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O CONTÍNUO DE GERNSBACK / William Gibson
O CONTÍNUO DE GERNSBACK / William Gibson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Misericordiosamente, tudo começou a apagar-se, a tornar-se um episódio. Quando ainda me chegam essas estranhas visões, são periféricas; simples fragmentos cromados de um doutor louco, confinados na extremidade do olho. Esse transporte estava voando sobre San Francisco a semana passada, mas era quase translúcido. E os conversíveis com barbatanas de tubarão se tornaram incomuns, e, discretamente, as auto-estradas evitam converter-se nos resplandecentes monstros de oitenta pistas onde fui obrigado a conduzir o mês passado com meu Toyota de aluguel. E sei que nada disso vai me perseguir até Nova Iorque; minha visão está se reduzindo a uma única freqüência de probabilidade. Esforcei-me muito por isso. A televisão me ajudou bastante.

 

 

 

 

Suponho que tudo começou em Londres, nessa falsa taverna grega de Battersea Park Road, com o almoço da corporação de investimentos de Cohen. Uma insípida comida a vapor, e ainda lhes custou trinta minutos encontrar um balde com gelo para o retsina. Cohen trabalha para a Barris-Watford, a qual publica livros de grande formato em brochura, da moda: histórias ilustradas dos letreiros de néon, das máquinas de fliperama, dos brinquedos de corda do Japão ocupado. Eu tinha ido para fotografar uma série de anúncios de calçados; garotas californianas, com pernas bronzeadas e espalhafatosos tênis fosforescentes tinham feito travessuras para mim, nas escadas rolantes de Saint John Wood e nas plataformas do Tooting Bec. Uma jovem agência ambiciosa e pouco rentável tinha decidido que "o mistério do transporte londrino" venderia tênis de náilon. Eles decidem, eu fotografo. E Cohen, que eu conhecia vagamente dos velhos tempos de Nova Iorque, tinha me convidado para almoçar no dia anterior à minha saída de Heathrow. Ele trouxe consigo a uma jovem vestida muito na moda, chamada Dialta Downes, a qual virtualmente não tinha queixo e era uma reconhecida historiadora da arte pop. Ao recordá-la, vejo-a caminhar ao lado de Cohen, abaixo de um letreiro de néon pendente que cintilava: POR AQUI SE VAI À LOUCURA, em grandes letras arredondadas.

Cohen nos apresentou e explicou que Dialta era a primeira promotora do último projeto de Barris-Watford, uma história que ela chamava de "A Aerodinâmica Modernidade Americana". Cohen o chamava de "Arma a Laser Gótica”.O título de seu trabalho era "A Futurópolis Aerodinâmica: o Amanhã que Nunca Chegou".

Há uma obsessão britânica pelos elementos mais barrocos da cultura pop americana, algo parecida com o fetiche "vaqueiro-índio" próprio dos alemães, ou a aberrante afeição francesa pelos filmes do velho Jerry Lewis. Em Dialta Downes isto se manifestava em sua mania por uma forma única de arquitetura americana, da qual a maioria dos americanos mal é consciente. A princípio não estava certo do que estava falando, mas pouco a pouco comecei a me dar conta. Encontrei-me recordando a televisão dos anos cinqüenta aos domingos pela manhã.

Algumas vezes, nas emissoras locais, passavam velhos documentários para completar a programação. Você sentava-se ali com seu sanduíche de manteiga de amendoim e seu copo de leite, e um pomposo e estático barítono de Hollywood contava que teria-um-carro-voador-em-seu-futuro. E então três engenheiros de Detroit se moviam ao redor de um velho Nash com asas, e mais tarde o víamos correr a toda velocidade por alguma pista deserta de Michigan. Realmente nunca o veria decolar, mas certamente voava para a terra do nunca de Dialta Downes; o autêntico lar de uma geração tecnófila sem nenhum tipo de inibição. Estava falando sobre estas curiosidades do "futurístico" na América, passar diariamente ao lado da arquitetura do futuro dos anos trinta e quarenta: os cinemas com marquises estriadas para transmitir certa misteriosa energia, os armazéns baratos com fachadas de alumínio canelado, as cadeiras de tubos cromados cobrindo-se de pó nos saguões de hotéis de passagem. Ela via estas coisas como fragmentos de um mundo onírico, abandonado no despreocupado presente; e queria que o fotografasse para ela.

