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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CONVITE / Neil Gaiman e John Bolton
O CONVITE / Neil Gaiman e John Bolton

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Poeira. Por toda parte. A imundície manchava as paredes. Nuvens fedorentas de fumaça de cigarro, aprisionadas ali por muito tempo, encardiram a pintura da parede, que um dia tinha sido branca e agora adotara um tom de água enlameada. Quadros desbotados pendiam para o lado, como se estivessem cansados demais para ficar retos. “Para quê?”, pareciam suspirar. “Quem vai olhar para nós agora?”

Um balcão comprido, marcado pelo tempo e pelas pontas de cigarro, acompanhava uma das paredes. Velas apagadas, que provavelmente nunca mais se acenderiam, pendiam de candelabros na parede, queimadas até a metade. Na última vez que alguém visitara esse local escondido, quase que deslocado no tempo, o lugar tinha outros inquilinos. Isso foi antes de acabar o dinheiro, as festas e as alegres comemorações, antes de o desespero tomar conta do ambiente. Lá em cima, a vizinhança tinha mudado, e aquele clube subterrâneo, exclusivo em seu tempo, foi abandonado pelas pessoas que buscavam o novo, o reluzente, o puro.

Estava abandonado, mas não vazio.

 

 

 

 

Agora, naquele porão mal iluminado de uma loja com tábuas nas janelas e na porta, em um bairro decadente de Londres, quatro homens de sobretudo observavam uns aos outros com cautela. A tensão estalava no silêncio carregado. Respeito, precaução, antigas batalhas e novos desafios misturavam-se às sombras. Mesmo um observador distraído perceberia que aqueles quatro não eram homens comuns. O próprio ar em volta deles era carregado, parecia que até a poeira se recusava a pousar sobre os casacos escuros. Mas ali não haveria nenhum observador distraído. Aqueles homens eram muito espertos para isso.

Fazia décadas que ninguém descia até ali, e ninguém que passasse na rua poderia imaginar a opulência esmaecida naquela sala subterrânea. O edifício tinha passado por diversas mãos. Era bem provável que o atual proprietário nunca tivesse visto o porão. A loja no piso superior tinha janelas e porta fechadas com tábuas havia muitos anos, abandonada para apodrecer. Ninguém perdia tempo espiando através das janelas, ninguém tentava ver o que havia atrás das grades. O lugar tinha sido esquecido. Ou talvez estivesse escondido, disfarçado. Com certeza aqueles senhores sabiam se mover na escuridão.

Alguém acendeu um fósforo. O homem loiro, encostado em uma parede, levou a pequena chama até a ponta do cigarro e deu uma tragada profunda. Dos quatro, ele era o mais ambíguo, o mais hesitante — embora tivesse muitas responsabilidades.

— Não quero ter nada a ver com isso — exalou as palavras com uma nuvem de fumaça. Deixou o fósforo se consumir até quase queimar seus dedos e ficou observando enquanto a chama se apagava.

Aponta do cigarro brilhou quando o homem deu outra tragada vagarosa. Era a única luz na sala além do sol fraco de fim de tarde, que já esmaecia enquanto tentava penetrar pelas manchas de sujeira. Mas aqueles homens não precisavam se ver para se comunicar. Tinham passado tempo mais que suficiente em companhia da escuridão. Além disso, cada um tinha uma habilidade diferente de enxergar.

— Constantine — o homem conhecido apenas como o Estranho disse na direção do cigarro. A voz dele ressoava de autoridade, mas não revelava nenhuma impaciência, porque sabia que John Constantine sempre representava um desafio. Principalmente à autoridade. Era uma qualidade que lhe agregava muito valor. — Achei que tivesse sido bem claro. Não temos escolha.

— Por que não? — Constantine quis saber. — E não comece a falar da porcaria do livre-arbítrio de novo, porque podemos ficar uma semana discutindo isso.

Dr. Oculto, que estava observando a rua através das janelas imundas, virou-se e pigarreou.

— Acho que o nosso amigo quer dizer que...

Constantine o cortou abruptamente.

— Meu amigo não, cara. Não hoje em dia — o tom de sua voz poderia afiar uma lâmina.

O Estranho e Dr. Oculto trocaram um olhar.

— Se me permite terminar, senhor Constantine... o que o nosso amigo está tentando dizer é muito simples: o garoto é uma força natural, para o bem ou para o mal. E só depende de nós canalizar essa força para o bem e, quem sabe, para a magia.

Quando acabou de falar, Dr. Oculto lançou outro olhar para o Estranho, perguntando a si mesmo como suas palavras seriam recebidas. Constantine deu mais uma longa tragada no cigarro e não disse nada. Os outros sabiam que não adiantava tentar prever a reação de Constantine, nem esperar lealdade por parte dele. Nunca era inteligente esperar nada quando se tratava de Constantine.

O quarto homem surgiu do meio das sombras, com os olhos cegos escondidos atrás de óculos escuros.

— Digo que devemos matá-lo — declarou Mister Io. — E pôr logo um fim nesse assunto.

A energia na sala mudou. Mister Io podia sentir a desaprovação dos outros. Os três concordavam entre si, e estavam contra ele. Não gostava de estar em desvantagem, mas não aprovava a posição dos outros e estava disposto a levar seu argumento adiante. Sabia que estava certo sobre a questão. Os outros eram tolos, condescendentes. Ele podia guiá-los. E esse era seu dever.

— Como almas justas, é nossa responsabilidade pôr um fim nesse assunto — Mister Io disse.

Claro que os outros reconheciam sua sabedoria. Era muito óbvia, até mesmo para estas três figuras de moral ambivalente.

— Precisamos nos assegurar de que esse poder não caia nas mãos erradas.

— Não vai haver matança nenhuma — afirmou o Estranho, mantendo o tom de voz neutro. — Nosso papel é simplesmente educar, oferecer uma escolha a ele.

— Por acaso alguém dá escolha a um cão raivoso? — argumentou Mister Io.

— Isso não tem nada a ver com a questão, Io. O garoto não é nenhum cachorro — a voz do Estranho ficou mais dura e seu maxilar quadrado se apertou. — Ele é uma criança humana. Uma criança humana normal.

— Normal?

— Por que não podemos deixar o menino em paz? — perguntou Constantine, aprofundando-se ainda mais nas sombras da sala. — Se ele vai dominar a magia, pode muito bem chegar lá sozinho. Não precisa de nós.

— Constantine, se ele resolver escolher o caminho da magia, então vai precisar decidir com responsabilidade — disse o Estranho. Ele sabia que Constantine tinha consciência disso. Ainda assim, essa afirmação se fazia necessária. — Ele precisa conhecer o labirinto bem o suficiente para percorrer o caminho verdadeiro dentro dele.

— E também tem o pessoal que desejaria mostrar a ele um outro caminho — avisou Dr. Oculto. — A Chama Fria já sabe da existência dele. Minhas fontes disseram que ainda estão discutindo o que fazer.

— Como é que você sabe disso, Oculto? — perguntou Mister Io. A desconfiança fazia seus olhos cegos se contorcerem atrás dos óculos. — Você se comunica com as forças da escuridão?

Dr. Oculto não se ofendeu. Já estava acostumado com Mister Io.

— Você vê um traidor em cada sombra, Io — disse sem rancor. — Tenho as minhas fontes. Prefiro não fazer comentários sobre esse assunto por enquanto.

Constantine ergueu o corpo, sentou-se sobre o balcão e ficou com os pés balançando, como uma criança.

— A única coisa de que temos certeza é que não temos certeza de nada.

Para o Estranho, a atitude infantil de Constantine se refletia na afirmação adolescente.

— Esse foi um comentário particularmente estúpido, John Constantine — o Estranho estava começando a ficar cansado daquela discussão. — Luz e escuridão, vida e morte. Essas coisas são eternamente invariáveis.

Constantine suspirou.

— Tudo bem. Não vou mais discutir com você, chefe. Qual é o seu plano?

O Estranho quase sorriu. Constantine costumava ser petulante quando tinha que se render.

— Vamos iluminar o menino — disse o Estranho. — Mostraremos a ele o que a magia é de verdade, o que era e o que pode ser. Ele tem potencial para se transformar no humano versado mais poderoso de seu tempo. Está em nossas mãos assegurar que ele escolha seu caminho com sabedoria. Essa é a nossa missão e o nosso fardo — e deixou a afirmação ressoar na obscuridade.

— Estamos de acordo? — virou-se para onde Dr. Oculto estava parado, perto das janelas. — Doutor?

— Concordo — respondeu Dr. Oculto com um aceno de cabeça brusco. — Vou mostrar a ele a Terra das Fadas.

— Mister Io?

— Se vocês são molengas demais para despachar o menino, então acho que devo educá-lo. Se ele chegar assim tão longe, então eu o conduzirei até o fim.

— Constantine?

Constantine inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e deixou a cabeça cair para o lado. Lançou um olhar oblíquo para o Estranho e disse:

— É, está certo — e, de um salto, desceu do balcão.

— Darei uma visão geral para ele. Vou apresentá-lo aos competidores, para ele ter uma idéia do quanto custa começar.

— Então estamos combinados — afirmou o Estranho. — Começa por mim. Vou mostrar as origens e a história da magia.

Um estalar de ansiedade elétrica tomou os quatro homens.

— Vamos embora.

Três deles dirigiram-se à porta que só eles sabiam onde ficava. Constantine demorou-se um instante, saboreando o restinho do cigarro.

— É disso mesmo que o mundo precisa — resmungou, jogando a bituca no chão e amassando-a nas camadas de tempo que ali tinham se acumulado —, o protegido da Brigada dos Encapotados.

 

 

Para que serve essa porcaria de produto interno bruto? O que me importa o principal produto de exportação do Chile? Tem umas coisas que eu gostaria de exportar para o Chile, o Bobby Saunders para começar, mas ninguém pergunta o que eu acho, não é mesmo? Ninguém nunca pergunta.

Será que a escola precisa mesmo ser tão chata? Seria uma exigência do conselho de educação? Deve ter alguma coisa levemente interessante dentro de todos aqueles livros. Alguém se interessou bastante, tanto que os escreveu. A Molly também está de saco cheio, dá para ver pelo jeito que ela fica rodando o lápis de um lado para o outro — deve estar desenhando na margem do caderno, como sempre faz. Por que a gente nunca aprende nada de interessante, como as respostas para as questões importantes de verdade, como por que as coisas são tão aleatórias, ou como é que se decide quem nasce pobre e quem nasce rico? E por que são sempre as pessoas erradas que dão as ordens? Mas a escola não é lugar para fazer perguntas assim tão perigosas.

 

Timothy Hunter ajeitou os óculos em cima do nariz e tentou prestar atenção. Mas não teve muita sorte. Os Estudos Sociais realmente não conseguiam segurar seu interesse. Não quando havia tantas coisas interessantes bem ali, do lado de fora da janela. “Talvez não”, pensou, com o olhar deslizando pelo pátio vazio da escola, o alambrado, a lâmpada quebrada no poste da esquina.

“O que será que a Molly está fazendo agora?”, Tim olhou para trás quando o professor Carstairs começou a desenhar um gráfico na lousa. Molly tinha um sorriso dos mais estranhos no rosto, por isso Tim sabia que ela não estava anotando os fatos e números que o professor ditava com aquela voz monótona. “Claro, eu também não”, pensou, virando algumas páginas do caderno para encontrar uma folha em branco. Se o professor resolvesse caminhar pelo meio das fileiras, Tim não iria querer que ele visse o que tinha escrito.

Tim inclinou a cabeça, como se estivesse escrevendo com muita atenção, e deu mais uma olhada em Molly por baixo da dobra do cotovelo. Neste ano, havia algo diferente em Molly. Eles se conheciam a vida inteira e ele tinha passado muitos anos tentando se esconder dela, mas ultimamente ela já não o irritava mais tanto quanto as outras pessoas. Ultimamente, ela era a única pessoa com quem ele tinha vontade de conversar, e uma das poucas que ele deixava entrar no apartamento quando seu pai estava em casa.

O que ocorria na maior parte do tempo, já que ele nunca se levantava de sua poltrona reclinável.

“Talvez a Molly não tenha mudado”, Tim refletiu. “Talvez seja eu.”

Nada parecia se encaixar ultimamente. E não era só porque seu tênis tinha ficado pequeno e ele ainda não tinha conseguido pedir um novo para o pai. Tim se sentia irrequieto o tempo todo, como se tivesse crescido por dentro e a parte de fora não tivesse espaço para acomodar seu novo tamanho. Mas às vezes ele sentia exatamente o oposto: que por fora tinha chegado à adolescência oficial (afinal, ele estava com 13 anos!), mas por dentro se sentia menor, desprotegido como um caramujo fora da casca. Não era por acaso que não encontrava sapatos que lhe servissem.

“Você é mesmo bobo”, Tim deu uma sacudida forte na cabeça, como que para clarear as idéias. “A Molly tinha razão.” Um dia desses, ele ia pensar tanto que seu cérebro explodiria. Disse a si mesmo para calcular o tempo certo para tal, como se faz em uma prova-surpresa. Pelo menos a classe inteira iria se beneficiar de seu desaparecimento prematuro e dramático.

O sinal tocou e Molly ergueu a cabeça para olhar para ele. O cabelo escuro e grosso caía sobre um de seus ombros magros. Ela revirou os olhos castanhos como quem diz: “Por que o sinal demorou tanto?”, e levantou-se da cadeira. Pegou os livros e foi até a carteira de Tim, esperando para que voltassem juntos para casa.

Tinha acabado. O dia chegara ao fim. A semana chegara ao fim. Havia um fim de semana inteiro de liberdade pela frente. Não que Tim tivesse algum plano. Não que houvesse alguma coisa para fazer. Mas pelo menos poderia ir a qualquer lugar, estar em qualquer lugar, na hora que quisesse. Bem, isso não era exatamente verdade. De bolso vazio e com hora para chegar em casa, seus horizontes eram um tanto limitados.

Mas tinha a rua, o porto e os terrenos baldios, e toda a imundície cinzenta de Londres, sem supervisão e sem regras (nada de sinais tocando para avisar a hora de trocar de matéria). Ele poderia ler, escrever, sonhar, flutuar para onde quisesse com a imaginação. E chegaria mais rápido ainda em cima de seu skate.

— Por que você está demorando tanto? — perguntou Molly. — Tem cola na sua carteira?

Tim pegou os livros e se levantou com um salto.

— Vamos explodir a barraquinha de soda — disse, repetindo o que ouvira em um filme de gângsteres que o pai tinha visto na TV na noite anterior.

— O que é barraquinha de soda? — Molly perguntou, enquanto desciam a escada da escola.

— Sei lá — Tim admitiu. — Acho que só quer dizer “vamos dar o fora daqui”.

— Tô nessa! — Molly respondeu com entusiasmo.

— Tem algum plano para o fim de semana? — perguntou Tim.

A família de Molly era grande, então ela sempre estava ocupada em casa.

— Bom, deixe-me ver. Acho que primeiro tenho um discurso marcado no Parlamento, para tratar de algumas leis novas. Depois tenho um baile com Vossa Majestade, a rainha. E depois, acho que vou ter que levar os menores ao médico enquanto a minha mãe e o meu pai cuidam dos maiores e fazem compras.

— Que vida social — Tim disse, rindo. Tirou o ioiô do bolso e fez a manobra do cachorrinho passeando, depois a volta ao mundo, enquanto os dois caminhavam para casa. Como Molly morava alguns quarteirões adiante, chegaram primeiro à casa de Tim.

— E você? — perguntou Molly na entrada do prédio de Tim.

Estava torcendo a ponta de seus longos cabelos com os dedos.

Tim deu de ombros.

— Você sabe. O de sempre. Vou ficar vendo a grama crescer. A poeira juntar em cima do meu pai.

— Se quiser, me liga — disse Molly. — Adoraria ver se a grama cresce em cima do seu pai e se a poeira junta em cima do gramado!

Tim riu.

— Isso sim seria interessante.

— Ah, não — Molly discordou com um sorriso travesso. — Interessante mesmo seria escapar da morte por tédio.

— Tédio é uma palavra que nem passa pela minha cabeça quando eu penso em você, Mol — afirmou Tim.

— É mesmo? — perguntou Molly.

— É — respondeu Tim.

Molly sempre tinha as idéias mais malucas e mais legais para as aventuras. A maioria era apenas sua imaginação, mas eram animadas, divertidas. Tim gostava de se refugiar nas idéias malucas de Molly junto com ela.

Um leve rubor se instalou em suas bochechas brancas.

— A gente se fala — disse, apressada, e continuou seu caminho.

— É, a gente se fala — gritou Tim atrás dela.

Guardou o ioiô de volta no bolso, respirou fundo e se preparou para entrar em casa.

Fazia três anos que sua mãe tinha morrido em um acidente de carro, o mesmo em que seu pai perdera um dos braços. Desde então, este tinha uma relação profunda com a bebida e a melancolia. Ainda assim, Tim sempre torcia para encontrar alguma coisa diferente quando abria a porta de casa, ou cada vez que descia a escada. Mas seu pai nunca mudava, e isso sempre o fazia se sentir um idiota. O que seria preciso para tirar o pai do mundo em que atualmente vivia? Um milagre. Ou magia.

“E eu?”, pensava Tim enquanto abria a porta de casa para entrar na escuridão profunda que reinava lá dentro. Ele também tinha perdido uma pessoa querida, mas o pai agia como se fosse o único a sofrer. Tim sentia falta da mãe com aquela mesma sensação fantasmagórica que imaginava que seu pai sentia pela falta do braço, o mesmo choque repentino de constantemente redescobrir a ausência. E Tim sentia falta do pai também. Essa nova versão era um substituto muito menos do que adequado.

— Você precisa ver as pernas dessa moça — gritou o pai da poltrona na frente da TV, ao ouvir Tim entrar. — Ela era linda mesmo, essa aí. Naquele tempo o pessoal sabia como fazer um filme. — Virou a garrafa de cerveja, tomou-a de um gole e colocou-a na pilha de garrafas vazias ao lado da poltrona.

A sala estava escura, as cortinas fechadas, como sempre. A única luz vinha dos filmes antigos em preto e branco da TV. O pai vivia em um mundo em preto e branco. As cores tinham sido removidas da casa. As cortinas nunca se abriam, as luzes raramente se acendiam. No lusco-fusco obscuro em que viviam, só havia sobras e uma iluminação fraca... sempre em tons de cinza.

— É, pai — Tim disse, subindo a escada para o quarto com rapidez. — Você é quem sabe.

Tim não conseguia agüentar. O dia estava tão bonito lá fora, ele não suportava ficar preso com os fantasmas e a escuridão permanente. Pegou o skate no canto ao lado da cama, onde ficava guardado, e desceu a escada a toda velocidade. Com o skate embaixo do braço, abriu a porta de casa.

— Vai sair? — gritou o pai, sem tirar os olhos da televisão.

— Não demoro — respondeu Tim, e deixou a porta bater atrás de si.

Respirou fundo. O ar de outono, fresco e claro, encheu seus pulmões. Olhou para os dois lados da rua. Nenhum sinal de Molly. Será que ele devia ir até a casa dela? Resolveu que não. Não queria companhia naquele momento. Só queria se movimentar.

Colocou o skate no chão e foi dando impulso lentamente, com um pé. Essa região de Londres não era muito mais colorida que sua casa: a sujeira empilhada em terrenos baldios abandonados, o cinza das calçadas, as cores institucionais dos conjuntos habitacionais, o rosto cinzento e cansado dos desempregados com roupas lavadas tantas vezes que toda a cor já tinha ido embora. Havia manchas pretas para quebrar a monotonia (piche, grades, barras de ferro e portões), mas em geral era um mundo cinzento de cimento, poluição e sonhos despedaçados. De realidade.

Pelo menos ele podia fugir em cima de seu skate.

Tim pegou velocidade e se abaixou bastante, andando junto ao meio-fio. Sentiu a brisa bater no rosto, bagunçando o cabelo escuro. O mundo virou um borrão, e então algumas manchas coloridas se destacaram da paisagem cinzenta: a samambaia verde da senhora Waltham, alguns maços de cigarro e pacotes de salgadinho jogados no chão, um carro vermelho, um carro amarelo estacionado na frente do bingo. Na velocidade em que estava, dava para imaginar um mundo bonito.

Tim foi na direção sul, passando por seu terreno baldio preferido. Ele conhecia todos os melhores lugares: ruas vazias e semidestruídas onde não teria que se preocupar nem com carros nem com pedestres, onde podia pegar velocidade e testar novas manobras. Parou, abriu os braços e gritou:

— Demais! — com o melhor (ou o pior) sotaque americano que conseguiu, imaginando as ondas molhando seu rosto.

Rindo, feliz por não ter ninguém ali para ver, parou para calcular o ângulo exato para subir na rampa. Ele ia fazer um aéreo!

De repente, ouviu um tamborilar estranho e olhou em volta. Não dava para saber de onde vinha, e achou que devia ser alguma coisa batendo contra uma construção. Ajeitou o skate e subiu na rampa, executando uma manobra perfeita quando voltou ao chão.

— Legal! — gritou, socando o ar. Pena que não tinha convidado Molly para vir junto. Ela teria ficado impressionada.

Feliz da vida, rodou mais um pouco até parar e puxou a ponta da camiseta para enxugar o suor do rosto. Àquela altura, já estava com a respiração acelerada.

Ergueu a cabeça de repente. Lá estava o tamborilar de novo, cada vez mais alto. Isso não é nenhum galho de árvore, pensou. Estava chegando mais perto.

Sem ter muita certeza do que estava fazendo, Tim lentamente deu impulso no skate. O som agora parecia vir de todo lugar, ecoando à sua volta. Mas não tinha como saber exatamente de onde vinha. Parou de novo, com uma estranha sensação de temor.

De repente, uma mão lhe agarrou o ombro. Virou-se para trás e viu um cego de bengala se debruçando sobre ele. Seu cabelo era grisalho nas têmporas.

— Você acredita em magia? — perguntou o homem, com muita ênfase.

— Me larga! — Tim gritou, escapando da mão do homem. Pulou em cima do skate e se afastou dali rapidinho. O homem não era páreo para o melhor skatista de todos os tempos, um super-herói de skate, o campeão olímpico de skate...

Opa! Ele cantou as rodinhas para parar. Outro homem de sobretudo surgiu das sombras da passarela.

— Tim — disse o homem —, só queremos conversar com você.

Tim virou o skate como um profissional, tomou impulso e pegou velocidade. Sua mente corria tão rápido quanto o skate. “Como é que ele sabe o meu nome?”, perguntava a si mesmo, sentindo um arrepio.

Tim deu uma virada brusca, entrou em um beco e precisou parar de repente, de novo. Mais um homem de sobretudo estava parado ao lado das latas de lixo na outra ponta. “Ninguém me avisou que tinha loucos à solta.” Tim se abaixou, segurou o skate e fez uma rápida curva em U para sair dali.

“Com esse são três”, pensou. O coração dele disparava no peito. “Estão em toda parte.” Mas ele não estava com medo. Pelo contrário, estava animado com a perseguição, com o perigo em potencial, tranqüilo com a consciência de que aqueles velhos de sobretudo não conseguiriam acompanhá-lo.

Desceu a toda velocidade uma rua íngreme, sentindo a brisa esfriar o suor de seu rosto. A liberdade de movimento ladeira abaixo o deixou animado.

— Você não me pegam! — gritou.

Abaixou-se bem e entrou na área de carregamento do armazém vazio. Sabia que ali poderia escapar sem que ninguém o visse. “Ninguém me pega”, pensou com orgulho. “Nem guardas, nem esquisitões, nem professores, ninguém.”

Tim saiu do outro lado, em uma rua de lojas, na maioria fechadas. O tamborilar já tinha desaparecido havia muito tempo. Estava sozinho. Tinha escapado.

Então, ouviu um som bem baixinho, como se alguém tivesse acendido um fósforo. Antes de poder se virar para olhar, sentiu alguém agarrar seu ombro com violência.

— Peguei! — um homem loiro puxou a gola do moletom com tanta força que o fez escorregar do skate, que saiu deslizando sozinho pela rua.

— Ei! — Tim gritou. — Me larga.

O homem continuou a segurar Tim pela gola, olhando para ele com um sorriso cheio de malícia. Tim logo percebeu que não adiantava nada tentar enganar aquele cara. Ele era mais jovem do que os outros.

— Oi Tim — disse o homem.

Sua voz grave parecia simpática, mas todos os sentidos de Tim estavam em estado de alerta máximo.

Os olhos azuis do homem se voltaram para a calçada.

— Que skate legal o seu — e deu uma tragada no cigarro que acendera antes.

Tim esperneou, lutando para se livrar da mão do homem. Sabia que provavelmente não conseguiria escapar, mas não queria que o homem soubesse que ele sabia.

Na verdade, o homem loiro nem parecia se dar conta que alguém estava se debatendo contra ele.

— Bom, você não vai tentar me morder, Tim — disse, de modo amável. — Tem umas coisas na minha corrente sangüínea que você não vai querer experimentar.

O que ele queria dizer com aquilo? Tim parou de tentar escapar.

— Não vamos machucar você — o homem prosseguiu. — Só queremos uma palavrinha, entendeu?

Tim não conseguia dizer com certeza de onde era aquele sotaque, apesar de achar que o homem não vinha de nenhum bairro chique.

— Quem é você? — quis saber. — É da polícia?

Ele sabia que nunca tinha feito nada para que a polícia estivesse atrás dele, mas meio que gostava da idéia de talvez ser suspeito. Fazia com que ele se sentisse perigoso e interessante.

— Não. Trabalho com a iniciativa privada — respondeu o homem loiro. — Os outros três também — sorriu, como se estivesse contando uma piada. — Mais privado do que isso é impossível, no atual estado das coisas.

Então soltou Tim e se recostou numa parede de tijolos. Examinou o garoto como se ele fosse um objeto de pesquisa, fazendo Tim ficar acanhado. Passou a mão pelo cabelo despenteado e ficou pensando se precisava ou não ir ao barbeiro.

O cabelo do homem loiro era bem curto, e seu rosto fino tinha rugas profundas. Tim achou que devia ter quase 40 anos. Ou então tinha vivido demais.

O que queriam com ele? Será que estava encrencado? Talvez fossem gângsteres e quisessem usá-lo em alguma onda de crimes, em algum negócio do tipo ninguém-vai-suspeitar-de-uma-criança-mesmo.

“O que eu faço se quiserem que eu roube um banco com eles ou qualquer coisa desse tipo?” Tim sentiu o coração bater mais rápido.

O homem loiro deve ter sentido que Tim estava ficando cada vez mais agitado, em vez de se acalmar.

— Relaxe — disse. — Não estamos aqui para machucar você. Não vai ter confusão nenhuma. Quer dizer, não do tipo que você está pensando.

Tim corou. Ficou imaginando o que o homem achava que estava passando pela cabeça dele.

— Os outros chegarão em um segundo.

Como se as palavras do homem tivessem provocado aquilo, de repente Tim se viu rodeado pelos quatro homens, todos de sobretudo. Reparou que os quatro eram bem maiores do que ele.

Um deles, com chapéu de aba escura bem enfiado na testa, deu um passo à frente. O rosto dele era forte e anguloso, mas o chapéu envolvia seus olhos em sombras.

— Timothy Hunter, meu parceiro lhe fez uma pergunta. Você acredita em magia?

Falava como se fosse diretor de escola, como se estivesse acostumado a dar ordens. Tim ficou incomodado. Com isso e com a pergunta idiota. “Esses caras são uns palhaços.”

— Só — Tim retrucou. — E acredito na fada dos dentes de leite e no monstro do Lago Ness também — Tim cruzou os braços em uma posição desafiadora. — Não sejam idiotas.

— Não sou idiota — o homem disse. Ele não parecia louco, só queria mesmo uma resposta. — Vou perguntar de novo: você acredita em magia?

Os quatro homens concentraram a atenção em Tim. A intensidade fez com que um fio de suor escorresse por baixo de seu cabelo. Eles estavam falando sério. Percebeu que, se continuasse respondendo com agressividade, nunca se livraria deles. Refletiu sobre a questão e achou melhor responder com sinceridade.

— Eu... acreditava quando era pequeno. E às vezes queria que a magia existisse. Isso faria as coisas... sei lá... melhores? Mais esquisitas? Mais emocionantes? — baixou os olhos e olhou para os pés. — Mas é igual ao Papai Noel, não é? A gente cresce e descobre que essas coisas não existem. — Tim enfiou as mãos nos bolsos e ficou remexendo nas moedas, nas chaves, no ioiô.

— Menino, a magia existe.

Tim ergueu os olhos. Dava para ver cabelo branco saindo de baixo daquele chapéu. Aquele parecia ser o mais velho do grupo. Não era nenhuma surpresa ele falar como um diretor de escola.

— Existem poderes, forças e domínios além dos campos que você conhece.

Tim deu uma risada.

— Eu não conheço nenhum campo — disse. — Sou um garoto da cidade.

— Quando digo campos, menino, não estou falando de...

O homem loiro deu uma risada ferina e sorriu para Tim.

— Você não sabe quando alguém está tentando levar você na conversa? — disse, provocando o homem de cabelo branco. Voltou-se para Tim, cheio de humor brilhando nos olhos azuis. — Tudo certo, garoto. Não fomos apresentados da maneira adequada. Eu sou John Constantine.

Tim percebeu que estava gostando desse aí. Alguma coisa na atitude dele parecia... legal. Tipo, nada seria capaz de tirá-lo do sério. Tim queria ser assim quando chegasse ao colegial.

— Ah, oi. Eu sou Tim Hunter.

— Só — John Constantine jogou o cigarro no chão e o amassou com o pé. — A primeira regra da magia: não deixe que ninguém saiba seu nome verdadeiro. Nomes têm força.

— Mas você me falou o seu nome — Tim retrucou.

— Falei? — Constantine lançou um sorriso torto e uma piscadela para ele. — Não se esqueça de que existe uma diferença muito grande entre o nome de alguém e como essa pessoa se chama. Sabemos que você se chama Timothy Hunter, mas, se esse não for seu nome verdadeiro, não pode ser usado para exercer poder sobre você. Mas, de qualquer forma, talvez eu esteja aqui só de acompanhante. Diferentemente destes três aqui. — Fez um movimento com a cabeça, indicando os outros três homens, um mais sério do que o outro.

Tim tirou o ioiô do bolso e começou a brincar com ele. Queria parecer tão desencanado quanto John Constantine.

— Então, qual é o seu nome? — perguntou ao homem parado ao lado dele.

— Você não estava escutando? — o homem o repreendeu. Este também usava um chapéu de abas, mas o cabelo dele era castanho-escuro, mais escuro que o de Tim. — Nunca pergunte o nome de alguém. Em vez disso, pergunte às pessoas que você vier a conhecer como elas gostam de ser chamadas. Isso vai evitar muitos problemas.

Tim revirou os olhos. Não precisava levar sermão.

— É mesmo? Então como é que você se chama?

— Os homens me chamam de Dr. Oculto.

Tim queria perguntar como as mulheres o chamavam, mas achou melhor não. Em vez disso, fez mais um movimento com o ioiô e se virou para o homem do outro lado.

Antes mesmo que Tim tivesse a oportunidade de perguntar, o cego disse:

— Todo mundo me conhece como Mister Io.

“Que maneiro”, Tim pensou. “Como é que ele sabia que eu estava olhando para ele?” Talvez não fosse cego de verdade. Talvez estivesse fingindo. Então percebeu o nome que o homem tinha mencionado.

— Mistério? — perguntou Tim.

— Mister Io — corrigiu o homem.

“Que ridículo.”

— Você mesmo que inventou? — provocou Tim. Voltou-se para o homem de cabelo branco que parecia diretor de escola. — Então, quem é você? — perguntou. — Professor Esotérico? Capitão Ninguém?

— Não exijo nome nem título, Timothy Hunter. Mas eu espero que algum dia, talvez, você venha a me chamar de amigo. Até esse dia, devo ser um estranho.

Isso já era um pouco demais. Eles eram graves e pesados demais. Estavam querendo aprontar alguma, mas Tim não conseguia sequer começar a imaginar o que poderia ser. Queria que andassem logo com aquilo.

— Não acredito em nada disso! — exclamou. — O que está acontecendo? É algum tipo de piada? Algum reality show distorcido da TV?

— Nada de piada — disse o Estranho. — Nada de truques.

— Estamos aqui para lhe apresentar uma escolha — afirmou Dr. Oculto. — Você quer que a magia faça parte da sua vida, menino? — Cruzou os braços sobre o peito e olhou para baixo, para Tim.

“Estou rodeado por quatro malucos”, Tim pensou.

— Isso é uma idiotice. Esse negócio de magia não existe. — Recolheu o ioiô para a palma da mão e acenou para os homens com desdém.

Com um movimento rápido, Dr. Oculto tirou o ioiô da mão dele.

— Ei!

Dr. Oculto segurou o ioiô com as mãos em concha. Os olhos de Tim se arregalaram quando uma coruja apareceu com um raio de luz.

— O-o quê? Isso... m-mas... — gaguejou Tim. Ficou observando a coruja bater suas asas poderosas e voar até o parapeito de uma janela logo acima. A coruja prendeu a atenção de Tim por um momento, e então ele se voltou para Dr. Oculto mais uma vez.

— Você...? Não — sacudiu a cabeça com firmeza. — Foi só um truque. Um truque de mágica.

— Não — respondeu John Constantine. — Pelo menos não do jeito que você está pensando.

— Não é truque — concordou Dr. Oculto. — Isso é magia.

Tim olhou para a coruja novamente. Surpreendente. Há um minuto, Dr. Oculto estava segurando um brinquedo de plástico nas mãos. Agora um pássaro vivo, que respirava, olhava para eles.

“Se eu soubesse fazer uns truques desses”, pensou Tim, “a Molly ficaria mesmo impressionada”. “E por que ficar só transformando brinquedos em pássaros?” Com a magia, ele poderia arrumar uma babá para a família de Molly, para que ela não tivesse que ficar sempre cuidando dos irmãozinhos. Poderia garantir que eles sempre tivessem o que comer e que o apartamento se mantivesse limpo mesmo quando a mãe dela ficava meio esquisita. A magia poderia fazer muitas coisas.

Tim sentiu uma animação crescer em algum lugar bem dentro dele, alguma coisa que só estava lá esperando para sair. Virou-se para Dr. Oculto:

— Eu seria capaz de fazer isso?

Os quatro homens trocaram um olhar silencioso. Tim não conseguia decifrar aquilo. A expressão deles era impenetrável. Será que tinha dito algo errado?

O Estranho respondeu:

— Se for este o caminho que você escolher, sim.

Tim sentiu o coração se acelerar, da mesma forma que ocorria quando ele dava um salto com o skate e voltava para o chão depois de uma manobra perfeita.

— É por isso que estamos aqui — prosseguiu o Estranho. — Nosso papel é educar você, Timothy. Mostrar o caminho do encantamento, da arte, do oculto e do feitiço. Se você vai escolher seguir este caminho depois, é problema seu. Você quer embarcar nessa viagem, Timothy Hunter?

“Se eu pudesse fazer uns truques daqueles”, pensou Tim, “todo mundo ia ter que me tratar de outro jeito. Eu não ia ter que agüentar desaforo de ninguém. Nunca. Nunca mais.”

Engoliu em seco. Não fazia a mínima idéia do que significaria aceitar, continuar conversando com aqueles caras esquisitos. Mas não estava nem aí. Já sabia a resposta.

— Eu vou com vocês — declarou Tim. — É só me mostrar o que eu preciso fazer.

 

Tim ficou esperando a reação dos homens de sobretudo. Em vez de fazerem algo, só ficaram lá, em um silêncio pesado.

— Eu já respondi — disse Tim. — Vamos lá. — Eles já o tinham incomodado por tanto tempo, e agora estavam enrolando? Não fazia sentido. Ele percebeu claramente que nada daquilo fazia o menor sentido.

— Ele respondeu — afirmou o Estranho.

Ele parecia desejar que os outros três reconhecessem aquele fato, mas ninguém disse nada. Constantine jogou a bituca de cigarro no chão e a amassou com o calcanhar. Enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo comprido. Dr. Oculto assentiu com a cabeça lentamente e sorriu, quebrando a rigidez do rosto. Mister Io continuou imóvel, silencioso, com a boca fechada em uma linha firme e cheia de raiva.

Todo aquele silêncio deixou Tim nervoso, mas ele não deixaria que os homens percebessem. Deu um passo na direção do Estranho.

— Então, para onde é que a gente vai? — quis saber.

— Vamos entrar por aquela porta.

Como se aquilo respondesse alguma coisa.

— Vocês são pagos para falar em charadas, por acaso?

Com um bater de asas, a coruja se acomodou no ombro de Tim. Ele tentou se desviar dela, assustado com o movimento repentino, mas a coruja se agarrou ao moletom dele, como se estivesse reclamando o menino para si.

— Ai — reclamou Tim. Virou o pescoço para olhar para o animal. — Você precisa cortar as unhas, Ioiô.

— Você deu um nome a ele — Dr. Oculto observou. — Agora o pássaro é seu.

