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O Convite dos Robôs / K. H. Scheer
O Convite dos Robôs / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Convite dos Robôs

 

O caminho para a “terra de ninguém” é muitolongo! Mais uma aventura de Atlan.

Estamos no ano 2.114 do calendário terrano. Para o homem do planeta Terra, menos de século e meio se passou desde o momento em que pela primeira vez um foguete de propulsão química conseguiu pousar na Lua, fato que representou o início da navegação espacial propriamente dita.

Esse lapso de tempo é extremamente curto, se medido pelos padrões cósmicos. Apesar disso o Império Solar, criado e dirigido por Perry Rhodan, já conseguiu transformar-se numa viga mestra do poder galáctico.

A maioria dos povos galácticos já compreendeu que é preferível ter os terranos por amigos a tê-los por inimigos. Depois dos saltadores e dos médicos galácticos, os aras, também os habitantes do Sistema Azul, os acônidas, alcançaram essa compreensão. E foi assim que a partir de 10 de setembro de 2.113 se formou uma aliança entre os terranos, os arcônidas e os acônidas.

Essa aliança, designada como aliança galáctica, repousa sobre um frágil alicerce. Os acônidas desprezam os arcônidas, por eles considerados como seres inferiores, e no Sistema Azul também não se simpatiza com os terranos, fato que foi provado de forma inequívoca com o envio d'Os Agentes da Destruição...

A situação geral no interior da Via Láctea de forma alguma pode ser considerada calma, muito embora os técnicos terranos já tenham conseguido apoderar-se de um aparelho por meio do qual os laurins se tornam visíveis aos olhos humanos.

Contudo a situação política se mostra tensa. Talvez O Convite dos Robôs venha abrandá-la...

 

                                            

 

— Ho-hei-ho-hei-esquerda-direita... — gritava o sargento, num esforço sincero de aperfeiçoar o passo de marcha dos ciclopes.

As batidas das pernas-coluna ressoavam sobre o campo de pouso. Olhei para o grupo em uniformes coloridos, que se destacava como uma mancha luminosa sobre o cinza do pavimento do porto espacial.

Mais uma vez os naats marchavam pelo império, mas havia uma diferença. Desta vez obedeciam às ordens de um terrano que, na minha opinião, estava próximo ao colapso psicológico.

Nem meus veneráveis antepassados, nem as vozes potentes dos oficiais arcônidas dos mundos coloniais conseguiram acostumar os gigantes do quinto planeta do sistema de Árcon à disciplina. Bastava isso para que eu julgasse impossível que um simples sargento conseguisse obrigar os seres briguentos, isto é, os naats, a adotarem um comportamento ordeiro.

Lancei um olhar para o céu azul-pálido de Árcon III, fechei os olhos diante do fogo expelido pelos bocais de jato de um couraçado que decolava e voltei a olhar para os naats.

Aquela companhia pertencia à divisão de guardas do planeta de cristal. Cada um desses ciclopes de três metros de altura havia recebido um ensinamento hipnótico, que cobrira principalmente as áreas da Tática de Combate e da Sociologia Galáctica.

Até poucos meses atrás, eu mesmo dependera dos serviços dos naats. Podiam ser desajeitados, mas por mais de uma vez seu instinto seguro me salvara a vida. Naquele tempo meus patrícios se esforçavam para assassinar o imperador, pouco apreciado, usando meios modernos ou primitivos.

A situação política havia melhorado no Império de Árcon. Desde o momento em que celebrei tratados com os terranos, até mesmo os críticos mais pertinazes compreenderam que, depois de minha morte, não poderia haver modificações importantes.

Talvez também tivessem compreendido que, sem o auxílio terrano, o império estelar seria muito fraco.

O ruído dos pés dos naats prosseguia ininterruptamente. Enfileiraram-se, apresentaram as armas energéticas e viraram as cabeças esféricas de três olhos em minha direção.

O sargento magro que envergava o uniforme do Império Solar veio em minha direção. Seu rosto estava coberto de suor e os cabelos escuros desciam em madeixas por baixo do rádio de capacete.

O sol branco de Árcon estava muito forte. Há uma hora a temperatura de 52 graus centígrados positivos fora medida no gigantesco porto espacial.

O sargento ficou em posição de sentido e sua voz rouca disse alguma coisa que não entendi. Provavelmente queria apresentar a tropa.

Respondi com o cumprimento arcônida e disse:

— Obrigado, sargento. Mande os naats ficarem à vontade.

O rosto do sargento ficou vermelho. Olhei para trás, preocupado. Os cavalheiros que me acompanhavam lançaram um olhar indiferente para o supercouraçado, que eu deveria batizar, pois era o imperador, incorporando-o ao serviço ativo.

Perry Rhodan tivera a idéia de dar o nome de Atlan à nave mais recente produzida em série em Árcon. Por isso me mostrara disposto a, seguindo o costume terrano, quebrar uma garrafa de champanha no casco da nave.

O fato provocara discussões intermináveis entre os astronautas terranos. Achavam que era um insulto desperdiçar a preciosa bebida. Afinal, cada garrafa tinha de ser trazida pelas naves transportadoras terranas.

O sargento continuava parado à minha frente, com as mãos sobre as juntas coladas de seu uniforme de gala. Voltou a dizer alguma coisa, mas ainda desta vez não o compreendi. O que havia com esse homem? Será que estava sofrendo de insolação?

Rhodan começou a rir sem motivo. Estava parado a meu lado e passou a mão pela testa. Até mesmo na sombra da nova nave, o calor era insuportável.

— Você deveria tirar o sargento do aperto, meu caro — disse Perry. — Daqui a pouco vai cair.

— Já o dispensei — respondi em tom indignado.

— Nada disso. Você só disse que deve deixar os naats à vontade. Além disso você confundiu sua respiração ofegante com uma fala de apresentação. Ele ainda se esforça para proferir as palavras corretas.

Reprimi um sorriso. Já sabia por que o homem ficara vermelho. Provavelmente sacrificara suas cordas vocais durante o exercício de marcha.

— Obrigado, muito obrigado — apressei-me a dizer. — Fique à vontade, sargento. Sua tropa causa uma excelente impressão.

O magricela fitou-me com uma expressão de perplexidade, fez meia-volta e saiu cambaleante na direção dos naats. Os raios do sol dardejavam impiedosamente. Fiz votos de que o sargento tivesse bastante inteligência para deixar de lado os usos militares e abrigar-se na sombra. Nem pensou nisso. Colocou-se à frente dos naats, respirando com dificuldade, e olhou fixamente para a nave.

Sacudi a cabeça. Esses terranos nunca mudariam. Nenhum arcônida pensaria em submeter seu corpo a esses maus-tratos...

Encurtei a cerimônia. Levei apenas cinco minutos para “recitar” minha fala e atirar a garrafa de champanha contra o casco da nave. A faixa de pano desceu e o nome do veículo espacial apareceu à minha frente.

A visão do supergigante não me poderia deixar alegre. Já incorporara ao serviço ativo muitas naves desse tipo, mas perdera um número ainda maior nas terríveis batalhas.

Os terranos apressaram-se para chegar ao local climatizado mais próximo. Não conseguiam acostumar-se às temperaturas reinantes nos mundos de Árcon.

Entrei no meu carro, esperei a aproximação de minha guarda pessoal de robôs e segui os amigos.

Quando cheguei ao edifício de controle de vôo, lancei mais um olhar para a Atlan.

A tripulação terrana já estava subindo a bordo. Dois mil especialistas treinados e adestrados nas academias e naves-escola da Frota Solar, estavam transformando um gigante recém-concluído numa máquina de guerra fulminante.

Aquele supercouraçado era a primeira unidade da nova série. Durante sua construção haviam sido utilizadas invenções terranas, arcônidas e acônidas. Levamos quase onze meses para reajustar a complicada programação dos grandes estaleiros. Dali em diante, milhares de instalações robotizadas modificaram seus controles e participaram do processo de fabricação.

Entrei na sala de controle geral do porto espacial, onde já se encontravam os terranos. Não havia nenhum arcônida. A rivalidade silenciosa entre os homens da Terra e os cientistas de meu povo era um segredo de polichinelo.

Com um suspiro acomodei-me na poltrona articulada e estiquei as pernas. O ruído da banda de robôs que se afastava penetrou no recinto.

Rhodan prestou atenção aos uivos, grasnados e apitos, até que o último rufo dos tambores cessasse.

Depois disso o terrano fitou-me.

— Acho que foi um batismo clássico, com todas as solenidades de praxe. Vocês sabem fazer festas. Quer dizer que a partir de hoje a frota unida possui mais uma grande nave de guerra. Hum...!

Interrompeu-se e recostou-se. O equipamento de renovação de ar do sistema de climatização zumbia acima de nossas cabeças. Compreendi por que Rhodan se calara de repente. A situação externa não nos permitia ficarmos muito orgulhosos com uma nave do tipo da Atlan.

Já vira gigantes desse tipo explodirem que nem bolhas de sabão sob o fogo de veículos dirigidos automaticamente. Nossa luta de defesa contra a dinastia de robôs biopositrônicos entrara numa fase decisiva.

Um belo dia esses seres terríveis apareceram na Via Láctea com as chamadas naves fragmentárias, e logo tiveram início os conflitos. Esforçamo-nos para estabelecer algum acordo, mas até então nossos esforços não haviam sido coroados de êxito.

Há alguns meses, outros seres, aos quais demos o nome de laurins, haviam chegado à Terra. A estrutura estatal do Império Solar, ainda jovem, enfrentara um perigo grave.

Os laurins eram invisíveis por natureza. Os pos-bis, nome que demos aos robôs biopositrônicos, afastaram o perigo dos laurins. Realizei uma missão nas profundezas do espaço intercósmico, onde consegui levar o computador que comanda os pos-bis a enviar uma nave fragmentária para ajudar-nos. Quando a mesma surgiu sobre a Terra, descobrimos que os pos-bis dispunham de recursos técnicos que lhes permitiam localizar os invisíveis. Os invasores foram liquidados numa questão de horas.

Dali a algumas semanas, uma equipe de pesquisa terrana descobriu o planeta Fóssil. Tratava-se de uma antiga base secundária dos seres de Mecânica que, ao que tudo indicava, eram responsáveis pela construção dos atuais pos-bis.

Não encontramos praticamente nada — apenas um aparelho que reagia à presença dos laurins. Desmontamo-lo e o levamos à Terra. Há poucas horas chegara o protótipo do aparelho ao qual Rhodan deu o nome de óculos antiflex. Pelo que se dizia, este possibilitava a absorção das misteriosas irradiações do flexo-órgão. Fiquei um tanto cético.

A campainha do rádio de Rhodan tocou. Usava um aparelho de pulso. O Comodoro Jefe Claudrin, comandante da nave capitania da frota terrana, comunicou que a Teodorico se achava pronta para decolar.

Olhei para o relógio. Já estávamos demorando demais no terceiro planeta do sistema de Árcon. Lá fora, para além do grupo estrelar M-13, quase cem mil espaçonaves das frotas unidas patrulhavam o espaço.

O circulo defensivo que deveria proteger-nos do perigo dos pos-bis vindos do intercosmo fora completado na medida das nossas possibilidades. A situação financeira do Grande Império era bastante apertada. A cada dia que passava, a fabricação em série de veículos espaciais de todos os tipos, controlada por robôs, devorava bilhões. E Rhodan, que na sua qualidade de Administrador do Império Solar era responsável pelos cofres terranos, deixara perfeitamente claro que seu orçamento para o ano 2.114 já estava esgotado.

A Terra mantinha cerca de trinta milhões de homens no front intercósmico. Outras dez mil unidades da frota patrulhavam as áreas conhecidas da Via Láctea, a fim de abafar as revoltas que fermentavam em toda parte.

O problema do abastecimento da frota transformara-se num problema. Eu mesmo fornecera cinqüenta mil naves cargueiras, a fim de suprir as necessidades da frota que nos defendia. E, além das tarefas puramente militares, tínhamos de cuidar dos projetos científicos.

Perry Rhodan, um homem que aliava o raciocínio frio ao senso prático, reconhecera que o domínio da Galáxia não dependia apenas do desenvolvimento tecnológico, mas também do estado das finanças públicas. Estava na hora de estabilizar a situação.

As perdas de naves, sofridas nas lutas contra os pos-bis, assumiam proporções assustadoras. Os mutantes de Rhodan, até então considerados invencíveis, começaram a falhar. Nas batalhas espaciais quase não podiam ser utilizadas suas faculdades parapsicológicas. Não foi possível construir a super arma dos pos-bis, denominada raio conversor, embora possuíssemos os dados necessários.

Segundo meu planejamento devia-se procurar entrar em contato com os elementos de comando dos pos-bis, fossem quais fossem as circunstâncias.

Era necessário evitar que as forças arco-terranas continuassem a ser divididas. As dificuldades políticas, que se verificavam nas áreas conhecidas da Galáxia, bastavam para justificar a utilização de uma frota de aproximadamente cinqüenta mil espaçonaves de grandes dimensões.

Os aliados acônidas não era dignos de confiança. Ainda há pouco um movimento subversivo do Sistema Azul realizara uma manipulação errônea num transmissor de matéria e, com isso, levara a Terra à beira da ruína. Se não fosse o auxílio acônida, os laurins nunca teriam posto os pés na Terra.

As preocupações em torno do império estelar ameaçavam esmagar-me. Sob os meus pés jaziam os destroços do antigo computador-regente, construído por meus antepassados e destruído por mim. Em toda parte sentia-se a falta daquela máquina sem igual. Era bem verdade que em Árcon II havia mais de vinte mil centros de computação de grandes dimensões, com mais de trezentas mil estações retransmissoras. Mas o domínio completo das instalações sujeitas a panes exigiria a presença coordenadora do grande centro de computação.

Nem podia pensar nos problemas administrativos que afligiam o Grande Império.

Rhodan enviara cerca de cem mil terranos, cuja tarefa consistiria em pôr ordem no caos. Nossa tarefa principal forçosamente teria de consistir em resolver os problemas internos de Árcon, motivo por que os numerosos mundos coloniais tiveram de ser negligenciados. Os casos de sonegação de impostos, revoltas e derrubadas de governos eram constantes. Ainda há algumas horas o chefe de uma equipe terrana me informara de que os fornecimentos de matérias-primas que deixaram de ser realizados por quarenta e dois mundos coloniais atingiam a soma de aproximadamente novecentos bilhões de solares. A produção de naves dependia das ligas que formavam o aço nobre da série T-A. O aço de Árcon, nome que se costumava dar à liga, só podia ser produzido por uma indústria pesada altamente especializada.

Os fornecimentos de armas das usinas planetárias também deixavam a desejar. Em virtude disso, vi-me obrigado a enviar uma esquadrilha de cruzadores. Uma única nave não seria capaz de impressionar os descendentes dos antigos colonos arcônidas.

Fiquei sobressaltado com uma palmadinha no ombro. O sorriso de Rhodan falava por si.

— Esqueça, amigo — disse. — Só desistiremos quando a Galáxia for destruída. Dentro de meia hora pretendo partir para o front. Tem algum programa, imperador?

Fitei-o, desconfiado. Sempre que Rhodan me chamava pelo título, ele o fazia com uma intenção bem definida. E agora tudo indicava que nem sequer pretendia ironizar Levantei-me e ajustei o cinto do uniforme.

— Darei uma olhada no novo posto goniométrico. Pelo que dizem, já se torna possível localizar objetos pequenos a grande distância. Precisamos conhecer a posição do mundo central dos pos-bis, ainda desconhecido.

— Você diz isso logo a mim?

Deu-me as costas e caminhou em direção à porta. Antes que passasse pela mesma, uma tela iluminou-se. O rosto do Coronel Apple apareceu. Era o novo chefe de segurança no planeta da guerra dos arcônidas.

— Sir, será que poderia falar-lhe por um instante antes de sua partida? — gritou Apple.

Parei. Não sabia se essas palavras haviam sido dirigidas a Perry ou a mim.

Rhodan voltou. Fui para a frente da tela juntamente com ele. Apple pediu desculpas em palavras apressadas. Parecia muito nervoso.

— Desculpe, sir. Sei que seu tempo é muito escasso, mas por aqui aconteceu uma coisa que me pareceu tão importante que julguei dever informá-lo antes da partida.

Fiquei curioso. Apple era um oficial muito consciencioso, que só se dirigia aos chefes supremos quando havia assuntos muito importantes a tratar.

— O que houve, Coronel Apple? — perguntou Rhodan.

Notei que seu rosto magro ficou tenso. Naquele instante dei-me conta mais uma vez de que no fundo nossa situação era bastante desesperadora.

Nosso esgotamento chegara a tal ponto que qualquer notícia nos fazia aguçar o ouvido, numa esperança que se acendia de repente.

O coronel vacilou. Tive a impressão de que já estava arrependido de nos ter molestado pouco antes da decolagem. Não se sentia muito seguro.

— Sir — principiou com a voz entrecortada — não sei se agi corretamente. Há algumas horas um saltador chamado Beybo chegou a Árcon II. Sua espaçonave, a Bey XII, é um desses barcos roídos pela ferrugem que normalmente já teriam sido retirados do tráfego. A tripulação é formada por sete homens, inclusive Beybo. O senhor conhece essas figuras que vivem na penumbra, e que segundo as leis dos mercadores galácticos não podem usar o título de patriarca nem têm direito de participar das assembléias do clã. Vêm logo depois dos párias e constam de nossas listas como vagabundos ou viajantes pendulares.

— Não faça rodeios, Apple — disse Rhodan com um gesto de impaciência.

Seu rosto já se descontraíra. Antes uma notícia insignificante que um acontecimento catastrófico.

Quanto a mim, diverti-me com a cara de nojo de Apple. Esse Beybo parecia ser um exemplar todo especial de sua categoria. Os patriarcas dos saltadores não reconheciam os viajantes pendulares. Só eram tolerados caso entregassem determinada percentagem de seus lucros ao chefe, cujo monopólio comercial se estendia aos mundos visitados pelo andarilho.

Apple pigarreou. Ao que parecia, estava chamando a si mesmo de idiota.

— Fale logo, Apple — disse para animá-lo. — Não lhe arrancaremos a cabeça por isso. O que houve com esse Beybo?

— Houve muita coisa, sir — disse o coronel em tom indignado. — Esse sujeito chegou a Árcon III na barca número dois. Aqui conseguiu enganar todos os oficiais de segurança para chegar à presença do Marechal Solar Mercant. O chefe mandou que o pendular falasse comigo. Beybo afirma que as notícias que traz são tão importantes que só pode confiá-las ao imperador ou ao administrador dos mundos solares.

— E daí?

Apple fez um gesto.

— Não sei por quê, mas tenho a impressão de que o homem está dizendo a verdade. Por isso resolvi entrar em contato com os senhores. Bem que gostaria de prender Beybo, mas...

— Detenha-o. Iremos até aí — interrompeu Rhodan.

Apple empalideceu.

— Como? O senhor se dispõe a olhar pessoalmente para esse sujeito? Pensei que pudesse fornecer-me instruções bem definidas e...

— Irei pessoalmente — voltou a interromper Perry. — Na situação em que nos encontramos qualquer coisa pode ser importante. Se possível, dê um banho de inseticida nesse homem, a não ser que esteja livre de insetos.

Perry desligou. Dei uma risadinha. Nunca ouvira falar num pendular que não estivesse infetado de insetos. Fomos andando.

Lá fora fomos recebidos pelo calor do dia. No interior da Atlan rumorejavam as máquinas. Pelo que eu sabia sobre os terranos, eles realizariam o primeiro vôo experimental o mais tardar dentro de duas horas.

 

Os escritórios do Serviço de Segurança ficavam mil metros abaixo do solo. A superfície de Árcon III tinha o aspecto de um complexo industrial compacto de dimensões inacreditáveis. Há dez mil anos meus antepassados já haviam decidido construir alojamentos e depósitos de todos os tipos embaixo dos portos espaciais e das gigantescas fábricas.

A atmosfera estéril da cidade subarcônida me fascinava. Era aqui que ficava o centro nervoso do Grande Império. Essas cidades já abrigaram as tropas de elite do Império, quando lhes cabia conquistar novos mundos e manter os já conquistados. Nesse lugar éramos tocados pelo sopro de um grande passado.

O gabinete de Apple já pertencera a um almirante arcônida. Por isso era muito amplo e luxuoso, e dispunha de uma série de controles reveladores da presença de uma tecnologia moderna.

Passamos entre terranos que faziam continência. O Marechal Solar Allan D. Mercant, chefe da Segurança Solar, pedira desculpas por não poder comparecer.

Partira há poucos minutos num cruzador, a fim de estudar as condições reinantes no planeta principal do sol Voga. Mais uma vez os zalitas estavam causando problemas.

Apple veio ao nosso encontro. Apesar do equipamento de climatização, seu rosto estava vermelho. Voltou a pedir desculpas por ter incomodado Rhodan por uma bagatela desse tipo.

Perry interrompeu-o com um gesto e olhou em torno. As paredes do gabinete haviam sido transformadas numa galeria de telas de imagem. Boa parte da superfície podia ser controlada dali mesmo, por meio da televisão.

— Quem está sofrendo com isso é o senhor — disse Apple, em tom resmunguento.

Levei um segundo para compreender que essas palavras haviam sido dirigidas a mim.

— Por quê? — perguntei, perplexo.

O coronel reprimiu um sorriso. Levantou a voz ao responder:

— Beybo quer que o senhor lhe dê a insignificância de cem mil solares terranos, a título de recompensa ou contraprestação.

Rhodan respirava com dificuldade. Dois soldados do Serviço de Segurança esboçaram um sorriso quase imperceptível. Estavam de guarda junto a uma porta lateral.

“Por enquanto aceite”, disse meu cérebro adicional.

Não lhe dei atenção. Apple era um bom oficial de segurança, mas eu conhecia muito bem o caráter dos mercadores galácticos. Nem mesmo o vigarista mais atrevido teria coragem de entrar na cova do leão e formular exigências que não tivessem fundamento.

Rhodan olhou para mim. Tirei a capa dos ombros e dobrei-a. Soltei a arma térmica.

Apple pigarreou.

— Mande trazer o saltador — ordenei em tom indiferente.

Perry parecia muito interessado. Apple fez um sinal para os guardas. Um sargento terrano deixou que a porta se abrisse e disse:

— Dê um pulo, titio. Rápido.

Fiquei mais descontraído. As palavras galhofeiras do militar alegraram-me.

Antes que Beybo aparecesse, uma onda de odor desagradável penetrou no recinto. Apple praguejava baixinho e pegou a chave do equipamento de climatização. Rhodan fez “oh” e recuou alguns metros.

Um indivíduo de ombros largos enfiou na sala uma barba vermelha desgrenhada. Seguiu-se uma cabeleira vermelha não menos desgrenhada. O que veio depois lembrava meus degenerados patrícios, que achavam que era chique banhar-se com todas as substâncias cheirosas. Naquele momento bem que teria gostado de um frasco de perfume.

— Ali ao lado há uma banheira cheia de ácido sulfúrico, sir — disse o sargento da guarda. — Se estiver de acordo poderemos...

Interrompi-o com um gesto e olhei para o saltador, que usava calças apertadas de fibra artificial, botas amarradas que chegavam até as barrigas das pernas e que eram dotadas de elementos magnéticos escamoteáveis. Uma blusa de couro de koszt amarrada na altura dos quadris por um largo cinto completava o quadro.

Esses trajes, que em si seriam perfeitamente aceitáveis, brilhavam que nem um lanho de toucinho. Do rosto de Beybo só se via o nariz e um par de olhos cinza-azulados. As outras partes eram cobertas pela selva de fios de barba ou pela formosa cabeleira.

— Fique aí mesmo — apressou-se Rhodan a dizer. — Não, fique mais para trás. O senhor gosta de água?

