os hospitais estão sempre precisando de dinheiro. Morris diz que o que as pessoas gastam anualmente com pipocas daria para construir imensos hospitais de câncer em todo o país. Pipoca! É engraçado, não acha? A morte de um lado e do outro... pipocas. Quando a gente pensa nisso, parece que foi sempre assim, não é?.

Ele levantou a cabeça. Pensara ter ouvido um murmúrio triste de assentimento. Perguntou polidamente:

- Disse alguma coisa?

Ficou esperando. As mãos e o rosto estavam úmidos. e ele esfregou-os com um lenço.

- Não sei por que estou aqui desperdiçando seu tempo, Doutor. Todo dia deve ouvir a mesma coisa, pois é uma história bem antiga, não é? Mas nem por isso fica melhor, não?

E aí Morris completou trinta e cinco anos. Quando veio passar uns feriados em casa há cerca de um ano, observei que parecia doente, mas ele apenas sorriu. Parecia doente e estava muito magro, como se tivesse contraído tuberculose. Fiquei apavorado e perguntei se não o estavam alimentando bem no hospital. Ele disse: ‘Não, papai, estou muito bem.’ E começou a falar novamente em câncer. A gente podia pensar que não existia outra coisa no mundo. Mas continuei preocupado com Morris e então pedi a um rapaz que tomasse. conta da loja e fui ao hospital onde ele trabalhava. Eu conhecia o velho médico que era o chefe da equipe. Disse para ele: ‘Meu filho está doente. Diga-me o que ele tem, não me deixe assim sem saber.’ O doutor era um velho amigo, gostava de Morris como se fosse seu filho. Contou-me tudo.

A sala ficou em silêncio, quebrado bruscamente por soluços, que duraram bastante tempo.

- É o que eles chamam de riscos da profissão. Desculpe-me. Um homem crescido não devia chorar como um bebê. Mas o fato é que Morris estava com câncer, no cérebro. Eles nada podiam fazer, apesar de todos aqueles ciclotrons e raios X Talvez Morris tenha cometido algum erro, mas ninguém podia saber. Mas o câncer se desenvolve lentamente disseram-me eles. Talvez ele ainda viva alguns meses, talvez dure mais um ano. Procuraram confortar-me, mas o velho médico é que perdeu o controle e desatou a chorar. Eu é que tive de confortá-lo. Engraçado, não acha, já. que Morris era o meu filho?

Morris? Ele ainda está vivo. Fui visitá-lo na semana passada e disse-lhe: ‘Morris, venha para casa comigo. Você parece um esqueleto. Venha para casa com papai, Morris.’ E ele me disse: ‘Papai, será que não sabia que estou na casa de Deus?’ Foi o que ele me disse. E que podia eu responder?

Não consigo mais dormir. O telefone fica ao lado da minha cama. Na loja, não paro de olhar para o telefone. Vai tocar a qualquer dia, a qualquer minuto. Eles não sabem dizer quando. Morris continua trabalhando no hospital, como se gozasse de boa saúde. Na casa de Deus! Pode acontecer agora a qualquer minuto. Mas ele continuará trabalhando até morrer. Salvando as pessoas, apesar de toda a dor que sente! E também sabe que pode morrer a qualquer instante!.

Barney cruzou os braços sobre os joelhos e enterrou neles a cabeça, gemendo desesperado. A luz que o iluminava aumentou de intensidade. Ele olhou ao redor, aturdido.

Levantou-Se bruscamente.

- De qualquer forma, sinto-me melhor só de contar-lhe, já que é médico também. Mas agora tenho que voltar, pois talvez já tenham telefonado. Quem sabe? Sabe, essa espera é como estar sangrando por dentro. Somente um pai pode compreender. O senhor por acaso é pai? Somente um pai pode entender, vendo o seu filho sofrer, sabendo que ele vai morrer a qualquer minuto. Porque ele vive para os outros e não para si mesmo. Sabe de uma coisa? Não posso ir agora ao templo, pois receio que começarei a tremer e a gritar.

Barney hesitou. Olhou timidamente para a cortina e depois para o botão. Mas terminou aproximando-se lentamente e apertou o botão.

A cortina abriu-se imediatamente e Barney recuou, tremendo. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto e ele disse gentilmente:

- É, acho que Vosso pai sabia o que era isso. Exatamente como eu. É, acho que foi isso mesmo. Afinal, creio que não estou sozinho no meu sofrimento.

Ele pos o chapéu na cabeça e acrescentou:

- Estou vendo que vos puseram uma nova espécie de roupagem, não é? É o que eles sempre fazem.

Ele foi até a porta e virou-se para contemplar pela última vez a pessoa parada sob a luz.

- Acho que é melhor eu ir procurar o meu rabino. A loja pode esperar, o telefone também. Deus e eu temos que tratar também de um negócio.

ALMA SEIS

A Pecadora Arrependida

E, portanto lhes digo que seus pecados, por muitos que sejam, lhe serão perdoados, porque ela muito amou.

Lucas 7:47

Mary Lanska entrou silenciosamente na sala de espera, carregando suas flores. Era quase meia-noite e ela esperava que não houvesse mais ninguém ali dentro. Depositou o seu bilhete na caixa e sentou-se para esperar. A sala estava quente e agradável, naquele sábado anterior à Páscoa. Ela Olhou para as flores no vaso de porcelana e achou engraçado aquele negócio parecido com algodão que punham lá dentro para a água não derramar. Baixou a cabeça a fim de cheirar as flores. Haviam-lhe custado todas as gorjetas no restaurante durante a semana. Mas eram lindas! Ela adorava flores. Eram muito melhores que uma porção de gente. Não sabia os nomes de todas elas, mas reconheceu os narcisos, íris, lírios e margaridas. Exalavam um perfume suave, ali naquela quietude toda iluminada. Ela enlaçou as flores gentilmente e beijou um lírio. Haviam-lhe custado muito dinheiro, mas as flores eram sempre caras na Páscoa. Esperava que o Confessor, que estava na outra sala, gostasse também de flores. Eram tudo o que ela tinha para dar-lhe.

Ele devia ser um homem bom, concluiu ela. Lera a seu respeito nos jornais. Ninguém jamais o vira - e, se vira, nada contara. Mas ele era muito bondoso e nunca censurava ninguém. Tudo o que fazia era ouvir. E isso era o suficiente, mais do que suficiente. Ele a ajudaria a descobrir o que fazer. Quanto a isso, não tinha a menor dúvida.

Ela suspirou. Como seria bom voltar para casa e ir à missa da Páscoa! Mas o Padre Stephen. agora estava morto. Além disso, ele se teria zangado com ela. Não cumpria os seus deveres da Páscoa há... há quanto tempo mesmo? Dez anos! Dez longos anos! Como poderia dizer isso a um padre? Ora, àquela altura já devia estar excomungada! E tinha medo dos padres daquela cidade grande, pois eles pareciam muito seguros de si, espertos, implacáveis. O suficiente para deixar apavorada uma moça do interior como ela! Eram muito instruídos, sempre apressados, bem diferentes do Padre Stephen, calmo, vagaroso, de aparência bondosa, que sempre tinha todo o tempo do mundo para ouvir, para ajudar no que fosse preciso.

Se ela fosse agora procurar um dos padres da cidade grande, ele certamente a mandaria embora! Não que ela não o merecesse, era verdade. Ele teria toda a razão em mandá-la embora. E como ela desejaria que estivesse tudo bem, em ordem! Mas nada en sua vida estava certo desde os dezesseis anos de idade, quando a mãe morrera, o pai desaparecera e todas as crianças foram enviadas para um orfanato.

Talvez seus irmãos tivessem sido adotados por gente boa. Pelo menos era o que ela esperava. Ela, a irmã mais velha, nada tinha para lhes dar. Sempre desejara ter alguma coisa para dar, porém isso jamais lhe acontecera em toda a sua vida. Mas agora tinha ao menos aquelas flores para o Confessor.

Estava com vinte e oito anos, era cheia de corpo e bonita, cabelos louros, olhos azuis, um rosto quadrado, agradável, a pele macia e de uma cor atraente. Ela não sabia que era bonita. Zombara de Phil, quando ele lhe dissera, zombara de Francis. Francis... As lágrimas brotaram em seus Olhos e rebuscou a bolsa à procura de um lenço. A sineta tocou suavemente, ela levantou-se e levou as flores para a sala branca e vazia.

Não imaginara o que iria encontrar, mas certamente não era aquela quietude, as paredes brancas, a cortina azul tapando a alcova, a cadeira de mármore à sua espera. Ela sentou-se, receosa, agarrando-se firmemente às flores como ponto de apoio.

- Espero que haja alguém aí dentro. Eles dizem que sempre há. Suponho que seja o senhor. Mas como pode ficar aí atrás o tempo inteiro? Leu o meu bilhete?

Não houve o menor som. Era como uma igreja quando está deserta. Mas Mary sentiu imediatamente que não estava Sozinha. Sorriu, um pouco trêmula.

- Eu não deveria estar aqui. Não uma moça como eu! O senhor não vai querer que eu continue aqui depois que lhe contar tudo. Meu nome é Mary Lanska. As vezes sinto que deveria mudá-lo para Maggle ou algo parecido. uma vergonha terrível que eu me chame Mary também!

Uma lágrima grande e quente escorreu-lhe pelo rosto. Ela arquejou.

- Tudo começou depois que mamãe morreu e meus irmãos menores foram para o orfanato. Eu tinha então dezesseis anos e era um pouco independente, parecendo ter dezoito. Mamãe era uma boa cozinheira e ensinara-me a cuidar da casa. Assim consegui arrumar um emprego como doméstica. Isso aconteceu na mesma cidadezinha em que nasci, a quase cento e cinqüenta quilômetros daqui. Fui trabalhar na casa de uma família rica, chamada Malion. O Sr. Mallon era banqueiro e dono de quase toda a cidade. Da maneira como eu entendo as coisas, ele não era um homem bom. Não estou querendo dizer que ele bebesse ou saísse atrás de mulheres - afinal, já passara dos cinqüenta anos. Também não batia na esposa, como papai costumava bater em mamãe, nem surrava Phil. Mas acho que era porque Phil, seu filho, já tinha dezenove anos e era um bocado grande. Havia quatro moças na família, mas Phil era o único rapaz. Era também a única pessoa decente de toda a família. Ainda hoje não tenho a menor dúvida quanto a isso!

Ela ergueu o queixo numa atitude de desafio e firmeza.

- Não, o Sr. Mallon não era um homem bom! Era mesquinho e nunca sorria, a não ser no banco, quando estava tratando com um bom cliente. Ouvi dizer que também fez muita coisa pela sua igreja. Mas não se pode comprar Deus, não é? A Irmã Benedict disse que Deus era a única coisa que não se podia comprar neste mundo. Ela estava absolutamente certa!

Mas Phil não era um tipo muito forte. Por isso, não foi para a escola primária como todas as crianças, tendo um preceptor que lhe ensinava tudo em casa. Depois entrou para o único ginásio particular da nossa cidade. E então surgiu o momento de ele ir para a Universidade. Como a velha Sra. Mallon chorou! A gente podia até pensar que Phil estava seguindo para o seu funeral. Eu também chorei, quando fiquei sozinha, à noite. O que iria fazer sem Phil?.

É que Phil e eu nos amávamos. Nós nos amávamos de verdade. E ninguém vai dizer-me que não!.

Ela sacudiu a cabeça vigorosamente, antes de continuar.

- Eu o amei a partir do momento em que o vi. Ele era lindo. Alto e magro olhos pretos e brilhantes como os de uma garota, cabelos negros encaracolados. E como ele sabia falar! Fazia com que estrelas cintilassem no coração da gente. Quando ele me beijou pela primeira vez, poucos dias depois de eu começar a trabalhar em sua casa, pensei que fosse morrer. Foi o que eu realmente pensei!

As lágrimas agora escorriam-lhe mais depressa pelo rosto, sem que ela sequer as sentisse.

- Ninguém no mundo jamais me beijara antes, exceto mamãe, quando fui crismada. Nenhum rapaz, nenhum homem... Ninguém, a não ser mamãe e Phil. Pensei de fato que fosse morrer. Já lera bastante nas revistas românticas e de cinema sobre o amor e sabia de tudo a respeito, embora não compreendesse muito bem algumas das palavras complicadas que publicavam. Mas o beijo de Phil foi melhor do quê eu jamais sonhara! É isso mesmo, foi como um sonho.

Ela baixou a voz subitamente.

- Acho agora que estava tudo errado. Mas é que ninguém jamais me contara coisa alguma. Mamãe tinha muitos filhos para tomar conta e nunca teve tempo para explicar-me a vida. Basta dizer que eu era uma moça de dezesseis anos, mas que parecia ter dezoito, e nem mesmo sabia como uma mulher fazia para ter um filho. Sinceramente, eu não sabia. Também nunca tinha pensado nisso. Isso mostra como eu era estúpida, com tantas crianças em nossa casa! Mas a verdade é que jamais pensei no assunto.

Phil começou a subir para o meu quarto depois que todo mundo estava deitado e era como um sonho. Eu me sentia muito feliz. Acho que era isso mesmo o que acontecia - eu era feliz. Nunca tinha sido feliz antes. Na cidadezinha onde eu morava não se mantinham as crianças na escola até ficarem crescidas, como se faz agora. Especialmente crianças como nós, muito pobres. Eu parara de estudar aos treze anos, pois mamãe precisava de minha ajuda em casa. Talvez tenha sido por isso que tudo aconteceu. Lá estava Phil, as coisas bonitas que ele falava, eu era feliz, eu tinha amor. Algumas vezes cheguei a pensar que ia explodir de tanta felicidade!.

Mas, depois de algum tempo, tive a sensação de que as coisas que fazíamos não estavam muito certas. Por isso parei de ir confessar-me. De qualquer forma, o Padre Stephen já estava morto nessa ocasião. Eu não podia procurar o novo padre e simplesmente dizer-lhe que achava estar fazendo uma coisa errada, contando-lhe tudo. Tinha medo de que ele me dissesse para deixar de fazer aquelas ‘ coisas, o que acabaria com a minha felicidade. Não podia viver sem essa felicidade, não podia viver sem Phil, sem senti-lo acariciando meus cabelos no travesseiro, dizendo-me que era linda, que todo o seu amor me pertencia e que jamais seria de mais ninguém. E tenho certeza de que ele falava a sério! Isso mesmo, estou absolutamente convencida de que ele me amava. Iríamos casar quando ele completasse vinte e um anos, se libertasse do jugo do pai e arrumasse um emprego. Eu dizia para ele: ‘Seu pai não vai permitir que a gente se case.’ Ele ria e dizia: ‘E quem se importa com Isso? Quando chegar a hora, a permissão dele não terá a menor importância. Mas por enquanto tenho apenas dezenove anos e não posso casar-me sem a permissão dele. Portanto, até chegar o momento vamos esquecer tudo o mais que não seja nós dois.’ Ele estava certo, como sempre. Aquela era a única maneira de agir.

Ela fez uma pausa. Os olhos azuis que olhavam para a cortina se arregalaram. Ela encolheu-se na cadeira de mármore.

- Oh! Talvez o senhor seja um padre! Não quer que eu vá embora depois do que acabei de contar? Devo ir?

A luz banhou-a com um brilho redobrado. Ela ficou ouvindo atentamente. Nenhuma voz lhe respondeu, mas teve subitamente a certeza de que poderia ficar. Suspirou repetidas vezes e murmurou:

- Está certo. Muito obrigada.

Ela contemplou as flores em seus joelhos, viçosas e perfumadas, e sorriu tristemente.

- E então Phil teve que ir para a Universidade. Antes de partir, ele me disse: Não me escreva. Se o fizer, terei que responder e pode ser que alguém descubra. Lembre-se apenas de que eu a amo e estarei pensando em você em todos os minutos que passar longe daqui. Ele tinha toda a razão, é claro. Assim, eu passava as noites sozinha, sonhando com ele. Queria também rezar por ele, mas tinha medo de que Deus se sentisse ofendido. Era que eu estava começando a ficar com medo d’Ele. Acho que é assim que a gente se sente quando sabe que está fazendo alguma coisa errada. Nessa OCasiãO eu já sabia que o meu comportamento estava inteiramente errado. Escrevera para a mulher do jornal que dava Conselhos, sem dizer quem eu era, assinando apenas Polly. Ela respondera pelo jornal, dizendo que eu devia deixar o emprego imediatamente e mandando-.m procuras um parente, uma amiga íntima ou o padre. Foi isso o que ela recomendou. Mas o problema é que eu não tinha parentes e nenhuma amiga íntima - e se fosse procurar o padre, ele diria que nunca mais visse Phil e isso eu não poderia suportar. Eu o amava, ele era tudo o que eu tinha!

Pensei que ele viesse para casa no Dia de Ação de Graças. Mas havia um jogo de futebol importante e toda a família foi para a cidade onde ficava a Universidade, a fim de visitar Phil e assistir ao jogo. O senhor não vai acreditar, mas a verdade é que ele estava agora jogando futebol. A família voltou e fiquei ouvindo o que diziam. A mãe e as irmãs não se cansavam de comentar: ‘Mas que coisa maravilhosa que aconteceu com o nosso querido Phil!’ As irmãs eram todas mais velhas do que eu, tinham uma porção de namorados e uma estava até noiva. Já não era sem tempo, aliás, pois era a mais velha e já estava com vinte e seis anos. Casou-se com um dos funcionários do banco.

Bom, mas o Natal estava-se aproximando e Phil certamente voltaria. Só que ele não veio. Seria de se esperar que a família ficasse furiosa, não é? Mas não foi o que aconteceu. Parece que ele conhecera o filho de um homem importante de Filadélfia e fora convidado para passar os feriados em sua casa. O tal rapaz era o melhor amigo de Phill. O velho Mailon inchou de orgulho e comentou que o filho estava começando a abrir caminho na vida por Conta própria. A mãe chorou um pouco, mas as meninas pularam de alegria como se tivessem recebido braceletes de diamantes ou coisa parecida.

Foi então que senti no peito uma dor muito grande. Não queria passar. Doía o tempo todo, dia e noite. Mamãe morrera do coração e por isso fui procurar um médico. Ele cobrou-me cinco dólares - e eu só ganhava dez por semana! Disse que eu não tinha nada no coração, deu um beliscão leve em meu rosto e brincou: ‘Está tudo na sua imaginação, minha jovem. É algum rapaz, não é? Pois volte para junto de sua mãe e procure esquecer. Não aprovo um namoro desses na sua idade. Tem dezessete anos, não é? Ainda está muito moça. Saia com outros rapazes, divirta-se, dance bastante, use suas roupas bonitas e continue por inala algum tempo junto de seu pai e de sua mãe.’

É engraçado como ele compreendeu logo o que eu estava sentindo! Mas o fato é que a dor não passou. Era como se algo corroesse o meu coração durante todo o tempo. Já teve alguma dor assim, de amar demais uma pessoa? Talvez um amigo, sua mãe ou então seu pai? Já desejou ver desesperadamente a pessoa querida, sem poder? Foi exatamente Isso o que aconteceu comigo. Phil também não veio para casa nas férias da primavera. Só em junho é que voltou, depois de nove longos meses.

Mas no instante em que o vi, compreendi que ele ainda me amava e que isso era tudo o que importava. Ele subiu para o meu quarto logo na primeira noite em que chegou e foi como se jamais se tivesse afastado. Durante todo o tempo em que esteve em casa, subia à noite para o meu quarto, sempre que era possível. Ganhara corpo e já não era mais um rapaz, era um homem de vinte anos. Eu tinha muito orgulho dele e sentia-me imensamente feliz. Até o ar desprendia centelhas com a sua presença! E agora tínhamos que esperar apenas mais um ano, até que ele pudesse casar-se comigo.

Mary fez uma pausa e desatou a chorar, o rosto escondido no lenço. Passou-se muito tempo antes que conseguisse parar. Quando tornou a levantar o rosto, estava vermelho e inchado. Ela olhou furtivamente para o seu relógio barato. Já era uma e meia da madrugada, estavam no domingo de Páscoa.

- Oh, meu Deus!

Ela ajeitou as flores, pensativa, antes de continuar.

- O rapaz que Phil conhecera na Universidade veio para casa com ele no verão. Phil saía para todo canto com ele, mostrando-lhe a cidade, como comentavam as irmãs. A irmã mais moça estava de olho nele, só que ela não era nada bonita. Parecia uma galinha depenada! Ela costumava olhar para os meus cabelos e dizer que eu os pintara para ficarem mais louros. Ora, eu nunca pintei os cabelos em toda a minha vida! Um dia a mãe agarrou-me e examinou as raízes dos meus cabelos. Era como se eu não fosse humana, como se eu fosse apenas um objeto e ela pudesse fazer comigo o que bem desejasse. Tive a maior vontade de dar-lhe um pontapé. Mas, se o fizesse, não mais poderia continuar ali. Talvez então descobrissem o que havia entre mim e Phil e não o deixassem mais procurar-me.

Aquele segundo verão não foi igual ao primeiro. Phil estava sempre saindo de casa, era a própria família que insistia. Em agosto ele foi viajar no iate do pai do seu amigo. E, pelo jeito como a família reagiu, a gente podia até pensar que ele acabara de ser eleito Presidente. Antes de ir, ele subiu novamente ao meu quarto e aquela última noite foi Como no início, ele não se cansou de sussurrar em meu ouvido o quanto me amava. Deu-me também o primeiro presente que ganhei na vida, o mais lindo estojo de pó-de-arroz do mundo. Aposto que custou seis dólares, talvez até mais! Parecia ser de curo e prata. Até hoje eu o guardo comigo!

Phil também Pão veio para casa no Dia de Ação de Graças daquele ano. Em vez disso, toda a sua estúpida família foi convidada a ir a Filadélfia e nunca vi tanta confusão. Todo mundo ria, gritava, empurravam-se uns aos outros. Eles passaram Natal em Filadélfia. Phil não voltou na primavera e também não apareceu em junho. A família vivia sussurrando entre si, mas eu não conseguia ouvir o que eles diziam. Phil voltou em julho, para passar apenas quatro semanas. Eu estava então com dezoito anos e ele com vinte e um, podíamos casar.

O lenço estava todo molhado e inútil, por isso Mary deixou que as lágrimas escorressem livremente, derramando-se pelas flores, pelo casacão de inverno barato, pelo vestido azul-escuro muito bem passado.

- Aquelas quatro semanas também foram como no princípio. E lhe disse: Agora já podemos casar, Phil. Mas ele me deu um beijo na boca e pediu: Tenha um pouco de paciência. E eu tive. E foi então que, ao terminar aquelas quatro semanas, apareceu nos jornais a notícia do seu noivado com a irmã do rapaz de Filadélfia.

Toda cor desapareceu subitamente do rosto de Mary, à lembrança daquela sua agonia antiga.

- Pensei que eu ia perder o juízo. Foi quase isso o que aconteceu. Não podia de jeito nenhum trabalhar. Disse que estava doente e subi para o meu quarto, estendendo-me na cama. Talvez eu tenha desmaiado, talvez tenha dormido, não sei. Ao acordar, disse para mim mesma: Graças a Deus que foi apenas um pesadelo! Só que não era. A certeza voltou ao meu pensamento, como uma faca se enterrando em meu coração. Pensei que ia morrer e fiquei apavorada, pensando em Deus e em como Ele devia estar zangado comigo. Aquele era o meu castigo, eu certamente ia acabar no inferno. Ninguém mais me queria, nem Phil, nem Deus... Ninguém!

Ela ainda podia ver a cortina, imóvel, por entre as suas lágrimas.

- Passei mal o dia inteiro, achando que ia morrer. Não consegui descer para providenciar o jantar e ouvi a velha resmungando. Levantei a cabeça e tive que sair correndo para o banheiro, a fim de vomitar. Phil não estava em casa. Esperei e esperei, anoiteceu e a casa se encheu de convidados. Podia ouvir as pessoas rindo e gritando, ouvi também a voz de Phil. Sentei na cama e disse para mim mesma que era tudo um engano. Se fosse verdade e o velho estivesse obrigando Phil a fazer aquilo, então poderíamos fugir juntos. Eu tinha economizado um pouco de dinheiro e Phil recebia uma boa mesada. Eu tinha apenas que esperar, ele certamente viria buscar-me.

E por volta de uma hora da madrugada Phil subiu para o meu quarto, de pijama, como sempre. Eu me lancei em seus braços e quase perdi o juízo novamente. Ele não cessava de pôr a mão em minha boca e depois passou a tentar fechá-la com beijos. Não parava de dizer-me: ‘Quieta, por favor, fique quieta. Vai dar tudo certo, você vai ver.’ Eu estava-me sentindo mal e muito cansada, mas subitamente fiquei feliz outra vez. Phil cuidaria de tudo. Eu acabara de adormecer de tão cansada que estava, quando a luz se acendeu e o velho apareceu na porta.

Mary estremeceu, encolheu-se na cadeira, apertou os olhos.

- Foi terrível! Puxei o lençol para cobrir-me e Phil saltou da cama, vestindo o pijama. O velho parecia que ia de repente pegar fogo. Não tirava os olhos de mim. Nunca ninguém me olhara daquele jeito! E ele disse: A mulher do diabo foi apanhada em adultério. Sua vagabunda nojenta, em tempos melhores teria sido apedrejada até a morte. Saia desta casa imediatamente, sua criatura repugnante!

Phil não parava de dizer: ‘Por favor, papai, está tudo certo, papai. Não grite tanto, papai. Assim vai acordar mamãe e as meninas e trazê-las até aqui em cima. Por favor, papai! Está tudo certo’.

Fiquei com medo de que o velho fosse espancá-lo. Mas ele não o fez. Continuou a fitar-me, como se me odiasse mortalmente, e disse: ‘Meu pobre filho foi seduzido por uma miserável peçonhenta, que se atreveu a dormir na mesma casa em que dormem moças inocentes. Meu pobre filho... Vá para o seu quarto, Phil!’

Quase ri. Nunca tive tamanha vontade de rir em toda a minha vida, mas naquele momento eu estava era chorando. Phil disse: ‘Não pode expulsá-la de casa agora, papai. Já é quase de manhã. O que as pessoas vão dizer se a virem sair agora?’ O velho acabou assentindo e disse para Phil: ‘Você tem razão’. Depois virou-se para mim e falou:

‘Mas você saia da minha casa antes que minhas filhas se levantem’.

Mary soluçou, os cabelos louros caindo-lhe pelo rosto.

- Sabe o que eu disse para ele? Sr. Mailon as minhas economias estão guardadas em seu banco. São trezentos dólares. E ele me disse: Esteja lá no instante mesmo em que o banco abrir. E se ainda estiver nesta cidade às cinco horas da tarde, mandarei a polícia atrás de você. Tenho certeza de que ele estava falando a sério. Foi então que eu disse para Phil, muito pálido e os lábios roxos: Estarei na estação de ônibus às quatro horas da tarde. Tentei sorrir- lhe, para que ele não se sentisse tão mal assim.

Mary ficou em silêncio por um momento, olhando para a cortina, sentindo uma vaga apreensão.

- Está-me ouvindo, não é? Posso sentir que continua a ouvir-me. E olhe que já passa de três e meia da madrugada, domingo de Páscoa. É quando Nosso Senhor ressuscita de entre os mortos. Oh, eu nem mesmo deveria falar n’Ele. Uma mulher como eu não tem esse direito. Ele iria repelir-me, não é mesmo? Como.., como... Foi uma história que eu II na Bíblia. Não, Ele não repeliu a mulher. Gostaria de lembrar-me de toda a história.

Bom, tirei todo o meu dinheiro do banco, vesti o meu melhor vestido, com um casaquinho branco e chapéu, e fui com a minha maleta para a estação rodoviária. Estava novamente feliz. Phil iria encontrar-se comigo ali às quatro horas e às cinco deixaríamos a cidade. Tomei um café bem reforçado, mas fiquei enjoada e tive que ir correndo ao banheiro das mulheres, para vomitar. Apesar de tudo, eu estava feliz. Passei o dia inteiro sentada na estação rodoviária, lendo uma revista. Aí eram quatro horas da tarde. Fui até a porta para esperar Phil. Mas os minutos foram passando. Quatro e meia, quinze para as cinco... Os passageiros do ônibus para esta cidade começaram a embarcar. Phil não aparecia. Corri para o telefone. Quem atendeu foi a mãe dele. Embora eu procurasse disfarçar minha voz, ela reconheceu-a e gritou que ia chamar a polícia, batendo com o telefone. Concluí que Phil não poderia vir. Talvez o tivessem trancado em seu quarto e não o deixassem sair. Por isso, peguei o ônibus e vim para esta cidade. Aluguei um quarto num hotel barato e depois escrevi para Phil, informando onde eu estava.

Mas eles devem ter interceptado todas as minhas cartas. Ele nunca me escreveu, nem veio procurar-me. Depois de um mês, tive certeza de que não tornaria a vê-lo. Arrumei um bom emprego como garçonete. Isso tudo aconteceu há dez anos.

Ela recostou-se na cadeira, exausta.

- Talvez não tivesse acabado bem, se não fosse.

Dois meses depois, descobri que ia ter um filho. Eu não podia acreditar! Não fazia a menor idéia de como acontecera, de tão estúpida que eu era. O bebê de Phil... Quando o médico me disse que ia ter um filho e me perguntou o nome, eu disse imediatamente: Sra. Mailon. Foi só então que compreendi plenamente o que acontecera. Acho que nem voltei para o hotelzinho barato em que morava na ocasião.

Fiquei pensando na minha vida. Deus não me queria. Phil não poderia vir buscar-me. Eu não queria magoá-lo. Tinha certeza de que, se contasse seu pai acabaria por matá-lo. Cheguei a pensar que o melhor mesmo era matar-me. Foi então que arrumei o emprego em que estou até hoje e disse a todo mundo que era a Sra. Mailon e meu marido estava no Exército. E no coração eu era de fato a Sra. Mailon, durante todo o tempo. E até hoje é assim que eles me conhecem. Tive meu bebê, um menino lindo. Dei-lhe o nome do pai, Phil. O pessoal do hospital punha no correio as cartas que eu escrevia para o Sr. Phil Mailon, no Exército. Mas eu tinha todo o cuidado para não pôr no envelope o endereço de devolução. A esta altura eu já me estava tornando uma moça esperta. Paguei todas as despesas com o meu próprio dinheiro.

Levei meu filho para o campo, onde todas as crianças deveriam viver, em meio à relva, às árvores, às flores e ao fresco. Providenciei tudo para ele, que é hoje um garoto maravilhoso. Tudo estaria muito bem se há um ano eu não tivesse conhecido Francis Lewis. Ele é um jovem fazendeiro, possui uma fazenda bem grande. Mora sozinho desde que seu pai morreu, há uns dois anos. Foi comer no restaurante. Acabara de trazer o gado para a cidade. Simpatizamos imediatamente um com o outro. Ele voltou várias vezes e acabou levando-me a passear.

Mary estremeceu.

- E agora é que o senhor vai realmente odiar-me. Contei a Francis que era uma jovem viúva de militar, com um filhinho. Ele acreditou. A princípio, o caso não tinha grande importância, mas logo descobri que pensava nele cada vez mais. Ele é um homem bom e generoso. Não sinto por ele a mesma coisa que sentia pelo pobre Phil, que não pôde vir buscar-me e até hoje não sabe que tem um filho com quase dez anos. Imagine só! Ele não sabe que tem um filho! Sinto to muita saudade de Phil.

E então Francis pediu-me em casamento. Pensei em ser uma esposa, em viver em segurança na sua linda fazenda, em ter alguém que novamente cuidasse de mim, em como seria maravilhoso para o pequeno Phil se vivêssemos todos juntos. Mas aí eu achei que seria uma trapaça de minha parte e que tinha a obrigação de contar tudo a Francis. Quando fizesse, estaria tudo acabado entre nós, Mas, quer saber de uma coisa? Não foi absolutamente isso o que aconteceu! Francis não é desse tipo de homem, já está inclusive com trinta e dois anos. Ele apenas ficou com raiva de Phil. - não o menino, o meu Phil. E disse-me: ‘Isso não faz a menor diferença, Mary. Eu me casarei com você como se de fato fosse uma jovem viúva com um filho. Manteremos, porém, a verdade em segredo, pelo bem do menino e também o nosso.’ Francis é desse tipo de homem.

O rosto jovem iluminou-se de repente e ela sorriu - mas o sorriso logo desapareceu.

- Mas como eu posso fazer tal coisa a Francis? Ele merece uma moça melhor do que eu, boa e bonita. Nós teríamos que nos casar na Igreja. Assim eu seria obrigada a confessar. E O que dirá o padre? Ele dirá a mesma coisa que Deus diria e Que o velho Mallon me disse. Por isso, estou-me esquivando, ainda não aceitei o anel de noivado e resolvi vir até aqui.

Ela ficou esperando. A sala estava resplandecendo de luz, lá fora começava a amanhecer. Mary gritou, desesperada:

- Vamos, diga-me que devo ser realmente forte e mandar Francis embora, diga-me que Deus não mais o vai querer, se casar comigo. Vamos, diga-me! Sinto agora que amo muito a Francis, mas não posso fazer-lhe uma coisa dessas!

Não houve o menor ruído. Mary levantou-se, hesitante. Estendeu as flores na direção da cortina.

- Trouxe-lhe estas flores, Elas são lindas e há inclusive alguns lírios brancos. Vamos, pegue-as!

Ela cambaleou até a cortina, leu o que estava escrito na placa de bronze e depois apertou o botão, o corpo todo a tremer. A cortina abriu-se e ela recuou, deixando escapar um grito agudo e aterrorizado.

Olhou para o homem que estava à sua frente e tremeu mais ainda, incontrolavelmente. A luz pareceu crescer de intensidade, tornar-se mais triunfante. Mary baixou a cabeça e sussurrou:

- Aceitareis minhas flores? São tudo o que tenho para Vos dar. Talvez, tendo em vista todos os meus pecados, fosse melhor que eu desse o dinheiro para uma obra de caridade ou algo assim. Mas quero que fiqueis com estas flores. Por favor, aceitai...

Cega pelas lágrimas, ela novamente avançou, aproximando-se dele cada vez mais. Ela pôs as flores a seu lado, gentilmente.

- Vós me ouvistes.

Empertigou-se bruscamente, chorando.

- Mas Vós sempre ouvis, não é? Olhai, já estamos na manhã da Páscoa. O dia já raiou lá fora. E Vós... Vós...

Ela ajoelhou-se e cruzou as mãos.

- Lembro-me agora da história. A mulher não foi repelida. Ela amou demais. Lembro-me de tudo agora. É verdade, eu amei muito e agora estou amando novamente.

Quereis que eu fique com Francis e com o meu filho, não é? Exatamente, é isso o que estais querendo! Oh, eu serei muito boa para os dois!.

Ela engoliu as lágrimas e acrescentou:

- Houve outra Mary e o homem que ela pensava ser o jardineiro... E agora sei que nenhum padre jamais poderá repelir-me! Tenho certeza de que nenhum será capaz disso!

Ela baixou a cabeça, exausta, e comprimiu-a contra os pés do homem, adormecendo par um momento.

Os sinos das igrejas começaram a repicar.

- O Senhor ressuscitou! O Senhor ressuscitou!

Mary chorou e a fragrância das flores dominou a sala. Ele velava por ela, por sua segurança, enquanto os cabelos dourados de Mary se esparramavam sobre Seus pés. E juntos ficaram ali em vigília.

ALMA SETE

O Traidor

Que tudo te atraiçoe, a ti que me triste.

Francis Thompson: A Besta do Paraíso

- Só espero que o senhor não seja um psiquiatra - disse o jovem com frieza, olhando para a cortina, numa tarde quente de fim da primavera. - É que eu fiz análise por mais de um ano e agora sei muito bem, como já sabia antes de começar, que estou na profissão errada, sou um desajustado, sou uma cavilha redonda num buraco quadrado. Enquanto eu permanecer em minha atual profissão, serei emocionalmente perturbado e desequilibrado e continuarei a ter as minhas dores de cabeça psicossomáticas. E asseguro-lhe que elas são realmente terríveis, apesar de não haver a menor base de ordem física.

Ele riu desdenhosamente.

- Portanto, se for um psiquiatra, não irei tomar o seu tempo. Francamente, estou um pouco cansado do jargão. À luz do que já aprendi, o jargão parece-me pueril, embora, é claro, eu nunca o tenha dito ao meu...

Ele fez uma pausa brusca e logo depois indagou:

- Afinal, o senhor é ou não um psiquiatra?

O silêncio da sala branca envolveu-o. Ele ficou esperando. Depois assentiu, aliviado:

- Fica contente por saber que não é psiquiatra. Deve ser então um clínico-geral. Ou então um conselheiro matrimonial. Só que eu não sou casado, apesar de já estar com trinta e oito anos. A moça de quem estava noivo... Tivemos uma discussão violenta e rompemos o noivado. As Idéias dela, para dizer o mínimo, eram por demais infantis. Ë claro que há homens em minha profissão que certamente discordam de mim, especialmente os que seguem a orientação romana. Mas a maioria dos jovens na minha profissão já compreendeu que há muito que passamos além da era do jardim de infância.

Ele contemplou as mãos muito bem tratadas, a calça azul-escuro, os sapatos da melhor qualidade, tirou um cisco do impecável paletó esporte azul. Distraidamente examinou um novo calo que surgira na palma da mão direita. Andara Jogando golfe demais ultimamente. Mas é que os campos estavam maravilhosos naquele ano, o clube muito mais requintado, as pessoas mais gentis e cultas, com um comportamento melhor. Isso, é claro, era o resultado da presença dos sócios mais novos e mais jovens. Ele era bastante popular entre eles e via-os com freqüência - e não apenas no clube. A dizer a verdade, ele nunca fora tão popular em toda a sua vida. Era um indício evidente de sua personalidade bem formada o fato de as pessoas gostarem dele; mostrava pelo menos que não era nenhum neurótico. O próprio Dr. Bergson assegurara-lhe isso, chegando mesmo a dizer-lhe:

- Poderia sair-se muito melhor como um executivo ou consultor de relações humanas. Estou convencido de que possui todas as condições para tal. Especialmente para um trabalho de contato pessoal. Você se relaciona facilmente com as pessoas e toma conhecimento dos seus problemas pessoais. Há uma demanda muito grande para esse tipo de trabalho especializado.

O jovem levou a mão à testa, estava sentindo outra daquelas malditas dores de cabeça. Era alto e esbelto, com um rosto longo, intenso e ardente, que mantinha sob permanente controle. Conhecia a sua tendência secreta ao ardor e à paixão e a todas as outras emoções incontroláveis. Uma ou duas vezes, não mais do que isso esquecera-se de manter a voz sob controle no clube, quando algum tolo lhe fizera uma observação zombeteira, mencionando a falta de senso de medidas que impera atualmente. O coração do jovem disparara subitamente, seu rosto frio ficara corado, ele fora culpado - era esta exatamente a palavra, culpado! - de levantar a voz com uma veemência acima do necessário. Os sócios mais velhos, no salão de repouso, assumiram uma expressão perturbada e grave, alguns chegaram a sacudir a cabeça. Os mais jovens, porém, seus amigos íntimos, ficaram desconcertados e embaraçados, apressando-se a mudar de assunto, como que a poupar-lhe a vergonha e cobrir a sua gafe social. Sua gafe social...

- O senhor disse alguma coisa? - perguntou ele, subitamente consciente de uma mudança na atmosfera da sala imersa em silêncio. - Será que disse mesmo gafe social, em tom de dúvida?

Ninguém respondeu, mas ele ficou convencido de que ouvira mesmo alguém pronunciar as palavras. E, como se tivesse pronunciado em voz alta os seus pensamentos anteriores, ele disse:

- É claro que, de certa forma, fui culpado no clube de um faux paz. Aquele não é o lugar apropriado para uma discussão. Só devo travá-las em meu gabinete - ou no meu púlpito. Porque sou na verdade um ministro de Deus e tenho não apenas uma das maiores como também uma das mais cobiçadas paróquias desta cidade. Sou o Reverendo Anson Carr. Portanto, se o senhor é um sacerdote, deve estar vendo que temos muita coisa em comum.

Ele riu, com uma tranqüilidade cuidadosamente estudada.

Era estranha e certamente apenas imaginária a impressão que teve de ouvir também uma risada gentil em resposta à sua, dando-lhe uma sensação de fraternidade. Mas agora pôde rir com uma serenidade genuína, como se estivesse na companhia de um colega mais velho, ao qual podia falar francamente.

- Acertei em vir. Já desconfiava de que o senhor era do hábito, como minha avó costumava dizer. Em minha congregação há uma certa Sra. Merrill Sloane, com quem eu não simpatizava muito há dois anos por causa dos seus defeitos de personalidade. Mas subitamente operou-se nela uma mudança notável e achei que seria interessante saber o que a motivara. Ela contou-me que viera até aqui procurá-lo Depois, cerca de um mês atrás, ela disse: Vá também, Reverendo Carr. É exatamente do que está precisando. Devo admitir que fiquei perturbado, pois não tinha consciência de estar precisando de alguma coisa. Ou pelo menos de nada que fosse patente para a minha congregação. Mas se uma mulher outrora tão egocêntrica quanto a Sra. Sloane percebera a minha necessidade, então esta necessidade devia ser mais do que evidente. Espero que não fique ofendido, mas este é precisamente o motivo pelo qual aqui estou: descobri como posso esconder os... meus pensamentos da congregação.

Ele fez uma pausa. A dor de cabeça estava cada vez pior. Tirou uma linda caixinha laqueada do bolso, pegou uma pílula e a pôs na ponta da língua, engolindo-a com alguma dificuldade.

- Embora eu não vá ter a minha congregação por muito tempo mais. Não tenho mais tal direito, pois sequei por completo. Estou seco como a morte, seco até os ossos.

Como Davi, grito por meu Deus das mais tenebrosas profundezas e não recebo resposta alguma. Terei perdido a minha fé? Não sei, mas é possível. É como se há anos eu estivesse trabalhando num deserto, escavando ossos ressequidos e exibindo-os como formas vivas. Um deserto, ossos ressequidos.. Um ministro não tem direito a uma igreja e à sua congregação quando experimenta tal secura, não acha? Ele constitui-se desse jeito numa fraude. Por isso, estou pensando a sério no assunto. Pretendo renunciar em janeiro, aceitando outro tipo qualquer de ocupação. Dinheiro não é problema. Possuo uma renda certa dos bens que meu pai me deixou e mamãe também tem a sua renda própria. Ela está atualmente morando na Flórida, com a minha irmã.

Ele correu os olhos pela sala, a dor expressa em seus olhos desolados.

- É tudo muito estranho. Minha família era bastante piedosa, apesar de meu pai ser um próspero homem de negócios com muitos amigos e sócio de vários clubes - os mesmos clubes aos quais agora pertenço. Todas as tardes, ao cair da noite, nós rezávamos, bem como antes das refeições.

Papai costumava estimular-nos na leitura da Bíblia e nas orações. Acho que ele era um homem bastante antiquado.

Quando lhe disse que desejava ser ministro de Deus e não o suceder em seu negócio, ele ficou profundamente emocionado à maneira dos vitorianos. Não me senti embaraçado

diante de sua explosão, mas, afinal, eu tinha apenas dezessete anos na ocasião. A gente não espera que homens com amor-próprio e consciência do valor pessoal desatem a chorar de alegria. Creio que hoje em dia controlamos melhor as nossas emoções, não acha? Se eu fosse meu pai, por exemplo, e um filho viesse dizer-me que desejava tornar-se ministro de Deus, eu lhe diria: Deve pensar bastante no caso, analisando cuidadosamente todas as vantagens e desvantagens.

Acho que devemos consultar um técnico em tese vocacional e depois um psiquiatra, antes de você empenhar a sua vida em qualquer profissão que seja.

Ele esperou, mas ninguém respondeu. E então algo se espalhou por dentro dele, com o ímpeto e o estrondo de urna onda. Ele procurou contê-lo, mas a força era irresistível e ele acabou por gritar, em meio ao nevoeiro que o dominava:

- Profissão! Eu chamei de profissão! Mas isso é uma vocação! Não é mesmo uma vocação? Era o que meu pai dizia: uma vocação divina!

Ele esfregou os olhos com força.

- Oh, meu Deus! E pensar que houve um tempo em que as pessoas achavam que Deus as chamava! Agora analisamos cuidadosamente o impulso que sentimos para o sacerdócio, procurando saber antes de mais nada se estamos bem preparados psicologicamente, se somos ajustados devidamente para pregar o Evangelho. Somos bons administradores? Gostamos das pessoas? Será que as pessoas, instintivamente, gostam de nós? Conhecemos a fundo a ética social? Os jovens naturalmente gravitam ao nosso redor? Somos hábeis homens de negócios? As mulheres gostam de nós? Somos liberais em nossas idéias? Temos uma boa voz, que inspire confiança? Podemos enfrentar os homens em seu próprio terreno com serenidade e confiança, quer seja num campo de golfe, num escritório de corretagem, no clube, na saia de estar da família, no salão paroquial, nas atividades comunitárias, nas escolas, no teatro, nos bons restaurantes? Em suma: seremos bons sujeitos, aceitos por todos, sempre bem-vindos em toda parte? Somos entusiastas dos esportes e deles participamos ativamente? Somos homens abertos, com interesses diversificados? Estamos familiarizados com a televisão? Estamos no conselho consultivo desta e daquela instituição? Somos, no final das contas, membros ativos da comunidade?

Ele levantou-se, olhando ao redor com uma expressão de desespero.

- Será que deveremos ser tudo menos ministros do Evangelho de Deus?

As paredes brancas refletiam as suas perguntas. Ele fitou-as e encolheu-se. Procurou a cadeira de mármore, às cegas, tornando a sentar-se. Estava ofegante. Olhou para a cortina e disse:

- Mas o senhor provavelmente sabe de tudo isso. Como sacerdote que é. não resta dúvida de que conhece o assunto. Sabe muito bem quais os problemas com que se defrontam atualmente os padres, os ministros, todos os sacerdotes.

A sala pareceu ficar muito fria, a luz era glacial.

- Não é minha culpa, não é minha culpa... É exatamente isso o que eles querem, é exatamente o que lhes dou. E é. exatamente isso o que me está matando:

Fez uma pausa e repetiu num gemido:

- É exatamente isso o que me está matando... Ele esperou. Como não houvesse resposta, disse asperamente:

O senhor provavelmente é um sacerdote muito bem-sucedido. Seus paroquianos certamente o amam e o admiram, comentam as suas conferências... isto é, os seus sermões. O senhor os satisfaz, dando-lhes o que desejam, com habilidade, suavemente. Nunca lhes fala a respeito dos seus pecados, jamais os censura. Nenhum sacerdote se atreveria a fazê-lo nos dias de hoje.

Sabe que ninguém mais fala em pecado atualmente? Exceto é claro, os padres católicos romanos e talvez alguns poucos rabinos ortodoxos. O ‘pecado’ não mais existe. É uma questão de meio ambiente, de condicionamento, da falta de oportunidades, da ‘opressão’ da sociedade. De lares despedaçados, da discriminação racial, das péssimas condições de moradia, da precariedade das favelas. Ou da rejeição pelos pais e da incapacidade física, da impossibilidade de ajustar-se a um grupo. É também decorrente da ausência de roupas convenientes, da falta de dinheiro e recreações adequadas, da inexistência de escolas luxuosas, dos erros cometidos por professores, pais, vizinhos, ministros, padres, rabinos, incapazes da compreensão necessária. Em suma, o ‘pecado’ deixou de ser culpa, do indivíduo e sua responsabilidade. O indivíduo tem ‘direitos’ e ‘reivindicações’, mas não possui deveres. Não tem nenhuma obrigação para consigo mesmo, para com a sua comunidade, sua igreja, seus pais, sua esposa e filhos, seu pastor, seu pais.

A voz do Reverendo Carr era cada vez mais baixa e desesperada.

- O indivíduo tem apenas direitos, e nenhum pecado. O pecado simplesmente não existe. O homem, como disse Rousseau, é um ser sem pecado. Somente as instituições ao seu redor é que lhe provocam o comportamento anti-social, razão pela qual devemos sentir compaixão dele, oferecendo ao pecador a nossa ajuda. Mas jamais deveremos culpá-lo, nunca devemos dizer-lhe: Levante-se e não peque mais. Não devemos chamar as pessoas más de filhotes de víboras, como fez São João Batista. Nunca deveremos chamá-las de mentirosas e hipócritas, como Cristo as chamou. Isso provocaria um trauma na vítima. Devemos, a todo custo, tranqüilizar o pecador, convencendo-o de que pecou contra a sua vontade.

Ele começou a tremer, gaguejou um pouco.

- Acima de tudo. jamais devemos dizer: Você está sendo mau. Possui uma alma imortal que corre perigo. Não se pode escarnecer de Deus. Você está carregado de pecados, é um pecador. Mas ainda pode salvar-se. Arrependa-se e faça penitência, antes que seja tarde demais. Não, não podemos dizer tal coisa à nossa congregação. Não às nossas lindas congregações que se reúnem nas manhãs de domingo, sempre bem barbeadas, bem penteadas, impecavelmente vestidas, com peles caras no inverno, todo mundo feliz e satisfeito consigo mesmo. E aqueles que são ministros em paróquias pobres também não podem chamar os seus paroquianos de pecadores. As malditas agentes sociais logo apareciam, em bandos, as saias pretas esvoaçando e as sapatilhas de ballet a fazerem-nas voar, os rostos furiosos, clamando contra a discriminação e berrando que assim a congregação não teria chance alguma, numa sociedade competitiva.

O Reverendo Carr levantou-se novamente, aproximando-se, tenso, da cortina, que não se mexeu.

- E quem é o competente beneficiário de tudo isso? O governo? Com seus papeizinhos verdes que se transformam em mais papeizinhos verdes nos bancos? Qual o valor de tudo isso? Quem irá recuperar o nosso mundo para nós mesmos? Quem irá ensinar-nos a dizer, como todos devemos dizer:

Deus Todo-Poderoso tende misericórdia de mim, pecador? Como poderemos nós, pastores, chamar as nossas ovelhas de víboras, mentirosas, hipócritas? Não restaria uma igreja de pé se nos atrevêssemos a dizer tais coisas!