— Claro que ele é meu — declarou Tim, sem pensar. — Não fiquei sem comer chocolate três dias juntando dinheiro para comprar aquele ioiô à toa.

A coruja se ajeitou de modo mais confortável sobre o ombro de Tim, e ele começou a relaxar com aquele peso. Não era exatamente igual a um papagaio no ombro de um pirata, mas de certo modo aquele parecia ser o lugar certo para o pássaro se empoleirar.

— Agora vamos falar dessa porta que você citou.

— O passado está sempre batendo à porta, tentando invadir o presente — disse o Estranho. — Vamos ver o passado, mas não podemos interferir nele.

— Tipo aquela história de Natal com os espíritos. O espírito do Natal passado, o do Natal futuro...

Constantine riu:

— Mas com efeitos especiais melhores.

Tim devolveu o sorriso. Mas então sua expressão ficou congelada. Atrás do Estranho, bloqueando a visão de um antigo salão de sinuca abandonado, estava se materializando um retângulo gigante.

— Venha comigo por esta porta — convidou o Estranho.

Tim ficou surpreso. Aquilo era uma porta? Era um bloco enorme de... nada. Só uma forma grande. Não tinha substância, nem estrutura, só vazio.

O Estranho deu alguns passos na direção do espaço cheio de vácuo. Já estava com uns três andares de altura, era maior do que o prédio que encobria. Tim não conseguia fazer seus pés se moverem.

— E-estou com medo — finalmente falou, bem baixinho, ciente de que os quatro homens estavam esperando que ele tomasse uma atitude. — Estou com muito medo — abaixou a cabeça cheio de vergonha. Depois de tanta bravata (aquela sua mania de se fazer de espertinho, de que seus professores tanto reclamavam), depois de enfrentar aqueles esquisitões, depois de escolher a possibilidade tentadora de aprender magia, ele agora se via incapaz de dar um único passo.

Como que pressentindo o medo de Tim, a coruja levantou vôo e foi embora. Sua partida fez com que Tim se sentisse pior. Até mesmo seu ioiô de brinquedo estava decepcionado com ele.

— É — concordou o Estranho. Para alívio de Tim, o homem não parecia bravo nem decepcionado. — Você está com medo. Não há nada de errado em ter medo. Não são seus sentimentos que interessam, e sim os seus atos.

Tim concordou com a cabeça. Ele não queria se humilhar e desistir bem naquela hora. Como ele conseguiria viver com aquilo depois? Por alguma razão, queria que eles o respeitassem. Especialmente o cara loiro, o tal de Constantine. Dava para sentir seus olhos azuis apertados sobre ele.

“Um passo de cada vez”, disse a si mesmo. Avançou alguns centímetros com o pé. O outro pé foi atrás. Um passo se seguiu ao outro até que ele se viu ao lado do Estranho, no limiar da “porta”. Assim tão de perto, percebeu que o Estranho era mais de meio metro mais alto que ele. Não parecia tão grande momentos atrás. Também notou que os olhos do Estranho eram completamente brancos! Não tinham pupila. Tim deu um passinho atrás. Que tipo de criatura ele seria?

— Se isso serve para tranqüilizar você — disse o Estranho —, nada pode prejudicá-lo. Pelo menos, não no passado. Está pronto?

“Tarde demais para dar pra trás.” Tim assentiu com a cabeça, fechou os olhos e deu um passo em direção à porta.

— Argh! — ele se dobrou em dois, com o estômago dando cambalhotas dentro da barriga. Teve a sensação de que estava caindo em alta velocidade. Toda a sua estrutura parecia estar sendo esticada e esmagada por uma força centrífuga que desejava achatá-lo como uma panqueca.

Depois do que pareceu uma eternidade, Tim de repente sentiu-se normal de novo. Dava para pressentir que o Estranho estava atrás dele. Estavam flutuando no que parecia ser o vazio. Não havia som. Nada. Nada além de escuridão e silêncio.

— Onde nós estamos? — perguntou Tim. Pelo menos achou que tinha perguntado, apesar de não ter certeza se tinha dito alguma coisa em voz alta ou imaginado que o fizera. Mesmo assim, o Estranho respondeu.

— Isto aqui é lugar nenhum, menino. Isto é o vazio, o espaço que existia antes de haver qualquer lugar para onde ir.

Tim tentou compreender aquele conceito: “Estamos no início do tempos?”

Então... Tim tapou as orelhas. Que barulho! Era horrível! Altíssimo!

— O que é isso? — gritou.

— É um grito de dor, menino. A dor que vem com o parto.

— Parto? Quem está nascendo?

— Não é quem — respondeu o Estranho.

— É alto demais. E dói! — Tim segurou a cabeça, apertando forte, tentando espremer a dor para fora.

— A dor que você está sentindo é só uma fração da dor que fez surgir tudo que se transformaria em tudo. Tempo. Calor. Vida. Tudo.

— Tudo? — repetiu Tim. Da mesma maneira intensa e imediata que o tinham invadido, os sons e a dor desapareceram. Tim abaixou as mãos e olhou em volta. — Estamos mesmo no início de tudo?

— Digamos que sim. Estamos aqui como observadores, não participantes. Agora, menino, olhe para cima. Está vendo a cidade prateada?

Tim avistou pequenos brilhos de luz à sua volta. Estava flutuando no meio das estrelas. Não fazia a menor idéia do que o sustentava, ou de como era capaz de respirar, mas isso não parecia ter a menor importância. Na área que o Estranho indicara, havia um lindo aglomerado de luzes, rodopiando, movendo-se, mas tudo restrito a um lugar, sempre se movendo, juntando-se, separando-se em uma dança, e voltando a se reunir.

— Observe com mais atenção.

Tim se concentrou na constelação. De repente, viu um clarão brilhante, uma explosão de luz, de cores novas, caindo em cascata, espalhando-se, rompendo o aglomerado. Ficou imaginando o que teria acontecido. Parecia que alguma coisa tinha explodido no meio das luzes brilhantes. Seria algum tipo de supernova?

— Uau! Demais! — exclamou Tim. John Constantine não estava brincando quando falou dos efeitos especiais. — Parece Guerra nas Estrelas.

— Que analogia estranha, menino. Mas de fato houve uma guerra no céu e agora você está vendo os derrotados, queimando à medida que vão caindo, como estrelas. Na escuridão antes do amanhecer, foi deles a primeira loucura, foi deles a primeira rebelião.

— Do quê... Do que é que você está falando? Rebelião de quem?

Algumas das luzes brilhantes passaram ao lado dele, e Tim engoliu em seco. Não eram meteoritos nem espaçonaves... eram criaturas aladas!

— Eles parecem... anjos.

— Exatamente — disse o Estranho.

Tim observou os anjos caindo, um atrás do outro. O Estranho ia dando os nomes à medida que desabavam: Lúcifer, Uriel, Rafael, Miguel, Saraquel, Gabriel, Raquel...

Pareciam muito poderosos, másculos, musculosos. Tim se sentia ínfimo ao lado deles. Sempre tinha pensado em anjos como cupidos rechonchudos nos cartões de dia dos namorados, ou como enfeites de Natal, mas nada a ver com aquelas criaturas.

— Eles são tão grandes! — disse.

O Estranho levou seu rosto para mais perto de Tim. Seus olhos brancos brilhavam como as estrelas ao redor deles. Tim percebeu que aqueles olhos brancos eram energia, e que a pele humana do Estranho não passava de uma embalagem para aquilo.

— Esta é a sua percepção. Mas, menino, o espaço é vasto, e há muitos planos e pontos de vista e dimensões.

— Então você está dizendo que eles parecem grandes para mim, mas no esquema geral das coisas, talvez não sejam tão enormes assim? — respondeu Tim, tentando concatenar as idéias. — Tudo depende do ponto de vista?

— Exatamente. — O Estranho se aprumou de novo. Tim se sentia como se tivesse passado em uma prova-surpresa, e o franzido de sua testa relaxou.

— Vamos examinar o seu mundo — disse o Estranho. — Está vendo aquela estrela? É o seu sol. Ou vai ser, daqui a uma eternidade.

“Isso é inacreditável”, Tim pensou enquanto ele e o Estranho se deslocavam pelo céu noturno em direção a uma esfera vermelha brilhante. “Será que isto tudo está mesmo acontecendo comigo? Ou será que é algum sonho maluco, e eu estou largado na sarjeta depois de bater a cabeça em um acidente de skate? Meu pai sempre me disse para usar capacete. Seria terrível se ele tivesse razão.”

Tim mais uma vez teve uma sensação rodopiante de queda, seu estômago pulava para cima e para baixo, da barriga para o peito. A pele de seu rosto se apertava contra os ossos, e ele tinha certeza de que, se alguém olhasse para ele, poderia ver seu esqueleto através da pele. Dava para sentir imagens, perceber a escuridão lutando contra a luz e a luz devolvendo o ataque. Energias de todos os tipos o atravessavam, mas se moviam tão rapidamente que ele não conseguia ver nada com definição. O éter pelo qual se moviam era espesso devido às tantas almas que continha (humanas, divinas, demoníacas, animais) e todas elas exerciam pressão contra ele, fazendo com que gritasse. Por fim, ele e o Estranho conseguiram atravessar a massa de entidades para desembocar em um céu azul brilhante.

Flutuaram delicadamente por cima de uma ilha de pedras preciosas e cristais, brilhando ao luar.

— É lindo — murmurou Tim. — Onde estamos?

— Estamos uns 50 mil anos antes do seu tempo — respondeu o Estranho. — Estamos aqui para ver o último e o maior dos senhores-magos de uma terra que o povo do seu tempo mal pode acreditar que um dia já existiu. Há muito tempo, foi tomada pelo mar.

— Você está falando de Atlântida? — perguntou Tim, incrédulo. Ficou observando enquanto as ondas lá embaixo começavam a se agitar, lançando enormes jatos de espuma. — Achei que era só um conto de fadas.

— Você vai descobrir que muitas histórias abrigam em si uma verdade profunda — disse o Estranho.

Ondas gigantescas se elevavam, batendo nos edifícios cintilantes abaixo delas. Eles estavam longe demais para ver os detalhes, só conseguiam enxergar estruturas desabando, e Tim era capaz de sentir a tristeza e o horror da destruição que vinha da ilha condenada.

— Lá — disse o Estranho, apontando na direção de uma pequena figura sentada na beira de um penhasco. Uma névoa espessa escurecia o sopé do penhasco e a montanha da qual ele se precipitava. “Ou então”, Tim pensou, “o penhasco está flutuando no ar, como nós”. Ele e o Estranho se aproximaram e Tim pôde ver que a figura sentada mudou de posição quando a presença deles foi detectada.

A velha criatura sábia (ele não sabia dizer se era homem ou mulher) parecia ancestral. Rugas e cabelos brancos bem ralos emolduravam o rosto magro e surrado. O mago (porque parecia ser um) usava uma túnica pesada e estava sentado de pernas cruzadas à beira do abismo, observando a linda cidade ruir para dentro do mar.

— O que você precisa compreender a respeito de Atlântida é o seguinte... — a voz do mago tremia de idade e emoção. — Você está ouvindo, garoto?

Confuso, Tim voltou-se para o Estranho, que mantinha os olhos brancos apontados para a frente, sem responder à sua desorientação. Tim retornou ao mago.

— Você consegue me ver? — perguntou.

— Claro que não estou vendo você — respondeu o mago, impaciente. — Mas você já deve estar por aqui, porque foi o que os meus encantos disseram.

Tim achou o mago ancião meio rabugento. Ele imaginou que, se fosse velho daquele jeito, também seria mal-humorado.

— De qualquer forma — prosseguiu o mago —, o que a humanidade do seu tempo faz de errado é imaginar Atlântida como um lugar que tem alguma forma de existência quantificável. E é claro que não tem. Pelo menos não do jeito que as pessoas imaginam. Houve muitas Atlântidas, e ainda haverá várias outras. É só um símbolo. A verdadeira Atlântida está dentro de você, assim como está dentro de todos nós.

— O que você quer dizer? — perguntou Tim. Aquela criatura falava de maneira tão enigmática quanto o Estranho. “Será que todos eles falam assim?”, ficou imaginando. — Como é que pode haver uma cidade dentro de nós?

— É a cidade perdida que afundou sob histórias e mitos. O lugar que a gente visita nos sonhos e que de vez em quando aparece na superfície da consciência. Atlântida é o lugar onde a civilização nasceu, a terra de sombras que se perdeu para nós, mas que permanece para sempre como a verdadeira origem e o verdadeiro objetivo.

— Quer dizer... — disse Tim, tentando compreender — que é como o Estranho disse. Que os contos de fadas podem ser verdade. Atlântida não passa de um nome... para uma outra coisa?

— Quase isso. Para começar, está bem perto do que é. É uma fonte. A fonte.

— Tuuuudo bem — Tim disse, sem muita certeza. Tinha simplesmente que fingir que estava entendendo tudo, ou então ia ter que passar o resto da eternidade tentando absorver aquele único conceito. Ele poderia pensar no assunto mais tarde, como fazia com as lições de álgebra.

— Então, vamos falar sobre a arte em si — prosseguiu o mago ancião. — A magia. Acho que posso falar sobre esse assunto com certa autoridade. Vivi muitos, muitos anos... muito mais do que você pode imaginar. E tive tempo de pensar bastante mesmo. E o que eu penso é o seguinte... — a criatura ancestral virou o rosto bem na direção de Tim. Ele pôde ver que o mago tinha os olhos vermelhos (mas não sabia dizer se era por causa de choro, idade ou exaustão).

— A coisa toda é um engodo — disse o mago, de maneira direta. — Não vale o preço que eu paguei, nem por um segundo!

Surpreso com a afirmação e o ressentimento, Tim instintivamente deu um passo atrás. Por que o Estranho o levaria para conhecer alguém que obviamente odiava a magia? Será que isso era um aviso?

A criatura ancestral tinha o olhar perdido na distância. “Será que o mago está observando a cena à nossa frente?”, Tim se perguntou, “ou será que ele está vendo memórias do passado?”

— Se eu pudesse viver de novo, seria alguém feliz, comum e pequeno. Nunca teria me metido nos assuntos dos grandes e poderosos. Nunca teria descoberto o prazer da arte. Esse é o problema, sabe... — mais uma vez, o mago se voltou para encarar Tim de frente. — Uma vez que a gente começa a percorrer o caminho, não tem como voltar atrás.

Mais um estrondo e mais um edifício reluzente se despedaçou e desabou no mar revolto lá embaixo. Parecia que aquilo desanimava o ancião.

— Pronto. Já falei bastante. Leve-o embora, Andarilho Obscuro. Mostre a ele a próxima exposição do seu museu de cera do passado. E, garoto, não aceite o que estão lhe oferecendo. É um engodo... um engodo bem grande e reluzente.

Tim ficou observando, perplexo, enquanto a carne enrugada do mago ancestral lentamente se dissolvia, deixando só um esqueleto. Um vento forte começou a soprar, quebrando os ossos e transformando-os em poeira. Em poucos instantes, só restava um crânio sorridente. Era como se a única coisa que mantivera aquela criatura viva fosse a espera por aquele diálogo. Agora que o aviso tinha sido dado, o mago podia seguir em frente... e morrer.

Abalado, Tim ficou olhando para os buracos dos olhos vazios.

— Você sabia que isso ia acontecer? — perguntou ao Estranho.

— Vamos, menino — foi a única resposta. — Vamos nos perder no passado.

“Perder é a palavra certa”, pensou Tim, enquanto as imagens rodopiavam à sua volta em um borrão. Então viu que estava em uma caverna. As paredes úmidas estavam cobertas de pinturas de animais, iluminadas por um fogo crepitante e feroz. Homens cobertos de peles dançavam ao redor das chamas. Tim ficou observando enquanto eles tentavam compreender o mundo do lado de fora da caverna: as forças misteriosas que tinham que ser aplacadas e persuadidas, sacrificadas e adoradas, amadas e desacreditadas.

E assim, lá estava a magia. Tim não tinha muita certeza de como sabia aquilo, mas veio a ele como uma verdade.

Em seguida, sentiu-se como se estivesse em um museu de fantasmas. Hieróglifos dos mortos os rodeavam, nas paredes ásperas das pirâmides, e Tim percebeu que tinham viajado para o Antigo Egito. Deuses com cara de cachorro, escaravelhos azuis, flores de lótus e legiões de homens e mulheres pintados brilhavam nas paredes. E a magia estava lá também.

De repente, estavam nas margens do Rio Amarelo, na China. No céu, pipas de papel flutuavam enquanto sacerdotes se abaixavam e se contorciam, usando as máscaras dos dragões sagrados. Isso também era magia.

O mundo mudou de novo, e Tim sentiu o calor do Mediterrâneo e o sol. Estava em um antigo vinhedo grego, observando os foliões que dançavam em um ritual repleto de alegria — e perigo. O corpo de Tim pulsava com a energia do ritual, absorto pela órbita atraente de sangue e vinho.

Foi então que ele caiu. Toda a energia tinha sido sugada de seu corpo.

— Pare com isso — implorou ao Estranho. — Por favor, faça parar. É demais para mim. — Ficou deitado, arfando sobre o que acreditou ser o chão firme de verdade. Sabia que estava sozinho de novo com o Estranho, as figuras do passado tinham desaparecido e voltado para o lugar a que pertenciam. Tim engolia em seco e ofegava, parecia que continuavam a se mover. — Estou passando mal.

E, como que para comprovar o que tinha dito, virou-se para o outro lado e fez força para vomitar.

— Peço desculpas, Timothy. Temo ter lhe mostrado coisas demais, rápido demais.

Timothy limpou o rosto no capim, a boca na manga. Ficou deitado de barriga para cima, respirando devagar.

— Todas aquelas imagens. Todos aqueles lugares. É estonteante. — A solidão insuportável era ainda mais difícil do que a mudança de tempo desorientadora. Tim se sentia separado e à parte de tudo que tinha visto. Só observava, não podia participar. Estava à margem dos acontecimentos, sem ser convidado nem incluído. Era uma sensação muito parecida com sua vida na parte leste de Londres.

E, além de ser lembrado de que não passava de um forasteiro observador, o que mais tinha aprendido? Até agora, a única coisa que sabia a respeito da magia é que ela estava lá havia muito tempo, que as pessoas a desejavam, precisavam dela e, mesmo assim, em seu primeiro encontro, tinha sido alertado contra ela. E, ainda por cima, pela única pessoa com quem tinha tido a oportunidade real de conversar, um mago mal-humorado de um milhão de anos que se transformara em esqueleto em um instante. “Como é que eu vou aprender o que a magia é de verdade deste jeito?”, Tim ficou se perguntando. “Será que eu não preciso Praticar a magia para entendê-la?”

— Não tem ninguém com quem eu possa conversar? — perguntou ao Estranho. — Para perguntar como a coisa é de verdade?

O Estranho suspirou. Tudo parecia vazio e triste.

— Estamos à deriva no tempo, menino. Não temos à disposição mais realidade do que um vislumbre de sonho. Não há ninguém com o poder de ver você. Anão ser... humm...

O Estranho parecia ter tido uma idéia. Tim se levantou: parecia que estavam se movendo de novo. Estavam parados na frente de uma cabana com telhado de palha no meio de uma floresta.

— Onde é que a gente está? — perguntou Tim.

— Mais próximos do seu tempo — respondeu o Estranho. — Perto de Winchester, na Inglaterra.

— Praticamente em casa.

Entraram na cabana, e a primeira coisa que Tim percebeu foi o cheiro. Que fedor! Uma espécie de fumaça fedorenta se erguia de um caldeirão pendurado na enorme lareira que tomava uma parede. No consolo, havia ervas secas penduradas.

Na frente da lareira havia prateleiras repletas de potes de vidro e livros grossos. O chão sujo tinha um pentagrama enorme desenhado, com símbolos astrológicos ao redor.

Um garoto, poucos anos mais velho do que Tim, estava sentado a uma mesa grande de carvalho, colocando um líquido verde e espesso em uma tigelinha de barro. Ergueu os olhos.

— Por que você demorou tanto? — quis saber.

— O quê? — perguntou Tim. — Você estava me esperando?

— Não posso passar à próxima fase sem essas folhas. Foi difícil encontrar as plantas?

— Humm... humm... — Tim ficou olhando para o garoto, que parecia achar que ele era outra pessoa. “Talvez ele só possa me ver nessa época se achar que eu sou, na verdade, alguém que existe aqui.” Tim não tinha muita certeza sobre o que fazer.

— Você não trouxe, não é mesmo? — disse o garoto em tom acusatório, levantando-se da cadeira. Usava uma túnica de lã grossa presa por um cinto por cima das calças e botas de couro de cano baixo. Tim ficou imaginando quem era ele, e depois se perguntou quando aquilo estava acontecendo.

Irritado, o garoto passou a mão pelos cabelos, loiros e grossos. Tim podia ver que o cabelo comprido dele não estava nada limpo. Não viu nenhum banheiro na cabana de apenas um cômodo. O garoto provavelmente tomava banho só uma vez por mês, se tanto.

— Não entendo por que colocaram nós dois juntos para sermos aprendizes — reclamou o garoto. — Imagine só, eu, Merlin, com alguém como você. Eu sou o mago mais poderoso desta época. — Olhou para Tim e deu um sorriso torto. — Não faça essa cara de surpresa. Até o nosso mestre, Blaise, fala isso. A magia corre pelas minhas veias.

Merlin deu a volta na mesa e foi até Tim. Parou a menos de um metro dele e ficou olhando.

— Mas estou sentindo a magia em você também — disse com surpresa. — Alguma coisa mudou em você. Houve um despertar. Esse poder não estava aí ontem. Nem há algumas horas, quando eu mandei você buscar a Artemísia.

— E-eu estou diferente agora — disse Tim. E essa era com certeza a verdade.

Merlin assentiu com a cabeça, pensativo.

— Devemos voltar ao trabalho. Afinal, ainda estamos aprendendo. Apesar de não saber por que preciso ficar estudando se sei que vou ter todo o poder com que posso sonhar...

— Talvez seja assim que você vai aprender a usar todo esse poder — sugeriu Tim.

Merlin olhou para ele abruptamente.

— É, você mudou mesmo. — Pareceu refletir a respeito de algo, e então disse: — Por que você não trabalha sozinho no próximo feitiço?

 

Os olhos de Tim se arregalaram por trás dos óculos.

— Eu? Fazer um feitiço?

Merlin deu de ombros.

— Por que não? Cedo ou tarde você vai ter mesmo que trabalhar sozinho. Vamos ver se essa sua mudança tem mesmo algum valor.

Tim deu uma olhadela para o Estranho, para ver o que ele achava da idéia. Mas, como sempre, o rosto do homem não tinha expressão alguma. “Bom, se existisse algum perigo de verdade, ele provavelmente não permitiria que eu fizesse”, Tim raciocinou, caminhando na direção da mesa de carvalho. “A menos que este seja um teste importante. Talvez ele queira que eu não aceite. Eu poderia fazer com que o Merlin desaparecesse sem querer, aí não ia existir o Rei Artur, nem os Cavaleiros da Távola Redonda, e todo o curso da história da Inglaterra se modificaria para sempre. Tudo por minha causa.”

“Humm”, Tim cocou a cabeça. “O que eu faço?” Merlin se apoiou nos tijolos da lareira, esquentando as costas naquele ar frio. Seus olhos verdes soltavam faísca por causa do desafio.

— Está com medo? — provocou o mago adolescente.

Tim ergueu o queixo.

— De jeito nenhum. O que eu devo fazer como primeiro truque? Tirar um coelho da cartola?

Merlin parecia confuso.

— Por que você ia querer fazer isso, se dá para pegar quantos coelhos você quiser bem aí do lado de fora?

— Foi uma piada — balbuciou Tim. — Droga.

— Faça a poção da próxima página. Não dá para terminar a minha mesmo, já que você não trouxe a Artemísia que eu pedi.

Tim virou a página pesada e mofada do livro que estava aberto em cima da mesa. “Para enxergar no escuro”, estava escrito em tinta azul, no topo.

— Legal! — Tim exclamou.

— Não sei como as leis poderiam interferir no seu feitiço — disse Merlin.

Esse cara é mesmo literal, Tim pensou. Então percebeu que ninguém falava “legal” naquele tempo.

— Interessante, quer dizer — arriscou Tim. — Este feitiço vai ser mesmo divertido.

Merlin ensaiou um sorrisinho.

— É, vai mesmo. Se você conseguir fazer direito.

“Ele vai ver só”, Tim pensou. Leu todo o feitiço.

Bem fácil. Ele só precisava misturar alguns ingredientes enquanto falava umas palavras esquisitas. Não podia ser muito difícil, não é?

Tim pegou o livro pesado e foi até a estante de frascos, procurou no texto e encontrou a primeira erva: agropiro. Nunca tinha ouvido falar daquilo e não fazia a mínima idéia de como seria. Ficou torcendo para que os frascos estivessem organizados em ordem alfabética.

— Não... não tem etiqueta? — Tim quase berrou. Ficou olhando a fileira de cima a baixo. Nem um único frasco tinha etiqueta para indicar o que tinha dentro.

— Normalmente, a gente não precisaria de etiqueta nenhuma — respondeu Merlin. — Você não se lembra de nenhum item, não é mesmo? — Cruzou os braços sobre o peito e ficou olhando para Tim.

— Claro que lembro — afirmou Tim, com ar desafiador. Equilibrou o livro todo desajeitado em uma mão e esticou a outra para pegar um frasco. Então parou no meio do movimento e abaixou a mão. Poderia ser perigoso misturar ingredientes sobre os quais ele nada sabia. Tinha aprendido isso da maneira mais difícil, quando ele e Molly explodiram o laboratório de química de brinquedo.

Tim deixou a cabeça cair. Estava com vergonha de ter pensado em tentar enganar Merlin só porque queria se exibir para ele. Mas Merlin entendeu mal sua Opressão.

— Você precisa estudar, rapaz — debochou. — É a única maneira de aprender. Não seja tão preguiçoso. É preciso levar a magia a sério. É um negócio muito sério.

— Eu vou — Tim prometeu. — Mas tenho muito tempo para aprender a fazer essas coisas do jeito certo. Quer dizer, meu futuro está... bom, no futuro.

Os olhos de Merlin se arregalaram.

— Você também é vidente? Consegue ver o futuro, como eu?

Tim ficou estupefato.

— Você vê o futuro?

Merlin assentiu com a cabeça. Pegou um punhado de ervas secas de um gancho ao lado da lareira, atravessou a sala até a mesa e começou a esmagá-las em uma tigela com um pequeno pilão.

— O que vai acontecer? — perguntou Tim.

Merlin começou a amassar um pouco mais forte.

— Para falar a verdade, vai ser a maior confusão. Quer dizer, vou ter que orientar o Artur. Aquele negócio de espada na pedra e tudo o mais.

Tim assentiu com a cabeça, lembrando-se da história. Como era surpreendente descobrir que era verdade! E estar lá antes mesmo de tudo começar...

— Criar aquela glória tão efêmera e frágil que será Camelot — disse Merlin. Foi até os frascos e pegou de um deles um punhado de botões de flor com cheiro adocicado. Segurou-os com a mão aberta, olhando para eles sobre a palma da mão, como se estivesse enxergando o futuro naquelas pétalas delicadas. — Camelot.

Vai ser um instante glorioso que lançará luz sobre a Idade das Trevas e então desaparecerá sem deixar vestígios.

Voltou para a mesa e jogou as flores dentro da tigela de trabalho. Amassou-as com o pilão.

— Tudo funcionaria bem se eu pudesse estar lá para supervisionar as atividades. Mas não vou estar. — Merlin começou a trabalhar com mais afinco, transformando seus ingredientes em uma pasta. Seus dentes se apertaram, ele segurava o pilão com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

— Por que não? — perguntou Tim, com medo de que suas perguntas estivessem deixando o garoto-mago bravo. Mas precisava saber.

— A Nimue vai aparecer e eu vou sair atrás dela, arfando feito um cachorro no cio. Vou ensinar a ela um tanto de mágica que pouco irá lhe servir, mas que será o bastante para colocá-la em perigo. E tudo só para ver se eu consigo entrar nas anáguas dela. E daí ela vai me atrair para uma caverna e me prender com a minha própria magia e me deixar lá até apodrecer.

Merlin fez uma pausa para tirar o cabelo comprido do rosto. Ficou olhando para a tigela com tristeza, mas aos poucos um sorriso foi se espalhando Por seu rosto.

— Ainda assim — disse, voltando-se para Tim com um sorriso — , tudo vai ser muito, muito interessante.

— Mas, se você já sabe o que vai acontecer, por que não muda tudo? Por que não faz as coisas de outro jeito? Por que não evita essa tal de Nimue?

Merlin pareceu surpreso com as perguntas.

— Eu preciso fazer o que eu vou fazer. A magia não garante nenhuma liberdade. Você sabe disso. Tudo que ela compra tem um preço. — Merlin voltou até os frascos, passando o dedos pela prateleira até encontrar o ingrediente seguinte.

Tim viu que Merlin estava desaparecendo, a sala toda, o fogo, os frascos, tudo ia escurecendo... voltando para o lugar de onde tinha vindo no passado. E mais uma vez Tim se viu no limbo, ao lado do Estranho.

— Ele só tinha a minha idade — disse, com os olhos ainda fixos no lugar em que Merlin estivera momentos antes. — Só um pouquinho mais velho.

— É isso mesmo — respondeu o Estranho.

— Eu poderia fazer o que ele faz? Eu poderia ser tão poderoso quanto Merlin?

— Poderoso? Uma palavra estranha para se usar em relação a ele.

— Por quê? — perguntou Tim. — Só porque ele terminou em uma caverna por causa de uma garota qualquer? Eu seria mais esperto! — Tim ergueu os olhos e olhou para o estranho de novo. — Eu posso ser igual a ele?

— Se você escolher aquele caminho, pode, você pode ser o mesmo tipo de condutor do poder que Merlin foi.

— Eu bem que ia gostar! — Tim exclamou.

O Estranho ficou olhando para ele um bom tempo, em silêncio.

— Talvez gostasse mesmo.

Tim sentiu o coração bater mais rápido. Isso era demais! Suas sobrancelhas se juntaram na testa quando ele começou a se concentrar de verdade. Queria entender tudo e não cometer nenhum erro. Lembrou-se da força com que Merlin tinha misturado sua poção, do tom de sua voz ao descrever o futuro.

— Parecia que ele estava dizendo que sabia que a vida dela não ia dar certo. Quer dizer, ele parecia bem incomodado com aquilo. Mas ia fazer tudo do mesmo jeito!

— É isso mesmo — disse o Estranho. — É exatamente isso que ele parecia estar dizendo.

— O mundo inteiro conhece o Merlin... até hoje! — prosseguiu Tim, animado com as possibilidades que se apresentavam, rápida e furiosamente. — Isso sim é ser famoso. Esse negócio de magia deve valer a pena, considerando o sacrifício que ele acabou por fazer. — Tim abriu os braços no vazio, tentando captar sua energia. — Imagine ter todo aquele poder sendo só um garoto! — Virou-se para olhar para o estranho de frente. — Conte mais. Mostre mais. Quero ver tudo!

Instantaneamente, Tim se dobrou em dois de novo, mas desta vez estava mais preparado. Não ficou com medo nem se sentiu enjoado; seu entusiasmo por novas experiências afastou o enjôo rapidinho.

Urros de medo e de dor se ergueram ao seu redor. Tim engoliu em seco, horrorizado. Mulheres, e também alguns homens, estavam sendo torturadas nos calabouços da Inquisição. O fogo ardia por toda parte, mulheres presas a postes de madeira gritavam ao ser queimadas na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Afogamentos, apedrejamentos, acusações, urros, choros e berros ecoavam nos ouvidos dele. Tim cobriu os olhos.

— Que horror! — gritou por sobre aquela algazarra. — Pavoroso!

— O tempo das fogueiras — disse o Estranho. — Sempre reaparecem na história. Não só durante o que se chama de Idade das Trevas, mas também na época conhecida como “Idade das Luzes”.

— Por quê? — perguntou Tim, caindo de joelhos.

— As pessoas matam aquilo de que têm medo — explicou o Estranho. — E a magia é uma força poderosa. Merece ser respeitada. Mas é misteriosa, então pode ser assustadora.

Tim tirou as mãos da frente dos olhos e ficou vendo as imagens se acumularem, uma se sobrepondo à outra.

— Essas pessoas são más? — perguntou Tim, ao ver cenas de velhos e jovens, bonitos e desfigurados, sendo mortos de diversas maneiras aceitas pela sociedade de cada época.

— Não! O mal existe e a magia pode se curvar a seus propósitos. Mas essa gente que foi acusada raramente era má. Na verdade, a maior parte era de seres nem um pouco mágicos.

— Então por quê...? — Tim não conseguia formar as palavras para falar de tortura e assassinato de inocentes. — Por quê?

— Foi uma oportunidade a ser explorada. As pessoas que eles não entendiam, ou não aceitavam, eram todas mandadas para a carnificina.

Os gritos foram se dissipando. As imagens se congelaram, e então se dissolveram. Tim e o Estranho flutuavam mais uma vez no espaço vazio e silencioso.

— Depois de tudo isso — disse Tim, abalado pela violência que tinha testemunhado —, a magia não teve mais chance?

— Teve. Nas florestas e nas montanhas, perto de grandes pedras, as antigas religiões e as antigas memórias resistiram.

Tim pensou sobre a vez em que sua classe tinha estudado as pedras de Stonehenge[1]. O professor dissera que tinham sido colocadas em um local sagrado. Era difícil de imaginar, já que se transformaram em um ponto turístico tão importante, mas agora Tim acreditava.

— Parece que não existe mais magia de verdade. Não como antes. Para onde tudo isso foi?

— A magia não se perdeu completamente — afirmou o Estranho. — Acho que a melhor expressão é “mal guardada”. Muitos dos poderes do Mundo das Fadas abandonaram este plano para sempre. E, à medida que a ciência foi se difundindo, sobrou pouco espaço para a magia.

— Por quê?

— Ambos são sistemas de crença. A ciência acredita naquilo que pode ser explicado, verificado. A magia requer capacidade de mergulhar no desconhecido e no que não é possível ver. As duas quase nunca são compatíveis. No seu mundo, a ciência se transformou na realidade que todo mundo compartilha.

— O que você está dizendo? Que no meu tempo toda a magia já desapareceu? — Se houvesse alguma coisa ali para chutar, Tim teria chutado. “Isso é sacanagem! A magia desaparece logo no meu tempo, e eu fico sem?”

— Não, ela não desapareceu completamente. Mas a magia em estado bruto, aquela que está presente em todas as coisas, em cada folha, em cada pedra... isso é coisa do passado. E, como sempre tem gente disposta a queimar qualquer pessoa que ache que é uma bruxa, muitos magos verdadeiros adotaram nova conduta, evitando o reconhecimento, disfarçando sua plumagem.

— Então ainda existem magos — concluiu Tim —, mas cada vez é mais difícil encontrá-los.

— Correto.

— Fico feliz por saber que a magia ainda existe. Seria muito deprimente pensar que acabamos com tudo.

— A raça humana quase extinguiu a magia mais de uma vez — disse o Estranho. — Mas o poder, a arte, os talentos e o dom inato sempre conseguem se manter acesos, ainda que em brasas, e inevitavelmente acabam entrando em ignição de novo. Desde que haja o combustível adequado.

— Não parece existir muita magia no lugar em que eu moro — reclamou Tim. E então se iluminou e sorriu para o Estranho. — Eu bem que gostaria de ser o responsável por trazer a magia de volta.

O Estranho fez uma pausa. Ficou pensativo.

— Sua jornada apenas começou. Até o final do seu caminho, você terá toda a informação necessária para decidir se é isso que quer. No entanto, eu já o conduzi até onde podia, menino.

Mais uma vez, o nada reluzente em forma de um enorme retângulo se materializou na frente deles.

— Passe por aquela porta — o Estranho orientou. — Dentro dela há monstros, santos, pecadores e loucos mais notáveis do que qualquer coisa que você tenha visto pela nossa viagem através da Antigüidade.

Depois de tudo que Tim tinha visto, ficou imaginando o que o esperava do outro lado da porta dessa vez. Será que podia mesmo ser mais exótico do que Atlântida, Merlin e a Inquisição espanhola?

Tomou fôlego e atravessou a porta.

Entrou na Londres de hoje.

 

Tim teve que apertar os olhos, ofuscado pela claridade. Depois da escuridão do passado, o dia ensolarado de outono foi um choque para seu organismo.

Ao examinar a rua, percebeu que os outros três homens de sobretudo ainda estavam por ali. Constantine estava apoiado na janela suja, folheando um jornal. O cego, Mister Io, andava para cima e para baixo na calçada, resmungando, bravo, batendo a bengala no calçamento. Dr. Oculto estava com o chapéu bem enfiado, por sobre o rosto. Tim ficou se perguntando se ele não estaria tirando um cochilo. Isso o deixou curioso: quanto tempo será que ficara ausente?

Constantine ergueu a cabeça e aprumou o corpo quando viu Tim.

— Oi, garoto. Como estava o passado?

Os dois outros homens se aproximaram. Dr. Oculto sorriu, mas o rosto do cego continuou rígido e impassível.