Os cabelos do saltador entraram em movimento. Franziu a testa. Um buraco escuro surgiu no meio da selva de fios de barba. Sorriu para nós, fazendo com que o rosto do Coronel Apple ficasse rubro de raiva. Face ao olhar que lhe lancei, resolveu controlar-se.

— Todos os sóis da grande ilha vos cumprimentam, majestade — disse a título de cumprimento.

— O senhor trouxe isso por escrito? — perguntou Rhodan, em tom seco.

Coloquei as mãos nos lábios, para reprimir o riso. Perry sabia ser irônico.

Beybo não deixou que isso o perturbasse. Enfiou o polegar sujo no cinto e fez pose.

— Podemos dispor de cinco minutos — adverti. — Você disse que queria falar comigo?

— Perfeitamente, majestade.

— Estou ouvindo.

Os olhos de Beybo estreitaram-se. Imaginei que o homem que se encontrava à minha frente era sagaz e inescrupuloso. Para os pendulares do tipo de Beybo, a única coisa que importava eram os negócios. Por isso logo passou a falar objetivamente, deixando de lado as frases de efeito.

— Gastei duas toneladas de matéria catalítica para trazer minha nave a Árcon, majestade — principiou cautelosamente.

Acenei com a cabeça como se isso me entediasse. Seria de admirar se não mencionasse suas despesas.

— Alguém que por enquanto não posso citar pelo nome nem descrever incumbiu-me de procurar Vossa Majestade e Vossa Excelência Administrativa. As coordenadas do ponto de encontro foram armazenadas em meu computador de bordo. Não sei como foram parar lá. Não há como extrair os dados. Por isso não existe outra alternativa senão confiar em mim e em minha nave. A pessoa que me confiou a tarefa quer falar com Vossa Majestade e com Perry Rhodan. Minhas despesas montam a cem mil solares. Acho que é uma boa quantia.

Beybo ficou calado. Rhodan parecia surpreso. Será que esse mercador estava louco? Antes que tivesse tempo de responder, Rhodan perguntou:

— Gucky está por perto, coronel?

— Infelizmente não, sir. Saiu na mesma nave de Marshall.

— Não há nenhum outro membro do Exército de Mutantes por perto?

— Tive a cautela de mandar chamar Fellmer Lloyd, que não deve demorar. É o único elemento de que dispomos no momento. Marshall saiu ontem para executar uma missão.

Beybo permaneceu imóvel, muito embora não devesse compreender uma única palavra daquela conversa. Rhodan se sentia tão chocado com as exigências surpreendentes do saltador que preferiu adiar o interrogatório até que houvesse um mutante por perto.

Também me mantive em silêncio. Fellmer Lloyd era um localizador que possuía certas faculdades telepáticas. Como ainda não tivesse aparecido, dirigi-me a Rhodan em língua inglesa.

— Este sujeito está louco, ou então dispõe de um trunfo imbatível.

Perry concentrou-se. Os cinco minutos que pretendíamos conceder ao saltador já haviam passado. Rememorei o texto de sua fala. Beybo usara uma linguagem pouco diplomática, conforme se costuma dizer na Terra.

— Quer fazer o favor de repetir? — pediu Rhodan. — Sua fala foi um pouco desconexa e, mais do que isso, bastante súbita. Quem quer falar conosco?

— Alguém que eu não conheço. Pousei num mundo primitivo, e foi lá que encontrei as pessoas que me confiaram a tarefa. Não me disseram nada de importante. Será que Vossa Excelência se encontra em tamanhas dificuldades que basta que alguém o chame para...?

— Leve-o, sargento — interrompeu Rhodan. — Este homem está preso. E conserve-o no cárcere até que se lembre com quem está falando.

Perry levantou-se e foi até a porta.

— Devemos limpar esta contrafação de um cão são-bernardo, sir? — perguntou o sargento e lançou um olhar ávido para a barba desgrenhada do saltador.

— Sim; façam uma boa limpeza!

Piquei parado. Beybo sabia perfeitamente que não poderia aumentar nem um pouco a dose de insolência com que estava agindo. Esperou até o último momento. Quando Perry estava passando pela porta, o pendular começou a falar sem erguer a voz:

— Guardarei meus pensamentos para mim, excelência. Pediram-me que entregasse esta cápsula a Vossa Excelência ou ao imperador.

Tirou um carretel achatado do cinto do uniforme e acrescentou com a voz chorosa:

— Isso não é um procedimento comercialmente recomendável. Obrigam-me a dar prova da minha lealdade sem permitir que demonstre a credibilidade de minha pessoa por meio da fala.

Beybo fez uma humilde mesura. Apple parecia ter perdido a fala. Via-se perfeitamente que ainda não conhecia os pendulares galácticos.

Lancei um olhar gelado para Beybo e, como que por acaso, pus a mão no coldre de minha arma.

— Minha intenção não foi esta, majestade — apressou-se Beybo a dizer.

Um brilho revelador de insegurança surgiu em seus olhos. Em três minutos deixei-o tão arrasado que antes parecia um montão de desgraça que um gatuno arrogante sem modos.

— Será que você realmente acredita que pode aparecer com propostas ambíguas no quartel-general do império? O que há nesse estojo? Faça o favor de examiná-lo, Apple.

Dali a alguns segundos ficamos sabendo que o pendular trouxera um microfilme. Tratava-se de uma fita estranha, do tipo que não existia em Árcon nem no sistema solar.

Dois especialistas da Segurança levaram o filme. Fellmer Lloyd chegou. Parado no corredor juntamente com Perry, examinou o conteúdo da mente de Beybo.

Vi a expressão de perplexidade no rosto de Lloyd e compreendi que, contrariamente ao que pensávamos, o saltador dissera a verdade. Perry fez um sinal. Saí e cumprimentei o mutante.

— Então?

— É estranho, sir — disse Lloyd. — Este homem realmente não sabe quem foi a pessoa que lhe pediu para dar o recado. Nem sequer se lembra do motivo por que pousou no planeta desconhecido. Sua memória só conservou a imagem de um mundo aquático primitivo.

— Na Galáxia existem milhares de mundos desse tipo. Beybo sabe o que existe na fita?

— Não. Só se lembrou da fita que trazia no cinto quando se viu ameaçado de prisão.

— Tem certeza? — perguntou Perry.

— Certeza absoluta, sir. Beybo não está submetido a qualquer tipo de sugestionamento global. Não noto nenhuma influência. Alguém usou meios extraordinários para apagar parcialmente a memória de Beybo. Ele se lembra perfeitamente de que deve pedir cem mil solares ao senhor. Também sabe que deve levar o senhor e o administrador ao ponto de encontro.

Perry fez um sinal para que Apple se aproximasse.

— Faça uma ligação com Árcon II. Mande o pessoal do Serviço de Segurança confiscar a nave deste saltador e procurar retirar os dados sobre a posição do ponto de encontro da memória do computador. Ande depressa.

Dessa forma havíamos tomado todas as providências que se tornavam possíveis nessa situação.

— É incrível! Ninguém julgaria possível que os principais estadistas e os comandantes supremos de dois impérios ficassem nervosos só porque um saltador desleixado aparece para trazer certas notícias que normalmente nunca teriam chegado ao nosso conhecimento. Tenho certeza de que, em Árcon III, existem pelo menos cem dirigentes que, se a situação fosse diferente, teriam prendido o saltador, interrogando-o por semanas a fio. Veja só a que ponto chegamos, Atlan.

Confirmei com um aceno de cabeça. Perry e eu estávamos na situação do homem que morre afogado e se agarra a uma palha.

Lloyd não conseguiu “furar” o misterioso bloqueio da memória do pendular. Compreendi, então, por que Beybo revelara tão subitamente seu escasso conhecimento: aludira a um encontro ilusório com algum desconhecido, como se já nos tivesse informado a este respeito em centenas de palestras.

Meu interesse tornou-se mais intenso. Rhodan também se pôs a refletir.

— Aconteça o que acontecer, tenho certeza de que não entrarei no hiperespaço com a lata enferrujada desse sujeito — disse Perry, em voz baixa.

Minha opinião não era diferente. Conhecia perfeitamente os calhambeques dos pendulares, remendados em todos os cantos, e por isso a simples idéia de viajar num desses veículos me fez empalidecer. Ninguém seria capaz de dizer quantas naves desse tipo já se acidentaram. Não havia qualquer registro dos pendulares. Quando se registravam em algum porto, as autoridades tinham certeza de que havia alguma intenção fraudulenta atrás disso. A rigor, os pendulares eram mais repugnantes que os próprios párias, pois quanto a estes pelo menos se tinha certeza de que nunca haviam pertencido a um clã importante.

Mandei levar o barba-vermelha, que protestava violentamente, e tomei um banho. Dali a duas horas chegaram as notícias que esperávamos de Árcon II, o mundo do comércio.

As informações fornecidas pela equipe técnica eram apavorantes. O computador de bordo de Beybo fora barbeado por mãos desconhecidas, segundo a expressão do oficial de ligação terrano. Os dados de que precisávamos haviam sido armazenados num circuito bloqueado fortemente resguardado. Só poderiam ser solicitados por intermédio do próprio computador da nave.

As tentativas de rastreamento fizeram com que o aparelho entrasse numa perigosa incandescência. Assim que meu espírito digeriu essas informações, voltei ao gabinete de Apple.

A situação se modificara. A Segurança Solar também entrara em ação. O Marechal Solar Mercant já estava voltando de Zalit.

Rhodan parecia um tanto desorientado. Discutimos todos os aspectos do problema, mas o resultado sempre foi o mesmo.

Se quiséssemos chegar ao misterioso planeta que deveria servir de ponto de encontro, não teríamos outra alternativa senão voar na Bey XII. Senti um calafrio, ainda mais que Apple ofereceu uma imagem dessa nave.

— Essa não! — disse Rhodan, com um gemido. — Desisto do encontro com o desconhecido, a não ser que surjam aspectos novos face aos quais julgue conveniente arriscar tudo.

— Acho que o senhor arriscará — disse alguém.

Virei a cabeça. Um oficial da Segurança acabara de entrar. Beybo ainda se encontrava na sala contígua.

— Não venha me dizer que o senhor conseguiu uma interpretação correta desse estranho filme — observei.

— Consegui, sir. Trata-se de uma fita diferente das que conhecemos, que funciona na base do armazenamento eletrônico concentrado. Fizemos seu rastreamento e tiramos uma cópia em paxton. Poderia fazer o favor de acompanhar-me até a sala de exibição?

Respirei profundamente. Enquanto caminhava, fiquei refletindo sobre os meios que poderiam ter sido usados para, por assim dizer, enganar o computador de bordo de Beybo. Antes de examinar a fita, mandei que me fosse apresentado novamente o registro em videofone dos resultados do exame. Deles se concluía sem sombra de dúvida que um dispositivo automático de extinção entraria em ação assim que alguém tentasse extrair os dados. O princípio empregado era totalmente desconhecido, mas sua qualidade era excelente. A precaução jamais poderia ter sido tomada pelo próprio Beybo, pois este não dispunha do conhecimento nem das instalações necessárias.

Quem teria preparado sua espaçonave? Por que isso fora feito? Se é que alguém achava que devia comunicar coisas importantes a Rhodan ou a mim, por que esse alguém utilizava um caminho tão complicado?

Esperei um impulso de meu cérebro adicional, mas este não deu nenhum sinal de sua presença. Martirizado pelas preocupações, sentei-me ao lado de Rhodan. A tela iluminou-se.

A cena apresentava o espaço intercósmico. Via-se parte de nossa Galáxia. Evidentemente as fotografias haviam sido tiradas fora da mesma.

O registro inteiramente eletrônico realizado pelos desconhecidos era de qualidade extraordinária. As imagens tridimensionais representavam perfeitamente as cores. O som resumia-se a um apito melódico. Ninguém falava; ninguém fornecia explicações.

Aliás, isso nem era necessário. Assim que nossa cópia em paxton começou a ser exibida, vi um homem alto que trajava o inconfundível uniforme do império. Vi a mim mesmo!

Perry segurou meu braço. Entesei o corpo, mas logo me deixei cair novamente na poltrona.

A nossa frente foi exibido um acontecimento cuja lembrança me provocava calafrios. Em fevereiro de 2.114 subira a bordo de uma nave fragmentária dos pos-bis, a fim de pedir auxílio para a Terra. Foi na época em que este planeta sofreu o ataque dos laurins.

Fascinado, fitei a tela. Vi quando subi a bordo juntamente com os membros do comando. As cenas do vôo foram exibidas. O filme terminou com a chegada à Terra. Não podia haver a menor dúvida. A fita fora feita pelos pos-bis, que a haviam enviado a Árcon por intermédio do pendular.

Seguiu-se uma escrita simbólica, que já havia sido decifrada pelo tradutor-simultâneo. A mensagem era a seguinte:

 

Pedimos encarecidamente a sua visita. Beybo fornecerá informações mais detalhadas.

 

Foi apenas isto que os desconhecidos nos comunicaram. A luz acendeu-se. Dali a alguns segundos, a porta foi aberta violentamente. O sargento da guarda informou-nos de que o pendular estava agindo como se estivesse louco. No mesmo instante, Fellmer Lloyd avisou-nos de que acabara de haver uma modificação na memória de Beybo.

— Quando? — perguntei.

— No momento em que as últimas cenas foram projetadas na tela, sir. No mesmo instante Beybo deve ter sido atingido por um impulso liberatório. Essa técnica para-mecânica é uma coisa incrível, sir!

— Também tenho esta impressão — disse Perry.

Quando me fitou, senti que já estava lutando para tomar uma decisão.

— Será que você pretende viajar nesse calhambeque? — perguntei, apavorado.

Rhodan olhou para trás. Os homens da Segurança observavam-nos, ansiosos.

— Você vê outra possibilidade, Atlan?

— Naturalmente — respondi em tom convicto. — Mais dia menos dia conseguiremos romper o bloqueio do computador e obter as coordenadas. Quando isso acontecer, viajaremos em outra nave.

— Isso poderá demorar vários dias ou até mesmo semanas. Não sabemos por quanto tempo os desconhecidos nos esperarão. Bem, ouçamos novamente o que Beybo tem a nos dizer. Parece que de repente se lembrou de tudo.

— Só se lembrou de alguns pontos que são importantes para nós — esclareceu o mutante. — Não há necessidade de interrogar o saltador, sir. Já descobri o que o mesmo sabe.

— E então...?

— Só o senhor e Atlan foram convidados. Na viagem não poderá ser usada outra nave que não seja a Bey XII. Não se deseja a presença de acompanhantes. A frota não deverá aparecer sobre o planeta que servirá de ponto de encontro. Os desconhecidos concedem um prazo de três dias terranos. Não esperarão mais que isso.

Meus olhos umedeceram-se. Achava-me muito nervoso Os seres que desejavam falar comigo e com Perry haviam sido muito cautelosos. Não era provável que a nave de Beybo estivesse armada. Quando chegássemos na mesma, os desconhecidos poderiam ter certeza de que não tornar-nos-íamos perigosos. Por ser o tempo de espera, fixado pelos desconhecidos, tão curto, éramos obrigados a utilizar a nave de Beybo.

— Quais são seus planos, amigo? — perguntou Rhodan. Passei a mão pelos olhos e levantei.

— Meus planos? — respondi com uma risada forçada. — Que pergunta! Farei meu testamento e entrarei na Bey XII. Na situação em que nos encontramos, nem podemos pensar em extrair os dados do computador de bordo. O tempo é muito escasso. Além disso acho que seria inútil tentarmos eliminar o bloqueio hipnótico, ou seja lá o que for que se encontra no cérebro de Beybo. Quando os mutantes de que precisaríamos para isso chegassem aqui, já seria tarde. Se quisermos falar com os estranhos cameramen, não teremos outra alternativa senão aceitar sua proposta.

Rhodan pegou o boné do uniforme, colocou-o na cabeça e levantou-se. Não havia muita coisa a discutir. Vi o rosto apavorado de Apple no fundo da sala. Rhodan dirigiu-lhe a palavra.

— Prepare um cruzador e coloque o pendular a bordo do mesmo. Voaremos para Árcon II. Se chegarmos à conclusão de que a coisa é muito importante, mandarei inspecionar aquilo que Beybo chama de espaçonave. Atlan, será que existe uma possibilidade de fazer uma revisão completa do calhambeque em vinte e quatro horas?

Respondi que não. Se o veículo espacial fosse um produto da fabricação em série de Árcon, não haveria nenhum problema. A indústria de armamentos do império funcionava a plena capacidade.

Rhodan não disse mais nada. Ambos acreditávamos que nunca teríamos atendido ao pedido de Beybo, se o mesmo não tivesse trazido o filme. Para mim não havia a menor dúvida de que os pos-bis tentavam estabelecer o contato pelo qual tanto ansiávamos. Na situação em que nos encontrávamos, seria uma temeridade não aceitamos a proposta.

Dali a meia hora atravessamos a eclusa de ar da nave Washington, um cruzador da classe Cidade. Beybo já se encontrava a bordo. Antes que chegássemos à sala de comando, o veículo espacial esférico levantou-se do solo. Os propulsores uivaram. No momento em que entramos no elevador, já estávamos atravessando as camadas superiores da atmosfera do planeta da guerra. Os dados haviam sido lançados.

O ativador celular pendurado sobre meu peito pulsava mais intensamente que de costume, o que era um sinal de que meu corpo se rebelava contra a sobrecarga dos últimos dias e semanas.

Numa atitude de autocrítica, expliquei a mim mesmo que minha chamada imortalidade não valia muita coisa. O ativador era uma maravilha da tecnologia moderna. Mas a regeneração dos núcleos celulares não adiantaria nada se eu sofresse um acidente.

Preferi nem pensar na nave de Beybo. E uma viagem nesse veículo espacial parecia ainda mais inconcebível. Apesar disso teria de assumir o risco.

Chegamos à sala de comando do cruzador. A tela de visão global mostrava o segundo planeta de Árcon, que mal se distinguia do fulgor de inúmeros sóis, que aqui, no grupo estelar M-13, eram tão concentrados que o vôo a velocidade superior à da luz representaria um risco real.

 

O tráfego no porto espacial de Olp Duor, o maior de Árcon II, era tão intenso que até parecia que os tempos áureos do império tinham voltado.

No momento o movimento de mercadorias em Olp Duor atingia um valor de oito bilhões por dia. Nos arquivos computadorizados do maior planeta comercial da Galáxia conhecida estavam registradas cerca de dois milhões de espaçonaves. O planeta era um ponto de encontro de todos os povos conhecidos.

Poucos arcônidas compreendiam que o progresso gigantesco era devido exclusivamente aos terranos.

Os gênios comerciais e financeiros de Rhodan, com o lendário Homer G. Adams na ponta, haviam transformado Árcon H novamente naquilo que o planeta fora há dez mil anos. Em todo lugar sentia-se a atuação da General Cosmic Company, criada por Rhodan. Era bem verdade que os planetas solares estavam prestes a passar à frente do sistema tríplice de Árcon no que dizia respeito ao movimento de negócios. Até mesmo os mercadores galácticos, que eram monopolistas inescrupulosos, dispondo de uma frota de guerra própria, já não podiam ignorar o fato de que dois centros distintos haviam surgido na Via Láctea. A distância entre os mesmos era de trinta e quatro mil anos-luz, o que excluía a possibilidade da concorrência direta entre a Terra e Árcon.

Rhodan e eu havíamos colocado os singelos uniformes de combate. Só mesmo quem conhecesse perfeitamente Rhodan e o examinasse atentamente reconheceria nele o Administrador do Império Solar.

Os distintivos eram tão modestos e discretos como sua própria pessoa. Eu também me desfizera do suntuoso uniforme. Os símbolos do império e de minha venerável família representavam o único sinal de realeza.

As pessoas que conheciam a situação costumavam dizer que eu não passava de um arremedo de governante, no que tinham toda razão. Já não me entregava a ilusões, especialmente depois que, após anos de esforços, finalmente consegui separar dos oito bilhões de arcônidas de raça pura um bilhão de homens, cuja concepção da vida ainda os fazia merecedores de uma regeneração realizada por meio do ensinamento hipnótico e da terapia parapsicológica.

A área do porto de Olp Duor era formada por um quadrado de cinqüenta por cinqüenta quilômetros. Naquele dia, mais de quatro mil espaçonaves de todos os tipos e tamanhos utilizavam o equipamento de carga e descarga inteiramente automatizado.

No momento, as receitas alfandegárias chegavam a cerca de dezesseis bilhões de solares por dia. Há alguns anos Rhodan ainda achara que era uma soma imensa, isso até que se deu conta de que o custo de um supercouraçado arcônida da classe Universo já chegava a vinte e quatro bilhões, isso com os preços das matérias-primas mantidas no nível mais baixo, além da racionalização máxima do processo de produção, através de esteiras rolantes, e sistemas de suprimento inteiramente automatizados.

Usamos um carro gravitacional direto, que correu vertiginosamente pelas trilhas. Ninguém nos deu a menor atenção; ninguém percebeu quem eram os homens que viajavam no veículo aberto.

O carro parou junto ao setor 617. O zumbido que se fez ouvir era o sinal de que, para esse setor, fora concedida permissão de decolagem. Num caso como este até mesmo o imperador tinha de esperar. Nos mundos arcônidas sempre se obedecera o principio de que o comércio intergaláctico representava o sangue do império. O carro seria detido, mesmo que uma pequena nave se erguesse a um quilômetro dali. Acontece que no caso se tratava de uma nave cargueira de bom bojo dos ekhônidas, que subia lenta e pesadamente sobre seu jato em direção ao espaço.

O rugido dos propulsores impedia qualquer tipo de conversação. As ondas de gases quentes e as partículas que ainda tinham um remanescente de radiações eram capturadas pela grade energética que surgiu automaticamente à frente do setor 617. Esta grade os refrigerava, descontaminava e conduzia para as galerias subterrâneas.

A nave cargueira transformou-se num ponto reluzente e desapareceu. Um último ribombo revelou que, uma vez atingido o limite de segurança prescrito, os reatores passaram a trabalhar com toda potência.

Os olhos de Fellmer Lloyd brilhavam. Levantou o rosto com uma expressão sonhadora.

— Em menino costumava imaginar esse tipo de coisa, sir — disse em voz baixa e com uma risadinha embaraçada.

Confirmei com um gesto. Compreendia perfeitamente o simpático mutante, que já participara da decolagem de Rhodan em direção à Lua terrana. Na época também acompanhara os preparativos e fazia votos de que a Humanidade finalmente encontrasse um meio de vencer o espaço e o tempo. Na época, uma nave exploradora de meu povo pousara no satélite da Terra, e Rhodan lutava para fundar a Terceira Potência em seu planeta.

Agora, que apenas cento e quarenta e três anos se haviam passado, esse mesmo homem comandava mais de cento e vinte mil belonaves de todos os tipos, mantinha contatos com inteligências inumanas e organizava a defesa contra um perigo que ameaçava inundar a Galáxia como uma torrente de água.

Essa idéia me fez vir à lembrança a pessoa de Beybo e de certa espaçonave na qual atravessaríamos o hiperespaço para chegar a um planeta desconhecido.

Rhodan manteve-se calado. Fitava com uma expressão pensativa a vida fascinante que se desenvolvia no maior centro comercial de Árcon.

Fomos obrigados a parar mais três vezes diante de naves cargueiras que pousavam ou decolavam. Se meus antepassados não tivessem instalado as grades energéticas, o tráfego de veículos seria impossível no espaçoporto. As ondas de pressão nos teriam atirado para longe.

Inteligências estranhas, algumas delas com pitorescas vestes coloridas, outras em roupas sujas e pouco vistosas, passavam velozmente junto a nós. Uma nave recém-chegada pedia pelo rádio dois recipientes pressurizados de metano. O comandante e o imediato queriam sair da nave.

Depois de meia hora de viagem entramos no anel rodoviário exterior. Aqui, na beira do porto espacial, ficavam os setores de abastecimento de pequenos veículos. Evidentemente a nave de Beybo fora obrigada a descer em lugar afastado do tráfego principal.