Os anos trinta presenciaram a primeira geração de desenhistas industriais americanos; até os anos trinta, todos os apontadores pareciam um apontador, um elementar mecanismo vitoriano, possivelmente com um pequeno arabesco decorativo nas bordas. Depois do advento dos designers, alguns apontadores pareciam ter sido montados em túneis de vento. Em sua maior parte, a mudança era só superficial: sob a aerodinâmica carcaça cromada se encontrava o mesmo mecanismo vitoriano. Tudo isso tinha certo sentido, pois os desenhistas americanos mais brilhantes tinham sido recrutados dentre os desenhistas teatrais da Broadway. Tudo era decorado, uma série de elaborados objetos cenográficos para passar a viver no futuro.

À hora do café, Cohen apanhou um grosso envelope de papel pardo, cheio de ilustrações acetinadas. Pude ver as estátuas aladas que guardam a represa Hoover, chapéus ornamentais de concreto de dez metros inclinando-se com simetria ante um furacão imaginário. Vi uma dúzia de fotografias do edifício Johnson Wax de Frank Lloyd Wright junto a capas da revista sensacionalista Amazing Stories, realizadas por um artista chamado Frank R. Paul. Os empregados de Johnson Wax devem ter se sentido como se estivessem caminhando por uma dessas utopias populares de Paul pintadas com aerógrafo. O edifício de Wright parecia ter sido desenhado para gente vestida com togas brancas e sandálias de verniz. Hesitei no esboço de um avião de linha de propulsão a hélice particularmente gigantesco, uma só asa como um grosso e desproporcionado bumerangue, com janelas em lugares incomuns. Flechas indicadoras assinalavam a localização de uma grande sala de baile e de duas pistas de squash. Estava datado em 1936.

- Esta coisa... Não poderia ter voado, não é? - olhei Dialta Downes.

- Oh, não, completamente impossível, mesmo com essas doze gigantescas hélices, mas adoravam seu aspecto, vê? De Nova Iorque a Londres em dois dias, comida de primeira classe, camarotes privados, dançando jazz durante a noite... Os desenhistas eram então populares, vê? Tentavam dar ao público o que queriam. E o que queriam era o futuro.

Estive em Burbank durante três dias tentando dotar de carisma um roqueiro realmente sombrio, quando recebi o pacote de Cohen. É possível fotografar o que não está lá, embora seja extremamente difícil, e, conseqüentemente, um talento muito vendável. Embora eu não fosse precisamente o pior nisso, este pobre tipo estava arruinando a credibilidade de minha Nikon. Fiquei deprimido, porque eu gosto de fazer bem meu trabalho, embora não deprimido de todo, pois me assegurei de receber o cheque pelo trabalho, e decidi me recuperar com a sublime artisticidade do encargo de Barris-Watford. Cohen tinha me enviado alguns livros de desenho dos anos trinta, mais fotos de edifícios aerodinâmicos e uma lista dos cinqüenta exemplos favoritos de Dialta Downes do estilo californiano.

A fotografia de arquitetura pode requerer longas esperas; o edifício se converte em uma espécie de relógio de sol enquanto se aguarda a que a sombra deslize para fora do detalhe que interessa, ou a que a massa e o equilíbrio da estrutura se revelem de certa maneira. Enquanto esperava, pensei na América de Dialta Downes. Quando capturei um pouco dos edifícios fabris na lente de meu Hasselbland, saíram com certo aspecto de sinistra dignidade totalitária, como os estádios que Albert Speer construiu para o Hitler. Mas o resto era vulgar até a extenuação: material efêmero tirado do inconsciente coletivo americano dos trinta, que tendia principalmente a sobreviver em deprimentes ruas comerciais junto a motéis poeirentos, lojas de colchão e pequenas revendas de carros usados. Decidi ir diretamente pelos postos de gasolina.

No auge da era Downes puseram Ming, o Impiedoso, a cargo do desenho dos postos de gasolina da Califórnia. Favorecendo o estilo arquitetônico de sua Mongólia natal, atravessou a costa, erigindo plataformas de estuque para seus canhões de raios. Muitos deles exibiam supérfluas torres centrais rodeadas por um anel cujos estranhos ressaltes de radiador, que eram sua marca de estilo, fazia parecer que se estivessem gerando poderosos estalos de cru entusiasmo tecnológico, se se pudesse encontrar o interruptor que os conectasse. Fotografei um em San Jose, uma hora antes que os bulldozers chegassem e atravessasse sua estrutura, que na realidade era feita de compensado, estuque e cimento barato.