— Tudo bem, acho — respondeu Tim, e fez uma retrospectiva de tudo que tinha visto. — Aprendi umas coisas — disse sorrindo. — Vomitei.

Constantine deu alguns passos para trás.

— Então tente não vomitar no meu casaco. É um saco ter que mandar para a lavanderia. — Mas Constantine sorriu, de modo que Tim compreendeu que ele estava brincando. Mas não só brincando.

Constantine jogou o jornal em uma lata de lixo próxima.

— Está certo. Então agora somos você e eu. Vou levá-lo para um pequeno passeio, apresentá-lo para algumas pessoas.

Depois da intensidade do Estranho, Constantine parecia muito à vontade, o que fez Tim sentir-se bem. Mesmo assim, ele não fazia a menor idéia do que o esperava. Queria encontrar uma maneira de se preparar, para não parecer um imbecil na frente de John.

Tim olhou para os dois lados da rua. Os outros homens ficaram lá parados. Esperando. Um movimento sobre a cabeça de Tim chamou sua atenção. A coruja (seu ex-brinquedo ioiô) voava em forma de oito lá em cima. Tim sorriu, lembrando-se do truque surpreendente. A magia.

Constantine deixou a cabeça cair para o lado.

— Quer levar a coruja com você? — perguntou.

— Hã? Claro que sim — respondeu Tim. Ele bem que ia gostar de ter seu pássaro-brinquedo consigo, independentemente do lugar para onde estavam indo. — Vem cá, Ioiô.

O pássaro desceu e pousou direitinho no ombro de Tim.

— Que pouso suave — disse ao pássaro. — Está aí um truque que a gente já está aprendendo. — A coruja piscou seus olhos amarelos.

— Então são dois bilhetes para o passeio completo, comigo aqui de guia. — Constantine esfregou as mãos.

— Onde nós estamos? — perguntou Tim, olhando ao redor. Aquilo não fazia o menor sentido. De repente, a rua não estava mais ali, Ioiô não estava mais ali e estavam sentados...

— É um avião — Constantine disse. — Um negócio grandão de metal, que voa pelo ar. E manda sua bagagem na direção oposta. Só que a gente não tem bagagem nenhuma, então tudo bem.

— Quero dizer, como é que a gente chegou aqui? — Tim ergueu o corpo, apoiando-se nos braços da poltrona, e olhou em volta. Comissários de bordo conversavam no compartimento da comida, atrás de cortinas. Tinha gente cochilando, lendo e gente ouvindo alguma coisa nos fones das poltronas. Tim abaixou o corpo mais uma vez. — A última coisa de que me lembro é que estávamos naquele lugar de lojas, e você ia dizendo...

— Que apresentaria você para algumas pessoas — John terminou a frase para ele, e tomou um gole da bebida. — Bom, a maior parte delas mora nos Estados Unidos, então é para lá que estamos indo.

— Mas eu não me lembro de nada — Tim reclamou. Chegou mais perto de John e cochichou: — E eu não tenho passaporte.

Uma comissária de bordo, ruiva e bonita, veio sorrindo pelo corredor. John ficou observando quando ela passou pela fileira deles.

— Eu também não. Já tive um passaporte, mas perdi. Fico falando que vou tirar um novo, mas nunca tiro.

— Mas como é que a gente entrou no avião? — Aquilo ali era tão esquisito quanto viajar através do tempo com o Estranho. Talvez mais esquisito, já que agora as coisas estranhas estavam acontecendo no “mundo real”. Então Tim pensou em outra coisa e disse: — O que vai acontecer quando precisarmos descer? Quando tivermos que passar pela imigração e tudo o mais?

John ajeitou o cabelo e arrumou o colarinho.

— Você se preocupa demais.

— E cadê o Ioiô? Você disse que eu podia trazê-lo comigo.

— Carregar uma coruja dentro do avião? Seria uma idiotice. Ele vai estar à sua espera quando chegarmos. — Constantine o tranqüilizou. Fechou a bandejinha à frente, desdobrou-se do assento de avião apertado e ficou em pé. — Pousaremos em Nova York daqui a meia hora. Agora vou ali bater um papo com aquela aeromoça simpática.

— Tudo bem. — Tim se acomodou no assento. — Você ajuda muito — balbuciou.

Tirou os óculos, voltou a fechar os olhos e resolveu que simplesmente aceitaria tudo que fosse estranho dali para a frente.

O piloto anunciou o pouso no aeroporto JFK. Tim colocou os óculos de novo e olhou pela janela. “Aí estão os Estados Unidos”, pensou, “Nova York”. Dentro dele, a animação ia crescendo. Ficou com os olhos colados à janelinha. “Será que é igual aos filmes?”

John retornou para o assento ao seu lado.

— Parece bem bonito daqui de cima, você não acha? — disse.

Tim concordou com a cabeça, sem tirar os olhos da paisagem desconhecida lá embaixo. Dava para ver arranha-céus, pontes, trânsito caótico, tudo em miniatura. A comissária de vôo teve que lembrá-lo duas vezes de afivelar o cinto de segurança para o pouso.

Tim ficou bem firme no assento enquanto o avião taxiava até o portão. Teve que se conter para não dar um pulo e sair correndo até a porta. Queria ver tudo... naquele instante! Os Estados Unidos! A terra dos caubóis, dos operadores da bolsa de Wall Street, dos rappers, da calça Levi’s 501 original, dos gângsteres, dos filmes e dos milionários. Nova York!

— Podemos ir? — perguntou a John no instante em que a luz de apertar os cintos se apagou.

John sorriu.

— Calma aí, amiguinho. A cidade não vai fugir, não precisamos atropelar todo mundo.

Passaram facilmente pelo corredor estreito, já que não tinham bagagem de mão. Tim reparou que a comissária de bordo ruiva encostou levemente no braço de John quando deixaram o avião.

O aeroporto estava lotado, cheio de gente, avisos tagarelavam pelos alto-falantes. Era tão enorme! “Como é que as pessoas se acham por aqui?”, Tim ficou imaginando, olhando em volta, tentando absolver tudo. Se ele tivesse que se achar sozinho ali, entraria em um avião para Timbuktu, e não para Londres. Que bom estar ali com John. Espera aí! Cadê ele? Tim correu os olhos pelo aeroporto de maneira frenética, com o coração acelerado. Então avistou John atrás de uma grande família reunida. “Não seja tão turista assim”, Tim tirou um sarro de si mesmo. John simplesmente continuou caminhando enquanto Tim ficou lá parado feito um bobo, olhando para tudo de boca aberta. Tim se apressou para alcançá-lo, não queria se perder ali. “E isso aqui é só o aeroporto”, pensou. “Espere só até eu sair lá fora!”

— Sabe, quando eu era criança — começou Constantine, dando passos de pernas compridas, como se não tivesse percebido que Tim ficara para trás —, talvez? quando eu tinha a sua idade, achava que os Estados Unidos eram uma terra mágica. É tudo tão grande... ei a gente ouvia falar de todas aquelas histórias de super-heróis e acreditava, porque aconteciam nos Estados Unidos.

Tim passou rápido pela longa fila de pessoas que esperavam para passar pela imigração. Em que fila será que ele e John ficariam? Tim olhou em volta, confuso, mas John continuava a falar e caminhar. Tim achou que ele devia saber o que estava fazendo, e tentou acompanhar o ritmo acelerado do homem.

— Quer dizer, quando eu era criança, os Estados Unidos eram um lugar onde tudo poderia acontecer — John disse. — Tinha tanta coisa incrível, sabe como é. Pizzas, hidrantes na rua, Hollywood, o Empire State Building. Tinha super-heróis, magia, alienígenas e sei lá mais o quê.

John continuou avançando. Passou pela imigração, pelas esteiras de bagagem, estava se dirigindo para a saída! Tim olhou ao seu redor. A qualquer minuto a polícia ou os inspetores da imigração, ou alguém, iria detê-los. Não ia?

— Bom, mais aí eu cheguei aos Estados Unidos e descobri que era igualzinho a todo filme ou programa de TV ou qualquer outro clichê sobre os Estados Unidos que você já ouviu ou sonhou. Está tudo lá, em algum lugar. Se você puder imaginar.

— Mas isso é bom, não é? — Tim perguntou, confuso com o tom de decepção de Constantine.

John deu de ombros.

— Eu prefiro a Inglaterra. Prefiro morar em um país que seja pequeno e antigo e onde ninguém nunca teria coragem de usar uma capa em público. Não faz mal se são ou não capazes de escalar um prédio.

No instante em que puseram o pé para fora, John enfiou a mão no bolso e tirou um maço de cigarros. Acendeu um e tragou profundamente.

— E, ainda por cima, eles têm as regulamentações mais primitivas possíveis em relação ao cigarro.

— Essas coisas vão matar você, sabia? — debochou Tim. — E não fique achando que você parece legal só porque fuma. Fica parecendo que você tem uma sentença de morte escrita na testa.

John deu outra tragada profunda e sorriu.

— Você é daqueles que fala tudo que pensa, não é mesmo? Eu gosto disso. — Ergueu uma sobrancelha para Tim. — Eu acho. — E apoiou-se em uma pilastra.

Tim apoiou-se em um pilar também, imitando a postura de John.

— Como foi que a gente fez aquilo? — perguntou.

— Fez o quê?

— Passou pela imigração e pela alfândega. Tudo isso. A gente foi passando!

— É mesmo? — disse John, como se nem tivesse percebido. Aprumou o corpo e deu alguns passos em direção à rua. — Agora você tem uma nova experiência a caminho.

Tim não pôde deixar de notar que John não respondera a sua pergunta, mas resolveu deixar para lá. Descobrir o que viria a seguir parecia mais importante.

— Não me diga — fez piada, nervoso. — Vou ser iniciado nos mistérios da Lemúria perdida e do antigo Mu?

— Você vai dar um passeio em um táxi de Nova York!

John desceu da calçada e ergueu o braço. Instantaneamente, um carro amarelo cantou os pneus e parou na frente dele. John apagou o cigarro e abriu a porta de trás.

— Sua carruagem o aguarda, senhor — disse para Tim. Tim entrou apressado no carro. O banco era cheio de calombos (uma mola o estava incomodando, por isso ele se ajeitou melhor, tentando achar uma posição que não machucasse). John deu ao motorista um endereço e então se recostou no banco.

— Para onde estamos indo? — perguntou Tim, ainda tentando encontrar uma posição confortável. Cada vez que achava, o motorista fazia alguma manobra brusca que o fazia deslizar para um lado ou para o outro. O cinto de segurança era mais necessário no táxi do que no avião!

— Vamos visitar uma amiga minha. Ela vai ficar encantada de nos ver. É uma moça adorável.

O visual do lado de fora da janela do táxi mudou. Já não estavam mais em vias expressas rápidas. Tinham cruzado uma ponte e agora trafegavam por ruas apertadas e pequenas. Os prédios eram mais baixos do que Tim esperava. Os arranha-céus que vira do avião e pelo trajeto tinham desaparecido. Essa área da cidade lembrava os bairros mais chiques de Londres.

— Onde a gente está?

— Em Greenwich Village. Uma das partes mais antigas de Nova York.

— Quem é a sua amiga?

— Ela se chama Madame Xanadu. E já chegamos. Desceram do carro e ficaram parados na frente de uma construção antiga, de tijolinhos.

— No andar mais alto — disse John.

— Você não vai tocar o interfone primeiro? — perguntou Tim, seguindo John pela escada estreita. — Para ver se ela está em casa?

— Ela vai gostar da surpresa — garantiu John quando abriu a porta do apartamento (sem nem bater, Tim reparou, surpreso). Ele achava que todo mundo trancava a porta de casa em Nova York. John devia ter falado sério quando disse que ia fazer uma surpresa para Madame Xanadu, ou seja lá qual for o seu nome. Tim entrou em um pequeno hall, pintado com símbolos astrológicos e criaturas estranhas que ele não sabia identificar.

O apartamento estava escuro. Uma cortina separava o hall de entrada do resto da casa. O nariz de Tim se contorceu e seus olhos arderam. Incensos de aroma doce e penetrante soltavam finos espirais de fumaça dos quatro cantos da sala. John abriu a cortina. Uma mulher de cabelos escuros estava sentada atrás de uma mesa redonda, com um baralho nas mãos. Velas bruxuleavam em candelabros nas paredes. Tapeçarias cobriam o teto, dando ao ambiente um visual têxtil.

A mulher não ergueu os olhos das cartas que estava embaralhando.

— Entrem sem medo — disse.

— Madame X — John Constantine a cumprimentou todo entusiasmado.

A cabeça da mulher se ergueu abruptamente. “Se um olhar pudesse matar”, Tim pensou. Seus olhos azuis pareciam arremessar punhais.

— John Constantine — ela assobiou por entre dentes cerrados. — Como você ousa entrar na minha casa? Vá embora!

— Um amor, como sempre — disse Constantine. Tim ficou surpreso: ele parecia incrivelmente calmo, levando em conta como ela estava brava. — Você não envelheceu um dia sequer.

A mulher se levantou da mesa.

— Nem tente me conquistar com seus elogios, seu... seu ladrão sorrateiro! Se você acha que eu me esqueci da maneira como você me tratou da última vez que esteve aqui...

Deu a volta na mesa e foi caminhando lentamente, com passos firmes, na direção de Constantine. Tim estava ciente de três coisas: a mulher era bonita, estava extremamente aborrecida e Constantine não parecia nem um pouco afetado por esse fato.

— Você se aproximou de mim e conquistou minha confiança, simplesmente para roubar o Ovo do Vento — disse, com sua voz profunda ressoando de fúria. — Eu deveria esquartejá-lo, membro por membro. Deveria mandar as harpias arrancarem seus olhos.

Tim se encolheu no cantinho do batente da porta, tentando passar despercebido. A mulher cerrou o punho, com as pulseiras tilintando, os nós dos dedos brancos acima dos inúmeros anéis. Parecia capaz de fazer tudo que tinha ameaçado.

— Como você ousa entrar na minha casa, no meu lugar de poder? Veja bem, estou decidida a...

John cortou a fala dela.

— Será que ajuda se eu pedir desculpa?

Tim ficou olhando para ele. Ele não parecia arrependido de verdade. Não exatamente. Parecia mais um adolescente pedindo desculpas só porque tinha sido apanhado.

Madame Xanadu não engoliu aquela conversa. “Ponto pra ela”, Tim pensou. Colocou a mão no quadril cheio de curvas, bem apertado dentro do vestido vermelho.

— Vou lhe dar dez segundos para sair daqui. E então vou... vou... — parecia estar com dificuldade para inventar alguma coisa ruim o bastante para castigá-lo.

— Tim — disse Constantine, sem tirar os olhos da mulher nem por um instante —, espere lá fora um segundo, certo?

Tim sentiu-se aliviado em sair dali. Não gostava quando as pessoas começavam a gritar umas com as outras. Os pais dele nunca brigavam, então ele não estava acostumado com aquilo. Os pais de Molly brigavam o tempo todo e às vezes a coisa ficava realmente séria. Ele não queria ser testemunha de algo assim entre John e Madame Xanadu.

Passou pela cortina e saiu pela porta da frente, para o corredor. Deixou-se escorregar pela parede e sentou-se no chão com as pernas cruzadas, perguntando a si mesmo se estava se sentindo tão confuso por causa do fuso horário ou da aventura estranha. Em que fuso ele estava mesmo? Olhou para o pulso e percebeu que não estava usando relógio. Riu para si mesmo. “Você não tem a mínima noção.”

Um pouco mais tarde, a porta do apartamento se abriu. Constantine colocou a cabeça para fora.

— Pode entrar, Tim. Vou apresentá-lo direito.

Cautelosamente, Tim voltou para o apartamento. Madame Xanadu estava sentada à mesa outra vez. Parecia bem mais calma. Tim ficou imaginando o que Constantine teria dito para que ela se acalmasse.

Constantine colocou a mão no ombro de Tim e o conduziu até a mesa.

— Tim, esta moça se chama Madame Xanadu... Madame X, este aqui é o Tim Hunter.

A mulher sorriu. Era linda, Tim não podia fazer nada além de olhar para ela. O cabelo grosso e escuro ia quase até a cintura. O vestido era curto e justo, e deixava pouco espaço para a imaginação.

— Prazer em conhecê-lo, menino — disse. Fez um gesto para a cadeira a seu lado. — Venha se sentar. Constantine me falou um pouco de você. Vou ler as suas cartas.

Tim olhou para Constantine cheio de incerteza.

— Eu... eu não sei...

John assentiu com a cabeça.

— Vá em frente. Esses truques de barraquinha de feira podem ser divertidos. Além disso, preciso entrar em contato com algumas pessoas. Você está a salvo aqui. Muito mais do que eu — completou, com uma piscadela. Dirigiu-se para a porta do apartamento, deixando Tim a sós com a linda Madame X.

— Vamos fazer a leitura mais simples — ela explicou a Tim —, com quatro cartas. — Entregou a Tim o baralho de tarô. Tim ficou surpreso, as cartas pinicavam suas mãos como se provocassem pequenos choques elétricos. — Embaralhe até que você se sinta à vontade. Depois, coloque quatro cartas na mesa.

Tim seguiu as instruções. À medida que foi embaralhando, o formigamento foi parando e as cartas foram ficando quentes. Dava para jurar que tinham começado a brilhar. Deve ser um truque de luz, disse a si mesmo. Com todas aquelas velas bruxuleantes.

— Humm. Só Arcanos Superiores — disse Madame Xanadu, estudando as cartas que Tim colocara sobre a mesa.

— Isso é bom?

— Não é bom nem ruim. Só indica uma intensidade que não me surpreende.

Tim olhou para as figuras estranhas, imaginando como elas poderiam dizer algo.

Madame X colocou uma unha pintada de preto sobre a primeira carta.

— Esta posição nos diz de onde você veio. Você tirou o Ermitão. O mais velho, o que observa. Um homem sábio vai... não, ele já o apresentou a um conhecimento secreto. Vejo tempos que já se foram. O passado.

— Parece o Estranho! — Tim exclamou. — Estávamos no passado! — Talvez houvesse mesmo alguma coisa interessante naquela leitura de cartas ciganas, afinal.

Madame Xanadu o ignorou. Tim recostou-se na cadeira, torcendo para que não tivesse rompido alguma espécie de regra da leitura de cartas. “Deveriam publicar um livro de etiqueta na magia, pensou. Iria vender milhões de exemplares.”

— A segunda carta nos diz onde você está exatamente agora. — Um sorrisinho cruzou o rosto dela. — A Roda da Fortuna. Que surpresa.

Para Tim, ela não parecia nem um pouco surpresa. Mas, desta vez, ele não disse nada. Ela olhou para ele.

— Este aqui é alguém em quem não se pode confiar, um apostador. A aventura virá até você... aventura e perigo — bateu na carta com a unha comprida. — É isso que esta carta mostra.

Ela olhou para a mesa de novo.

— A terceira carta nos diz para onde você vai. Ah, a Imperatriz. Esta geralmente é uma mulher, mas também pode ser um homem que está em contato com seu lado feminino. — Ergueu a cabeça e apertou os olhos, pensativa. — Mas vejo mais de uma mulher. Talvez várias. Mulheres que serão de vital importância para sua segurança... e identidade.

Tim assentiu com a cabeça como se estivesse entendendo, só que não compreendia absolutamente nada. Estava ficando bom em fingir. Apontou para a última carta.

— O que esta aqui quer dizer?

— Diz para onde tudo isto aqui vai levar você. Qual o objetivo desta jornada. Justiça. — Olhou para a carta durante um longo tempo, como se não estivesse apenas lendo o nome escrito nela, mas também tentando apreender um significado mais profundo. — Mas não creio que represente a reparação de erros nesta mão de cartas — terminou por declarar. — É uma decisão que precisa ser tomada. Pesar todas as informações e tentar escolher com sabedoria.

Recostou-se na cadeira e fechou os olhos.

— Humm. Estas cartas podem representar condições, ou pessoas... — Abriu os olhos e olhou para Tim, as enormes órbitas azuis cheias de seriedade. — Desculpe, não posso entrar em maior detalhes. Se tivéssemos mais tempo...

— Obrigado. Foi interessante... o que você me disse. — E tinha sido interessante. Apesar de ele não saber o que fazer com tudo aquilo.

A cabeça dela se ergueu de supetão.

— Mas você precisa ir embora. Vá andar na Roda da Fortuna. Viaje com o apostador.

— Isso você acertou — John Constantine apareceu na porta. Tim não ouvira ele entrar. — Precisamos ir agora.

A urgência na voz de Constantine fez com que Tim se levantasse da mesa rapidamente.

— Um instante — disse Madame X, ficando em pé. — Normalmente, espero um presente das pessoas que se consultam comigo. Mas neste caso eu é que tenho uma coisa para você. — Ergueu a mão e uma coruja veio voando suavemente até ela.

— Ioiô! — Tim exclamou. — De onde ele veio?

— Não importa. Ele é seu.

O pássaro voou até o ombro de Tim. Tim gostava de como ele se acomodava ali, agora que já tinha se acostumado com suas garras afiadas. — E aí, Ioiô? — disse para o pássaro, que deu uma sacudida rápida nas penas e arrulhou.

— Muito bem, então — disse Constantine. — Tudo pronto?

Tim assentiu com a cabeça, acariciando as delicadas penas castanhas de Ioiô. O pássaro fechou os olhos de contentamento.

Constantine se virou para sair.

— Cuide-se, querida — gritou por sobre o ombro para Madame X. Sem mais nenhuma olhada para trás, deixou o apartamento.

— Muito prazer em conhecê-la — Tim disse para a mulher. — Obrigado por tudo.

Madame X não respondeu. Só parecia perturbada. Tim não tinha certeza se era por causa dele, da leitura de cartas ou de John Constantine.

— Então... tchau — despediu-se Tim, e se apressou para alcançar Constantine.

— Ela não pareceu muito contente de ver você. — observou enquanto desciam a escada.

— Acho que você tem razão.

— É verdade que você roubou o... como era mesmo? O Ovo do Vento dela?

— De certo modo, sim — John admitiu. — Eu queria devolver, mas ficou um pouco avariado numa briga com um troll em Birmingham.

— Ah, claro — Tim tirou sarro. — Tem troll em Birmingham. Sei.

— Se você souber onde procurar, tem sim. — Saíram à rua e começaram a caminhar rapidamente na direção oeste. — Olha, precisamos tirar você daqui, e bem rápido — John disse. — Recebi a notícia de que estão a par dos lugares por onde passamos. — Tirou um maço de cigarros do bolso. — Achei que ainda tínhamos pelo menos uns sete dias antes de nos encontrarem. Julguei mal.

— Você precisa mesmo ficar fumando essas coisas nojentas? — Tim perguntou, espantando a fumaça de maneira teatral com as mãos. — E quem está atrás de nós?

— O pessoal que quer matar você.

Tim parou tão repentinamente que Ioiô soltou um guincho e apertou as garras no ombro dele com mais força. Tim ignorou a dor.

— Me matar? Por que alguém ia querer me matar?

John virou-se para olhá-lo de frente.

— Pense bem, garoto. Você está no limiar de um poder muito importante. Você não acha que as pessoas matariam por isso? Para acabar com ele para sempre ou para pegá-lo para si? De qualquer modo, tem um monte de gente atrás de você. E nem todo mundo é gente.

— Ah.

— Anime-se, Tim. Nosso lado também tem muita força. — John começou a andar de novo, certo de que Tim o seguiria.

Foi o que fez, mas demorou alguns quarteirões até que pegasse o ritmo e voltasse a acompanhar John. Saber que tinha gente a fim de matá-lo era uma informação um pouco pesada demais para processar.

Iam percorrendo as ruas da cidade em silêncio. Tinham se aproximado do rio, e o bairro estava bem deserto. A maioria dos bares e restaurantes estava fechada àquela hora do dia, e as pessoas provavelmente estavam trabalhando. Uma senhora passou ao lado deles, passeando com um cachorro. Um homem com roupas imundas remexia uma lata de lixo. Nenhum dos dois lhes deu a mínima atenção. Tim não fazia a menor idéia de onde estavam indo, ou se John tinha algum destino em mente, mas parecia inteligente não ficar parado. Os olhos brilhantes de Ioiô iam de um lado para o outro, como se estivessem vigiando tudo atentamente.

— Olha, acabei de pensar uma coisa — disse Tim. — Meu pai. Será que eu não devia ligar para ele ou algo assim? Quer dizer, ele já deve estar morrendo de preocupação por causa de mim. E como vou explicar que estou em Nova York?

— Não se preocupe com o seu pai — Constantine disse. — O resto da Brigada dos Encapotados já deve ter dado um jeito nisso a esta altura.

— Dado um jeito em...?

Constantine riu.

— Não seja assim tão agourento. Só estão cuidando dos detalhes, só isso.

Viraram uma esquina e passaram por um bêbado caído no chão, encostado em uma parede, com uma garrafa de bebida barata ao lado. O nariz de Tim se contorceu. O cara fedia.

— Que lugar chique — ironizou Tim.

De repente, Ioiô deu um guincho e saiu voando.

— Cuidado, garoto! — alguém gritou.

Tim e Constantine voltaram-se para trás, como que em uma coreografia. Os olhos de Tim se arregalaram de espanto.

Uma linda mulher com um vestido esvoaçante estava parada atrás dele, segurando uma adaga afiada como uma navalha... que estava apontada bem para Tim!

As coisas aconteceram rapidamente: Ioiô voou no rosto da mulher, o mendigo bêbado se ergueu de um salto, acertando a mulher com a garrafa. Ela caiu nos braços esfarrapados dele, deixando a adaga cair na calçada.

— Deixe que eu cuido desta aqui, Constantine — disse o bêbado, apontando para a mulher inconsciente. — Você precisa tomar conta do menino.

John agarrou o braço de Tim e puxou-o para longe. A cabeça de Tim ia de um lado para outro, para ver o que aconteceria a seguir. Mas o bêbado e a mulher tinham desaparecido. Ioiô voltou para o ombro dele.

— O que foi isso? — perguntou Tim a Constantine, que caminhava rapidamente.

— Não faço a menor idéia.

— Mas ele sabia o seu nome!

— Meu nome?

— Como chamam você, então — resmungou Tim. — E quem era aquela moça? Ela era uma dessas pessoas que querem me matar?

— Precisamos seguir em frente — respondeu Constantine.

Tim sacudiu a cabeça.

— Não dá pra acreditar que estou tendo esta conversa. Não dá para acreditar que estou caminhando na...

— Rua Doze — John informou.

— Rua Doze, com uma coruja no ombro. Uma coruja que costumava ser um ioiô. Não dá pra acreditar que estou nos Estados Unidos. E, definitivamente, não dá pra acreditar que tem gente querendo me matar. Não dá pra acreditar...

— Em magia? — Constantine parou e se virou para olhar Tim de frente, com os braços cruzados sobre o peito.

Ficaram olhando um para o outro na rua silenciosa. Tim não sabia o que dizer, porque na verdade não sabia que resposta dar. Não dava para saber se John estava bravo, se o estava desafiando ou se estava decepcionado. Queria que ele o respeitasse e, se John acreditava naquele negócio de magia, então talvez ele também devesse acreditar. “Mas nem mesmo John é perfeito”, pensou enquanto tossia por conta da fumaça de cigarro que permanecera no ar.

John quebrou o silêncio.

— Olhe, precisamos levar você para algum lugar seguro. — Caminhou até um carro estacionado ao lado da calçada e abriu a porta do lado do passageiro. — Entre

— instruiu, e então deu a volta pela frente do carro.

Os olhos de Tim se arregalaram.

— Ah, droga! Agora a gente vai roubar um carro? — Tim não estava acreditando.

Como se fosse uma resposta, John abriu a porta do motorista.

— Você tem certeza de que está do lado do bem? — perguntou Tim.

— Acho que isso depende da pessoa que vai responder sua pergunta. Você vai entrar ou não?

Que outra escolha ele tinha? Acomodou-se no banco da frente, e John se esgueirou para trás da direção.

— Você sabe dirigir? — perguntou Constantine.

Tim riu.

— Só tenho 13 anos.

— Ah, bom, então acho que vai ter que ser eu mesmo. — John virou a chave na ignição. Deu ré e bateu no carro de trás, foi para a frente e bateu no outro carro. Então jogou o carro para o meio da rua. — Não se preocupe, não é longe.

Tim estava estupefato. Como é que um cara como Constantine podia dirigir tão mal?

— Para onde a gente está indo? — perguntou, afivelando o cinto de segurança rapidamente. Segurou-se no assento enquanto John tirava finas dos carros estacionados, arrancando um retrovisor no trajeto.

— Para San Francisco.

Tim ficou de queixo caído. Contorceu-se sob o cinto de segurança e ficou olhando para John.

— Mas... isso fica do outro lado do país! — Os olhos dele vislumbraram o pára-brisa. — Cuidado com aquele carro!

John fez uma curva abrupta, quase batendo de frente com uma BMW. Passou para uma avenida principal. Cheia de carros. E caminhões. E pedestres inocentes.

— San Francisco fica a milhares de quilômetros! — Tim exclamou. — Essa viagem demoraria séculos, e eu tenho prova de química! Além disso, prometi ligar para a Molly. — Estava prestes a explicar que não tinha jeito de ele ficar longe de casa tanto tempo quando a péssima maneira de dirigir de Constantine o distraiu. — À direita, John! Você tem que dirigir do lado direito da rua aqui nos Estados Unidos!

— Tim, vá dormir. — Constantine parecia aborrecido.

— Hã?

— Vá dormir.

Tim sentiu que afundava na escuridão. Lutou para manter os olhos abertos, mas era como se tivesse pesos nas pálpebras. Foi um alívio deixá-las cair.

De repente, Tim acordou de sobressalto, com o coração em disparada. Devia estar sonhando... sentia uma sensação terrível de perigo, de perseguição... uma perseguição de carro, igual à dos filmes. Piscou, sacudiu a cabeça tentando limpá-la, e piscou mais uma vez. Quando a cena à sua frente entrou em foco, o suor brotou em sua testa.

“O que eu estou fazendo aqui?” Estava parado no topo de uma colina, e dois carros queimavam na ravina lá embaixo, bem longe. Constantine também olhava para baixo, e Ioiô voava em círculos sobre a cabeça deles. Aquele carro não é o que... A cabeça dele virou para todos os lados. Nada de carro.

— O-o que aconteceu? — perguntou a John.

— Uma pequena divergência a respeito da colocação de cada um dos carros na estrada. — suspirou Constantine. A voz dele ficou séria. — Continuam atrás de nós.

— Você tem certeza de que não foi o jeito como você dirige?

Constantine sorriu para ele.

— Antes tivesse sido. Quanto mais rápido chegarmos a San Francisco, mais felizes ficaremos.

— Onde é que a gente está agora? — perguntou Tim, olhando através da escuridão à sua volta. Parecia que estavam no meio do nada.

— No sul da Califórnia.

O queixo de Tim caiu. “Uau. A gente deve ter levado várias multas se conseguimos mesmo atravessar o país em uma noite.” Então se lembrou das aulas de geografia. San Francisco ficava no norte do estado. E a Califórnia era fininha e comprida. O destino deles ainda estava a quilômetros e quilômetros de distância.

— Humm, e a gente não tem mais carro. — observou Tim. — O que vamos fazer?

— Esticar o polegar, caminhar e torcer.

 

Tim estava cansado, com frio e com fome. Seus pés doíam. Caminhavam pela estrada fazia muito tempo. Ele tremia. Não devia fazer calor na Califórnia?

Os poucos carros que passavam se recusavam a parar. Observando o sobretudo surrado de John, com o cigarro pendurado no canto da boca, e vendo seus próprios jeans e camiseta imundos, ocorreu-lhe que só um maluco por completo daria carona para eles. E então, o que aconteceria com eles?

— Você não pode fazer nada? — perguntou Tim.

— Tipo o quê?

— Sei lá... umas coisas “mágicas”.

— Não é assim que funciona. Pelo menos eu não funciono assim.

— Então, como é que funciona? Você não devia estar me ensinando umas coisas?

— Você acha que não está aprendendo nada?

Tim revirou os olhos. Aquilo não era resposta.

Ficou observando Ioiô voar à frente e pousar em um galho de árvore, e pensou a respeito do tipo de magia que criara Ioiô. Ler cartas era muito bom e tal, mas não era o tipo de magia de Merlin. O tipo que ele queria.

— Eu quero... — começou Tim.

— Pegar aquela carona? — interrompeu John. Claro, um carro tinha parado logo à frente.

— Rápido! — disse Tim, projetando-se para a frente. — Antes que ele mude de idéia! — Correu em direção ao carro, com Ioiô voando atrás dele.

O motorista tinha abaixado o vidro. Um homem na casa dos 40 anos colocou a cabeça para fora. Usava óculos conservadores, camisa de manga comprida e um colete de lã.

— Precisam de carona? — perguntou.

Tim vinha torcendo para que arrumassem uma carona, mas agora que tinha conseguido, não tinha muita certeza de nada.

— Só se você não for um esquisitão que quer matar a gente — soltou.

O sujeito riu.

— Você é inglês, certo? — perguntou, obviamente ao notar o sotaque.

Tim assentiu com a cabeça. Que diferença aquilo fazia?

— Vocês ingleses têm um senso de humor muito fora do comum — disse. — Sempre me matam de rir.

Àquela altura, John já tinha alcançado Tim.

— Vamos entrar ou não?

— Humm, vamos sim — Tim resolveu. Junto com John, achou que não haveria problema em aceitar a carona. Levantou a mão e Ioiô pousou nela.

— A coruja também?

— A coruja também.

John sentou-se ao lado do motorista, enquanto Tim se espalhou pelo banco de trás. O motorista deu a partida no carro.

— Vocês são turistas? — perguntou.

— Pode-se dizer que sim. Eu sou John Constantine. — Fez um gesto com a cabeça para o banco de trás. — E esse aí é o Tim.

— Oi — disse Tim, reparando que o homem dirigia muito melhor do que John. Começou a relaxar. O homem o fazia lembrar-se dos professores americanos da televisão. — O nome da coruja é Ioiô. — Ioiô abaixou a cabeça, como se o cumprimentasse.

— Eu sou Terence Treze — o homem disse. — Sou o Dr. Terry Treze.

— O esmagador de fantasmas? — perguntou John.

— Já ouviu falar de mim? — Dr. Treze sorriu.

— Ouvi — respondeu John. — Li seu livro. Engraçado encontrar você deste jeito.

Tim aprumou o corpo e apoiou os cotovelos no encosto dos assentos da frente, debruçando-se no meio dos dois homens. Será que John tinha, de alguma maneira, planejado aquele encontro? Ele achava que Constantine não acreditava muito em coincidências. Ficou imaginando a respeito do que seria o livro do homem. E se Treze era seu nome de verdade.

O céu estava clareando um pouco, mas continuava escuro.

— Você se interessa pelo assunto? — Dr. Treze perguntou a John enquanto dirigia através da neblina que os rodeava.

— Bom, o Tim está meio que interessado em magia. Você deve ter opiniões bem firmes sobre o assunto.

Dr. Treze riu.

— Pode-se dizer que sim.

— Por quê? — Tim perguntou. — O que você sabe sobre magia?

— Bom, Tim, já está fazendo quinze anos que eu pesquiso o oculto. Sabe como é, magia, espectros, cultos de bruxas. Pode-se dizer que eu sou um desmascarador profissional.

— Você está dizendo que comprova que tudo é mentira? — Isso pegou Tim de surpresa. Ele deu uma olhadela rápida para John. O que ele achava disso?

— Em quinze anos, nunca vi nada que não tivesse uma explicação racional. Ou era um embuste, ou uma fraude ou, com mais freqüência, gente com tanta vontade de acreditar em forças poderosas que acabava se convencendo da existência da magia. Achavam que qualquer coincidência ou ilusão serviria para comprovar suas superstições.

Tim recostou-se no assento traseiro.

— Quinze anos — disse, soltando um assobio baixinho. — Isso começou antes de eu nascer.

Dr. Treze sorriu para Tim pelo espelho retrovisor.

— É isso mesmo, Tim. Com toda essa experiência, acho que posso dizer com uma boa margem de certeza que, se magia existisse, eu já teria encontrado alguma comprovação a esta altura. E não encontrei.

Tim concordou com a cabeça lentamente. Ontem, ele teria concordado com Dr. Treze imediatamente. Mas agora... bom, agora tudo estava diferente.

Tim tirou um cochilo e, quando acordou, o sol já tinha nascido. Olhou pela janela e viu algo conhecido: a ponte Golden Gate. Já estavam em San Francisco! Terry os levou para um breve passeio, apontando a antiga prisão de Alcatraz, a marina onde os iates e os barcos-residência boiavam suavemente, agitando-se de um lado para o outro, e a fábrica de chocolates Girardelli. Deixou os dois no retorno de Fisherman’s Wharf. A área toda cheirava a peixe e alga, e os gritos das gaivotas pareciam deixar Ioiô nervoso. Enfiou as garras mais fundo no ombro de Tim.

— A magia é um bom hobby quando o que interessa é divertir os outros em festas — disse Dr. Treze, debruçando-se para fora da janela. — Mas, de outra forma, não perca seu tempo com isso.