Depois de mais um quilômetro de viagem, avistamos a fileira de guardas. Eram terranos e zalitas pertencentes às tropas auxiliares. O oficial da guarda aproximou-se do carro, fez continência e esperou que lhe dirigissem a palavra.

— Já conseguiram muita coisa? — perguntou Perry. Estava aludindo aos técnicos e cientistas retirados às pressas dos estaleiros, que haviam recebido a incumbência de no prazo de seis horas transformar a Bey XII numa nave capaz de enfrentar o espaço.

Era claro que a exigência era ilusória, mas esperávamos que ao menos os piores defeitos pudessem ser corrigidos.

A expressão triste que surgiu no rosto do capitão me fez ficar outra vez nervoso.

— Seu rosto diz tudo — disse Rhodan com um gesto. — A coisa realmente é tão ruim?

— Sir, se o senhor permitir uma observação, só posso recomendar encarecidamente que não viaje nessa nave. Examinei-a por simples curiosidade. Ohmert, que é o engenheiro-chefe, quase desmaiou. O casco foi feito de aço comum. É quase impossível remover a ferrugem. Só a proa é feita de material T anti-corrosivo. Nem sabemos como a nave pode suportar a pressão interna. Uma viagem pelo hiperespaço num veículo desse tipo representa um verdadeiro suicídio.

Rhodan acenou com a cabeça, numa atitude letárgica. Já desistíramos de refletir sobre o assunto. Dali a cinco minutos chegamos ao campo de pouso, e vimos exatamente aquilo que imagináramos.

Numa confraternização total, pusemo-nos a praguejar ou soltar ameaças, segundo o temperamento de cada um. A Bey XII era uma nave cargueira de procedência desconhecida, de pelo menos duzentos anos. Tinha pouco menos de cinqüenta metros de altura, era parecida com uma granada antiquada e seu diâmetro chegava a uns vinte metros.

Esse veículo desajeitado, que brilhava numa luminosidade vermelha produzida pela ferrugem, descansava sobre seis colunas de apoio tortas, que não podiam mais ser recolhidas.

O bocal do jato principal saía da popa, amassado e parcialmente derretido. A impressão causada pelos bocais de direção e controle existentes nos flancos da nave não era melhor.

— Como não devem estar as coisas do lado de dentro — observou Rhodan. — Pelo grande Universo. Já compreendo por que as pessoas costumam esconder-se quando um pendular é mencionado à sua frente. Parece ser um ato instintivo. Bem, vamos examinar o monstro.

Descemos do carro e caminhamos em direção à lata enferrujada. Técnicos terranos sentados em pequenas plataformas examinavam o casco. As soldadoras automáticas trabalhavam em toda parte. Num procedimento primitivo, batia-se nos lugares em que a camada de ferrugem era mais espessa. Se depois da quinta martelada aparecesse um buraco, uma chapa de aço era soldada hermeticamente.

Certas partes do casco estavam tão corroídas que não se podia trabalhar com os queimadores atômicos sem correr o risco de destruir a nave. Nesses lugares utilizavam-se materiais colantes de elevado desempenho.

Ficamos parados embaixo do bocal de popa e olhamos para as câmaras cobertas de escórias, que só estavam mais ou menos limpas nos lugares em que sobressaíam os pólos dos campos protetores internos.

Rhodan cobriu o rosto com as mãos. Afirmava constantemente que Beybo devia ser condenado pelo menos a dez anos de prisão, porque representava uma ameaça à segurança pública.

Saí de baixo da nave. Meus dedos tocaram num cesto de arame também enferrujado, pendurado numa corda de plástico.

Fiquei apavorado ao notar que era o elevador que levava à escotilha central, aberta na popa. Dois nós reforçados prendiam a cesta à corda.

Um homem imundo saiu da escotilha de carga, que ficava pouco acima da superfície. Reconheci o engenheiro Ohmert, que trabalhava em Árcon II como engenheiro-chefe e inspetor da frota.

Desceu ao solo numa plataforma hidráulica que rangia terrivelmente. O aparelho de carregamento parou dois metros acima da superfície. O líquido negro do dispositivo hidráulico pingava dos dois braços de alavanca. No interior da escotilha uma bomba parecia gaguejar...

Além desses “fenômenos” técnicos”, meu nariz percebeu uma onda de odores saída da nave, para a qual a palavra fedentina era uma expressão suave demais.

Ohmert arrancou a máscara de feltro do rosto e, furioso, atirou-a ao solo.

— Desisto — disse em tom queixoso. — O senhor nem imagina como estão as coisas lá dentro. No momento, a sala de comando e os camarotes estão sendo desinfetados. O lixo e os detritos já foram lançados para fora da nave. Instalamos um equipamento de climatização inteiramente novo, na esperança de que os condutos de força débeis e envelhecidos consigam suprir a energia necessária. Os blocos de segurança entre o reator e o conversor de impulsos estão em curto-circuito. Imagine, sir.

— Por quê? — perguntei, desorientado.

Ohmert bateu as mãos em cima da cabeça e lançou um olhar recriminador para o alto.

— Sir, os blocos de segurança “desistiram”, certamente porque voaram para fora inúmeras vezes e, contrariamente a todas as regras, voltaram a ser introduzidos manualmente. O dispositivo automático de controle não conseguiu remover mais a fonte de perturbações. Descobri pelo menos trinta emendas no cabo principal que liga a sala de máquinas à sala de comando. Veja só: emendas num cabo pelo qual têm de passar oitocentos ampères. Em toda parte o isolamento está quebradiço. Preciso de pelo menos mais uma hora para trocar o cabo. É inacreditável, mas o comando manual e o de emergência são puramente mecânicos. Os cabos passam por tubos e lá embaixo movem as chaves por meio de um sistema de rolos. Não garanto nada, sir.

Ohmert calou-se. Estava exausto. Lá de cima um técnico gritou algumas perguntas. Ohmert respondeu. Preferi retirar-me cautelosamente. Rhodan ouvira tudo. Por estranho que possa parecer, senti-me tomado por uma hilaridade irresistível quando vi o terrano transpirar, apesar de seu sangue-frio. Perry quase chegava a parecer desesperado quando lançou os olhos pelo casco da nave, que a cada momento parecia apresentar maior número de remendos.

Lloyd estava pálido.

— Sete patifes encontram-se naquilo que eles chamam de sala dos oficiais — disse o mutante, com voz zangada. — Percebo muito bem o que estão dizendo. Divertem-se com os nossos cuidados. Beybo diz que não poderia ter surgido oportunidade melhor para uma revisão geral. Um momento. Neste instante estão conversando sobre a possibilidade de destruir propositadamente o dispositivo hiperautomático. Querem ganhar um aparelho novo. Beybo quer ir às escondidas até a sala de comando. Pretende atrair para fora os engenheiros que estão trabalhando por lá.

Rhodan ficou furioso. Levantou-se com a velocidade de um raio, correu até o carro, pegou o rádio e transmitiu algumas instruções.

Alguns soldados do Serviço de Segurança saíram correndo. O chefe da equipe de ultrafreqüência chamou da sala de comando. Dali a alguns segundos ouvimos o chiado de uma arma de choque elétrico.

— Toda a gangue deveria ser presa — gritou Rhodan, fora de si. — Tenente, vá até lá em cima e diga aos pendulares que poderão ser banidos pelo resto da vida se não pararem com os abusos. Se tivéssemos tempo para instalar novas máquinas, nós o faríamos de qualquer maneira. Mr. Lloyd...!

O mutante adiantou-se e ficou em posição de sentido.

— O senhor irá comigo e com Atlan.

— Sir, o convite é apenas para os senhores — ponderou Lloyd.

— Agora isso não me interessa mais. Está com medo?

— Sir...!

Rhodan logo se controlou. Achei formidável que o administrador pedisse desculpas a um subordinado. Fellmer limitou-se a fazer um gesto embaraçado e disse:

— Sir, não vale a pena falar sobre isso. Saberemos enfrentar esses tipos.

— Tomara que sim. Vamos olhar o interior desse calhambeque.

Subimos à escotilha de carga, controlamo-nos para não morrer sufocados e esprememo-nos pelas portas da eclusa que rangiam fortemente, entrando num tubo em cujo interior uma frágil escada em caracol levava para cima. Era a única ligação entre a sala de comando e a de máquinas.

Os compartimentos de carga exalavam um cheiro horrível. Em sua última viagem, Beybo transportara peles não curtidas.

No momento a eclusa que dava para os camarotes estava sendo trocada. Nossos trabalhadores haviam recortado placas enferrujadas e estavam soldando uma eclusa pré-fabricada.

— Este modelo só dispõe de um controle manual — disse um dos engenheiros. — Não temos tempo para montar uma instalação automática. Se tiver de passar por aqui, tome cuidado. Caso haja alguma perda de pressão lá embaixo e ambas as escotilhas tiverem de ser abertas ao mesmo tempo, então...

— Já sabemos disso — interrompi-o.

Prosseguimos. As instalações dos camarotes também estavam sendo renovadas. Pelo que se dizia, tinham o aspecto de chiqueiros. A sala de comando ficava na proa achatada, onde também haviam sido instalados os aparelhos de rastreamento.

Acomodamo-nos nas poltronas de pressão e aguardamos o que estava por vir. Preferi não examinar as salas dos propulsores e das unidades energéticas. O relatório de Ohmert sobre o cabo de oitocentos ampères falava por si.

Se os pendulares eram irresponsáveis a ponto de remendar um cabo desse tipo, eles deviam ser ainda mais desleixados com outros condutos. Nem me atrevi a imaginar o que poderia acontecer durante o vôo.

— Não compreendo como essa gente ainda está viva — disse Rhodan, em tom de desânimo. — Dentro de uma hora teremos de decolar. Não, fique aqui.

Segurou Fellmer pelo braço.

— Ohmert está andando depressa. Não faça essa gente ficar ainda mais nervosa. Diga ao oficial da guarda que mande nosso equipamento para cima. Ocuparemos juntos o camarote maior. Tome cuidado para que nada seja roubado ou danificado de propósito.

Aspirei o odor penetrante dos desinfetantes espalhados em grande quantidade. O condicionador de ar ainda não estava funcionando. No meu íntimo roguei pragas contra os pos-bis e as pessoas que queriam falar conosco. Era uma verdadeira insolência obrigar-nos a viajar nessa sucata.

 

— Cem mil solares terranos; nem mais nem menos — disse o barba-vermelha, insistindo em seu direito. — Ninguém obrigará uma pessoa honrada como Beybo a trabalhar sem retribuição.

Sorridente, fitou a boca de minha arma. Acabara de ameaçá-lo, mas isso não o impressionou. Sabia que no jogo em que estávamos empenhados todos os trunfos eram seus. Nem mesmo o cosmonauta mais genial seria capaz de pilotar esse calhambeque. Só havia um homem familiarizado com suas inúmeras manhas, e esse homem era Beybo.

Guardei a arma. Era inútil. Beybo fora banhado por um comando terrano. Pelo menos seu cheiro passara a ser suportável. Como não quisesse mudar de roupa, suas vestes foram lavadas, motivo por que em toda parte apareciam buracos e pedaços desfiados. O pendular recusara-se a usar outras vestes. Tinha um orgulho todo especial.

A barba e os cabelos haviam sido aparados. As numerosas escoriações que lhe cobriam o corpo provavam que Beybo resistira à operação de limpeza, e que os terranos não o haviam tratado com mãos de seda.

Isso fez com que minha raiva amainasse. Escrevi uma ordem de pagamento e entreguei-a ao saltador. Beybo segurou-a com a ponta dos dedos e deu uma cuspida na folha de plástico.

— Façamos votos de que o senhor ainda possa desfrutar esta fortuna — disse Rhodan, em tom irônico. — Peça que esta quantia lhe seja creditada e prepare a decolagem. Daqui a dez minutos quero estar no espaço.

Beybo deu-nos as costas sem dizer uma palavra, enfiou a ordem de pagamento no transmissor de contas e aguardou o aviso de crédito do Banco do Império, que chegou dentro de cinco minutos. A fortuna do gatuno acabara de ser aumentada em cem mil solares.

Voltei a chamar a Teodorico, que pousara em Árcon II há duas horas. A nave capitania da frota seguiria a Bey XII, assim que os cruzadores de rastreamento estacionados no espaço constatassem qual era o destino da viagem.

Para esse fim mandara preparar velhas naves de salto, que ainda não haviam sido equipadas com os novos propulsores lineares.

A revisão apressada da nave dos saltadores produzira ao menos um resultado. Sabíamos perfeitamente que o dispositivo hiperautomático não era protegido por um compensador estrutural. Devia ser fácil medir as ondas de choque e calcular a posição de saída do hiperespaço.

O Comodoro Claudrin confirmou o recebimento da ordem. Assim que descobrisse o ponto de destino de nossa viagem, ele nos seguiria com cem unidades pesadas. Dessa forma havíamos tomado as precauções que eram possíveis.

Dali a cinco minutos, os pendulares ocuparam seus postos de manobra. Três homens encontravam-se na sala de comando, enquanto os outros quatro estavam em algum lugar, nas profundezas imperscrutáveis do corpo da nave.

Naquele momento certifiquei-me pelo minicomunicador de que minhas ordens haviam sido cumpridas. O Marechal Solar Mercant respondeu ao chamado. Usei a língua inglesa, fato que levou Beybo a fitar-me com uma expressão de desconfiança.

— Tudo bem, sir — respondeu o chefe da Segurança. — Assim que sua nave partir, proibiremos todas as decolagens de naves mercantes. Isso reduzirá o número dos abalos provocados por transições, e os cruzadores não terão nenhuma dificuldade em medir os saltos de sua nave. Tudo de bom, sir. Continuo a achar que é uma loucura atender a exigências desse tipo. Ninguém sabe o que os espera.

— É o que quero descobrir. Muito obrigado, Atlan. Desligo.

Desliguei e fiz um sinal para Perry. Estávamos usando trajes espaciais terranos do último tipo, feitos de finíssimas folhas pressurizadas e dotados de microaparelhos para a renovação do ar e a climatização do espaço interno.

Beybo começou a berrar. Ao que parecia, não sabia falar normalmente. Num gesto ostensivo fechei o capacete e liguei o rádio.

O pendular que estava sentado ao lado de Beybo franziu a testa e sorriu desavergonhadamente. Ao que parecia, acreditava que éramos fracotes.

O que veio depois parecia um fim-de-mundo. Bem abaixo de nós as máquinas entraram em funcionamento; ou melhor, Beybo esforçou-se para colocá-las em funcionamento.

O suor voltou a gotejar na testa de Rhodan. Fellmer Lloyd parecia ter desligado sua mente. Provavelmente os pensamentos dos pendulares eram tão catastróficos que o mutante não pôde suportar seu impacto.

Rhodan segurou as braçadeiras da poltrona. Não confiávamos no neutralizador de pressão já decrépito da Bey XII.

Ao trovejar, ribombar e rumorejar seguiu-se uma nuvem de fumaça. Os “ruídos de partida” cessaram, mas o novo equipamento de climatização expelia ininterruptamente nuvens de fumaça preta. Abri cautelosamente o capacete para identificar o cheiro. Quando percebi que cheirava a materiais isolantes queimados, voltei a ligar o sistema de respiração artificial.

A tela bruxuleante mostrou o rosto de outro pendular, que me fora apresentado como o “engenheiro-chefe”. De início tive minhas dúvidas sobre as qualidades desse homem, mas quando notei a calma com que o mesmo lidava com as máquinas vitais, passei a tributar-lhe um certo respeito. Desligamos os microfones externos. O bando de barbudos gritava tão alto que mesmo sem os microfones entendíamos cada palavra.

— Cabeça piolhenta! — berrou Beybo para dentro de um microfone que pendia do intercomunicador por um fio esfarrapado. — O que houve? Está fedendo.

— Qual é o fedor? — perguntou o engenheiro-chefe, curioso.

Os olhos de Rhodan ficaram vidrados. Também compreendera que a bordo da Bey XII as avarias costumavam ser avaliadas com base no cheiro. Para mim, isso era uma novidade. Armei-me de paciência e disse a mim mesmo que até um almirante arcônida de dez mil anos nunca pára de aprender.

Beybo farejou o ambiente.

— Só pode ser o bloco do distribuidor número dois. Enchi a chave sincronizada com plástico de triton.

— Alguma coisa está fervendo — disse o chefe técnico, franzindo a testa. — Ficarei com o número um. Será que você pode transferir a ligação?

Parecia que Rhodan estava rezando. Eu o compreendia perfeitamente. Lloyd cutucou-me desesperadamente e apontou para um pé-de-cabra que o segundo cosmonauta tirou de um canto. Juntamente com Beybo enfiou a alavanca por baixo de uma chave marcada com a cor verde, que parecia estar ligeiramente enferrujada.

Os pendulares praguejaram enquanto empurravam a “chave mestra” para a frente. Depois de algum tempo o comandante e proprietário da nave gritou para dentro do microfone:

— Deu certo?

Não houve resposta. O rádio operador constatou que havia um contato frouxo no microfone. Beybo bateu no mesmo com o punho fechado, e o aparelho voltou a funcionar.

— É um trabalho de precisão de primeira ordem — informou o engenheiro-chefe, que se encontrava na sala de máquinas. — Mudança de regulagem bem-sucedida. O número um também está fedendo?

Naquele momento, Beybo parecia lembrar-se da nossa presença. Num tom quase solene falou para dentro do intercomunicador:

— Minha nave não fede coisa alguma. Decole imediatamente, senão as taxas portuárias correrão por sua conta.

Beybo fungou e acomodou-se na nova poltrona. Apalpou-a carinhosamente e piscou para o imediato com uma expressão de triunfo. Depois disso deu um pontapé no sincronizador robotizado, cuja finalidade consistia em neutralizar as pressões causadas pela aceleração.

Depois do segundo pontapé as luzes verdes acenderam-se. Senti um calafrio ao pensar no reator de alta potência, em cujo interior estava surgindo um sol atômico. Beybo nunca havia utilizado um combustível nuclear tão concentrado como o proveniente dos tanques do porto, que nós lhe havíamos fornecido. Fiquei curioso para ver qual seria a reação da fornalha, do conversor de entrada e do transformador de impulsos.

Mais uma vez ouviu-se uma série de uivos e apitos. Soltei os cintos e inclinei a poltrona para trás. Depois de alguns minutos de fortes vibrações, a Bey XII realmente se ergueu do solo. Beybo berrou, entusiasmado.

Com um forte trovejar corremos em direção ao espaço. O campo protetor de atrito não funcionava mais, motivo por que a cabina sofreu um forte aquecimento.

Uma vez no espaço, olhei para as telas. Uma delas mostrava a popa da nave cargueira.

Ninguém seria capaz de dizer qual era o material que estava saindo do bocal de jato danificado. Por um momento pensei em abandonar a nave enquanto era tempo, mas logo vi o rosto satisfeito do engenheiro-chefe. Anunciou que, em seu setor, tudo estava bem, estava excelente.

Mal acabou de falar, seu retrato projetado à distância cresceu bastante. Por certo seu rosto caíra sobre a objetiva. Tivemos a solução do enigma quando sentimos a pressão. Seria de admirar se o neutralizador de aceleração funcionasse perfeitamente.

Beybo deu alguns pontapés no aparelho, o que fez com que dentro de alguns segundos perdêssemos o peso. Por aqui até mesmo os campos gravitacionais artificiais pareciam obedecer às suas próprias leis.

Dali a uma hora ainda estávamos vivos, e a Bey XII prosseguia em seu vôo. Não alcançou mais de vinte por cento da velocidade da luz, mas isso bastava para dar início à transição.

O computador de bordo fez tocar a sineta. Vimos que Beybo estava solicitando os dados secretos armazenados em sua memória. A luz verde demorou, mas acabou por se acender.

Beybo passou as mãos pela barba e disse alguma coisa que pareciam ser fórmulas mágicas pagas. Depois molhou o polegar e calcou o botão do dispositivo automático de salto.

Rhodan gritou. Lloyd praguejou terrivelmente, enquanto eu pensava que um choque de transição como este não deixaria de ser ouvido por meus cruzadores.

A manobra de Beybo correspondia às peculiaridades de sua nave. Rhodan, Lloyd e eu já não estávamos acostumados às transições pesadas. O corpo humano levava bastante tempo para adaptar-se às sacudidelas e aos puxões provocados pela desmaterialização.

Para Beybo, as ondas seguidas pareciam ser a coisa mais natural deste mundo. A sala de máquinas rugia; até parecia que a Bey XII iria estourar. Ouviu-se um uivo estridente e a desmaterialização teve início, o que provava que havíamos chegado ao espaço de cinco dimensões, onde as leis do Universo einsteiniano deixavam de prevalecer.

Mal tive esse pensamento, voltamos ao espaço normal. Meu estômago contraiu-se. Martirizado pelas dores, prestei atenção ao rumorejar. Alguém estava berrando alguma coisa. Era o engenheiro-chefe.

— Continue a empurrar — gritou Beybo em resposta às suas palavras. — Talvez consigamos passar da terceira vez.

Gemi, pois a segunda tentativa logo teve início. Antes que minhas idéias ficassem envoltas numa névoa, compreendi o que o inspetor de nossa frota quis dizer quando aludiu ao estranho hipercontrole e à marca e à construção esquisita. O controle continuou a reagir, até que finalmente o salto foi bem-sucedido.

Foi um martírio incomum. A tela mostrava línguas de fogo. Vez por outra surgiram distorções da imagem, para as quais ninguém havia encontrado uma explicação física.

Finalmente, depois da quarta tentativa, perdi os sentidos. Meu último pensamento foi dedicado à capacidade de resistência física de Beybo e ao grau da resistência à fadiga dos instrumentos da nave.

 

A transição foi bem-sucedida.

Acordara há meia hora. Rhodan, Lloyd e eu recebemos as injeções estimulantes aplicadas por Beybo, que tivéramos a precaução de preparar. Preferimos não pensar naquilo que felizmente já ficara para trás...

A Bey-XII viajava loucamente para dentro de um sistema que nunca havia visto. O insignificante sol amarelo era um daqueles astros aos quais ninguém havia atribuído um nome. Provavelmente constava dos catálogos com um número.

Beybo nos informara de que essa estrela possuía três planetas, sendo que o número dois era um mundo aquático primitivo.

Rhodan tentou determinar nossa posição galáctica, mas seus esforços não foram bem-sucedidos. Nem mesmo Rhodan poderia fazer qualquer coisa com as calculadoras da Bey XII, que já deveriam ter ido para o museu. Os pendulares recusavam-se obstinadamente a tentar a determinação do lugar em que nos encontrávamos. Lloyd disse que esse comportamento era causado por um bloqueio volitivo que se tornara ativo nesse momento.

Passamos pela órbita do terceiro planeta e, desenvolvendo vinte por cento da velocidade da luz, aproximamo-nos do segundo planeta do sol sem nome.

O planeta encontrava-se em posição favorável e era registrado perfeitamente pelos aparelhos localizadores. Apesar disso os pendulares levaram duas horas para realizar uma manobra de aproximação mais ou menos razoável, que acabou numa entrada em órbita.

Exaustos, levantamo-nos das poltronas e fomos até as telas da localização ótica. Por surpreendente que pudesse parecer, seu funcionamento era perfeito, o que provava que até mesmo os pendulares realizavam investimentos, desde que produzissem lucros. Para gente desse tipo, a qualidade da observação à distância determinava o êxito ou o fracasso.

Beybo estava zangado conosco. Deixáramos de exprimir nosso reconhecimento pela “formidável” transição a grande distância. Segundo os cálculos de Rhodan, devíamos ter percorrido uma distância de aproximadamente quatro a cinco mil anos-luz, o que representava um desempenho enorme para a Bey XII.

Também na minha opinião vencêramos uma distância relativamente grande. A dor da rematerialização foi tão intensa que só poderia ter sido causada pela elevada concentração de energia.