- Pensa nisso - havia me dito Downes - como em um tipo de América alternativa, uns anos oitenta que nunca existiram, uma arquitetura de sonhos quebrados.

E este era meu marco mental enquanto percorria as estações de seu compulsivo calvário arquitetônico em meu Toyota vermelho, sintonizando com sua imagem de uma sombria América-que-não-foi, de fábricas da Coca-cola como submarinos encalhados e salas de cinema de quinta categoria como templos de alguma seita perdida que tinha adorado os espelhos azuis e a geometria. E enquanto passeava por essas secretas ruínas, encontrei-me me perguntando o que os habitantes desse futuro perdido pensariam do mundo em que eu vivia. Os anos trinta sonhavam com mármore branco, com esteiras cromadas, com cristal imortal e bronze resplandecente, mas os foguetes das capas das revistas de Gernsback tinham caído uivando em Londres em plena noite. Depois da guerra, todo mundo tinha um carro, sem necessidade de asas, e as prometidas auto-estradas para conduzi-los por terra, por isso o próprio céu se obscureceu e a fumaça dos escapamentos erodiu o mármore e sujou o cristal milagroso...

E um dia, nos subúrbios de Bolinas, quando estava preparando tudo para fotografar um exemplo particularmente chamativo da arquitetura belicosa de Ming, atravessei uma fina membrana, uma membrana de probabilidade... Brandamente ultrapassei o limite. E olhei para cima para ver uma coisa com doze motores, como um gigantesco bumerangue, todo asas, zumbindo caminho ao leste com a graça de um elefante, tão baixo que podia ver os rebites de sua pálida e chapeada superfície e podia escutar, talvez, um eco de jazz.

Contei a Kihn.

Merv Kihn, jornalista independente com um extenso trabalho sobre pterodátilos do Texas, populares contatados por extraterrestres, medíocres monstros do lago Ness e as quarenta principais teorias conspiratórias do imaginário de massas americano.

- É bom, - disse Kihn, limpando suas lentes polarizadas amarelas na ponta de sua camisa havaiana - mas não é mental, carece da genuína penugem.

- Mas eu vi, Mervyn.

Estávamos deitados à beira de uma piscina, sob o brilhante sol do Arizona. Ele se encontrava em Tucson procurando um grupo de funcionários aposentados de Las Vegas, cujo líder recebia mensagens Deles por meio de seu forno de microondas. Eu havia dirigido durante toda a noite e estava sentindo isso.

- É obvio que o fez. É obvio que o viu. Tem lido minhas coisas, não entendeste minha solução geral para o problema dos ovnis? É simples, clara como a água: a gente - ajeitou cuidadosamente os óculos em seu nariz aquilino e me apanhou com seu melhor olhar de basilisco - vê... Coisas. A gente vê essas coisas. Não há nada ali, mas a gente vê de qualquer maneira. Certamente porque necessitamos. Tem lido Jung, deveria saber o motivo... Em seu caso é tão óbvio... Admita que está pensando em arquitetura lascada, tendo fantasias... Olhe, estou certo de que você tomou sua parte de drogas, não é? Quantos sobreviveram à Califórnia dos sessenta sem ter alucinações estranhas? Por exemplo, aquelas noites quando se descobriu que exércitos completos de técnicos da Disney tinham sido empregados para produzir hologramas animados de hieróglifos egípcios em seus jeans, ou quando...

- Mas não assim.

- É obvio que não. Não se parecia absolutamente; estava "em um entorno de completa realidade", não é? Tudo normal, e de repente aparece o monstro, a mandala, o charuto de néon. Em seu caso, um gigantesco aeroplano a Tom Swift. Isso acontece o tempo todo. Você nem sequer está louco. Sabe disso, não é? - pescou uma cerveja de uma caixa de isopor que estava ao lado de sua espreguiçadeira.

- A semana passada estive em Virgínia. No Grayson County. Entrevistei uma garota de quinze anos que foi atacada por um cabezoso.

- Um o quê?