Ele baixou a cabeça por um momento, pensativo.

- Mas primeiro precisamos de dizer tais coisas a nós mesmos. Isso mesmo, antes de mais nada temos que dizer a nós, os falsos pastores, que conduzimos a nossa gente a vales artificiais de complacência, que colocamos espelhos na terra em vez de água, para que a nossa gente possa contemplar-se com auto-satisfação, a nós, que espalhamos por toda parte tapetes de relva artificial, devidamente aquecidos, para que a boa gente possa deitar-se comodamente e esquecer os violento terremotos que existem dentro de cada um. Mas, apesar de tudo isso, nós jamais iremos satisfazer a fome do nosso povo.

Ele ficou quase encostado à cortina, o rosto molhado de suor, extremamente pálido.

- Sabe o que eu disse no clube, deixando constrangidos os homens da minha idade que se preparavam para tomar banho e voltarem para suas casas, para os drinques vespertinos e as refeições tiradas dos congeladores, seguindo-se depois urna sessão de música na alta-fidelidade ou uma noitada de televisão, na companhia dos filhos bem-comportados e sem Deus? Alguns seguiriam para os chamados programas sociais, sempre repetidos em seus detalhes cansativos, as mesmas casas, as jóias, os móveis caríssimos, as aspirações pungentes, os sorrisos afetados e - que Deus me perdoe! - o terrível absurdo de atrizes, políticos, cantoras, dançarinas e outras personalidades públicas.

Eu simplesmente disse aos meus amigos: ‘Tudo isso não passa de vaidade’. Não sei qual o impulso que me levou a falar! Eu continuei: ‘O que vocês fizeram hoje por Deus? O que fizeram ontem por Deus? O que pretendem fazer amanhã por Deus?’ Se eles ficaram aterrados - afinal, é socialmente imperdoável falar de Deus atualmente, exceto na igreja e mesmo assim de passagem - eu fiquei muito mais. Não era de admirar que todos os jovens ficassem constrangidos, pois eu também fiquei. Os velhos, porém, assentiram, gravemente. Meus amigos proporcionaram-me rapidamente urna cobertura, pela qual me senti bastante agradecido. Eu me exibira como uma espécie de pregador fundamentalista, uma imagem que jamais desejei projetar.

O Reverendo Carr inclinou-se para o lado, apoiando-se na cadeira de mármore. Não conseguia respirar com regularidade e sacudia a cabeça vigorosamente. Passou-se algum tempo antes que conseguisse falar novamente, embora num murmúrio débil.

- E qual a imagem que projeto de mim mesmo? Um líder comunitário, um homem do esporte, um bom companheiro, um apertador de mãos, um homem que sabe tranqüilizar mulheres agressivas, um conselheiro em problemas nos quais me considero um técnico psicologicamente, um coordenador, um levantador de fundos, o homem que sabe alisar cabeças, braços e ombros, um excelente parceiro para o bridge, amigão dos adolescentes, sempre com um sorriso profissional. Que Deus me perdoe! Eu não passo disso: o homem do sorriso profissional, eternamente a sorrir profissionalmente!

O que foi mesmo que Shakespeare disse a respeito disso?

Sorria, sorria sempre - e seja um vilão?’

Ele deixou-se cair na cadeira, dobrando o corpo, enterrando a cabeça entre os joelhos.

- Um canalha... Foi disso que Alice me chamou quando rompemos o noivado. Ela perguntou-me: o que você lhes diz de Deus e das Leis de Deus, da penitência e do arrependimento, de suas almas imortais? Alguma vez já lhes disse que naquela noite suas almas seriam postas à prova? Alguma vez já lhes disse por que nasceram? Por que os deixa acreditar que o sol estará sempre brilhando para eles nesta terra, que sempre serão jovens, que suas crianças serão eternamente crianças, que seu dinheiro estará sempre disponível, que a saúde jamais será abalada, que as pernas serão sempre fortes e os corações nunca deixarão de ser bravos, que terão uma segurança inabalável, que suas vidas prosseguirão eternamente ávidas, sem nunca faltar alimentos, diversões e danças? Por que não diz a todos que talvez esta noite ou certamente amanhã suas almas serão chamadas e todas as danças em que se deliciaram, todas as diversões que tiveram, todos os sinos que tocaram, todo o dinheiro que ganharam não significarão absolutamente nada, nem mesmo serão uma simples recordação?

A sala ficou esperando, como se a resposta fosse inevitável. O Reverendo Carr também esperou, logo vendo as respostas se delinearem em seu espírito. Retraiu-se diante da visão.

- É mesmo tudo culpa minha - disse ele finalmente.

- É culpa. minha o deserto em que vivo, os ossos cada vez mais ressequidos. É culpa minha tudo o que ofereço à minha gente, pois eu sou o deserto e meus ossos estão ressequidos. Sou eu o mentiroso e o hipócrita. Nunca tive fé suficiente para dizer a verdade à minha gente, nem espírito nem coragem. Sou eu o culpado. Jamais tive realmente um rebanho, nunca fui realmente um pastor.

Ele levantou-se com dificuldade, com o coração exausto, dolorido como um ancião. E disse para a cortina:

- Será que está compreendendo? É um sacerdote também. Mas algum dia já teve um rebanho como o meu, que detesta a verdade, que mente para si mesmo, complacente, apressado, ganancioso, que quer iludir-se, crendo saber de tudo, traidor, implacável, que cobiça as honrarias sociais, sempre céptico, ateu, adúltero, hipócrita, esportivo, amante do trivial e passageiro, envergonhado e constrangido à simples menção do nome de Deus? Já teve? Se não teve, então não pode responder e não poderá ajudar-me!

Ela caminhou para a cortina, a cabeça rodopiando, o dedo estendido para o botão.

A cortina se abriu e o Reverendo Carr viu a luz. E então recuou, lentamente, cambaleando.

E caiu de joelhos.

- É claro que já tivestes. Assim foi o Vosso rebanho, assim é o rebanho que tenho. Nós temos o mesmo rebanho, juntos - e continuaremos a ter o mesmo rebanho, juntos, até o final dos tempos. Vós e eu...

Mas Vós nunca tivestes que dizer para Vós mesmos que éreis o culpado, corno estou dizendo agora para mim. Eu sou o culpado. Deus Todo-Poderoso, tende piedade de mim, pecador! Dai-me forças para dizer a verdade ao meu rebanho. Se eles me rejeitarem, assim como Vos rejeitaram, que importância isso pode ter? Há apenas a verdade, é a única coisa que importa. Perdoai-me. Acima de tudo, perdoai-me - por trair-Vos com coisas insignificantes.

Estava com quarenta e nove anos. Trabalhara arduamente durante toda a sua vida. Trabalhara enquanto cursara a escola secundária, em sua cidade natal, trabalhara enquanto cursara a faculdade. Nada conhecera em toda a sua vida a não ser o trabalho árduo. E jamais tivera qualquer ressentimento até um ou dois meses atrás, O ressentimento surgira então e rapidamente crescera, -transformando-se em fúria. Tornara-se um homem tão irritado que perdera dois casos dos mais fáceis no tribunal, O juiz, seu amigo, olhara-o, preocupado. Três dias depois, o mesmo juiz chamara-lhe a atenção, ameaçando-o com uma sentença por desrespeito ao tribunal. Emory, Dean & Hartford, a firma de advocacia que ele fundara, estava perdendo prestígio por sua causa. Jack Dean, seu melhor amigo, dissera-lhe que parecia doente e certamente estava à beira da exaustão. Ele finalmente admitira:

- Estou-me sentindo, de fato, como um garotinho doente. Acho que estou precisando de umas férias. Há oito anos que não tiro férias, por falta de tempo. Você. sabe disso. Hoje à noite vou conversar com Emily e ver se planejamos alguma coisa, talvez um cruzeiro marítimo ou uma viagem à Europa.

A esposa ficara bastante alegre com a idéia, mas insistira em que ele fosse primeiro consultar o médico da família, para um exame completo. Ele protestara:

- Mas eu mal o conheço! A única coisa que sei a respeito dele são as contas que me envia - e isso é mais do que suficiente! E. afinal, o que você pensa que é? Diretora de hospital, por acaso?

Mas era difícil ganhar uma discussão com Emily e ele acabara indo procurar o médico. Ao entrar na sala de exames, fora logo dizendo:

- Olhe, tenho apenas uma hora para perder aqui, pois Sou um homem muito ocupado.

Será que já vira antes aquele jovem de aparência competente? Parecia-lhe vagamente familiar. Ter-se-iam encontrado o clube? Em sua casa? E en.tão, como se se lembrasse um pouco tarde, acrescentara:

- Como vai?

- Vou muito bem, mas não creio que possa dizer o mesmo a seu respeito - respondera o jovem médico.

O rosto do seu novo paciente parecia o de um fantasma, com sulcos roxos sob os olhos azuis, rugas em torno da boca, os lábios finos muito pálidos.

- Mas já vamos descobrir como está realmente - acrescentara o médico.

Ele efetuara diversos testes, batera, ouvira, mandara o paciente respirar fundo, abaixar-se, curvar-se. Uma hora se passou rapidamente, sem que ele tivesse terminado o exame. Eugene dissera impacientemente:

- Preciso ir embora.

Com uma expressão grave e pensativa, o médico lhe respondera:

- Está certo. Mas apenas para ter certeza, gostaria de que procurasse o Dr. Hampshire, neste mesmo edifício. Ele é especialista em sangue. Quero ter certeza absoluta.

- Certeza absoluta de quê?

- De algo de que estou desconfiado. Mas é claro que posso estar errado. Por falar nisso, há quanto tempo teve a crise de amigdalite?

- Há dois meses. Mas como soube que eu tive?

Eugene ficara subitamente alerta. O médico se mostrara evasivo.

- E ficou também inchado no pescoço?

- Fiquei. O que era? Alguma infecção? Tomei alguns tabletes de penicilina que o senhor receitara para uma das crianças. Escute aqui tenho mesmo que ir procurar esse tal de Dr. Hampshire?

- Tem, sim, e imediatamente. Pode ligar daqui para o seu escritório, se assim o desejar, e dizer que se vai atrasar. Eu vou ligar para o Dr. Hampshire.

- Não posso fazer o exame na semana que vem ou depois que voltarmos do nosso cruzeiro?

O médico não lhe dissera que provavelmente jamais voltaria daquele cruzeiro. Depois de pensar algum tempo, preferira dizer:

- Não. Eu me sentiria melhor se o senhor fizesse o exame imediatamente, para a tranqüilidade de Emily. Há semanas que ela está preocupada.

Aquilo fora outra surpresa. Quer dizer então que se estavam tratando pelo primeiro nome? E por que Emily andava tão preocupada? Recente e inesperadamente ele começara a emagrecer, sentindo cansaços súbitos e palpitações. Um dia vomitara depois do café, cuspindo também um pouco de sangue. Úlcera. Mas isso não tinha grande importância, era o signo do sucesso, como se dizia.

Estou com úlcera? - ele perguntara ao médico.

- Por que pergunta?

- Por nada.

Se ele falasse a respeito do sangue que vomitara haveria um atraso ainda major, teria que tomar bário, tirar diversas chapas. Sabia de tudo a respeito, pois o jovem Hartford tinha úlcera e descrevera os exames com precisão.

- Nunca estive doente um só dia em toda a minha vida - declarara Eugene enquanto se vestia.

- Ótimo.

O médico esperara até ter certeza de que ele saíra mesmo em direção ao consultório do Dr. Hampshire. Ligara então para o seu colega mais idoso.

- O nome dele é Eugene Emory. Conheço-o há muitos anos, embora ele mal tenha tempo para perceber quem quer que seja. t do tipo durão, pode suportar a notícia. Está com leucemia. Eu não lhe disse, pois queria ter certeza absoluta. E receio que seja aguda.

Ele fizera uma pausa e tentara sorrir, debilmente.

- Procure transformá-la em crônica, está certo, Ed? Talvez assim consigamos prolongar a vida dele.

O médico ficara pensando em todos os progressos feitos no tratamento da leucemia. Muitas vezes conseguia-se prolongar a vida do paciente, mesmo em casos agudos. Mas o paciente vivia com a certeza de que estava irremediavelmente condenado à morte. Todos nós estamos, é verdade, mas, desde que não tenhamos consciência do fato durante todo o tempo, é possível esquecer. Mas as pessoas que sofrem de leucemia jamais podem esquecer, nem mesmo em suas fantasias.

Eugene Emory voltara ao consultório do jovem médico menos de uma hora depois. Ao sentar-se, o médico vira a morte estampada em seu rosto. Ele dissera:

- Não acredito.

- Mas tem que acreditar, Eugene. Se tem algum negócio que precisa pôr em ordem... Não pode esquivar-se ao fato de que vai morrer. E receio que não demore tanto assim.

Eugene nada dissera. Acendera um cigarro com um dos dedos amarelados e olhara por cima da cabeça do médico.

- Começamos a morrer no momento em que somos concebidos - disse o médico. - Mais cedo ou mais tarde, todos nós morremos. Eu posso morrer esta noite, sob as rodas de um automóvel, no ano que vem, de uma trombose das coronárias, ou então amanhã, rolando por aquela maldita escada íngreme do nosso clube. A morte é algo a que não podemos escapar. A única coisa errada nisso tudo é que não começamos a falar a respeito a nossos filhos desde a infância, a fim de que possam viver com essa certeza e nela pensem regularmente. A morte tornar-se-ia então familiar e não algo terrível ou uma coisa que talvez se consiga evitar, por alguma sorte misteriosa. Não contar tudo a respeito da morte - e para o inferno com o trauma psíquico que disso pode resultar! - é uma das coisas mais cruéis que se pode fazer com uma criança. Dizer suavemente que só as pessoas idosas é que morrem é passar por mentiroso, pois a criança logo descobrira que não é verdade e passará a desconfiar do pai. As crianças nascem resistentes e com capacidade de absorver todos os choques, não são flores frágeis que devem ser protegidas contra a vida. Elas podem aceitar a inevitabilidade da morte com mais facilidade e naturalidade do que nós. A cada ano que passa, a aceitação torna-se mais difícil.

O jovem médico fizera uma pausa e acrescentara:

- A morte é um componente da vida tanto quanto o nascimento.

- Eu nunca vivi - dissera Eugene, falando mais para si mesmo. - Nunca soube como viver, sabia apenas como trabalhar.

Levantara-se.

- Quanto tempo?

- Talvez um mês. Com um pouco de sorte, uns dois meses. Mas não mais do que isso.

- Não há nada que se possa fazer?

- Muitas coisas. Mas normalmente não produzem o menor resultado em casos agudos como o seu. Funcionam apenas nos casos crônicos, o que acha da idéia de internar-se hoje num hospital, para transfusões de sangue, tratamento por raios e coisas assim?

Eugene ficara pensando no assunto por um momento. Seu rosto assumiu uma expressão mais fantasmagórica ainda. Passara a mão pelos cabelos louros e ralos.

- E de que isso adiantaria?

- Bem, podia fazer com que se sentisse um pouco melhor...

- E mais nada, além disso? Eu continuaria apenas a aguardar a morte, sem a menor chance, deitado numa cama de hospital?

- Exatamente.

- Neste caso, prefiro não ir para hospital nenhum. Continuarei a viver normalmente até não poder mais. Por falar nisso, terei... algum problema?

- Provavelmente. Vou receitar-lhe um remédio para aliviar a dor. Disse-me que anda sentindo dores até nos ossos. Pode ou não piorar, não tenho certeza.

O médico hesitara por um instante, mas terminara por acrescentar:

- Por que não conversa com o ministro da sua igreja?

- Não o conheço. Vejo-o somente no púlpito, no Natal e na Páscoa. Emily e as crianças é que o conhecem bem.

- Por que não o procura você mesmo e lhe fala a respeito do que está acontecendo?

- Obrigado pela sugestão, mas não vou aceitá-la. Não pretendo rastejar para... Ora, você sabe o que estou querendo dizer!

Fora então que começara a raiva, furiosa, incrédula, impotente. Era mais terrível ainda porque tudo acontecia a um homem com o seu temperamento impetuoso mas contido, com uma mente lógica, que baseava sua vida nas experiências concretas por que passara. Ele sempre fora capaz de controlar sua vida, de dirigi-la, de lutar contra as circunstâncias adversas e superá-las, de remover os obstáculos. Sabia que os advogados mais novos chamavam-no de o Univac, divertindo-se com o apelido. Bastava apenas aparecer num tribunal, ágil e resoluto, o rosto concentrado numa expressão decidida, para que o coração do advogado adversário subitamente disparasse. Raramente perdia um caso - e só os mais desesperados. Sua vida e seu trabalho estavam sob controle absoluto na mais absoluta ordem, com uma precisão impecável. Detestava a confusão e freqüentemente dizia:

- Não há nada inevitável.

Agora, porém, estava diante do inevitável. Sua raiva aumentou. Não era uma raiva trêmula e assustada, uma raiva pusilânime. Era a raiva de um homem que nunca vivera - e cuja vida era arrancada quando finalmente chegara ao limiar da existência.

Há uns dois anos que tinha consciência de que precisava fazer mais companhia a Emily. As crianças já estavam agora quase adultas e logo começariam a sair de casa. A partir do momento em que um filho ou uma filha segue para a Universidade, nunca mais volta de fato para casa, a não ser como visita. Eugene não era um homem dedicado, como os outros diziam em tom de aprovação. Desejara ganhar dinheiro apenas para garantir a si e à sua família uma segurança razoável. Já conseguira realizar esse intento. Chegar. então o momento do prazer, das viagens, do lazer para si e para Emily. Sua esposa não fora solitária nem infeliz ou negligenciada. Ela sabia por que o marido trabalhava tão arduamente e admirava-o por isso. Poucos dias antes, quando ele sugerira o cruzeiro marítimo, ela ficara na maior alegria.

- Vamos mesmo? Isso é maravilhoso! Agora ‘podemos começar a nos divertir, não é, querido? Vamos fazê-lo enquanto ainda somos jovens e temos saúde.

Naquela noite haviam passado muitas horas planejando o cruzeiro. Percorreriam tida a América do Sul. Partiriam em outubro. Tinham portanto, dois meses para fazer os preparativos necessários. A menina e o rapaz estariam então na Universidade. Só voltariam pouco antes do Natal.

- E depois, em fevereiro, iremos à Flórida – afirmara Eugene, beijando a esposa linda, com uma expressão alegre e viçosa naquele momento. - Está na hora de começarmos a viver e agora temos todo o tempo do mundo. Nas próximas semanas ficarei bastante ocupado no escritório, tomando todas as providências necessárias.

Mas ele logo depois descobrira que não tinha tempo algum.

Um mês, dois meses... Ele nada dissera à esposa. Conseguira controlar-se de tal forma que, quando ela começava a falar entusiasmada sobre o cruzeiro e mostrava-lhe mais folhetos coloridos, podia exibir um sorriso convincente e interessado. Tiraram as fotografias para os passaportes, solicitaram os devidos vistos. Eugene sempre fora um pouco pálido; o fato de a palidez ter aumentado levara a esposa a concluir apenas que o cruzeiro era mais premente do que nunca. Ele sempre fora magro. Ela comprara muitas vitaminas para que ele tomasse e sempre lhe dava uma gemada na hora de deitar. Ele atendia aos seus desejos com amor. podia expressar sua afeição apenas por um olhar, um toque, um abraço rápido e meio envergonhado, mas Emily não tinha a menor dúvida de que o marido a amava. Ela nunca vira a pílula que ele de vez em quando tomava, quando a dor física tornava-se quase insuportável. Ela nunca soubera que ele fora a um hospital particular com o médico, para uma transfusão de sangue, a fim de sentir-se um pouco melhor. Ela pensava que o marido dormia durante a noite. ELe algumas vezes o conseguia, mas só depois de tomar uma droga.

Um belo dia ele despertara para a realidade: duas semanas já se haviam passado - ou seriam três? Fizera mais testes sangüíneos.

- Parece que o avanço da doença está contido - dissera o médico.

- Ë ma suspensão temporária da pena?

- Não, embora nunca se possa ter certeza de nada com essa maldita doença.

- Quer dizer então que o governador não vai telefonar três minutos antes da meia-noite?

- Não. Já contou a Emily?

- Ainda não. Até o último momento, não quero que ela saiba de nada.

- Você pode morrer durante o sono.

- Se tal acontecer, será bem melhor para Emily.

Ele ia diariamente ao escritório, como de hábito. Ninguém fazia nenhum comentário se volta e meia passava uma ou duas horas deitado no sofá. Explicara a seus sócios:

- Estou com uma espécie de anemia e preciso tomar uns remédios bem fortes para o fígado. Não é nada sério, mas preciso descansar bastante. Olhe, temos que pensar no julgamento do caso Hadley, em fins de outubro, quando eu não estarei aqui...

Eu não estarei aqui.

Pensara algumas vezes em matar-se, de forma a que parecesse um acidente, para o bem de Emily. Mas ele era advogado é conhecia as investigações meticulosas realizadas pelas companhias de seguro. Além disso, havia também a polícia.

Não tinha nada a que recorrer. Não possuía nenhum hobby e tinha poucos amigos. Tentara ler, pois a leitura sempre fora o passatempo que mais lhe agradava. Mas logo verificara que ficava cinco ou dez minutos olhando para uma página, sem nada ver e sem ter consciência do fato. Enquanto isso, Emily estava ocupada, preparando o guarda-roupa que levaria no cruzeiro. Ela punha um vestido novo e aproximava-se dele, para que a admirasse. Ele então segurava-lhe a mão e beijava-a rapidamente, largando-a sem mais delongas. Oh, meu Deus! - dizia ele para si mesmo, embora aquilo lhe soasse como uma blasfêmia.

Um homem menos disciplinado não teria agüentado. E uma vez quase tudo ruíra, quando Emily insistira para que comprasse algumas roupas para o cruzeiro.

- Eu adoro esse casaco de sarja azul-marinho - comentara ela.

Ele o comprara, mas quase observara em sua raiva desesperada:

- Enterre-me nele!

Tentara recorrer à bebida. Sempre bebera com moderação. E agora não podia tomar mais do que um ou dois drinques, pois logo se sentia nauseado e ficava com medo de vomitar, precipitando uma hemorragia fatal. Quatro semanas se passaram e ele continuava vivo.

- O avanço da doença ainda está contido - dissera o médico.

- Por quanto tempo mais?

O médico não lhe dera resposta alguma.

Lera então sobre um especialista em sangue, que estava realizando um excelente trabalho no prolongamento da vida das vítimas de leucemia. Dissera a Emily que precisava fazer uma rápida viagem.

- Estarei de volta na quarta-feira.

Vira o especialista, que não lhe pudera dar nenhuma esperança. Ele esta morrendo, poderia morrer a qualquer momento. Pensara em Emily, esperando-o na agradável casa suburbana em que moravam. Suas forças haviam diminuído. Tinha que contar-lhe, prepará-la para o inevitável. Enquanto esperava a hora de seguir para o aeroporto e pegar o avião de volta, saíra a passear pelas ruas da cidade em que John Godfrey construíra o seu templo de mármore.

Eugene parara para contemplar os jardins e depois vira o prédio, recordando-se da reportagem que lera há algum tempo. A boca pálida tremera de aversão. Mas, sem saber como, vira-se percorrendo um dos caminhos de lajes vermelhas entrando na sala de espera e ali ficando, juntamente com aquelas pessoas plácidas e desinteressantes. Estava esperando o quê? O especialista aconselhará-o a ir até lá mas ele esquecera-se da sugestão quase que imediatamente. No subconsciente, porém, devia ter aceitado o conselho.

Se fora até ali - disse para si mesmo - é que realmente já estava começando a perder o juízo.

Adquirira o hábito de cochilar subitamente, nos lugares mais inesperados. Ouviu uma sineta e acordou, estremecendo. Era a única pessoa na sala de espera e viu que chegara a sua vez, O Confessor... Eugene levantou-se, olhou para a porta de entrada e deu um passo em sua direção. Estacou bruscamente. Nada tinha a perder. E talvez pudesse até divertir-se um pouco.

Passou para a sala branca, com sua cadeira de mármore e a alcova fechada por uma cortina azul. O que era aquilo? Não havia uma bola de cristal? Onde estava o guru? Não havia luzes místicas e o som de trombetas? Por que uma iluminação tão clara? Será que eles não tinham medo de que a impostura fosse descoberta?

Ele não pusera nenhum bilhete na caixa apropriada. Era o bilhete que dava a eles uma pista para os espíritos, a fim de que pudessem fornecer as respostas apropriadas, sempre vagas. Ele fitou a cortina e foi logo declarando:

- Não acredito no espiritismo. Não acredito em qualquer tipo de vida após a morte. Estou morrendo e sei que daqui a pouco estarei completa e irremediavelmente morto.

Ele não se sentou. Ficou andando pela sala branca e toda iluminada, como costumava andar no tribunal enquanto apresentava os seus argumentos, as mãos nos bolsos.

- Não faço a menor idéia de quem é o senhor atrás dessa cortina. E tem mais: absolutamente não me importo com isso. Médico, sacerdote ou psiquiatra, não há mais nada que ninguém possa fazer por mim agora. Estou morrendo. Posso estar morto esta noite, amanhã... Certamente não viverei mais um mês. Não sei por que estou aqui. Todos os meus negócios estão em ordem...

El fez uma pausa, virou-se bruscamente, olhando para a cortina. Todos os meus negócios estão em ordem...

- O que foi que disse?

Será que sua mente estava-lhe pregando um truque? Pensara ter ouvido alguém dizer: - Estão mesmo?

- Está tudo em ordem - repetiu ele.

Lá fora era um dia quente de agosto, mas ali dentro estava tão fresco como um jardim cheio de fontes. Era um lugar tão agradável para esperar o avião quanto outro qualquer. Poderia também passear pelos jardins lá fora. Mesmo na angústia que o dominava, notara que eram muito bem tratados e que as árvores estavam excepcionalmente viçosas para aquele calor de agosto. Os caminhos eram evidentemente limpos pelo menos uma vez por dia, havendo alguns que se afastavam do prédio, a sugerir a existência de cara‘ manchões convidativos mais além. Emily teria gostado daqueles jardins. Ele estaria.., ele estaria morto antes que as primeiras folhas começassem a cair das árvores lá fora. Nunca poderia mostrar aqueles jardins a Emily - nem qualquer outro jardim, em nenhum lugar do mundo.

- Se já tive algum passatempo, foi o de ajudar Emily a cuidar dos jardins de nossa casa. Sempre o fazíamos nas tardes de domingo. Nunca consegui entender como ela pôde criar aquele ambiente agradável no fim do gramado, à sombra de um cipreste, com um banco de pedra para nos sentarmos. Sempre íamos juntos para lá, a fim de tomarmos um drinque, descansarmos, fumarmos um cigarro. Às vezes, quando estava muito quente para dormirmos à noite, íamos para lá e o lugar estava sempre fresco. Lembra-me de um jardim que vi em algum lugar, não consigo recordar-me onde. Era o desenho de um jardim de ciprestes, ao luar, com uma pedra grande e chata. Creio que, ao fundo, havia os vultos de algumas pessoas dormindo. E alguém...

Ele fez uma pausa, sacudindo a cabeça.

- Eu era apenas uma criança nessa ocasião. Devo ter visto a gravura em algum livro...

O coração disparou então, como que subitamente surpreendido ou abalado. Ele levou a mão ao peito. Sua mente lógica assegurou-lhe imediatamente que não era um sintoma físico e sim uma emoção. Não se lembrava de ter tido antes uma emoção assim, como que de pesar por alguém profundamente amado e compreensivo, que já se fora. Sentiu o sabor da tristeza em sua língua, a aflição a espalhar-se pelo corpo.

- Mas, o que há de errado?

Ficou imóvel por um momento, logo recomeçando a caminhar de um lado para outro.

- Não sei por que estou aqui. Tenho quarenta e nove anos, sou casado, um advogado bem-sucedido, tenho dois filhos maravilhosos, uma esposa que me ama, dinheiro suficiente? e um lar agradável. Mas só que agora tenho que morrer pois estou com leucemia.

Por que será que, durante toda a nossa existência, nós só nos preparamos para a vida e nunca para a morte? Por que sempre nos esquivamos até de pensar na morte? Nossos amigos, pais, esposas, maridos, filhos, nunca ninguém fala na morte. É como se fosse uma obscenidade, um assunto que não deve ser mencionado entre gente bem-educada. Contudo, a morte está ao nosso redor em todos os momentos da vida. Talvez eu não me sentisse assim, com uma raiva furiosa, se desde a infância me tivessem ensinado a compreender que a morte está em toda parte. É claro que, quando cresci, aprendi que a morte estava em toda parte. Mas, como todo mundo, fui diligentemente protegido de sua presença. Quando meu pai morreu, eu tinha oito anos e não me permitiram ver o seu caixão.

As pessoas morrem junto de nós e o assunto é logo abafado, como se fosse um terrível escândalo. Quando meus filhos me perguntavam a respeito da morte, eu sorria e abraçava-os ternamente, procurando mudar de assunto. Como fui tolo! Devia ter dito: vocês nasceram para que pudessem morrer.

Ele parou de falar bruscamente e olhou para a cortina com uma expressão de desafio.

- Todos os psicólogos infantis discordam de mim. As crianças nunca devem ser magoadas. Devem ser protegidas até se tornarem homens. E, de repente, as crianças são arrancadas do berçário, despreparadas não apenas para a morte mas principalmente para a vida. Mas eu vou agora tirar algum proveito deste mal que se apossou de mim. Amanhã vou chamar meu filho e minha filha e vou dizer-lhes: Estou morrendo. Olhem para mim atentamente e lembrem-se depois de como se parece um homem agonizante. Lembrem-se de que ele odeia a morte, de que,ele a teme, de que a morte o deixa enraivecido. É uma coisa horrível para acontecer a uma pessoa, mas cedo ou tarde acontecerá com vocês também. Não é nada glorioso nem um espetáculo agradável, não inspira nenhum pensamento espiritual. É odioso e é o fim, nada mais resta depois, exceto a escuridão e o silêncio, nunca mais se volta a pensar, a rir ou trabalhar. Preparem-se para a morte e aceitem-na, pois não lhes resta alternativa.

Ele cerrou um punho e desferiu um soco violento na palma da outra mão.

- Não há alternativa! Não tivemos nenhuma alternativa ao nascer, vivemos sem uma razão para tal e morremos tão ignorantes quanto nascemos. Mas, se pudermos pelo menos aceitar a morte e partir do momento em que começamos a andar e falar, talvez então ela perca um pouco da sua carga de terror. Não concorda comigo?

Ele julgou perceber um movimento qualquer na sala, como um raio de luz, um aumento da luminosidade. Sacudiu a cabeça, impaciente, e disse então, admirado:

- Não sou um homem de falar muito, a não ser no tribunal. Por que então estou falando assim para o senhor, um estranho numa cidade estranha? Nem mesmo lhe disse meu nome e não pretendo fazê-lo. Nada represento para o senhor. Pior ainda do que nada, pois estou morrendo e não posso suportar a idéia da minha morte, no exato momento em que posso dar-me ao luxo de viver e conhecer a vida. Mas por que devo contar-lhe tudo isso?

Ele ficou esperando, mas não houve resposta. A voz quase bondosa, ele disse:

- Acho que é muito decente da sua parte ficar sentado atrás dessa cortina, ouvindo qualquer estranho que queira vir até aqui e despejar em cima do senhor toda a sua carga de lamúrias e pesares. Eu, quando o faço, sou pelo menos pago para isso!

Ele riu, acrescentando:

- Estou, é claro, partindo do princípio de que o senhor faz isso por caridade.

Ele não ouviu nenhum movimento nem mesmo o ruído de alguém respirando. Aproximou-se da cortina e examinou-a curioso, lendo a placa ao lado do botão.

- Bom, pode ter certeza de que não irei apertar esse botão e intrometer-me em sua intimidade. Isso iria também deixar-me embaraçado. Prefiro não ter um rosto para o senhor, assim como o senhor não tem para mim.

Ele recomeçou a andar de um lado para outro.

- Não faço a menor idéia se o senhor é muito velho ou muito jovem. Mas será que sabe o que é sentir-se condenado à morte? Irremediavelmente condenado à morte, sem esperança de apelação, sem absolutamente esperança alguma? Não, o senhor não pode saber. Minha mente aceita o fato, mas algo dentro de mim recusa-se a aceitar, repudia-o como se fosse uma mentira, um suborno da verdade, a mais negra falsidade que o homem já inventou. É isso o que eu não consigo entender. Digo para mim mesmo: Você está morrendo. Muito em breve estará morto e enterrado e assim acabarão todas as esperanças, o amor, a vida, a própria luz. Mas então algo me responde com a maior raiva, como se eu tivesse outro ego incapaz de ceder à voz da razão. Se houvesse dentro de mim uma plena aceitação, eu talvez pudesse sentir paz, ficasse mais resignado. Mas há algo dentro de mim que não aceita o fato irrefutável de que logo estarei morto e será o fim de tudo.

Uma nova pausa, uma expressão pensativa.

- Suponho que seja a velha vontade de viver, afirmando-se diante do próprio destino. Não pode ser outra coisa.

Ele continuou andando de um lado para outro. Os passos ecoavam pela sala de mármore. Estava exausto, até os ossos lhe doíam, podia sentir a vida esvaindo-se de seu corpo, gota a gota, como lágrimas internas.

- Se ao menos houvesse um meio de evitar isso, de deter a morte! Se ao menos eu não tivesse que enfrentar o meu destino, se pudesse esquivar-me à morte!

Mais uma vez seu coração ficou aturdido e abalado, agora mais profundamente. Pareceu-lhe ter ouvido um som, que reverberava, sacudindo seu corpo como se uma voz tonitruante tivesse falado. E de repente, sem nenhum motivo aparente, viu a imagem do jardim que contemplara em criança, um desenho colorido de ciprestes escuros com a lua semi- oculta ao fundo, a relva escura, uma pedra, homens dormindo, envoltos em mantas. E havia alguém perto da pedra. Será que estava ajoelhado? Ficou inteiramente confuso.

- Se ao menos eu não tivesse que morrer logo agora... Se ao menos essa taça pudesse ser afastada dos meus lábios..

Ele ficou imóvel, rígido, procurando recordar-se. Seu esforço era tão intenso e concentrado que começou a suar, sentindo uma angústia interminável, uma tristeza profunda, o medo. Confessou, num sussurro, para a cortina:

- Tenho medo. Sou apenas um homem e tenho medo. Não da morte em si, mas da sua dor, da última agonia. Porque, depois disso... Compreende o que é sentir-se assim, esse medo, essa rejeição da morte, essa esperança de vida, quando se sabe que a morte é inevitável? Mas como o senhor poderia sabê-lo, a menos que tenha passado também pela mesma experiência?

Não tinha o menor desejo de aproximar-se outra vez da cortina nem de apertar o botão, mas quando deu acordo de si estava-se aproximando rapidamente, a mão estendida.

A cortina abriu-se subitamente e a luz jorrou. Eugene recuou rapidamente e olhou. Tornou a olhar - e não pôde mais deixar de olhar.

Depois suspirou. Já não sentia mais dor, nem medo, terror, raiva ou desespero. Sentia apenas paz e a sensação de que se libertara da mágoa. Disse então em voz baixa:

- Mas é claro. Vós sabeis como é, sabeis perfeitamente o que é, a rejeição da morte, a esperança de que não se tenha de aceitá-la, de que talvez se escape à sua sentença. Conheceis a solidão de tudo isso, o horror que encerra.

Agora está tudo claro. Lembro-me de todo o quadro do jardim, Vós ajoelhado, enquanto Vossos companheiros, os mesmos que esperáveis que rezassem por Vós, estavam dormindo. De certa forma eles estavam-se escondendo de Vossa morte, como todos nós nos escondemos da morte dos outros. Nós a negamos, dormindo.

Sinto-me profundamente arrependido. Não pensava em Vós desde que era criança. Desde então que não Vos dedico um pensamento sincero e profundo. Havia muito trabalho por fazer. Trabalho... Como se o trabalho fosse um fim em si mesmo, como se tivéssemos todo o tempo do mundo para viver e também para trabalhar. Todo o tempo do mundo... A verdade é que quase não temos tempo algum, não é? Apenas o suficiente para sabermos por que nascemos, o que devemos fazer aqui, como nos prepararmos para a partida. Eu esqueci tudo isso. A agitação do trabalho impediu-me de ver o único valor permanente deste mundo. Que desperdício de tempo! Oh, meu Deus, como desperdicei o meu tempo! Sei que Vós me ouvistes e fizestes com que eu viesse até aqui. Dai-me apenas um pouco mais de tempo, três ou quatro semanas, a fim de que eu possa dizer aos meus filhos tudo o que sei agora, a fim de que eu possa confortar minha esposa e assegurar-lhe a verdade - que a morte não existe!

Ele aproximou-se do homem que o olhava de forma tão penetrante e sorriu.

- A verdade, a única grande verdade que possuímos, é que a morte não existe.

Ele fizera alguns poucos gestos espontâneos, os primeiros da sua vida. Hesitou por um momento, depois abaixou-se desajeitadamente e beijou os pés do homem.

- Eu tenho todo o tempo que existe... tenho a eternidade.

ALMA NOVE

O Predestinado

Vós não Me escolhestes a Mim, mas Eu é que vos escolhi a vós, e vos constituí para que fôsseis e désseis frutos.

João 15:16

A Sra. Giuseppe Pirotti entrou na sala de espera com o ar tímido e vivo de alguém que é bastante conhecido, que não deseja ser reconhecido e ao mesmo tempo deseja sê-lo, alguém que se sente um pouco ofendido e no entanto aliviado. Era uma mulher baixa e corpulenta, um pouco rosada, com cabelos pretos encaracolados sob o chapéu de vison, o corpo rotundo estafando o casaco também de vison, no rigor da moda. Os olhos eram castanhos, grandes e vivos, as feições delicadas no rosto cheio, a boca vermelha bastante eloqüente. Ela não parecia ter os seus quarenta e cinco anos. Havia nela uma aura de força e calor, como alguém que aprecia todos os momentos da vida e saboreia cada segundo como se fosse um manjar inigualável, para o qual se está devidamente preparado.

Isso lhe era bem apropriado, pois ela e seu adorado marido possuíam e operavam pessoalmente um dos melhores restaurantes da cidade, que servia apenas as mais deliciosas comidas italianas. Giuseppe aprendera a sua arte com um chef famoso de Roma. Haviam-se casado quando ele tinha vinte e dois anos e ela, Agnes, filha de um restaurador de quadros antigos, apenas dezessete. Ele tinha sete irmãos e ela vinha de uma adorável família burguesa de dez crianças.

Haviam emigrado para a América não em busca da fortuna, pois Giuseppe poderia ter continuado no Excelsior de Roma com um excelente salário, mas simplesmente movidos pelo amor à aventura. Haviam-se estabelecido naquela cidade grande, onde tinham primos com famílias imensas, tias, tios, sobrinhas e sobrinhos. Desde o início haviam alcançado o maior sucesso. Não se aceitavam reservas para festas em seu restaurante, elegante mas íntimo, com menos de quarenta e oito horas de antecedência. Durante as férias, os fregueses tinham às vezes que esperar por mais de uma semana. A adega de vinhos italianos e franceses era famosa. Se Giuseppe não estava no restaurante, podia-se ter certeza de que Agnes lá estaria - mas quase sempre os dois estavam juntos. Supervisionavam tudo meticulosamente. A cozinha do restaurante fora diversas vezes fotografada e apresentada nas revistas de circulação nacional. O jantar no Giuseppe era um acontecimento. Tudo era cozinhado até o fim, nada era servido apressadamente. Se não puder passar pelo menos duas horas conosco, então não poderemos servi-lo devidamente: este era o aviso delicadamente impresso no alto dos cardápios.

No entanto, apesar da procura, sempre havia uma mesa vaga no restaurante, para qualquer padre que chegasse inesperadamente. E isso, pensou Agnes Pirotti, amargurada, era provavelmente a causa do terrível problema que agora enfrentava. Oh, o pequeno Joe!

Não havia mais, agora, nenhuma mesa à espera dos padres no restaurante. Esposa amorosa e obediente, discordara pela primeira vez do marido e com ele discutira, terminando por fazer prevalecer a sua vontade. Os padres compreenderam e, delicadamente, deixaram de freqüentar o restaurante. Se fossem, Agnes cuidaria para que não se sentissem à vontade.

Ninguém a reconheceu na sala de espera. Mas o fato é que eram todos estranhos, de fora da cidade ou gente que não se podia dar ao luxo de comer em seu restaurante, onde o prato mais barato custava quatro dólares e mesmo assim era à la carte. Ela sentou-se com uma expressão de desafio. Ficou pensando se não estaria cometendo um pecado, mas logo sacudiu a linda cabeça. Fazia muito tempo, realmente muito tempo..

Ela nascera numa família sempre ativa, fora criada em meio a pessoas industriosas. Sempre levava uma costura na bolsa para onde quer que fosse. Abriu a bolsa grande e tirou a suéter de lã preta, inacabada, que estava tricotando. Fitou-a demoradamente e seus olhos encheram-se de lágrimas. Cerrou os lábios e tornou a guardar o trabalho na bola, franzindo o rosto e procurando controlar a raiva que fazia sua boca tremer, tentando debelar sua dor.

Uma a uma, as pessoas ao seu redor levantaram-se silenciosamente, ao toque de uma sineta, desaparecendo atrás de uma porta de carvalho. Ela era a última. Olhou para o relógio de diamantes. Dentro de duas horas, no máximo, deveria estar de volta ao restaurante. Remexeu-se na cadeira. impaciente. A sineta então tocou novamente, chamando-a. Ela levantou-se, ergueu o corpo pequeno o mais alto possível e marchou para a sala de mármore branco, a luz escorrendo gentilmente pelo seu corpo.

Bom, pelo menos não é uma igreja. Ela sentou-se decidida na cadeira de mármore e olhou para a cortina. Quem estaria ali atrás? Ninguém sabia. Seria um padre? Era exatamente o que ela esperava! Ela jamais se cansaria de dizer aos padres tudo o que pensava! A voz fria, indagou:

- É por acaso um padre?

Ficou esperando, mas não houve resposta.

- Então creio que não devo continuar aqui, Padre. Quero deixar bem claro que não suporto mais os padres.

Ela possuía uma voz sonora e bem feminina, com o sotaque musical de seu povo. Aprendera várias línguas no convento em que estudara na Itália e falava o inglês com perfeição.

- Sou a Sra. Giuseppe Pirotti. Eu e meu marido possuímos o melhor restaurante da cidade.

Ela fez uma pausa.

- E se é realmente um padre, como suponho que seja, então deve saber de tudo. Costumávamos ter uma mesa sempre vaga, reservada para qualquer padre que aparecesse. Mas isso agora acabou! Não quero mais a companhia dos padres nem que sejam meus fregueses - e olhe que nós nunca cobramos nada aos padres, nem mesmo ao próprio bispo. E não me importo que meu marido se sinta infeliz por causa dessa atitude, pois eu não me sinto!

As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto, mas ela manteve a cabeça erguida e a boca firme.

- Giuseppe e eu casamo-nos quando ele tinha vinte e dois anos e eu apenas dezessete. Se é por acaso um padre americano, suponho que não faça idéia de como nós, italianos, nos sentimos com relação a crianças. Uma vez ouvi dizer que a Itália era um paraíso para as crianças. Paris um paraíso para as mulheres e a Inglaterra um paraíso para os cavalos.

Acho que América é um paraíso para as atrizes de cinema e para os jogadores de beisebol - e mais nada!

Sei que todo mundo vive falando sobre as crianças na América. Sou cidadã americana, por falar isso; assim, sinto-me à vontade para criticar. Tudo é feito para as crianças na América! Escolas que são verdadeiros palácios, recreios, parques, leite, vitaminas, diversões, roupas... Não se encontra uma revista, um livro ou um jornal que não tenha um artigo ou uma história sobre crianças. Os rapazes e moças que aqui chamam de teenagers é que realmente governam o país. Não é de admirar que o país esteja cheio de jovens desobedientes e despreparados, que no fundo estão é mortalmente entediados. É isso mesmo, estão todos entediados. Eles têm ‘segurança’ - e, portanto, carecem de aventura, não há perigo em suas vidas, não há emoções, não existe o desconhecido. Não é de se estranhar que se vivam metendo em dificuldades, casando-se cedo demais e logo se divorciando. Até mesmo ao fazerem dezoito anos os jovens ainda pensam em si como crianças e mantêm Os seus anseios infantis! Eles detestam crescer, apesar de já estarem cansados de seus berçários esterilizados, dos pais, dos professores, dos médicos, sempre a paparicá-los, como galinhas imensas a cuidar dos pintinhos-gigantes.

‘Sabe de uma coisa que descobri recentemente? Uma família muito fina, que tem uma única filha, moça de treze anos, vai jantar toda noite de sábado em nosso restaurante. Margaret, a moca, é muito bonita. Apesar de ainda uma garota, é bem desenvolvida. Tem quase um metro e setenta centímetros com sapatilhas de ballet, coisa que sempre usa. E olhe que ela só tem treze anos! Gostamos muito dos pais dela e pensamos que os tivéssemos perdido como fregueses - eles dão sempre grandes festas em nossos salões particulares, nos feriados - quando lhes dissemos com firmeza que não podíamos servir vinho a Margaret. É a lei, como deve saber, embora crianças muito mais jovens bebam vinho regularmente na Itália e isso nunca lhes tenha feito mal algum. Nunca dei muita importância a essa mania americana do leite! Mas, voltando à história, eu disse para os pais: ‘Cassarão a nossa licença se servirmos vinho a Margaret. E, por favor, não dêem do seu vinho a Margaret, pois a lei o proíbe.’ A garota franziu-me o rosto, com raiva, e disse: ‘Nós, crianças, é que somos a lei e ninguém mais.’ Pensei que ela estivesse brincando e olhei para os pais, mas eles estavam quase fazendo o sinal-da-cruz. Juro que é verdade! Eles olhavam para aquela menina imensa quase como se ela tivesse acabado de rezar o rosário!

Agnes fungou num gesto de extremo desprezo.

- Mas isso não foi o pior! Quis apaziguar aquela criança atrevida e impertinente e disse-lhe: Você está crescendo, Margaret. Já é uma mocinha! Dentro de cinco ou seis anos estará pensando em se casar.

Tem alguma coisa de errado dizer isso? Nada, não é’ Mas, se eu tivesse dado um tapa ou chutado a garota, ela não me teria encarado com uma expressão mais horrorizada e incrédula! Não estou brincando: ela me olhou como se eu tivesse perdido o juízo. E de repente gritou: ‘Isso é mentira! Serei sempre uma criança! Todo mundo sabe que o mundo está cheio de gente grande e de gente pequena. Eu sempre pertencerei à categoria da gente pequena. Não vou crescer nunca! Isso é uma mentira!’.

Agnes ficou vermelha de indignação ao recordar-se da cena.

- Se a garota fosse estúpida ou uma dessas pobres retardadas mentais, eu teria compreendido. Mas ela é muito inteligente e sempre recebe boas notas na escola. Eu não podia acreditar em meus ouvidos. Olhei para os pais e vi a mãe passar rapidamente o braço pelos ombros da filha, realmente aterrorizado, dizendo-lhe: Ora, querida, é claro que você sempre será uma menininha, a nossa menininha. E depois a mãe fitou-me e disse: Como teve coragem de magoar uma criança desse jeito, Agnes? Assim pode até afetar a psique dela. Olhe, Padre, eu tenho um temperamento meio explosivo. Olhei para aquela moça crescida que julgava que seria criança a vida inteira, acreditando piamente nisso, olhei para o pai e a mãe, dois tolos, e disse-lhe bem irritada: ‘Sra. Knott, nada sei a respeito da psique dessa jovem, mas se alguém a está abalando, é precisamente a senhora! Ela não é mais uma criança, não é de jeito nenhum uma menininha! E já está mais do que na hora de que ela saiba disso!’ Saí da sala, fazendo um esforço tremendo para não explodir, desejando que eles nunca mais voltassem ao restaurante. Não podia suportar uma jovem sendo tratada daquela maneira, em detrimento de sua alma imortal. Tive que tomar uma dose de bicarbonato para me acalmar.

Agnes remexeu-se na cadeira, inquieta.

- Mas descobri uma coisa. Todo esse espalhafato.

cuidados excessivos, o alvoroço, as lamúrias com relação às crianças significam apenas uma coisa: os pais americanos não gostam dos seus filhos. Talvez até eles os odeiem! Isso não é terrível? Se amassem os filhos, pensariam neles como parte integrante da família, com deveres e responsabilidades para com ela. Amariam os filhos sem tantas tensões e ansiedades e saberiam como tratá-los com justiça, sem precisar de que ninguém os ensine ou lhes faça advertências através de livros e jornais. Não precisariam ler tantos livros e perder tanto tempo em conferências! Agiriam com naturalidade e seriam severos, obrigando os filhos à disciplina. Fariam com que fossem à igreja, quer quisessem ou não, e exigiriam que rezassem todas as noites. Depois das aulas, dariam sempre um trabalho para os filhos fazerem em casa. O amor implica ensinar a responsabilidade para com os outros e a reverência e o dever que se deve ter para com Deus, o amor a Deus, o amor aos pais, o respeito para com os mais velhos. Se as crianças tivessem essas coisas, não precisariam de grandes mesadas nem do que chamam de diversão. Não teriam as roupas esquisitas nem as danças malucas. Essas coisas, no fundo, nada significam. Se elas tivessem amor, amor de verdade, teriam então tudo o mais que realmente tem importância.

Agnes sacudiu a cabeça, desolada.