Contornamos o planeta de pólo a pólo, numa órbita de duas horas. Era um deserto aquático fumegante. Em alguns lugares haviam surgido trechos de terra firme. Beybo sabia perfeitamente onde deveria desembarcar-nos. Depois da terceira volta em torno do planeta, vimos uma ilha maior. Era redonda e tinha apenas alguns quilômetros de diâmetro. A porção de terra estava coberta por uma espessa selva.

— É ali que esperam por Vossa Majestade — disse Beybo, encostando o indicador à tela.

— Inicie a aterrissagem — disse Rhodan, em tom áspero.

Beybo fitou-o com uma expressão de espanto.

— O quê? Aterrissar? O senhor quer que eu coloque minha bela nave nessa ilha?

Perry virou-se lentamente. A ilha já estava saindo do campo de visão do dispositivo ótico. Aquele planeta era um mundo pequeno, cuja gravitação chegava a 0,61 G. Ao que parecia, podia-se confiar nos instrumentos da nave.

Só por um segundo, Beybo fitou os olhos cinzentos do terrano. Depois baixou o rosto.

— Foi isso mesmo que eu disse.

— A atmosfera é muito densa — disse Beybo, apressadamente. — Os campos protetores de atrito de minha nave não estão em ordem.

— Pois coloque a nave sobre o jato de popa e reduza a velocidade nas camadas superiores. Deixe seu calhambeque descer com metade do empuxo e utilize o fluxo de partículas como raio protetor, já que desviará as moléculas. Entendido?

Mais uma vez Beybo quis mostrar-se indignado. Mas acabou por adotar uma atitude resignada. Fitou o imediato com uma expressão queixosa.

— Este homem sabe como se deve fazer para levar a majestosa Bey XII ao solo — disse com a voz chorosa. — Acho que não se pode fazer nada.

Tirei a mão de cima da arma. Dali a três minutos foi iniciada a manobra. O propulsor começou a tossir quando o conversor de impulsos foi escamoteado. Conferimos os cálculos de Beybo e constatamos que o pendular realmente era um excelente astronauta. Era mestre em seu ofício e sabia lidar muito bem com as velhas calculadoras.

Introduziu os dados sobre a queda no dispositivo automático, teve a cautela de dar um pontapé no aparelho e acomodou-se em sua poltrona.

Lá fora ouviu-se uma série de assobios. A nave sofreu um forte aquecimento, muito embora o fluxo de impulsos do jato eliminasse grande parte do atrito causado pelo ar. Os gases comprimidos expelidos da trajetória brilharam numa incandescência branca.

A ilha voltou a aparecer na tela. Estava mais ao leste. Numa altitude de apenas quatorze quilômetros foi realizada a conversão. A popa da Bey XII ergueu-se, e a queda vertical apoiada sobre o jato teve início.

Prendi a respiração até ouvir uma série de estalos embaixo de nós. Uma parede de fogo envolvia a velha espaçonave. As pequenas árvores e a vegetação rasteira chamuscadas foram atiradas para longe pelo furacão saído do propulsor.

Beybo parecia ter bastante experiência nesse tipo de manobra. Não se importou em pousar sua lata enferrujada no meio da mata virgem. Sabia que até mesmo as árvores mais fortes seriam carbonizadas pelas energias térmicas e levadas para longe pelas ondas de pressão.

O mecanismo hidráulico dos pés de aterrissagem pareciam emperrados e me faziam recear o pior. Depois de mais alguns minutos, a nave cargueira imobilizou-se. O indicador pendular mostrava que tinha uma inclinação de dezoito graus.

Beybo recebeu a notícia com um gesto de pouco-caso. E também não se perturbou quando o engenheiro-chefe lhe disse que a pressão do sistema hidráulico havia baixado a dez por cento do máximo, e que o líquido que saía do mesmo pegara fogo.

Beybo fez uma série de suposições sobre o motivo por que uma substância que se dizia ser incombustível se incendiara.

— Quem sabe se, antes da decolagem, o senhor não abasteceu a nave com combustível catalisador? — conjeturou Rhodan.

Beybo pôs-se a refletir. Num movimento muitas vezes treinado limpou as mãos na calça.

Preferi não participar das adivinhações. Lloyd e eu esprememo-nos ao lado dos pendulares. Abri a escotilha da cabina. Nosso equipamento especial estava intacto.

Tiramos os trajes espaciais e envergamos os novos trajes de combate, fabricados na Terra segundo o modelo dos trajes de guerra arcônidas.

Eram muito mais leves que os velhos modelos. E, o que era o principal, permitiam maior mobilidade. O ar do planeta era respirável, mas preferimos não deixar de lado o equipamento de suprimento de oxigênio.

Rhodan foi o último a colocar seu traje. No interior da Bey XII surgiu uma confusão. Ao que parecia, seus tripulantes haviam decidido combater o incêndio.

Lloyd ligou o campo gravitacional do transmissor de grande potência, que perdeu o peso. Passando por camarotes e compartimentos de carga, chegamos à eclusa de ar sem que nos tivéssemos encontrado com um único pendular. Rhodan abriu ambas as escotilhas. Uma lufada de ar quente e úmido penetrou na câmara. Embaixo de nós a vegetação rasteira continuava a arder.

O aparelho de múltipla finalidade que trazia no pulso esquerdo começou a tiquetaquear. A Bey XII provocara a contaminação radioativa da área de aterragem.

Rhodan fechou o capacete.

— O que será feito dos trajes espaciais? — perguntou Lloyd.

Rhodan fez um gesto de pouco-caso.

— Poderão ficar de presente para esses cavalheiros. Sugiro que dispensemos as despedidas.

Inclinei o corpo e olhei para baixo. As colunas de apoio haviam penetrado profundamente no chão da floresta.

— Ficarei muito admirado se esta nave decolar de novo — observei.

— Acho que este gênio universal é capaz de praticar qualquer façanha — disse Perry com uma risada. — Então...?

Liguei o equipamento antigravitacional na adaptação automática à pressão existente. Lufadas de ar fresco saíram das válvulas do capacete e acariciaram meu rosto aquecido.

O platô de rocha sem vegetação, que havíamos visto antes de pousar, ficava quase no centro da ilha. Em hipótese alguma deixaríamos de encontrá-lo.

Lloyd tirou o transmissor da abertura e voou atrás dele. O micropulsador de seu propulsor de empuxo era quase totalmente silencioso.

Rhodan foi o próximo a ir voando. Voltei a olhar para trás e esforcei-me para penetrar com a vista nas nuvens de fumaça negra.

Antes que eu ligasse o aparelho de vôo. Beybo apareceu. Saiu das profundezas da nave e tinha o aspecto de um limpador de chaminés.

— Ei, aonde vão? — gritou. — Vocês me devem uma taxa de pouso de cinco mil solares. A nave sofreu graves avarias por culpa de vocês. Nem sei o que estou dizendo. Nunca vi avarias desse tipo. O custo do pouso não está incluído no preço do transporte.

Cumprimentei-o com um gesto e empurrei-me com os pés. Subi verticalmente e logo perdi de vista a Bey XII. Quando cheguei acima das copas das árvores, vi meus companheiros, que flutuavam no ar e me orientavam por meio de sinais.

Vi o platô a menos de três quilômetros. A massa de rocha erguia-se abruptamente em meio à planície.

Aproximamo-nos cautelosamente. Pousamos numa área livre, situada ao pé da elevação.

Lloyd sentou-se numa pedra e pôs-se a escutar com seus parassentidos. Rhodan e eu ligamos o transmissor, irradiamos os sinais goniométricos previamente combinados e passamos à recepção.

Esperamos cinco minutos, mas nossos cruzadores de localização não responderam.

— Caramba! — disse Rhodan em tom de surpresa.

Só então levei ao seu conhecimento uma ordem especial, que emitira pouco antes de nossa partida.

Os comandantes dos cruzadores foram instruídos a, uma vez registrado o choque de reimersão no Universo normal, manter as comunicações pelo rádio suspensas pelo menos durante duas horas.

— Julguei conveniente agir assim — disse, ao concluir minha explicação.

Rhodan limitou-se a acenar com a cabeça.

— Mas você tem certeza de que as naves já estão aqui?

— Certeza absoluta. Ninguém deixaria de perceber aquela manobra maluca. Os cruzadores seguiram-nos imediatamente. Provavelmente a esta hora Claudrin já se encontra no semi-espaço. Tomara que essas naves gigantescas não sejam localizadas.

Ligamos o dispositivo automático de registro em fita de nossos receptores e olhamos em torno. Nuvens de vapores escaldantes subiam das profundezas. O planeta ainda não havia gerado nenhuma forma de vida inteligente. Mostrava a flora típica de um mundo jovem. Os continentes ainda estavam cobertos pelas águas dos mares primitivos.

Guardei a arma. Não havia nada contra o que se pudesse lutar. A luz do sol amarelo foi escurecendo. Nuvens escuras, encharcadas de água como se fossem esponjas, concentravam-se no horizonte. A temperatura subiu a sessenta e dois graus centígrados. A percentagem de umidade da atmosfera era tão elevada que a parte externa de meu traje versátil pingava que nem uma peça de roupa molhada.

Rhodan sacudiu-se.

— Não gostaria de enfrentar uma tempestade por aqui. Vamos andando.

— Para onde?

Fechou cautelosamente a lâmina de climatização de seu traje, que fora aberta por algum tempo, e passou a se utilizar exclusivamente do sistema respiratório artificial. Dali em diante, sua voz tornou-se mais abafada.

— Se chegamos ao planeta certo, alguém acabará entrando em contato conosco. Vamos aguardar. De qualquer maneira deveríamos procurar um lugar para abrigar-nos. É provável que por aqui existam cavernas naturais.

Os dispositivos antigravitacionais regulados para um desempenho baixo permitiam saltos muito amplos. Dali a alguns minutos encontramos um labirinto de cavernas. Ao norte da elevação de rocha fumegavam as águas mornas de um mar primitivo.

Cinco minutos depois desabou uma tormenta do tipo das que só podem ocorrer em planetas jovens. Os trovões sucediam-se numa seqüência tão rápida que as massas de rocha tremeram como se estivesse havendo um terremoto.

A chuva parecia ser uma catadupa. A escuridão era iluminada pelas descargas elétricas ininterruptas.

A tempestade logo cessou. A camada de nuvens abriu-se e o olho amarelo do sol desconhecido passou a contemplar a paisagem.

Rhodan sacudiu o corpo.

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Lloyd começou a falar.

— Há alguma coisa por perto.

Estremeci. Notei que num gesto instintivo pus a mão na arma e dei uma risada contrariada. Rhodan também puxara a pesada arma térmica.

— Quem está por perto? Um telepata? Lloyd passou a perscrutar ainda mais intensamente seu interior.

— Não, mas o desconhecido tem um dom muito fraco. Posso registrar perfeitamente sua presença. Não sei se ele poderá apalpar minha mente. Provavelmente só sente minha presença.

Minha tensão interior fez com que fosse para fora. Não vi ninguém. Lloyd comunicou os resultados de sua determinação goniométrica parapsicológica.

“Não é nenhum robô!”, avisou meu cérebro adicional. “Cuidado!”

Era claro que o ser localizado por Lloyd não poderia ser um robô. Ao que parecia, minha teoria não era correta. Desde quando os pos-bis mantinham contato com criaturas dotadas de vida real? Quem teria sido enviado por eles? Ou então — a idéia deixou-me apavorado — será que os pos-bis não tinham nada a ver com o estranho convite para o encontro? Nesse caso teríamos sofrido um revés, fossem quais fossem os seres que nos esperavam. No atual estágio dos acontecimentos, só estávamos interessados em contatos com os pos-bis.

Nossos rádios emitiram um sinal. Alguém estava chamando. Não se deu ao trabalho de proferir um cumprimento. Sua voz era monótona. O locutor usava a língua arcônida. Por estranho que pudesse parecer, o desconhecido usava o termo terrano “pessoa”. Isso me deixou ainda mais desconfiado. Havia algo de errado neste mundo primitivo.

— Pedi a visita de apenas duas pessoas — disse a voz saída do alto-falante embutido em meu capacete.

Rhodan me fez um sinal. Calquei a tecla de transmissão.

— Compreendemos sua mensagem. Não estávamos dispostos a dispensar a presença de um serviçal. Você acha que isso representa um risco para sua pessoa?

O desconhecido ficou calado por um instante.

— Está bem — disse finalmente. — Estou falando com Sua Majestade, o Imperador?

Rhodan sobressaltou-se. A situação estava ficando confusa. Será que entre os pos-bis havia alguém que conhecesse o tratamento oficial que me deveria ser dispensado?

— Aqui fala Gonozal Oitavo — confirmei.

— Obrigado pela visita.

— Quem está falando?

— É Willy.

Durante minha longa existência já vira muita coisa, mas nunca me encontrara numa situação como esta. Rhodan examinou cuidadosamente sua arma energética. Lloyd escutava de olhos fechados. Compreendi que, na opinião de Perry, havíamos caído numa armadilha.

— Quem é Willy? — perguntei.

— A irmã de leite.

— Como...?

A pessoa que usava o nome de Willy não respondeu. Espantei-me. Rhodan fitou-me com uma expressão de perplexidade.

Lloyd fez um sinal. Estava nervoso. Não compreendi o que queria dizer com isso, mas finalmente explicou em tom apressado:

— Willy está trabalhando com uma máquina tradutora. A expressão irmã de leite constitui a interpretação de um conceito que nos é estranho.

Compreendi. Apesar disso era de espantar que alguém se identificasse por essa designação.

— Você é a verdadeira vida? Foi a verdadeira vida que enviou você? — perguntei.

Logo saberíamos se Willy era um enviado da dinastia de robôs biopositrônicos, ou se era uma figura totalmente nova no jogo do poder galáctico.

— Sou a verdadeira vida. Amo o interior e o protejo. Dou-lhes as boas-vindas. O administrador terrano também está presente!

A última frase era antes uma constatação que uma pergunta. Sem dúvida o pouso da Bey XII fora registrado e devidamente interpretado. Senti-me aliviado. A interpretação da verdadeira vida era complicada, mas já havíamos aprendido a lidar com ela.

De forma alguma, a verdadeira vida tinha de ser cem por cento mecânica, muito embora depois dos primeiros encontros com os pos-bis supuséssemos que fosse assim. Para seus setores sintéticos de plasma, a verdadeira vida era constituída por um conjunto orgânico semelhante à ligação que unia os tecidos orgânicos. De outro lado, as ligações materiais totalmente diversas dos laurins não eram reconhecidas como formas de vida orgânica. O conhecimento desses detalhes fizera-nos avançar um bom pedaço na trilha da compreensão. Todavia, era espantoso que até os robôs desalmados, mesmo não dispondo do elemento adicional sintéticos, fossem reconhecidos como manifestações da verdadeira vida.

— Estou esperando, majestade — informou Willy, para logo a seguir dizer onde poderia ser encontrado. — Estou só — disse, enfatizando as palavras.

Meu alto-falante emitiu um estalo. Rhodan escondeu nosso transmissor nos fundos da caverna e o protegeu por meio de um campo energético. Por um instante prestei atenção ao zumbido tranqüilizador da micro unidade energética embutida. Depois olhei para o relógio.

Cerca de uma hora e meia se passara desde o momento do pouso. Dentro de trinta minutos, no máximo, os comandantes de meus cruzadores responderiam aos meus chamados pelo rádio. Se surgisse algum perigo, a resposta viria antes.

Ao que parecia, Willy não sabia que havíamos tomado nossas precauções. Rhodan entregou-se a reflexões semelhantes.

— Este ser, que sem dúvida possui inteligência, bem que poderia imaginar que os dois homens mais importantes da Galáxia conhecida não pisariam “abertamente” num mundo desconhecido.

— Parece que você não tem complexos de inferioridade, bárbaro — respondi, para provocar o terrano.

Rhodan compreendeu. Já nos conhecíamos bastante para olhar através de nossas máscaras de equilíbrio e autocontrole. Rhodan sabia que, quando eu o lembrava de que os terranos deviam sua rápida ascensão exclusivamente ao meu povo, estava possuído por uma tensão interior.

Por sua vez, quando Rhodan falava com uma objetividade marcante e certa rigidez aparecia em seu rosto magro, eu podia ter certeza de que estava tão tenso quanto eu.

— Somos os homens mais importantes da Galáxia — respondeu sem a menor ênfase. — Willy deve saber que não somos idiotas. Que motivo teria para receber-nos sozinho? Será que essa criatura dispõe de defesas tão poderosas que nem mesmo uma companhia de especialistas poderá machucá-la? Ou então, terá ofertas tão vantajosas que as mesmas bastarão para torná-la invulnerável? O que acha de Willy, Lloyd?

Fellmer fitou-nos com uma expressão de perplexidade.

— Ela se protege. Sabe fazer ao menos isso. Percebeu que andei “escutando” sua mente. Mas não noto nenhuma maldade em suas irradiações mentais. Diria antes que há nelas uma profunda sabedoria.

— É uma filósofa. Era só o que faltava — disse Rhodan com um suspiro. — Está bem; vamos para lá. Acho que nossa amiga desconhecida não se zangará se ligarmos os campos defensivos de nossos trajes de guerra, não é mesmo?

Fitou-nos. Tinha a testa enrugada. Esses terranos sempre andavam desconfiados. Quem tivesse conquistado sua amizade, poderia confiar neles. Mas ai das inteligências com as quais, segundo sua opinião, se deveria lidar com cuidado. Mesmo que a desconfiança tivesse resultado de um engano, sempre sobravam certos preconceitos. Talvez fosse este o ponto mais fraco no caráter grandioso do ser humano.

Colocamos as grandes unidades energéticas sobre os ombros, regulamos os campos antigravitacionais para 0,25G e fomos saltando encosta acima.

Depois de alguns minutos avistamos o platô. Media cinqüenta metros de lado e seu formato era irregular. Ao norte descia numa encosta íngreme em direção ao oceano.

Havia uns poucos blocos de pedra espalhados por ali. Olhei em torno, e de repente avistei o monstro. Alguma coisa saiu de seu corpo esponjoso. Vi braços finos, que nem mangueiras de jardim, de cujas extremidades saíam lampejos ameaçadores.

Foi sem dúvida meu instinto milenar que me fez procurar um abrigo e empunhar a arma. O ser esférico de mais de dois metros de altura inchou e sua cor mudou para o violeta.

Antes que tivesse tempo para apertar o gatilho, ouvi gritos horríveis. De início pensei que Rhodan ou Lloyd tivesse sido atingido por alguma arma desconhecida, mas finalmente compreendi que era Willy que estava emitindo esses sons.

Seu corpo gigantesco desprendeu-se do solo. A extensa área de apoio modificou sua configuração, completando o formato esférico do corpo. Centenas de cristais reluzentes presos a igual número de perninhas tortas apareceram embaixo do corpo.

Fiquei perplexo ao notar que Willy começou a executar movimentos de rotação, que se tornavam cada vez mais rápidos, até que o olho não conseguiu acompanhá-los mais. Os tocos de pernas uniram-se, formando uma broca, por meio da qual o ser ia penetrando na rocha dura como se a mesma fosse feita de lama.

Gritando terrivelmente, Willy afundou rapidamente até desaparecer em meio a uma nuvem de pó. Não confiei no que meus olhos viam, até que ouvi a gargalhada de Rhodan. Poucas vezes ouvira o terrano rir tão gostoso.

Lloyd sorriu. Ainda indeciso, olhei para minha arma energética, com a qual por pouco não matei um ser inofensivo.

— O que é isso? — perguntei, titubeante.

— Ninguém confia em mim — disse a voz saída dos alto-falantes de nossos capacetes. — Será que para vocês meu aspecto é tão assustador? Posso sair de novo?

— Pois não — respondi. — É claro que pode sair. Foi um engano. O que foi que você tinha preso nas pontas das “mangueiras”?

— Você quer dizer nos meus braços — retificou a irmã de leite. — Os cristais de perfuração brilham sob o efeito da luz. Os outros seres sempre pensam que se trata de algum instrumento perigoso. É uma lástima.

Aproximamo-nos do buraco e constatamos que era bastante raso. O corpo deformável de Willy se comprimira num torrão, que mal se destacava da rocha. Além disso parecia ter assumido a coloração desse material. Fitei três olhos proeminentes, que Willy fizera sair do tecido trêmulo de seu corpo.

— Sou um pequeno covarde — comunicou. — Dizem que, em muitos mundos, os sintomas do medo, que afinal é apenas uma característica ininfluenciável, são interpretados como covardia. Será que isso é correto?

Procuramos acalmar Willy. Lloyd já constatara que a medusa realmente viera só.

A criatura foi inchando aos poucos. Utilizando seis tentáculos, foi saindo do buraco. Depois foi saltitando a passinhos ligeiros pelo platô.

— Sou velha e sinto mais frio que os jovens — disse Willy, em tom suave.

— A temperatura é de sessenta e dois graus! — observou Rhodan.

— Realmente está fazendo frio — disse a estranha anfitriã, insistindo na opinião que acabara de manifestar.

Seus olhos alongaram-se e fitaram-nos um por um.

— Fico satisfeita por vocês terem vindo. Será que meu pedido foi insolente?

— Digamos que foi um tanto incompreensível — respondi. — Mas vamos logo ao assunto. Gostaríamos de falar com a unidade suprema de comando dos pos-bis, quer esta seja mecânica, quer seja orgânica.

Finalmente vimos a tradutora de Willy, que estivera escondida numa dobra da pele. A fala tornou-se um pouco mais nítida.

— Pos-bis! Isso soa bastante estranho — disse o ser, em tom apaixonado. — Você naturalmente se refere à verdadeira vida, não é mesmo?

— Refiro-me aos pos-bis. Não há dúvida de que eles estão subordinados a uma unidade de comando.

— A duas unidades de comando — anunciou a tradutora.

Ouvi Perry tossir. Dali em diante foi ele quem conduziu a palestra. Levei bastante tempo para compreender que a mesma já se transformara numa série de negociações. As Circunstâncias acessórias eram estranhas.

Um forte trovão nos fez estremecer. Willy voltou a soltar um grito e transformou-se numa broca de pedra viva. Procurei abrigar-me das lascas de pedra que voavam por toda parte e olhei para o sul.

A proa achatada da Bey XII aparecia entre as copas das árvores gigantescas. Línguas de fogo lambiam o corpo da nave, mas este foi-se destacando do verde-azulado.

Uma vez acima das copas das árvores, a velha nave lutou para estabilizar-se. Os bocais dos jatos de popa descarregaram-se ruidosamente, e o trovejar transformou-se num rugido infernal. Beybo estava decolando como quem foge de um inimigo mais forte.

Esperamos que a nave cargueira desaparecesse no céu encoberto. Willy continuava a choramingar. Realmente era uma criatura inofensiva. Mas mudei de opinião quando os receptores dos nossos capacetes começaram a funcionar de repente.

Beybo estava chamando em nossa freqüência. Provavelmente havia acompanhado a palestra que mantivemos com a medusa.

Berrou algumas palavras acompanhadas de insultos de baixo calão. Tentei descobrir o sentido de sua fala, mas não tive tempo.

Junto à confusa mancha colorida que representava o verdadeiro sol apareceu outro astro. A gritaria de Beybo cessou de repente. Olhei para o céu, até que tive de fechar os olhos diante da luz fulgurante branco-azulada.

Rhodan arrastou-me para trás de um bloco de pedra. Dali a pouco, uma onda de pressão quente uivou em torno, atirando Lloyd para o abismo. Seguramo-nos desesperadamente na borda da rocha.

Demorou bastante até que o furacão amainasse. Embaixo de nossos pés bramiam as águas agitadas do mar primitivo. Chamei o nome de Lloyd, que naquele justo instante saiu da água. Seu traje hermeticamente fechado salvara-o da morte por afogamento.