- Uma cabeça de urso. A cabeça empalhada de um urso. Esse cabezoso, sabe? Ele estava flutuando por aí sozinho, em sua pequena bandeja voadora que se parecia com as calotas do Caddy de colecionador que o primo Wayne tem. Tinha olhos vermelhos, brilhando como duas brasas e antenas telescópicas de cromo que lhe saíam de detrás de suas orelhas - Kihn arrotou.

- Atacou-a? Como?

- Não queira saber. Já sei que é muito impressionável. "Era fria" - voltou a usar seu falso acento sulino - "e metálica". Fazia ruídos eletrônicos. Mas isto é o que era; a influência direta do subconsciente coletivo, meu amigo. Essa moça é uma bruxa. Não há lugar aqui para ela, para que possa funcionar nesta sociedade. Ela teria visto o diabo se não a tivessem educado com O Homem Biônico e todas essas reprises de Star Trek. Ela foi direcionada. E ela sabe o que aconteceu. Fui embora dez minutos antes que os meninos dos OVNIs aparecessem com seus polígrafos.

Devia parecer decepcionado, pois ele deixou a cerveja com cuidado ao lado de seu isopor e sentou-se.

- Se quiser uma explicação mais sofisticada, diria que se trata de um fantasma semiótico. Todas essas histórias de contatados, por exemplo, estão montadas sobre um tipo de imaginário de ficção científica que impregna nossa cultura. Poderia admitir extraterrestres, mas não extraterrestres que se parecem com os de histórias em quadrinhos dos anos cinqüenta. Há fantasmas semióticos, fragmentos do imaginário cultural profundo que despertam e tomam vida própria, como as aeronaves de Verne que esses velhos granjeiros do Kansas viam todo o tempo. Mas o que você viu foi um tipo diferente de fantasma, isso é tudo. Esse avião fez parte alguma vez do subconsciente de massas. De alguma maneira você o recolheu. O importante é não se preocupar muito.

Mesmo assim, preocupei-me.

Kihn penteou seu cabelo loiro com entradas e saiu para ouvir o que eles tinham a dizer ultimamente na freqüência do radar; fechei as cortinas de minha habitação e deitei na escuridão com o ar condicionado funcionando para seguir me preocupando. Ainda estava me preocupando quando despertei. Kihn tinha deixado uma nota em minha porta; voava para o norte em um avião fretado para comprovar um rumor a respeito da mutilação de gado (os "mutis", ele os chamava, outra de suas especialidades jornalísticas).

Fui comer, tomei banho, tomei uma pastilha para emagrecer meio esbugalhada, que tinha rolado por meu estojo de barbear durante três anos, e dirigi de volta a Los Angeles.

A velocidade limitava minha visão no túnel formado pelos focos dianteiros de meu Toyota. O corpo podia conduzir, disse a mim mesmo, enquanto a mente agüentasse. Agüentasse e se separasse da estranha visão periférica, alterada pelas anfetaminas e pela exaustão, a vegetação espectral e luminosa, que cresce na extremidade do olhar da mente ao longo das auto-estradas alta noite. Mas a mente tem suas próprias idéias, e a opinião de Kihn sobre o que já pensava como minha "visão" girava interminavelmente em minha cabeça em uma curta órbita circular. Fantasmas semióticos. Fragmentos do Sonho de Massas, rodopiando ao vento de minha passagem. De alguma forma, este ciclo de informação agravou o efeito da pílula emagrecedora, e a fugaz vegetação ao longo da estrada começou a tomar as cores das imagens infravermelhas de um satélite, sementes fosforescentes que se desprendiam devido ao vento causado pelo Toyota.

Eu encostei, então, e uma meia dúzia de latas de cerveja me lançaram uma piscada de boa noite quando apaguei os faróis. Perguntei-me que hora seria em Londres, e tentei imaginar Dialta Downes tomando o café da manhã, entre móveis aerodinâmicos cromados e livros sobre a cultura americana.

As noites do deserto, nesse país, são enormes. A lua está mais perto. Olhei-a durante um longo tempo, e decidi que Kihn estava no certo. O principal era não se preocupar. Diariamente, por todo o continente, gente muito mais normal que o que eu nunca aspirei a ser via pássaros gigantescos, Pés-grandes, refinarias de petróleo voadoras... Isso era o que lhe dava trabalho e dinheiro a Kihn Por que eu devia estar chateado por um fragmento da imaginação popular dos anos trinta que andava solto em Bolinas? Decidi ir dormir com nada pior para me preocupar que as serpentes cascavéis e os hippies canibais, a salvo entre o lixo da sarjeta de meu próprio "contínuo" familiar. Pela manhã me dirigiria a Nogales e fotografaria os velhos bordéis, algo que queria fazer há anos. A pílula de emagrecimento tinha deixado de me afetar.