- Não sei por que estou falando tudo Isso. Acho que estava querendo mostrar o fato de que os americanos não amam realmente os seus filhos e, por isso, tentam compensar sua culpa de outras maneiras. Basta olhar para os rostos atrevidos e insatisfeitos das crianças americanas para ver como elas vivem entediadas mortalmente, para saber que os pais não as amam da maneira certa. Não acha que é bem difícil encontrar-se uma criança americana que pareça feliz’? Realmente feliz, apreciando a vida? Não me estou referindo às crianças ávidas e excitadas, sempre à procura de coisas novas e correndo, correndo, correndo sempre... De que será que as pobres crianças estão correndo? Creio que dos pais, com seus cacarejos, e dos professores... Não as culpo por correrem, só que elas não têm para onde ir, não existe Um só lugar que não esteja repleto de adultos, esperando para mimá-las e estragá-las com o que chamam de cuidados. As crianças querem crescer num mundo interessante, mas são eternamente mantidas como bebês, uma mamadeira enfiada em suas bocas. Não existe em parte alguma um interesse real por elas, pois a nossa sociedade tão bem organizada limitou-se a aprontar um nicho acomodado onde elas se possam aconchegar. Será que uma alma nasce apenas para isso?

Agnes alisou a manga do casaco, distraída.

- Um ninho acolchoado... Mesmo quando crescem, continuam a desejar o ninho acolchoado, sob asas protetoras, longe do frio, do tempo instável. Elas vivem apavoradas e isso não é de admirar!

Ela olhou para a cortina.

- Mas as pessoas na minha velha terra amam os seus filhos. Temos famílias grandes e quando a criança completa um ano já sabe qual o seu lugar na família e o que deve ou não fazer. Sabe que seus pais a amam, embora isso não implique uma tolerância para com quaisquer bobagens ou acessos e raiva. Por isso, vive satisfeita e sente-se segura. As crianças americanas nunca se sentem seguras.

Quando um menino italiano é crismado, sabe que se tornou um homem, não é mais uma criança. Isso não é nenhum choque para ele, Padre. Foi ensinado a transformar-se num homem quase desde o dia em que nasceu. Foi isso o que aconteceu com o nosso pequeno Joe.

Ela tirou rapidamente o lenço da bolsa e enxugou as lágrimas que lhe assomaram aos olhos.

- Cada casal italiano deseja ter uma família bem grande. O que há mais na vida, além de Deus e de uma boa família? As tias, os primos, sobrinhas, os avós, isso não é maravilhoso? Quando há um problema qualquer todos nós nos unimos, para ajudar. Não é apenas uma obrigação, é mais do que isso, é uma alegria.

Mas Giuseppe e eu... nós não tivemos filhos. Esperamos, ano após ano. Fomos a todos os santuários, consultamos tudo que é médico. Íamos à missa diariamente e comungávamos. Rezávamos o dia inteiro. Nossa família e nossos amigos sentiam pena de nós e rezavam também. Mas não vinha nenhum filho. Cheguei a pensar que talvez tivesse ofendido a Deus de uma maneira imperdoável. Ficávamos sentados em nossa casa grande e bonita, Giuseppe e eu, chorando desconsolados. Os médicos não tinham muita certeza do motivo pelo qual não tínhamos filhos. Alguns disseram que era um defeito físico de Giuseppe, outros disseram que era meu. Fiz duas operações... mas continuamos a não ter filhos. Construímos uma casa grande, com seis quartos, todos vazios e silenciosos, esperando pelas crianças que não vinham.

 

E então, quando já. tínhamos praticamente perdido todas as esperanças e eu já estava com trinta e seis anos e Giuseppe com quarenta e um, nasceu o pequeno Joe!

Seu rosto ficou radiante, o sorriso misturou-se às lágrimas. Ela inclinou-se na cadeira, cruzou as mãos.

- Era um menino grande e lindo, muito gordo, cheio de covinhas! Ele começou a sorrir antes mesmo de completar um ano de idade. Quase perdemos o juízo de tanta alegria! O médico disse que era um milagre - e foi mesmo! Estávamos construindo uma nova igreja em nossa comunidade e Giuseppe ofereceu todos os vitrais, de tão gratos que nos sentíamos.

Criamos o pequeno Joe da mesma forma que fôramos criados em nossa velha terra, dando-lhe todo amor que havia em nossos corações. Mas jamais abrandamos a disciplina. Não que ele precisasse muito disso, pois desde pequeno foi um menino maravilhoso, gentil, alegre, bom, doce, firme. Mas era também muito sério, algumas vezes até demais! Costumávamos brincar com ele. Mas, quando completou doze anos, descobrimos que brincava conosco apenas para nos agradar! Ele não queria mais brincar. Estava sempre estudando. Nós o mandamos para as melhores escolas e ele nunca parava de estudar.

Começamos a sonhar com o dia em que o pequeno Joe se casasse. Ele tinha então quinze anos e depois das aulas ia para o restaurante a fim de ajudar-nos. É claro que isso era a coisa certa, pois um filho deve ajudar os pais desde o início. Começamos a analisar os nossos amigos. Quem tinha a filha mais bonita, mais gentil, mais obediente e mais trabalhadora? Qual era a melhor jovem? Giuseppe e eu ficávamos conversando sozinhos na cozinha, muito tempo depois que o nosso último freguês já se fora. Analisávamos exaustivamente cada moça, enquanto Joe fazia dezesseis, dezessete, dezoito anos...

Tínhamos apenas Joe, mas ele nos daria uma porção de netos e finalmente teríamos uma família grande. Poderíamos então levantar a cabeça diante dos nossos amigos, ocupar todos os quartos da casa. Joe poderia seguir os passos do pai, se assim o desejasse, ou então seguir qualquer profissão que escolhesse. Isso não tinha a menor importância. Mas ele e a esposa iriam morar conosco e teríamos Os netos lindos sempre rindo e gritando ao nosso redor.

Agnes fez nova pausa, amargurada.

- Mas devíamos ter previsto! Deveríamos ter imaginado ao vermos Joe dispensando uma atenção especial aos padres que se sentavam à mesa que lhes reservávamos. Pensávamos que ele estava apenas sendo respeitoso e bem-educado, como lhe ensináramos, prestando a devida reverência aos sacerdotes. Ele passava horas conversando com os padres. Nunca os incomodávamos, pois é uma honra quando os padres demonstram um interesse especial por nossos filhos. Ao saírem, os padres diziam para nós: Vocês têm um rapaz maravilhoso, Agnes e Giuseppe. É uma alma muito nobre! Como se não soubéssemos disso! Não sabíamos, no entanto, na ocasião, o que os padres queriam dizer com essas palavras.

Jamais notei que, depois da conversa com os padres, o nosso Joe ficava mais quieto do que o normal. Também não sabia que, ao sair da escola, ele ia sempre visitar o Padre Vincent, da nossa paróquia. Se soubesse, teria clamado aos céus e exigido ao Padre Vincent que deixasse o meu menino em paz!

Joe está agora com dezoito anos. Vai formar-se na escola secundária em junho. Cerca de um mês atrás ele veio para casa com o Padre Vincent. Oh, meu filho querido! Os dois disseram-me, gentilmente, que Joe quer ser padre. Meu filho, que ia dar-me tantos netos, queria ser padre! Meu único filho! Os padres não tinham a obrigação de dizer a Joe que esquecesse o sacerdócio e ficasse com os pais, que precisavam muito mais dele?

Agnes soluçou desesperadamente.

- Padre, por favor, não me entenda mal! É uma honra de Deus se Ele escolhe uma de nossas crianças para ser padre ou freira. Mas uma entre todas as nossas crianças! Não o nosso filho único, que nasceu quando já havíamos perdido todas as esperanças de ter um filho. Se eu tivesse sete ou oito filhos e Joe fosse apenas um deles, eu teria dado graças a Deus por Ele ter escolhido Joe para esta honra, esta imensa honra. Mas nós temos somente Joe, que era a nossa esperança de netos. A nossa única esperança para a velhice! Precisamos dele mais do que... mais do que...

Ela curvou o corpo todo para a frente e soluçou incontrolavelmente.

- Meu único filho... meu único filho... Ele não deseja ser um padre paroquiano, quer ser missionário. Quer ir para longe e trazer para Deus aqueles que nada sabem a respeito d’Ele. Como se fosse um dos Apóstolos! Nós nunca mais o veremos então, ou só de vez em quando., O nosso pequeno Joe, o nosso único filho...

Ela gemia, desesperada.

- Eles me disseram que o nosso Joe tem a vocação religiosa. Ele quer ir para o seminário em setembro. Quando Giuseppe e eu recebemos a notícia, desmaiei no mesmo instante. Os cabelos de Giuseppe ficam mais brancos a cada dia que passa, mas ele diz: Mama, quando Deus chama, um homem pode apenas obedecer. E Joe procura confortar-me. Ontem mesmo ele me disse: Sei como se sente, Mama. Mas, Mama, gostaria que eu ignorasse Deus quando Ele me está chamando? Eu não consigo falar com Joe, Padre. Sinto que meu coração está em frangalhos, sangrando. O mundo é atualmente um lugar tão horrível... O que irão fazer com o meu Joe?

Não me canso de pensar nisso. O que o mundo irá fazer com o meu Joe, esse mundo que se torna mais sombrio e diabólico a cada dia que passa? Todos aqueles padres por trás da Cortina de Ferro... eles os matam, Padre! Quando vão começar a matar os padres no mundo inteiro e não apenas atrás da Cortina de Ferro? Padre, a gente lê os livros e as revistas e descobre que ninguém escreve sobre Deus. Ninguém quer Deus. O que querem são os aparelhos de televisão, casas de campo, automóveis novos, máquinas de lavar, maiores salários, salões de boliche, cinemas, boates... Eles não querem Deus, Padre. Preferem o que chamam de ‘segurança’.

A mãe sempre pensa nessas coisas, quando tem apenas um filho. Ela é mãe, gerou-o e criou-o, ensinou-o, amou-o. Ela tem medo do que o mundo irá fazer com seu filho, se ele se tornar padre. Ela sabe que se divertirão à sua custa, que o chamarão de ‘São Joe’, que ninguém irá realmente compreendê-lo, que ninguém vai querê-lo ao seu lado.. Se ele está numa festa, como eu mesma já vi acontecer, as pessoas ficarão pouco à vontade até que se retire. Ninguém quer o que ele tem para dar!

Ela escondeu o rosto nas mãos.

- Eles nunca quiseram, Padre, nunca... E por isso é que é tão terrível para uma mãe que tem apenas um filho.

Mas é um homem, Padre, não pode saber o que uma mãe sente. Sua mãe alguma vez sentiu medo por sua causa? É por acaso filho único? Ela ficou rezando enquanto o senhor ia para muito longe? Ela se apavorou com a idéia de que poderiam matá-lo? Oh, se ao menos eu pudesse falar com uma mãe na mesma situação em que estou, tenho certeza de que ela compreenderia!

Agnes levantou-se, cega pelas lágrimas. Correu até a cortina e apertou o botão.

A cortina abriu-se instantaneamente e Agnes foi envolvida pela glória da luz ofuscante. Ficou olhando e finalmente caiu de joelhos. Sussurrou:

- Sim... Vossa mãe sabia. Ela sabia o que significava ser uma mãe como eu, com um único filho. Ela sabia o que era ter medo, não é? Ela sabia muito bem o que o mundo era. Mas ela nunca tentou impedir-Vos, nunca pediu para que não seguísseis o Vosso caminho. Ela sabia que Vós teríeis de deixá-la para irdes falar ao povo sobre Deus. Mas fico pensando em como ela devia sentir-se nas noites solitárias em que seu filho não estava em casa.

Agnes levantou as mãos e entrelaçou-as.

Serei como Vossa mãe, da melhor forma que me for possível. Irei dizer o que se diz em nossa velha terra: Vá com Deus! Direi isso ao pequeno Joe. Porque, se eu não o disser, ele me ama tanto que não irá.

Ela levantou-se e tentou sorrir por entre as lágrimas.

- E vou também acabar aquela suéter preta para ele usar no seminário. Vossa mãe algum dia fez algo assim para manter-Vos aquecido? Ela fez, lembro-me agora. Foi o manto sem costuras.

ALMA DEZ

O Fariseu

Pois Já conheci a tudo e a todos, por completo: Já conheci as noites, as manhãs, as tardes, Já medi a minha vida em colherezinhas de café.

T. S. Eliot: A Canção de Amor de J. Ali Prufrock

Alexander Damon sentou-se na confortável poltrona perto da janela do seu quarto no mais moderno e luxuoso hotel da cidade. Era um homem alto e esbelto, bastante elegante e ágil, em torno dos quarenta e cinco anos, com olhos azuis sempre brilhando, cabelos pretos e lisos, feições bonitas. Olhou para o relógio. Eram apenas quatro e meia. Dirigira seiscentos quilômetros naquele dia e sentía por isso o maior orgulho. Naquele ritmo, chegaria a Reno depois de amanhã, começando então, mais uma vez, a tediosa espera de seis semanas para obter o divórcio. Ele não era um jogador e detestava jogar - não por uma questão de princípio, mas porque um homem com o seu temperamento não encontrava o menor interesse no jogo. O jogo, mesmo como recreação, exigia pelo menos um mínimo de atenção - e quando ele tinha algum lazer à sua disposição, utilizava-o sempre de Uma maneira muito mais desastrosa.

Três esposas: Sue, Elien e Moira. Mulheres cansativas, sem graça. Gostara mais de Moira do que das outras. Moira, com seus cabelos vermelhos e sempre disposta, os olhos castanho claros e a pele muito branca. Em três anos, no entanto, ele se cansara dela como se cansara das outras esposas. Costumava dizer para si mesmo que tinha uma propensão calamitosa para escolher exatamente as mulheres mais insípidas. E como as mulheres eram mentirosas! Cada uma de suas esposas - Sue, Ellen e Moira - lhe dera a impressão de ser estimulante e viva, de ser excitante, de possuir algo que o levaria a alguma descoberta maravilhosa. Algo significativo. Mas sempre acabara verificando que eram mulheres comuns e desesperadamente maçantes. ...As mulheres vêm e se vão, falando de Miguel Angelo.

Ele olhou inquieto pela janela. Estava muito cansado, Viu as multidões habituais de uma tarde de outono a desfilarem pelas ruas, sob um céu de topázio, o que era freqüente numa tarde de outono. Era uma cidade bonita para uma grande metrópole, admitiu condescendente. Lembrava um pouco Nova York. Era limpa e imponente, com um pouco da atmosfera do Sul, embora não ficasse no Sul. Talvez fosse a claridade do céu, a maneira como a luz refletia nas paredes dos edifícios, fazendo-os brilhar como se construídos de mármore colorido. Por alguns minutos a cidade prendeu seu interesse. Mas logo se acabou, não se desvanecendo lentamente, mas apagando-se de súbito, como uma luz que se desliga e provoca a escuridão. E logo em seguida a essa ausência de interesse veio-lhe a náusea tão familiar no fundo do estômago, o desespero tão seu conhecido, sombrio e vazio, sem ruídos, sem movimentos, sem visões. Roubava toda a vitalidade de seu corpo, amolecia-lhe os músculos, sugava a sua vida. Não era o desespero ativo, que levava um homem ao suicídio, embora tivesse a mesma intensidade. Era simplesmente uma profunda inércia, uma apatia total. E ali estava ele, inerte, enquanto o dia chegava ao fim e a luz ia-se aos poucos extinguindo. Depois de muito tempo, virou a cabeça e olhou para a sua mala. O couro de boa qualidade ainda brilhava ao crepúsculo. Tornou a olhar para o relógio. Cinco horas. Ele vivia sempre preocupado com as horas. Aquilo era prova suficiente - costumava dizer aos médicos, impaciente - do controle que tinha sobre si mesmo. Ele sempre esperava até cinco e meia. Encostou o relógio no ouvido. Estava funcionando, mas muito lentamente. Aquela última meia hora era inevitavelmente a pior. Não que ele ansiasse por aquela maldita porcaria, pois inclusive detestava o sabor. Achava que eram mentirosos todos os que olhavam para seus copos cheios de uísque com uma antecipação radiante. Quem poderia, sinceramente, suportar o gosto do álcool, apreciá-lo? Era acre demais, tinha um cheiro horrível, e o primeiro gole do primeiro drinque era tão insuportável quanto um dedo metálico enfiado pela nossa goela abaixo! Quem poderia apreciar tal coisa?

Os mentirosos podiam fingir que gostavam, mas no fundo queriam apenas a mesma coisa que ele: o efeito da bebida. Se era o sabor que procuravam, então havia outros melhores, inclusive o do ginger ale e do suco de laranja. Mas a maioria das pessoas tinha uma natureza mesquinha e o efeito que desejava era também mesquinho. Graças a Deus ele tinha um apetite imenso por experiências de todo o tipo - ou pelo menos costumava ter!

Estava novamente começando! Ele levantou-se e começou a andar pelo quarto. Deveria sair, dar uma volta e depois parar em algum bar? Não, a presença de outras pessoas cansava-o, irritava-o, desgostava-o. O que mais sentia era Irritação. Havia sempre uma alma jovial, disposta a puxar conversa com um homem sozinho, e ele sempre acabava por falar com o caipira. Como eram poucas as pessoas inteligentes, ele logo descobria que o outro era um desses homens cujos interesses giram em torno de esporte, mulheres, notícias locais e escândalos, referindo-se algumas vezes às nefandas Iniciativas dos políticos locais ou da junta educacional. Era muito pior quando o sujeito era um estranho na cidade, em viagem de negócios, pois sempre tinha então a carteira recheada de fotografias dos filhos com cara de retardados e de uma esposa constituída apenas de dentes, pernas gordas apertadas numa calça justa e cabelos cortados rente. (Graças a Deus que Moira tivera a inteligência de não cortar os seus compridos cabelos ruivos. Ela, pelo menos, parecia diferente das outras mulheres do país, do mundo todo, onde as pessoas cada vez mais pareciam não ter um rosto definido.) Depois de alguns drinques, o novo amigo ficaria sentimental e certamente perguntaria:

- Tem filhos?

Maldita Moira! Quando sentira vontade de divorciar-se dela? Seis meses atrás. Por quê? Não conseguia lembrar-se, embora soubesse que a vontade lhe surgira subitamente.

Ele passou diante da cômoda e parou. Ali estava o cardápio do restaurante do hotel, com os pratos comuns a qualquer lugar, a comida sempre com o mesmo gosto, quer fosse Nova York, Filadélfia, Londres, Cincinnati, Brooklyn, Paris Roma ou Chicago. Será que todos os chefs aprendiam na mesma escola? Viehyssoise era um insulto branco e pastoso ao paladar, onde quer que fosse comido. O cardápio podia ser em francês, italiano, inglês ou alemão, jamais variava. Até mesmo o queijo, que outrora tinha um sabor distinto para cada uma de suas muitas variedades, um sabor forte e picante, tornara se uma coisa amena, que deixava um gosto ruim na boca. O mundo todo estava se tornando ameno, insípido, sem características definidas. Ele estava cansado disso, estava enojado. Desejava que sobreviesse algum desastre, que alguma fúria selvagem... Não que odiasse o mundo. Era civilizado o suficiente para tolerá-lo. Somente desejava que alguma coisa acontecesse, algo de emocionante, algo que faria... O que, exatamente? Ele não sabia.

Havia também um folheto sobre a cômoda, pequeno mas impresso num papel de excelente qualidade, com uma fotografia na capa: O Prédio-Monumento de John Godfrey. Alexander adorava prédios de todo tipo. Aquele pareceu-lhe bastante estranho. Tinha o aspecto de um pequeno Partenon de mármore, embora sem as colunas. Aproximou-se do abajur e examinou-o atentamente. Era realmente interessante. O teto era chato. O terreno parecia erguer-se numa ascensão suave, repleto de árvores, bancos de mármore, canteiros de flores, caminhos sinuosos. A construção era muito pequena para um museu, uma biblioteca ou um templo religioso. O que seria então?

Inquieto, largou o folheto. Que importância aquilo podia ter? Nunca veria aquele prédio, não estava absolutamente preocupado com o seu mistério, numa cidade anônima como aquela. Gostava, aliás, da idéia de deixar um mistério atrás de si, por menor e mais insignificante que fosse. Tornara-se uma espécie de fetiche para ele, ao longo dos anos. Você e sua maldita distinção! Será que não imagina como é cansativo com esse seu ar de entediado? Fora Moira quem lhe gritara tal coisa. Será que fora nesse momento que resolvera divorciar-se dela?

Ele olhou para o relógio. Cinco e vinte. Dentro de dez minutos poderia abrir a mala e tirar a garrafa de bourbon. Passaria uma ou duas horas entregue a si mesmo. A escuridão e o desespero dele se esvairiam lentamente. Ligaria depois para a copa. Disse então em voz alta e determinada, como que a lembrar a um companheiro distraído que certamente se esqueceria de comer se não fosse orientado:

- Ligarei para a copa às oito horas, nem um minuto depois.

Afinal, tinha que estar a caminho às sete horas da manhã, o mais tardar.

Deixara o folheto em cima da cômoda. Tornou-se subitamente interessado. Por que deixar aquele mistério local atrás de si? Moira e suas presunções. Maldita Moira!

Maldito todo mundo! Tornou a pegar o folheto e sentou-se, sorrindo indulgente para si e para o folheto. Iria logo verificar que aquela construção era um centro das Filhas da Revolução Americana, um lugar para exposições de flores ou conferências sobre assuntos domésticos. Sentiu a mão pesada, embora quase sem tato, o desespero a invadi-lo cada vez mais.

Mas o que estava escrito no folheto não era grandiloqüente como ele esperava. Havia uma fotografia do arco por cima da porta alta de bronze: O Confessor. Hã! Não restava a menor dúvida de que era um sacerdote ou um psicólogo social, talvez um conselheiro matrimonial, um professor, qualquer tipo de gente dedicada à chamada prática do bem. Alexander leu. O prédio fora construído dez anos atrás por John Godfrey, um velho advogado local, em memória de sua esposa, Stella. Por Deus, era uma espécie de Taj Mahal dos pobres! Mas que velho tolo e gagá! Certamente havia fontes lá dentro, pequenos caramanchões cobertos de plantas, o cheiro forte da vegetação de uma estufa. Flores exóticas e estranhas. Iluminação suave. Até que ponto um velho conseguia permanecer lúcido?

O folheto informou-o:

O prédio foi construído porque o Dr. Godfrey achava que hoje em dia ninguém mais ouve ninguém. Ele achava que era desesperadamente necessário que os homens se ouvissem uns aos outros, como ouviam no passado os trovadores, sacerdotes, poetas e filósofos. Ele achava que o tempo provocara alguma espécie de fragmentação; embora houvesse mais lazer no mundo que em qualquer outra época anterior, havia também menos tempo, menos sensatez, menos sentido, menos raízes, nenhuma segurança real. E, em conseqüência, mais desespero e solidão.

E assim ele construiu este santuário, como alguns o chamam, onde alguém ouvirá qualquer um que apareça. Não há um tempo fixado. O visitante pode levar apenas dez minutos, uma hora ou até mesmo duas. O prédio está aberto vinte e quatro horas por dia. É mantido pela Fundação Stela Godfrey, criada pelo Dr. Godfrey, seu marido.

O quarto ficou mergulhado na escuridão. Alexander Damon fitou o espaço à sua frente, o folheto solto em sua mão. Cinco e meia passou e os ponteiros chegaram às seis horas. Ele estremeceu subitamente quando Os SinOS das igrejas começaram a tocar, enchendo a tarde suave de outono e penetrando até o interior do quarto. Olhou para o relógio.

Seis horas! O que estivera fazendo todo aquele tempo? Certamente não estivera lendo. Teria adormecido? Não era possível. Estava sempre muito tenso e naquela tarde ficara mais tenso do que nunca, pela longa viagem de automóvel. Jogou o folheto longe, foi até a mala e tirou a garrafa de uísque. Foi em direção ao telefone, para pedir à copa que lhe mandassem gelo. O folheto estava caído perto de uma cadeira, onde o jogara, com o seu pequeno Partenon branco a fitá-lo. O Confessor (O Homem que Ouve).

- Ouve o quê? - murmurou ele, em tom de desprezo.

- Ouve a toda dona-de-casa, aos garotos delinqüentes, motoristas de caminhão, médicos ineptos, advogados fracassados e merceeiros que querem apresentar suas lamúrias? O Confessor... Beberei um pouco em sua homenagem, meu caro senhor, solidarizando-me com a sua incômoda posição.

Apesar da explosão, ele tornou a pegar o folheto e virou uma página.

Este folheto foi deixado em seu quarto para informá-lo de que alguém está esperando para ouvi-lo, se é que sente tal necessidade. Centenas de visitantes de nossa cidade já foram ao monumento que John Godfrey construiu em memória de sua esposa. Ninguém sabe quem é o confessor. Ou, se alguém sabe, jamais o disse. Você está convidado a entrar, a qualquer hora do dia ou da noite, neste prédio e falar com O Confessor.

Alexander sempre se orgulhava do fato de que, apesar de ser um cavalheiro e um homem bem-sucedido, um intelectual, estava constantemente procurando manter-se atualizado com os jargões mais modernos.

- O que tenho a perder? - perguntou para si mesmo, rindo. - Além do mais; talvez seja até divertido, uma boa história para contar ao pessoal.

Dentro de três meses ele seria o convidado especial de um apresentador espirituoso que tinha um programa de televisão bastante popular, transmitido em cadeia para todo o país: Conheça-o Agora. O Sr. Alexander Damon, arquiteto famoso, contador de histórias, grande personalidade. Autor do livro extremamente espirituoso Por que Construir? Ninguém que desejasse construir um prédio com mais vidros e aço do que qualquer outro já construído poderia deixar de procurar Alexander Damon. Ele fazia prédios para escritórios ou moradia, sempre mais bonitos, maiores, melhores, com o ar Interior todo controlado, portas de aço coloridas, novos chãos milagrosos, muito alumínio, cromados - mas nada cintilante ou de mau gosto. Tudo tranqüilo, moderno, eficiente. Tudo funcionando ao simples toque de um botão. Tudo elegante e prático, sem exigir o menor esforço do ocupante. Agradável de se viver ou trabalhar.

Agradável...

Um relato da visita ao pequeno Taj Mahal de John Godfrey seria algo bem divertido e os telespectadores iriam adorar. Nada havia que se apreciasse tanto atualmente quanto a malícia cintilante, enunciada com a maior elegância. O efeito era devastador. Mas não para os néscios, que ficavam desconcertados e preferiam o humor grosseiro e direto. Mas quem se importava com eles? O que dissera mesmo aquele cientista, preocupado com a explosão demográfica mundial, sobre o terrível perigo de um aumento incontrolável dos imbecis deste mundo? Falando com toda seriedade, ele dissera:

- Seria necessário explodir várias bombas de hidrogênio a cada três anos para manter em nível aceitável a população de baixo nível intelectual.

Ele falara a sério. Se necessário, as nações teriam que recorrer a tal expediente.

- Esplêndido - disse Alexander em voz alta, vendo o rosto de Moira à sua frente.

Pôs a garrafa de uísque em cima da mesinha. Precisava realmente visitar aquele Taj Mahal. Formulou algumas frases mentalmente e sorriu. Talvez aquela cidade ficasse tão constrangida com o que diria no programa que terminaria por derrubar aquele prédio infernal e ridículo, construindo em seu lugar um belo edifício de apartamentos, com varandas de pedra e alumínio.

Alexander tornou a sorrir, deliciado, de puro ódio. Odiava tudo o que fosse popular, que vendesse muito, fosse Largamente aceito, revelando a vulgaridade do público em seu ponto mais crítico. Ele detestava os grandes homens de negócios, os políticos impertinentes, os deselegantes, os que apreciavam as coisas abertamente. Ele detestava Hollywood e todos os filmes (exceto é claro, alguns poucos filmes esotéricos estrangeiros), os grandes restaurantes cheios de fregueses e cheiros, as mulheres simples e boas sem a menor sutileza (como as mulheres americanas, por exemplo), os automóveis americanos, o american way of life, o que quer que isso significasse! Adorava os livros de poesia modernos que tão pouca gente lia, exceto os que eram como ele. Adorava Joyce, porque somente umas poucas pessoas eram capazes de compreendê-lo. Adorava a dança, contanto que fosse ballet russo ou inglês de preferência. (Os americanos não sabiam de fato dançar o ballet muito bem.) Mas como era um liberal, adorava também as espeluncas imensas e apinhadas, às quais se ia depois do teatro, onde se podia comprar um proletário hambúrguer por dois dólares e um copo de cerveja estimulante por um dólar, misturando-se com o povo. Adorava o povo, contanto que este não se intrometesse em sua vida. Podia tornar-se muito eloqüente, ao falar sobre o povo. Ingênuo, rude, inculto. Sempre se referia a ele dessa maneira. Nunca vira o povo. Mas, como um liberal, adorava-o mesmo assim. A virtude está no povo. As multidões que palmilhavam as ruas de Nova York não eram o povo, para ele e as pessoas de sua espécie. O povo vivia em algum lugar perdido no espaço ou era meramente um símbolo.

Vocês todos não passam de uns pretensiosos - dissera-lhe Moira. - Estão tão isolados como bebês em incubadoras.

Será que fora então que começara a desprezá-la? Moira não passava de uma estúpida!

Precisava realmente visitar o Taj Mahal. Esqueceu-se até de abrir a garrafa de uísque. Sorrindo alegremente, vestiu o sobretudo preto, feito em Londres, e pôs na cabeça o chapéu preto, também de Londres. O ridículo do Taj Mahal americano chegaria aos ouvidos dos correspondentes europeus que então escreveriam artigos para os seus jornais e revistas sobre a ingenuidade e a extrema falta de sofisticação do povo americano. Um jornalista londrino, certa vez, escrevera a seu respeito: O Sr. Alexander Damon, o arquiteto, é um dos poucos autênticos intelectuais americanos na atualidade. Alexander adorava dizer bons mots sobre os americanos, largamente citados na Europa, especialmente na Rússia.

Alexander estava quase feliz quando pegou um táxi para seguir até o Partenon de John Godfrey. (Tinha alguns indícios de zen-budismo.) Ele considerava os motoristas de táxi como partes integrantes do povo. Eram todos Sócrates espirituosos, sensatos e analfabetos. Ele perguntou:

- Já esteve no prédio que John Godfrey construiu?

- Não - respondeu o motorista, de mau humor.

O que se podia esperar fora de Nova York? Até mesmo os motoristas de táxi eram estúpidos.

- Leva muita gente até lá?

O motorista ficou calado.

Ele examinou o interior do táxi com aversão. Era tipicamente um trabalho americano. Com o sangue-frio que habitualmente assumia ao falar com gente do povo, ele perguntou:

- Por que vocês não preferem os carros europeus? São mais rápidos, mais ágeis e bebem menos gasolina. Não há nada como um carro estrangeiro. Eu tenho um Mercedes Benz esporte.

- Tem mesmo? - falou o motorista.

Seu pescoço era grosso e agora estava inteiramente vermelho. Ele não se virou ao acrescentar:

- Olhe, seu moço, eu tenho um filho que mora com a família em Detroit. Ele trabalha numa das fábricas de lá, fazendo carros. Com seus carros estrangeiros, o senhor está querendo apenas fazer com que ele perca o emprego. O que eles podem fazer lá fora melhor do que os carros americanos? Vamos, diga-me! Se as pessoas querem carros pequenos, temos todos os instrumentos em Detroit para fazer melhor do que na Europa. Ou será que o senhor é um desses comunistas, que acham que tudo lá de fora é melhor do que o que temos aqui?

Alexander ficou desconcertado. Mas logo se lembrou de que estava no interior, onde todo mundo era cem por cento americano, não importa o lugar onde houvesse nascido. Mas ele sabia como tratar o povo. Espiou a licença do motorista e disse:

- Ora, Bob, você sabe muito bem que a Europa tem alguns talentos que no temos, não é?

- Claro, claro... Mas aqui somos todos europeus, não é mesmo? Seus pais ou avós ou mesmo os antepassados mais distantes eram europeus. Não está pensando que somes todos índios, não é? Acho que está confundindo as coisas, moço.

Alexander não respondeu. Sentia calor e muita repugnância. Gostava de encontrar amor e humildade no povo, uma ansiedade em aprender obedientemente. Gostava de sentir a vontade do povo de ser conduzido pelos líderes naturais, a elite intelectual. Aquele motorista decididamente não fazia parte do povo.

O motorista parou o táxi e disse asperamente:

- É um dólar e cinqüenta, moço. Não posso ir de carro até lá em cima. Vai ter que andar um pouco.

Alexander saiu do carro. Contou exatamente um dólar e sessenta e cinco cents e pagou. O motorista olhou para o dinheiro e resmungou antes de partir:

- Eu já devia ter imaginado!

Alexander riu suavemente. Aquele idiota era como qualquer motorista de táxi de Nova York. Nada queria que não fosse dinheiro. Era assim a América. E subiu pelo caminho sinuoso de lajes vermelhas. A iluminação era difusa, quase européia em seus efeitos, sem clarões ofuscantes. Também no havia nenhum cartaz de gás néon. Esperara encontrá-lo, em cores diversas, apagando e acendendo, azul e rosa, as letras púrpuras.

Venha! O Confessor!

Como se fosse um templo revivalista. Mas era totalmente diferente.

O pequeno prédio de mármore erguia-se em sua pureza contra o céu escuro, brilhante e simples. E é uma obra de arte, pensou Alexander. O lugar transmitia também uma carga grande de emoção, de forma contida e serena. O caminha sob os seus pés fazia-o recordar-se de Oslo, Roma e Estocolmo. Não era concreto nem asfalto, coisas que não seriam apropriadas - e ele detestava tudo que não o fosse. Os homens que haviam construído o prédio e arrumado os jardins eram bastante sofisticados e conheciam a fundo a profissão. Ele próprio não teria feito um projeto melhor.

Logo depois concluiu também que não poderia ter imaginado nada mais repousante e bonito do que aquela sala de espera. Não se poupara dinheiro. Onde aquele velho advogado tolo conseguira tanto dinheiro naquela cidade? E o decorador? Conseguira um efeito dos mais repousantes. Não havia móveis modernos, nada em forma de ameba, nenhuma mesa de vidro com desenho livre e um ou dois pés caindo de forma grotesca. Alexander Damon lembrou-se de que desenhara um escritório com móveis desse tipo. Fora inclusive fotografado por uma revista de circulação nacional, e isso enchera-o de horror. A dizer a verdade, tudo o horrorizava. Ele sentou-se, de sobretudo e chapéu, olhando firme para a frente.

- As coisas horríveis - disse ele em voz alta.

Ele era o único que ali estava. A hora proletária de jantar... Tocou uma sineta.

- É para mim? - perguntou cortesmente.

A sineta tornou a tocar. Ele levantou-se sorrindo na antecipação, passando para outra sala, toda de mármore branco, com uma cortina de veludo azul escondendo uma alcova e uma cadeira também de mármore.

Sentou-se na cadeira de mármore e olhou para a cortina.. Não havia o menor som, o menor Indício de pressa, nenhum sussurro estridente. Não havia na sala nenhuma sensação de coisa divertida. Nas paredes brancas nada estava pendurado. Elas o contemplavam, bem iluminadas, esperando.

Ninguém lhe fez pergunta alguma nem demonstrou o menor sinal de impaciência. Ele continuou sentado, esperando. A sala esperou junto com ele. O que dizia mesmo aquele folheto? Todo o tempo que houver.. .

- É esse justamente o problema - disse ele finalmente para a cortina. - Há tempo demais.

Ficou consternado com o seu descuido. Em voz fria, acrescentou:

- Devo ser franco. Não estou aqui porque tenha um problema. Vim a este prédio apenas como um investigador. Não vou dizer-lhe minha profissão nem meu objetivo, pois considero tais coisas -irrelevantes.

O que havia de errado com ele? Então sua profissão era Irrelevante, sem importância? Devia ligar para seu analista naquela mesma noite. Quando um homem acha que seu trabalho não tem importância, então é que está realmente próximo do fim.

- É por acaso psiquiatra? - indagou em tom de desprezo. - Não que eu antipatize com os psiquiatras, pois acho que precisamos de toda ajuda que pudermos encontrar. Eu próprio tenho um analista. Se houvesse mais psiquiatras na América, nós todos poderíamos entender-nos melhor a nós mesmos. Conhece-te a ti mesmo, disse Sócrates. É uma excelente idéia. Meu analista assegura-me que me conheço integralmente. O problema é que tenho uma terrível propensão a escolher esposas que não servem para mim. Ele examinou minha última esposa, Moira, e ficou convencido, da mesma forma que eu, de que foi a mais estúpida de todas as escolhas que fiz. Ela não tem bom gosto, nenhuma classe, apesar de ter-me convencido do contrário antes de nos casarmos. Moira é uma mulher insípida e perseverante apenas, embora seja pintora. Mas tenho certeza de que todas as mulheres são assim, insípidas e perseverantes. Deve ser a necessidade biológica, o impulso irresistível para fazer um ninho. Mas quem poderia Imaginar que o mesmo se aplicasse em relação a Moira, a pintora modernista? A verdade é que vivemos apenas de enganos.

Não havia o menor ruído na sala, nenhum movimento, nenhum murmúrio do tráfego lá fora.

- Todo psiquiatra - e tenho certeza de que o senhor não é exceção - quer conhecer a nossa origem, desde o nascimento, os traumas infantis, como eram os pais, os Irmãos, os professores, os colegas, os parentes. Só assim eles conseguem atribuir a culpa a quem de direito, por todas as nossas misérias e existência sem sentido.

Ele inclinou-se para a frente, corando.

- Desculpe, foi um lapso da minha parte, pois minha vida tem de fato um sentido. O único problema é que não encontro o menor sentido na vida dos outros. Eles existem apenas como obstáculos, diminuindo o fluxo de nossas idéias, entusiasmos e sonhos.

Ninguém falou. Alexander Damon esperou algum tempo para continuar.

- E quando se descobre isso, então nada mais resta, não há vida, não há drama, nenhum significado, nenhum prazer, nada por que se esforçar, nada que esperar, nada por que trabalhar. Não há mais alegria, vitalidade, emoção, paixão ou impulso - não há nenhum objetivo. Matamo-nos uns aos outros, não com uma faca honesta ou um golpe violento, mas através da nossa inércia. Este é o verdadeiro assassinato. E desde a infância que estou sendo assassinado, por pessoas insignificantes, por conformistas, pela repetição, a repetição incansável.

Ele sorriu ligeiramente para a cortina.

- Li o seu folheto. Se a pessoa não deseja ver o rosto do psiquiatra que a está ouvindo, então não precisa apertar o botão. Não tenho a menor intenção de apertá-lo. Prefiro que me ouça em silêncio e no anonimato.

Quero ser absolutamente franco. Vim até aqui para desmascarar essa bobagem tola. Sempre fui uma pessoa honesta. Tenciono falar deste lugar quando aparecer num programa de televisão chamado Conheça-o Agora. É bastante sugestivo, não acha? Tenho certeza de que conhece o programa, pois este é razoavelmente civilizado, bem aceitável, um dos poucos programas aceitáveis da televisão. Disseram que tem um índice de audiência bem elevado, o que me surpreende. Eu tinha a impressão de que o público preferia os tiroteios dos filmes de bandido e mocinho e o que eles chamam de situações do drama doméstico. Mas o Sr. Brewster - nós o tratamos de Gene - é bastante popular. Todas as pessoas inteligentes assistem ao seu programa. A massa, é claro, já está na cama na hora em que o programa vai ao ar.

Alexander esperou, olhando com frieza para a cortina.

- Já viu os programas dele, não é?

Por que persistia aquele maldito silêncio, que parecia ainda mais profundo na sala de mármore branco? Há!, o Homem que Ouve...

- Eu também sou um ouvinte. Na verdade, parece que foi só o que fiz durante toda a minha maldita vida! De qualquer forma, vou mostrar todo esse sentimentalismo piegas na televisão. Espero que não se incomode. Afinal, quando suar identidade se tornar conhecida, o senhor terá mais publicidade do que já teve em toda a sua vida! É este o seu objetivo?

Ele sacudiu os ombros, resignado com o silêncio.

- No final, tudo se resume aos rapazes da Madison Avenue, o paraíso dos publicitários. Compreenda, não o estou condenando. Todos nós vivemos da publicidade, não é mesmo? E devo reconhecer que a maneira como o senhor se anuncia, discretamente, é das melhores que já vi. Eu próprio não teria feito melhor. É claro que o senhor sabe como se originou a divulgação. Os romanos e os gregos praticavam-na, assim como os egípcios, antes deles. A divulgação significava então mostrar as palavras que se pronunciavam às outras pessoas. Até a mais estúpida das mulheres tinha acesso, pois as cartas, pergaminhos ou documentos apareciam pregados nas paredes da cidade. Catilina tornou-se famoso por isso. Ele fazia-o de forma extremamente dramática, pregando o texto escrito dos seus discursos nas paredes dos templos com um punhal. Era algo surpreendente e chamava imediatamente a atenção do populacho. Não tinha a menor importância que cada punhal custasse quinhentos sestércios, pois os resultados compensavam amplamente. Hoje, no entanto, os nossos políticos são muito estúpidos. Não têm a menor imaginação e são obrigados a contratar pessoas para lhes fornecerem idéias, que então divulgam pelo rádio e televisão como sendo suas. É a eminentemente próspera atividade de relações públicas.

Fez uma pausa. Sentia uma dor desesperadora arrastando-se implacável e dolorosamente ao longo dos seus nervos. Era a sede, irresistível.

- Não é que eu seja um alcoólatra. Meu analista assegurou-me que não o sou. É simplesmente que não consigo suportar...

Ele interrompeu a frase bruscamente, ficando Imóvel por um Instante e logo explodindo:

- Eu não consigo suportar a vida!

Esfregou as palmas das mãos uma na outra, repetidas vezes, num gesto imemorial de desespero, embora não tivesse consciência disso. Em tom de desculpa, murmurou:

- É uma idiotice dizer tal coisa. Nunca a deixe escapar para o meu analista. Tenho certeza de que, se lhe dissesse uma coisa tão estúpida assim, ele recomendaria Imediatamente um tratamento de choque, argumentando que eu me estava tornando maníaco-depressivo. Mas se é coisa que absolutamente não sou é um depressivo. Quanto a Isso, pode aceitar tranquilamente a palavra de um dos seus colegas. Nem mesmo sou um maníaco-depressivo-maníaco. Sou uma pessoa normal. Se algumas vezes bebo em excesso, quem pode culpar-me por isso? Ninguém, absolutamente ninguém!

Ele levantou-se, inquieto.

- Receio estar ocupando o seu tempo em demasia. Mas o senhor não encontra muitas pessoas como eu nesta cidade, não é mesmo? Talvez tenha interesse em ouvir alguém que não está com joanetes nem resfriado, que não veio procurá-lo por causa dos filhos adolescentes desnorteados ou em decorrência de uma briga com a esposa, os problemas tolos do dia-a-dia americano. Um dos meus amigos, gerente de uma agência de publicidade, disse-me que os problemas dos estúpidos eram a base dos grandes negócios da América. Eles criam desejos, necessidades e anseios para satisfazer os problemas. Em outras palavras: dê a um homem cuja alma está sofrendo um lindo pirulito com sabor de morango. Isso resolve qualquer caso. Enquanto o estúpido chupa o pirulito e sorri, o problema desaparece. A alma logo pára de sofrer, enquanto a pessoa fica se deliciando com o pirulito. Espero que compreenda que estou me referindo à alma em seu sentido mais livre, como psique. Uma alma sofredora...

Teve a súbita sensação de que alguém se aproximara dele e o ouvia mais atentamente do que nunca. Ele sacudiu os ombros e sorriu.

- Sabe o que me acontece quando bebo demais, que é o que geralmente faço? Está vendo como estou sendo franco? E olhe que nenhum alcoólatra é franco assim! Quando cursamos a escola preparatória, estudamos Swlnburne, aquele poeta vitoriano sombrio e simples. Quando começo a beber, lembro-me logo do seu Jardim de Proserpina. Recordo-me somente de uma estrofe, que não me canso de recitar. Posso repeti-la aqui?

Alexander Damon não esperou pela resposta:

- Estou cansado de lágrimas e risos, De homens que riem e choram; Do que pode vir depois Para os que plantam sua colheita; Estou cansado dos dias e das horas, Botões desabrochados de flores infecundas, Estou cansado dos desejos, sonhos e poderes, Estou cansado de tudo que não seja o sono.

Ele fez uma pausa rápida, logo acrescentando:

- Eu bebo para dormir, apenas para dormir, para esquecer...

Ajeitou-se na cadeira. Estava exausto, mas de certa forma um pouco aliviado.

- Botões desabrochados de flores infecundas... Toda a minha vida foi infecunda, insignificante, sem o menor sentido.

Ele tornou a fitar a cortina, procurando manter-se firme.

- Não que eu me esteja queixando. A vida de todo mundo é assim. Ninguém jamais teve uma existência fecunda. Nem mesmo Cristo. A vida dele então foi a mais infecunda de todas. Não concorda comigo? Já se passaram dois mil anos e até hoje ainda não existe um verdadeiro cristão. Aliás, quando se pensa nisso, descobre-se que em parte alguma existem pessoas realmente religiosas. Pode imaginar uma pessoa religiosa trabalhando em relações públicas, no alto mundo dos negócios ou em qualquer outra atividade? A própria idéia já é por si uma calamidade. Conheci outro dia um jovem escritor judeu. Ele se dizia um talmudista. Estava escrevendo um livro sobre o seu Deus. Eu lhe disse que nunca encontraria um editor para uma idéia tão ingênua. Mas ele retrucou: Ë claro que’ encontrarei. Afinal, a cada geração precisamos de uma nova afirmação da presença de Deus em nossas vidas. Todo mundo na mesa riu, eu mais do que os outros. Moira, minha atual esposa, ficou bastante indignada. Disse-me que eu bebera demais. Mas todas as minhas esposas sempre me disseram tal coisa, embora reconheçam que não sou um alcoólatra. Elas fazem da bebedeira um caso federal, como diz o proletariado.

A sede implacável manifestava-se agora em todas os órgãos do seu corpo, exigindo, clamando. Ele umedeceu os lábios. Tinha que sair dali imediatamente. Era tarde, muito tarde... Mas poderia começar a beber firmemente assim que chegasse ao hotel. Fique quieto, ordenou ao corpo impaciente, um corpo sedento que jamais seria satisfeito nem ficaria apaziguado, um corpo que estava sempre esperando por alguma coisa vaga e indistinta.

A luz branca e as paredes silenciosas também esperavam. Enxugando o rosto e as mãos com um lenço. Alexander Damon continuou:

- Meu pai foi um advogado de muito sucesso em Nova York. Infelizmente, porém, morreu quando eu tinha apenas quatorze anos. Perdi, assim, a influência de um pai. Minha mãe era a típica dama vitoriana, com um elevado senso de retidão, deveres e responsabilidades. O reverendo estava sempre em nossa casa. Meu pai costumava zombar quando ele saía, pois o pobre homem era uma alma simples, ingênua, que carregava todo o peso da sua fé. Papai dizia para mamãe: Louise, como você pode agüentar toda essa absurda lengalenga? Afinal, você é inteligente, para urna mulher, devia saber que não estamos mais vivendo na Idade das Trevas. Mas mamãe sempre lhe dizia: Não diga tolices Edgar. Se ouvisse o que o Reverendo Thayer diz, encontraria um. objetivo para a sua vida, um rumo, o sentido de estar aqui neste mundo. Lembro-me de que meu pai ria, divertido. Ele era um homem realmente distinto, civilizado e adulto. Ia beijar mamãe e dizia-lhe: Você é o sentido que minha vida tem. Ela tornava-se então bastante desagradável, repelia-o e dizia: Alex está ouvindo. Não quero que ele seja tão frívolo quanto você ao crescer.

O senhor pode agora entender a lamentável influência que mamãe exerceu sobre a minha vida. Acho que se ela nos tivesse deixado em paz, a meu pai e a mim, nós dois nos teríamos compreendido. Não que ele estivesse particularmente interessado por mim, pois estava mais preocupado em gozar a vida e. alcançar sucesso. Além do mais, tínhamos em nossa casa uma excelente adega de vinhos.

Mas já esmiucei toda essa história com o meu analista e posso até repeti-la de cor. Receio, aliás, que seja exatamente isso o que estou fazendo. Quando meu pai morreu... Já ia esquecendo de dizer-lhe, mas ele se suicidou. Uma noite, em seu gabinete, inesperadamente, enforcou-se, sem deixar ao menos um bilhete. Um dos empregados encontrou-o na manhã seguinte.

Alexander estava agora suando profusamente. Tirou o sobretudo, que parecia estar colado ao seu corpo, agarrando-o como se tivesse braços. Terminou por arrancá-lo do corpo e jogou-o longe. Em voz bem fraca, ele disse:

- Meu analista suspeita de que foi a frigidez de mamãe que levou papai à morte. Não acredito. Descobrimos mais tarde que ele possuía inúmeras mulheres que o consolavam devidamente. Mas, em casa, ele não encontrava consolo algum, pois lá tudo impelia à busca do motivo pelo qual nascemos, o que estamos fazendo aqui e de como devemos nos preparar para a nossa vida futura, como dizia o reverendo. Nessa atmosfera tão sombria, será. que se pode culpar papai por haver-se suicidado?

Ele ficou esperando uma resposta, mas não veio nenhuma. Olhou para as paredes. Davam a impressão de estarem escutando as suas palavras, avaliando-as. Ele sacudiu a cabeça, impaciente.

- Desculpe ter falado em atmosfera sombria. A dizer a verdade, não era nada disso. Minha mãe era uma mulher bonita e divertida. Irradiava uma sensação de paz e era bastante popular em Nova York, É estranho que eu tenha dado uma impressão errada, de que ela era uma mulher severa e intolerante. Ela não era assim, apenas parecia ter um propósito na vida. Devo lembrar-me de fazer essa observação ao meu analista em minha próxima consulta. Eu o enganei. Disse-lhe que minha mãe era uma espécie de Rainha Mary, impecável em suas boas maneiras e a exigir uma retidão absoluta na vida. Acho pelo menos que foi o que eu disse. Mas não, agora que estou pensando no assunto, recordo-me de que foi ele quem fez a sugestão. Aparentemente, ele tem fendas numeradas onde insere as pessoas à sua vontade. Eu deixei que ele fizesse assim com a minha mãe. De qualquer forma, que importância isso pode ter? Talvez tenha sido um erro, não sei. Afinal de contas, eram os meus problemas que estavam sendo focalizados, não os de minha mãe. Algumas vezes é mais fácil deixar as pessoas acreditarem no que elas julgam ser a verdade.