— Obrigado pela carona — agradeceu Tim.

Dr. Treze foi embora. Tim observou enquanto se afastava, imaginando como John reagiria a tudo que tinham ouvido.

— Que figura — disse John. — Ele realmente não acredita em magia. E está certo.

— O quê? — a cabeça de Tim se ergueu com tanta rapidez que assustou Ioiô, que saiu voando. — Como assim, ele está certo?

Constantine deu de ombros.

— Magia não existe. Para ele.

Um bondinho chegou ao fim da linha. Tim e John ajudaram o condutor e outros prováveis passageiros a virá-lo, e então subiram na condução. Ioiô ia voando ao lado deles. Àquela hora da manhã, com o sol começando a nascer, o bonde estava quase vazio.

— Não entendo — disse Tim.

— Você precisa escolher, sabe? — explicou John. Apertou os olhos na direção de Tim, de soslaio. Tim ficou se perguntando se algum dia John já tinha olhado para alguma coisa de frente. — É isso que estamos oferecendo a você. A escolha. Se você não quiser a magia, nunca mais a verá. Vai viver em um mundo racional em que tudo pode ser explicado.

“Isso não parece assim tão ruim”, Tim pensou. O que será que John estava tentando dizer? Será que estava mesmo tentando dizer alguma coisa? Era difícil descobrir.

— A gente desce aqui — avisou John, depois de terem percorrido uma boa distância. Tocou o sino e desceu do bonde com delicadeza, antes que o veículo parasse completamente. Tim desceu aos tropeços atrás dele. “Esse cara se movimenta como uma pantera”, pensou.

— Mas se você escolher — prosseguiu John, como se não tivesse parado de falar — bom, é a mesma coisa que descer da calçada e andar no meio da rua. O mundo continua parecendo a mesma coisa, mas um caminhão pode atropelar você a qualquer momento. Isso é magia.

— Mas isso parece perigoso. Por que eu iria querer isso?

— Acho que algumas pessoas preferem viver perigosamente. Mas não sou eu quem vai decidir. É você.

Voltaram a caminhar em silêncio, lado a lado. O único som que se ouvia era o bater de asas de Ioiô. E então um outro som: o estômago de Tim roncou. Alto. Que vergonha. Tim bateu na barriga com a mão.

— Você pode tomar café-da-manhã na nossa próxima parada. Que também será um santuário, se tivermos sorte — prometeu John, abrindo um sorriso.

— Vamos chegar na casa de algum amigo seu sem avisar de novo?

— Por acaso, vamos sim.

— Ah, esse negócio não deu muito certo com a Madame Xanadu... — zombou Tim. — Não, obrigado.

— A Zatanna não tem nada a ver com a Madame X — garantiu John.

— Zatanna? — repetiu Tim. Os olhos dele se arregalaram quando olhou para John. — Você está falando da moça feiticeira?

— Essa mesmo.

— Eu já a vi na TV! Ela é brilhante! Você a conhece?

John sorriu.

— Esta é a primeira vez que você parece animado de verdade desde que começamos nossa pequena jornada. Finalmente consegui impressioná-lo.

— Espera um pouquinho. — Tim parou, de repente sentindo-se todo ansioso.

John olhou para ele, confuso.

— Com o que você está preocupado agora?

— Bom, é só que, julgando pela maneira como as coisas estão indo até agora, ela provavelmente é uma maluca que odeia você.

— Que nada, eu e a Zatanna nos conhecemos há muito, muito tempo.

— Claro. Você provavelmente deve ter roubado o melhor truque dela, ou coisa do tipo.

— Esta aqui é a casa dela — disse John, ignorando o comentário de Tim. Estavam em um bairro cheio de casas pintadas em cores fortes, em todos os tons pastel possíveis. John conduziu Tim pela entrada de uma casa cor-de-rosa com persianas azuis. Grandes botões de rosa ladeavam o caminho.

Tim o seguiu, relutante. Ele admirava Zatanna, e queria que as coisas continuassem assim. Não queria descobrir que a pessoa de verdade não era tão legal quanto a que tinha visto na TV. E não queria irritá-la, aparecendo na casa dela ao amanhecer sem ter sido convidado e com John Constantine. Até Ioiô parecia hesitante.

— Você tem certeza de que esta é uma boa idéia?

John deu um sorriso malicioso em direção a ele.

— Qual é o problema, garoto, você não confia em mim?

Tocou a campainha.

— Pelo menos, desta vez, não vamos invadir a casa dela — resmungou Tim. — Ela pode bater a porta na nossa cara se quiser.

Uma mulher alta, de cabelo escuro, usando uma camiseta grande e legging, abriu a porta. Estava com cara de sono.

Demorou um minuto para focar a visão, e então um enorme sorriso se espalhou por seu rosto.

— John? John Constantine! Não acredito que é você! — Jogou os braços em volta dele, agarrando-o em um imenso abraço de urso. — O que você está fazendo em San Francisco?

— Oi, Zatanna.

“Seria alívio na voz dele?”, Tim ficou se perguntando. Parecia que John não tinha muita certeza a respeito da recepção que receberia, apesar de estar tentando disfarçar.

Zatanna largou John e deu-lhe um tapinha de brincadeira no braço.

— Quanto tempo faz? Dois anos? — Sorriu para Tim. — E quem é o seu amiguinho?

Zatanna parecia simpática, Tim reparou. E bem mais normal que Madame X. Era uma mulher bonita, um pouco mais nova que John. Fez Tim pensar em uma Molly adulta.

— Eu sou o Tim. Timothy — corrigiu a si mesmo. Timothy parecia mais adulto. — Timothy Hunter. Eu vi você no programa do Jonathan Ross.

Zatanna franziu a testa. Então seus olhos mostraram que ela se lembrou de quem era Jonathan Ross.

— Ah, claro, o sujeito que tem um programa de entrevistas famoso na Inglaterra. Aquilo foi divertido. Entrem, entrem logo, vocês dois.

Zatanna acolheu-os dentro de casa. O hall era pintado de cor-de-rosa e ganchos de madeira seguravam casacos, bolsas, chapéus e cachecóis coloridos. Ela os conduziu até uma sala bem iluminada — o sol atravessava as cortinas translúcidas, enchendo a sala de luz. Vasos de flores enfeitavam todas as janelas, e havia plantas grandes pelos cantos, quase do tamanho de árvores. Era a mesma coisa que entrar em um jardim. Ioiô ficou imediatamente à vontade no para-peito da janela.

— Como aqui está ensolarado! — soltou Tim, sentindo-se aquecido pela luz. Depois de todo aquele cinza em Londres e da noite toda pedindo carona, a sala de Zatanna quase o cegava. Ainda assim, aquilo parecia uma coisa boba de se dizer, por isso Tim ficou todo vermelho.

— É, a Califórnia é famosa por isso — Zatanna disse. Ela parecia não ter percebido como Tim estava acanhado. — Claro que San Francisco tem sua cota de chuva e neblina. E aí você ia se sentir bem em casa. — Ela se jogou em cima de um futon grande, cheio de almofadas bordadas.

— Então, Tim — ela disse, dando tapinhas no sofá a seu lado. Tim cruzou a sala na direção dela e se sentou. — O que você está fazendo com o meu cavaleiro de armadura não muito brilhante? — Deu um sorriso malicioso na direção de John. Tim percebeu que ela gostava de provocar John, e que ele também gostava. Ela parecia ter a capacidade de concorrer de igual para igual com Constantine.

John apoiou-se em uma estante de livros e tirou um ramo de samambaia do rosto.

— O Tim tem potencial para ser o maior mago que o mundo contemporâneo já viu. Então eu, o Doc oculto e o Estranho, junto com aquele doido de Boston...

— Quem?

— Ele se chama Mister Io.

— Ah, sei. Ele. — Ela pareceu indiferente, como se não achasse muita coisa de Mister Io.

Tim guardou aquela informação para uso futuro.

— Bom, nós nos unimos e estamos mostrando umas coisas para ele — John explicou. — A idéia é que ele aprenda o bastante sobre o mundo da magia para resolver se é isso que quer da vida ou não.

Tim pegou uma almofada e colocou no colo. Ficou olhando para ela como se as flores bordadas fossem a coisa mais fascinante que já vira na vida.

Então era isso. Tudo às claras. Aqueles quatro homens (a “Brigada dos Encapotados”, como Constantine os chamara) tinham ido atrás dele porque ele poderia mesmo, de verdade, tornar-se poderoso. O mais poderoso. Até mais do que Merlin. Mas estava nas mãos dele resolver se era isso o que queria. Bom, e por que não iria querer?

— Parece divertido — disse Zatanna.

— O único problema é que tem gente a fim de matá-lo — explicou John. — Estamos tentando achar algum lugar seguro para nos esconder, até que a coisa toda se acalme.

“Ah, é.” Tim lembrou-se da parte a respeito das pessoas que queriam matá-lo. Aquilo deixava tudo bem mais sem graça. “Mas, se eu sou tão poderoso assim, será que não posso me proteger dos meus inimigos?” Mas ele supôs que, se pudesse, já teriam lhe mostrado o que fazer.

— Por que vocês não ficam aqui? — sugeriu Zatanna. Colocou a mão no braço de Tim. — Eu ficaria muito feliz de hospedar vocês.

Tim assentiu com a cabeça para agradecer, mas não conseguiu devolver o sorriso simpático. “E se as coisas não se acalmarem?” Tim ficou preocupado. Será que ele ia ter que ficar escondido para sempre?

Zatanna deve ter pressentido o desconforto dele, já que ficou em pé e mudou de assunto.

— Ah, John, acabei de lembrar. Tem uma carta para você em cima da mesa.

— Carta? — John pareceu surpreso.

— É, o envelope estava aí quando desci, hoje de manhã. Esquisito, hein? — Arrumou o cabelo em uma trança frouxa e sorriu. — Acho que deveria ter servido de aviso para a invasão britânica.

John foi até a mesa, com uma expressão confusa no rosto.

— Que coruja bonita — comentou Zatanna. — Foi você mesmo quem fez?

— Não, foi o Dr. Oculto — confessou Tim. Se ele era tão mágico assim, como é que não conseguia fazer um truque tão simples como aquele? Olhou para Zatanna. — Não acreditei quando você fez flores aparecerem nas orelhas do Jonathan Ross na TV. Você pode me ensinar a fazer isso?

— Ah, droga! — explodiu John. Virou-se com tanta rapidez que a parte de trás do sobretudo voou no ar. — Cuide do Tim para mim até eu voltar, está bem, querida?

— O quê? — perguntou Tim.

— O quê? — repetiu Zatanna.

John amassou a carta e enfiou no bolso.

— Vou dizer uma coisa, não posso deixar esses caras sozinhos nem cinco minutos. — Ele parecia mesmo louco da vida.

— John, aonde você vai? — perguntou Zatanna.

— Para a índia — respondeu John, nervoso. — Provavelmente para Calcutá. Vejo você mais tarde, querida. Tchau, Tim. Volto assim que puder. — Sem mais nenhuma palavra, saiu às pressas da casa.

Zatanna e Tim correram até a porta, atrás dele.

— índia? Quanto tempo você vai demorar? — Zatanna gritou para John.

Deu um aceno sem se virar para trás, e então desapareceu no meio do trânsito.

— Mas o que é que eu faço com o... — A voz de Zatanna foi ficando baixinha quando viu a expressão de Tim. Sorriu e deu de ombros. — Não adianta nada. Ele volta quando voltar, acho.

Tim não gostou de sentir que era obrigação dela.

— Olha, desculpa mesmo por isso. Posso ir embora.

— Não — insistiu Zatanna. Colocou a mão no ombro dele e virou-o para si com firmeza, fechando a porta atrás deles. — Você tem só o quê... 13 anos? E estão tentando matar você. Não pode ficar sozinho. Apesar de você ser bem mais adulto do que o seu amigo Constantine — concluiu, despenteando o cabelo dele.

Tim riu e se sentiu aliviado.

— Então, quando foi a última vez que você comeu? — perguntou Zatanna.

— Não tenho certeza. Viajando com o Constantine, o tempo fica realmente estranho. Acho que você sabe do que eu estou falando.

— Ãh-hã. E duvido que tenha tomado banho desde que saiu da Inglaterra. Então, se você for lá para cima, vai achar um banheiro à esquerda e, quando você descer, já vou ter preparado o café-da-manhã. Pode deixar a coruja comigo. Agora, vá.

Tim subiu a escada. Fotos das apresentações de Zatanna ladeavam a subida. “Estou na casa de uma celebridade de verdade”, pensou. Como eu queria contar isso para a Molly!

O banheiro estava cheio de sabonetes cor-de-rosa e cor de lavanda, sais de banho e outras coisas de mulherzinha. Tim tirou a roupa, tirou os óculos e abriu a água. As torneiras funcionavam de um jeito diferente das torneiras de sua casa em Londres, mas logo descobriu qual era a quente, qual era a fria, e como ajustá-las. Deixou que a água e o vapor eliminassem os quilômetros e a confusão de sua pele.

Deu um passo atrás no banheiro, que ficou todo cheio de vapor, e se enrolou em uma toalha. Achou que não deveria pegar a escova de dente de Zatanna emprestada, então colocou um pouco de pasta no dedo e esfregou nos dentes.

— Deixei roupas limpas no corredor — gritou Zatanna pela porta do banheiro.

Tim cuspiu na pia.

— Tá.

Esperou até ouvir os passos dela descendo a escada, então abriu uma fresta na porta e puxou as roupas para dentro do banheiro. Vestiu-se e desceu para a cozinha.

— É... posso fazer uma pergunta boba? Onde foi que você arrumou roupas de menino, e do meu tamanho?

— Magia — ela respondeu, simplesmente, como se fosse a resposta mais normal e esperada.

— Ah.

Zatanna não entrou em detalhes, e Tim não perguntou mais nada. Sentou-se à mesa. A cozinha também estava ensolarada (e era pintada de amarelo bem forte, com desenhos que iam até o teto). Lá também havia plantas em vasos, mas achou que deviam ser do tipo que se usa para cozinhar, porque a cozinha toda cheirava a tempero. Zatanna estava ao lado do fogão, mexendo alguma coisa em uma panela. Muito jeitosa, colocou o preparado em um prato e o ajeitou na frente dele. Fosse o que fosse, o cheiro era ótimo!

— Certo, fiz café da manhã para você — declarou. — É vegetariano, viu, mas você vai gostar. Ioiô vai passar o dia dormindo no sótão.

— Como você sabe que o nome dele é Ioiô?

— Magia.

Tim desencanou e foi enfiando a comida na boca. Não fazia a mínima idéia do quanto estava com fome até começar a comer.

— Isto aqui está absolutamente incrível — disse, com a boca cheia. — Bem que o meu pai podia cozinhar assim. Você preparou a comida com magia?

Zatanna riu. Era uma risada calorosa, simpática, espontânea. Não uma risadinha tonta nem um risinho.

— Não, preparei do jeito normal. — Largou a panela na pia e abriu a água. — Diga uma coisa — falou, virando-se para ele —, tem alguém para quem você precisa ligar?

— Não sei. — Ficou olhando para os dentes do garfo como se eles pudessem lhe dizer o que fazer. — Talvez eu devesse ligar para o meu pai. O John disse que iam cuidar disso, mas eu preciso dizer que está tudo bem comigo.

— Parece uma boa idéia.

Voltou a lavar a louça, e Tim terminou de comer seu café-da-manhã vegetariano. Levou o prato até a pia.

— Posso ligar agora?

— Não tem hora melhor do que o presente — disse Zatanna. — Tem um telefone na sala.

Ela explicou como fazer uma chamada internacional, e Tim foi até a sala. Encontrou o telefone, teclou todos os números e ouviu o toque duplo e reconfortante da British Telecom, a empresa de telefonia da Inglaterra.

— Oi, pai — disse Tim, assim que o pai atendeu.

— Tim! Como está Brighton?

“Que estranho”, Tim pensou. “Por que é que ele ia achar que eu estou em Brighton?”

— Não estou em Brighton, pai. — Respirou fundo, preparando-se para o choque do pai. — Estou em San Francisco.

— É, aqui também está chovendo. Como vai a sua tia Blodwyn? E as crianças?

Tim afastou o telefone da orelha e ficou olhando para ele. Parecia que o pai não tinha escutado direito. Ou que não tinha ouvido absolutamente nada. Será que tinha algo de errado com a ligação?

— Estou em San Francisco, pai — repetiu, mais alto. — Estou na casa da Zatanna. Sabe, a maga famosa. — O pai saberia quem ela era, os dois a tinham visto na televisão juntos.

— Ah, que bom. Não gaste muito dinheiro no parquinho. Sei que você gosta de andar nos brinquedos. A gente se vê quando você voltar, então. Cuide-se.

— Mas, pai...

Tim ouviu o telefone sendo colocado no gancho do outro lado, e o pai não estava mais lá.

— Como vai o seu pai? — perguntou Zatanna. Estava parada perto da porta da sala, a luz que vinha da cozinha brilhava atrás dela.

Tim continuou a olhar para o telefone.

— Ele acha que eu estou em Brighton. Disse que não estava e ele não ouviu. — Colocou o telefone no gancho com a mão trêmula. Não queria que Zatanna visse que ele estava entrando em pânico, mas a conversa realmente o tinha tirado do eixo. — Isso é mesmo muito esquisito. — Tentou manter a voz firme, mas era difícil. — Quer dizer, tudo bem quando eu estou com o John. Quando a gente está com ele, as coisas esquisitas parecem quase normais, sabe como é?

Olhou para Zatanna para ver se ela entendia o que ele queria dizer.

— Eu sei — ela respondeu.

— Mas agora que ele foi embora... Falei com o meu pai e ele não me ouviu, Zatanna. — Tim afundou-se no futon. Achava que não conseguiria mais ficar em pé, de tanto que suas pernas tremiam. Pela primeira vez desde que sua aventura maluca tinha começado, desde que tinha penetrado na porta mágica, ele estava com medo de verdade.

Zatanna sentou-se ao lado dele e colocou o braço em volta dos ombros dele.

— Tudo bem, Tim. Vai dar tudo certo — ela assegurou. — É muita novidade. Muita coisa com que se acostumar. Mas você não está sozinho. O Constantine vai voltar para buscar você. Ele pode parecer pouco confiável e tudo o mais, mas ele vai voltar.

Tim arrumou os óculos no nariz e concordou com a cabeça. Ela compreendia como ele estava se sentindo, disso ele tinha certeza. Ele gostava da sensação que a mão dela em seu braço transmitia, e também da maneira como a voz suave dela o acalmava. Era como ter de novo uma mãe, só por um minuto.

— Diga uma coisa... quer ir a uma festa? — ela perguntou. — Você está sob a minha proteção, não vou deixar que nada faça mal a você.

Tim olhou para ela.

— Uma festa?

— Uma festa de Dia das Bruxas, para ser mais precisa!

Ele sorriu.

— Demais!

— Acho que vai ser legal. Recebi o convite ontem à noite. Não tinha pensado em ir, mas... — deu um tapinha carinhoso no braço dele. — Preciso fazer tudo que puder para distrair meu convidado de honra! Além disso, o John queria apresentar você para os praticantes de magia mais ilustres do país. Acho que vou levar você para sair e lhe apresentar mais alguns deles.

“Perfeito!” Ir a uma festa com uma maga famosa, uma celebridade, isso sim seria fantástico! Para registrar no diário, com certeza.

Zatanna se levantou.

— Então, por que você não tira uma soneca? Deve estar exausto depois de viajar tanto.

— Acho que seria bom.

Ela estava certa. Apesar de ele ter dormido um pouco no carro, todos os músculos de seu corpo pediam descanso... e seu cérebro com certeza ficaria feliz com a possibilidade de apagar.

— O quarto de hóspedes fica bem ao lado do banheiro. É azul.

— Cada parte da sua casa é pintada de uma cor diferente? — perguntou Tim enquanto subia a escada.

— É sim. E vivo mudando tudo. — Zatanna deu uma piscadela para Tim. — É um dos benefícios da magia. Posso mudar toda a decoração sempre que quiser, sem ter trabalho nenhum.

Tim subiu a escada e encontrou o quarto de hóspedes. Tirou os tênis sem usar as mãos, colocou os óculos no criado-mudo e ajeitou-se na cama do quarto azul cheio de paz. Espreguiçou-se e dormiu logo, nem fechou a persiana da janela. Caiu em um sono delicioso, profundo e sem sonhos.

 

Tim acordou com um sobressalto.

— Onde estou? — Sentou-se e olhou ao redor de si, para o quarto escuro. O coração batia rápido. — Como foi que eu cheguei aqui? — Suas mãos tatearam e encontraram um abajur. Acendeu a luz e pegou os óculos do criado-mudo. Sua respiração foi voltando ao normal gradativamente. Todas aquelas plantas, as estrelas pintadas no teto, o cheiro gostoso vindo lá de baixo. Deitou-se de barriga para cima com os braços atrás da cabeça. “Certo. Estou no quarto de hóspedes da Zatanna. E logo vou a uma festa superlegal com ela.”

Ouviu-se uma batida forte na porta.

— Tim? — chamou Zatanna. — Você está acordado?

— Estou. — Tim colocou as pernas do lado da cama e procurou os sapatos. Ainda estava um pouco sonolento.

— Bom, venha jantar, daí a gente sai.

Quando Tim chegou à cozinha, Ioiô estava empoleirado em uma cadeira à mesa, como se fosse membro da família. Zatanna arranjava guardanapos ao lado de dois pratos. Uma travessa fumegava no meio da mesa.

— Vegetariano? — perguntou Tim.

— Pode apostar. Lasanha vegetariana. O cheiro é bom, não é?

Tim concordou com a cabeça e sentou-se na frente do descanso sobre o qual havia um grande copo de leite. O outro tinha uma taça de vinho. Tim não precisava de magia para saber qual era o dele.

Zatanna sentou-se à sua frente e ergueu o copo.

— Aos novos amigos — brindou. Depois do tim-tim entre a taça de vinho e o copo de leite, Tim tomou um gole... e cuspiu tudo.

— Ah, nossa — Zatanna disse. — Acho que você ainda não está preparado para leite de soja. — Foi até a geladeira e trouxe uma lata de gingerale. — O que você acha disso?

Tim abriu o refrigerante e tomou um gole enorme.

— Bem melhor!

— Acho que esse lance vegetariano precisa ser introduzido de maneira mais gradual — disse Zatanna, abrindo um sorriso. — Igual a minha missão de fazer com que o Constantine pare de fumar.

Ela serviu a lasanha e Tim engoliu tudo.

— Nem tudo que é vegetariano é horrível — reconheceu. — Isto aqui é bom!

— Que bom que você gostou.

Tim engoliu a lasanha toda em segundos e lavou a louça enquanto Zatanna trocava de roupa para a festa. Ioiô ajudou com suas garras, ajeitando os descansos sobre o balcão e jogando os guardanapos usados no lixo. Quando terminaram, foram para a sala esperar Zatanna.

— Tchã-ram! — Zatanna fez uma pose na escada. — Como estou?

Os olhos de Tim quase saltaram das órbitas. A linda maga estava com uma roupinha minúscula (a menor quantidade de roupa que Tim já tinha visto em uma moça, de perto). Bem diferente de quando estava de moletom e legging, a roupa que usara o dia inteiro. E então ele percebeu que a cartola brilhante, o macacão justinho com lantejoulas e as meias arrastão pretas eram exatamente o que ela tinha usado na TV.

— Esta é a sua roupa de apresentação? — perguntou Tim.

— É sim, minha vestimenta profissional. — Ela desceu a escada, chegou perto de Tim e tirou uma bala da orelha dele. Entregou-lhe com um sorriso. — É meio bobo, mas funciona. E é o que esperam de mim.

Tim riu.

— Eu gosto deste tipo de magia. — Colocou a bala na boca.

Zatanna deu de ombros.

— Uma garota precisa ganhar a vida. Então, sou mágica de palco. Além disso, é uma bela maneira de manter minha identidade disfarçada. Escondendo-a à vista de todo mundo.

Tim ouviu um carro buzinar do lado de fora. Zatanna puxou a cortina e deu uma olhada para fora.

— O táxi chegou — anunciou. Bateu de leve na cartola e se dirigiu para a porta. Tim e Ioiô a seguiram. Tim hesitou. “Será que eu deveria estar de fantasia?”, perguntou-se. Quando Ioiô se ajeitou em seu ombro, resolveu que sua fantasia seria a coruja.

Zatanna sorriu para ele.

— Mesmo sem o John por aqui, a gente vai se divertir, não é mesmo?

— Claro! Tenho certeza que sim.

Tim não queria dar a impressão de que achava ruim o fato de John tê-lo deixado com ela. Ele gostava mesmo de Zatanna.

— Que bom. — Ela abriu a porta e saiu para a noite agradável.

— Humm, olha só — disse Tim. — Se for uma pergunta sem educação, você pode me mandar para aquele lugar, mas você e o John Constantine... vocês... é... — ele não sabia ao certo como perguntar.

Zatanna o livrou daquilo.

— Não mais. — Suspirou. — Acho que ele não é do tipo que se envolve em nenhum relacionamento sério. Se é que você me entende.

Tim concordou com a cabeça.

— É, até agora ele não me passou a impressão de ser uma pessoa especialmente séria. Ele é mais tipo... um aventureiro.

— Exatamente. Ele assume riscos demais... é um apostador.

A frase dela causou um sobressalto em Tim. As cartas de Madame Xanadu tinham dito exatamente aquilo.

Zatanna fez uma pausa e virou-se de frente para a casa.

— Asac, ajetorp a is amsem! — declarou.

— Hã?

Tim ficou olhando para ela.

— O que foi que você disse? — perguntou.

— Mandei a casa proteger a si mesma — Zatanna explicou. Deu mais uma batidinha na cartola e prossegui até o táxi. — Para o caso de alguém tentar arrombar.

— Parecia que você estava falando de trás para frente. — Tim voltou a olhar para a casa cor-de-rosa. Não parecia nem um pouco diferente. Será que estava mesmo enfeitiçada?

— É assim que eu trabalho a arte. Verbalmente. Falo de trás para frente. É mais uma maneira de me concentrar do que qualquer outra coisa. Meu pai costumava fazer assim, e acho que eu peguei a idéia dele.

Tim se lembrou de que, na entrevista da TV, ela havia dito que o pai também tinha sido um famoso ilusionista. Ficou achando que a magia devia ser mais fácil se tivesse contato com ela desde pequeno, se a tivesse herdado da família. Assim seria mais fácil se acostumar. Tim gostaria que seu pai pudesse lhe mostrar as etapas, gradualmente, em vez de receber tudo de uma vez só daqueles estranhos. Mas não tinha jeito de o pai dele acreditar em magia... muito menos praticá-la ou ensiná-la.

Zatanna abriu a porta de trás do táxi. Ioiô voou lá para dentro.

— Ei! — exclamou o motorista. — O pássaro vem junto?

— Claro que sim — respondeu Zatanna, deslizando para dentro do carro. — Hoje é o Dia das Bruxas.

O motorista sacudiu a cabeça de bom grado, como se já tivesse visto de tudo.

— Sem problema. Feliz Dia das Bruxas.

Tim ajeitou-se ao lado de Zatanna, e Ioiô sentou-se no colo dele.

— Vamos para um bar chamado A Feiticeira — informou Zatanna ao motorista. — Na esquina da Haigh com a Fillmore. Você sabe onde é?

O motorista lançou-lhes um olhar curioso pelo espelho retrovisor.

— Sei. Nunca levei ninguém lá.

Conforme iam percorrendo as ruas cheias de curvas e ladeiras de San Francisco, Tim olhava pela janela. Criancinhas fantasiadas seguravam a mão da mãe e do pai; crianças da sua idade também vestiam fantasia. Viu até adultos usando máscaras e maquiagem caprichada. Todo mundo parecia estar se divertindo.

— A gente não comemora o Dia das Bruxas na Inglaterra. Não como vocês fazem aqui. Eu sempre pensei nisso como magia. Fantasmas, bichos-papões, bruxas e lobisomens. É como Constantine disse. Tudo que dá para imaginar existe em algum lugar dos Estados Unidos.

Estacionaram em uma rua escura. Zatanna pagou o motorista enquanto Tim e Ioiô saíam do carro. Tim examinou a rua. Estava cheia de carros e limusines estacionados por todos os cantos.

— Deve estar bem animado. Olha só quanta gente!

Zatanna concordou com a cabeça e sorriu.

— Ainda bem que não precisamos achar um lugar para estacionar. Eu iria precisar de uns bons truques para conseguir uma vaga!

Caminharam até a entrada do clube. Os prédios vizinhos pareciam armazéns abandonados. Tim suspeitou que o clube um dia já tinha sido como o restante da vizinhança. Mas o letreiro A FEITICEIRA brilhava em um néon bem roxo sobre a porta, e já da rua Tim ouvia a marcação do baixo e a batida pulsante. Queria que Molly pudesse vê-lo agora. Seria tão legal se ela pudesse ter vindo também... Na verdade, queria que todos os garotos que ficavam enchendo sua paciência pudessem vê-lo. Nenhum deles seria capaz de entrar neste lugar, pensou com orgulho.

“Pelo menos acho que consigo entrar”, Tim pensou quando olhou para o nariz empinado desdenhoso do segurança.

— Desculpa, garoto, você não pode entrar aqui — disse o homem. Olhou para Tim como se ele fosse um trapo de limpar sapato. — Sai fora. E leva essa coruja empalhada com você. — O homem estalou os dedos para Tim e Ioiô, desprezando os dois.

— O Ioiô não é empalhado — respondeu Tim, indignado. A coruja arrepiou as penas, como se tivesse sido insultada. — Ele é tão real quanto você.

— Muito engraçado. Já não passou da sua hora de ir para a cama?

Zatanna saiu da sombra e ficou onde a luz saía da porta aberta.

— Ele está comigo, Apolônio. A coruja também. A feição do homem mudou completamente, assim como seus modos.

— Claro, senhorita Zatanna. Que surpresa agradável. Por favor, entrem. Desculpe, menino. Se eu soubesse que você estava aqui com a encantadora...

— Ah, tanto faz. — Tim deu um sorriso torto para o homem. — É isso que a gente leva por ser tão esnobe.

— Tenho certeza de que o senhor tem razão.

Entraram pela porta e desembocaram em uma casa noturna lotada. Tim ficou olhando para o espetáculo a sua frente.

A pista de dança ficava alguns degraus abaixo da entrada. Centenas de pessoas circulavam por ali, algumas dançavam, algumas conversavam em grupos, algumas observavam, algumas discutiam. Bexigas pretas e cor de laranja, perfeitas para o tema de Dia das Bruxas, flutuavam perto do teto. Iluminação cor de âmbar e névoa rosa e dourada saíam de canos nas laterais e envolviam tudo ali. A maioria dos homens estava de smoking, e as mulheres, de vestido chique. Os cabelos eram alisados, amontoados em coques altos, decorados com pedrarias e metais, multicoloridos ou inexistentes. Os rostos eram grotescos, lindos, não humanos, animados. Eram criaturas surpreendentes e exóticas, bem diferentes dos moradores do conjunto residencial Ravenknoll, na parte leste de Londres.

O que deixou Tim mais surpreso foi a energia que emanava daquela área mais baixa. Quase dava para ver faíscas entre as pessoas, correntes elétricas ligando umas às outras, nuvens de ar inquieto erguendo-se e vagando pelo clube. A energia penetrou nele, fazendo com que tivesse vontade de se juntar àquilo, engolir tudo, permitir que aquilo o tomasse por completo.

Zatanna também parecia sentir a animação. Estava rindo.

— Faz anos que não venho aqui. Faz com que eu me sinta jovem de novo.

Surpreso, Tim olhou para ela.

— Você não parece ser velha.

Ela se curvou um pouco para ele.

— Muito obrigada, meu jovem. Por isso, você merece uma bebida.

Como se tivesse sido atraída pelas palavras de Zatanna, uma garçonete apareceu ao lado de Tim.

— Posso anotar o seu pedido?

— Oi, Tala — Zatanna cumprimentou a mulher que segurava a bandeja. Tim não conseguia parar de olhar para ela. Parecia uma mulher bonita e sofisticada, de uns 30 anos... a não ser pelos olhos. O contorno era vermelho, assim como as pupilas.

— Zatanna! — exclamou Tala. — Ninguém me disse que você estava aqui!

— Este aqui é o meu amigo Timothy, Tal. Tala, Timothy. A Tala é rainha do mal. Ela é uma velha conhecida da Brigada dos Encapotados.

“Mal? Zatanna anda com magos do mal? E como é que a Brigada dos Encapotados pode conhecê-la? A menos que, talvez, eles estejam atrás dela...”

— Oi, Tim — disse Tala, direcionando suas órbitas vermelhas para ele. — Olha, estou meio ocupada, mas volto depois para conversar, quando tiver um tempinho. Posso anotar o seu pedido?

— Água gelada para mim — disse Zatanna. — Tim?

— Posso tomar uma cerveja? — Ele achou que, como ela era rainha do mal, não ia se importar com um menor bebendo.

Mas não teve tanta sorte.

— Só se você me mostrar uma identidade autêntica, comprovando que tem mais de 21 anos.

Tim deixou a cabeça cair, submisso, e enfiou as mãos nos bolsos.

Zatanna e Tala riram.

— Gingerale? — sugeriu Tala.

— Acho que sim.

Tim ficou olhando quando Tala desapareceu no meio da multidão rodopiante.

— Se ela é rainha do mal — perguntou —, por que está trabalhando aqui?

— Ela só está descansando entre um compromisso e outro, se é que você me entende.

Tim sacudiu a cabeça. Ele não entendia absolutamente nada.

Zatanna o agarrou pelo braço.

— Vamos. Tem uma pessoa que quero apresentar para você.

Zatanna conduziu Tim ao redor de um grupo de homens muito altos e corpulentos, que conversavam com um grupo de homens muito magros. Levou-o até o bar, onde um homem esbelto de smoking branco observava a festa. Era bem pálido, quase tão pálido quanto sua roupa, e tinha cabelo bem escuro. Parecia pontudo: cavanhaque pontudo, sobrancelhas pretas pontudas, até o cabelo parecia ficar de pé em duas pontinhas em cima da cabeça, como se fossem chifres. Algo nele deixava Tim pouco à vontade. Ainda assim, se Zatanna queria apresentá-lo para o sujeito, então devia estar tudo bem.

— Tannarak... este jovem se chama Tim Hunter. Tannarak é outro cara do mal. Ele também é dono deste clube.

Os lábios vermelho-sangue do homem se abriram em um sorriso sinistro. Será que Zatanna gostava dele de verdade? Ele deixou Tim arrepiado.

— Um prazer, como sempre, Zatanna. — Olhou para Tim. Os olhos dele eram vermelhos como os de Tala, Tim reparou. — Prazer em conhecê-lo, meu jovem. Agora, Zatanna, preciso fazer uma ressalva. Não me considero um “cara do mal”.

Zatanna sorriu.

— Digamos que geralmente estamos de lados opostos de qualquer... debate. É o Dia das Bruxas. Deixemos as coisas assim.

— O que o Dia das Bruxas tem a ver com a história?— perguntou Tim.

— Dizem que o bem e o mal podem se juntar no Dia das Bruxas, se quiserem, sem nenhum efeito danoso — explicou Tannarak. — Zatanna e eu simplesmente temos objetivos diferentes. Mas é claro que ela é convidada de honra aqui.

Apontou para Zatanna com a cabeça. Ela fez que sim com a cabeça, um gesto bem discreto. Parecia haver algum tipo de acordo de respeito entre eles, mesmo que se tornassem inimigos no dia seguinte.

— Agora, meu jovem. Existe algo que você queira saber?

— Você pratica mesmo magia negra? — perguntou Tim.

Tannarak suspirou.

— Está vendo só? Somos considerados tão malignos pelo pessoal do seu círculo, Zatanna... Você já está virando a cabeça deste jovem. — Serviu para si mesmo uma bebida de uma garrafa azul elegante. Um vapor leve e arroxeado subiu do copo. Tomou um gole e então encarou Tim. — Não existe esse negócio de magia negra. É só uma tradução ruim. “Necromancia” significa na verdade “Magia dos Mortos”, mas tem raízes em palavras que significam “negro”.

— Tipo quando as crianças brincam de telefone sem fio? — comparou Tim. — A mensagem final é totalmente diferente da original...

Tannarak lançou um olhar de admiração a Tim.

— Você arranjou um ótimo aluno, Zatanna — disse. Passou um dedo longo, com a ponta roxa, pelo copo. — Não é “magia negra” contra “magia branca”. Minha tendência é pensar em “magia viva” contra “magia morta”.

— O Tannarak gostaria de viver para sempre, então está buscando maneiras de derrotar a morte — explicou Zatanna. — E às vezes discordamos a respeito dos métodos de busca — completou, com um tom de ameaça na voz.

Tannarak a ignorou.

— Mas, Tim, até isso é simplista demais. Magia tem a ver com poder. — Com um movimento tão repentino que Tim mal percebeu, Tannarak fez o copo desaparecer. Tudo que restou foi o vapor arroxeado. — E a capacidade de enxergar, através da sombra, o mundo real que existe além dela. E saber o que fazer com isso.