Uma luz me despertou, e as vozes então fizeram o mesmo.

A luz vinha de algum lugar detrás de mim e gerava sombras mutáveis dentro do carro. As vozes eram serenas, impessoais, um homem e uma mulher ocupados em uma conversação.

Meu pescoço estava rígido e sentia os globos oculares roçar contra as pálpebras. Uma perna estava dormente, apertada contra o volante. Apalpei o bolso de minha camisa de trabalho, procurando os óculos até que finalmente os encontrei.

Então olhei para trás e vi a cidade.

Os livros dos anos trinta estavam no porta-malas; em um deles havia esboços de uma cidade idealizada inspirada em Metrópoles e Things to Come, mas o mostravam tudo subindo para umas perfeitas nuvens de arquiteto, além de portos para zepelins e torres de delirante néon. Essa cidade era um modelo em escala da que tinha a minhas costas. Um capitel seguia outro como nos degraus de um resplandecente templo babilônico, subindo até a torre central de um templo dourado que estava rodeado pelos loucos anéis de radiador dos postos de gasolina mongóis. Podia-se ocultar o Empire State Building na menor dessas torres. Estradas de cristal se elevavam entre as pontas, atravessadas e envoltas por suaves formas prateadas como gotas de mercúrio derramando-se. O ar estava abarrotado de naves, gigantescas asas voadoras, minúsculos objetos prateados em forma de flecha (às vezes, uma dessas rápidas formas prateadas se elevava graciosamente no ar, e voava para cima para unir-se à dança), dirigíveis de uma milha de comprimento, objetos em forma de libélula que pareciam helicópteros...

Fechei os olhos com força e me voltei no assento. Quando os abri, me esforcei em ver o velocímetro, o pó pálido da estrada no porta-luvas de plástico negro, o cinzeiro transbordando. Fechei-os.

- Psicose anfetamínica - disse a mim mesmo. Abri os olhos. O porta-luvas estava ali, assim como o pó e as bitucas esmagadas. Com muito cuidado, sem mover a cabeça, acendi os faróis.

E então os vi.

Eram loiros. Estavam ao lado de seu carro, um abacate metálico com uma barbatana de tubarão saindo do centro e pneus negros arredondados, como os de um brinquedo de menino. Ele lhe rodeava com seu braço pela cintura e gesticulava para a cidade. Ambos vestiam branco, roupas soltas, as pernas descobertas e imaculadas sandálias brancas. Nenhum deles parecia perceber a luz de meus faróis. Ele dizia algo em um tom sábio e forte e ela assentia. Repentinamente me aterrorizei, aterrorizei-me de um modo completamente diferente. A lucidez tinha deixado de ser a questão; sabia que, de algum modo, a cidade que estava detrás era Tucson, uma Tucson sonhada, vomitada pelo desejo coletivo de toda uma época. Isto era real, completamente real. Mas o casal que havia à minha frente vivia nela, e eles eram os que me aterrorizavam.

Eram os meninos dos anos oitenta-que-não-foram de Dialta Downes, eram os Herdeiros do Sonho. Eram brancos, loiros, e provavelmente tinham os olhos azuis. Eram americanos. Dialta havia dito que o futuro tinha chegado primeiro à América, mas que finalmente a tinha ultrapassado. Mas não aqui, no coração do Sonho. Aqui tínhamos progredido mais e mais, dentro de uma lógica onírica que não sabia nada da poluição, das reservas limitadas de combustível fóssil, de guerras estrangeiras que era possível perder. Eram superficiais, felizes e claramente satisfeitos consigo mesmos e seu mundo. E no Sonho, este era seu mundo.

Detrás de mim, a cidade iluminada: os refletores percorriam o céu pelo simples prazer de fazê-lo. Eu os imaginei enchendo praças de mármore branco, em ordem e alerta, seus claros olhos brilhando entusiasmados por suas ruas completamente iluminadas e cheias de carros prateados.