Minha mãe morreu pouco depois que eu me formei. Ela estava doente já há algum tempo, embora eu nunca a ouvisse queixar-se. Pouco antes de morrer, ela disse-me:

‘Alex, há um motivo para você ter nascido. Deve tentar encontrá-lo não apenas em seu trabalho, mas também dentro de si mesmo. Seu pai jamais encontrou esse propósito da vida, que Deus o tenha!’

Eu nunca a perdoara pela morte de meu pai. Talvez nunca tenha também perdoado a ele. Ele não amava ninguém, exceto mamãe. É claro que se Interessava por mim, mas mamãe estava sempre em primeiro lugar. Papai era um homem de múltiplos interesses. Quando se pensa em mamãe, uma mulher insípida, apesar de bastante popular e muito bonita, adorando a vida caseira e querendo ter vários filhos, fica-se admirado por papai considerá-la o paraíso aqui neste mundo. E não se consegue também compreender por que papai se matou!

Alexander Damon levantou-se bruscamente.

- Mas eu sei por que ele se matou. É que não encontrou o menor sentido na vida, absolutamente nenhum. E eu também não encontro!

Ele esfregou as mãos, repetidas vezes, desesperado.

- E qual o sentido que existe, para quem quer que seja? Deixe-me falar agora sobre minhas estúpidas esposas, todas elas parecidas com mamãe, de um jeito ou de outro. Abrindo um parêntese, devo dizer que meu analista se interessou bastante por esse fato. A princípio todas elas pareceram-me deslumbrantes e interessantes. Proporcionaram-me uma empolgação, urna sensação de algo que estava por acontecer. Mas invariavelmente, depois de alguns anos, elas se tornaram insípidas para mim, nada mais significando em minha vida.

Talvez o meu trabalho contribuísse para acentuar o problema. Quando um projeto meu chegava ao fim, sentia-me obtuso e mortalmente vazio. Começava outro então. Cada prédio era uma cópia do anterior, tudo se repetindo interminavelmente, até quase fazer-me enlouquecer por dentro. Certa vez, quando eu era jovem, pensei que o inferno devia ser assim. Uma repetição interminável... Trabalhar, projetar, construir, acabar - depois começar tudo novamente, da mesma maneira. Se a repetição tivesse algum sentido, eu ficaria satisfeito. Só que não tinha, não tem. Para que nasce um homem? Para erguer mais e mais edifícios, fazer mais e mais escritórios, mais e mais apartamentos? Para quê? Vamos, pelo amor de Deus, diga-me: para quê?

Ele começou a andar de um lado para o outro da sala, bastante agitado.

- Como abelhas, como formigas... Mas um homem é certamente mais do que uma abelha ou uma formiga! Não é mesmo? O que ele faz não deixa uma marca no mundo? Talvez não... Seis anos atrás, vi um dos edifícios mais famoso e bonitos de Nova York ser demolido para dar lugar a uma das minhas estruturas de vidro e alumínio. Pensei no arquiteto que projetara aquele prédio, como se preocupara com ele, como o observara subir dia a dia. Mas um dia o prédio acabou sendo demolido e ninguém mais se lembrava do nome do arquiteto. Ninguém se importou em saber se ele era ainda vivo ou não! A mesma coisa irá acontecer comigo.

Sabe de uma coisa? Todas as minhas esposas queriam ter filhos. Para quê? Para comer, dormir, crescer, ir para a escola, formar-se - e fazer o quê? No túmulo não há mais recordação. Li esta frase na Bíblia. Por que deve um homem repetir-se em seus filhos? Por que dar-lhes a vida e o horror da compreensão de que não existe sentido na vida, que o mundo não tem sentido, que tudo não passa de uma repetição interminável, um moinho a girar eternamente, uma jaula de esquilos? E não importa o que a gente faça! Nada possui um significado permanente, nada tem um sentido ou valor absoluto!

Ele parou de falar e olhou para a cortina, sem saber que estava chorando.

- Pode compreender o que estou dizendo? Pode viver com essa idéia, sabendo que nasceu para nada, vive por nada, vai morrer por nada? Por que então não pôr um ponto final a tudo isso, como fez meu pai, ou esquecer a falta de sentido da existência na bebida?

A gente fica ouvindo os barulhos do mundo, fica vendo a pressa, a correria, as vozes agitadas, o bater de portas, observa as pessoas indo e vindo, como se estivessem fazendo alguma coisa da maior relevância. Tudo assume então uma característica de pesadelo, de inferno. Não há escapatória, exceto na bebida. Posso, inclusive, compreender por que as pessoas tomam drogas. É o desespero, a total falta de esperança! Quando ainda se é jovem, está tudo bem, não há problema. A pessoa sente-se estimulada, acha que vai realizar alguma coisa. Mas realizar o quê? Quando se alcança O Sucesso, chega-se ao fim da estrada. Depois disso, só há urna coisa a fazer: repetir-se interminavelmente.

- Tentei dizer isso a Moira, que se parece com a minha mãe mais do que as minhas outras esposas. E ela disse:

‘Ora, a gente trabalha não apenas pela nossa própria realização pessoal. Trabalhamos para Deus. Ponha Deus em seu trabalho, tente ajudá-Lo a encontrar o caminho certo entre o que você faz e o que Ele deseja que faça, mesmo que isso seja apenas cultivar batatas ou construir edifícios. No fundo, é tudo a mesma coisa.’

Compreende agora como ela é absurda? Exatamente como as minhas outras esposas. Mas Moira não ficou nisso, acrescentando: ‘Acha que este mundo é tudo o que existe? Aqui é apenas o inicio do seu trabalho. O que fizer aqui vai ter influência no que fará depois de sua morte. Você é como uma criança que está cursando o primeiro grau escolar. Acha que o primeiro grau é tudo o que existe, que não há mais nada além. E você está sendo reprovado ainda no primeiro grau!’

Alexander aproximou-se da cortina, quase tocando-a.

- Compreende agora por que tenho de divorciar-me de Moira e por que bebo tanto? Oh, meu Deus! Qual o sentido que pode existir na vida? O senhor encontra um sentido na sua, ouvindo todas as baboseiras que as pessoas lhe vêm aqui contar? O senhor fica aí ouvindo... Mas, qual o propósito disso? Qual o sentido que encontra para a sua vida, neste mundo ou em qualquer outro que haja depois, se é que existe algum?

Ele estendeu a mão involuntariamente e apertou o botão.

A cortina se abriu e ele viu a luz e quem havia dentro dela a ouvir. Recuou, afastando o olhar. Enxugou o rosto e tornou a olhar - mas desta vez não desviou os olhos, assim ficando por muito tempo, pensando. Depois, disse lentamente:

- É, compreendo agora o que Vós e Moira queríeis dizer. Vós trabalhastes por muito tempo, não foi? A repetição, anos intermináveis de repetição... Mas finalmente... Sim, acho que sim, O que Vós fazeis tem realmente um sentido.

Ele tornou a sentar-se na cadeira de mármore, apoiando o cotovelo no braço da cadeira e o queixo na mão. Não estava mais exausto, nem angustiado, nem sedento, nem desesperado, a angústia desapareceras. Continuou a contemplar o homem diante dele, o rosto imóvel, ouvindo.

- Tendes razão, compreendo agora. Sei que é minha culpa se não encontrei satisfação na vida, nenhum valor ou significado. Entendo agora por que me casei tantas vezes, procurando uma coisa que faltava dentro de mim.

Os homens como eu, os milhões de homens como eu espalhados por toda parte, tornaram o mundo informe porque nós mesmos não possuímos uma definição, não temos um potencial de verdade, mas apenas pretensões a que chamamos de bom gosto e estilo, assumimos apenas atitudes, ao invés de movimentos. Como será que nasceram tantos de nós assim? Será que somos o produto de uma era terrível, industrial e utilitária, a qual nos formou sem a menor variedade, sem alicerces, sem uma poesia verdadeira, sem a menor animação? Ou será que fomos nós que criamos essa era infecunda, com todos os seus horrores e a facilidade de viver, com tempo disponível e sem nada com que preenchê-lo? Estamos cercados por máquinas gigantescas, que fazem todo o trabalho por nós. Só que essas mesmas máquinas também nos castraram. Não temos virilidade alguma dentro de nossas roupas na última moda, com nossas maneiras corretas, nossas casas de vidro que refletem apenas os nossos rostos iguais.

Será que o próprio Comunismo é o repúdio bárbaro a nós, embora disfarçadamente nos inveje? E será que - Deus o ajude! - ele tenta mesmo imitar-nos? Somos os verdadeiros mensageiros da morte, embora não fabriquemos bombas e deploremos o seu uso. Se escrevemos, estamos preocupados apenas com a forma e não com a substância. Se produzimos peças, elas expressam apenas uma violência mecânica, que absolutamente não representa as emoções humanas. Se somos diplomatas, nem mesmo conseguimos ser mentirosos hábeis e imaginativos. Não passamos de fazedores de clichês, Dizemos frases lindas, sem sentido nem grandeza. Se ‘estudamos’ o homem, na qualidade de filósofos modernos, executivos ou líderes, nós o encaramos tão-somente como uma unidade de tantos homens-hora ou de energia, como um consumidor, uma barriga desprovida de inteligência.

Somos os homens que estão profundamente doentes. Não são apenas os operários das fábricas que se esvaziaram por dentro nas linhas de montagem por não haver lugar em suas vidas para o orgulho e o individualismo. Homens como eu transformaram o mundo inteiro em linhas de montagem, tudo funcionando perfeitamente, sem jamais haver uma peça fora do lugar, um controle impecável; sempre um acontecimento, lei, invenção, diversão ou uma novidade de qualquer tipo surgindo logo depois de outra, sempre maior e melhor do que a anterior, imaculadamente nova e luzidia, mecanicamente perfeita e desumana, mais fácil, mais estéril, mais sem vida que a anterior. Até mesmo as nossas crises são as crises da máquina. Tudo o que é preciso é um pouco mais de petróleo, mais alguns dólares, virar um parafuso, ajustar uma engrenagem, fabricar novos equipamentos, pôr em funcionamento uma nova correia transportadora que fará as coisas andarem mais depressa ainda. Se o bárbaro uiva para nós ele tem toda a razão de fazê-lo. Nós também lhe causamos horror. O que fazemos não pode satisfazer as emoções de um homem nem as suas necessidades humanas.

Vede os edifícios que projetei! Eles refletem a minha pessoa e a espécie a que pertenço. São construídos sobre pilhas de aço, brilhando loucamente com uma imensa superfície de vidro, as janelas guarnecidas por metais que nunca enferrujam, nunca se estragam, nunca se desgastam pelo tempo e pelo uso. Não mais possuem a autoridade honesta das coisas simples e naturais, da madeira, da pedra, da argila. São miragens modernas, que amanhã vão ruir em pedaços, por não estarem firmemente enraizadas na terra. Não mais existe um esplendor sublime, nenhuma graça, nenhuma emoção, nenhuma eloqüência, nada que possa animar o homem - apenas linhas retas e vazias, um brilho informe.

Cercamos as fronteiras selvagens e as fizemos seguras, envolvendo suas montanhas em papel celofane e substituindo as suas florestas por gramados impecáveis. Asseguramos a todos, tranqüilamente, que é este o desejo geral, a vontade dos hotentotes que moram naquelas fronteiras. Mas nem sequer imaginamos que eles desejam na verdade é serem tratados como seres humanos, providos de almas. Eles não querem as nossas comidas congeladas e sem vermes, não querem o nosso meio de vida que conduz à impotência, à falta de significado em tudo, recusam o nosso fatal kiwwhow. Eles não querem a nossa morte coletiva, o nosso lazer improdutivo e inútil, a nossa diversão organizada, os nossos jogos de desespero, as nossas geladeiras, as nossas máquinas letais. Eles possuem o seu próprio sentido para a vida, o qual nós negamos categoricamente, pois não possuímos sentido algum.

Ele recostou a cabeça nas almofadas antes de continuar.

- Mas Vós possuís um sentido para a Vossa vida, pois amastes e amais o homem como ele é e pode ser - uma alma alegre, livre e valiosa. O problema agora é saber se podereis encontrar dentro de Vós amor por mim, se eu voltar a ser um homem e não apenas uma pose. Posso pedir-Vos que me ajudeis a encontrar o porquê de estar eu aqui e o que devo fazer? Podereis dar-me músculos em vez de bom gosto, entranhas em vez de estilo? Podereis dar-me a fé em vez de vulgaridades inteligentes, a verdade no lugar das mentiras soberbas? Não sou mais um jovem e sinto-me bastante enfraquecido pelo que chamava de minha classe, Para voltar a ter sangue e carne e decência em vez de boas maneiras, precisarei de toda a coragem que Vós puderdes dar-me. E, acima de tudo, podeis fazer-me amar meu semelhante ao invés de imaginar meios para ajudá-lo a transformar-se no que eu sou, pensando sempre estar lhe fazendo um bem?

Ele levantou-se, pálido mas emocionado. Sentia-se jovem e forte novamente, com um vigor que há muito não sentia.

- Sei que podeis - e o fareis. Posso ver pelo Vosso rosto. Há muito tempo que trabalhais e continuais trabalhando, às vezes até sozinho, quando não há mais ninguém, para dar a todos nós uma razão de ser. Não deveríeis ter nascido e não deveríeis viver se nisso não houvesse um sentido profundo para todos nós, mesmo para os homens como eu. Deveis ter encontrado gente assim com muita freqüência em Vossa vida. Apiedai-Vos pelo menos um pouco de nós por nossa imensa estupidez?

Ele fez uma pausa, pensativo.

- Não fazeis idéia de como me desprezo a mim mesmo agora. Vou telefonar para Moira assim que chegar ao hotel, pedindo-lhe que me perdoe e dizendo que estou voltando para casa. Sabíeis que me senti ofendido quando ela sugeriu que tivéssemos filhos? É por isso que me afastei dela, quis divorciar-me. Eu não queria ter réplicas terríveis de mim mesmo! Instintivamente eu sabia que era apenas um poseur, que estava ressequido por dentro, que estava sedento e faminto!

Ele encaminhou-se para a porta. Não precisava agora de se lembrar a si mesmo que devia mover-se com graça e estilo. Parou na porta e tornou a falar:

- Os gregos antigos derramavam vinho numa libação a Deus. Incomodai-Vos se eu derramar meu uísque numa libação?

ALMA ONZE

O Mestre

E quem poderá fazer-vos mal, se vós tiverdes zelo pelo bem? E também se alguma coisa padeceres por vosso amor à justiça, sois bem-aventurados. Portanto, não temais as ameaças deles, e não vos perturbais.

Pedro 3:13-14

O homem sentado na sala branca de cortina azul e cadeiras de mármore era .ainda jovem’, mas aparentava ser mais velho do que a sua idade, por causa da palidez e do aspecto cansado, o rosto enrugado, os olhos fundos. O nariz era alongado e fino, a expressão sensível e inteligente, apesar de toldada agora pela amargura, que também lhe retorcia a boca firme. As roupas eram impecáveis, apesar de baratas. Estava bem penteado, os sapatos muito bem engraxados, apesar de não terem custado mais do que dez dólares. As mãos finas estavam bem tratadas e moviam-se inquietas nos braços da cadeira de mármore.

Ele olhou para a cortina com uma expressão melancólica.

- Não lhe vou dizer meu nome. Afinal, preciso do meu salário e não quero que murmúrios sobre as minhas queixas cheguem aos ouvidos da junta escolar. Isso mesmo, sou professor. Um professor nunca deve queixar-se: deve ser sempre dedicado às crianças e ao seu dever sagrado, à sua vocação. Foi exatamente isso o que nos disse a presidente da Associação de Pais e Mestres: que tínhamos uma vocação sagrada. Ela estava usando um chapéu que deve ter custado pelo menos a metade do meu salário de um mês. Presenteou-no com uma expressão radiante, cheia de covinhas - rosas, e congratulou-se conosco por termos sido contemplados com a vocação. Nós lhe retribuímos o sorriso, abatidos. O rendimento mensal do marido dela é maior que o salário anual de qualquer professor. Fico imaginando a que ela é dedicada e qual será a sua vocação. Ela acha que, só porque deu à luz três crianças terríveis e atrevidas, que são, cada uma em particular, uma praga para seus professores, fez a mais nobre de todas as coisas e nós devemo-nos sentir muito felizes em dar as nossas vidas pela sua prole.

Ela mostrou-se muito eloqüente na reunião, fazendo pequenos gestos de ballet com as mãos, rolando os olhos. Sua voz, por vezes, tornava-se lírica. Ela louvou a nobre profissão de mestre - e como eu odeio esses louvores das mães profissionais! Disse-nos abertamente: ‘Um professor não dá a menor importância ao dinheiro. Isso não é maravilhoso numa época materialista como a nossa?’ Acrescentou que um professor dedica a sua vida à ‘causa santa’ das crianças. Olhei para Márcia, sentada do outro lado, e pensei em seu salário e em sua mãe inválida, no empréstimo que eu acabara de avalizar para que ela pudesse pagar as contas do médico. Márcia, assim como eu, precisava sempre de arrumar outro trabalho durante as férias de verão, em vez de estudar ou descansar, em lugar de relaxar em férias para ser uma professora mais forte quando as aulas recomeçarem em setembro - e também para conseguir ser um ser humano normal. Isto é o mais terrível de tudo: não somos seres humanos normais, completos. Nunca permitem que o sejamos. Dedicação... Por que será que todo mundo acha que um professor não deve ter vida própria, nenhum prazer, alegria ou dinheiro, não deve rir nem cometer nenhum pecado, por mais inocente que seja? Quem são elas, essas mães profissionais e pais enlatados, para achar que seus filhos valem a nossa morte em vida? Ou a vida de qualquer um, de um modo geral? Ou mesmo a vida deles próprios? A maioria das pessoas apenas ocupa espaço no mundo, sem dar a este qualquer contribuição, a não ser réplicas intermináveis de si mesmas que devem ser ‘educadas’.

A sala estava quieta, sem o menor movimento. O homem suspirou e olhou ao redor.

- Não faz idéia de como é maravilhoso estar num lugar tão silencioso e tranqüilo como este Não há crianças, junta escolar, diretores, Associação de Pais e Mestres, não há vozes estridentes e pés correndo, não há preocupações nem ansiedade. Acima de tudo, não há vozes nem campainhas.

Há pouco tempo ouvi um homem dizer para outro: ‘É muito engraçado, mas os professores estão sempre se queixando dos seus salários baixos. Mas a verdade é que a maioria deixa bens bastante polpudos. Soube que a velha Miss Thompson morreu outro dia? Já tinha chegado aos oitenta anos. Deixou quase duzentos mil dólares. Não é nada mau, não é mesmo?’

Sem quase sentir, o professor levantou a voz:

- Pensei em dizer ao imbecil que a velha Miss Thompson conseguira economizar uma boa parte do seu salário antes que os impostos altos entrassem em cena. E também numa época em que os salários dos professores eram substanciais, comparados com o que ganhavam os operários não-especializados e com os preços então vigentes. Além disso, muitos professores receberam heranças respeitáveis dos pais. Tem mais: muitos não se casaram, tendo assim despesas mínimas. Não se casar... E agora eu e Márcia temos que permanecer solteiros, porque não nos podemos dar ao luxo de nos casarmos!

Suas feições se contraíram num espasmo.

- A única ocasião em que vemos algo bonito é quando estamos em nossas escolas - todas de vidro e num cenário maravilhoso, com piscina de água quente e fria, móveis lindos e paredes coloridas, ginásios espetaculares e auditórios que se parecem com luxuosos teatros. Mas logo voltamos para os nossos quartos miseráveis, com móveis velhos que nos foram dados por nossas mães, ou então para apartamentos alugados com mobília, sempre da pior qualidade. E, no entanto, somos nós, os professores, os alvos de censuras na Imprensa e nas reuniões públicas pelas escolas suntuosas, pelos altos orçamentos, por todo tipo de extravagância! Isso sempre acontece quando timidamente pedimos um aumente de salário, a fim de que possamos viver também. Somos responsabilizados pelo alto custo das novas escolas ou pela ampliação das antigas.

Nenhum dos censores, é claro, assume a responsabilidade pelos projetos das escolas gigantescas e luxuosas. ELes querem o melhor, o mais caro e luxuoso para suas ‘crianças’ Exigem essas coisas, seus filhos as ‘merecem’. Gostaria de saber qual é a lei, espiritual ou federal, que declara que as pessoas ‘merecem’ o que quer que seja pelo simples fato de terem nascido! Fui ensinado, quando criança, que devemos justificar a nossa existência neste mundo. Já ouvi em minha classe muitas crianças se queixarem de que não pediram para nascer. Ora, eu também não, muito menos meus pais ou os pais deles, ninguém neste mundo. Mas uma vez que estamos aqui, temos deveres antes de direitos, responsabilidades antes de exigências. Mas tente dizer isso aos seus alunos! O diretor pedirá imediatamente a sua suspensão ou renúncia. As mães profissionais logo aparecerão, com gritos estridentes, olhares funestos, gestos irritados e ameaçadores.

O professor suspirou, um suspiro débil que deixava transparecer todo o seu cansaço e desespero.

- As crianças não precisam de escolas suntuosas. Minha geração não as teve. Precisam apenas de prédios sólidos, sem luxo algum. Não precisam de brincadeiras supervisionadas. Por que os adultos não deixam as crianças em paz? Elas agora tornaram-se os projetos de mães ociosas, que em outras gerações viviam atarefadas demais com os cuidados de suas casas, cozinhando, lavando, costurando, esfregando assoalhos, passando roupa a ferro, limpando janelas, tratando dos bebês. Não há nada tão perigoso para uma nação como uma horda de mães ociosas, ocupando-se em projetos de qualquer tipo. Eu gostaria de enforcar os homens que inventaram as máquinas de lavar automáticas e outros aparelhos semelhantes! Agora a maioria das pessoas não possui um lar, mas um abrigo para os aparelhos eletrodomésticos que lhes dão mais tempo - mais tempo para quê? É um terrível engano! Não é de admirar que estejamos agora enfrentando o problema da delinqüência juvenil.

O professor esfregou a testa enrugada, dizendo em tom de desculpa:

- Eu poderia falar sobre este assunto o dia inteiro. Os problemas de um professor são os problemas da nação inteira. Quero agradecer-lhe por estar-me ouvindo. As pessoas nunca ouvem a um professor. Pensam que somos cacetes, obstinados, corretos demais, quase tanto quanto os sacerdotes. Foi esse o arquétipo que nos impuseram. Mas somos de carne e osso e odiamos o padrão que querem que preenchamos!

Eu estava-lhe falando a respeito das escolas suntuosas. A escola é um lugar para se aprender, não para a diversão ou recreação, não um lugar de babás. A escola é uma instituição onde as crianças deveriam ser ensinadas o mais amplamente possível, deveriam ser adestradas e disciplinadas, Informadas de seus deveres no presente e no futuro, de suas responsabilidades públicas para com a sua família, seu Criador, sua nação. Eu poderia passar mais um dia inteiro descrevendo-lhe os cursos tolos e constrangedores que fazem parte atualmente do currículo escolar, cursos exigidos pelos pais e nunca indicados pelos professores. Cada aspecto da vida de um professor daria para encher um livro inteiro. E cada curso é dispendioso, Os contribuintes reclamam - embora sejam os próprios contribuintes que exijam toda essa bobagem e esbanjamento. Quando verifica o imposto que tem de pagar, a primeira coisa que o contribuinte faz é pensar no salário que os professores recebem, achando que é alto demais para cinco horas de trabalho por dia, feriados constantes e longas férias de verão. E logo dizem: Por que será que os professores são tão gananciosos? Por que querem mais dinheiro ainda? Onde está o professor de tempos idos, sempre tão dedicado’, que nunca pensava no dinheiro?

Isso mesmo: onde está o professor dos tempos antigos, que era encarado com temor e respeito pelos estudantes e mais ainda pelos pais dos estudantes? O que aconteceu com os tempos idos em que as crianças sabiam que iam à escola para aprender, sentiam-se agradecidas pela oportunidade e ouviam os mestres com um interesse insaciável? O que aconteceu com a época em que os pais não se metiam na escola e tratavam da sua própria vida - que significava ganhá-la pelo trabalho árduo, cuidar da família e levá-la à Igreja? Acho que tenho pelo menos uma resposta: hoje há gente demais com dinheiro demais, tempo demais e ‘diversão’ demais.

Tornou a suspirar.

- Se todo esse dinheiro, lazer e diversões resultassem num povo espiritualmente mais forte e mais nobre, com princípios mais elevados e caráter mais firme, mais consciente do que há neste mundo para se aprender, desejando mais bibliotecas e querendo continuar a estudar mesmo depois de deixar os bancos escolares, então tudo isso teria valido a pena. Compensaria até mesmo os salários miseráveis que se pagam aos professores. Nós professores, ficaríamos satisfeitos, com um senso de auto-respeito e uma satisfação extrema. Saberíamos com certeza que teríamos realizado algo realmente valioso. Sentiríamos que a dedicação que nos exigem poderia ser sincera, de todo o coração, com toda a força da nossa alma. Se um homem tem direito a alguma coisa, que seja ao orgulho de sua ocupação.

Mas todo o dinheiro, o lazer e as diversões provocaram um resultado desastroso para nós, como nação. Estamos em busca não de aprender as coisas e alcançar a sabedoria, mas de simples trivialidades, de novas diversões, novas ilusões, entretenimentos mais baratos e mais vulgares, carros mais enfeitados, mais brinquedinhos para ocupar mãos ociosas e inquietas. Onde está agora o caráter americano, aquele caráter que desbravou os ermos, que singrou os mares tenebrosos, que instituiu escolas e igrejas livres, que preferia homens íntegros a homens apenas sorridentes, que considerava a moral como o próprio alicerce de um povo e Deus como a pedra fundamental? Onde estão os americanos de coragem e fé, princípios e compreensão? Eles constituem uma nação morta. São escarnecidos em livros e artigos de jornais e revistas como ‘vitorianos’ e ‘puritanos’. E isso porque eles nunca tiveram muito dinheiro, nada sabiam a respeito de aviões a jato e diversões. A única coisa que souberam foi construir uma nação livre, sob a proteção de Deus, foi fazer uma Constituição que é o documento mais nobre já escrito pelo homem - sob a proteção de Deus.

O professor apoiou o rosto cansado na palma da mão, pensativo.

- Por causa das pessoas que hoje existem é que acabaremos perdendo esta nação, concebida na liberdade e na fé. Por não permitirem mais que nós, professores, ensinemos às crianças o que devem aprender, elas se tornarão cada vez mais fracas, indisciplinadas, violentas, entediadas, sem princípios e sem noção de responsabilidade - e inteiramente deseducadas. As crianças de hoje não são mais estúpidas do que seus avós, apesar de alguns professores amargurados dizerem que são. O único problema é que elas são ignorantes e são mantidas na ignorância pela insistência dos pais de que seus cérebros não sejam exigidos nas escolas, que não sejam disciplinados, pelo desejo de que se divirtam na escola ao invés de aprenderem. Os pais querem que a escola seja apenas um curral suntuoso, agradável, maravilhoso. E enquanto os filhos estão nesse tipo de escola, mamãe está docemente ocupada com seus projetos e seu jogo de bridge.

Mamãe adora a palavra ‘trauma’. Ela aprendeu uma porção de jargões psiquiátricos em suas leituras apressadas e sem método. Será que alguma vez ela já pensou no trauma incurável que está infligindo aos filhos ao lhes tornar a vida excessivamente agradável e confortável? Será que ela alguma vez já pensou no trauma que está infligindo aos professores de seus filhos, negando-lhes o direito de se orgulharem de sua ocupação, recusando-lhes a recompensa adequada como algumas das pessoas mais importantes na vida de seus filhos?

Ela arrancou-nos um orgulho antigo, o mesmo que sentiam Sócrates, Platão e Aristóteles, ela liquidou com toda a grandeza da profissão de ensinar, que vinha de tempos imemoriais, quando os professores eram também os sacerdotes e filósofos. Para a mamãe, nós não passamos de babás, a quem se paga para divertir seus filhos e ‘cuidar’ deles. Se ela nos despreza por aquilo a que conseguiu reduzir-nos, será que imagina o quanto nós mesmos nos desprezamos por termos deixado que ela assim destruísse os nossos espíritos?

O professor olhou para a cortina com uma expressão conturbada. Os lábios estavam ressequidos. Umedeceu-os. Inclinou-se um pouco para a frente.

Já foi por acaso professor?

Ele tossiu ligeiramente, à guisa de desculpa por sua curiosidade, odiando-se no mesmo instante pelo gesto, que se tornara parte integrante dos maneirismos de um professor. Ficou esperando. A luz na sala pareceu tornar-se mais aconchegante, como que em assentimento.

- Quer dizer que já foi ou é um professor? Então deve compreender.

Ele hesitou por um momento, apreensivo.

- Estou pensando se o senhor consegue ver através dessa cortina. Preferia que não, pois eu não gostaria que a junta escolar...

O professor sentiu as pálpebras tremerem.

- Desculpe-me. Não deveria ter dito isso.

A tensão que o dominava começou a afrouxar, Tossiu, enxugou os lábios. Estava tremendo um pouco.

- Não me lembro de outra ocasião em que tenha falado tanto assim, a não ser quando estou com Márci Ela e eu queremos nos casar.

Ele esfregou as mãos secas sobre o rosto seco.

- Sinto um cansaço que vai até aos ossos. Vou para a cama exausto e acordo exausto. Minha vida é todo um cansaço miserável e sombrio, Não posso comer sem sentir o gosto do cansaço na comida. A inutilidade...

Ele fez uma pausa rápida, mudando de assunto.

- Márcia e eu crescemos juntos, o que é um milagre atualmente, considerando o que os cientistas sociais chama de mobilidade populacional. E falam em tom de aprovação, como se o simples movimento das pernas e do corpo, dos carros, trens, aviões e ônibus fosse uma virtude em si mesmos. Eles acham que a mobilidade significa dinamismo. Nesse caso, o caminhar desesperado de um leão enjaulado num jardim zoológico é também dinamismo. O caminhar desesperado de criaturas que desejam ser livres - mas livres de quê? Não faço a menor idéia! Talvez do conforto excessivo e do lazer, dos entretenimentos e da chamada diversão. Talvez queiram encontrar algo que possua um valor sólido para suas vidas, saindo inquietas à procura e jamais o encontrando. Elas apenas trocam de lugar e de casa, mas continuam a ser as mesmas. Por isso, mudam-se novamente. É o que os cientistas sociais chamam de niobilidade. Para mim, não passa de um ato de desespero.

Como professor, o senhor deve entender tudo isso perfeitamente. Não tenho a menor dúvida de que diariamente encontra gente assim. Fico aqui pensando se não nos conhecemos.

E novamente o assentimento se irradiou em sua direção, e a Sala ficou ainda mais aconchegante, plena de amor. Ele tossiu.

- Márcia e eu freqüentamos juntos a mesma escola antiga. Víamo-nos durante as aulas. Tínhamos que voltar correndo, literalmente correndo, para as nossas casas, a fim de ajudarmos nossas mães. Márcia tinha dois irmãos e uma irmã, que estão agora todos casados. Eles têm responsabilidades para com as suas famílias e assim não podem contribuir para o sustento da mãe. Márcia, alegam eles com algum ressentimento, não é casada e, sendo professora, provavelmente nunca se casará. Portanto, a responsabilidade de sustentar a mãe pertence unicamente a ela. É bastante estranho que pessoas que não são responsáveis exijam a responsabilidade dos outros - especialmente quando isso envolve despesas.

Márcia sempre foi uma moça meiga e quieta. Como eu, sempre teve por ideal o magistério. Costumávamos conversar sobre isso sempre que tínhamos uma oportunidade, principalmente nos corredores da escola, antes de tocar a sineta para início das aulas. E como estudávamos! Éramos, no verdadeiro sentido da palavra, jovens dedicados. Não podíamos pensar em nada mais nobre e mais bonito do que continuar o trabalho onde os nossos dedicados professores tivessem que parar, por causa da morte e da velhice. Amávamos e respeitávamos os nossos mestres. Sabíamos exatamente o que eles eram, tínhamos certeza de que pertenciam à mesma categoria de gente que os nossos pastores.

Freqüentemente nos referíamos a Nosso Senhor como O Mestre. Quando fomos para o Colégio Estadual de Professores, não foram poucas as vezes em que passeamos pelo campus a falar sobre Ele. Sabíamos que a palavra rabino significa professor e que Ele fora chamado de rabino por Seus discípulos. Que vocação mais nobre poderia existir que a de ensinar, excetuando-se o sacerdócio? Na verdade, os professores, pensávamos nós, eram os leigos das Ordens Sacras. Usávamos as vestes sagradas em nossos espíritos.

Nessa ocasião, não pensávamos nOs salários. Tínhamos a nos estimular o orgulho pela nossa profissão, a nobreza que a atividade encerrava. Isso estava acima de pensamentos mesquinhos de dinheiro.

O professor sorriu suavemente, com tristeza imensa.

- Estou com trinta e oito anos e Márcia com trinta e sete. Há muitos anos que ensinamos, se é que se pode chamar de ensinar ao que nós fazemos. A princípio, foi muito agradável. Era algo estimulante, dava-nos satisfações e um senso de realização.

Márcia é professora de História. Um dia, durante a aula, mencionou que todos os que estudassem atentamente os fatos históricos poderiam ver a mão de Deus na ascensão e queda das nações. Uma nação crescia, disse Márcia, quando obedecia à imutável Lei de Deus, declinando quando a desobedecia. Era um fato inevitável e às vezes terrível.

O que aconteceu então com Márcia também foi terrível. Uma multidão de pais invadiu a escola aos brados, denunciando Márcia como violadora do ‘princípio da separação entre a Igreja e o Estado’. Márcia é uma criatura extremamente meiga. Ficou em silêncio, desconcertada, no escritório do diretor, enquanto as mães profissionais censuravam-na acerbamente. Será que ela não sabia que a Constituição proíbe expressamente que se institua uma religião do Estado? Será que ela não era moderna? Não aprendera que era proibido fazer orações ou mencionar Deus nas escolas públicas? E insistiram, incansáveis, na ‘separação entre a Igreja e o Estado’.

Foi então que Márcia disse: ‘Mas Deus é o Estado’. ELa foi suspensa imediatamente, O diretor era um homem bondoso e religioso, mas não podia resistir às pressões dos pais - e de algo mais sinistro ainda por trás dos pais. Ora, ela e eu havíamos aprendido o Pai-nosso em nossas escolas públicas, onde nos haviam ensinado os Dez Mandamentos e os deveres que tínhamos para com Deus. E naquele tempo jamais ouvi protestos de qualquer mãe católica, protestante ou judia. Mas é possível que, em nosso tempo, os pais estivessem mais preocupados com as almas dos seus filhos do que com o leite que tomavam e o lanche que comiam na escola, não pensando muito nos playgrounds e na saúde mental das crianças, coisa de que tanto falam agora. (Mas, o que é a saúde mental senão a harmonia entre um homem e seu Deus?)

Márcia ficou profundamente abalada. Ela é meiga demais para lutar e também não tinha dinheiro com que lutar. Eu possuía quinhentos dólares de economias. Levamos o assunto ao tribunal. Finalmente foi decidido que Márcia deveria ser reintegrada em suas funções, mas jamais deveria violar novamente o princípio da ‘separação entre a Igreja e o Estado’. O próprio juiz, ao proferir a sentença, parecia cansado e constrangido.

Eu estudara a Emenda à Constituição que tratava do assunto. Referia-se apenas ao fato de que o governo jamais deveria fixar nenhuma religião em particular como a religião do Estado, como acontece na Inglaterra e nos países escandinavos. Nenhuma religião específica deve ser reconhecida como a única religião aceita.

E o que a alusão de Márcia a Deus em sua aula de História tinha a ver com isso? O Velho Testamento fala de Deus como o alicerce das nações. O mesmo ocorre no Novo Testamento. ‘Um povo sem uma visão há de perecer.’ Eles removeram a ‘visão’ do nosso povo, tiraram-lhe a visão de Deus nos assuntos humanos. E quem são eles? Não sei dizer. Mas posso afirmar que eles existem e que qualquer professor que mencione Deus está correndo o risco de ser demitido. Mas afinal, quem são ‘eles’?

O professor inclinou-se para a frente, ansiosamente.

- Não acha que, pelo bem dos nossos filhos, devemos descobrir quem são eles e denunciá-los? Serão políticos? Gente perversa? Espíritos mesquinhos e estúpidos?

Mas sua ansiedade logo se desvaneceu.

- Nada posso fazer, pois sou apenas um professor. Que Deus me ajude!

A luz ficou mais intensa, mais próxima, como se o seu colega se tivesse aproximado, movido por um sentimento de simpatia, de profunda compreensão.

- Eu sei que o senhor está-me compreendendo.

Depois de um longo silêncio, o professor voltou a falar, o desalento na voz.

- A princípio, eu bem que tentei. Não havia e tão pressão sobre os professores. Ensinávamos as nossas matérias e fazíamos o melhor possível. Se uma criança nos olhava subitamente com um brilho de compreensão e esclarecimento, com a alegria da descoberta estampada em seu rosto, sentíamo-nos recompensados e felizes pelo resto do dia. A matéria que leciono, por falar nisso, é Matemática a arte de Apoio. Quando eu explicava por que falar em arte referindo-se à Matemática, a classe normalmente ficava atenta. A Matemática não é algo seco e insípido, não é apenas uma abstração. A Matemática é um grande e emocionante mistério, eu costumava dizer aos meus alunos. Todo o Universo é governado pelas leis da Matemática. As crianças então compreendiam. Tudo, desde o mais débil movimento de uma ameba à arremetida da mais distante e gigantesca constelação, obedece às leis da Matemática. Sem a Matemática, a arte nela implícita e as suas leis, o Universo tornar-se-ia um caos e deixaria de existir.

Acho que um dos dias mais bonitos da minha vida foi quando um dos meus alunos me entregou um poema que escrevera sobre a Matemática. Pelos padrões poéticos, não era um bom poema. Mas era um poema fervoroso do que a Matemática significava para ele, não como um futuro contador, mas como uma alma sensível.

Mas há oito anos que não tenho um aluno assim. E agora exigem que o que eu ensine não force demais as crianças. As crianças chegam às minhas mãos, no primeiro ano de ginásio, com menos conhecimentos do que tínhamos no último ano do primário. Sentam-se preguiçosamente em suas cadeiras, mascando chicletes, piscando umas para as outras, trocando bilhetinhos, rindo de repente impetuosamente, bocejando, cochilando, arrumando-se, penteando os cabelos, passando batom, comendo baias, sorrindo sem o menor sentido. Quatro das minhas alunas, este ano, com apenas dezesseis anos, tiveram que deixar a escola por estarem grávidas.

Ele tornou a esfregar o rosto com as mãos ressequidas.

- Quem são esses jovens? Quem os está destruindo de forma tão sistemática? Os pais, os professores, as escolas? Quem lhes está negando a vida, a alegria, as emoções? Não faço idéia. Sei apenas que estou cansado, exausto de tentar manter a disciplina em minhas turmas. Tentar manter a ordem consome-me quase o tempo inteiro. Não ensinar. Fico ocupado com as tentativas inúteis de controlar os alunos. Jovens desamparados, que saem da aula com expressões furiosas, descontroladas, de puro ódio. Eu pergunto: Para onde vocês estão indo? E eles respondem: Não é da sua conta. Eu me queixo ao diretor e ele diz: A culpa é dos pais. Mas os pais dizem: A culpa é dos professores.

O professor levantou-se, aos gritos.

- A culpa é de todos nós! Somos todos culpados por essa terrível decadência do espírito humano, da nobreza humana, da razão humana! A culpa é da América, fútil, amante das diversões, rindo, cheia de dinheiro, ansiosa por se atordoar, querendo o circo, exigindo, queixando-se, dançando, gananciosa! Somos um povo sem visão, um povo que deve morrer!

Ele sentou-se novamente, como que abalado.

- E tudo isso porque temos dinheiro demais, porque não temos deveres, nenhuma responsabilidade. Tudo nos chega às mãos sem muito esforço. Se os outros povos nos desprezam, a culpa é toda nossa. Somos a Roma antiga, do tempo da decadência.

Ele ficou um longo tempo em silêncio. A luz tornou-se subitamente fria, contendo uma pergunta.

- Somos um povo obeso e improdutivo. O vento sem a chuva de nada adianta.

Ele fitou as mãos cerradas, os dedos brancos da pressão intensa. A voz baixou para um sussurro.

- Eu tinha medo, vivia apavorado de perder o emprego, de não mais ter aqueles poucos milhares de dólares por ano. Mas agora estou cansado de tudo isso. Ofereceram-me um bom emprego num escritório de contabilidade, com um salário duas vezes maior do que o que ganho atualmente. E não terei que aturar crianças feias, horríveis, impertinentes, não terei que agüentar os gritos estridentes dos pais nem os diretores assustados, não precisarei mais preocupar-me com as juntas escolares, sempre prontas a exigir-nos o impossível. Não terei mais que trabalhar nas escolas suntuosas, que parecem aquários de luxo. Um bom salário, sem lutas, sem desespero... E Márcia e eu poderemos finalmente casar-nos.

Ele contemplou a cortina imóvel, que parecia esperar.

A pergunta pressionava-o, aguardando uma resposta.

- O que foi mesmo que disse?

Ele olhou ao redor, desolado.

- Mas o que posso fazer? Ensinar é... é a minha vida! Mas ninguém quer aprender. Estou cansado e vou desistir. Não suporto mais os rostos banhudos, rosados, estúpidos! Não agüento os olhos vazios, as bocas sorrindo inexpressivamente com dentes impecáveis! Ah! Os imensos dentes de porcelana! São mais Importantes para eles do que a aquisição do conhecimento, do que suas almas imortais! Não mais sou o orientador dos meus alunos; eles estão-me arrastando em sua arremetida como um elefante arrasta tudo que fica à sua frente.

A luz tornou-se mais fria, menos intensa.

- Quando foi que comecei a desistir? Quando Márcia foi suspensa? Quando os pais me acossaram? Quando o diretor me murmurou que nos devíamos curvar ao curso dos tempos? Quando descobri que ninguém queria o que tenho para dar?

Ele olhou angustiado e desesperado para a cortina.

- O senhor também é professor! Ensinou toda a sua vida, não foi? Ainda continua a ensinar - a tentar Incutir algum conhecimento às multidões estúpidas? Mas por quê?

Ele levantou-se bruscamente.

- Não me importo mais! Também perdi a disposição, todo o meu espírito! Vou largar tudo! Não vou mais lutar para tentar ensinar Matemática a débeis mentais. Por que eu devo inspirá-los ao estudo, ou pelo menos tentar? Por que devo lutar contra o sistema? São meus filhos, por acaso? Diga-me: são meus filhos, por acaso?

Ele não tinha a menor intenção de apertar o botão, mas o seu extremo desespero interferiu com a prudência. Correu até a cortina e apertou-o.

A cortina se abriu, num movimento cansado. Ele chorou um pouco, Assoou o nariz e tornou a chorar. Ele estava vendo o homem sob a luz. Passado algum tempo, ele disse:

- Perdoai-me. Há muito tempo que não chorava. Acho que tinha medo de fazê-lo.

Ele fitava o Confessor e sentiu o rosto tremer.

- Fostes e ainda sois um professor. Nunca parastes de ensinar e tentar ensinar, não é? Jamais desististes. Algumas vezes encontrastes pela frente pais e autoridades como os que eu enfrento? Claro que encontrastes. Mas isso nada Significou, não é? Vós ensinastes às multidões ávidas, inquietas e incansáveis, não? Quando eles riam de Vossa Pessoa, afastando-se e amaldiçoando-vos, mesmo assim ainda continuáveis e ensinar-lhes! Quando as mais altas autoridades Vos denunciaram, ainda assim continuastes a ensinar! Trabalhastes, assim como eu, em plena selva, contra tudo e contra todos. E o fizestes porque tínheis convosco a ‘Autoridade.

O professor não despregava os olhos, humilde, do homem sob a luz.

- E eu tenho também autoridade, acima dos pais, acima das juntas escolares receosas de perderem suas posições. Um professor tem autoridade para ensinar a verdade, sempre. Se ao menos um... Quantos encontrastes em toda a Vossa vida? Foram bem poucos, eu sei. Mas é suficiente que um apenas Vos olhe de repente com uma expressão de compreensão, não é? É mais do que suficiente!

Como Vos deveis ter cansado! E estais cansado agora? Não, creio que não. Para Vós, basta um em meio à multidão. Um olho que brilha subitamente um rosto subitamente alerta, uma única mão a escrever subitamente tudo o que Vós dizeis - isso já era o suficiente, continua a ser mais do que suficiente agora. Isso representa o mundo inteiro! E que classe era e é a Vossa! Comparada com a minha, não havia esperança alguma, não há esperança alguma.

Mas se podíeis e ainda podes ensinar, apesar de tudo, eu também posso. Todos os dias poderei renovar-me, pensando em Vós. Posso continuar, porque Vós continuastes e ainda continuais.

Ele aproximou-se do homem, lentamente, tocando-lhe a mão.

- Mestre, deixai-me ensinar novamente. E Márcia também. Podemos casar-nos. Só não o fizemos até hoje porque sentíamos medo. E agora eu posso dizer: Posso fazer todas as coisas com a forca que Ele me dá.

E eu o farei. Com a Vossa ajuda, tornarei a ensinar os antigos valores, os antigos princípios. Serei um professor novamente. Ainda mantemos a autoridade antiga, a grandeza da profissão. Se abdicamos, foi por nossa culpa, foi porque assim o desejamos. Devemos retomar as nossas antigas prerrogativas -- nem que seja necessário enfrentar o inundo inteiro!

ALMA DOZE

O Médico

E traziam-lhe todos os enfermos...

Mateus 14:35

O Dr. Felix Arnstein sorriu para o seu paciente.

- Poderia ter chamado qualquer médico local, Jim. Já lhe disse que o seu problema é a vesícula biliar. E desta vez vai deixar que eu tome todas as providências para uma operação assim que voltarmos para a nossa cidade, não é?

- Ora, ora, Felix - disse o homem gordo e pálido, com olhos que pareciam duas contas brilhantes. - Estive lendo a respeito do assunto e dizem que há uma dieta especial.

- Lembra-se de que eu lhe receitei uma dieta dez anos atrás, Jim? Se você a tivesse seguido ou mesmo de vez em quando não exagerasse na comida, não estaria agora nesta situação. Sua vesícula está cheia de pedras, conforme você mesmo viu na radiografia que lhe mostrei.

- Dieta! - exclamou Jim Merwin em tom de desprezo, olhando para a esposa esguia e bonita que parecia ter muito menos do que os seus quarenta e cinco anos. - Se um homem não pode comer o que tem vontade...

- Alguns podem, outros não - disse Felix, procurando manter o tom cordial.

O Dr. Felix Arnstein ficou imaginando se a Srta. Luis conseguira acalmar os pacientes que haviam marcado consulta para aquele dia, em sua cidade, ou se eles haviam saído esbravejando por sua ausência, à procura de outro médico. Isso era um inferno, sendo ele Um clínico-geral. Deveria ter voltado ao hospital, passando lá mais dois anos e saindo com alguma especialidade.

- Conheço uma porção de gente, Jim, que pode comer Ludo que é do mar, enquanto outros ficam com o corpo logo coberto de urticária se encontram em sua sopa um simples pedaço de mexilhão. Você é uma das pessoas que deveria ter começado a fazer dieta quando ainda era rapaz. Não o fez e agora está com tantas pedras que poderiam sufocar até um elefante. O que me diz de removê-las na próxima semana, assim que voltar para casa? As operações dessa natureza são hoje rotineiras.

- Não - respondeu Jim Merwin.

Desta vez ele piscou para Felix. Era um homem que vivia piscando por natureza e deliberação. Isso dera-lhe a reputação de ser generoso e bem-humorado, proporcionando- lhe excelentes negócios.

- Não tenho tempo, meu caro. Não sou como vocês, médicos, que podem viajar para a Jamaica, Flórida ou Sorrento. Tenho muito que trabalhar, preciso ganhar dinheiro. Afinal, tenho cinco filhos, não é?

Felix Arnstein era um homem baixo e magro, com o rosto surpreendentemente cheio. A pele era lisa, os olhos azuis expressivos e os cabelos louros já começavam a rarear. Fora condicionado, por necessidade, a sempre manter no rosto uma expressão cordial. Mas algumas vezes, como naquele momento, isso era praticamente impossível. Jim Merwifl, proprietário de uma cadeia de lojas de equipamentos esportivos, era no mínimo um milionário. Pertencia a todos os country clubes que estavam firmemente fechados a Felix. Tinha uma casa em Cape Cod, assim como outra, espetacular, na distante cidade natal de ambos. Visitava a Flórida e outros lugares elegantes todos os invernos. Mas Isso, é claro, eram viagens de negócios, dedutíveis do imposto de renda, o que abrange inclusive as despesas de Lucy Merwin. Ela fora outrora sua secretária e continuava a fazer anotações durante as viagens que realizavam juntos. Ela inclusive levava consigo blocos de estenografia para provar suas atividades.

Felix estava cansado. Lucy telefonara-lhe em pânico, às quatro horas da madrugada. Jim caíra doente com um dos seus ataques, naquela cidade estranha, aonde fora participar de uma convenção.

- Desta vez é realmente sério, Felix - suplicara ela, soluçando. - Não, as pílulas que você receitou de nada adiantaram.. Como?... Oh, Felix! Você conhece Jim muito bem e sabe que ele não aceitaria outro médico que não fosse você. E ainda por cima num hotel e numa cidade estranha! A única pessoa em que ele confia é você! Olhe, Felix, até já liguei para o aeroporto daí. Vai partir um avião às cinco e meia. Poderá pegá-lo, se se apressar. Pode chegar aqui às sete horas. Já mandei reservar passagem. Você tem que vir, Felix!

Ela soluçara, desesperada.