— Entendi, eu acho — disse Tim. Aprumou a cabeça e apertou os olhos. — E Tannarak não é seu nome de verdade, é?

Um sorriso reptiliano serpenteou pelo rosto de Tannarak mais uma vez.

— Nomes têm poder, menino — disse, assentindo com a cabeça. — Você aprende rápido.

Um homem baixinho e careca, que mal passava do joelho de Tim, puxou a barra da calça de Tannarak. Ele olhou para baixo.

— Pois não, Horácio?

O homenzinho não disse nenhuma palavra, mas Tannarak assentiu com a cabeça algumas vezes. Parecia incomodado.

— Mandei que encomendassem o dobro de madeira venenosa para este pessoal — repreendeu. Olhou para Tim e Zatanna. — Está tão difícil de arrumar empregados competentes. Por favor, dêem licença. As obrigações de anfitrião me chamam.

Tannarak e Horácio desapareceram na multidão, e Tim apoiou-se no bar, examinando a cena surpreendente à sua frente. Uma mulher passou flutuando ao seu lado, alguns centímetros acima do chão. Um homem enorme, corpulento, sorriu para ela, revelando duas fileiras de dentes pontiagudos. Três garotas estavam agrupadas ali perto, e iam mudando de cor à medida que a discussão esquentava. Pelo que Tim conseguia escutar, a azul achava que a vermelha tinha usado um feitiço da maneira incorreta. Resolveu pensar melhor quando percebeu que elas eram trigêmeas siamesas. Uma figura com cabeça de lobo acenou para Zatanna, que respondeu com o mesmo gesto, lentamente. Dava para Tim sentir o cheiro podre do bafo animalesco da criatura.

— Acabei de perceber uma coisa — disse Tim. — As pessoas aqui... nenhuma delas está de máscara, não é mesmo?

— É verdade — respondeu Zatanna. — Aqui não se usa máscara nenhuma. É lá fora — fez um sinal na direção da porta — que as máscaras são usadas.

— E elas entram e saem como gente normal?

— Não exatamente gente normal — corrigiu Zatanna. — Mas há sim uma certa interação.

Tim deixou escapar um assobio baixinho.

— É como se existisse um mundo inteiro que eu não sabia que existia, lado a lado com o mundo real.

Zatanna olhou para baixo, para o copo d’água.

— É. E, uma vez que você entra, não dá para sair nunca mais. — Ergueu os olhos e olhou diretamente para Tim. Aqueles olhos azuis eram intensos e fizeram com que ele desse um passo atrás. Então ele absorveu o que ela dissera.

— Nunca mais?

A expressão de Zatanna se suavizou.

— Você ainda não entrou, Tim. Você é só um convidado.

Tim assentiu com a cabeça. Constantine dissera que ele teria que fazer uma escolha, que esse era o objetivo da viagem. Sentia que Zatanna estava tentando fazer com que ele compreendesse como a decisão tinha conseqüências e era irreversível.

Tim olhou de novo para a festa. Agora que já estava ali havia um tempinho, estava começando a enxergar através do glamour e da animação, da luz linda e da música boa. Estava sentindo algo mais... uma contracorrente que não conseguia identificar. Seja lá o que fosse, estava o deixando pouco à vontade, do mesmo jeito que ele se sentia quando passava pelo terreno baldio na esquina da rua Gladstone e da Pine. Não era sempre que os valentões o atacavam, mas ele sempre estava de sobreaviso. Mesmo quando não estavam lá, o terreno parecia cheio do antagonismo deles.

Ioiô estava inquieto no ombro de Tim. Talvez o pássaro também estivesse captando alguma coisa.

Tim olhou para Zatanna. Se ela estava tranqüila, então ele só estava sendo paranóico, e Ioiô respondia a seu sobressalto. Afinal, ela é que era a maga de verdade ali; aqueles eram os amigos dela, aquele era o ambiente dela.

Oh-oh. Rugas de preocupação cortavam a testa branca e lisa de Zatanna.

— Zatanna? Tem alguma coisa errada?

— Estou começando a achar que talvez haja sim — ela respondeu. Examinou a multidão. — Não tem nenhum praticante aqui que não seja do lado negro.

— E isso é... estranho? — perguntou Tim. Ele não sabia como funcionavam essas festas mágicas de Dia das Bruxas.

Zatanna fez que sim com a cabeça, lentamente.

— A trégua do Dia das Bruxas costuma juntar um número igual de luz e escuridão, de bem e de mal. Na verdade, é esse equilíbrio que garante que o pacto não será rompido. É assim que a trégua se faz cumprir.

— Você está dizendo que você é a única que está do lado do bem aqui? — Tim perguntou. “Isso não é nada bom”, pensou. Na verdade, ele chegaria ao ponto de dizer que era realmente ruim.

— Acho que o convite pode ter sido uma armadilha — reconheceu Zatanna. Fechou o punho. — E a gente caiu direitinho.

— O que a gente faz agora?

— Vamos sair daqui... rápido. Finja que você está se divertindo como nunca, mas venha me seguindo até a porta.

Colocando um enorme sorriso no rosto, Zatanna, Tim e Ioiô começaram a abrir caminho pela multidão. Tim tinha certeza de que as criaturas próximas a ele podiam ouvir as batidas fortes de seu coração, sentir o cheiro do terror no suor que ia se formando por baixo do cabelo.

Um holofote se acendeu, iluminando Tim e Zatanna. Os dois congelaram, surpreendidos pelo clarão. Um alto-falante estalou. Tim se virou e viu que Tannarak tinha subido no palco e estava parado na frente de um microfone com pedestal.

— Senhoras, senhores e outras entidades. Tenho um anúncio a fazer. Parece que há um jovem especial no meio do público esta noite. Alguns de vocês já devem ter ouvido falar dele.

— Ah, que droga — disse Zatanna. — Desculpa, Tim. Eu nunca devia ter trazido você aqui. — Pegou a mão dele e apertou. Aquilo não fez com que Tim se sentisse muito melhor.

— Como vocês sabem, a cabeça dele está a prêmio — prosseguiu Tannarak. — E ela nem precisa estar colada no corpo — acrescentou, com aquele seu sorriso de cobra.

Zatanna colocou a mão no ombro de Tim.

— Este garoto está sob a minha proteção — declarou. — Quem quiser machucá-lo precisa primeiro dar conta de mim.

Tannarak riu.

— Minha cara Zatanna, eu sei que você é poderosa. Mas encare os fatos. Só tem você e mais de cem de nós. O garoto já era.

 

Uma onda de pavor percorreu o corpo de Tim, de um jeito que ele nunca experimentara antes. Dava para sentir o poder que emanava daquelas criaturas.

Ele e Zatanna estavam rodeados por todos os lados. Criaturas humanas e não humanas iam fechando o círculo em volta deles, chegando cada vez mais perto.

Tim fechou os olhos bem apertados. Não conseguia suportar olhar para aqueles rostos malignos e grotescos. Foi então que os cochichos começaram.

— Venha comigo, garoto. Eu lhe darei o poder de comer vida.

— Não! Dê seus poderes para mim! Eu lhe recompensarei permitindo que seja meu servo.

Os cochichos e murmúrios eram insistentes, insinuando-se como fumaça em seu cérebro. Tim tapou os ouvidos, mas continuava escutando os chamados dos praticantes, cada um tentando conquistar seus poderes, levá-lo consigo e, se isso não fosse possível, matá-lo.

— Maias iuqad! — Zatanna gritou. — Oãv arobme!

Tim sentiu uma vala entre ele e quem quer que estivesse à sua frente. Zatanna devia tê-los repelido com sua fala de trás para frente.

Os murmúrios continuaram, mas agora também se dirigiam a Zatanna.

— Sou a Rainha dos Espelhos! Mulher, dê-me o garoto ou então, em uma noite destas, seu reflexo vai se esgueirar para fora do espelho e cortar sua garganta enquanto você dorme!

— Se você ficar no nosso caminho, vamos dar seu coração para o garoto comer antes de cortar o dele para aumentar o nosso poder!

Diferentes cheiros chegavam ao nariz de Tim: enxofre, lagartos, lama. Alguma coisa tremelicou ao lado de seu rosto e ele abriu os olhos. Tentáculos tentavam alcançá-lo por cima do ombro de Zatanna. Uma mão com garras estava puxando o cabelo comprido dela. Tim estava se sentindo enjoado de tanto medo. “A gente já era”, pensou.

Então...

— Constantine! — gritou uma voz chocada.

Tim virou-se para trás rapidamente. Recostado no batente da porta, John Constantine acendeu um de seus cigarros sempre presentes.

— Ninguém encosta no garoto — disse.

Todos os murmúrios, todos os movimentos cessaram. O tempo parecia suspenso naquele silêncio avassalador. Constantine deu um passo para dentro do salão.

— É isso mesmo. O garoto é meu. E daqui a trinta segundos eu, ele e a bruxa vamos sair caminhando daqui. Ah, sim — completou —, a coruja também vem com a gente. — Observou o salão com atenção. — Vocês sabem quem eu sou. Conhecem minha reputação, ou deveriam conhecer. Então... — Fez uma pausa para dar uma tragada profunda no cigarro. — Alguém aqui quer mesmo começar alguma coisa?

Tim segurou a respiração. Zatanna apertou mais o braço dele. Ninguém se movia. Ninguém dizia nada.

— Está certo. Vamos lá, pessoal. Estamos saindo fora.

Nem precisava falar duas vezes. Tim saiu de lá rapidinho. Tão rápido que já estava lá fora, respirando com dificuldade, antes mesmo que Zatanna e Constantine deixassem o prédio. Escorou-se na parede e inspirou grandes porções do ar noturno.

Tim ficou imaginando o que teria acontecido se John não tivesse aparecido. Que tipo de magia teriam lançado em cima dele? Será que estaria morto a esta altura? Ou talvez a morte fosse a melhor alternativa para o que aquelas criaturas tinham em mente. No que ele tinha se metido?

E, ainda assim... em meio ao medo de Tim havia uma certeza trêmula de que, de algum modo, ele era importante. Importante o bastante para ser morto. Para que as criaturas lutassem por ele. Para ser defendido. Era uma sensação estonteante.

A porta do clube bateu.

— Eu poderia ter detido todos eles, sabia? — reclamou Zatanna.

— É, provavelmente poderia mesmo. — John parecia estar se divertindo.

Zatanna, por outro lado, parecia exasperada.

— John, você não tem nenhum poder do qual se gabar. Qualquer um deles poderia ter reduzido você a pedacinhos. Mas eles... eles ficaram com medo de você. — Os olhos arregalados dela examinaram o rosto de Constantine em busca de respostas. Respostas que Tim achava que ela não conseguiria arrancar. Isso era uma coisa que ele já sabia a respeito de Constantine àquela altura. — Não entendo o que aconteceu ali.

— Magia.

Ela cruzou os braços sobre o peito.

— Fale sério, John.

— Um bom mago nunca revela seus segredos, querida. Foi você quem me ensinou isso. Mas ajuda o fato de esse pessoal ser um monte de peixinhos de aquário.

— Será que você podia falar inglês?

— Eu falo inglês perfeitamente — John reclamou. — E o Tim também. É você quem tem o sotaque engraçado.

John deu uma piscadela para Tim.

Tim riu e Zatanna sacudiu a cabeça. Então colocou a mão na bochecha de John e virou o rosto dele na direção da luz da rua. Dava para ver uma ferida escura sob o olho de Constantine, e o que pareciam queimaduras em seu maxilar.

— O que aconteceu com o seu rosto? — perguntou Zatanna. — O que aconteceu em Calcutá?

— O de sempre. — John a afastou com um gesto.

— Senhor Constantine. — Zatanna soava como uma professora de jardim-de-infância dando bronca em uma criancinha. — O senhor faz mistério a respeito de tudo?

— Quem, eu? Sou transparente como vidro.

Uma expressão que Tim vira diversas vezes no rosto de Molly passou pelo de Zatanna. Ela não ia desistir.

— Seria bem mais fácil proteger o Tim se tanto ele quanto eu soubéssemos o que o ameaça.

— É — debochou Tim. — Tenho direito de saber. Quer dizer, tudo isso tem a ver comigo, não é mesmo?

John lançou um olhar cansado para eles e passou a mão no cabelo loiro.

— Tudo bem, tudo bem. Calcutá é um dos redutos da Chama Fria. É lá que eles andam se reunindo. A gente queria atacar de surpresa... enfraquecer as fileiras. E foi o que fizemos.

— Mas por que eles estão atrás de mim? — perguntou Tim. — Eu não sou um dos que sabem praticar magia.

— Ainda não. Eles não querem que você consiga desenvolver todo o seu potencial — explicou John.

Tim deu uma risada.

— Meus professores na escola já disseram que eu não faço isso. Desenvolver todo o meu potencial, quero dizer.

— Bom, a Chama Fria não quer correr o risco de ter você vivo. Porque, se você se desenvolver da maneira que se espera, pode se transformar em uma grande ameaça.

— Só que tem mais coisa, não tem? — perguntou Zatanna.

— Ainda não. Neste momento, os objetivos deles estão bem claros. Mas podem mudar.

— Como assim? Do que é que você está falando? — perguntou Tim.

— Se eles não conseguirem matar você, vão se esforçar como Hades para fazer com que você passe para o lado deles — disse John. — O que faria com que você e eu ficássemos em times rivais.

— Eu nunca faria isso! Como é que você tem coragem de dizer uma coisa dessas?

Zatanna colocou a mão no ombro dele.

— Está tudo bem, Tim. Nós dois sabemos o que você sente. — Ela olhou para John. — Agora que você voltou, isso significa que você e o Tim vão embora?

John assentiu com a cabeça.

— Temos lugares para ir, pessoas para visitar. Essas coisas.

Depois de toda aquela movimentação, Tim não tinha certeza se queria mais alguma experiência nova. Achava que as mais recentes já eram o bastante por um bom tempo. Além disso, tinha gostado de Zatanna e da casa alegre e ensolarada dela, e queria aprender com ela alguns truques de mágica antes de ir embora, para mostrar a Molly.

Antes que pudesse reclamar, Zatanna se virou e colocou as mãos nos ombros dele.

— Tim, foi ótimo conhecer você. Ligue para mim na próxima vez que estiver nos Estados Unidos, certo?

Bom, aquilo encerrava a questão. Tim forçou um sorriso.

— Claro que sim. Você foi fantástica. Obrigado por tudo. Menos o leite de soja — completou, com um sorriso.

Zatanna deu um abraço nele.

— Sem problemas. Você foi um ótimo hóspede. Você e o Ioiô.

Ioiô deu uma revoada na frente de Zatanna e movimentou a cabeça para cima e para baixo, como se estivesse se despedindo.

Zatanna colocou as mãos na cintura e foi até onde Constantine estava.

— Bom, John Constantine. Acho que nunca vou ser capaz de entender você. Nem se viver mil anos.

— Não? Logo eu, que sou um cara tão descomplicado... Você está divagando. — Sorriram um para o outro. — Me dá um beijo e eu sumo da sua vida por mais um ano, mais ou menos.

Tim virou para o outro lado enquanto eles se beijavam. Só voltou a olhar quando ouviu John falando de novo.

— Aliás — disse ele —, quase ia esquecendo. Não temos passaporte nem passagem. Humm, será que você... podia mexer o nariz ou alguma coisa assim?

Zatanna sacudiu a cabeça e riu.

— Retardado. Você é praticamente inútil. Setropassap e snegassap.

Tim sentiu-se sonolento, como se estivesse acordando depois de dormir profundamente. Então tentou sentar-se com o corpo ereto, mas sentiu-se preso por um cinto de segurança. “Como é que isso aconteceu?”, perguntou em pensamento.

Mais uma vez estavam a bordo de um avião, e mais uma vez parecia que não tinham ido até ali. Tim, que nunca tinha saído da Inglaterra em seus 13 anos de vida, agora tinha sobrevoado o oceano até Nova York, viajado através da imensidão dos Estados Unidos até a Califórnia, e agora voltava para casa em seu segundo vôo internacional. E tudo no intervalo de quê? Alguns dias? A cabeça dele estava atordoada.

— Então, garoto — John disse, acomodando-se em sua poltrona. — O que você aprendeu até agora?

— Aprendi?

— É. Vamos lá. Eu arrastei você por meio mundo, você foi apresentado a pessoas, foi insultado e ameaçado por alguns dos praticantes da arte mais poderosos que existem. O que foi que você aprendeu?

— Sei lá. Que todos eles, menos a Zatanna, têm tanto equilíbrio quanto um ovo em pé. — Ele poderia ter incluído John Constantine naquele grupo, mas achou melhor não.

— Bom, já é um bom começo.

Tim pensou mais a respeito do que aquela viagem tinha mostrado, quais eram as informações novas.

— E que eles não vivem no mesmo mundo que a maioria das pessoas vive. O mundo deles é como uma sombra do nosso. É escuro e distorcido mas, ainda assim, os dois estão ligados. Pelo menos com os caras maus. Acho que com os bons também. Tipo a Zatanna. Ela está meio dentro e meio fora da vida comum. — Revirou-se na poltrona para captar a reação de John. — O que eu estou dizendo faz sentido?

John parecia pensativo.

— Mais do que você pensa.

Tim sentiu a admiração nos olhos azuis de John e sorriu. Era bom sentir que tinha conquistado o respeito daquele sujeito evasivo e imprevisível.

Constantine esticou o braço para pegar os fones de ouvido no bolsão do assento à sua frente.

— O Dr. Oculto será seu guia durante a próxima etapa da viagem.

— Para onde é que ele vai me levar desta vez? Tibet? Espaço sideral?

— Para a Terra das Fadas.

Tim ficou olhando para John, que brincava com o fone de ouvido, tão calmo quanto um lago plácido. Tim ficou olhando ainda mais para ele. Afinal, conseguiu encontrar a voz. Mas a única coisa que saiu de sua boca foi:

— Terra das Fadas?

 

Tinha acontecido de novo. Em um minuto, Tim estava apertado em uma poltrona de avião com uma gingerale na bandejinha a sua frente, e no minuto seguinte estava... onde? Olhou em volta. Algum lugar no interior, coberto de neblina e com aparência bucólica. Dr. Oculto estava por ali, observando Ioiô, que voava em círculos lá em cima.

Gostaria que parassem de fazer aquelas coisas com ele. A maneira pouco convencional de viajar o deixava desorientado. Ficou imaginando se teria rompido a barreira do som ou a velocidade da luz com todos aqueles deslocamentos. Suas moléculas deveriam estar bastante confusas àquela altura.

Será que esta era a Terra das Fadas? Examinou a paisagem. Simplesmente parecia ser uma parte da Inglaterra mais bonita do que aquela com que estava acostumado. As grandes torres de telégrafo que salpicavam o horizonte confirmavam que ele ainda estava no suposto “mundo real”. A menos que as fadas se comunicassem por telégrafos ou cabos. Constantine devia estar brincando quando falou em Terra das Fadas, Tim concluiu. Ele gostava de fazer piadas, disso Tim sabia, apesar de nem sempre entender a graça.

— Cadê o Constantine? — perguntou.

— Está com os outros — respondeu Dr. Oculto.

— O que seria onde? — perguntou Tim.

— Isso não importa no momento. Venha, estamos perto do lugar para onde vamos.

Tim seguiu Dr. Oculto por uma estradinha cheia de curvas. O dia úmido deixara o caminho empapado e enlameado, e o capim tinha um cheiro molhado e verde. Ali perto, um riacho corria entre margens altas. Ioiô se distraía com coelhos, passarinhos e insetos que cuidavam da própria vida e nem notavam aquele trio estranho invadindo seu território.

“Isto aqui não é tão mau”, Tim pensou, admirando o verde calmo das árvores, dos arbustos e do capim. Se ao menos ele conseguisse se acostumar com o choque de ser transportado repentinamente de um lugar a outro, ficaria bem. Jornada nas Estrelas não era nada perto disso! Os ombros de Tim caíram. Ele nem tinha percebido que estavam encolhidos, quase encostando nas orelhas. O medo ainda espreitava dentro dele, mas finalmente estava conseguindo relaxar no meio daquela aventura, e começava a sentir que aquele poderia ser o seu mundo, a sua vida. “Talvez eu não esteja louco”, pensou, esticando o braço até um galho e sacudindo algumas folhas cobertas de orvalho. Por mais maluco que fosse, de algum jeito aquele modo de vida fazia mais sentido do que as coisas lá em Londres.

— Então, você é doutor de verdade? — perguntou Tim a seu companheiro.

— Sou doutor de verdade em quê?

Tim deu de ombros.

— Sei lá. Em que tipo de coisa se pode ser doutor?

— Não sou médico, se é isso que você está perguntando. Apesar de eu ser capaz de consertar um osso ou estancar um sangramento se houver necessidade.

— Dr. Oculto... — pronunciou Tim, sacudindo a cabeça. — É um nome engraçado.

— Nome? — Dr. Oculto ergueu uma sobrancelha, mas estava sorrindo, então Tim percebeu o erro.

— Um jeito de ser chamado, então.

— Temos que esperar aqui.

Estavam ao lado de uma grande macieira de galhos curvados pelo peso dos frutos abundantes. Uma cerca baixa dividia o campo, e ao seu redor, até onde Tim conseguia enxergar, havia pastagens abertas. À distância viu um bosque e, além dele, colinas.

— Esperar o quê? Uma escolta de fadas?

— O sol se pôr. Precisamos partir ao crepúsculo.

O sol estava baixo no horizonte, e Tim imaginou que não precisariam esperar muito. Ioiô se acomodou em um galho próximo. Tim pegou uma maçã que balançava à sua frente.

Olhou para Dr. Oculto, sentindo-se mais à vontade com ele do que se sentira com os outros, apesar de seu jeito formal. Tim gostava mais de John, mas ele não era exatamente uma presença reconfortante. Com John, ele se sentia constantemente em estado de alerta máximo. Era emocionante, mas meio cansativo.

— Você pode me dizer uma coisa? — perguntou Tim.

— Possivelmente.

Tim riu. “Nunca dá para receber um sim ou um não fácil desses caras.” Deu uma mordida na maçã.

— Vocês quatro — disse, mastigando. — Quem são vocês? Quer dizer, o Constantine. Ele é só um cara, não é?

Dr. Oculto olhou para o infinito, como se estivesse resolvendo como responder... ou se daria alguma resposta.

— John Constantine. É. Ele já viu muita coisa, e agora dança no topo de seu conhecimento como um louco. Porque ele é o John Constantine, e porque ele está vivo.

Tim absorveu aquilo. Será que esses caras de sobretudo vão para uma escola especial para aprender a falar desse jeito empolado, poético demais?

— Então, você está dizendo que ele é assim porque é assim.

— Sim. É a natureza dele.

Tim mastigava sua maçã, pensativo. Pelo menos Dr. Oculto parecia mais disposto a dar repostas, ainda que fosse difícil compreender o significado.

— E o Mister Io? Ele é mesmo cego?

— Ah, é. Ele é um extremista. Luta contra o que considera as forças da escuridão. Essa é sua única razão de existir, é o que o motiva. Mas às vezes fico achando que a única coisa que ele consegue ver é escuridão. No entanto, ele é capaz de viajar de maneiras que nem eu consigo.

Tim lembrou-se de que Zatanna também parecia não ir muito com a cara de Mister Io. Talvez nenhum deles gostasse daquele sujeito, mas, como ele tinha algumas habilidades, todo mundo o agüentava. Era como escolher Bobby Saunders para um time de futebol. Ele era um chato, mas como chutava bem... E o mais importante era que ninguém queria que ele jogasse no outro time.

— E aquele outro? Ele me assusta. Ele parece bem... diferente.

— O Estranho? Ahh... já deparei com ele várias vezes no passado. — Dr. Oculto enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo e assentiu com a cabeça. Era difícil para Tim distinguir o rosto dele embaixo daquele chapéu de abas. — Ele percorre seu próprio caminho. Começou há muito tempo, e desconfio que o fim não esteja à vista. Não sei qual é a história dele. E não conheço ninguém que saiba. Talvez ele esteja caminhando há tanto tempo que nem mesmo ele próprio se lembre dela.

“Como é que alguém pode se esquecer de quem é?” Tim achou melhor não fazer essa pergunta e pulou para a seguinte.

— E você? — perguntou.

Será que Dr. Oculto seria tão aberto em relação a si mesmo quanto fora com os outros?

— Eu sou seu guia neste estágio da jornada, Timothy Hunter. E você pode confiar em mim. Esvazie os bolsos.

“Então é isso. Fim da entrevista. Bom, eu fiz o melhor que pude.”

Tim jogou longe o talo da maçã, remexeu nos bolsos e tirou o conteúdo. Um pedaço de barbante, um toco de lápis, dois marca-textos, chaves, moedas, chiclete, um monte de fios soltos. Uma figurinha.

Dr. Oculto examinou os objetos nas mãos dele.

— Deixe as chaves e as moedas aqui — instruiu. — Ferro frio não é bem-vindo no lugar aonde vamos. O resto pode ficar com você.

Tim olhou em volta.

— Onde é que eu...? — Não queria perder suas coisas. — Já sei! — Ajoelhou-se ao lado de uma grande raiz da árvore, cavou um buraquinho e colocou as moedas e as chaves lá dentro. Cobriu com terra e amassou um pouco.

— Espero lembrar onde guardei mais tarde — disse, ficando em pé outra vez. Bateu as mãos na calça jeans para tirar a poeira dos joelhos.

— Ouça com atenção o que eu vou dizer — alertou Dr. Oculto. — Há algumas coisas de que você precisa se lembrar. É preciso obedecer a minhas ordens explicitamente, em tudo o que eu disser, por mais mesquinho e estranho que possa parecer.

— Tuuuudo bem — concordou Tim. Ele não gostava de concordar com termos sem saber exatamente o que eram. E se Dr. Oculto o mandasse pular da Torre de Londres? O que faria? Era isso que Molly sempre perguntava. Mas ele não tinha exatamente muita escolha. E Dr. Oculto sabia muito mais coisas a respeito do lugar para onde estavam indo do que ele.

— Em segundo lugar — prosseguiu Dr. Oculto —, não faça perguntas nem peça favores a quem encontrar durante nosso percurso. Não aceite presentes nem alimentos sem minha permissão.

Tim concordou com a cabeça. “Fique de boca fechada”, traduziu para si mesmo, “e nada de presentes.” Suspirou. Aquilo significava que ele não levaria nenhuma lembrancinha. Que pena. Seria bom se pudesse levar algum brinquedinho mágico para Molly.

— Em terceiro lugar, lembre-se de ser educado. A etiqueta é muito importante no lugar aonde vamos, e boas maneiras valem ouro. Se você fizer qualquer malcriação inofensiva, pode sair de lá com orelhas de burro, ou coisa pior. Por último, nunca se desvie do caminho. Não importa o que você vir, ouvir ou sentir. — Dr. Oculto estudou Tim com seriedade, olhando bem fundo nos olhos dele, como se pudesse penetrar em sua mente para se assegurar de que as regras tinham sido absorvidas. — Você compreendeu?

Tim enxugou as mãos na camisa. As palmas das mãos tinham ficado suadas enquanto ele ouvia as instruções de Dr. Oculto.

— Acho que sim.

Ele até estava se sentindo um pouco mais à vontade com toda aquela história de magia... antes de ser bombardeado com todas aquelas regras! “Tudo que tem relação com a magia é tão complicado”, pensou. “Tão cheio de conseqüências...”

Dr. Oculto assentiu com a cabeça.

— Que bom.

Olhou para o céu. Rastros de roxo e de rosa tingiam as nuvens, e o sol estava gorducho e pesado sobre a copa das árvores. O céu estava assumindo um tom de índigo. A neblina ia subindo à medida que o crepúsculo se espalhava pela paisagem calma.

— Estamos prontos para dar início à nossa jornada. Espere aqui — Dr. Oculto apontou para um portãozinho à distância, perdido no meio do nada. — Vou atravessar aquela portinhola. Quando acenar para você, caminhe do mesmo jeito que eu caminhei, seguindo aquele caminho. Quando atravessar o riacho, tome cuidado para não molhar os pés. Certo?

— Tudo bem. — Tim assentiu com a cabeça. A coisa toda lhe parecia bizarra. Ficou observando enquanto Dr. Oculto descia a colina, em direção ao riacho e depois ao portão, que Tim não notara antes. Na verdade, tinha certeza absoluta de que não havia nada do outro lado do riacho antes de o sol se pôr. Mas, além do portão, ele só enxergava a continuação daquela paisagem. Nada de especial. O porquê de haver um portão de madeira solitário, sem estar ligado a nenhuma cerca, ele não era capaz de imaginar.

Enquanto observava Dr. Oculto atravessar o riacho, o coração de Tim disparou. Será que ele se lembraria de todas as regras? Será que eles estavam mesmo indo para a Terra das Fadas? E será que ele conseguiria sair de lá depois? Esta última era sua maior preocupação, que permeava todas as outras... era tão grande que ele nem conseguia pensar nela. Tim afastou a idéia antes que ela se instalasse em seu cérebro e pusesse tudo a perder.

Ouviu Ioiô bater asas em cima dele, e ficou feliz por ter o pássaro como companhia.

— Ioiô, por que você está fazendo isso? — Olhou para cima, para o pássaro. — Acho que você vai ser meu acompanhante no passeio. Você vai para todos os lugares que eu for, certo?

O pássaro voou em volta da cabeça dele.

— Tudo bem, então por que eu estou fazendo isso? Qualquer pessoa com o mínimo de sensatez teria mandado todos eles para aquele lugar logo no começo.

Dr. Oculto fez o sinal, um aceno breve, sem se virar para olhar para Tim.

— Bom — disse Tim. — Tarde demais para voltar atrás. — Olhou para o pássaro e deu de ombros. — Afinal, ninguém nunca me acusou de ser uma pessoa sensata.

Tim apressou-se pelo caminho que Dr. Oculto percorrera. Determinado a não cometer erros, chegou ao ponto de colocar os pés sobre as pegadas grandes e enlameadas que o outro deixara. Alcançou o riacho.

— Aqui vou eu.

Cruzou o riacho com cuidado, contente de estar com sapatos com sola de borracha, que impediam que escorregasse nas pedras. “Não molhe os pés”, lembrou a si mesmo. “Acho que as pessoas não devem ter capacho no lugar aonde vamos, e não querem que deixemos rastros de lama.”

Tim chegou e parou atrás de Dr. Oculto, que ainda não tinha se movido. A mão dele estava sobre o portão. Ioiô pousou sobre um dos postes.

— Estou aqui. Humm... Doutor?

— Pois não?

— O Constantine disse que a gente ia para a Terra das Fadas. Ele estava brincando, não estava?

— Viajaremos através das Terras das Fadas. Pode chamar de Avalon, Lar dos Elfos, Mundo das Fadas, não faz diferença. É a terra do Crepúsculo de Verão.

— Ah. — Tim não tinha muita certeza se estava se sentindo melhor ou pior... ou apenas mais esquisito. — Então, quando é que a gente vai lá?

— Olhe para trás.

O coração de Tim batia em disparada enquanto ele se virava lentamente para olhar o lugar de onde tinha vindo.

A paisagem tinha mudado. A macieira, os postes com fios, o caminho, o riacho... tudo tinha desaparecido. Olhou para um amanhecer reluzente sobre um lago cristalino, só que os tons de roxo e de rosa eram bem mais claros do que em qualquer outro nascer do sol que ele tinha visto. Eram mais suaves e mais abrangentes.

— Já saímos do seu mundo — disse Dr. Oculto. — Este portão de madeira existe nos dois mundos... aqui e lá.

— Quer dizer que qualquer um pode passar de um lado para o outro com esta facilidade? — perguntou Tim.

— Há diversos lugares que são comuns a mais de um plano — explicou Dr. Oculto. — Estão acessíveis para aqueles que conhecem o caminho a ser percorrido.

— Humm, entendi. Eu acho. Para onde vamos agora?

— Vamos atravessar o portão. E, assim que o fizermos, pode ser que você note algumas mudanças.

Tim engoliu em seco. Mais mudanças? Será que ele ia agüentar?

— Tipo o quê?

— Você vai ver.

Dr. Oculto abriu o portãozinho de madeira. Juntos, ele e Tim o atravessaram. Quando saíram do outro lado, Tim ficou olhando para Dr. Oculto. Ele tinha se transformado em ela!

— Dr. Oculto? — Tim ficou olhando, estupefato, para a mulher a seu lado. Era alta, cabelo liso, castanho e curto. Seu rosto anguloso era bonito, mas comum. Não usava maquiagem e suas roupas eram simples: casaco, blusa, saia. Seria mais apropriada para um escritório do que para um reino mágico. — Esta é a sua verdadeira aparência?

— Não. Eu não sou mais o Dr. Oculto, apesar de compartilharmos alguns objetivos em comum. Ele é ele, eu sou eu, mas ainda sou sua guia.

— Não entendo. — Tim não conseguia parar de olhar, apesar de ele saber que era falta de educação e que ele tinha sido avisado para ser bem-educado naquele lugar.

— O Dr. Oculto e eu representamos aspectos diferentes de uma única entidade. Masculino e feminino. Anima e animus.

Igual às cartas que Madame X lera, Tim percebeu. Um homem em contato com seu lado feminino. Ali estava o lado feminino do Dr. Oculto, em carne e osso. O que mais aquela carta tinha previsto? Ah, sim. Que podia representar várias mulheres relacionadas a sua segurança e sua identidade. Zatanna provavelmente também fazia parte daquela carta.

— Há coisas que todos carregamos dentro de nós. Neste mundo, prefiro dar ênfase ao feminino.

— Qual é o seu... — Tim estava prestes a perguntar à mulher, que costumava ser Dr. Oculto, qual era o nome dela, mas lembrou-se das regras. — Quer dizer, por favor, como chamam você?

— Encontre um nome para mim — desafiou a mulher.

— Encontrar um nome? — perguntou Tim.

— Isso mesmo.

— Um nome? O seu? — Tim estava confuso.

— É uma espécie de teste.

— Aposto que é Rumpelstiltskin — murmurou Tim.

Caminharam em silêncio durante um tempo. “Como é que eu vou saber o nome dela? E inventar um nome para ela?” O olhar dele foi atraído por uma roseira ao lado do caminho. Eram rosas enormes, lindas, e o perfume tomava o caminho, preenchendo Tim com uma repentina inspiração. Olhou de frente para a mulher.

— Rosa — anunciou. — Vou chamar você de Rosa. A mulher pareceu surpresa, e então sorriu.

— Que bom, Tim. E que rápido. O Estranho estava certo. Você tem potencial para o poder.

Tim ficou contente de ter passado na primeira rodada, mas não conseguia entender muito bem por que era uma grande coisa dar um nome a ela. Ou talvez, em vez de dar-lhe um nome, ele tivesse adivinhado qual era o nome dela.

— Então, já chegamos? — perguntou Tim, olhando em volta.

— Chegamos aos domínios do Mundo das Fadas.

Dr. Oculto, agora Rosa, conduzia Tim e Ioiô através de um belo bosque. O caminho sujo parecia ter ficado mais macio sob os pés de Tim, e as árvores cintilavam com a luz do sol, que parecia ainda mais brilhante do que na sala de Zatanna, na Califórnia. Flores que Tim nunca tinha visto salpicavam o caminho. De vez em quando, avistava criaturas coloridas entrando e saindo de folhas e arbustos. Pássaros? Ficou se perguntando. Não, seus movimentos eram rápidos demais. Borboletas, talvez. Mas borboletas não davam risadinhas, e ele tinha certeza de ter ouvido o barulho tilintante de alguma coisa bem pequenininha rindo.

Respirou fundo, enchendo o pulmão com o cheiro das flores, das esperanças, das possibilidades. “Se o desejo tem um cheiro”, Tim pensou, “é este aqui”.

Ioiô voava sobre a cabeça deles, com os olhos amarelos indo de um lado para outro, apreendendo cada movimento nas folhagens a sua volta. Para Tim, o pássaro parecia feliz, alerta, mais... mais ele mesmo, de certo modo. “Talvez pelo fato de Ioiô ser feito de magia”, raciocinou, “o Mundo das Fadas se pareça mais com seu lar”.

— Então, para onde estamos indo? — perguntou Tim. Ficou imaginando se Dr. Oculto (Rosa) tinha algum destino em mente, ou se estavam apenas esperando que alguma aventura os agarrasse de supetão. Naquele momento, Tim sentia que estava pronto para qualquer coisa. Estava gostando do que tinha visto do Mundo das Fadas até então. Era verdade que só tinha visto belas paisagens, mas havia alguma coisa naquele lugar que fazia com que seu peito se expandisse, com que seus membros se movessem com facilidade. Era a vertigem da ansiedade.

Rosa afastou para o lado alguns galhos e fez um gesto para que Tim passasse por ali.

— O que vamos fazer agora? — perguntou.

— Vamos à feira! — respondeu Rosa.

 

Tim se abaixou e passou por entre os arbustos. Saiu nos limites de uma pradaria, uma pradaria cheia de paisagens, sons e cheiros surpreendentes.