Tudo tinha o sinistro sabor da propaganda das juventudes Hitlerianas.

Pus o carro em marcha, e conduzi para diante, devagar, até que o pára-choque esteve a um metro deles. Ainda não tinham me visto. Baixei a vidraça e escutei o que o homem dizia. Suas palavras tinham o falso e vazio brilho dos folhetos das câmaras de comércio, e soube que ele acreditava nelas absolutamente.

- John, - ouvi a mulher dizer – esquecemos de tomar nossas pastilhas de alimentação. - E com um clique tirou duas pastilhas brilhantes de um pequeno recipiente em seu cinturão passando uma a ele. Voltei à estrada e dirigi a Los Angeles, estremecendo e sacudindo a cabeça.

Telefonei a Kihn de um posto de gasolina; um novo, de um medíocre estilo hispano moderno. Ele havia retornado de sua expedição e não parecia que a chamada o incomodasse.

- Sim, isso é estranho. Tentou tirar alguma foto? Não é que vá dar certo, mas acrescenta certo toque intrigante a sua história, o de não ter fotos que saíssem.

- Mas o que eu devo fazer?

- Assista bastante televisão, especialmente disputas e novelas. Vá ver filmes pornôs. Viu Nazista Love Motel? Passa aqui na tevê a cabo. Realmente horrível. Justo o que você necessita.

Do que ele estava falando?

- Pára de gritar e me escute. Estou lhe contando um segredo profissional: os meios de massas realmente maus podem exorcizar seus fantasmas semióticos. Tente. O que você tem a perder?

Então ele se despediu, alegando uma entrevista com os Eleitos cedo na manhã seguinte.

- Com quem?

- Esses senhores de Las Vegas; os do microondas.

Eu considerei telefonar a cobrar para Londres, chamar Cohen na Barris-Watford e contar a ele que o seu fotógrafo fazendo uma reserva para uma temporada prolongada na Dimensão Desconhecida. Enfim, eu deixei uma máquina me preparar uma xícara realmente impossível de café preto e reembarquei no Toyota para a puxada a Los Angeles.

Los Angeles foi uma má idéia, e estive ali duas semanas. Era o país primitivo de Downes, ali havia muitos fragmentos do Sonho me aguardando para me assaltar. Quase bati o carro no estreitamento de uma saída, perto da Disneylândia, onde a estrada se dobrou, como em um origami, e me deixou patinando através de uma dúzia de mini-pistas de sibilantes gotas cromadas com barbatanas de tubarão. Ainda pior, Hollywood estava cheia de gente que se parecia muito com casal que tinha visto em Arizona. Contratei um diretor italiano que estava a ponto de partir e que tentava ganhar um pouco de dinheiro até que chegasse seu navio com trabalhos de revelação e instalando pisos nas bordas das piscinas. Ele revelou todos os negativos tinha acumulado para o trabalho de Downes. Eu não quis dar uma olhada no material. Leonardo não pareceu se importar e, quando terminou, comprovei as cópias passando-as a toda pressa, como se fossem um baralho, e mandei-as por correio aéreo a Londres. Então tomei um táxi para ir ao cinema onde passava Nazista Love Motel mantendo os olhos fechados durante todo o trajeto.

Cohen me enviou um telegrama de felicitação a São Francisco uma semana depois. Dialta adorou as fotos. Ele admirava o modo que "eu havia me submerso nisso" e esperava voltar a trabalhar comigo em breve. Nessa tarde vi uma asa voadora sobre Castro Street, mas havia algo tênue nela, como se estivesse ali só pela metade. Corri para o quiosque mais próximo e comprei tudo o que pude sobre a crise do petróleo e os riscos da energia nuclear. Acabei decidindo comprar um bilhete de avião para Nova Iorque.

- Que mundo horrível em que vivemos, não é? - o proprietário do quiosque era um negro magro com dentes danificados e uma evidente peruca. Assenti, revistando os bolsos do jeans em busca de troco, ansioso por encontrar um banco de praça onde me pudesse afundar nas duras evidências da quase distopia humana em que vivemos - Mas poderia ser pior, não é?

- Certamente, - afirmei - ou ainda pior, poderia ser perfeito.

Ele me observou enquanto eu desaparecia pela rua com o meu pequeno pacote de catástrofe condensada. 

 

                                                                                William Gibson 

 

 

                      

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