Sem dizer uma palavra, lançamos os olhos para o alto. Não demos atenção ao choro de Willy. A bola de fogo violeta espalhara-se. Nas bordas emitia uma luminosidade vermelha.

Sabíamos que alguém acabara de destruir a Bey XII. Lembrei-me dos gritos finais do pendular. Segundo esses gritos, localizara uma nave e esta abrira fogo contra ele.

— Que nave terá sido essa? — disse, pensando em voz alta.

Rhodan fitou-me com uma expressão sombria. Imaginei o que deveria ter acontecido. Tinha certeza de que Beybo não fora atacado por nossos cruzadores.

A mão de Rhodan desceu rapidamente. Voltou a subir, empunhando a arma térmica. O cano foi apontado na direção do buraco em que Willy se abrigara.

— Saia daí — disse Rhodan, em tom áspero. — Saia logo e deixe de bancar a inocente.

— O sujeito de cabelos no rosto não quis obedecer — gritou Willy, dominada pelo pânico. — Eu lhe proibi que saísse do planeta. Não tenho o menor controle sobre o que está acontecendo.

— Se todas as pessoas que na sua opinião sejam desobedientes têm de morrer, prefiro não conversar com você — disse Rhodan, em tom enérgico. — Saia do buraco.

Willy inflou seu corpo. Suas garras duras como o diamante arranhavam a rocha.

Ficou sentada à nossa frente. Era grande e brilhante e pulsava de medo. Os tentáculos que substituíam os braços pendiam molemente junto ao corpo.

Senti pena dessa criatura. Não houve necessidade de segurar o braço de Rhodan, pois este baixou a arma espontaneamente. Percebi que estava lutando consigo mesmo.

— É um erro tático poupar esta criatura — disse depois de algum tempo e, furioso, guardou a arma. — Uma outra inteligência não teria hesitado um segundo em disparar o tiro. Por que será que sempre somos tão condescendentes?

Fitei-o prolongadamente. Bem acima de nossas cabeças o sol atômico começava a extinguir-se. Sabíamos que a Bey XII não existia mais.

— Por quê? Ora, meu caro, os terranos amadureceram. Já não têm tanta pressa em atirar como antigamente. Acho que isso é bonito.

— Outros seres acham graça nisso. Pensam que somos fracos. O respeito pelas criaturas feitas por Deus é visto como um sintoma de incapacidade de enfrentar a vida. Em última análise esse fato faz com que as operações mentais de nossos numerosos inimigos cheguem a conclusões falsas, que acabam por dar origem a guerras e agressões totalmente inúteis. Só o forte pode conquistar e conservar o poder...

— Depende do que se queira entender por força. De forma alguma o conceito se identifica com as salvas das frotas atacantes e com as fogueiras atômicas que fazem explodir os planetas...

Rhodan interrompeu-me com um gesto rápido e ergueu o corpo. Willy estendeu cautelosamente dois olhos proeminentes.

— Vocês realmente são a verdadeira vida — disse o ser, manifestando sua opinião. — Minha missão não terá sido em vão. Vim para pedir auxílio a vocês. Para mim é bastante desagradável lembrar a você, Perry Rhodan, que nós já ajudamos seu povo. Agora é sua vez.

Estive a ponto de dizer algumas palavras que exprimissem minha surpresa. Aquilo era um aspecto totalmente novo. Então os pos-bis estavam pedindo ajuda! E logo a pediam a nós, que nos encontrávamos em situação de inferioridade diante deles. O excelente comando impotrônico, de cuja existência já não podíamos duvidar, devia ter apurado por meio de uma série de cálculos que uma única nave fragmentária tinha o poder combativo de uma esquadrilha arcônida. Que motivo teriam para pedir nosso auxílio? E, o que era mais importante, contra quem seria prestado nosso apoio?

O mutante fez sinal de que desejava falar.

— Estou registrando numerosos impulsos cerebrais. São pos-bis, sir. A intensidade está crescendo. Uma nave prepara-se para pousar. Deve haver milhares de robôs no interior da mesma. Os impulsos são inconfundíveis.

Com isso teve início nossa fuga pela mata virgem, apesar dos gritos desesperados de Willy. Não acreditamos mais nele. Ainda não havíamos encontrado nenhum pos-bi que possuísse as boas qualidades em cuja existência a medusa queria que acreditássemos.

— Não se afastem — disse sua voz chorosa, que ouvimos pela última vez. — Fiquem aqui e tenham confiança. Existe uma nave que não obedece aos circuitos de ódio do cérebro mecânico, mas está submetida apenas à verdadeira vida. Fiquem.

Mergulhamos embaixo das copas das árvores. Desligamos os campos defensivos, para reduzir o perigo de sermos localizados pelos instrumentos.

Rhodan chamou a si mesmo de idiota. Chegamos à margem da ilha e escondemo-nos numa caverna aberta pela água. Ouvimos o rugido de uma espaçonave de grandes dimensões que mergulhava na atmosfera.

Já conhecíamos o ruído. Era o que costumávamos ouvir quando um supergigante da classe Império ou Universo rompia em alta velocidade a atmosfera de algum planeta.

 

Na pressa deixáramos para trás o grande transmissor, mas os minicomunicadores tinham potência bastante para permitir o contato com a frota.

A Teodorico já respondera ao primeiro chamado. O Comodoro Jefe Claudrin estava no aparelho.

— Saímos da zona de libração há três minutos, sir — informou. — A localização estrutural foi facílima. O senhor se encontra no planeta Sumath, situado a quatro mil, oitocentos e dezesseis anos-luz de Árcon. O sol amarelo não tem nome. Localizamos três naves fragmentárias. Uma delas acaba de penetrar na atmosfera impregnada de vapores d’água. Quais são as ordens, sir?

Abri o fecho magnético e joguei o capacete para trás. O ar cheirava a podridão e gases dos pântanos. Ainda se ouvia o rugido.

— Nada de ataques! — recomendei em tom apressado. — Acredito na medusa. Não vamos desperdiçar todas as chances. Aguarde outras notícias e procure bloquear o planeta. Mesmo que surjam outras naves fragmentárias, não atire enquanto não for atacado. Quero assistir ao curso dos acontecimentos.

Rhodan ordenou ao comodoro que seguisse minhas recomendações. A ligação foi interrompida.

Willy não entrou mais em contato conosco. Provavelmente voltara a enfiar-se em seu buraco para fazer o jogo do avestruz.

“Nem todo sábio é valente,” pensei.

Willy era uma enviada dos pos-bis, e sua reduzida capacidade de adaptação constituía um elemento perturbador. Talvez não existisse outra criatura à qual os robôs pudessem recorrer.

Um objeto de grandes proporções surgiu na atmosfera úmida. Gigantescas ondas de pressão chicotearam a água, e a caverna encheu-se de lama. Não tivemos outra alternativa senão abandonar o refúgio, que de qualquer maneira não era muito seguro.

— Localização! — anunciou Fellmer Lloyd. — Registraram a presença de nossas vibrações individuais.

Lancei um olhar para meu rastreador de eco. O ponteiro executou um movimento inconfundível, o que provava que também havíamos sido localizados em base técnica.

— Por que será que eles derrubaram a Bey XII? — perguntou Rhodan, pensando em voz alta.

A pergunta ficou sem resposta, muito embora eu pudesse imaginar perfeitamente por que eles o haviam feito. Os pos-bis não queriam que ninguém conhecesse seu segredo. Se Beybo tivesse escapado, sem dúvida não deixaria de falar sobre o estranho pedido de transporte por ele executado. Provavelmente nada lhe teria acontecido, se tivesse obedecido às instruções.

Mas, por outro lado, a destruição da nave cargueira também provava que para os pos-bis o fim justificava os meios. O que se poderia concluir dali? Por enquanto apenas nos haviam pedido que lhes ajudássemos. Se continuássemos a esconder-nos, eles nos obrigariam.

Não consegui imaginar de que forma poderíamos ser úteis aos pos-bis. Além disso o seqüestro de dois estadistas galácticos teria algo de ilógico. Por que não nos haviam pedido que lhes fornecêssemos cientistas, técnicos ou especialistas militares altamente qualificados? Afinal, os peritos poderiam fazer muito mais que Rhodan e eu. Nosso saber era amplo, mas não éramos especializados em nenhum setor.

Preferi não refletir mais sobre isso. O rugido voltou a crescer, transformando-se num furacão, e cessou de vez. A monstruosa nave, que era muito maior que a ilha em que nos encontrávamos, estava imobilizada acima das águas do mar primitivo. Era uma típica nave fragmentária, cuja forma exterior parecia ter sido criada pela fantasia de um doente mental.

A superfície aproximadamente cúbica do casco era interrompida por inúmeras superfícies, saliências, torres e galerias assimétricas. A disposição dos propulsores só podia ser reconhecida pela luminosidade violeta dos bocais dos jatos.

Retiramo-nos para a mata e, voando pouco acima da superfície, dirigimo-nos ao lugar em que pousara a Bey XII. A radioatividade da clareira oferecia certa proteção contra a localização pelos instrumentos.

Abrigamo-nos atrás de um tronco, na periferia da área queimada. Rhodan fez um sinal. Quando se pôs a falar, percebi que mais uma vez nossas opiniões eram idênticas.

— Viemos para procurar um contato. Se fugirmos, a tentativa terá sido inútil. É claro que existe o perigo de sermos seqüestrados e usados como reféns. Mas a própria superioridade militar dos pos-bis depõe contra essa hipótese. Só o fraco usa meios traiçoeiros. Qual é sua opinião, Atlan?

Cheguei a uma conclusão.

— O ataque à nave cargueira e o pouso da nave fragmentária levaram-nos a agir apressadamente. Acho que devemos voltar para onde está Willy.

— Quer dizer que pretende colocar-se voluntariamente nas mãos dos pos-bis? Você já se deu conta de que a tripulação da nave é formada por robôs?

— É formada por pos-bis que, segundo as últimas palavras de Willy, não estão submetidos ao cérebro mecânico — respondi em tom enfático. — Lembro-me perfeitamente da expressão circuito do ódio, que foi usada em relação ao cérebro de comando. O que vem a ser circuito de ódio?

— Willy está chamando — informou Lloyd. — Percebeu que sou telepata. Pede que não tornemos a situação ainda mais complicada. Garante nosso bem-estar.

— Não aludiu à nossa liberdade?

— Só falou em nosso bem-estar, sir.

Ainda estávamos hesitantes, quando Claudrin voltou a chamar. Desta vez parecia muito mais nervoso.

— Localizamos pelo menos cem naves fragmentárias — informou, utilizando o sistema de comunicação a velocidade superior à da luz. — Estão entrando em formação de ataque. A Monza está sob fogo. É estranho, mas por enquanto os pos-bis só estão usando armas de radiações convencionais. Ainda não dispararam um único tiro dos canhões de raios conversores. Quais são as ordens, sir?

Rhodan refletiu febrilmente. Era possível que fôssemos cometer um erro catastrófico, mas alguma coisa tinha de ser arriscada.

— Retire-se, Claudrin — ordenou o terrano. — Abandone o sistema, reúna as unidades e peça reforços a Reginald Bell. Ao que tudo indica, querem que subamos a bordo de uma nave fragmentária.

— Sir, o senhor não vai cometer a leviandade de...!

— Se perdermos o contato que acaba de ser estabelecido, isso poderá ser o fim de nossa civilização. O senhor tem algum telepata a bordo?

— Não senhor. Não conseguimos alcançar nenhum.

— Será que assim mesmo o senhor pode constatar se os impulsos dos suplementos cerebrais orgânicos são hostis?

— Os rastreadores não estão reagindo. Ao que parece, os disparos só foram feitos a título de advertência.

— Como poderei entrar em contato com o senhor? — perguntou Claudrin, com uma ponta de desespero na voz. — Bell me arrancará a cabeça quando descobrir que eu o deixei partir. Não quer que o tiremos do aperto? Tenho dois jatos espaciais nas comportas. Dentro de dez minutos poderão...

Rhodan interrompeu-o:

— Final, senhor comodoro — e desligou o aparelho portátil.

O rugido ainda enchia o ar. As máquinas do gigante fragmentário, que descansava sobre seu campo antigravitacional, só pareciam esperar o impulso de decolagem que as libertaria.

Não dissemos mais muita coisa. Os dados haviam sido lançados. Ligamos o equipamento de vôo e subimos entre as árvores. Quando saímos da mata, vimos inúmeros pontos pretos que saíam das escotilhas da espaçonave. Lloyd disse que eram robôs pos-bis.

Voamos em direção ao platô mais depressa do que planejáramos. Vimos Willy bem longe. Seu corpo enlaçara um bloco de pedra, fazendo com que tivesse o aspecto de um farol aceso.

Saltei no solo com a arma engatilhada. O zumbido do equipamento de vôo cessou. Outra vez fui atingido pela gravitação normal.

— Você voltou! — disse Willy, usando a tradutora.

Quase tive a impressão de que desta vez as palavras eram pronunciadas com certa ênfase. Evidentemente era um engano. Não conhecia nenhuma máquina tradutora que possuísse essa qualidade.

— O que foi mesmo que você disse a respeito do circuito de ódio, Willy? — perguntei. — Quem está pilotando essa nave?

— São exclusivamente os servos do interior. Não existe o menor perigo. O interior sobrepõe-se às ordens da máquina. Não faça tantas perguntas, meu jovem. Minhas intenções são boas.

Os olhos salientes de Willy emitiam o mesmo brilho indiferente de antes. A expressão não mudou quando os corpos mecânicos tocaram o solo atrás de nós, à nossa frente e dos lados. O aspecto exterior dos pos-bis era aproximadamente igual ao dos humanos. Já sabíamos que haviam sido construído pelas maiores inteligências da Galáxia, que foram os robólogos do planeta Mecânica.

Rhodan ainda mantinha a arma ameaçadoramente erguida. Eu já baixara a minha. Lembrei-me de um velho provérbio terrano, segundo o qual todo aquele que procura o perigo acaba achando. Agora não podíamos fazer mais nada para modificar a situação.

— Nem mesmo um cachorro novo pode ser mais leviano — disse Rhodan. — Willy, permita que lhe lembremos que foi você quem nos convidou. E um convidado deve ser protegido.

— Isso mesmo.

Estive a ponto de soltar um suspiro de alívio, quando o braço armado de um dos robôs ergueu-se. O movimento foi de uma rapidez que parecia irreal. Meu olho viu as ondulações verdes que envolveram meu corpo antes que minha mente conseguisse absorver a situação. Rhodan e Lloyd também foram cercados pela cintilância.

Num acesso de raiva, tive vontade de gritar alguma coisa, mas não tive tempo. Meu corpo amoleceu. Antes de perder os sentidos, ainda ouvi a voz saída da tradutora de Willy.

— Para proteger o convidado e amigo devemos guardá-lo de toda desgraça, inibir os atos inspirados pelo instinto e abafar o pânico que ameace dominar a criatura.

Névoas escuras agitavam-se diante dos meus olhos. Meu último pensamento disse respeito às peculiaridades da arma que acabara de ser utilizada. Não senti o choque doloroso que invariavelmente é produzido pelas armas paralisantes energéticas. Os pos-bis haviam usados os raios narcotizantes.

 

Alguém estava cantando. Era uma sucessão monótona de altos e baixos, que se dirigia antes ao espírito que ao ouvido. Abri os olhos. Não senti dores.

Rhodan já havia acordado. Ao que parecia, o corpo resistente do terrano não levara tanto tempo para superar os efeitos anestésicos.

Ergui-me abruptamente. Lloyd continuava deitado imóvel a nosso lado. Apoiei as mãos no chão e toquei numa substância elástica. Tive a impressão de que se tratava de espuma de borracha.

— Olá — disse Rhodan com a voz seca. — Deixe para lá seu acesso de raiva. Já cuidei disso para você. Onde está Willy?

Olhei em torno e apontei para uma criatura pulsante, que estava firmemente grudada no chão.

Estive a ponto de dizer que Willy se encontrava bem perto, mas no mesmo instante descobri outras inteligências desse tipo. Eram tão semelhantes que não havia como distingui-las.

Rhodan deu uma risada. Parecia divertir-se a valer.

— As surpresas nunca terminam, não é mesmo? Não comprima suas mãos tão fortemente contra o chão. Você está deitado em cima de Willy.

Olhei para baixo, apavorado. Um olho saliente passou entre minhas pernas abertas. A voz metálica de uma tradutora disse:

— Você está bem, amigo?

— Sim, obrigado — respondi instintivamente, e retirei as mãos.

— É inútil — disse Perry, em tom irônico. — A sala está cheia deles. São os chamados willy-colchões...

— O quê? — interrompi.

— ...cuja tarefa consiste exclusivamente em proteger os objetos transportados contra a dureza das chapas de aço. Os pos-bis não julgaram necessário transformar suas naves espartanas em veículos de luxo, somente em virtude dos transportes de plasma.

Rhodan fitou-me com uma expressão misteriosa. Percebi que devia ter acordado há tempo, pois já descobrira muita coisa.

— Por quanto tempo você ficou inconsciente?

— Sua capacidade de observação é lendária — disse Rhodan, em tom irônico. — Nem cheguei a desmaiar. Apenas fiquei quieto. No último instante consegui ligar meu campo defensivo. Os pos-bis não perceberam. Isso constitui uma prova evidente de que estas máquinas realmente não estão submetidas ao cérebro hiperimpotrônico do mundo central desconhecido.

— A quem obedecem?

— Você se lembra das torres de plasma de Everblack? Estavam cheias de recipientes, que por sua vez continham plasma vivo. Ao que suponho, no mundo central que estamos procurando existem bioconcentrações ainda mais volumosas. Já se provou que essas concentrações não desenvolvem apenas instintos, mas também criam um verdadeiro pensamento. Os pos-bis que se encontram aqui obedecem a essas concentrações, às quais dei o nome de plasma central. Isso significa que seus comandos positrônicos são dirigidos, em essência, pela vida artificial. Neles, os cérebros suplementares superam os impulsos de comando do dispositivo positrônico.

— Não diga! — respondi, surpreso.

— Seja bem-vindo a bordo da mãe protetora, majestade — disse a voz retumbante, saída dos alto-falantes invisíveis.

Olhei em torno, confuso. Ainda desta vez Perry teve uma explicação.

— Foram os seis cérebros orgânicos de comando que se encontram na sala de comando. Também fui cumprimentado. As máquinas tradutoras produzem um vocabulário estranho. A expressão “mãe protetora” designa a nave na qual nos encontramos. Trata-se de uma nave de transporte, cuja tripulação é formada pelos pos-bis, que obedecem ao plasma, e pelos willys. Será que você já começa a compreender?

Limitei-me a olhar para Rhodan. Este franziu a testa, segurou meu pulso e soltou uma gargalhada.

— Não me deixe louco — pedi.

Rhodan fez um gesto.

— É simples. Depois da descoberta dos planetas sem luz, denominados Frago e Everblack, supusemos que os cérebros de plasma ali existentes se multiplicam por meio de uma divisão celular bioquímica. Foi um engano. Em Frago e em Everblack não existem instalações capazes de realizar a produção sintética do plasma. A esteira transportadora que o comando viu não se destina à produção, mas apenas à ativação das massas de tecido que esta nave transporta para os diversos planetas onde existem bases.

“A reprodução propriamente dita só é realizada no mundo central. Willy disse ser uma irmã de leite, porque ela, ou ele, e os outros seres de sua raça se incumbem do transporte. A bordo desta nave existem uns cem seres esféricos, e todos eles atendem ao nome de Willy. Provavelmente este nome também resulta de um erro de tradução cometido pela máquina. Como vê, os willys são capazes de muita coisa. Se não fosse o apoio elástico, não teríamos resistido à pressão causada pela aceleração. Os pos-bis só ligam os neutralizadores de aceleração quando a pressão chega a cerca de 20 G.”

— Isso mesmo — confirmou um dos willys.

Outro olho saliente esticou-se entre minhas pernas.

— Foi muita gentileza sua — disse, sem saber o que estava exprimindo e refleti sobre as informações espantosas de Rhodan.

Minhas palavras provocaram uma espécie de tormenta de alegria. De repente, vários olhos salientes foram saindo de toda parte do revestimento vivo que cobria o solo. Pelo menos cinqüenta willys começaram a falar ao mesmo tempo.

Os que estavam sentados sobre as chapas de aço, em torno do colchão elástico, puseram os braços à mostra e acenaram. Comecei a experimentar uma sensação indefinida de alegria e simpatia. Passei a mão pelos membros macios, que assumiram uma coloração vermelha sob o efeito do contato.

Outros willys formaram uma espécie de almofada com os braços, e fui comprimido suavemente para dentro da mesma. Dessa maneira fiquei sentado em posição bastante confortável.

Naquele momento compreendi definitivamente que, além de inofensivas, essas estranhas criaturas eram adoráveis. Um homem com a minha idade forçosamente teria aprendido que o caráter de um ser criado pela natureza não pode ser avaliado com base na forma de seu corpo. Restava saber até onde chegava o poder das medusas. Ao que tudo indicava, não mandavam quase nada.

Rhodan deixou-me entregue às reflexões. Imaginei que seus conhecimentos mais recentes lhe tivessem sido transmitidos pelos willys. Fiz uma pergunta nesse sentido, e Rhodan confirmou minha suposição.

— Eles me prestaram informações com a maior boa vontade. Estamos sendo levados ao mundo central, onde o plasma principal nos espera. Ao que parece, existe um problema que preocupa nossos amigos. Não têm certeza de qual será o comportamento do gigantesco dispositivo impotrônico. Deve ser um centro de computação muito maior e mais potente que o antigo computador-regente de Árcon III.

“Nossa suposição relativa ao poder de comando é correta. Existem duas unidades de comando. É uma concentração de tecidos dotada de vida biológica que possui uma espantosa capacidade mental e um centro de computação. As duas unidades estão interligadas por um conjunto de nervos ou condutos semi-orgânicos. Essa interligação dá origem ao engaste hipertóictico de que fala a teoria criada por Van Moders.

“Mas há um fato estranho, que eu nunca esperaria: o conflito eterno entre o plasma e o centro de computação. Cada uma das unidades procura, por assim dizer, enganar a outra. Desta vez o plasma levou a melhor, pois, do contrário, não estaríamos a bordo desta nave. Os willys, por exemplo, sentem verdadeira repugnância pela lógica calculista da máquina de comando.”

Mais uma vez ouviu-se uma confusão de vozes. Algumas das medusas esforçaram-se para produzir uma deformação de seus corpos elásticos, que lhes desse forma humana. Tributei-lhes a devida admiração, mas ao mesmo tempo refleti sobre as insinuações de Rhodan.

Já tínhamos certeza de que não fora a impotrônica que nos convidara para dialogarmos, mas sua concorrente orgânica. Não era necessário que ninguém me dissesse quais poderiam ser as conseqüências. Em quase todos os mundos que visitara durante minha vida de mais de dez mil anos, haviam surgido conflitos de competência de várias espécies.

Rhodan cochichou ao meu ouvido que o silêncio que os pos-bis vinham mantendo era devido à máquina. A mesma fora lograda pela primeira vez por meio de truques fundados na Robotológica quando apareci para pedir auxílio na luta da Terra contra os laurins.

Depois disso voltáramos a ser atacados impiedosamente pelo cérebro. Os enigmas começavam a ser decifrados.

Era bem verdade que, por enquanto, não podíamos imaginar de que forma o plasma conseguira convencer o dispositivo impotrônico da necessidade de sermos convidados.

De qualquer maneira poderíamos ter certeza de que o vôo para o desconhecido mundo central dos pos-bis não era nenhuma viagem de prazer, muito embora as medusas fizessem tudo para tornar nossa situação mais agradável.

Rhodan fez um sinal. Nós nos entendêramos. Nossa vida estava por um fio de seda. O que aconteceria se, de repente, o gigantesco centro de computação mudasse de idéia?