Barraquinhas coloridas salpicavam o capim, e criaturas de todas as descrições possíveis passeavam por entre elas. Mesas cobertas de objetos, elfos com placas penduradas no corpo anunciando artigos e goblins carregando bandejas cheias de objetos estranhos: tudo competia pela atenção dos freqüentadores. Mesas de piquenique rústicas estavam armadas, e uma grande churrasqueira cavada no chão emitia enormes nuvens de fumaça com um cheiro delicioso. Atendentes (com delicadas asas transparentes) iam com pressa de um cliente a outro, enchendo e completando copos com líquidos coloridos.

— Demais! — Tim tentava olhar para todos os lugares ao mesmo tempo, até concluir que ficaria com dor de cabeça se continuasse. Para todo lugar para onde se virava, via uma cena de conto de fadas, uma ilustração de livro de fantasia! .

— Ei, você aí! O rapazinho logo ali! Venha aqui!

Tim se virou para ver quem o chamara. Encontrou uma barraquinha com uma criatura estranha, felpuda, com a pele da cor de um talo de trigo, abanando a mão magricela de dedos compridos. Tim achou que não haveria mal em dar uma olhada nos artigos da criatura. Sabia que não devia comprar nada. Só estava dando uma olhada.

Tim foi até a barraquinha. Ioiô desceu e pousou em seu ombro. Deu tapinhas carinhosos nas garras do pássaro, sorrindo. Ioiô também queria dar uma olhadinha.

Quando Tim chegou mais perto, pôde ver que a criatura era bem menor do que imaginava. Tinha apenas 1,20 m de altura. As orelhas pontudas atravessavam o cabelo prateado fino.

— Troco o desejo do fundo do seu coração por um ano da sua vida.

Tim ficou olhando para a criatura. Devia estar brincando. Como é que poderia estar se oferecendo para vender o desejo do fundo do coração de alguém?

— Não? — A criatura deu tapinhas nas bochechas murchas. — Troco pela sua voz, então. Ou pela cor dos seus olhos.

Tim teve que se segurar para não rir. Parecia tão... tão... absurdo. Fantástico. Bizarro. Como é que ele poderia entregar o azul de seus olhos? E por que alguém ia querer aquilo? Quem iria imaginar que existia mercado para essas coisas?

Tim lembrou-se das instruções de Dr. Oculto, antes de se transformar em Rosa: bons modos eram importantes.

— Não, muito obrigado — disse educadamente. — Mas agradeço por ter pensado em mim.

Mas a criatura não desistia.

— Um dos seus dedos, então. Você tem dez dedinhos! — abanou a mão para Tim, que percebeu que a criatura fantástica só tinha quatro dedos na mão. — Um só não vai fazer falta nenhuma. É o desejo do fundo do seu coração que eu estou oferecendo, rapaz. Nada menos do que isso. — A criatura suspirou, como se estivesse prestes a fazer um enorme sacrifício. — Tudo bem — resmungou —, dois dedos dos pés. E seis meses da sua velhice pelo desejo do fundo do seu coração. E esta é a minha oferta final.

— Não, obrigado. Mas muito obrigado mesmo, de qualquer forma.

Rosa caminhou até lá para se juntar a eles. A criatura a ignorou e continuou a conversar com Tim.

— Posso ver que você veio de muito longe, querido. Pronto. Deixe eu lhe dar meu melhor frasco de suco de frutinhas silvestres para a sua viagem.

Rosa falou antes que Tim tivesse chance de responder.

— Agradecemos pela oferta, senhora, mas também a recusamos.

Então a criatura era mulher. Era difícil para Tim ver a diferença.

— O garoto está sob a minha proteção — explicou Rosa. — Não podemos nos divertir com o povo do Mundo das Fadas.

— Muito bem colocado — disse a criatura. — Desejo-lhes uma boa viagem, e isto é de graça.

— Ei! — gritou Tim quando Ioiô fez um movimento repentino. Saiu voando de seu ombro, rodopiou no ar e mergulhou atrás dele.

— Sai daqui! — gritou uma pequena criatura ajoelhada atrás de Tim.

Ioiô enfiou as garras na mão da criatura... a mão que estava tentando alcançar o bolso de Tim.

— O que está acontecendo? — perguntou Rosa.

A criatura congelou, e depois se jogou no chão.

— Esse pássaro de vocês me atacou. Exijo reparação.

Tim ficou olhando para a criatura caída ao chão, gemendo de agonia.

A criatura se contorcia e se lamentava, apertando a mão com força. Tim não fazia a menor idéia de qual tipo de ser que seria aquele. Não se parecia com os elfos nem com as fadas que tinha visto em desenhos, e certamente não se parecia com os gnomos do jardinzinho acanhado do vizinho. Era pequena e magricela, porém forte, coberta com uma pelagem amarelada. Usava apenas um colete de couro e uma espécie de short com aparência medieval. Mas o que mais ajudou Tim a identificar a criatura foi a longa cauda que se debatia, levantando poeira. Uma pulseira estava jogada no chão ali perto.

— Aaaaaai — a criatura gemia. — Que animal mais horrível e perigoso. Tem coragem de me atacar sem avisar! Não devia ficar solto por aí!

— Ioiô — disse Rosa, falando com a coruja. — Isso é verdade?

— Uhhh! — respondeu Ioiô, voando para os dedos esticados de Rosa.

— É mesmo? — Rosa disse a Ioiô.

Tim ficou olhando para eles. Será que ela entendia mesmo o que Ioiô dizia?

Rosa voltou-se para a pequena criatura:

— A coruja me disse que você estava tentando colocar aquela pulseira no bolso de Timothy. O pássaro viu e impediu que você fizesse isso.

Tim franziu a testa, confuso. Por que aquela criaturinha iria colocar uma pulseira no bolso dele? O que ela ganharia com isso? Os ladrões geralmente tiravam coisas do bolso dos outros, não colocavam nada neles. Não fazia o menor sentido.

— Besteira! — protestou a criatura. — Foi um ataque sem motivo nenhum! — Enrolou-se em uma bolinha, envolvendo o corpo com a cauda. Pegou a pulseira e colocou no braço magro. — Mas pensei melhor e não vou exigir reparação, e ficarei satisfeito deixando as coisas como estão.

— Pode até ser — retrucou Rosa —, mas para mim não está nada resolvido. Onde é que está o guardião da feira?

A criatura esfregava as mãos sem parar.

— Ah, não vá incomodar o Velho Glory com isso — disse, com voz suave. — O Glory detesta ser incomodado com assuntos da feira.

— Os assuntos da feira são da conta de Glory, Narigudo. — Um homem de óculos apareceu do meio da multidão. Usava roupas antiquadas que não combinavam entre si: uma casaca comprida de veludo azul sobre calça de veludo roxo, uma camisa de babados com gravata borboleta, colete de veludo verde e sapatos de abotoar do lado. O cabelo grisalho era espesso, assim como as costeletas felpudas que cobriam metade de seu rosto. Mas, tirando as orelhas levemente pontudas, o sujeito parecia bem humano aos olhos de Tim. Muito mais do que o pequenino Narigudo, cuja cauda estava mais uma vez levantando poeira.

— Como guardião, os comerciantes também são da minha conta — prosseguiu Glory.

Olhou para baixo, para Narigudo, que estava sentado aos pés do homem, contorcendo as mãos.

Glory cruzou os braços sobre o peito.

— Eis o que estou vendo — conjeturou. — Você teria colocado a pulseira no bolso do menino e esperado até ele sair da feira para gritar: “Pega ladrão!”.

“Então esse era o plano de Narigudo”, Tim pensou. O estratagema fazia algum sentido. No mundo estranho que estava visitando, tudo era possível. Tim suspeitou que a lógica a que estava acostumado nunca mais valeria.

Glory continuou a detalhar o que acreditava ser o esquema de trapaça de Narigudo.

— E, como parte prejudicada, você estaria autorizado a manter o menino como seu criado pessoal durante setenta anos. E ainda pedir compensação da parte dos companheiros dele na negociação.

Tim engoliu em seco. Ali, o ato de roubar era mesmo uma coisa séria. Sentiu-se aliviado pelo fato de o guardião saber que ele não tinha roubado jóias de ninguém. Dr. Oculto (Rosa) tinha razão. Ele tinha que andar com cuidado e seguir as regras naquele lugar.

Narigudo se contorceu todo para se levantar, puxando a calça de Glory para ajudar no processo.

— Humm, Mestre Glory...

— Silêncio! — Glory fez um gesto com a mão.

Os olhos de Tim se arregalaram em choque. A boca de Narigudo desaparecera! Estava bem claro que Glory não estava brincando quando queria que alguém calasse a boca. Tim sabia que ia se lembrar daquela informação também.

Glory abaixou-se para segurar Narigudo pelo ombro, como se desconfiasse que a criatura fugiria correndo.

— Pena que a ação do Narigudo manchou a reputação da feira — disse Glory a Tim. — Você pode pedir reparação.

Tim quase sentiu pena de Narigudo, mas se lembrou de que quase tinha se tornado um criado daquele ser por setenta anos.

— Leve-nos até sua morada — ordenou Glory a Narigudo.

Tim teve a sensação de que todo mundo estava olhando para eles quando saíram da feira. Seguiram uma trilha estreita para dentro do bosque e logo chegaram a uma pequena colina. Narigudo colocou para o lado folhas e arbustos, revelando uma portinha de madeira. Tirou uma chave do bolso do colete, colocou na fechadura e abriu uma porta para dentro da colina.

Tim, Rosa e Glory precisaram se abaixar para passar pela portinha. Lá dentro era bem apertado, e o lugar estava cheio de porcarias: mobília quebrada, caixas, caixotes, estantes, troços e trecos. Um fogãozinho, uma mesa e uma cadeira estavam arranjados em um canto, e uma cama tinha sido cavada na parede suja, como um beliche. O resto era só um monte de... coisas.

— Agora vejamos, Narigudo — ordenou Glory. — Você agiu mal com o garoto e a coruja. Como guardião da feira, eis aqui o meu veredicto. Cada um deles pode pegar, de graça e sem nenhuma outra obrigação, um objeto da sua morada.

Tim ergueu os olhos para Rosa.

— Posso? — perguntou. Queria assegurar-se de que era permitido fazer aquilo. Já tinha aprendido que cada ato tinha conseqüências surpreendentes no Mundo das Fadas.

— Pode.

Ioiô voou até um cabideiro que estava jogado perto da porta. Vários colares e cachecóis estavam pendurados nele. A coruja pegou uma corrente prateada com as garras e voou até Mestre Glory.

Mestre Glory assentiu com a cabeça, como se estivesse dando permissão ao pássaro.

— Claro — disse a Ioiô. — Se é isso que você deseja. — Voltou-se para Tim. — Agora é sua vez, menino mortal.

Tim não sabia o que pegar. A sala estava abarrotada de coisas esquisitas. Podia passar dias ali, explorando, examinando, descobrindo o que era cada coisa, como funcionava. Mas sabia que não devia enrolar.

Deu um passo cuidadoso mais para o fundo da moradia abarrotada, tentando não derrubar nada. Reparou em um livro bonito, mas não pegou. Uma esfera brilhante que rodava lentamente sobre um suporte de latão chamou sua atenção, mas achou melhor não. Viu uma estatueta esquisita de um gnomo que poderia fazer Molly rir. Esticou o braço por sobre a mesa para pegar o objeto, e a mão formigou. Surpreso, Tim deixou o braço pender ao lado do corpo. Esticou a mão de novo, e a mesma coisa aconteceu, bem quando seus dedos passaram por cima de uma chaleirinha robusta.

“Engraçado”, pensou. “Parece que esta chaleira quer me dizer alguma coisa.” Tirou a chaleira do lugar. Era bem mais pesada do que parecia. Ao abri-la, Tim descobriu por quê.

Lá dentro, havia um ovo reluzente. Tim o tirou dali.

— Posso ficar com isto aqui? — perguntou.

— Um Ovo Mundano — Mestre Glory disse, surpreso. — Ora, ora. Quem poderia pensar que nosso Narigudo aqui teria uma coisa dessas? E escondida no meio de tanta bugiganga?

— Escondida à vista de todo mundo? — arriscou Tim, lembrando-se da frase de Zatanna.

— Pode-se dizer que sim. Você escolheu bem, menino. A sorte, ou alguma coisa parecida, está ao seu lado. — Mestre Glory alisou as costeletas felpudas. — Um Ovo Mundano. Quem iria imaginar? Quando eu devolver a sua boca, Narigudo, vamos ter que discutir a fundo esse assunto.

Rosa colocou o colar com cuidado no pescoço de Ioiô.

— Vamos sair daqui agora, Mestre Glory. Com a sua permissão.

— Claro que sim, minha senhora. Adeus. E adeus, criança. Cuide bem do ovo.

— Tchau — respondeu Tim. Olhou para o ovo na mão. Era mais brilhante e mais pesado do que os ovos que usava em casa para fazer omelete, mas não conseguia entender por que Mestre Glory estava dando tanta atenção para aquilo. E “mundano” não queria dizer ordinário? Ainda assim, tomou muito cuidado quando o colocou no bolso. Afinal, um ovo era um ovo, mundano ou não. Não queria que se quebrasse na calça e o deixasse todo empapado de gema.

Saíram da morada de Narigudo. Rosa, Tim e Ioiô continuaram a seguir o caminho.

— Estou com fome — disse Tim. — Tem alguma coisa para comer?

— Não — respondeu Rosa. Não se deve comer nada no Mundo das Fadas, Tim. Não se você quiser voltar. Ou, pelo menos, se quiser voltar para a época em que você estava. Um dia no Mundo das Fadas pode ser cem anos nas terras mortais.

— Então eu vou ficar com fome?

— Vai ficar com mais fome ainda.

Aquilo não parecia nada animador.

— Então, onde a gente está? — perguntou, um pouco mal-humorado, para falar a verdade.

— Não sei — informou Rosa. — Este caminho nunca tinha me trazido para cá.

Aquilo parecia ainda mais preocupante, especialmente com aquelas espirais de névoa serpenteando em volta deles, atrapalhando a visão.

— Vamos para outro lugar, então — sugeriu Tim. — Para algum lugar que você conheça.

— Precisamos seguir o caminho, Timothy. Uma vez que começamos a percorrer nosso caminho, precisamos percorrê-lo até o fim, ou ficaremos perdidos. Se isso acontecer, poderemos perder tudo.

A névoa fria e úmida ficou assustadoramente espessa, como se alguém tivesse ligado uma máquina de fazer fumaça a todo vapor.

— Rosa? — chamou Tim. Não conseguia mais enxergá-la. — Dr. Oculto?

— Ainda estou aqui — a voz de Rosa veio do meio da neblina.

— Não estou enxergando o caminho. Nem você. Nem o Ioiô!

— Estou aqui — respondeu Rosa, mas sua voz estava abafada. Tim não sabia de que direção estava vindo. Com medo de que ela se adiantasse muito em relação a ele, apertou o passo.

— Droga! — Tim tropeçou em uma raiz grossa e caiu de cara na terra. Conseguiu se levantar e descobriu que a neblina tinha desaparecido.

Assim como Rosa.

Tim procurou os óculos, que tinham caído quando ele tropeçara. Seus dedos os encontraram e ele os colocou no rosto rapidamente. Por sorte não estavam quebrados, só um pouco tortos. Mas, mesmo com os óculos, Rosa continuava desaparecida. Só que ele não estava completamente abandonado: Ioiô estava empoleirado em um galho de árvore próximo.

— Rosa! — gritou Tim. — Dr. Oculto!

Nenhuma resposta.

Tim subiu no galho e se acomodou ao lado de Ioiô.

— Dá pra acreditar? — balbuciou. — Foi ela mesma quem disse para a gente não se perder, e agora foi ela que se perdeu. Ele. Ah, sei lá! Pelo menos ainda estamos no caminho.

Depois que a neblina evaporou, o caminho ficou claro outra vez. Tim o estudou a distância, observando que desaparecia dentro de um bosque denso.

— O que você acha? — perguntou à coruja. — Será que a gente fica aqui esperando por ele? Quer dizer, por ela? Ou a gente deve seguir em frente?

Os olhos amarelos de Ioiô nem piscaram.

— Você é mesmo muito útil. Que droga. Está frio demais pra ficar aqui parado. Ele vai achar a gente. Ou ela vai achar a gente. Um dos dois.

Tim deixou-se cair do galho da árvore, tomando cuidado para evitar as raízes que se projetavam, e tomou o caminho de novo.

— Não sei você, Ioiô — disse — mas eu estou morrendo de fome. Comeria um cavalo. Até um elefante.

— Tim! — uma voz berrou. — Venha aqui! Depressa!

A cabeça de Tim se voltou para a direção da voz masculina. A alguns metros dali, Dr. Oculto estava parado ao lado de uma pequena cabana, de costas para Tim. O sobretudo dele era uma visão familiar e reconfortante.

— Dr. Oculto! — dirigiu-se para onde o homem estava. — Você voltou a ser homem! Como você passou na minha frente?

— Não há tempo para explicar. Rápido! É uma emergência!

Tim levantou um pé, prestes a sair do caminho, e congelou. “Não é uma das regras do Dr. Oculto? Não sair do caminho por motivo nenhum?” Tim baixou o pé mais uma vez.

— Rápido, Tim! Estamos correndo muito perigo! — Dr. Oculto gritou de novo.

Tim nunca tinha ouvido tanta ansiedade na voz de Dr. Oculto. Devia ser algo muito sério. E a primeira regra não dizia que ele tinha que obedecer a qualquer ordem que Dr. Oculto lhe desse? Será que aquela regra não prevalecia sobre todas as outras? Ele precisava arriscar.

Deu um salto para fora do caminho e correu na direção de Dr. Oculto, atravessando a pradaria.

— O que foi? — ofegou ao chegar mais perto do homem, que ainda estava de costas para ele. — Qual é o problema?

O homem se virou e, quando o fez, transformou-se. Uma velha horrorosa vestida com trapos, de cabelo grisalho desgrenhado, braços ossudos e dentes amarelados e pontudos estava parada na frente de Tim.

— Qual é o problema? — disse com voz esganiçada. — Você saiu do caminho, seu menino tonto. Esse é o problema!

Com um movimento ágil, agarrou o pulso de Tim. Segurou tão forte que ele ficou com medo que o quebrasse em dois. Ela puxou com força, e Tim tropeçou para ficar mais junto dela. De perto, dava para sentir seu bafo, ver os pêlos saindo das verrugas nas bochechas e no nariz. Além disso, o tempo todo ele sentia as unhas afiadas como garras espetando sua pele.

— Dr. Oculto? — sussurrou Tim. — Você... mudou de novo?

A mulher gargalhou, histérica.

— Não tem Dr. Oculto nenhum aqui, seu menino tonto. Só a Baba Yaga. E a Baba Yaga passou a perna em você.

— Me larga! — gritou Tim, tentando libertar o pulso do agarrão dela.

— Então, o que foi que a Baba Yaga conseguiu capturar? Será um cozido? Um assado? Um chouriço? Será que rende umas costeletas macias? Ah, sim, tudo isso. Um menininho suculento, carnudo e doce.

“Que nojo!” Tim se encolheu. Ela estava babando de verdade!

— É melhor você me soltar — insistiu, tentando parecer corajoso e decidido. — Dr. Oculto é meu protetor. Ele vai achar você, e aí você vai se dar mal.

— Achar a gente? Duvido muito. — Baba Yaga ergueu Tim com seus braços fortes como se ele não passasse de lenha para o fogo. Carregou-o com facilidade para dentro da cabana. — A casinha da Baba Yaga fica no coração da floresta selvagem, e nunca fica no mesmo lugar por dois dias seguidos.

“Como pode ser?” Tim ficou imaginando. “Como é que a casa dela pode mudar de lugar?” Ela não morava em uma casa móvel que pudesse ser carregada até o próximo estacionamento de trailers.

Baba Yaga parou no meio da cabana, ainda segurando Tim.

— Agora, casinha — ordenou —, vá dar o seu passeiozinho.

Bem preso nos braços de Baba Yaga, Tim sentiu a casa sacudir. Lentamente, toda desajeitada, ergueu-se no ar.

— O que está causando isto?

Baba Yaga soltou uma gargalhada estridente e carregou Tim até a janela.

— Minha casa tem pernas! Dê uma boa olhada. Você vai ver outras assim em todo o Mundo das Fadas.

Agarrou Tim pelas canelas e o pendurou de cabeça para baixo do lado de fora da janela. Os olhos dele quase saltaram das órbitas. A casa estava em cima de um par de pernas de galinha. Dava para ver os enormes pés com garras dando enormes passos para a frente.

“Ela não está brincando”, percebeu Tim, aterrorizado. “A Rosa não vai ter como me achar.”

Baba Yaga puxou Tim de volta para dentro da cabana, fazendo com que a cabeça dele batesse no parapeito da janela no caminho. Por mais que Tim se contorcesse, esperneasse e lutasse, a força do agarrão dela não diminuía. Parecia que a bruxa não estava sentindo a menor resistência.

— Você é magrinho, mas tem um pouco de carne nas costelas. Muito bom! — declarou, jogando-o em cima de uma mesa e cutucando a lateral do corpo dele. Virou-o de bruços e bateu na bunda dele. — Um bife aqui neste traseiro. Muito bom! — Quando virou Tim de novo, ele percebeu que ela o tinha enrolado em um barbante. Ela o estava amarrando!

— E um coração para mastigar. — Baba Yaga o jogou por cima do ombro e o carregou até a lareira. Levantou-o e o pendurou, de cabeça para baixo, em um gancho. — E olhos para chupar e uma língua para ferver e comer bem quentinha. — Passou o barbante em cima do nariz dele.

— Acho que você devia mesmo me soltar — disse Tim, com o tom mais razoável de que foi capaz. Torcia para que sua educação lhe garantisse alguns pontos. Uma vez amarrado e pendurado como um pedaço de carne, não tinha mais nenhuma opção. Estava claro que não era páreo para ela no quesito força. Talvez os garotos do bairro estivessem mesmo certos, ele era um fracote.

— Volto logo, meu suculento. Baba Yaga precisa de verduras também. E de ervas e lenha.

Agarrou uma vassoura em um canto e foi até a janela.

— Ahhh, que banquete eu vou fazer. A gordura vai escorrer pelo meu queixo, e eu vou rachar os seus ossos com meus dentes de ferro para chupar o tutano lá de dentro. — Parecia que ela ia desmaiar de tanta ansiedade. Aprumou-se. — Janela! Abra bem!

A janela fez o que lhe foi ordenado. Baba Yaga subiu na vassoura e saiu voando.

— Ai, isso não é nada bom — gemeu Tim.

— Sei lá — disse uma vozinha de algum lugar bem próximo. — Se ela arrumar umas cenouras bem crocantes, pode até ficar passável.

Surpreso, Tim virou a cabeça. Achava que estava sozinho na cabana. Viu-se de cara com um coelho pendurado de cabeça para baixo ao seu lado. Um coelho falante!

 

— Você... você disse alguma coisa? — perguntou ao coelho.

Sentiu-se bobo de fazer uma pergunta daquelas, mas já tinha acontecido tanta coisa esquisita, por que não conversar com animais? Com certeza ele tinha ouvido alguém falar, e só podia ter sido o coelho. Bom, ou o coelho ou o pequeno ouriço pendurado de cabeça para baixo ao lado do coelho.

— Tsc, tsc, tsc — o coelho desaprovou, enfiando a língua entre os dentões da frente. — Desta vez você se deu mal, colega.

— O quê?

— Ele está certo, sabe — disse o ouriço com uma vozinha esganiçada. — Você vai virar ensopado.

— Quer dizer, eu e o Mestre Redlaw aqui — disse o coelho, fazendo um sinal com a cabeça na direção do ouriço —, a gente já está quase acostumado com a idéia de terminar na panela.

— É modo de dizer, Mestre Leveret — disse o ouriço, assentindo em movimentos rápidos com a cabeça coberta de pêlos espetados. — Mas a maioria de nós, os porcos-espinhos, é envolta em barro e colocada para assar sobre brasas. — Esticou o pescoço, tentando aproximar seu rosto do de Tim. — Por causa dos espinhos... — completou, com um sussurro em tom confessional.

— O senhor tem toda a razão, Mestre Redlaw — concordou o coelho. — Reconheço meu erro de julgamento, graças ao senhor, devo dizer.

— Humm... — Tim começou, mas, como não sabia mais o que dizer, deixou por isso mesmo.

— Aaaaah, que droga — disse o coelho. — Mais uma vez, esquecemos os bons modos, colega. Deve ser porque estamos de cabeça pra baixo, com todo o sangue concentrado na pontinha das orelhas.

— Sim, sim, é claro. — O ouriço concordou com a cabeça, todo entusiasmado. Tim se virou um pouco para não ser espetado pelo porco-espinho.

— Eu sou Mestre Leveret — disse o coelho. — E este aqui é o Mestre Redlaw.

O ouriço assentiu com a cabeça.

— Eu mesmo.

— Ela tinha acabado de pegar a gente antes de trazer você.

— E o senhor, quem seria? — perguntou Mestre Redlaw, o ouriço.

— Eu sou o Tim. Tim Hunter.

Primeiro, engoliram em seco, e logo depois os dois animais caíram na gargalhada. Olharam um para o outro, e Tim teve a sensação clara de que, se estivessem soltos (e fossem humanos), estariam dando tapinhas nas costas um do outro por causa de piada que compartilhavam.

— Hunter? Caçador, em inglês? É isso? — riu Mestre Leveret, o coelho. — Bom, então isto aqui deve ser uma bela reviravolta para o senhor.

— Ha! Eis aqui um caçador, e ele é quem foi caçado! — Mestre Redlaw se engasgou de tanto rir. — E está muito bem preso, devo dizer.

— Não sou nenhum caçador — reclamou Tim. — É só o meu nome.

— Ah, rapaz, sabemos tudo a respeito de nomes. Contanto que o senhor não cace lebres, eu não vou nem ligar para isso, meu jovem.

— Nem porcos-espinhos — ajuntou Mestre Redlaw. — Não vou defender ninguém que cace porcos-espinhos. Senão, vou levar para o lado pessoal, fique sabendo.

— Bom, é claro — disse Tim. — Eu já estou levando tudo isso para o lado pessoal.

Ouviu-se um esvoaçar repentino e uma forma escura à janela lhes chamou a atenção. Ioiô entrou revoando pela sala.

— Ioiô! — gritou Tim.

— É uma coruja, Mestre Redlaw — observou Mestre Leveret.

— Notável! — exclamou o ouriço. — Foi exatamente o que eu pensei, Mestre Leveret. Podem me matar, pensei, se isto não for uma coruja.

— Há quanto tempo o senhor não passa um período na companhia de uma coruja? — perguntou Mestre Leveret.

— Pensando bem, nunca passei. Mas talvez...

— Fiquem quietos, você dois — implorou Tim aos animais tagarelas. Voltou-se para falar com a coruja. — Ioiô, você pode levar um recado para o Dr. Oculto? Quer dizer, a Rosa? Diga a ela, ou ele, sei lá, onde eu estou e diga para vir nos buscar!

— Uh-uh! — respondeu Ioiô.

Ioiô não se mexeu. Tim foi o primeiro a piscar.

— Bom, Ioiô, o que você quer?

— O que a coruja disse, se o senhor me permite traduzir — ofereceu-se Mestre Leveret —, é que não faz a mínima idéia de onde encontrar a dama ou o cavalheiro em questão.

— Foi exatamente o que o pássaro disse, muito bem — o ouriço concordou, assentindo com a cabeça, cheio de vigor.

— Vocês entenderam tudo isso só com um “uh uh”?

As três criaturas ficaram olhando para Tim como se ele fosse um completo tapado.

Tim corou. Já era muito ruim ficar agüentando os garotos da escola tirarem sarro dele na aula de educação física. Ser tratado como imbecil por um coelho, um ouriço e uma coruja, bom, era uma experiência totalmente nova e bastante desagradável.

— Tudo bem, foi isso que o Ioiô disse — concordou Tim. — Ioiô, escute, aquela velha...

— Ela não é uma velha — Mestre Leveret interrompeu, com a orelha comprida tremelicando.

— Ela é a Baba Yaga — Mestre Redlaw completou, como se aquilo fosse algo compreensível.

— Aaaah, ela cuspiria no senhor se o ouvisse chamá-la de velha.

— Está certo. Aquela tal de Baba Yaga quer me comer. — Ouviu uma fungada e um pigarro atrás de si e logo corrigiu: — Quer comer todos nós, digo. Ela só saiu para pegar umas ervas.

— Provavelmente, cebolinhas — disse o coelho. — E tomilho. E folha de louro, creio eu. E manteiga de leite de vaca, para fazer os molhos.

— Nós, porcos-espinhos, não combinamos com todas essas coisas chiques — disse Mestre Redlaw, com desprezo. — Minha vovozinha costumava dizer que não se deve usar temperos estrangeiros chiques em um porco-espinho. Barro e brasas é onde a gente acaba, e com um pouquinho de sal, se tiver sorte.

— Vocês podem ficar quietos, por favor! — Tim explodiu. — Shhh! Parece que vocês estão mesmo ansiosos para se transformar no ingrediente principal da receita!

— Se ela souber usar bem o tomilho, eu não me importo nem um pouco — disse o coelho.

— Não quero saber desses molhos chiques estrangeiros — reclamou o ouriço. — Ela não fará isso se souber o que é comer bem.

— Ioiô — Tim tentou mais uma vez. — Você não conseguiria cortar as cordas com o bico, ou qualquer coisa assim?

Ioiô voou em um círculo ao redor de Tim.

— Uh uh... — disse a coruja.

Tim olhou para Mestre Leveret em busca de tradução.

— Ele disse que acha que não — respondeu o coelho. “Então já era”, Tim pensou. “Eu armei a maior confusão e agora vou virar ensopado. Enrolado como um animal e bem temperado. Que jeito de passar desta pra melhor!”

— Ioiô — disse Tim, todo corajoso. — Se você se encontrar de novo com o Dr. Oculto, diga que eu sinto muito por ter saído do caminho. E que eu preferia nunca ter me metido nesse negócio de magia. E diga pra ele se despedir do meu pai por mim. E da Molly. Ela pode ficar com a minha coleção inteira de gibis. Acho que ela vai gostar. Está bem?

— Uuuhhh.

— Ele disse que tudo bem — explicou Mestre Leveret. Parecia triste, e Tim não tinha certeza se o coelho estava sentindo pena dele ou se Mestre Leveret tentava traduzir também os sentimentos da coruja.

— Sabe — arriscou-se Mestre Redlaw —, há uma coisa bem peculiar e notável a respeito da sua coruja que arrulha.

— O senhor está falando do fato de ela estar voando durante o dia, quando todo mundo sabe que são criaturas noturnas? — perguntou mestre Leveret.

— Oh, mas quanta perspicácia de sua parte. Mas não é isso. Estava pensando em algo que diz respeito mais à natureza do objeto em volta do pescoço dela, que é muito fora do comum.

— É só uma corrente que pegamos na feira — explicou Tim. — Nada excepcional. O Ioiô achou em uma pilha de porcarias. — “Por que será que eles estão preocupados com isso?”, Tim ficou pensando. “Será que só estão procurando se distrair até Baba Yaga voltar para cozinhá-los? Se for isso, talvez pudessem inventar alguma coisa mais interessante.”

— “Só uma corrente”? — repetiu Mestre Redlaw. — Esta é a Corrente de Extensão Infinita de Empusa, isso sim! É mesmo algo extraordinário. A Corrente de Extensão Infinita de Empusa em volta do pescoço de uma coruja!

— Do que você está falando? — perguntou Tim.

— Ela é muito famosa, colega! — insistiu o ouriço. — É um dos tesouros perdidos de Empusa, junto com o Tambor Inescapável e a União Gamaheana do Heliotrópio.

— Macacos me mordam! — exclamou o coelho. — Eu realmente deixei passar completamente batido esse detalhe a que o senhor se referiu anteriormente. O senhor deve estar pensando que eu tenho cérebro de pudim.

— De modo algum penso isso, Mestre Leveret — disse Mestre Redlaw, educadamente. — Nós, os porquinhos-espinhos, somos pensadores natos.

— Então essa coisa vai nos salvar? — perguntou Tim. A esperança estava voltando, apesar de o mesmo não ocorrer com a circulação em seus braços.

— Não, colega, não. Sinceramente, não posso garantir que vai — admitiu o ouriço.

— Mas definitivamente é algo a se contar para os netos, hein, Mestre Redlaw? — O coelho pigarreou e então assumiu um tom bem pomposo: — “Por coincidência, no mesmo dia em que fui para a panela, descobri a Corrente de Extensão Infinita de Empusa no pescoço de uma coruja.” — O coelho riu. — Que grande história daria.

— Mas, tendo dito isso — propôs Mestre Redlaw —, se a coruja voar por baixo da cabaninha de Baba Yaga e enrolar a corrente em volta das pernas da casa...

— E enrolar e enrolar e enrolar e enrolar, já que ela tem extensão infinita... — disse Mestre Leveret com as orelhas tremelicando.

— Até que... Bum! Ela tropece e caia — comemorou o ouriço.

Os olhos de Tim se arregalaram quando compreendeu o que os animais estavam sugerindo. Podia funcionar!

— E daí só vamos precisar descobrir como desfazer todos estes nós. E então saímos todos pela janela e já estaremos correndo pelo capim comprido e fora daqui antes que alguém possa dizer Januarius Gam-madion Fontarabia Dagonet Knipperdollings — prosseguiu o ouriço.

— É exatamente isso! — disse o coelho.

— Brilhante! — exclamou Tim. Olhou para a coruja. — O que você acha, Ioiô? Você consegue?

Ioiô soltou um pio curto e saiu voando pela janela em uma nuvem de penas castanhas arrepiadas.

Bem que Tim gostaria de ver o que estava acontecendo. Será que os animaizinhos estavam certos? Será mesmo que aquela corrente vagabunda era mesmo alguma incrível coisa sei lá o quê de extensão especial? E será que faria com que escapassem de toda aquela confusão?

O coelho e o ouriço deviam estar pensando algo parecido. Eles tinham parado de conversar, esperando para ver o que aconteceria. Os olhos grandes e redondos só observavam a janela.

E então a casa toda deu uma freada repentina, de esmagar os ossos. “Se estivéssemos em um carro”, Tim pensou, “já teríamos virado gelatina!” Com um movimento de inclinação de embrulhar o estômago, a casa foi caindo para o lado até bater no chão, causando um estrondo tão enorme que Tim achou que todo o Mundo das Fadas tivesse ouvido.

Tim caiu com tudo, atingindo o chão com toda a força, perdendo totalmente o fôlego. Mas logo percebeu três coisas importantes: primeiro, não estava morto; dois, seus óculos ainda estavam inteiros; e três, o choque tinha sido suficiente para afrouxar as cordas, e ele estava com as mãos mais livres.

Ioiô voltou para dentro da cabana, arrulhando, cheio de orgulho bem distinto. Tim fez força para erguer o rosto do chão.

— Você conseguiu! Conseguiu parar a casa! E olhe só! — Tim mexeu os dedos para Ioiô. — Me ajude a soltar estas cordas.

Ioiô puxou e Tim gemeu, até que as amarras se romperam. Ergueu-se de um pulo e deu uma olhada na cabaninha. Móveis, ferramentas, troços e trecos, tudo tinha escorregado para o lado. Estava a maior bagunça, mas achou o que estava procurando.

— Perfeito! — Agarrou uma faca afiada e cortou as cordas do coelho e do ouriço. — Pronto.

— Muito agradecido mesmo — disse Mestre Redlaw, o ouriço.

— Sim, muitíssimo obrigado — completou Mestre Leveret, o coelho.

Ioiô arrulhou do parapeito da janela.

— Peço perdão — disse o coelho —, mas a coruja está dizendo que devemos sair daqui com certa urgência. Ela está voltando.

— Então, vamos embora! — Tim saiu com cuidado da cabana tombada. Mestre Leveret e Mestre Redlaw se esgueiraram para fora atrás dele e pularam no capim.

— Minha casa! — guinchou Baba Yaga lá em cima. — O que foi que vocês fizeram com a minha pobre casinha? — Ela voava em círculos com a vassoura.

Tim pegou Mestre Redlaw no colo e saiu correndo. Mestre Leveret vinha logo atrás, e Ioiô saiu voando.

— Vou comer todos vivos! — gritou Baba Yaga.

— Vamos lá, colega — o ouriço incentivou, preso embaixo do braço de Tim. — Vamos lá! Não pare de correr.

Tim tropeçou em uma raiz retorcida e caiu de cara no chão. “Qual é o problema deste lugar?”, pensou. “Eu não sou tão atrapalhado assim em casa! Será que estas árvores estão a fim de me pegar?” Ele tentou se levantar, mas descobriu que sua canela estava enroscada em uma trepadeira.

Mestre Redlaw tinha saído voando quando Tim caiu.

— Precisa de ajuda, rapaz? — perguntou o ouriço, arrastando-se de volta ao lugar onde Tim estava.

— Não! Corram! Saiam daqui!

— Você... — começou Mestre Leveret.

— Vão logo!

— Já que o senhor insiste — disse o ouriço.