- Acho que desta vez é um ataque do coração, Felix. Ou então foi a ruptura daquela maldita vesícula biliar, como você disse que poderia acontecer. Ou qualquer outra coisa.. Não! Ele está passando tão mal que não conseguiria pegar um avião e voltar para casa agora. Está completamente dopado, embora isso não tenha feito a dor passar.

Felix Arnstein, exausto, terminara por se arrastar para fora da cama. Ele mal chegara a esquentá-la, pois estivera fora, numa chamada de emergência, até quase quatro horas da madrugada. Seu paciente, um amigo íntimo, morrera de enfarte apenas meia hora depois da sua chegada. Fora um terrível golpe, um choque. Ele dissera à esposa, Gay, que o olhara com uma expressão preocupada e sonolenta:

- Volte a dormir, querida. Preciso sair agora. Deixarei um bilhete, explicando tudo, na mesa do café.

Ele não contara à esposa que estava saindo da cidade.

Os Jim Merwins deste mundo eram o esteio da vida de um clínico-geral. Pagavam contas imensas e não se queixavam. Achavam que o fato de receberem tais contas lhes conferia uma certa distinção social, principalmente se provenientes de um clínico-geral.

- Quero sempre ser tratado por um clínico-geral - diziam eles, piscando os olhos se gostavam de piscar como Jim Merwin. - Não quero saber desses especialistas que estão sempre jogando golfe ou em férias, e jamais são encontrados em casa nos fins-de-semana. O que esses especialistas sabem, médicos como Felix Arnstein já esqueceram.

Talvez sim, talvez não, pensava Felix, amargurado - mas a verdade é que os especialistas eram homens mais espertos do que ele, pois haviam dado um jeito de nascer de pais mais ricos, podendo cursar a faculdade de medicina tranqüilamente, com uma mesada substancial para mantê-los. Ou então os especialistas não se haviam casado na pobreza, como lhe acontecera. Haviam esperado até estarem pelo menos parcialmente estabelecidos. Ele já estava com trinta e um anos ao concluir o período como interno. Teria então que parar todos os planos durante os três anos seguintes, dedicando-Se somente ao estudo de uma especialização. Gay teria esperado, mas já fazia mais de dez anos que estava esperando e ele a amava muito e precisava dela. Ela continuara trabalhando numa grande loja da cidade durante dois anos após o casamento, até o momento em que Jerome, o filho deles, comunicara a sua chegada próxima. Felix tinha então uma renda quase tão grande quanto a de um mecânico. partilhava com outro médico um consultório no terceiro andar de um prédio sem elevador, num bairro pobre. Partilhavam também uma secretária-recepcionista que trabalhava apenas meio expediente, dois arquivos, um telefone e uma coleção de livros de medicina comprados em segunda mão de um especialista que jamais os lera.

- Ele nunca abriu os malditos livros desde o dia em que os ganhou dos pais, ao montar seu consultório - comentara o Dr. Robert Sherman, o colega de Felix. - Mas também não precisava. Bastou entrar em seu consultório grande e bem montado, ao lado do consultório do pai, com uma secretária que usa meias de seda e uma recepcionista que mais se parece com um modelo profissional. E assim assumiu a rica clientela do pai, fazendo-se na vida.

Se eu tivesse passado mais dois anos no hospital, pensava Felix, poderia ter-me também especializado e hoje estaria feito. Mas não pude ficar, pois Gay e eu já havíamos esperado demais.

Jerome proporcionara-lhes sorte. Sua vinda obrigara os pais a procurarem um apartamento um pouco maior, que era mais caro e num bairro melhor. Felix era um homem reservado, mas possuía um ar de integridade; Gay era encantadora, alegre e viva como um passarinho, cabelos castanho-avermelhados e olhos azuis sempre brilhando. Logo haviam atraído a atenção dos vizinhos do prédio de apartamentos em que foram morar. Quase todos eram pessoas mais velhas, sem filhos, algumas viúvas. A gravidez óbvia de Gay despertara a atenção solícita das mulheres que com ela se encontravam no elevador automático. Como ela era também a mulher mais jovem do prédio, seu sorriso confiante e as maneiras afáveis despertaram ainda os instintos maternais das mulheres mais velhas e mais solitárias. Elas passaram a visitá-la, conversando muito, advertindo, aconselhando. Uma delas era viúva de um médico, que a deixara em boa situação financeira. Ela interessara-se não apenas por Gay, mas também por Felix. Oferecera-lhes uma festa uma semana antes do nascimento de Jerome e todos os convidados simpatizaram com o jovem casal, O passo seguinte ocorreu quando Felix foi chamado para atender a algumas situações de emergência, por não se haver encontrado o médico pessoal do doente. E o passo decisivo foi no momento em que os pacientes resolveram adotar Felix como seu médico.

Jerome era um garoto bonito, com os cabelos e os olhos iguais aos da mãe, retraído como o pai e extremamente simpático. Tornara-se querido por todos no prédio, do zelador ao proprietário, que morava no último andar. Parecia que a sorte de Felix já estava definida. Ele e Gay começaram a conversar sobre uma casinha em algum lugar, com grama e árvores, para o bem de Jerome. (Não falavam em outros filhos, pois não podiam dar-se ao luxo de tê-los.)

Então estourara a guerra e Felix tivera que partir. Como ele não era um especialista, nunca fora além do posto de tenente. Não vira Gay e Jerome nos quatro anos que se seguiram, quatro terríveis anos. Ele poupava o máximo que podia e sabia que Gay estava fazendo o mesmo com a parte do soldo que recebia. Mas o que não soubera é que Gay voltara a trabalhar, deixando Jerome aos cuidados zelosos da viúva do médico. Só descobrira quando Gay, sorrindo por entre as lágrimas, depois do primeiro abraço em seu retorno, lhe mostrara o extrato da conta bancária com cinco mil dólares depositados.

- É a entrada para a nossa casa, querido. Em outro banco temos mais dois mil dólares, que economizei do seu soldo.

Jerome tinha então cinco anos. Compraram uma linda casa nos subúrbios, por duas vezes o seu valor verdadeiro, pois a inflação já começara. O Dr. Sherman, que não fora convocado, largara o consultório, que ficou todo para Felix. Ele tinha agora oito mil dólares no banco, depois de comprar a casa e imediatamente hipotecá-la, um carro de segunda mão e a metade dos seus antigos clientes, que haviam retornado aos seus cuidados. Ele e Gay nunca haviam tirado uma semana de férias em sua vida de casados -. nem antes.

Gay tinha um tio-avô idoso, um velho mal-humorado e irascível, com joanetes e que usava um aparelho auditivo. Ele desconfiava de todo mundo, menos de Gay. Evidentemente, não era um homem rico. Depois de um enfarte, dissera, em tom lamuriento, que queria mudar-se para a casa de seus parentes, a fim de esquecer e ser esquecido. Viúvo sem filhos, vivera sozinho, durante quarenta anos, num pequeno hotel. Fora outrora um lapidador e Gay não se recordava de jamais tê-lo visto com um terno ou um chapéu vos. Há anos que ela se mostrava bondosa para com ele, pela simples razão de ser naturalmente bondosa para com todos. Insistira para que ele fosse morar em sua casa, argumentando que assim teria Felix à mão, caso lhe sobreviesse n novo ataque. Felix não gostara muito da idéia, pois o velho Harry Stern nunca lhe fora muito. simpático. Mas Gay, que tanto trabalhara para comprarem aquela casa, tinha o direito de ali hospedar o seu velho tio, se assim o desejasse. Harry Sterfl fora morar com eles, levando suas queixas intermináveis, seus xales de orações, seus solidéus, seus comentários impertinentes sobre os dotes culinários de Gay, seus gritos para com Jerome, sua insistência na obediência aos ritos tradicionais, seus terríveis resfriados, o cheiro forte e desagradável de seus charutos baratos, seu hábito de prorromper em lágrimas pela esposa falecida, a quem em vida jamais tratara muito bem.

Ele morrera subitamente, quando Felix lutava para restabelecer sua clientela. Depois do enterro do velho, com todos os rituais, como ele desejara, aparecera um advogado com o testamento. O velho Harry Stern vivera de um fundo de pensão que comprara quarenta anos antes e que lhe pagava cem dólares por mês enquanto vivesse. Deixara dez mil dólares em dinheiro para Gay.

Felix judiciosamente contivera o seu júbilo em respeito pelo falecido. Subitamente passara a simpatizar com o velho implicante. Com o dinheiro recebido, fizera um pagamento substancial da hipoteca, reduzindo consideravelmente os juros e as prestações mensais. Ele então alugara um pequeno consultório num dos melhores pontos da cidade, num edifício novo e imponente, todo pintado de branco e com muitos cromados, com portas que se abriam eletronicamente, mesa telefônica e estacionamento próprio, janelas imensas.

- Acho que finalmente estamos a caminho do sucesso

- dissera ele, cautelosamente, à esposa.

No prédio havia muito médicos, mas ele era o único clínico-geral. E o que era pior: a maioria dos especialistas era mais jovem do que ele. Não o haviam rejeitado, muito pelo contrário: como o prédio fora incorporado por médicos, haviam-lhe secretamente alugado o consultório por um alUguel muito menor do que teriam conseguido arrancar de um jovem especialista apoiado no dinheiro do pai. Os clínicos-gerais encaminhavam seus clientes a especialistas, principalmente quando os especialistas estavam à mão, no mesmo andar ou no seguinte, e ainda mais quando os especialistas se mostravam cordiais, convidando-o de vez em quando para jantares e apresentando-o aos amigos.

- Não há dúvida de que estamos quase chegando - dissera Felix à esposa assim que liquidaram a hipoteca.

Ele tinha agora dezoito clientes como Jim Merwin, que geralmente exigiam demais e abusavam de seus corpos de incontáveis maneiras, acreditando firmemente nos checkups regulares e nas últimas drogas milagrosas. Felix, que por natureza os detestaria, referia-se a eles como nossas contas bancárias.

Jerome estava com dezessete anos e cursava uma escola particular, quando informara ao pai que desejava formar-se em medicina. Já estava alguns centímetros mais alto do que Felix e era um excelente estudante.

- Isso não é novidade para mim - dissera Felix, olhando ternamente para o filho. -- Há anos que venho observando que você gosta de ler os meus livros médicos. E qual é a especialidade em que está pensando?

- Não quero ser um especialista, papai - dissera Jerome, que era tão reservado quanto o pai. - Quero ser um clínico-geral, assim como o senhor.

- Mas por quê?

- Porque desejo ser o tipo de homem que o senhor é.

- Quer ser como eu? Mas o que está querendo dizer com essa tolice?

Jerome ficara vermelho. Era um pouco gago e respondera com alguma dificuldade:

- É que eu acho que este país está precisando de menos especialistas e mais clínicos-gerais.

Ele respirara fundo e acrescentara, desajeitado:

- Não se pode dividir o corpo humano em compartimentos estanques. Se a pessoa fica doente numa parte do corpo, fica doente em todo o corpo. Além disso... bem, acho que o clínico-geral é uma espécie de amigo, alguém que ajuda os outros, O especialista é impessoal, frio, distante. Eu prefiro outro tipo de relacionamento, pois gosto de gente.

- Gosta, não é? - murmurara Felix, pensando em gente como Jim Merwin. - Pois saiba que eu não gosto.

- Pelo contrário, papai, o senhor gosta... e muito - dissera Jerome, sorrindo com o sorriso de Gay.

Aquilo era um absurdo, uma estupidez. Ele desejara um destino melhor para Jerome, mas o rapaz, à sua maneira, ra tão teimoso quanto o pai. Felix ameaçara não deixá-lo fr para a faculdade de medicina, mas o filho limitara-se a sorrir.

- Quer ter uma vida como a minha, Jerome? Sem nunca saber quando poderá dormir uma noite inteira? À mercê dos chamados de qualquer um, a qualquer hora do dia ou da noite? Pondo um bebê no mundo por cinqüenta dólares? As pessoas que podem pagar mais procuram um obstetra. Quer ficar trabalhando como um mouro e esperando durante anos para ter um lugar ao sol num hospital? Não imagina como os especialistas esnobam os clínicos-gerais, meu filho. Eles nos desprezam, embora mantenham as suas portas abertas para os nossos pacientes. Até mesmo as enfermeiras nos desprezam, e o mesmo acontece com todos os demais funcionários dos hospitais. Nem mesmo se pode pertencer aos melhores clubes judeus, inclusive por não se ter dinheiro para tal luxo. Sabia que, depois de tantos anos, a minha renda anual ainda está abaixo do nível pelo qual se paga imposto de renda? Ganho apenas doze mil dólares por ano - e posso considerar-me um homem de muita sorte! E você ainda quer ser igual a mim!

- Quero mesmo, papai.

- Você não tem ambições. O proctologista que tem consultório em frente ao meu ganha duas vezes mais do que eu - e tem apenas trinta e cinco anos, enquanto eu já cheguei aos cinqüenta. Quando ele estiver com a minha idade, terá um consultório com muitas salas, vários assistentes, será um homem rico.

Jerome apenas sorrira.

Ele cursava agora uma excelente faculdade, e estava com dezenove anos. Ele e o pai não haviam mais conversado sobre o assunto. Felix esperava e rezava para que os professores do filho conseguissem persuadi-lo a adotar uma especialidade, alcançando sucesso onde ele fracassara. Gay dissera simplesmente:

- Se Jerome for a metade do que você é, querido, e receber a metade do carinho que seus pacientes lhe dedicam, então eu me sentirei muito feliz..

- Carinho de gente como Jim Merwin?

- Eles não são os seus únicos clientes, querido.

- Tem razão, só que os outros não pagam as suas contas ou levam anos para fazê-lo, O médico é sempre o último a ser pago.

Ele segurara a mão da esposa e acrescentara:

- Faz oito anos que lhe comprei um casaca de vison e nem ao menos era de boa qualidade.

As Lucy Merwins, porém, compravam novos casacos de vison todos os anos e tinham os seus próprios carros, sempre reluzentes conversíveis. Gay dirigia um carro velho, de segunda mão, um carro barato mesmo quando era novo. Lucy Merwin possuí a muitos diamantes, Gay tinham apenas um, de somente um quilate, do anel de noivado que Felix lhe dera e que levara quatro anos para pagar. Todo verão passavam duas semanas num motel perto da praia de Miami; no inverno, passavam duas semanas num pequeno chalé no lago, sem nenhum conforto. Depois de pagarem os impostos da casa e as despesas com a faculdade do filho, os doze mil dólares anuais reduziam-se a apenas dez mil. Viviam frugalmente e Gay é quem fazia todo o trabalho doméstico. Eram obrigados a economizar para assegurar a continuidade dos estudos de Jerome. Pagavam dois fundos de renda anual e tinham um seguro de vida no valor de vinte e cinco mil dólares, Felix já estava com cinqüenta anos. Precisava comprar novos instrumentos para o seu consultório e estava também economizando para um novo aparelho de raios X. Aquilo certamente irritaria alguns especialistas, mas ele estava ficando desesperado à medida que envelhecia.

- Não há mais lugar na América para clínicos-gerais

- costumava dizer a Gay. - Ninguém quer nem precisa de atenções especiais.

- Mas é exatamente isso o que todo mundo está querendo! - reagia Gay, cujos cabelos castanho-avermelhados estavam agora grisalhos. - Será que você ainda não percebeu isso? Nunca houve antes tanta gente pobre - e não me estou referindo a quem o é em termos financeiros,

E naquele dia, naquela cidade estranha, Felix recordou-se subitamente do que Gay lhe dissera. Olhou para o gordo e amarelado Jim Merwin e para sua esposa, Lucy, que era apenas três anos mais moça do que Gay, embora aparentasse ser pelo menos dez anos mais jovem, com os cabelos muito bem arrumados, a pele lisa, as mãos brancas e delicadas, o Corpo esguio.

Haviam reservado um quarto magnífico para o nosso médico, no mesmo hotel - o quarto ao lado, para ser mais preciso.

- Nada é bom demais para você, meu caro Felix - disse Jim Merwin, que era um ano mais velho do que o seu médico. - Por que não fica aqui mais uns dois dias e depois voltamos todos juntos?

- Não, obrigado. Tenho uma lista grande de consultas marcadas para amanhã e vou pegar o avião da. meia-noite.

Era um lindo dia de primavera e ele acrescentou, distraído:

- Agora que já o tranqüilizei e assegurei que não vai morrer de imediato, acho que vou passear um pouco. Há alguma coisa que valha a pena ver nesta cidade, além das coisas de sempre?

- Nada. Mas talvez você queira visitar o tal prédio maluco que fizeram aqui. Mostre-lhe o folheto, Lucy. É um negócio aí de malucos.

Felix pusera os óculos e examinara o folheto sobre o prédio que John Godfrey mandara construir. O Confessor...

- Isso é interessante - comentou Felix. - Quem costuma ir até lá?

- Conheci uma moça que mora na cidade e ela contou-me que o lugar é freqüentado por pessoas que estão em dificuldades e querem alguém para escutá-las - disse Lucy.

- Não é uma coisa de doido? Alguém para ouvir... Ora, o que estão precisando é de um psiquiatra. Quem mais vai querer ouvir?

Felix tirou os óculos e colocou-os, distraído, em cima de urna mesinha. Continuava a segurar o folheto. Pensou em Jerome, para quem acalentava os projetos mais ambiciosos. Quem poderia falar com seu filho? Os especialistas que ele conhecia? Gay, que se sentia satisfeita com a decisão tomada por Jerome? Ele guardou o folheto no bolso.

- Voltarei dentro de uma hora, mais ou menos.

Esquecera-se por completo do folheto antes mesmo de chegar ao saguão d hotel. Pensou em comprar um jornal, procurar o parque mais próximo, se houvesse, e sentar-se ao Sol para lê-lo. O sol estava bastante agradável. Ao sentar-se no banco de um parque, tateou os bolsos em busca dos óculos e só então se lembrou de que os deixara no quarto de Jim. Voltou ao hotel, subiu no elevador e saltou no andar, atravessando o corredor atapetado em direção à suíte de Jim. A bandeira da porta estava aberta. Foi então que ele ouviu Jim dizer, em tom de desprezo:

- Felix? Não se preocupe com ele. Não devíamos tê-lo chamado. A idéia foi sua. Está bem, está bem, a idéia foi minha! Mas o que você queria que eu fizesse, com toda a dor que estava sentindo? Mas pode apostar que ele vai mandar uma conta imensa. Pode ter Certeza de que um médico judeu sempre faz isso. Eles só pensam em juntar dinheiro no banco!

- Essa é boa! - disse Lucy, com o riso alegre e cruel das mulheres que se divertem quando os outros são depreciados. - Mas você também pensa em dinheiro, querido.

- Claro que penso, mas não como os judeus o fazem. Eles gostam mesmo é de entesourar tudo o que ganham. Olhe para a carro dele: tem pelo menos quatro anos e nunca foi grande coisa. Há anos que Gay usa aquela pele ordinária e esfarrapada; era de se esperar que ele sentisse vergonha por ver a esposa metida numa coisa daquelas. E toda a casa deles cabe em apenas uma sala da nossa. É que ele economiza tudo o que ganha. Já estava exercendo a medicina e ganhando muito dinheiro quando eu ainda era um simples balconista numa das lojas de que agora sou proprietário. Nunca fique preocupada por causa de um judeu. Pense no que me custou trazê-lo até aqui, na conta do hotel, na conta que ele vai mandar-me. Pode apostar que ele vai querer me esfolar. Agora prepare-me um drinque, duplo.

Felix recuou lentamente, o rosto extremamente pálido, os músculos da boca rígidos. Ele, um homem suave e tranqüilo, estava tremendo de ódio, de raiva, de humilhação. Nunca permitiria que Jim Merwin tornasse a entrar em seu consultório.

Não, deixaria sim. Precisava de gente como Jim Merwin. pois era um clínico-geral, não possuía o menor status.

Sentia-se mal quando desceu novamente para o saguão. Olhou para o jornal em sua mão. Não poderia lê-lo sem os óculos. E também não poderia entrar naquela suíte para pegá-los - pelo menos por enquanto. Tinha que esperar algum tempo, se desejava manter os Jim Merwins como clientes. Não confiava o suficiente em si, naquele momento.

- Maldito seja ele! - disse em voz alta, pensando em todo o trabalho que tivera, em todo o trabalho de Gay.

E pensou também em Jerome, que desejava ser um Clínico-geral. Enfiou as mãos nos bolsos, desesperado - e encontrou o folheto. O Confessor.

- Mas que inferno!

Apesar da exclamação, saiu do hotel e pegou um táxi.

Os arbustos e as árvores em torno do prédio branco estavam começando a desabrochar em flores ao calor da primavera, matizando-se de todas as cores, rosa, vermelho, magenta, amarelo, branco, púrpura, azul. Havia canteiros e mais canteiros de tulipas, narcisos e jacintos. O caminho sinuoso de lajes vermelhas faiscava ao sol. Felix subiu lentamente um dos caminhos, fitando a estrutura branca e quadrada, sobressaindo contra o céu de um azul intenso. Viu um banco no qual estava sentado um ancião, que segurava uma bengala. O velho sorria para um esquilo. Felix hesitou, mas terminou parando a seu lado, dizendo:

- Gostaria de saber se o senhor pode dizer-me uma coisa: quem é o Confessor lá em cima?

O velho encarou-o com um ar sereno.

- Eu não sei, ninguém sabe. Ele apenas ouve. Algumas pessoas acham que é um professor, outras dizem que é médico, agente social ou sacerdote. Metade das pessoas que lhe falaram não chegaram a vê-lo, o resto viu. O senhor mesmo pode escolher o que achar melhor.

- Já esteve lá em cima?

- Já. Falei-lhe durante muito tempo. Mas não apertei o botão perto da cortina. Quero conservar a imagem que fiz dele. Eu ia matar-me, mas desisti depois de falar-lhe.

- Isso é muito interessante - disse Felix, mantendo a voz cordial com que inspirava confiança aos seus pacientes.

- Incomoda-se de contar-me o que ele lhe disse?

O velho fitou-o pensativo. Tirou o chapéu e esfregou a cabeça calva com a palma da mão.

- Não sei. Não me lembro de nada do que ele disse. Talvez tenha falado alguma coisa, talvez não. Francamente. eu não sei, não faço a menor idéia. Mas senti-me em paz pela primeira vez em setenta e cinco anos. É muito tempo para se viver no inferno, não acha?

Ele olhou para o rosto tenso e pálido de Felix, viu a dor estampada em seus olhos azuis.

- Por que também não vai falar-lhe? Acho que está precisando.

Felix ficou vermelho e endireitou os ombros. Quase se Virou para ir embora dali. Mas tornou a contemplar o prédio e franziu o rosto, pensativo. Ora, não faria mal algum contar a alguém, anônimo, alguém a quem jamais veria, sobre os Jim Merwins do mundo, os malditos Jim Merwins...

Ele entrou na primeira sala e viu duas pessoas esperando em silêncio, um rapaz e uma moça. Como médico, pôde perceber o desespero naqueles rostos imóveis, o vazio do sofrimento. A moça era extremamente magra, o rapaz era da Idade de Jerome. O sofrimento era uma coisa terrível - e era mais terrível ainda ver gente jovem sofrendo. Quem seriam eles? Com os olhos experientes, avaliou as roupas que vestiam. A moça estava com roupas caras, enquanto o rapaz usava sapatos baratos e um terno surrado. Não olharam para o recém-chegado, pois estavam absorvidos em sua própria e interminável agonia. Felix recordou-se subitamente: eram eles a gente miserável a quem Gay se referira!

Impacientemente, ele expulsou o pensamento de sua mente. Viu a fenda com a placa de bronze em cima, convidando os visitantes a ali deixarem uma nota, expondo os seus problemas. Não se pedia nenhum donativo. Era certamente um psiquiatra, um médico capacitado. Quem mais poderia ser? Ele sentou-se, com a sensação de que estava bancando o tolo, e ficou esperando. Uma velha arrastou-se para dentro da sala, timidamente. Era, evidentemente, uma faxineira, a julgar por suas mãos calosas, pelas roupas que vestia, pela maneira difícil como caminhava. Muito mais terrível que o sofrimento dos jovens era o sofrimento de uma pessoa idosa e solitária que não tinha ninguém, que precisava trabalhar até cair morta. Ele sorriu encorajadoramente para a velha e levantou-se, indo ajudá-la a sentar-se. Os pés dela estavam inchados: edema, certamente. Sofreria do coração? A palidez da morte estava em seu rosto, a sombra da morte pairava em seus olhos. A gente pobre... Mas que diabo, pensou Felix. Ele contemplou as mãos velhas e encarquilhadas, quase exangues, as unhas corroídas. A velha notou que ele a examinava e levantou a cabeça branca para encará-lo, cheia de orgulho, rejeitando a sua horrível piedade. Era a mesma piedade tão familiar e violenta, que lhe cortara o coração muitas vezes ao fechar olhos mortos e desesperados, em quartinhos miseráveis, ao dizer a uma mãe que seu filho estava morrendo, ao falar a um marido que a esposa estava respirando pela última vez, ao confortar uma esposa abalada cujo marido jamais tornaria a falar-lhe. Por alguma razão misteriosa, essas coisas sempre aconteciam depois da meia-noite, quando os especialistas estavam comodamente adormecidos e despreocupados - ou então nas Bermudas, em Paris, Londres ou na América do Sul. Felix pensou nos padres, reverendos e rabinos cansados que estavam a seu lado nesses momentos angustiantes, de como eles o encaravam como se fosse um colega, um companheiro na misericórdia e na dor. Sentia um estranho e pungente companheirismo por aqueles homens mal vestidos que se encontravam nos quartinhos miseráveis.

Uma sineta tocou. O rapaz e a moça haviam desaparecido. Felix hesitou. A velha disse-lhe laconicamente:

- É a sua vez.

- Eu posso esperar. Vá na minha frente - disse ele, tornando a fitar os pés inchados da mulher.

- Não. Isso não seria justo. O senhor deve ir na sua vez.

A velha falou, com firmeza, ofegando um pouco. Felix franziu as sobrancelhas, preocupado.

Passou para a sala branca com a cadeira de mármore e a cortina azul, fechada. Examinou tudo com a curiosidade objetiva de um médico. Foi até o lugar onde os visitantes deixavam os seus bilhetes. Sorriu, cético. Havia uma caixa de aço na parede. Isso queria dizer que eles liam os bilhetes, preparando-se para dar os conselhos adequados. Havia urna tampa enviesada em cima da caixa e ele levantou-a, sentindo o cheiro acre de papel queimado. Compreendeu então que os bilhetes eram depositados na caixa do lado de fora, sendo imediatamente queimados. Ainda pôde ver uma chama, no fundo da caixa de aço, consumindo uma nota de dez dólares.

Aquilo queria dizer que ninguém lia os bilhetes. Ele compreendeu que os visitantes eram convidados a fazê-los apenas para adquirirem confiança na exposição de seus problemas, definindo-os.

- É uma atitude muito inteligente - murmurou Felix.

- Uma ótima idéia, do ponto de vista psicológico.

Ele caminhou relutante até a cadeira, apoiando-se no espaldar, a mirar a cortina. Estava outra vez muito curioso.

- Gostaria de falar com alguém, mas preferia não o ver, nas presentes circunstâncias. Por falar nisso, há uma velha agonizante esperando lá fora. Ela provavelmente precisa falar com o senhor mais do que eu. Vou mandá-la entrar agora.

Ele foi até a porta pela qual havia entrado. Só podia ser aberta pelo outro lado. Voltou até a cortina e leu o que estava escrito na placa de bronze incrustada na parede de mármore.

- Bom, espero que pelo menos eles lhe agradeçam.

A sala esperava. Possuía a serenidade da eternidade absoluta, onde o tempo não existia. Felix pensou na sala de espera permanentemente apinhada do seu consultório. Havia cadeiras em todas as paredes e, mesmo assim, os pacientes algumas vezes eram obrigados a esperar no corredor. Os especialistas passavam por eles, olhando esperançosos para os seus rostos. Aquele sofria do fígado, ali estava um caso de artrite, o outro tinha um problema cardíaco, havia um obviamente com câncer, mais outro com isto ou aquilo. O velho Felix certamente lhes encaminharia este ou aquele; fora de fato uma grande idéia trazer um clínico- geral para o edifício. O velho Felix nunca suspeitara de nada, jamais lhes pedira qualquer vantagem. Fora, de fato, uma excelente idéia.

Felix estava agora vendo nitidamente a sua sala de espera, os rostos assustados dos pacientes, as roupas gastas, os sapatos de má qualidade, os lenços com. que as mulheres mais pobres cobriam a cabeça, as crianças com os rostos contorcidos pela apreensão. E então, quando ele aparecia, era como se uma luz subitamente brilhasse, trazendo a esperança, provocando sorrisos tímidos. Isso era realmente maravilhoso! Mas os poucos cheques que recebia no fim do mês não eram tão animadores assim, como sua secretária não se cansava de ressaltar. Ele tinha sorte se recebia um cheque para cada seis contas despachadas; às vezes tinha sorte de receber pelo menos alguma coisa. Só entregava as contas a uma agência de cobranças quando tinha certeza de que os pacientes estavam tentando enganá-lo ou quando sabia que poderiam pagar-lhe pelo menos em parcelas mensais. ele era um tolo rematado! Estava com cinqüenta e dois anos e, tirando uns vinte clientes, se tanto, como Jim Merwin, jamais conseguira atrair a espécie certa de clientes pagantes, que poderiam compensar os que não pagavam.

Ele descobriu que, sem pensar, acabara sentando na cadeira. Olhou para a cortina.

- Suponho que o senhor seja médico. Bom, conheça um companheiro de infortúnio. Eu sou clínico-geral. Também o é?

Não ouviu som algum, nenhuma voz, ruído, movimento algum. Mas teve a certeza de que, de algum lugar, partira um murmúrio de afirmação. Olhou ao redor. Devia certamente estar imaginando coisas! A mente pode nos enganar em lugares tranqüilos como aquele, onde o tempo não existia, em que não havia a menor intromissão do mundo exterior, onde se ficava inteiramente sozinho diante... diante de quem?

- Disseram-me que o senhor fica aqui vinte e quatro horas por dia - comentou ele, com um sorriso cético. - Pois isso também acontece comigo. Fico à disposição dos meus clientes vinte e quatro horas por dia. Tenho sorte quando consigo dormir cinco horas por noite, algumas noites por semana. Também não se sente exausto com essa vida?

Novamente pensou ter ouvido um murmúrio, mas só que agora era negativo. Esfregou os ouvidos até ficarem vermelhos. Incrédulo, tornou a perguntar:

- Não se sente? E quando é que dorme?

As paredes e o teto brancos sorriam-lhe. Ele empertigou-se na cadeira de mármore.

- Não tem pais, irmãos, irmãs, filhos?

Sentiu um calor aconchegante fluir ao seu redor, em assentimento. Esquecera-se de esperar uma voz em resposta. Não sabia como isso era possível, mas sentia-se satisfeito com a mera sensação de ouvir um assentimento ou a discordância. lá muitos anos que não pensava em seu avô, com o. solidéu sempre na cabeça, sentado perto do fogão na cozinha da casa de sua mãe, no inverno, aquecendo as mãos, balançando-se confortavelmente na cadeira de balanço que a filha sempre lhe reservava. O avô raramente falava, preferindo ouvir, sorrindo com bastante freqüência. Era o suficiente. Ele compreendia e respondia, sem precisar recorrer às palavras.

- O senhor faz-me lembrar o meu avô - disse Felix subitamente. - Já é muito idoso?

A resposta fora afirmativa OU negativa - ou ambas? Felix recostou-se na cadeira e calou-se. Pensou em Gay e em. Jerome, nas pequenas provas do sucesso terreno que possuía, nos Jim Merwins deste mundo. O tempo passou; ou melhor, pareceu ter parado. Felix estremeceu, voltou ao presente.

- Suponho que devo agora contar-lhe os meus problemas.

E então - ele devia estar perdendo o juízo! - teve certeza de que alguém estivera ouvindo seus pensamentos durante todo o tempo, que o homem atrás da cortina sabia de tudo a seu respeito. Aquilo deixou Felix um pouco enervado. Cético, sorria desdenhoso sempre que lhe falavam em percepção extrasensorial, embora admitisse que de fato existia alguma coisa estranha, mas que seria facilmente explicável, com o decorrer do tempo. Será que o homem que ouvia por trás da cortina era dotado de percepção extra-sensorial? Felix teve subitamente a certeza de que era. Ficou ainda mais enervado e tossiu, procurando disfarçar o seu constrangimento. Aprendera, ainda criança, na escola, a disfarçar as emoções que se podiam tornar veementes. As pessoas não gostavam da veemência nem de qualquer coisa que pudesse ameaçar a superficialidade de suas existências, que pudesse perturbar a sua decisão inabalável de serem felizes. Sentiam-se especialmente ofendidas pelos que tinham problemas ou simplesmente deixavam-no transparecer em expressões, abstrações ou gestos. Tudo devia ser a mais completa felicidade.

- Nunca vi tolice tão grande - disse Felix em voz alta. - Felicidade... Isso é conto da carochinha para crianças. Quando será que cresceremos como nação e aprenderemos ‘que não existe a felicidade? Devia ver a minha sala de espera, a sala de espera de qualquer médico, as enfermarias de um hospital! Mas os pacientes, quando saem, exibem um sorriso artificial, como que para mostrar ao mundo desgostoso que são felizes também, mesmo quando a morte está à espreita em seus corpos. Só assim serão aceitos pelos devotes do culto da felicidade, não sendo rejeitados como desagradáveis lembretes de que existe dor no mundo, de que há morte, funerais.

Ele mudou de posição na cadeira, vermelho, constrangido.

- Passei quatro anos na Europa. Havia por lá uma guerra em andamento. É outra bobagem falar em guerra em andamento, pois sempre houve uma guerra em algum lugar. Mas, descontando-se a guerra, as pessoas já pareciam, de certa forma, mais adultas. Ninguém esperava que os outros fossem invariavelmente felizes. Se você se sentia feliz, muito bem, estava de parabéns! Mas ninguém lhe exigia que exibisse a sua felicidade em público, como um ritual, como uma obrigação social. Ninguém o julgava inferior ou aviltado só porque se sentia miserável, como acontece na América. E o que significa afinal toda essa pretensa felicidade?

Ele fez uma pausa demorada, fitando a cortina.

- Mas não foi isso que vim aqui contar-lhe. Essa obrigação de ser feliz é como uma pulga a irritar-me o espírito, o tempo inteiro.

Ele era um homem nervoso, embora conseguisse ocultá-lo, só deixando transparecer o nervosismo nos cigarros que fumava um atrás do outro. Tateou os bolsos em busca do maço de cigarros, mas perdeu o desejo de fumar e tirou a mão do bolso. A tensão no pescoço e nos músculos dos ombros estava aos poucos se desvanecendo. Aquela serenidade, que h muito tempo não experimentava, era uma sensação estranha. Disse abruptamente:

- Eu tenho desejado a felicidade para o meu filho, Jerome. Queria uma vida mais tranqüila para ele, diferente da minha. Queria que ele tivesse sucesso, a fim de poder...

Uma nova pausa, um olhar desesperado para a cortina.

- Ora, que diabo! Para que ele possa ser aceito pelos Tim Merwins deste mundo, para que possa entrar em seus clubes e não ser obrigado a ficar eternamente do lado de fora! Para que possa jogar golfe com eles, apostar com eles, ser convidado a freqüentar suas casas, ter um carro tão bom quanto o deles, uma casa igual, para poder casar-se com uma moça de boa família e com muito dinheiro! Para ser um sucesso socialmente e não ficar eternamente por fora!

Sentiu-se de repente enjoado de constrangimento e vergonha. Mas impôs à sua voz um tom de desafio.

- Sabe o que significa ser posto à margem? Por acaso sabe o que significa ser um judeu? Eu sei!

A sala pareceu envolvê-lo com tristeza e compreensão, mas também com esperança. Incrédulo, Felix disse:

- O senhor é judeu! É um médico judeu?

Ele parou de falar, inclinando-se na direção da cortina, tenso. Mas logo suspirou, relaxando.

- Se é judeu e tem um filho, então deve compreender por que desejo para Jerome mais do que eu tive. Gay sempre fica impaciente comigo. Ela chegou a me dizer: E que Importância tudo isso tem? Esse negócio de ficar de fora nada significa. Todo mundo está à margem de alguma coisa. Se eles admitem apenas uns poucos judeus para os clubes de um Merwin ou para o Supremo Tribunal, possuem também uma cota fixa de católicos. Um sócio católico precisa morrer antes de outro ser admitido - e precisa ter muito dinheiro. E tudo isso para associar-se a gente como Jim Merwin! Os italianos e os poloneses também estão à margem de muitas coisas, assim como milhões de outros, por falta de educação, dinheiro ou tradição. Ora, alguns judeus fazem até discriminação contra outros judeus! Esse é um dos mais detestáveis hábitos da humanidade.

Felix não conseguiu conter o riso.

- Está certo, talvez Gay é que tenha razão. Mas não quero que Jerome encontre mais discriminações do que o necessário. Quero que ele seja ...

Felix interrompeu a frase no meio, bruscamente, corando. Envergonhado, exclamou:

- Maldição!

Mas logo retomou o tom de desafio.

- Está certo, sou um estúpido. Vamos esquecer tudo o que disse, estava apenas divagando. Não quero que Jerome tenha dinheiro suficiente para relacionar-se com gente como Jim Merwin. Pelo menos é o que estou pensando neste momento. Mas quero que seja um especialista a fim de. ter uma vida mais fácil do que a minha, mais segura e tranqüila do que a minha. Não quero que ele trabalhe tanto quanto eu, a porta e o telefone à disposição dos enfermos vinte e quatro horas por dia...

Será que a sala se tornara de fato ligeiramente mais fria, mais indiferente, mais pensativa? Ele podia senti-lo. Piscou os olhos, nervosamente.

- Talvez não seja exatamente isso o que eu queria dizer. Afinal, sou médico e os doentes constituem a minha carga, a cruz que tenho de carregar. Engraçado,, acho que nunca pensara neles sob esse ângulo!

Fez uma pausa e seu rosto se iluminou um pouco.

- Creio que já pensei, no subconsciente. Acho que ando meio confuso. É o que acontece quando se é pai. Houve um tempo, milhares de anos atrás, em que todos os médicos eram sacerdotes, não se casavam e não tinham filhos. Dedicavam suas vidas à cura dos enfermos, confortando-os e dando-lhes coragem para enfrentarem a morte. Pode compreender uma atitude assim? Acho que, agora, eu posso.

Ele ficou em silêncio por um longo tempo, pensando. Os pensamentos fluíam rapidamente, trazendo-lhe milhares de imagens num rápido desfilar. A tensão desapareceu de seu rosto e ele começou a sorrir.

- Acabei de me lembrar de uma coisa. Quando Gay herdou aqueles dez mil dólares do velho Harry Stern, ela me disse: Agora você pode voltar a estudar por mais alguns anos, se quiser. Pode tornar-se um especialista, se é o que deseja.. Ela ficou me olhando com seus lindos olhos, esperando.

Felix empertigou-se na cadeira, excitado.

- E sabe o que eu respondi? Que isso não tinha a menor importância. Eu pensava que tomara essa decisão por julgar que fosse melhor pagar a hipoteca da casa. Mas não era nada disso! No fundo da minha mente eu queria ser exatamente um clínico-geral, com a porta e o telefone à disposição, vinte e quatro horas por dia, das pessoas que soubessem que os especialistas só atendem com hora marcada, dão consultas dentro de um horário rígido, e contratam um serviço de atendimento telefônico, que não se dão ao trabalho de verificar quando têm um jantar marcado ou vão jogar golfe, ou passar um fim-de-semana fora, na casa de campo de alguém.

Felix fez uma pausa, logo continuando em tom de desprezo:

- Como se as pessoas pudessem prever e determinar quando ficarão doentes, agonizantes ou acidentados, como se uma mulher pudesse controlar a hora do nascimento do seu bebê! Conheço um obstetra que chega a marcar a data de nascimento dos bebês! Quando deseja tirar umas férias, leva as suas pacientes para o hospital e induz o parto. Algumas vezes não há problemas, mas nem sempre é assim! Mas mesmo as mulheres que perdem os seus bebês continuam a adorá-lo. Ele é um médico encantador, coisa que eu absolutamente não sou!

Felix passou algum tempo meditando no assunto.

- Mas eu tenho algo mais: meus pacientes confiam em mim. Quando chamam seu padre, pastor ou rabino, também me chamam. Mesmo quando sabem que nada mais posso fazer para ajudá-los. Isso representa alguma coisa, não acha?

O rosto cansado estava brilhando, emocionado. Ele se esqueceu de controlar suas emoções. Levantou-se bruscamente e começou a andar de um lado para o outro da sala, gesticulando, murmurando para si mesmo.

- As pessoas são sempre gente. Podem tingir que são Civilizadas, corajosas e sofisticadas, mas todos são iguais quando se trata da morte. Quando tiram as roupas e vestem OS camisolões brancos, antes do exame, ficam todos iguais. Os mesmos rostos humanos, as mesmas emoções, os mesmos medos, as mesmas esperanças, amores e ódios. São apenas Seres humanos, até mesmo gente como Jim Merwin.

Felix calou-se. Todo o seu ódio por Jim Merwin desaparecera. Ele não passava de um pobre coitado, banhudo, sofredor, covarde. Está apavorado com a operação, pensou Felix. Acha que vai morrer. E o que acontecerá então com os seus clubes, com o seu dinheiro e com sua linda Lucy? Ele sabe que ela se casará novamente antes mesmo que seu corpo esfrie. E que dizer dos filhos? Jim não sabia, nem Lucy, que a filha mimada, de dezoito anos, estava se tratando com ele, para curar-se de uma doença venérea. A inocente ovelhinha! Ambos morreriam se soubessem, por isso é que nada lhes contei. Limitei-me a dar algumas lições à desavergonhada, dizendo-lhe tudo o que os pais deveriam ter dito alguns anos antes, procurando incutir-lhe o temor de Deus. É para isso que serve um médico, é para isso que serve um clínico-geral. Se eu fosse um especialista... Ora, um especialista teria apresentado contas que a mesada da moça não daria para pagar e assim o pai acabaria descobrindo. Mas eu lhe cobro apenas cinco dólares por cada injeção, o que representa apenas um quarto do que. ela ganha por semana. Ela logo ficará curada e será uma moça diferente agora. Graças a mim.

Ele tornou a olhar para a cortina, experimentando a sensação de que novamente haviam ouvido seus pensamentos.

- Estou pensando em todas as pessoas que poderiam morrer por não terem dinheiro para consultar um especialista. Não me estou referindo aos que são muito pobres, pois estes recebem gratuitamente dos especialistas o mesmo tipo de tratamento dos ricos. O grande problema é a classe média inferior, as pessoas que tenho como clientes. Eles podem pagar um pouco, mas não os preços de um especialista. Sabem disso. Sem o clínico-geral, não receberiam tratamento algum e passariam o resto de suas vidas sofrendo. Ou então acabariam morrendo!

Ele sorriu para a cortina.

- Sabe qual foi a coisa mais maravilhosa que meu filho já me disse, que qualquer pessoa jamais me disse? Quero ser Um homem assim como o senhor... Que satisfação maior um homem pode ter na vida? Ele quer ser igual a mim! Esta noite mesmo vou escrever para Jerome. Direi que sinto o maior orgulho dele por saber que deseja curar os enfermos, quer possam ou não pagar, quer fique rico ou não. Ele jamais enriquecerá. Mas isso não tem nenhuma importância, não é?

Aproximou-se da cortina, olhou para o botão. Hesitou por um momento, mas terminou apertando-o. A cortina se abriu.

Ele viu a luz e quem estava sob ela.

 

Vós curastes os enfermos, não é? E sempre fostes posto à margem pelos outros, não é mesmo? Gay e eu pertencemos a um clube de livros e acabamos de ler uma obra a Vosso respeito e sobre o que fizestes.

Jamais desejastes ser aceito nem tornar-vos um sucesso em termos sociais. Se bem me lembro, os pobres e os enfermos Iam procurar-Vos em bandos e jamais os rejeitastes por não possuírem dinheiro. Nunca tivestes uma bela casa, criados ou boas roupas. Isso não tinha a menor importância. Éreis médico e suponho que ainda o sejais.

Essa coisa horrível que tendes na cabeça... Sabeis de Uma coisa? Todo médico de verdade trá-la em torno do coração.

ALMA TREZE

A Desonrada

Que a paz seja convosco.

João 20: 21, 26

A Sra. Anil Logan ficou observando Felix Arnstein passar para a outra sala. Ela também possuía um olhar experiente. Ele devia ser algum negociante ou então médico ou advogado. Era evidente que não ganhava muito dinheiro. As roupas eram boas, mas ela já vira melhores. O terno também não era novo. E ele tinha boas maneiras, era um homem delicado - mas não a delicadeza de algumas pessoas, que se arvoravam em defensores da pobre classe trabalhadora e jamais davam a menor importância à pobre classe trabalhadora. É que parecia moderno para essas pessoas falarem sobre a pobre classe trabalhadora em suas reuniões sociais. Nos últimos vinte anos ouvira falar mais sobre os direitos dos trabalhadores que em qualquer outra época, só que isso, no fundo, nada significava. Absolutamente nada. Era muito engraçado! As damas que a contratavam passavam horas intermináveis em festas, a falar com suas amigas sobre o progresso e o Trabalho. Podia ouvi-las falando incansavelmente, excitadas - mas podia ouvi-las da cozinha apenas, onde ela ficava preparando os pratinhos de queijo e presunto cortados, salgadinhos com as carnes mais esquisitas, saladas cheias de coisas estranhas, comidas que certamente deixariam embrulhado o estômago de qualquer pessoa, embora custassem um bocado caro! E como gostavam de sorvetes e docinhos estrangeiros! E nem ao menos ela podia provar um pouco, pois a dona da casa estava sempre atenta para impedi-lo, vigiando implacavelmente.

E então, quando seus pés já nem doíam mais de tão entorpecidos que estavam, a patroa, depois de toda a sua fala bonita, entrava na cozinha - e os olhos já não mais estavam brilhando com a devoção à justiça social. Pelo contrário, mostravam-se ríspidos e inflexíveis no momento em que ela perguntava.

- Agora vamos acertar as contas. A que horas você chegou, Ami? Dá mesmo nove horas? Deixe-me ver... Não, dá apenas oito horas e quarenta minutos! Arrume-me papel e lápis para eu ver quanto dá, incluindo também a despesa de condução.

E o cálculo era feito até o último cent. Se elas pudessem partir agora uma moeda de um cent ao meio com os dentes, certamente o fariam. Pelo menos era essa a impressão que davam. E jamais nenhuma pensara em levá-la de carro até o ponto de ônibus, mesmo quando era noite alta e o ponto ficava a dois quilômetros de distância.

Mas aquele homem que acabara de entrar não a olhara como se ela fosse uma digna representante da classe trabalhadora.. Contemplara-a como se ela fosse um ser humano, olhara para os seus pés. Aquilo a deixara um pouco irritada. Afinal, quando algumas vezes se passa em pé doze horas por dia, é natural que os pés se pareçam com almofadas e doam como o pecado. Além disso, ele era jovem e certamente não sabia o que significava ter setenta e um anos - e nenhum lugar para repousar a cabeça, quando o momento chegasse, em breve. Mesmo assim, ele se mostrara realmente delicado, puxando-lhe uma cadeira e querendo que ela entrasse primeiro. Mas ela não queria a piedade dele - não queria a maldita piedade dele nem de ninguém! Trabalhara durante toda a sua vida e podia continuar a trabalhar. Mas, se ao menos tivesse um lugar onde pudesse descansar, se ao menos fosse independente...

Ela fora independente durante toda a sua vida. Começara a trabalhar aos nove anos, assim que terminavam as aulas, lavando pratos na vizinhança, sempre que alguma mulher estava doente de cama ou acabara de ter um bebê, limpando janelas, removendo a neve das calçadas, batendo sorvete, tomando conta de crianças, pequenas, varrendo pá- tios e porões, limpando sótãos, retirando as cinzas dos fogões e lareiras. Fizera centenas de coisas diferentes. Ami sacudiu a cabeça, pensativa. Não, trabalhar não machucava ninguém! O que machucava era a preguiça, ganhar as coisas facilmente, jamais sujar as mãos com o trabalho duro.

Que sempre lhe dessem uma boa vassoura da antiga e não dessas vassouras elétricas como agora estavam usando! Elas simplesmente não limpavam direito um tapete. Nem os aspiradores de pó. É claro que agora o trabalho era mais fácil, Inclusive ninguém mais removia os seus tapetes, batendo-os e deixando-os estendidos ao ar livre.

Ela sorriu. Era primavera e lembrava-se dos esquecidos tamboretes primaveris da cidade. Por toda parte batiam-se tapetes para deixá-los bem limpos. Aquilo era parte da primavera, assim como o cheiro de molho de tomate e de geléia de uva, saído das casas, era o anúncio do outono iminente. Eram os sons e os cheiros que faziam as pessoas lembrar, recordar a paz e a serenidade de outros tempos. As pessoas então trabalhavam arduamente, mas tinham muita paz. Do pôr-do-sol ao amanhecer era um longo período de paz, sossego e felicidade. Algumas vezes, no verão, soprava uma brisa suave e podiam-se ver as lanternas chinesas de porcelana balançando nas varandas, especialmente aos domingos, depois da missa. E como eram bonitos os panos de linho branco nas cadeiras de balanço colocadas nas varandas! E sempre havia alguém entoando um hino no quintal. Naquele tempo havia relva, flores e árvores nos fundos de cada casa. Agora têm apenas asfalto e garagens; E depois do almoço do domingo todo mundo entra rapidamente nos carros, saindo em disparada pelas ruas, contemplando os outros carros ou seguindo para o lago, onde ficam sentados a contemplar outros carros, enquanto as crianças jogam tudo que é espécie de lixo na praia e na relva, chorando sempre, chorando interminavelmente. Nos velhos tempos, as mães e os pais dormiam depois do almoço do domingo, enquanto as crianças ficavam sentadas nos degraus das varandas a conversar. Às Vezes, quando ninguém estava olhando, os meninos jogavam bolas de borracha uns com os outros. Mas as meninas sempre ficavam sentadas, em seus vestidos bonitos e engomados, com laços, fitas nos cabelos e sandálias de verniz, segurando suas bonecas, penteando-lhes os cabelos.