Provocaria o choque mais leve, de que um ser vivo nem sequer tomaria conhecimento, para fazer com que um gigante do tipo do ex-regente revogasse todas as decisões e resoluções numa questão de segundos. Para nós isso representava um perigo constante. Tive uma idéia.

— Será que o plasma central tem poder para controlar, ao menos temporariamente, todos os comandos do mundo principal?

— Já esperava essa pergunta — disse Perry. — Ao que parece, o plasma não tem esse poder. Não consegui descobrir o que vem a ser o circuito do ódio a que Willy aludiu. Nossos amigos mantêm silêncio a este respeito. Mas o ódio inextinguível contra os laurins representa uma programação tão firme que não existe nenhum meio de modificá-la.

— Uma programação...? — perguntei em tom de dúvida. — Nossos robólogos, especialmente Van Moders, afirmam que o acoplamento de elementos mecânicos e orgânicos produziu o engaste hipertóictico. Dessa forma surgiram unidades de controle completamente novas. Acho que isso exclui a possibilidade de uma programação normal. A lógica dos robôs mais o sentimento... não sei!

Lembrei-me das experiências pelas quais havíamos passado em Everblack, um mundo dos pos-bis que flutuava nas profundezas do espaço intercósmico. Quando conseguimos paralisar os cérebros suplementares orgânicos dos robôs por meio dos raios narcotizantes, houve uma batalha de destruição entre as unidades de reparos puramente mecânicos do cérebro retransmissor, ali instalado, e os tecidos armazenados nas torres de plasma. Ainda me recordo do grito de socorro: “Amem o interior, salvem o interior.”

Obriguei-me a dispensar outras reflexões. Lloyd já havia acordado. Poderia proporcionar-nos novos conhecimentos.

— Procure descobrir o que vem a ser o circuito do ódio — cochichei ao seu ouvido.

Dali a alguns segundos abanou a cabeça. Os willys se haviam protegido contra suas tentativas de tatear suas mentes. Procurei minhas armas. A iluminação do compartimento de carga era bastante débil. Não demorei a encontrar a arma energética que trazia no cinto.

— Os pos-bis guardaram as armas pesadas — informou Perry. — Parece que consideram as pistolas menos perigosas.

Piscou para mim, e logo fiquei mais descontraído. Seriam realmente menos perigosas...? Quem sabe se neste ponto não estavam enganados? Nos bolsos internos de meu traje de combate, estavam mais alguns objetos que havíamos levado por insistência dos oficiais do Serviço de Segurança Solar.

Ouvimos um uivo. Os willys encolheram os braços. As criaturas deitadas embaixo de nós inflaram-se. Meu corpo foi levantado. Senti que o tecido mole estava endurecendo.

Imaginei o que estava para vir. As transições das naves fragmentárias exigiam o máximo da capacidade de resistência dos arcônidas e dos humanos. Sabíamos que o sistema utilizado pelos pos-bis era diferente do nosso. Seus hipersaltos eram mais amplos e provavelmente consumiam menos energia. Utilizavam uma técnica bastante sofisticada, que provavelmente nunca chegaríamos a atingir. Em sua grande maioria, as naves bélicas das frotas unidas haviam sido equipadas com o novo sistema de propulsão linear. Só as unidades de carga e de abastecimento continuavam a usar as velhas máquinas.

Segurei-me firmemente nas saliências que os willys produziram em seus corpos. Até parecia que estava deitado numa poltrona anatômica.

Dali a alguns segundos tive a impressão de que o rugido me deixaria surdo. Os ruídos produzidos pelos propulsores se pareciam com o trovejar das explosões nucleares.

O choque da transição produziu o efeito da patada de um monstro. Curvei o corpo, soltei um grito e esperei pela desmaterialização que me libertaria do martírio.

Os contornos começaram a confundir-se. Névoas trêmulas surgiram diante dos meus olhos, e ouvi uma voz sonora dizer alguma coisa que não compreendi.

 

Fui o primeiro a acordar. Terríveis dores de cabeça me martirizavam, e meu corpo pesava como se fosse de chumbo. Soltei um gemido e abri a bolsa que trazia no cinto, na qual a Divisão de Suprimentos Médicos guardara a seringa com a substância neutralizadora de choques.

Injetei cinco milímetros em meu corpo e apliquei a mesma dose em Rhodan. Lloyd serviu-se de sua seringa pressurizada.

O estabilizador bioquímico produziu um verdadeiro milagre. As dores passaram, e voltei a enxergar razoavelmente.

Os willys permaneceram imóveis. Toquei-os com as mãos, chamei-os, mas não responderam.

“Estão inconscientes, seu idiota!”, disse meu cérebro suplementar, em tom pouco lisonjeiro.

Era um fato novo. As medusas também eram sensíveis ao tratamento brutal que lhes era dispensado por um maquinismo insensível.

O rugido uniforme dos propulsores provava que já mergulháramos novamente no Universo einsteiniano. Qual seria a distância percorrida? Onde ficava o misterioso planeta central dos pos-bis, que por tanto tempo havíamos procurado em vão? Certa vez conseguimos estabelecer contato pelo rádio, mas esse contato logo foi interrompido.

Sabia perfeitamente que as decisões do computador-regente eram bastante volúveis. A fusão com o componente orgânico dera origem a uma unidade de processamento, que não podia ser influenciada por meio da robotologia usual.

Esperei que Rhodan abrisse os olhos. Meu corpo resistira muito melhor à rematerialização que o seu. Provavelmente isso era conseqüência da viagem realizada há poucas semanas numa nave fragmentária.

Demorou bastante até que os terranos não sentissem mais dores. Os willys foram acordando. Prestei atenção aos sons aflitos que Fellmer Lloyd devia ouvir muito mais intensamente que eu. As inteligências estranhas não haviam protegido seus cérebros por nenhum tipo de bloqueio.

— Estão sofrendo muito — disse o telepata.

Sua voz exprimia compaixão.

— Pode fazer alguma coisa por eles? — perguntou Perry.

Lloyd abanou a cabeça, deprimido. Era estranho que essas criaturas encontrassem tão depressa um lugar em nossos corações. Fitei atentamente os terranos.

Há alguns decênios os mesmos ainda tinham certa prevenção contra todas as formas de vida estranha, inclusive devido à cor da pele dos próprios terranos. Fiquei apavorado ao lembrar-me das guerras religiosas que vira durante minha longa peregrinação pela Terra. Naqueles tempos, as almas dos humanos eram confusas, ainda estavam despertando.

Agora via à minha frente dois representantes desse notável povo galáctico. E ambos se preocupavam com o bem-estar de inteligências que, por certo, eram muito mais estranhas do que poderia ser um homem de pele escura ou de crença diferente dos tempos passados.

Senti-me dominado pela alegria. A cada dia que passava os terranos prestavam-se cada vez melhor para a tarefa de dirigir os povos galácticos.

O espírito humanitário que Perry demonstrava perante os estranhos já se transformara num dos temas das discussões galácticas. Aquele homem estava trilhando por um caminho totalmente novo que conduzia ao entendimento entre os povos.

Meus antepassados procuraram impor a paz e a ordem por meio de couraçados e de canhões energéticos. Rhodan não agiu assim. Sempre iniciava suas lutas com uma palavra apaziguadora. Depois disso argumentava em termos lógicos. Só em casos de extrema necessidade recorria à frota.

Não pudemos fazer nada pelos willys. Depois que superaram suas dores e nos apresentaram suas queixas, os cérebros de comando voltaram a manifestar-se. Durante as experiências anteriores já aprendera que estes estavam guardados em seis grandes abóbadas de aço, presas ao solo da sala de comando.

Naturalmente a execução das ordens cabia exclusivamente ao centro de computação positrônica de elevada capacidade. O plasma não era capaz de mover os controles.

Uma tela iluminou-se. Prendi a respiração. Vi um grande planeta, cercado por dois lindos anéis. Tinha certa semelhança com Saturno, mas este só possuía um anel formado por partículas cósmicas.

Mas o que mais me espantou foi o fato de que esse planeta não era um mundo sem luz como as bases de Frago e Everblack.

Vi numerosos sóis atômicos que cercavam o planeta na altura do equador, mas só mais tarde fiquei sabendo que o mesmo até executava movimentos de rotação. Os sóis artificiais estavam parados no espaço intercósmico, a uma distância média de cem mil quilômetros.

Ao que parecia, o planeta possuía um envoltório atmosférico. Lembrei-me de que o plasma celular dependia do oxigênio para sobreviver.

Será que acabáramos de encontrar um astro que utilizava uma tecnologia inconcebível para aquecer-se por meio de uma série de sóis artificiais e manter-se no espaço intergaláctico para servir de base à existência do plasma?

Não havia outra explicação.

O disco que aparecia à nossa frente crescia rapidamente. Continentes verdes, complexos montanhosos e mares começaram a desenhar-se sobre o mesmo. Naquele momento compreendi que os pos-bis haviam criado uma verdadeira maravilha. Ou teriam sido os antigos construtores desses robôs?

— O ar do planeta é respirável para nós? — perguntou Perry, dirigindo-se aos willys.

O senso prático do terrano já superara a perplexidade.

Sim, o conteúdo de oxigênio da atmosfera era bastante alto para permitir nossa existência. Disseram que havia cerca de duzentos sóis atômicos, que substituíam o sol natural. Quase contra minha vontade pus-me a calcular a quantidade de energia que era gasta no mundo dos pos-bis. Estabeleci comparações com o mundo artificial denominado Peregrino. E os pos-bis não se saíram mal nessas comparações.

Chegou o momento em que nossa vista já não podia abranger toda a extensão do planeta. Ao que parecia, viajávamos a uma velocidade próxima à da luz, motivo por que estávamos submetidos às leis que regem a dilatação do tempo. Do nosso ponto de referência demorou apenas alguns minutos até que iniciássemos o pouso.

— É o mundo dos Duzentos Sóis — disse Perry num tom que quase chegava a ser sonhador. — Até que enfim o vemos à nossa frente. Deve ficar bem nas profundezas do cosmos, pois, do contrário, nós o teríamos localizado. Dificilmente teríamos deixado de constatar a presença dos sóis artificiais. Avançamos mais de duzentos e cinqüenta mil anos-luz em direção ao nada.

— Numa única transição, sir? — perguntou o mutante, em tom de incredulidade.

— É ao menos o que parece. É possível que os pos-bis tenham criado uma técnica que permite a sucessão ininterrupta de grande número de hipersaltos. Isso explicaria as conseqüências mais graves da transição. Mas, no momento, isso não importa.

Minha opinião não era diferente. A desaceleração produzida pelos propulsores foi tamanha que mais uma vez ficamos sujeitos a uma pressão equivalente a 10 ou 12 G.

Ficamos estendidos em nossos estranhos leitos acolchoados. Quase perdemos os sentidos. Os willys fizeram o possível para envolver nossos corpos. Segundo a configuração que a força da inércia assumia a cada momento, modificavam a elasticidade dos tecidos de seus corpos.

Quando cheguei a um ponto em que quase não resisti mais ao estado de inconsciência que pretendia apoderar-se de mim, e que estava ligado a uma tremenda falta de ar, o martírio cessou. Pudemos respirar livremente. O peso de centenas de quilos que oprimia meu peito desapareceu.

Levantei-me com um gemido. Lá fora as massas de ar deslocadas uivavam. A tela mostrava certos setores da superfície do planeta, que parecíamos sobrevoar numa velocidade perigosa.

As palavras de Rhodan deram-me o que pensar. Tinha razão. Se o mundo dos Duzentos Sóis, que era um nome bem adequado para aquele planeta, ficasse a menos de duzentos e cinqüenta mil anos-luz da extremidade de nossa Galáxia, nossas estações de rastreamento teriam localizado tais sóis. A julgar por isso, havíamos penetrado tão profundamente no espaço situado entre as ilhas estelares, que nossa inteligência se recusava a aceitar o fato. Até mesmo para nossas naves mais modernas, seria um problema vencer a distância de duzentos mil anos-luz. Nossos propulsores não se prestavam a tarefas desse tipo.

Espantei as reflexões e concentrei-me sobre o que estava por vir. Instalações industriais de dimensões tremendas passavam embaixo da nave. Mas os complexos não ficavam tão próximos uns dos outros como havíamos visto em outro planeta dos pos-bis, denominado Everblack, cuja superfície tinha o aspecto de um deserto de aço em que não havia a menor vegetação, e no qual as fábricas se encostavam umas às outras.

No planeta que sobrevoávamos, descobria constantemente extensas áreas verdes, savanas, montanhas e grandes mares. Quem seria responsável pela configuração do mundo dos Duzentos Sóis?

“É o plasma central”, disse o setor lógico de minha mente. “Precisa de um verdadeiro espaço vital.”

Fiquei pensativo e acenei com a cabeça. Talvez fosse isso mesmo. Em comparação com este planeta, as condições reinantes em outros planetas e nos postos avançados eram primitivas.

“Será”, pensei, “que o plasma central só conseguiu que lhe fosse concedido um ambiente natural no mundo dos Duzentos Sóis? Será que a luta entre o centro de computação e a matéria orgânica já tivera início há tempos imemoriais?”

— Um comando do Impiedoso os esperará e examinará — disse a voz saída dos alto-falantes. — Não conseguimos impedi-lo. Faremos o possível para abreviar o procedimento. Não existe perigo.

Rhodan levantou-se e procurou um apoio para os pés em meio ao pavimento macio.

— Quem é o Impiedoso, Willy? — perguntou.

Desta vez só uma das medusas respondeu à pergunta. Talvez fosse a mesma que nos esperara no mundo aquático Sumath.

— É o mesmo que você costuma designar pelo nome de centro de computação, meu jovem amigo.

— Compreendo — respondeu Rhodan, em tom hesitante. — Desde quando o dispositivo hiperimpotrônico tem esse nome?

— Desde um tempo que ninguém consegue atingir com a mente.

— De onde veio você, Willy? Acho que não é deste mundo.

As estranhas criaturas mudaram de cor.

Parecia ser uma pergunta importante. Depois de algum tempo, Willy respondeu:

— Disseram-nos que viemos do outro lado. Não sabemos o que significa isso.

— Do outro lado? Será que é de outra galáxia?

— Não sabemos. Desde que nos entendemos, somos guardiões do interior.

Preferimos não fazer outras indagações. Era muito provável que os willys não viessem da Via Láctea. Lembrei-me da nebulosa de Andrômeda, que era a que ficava mais próxima ao nosso mundo estelar. Se é que as medusas tinham vindo de lá, como se explicava sua dependência do plasma? Será que este também provinha de outra galáxia? Em caso afirmativo, quem o teria produzido por lá?

“Resta saber se o plasma realmente é sintético”, disse meu cérebro suplementar.

Houve um forte solavanco e Rhodan foi atirado ao solo. A nave acabara de pousar. Alguns pos-bis apareceram numa escotilha que se abriu. Carregavam nossa arma energética pesada.

— As armas têm de ser entregues — disse um dos willys que, segundo supúnhamos, era nosso velho conhecido. — Nós os protegeremos.

O rosto de Rhodan exprimiu toda dúvida que lhe afligia a mente. As medusas iriam proteger-nos? Ao que parecia, não tinham uma idéia exata de sua impotência.

Caminhamos cautelosamente em direção à escotilha. Os pos-bis mantiveram-se calados. Provavelmente nem eram capazes de comunicar-se.

Comprimi a chave do conversor de símbolos embutido em meu traje de guerra. Pela primeira vez me dei conta de verdade de que os pos-bis haviam tido muito trabalho com a construção da máquina tradutora. Até então só nos havíamos comunicado por meio dos sinais típicos dos pos-bis, que nossa aparelhagem especial transformava em sons inteligíveis.

Coloquei o aparelho em funcionamento, sempre na esperança de captar alguma ordem do chamado Impiedoso. Talvez fosse conveniente que nos mantivéssemos a par das ordens que emitisse.

Um elevador antigravitacional instalado no centro da nave levou-nos para baixo. As instalações internas da nave pareciam um pesadelo, tal qual seu aspecto exterior. Ainda não havíamos descoberto o motivo por que seus construtores resolveram produzir naves desse tipo. Qual seria a razão das formas angulosas?

Lembrei-me dos castelos e fortalezas terranas da Antigüidade. As instalações, de início bem dispostas, sofreram no curso dos séculos inúmeros acréscimos, que as transformaram em complexos de edifícios engavetados, nos quais só o conhecedor conseguia orientar-se. Será que os pos-bis tinham procedido da mesma forma, ao constatarem que a versão primitiva se tornara muito pequena? Teriam sido incapazes de projetar e executar uma coisa inteiramente nova?

Cochichei minha opinião ao ouvido de Rhodan. Talvez a solução fosse esta. Rhodan resmungou alguma coisa que não entendi.

Fellmer Lloyd chegou à eclusa de ar antes de mim. Vários willys nos esperavam.

O mutante pôs a cabeça para fora e aspirou o ar. De repente recuou, apavorado. Ficou pálido e seus lábios tremeram.

— O que houve? — perguntou Rhodan, em tom apressado.

— Estabeleci contato, um forte contato — disse Fellmer, com um gemido. — O plasma central deve estar bem perto. Ele me inunda com suas irradiações individuais.

— Está transmitindo no plano parapsicológico?

— Nada disso. É apenas o fluido. Além disso ainda existem os impulsos típicos dos pos-bis.

Aconselhei-o a se proteger. O solo ficava mais de vinte metros abaixo dos nossos pés. Duas cúpulas laterais assimétricas saíam do casco da nave e impediam a visão.

Saltei para dentro do campo antigravitacional luminoso e o deixei me carregar para baixo. Notei que nos encontrávamos num porto espacial, que estava cercado de edifícios até onde a vista alcançava.

“Devem ser estaleiros”, pensei.

Assim que toquei o solo, olhei em torno. Vistos daqui, os duzentos sóis atômicos formavam um anel que substituía perfeitamente o astro natural.

Bem ao longe os cumes sem vegetação estendiam-se em direção ao céu. Rhodan girou as dobradiças que tinha nos ombros e jogou o capacete para trás. Fazia calor. Meu instrumento de múltiplas finalidades indicava a temperatura de 29 graus centígrados. A temperatura média devia ficar em torno de 23 graus.

O ar era fresco e agradável. Uma brisa suave refrescava meu rosto aquecido. O mundo dos Duzentos Sóis seria um lindo planeta, se não servisse de base a uma dinastia de robôs.

— E agora? — perguntou Rhodan, em tom objetivo.

Não esperou muito para obter a resposta. Uma máquina monstruosa rolou em nossa direção. Lentes cintilantes eram dirigidas sobre nós. De ambos os lados da máquina, havia pos-bis do tipo daqueles que nos causavam recordações tão desagradáveis.

Ao fitar as armas dos robôs que estavam apontadas para mim, tive uma sensação nada agradável. Meu conversor de símbolos deu um sinal. Os pos-bis estavam recebendo instruções de algum centro de comando.

Esperei que a máquina decifrasse e traduzisse os símbolos.

— Identificação positiva. Pertencem à verdadeira vida — informou um transmissor que devia estar bem próximo ao lugar em que nos encontrávamos.

A máquina afastou-se no mesmo instante, o que me levou a acreditar que a mesma tivesse examinado nossas vibrações individuais.

Vi que Rhodan estava sorrindo, mas seus olhos continuaram frios e atentos.

— Veja só! — disse em voz baixa. — Essa gente sabe mais a nosso respeito do que supúnhamos. Até possuem nossos diagramas de vibrações. Onde os terão conseguido?

Eu conhecia a resposta.

— Você não deveria ter permitido que a nave dos pos-bis penetrasse na atmosfera da Terra — respondi em tom ligeiramente irônico. — Sabe lá o que os numerosos instrumentos existentes a bordo da nave fragmentária mediram e registraram? Acho que é indispensável chegarmos a um acordo com os comandantes localizados neste planeta, pois, do contrário, é perfeitamente possível que mais dia menos dia uma frota apareça sobre o planeta Terra. Estas semi-inteligências sabem perfeitamente onde se localizam os centros do poder.

Rhodan engoliu em seco. Acabara de dizer-lhe com uma franqueza excessiva uma coisa que por certo já imaginava há muito tempo.

Quatro pos-bis aproximaram-se. Um veículo sem rodas atravessou a área livre e parou à nossa frente.

Dois willys pediram-nos que entrássemos.

— Rápido, eles estão satisfeitos — grasnou a voz saída da tradutora automática. — O exame foi doloroso?

Apressamo-nos em abandonar o ambiente pouco acolhedor. O carro deu partida imediatamente. Contornou a espaçonave na qual havíamos vindo, deixando livre a visão para o norte.

Prendi à respiração, estupefato. Uma parede energética de vários quilômetros de altura subia ao céu do outro lado do porto espacial. As trilhas energéticas eram tão densas que não se reconheciam os objetos que envolviam.

De início acreditei se tratar de uma abóbada energética, mas não demorei a descobrir ser apenas uma grade que cercava uma área ampla. Em Everblack havíamos visto uma proteção semelhante, mas lá a barreira não era tão densa.

— Está percebendo alguma coisa? — perguntou Rhodan. — A julgar pela curvatura da grade, a área circular por ela cercada tem pelo menos dez quilômetros de diâmetro. É muita coisa, arcônida! Tem alguma idéia do que eles guardam dentro dessa área?

Não precisei adivinhar. Havia uma semelhança marcante com as instalações de Everblack. Os cérebros de plasma recorriam à grade energética para isolar-se do mundo exterior.

A viagem terminou diante de duas corcovas blindadas que de repente saíram do chão e fecharam a estrada de acesso.

Ouvi o grito apavorado dos willys. Antes que compreendêssemos a nova situação, vimos as armas dos robôs que nos acompanhavam apontadas para nós.

— Desçam! — disse a voz saída de meu conversor de símbolos.

O volume era tão alto que meus tímpanos doeram.

O mais notável era o fato de que o dispositivo hiperimpotrônico do mundo dos Duzentos Sóis sabia como comunicar-se conosco. Rhodan tinha razão. Durante os numerosos contatos com os humanos e os arcônidas, o grande centro de comando dos pos-bis havia descoberto e registrado um volume de dados muito superior ao que desejaríamos. Tanto era assim que, para a máquina, a existência dos complicados conversores de símbolos parecia ser a coisa mais natural deste mundo.

Os dois willys choramingavam. Seus corpos pulsaram enquanto se agachavam num canto do veículo.

O rosto de Lloyd transformou-se numa máscara. Começou a falar em tom uniforme. Quase não movia os lábios.

— Cuidado. Estabeleci contato com o plasma, que me chamou diretamente. Sabe quem sou. De repente o dispositivo impotrônico está criando dificuldades. Perigo!

 

Dali a pouco, Fellmer Lloyd nos disse qual era o perigo. Em virtude de certas reflexões misteriosas, o dispositivo impotrônico decidira dissolver um de nós em suas substâncias bioquímicas, para constatar quais eram as matérias básicas de que éramos feitos.

Chamei a mim mesmo de idiota por ter atendido ao convite. Dois pos-bis levaram-nos a uma cúpula de aço. Um elevador antigravitacional desceu tanto e tão rápido que já nem sabíamos a quantos metros da superfície nos encontrávamos.

Em toda parte, ouvia-se o zumbido monótono dos complexos de máquinas. Naquele momento o mutante recebeu novas notícias. Ficamos sabendo onde estava instalado o gigantesco centro de computação. Sua sede ficava embaixo das chapas de aço que cobriam a área livre de cerca de dez quilômetros de diâmetro, delimitada pela grade energética. Mas as cúpulas com o plasma central também haviam sido construídas no interior da grade. Formava com o dispositivo impotrônico uma unidade indissolúvel, estabelecida por meio do engaste hipertóictico entre a parte mecânica e a bio-substância.

Lloyd mantinha contato ininterrupto com os cérebros. Constatou que uma desavença grave surgira entre os dois elementos de comando. O plasma fazia questão de cumprir o acordo, enquanto o dispositivo hiperimpotrônico modificou de repente os seus controles.