— Não queremos incomodar o rapaz — completou o coelho.

Mestre Leveret disparou para o meio dos arbustos. Mestre Redlaw se esgueirou através do capim alto. Tim ficou contente: pelo menos os bichinhos tinham escapado.

Tim tentou se arrastar, sacudindo a perna, desesperado para soltar a perna das trepadeiras retorcidas.

— Opa! — cacarejou Baba Yaga. Dava para perceber que ela já estava bem mais perto de Tim. Só a alguns metros de distância. — Agora vamos nos levantar, amiguinho. Vamos lá.

Lentamente, Tim se virou para olhar para a megera. E descobriu que Rosa estava parada entre ele e Baba Yaga.

— Saia da minha frente, mulher! Esse pirralho aí é o meu jantar. E ele machucou a minha casinha.

— O Timothy está sob a minha proteção neste reino — respondeu Rosa, calmamente. — Ordeno-lhe que não o importune mais.

— Ele é meu! E como você ousa me dar ordens? Por que eu deveria...

Rosa a interrompeu.

— Eu sei o seu nome verdadeiro — declarou. — Você quer que eu grite bem alto, para que todos os animais da floresta, todos os pássaros do ar, todas as fadinhas e goblins que estiverem passando por aqui fiquem sabendo também? Seu nome vai ser tão comum quanto capim. O que você acha disso, Baba Yaga?

— Você está mentindo! Você não sabe o meu nome.

— Talvez. Mas você quer descobrir quão alto eu consigo gritar?

Baba Yaga pareceu encolher um pouco.

— Não — resmungou, com a voz bem baixinha.

A vassoura desceu alguns centímetros.

— Então, você libera o garoto de qualquer obrigação e ligação?

— Libero. — Baba Yaga estava positivamente ficando deprimida.

— Que bom.

Tim ficou observando enquanto a velha megera se afastava voando. Quando ela desapareceu completamente no horizonte, ele soltou a perna e ficou em pé.

— Você estava blefando, não estava? — perguntou a Rosa.

— O quê? — ela parecia confusa.

— Igual ao John Constantine naquela casa noturna. Você só estava blefando. Sobre saber o nome dela.

— Não, Tim, eu não estava blefando.

Tim ficou com a clara impressão de que Rosa não só não estava blefando como também não aprovava essa tática de modo algum.

— Quando era jovem, aprendi certas coisas — explicou. — Entre elas, alguns nomes. Nomes de deuses, de mortais e do pessoal que mora na floresta. Nomes de cidades e de árvores. De águias e de serpentes. Eu não estava blefando. Eu poderia tê-la destruído.

— Ah. — Tim se sentia esquisito por dentro. Sentia-se honrado por ela ter usado aquele poder e conhecimento para salvá-lo. Mas detestou tê-la colocado na posição de precisar fazer isso. Não queria ser um garoto impertinente que sempre precisava ser salvo.

Acharam o caminho de novo e foram andando em silêncio. Ioiô ia voando por cima deles. A floresta era cheia de sons, mas nenhuma palavra fluiu entre Rosa e Tim por um bom tempo. Cada um deles estava afundado em seus próprios pensamentos. Tim não era capaz nem de tentar adivinhar o que passava pela cabeça de Rosa. Provavelmente devia estar pensando que seria melhor se tivessem escolhido algum outro garoto para apresentar à magia.

Então, ouviu-se um som inconfundível: cascos de cavalo batendo no chão com força, vindo apressados na direção deles. Uma linda mulher apareceu galopando na curva, a poucos metros à sua frente. Uma linda mulher verde. Ela puxou as rédeas do enorme cavalo branco e parou.

— Quem vem lá? E o que fazem neste caminho? Falem! Ou eu os transformarei em ratinhos ligeiros e mandarei sua própria coruja comê-los!

 

Tim suspirou. Será que não dava para se mexer sem ser ameaçado? Será que todos os habitantes do Mundo das Fadas estavam atrás dele? Aquele lugar parecia ainda mais perigoso do que o mundo dele, onde todos aqueles praticantes de magia queriam matá-lo. Esse último, pelo menos, seria um destino simples. Ali, quem podia saber o que teria acontecido? Narigudo queria que ele fosse seu criado durante setenta anos. O vendedor do “desejo do fundo do coração” queria os seus dedos ou a cor de seus olhos. Baba Yaga queria cozinhá-lo. Provavelmente, naquele mundo havia o mesmo número de destinos que a quantidade de criaturas que existia para inventá-los. As mãos de Tim se fecharam em punhos e todo o seu corpo ficou tenso. Mas não de medo. Não dessa vez.

Rosa colocou a mão no braço dele. Deve ter pressentido sua decepção.

— Minha senhora — dirigiu-se à mulher verde. — Somos viajantes. E é mister que sigamos este caminho a qualquer lugar que ele nos leve.

“É mister?” Tim apertou os olhos e observou Rosa. Ela tinha começado a falar toda empolada. Deu de ombros. Devia ser assim que gostavam de falar no Mundo das Fadas. Bem chique.

— Quem cavalga o vento deve ir aonde seu corcel conduz — respondeu a mulher sobre o cavalo.

— Quem segue o caminho das estrelas deve caminhar em silêncio — devolveu Rosa.

Tim ficou só olhando, boquiaberto. Que diabo estava acontecendo? Será que estavam conversando em código?

— Percebo — disse a mulher no cavalo. — Já nos encontramos antes, não é mesmo?

— Sim, minha senhora — respondeu Rosa. “Então elas estão mesmo falando em código”, pensou Tim. “É algum tipo de senha mágica.”

— Da última vez que nos encontramos, a senhora tinha pele de homem — disse a dama a cavalo. — E observava o mundo através de olhos masculinos.

— Sim, minha senhora.

— Ah.

Tim achou que tinham sido aprovados no teste, e que a dama parecia simpatizar com as duas versões de Rosa, porque estava sorrindo.

— A senhora poderia me apresentar a seu companheiro?

— Como quiser, minha senhora. Este rapaz se chama Timothy Hunter. Timothy, esta dama é a Rainha deste reino.

Tim ficou olhando impressionado para a dama verde. Então, lembrando-se das boas maneiras, colocou-se sobre um joelho na frente do cavalo.

— Encantado em conhecê-la, humm, vossa Majestade. — É assim que se deve falar com a realeza, não é? Nunca achou que conheceria uma rainha fora da Grã-Bretanha! Muito menos uma linda rainha verde.

— Pode me chamar de Titânia — disse a dama. Ela o examinou por um instante. — Estou vendo que você já sofreu provações em minhas terras, menino.

“Será que dá pra perceber?”, Tim ficou pensando. Passou os dedos pelo cabelo escuro, tentando fazer com que ficasse assentado. Torceu para que não estivesse todo sujo e desgrenhado. Depois de ficar pendurado de cabeça para baixo na cabana de Baba Yaga e de ter caído de cara no chão, era bem provável que sim.

— Permita-me que eu lhe assegure que nem tudo por aqui é cercado de dificuldades. Há uma abundância de alegrias neste lugar.

— Claro que sim, vossa Majestade — Tim assentiu com a cabeça.

A dama sorriu para ele, e Tim sentiu-se atravessado por uma onda de calor. Os olhos dela pareciam mudar de cor, e a pele verde cintilava como se estivesse coberta de purpurina. Ele achou que nunca tinha visto uma mulher mais bonita que ela em toda sua vida.

— Vocês vieram aqui à minha procura — afirmou Titânia.

Tim reparou que a voz dela tinha uma certa entonação, algo entre cantar e falar.

— Viemos? — perguntou Tim. — Achei que só estávamos seguindo o caminho.

— Este é o meu reino, e todas os caminhos são meus caminhos.

O cavalo bufava impaciente, e a mulher deu alguns tapinhas carinhosos nele e balbuciou algumas palavras que Tim não conseguiu entender. O cavalo se acalmou.

— O que a senhora quer que eu conte para ele, Rosa Spiritus?

— A tarefa de apresentar a Tim às esferas além dos domínios mortais me foi designada.

— E a senhora mostrou a ele o Mundo das Fadas? — a Rainha parecia lisonjeada. — Que bom. Vamos ao meu palácio.

— É muito longe? — perguntou Tim. Ele não queria parecer sem educação, mas estava cansado de tanto caminhar. Os pés dele doíam, e ele estava todo cheio de marcas roxas por ter sido jogado de um lado para outro na casa de Baba Yaga. Ser amarrado e pendurado de cabeça para baixo podia mesmo deixar um cara cansado. Um cochilo cairia bem.

— É tão próximo quanto a lua cheia no céu da noite — disse a Rainha. — Tão distante quando um sonho depois de acordar. Está perto como um arco-íris, e é tão remoto que é possível caminhar para sempre e nunca alcançá-lo. É muito longe? Não, Timothy, não é muito longe.

Já estavam lá. Simples e espantosamente, já estavam lá. Tim olhou para Titânia montada em seu cavalo, surpreso. Como é que ela tinha feito aquilo? Como é que aquilo tinha acontecido? Para ele, nem parecia que tinham se movido.

— Bem-vindo ao meu lar — disse Titânia, fazendo um gesto para o castelo cintilante à frente deles.

Tim reparou nas torres altas, que brilhavam como estalagmites de gelo sob o sol. Tinha a impressão de já ter visto em algum lugar tudo que via no Mundo das Fadas. E então percebeu por quê. A arquitetura, as roupas, até mesmo a linguagem, tudo fazia com que pensasse no passado. O passado em que Merlin, o grande mago, tinha vivido. O passado que ele tinha estudado na escola. O tempo em que havia reis e rainhas, cortes e cortesãos e donzelas em perigo. A diferença era que os moradores daquele lugar formavam uma mistura curiosa, que ia desde o quase humano até o totalmente irreconhecível.

Um pajem amarelo de nariz arrebitado e tufos de cabelo roxo por cima de orelhas roxas apareceu. Estendeu a mão e ajudou Titânia a descer da montaria. Então pegou o cavalo pelas rédeas e o levou embora.

— Gostaria de lhe mostrar meus campos — convidou Titânia, sorridente. Agora que estava parada ao lado de Tim, ele pôde ver que ela era alta e flexível. Era até mais alta que Rosa. Seu esvoaçante vestido bordo tocava levemente a grama e flutuava graciosamente em torno de sua silhueta esguia conforme ela se movimentava. Seu cabelo comprido e verde ia até o meio das costas e, a cada passo que dava, sininhos tilintavam pendurados em fitas que pendiam de suas tranças brilhantes.

— Por favor, faça isso — disse Tim. — Parece bem divertido.

Rosa e Tim atravessaram o pórtico de azulejos na frente do castelo ao lado de Titânia. Um muro baixo separava o pátio da frente da entrada principal, que tinha um caminho de mosaico conduzindo até a porta do castelo. Em cada um dos lados, lagos brilhantes e azuis refletiam o céu sem nuvens. Ioiô voava de um lado para outro, primeiro na frente deles, depois sobrevoando os lagos ao lado da construção, e depois fazendo círculos sobre deles.

Dando a volta no castelo, passaram por jardins formais, rodeados de portões ornamentados, e então o terreno se transformou em uma pradaria verdejante. Lá na frente, Tim viu um grupo de cavaleiros e o que parecia ser um piquenique à sombra de árvores enormes e cheias de folhas.

— Ah! — exclamou Titânia. — Meu marido ainda não foi embora. Vocês devem ser apresentados a ele.

Tim engoliu em seco. O marido de Titânia? Se ela era rainha, isso significava que o marido dela era...

Estava prestes a conhecer um rei! Ficou torcendo para não dizer nada errado. Nem estúpido.

Titânia, Rosa e Tim alcançaram o grupo que fazia piquenique embaixo da árvore. Era um conjunto de criaturas que Titânia chamou de espirituais e esvoaçantes. Pelo que Tim entendeu, os esvoaçantes eram as criaturinhas diminutas que o fizeram lembrar de fadas de livros de contos de fadas: umas coisinhas bonitinhas com asas. Os espirituais eram quase gente normal, caso todas as pessoas fossem lindas e viessem em versões de todas as cores.

Um dos espirituais tinha um alaúde e divertia os outros. Parou de cantar quando Titânia se aproximou, e vários dos esvoaçantes deram risadinhas. Estavam com a mesma cara que Tim e Molly faziam quando estavam prestes a ser apanhados desenhando caricaturas horrorosas dos professores. Os olhos de Tim se voltaram para Titânia. Ficou com a impressão de que o espiritual estava inventando músicas grosseiras a respeito dela.

Titânia agiu como se não tivesse percebido nada.

— Que lindo dia — cumprimentou o grupo.

— Sim, Majestade — respondeu o cantor.

Várias pessoas no grupo rapidamente se levantaram e se curvaram.

Titânia sacudiu a mão.

— Não é necessário. Podem ficar à vontade. Só estou de passagem.

Titânia se afastou do grupo e ficou observando os cavaleiros. Parecia estar esperando que eles notassem sua presença.

Tim observou, fascinado, quando a rainha toda pomposa começou a se portar como uma adolescente ignorada em um baile. Ficou mexendo no cabelo. Revirou os olhos e bateu o pé no chão. Arranjou as pregas do vestido várias vezes. Cruzou os braços sobre o peito e fez biquinho.

Finalmente, um homem sobre um enorme cavalo branco veio trotando na direção deles. Tim não conseguiu evitar, ficou olhando para ele fixamente. O homem não só era azul como também tinha o que parecia chifres recurvados de carneiro na cabeça.

— O que a traz aqui, Titânia? — cumprimentou, fazendo com que o cavalo parasse.

— Meu marido — respondeu a rainha, com ar entediado e despreocupado.

Tim sorriu. Que representação.

O homem azul reparou na presença de Rosa e Tim.

— Vejo que traz convidados.

— Ah, sim. Rosa Spiritus, Timothy Hunter, este aqui é o meu marido, o Rei Auberon.

— Vossa Majestade — disse Rosa, fazendo uma mesura com a cabeça.

Tim aproveitou a deixa de Rosa. Não era necessário se ajoelhar na frente dele.

— Muito prazer em conhecê-lo, senhor — disse Tim, enterrando o queixo no peito.

— Será que o senhor poderia se juntar a nós para que conversemos mais à beira do lago dos fundos? — perguntou Titânia.

— Estou saindo para caçar — disse Auberon.

— De novo?

Os dentes de Auberon se apertaram.

— Eu me regalo na companhia de meus amigos. Eles me tratam com ternura e respeito.

— E eu não?

Oh-oh. Aquilo parecia, para Tim, uma briga doméstica. Notou que os espirituais e os esvoaçantes se mantinham à distância.

— A senhora foi convidada — disse Auberon.

— Só porque o senhor sabia que eu não me juntaria ao seu grupo.

— Se lhe agrada distrair esses hóspedes, faça isso. Eu tenho outros planos.

Com isso, Auberon fez o cavalo virar e voltou à companhia de seus amigos. Saíram trotando, na direção da floresta, com cães de caça latindo logo atrás deles.

Os olhos de Titânia se apertaram enquanto ela os observava. Então, deu meia-volta.

— Voltemos ao castelo. Agora.

“Brigar com o marido com certeza a faz ficar apressada”, Tim observou, esforçando-se para acompanhar a contrariada Rainha do Mundo das Fadas. As pernas de Rosa eram mais compridas do que as de Tim, de modo que para ela era mais fácil manter o ritmo. Quando chegaram ao grande pátio azulejado nos fundos do castelo, Tim ofegava.

— Por favor, acomodem-se — instruiu Titânia.

Tim se jogou em um sofá próximo, desajeitado, com vontade de ter alguma coisa para dizer. Olhou para cima e viu um pássaro que os sobrevoava.

— Olhe! — disse, apontando para o pássaro. — Lá está a minha coruja. Ioiô. Bem que eu estava me perguntando onde é que ele tinha se metido!

— Aquele pássaro não pertence a você — corrigiu Titânia, rispidamente.

Tim, Rosa e Titânia ficaram observando o pássaro, que vinha rodopiando na direção deles. Titânia estava certa, o pássaro não era Ioiô. Era bem maior, bem mais forte.

— Que lindo falcão — comentou Rosa.

— Sim — concordou Titânia, com um sorriso se espalhando por seu rosto lentamente. — Ele é lindo mesmo.

O falcão estava traçando círculos em cima deles. A expressão de Titânia mudou. Ela olhou para o pássaro.

— Agora não — disse, brava.

Instantaneamente, o falcão se afastou. “Se ela usasse esse tom comigo”, Tim pensou, “eu também me afastaria”. Deu uma olhadela disfarçada em Titânia. Ela pode ser bonita, mas é bem temperamental.

A rainha tinha se acomodado em um divã, ajeitando o vestido de um jeito bem bonito em volta de si. Passou os dedos pelo cabelo, fazendo com que os sininhos tilintassem. Sorriu para Tim, um sorriso bem aberto e radiante.

— Você tem visitado vários mundos, menino — começou Titânia. — Você sabia que existem muitos reinos que podem ser acessados do seu mundo, assim como do meu?

— É mesmo? — perguntou Tim. — Quantos?

— Um número infinito. Estão apenas esperando para serem abertos. — Esticou a mão. Uma chave grossa, que parecia muito antiga, brilhava entre seus dedos. — Aqui está a chave. Use-a como quiser. É um presente meu para você.

Ela jogou a chave para Tim, que a pegou com facilidade.

— Não! — Rosa se engasgou.

 

— Eu fiz alguma coisa errada? — Tim perguntou a Rosa. Ele sentia a chave quente e pesada na mão. Ficava muito bem acomodada ali, como se aquele fosse seu lugar. Por que Rosa estava tão perturbada, então? — Eu fiz alguma coisa errada? — repetiu.

Rosa tinha fechado os olhos e escondia o rosto com as mãos.

— Não — Titânia respondeu no lugar de Rosa. — Não, você não fez nada de errado.

“Ela é tão bonita”, Tim pensou, olhando para a Rainha. “Como é que alguém verde pode ser tão bonita?”

Titânia foi até uma mesinha e tocou um sininho. Instantaneamente, um servente entrou no pátio.

— Hamnett, dois cordiais de morango — ordenou Titânia. — Um para mim e um para o meu convidado, Timothy.

— Ah, para mim, não — Tim se apressou em dizer.

Titânia sorriu.

— Ah, então você conhece as regras do Mundo das Fadas. Bom, então um só. Para mim.

O servente saiu, e Titânia ficou com os olhos grandes e mutantes colados em Tim.

— Está interessado em conhecer outros reinos?

Tim deu de ombros.

— Claro, eles são bem legais. — Ele gostou da maneira despreocupada como a resposta soou.

Tipo John Constantine.

— É possível acessar um número infinito deles a partir do Mundo das Fadas — explicou Titânia.

— É mesmo? — surpreendeu-se Tim. — A gente tem que passar por uma cerquinha no meio de um descampado?

— Não, menino, precisa entrar por uma porta. Usando uma chave. — Titânia fez um sinal com a cabeça para a chave que Tim segurava na mão. — Venha.

Ela se levantou e conduziu Tim e Rosa pela parte de trás do castelo, até uma fileira de portas gigantescas que parecia se estender até o horizonte. Entre as portas, havia mais daqueles sofás baixinhos que estavam espalhados por todo o pátio. Titânia se acomodou sobre um deles. Rosa continuou em pé.

— Todas estas portas levam a mundos? — perguntou Tim, com a voz se transformando em um sussurro.

— Sim, para alguém que é capaz de abri-las.

Tim virou-se para olhar para Rosa. Ela assentiu de leve com a cabeça, e ele deu um passo à frente, atraído por uma porta dourada brilhante. Enfiou a chave na fechadura. A porta abriu.

Tim ficou parado no limiar do novo mundo. Olhava para um lugar escuro, primitivo, quente e úmido. Detectou grasnados de pássaros e urros de criaturas que não conseguia identificar. Ouviu a voz de Rosa atrás de si.

— Isto é Skartaris — informou. — Neste mundo, o tempo se deforma e se retorce sobre si mesmo. Dinossauros vagam pela terra ao mesmo tempo que aviões voam no céu.

“Que estranho...” Tim deu um passo atrás e fechou a porta. Aproximou-se da porta seguinte.

— Esta chave serve para todas? — perguntou.

— Serve, se você tiver o poder para abri-las — Titânia respondeu.

“Será que eu tenho?” Tim ficou se perguntando. Enfiou a chave na fechadura seguinte. Girou. De repente percebeu (apesar de não saber como tinha sido capaz de perceber aquilo) que seria capaz de abrir toda a fileira de portas. E também as portas para mundos adicionais dentro delas. Ele tinha aquele tipo de poder. Tirou a chave mais uma vez e ficou olhando para ela.

— É hora de irmos embora — avisou Rosa, colocando a mão no ombro de Tim.

Tim virou-se para trás e ele ficou olhando para ela.

— Tão cedo?

Ele queria explorar mais mundos, dar uma olhada no que tinha no palácio, como era a vida da Rainha do Mundo das Fadas, e o que mais tinha para ver ali.

Titânia parecia contente. Esticou-se sobre o sofá de veludo baixinho. Tim achou que ela estava parecida com um gato fazendo uma pausa antes de atacar. E não é que ela tinha ameaçado transformá-los em ratos quando se encontraram? Sentiu-se estranhamente nervoso.

— O Tim ainda precisa percorrer um longo caminho antes que sua jornada chegue ao fim — disse Rosa. — Agradecemos por sua hospitalidade, mas precisamos voltar a nosso mundo.

— É mesmo? — Titânia recostou-se no sofá. — Tim foi avisado a respeito das regras do Mundo das Fadas, não foi?

O olhar de Tim se alternava entre uma mulher e a outra. Uma era a rainha de um mundo alternativo de criaturas feéricas. A outra, uma mulher que também era homem. As duas pareciam muito poderosas, fortes. E em lados opostos em uma discussão que ele não compreendia muito bem.

Titânia apontou para Tim.

— Ali. Na mão dele. Um presente do Mundo das Fadas. Ele aceitou, não aceitou?

Ela ficou em pé e caminhou na direção de Tim, definitivamente com aquele jeito de gato.

— Timothy, menino — disse em falsete, com a mão acariciando seu rosto de leve. — Você quer ficar comigo? Você será meu pajem e servente aqui na terra do crepúsculo de verão, onde não existe velhice nem morte. — Ergueu o queixo dele, de um modo que Tim pudesse olhar diretamente nos olhos dela.

Pareciam ir mudando de cor enquanto ele olhava. O toque dela era como o de uma borboleta, intermitente. A voz dela era como o incenso do apartamento escuro de Madame Xanadu, envolvendo-o todo, insinuando-se para ele. Aquilo só tinha acontecido um dia antes? Ou será que fazia mais tempo? “Seria legal ficar no mesmo lugar um tempinho”, pensou.

— Você ainda não viu nem uma fração das maravilhas deste mundo, Tim. Você não experimentou nossas frutas, não bebeu nosso vinho, nem dançou para regozijar a alma durante nossos folguedos.

Será que ela estava usando perfume? Tim não tinha percebido antes, mas agora tinha a impressão inconfundível de que dela emanava um cheiro intoxicante... de flores e brisas de primavera.

Os dedos dela largaram o queixo dele e percorreram seu braço. Ela segurou de levinho na mão dele.

— Fique. Seja meu pajem. Posso ensinar-lhe muito. “O que aconteceu com todos os pássaros?”, Tim se perguntou. Apenas alguns minutos atrás, o ar estava cheio de barulhos de pássaros piando, de insetos cricrilando, de espirituais rindo e de todos os tipos de fadas cantando. Agora parecia que ele estava em um vácuo de silêncio. O que foi mesmo que ela tinha perguntado? Ah, sim. Ela queria que ele ficasse lá e fosse “pajem” dela. “Esta é uma outra palavra para empregado, não é?”

Tim tossiu. O perfume dela então pareceu forte demais. Talvez fosse alérgico. Só sabia que era muito doce, enjoativo.

— Obrigado por sua oferta tão gentil, vossa Majestade — disse com a maior educação possível. — Mas eu quero ir para casa. Não quero ficar aqui para sempre. — Molly nunca o perdoaria se ele sumisse sem se despedir. “Ela ia ficar com saudade de mim”, pensou. “E eu ficaria com saudade dela.”

A rainha Titânia deixou a mão cair. Tim ficou aliviado ao ver que ela não parecia brava nem decepcionada. A moça verde deu um passo atrás.

— Não estou lhe oferecendo escolha, Timothy — ela disse, simplesmente. — Você aceitou um presente meu. Uma chave de prata. Uma chave que abre mundos.

Tim olhou para a chave em suas mãos, e a verdade o atingiu com força. “Ela me enganou. Eu não aceitei, ela simplesmente jogou na minha direção. Ele largou a chave no chão.”

A expressão de Titânia não se alterou.

— Você, por sua vez, agora me deve um presente. De valor e significado igual. Caso contrário, serei forçada a mantê-lo por aqui.

— Quero ir para casa — insistiu Tim. — Meu pai precisa de mim. E a Molly. Quer dizer, eu não sou nada especial. Quero ir para casa.

— Tarde demais — disse Titânia. — Fique aqui por livre escolha ou fique aqui contra sua vontade. Ou me dê um presente tão precioso quanto a chave que abre mundos.

— Por que você foi me dar uma coisa tão valiosa?

Titânia não respondeu, só ficou esperando a resposta dele.

— Peço mil desculpas, Timothy — disse Rosa. Ela se colocou atrás de Tim e apoiou as mãos em seus ombros. — Gostaria que você tivesse prestado atenção ao meu aviso. Mas não se desespere.

Tim suspirou de alívio. Claro, Rosa o tiraria dessa.

— Eu volto com os outros três — prometeu. — Nós o libertaremos de alguma maneira, mesmo se precisarmos aniquilar todo o Mundo das Fadas para fazê-lo.

Tim olhou de relance para Titânia. Ela parecia não ter registrado a ameaça. Ele esticou o pescoço, olhou para Rosa, e compreendeu o que aquilo significava.

— Você está dizendo que não vai detê-la?

— Não posso — respondeu Rosa. Mas você está sob nossa responsabilidade e faremos tudo que for possível.

— Mas...

— Regras são regras, tanto aqui como em qualquer outro lugar. Você tem o presente dela em seu poder.

Tim se abaixou e pegou a chave do chão. Estendeu para Titânia.

— Aqui está. Eu não quero, mesmo.

Titânia sacudiu a cabeça, os sininhos pendurados tilintaram.

— Uma vez que um presente é dado, não pode ser devolvido.

— Não vou ficar aqui! — gritou Tim. — Isto é ridículo. Eu sou humano! Não pertenço a este lugar.

— Então, o que é que você vai me dar em troca? — perguntou Titânia. — Sabe, eu sou razoável. Se você tiver alguma coisa para trocar, eu aceito.

Tim puxou pela memória, mas sabia que não conseguiria nenhuma resposta.

— Não tenho nada de especial. Até aquele negócio que peguei na feira era bem normal. Foi o que aquele tal de Glory disse.

— O que foi que você pegou na feira? — perguntou Titânia.

— Um ovo comum. — respondeu Tim, tirando o objeto do bolso. Ficou surpreso ao ver que não tinha se quebrado durante todas as suas aventuras. — Foi assim que ele disse.

O ovo brilhava na mão dele. Fagulhas rodopiavam lá dentro, como as constelações que ele tinha visto com o Estranho.

— Um Ovo Mundano! — Titânia se engasgou.

Tim ergueu os olhos.

— Foi isso que eu quis dizer. Normal. Chato. Mundano. Fui bem na prova de sinônimos. Eu sabia que era uma dessas palavras.

— Não, Timothy — corrigiu Rosa, com delicadeza. Não tem nada a ver com nenhuma dessas palavras. Não neste contexto.

— Por quê? O que ele tem de tão especial?

— Dentro desse ovo, está uma parte da criação que ainda não nasceu — explicou Rosa. — Um dia, o ovo vai chocar, e um mundo novinho em folha vai surgir dele. Todos os mundos saem de um Ovo Mundano. E eles são muito valiosos. Seu valor é quase incalculável.

Tim ficou olhando para o ovo que tinha na mão. Estava segurando um universo inteiro?

— Vossa Majestade — Rosa se dirigiu a Titânia. — Peço que nos dê a honra de aceitar o presente de Timothy.

Tim estendeu o ovo para Titânia.

— Por favor?

— Não tenho escolha. Regras são regras — a rainha retirou o ovo da mão de Tim com cuidado. — Estranho. Eu achava que o último Ovo Mundano já tinha chocado fazia muito tempo.

— Então a senhora aceita?

— Muito bem — respondeu Titânia, sem tirar os olhos do ovo. — Podem ir... os dois.

Rosa pegou Tim pelo braço e eles saíram do palácio. Do lado de fora, encontraram o caminho e prosseguiram, com Ioiô sobrevoando a cabeça deles de novo.

Titânia ficou observando o grupo que ia desaparecendo no bosque. O falcão reapareceu lá em cima. Desceu voando em círculos para pousar na cerca próxima a Titânia. Em segundos, o pássaro forte se transformou em um homem. O cabelo comprido e liso era um pouco mais claro que o de Tim, e seu rosto era anguloso e magro.

Titânia virou-se para ele.

— Você estava certo a respeito do menino, Tamlin — disse Titânia, pensativa. — Ele é especial. Precisamos vigiá-lo.

 

Tim acordou em um campo, com o capim fazendo cócegas em seu rosto.

— O-o quê? — sentou-se e olhou em volta. Estava deitado ao lado do portão que usaram para entrar no Mundo das Fadas. Rosa estava parada ao lado dele, transformada de novo em Dr. Oculto, de sobretudo, chapéu e tudo o mais.

— Voltamos — disse Tim.

— É isso mesmo.

Tim olhou para Dr. Oculto cheio de suspeita.

— Não estamos em nenhum lugar esquisito, estamos? Em algum universo alternativo ou qualquer coisa assim?

Dr. Oculto parecia cansado.

— Não, acabou. Pelo menos esta parte da jornada. Tim olhou para a mão. Ainda estava segurando a chave.

— O que eu faço com isto? — perguntou.

— É sua — disse Dr. Oculto. — Afinal, foi uma troca justa. Fique com ela. Talvez você ache uma porta em que a chave se encaixe.

Tim se levantou e se espreguiçou. Ioiô estava empoleirado sobre um dos postes do portão, olhando para ele.

— Vamos? — disse para o pássaro. Ioiô voou até o ombro dele. Atravessaram o riacho e Tim achou o lugar onde tinha enterrado as moedas e a chave de casa. Depois de recuperá-las, dirigiram-se para o horizonte, onde o sol se erguia.

— Bom, terminou — disse Tim, com um bocejo.

— Esta parte da viagem, sim.

— Então só falta mais uma jornada. Só mais um guia. O cara cego... Mister Io.

— É isso mesmo.

— Então, para onde vamos agora?

— Amanhã.

— A gente sai amanhã?

— Não, Timothy — Dr. Oculto respondeu. — Não é quando você vai. É aonde você vai.

 

John Constantine estava apoiado na parede e olhava a chuva. Ele e Mister Io tinham buscado abrigo em um vão de porta escuro. O Estranho parecia não se incomodar com o clima e continuava sua caminhada lenta pela calçada.

— Uma vez eu ouvi uma piada a seu respeito, Io — disse Constantine.

— Uma piada?

— Acho que era piada. Um cara que conheci num bar em Katmandu disse que você sempre andava com um bolso cheio de estacas para o caso de topar com algum vampiro, e um revólver carregado com balas de prata caso encontre um lobisomem.

Sem dizer uma palavra, Mister Io tirou uma estaca de madeira pontuda de algum bolso interno do sobretudo.

Involuntariamente, Constantine deu um passo atrás.

— Caramba — exclamou. — Imagino que você crave primeiro e pergunte depois.

— Vampiro bom é vampiro morto, Constantine.

— Detesto ter que discutir detalhes, mas eles não estão todos mortos por definição?

— Tolo. — Mister Io guardou a estaca de novo no casaco.

— Você precisa tomar cuidado, sabe — avisou Constantine. — Um dia, os bichos-papões vão sair do armário e começar a desfilar pela avenida principal. Eles vão exigir direitos iguais e vão querer sua cabeça em uma bandeja, por ser seu pior opressor.

— Isso era pra ser engraçado? — respondeu Mister Io, rispidamente.

— Se você tiver sorte. — John estendeu um maço de cigarros na direção do cego. — Você fuma?

— Diferentemente de você, eu não profano o templo do meu corpo.

— Provavelmente você também baniu a cafeína — resmungou Constantine. — E os doces.

— Fiquem quietos — interrompeu o Estranho. — Eles estão voltando...

Tim avistou Constantine na hora, com a cabeça loira desprotegida da chuva. Os outros dois pareciam se misturar melhor às sombras.

— Fala, Tim! — John o cumprimentou. — Como estava o Reino das Fadas?

— Não sei se me lembro direito — admitiu Tim —, está tudo um pouco confuso, como se fosse um sonho. Eu até me lembro um pouco, mas acho que não posso falar sobre isso. Pelo menos não de um jeito que faça sentido.

— Você está com fome? — perguntou o Estranho. — Precisa descansar? Ou está pronto para a sua jornada final?

— Não sei. Acho que sim. Acho que estou pronto. — Tim não tinha se sentido preparado para nenhuma de suas aventuras anteriores, e perguntou a si mesmo como podia estar se sentindo mais disposto para a próxima. Fez um sinal com a cabeça na direção de Mister Io, que estava parado em silêncio no vão da porta. — Acho que ele vai ser meu guia.

— É. — Mister Io assentiu com a cabeça. — Eu também estou pronto.

— Certo, Ioiô — disse Tim para a coruja. — Está pronto para ir para o amanhã?

— Não — ordenou Mister Io. — A coruja é um pássaro da escuridão e da noite. Ela fica aqui.

“Esse fulano é careta mesmo”, Tim pensou. Mas percebeu que provavelmente havia outras regras no lugar para onde iam, e Mister Io devia conhecê-las melhor do que ele.

— Tim? — disse Dr. Oculto.

Tim suspirou. Ele bem que ia gostar de ter Ioiô como companhia.

— Tudo bem, então você fica aqui — disse ao pássaro. Olhou para Dr. Oculto. — Você vai tomar conta dele, certo?

Dr. Oculto assentiu.

Todo mundo parecia bem mais sério dessa vez. Tim ficou nervoso. “Talvez seja porque esta é a última chance que eles têm de me mostrar as coisas”, Tim disse a si mesmo, “e, se eu não aprender tudo agora, nunca mais”. Imaginou que os outros também deviam estar se sentindo pressionados.

— Segure no meu braço — disse Mister Io.

— Achei que você era... bom, cego — disse Tim —, e seria você que ia querer segurar no meu braço.

— No lugar aonde vamos, é você que vai caminhar às cegas. Eu conheço o caminho. Agora feche os olhos.

Tim apertou os olhos bem fechados.

— Dê um passo à frente, menino — instruiu Mister Io.

— É só andar?

— Isso, e fique com os olhos bem fechados enquanto caminha, até que eu mande parar e abrir.

— Para onde vamos? Você vai me mostrar o futuro?

— Possivelmente, menino. Continue andando.

Tim ia colocando um pé na frente do outro, consciente da presença de Mister Io ao seu lado. Não sentiu nada. Nada daquele calafrio que lhe apertara o estômago quando fora levado para o passado com o Estranho. Nada da viagem instantânea e desorientadora que experimentara com John Constantine. Nada da estranheza de quando atravessara o portão com Dr. Oculto. Dessa vez, ele simplesmente ia colocando um pé na frente do outro, às cegas.

Cego. Tim ficou imaginando se era assim que Mister Io se sentia o tempo todo. Ele não tinha como saber o que se encontrava à frente, atrás ou em torno dele. Estava vulnerável. Tremia. E não estava gostando da sensação.

— Avançamos quinze anos no seu futuro — informou Mister Io. — Ou de um dos seus futuros. Pode abrir os olhos.

“Simples assim?” Os olhos de Tim se abriram de uma vez.

— O que você quer dizer com “um dos meus futuros”? — perguntou a Mister Io.

— Existem pouquíssimos futuros estáveis, menino.

Tim olhou em volta... e no mesmo instante quis fechar os olhos de novo. Estavam na cena de alguma espécie de crime ou massacre. Havia corpos, sangue e gritos por todos os lados. Engraçado, ele não tinha ouvido nada antes de abrir os olhos. Talvez, se os fechasse de novo, os urros, os gemidos e os gritos cessassem. Mas não. Tim estremeceu, fechando os olhos e abrindo de novo. “Isso não ajuda nada. Nada mesmo.”

— O futuro é uma série de possibilidades infinitamente ramificadas — disse Mister Io, como se estivesse completamente alheio à destruição e à carnificina em volta deles. Arrastou Tim para a frente, mais para o meio da cena. — Quando o percorremos, pegamos os caminhos mais prováveis, os que têm mais possibilidade de acontecer.

Então... então é bem provável que eu vá terminar aqui neste lugar horroroso? — perguntou Tim, percorrendo os olhos pela cena.

Um armazém abandonado, ruas escuras, lixo, corpos. Mais corpos. Mais sangue.