Por volta das quatro horas, os pais levantavam-se e safam para as varandas, revigorados e felizes. Eles e as crianças caminhavam então em direção ao parque, onde se sentavam sob as árvores, tomavam sorvetes, ouviam a banda. Outras vezes iam visitar parentes, sentando-se em outras varandas, tomando chá ou café, comendo um delicioso bolo de chocolate de cinco camadas, feito em casa. Ami podia ouvir -o suave farfalhar das árvores ao sol quente de muitos anos atrás, o ruído dos cascos dos cavalos nas pedras do calçamento o distante chocalhar de um bonde sonolento, as usadas alegres e satisfeitas das crianças, o murmúrio dominical de uma voz maternal, os sinos das igrejas. Até os pobres não viviam atormentados naqueles tempos. Havia algo por que se viver, a vida era suave e agradável. Ela fora uma das meninas que se esquentara ao sol nas varandas de antigamente, e por isso o sabia. Sua mãe arrumava-lhe os cabelos na noite de sábado, depois do banho na tina. Ela tinha lindos cabelos castanhos, mas muito lisos. Mamãe enrolava-os para que, pela manhã, pudessem cair-lhe em cachos pelo rosto. Mamãe e papai eram muito pobres, mas de certa forma não o pareciam. De certa forma... Era tudo muito sereno então, as pessoas tinham orgulho e senso prático.

Havia sempre uma avó ou uma tia idosa que morava Junto com a família. Elas sempre ficavam com os pedaços mais macios da galinha ou do rosbife por causa de seus dentes. Ela podia ver a sua própria avó, com um vestido de chita cinza, um avental engomado branco. Vovó sempre fazia doces deliciosos para as crianças e contava-lhes as melhores histórias. Papai e mamãe tratavam-na como a uma princesa. Ou uma rainha - seria melhor dizer. Certa vez, num Natal, havia pago três dólares por um daqueles velhos pentes espanhóis, com contas coloridas no alto. Vovó usara-o num coque que fizera com os seus cabelos brancos. Ela, Ami, jamais esqueceria daquele pente espanhol, pois vovó deixara-o para ela e até hoje o guardava, em sua caixinha de jóias. De vez em quando tirava-o e punha-se a admirá-lo, e algumas vezes, para se divertir, colocava-o em seus próprios cabelos. Parecia uma pequena coroa. Fora nisso que papai e mamãe haviam pensado: uma coroa para vovó. As crianças que não tinham avó nem avô em casa sentiam ciúmes das que tinham. Era algo importante de se ter, algo que representava paz e tranqüilidade.

Ela ainda podia ouvir vovó cantando:

- Roca dos Tempos, por mim fendida...

A Roca dos Tempos... Não havia tempo para ninguém mais, em parte alguma. Não se faziam mais rocas. Agora era tudo de plástico e as roupas já não eram feitas de bom algodão, linho, lã ou seda. Até mesmo os tapetes eram feitos com o que eles chamavam de fibras milagrosas. Ela detestava tudo aquilo - e as pessoas estavam ficando iguais a tudo aquilo! Como era mesmo o nome que davam? Sintéticos? Isso mesmo. As pessoas agora também eram sintéticas.

E não havia mais paz. Não havia mais paz de espécie alguma, não existiam mais as longas e tranqüilas tardes de verão, haviam desaparecido os invernos brancos, as árvores de Natal já não eram mais de verdade, com velas acesas, sacos de pipoca, bastões coloridos e açucarados, maravilhosos enfeites de vidro que vinham da Alemanha, anjos, os saquinhos de balas. Já não mais se ajudava as mães a preparar o delicioso recheio dos pastelões, a quebrar as nozes, a lavar as passas, a cortar as maçãs, a misturar o açúcar com manteiga que tinha realmente o gosto de manteiga, a peneirar a farinha - tudo isso em cozinhas quentes e cheias de vapor, com o fogão de lenha, ao som dos sinos dos trenós passando nas ruas. Era tudo tão calmo! Não havia guerras. não havia pressa, não havia telefones tocando, não havia rádios gritando, não havia lençóis de nylon, não havia cinemas. Havia apenas gente em suas casas, amando-se umas às outras e fazendo com que cada feriado fosse algo inesquecível, mesmo quando não se tinha muito dinheiro. Mas havia amor - enquanto que, agora, parece não ter sobrado nenhum amor. A única espécie de amor de que viviam falando atualmente, inclusive as crianças, era o sexo!

Sintético... Tudo era sintético atualmente, as pessoas, as casas, os carros, as crianças, as diversões. Não era de admirar que não se encontrassem mais pessoas felizes. É que as pessoas não eram de verdade! Isto mesmo, não havia mais pessoas de verdade!

Até mesmo Deus já não existia - ou quase. Não o Deus como Ele costumava ser. Toda casa tinha uma placa onde se lia: Confiamos nossas vidas a Deus ou Deus abençoe nosso lar ou Deus esteja conosco. Bastava olhar para esses dizeres e sabia-se que Deus não estava muito longe. Ele estava sempre presente, nas mesas em que os pais agradeciam pelo alimento, mesmo que a refeição constasse apenas de carne picadinha e repolho. Deus estava presente quando fazia muito frio no quarto mas se estava bem agasalhado sob as cobertas, podendo-se ver as estrelas a brilhar lá fora, através das janelas congeladas. Ele estava presente quando a pessoa se levantava pela manhã. Ele a acompanhava durante o dia inteiro, na escola e no trabalho. Algumas vezes, quando se prestava bastante atenção, podia-se até ouvi-Lo respirar. Podia-se ouvi-Lo cantando nas árvores, nos fortes ventos noturnos do inverno, quando tudo estava branco e a lua brilhava. As pessoas pensavam n’Ele o dia inteiro. Ele fazia parte de suas vidas. Onde Ele estava agora? Quem será que O repelira, fizera com que se afastasse? Teriam ido os rádios berrando o tempo todo, os receptores de televisão, os coquetéis, os espetáculos indecorosos? Não, não era da disso. As pessoas mesmas é que O haviam repelido não mais O queriam. E era por isso que deixara de haver paz no mundo. Era por isso que os pais não eram mais amados e respeitados, sendo encarados apenas como estorvos que deviam ser escondidos, sendo considerados meramente como problemas a serem removidos. Vovó jamais fora um problema... Ela era vovó, uma rainha...

Um dia destes, pensou Ami Logan, tirando os óculos embaçados para limpá-los, as pessoas vão começar a pensar que Deus também é um problema a ser removido. Talvez até isso já tenha acontecido. Já não se fala d’Ele, nas casas, com a mesma facilidade que outrora. E em muitas já nem mais se menciona a Sua existência! Mas como pessoas sintéticas poderiam falar sobre Deus? Deus era de verdade, elas não o eram!

Era terrível o fato de O haverem repelido. Aquilo nada deixara para as crianças, as avós, os avôs, nada sobrara para ninguém.

Era curioso... Papai trabalhava numa oficina, mas nunca o chamaram de Trabalhador. Ele era um homem, não um representante da classe operária. Era uma pessoa, mantinha a sua independência, tomava cerveja na varanda à noite. Os vizinhos sempre apareciam e conversavam sobre política, ficando logo empolgados. De vez em quando praguejavam. Quem foram os Presidentes daquela época? Ela não se lembrava. Os Presidentes iam e vinham, ninguém se lembrava deles a não ser quando faziam algum mal, quando eram então amaldiçoados. Mas mesmo as imprecações não eram a sério. Washington, naqueles tempos, era um lugar muito distante. Hoje não, parecia estar em toda parte. E quem queria tal situação? Era como se alguém estivesse durante todo o tempo a espiar por cima do ombro da gente, respirando em nossa nuca. Fazendo com que todo mundo apressasse, cada vez mais. O progresso... Para quê? E Washington fazia tudo para arrancar o dinheiro da gente. Ela mesma tinha que pagar impostos sobre o dinheiro que ganhava com o seu trabalho estafante. Para quê? Quem queria tomar o dinheiro dela e para isso fazia Washington berrar como um bando de guardas? Tudo aquilo não fazia O menor sentido. O que uma pessoa ganhava, pertencia a essa pessoa, fora conquistado com o suor do seu rosto, como dizia a Bíblia. Agora a impressão que se tinha é de que não inala lhe pertencia, era de alguém mais. Por quê? Eles o haviam ganho de quatro a esfregar a cozinha de alguém, lavando as roupas dos outros? Não, senhor, absolutamente! Mas eles queriam mesmo assim o dinheiro da gente, apesar de não o terem ganho com o seu trabalho. Ela ficou imaginando o que papai diria em tal situação: O país está entregue a bandidos; talvez seja melhor arregaçarmos as mangas e lutarmos para reconquistá-lo. Era isso que papai diria. Todos os homens como ele também diriam a mesma coisa. Todos gostavam de falar sobre a Revolução e a Festa do Chá de Boston. Talvez o país estivesse era precisando de outra Festa do Chá.

Mas o que se podia esperar de um povo que não era mais de verdade, de um povo que se tornara sintético, sem a menor noção de dever, de trabalho profícuo, de Deus? E também sem a noção de que cada um devia ganhar a sua própria vida, sem pedir um cent que não lhe pertencesse?

Eles alegavam que os novos remédios e aparelhos mantinham as pessoas vivas por mais tempo atualmente. Mas de que isso servia? Apenas para que as’pessoas pudessem transformar-se em problemas, não sendo mais honradas e respeitadas por sua velhice? Apenas para serem descartadas como um gato ou um cachorro agonizante? Era o que acontecia quando as pessoas viviam sem Deus. Não importa quanto tempo se vive e sim como se vive. Mas as pessoas preocupavam-se apenas com o tempo pelo qual viveriam, como se viver fosse tudo - viver apenas, num mundo que perdeu a paz e que não tem mais a Deus.

O homem que entrara lá dentro era muito bem-educado. Teria entrado há uma hora? Ele também tinha problemas. Parecia muito pálido, dava a impressão de estar doente. Ele sentiu pena de mim! Eu não lhe disse que também senti pena dele. Oh, Deus, eu sinto tanta pena de todo mundo!

Roca dos Tempos, para mim fendida, deixa que eu me refugie em Ti!

Mas eu não tenho mais nenhum lugar em que me refugiar, pensou Ami Logan. É tudo aberto, não existem abrigos. Como se vivesse num deserto. A Sombra de uma Roca na terra cansada. . . Era engraçado que ela se lembrasse disso agora. Uma terra cansada... Era exatamente o que era. Uma terra cansada, apesar de todos os carros novos, da correria, dos prazeres, das festas, das máquinas de lavar roupa, das conversas sobre a ida à Lua. De que será que estavam correndo, para quererem tão ansiosamente alcançar a Lua? De si próprios? Era o que acontecia quando se vivia em paz e sem Deus. Era aquilo que a fazia sentir-se tão velho apesar de ter apenas setenta e um anos. Vovó era bem animada e ainda trabalhava aos oitenta e cinco anos, indo missa todos os domingos e à Associação Beneficente de

Senhoras todas as noites de quarta-feira, caminhando alguns quilômetros. Vivera até os noventa anos. Teria vivido mais se não tivesse caído nos degraus da varanda e fraturado a bacia. Fora um período horrível. Papai e mamãe quase perderam o juízo de tanta preocupação. Mas quem atualmente se preocupava com alguém que não fosse ele próprio? Quem se preocupava com os próprios pais? Eles não passavam de problemas.

A sineta tocou para ela. Ami estremeceu. Estava sozinho na sala de espera. Levantou-se com dificuldade sobre as pernas e os pés inchados e caminhou lentamente até a porta. As pernas pareciam pesar como se fossem de chumbo. Abriu a porta de carvalho e entrou na sala branca de mármore com a cortina azul.

Ficou parada junto à porta fechada durante algum tempo. Ninguém sugeriu que se sentasse, ninguém sugeriu ,que fizesse coisa alguma. Era tão tranqüilo ali dentro! O ‘Confessor... Ele estava esperando calmamente por ela, tinha todo o tempo do mundo. Todo o tempo do mundo, como quando ela era criança, nas tardes quentes de domingo, os sinos das igrejas repicando, uma brisa suave soprando.

Ela sentou-se na cadeira de mármore, pondo a bolsa grande de ráfia ao lado dos joelhos inchados. Cruzou as mãos encarquilhadas e brancas no colo.

- É um sacerdote, senhor? Foi o que me disseram.

A luz branca e aconchegante envolveu-a gentilmente. Era tão tranqüilo ali dentro!

- Não posso queixar-me - disse ela, orgulhosa. - Tenho trabalhado quase que a minha vida inteira, desde os nove anos. Não vim aqui em busca de piedade e sim porque Sou um problema. É disso que os jornais me chamam, assim como meus filhos.

Ela fez uma pausa.

- Meus filhos... É engraçado, mas ninguém achava que os outros constituíam problemas quando eu era menina. Mas o senhor nada sabe a meu respeito, não é?

A sala ficou esperando. envolvendo-a ternamente.

- Eu sou apenas uma mãe.

A luz tornou-se ainda mais suave.

- Fico imaginando se o senhor também tem mãe viva, que represente um problema.

Ela ficou esperando, mas ninguém falou.

- Sua mãe por acaso trabalhou arduamente pelo senhor, acalentou esperanças, preocupou-se? Fazia suas roupas e tudo o mais de que precisava? Cozinhava para o senhor? Rezava quando o senhor saía de casa? Acordava de madrugada pensando no senhor, indagando-se se fizera o melhor que lhe era possível? Obrigou-o a ir à escola, falava-lhe sobre Deus?

A luz da sala parecia pairar em torno dela. Olhou ao redor. Não era uma mulher que corasse com facilidade, mas sentiu que agora havia lágrimas em seus olhos.

- Ela fez tudo isso? Neste caso, talvez o senhor possa ajudar-me. Nunca antes pedi a ajuda de ninguém, mas agora sinto que tenho necessidade.

Ela fez uma pausa e acrescentou rapidamente:

- Não é dinheiro que estou querendo. Absolutamente!

Ela esfregou os olhos com os nós dos dedos.

- É outra coisa que me está corroendo por dentro: o fato de, neste momento, não ter canto algum em que eu possa descansar!

Ela olhou para as lágrimas em seus dedos.

- Não choro desde que Chris tinha oito anos, pegou difteria e eu pensei que fosse morrer. Talvez eu esteja mesmo ficando velha, talvez eles tenham razão. Alguma vez o senhor disse à sua mãe que deveria ir para um asilo? Talvez eu deva chamá-lo de Reverendo. Era assim que se chamava o ministro de Deus quando eu era menina. Alguma vez já desejou que sua mãe se internasse num asilo, Reverendo? Já pensou em entregá-la a outra pessoa, para cuidar dela?

A luz, as paredes brancas e a cortina fechada transmitiam uma sensação de paz. Ela sentiu que alguém a ouvia, com profunda, ternura. Não ouviu, porém, o menor ruido. Ficou pensando, em sua infância, na avó, nos pais. Especialmente na avó. Estremeceu, involuntariamente.

- O que foi que o senhor disse? - Indagou, ansiosa.

- Oh, acho que não disse nada. Mas pensei que tivesse falado alguma coisa a respeito de sua avó. Devo estar ficando velha, pois pensei ter ouvido alguma coisa.

Ela calou-se por um momento, pensativa.

- Eu chamava minha avó de Vovó Ann. Ela era bem idosa, mas parecia-me jovem. Mamãe trabalhava para os outros, nas vizinhanças. Papai trabalhava doze horas por dia. Vovó Ann costumava contar-me histórias, principalmente da Bíblia. Conheceu por acaso alguma de suas avós?

Ela Inclinou-se para a frente, aturdida.

- Tive a Impressão de que disse alguma coisa. Está vendo como estou velha? Fico achando que ouvi coisas.. Desculpe-me, Reverendo.

Ela recostou-se na cadeira. Como era confortável! Uma pessoa podia dormir ali tranqüilamente. Seu corpo pesado e exausto relaxou.

- Dizem que o senhor ouve tudo o que a gente fala. Isso é ótimo. Quero alguém que ouça. Hoje em dia ninguém mais ouve. Todo mundo está sempre com pressa. Correndo para pegar o ônibus de manhã, correndo para pegar o ônibus à noite, correndo para chegar à loja antes de fechar, correndo para chegar a casa e jantar... Outro dia ouvi um programa de televisão que dizia: Esteja alerta. Quer tenha nove ou noventa anos, esteja alerta. Mas alerta a quê? Quando eu era jovem, ninguém nos pedia para ficar alerta. Fazíamos então o melhor que podíamos, no tempo necessário. Ninguém queria que corrêssemos de um lado para outro, de cara fechada, inquietos, impacientes. O que está acontecendo agora com as pessoas? Elas parecem não fazer nada tão bem quanto se fazia quando eu era jovem. Hoje as pessoas apenas sobrevoam as coisas, logo se afastando em busca de outras, como se estivessem febris, como se tivessem perdido o juízo. Todo mundo parece sentir a necessidade imperiosa de mover as pernas o mais depressa possível. E tudo, ao nosso redor, é de plástico, não há nada que seja verdadeiro, genuíno, legítimo. Não há casas de verdade, não há lugares em que se possa descansar, não há mais descanso. Tudo agora se resume ao plástico. Está entendendo o que eu quero dizer, não é?

A sala pareceu responder-lhe afirmativamente, com uma infinita tristeza. Ela estirou as pernas cansadas e contemplou-as.

- É muito bom saber que alguém está querendo ouvir a gente. Todo mundo agia assim quando eu era criança. Sempre havia tempo para se ouvir qualquer coisa, qualquer um. Todo o tempo que fosse preciso, embora então se trabalhasse duas vezes mais do que agora. Algumas vezes os dias se escoam por entre os dedos das pessoas como se fossem água, atualmente. É como se não tivessem existido. Isso não é um absurdo? Ouvi dizer que é o que acontece quando a pessoa fica velha. Mas era o que acontecia com Vovó Ann, embora ela tivesse morrido bem velha, aos noventa anos. Os seus dias eram apenas... sólidos. Possuíam muitas -horas. com tempo suficiente para ler, entoar hinos, fazer piqueniques, passear, falar sobre Deus. Eram longas horas, dias e noite Intermináveis - em que se vivia em paz. Mas não foi para isso que vim aqui, para ficar falando dessas coisas. Sabe, eu tinha dezessete anos quando me casei. Ele se chamava Elias Logan, um nome tirado da Bíblia. Hoje em dia ninguém mais escolhe na Bíblia os nomes dos filhos. Pensando bem, meu nome também não foi tirado da Bíblia. Mamãe era meio romântica. Deu-me o nome de Arni, dizendo que significava amor. Os professores, no entanto, sempre escreveram Ami. Que importância isso tem? Mas o fato é que eu gosto, do meu nome com i, Ami. É assim que eu assino, é assim que eu mando que escrevam nos meus cheques. Significa algo para mim, embora eu não saiba explicar exatamente o quê.

A sala branca e silenciosa, com sua luz suave, pareceu irradiar plena compreensão.

- Será que o nome é francês, será que significa mesmo alguma coisa?

Ela ficou escutando, esperando uma resposta. Sorriu repentinamente. Recebera a resposta, tinha certeza disso, embora não tivesse ouvido voz alguma.

- Meu marido tinha vinte anos quando nos casamos. Ele era um homem, não como esses garotos de hoje em dia, que têm vinte anos e ainda pensam em si como garotos. Elias era um homem grande, adulto. Eu tinha dezessete anos e também já era mulher adulta. Papai já morrera nessa ocasião: Como mamãe, eu trabalhava desde pequena. Papai e mamãe haviam comprado uma casa, que custara dois mil dólares e ainda estava hipotecada. Mudamos para a casa assim que nos casamos. Elias não tinha pais, pois haviam morrido quando ele tinha quatorze ou quinze anos. Ficou contente por adotar mamãe como a sua própria mãe. Somos uma família, disse-me ele, beijando mamãe ternamente.

Ela começou subitamente a soluçar, soluços profundos e longos. Estava, no entanto, sorrindo.

- E fomos uma família: mamãe, Elias e eu. Eljas trabalhava na cervejaria e era de fato um bom empregado Ganhava quinze dólares por semana, o que era um bocado de dinheiro naquele tempo. Muito dinheiro mesmo... Estou-me lembrando de outra coisa: parece que atualmente até o dinheiro é sintético também, não transmite -a menor sensação. mo vivíamos bem com os quinze dólares semanais de Elias! Ganhamos inclusive a hipoteca sobre a casa. Quando cresceu, a hipoteca já estava liquidada. Elias queimou-a na minha presença, numa tigela de porcelana. Eu segurava Cris no colo e as outras duas crianças pulavam em torno de sóS, os olhos faiscando que nem estrelas. Naquele tempo crianças sabiam coisas que agora parecem ter esquecido por completO.

Ela examinou as mãos encarquilhadas, mas não era nelas que estava pensando.

- Tivemos três filhos, Katherine foi a primeira, quando eu tinha dezoito anos. Depois, quando completei vinte anos veio Arnold, que era então um nome muito em voga. Um ano depois nasceu Chris. Éramos então uma família de verdade, mamãe, Elias, as crianças e eu. Mamãe continuava a costurar para fora. Foi então que Elias teve um aumento, passando de quinze para vinte dólares semanais. Sentimo-nos ricos. Ricos de verdade e não da maneira como as pessoas se sentem ricas hoje em dia. O dinheiro então significava alguma coisa, cada dólar contava. Com cinco cents se comprava um pão, embora eu mesma preparasse quase todo o pão que consumíamos. Por seis cents comprava-se um quarto de litro de leite, mas quem estivesse disposto a caminhar quase dois quilômetros poderia comprar por três cents. Era o que eu fazia. Comíamos muito bem, todos nós, gastando apenas seis dólares por semana. Mamãe e eu fazíamos as roupas das crianças, que saíam baratissimas. Fazíamos também as camisas de Elias e os nossos vestidos. Fazíamos até as colchas, comprávamos as peças de lã e depois costurávamos lençóis por fora. Fazíamos também as cortinas. Quando Cris completou cinco anos, tivemos um Natal maravilhoso. Fizemos cortinas novas para a casa inteira, de belbutina vermelha. Todo o material custou-nos apenas doze dólares. Mamãe e eu fizemos as cortinas e as penduramos. enquanto as Crianças gritavam de alegria. Estavam tão felizes quanto nós. Eram realmente cortinas lindas. Foi o nosso presente de Natal coletivo. É claro que também penduramos meias para as crianças, com uma laranja ou tangerina, um saco de balas, demos-lhes pequenas sombrinhas de papel, pirulitos, uma caixa de surpresas, uma bola vermelha, uma boneca para Katherine, algumas balas licorosas, castanhas, maçãs. Foi um Natal maravilhoso! O melhor Natal que já tive em toda a minha vida! É engraçado meus filhos terem-se esquecido de como foi maravilhoso aquele Natal. E não me posso esquecer do ganso! Comprei um ganso por sessenta cents, gordo e bonito. Tivemos banha de ganso para cozinhar o inverno inteiro e para esfregar no peito das crianças quando ficavam resfriadas. Elas também ficavam doentes, só que se curavam depressa. Tiveram de tudo, caxumba. catapora, sarampo... Isso não era nada, naquele tempo não se criava tanta confusão por causa dessas doenças como agora quando todo mundo acha que qualquer coisinha pode ser fatal. Foi um Natal maravilhoso! Mamãe fez um pão especial, com cebola, para comermos com o ganso. Havia também batata e abóbora. Mamãe preparou ainda a sua carne picadinha especial. Eu adorava ver as crianças ajudando-a, da mesma forma que eu fazia quando era pequena. Na véspera do Natal cantamos hinos e na manhã seguinte fomos à igreja, os rostos vermelhos pelo frio. Voltamos correndo para casa, para a nossa cozinha quente e acolhedora, para toda aquela comida deliciosa que nos aguardava. Elias fez uma prece de agradecimento pela refeição, dizendo: Por favor, estai conosco por toda a nossa vida, querido Pai que ‘estais nos Céus, por Vosso Filho Nosso Senhor Jesus Cristo...

O rosto de Ami Logan estava impassível e sonhador, refletindo a luz branca da sala. Era agora um rosto jovem, sem rugas nem tristeza, o rosto de uma mulher jovem e feliz. Mas sua expressão logo mudou.

- Foi o ultimo Natal que passamos todos juntos. Mamãe morreu em fevereiro. Ela morreu durante o sono, sorrindo. Nem mesmo estava doente e tinha apenas quarenta e sete anos. Era inclusive mais moça do que a Sra. Brewster, para quem trabalho atualmente. Mas a Sra. Brewster parece bem mais velha, apesar de ir ao cabeleireiro de cinco em cinco dias , de ter a pele lisa como seda e o corpo de uma menina de quinze anos. E como tem roupas! Até mesmo seus chinelos devem ter custado muito mais caro que as nossas cortinas de Natal. Apesar de tudo isso, porém, ela parece muito velha. Talvez seja por jogar tanto bridge, por tantas atividades comunitárias, por comparecer a tantos coquetéis, por estar sempre alerta. A Sra. Brewster é realmente velha. Faz-me pensar numa pobre menina que conheci quando era garota também. A pobre menina vivia fora de si, como se dizia então. Podia andar e falar um pouco, mas parecia uma velha, balbuciando coisas sem sentido e correndo o tempo todo. Ela nunca andava, corria sempre, esbarrando a coisas, caindo. E ria durante horas seguidas sem motivo algum. Morreu aos seis anos de idade. Não posso lembrar-me dela sem estremecer - e acho que a Sra. Brewster é bem parecida.

Ami Logan sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.

- Não estou querendo dizer que a Sra. Brewster seja retardada mental como aquela menina. Mas é esta a impressão que ela me dá, embora eu não saiba explicar por quê. Mas lá estou eu novamente divagando. Está vendo como são os velhos? Espero que o senhor ainda me esteja ouvindo. A casa sem mamãe não parecia mais a mesma. Ficara um lugar para sempre vazio. As crianças sentiram muito a sua falta. Ela sempre tinha uma história para contar-lhes depois que faziam suas orações, à noite. E também lhes fazia bolos, tal como Vovó Ann. Eles choraram muito de saudade, o que me fazia sofrer, assim como a Elias. Mas ainda tínhamos muito sofrimento pela frente! Em março, quando voltava para casa do trabalho, Elias caiu na frente de um bonde, que lhe cortou as pernas. Ele morreu ali mesmo. Foi no dia 19 de março.

Ami Logan levou as mãos ao rosto e ficou algum tempo chorando, em silêncio.

- Eu tinha então vinte e cinco anos. Faz tanto tempo, mas a impressão que tenho é de que foi ontem. Primeiro mamãe, logo depois, Elias. A companhia de bondes disse que a culpa não era dela. Elias não devia ter corrido na frente do bonde, com neve escorregadia no chão. Mas eles se mostraram muito generosos, oferecendo-me quinhentos dólares. Eu, porém, disse: Não aceito caridade. Se Elias estava errado, se estava mesmo correndo, então nada precisavam fazer. Eu e as crianças daremos um jeito. Não somos do tipo de gente que aceita as coisas em troca de nada. Quando recebi o seguro de vida de Elias, que era de três mil dólares, paguei o enterro, que custou cem dólares. Comprei-lhe uma lápide que continua firme e boa até hoje, mesmo decorridos tantos anos. É de granito. Quase não se pode mais ler o nome, mas ele está gravado em meu coração. E quem precisa de nome em lápide, quando permanece em nossos corações?

Ela empertigou-se na cadeira, decidida.

- Acha que o nome numa lápide tem alguma Importância? Ora, Reverendo, não se olha mais para a nossa lápide quando a gente morre! Mas as pessoas que se lembram da gente continuam a lembrar-se pelo resto de suas vidas. Para elas, nunca estaremos mortos, assim como mamãe, Elias, Vovó Ann e papai jamais morreram para mim. Ficamos junto das pessoas que amamos e nos lembramos delas até o dia em que morremos, talvez até depois também. Acredita nisso?

A sala aquiesceu, gentilmente. Ela sacudiu a cabeça, satisfeita.

- Eu fiquei com o dinheiro do seguro e com a casa de mamãe. É uma boa casa até hoje, apesar de velha. Foi construída quando as pessoas sabiam de fato construir casas, preocupando-se com a sua solidez. Usavam-se então tijolos de verdade, maciços, e não ocos como agora. As paredes entre os cômodos também são de tijolos, embora sejam rebocadas e cobertas por um papel de parede. São quentes no inverno, frias no verão. As janelas são pequenas, mas o único trabalho que dão é o de limpá-las. E as portas são como deviam ser portas de verdade, grossas e fortes, que nunca empenam. Tudo da melhor qualidade, de carvalho maciço. Nunca se ouve o menor estalido nos assoalhos. São impecavelmente planos e eu os mantenho sempre muito bem cuidados, brilhando como espelhos. Talvez os armários embutidos não sejam grandes, mas as pessoas, antigamente não se preocupavam em ter tantas roupas como agora. Eu mandei instalar, há vinte anos, uma nova fornalha de carvão, que esquenta bastante e não deixa sujeira.

Ela ergueu o queixo, continuando a recordar-se, orgulhosa, de sua casa.

- Tínhamos também um lindo gramado, com árvores Junto à calçada. Mas um dia eles disseram que precisavam de alargar a rua, para os carros passarem. Cortaram então as árvores e asfaltaram quase até os degraus da varanda. As pessoas que têm carros podem assim chegar mais depressa em casa, tomando seus drinques e comendo pratos que não têm muito sabor, para depois ficarem vendo televisão, saírem para jogar boliche ou cartas, passearem pela vizinhança em seus carros. Fica todo mundo olhando e correndo. É tudo o que as pessoas fazem agora - e parece que Isso nada representa, pois estão sempre com expressões insatisfeitas. E foi por elas que cortaram as árvores! A fim de poderem correr para casa, onde nada fazem, saindo depois de casa a correr, também para nada. Sabe de uma coisa? Não há mais ninguém no mundo atualmente que valha uma árvore. Se uma árvore morta ainda os tornasse mais felizes, então estaria certo. Mas isso não acontece. As pessoas nada percebem, nem mesmo que estão vivas - pelo menos supostamente e vivas, não tenho bem certeza. Dizem que a gente começa a ficar velha quando acha que os tempos antigos eram melhores. Talvez tenham razão. lias meu filho Chris tem uma dessas casas ao chamado estilo do campo, que mais se parece com as cabanas que se faziam antigamente ou com um galinheiro. A casa tem apenas cinco ‘anos, foi ele mesmo quem a construiu - e toda primavera precisa trocar telhas. Já o telhado da minha casa de ardósia sólida e nunca tivemos uma goteira. Os assoalhos da casa de Chris vivem estalando, nada havendo de substancial por baixo deles, como um velho porão, onde a gente possa guardar barris, os picles e as conservas. E tem mais: Chris gasta mais por ano consertando aquele galinheiro do que tudo o que eu gastei desde que Elias morreu. Todos os quartos dão um para o outro, de forma a que ninguém possa isolar-se, quando está cansado, quer ler sossegado ou apenas ficar sozinho, pensando. Eles têm divisórias, como as chamam, que são apenas caixas de madeira cheias de plantas trepadeiras verdes. Dessa forma, diz a mulher de Chris, ela pode ver todo mundo imediatamente, verificando o que cada um está fazendo. Isso não é terrível? Ninguém pode isolar-se, fechar uma porta. O nome dela é Eva é muito magra, mas mesmo assim pode-se ouvir sua. voz pela casa inteira. Ela chama a isso estar junto ou qualquer coisa parecida. Não há lugar para se ficar a sós e se rezar um pouco. Por que as pessoas atualmente querem viver amontoadas, como cordeiros amedrontados? Talvez elas sejam de fato cordeiros assustados. O que não é de admirar, levando-se em consideração que nada existe de real ao redor delas. As paredes da casa de Cris estão sempre brilhando. A princípio eu pensei que fosse madeira, mas depois descobri que era plástico imitando madeira. Se não podem usar madeira, disse-lhes eu, é melhor não usar imitações. Mas Eva presenteou-me com o seu sorriso característico e disse: Ora, Mamãe Logan, isso custa muito mais do que madeira! Eu realmente não compreendo, isso não faz o menor sentido para mim. Como a imitação pode custar mais caro do que a coisa verdadeira? Talvez seja assim com tudo, as imitações custem muito mais... Até mesmo o trabalho de Cris não me parece bom e sólido. Ele é relações-públicas da grande companhia de sorvetes local. Conhece a Barton’s? Eu não entendo: se um sorvete é bom, por que é necessário sair por aí contando a todo mundo? Basta ser bom para as pessoas comprarem. Eu não tenho muita certeza do que é realmente esse negócio de relações-públicas. De qualquer forma, ele ganha sete mil dólares por ano, quase quatro vezes o que a nossa casa custou. E ele nunca tem nada, nem um único cent. Eu sempre lhe digo que deve economizar, assim como eu, que sempre guardo alguma coisa, nem que sejam apenas dois dólares por semana. Será que ele não consegue economizar nada dos seus sete mil dólares? Ele alega que tem de pagar a hipoteca, que seus dois filhos dão muita despesa, que os Impostos são altos. Tem que pagar as aulas de ballet da menina e uma porção de coisas que o rapaz faz. E os impostos... São para pagar os serviços do governo, disse-me Chris, como se eu fosse uma idiota. Mas que serviços?, perguntei a ele. Eu não quero nenhum serviço do governo. É muito bom ter um exército grande, por causa da Rússia. Mas como foi que a Rússia ficou tão forte assim? (Uma senhora que eu conheço disse-me que foi com o nosso dinheiro. Será que isso também se inclui entre os serviços do governo?) Eu não quero nada de governo nenhum. Quero apenas que ele fique longe de mim. Com a prefeitura da cidade é outra coisa, pois temos que ter guardas, bombeiros, professores, escolas, coisas assim. Mas com todo mundo tendo necessidades, anseios e reivindicações, a gente tem que pagar tudo isso através dos impostos, argumentou Chris, que aos cinqüenta anos parece mais velho do que meu avô aos setenta. O caso é que eu não tenho necessidades, anseios ou reivindicações. Quero apenas que as pessoas não interfiram Com a minha vida. Não é pedir muito, não é? Bem, o fato é que Chris não tem nenhuma economia e, o que é bem pior, está sempre endividado. É esse dinheiro inconsistente que já não tem mais valor para se comprarem as coisas. As notas já não dizem mais que são pagáveis em ouro ou prata, já não existem moedas de ouro. O dinheiro já não transmite nenhuma sensação, é igualzinho aos outros produtos sintéticos. De vez em quando sinto calafrios ao pensar em como está o mundo atualmente.

Ela riu, exausta, tossindo um pouco e tornando a rir.

- Arnold está com cinqüenta e um anos. Quando eu era jovem, costumávamos chamar de guarda-livros aos que tinham a sua profissão, mas eles hoje preferem chamar-se contadores. Ele não ganha tanto quanto Chris, mas tem apenas um filho É um bom rapaz, o Robert, sensato, inteligente. Ele me lembra muito o Elias, o mesmo rosto quadrado, as mãos grandes. Aos domingos ele costuma visitar-me. Está com vinte anos e já cursando a faculdade.

Ami Logan fez uma pausa para refletir. Sorriu de repente e o seu rosto enrugado brilhava ligeiramente.

- Ele é o único que está do meu lado. A mãe dele não é como Eva. Ela pertence a uma porção de clubes e deixa a pessoas sozinhas, só que não da maneira certa. Não dá quase nenhuma atenção a Arnold e Robert, tão preocupada que vive com seus clubes e associações, com as campanhas que realiza. Talvez fosse melhor que ela se ocupasse com campanhas em sua própria casa, limpando os tapetes de vez em quando, tirando a poeira das colchas, fazendo as suas próprias geléias e conservas. Mas ela é muito elegante e até se chama de Elsie, embora o seu verdadeiro nome seja Elsie. Eu a conheci antes que se casasse com Arnold, conheci toda a sua família. Mesmo quando era garotinha, ela já gostava de meter o nariz na vida dos outros. Tem uma virtude: é econômica. Eles não devem dinheiro e provavelmente já conseguiram guardar bastante, pois Arnold também é econômico. Eles moram num apartamento com os menores quartos que eu já vi. Parecem caixas. Arnold faz a contabilidade do proprietário e por isso o aluguel sai quase de graça. A esta altura eles já poderiam ter uma casa igual à minha. Mas não, preferem viver miseravelmente. Comem a comida mais ordinária que eu já vi. Quando eu era menina, éramos terrivelmente pobres, mas mesmo então mamãe se envergonharia de pôr na mesa a comida que Elsie costuma servir. Não tem sabor algum, embora Elsie assegure que tenha muitas vitaminas. Lá se comem sempre saladas. E há ainda Katherine. Ela está com cinqüenta e três anos e sem nenhum filho. É viúva. Katherine é dessas pessoas que não gostam muito de falar. Nunca disse o que o marido deixou, mas comprou um casaco de peles, tem o seu próprio carro, mora num apartamento melhor do que o de Arnold e viaja freqüentemente. Há quinze anos que é viúva. O marido era corretor de imóveis. Foi ela quem vendeu a Cris o terreno em que ele construiu sua casa, sem lhe oferecer a menor vantagem.

Ami Logan suspirou e sacudiu a cabeça, tristemente.

- A gente tem filhos, cria-os e depois descobre que não sabe como eles são. Um dia eu perguntei: Cris, você se lembra daquele Natal em que fizemos os presentes uns dos outros, pois não tínhamos dinheiro para comprar coisa alguma? Não foi divertido fazer todas aquelas coisas? Ele olhou-me com frieza e disse: Não me lembro, mamãe. E devo dizer-lhe que é um sinal de velhice ficar-se recordando das coisas. Talvez seja. Mas uma pessoa precisa relembrar os prazeres que experimentou, não é? Eu criei meus filhos sozinha. Depositei no banco o resto do dinheiro do seguro e passei a aceitar todo e qualquer trabalho que aparecia. Eu cozinhava, trabalhava como enfermeira, fazia faxina, lavava roupa. De vez em quando trabalhava nas lojas aos sábados. Não me importava, contanto que fosse um trabalho honesto e eu pudesse continuar a ter a minha casa, pequena mas confortável, criando meus filhos. Três ou quatro anos depois da morte de Elias, voltei a sentir um pouco de alegria, sabendo que tinha a casa e meus filhos, que era forte e saudável, podia trabalhar para sustentá-los. O que mala uma pessoa pode querer? E ai é que está todo o problema.

Ami Logan esfregou as palmas das mãos calosas no veludo macio dos braços da cadeira, a princípio distraidamente, depois com atenção, dizendo num tom de admiração:

- Mas isto é veludo de verdade! Como é bonito! A gente se sente bem quando encontra algo de verdade, não uma simples imitação. Olhe, Reverendo, acho que já tomei demais o seu tempo. Espero que não se importe. Vou ter que ser mais sucinta. Tenho agora seis mil dólares no banco e a minha casa. Estou com setenta e um anos. No inverno passado não me senti muito bem e fui consultar meu médico, que é também idoso. Ele me disse: ‘Ami, seu coração não está nada bom. Você tem que parar de trabalhar. Olhe só para as suas pernas e os seus pés! Exigiu demais deles, assim como de seu coração, criando os seus filhos e trabalhando a vida inteira’. Eu lhe disse: ‘Mas o senhor também não se esforçou muito? Que mal há nisso?’ Ele nada mais falou. Como me conhece desde o tempo em que Elias morreu, telefonou para Chris e contou-lhe. Todos foram então procurar-me, juntos. Katherine disse que há muitos anos sentia vergonha do fato de sua mãe ser faxineira e coisa assim. Ela me teria dado dinheiro para ficar em casa, afirmou, se o tivesse. Cris disse que também se sentia envergonhado, mas tinha muitas dívidas e não podia fazer nada. Arnold disse que eu deixava Elsie constrangida.

Ami Logan empertigou-se na cadeira, o rosto vermelho.

- Envergonhados pelo fato de sua mãe trabalhar! Como se o trabalho fosse algo de que as pessoas devessem envergonhar-se! Eu é que me envergonhei deles e disse: Por que só agora pensaram nisso e estão fazendo tanto estardalhaço? Cris informou que o médico lhe dissera que tinham que tomar alguma providência, caso contrário ele iria ás autoridades e seria muito pior. Fiquei furiosa com ele e olhei para os meus filhos, tentando imaginar se estavam preocupados por minha causa. Comecei dizendo em seguida: Está certo. Alugarei esta casa e irei morar com vocês. Na casa de quem ficarei primeiro? - Ami baixou o tom de voz, agora um pouco trêmulo. - Eles então se entreolharam, Reverendo, parecendo que nunca mais iam fitar-me. Katherine foi quem falou: Olhe, mamãe, a senhora sabe como todos nós somos muito ocupados e temos as nossas próprias responsabilidades. Inclusive eu. Os rapazes têm filhos e esposas em que pensar. Mas temos uma solução, mamãe querida - e não precisa ficar me olhando com essa cara. Posso vender esta casa para a senhora imediatamente. Creio que conseguirei, pelo menos, sete mil dólares, pois há um posto de gasolina muito interessado num terreno de esquina nesta área. Ai eu disse a ela: ‘Está querendo dizer que o melhor é demolir a casa que foi de meu pai, a minha casa, onde vocês todos nasceram e que o próprio pai de vocês acabou de pagar?’ Eu não podia acreditar que fosse verdade! Arnold interveio na conversa: ‘Ora, mamãe, não sejamos sentimentais’. Qualquer coisa que alguém queira e que não agrade a Arnold é sentimental, estúpida ou ridícula. Ele disse então que, com os seis mil dólares que eu tinha no banco e os sete mil da venda da casa, poderia internar-me no Lar Metodista, em Valley Hill. Elsie faz parte do conselho consultivo. Eles me disseram que era um lugar lindo, no campo, onde havia muita gente idosa como eu fazendo companhia uns aos outros. A comida era ótima, eu partilharia um quarto com alguma velhinha simpática, lá havia muitas diversões e jogos, eu passearia constantemente. Fico doente só de pensar no que eles me disseram. Eu teria treze mil dólares, mas nenhum lugar onde descansar, nenhum lugar que seja meu. Lá eu não teria a menor intimidade, pois sempre haveria gente como Elsie se intrometendo em minha vida. Nenhum lugar para esconder-me, para ficar longe das pessoas... Teria que conversar sempre, andar pelos corredores, sentar na sala de espera, limitando-me a esperar que a morte chegue e bata no meu ombro. A única coisa que me restaria, esperar pela morte... Não posso aceitar tal situação, Reverendo. Quero continuar a trabalhar até morrer, livre em minha própria casa, livre para fechar a porta do quarto, livre para dormir, acordar e trabalhar, para ficar em casa quando estiver fazendo um dia bonito. Mas o pior é saber que meus próprios filhos não me ‘respeitam’ como eu respeitava os meus pais, que por sua vez também respeitaram os pais deles. Eu sou apenas um problema para eles, uma vergonha. Suas casas não possuem um quarto para mim, seus filhos não me querem, com exceção de Robert. Eles querem que eu desapareça de suas vidas e pare de envergonhá-los, querem internar-me numa espécie de asilo de caridade. Eu, num asilo de caridade! È verdade que pagarei treze mil dólares, mas isso não representa muito hoje em dia! O que dói, terrivelmente, é não ter um lugar onde descansar, é saber que meus filhos não me estimam. Talvez eu não os tenha educado direito. Procurei fazer o melhor possível, mas talvez isso não fosse suficiente. Não vejo, porém, o que mais eu poderia ter feito. Tem alguma idéia? Eu não sabia que os envergonhava, mas acho que é porque eles diziam a todo mundo, nas raras vezes em que os visitava, que eu era uma babá.

A voz se elevara ao ponto do desespero e ela levantou-se penosamente. Seguiu cambaleando até a cortina, sentindo uma dor súbita e intensa no peito. Ignorou-a.

- Não há ninguém no mundo inteiro que se preocupe comigo. Eu não sabia disso até poucos minutos atrás.

Ela cruzou as mãos, fervorosamente:

- O que posso fazer, Reverendo?

Olhou ansiosa para o botão e leu o que estava escrito na placa de bronze, através dos óculos embaçados. Mordeu os lábios, estendeu a mão e apertou o botão. A cortina abriu-se silenciosamente e a luz inundou-a. Ela fitou o homem que estava sob a luz. Levou as mãos entrelaçadas aos lábios e apertou-os, murmurando:

- Eu devia ter adivinhado...

Conteve a respiração. A dor era opressiva, sufocante. Ela recuou lentamente, vacilante, procurando a cadeira. Sentou-se e fitou o homem. Ficaram olhando-se por um longo tempo. Sorrindo por entre as lágrimas, ela sussurrou:

- Lembro-me agora... também não tivestes nenhum lugar onde repousar não é? Não tivestes nenhum lugar Vosso, mesmo quando Vos tornastes um homem adulto e saístes para trabalhar. Para pessoas como eu... Nunca Vos esquecestes de mim, assim como eu nunca me esqueci de Vós, em nenhum dia da minha vida. Nenhum dia da minha vida. Foi a melhor coisa que jamais tive e ainda continuo a ter!

Numa voz sonhadora, com um sorriso jovem e ao mesmo tempo triste, ela acrescentou:

- Estava pensando... Deveis encarar o mundo que temas hoje da mesma forma que eu. Havia muita paz quando fostes crianças, não é? Em Vossa casa, ajudando Vossa mãe... Vós e eu temos muitas coisas em comum.

Os olhos de Ami Logan se fecharam e ela cochilou por um momento, acordando com um estremecimento.

- Muito obrigada... Talvez tenha sido tudo um sonho, talvez eu apenas tenha sonhado que me faláveis e podia ouvir a Vossa voz. Foi sempre assim que eu pensei que seria, uma paz extrema, a paz além de toda e qualquer compreensão. Eu não devia ter sido tão dura com os meus filhos. Eles têm um mundo horrível para viver, talvez por muito tempo ainda. Talvez também sintam calafrios ao ver o mundo como é e imaginar o que pode acontecer. Talvez se sintam apavorados por seus filhos, talvez saibam que eles não irão também respeitá-los. Atualmente ninguém mais respeita a quem quer que seja ou a coisa alguma. Pobre mundo! E meus filhos também são miseráveis e sofredores. Não têm, como eu, um lugar onde possam descansar, um lugar que possam dizer que lhes pertença. Não importa o quanto trabalhem, jamais terão um lugar de verdade. Mas eu me sinto grata. Isto mesmo, sinto-me grata por todo o trabalho árduo que fiz, sinto-me grata por ter podido fazê-lo. Era um mundo diferente, que provavelmente nunca mais voltará. Meus pobres filhos! Eles não têm a Vós, como eu tenho. Nem mesmo Vos querem. E isto é o pior de tudo - não querer-Vos!

Ela tornou a cochilar. O homem aproximou-se dela e estendeu-lhe a mão. Ami Logan segurou-a, murmurando:

- Sim, sim...

Ami Logan foi a primeira pessoa a morrer na sala branca de mármore. Quando a encontraram, ela estava sorrindo, o rosto irradiando uma intensa alegria. Deixara todo o seu dinheiro e a casa para o neto Robert Logan. Quando ele recebeu a notícia, pensou imediatamente: Não se preocupe, vovó. Lembro-me de todas as coisas que me falou, durante tantos domingos sobre o mundo de paz em que viveu. Hei de continuar a lembrar-me para sempre. E algum dia farei alguma coisa para ajudar a volta desta paz ao mundo. Pela senhora, vovó.

ALMA QUATORZE

O Juiz

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e tendes negligenciado os preceitos mais Importantes da lei, a justiça, a misericórdia e a fé! Devíeis, porém, fazer estas coisas, sem que entretanto omitísseis aquelas. Guias cegos, que coais um mosquito e engolis um camelo!

Mateus 23: 23-24

Era uma noite úmida, fria e chuvosa. O vento impelia a água contra as janelas e as portas, contra todos os que caminhavam pelas ruas. Grandes rajadas de vento, vindas de um céu escuro, sacudiam as árvores trovejando de encontro às paredes. A água corria em torrente pelas calçadas. O homem que subia em direção ao prédio branco estremeceu, enterrando o chapéu mais ainda na cabeça, procurando aconchegar-se no sobretudo. Deixou escapar uma praga. Nunca antes desconfiara de que sua esposa, Helen, fosse histérica, nem mesmo quando um dos meninos ainda pequeno fora atropelado por um carro. Agora porém, ela estava frenética. E, quanto mais ele lhe explicasse as coisas e a censurasse, mais frenética ela se tornava, mais chorava e gritava. Qualquer um haveria de pensar que John Hathaway era irmão dela e Ali Hathaway, sobrinha. Era não apenas desconcertante como também irritante. Pior do que isso: era perigoso para o próprio prestígio dele, uma ameaça às suas convicções. Não julgueis para não serdes julgados, lembra-lhe Helen, chorando e levando o marido a um estado de raiva e constrangimento. Ele era um juiz, com uma reputação de absoluta objetividade e um respeito integral à Lei.

Helen insistira então, deixando-o ainda mais irritado:

que ele fosse discutir o assunto com o Confessor. Ele a princípio não a levara a sério, ficando apenas enervado. Mas, quando a filha Ruth se juntara à mãe na súplica, ele passara vários dias sem falar com nenhuma das duas. Helen, porém, começara a apresentar sintomas alarmantes do retorno do seu colapso nervoso e ele tivera, furioso, que consentir em falar com aquele maldito idiota sentimental, pelo menos para fazê-la calar-se, O que podia sua família saber da pressão exercida sobre ele, especialmente no caso Hathaway, a pressão inquietante e silenciosa?

,A pressão insistente e terrível de ser juiz. As incompreensões, os ódios... O que os leigos sabiam sobre a Lei, escrita com precisão, e que dizia apenas o que dizia e nada mais? É certo que havia juizes que interpretavam a Lei à sua vontade, muitas vezes soltando criminosos novamente na comunidade, para saquear, matar, roubar. Esses juizes eram os verdadeiros criminosos, eleitos por pessoas que não eram menos venais do que eles. Pior ainda que os juizes eram os júris. A jurisprudência dos anglo-saxões era excelente, desde que realmente se dispusesse de júris iguais. Iguais, como, se eram todos como gado?