Algum componente do gigante havia calculado que a presença de três estranhos poderia representar uma desvantagem. Era um fato incontestável, tanto que há muito estava admirado por terem permitido nossa presença no mundo central. Com os conhecimentos adquiridos, a determinação goniométrica da posição do planeta seria inevitável, desde que um dia voltássemos a ele.

— Sigam adiante! — disse o robô por intermédio das tradutoras.

Rhodan mantinha a mão sobre a arma. Não compreendemos que não nos tivessem tirado as armas energéticas. Provavelmente o dispositivo impotrônico não tinha experiência com pistolas relativamente pequenas. Lembrei-me de que na maior parte das vezes havíamos usado armas pesadas.

Paramos à frente de uma barreira energética. Luminosas objetivas de televisão focalizaram-nos. Estavam embutidas na parede.

— Atenção — era o telepata que estava falando. — Estamos saindo da cúpula e vamos atravessar a área interditada. Querem que nos preparemos.

A cortina cintilante desapareceu. Lloyd caminhava a passos titubeantes. À nossa frente o corredor ampliou-se, para transformar-se num pavilhão de máquinas. A luz, que já era ofuscante, tornou-se ainda mais intensa.

Passamos entre a aparelhagem que zumbia. Mais à frente, uma parede de aço fechava a sala. Havia duas portas.

Paramos. Rhodan havia estabelecido contato telepático com Lloyd. Quanto a mim, dependia exclusivamente dos sinais de Perry. Os pos-bis estavam parados às nossas costas, com os braços armados baixados. Perguntei a mim mesmo até que ponto eles nos julgariam inofensivos.

— Devemos passar pela porta da esquerda — cochichou Lloyd.

Compreendi que os cérebros de plasma, pretendiam impor-se. Até onde chegava seu poder?

— Cuidarei do robô que está à minha direita — disse Perry. — Pronto?

Estive a ponto de perguntar em tom severo se o plasma havia dado ordens para isso. O que aconteceria se destruíssemos os robôs por engano? Mas Lloyd disse em voz mais alta:

— As máquinas devem ser destruídas. Agora...!

A porta da direita abriu-se. De repente a da esquerda cobriu-se com uma luminosidade azul. Os dois robôs adiantaram-se, a fim de ficar nos nossos flancos enquanto passássemos pela porta. Esperamos que se colocassem à mesma altura que nós, e partimos para o ataque.

Tirei a arma do coldre e com a outra mão bati na chave automática que ativava o campo defensivo.

Antes que meu corpo tocasse o chão na queda, o campo energético cobriu meu traje de combate.

O rugido de duas armas energéticas potentíssimas sobrepujou o zumbido das máquinas instaladas na cidade subterrânea. Duas trilhas de fogo atingiram os pos-bis, atiraram-nos para trás e provocaram sua explosão.

A onda de pressão me fez turbilhonar sobre o solo. Lloyd gritou de dor. Rhodan desapareceu de repente, mas logo o vi deitado junto ao pedestal de uma máquina.

Um dos pos-bis, que brilhava numa incandescência branca, começou a executar movimentos de rotação no solo. Do outro, só restavam alguns fragmentos.

Levantamos às pressas e corremos em direção à porta azul, que se abriu em tempo para proteger-nos contra os robôs de guerra que acorreram ao local.

— Fellmer...! — gritou Rhodan.

Abaixei-me e peguei Fellmer juntamente com Rhodan. Lloyd devia ter se atrasado uma fração de segundo ao ativar seu campo defensivo. Um estilhaço o atingira na perna.

Nós o arrastamos através da porta, que se fechou tão depressa que por pouco meu pé direito não foi esmagado.

Ofegantes e com as armas em punho, encostamo-nos à parede metálica de um corredor iluminado. Às nossas costas, as fúrias do inferno pareciam estar soltas, mas ninguém tentou arrombar a porta.

— Encontramo-nos na área de influência do plasma central — informou o mutante. — Não, não prossiga. Devemos esperar um carro.

Dali a cinco minutos, um veículo achatado veio pelo corredor. No banco traseiro estava sentado um willy. Sua tradutora entrou em funcionamento imediatamente:

— Lamentamos sinceramente os inconvenientes. Alguém ficou ferido?

Abri o fecho do uniforme de Lloyd. A ferida parecia perigosa. Uma lasca de aço incandescente rompera o traje e rasgara a parte superior da coxa de Fellmer.

Rhodan respirava fortemente de tão zangado que estava. Sem dizer uma palavra abrimos nossos estojos de pronto-socorro e aplicamos um spray de bioplástico na ferida, que deixou de sangrar imediatamente. No momento não se podia dizer se havia o perigo de infecção.

— Era só o que faltava — disse o terrano, em tom de revolta. — Como se sente, Fellmer?

Um sorriso forçado surgiu no rosto de Lloyd.

— Eu não lhe dou sorte, sir — cochichou. — Durante a última operação de que participamos juntos, adoeci. E agora acontece uma coisa destas. Deveria ter ligado meu campo defensivo mais depressa.

— Nada de auto-recriminações. O senhor estava ocupado com a transmissão telepática. Sente muitas dores?

— São suportáveis, sir. A perna arde como fogo.

Um dos willys pôs-se a falar.

— Ajudaremos. Deitem seu amigo sobre o carro. O “interior” dispõe de todos os recursos para a cura imediata de quaisquer lesões de tecidos. Lloyd assustou-se.

— Essa não — disse em tom indignado. — Quem sabe o que será feito de mim? Meu organismo criará anticorpos contra as substâncias estranhas. Não sabemos que tipo de plasma eles usam.

— Nós o curaremos — disse a medusa, insistindo em sua opinião.

Seus olhos salientes brilhavam.

— Andem depressa. O interior não poderá manter sua posição por muito tempo. Aqui vocês não estão fora de perigo.

Levantamos Lloyd e colocamo-lo no carro, que arrancou imediatamente. Os corredores compridos não tinham nada de interessante. As numerosas ligações transversais que, segundo parecia, levavam aos postos de controle do cérebro hiperimpotrônico, estavam protegidas por campos energéticos. Tive a impressão de que o caminho que estávamos usando representava uma espécie de zona neutra. De qualquer maneira, não compreendi por que o centro de computação não se ocupava mais intensamente conosco. O fato de terem sido destacados apenas dois pos-bis para vigiar-nos já fora uma leviandade.

Rhodan compartilhava minhas preocupações, mas depois de algum tempo disse:

— O regente de Árcon já nos teria posto fora de combate. Por aqui as condições são diferentes. O plasma central ofereceu resistência à tomada da decisão, e provavelmente foi este o motivo por que atravessamos a zona de perigo. Não pense que a aparente indecisão também se verificará quando surgir um perigo real para os pos-bis. Sempre que o plasma e o dispositivo impotrônico trabalharem em conjunto, eles serão um inimigo extremamente perigoso. O robô deve ter sido posto para dormir, por assim dizer, pois, do contrário, também nos teriam tomado as armas manuais.

Dali a trinta minutos, o carro subiu por um elevador antigravitacional.

Uma gigantesca eclusa surgiu. À frente da mesma havia alguns pos-bis imobilizados. Várias irmãs de leite nos aguardavam.

— Sou Willy — disse uma delas. Provavelmente era o willy que já conhecíamos — Rápido. Não poderemos resistir mais por muito tempo. O Impiedoso está usando circuitos especiais.

Percebi que a eclusa era o limite entre o plasma e o dispositivo impotrônico. Assim que a atravessamos, o nervosismo dos willys diminuiu. Outros elevadores nos levaram para cima. De repente voltamos a ver a luz dos sóis atômicos.

Saí tropeçando para um recinto fechado por paredes transparentes. Ofuscado, cerrei os olhos. Rhodan colocou-se a meu lado.

— Ora veja! Encontramo-nos no interior da barreira energética. Está vendo as cúpulas?

Realmente, eu as via. Uma quantidade enorme de construções abobadadas, de formato semi-esférico e cheias do plasma bioquímico cercavam o lugar em que nos encontrávamos. No mundo dos Duzentos Sóis não existia apenas uma única torre de plasma, conforme acontecia em Everblack.

Por aqui havia gigantescos recipientes, que cercavam uma área extensa. No centro dessa área erguia-se uma construção de pouco menos de quarenta metros de diâmetro, que por fora se parecia com um caldeirão de gás do tipo que antigamente era usado na Terra.

Cada esfera de plasma parecia dispor de seu próprio suprimento energético e de um equipamento de climatização independente. Fiquei perplexo diante dos complicados conjuntos de tubos e cabos que desapareciam no solo, ao lado de cada um dos recipientes. Então era este o lendário plasma central.

Os willys levaram-nos da ante-sala ao elevador antigravitacional. Insistiram para que nos apressássemos. Lloyd foi carregado por dois pos-bis que, segundo se dizia, obedeciam exclusivamente ao cérebro feito de matéria viva.

Aos poucos, meus sentidos começaram a confundir-se. Esforcei-me para não pensar mais no inconcebível.

O pavimento era liso e forte como aço. Caminhamos em direção ao caldeirão de gás, cuja entrada era protegida por outra barreira energética. Assim que entramos, demo-nos conta de que estávamos no interior do centro de comando dos cérebros de plasma. Quando os alto-falantes começaram a rugir, percebemos que o local era também a sala das máquinas tradutoras.

Dirigiram-nos a palavra num arcônida impecável. Naquele momento perguntei a mim mesmo até que ponto poderíamos confiar nessa extraordinária forma de vida.

 

Fomos informados sobre todas as questões que ocuparam a Ciência terrana desde o momento em que os pos-bis apareceram pela primeira vez.

A maior parte das nossas suposições foi confirmada, mas ninguém seria capaz de imaginar o que realmente acontecera há mil anos.

O plasma não fora produzido sinteticamente. O que estávamos vendo no mundo dos Duzentos Sóis era uma parte minúscula de um ser vivo coletivo que envolvia todo um planeta, e cujo mundo de origem pertencia a um sistema solar da nebulosa de Andrômeda.

A inimizade ferrenha entre o plasma e os laurins também foi explicada.

Os seres, que também por nós eram considerados traiçoeiros, já haviam arriscado há quarenta mil anos do calendário terrano o grande salto sobre o abismo que separa as galáxias. Nessa oportunidade foram parar num pequeno sistema chamado Outside. As inteligências ali radicadas não foram encontradas vivas por nós, que as designamos pelo nome de inteligências de Mecânica.

Os laurins perceberam que essas criaturas eram os maiores construtores de robôs de seu tempo, e os obrigaram a construir as máquinas mais capazes que se poderia imaginar.

A fase histórica subseqüente estender-se-ia por vários milênios. Os seres de Mecânica forneceram centenas de milhares de robôs aos laurins, que na época haviam visitado nossa Via Láctea apenas com umas poucas naves exploradoras. Das informações do cérebro depreendia-se que os laurins enfrentavam dificuldades em seu próprio mundo.

Os robôs de Mecânica sofreram uma adaptação no planeta dos laurins. Aplicara-se uma biotécnica inacreditável. Os robôs comuns, inteiramente mecânicos, seriam equipados com cérebros orgânicos, que transformariam cada uma das máquinas num artefato ligado ao sentimento. Não nos foi possível ignorar ou contestar a direção científica dos biólogos laurins. Essas inteligências conseguiram criar o engaste hipertóictico, que nada mais era que uma ligação direta entre o tecido vivo e o mecanismo positrônico.

A adaptação dos robôs fora realizada com uma finalidade diabólica. Face às quantidades utilizadas, os cérebros biológicos adaptados apenas poderiam criar determinados sentimentos. Sua função consistiria principalmente em gerar um ódio sem limite contra todas as formas de vida que não se identificassem com os laurins.

Se o plano fosse bem-sucedido, os laurins teriam à sua disposição um exército invencível absolutamente fiel.

Mas o esquema falhou. Os laurins tiveram uma surpresa que os deixou apavorados. O ódio que deveria dirigir-se contra os outros voltara-se contra eles mesmos. Houve a primeira batalha de aniquilamento entre os pos-bis, cujo número na época já chegava a vários milhões, e os laurins. Depois disso os robôs retiraram-se para seu mundo, que era o planeta Mecânica. Tornaram-se inteligentes demais...

Quando a exposição que fiz chegou a este ponto, formulei algumas perguntas.

Minhas observações pareciam levar à conclusão de que os pos-bis nunca teriam sido capazes de fundar uma dinastia se ninguém os ajudasse. A resposta deixou-nos perplexos e profundamente abalados.

Nas áreas externas da nebulosa de Andrômeda, onde as estrelas eram escassas, existira um planeta em cuja atmosfera havia oxigênio. Neste mundo se desenvolvera uma forma extraordinária de vida. Vários estados independentes formados por células se uniram no curso de milênios, passando a formar um ser coletivo que se tornava cada vez mais volumoso. À medida que crescia a massa celular, a inteligência aumentava, até que por fim surgiu uma gigantesca criatura de elevado padrão espiritual.

O comandante de uma nave exploradora dos laurins reconhecera as peculiaridades biológicas desse ser. Depois disso, o mesmo teve de ceder porções de sua massa. Com essas porções foram produzidos os cérebros adicionais biológicos dos robôs de Mecânica, e a nova ligação de engaste os acoplou com os cérebros positrônicos já existentes.

Os laurins ligaram uma das porções retiradas do ser coletivo a uma unidade de comando. Foi seu grande erro. Haviam subestimado o grau de inteligência das massas subtraídas do plasma, que na fase final do plano de mil anos desencadearam a revolta contra os laurins.

Com isso teve início a emigração dos pos-bis. Os positrônico-biológicos recusaram-se a obedecer aos laurins. Os cérebros adicionais foram modificados pelo plasma central que crescia cada vez mais. O ódio passou a ser dirigido exclusivamente contra os laurins. Estes procuraram fazer chantagem contra o “rebento” do plasma que passara a manifestar uma inclinação para a rebeldia.

O mundo de origem do grande ser coletivo foi arrancado da órbita. O sol natural desapareceu nas profundezas do Universo. O ser coletivo não poderia subsistir sem calor, luz e oxigênio. Por isso os laurins ameaçaram esterilizar o planeta solitário, se o “rebento” não retornasse logo para junto do ser coletivo.

A porção de plasma que hoje forma o plasma central recusou-se a atender à exigência. Milhares de poderosas espaçonaves, tripuladas por pos-bis e equipadas com as armas superiores das inteligências de Mecânica, entraram em luta com os laurins e os derrotaram.

No entanto, o “rebento” não conseguiu encontrar o planeta com o ser materno que vagava pelo espaço.

Os pos-bis retiraram-se para a Via Láctea e lá fundaram sua dinastia. As inteligências de Mecânica, que então ainda estavam vivas, criaram as condições técnicas para a adaptação dos planetas e a construção das estações espaciais. Além disso construíram encubadeiras segundo as indicações do “rebento”, que por isso mesmo cresceu com uma rapidez enorme e aumentou seu grau de inteligência.

Foi só muitos milênios depois disso que os laurins resolveram desferir seu golpe fulminante. O planeta Mecânica foi despovoado. Mas os pos-bis, governados pelo plasma central e por um gigantesco centro de computação, que os seres de Mecânica ainda conseguiram construir, já haviam adquirido um grau de independência que lhes permitiu sobreviver à destruição impiedosa dos seres de Mecânica.

Na época os pos-bis viviam em luta constante com os laurins, que por isso não conseguiram penetrar na Via Láctea. Os planetas escuros que havíamos encontrado por acaso haviam sido retirados pelos seres de Mecânica de sistemas solares próximos à periferia da Galáxia e arrastados para as profundezas do espaço intercósmico. Nesses mundos, os pos-bis criaram estabelecimentos secundários e bases militares.

A série de acontecimentos que nos foi apresentada numa exposição bastante extensa era tão ampla e importante que, depois de algum tempo, pedimos uma pausa de descanso.

 

Mais uma vez estávamos sentados na sala das máquinas tradutoras e erguemos os olhos para as telas. Vários willys nos cercavam. Procuravam responder às nossas perguntas. Mas a única coisa que sabiam era que sempre haviam sido servos do plasma central. Eles o designavam pura e simplesmente como o interior. Provavelmente a expressão surgira na fase inicial da fabricação dos pos-bis, quando os laurins começaram a equipar os extraordinários cérebros robotizados com as peças orgânicas. Naquele momento tivemos certeza de que as medusas também haviam vindo da galáxia estranha. Provavelmente, há muito tempo foram utilizadas como forças auxiliares. Eram criaturas inteligentes e pacatas, cuja mentalidade as tornava especialmente aptas para as funções de guarda e vigia. Ainda hoje lhes cabia cuidar do plasma central, que crescia em virtude do processo acelerado de divisão celular. Sempre que a quantidade de plasma chegava a tal ponto que se podia tirar “rebentos”, estes eram levados a algum planeta que servia de base, onde criavam uma nova cultura de pos-bis.

— Pare; não consigo acompanhar mais a exposição — pediu Rhodan, exausto.

Muito pálido, recostou-se ao encosto estofado de um estranho banco.

Lloyd descansava sobre dois willys, que o abrigavam cuidadosamente. A ferida que sofrera na perna não estava cicatrizada. Não sabíamos quais eram as substâncias que os willys lhe haviam aplicado. Por enquanto não tinha surgido nenhuma reação de anticorpos, o que provava que o mutante estava sendo objeto de cuidados extremos.

Nosso Willy entrou na sala. Ouvi seus pés de broca, duros como diamante arrastarem no chão. Atendendo ao meu pedido, segurava uma tenaz de múltiplas finalidades sobre a tradutora, para que o pudéssemos distinguir das outras medusas. A distinção fez com que Willy se sentisse muito orgulhoso.

Agachou-se à nossa frente com o corpo em pulsações. Sua cor mudou para o vermelho que denotava pavor, dando a entender que mais uma vez estavam surgindo dificuldades.

— O robô está ficando zangado — disse Willy, em tom queixoso.

Já nos acostumáramos à voz transmitida pelo aparelho, e assim notamos certa entonação na mesma.

— O interior pediu-me que lhes perguntasse se estão dispostos a ajudar-nos. Sei perfeitamente que o pedido é um tanto pretensioso.

Os quatro olhos que Willy pôs para fora emitiram um brilho estranho, o que me fez imaginar o medo que essa criatura estava sentindo. Perry olhou para o relógio. Sentíamos fome e cansaço. Com toda sua genialidade o plasma central se esquecera que seres humanos precisam comer de vez em quando. Arranjamo-nos com nossas rações de emergência, mas estas já estavam chegando ao fim.

— Foi para isso que viemos — disse Rhodan com a voz cansada. — O que podemos fazer? Suponho que as tensões entre o centro de computação e o interior se tornam insuportáveis.

Willy inflou-se. Seu corpo começou a tremer.

— Insuportáveis. Essa é a palavra adequada. O interior está exausto. A luta é mais dura do que nunca antes. O Impiedoso não conhece o cansaço. Permitem que os ligue com o interior?

Quem dera que Willy não fosse tão complicado. Demorou quase dez minutos até que os alto-falantes das grandes máquinas tradutoras entrassem em funcionamento. Ficamos sabendo que sua construção exigira um trabalho estafante. O plasma utilizara o comando positrônico das grandes linhas de montagem.

Nos últimos meses, enquanto tentávamos estabelecer contato de rádio, no mundo dos Duzentos Sóis foi interrompida a produção de robôs, apenas porque o plasma central julgou necessário construir uma boa máquina tradutora. Para nós, as peculiaridades desse fenômeno continuariam envoltas em mistério para sempre.

No momento não estávamos mesmo interessados em saber como isso tinha sido feito. O conjunto de perguntas só poderia ser esclarecido por uma equipe científica. No meu entender a única coisa que importava era o fato de que há muito o plasma central se esforçava para estabelecer contato conosco. Isso sempre provava sua boa vontade, e esta nos fez esquecer que, no momento, nos encontrávamos numa situação desagradável.

Um cientista terrano não seria capaz de exprimir-se com maior clareza do que essa massa disforme que, segundo sabíamos, estava guardada em oitenta recipientes esféricos.

Ficamos curiosos quando o plasma usou a expressão circuito do ódio.

— Ora veja! — cochichou Rhodan. — Esqueci o cansaço.

O centro de plasma prosseguiu:

— Na época, a construção do centro de computação era indispensável, porque não conseguia solucionar os problemas com os quais me defrontava. Meu crescimento era mais importante. Os construtores montaram e instalaram a impotrônica que ainda é encontrada hoje em dia; concordei com a ligação de engaste. De início meus direitos não foram afetados, mas a situação mudou quando o dispositivo impotrônico também se incumbiu da defesa contra os laurins. Dali em diante se iniciaram as dificuldades, mas estas tiveram sua origem no circuito especial que, segundo a intenção do construtor, deveria representar um fator de segurança para mim.

Entreolhamo-nos. Imaginei que Perry estava pensando no computador-regente de Árcon. Ao que parecia, não havia em todo Universo uma única inteligência que, ao construir um gigantesco centro de computação, não completasse a possibilidade de o mecanismo desalmado assumir o poder. Aqui também se agira com toda cautela. O plasma voltou a falar:

— O circuito do ódio é formado por um bloco de relê completamente autônomo, que foi introduzido no centro de computação para enfrentar o perigo representado pelos laurins. Com isso introduziu-se no centro de computação um ódio eterno à falsa vida, que no meu entender consiste em quaisquer combinações orgânicas estranhas.

“Mas os construtores sabiam que uma das conseqüências desse circuito do ódio seria uma radiação secundária que, contrariando minha vontade, também atingiria outras inteligências, que no meu modo de ver não poderiam ser classificadas como formas de falsa vida. Os terranos e os arcônidas estão incluídos nessa classe de inteligências. Foi por isso que as naves de vocês foram atacadas e destruídas. Se conseguirmos neutralizar esse circuito do ódio, concebido apenas como um fator adicional de segurança, a inimizade, que o centro de computação nutre por vocês, cessará.”

Meu cérebro adicional manifestou-se imediatamente. A explicação parecia plausível. Restava saber o que resultaria da nova forma de existência.

— Admitamos que o ódio à vida humanóide cesse. Qual será a atitude do dispositivo impotrônico diante dos laurins? Afinal, eles também são orgânicos, embora classificados em outra categoria pela substância de que são feitos.

— A pergunta tem toda razão de ser, majestade. Mas não podemos esquecer que eu existo. Jamais reconhecerei os que oprimiram a criatura materna. Minha ligação de engaste basta para manter viva no centro de computação a repugnância contra os laurins.

Senti-me um tanto cético. O que aconteceria se as coisas não corressem conforme pensava o plasma?

— O circuito do ódio pode ser desativado sem que isso afete as outras partes do centro de computação — prosseguiu o plasma. — Peço o auxílio de vocês. Nenhum robô pos-bi está em condições de penetrar nas salas de computação.

— Não poderá penetrar contra a vontade do dispositivo impotrônico — retificou Rhodan.

— É isso mesmo. Assim sendo, minhas forças auxiliares são excluídas do jogo. Quando elas se aproximam do setor de programação, não posso influenciar seus cérebros mecânicos. Meus guardiões, conhecidos como os willys, não têm capacidade física para executar a tarefa. Por isso resolvi pedir auxílio a vocês. Caso se disponham a me prestar esse serviço, isso representará o fim de uma guerra absurda. Preciso lançar mão de todas as minhas forças na defesa contra o inimigo mortal.

“A título de compensação pela ajuda que me for prestada ofereço uma aliança. Minhas bases intercósmicas serão abertas às suas frotas. Os estaleiros e os depósitos de suprimento ficarão à sua disposição. Em caso de emergência poderei usar a frota dos pos-bis para prestar-lhes ajuda. Poderei fornecer-lhes todos os dados técnicos relativos a propulsores e armamentos, desde que vocês me garantam que eles nunca serão usados contra mim.”

O plasma ficou em silêncio. A proposta era sedutora. Estive a ponto de solicitar um pequeno prazo de reflexão, mas desisti, não havia por que refletir sobre o assunto.

Se não destruíssemos o chamado circuito do ódio, não haveria a menor possibilidade de empreendermos a viagem de regresso. Por outro lado, a aliança com o centro de plasma representaria a realização de todos os nossos desejos. A liberação dos portos planetários intercósmicos, só por si, assumia uma importância inestimável. Bem que estávamos precisando de bases desse tipo.

Não tive a menor dúvida quanto à seriedade do plasma. Sua antipatia contra os estranhos laurins estava tão enraizada que ele nunca nos enganaria e muito menos nos atacaria propositadamente. Mas, para isso, se tornava indispensável que o centro de plasma conseguisse assumir o controle total do gigantesco dispositivo impotrônico. Para tanto tornava-se necessária, por sua vez, a destruição do obstáculo representado pelo circuito do ódio, que nos atingia por via indireta.

O reconhecimento desse fato fechou o círculo de minhas reflexões. Rhodan formulou uma objeção que se resumia em poucas palavras:

— E as áreas de interesse...?

Mais uma vez, o terrano pensava além de mim... Fitei-o com uma expressão que quase chegava a ser de contrariedade. Seus olhos mostraram a expressão fria que sempre o caracterizava durante as negociações.

Isso mesma. O que seria feito das nossas áreas de interesse? O plasma dominava parte do espaço intercósmico, que, de forma alguma, nos poderia trazer qualquer proveito econômico. Na melhor das hipóteses, os cérebros poderiam, numa fase posterior, solicitar a cessão de certos planetas destinados à instalação de bases. Quanto a isso não haveria nenhum problema. Nos sistemas das áreas periféricas havia muitos planetas desabitados. Se necessário, poderíamos colocar à disposição dos pos-bis alguns milhares de astros. Pensando assim, fiz uma proposta. O plasma respondeu-me:

— Concordo com sua proposta e, além do mais, garantimos o fornecimento de materiais para sua indústria de matérias básicas. Se houver necessidade de máquinas, poderemos fornecê-las. Sugiro nos limites de nossas possibilidades técnicas e científicas ocupemos o lugar dos seres mecânicos. Poderemos elaborar uma forma de contabilização das prestações recíprocas.

— Queremos celebrar um acordo claro e decente com você. Nem pensamos em enganá-lo. No momento não existe a possibilidade de delimitarmos em todas as minúcias os direitos e as obrigações de cada parte. O administrador e eu garantimos o cumprimento do acordo.

Rhodan confirmou. Minha oferta ultrapassara as exigências do plasma. As estranhas negociações chegaram ao fim. Tive a impressão de que acabáramos de conseguir um precioso sócio.

— Existem filmes e plantas do circuito do ódio. Eu as transmitirei.

De repente fui arrancado dos meus sonhos em torno da maravilhosa aliança.

— Primeiro o trabalho, depois o prazer — disse Perry, em tom irônico. — Seus nervos realmente são bons, arcônida? Acho que já dispomos de alguma experiência na destruição de instalações de computadores.

Engoli um comprimido de concentrado nutritivo. A observação de Willy, segundo a qual estava na hora de agirmos, já que o interior não poderia resistir mais, fez com que acordasse de vez.

Rhodan levantou-se. Lloyd também abandonou seu estranho leito. Apalpou a coxa direita, fez alguns agachamentos e observou em tom indiferente:

— Tudo bem, sir. Já pode contar comigo. O efeito da atadura foi excelente:

 

Já vira muitas instalações técnicas e examinara inúmeras espaçonaves, mas nunca encontrara um poço de visitação pelo qual se pudesse passar confortavelmente.

Também os seres de Mecânica não pensaram em instalar num simples tubo um equipamento mais luxuoso que uma série de barras de apoio. O diâmetro do tubo permitia que nos esgueirássemos pelo mesmo.

Vez por outra havia câmaras de repouso semi-esféricas, que haviam sido queimadas na rocha há tempos imemoriais e revestidas com plástico que era duro como aço.

Só depois de trinta minutos de acrobacias resolvemos ligar os aparelhos voadores antigravitacionais de nossos trajes de combate. Até então nós o evitáramos para não sermos localizados.

Quando atingimos o penúltimo pavimento subterrâneo do poço, que media quase dois mil metros, compreendi perfeitamente por que o centro de plasma não poderia ter utilizado um robô ou um willy para destruir o circuito do ódio.

O caminho pelo qual estávamos descendo era o único que levava às profundezas incomensuráveis do dispositivo hiperimpotrônico.

Havia outros acessos, mas estes não poderiam ser utilizados. Por eles não teríamos avançado dez metros.

Desenhos antiqüíssimos provavam que o poço só fora construído para que o circuito do ódio pudesse ser atingido pelo caminho mais curto. Além disso se expusera pela palavra e pela imagem que as defesas do tubo eram energéticas e materiais. Umas e outras evitavam que fôssemos localizados pelo dispositivo impotrônico.

Via-se que os construtores, nome que o plasma costumava dar aos seres desaparecidos de Mecânica, costumavam ser muito cautelosos no trato de suas enormes construções. A missão seria um verdadeiro passeio por caminhos secretos cuidadosamente protegidos, desde que as respectivas instalações ainda estivessem funcionando conforme se previa.

Se fosse assim, a única coisa que se tinha de fazer era mover uma chave perfeitamente assinalada e iniciar o caminho de volta.

Não éramos otimistas a ponto de aceitar sem restrições os dados que nos haviam sido fornecidos. Pelos meus cálculos ao menos vinte mil anos do calendário terrano se haviam passado desde a construção do dispositivo impotrônico. Perguntamos a nós mesmos por quanto tempo os diversos equipamentos ficariam em condições de funcionar.

Encolhemo-nos no espaço reduzido e ficamos atentos aos ruídos vindos de baixo. Não ouvimos nada além do ruído onipresente das gigantescas instalações subplanetárias — um zumbido penetrante.

Rhodan tirou um croqui do bolso do cinto e apontou para um lugar marcado em vermelho.

— Aqui é o fim do poço. Depois dele vem o corredor em saca-rolha, no qual existem trinta e quatro curvas, cuja finalidade consiste em deter eventuais ondas de pressão. Nesse corredor ainda existem três eclusas com canhões, que abrem fogo contra os intrusos. Este aparelho — apontou para uma barra de metal enfiada em meu cinto — possui um código eletrônico que deverá levar o dispositivo mecânico a abster-se de quaisquer reações desagradáveis. Depois do saca-rolha vem a chapa com a escada escamoteável, que provavelmente não funciona mais. Está pendurada em dobradiças comuns. OK. Vamos voar para baixo.

Dobrou a folha de plástico e guardou-a. Lloyd sorriu. Quanto a mim, não estava achando nem um pouco de graça.

Efetuamos mais um controle do equipamento gerador do campo protetor de nossos trajes e deixamo-nos cair no poço. Meu campo antigravitacional amorteceu a queda a ponto tal que apenas tive que dobrar os joelhos quando toquei o chão. Lloyd foi o último a chegar. Estávamos numa sala perfeitamente circular, cujas paredes brilhavam num verde-fosforescente. Pelo que nos haviam dito, aquilo era o campo de absorção que deveria neutralizar as emanações mentais, às quais o cérebro era bastante sensível. Vimos que ainda estava funcionando.

O poço terminava num buraco escuro existente no teto do recinto. Ficava quase três metros acima de nossas cabeças e de forma alguma poderia ser atingido num salto normal. A escada não fora escamoteada.

— Foi a primeira pane — sem que o quisesse, Rhodan falava aos cochichos. — Bem, se for só isto!

Tirou a arma energética e saiu caminhando pelo corredor em saca-rolha, que começava nesse lugar. As curvas sucediam-se a pequena distância e descreviam ângulos de trinta a noventa graus.

A primeira eclusa surgiu à nossa frente. Rhodan parou. Segurei a chave eletrônica com tanta força que a pele ficou branca nas juntas dos dedos.

— Pois bem...!

Rhodan ficou à espera, de arma em punho. Encostei a extremidade do bastão contra o lugar em que estava assinalado o fecho e recuei, espantado. A escotilha desapareceu no solo com a velocidade de uma guilhotina.

— Oba...! — exclamou Lloyd, perplexo. — Será que isto é uma máquina assassina? O que acontecerá caso, na hora em que a atravessarmos, a escotilha se movimente com a mesma rapidez com que desceu?

— Vamos andando — respondi. — Não podemos perder tempo.

Reunindo a coragem produzida pelo desespero, penetrei no recinto retangular. Rhodan e o mutante seguiram-me. Não aconteceu nada. A escotilha fechou-se com um zumbido, e uma outra abriu-se à nossa frente.

Prosseguimos rapidamente. Atravessamos mais duas eclusas sem que ninguém nos impedisse.

— Já começo a acreditar no milagre — disse Perry. — Para meu gosto as coisas estão fáceis demais, se bem que deveríamos admitir que o construtor destas instalações fez tudo para que se possa atingir o circuito de ódio, sem correr o menor perigo.

Preferi ficar calado. Naquela situação as palavras não adiantariam nada. No fim do corredor vimos a chapa assinalada no croqui. Tratava-se de uma escotilha quadrada, que se encaixava perfeitamente no material do pavimento. Pelo que nos haviam dito, ela se abriria com a chave eletrônica.

Tentei a sorte. Depois de algum tempo ouviu-se um zumbido vindo de dentro da chapa de aço ou de baixo dela. Uma fumaça saiu da fresta. Com um rangido, a chapa desapareceu no soalho à nossa direita.

Rhodan puxou-me para trás. Uma descarga elétrica saiu da abertura. O rugido de um trovão parecia ressoar no corredor. Assim que o ruído cessou, Perry disse:

— Se com isto não formos descobertos, então não compreendo mais nada. Atlan, vamos entrar neste buraco. Fellmer ficará aqui para nos dar cobertura. Também irei para baixo. Vamos logo.

Enfiamo-nos pela abertura. Sua largura quase chegava a um metro.

Fui voando lentamente para baixo. Rhodan seguiu-me com a cabeça para a frente. Executou vigorosos movimentos de remador para girar durante o vôo, empurrou-se da parede e, atravessando a sala que ficava embaixo de nós, foi planando em direção à porta blindada abaulada de uma eclusa.

Era a entrada principal da sala secreta onde estava instalado o mecanismo de comando do circuito do ódio.

Ativei meu antígravo na posição zero e voltei para junto do teto, de onde dispunha de uma excelente visão.

Vi embaixo de mim uma sala de formato oval. Numerosos painéis de comando, interligados por cabos de dez centímetros de diâmetro, e condutores de força, que brilhavam que nem um sol, enchiam o recinto. Nos fundos da sala via-se a unidade energética autônoma, consistente num reator de fusão em forma de tambor, acoplado a um conversor sincronizado.

O banco de dados, com as teclas de comando, quase chegava até o teto. Nele estavam contidos os dados, as instruções e as programações especiais que levavam o grande centro de computação a nutrir um ódio implacável contra os laurins.

Também encontrei o quadro de chaves.

Estava preso à parede, em cima de uma pequena plataforma. Os instrumentos de medição estavam funcionando. Uma chave de cor violeta destacava-se em meio à luz crepuscular. O longo braço da chave encontrava-se na posição horizontal. Devia comprimi-la para baixo.

De repente Rhodan começou a atirar. Lloyd soltou um grito de alerta e sua arma também disparou um feixe de raios.

O rugido das armas foi abafado por um ribombo. Uma onda de pressão quente atirou-me contra o teto, produzindo dores tão intensas que quase perdi os sentidos.

Bati na chave do antígravo e, ainda na queda, coloquei o capacete sobre a cabeça. O dispositivo automático ativou o equipamento de respiração artificial. Uma vez lá embaixo, caí ao chão e enfrentei outra onda de pressão.

Tive a impressão de que várias horas se passaram até que meu campo energético fosse ativado. Depois disso fiquei protegido ao menos contra o calor.

Só quando me levantei foi que vi que as grandes portas da eclusa se haviam aberto. No corredor que ficava do outro lado da câmara, os robôs pos-bis corriam apressadamente de um lado para outro. Atacavam furiosamente, mas corriam para dentro do fogo de barragem de Perry.

Deitado atrás do banco de dados, o terrano atirava através da abertura destinada à introdução de cartões perfurados. O caixilho da escotilha já brilhava numa incandescência branca, mas nem assim Fellmer Lloyd suspendeu o fogo. As trilhas energéticas fulgurantes passavam ininterruptamente acima de minha cabeça, atingiam o alvo mais adiante e derretiam o material.

Não me preocupei mais com os acontecimentos. Ao que parecia, os blocos de fusíveis queimados do mecanismo de abertura haviam provocado o temível alarma do dispositivo impotrônico. Agora só a ação rápida poderia salvar-nos.

Saltei pelos corredores estreitos, subi à plataforma e atirei todo o peso do corpo sobre a longa chave. A mesma cedeu com uma facilidade surpreendente, voltando a encaixar-se numa posição mais baixa.

No mesmo instante, uma sereia começou a soar. Uma voz irreal fez-se ouvir e transmitiu instrução numa língua que não compreendemos. No teto abaulado surgiu uma figura geométrica, que tinha certa semelhança com o mostrador de um relógio. Um ponteiro luminoso verde começou a rodar em torno da escala. Sabíamos perfeitamente o que significava isso. Assim que o ponteiro completasse o círculo, a destruição do circuito do ódio teria início.

Saí correndo imediatamente e gritei para Perry, que se retirara, já que as instalações que ficavam nas proximidades da eclusa entraram em incandescência.

Dali a alguns segundos subi em direção ao teto. Lloyd arrastou-me pela fresta, e, logo depois, abrimos fogo para dar cobertura a Perry.

Regulei o foco do feixe de raios na posição mais concentrada. Um pos-bi que corria através do mar de fogo perdeu a perna direita e caiu ao chão, onde foi banhado pelo metal liquefeito das escotilhas.

Minha arma esquentou e o sinal de perigo iluminou-se. Naquele momento, Perry chegou. Não dissemos muita coisa, apenas procuramos chegar o quanto antes à primeira eclusa do corredor em saca-rolha.

Assim que a atravessamos, ouvi por que os construtores haviam tomado tantas precauções que garantissem a segurança.

Atrás de nós ouviu-se uma explosão fulminante. A eclusa pela qual acabáramos de passar ficou incandescente, inflou-se que nem uma bolha de sabão e estourou sob a força da onda de pressão represada.

Atirei-me ao chão atrás da próxima curva do corredor e peguei o pé de Rhodan para fazê-lo cair. Lloyd já havia desaparecido.

Ouvimos o rugido das massas de ar, que logo começaram a agitar-se em torno de nossos campos energéticos. O mostrador de meu instrumento deu um salto, indicando que a temperatura exterior chegava a mais de mil graus.

Assim que a onda passou, continuamos a correr. A segunda eclusa resistira à pressão. Atravessamo-la, e também a de número três, com o que ficamos em relativa segurança.

Antes de descansar voamos até a entrada do poço e abrigamo-nos na primeira câmara de repouso.

Ninguém falou. De repente notamos a rigidez típica em Lloyd, que estava estabelecendo contato com o centro de plasma. Quando voltou a si, estava sorrindo.

— Conseguimos — disse com a maior calma. — Liquidamos o circuito do ódio para todo o sempre. No momento, o dispositivo hiperimpotrônico parece morto. O plasma informa que está havendo uma modificação num dos blocos de comando, cuja função não compreendo. Mas, o que é mais importante é que os cérebros não sabem dizer qual será o comportamento do centro de computação depois da estabilização. Em outras palavras, pedem-nos que decolemos o mais depressa possível, antes que ponham as mãos em nós.

Rhodan preferiu não responder. Desapareceu no poço como um raio, ligou o antígravo para o grau máximo de absorção da gravidade reinante e foi subindo.

Willy já nos esperava. Reconhecemo-lo pela tenaz, pendurada em sua máquina tradutora. Brilhava de medo e rodava tão rapidamente que fazia as chapas de aço do pavimento soltarem chispas.

— Rápido, rápido — disse a voz saída de seu aparelho. — A nave está preparada. A cerca energética não existe mais.

Preferimos não voltar a entrar na sala de tradução e comando do plasma. Na fase a que havíamos chegado, a única coisa que estava em jogo era nossa segurança. As negociações poderiam ficar para outra oportunidade.

Saímos correndo e encontramos um carro automático.

À viagem pela zona da morte foi um verdadeiro pesadelo. Em toda parte viam-se pos-bis que corriam confusamente de um lado para outro. Ao que parecia, havia algo de errado com seus cérebros mecânicos.

Um deles abriu fogo contra nós. Rhodan hesitou apenas um segundo e derrubou o robô.

Um rugido surdo, semelhante ao ruído de uma tormenta que se afasta, enchia o ar. Os pos-bis pareciam despertar aos poucos do estado de torpor em que se encontravam. Deitamos no chão do veículo, enquanto Willy se “acomodava” acima de nós. O tecido macio de seu corpo envolveu-nos completamente, tornando praticamente impossível a localização de nossas emanações mentais por parte das instalações robotizadas.

Numa pressa tremenda entramos na eclusa de ar da nave fragmentária. Os propulsores já estavam funcionando. Ao que parecia, estava em cima da hora. Ainda vimos Willy subir. Alguns pos-bis que só obedeciam ao plasma apontaram-nos o caminho. A gigantesca nave ergueu-se do solo antes que chegássemos ao compartimento de carga.

A forte compressão atirou-nos ao chão. Ficamos deitados, indefesos, até que a elevada aceleração foi reduzida.

Os pos-bis arrastaram-nos para o compartimento de carga, onde encontramos as mesmas medusas que nos haviam acompanhado na viagem de ida.

Lloyd sangrava pela boca e pelo nariz. Estava inconsciente.

— Tudo bem com você? — perguntou Perry.

Emiti um som indefinível e esforcei-me para respirar.

Dali a alguns minutos conseguimos mexer-nos um pouco. Fellmer soltou um gemido e acordou.

— Horrível, horrível — gritavam os willys-colchões em tom queixoso.

Ao que parecia, não compreendiam que com isso arruinavam ainda mais nossos nervos maltratados.

Formaram um leito macio e empurraram-me para cima com seus braços longos. Ao mesmo tempo informaram, preocupados, que a transição seria realizada imediatamente.

Só suportei as dores lancinantes por alguns segundos. Depois disso, meu organismo entrou em pane... O estado de inconsciência libertou-me do martírio.

 

A julgar pelo mar cintilante de estrelas, estávamos novamente na zona periférica da Galáxia. A tela mostrou o planeta aquático, do qual ainda me lembrava perfeitamente.

— É Sumath — disse Perry, exausto. — Vão levar-nos de volta ao ponto de partida de nossa aventura. Tomara que Claudrin não abra fogo.

Perry deitou-se de lado e ligou o mini-comunicador. A ligação foi completada imediatamente. A voz de barítono de Claudrin quase destruiu o pequeno alto-falante.

— Sim, senhor, compreendi. Retirarei a linha de naves. O senhor está bem?

Soltei uma risada amargurada! Se estávamos bem! Em comparação com os choques que havíamos sofrido, as hipermanobras de Beybo eram uma massagem muito saudável.

— Não chateie, Jefe — gritou Perry para dentro do microfone. — Se ainda houver um osso inteiro e meu corpo será um milagre. Desceremos em Sumath. Não se preocupe com a nave fragmentária. Esta em que nos encontramos é um veiculo maior que os outros e seus tripulantes são nossos amigos. Quase se poderia dizer que salvaram nossas vidas.

Os willys soltaram gritos de alegria. Claudrin perguntou, apavorado, que choradeira era essa, e se não seria conveniente colocar a Teodorico em posição de ataque, nem que fosse apenas por uma medida de cautela.

— Não faça isso — berrou Perry, em meio ao barulho. — Vá buscar-nos com uma gazela. Final.

Interrompeu a ligação. Durante as manobras preparatórias do pouso voltamos a ser sacudidos. Fomos desembarcados cem metros acima da ilha. Voamos para o platô, pousamos e erguemos os olhos para a gigantesca parede de aço, que cercava um conjunto de máquinas e seres que nunca chegaríamos a compreender completamente.

Nosso Willy acenou com todos os braços que formou às pressas com a massa de seu corpo. Sabia que chamava por nós, mas não o ouvimos mais.

Dali a alguns segundos, a nave fragmentária deu partida tão cautelosamente que quase não chegamos a sentir nenhuma onda de calor. Carregada pelos campos antigravitacionais, foi flutuando para o mar aberto, onde seus propulsores despertaram para a vida.

Seguiu-se um lampejo, um ribombo, as ondas revoltas, a água evaporada, e... o monstro desapareceu. A atmosfera lacerada produziu uma explosão ao encher o poço de vácuo, que se estendia ao longo da trajetória da nave. Parecia ser o fim desse mundo.

Saímos dos lugares em que nos havíamos abrigado e apalpamos nossos membros.

— Será que estou sonhando, sir? — perguntou Fellmer Lloyd.

Abanei a cabeça. Rhodan estava sentado no chão, apático, e olhava para um objeto parecido com uma sombra, que se aproximava velozmente por cima do mar.

A gazela, um veículo em forma de disco, uivou ao passar por cima da ilha. Depois disso realizou a manobra de frenagem e pousou sobre as pernas telescópicas.

Reginald Bell, o representante de Rhodan, saltou da escotilha. Seu rosto largo estava muito vermelho.

— Que tolice foi essa? — berrou. — Como foi que vocês arriscaram um vôo desses sem que eu soubesse?

Limitei-me a fazer um gesto. Quando viu nosso estado, Bell fechou a boca e chamou um médico.

— Então, o que houve? — indagou.

— Como estão as coisas no front? — perguntei por minha vez. — Nestas últimas horas ainda foram localizadas naves fragmentárias?

— Foram localizadas algumas, mas estavam se retirando.

Rhodan esboçou um sorriso. Gemendo e massageando os quadris com as mãos, foi caminhando em direção à gazela.

— Pois então — respondi, satisfeito. — As explicações serão fornecidas mais tarde, Bell. Fizemos um tratado e destruímos um circuito de ódio.

— Destruíram o quê? — perguntou Bell.

Quando vi seu movimento dissimulado e vi o médico da Teodorico aproximar-se, desconfiado, deixei-me tomar pela euforia.

Rhodan acompanhou o jogo, e Lloyd entoou uma canção de pirata. Imediatamente, o médico começou a desfiar uma série de explicações científicas, das quais Bell não entendeu nada.

— Napoleão em pessoa apertou minha mão — disse Rhodan.

Confirmei com um aceno de cabeça e acrescentei que o vento do espaço intercósmico havia sido muito fraco para inflar nossas velas.

Demorou algum tempo até que Bell descobrisse nosso jogo. Praguejando terrivelmente, caminhou pesadamente em direção ao barco espacial. Só tive pena do médico que, bastante perplexo, voltou a guardar as três seringas de injeção.

Assim que chegamos à Teodorico, teve início a faina normal de bordo. Rhodan não se permitia nenhum descanso.

Seu relatório foi transmitido à Segurança Solar pelo rádio. Era só o que podíamos fazer no momento.

Só dali a duas horas procurou-me em meu camarote. Ficamos calados por muito tempo, até que manifestei a dúvida sobre a qual já estava refletindo há várias horas.

— O que acontecerá caso o centro de plasma tenha se enganado? Se a reação do dispositivo impotrônico não for a que se devia esperar depois da destruição de um circuito de ódio?

— Você exprime as coisas com uma tremenda clareza, arcônida — respondeu o terrano. — Vamos aguardar.

Deitou na segunda cama e adormeceu imediatamente. Quanto a mim, resolvi não subir nunca mais a bordo de uma nave fragmentária. Pelo menos enquanto não instalassem neutralizadores de pressão decentes nas mesmas.

Afinal, não sou nenhum robô.

 

                                                                                            K. H. Scheer  

 

                      

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