— Mas a gente não está viajando para o futuro de verdade, está? — perguntou Tim. — Isto aqui é como quando eu fui para o passado, certo? Só estamos observando, não pode acontecer nada com a gente aqui. As pessoas não são capazes de ver a gente.

— Não. Estamos no futuro verdadeiro. Em um deles.

Tinham dobrado uma esquina. Tim se abaixou quando um relâmpago veio na direção de sua cabeça. Jogou-se no chão. Bem abaixado, deu uma espiada de sua posição no solo. Um par de criaturas lutava no céu com relâmpagos. Uma delas se parecia com a criatura esquisita, meio homem meio lobo, que tinha visto na casa noturna com Zatanna. A outra era uma espécie de monstro com garras e cauda destruidora.

Então um grupo de criaturas diferentes, maiores, apareceu no campo de visão e derrubou as duas primeiras. Eram corpulentas, não tinham cabelo e usavam algo parecido com uniformes. Tim ouvia urros estridentes por todos os lados.

— O que está acontecendo?

— Estamos no meio do conflito final da magia desta época. Você está assistindo à derradeira batalha, menino. Daqui a quinze anos no seu futuro, eles vão brigar.

Então o coração de Tim se apertou dentro do peito. Reconheceu a mulher parada ao lado de um poste.

— Aquela é a Zatanna! — gritou. Ela jogou o peso do corpo no poste e caiu de joelhos. A luz iluminava suas feridas. Estava sangrando. — Ela está ferida! — Ele se colocou em pé. — Precisamos fazer alguma coisa!

— Por que devemos fazer alguma coisa? — perguntou Mister Io, agarrando o braço de Tim e o detendo. — Este mundo é uma possibilidade. Você não entende? Ainda não aconteceu. Pode ser que não aconteça. Ou pelo menos que não seja assim.

Mister Io, ainda segurando o braço de Tim, arrastou-o para mais longe. Dobrando a esquina, Tim teve outra visão pavorosa. John Constantine, também sangrando, estava jogado no chão, perto de uma porta.

— John! — gritou. Livrou-se de Mister Io e foi correndo na direção do amigo.

Não se importava em desrespeitar as regras. Tinha que ajudar Constantine. John parecia ainda pior de perto. Tim ajoelhou-se a seu lado.

— Mais fantasmas? — balbuciou John.

— Mais ou menos — respondeu Tim. Olhou para trás e viu que Mister Io estava parado a alguns metros de distância dele. — Viemos do passado. Você consegue nos ver?

— Não sei. Acho que posso estar delirando. — Os olhos de John começaram a se focar no rosto de Tim. Sacudiu a cabeça como se estivesse tentando clarear as idéias, e então recomeçou. — Tim — murmurou. E então, mais alto: — Timothy Hunter?

— Isso! — Tim ficou aliviado por John reconhecê-lo.

— Seu pequeno canalha. Eu devia ter estrangulado você com as minhas próprias mãos há quinze anos. Ou deixar que o matassem. Teria nos poupado muito desgosto. O Io é que estava certo. E eu achando que você era um garoto tão legal.

Tim se afastou, apoiando-se nos calcanhares. Estupefato. Era como se John tivesse lhe dado um tapa na cara.

— D-d-do que é que você está falando, John? Nós somos amigos.

— Do que é que eu estou falando? Você está vendo aquele ali? Lá em cima? O líder da oposição?

John apontou um dedo trêmulo na direção do telhado de um prédio em ruínas. Um homem alto e imponente estava em pé no topo, soltando raios letais pela palma das mãos. Estava rodeado do que parecia ser demônios. O que quer que fossem, Tim sabia que não eram humanos e cheiravam a maldade. Dava para sentir o cheiro de longe.

— O cara de terno azul? — perguntou Tim. Não conseguia entender como aquelas coisas podiam explicar por que John passara a odiá-lo. — Foi ele quem fez isso com você?

— É você, Tim — John disse. — Foi isso que você virou.

— Não! — Tim engoliu em seco. Segurou a gola do sobretudo de John, abrindo e fechando os dedos freneticamente. — Não é verdade. Isso não vai acontecer.

— Desculpa, garoto. Já aconteceu. Ah, sim... e a sua amiguinha Molly. Você a trata que nem lixo. Uma desgraça. Eu devia ter impedido isso também.

— Não — gemeu Tim. Debruçou-se em cima de John, com a testa encostada no peito do homem. Segurou-se para não chorar, não vomitar. — Não pode ser. Não vai ser.

— Ei, garoto — disse John.

Tim se levantou. John parecia ainda mais pálido.

— Será que você... será que você poderia acender o meu cigarro, garoto? O isqueiro está ali no chão. Eu não consigo me mexer para alcançar.

Tim estava detestando ver um homem tão orgulhoso e livre como Constantine naquele estado. Engatinhou até o isqueiro, pegou e se arrastou de volta. Acendeu o cigarro de John sem nem mesmo repreendê-lo por fumar.

— Obrigado, garoto — agradeceu John.

E então a luz desapareceu de seus olhos azuis.

Tim cambaleou para trás, horrorizado. Bateu em Mister Io e virou o corpo.

— É verdade? Aquele ali sou eu?

— É.

Tim se afastou de Mister Io e saiu correndo pelo beco, para longe de John, de Zatanna e do que John tinha lhe contado a respeito de Molly. Mas era um beco sem saída. Deu de cara com uma parede de tijolos coberta de pichações, e compreendeu que a única maneira de fugir daquele pesadelo era na companhia de Mister Io. Ele nunca chegaria em casa sozinho, e isso significaria que ele nunca seria capaz de impedir que aquele futuro horroroso acontecesse.

Mister Io aproximou-se de Tim lenta e calmamente, como se tivessem todo o tempo do mundo.

— Mas este não é o único futuro. Existem outros em que você é o Mago Supremo. O Guardião da Luz. E há uma infinidade de opções. Em algumas delas, você não tem o menor envolvimento nessa batalha. Para falar a verdade, existem futuros em que essa batalha nem acontece.

Tim ficou olhando para Mister Io.

— Não estou entendendo. Então este aqui é mais provável do que os outros?

Um sorriso desagradável cruzou o rosto de Mister Io.

— Não.

— Então por que você me trouxe aqui? Você só está tentando me perturbar?

— Achei que você deveria ver essa cena. Só isso.

Tim mordeu o lábio, lutando contra a fúria que se agitava dentro dele.

— Não gosto de você, Mister Io, ou seja lá qual for o seu nome.

— Você não precisa gostar de mim. Eu mostrei o triunfo do mal só por precaução. O bem deve ser protegido, o mal deve ser erradicado. A todo custo. Esta é minha obrigação e minha missão.

— Eu sou só um menino! Nem deveria ter que ver essas coisas. Quero ir embora daqui!

— Muito bem.

O mundo ficou negro, como se as luzes tivessem se apagado. A voz de Mister Io flutuava na direção de Tim, no meio da escuridão.

— O que quer que tenha acontecido naquele conflito... seja qual for a linha do tempo em que ele tenha de fato ocorrido... será o último florescer momentâneo de magia em nossa era — explicou Mister Io. — E o seu papel pode ser determinante.

Tim nunca tinha detestado tanto alguém quanto aquele cego a seu lado.

— Posso sentir a raiva dentro de você — disse Mister Io. — Já estou acostumado.

— Bom, talvez, se você se importasse um pouco mais com as pessoas e os sentimentos delas, elas não odiassem você — devolveu Tim, de supetão.

— Deixe eu lhe falar um pouco a respeito das pessoas, Timothy.. Meu pai me ensinou tudo que eu precisava saber sobre as pessoas. É por isso que eu sou cego.

— O quê? — perguntou Tim.

Ele não conseguia ver a relação.

— Meu pai era sábio. Ele sabia que os olhos podiam ser enganados... pelo charme, pelas aparências sem conteúdo, pelo glamour. Eu não preciso dos meus olhos. Eu vejo o bem e o mal. Nada mais.

— Mas como foi que o seu pai ensinou isso para você? E o que isso tem a ver com o fato de você ser cego?

— Ele foi um grande homem. Não queria que eu me cegasse com superfícies brilhantes. Ele tirou os meus olhos para mim.

Tim ficou olhando para ele, estupefato.

— Isso é doentio!

— Foi o que moldou a minha vida. E eu estou aqui para ajudar a moldar a sua.

 

— Já faz tempo que eles saíram — observou John Constantine, sem a mínima necessidade de fazê-lo. Jogou o cigarro no chão e acendeu outro enquanto amassava o primeiro com o pé. Lá estava ele, fumando um atrás do outro de novo. Era o que esse pessoal fazia com ele. — Aliás, o que exatamente o Io queria mostrar para o garoto?

— A ascensão e a queda da magia nos anos que estão por vir — explicou o Estranho. — Mas não mais do que mil anos no futuro. Além disso, fica difícil voltar.

— Eu não questionaria sua avaliação, senhor, mas por que escolheu o Io? — perguntou Dr. Oculto do lugar em que estava, no vão da porta. — Ouvi falar umas coisas bastante perturbadoras a respeito dele.

— É preciso usar o que se tem à mão — respondeu o Estranho. — Lembre-se de que ele lutou bravamente para nós em Calcutá, e ainda estaríamos enfrentando a Chama Fria se ele não tivesse ajudado. E ele tem a capacidade, algo que nós não temos, de mostrar ao menino o que vai acontecer.

— Mesmo assim, não gosto da idéia — resmungou Constantine.

O Estranho suspirou.

— Você consegue viajar para o futuro? — desafiou.

— Só do jeito que todo mundo faz, chefe — reconheceu Constantine. — Você sabe como é. Um minuto de cada vez.

 

— Onde estamos agora? — Tim perguntou. — Ou será que eu devia perguntar quando?

Estavam em uma espécie de plataforma de observação, que proporcionava uma vista impressionante de uma cidade. Era uma paisagem tirada de filme de ficção científica. Prédios altos brilhavam, veículos aéreos circulavam rápidos entre eles, como se todo mundo dirigisse pequenas espaçonaves em vez de carros.

— Não tem magia nenhuma neste futuro — explicou Mister Io. — Este é um mundo científico. Tecnológico. As pessoas aqui não escolheram a magia, e por isso ela não existe.

Aquilo fez com que Tim se lembrasse de Dr. Treze. Constantine tinha dito que a magia não existia para o desmascarador profissional porque ele não acreditava nela.

— No que diz respeito à magia — prosseguiu Mister Io —, sempre existe a decisão inicial, uma predisposição primordial para que ela entre na sua vida. Se isso não existir, a magia também não existirá.

— Ah.

— Esta civilização desprezou a magia.

Movimentaram-se rapidamente, e as cenas à frente de Tim mudaram como se estivesse assistindo a uma projeção de slides acelerada, que ia avançando no tempo: um mundo em tom alaranjado que parecia estar pegando fogo; em seguida, um céu cheio de espaçonaves tripuladas por andróides; maremotos destruindo uma cidade (como acontecera com Atlântida); novas cidades se erguendo. Tim ficou tonto, do mesmo jeito que tinha ficado quando percorreu o passado com o Estranho. “Mas eu já devo estar me acostumando”, pensou. “Desta vez, não vou vomitar.”

Diminuíram o ritmo, e Tim percebeu que estavam em uma praia, perto de um mar escuro.

— Onde estamos agora?

— Uns quarenta séculos à frente do seu tempo. Nunca viajei assim tão longe no tempo — afirmou Mister Io.

— Está tão escuro aqui — comentou Tim, e então olhou para Mister Io um pouco envergonhado. — Ah, desculpe, eu esqueci.

— Não precisa se desculpar. Tenho orgulho da minha cegueira. E enxergo mais do que você.

— Mas você sabe que está escuro, não sabe?

— Olhe lá para cima — ordenou Mister Io. — Está vendo aquilo ali? É o sol.

— Aquela coisa? — Tim ficou olhando para o círculo laranja-escuro no céu. — Como é que o sol pode estar no céu e estar tão escuro?

— Talvez ele não tenha mais coração para brilhar.

Tim examinou a praia de uma ponta à outra.

— Acho que as pessoas não existem mais.

— Você está errado. Lá. Está vendo? — Mister Io apontou para algumas silhuetas saindo da água.

“Como é que ele faz isso?”, Tim se perguntou. “Será que os outros sentidos dele são super amplificados para compensar a cegueira?” Deu uma olhada na direção em que Mister Io apontava.

— Mas eles não são humanos, são? — Tim apertou os olhos para enxergar melhor as figuras verdes, esqueléticas e distorcidas.

— São o que restou da humanidade. Deve haver umas 50 mil pessoas escarafunchando o solo em busca de sobrevivência, mas já faz muito tempo que todos os nutrientes foram retirados. Os mares também mal conseguem sustentar a vida marítima. Eles vivem aqui, no escuro.

— Por que são verdes?

— São? Eu não sei. Será que é por causa da fotossíntese? De qualquer modo, a esta altura, conceitos como ciência e magia já perderam todo o significado. O que existe é só um desesperado instinto de sobrevivência.

— Então, é assim que termina, com uns esqueletos verdes procurando minhocas, iluminados por um sol que está quase morrendo?

— Possivelmente.

— Você não sabe?

— Eu nunca viajei assim tão longe. Só tinha ouvido boatos.

— Ah. Bom, parece não ter muita coisa para ver por aqui. — Olhou para Mister Io. — Podemos voltar para o nosso tempo agora, então?

— Não. Vamos prosseguir.

 

Dessa vez foi Dr. Oculto que rompeu o silêncio tenso em Londres.

— Eles já não deviam ter voltado?

Fez-se uma pausa pesada.

— Já — o Estranho por fim admitiu.

— Algum problema? — questionou Constantine.

— Temo que sim — respondeu o Estranho. — Para mim, estão perdidos. Para onde quer que tenham ido, estão tão longe no futuro que eu não consigo mais senti-los. E você, Dr. Oculto?

Dr. Oculto sacudiu a cabeça.

— Desapareceram completamente.

— Isto é ridículo! — explodiu Constantine. — O que você está dizendo? Que eles se mandaram para o futuro distante e você não pode fazer nada para trazê-los de volta?

— Exato.

— Não dá para acreditar! Você confiou o Tim para aquele louco? Existem algas mais inteligentes do que você, colega.

— Eu cometi um erro. Já percebi. Peço desculpas.

Isso só deixou Constantine ainda mais bravo.

— Isso não vai trazer o Tim de volta. Ele é só um garoto. Ele confiou em nós para protegê-lo. Eu não...

— Acredito nisso — Dr. Oculto terminou a frase para ele. — Nós sabemos. E também sabemos que errar é humano.

Constantine olhou torto para o Estranho.

— Se ele é humano, então eu sou uma torradeira. — resmungou.

— Precisamos concentrar nossos esforços em trazê-los de volta — disse o Estranho. — Essa discussão é inútil.

— Você não consegue entrar em contato com eles? — perguntou Constantine. — Não existe nenhum deus ou demônio ou qualquer outra coisa que você possa enviar para trazê-los de volta?

— Não. Mas você me deu uma idéia. Dr. Oculto, o pássaro pertence ao Timothy.

— É mesmo! — Dr. Oculto pegou Ioiô de John. Olhando bem fundo nos olhos amarelos do pássaro, falou com ele em tom assertivo. — Ouça bem, ave noturna. Timothy, seu mestre, onde quer que esteja, onde quer que possa estar, encontre-o. Proteja-o. Ajude-o.

— Inclinou a cabeça na direção do Estranho. — Amigo, conceda-me força.

O Estranho assentiu com a cabeça.

— Constantine, conceda-me vontade. Juntos, vocês dois me concederão confiança.

Todos se concentraram no pássaro mais um instante.

— Agora, vá! — instruiu Dr. Oculto.

Ioiô saiu voando e desapareceu no céu escuro. Os três homens uniram suas esperanças sobre o pássaro e sua missão.

— Reparei que você não disse ao pássaro para trazê-lo de volta — comentou Constantine.

Dr. Oculto continuou olhando para o céu.

— Se ele foi assim tão longe no futuro, é improvável que qualquer força seja capaz de trazê-lo de volta para nós.

— E então, o que faremos agora? — perguntou Constantine, em um tom sério.

O Estranho colocou uma mão no ombro de cada um de seus companheiros.

— Vamos esperar.

Constantine suspirou.

— Eu bem que gostaria que você parasse de falar isso. Pode ser?

 

Tim e Mister Io estavam flutuando no espaço escuro e vazio. Tim estava ficando entediado. Parecia que não tinha muita coisa para ver no futuro. E parecia que eles não estavam indo a lugar algum, só estavam flutuando sem nenhum propósito.

— Para onde vamos agora? — perguntou Tim. Estava com medo de estar começando a choramingar, igual às criancinhas em viagens longas que ficam perguntando: “Já chegou?”. Mas ele estava ficando cada vez mais impaciente. Se tivessem algum destino em mente, talvez conseguisse prestar mais atenção. Pelo menos teria alguma coisa em que prestar atenção.

— Para o fim dos tempos. O fim verdadeiro.

— E daí, o que vai acontecer?

— Vamos descobrir, não é mesmo?

Tim suspirou. Mais charadas. Já estava cheio. Ele já estava mais do que pronto para que essa parte do programa terminasse. Se pelo menos fosse capaz de mudar de canal ou qualquer coisa do tipo...

— O que você está vendo, menino? — perguntou Mister Io.

Tim olhou em volta. Agora que Mister Io tinha mencionado, de fato alguma coisa estava diferente... estava mudando. O espaço que o rodeava já não era mais um nada todo escuro.

— Não sei, é muito estranho.

Tentou compreender o que estava vendo. Feixes de luz branca vinham na direção dele, mas desapareciam quando chegavam bem perto.

— Tudo o que existe no espaço está vindo na nossa direção. Todas as estrelas estão caindo e as luzes estão se apagando. E a cor é meio esquisita.

— Qual é a cor? — perguntou Mister Io, ansioso. — Diga.

— É um azul meio arroxeado. Aquela cor que tem no fim do arco-íris. Violeta. Todas as estrelas e galáxias.

— O desvio para o azul!

— Perdão?

— Na nossa era, vemos o desvio para o vermelho, já que as estrelas e as galáxias estão se afastando de nós. Nosso universo está em expansão. Agora que o universo está acabando, você está vendo o desvio para o azul, já que tudo vai voltando para o centro.

— Desvio para o violeta, você quer dizer — corrigiu Tim.

— O que está acontecendo agora?

— Nada. Não está acontecendo absolutamente nada.

— Então, é assim que termina. — Mister Io pensou alto. — Na escuridão. No nada. Interessante.

— A maior chatice, se você quer saber — resmungou Tim.

— Este é o fim, Tim. Não dá para avançar mais.

— Tudo bem para mim — disse Tim, louco para voltar para casa. — Depois de chegar ao fim do universo, o que mais seria possível fazer? — Examinou a escuridão, o vazio. — Eu poderia escrever o meu nome em alguma coisa, mas não tem nada em que escrever. E também não tem nenhum suvenir para levar para casa. — Mais uma vez, ficou de frente para Mister Io, que flutuava ali por perto. — Muito bem, então vamos voltar.

— Muito bem. Venha aqui. Deixe-me segurar no seu braço.

Tim se movimentou na direção de Mister Io, que então estava em uma posição bem estranha, com um dos braços retorcido atrás das costas. “Será que ele está escondendo alguma coisa?”, Tim pensou. “O que será que ele poderia ter pegado aqui?

— O que é isso aí nas suas costas? O que você está segurando?

— Eu disse para vir aqui!

Mister Io se inclinou na direção de Tim e agarrou a gola da sua camiseta. O movimento repentino assustou o garoto, que não teve tempo de reagir.

— O que está acontecendo? — perguntou Tim, debatendo-se para escapar. A gravidade estranha tornava difícil o uso de seu peso contra Mister Io para se soltar. — O que deu em você?

— Não quero machucá-lo, Tim — disse Mister Io com uma voz bem falsa. — Só quero protegê-lo do mundo, porque você pode se corromper. — Ergueu Tim pela camiseta no ar. Os olhos de Tim se arregalaram quando viu Mister Io erguer a outra mão. Estava segurando uma estaca de madeira pontuda em cima da cabeça. — Acredite, isto é para o seu próprio bem!

Tim mordeu a mão de Mister Io bem forte. Foi o bastante para fazer com que Mister Io o largasse e gritasse. Tim caiu para trás, fora do alcance de Mister Io.

Era como se Mister Io não estivesse sentindo a ferida, apesar do sangue que escorria por sua mão.

— Você não é capaz de me machucar! — gritou. — A glória de ter razão é minha! A minha coragem é imaculada!

Tim ficou tão enojado que até parou de sentir medo por um instante.

— Então você me trouxe para um lugar onde não há a mínima chance de alguém me salvar? É, isso é ter mesmo muita coragem!

— Diga adeus, menino.

De algum modo, Mister Io sabia como se movimentar com mais rapidez do que Tim naquela atmosfera de fim do mundo. O cego pareceu demorar só um instante para chegar à frente dele, com uma mão em seu ombro e a outra se erguendo cada vez mais. E então a estaca mergulhou.

Em Ioiô.

A coruja soltou um guincho, e só então Tim percebeu o que tinha acontecido. Ioiô tinha aparecido do nada e voado na frente dele, para protegê-lo. Ioiô tinha levado o golpe no lugar dele.

Sangue e penas voaram por todos os lados e Ioiô desapareceu... Simplesmente desapareceu. Tim agarrou a estaca ensangüentada que flutuava no espaço à sua frente, e jogou a arma de madeira na direção de Mister Io, derrubando seus óculos escuros.

Tim sentiu seu estômago ficar embrulhado por causa do sangue e do sacrifício de Ioiô. E então, no lugar dos olhos, órbitas vazias do rosto contorcido de Mister Io encararam Tim. Ele se dobrou em dois, respirando com dificuldade.

— Você não compreende como pode ser poderoso — Mister Io disse. — Eu consigo enxergar você, garoto. Você brilha como um feixe de luz na escuridão. Não preciso de olhos para encontrar você. E não preciso de arma. Posso usar as mãos.

Tim sentiu mãos fortes em torno de seu pescoço. Estava difícil respirar. Puxou os dedos de Mister Io, tentando desesperadamente tirá-los de sua garganta. Achou que não ia durar mais muito tempo. Aquele homem era tão forte...

— Pare com isso! — uma voz ordenou da escuridão. Mister Io se afastou aos tropeções, como se algo o tivesse arrancado de Tim.

Tim viu um homem estranho, usando uma capa escura com capuz, flutuando na direção deles. “O que é agora?” Esfregou a garganta, engolindo algumas vezes, e inspirou grandes quantidades de ar.

— Não é nem adequado nem apropriado comportar-se dessa maneira no fim das coisas.

O homem encapuzado agora estava ao lado deles. Apareceu um atril com um livro grosso em cima. “Será que aquilo estava ali o tempo todo?”, Tim se perguntou.

— Você é Timothy Hunter — disse o homem. — E você é...?

— Eu me chamo Mister Io.

— Notável. Nenhum de vocês está no meu livro. Um instante.

Consultou o grande livro sobre o atril.

— Ah, sim. Há uma nota de rodapé a esse respeito. Quase esqueci. Vocês estão muito distantes de seu tempo, mortais.

Uma mulher bonita, de cabelo escuro, apareceu atrás do homem.

— Oi, irmão. — Ela estava toda vestida de preto, e usava muitas pulseiras e colares. Tim achou que parecia o tipo de moça que também teria tatuagem e piercing no umbigo. Igual à garota gótica que ele conhecia do conjunto habitacional de Londres. Ela parecia um pouco mais nova do que Zatanna. O que será que estava fazendo ali? — Oi, vocês dois.

A cabeça de Tim estava confusa. Por que eles estavam ali, flutuando no espaço, conversando como se alguém estivesse perguntando como chegar ao aeroporto, sendo que apenas alguns minutos antes Mister Io tinha tentado matá-lo? E, além de tudo, o universo inteiro estava acabando! Tim desistiu de tentar entender qualquer coisa.

— Você — exclamou Mister Io, apontando para a moça. — Eu conheço você. Você é a Morte. Você veio buscar o garoto, não a mim.

Tim ficou olhando boquiaberto para ela. Aquela moça bonita, que pareceria muito à vontade em uma rave era... a Morte? Olhou para Mister Io, que parecia em pânico pela aparição dela.

A Morte sorriu. Era um sorriso caloroso e simpático.

— Olá, Tim. Olá, Io. Não, não vim buscar nenhum de vocês. Já levei vocês embora faz muito tempo. Mas é legal reencontrar os dois por aqui. Vim por causa do universo. E por causa do meu irmão mais velho, o Destino.

O homem olhou para ela, todo orgulhoso.

— Às vezes parecia que eu nunca chegaria a virar a última página, nunca fecharia o meu livro pela última vez. É um alívio me libertar do meu fardo, irmã. Agradeço muito.

— Tchau, querido. — A mulher deu um beijo na bochecha do irmão. Então ele desapareceu, como se fosse a imagem de uma fotografia Polaroid às avessas.

A Morte se voltou para Tim e Mister Io.

— Não posso permitir que nenhum de vocês fique por aqui. Sabe, isto aqui é o fim de verdade. O universo acabou. Vocês dois precisam ir embora. Tim, isto é seu — entregou a ele seu ioiô, que voltara a ser um brinquedo de plástico. Ficou feliz de ver que Ioiô não desaparecera para sempre, apesar de o objeto não ser mais uma criatura viva. Ela pegou os óculos escuros de Mister Io. — E acredito que isto aqui pertença a você.

Mister Io arrancou os óculos da mão dela e os colocou.

— Eu preciso matar o menino — implorou Mister Io.

— Não, esse fardo não será seu — respondeu a Morte.

— Então o que eu faço? — Ele parecia perdido.

— Você, Mister Io, vai voltar para o seu tempo — disse a Morte. — Mas vai ter que ir pelo caminho mais difícil, creio. Não se preocupe, você vai acabar chegando lá.

— Você não entende — Mister Io reclamou —, é impossível. Estamos avançados demais. Não dá mais para voltar.

— Não seja tolo. Claro que dá. Vai andando, Mister Io. Você vai andar para trás, passo a passo, através das eras.

A Morte apontou um dedo comprido e pálido para trás de Mister Io. Com os ombros caídos, derrotado, Mister Io deu meia-volta e começou a caminhar, ficando cada vez menor, até não ser mais nada além de um pontinho.

— E eu? — perguntou Tim. — Eu também preciso andar para trás e atravessar todo o tempo?

— Não — respondeu a Morte. — Você já viajou demais. Feche os olhos, Tim.

Mais uma vez de olhos fechados. Mas ele confiava naquela mulher bonita vestida de preto. Se ela era a Morte e o estava mandando para casa, tudo bem. Ela não queria ficar com ele. Ele sobreviveria. Não é mesmo?

 

— Então é isso — disse Constantine, cansado, encolhendo os ombros no frio úmido de Londres.

— É. — O Estranho parecia tão cansado quanto ele.

— A gente realmente pisou na bola com ele.

— Não totalmente — argumentou Dr. Oculto. — Fechamos a Irmandade da Chama Fria na Índia, afinal de contas. E eles teriam matado Tim.

— Então, em vez disso, nós o entregamos a um maluco que fez o serviço no lugar deles. Maravilha.

— Um dia, outra criança vai aparecer — disse o Estranho. — E, quando isso acontecer, pelo menos já teremos aprendido essa li... Perdão?

— Você está louco! — explodiu Constantine. — Se você acha que algum dia eu vou me envolver de novo com uma dessas porcarias, um fiasco desses...

— Parem com isso! — gritou Timothy Hunter. — Todos vocês.

Os três homens se viraram para o lugar de onde vinha a voz do menino. Ficaram olhando para ele.

Tim sorriu. “No fim, fui eu quem pregou um susto neles, para variar”, ficou pensando, todo satisfeito.

— É. Eu não estou morto. E não foi graças a vocês.

— Tim! — Constantine correu em sua direção e deu um tapão com sua mão enorme nas costas de Tim.

— Bem-vindo de volta, menino — disse o Estranho.

— Estamos muito felizes de ver você — completou Dr. Oculto.

— Mas como é que...

— Tinha uma mulher lá. No fim dos tempos. — Tim sorriu para John Constantine. — Acho que você ia gostar dela. Bom, foi ela que me mandou de volta para cá.

— E o Io? — perguntou o Estranho.

— Ele tentou me matar. Acho que o castigo dele foi ter que voltar sozinho. A mulher disse que ele teria que vir andando.

— Vai ser uma longa caminhada da eternidade até aqui. Coitado dele — disse o Estranho.

— Você fica com pena, mesmo depois de ele ter tentado matar o Tim? — perguntou Constantine.

— Acho que sim — reconheceu o Estranho. — De certo modo. O caminho do Io é o mais difícil de todos.

— Cadê a sua coruja? — perguntou Dr. Oculto. Tim colocou a mão no bolso e tirou o ioiô.

— Ele salvou a minha vida quando o Mister Io tentou me matar. Acariciou o brinquedo de plástico.

— O pássaro cuidou de você — disse Dr. Oculto.

Tim estendeu o Ioiô.

— Você não pode trazê-lo de volta?

Dr. Oculto pareceu triste, e sacudiu a cabeça.

— Não.

— Ah. — Tim guardou o Ioiô de novo no bolso e limpou a garganta. Olhou para os três. — Então, eu voltei. Já fui até o fim dos tempos e voltei.

— Timothy, você viu o que nós lhe mostramos — disse o Estranho. — Você viu o passado, conheceu diversos praticantes atuais da arte. Teve um vislumbre dos mundos que podem tocar o seu. Viu o início e viu o fim. Agora, a decisão é sua.

Tim trocou o peso do corpo de perna. Sabia que iam perguntar qual era a decisão dele a certa altura, mas não achou que seria tão rápido. Tinha acabado de voltar. Nem havia tido tempo para pensar.

— Se você escolher a magia, nunca mais vai poder retomar a vida que viveu no passado — lembrou o Estranho. — Seu mundo pode ficar mais... movimentado. Mas também será mais perigoso e menos confiável. E, quando você começar a percorrer o caminho da magia, nunca mais vai poder sair dele. — O Estranho fez uma pausa, para permitir que Tim absorvesse aquilo tudo. — Ou então você pode escolher o caminho da racionalidade — prosseguiu. — Viver no mundo normal. Morrer uma morte normal. É menos agitado, mas é mais seguro. A escolha é sua.

Como ele poderia escolher? Tim sentia-se frio da sola dos pés até a ponta dos cabelos, completamente gelado. A sensação era parecida com medo... só que mais profunda, mais no tutano do que nos ossos.

— Não dá! — despejou. Ficou olhando para os pés. — Desculpem. Aprecio muito o que vocês fizeram por mim. E por todas as coisas que eu vi. Tudo aquilo. Mas aprendi muitas coisas.

Enfiou as mãos nos bolsos e jogou o peso do corpo nos calcanhares. Não tinha coragem de encará-los.

— A principal coisa que aprendi é que tudo tem um preço. Quer dizer, a gente pode conseguir tudo o que quiser, mas precisa pagar o preço. Como o Merlin disse. E eu não quero pagar o preço. Eu... eu estou com medo.

Inspirou profundamente e finalmente ergueu os olhos para encará-los.

— Desculpem. Vocês estão bravos?

— A escolha é sua, Timothy — garantiu o Estranho. — Sempre e eternamente sua. Não é nosso papel aprovar ou não.

— Adeus — disse Dr. Oculto.

— Até mais, garoto — disse John Constantine.

— Tchau — balbuciou Tim. Olhou para os pés de novo. Quando ergueu os olhos de novo, a Brigada dos Encapotados tinha desaparecido. Ele tinha ficado sozinho na rua deserta e chuvosa, de volta a seu bairro, de volta a seu antigo mundo. De volta a Londres. De volta à realidade.

— Esperem! — Tim gritou. — Não foi isso que eu quis dizer! Eu quero! Quero sim! Eu... — A voz dele foi ficando baixinha conforme foi percebendo o que tinha feito. E já era tarde demais para voltar atrás.

 

Agora eram três homens de sobretudo. Constantine estava sentado sobre o balcão antigo, fumando um cigarro atrás do outro.

— Eu disse que não queria me envolver — grasnou. — Devia ter feito o que a minha intuição dizia. — Olhou para os dois outros. Nenhum deles respondeu. — Foi meio que um desperdício, vocês não concordam?

Dr. Oculto e o Estranho ficaram lá em silêncio.

— Vamos ver. — Constantine levantou e começou a andar de um lado para o outro, chutando as camadas de poeira que estiveram ali intocadas desde sua última visita. — Placar final. Tim perde sua primeira e única chance com a magia, e nós perdemos Mister Io... Não que eu perca o sono por causa disso.

— É estranho, Constantine — disse o Dr. Oculto. — Com tudo que eu já ouvi falar a seu respeito. Ninguém nunca disse que você era idiota.

— O quê? Ei, escute aqui...

— Não. Você é quem vai escutar. Vai escutar e pensar. — Dr. Oculto esperou que John se sentasse antes de prosseguir. — Nós dissemos a Timothy que lhe daríamos uma escolha, não foi? E demos. Ele viu a magia. Sabe como funciona. Ele já percorreu um caminho mais difícil do que a maior parte dos iniciados poderia sonhar existir.

— A escolha de Timothy não foi feita há alguns instantes — interferiu o Estranho. — Foi feita quando nos conhecemos.

— O quê? — Constantine olhou para os dois, confuso. Então lembrou. Tinham perguntado se ele queria acompanhá-los na jornada. Aquela tinha sido a escolha. E Tim tinha dito: “Quero. Eu vou com vocês”.

— Você mentiu para ele — disse John.

— Eu não menti para ele, Constantine — reclamou o Estranho. — Eu disse a ele que a escolha era dele, e era. Perguntei se ele queria fazer a jornada. Ele quis.

Um sorrisinho tremelicou no rosto enrugado de Constantine.

— E as pessoas ainda me acusam de ser manipulador. E agora?

— Por enquanto, acho que temos que esperar — disse o Estranho. — E observar o menino.

— Só esperar para ver? — indignou-se Constantine. — Onde mesmo que eu ouvi essas palavras antes?

— Vamos esperar — o Estranho assentiu com a cabeça.

— E vamos ver — concluiu Dr. Oculto.

 

O menino que tinha o potencial para ser o mais poderoso adepto humano da magia de toda a história foi tropeçando pela chuva até chegar em casa. Triste, com frio, molhado, faminto e decepcionado. Tão decepcionado que estava em uma espécie de torpor.

Chegou a seu apartamento e abriu a porta para aquela semi-escuridão tão conhecida. A única luz vinha da televisão. O pai dele estava sentado na frente do aparelho, rodeado por garrafas de cerveja.

— Tim? — chamou o pai quando o garoto passou por ele em direção à escada.

— Pois não?

— Você passou bem o dia, filho?

Tim entrou na sala.

— Faz quanto tempo que eu saí, pai?

— O que é isso? Alguma brincadeira de perguntas? Algumas horas.

— Eu não liguei para você de San Francisco? Nem de Brighton, da casa da tia Blodwyn?

— Não seja tonto — caçoou o pai. — Ninguém ligou desde que você saiu. Então, o que foi que você fez? Aonde foi que você foi? Parece que eu é que devia estar fazendo as perguntas por aqui.

— Não fui a lugar nenhum. Só estava por aí. Sabe como é.

— Pegue uma cadeira. Esse é bom demais. O fim é ótimo, quando eles saem andando em carrinhos pequenos por toda a cidade de Roma.

— Não, obrigado. Acho que vou ficar um pouco no meu quarto.

— Vou preparar uma pizza para o jantar, então.

Tim subiu as escadas até o quarto. Parecia pequeno. Apertado. Morto. Tirou o ioiô do bolso e ficou olhando. Será que aquilo tinha mesmo acontecido?

Abriu o diário. Normalmente se sentia melhor quando conseguia escrever tudo. Pegou uma caneta...

Nada.

Sentiu-se inundado pela raiva. Poderia ter se afogado nela. Como tinham coragem de fazer aquilo com ele? Colocar toda aquela pressão em cima dele! Arrastá-lo por tudo que é canto, do início ao fim dos tempos. Mostrar-lhe mundos com tão pouca explicação. Como eles achavam que ele poderia escolher depois de tudo por que passou?

— Não preciso de vocês! — gritou.

Eles tinham oferecido tanta coisa, tinham feito com que ficasse confuso, e então o abandonaram. Bom, eles veriam só.

— Eu não preciso de vocês. Nem de vocês nem de ninguém. Eu só preciso... acreditar!

A mão de Tim formigou, como se tivesse levado um choque. O ioiô assumiu uma nova forma.

Era uma coruja de novo!

Ioiô saiu voando pela janela aberta de Tim e sumiu na noite.

Tim deu alguns passos cambaleantes para trás, sem fôlego. “Será que eu...? Como foi que...?”

Então ele compreendeu... compreendeu tudo. Jogou os braços no ar.

— Magia! — gritou.

Magia.

 

 

[1] Santuário de pedra, localizado na Inglaterra, construído por povos antigos há cerca de cinco mil anos (NE.)

 

 

                                                                                    Neil Gaiman e John Bolton

 

 

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