A água escorria pelo caminho sinuoso, percorrido rapidamente pelos pés impacientes do juiz. Ele quase se esqueceu do lugar para onde estava indo. Se algo pudesse mudar para dispô-lo a favor de John Ellis Hathaway, seria certamente o júri, finalmente escolhido depois de uma longa e cansativa batalha entre os advogados de defesa e o promotor distrital.

Mas será que aquele júri era constituído por pares de Hathaway, que era não apenas eminente homem de negócios como também afamado erudito, de família antiga e excelente que já produzira juízes, sacerdotes, dois governadores e três senadores, além de um membro do Gabinete durante o mandato do Presidente Hayes? O júri era composto de pequenos comerciantes, três mecânicos, duas boquiabertas donas-de-casa, ainda jovens e que se julgavam parecidas com a atual rainha do cinema, o proprietário de dois caminhões avariados e o gerente de um posto de gasolina. Eram esses os pares de Hathaway!

Ele surpreendera sorrisos venenosos dos jurados dirigidos ao réu, sorrisos cheios de inveja e mesquinhez, o triunfo odioso de saber que um homem daqueles estava agora à mercê de gente com eles, jurados. Era verdade, somente o júri poderia predispor o juiz a favor do Sr. Hathaway. O juiz estacou diante da porta de bronze do prédio branco, com a arcada por cima, onde se informava que lá dentro estava à espera de qualquer visitante o Confessor.

O vento envolveu-o, quase o derrubando, embora ele fosse um homem alto e vigoroso, em torno dos cinquenta anos, acostumado à inclemência do tempo em muitas caçadas, pescarias e acampamentos. Uma luz difusa fluía suavemente da porta de bronze.

- Não! - exclamou o juiz.

Mas estendeu a mão e torceu a maçaneta. Espiou lá dentro, cuidadosamente. Se uma única pessoa estivesse ali, teria que bater em retirada, por receio de que logo se espalhasse o rumor de que Sua Excelência o Juiz Meredith HazLitt ali fora em busca de consulta. E como os jornais poderiam explorar o fato durante o sensacional julgamento! No dia seguinte teria que fazer a exortação ao júri e já era quase meia-noite.

Ele entrou rapidamente na sala de espera vazia, fechando a porta atrás de si. Parou no centro da sala, os olhos castanhos examinando tudo atentamente, as narinas um pouco dilatadas, as sobrancelhas franzidas. Seu pai conhecera bem o velho John Oodfrey e admirava-o. Mesmo assim, era uma tolice sentimental vir a um lugar como aquele, e, além do mais, perigoso para um homem como ele. Contudo, ele era um pouco fotografado, e há oito anos que nenhum jornal publicava um instantâneo seu. Nunca achara que os juizes deviam ser amplamente conhecidos pelo populacho.

Por isso mesmo é que pertencia a poucos clubes, os quais raramente freqüentava. Certa vez sua esposa lhe dissera que ele estava deslocado na América, que seu verdadeiro lugar era na Inglaterra, onde os juizes se mantinham à parte e viviam em sua dignidade togada à sombra da Coroa. Muitas vezes se perguntara por que fora eleito para o cargo, pois não era um homem popular e quase não tinha amigos.

Escarnecera quando a esposa e os três filhos, dois rapazes e uma moça, haviam-lhe assegurado que fora por causa de sua integridade. Será que as pessoas como a média dos jurados se deixavam impressionar por uma virtude tão intangível quanto a integridade? Era um absurdo! Eles preferiam certamente uma abstração vaga e medieval chamada segurança, satisfazendo-se com sua cerveja diante da televisão e os pequenos e furtivos pecados. Desde pequeno que o Juiz Hazlitt analisara o mundo dos homens e nada encontrara de bom e virtuoso.

Ele olhou para a porta de carvalho. E se o Confessor fosse um juiz ou um advogado? Seria um terrível transtorno! Apesar das repetidas afirmações de que nenhuma confidência jamais fora traída, o juiz, na verdade, não confiava em ninguém a não ser na sua pequena família. Ele pensou em Helen com irritação. Havia ocasiões em que Helen podia ser um pouco estúpida com toda a sua inteligência.

Virou-se para ir embora no momento em que ouviu a sineta. Olhou por cima do ombro para a porta de carvalho. Bem, até aquele dia ainda não quebrara nenhuma promessa. Mas tomaria todas as precauções. Sorriu para si mesmo e entrou na sala branca de mármore. Já vira fotografias daquela sala; por isso não se surpreendeu com a luz fria e o silêncio das paredes e chão de mármore. Olhou para a cortina e aproximou-se calmamente dela. Tentou abri-la, mas parecia ser feita de aço, apesar da superfície macia. Alguém poderia ver através da cortina? Quase encostou o rosto contra o veludo, mas nada pôde enxergar. Se a minha presença aqui se divulgar, estou liquidado, pensou ele. Foi até a cadeira de mármore e sentou-se, olhando ameaçadoramente para a cortina.

- É por acaso um juiz? - perguntou bruscamente com sua voz forte e ressonante.

Ninguém lhe respondeu.

- O silêncio é quase sempre uma afirmativa. Eu o conheço?

Novamente não houve resposta. Ele pôs o chapéu molhado sobre os joelhos. Caminhara mais de três quilômetros para chegar até ali, embaixo de chuva, tomando a precaução de não vir em seu carro. (Helen ficaria aborrecida quando ele chegasse em casa, encharcado até os ossos. Nas circunstâncias, porém, ela bem que merecia pelo menos aquela apreensão.)

- Eu sou um juiz. Ouvi dizer que de vez em quando o senhor fala. Isso é exato? Não tenho muita certeza. Algumas vezes as pessoas o vêem, outras não. Pode ter certeza, meu caro colega, de que não apertarei o famoso botão ao lado da cortina.

Lembrou-se então de que ninguém realmente sabia quem era o homem. Corriam rumores não apenas de que era juiz, como também de que era psiquiatra, agente social, professor, sacerdote. Alguém chegara mesmo a afirmar que se tratava de um médico. De uma coisa, contudo, ele tinha certeza: o homem atrás daquela cortina não fazia parte do júri do caso Hathaway.

Ele sempre fora um homem tenso, alerta, frio, rápido, por causa de sua natureza e do temperamento secretamente violento. Mas descobriu que ali ele se estava descontraindo, como lhe acontecia depois de uma caminhada em passo acelerado. O frio estava deixando o seu corpo e ele começava a sentir um calor extremamente agradável. Outra coisa estava-lhe ocorrendo, algo que jamais experimentara antes: uma sensação de tranquila confiança, de espera paciente, de fraternidade. Tudo parecia emanar da presença por trás da cortina. Subitamente teve a certeza de que jamais seria traído, certeza que o deixou desconcertado e fê-lo empertigar-se na cadeira. Fora uma criança, um jovem e um adulto reprimido, confiando raramente em quem quer que fosse, até mesmo nos pais e na esposa.

Surpreso, ouviu-se dizer em voz alta:

- Não é que ninguém me haja traído em qualquer assunto importante. Não é isso. É que já vi outras pessoas serem traídas. Mas tal coisa não deveria afetar-me, não é? Além do mais, eu não soube das circunstâncias das traições.

Ele parou de falar bruscamente, pensando nas palavras involuntárias e ficando ainda mais desconcertado. Confessara que algumas vezes desconhecera as circunstâncias! Foi dominado por uma sensação de humilhação.

A sala ficou esperando, assim como o homem por trás da cortina. O juiz franziu o rosto. Um juiz deve sempre procurar conhecer as circunstâncias, mesmo em sua vida particular, para dar os devidos descontos. Será que ele raramente o fazia? Mas a Lei não o fazia: isto é, a Lei quando administrada propriamente, ao pé da letra.

- A Lei, para mim, é uma coisa sagrada. É a sabedoria acumulada dos séculos. É claro que existem leis ruins. Posso pensar inclusive em algumas emendas à Constituição que foram ou têm sido, até o momento de serem revogadas, realmente nocivas e desastrosas para a nação. Neste momento, por exemplo, estou pensando numa emenda que deveria ser imediatamente revogada se queremos sobreviver como um povo. Mas há centenas de milhares de burocratas interessados. Até que o povo resolva arrancá-la radicalmente da Constituição, os burocratas continuarão à se beneficiar indevidamente, à custa de um terrível perigo para nação.

O juiz tossiu suavemente.

- Mas, no conjunto, a Lei é a força de um povo. É nossa segurança de que somos governados pela Lei e não por homens. É verdade que ultimamente tenho lido algumas opiniões abalizadas e convincentes de que estamos começando a ser governados por homens e não pela Lei, o que sempre leva ao despotismo. Não o estou aborrecendo?

Ele nunca fora um homem de muita imaginação, mas julgou ter ouvido um murmúrio negativo. Ou teria sido um suspiro ou o farfalhar de uma árvore?

- É por isso que eu, na minha qualidade de juiz, tenho que ater-me à Lei, como foi escrita, jamais divergindo dela. Os jornais freqüentemente insinuam que sou impiedoso, o que não corresponde à verdade. Não escrevi a Lei, mas é meu dever defendê-la.

Ele hesitou, prestando atenção para ver se ouvia algum ruído. Não houve nenhum. Era como se estivesse encerrado em alguma tumba branca e iluminada.

- Eu não estaria aqui se não fosse pela insistência de minha esposa. Helen é, sob muitos aspectos, uma mulher admirável, extremamente inteligente, racional e equilibrada. Ela sabe que é seu dever, como minha esposa, não discutir comigo os casos que julgo, nem mesmo mencioná-los. Estamos casados há vinte e seis anos. Eu acabara de me formar quando nos casamos. Meu pai era um próspero advogado e não precisamos esperar que eu me firmasse na profissão. Casamo-nos uma semana depois da colação de grau.

O rosto severo suavizou-se ao recordar Helen jovem, com apenas vinte anos, no vestido branco de noiva que ela mesma fizera. O velho tolo que era o pai de Helen perdera todo o dinheiro que herdara, culminando a sua loucura com o suicídio. Sobrara dinheiro suficiente apenas para Helen concluir o último ano da faculdade, o que fizera, enfrentando corajosamente todos os murmúrios maledicentes. Mesmo quando a mãe, uma mulher fraca, morrera em março, poucos meses depois do pai, Helen não se deixara abater nem se curvara. Possuía uma imensa coragem e uma igual ternura, urna capacidade de resistência igual à sua doçura. Ele amara Helen desde que a conhecera, quando ela tinha dezessete anos. Não fora uma moça bonita. Seu principal atrativo eram os grandes olhos negros e provavelmente a expressão, que combinava a coragem com a feminilidade. Mas era baixa e um pouco gorda. Era estranho que tantos jovens a cortejassem, pois era notório que os jovens se fascinavam tão somente pela beleza. As moças também lhe eram muito devotadas.

- Acho que era por causa do caráter de Helen. E acho que foi realmente por causa de Helen que fui eleito e não porque possuísse então qualquer valor pessoal.

Ele deixou escapar uma risada breve.

- Todo mundo adora Helen. Ela é uma mulher sensata, bondosa, discreta. É por isto que não consigo entender...

Ele fez uma pausa.

- Mas não vim até aqui para falar-lhe a respeito de minha família. Deixe-me apenas informar que tenho dois filhos, ambos estudando em Harvard. São ótimos rapazes, com os olhos de Helen. E tenho também uma filha.

A pausa agora foi mais longa, a boca firme suavizou-se.

- Ruth está com vinte e três anos. Não me importo de confessar que ela é a minha predileta. De qualquer forma, já descobri que os pais normalmente têm uma preferência pelas filhas.

Ele fitou a cortina, na expectativa. Ela não se moveu. Já passava bastante de meia-noite, Seria possível que não houvesse ninguém ali atrás, embora se anunciasse que o homem esperava vinte e quatro horas por dia? Aquilo era bobagem, eles deviam se revezar. O juiz sorriu. Até mesmo um juiz não podia ficar o tempo inteiro de plantão, embora só Deus soubesse como isso era necessário! Esquecendo-se de que não viera até ali para falar sobre sua família, recomeçou a falar de Ruth. (Ele jamais conversava sobre sua família com ninguém, mas não parou para perguntar-se por que o estava fazendo naquele momento.)

- Ruth agora está bem outra vez. Casou-se com um patife, um dos rapazes Shelton. É uma boa família. Não tem muito dinheiro, mais é sólida. Robert era o único canalha deles todos, um mentiroso, ladrão. Teve uma excelente educação Universitária, mas era muito preguiçoso. Evidentemente eu de nada sabia a seu respeito quando Ruth nos comunicou, aos vinte anos, que desejava casar-se com ele. Eu conheci o velho Bob, o pai de Robert. Ele fora um dos meus melhores amigos e senti terrivelmente a sua morte. Robert não me impressionou muito bem e fiquei desapontado com a escolha de Ruth. Ele era muito superficial, por demais encantador - características terríveis para um homem, a menos que seja um vigarista, vendedor ou político. Ele agora está metido na política e não tenho a menor dúvida de que irá longe.

A voz do juiz tornou-se subitamente amargurada.

- Não me surpreenderei se ele acabar virando governador ou senador. As pessoas atualmente adoram quem faz charme, preferindo um sorriso cordial e um aperto de mão caloroso à honra e à inteligência. Não é de admirar que o...

Ele interrompeu a frase no meio, sacudindo a cabeça. Mas logo continuou, em voz áspera:

- Quando o velho Bob morreu, deixou dez mil dólares para cada um dos seus três filhos. Era viúvo e esse era todo o dinheiro que possuía. Os dois filhos mais velhos foram cuidar de seus negócios, estão indo muito bem e fizeram excelentes casamentos. Robert contou-me que ainda tinha os seus dez mil dólares, investidos com toda, segurança. Que razão eu poderia ter para não acreditar nele? Absolutamente nenhuma. Demos oito mil dólares a Ruth quando ela se casou e comprei urna casa para eles. Helen mobiliou-a. Tudo aparentemente corria muito bem, a felicidade era total. Robert já estava vagamente metido na política. Ele me dissera que ganhava um salário de nove mil dólares por ano.

O juiz passara a falar mais alto, a voz mais amargurada cio que nunca.

- Era tudo mentira, ele não tinha nada. Casara-se com a minha Ruth por suas origens e pelo dinheiro que um dia herdaria. Quando ele descobriu que eu não pretendia manter a mesada de Ruth nem subvencioná-la, o casamento bruscamente terminou. Terminara, na verdade, muito antes disso, sem que eu e Helen o percebêssemos. Não notamos que Ruth se estava tornando cada vez mais pálida, magra e quieta, ela que sempre fora uma moça animada e alegre. A princípio achamos que ela talvez estivesse grávida. Só aos poucos é que fui descobrindo que Robert esbanjara os dez mil dólares deixados pelo pai muito antes de casar-se. Ele apossara-se de todo o dinheiro de Ruth. Passaram..se dois anos antes que eu descobrisse que ele hipotecara a casa que eu comprara para eles. Descobri Isso no dia em que Ruth foi para o hospital. Há muito tempo que ela estava doente. Os médicos disseram que era um colapso físico e nervoso. Não era de admirar! Ela continuara a amar aquele porco até o último momento! Foi um período horrível! Chegamos a pensar que perderíamos Ruth, pois ela não fazia o menor esforço para lutar e continuar a viver. Finalmente fomos obrigados a chamar um psiquiatra e trouxemos Ruth para casa: Foi a vez de Helen cair doente, com um colapso nervoso resultante do excesso de preocupação. Nunca me esquecerei daquele ano até o último dia da minha vida. O casamento, é claro, estava desfeito, embora eu seja um homem que não acredita em divórcio nem em sanções. Ruth conseguiu uma anulação. Depois disso, houve um escândalo considerável. Robert teve que formular um pedido de falência. Ele não tinha nada. Gastara tudo o que ele próprio tinha, o que Ruth possuía, todo o dinheiro da hipoteca - onde e como, nós nunca descobrimos. Eu poderia ter posto esse vagabundo na cadeia!

O rosto do juiz estava vermelho de raiva, pela simples recordação.

- Mas isso teria magoado Ruth também e já havia bastante falatório. Achei que o melhor era deixar o caso morrer naturalmente. Ruth o amara intensamente, mas ele nunca a amara, o que era o pior de tudo. E é esse patife que começa agora a fazer carreira na política!

A voz do juiz tornou-se subitamente cansada.

- Bom, isso é tudo. Ruth está voltando a interessar-se pela vida. Já sai de casa e de vez em quando ouvimos a sua risada. Afinal, ela tem apenas vinte e três anos.

A sala esperou. Todo o tempo do mundo... Onde será que ele ouvira falar daquele lugar? O homem que ouvia durante todo o tempo do mundo... Só que eu não tenho todo o tempo do mundo, pensou o juiz. Já passa de uma hora da madrugada.

- Não sei por que lhe contei tudo isso. É muito estranho, pois não sou de falar assim. Na verdade, nunca antes falei tanto sobre a minha pobre e querida Ruth e sobre Helen. Mas não vim aqui como um tolo sentimental para falar-lhe sobre os meus assuntos pessoais. Qual o interesse que eles podem ter para o senhor? Vim para falar sobre um homem, um réu do meu tribunal, que está sendo julgado por homicídio. Já leu alguma coisa sobre o caso Hathaway? Conhece os pormenores?

Era estranho que a sala silenciosa parecesse ter respondido afirmativamente. O juiz suspirou.

- Há muitos anos que conheço John Hathaway. É um homem da minha idade. Seu pai foi professor em Yale durante muito tempo, até o dia em que morreu. John e eu pouco tínhamos em comum. Ele era um homem um pouco reservado e erudito demais para o meu gosto, embora fosse também excelente nos negócios. Raramente nos víamos, embora nossas esposas fossem velhas amigas. Ele sempre foi um homem frio e formal, mas ninguém poderia sequer Imaginar que ele fosse capaz de cometer um homicídio deliberadamente planejado - mesmo tendo em vista as circunstâncias.

O juiz calou-se por um longo tempo, o rosto agora controlado e pensativo.

- As circunstâncias foram semelhantes às que enfrentei - e Ruth também. Ele tinha apenas uma filha, da idade de Ruth, chamada Alice. Era uma moça quieta. Lembro-me muito bem de quando era pequena e ia visitar Ruth. Não era tão bonita como a minha filha. Era alta, magra, um pouco desajeitada, mas intelectual como o pai. Ela também se casou com um rapaz de boa família. Nunca pensei muito na família Eldridge, nunca achei que merecesse grande consideração - mas isso não vem ao caso. Eles são proprietários de todas aquelas serrarias lá do rio. Alice casou- se com Dick Eldridge, um jovem bastante competente, bem mais velho que Ruth, mas que se mostrava sempre mal- humorado e insociável. Via-o de vez em quando no clube. Comentava-se que ele era o braço direito do pai no negócio. Tinha um temperamento estourado. Certo dia perdeu urna partida de golfe e acertou Jack Moley na cabeça com o taco. Foi quase expulso por isso, mas a influência e O dinheiro da família conseguiram evitá-lo. Eu mesmo votei pela expulsão. Mas isso não vem ao caso. Dois meses atrás, John Hathaway calmamente carregou um revólver que comprara e seguiu para o apartamento da filha. Sabia que não a encontraria, que naquele momento ela estava com a mãe. Voltarei a falar sobre isso daqui a pouco. Ele entrou no apartamento e encontrou Dick Eldridge lendo, mal-humorado como sempre. Sem dizer uma única palavra, apertou o gatilho e matou o genro. Telefonou imediatamente para a policia e entregou-se.

O juiz descobriu que estava suando. Tirou o lenço úmido do bolso e enxugou o rosto. Verificou, surpreso, que as mãos tremiam.

- Foi homicídio em primeiro grau, é claro. ELe podia simplesmente ter persuadido a filha a largar Eldridge e voltar para casa, podia ter acertado tudo da maneira como eu fiz. Há mais um detalhe, embora isso não seja justificativa perante a Lei, por mais que os advogados de defesa tentem convencer-me. Eles foram procurar-me, em companhia do promotor distrital, para apresentar-me um fato novo que não queiram, pelo menos por enquanto, dar a público.

Parece que Alice e Eldridge estavam casados há apenas três meses quando ele começou a espancá-la. Pelo menos isto devo dizer a favor de Robert Shelton: ele era um homem por demais indolente e bonachão para bater em Ruth. Voltando a Alice, não faço a menor idéia da razão pela qual ela não o largou. Amava-o, provavelmente, apesar de tudo. As mulheres, em certas coisas, são extremamente ridículas. Há ocasiões em que nem eu mesmo consigo entender Helen e Ruth.

Os advogados de defesa contaram-me que Alice ficara grávida quatro meses antes do homicídio. Eldridge tornara-se então extremamente violento, pois não queria ter filhos, odiava crianças, detestava-as. Obrigou Alice a fazer um aborto, o que ocorreu cinco semanas antes do crime. Admito que é uma coisa horrível, mas não posso concordar com os advogados de defesa em que um aborto imposto é a mesma coisa que um homem carregar sua arma e matar outro a sangue-frio. É claro que as coisas saíram erradas, como sempre aconteceu. Alice quase perdeu a vida. Passou um mês no hospital, com septicemia. Foi então para a casa dos pais, ainda doente. Os advogados de defesa, famosos por suas tendências melodramáticas, mostraram-me fotografias da moça enferma na cama. Ela mais parecia um cadáver. Pobre moça! De certa forma, eu compreendo. Hathaway perdeu a cabeça, embora tivesse planejado o crime cuidadosamente. Admitiu ter verificado antes a presença de Eldridge no apartamento. Pegou a chave da filha e entrou em silêncio, sem dar tempo a Eldridge para defender-se. Nem mesmo alegou legítima defesa. Em seu depoimento antes do julgamento, declarou que realmente tencionara matar o genro. Ficou constatado também que Alice, ao dar entrada no hospital, não estava apenas com o problema do aborto, tendo várias equimoses por todo o corpo. É uma desgraça, um infortúnio terrível... Mesmo assim, não se justifica o assassinato a sangue-frio. A Lei, nesse ponto, é explícita. Legítima defesa, defesa de outrem em perigo mortal, defesa da propriedade - estas são situações que se pode alegar em casos de homicídio. Na maioria dos casos, o réu é absolvido ou pega no máximo um ou dois anos de prisão, por homicídio culposo, de terceiro grau, com direito à suspensão condicional da pena. Hathaway não pode alegar nenhuma dessas circunstâncias. Sua filha tem a idade de Ruth e certamente não foi levada à força para o fazedor de abortos; se tal tivesse acontecido, não teria ido andando com os próprios pés. É verdade que, Infelizmente, ela ainda está muito doente e abalada. Poderia ter deixado Eldridge, assim como Ruth deixou Shelton. Poderia ter obtido o divórcio. Os advogados de defesa, porém, disseram-me que ela amava o miserável, apesar de tudo, até mesmo do aborto. Eu não compreendo as mulheres, é claro. Também não compreendo por que Hathaway não teve o bom senso de trazer a filha de volta para casa, ajudando-a a obter o divórcio e dando o caso por encerrado. Ele não precisava matar Eldridge.

O juiz sacudiu a cabeça repetidas vezes.

- Deixei isso bem claro para os advogados de defesa. Sugeri que trouxessem à baila no tribunal o problema dos maus tratos e do aborto, mas assegurei-lhes que isso, por si só, não era justificativa para um homicídio de primeiro grau. Consultaram Hathaway depois e ele proibiu taxativamente que o problema fosse exposto no tribunal. Não posso culpá-lo por isso, pois, afinal, a moça ainda tem uma vida inteira para viver. Amanhã devo formar o júri, informando-o plenamente da Lei. Um crime deliberado, premeditado, a sangue-frio, como John Hathaway confessou, é homicídio em primeiro grau. É o que diz a Lei. O rancor nada justifica, não há circunstância atenuantes. Se o júri decidir pelo veredicto de homicídio em primeiro grau, Hathaway provavelmente será executado. Mas ele simplesmente parece não se importar. Parece frio e distante, o que não predispõe nenhum júri a seu favor. E, para dizer a verdade, se já vi alguma vez um júri disposto a condenar o réu, é exatamente este. Sinto muito por Hathaway, mas é a Lei. E que diabo! Por que ele não se controlou pelo menos um pouco, como eu? De certa forma, eu sou como ele. Ruth, com a nossa ajuda, de Helen e minha, livrou-se do problema em que se metera.

O juiz fez uma nova pausa.

- Como eu já lhe disse, a esposa de Hathaway é uma velha amiga de Helen. Quando eu soube que ia julgar o caso - ninguém tem a menor dúvida de que sempre me atenho à Lei - disse a Helen que ela não podia mais continuar a encontrar-se com Margaret Hathaway para os seus lanches semanais. Ela compreendeu, a princípio. Margaret fez então algo realmente imperdoável nas circunstâncias. Ligou uma noite para Helen, quase histérica, falando das surras e do aborto e implorando que tentasse influenciar-me para ajudar seu marido. É claro que a pobre mulher está desesperada, quase perdendo o juízo, com a filha doente e o marido indo a julgamento. Mas, mesmo assim, devia ser um pouco mais discreta. Helen também deveria sê-lo. Ela sabe que nunca deve falar dos casos que estou julgando e muito menos discuti-los comigo. E há mais de uma semana que está chorando desesperadamente, querendo que eu ajude Hathaway. Quando digo desesperadamente, não estou exagerando. Nunca vi Helen em tal estado antes, a não ser quando Ruth teve o colapso físico e nervoso e quase morreu...

O juiz subitamente empalideceu, até os lábios e a ponta do nariz ficaram mortalmente pálidos. Ele ficou rígido na cadeira de mármore. Parecia ter até parado de respirar.

Ao tornar a falar, sua voz era um sussurro quase inaudível.

- Sou, por natureza, um homem violento. Helen sabe disso. Exerço um grande autocontrole, mas só Deus sabe o quanto isso me custa em esforço! Já pensei em matar, uma ou duas vezes na minha vida. Mas não cheguei a fazê-lo,é claro.

A garganta ficou de repente rígida e seca, ele não conseguia engolir. A muito custo, conseguiu exclamar:

- Ruth!

Lembrou-se da doença da filha. Lembrou-se de que fora um cara terrivelmente impaciente com os médicos. Eles se mostravam evasivos, não conseguia fazer com que lhe dissessem exatamente o que havia de errado com a sua filha.

- Um colapso físico e nervoso. Os médicos eram velhos conhecidos, certamente esconderiam...

- Ruth! - exclamou o juiz novamente.

Ruth quase morrera. As pessoas não morrem mais de colapso físico e nervoso no mundo moderno, com tantos médicos para cuidar delas. Ninguém mais tem stress. Ela saíra profundamente ferida do casamento, mas hoje ninguém mais morre de tal ferimento. Os homens têm morrido e sido devorados pelos vermes - mas jamais por amor. Mas a febre! A febre ardente e furiosa, que Ruth sofrera por muitas semanas! Infecção. O semi-delírio, os murmúrios, o corpo agitado na cama, os resmungos. Os antibióticos! Haviam dado antibióticos a Ruth. Septicemia. As semanas de convalescença, os primeiros passos, as expressões de dor, o choro repentino e silencioso, o sacudir da cabeça de Ruth quando lhe fazia perguntas, seu mutismo. Ela não queria contar nada ao pai.

Ela e Helen nunca lhe contaram o que acontecera exatamente. Elas sabiam que ele era um homem violento e frio quando provocado. Sabiam que ele poderia matar.

O juiz levantou-se, empertigado, uma expressão terrível no rosto. Fitou a cortina demoradamente.

- Eu o teria matado! E espero em Deus que nunca mais torne a vê-lo. Talvez eu não conseguisse controlar-me. Ruth!

Apoiou-se no espaldar da cadeira de mármore para não cair, murmurando secamente:

- A Lei...

Um homem que cometia um assassinato deliberado e a sangue-frio era normalmente um criminoso. Se não era um criminoso, então estava temporariamente insano, compelido a um ato contrário a todos os seus impulsos civilizados e inteligentes. Um homem como Hathaway não era um criminoso! Fora compelido por uma força maior que todo o seu condicionamento, uma ofensa além e acima de sua capacidade de suportar. Ele mataria em decorrência de outro crime cometido - e o aborto, no final das contas, era realmente um assassinato. Matara para vingar este assassinato e o sofrimento de sua filha. Reduzido aos instintos humanos básicos, ele matara. Como vingança pelos inocentes, um que fora destruido e outra que quase o fora também! O juiz aproximou-se, vacilante, da cortina. Estendeu a mão para apertar o botão, sussurrando:

- Precisa dizer-me o que devo fazer. Há a Lei...

A cortina se abriu.

O juiz recuou rapidamente, ao ver a luz e quem estava sob a luz. Depois ficou imóvel por um longo tempo, fitando os olhos que o miravam gentilmente.

Ele disse finalmente:

- Sim, agora me lembro. Foi a letra da Lei que matou, não foi? Faz muito tempo que ouvi isso pela primeira vez. É o espírito da Lei que importa. Eu me havia esquecido, estava sendo como aqueles fariseus. Uma lei violada era uma lei violada, não havia apelo, não havia misericórdia. Lembro-me agora de tudo o que Vós dissestes.

Ele tornou a sentar-se na cadeira, porque as pernas lhe tremiam.

- Tenho sido um mau juiz. Segui a Lei à risca e instrui todos os outros júris para agirem assim também, mas Graças a Deus que muitos não me atenderam. Graças a Deus! Pedirei a Margaret Hathaway que compareça ao tribunal e conte a história de Alice ao júri. Os jurados são pessoas simples. Sinto muito tê-los menosprezado tanto! Eles detestam o assassinato de Inocentes. Há no júri três mulheres ainda jovens que também são mães. Vou negar qualquer protesto da Promotoria. Eu sinto que Margaret quer comparecer ao julgamento e dizer tudo o que provocou o crime. É a vida do seu marido que está em jogo. E Alice não vai querer que seu pai morra apenas para salvar sua. reputação. Não é de admirar que a pobre menina esteja doente e não melhore nem um pouco! Hathaway foi um estúpido - tão estúpido quanto eu teria sido, se soubesse antes das circunstâncias! Se necessário e o júri assim o desejar, iremos ouvir o depoimento de Alice. Ela dirá tudo. Tenho certeza de que contará tudo o que aconteceu.

Ele levantou-se, ainda muito pálido, mas decidido.

- A simplicidade das pessoas é muito mais sensata que qualquer filosofia, a simpatia rápida e certa, a piedade instantânea. O júri e eu... nós salvaremos John Hathaway, juntos!

Ele sorriu ligeiramente.

- Agora tenho que voltar para casa, falar com Helen. Foi ela quem suplicou que viesse procurá-lo. Ela sabia. Pois não foi ela quem me disse que Ruth só começou realmente a melhorar depois que veio até aqui? Eu gostaria de saber se ela chegou a ver Vosso rosto, a Infinita misericórdia estampada em Vossa face!

ALMA QUINZE

O Destruidor e O Homem que Ouve

Volteando em círculos cada vez mais amplos,

O Falcão não pode ouvir o falcoeiro;

Tudo se esboroa, o centro não mais retém coisa alguma;

A anarquia está à solta pelo mundo,

A onda de sangue varre a Terra, e por toda parte

A cerimônia da Inocência se extingue;

Aos melhores falta convicção; os piores

Estão cheios de uma Intensidade apaixonada.

W. B. Yates: O Segundo Advento

O Dr. Atino Kadimo olhou pela janela do avião a jato e viu as Montanhas Rochosas lá embaixo - a Divisória Continental. Para os aviões convencionais, mesmo agora, as Montanhas Rochosas não constituíam um obstáculo que se pudesse ultrapassar despreocupadamente, com um mero olhar distraído. Os comandantes e co-pilotos ficavam sempre alerta naquele momento, por causa das tremendas correntes de ar ascendentes e descendentes. Mas a coisa era bem diferente num avião a jato, conforme percebeu o Dr. Kadimo, logo interessado. Ele já estava com cinqüenta e nove anos, mas ainda não perdera o senso de admirar tudo que merecesse. Da altura em que voavam, as Montanhas Rochosas pareciam apenas uma longa sucessão de formigueiros, com pequenos borrifos de neve, aparentemente do tamanho da palma de sua mão. Os grandes morros vermelhos que tanto o haviam fascinado quando por ali passara de carro, alguns anos antes, eram agora simples cunhas escarlates dispersas pela terra manchada de amarelo; daquela perspectiva, pareciam não ter mais do que uns poucos centímetros de altura.

Fazia agora duas horas que estava voando, praticamente sem ruído algum, sobre a terra ora castanha, ora amarela, vermelha ou bronzeada. Tudo lá embaixo estava diminuído, chatado, informe. Até as pequenas cidades que de vez eu quando surgiam não passavam de brilhos fugazes. Os rios haviam desaparecido ou estavam reduzidos a simples fendas. As estradas, evidentemente, não eram discerníveis. O homem diminuira tudo, modificara os contornos, ou os eliminara, aumentando, diminuindo, erguendo, abaixando. Havia algo de terrível naquela diminuição, na redução das montanhas, colinas, rios, cidades e campos, estava tudo achatado, numa monotonia estéril. Algumas nações haviam tentado efetuar aquele mesmo achatamento e esterilização em relação aos homens, especialmente a Alemanha nazista e a Rússia comunista. Na América de hoje, havia também um forte e letal movimento para diminuir o homem, achatá-lo, remover os seus contornos de individualidade, a sua diversidade, transformá-la, como estavam fazendo com a terra, numa terrível massa anônima, provocando o desaparecimento dos caudalosos rios da mente, a alma não se distinguindo do corpo, as paixões se mesclando no mesmo deserto amarelado, as aspirações passando .a ser as do formigueiro, o espírito uma simples fenda que não levava a parte alguma e ia morrer contra uma muralha de rocha. As brilhantes cidades da mente tornar-se-iam um simples clarão indistinto na eterna escuridão.

Onde estavam as florestas agora, na elevada perspectiva do avião ou no espírito do homem? Onde estavam as florestas verdes e viçosas, repletas de estranhos caminhos e vistas inesperadas, com súbitos poços de claridade em meio às sombras, os gritos surpresos e extasiados, o júbilo misterioso e ingênuo, as canções, as revelações inexploradas? O Dr. Kadimo não podia ver florestas de sua janela pequena e Isolada, nem mesmo um simples borrão verde; estava tudo murcho, igual, da cor de dunas mortas que pareciam um oceano sem vida.

Ao deixar a terra, pensou ele, o homem saiu de si mesmo. A aeromoça, sorridente, acercou-se dele com uma bandeja cheia de taças de champanha. Ele pegou uma taça, sorriu gentilmente para a aeromoça e provou. Era excelente! Desses que se tornam efervescentes na ponta da língua, uvas salpicadas de fogo e gelo! Podia ver os vinhedos da Europa, sentir os cachos de uva em sua mão, opalinos, brancos, ligeiramente rosa, intumescidos de tanto suco. Recostou-se na poltrona confortável e sorriu, sentindo-se quase feliz. O homem, que conseguira criar o fogo dourado naquela taça, não estava diminuído - ainda não. Sua alma não fora achatada - ainda não. Em algum lugar do mundo, nas cidades de concreto, nos vinhedos, nas florestas, nos campos, ainda viviam homens que tinham paixões, alegrias, homens que rezavam - homens dotados de uma ira nobre.

Esses homens precisavam ser salvos. Os dedos cerrados da agonia crônica começaram a relaxar um pouco a pressão sobre o coração do Dr. Kadimo. Sobreveio-lhe uma. visão nítida e aguda, como o soar de uma trombeta numa ameia, como um grito no oceano, como as brasas de uma fogueira num acampamento no deserto. Tais homens não viviam apenas na América; viviam também nas ilhas, na Europa, até mesmo na Rússia, nos mais remotos e abandonados povoados do mundo. Guardavam zelosamente suas valiosas paixões, seus sonhos, sua poesia de ser, suas almas, que em raros instantes podiam conter a Deus. Guardavam essas coisas com extremo carinho, como um joalheiro guarda os seus tesouros, como um leão guarda a sua companheira, como os vassalos guardam o seu senhor. Possuíam altares em seus corações, mesmo quando todos os altares fossem proibidos, possuíam santuários em seus espíritos que jamais poderiam ser destruídos. Era por esses homens dispersos pelo mundo, pensou o Dr. Kadimo, entre um gole e outro de champanha, que ele devia encontrar um meio de salvar e preservar o que guardavam com tanto ciúme e tanta reverência! Ele não sabia como, sabia apenas que precisava.

A jovem aeromoça hesitou junto ao seu assento, com outra bandeja nas mãos. Ela fora treinada a encarar os passageiros não como simples passageiros e sim como seres humanos, sujeitos a dor, medo, excentricidades, até mesmo a gestos perigosos. Dr. Atino Kadimo era o nome daquele passageiro. Embarcara no avião em Los Angeles. Parecia estar doente, embora sorrisse polidamente e enunciasse seu nome com clareza e um ligeiro sotaque, caminhando como se fosse. jovem. Ela se lembrava de que ele era muito alto, e a sua magreza contribuíra para reforçar essa impressão. Mas tinha olhos azuis muito grandes, distraídos mas penetrantes. Era Como se ele estivesse pensando em algo muito distante, deixando Um soldado de prontidão para alertá-lo em caso de necessidade. Fora sentar-se direto e não falara com o seu Companheiro na poltrona do outro lado da mesinha. Passara quase o tempo inteiro olhando pela janela. Devia ser o seu primeiro vôo num jato, ela era capaz de apostar.

E quanto mais olhava pela janela mais ele parecia doente, pálido, velho. Ela lhe servira champanha e ele agradecera. A maioria dos passageiros raramente o fazia, especialmente os tolos e arrogantes de Hollywood, que ficavam olhando ao seu redor e logo se levantavam e safam passeando pelo corredor, querendo ser reconhecidos pelos menos importantes, exigindo com olhos insolentes que os reconhecessem. Alguns estúpidos olhavam-nos insistentemente, para a sua satisfação, e murmuravam excitados. Os grandes astros sentiam-se extremamente agradecidos, mas fitavam os admiradores com desprezo, como se não passassem de atrevidos campônios. Os mais sofisticados ou importantes fingiam não ver os admiradores, o que deixava a aeromoça ainda mais irritada. As atrizes conseguiam ser mais irritantes do que os homens, se é que isso era possível.

O Dr. Kadimo adormecera. Seu rosto agora parecia mais jovem, revigorado, mais descontraído. Uma mudança se operara. nele. Fora isso que fizera a aeromoça hesitar, com a bandeja que trouxera para ele - contendo um filé com cogumelos, uma vichyssoise, uma boa salada. Mas ele estava dormindo e por uma razão qualquer ela achou melhor não o acordar, embora dentro de uma hora e meia devessem aterrissar em Chicago. O regulamento determinava que se acordasse gentilmente o passageiro quando a refeição estava pronta.

- Eu fico com essa bandeja - disse o homem sentado em frente ao Dr. Kadimo. - O velhinho bem que parece estar precisando desse sono.

A aeromoça entregou-lhe a bandeja e ele começou vorazmente a devorar a comida, concentrado, como se aquela fosse a sua última refeição. Por que será que tantas pessoas comiam assim? Faziam com que os outros se envergonhassem por elas. Não davam a impressão de estarem saboreando a comida e apreciando cada bocado. Era como se estivessem famintas, o que absolutamente não acontecia. O homem que estava comendo era até muito gordo, excedendo um pouco a larga poltrona.

- A gente encontra todo tipo de gente - comentou a aeromoça para as suas companheiras. - Acho que vou deixar o doutor dormir até quarenta e cinco minutos antes de aterrissarmos, quando então o acordarei e servirei seu almoço.

- Acha que ele está doente? - perguntou outra aeromoça, preocupada. pois era uma jovem bastante conscienciosa. - Talvez esteja precisando de oxigênio.

Ele parecia estar doente quando embarcou, mas agora não dá inala essa impressão. Vou deixá-lo dormir um pouco mais, pois deve estar precisando. Acho que há muito tempo ele não dorme.

O Dr. Kadimo estava sonhando. Era um menino novamente e estava em seu país de origem, na Europa Oriental. Seu pai era advogado e também o prefeito da cidadezinha em que moravam. Era ainda o amigo do padre local e juntos resolviam todos os problemas dos aflitos. A sala era toda de madeira, até mesmo o teto. Lá fora rugia um inverno implacável. Um tapete de urso, de cor creme, estava estendido diante da lareira, onde Uma chaleira borbulhava no fogo. Em alguns pontos da sala havia lamparinas a óleo. Cadeiras revestidas de couro ou envernizadas estavam espalhadas sobre o assoalho reluzente. Um ícone estava colocado em. cima da lareira de pedra. O corpo, feito de bronze, brilhava como se fosse ouro velho. Um cachorro rosnou sonolento perto do fogo. Da cozinha vinha o odor de Uma sopa deliciosa. O vento sacudia as janelas, a pesada porta de carvalho maciço. A água na chaleira de cobre estava fervendo e seu assobio sobrepôS-Se à tempestade. O frio fazia as árvores estalarem lá. fora, como o ruído dos tiros de pistola. A escuridão se comprimia contra as janelas, tão densa que parecia Impenetrável, como uma presença ominosa, uma ameaça terrível. A sala era um posto avançado contra o inverno e as trevas.

O menino, Atino, estava sentado a uma distância respeitosa do fogo, a uma mesa envernizada, fazendo seus deveres. Tinha então doze anos. Estava começando a ficar com sono. A lenha crepitava e ele sentia as ondas de calor que se desprendiam da lareira, vendo as chamas subindO rapidamente pela chaminé, por onde o vento entrava assoviando. Podia sentir os aromas agradáveis que vinham da cozinha, a sopa de repolho, as costeletas de porco, as maçãs assadas. Havia também. no ar um aroma de café. Seu pai e o padre tomavam café junto ao fogo. O padre empurrava o chapéu preto para trás da cabeça; o xale preto, preso á ponta de trás do chapéu, caía-lhe pelo pescoço e ombros. Ele levantara um pouco a batina, a fim de aquecer melhor as pernas velhas mas ainda vigorosas, envoltas por meias de li compridas e pretas. Ele viera caminhando por entre a neve e logo um novo cheiro se difundiu pela sala, de lã secando, de couro e feltro úmidos. Ele não era um homem alto, embora tivesse a cintura imensa. Trazia consigo não só a autoridade como também a bondade: era um homem de Deus. Atino, procurando afugentar o sono, olhava para o Padre Atexis Rozniak com o mais profundo respeito. Ele sabia rosnar cordialmente como o estava fazendo agora, mas sabia também gritar, fazendo estremecer tudo o que havia ao seu redor. Podia ficar zangado e sua mão era então impiedosa. Quando ele cantava, na igreja, parecia que os anjos das paredes se aproximavam para ouvi-lo. A voz rica e poderosa ressoava por entre as colunas e o teto bizantino da igreja, com suas folhas de ouro e os rostos dos santos. As velas piscavam então com a força daquele canto,enquanto o sol oblíquo e frio de verão atravessava os vitrais coloridos das janelas em feixes de muitos matizes. O padre era o coração da cidade, eterno, imutável, sem idade definida, apesar da barba grisalha, as. pálpebras deslizando sobre olhos pretos e profundos.

O padre e o prefeito, que era o pai de Atino, estavam agora falando sobre assuntos sérios. Quando os adultos assim agiam, concluíra Atino, o assunto normalmente não tinha o menor interesse. Falavam em voz baixa. Talvez fosse o tom de suas vozes que fizera com que Atino sentisse subitamente a vontade de escutar o que diziam.

- Acredite em mim, meu caro Jozef - disse o padre.

- Não o estou alarmando desnecessariamente. Há um cheiro ruim no ar, um eflúvio de violência e terror. Sou um homem do campo e deve saber como podemos descobrir coisas cheirando o vento, aspirando-o profundamente por nossas narinas. Muito antes de a tempestade desabar ou o primeiro relâmpago cortar os céus, muito antes do primeiro murmúrio de trovoada, o homem do campo já sabe o que está para acontecer. Não é sempre assim? Antes mesmo de a primeira neve cair, o homem do campo já lhe sentiu o cheiro, branca, limpa, seca. E por isso é que eu lhe estou dizendo que deve ir com a sua família para a América imediatamente. Você é um homem de conhecimentos, um professor, conhecedor da lei. Eles vão aceitá-lo. Mas não espere muito tempo, pois a tempestade pode desabar a qualquer momento.

Estava-se em fins de. fevereiro de 1914. Jozef Kadimo sorriu, aspirou o cachimbo, reassumiu uma expressão grave e pensativa. Atino estava alerta. América? Ficava tão longe, era um lugar tão misterioso e desconhecido... Por que deveriam ir para a América? Os homens diante da lareira baixaram as vozes ainda mais e aproximaram-se as cabeças, fitando-se nos olhos. Atino bocejou. Estava cochilando quando momentos depois ouviu os acordes do violino de seu pai. Jozef estava de pé sobre o tapete de urso, os olhos quase fechados, lábios cheios sorrindo. Ele tocava Chopin, a Pojanaise. Era a música predileta de seu pai. Ele fazia com que o violino chorasse, dançasse em delírio, acompanhasse batidas dos tambores, marchasse, chorasse, risse, pressagiasse... Ainda hoje ele podia ouvir a música como uma voz apaixonada a chamá-lo - e foi ouvindo-a que acordou subitamente no avião a jato, estremecendo.

O avião arremetia para a escuridão, fugindo do sol. Mas, na cor púrpura do horizonte, o Dr. Kadimo pôde ver a curvatura da Terra, tingida por um fogo brando. Como a Terra era linda! A aeromoça aproximou-se dele, mas ele sacudiu a cabeça e disse:

- Traga-me café, por favor. Apenas café.

Ele tomou o café. Os motores do jato deixavam escapar um som estridente, mas acima dele ainda podia ouvir o violino do pai, premente, insistente, como um hino sacro. Ele esfregou os olhos com os dedos magros, suspirando. A decisão que tomara só fizera crescer em seu coração, transformando-se numa pilastra indestrutível. Ele ainda não sabia de nada. Mas, com a ajuda de Deus, logo saberia o que devia fazer e como dizer.

O potente avião perdeu altitude e as aeromoças surgiram no corredor, assegurando-se de que todos os passageiros já haviam afivelado o cinto de segurança.

- Tão cedo assim? - murmurou o Dr. Kadimo para a aeromoça que foi atendê-lo.

Ela era bastante bonita, com o rosto viçoso como uma maçã no outono. Em voz calma e tranqüilizadora, ela explicou:

- Temos uma tempestade de neve sobre Chicago. O tempo está ruim e talvez o avião sacoleje um pouco. Deveremos chegar dentro de trinta e cinco minutos.

As luzes no interior do avião se apagaram e dês foram engolfados pela escuridão. Esta tremenda velocidade é uma coisa terrível, pensou o Dr. Kadimo. Deixei a Califórnia num dia quente de sol e pouco depois estou mergulhado na escuridão, aproximando-me do inverno com neve de Chicago. Que forças espantosas o homem consegue agora controlar! Mas só que ele não consegue controlar a mais espantosa de todas 88 coisas: o seu próprio coração. Os homens podiam apressar a chegada do sol, mas não podiam acelerar a chegada da misericórdia, da justiça ou da paz, pois tais coisas não existiam dentro deles. Podiam banir a meia-noite, mas não a maldade de seus corações. Podiam iluminar os céus, mas não os seus espíritos. Podem subir à estratosfera e espiar a Lua, mas não conseguem escalar o monturo dos seus pecados e dos crimes que cometem uns contra os outros. Podem dividir e provocar a fissão do átomo - coisa terrível! - mas não conseguem separar-se do terror que vive neles, pois não podem fundir Deus em suas almas. O homem é propenso ao genial, preferindo as trevas à luz, dizia a Igreja. Mas a ética ocidental da Reforma e de Rousseau declarara que o homem era por natureza bom, sendo desfigurado e degradado pelo meio ambiente, pelas instituições que o cercavam. Mas, que tolice! Fora o próprio homem e somente ele quem criara as instituições pelas quais se via agora aprisionado, as instituições que o torturavam e assassinavam. Fora ele quem transformara a Terra de um paraíso verdejante num inferno. Ele é que a povoara à sua semelhança. E agora...

Mas mesmo naquele momento de desespero, naquele tremendo horror em que o homem transformara seu planeta, em meio às trevas espessas, ainda restavam algumas pessoas de bem e caridosas, que faziam vinho e música, que oravam em silêncio, que amavam, que seriam capazes de morrer na defesa do que era sagrado. Quando o mundo inteiro permanecera quieto e silencioso diante do massacre dos húngaros, quando nenhum estadista erguera a sua voz num grito de revolta e raiva, alguns jovens soldados russos, em seus tanques, haviam-se recusado a disparar contra homens, mulheres e crianças inocentes nas ruas de Budapeste. E eram jovens que durante todas as suas vidas haviam aprendido apenas a ladainha de Lúcifer, que haviam conhecido apenas a fúria e a loucura! Contudo, aqueles poucos jovens haviam preferido o pelotão de fuzilamento a fazerem algo que consideravam monstruoso. Eu Os saúdo, disse o médico em sua alma. Por vocês, encontrarei um meio. Nem mesmo o inferno pôde prevalecer diante da súbita compaixão sagrada que sentiram. O inferno jamais poderá consumi-los em seu fogo. Nada sabendo sobre o bem, vocês o recriaram em seus corações. Eu os saúdo, meus bravos. Que Deus esteja com vocês!

A aeromoça trouxe o sobretudo do Dr. Kadimo. Era a mesma moça conscienciosa, preocupada agora porque o sobretudo era muito fino. A tempestade em Chicago estava terrível, com uma gigantesca nevasca e ventos enregelantes. Ela disse:

- A temperatura lá fora está perto de zero, Dr. Kadimo. Com este sobretudo tão leve...

- Vivi na Califórnia e num deserto durante muito tempo - disse o Dr. Kadimo, comovido com aquela solicitude espontânea que não visava a nenhuma recompensa monetária - Muito tempo mesmo... Todas as vezes anteriores em que visitei o Leste foi sempre no verão. Por favor, não se preocupe. Não sei realmente o que é o inverno, veja, eu trouxe também urna suéter, que acabei de vestir por baixo do paletó.

Ele quis dar-lhe um beijo no rosto, assim como beijara sua filha morta, Stella, que lhe fora arrebatada pela poliomielite com a mesma idade daquela moça. Stella sempre se preocupara com ele, depois que ficaram sozinhos, com a morte da mão. Ele não mais lamentava a morte de Stella. Ela morrera na juventude e na inocência, antes que o homem multiplicasse por mil a sua loucura. Morrera no dia anterior ao lançamento de bombas atômicas sobre cidades indefesas do Japão. Que Deus me perdoe! pensou o Dr. Kadimo, enquanto a aeromoça ajudava-o a vestir o sobretudo. Se puderdes, Senhor, perdoai-me! Se não puderdes, deixai-me então com a minha terrível culpa pelo que fiz. Mas fazei com que seja impossível acontecer novamente!

A neve e o vento se abateram sobre o Dr. Kadimo. Ele levava consigo uma pequena maleta. Baixou a cabeça e correu na direção do prédio do aeroporto. Multidões ansiosas percorriam os balcões das companhias aéreas sendo informados de que praticamente todos os vôos para o Leste e para o Oeste estavam cancelados. Ele seguiu até o balcão da companhia em que viera.

- Dr. Kadimo? - Indagou o atormentado funcionário.

- Sinto muito, mas o seu avião para Washington foi cancelado. Mas há um avião que parte dentro de meia hora e percorrerá a metade do caminho até Washington. Lá poderemos embarcá-lo em outro avião para Washington, embora só vá decolar amanhã de manhã. Mas há um bom hotel perto do aeroporto e o senhor pode passar a noite lá.

- Não é melhor eu ficar aqui em Chicago e pegar meu vôo marcado para Washington assim que houver teto?

- Se quiser, pode correr o risco. Mas os boletins meteorológicos dizem que a tempestade está apenas começando e deve piorar amanhã. Esta época do ano é sempre assim.

O Dr. Kadimo tremeu de frio. O rosto estava enregelado, sentia um Imenso cansaço. Talvez o melhor fosse ficar em Chicago e esperar, mesmo que por dois dias. Poderia ligar Para Washington pela manhã. Naquele momento queria apenas encontrar um quarto de hotel bem quente, mudar a roupa, comer alguma coisa, beber um vinho e deitar-se. Todo o seu corpo doía da necessidade de descansar.

- Acho...

Ele parou de falar bruscamente, aturdido. O funcionário fitou-o, em expectativa.

- Pois não?

O Dr. Kadimo sentia uma estranha insistência dentro de si, algo a lhe dizer que devia embarcar imediatamente no avião para , uma cidade que não conhecia. Mas teria que passar pelo menos mais uma hora dentro de outro avião. Sacudiu a cabeça.

- Sim? - murmurou o funcionário.

A Insistência era como uma voz a martelar-lhe nos ouvidos. Ele disse rapidamente:

- Acho que Irei até . Nunca estive lã

O funcionário assentiu em aprovação e providenciou Imediatamente a passagem. O Dr. Kadimo disse para si mesmo: Sou um idiota. Por que estou fazendo Isto? Se ficasse num hotel aqui, poderia descansar um pouco, pensar e tentar descobrir o que devo fazer. Agora ficarei completamente exausto. Ele pensou em levantar a mão e impedir que o funcionário tirasse a sua passagem, mas sentiu a mão entorpecida, sem forças.

Recordou-se então de uma coisa extraordinária que lhe acontecera. Ele tinha então doze anos, fora pouco antes de sua família trazê-lo para a América. Saíra para passear com o seu cachorro. Acamada de neve era espessa, mas ele tinha sapatos especiais e o cachorro adorava a neve. Haviam percorrido juntos a vastidão branca e silenciosa, ele assoviando, o cachorro latindo. A casa em que moravam ficava nos limites da cidadezinha, com os campos e as matas mais além. Caminhara rapidamente em direção das matas. Subitamente o cachorro parara e ganira.

- Vamos, companheiro, pare com isso - dissera ele.

Mas o cachorro continuara a ganir. Ele sacudira os ombros, decidido a continuar até a floresta, mesmo sem a companhia do cachorro. O cachorro, então, como que dominado por algo desconhecido, correra atrás deles, segurando-lhe o casaco, impedindo que continuasse. Os olhos brilhavam desesperados para o dono. De sua garganta saía um rosnado de agonia.

- Está certo - dissera Atino, impaciente. - Vamos Voltar. Está com frio, não é?

O cachorro era pequeno, mas decidido. Correra na frente dele, como que implorando que se apressasse. De mau humor, Atino resolvera correr. Ao chegarem diante da casa. ele olhara para trás, para a floresta. Um vulto cinzento, desvairado pela fome, estava parado como a morte à beira da floresta, as presas brilhando nitidamente, mesmo àquela distância. Era um lobo.

- Era de fato um lobo - disse em voz alta o Dr. Kadimo.

- Como, senhor? - Indagou o funcionário, surpreso.

- Não é nada.

Sou um homem supersticioso, pensou o Dr. Kadimo, enquanto seguia apressadamente para o portão. O que aquele atraso e o avião que ia pegar para tinham a ver com o lobo da sua infância? Certamente que o meu atraso e a ida por uma nova cidade de baldeação não possuem nenhuma razão significativa. Sou um cientista, lido com fatos e não com inspirações místicas. Além do mais, havia uma dúzia de companheiros seus a bordo do avião que viera de Los Angeles e que agora seguiriam também para a caminho de Washington. O que os atrasara, o que os fizera mudar de caminho? Nada, absolutamente nada. Aplacado o sangue antigo que lhe corria nas veias, não se fez mais nenhuma pergunta. Cochilou inquieto durante toda a viagem e teve que ser acordado na hora de desembarcar. O hotel era confortável, a comida boa, o vinho excelente. Deitou-se na cama, tentando pensar. Mas um calor agradável envolveu-o, uma nuvem dominou-lhe a mente e ele adormeceu imediatamente.

Acordou bastante descansado. Seu terrível problema, contudo, continuava sem solução. E a tempestade acompanhara-o até aquela cidade. O céu estava escuro, todo fechado, a neve batia contra as janelas, encobrindo-as, impelida por um vento furioso. Telefonou para o aeroporto. Todos os vôos estavam suspensos. Ficariam, porém, em contato permanente com ele. Foi assim que perdeu o avião para Washington.

Telefonou para o seu oficial de ligação no Pentágono.

- Deveria ter ficado em Chicago - disse o oficial, não conseguindo conter a irritação, apesar de todo o respeito. - A tempestade lá cessou de madrugada. Esperávamos o senhor aqui por volta de duas horas da tarde. E agora diz que está preso ai.

- Exatamente. O tempo por aqui está horrível. Sinto muito causar tantos transtornos a todos vocês.

Ele estava Inclusive irritado consigo mesmo.

- Talvez eu possa pegar um trem para Washington esta noite. Já andei indagando, mas não há uma só poltrona vaga. Washington anda muito movimentada, não é? Talvez haja alguns cancelamentos das reservas e estou na fila. Telefonarei imediatamente assim que tiver uma solução.

- E com tantas ressoas importantes à sua esperai - disse o oficial, em tom de lamento e censura ao mesmo tempo.

- Eu sei, eu sei... Farei o que for possível. Foi uma tolice minha ter vindo para cá, mas foi o conselho que me deram. Sinto muito.

Ele deveria ter ficado em Chicago e agora estaria a caminho de Washington. Não foram muito lisonjeiros os termos em que pensou no funcionário que o atendera no aeroporto de Chicago. De qualquer forma, porém, ainda não tinha uma solução para o seu problema. Se chegasse agora ao Pentágono, ainda estaria confuso e imerso em trevas. Pelo menos, teria algum tempo para pensar, em seu quarto acolhedor e tranqüilo.

O quarto também não respondeu à sua pergunta. Ele rezou, mas parecia haver um obstáculo qualquer em sua mente. Constatou subitamente, surpreso, que ha muito tempo não rezava e que há longos anos não ia à missa. Quando se confessara pela última vez? Antes da morte de Stella, antes que as bombas tivessem sido lançadas no Japão. Por que não se fora confessar? Porque se sentia culpado da morte, do terror, da ruína. No fundo do seu coração, ele sabia que era isso. Sabia também que fora miseravelmente traído. Conversara mais tarde com um certo general e descobrira tudo. Mas, embora pudesse assim sentir-se menos culpado, isso não acontecera. Fora traído, é verdade, mas isso não diminuía o seu sentimento de culpa. Por uma ou duas semanas pensara até que fosse perder o juízo, de desespero e raiva. Não adiantara os seus colegas terem-lhe assegurado que, mesmo sem ele, a coisa aconteceria do mesmo jeito. Ele participara daquilo, mesmo por uma traição.

- Se se tivesse retirado, eles o teriam chamado de traidor - dissera-lhe um dos colegas.

- É melhor ser chamado de traidor do que saber-se um assassino.

- Mas os japoneses eram nossos inimigos!

- Acha então que eles foram os únicos culpados? Não, a culpa pertence a todos nós.

O colega, um amigo íntimo, não tornara a falar no assunto. Ele também se sentia culpado, enojado, aterrorizado. O quarto estava quieto e aconchegante, a tempestade rugia lá fora. Tentou ler um livro que comprara, mas não conseguiu. Começou a vagar a esmo pelo quarto. Sempre pensara com precisão, com método. Um cientista não tinha outra alternativa, por natureza, pela profissão. Começou a pensar em si mesmo e em seus colegas. Numa determinada época da história do mundo, ainda recente, que alguns velhos haviam conhecido, os cientistas estavam acima dos governos. Trabalhavam em suas próprias versões das torres de marfim - laboratório e observatório. Possuíam um código muito simples até mesmo ingênuo: pesquisavam a verdade, sobre a natureza do Universo, sobre a natureza do homem. A política não lhes dizia respeito. Colocados diante do infinito, pouco sabiam e menos ainda se importavam com o finito. Mas, recentemente, os gênios haviam sido recruta do pelos governos, para pesquisarem não mais em busca da verdade, de Deus, da natureza humana - e sim em busca da destruição. Por que será que os cientistas do mundo inteiro haviam sucumbido tão facilmente? Armados com a verdade e com a visão interior, por que se haviam transformado em simples cortesãos? Por patriotismo? Ora, qualquer um daqueles bravos jovens russos que haviam sido arrancados de suas escolas e postos dentro de tanques era mais nobre que todos os modernos cientistas do mundo. Eles haviam enfrentado a verdade e subitamente se recusaram a continuar a ceder à opressão e à loucura. O mesmo não se podia dizer com relação aos cientistas, que haviam utilizado os seus talentos não para salvar o homem, para conquistar a verdade, para pesquisar em todos os Universos visíveis a Lei invisível que governava todas as coisas. Ter-se-iam prostituídos por um medo mortal? Não. Eles haviam, de repente, contraído a doença moderna, a doença fatal: o desejo de lisonjas, a sede de glória, ânsia pela importância mundana. Dinheiro não, as riquezas não os atraíam. Mas queriam a lisonja, a importância, a atenção imediata. Os desejos de homens fúteis...

Alguns, na busca dessas quinquilharias, dessas jóias de fantasia, miçangas sem valor, haviam-se tornado comunistas - não por convicção, é verdade, mas por puro egotismo. Se O ator emproado, o demagogo, conseguia atrair tremenda atenção ocupando amplos espaços nos jornais e merecendo a maior publicidade com seus balbucios ininteligíveis e Idiotas, por que o cientista deveria ficar à sua sombra? O cientista caíra na mais antiga das armadilhas e também a mais diabólica: a sede de poder. Ele não queria, na verdade, exercer o poder, bastava-lhe saber que o possuía. Ele queria também (e era patético pensar nisso!) o aplauso vulgar das multidões, as mesmas multidões que haviam assassinado seus profetas e seus reis, que haviam apedrejado a verdade até a morte nos velhos mercados, que eternamente armavam forcas e guilhotinas para dar vazão a seus ódios selvagens, que, em última análise, haviam assassinado o seu Salvador. Por esse poder oferecido, por esse aplauso vergonhoso, alguns cientistas, em toda parte, haviam-se tornado comunistas. Se algum homem jamais merecera mais piedade do que raiva era, certamente, o cientista. Merecia piedade por haver-se tornado um homem tolo e não continuar unicamente como um sacerdote no altar da verdade.

O próprio Dr. Kadimo conversara com um desses homens confusos e lastimáveis, na véspera do seu comparecimento a um comitê de investigações do Congresso:

- Mas por quê? Em nome de Deus, por quê?

O cientista fitara-o com uma expressão aturdida e repetira:

- Por quê? Por quê? Sinceramente, não sei. Eles... eles pareciam pessoas tão interessantes! E restam bem poucas pessoas interessantes no mundo, não acha? Bem menos do que em qualquer outra época da história do mundo. Eu realmente nada sabia sobre a ideologia deles. A verdade é que eles simplesmente me apreciavam!

Ele ficara vermelho, baixando os olhos.

- E por que deve preocupar-se se eles ou quaisquer outras pessoas nos apreciem ou não?

O pobre homem quase tivera um colapso.

- Eu não devia ter-me importado com isso, não é? Nunca nos importamos com isso antes. Mas um homem também gosta de honrarias, não? Afinal de contas, também somos humanos, não é?

- É este exatamente o problema - respondera o Dr. Kadimo sombriamente.

Como ele próprio conseguira escapar àquela doença? Antes de mais nada, porque tivera na infância e na juventude uma sólida formação espiritual. Depois porque pertencia a uma raça antiga e céptica, que jamais acreditara no que os homens diziam. Em terceiro lugar, porque sua pátria fora constantemente violada pela Rússia ao longo de muitos séculos. Comunismo! A desordem e a loucura do Ocidente! Era estranho como os russos, orientais, é que haviam contraído a doença. Será que pelo fato de hão a terem sofrido periodicamente, como ocorrera antes em toda a Europa, adquirira a imunidade, eles haviam-se tornado mais suscetíveis? Ora, até mesmo a América, em determinadas épocas de sua história, havia praticado o Comunismo. A doença do Ocidente, o crime do Ocidente. Pela miséria da Rússia agora, pensou o Dr. Kadimo, nós, do Ocidente, deveríamos declarar-nos culpados e pedir absolvição antes de morrermos.

Se a Rússia, enlouquecida por sua doença estrangeira, desencadeasse a morte universal no mundo, o Ocidente bem que o teria merecido. Para ser mais preciso, quem lançara a primeira bomba atômica sobre a humanidade? Qual, na verdade, fora a única nação que até agora o fizera? Meã máxima culpa, pensou o Dr. Kadimo. Não há virtude em nós, não há fé, não existe uma fortaleza verdadeira, não há justiça não há integridade. Não há honra. Há apenas o medo de coelhos - medo fraco trêmulo - de que venhamos a sofrer a mesma coisa que fizemos os outros sofrer.

Recordou-se subitamente de um fragmento de poema que aprendera em seu primeiro ano numa escola americana (seria de Kipling?): O tumulto e os gritos se esvaem, os reis e capitães partem; resta apenas o teu antigo sacrifício feio, um coração contrito e humilde. senhor Deus do Universo, estai conosco, e que esqueçamos - oh, que esqueçamos!

O vento de inverno sacudiu a janela do quarto. Ouvindo-o, o Dr. Kadimo recordou-se do violino do pai. Que esqueçamos - oh, que esqueçamos!

Sua inquietação era cada vez mais intensa. Era como se ele estivesse desperdiçando seu tempo quando uma gigantesca tarefa estava à sua espera, como se um homem da maior importância estivesse parado do lado de fora da porta. Mas ele não sabia o que fazer. Abriu uma gaveta da cômoda vazia. Encontrou uma Bíblia. Pegou-a e abriu-a. Suas páginas fl.o haviam sido jamais violadas pelos que haviam dormido naquele quarto antes dele. Atino recordou-Se então de que era uma superstição (e seria mesmo?) a Idéia de que qualquer homem com um problema, tendo fé, podia abrir a Bíblia ao acaso e encontraria algo pertinente de utilização imediata. Sorrindo debilmente de si mesmo, segurou a Bíblia e deixou que ela se abrisse por si mesma.

O começo das aflições... Pois então haverá grandes atribulações, como nunca se viram do inicio do mundo até agora. E nunca mais se verão. E a menos que esses dias sejam abreviados, nenhuma criatura viva será salva - pois as nações se levantarão contra as nações, os remos contra os remos; e haverá pestes e fomes e haverá terremotos em vários lugares - no começo das aflições.

Atino Kadimo estremeceu. A desolação profetizada por Daniel... Estava agora às portas do mundo, era a desolação provocada pelos crimes do próprio homem.

Mas ainda restavam os homens que resistiam desesperadamente...

Delicadamente ele repôs a Bíblia no lugar em que a encontrara. Recebera a resposta que procurava. Fora-lhe dito, porém, apenas o que já sabia. A outra resposta, no entanto, ainda não fora formulada: O que deveria fazer? Os dedos compridos se arrastaram distraidamente pelo tampo da cômoda e esbarraram num pequeno folheto branco. Levantou-o ainda distraído, O Confessor.

Ligeiramente intrigado, abriu o folheto, depois de contemplar aprovadoramente a fotografia do prédio branco de mármore que havia na capa.

Se você está em dificuldades e não sabe o que fazer com o seu grande problema, então está convidado a vir até aqui para contá-lo ao Confessor. Milhares de pessoas já estiveram aqui nos últimos anos, saindo fortalecidas e com esperanças. O Confessor jamais traiu uma confidência. Nunca o faz, jamais o fará.

Os cientistas tinham que ser discretos e ultra-secretos no mundo atual. Atino recuou instintivamente, mas logo riu. Ninguém sabia que ele estava na cidade... Espere um pouco: está realmente pensando em ir falar com o Confessor? Isso é um absurdo! Ele era um cientista com um terrível segredo que só mais sete pessoas, além dele, conheciam, no mundo Inteiro. Não era absolutamente uma jovem com um problema sentimental, um trabalhador desempregado, uma viúva anônima, um funcionário assoberbado pelos impostos. Ele era um cientista a caminho do Pentágono, em Washington.

Você é apenas um homem, disse-lhe uma voz. A voz soou tão nítida que ele estremeceu violentamente e correu os olhos pelo quarto.

O dia estava rapidamente escurecendo. O vento furioso batia contra as janelas a neve aumentara. Mas havia silêncio dentro daquele quarto, silêncio demais!

Quem era o Confessor? O Dr. Kadimo, ainda forçando-se a sorrir, tornara a ler o folheto, que o informou de que ninguém sabia quem era o homem. Alguns achavam que era um psiquiatra, um clínico-geral, um advogado, um professor... Ninguém jamais contara quem ele era.

Atino largou o folheto automaticamente. Mas a sensação de urgência era muito forte, como se uma força poderosa o impelisse. Era como o magnetismo, a força da gravidade. O coração batia-lhe rapidamente. Podia ouvir seu martelar nos pulsos e nas têmporas. Estava começando a sentir uma angustia física. O que significava tudo aquilo? Tornou a olhar para o folheto e não conseguiu mais desviar os olhos. Parecia estar sufocando.

Superstição. E ninguém sabia quem era o homem! Podia ser até um comunista, à espreita, secretamente, ouvindo. O que diria o Pentágono de tamanha indiscrição? O que diriam os seus colegas cientistas? Ele poderia ser denunciado, levado à execração pública - como traidor. Poderia até ser chamado de comunista - se houvesse um comunista naquele prédio e fizesse uso do que ele disse.

Ele podia ser discreto. Mas por que estou sequer considerando a possibilidade de ir a esse lugar sentimental, melodramático, sem nenhum sentido? Pensava ter-me tornado um americano cem por cento, mas vejo que a hereditariedade e o sangue ainda se manifestam em mim. O lobo na floresta. A tempestade em Chicago que o fizera vir até ali, apenas para um novo atraso e outra tempestade. Agora estava entregue a si mesmo, absolutamente só, à deriva, ouvindo apenas os seus pensamentos assustadores. E o que era pior: mesmo com todo o silêncio, ainda não resolvera o seu problema.

Iria provar que tudo aquilo era um absurdo. Ligou para o aeroporto. Todos os vôos estavam suspensos, indefinidamente. Ligou para a estação ferroviária. Desculpe, mas todas as reservas foram confirmadas. Ligou para a estação rodoviária; mesmo que saísse um ônibus à meia-noite, embarcaria nele. Não havia mais lugar algum para os próximos dois dias. Estava entregue a si mesmo - e que coisa mais pavorosa podia acontecer a Um homem desesperado? Num último esforço, a última tentativa, ligou para as duas companhias de aluguel de carros. Sinto muito, mas não temos nenhum carro disponível até amanhã de manhã.

Ele podia ir a pé, é claro, disse para si mesmo jocosamente. Eram apenas trezentos quilômetros!

O Confessor. Atino correu os olhos pelo quarto. A inquietação era agora febril, a sensação de premência ainda mais Intensa. Descobriu-se vestindo o sobretudo. É claro que não diria o seu nome. Perigo! Perigo! Podia ocultar o rosto com o lenço. Perigo!

O cientista que havia nele, disse para si mesmo, queria investigar aquele absurdo.

A desolação. O lobo na floresta. Podia ver o lobo nitidamente, gigantesco, montado no mundo, com presas vorazes. a loucura nos olhos. Atino saiu correndo do quarto, levando consigo a maleta que não deveria largar por um momento sequer. Foi detido no saguão. Disse Impaciente:

- Sou o Dr. Atino Kadimo. Minha maleta? Contém alguns documentos... Se quiser posso pagar agora, mas vou voltar. Aqui estão minhas credenciais. Muito obrigado. Não, não, não precisa desculpar-se. Eu compreendo perfeitamente.

O gerente em pessoa, atormentado pelos remorsos, saiu para a tempestade e foi buscar um táxi para ele. O interior do carro estava bastante agradável, imerso na escuridão.

- Quer r até o prédio do velho John Godtrey, não é? - disse o motorista.

- Vou, sim. É um lugar interessante?

- Acho que é. Quer saber de uma coisa? Eu mesmo estive lá dentro dois anos atrás. Sou casado e tenho um casal de filhos. Sempre gostei muito de beber, mas de repente perdi completamente o controle. Estava quase sempre bêbado e por duas vezes fui levado a julgamento por não assistir devidamente a família. Fui então procurar o Confessor. contei-lhe tudo a meu respeito. Depois disso, nunca mais bebi.

- Ele deu-lhe então um excelente conselho?

O motorista ficou em silêncio por algum tempo.

- Agora que penso no caso, não me lembro se ele chegou a falar-me ou não. Talvez tenha falado, talvez não. Lá tem um botão, sabe? Pode-se abrir a cortina, se assim se desejar. Mas eu não quis. Sentia-me um pouco envergonhado depois de tudo o que contara. Tudo o que sei é que desde que fui até lá, nunca mais pus na boca uma gota sequer de álcool E também não faço nenhuma questão, pois minha vida agora está muito bem.

O Dr. Kadimo ficou esperando pela pergunta Inevitável:

Também está com um problema? Mas o motorista não a lis, dizendo em vez disso:

- Levo uma porção de gente até lá. A maioria é gente de fora da cidade. Só hoje levei até lá cinco pessoas que estavam hospedadas lá no seu hotel.

- Há problemas em toda parte - comentou o Dr. Kadimo, uma frase convencional e cautelosa.

- Olhe, seu moço, está com toda a razão! É um negócio terrível todas essas bombas atômicas e de hidrogênio esperando para explodir o mundo. Não que o mundo não o mereça, é verdade. Algumas vezes fico pensando nos caras que imaginaram essas bombas, os cientistas. Quando eu era garoto gostava de ver os filmes de um cientista louco de arrepiar os cabelos. Mas os caras dos filmes não passariam de professores de jardim de infância comparados com os cientistas de hoje. Eu gostaria de arrebentar, todos eles se os encontrasse. Conhece algum cientista?

- Acho que já encontrei alguns - respondeu Atino debilmente, sentindo-se doente. - Na escola. Eram os meus professores.

- Ainda bem que eu não fui para a faculdade, pois poderia ter arrumado idéias de explodir os outros. De vez em quando penso no futuro dos meus filhos. São bons garotos, não têm nada dessa história de delinqüência juvenil. Vão à igreja pelo menos três vezes por semana. Regina diz que quer ser freira. Veremos. Jimmie diz que quer ser professor. Sabe, senhor, quando penso nos meus garotos...

Ali estava um dos homens pelos quais ainda se devia lutar. Não fazia vinhos, não era um poeta, filósofo, músico ou artista - era apenas um pai. Defendia um dos últimos postos da humanidade sadia - talvez o mais desesperado.

- Bom, chegamos. Vai ter que subir a pé por aquele caminho. Está vendo o prédio lá em cima?

Em tom de admiração, ele acrescentou:

- Não importa que caia quase um metro de neve, os Caminhos até lá em cima estão sempre limpos, esperando as pessoas.

Eram apenas três horas da tarde, mas o céu estava muito escuro. Ao dar o troco, o motorista comentou:

- Engraçado... Esta é a pior tempestade que já tivemos aqui nos últimos vinte e cinco anos. Pelo menos é o que o rádio disse. Eu pessoalmente nunca vi nada parecido.

- Nunca houve antes uma tempestade como essa? - Insistiu Atino.

- Não que eu me lembre. Acho que é inclusive a primeira vez que os aviões ficam presos ao solo nesta cidade.

Superstição. Segurando firmemente a maleta, Atino saiu do carro e começou a subir pelo caminho. Olhou para o céu distante e sentiu um floco de neve bater em seu rosto. Aqui’o lembrava-o de sua terra natal. Viu o Padre Roznlak novamente. Um cheiro... de violência e terror. Como será que o Padre Rozniak morrera na fúria da Primeira Guerra Mundial? De fome? Uma baioneta? Uma explosão? Ele sabia que tudo isso estava chegando e não sentira medo por si. Receara apenas pela sua gente. Ele também guarnecera um posto avançado da esperança, enfrentando o lobo. Ele não fugira. Os homens de Deus nunca fogem em lugar nenhum.

O Cardeal Mindszenty... Ele não fugira. Os pastores e os rabinos também ficavam para confortar sua gente, mesmo quando esta estava disposta a arriscar tudo para ajudá-lo a fugir. Eles sempre ficavam. Um pastor jamais abandonara o seu rebanho - ao lobo.

Mas os cientistas evocaram o lobo. Mea máxima culpa.

A sala de espera era aconchegante e tranqüila. Atino era a única pessoa ali dentro. Deixou a maleta no chão por um momento e olhou ao redor, com prazer. Lembrou-se então das advertências que tão frequentemente lhe faziam. Examinou meticulosamente todos os móveis, a parte de baixo dos tampos das mesas. Levantou os tapetes em vários lugares, esquadrinhou as paredes. Bateu em toda parte, à procura de um som oco. Mas por que haveria alguém de colocar microfones naquele lugar, ao qual só vinham os obscuros e desesperados? Algumas vezes era difícil superar o hábito. Sentiu-se um pouco tolo.

Uma sineta tocou. Ele estremeceu e olhou para a porta de carvalho maciço. Pegou a maleta e passou para a outra sala, de mármore branco, uma cortina azul, uma cadeira também de mármore.

Olhou desconfiado para a cortina. Aproximou-se dela e tentou abri-la. Ela não se mexeu. Olhou para o botão e leu a inscrição em cima. Apertou o botão.. A cortina não se mexeu. Aquilo tudo era muito misterioso, muito melodramático... Sentou-se na cadeira. Tirou o lenço e escondeu o rosto. Lembrou-se então de que, se alguém quisera vê-lo. Já tivera bastante tempo para fazê-lo. Tornou a guardar o lenço.

Fitou a cortina. Recordou-se de uma frase que lera no folheto: Todo o tempo do mundo. Todo o tempo... Ele disse para si mesmo: Só que agora resta muito pouco tempo.

Recostou-se na cadeira e esperou. Ali dentro não ouvia o barulho da tempestade, o ruido do tráfego, vozes, portas se abrindo e fechando. Se o homem atrás da cortina tinha todo o tempo do mundo, ele também tinha. Deixaria que o tempo passasse e veria quem ficaria impaciente primeiro. Sorriu interiormente, satisfeito por ter vindo. O sacerdote atrás daquela cortina descobriria um homem de Infinita paciência. Mas será que havia alguém ali?

Atino inclinou o corpo para a frente, a cabeça um pouco de lado. Ficou escutando por longo tempo. Não havia o menor ruído, mas ele tinha a certeza absoluta de que havia alguém atrás da cortina, escutando. O Confessor...

Subitamente, Atino disse:

- Sou de uma velha terra.

Ficou esperando, irritado consigo mesmo por ter falado. Esperou e esperou... De repente empertigou-se na cadeira. Será que ouvira mesmo a resposta eu também?

Atino levantou-se e examinou as paredes de mármore. De onde será que vinha aquela luz? Era muito Interessante... Falou rapidamente para si mesmo, pois seu coração disparara e precisava controlar-se. Passou as mãos pelas paredes. Eram sólidas, nada podia ser escondido ali. Mesmo assim estava assustado.

- Ó homem de pouca fé! De que tem medo?

Atino virou-se bruscamente, enfrentando a cortina.

- Eu o ouvi falar! Quem é o senhor?

Ele tornou a sentar-se. A sala estava em silêncio. Acho que estou enlouquecendo, pensou Atino. Não ouvi voz alguma! Ouvi apenas algo dentro de mim mesmo. Ou será que não?

- Há uma terrível tempestade lá fora - disse ele ao acaso, distraído.

- Tem razão. Uma tempestade terrível. E está apenas Começando...

- Apenas começando... - assentiu Atino.

Tornou a levantar-se, bruscamente, tremendo. Ouvira novamente uma voz ou era apenas a sua imaginação? Tentou, recordar a voz. Era forte, cheia de ecos, triste... Não, ele não ouvira a voz! Eram apenas os seus próprios pensamentos. No entanto...

Lembrou-se de outro poema. (Era estranho o fato de estar-se lembrando de tantos poemas naquele dia!) Seria de Francis Thompson? A Besta do Paraíso.

(Levem os campos de vossa colheita ser adubados com a morte putrefacta?)

Não, os Vossos, Senhor, disse Atino para si mesmo. Apenas os nossos, apenas os nossos... Nós destruímos os Vossos campos de colheita. Nós os adubamos com a morte putrefacta, vamos adubá-los novamente.

- É por isso que eu vim até aqui - disse ele para a cortina. - Preciso ter uma resposta. Diga-me o que devo fazer.

O silêncio esperou.

- Nunca odiei ninguém - continuou Atino. - Eu... nós... descobrimos uma coisa. Como... Como fracionar e fundir o átomo, continuou ele em seus pensamentos. Era uma descoberta maravilhosa. Descobrimos o próprio segredo de Deus, um dos seus muitos segredos. Ou será que Ele é quem nos dera aquele segredo? Por quê? Para o nosso conhecimento, para o nosso amor, para o nosso uso, para a nossa revelação?

- Exatamente - disse uma voz profunda e ressonante.

- Como? Falou alguma coisa? Ou será que eu estou ficando louco?

Correu os olhos pela sala, desesperado. Ouviu o eco apenas das suas próprias palavras. Estava suando profusamente.

- Sou um homem desesperado - disse sem a menor determinação.

A sala esperou, a luz ficou mais brilhante, como que a encorajá-lo.

- Fui criado num ambiente religioso disse Atino. - Fui educado no temor de Deus. Mas isso foi em nossa velha terra. Bem poucos hoje, se é que alguém, ainda sentem o temor de Deus.

Silêncio.

- Eu amo a vida, toda a vida que existe. E amo porque foi Deus quem a criou. Eles riem de mim. Mas eu nunca desejei destruir a vida. Sou até vegetariano. Todo mundo sabe que Deus deu os animais deste mundo ao homem, para caçar e comer. Mesmo assim, eu sou incapaz de destruir uma vida.

Ele parou de falar bruscamente, logo acrescentando amargurado:

- Mas eu destruí a vida. Não pretendia fazê-lo. Eles tiraram o que nós lhe oferecêramos, para tornar a vida mais gloriosa, utilizando o conhecimento para a morte. Uma morte inútil, perversa. Um general disse-me que não era necessário. Fomos traídos. Alguma vez já foi traído?

- Já - disse a voz.

Atino fitou a cortina.

- Eu o ouvi responder? Ou terei imaginado?

Silêncio.

- O grande mandamento - disse Atino. - Não matarás.

Ele enterrou o rosto nas mãos.

- Não matarás... É este o meu problema. Eu não sei o que fazer! Se eu der... a eles o que nós oito sabemos, então haverá mais terror, mais morte. Eles certamente nos dirão: Mas se não tivermos isso, o inimigo terá primeiro e todos nós morreremos. Se eu disser.. . se nós dissermos.. que isso não deve ser utilizado para a morte, então seremos execrados. Seremos chamados de traidores. Mas traidores de quê? Do código de matar pelo simples prazer de matar? Ó Deus, eu não sou um assassino! Ajudai-me! Se não puderdes ajudar-me, então o mundo irá morrer. Eles já souberam alguma coisa do que estamos fazendo e do que sabemos. É por isso que estou.viajando. Se não me ajudardes, meu Deus, Vosso lindo mundo, o Vosso jardim, será destruído. Meus colegas conferiram-me plena autoridade para qualquer decisão em nome deles. Não sei por que o fizeram, não sei por que me conferiram a autoridade para falar em nome deles.

Ele olhou para a cortina, com uma expressão atormentada.

- Sabia que entre Marte e Júpiter existiu outrora um planeta como o nosso? Mas poderia existir um planeta como o nosso sem vida em sua superfície? Deus jamais criou algo sem vida, não poderia fazê-lo, pois Ele é a própria essência da vida. Mas esse planeta explodiu? Ou teria sido explodido? Será que lá existiam também homens como nós, com morte, ódio, mal e guerra em seus negros corações? Sei que os astrônomos dizem que a vida seria muito fria em qualquer planeta entre Marte e Júpiter. A atmosfera talvez fosse diferente da nossa. Mas em toda parte a vida tem que ser exatamente igual à nossa? O metano das luas de Saturno talvez seja o sopro de vida dos habitantes dessas luas e de Saturno. O sopro da vida não é apenas o nosso oxigênio. Somos provincianos demais e ainda insistimos em imaginar a vida em toda parte à nossa pobre semelhança. O que os nossos pulmões podem absorver deve ser a única coisa que todos os pulmões podem absorver! Achamos que o calor que há no nosso mundo é exatamente o calor de que todo ser vivo deve precisar. Mas isso é um absurdo, uma estupidez rematada! Por que temos que pensar que em toda parte tudo deva ser. como precisamos, como queremos? Deve tudo no Universo ser modelado, aquecido, esfriado, arrumado ou temperado de acordo com as necessidades do homem? Será que não existem outros, com outras necessidades, ordenadas por Deus? Deus estabeleceu as fronteiras do mundo. Talvez Ele tencione, fazendo outras atmosferas e outros sistemas termo- dinâmicos, impedir que . o mal se dissemine de um mundo para outro, bloquear o avanço do homem. Bloquear a morte que o homem sempre leva consigo, limitando-o à sua própria prisão.

Atino inclinou-se na direção da cortina, torcendo as mãos, esquecendo a cautela, esquecendo tudo, lembrando-se apenas de que era um homem e tinha alma.

- O caminho entre Marte e Júpiter está repleto de gigantescos destroços, de fragmentos. Ali existia um mundo. Será que foram os seus próprios habitantes que o destruíram?

Teve o silêncio como resposta.

- E a mesma coisa nós estamos prestes a fazer, destruindo também o nosso mundo. Ajude-me, sou apenas um homem e tenho medo. Não nasci neste país e por isso estou sob suspeita. De quem? Dos mesmos provincianos que não querem compreender, dos que fingem não compreender. E sempre por motivos vis e mesquinhos!

Ele olhou para a cortina, tenso.

- Será que o bem existe apenas num determinado continente, num determinado país? Será que todos os outros países do mundo estão sempre à margem? Quem deu a um determinado país a liderança do mundo? Deus não foi. Apenas o egoísmo, o orgulho, a loucura, a estupidez, a mesquinhez, o ódio contra outro país. E não somos todos homens os filhos de Deus? Onde está a liderança - a não ser no próprio Deus? Mas não se pode mencionar Deus atualmente! Quem se atreve a fazê-lo é saudado por sorrisos zombeteiros, piscadelas maliciosas, olhares de esgelha. Dizem até que se está mentalmente doente! Confiamos em Deus. É isto o que está escrito em nossas moedas. Nós, na América, fingimos acreditar nisso. Mas não o fazemos. Preferimos confiar em nossas armas, tratados, advertências, manobras escusas - da mesma forma que os nossos adversários. É a mesma história de sempre, a história que sempre resulta em morte. Nunca um homem se levantou num campo de batalha e gritou: Não matarás! Jamais aconteceu, em toda a história do mundo. Matar é a nossa razão de viver. Somos todos culpados, em toda parte. Ninguém é bom - salvo Deus!

Ele cruzou as mãos fervorosamente, estendendo-as na direção da cortina.

- E a ONU? Ó Deus, quando foi que eles se preocuparam em impedir assassinatos? O que eles fizeram para proporcionar justiça, liberdade e amor, à sombra de Deus?

É um congresso de brigas, de conflito de interesses, de traições veladas dos homens de boa vontade. A ONU sempre se calou diante do mal. Quando se lhe apresenta um problema importante, prefere contar os gatos que existem no mundo! Eles nem ao menos permitem que o Vosso nome seja mencionado lá, pois pode ofender alguém!

Ele levantou-se, tremendo violentamente, abalado. Aproximou-se da cortina.

- Está me ouvindo? Vai deixar que eu o veja? Vai responder-me?

Ele apertou o botão e a cortina se abriu.

Viu uma alcova grande, com mais de quatro metros de altura, mais de dois metros de largura, curva, cheia de luz. Dentro da alcova havia uma cruz, imensa. Na cruz estava pregado o Filho de. Deus, o Filho do homem, o verdadeiro Deus, o verdadeiro homem, talhado em marfim ou na melhor madeira branca que existia. Maior do que o tamanho natural, parecia constituído de carne viva que pulsava, delicadamente pintado, imponente.

A imagem não era do Cristo morto, mas do Cristo vivo. A cabeça estava levantada, estendida para a frente na atitude de quem ouve, sofrendo mas ouvindo, agoniado mas atento. Os olhos ansiosos estavam fixos em Atino, escutando. A coroa de espinhos cingia a testa heróica e gotas de sangue por ela escorriam. As mãos sangravam, também a parte esquerda do corpo, os pés retorcidos.

Os olhos eram ardentes, ansiosos, generosos, apaixonados, olhos que sabiam de tudo, olhos que tudo viam, olhos que tudo compreendiam! O Sacrifício, oferecido por Si mesmo, pelo homem. O sacrifício pelo homem invariavelmente mau, conspirando, tramando, enganando, de coração sombrio. O homem assassino. O homem ladrão. O homem traidor. O homem destruidor. A piedade e a misericórdia irradiavam-se daquelas feições fortes, o perdão era visível. A piedade, a misericórdia e o perdão abrangiam não apenas o homem, mas todos os mundos que Ele criara. Todos os mundos que Ele criaria.

A luz arrancou reflexos dos músculos da coxa e do braço estendido, da caixa torácica, do peito, cio queixo, da perna estendida, do pé sangrando, de tal forma que não era mais uma simples imagem que ali estava, mas a própria Vida, sofrendo, amando, eterna.

- Eu devia ter imaginado! - gritou Atino. - O Confessor... Nunca parastes de ouvir. Ouvireis pela eternidade afora. Ó Deus!

Ele sentia-se fraco, quase desmaiando. Deixou-se cair ao lado da cruz e inclinou a cabeça para os pés. Sentiu-se imediatamente dominado por uma tremenda sensação de proteção, de conforto, amor, ternura, compreensão. Ele sabia que não precisaria falar em voz alta, que todos os seus pensamentos seriam ouvidos. A cruz e a Imagem pairavam sobre ele, uma Fortaleza, um Portão que o próprio inferno não poderia forçar.

Descobrimos uma coisa, disse Atino em sua mente, comprimindo o rosto contra os pés. Durante as experiências secretas que realizamos em nossos laboratórios, descobrimos como aproveitar o Sol, como canalizar e domar a sua incrível energia, a sua tremenda força. Nem mesmo estávamos à procura disso, mas em poucas horas conseguimo-lo. Ficamos imóveis por algum tempo, aterrados, olhando uns para os outros. Tínhamos o poder do Sol em nossas mãos! Meus colegas e eu havíamo-lo conseguido, surpreendentemente!

Ele levantou os olhos para a cabeça. Teve a impressão de que se inclinara um pouco, para fitá-lo. Pôde ver os olhos grandes e vivos, escutando, incrivelmente brilhantes.

- Sabíamos o que isso significava. Diante do que havíamos descoberto, as bombas atômicas, de hidrogênio e cobalto nada significavam. Não passavam de fogos de artifício! Descobriram o segredo do Universo sideral! Foste Vós quem nos destes?

Os olhos pareceram fitá-lo em assentimento.

Eu sei agora, disse Atino, em sua mente. Vós no-lo destes. É tão simples, afinal de contas, como simples é tudo o que Vós criastes. Somente o homem é que complicara tudo, tornara tudo obtuso e complexo, um labirinto, um caminho tortuoso; bem de acordo com a sua natureza inclinada ao mal. Descobríramos o poder dos mundos. Mais uma vez, como já antes acontecera, estávamos apenas um pouco abaixo dos anjos. Não tenho palavras para descrever o júbilo que sentimos e logo depois o nosso terror, diante da completa compreensão do que aquilo significava. O que faríamos com aquela coisa terrível, aquele conhecimento assombroso? Não tínhamos a menor idéia. Deveríamos entregá-lo ao mundo? Mesmo lembrando-nos do que já se fizera antes com outros conhecimentos? Não seríamos traidores para com Deus, para com os nossos semelhantes, se divulgássemos a descoberta? Fechamos as portas ao mundo exterior por muitos dias e noites, semanas seguidas. Quase não dormíamos nem comíamos, ficávamos sussurrando o tempo inteiro, todos juntos, os olhos suplicando uns aos outros, indagando, indagando...

Washington sabia que estávamos trabalhando em algo importante, mas não tinha a menor idéia do que fosse. Será que inadvertidamente deixamos escapar algum indício? Será que algum de nós falou? Mas talvez nossas expressões nos tenham traído aos nossos observadores, talvez as portas fechadas tivessem alertado alguém, o nosso silêncio fosse suspeito...

Descobríramos como destruir o mundo numa fração de segundo, como lançar seus gigantescos fragmentos no espaço, como acabar definitivamente com o homem e todas as suas obras.

Ou podíamos controlar o poder à vontade, dirigindo-o contra qualquer outra nação, enquanto nós mesmos ficávamos a salvo. Descobrimos que podíamos criar um campo de força invisível para nos proteger. Qualquer nação que ficasse de posse do segredo poderia controlar a humanidade. Aquilo nos encheu de terror!

Ele ergueu o rosto para os olhos que o fitavam. Havia uma advertência terrível naqueles olhos, seria talvez o prenúncio da ira divina?

Atino não mais estava pensando em superstição. Não sentia que a Imagem na cruz fosse apenas de madeira ou marfim. Parecia abranger todos os Universos, guardando-os, protegendo-os. Uma Força maior que a de. todas as constelações, estrelas e galáxias.

- Oh, meu Deus! - murmurou ele, baixando a cabeça para beijar os pés.

Depois de algum tempo, continuou a falar em sua mente.

Uma nação que tenha tal poder irá dominar o mundo, pode fazer com que o resto dos povos se transforme em escravos lamurientos, pode profanar o Vosso mundo, pode destruir tudo o que fizestes e nos destes. Pode tirar dos Vossos filhos a liberdade que lhes destes e o desenvolvimento com que os dotastes.

Não confiamos em ninguém. Será a América mais virtuosa que as outras nações? Não. Não podemos confiar em nenhum governo, pois são constituídos por homens - e os homens são maus por natureza.

Mas sabemos também que a nossa descoberta de Vossa maravilha, o Vosso grande segredo, pode transformar a Terra novamente num paraíso, alegre, sem fome, sem falta de abrigos, sem medo, sem dor, sem ódio. Pode abolir o trabalho e a doença. Pode abrir os Vossos Universos ao homem. Pode finalmente revelar a Vossa face, a Vossa face mais sagrada.

Atino estava chorando agora, como uma criança. A luz parecia envolvê-lo com maior intensidade, como se fosse o próprio Sol. Aqueceu-o, tirando-lhe o frio que sentia, acalmou-lhe o coração.

Não podemos confiar no homem - continuou ele. Não podemos confiar em que nenhum governo vá usar esse poder em benefício de todos os homens. De jeito nenhum! 0 que devo então dizer-lhes quando chegar a Washington? Dizei-me o que devo dizer! Por Vós, pelos meus semelhantes. O que devo dizer?

Ele ficou imóvel por um longo tempo, escutando fitando o rosto esculpido que parecia ser de carne de verdade, ao mesmo tempo pálido e corado, coroado de agonia, ouvindo e ao mesmo tempo falando silenciosamente, com uma voz sonora que lembrava o estrondo do trovão.

Atino então gritou para si mesmo: Mas é claro! Isso mesmo! .Ê exatamente isso o que vou dizer aos homens de Washington que mandaram chamar-me. Pensei a princípio em nada dizer-lhes, pelo bem dos poucos homens que ainda lutam desesperadamente nos últimos bastiões de esperança. Ele próprio estava ouvindo também, prendendo a respiração e soltando-a bruscamente a intervalos, assentindo, levantando o rosto ansiosamente, entrelaçando as mãos fervorosamente. Ele estava ouvindo!

Maravilhoso! É tão simples e fácil com a Vossa ajuda. É tudo muito simples, como acabastes de dizer-me e explicar-me. Como é simples! Se eles não concordarem, então nada terão. O mundo inteiro pode então chamar-nos de traidores e perseguir-nos, que de nada adiantará. O que não podemos é trair-Vos e ao Vosso mundo. Uma idéia muito simples... Direi a Washington que eles podem ter o segredo - desde que o segredo seja revelado também, simultaneamente, a todas as nações do mundo. Só lhes direi o que nós descobrimos quando permitirem que eu revele o segredo na ONU, que eu mostre ao mundo inteiro o aparelho tão simples que acabais de me mostrar. Só falarei depois que eles concordarem em montar o aparelho. É tão simples que fico imaginando por que ninguém pensou nisso antes. Mas sei agora que só Vós poderíeis tê-lo imaginado... Os aparelhos serão instalados nos oceanos Pacífico e Atlântico, no Pólo Sul e no Pólo Norte. É tudo tão simples que esta noite mesmo armarei todo o esquema. Os aparelhos instalados nesses quatro pontos serão guardados por navios de todas as nações, a fim de que ninguém possa adulterá-los. Mesmo mergulhados em águas profundas ainda continuarão a ser bastante sensíveis. Se o poder que então lhes darei for mal utilizado, sendo colocado numa ogiva e testado secretamente, os mecanismos instalados nesses quatro lugares farão detonar todos os arsenais do mundo, farão explodir todas as bombas atômicas e de hidrogênio, até mesmo o novo poder de controlar a energia do Sol. Não importa onde as bombas estejam escondidas, as ondas dos mecanismos irão encontrá-las, quer estejam em terra firme, no mar, numa Ilha. Todas as bombas serão detonadas, o mundo inteiro perecerá numa fração de segundo. Não haverá vencedores nem vencidos. Restarão apenas fragmentos flutuando entre Vênus e,Marte no lugar que outrora fora a nossa órbita e a nossa vida. Haverá a morte Universal do homem, não haverá mais o mundo. Vida - ou morte. O homem já teve antes essa opção e preferiu a morte. Será que irá fazer a mesma coisa novamente? Apenas Vós podeis sabê-lo, apenas Vós, mais ninguém. Irá o homem escolher a oportunidade de ver a Vossa face ou preferirá morrer Instantaneamente? Apenas Vós podeis saber e em Vós eu sinto a maior confiança. Sim, sim! Já idealizei o mecanismo com toda a clareza. O que será que podem fazer comigo? Temos sido muito cuidadosos, meus colegas e eu. Somos oito ao todo: Cada um de nós decorou apenas um oitavo da fórmula, um oitavo dos cálculos. É que não confiamos nem mesmo uns nos outros, para o caso de virmos a ser pressionados. Não há registros escritos, absolutamente nada. Destruímos tudo depois que cada um memorizou a sua parte Quando eu sair daqui, telefonarei imediatamente para o meu melhor amigo. Mas não do hotel. Direi a ele que todos os nossos colegas devem partir imediatamente para outros países, a fim de que não sejamos apanhados juntos e forçados a falar. Nossos passaportes estão prontos, podemos correr. Não pela nossa segurança, mas pela segurança do mundo, pelos homens que lutam desesperadamente nos postos avançados para salvar o que ainda resta. Somente depois disso tudo é que eu irei para Washington. Bendita tempestade! Ela protegeu inclusive os que descobriram a força capaz de destruir o mundo, pois eles, os destruidores, também são humanos.

Atino Kadimo levantou-se, revigorado, forte, sentindo-se jovem e decidido. Tocou gentilmente uma das chagas.

- Sei agora que me trouxestes até aqui - disse ele.

Abaixou-se e beijou os pés que sangravam.

- Trouxestes-me até aqui para que o homem possa ser protegido inclusive de si mesmo, do lobo que está à espreita na beira da floresta.

Ele fitou os olhos grandes e profundos, que pareciam sorrir-lhe.

- Viestes para salvar o mundo, meu Deus. Viestes outra vez, como a Salvação do mundo. Como é grande o Vosso amor! Trouxestes-me até aqui, através da tempestade, para que eu possa repetir ao mundo as palavras de Vossa Salvação pela última e derradeira vez.

 

                                                                                            Taylor Caldwell

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades