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O CORAÇÃO DO INSPETROR O'BRIAN / Dama Beltrán
O CORAÇÃO DO INSPETROR O'BRIAN / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nunca abandonou uma batalha sem lutar, mas ela lhe deixou bem claro que não havia nascido para ficar com ele. Abatido, humilhado e com o coração partido, O´Brian se propôs a destruir aquele sentimento que tinha por seu grande amor.
Entretanto, quando por fim conseguiu não pensar tanto nela, a vida lhe brinda com outra oportunidade e nesta ocasião, não permitirá que April Campbell, viúva do visconde de Gremont, rejeite-o de novo.
Superará April o engano e a traição de seu falecido marido? Será capaz de dar uma oportunidade ao homem que nunca a esqueceu?
Quem sabe...

(Esta é a história de dois personagens que aparecem na novela A Tristeza do Barão: o inspetor O´Brian e a viscondessa viúva de Gremont)

 


 


Londres. Julho de 1860. Habitação do senhor Michael O´Brian

Michael atava a gravata enquanto franzia o cenho. Continuava sem descobrir a razão pela qual o inspetor Petherson o obrigava a assistir uma das ostentosas festas que o senhor Campbell oferecia. Mesmo ele insistindo em que devia agradar a um dos homens mais poderosos da cidade, continuava sem entender por que, dentre todos, encomendou-lhe esta missão. Na Scotland Yard havia muitos agentes que dariam o salário de todo um ano para ir a essas grandiosas celebrações. Entretanto, seu chefe optou por escolher a pessoa mais avessa a esse tipo de eventos. Odiava com todas as suas forças ter que velar pela segurança de um grupo de enriquecidos que só se preocupavam em usar roupas elegantes e aparentar uma educação irrepreensível. Ele conhecia muitos dos quais se apresentavam em sociedade como honoráveis lordes ou senhores, quando eram em realidade, criminosos mais daninhos que os delinquentes que viviam em Whitechapel. Mas ali se encontrava, frente ao espelho e vestindo um de seus trajes passados da moda, preparando-se para cumprir uma missão que não o satisfazia absolutamente.

Colocou a jaqueta e amaldiçoando entre dentes saiu do quarto que alugava da senhora Warren, uma viúva, que, para sobreviver, arrendava quartos tanto a estudantes como a solteiros com pouca fortuna. Caminhou devagar, desinteressado, para a saída.

- Levante essa cabeça! - Indicou-lhe a viúva zangada. - Vai assistir a uma festa não à sua execução!

- Senhora Warren... - saudou-a com um enorme sorriso.

- Senhor O´Brian... - respondeu colocando suas mãos na cintura.

- Já sabe que não sou um homem que gosta de assistir a esse tipo de eventos ridículos - acrescentou zombador.

- Algum dia, jovenzinho... - aproximou-se e esticou as mãos para a gravata para lhe arrumar o descuidado nó - será um homem respeitado nesta cidade e terá que aparecer em todas que solicitem sua presença.

- As rejeitarei! - Exclamou com zombaria.

- Enquanto viver sob o meu teto, assistirá, mesmo que tenha que fazê-lo chegar a chutes - ameaçou.

- Sabe que agredir um agente da lei é um delito? - Inquiriu arqueando a sobrancelha esquerda.

- Sempre alegarei que foi em defesa própria e ninguém culpará uma mulher que evitou o perigo com os únicos meios que possuía - argumentou estreitando seus olhos.

- Não deveria voltar a falar com você de como evitar a justiça. Estou seguro de que terminarei me arrependendo... - disse brincalhão.

- A única coisa que se arrependerá é de não chegar a essa festa a tempo - sentenciou antes de fazê-lo girar e o empurrar até a porta. - Comporte-se como um bom agente e salve aos desafortunados.

- Em uma festa em que me olharão com desdém por não ser mais que um mísero agente? - Perguntou.

- Com certeza alguém descobrirá que, algum dia, se converterá em um homem importante e o tratará como merece. - Conduziu-o ao exterior e, para evitar uma possível réplica, fechou a porta com força.

Michael soltou uma gargalhada quando escutou como a senhora Warren fechava a porta atrás dele. Era, sem dúvida, uma guerreira. Nenhuma mulher se atreveria a tratar desse modo a um homem, mas ela tinha vivido o suficiente para manter uma atitude desinibida. Adorava esse tipo de caráter em uma mulher. As decididas o atraiam, as que não se apoiavam em protocolos absurdos de condutas sociais, possivelmente porque ele mesmo não atuava como o resto dos mortais. Isso não significava que fosse um monstro, claro que não! Embora de vez em quando em seu interior despertava uma besta exigindo aquilo que necessitava e, muito ao seu pesar, aplacava-a por medo ao que pudesse acontecer. Nenhum homem da lei deveria possuir esse tipo de desejos, de perversões ou de apetites sexuais. Ninguém o aceitaria se descobrissem que o jovem agente O´Brian, que aspirava converter-se algum dia em inspetor, lutava para salvar a alma de outros enquanto a sua era tão escura como as asas de um corvo.

Com passo firme e decidido caminhou até à residência dos Campbell. Podia ter exigido de seu chefe, como troca pelo favor que realizava, uma carruagem digna para evitar uma aparição humilde, mas não era pretensioso e ia mostrar sua verdadeira imagem: a de um agente que mal ganhava para comprar um traje novo e que não desejava levantar expectativa alguma entre os convidados. Além disso, sua presença naquele lugar não tinha nada a ver com pavonear-se entre os famosos cavalheiros londrinos. Ele devia proteger o senhor Campbell quem, conforme lhe informou o inspetor, poderia achar-se em uma situação difícil durante a festa.

Quando tocou à porta da mansão, um servente vestido com melhor traje que o seu lhe abriu. Depois de ser observado da cabeça aos pés, este franziu o cenho e lhe perguntou:

- Quem é você?

- Boa noite, meu nome é Michael O´Brian e sou agente da Scotland Yard - respondeu sem sentir-se ferido pelo olhar reprovador do lacaio.

- Foi convocado pelo senhor Campbell? - Inquiriu abrindo os olhos como pratos ante a surpresa de saber que seu amo tinha convidado a um exemplar como aquele.

- Não exatamente - indicou entrando ao lugar, mesmo diante da insistência do empregado em não o deixar passar. - Na verdade, o senhor Campbell convidou ao inspetor, mas ele não pôde apresentar-se devido a uma repentina dor abdominal - explicou satírico. Não era essa a razão que lhe tinha exposto seu chefe, mas lhe pareceu a mais divertida.

- Deseja que chame o senhor? - Perguntou o mordomo aturdido pelo descarado comportamento do jovem.

- Como atua a aristocracia em situações similares? - Perguntou-lhe arqueando a sobrancelha esquerda. - Tenho pouco tempo na cidade e muito me temo que não me adaptei aos esnobes protocolos sociais.

- Meu senhor não pertence à aristocracia... ainda - disse o lacaio depois de soprar.

- Então, não me comportei indevidamente, não é? - Acrescentou mordaz.

- Se puder esperar aqui - apontou dando-se por vencido. - Informarei ao senhor de sua chegada.

- Posso, ao menos, mover as pernas enquanto aguardo sua presença? Prometo-lhe que não tocarei em nada - disse divertido.

- Espere aqui - resmungou o criado antes de entrar no corredor.

Michael contemplou a entrada do lugar exaustivamente. Se tal como tinha indicado o inspetor, o senhor Campbell se encontrava em uma situação complicada, o primeiro que deveria fazer era examinar a zona em que permaneceria nas próximas horas. Precisava fazer um bom trabalho e que seu superior não recriminasse a confiança depositada nele. Para isso, devia obter toda a informação que pudesse para levar a cabo a dita missão de maneira satisfatória.

Observou seu lado esquerdo, justo por onde o lacaio partiu. Naquela parte da casa percebeu quatro portas bastante separadas umas das outras. Ao fundo encontrava-se um corredor que rodeava as escadas que se achavam em frente a ele. Três pisos, aquela maldita residência tinha três imensos pisos e, com isso deduziu, aquilo somaria uns trinta ou quarenta cômodos. «Muito trabalho...», disse-se. Uma vez estudada a parte esquerda continuou com a direita. Nessa zona da casa se situava a cozinha e, por como se movia o serviço, deviam encontrar-se também suas acomodações ou os cômodos onde realizavam as tarefas diárias: banhos, lavanderia, costura... tudo aquilo que necessitasse a família Campbell o conseguiria no momento. Michael fez uma careta de desagrado. Embora Campbell não possuísse sangue azul vivia como tal, então deduziu que seria um homem tão insuportável e soberbo como o resto e que seu tempo naquele lugar resultaria eterno.

Dirigia-se para o lado direito da escada quando escutou um pequeno ruído no primeiro piso. Como bom agente tentou ocultar-se, para que ninguém o descobrisse antes de fazê-lo ele. Seus olhos de um azul intenso ficaram cravados no patamar e não pôde afastar o olhar até que ela pisou no hall. Com um vestido turquesa adornado com uma bonita renda branca no peito, descia com elegância uma moça de não mais que vinte anos. Seu cabelo não tinha uma cor definida. De onde estava, podia apreciar duas tonalidades diferentes, castanho e loiro, embora os cachos de cabelo que se libertavam do formoso penteado pareciam brilhar mais que o próprio ouro.

Michael conteve a respiração e continuou escondido em seu esconderijo. Contemplou, absorto, como deslizava a mão direita pelo corrimão com suas luvas brancas. Não eram fechadas, nem daquelas que lhe queimariam as palmas depois de suportá-las durante horas. As suas eram de renda e através das pequenas aberturas pelas quais podia transpirar sua delicada pele, também podia ser tocada por qualquer mão atrevida. Estava a ponto de aparecer em frente à moça para lhe perguntar quem era, quando um suave e cativante perfume a jasmim entrou em suas fossas nasais. Michael ficou petrificado, atordoado por como seu corpo reagiu ante aquela essência. Alguém poderia gostar muito de uma mulher só pelo seu aroma? Era inverosímil essa hipótese. Nunca tinha escutado nenhum homem comentar que tinha enlouquecido de amor por uma mulher devido ao seu perfume. Mas embora sua mente racional lhe oferecia uma resposta negativa, seu corpo respondia de maneira contrária. Notou como o pulsar de seu coração começava a se acelerar até tal ponto que ansiava sair do peito. Suas palmas, aquelas grandes mãos que tinham apertado com força mais de um colarinho, escorregavam devido ao suor e seu peito subia e baixava ao ritmo de uma respiração agitada.

Sentiu, envergonhado e irritado, como seu sexo aprisionado sob a calça elevava-se procurando a proprietária daquele aroma. Era inédito atuar dessa forma! E muito menos ele, posto que jamais tinha perdido o controle com tanta facilidade. Até aquele momento sempre tinha dominado qualquer sensação luxuriosa por uma mulher. Mas o que deixou Michael destroçado foi descobrir que sua parte obscura, aquela que escondia com afã, começava a tomar força e poder sobre seus pensamentos e desejos. Por que agia daquele modo? O que tinha aquela moça que não conhecia, para despertar daquela maneira sua besta?

Respirou fundo tentando fazer retornar aquela prudência e sensatez que o caracterizava, embora não conseguisse. Sua mente, perturbada e irracional, gritava-lhe que acabara de encontrar a mulher que tinha esperado por toda sua vida. Que aquele aroma, aquele perfume que chegava ao seu nariz era o sinal que estava procurando. Zangado, apertou seus punhos e os dirigiu para seu peito. Se seguia comportando-se daquela maneira, se não era capaz de acalmar-se, ele mesmo se machucaria para eliminar, pela raiz, sua atitude inapropriada.

Ofuscado, irado e enlouquecido pelo desespero, esteve a ponto de sair do esconderijo para gritar à jovem como ousava transtorná-lo desse modo, mas, por sorte essa ideia se esfumaçou ao escutar que alguém mais se aproximava.

- Pai! - Exclamou a moça ao encontrar-se com o senhor Campbell.

- April, está linda! - Disse o homem lhe dando um beijo na bochecha.

- O que faz aqui? - Interessou-se ao vê-lo fora da sala onde permaneciam os convidados.

- Larson me informou sobre a chegada de um novo convidado – comentou. - Mas não sei onde se encontra -acrescentou olhando ao seu redor.

Depois de escutar a leve conversação, Michael saiu de seu esconderijo e se dirigiu para eles com passo lento e firme. Esperava que, enquanto se aproximasse, toda aquela agonia desaparecesse, mas não foi assim. Conforme se aproximava e diminuía a distância, aquele arrebatador perfume se acentuava, aumentando ainda mais sua inquietação.

- Boa noite, senhor Campbell - saudou O´Brian tentando manter a compostura adequada.

Norman franziu o cenho ao perceber como ia vestida a pessoa que tinha aparecido no lugar do inspetor. Não esperava que usasse um uniforme, mas tampouco imaginou que seu traje tivesse sido confeccionado duas décadas atrás.

- Querida, se nos desculpar. Tenho que falar com este cavalheiro.

- É claro - respondeu April olhando de esguelha à pessoa que permanecia atrás de suas costas. Mal pôde apreciar com claridade de quem se tratava, só descobriu que o cavalheiro que tinha saído de alguma parte de seu lar vestia um traje um pouco gasto e inapropriado. - Esperarei junto à mamãe no salão - acrescentou antes de partir.

Enquanto ela não desapareceu, o senhor Campbell não se dignou a lhe dirigir a palavra. O único que fez enquanto a jovem entrava por uma das portas foi observá-lo da mesma maneira que momentos atrás tinha feito o criado. Embora isso pouco importou ao Michael que o olhasse daquela forma, porque toda sua atenção se centrava em ver como ela se afastava e começava a recuperar o controle. É óbvio, não lhe tinha passado inadvertido que aquela enigmática moça se chamava April e que era a filha da pessoa a quem devia servir.

- O inspetor não podia assistir e vim em seu lugar - explicou de novo O’Brian.

- Já fui informado... - murmurou Norman com os dentes apertados. - Apesar de não haver se dignado a mostrar certa atenção ao vestir-se como era devido, não levarei em conta se realizar um bom trabalho. Explicaram-lhe qual é o seu encargo nesta festa? - Perguntou de mau humor.

- É óbvio - respondeu Michael com firmeza. - Entretanto tenho que lhe advertir que a segurança não é viável.

- Não é viável? - Repetiu Campbell franzindo o cenho.

- Você pediu ao inspetor que viesse esta noite para protegê-lo de uma situação comprometedora, mas acredito que não será possível em tão pouco tempo. Deveria ter avisado com antecedência sobre as dimensões de sua residência - comentou inquieto.

- O que tem a ver minha casa com...?

- Se alguém decidir atentar contra sua segurança tem mais de cinquenta janelas pelas quais acessar. Sem falar de como está atuando esta noite o serviço. Durante o tempo que permaneci esperando contei que deixaram a porta aberta ao menos vinte vezes. Qualquer um pode acessá-la com facilidade, então muito me temo que não lhe bastarão meus olhos para o proteger tal como deseja, senhor Campbell - assinalou sem duvidar de nenhuma palavra. Queria lhe demonstrar que, embora fosse jovem e não se vestisse adequadamente, estava mais que preparado para realizar a missão com eficácia.

- Me proteger? - Clamou Norman. - Não é a mim a quem deve proteger, mas sim a minha filha!

- A sua filha? - Perguntou confuso.

De repente toda a zombaria que tinha utilizado desapareceu. Uma estranha dor no estômago o sacudiu e notou como a fúria se apropriava de sua pessoa. Por que seu chefe lhe havia dito que era o senhor Campbell quem se encontrava em uma situação complicada? Por que não foi sincero e lhe advertiu que devia custodiar à filha do anfitrião? «Pensa, Michael. Se te tivesse falado sobre proteger uma mulher teria se jogado ao Tâmisa para evitá-lo...».

- Se por acaso não sabe, - começou a dizer Norman - a maioria dos convidados que hoje se encontram bebendo meu licor e enchendo seus estômagos com minha comida pensam que April é o melhor troféu que podem obter. Não desejo que em meio à festa algum desavergonhado se aproxime de minha filha e provoque uma situação da qual não possa salvar-se honestamente.

«Estupendo - pensou Michael. - A isso se referia com situação complicada».

- Pensou em encerrá-la em seu dormitório? Se jogar a chave e colocar um de seus criados custodiando a porta evitaria o problema - apontou mordaz.

- Não me fale desse modo, jovenzinho - declarou Campbell mal-humorado.

- Desculpe, mas tem que entender que me surpreendeu o motivo pelo qual hoje me encontro oferecendo meus serviços - disse Michael também zangado. - Sou um agente da ordem, não uma dama de companhia ou uma babá. Se está tão preocupado pela virtude de sua filha deveria encomendar a missão a uma pessoa mais qualificada.

- Qualificada? - Perguntou Norman franzindo o cenho.

- Exato - afirmou O´Brian sem vacilar.

- Apanhou ladrões? Encarcerou transgressores? Esclareceu casos criminais? Velou pela segurança dos cidadãos? - Perguntou Norman sem respirar.

- É óbvio! - Exclamou ao mesmo tempo em que se enquadrava sua grande figura.

- Então é a pessoa idônea para proteger a minha filha. E, agora, se me acompanhar, direi onde deve permanecer e como deve atuar frente a esses pretensiosos aristocratas - esclareceu Campbell sem que seu tom diminuísse a autoridade, que lhe proporcionava seus anos de vida.

- Mas... - tentou dizer Michael.

- Não há, “mas”! - Exclamou Norman de maneira contundente. - Você veio até aqui para velar pela segurança da minha filha e isso fará. E por seu bem... - disse assinalando com o dedo - espero que realize um excelente trabalho porque se algo lhe acontecer, se não lhe prestar suficiente atenção para evitar um escândalo, sua carreira na Scotland Yard terá terminado antes de sair por essa porta -sentenciou.

Enganou-se. Sim, suas conjecturas sobre o senhor Campbell não eram certas. Não se tratava de um maldito homem que atuava como um aristocrata, mas sim um pai aterrorizado pelo futuro de sua única filha. Aquela preocupação lhe outorgava um caráter azedo, autoritário e severo. Enquanto Michael caminhava atrás do anfitrião, rememorou tudo o que sabia do empresário: um homem que tinha brotado do nada, filho de comerciantes e que, graças à sua firmeza, tinha conseguido posicionar-se entre os homens mais poderosos de Londres. Casado aos trinta com a primogênita de um duque, não se converteu em pai até dois anos depois. Segundo os rumores, a senhora Campbell não era uma mulher forte e, salvo a filha, o resto de sua ansiada descendência nasceu morta.

O´Brian cravou seus olhos naquele corpo rígido. Não tinha sangue azul, mas aquela pose, aquela maneira de caminhar, aquela forma de falar tão severa lhe ofereciam um posto que por nascimento não possuía. Apesar de seu comportamento ou de como se dirigiu a ele, Michael entendia seu temor. Sem dúvida alguma, a filha daquele afamado empresário seria o troféu de qualquer aristocrata com ânsia de manter suas arcas cheias e viver confortável pelo resto de sua vida. Todo seu império ficaria destruído se a única herdeira escolhesse o marido equivocado. Mas ele não estava qualificado para valorar todos os lordes que se aproximassem da moça. Ele só podia detectar quando um criminoso lhe enganava, quando tentava convencê-lo de uma falácia, e essa qualidade que tinha como agente estava muito afastada de uma consultoria matrimonial.

Michael soprou várias vezes para conter seu aborrecimento. Continuava pensando em seu encargo na residência Campbell e em como abandonar aquele inesperado sentimento que tinha aparecido pela moça. Precisava voltar a ser o agente que era antes de vê-la. Entretanto, não podia apagar nada de sua mente. Parecia que a imagem dela tinha sido gravada a fogo em sua cabeça. «Maldição!», exclamou para si. O pior que podia lhe acontecer era que alguém pusesse os olhos sobre ela, porque os arrancaria sem duvidar. Por que demônios não o tinham enviado ao porto, para apanhar assaltantes em vez de estar naquela maldita festa? Michael franziu o cenho ao reconhecer a resposta: o inspetor confiava nele. Qualquer um de seus companheiros tentaria conquistar a jovem para poder dormir em um gordo colchão, enquanto que ele atuaria com absoluta discrição. Entretanto, desta vez o inspetor tinha errado em sua premissa. É óbvio que não tinha a intenção de forçar uma situação comprometedora, mas se pudesse aproximar-se o suficiente para poder recordar pelo resto de sua vida aquele perfume sedutor, o faria sem remorsos.

De repente Campbell deteve o passo, olhou-o sem piscar e lhe disse:

- Não tire os olhos dela. Não quero que se afaste nem um palmo desse salão sem sua presença.

- Entendo... - comentou depois de tragar o nó de saliva que se formou em sua garganta.

Sem dizer uma palavra mais, Campbell abriu a porta do salão e entrou no lugar onde havia umas setenta pessoas. Michael ficou parado na entrada observando os convidados, retendo em sua mente o rosto daqueles que já conhecia. Uma vez que descobriu vários jovens cavalheiros que olhavam, com descaramento, para sua direita, ele dirigiu seus olhos para essa zona e soltou um impropério ao compreender que aqueles pérfidos observavam a senhorita Campbell. «Pensou que ia ser fácil?», perguntou-se enquanto pegava suas costas à parede e caminhava para o grupo no qual se encontrava a jovem. Não, não resultaria fácil realizar uma tarefa como aquela. Não poderia espantar todos que se aproximassem da jovem com desonrosas intenções com suaves ameaças. A única maneira de fazê-lo seria à base de golpes e muito temia que essa forma de atuar lhe provocaria uma demissão ainda mais rápida. Desabotoou a jaqueta deixando à vista o colete cinza pérola que escondia. Michael se sentiu um mendigo ao contemplar a vestimenta de quem o olhava com os olhos como pratos. Sorriu maliciosamente ao mesmo tempo que se dizia que não estava sendo muito apreciado naquele ostentoso lugar, mas tampouco lhe importava o que opinavam aqueles que começavam a tossir de surpresa ao observá-lo.

«Só o permitido», disse-se ao calcular a distância apropriada para não atrapalhar a conversação que a filha de Campbell mantinha com várias mulheres. Entretanto, o permitido se converteu em inapropriado. Não deveria ser tão pouco discreto, nem se fazer notar. Seu trabalho seria mais efetivo se ninguém lhe prestasse atenção, mas foi incapaz de manter-se afastado. Parecia um cão guardião defendendo seu território. Embora, nem ele era um cão nem a senhorita Campbell lhe pertencia. Repreendendo-se de novo, tentou concentrar-se na conversação que sua protegida mantinha com as demais mulheres. Só esperava que o tom que tinha escutado com antecedência e que o tinha deixado sem fala não voltasse a repetir-se.

- Sim, isso descobri esta semana - afirmava April à senhora que tinha a sua direita.

Michael cravou o olhar na mulher que se encontrava ao lado da moça. A forma de vestir tão ostentosa e aqueles anéis que exibia na mão ao abanar-se a delatavam. Tratava-se da esposa do senhor Flatman, um afamado e custoso médico que oferecia seus serviços à alta sociedade.

- Eu não gostaria de me encontrar nessa situação tão pouco decorosa - comentou a senhora Flatman.

- Deus nos livre de semelhante horror! - Exclamou a moça.

O´Brian a olhou sem pestanejar, contemplando minuciosamente o movimento de seus lábios, de como estes sorriam, e de como respirava: descobriu, para seu prazer, que onde todo mundo podia apreciar umas palavras cheias de pavor, ela mostrava um grandioso sarcasmo. «Bem feito, pequena – pensou. - Não se deixe avassalar por estes petulantes». Após analisar sua própria frase ficou imobilizado. Por que tinha acrescentado aquela palavra afetuosa? Ela não era pequena e sua mente não devia lhe trair com nenhum tipo de sentimento afetivo para com a jovem. Soprou de novo procurando controlar seus pensamentos.

De repente franziu o cenho e aquelas divagações absurdas se converteram em cólera ao descobrir que April sorria timidamente. Não o fazia ante algum comentário realizado pela senhora Flatman, mas sim aquele leve gesto ia destinado para um cavalheiro que a contemplava, de maneira descarada, da outra ponta do salão. Michael entreabriu seus olhos e quis fulminá-lo com o olhar. Não era apropriado que ela se mostrasse desse modo ante um descarado de tal índole. Acaso não sabia nada sobre a fama que precedia lorde Graves? Todo mundo conhecia não só a reputação do dito cavalheiro, mas também a de seus antecessores, até ele, que tinha vindo de um pequeno povoado do norte, tinha ouvido falar das maldades dos viscondes. Ninguém podia deixar de fofocar sobre o futuro visconde de Gremont e sobre o que andava procurando: fortuna, notoriedade, poder e, sobretudo, passar seus anos de vida vadiando. Segundo o inspetor, Eric Graves era um parasita da sociedade e um futuro criminoso. Mas aquele insolente não aparentava ser um delinquente, mas sim um libertino que tinha posto a filha de Campbell como um objetivo a alcançar.

- Se me desculparem - comentou April às suas interlocutoras. - Tenho que tomar um pouco de ar fresco, aqui faz muito calor e posso desmaiar a qualquer momento.

As mulheres assentiram e continuaram tagarelando como se a débil desculpa da moça fosse suficiente para dispensá-la. Michael caminhou ao redor do salão, sem poder apartar seus olhos da jovem. Que diabos pretendia fazer? Queria afastar-se dali? Com que finalidade? Esquivando aos cavalheiros que lhe impediam o passo e não possuíam a decência de apartar-se, avançou para o balcão pelo qual partiu April. Antes de sair jogou uma rápida olhada ao seu redor, descobrindo que o maldito Graves seguia em seu lugar falando com outros cavalheiros. Mas o que deixou Michael sem palavras foi o olhar que este lhe dirigiu e o sorriso maquiavélico que desenhou em seu rosto. Freando o desejo de lhe apagar o gesto da cara com um murro, caminhou para o exterior.

April estava com os cotovelos apoiados no corrimão de pedra. O leve pescoço elevado lhe indicou que olhava para o céu. O´Brian ficou contemplando aquela figura. Marcavam-se tanto suas curvas com aquele vestido que podia adivinhar o que ocultava sob a roupa. Tentou esconder-se entre as samambaias que cresciam com liberdade na zona direita daquele balcão, mas seus pés não escutaram sua ordem e caminhou para ela.

- Senhorita Campbell, - disse com voz serena - não deveria permanecer sozinha durante muito tempo.

- Quem me ordena isso? - Perguntou virando-se para ele.

- O´Brian, para servi-la - respondeu com um forte movimento de cabeça. Choraria uma vez que partisse ao seu lar, choraria pela dor causada por seu movimento, porque, ao abaixar o queixo, escutou um leve rangido em seu pescoço.

- O´Brian... - murmurou divertida. - É você o cavalheiro que meu pai recebeu quando desci as escadas?

- O mesmo - afirmou com veemência.

- A pessoa que contratou para me vigiar? - Soltou com liberdade.

- O senhor Campbell não me contratou, senhorita. Sou um agente da Scotland Yard.

- Um favor, possivelmente? - Insistiu zombadora.

- Não tive o prazer de conhecer seu pai até esta noite. Então nenhum dos dois se deve favores - informou mal-humorado.

- Não se zangue, senhor O´Brian, só desejava averiguar os propósitos de meu pai. Como compreenderá, sua presença aqui é alarmante.

Michael ficou surpreso. Não pelas palavras dela, mas sim por aquilo que lhe mostrava a luz do interior do salão. A jovem havia dado vários passos para ele e aquela iluminação se refletia em seu precioso e cativante rosto. Agora distinguia com maior exatidão o contorno de seus olhos, a forma de seus lábios, a dimensão de seu arrebitado nariz e o arco de suas sobrancelhas. Era uma beleza. Uma mulher tão formosa que podia pôr de joelhos ao próprio diabo. Mas... ele era esse diabo? Seria, no fundo, esse ser que podia ajoelhar-se ao encontrar a mulher de sua vida? Não, negou contundente. Esse era um pensamento absurdo para um homem que jamais tinha olhado a uma mulher dessa perspectiva. Nenhuma de suas amantes lhe tinha dado o que ela insinuava sem sabê-lo. Não só era uma beleza, mas sim algo mais... algo que só um ser com a alma escura podia entender.

Sem poder censurar sua mente, nem tampouco tentá-lo, imaginou-a ao seu lado, na expectativa de suas ordens, respirando com dificuldade ao antecipar seus toques e seus mandos. Essas projeções em sua cabeça lhe retorceram as vísceras. Como podia imaginar uma coisa assim? Como era capaz de pensar que ela pudesse ansiar o que ele podia lhe oferecer? Obcecado e aterrorizado ao compreender que estava delirando, deu uns passos para trás. Devia afastar-se dela, devia afastar-se o suficiente para baixar sua excitação. Não, aquela jovem não desejaria a presença de um homem que desfrutasse tê-la com as mãos atadas enquanto a penetrava, enquanto a possuía com força e gritava que lhe pertencia. Ela jamais teria fantasiado com esse tipo de perversões... mas seu aroma, sua maneira de olhá-lo, aquela pose inalterável e inclusive a forma de lhe falar eram tão especiais... tão atraentes, que o estavam deixando louco.

- Desculpe? - Perguntou ao compreender que lhe tinha falado sobre algo e esperava uma resposta.

- Desejava saber a razão pela qual um homem como você se encontra nesta festa vigiando minhas atuações - repetiu.

- Não pode pensar que tento ser um pretendente? - Respondeu com desdém.

- Você? - Expressou antes de soltar uma gargalhada. - Não acredito!

- Por que motivo evitaria estar perto de uma mulher formosa, senhorita Campbell? - Inquiriu zangado. Agarrou suas mãos pelas costas e ficou mais reto que uma tábua.

- Senhor O´Brian, você não é a classe de homem que me interessa - disse com um enorme sorriso.

- Acaso tenho uma classe? - Arqueou a sobrancelha esquerda acentuando a pergunta.

- Você seria incapaz de me fazer feliz - sussurrou aproximando-se indevidamente de Michael que, embora desejasse agarrá-la pelos braços e lhe demonstrar ali mesmo que se equivocava, manteve uma pose segura e inalterável.

- Está se referindo a fazê-la gritar e suplicar que a possua enquanto lhe agarro com força o cabelo e o puxo para trás? - Disse sem mostrar em sua voz a luxúria que aquela possível situação lhe provocava. Se ela era descarada, ele também o seria. Além disso, aquela pergunta resolveria o enigma que tinha em sua perversa mente.

April ficou parada justo ao lado dele. Seu ombro tocava o braço daquele que lhe falava com audácia. Como ousava lhe falar desse modo? Como lhe mostrava com liberdade seus desejos lascivos? Devia zangar-se, devia enojar-se e lhe gritar que era um perturbado. Mas seu corpo e mente reagiram de uma forma tão estranha, que ficou atordoada. Notou como lhe ardiam as bochechas e como sua respiração se entrecortava. Sua voz, aquele tom altivo que empregava para lhe falar, produziu-lhe tal insensatez que se imaginou realizando aquelas loucuras. Sobressaltada, levantou a mão para lhe dar uma bofetada por seu atrevimento, mas aquele jovem que a olhava com um insólito brilho nos olhos lhe agarrou a mão.

- Eu também utilizaria esta mão, mas não para tocar meu rosto e sim o seu corpo. A faria acariciar-se em frente a mim, nua, com os olhos abertos para que fosse consciente de como me excitaria vê-la dessa maneira tão esplêndida. Seus mamilos ficariam duros, querendo o calor da minha boca para acalmá-los. Então faria que descesse essa mão para uma zona que ainda não foi alcançada. Você mesma retiraria aqueles lábios macios e inchados pela paixão e, para recompensá-la por cumprir meus mandatos, me ajoelharia em frente às suas pernas, colocaria minha cabeça entre elas e, enquanto meu nariz se impregnasse daquela essência de mulher que desprenderia pela excitação, minha língua percorreria cada canto de seu sexo. Beberia de você. Beberia tanto que acalmaria minha sede para o resto da vida. - A olhou de esguelha e centrou seus olhos em uma linda mancha que se escondia sob a renda. Aquela forma de coração que parecia chamá-lo para que aproximasse seus lábios ficaria em sua memória para sempre.

- Como se atreve a me falar dessa maneira? - Encarou-o. - Você jamais me terá. Não é mais que um pervertido, um miserável que anseia me obter para viver a vida que até agora não teve. - Olhou-o de cima a baixo, exibindo em seu rosto a repugnância que sentia ao vê-lo com aquele traje.

- Eu não sou como esses homens que você diverte com maliciosos sorrisos. Em primeiro lugar, jamais aceitaria a fortuna da minha esposa, para sobreviver me basto com o que sou e com o que serei. Em segundo, nenhum desses poderia satisfazê-la como o faria eu - resmungou apertando os dentes.

- Você é um dom ninguém! - Exclamou agitando seu braço até que se libertou daquela grande mão aferrando-se ao seu pulso. - E nunca me terá! - Sentenciou antes de pôr as costas retas e abandoná-lo.

«Isso eu já sei...», meditou sem mover-se do lugar que pisava. Michael ficou naquele lugar até que seu estado de agitação se aplacou. Custou-lhe mais do que poderia haver acontecido com qualquer mulher, mas ele já tinha deduzido que ela não era outra, mas sim a única. A única que o tinha levado a uma loucura, a única que se tinha metido em sua mente, a única que poderia saciá-lo e de uma vez ser saciada. Não, não haveria no mundo outra mulher como a senhorita Campbell, mas como lhe indicou, nunca a teria. Devagar girou sobre seus calcanhares e entrou no salão. No interior procurou, desesperado, ao anfitrião. Este, ao cruzar o olhar com o agente, desculpou-se com os cavalheiros com quem falava e caminhou até onde se encontrava.

- O que acontece? Descobriu algo? - Perguntou sobressaltado.

- Já não precisa de mim - disse com voz firme.

- Por quê? - Insistiu o ancião arqueando as sobrancelhas.

- Sua filha não correrá perigo esta noite, mas muito me temo que logo se achará em uma situação comprometedora - explicou olhando de soslaio a Eric Graves que, imaginando o que tinha acontecido entre ele e April, sorria com mais orgulho do que cabia.

- Situação comprometedora? - Perguntou Norman lhe tremendo os lábios.

- Tome cuidado com lorde Graves. Pôs seus olhos nela e não parará até consegui-la - sentenciou antes de caminhar com passo firme e decidido para a saída.

Tinha que sair dali, tinha que afastar-se e deixar de pensar na mulher que tinha sido proibido de ter. Zangado, Michael não retornou à habitação onde descansava, mas sim se dirigiu para o bordel da senhora Johnson. Devia aplacar aquela ira e excitação que seu corpo necessitava com afã. Entretanto, não teve uma noite boa. Depois de embebedar-se e soluçar nos braços da madame o horror que estava padecendo ao descobrir que aquela mulher seria a única que tocaria seu coração, foi jogado à rua como se fosse lixo por um presunçoso chamado Roger Bennett.


I


Londres. Outubro de 1867.

Michael olhava aos dois cavalheiros com ferocidade. Continuava zangado por como tinham irrompido em seu interrogatório e como lorde Cooper confessara na presença destes onde tinha estado antes de ser preso. Duas horas!! Ele esbanjou duas horas de seu valioso trabalho para tentar tirar uma declaração que não obteve até que elas apareceram e que, para sua surpresa, não esperava obter. Tinha dado por feito a culpabilidade do detido, teria apostado sua fortuna nisso, entretanto, enganou-se. Possivelmente sua mente agitada por aquele ódio que tinha pela aristocracia desde anos atrás não foi capaz de discernir que o homem que se encontrava em frente a ele era uma pessoa honrada e humilde, embora ostentaria, futuramente, o título de barão. A fama de respeitoso e incorruptível era a melhor apresentação de lorde Cooper, mas ele não acreditava nesse tipo de etiquetas sociais. Quantos aristocratas decentes tinham utilizado o poder que lhes outorgava seu sangue azul, para livrar-se de suas maldades? Dezenas. Não obstante, era certo que Federith Cooper sempre se manteve em um discreto segundo plano. Apesar de sua famosa vida de libertino, que se aplacou após casar-se com a falecida, não provocou nenhum tipo de escândalo em Londres.

Michael cruzou os braços e dirigiu os olhos para seus acompanhantes. O duque, um homem com uma figura autoritária e severa apesar da cicatriz em seu rosto e aquela mão que escondia nas costas, não deixava de olhar para o exterior de maneira hesitante. O´Brian imaginou que meditasse sobre o austero e sombrio lugar onde se encontrava seu amigo e rezava em silêncio por liberá-lo de seu cativeiro. Todo mundo conhecia a relação que Rutland mantinha com lorde Cooper e ninguém duvidava que, salvo o fato de que não tinham o mesmo sangue percorrendo suas veias, eles sempre se consideraram irmãos.

O inspetor franziu levemente o cenho ao recordar um episódio na vida do duque alguns anos atrás. Tinha estado a ponto de chegar até ele, de conseguir assinalá-lo como autor de um assassinato, mas ninguém foi capaz de declarar que Rutland matou o conde de Rabbitwood em um duelo. Aqueles aos quais fez falar pela força só indicaram que o cavalheiro havia levado um tiro ao descobrir-se que tinha violado a uma mulher que, estranhamente, converteu-se na esposa do duque. «Sem provas, não há caso». Seu antecessor murmurava essa frase todos os dias e era tão certa como a própria vida.

- Não acredito que sua excelência goste de como o olha - indicou Roger divertido.

- Fecha essa boca, Riderland! - Exclamou zangado.

Desesperava-o. Aquele maldito presunçoso o tirava do sério cada vez que estava ao seu lado e, para seu sofrimento, nos últimos dois anos seus encontros tinham sido bastante numerosos. Logicamente, teve que investigar o incêndio ocorrido em um terreno do marquês no qual tinha construído uma residência que chamou Children Saved; naquela investigação seu ódio por aquele que o olhava com zombaria aumentou. Como pensava que ia validar sua declaração sem averiguar se suas palavras eram verdadeiras? Um herói? Seu irmão tinha morrido salvando a vida dos meninos que cuidava desinteressadamente? Sem acrescentar que, pouco depois, o falecido marquês de Riderland anunciou por toda Londres que tinha mais dois filhos: um jovem chamado Logan e uma menina chamada Natalie. De onde tinham saído? Por que os declarou filhos legítimos? Não havia dúvida de que Roger Bennett tinha idealizado um plano para proteger a sua família e aos meninos que cuidava por solidariedade.

- Senhores, guardem suas línguas - assinalou Rutland. - Temos que deter um assassino - acrescentou com um tom tão frio que Michael ficou olhando-o sem piscar. Não lhe cabia a menor dúvida de que se o duque não fosse um impossibilitado, ele mesmo asfixiaria ao visconde, se de verdade fosse o culpado, e lhe faria passar pela agonia que deve ter padecido lady Caroline em seus últimos momentos.

- Que tal sua vida, inspetor? - Prosseguiu Roger sem dar atenção à intervenção de William.

- Como pode perceber, bastante próspera - respondeu com relutância.

- Retornou ao bordel ou lhe proibiram a entrada pela choradeira? - Soltou à queima-roupa o marquês.

- Acaso não sabe a quem está se dirigindo? - Perguntou Michael apertando os dentes.

- Oh, claro que sei, inspetor! - Exclamou Riderland acomodando-se no assento, cruzando as pernas e sorrindo amplamente. - Mas sempre me perguntei o que aconteceu naquela noite para que um jovem agente fosse incapaz de cessar um pranto tão atormentado que desesperou a paciente senhora Johnson.

- Maldito bastardo! - Berrou Michael levantando do assento e dirigindo um punho para o rosto zombador do marquês.

- Já basta! - Gritou Rutland evitando aquele impacto com um ágil movimento de sua bengala. - Acaso não recordam o motivo pelo qual nos dirigimos à residência do visconde? Como pode manter essa compostura zombadora sabendo que nosso amigo se encontra encarcerado? - Perguntou ao Roger com o cenho franzido. - E você? - Dirigiu o olhar para o inspetor. - Esqueceu seus princípios como defensor da lei?

- Não permitirei que um porco aristocrata tente me humilhar! - Replicou O´Brian irado.

- Se se sente humilhado não se deve às palavras de Riderland, mas sim ao comportamento que você manteve no passado. Mas tenho que lhe advertir de uma coisa, senhor O´Brian, todo mundo comete enganos, embora seja corajoso lidar com eles com integridade - sentenciou antes de olhar a ambos os homens.

- Você também os cometeu? Há algo do qual possa envergonhar-se? - Perguntou Michael com um enorme sorriso e tom zombador.

Nesse momento, Riderland tentou levantar-se do assento. Seus olhos não eram azuis e sim vermelhos e sua mão direita se converteu em um punho forte e duro. Não cabia a menor dúvida ao inspetor que se o duque não tivesse posto a bengala sobre as nádegas do marquês, este lhe teria feito tragar suas palavras com um murro.

- Cometi muitos, senhor O´Brian. E pode contemplar as consequências em meu corpo, mas por sorte posso dizer que aprendi com eles e consertei minha vida. Atualmente, não só sou amado por uma mulher maravilhosa, mas sim assumo minha responsabilidade como duque e mantenho a posição e o respeito que mereço. E agora, se não tiver mais o que acrescentar ao meu comentário, eu gostaria de saber como deduziu que lorde Cooper assassinou a sua esposa - declarou.

Michael observou minuciosamente o rosto do duque. Não mentia. Suas palavras, seu tom e a forma relaxada de sentar lhe indicavam que não havia engano nele, só verdade, e isso deixou o inspetor impressionado. Poucos aristocratas podiam alardear serem honrados, salvo lorde Cooper, é óbvio.

- Primeiro me diga, por que tem certeza que o visconde é o assassino - pronunciou.

- Como já deve ter ouvido, era o amante de lady Cooper - disse William.

- Mas isso não é suficiente para matá-la. Se estudarmos quem dos dois possuía mais razões para fazê-la desaparecer, perderia seu amigo. O ilustre Gremont se veria na obrigação de procurar outra amante, em troca lorde Cooper se livraria de viver o resto de sua vida com uma esposa que, conforme tenho entendido, jamais o amou - manifestou triunfante.

- Segue sendo um inepto - acrescentou Roger com os dentes apertados. - Não é capaz de ver com claridade o evidente. Acaso lhe deram o cargo de inspetor a dedo?

- Meu amigo... - interveio com rapidez Rutland - se casou com a senhorita Midlenton por motivos que não nos incumbem, mas nunca faria mal à mãe de seu filho. Entretanto, soubemos por ele mesmo que pretendia romper esse matrimônio em breve.

- Um divórcio? - Perguntou assombrado. - Lorde Cooper pretendia divorciar-se? - William afirmou com um leve movimento de cabeça. - Então, a senhora Cooper seria uma mulher livre e poderia ter a vida que desejasse... - refletiu.

- E viver com seu amante - apontou Roger.

- Todo mundo sabe que o senhor Campbell, embora sua filha tenha se convertido em uma aristocrata após seu matrimônio, não aceita a dúbia moralidade inglesa - prosseguiu o duque. - Conforme tenho entendido, antes que se celebrasse o anúncio do compromisso, obrigou o visconde a assinar um documento no qual jurava que seria fiel à sua esposa; caso contrário, a viscondessa podia desfazer o matrimônio e levar consigo a fortuna de sua família.

- Não sabia que o senhor Campbell havia posto condições no matrimônio de sua filha... - murmurou reflexivo.

- A fama que possuem os Gremont alertara ao empresário. Como bem sabe, essa miserável estirpe tem um só objetivo na vida: contrair matrimônio com uma rica herdeira.

- Sei - determinou Michael.

Ele o tinha advertido sete anos atrás. Indicou-lhe que tomasse cuidado, que a separasse daquele inseto, mas não o escutou. Quando afinal descobriu que April se casaria com a pessoa menos adequada para ela, obrigou-se a não pensar mais na mulher. Custou-lhe dor, sofrimento e amargura entender que a tinha perdido para sempre, que não poderia alcançá-la, mesmo que se convertesse em um homem importante. Por isso evitou qualquer encontro com ela.

Para ele, April Campbell era só uma lembrança que desejava eliminar algum dia. Não obstante, o destino persistia em cruzá-la em seu caminho e ali estava, sete anos depois, dirigindo-se para uma residência que tinha vetado, para prender, ironicamente, o homem que lhe tinha arrebatado a possibilidade de ser feliz.

- Então? - Insistiu Rutland arqueando as sobrancelhas.

- Um dos meus agentes que passeava perto do rio descobriu um corpo flutuando - começou a dizer. - Segundo seu testemunho, lançou-se à água para salvar a quem já não podia ser salva. Quando me chamaram apareci no lugar com um médico.

- Flatman? - Interessou-se Riderland.

- Não, o senhor Cox. É o médico que trabalha para a Scotland Yard – assinalou. - Este, depois do devido reconhecimento, informou-nos que tinha sido estrangulada, embora terei que levá-la ao necrotério para confirmar sua teoria. Também me advertiu que, pelo peso da mulher, era necessário, no mínimo, a força de dois homens para jogá-la ao Tâmisa.

- Com quem estava lorde Cooper no momento em que o deteve? - Perguntou de novo Roger.

- Com o cocheiro - declarou Michael incômodo.

- Por que supôs que lorde Cooper fosse o assassino? - Solicitou William.

- Porque era a única opção possível.

- Opção possível... - murmurou Riderland enquanto olhava com ferocidade ao inspetor e tocava o queixo. - Que maneira mais estranha de condenar um inocente! - Exclamou zangado.

- Ainda não se pode declará-lo como inocente – responder O´Brian. - Precisam me dar aquilo que necessito para inocenta-lo, se é que o conseguem...

- Assim o terá - sentenciou Roger. - Esse bastardo cantará como os anjos quando minhas mãos apertarem sua garganta. Assim poderá sofrer em sua carne o que padeceu a esposa do meu amigo.

- Não permitirei que o agrida! - Anunciou O´Brian.

- Está seguro disso, inspetor? - Perguntou Roger estreitando os olhos.

É óbvio que não permitiria que Riderland estrangulasse o visconde. Se fosse culpado, se de verdade tinha matado a mulher, a justiça devia cair sobre o criminoso e julgá-lo como requeria um assassino. Embora, para seu prazer, a ideia de lhe fazer pagar cada minuto e cada segundo que abrangiam os últimos sete anos de sua vida era cada vez mais bem-vinda.

- Preparem-se! - Advertiu-lhes William quando observou a residência de Gremont. - Estamos chegando.

- Há luz na janela da direita - comentou O´Brian.

- Esse bastardo está nos esperando... - murmurou Riderland com um tom de voz tão diabólico que deixou alerta aos dois homens.

O primeiro a sair foi William, depois Roger e em último lugar, Michael. O inspetor sentia uma forte pressão no peito que se acentuou ao contemplar a residência onde tinha vivido April nos últimos sete anos. Mal tinha notícias dela, tampouco indagou sobre sua vida. Para quê? Conhecer sua felicidade após converter-se em viscondessa só lhe provocaria mais dor. Então evitou tudo aquilo que incluía ao senhor Campbell e ao resto de sua família. É óbvio, ofereceu os serviços pertinentes cada vez que o empresário requereu seu amparo ou investigação, mas nunca se apresentou ante ele, sempre enviava um de seus agentes.

Michael considerou com rapidez que repercussões sofreria April se de verdade seu marido tinha assassinado a mulher. Milhares de ideias apareceram em sua mente e, muito ao seu pesar, nenhuma o agradou. O mais adequado, o que todo mundo fazia ante um escândalo de tal proporção, era partir de Londres para não sofrer o calvário que padeceria depois. Ela partiria? Ela também poria distância para não ser humilhada? De repente, ao meditar sobre isso, teve vontade de estrangular ele mesmo ao visconde por coloca-la em uma situação tão horrível.

Era uma boa alternativa partir, mas ele não desejava que atuasse desse modo. Seu coração, aquele que tinha mantido resguardado sob uma couraça de ferro, pulsava desenfreado ao imaginar que, se ela decidisse viver na cidade e confrontar com integridade sua nova vida, ele poderia retomar o que deixou no passado. Agora já não era um simples agente de rua, converteu-se em um inspetor afamado por seu trabalho e temeridade. Bastariam a April essas qualidades para aceitá-lo?

- A porta se abre - informou Roger avançando para a entrada a grandes passadas.

Michael correu atrás dele. Não podia permitir que o marquês realizasse uma imprudência e muito menos diante de uma autoridade policial.

- Boa noite - saudou Riderland a um homem que saía do local com uma pequena bolsa na mão. - Parte? - Perguntou cravando seu olhar na bagagem.

- Excelências! - Exclamou o homem ao perceber a presença de dois nobres cavalheiros.

- Onde vai com tanta pressa? - Perguntou Michael colocando-se ao lado do marquês para que o criado não tentasse escapar.

- Eu... eu... - gaguejou o lacaio. - Despediram-me - disse enfim. - O visconde decidiu prescindir de meus serviços.

- Por qual motivo? - Perguntou William, que apareceu atrás do inspetor e de Riderland.

- Temo que já não sou mais útil - declarou tremendo.

- E... como foi útil até agora? - Perguntou O´Brian arqueando suas escuras sobrancelhas.

- Senhor... Excelências... eu não sabia... juro-lhes por minha vida que eu não sabia... - começou a choramingar ao mesmo tempo que soltava a bagagem e apoiava a testa no marco da porta. - Se soubesse a intenção do visconde eu... eu...

- Tranquilize-se... pode nos dizer se o visconde está em casa? - Disse Michael com um tom suave para que o criado começasse a relaxar-se.

- Encontra-se no salão diurno, - informou sem separar a testa do marco - desceu para beber.

- Está celebrando sua proeza? - Perguntou Roger cravando seus olhos no homem que, não só mostrava em seu rosto a imagem da culpabilidade, mas também tristeza e dor.

- O que ocorreu? - Perguntou Rutland abrindo passo entre os dois.

- Não sei... - murmurou o criado elevando o olhar para o duque. - O amo ia visitar a casa anexa. - Indicou o lugar com uma mão tremente. - Estava acostumado a fazê-lo quando ela aparecia.

- Como chegava até ali? - Interessou-se Riderland. Até o momento só tinham tido conjecturas e estava ansioso por revelar o segredo.

- Na adega há uma passagem que conduz até a residência sem ter que cruzar o jardim. Os primeiros viscondes ordenaram construí-lo para que ninguém descobrisse suas aventuras impudicas – indicou. - E, igual aos seus antecessores, o atual visconde o utilizava quando ela aparecia. Sempre atuavam da mesma forma, Excelência. Ela colocava um lenço na janela e ele desaparecia do local.

- O que ocorreu esta noite lá dentro? - Intercedeu o inspetor.

- Quando o lenço apareceu, lorde Gremont foi à cozinha para me indicar que devia acompanhá-lo. Não sabia o motivo pelo qual me requeria em uma situação assim, pensei... acreditei...

- Em quê? - Cuspiu Roger.

- Pensei que me necessitava para jogá-la da casa - disse mediante um suspiro. - Há alguns dias, o senhor Campbell lhe deu um ultimato e lorde Gremont estava de muito mau humor. Entretanto, o amo não desejava que a jogasse, mas sim depois de falar com ela e de... e de...

- Prossiga – animou-lhe Rutland.

- Podia ter evitado, sua Excelência - confessou chorando ao mesmo tempo que colocava suas palmas sobre o rosto. - Podia ter impedido que a estrangulasse, mas senti medo e fiquei imóvel enquanto lady Cooper perdia a vida nas mãos do meu senhor - declarou. O corpo do servente perdeu estabilidade e esteve a ponto de cair, mas Michael e Roger conseguiram deter a queda colocando seus braços sob as axilas do lacaio. - Se tivessem visto como eu vi, aqueles olhos abertos..., aquela luz apagar-se..., como ela suplicava por sua vida e pela do filho que tinha em suas vísceras...

- Estava grávida? - Perguntou O´Brian horrorizado.

Se até agora lhe estava parecendo uma narração terrível, o fato de averiguar que aquele demônio não só tinha tirado a vida de uma mulher apaixonada, mas sim também a de uma criatura que mal tinha começado a viver, causou-lhe tal ira que notou como suas bochechas alcançavam uma temperatura semelhante ao inferno.

- Sim e, conforme gritou lady Cooper, era filho do próprio visconde - revelou entre lamúrias.

- Agora entendo... - refletiu Rutland entrando no hall do local. - Incorpore-se...

- Shoel - informou o criado.

- Bem, incorpore-se, Shoel, e dirija-se ao salão onde se encontra o visconde para informar-lhe que tem uma visita - ordenou Michael adquirindo o porte de homem implacável e judicial.

- Não precisa, eu mesmo me anunciarei... - resmungou Roger.

- Não, tem que ser o criado a aparecer primeiro frente ao visconde - apontou Rutland. - Se tem uma passagem na adega poderia haver mais por toda a casa e então esse inseto nos escaparia.

- Quer que... deseja que...? - Titubeou o criado.

- Não lhe poderá fazer mal. Nós velaremos por sua segurança - esclareceu Michael.

O servente os observou durante uns segundos. Depois de pesar as opções, estirou a jaqueta e caminhou para o salão sob o atento olhar dos três homens. Tocou a porta. Tocou várias vezes porque não foi escutado nem à primeira nem à segunda.

- milorde... - disse o criado fazendo uma leve genuflexão ao visconde.

- O que faz ainda aqui? - Soltou irado Gremont. - Não te disse para partir?

- milorde... tenho que insistir que... - tentou falar.

- Não pretende me chantagear, não é, ingrato? – Berrou. - Não tem o suficiente com a bolsa que te dei? Quer mais?

- Milorde, por favor... necessito...

- Não necessita de nada, miserável bastardo! - Uivou. Tomou o que se serviu no copo e caminhou com os olhos injetados em sangre para o lacaio. - Quer ter a mesma sorte? – Cuspiu. - Porque estas mãos... - disse levantando-as para mostrar - têm força suficiente para deixa-lo também sem ar - declarou apertando os dentes. - Conforme dizem, os homens se asfixiam com mais facilidade que as mulheres e não me importaria...

Não precisaram de nada mais. O criminoso tinha confessado sem ser consciente disso. Roger, enfurecido, avançou para o salão e gritou:

- Também têm suas mãos a força suficiente para jogá-lo no Tâmisa? - Sem deter seu passo aproximou-se do visconde e o agarrou pelo pescoço. Seu desejo por estrangulá-lo, por lhe tirar a vida como tinha feito com Caroline, não lhe deixava raciocinar. - Isto é o que procurava, O´Brian? - Perguntou ao inspetor ao perceber que estava atrás de suas costas.

- Muito me temo que não sei a que se refere, Excelência - comentou com sarcasmo. Deviam ser suas mãos as que pressionavam aquele pescoço, devia ser ele quem observava como aqueles olhos malvados pediam clemência. Não só o canalha tinha destroçado uma família, mas sim também arruinaria a vida de April. Esse sentimento, mais poderoso a cada segundo, nublou sua mente lhe fazendo esquecer que se convertera em uma pessoa leal à lei. - Só vejo um maldito rato que deve ser aniquilado antes que propague a peste por toda Londres. Não lhe parece? - Se o matasse, se as mãos de Riderland finalizassem aquela maldita vida, ele mesmo anunciaria que o visconde havia se suicidado devido ao ato tão deplorável que tinha cometido.

- Por uma vez, meu querido inspetor, - falou Roger com entusiasmo - estamos de acordo. Mas acredito que será a justiça que determinar o que será deste bastardo - indicou descendo o visconde devagar.

- Do que me acusam? - Perguntou Eric com o rosto sem cor. - Não disse nada e vocês não comentaram nada. Só...

Então Michael escutou uns passos entrando no salão. Voltou-se para a pessoa que chegava rezando para que não se tratasse de April. Não suportaria ver em seu rosto o desespero de uma mulher aterrorizada. Mas, por sorte, não era ela, e sim o duque. Jamais imaginou que um homem com certa parte de seu corpo imprestável pudesse oferecer tanta magnificência, poder e determinação. Como teria sido o duque quando seu corpo era perfeito? Que medos suscitaria àqueles que o observassem? Não podia recordar nada de Rutland daquele tempo, mas reteria em sua memória aquele momento.

- Vou velar para que cada ano, cada mês, cada semana, cada dia e cada hora que reste de vida, apodreça no buraco ao qual pretendeu colocar um homem inocente. Espero que Deus seja o suficientemente justo para que os filhos dos meus filhos prossigam com meu legado - ameaçou.

- Sou inocente de tudo o que tentam me acusar! - Clamou aproximando-se indevidamente do duque.

William o olhou tranquilamente, pegou com força a bengala e esperou que este se atrevesse a tocá-lo para golpeá-lo, mas não precisou. Antes de piscar, Roger tinha se colocado ao seu lado.

- Dá um passo mais e o mato aqui mesmo - rugiu o marquês.

Atento à cena dos três aristocratas, O´Brian pensou que já era o momento de dar por finalizada a cena de ameaças e juramentos. Colocou-se atrás do visconde e, depois de observar com repugnância que não usava nada embaixo daquela bata de seda, disse:

- Deixem de uma vez por todas que a justiça se ocupe disto. Senhor Graves...

- Lorde Gremont! - Corrigiu-o zangado.

- Lorde Gremont, - repetiu com um sorriso de orelha a orelha - permitirei que seu criado o vista devidamente antes de partirmos à Scotland Yard. Não tenho que lhe explicar do que é acusado, não é? - Perguntou cravando seu olhar como se pudesse atravessar com ele a cabeça do visconde. - Cavalheiros, deixemos-lhe um pouco de intimidade - indicou assinalando com a mão para a porta.

Como três cavalheiros respeitáveis, abandonaram o salão para aguardar que vestissem ao visconde como devia. Michael pensava no acontecido quando escutou que o marquês murmurava algo.

- O que acontece? - Interessou-se voltando-se para ele.

- Não é justo - grunhiu Roger.

- O que não é justo? - Demandou Michael.

- Que esse bastardo siga com vida depois de aniquilar não só com a vida de uma mulher inocente, mas também a de seu próprio filho - esclareceu.

As más lembranças, as más ações de sua mãe, golpearam sua mente com força. Sairia também impune aquele bastardo? Tal como não cessava de repetir o inspetor, a aristocracia fazia o que lhe convinha com a justiça.

- Temos que ter fé na justiça, Riderland. Ela é a que condena a rufiões como esse - alegou O´Brian.

- Mas sabe tão bem como eu que muitos dos que possuem um título raramente recebem seu castigo.

Dava-lhe a razão? O grande marquês de Riderland opinava igual a ele? Michael esteve a ponto de soltar uma enorme gargalhada, embora a reprimiu bruscamente ao escutar um ruído no piso de cima. Dirigiu seus olhos para o patamar e ficou sem respiração. Ali estava April, desconcertada, atemorizada e cobrindo seu pequeno corpo com um objeto tão fino que qualquer dos presentes podia admirar suas curvas. Desceu as escadas gritando, chorando. Seu cabelo solto, como ela deveria usar quando descansava, tentava manter-se dois passos atrás dela.

- Eric! Eric! O que acontece? - Exclamou enquanto descia as escadas e contemplava com pavor os três homens que havia no hall. - Onde está?

Justo no instante em que April desceu o último degrau e tentou virar-se para o lugar onde devia encontrar seu marido, umas grandes mãos a capturaram a impedindo de finalizar seu propósito.

- Desculpe minha ousadia, senhora - disse uma voz atrás de suas costas. - Você não pode falar neste momento com seu marido porque tem que ser preso...

- Preso? - Soltou ao mesmo tempo que se virava para a pessoa que seguia tocando seu corpo descaradamente. Elevou seus olhos e tentou averiguar de quem se tratava, mas não o reconhecia...

- Seu marido será julgado por assassinato - informou-a sem piedade.

Era muito duro para ele descobrir que tudo o que sentiu no passado retornava ao presente com força. Talvez por isso não foi capaz de medir suas palavras ao encontrar-se em frente a ela. Em qualquer outro lugar e com outra esposa de um criminoso, teria atuado com precaução. Entretanto, com April não podia ser o homem da lei que era.

Michael zangou-se consigo mesmo, gritando-se que devia liberá-la de seu aperto, que esquecesse aquela sensação de prazer que notava ao colocar suas mãos sobre a leve roupa. Mas estava tão formosa, cheirava tão bem... que não pôde controlar-se. Odiou ter que admitir que poderia ter posto terra, mar e ar entre os dois, mas ao vê-la de novo seu coração emergiria do estado de letargia no qual tinha sido obrigado a permanecer.

- Assassinato? Mentira! Eric não é capaz de matar a ninguém! - Defendeu-o ao mesmo tempo que começava a golpear o firme peito do agente.

- Senhora, por favor... - rogou O´Brian. Não sentia dor por esses golpes, mas sim um prazer tão exorbitante que seguia sem soltá-la apesar de ter sobre sua nuca dois pares de olhos que os observavam absortos e mudos.

- A quem? A quem se supõe que meu marido matou? - Perguntou colocando suas mãos abertas naquele peito que tinha golpeado, olhando-o com os olhos repletos de lágrimas.

Michael não sabia como afastar suas mãos dela. Por mais que se obrigava a fazê-lo, não era capaz de retirar seus dedos daquela cintura. Um repentino calor irradiou através deles e notou como se acelerava seu coração. Para seu pesar, ele ia ser a pessoa que lhe explicaria a notícia mais aterrorizante de sua vida. Cada vez que se lembrasse desse dia, sua memória lhe ofereceria a imagem do homem que a informou e, como fizeram muitas esposas com antecedência, iria odiá-lo com todas as suas forças. «Maldito desgraçado!», exclamou uma voz em sua mente. Desejava mudar o passado, desejava que ela jamais tivesse fixado seus olhos naquele maldito, desejava haver se apresentado naquela festa sendo o homem que era agora...

- A lady Cooper - disse ao fim.

O´Brian percebeu como ela abria os olhos, o pânico se apropriava de seu rosto e era incapaz de negar o evidente. Sabia. Ela sabia que lorde Gremont mantinha um idílio com a esposa de Cooper. Ao mesmo tempo que tentava averiguar por que uma mulher como April suportava um caso de seu marido, percebeu que o corpo dela se afrouxava. Começava a escorregar de suas mãos, então a agarrou com mais força para evitar que caísse.

- Lady Gremont! - Exclamou preocupado, angustiado ao ver como seus olhos se voltavam brancos, seu cabelo se estendia para baixo e a energia de seu corpo desaparecia. - Podem me ajudar? - Perguntou aos dois cavalheiros que ainda seguiam mudos, pétreos, incapazes de interromper o momento que vivia nem com um só monossílabo.

- Sinto-o... - disse Roger levantando as palmas e desenhando um grande sorriso em seu rosto - se minha esposa descobrir que tive outra mulher em meus braços, logo a teria em sua delegacia de polícia.

Michael dirigiu o olhar para Rutland, suplicando auxílio.

- Eu adoraria ajudar inspetor, mas como comprovou, só tenho uma mão obediente. – Apesar de seu tom sério, O’Brian sabia que o sarcasmo estava impresso em suas palavras. Não, é óbvio que nenhum dos dois o ajudaria a afastar-se daquela mulher. Por que demônios se desentendiam dessa forma?

- Senhor! O que se passa? Milorde! Responda! - Gritou o servente que tinha ido arrumar Gremont.

O inspetor abriu os olhos como janelas. Desejava averiguar o que acontecia no interior do salão, mas estava ocupado sustentando April em seus braços. Durante uns milésimos de segundo considerou a possibilidade de chamar um dos criados para que se ocupasse dela, mas só em pensar que alguém mais pudesse tocar seu corpo, admirar seus pequenos seios ou apreciar aquela marca em forma de coração que o decote de sua roupa mostrava fez com que crescesse em seu interior um instinto de posse inaudito. Nesse instante percebeu que o duque e o marquês acudiram aos gritos do lacaio, adiantando-se à única pessoa com legítima autoridade. Michael respirou fundo e vociferou:

- Não há ninguém que possa me ajudar?

- Senhor... - respondeu uma voz de mulher.

- Indique-me onde fica o quarto da senhora Campbell! - Ordenou.

- Sim, senhor - disse a criada correndo escada acima.

Michael não olhou um só momento onde pisava. Seus olhos eram incapazes de afastar-se do corpo de April. Não devia observá-la dessa forma. Não devia apreciar cada parte de sua figura sob a roupa. Entretanto, muito ao seu pesar, estudou cada pedaço dela como se fosse um tema importante. Suas mãos, seus pés, sua cintura, as voluptuosas nádegas, seus pequenos seios, o fino pescoço, as perfeitas orelhas..., nada da mulher ficou sem revisar. Não a recordava dessa forma. Possivelmente porque em seu último e único encontro não tinha podido contemplá-la tão de perto, tão débil ou com tão pouca roupa...

Um nó apareceu em sua garganta. Odiava-se. Michael começou a odiar-se por sua atitude imprópria. Era um inspetor, um homem da lei, um ser que tinha jurado salvar a alma de outros para assim fazer descansar a sua. Mas ela o deixava louco. Aconteceu no passado e estava acontecendo naquele momento. Recordou como respirou agitada quando lhe disse o que lhe faria se a tivesse ao seu lado, se a convertesse em sua mulher, e como seu pelo se arrepiou ansiando o que lhe confessava. Se tivesse estado confuso na conjectura do que seu coração lhe gritou sobre ela, a mulher teria atuado de maneira diferente. Em nenhum momento se teria ruborizado pela excitação, nem teria respirado entrecortadamente, nem teria apreciado como sua pele despertava ante suas indevidas palavras ou sobre a cena que lhe narrava.

Ela era tão obscura como ele. Não lhe cabia dúvida alguma e, embora lhe custasse o resto de sua vida, April Campbell, jamais voltaria a ser chamada viscondessa de um bastardo, terminaria sendo sua para sempre.

- Senhor, pode deixá-la em seu leito - sugeriu a donzela colocando os lençóis.

O´Brian entreabriu seus olhos ao encontrar a cama desfeita. Inspirou profundamente procurando descobrir se ela tinha estado com seu marido momentos antes de sua chegada. É óbvio que sim. A habitação desprendia aquele aroma de sexo e suor tão peculiar. Quis soltá-la na cama, voltar para o salão e dar um murro no visconde pela raiva que lhe causaram os ciúmes. Mas se conteve. No futuro, quando conseguisse tê-la, porque a ia ter, apagaria de sua pele qualquer marca que ele tivesse deixado nela. Eliminaria todas com suas mãos, com seus beijos e com muitas coisas mais que não desejava pensar nesse instante.

- Traga uma taça de xerez com láudano. Deve relaxar depois do ocorrido - ordenou ao mesmo tempo que a colocava sobre a cama.

- Sim, senhor - respondeu a criada saindo da habitação com rapidez.

Michael ficou olhando-a durante uns segundos. Seu cabelo de diferentes tonalidades se estendia pelo travesseiro, seu corpo permaneceu tal como a tinha colocado e notou sua respiração lenta, muito lenta. Abaixou com calma a cabeça e deixou que o calor de seu fôlego tocasse seu rosto. Pareceu-lhe estar no Éden ao sentir aquela respiração, no próprio céu ao apreciar o calor de sua boca. Levantou devagar seu rosto, admirando as sardas de seu nariz, a forma de seus cílios, a ponta do nariz e seus lábios... uns lábios que convidavam a beijá-la, a desfrutá-la, a imaginá-la em mil situações perversas.

O´Brian fechou seus olhos acreditando que desta forma podia eliminar todos aqueles pensamentos irracionais e inoportunos, mas não conseguiu. Abriu-os de novo e aproximou sua boca para beijar aqueles lábios. Foi sua perdição. Aquele pequeno ato foi o princípio de seu fim porque, quando se distanciou de April descobriu que não se conformaria com tão pouco. Desejava tudo...

- Está morto! - Exclamou a criada horrorizada. As mãos lhe tremiam e a taça se movia tanto que a qualquer momento cairia ao chão.

- Quem morreu? - Perguntou o inspetor correndo para ela.

- O senhor. O senhor morreu - respondeu aterrorizada.

Michael não quis olhar April de novo porque, se o fizesse, não teria a força necessária para descer e averiguar o que estava ocorrendo. Caminhou com passo rápido pelo corredor, desceu as escadas sem mal as tocar e correu para o salão. Quando entrou e observou a cena, olhou ambos os lordes abrindo os olhos como pratos.

- O que aconteceu? - Trovejou o inspetor entrando na habitação como um raio.

- Até onde posso dizer, esse bastardo não tinha dúvida de que seria culpado pela morte de lady Cooper e tramou também a sua - comentou Rutland dirigindo a bengala para a garrafa que havia sobre a mesa.

- Maldita aristocracia! - Berrou O´Brian. - Nenhum tem o valor suficiente para enfrentar suas próprias ações. São uns covardes, uns asquerosos petulantes!

- Tomarei como um elogio - apontou Roger.

Estava a ponto de responder ao marquês com um impropério quando Rutland caminhou para ele e se colocou justo a sua frente. A imagem solene, reta e autoritária do duque seguia sem alterar-se. Michael pensou que um homem com o caráter do duque ofereceria um excelente trabalho como magistrado. Mas... aceitaria abandonar a pessoa em que se converteu?

- Quando o liberará? - Perguntou sem afastar os olhos escuros dos seus.

- A quem? - Grunhiu o agente ao ser consciente de que aqueles dois aristocratas haviam resolvido seu caso.

- Ao inocente que retém na Scotland Yard - particularizou o duque com seriedade.

- Assim que retornar à delegacia de polícia - respondeu.

- Pois se não se importa, - interveio Riderland - estaremos encantados em o acompanhar. Como pôde observar, há muitos perigos nesta cidade e nem o duque nem eu podemos permitir que lhe aconteça nada...

- Não posso partir até que venha o médico.

- Para quê? - Quis saber William.

- Para que confirme a morte. Ele é o único que...

- Serve-lhe isto, senhor inspetor? - Roger agarrou o corpo sem vida do Eric pelos braços, levantou-o até a altura de seus joelhos e o deixou cair ao chão.

- Valha-me Deus! - Exclamou Michael assombrado.

- Sim, acredito que verdadeiramente o visconde está morto - acrescentou William antes de soltar uma enorme e sonora gargalhada.


II


Haviam passado seis meses da morte do visconde. Durante esse período Michael esteve estudando exaustivamente o caso. Por mais que lorde Rutland e lorde Riderland alegassem que ele havia se suicidado, não podia concluir convincentemente que fora assim. Era certo que a aristocracia tomava a justiça à sua conveniência, mas seus anos de experiência lhe advertiam que nem tudo era o que parecia. Por isso, depois de liberar lorde Cooper e presenciar uma cena de amor em frente à delegacia de polícia, retornou a casa dos Gremont com dois agentes e com o senhor Cox, o médico que trabalhava para eles. Mal pôde respirar quando observou April descer de novo as escadas. Tinham-na ajudado a vestir-se e usava luto rigoroso. Não lhes dirigiu a palavra, manteve-se calada enquanto chorava sentada junto ao cadáver de seu marido. Aquela cena lhe rasgou a alma. Amava-o. A Michael não ficou mais remédio que assumir que ela amava seu marido, embora fosse um canalha. Por uns instantes pensou em abandonar a ideia de corteja-la e acreditou que o melhor para ambos seria evitá-la de novo. Entretanto, seu coração se opunha.

- Não há nenhuma dúvida - disse Cox. - O visconde foi envenenado.

O´Brian olhou a garrafa que ainda permanecia sobre a mesa. Caminhou para ela e franziu levemente o cenho ao ler a etiqueta. Não era habitual que um homem que sobrevivia com a renda que oferecia o senhor Campbell à sua filha se permitisse o luxo de gastar a incrível soma que custava aquele licor. Girou a cabeça para April perguntando-se se ela sabia quando seu marido tinha adquirido tal requinte. Entretanto, não desejava lançar uma hipótese alarmante diante de todos os que ali se encontravam e em um momento tão inapropriado. Não obstante, tirou seu lenço branco do bolso, estendeu-o com um suave movimento e recolheu com este a garrafa.

- Levarei isso para estudar - comentou à desconsolada viúva, que não levantou o rosto para afirmar ou negar.

- Pegue o que desejar – murmurou. - Já não há nada aqui que me interesse.

- O que fazemos com o corpo? - Perguntou um dos agentes.

- Não o levem assim! - Gritou April elevando-se com rapidez do assento. - Não quero que ninguém o veja desta forma.

O agente olhou para Michael esperando uma resposta. Ele só pôde assentir e, depois de observar como uma das donzelas agarrava a viúva pelos ombros para consolá-la, saiu da residência levando em uma mão a suspeita garrafa.

- Quantas pessoas desta cidade você crê que podem adquiri-la? - Perguntou ao médico mostrando a etiqueta.

- Poucos, inspetor. Uma bebida assim só a compra quem tem as arcas cheias - indicou Cox.

- Isso que temia...

E, é óbvio, descobriu quem a tinha comprado: o senhor Campbell. Entretanto, não estava claro que este tivesse a intenção de envenenar o marido de sua filha. O próprio visconde, em um ato de maldade para com o pai de April, pela maneira como o tinha feito viver podia ter introduzido o veneno. Dessa forma, depois de morto, destruiria a pessoa que o impediu de obter o que ansiava: fortuna e poder.

Michael ajustou o casaco, respirou fundo e subiu as escadas que o levavam à entrada dos Campbell. A última vez que apareceu naquele lugar fugiu apavorado, mas nesta ocasião tudo era diferente. Já não era um simples agente, e sim um inspetor cuja fama de cão de caça e implacável se propagou por toda Londres como a pólvora. Estendeu sua mão para a aldrava e golpeou a porta duas vezes. Jogou uns passos para trás e esperou ser recebido.

- Boa tarde, milorde - saudou o mordomo, que, para seu deleite, era o mesmo que o recebera anos atrás.

O´Brian esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao contemplar o criado. Desta vez não o olhou de cima a baixo com repulsão e sim com respeito. Como se frente a ele se encontrasse um cavalheiro aristocrático. E o entendia. Vestiu-se de propósito como um deles. Seu traje, o colete, seu casaco e inclusive o lenço os tinha comprado sob a supervisão da senhora Warren que, desde que a contratou como governanta, não permitia que seu amo saísse à rua indevidamente.

- Sou o inspetor O´Brian - esclareceu para que não continuasse dirigindo-se a ele de maneira inadequada. - Eu gostaria de falar com o senhor Campbell se estiver em casa.

- Inspetor O´Brian?! - Perguntou abrindo os olhos como pratos. - Oh, sim, sim. Desculpe-me. Entre, por favor. Agora mesmo informarei ao senhor de sua chegada - comentou alterado. - Se me permite, - acrescentou estendendo suas mãos para ele – guardarei seu casaco.

- Não se incomode, obrigado. Será uma visita curta - respondeu Michael após avançar para o interior da casa.

- Como desejar - disse Larson antes de caminhar com rapidez para o corredor a esquerda.

Michael olhou ao seu redor. Nada tinha mudado desde a última vez. Continuava tudo da mesma maneira. Instintivamente olhou para o primeiro piso, esperando que April aparecesse como o fez anteriormente porque, se não estava mal informado, e não o estava com respeito à nova vida da viúva, ela tinha retornado ao lar familiar, após pôr à venda a mansão em que viveu com seu marido. Houve boatos que o próprio Campbell tentou comprá-la para destruí-la com suas próprias mãos, mas ela se negou a tal selvageria. Preferia vendê-la a outra família para que a residência tivesse o calor humano que não tinha tido. «Sentimental...», refletiu O´Brian. April era uma mulher muito sensível e essa qualidade possuíam muito poucas damas da alta sociedade. Quase todas as que tinha conhecido após converter-se em inspetor acreditavam que ser uma pessoa sentimental era patético. Nunca encontrou entre as mulheres que o rodearam uma emoção tão básica. Atuavam com aborrecimento, como se nada ao seu redor valesse a pena. Nem sequer ele...

Em mais de uma ocasião se encontrou com damas que só desejavam cair em seus braços para alardear sobre a paixão e a luxúria de um homem tão popular. Frieza. Isso achou nelas e eliminou qualquer amante que só ansiasse beijos e carícias. Ele preferia outro tipo de sexo. Um que o fizesse finalizar a noite com as pernas tremendo de prazer e debilitado pelo esforço. Essa era a principal causa pela qual visitava o Clube uma vez ao mês. As reuniões proporcionavam à besta que habitava nele a calma necessária para continuar tendo a vida social que lhe correspondia.

- Senhor O´Brian, - falou o criado com suavidade, como se não quisesse sobressaltar seus pensamentos - o senhor Campbell o receberá agora mesmo. Se for amável em me acompanhar.

Michael não respondeu, dedicou-se a segui-lo sem afastar o olhar das escadas... esperando-a.

Uma vez que o lacaio parou em frente à porta, voltou a chamar e aguardou que o senhor Campbell lhe permitisse abrir.

- Adiante - indicou Norman, que recebeu o inspetor de pé atrás de sua mesa de trabalho.

- Senhor Campbell - saudou Michael caminhando para ele com a mão estendida para saudá-lo.

- Inspetor O´Brian - disse aceitando a saudação. - Sente-se por favor. Quer uma taça? Um xerez, possivelmente? - Perguntou assinalando a garrafa de cristal esculpida que havia sobre uma bandeja de prata.

- Não, obrigado - respondeu desenhando um sorriso em seu rosto. Jamais beberia alguma coisa daquele homem sem ter analisado antes.

- Está bem - disse Norman tomando assento. - Imagino que sua presença em minha casa se deve à minha última aparição na Scotland Yard, equivoco-me? - Soltou.

- Equivoca-se - negou solene. - Vim por outro motivo.

- Outro motivo? - Disse arqueando as sobrancelhas.

- Eu gostaria de o informar sobre os últimos descobrimentos que obtive a respeito da morte de seu genro. O tema pelo qual você apareceu em meu escritório não é viável - informou.

- Não é viável? - Perguntou elevando indevidamente a voz. - A liberação de uma pessoa inocente não é viável?

- O criado ajudou o visconde a lançar o corpo sem vida de lady Cooper e, depois de fazê-lo, converteu-se em cúmplice de um assassinato - explicou ao mesmo tempo que desabotoava os botões de seu casaco.

- Obrigaram-no! - Exclamou zangado. - Aquele bastardo obrigou o empregado dele e, se por acaso não sabe, nenhum criado pode negar-se a obedecer seu amo.

- Posso lhe assegurar que há criados que não só desobedecem seus senhores, mas sim lhes indicam o que devem fazer. - Sorriu maliciosamente ao recordar como se comportava a senhora Warren com ele.

- Conheço esse moço desde que saiu das vísceras de sua mãe - disse apertando os dentes. - Foi educado desde o berço a acatar as ordens da pessoa a quem serve e jamais se atreveria a opinar sobre os atos que o obrigam a realizar.

- Poderia ter recusado... - refletiu O´Brian.

- Em troca de sua própria vida? - Perguntou Norman irado. - Aquele bastardo não teve escrúpulos para assassinar uma mulher que trazia em seu seio o seu próprio filho, e acredita que teria piedade de um criado com opinião? - Prosseguiu com ira.

- Senhor Campbell, não me cabe dúvida de que tenta salvar um bom homem, mas a justiça é implacável - declarou.

- Quanto vale essa justiça? - Perguntou enquanto colocava em frente a Michael um talonário. - Diga-me qual é a quantidade adequada e a darei agora mesmo.

- Acredita que vim até aqui para solicitar um suborno? - Gritou o inspetor horrorizado. Levantou-se bruscamente de seu assento, fazendo com que suas panturrilhas golpeassem a cadeira e esta caísse ao chão.

- Eu não o chamaria assim - acrescentou Norman baixando o tom de sua voz. - Mas sim uma simples troca. Eu lhe proporciono a quantidade suficiente para que possa viver comodamente o resto de sua vida e você me devolve uma pessoa inocente.

- Maldito seja! Está louco? - Clamou fulminando-o com o olhar.

- Não estou louco, senhor O´Brian, só necessito...

- Foi assim que se desfez do visconde? Mediante uma troca? - Cuspiu após colocar suas grandes palmas sobre a superfície da mesa.

- Como diz? - Solicitou Norman fixando seus olhos escuros nos do inspetor.

- Lorde Gremont morreu por envenenamento, isso já sabe, mas minha pergunta é... envenenou-se ou o envenenaram? - Revelou estreitando os olhos.

- Se você está tentando me culpar pela morte daquele cretino, tenho que esclarecer que se equivoca. Se quisesse me desfazer do visconde, só teria bastado lhe oferecer a quantidade que pensava lhe dar.

- Então... pode me esclarecer por que lhe deu de presente a garrafa onde se encontrou o veneno? Não lhe parece estranho, senhor Campbell, oferecer um presente assim a uma pessoa que não é de seu agrado?

- A dei de presente porque, depois de manter um bate-papo, chegamos a um acordo. E como você compreenderá, não sabia que Gremont encheria um licor tão requintado com veneno. Isso me confirma que o mel não é um manjar para porcos - disse sem mostrar em seu rosto nem um ápice de zombaria.

- Você está brincando comigo, senhor Campbell? - Inquiriu furioso.

- Brincar com um homem de sua fama? Eu? Como pode pensar tal tolice? - Perguntou com uma aparente inocência.

- Se eu descobrir que foi você quem assassinou o visconde, seu dinheiro não lhe servirá para...

- Boa tarde... - interrompeu a voz de uma mulher.

April apareceu na porta causando um rápido mutismo em Michael. Este levantou as mãos da mesa como se queimasse e saltou para trás.

- April! - Exclamou Norman ao ver sua filha caminhar para eles. - O que faz aqui? - Rodeou a mesa e se dirigiu para ela. Agarrou-a pelas mãos e lhe deu um terno beijo na bochecha. - Encontra-se melhor?

- Sim, pai, encontro-me melhor. Mas não vim até aqui para lhe falar sobre meu estado de saúde, e sim para averiguar por que gritavam - falou com um tom suave, mas firme. - Por que discutiam dessa forma? - Perguntou à figura que lhe dava as costas, aquela que não havia virado ante a presença de uma dama e que, por como esticava o corpo, não se sentia cômodo em sua presença.

- Não se preocupe, querida - tranquilizou Norman. - Não foi nada e o inspetor O´Brian já partia, não é?

- Inspetor O´Brian? - Disse elevando sua voz. - Você veio para nos informar sobre a liberação do Shoel? - Perguntou alarmada.

- Receio que não, querida - respondeu Campbell mostrando em seu rosto um terrível pesar. - O propósito do inspetor é bem diferente.

- Senhor O´Brian? - Inquiriu April enquanto caminhava para ele.

- Senhora Campbell - disse virando-se para ela e saudando-a com um leve movimento de cabeça.

- Agora sou a... - tentou esclarecer que era a viúva de Gremont mas não lhe saíram as palavras. Não se sentia a viúva de um ser que, não só a tinha enganado, humilhado ou destruído, mas sim também tinha posto em perigo seu pai e, se tivesse alcançado seu propósito, até o seu próprio. - Qual é o verdadeiro motivo de sua visita? - Insistiu.

- Já terminei a conversação e, como disse seu pai, devo partir - disse sério. Não queria lhe explicar o que lhe tinha proposto aquele insensato porque a faria sofrer. A melhor opção era sair dali o antes possível.

- E pretende me fazer acreditar que não aconteceu nada? Ou melhor... não quer falar com uma mulher - suspeitou sem afastar o olhar daquele rosto que tinha visto em várias ocasiões desde o suicídio de Eric.

- Não tem nada a ver com você ser uma mulher. Só quero lhe indicar que já terminei...

- Pode me agradar, por favor? – Perseverou. - Ficaria muito grata se me explicasse o motivo de sua visita. Como deve imaginar, todos estamos em um inferno desde o acontecido - indicou ao mesmo tempo que tomava assento na cadeira que havia ao lado de Michael.

Envergonhado por ter atirado ao chão o assento que tinha ocupado, O´Brian se apressou a pô-lo em seu lugar enquanto Norman se sentava no seu sem lhe importar que ela estivesse presente. Não atuava como o resto dos pais, sempre o tinha sabido. Mas estranhou que tampouco replicasse a insistência de sua filha por averiguar sobre o que tinham falado. Michael olhou de um a outro meditando se seria conveniente ser sincero.

- Perguntei ao inspetor sobre o Shoel mas, conforme entendi, deve cumprir a lei e esta o declarará culpado - começou a falar Campbell.

- Não acredito - disse April olhando o homem que tinha ao seu lado e que após considerar se devia sair dali ou sentar-se optou pelo segundo. - Shoel é inocente, só acatou a ordem que lhe impuseram.

- Isso não é suficiente para liberá-lo, senhora Campbell, - alegou Michael sem poder olhá-la - a lei diz que é cúmplice de um assassinato e deve ser julgado como tal - informou.

Respirava entrecortado e tentava manter a calma. Não podia perder sua compostura ao tê-la tão próxima e não podia deixar que sua mente lhe oferecesse aquelas imagens que o acompanhavam durante suas longas e angustiosas noites. Estava doente. Sim, era isso. E a enfermidade que padecia era o desejo pela mulher que permanecia junto a ele. Propôs-se evitá-la. Deus sabe que o tentou!! Mas assim como um peixe necessita da água para poder viver, ele necessitava de April mais do que desejava. Desde a morte de seu marido, sua ânsia de alcançá-la não tinha diminuído nem dizendo a si mesmo que era um objetivo impossível de conseguir. Vigiou-a. Até se manteve oculto atrás do tronco de uma árvore enquanto ela enterrava seu marido. Escutou-a chorar e observou como seus pais a acolhiam em seus braços para reconfortá-la. Ele ansiou tê-la daquele modo. Quis lhe sussurrar palavras alentadoras, entretanto, resistiu a isso com uma força desumana.

- O que necessita para liberá-lo? - Solicitou April esticando o tecido de seu vestido negro .

- É óbvio, não o que seu pai tentou me oferecer - murmurou mal-humorado.

- O que pretendia fazer? - Perguntou sem olhar a nenhum dos dois.

- Não é apropriado que você escute...

- Um suborno - esclareceu Norman sem rodeios.

- Um suborno? - Trovejou April. - Tentou suborná-lo? A um inspetor? Como lhe ocorreu tal tolice?

Michael desenhou um enorme sorriso em seu rosto, reclinou-se no assento e cruzou os braços. Aquela conversação começava a ficar muito interessante...

- Te ocorre outra maneira, April? Este cabeça dura se empenhou em fazê-lo pagar algo que não lhe corresponde - defendeu-se Norman ao mesmo tempo em que seu rosto se avermelhava.

- Mediante um suborno? - Repetiu a mulher levantando-se enfurecida. - Que imagem quer oferecer, papai? Diante de um inspetor!!

- Nem sempre foi inspetor... - murmurou Campbell. - Se por acaso não o recorda, tempos atrás foi um agente de rua e como tal...

- Pai! - Gritou desesperada. - Como pode falar desse modo? Acaso não escutou o que dizem sobre ele?

Michael esteve a ponto de perguntar o que se falava sobre ele, mas estava desfrutando tanto da situação que não soltou nenhuma palavra. Além disso, vê-la enfurecida e protegendo sua dignidade o deixou tão maravilhado que o reteria para sempre em sua memória.

- Todo mundo tem um preço... - alegou Norman em voz baixa. - E devia tentá-lo. Sabe melhor que ninguém o que Shoel fez por ti enquanto viveu com aquele... com aquele...

- Já basta! - Clamou April. - Sinto muito a indiscrição do meu pai, senhor O´Brian. Não o tenha em conta, rogo-lhe. A casa não está calma desde o acontecido e muito menos desde que... - calou-se. Abaixou a cabeça e apertou suas mãos.

- Desde que... - animou-a Michael. Observou como April se afligia e convertia suas mãos em pequenos punhos tentando evitar um soluço de angústia. Ao ver que ela não respondia, dirigiu seu olhar para o senhor Campbell, que empalideceu de repente. - O que me ocultam? - Solicitou o inspetor.

- Os pais do homem que você tem preso trabalharam para mim desde que comprei esta casa já há muitos anos - começou a dizer. - Como já lhe disse, vi como nasceu esse moço e...

- E? - Michael descruzou suas mãos e se inclinou levemente para diante, contemplando cada detalhe que expunha o rosto de quem falava.

- A lealdade da família Sellers para conosco é incalculável e, como é lógico, sempre velaram por nossa segurança. - Norman se reclinou no assento e colocou suas mãos como se fosse rezar. - Shoel descobriu que o visconde tinha outros planos...

- Outros planos? - Perseverou Michael arqueando as sobrancelhas enquanto seu coração começava a pulsar com mais força. Temia o que seria revelado. Sim, seu instinto advertia que a confissão que ia escutar lhe provocaria tal ira que, quando abandonasse a residência dos Campbell, se dirigiria ao cemitério, desenterraria o morto e o desmembraria com suas próprias mãos.

- Desejava me fazer o mesmo que fez à pobre lady Cooper... - disse April sem levantar a cabeça. - Shoel falou com seus pais sobre essas suspeitas, mas o senhor e a senhora Seller não acreditaram até que ocorreu a tragédia. Então, como pode supor, meu falecido marido pretendia me fazer desaparecer quando meu pai falecesse.

- Por que o visconde tramava matá-la? - Berrou Michael.

- Porque fingi estar doente - esclareceu Norman. - Durante bastante tempo quis saber se aquele canalha merecia ficar com tudo o que algum dia herdaria April e tracei um plano: fazê-lo acreditar que meu fim estava chegando. Mas para meu pesar, não só calculou a morte de lady Cooper, mas sim também tramou a da minha própria filha - confessou apertando a mandíbula.

- Mas continuo sem entender uma coisa... - murmurou Michael. - Se o visconde planejava matá-la depois de seu falecimento, por que se envenenou?

- Porque era um maldito covarde! - Gritou April voltando-se para eles. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e seu rosto estava pálido. Um tremor sacudiu seu débil corpo e Michael se levantou com rapidez para agarrá-la.

- Filha! - Exclamou Norman levantando-se veloz de seu assento.

- Sente-se... - sussurrou O´Brian enquanto a dirigia para a cadeira. - E respire tranquila. Devagar... assim, muito bem. Relaxe, o perigo já passou...

- Entende agora a razão da minha insistência em liberar o pobre moço? - Perguntou Norman colocando uma mão sobre o ombro de sua filha enquanto olhava o inspetor. - Não só lhe devo minha lealdade, por como se comportou comigo, mas sim lhe devo também o amparo que manifestou por minha filha durante os sete anos que permaneceu casada. Você sabe que April esteve de cama durante seis meses inteiros?

- Como? - Inquiriu Michael abrindo os olhos de par em par e revelando o azul intenso de sua íris.

- Pai... - suplicou a mulher.

- Não se dignou nem a chamar o senhor Flatman para que a visitasse e esteve doente a metade de um ano. Até que me impus, até que lhe dei um ultimato, aquele cretino não deixou entrar um médico - revelou irado.

- O que acontecia? - Demandou O´Brian olhando-a assombrado.

- Segundo o doutor, algo causou que meus ossos não pudessem manter meu peso. Mas, graças a Deus, depois desses meses a enfermidade desapareceu - disse April com a cabeça abaixada.

- E tem dúvida sobre seu próprio envenenamento? Pois não estranhe tanto. Juraria que esse desgraçado subministrou à minha filha algo que a deixou imóvel durante seis longos meses. Ou lhe parece lógico que ela começasse a recuperar-se depois da primeira visita do Flatman? É um bom médico, não o duvido, mas não acredito que faça milagres.

- Sei que é impróprio me escutar dizer estas palavras, senhor O´Brian, e que inclusive poderiam provocar certas suspeitas sobre a morte do meu marido, mas lhe asseguro que dou graças a Deus todos os dias por havê-lo enterrado, porque, do contrário, seria eu quem estaria embaixo da terra - acrescentou April com firmeza.

O inspetor não sabia o que dizer, mas sim como atuar. Seria a primeira vez em sua vida que ignoraria seu juramento em benefício próprio, mas se aquele moço tinha salvado a vida de April merecia seu respeito e seu favor.

- Sinto não poder aplicar a justiça sobre seu falecido marido, senhora Campbell. Mas tentarei fazer tudo o que esteja em minhas mãos para liberar o prisioneiro - explicou enquanto se levantava.

- De verdade? - Perguntou lhe dirigindo o olhar. - Obrigada! Obrigada! - Exclamou ao mesmo tempo em que se atrevia a lhe agarrar uma mão e beijá-la incessantemente.

O´Brian ficou imóvel, sentindo o calor daqueles lábios em sua mão. Desejou que aquele momento durasse uma eternidade, mas a afastou com suavidade. Não era apropriado que ela se mostrasse daquela maneira em frente a ele, porque sua mente, fértil e doentia, o faria imaginar certas cenas que aumentariam certa parte de seu corpo que devia manter relaxada.

- Bem... - falou Norman observando aos dois. - Se soubesse que bastaria beijar-lhe a mão para fazê-lo mudar de opinião, tê-lo-ia feito antes de lhe oferecer o suborno.

Michael lhe dirigiu um olhar fulminante. Não permitiria que ninguém falasse de April com sarcasmo ou com desprezo e lhe importava um nada que se tratasse de seu próprio pai. Todo aquele que se dirigisse a ela de maneira imprudente pagaria com acréscimo tal ato.

- Não brinque... - murmurou Michael com os dentes apertados. - Pode ser que termine perdendo a partida, senhor Campbell. Ainda continuo pensando que alguém o envenenou e, depois de escutá-lo, afirmaria com veemência - soltou.

- Foi envenenado? Não foi um suicídio? - Perguntou April olhando ao seu pai.

- Só são conjecturas absurdas que devem estudar ante um caso semelhante... - subtraiu importância agitando a mão com desdém. - Mas tudo está esclarecido, não é? - Disse eliminando a brincadeira e exibindo um comportamento submisso.

- Nem tudo – sentenciou. - E agora, se me desculparem, tenho muito trabalho. Senhora Campbell... senhor Campbell... boa tarde. - Fez um leve movimento de cabeça e caminhou para a saída com porte firme e severo.

Os dois ficaram olhando-o até que fechou a porta. April se enxugou as lágrimas com o lenço que seu pai lhe ofereceu enquanto se recompunha.

- É implacável... - sussurrou Norman. - Agora entendo a fama que o precede. Embora não fosse assim na primeira vez que o vi.

- A primeira vez que o viu? - Perguntou cravando seus olhos nos de seu pai. - Conhecia o inspetor? - Interessou-se.

- E você também, querida - respondeu ao mesmo tempo que enchia duas taças de licor.

- Acredito que se equivoca. Não vi o senhor O´Brian até que apareceu na noite que...

- Recorda a festa que celebramos quando obtive o contrato da segunda empresa têxtil? - Interrompeu-a lhe oferecendo o copo.

- Vagamente... - respondeu aceitando a taça.

- Não recorda ao jovem agente que contratei para te proteger? Aquele que saiu da festa apavorado?

April tentou não mostrar em seu rosto a surpresa que sentiu naquele instante. Tomou de um gole a bebida e se limitou a assentir com a cabeça.

- Pois... quem diria que aquele jovem se converteria na pessoa que é agora! - Exclamou antes de soltar uma gargalhada.

Ela olhou para a porta por onde O´Brian tinha partido. Não podia dar crédito às palavras de seu pai. Não podia ser ele! Claro que não! O moço que recordava, aquele que a perturbou durante suas longas e frias noites de solidão era magro, imberbe e descarado. Entretanto, o homem que se afastou era grande, corpulento, educado, respeitoso e tinha uma barba escura que escondia o rosto. Seu pai estava errado. Não podiam ser a mesma pessoa.

- April? O que aconteceu, querida? - Perguntou Norman preocupado ao vê-la empalidecer de novo.

- Nada... - disse tentando desfazer o nó que tinha na garganta.


III


April permanecia sentada à parte em um discreto lugar. Não falou durante a reunião. Possivelmente porque temia que nenhum dos presentes, salvo seu pai, aceitaria suas ideias. Já era suficiente estar presente e incomodando aos possíveis sócios com sua assistência, para ainda interferir nos comentários. Mas seu pai lhe outorgava, em frente a todos, o lugar que algum dia lhe corresponderia. Escreveu em sua caderneta a última proposta que escutou e franziu o cenho. Não era possível. Aquilo que expunha com entusiasmo um dos cavalheiros era uma loucura. Apertou com força a pluma e evitou aquele grande suspiro de resignação que esteve a ponto de liberar. Como eram tão néscios de não ver o evidente? Tanto lhes custava meditar sobre suas próprias ideias? Ninguém, em seu são julgamento, investiria uma quantidade tão exagerada em um projeto que, segundo os jornais, estava destinado ao fracasso. Entretanto, aqueles que a observavam de soslaio não perderiam nada. O único que veria como sua fortuna diminuiria seria seu pai e não o ia permitir.

- Senhores... - disse Norman levantando-se. - Obrigado por me informar desses novos projetos. Como entenderão, tenho que estudá-los minuciosamente.

- É claro... - respondeu o de estatura menor. Um homem que, conforme descobriu April, era o proprietário daquela frota em que devia investir seu pai.

- Obteremos uma resposta antes de terminar o mês? Temos urgência em saber que posição tomará - solicitou outro dos cavalheiros, que resultou ser o sobrinho do homem baixinho.

- Têm minha palavra - respondeu Campbell estendendo a mão para eles.

Depois do gesto, os três se colocaram no meio do escritório e dirigiram seus olhos para April, que se tinha levantado igual a eles.

- Milady...

- Viscondessa...

- Lady Gremont...

Disseram antes de partir e despedir-se dela com um suave movimento de cabeça. Norman caminhou para sua filha e esperou que os convidados os deixassem sozinhos para lhe pedir sua opinião. Sabia que saltava todos os protocolos sociais permitindo que April presenciasse uma reunião com esses cavalheiros, mas como ele não era um aristocrata fazia o que lhe dava vontade. Deus lhe tinha premiado com uma filha e a tratou de igual para igual desde que nasceu. Como podiam comportar-se os demais pais de maneira diferente com seus próprios filhos? Não o entendia. Acaso não deviam velar de igual forma por eles? Por sorte, ele não aceitava esse tipo de princípios e seu amor por sua filha estava acima de tudo e de todos. Se alguém ansiava obter certa fortuna do senhor Campbell devia entender que a única herdeira tomaria partido no referente ao seu legado.

- O que te parece? - Perguntou colocando suas mãos nas costas.

- Não me convenceram - respondeu April lhe aproximando a caderneta. - Como pode apreciar, mentiram com respeito aos lucros. Só querem seu dinheiro para os salvar de uma ruína próxima.

Norman a pegou e estudou os apontamentos que tinha escrito. Sorriu amplamente e a olhou cheio de orgulho.

- Não esqueceu de nada... - comentou satisfeito.

- Falavam bastante lento, como se pensassem que eu não seria capaz de os entender - disse zangada. - Por que opinarão que as mulheres são incapazes de compreender aquilo que expõem?

- Talvez porque suas mulheres... – respondeu - não são capazes de deduzir certas teorias com a mesma rapidez que você. Além disso, já sabe que não são educadas para converter-se em futuras capitalistas.

- Durante meus sete anos como esposa de um visconde sofri esse tipo de humilhação. Cada vez que Eric falava com outros cavalheiros me olhavam como se estivessem contemplando um monstro. Até um se atreveu a me perguntar se não devia sair às compras nesse preciso momento - contou irada. - O estranho é que Eric não replicou, acredito que tentava me ridicularizar para que eu mesma terminasse decidindo não aparecer mais e delegasse todo o poder que ambicionava ostentar.

- A aristocracia é assim, querida. Quando morrer, terá mais problemas do que supõe. Só espero viver durante muitos anos e que as mudanças sociais que prevejo te deixem desfrutar do papel que te corresponde - acrescentou justo antes de beijar a testa de sua filha.

- Não me respeitarão... - murmurou. - Nada do que penso será conveniente para eles - soprou.

- Só deve se manter forte. Recorda que é sua fortuna que está em jogo, não a deles. E como por sorte já não tem um marido que a obrigue a se submeter às suas ordens, pode fazer o que lhe agradar.

- Isso não me alivia... - sussurrou. Caminhou para a mesa de trabalho de Norman, pegou a garrafa de cristal esculpida e verteu licor em um copo. Olhou ao seu pai lhe perguntando com o olhar se desejava um e este afirmou com a cabeça. - Tenha em conta que para eles sou uma viúva aristocrata. Assim que eu decidir sair de Shother, me acossarão aproveitadores procurando uma presa fácil - disse ao mesmo tempo em que lhe oferecia a taça.

- Confio que a experiência que teve com seu primeiro matrimônio a mantenha em alerta para o seguinte, se é que decide voltar a se casar - assinalou Norman antes de tomar o primeiro sorvo.

April se dirigiu para um dos assentos que tinham sido ocupados pelos cavalheiros e se sentou de repente. Observou o líquido de seu copo e suspirou.

- Não me agrada a ideia de casar de novo. Entretanto, sou consciente de que algum dia terei que fazê-lo se desejo ter um filho - disse enfim.

- Isso não é um problema - apontou Norman caminhando para ela.

- Não? - Contemplou-o com desconfiança.

- Pode procurar um amante que obtenha aquilo que aquele bastardo não conseguiu - soltou sem mostrar em seu rosto o espanto que April sim exibiu.

- Jamais faria tal loucura! - Exclamou aterrada. - O que seria do futuro do meu filho?

- Seria um Campbell afortunado por ter uma mãe incrível e uns avós que o adorarão - expressou com um sorriso. - Imagina seu filho fazendo travessuras e o Larson atrás reprovando seu inadequado comportamento? Seria divertidíssimo! - Disse antes de soltar uma gargalhada.

- Não é uma ideia razoável... sabe que eu teria que partir de Londres e, desta maneira, facilitaria o caminho a todos esses abutres que anseiam sua fortuna - disse aflita.

- Talvez tenha outra possibilidade... - meditou Norman estreitando os olhos.

- Não há - murmurou April.

- O que te pareceu o honorável inspetor? - Soltou à queima-roupa.

- Como? - Perguntou atônita.

- Seria uma boa alternativa para ti. Esse homem não se rege pelos princípios que possuem os outros. É incorruptível e, se minhas hipóteses não forem falsas, mostra certo interesse para ti.

- Sandices! - Exclamou levantando-se do assento. - Esse agente...

- Inspetor - corrigiu.

- Esse agente... - repetiu entrecerrando os olhos como fazia Norman - só se interessou pelo caso do Eric. Recorde que a última vez que apareceu tentou o acusar de assassinato - resmungou.

- É certo - falou Campbell sem apagar o sorriso. - Mas, depois de sua súplica, liberou o Shoel. Isso não a fez compreender algo sobre esse homem?

- Que tem bom coração? Que seria incapaz de fazer um homem inocente pagar uma maldade que não lhe corresponde? - Vociferou zangada. - Além... o que queria que fizesse depois de ter tentado o subornar? Como lhe ocorreu tal tolice? - Recriminou-o. - Acaso não sabe o que contam sobre ele? - Norman assentiu sem poder apagar aquele gesto de satisfação em seu rosto. - Leia os jornais de vez em quando. Sempre há uma notícia que fala sobre o inspetor e elogia suas proezas. Sem ir mais longe, na semana passada prendeu um assassino que tinha matado quatro prostitutas em um mês.

- Sim, eu li - respondeu enquanto olhava sua filha fixamente. - E sem dúvida alguma é um homem brilhante...

A suspeita sobre o interesse dela no inspetor se confirmou após declarar que seguia aquelas publicações, mas Norman não estava muito seguro do que pensava este sobre sua filha. Se tivesse mostrado certa predisposição para com April faria todo o possível para aparecer em Shother com alguma absurda desculpa. Entretanto, depois de sua última visita não teve a decência nem de enviar uma missiva para lhe indicar que Shoel tinha sido liberado. Descobriu-o quando o moço apareceu em frente à porta de sua casa.

- Então? - Insistiu April arqueando as sobrancelhas.

- Só foi uma sugestão, querida. Não tenho a menor dúvida de que esse homem respeitaria meus desejos após meu falecimento e deixaria que se encarregasse de sua herança - acrescentou.

- Bobagens! – Resmungou. - Além disso, depois da experiência com o Eric, desejo viver durante muitos anos essa liberdade que não me outorgou. Quero dormir tranquila, pai, e me levantar com a cabeça repleta de pensamentos sensatos.

- Pensamentos sensatos? - Inquiriu surpreso. - O que chama de pensamentos sensatos?

April apertou os lábios com força para não responder. Como lhe tinha escapado tal bobagem? Ela não podia falar sobre aquilo que rondava sua cabeça. Desejou-o com o Eric e, embora pensou que o conseguiria, não obteve nada salvo humilhação e maus tratos.

- Refiro-me... - disse depois de meditar em uma resposta adequada - a poder pensar sobre o que tenho que fazer com sua fortuna quando falecer. Talvez parta à Europa uma temporada e desfrute de...

- Tolices! - Cortou Norman com rapidez. - Não seria capaz de fazer esse tipo de tolices. Eduquei-a para ser uma mulher sensata e jamais...

- Educou-me? - Atalhou ela desenhando um sorriso sardônico. - Sabe ao que me educou, pai? A subornar a tudo o que se deixe subornar para conseguir o que desejo, e também acredito que, como sugeriu o inspetor, está comprometido na morte do Eric - declarou zangada.

- Eu?! - Perguntou abrindo os olhos como pratos.

- Sim. Acaso acredita que não meditei sobre isso? - Soltou. - Quando lhe disse que você tinha lhe dado um brandy ficou surpreso e, que casualmente, depois de bebê-lo morreu envenenado.

- Isso é uma calúnia! - Defendeu-se. - Nunca tentaria fazer tal loucura!

- Pois se eu estivesse em seu lugar, se fosse minha filha quem tivesse se casasse com aquele monstro... o teria feito sem duvidar - sentenciou com firmeza.

Norman permaneceu calado durante uns momentos. Olhava April com suspeita. Era esperta, muito mais do que tinha pensado, e isso o encheu de um orgulho tão imenso que esteve a ponto de soltar uma gargalhada, mas se conteve. Ainda que não tivesse errado, ainda que a resposta fosse sim, não a poria em um apuro porque se aquele incansável sabujo seguia em seus calcanhares conseguiria tirar a informação que tanto ansiava.

- Mudando de tema... - atravessou o pai - o que vai fazer com o convite dos Dustings?

- Não aceitarei - disse cortante.

- Por que não? - Perguntou ao mesmo tempo em que retornava ao seu assento. Norman pegou seus óculos e observou, sem prestar atenção, os papéis que lhe tinham deixado. - Já vai sendo hora de que saia desta casa.

- Para quê? - Inquiriu aproximando-se dele. Colocou as mãos sobre a mesa e o olhou com ferocidade.

- Para que se divirta? - Apontou levantando seu rosto para ela.

- Acredita que conseguirei me divertir tendo os olhares de todos os assistentes sobre mim? Isso sem comentar o que murmurarão em minha presença... «pobre mulher... que lástima! Como não pôde descobrir a tempo?» - Disse movendo-se de um lado ao outro agitando os braços.

- Dirão de todas as formas... - sussurrou Norman. Quando sua filha se voltou para ele e arqueou as sobrancelhas, esclareceu: - Embora permaneça resguardada sob este teto, esses pomposos falarão de ti. Então... por que não esquece de uma vez esse absurdo desejo de se ocultar e começa a desfrutar de sua vida?

- Tenta me dizer que eu faça o que faça murmuraram sobre mim? Que não me respeitarão apesar de estar escondida? - Perguntou perplexa.

- A língua viperina desses imprestáveis não permanecerá dentro de suas bocas arrogantes, mesmo que não a vejam. Portanto... deveria atuar como queira - alegou Campbell sereno.

- Não me sinto preparada... - murmurou April abaixando a cabeça e deixando as mãos soltas. - Ainda não...

- Se desejar, sua mãe e eu estaremos encantados de te acompanhar. Não acredito que os Dustings se preocupem com dois convidados a mais. Talvez até nos agradeçam por isso. Nossa presença em uma cerimônia assim lhes dará a repercussão que tanto anseiam ter - disse rindo entredentes.

- Sabe o que significa a palavra vaidade? - Perguntou entrecerrando os olhos.

- Uf! Faz tanto tempo que não a utilizo que nem me lembro do que é! - Exclamou divertido. - Anda, não pense mais nisso. Fale com sua mãe e que ela a ajude a comprar um vestido apropriado para essa festa. Embora tenha que usar, porque você quer, essa cor tão sinistra, ela poderia dar beleza a um cacto.

- Mas... mas... - titubeou.

- Quer fazer sua mãe feliz? Quer que de uma vez por todas deixe de lamentar-se por não impedir que se casasse com aquele bastardo?

- Pai... não deveria falar assim de um morto - repreendeu-lhe com suavidade.

- Oh, que Deus o tenha em sua Glória! - Exclamou com zombaria. - Mas minha filha continua viva e tem que fazer o que não fez nesses anos de cativeiro...

- Fui a festas e ao teatro - adicionou.

- Quantas vezes, April? A quantas festas assistiu sendo a viscondessa daquele bastardo? - Perguntou Norman irado.

- Algumas... - murmurou a moça em voz baixa.

- E a quantas foi antes de se casar? Espere, não me responda, esclarecerei isso eu. A todas!

- Sabe que não é próprio de um pai que vive neste século encorajar uma filha dessa forma? - Disse April tentando não mostrar um enorme sorriso.

- Não me importa em qual ano vivo! Sou Norman Campbell, um dos homens mais enriquecidos e poderosos desta maldita cidade e farei e pensarei o que quiser! Entendido? - Berrou.

- Sim, pai - respondeu atônita.

- Pois saia agora mesmo daqui e faça sua mãe saber que assistiremos à festa daqueles petulantes presunçosos! Quero-as lindas, mais do que poderia alcançar a própria rainha.

- Isso lhe custará mais de mil libras - revelou April tentando acalmar aquela raiva que seu pai estava carregando.

- Pois então lhes darei três mil - sentenciou antes de cravar seu olhar nos documentos que ia rejeitar imediatamente e de dar por concluída a conversação.


- Ficará cego... - a voz da senhora Warren aproximando-se dele fez com que Michael levantasse o olhar de sua leitura.

- Inventaram um objeto chamado lentes e que me ajudariam a prosseguir com os olhos presos aos papéis - respondeu com zombaria. O´Brian afastou os documentos da mesa e fez um espaço para que sua governanta não sustentasse por muito tempo a bandeja repleta de comida.

- Ficaria horrível com aqueles ferros apoiados sobre o nariz, - comentou enquanto colocava o jantar sobre a mesa - e ninguém veria como é bonito.

- Talvez não deseje que alguém se fixe em quão bonito sou - acrescentou zombador.

- Bobagens! - Exclamou a criada pondo suas mãos na cintura. - De verdade acredita que me manterei impassível observando como o tempo passa e você só corre atrás dos criminosos em vez de atrás das saias de uma dama? - Acentuou seu aborrecimento arqueando as sobrancelhas.

- Impassível? - Perguntou surpreso.

- O livro que estou lendo me ensinou essa palavra - indicou envergonhada.

- Já vejo... - murmurou desenhando um sorriso. Olhou para a comida e, embora pensasse que não tinha apetite, seu estômago lhe indicou justamente o contrário.

- Precisa sair desta habitação e da delegacia de polícia - indicou a senhora Warren ao mesmo tempo que caminhava para a chaminé para jogar um mais lenha. - Não deveria fechar-se tanto.

- Tenho muitas coisas a fazer - respondeu pegando o garfo e a faca para cortar o pedaço de carne assada. - Os criminosos não descansam e eu tampouco devo fazê-lo.

- Mas de vez em quando, enquanto eles pensam que maldades vão realizar, você deveria abandonar sua clausura e viver a vida que lhe corresponde como homem solteiro - acrescentou com certo aborrecimento.

- E o que propõe que eu faça? - Perguntou zombador. - Sair a dançar? Travar conversas carentes de sentido? Sorrir àqueles que me olham com arrogância?

- Ninguém o olha dessa forma! - Repreendeu-o. - Você é um homem poderoso nesta cidade e, se por acaso não descobriu, todo mundo o respeita.

- Respeitam-me ou me temem? - Inquiriu com um sorriso mordaz.

- Chame-o como quiser, mas continuo opinando que precisa relacionar-se com outros seres humanos, além de com ladrões, assassinos e estelionatários.

- Jurei me dedicar a salvar uma cidade como esta, e como pode comprovar, faltam-me horas do dia para cumprir minha promessa - comentou com desdém. - Se os maus não descansam, os bons tampouco.

- Poderia deixar que Borshon se ocupe uma noite do seu cargo, senhor O´Brian. E aproveitar essa liberdade para assistir a uma festa. Sabe o que é uma festa, senhor? - Perguntou com ironia enquanto retornava ao seu lado para confirmar que, em vez de falar, se alimentava.

- Uma festa... - sussurrou ao mesmo tempo que se reclinava no assento, tocava a espessa barba e fixava seus olhos no teto. - Não, não recordo o que é.

- Pois se trata de um momento no qual abandona tudo o que tem em sua cabeça, fala com outras pessoas de temas absurdos, paquera com as damas que permanecem ao seu lado e, quando retorna ao seu lar, descobre satisfeito, que há outra vida muito distinta da que possui como inspetor.

- Isso já o faço... - defendeu-se.

- Sim, à primeira quarta-feira de cada mês, sei. Entretanto, ultimamente não parece feliz. Não sei o que faz nessas saídas, nem o que pretende encontrar nelas, mas acredito que, a forma como age quando volta, mostra que está a ponto de abandoná-la - assinalou preocupada.

Michael a olhou sem pestanejar, não sabia se lhe chamava a atenção por sua indiscrição ou começava a rir. Logicamente, não optou nem por um nem pelo outro, incorporou-se para a mesa e continuou comendo como se não tivesse escutado nada. Não podia afirmar que tinha razão, que as reuniões tinham deixado de o satisfazer. E, tal como adivinhou, tinha decidido não aparecer mais.

O´Brian visitava o Clube há três anos. A primeira vez que apareceu investigava um assassinato e pensou que nessas reuniões clandestinas descobriria algo que lhe indicasse quem era o possível criminoso. Mas o que achou no interior daquela casa escura e de aspecto sinistro foi um grupo de pessoas que possuíam uma besta parecida com a sua. Divertiu-se e sentiu-se tão calmo que terminou por aparecer uma vez por mês. Por mais que tentasse recusar sua parte tenebrosa, esta brotava até deixá-lo exausto. Necessitava aquilo que ali conseguia para viver, para tranquilizar sua besta. Entretanto, desde que encontrou April, desde que a teve em seus braços aquela noite, nada do que havia naquelas cerimônias secretas lhe chamava a atenção. Aparecia, sim, continuava visitando-as, mas se mantinha sentado em uma distante poltrona, escondido sob a penumbra de um canto, e se dedicava a observar o que faziam os outros enquanto bebia uma taça e fumava um charuto.

- Hoje tampouco escolherá? - Perguntou-lhe lady Hard agitando seu leque em frente à sua cara para que ninguém pudesse lhe ler os lábios.

Sob as máscaras, vestidos com o mesmo traje de sempre, a verdadeira identidade dos que apareciam na residência permanecia a salvo. Ali só havia dois tipos de pessoas: os dominadores e os submissos. Por um lado, os dominadores, que sempre ocultavam seus rostos com uma máscara negra, vestidos de traje, camisa, gravata e colete de cor negra e elas exibiam vestidos que cobriam até seus tornozelos da mesma cor. Por outro lado, os submissos tampavam seus corpos com uma camisola escura. A única diferença que existia entre estes últimos era a cor da máscara. Os criados podiam usar três: o negro para aqueles que rondavam livres, o branco para os que tinham sido escolhidos por um Dom mas a relação entre ambos não era definitiva e o vermelho. Muito poucos submissos usavam uma máscara vermelha. Desde que Michael apareceu só encontrou três.

- Acredito que hoje tampouco o farei... - respondeu Michael com aparente aflição. Nenhuma das que se mostravam frente a ele lhe chamava a atenção. A única pela qual se interessou até a noite em que voltou a ver April já não lhe dava o bem-estar que lhe oferecia antigamente.

- É uma pena... - refletiu lady Hard. - Se por acaso não se deu conta, sua antiga serva está esperando que a reivindique. Deve sentir-se muito mal vendo-se de novo com a máscara negra.

O´Brian fixou seus azulados olhos na mulher de quem falavam e era certo, ali permanecia, ajoelhada e com o rosto abaixado, a escrava que tinha tido ao seu lado desde que apareceu. Mas seu corpo não pedia sua presença, e sim a de outra mulher. Não podia reivindicá-la para que o seguisse até o quarto. Agora seria incapaz de tocá-la porque, desde que April enviuvou, imaginar que suas mãos tocavam outra mulher provocava repulsão.

- Pode ser escolhida por qualquer um... - disse Michael afastando o olhar dela. - Tem liberdade para aceitar a outro Dom.

- Mas ela não quer estar com outro amo – respondeu. - Quer estar com você - afirmou sob a máscara de renda negra.

- Pois eu não a quero - sentenciou.

Arrasado e zangado, essa noite abandonou o Clube sem saciar de novo a besta que, ultimamente, brotava com mais força. Mas O´Brian não podia contentá-la com uma migalha de pão, ele necessitava do pão inteiro.

- Então? - Perguntou a senhora Warren olhando-o zangada.

- Não vou assistir a nenhuma dessas miseráveis celebrações - resmungou.

- Pois eu respondi a esta - disse aproximando um envelope que, como podia ver o inspetor, já tinha sido aberto e lido por ela sem o consultar.

- O que é isso? Por que leu minha correspondência? Por que respondeu sem minha permissão? - Perguntou irado.

A governanta observou o quão grande foi o aborrecimento no inspetor, que lançou a carta sobre a mesa e deu umas passadas para trás.

- Fiz isso por seu bem... - titubeou. - Não pode ficar encerrado tanto tempo. Os anos passam e quando quiser voltar atrás, não poderá. Não quero que no futuro me reprove por não ter sido insistente em o fazer mudar de opinião.

- Jamais a reprovaria por tal barbaridade! - Disse elevando sua voz além do devido. - Com certeza lhe agradeceria o fato de acatar minhas decisões - prosseguiu ao mesmo tempo em que pegava a carta e tirava a folha do interior. Olhou atônito o que tinha escrito nela, logo dirigiu o olhar para sua criada e, com os olhos abertos como pratos, berrou: - aceitou o convite destes pretensiosos?

- Era seu dever... - murmurou a senhora Warren segurando suas mãos e abaixando a cabeça. - Você os ajudou a descobrir quem os roubava em sua casa e devia aceitar esse convite.

- Maldita seja, Louise! - Disse seu nome de batismo. - Como pôde me fazer isto?

- Precisa sair... - tentou dizer.

- Não preciso aparecer em uma festa de petulantes! - Exclamou.

- Sinto muito, senhor - comentou Louise em voz baixa. - Agora mesmo lhes responderei que por motivos de trabalho não poderá comparecer.

- Não é isso... - murmurou mais calmo. Não queria tratar desse modo a uma mulher que o cuidava como se fosse sua mãe e precisava lhe pedir desculpas por seu inapropriado comportamento. Ele não era um tirano, nem um descarado, nem um homem que utilizava seu poder para intimidar as pessoas. Ele ajudava não maltratava. - Sinto muito... - disse ao mesmo tempo que se levantava e caminhava para ela. Pegou-lhe as mãos trementes e se amaldiçoou em silêncio por lhe ter provocado tanto medo. - Sinto se me excedi, senhora Warren, mas como bem sabe, eu gosto de controlar tudo aquilo que vou fazer e me perturba me encontrar com...

- Não se preocupe. Pedi a lady Dustings que me enumerasse todos os convidados que aceitaram... - acrescentou Louise mais relaxada.

- E? - Solicitou Michael arqueando as sobrancelhas.

- E salvo a aparição da família Campbell, todos os outros são os habituais.

- Os Campbell irão? - Inquiriu com surpresa.

- Sim, até sua filha decidiu sair, por fim, daquela fortaleza em que se resguarda. A presença da viúva daquele bastardo dará o que falar - comentou com perspicácia.

Louise observou o rosto de Michael e esteve a ponto de soltar uma gargalhada. O grande inspetor tinha empalidecido e ela sabia o motivo daquela mudança de cor: a senhora Campbell, como ele a chamava. Apesar de converter-se na viúva do visconde de Gremont, ele se negava a declará-la esposa de um monstro. Teria se dado conta que indicava seu interesse por ela sem ser consciente? «Controle? Disse que deseja controlar tudo o que tem ao seu redor? - Pensou Louise. - Pois, querido, o afeto que sente pela senhora Campbell escapa desse ansiado controle...».

- Por que motivo essa mulher aceitou? Acaso quer expor-se às fofocas que suscitará sua presença? - Perguntou em voz alta.

- Não sei que causas a terão motivado a aceitar, mas estou segura de que terá que enfrentar, cedo ou tarde, as línguas viperinas de quem a rodeia. E na verdade... sinto lástima por ela. Depois de tudo o que sofreu não merece um apedrejamento semelhante.

- Apedrejamento? - Perguntou arqueando as sobrancelhas escuras de novo.

- Acredita que esses energúmenos a respeitarão? Acredita que saberão comportar-se com a devida educação? Embora os pais a custodiem com todas as suas forças, essa pobre mulher terminará destroçada pelos falatórios... - continuou o plano de irritá-lo.

- Está bem... - soprou O´Brian ao imaginar a situação pela qual passaria April rodeada daqueles imprestáveis. - Irei a essa maldita festa. - Caminhou para sua cadeira, sentou-se e continuou a comer, mas quando viu que a senhora Warren tentava partir com uma atitude triunfal, dirigiu-se de novo a ela: - A próxima vez que aceitar um convite em meu nome será você quem irá.

- Eu? - Perguntou ao mesmo tempo que se virava para o inspetor.

- Sim, você - assinalou divertido.

- Aceitarei encantada, embora antes terei que me casar com um homem bonito, perigoso e obcecado em fazer cumprir a lei. Conhece alguém assim? - Defendeu-se.

- Pois agora que o penso... acredito que Borshon seria um bom candidato - apontou zombador.

- Tolices! Aquele cabeça dura não é capaz de diferenciar um rato de um sapato velho - resmungou.

- Pois justo o que indico... seria o melhor marido para você - comentou antes de soltar uma gargalhada.

- Informarei ao seu alfaiate para que tome medidas amanhã mesmo e espero que sua nova gravata não o asfixie muito... - esclareceu antes de sair da habitação.

Michael continuava rindo quando a senhora Warren fechou a porta. Não era má opção casá-la com seu ajudante, embora se isso ocorresse o mais prejudicado dos três seria ele. Se já lhe resultava difícil aguentar cada um em separado, ter que suportá-los não só no trabalho, mas também em seu lar, porque uma vez casados o ajudante tomaria a liberdade de aparecer em sua casa quando quisesse, o deixariam tão louco que se daria um tiro.

Desaparecendo aquele sorriso zombador que tinha mantido, pegou o copo de vinho e deu um sorvo enquanto pensava em April e nas possíveis consequências de sua decisão. O visconde estava morto há pouco mais de seis meses e uma viúva, segundo os estritos protocolos sociais, não devia abandonar seu luto até passado um ano ou mais. Entretanto, quem poderia assumir o papel de viúva aflita de um assassino? Talvez a aristocracia aceitasse sua decisão ou... talvez não. Fosse como fosse, estaria ali para velar por sua segurança e se algum daqueles cretinos pretendia humilhá-la ou ultrajá-la, teria que se ver com um homem carente de escrúpulos e de educação refinada .


IV


April parecia uma estátua de mármore colocada em um canto do salão. Mal tinha se movido desde que seus pais escolheram permanecer naquela parte da sala. Seu pé direito repicava no chão enquanto esperava com impaciência que seu pai retornasse. Tinha ido pegar outra taça, mas na metade do trajeto foi assaltado por vários cavalheiros e mantinham um intenso bate-papo. Olhou de esguelha sua mãe, que falava com lady Swatton, uma amiga de infância e a única pessoa em quem confiava. A viúva do barão Swatton visitava a residência Campbell quando lhe vinha à cabeça, nada nem ninguém a podia impedir de pôr um pé em Shother se desejava conversar com Florence Campbell. Norman a adorava, não só porque tinha sido a única pessoa que não tinha rejeitado sua esposa após escolhê-lo como marido, mas também porque dizia que tinha mais coragem que muitos afamados cavalheiros.

E era assim. April podia confirmar como os olhavam com respeito e como não eram capazes de fofocar sobre ela ante a presença da mulher. Se chegasse aos ouvidos de Vianey uma palavra inapropriada sobre os Campbell daria uma pancada no chão e todos se endireitariam por temor. Sorriu levemente. Depois de uma hora aceitando as saudações e as condolências pela morte de seu marido e de lhe desejarem que logo se recuperasse do acontecimento, por fim desenhou um sorriso em seu rosto ao escutar como lady Swatton criticava uma das convidadas junto à sua mãe.

- Não acredito que permaneceu em frente à mesa da sala de jantar além do devido? - Perguntou Vianey agitando seu leque.

- Não seja perversa - repreendeu Florence. - Só percebo que está um pouco mais robusta que a última vez.

- Robusta? - Perguntou arqueando as claras sobrancelhas. - Chama robustez a uma mulher que possui as dimensões de uma baleia?

- Vianey! - Exclamou a senhora Campbell para fazê-la calar.

- Oh, querida! Sinto-o... - mentiu. - Mas não esperava que a doce e esquálida lady Fuller se convertesse em uma enorme e azeda viscondessa.

- Deveria se observar com mais assiduidade no espelho - sussurrou Florence divertida. - Acredito que ambas visitam a mesma costureira.

- Sabe que te adoro, verdade? - Disse entrecerrando os olhos negros. - Porque se não o fizesse te arrancava a língua agora mesmo.

- Sim, sei e por isso recrimino seu comentário. Não me agrada essa língua afiada que têm as aristocratas.

- Desculpe, senhora Campbell, mas se a memória não me falha, foi uma de nós até que se casou com o Norman.

- E foi a decisão mais acertada que tive em minha vida. Graças a ele posso ver a vida de outra perspectiva e a desfruto de outra maneira menos interessada - concluiu orgulhosa.

- Compreendo... - sussurrou ao mesmo tempo em que fixava seus olhos em Campbell que, ao notar que o observavam, dirigiu seu olhar de volta às três e sorriu. - Está melhor? - Perguntou a April.

- Sim - respondeu com rapidez.

- Já desvaneceu seu estupor? - Perguntou com ironia.

- Não entendo como podem chamar um ato tão cruel dessa maneira - disse April com resignação.

- Porque são gente sem escrúpulos, querida. O único que interessa a esses ineptos é continuar ostentando uma reputação aristocrata irrepreensível, e se para isso devem chamar estupor à atuação de um assassino, o farão sem vacilar.

- Às vezes me pergunto como fui tão boba de não ter suspeitado sobre sua maldade... - acrescentou com pesar.

- Quando uma mulher está apaixonada não é capaz de pensar com sensatez. É o único momento no qual só escuta seu coração e, às vezes, este não escolhe a melhor opção... - comentou Vianey colocando sua mão enluvada sobre o ombro da moça. - Mas deve dar graças a Deus por sua morte...

- Vianey! - Exclamou Florence estupefata.

- O quê? - Perguntou olhando-a muito séria. - Estou dizendo algo inapropriado?

- Mas... - tentou rebatê-la a senhora Campbell.

- Não há mas! April deve sentir-se ditosa por ter se liberado daquele cretino antes que...

- Antes de quê? - Repetiu a aludida.

- Antes que tivesse fertilizado seu útero - sentenciou.

- Pelo amor de Deus, Vianey! Como pode dizer essas coisas? - Repreendeu-a sua mãe.

- Porque é certo, querida. Se esse descarado tivesse deixado descendência... o que seria dessa criança quando descobrisse que por suas veias corria o sangue de um assassino? - Insistiu sem diminuir sua atitude.

- Teria sido uma tragédia... - murmurou April abaixando a cabeça.

- Mas, por sorte, - prosseguiu colocando a mão no queixo da mulher para que elevasse o rosto - isso não aconteceu e agora é livre para fazer o que te agrade - sentenciou.

- A viúva de um assassino... - tentou dizer April.

- A viúva de um inepto que tem que sentir-se liberada de um matrimônio atormentado; já vai sendo hora de que aproveite essa falta de moralidade que possuímos as viúvas para fazer o que te agrade... já me entende - disse lhe piscando o olho direito.

- Vianey! - Gritou Florence acalorada pelas palavras de sua amiga.

- O quê? - Voltou a repetir desenhando em seu rosto um sorriso inocente. - Acaso crê que sua filha tem que viver casta o resto de seus anos? Não pense tolices, Florence! Agora é quando poderá desfrutar de tudo o que não teve.

- Se Norman te escutasse... - disse a senhora Campbell zangada.

- Não se horrorizaria se a ouvisse - disse April com um sorriso de orelha a orelha.

- O que disse seu pai? - Perguntou interessada Vianey.

- Pois segundo ele, deveria procurar um amante - adicionou sem observar a cara de espanto que exibia sua mãe.

- Não posso acreditar nisso! De verdade te comentou essa tolice? - Perguntou olhando sua filha, incrédula. Ao ver como April assentia, soprou. - Terei que falar com ele... - resmungou Florence fixando os olhos em seu marido que, alheio a tudo, sorria-lhe inocentemente.

Durante um bom momento as três mulheres conversaram sobre outros temas estimulantes, entre os quais se encontrava o desejo de Norman em convertê-la em sua sucessora empresarial. Vianey lhe ofereceu vários conselhos posto que ela, ajudada por um administrador chamado Arthur Lawford, fez-se cargo da herança de seu marido. Todo mundo conhecia os afortunados investimentos da viúva assim como conheciam como ela tinha triplicado sua fortuna. Este tipo de comportamento não era aceito por todos os membros da alta sociedade. A baronesa Swatton tinha seus caluniadores, mas também possuía um grande número de pessoas a favor de suas decisões. Sem lugar a dúvidas, era uma mulher muito avançada ao seu tempo e, como tal, nem todo mundo aceitava aquele tipo de vida.

- Se me desculpam... - começou a dizer Florence, que tinha o olhar cravado na anfitriã. - Acredito que já vai sendo hora de falar com lady Dustings. Tenho que agradecer seu convite e elogiar a beleza de sua casa.

- Deixa-nos sozinhas? - Disse April enrugando o rosto em uma careta de desagrado.

- Pode me acompanhar se o desejar - convidou-a sua mãe.

- Não. Prefiro continuar conversando com Vianey. É mais divertida. - Sorriu.

- Adula-me - comentou divertida, ao mesmo tempo que se abanava como se lhe urgisse fazer desaparecer uma vergonha infantil.

- Nem te ocorra perverter a cabeça da minha filha - soltou Florence estreitando os olhos.

- Eu? - Disse Vianey abrindo os olhos como pratos. - Sou uma mulher honrada, virtuosa e bastante prudente.

- Sim, claro... - soprou Florence antes de partir para o grupo de mulheres que no outro extremo do salão, onde se encontrava lady Dustings.

- Sua mãe possui um conceito muito distorcido sobre mim - apontou lady Swatton ao mesmo tempo que fixava seus olhos em April. - Jamais lhe ofereceria um mau conselho porque, para mim, é a filha que nunca tive.

- Sei - respondeu April enquanto desenhava um cândido sorriso em seu rosto. - Mas deve admitir que muitos de seus conselhos não são adequados.

- Bom, isso depende de quem os escuta - defendeu-se. - Nunca te indicaria o que deve fazer depois da vivência que manteve com aquele cretino, mas sim te sugiro que mude, de uma vez por todas, a atitude que mostra a estes presunçosos. Como pôde apreciar, desde que chegou só se dignaram a te oferecer suas condolências, mas nenhum deles teve a coragem suficiente para te propor uma dança.

- Crê que desejam dançar com a viúva de um assassino? Por mais que tenham denominado estupor à aberração que fez Eric, não querem deteriorar suas reputações dançando comigo. Além disso, não os aceitaria. Não me encontro com forças para enfrentar esses olhares reprovadores.

- E... para que tem forças, April? Para morrer lentamente na casa de seus pais?

- Essa opção é a mais acertada para todos - esclareceu olhando de novo o chão.

- Essa é a opção de uma mulher covarde, querida - apontou ao memo tempo que voltava a lhe levantar o queixo para que a olhasse. - E não acredito que por suas veias corra esse tipo de sangue. Só deve contemplar os seus pais. Ninguém jamais os atemorizou. Nem quando Florence foi rejeitada por sua família como se fosse uma empesteada se rendeu. Ela tomou a decisão de casar-se com seu pai e lutou por esse amor que, por sorte para os dois, aumentou com o passar dos anos.

- Mas meu pai não é um assassino... - defendeu-se.

- Nem você tampouco! – Exclamou. - Acaso foram suas mãos que se aferraram ao pescoço daquela infeliz? Pressionou sua garganta até matá-la?

- Não! – Berrou. - Mas poderia ter evitado...

- Como, April? Como poderia ter evitado essa maldade? - Insistiu.

- Afastando Eric de Londres. Se lhe tivesse proposto fazer uma viagem, se em vez de lhe dar um ultimato sobre a relação que mantinha com sua amante, tivesse lhe ordenado que nos afastássemos desta cidade uma temporada, ela continuaria viva - declarou com firmeza.

- Só teria esticado um pouco mais sua existência, pequena. Como já te disse antes, quando uma mulher ama um homem se deixa levar pelo que lhe dita o coração e deixa de lado a sensatez. Lady Cooper sempre esteve apaixonada por aquele imbecil. Entretanto, a única coisa que aquele inseto desejava era encontrar uma rica herdeira para não se preocupar jamais por seu bem-estar.

- E me encontrou... - murmurou.

- Sim, o fez. E, assim como a falecida, pensou que era amor o que ele sentia por ti, mas não se tratava disso. Aquele bastardo só ansiava sua fortuna. O que ainda me pergunto é... o que procurava você? - Perguntou arqueando as sobrancelhas e fixando seus olhos naquele corpo que mostrava rigidez.

- Não sei... - disse em voz baixa. - Talvez tenha acreditado que me proporcionaria aquilo que descobri quando estava me cortejando.

- O quê? – Perseverou. - Amparo? Autoridade? Dominação? Submissão? - Enumerou sem respirar.

- Como sabe...? - Solicitou April assombrada.

- Uma mulher como eu sabe tudo isso, querida. - Pegou-lhe uma de suas mãos trementes e tentou acalmá-la com um suave apertão. - Assim como sempre soube que era uma das nossas.

- Uma das nossas? - Inquiriu olhando-a sem piscar.

- Sim - afirmou com solenidade. - Mas ainda não está preparada. Quando estiver, te mostrarei o caminho.

- O caminho? - Repetiu com surpresa.

- Que felicidade! - Respondeu Vianey afastando sua mão da dela ao mesmo tempo que olhava para a entrada. - Por fim começa a verdadeira festa! - Exclamou divertida.

Quando April tentou virar-se para averiguar o motivo daquela mudança de atitude em lady Swatton, ela impediu que o fizesse.

- Não se mova! – Ordenou. - As damas como você não devem ser descaradas - acrescentou com um sorriso de orelha a orelha.

- Quem é? Quem veio? - Quis saber.

- Quer saber quem acaba de aparecer? - April assentiu. - Pois primeiro observa ao seu redor, o que vê?

- Percebo que a pessoa que entrou provoca inquietação nas mulheres. Começam a mover com ardor seus leques e as mais jovens têm o rosto ruborizado. Entretanto, os homens parecem incômodos. Alguns levam suas taças aos lábios sem afastar o olhar da entrada. Outros tocam as lapelas de seus trajes e outros... outros têm seus olhos cravados nesse lugar como se a aparição dessa pessoa lhes causasse temor.

- Assim é. Cada vez que ele está presente, todos se revolucionam. As mulheres desejam estar embaixo daquele formidável corpo e alguns homens rezam para que não tenha o descaramento de conversar com eles. Talvez porque descobriria, em um abrir e fechar de olhos, aquilo que suas mentes refletem em segredo - declarou orgulhosa.

- Mas... quem é? - Insistiu alterada.

- Só existe um homem na cidade que pode fazer todos estes energúmenos tremerem... - indicou com um sorriso malicioso. - O inspetor O´Brian.


Chegava tarde. Como era habitual, no último momento, justo quando se dispôs a sair de casa, encontrou em frente a sua casa um agente solicitando sua presença na Scotland Yard. Embora, nesta ocasião, a satisfação que lhe provocava ser interrompido não apareceu, mas sim, pela primeira vez, odiou seu trabalho.

Desde que a senhora Warren o informou que teria que assistir à festa, trabalhou na delegacia de polícia intensamente para que, na última hora, nada impedisse de assistir e cumprir sua promessa de proteger April. Não queria abandoná-la no primeiro dia que se decidia a sair do lar de seus pais depois do ocorrido. Entretanto, embora ordenasse a Borshon que ninguém o incomodasse e que, por uma noite, esquecessem que tinham um inspetor chamado O´Brian, não cumpriram sua ordem... quando apareceu na delegacia, James Borshon empalideceu. Possivelmente porque percebeu nos olhos de seu superior um grande ódio. No entanto, quando Michael encontrou sentado em frente à sua mesa de trabalho o dono do Clube Reform, toda aquela raiva desapareceu com rapidez.

Até àquele momento, Trevor Reform não tinha pedido sua ajuda e, como era de supor, não podia evitar o primeiro dia que precisava de seu auxílio. Depois de três longas horas, Michael pôde, enfim, pôr rumo à casa dos Dustings. Não tinha dúvida de que a festa estava a ponto de finalizar ou, para sua desgraça, já teria terminado.

Irado, desceu da carruagem, apresentou-se na porta da entrada e golpeou com força até que lhe abriram. Não deu opção ao mordomo a que o informasse onde se encontravam os anfitriões, O´Brian acessou ao interior e caminhou para o salão de onde emanava a música. Estaria dançando? Algum cavalheiro teria se decidido a tirá-la para dançar? Como teriam atuado com ela? Teriam sido compassivos ou, pelo contrário, bastante cruéis? Estaria ainda ali ou teria partido? Com estas e milhares de perguntas mais, Michael ficou parado na entrada e jogou uma olhada procurando-a, desesperado. Ao encontrar uma figura de mulher que não confundiria com ninguém, sorriu. Ao seu lado se achava lady Swatton e, se suas pesquisas não erravam, a teria custodiado. Não lhe cabia dúvida de que a baronesa teria permanecido ao seu lado toda a noite evitando, deste modo, comentários ou comportamentos ofensivos para com April.

Depois de confirmar que não parecia alterada, salvo pela agitação que lhe provocou a fofoca de sua acompanhante, afastou o olhar das costas de April. Não queria revelar aos janotas que ainda permaneciam no interior a verdadeira razão pela qual se apresentava. Com passo firme e sereno se dirigiu para lorde Dustings quem, para seu prazer, conversava com o senhor Campbell.

- Boa noite, cavalheiros – saudou. - Desculpe minha demora, milorde, mas um problema de última hora requereu minha presença até há uns instantes - esclareceu.

- Está desculpado, senhor O´Brian - comentou o lorde estendendo a mão para o inspetor. - Teria me preocupado mais se você tivesse recusado seu trabalho como protetor desta sociedade para chegar a tempo ao convite - acrescentou.

- Resolveu o problema? - Intercedeu Norman lhe oferecendo a mão.

- Sempre soluciono tudo o que chega às minhas mãos, senhor Campbell. Embora demore mais do que o previsto, termino achando o culpado... - disse aceitando a saudação do pai de April.

- Imagino... - comentou Norman com um sorriso de orelha a orelha.

- E que caso foi desta vez, senhor O´Brian? - Perguntou lorde Dustings.

- Um simples caso no Clube Reform - comentou tirando importância ao assunto enquanto tentava não olhar April, que continuava conversando com lady Swatton. - Uma das mesas de jogo provocava muitas perdas ao clube e o dono acreditou que o crupier era o causador da diminuição desses lucros.

- E era o empregado o culpado de tais perdas? - Interessou-se o anfitrião.

- Não. Por mais estranho que pareça, o crupier não tinha nada a ver com essas deficiências - apontou Michael olhando de esguelha a Norman. Este sorria mais do que o esperado. Deu-lhe a impressão que se sentia ditoso por sua aparição. Não obstante, a mente de O´Brian não parava de refletir sobre os motivos para que o velho Campbell se alegrasse com sua chegada.

- Nem tudo é o que parece... - disse Norman antes de levar a taça aos lábios. - Em muitas ocasiões, os acontecimentos são inexplicáveis para a compreensão humana - alegou após ingerir o sorvo de champanha.

- Não sou um homem com convicções usuais, senhor Campbell. Entretanto, a experiência me indica que sempre há uma causa racional para tudo - assinalou suspeito.

- É claro... - comentou Norman sem apagar seu sorriso.

Durante um bom momento, os três homens conversaram de maneira tranquila. Seus temas não eram importantes para Michael e mal lhes prestou atenção. Enquanto os escutava, movia-se devagar no lugar procurando o ângulo perfeito para poder visualizar April. Quando o achou, descobriu que continuava ao lado da baronesa e, pela expressão daquela esbelta figura, deduziu que mantinham um bate-papo mais divertido que o que eles estavam.

- Se me desculparem, - indicou Michael - vou saudar o resto dos convidados.

- Parece-me boa ideia - assinalou Campbell. - Nós não gostaríamos que outros nos reprovassem por monopolizar todo seu tempo. Além disso, muitos dos assistentes estarão encantados de escutar as aventuras do inspetor.

O´Brian entrecerrou seus olhos para o homem e esteve a ponto de o advertir que uma aventura atraente seria a inexplicável morte do visconde de Gremont, mas esse comentário chegaria aos ouvidos de April e não desejava incomodá-la com sandices. Depois de realizar uma pequena sacudida de cabeça aos cavalheiros, caminhou para o grupo de mulheres no qual se encontrava a anfitriã. Para seu prazer, a senhora Campbell, uma mulher tranquila, sossegada e educada, achava-se entre elas.

- Senhoras, miladies... - saudou as damas.

- Boa noite, senhor O´Brian - falou lady Dustings. - Alegro-me de que ao final tenha podido assistir.

- Peço-lhe mil desculpas pela demora, milady. Mas o dever me reteve durante horas - explicou.

- Solucionou aquilo pelo que o chamou? - Perguntou Florence com amabilidade.

- Sim, senhora Campbell. Tudo está solucionado - reafirmou.

- Você é um magnífico agente - comentou outra das convidadas. - O que seria de Londres se não tivéssemos encontrado um inspetor tão competente? - Prosseguiu ao mesmo tempo que se abanava com afã.

- Muito me temo que não seja indispensável, milady. Qualquer um poderia realizar meus trabalhos com a mesma intensidade - assinalou cortês.

- Acredita que haveria outra pessoa na cidade que saltaria pelos telhados das casas de Whitechapel em busca de um assassino tão desumano como o que apanhou faz um par de semanas? - Insistiu a mulher ruborizando-se por sua pergunta.

- Se deseja fazer justiça, sim - afirmou solene.

- Mas você é o melhor que tivemos até o momento -disse a dama.

- Senhor O´Brian... - intercedeu Florence ao notar o desconforto do agente - se puder me acompanhar, o conduzirei até minha filha. Ela também tem muito que lhe agradecer pelo trabalho tão magnífico que realizou com seu falecido marido - assinalou.

- Que tragédia! - Exclamou de repente a mulher que, advertindo que sua possível conquista se afastava dela, tentou retê-lo.

- Tragédia? - Perguntou o inspetor enquanto oferecia seu braço à senhora Campbell.

- OH, sim. Lady Gremont padece e padecerá uma imensa humilhação pelo inapropriado comportamento de seu falecido marido.

Florence apertou o braço de Michael além do devido e quando o inspetor notou a tensão da mulher, pousou sua mão sobre a dela.

- Ela não tem que sofrer as consequências de um assassino, lady Constance. Quem apertou o pescoço de lady Cooper foi o visconde, não sua esposa - acrescentou mordaz.

- Entretanto... tem que admitir que ela foi a única que sobreviveu a esse trio amoroso e como o morto já não pode ser julgado nem ultrajado... - disse divertida.

- Por sorte, sempre faço justiça com os criminosos e não com a família destes. Ninguém é culpado das atrocidades cometidas por aqueles que possuem o mesmo sangue - apontou.

- Mas... - tentou dizer.

- Se fosse assim... - retomou inalterável - quarenta por cento da alta sociedade tem sangue azul, a mesma cor que a do assassino - sentenciou antes de olhar para Florence e a mesma oferecer-lhe um leve sorriso. - Conduz-me até sua filha, senhora Campbell?

- É claro - respondeu ela orgulhosa.

Não tinham dado mais de cinco passos quando Florence lhe sussurrou.

- Obrigada.

- Não tem por que me agradecer. Só rebati aquela opinião estúpida - indicou.

- Com muita inteligência... - esclareceu.

- É fácil destacar sobre esse tipo de pessoas, senhora Campbell. E não é inteligência e sim prática. Desde que trabalho na Scotland Yard me vi rodeado de muita gente assim.

- Não obstante, seja por inteligência ou por prática, protegeu a honra da minha filha e isso, senhor O´Brian, manifesta que possui mais cavalheirismo que o que poderia encontrar entre todos estes petulantes - explicou.

- Você foi um deles - murmurou ao mesmo tempo que dirigia o olhar para April.

- Por sorte encontrei um homem que me libertou dessa vida - comentou zombadora.

- Deve ter amado muito ao senhor Campbell para abandonar uma posição tão cobiçada. Ser a filha de um duque supõe uma grande responsabilidade - prosseguiu falando.

- Amei, amo e o amarei sempre. Norman Campbell é o grande amor da minha vida e, embora voltasse ao passado, reiteraria meu comportamento. Esteve alguma vez apaixonado?

- Sim, uma - declarou.

- E... pôde esquecê-la? - Persistiu.

- Nunca - Sentenciou com firmeza.


V


Parecia um cata-vento. Embora, é óbvio, não fosse o vento quem a movia de um lado para outro e sim as mãos de lady Swatton. «Coloca-se aqui... agora estará melhor neste lado... ui! Equivoquei-me, melhor nesta parte...». Assim esteve desde que o inspetor apareceu na festa. Por mais que pensasse sobre as razões pelas quais a fazia girar tão frequentemente, nada, salvo que tivesse uma perspectiva das costas do agente, podia explicá-lo. Nesse instante, April contemplou o rosto de Vianey. Tinha os olhos totalmente abertos e mostrava um enorme sorriso. Olhava atrás dela, divertindo-se com aquilo que observava. Tentou virar-se para descobrir o que satisfazia tanto a baronesa, mas ela o impediu.

- Agora não, pequena. Espera um pouco mais - pediu.

O que a fazia tão feliz? Por que sorria como se fosse uma menina travessa? Os nervos se apoderaram dela lhe causando uma incrível debilidade nas pernas. Algo lhe indicava que, embora Vianey mostrasse diversão, ela se encontrava em perigo e que devia sair dali o quanto antes fosse possível. Mas essa intuição não lhe esclarecia a razão pela qual precisava fugir aterrorizada. Presa do pânico e desobedecendo a ordem da baronesa, girou e, justo nesse momento, seu rosto impactou sobre um peito compacto. Ao levantar o olhar para averiguar quem era a pessoa com quem tinha chocado, empalideceu.

- Sinto-o - desculpou-se Michael após aquele inadequado contato. - Não devia ter me aproximado tanto - acrescentou ao mesmo tempo que dava um passo para trás.

- Senhor O´Brian! Que alegria vê-lo nesta festa! Não sabia que você tinha sido convidado - mentiu Vianey. Ela tinha falado com lady Dustings quando lhe comentou a possibilidade de oferecer uma festa ante a chegada do outono e, como era habitual na baronesa Swatton, sugeriu-lhe que celebridades deviam vir para que obtivesse o êxito desejado. Pensou que lady Dustings recusaria tal insinuação, mas por sorte, o inspetor tinha encontrado o empregado que saqueava as arcas dos viscondes e aceitou encantada.

- Lady Swatton - a saudou aceitando a mão que lhe oferecia para lhe dar um suave beijo. - O prazer é meu. Você está tão estupenda como sempre.

- Que galanteador! - Exclamou abanando-se como se se ruborizasse. - Embora para lhe ser justa, noto como o passar dos anos me castiga, sobretudo quando tenho a um cavalheiro tão sedutor ao meu lado.

- Vianey! - Repreendeu-lhe Florence. - Como pode ser tão descarada? Desculpe a ousadia de minha amiga, senhor O´Brian. Acredito que bebeu mais do que se pode permitir.

- Não se preocupe, senhora Campbell. Lady Swatton sempre obterá meu beneplácito. Porque, se a memória não me falha, desde que a conheço se comporta como uma mulher...

- Atrevida? - Intercedeu April que ainda se encontrasse em estado de choque pelo inadequado contato com o homem.

- Senhora Campbell... - Michael se dirigiu para ela não só com o olhar, mas sim virou todo o corpo para poder permanecer o mais perto possível da mulher. Aquele impacto, aquele leve roce causou-lhe o mesmo efeito que a noite que a teve em seus braços: excitação e descontrole. Dois estímulos que não devia permitir-se mostrar diante da desconfiada baronesa nem da terna mãe de April.

- Senhor O´Brian... - respondeu estendendo sua mão para que a beijasse da mesma forma que à Vianey. Mas a saudação não se assemelhou em nada. Ali onde os lábios de Michael mal tinham roçado a pele de lady Swatton, nela ficaram pegos às suas mãos além do permitido.

April sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Percebeu em detalhes como o pelo se arrepiava ante a carícia, sem contar a sensação que teve quando o polegar daquela enorme mão acariciou sua palma com descaramento. Entretanto, não se sentiu irritada por aquela ousadia, ao contrário. Depois de ter permanecido toda a festa embaixo de olhares acusadores, aquele contato a reconfortou mais do que deveria. Como podia encorajá-la tanto um simples gesto?

Enquanto os dois se saudavam, Vianey os contemplava sem pestanejar. É óbvio, para uma mulher como ela não tinha passado despercebido a maneira em que o inspetor a tinha chamado. Não a nomeou como lady, como viscondessa ou como viúva. Dirigiu-se a ela com o sobrenome do Norman. Quis soltar uma gargalhada, mas se conteve para não sobressaltar um momento tão íntimo. «Então ela é o motivo de sua mudança de atitude, senhor Dark... - meditou. - Quem diria?».

- Então... - falou Florence - por que você disse que chegava tarde?

- Por trabalho - disse olhando April sem pestanejar . - Um homem da minha posição sempre deve deixar sua vida privada de lado quando o trabalho o requer .

- Que atencioso! - Exclamou Vianey jocosa. - E... que tema em questão o fez privar-se de uns momentos de diversão? - Insistiu zombadora. - Uma morte? Um furto, possivelmente?

- Tive que meter na prisão uma mulher que possuía uma língua muito afiada...

Ante tal comentário, April e sua mãe soltaram umas sonoras gargalhadas. Era a primeira vez, desde que chegaram à festa, que as duas riram tanto que várias lágrimas apareceram em seus olhos. Pelo contrário, lady Swatton franzia o cenho e o olhava de maneira desafiante.

- Não se zangue... - disse-lhe Michael pegando-a pela mão, a que não segurava o leque, para voltar a beijá-la. - Só foi uma brincadeira...

- É óbvio que foi uma brincadeira, jovem descarado. Mas se quiser meu perdão por esse inapropriado comentário, terá que dançar - declarou com aparente mau humor.

- Quer me conceder a grande honra de dançar comigo? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Eu adoraria, embora tema que meus desgastados pés não me permitiriam sustentar durante toda a peça, embora estivesse presa em seus fortes braços. Entretanto, - disse olhando April - lady Gremont... - salientou para chateá-lo - não teve essa oportunidade durante a festa. Nenhum cavalheiro dos presentes até a sua chegada teve coragem suficiente para convidá-la a dançar. Já sabe... se por acaso ao final da peça tenta estrangulá-los...

- Vianey! Pelo amor de Deus! O que lhe aconteceu esta noite? - Replicou Florence atônita.

- Ainda não dançou? - Perguntou O´Brian a April evitando as outras duas mulheres.

- Não - respondeu abaixando a cabeça envergonhada.

- Porque não o deseja ou porque não teve a oportunidade? - Insistiu.

- Faz tempo que não o faço e... - começou a dizer April.

- Porque não o deseja ou porque não teve a oportunidade? - Repetiu Michael apertando a mandíbula.

April fixou seus olhos no homem que procurava averiguar a verdade. Embora desejasse disfarçar que tinham recusado sua companhia e que não tinha muita vontade de dançar, ele não ia se contentar com uma simples desculpa. Pelo que podia apreciar, era obstinado e não se renderia jamais. Assim é como o tinham definido os jornais e por isso alcançou a fama de caçador e implacável. Jogou uma olhada ao fundo do salão, só havia dois casais dançando e atrás destes estava seu pai, que não tirava os olhos dela. Sorria. Sim, por mais estranho que lhe parecesse, seu pai estava sorrindo de orelha a orelha enquanto ela permanecia ao lado do homem que tinha sugerido a possibilidade dele ter matado Eric.

- Senhora Campbell? Espero uma resposta e, se possível, sem evasivas - reiterou Michael.

- Aceitaria como apropriado dançar com a esposa de um assassino? - Perguntou segurando as lágrimas que apareceram em seus olhos.

- Repetirei só mais uma vez, April. – Chamá-la por seu nome de batismo provocou que Florence levasse as mãos à boca e que Vianey sorrisse amplamente. - Quer dançar ou não?

- Sim - respondeu enfim.

- Pois se puder me acompanhar, será uma verdadeira honra poder dançar todas as peças que quiser - declarou ao mesmo tempo que lhe oferecia seu braço.

O comichão que percebia em sua nuca a advertia que todos os olhares estavam dirigidos a eles. April se encontrava bastante aturdida, mas também arrependida por ter aceito o convite do inspetor. Enquanto caminhavam para o centro do salão, meditou sobre o que estavam a ponto de fazer. Seria um tema muito suculento para fofocar; a viúva de um assassino dançando com a pessoa que apanhava delinquentes. Falariam deles. Não só uns dias, mas semanas ou talvez meses.

Olhou de esguelha ao seu acompanhante e ficou petrificada ao observar a determinação, firmeza e inclusive a arrogância que exibia. Não encontrou nem um ápice de arrependimento ou dúvida nele. Estava decidido a agradá-la, sem lhe importar os rumores que ofereceriam depois. Por uns instantes, quando o agente a colocou em frente a ele e posicionou suas mãos adequadamente, perdeu a noção do tempo e fugiu do mundo que a rodeava. Aqueles olhos claros, aquele queixo imperioso e a formidável figura masculina pareciam protege-la de todos os que se encontravam na sala. Foi estranho sentir-se daquela maneira. Nem Eric, durante os sete anos de matrimônio, proporcionou-lhe sensações tão aprazíveis. De repente, a música começou a tocar e April afrouxou seu corpo. Ao fazê-lo, notou a pressão da mão que o inspetor tinha colocado na cintura. Animava-a. Aquele gesto, um tanto inadequado, encorajava-a a não se render.

- Deixe-se levar - murmurou quando percebeu a debilidade dela.

April levantou o queixo para contemplar aquele duro rosto, aquele olhar e, muito ao seu pesar, ficou tão assombrada pela superioridade que mostrava que terminou aceitando o conselho. Recordaria sempre cada volta, cada roce, cada movimento que realizaram naquela dança. Jamais se achou tão segura e tão cuidada, o temor que a tinha acompanhado desde a noite que Eric faleceu desapareceu para dar lugar a uma sensação de liberdade e desfrute. Nesse momento de prazer percebeu o calor que irradiavam as fortes mãos e conseguiu inspirar o perfume que ele desprendia. Sua colônia, mesclada com uma leve fragrância a uísque e a tabaco, incrustou-se em seu nariz com vivacidade.

- Onde esteve antes de vir? - Atreveu-se a perguntar quando, depois de uma volta, ambos os corpos ficaram de novo unidos.

- No Clube Reform, - respondeu Michael arqueando as sobrancelhas - por que pergunta?

- Porque cheira a tabaco e a uísque - disse um tanto envergonhada por seu descarado comentário.

- Tive que averiguar se um empregado do senhor Reform o roubava – explicou. - E esse homem bebe e fuma muito - acrescentou.

- Você não o faz? - Perguntou.

- Fumar e beber? - April assentiu ao mesmo tempo que a melodia lhe sugeria que devia dar um passo para trás e realizar outra leve volta. - De vez em quando - respondeu quando a teve de novo perto. - Eu adoro desfrutar de uma boa taça de Porto se o trabalho me permitir e estou acostumado a fumar um charuto quando me encontro pensativo.

- Pensativo? - Repetiu ela interessada.

- Não tenho um trabalho fácil, senhora Campbell. Há momentos nos quais enfrento um sem-fim de problemas de difícil resolução.

- Entendo... - murmurou com suavidade.

- Enfrentou, ultimamente, algum problema? - Perguntou arqueando de novo as sobrancelhas escuras.

- Refere-se a como estou vivendo depois da atrocidade que realizou meu marido? - Perguntou olhando-o com reticência.

- Você não é a culpada disso. Só é outra vítima de um criminoso - apontou com firmeza.

- Pois muitos dos que nos observam não pensam igual a você, senhor O´Brian - manifestou com tristeza.

- Alguém aqui presente lhe fez ou disse algo inadequado? - Perguntou apertando a mandíbula.

- Diante de todos? Não, é claro que não! - Soltou com zombaria. - Só se aproximaram para me oferecer as condolências e para me desejar que o estupor desapareça rapidamente.

- O estupor? - Insistiu na expectativa.

- Assim chamaram à atrocidade que meu marido fez - explicou April de maneira sarcástica.

- Quem?

- Todos os que se aproximaram de mim esta noite - respondeu.

- Pode enumerá-los?

- A todos? - Perguntou April abrindo os olhos de par em par.

- Os que recordar...

- Lorde Sheven, lorde Forden, lorde Carson e lorde Rowling - mencionou sem poder apagar o assombro de seu rosto.

- Alguém mais?

- Acredito que não – disse. - Mas... não lhe ocorre falar com eles, não é, senhor O´Brian?

- Não... - respondeu desenhando um sorriso malicioso. - Não seria apropriado falar com esses cavalheiros em uma festa como esta... - resmungou.

- Então... por que me perguntou isso? - Perguntou ao mesmo tempo que notou como sua mão, aquela que estava aferrada à sua, apertava-a tanto que começava a suar.

- Interesse policial, só isso - comentou rapidamente.

Mas April sabia que não era assim. O inspetor aproveitou outra volta para visualizar os homens que tinha nomeado e sentiu um estranho calafrio ao apreciar a maneira que os olhava. O que pretendia fazer? Por que se interessava tanto em averiguar quem poderia havê-la ferido em sua ausência? Por que podia escutar um leve grunhido procedente de sua garganta? Acaso o inspetor sentia algo por ela? «Não pense tolices - disse-se. - Trata-se somente de um comportamento educado. Tenha em conta que é um homem que está acostumado a ajudar aos necessitados e, neste momento, você está nessa situação. Tudo o que possa deduzir, além disso, são meras conjecturas».

- Olham-nos... - disse depois de um tempo calada. Colocou sua mão esquerda no amplo ombro e o pressionou, sem dar-se conta, pelo temor que lhe causou ser observada com tanto descaramento.

- Invejam-nos - expressou ele com um sorriso.

- Invejam? - Disse levantando o rosto e, pela primeira vez, desenhando um sorriso tímido.

- O que você pensaria se observasse que a mulher mais formosa da festa dança com um homem como eu? - Assinalou divertido.

- Não sou tão formosa e se alguém tivesse querido dançar, teria me pedido. Lembre quem sou, senhor O´Brian, e em quem me converti... - sussurrou baixando o queixo.

- April, olhe-me nos olhos! - Ordenou-lhe. - Não quero que se sinta infeliz por como a observam esses insensatos - grunhiu em voz baixa. - Nenhum dos que nos contemplam pode ignorar a mulher que é. Tem um cabelo formoso, ainda que hoje desejou guardá-lo em um coque pouco favorecedor. Possui duas tonalidades que lhe proporcionam uma beleza incrível e digna de invejar por qualquer dama; segundo a perspectiva com a que se olhe, pode apreciar uma cor marrom ou dourada. Sua figura é perfeita e, embora a esconda sob um vestido negro, essa roupa insinua com descaramento o que se encontrará embaixo dela e, creia-me, um verdadeiro cavalheiro não deveria imaginar o que esconde...

- Senhor O´Brian... - murmurou estupefata enquanto abria os olhos como janelas.

- Seu nariz, o arco de suas sobrancelhas, essas pequenas covinhas que mostra quando sorri e a claridade da cor de seus olhos a fazem tão sensual como irresistível. Assim que, diga-me, senhora Campbell, crê de verdade que nos olham com repugnância ou com inveja? - Prosseguiu sem arrepender-se de suas palavras nem do sufoco que causou nela ao escutá-las.

- Entendo a razão pela qual lady Swatton o adora. Você é um homem bastante encantador - declarou fixando seu olhar na gravata negra.

Justo ao cravar seus olhos nela descobriu como um alfinete dourado atravessava o tecido do objeto. Era um escudo e, se não errava, tratava-se do emblema da Scotland Yard. Tinha lido sobre esses presentes. Segundo os jornais, quando foi nomeado inspetor, seu antecessor o deu de presente para que nunca esquecesse quem era e a quem devia servir. April desejou acariciá-lo e sentir em seus dedos a rugosidade daquele pequeno símbolo que, embora não fosse perceptível à distância, ele exibia com orgulho.

- Não costumam me descrever dessa forma - comentou jocoso. - Mas obrigado... - sorriu.

A música estava a ponto de chegar ao seu fim, mas, por mais estranho que parecesse, ela não queria que terminasse. Agradava-lhe a proximidade do inspetor, o tom de sua voz e a estranha proteção que lhe ofereciam aquelas mãos segurando-a. Entretanto, quando os últimos acordes estavam indicando que tudo finalizava, notou que ele não se separava dela para despedi-la. April levantou seu olhar e se cravou naqueles olhos azul mar. Suas sobrancelhas escuras ressaltavam com força a tonalidade de sua íris.

Estudou-o como quem lê uma página de um livro interessante. Não era um homem como Eric. Na realidade, não tinha nada a ver. Ali onde as feições de seu marido lhe outorgavam um semblante infantil, no inspetor só mostravam masculinidade e virilidade. A mandíbula marcada, o nariz grego, o cheio de suas bochechas, a suave sombra escura da barba... não, não tinham nada em comum. Se o rosto de Eric indicava soberba por sua beleza, a do inspetor mostrava experiência, vivência e determinação. Caçador e implacável, as duas características primordiais do policial mais elogiado na cidade surgiram na mente de April com rapidez e firmeza.

- Acabou... - murmurou ela quando a música deixou de soar.

- Só terminou a primeira peça que pensava dançar com você - explicou apertando suas mãos ainda mais nela.

- Não seria correto... - expressou ao mesmo tempo em que suas bochechas se voltavam de um vermelho intenso.

- O que eu não vejo correto é liberá-la tão cedo - acrescentou.

- Mas falarão... e minha reputação o danificaria - manifestou atemorizada.

- Acredita que está em frente a um homem que precisa cuidar de sua reputação? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Não.

- Então... o que a impede de me aceitar? Não será que você não deseja me conceder mais tempo porque não sou um homem com sangue azul? - Instigou-a. Precisava tirá-la daquela introversão que a possuía, daquele estado de pesar e decepção. Precisava ver em seu olhar a moça desafiante que o afastou naquele balcão.

- Se pensa isso de mim, você está muito confuso - resmungou zangada.

- Perfeito. Então, prossigamos com a seguinte dança e espero que seja uma valsa.

- Uma valsa? - Disse assombrada.

- Não quero passar os próximos minutos saltando como uma lebre. Prefiro aproveitar esse tempo sentindo seu corpo junto ao meu - comentou sem mais.

Tinha sido uma má ideia aceitar a segunda dança... April se repetia uma e outra vez que não tinha sido correto porque, tal como previu, foi uma valsa. Se todo mundo se escandalizava quando os casais atrevidos a dançavam, a cara de espanto que mostravam aqueles que os observavam revelava o que estavam pensando sobre eles.

Em várias ocasiões o inspetor aproximou seu torso ao dela e o mantinha unido até que descobria que não lhe permitia respirar. A mão que devia permanecer em suas costas baixou até à cintura e percebeu que, em mais de um momento, estendia seus dedos para tocar tudo aquilo que alcançava. E sobre a proximidade de seu rosto ao dela... April ficou sem fôlego quando notou o calor da inspiração masculina acariciando seu pescoço. Esteve a ponto de ajoelhar-se, mas por sorte, aquelas mãos a seguravam com força. Não obstante, sua mente, aquela que tentava aplacar desde que averiguou o que necessitava na intimidade, transportou-a ao passado, justo no instante ao qual conheceu inspetor. Como era normal nele, aproximou-se dela com descaramento, embora nesta ocasião não tinha emitido palavras ousadas e sim tranquilizadoras. Mas aquela vez, o que lhe insinuou no balcão de sua casa a perturbou durante dias, semanas e inclusive meses depois de casada. Acreditou, em vão, que Eric lhe ofereceria aquilo que exibia em seu porte, mas errou. Nem durante a última semana de matrimônio, em que seu marido visitava seu quarto com mais assiduidade, este lhe deu o ansiado prazer. Talvez porque em sua mente só havia uma imagem; a cena que um homem descarado lhe narrou uma noite. April levantou seus olhos para o inspetor. Observava-a como se tentasse averiguar o que pensava. Alterou-se tanto que se ruborizou. Não, ele não podia suspeitar que em sua cabeça voltava a ressoar aquela inapropriada insinuação.

- Eu também utilizaria esta mão, mas não para tocar meu rosto e sim o seu corpo. A faria acariciar-se em frente a mim, nua, com os olhos abertos para que fosse consciente de como me excitaria vê-la dessa maneira tão esplêndida. Seus mamilos ficariam duros, ansiando o calor da minha boca para acalmá-los. Então, faria que descesse essa mão para uma zona que ainda não foi alcançada. Você mesma retiraria esses lábios macios e inchados pela paixão e, para recompensá-la por cumprir meus mandos, me ajoelharia em frente às suas pernas, colocaria minha cabeça entre elas e, enquanto meu nariz se impregnasse dessa essência de mulher que desprenderia pela excitação, minha língua percorreria cada canto de seu sexo. Beberia de você. Beberia tanto que acalmaria minha sede para o resto da minha vida.

Notou como aumentava sua temperatura. Sentiu uma pontada de dor na união de suas coxas e como lhe acelerava o coração; era incapaz de olhá-lo pela vergonha que lhe causavam seus inadequados pensamentos. Não era apropriado manter aquela atitude desinibida, devia fazê-la desaparecer o quanto antes possível. Talvez seu pai tivesse razão e precisava procurar um amante. Mas... quem?

- Relaxe - murmurou Michael com voz lenta.

- Como? - Perguntou April ruborizando-se ainda mais.

- Disse-lhe que relaxe - repetiu O´Brian respirando entrecortado.

- Estou tranquila... - respondeu a mulher sem fôlego.

- Vê meu dedo polegar apertando seu pulso? - Indicou-lhe. - Notei que aumentou seu ritmo cardíaco. Também percebi que respira de maneira abrupta. Sem falar como aumentou a rigidez de suas costas. Muito me temo que se a mão que tenho em sua cintura fosse descarada e baixasse indevidamente para suas coxas as encontraria apertadas, como se tentasse sufocar uma excitação iniciada em seu sexo - declarou mal respirando. - Está excitada, senhora Campbell? Excita-a me ter assim?

April não foi capaz de dizer nem uma só palavra. Mantinha os olhos abertos como pratos, seus batimentos cardíacos se aceleraram ainda mais e a excitação, essa que ele tinha percebido, aumentava sem poder controlá-la. Notava sua umidade, notava como lhe ardia aquela zona reclamando ser consolada. Entretanto, ante tal barulho de ideias, uma voz em sua cabeça lhe perguntava como era possível que o senhor O´Brian descobrisse o que sentia naquele momento com tanta facilidade.

- Se não se relaxar... - prosseguiu Michael com voz asfixiada pelo desejo - logo descobrirá uma dureza se chocando contra sua cintura e não seria apropriado para nenhum de nós esse estado de descontrole. Equivoco-me? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Sinto-o... - falou April abaixando a cabeça. - Nunca deveríamos ter dançado uma música tão atrevida.

- Ficaria todo o tempo dançando esta música tão atrevida, senhora Campbell. Mas lhe asseguro que, em minha mente, nenhum dos dois estaria vestido - prometeu.

E, de repente, a música cessou. Michael tomou ar e tentou dominar-se. Sempre mantinha um incrível controle em tudo o que se referia a ele e ao seu entorno, mas estar ao lado dela, senti-la e cheirar sua excitação lhe causou uma inesperada desordem mental. Ofereceu-lhe o braço para que ambos pudessem retornar de volta às duas mulheres que não tinham afastado seus olhos deles nem um só instante. Lady Swatton seguia sorrindo e o brilho de seu olhar lhe indicou que sabia, com certeza, o que lhe ocorria. Ela o conhecia bastante bem. Não só em sua vida cotidiana, mas também na escura e, pela expressão de seu rosto, zombava da perda de controle. Por outro lado, Florence Campbell não parecia ter descoberto nada, embora sorrisse agradada ao ver que sua filha por fim dançava com um homem. Michael estava seguro de que se soubesse o que tinha insinuado à sua querida filha, agarraria a primeira coisa que estivesse ao seu alcance e lhe golpearia a cabeça.

- Duas peças seguidas? - Perguntou Vianey enquanto se abanava. - Um ato bastante descarado, não lhe parece, senhor O´Brian?

- É o mínimo que podia fazer pela senhora Campbell depois desta tortuosa festa.

- Todo mundo os observava - falou Florence orgulhosa. - Acredito que no fundo estavam com inveja.

- Se algum dos presentes fosse um homem sensato, se encontraria em um estado de cólera ante meu ato - acrescentou Michael divertido.

Seguia sufocada. Apesar de lhe dar um pouco de tempo enquanto a fazia retornar junto às mulheres, April continuava excitada. O que lhe teria provocado aquele estado? Teria sido a dança? Ou talvez sua forma de tocá-la. Fosse o que fosse, ela devia fazer desaparecer aquela inapropriada necessidade. De repente pensou em um tema que a deixaria gelada, mas justo quando se virou para lhe falar, uma pessoa entrou na sala com urgência. Michael dirigiu seus olhos para o novo personagem e franziu o cenho ao descobrir a silhueta de seu homem de confiança.

- Inspetor - disse a modo de saudação Borshon. - O necessitamos.

- Agora? - Perguntou Michael de mau humor.

- Senhor... - cochichou - encontramos a outra - revelou.

- Está bem - respondeu com um suspiro. - Milady, senhoras... tenho que partir. Como já lhes adverti, minha vida privada sempre se vê interrompida pelo trabalho.

- Já parte? - Perguntou Norman Campbell atrás do inspetor.

- Sim, assim é - respondeu Michael endireitando suas costas.

- Nós também - afirmou olhando Florence. - Acredito que minha esposa está esgotada, não é?

- Sim? - Perguntou Florence arqueando as sobrancelhas. Ao ver como os olhos de seu marido se cravavam nela continuou: - Tem razão, querido. Devemos partir. Estou tão cansada que não sou consciente de quão fatigada me acho.

- Pois vão, - interveio Vianey - a festa finalizou para mim também. Senhor O´Brian, seria tão amável de me levar até minha casa? Como advertiu o senhor Campbell, minha amiga está bastante exausta e não gostaria de incomodar ainda mais os obrigando a suportar minha companhia durante mais tempo.

- Mas, Vianey... - murmurou Florence olhando sua amiga.

- Não se preocupe, querida - disse lhe agarrando as mãos e apertando-a com ternura. - Estarei ao lado de um agente e ele me protegerá se tentarem nos assaltar, não é, senhor O´Brian?

- Não duvide, milady - comentou divertido Michael enquanto observava que April continuava ausente.

- Não nos demoremos mais - apontou Norman. - Eu não gostaria que amanhã publicassem em todos os jornais que nossa inoportuna companhia provocou que o senhor O´Brian não cumprisse com seu dever.

- Pai! - exclamou April franzindo o cenho. - Como pode ser tão irônico?

- Não se preocupe, senhora Campbell - intercedeu Michael. - Não é o primeiro nem será o último que zomba da minha profissão.

- Mas jamais falará assim diante de você. Não o permitirei - disse irada.

- Sinto muito, querida. Não pensei... - tentou dizer Norman, que segurou uma gargalhada jovial. Sabia. Soube desde o momento em que os observou. Só devia interferir um par de vezes mais e... tudo estaria em seu lugar!

Florence agarrou com força o braço de seu marido e o puxou para o hall, desejava lhe perguntar por seu inadequado comportamento, mas temia que lhe respondesse com evasivas. Ela sabia como odiava ao inspetor desde que investigou a morte de Eric e como desejava lhe arrancar o coração desde o momento em que insinuou que ele tinha assassinado o marido de sua filha. Como podia pensar uma coisa assim de seu marido? Acaso tinha a típica atitude de um assassino? Com milhares de pensamentos em sua cabeça, recebeu o casaco das mãos de Norman.

April os acompanhava em silêncio, pensativa, afastada deles. Florence a olhou de esguelha tentando averiguar o que lhe acontecia, mas não havia em seu rosto algo que lhe explicasse o que desejava saber.

Depois de despedir-se de Vianey e do inspetor, os três subiram à carruagem.

Michael olhou April de esguelha enquanto oferecia a mão à sua acompanhante para subir ao interior da carruagem. Parecia atordoada, talvez até perdida. Teria atuado de maneira incorreta? Deveria comportar-se de outra forma? Depois de acomodar-se em seu assento olhou a baronesa com receio.

- Vai me explicar agora por que recorreu a mim para que a acompanhe? - Perguntou quando pousou a cabeça sobre a parede macia.

- Precisava ter umas palavras contigo - respondeu Vianey enquanto arrumava sua saia.

- Sobre o quê? - Perguntou ao mesmo tempo que cruzava os braços.

- Vou iniciá-la - respondeu com suavidade.

- A quem? - Perguntou com inapetência.

- Para mim se chama April, para ti, a senhora Campbell - respondeu desenhando um enorme sorriso.

- Jamais! - Exclamou irado. - Ela não o aceitará!

- Isso é o que pensa, senhor Dark? Porque percebi outra coisa alí dentro. Não sei muito bem o que lhe disse nem o que lhe fez, mas vi sua excitação a léguas. Até um cego poderia ter observado com claridade!

- Ela não é...

- É! – Exclamou. - E a única maneira de salvá-la é levando-a ali. Estou segura de que alguém a escolherá com prontidão não só por sua beleza, mas sim pela atitude que mantém. Acaso não se deu conta? Tão desconcentrado está que não foi capaz de captá-la?

- Deu leves matizes disso..., mas pensei que era só uma alucinação da minha parte - refletiu ao mesmo tempo que fechava os olhos.

- Ela é a razão pela qual abandonou a sua serva? - Soltou à queima-roupa.

- Ela é a única razão de tudo, senhora Hard - apontou com ironia.

- Pois se não quiser escutar como ofega com outro dominante, recomendaria que fosse na quarta-feira ao Clube. Se tudo sair como tenho planejado, poderei levá-la nessa noite.

- Não poderá tirá-la de Shother - indicou com mofa. - Entrincheirou-se na mansão com unhas e dentes.

- Mas de repente me encontrando bem mal e uma mulher da minha idade, só e doente poderia acontecer alguma coisa - acrescentou divertida.

- Quer enganá-la? Pretende apanhá-la com falácias? - Perguntou zangado.

- Falarei com April antes de subi-la, se ela não o desejar, não subirá as escadas. Mas estou convencida de que o fará e mais rápida que um galgo - sentenciou satisfeita.

- Que ninguém a escolha - declarou com firmeza. - Não a ofereça a ninguém até que eu apareça. April deve ser minha de uma maneira ou de outra.

- Se tanto a deseja, por que não tentou conquistá-la depois de enviuvar? - Interessou-se Vianey.

- Ela me retirou da sua vida faz muito tempo e a respeitei sempre... - refletiu.

- Mas... o senhor Dark não respeita a ninguém salvo a si mesmo, não é? - Disse cravando seus olhos nele.

- O senhor Dark não respeita a ninguém salvo ela - respondeu antes de olhar para a janela e dar por concluída a conversação.


VI


Quarta-feira, 9 da manhã. Residência dos Campbell.

Despertou de novo empapada em suor. April afastou o lençol e se levantou desesperada da cama. Não podia controlar os sonhos, inadequados dada sua situação. Desde que dançou com o inspetor sua mente não se encontrava tranquila. Tudo se transformou em um caos e, por mais que desejasse fazer que parasse, quando fechava os olhos seu cérebro se deixava levar pelas sensações e as palavras que lhe disse. Devido a isso, desde sábado, contemplava-o ao seu lado, tocando-a com uma suavidade desesperadora, sussurrando-lhe coisas que nenhuma dama respeitável deveria escutar.

Mas o que verdadeiramente a deixava sem respiração, o que sem dúvida alguma lhe produzia um incrível banho de seu próprio suor, era a maneira de possuí-la, com força, paixão e uma ansiedade monstruosa. Seus sonhos eram tão reais que, inclusive depois de abrir os olhos, sentia um ardor na união de suas coxas e seus mamilos permaneciam duros como pedras. Todo seu ser reagia como se aquilo que visualizava na mente fosse realidade e não um produto de sua imaginação.

Sufocada, dirigiu-se para a bacia e molhou o rosto com a água gelada que continha na vasilha. Sem secar as gotas que escorriam pelo rosto, olhou-se no espelho. Suas bochechas ainda ardiam e um brilho estranho em seus olhos se refletiu no cristal. Sua íris não era verde e sim negra. Tão negra como uma noite sob o manto de nuvens escuras. Abaixou a cabeça, envergonhada por seu inapropriado comportamento. Uma mulher como ela não podia deixar-se levar por aquele tipo de perversões, embora tivesse a certeza de que as necessitava cada vez mais.

Retirou-se devagar, como se temesse despertar a mulher que se refletia no espelho. Seus pés descalços mal faziam ruído. Um fantasma. Assim se definia April naquela situação. Com uma camisola negra que lhe cobria até os joelhos, o cabelo molhado pelo suor, o rosto pálido pela vivência de seu sonho e a leve batida do coração faziam-na parecer mais um espectro errante que uma mulher desejosa de viver feliz o resto de seus anos. Esticou a mão esquerda para abrir a cortina e notou naquele cotidiano gesto um leve tremor. Não de frio, mas sim de luxúria. Aquela que lhe provocava a presença do inspetor ao seu lado, suas atrevidas palavras murmuradas perto do ouvido, suas carícias e aquelas fortes invasões em seu corpo. Como podia atuar dessa maneira tão descarada? Por que era incapaz de acalmar-se?

«A resposta está ante ti - se disse. - Acredita que suportará uma vida de castidade? De verdade pôde pensar que remendará o engano que cometeu ao se casar com Eric se comprometendo a não permanecer com outro homem?». O tremor começou a lhe percorrer o corpo. Tanto se agitou que terminou por sentar-se sobre o canto direito da cama. Escutou, no silêncio da habitação, o bater de seus dentes. Estaria doente? Sua mente teria adoecido depois da morte de Eric? Seria o normal após o acontecido. Não era fácil enfrentar com integridade a nova vida, essa que tinha querido mudar por completo. Entretanto, sua mente, a que acreditava transtornada, gritava-lhe que não era enfermidade o que sentia, mas sim desejo. Um incrível desejo por experimentar o que o inspetor lhe insinuava. Acaso não esteve a ponto de desmaiar quando lhe disse que dançariam nus? Sim, e quase fechou os olhos para deixar-se cair ao chão, mas devia manter uma aparente serenidade, igual à mostrada por ele em todo momento. Porque, embora notou como a pressão em sua cintura se fazia cada vez mais forte, o homem soube controlar-se em milésimos de segundo.

Porém, ela seguia sofrendo aquela excitação e continuava recordando cada palavra, cada gesto e cada carícia que sentiu em seus dois bailes. Foi um descarado. Sim que foi! O senhor O´Brian não analisou a situação que ambos viveram em frente aos outros. Queria dançar com ela, queria fazê-la tremer de luxúria, queria lhe mostrar que ele podia acalmar suas doenças e, por desgraça, tinha razão. Nenhum dos presentes na festa captou seu interesse. Não se importou que só se tivessem aproximado dela para lhe dar absurdas condolências. April os admirou em silêncio esperando que algum deles despertasse nela a vontade de sonhar. Entretanto, enquanto ele não apareceu, seu coração permaneceu entorpecido. Somente quando O´Brian se aproximou e lhe perguntou, daquela maneira tão contundente, se desejava dançar, aquele aprazível pulsar se desenfreou.

Zangada por sua perda de controle, levantou-se e caminhou decidida para o cordão que chamava a donzela. Tinha que fazer desaparecer aqueles pensamentos e a melhor maneira para obter tal propósito era voltar para sua vida rotineira. Se vestiria, desceria para tomar o café da manhã, leria o jornal e, se seu pai tinha programado outra reunião, ficaria sentada tomando notas de tudo o que se comentasse.

- Bom dia, milady - saudou a criada ao abrir a porta.

- Bom dia, Ethere - respondeu retornando à penteadeira. Evitou olhar-se outra vez, recusou-se a observar a mulher que ali se contemplava. Tinha decidido converter-se em uma pessoa diferente. Uma que guardaria seus desejos em uma caixa, a fecharia com cadeado e a lançaria ao mar para que as ondas a afastassem de seu lado.

- Deseja algo especial para esta manhã? - Perguntou a criada ao mesmo tempo que caminhava para o vestiário.

- O que te parece um vestido negro? - Sugeriu sarcástica.

Ante tal comentário, a donzela girou para ela e abriu os olhos como pratos.

- Era uma brincadeira, Ethere. Pode escolher o vestido que você mais gosta - disse sorridente.

- Seu pai me informou que terá que ir a uma reunião na biblioteca, assim, se não lhe importar, escolherei o vestido de gaze.

- Não é um pouco atrevido? - Duvidou entrecerrando os olhos.

- Seu pescoço estará oculto sob o tecido, milady. Se me permitir a opinião, não o será - comentou ao mesmo tempo que desprendia o objeto e o mostrava.

- Está bem... - suspirou. - Porei isso.

Quanto tempo usaria aquela triste cor? Quanto tempo tinha que continuar mostrando uma aflição que não sentia?

Cada vez que se ocultava embaixo daquela tonalidade seu estômago dava uma volta e ansiava vomitar. Sim, isso era a única coisa que lhe produzia lembrar-se dos sete anos que viveu com Eric: náuseas. Enquanto Ethere apertava o espartilho e lhe abotoava o vestido, April não parava de pensar que logo deixaria o luto, que só lhe recordava seu horrível passado e, assim como tinha decidido ser a mulher que foi antes de conhecer Eric, deixaria para trás uma indumentária que odiava com todas as suas forças.

- Lady Gremont - disse a donzela.

- Senhora Campbell - retificou April com firmeza. - A partir de agora me chamará dessa forma. Não mais lady, nem viscondessa nem nada que faça referência à vida que tive de casada.

- Senhora...

Ethere ficou atônita, voltou a abrir os olhos como janelas e levou sua mão direita para o abdômen. Não podia chamar assim uma viscondessa. Por mais que ela tivesse decidido eliminar quem era, os criados deviam tratá-la como uma mulher da alta sociedade.

- Se tiver alguma dúvida a respeito, - prosseguiu April com solenidade - faça-me saber agora mesmo.

- Não, senhora - murmurou abaixando a cabeça.

- Perfeito, obrigada. Onde disse que se encontra meu pai? - Quis saber ao mesmo tempo que a donzela se aproximava dela para penteá-la.

- Na sala de jantar. O senhor Campbell se encontra neste momento tomando o café da manhã.

- Deixe alguns cabelos soltos - comentou ao perceber que Ethere amontoava seu cabelo para enredá-lo em outro coque que, segundo o senhor O´Brian, não a favorecia.

- Como desejar... - murmurou a donzela mais atônita, se podia ser.

Percebeu que depois de sair de sua habitação se encontrava mais serena. Aquela mudança de atitude a satisfazia, até quando desceu as escadas o fez de maneira altiva, segura e com força. Não precisou agarrar-se ao corrimão, nem olhar ao chão para evitar um tropeço com os degraus. Tinha o queixo elevado e seus olhos olhavam para a porta como se esperassem a presença de alguém. Mas... a quem? Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto.

Ela sabia perfeitamente quem era a pessoa que desejavam contemplar seus olhos. Só aquele que a visitava pelas noites em seus sonhos: o inspetor. Entretanto, aquele amplo sorriso se desvaneceu com rapidez ao pensar que o homem não tinha interesse nela, salvo utilizá-la para descobrir se seu pai tinha envenenado Eric. Sim, essa era a única razão pela qual se aproximava dela, pela qual lhe insinuava coisas perversas e a exaltava. Era um caçador, como o denominavam os jornais. Um homem que utilizava qualquer artimanha para conseguir esclarecer um caso e, nesse momento, era averiguar se seu pai tinha introduzido o veneno no Porto do Eric.

Este pensamento negativo a fez tropeçar justo no último degrau e, como consequência, teve que agarrar-se ao corrimão. April esteve a ponto de soltar uma maldição ou dar um grito, mas se conteve. Não devia alertar ninguém com suas tolices. Precisava continuar mostrando integridade apesar de ser consciente de que só podia obtê-la quando pensava no inspetor de uma maneira positiva. Depois de recompor-se dirigiu-se para a sala de jantar. Apoiava sua mão no pomo quando escutou uma sonora gargalhada. Aquela forma de rir só podia pertencer ao seu pai e, se não errava, algo lhe tinha agradado muito. O que seria?

- April! - Exclamou Norman com bastante entusiasmo ao vê-la aparecer. Sem pensar duas vezes se levantou de seu assento e caminhou para ela.

- Pai? - Perguntou arqueando as sobrancelhas. - Do que ri? O que lhe resultou tão gracioso? - Insistiu ao mesmo tempo que aceitava um beijo de Norman na bochecha.

- Vem, querida, sente-se. Enquanto toma o café da manhã te explicarei o que me fez tanta graça - comentou feliz. Estranhamente feliz.

April se sentou em sua cadeira, justo à esquerda de seu pai. Nunca decidiram adotar essa regra que possuíam os aristocratas de manter-se afastados uns dos outros. Os Campbell eram diferentes e isso reforçava ainda mais o amor que se professavam.

- Recorda os lordes que se aproximaram de ti na festa? - Perguntou Norman ao mesmo tempo que uma criada vertia o café na xícara de April.

- Aproximaram-se muitos... - respondeu com desdém enquanto pegava entre suas mãos a xícara fervendo e esquentava com ela as palmas. - Se puder ser mais concreto, agradeceria - acrescentou antes de dar o primeiro sorvo.

- Recorda quem te falou sobre o desejo de que passasse com rapidez esse desventurado estupor? - Perseverou Norman com um olhar difícil de explicar.

- A que vem essa tolice? - Disse desgostosa. - Por que não para de me olhar e de observar o jornal com a extremidade do olho?

- Por favor, April, conceda-me este desejo - pediu divertido. - Necessito que enumere os cavalheiros que lhe disseram essa estupidez.

- Lorde Sheven, lorde Forden, lorde Carson e lorde Rowling - disse zangada. - A que vem este tipo de perguntas, pai? Acaso quer fazer com que eu reviva os piores momentos dessa ditosa festa?

- Não, querida, só quero esclarecer certas dúvidas - acrescentou com suspeita. - Além de nós... alguém mais sabia o que eles comentaram? - Insistiu.

- Já basta! - Exclamou desesperada. - Vai me dizer, de uma vez por todas, que diabos acontece? Por que quer que lhe repita esses nomes? Por que sorri dessa forma?

- Toma - disse aproximando o jornal. - Leia você mesma e veja o que lhe parece a notícia - esclareceu com um sorriso tão grandioso que podiam partir-se os lábios a qualquer momento.

Decidida e zangada por todo o mistério, April agarrou à contragosto o papel, colocou-o ao seu lado e começou a ler a notícia que tanto divertia seu pai. Quando resolveu o enigma seus olhos se abriram como pratos, seu coração começou a pulsar desenfreadamente e suas mãos começaram a suar tanto que molharam as páginas que tocaram.

- Entende agora a razão pela qual te perguntava se alguém mais sabia os nomes daqueles esnobes? - Inquiriu reclinando-se no assento e cruzando os braços.

- Mas... mas... como é possível? Como...? - Titubeou enquanto olhava seu pai e a notícia. Não dava crédito ao que se publicou. Devia ser uma coisa do acaso porque, do contrário, não achava uma explicação lógica.

- Quem sabia, April? - Repetiu Norman observando-a sem piscar.

- Isto é uma mera coincidência - disse afastando o jornal de seu lado como se queimasse.

- Está segura de que só se trata de uma coincidência? – Manifestou franzindo o cenho.

- Sim - respondeu ao mesmo tempo que agarrava a xícara com uma mão e tentava tomar um sorvo da bebida. Coisa que não pôde fazer porque essa mão não deixava de tremer.

- Pois... que casualidade que os quatro mesmos lordes que tentaram te humilhar na festa tenham sido presos pelo inspetor O’Brian por causa de dívidas no Clube Reform!

- As pessoas estão acostumadas a aparentar o que não são... - murmurou fixando seus verdes olhos no líquido negro. - Você, melhor que ninguém, sabe que há muitos cavalheiros que fingem possuir montanhas de ouro e logo têm atrás uma centena de credores.

- Não ajudou nosso querido inspetor ao senhor Reform na noite da festa? - Perguntou mordaz. - Não sei... acredito que essa foi a desculpa que deu o afamado agente...

- Inspetor! - Retificou-o com energia.

- De acordo... - disse com um sorriso ainda maior. - Inspetor. Enfim... que casualidade! O destino está cheio de surpresas! - Exclamou jocoso. Quando acalmou toda sua exaltação se inclinou sobre a mesa, agarrou a mão tremente de April e a olhou aos olhos. - Ele sabia? - Perguntou com firmeza.

- Quem? - Soltou sem poder levantar seu rosto.

- April... - resmungou.

- Sim, sabia - confessou enfim.

- Quando?

- Quando, o quê?

- Quando o disse? - Esclareceu.

- Na primeira dança, depois que me confessou que cheirava a tabaco e álcool porque o senhor Reform bebe e fuma muito.

- Então não mentia... esteve trabalhando... - voltou a reclinar-se e acariciou a escassa barba branca enquanto fixava seus olhos negros no teto.

- Por que ia mentir? - Perguntou April entrecerrando os olhos.

- Poucas pessoas estão acostumadas a dizer a verdade, querida. Nesta sociedade egoísta e daninha, poucos homens mantêm em suas conversações algo tão valioso como a sinceridade - refletiu.

- Ele não foi de todo sincero... - sussurrou ao mesmo tempo que exalava com tristeza.

- Não? Por que o diz? - Interessou-se Norman.

- Prometeu-me que não falaria com eles e, como pode observar, não cumpriu sua palavra - explicou com certo aborrecimento.

- Se estes cretinos tivessem insultado a sua mãe eu tampouco falaria com eles, querida. Talvez achassem seus corpos flutuando no rio - declarou com determinação.

- Pai! Acaso não entende que esse tipo de comentário não o beneficia? - Perguntou desesperada.

- Era uma maneira de falar... logicamente não poderia fazê-lo, não sou um criminoso, mas se possuísse o poder que tem o senhor O´Brian teria feito o mesmo que ele.

- Com que propósito? O que imagina que o levou a fazer essa tolice? - Questionou April levantando a voz.

- Acaso não se dá conta do que esse homem está dando a entender? - Disse com os olhos abertos.

- O que está tentado mostrar, pai? Que é um caçador teimoso? Que nenhum homem de sangue azul pode evitar a justiça? - Berrou.

- April... - disse tentando acalmá-la. - Ele só quer deixar claro que ninguém deve te machucar.

- Por quê? Por que quer fazer esse tipo de coisa? - Clamou levantando-se do assento e colocando suas palmas sobre a mesa.

- Querida... não se dá conta? Tão obtusa se tornou depois de casar com Eric? April, céu, ele se interessa por vocês...

- Mentira! – Gritou. - Esse homem só quer averiguar se você matou o Eric! E a única maneira de obtê-lo é através de mim! - Prosseguiu alterada. - Não se dá conta de que só quer me confundir? Não é capaz de entender que a única forma de conhecer o que aconteceu é aparentar um interesse por mim?

- Aparentar um interesse? - Norman elevou a voz . - Esses néscios estão há duas noites na prisão e, crê que só fez isso para aparentar interesse? Pensa um pouco, April Campbell. Se fosse descoberto que o inspetor deteve três barões e um visconde por engano, sua carreira policial terminaria no mesmo instante que eles saírem à rua. Tudo pelo que lutou durante estes anos se evaporaria como a fumaça, sem contar com a humilhação que obteria e, é óbvio, seria ele quem passaria na prisão o resto de sua vida. Crê de verdade que atuou por um falso interesse? - Assinalou enérgico para que sua filha entendesse o que tentava lhe explicar de uma vez por todas.

- Então, se tiverem sido capturados por seus indevidos atos, o inspetor só fez seu trabalho. E, até onde eu sei, nada disso tem a ver em mostrar interesse em mim - declarou antes de abandonar o café da manhã e caminhar para a porta.

- Deveria lhe dar uma oportunidade... - assinalou Norman sem mover-se de seu assento.

- Uma oportunidade? - Grunhiu ao mesmo tempo que girava sobre si mesma. Foi tão brusco o movimento que a saia de seu vestido formou redemoinhos na cintura. - Para que devo lhe dar uma oportunidade? Para averiguar o que deseja?

- Não conseguirá averiguar nada porque eu não fiz nada. Foi Eric quem se envenenou porque sabia que o apanhariam e era tão covarde que não foi capaz de assumir seu próprio destino - manifestou com solenidade.

- Como bem diz, nem todos os cavalheiros costumam ser sinceros. Bom dia, pai. Não me espere na reunião, tenho que esclarecer certos temas de meu interesse - expôs antes de voltar-se de novo para a porta e fechá-la com uma batida.

April apoiou as costas na porta. Respirou várias vezes tentando achar uma fresta de paz, mas era impossível obtê-la. Outra vez o inspetor se metia em sua vida. Entretanto, nesta ocasião não era em seus sonhos e sim na realidade. Por que tinha feito tal barbaridade? Como tinha se atrevido a pôr em perigo seu posto de trabalho? Acaso tinha perdido a sensatez? Sim, isso devia ser. Por mais controle e autoridade que mostrasse, deixava-se levar pela ira e isso não toleraria jamais em um homem.

Tinha sofrido bastante com Eric para continuar suportando outro perturbado. É óbvio, se havia alguma atração por ele, se por um instante havia sentido um inapropriado desejo por aquele arrogante, depois de fechar a porta, desapareceu. Agora só restava lhe deixar bem claro que ela não permitiria ser humilhada de novo.


VII


Quando explicou à sua mãe o acontecido, esta ficou mais feliz que seu pai. April tinha a esperança de que a apoiasse em sua posição e que se zangasse assim como ela. Mas conforme percebeu, para ambos o comportamento do inspetor foi o adequado. Ali onde encontrou uma grande gargalhada por parte de seu pai, em Florence obteve um sorriso grandioso e várias palmas, igual a uma menina frente a um vestido novo. Como podiam agir dessa maneira?

- Só lhes deu aquilo que mereciam - disse entusiasmada Florence. - E me alegro que, por fim, alguém tenha coragem suficiente para pôr todos esses petulantes no lugar que lhes corresponde.

- À custa de seu próprio futuro? - Perguntou assombrada e incrédula.

- Estou segura de que o senhor O´Brian estudou minuciosamente cada caso, querida. Como pôde comprovar, desde que apareceu em nossa casa para indagar sobre o inesperado falecimento de seu marido, sempre atuou com cautela e precisão.

- Mãe... tentou acusar papai dessa morte! – Refrescou sua memória.

- Imagino que teve que explorar várias opções e, logicamente, seu pai era o homem mais óbvio para assassinar o bastardo com quem se casou - disse com uma frivolidade tão horripilante que April ficou gelada.

- E se fosse verdade? E se papai o tivesse envenenado? - Insistiu.

- Bobagens! Norman é incapaz de matar alguém! Ainda lembro a cara de espanto que pôs quando Larson aniquilou o rato que apareceu na biblioteca. Se por acaso lhe falha a memória, tenho que lhe mencionar que encontrei seu querido pai em cima de uma cadeira gritando como um menino aterrorizado.

April sorriu levemente ao rememorar aquele momento. Tal como narrou Florence, seu pai estava tão assustado que o mordomo teve que lhe dar láudano durante três dias seguidos. Não apareceu pela biblioteca até que Larson lhe assegurou que nenhum roedor voltaria a lhe tocar os pés. Tinha razão, Norman não era o culpado da morte de Eric, tinha sido ele mesmo que, em um ato de covardia, havia se suicidado para não fazer frente à sua própria maldade. Não havia outra explicação e todo esse tema ficaria resolvido assim que aparecesse na Scotland Yard. Porque as conjecturas do inspetor a estavam perturbando tanto que até tinha acreditado na culpabilidade de seu amado pai.

- Vai visitá-lo? Em seu trabalho? - Perguntou Florence quando April a informou sobre suas intenções.

- Tenho que esclarecer certos assuntos - comentou ela enquanto colocava o casaco e aceitava as luvas que lhe oferecia Larson.

Tinha-a seguido. Sua mãe caminhou atrás dela até o hall.

- Assuntos? Com um inspetor? - Soltou assombrada. - Que classe de assuntos deseja esclarecer com um homem como ele? April Campbell... não lhe ocorrerá fazer nenhuma tolice, não é?

- Só quero deixar bem claro que não deve me perseguir - declarou com firmeza ao mesmo tempo que ajustava as luvas nas mãos.

- Persegui-la? - Perguntou elevando as sobrancelhas. - Mas esse pobre homem só quis mostrar aos outros que deve ser respeitada. Em que momento a perseguiu o senhor O´Brian? Porque, que eu recorde, nas únicas vezes que esse cavalheiro se aproximou de você, só manteve um comportamento adequado e digno.

April a olhou de esguelha. O rosto de Florence estava aceso pela ira. Ela admirava o inspetor e aquela raiva refletida em suas bochechas o confirmava. Mas não era o momento adequado para lhe confessar que lhe tinha falado com ousadia, que suas palavras levavam noites perturbando-a, que o sussurro de sua voz estava tão metido em sua cabeça que a fazia desejar coisas inapropriadas. Somente sorriu levemente, deu-lhe um beijo e disse:

- Não demorarei. Só me ausentarei uma hora.

- Não deveria ir. Além disso, hoje não é o dia adequado para que saia - comentou Florence sem afastar os olhos dela.

- Por que não é o dia adequado? - Interessou-se voltando-se para sua mãe.

- Recebi uma nota de Vianey. Parece que está um pouco doente e me pediu que a acompanhe esta noite. Entretanto, seu pai me informou que justo hoje temos um jantar com o senhor e a senhora Shalfeit.

- O futuro investidor? - Perguntou April arqueando as sobrancelhas.

- Sim, o próprio. Norman tinha ficado de falar com ele na próxima segunda-feira, mas uma viagem imprevista alterou todos os seus planos. Então, como compreenderá, não posso me apresentar na casa de Vianey e a única alternativa plausível é você.

- Eu? - Perguntou assombrada.

- Quem se não você? Acredita que mandaria um criado para cuidar dela? Ela me mataria se fizesse uma tolice assim! Já sabe a cabeça dura que é e me reprovaria os anos de amizade que mantemos. Devo-lhe esse favor, April. Vianey é a única que continuou ao meu lado depois de me casar com seu pai - alegou com tristeza.

- Está bem... - consentiu depois de meditar sobre a mudança de planos. - Direi a Ethere que me prepare um pouco de roupa para ficar com ela, mas não alterarei minha decisão. Antes de ir à Jhopenser, visitarei a Scotland Yard - sentenciou voltando-se e subindo as escadas.

Florence a observou em silêncio. Apesar de havê-la tido em suas vísceras nove longos e angustiantes meses, sua querida filha era igualzinha ao Norman. Nada a fazia mudar se tomava uma determinação. Como fez seu marido quando a conheceu, lutaria com unhas e dentes para obter seu propósito, embora isso lhe custasse sua própria destruição.

Depois de suspirar, retornou ao pequeno salão. Precisava apaziguar a inquietação que sentia pintando um novo tecido. Só esperava que, desta vez, não predominasse tanto a cor negra.


Não se atrasou muito. Graças à eficácia da donzela, pouco tempo depois de falar com sua mãe já estava subindo na carruagem rumo à Scotland Yard. Desde que iniciou o trajeto, April ia pensando como enfrentar ao homem que lhe causava tanta inquietação. Seria capaz de lhe olhar aos olhos, aqueles claros e bonitos olhos, para dizer que não voltasse a aproximar-se dela? Devia manter-se firme, frear qualquer impulso errôneo e adotar aquela atitude fria e aristocrática que aprendeu vivendo com Eric. Olhou de esguelha o exterior através da janela. Se não se enganava, passavam pela estação de Charing Cross, então lhe faltavam uns escassos minutos para virar para Great Scotland Yard e chegar à delegacia de polícia. Conteve a respiração, que se agitou ao descobrir como se encontrava perto. O coração parecia querer sair de seu peito e as mãos, essas que se achavam prisioneiras sob umas elegantes luvas de renda negra, suavam a torrentes. Justo quando o cocheiro diminuiu a velocidade, pensou que tinha sido má ideia aparecer naquele lugar. Como a receberia? Se encontraria ali? Talvez tivesse saído para apanhar outro delinquente.

«Nunca na história de Londres tivemos um inspetor que não colocasse seu traseiro no assento de seu escritório pouco mais de cinco minutos». Recordou uma notícia que falava sobre ele. A primeira a que prestou atenção depois de aparecer em sua casa e havê-la pego pela cintura diante do marquês de Riderland e do duque de Rutland na fatídica noite. «O inspetor O´Brian é, sem dúvida alguma, um homem que luta contra o crime pessoalmente. Nunca ninguém se atreveu a enfrentar assassinos tão desumanos como o detento de que fazemos referência nestas linhas. Entretanto, o novo inspetor se situou em frente aos seus homens e ele mesmo encarou o dito delinquente. E não creiam que se tratava de um mero malfeitor! Não, senhores. O alegado assassino apunhalou e esquartejou cinco mendigos de Whitechapel. Foi considerado o criminoso mais perigoso da história de nossa cidade. Mas não se alarmem, enquanto o senhor O´Brian prosseguir com seu excelente trabalho, continuaremos passeando tranquilamente por nossas queridas e amadas ruas».

Depois dessa horripilante notícia, ela lia todas as manhãs aquilo que narravam sobre ele, ficando espantada em mais de uma ocasião. Sem dúvidas, o senhor O´Brian era um homem temerário e só uma transtornada mental, como ela, podia sonhar deitar-se sob seu grande e robusto corpo.

- Lady... desculpe, senhora Campbell. Não me acostumo a nomeá-la assim - envergonhou-se Shoel quando abriu a porta para informá-la que tinham chegado.

- Não se preocupe, entendo-o. Tantos anos me chamando lady Gremont causaram um estrago - alegou divertida. - Mas eu gostaria de voltar para o meu passado. E você, melhor que ninguém, sabe por quê - prosseguiu ao mesmo tempo que estendia a mão para que lhe facilitasse a saída.

Devagar, como se lhe custasse levantar seu rosto, olhou para o edifício que havia em frente a ela. Ali era onde trabalhava o homem a quem devia reprovar sua inoportuna atuação. Respirou fundo tentando adquirir a força necessária para aquele enfrentamento. Mas... por que não era capaz de se acalmar? Por que só podia pensar em vê-lo de novo?

- Se o desejar, posso entrar primeiro e lhe indicar que veio visitá-lo - sugeriu Shoel após dar uma olhada ao seu redor. - Este não é um lugar apropriado para uma dama como a senhora. Poderia lhe acontecer algo...

- Em frente à Scotland Yard? Em frente a uma dezena de agentes? - Disse divertida. - Não acredito que alguém esteja tão perturbado para assaltar uma mulher em frente a um lugar como este.

- Mas...

Shoel ficou paralisado e mudo ao mesmo tempo. Justo quando a senhora tinha dado dez passos para a entrada, apareceu a grande velocidade uma carruagem de prisioneiros que parou bruscamente em frente à porta pela qual se acessava aos calabouços. O criado correu para April e se colocou diante dela.

- Caminhe devagar para a carruagem. Não seria conveniente que estivesse desprotegida - comentou.

- O que acontece? O que é isso, Shoel? - Perguntou alarmada.

O homem entreabriu seus olhos e os cravou naquele reboque negro com ferrugem por toda parte. Não era bom. Não, nada bom...

- Por favor, faça o que lhe peço - insistiu.

Assustada, April caminhou para trás sem olhar. Nunca tinha visto Shoel daquela maneira. Talvez aquela carruagem negra com grades na parte traseira lhe recordasse a noite que foi aprisionado. Não tinha pensado nisso. Comportou-se de uma maneira tão teimosa para aparecer em frente ao inspetor e lhe gritar que não lhe dirigisse a palavra nunca mais, que não considerou as consequências que aquela visita teria para o homem.

- Afastem-se! - Clamou uma voz da entrada da delegacia de polícia. - Que ninguém se aproxime! - Continuou gritando enquanto descia veloz as escadas.

April olhou aterrorizada para a pessoa que vociferava. Seus olhos aumentaram, seu peito se encolheu e as pernas fraquejaram. Sim, era ele. Aquele miserável homem dos diabos ordenava a todo mundo que se afastasse daquela carruagem. Por que motivo?

- Acredito que capturaram um grinder - apontou Shoel esticando sua mão para a senhora.

- Um grinder? - Repetiu assustada.

- Sim, senhora. Assim seria conveniente que subisse agora mesmo à carruagem. Esse tipo de homem é perigoso, muito perigoso - insistiu com um tom repleto de terror.

- Não! - Exclamou April ao ver que O´Brian atirava ao chão sua jaqueta, o colete e a gravata. Arregaçou as mangas da camisa até o cotovelo e se posicionou em frente à carruagem. - Não! - Gritou de novo.

- Senhora... por favor - rogou Shoel ao ver que ela não se movia. - Meta-se no interior, suplico-lhe. Nunca se sabe como atuará um grinder. São imprevisíveis.

E acreditava que isso a ia reconfortar? Pensava Shoel que se lhe obedecesse conseguiria serenar? Não! É óbvio que não! Como ia ficar tranquila observando como aquele louco enfrentava um criminoso ao qual chamavam grinder? Mas apesar de não poder mover os pés, apesar de querer manter-se naquele lugar, o criado a arrastou para o interior da carruagem.

- Mil perdões por meu atrevimento, senhora. Mas é meu dever protegê-la - desculpou-se.

- Nem lhe ocorra se afastar, quero ver o que acontece - grunhiu.

- Não será apropriado para uma senhora...

- Não escutou o que eu disse? - Gritou tão forte que notou uma terrível dor na garganta.

Shoel, surpreso pelo comportamento de uma mulher tão amável e carinhosa, só assentiu, fechou a porta e subiu à carruagem. Enquanto isso, April não podia afastar o olhar daquele lugar. Um dos agentes abriu a porta ao mesmo tempo que o inspetor inclinava levemente seu corpo para diante. Ia se enfrentar corpo a corpo com o prisioneiro. De repente, num piscar de olhos, uma imensa figura saiu correndo para O´Brian. Este o esperava calmo, ou isso pensou April ao ver que não se movia.

- Tem uma arma! - Escutou um dos agentes gritar.

Então seu coração deixou de pulsar. Umas lágrimas pequenas vagaram por seu rosto enquanto colocava sua mão direita no vidro, como se dessa maneira pudesse arrebatar do prisioneiro aquela faca de folha grande que segurava. Tentou fechar os olhos para não ser testemunha do que ia acontecer, mas suas pestanas não se uniram por mais que se esforçasse. De repente, o inspetor se equilibrou sobre ele com a firme intenção de lhe tirar aquela arma assassina. Não o conseguiu. Algo aconteceu para que as grandes mãos de O´Brian não conseguissem seu objetivo e aquela perigosa folha tocasse o abdômen do homem que lutava por proteger a cidade.

As lágrimas de April se intensificaram ao observar uma mancha carmesim na camisa branca. Tinha-o ferido. O inspetor estava ferido. Entretanto, ele não se rendeu nem pediu ajuda, mas sim lutou com valentia para despojá-lo daquela adaga. Não soube com certeza em que ocasião o conseguiu porque enfim pôde fechar seus olhos. Mas ao abri-los descobriu que o prisioneiro estava estendido no chão, com vários agentes sobre seu agitado corpo e O´Brian tocava o lugar onde a arma o alcançou .

- Chamem o senhor Cox! – Escutou ele gritar.

April levantou a mão, deu dois golpes no teto e Shoel iniciou a marcha. Não podia suportar nem um segundo mais aquela cena. E, é óbvio, o episódio aterrorizante que tinha contemplado lhe esclareceu muitas coisas, entre as quais se encontrava não voltar a pensar em um homem que, teimando por manter a salvo alguns cidadãos ingratos, não era capaz de imaginar que alguém sofreria se algo terrível lhe acontecesse.


VIII


Não queria apresentar-se ante Vianey daquela forma. Se o fizesse a baronesa a curvaria com milhares de perguntas desnecessárias. Assim ordenou ao Shoel que permanecesse durante uns minutos parado no caminho que conduzia para as terras adjacentes à Jhopenser. Saiu ao exterior procurando a paz que necessitava seu coração. Este tinha permanecido agitado desde que contemplou como a mancha vermelha da camisa se estendia pelo abdômen do inspetor. Estava louco. Sim, o famoso senhor O´Brian era um homem transtornado porque, do contrário, não teria enfrentado um criminoso tão perigoso.

April caminhou pelo atalho, alterada. Embora acreditou que sentiria um pouco de calma ao abandonar durante uns instantes a carruagem e caminhar, não se tranquilizou. Ao contrário, cada vez que recordava como se colocou em frente àquela porta gritando a todo mundo que se afastasse e como enfrentou a morte com somente suas mãos, o tremor aumentava. Acaso não lhe importava morrer? Tão obstinado era? Nesses momentos as palavras com as quais o jornal descrevia o trabalho do inspetor lhe causaram náuseas. Não tinham elogiado o trabalho daquele louco, mas sim o haviam descrito tal como era: um estúpido temerário. Sim, essa foi a conclusão a que chegou April passeando pelo atalho. Não era um caçador nem tampouco um homem implacável. Só era um desequilibrado que não temia morrer em qualquer enfrentamento.

- Encontra-se melhor? - Perguntou Shoel enquanto lhe abria de novo a porta.

- Sim, um pouco melhor - respondeu ao mesmo tempo que estendia sua mão direita para o criado para retornar ao interior.

- Avisei-a que não seria apropriado observar aquela situação - enfatizou com certa aflição.

- Como adivinhou o que aconteceria? - Perguntou ao mesmo tempo em que ocupava seu assento.

- Durante minha estadia na Scotland Yard apareceram vários grinders. Todos os detentos se alteravam quando chegavam, então perguntei a um deles o motivo desse pavor.

- O que te disse? - Quis saber enquanto estendia a saia pelas pernas.

- Que eram criminosos sanguinários. São uma espécie de bestas, de homens sem raciocínio algum. Só se apoiam no princípio da maldade, da barbárie, da crueldade que habita neles e não têm em seu interior nem um ápice de humanidade.

- Como se fossem animais ferozes? - Insistiu olhando-o sem piscar.

- Os animais, senhora Campbell, lutam para sobreviver, entretanto, os grinders lutam para aniquilar as pessoas que os impedem de realizar o que desejam - esclareceu.

- Te colocaram alguma vez junto a um monstro semelhante? - Perguntou assustada.

- Não. Desde que cheguei à Scotland Yard o senhor O´Brian me protegeu. Durante meus dias na prisão permaneci em uma cela onde desfrutei de tranquilidade e de respeito por parte dos carcereiros.

- Era inocente... - murmurou April desculpando o amparo do inspetor.

- Sim, senhora, era e sou. Mas se o senhor O´Brian não tivesse ordenado que ninguém se comportasse indevidamente comigo, mais de uma chicotada teria impactado sobre minhas costas - declarou Shoel com um olhar cheio de admiração.

- Meu pai falou com ele em várias ocasiões - alegou April querendo explicar, de novo, o comportamento do inspetor.

- Sei, senhora, e lhe serei eternamente agradecido. Só tenho que esclarecer que o amparo que obtive por parte do senhor O´Brian começou no momento em que fui aprisionado em seu antigo lar - indicou o criado.

April se manteve em silêncio durante uns instantes. Precisava assimilar aquilo que lhe comentava Shoel. Havia piedade naquele demente? No fundo de seu coração se encontrava um homem compassivo?

- Quando retornar a Shother... - continuou falando - não comente nada com meus pais. Não quero alterá-los com tolices.

- Sim, senhora - disse Shoel ao mesmo tempo que fechava a porta.

Seria verdade? Haveria bondade nele? Embora fosse um homem compassivo, ela continuava mantendo que sua temeridade era um inconveniente a ter em conta. Por isso não se casou. Ele mesmo devia entender que uma pessoa com esse transtorno não poderia conviver com uma esposa que chorasse cada vez que se afastasse dela. «Pobrezinha... -murmurou para si. - Sinto lástima pela mulher que deseje unir-se a um homem como ele. Terá o coração todo o dia em um punho. Não será capaz de pensar em outra coisa que não seja a morte de seu querido e amado marido...». Por esse motivo resolveu com rapidez qualquer desejo ou inquietação para com o inspetor. Seria de evitar. Sim, embora ele insistisse em apresentar-se onde ela fosse, evitaria qualquer aproximação e, é claro, não aceitaria nem uma só dança mais.

Quando olhou pela janela, tinham chegado à Jhopenser. Se não se equivocava, eram quase cinco da tarde. Um bom momento para tomar o chá com Vianey e falar das milhares de vivências que suportou antes e depois de enviuvar. Com um sorriso desenhado em seu rosto, saiu da carruagem.

- Quer que a pegue amanhã? - Perguntou Shoel.

- Imagino que lady Swatton me oferecerá uma de suas carruagens - respondeu ao mesmo tempo que sacudia o vestido para eliminar as possíveis rugas.

- Então, boa tarde, senhora Campbell.

- Boa tarde - disse ampliando o sorriso.

Adorava como soava. A entusiasmava escutar como voltavam a chamá-la por seu nome de nascimento. Sempre deveria manter esse sobrenome e com mais razão depois da morte de Eric. Um homem que, por sorte, começava a esquecer.

- Lady Gremont - a saudou o mordomo de Vianey.

E nesse instante April voltou a sentir angústia.

- Diga à lady Swatton que cheguei - indicou mal-humorada.

- Espera-a no salão - disse surpreso o criado ao notar a mudança de atitude da mulher.

- Então, eu mesma me apresentarei - assinalou lhe dando o casaco inapropriadamente.

Dando uns passos impróprios para uma dama, dirigiu-se ao salão onde se encontrava Vianey. Uma das conversações que manteriam seria salientar até não poder mais que ninguém de seu serviço voltasse a chamá-la de lady Gremont. Não só soava de forma sinistra, mas, dado o comportamento e a determinação que tinha tomado, não queria escutá-lo jamais.

- April! - exclamou a baronesa quando a viu aparecer. - Obrigada por vir!

A jovem observou a mulher sentada na poltrona, oculta sob uma grande manta marrom escura e próxima ao fogo como se quisesse meter-se no interior da chaminé.

- Veio sozinha? Seus pais estão juntos? - Insistiu entrecerrando os olhos.

- Não puderam me acompanhar. Hoje tinham um jantar importante e minha mãe decidiu me enviar em seu lugar - informou ao mesmo tempo que se aproximava dela. Justo quando ia pôr a mão na testa para averiguar se tinha febre, Vianey afastou a manta e se levantou do sofá com energia.

- Graças a Deus! Estava cozinhando... - declarou enquanto se abanava com a mão.

- Que enfermidade possui? - Perguntou April assombrada.

- Nenhuma. Só queria que viesse esta noite. Um café, um chá possivelmente? Estava a ponto de fazer que me servissem um, mas quis te esperar.

- Por que mentiu? - Soltou zangada.

- Precisava falar contigo a sós. A conversação que vamos manter poria os cabelos de sua mãe em pé e seu pai me negaria a entrada em Shother por toda a eternidade - explicou olhando-a sem piscar.

- Não pretenderá me contar mais rumores sobre amantes do Eric, não é?

- Tolices! Já ninguém esbanja palavras sobre aquele idiota. Por sorte para ti, nenhuma pessoa coerente gosta de falar das atrocidades de um aristocrata - esclareceu ao mesmo tempo que puxava um formoso cordão que havia ao lado esquerdo da chaminé.

- Bom, nem todo mundo pensa como você - murmurou enquanto se acomodava no assento contíguo ao da baronesa.

- Como te disse, nem todas as pessoas são coerentes... - ressaltou.

- Milady? - Perguntou uma donzela ao entrar.

- Sirva o chá - indicou à criada.

- Agora mesmo, milady - respondeu realizando uma leve genuflexão.

- Pensei que chegaria antes das quatro - expressou Vianey ao mesmo tempo que tomava assento.

- Entretive-me - disse ela evitando mostrar qualquer sinal da agonia que sofreu em frente à Scotland Yard.

- Em algo interessante? - Bisbilhotou arqueando as sobrancelhas.

- Vai insistir muito nesse tema? - Perguntou um pouco mal-humorada.

- Se não o averiguar por ti, o perguntarei àquele correto criado que te trouxe até aqui.

- Parei uns minutos na Scotland Yard - comentou depois de considerar mentalmente quanta insistência manteria Vianey para averiguar a verdade. Não queria pôr o pobre Shoel entre a cruz e a espada... de novo.

- Para quê?

- Não leu o que publicaram hoje nos jornais? - Elevou inadequadamente sua voz.

- Eu não gosto de ler bobagens - particularizou.

- Pois entre essas bobagens meu pai encontrou uma notícia interessante - soprou.

- Do que se trata?

- Seu querido inspetor teve a ousadia de deter uns lordes muito respeitados - resmungou.

- Meu querido inspetor pode deter a quem lhe dê vontade, sempre que cumprir as normas, é óbvio.

- Cumprir as normas? - Vociferou irada. Levantou-se do assento e começou a perambular pelo salão. Estava a ponto de voltar a gritar quando escutou que batiam na porta.

- Adiante - disse Vianey com um tom que deixou April gelada. Como podia ser tão severa em certos momentos? Como podia mostrar, em uma só palavra, tanta força?

- O chá, milady - informou a donzela.

- Sirva-o e nos deixe sós - manifestou com solenidade.

Sem dizer nenhuma palavra e sem realizar um só gesto imprudente, a criada colocou a bandeja na mesa pequena, serviu o chá nas duas xícaras e se retirou dali, não sem antes voltar a despedir-se com uma reverência.

- Prossiga, April. Conte-me o que aconteceu - animou-a antes de pegar a xícara e levar aos lábios.

- É um homem perigoso... - disse mediante um bufo. - Hoje me dei conta disso.

- Ah.

- Quando li a notícia e descobri que tinha preso aos mesmos cavalheiros que tinham chamado estupor ao ato cruel do Eric, encolerizei-me.

- Como sabia o senhor O´Brian quais tinham tentado te humilhar dessa forma? - Perguntou cravando seus olhos nela.

- Eu lhe disse... - sussurrou enquanto retornava ao assento. - Comentou que fumava um charuto cada vez que se encontrava em um momento delicado, logo prosseguiu me perguntando se eu vivia episódios assim. Respondi-lhe que era lógico padecer esse tipo de situação após me converter na viúva de um assassino e lhe confessei que alguns dos ali presentes tinham denominado estupor à maldade de meu marido.

- Então... - interveio colocando a xícara sobre o pires. - Ele te perguntou quem tinha ousado dizer essa palavra frente a ti, equivoco-me? - Interessou-se ao mesmo tempo que escolhia uma das massas.

- E eu disse. Enumerei a cada um deles e, embora me prometeu que não os interrogaria na festa, não cumpriu sua palavra quando saiu.

- Equivoca-se. O inspetor cumpriu sua promessa posto que não se aproximou deles na festa. Mas não indicou nada sobre o que pudesse ocorrer fora dela - objetou com firmeza.

- Devia supor que não só seria ali, mas também fora! - Defendeu-se.

- Deixou isso claro?

- Não.

- Então não tem motivos para se queixar. Que mais? - Perguntou ao mesmo tempo que se reclinava no assento e sacudia as migalhas do bolo de seu peito.

- Que mais? - Repetiu abrindo os olhos de par em par.

- Por que foi à Scotland Yard?

- Para esclarecer alguns assuntos com aquele presunçoso - resmungou.

A gargalhada que soltou Vianey a confundiu. Era um riso que provinha de seu interior, profundo e extenso. Seu grande corpo se movia ao ritmo de suas gargalhadas e as bochechas tinham mudado para um tom vermelho.

- A que vem essa risada? - Perguntou zangada. - Não posso lhe deixar claro que não deve me perseguir?

- Te perseguir? - Soltou sem mal respirar. - Se preocupa que o homem mais desejado pelas damas desta cidade te persegue? - Continuou rindo.

- Não quero que esse transtornado caminhe atrás dos meus passos! - Assinalou irada.

- Pequena... acredito que não conhece bem ao senhor O´Brian...

- Conheço-o perfeitamente! – Berrou. - Esse idiota enfrentou um grinder sozinho - explicou elevando a voz.

- Um quê? - Interessou-se Vianey baixando a intensidade de sua risada.

- Um monstro - comentou April ruborizando-se. - Shoel me disse que assim definem aos detentos que se comportam como bestas e que só o que lhes move é sua sede de morte.

- Então... apareceu para lhe esclarecer certos assuntos e presenciou uma briga... - concluiu a baronesa respirando com um pouco mais de tranquilidade.

- Feriu-o - adicionou zangada. - O senhor O´Brian foi ferido pela arma que levava esse criminoso - explicou ao mesmo tempo que retornava ao seu assento e tentava manter o controle.

- Pelo amor de Deus! - Exclamou Vianey assustada. - Foi ferido?

- Sim - afirmou April com um leve movimento de sua cabeça. - Mas, apesar disso, continuou lutando contra aquele homem e não chamou um tal Cox até que o capturaram de novo.

- Cox é o médico que trabalha para os agentes - a informou. - E não seria grave se continuou de pé.

- Fosse grave ou não, vi como sua camisa se manchava de sangue e nesse momento...

- Nesse momento? - Insistiu a mulher aproximando-se dela.

- Soube que não aceitaria nada que lhe dissesse - mentiu. - O que se pode esperar de um ser que enfrenta ao mundo sem medo? Teria rido de mim, assim como fez você - falou abaixando a cabeça.

- O inspetor nasceu para esse posto e, embora te pareça um perturbado, acredito que ele sabe onde está o limite em tudo o que realiza.

- Esse homem não sabe o que é um limite. Se o tivesse visto... se tivesse estado ali, pensaria como eu.

- Bom, mas isso não deveria te alterar tanto, não? - Disse com suspeita. - O que importa se morrer hoje ou amanhã? Não acredito que sinta nada por ele, então não teria que te afligir tanto.

- Acaso não é de humanos sentir lástima? - Defendeu-se com rapidez.

- Lástima? Não acredito que o senhor O´Brian aceite esse tipo de sentimento de nenhuma mulher - replicou zombadora.

- E que tipo de sentimento deseja achar esse cabeça dura em uma mulher? Frieza? Desafeto? Apatia?

- Seja o que for, ainda não o encontrou, não crê? Porque se fosse assim, teria se casado. Esse homem ultrapassou a barreira dos trinta... - declarou ao mesmo tempo que cravava seus olhos nela.

- Ninguém poderia suportar viver com um homem assim... - refletiu.

- Ninguém em seu são julgamento - retificou Vianey. - Mas graças a Deus, seu julgamento está perfeito. E agora, se não se importar, nos centraremos na razão pela qual fiz você vir até aqui, não quero perder toda a noite falando desse temerário inspetor.

- Certo... - murmurou olhando-a sem piscar. - Por que me chamou? Se, tal como observo, não está nada doente, o que pretende?

- Só averiguar a verdade - indicou.

- Que verdade? - Insistiu ao mesmo tempo que entreabria seus olhos.

- Lembra-se que na festa te disse que sempre suspeitei que era uma de nós? - Recordou-lhe.

Vianey se levantou do assento e caminhou para uma estante. Com o dedo indicador de sua mão direita acariciou os lombos dos livros.

- Sim, mas não especificou a que se referia - apontou enquanto pegava enfim a xícara para tomar o chá. Depois do primeiro sorvo e depois de fazer uma careta ao notar que estava frio, voltou a depositar a xícara no pires.

- Antes de falar sobre isso, eu gostaria que lesse este livro. - Mostrou-o ao mesmo tempo que desenhava um amplo sorriso. - Se quando terminar de lê-lo tiver perguntas sobre o que pretendo fazer contigo, estarei encantada de te responder.

- O que contém? - Observou-a intrigada.

- Narra uma vida. Nele a autora explica suas vivências em um mundo que acreditou tenebroso. Entretanto, essa escuridão que pensou ter não foi tal. Com o tempo descobriu que em realidade todo seu ser estava lhe indicando a única verdade do mundo: que todos somos diferentes. Nem sempre encontrará uma resposta que te indique branco ou preto, mas sim há que procurar meios termos - explicou estendendo sua mão para que April o acolhesse nas suas.

- Acaba de arruinar o final da novela? - Disse divertida. Olhou-o com fascinação. A primeira impressão que lhe ofereceu aquele pequeno exemplar era que tinha muitos anos e que tinha sido relido em várias ocasiões. A cobertura de pele estava belamente ornamentada com gravações orientais, embora mostrava fendas e arranhões devido ao uso. - Diz que seu autor é anônimo, por que dá por certo que uma mulher o escreveu?

- Porque fala na primeira pessoa – esclareceu. - Não posso te contar nada. Só te direi que é um livro proibido e que poucos conseguiram adquiri-lo. Conforme soube, o editor pensou que superaria as vendas de outros títulos que tinha publicado, mas errou. Uma semana depois de ver a luz, retirou-se das livrarias. Os livreiros se escandalizaram tanto que se dirigiram às autoridades para que impedissem sua venda e, é claro, obtiveram seu objetivo. Não obstante, acredito que se realizou uma grande injustiça. Se tivessem alargado a vida deste testemunho muitas almas perdidas teriam encontrado seu caminho e não errariam pelo mundo procurando algo que não alcançarão sem ajuda.

Ante tal explicação April colocou o exemplar em seus joelhos e começou a tremer. Não sabia a razão, nem a causa nem o motivo desses pequenos tremores, mas temia que quando lesse o que tinha escrito em seu interior sua alma perdida também acharia a paz.

- Não deveria... - disse agarrando o livro como se queimasse.

- Vai perder algo, April? - Insistiu Vianey ocupando seu assento. - Nada, salvo um par de horas de sua vida.

- Mas... e... - gaguejou.

- Só começa, se vir que não te interessa o que ela conta, devolve-me isso e não acontece nada. Jamais te obrigarei a fazer algo que não deseje. Bem sabe que só quero o melhor para ti, não só porque é a filha da mulher que adoro, mas sim porque é a filha que nunca tive - declarou com ternura.

April suspirou, recostou-se no assento e começou a ler...


IX


Sempre soube que não era semelhante a ninguém. Que, apesar de ser filha dos meus pais, nada em mim resultou comum a eles. Entretanto, hoje me alegro dessa diferença. Jamais teria suportado a vida que mantiveram, feliz para eles, uma eterna angústia para mim. Se perguntará por que decidi escrever minha história, acredito que no fundo o fiz por mim, embora tenha a esperança de que muitas almas perdidas encontrem o caminho quando finalizarem esta leitura. Por isso, para te salvar, para me salvar, começarei desde o início...

Desde menina soube que meus pensamentos e ações não eram comparáveis a qualquer outra pessoa da minha idade e sexo, mas isso não me importou. Por sorte, e não digo graças a Deus porque não penso que exista, jamais me senti separada do mundo que me rodeava, embora risse deles. Sim e, além disso, com o passar dos anos, esse riso foi se intensificando. Soltava enormes gargalhadas cada vez que um pretendente aparecia em minha casa para pedir a mão de alguma das minhas seis irmãs. Via-os ajoelhar-se em frente a elas, olhá-las com certo temor e lhes perguntar se queriam aceitá-los como maridos. Essa dúvida tão ridícula me provocava tal hilaridade que precisava me afastar do lugar de onde se encontravam. Logicamente, minhas irmãs se emocionavam. Nenhuma evitou derramar lágrimas nesses momentos... salvo eu.

(...) o tempo passou e chegou o momento de escolher marido ou melhor que me escolhessem, porque meu pai, dado que eu já tinha completado os vinte, impacientava-se. Era a segunda festa a que assistia, não aceitei todas às quais tinha sido convidada por aborrecimento. Como pôde compreender em tudo o que tem lido, bocejava cada vez que alguém se aproximava para me pedir uma dança com exagerada cortesia. Mas tudo mudou nessa festa.

Lembro que me afastei do salão de baile, meu único objetivo era beber todo o champanha que pudesse para aguentar o calvário que devia suportar de uma maneira mais relaxada. Saí do salão e me dirigi para o contíguo, onde os anfitriões tinham colocado seu esquadrão de lacaios para servir as bebidas. Parei. É claro que o fiz, porque uma dama da minha posição não poderia correr até ali e gritar ao criado que me servisse não só champanha, mas sim todo o Porto que guardassem na adega. Atuei com aborrecimento, como me ensinou minha mãe. Outra coisa que nunca entendi. Por que devia mostrar esse tipo de emoção quando na verdade desfrutava? Mas sigamos com o importante.

Caminhei devagar, com as costas retas. Aquele vestido de cor rosa claro não me favorecia. Parecia uma vassoura. Sim, daquelas que dizem que as bruxas utilizam para voar pelos ares. Respirei devagar, não por recato e sim porque o espartilho me apertava o peito além do necessário. Dirigi-me para a mesa e observei as garrafas e as terrinas que tinha frente a mim. Desenhei um amplo sorriso, um que não devia exibir, mas que naquele momento não me importou porque ia cometer uma falta grave, ou assim a qualificaria meu pai quando se inteirasse.

- Milady? - Perguntou-me com certo acanhamento o criado.

- O que é isso? - Perguntei assinalando com o dedo o grande recipiente à minha direita.

- Ponche - respondeu.

- Sirva-me uma taça de ponche - indiquei.

- A senhorita se equivocou em sua escolha - disse uma voz atrás das minhas costas. - Sirva-lhe um xerez.

- Sim, milorde - respondeu o criado afastando com rapidez seus olhos da pessoa que se ocultava atrás de mim.

Zangada, além do que devia, virei-me bruscamente para aquela pessoa inoportuna com a firme intenção de lhe gritar que ninguém tinha a necessidade de pedir por mim. Ninguém! Mas toda aquela fúria desapareceu quando o vi. Seus olhos, seu queixo, seu nariz adunco, até as descaradas mechas que caíam enroladas sobre suas bochechas me deixaram sem fala. Advirto que não era formoso. Não, se o fosse teria lhe gritado que era um pretensioso. Entretanto, o cavalheiro que tinha em frente a mim não tinha nem um traço do que se supunha que fosse um ícone da beleza. Não obstante, seu olhar escuro, tenebroso e imperioso deixou-me tão enfeitiçada que teria desmaiado naquele momento.

- Se for replicar minha decisão, - disse cravando aqueles olhos negros sobre mim - faça-me saber neste preciso instante.

- Não, senhor - respondi cravando o olhar no chão.

Como teve o descaramento de perguntar-me isso? Por que todo o meu corpo respondeu daquela maneira? Naquele momento não soube, não obstante, meses depois descobri e agradeci milhões de vezes por ter atuado daquela forma.

Nunca se sabe quando aparecerá o homem de sua vida nem como vai reagir, embora te advertirei que sua voz, sua forma de me oferecer aquela taça, o ligeiro roce da minha pele com a sua foram sinais suficientes para compreender que minha vida acabava de mudar para sempre.

(...) não soube da existência daquele lugar até que recebi um buquê de flores com uma nota. Minha mãe estava tão emocionada que não se fixou que as rosas eram negras. Sim, tinha tido o descaramento de me enviar umas estupendas, perfumadas e formosas rosas negras. Mas esse pequeno detalhe não pareceu interessar a minha querida mãe. A única coisa que gritava pelos corredores de nossa casa era que enfim sua filha tinha um pretendente. Se ela tivesse imaginado que classe de pretendente era... ou talvez não lhe tivesse importado, contanto que eu abandonasse o lar, não importaria se meu futuro marido fosse um anão de circo. Enquanto ela brincava de correr feliz pela casa eu procurei entre o ramo aquilo que sabia que encontraria. Nunca, desde que o conheci naquela festa, fazia algo sem obter algo em troca.

Lembrei a primeira vez que o fez. Embora te pareça inverosímil, me «sugeriu» a entrega de uma cinta-liga. Essa situação jamais esquecerei, sentada em frente a mais de vinte comensais, ele me olhando sem piscar e sem mal respirar e eu me movendo incômoda na cadeira tentando tirar a cinta-liga que desejava obter. Mas todo o esforço valeu a pena quando, horas depois, na escuridão que nos ofereceu aquele canto da casa, fez-me soluçar de prazer até ficar muda. Sim, encontrei o que esperava, uma nota. «Terça-feira, às oito. Leva camisola negra e uma máscara da mesma cor. Espero-te na porta da entrada». Meu coração pulsou com força, minhas mãos tremeram e minhas pernas fraquejaram. Como era tão ousado? Por que não procurava outra parte da casa mais discreta? A resposta apareceu sozinha, porque ele não era como os outros.

(...) meu coração tinha viajado do meu peito à garganta. Notava os batimentos do coração justo debaixo do meu queixo e, devido à pressão, mal podia respirar. Sobre minha cama estava o que ele me tinha pedido: a camisola e a máscara. Onde iríamos? Seria um baile de máscaras um tanto peculiar? Foi, mas não se assemelhou a uma festa e sim a uma reunião seleta de pessoas que se escondiam sob as máscaras. Se perguntará como saí do meu lar sem ser descoberta. Foi mais fácil do que pensei.

Essa mesma manhã meus pais receberam um requintado presente. Um Porto que, conforme entendi, provinha da Rússia e cujo valor alcançava a incrível quantia de oito mil libras. A nota que o acompanhou tinha umas iniciais: P. L., e soube rapidamente que ele o tinha enviado, mas não esclareci as dúvidas a meus pais. Estavam tão contentes pelo presente que o desfrutaram depois do jantar. Deve-se sempre medir a quantidade que se ingere, mas para o meu prazer, não o fizeram. Então, duas horas depois de retirar-se do salão, ambos seguiam em suas poltronas totalmente ébrios.

(...) mantinha-se distante, frio e inclusive hostil. O trajeto não foi longo, mas me pareceu uma eternidade. Não tinha sido capaz de me olhar nenhuma só vez e aquela atitude me provocou certa aflição. Tem que entender que, depois de tudo o que estava pondo em jogo, uma palavra carinhosa, um gesto afável ou qualquer outro pequeno detalhe cortês teria me acalmado. Mas ele não era assim... durante a viagem, aproveitando o silêncio, meditei sobre o que estava fazendo e as repercussões que teria se me descobrissem. Minha vida se destroçaria e só teria duas soluções: morrer ou permanecer encerrada em um convento longe de Londres.

O cocheiro estacionou em uma ampla esplanada. Olhei pela janela para averiguar onde me encontrava, mas não reconheci o lugar. Justo quando a porta se abriu, ele saiu com rapidez, estendeu-me sua mão e me disse:

- Só farei o que você me permitir. Recorde-se que sempre te respeitei.

Aquilo não me tranquilizou, ao contrário, alterou-me mais do que devia. Acaso eu tinha fixado limites com respeito a ele? Não, como bem sabe, desde que o conheci naquela festa, sempre lhe segui o jogo, não só por diversão, mas sim porque cada vez que me indicava algo, depois de realizá-lo, minha alma se acalmava. Não obstante, o que estava a ponto de fazer não podia assemelhar-se a nada.

(...) mantive-me onde ele me indicou, de pé frente à sua mesa, com a cabeça abaixada e esperando alguma ordem. Falou com muitas outras pessoas semelhantes a ele. Se te perguntas como soube que eram de seu mesmo nível, explico-te que foi muito fácil porque uns vestiam camisolas negras, sem importar o sexo, e os outros usavam vestidos e trajes. Depois de um bom momento, ele se levantou e me disse:

- Siga-me.

E o fiz. Caminhei atrás dele sem dizer uma só palavra. Subimos ao piso de cima, pela amplitude do corredor e a grande quantidade de portas deduzi que eram quartos. Meu coração estava descontrolado. A camisola se aderiu à minha pele pelo suor e tive que pressionar meu cérebro para que meus pés pudessem caminhar. Não sabia o que encontraria, nem o que aconteceria uma vez que fechasse a porta, mas algo tinha bastante claro, excitava-me essa incerteza.

Como já supunha, ele entrou primeiro. Ficou de pé em frente à porta até que entrei. Já parou para pensar o som que provoca uma porta quando se fecha, quando se passa o ferrolho? Pois naquele momento tinha os sentidos tão agudos que esse mísero ruído se intensificou em meu cérebro.

- Olhe o que tem frente a você - disse-me.

Levantei meus olhos do chão e contemplei ao redor. Era um quarto pequeno, o suficiente para caber uma cama, uma poltrona e uma pequena penteadeira. No lado direito se encontrava uma chaminé que, por sorte, estava acesa e emitia um calor reconfortante ao quarto.

- Coloque-se em frente ao fogo - ordenou ao mesmo tempo que ele se dirigia para a poltrona. Acreditei que se despojaria de suas roupas, mas errei. Só permaneceu junto a ela para me observar. - Não faremos nada que não deseje, pequena. Se em algum momento quiser que eu pare, o farei.

Suas palavras me energizaram mais que as chamas daquela luz.

Durante um bom momento estivemos falando. Insistiu em enfatizar sobre o dia que me conheceu. Esclareceu-me que tinha posto seus olhos em mim desde que entrei no salão e que não pôde fazer outra coisa salvo me observar. Também me indicou que se divertiu muitíssimo cada vez que alguém me pedia para dançar. É óbvio, perguntei-lhe a razão.

- Nunca vi no rosto de uma mulher uma careta de desagrado quando alguém lhe pedia uma dança - disse com certa diversão. - Acaso você não gosta de dançar?

- Eu não gosto que me peçam isso como se terminassem chorando ante uma negativa - esclareci.

- Entendo... então você gosta dos homens seguros de si mesmos - respondeu enquanto se aproximava de mim por trás.

- Uma mulher espera viver ao lado de um marido que seja firme, seguro e que não duvide em momentos difíceis. Se quer lutar na vida, as indecisões devem estar anuladas.

- Procura marido? - Perguntou-me ao ouvido. Seus lábios roçaram o lóbulo da minha orelha. Seu fôlego esquentou aquela zona do meu corpo e tive que fazer um grande esforço para responder.

- Sim - disse com firmeza. - Procuro.

- E... como quer que seja o dia de seu noivado? - Quis saber ao mesmo tempo que colocava suas mãos sobre meus glúteos e os apertava com força. - Quer um homem que se ajoelhe e suplique que o aceite como marido? - No tom de voz percebi certa ironia, certa brincadeira que, anos atrás, eu mesma mantive ao ver como minhas irmãs choramingavam quando seus pretendentes se mostravam dessa forma em frente a elas.

- Serviria de algo lhe explicar como espero ser cortejada? - Perguntei com ironia. - Porque até agora não acredito que tenha sido muito importante para você.

- Sim e não - respondeu enquanto levantava minha camisola. O roce do tecido em minha pele, aquela mísera carícia que a seda realizava ao subir deixou-me extasiada, louca e completamente desequilibrada. Não eram as carícias do tecido o que me excitava, mas sim como o calor de suas mãos o transpassava até chegar à minha pele. - Não quero começar algo que depois nos destroçaria – continuou. - Não desejo te machucar, Úrsula, só quero te oferecer aquilo que necessita e que também quero.

- Cheguei até aqui - disse colocando minha cabeça sobre seu peito. - Fiz tudo aquilo que me pediu... isso deve lhe indicar que aceito suas condições.

- Mas, até agora, só acalmei sua necessidade com minhas mãos. Hoje pretendo entrar em seu interior com meu sexo e fazer realidade todas essas imoralidades que sonhei fazer contigo.

Um grande nó se formou em minha garganta quando escutei suas intenções, por fim me possuiria, como tantas vezes desejei. Entretanto, assaltou-me uma dúvida, essa que fiz desaparecer no momento. O que aconteceria se, uma vez perdida minha virtude, ele me abandonasse?

Não soube que se distanciou de mim até que notei um leve roce sobre meus mamilos, elevados não só pelo calafrio que me produziu saber suas intenções, mas sim pela luxúria que sentia. Inclinei levemente a cabeça para baixo, ansiando saber o que tinha colocado em frente a mim.

- Fecha os olhos - me disse com suavidade. - Quero que obtenha o prazer que a gravata te produzirá ao te roçar.

Tal como ordenou, fechei meus olhos e descobri que aqueles suaves movimentos de direita à esquerda que realizava com o objeto me causaram mais necessidade das que nunca imaginei. Notei minhas pernas molhadas. Como já imaginara, aquela umidade a provoquei eu mesma. Meu corpo jamais tinha emanado do meu interior tanta fluidez e era ele quem me produzia aquilo.

- É a mulher que sempre esperei - declarou afastando o tecido dos meus seios. - A única que desejei ter em minha vida.

Tentei responder, dizer que, desde menina sempre o estive esperando, mas não me deu tempo. Assim que pude abrir os olhos encontrei-me com as costas tocando a parede e seu corpo pressionando o meu. Desceu a boca para meus mamilos, sensíveis ainda pelo roce do tecido. Acreditei que ia beijá-los, reconfortá-los com sua língua, mas me equivoquei. Seus dentes pressionaram primeiro um e logo o outro. Gritei, mas não de dor e sim de prazer. Meu corpo reagiu de uma maneira tão imprevisível que estive a ponto de me ajoelhar. Como podia ser tão prazerosa a dor? Como podia reagir de uma forma tão desequilibrada?

- Diga-me se é o que deseja - murmurou afastando seus lábios do meu seio para dirigi-los para meu ouvido. - Se não estiver preparada, se não o quiser... pararei - continuou falando ao mesmo tempo que começava a penetrar meu interior com seus dedos.

Como me negar o que me oferecia? Ansiava-o desde o instante em que o vi. Como bem sabe, não houve uma só noite que não fechasse meus olhos e o contemplasse ao meu lado, me fazendo o que propunha.

- Desejo-o... - respondi.

Acredito que isso foi o suficiente. Aquelas duas palavras o incentivaram a fazer o que ele também ansiava. Já escutou com atenção o grunhido que provém da garganta de um homem quando se encontra satisfeito? Nessa noite escutei milhares de vezes nele e, por sorte para mim, ainda contínuo ouvindo-os.

Não foi uma forma muito habitual de perder minha inocência, embora como compreenderá, tampouco tinha imaginado o dia nem a maneira que entregaria minha virgindade. Mas não me arrependo do que fiz e, se voltasse a nascer, repetiria mil vezes. Tinha ouvido de minhas irmãs que a primeira noite de matrimônio era terrível, para mim, aquela intensa dor, aquela ruptura em meu interior, foi mais prazerosa que dolorosa. Atou-me as mãos com sua gravata no dossel da cama, me impedindo que lhe tocasse. Aquele desejo misturado com as penetrações, com seus ofegos, com os meus, com seu suor unido ao que eu possuía e aquele aroma que ambos desprendemos foi algo tão formoso que perdi as forças. Levou-me a um estado de frenesi que não consegui imaginar nem naquelas fantasias das quais te falei. Não havia dúvida, ele era minha bússola e eu um marinheiro procurando o Norte.

- Encontra-se bem? - Perguntou-me embalando meu rosto entre suas mãos. Aproximou-se com suavidade e me beijou com tanta ternura que rompi a chorar. - Úrsula... - sussurrou ao mesmo tempo que me envolvia em um abraço. - Meu amor, meu tesouro, minha vida... - suspirou. - Encontra-se bem? - Repetiu.

Naquele momento fui incapaz de lhe responder, encontrava-me no próprio paraíso. Não chorei por dor, tristeza ou aflição, mas sim por sentir como meu corpo se liberava daquele cativeiro ao qual o tinha submetido. Como não disse nada, ele se afastou do meu corpo, me deixando fria, necessitada de seus braços. Fechei meus olhos para não observar como partia, mas não o fez. Sua intenção, seu único propósito naquele instante, era limpar os vestígios da minha virgindade. Abri os olhos ao sentir o passar do pano molhado entre minhas pernas. Pela primeira vez desde que o conheci apresentava-se ante mim ajoelhado. Não foi prazer por vê-lo assim o que provocou que meu peito se inchasse, e sim amor. O mesmo amor que ele me mostrou cada vez que se aproximou.

- Isto é só o princípio, pequena - disse sem deixar de me limpar. - O início de uma vida juntos - prometeu.

E assim foi. No dia seguinte apareceu em minha casa, depois de falar com meu pai, este me fez chamar. Fiquei sem ar quando o observei no meio do salão com aquela pose solene, com aquele olhar de cumplicidade. Notei como o pelo se arrepiava, talvez porque recordei o passar de suas mãos sobre minha pele na noite anterior ou o suave roce da gravata que voltava a usar. Fosse o que fosse, não pude dar dois passos para ele. Então se aproximou e me mostrou uma linda caixa. Ao olhá-la com atenção uma incrível vontade de gritar de alegria tentou brotar da minha boca, mas me contive.

- Espero que, com esta oferenda, possa imaginar até que ponto te amo - disse diante de toda a família que se reunia porque, justo nessa noite, celebrávamos o Natal.

Com as mãos tremendo pela emoção abri aquela caixa que me mostrava. Meus olhos se abriram de par em par e um imenso sorriso se desenhou em meu rosto.

- Sim, aceito - respondi.

Então, com o olhar de todos cravado em nós, pegou a gargantilha de rubis incrustados em ouro e a pôs em mim.

- Te amo, Úrsula - ronronou perto do meu ouvido para que ninguém, salvo eu, escutasse.

- Te amo, meu senhor - respondi-lhe.

O quanto estive perdida! Por que não tinha sido capaz de compreender minha diferença? Moralidade? Conveniência? Reserva? Incerteza? Não sei muito bem quais foram as razões pelas quais jamais percebi quem era na realidade, mas me alegro tanto de ter sido forte, muito mais do que todos imaginaram que eu seria.

Agora posso descansar em paz, agora me sinto livre e, embora meu corpo não me pertença porque ele é meu dono, sei que jamais sofrerei como o fiz antes de o conhecer. Possivelmente porque no fundo nunca tive dúvidas de que ele era o homem destinado para mim.

April permaneceu pouco mais de duas horas lendo naquela poltrona. Tinha seus olhos cravados nas folhas e não os afastava nem sequer para alcançar a xícara de chá. Vianey tinha saído e entrado do salão uma dúzia de vezes, mas descobriu encantada que ela não percebeu nem sua ausência nem sua presença. Sorriu maliciosamente quando a contemplou incômoda. Ruborizaram-se suas bochechas e sua respiração se agitava. Sabia exatamente que parte do livro estava lendo para inquietar-se daquela maneira e afiançou o que já supunha. April era uma Úrsula, uma mulher procurando aquela bússola que lhe mostrasse o caminho, só esperava que Michael fosse o homem que necessitava...

- Terminou? - Perguntou-lhe quando a viu fechar o livro.

Colocou suas mãos sobre o exemplar, respirou fundo e olhou a mulher que a observava sem pestanejar.

- Desde quando sabe? - Perguntou sem nenhum tipo de emoção.

- Desde que cumpriu os dezesseis. Seu comportamento, aquela decisão tão contundente que manteve quando Eric se aproximou e mais milhares de detalhes me indicaram quem era na realidade.

April voltou o olhar para a capa do livro, leu de novo o título e com suavidade o acariciou. A rugosidade das palavras, o tato daquela dura capa causou-lhe uma inquietação que não devia possuir. Mas o que havia no interior, o que descobriu embaixo daquela aparência humilde era sua verdade, sua única realidade.

- O que pretendia fazer depois de que o lesse? - Perguntou na expectativa.

- Confirmar se era quem eu supunha - apontou levantando do assento.

- E, uma vez que confirmou suas suspeitas, qual o passo seguinte?

- Aparecer no Clube. Se estiver preparada, se de verdade quiser continuar, te oferecerei à única pessoa que seria incapaz de te machucar - esclareceu enquanto caminhava para ela.

- E se não for o adequado? - Perguntou elevando seu olhar. - E se não for o homem que eu quero?

- Respeitará sua opinião até o final, April. Daria minha própria vida por isso. O senhor Dark é um cavalheiro e o descobrirá por si mesma, se for o que deseja.

- Ninguém saberá minha verdadeira identidade? - Insistiu.

- Como leu, no Clube há normas inquebráveis e a privacidade é a base de todas elas - assinalou cortante.

- Bem, só me falta a máscara - disse levantando do assento. - Porque a camisola tenho sobre meu leito.

- Tenho centenas. Pode escolher a que mais gostar - comentou ao mesmo tempo em que a abraçava com força e desenhava um amplo sorriso.


Tinha chegado ao Clube às nove da noite. Se, tal como lhe tinha prometido Vianey, April aparecesse naquele lugar, queria estar ali antes que alguém cravasse seus olhos nela. Michael pegou o relógio e observou encantado como a agulha girava minuto a minuto. Não lhe importaram as recomendações de Cox. Como se atreveu a lhe indicar que permanecesse em repouso naquela mesma noite? Estava louco se imaginava que, depois de sete longos anos, ia perder a oportunidade que tanto tinha desejado.

Levantou seus olhos e contemplou ao seu redor. Não havia muita gente ainda e as poucas que se encontravam o observavam atônitos. Era lógico, pois o senhor Dark só aparecia na primeira quarta-feira do mês e não na terceira. Aproximou a taça aos lábios e deu um bom sorvo à bebida. O charuto, aquele que tinha decidido fumar enquanto esperava a chegada de April, estava a ponto de terminar. Viria? Realmente iria sob o amparo de Vianey? A dúvida, aquela que jamais se permitia ter, sacudiu-o de repente. Deu por certo que ela aceitaria, mas... e se negasse? «Controle-se - disse-se. - Se não aparecer só terá perdido um pouco de tempo».

De repente a porta à sua direita se abriu e ficou sem respiração ao ver a imensa figura de sua amiga. Quis levantar-se e aproximar-se delas antes que alguém se adiantasse, mas o senhor Dark não atuava assim... cruzou as pernas, reclinou-se no assento e observou, sem pestanejar, a entrada da mulher que desejava. Seus lábios se estenderam em um amplo sorriso ao vê-la com aquela camisola e com o rosto oculto por uma máscara negra bordada em prata. Estava formosa, mais do que jamais pôde imaginar. Tinha os olhos cravados no chão e isso lhe indicou que Vianey lhe teria explicado as normas de comportamento.

- Boa noite, senhor Dark - saudou a baronesa. - É um prazer vê-lo aqui, depois do ocorrido - comentou com ironia.

Michael se levantou para recebê-la. É óbvio, as palavras não tinham passado desapercebidas. Olhou atrás dela e descobriu que April permanecia de pé, afastada deles dois.

- Por que o diz, senhora Hard?

- Porque fui informada, pela minha aprendiz, - enfatizou - que você teve um pequeno percalço.

- Como...? - Tentou dizer.

- Ela foi esta tarde à Scotland Yard - murmurou ao mesmo tempo em que o fazia voltar para o assento. - E foi testemunha de como o detento o feriu. Encontra-se bem?

- Foi só um arranhão... - explicou.

- Pois controle isso. Se lá em cima fizer um esforço inapropriado, pode o descobrir - advertiu.

- Obrigado, o terei em conta. E agora, se for tão amável, pode me revelar como conseguiu trazê-la?

- Leu a história de Úrsula e juro que não afastou os olhos nem um instante - expôs.

- Não acredito que esse livro... - tentou dizer.

- A ti e a mim não serviu, mas para pessoas como ela é um despertar – esclareceu. - Quer que a apresente ou economizamos esse passo? - Perguntou mordaz.

- Sigamos com o protocolo. Ninguém deve suspeitar que a temos pactuada. Já sabe como são rigorosos com as normas - apontou com firmeza.

- E se não te aceitar?

- Aceitará - afirmou antes de levantar-se do assento e caminhar para ela.

Tal como lhe tinha explicado Vianey, April tinha os olhos cravados no chão e se posicionou afastada dela enquanto falava com a pessoa que tinha eleito. Apesar de ordenar ao seu cérebro que não afastasse o olhar, sua curiosidade a traiu e, durante uns segundos, observou a enorme e forte figura que havia ao lado de sua protetora, como assim se definiu. Era grande, bastante. Seu traje negro não lhe ofereceu muito mais, posto que até agora ocultava-se em um canto onde não chegava luz.

Sinistro. Essa foi a palavra que o definiu até que percebeu como se dirigia para ela. Notou o coração alterado e como gotas de suor emanavam de sua pele. Então recordou a experiência de Úrsula, aquela primeira vez, aquele primeiro momento em frente à pessoa que amava em segredo. Mas ela não amava a quem a escolheria, ela só desejava averiguar se, tal como lhe havia dito Vianey, poderia lhe oferecer aquilo que desejava. A dúvida aumentava a cada segundo, a cada passo que aquele homem dava para onde se encontrava. Era certo que caminhava com uma atitude solene, desafiante inclusive. Entretanto... seria o adequado?

- Boa noite, senhora Hard. - A voz de outro homem apareceu de um nada. - Nova aprendiz? - Disse cravando os olhos no corpo de April. - Não sabia que hoje teríamos uma nova criada para escolher - acrescentou elevando seu lábio superior.

- Boa noite, senhor Dove. Sim, com efeito tenho uma nova aprendiz, embora já tenha sido escolhida - apontou serena.

- Sem oferecê-la? - Perguntou zangado o senhor Dove. - Acaso estava pactuada?

- Não está pactuada - intercedeu Michael com um tom tão rude que poderia aniquilar com ele. - Acabou de me oferecer e a aceitei.

- A ti? - Berrou o homem.

- Tem algum inconveniente a respeito? - Perguntou dando um passo para ele. - Acaso dúvida do critério da senhora Hard?

- Não. Não duvido sobre o bom critério da senhora Hard – resmungou. - Só advirto que uma aprendiz não deve estar pactuada antes de pisar no Clube.

- Quanto tempo sua discípula está no interior, senhora Hard? - Perguntou Michael ocultando o corpo de April atrás de sua enorme figura.

- Uns cinco minutos - respondeu Vianey com um sorriso de orelha a orelha.

- Então, como pôde averiguar, ela foi oferecida dentro do Clube - sentenciou antes de lhe dar as costas.

- Se descobrir que mentem já sabem que consequências terão - declarou.

- Pode partir tranquilo, senhor Dove, e obrigada por preocupar-se - disse zombadora Vianey.

Depois de resmungar e de soltar um ou outro impropério, o intrometido partiu deixando aos três sozinhos. April tinha escutado com atenção a discussão que mantiveram por sua culpa e, embora não devesse sentir-se feliz, estava, ao compreender que Vianey a protegia e que aquele homem tinha tirado seus dentes como se fosse um cão agressivo para tê-la. Assim foi como se sentiu Úrsula quando seu amado se envolveu naquela briga com um possível pretendente? Seu coração se alterou tanto como o seu? Possivelmente... entretanto, as situações eram diferentes, Úrsula se viu assaltada por aquele homem enquanto passeava pelo jardim e ela tinha ido, por seu próprio pé, à guarida do lobo.

- Querida, - disse-lhe Vianey - levanta o rosto para que o senhor Dark possa observar sua beleza.

Muito devagar, como se a cabeça lhe pesasse mais de uma tonelada, April obedeceu. Ao mesmo tempo ia contemplando a figura da pessoa que se posicionava em frente a ela. Pernas longas e aparentemente fortes. Mãos grandes. Torso amplo e compacto. Barba. Possuía uma barba de vários dias sem fazer. Um nariz muito similar ao que mostravam as figuras gregas. Uma máscara negra que não ocultava um olhar azul como o mar.

- Boa noite e bem-vinda - a saudou sem aproximar-se nem se atrever a tocá-la.

- Boa noite, senhor - respondeu April contendo a respiração. Onde e em que momento tinha sentido aquela fragrância? Resultava-lhe familiar, muito, e aquele pequeno detalhe a tranquilizou em vez de alterá-la. Conhecia-o? Conheciam-se fora daquele Clube?

- Minha pupila foi instruída no caminho. Terá muitas dúvidas, senhor Dark, assim espero que seja compreensivo com ela em sua primeira noite - explicou Vianey com voz serena, mas firme.

- Sua pupila tem que saber que não farei nada que ela não deseje - indicou Michael com veemência. - Em minhas mãos estará protegida e quando descer aquelas escadas se afastará daqui com sua integridade intacta.

«Integridade intacta?», pensou April. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada, mas se conteve. De verdade aquele homem imaginava que era uma jovem virtuosa? Por que não lhe havia dito Vianey que era uma viúva louca para achar o que tanto procurava? Isso estava dentro do ocultar sua identidade? Fosse o que fosse, não desceria as escadas com sua integridade intacta porque antes de subir já a tinha perdido.

- Aceita-o? - Perguntou de repente Vianey, que é claro, não perdeu o detalhe do leve sorriso que April tentava eliminar.

- Prometo que a respeitarei - enfatizou Michael. - Não fará nada que você não desejar - insistiu.

- Se minha instrutora decidiu que você me guie, não tenho nada que objetar a respeito - respondeu com segurança.

Podia gritar? Podia perder o controle e ficar a gritar diante de todos aqueles que os olhavam com suspeita? Porque isso é o que desejava fazer naquele instante.

- Então me acompanhe. Senhora Hard, só espero que uma vez que desça, a conduza para fora daqui o antes possível. Não quero que seja observada por ninguém mais - declarou possessivo.

- Assim será - respondeu Vianey.

Enquanto Michael subia as escadas e April o seguia, a baronesa sentiu uma enorme felicidade. Por fim duas almas desencaminhadas se uniam e esperava que não fosse só naquele Clube porque, se fosse assim, ambos sofreriam a tristeza de não alcançar o que Úrsula declarou em seu livro.


X


O momento que Úrsula descreveu em seu livro quando subiu as escadas apareceu em sua mente. Por uns instantes pensou que não era ela quem subia e sim a autora do livro. Tudo o que havia ao seu redor era tão parecido à descrição que tinha lido que, de maneira estranha, relaxou-se ao encontrar tanta familiaridade. Tal como narrou a protagonista, as escadas se dirigiam ao primeiro andar, onde um comprido e longo corredor se abria em frente a ela. As portas, escuras como disse Úrsula, davam passagem para os quartos. O quarto em que permaneceria com o senhor Dark teria as mesmas dimensões? Encontraria aquela cama no meio do quarto, a poltrona junto à luz e a pequena penteadeira?

Um calafrio lhe percorreu o corpo. Não foi por temor, mas sim por excitação. Assim como a escritora descreveu no capítulo. Entendia-a. Naquele instante soube como devia encontrar-se: com uma terrível emoção, excitação e ansiedade. Mas havia uma grande diferença a ter em conta, Úrsula estava acompanhada do homem a quem amava, entretanto, em frente a ela se encontrava um desconhecido, um ser que jurou respeitá-la cada segundo que permanecesse ao seu lado. Mas... cumpriria a promessa ou só era um blefe? Se algo acontecesse ali dentro gritaria com todas as suas forças e, cedo ou tarde, alguém apareceria para socorrê-la.

- Chegamos - disse Michael enquanto pegava uma chave que guardava em seu bolso da calça. - Está com medo? - Perguntou-lhe ao ver que tiritava.

- Não, senhor.

- Então... por que treme? - Quis saber.

Seus olhos azuis se cravaram naquele rosto abaixado, naquele cabelo que desejava libertar da sujeição do coque, naqueles ombros que sutilmente se revelavam através do decote e, é claro, beijaria aquela marca em forma de coração que o deixou sem fôlego desde a primeira vez em que o viu. Como tinha suportado tantos anos desejando-a? Por que não retornou a Shother na seguinte festa que foi requerido para cuidá-la? Talvez porque soubesse que um agente de rua não poderia oferecer o que ela necessitava ou possivelmente porque eles precisassem daquele espaço de tempo...

- Tenho frio - respondeu abraçando-se.

- Por que não disse antes? - Grunhiu zangado. Com rapidez abriu a porta, permitiu-lhe a passagem e fechou depois de sua entrada. - Aproxime-se do fogo enquanto preparo algo confortável - indicou.

- Segundo minha instrutora, não posso levantar o rosto enquanto me encontre ao seu lado - disse caminhando devagar para a chaminé.

- E? - Perguntou Michael parado, sem poder olhar a outro lado salvo a ela.

- E eu gostaria de saber onde me encontro, se não lhe importar - explicou.

- Pode fazê-lo. - Seu coração, aquele que acreditou coberto de gelo, começou a pulsar com força e teve que respirar fundo para controlar cada pensamento que surgia em sua mente. Porque se não fosse capaz de manter-se firme, a noite terminaria mal, muito mal...

April levantou o rosto devagar. Precisava recolher toda a informação que pudesse sobre aquele lugar, porque possivelmente, seria sua primeira e última vez... a palavra que melhor resumia a sensação que lhe provocou ao observar a habitação foi surpresa. Ao contrário do que tinha narrado Úrsula, o quarto do senhor Dark era grandioso. A cama, situada no centro, tinha umas dimensões colossais, mas era normal que tivesse esse tamanho porque do contrário ele não poderia descansar ali. April olhou de esguelha a figura que ficou imóvel em frente à porta e pensou se alguma vez dormiria naquele leito ou só o utilizaria para o desfrute. Afastou seus olhos com rapidez ao observar como cruzava os braços, estava observando todos os seus movimentos. Deu dois passos para diante, ficando cravada em frente a um lindo tapete negro.

- Posso tirar os sapatos? - Perguntou com incerteza.

- Faça-o - respondeu.

Devagar se inclinou para seus pés, com uma tranquilidade difícil de aguentar em um momento assim, desatou os cordões das botas de cano longo e as afastou para a sua direita. Desde menina, desde que começou a andar, desfrutava sentindo a suavidade de um tapete macio na planta dos pés. E, embora parecesse incrível, aquela sensação a tranquilizou. De novo elevou o olhar e contemplou ao seu redor. A colcha da cama era negra, o tapete que pisava e inclusive o tecido da poltrona que havia junto ao fogo, também. Tudo era muito escuro naquele quarto, assemelhando-se tremendamente à cor de sua própria alma.

- Quer tomar algo? - Disse Michael enquanto se aproximava da cama. Afastou a colcha daquele lado e pegou um dos almofadões.

- Posso fazê-lo? - Perguntou insegura.

O´Brian caminhou para ela, estendeu o almofadão sobre o tapete e, sem responder com rapidez à pergunta, desabotoou os botões da jaqueta para ocupar a poltrona. Dali podia contemplá-la com mais claridade, com mais detalhes.

- Sirva duas taças. A primeira, é óbvio, para mim - ordenou com voz serena.

April se dirigiu para a penteadeira admirando o que ali havia: uma escova de prata, uma bacia de porcelana branca, um vaso de metal e uma bandeja onde havia duas taças e uma garrafa de Porto. Agarrou o licor e começou a vertê-lo no primeiro copo. Descobriu nesse momento que sua mão tremia, mas não era de frio e sim de expectativa. Depois de enchê-lo se dirigiu para ele. A luz do fogo o iluminava e, embora antes de subir lhe pareceu um homem grandioso, ali com aquela luz alaranjada, com suas pernas cruzadas, espreitando cada movimento que realizava, pareceu-lhe não só enorme, mas também aterrador. Entretanto, apesar dessa impressão, sua cabeça lhe gritava que não tivesse medo, que cumpriria sua promessa. Suportando com perícia aquele tremor em sua mão, estendeu-a para ele, esperando que o aceitasse. E o fez, mas no instante que a pegou ambos se roçaram, ambas as mãos puderam tocar-se com delicadeza provocando em April um calafrio insólito.

- Vou fazer uma série de perguntas que deve responder - comentou com voz estrangulada. Aquele pequeno roce não alterou só a ela, em Michael causou uma incrível sensação de prazer. Foi tanto o gozo que notou como seu sexo se elevava e se endurecia até lhe causar dor. - Mas antes, coloque seus joelhos sobre o travesseiro que tem no tapete - acrescentou.

- Posso beber a taça antes de me ajoelhar, senhor Dark? - Perguntou mordaz.

Michael conteve a gargalhada que tentou sair, respirou fundo e, depois de dar o primeiro sorvo lhe respondeu:

- De um gole?

- Não seria a primeira vez que o faço, senhor.

- Não esperava que uma mulher como você adotasse costumes tão pouco femininos - disse divertido. Brincava. É óbvio que o fazia! Tinha-a visto em mais de uma ocasião esvaziar sua taça de uma só vez e, embora não devessem lhe agradar tais ousadias por parte de uma dama, adorou.

- Talvez não seja a mulher que esperava... - declarou sarcástica.

- Acredite, é a única mulher que esperei por toda a minha vida - confessou sem afastar os olhos dela.

Ante tal revelação April notou como sua garganta se secava. Com rapidez bebeu aquele licor, colocou a taça sobre a bandeja e se colocou tal como lhe tinha indicado. Sua cabeça estava inclinada para o chão. «Nunca deve olhar um dominante aos olhos salvo que ele lhe indique isso», recordou.

- Sabe por que usa uma máscara negra?

- Sim. A senhora Hard me explicou que há três cores nos servos.

- Bem, lhe recordarei o que significam, posto que um dominante deve deixar claro certos aspectos a uma aprendiz - comentou com firmeza. - A que usa se chama máscara de principiante. Utilizam-na só as servas que não têm dono e que o procuram. Quando estabelecem uma relação passam ao branco. Desde que usem essa cor ninguém se lhes aproximará porque já pertencem a um amo e estarão protegidos por este. O terceiro é vermelho. Mas, como terá podido descobrir aí abaixo, só há duas pessoas que o usam.

- Por quê? - Atreveu-se a perguntar.

- Porque significa que mantêm uma relação definitiva – revelou. - É um pacto inquebrável que fazem para o resto de suas vidas. O servo lhe será fiel e, é óbvio, o dominante não escolherá outro servente.

- Como se fosse um matrimônio? - Soltou assombrada.

- Bom, em um matrimônio sempre pode haver infidelidades. Então, se eliminar essa parte, todo o resto é muito semelhante – explicou. - Embora tenha de saber que essa relação só se oferece aqui, não fora destes muros.

Durante um bom tempo ambos se mantiveram calados. April meditou sobre o que tinha escutado. Nunca imaginou que um simples adorno poderia significar tanto nem tampouco que pudessem existir relações para toda a vida naquele Clube. Como aguentariam uma vida fora daquele escuro lugar? E se estavam casados? As relações com o cônjuge não importavam, não se catalogariam de infidelidade?

Michael, por sua parte, teve que sossegar-se e encontrar aquela paz que tinha pressa em obter para não saltar sobre April e possuí-la naquele momento. Necessitava controlar-se, fazer-lhe mais pergunta para conhecê-la um pouco melhor. Mas... se a assaltava com todas as incertezas que possuía passariam toda a noite falando e não pensava ficar muito tempo ali sentado admirando como lhe obedecia. Assim agrupou todas as incertezas importantes e as soltou de repente.

- Por que veio hoje? Conhecia a existência do Clube? De onde conhece a senhora Hard? O que espera encontrar? - Perguntou sem tomar ar.

A boca de April se estendeu para desenhar um leve sorriso. Se ela tinha perguntas, ele parecia que albergava muitas mais. Mas imaginou que seria normal na primeira reunião que mantinham. Ambos deviam conhecer-se para obter o que tanto desejavam.

- Não ouvi falar do Clube até que li o livro de Úrsula - começou a dizer. - A senhora Hard me deu para ler afim de confirmar se suas suspeitas sobre mim eram certas.

- Que suspeitas? - Interrompeu-a ao mesmo tempo que colocava a taça no chão. Necessitava de um charuto, ou melhor, necessitava de uma caixa inteira para controlar-se. Mas não tinha levado nenhum para que a fumaça do charuto não o impedisse de cheirar o corpo de April.

- A de ser serva para um dominante - esclareceu.

- Sabe o que acaba de declarar? - Voltou a cortá-la.

- Sim - respondeu com firmeza.

- O que espera encontrar? - Demandou com um nó na garganta que pressionava mais que sua virilha.

- Liberação - indicou contundente.

- Alguma vez foi liberada? - Interessou-se. Aquela parte era primordial para ele. Precisava averiguar se o motivo pelo qual se casou com o visconde foi esse e se, durante seus anos de matrimônio, obteve-o.

- Se está tentando indagar se estive com outros homens, tenho que lhe esclarecer que sou viúva - explicou com certo aborrecimento.

- Não estou me referindo a isso - anunciou ao mesmo tempo que se levantava. - Meu desejo é saber se seu falecido marido te deu prazer.

April apertou as mãos as convertendo em dois pequenos punhos. Era a primeira vez que confessaria algo que sempre ocultara, que não revelou nem a Vianey, que tinha insistido em conhecer o motivo pelo qual decidiu casar-se com o homem menos apropriado.

- Nada sairá daqui - disse com voz suave enquanto caminhava para ela. - Tudo o que falemos permanecerá nesta habitação. Aí fora será quem é na realidade, mas aqui, é minha e devo te conhecer.

«Minha...», pensou April. Uma conotação muito possessiva para um homem que não a conhecia. Não tinha escutado essa palavra nem uma só vez em sete anos e, para seu assombro, quem permanecia ao seu lado não duvidou em oferecer-lhe sem pensar no que isso suportava.

- Um dos princípios deste Clube é proteger o anonimato, só lhe direi que durante meus anos de casada alcancei um pouco do que desejava na última semana de vida do meu marido.

- Um pouco? - Inquiriu Michael elevando as sobrancelhas.

Colocou-se atrás dela, esticou as mãos e com muita suavidade foi tirando as forquilhas do cabelo. Queria apreciar a longitude que possuía, seu brilho, sua textura, seu volume. Queria colocar os dedos entre as mechas e averiguar se tudo o que tinha pensado era certo.

- Só obtive o que ele me pôde oferecer - respondeu esquiva. Não desejava lhe falar do pouco que conseguiu e o mal que se sentiu depois de se deitar com seu marido. Não, isso guardaria para ela porque a ninguém interessava que, depois de possuí-la daquela forma, chorasse desconsolada. - Mas como li, foi só o começo do que podia ter alcançado. - Aquelas mãos sobre seu cabelo lhe proporcionaram tanto prazer que esteve a ponto de jogar a cabeça para trás para o convidar a que continuasse. Entretanto, manteve-se quieta.

Michael murmurou um impropério. Não devia sentir-se tão feliz pela morte do visconde, mas estava, porque se este lhe tivesse devotado aquilo que ela procurava, não estaria ali, ao seu lado, naquela habitação, nem tremeria de emoção pelo desconhecido, nem possuiria aquela excitação causada pela incerteza. Agora ele a iniciaria. Exato, a pegaria pela mão para levá-la àquela liberação que tanto requeria.

- Que partes do livro a excitaram? - Soltou à queima-roupa. Ficou absorto ao ver aquele cabelo roçando sua cintura. Sempre o imaginou comprido, mas nem tanto. April era uma mulher formosa, mais do que ela mesma podia supor. E, para seu prazer, era sua.

- Muitas - respondeu com um leve gemido.

- Descreva-me uma - insistiu enquanto retornava ao seu assento.

Devia manter certa distância. Não podia permanecer perto dela porque aquele impulso de possuí-la se intensificava. Precisava recuperar o controle e deixar de pensar em como fazê-la sua antes que saísse pela porta. Entretanto, quando tomou assento e a observou, o insistente desejo em encontrar seu próprio domínio desapareceu. Podia imaginar April linda como se encontrava com aquele cabelo estendido sobre seus ombros? Pôde alguma vez suspeitar quão sedutora era? Muito devagar, deleitando-se em cada centímetro dela, cravou os olhos em seu peito. Respirava entrecortada, indicando que aquilo que recordava do livro, a excitava.

- O momento em que Úrsula apareceu no jardim de sua casa. Quando foi assaltada por um cavalheiro. Seu amado a resgatou e para apaziguar seu estado de nervosismo a tocou ali mesmo - confessou depois de advertir que ele retornava ao seu assento.

- Que parte te excitou? Quando impõe sua força para salvá-la ou quando a acaricia? - Solicitou afogado, sufocado e muito agitado.

Michael converteu suas mãos em dois punhos. Tentava evocar a pouca razão que possuía. Embora ver como, através da camisola, elevavam-se os mamilos de April o deixou sem fôlego. Estava perdido. Sim, perdido e derrotado porque seu corpo reagira de maneira inapropriada. Enquanto que com sua anterior serva não pôde sentir uma ereção até a quarta quarta-feira em que se reuniram, com ela já estava duro, rígido e elevado para introduzir-se entre suas pernas.

- Uma mulher sempre fantasia que seu protetor não só a salve, mas sim a leve até um prazer infinito. Ao ler como lhe levantava a saia, como afastava a lingerie e a acariciava, senti como meu sexo se umedecia igual ao dela. Aqueles dedos invasores, aquelas penetrações que seu amado realizou, as palavras que lhe sussurrou ao saborear seu néctar feminino... - respirou fundo. Mal podia falar. Aquela pontada que sentia entre suas coxas era cada vez mais potente.

Descobriu, embaraçada, que seus mamilos se endureceram e que o suave roce do tecido sobre eles lhe causava a mesma sensação que sentiu Úrsula com a gravata. Moveu-se incômoda, desconcertada, inquieta. Como podia atuar daquele modo em frente a um homem desconhecido?

- Teve alguma fantasia? - Perguntou Michael cruzando as pernas. Queria estrangular seu membro, queria o impedir que se elevasse daquela forma. Não podia deixar-se levar porque se o fizesse, ela se assustaria e a perderia para sempre...

- Sim - respondeu April abaixando ainda mais a cabeça.

- Conte-me - insistiu nisso.

O´Brian pensou que, se se centrava em escutar o que lhe explicava, não só relaxaria, mas sim também descobriria os desejos que ocultava em sua mente e, com o passar do tempo, cumpriria todos.

Seria apropriado lhe narrar o que sempre tinha desejado? «Ele te ajudará a conseguir o que nunca teve», recordou a última frase que Vianey lhe disse antes de descer da carruagem. Seria verdade? Conseguiria fazer realidade seu desejo? «Perde algo? - Perguntou-lhe a voz. - Nada! E se converter-se em realidade, por fim aplacará tantos anos de aflição...».

- Faz muito tempo, alguém se aproximou de mim e me falou de maneira descarada - começou a narrar sem levantar a cabeça. - Odiei-o com todas as minhas forças e desejei esbofeteá-lo, mas justo quando elevei a mão, ele me agarrou e me descreveu uma cena que, embora tenha tentado apagar da minha memória, sempre esteve comigo.

Michael ficou tão atônito que deixou de respirar e teve que descruzar as pernas para poder apoiar-se sobre o chão. Se estivesse de pé teria caído. Podia ser certo? Ia-lhe explicar que sua fantasia era aquilo que lhe narrou no passado? Havia dito que não a tinha apagado de sua memória? Que sempre tinha estado com ela? E, nesse preciso momento, a besta que vivia em seu interior se apoderou de seu corpo. Já não era ele quem permanecia sentado em frente à mulher que desejava, mas sim o monstro.

- O que te disse? - Grunhiu com uma voz tão dura que causou um calafrio nela. Ao ver que April começava a assustar-se, moderou seu tom convertendo-o em uma suave melodia. - Sabe que te respeitarei em todo momento. Se não quiser...

- Disse-me que utilizaria aquela mão que elevei, para que eu mesma me acariciasse em frente a ele com os olhos abertos - prosseguiu tomando ar lentamente. - Que, dessa maneira, eu poderia ser consciente de como o excitaria. - April fez uma leve pausa, a necessária para recordar cada palavra que aquele jovem agente, convertido agora em inspetor, declarou-lhe aquela noite. - Segundo ele, meus mamilos se elevariam procurando o roce de sua boca e que, uma vez que minhas mãos alcançassem meu sexo, eu mesma afastaria meus macios e inchados lábios para que ele pudesse beber de mim. - «Beberia de você. Beberia tanto que acalmaria minha sede para o resto da minha vida», evocou em sua mente.

A poltrona ficou pequena. Michael tinha inchado em cada palavra que ela emitia. Não podia acreditar que ele tivesse estado sempre com ela. Nem o tempo nem a distância os tinham separado e tudo graças àquela bendita noite e à sua ousada conversação. Levantou-se do assento e se dirigiu para a chaminé. Colocou a mão direita sobre a beirada e suspirou.

- Foi seu falecido marido quem lhe insinuou isso? - Aventurou-se a dizer mesmo sabendo que não era certo.

- Não. Ele nunca me expôs nada semelhante - declarou com certa tristeza.

- O que sentiu ao falar sobre esse momento? - Perseverou sem poder afastar o olhar das chamas.

- Excitei-me... de novo - revelou avermelhada pela vergonha.

- Quanto? - Perguntou virando-se para ela.

April continuava com os olhos cravados no tapete e, por desgraça, naquele momento ele não podia contemplar o rubor que suas bochechas ofereciam.

- Muito... - sussurrou.

- Mostre-me o quanto - disse com voz estrangulada.

Muito devagar ela dirigiu sua mão direita para a camisola, levantou-a e a colocou entre suas pernas. Um pequeno ofego brotou de sua boca ao sentir o leve contato. Tão excitada se encontrava? O que pensaria ao perceber que se achava tão alterada ao pensar em outra pessoa? Se zangaria? A jogaria da habitação?

- Quero ver - insistiu ao estender a mão para ele.

April se levantou e caminhou para o senhor Dark com uma lentidão desesperadora. Com a palma para cima, mostrando o brilho que tinha recolhido de seu sexo, aproximou-a tanto que as pontas dos dedos podiam tocar seus lábios.

Fora de si, porque jamais atuou daquela forma, Michael agarrou aquela mão e a beijou, molhando sua boca com a essência.

- Quer fazer essa fantasia a realidade? - Perguntou cravando seus olhos negros repletos de paixão nos dela que, para seu prazer, também tinham mudado de cor.

- Sim - afirmou sem duvidar.

- Então, se coloque em frente aos pés da cama, livre-se dessa camisola e me deixe ver como se acaricia - ordenou com a voz estrangulada pelo desejo.

- Sim, meu senhor - respondeu.

Caminhando sobre o tapete, April se posicionou entre os dois enormes dosséis da cama. Com a cabeça abaixada, levantou a roupa. Outra vez a lembrança do livro apareceu em sua mente. Rememorava o momento no qual Úrsula descrevia a sensibilidade que percebia em seu corpo ao despojar-se de sua camisola. Ela sentia o mesmo. Aquela suavidade, aqueles leves toques lhe causaram arrepios.

- Nunca fiz isso - confessou ao apresentar-se nua.

- Disso se trata. Quero fazer realidade sua fantasia... - respondeu dando dois passos para ela.

Não era só de April e sim a sua também. Quantas noites despertara empapado em suor ao sonhar com ela daquela maneira? Milhares, talvez milhões. Entretanto, embora a cena se assemelhasse muito à de seus sonhos, jamais alcançaram a beleza que contemplava.

- Toque-se - ordenou.

Com as bochechas ardendo, com o corpo sacudido pela emoção do momento, April colocou suas mãos sobre o seio e foi acariciando-se devagar. No começo se escandalizou ao ver-se daquele modo. Como podia fazer tal indecência? Estava doente? Sim, estava e muito porque só uma transtornada mental faria o que ela realizava.

- Desce as mãos para seu sexo e abre seus lábios - exigiu Michael enquanto cortava a distância entre eles. - Quero beber de ti até saciar minha sede - adicionou.

- Sim, meu senhor - voltou a afirmar.

Tal como lhe mandou, desceu as mãos para seu sexo e afastou os lábios inchados. Deveria sentir-se envergonhada, humilhada e destroçada, mas ao contemplar o brilho nos olhos dele, ao notar como as bochechas do senhor Dark também ardiam, sentiu-se poderosa e erótica.

- Sente-se devagar sobre a cama - assinalou Michael enquanto se ajoelhava em frente a ela.

Com aquelas grandes mãos sobre seus joelhos, April se estendeu devagar. Olhou para o teto e não soube se fechava os olhos ou mantinha-os abertos. Logo obteve a resposta. Fechou-os. Quando notou o calor da língua percorrendo de cima a baixo seu sexo não pôde mantê-los abertos.

- Saboroso e delicioso néctar... - murmurou O´Brian lambendo-a com desespero. - E para meu deleite é todo meu... meu! - Grunhiu antes de lhe morder cada zona que sua boca saboreou.

Tinha pensado um sem-fim de vezes que sabor teria ela. Lhe agradaria? Seria doce e salgado? Ou teria um delicioso gosto de jasmim? Não obstante, o que descobriu superou todas as suas expectativas. O suco de April era aditivo, estimulante e hipnótico em partes iguais. Nenhum rico licor poderia fazer sombra ao elixir de sua amada.

- Por Cristo! - Exclamou fora de si.

Tê-la daquele modo, escutá-la gemer de prazer ao sentir o contato de sua língua sobre aquele venerável sexo excitou-o de tal maneira que perdeu o pouco poder que tinha sobre si mesmo. Afastou sua mão do joelho direito de April e a colocou em frente à entrada escorregadia. Queria fazê-la gritar de prazer, queria acalmar tantos anos de solidão, queria fazê-la sua e marcá-la para sempre...

- É o que desejava? - Falou sem poder afastar a boca daquela parte tão deliciosa.

Devagar os dedos acariciaram aquele botão inchado, aquele ponto que a fez retorcer-se com tanta brutalidade que teve que segurar com mais força o joelho que tocava.

- Veio aqui para me encontrar, para se prostrar ante mim? Para que te ofereça prazer? - Insistiu ao mesmo tempo que dois de seus grandes dedos entravam e saíam dela.

- Sim! - Respondeu April agarrando com força a colcha entre suas mãos.

De repente sentiu a chegada do primeiro clímax. Seu corpo se agitou, sua cabeça se movia de um lado para outro, ofegava sem parar e o suor que emanava cada poro de sua pele começava a molhar o lugar em que permanecia deitada. Era uma loucura. Ter chegado até ali, ter subido com um desconhecido, estender-se sobre aquela colcha negra... tudo era demencial! Entretanto, tivera necessitado daquilo mesmo durante tantos anos. Queria paixão, liberdade, encontrar-se em uma situação tão luxuriosa que perdesse a noção do tempo e, para seu prazer, estava conseguindo. Embora em frente a ela não se encontrasse o jovem descarado que lhe falou de maneira inadequada, estava sentindo como a inquietação por fim se dissipava.

- Quer mais? Quer que meu sexo entre em ti? - Trovejou Michael depois de liberar de entre seus dentes um de seus inchados lábios.

- Sim, o desejo! Quero-o! - Respondeu perturbada.

O´Brian se levantou violentamente evitando a ferida que tinha em seu abdômen, pegou as mãos de April e a elevou da cama para conduzi-la até a primeira parede que encontrou ao seu passo.

- Ponha as mãos sobre sua cabeça - indicou enquanto liberava seu sexo das calças.

Ao tocar-se, justo quando o roçou para tirá-lo, sentiu uma terrível dor. Nunca tinha notado algo semelhante, talvez porque jamais tinha permitido que sua besta, seu monstro, se apoderasse dele daquela maneira. Tinha-o controlado. Sabia Deus que o tinha feito! Inclusive com a serva com quem permaneceu durante o tempo que ela tinha estado casada, continuou firme aos seus princípios. Mas April era a mulher que sempre tinha esperado, a quem desejava encontrar em seu leito e lhe oferecer sua verdadeira escuridão e, por sorte, ali a tinha.

- Vou possuir-te como ninguém até agora o fez - comentou perdido pelo desejo. - Te deixarei marcada, se lembrará de mim a cada hora, a cada minuto, a cada segundo de seu tempo - declarou introduzindo seu sexo nela com força. - Ninguém... - ofegou. - Ninguém... fará com que me esqueça.

«Nunca o fez - disse uma voz em sua cabeça. - Ela pensou em ti durante todos estes anos».

Em cada palavra, em cada investida, os seios de April se moviam chamando a atenção daquele que a dominava com tanto desespero, provocando que aquele olhar ardente se cravasse neles. Por que atuava tão desesperado? Dava-lhe a sensação de que ele a tinha estado esperando toda a vida, como se a fantasia não fosse só dela, mas sim a dele também. De repente outra sacudida a sucumbiu e apertou os lábios para não chiar.

- Grita. Grita para mim - ordenou ao ver que ela fechava a boca. - Quero te escutar.

E o fez. Enquanto notava a imperiosa dominação daquele duro falo em seu interior, April gritou com todas as suas forças, liberando-se deste modo da pressão que aguentava desde muito tempo atrás. Nunca se tinha escutado gritar, nem tampouco pensou que ao fazê-lo enlouqueceria de desejo. Era a primeira vez que tudo ao seu redor desaparecia e só existiam ele e ela realizando um sonho.

- Duro - murmurou no ouvido de April. - Comigo só terá sexo duro - prosseguiu ofegando. - É o que deseja encontrar em mim? Veio até aqui para achar o que eu te ofereço? - Perguntou aproximando sua boca da dela.

Não podia lhe responder porque seu estado de frenesi não lhe permitia pensar com claridade. A pressão que realizava o sexo do senhor Dark em seu interior era tão intensa que chegou a lhe doer. Entretanto, aquelas estranhas pontadas em seu útero lhe ofereciam convulsões de prazer, de deleite, de gozo.

- Responde! - Clamou Michael desesperado ao ver que logo chegaria seu próprio clímax.

- Sim, quero isto. Anseio tudo o que está me oferecendo, meu senhor - respondeu.

- Mais? - Perguntou O´Brian a ponto de terminar. - Quer mais?

- Sim! - Gritou ao sentir como alcançava o clímax de novo, suas pernas fraquejavam e perdia o controle.

- Terá! - Respondeu antes de dar os últimos empurrões. Aqueles que, pela intensidade com que os realizou, causaram um brilho em seu rosto, que a roupa se pegasse ao seu corpo e que a dúvida que teve antes de que ela chegasse desaparecesse. - É minha! - Gritou ao sentir o calor de sua semente percorrer seu sexo até introduzir-se nela. - Só minha! - Reiterou com força.

Era-o. April sabia que, por mais inverosímil que lhe parecesse, aquela declaração de posse era certa. A fez dele desde que a saudou no andar de baixo, desde que o acompanhou à habitação, desde que soltou seu cabelo, desde que a tocou... de repente, quando suas respirações começaram a acalmar-se e ele saiu dela com tanta lentidão que desejou gritar que não o fizesse, apareceu em sua mente uma pergunta que a desconcertou. Entregou-se daquela maneira porque pensou no inspetor? Não, não podia ser. Embora se assemelhassem na cor dos olhos, no tom de voz e naquelas grandes mãos que pareciam havê-la tocado com antecedência, isso não era possível.

Ofereceu-se a um desconhecido imaginando que era outro homem, um que jamais teria a intenção de viver junto à viúva de um assassino. Podia ter sido um descarado com ela obrigando-a a dançar duas peças seguidas, mas só isso. A intenção do senhor O´Brian era, só e exclusivamente, averiguar se seu pai tinha assassinado Eric.

- Não se mova - disse enquanto abotoava a calça e se dirigia para a bacia. - Tenho que a limpar - explicou.

April fechou os olhos e recordou de novo como Úrsula descrevia seu amado em frente a ela, fazendo desaparecer o líquido que escorria por suas pernas. Não sabia se ela explicara, naquele momento, se era uma prática habitual entre os dominantes embora devia sê-lo porque, do contrário, aquele homem não podia limpar a uma mulher que não venerasse.

- Dentro da gaveta que tem na mesinha direita encontrará uma máscara branca - disse enquanto subia e descia o pano. Alcançou o sexo de April e esteve a ponto de voltar a possuí-la ao contemplar como seus macios lábios se incharam pela paixão. - Se a colocar na próxima vez que aparecer, já sabe o que significa. - Terminou de limpá-la, levantou-se e caminhou para a bacia. Precisava afastar-se dela, que saísse o antes possível do dormitório porque, devido ao esforço, sua ferida havia se aberto de novo e tinha o colete manchado de sangue. - Aceita? - Perguntou lhe dando as costas.

April, depois de colocar a camisola, caminhou para a mesinha que lhe tinha indicado. Abriu a gaveta e acariciou com seus dedos a textura do tecido. Estava disposta a fazê-lo? Seria conveniente esquecer aqueles sentimentos que tinham crescido por um homem que jamais alcançaria? «O que teve até agora? - Perguntou-lhe a voz em sua cabeça. - Virtualmente nada, assim tampouco pode deduzir que as simples atuações que teve com o senhor O´Brian indiquem outra coisa que não seja interesse para com o caso de seu marido. Falou sobre aquela noite? Tentou te beijar? Não! Então... por que duvida?».

- Sim, aceito - disse pegando o objeto.

- Já sabe o que deve fazer depois de sair - declarou com o coração em um punho.

- Descer e ir com a senhora Hard - recordou ao mesmo tempo que se abaixava para recolher suas botas de cano longo.

- Te verei na próxima quarta-feira. Não me faça esperar - indicou com rudeza.

- É claro - respondeu voltando-se para ele. - Boa noite, senhor.

- Boa noite - disse sem mover-se.

Quando April saiu da habitação, Michael se ajoelhou. Ainda seguia em comoção pelo vivido e alterado ante o descobrimento. Nunca imaginou que ela o recordasse, que pensasse nele com tanta frequência. Disse-se a si mesmo um milhão de vezes que a tinha perdido após casar-se, mas não era certo. Sua fantasia, aquela que tinham tornado realidade, era a que lhe tinha narrado naquela noite.

Aturdido, golpeado por aquela emoção de prazer, levou a mão para o abdômen e pressionou com força. «Nunca a perdi - pensou enquanto fechava os olhos. - Sempre foi minha». Entusiasmado, mais do que tinha estado inclusive no dia em que o nomearam inspetor, levantou-se do chão e olhou para a porta. «Não voltará a se separar de mim, April Campbell. Amanhã mesmo me apresentarei em sua casa e farei o que jamais acreditei fazer, te conquistar».


Desceu as escadas tremendo. Estava tão confusa como extasiada. Ali acima tinha obtido uma experiência tão bela quanto aterradora e, é óbvio, viria na quarta-feira seguinte. «Que desculpa dará desta vez?», falou uma vozinha em sua mente. Não pararia a refletir que pretexto ofereceria aos seus pais. Estava segura de que algo ocorreria a Vianey.

- Tudo bem, querida? - Perguntou-lhe a senhora Hard quando a recebeu no último degrau.

- Acabo de me liberar de todas as minhas desgraças. Sinto-me leve e incrivelmente feliz - respondeu olhando-a aos olhos, esquecendo uma das normas daquele lugar.

- Então... repetirá? - Interessou-se enquanto caminhavam para a saída.

- Isto responde à sua pergunta? - Mostrou-lhe a máscara que guardava em sua mão.

- Graças a Deus! - Exclamou desenhando um grande sorriso. - Acaba de tomar a melhor decisão de sua vida.

- Isso espero... - murmurou April.


XI


Já passava das três quando Vianey, dando-se por vencida, retirou-se ao seu quarto para descansar. Como era habitual nela, fez-lhe milhares de perguntas sobre o ocorrido. April respondeu às que acreditou oportunas e esquivou-se das que resultavam muito comprometedoras. Entretanto, para sua satisfação, todas as dúvidas que ela teve Vianey respondeu sem duvidar.

Não conseguiu averiguar se foi a ingestão de álcool a culpada daquela imensa alegria que manteve desde que as duas saíram do Clube; fosse a razão que fosse, April descobriu que o senhor Dark era um homem solteiro e que visitava o Clube há três anos e meio. Também soube que foi iniciado por Vianey, mas de outra forma. Ele nasceu dominante e o mostrava até no caminhar. Também soube que tinha tido uma serva durante três anos, mas que jamais a tinha considerado própria. Isso causou muita curiosidade em April posto que, desde o primeiro momento, ele reiterou que era dele.

Logicamente guardou para si uma frase que ficou gravada em sua memória com tanta força que lhe resultaria impossível esquecer: «acredite-me, é a única mulher que esperei em toda a minha vida». Por que lhe tinha declarado aquela tolice? Quereria, talvez, enrolá-la com palavras tentadoras? Se esse era o motivo, tinha-o conseguido. Não havia nada no mundo que deixasse April sem respiração, salvo um homem gritando, a viva voz, que uma mulher lhe pertencia. Possivelmente a causa disso era o fato de não haver se sentido a mulher de ninguém. Nem para o Eric que, como bem manifestou Vianey, só a queria pelo poder e a fortuna que alcançaria quando seu pai morresse.

Suspirou com tristeza. Enquanto se metia na cama, um imenso pesar se apoderou dela. Não entendia como seu marido jamais a havia possuído daquela maneira. Não foi só o fato de como a tocou, mas sim o tom de voz que empregou enquanto o fazia. Soou tão firme, tão seguro, tão autoritário e ao mesmo tempo tão delicado, que lhe tremeram as pernas ao recordá-lo de novo. Mas não, Eric não se esmerou em agradá-la, ele tinha outra mulher em sua cabeça. A amaria de verdade? Amaria lady Cooper apesar de havê-la assassinado? Talvez tenha se sentido pressionado pelo ultimato que lhe deu seu pai ou talvez fosse um homem que não possuía sentimento algum salvo o que dava de presente a si mesmo.

Fechou os olhos, separou Eric de seus pensamentos e deixou que as imagens do que tinha vivido naquele Clube retornassem à sua mente. Continuava pensando que o aroma que desprendia o senhor Dark lhe era familiar, assim como a cor de seus olhos e o tom de sua voz. Mas Vianey lhe explicou mil e uma vezes que todos os homens terminavam cheirando e falando de maneira semelhante. Entretanto... todos podiam ter um olhar tão enigmático? Possivelmente... agarrada àquele bem-estar, àquela felicidade que sentia seu coração, ocultou-se sob o lençol e ficou profundamente adormecida.

- April? Querida, está acordada? - Perguntou Vianey entrando no quarto horas mais tarde.

- Agora sim - murmurou a mulher enquanto tapava a cabeça para não ver ninguém.

- Veio um criado de Shother perguntando quando retornará - informou.

- Que horas são? – Perguntou enquanto afastava com rapidez o lençol.

- Duas - respondeu aproximando-se da janela para abrir as cortinas.

- Duas? - Exclamou saltando da cama. - Devem estar preocupados!

- Estão, mas não por ti e sim por mim. Recorde que veio para cuidar de mim - apontou ao mesmo tempo que movia a mão direita para permitir a entrada à donzela.

- É verdade! - Exclamou abrindo os olhos como pratos. - O que lhes direi? Jamais fui capaz de mentir ao meu pai e quando o tentei, ele soube desde o primeiro momento - disse sentando-se de repente sobre um canto da cama.

- Pode lhe dizer que melhorei durante a noite, coisa que é certa. Recuperei-me muitíssimo quando te vi aparecer sozinha. Embora esse pequeno detalhe deve omiti-lo, assim como me ocultou se, finalmente, o senhor Dark te deixou tocar o Éden.

- Vianey! - Exclamou ruborizando-se no momento.

- Não sabe o que são as confidências femininas? Pois esta seria a nossa...

- Nunca falarei contigo desse tipo de intimidades - se defendeu levantando-se da cama. - Eu não gosto de fofocas - disse enquanto se desprendia da camisola para que a donzela a ajudasse a vestir-se.

- Que aborrecida é, querida! Acaba de me arruinar uma estupenda conversação com o senhor Dark - soprou.

- Só te direi que foi muito respeitoso comigo e fez só o que lhe permiti - apontou desenhando um enorme sorriso.

- Isso eu já sabia... - murmurou Vianey com desilusão. - Ele só respeita a ti, a ninguém mais - escapou-lhe.

- Como diz? - Perguntou April voltando-se para ela bruscamente. - Ouvi que só respeita a mim? Por quê? Acaso sabe quem sou? Além de me pactuar lhe revelou quem eu era? - Soltou irada.

- Não! - Respondeu com rapidez ao mesmo tempo que agitava suas mãos de um lado para outro. - Eu não lhe disse quem é! Juro-lhe isso!

- Então... por que murmurou que só respeita a mim? - Insistiu franzindo o cenho.

- Porque atuou de maneira inadequada diante de outro dominante e isso só significa interesse e respeito para com outra pessoa - mentiu. Mas o fez tão convencida, sem mostrar em seu rosto nem um ápice de dúvida, que April acreditou por completo. - E agora vista-se, tome algo e parta para sua casa. Não quero que Norman me dê sermões quando aparecer em Shother.

- O que faremos na próxima semana, Vianey? Preciso achar uma boa desculpa para abandonar a casa dos meus pais sem levantar suspeitas - disse desesperada.

- Não se preocupe com isso - comentou aproximando-se dela para lhe dar um beijo no cabelo. - Tudo está controlado.

- De verdade? - Duvidou ao mesmo tempo que a abraçava.

- Confia em mim.

Devia supor, depois de tantos anos conhecendo Vianey, que quando disse que tomaria algo, seria uma bandeja inteira de mantimentos, com vinho incluído. Mas estava tão faminta que não replicou. Depois de ficar tranquila, porque sua convidada não desfaleceria no meio do trajeto, acompanhou-a até a carruagem que a conduziria a sua casa.

- Espero que passe uma boa tarde - comentou com tom misterioso.

April esteve a ponto de lhe perguntar a que vinha aquela forma de falar quando Vianey lhe fechou a porta no nariz. Ofuscada, reclinou-se no assento e tentou relaxar. Não podia aparecer em sua casa como alma que leva o diabo. Precisava achar certa paz e conseguir ser a mulher que saiu na tarde anterior, mas já não o era. Tudo tinha mudado. Já não sentia dor, nem aflição, nem sequer podia achar uma fresta de humilhação em sua alma. Se algo havia em seu interior era calma e tranquilidade.

Ao recordar como o senhor Dark bebeu de seu sexo, elevou-a da cama, penetrou-a de pé empurrando-a contra a parede, uma estranha comichão no estômago a sacudiu. Por que se sentia igual a uma menina com um vestido novo? Se parasse a carruagem e saísse ao exterior, faria o mesmo que sua mãe quando a informou da atuação incorreta do inspetor: dar palminhas e saltinhos. «Porque cumpriu sua fantasia, aquela que imaginou desde que o inspetor a insinuou naquele dia», refletiu. De repente, ao lembrar do senhor O´Brian toda aquela felicidade se desvaneceu.

Não o desvendaria jamais e tentaria apagá-lo de sua mente com prontidão, mas por mais que Vianey lhe tivesse indicado que o senhor Dark não podia assemelhar-se a ninguém, ela sim os encontrava parecido. Eram dois homens tão iguais que, por uns instantes, acreditou estar junto ao inspetor. Embora houvesse uma grande diferença entre eles: o senhor Dark não fazia nada que ela não desejasse, em troca o senhor O´Brian fazia e dizia tudo o que gostava sem lhe pedir opinião. «Descarado!», exclamou em sua cabeça. Mas de repente a imagem dele manchado de sangue enfrentando daquela forma o criminoso, se colocou à frente daquele ódio que tinha aparecido.

A dor e a tristeza que sentiu ao vê-lo ferido a alteraram tanto que só ansiava ler o jornal para averiguar se falavam sobre o incidente do afamado inspetor. Entretanto, devia admitir que nesta ocasião contemplaria a notícia somente por interesse posto que, tendo o senhor Dark, tudo aquilo que tinha sentido no passado pelo policial devia desaparecer.

Não tinha se dado conta de que tinha fechado os olhos até que o cocheiro abriu a porta.

- Senhora Campbell, chegamos - disse com voz suave.

- Obrigada - respondeu. Espreguiçou-se com rapidez, pegou seu vestido e desceu com tranquilidade.

Como devia assumir sua nova etapa? Que comportamento devia adotar depois de passar pelas mãos do senhor Dark? April estava tão absorta na próxima conversação que teria com ele que não percebeu a presença no jardim de uma carruagem com um símbolo um tanto especial...

- Boa tarde, senhora Campbell - recebeu-a Larson com um olhar um tanto misterioso e preocupado. - Passou bem a noite? Lady Swatton a tratou como merece?

- Sim, Larson, tratou-me muito bem. Obrigada por seu interesse - expôs enquanto lhe oferecia o casaco e as luvas. - Onde estão meus pais? - Perguntou ao mesmo tempo que dirigia o olhar para o corredor à sua esquerda.

- Encontram-se no salão de dia - respondeu.

- Por quê? - Disse elevando as sobrancelhas.

- Porque têm uma visita - respondeu.

- De quem se trata? - Insistiu.

- Veja você mesma - disse antes de virar-se para o corredor direito.

April esteve a ponto de lhe gritar a que vinha tanto mistério, mas decidiu não começar sua nova vida vociferando ao homem mais fiel do mundo. Se tinha adotado essa compostura só era por um motivo, o tinha ordenado seu pai. Enquanto se dirigia para o salão considerou umas mil razões possíveis pelas quais Larson não lhe tinha respondido. Desde menina, quando seu pai tinha a intenção de castigá-la, sussurrava-lhe ao ouvido que se escondesse até que o senhor relaxasse e, como era lógico, seguia seus conselhos ao pé da letra. Mas desta vez era diferente... zangada por não saber quem seria a pessoa que visitava a família àquelas horas, aproximou os nódulos à porta e tocou devagar.

- Adiante - escutou seu pai dizer.

Respirou fundo e, desenhando um enorme sorriso, entrou. Mas esse sorriso desapareceu de maneira fulminante quando descobriu quem acompanhava seus adorados pais.

- Boa tarde, senhora Campbell - disse Michael sem mover-se do lugar onde permanecia.

- Pai, mãe, senhor O´Brian - saudou elevando o queixo e mostrando aquela pose aristocrática que tanto odiava.

- Minha filha! - Exclamou Florence levantando-se com rapidez do assento para dirigir-se a ela. - Como se encontra?

- Bem - respondeu um tanto confusa. - Por que o pergunta? - Perguntou enquanto aceitava o beijo de sua mãe na bochecha.

- O inspetor nos informou que ontem presenciou uma horrível situação em frente à Scotland Yard - explicou tremente. - E, é óbvio, abandonou durante umas horas seu incrível e árduo trabalho na delegacia de polícia para interessar-se por seu bem-estar.

- Como te ocorreu essa tolice, April Campbell Fodernet? - Gritou Norman fulminando-a com o olhar.

Mau... que seu pai a chamasse incluindo o sobrenome de solteira de sua mãe lhe indicava que estava muito, mas muito zangado.

- Como descobriu? - Perguntou ao inspetor que tinha desenhado um leve sorriso em seu rosto ao ver a atuação de seu pai.

- Meus agentes me informaram que sua carruagem se encontrava na zona naquele momento. Também me explicaram que se atreveu a descer dela e que, graças à intervenção de seu cocheiro, você retornou ao interior - explicou de maneira firme.

Seus olhos se cravaram em April como uma flecha lançada de um arco e, ao vê-la tão formosa notou de maneira inapropriada como voltava a excitar-se. As lembranças da noite, de seus ofegos, de seu calor, do escorregadia que se achou ante ele passavam por sua mente sem poder fazê-los parar. Como seria imaginar uma vida sem ela? Como tinha sido capaz de afastá-la de seu lado? Talvez se naquela noite ele a tivesse posto em uma situação comprometedora, teriam permanecido juntos desde aquele momento. Entretanto, como não podia fazer com que o tempo retrocedesse, tinha chegado até ali para cumprir seu juramento: cortejá-la.

- Adverti-te que não o fizesse... - murmurou Florence lhe agarrando as mãos. - Esse lugar não é apropriado para mulheres como nós - acrescentou.

- Mulheres como nós? - Soltou April virando devagar o pescoço para sua mãe. - Acaso somos diferentes das demais? - Resmungou.

- Por que te ocorreu aparecer ali? O que pretendia fazer? - Exclamava seu pai intensificando a cor de suas bochechas. - Não pode pensar com claridade?

- Sempre pensei com muita claridade - disse com ironia. Olhou ao senhor O´Brian como se dessa maneira pudesse fazê-lo desaparecer de sua casa. Mas ele, em vez de sentir-se culpado pela cena que presenciava, continuava sorrindo e o brilho de seus olhos declarava que se divertia. Altiva, mostrando uma integridade surrealista, caminhou para onde se encontrava aquela grande figura masculina. Não parou de andar até que se encontrou a menos de dois palmos dele, elevou o olhar, franziu o cenho e lhe perguntou com aspereza: - Por que demônios veio aqui?

- April! - Chamou-lhe a atenção Norman caminhando para eles. Mas Michael estendeu sua mão direita para o Campbell para o fazer parar.

- Depois de saber que tinha presenciado um momento perigoso, queria averiguar se se encontrava bem - apontou sereno.

- Só presenciei um louco enfrentando outro e, para minha satisfação, um resultou ferido - disse mordaz. - Se encontra bem, senhor O´Brian? - Soltou desenhando um grande sorriso.

- Foi ferido? - Perguntou Florence colocando sua mão esquerda na boca.

- Só foi um leve arranhão - respondeu Michael sem afastar seus olhos de April.

- Não pareceu que fosse um simples arranhão - prosseguiu com sarcasmo. - Pude apreciar como sua camisa se manchava de sangue.

- Como indiquei... - manifestou O´Brian com firmeza - foi um mísero toque que me manteve em repouso durante a noite passada. Mas, como compreenderá, não pôde ser tão grave se vim até a sua casa para lhe perguntar, em pessoa, a razão daquela inesperada visita.

- Queria lhe deixar claro certos conceitos - esclareceu April notando como seu coração pulsava com força e como seu corpo começava a sentir leves tremores.

Por mais que Vianey lhe explicasse que os homens terminavam por usar o mesmo perfume e que cheiravam de maneira semelhante, a ela não o parecia porque, se seu nariz não a enganava, a pessoa que tinha ao seu lado, que a olhava com aqueles frios olhos azulados, desprendia um aroma muito parecido ao do senhor Dark. E isso não era bom...

- Certos conceitos? - Perguntou levantando uma de suas sobrancelhas escuras.

- Podem nos deixar sozinhos? - Perguntou April aos seus pais sem olhá-los. - O senhor O´Brian e eu devemos manter uma conversação privada.

- Não acredito que... - começou a dizer Florence.

- É claro! - Respondeu Norman dirigindo-se para sua esposa.

- Não deveríamos deixá-los aqui sem nós - comentou enquanto seu marido lhe agarrava as mãos e a conduzia para a saída.

- Não lhe acontecerá nada mau, querida. Um homem como ele jamais pretenderá destroçar a reputação de nossa filha, não é, senhor O´Brian? - Perguntou sem sequer olhá-lo.

- Em efeito - sentenciou Michael, que lutava por controlar sua respiração, sua vontade de esticar as mãos para ela para abraçá-la e reconfortá-la como devia ter feito antes que partisse de seu lado e que, por culpa da maldita ferida, não pôde.

Nenhum dos dois falou até que a porta se fechou. Nesse instante, ao ver-se desprotegida de seus pais, April jogou uns passos para trás, afastando-se do homem que, por sua atitude, começava a temer.

- Acovarda-se? - Zombou Michael ao vê-la afastar-se.

- Jamais me acovardei de nada nem de ninguém - declarou apertando os dentes. - Só acredito que não é apropriado que mantenhamos uma inadequada proximidade sem a presença dos meus pais. O serviço poderia falar coisas errôneas - explicou.

- Que conceitos queria me esclarecer? - Perguntou caminhando para ela, evitando a razão pela qual se distanciava.

- Em primeiro lugar, preciso lhe deixar claro que eu não gosto que me assediem - comentou jogando outro passo para trás.

- Acredita que a persigo? - Solicitou elevando brandamente o lábio superior.

- O que opinaria você do comportamento que tem para comigo, se nem sequer respeita a razão que acabo de lhe indicar para manter-se afastado? - Disse sem mal respirar.

- Tenho um enorme defeito, senhora Campbell - alegou.

- Só um? - Soltou com um resmungo.

Michael esboçou uma enorme gargalhada depois das palavras de April. Quanto tempo fazia que não ria com tanta vontade? Nem se lembrava...

- Dentre as tantas imperfeições que você pode imaginar que ostento, - prosseguiu sem apagar o sorriso de seu rosto - a principal é que eu gosto de escutar as conversações interessantes a pouca distância, desse modo nada ficará esquecido.

- E se elevar a voz? Também poderia ouvir minhas declarações dessa forma - explicou satírica.

- Uma dama não deve realizar esse tipo de estupidezes - continuou avançando para ela. Se seguisse caminhando para trás April terminaria pegando as costas à porta, evitando assim o acesso de qualquer pessoa que pretendesse os interromper. Ante essa imagem, ela sem escapatória, ele colocando suas grandes mãos sobre a firme folha de madeira, sua boca tocando a suave pele com seu fôlego, o aroma dela ante um momento tão inquieto, o roce de ambos os corpos... Michael deixou de respirar. Não, não era apropriado ter aquele tipo de pensamentos... ali. - Por que acredita que a persigo, senhora Campbell?

- Na festa me prometeu que não falaria com os cavalheiros que se dirigiram a mim denominando estupor ao acontecido com meu falecido marido - disse com voz entrecortada

- Fiz. Não falei com eles na festa - manifestou solene.

- Mas... - tentou dizer April enquanto se colocava atrás da grande mesa que havia no salão.

«Pensa que isso a protegerá de mim? Ah!».

- O que fiz depois da dita cerimônia, só concerne a mim, não crê? Não deve esquecer que sou um agente da lei e que devo cumprir com minhas obrigações - persistiu rodeando o obstáculo que ela tinha colocado entre ambos.

- Então... decidiu falar com o senhor Reform para que o ajudasse - assinalou ao mesmo tempo que abria os olhos como pratos.

- O senhor Reform foi à Scotland Yard no dia seguinte para denunciar certos cavalheiros por dívida. Para minha surpresa, eram os mesmos que você enumerou - apontou zombador.

- É claro... e como tem que cumprir a lei, manteve-os na prisão durante duas noites - alegou com sarcasmo.

- Precisava os interrogar – esclareceu. - Não sei se você é consciente de como se comporta a aristocracia, mas lhe indicarei que todos e cada um deles pensam que estão acima da lei e que podem utilizá-la ao seu prazer.

- Claro... e para isso chegou você, para lhes recordar que não é assim... - expôs em voz baixa. O inspetor a tinha alcançado, estava tão só a uns palmos dela. Virou-se e o encarou. Não correria mais, não fugiria daquele homem, embora este lhe causasse uma terrível perturbação.

- Que mais? - Perguntou Michael cravando seus olhos naqueles lábios que não tinha podido beijar na noite passada. Naquele nariz que movia seus alvéolos como as asas de uma mariposa, naqueles olhos que brilhavam com tanta intensidade que podiam iluminar qualquer rua de Whitechapel em uma noite escura.

- Não quero que me tire para dançar, não quero que me fale com o descaramento com que se dirigiu a mim até agora, não quero que me toque, que me persiga, que me deseje... - enumerou sem respirar.

Não foi consciente de suas últimas palavras até que observou como as sobrancelhas do inspetor se curvavam. Tinha-o dito sem pensar, sem intenção. Como lhe tinha ocorrido tal coisa? Como tinha saído de sua boca que não a desejasse? Como sua mente tinha dado por afiançado algo tão ilógico? «Porque, embora ontem tivera uma magnífica experiência com o senhor Dark, vê-lo de novo fez com que tudo o que pensou sobre ele desaparecesse e, indubitavelmente, ansiava que ele possuísse os mesmos sentimentos. Deseja-o, April? Deseja ao homem que está em frente a si ou ao que teve a noite passada? Pense... pense bem no que desejava enquanto aquele desconhecido te dominava».

- Não quer que lhe peça uma dança? Não quer que lhe fale com descaramento, embora eu acredito que não seja descaramento e sim sinceridade? Quer que não perceba sua presença quando ambos nos achemos em um mesmo lugar? Que não toque com meus lábios sua mão ao saudá-la? Não quer que cuide de você quando se encontrar em um apuro? E... - tomou ar, estendeu sua mão para o rosto de April, aquele que se ruborizou ante sua exposição e lhe acariciou a bochecha direita. - Que reprima esse desejo que sinto cada vez que a tenho ao meu lado? Isso é o que quer, April?

Michael observou como o peito dela subia e baixava com rapidez. Estava muito inquieta, mas não podia entender a razão. Seria por ele ou pelo senhor Dark?

- Isso mesmo, senhor O´Brian - disse em voz baixa.

O toque daqueles dedos em sua pele queimava a zona que tocavam. Esteve a ponto de fechar os olhos e intensificar a sensação daquela pequena carícia. Entretanto, devia manter-se firme. Tinha decidido renunciar ao inspetor, esquecê-lo, afastá-lo de seu lado posto que só a utilizava para averiguar o que suspeitava. Mas ao tê-lo tão perto acariciando-a com tanta suavidade a fez esquecer tudo aquilo que tinha pensado.

- O que deseja que eu faça a partir de agora, senhora Campbell? - Perguntou aproximando, inadequadamente, seus lábios dos dela.

- Que... não... que... se... - não podia falar, não era capaz de lhe responder.

O que desejava? Por que sua mente congelou, incapaz de pensar em algo sensato? Zangada, virou-se para sua direita tentando fugir daquela perturbação emocional e descaradamente erótica que começava a percorrer seu corpo. Mas não conseguiu escapar, a grande mão do inspetor agarrou seu antebraço e a parou. Olhou para aquela zona de seu corpo que era tocada com a palma nua, logo, com uma lentidão agonizante, levantou seus olhos para ele. Quase se ajoelhou ao contemplar aquele rosto, aqueles olhos, aquela mandíbula apertada. Tentou dizer algo, embora não lhe saísse nada pela boca salvo ar...

- A tirarei para dançar cada vez que a veja e afastarei com brutalidade a quem ousar fazê-lo antes que eu. Seguirei lhe falando com descaramento, porque só assim saberá o que eu penso em cada momento. Não evitarei saudá-la quando se encontrar no mesmo lugar, e mais, a perseguirei a qualquer zona a que queira retirar-se. Meus lábios tocarão sua mão cada vez que a encontre e não tentarei fazer desaparecer esse desejo que sinto por você até que, em um desses loucos enfrentamentos como o que presenciou ontem, deixe de respirar - declarou solene.

- É uma ameaça, senhor O´Brian? - Perguntou notando o coração na garganta, pressionando em cada pulsado de sua traqueia a impedindo de respirar. Como tinha pensado que os sentimentos que tinham nascido por ele se esfumariam sob as mãos do senhor Dark?

- É uma declaração de intenções, senhora Campbell - afirmou antes de beijá-la.

Não podia acreditar no que estava acontecendo!! April foi incapaz de fechar seus olhos quando os lábios do inspetor impactaram sobre os seus, nem quando as grandes mãos deste se aferraram à sua cintura, apertando seu abdômen ao dele. Só o fez ao notar como a língua masculina abria caminho através de seus lábios para entrar em seu interior. E foi sua perdição... sabia. Tinha a certeza de que uma vez que fechasse os olhos tudo ao seu redor desapareceria. Esqueceria quem era e quem desejava ser. Esqueceria a ira que sentia por aquele homem, a raiva que lhe causavam suas palavras, seus atos descarados, porque no fundo sabia que um beijo daqueles lábios masculinos a conduziria ao próprio céu.

Não houve carinho, nem ternura, só posse, erotismo e luxúria. Até notou como seus mamilos recuperavam a dureza e seu sexo despertava mesmo havendo se satisfeito na noite anterior. Confusa, embaraçada e sem mal poder retomar a consciência, April não foi capaz de abrir os olhos nem quando ele se distanciou. Sua mente a tinha transportado ao dormitório do Clube encontrando-se frente ao inspetor. Sim, o senhor Dark tinha desaparecido para sempre e em seu lugar permanecia O´Brian, o homem ao qual imaginou, o homem que sentiu, o homem que a tomou com tanta determinação que poderia tê-la partida em duas. Era consciente de que tinha realizado uma fantasia, mas não com aquele desconhecido e sim com quem a descreveu.

- Sou incapaz de me separar de ti, April Campbell - declarou enquanto recuperava o fôlego.

Tinha beijado a muitas mulheres, muitas, mas nunca imaginou que tocar os lábios da única que sua mente projetava de noite e com a primeira que despertava cada manhã seria tão formoso. Se tomá-la, beber dela, ou acariciá-la no Clube lhe provocou insônia, saborear sua boca havia o tornado um viciado.

- Não deve me dizer essas coisas, senhor O´Brian - disse ruborizando-se, cravou o olhar no chão e deu vários passos para trás.

- Não pretendo que sinta o mesmo. Só quero uma oportunidade para conhecê-la e que você me conheça - disse com suavidade. - Como apreciei até o momento, nenhum homem se interessou em cortejá-la, - soltou à queima-roupa - e eu gostaria de ter uma oportunidade.

E toda aquela determinação que tinha tomado depois de ser beijada voltou a desaparecer...

- Como disse? - Perguntou abrindo os olhos como pratos, arqueando as sobrancelhas e mudando aquela tonalidade de seu rosto para um vermelho mais intenso, mas não por vergonha ou embaraço e sim por ira.

- Observei-a, April - continuou com voz serena.

Reconhecia que não era uma boa estratégia para averiguar se lhe mentiria no futuro, mas foi a primeira que lhe passou pela cabeça. Precisava confirmar que tanto no presente como no futuro não haveria segredos entre eles e embora no Clube lhe revelasse sobre o autor de sua fantasia, Michael era consciente de que não seria o mesmo falar com uma pessoa que escondia seu rosto sob uma máscara a um que não a usava.

- Desde que enviuvou estive investigando-a - revelou.

- E? - Perguntou zangada.

- E nenhum homem teve a intenção de aproximar-se de maneira incorreta - manifestou lhe pedindo perdão em sua mente. Não queria feri-la, não queria humilhá-la, só precisava saber que passo seguiria depois da conversação. falaria do senhor Dark? Gritaria que estava com outro homem? Rezava para que assim fosse porque, do contrário, seu coração se partiria em mil pedaços.

- Nenhum homem teve a intenção de aproximar-se de maneira incorreta... - repetiu em voz baixa como se estivesse refletindo. - Salvo você, é claro.

- Mas isso não significa que...

- Pois se equivoca, senhor O´Brian! - Soltou desenhando um enorme sorriso. - Não me observou o suficiente - comentou altiva, orgulhosa e muito, mas muito irada.

- Por quê? - Insistiu Michael notando como seu coração pulsava freneticamente e seu peito se alargava de felicidade.

- Porque há um homem sim. Um que não é equiparável com ninguém que conheço até agora - expôs feliz.

- Mentira! - Desafiou-a.

- Eu não minto - resmungou. Elevou seu dedo indicador, dirigiu-o para o inspetor e, franzindo o cenho, prosseguiu: - Acaso pensa que é o único homem da cidade que pode mostrar interesse por mim?

- Não - respondeu com rapidez.

- Então... por que acredita que minto? - Solicitou sem baixar aquele dedo nem acalmar sua raiva.

- Porque enquanto eu a olhava ninguém se... - tentou repetir.

- Sabe o que fiz ontem a noite, senhor O´Brian? - Perguntou entrecerrando os olhos.

- Como já lhe expliquei, estive descansando por recomendação do doutor Cox. - Poderia beijá-la de novo? Poderia esticar sua mão, pegar aquele dedo que desejava morder? Não, agora não. Naquele momento April o esbofetearia e o teria merecido por ser tolo.

- Pois, como acaba de descobrir, você não está sempre me vigiando - expôs feliz.

- Há outro homem? - Gritou com aparente fúria. - Encontra-se com outro cavalheiro?

- Surpreendi-o? Sim, parece que deixei sem palavras o famoso inspetor O´Brian - comentou como se estivesse apresentando uma peça de teatro. - Me respeitará agora? - Disse zombadora e satisfeita.

- Sempre a respeitei - revelou dando um passo para ela.

- Sabe o que significa respeito, senhor O´Brian? - Perguntou levantando o rosto para olhá-lo de forma desafiante.

- Claro que sei! - Exclamou com aparente indignação.

- Pois eu não estou tão segura. Se soubesse pediria permissão para me tocar, se por acaso não o desejo. Perguntaria se eu necessito ou preciso de algo, sem ter que me oferecer isso sem desejá-lo. Ou...

Michael não lhe permitiu continuar. Em um ato de paixão, euforia e frenesi, avançou para ela e voltou a beijá-la. Entretanto, nesta ocasião ela não se deixou levar por aquele beijo. Muito ao seu pesar, agora lhe tocava o bofetão.

- Não tente me beijar de novo - declarou April zangada. - Você não tem nenhuma possibilidade comigo.

- Sou um homem muito teimoso, senhora Campbell e sempre consigo o que quero.

- Pois não me terá! - Gritou angustiada.

- Já o veremos... - murmurou afastando-se dela. - Boa tarde, April. Nos encontraremos antes do que imagina.

- Não, se o evitar - desafiou.

- Tente... - indicou com um sorriso de orelha a orelha e com um olhar tão malicioso que deixou April congelada.

E sem acrescentar nada mais, Michael saiu do salão com uma satisfação tão grande que o traje ficou muito pequeno. «Muito bem, sim, senhor! – Meditou. - Assim é como se começa um cortejo. Espero que na próxima vez que a veja tenha em sua mão um escudo porque muito me temo que te lançará à cabeça tudo aquilo que tenha ao seu alcance». Não importaria receber um ou outro golpe porque o merecia. Foi bastante cruel com April, mas no futuro recompensaria todo o mal que lhe tinha causado.


XII


Não podia dar crédito ao que tinha vivido. Em sua própria casa! Como tinha se atrevido a assediá-la e beijá-la daquela forma na casa de seus pais? Não respeitava nada? Provavelmente não sabia o que significava honradez, e consideração. Não, não tinha nem a mais remota ideia do que queria dizer a palavra respeito. O inspetor atuava como lhe dava vontade sem pensar se estava bem ou mal. April apertou as mãos e franziu o cenho. Pelo menos tinha dado um golpe em seu enorme ego. Como tinha sido tão miserável de insinuar que ninguém a cortejava?

- Presunçoso! - Exclamou à viva voz enquanto batia no chão com seu pé direito várias vezes.

Mas o tinha posto em seu lugar ao lhe anunciar que havia outro homem. Sim, aqueles olhos firmes e duros mostraram assombro quando lhe contou que não era o único que tinha certas pretensões com ela. Embora não fosse de todo certo... o senhor Dark só a queria para a próxima quarta-feira. Não lhe explicou se desejava vê-la com mais frequência, nem sequer insinuou se podiam se ver fora do Clube. «As relações que se oferecem aí dentro não se mantêm fora - a advertiu Vianey. - Cada um possui uma vida e, como aprenderá com o passar do tempo, todo mundo se respeita uma vez que atravessa a porta». Um malicioso sorriso se desenhou em seu rosto ao imaginar o inspetor naquele lugar. Faria o que ele desejasse e não respeitaria ninguém. De repente soltou uma gargalhada. Todos tremeriam ao vê-lo aparecer e, se não errava, nem ocultaria o rosto com uma das máscaras. Ele era assim e nada nem ninguém o faria mudar.


- Deixou-lhe claro suas normas? - Perguntou Norman ao entrar.

- Acredita que esse homem é capaz de aceitar aquilo que lhe pede? - Respondeu sentando-se de repente sobre a poltrona. O vestido se agitou tanto nesse movimento que as chamas dançaram no interior da chaminé.

- Já temia... - murmurou Campbell enquanto se aproximava dela.

- Mas como se despediu de forma tão correta e educada pensei que a tinha escutado com atenção - repôs Florence assombrada.

- Esse homem não escuta ninguém, mãe. Tem os ouvidos completamente fechados - resmungou.

- Então... por que demorou tanto em partir? - Insistiu Norman cravando seus olhos em April.

- Porque queria me deixar claras suas intenções - sussurrou ao mesmo tempo que dirigia o olhar para o fogo para que nenhum dos dois descobrisse o rubor de suas face.

- Tornou a insinuar que sou o assassino? - Berrou Norman.

- Não, nem mencionamos esse tema... - falou respirando fundo.

- Que intenções ele tem, April? - Perguntou sua mãe colocando uma das mãos sobre o ombro de sua filha.

- Quer me cortejar... - comentou com um suspiro.

- A cortejar? - Soltou Campbell entusiasmado e surpreso. - Perfeito! Terá lhe dito que sim, não é? Esse homem é a melhor alternativa que pode ter depois do fracassado visconde - manifestou alegre.

- A melhor alternativa? - Perguntou April dirigindo um olhar assassino ao seu pai. - Como ousa dizer tal tolice? - Entrecerrou os olhos e franziu o cenho.

- É um bom homem... - interveio Florence ao mesmo tempo que ocupava o assento contíguo ao dela.

- É um monstro! - Clamou April. - Não foi capaz de me respeitar nem em minha própria casa!

- Agora está zangada e não sabe o que diz... - respondeu Florence. - É um cavalheiro e se despediu como...

- Beijou-me! Duas vezes, mãe! Isso significa para você respeito? - Berrou.

- Isso significa que tem interesse por você, só isso - intercedeu Norman que não podia ocultar sua felicidade. - Além disso, não deveria se escandalizar por um par de beijos. Quantos pretendentes a beijaram às escondidas, pequena?

- Pai! - Exclamou levantando do assento.

- Acredita que eu não sabia? Acaso pensou que eu não era consciente do que acontecia quando saía ao balcão? Sempre te vigiei, April Campbell, e embora mais de uma vez quis dar um murro a quem ousava te beijar, mantive-me oculto para que você mesma escolhesse a pessoa com quem desejava ficar. Mas se soubesse como era Eric... o teria matado antes que te tocasse!

- Quer parar de falar dessa forma? Não se dá conta de que só afiança as suspeitas daquele teimoso? - Gritou mal-humorada.

- Eu não fiz nada. Só esclareço a vocês que devia ter feito.

- Não sente nada por ele, April? Não tem nem um pequeno afeto pelo inspetor? - Perguntou Florence que até aquele momento tinha seu olhar nas chamas e refletia sobre a terrível irritação de sua filha.

- Não! - Respondeu com rapidez. - Como pode pensar uma coisa assim?

- Vi como atua quando ele está perto - indicou.

- E... o que observou? - Perguntou April colocando suas mãos na cintura.

- Que a deixa sem fôlego, que é incapaz de atuar de maneira correta, que sua mente se distorce e que se ruboriza com facilidade - declarou esboçando um sorriso amável.

- E esta é a mulher por quem estou loucamente apaixonado! - Exclamou Norman aproximando-se de sua esposa, abaixando a cabeça e a beijando na bochecha. - Considere suas alternativas, minha filha. Ele é o único que não viu em ti uma mulher humilhada pela aberração que fez seu falecido marido. O inspetor te tirou a dançar...

- Obrigou-me! - Defendeu-se ruborizando-se pela ira.

- Não. Perguntou se queria dançar e, se a memória não me falha, respondeu-lhe que sim. O único que o senhor O´Brian pretendeu foi cumprir seu desejo - prosseguiu solene.

- Embora tivesse negado, ele me teria tirado a dançar, então a única coisa que fiz foi evitar um espetáculo - justificou-se.

- De verdade pensa que ele teria te forçado em um lugar onde havia mais de cinquenta convidados? - Florence arqueou as sobrancelhas loiras, olhou sua filha aos olhos e esperou a resposta. Vendo que não ia rebater seu argumento, prosseguiu: - Nenhum de nós a obrigaremos a fazer algo que não deseje, já demonstramos isso quando decidiu se casar com Eric. A única coisa que insistiremos, tanto seu pai quanto eu, é que procure, de uma vez por todas, sua felicidade. Não pode ficar aqui o resto de sua vida, querida. Irá consumindo-se pouco a pouco e chegará o dia no qual odiará a decisão que tomou no passado. A pena será que não poderá voltar a trás.

- Sou feliz agora... - disse em voz baixa.

- E amanhã? - Apontou Norman aproximando-se de sua filha. - Também o será?

- Ele não é o homem que estou procurando... - disse com suavidade.

- Então, a quem procura? - Perguntou Florence de novo.

- Não sei, mãe. Estou confusa.

- Tão mal se comporta o inspetor quando ninguém os vigia? - Perguntou Norman duvidoso.

- Sua atitude é semelhante a um dono, pai. Pensa que lhe pertenço, que nasci para ele - afirmou com tristeza.

- Isso mesmo pensei eu quando descobri sua mãe, April. E, como pode apreciar, não errei em minhas conjecturas - indicou Norman sereno e firme. - Jamais me arrependerei de havê-la perseguido, de ser insistente quando ela recusava minha presença nem tampouco lamentei beijá-la, mesmo sabendo que poderia negar-se.

- Também lhe roubou dois beijos? - Perguntou April à sua mãe arqueando as sobrancelhas.

- Roubou-me muito mais que dois beijos, querida - respondeu ruborizando-se.

- Pelo amor de Deus! - Exclamou April morta de vergonha. - Como foram capazes de fazer esse tipo de coisas?

- Como acredita que a engendramos, April Campbell? - Soltou seu pai divertido.

- Não continuem falando disso, por favor - comentou afastando-se deles.

Parecia uma fúria e o melhor para se acalmar era encerrar-se em seu quarto e tomar um banho de água fervendo. Mas justo quando alcançou a porta, deu a volta para observá-los. Abraçaram-se, inclusive seu pai ousou lhe beijar nos lábios diante dela. Amavam-se, respeitavam-se, adoravam-se. Não era isso o que procurava em um homem? Não, não lhe bastava esse tipo de afeto, ela ansiava mais e, por agora, tinha ao senhor Dark para consolá-la e fazer realidade suas fantasias. Embora a próxima vez seria consciente de quem a dominava e não se deixaria levar por alucinações indevidas.

- Começarei a procurar um marido - disse enfim. - Mas não tenham suas miras no inspetor. Esse homem não voltará a me assediar de novo. O evitarei como se fosse a peste - declarou com firmeza.

- Só queremos que seja feliz - comentou Florence.

- Serei, mas não com ele - sentenciou antes de sair do salão.

O casal Campbell permaneceu em silêncio até que escutou como April subia as escadas. Pela forma das pisadas não tiveram a menor dúvida de que estava zangada, muito zangada.

- Continua pensando que é o homem adequado para nossa filha? - Perguntou Florence enquanto lhe arrumava a gravata.

- Não há no mundo um homem melhor para April que o inspetor - disse com determinação.

- Mas ela não tem nenhum interesse por ele - comentou receosa. - Possivelmente se engana desta vez...

- Recorda como recusava minha presença, dos meus olhares e inclusive como mantinha uma distância exagerada de mim? - Norman estendeu suas mãos para abraçá-la de novo.

- Sim - respondeu Florence elevando o rosto.

- O que fez quando, naquela festa, não te dei atenção? Quando dancei com Vianey em vez de contigo?

- Escapei da minha casa e me apresentei na sua - disse com tom suspeito.

- E? - Insistiu Norman aproximando seus lábios dos dela.

- E subi ao seu quarto - recordou.

- Arrepende-se do que fez, senhora Campbell?

- Repetiria cada dia pelo resto da minha vida, senhor Campbell - respondeu antes que a boca de seu marido encontrasse a sua com a mesma paixão com a qual a recebeu na noite em que Florence acessou seu quarto.


Procurar marido! Procurar marido! Como tinha sido tão parva de dizer aos seus pais que procuraria um marido? Ela não desejava prender-se outra vez a um homem! E agora menos ainda! April se atirou sobre a cama, ocultou seu rosto no travesseiro e gritou com força. A culpa de toda aquela loucura era do inspetor. Ele a deixava tão louca que não sabia o que dizia. Por que não se dava por vencido? Por que não a deixava em paz?

«A tirarei para dançar cada vez que a veja e afastarei com brutalidade a quem ousar fazê-lo antes de mim. Seguirei lhe falando com descaramento, porque só assim saberá o que penso em cada momento. Não evitarei saudá-la quando se encontrar no mesmo lugar, e mais, a perseguirei a qualquer lugar ao qual pensar em se retirar. Meus lábios tocarão sua mão cada vez que a encontre e não tentarei fazer desaparecer esse desejo que sinto por você até que, em um desses loucos enfrentamentos como o que presenciou ontem, deixe de respirar», recordou as palavras do inspetor.

Declaração de intenções o tinha denominado ele, mas soou mesmo a uma ameaça. Como podia referir-se a ela com tanto descaramento? Muito devagar levantou seu rosto, tomou ar e se sentou sobre a cama. Precisava compreender a atitude do inspetor. Recordou sua maneira de caminhar para ela e como eliminou de seu caminho todos os obstáculos que colocou para que não se aproximasse. Por que atuou assim em frente a ele? Por que não foi capaz de ficar quieta em um lugar e encarar o inspetor? «Medo... - sussurrou uma voz em sua cabeça. - Tem medo, mas não dele e sim de você». Podia ser certo? Fugiu dele porque no fundo sentia medo de aceitar seus verdadeiros sentimentos?

April levou as mãos ao rosto e o esfregou com frustração. Nem ela mesma encontrava a resposta que necessitava. Era certo que ficava desconfortável quando estava ao seu lado, que não era capaz de pensar com sensatez, que até seu corpo tremia quando ele a tocava. Mas... isso era suficiente para afirmar algo tão importante? Começou a desesperar, a encontrar-se à beira de um ataque de nervos. Não era lógico tudo o que lhe estava acontecendo. Aquele homem a perturbava muito e devia resolver o problema o quanto antes possível. Entretanto, em meio a todo esse caos mental estava a prazerosa sensação que sentiu quando seus lábios foram tocados por aquela gloriosa boca, como sua língua quente e úmida conquistava seu interior. O sabor, o perfume, a maneira de aferrá-la ao seu peito, como a havia tocado sem luvas... tudo isso a excitava de novo! «Pelo amor de Deus!», exclamou sacudindo o corpo. Não podia controlar-se. Não podia apagar de sua mente as emoções que tinha sentido no salão.

- Maldito bastardo! - Gritou irada. - Irá se arrepender de me provocar estas inquietações! Destruirei a sua alma, o seu coração e toda sua vida! Não voltará a ser jamais o homem que era, O´Brian. Juro!

E atrás dessa promessa, April caminhou para seu vestiário, abriu-o e jogou no chão todos os vestidos de cor negra.


XIII


Depois de partir de Shother, Michael se dirigiu para a Scotland Yard. Tinha assuntos que resolver e não podia perder mais tempo em resolvê-los. Meteu-se em seu escritório, amontoou os documentos que tinha sobre a mesa e tentou lhes prestar atenção. Mas não foi fácil fazer uma tarefa tão habitual para ele. As imagens do acontecido com April sobressaltavam sua mente, embora não o desejasse. Voltou a sentir o calor de seus lábios, o tremor de seu corpo ante a excitação que lhe causou o beijo e recordou também a atitude orgulhosa que ela mostrou ao falar sobre a existência de outro homem.

O´Brian sorriu amplamente. Merecia por tê-la posto em uma situação tão desafiadora. Como tinha se atrevido a dizer que ninguém a cortejava, que não provocava interesse? Tinha sido muito cruel, mas não se arrependia, posto que seu principal motivo era averiguar se lhe mentiria. Deste modo podia continuar sendo o inspetor que a assediava ou permanecer sob a figura do senhor Dark, que lhe oferecia aqueles desejos impuros que seu outro eu lhe indicava. Por sorte, depois daquela atuação descobriu que tanto um como o outro necessitavam de April Campbell em suas vidas. Nenhuma mulher poderia substitui-la. Não o tinha feito no passado e não o faria nunca.

Michael se reclinou no assento, cruzou os braços e rememorou a noite no Clube. Não tinha conseguido conciliar o sono nem uma só hora. Estava tão emocionado, tão feliz ao saber que ela sempre tinha pensado nele, que seu estado de vigília se estendeu até o amanhecer. Sua mente lhe oferecia a imagem dela ajoelhada sobre o almofadão, abaixando sua cabeça em sinal de respeito. A conversação, o livro, suas respirações, o sabor de seu sexo, seus seios movendo-se enquanto a tomava, seus ofegos, os dele... tal como lhe indicou Vianey, ler o livro de Úrsula a despertou daquela letargia na qual se encontrava. E ele a consolou, oferecendo-lhe a satisfação que no passado lhe disse com palavras. Alguma vez pensou que ela o recordaria? Não, nenhuma. Uma vez que fugiu daquele lugar, quis abandoná-la, mantê-la na lembrança. Entretanto, nenhum dos dois foi capaz de esquecer.

«Faz muito tempo, alguém se aproximou de mim e me falou de maneira descarada. Odiei-o com todas minhas forças e desejei esbofeteá-lo, mas justo quando elevei a mão, ele a agarrou e me descreveu uma cena que, apesar de tentar apagá-la de minha memória, sempre esteve comigo».

Sempre tinha estado com ela... e ele jamais imaginou.

Michael fechou os olhos e deixou que a sensação de prazer que sentiu não só durante a noite, mas também há apenas umas horas, retornasse. Seus lábios, seu corpo, sua necessidade, sua excitação, até a forma de respirar eram tão parecidas com as suas que não sabia como podia manter-se ali sentado e não retornar à Shother para voltar a tê-la em seus braços. Estava louco? Pois sim, e muito. Embora aquela loucura fosse própria de um homem apaixonado e ele o estava. Estava apaixonado por ela desde aquele momento, desde aquela conversação, desde que lhe agarrou a mão quando tentou esbofeteá-lo, desde que notou como o coração de April se alterava sobre a gema de seu dedo ao lhe revelar o que pretendia lhe fazer se fosse dele e, para seu prazer, ela recordava tudo...

Um grandioso sorriso se desenhou em seu rosto duro, até ele mesmo se surpreendeu de sorrir daquela maneira, mas a experiência em Shother lhe resultou tão divertida! Foi atrás dela afastando cada obstáculo que ela considerava suficiente para afastá-lo de seu lado, e quanto mais ela se afastava mais ele se aproximava. Depois, em meio àquela luta de distâncias, teve que lhe falar daquela forma tão inapropriada... se lhe tivesse dado o bofetão, o teria aceito com integridade. Embora a força que April mostrou ao lhe revelar que outro homem a desejava, que ele não era o único que se fixara nela, fez-lhe pensar que lhe doeria mais que um impacto da mão sobre seu rosto. Sem lugar a dúvidas era uma Campbell e se comportava igual ao seu pai: orgulhosa, dura e imutável.

Como podia estar tão apaixonado? Enfeitiçara-o no dia que desceu as escadas? No balcão? Ou talvez... a noite passada, quando revelou que ele tinha permanecido em sua cabeça? «O amor chegará - recordou uma conversação com a senhora Warren. - E nesse momento tudo o que foi, tudo o que desejou, se esfumará de sua mente porque só terá uma coisa em que pensar: nela». E tinha razão. Ali estava, depois de três horas, pensando em April sem poder remediá-lo. Excitando-se com as lembranças. Desejando que passasse o tempo para que chegasse enfim a ansiada quarta-feira. Entretanto, não podia ficar de braços cruzados até que retornasse com o senhor Dark. Tinha lhe prometido que a perseguiria, que insistiria em alcançá-la como O’Brian e o cumpriria à risca. Ali onde se encontrasse, ali onde fosse, daria a volta e o veria, imóvel, sorrindo de prazer.

- Como se encontra? – A pergunta do doutor Cox o afastou de seus pensamentos.

- Boa tarde, bastante bem - disse com tom firme.

- Descansou? Consegui que, pela primeira vez desde que sou médico da Scotland Yard, me escutasse? - Perguntou aproximando-se do inspetor.

- Não é fácil para mim ficar imóvel, mas lhe garanto que o tentei cada vez que tive um momento de tranquilidade - respondeu com evasivas. Sabia que olharia a ferida e que descobriria que não se fechara como ele desejava e que, é óbvio, o repreenderia como se fosse um menino por não lhe obedecer. Mas... como ia ficar estendido sobre a cama sabendo que April apareceria no Clube? Não tinham passado nem cinco minutos quando se aproximou outro dominante para reivindicá-la. Seu descontrole aumentou tanto que esteve a ponto de apertar o pescoço do indivíduo com suas próprias mãos. Mas se conteve, porque Vianey respeitou o pacto. A teria oferecido? Se ele não tivesse aparecido, a senhora Hard a teria entregado faltando à sua promessa? Talvez...

De repente, ao refletir sobre aquela possibilidade, uma imensa raiva se apropriou dele. Só de pensar que outro homem a teria tocado, que teria visto sua beleza, causou-lhe uma ira tão descomunal que, sem querer, despertou o monstro que habitava nele, causando-lhe um enorme desejo de procurá-la e de marcá-la como dele.

- Pode tirar a camisa? - Soltou Cox observando como o inspetor endurecia seu rosto. - Ainda não sou capaz de opinar se uma ferida está sarando com a roupa posta - acrescentou mordaz.

- Está perfeitamente - respondeu Michael ao mesmo tempo que se levantava da poltrona.

- É médico? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Não - comentou O´Brian cravando seus olhos nele.

- Pois então, dedique-se ao seu trabalho que eu farei o meu - declarou com um ar de aborrecimento.

Michael tirou o colete e a camisa, deixando o torso enfaixado à vista do médico. Este franziu o cenho ao ver a atadura manchada de sangue.

- Por que a senhora Warren não trocou o curativo? - Quis saber enquanto ele mesmo o fazia.

- Há coisas que minha governanta não deve conhecer e esta é uma delas - manifestou ao mesmo tempo que enrugava a testa por causa da dor.

- Como posso apreciar, - comentou Cox após observar a ferida - não descansou.

- Tinha coisas para fazer - respondeu O´Brian apertando os dentes.

- Um grande esforço, da forma como se abriu o corte de cima a baixo - prosseguiu mordaz Cox.

- Tive que me agachar em várias ocasiões - se desculpou.

- Já vejo...

Com suspeita Cox pegou a maleta, abriu-a e tirou um antisséptico. Sem avisar, verteu o líquido sobre a ferida e escutou um grito desesperado do inspetor.

- Isso acontece quando se agacha, meu querido inspetor. A ferida se abre, infecciona e não se cura - expôs sarcástico. - Deve deixar de fazê-lo durante um tempo. Com cinco dias será suficiente para que feche de maneira natural. Poderá suportar esse tempo sem agachar-se tanto? - Perguntou mordaz.

- Farei - comentou com rudeza.

Depois de lhe pôr uma atadura limpa e ouvir milhares de impropérios causados pela dor que lhe provocou o tratamento, Cox fechou sua maleta enquanto Michael se vestia de novo.

- Sei que não lhe servirá de nada meu conselho, mas tem que cuidar-se um pouco mais. Recomendo-lhe que hoje descanse. Talvez seu homem de confiança possa ocupar seu posto durante uma noite.

- Bastará uma só noite para me recuperar? - Soltou divertido.

- Por que não tenta? Possivelmente até se surpreenda de como seu corpo lhe agradece um pequeno repouso. Embora também o faria se fosse previdente e não o danificasse com tanta assiduidade.

- Era um detento agressivo. Todos os agentes o temiam - respondeu abotoando o colete.

- E você não? - Perguntou arqueando as sobrancelhas. - Do que tem medo inspetor? Se é que o tem, é claro.

- Sou um homem e como tal sempre possuo muitos temores - disse solene. - Mas até agora não tenho que alimentar uma família, coisa que quase todos os meus agentes fazem.

- Pobre da mulher que aceitar sua mão - alegou com zombaria. - Viverá inundada em um mundo de pesar e aflição.

- Não entendo por que fala sobre essas coisas - resmungou.

- Por quê? - Perguntou olhando-o fixamente. - Desde que decidi oferecer meus serviços neste lugar nenhum de seus homens foi machucado, entretanto, você teve tantos cortes, tantos golpes e feridas de bala, que posso fazer um manual específico de como curá-las.

- Exagera... - murmurou Michael sentando-se de novo.

- Se procura a morte, senhor O´Brian, não demorará para alcançá-la. Não porque ela o procure, mas sim porque você corre atrás dela.

- Todos teremos o mesmo final... - resmungou.

- Sim, mas todos desejamos que passem muitos anos antes da temida visita... e agora, se me desculpar, tenho um cadáver a atender. Boa tarde, inspetor - disse abrindo a porta.

- Boa tarde, Cox.

Não podia o reprovar nada porque dizia a verdade. Cada vez que assistia a uma detenção perigosa saía ferido. Mas como explicou ao doutor, ele não tinha nada a perder... até agora. O que seria de April se ele não velasse por ela? Não só perderia ao senhor Dark, mas a ele também. Se sentiria triste? Procuraria outro homem que a consolasse? A fúria voltou a se apropriar de seu corpo e de sua mente. Jamais pensou o que poderia supor uma má atuação, um ato inapropriado, até aquele momento. Por mais estranho que lhe parecesse, desejava manter-se a salvo, protegido de qualquer briga perigosa e isso não era bom para um homem que velava pela segurança de uma cidade. Teria que esquecer-se dela? Teria que pôr fim a algo que tinha esperado durante anos e inclusive uma vida? Não, não podia dar por terminado algo que ansiava desde que a conheceu. Ela era tudo o que desejava e, para conseguir tal propósito, começaria a cuidar-se.

- Está bem... - resmungou. - Você ganha!

Michael se levantou do assento, colocou a jaqueta e decidiu dar-se aquele merecido descanso. Entretanto, não partiria para sua casa. Seria incapaz de escutar o sermão que soltaria a senhora Warren, quando informasse que o feriram de novo. Iria ao Clube. Desejava explicar ao Reform o que tinha averiguado Borshon sobre a mulher que, vestida de homem, o depenava naquela mesa.

- Uma mulher... - murmurou reflexivo e divertido. - Está claro que nenhum homem obterá aquilo que elas conseguem com tanta facilidade.

Para ele, amar como amava April e para o senhor Reform, descobrir que uma mulher provocava as maiores perdas em uma mesa de jogo desde que abriu o clube de cavalheiros.


Sobre sua mesa tinha dois papéis importantes. O primeiro era a quantia exata do déficit que tinha desde que ela aparecera, e o segundo, a notícia da qual todo mundo falava: a detenção de vários lordes por dívida em seu clube. Isso lhe ocasionaria uma diminuição da clientela. Até aquele momento, todos os cavalheiros que iam ali assumiam que sua intimidade estava protegida, entretanto, depois daquela notícia, muitos deles não apareceriam por temor a serem descobertos.

- Maldita seja! - Exclamou levantando-se de repente.

Não devia aceitar o trato que o inspetor lhe propôs no dia seguinte após averiguar qual era o motivo pelo qual a mesa número sete declarava, ao final de cada noite, uma quebra suspeita. Mas lhe devia um favor, não só por descobrir a culpada, mas sim por não detê-la. Então não teve alternativa senão o ajudar.

Trevor levou as mãos para o cabelo e o acariciou desesperado. Jamais teria imaginado que uma mulher vestindo roupas de homem depenaria uma mesa repleta de cavalheiros sem fazer truques. Porque, para seu pesar, ela jogava com honradez, sem nenhum tipo de patranhas. Acaso haviam mulheres que utilizavam sua cabeça para algo mais que sustentar um bonito chapéu? Pois isso parecia... aquela mulher usava seu cérebro para arruinar os jogadores que se atreviam a desafiá-la.

Sorriu. Sim, embora não devesse fazê-lo, Trevor desenhou um grande sorriso em seu rosto ao pensar que cara poriam aqueles que ficavam com os bolsos vazios, quando descobrissem que uma mulher os depenava. Mas ela não era qualquer mulher... era especial e assim o pressentia.

Depois de perambular por seu escritório, dirigiu-se para da grande janela pela qual podia admirar a imagem da rua em que se situava o edifício que reformou anos atrás. Tinha anoitecido, teria passado um pouco mais das dez e, se suas suspeitas estavam certas, logo apareceria no local. Entretanto, desta vez seria diferente a todas as anteriores, porque não a deixaria partir sem mais. A seguiria. Claro que o faria! Assim que ela se levantasse do assento ele se pegaria às suas costas e averiguaria para onde se dirigia. Se fosse uma empregada de seu eterno rival, falaria com o inspetor para que tomasse as rédeas do assunto e ele deixaria de pensar nela porque, muito ao seu pesar, a ideia de saber quem era, que imagem teria ao usar um vestido, a verdadeira cor de seu cabelo e o impacto que lhe causaria escutar um tom feminino em vez do que tentava simular começavam a transtorná-lo com muita assiduidade.

- Boa noite, senhor Reform.

A conhecida voz do inspetor o fez dar a volta, entrecerrou os olhos e manteve-se em alerta. Se vinha lhe pedir outro favor, o jogaria dali a chutes.

- Boa noite, senhor O´Brian - saudou-o estendendo a mão ao mesmo tempo que se aproximava. - A que devo a honra de sua visita?

- Por recomendações do doutor Cox decidi descansar esta noite e, como não tenho muitos amigos com os quais conversar, lembrei-me de você.

- Foi ferido novo? - Perguntou enquanto lhe assinalava o assento que podia tomar.

- Nada grave, mas conforme parece, não posso me mover durante algum tempo - explicou.

- Uma taça? Embora não seja aconselhável beber quando a pessoa está ferida gravemente - disse com suspeita.

- Sirva-a até a borda - declarou desenhando um sorriso.

Trevor pegou a garrafa, aproximou a taça do inspetor e a encheu tal como desejava. Logo serviu a sua enquanto pensava que motivo teria a repentina e inesperada visita do agente.

- Descobriu quem é ela? - Soltou depois de dar o primeiro sorvo.

- Sabia que tinha uma razão para apresentar-se no clube! - Exclamou Trevor sem afastar seus olhos marrons do rosto do policial.

- Só é curiosidade, senhor Reform.

- Trevor.

- Michael – respondeu. - Como pode imaginar, levo dias pensando nessa mulher. O que a terá conduzido a vestir-se de homem e aparecer em um lugar como este? - Fez uma pequena careta sem ser consciente disso.

- Meu clube é um lugar respeitável e qualquer um estaria orgulhoso de converter-se em um afamado sócio do Reform. Entre minha clientela se encontra o duque de Rutland, o marquês de Riderland e o barão de Sheiton, sem ir mais longe.

- Se não estiver confundindo, o duque já não aparece por estes lados posto que, na última vez, sofreu graves consequências, o marquês tem categoricamente proibida a entrada por sua querida esposa e o barão está preparando seu próximo casamento - acrescentou mordaz.

- Como lhe disse, gente respeitável - manifestou enquanto se sentava.

Durante uns instantes se mantiveram calados, cada um submerso em seus pensamentos.

- Quanto perdeu desde que ela joga em seu clube? - Perguntou Michael colocando o copo sobre a mesa de mogno escuro.

- Umas mil libras aproximadamente - comentou com um suspiro.

- Mil libras? - Repetiu surpreso. - E não deseja denunciá-la?

- Não, quero averiguar quem é e por que o faz - afirmou tocando com a gema de um dedo a borda da taça. - Intriga-me saber o que esconde essa mulher - acrescentou com o olhar perdido.

- Posso lhe revelar algo, mas não muito - apontou com tranquilidade, reclinando-se no assento.

- Seguiu-a? - Perguntou com uma mescla de surpresa e raiva. Tinha lhe deixado claro que não fizesse nada, que não a perseguisse, que não se metesse em seus assuntos, mas conforme parecia, não o tinha entendido com exatidão.

- Quis descartá-la - explicou levando sua taça aos lábios.

- Descartá-la? - Voltou a repetir entrecerrando seus olhos castanhos.

- De um tempo para cá estão se produzindo certos roubos e queria eliminá-la da lista dos possíveis ladrões - explicou.

- Ela não é uma ladra! - Exclamou acalorado. - Já lhe disse que ganha sua pequena fortuna sem trapaças. Só despoja uns estúpidos que não têm cérebro. Isso não é roubar, Michael.

- Então... não quer saber quem é? - Perguntou divertido ao ver como a defendia.

- Decidi averiguá-lo por mim mesmo - disse levantando-se do assento. Dirigiu-se para a janela, esperando que ela aparecesse a qualquer momento.

- Tem um nome lindo... - provocou. - E seus pais...

- Maldito instigador! Fale de uma vez e deixe de me incomodar! - Clamou Trevor sem afastar o olhar da rua.

- Chama-se Valeria Giesler - revelou sorridente.

- Alemã? - Perguntou com surpresa.

- Seu pai sim, mas sua mãe não. Conforme descobri, sua mãe era espanhola. Ambos morreram quando chegaram a Londres e ela se encarrega dos dois irmãos pequenos.

- Uma órfã com irmãos? - Soltou assombrado.

- Sim, assim é. A pequena família vive em Brick Lane.

- Em Whitechapel? - Perguntou dirigindo o olhar para o inspetor.

Seus olhos se abriram como pratos, seu coração se congelou e notou um tremendo nó na garganta. Até que escutou a informação do inspetor, tinha considerado duas alternativas: a primeira, que era uma empregada de seu rival e a segunda, que se tratava de uma dama da sociedade que passava suas noites de solidão divertindo-se lhe arrebatando uma pequena fortuna. Mas não tinha considerado a ideia de que ela utilizasse sua perícia no jogo para levar adiante uma família. Esse detalhe, esse mísero matiz que lhe tinha indicado o inspetor, aumentou sua ânsia de averiguar mais sobre a desconhecida.

- Sim, sua pequena mentirosa é uma mulher que luta por sustentar seus irmãos em um bairro pouco recomendável - concretizou sereno. - Mas não tem que sentir lástima por ela, Trevor. Há muitas famílias nesta mesma situação.

«Mas nenhuma com a valentia de aparecer em um lugar proibido para uma mulher, vestir-se de homem e depenar em duas horas os seus adversários», pensou Reform.

- Obrigado pela informação - disse fixando seus olhos na rua. - Respondeu a certas incógnitas...

- Como quais? - Interessou-se Michael inclinando-se para diante.

- Pensava que era uma espiã do Hondherton - revelou.

- O dono do outro clube?

- Claro, quem se não ele desejaria que meu estabelecimento se visse envolvido em uma situação de tal índole? O que comentariam os jornais se se soubesse que uma mulher despoja certos lordes distintos em um clube de cavalheiros? Me arruinaria – declarou. - Seria o fim do Reform.

- Então, não fica mais alternativa do que resolver logo o assunto - comentou antes de beber de um sorvo o que tinha em sua taça. - Se não estiver equivocado, o clube é seu único meio de sustento.

- Sim, por enquanto é o único que tenho... - murmurou. De repente observou uma sombra virar a esquina. Aquele pequeno corpo, aquele casaco muito comprido para um cavalheiro e aquela forma de caminhar lhe indicaram que a enganadora retornava. - Necessita de algo mais? - Perguntou com impaciência.

- Nada mais - comentou Michael levantando-se de seu assento. - Antes de ir quero lhe agradecer pelo favor que me fez. Sei que o coloquei em uma situação difícil, mas preferi sua ajuda que procurar uma maneira inadequada para arrastar os engomados e impecáveis trastes até à Scotland Yard.

- Imagino que a mulher é muito importante para você - manifestou sereno.

- Como sabe...?

- Vi em seus olhos, Michael. O brilho que mostrou quando disse que podia o ajudar o delatou.

- Asseguro-lhe que valeu a pena. Ela é a única que deve ser respeitada por todo esse bando de ineptos - sentenciou.

- Espero que ela saiba até que ponto você está disposto a protegê-la.

- Por meu bem, tenho a intenção de que não descubra jamais. Acaso não sabe que se uma mulher averigua que é a proprietária do coração de um homem pode arrancar-lho com suas próprias mãos? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Não. Por agora meu coração segue me pertencendo. Assim não corro perigo de ser roubado - soou divertido.

- Espero que o guarde sob chave - comentou Michael estendendo sua mão para despedir-se.

- Sob chave e escondido em um lugar de difícil acesso - acrescentou zombador enquanto apertava sua mão. - Boa noite, Michael, e obrigado pela informação.

- Boa noite, Trevor. Espero que esta noite não o saqueie muito sua pequena mentirosa - alegou zombador.

- Como sabe que ela veio? - Perguntou assombrado.

- Porque acabam de iluminar-se seus olhos como fizeram os meus, esticou seu corpo e está me despachando de maneira inadequada, mas não se preocupe, o perdoo. Só um homem apaixonado sabe como se atua quando aparece a mulher que se apropriou de seu coração - disse antes de girar sobre si mesmo e partir com passo firme do escritório do Reform.

Trevor esboçou um leve sorriso. O inspetor era bastante suspeito. Era certo o que comentavam dele: um ser incansável, valente. Um homem que não temia a nada, mas não era assim. Assim como Sansão foi destroçado por Dalila, o inspetor tinha um ponto débil, aquela misteriosa mulher que agarrava entre suas mãos o coração do agente.

Com tranquilidade pegou a jaqueta, a pôs e decidiu descer ao salão. Essa noite a pequena malandra teria ao seu lado um oponente muito perigoso.


XIV


Estava nervoso, inclusive mais que na manhã que se casou com Florence. As mulheres mais importantes de sua vida estavam há dois dias muito ocupadas. Desde que April fez queimar todos os vestidos negros, horas depois da saída do inspetor, começaram a visitar todas as costureiras de Londres. Sua filha tinha a intenção de trocar o guarda-roupa, mas, conhecendo-a, inquietava-se por averiguar o que ocultaria nele. Só esperava que Florence a assessorasse com sensatez e que a fizesse mudar de ideia caso decidisse adquirir algo inadequado. E por inadequado se referia aos vestidos que as mulheres europeias começavam a usar.

Não gostava que mostrassem, para deleite do sexo masculino, grandiosos decotes, uma exagerada nudez em seus braços e inclusive que se atrevessem a usar roupas que mostravam os tornozelos. Era um retrógrado? Não, era um homem sensato e, pela maneira que sua filha sorria quando lançava sobre as chamas aquelas caras roupas, sabia que sua próxima aparição em sociedade seria um escândalo.

Norman deu uma olhada ao relógio e suspirou. Tinham que estar na residência dos Shalfeit antes das sete da noite e chegariam com atraso. Para sua desgraça, seu novo sócio decidiu, antes de partir de Londres, oferecer, para seus amigos, uma pequena festa e, é óbvio, os Campbell estavam convidados. Mas Norman continuava pensando que era muito cedo para que April enfrentasse o resto do mundo com aquela integridade que desejava aparentar. Era certo que, depois da visita do inspetor, sorria mais do que costumava, entretanto, aquele riso não pressagiava nada bom... por que se transformou com tanta rapidez? Ele levava meses insistindo que devia abandonar o luto, o qual não devia usar embora o falecido fosse seu marido.

Ao Norman não incomodava que ela começasse a mostrar-se como a mulher que uma vez foi. O que o preocupava, o que realmente lhe provocava inquietação, era a nova atitude de April. Seu queixo se levantou, olhando a todo mundo com superioridade. Parecia reprovar, em silêncio, aquele comportamento que tinham adotado depois da morte de Eric. Não obstante, seu instinto paterno lhe gritava que a mudança de sua filha a causou o inspetor. O que lhe teria dito para que ela se comportasse como um potro sem domar? De verdade que não lhe agradaram seus beijos? Ou talvez se sentiu ofendida ao lhe indicar que desejava cortejá-la? Fosse o que fosse, April iniciava uma nova etapa em sua vida e, se aquela intuição não errava, ia revolucionar todos os habitantes de Londres.

- Está parado aí há muito tempo? - Perguntou-lhe Florence enquanto descia as escadas.

- Só vinte minutos - respondeu irônico.

- Bom, pois espero que sua paciência se veja recompensada - disse com um enorme sorriso.

- Você sempre satisfaz minha paciência - comentou estendendo a mão para ela para apreciar sua incrível beleza. - Vestido novo? - Interessou-se.

- É claro! Acredita que só ela mudou seu guarda-roupa? - Assinalou arqueando as sobrancelhas.

- Florence... - comentou em voz baixa. - Diga-me que nossa filha não armará um escândalo.

- A que vem essa pergunta, Norman Campbell? - Perguntou franzindo o cenho.

- Notei-as alteradas estes dias, querida. E temo que April esteja um pouco desequilibrada depois da visita do inspetor. Não me agradaria ver como sua reputação se destrói por uma tolice, por um arrebatamento infantil.

- Nossa filha tem idade suficiente para fazer o que quiser. Desde quando nos intrometemos em sua vida, Norman? - Demandou zangada. - Foi casada, viveu sete anos de cativeiro, levou com integridade um luto que não lhe correspondia e agora decidiu viver como deseja.

- Sabe que isso não me tranquiliza, não é? - Disse lhe oferecendo o braço para que ambos se dirigissem para a saída.

- Não faça isso... - respondeu divertida.

- Senhor Campbell, sua carruagem o... - Larson estava tentando informar a Norman quando ficou sem palavras ao ver April descer. Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao mesmo tempo que abria os olhos como pratos.

- O que ocorre? - Perguntou Norman virando sua cabeça para o lugar onde o mordomo tinha os olhos cravados. - Por Deus bendito, April! - Exclamou ao vê-la.

- Disse que se acalmasse... - disse Florence divertida.

- Seu cabelo... seus ombros... o vestido... - murmurou Norman atônito.

- Não está linda? - Perguntou ela.

- Não vão deixá-la tranquila nem um só instante - disse Campbell sem poder afastar o olhar de sua filha. - E o pior será quando descobrirem que procura marido.

- Por quê? - Quis saber Florence.

- Porque não haverá um só solteiro ou viúvo que não apareça amanhã em nossa casa - esclareceu Norman.

- Perfeito. Então conseguimos nosso propósito - apontou triunfante a esposa.

- Qual? Deixar os homens sem respiração? - Perguntou elevando as sobrancelhas.

- Que todo mundo entenda que uma Campbell jamais se rende ante uma adversidade - sentenciou.


Precisou permanecer em frente ao espelho muito tempo para ser consciente de que a imagem que se refletia era ela. Quando foi a última vez que se apresentou daquela forma? Antes de conhecer o Eric? Na festa que lhe roubou não só um beijo, mas também sua alma? April não conseguia imaginar esse ponto de sua vida no qual nada lhe importava salvo deixar sem fôlego aos homens que a admirassem. Poderia atuar como então? Tinha que fazê-lo, não só para demonstrar ao mundo inteiro que April Campbell havia retornado, mas também por ela. Urgia-lhe voltar a ser quem foi anos atrás. «Não será melhor dizer que deseja destroçar as palavras do inspetor?», perguntou-lhe uma voz em sua cabeça. Sim, também tinha algo a ver com as insinuações daquele presunçoso. Como lhe tinha ocorrido lhe dizer, à cara, que nenhum homem, salvo ele, a cortejaria? Que ninguém tinha interesse nela?

April sorriu perversamente. Aquele presunçoso ia tragar suas palavras e para isso tinha ideado um plano estupendo . Justo quando seu pai a informou que tinham previsto assistir à pequena festa que os novos sócios ofereceriam no sábado, mandou uma missiva a Vianey lhe explicando o que aconteceu na quinta-feira. Não deixou nenhum detalhe sem descrever. Revelou-lhe tudo, até as palavras absurdas do inspetor. Não demorou para ter uma resposta da baronesa e o que leu lhe provocou um sorriso mais amplo que o que possuía nesse momento: « arranque-lhe o coração e quando o tiver em suas mãos pressione-o tão forte que se ajoelhe em frente a ti». Uma frase muito própria de uma mulher dominante, como era Vianey.

E isso pretendia fazer. Arrancar aquele coração, se é que o tinha, e pisá-lo diante de todos. Como o conseguiria? Como colocaria suas mãos naquele peito e lhe arrebataria um órgão tão importante? Não sabia com exatidão, mas já lhe ocorreria algo quando estivesse na festa e observasse que expectativa teria sua nova aparência.

- Nunca imaginei que seu cabelo ficaria tão esplêndido com esse penteado - disse Ethere surpreendida.

- Eu tampouco, mas foi uma sorte encontrar a condessa de Crowner na loja da senhora Parks - comentou ao mesmo tempo que levava a mão direita a um de seus cachos de cabelo que, do penteado, descia para seu ombro como se fosse uma pequena cascata. - Tem um gosto refinado e combina à perfeição os penteados com a cor dos vestidos - disse admirando a diadema de ouro branco que segurava aquele laborioso penteado.

- Deus teve piedade da pobre mulher - indicou Ethere enquanto dava uns passos para trás para contemplar melhor sua senhora.

- Não acredito que Deus tenha nada a ver com isso, mas sim com a insistência de seu atual marido. Conforme correu por toda Londres, o agora conde de Crowner assediou a viúva até que ela decidiu casar-se com ele - disse divertida.

- Um homem se converte em um ser teimoso quando ama uma mulher - acrescentou Ethere um tanto esquiva. Não queria fazer nenhum tipo de alusão ao marido que tinha tido April, nem que ela se entristecesse por sua culpa em um momento tão especial.

- E ela o aceitou... - murmurou abaixando a cabeça.

- Não o teria aceito se não o tivesse amado, senhora Campbell. Sem ir mais longe, sua governanta revelou que ele se atreveu a aparecer em sua casa várias vezes antes de fazer pública a relação e na última vez a levou nos braços até o quarto – explicou. - Acredita que poderia ter realizado um ato tão imprudente se não o amasse?

- Não... - respondeu com suavidade.

- O amor é um estado de descontrole e, quando chega, esquece-se do que significa a palavra sensatez, tal como fará você esta noite nessa festa quando aparecer. - Mudou de tema com uma mestria inaudita. - Está preparada para ter aos seus pés todos os homens que se aproximarem?

- Tão segura está de que um simples vestido mudará a opinião que têm sobre mim? - Duvidou de repente.

- Apostaria um mês do meu salário a que deixará a mais de um cavalheiro sem ser capaz de respirar e com o coração na garganta - declarou segura de si mesma.

Mas April não queria que todos os cavalheiros ficassem sem respiração quando a observassem, só queria deixar a um que, é óbvio, não podia considerar um cavalheiro, porque se o tivesse sido... não teria atuado como um idiota!

- Bom, minha senhora, tem que partir. Seus pais a esperam na entrada - a instigou ao ver que em seu rosto começava a dar mostras de inquietação.

- Que seja o que Deus quiser... - soprou dirigindo-se para a porta.

Se a expressão de seu pai lhe bastasse para saber o que causaria quando ela aparecesse naquela festa, tinha mais que suficiente para ser consciente do escândalo que provocaria sua chegada. Ficou com os olhos abertos como janelas, agarrava o braço de sua mãe como se necessitasse de seu apoio para não cair ao chão e apertava a mandíbula.

April, sem apagar o sorriso de seu rosto, desceu devagar as escadas, deleitando-se naquele semblante assombrado que mostrava o homem que mais adorava no mundo. Devagar se aproximou dele, deu-lhe um beijo na bochecha e lhe perguntou:

- Vamos?

- Sim, assim que Larson te oferecer o casaco mais comprido que possua em seu guarda-roupa - comentou seu pai estupefato.

- Norman! - Recriminou-o Florence. - Não pode dizer à sua filha quão bela está?

- Está linda, filha. Para minha sorte não mostra os tornozelos - alegou mordaz.

- Os tornozelos? - Repetiu April desconcertada.

- Coisas minhas... - resmungou enquanto irava para a porta. Respirou fundo e, em silêncio, pediu a Deus que fosse considerado e piedoso com ele, prometendo-lhe que se escutasse suas preces iria dois meses seguidos à igreja.


Teria recusado o convite se não tivesse sabido que ela estaria ali. Não queria romper a promessa que fez quando lhe disse que onde ela permanecesse, o encontraria às suas costas sorrindo de satisfação. Michael pegou a jaqueta de seu novo traje, posto que a senhora Warren se encarregava de comprar um cada vez que devia assistir a uma festa, respirou fundo, desenhou um enorme sorriso e a colocou.

- Está muito bonito - disse-lhe Louise quando o viu sair do dormitório. - Esse traje cai como uma luva.

- E aperta como tal... - resmungou enquanto movia seus braços.

- Não se queixe tanto! Os homens de sua posição devem mostrar um bom corpo.

- De minha posição? - Perguntou arqueando as sobrancelhas escuras.

- De sua força, de sua corpulência... - esclareceu envergonhada por sua indiscrição.

- Se fosse por você, iria mostrando este corpo machucado para conseguir uma esposa - disse divertido.

- Esse desejo já esqueci! Não acredito que nenhuma mulher pretenda viver com um homem tão envolvido em seu trabalho.

- Talvez se equivoque... - declarou zombador ao mesmo tempo que caminhava para a porta.

- Se existir, se de verdade aí fora houver uma mulher que poderia suportar a vida que lhe pode oferecer, juro-lhe que corto o cabelo até aqui. - Assinalou seu ombro.

- Pois vá preparando a tesoura, senhora Warren - indicou mordaz.

Não escutou o que lhe respondeu sua governanta. Estava ansioso por aparecer na residência dos Shalfeit e, depois de lhes agradecer seu convite, a procuraria para colocar-se atrás de suas costas.

Iria se aproximar do ouvido e lhe sussurraria onde se encontrava seu misterioso homem. Sim, é óbvio que o faria. Precisava vê-la tremer, ruborizar-se com suas palavras e, como a advertiu, a tiraria para dançar. Tinha certeza de que nenhum cavalheiro lhe teria pedido uma peça e que a encontraria de pé no canto mais afastado do salão. Desde o ocorrido ao visconde, sempre tentava passar desapercebida. Mas aquela atitude era ideal para ele. Daquele modo, quando se aproximasse, quando lhe pedisse uma dança, ela o aceitaria sem duvidar. Que mulher não quereria abandonar um estado de aborrecimento, embora fosse com ele? E quando a tivesse entre seus braços, quando não lhe fosse fácil escapar sem armar um espetáculo, perguntaria o que estava tramando porque, desde que partiu de Shother, tinha averiguado que suas entradas e saídas da residência tinham sido muito frequentes. Segundo Borshon, quem a perseguiu por mando seu é óbvio, mal tinha permanecido em Shother salvo para pernoitar.

- Doem-me os pés de tanto caminhar - queixou-se nessa mesma manhã ao visitá-lo em sua casa. - Essa mulher não parou nestes dias.

- O que tem feito? - Perguntou enquanto terminava de se banhar.

- Visitou todas as lojas que há em Londres! - Exclamou atônito seu homem de confiança. - Não parou nem para respirar.

- Levava algo? Bolsas, caixas?

- Nada. Tinha suas mãos livres para assinalar tudo o que quisesse.

- Pois não o entendo... - murmurou saindo da tina.

- Tape-se, por Deus! - Berrou Borshon fechando os olhos. - Não é agradável o ver nu!

- O que estará fazendo? - Perguntou-se, mas seu acompanhante o escutou.

- O que fazem todas as mulheres ricas, comprar tudo aquilo que quiser - sentenciou.

Mas April não era assim. Ela sempre evitava sair da residência de seus pais desde que enviuvou. E sobre o tema de esbanjar dinheiro... tampouco. Era das poucas damas que se contentavam com o que possuíam porque, para ela, a felicidade não tinha nada a ver com adquirir um caro e bonito vestido. Além disso... seguia mantendo o luto. Não, não podia ser isso, devia haver algo mais. Possivelmente reatava seus contatos para continuar ajudando a beneficência. Sim, isso tinha que ser.

Quando sua carruagem parou, Michael abriu a porta e desceu com rapidez. Outra vez apareceria em frente à porta de um homem poderoso, chamaria e o olhariam com ressentimento. Entraria, observaria o ambiente e se colocaria ao lado de April. Quantas vezes teria que realizar o mesmo até consegui-la? «Poucas – pensou. - E desde que lhe disse que ia cortejá-la, menos». Um enorme sorriso cruzou seu rosto ao pensar que logo obteria aquilo que tinha sonhado durante tantos anos. April seria dele e, quando o fosse, confessaria que ele também era o senhor Dark. Assim se sentiria feliz por ter obtido os dois homens que a pretendiam.

- Boa noite, senhor O´Brian. O senhor Shalfeit o espera no salão - saudou o mordomo dos anfitriões.

- Boa noite. Retiraram-se já para jantar? - Perguntou-lhe enquanto oferecia seu casaco.

- Não, estão o esperando - informou este antes de adiantar-se.

Estavam o esperando? Isso sim que era novo para ele! Por que o esperavam? Necessitariam de sua presença para pôr ordem a uma centena de lordes famintos? Michael sorriu após refletir nessa opção. Ninguém o tinha requerido em nenhuma celebração salvo para exibi-lo como se fosse um macaco de circo, assim, nessa ocasião seria um pouco parecido. «Olhem, senhores, acaba de entrar o homem mais temido da cidade. Cuidem de suas ações se não quiserem ver-se no interior de uma prisão da Scotland Yard!». Quantas vezes tinha escutado esse tipo de brincadeiras? Uma centena? Perdeu a conta quando subiu a inspetor.

Aqueles pomposos presunçosos se acreditavam superiores ao pensar que seu sangue tinha outra cor. Pois ele tinha visto vários aristocratas mortos com suas próprias mãos e possuíam a mesma cor que ele. «Malditos bastardos!», exclamou para si ao mesmo tempo que franzia o cenho.

- Senhor... - disse-lhe o mordomo abrindo a porta. - Se puder entrar, informarei ao senhor Shalfeit de sua chegada.

- Obrigado - respondeu entrando naquele salão que, como todos os que tinha visto, era suficientemente grande para albergar os petulantes da cidade.

Justo ao dar o primeiro passo, seus olhos se moveram devagar procurando a figura que desejava encontrar, mas não achou nenhuma mulher vestida de negro ao seu redor. Só descobriu vários grupos de cavalheiros e senhoras tanto a um lado como ao outro. Casais dançando e, é claro, muita ostentação.

- Senhor O´Brian! - Saudou-o com muito ímpeto o dono da residência. - Obrigado por aceitar o convite - acrescentou estendendo sua mão.

- O agradecido sou eu, senhor Shalfeit, por haver me convidado a uma festa privada. - Privada? Ah! Como tinha temido, ali se encontrava toda a alta sociedade e alguns empresários de respeitável status econômico, é óbvio.

- Acompanhe-me! - Disse o senhor Shalfeit enquanto retornava ao grupo de onde tinha vindo. - Vamos ver se seu pressentimento policial pode resolver o enigma.

Havia dito um macaco de circo? Pois bem, já começava o espetáculo.

Enquanto caminhava para aquele grupo de respeitáveis cavalheiros, não podia parar de procurá-la. Seu coração pulsava desenfreado ao pensar que, finalmente, ela não estaria ali. Que desculpa daria para partir com rapidez? Como não lhe tinha ocorrido dizer ao Borshon que aparecesse na festa alegando que o necessitavam? Porque tinha assumido que April estaria ali e não queria afastar-se dela nem um miserável segundo.

- Cavalheiros... senhores... acredito que já conhecem o inspetor O´Brian - comentou o anfitrião ao parar em frente ao grupo.

- É claro que nos conhecemos! - Exclamou Norman feliz. - Como está, senhor O´Brian? - Perguntou estendendo sua mão para ele.

- Boa noite, senhor Campbell, perfeitamente bem, obrigado - respondeu à saudação. - Veio sozinho? - Soltou sem hesitações.

- Acredita que as mulheres Campbell perderiam uma festa? - Perguntou mordaz. - Estão ali, justo no meio das colunas.

Michael se virou por completo para o lugar que tinha mencionado Norman, perguntando a razão pela qual não a tinha visto ao entrar. Então, ao achá-la, soube. Ele esperava uma mulher com um vestido tosco, de cor negra, com o cabelo recolhido em um esticado coque. E o que encontrou foi a uma exuberante mulher, usando um atrevidíssimo vestido malva, que não cobria seus ombros nem com um mísero xale e, é claro, não estava sozinha e compungida.

April estava rodeada de homens e sorria descaradamente. Então, Michael recordou certa conversação: «Por meu bem, tenho a intenção de que não o descubra jamais. Acaso não sabe que se uma mulher averiguar que é a proprietária do coração de um homem pode arrancar-lho com suas próprias mãos?». Tinha caído em sua própria armadilha. Tinha confessado seu interesse nela e que se propunha cortejá-la. Naquele momento, Michael notou como se abria o peito, saltava seu coração e este corria para as mãos de April.


XV


Michael estava ali. Não precisou virar-se para confirmar que acabava de apresentar-se no salão. Tal como lhe ensinou Vianey, observou ao seu redor e descobriu que as mulheres começavam a bater as suas pestanas com rapidez, murmuravam colocando os leques sobre seus lábios e sorriam com malícia. Igual à vez anterior, os homens ficaram rígidos e franziram o cenho. Até lorde Phillips, que se aproximou dela desde que entrou e não cessou de falar sobre o futuro tão incrível que pressentia para sua família, ficou em silêncio de repente. Todo mundo interrompia aquilo que realizava ante a presença daquele homem.

April sentiu uma estranha pontada no estômago, como se milhares de vespas começassem uma batalha em seu interior tentado liberar-se de seu corpo. Respirou fundo, manteve aquele sorriso que tinha ensaiado durante os anos de matrimônio com Eric, e tentou prestar atenção, de maneira sutil, ao comportamento do inspetor. Se não se equivocava, e sua promessa era certa, breve o teria atrás de suas costas, sorrindo com malícia. Mas o tempo passava e não cumpria o juramento. Seria falso? O que lhe disse era tão só uma desculpa para beijá-la? Porque, se não era assim, já deveria ter se caminhado para ela e ter se colocado ao seu lado. Entretanto, continuava no grupo de cavalheiros onde, entre outros, encontravam-se seu pai e o anfitrião.

Triste, vendo que seu plano de destroça-lo começava a desfazer-se, girou com suavidade a cabeça para ele. Desejava observá-lo, averiguar o que fazia. Então, justo no instante em que seus olhos esmeralda se cravaram naquele hercúleo corpo vestido com um requintado e elegante traje escuro, o inspetor pressentiu que era observado e a olhou. Não ficou sem respiração por como a observou, mas sim pelo que ele expressou naquele olhar. Achou sensualidade, luxúria, erotismo, irritação, paixão e ciúmes. Sim, embora lhe parecesse estranho que aquele homem tão seguro de si mesmo mostrasse um sentimento tão inaudito como eram os ciúmes, tinha-os.

Muito devagar, como se fosse uma advertência, levantou sua taça, dirigiu-a para ela e deu um sorvo sem apagar de seu rosto um sorriso que augurava perigo. Brindava com ela por seu novo traje, por como se rodeava de homens? E por que sorria daquela maneira? Por que a sombra da barba oferecia tanta escuridão àqueles lábios que tinha beijado? April não entendia como um gesto tão singelo podia pô-la tão nervosa ao mesmo tempo que excitada. Devia manter-se firme, devia lhe fazer entender que não era o único cavalheiro que desejava tê-la em seus braços. Como tinha sido tão idiota ao dar por certo que nenhum homem a desejava? Embora fosse por seu dinheiro, tinha uma dúzia ao seu redor!!

April soprou e voltou a olhar a um de seus acompanhantes que, para sua desgraça, não falava de outro tema que não fossem seus lucros, da incrível sorte que tinha tido em suas últimas decisões e os objetivos futuros. Como podia aborrecer-se tanto?

- Alegro-me por você - disse com certo ar de desdém. Não queria escutar a exposição de um petulante, nem encher a mente de palavras absurdas. Sua verdadeira intenção era destroçar o coração do inspetor O´Brian, mas tal como estavam passando os acontecimentos, isso seria difícil.

- Me daria a imensa honra de me acompanhar no jantar? - Perguntou lorde Phillips ao perceber que o anfitrião tinha dado a ordem de dirigir-se para a sala de jantar.

- Será um prazer - respondeu ela com meio sorriso.

Olhou sua mãe, quem a tinha acompanhado em todo momento, suplicando-lhe que a ajudasse a sair daquele problema, mas como sempre, Florence se manteve calada, observando ao seu redor e não fez nada para socorrê-la. Acaso sua mãe não entendia o que significava franzir o cenho, abrir os olhos e suspirar? Ou talvez desejava que ela mesma resolvesse o problema que tinha causado? April não achava uma resposta lógica. Possivelmente porque mal podia pensar com claridade desde a chegada do inspetor e a única coisa que se centrava em sua mente era ele, no atraente que resultava, no bem vestido que ia, em como se ajustava a roupa ao seu corpo, em seus olhos, em sua boca e na excitação que lhe causava o ter tão perto.

- Me permitirá colocar-me em seu outro lado? - Perguntou outro cavalheiro que tinha tentado manter uma conversação com ela em várias ocasiões.

- É claro! - Comentou roçando brandamente o leque fechado em seus lábios.

Tinha soado desesperada? Sua voz demonstrava irritação? Assim era claro que lhe tremia até o timbre de sua voz. Quando saiu de sua casa não tinha imaginado ter que lutar com dois lordes enfrentando-se como garanhões para obter uma fêmea. Ela queria deixar sem fôlego ao inspetor, pô-lo aos seus pés, como indicou Vianey, mas da forma como se dirigiu para uma das damas para que o acompanhasse à sala de jantar, April não tinha claro se alcançaria o objetivo dessa noite.

- Não reparou nela - murmurou Florence ao Norman quando este estendeu seu braço para caminhar para o outro salão.

- Sim, o fez - respondeu ele em voz baixa.

- Então... por que não se aproximou nem para saudá-la? - Perguntou duvidosa.

- Porque tem orgulho, querida - respondeu Norman com um amplo sorriso. - O típico orgulho masculino.

- Bobagens! - Bufou Florence. - Se continuar distante, ela terminará passando a festa com o estúpido do lorde Phillips - se atreveu a dizer.

- Nunca se deve confirmar algo que ainda não se verificou com antecedência - declarou Norman sereno.

- Por que diz isso? - Interessou-se a senhora Campbell.

- Observe e verá... - disse oferecendo leves tapinhas na mão que segurava o braço.

Como se chamava a mulher que agarrava seu braço e que se sentaria ao seu lado na mesa? Não o recordava, mas tampouco poria muito empenho em averiguá-lo. Bastaria acrescentar, a qualquer frase, “milady” ou “senhora” para oferecer o respeito que devia mostrar ante aquelas mulheres. Caminhava afastado de April. Mal podia ver as costas que exibia o descarado vestido. Conforme parecia, vários caracóis se estendiam do recolhido para seus ombros. «Como se isso bastasse para ocultar tanta pele!», exclamou zangada uma voz em seu interior. Não pôde acalmar-se nem um só segundo desde que a viu vestida daquela forma. Não só por como a envenenavam os homens, mas sim porque nem ele mesmo podia resistir a não a olhar. Estava tão formosa, tão incrivelmente bela, que não lhe resultava fácil cravar seus olhos em outro lugar que não fosse a figura de April. Franziu o cenho. Sim, em meio à conversação que mantinha com sua acompanhante, enrugou a testa sem ser consciente disso.

- Não lhe agrada? - Perguntou-lhe a mulher.

- Não se trata disso, milady. Agrada-me bastante - desculpou-se. Olhou de esguelha à mulher e desenhou um lânguido sorriso.

- Obrigada - respondeu-lhe. - Passei muito tempo em frente ao espelho para mostrar esta esmerada imagem.

Tinha lhe falado de vestidos? Tinha lhe perguntado se a considerava atraente? Não sabia com exatidão a que tinha respondido nem se aquela tola afirmação lhe traria algum problema depois, mas estava tão obcecado por ir atrás de April, por averiguar quem se sentaria ao seu lado, que conversações teriam ou se lhes sorriria, que na realidade não lhe importava nada do que expusesse aquela mulher.

- Tomem assento - comentou o anfitrião colocando-se em um dos extremos da mesa enquanto sua esposa caminhava para o outro ponto e ocupava o seu.

Cada vez que tinha sido convidado a uma cerimônia, Michael sempre procurou o lugar mais afastado da mesa para passar inadvertido, mas nessa ocasião tinha um objetivo do qual não se desprenderia com tanta facilidade.

Fazendo-se espaço entre os outros comensais, aliviou seu passo, provocando que sua acompanhante ficasse em silêncio ao ver que, virtualmente, arrastava-a de um lugar a outro. Aguardou que April escolhesse um lugar na ampla mesa e, justo nesse momento, avançou para o assento da frente. Com um sorriso triunfal se sentou, esquecendo-se da cortesia, da educação e, é claro, do protocolo de comportamento ante uma dama.

- Desculpe minha estupidez! - Teve que dizer quando descobriu que não tinha afastado a cadeira à mulher que o acompanhava.

Levantou-se, afastou-lhe o assento e, uma vez que ela ocupou seu lugar, ele retornou ao dele. «Perfeito!», exclamou aquela voz eufórica. Só os separava a largura da mesa e isso era suficiente para observá-la, para escutar suas conversações e para incomodá-la com seu olhar. Porque, embora não fosse apropriado olhá-la sem pestanejar, o faria cada vez que tivesse a ocasião. April devia ser consciente de que tinha despertado o monstro que ocupava seu interior, tinha dado o sinal de largada para uma corrida em que ele seria o único ganhador.

- Você cheira maravilhosamente bem - disse-lhe com descaramento lorde Phillips quando ela acessou sentar-se com sua ajuda.

- Ruboriza-me, milorde - respondeu April ruborizando-se.

- Não lhe minto, lady Gremont. Desde que me aproximei desprende um perfume tão embriagador que não sou capaz de me distanciar de você - confessou o cavalheiro com um sorriso.

«É óbvio que não podia afastar-se dela!», pensou Michael. Nem afastar seus olhos do decote que April usava. Como tinha ousado vestir um traje tão pecaminoso? Acaso não era consciente de que não poderia inclinar seu busto para diante sem que qualquer um pudesse observar o tamanho de seus seios? Ofuscado, O´Brian pegou a taça que já lhe tinham servido e a bebeu de um gole, deixando sua acompanhante sem fala e com os olhos totalmente abertos.

- Um pequeno defeito que se adquire quando se transforma no único protetor de uma grande cidade - apontou como desculpa ao seu inadequado comportamento.

- Deve ser muito difícil sacrificar sua própria vida pela dos outros - indicou a jovem.

- Eu não sacrifico nada - disse firme. - Diverte-me viver em constante perigo. Se não enfrentasse cada dia um novo desafio, meus anos de vida não seriam tão divertidos - assinalou enquanto voltava a encher a taça sem esperar que um criado o fizesse.

- Divertidos? - Perguntou a mulher arqueando as sobrancelhas.

- Caçou alguma vez, milady? - Inquiriu levando o fio de sua taça aos lábios enquanto cravava os olhos em April quem, claro estava, permanecia atenta à conversação que mantinha ele com sua acompanhante.

- Presas pequenas, senhor O´Brian.

- Pois quando tentar caçar uma presa maior, sentirá a mesma inquietação que eu. Espreita-a em silêncio, espera que relaxe, que confie, que pense que não será ela quem cairá abatida e, justo nesse instante, quando acredita que já não corre perigo, aponta o canhão de sua arma e dispara sem contemplações - disse divertido.

- Assim é como se sente quando vai deter um delinquente? - Interessou-se a mulher.

- Assim é como atuo quando tenho em frente a mim a única presa que desejo caçar - sentenciou antes de voltar a levantar a taça para April para lhe oferecer outro silencioso brinde.

Como lhe ocorria assemelhá-la com um animal de caça? Como se atrevia a compará-la com uma presa? April respirou fundo, fazendo com que seu seio subisse de maneira abrupta. De repente, sentiu o frio da esmeralda introduzir-se em seu decote. Sabia que não seria acertado levar um colar tão longo, mas sua mãe se empenhou em que o usasse e agora se arrependia de ter lhe feito caso. Com delicadeza, e assegurando-se de que ninguém mais descobrisse o pequeno problema, levou uma mão enluvada em branco cetim para seu decote e o tirou dentre seus seios. Nesse instante, justo nesse momento, escutou um leve grunhido. Um que não parecia provir de um homem, mas sim de uma besta. Quando elevou o olhar para averiguar de onde procedia aquele som ficou sem fôlego, sua respiração cessou e o coração ficou gelado.

- Encontra-se bem? - Perguntou-lhe lorde Phillips ao notar como ficou pálida.

- Sim, milorde. Não se preocupe, foi só um leve sopro de vento - disse sem sequer olhar ao homem que se interessava por seu bem-estar.

- Se o desejar, indicarei a um criado que feche as portas para que não se sinta indisposta - comentou com preocupação.

- Não se incomode, já passou... - disse entrecerrando seus olhos para o ousado que tinha emitido aquele grunhido.

Seguia olhando-a, embora, por sorte para ela, já tinha guardado a língua no interior de sua boca. Como podia ser tão descarado? Como, em frente a uma mesa com tanta gente, tinha lhe ocorrido fazer semelhante gesto? Mas o que realmente preocupou April, o que na verdade tinha-a deixado sem respiração e pálida como uma folha em branco, era a imagem que sua mente projetou após observar como o descarado inspetor lambia os lábios ante a situação embaraçosa que viveu.

Ele se encontrava frente a ela, beijando-lhe o pescoço, acariciando-a onde aumentava um inquietante calor..., e se rendeu aos seus beijos, aos seus toques. Ali, frente àquela rendição, ela inclinou sua cabeça para trás deixando que aqueles lábios beijassem seus pequenos seios, notou o passar daquela língua por seus mamilos elevados para serem beijados pelo único homem que podia perturbá-la daquela maneira: o inspetor.

- Agora tem calor? - Voltou a intrometer-se lorde Phillips ao notar como suas bochechas se ruborizavam.

- Sem dúvida alguma estou a ponto de adoecer - disse April aproximando a taça de seus lábios. De um gole, como fez em frente ao senhor Dark, bebeu o licor sem respirar.

- Não deveria beber dessa maneira, lady Gremont - sussurrou-lhe lorde Phillips. - As damas que a observam poderiam escandalizar-se - acrescentou com desconfiança.

- Obrigada pelo conselho, milorde. O terei em conta da próxima vez - respondeu esquiva e zangada.

Sim, estava zangada. Não só por como a olhava, mas sim pelas emoções que lhe causava tê-lo tão perto. Quis levantar-se, alegar que se encontrava indisposta e sair dali o antes possível, mas... o que pensariam dela? Nada salvo que era um comportamento normal em uma mulher desequilibrada. Não só por haver se atrevido a usar um vestido tão descarado, que embora não quisesse admitir, oferecia a imagem de uma vulgar amante, mas sim porque também começariam a falar sobre os transtornos que poderia lhe haver causado viver com um assassino. «Maldição!».

- Eu adoro seu vestido, lady Gremont - disse enfim seu outro acompanhante, um homem tímido que tinha tentado manter uma conversação com ela, mas que lhe resultou impossível devido à insistência de lorde Phillips.

- É um modelo da senhora Parks - comentou voltando-se para ele.

- É uma das melhores desenhistas de Londres. Não me cabe a menor dúvida de que seu traje dará muito o que falar entre a alta sociedade - acrescentou ruborizando-se.

- Tomarei como um elogio, lorde Morgan - respondeu sorridente.

- Assim o quis expressar - comentou com um sorriso. - Conforme dizem, ela partirá a Paris no próximo ano - prosseguiu oferecendo um suspiro fundo.

- Anseia visitar essa cidade, milorde? - Continuou April agradecendo a que, por fim, um homem se interessasse em outra coisa que não fosse em devorá-la com o olhar ou em averiguar como progrediam as novas empresas de seu pai.

- Já estive em Paris em duas ocasiões durante este ano e, se lhe for sincero, - comentou aproximando-se de seu ouvido - prefiro mil vezes a vida pecaminosa que possui aquela cidade que a dupla moralidade que tem a nossa.

April soltou uma leve gargalhada. Não lhe cabia a menor dúvida de por que indicava o cavalheiro tal afirmação. Entretanto, teria se dado conta ele mesmo, do que se podia entrever em suas palavras? Levantou a taça para o cavalheiro para brindar.

- Para que seus sonhos se façam realidade, lorde Morgan.

- E os seus, lady Gremont - respondeu com um enorme sorriso a esse brinde.

O que lhe teria sussurrado aquele descarado no ouvido? Por que ela tinha sorrido com tanto prazer? Michael apertava a mandíbula enquanto entrecerrava os olhos naquele cavalheiro. Era um homem de aparência agradável. Vestia-se de maneira requintada e tinha um cuidadoso corte de cabelo. Suas mãos, aquelas que observou enquanto pegava a taça para aproximá-la à de April, exibiam dedos longos e magros. Não havia nada que pudesse compará-lo com ele.

Apesar de usar um traje que, segundo a senhora Warren, mostrava a importância de seu cargo, Michael começou a sentir-se em desvantagem com aquele janota. Seu cabelo era loiro, o seu negro como o carvão. Seus olhos eram verdes, não tão claros como os de April, mas sim muito semelhantes à esmeralda que ela usava em seu pescoço. Os seus azuis e, embora muitas mulheres lhe confessaram que eram os olhos mais bonitos que tinham apreciado em sua vida, começava a duvidar disso. O corpo daquele homem era magro, estilizado e seus braços não pareciam oprimidos sob o tecido da jaqueta. Os seus, ao contrário, pretendiam rasgá-la ante a forte pressão das roupas. Eram muito diferentes, muito.

Michael entrecerrou os olhos e enrugou a testa. Até agora nunca se preocupara com sua aparência. Talvez porque, até aquele momento, não duvidou do seu poder de sedução. Como podia sentir-se assim? Por que seu cérebro começava a duvidar daquela maneira tão estúpida? Ele era Michael O´Brian, o inspetor que todo mundo admirava e temia em partes iguais e o senhor Dark, a quem todas as servas desejavam ter no quarto.

- Assistirá à próxima festa dos Henderson? - Perguntou sua acompanhante depois de um longo silêncio. - Conforme comentam, sua residência de campo é espetacular - acrescentou.

- Eu não gosto do campo - grunhiu de mau humor.

- É claro... - murmurou.

E, nesse preciso instante, a mulher deu por concluída a conversação com o mal-educado inspetor. Virou-se para a outra pessoa que estava sentada ao seu outro lado e esqueceu por completo qualquer pensamento que tinha tido com o grosseiro agente.

Conforme passava o tempo, April foi relaxando. Isso provocou que todo seu estado de alerta desaparecesse e começou a mostrar sua verdadeira personalidade com lorde Morgan. Falaram de moda, da famosa França, do sonho de ambos, de suas infâncias, de suas cores preferidas, de homens... falaram de tantas coisas que, quando chegaram as sobremesas ambos se sentiam tão cômodos que, em mais de uma ocasião, ele tocou a mão dela sem luvas e April lhe correspondeu com um sorriso em seu rosto. Logicamente, esses detalhes não passaram inadvertidos para Michael que, em todos aqueles momentos nos quais o homem a tocou e a olhou com carinho, desejou saltar sobre a mesa e lhe propiciar um murro para que eliminasse com rapidez qualquer amostra de interesse por ela. Entretanto, como não queria dar um espetáculo em uma festa em que, pela primeira vez, tinham o esperado para comer e o tratavam com respeito, decidiu perguntar ao anfitrião se guardava algum havanês para fumar.

- O melhor! - Exclamou o senhor Shalfeit. - Dê um dos que guardo em meu escritório - ordenou ao criado que tinha ao seu lado.

Em silêncio e com o olhar cravado nas duas pessoas que tinha em frente a ele, Michael esperou com impaciência a chegada daquele charuto que desejava sustentar em sua boca. Enquanto o lacaio aparecia, perguntava-se por que April se comportava daquela maneira tão familiar com seu acompanhante. Não só lhe tinha permitido que a tocasse, mas sim lhe sorria com bastante frequência. Tão divertida lhe resultava a conversa? O´Brian franziu levemente o cenho e tentou não fazer muito ruído com sua própria respiração para escutar algo do que falavam.

- Nunca fui muito amante desta fruta, - disse lorde Morgan - mas feita desta forma está deliciosa - acrescentou antes de levar uma colherada para os lábios.

- Minha cozinheira faz sobremesas com nomes impossíveis de repetir, mas têm um sabor delicioso - falou April sem apagar aquele sorriso de seu rosto. - Quando menina esperava atenta, perto da cozinha, a que ela terminasse de cozinhá-los e, quando se distraia, colocava o dedo na bandeja para prová-los - comentou divertida.

- Que fruta gosta mais, lady Gremont? - Perguntou Morgan.

- Os morangos - respondeu.

- A mim as uvas. Possivelmente porque delas obtemos os melhores vinhos - confessou entre leves risadas olhando de esguelha a garrafa de vinho que ambos terminaram.

- Acredito que seria um bom seguidor do deus Baco... - murmurou pegando a taça.

- Interessante... - murmurou entrecerrando os olhos. - Como chegou a tal conclusão, milady? Foi o fato de admitir que me uni a várias orgias na França? Ou porque me imaginou entre uma multidão de homens nus? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

Ante a ousada pergunta de lorde Morgan, April soltou uma nova gargalhada que se eliminou imediatamente quando dirigiu seus olhos para o senhor O´Brian. Por que a olhava daquela maneira? Por que já não havia ódio em seus olhos e sim uma clara advertência? Acaso escutava o que falavam? Teria ouvido a descarada pergunta? Fosse o que fosse, permanecia sentado em frente a ela, reclinado no assento, com as pernas cruzadas e a espreitava tal como havia dito à sua acompanhante: esperando que sua presa relaxasse. Seria ela a presa que desejava caçar durante a noite? Não o permitiria. Seguiria mostrando-se afastada, fora de seu alcance.

April dissimulou sua inquietação enquanto descobria que entre suas mãos tinha um charuto. Michael o levou aos seus lábios devagar, sem pressa. Em cada imersão, relaxada, lenta e pausada, o inspetor eliminava a fumaça de sua boca de uma maneira tão sensual que lhe resultava difícil não o admirar. O que lhe confessou no primeiro baile sobre aquele inapropriado costume de fumar? Ah, sim! Que o fazia quando se encontrava nervoso. Estaria? Seria ela quem o mantinha intranquilo? Entretanto, por mais que tentasse descobrir algum sinal de nervosismo, não achou. O inspetor a observava como se já a tivesse aos seus pés, como se lhe pertencesse, como se já tivesse suspeitado que lorde Morgan não lhe causaria nenhum contratempo...

- Cumpriu suas expectativas? - Interessou-se o anfitrião ao ver como o inspetor parecia desfrutar do charuto.

- Sem lugar a dúvidas... - respondeu cravando seus olhos em April e esboçando um enorme sorriso. - Um dos melhores que desfrutei...

- Sabia! - Exclamou orgulhoso Shalfeit.

Como era de esperar, uma vez que um homem tão importante como o inspetor elogiou o sabor do charuto, nenhum cavalheiro ficou sem o seu.

- Aceitará uma dança? - Perguntou lorde Philips retirando a cadeira de April para lhe facilitar a saída. Até aquele momento se manteve em um segundo plano, mas agora lhe tocava prosseguir com a conquista de lady Gremont.

- Depois da minha - comentou Morgan levantando-se com rapidez ao observar que April fazia um gesto para que a ajudasse a sair da situação.

- Esperarei com impaciência... - comentou Philips desenhando um enorme sorriso.

- Obrigada - disse April aceitando o braço de seu novo amigo.

- Não tem por que me agradecer, foi todo um prazer afastá-la desse presunçoso - sussurrou.

- Durante toda minha vida estive rodeada de homens como ele - disse April com tristeza.

- É o que achará nesta cidade, lady Gremont - explicou enquanto a dirigia para a porta. - Tem que entender que sua fortuna é muito cobiçada por todos os lordes. Embora não acredito que deva adverti-la sobre isso...

- Não, sou consciente do motivo pelo qual todos desejam me cortejar - respondeu com um suspiro. - Mas se pudesse voltar atrás... se tivesse me mantido firme quando meu falecido marido me...

- Senhora Campbell? - Perguntou uma voz muito conhecida para ela. - Permitir-me-ia cinco minutos de seu tempo? Tenho que lhe fazer um par de perguntas muito importantes - acrescentou com tom misterioso.

- Em outro momento, senhor O´Brian. Prometi a lorde Morgan que lhe concederei a primeira dança - respondeu com desdém enquanto dava a volta para encarar o inspetor.

- Acredito que lorde Morgan pode esperar a seguinte peça - disse aproximando-se de ambos. - Não é, lorde Morgan? - Disse com certa ironia.

- Lady Gremont? - Consultou olhando-a aos olhos.

Tinham falado de como a olhava o inspetor. Tinham comentado as notícias que se publicaram sobre o agente e, é claro, Morgan tinha descoberto que o inspetor tinha certas intenções para com lady Gremont, mas como não lhe insinuou que era correspondido, não queria deixar sua nova amiga em frente à boca do lobo.

- Não se preocupe - esclareceu April olhando ao cavalheiro com um enorme sorriso. - Pode me deixar sozinha com ele. Não se atreverá a me causar nenhum contratempo.

- Está segura? - Perguntou antes de beijá-la na mão.

- Sim - respondeu com firmeza.

- Não se atrase, lady Gremont - indicou Morgan dando um passo para trás. - A esperarei para essa dança.

Michael controlou as palavras que iam sair de sua boca. Não queria expressar diante daquele cavalheiro que suas intenções com April eram fazê-la demorar além do necessário. Talvez até montariam um escândalo e ela se veria na obrigação de manter-se afastada de qualquer cavalheiro. «Como te ocorre pensar uma estupidez semelhante? - Perguntou-lhe uma voz em sua cabeça. - Se pretende perdê-la, se deseja que volte a cair nos braços de outro homem, só deve fazer o que está planejando».

- Não demorará - disse enfim O´Brian.

Enquanto Morgan se afastava e todos os que tinham permanecido no salão partiam, April notou como aumentava a agonia em seu interior. Havia se sentido a salvo com lorde Morgan, mas agora estava sozinha em frente a ele. Observou como o inspetor caminhava para a mesa onde tinham jantado, cruzava os braços e a observava com receio.

- Nos deixem sós - comentou ao serviço que começava a recolher as sobras.

Como se fosse o próprio dono, os lacaios caminharam para a saída sem reclamar. Como era possível que exibisse tanta autoridade em apenas umas palavras? Por que ninguém era capaz de enfrentá-lo? Alterada, caminhou de um lado para outro, esperando que começasse a conversação, entretanto, Michael não abriu a boca, manteve-se imóvel, contemplando-a sem pestanejar.

- Como compreenderá, não tenho muito tempo a perder, senhor O´Brian - comentou April afastando-se daquela figura que a perturbava. - Por mais estranho que lhe pareça, nesta ocasião tenho cavalheiros que me esperam para dançar - acrescentou mordaz.

- Está se divertindo? - Soltou entreabrindo os olhos.

- Até agora, sim - respondeu mal-humorada.

- Alegro-me... - murmurou afastando seus quadris da mesa.

- Quer me perguntar algo mais ou só lhe interessa saber se me distraio satisfatoriamente? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- O que pretende? - Perguntou caminhando para ela. Seus olhos tinham mudado de tonalidade, já não eram azuis e sim negros. As pestanas escuras endureciam aquele olhar e seu corpo exibia poder e absolutismo.

- Não entendi sua pergunta - comentou April imóvel.

Desejava sair correndo dali, tinha pressa em pôr distância entre eles posto que, cada vez que permaneciam juntos, seu cérebro não respondia com muita sensatez. Mas se tinha prometido que não retrocederia nem um só passo, que enfrentaria aquele homem com valentia e que não se renderia em seus braços... de novo.

- Não entende minha pergunta... - resmungou com um sussurro. - Serei mais direto para que possa me compreender - continuou falando sem cessar seu passo. - Por que se vestiu dessa forma? Por que se comporta como uma prostituta vulgar?

- Como? - Perguntou assombrada e catatônica. - Separou-me dos outros convidados para me insultar? – Clamou. - Você não sabe o que significa o respeito? - Encarou-o.

- Não é capaz de me responder? - Soltou antes de dar por concluída sua proximidade.

Olhou-a com descaramento, provocando-lhe um rubor tão formoso que nem ela mesma imaginaria quão bela a fazia aquela tonalidade em suas bochechas. Os olhos esmeraldas brilhavam e os sensuais lábios começaram a tremer.

- Decidi abandonar o luto - comentou entrecortada. - E, como terá observado, foi a melhor decisão que tomei até o momento.

- Atua assim porque lhe disse que não haviam outros cavalheiros que se interessassem por você? Por que não tinha mais alternativas? - Perguntou desenhando um leve sorriso em seu duro rosto.

- Acredita-se tão poderoso que pensa que pode manipular a todos os que se encontram ao seu redor? - Desafiou-o.

- O que os outros fazem não me interessa. O único que me importa neste momento é averiguar a razão pela qual a mulher a quem pretendo cortejar se vestiu como uma cortesã vulgar e se pavoneia em frente aos outros cavalheiros com descaramento - revelou cravando seu olhar nela.

Estava sendo muito cruel com April e sabia, mas aquele ciúme, aquelas dúvidas que tinha despertado nele sem ela ser consciente, estavam-no desequilibrando. Como era capaz de sentir-se inquieto pela presença de outro cavalheiro? Como era possível que perdesse seu famoso e idolatrado controle quando ela paquerava com outro homem? E... por que o monstro que habitava em seu interior lhe gritava que a possuísse antes de sair daquele lugar?

- A conversa terminou neste momento - sentenciou April girando sobre si mesma.

Não queria revelar que suas palavras a tinham ferido profundamente, até o ponto que tinha notado como umas pequenas lágrimas iam percorrer seu rosto. Não, não se mostraria daquela maneira em frente a ninguém nunca mais.

- April... - sussurrou Michael desconcertado por seu duro comportamento. - Não parta...

- Que eu não parta? - Perguntou mal-humorada voltando-se para ele. - Pensa que vou ficar aqui a escutá-lo falar de mim dessa maneira, senhor O´Brian? Quem pensa que é para dirigir-se a mim dessa forma? E pretende que o escute abaixando a cabeça?

- Não pretendia lhe faltar com o respeito, jamais havia me sentido tão irado! - Expôs caminhando de novo para ela.

- Respeito? Respeito? Você não sabe respeitar ninguém! - Exclamou irada.

- Sempre a respeitei - reiterou Michael envergonhado por sua atitude. - E o farei enquanto fique um sopro de vida.

- Então... - começou a dizer levantando o rosto para ele. Dois míseros palmos os distanciavam, mas não era distância suficiente para não notar o toque da jaqueta em seu peito. De voltar a inspirar aquele aroma que a aturdia nem afastar a vontade de beijá-lo. Por que refletia sobre isso se o único que único deveria pensar era em lhe dar um bofetão? - Por que solta por essa boca esse tipo de sandices? - Perguntou afastando toda possível emoção luxuriosa.

- Não entende? De verdade que não é consciente do motivo pelo qual atuo deste modo? - Soltou enquanto suas mãos seguravam os antebraços de April para que não escapasse.

- Não, senhor O´Brian. Não entendo esse inapropriado comportamento que tem comigo - assinalou evitando mostrar em seu rosto o que lhe causavam aqueles dedos tocando sua pele.

- São ciúmes... - disse enfim. - Encontro-me em um estado tão inaudito que nem eu mesmo controlo o que digo. Pude suportar que tenha permanecido ao lado de seu marido durante sete anos, mas sou incapaz de perdê-la de novo - confessou. «E muito menos depois de saber que estive em sua mente todo este tempo. Pertence-me, April. É minha e sempre foi», pensou.

- Se de verdade possuísse esses sentimentos que expõe, - disse afogada pela emoção que lhe provocou escutar aquela declaração - não se comportaria com crueldade, mas sim faria tudo o que estivesse ao seu alcance para me seduzir.

- Para seduzi-la? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Sim. Possivelmente se abandonasse essa rudeza, essa tosca e primitiva conduta, e me demonstrasse que não é uma má pessoa, lhe daria atenção - disse cada palavra com tal determinação, que lhe resultou incrível exibir-se tão segura de si mesma.

- Se o fizer, se mudar minha atitude, me dará uma oportunidade? - Perguntou olhando-a sem piscar. Se o rejeitasse, se ela se negasse a aceitá-lo o teria merecido por ter se comportado como um imbecil.

- Tente - disse serena. - Só assim obterá a resposta...

- Está bem... - aceitou Michael afastando-se dela. - A seduzirei como me indica. Mas tenho que lhe advertir uma coisa, senhora Campbell.

- O quê? - Perguntou destroçada ao ver como se afastava dela.

- Que não me darei por vencido porque, embora não seja capaz de assumi-lo, é minha - sentenciou antes de dirigir-se para a porta de saída.


XVI


«Seduzi-la...». Uma palavra muito singela de pronunciar, mas difícil de conseguir. Como podia fazer apaixonar uma mulher como April? Deixaria se enrolar por ternas palavras, por gestos românticos? O único que Michael tinha claro é que deveria eliminar o comportamento que tinha mantido até o momento. Mas... como? Ele era assim: descarado, tenaz, firme, dominante e, é óbvio, sincero.

Desde pequeno fez honra à sua forte personalidade e desse modo pôde sair das ruas e converter-se em um homem respeitado pela cidade. Entretanto, tal como lhe tinha indicado em mais de uma ocasião a senhora Warren, era o momento de mudar seu estilo de vida. Devia tornar-se um presunçoso, um petulante? Não, April não se referia a isso. Não lhe pedia uma transformação social e sim uma mudança de atitude com ela, só e exclusivamente com ela.

Enquanto levava a taça aos lábios, observava a atuação de lorde Morgan. Quereria convertê-lo em um homem parecido a esse cavalheiro? Tampouco poderia obtê-lo. Ele não podia realizar os gestos que este fazia com a mão ou com o rosto. Não obstante, sim que podia fazê-la dançar como ele. Morgan a conduzia pelo centro do salão como se fosse a rainha das fadas. Seu cabelo dançava ao compasso de seus movimentos e a pequena figura, relaxada apesar da proximidade que mantinha com o homem, achava-se tranquila e serena. Como conseguiria alcançar aquela paz? Só um motivo podia ocasionar que uma mulher não se sentisse intimidada por um homem: que não fosse perigoso.

Michael sorriu de orelha a orelha ao descobrir o segredo de lorde Morgan. «Então você pretende me converter em um sentimental...», pensou O´Brian divertido. Logicamente, não alcançaria o nível do cavalheiro, mas o imitaria em certas atitudes. Devia dançar com suavidade? Pois o faria. Teria que manter as mãos quietas? Faria, embora lhe custasse sua própria vida realizar tal proeza. Tudo o que estivesse ao seu alcance, fora do Clube, realizaria se com isso a conseguisse.

- Estranho que não tenha aparecido nenhum de seus agentes requerendo sua presença. - Comentou sarcástico Norman.

- Por uma vez a cidade parece respirar tranquila. Possivelmente porque todos os possíveis criminosos estejam nesta festa - respondeu Michael sem apagar seu amplo sorriso.

- Pois não vejo ninguém perigoso aqui salvo lorde Morgan - o provocou dirigindo seu olhar para o casal.

- Não é um homem tão temível como parece - apontou desconfiado.

- Possivelmente... - prosseguiu Campbell entrecerrando seus olhos. - Embora nunca se deve dar por certa nenhuma teoria quando se refere a April.

- Por que o diz? - Perguntou virando-se para ele.

- Porque na quinta-feira nos informou que pretendia cortejá-la e, como pode apreciar, não mostrou nenhum interesse por você. E mais, começou a divulgar que procura marido.

- Divulgou o quê...? - Quase se engasgou com o sorvo que tinha dado em sua bebida. Mas, de maneira magistral, pôde controlar aquele desejo de cuspir no pai de April o que tinha em sua boca.

- Marido - disse Norman sorridente. - Por fim decidiu continuar com sua vida. E, como pode perceber, já tem vários candidatos. Possivelmente deva lhe agradecer por fazê-la compreender que pode conquistar outros corações, embora claro está, o único prejudicado nessa decisão é... você.

- Já vejo... - resmungou.

Como podia ter omitido esse pequeno detalhe? Pretendia convertê-lo em outro pretendente triste? Esperava que lutasse por sua mão? Pelo amor de Deus, April tinha enlouquecido se pensava isso! Ele não se rebaixaria a tal sandice. Se pretendia transformá-lo em um homem que bebesse os ventos por ela, estava muito confusa. Zangado, muito, mas muito zangado, Michael colocou a taça sobre a pequena mesa que tinha à sua esquerda e caminhou com passo firme para a mulher que o tinha acompanhado no jantar. Pediria mil desculpas por seu esquivo comportamento e lhe solicitaria uma dança para compensar sua imprópria atuação. Se April o levava até o limite lhe provocando um terrível descontrole pelos ciúmes, ele faria o mesmo.

- Milady... - disse abaixando brandamente a cabeça. - Me concederia a próxima dança? Quero desculpar meu comportamento.

- Não se desculpe, senhor O´Brian - comentou a mulher abrindo os olhos como pratos e ruborizando-se com rapidez.

- Mas tenho que insistir - perseverou lhe pegando a mão para levá-la até sua boca. - Meu cavalheirismo ficou em interdição.

- Se for por seu cavalheirismo, - disse flertando - aceito-o.

Com a palma daquela mulher colocada em seu antebraço, Michael caminhou solene até o centro do salão. Enquanto esperava que começasse a seguinte dança, sussurrou-lhe algo no ouvido e isso provocou um rubor e um leve sorriso à mulher.

- Tentarei alcançar suas expectativas - foi o que disse.

- Seguro que as obterá - respondeu.

April não se deu conta de que outro casal se uniu até que elevou o olhar. Quase perdeu o equilíbrio ao vê-lo com aquela mulher. Ele não só sorria de maneira pecaminosa, mas ela lhe correspondia da mesma maneira. O coração começou a lhe pulsar com força, suas mãos começaram a suar e deve ter mostrado em seu rosto tudo o que sentia, porque lorde Morgan lhe ofereceu um leve sopro para fazê-la despertar do choque.

- Relaxe ou todos descobrirão que se encontra em um grave apuro – indicou-lhe.

- Não entendo como pode ser tão descarado - resmungou.

- É normal, lady Gremont - comentou enquanto a afastava do centro do salão.

- Normal? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Você o rejeitou e só pretende procurar uma substituta - explicou.

- Não o rejeitei – resmungou. - Só lhe disse que devia me seduzir.

- Pois como pode perceber, não a entendeu como esperava.

Não a tinha entendido? Não tinha sido clara? April soprava enquanto retornava ao grupo de mulheres às quais se uniu quando partiu da sala de jantar. Pensou que o inspetor a tiraria para dançar antes que lorde Morgan lhe recordasse sua promessa, mas não o fez, manteve-se afastado, bebendo e conversando com outros cavalheiros. Por isso decidiu aceitar o convite de seu novo amigo e, como temia, desfrutou tanto que se esqueceu do que tinha ao seu redor. «Ciúmes...», confessou-lhe ele.

Sentiu ciúmes ao vê-la com outros homens e essa foi a desculpa que lhe ofereceu para lhe falar daquela maneira tão insolente. Teve vontade de dar um grito, de sair do salão e correr para sua casa, mas justo nesse momento, no preciso instante no qual olhava sua mãe para que a acompanhasse à saída, lorde Philips aparecia ao seu lado para reivindicar sua dança.

- É claro - respondeu mostrando um sorriso muito falso.

Retornou ao centro e, por obra do próprio diabo, lorde Philips se colocou tão próximo ao inspetor que poderiam confundir-se de acompanhante em meio à dança. Devagar, April olhou para O´Brian, esperando que seus olhares se cruzassem para fulminá-lo com este, mas não aconteceu nada do que ansiava. O agente tinha seus olhos cravados na outra mulher.

Quando a melodia começou, April ficou congelada. Era uma daquelas peças que ele odiava porque o faziam saltar como uma lebre. Quase soltou uma gargalhada de prazer, mas a reprimiu para que seu acompanhante não imaginasse nada inadequado. Aquele petulante poderia pensar que a satisfazia dançar com ele e não queria ocasionar outros mal-entendidos.

Elevaram as mãos, aproximaram-nas tanto que pareciam tocar-se e dançaram devagar desenhando um círculo. Depois, quando o ritmo foi aumentando, lorde Phillips colocou sua mão esquerda na cintura de April e a fez dançar dando pequenos saltos. Ela não podia apagar o sorriso de seu rosto. Cada vez que seus pés se elevavam do chão, uma pérfida risada aparecia em seus lábios. Entretanto, essas risadinhas desapareceram quando percebeu, em um giro, que o inspetor parecia desfrutar com a companhia e com o baile. Teria lhe mentido? Ou talvez adorava dançar com aquela mulher? Cheia de ira, franziu o cenho e soprou de novo.

- Continue sorrindo - a animou lorde Phillips. - Não apague esse sorriso tão bonito.

Sorriso bonito? April quis dar uma careta de desagrado, mas se manteve impassível, contando os passos que lhe faltavam para terminar aquela horrenda dança. Desde quando odiava tanto dançar? Seria pela companhia de lorde Phillips? Não, não se tratava disso. O ódio era provocado ao contemplar a soltura com a qual o inspetor agarrava sua companheira. Amaldiçoava em silêncio aquela grande mão colocada naquela cintura. A estenderia como fez com ela? Conseguiria sentir o calor que desprendia aquela grandiosa palma?

A raiva começava a consumi-la igual ao ciúme. Sim, muito ao seu pesar, ela também começava a sentir aquele sentimento tão pouco apropriado. Respirou fundo justo quando a música cessou. Olhou a lorde Phillips esperando que a dirigisse para o grupo de mulheres, mas pelo sorriso que este desenhou em seu rosto parecia que não tinha nenhuma intenção de afastar-se dela. Então tomou a iniciativa.

- Estou cansada. Este tipo de dança me deixa exausta - desculpou-se enquanto tentava dar vários passos para o lugar no qual permaneceria a salvo.

- Lady Gremont, não quer me conceder outra peça? Acredito que mereço isso depois de havê-la esperado - disse estendendo seus lábios em um amplo sorriso.

- Em outro momento, lorde Phillips - apontou colocando a mão sobre o antebraço deste.

- Possivelmente não esteja disponível quando lhe parecer bem - resmungou entrecerrando os olhos.

- Está me coagindo, lorde Phillips? - Perguntou levantando o queixo sem deixar de avançar.

- Não, simplesmente a informo que não posso esperá-la toda a festa - resmungou.

- Não me espere, rogo-lhe - pediu April aliviada ao ver que sua mãe entreabria os olhos para ela.

- Está cansada? - Perguntou Florence caminhando com rapidez para sua filha.

- Um pouco - respondeu agradecendo a que por fim sua mãe entendesse um de seus gritos de socorro.

- Obrigada, lorde Phillips, por dançar com minha filha. Agora nos retiraremos uns momentos para poder descansar.

- Senhora Campbell, lady Gremont - disse Phillips tocando com o queixo seu peito.

Os passos do homem ao retirar-se podiam escutar-se por cima da nova melodia. Não tinha aceito de bom grado aquela retirada, mas não lhe importava. Ela não queria, nem desejava, ser tocada de novo por um homem assim. Davam-lhe asco. Odiava-os. Acaso não entendia que quando uma mulher dizia não, era não?

- Muito atrevido esse lorde... - murmurou Florence enquanto tomavam assento.

- Um descarado, diria eu - expressou April zangada.

- Bom, é a consequência de ter confessado que procura marido. Todos desejam ter uma oportunidade - acrescentou sua mãe.

- Sim, uma oportunidade para obter a fortuna familiar, não meu coração - repôs mordaz.

- Mas de todos os que vê ao seu redor... quem crê que não anseia possuir sua fortuna, querida? - Perguntou de uma maneira tão sutil que April caiu em sua rede com facilidade.

- Só ele. - Assinalou com o olhar o único homem que lhe voltava as costas.

Michael tinha estado a ponto de agarrar pelo pescoço ao tal Phillips e asfixiá-lo com suas próprias mãos, mas logicamente não era a conduta que April desejava nele. Se montasse um escândalo, toda possibilidade de conquistá-la se esfumaria. Olhou sua acompanhante e lhe ofereceu o braço para fazê-la retornar ao lugar do salão que tinha ocupado antes de tirá-la para dançar.

- Foi uma dança maravilhosa - comentou a mulher satisfeita. - Senhor O´Brian, cumpriu todas as minhas expectativas - acrescentou feliz.

- Alegro-me. Espero, então, que tenha perdoado como a tratei no jantar. Não estou acostumado a perder a compostura com tanta facilidade - desculpou-se.

- Se eu estivesse em seu lugar, também a perderia - indicou com um ar de mistério.

- Meu trabalho... - tentou dizer.

- Lady Gremont é uma mulher afortunada por ter apaixonado a um homem como você - disse abruptamente. - Espero que possa valorizá-lo como merece. Se não o conseguir, se ela o ignorar, pode voltar a me pedir outra dança.

Michael ficou sem palavras. Arqueou as sobrancelhas e sorriu de boa vontade à mulher. Tão evidente eram seus sentimentos por April? Sim, seriam, se ela tinha se dado conta.

- Aceito esse trato, lady Murphy - disse enquanto beijava sua mão para despedi-la.

- Boa noite, senhor O´Brian.

- Boa noite, milady.

Decidiu caminhar devagar para onde se encontrava Norman. Naquele momento, apenas precisava de uma conversação sarcástica com Campbell para esquecer-se da atitude agressiva que lorde Phillips tinha mostrado com April. Recordou-lhe tanto ao visconde... aquela soberba, aquela autoridade sobre o resto do mundo e aquele sentimento de superioridade que mostrava por qualquer um que se colocasse ao seu lado. Michael notou uma pequena pontada em seu coração ao descrever o referido personagem. Não se dava conta que ambos tinham várias coisas em comum?

Respirou fundo tentando fazer desaparecer aquela comparação da cabeça. Não, ele não se assemelhava a ninguém. Jamais trataria April como um objeto, como um ser sem pensamentos, decisões ou desejos. Ele queria fazê-la feliz, proporcionar-lhe tudo aquilo que desejasse e, é óbvio, amá-la não só com seu coração, mas também com toda sua alma. «Será interessante mudar de estratégia...», sussurrou-lhe uma voz em sua cabeça. E como se fosse o estímulo que necessitava para compreender que passo seria o seguinte, girou sobre seus calcanhares, fixou os olhos em seu objetivo e caminhou para ela.

- Não olhe... - murmurou Florence à sua filha após perceber que o inspetor se dirigia para elas.

- O que acontece? Não será lorde Phillips de novo? - Perguntou olhando para ambos os lados.

- Não querida - a tranquilizou. - Trata-se do senhor O´Brian. Acredito que quer dançar contigo.

- Comigo? - Soltou atônita.

- Bom, também pode me pedir isso, embora não acredito que seja uma alternativa muito plausível... - comentou divertida.

- Não posso... não deveria... - começou a gaguejar ao mesmo tempo que se movia incômoda na cadeira.

- April, só será uma dança, que dano pode fazer? Estou segura de que terá sofrido mais dançando com lorde Phillips, assim deveria outorgar uma oportunidade ao inspetor...

April cravou seu olhar naquele corpo titânico que caminhava para elas. Uma estranha dor no estômago surgiu de repente. A respiração se voltou entrecortada, seu coração se desacelerou e as mãos começaram a suar. Estava nervosa. A presença daquele homem a alterava tanto que não só a confundia mentalmente, mas sim também transtornava as reações de seu corpo.

Observou com descaramento aquele cabelo escuro, a sombra da barba que ressaltava o rosto varonil, suas pestanas, a cor de seus olhos, a maneira em que seu traje assinalava cada imponente músculo, a forma de caminhar, como elevava o queixo... era um homem tão terrivelmente atraente, tão viril, tão enigmático, que ninguém podia comparar-se. Esteve a ponto de levantar-se para recebê-lo como merecia, mas decidiu mudar sua atitude com ele, a ver se, deste modo, afastava-se dela e retornava ao regaço de lady Murphy. Entretanto, quando faltavam cinco passos para que se colocasse em frente a ela, uma mão nas suas costas a empurrou para diante. April observou de soslaio sua mãe, que tinha se levantado do assento e olhava ao inspetor com certa veneração.

- Senhoras... - saudou-as com um leve movimento de cabeça.

- Senhor O´Brian - respondeu Florence ao ver que sua filha não o fazia. - Que tal a festa?

- Bastante bem, por agora. Senhora Campbell - falou dirigindo-se a April. - Concederia a honra de dançar comigo?

- Pois... tentava... - voltou a gaguejar.

- Estará encantada! - Respondeu Florence empurrando-a para ele. - Embora o advirto que a dança com lorde Phillips a deixou exausta.

- Imagino... - murmurou sem poder afastar o olhar dela. - Por gentileza, - prosseguiu estendendo o braço - prometo que não a cansarei muito.

Havia zombaria em seu tom? April não conseguia averiguar o motivo pelo qual o inspetor lhe falava com aquele tom. Enquanto aceitava seu braço o olhou de esguelha esperando encontrar a resposta, mas não achou nada naquele semblante sério. Com orgulho, porque ela notou como lhe alargava o peito, elevava o queixo e desfrutava por tê-la ao seu lado, caminharam devagar para o centro do salão. Sem lugar a dúvidas era diferente de todos os outros. Ali onde encontrou arrogância e inclusive soberba nos cavalheiros que caminharam junto a ela, o inspetor mostrava satisfação e dignidade. De repente, aquela dor em seu estômago se intensificou ao descobrir a tremenda desigualdade que possuía com o resto do mundo e, apesar de evitá-lo com todas as suas forças, April sentiu o mesmo ao permanecer acompanhada de um homem tão honorável.

Havia ainda vários casais que trotavam ao ritmo da música, diminuindo seus movimentos ao escutar os últimos acordes. April se colocou em frente a ele, olhando-o aos olhos descaradamente. Como era possível que a fizesse tremer daquela maneira? Por que lhe resultava impossível respirar com normalidade? De forma automática, ao ouvir o começo do que seria sua dança, elevou a mão direita para que a tomasse. Aceitou-a, embora não como a última vez. Sua palma mal roçava a sua, mal sentia o calor que ele desprendia. Quis suspirar e resmungar como uma menina malcriada por não obter o que, até àquele momento, não sabia que desejava com tanto afã.

- Será uma valsa? - Perguntou ele arqueando as sobrancelhas.

- Isso espero - soltou sem pensar.

Michael sorriu levemente ao escutá-la. Tinha a mesma necessidade que ele de estar juntos, embora jamais afirmaria algo assim. Prestou atenção àquelas primeiras notas e notou como seu coração pulsava desenfreado ao reconhecer que se tratava de uma valsa, não qualquer valsa e sim a mais bonita do mundo, a Valsa do Adeus de Chopin. Com a suavidade própria que ditava a melodia, colocou sua mão na cintura de April e foi dirigindo-a pelo círculo que tinham formado os outros casais.

Adorou ver como seus caracóis flutuavam sobre a pequena figura, o vestido se elevava do chão para formar redemoinhos na magra cintura, ruborizavam-se suas bochechas pelo esforço... mas, sobretudo, ficou embevecido ao ser consciente da intensa emoção que notava na mulher que mal tocava. Naquele instante entendeu a razão pela qual aquela dança era considerada descarada e imoral, mas também soube que não tinha nada disso se se dançava com a pessoa adequada. Quis aproximar sua palma da cintura de April e notar o calor que emanava, mas se conteve; tinha lhe prometido que a respeitaria e, por sua honra, que o cumpriria.

- Está muito calado - disse enfim ela.

- Estamos dançando... - respondeu com matiz sarcástico.

- Pensei que aproveitaria o momento para conversar - prosseguiu April com assombro.

- Não tenho nada que lhe dizer, senhora Campbell.

Nesse instante April notou como seu coração se fazia em pedacinhos e umas descaradas lágrimas tentavam brotar de seus olhos. Apesar lhe haver dito que devia comportar-se com respeito, estava descobrindo que, em realidade, não era isso o que desejava. Queria o seu descarado, atrevido e sincero inspetor, que se aproximasse tanto ao seu corpo que a deixasse sem respiração. Entretanto, o que tinha em frente a ela era outro lorde, um homem frio, distante e sem nada a oferecer. De maneira atrevida abriu a mão que elevava e a enredou entre os fortes dedos, apertando-a descaradamente.

- Pisei-a? - Perguntou Michael atônito ante tal contato.

- Não - disse April ruborizando-se.

- Então...? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Qual é seu nome de batismo? - Soltou evitando lhe responder.

- Michael - confessou notando como seu coração subia pela garganta.

- Assim se chamava seu pai? - Insistiu aproximando-se daquele corpo que precisava tocar, embora fosse com seu inadequado vestido.

- Não. Meu pai se chamava Elmet, mas minha mãe se negou a me chamar dessa maneira - explicou com um leve sorriso. Era ela quem necessitava o contato e começava a tomar a iniciativa e, apesar de não estar acostumado a compartilhar o controle, estava lhe resultando maravilhoso.

- Não é um nome tão horrendo... - murmurou ruborizando-se.

- Não, é claro que não o é. E teria me encantado que minha mãe não opinasse desse modo - acrescentou.

- Por quê? - Interessou-se enquanto seus olhos se encontravam com os dele.

- Porque tudo o que sou, devo ao homem que me ensinou como devia confrontar a vida - declarou depois de tomar fôlego.

- Se algum dia puder dar um neto ao meu pai, terá seu nome - confessou.

- Nesse dia o senhor Campbell se converterá no homem mais orgulhoso da cidade - disse desenhando um grande sorriso.

- Acaso não o é agora? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Tem razão... - confirmou, aproximando das costas aquela mão que, por não poder tocá-la, congelou-se.

O leve movimento de seus corpos, a pausada respiração de ambos e inclusive a felicidade que eles mantinham em segredo ao estar juntos, não foi invisível para Norman que, da outra ponta do salão, bebia de sua taça ao mesmo tempo que mostrava um brilho um tanto peculiar em seus olhos. Nunca tinha duvidado de que foram feitos um para o outro, só esperava que ela mesma descobrisse logo. Dirigiu-se para Florence, que também os admirava com ternura. Aproximou-se dela, pegou-lhe a mão e a beijou.

- Formam um magnífico casal... - murmurou sua esposa.

- O único que deveria ter nossa filha - declarou com firmeza.


XVII


Por que o tempo passava tão rápido? Por que uma valsa não podia durar uma eternidade? April evitou mostrar sua aflição quando finalizou a dança e, para aumentar sua tristeza, depois de observar como o inspetor lhe oferecia o braço para reconduzi-la a Florence, deduziu que não lhe pediria outra. Teria sido muito atrevido dançar com ela duas vezes, embora lhe resultaria familiar aquele tipo de descaramento nele. Mas lhe tinha pedido respeito e o estava oferecendo. Então... por que se sentia tão angustiada? Por que seu coração parecia diminuir a cada passo que davam para seus pais? Sabia com determinação a resposta a todas aquelas perguntas. Não tinha a menor dúvida de que desejava tê-lo apesar de seus inumeráveis defeitos. Ao contrário de outros que lhe dedicavam palavras aduladoras para aumentar seu ego, ele lhe tinha falado com sinceridade; ninguém tentava contrariá-la para não zangá-la e eliminar a possibilidade de alcançar a fortuna que suportava suas costas, mas ele se dirigia a ela com franqueza, sem temor de aproveitar a oportunidade.

Michael, porque já sabia seu nome de batismo, era diferente de todos os homens que a tinham rondado. Não se apoiava em adulações e sim em realidades. April olhou de esguelha àquela imponente figura que permanecia ao seu lado e recordou a primeira vez que o viu. Pareceu-lhe um homem insolente, atrevido, ousado e muito descuidado com sua imagem. Entretanto, naquele momento, achava um homem com as mesmas qualidades, mas com o porte digno de um rei. Como tinha sido capaz de mudar tanto? Seria o trabalho que agora detinha o motivo daquela transformação?

A mente a conduziu para o episódio da Scotland Yard e voltou a notar uma pontada em seu peito. Enfrentou aquele vilão, afastando os outros para que não sofressem dano algum. Dirigiu seus olhos para o ventre masculino, tentando averiguar se, embaixo daquelas elegantes roupas, ainda continuava machucado. Mas a rigidez de seu corpo não lhe indicou nada.

- O que lhe acontece? - Perguntou aproximando sua boca ao ouvido. - Por que me olha dessa forma?

- Sinto-o... - desculpou-se ruborizando-se de novo. Parecia uma menina, uma pequena envergonhada por um ato impróprio. Entretanto, aquela menina sentiu um terrível calafrio ao perceber a carícia de seu fôlego no pescoço.

- Não se desculpe, só quero saber o que pensa - animou-a Michael colocando a mão esquerda sobre a dela para reconfortá-la.

- Perguntava-me se se recuperou da ferida que lhe produziu aquele criminoso - aventurou-se a dizer. - Durante a festa não o vi queixar-se nem um só momento.

- Perdura... - respondeu. - Mas não sou dos que mostram suas cicatrizes de guerra aos que o rodeiam - declarou.

É óbvio! Como não tinha deduzido um fato assim? Ele jamais alardearia de suas proezas ou seus lucros, mas tampouco do perigo que corria diariamente para salvar aqueles ingratos que o observavam com altivez. O inspetor guardava para si os contratempos de seu trabalho. April suspirou fundo. Não podia refletir em seu rosto aquela emoção que começava a sentir por ele, embora lhe fosse difícil conter umas pequenas lágrimas que brotaram em seus olhos.

Como podia ter estado tão cega? Como não se deu conta durante todo esse tempo de quem era o homem que estava ao seu lado e o que significava para ela? Porque, apesar de desejar desprezá-lo com todas as suas forças, não podia esquecer o que a fazia sentir quando o tinha perto. Aquele revoo em seu estômago, ao que comparou com vespas a picando, só eram borboletas batendo as asas. Aquela aceleração em seu pulsar, que acreditou provocada pela inquietação que lhe causava sua proximidade, tratava-se do entusiasmo que mostrava seu coração ao vê-lo. Aquela aparente ira que mostrava, o querer tê-lo diante para enfrentar suas palavras... só era a necessidade que brotava ao afastar-se dele tanto tempo...

- Uma linda valsa - comentou Florence quando Michael afastou a mão de April.

- Sem lugar a dúvidas - afirmou o inspetor. - Embora se trate de uma peça para despedir-se da pessoa com quem se encontra, é maravilhosa.

«Despedir-se? - Pensou April enquanto abria os olhos como pratos. - Pretendia despedir-se dela e não se deu conta?».

- Existem muitas canções tristes - interveio Norman, que observou como o rosto de sua filha empalidecia. - Por sorte temos bons licores em Londres para esquecer esse tipo de tolices.

- Norman! - Exclamou Florence surpreendida por seu comentário.

- Também tem razão, senhor Campbell - comentou Michael com um enorme sorriso. - Bom, a festa terminou para mim. Tenho que me retirar - expôs.

- Tão cedo? - Soltou April.

- Não é cedo para mim, senhora Campbell. Amanhã tenho que estar na delegacia de polícia à alvorada - explicou.

- Os criminosos nunca dormem... - apontou Norman.

- Nem respeitam festividades - acrescentou Michael.

- Boa noite então, senhor O´Brian - falou Florence tentando não fazer mais dolorosa a situação de sua filha. Não entendia o motivo, nem a causa exata pela qual ela mostrava tanta tristeza em seus olhos, mas o averiguaria com prontidão.

- Senhor Campbell, senhoras, - disse Michael com um leve movimento de cabeça - que passem uma agradável noite.

- Igualmente - respondeu Norman.

April não foi capaz de abrir a boca para responder àquela despedida. Tinha a garganta pressionada por um nó que a impedia até de respirar. Tinha esperado que ele prosseguisse na festa, e que em outro momento voltasse a lhe pedir uma dança, mas não seria assim.

Com os olhos banhados em lágrimas, deixou que se afastasse dela e que um frio invernal se estendesse pela zona de seu corpo em que ele tinha permanecido. «Seja forte, April - disse. - O inspetor não é o homem que procura. Recorda o que te aconteceu com o Eric, quem acreditava que era e quem foi na realidade? Além disso, não pode começar algo depois da noite no Clube...». Aquele raciocínio a aturdiu ainda mais. Não havia se lembrado do senhor Dark nas últimas horas, embora fosse certo que o tinha comparado, em mais de uma ocasião, com Michael; seu aroma, sua forma de atuar em frente a outro dominante quando apareceu, seu tom de voz... estava alucinando! Sim, o transtorno que lhe produzia o inspetor a deixava realmente louca.

«O que é que necessita? - Perguntou-lhe aquela voz em sua cabeça. - Sexo durante uma noite na semana ou de alguém que se ocupe de ti durante o resto de sua vida? Por que se conforma vivendo suas fantasias com alguém que não conhece quando as pode ter com o homem que as provoca? Por que... quem imaginou que permaneceu ao seu lado essa noite: ele ou o senhor Dark?». É óbvio que ela não desejava reviver o que padeceu com Eric nem continuar com os encontros clandestinos com aquele dominante. Ela desejava ir agarrada pelo braço de um homem que exibisse orgulho por tê-la, que alargasse seu peito para proclamar o amor que sentia por ela. Que a protegesse de qualquer situação perigosa, que lhe falasse com franqueza, que não lhe desse razão se não a tivesse, que a apoiasse nos projetos que realizaria com seu pai e que, sobretudo, não se aproximasse dela por sua fortuna, mas sim por aquilo que podia oferecer como pessoa. E o amor? Importava estar apaixonado por esse ser?

April olhou para a porta de saída e não afastou seus olhos até que a grandiosa figura de Michael desapareceu, logo observou seus pais e estudou aquilo que expressavam com seus olhares. Amaram-se desde o começo? Nascera aquele amor no mesmo momento no qual se conheceram?

- Posso lhes fazer uma pergunta um pouco indiscreta? - Perguntou inquieta.

- Acaso lhe proibimos alguma vez que o fizesse? - Soltou Norman na expectativa.

- Não, nunca.

- Então?

- Eu gostaria de saber se sempre se amaram como o fazem agora - perguntou.

- A que vem essa pergunta, April? - Perguntou Florence.

- Não - respondeu Norman. - Quando conheci sua mãe primeiro me senti atraído por sua beleza. Depois, depois de muito tempo de averiguações, aquela atração se converteu em desejo e ternura.

- Mas como se pode alcançar o que ambos têm?

- Com o passar do tempo. Entende uma coisa, querida - falou nesse momento Florence. - Se seu pai se comportasse como todos os outros homens que me cortejavam, jamais o teria eleito. Tomei uma decisão arriscada, mas acertei e essa pequena faísca que havia entre nós cresceu até o que vê agora.

- Compreendo... - murmurou após tomar ar.

Sem dar explicações e sob o atento olhar de seus pais, April se virou para a porta e caminhou decidida para ela. Não sabia o que estava disposta a fazer, nem se era correto ou não. Entretanto, devia arriscar-se porque o único que tinha claro era que não queria perdê-lo.

- Michael! - Exclamou quando este deu um passo para o exterior da residência.

O´Brian ficou imóvel ao escutar seu nome da boca de April. Podia evitá-la, continuar seu caminho e alegar, em um futuro, que não a ouviu. Mas não podia recusar à chamada de uma mulher, e menos a dela. Apoiou as solas dos sapatos no chão e deu a volta. Por que estava ali? Por que o tinha chamado por seu nome? Estas e muitas perguntas apareceram em sua cabeça em um instante. Logicamente, não quis tentar encontrar as possíveis respostas. Em meio à sua confusão, caminhou dando umas enormes passadas para April.

- Tem algo errado, senhora Campbell? - Perguntou olhando atrás dela, procurando desesperadamente por aqueles pais que não deviam permitir que sua filha se afastasse do salão sem companhia.

- Por que parte? - Perguntou com uma mescla de temor e desespero.

- Como expliquei, tenho que me retirar o antes possível para continuar com meu trabalho. Que reputação adquiriria um inspetor que dorme tão tarde e que é incapaz de levantar-se à alvorada? - Respondeu após aproximar-se e manter-se a uma distância prudente.

- Mentira! - Exclamou zangada.

- Por que ia fazer tal coisa? - Perguntou levantando as sobrancelhas.

- Porque não lhe importa o que digam de você. Deixou-me isso bem claro desde que o conheço. Possui uma personalidade muito parecida com a do meu p... - não pôde terminar a frase. Michael a pegou pelo braço e a conduziu para um lugar mais discreto, até uma zona onde os olhos dos criados não podiam os alcançar.

- O que pretende, senhora Campbell? - Inquiriu zangado. - Quer montar um escândalo? Deseja que todo mundo fale deste inapropriado encontro?

- Preocupa-se com minha reputação ou com a sua? - Alegou mordaz. - Se não estiver confusa, nunca atuou como se lhe importasse o que pensariam de nós ou de você mesmo - acrescentou entrecerrando os olhos.

- Acredita que nos afastar desta maneira tão misteriosa é velar por sua reputação ou pela minha? - Insistiu irado. - O que deseja? Que motivo a fez sair daquele salão e gritar meu nome no meio do hall? - Voltou a perguntar.

April respirava de forma intermitente. Suas bochechas ardiam e mal podia controlar aquele rápido pulso que já notava em suas têmporas. Devia ser sincera? Devia enfrentá-lo de uma vez por todas? Mas... o que podia lhe dizer? «Saí em sua busca porque descobri que não necessito de um homem como os que me subjugaram até o momento, que quero a você». Não, isso era uma bobagem. Ela tinha que averiguar primeiro o que ocultava o inspetor em seu coração para lhe oferecer o seu.

- Por que não cumpriu sua palavra? - Disse enfim.

- Minha palavra? - Repetiu abrindo os olhos como janelas.

- Sim, sua palavra de me cortejar - soltou. As mãos lhe tremiam e inclusive o tom de sua voz vibrava além do normal, mas se queria averiguar a verdade devia ser forte.

- Mudei de parecer - respondeu arrogante. - Nunca fui uma alternativa a valorizar. Sou dos que pensam que há um único sim ou um único não.

- Alternativa? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

Fixou seus olhos nos de Michael e conteve a respiração. Esperava que a razão daquela mudança de parecer fosse diferente da que imaginava. Porque se fosse assim, a única pessoa culpada de tudo o que acontecia era ela mesma.

- Fui informado que esta noite proclamou durante a festa que procura marido e, ante tal descobrimento, decidi não me converter em um de seus pretendentes - esclareceu com firmeza e orgulho.

- Entre a alta sociedade, se não se explicar que uma mulher procura marido, não se entende a razão de um cortejo - desculpou-se enquanto cravava o olhar no chão.

Isso era o que ela temia, que soubesse a absurda decisão que tomou quando partiu de casa. Mas tudo isso era uma pantomima, uma sandice para lhe pôr o caminho um pouco mais difícil, para que lutasse por ela, não para que a abandonasse.

- Não estou acostumado a me apoiar em protocolos aristocráticos porque não sou um deles, senhora Campbell - respondeu com aborrecimento. - E agora, retorne ao salão, não é adequado que uma viscondessa mantenha uma conversação clandestina com um homem como eu.

- Não! - Exclamou April desesperada.

- Não, o quê?

- Não vou partir até que saiba quais são suas verdadeiras intenções - insistiu levantando o queixo de novo.

- Não acredito que deseje descobrir quais são as minhas verdadeiras intenções. Não seriam benéficas para você... - comentou apertando os dentes e desenhando um pérfido sorriso.

- Indique-me isso e eu considerarei se serão úteis para mim ou não. Mas necessito que me ofereça a oportunidade de escolher - disse com tom suave.

«Escolher?», pensou Michael com rapidez. Ela queria escolher? Pois se tanto ansiava ter essa possibilidade devia voltar ao salão e olhar ao seu redor. Mais de um cavalheiro se arrastaria ante ela para que lhe brindasse uma oportunidade. Entretanto, ali se encontrava, em frente a ele, com o risco de que fossem descobertos e de que causassem uma situação embaraçosa.

- Parta - ordenou ao mesmo tempo que começava a virar-se para sair dali.

- Não vou fazê-lo - assinalou April tomando a valentia suficiente para esticar a mão e agarrar o inspetor pelo antebraço. - Não até que me diga o que quer de mim.

- O que quero de você? - Inquiriu Michael cravando seus olhos naquela mão. - De verdade deseja escutar o que eu quero, April? - Perguntou dirigindo o olhar para aquele rosto que adorava.

- Sim - afirmou ela não só com um suave e débil monossílabo, mas também com um leve movimento de cabeça.

- Quero tudo! - Disse enquanto usava aquela pressão em seu braço para afastá-la ainda mais de onde se encontravam. - Não me conformo com um pouco, nem com uma mísera metade. Cada vez que desejo algo tenho que obtê-lo por completo - revelou ao mesmo tempo que pressionava as costas da mulher contra a parede. - Quero que esta cabeça seja minha - acrescentou tocando com suavidade o laborioso penteado. - Quero que estas bochechas só se ruborizem por mim - prosseguiu a carícia sobre a bochecha direita. - Estes seios, ocultos hoje com um leve tecido, devem ter meu nome. - Suas palavras começaram a ter um tom mais afogado, excitado por aquele desejo que não devia mostrar tão livremente. - Quero que tudo o que estou tocando me pertença, April Campbell. Desejo que seja minha pelo resto da minha vida e que possamos viver sem temor de satisfazer nossas necessidades e desejos. Quero a possuir quando quiser e que vá para mim quando você necessitar. Quero a proteger, velar por você cada dia, que me advirta cada vez que parta do seu lado que devo me cuidar para retornar aos seus braços. Quero me converter na última pessoa que veja quando a noite caia e a primeira que esteja ao seu lado quando aparecer o sol, e admirar o brilho dos seus olhos cada vez que isso acontecer. Quero encher meu lar com sua fragrância assim como desejo a minha vista em seu corpo nu. Quero escutar meu nome em sua boca quando fizer amor, quando minhas mãos tocarem cada milímetro de sua pele. Quero ser o único, assim como você será a única. - Conforme ia narrando aquilo que tinha mantido oculto, suas mãos deslizaram por April com tanto ímpeto que parecia um sedento em meio ao Saara. Acariciou aqueles pequenos seios que exibia como maçãs em uma fruteira. Desceu por seu torso, percebendo como a respiração da mulher se entrecortava ao passo da mão. Continuou baixando e elevando aquele vaporoso vestido malva que ela usava com tanta elegância. Não parou de levantá-lo até que as gemas de seus dedos sentiram o calor do corpo dela. - Parece benéfico para você? - Perguntou-lhe afastando aquele trato educado que tinha mantido com ela antes.

- Sim - respondeu ela separando levemente seus lábios para poder respirar.

- Está segura disso, April? Não sou um homem que se contente com migalhas - informou ao mesmo tempo que suas mãos procuravam o calor que encontraria entre suas coxas.

- Sim - repetiu fechando com suavidade as pálpebras ao notá-las pesadas pela chegada da paixão. - É o que quero, Michael.

- E eu - sentenciou antes de unir sua boca com a dela.

Enquanto a beijava e sua língua conquistava e invadia o interior de April, a mão de O´Brian achou o calor e a umidade que esperava encontrar. Um grunhido de prazer e satisfação brotou de sua garganta; esteve a ponto de separar-se dela para contemplar o rubor daquele formoso rosto, mas não desejava afastar-se daquela boca que tinha sabor de champanha nem afastar aquela mão que ansiava fazê-la tocar o Éden.

Devagar, abriu passagem entre os macios lábios sexuais, notando o calor destes. Com uma lentidão imprópria nele, apalpou a fenda feminina até que conseguiu tocar o pequeno botão inchado e excitado por ele. Respirou fundo, provocando um leve distanciamento entre ambas as bocas, mas não manteve essa distância o suficiente para que ela falasse. Seus dentes, fortes e brancos como madrepérola, morderam o lábio inferior da mulher até que escutou um leve soluço. E então voltou a beijá-la com aquele ardor e paixão que sentia por ela desde o momento que a descobriu. Anos, muitos anos transcorreram para alcançar seu ansiado sonho, entretanto, Michael voltaria a passar por aquele calvário se ela fosse aos seus braços como tinha feito essa noite.

- April... - sussurrou tão suave que nem ele mesmo se escutou. - Diga-me que é isto o que deseja, meu amor.

- Sim - respondeu ela inclinando levemente a cabeça para trás, convidando-o a prosseguir, a que não finalizasse jamais.

- Não imagina como me sinto agora... - disse ao mesmo tempo que esfregava o pequeno botão com dois de seus dedos. - Isto é o paraíso, pequena. Noto minha mão quente, meus dedos impregnados de sua essência feminina. Está ardente, luxuriosa por mim. - Esperou uma resposta por sua parte, embora não a obtivesse.

Ela tentava emudecer seus gemidos e evitar aqueles tremores que lhe proporcionava seu corpo agarrando-se com força às lapelas de seu casaco. Michael rememorou a noite que ela desceu as escadas em camisola, o impacto dos pequenos punhos sobre seu peito, o prazer que causaram aqueles golpes nele. Sempre... sempre tinha sabido que ela era a mulher que necessitava ao seu lado...

- Michael... Oh, Michael! - Soluçou ao tocar com sua alma o primeiro de seus orgasmos. - Não pare por favor, me deixe alcançá-lo... - gemeu.

- Cada vez que o desejar... - murmurou aproximando sua boca da dela. - Cada vez que o necessitar... lhe darei - determinou isso justo no instante que a beijava de novo e de que aqueles dedos, que faziam vibrar o clítoris, se introduziram no interior da mulher como se fossem seu próprio sexo.

- Mais... - pediu. - Quero mais...

- Querida... não é adequado que... - tentou dizer.

- Prometeu-me que me acalmará quando e onde queira e o quero agora mesmo - disse entrecerrando os olhos, ruborizando-se ainda mais por seu atrevimento e notando como seu coração aumentava a um ritmo difícil de aguentar.

- Oh, meu amor! - Exclamou Michael perdendo todo o controle que tinha mantido. Como podia conduzi-lo a tal loucura? Acaso não era consciente de que não era o momento de possuí-la? - Deixe que a proteja, que cuide de você de maneira correta - suplicou.

Com pesar, afastou a mão de debaixo da saia. Precisava pôr certa distância entre eles e que voltasse à razão. Mas não o obteve quando percebeu que as mãos dela, aquelas que se pegaram às lapelas de sua roupa com desespero, baixavam devagar para tocar aquele membro duro que lutava por sair ao exterior.

- Cumpra sua promessa, Michael O´Brian - desafiou-o.

- Não deveria... - comentou em voz baixa enquanto jogava a cabeça para trás. Podia gritar de prazer? Porque jamais havia sentido nada parecido. April desabotoou o botão de sua calça procurando, desesperada, tocar seu duro sexo. E o tocou. E o acariciou rodeando-o com suavidade. E Michael se achou em um estado de frenesi tão incrível que esteve a ponto de ajoelhar. - Rendo-me... - disse mediante um suspiro longo e profundo. - Rendo-me a você, April Campbell.

E tal como ela demandou, Michael tirou seu falo ereto, elevou o tecido da saia até sua cintura e fez com que ela enredasse suas pernas nele.

- Comigo... - começou a dizer sem meditar suas próprias palavras - não achará ternura no sexo, April. Sou um monstro, sou uma besta sedenta de algo que quase ninguém entende. - Nesse instante a penetrou com dureza, com toda a necessidade que sentia.

- Se for um monstro, - disse April cravando suas unhas nas costas vestidas do inspetor - eu também sou...

- Quer que se domine, que se submeta com a força que requer o monstro que vive em mim? - Perguntou investindo-a pela segunda vez com tanto ímpeto que podia tocar o final de seu útero.

- Sim - respondeu ela aproximando sua boca da dele. - Quero e necessito tudo o que possa me oferecer - declarou antes de unir seus lábios aos masculinos.

Terminou por render-se, por deixar-se levar, por perder o pouco controle que possuía. Michael a possuiu com tanta paixão, com tanta impaciência, que notou como seu coração abandonava seu peito. Sim, partia de seu corpo para entrar no dela, como estava fazendo seu sexo, sua alma e inclusive sua besta. Era dela, sempre o tinha sabido... e enfim a conseguia.

- Michael... Michael... - repetia uma e outra vez seu nome ao sentir as invasões dele.

- April... meu amor - disse ao notar como sua semente percorria seu sexo para impactar nela. - Não sou ninguém sem você - confessou em voz baixa.

- Nem eu sem você... - respondeu April a essa confissão.

As últimas sacudidas de prazer foram tão intensas que O´Brian começou a debilitar-se. Como pôde, pegou a mulher à parede e colocou sua cabeça no torso feminino. Seu coração pulsava ao compasso do dele, igual à respiração. Pela primeira vez em sua vida não queria abrir os olhos se por acaso descobrisse que tudo tinha sido um sonho. Tinha-a tomado como o senhor Dark e imaginou que nada podia ultrapassar o prazer que encontrou. Não obstante, equivocou-se. Tomar April Campbell como Michael O´Brian significou muitíssimo mais.

De repente, a confusão o golpeou. O que aconteceria a partir de agora? Voltaria ela para os braços do senhor Dark? Se conformaria com o inspetor? Se ela o aceitava, cedo ou tarde teria que lhe revelar o que ocorreu no Clube e não só se encontraria zangada pelo descobrimento, mas sim ele morreria de dor se não fosse capaz de lhe confessar o que tinha feito naquela quarta-feira. Como podia complicar tanto uma coisa tão singela?

April percebeu um comportamento diferente em Michael. Não se mantinha afastado dela e sim mais unido que nunca, mas sua mente estava em outro lugar. Teria dúvidas? Acaso seu ato imprudente não tinha acalmado todas as suas incertezas? Para aplacar aquela inquietação, esticou suas mãos e as colocou sobre a cabeça dele, enredando seus dedos entre o cabelo negro.

- O que pensa? - Aventurou-se a dizer.

- No que farei amanhã. Como compreenderá, depois do acontecido entre os dois, terei que me apresentar ante seu pai para lhe pedir sua mão... - murmurou Michael sem mover-se.

- Acredito que seria o adequado - disse sorrindo de orelha a orelha. A Michael não importava montar um escândalo entre os dois, e sim enfrentar seu pai. Isso sim que era divertido!

- E se não me conceder a petição? - Perguntou afastando-se lentamente dela. Com muito cuidado e ternura a ajudou a esticar o vestido e, quando finalizou, ele se arrumou também.

- Bom, poderia convencê-lo se lhe prometer que nosso primeiro filho se chamará como ele - disse zombadora.

- Outro Norman na cidade? Acredito que ninguém está preparado para isso! - Respondeu mordaz.

- Será um Norman O´Brian, talvez resulte uma boa mescla... - assinalou colocando suas palmas sobre o torso que continuava com uma respiração entrecortada.

- Prometeria o que for para te ter, April Campbell Fodernet. O que for... - disse antes de voltar a beijá-la.


Norman não tirava os olhos da porta por onde tinha saído sua filha. Em mais de uma ocasião pensou em abandonar a sala e sair a procurá-la, entretanto, tinha uma intuição e, para seu prazer, era bastante agradável.

- Não está demorando? - Perguntou Florence colocando a mão sobre o antebraço de seu marido. Tinham dançado já duas peças e April não tinha aparecido. Embora lhe agradasse que sua filha enfim soubesse o que desejava, não era prudente que todo mundo descobrisse que se afastou durante tanto tempo.

- Terão muito do que falar... - indicou Norman desenhando um sorriso.

- Mas começarão a murmurar sobre ela. Já sabe quão suculento é proclamar um rumor e ainda mais depois do que fez Eric - expôs Florence com aflição.

- Acredita que deveríamos nos preocupar pela possibilidade de que nossa filha perca sua virtude? - Perguntou sarcástico.

- Não é isso! - Exclamou irada.

- Pois então, não siga com isso na cabeça. April tem... - ficou calado ao vê-la entrar. Contemplou como lhe brilhavam os olhos e seus lábios se estendiam levemente para desenhar um sorriso; o rubor de seu rosto a fazia formosa e Norman deduziu que seu pressentimento era certo. «Enfim!», exclamou uma voz em sua cabeça. - Olhe, aí vem. Pode lhe perguntar você mesma por que demorou tanto.

- Não posso ser tão descarada... - repreendeu.

- Pois eu estarei encantado de sê-lo.

- Nem te ocorra, Norman Campbell. Se puser a nossa filha em um apuro, juro que não dormirá em nosso leito durante uma boa temporada.

- Querida, acredito que o único que pôs April em um apuro foi o inspetor - adicionou divertido.

- Nem o insinue. Se não mantiver escondida essa língua... - advertiu antes que ela se aproximasse o suficiente para escutá-la.

- Tudo bem? - Perguntou-lhe Norman quando ela se aproximou.

- Sim, por que o diz?

- Porque... - olhou Florence e compreendeu que a advertência era firme, que não lhe perdoaria se se atrevesse a lhe perguntar aquilo que lhe rondava pela cabeça. - Porque sua mãe está cansada e deseja retornar agora mesmo a nossa casa.

- Pois somos duas. Hoje foi um dia exaustivo... - começou a dizer ao mesmo tempo que caminhava de novo para a saída.

- Exaustivo como, querida? - Perguntou Norman que, nesse instante, notou uma pequena dor no lado esquerdo de seu torso.

- Bastante... - murmurou April sorridente ao entender que seu pai tinha deduzido o que tinha acontecido entre ela e Michael.


XVIII


No meio da noite, sob o silêncio que reinava no lar, April escutou o relógio cuco soar quatro vezes. Continuava sem entender, depois de quinze anos, como podia agradar ao seu pai esse som tão terrivelmente sinistro. Embora aquela noite não parecesse o ruído fantasmagórico de sua infância, mas sim um objeto lhe indicando que eram quatro da madrugada e que ainda não tinha sido capaz de fechar os olhos. Mas... como fazê-lo depois do acontecido?

Desesperada, entusiasmada e bastante inquieta, afastou os lençóis e se levantou da cama. Naquele momento arrependia-se de não ter aceito o ponche que sua mãe lhe ofereceu para que descansasse. Achava-se tão livre que não podia frear o sem-fim de ideias que surgiam em sua cabeça. Havia se decidido. Sim, ela tinha tomado a determinação de ir atrás de Michael para obter algo que, até aquele instante, não sabia que desejava. Seria a mudança de atitude dele o que causou essa repentina decisão? Possivelmente. Depois do comportamento do inspetor, depois de observar a frieza e seriedade que mostrou em frente aos outros, seu coração lhe gritou que não podia fazê-lo mudar, que adorava que atuasse com descaramento, com sinceridade, com firmeza e que se comportasse furioso pelos ciúmes...

April sorriu meio de lado ao recordar a cara de surpresa que expressou ao vê-la aparecer no hall. Tinha olhado cuidadoso atrás dela, possivelmente procurando a figura de seus pais. Mas nessa ocasião foi sozinha, posto que não necessitava da ajuda de ninguém para o que pretendia. Com as bochechas quentes como se estivesse em frente à chaminé durante horas, com as mãos trementes e com uma excitação difícil de conter caminhou para a cadeira que se achava em frente à penteadeira. Precisava se entreter com algo que a fizesse eliminar aqueles pensamentos pouco adequados para uma mulher em solidão e escovar o cabelo pela quarta vez era uma boa opção.

Ao visualizar sua própria imagem se escandalizou. Quem era aquela mulher que se refletia? April Campbell ou a viscondessa viúva de Gremont? Sem dúvida alguma era a primeira. Os olhos da viscondessa jamais brilharam daquela maneira, nem exibiu umas bochechas tão vermelhas nem sorriu de entusiasmo. Com efeito, a vida como esposa de Eric a fez empalidecer e aquele estado de aflição lhe arrebatou pouco a pouco a vontade de viver. Quantas vezes desejou morrer quando permaneceu na cama durante aqueles horrendos meses? Muitas, possivelmente porque tinha a certeza de que o causador da dita enfermidade era Eric. O que era aquele caldo que a obrigava a tomar...? Fechou seus olhos fazendo um esforço por concentrar-se naqueles anos, naqueles meses, e descobrir o que acontecia ao seu redor. Recordava-o vagamente...

Ela permanecia em um estado de tristeza após o ocorrido, Eric tentava fazê-la tomar uma beberagem para animá-la, não podia levantar-se, suas pernas não podiam sustentá-la, chorava, gritava e suava... muito. Devia ter informado seus pais do ocorrido, mas quando notou como aquele pequeno saía de suas vísceras, tão diminuto, tão débil e sem nada de vida, aceitou o conselho de seu marido. «Acredito que não deveria revelar a ninguém o que aconteceu - disse Eric quando o médico partiu. - Não só entristeceria seus pais, mas sim lhes dará a oportunidade de pensar que sofre o mesmo mal que padeceu sua mãe e isso, querida, não convém. O que pensariam todos aqueles que nos conhecem sobre sua incapacidade de me dar um herdeiro?». E se manteve calada.

April suspirou e voltou a olhar-se no espelho. Não, a mulher que se refletia frente a ela era a senhora Campbell, como a chamava Michael, e estava cheia de energia, entusiasmo e felicidade. Como um homem era capaz de contribuir tanto com aquela atitude? Porque, sem dúvida alguma, o inspetor era uma pessoa muito peculiar. A ela não só agradava aquele corpo hercúleo, mas sim tinha começado a adorar aquele caráter azedo que mostrava aos outros e a transformação que sofria quando ela estava presente. «Quero tudo – recordou. - Não me conformo com um pouco, nem com uma mísera metade. Cada vez que desejo algo tenho que obtê-lo por completo». E o teria de sua parte. Seria dele não só em corpo e alma, mas sim lhe daria tudo o que ansiasse dela. A imagem deles dois fazendo amor, respirando entrecortado, notando aquela pressão em seu interior, os ofegos, suas palavras de afeto... a ruborizaram de novo. De verdade um homem tão frívolo podia converter-se no amante mais apaixonado? Como era capaz de transformar-se em um homem tão passional em questão de segundos? «Um monstro», ele se definiu como tal quando a fez dele e ela, em meio ao êxtase, respondeu-lhe que também o era.

April levou as mãos para o rosto tentando acalmar aquele desesperador calor. Se continuasse tão acesa, logo lhe apareceriam na pele pequenas queimaduras. Seria assim pelo resto de sua vida? Michael teria que chamar o médico cada vez que fizessem amor porque suas bochechas se encheriam de bolhas? Sem poder apagar um sorriso travesso, inclinou-se para a bacia e umedeceu as bochechas com a água gelada. Para seu prazer, sentiu um pouco de calma, mas só um pouco. De repente, ao ver como as gotas vagavam por seu rosto assemelhando-se às pérolas brilhantes que se produziam ao fazer amor, rememorou a última vez que estas apareceram em seu rosto e, ante tal achado, levantou-se do assento com brutalidade.

Não tinha reparado nisso, não tinha pensado nem um só minuto nisso e se tratava de um problema que devia resolver o quanto antes possível. Se Michael lhe disse que desejava tudo dela e estava disposta a cumprir seu desejo, como podia desfazer-se do senhor Dark? «Tenho que falar com Vianey - disse. - Ela saberá como tenho que atuar». Começou a percorrer a habitação de um lado para outro, esfregando as mãos, notando como seu coração se acelerava devido à angústia. Ainda tinha tempo suficiente para resolver o problema. Tinha ficado de se encontrar com ele na quarta-feira e era domingo. Assim que amanhecesse, assim que as primeiras frestas de luz aparecessem, partiria para Jhopenser para falar com a baronesa. Comentaria o acontecido e ela entenderia por que se negava a encontrar novamente com aquele homem.

Não obstante, teria que apresentar-se para lhe explicar que não voltaria nunca mais? E se a descobriam? E se por uma malvada casualidade Michael descobrisse que ela visitou aquele Clube? Toda aquela inquietação agradável produzida pelo encontro com o inspetor começou a transformar-se em desespero. Vianey lhe jurou que ninguém conheceria sua identidade, que nenhum membro do Clube seria descoberto, mas... e se o senhor Dark não fosse capaz de abandoná-la? Tinha proclamado que era dele, que lhe pertencia e que era a mulher que tinha esperado por toda a sua vida. Manteria essa promessa? Lutaria por continuar ao seu lado embora ela o rejeitasse? Triste e desesperada se sentou no colchão e esfregou seu rosto com angústia. Como tinha se metido em semelhante confusão? Durante sete anos foi fiel ao Eric, jamais pensou em amantes e, agora, depois de ter enviuvado e de não ter que dar explicações a ninguém, encontrava-se em uma encruzilhada de difícil resolução. «E se lhe conta a verdade? E se lhe confessa que esteve com outro homem, mas que enquanto a penetrava pensava que era ele?», falou-lhe aquela voz em sua cabeça que ultimamente escutava com maior frequência. Não podia fazer tal coisa! O que Michael pensaria ao lhe declarar tal idiotice? Se até apareceu no dia seguinte de sua visita ao Clube preocupando-se com ela apesar de estar ferido! «Nada bom - respondeu-lhe aquela voz de novo. - Se sentirá ofendido, humilhado e te abandonará». E sentenciaria que tudo o que lhe tinha acontecido na vida o tinha merecido por ser libertina.

Umas lágrimas brotaram de seus olhos. Não podia acreditar que tudo pudesse esfumar-se por uma desesperada decisão. O diário de Úrsula! Sim, aquele livro erótico a tinha inquietado tanto que lhe fez pensar coisas inapropriadas. Poderia usá-lo como desculpa? Michael poderia perdoá-la se alegasse que, em um momento de debilidade, leu o livro e se confundiu? E, para piorar as coisas, tinha praticado aquilo que lhe sussurrou com outro homem... riria dela. Em frente ao seu pálido rosto, ele soltaria uma gargalhada por desculpar-se com tão tremenda idiotice. Jamais tomaria como uma justificativa, mas sim como um ato acusatório.

April devia ser consciente de que não se dirigiria a um aristocrata imoral e sim a um homem que era implacável com os erros. «Maldita seja!», falou para si. Precisava esclarecer todo aquele alvoroço antes que Michael aparecesse em Shother para pedir sua mão porque, se não pudesse solucionar esse problema, não o aceitaria. Desesperada, caminhou para a janela, sentou-se no batente de madeira e esperou a chegada da alvorada enquanto rezava para que Vianey a ajudasse a sair da tremenda confusão.


- Que manhã mais estranha... - refletiu Florence enquanto tomava o café da manhã com seu marido.

- Parece-me muito normal que nos levantemos com uma ligeira e contínua chuva - comentou Norman após observar como as gotas de água manchavam o vidro da janela.

- Não me refiro a isso, e sim ao ambiente que se respira nesta casa - explicou.

Norman inspirou com força, procurando aquilo que lhe indicava sua esposa, mas não descobriu nada.

- Bobagens! - Exclamou antes de levar uma parte de pão torrado com mel à boca.

- Não são bobagens, Norman. Pensa um pouco... - ao ver como abria os olhos esperando uma explicação, prosseguiu: - Não te parece estranho que nenhum cavalheiro tenha enviado flores à nossa filha?

- Isso é o que a preocupa? - Soltou sorrindo de orelha a orelha.

- Em minha primeira aparição em sociedade recebi, antes de me levantar, vinte ramos de flores - disse zangada. - Entretanto, ela não tem nenhum ainda.

- Não foi sua apresentação em sociedade, além disso, para que April quer as flores? Acaso pretende abrir uma floricultura? - Perguntou mordaz.

- Norman! – repreendeu-o Florence. - Não sabe o que significam esse tipo de presentes para uma mulher?

- Sim, um problema - declarou justo antes de tomar um sorvo de chá.

- Só você poderia denominar assim uma adulação. - Zangou-se e afastou o prato de comida de seu lado.

- Querida, foi testemunha da atuação de nossa filha e muito me temo que outros cavalheiros também. Ela se decidiu pelo inspetor e este, salvo que ponha aos seus pés o criminoso mais procurado, não terá outro tipo de detalhes com April.

- Claro! E se for assim... em vez de vir pedir sua mão, mandará um de seus agentes para que ocupe seu lugar - respondeu irônica.

- Essa alternativa não é viável. Por como atua quando está junto a ela, não seria capaz de ver nossa filha com outro homem... - comentou desenhando um enorme sorriso.

- Também me dei conta disso... não te parece que se trata de um homem muito possessivo?

- Protetor - retificou com rapidez Norman. - Quando um homem está apaixonado por uma mulher fica como um cão guardião. Além disso, April necessita aquilo que nunca teve. Não percebeu a maneira que o inspetor a levava pelo braço? Parecia um grande galo exibindo sua colorida plumagem em um curral de galinhas.

- Foi April quem correu atrás dele. Nem você nem eu a obrigamos a nada. De minha parte, sempre soube que o senhor O´Brian era o homem adequado para nossa filha - apontou reflexivo. - Lembra-se do que aconteceu naquela festa. Ainda posso ver seus olhos repletos de fúria quando descobriu que o visconde de Gremont tinha a intenção de dirigir-se a April.

- E previu o que ocorreria depois.

- Sim, mas graças a isso permaneci atento ao futuro dela. O que acredita que teria acontecido se tivesse dado àquele ignorante tudo aquilo que aspirava?

- Que não só nossa filha teria se arruinado - disse com um suspiro.

- Em efeito. Então não deve se inquietar por não ter uma centena de ramos de flores perfumados na entrada, April já não valoriza esse tipo de detalhes - acrescentou enquanto se levantava do assento colocando suas palmas sobre a mesa e empurrando a cadeira com as panturrilhas. - Bom, comecemos um novo dia e, se Deus for complacente, iniciaremos a etapa de nossas vidas que sempre sonhamos.

- Tão seguro está de que aparecerá? Não tem nenhuma pequena dúvida? - Perguntou fixando seus olhos em Norman que caminhava para ela. - Talvez não se decida...

- O inspetor não perderá outra oportunidade para alcançar o que sempre quis. - Aproximou sua boca do cabelo dela e o beijou. - Então prepara a imagem de mãe surpreendida porque a qualquer momento baterá na porta.

- Isso espero... - murmurou.

Justo no momento em que Florence se levantou para acompanhar Norman fora da sala de jantar, April abriu a porta levando em suas mãos uma pequena caixa. Ambos os pais ficaram observando-a durante uns instantes e os dois perceberam que o rosto de sua filha mostrava uma mescla de alegria e entusiasmo.

- Bom dia, já tomaram o café da manhã? - Perguntou aproximando-se deles.

- Bom dia, acabamos de terminar - respondeu Norman cravando o olhar na caixa. - O que é isso?

- Um presente que o inspetor enviou - respondeu. Quando se aproximou da mesa, depositou a caixa e ambos contemplaram o que havia no interior.

- Morangos! - Exclamou a mãe surpreendida.

- Bom, não são flores, mas é um bonito presente - apontou Norman sagaz.

- Flores? Para que eu quero flores? Todas as que quiser posso pegar no nosso jardim - disse April franzindo o cenho.

- Isso mesmo foi o que eu disse... - interveio o senhor Campbell feliz.

- Como sabe que são do inspetor? - Perguntou sua mãe que não pôde conter o desejo de pegar um morango. Adorava tanto ou mais que sua filha.

- Porque dentro havia uma nota e estava assinada por ele - explicou com um leve sorriso.

- Além de sua assinatura... escreveu algo mais? - Interessou-se Norman.

Encontrava-se mais emocionado que April. Talvez porque seu sonho, seu desejo e a única oração que tinha realizado desde que conheceu o inspetor estava se cumprindo. Como podia adorar um homem tão esquivo como o senhor O´Brian? Como tinha a firme ideia de que era a pessoa adequada para sua filha? Possivelmente porque atuava da mesma maneira que ele após conhecer sua esposa. Não lhe importou que fosse a filha primogênita de um duque, nem que a família o olhasse por cima do ombro, nem que tentassem evitar qualquer encontro entre os dois. Ele lutou por cima de todas as adversidades que achou até obter que Florence se convertesse em sua esposa.

- Informa-me que nos visitará às quatro da tarde - disse enfim April.

- Às quatro? - Repetiu Florence estupefata. - Fica pouco tempo! Tenho que preparar tantas coisas!

- Um bom chá será suficiente - assinalou a filha.

- Um chá? Melhor um bom Porto! - Exclamou Norman.

- Não acredito que seja acertada essa escolha, pai. Recorde o que aconteceu com o Eric e, muito temo que o senhor O´Brian seguirá negando-se a tomar uma bebida da sua mão - acrescentou divertida.

- Tolices! Quantas vezes terei que proclamar minha inocência? Isto é desesperador! - Exclamou enquanto se afastava delas. - Nem que fosse um assassino em série... como... não tem a mesma opinião que eu? Pois bebe do meu delicioso licor, que amanhã não respirará - balbuciava.

- Meu pobre marido... - comentou Florence olhando como seu marido realizava um sem-fim de dramalhões. - Por mais que o tente, seguirão acreditando em sua culpa.

- Pensa que ele o fez? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Não, é óbvio que não - respondeu com rapidez. - Ele pode fazer muitas coisas, mas jamais mataria um homem, por mais que o odiasse. - Florence cravou seus olhos na caixa e sorriu. Não eram flores, mas era um delicioso detalhe. - Mudando de assunto - disse dirigindo seus olhos para April. - Pensou em qual vestido vai usar? Embora seja a segunda vez que pedem sua mão, também tem que ser especial.

- Por sorte tenho o guarda-roupa repleto de novos modelos, assim escolherei o primeiro que veja apropriado - disse sentando-se para tomar o café da manhã. Quanto antes terminasse, mais rápido poderia visitar Vianey e, apesar de ter atrapalhado seu primeiro desejo ao ver o presente de Michael, tinha que levar a cabo seu plano antes das quatro.

- Que cor gosta o senhor O´Brian? - Perguntou Florence sentando-se de novo. - Seria um bonito detalhe de sua parte recebê-lo com seu tom preferido.

April ficou imóvel durante uns instantes ao descobrir que não sabia. Rememorou com rapidez a forma de vestir do inspetor e não achou outra tonalidade salvo o azul escuro ou o negro. Seriam suas cores preferidas ou as utilizava porque lhe proporcionavam um porte elegante? Respirou fundo, dirigiu a mão para a asa do bule e encheu a xícara.

- Acredito que gosta do vermelho - disse depois de escolher uma ao azar. - Embora já sabe que essa cor não me favorece.

- Mas podia fazer um pequeno esforço, querida - apontou Florence. - Com certeza lhe agradará ver-te com sua cor preferida.

- Que tal se procurarmos o vestido turquesa? - Soltou de repente. Se queria impressioná-lo, se queria deixá-lo com a boca aberta, era a melhor opção. Assim lhe demonstraria que o tempo não tinha transcorrido entre eles. O agradaria esse detalhe? Lembraria do vestido que usou a primeira vez que a viu?

- Não sei onde estará... - murmurou a senhora Campbell. - Quando partiu, a senhora Seller se encarregou de recolher seu quarto e guardar tudo o que possuía em uma dezena de baús.

- Bom, enquanto visito Vianey e lhe conto o que acontecerá esta tarde, poderia revistar todos esses baús e me preparar isso.

- Quer empregar o pouco tempo que tem falando com Vianey? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- Já sabe como é a baronesa, se descobrir que me comprometi de novo por outra boca que não seja a minha, estou segura de que interromperá a cerimônia para vociferar diante de todos os convidados que sou uma ingrata depois de tudo o que tem feito por mim e, depois das acusações, levará a mão à testa para desabar fingindo um desmaio - explicou com a esperança de que sua elucidação fosse acreditável.

- Sim, tem razão... - refletiu. - Esse é o motivo pelo qual tem essas horríveis olheiras? - Comentou Florence apanhando outro morango.

- De certo modo... - respondeu bebendo o chá com rapidez. - Entenda que depois dos anos com Eric, voltar a conviver com outro homem...

- Não está segura de que o senhor O´Brian seja o adequado para ti? - Quis saber. - Recordo-lhe que ninguém a obrigou a sair correndo atrás dele.

- Se me tivesse perguntado isso há uma semana, teria respondido com um terminante não. Entretanto, depois de ontem entendi que Michael é a única pessoa que pode me fazer feliz - confessou.

- Michael... - sussurrou Florence.

- Ontem me disse como se chamava... - tentou desculpar-se por falar daquela forma tão íntima.

- Não me surpreende seu nome, querida, e sim o tom que utilizou para dizê-lo - esclareceu.

- Que tom utilizei? - Perguntou enquanto olhava os morangos resistindo em pegar um. Não, não podia pegar nenhum se ansiava conseguir o que lhe insinuou na nota.

- O mesmo que usei quando soube que aquele insolente jovem Campbell se chamava Norman - explicou ruborizando-se.

- Algum dia deveríamos conversar sobre esse episódio de sua vida. Nunca me revelou como o vovô aceitou o casamento.

- Não ficou mais remédio! - Exclamou Florence levantando do assento.

- Por que? - Insistiu April levantando-se também.

- Porquê... porquê... - titubeou ruborizando-se por momentos.

- Porque... - perseverou a filha abrindo os olhos, na expectativa.

- Porque era, é e será o homem adequado para mim - declarou antes de lhe dar as costas e sair espavorida do salão. Como ia confessar à sua filha que se apresentou na antiga casa de Norman e que tinha subido até seu quarto? Nunca! Isso não podia revelar jamais!

April ficou olhando-a com os olhos semicerrados. Pela primeira vez sua mãe tinha um segredo que guardava com afã. Um que a envergonhava. Acaso aconteceu algo entre seus pais que não podia confessar? Bom, por sorte, seu pai nunca lhe ocultava nada e aproveitaria qualquer momento para lhe perguntar o que ocorreu entre eles. Interessava-lhe averiguar como o temível duque não se opôs ao matrimônio de sua filha primogênita com um simples plebeu.

Com um sorriso grandioso dirigiu-se ao hall, devia resolver o problema antes que Michael aparecesse em sua casa. Devagar levou a mão para seu peito para tirar a nota que lhe tinha escrito. As bochechas voltaram a tingir-se de vermelho e sua respiração se acelerou. Como podia ser tão ousado? E se alguém tivesse lido a nota antes que ela? Entretanto, aqueles detalhes, aquele atrevimento, faziam-no diferente do resto da humanidade. Como era capaz de fazer revoar as borboletas em seu estômago com tanta facilidade? Como era possível que, apesar de estar longe dela, mantivesse-a excitada todo o tempo? Como era capaz de enlouquecê-la com uma simples frase? De fato, não lhe tinha mentido. Michael era um monstro, uma besta lasciva que nunca poderia lhe oferecer um momento de serenidade.

April sorriu enquanto embalava a nota em seu peito, apertando-a com força. Não devia lê-la de novo, não devia permitir que aquele calor emergido desde seu baixo ventre brotasse como um fogo poderoso. Não obstante, embora não devesse fazê-lo, pegou as costas na parede e, depois de comprovar que não havia ninguém ao seu redor, desdobrou o papel devagar...

Eu não gosto das flores e como ontem descobri que o morango é sua fruta preferida, decidi lhe enviar uma pequena caixa como presente à sua valentia. Não coma todos, deixe seu estômago vazio para esta noite, comprei outra caixa para nós... sabe que os morangos são uma fruta afrodisíaca?

A verei às quatro.

Seu para sempre,

Michael O´Brian.

P.S.: eu adorarei averiguar que sabor obterei quando minha boca os pegar diretamente de sua pele.

Sentindo como seus joelhos começavam a fraquejar pela promessa de Michael, tentou manter a compostura para falar com Larson, que permanecia impassível em frente à porta principal.

- Senhora Campbell... - saudou ao vê-la.

- Necessito o quanto antes da carruagem, tenho que sair.

- É claro, direi ao Shoel que a acompanhe.

Esteve a ponto de soltar uma gargalhada pelo comentário do mordomo. Como era de esperar, depois do acontecido na Scotland Yard, não confiavam em deixá-la só se por acaso estivesse em outra situação perigosa. Mas, por paradoxos do destino, já o estava e não da maneira que Larson imaginava.

Depois de sentir o calor de seu casaco sobre as costas, April saiu ao exterior para esperar Shoel. Achava-se tão desesperada que nem a leve garoa podia mantê-la no interior de Shother um segundo mais. Quando o filho de Larson desceu e abriu a porta, April correu para ele.

- Bom dia, senhora Campbell. Para onde quer que a leve? - Perguntou desconfiado o homem.

- Para Jhopenser - esclareceu ao mesmo tempo que subia para o interior.

- Perfeito – escutou-o dizer enquanto fechava a porta.

Apoiou a cabeça na parede acolchoada, considerando como confrontar a situação. Teria que aparecer no Clube? Devia ser ela quem falasse diretamente com o senhor Dark? Iria lhe dar a liberdade que necessitava? Iria persegui-la? Depois de suspirar fundo e entrelaçar suas mãos enluvadas como se fosse rezar, April deixou sua mente em branco. Não queria continuar pensando em um fato que não teria solução até falar com Vianey. E sem dar-se conta, mediante o estalo continuado da carruagem e o cansaço, caiu em um profundo sono.


XIX


Não foi consciente de haver adormecido até que Shoel abriu a porta e a chamou com suaves sussurros. Depois de abrir os olhos e despertar, April aceitou a mão do lacaio e desceu devagar. Continuava aquela ligeira chuva que empapava tudo aquilo que tocava, mas por sorte o chão ainda era firme e a probabilidade de cair de bruços sobre o lamaçal não era muito alta. Olhou ao céu e suspirou. Esperava que melhorasse com o passar do dia; como sempre, os dias chuvosos lhe ofereciam uma tristeza que não devia sentir em um momento tão especial.

Sob o olhar atento de seu cocheiro, subiu as escadas levantando seu vestido com as mãos. Devia subir apressada, entretanto, seus pés lhe pesavam uma tonelada e avançava muito lenta. Por que seu corpo reagia dessa maneira? Seria pelo breve cochilo ou porque no fundo pressentia que Vianey não poderia ajudá-la? Desesperada, deixou cair a saia do vestido, levantou a mão e deu um forte golpe com a aldrava. A aparição do mordomo foi rápida, como se a estivesse esperando atrás da porta.

- Bom dia lady... senhora Campbell - retificou com rapidez ao recordar a última vez que ela visitou o lar da baronesa.

- Bom dia - respondeu com um sorriso enquanto lhe oferecia o casaco e as luvas. - Lady Swatton está acordada?

- Sim, a senhora se encontra tomando o café da manhã no salão diurno - informou ao mesmo tempo em que recolhia em seus braços os objetos dela. - Deseja esperar enquanto anuncio sua chegada?

- Tem companhia? - Quis saber olhando em direção ao salão.

- Não, senhora. Milady está sozinha neste momento - indicou na expectativa.

- Então, não se preocupe. Eu mesma me apresentarei - disse antes de dirigir-se para a sala.

Como devia explicar a Vianey o acontecido? Teria que começar por lhe falar sobre seus sentimentos para com o inspetor e logo lhe esclarecer que devido a isso não queria ir mais ao Clube? Nunca tinha moderado suas palavras nem suas decisões com ela, sempre lhe falou sem medo, embora desta vez a situação fosse diferente. O que aconteceria a Vianey quando explicasse ao senhor Dark que a mulher que pactuou com ele não retornaria? Teria problemas? A expulsariam do Clube? Milhares de dúvidas apareceram em sua mente na pequena caminhada. Sem dúvida alguma, não só ela estava em um sério apuro, sua amiga também. Parada em frente à porta suspirou fundo e abriu.

- Ainda não terminei - grunhiu Vianey sem olhá-la.

- Bom dia, lady Swatton - a saudou da entrada.

- April? - Soltou dirigindo seus olhos em volta dela. - O que faz aqui tão cedo? - Perguntou levantando do assento.

- Preciso falar contigo - declarou.

No preciso segundo que seus pés começaram a dirigir-se para sua amiga, a mulher que apesar de não ter seu sangue se convertera em um familiar muito amado para ela, começou um pranto sofrido que a surpreendeu. Estava tão desesperada?

- Oh, querida! - Exclamou a baronesa acolhendo-a entre seus braços. - O que acontece? Por que chora dessa maneira?

- Eu... eu... - balbuciou com o rosto pego ao grande peito de Vianey. - Preciso de você...

- Aqui estou, pequena - respondeu lhe acariciando o cabelo. - Como sempre. - Devagar e com suavidade separou-a de seu corpo para fazê-la sentar na cadeira contígua à sua. - Calma, pequena. Conte-me o que aconteceu. Sabe que a ajudarei em tudo o que puder - confirmou não só com suas palavras, mas também com um reconfortante apertão de mãos.

- Não sei por onde começar... me sinto tão desconcertada que mal posso pensar com claridade - comentou desesperada.

- Começa pelo simples, logo prosseguiremos com o complicado - animou.

- Nesta ocasião não há nada simples... - respondeu enxugando as lágrimas com o guardanapo que Vianey tinha utilizado para tomar o café da manhã. Ante esse ato tão inadequado, a baronesa arqueou suas sobrancelhas.

- Bom, então, perguntarei e você me responderá. Por que apareceu em minha casa antes do meio-dia?

- Porque não tenho tempo.

- Por que não tem tempo? - Repetiu atônita.

- O senhor O´Brian virá esta tarde à Shother para uma proposta de matrimônio - confessou.

- O inspetor quer casar-se contigo? - Perguntou abrindo os olhos como janelas. April assentiu. - E, pela maneira como chora, não deseja fazê-lo... - comentou com um ligeiro tom de tristeza.

- Não! Ao contrário! Quero me casar com ele! - Respondeu com rapidez.

- Esta era a parte complicada? - Perguntou esticando a mão para pegar a asa do bule.

- Não, é a parte singela - manifestou levantando o rosto. - Embora ainda não esteja capaz de raciocinar por que desejo fazê-lo...

- O´Brian é um homem encantador - disse Vianey. - Possivelmente seja um dos motivos.

Poderia lhe contar a verdade? Devia lhe explicar coisas que nem seus pais conheciam? «Tem que fazê-lo - insistiu a voz em sua cabeça. - Ela sempre soube te entender...».

- Faz me sentir viva - começou a dizer. - Desde que apareceu de novo em minha vida...

- De novo? - Interrompeu-a antes de dar um sorvo ao chá.

- Michael...

- Michael? - Perguntou desenhando um sorriso.

- Michael apareceu faz muito tempo em uma festa que meu pai ofereceu – prosseguiu. - Naquele momento era um agente de rua. Já sabe como meu pai sempre foi, utilizou sua amizade com o anterior inspetor para me proteger naquela cerimônia. Nesse dia foi um descarado. Aproximou-se quando saí ao balcão e, embora não vou repetir as coisas que me sussurrou, posso lhe confessar que me deixou desconcertada durante muito tempo.

- Possivelmente até que Eric Graves cruzou em seu caminho - acrescentou a baronesa com certo remorso.

- De certo modo tampouco desapareceram após me casar... - disse reflexiva. - Mas não vou lhe explicar o que ou quando pensava nele, só indicarei que fui fiel ao meu marido e que não voltei a ver o inspetor até que lorde Rutland e lorde Riderland se apresentaram em minha antiga casa acompanhando-o.

- E, o que sentiu ao vê-lo de novo? - Quis saber Vianey mostrando um enorme sorriso.

- Mal lhe prestei atenção. Estava tão desequilibrada por tudo o que acontecia que não pensei no homem que tinha agarrado minha cintura sem soltá-la em frente ao atento olhar dos lordes. Desmaiei, presa do pânico, perdi o conhecimento e uma criada me explicou, depois de despertar, que o inspetor foi quem me depositou sobre meu leito.

- Bom, isso é típico do Michael. É um cavalheiro apesar de aparentar um comportamento inadequado.

- Quando Eric morreu por causa do veneno que bebeu, indagou a procedência daquela garrafa. Por desgraça, meu pai a tinha dado naquela mesma tarde. Então Michael foi a minha casa em várias ocasiões fazendo um sem-fim de perguntas.

- Tenho que supor que considerou a possibilidade de que fosse seu pai quem o matou - refletiu.

- Mas não o fez. Sei que ele não seria capaz de fazer uma coisa assim. O mais provável é que Eric tivesse planejado e, depois de sua morte, conseguiria causar o dano que tanto desejou realizar à minha família - disse com pesar.

- Continua... - a animou.

- Em uma de suas visitas interrompi-os na biblioteca. Elevavam a voz e, por como soavam, pareciam enfurecidos. E assim era. Meu pai lhe pedia que liberasse o filho dos Seller e ele se negava alegando que era cúmplice no assassinato de lady Cooper. Embora pareça incrível, meu pai tentou lhe oferecer dinheiro para que o deixasse em liberdade.

- Não me surpreende... - murmurou Vianey. - Seu pai faria qualquer coisa pelas pessoas que lhe são fiéis.

- Ah, mas... ao inspetor? Depois de ler tudo o que narravam os jornais? Como é lógico, intervim e, embora naquele instante me parecesse que não alcançaríamos a liberação de Shoel, poucos dias depois apareceu em casa.

- Posso concluir que sua presença acalmou aos dois, não é? - Disse a baronesa antes de beber outro sorvo.

- Sim, acredito que sim. Mas desde esse momento, desde esse dia, cada vez que tinha sobre minha mesa o jornal, afastava as folhas até achar o que procurava - comentou April olhando para o nada.

- O que procurava? - Insistiu Vianey.

- Saber dele.

- Por quê?

- Porque meu pai me informou, no mesmo dia em que os interrompi, que o agente daquela festa e o inspetor eram a mesma pessoa - declarou.

- Que importância tinha para ti esse detalhe, April? Se o rejeitou no passado, por que não o faria anos depois?

- Não sei, Vianey - disse voltando seu olhar ao redor com lentidão. - Talvez porque sempre esteve alí, em minhas lembranças, em minha cabeça. Imagina o que pode pensar uma mulher quando passam os anos e só encontra um leito vazio e frio porque seu marido se vê com sua amante e não se lembra de sua esposa? Durante muito tempo pensei que ficaria louca. Entretanto...

- Entretanto? - Repetiu enquanto colocava seu braço esquerdo sobre os ombros da aflita April para consolá-la.

- Mantive-me sempre firme. Nunca tomei decisões repentinamente, nem com Eric - apontou ao ver como ela entrecerrava seus olhos. - Mas Michael me faz perder toda a sensatez que adquiri durante meus anos como lady Gremont.

- Como te faz perder essa sensatez?

- É... diferente - disse ruborizando-se.

- Pode especificar, querida? Porque, embora não acredite, todos somos diferentes - assinalou divertida.

- Eu gosto de sua ousadia, seu descaramento, sua maneira de me falar, de dirigir-se a mim. Cada vez que está perto me comporto como uma menina inquieta, temerosa e excitada.

- É um bom começo...

- Fala-me com sinceridade, não o assusta me incomodar ou me baixar as fumaças aristocráticas que adquiri sendo viscondessa. Perco a noção do tempo quando estamos dançando, quando sinto seu corpo perto do meu - indicou voltando o olhar para o nada. - Odeio que se afaste, que não encontre uma desculpa para ver-me todos os dias e, quando vi como foi ferido, meu coração deixou de pulsar ao pensar que o perderia daquela maneira algum dia.

- Refere-se à tarde que presenciou a briga em frente à Scotland Yard? - April assentiu. - Seu trabalho é perigoso e não pode proteger-se tanto como gostaria.

- Logo acreditei que se mudasse sua atitude poderia dar uma oportunidade a esse sentimento que começava a crescer em mim. Então exigi que se comportasse como um nobre e o fez. Mas não me senti feliz ao notar aquela frieza, aquela retidão que sempre mostraram os outros. Foi então quando descobri que meu interesse por ele se deve, sem dúvida alguma, à diferença que Michael possui em relação ao resto do mundo.

- Interessante... não conhecia esse sinônimo para expressar o amor - anunciou Vianey afastando a xícara.

- Não sei se é amor o que sinto por ele. Ainda não fui capaz de examinar meus sentimentos. Minha única certeza é que não desejo mantê-lo longe de mim - esclareceu.

- Em quem pensa quando se deita no leito? Quem aparece em seus sonhos? Seu coração se agita ao vê-lo ou se mantém calmo? Sente tremores em suas mãos suarentas ao tocá-lo? O que aconteceria se algum dia se encontrasse em frente à sua porta um agente informando que o inspetor foi ferido com gravidade? Pensou alguma vez em como seriam seus filhos? O que sentiria se se convertesse na senhora O´Brian? - Perguntou mal tomando ar.

April respirou profundamente. Conhecia a resposta a todas as perguntas, mas tinha suas dúvidas... o que aconteceria no futuro? Eric também a entusiasmou e lhe ofereceu um mundo imaginário e irreal. Faria o mesmo Michael?

- Saí da sala quando ele partiu - disse enfim.

- Na festa dos Shalfeit? Diante de todo mundo? O que fizeram seus pais?

- Sim, sim e nada. Não sei se isto responderá às suas perguntas, mas fui incapaz de me manter impassível ao ver que se afastava. Corri atrás dele e... bom, depois de falar e esclarecer nossos pensamentos, disse-me que se apresentaria em Shother para pedir minha mão. - As bochechas mudaram de tonalidade com rapidez. De repente eram vermelhas, logo brancas e, se tivesse podido adquirir a cor verde, o teria conseguido sem esforço. Evitou olhar Vianey. Ela podia averiguar, através de seus olhos, aquilo que lhe resultava difícil de contar. Que imagem ofereceria se lhe confessava que se entregou a ele sob a escada? Não, não podia lhe revelar esse detalhe, guardaria como sua mãe custodiava o dela.

- Não aconteceu nada mais? - Perguntou a baronesa entrecerrando seus olhos. - Porque, pela maneira em que ardem suas bochechas, percebo que está me ocultando a parte mais suculenta.

- Vianey, por favor, não insista! - Exclamou sobressaltada.

- Está bem, deixarei que minha mente me ofereça o que já imagino. Mas... - prosseguiu virando-se para ela - continuo sem compreender por que chorou com tanta amargura quando apareceu. Até agora só me disse coisas formosas.

- O complicado vem depois... - April agarrou o guardanapo e começou a retorcê-lo. - Não sei como me liberar do senhor Dark.

- Se liberar? - Perguntou arqueando as sobrancelhas. - Não vai visitá-lo de novo esta quarta-feira? Vai romper sua promessa?

- Acaso não me escutou com clareza? - Soltou zangada. - Vou aceitar uma proposta de matrimônio e, embora para os imorais aristocratas seja normal ter um amante, jamais lhe serei infiel.

- Já vejo... - murmurou levantando-se da mesa. Quando ficou de pé, as migalhas de pão que acumulava no regaço de seu vestido negro caíram ao chão sem fazer ruído. - Quer explicar ao senhor Dark que não aparecerá porque vai se casar?

- Se puder evitar lhe dar tanta informação, melhor. Assim que se inteirem que o inspetor se comprometeu com a viúva de um assassino, todos os jornais ecoarão a notícia e, para minha desgraça, o senhor Dark descobrirá quem sou na realidade. Eu não gostaria que no futuro... - disse com tristeza.

- Não sei como te responder isso - disse depois de meditar sobre o assunto.

Antes de responder a April devia falar com Michael, ele seria quem resolveria o dilema. Quereria que ela se apresentasse de novo no Clube? Revelaria quem era para que toda a comoção dela desaparecesse? Assim que partisse enviaria uma missiva e esperaria com inquietação a resposta. Se não trabalhasse de maneira adequada, a perderia.

- Não sei o que fazer! - Exclamou soluçando de novo. Suas mãos soltaram o guardanapo e se dirigiram para seu rosto para ocultá-lo. - Sinto-me como uma desgraçada, uma mentirosa, uma pessoa daninha! - Exclamou em meio ao pranto. - Como reagiria Michael se descobrisse que estive com outro homem enquanto me cortejava?

- Ai, meu Deus! Que situação mais horrorosa! - Gritou Vianey aproximando-se dela. Não se referia ao estado que se apresentava April, mas sim à situação em que ela mesma se encontrava. Não podia aliviar o desespero da mulher porque devia fidelidade ao Michael, mas tampouco podia deixá-la daquela forma tão dilaceradora. «Pensa, Vianey, pensa...», disse-se. - Minha querida menina, o inspetor te cortejava quando foi ao Clube?

- Apareceu em minha casa e... e me beijou - respondeu.

- Ah, eu beijei muitos homens depois que meu bendito marido morreu, mas a nenhum prometi cortejo - esclareceu.

- Não seria o reverso? - Corrigiu-a.

- Não me interrompa, jovenzinha - a repreendeu. - Como ia dizendo, um beijo não significa nada salvo isso. Disse-te o inspetor algo mais? Algo que te indicasse qual seria seu propósito?

April olhou para a superfície da mesa tentando recordar aquele momento.

- Disse-me que insistiria até me conseguir - disse enfim.

- Bem, isso continua sem esclarecer que desejava casar-se contigo, assim não deve preocupar-se por esse pequeno deslize - comentou aliviada.

«Sim, desejaria tê-lo em frente a mim para asfixiá-lo com minhas próprias mãos...».

- O que importa, querida menina, é o que faça a partir do momento no qual se ajoelhe e te ofereça o anel - insistiu para fazê-la entrar em razão.

- Mas o fará esta tarde e fiquei de encontrar com o senhor Dark na quarta-feira! - Clamou desesperada levantando do assento.

- Vamos por partes... retorna ao seu lar, ponha-se elegante para a chegada de seu prometido e deixe que eu fale com o senhor Dark. Assim que tiver uma resposta lhe farei chegar isso na maior brevidade.

- E se quiser que eu suba à habitação? - Soltou assustada.

- Recorda que te disse que sempre te respeitaria? - Mencionou.

- Sim, assim como declarou que eu era a mulher que tinha esperado em toda sua vida e que eu seria só dele - acrescentou.

«Maldito seja, Michael O´Brian! Retorcerei seus dotes varonis quando estiver frente a mim!», berrou irada Vianey em sua mente.

- Isso costumam dizer todos os dominantes - mentiu a baronesa abrindo seus braços para que a moça se introduzisse neles. - Não deve dar atenção a tais comentários, não são certos.

- De verdade? - Perguntou aliviada.

- Sim, querida. De verdade. - E em meio ao abraço, Vianey cruzou os dedos. - Deixe de preocupar-se. Retorne com seus pais, ponha o melhor vestido que tenha e receba como é devido seu futuro marido - repetiu com doçura. - Permita que tia Vianey se ocupe de todo o resto em troca de uma pequena permuta.

- Uma permuta? - Perguntou retirando-se o suficiente para que a baronesa apreciasse que tinha arqueado as sobrancelhas.

- Deve me prometer que a primeira filha que tenham terá meu nome. Já que não posso, nem poderei ter descendência, aproveitarei da fertilidade da minha sobrinha.

- Claro que o farei! Prometo-lhe isso! - Exclamou abraçando-se a ela com força. - Obrigado, Vianey, amo-te muitíssimo!

- E eu a ti, pequena. E eu a ti...


Percebeu a agitação que havia no interior da casa antes de Shoel estacionar a carruagem. Através da janela do veículo viu a senhora Seller correr no corredor da entrada para a porta de trás, pela qual se acessava a casa percorrendo a cozinha. Face à interminável chuva, observou duas das donzelas limpando, no interior, os vidros dos cômodos. Quando saiu, acreditou não estar em frente a sua casa. Como podiam havê-la transformado em questão de horas? O corrimão de pedra em que se apoiava para subir os degraus do jardim à entrada principal tinha ramalhetes vermelhos atados. Como lhe ocorreu dizer à sua mãe que era a cor preferida do Michael? E se não fosse assim? Tentaria encontrar um momento para lhe explicar o acontecido e que adulasse esse detalhe por parte de sua mãe.

Com seu casaco sobre as costas resguardando-a da garoa, April colocou o capuz e subiu aquela entrada decorada elevando o vestido. Não se comportaram assim quando Eric a informou que a visitaria dois dias depois para pedir sua mão. Parecia uma tolice, mas nem se incomodaram em lhe perguntar o que necessitava ou o que requeria para aquele momento. Tudo parecia muito diferente com Michael. Seria o presságio dessa nova vida? Todos se alegravam tanto da decisão que a apoiavam com seu esforço?

Deixou cair o vestido, tirou o capuz com lentidão e, antes de chamar voltou-se para o jardim. Era sua percepção ou até tinham eliminado as ervas daninhas? Com um sorriso de orelha a orelha, April se virou e, notando como seu peito se alargava ante a felicidade que sentia, agarrou a aldrava dourada e a golpeou duas vezes.

- Senhora Campbell, menos mal que veio - disse Larson desesperado. - Sua mãe tinha pensado em enviar um criado em sua busca.

- Quem pôs os ramalhetes de flores no corrimão? - Perguntou enquanto lhe oferecia o casaco.

- Não gosta? - Perguntou ao mesmo tempo que sacudia as gotas de chuva da roupa.

- Eu adoro! - Respondeu.

- Satisfaz-me escutá-la porque minha esposa... a senhora Seller se encarregou de atá-los depois de me fazer recolher todas as flores que encontrei no jardim da cor vermelha.

- Sinto-o... - se desculpou desenhando um leve sorriso.

- Não se desculpe, senhora. Foi um prazer. Só espero que o inspetor admire o recebimento - disse com um ar de esperança.

- Certamente que o fará - comentou tentando ocultar aquela gargalhada, que desejava sair de maneira escandalosa por sua boca. - Onde está minha mãe? - Quis saber enquanto olhava de um lado para outro.

- Continua no quarto de costura. Conforme escutei, encontraram o vestido que pediu e levam toda a manhã engomando-o - informou Larson sem mover seus pés do chão.

April o olhou de soslaio, sabia que queria lhe dizer algo, mas não se atrevia.

- O que acontece, Larson? - Insistiu ao ver que não era capaz de falar sem sua permissão.

- Já posso lhe dar os parabéns? Ficarei louco se não o faço... - acrescentou ruborizando-se.

- Os parabéns? - Arqueou as sobrancelhas.

- Por seu futuro compromisso – esclareceu. - Tenho que lhe confessar que na primeira vez que o senhor O´Brian apareceu por nossa casa quis jogá-lo a chutes, mas depois de ter liberado ao meu filho e após descobrir que tem um grande coração, só posso felicitá-la por ter escolhido o melhor homem desta cidade.

- Bom... ainda não veio. Pode arrepender-se...

- Não acredito e menos ainda depois de ter mandado...

- O que enviou o senhor O´Brian? - Interrompeu-o com brutalidade. Se tinha recebido outra nota como a que acompanhava aos morangos, o mataria!

- Uma garrafa de Porto, senhora. A fiz chegar ao senhor faz um momento - informou atônito.

- Tinha uma nota? A quem ia dirigido? Onde está meu pai? - Perguntou desesperada.

- Na biblioteca. O presente não era para você e sim para o senhor - esclareceu ao vê-la tão alterada.

Podia respirar? Sim, lentamente, mas podia fazê-lo. Como se atrevia a perturbá-la daquela maneira horas antes de sua aparição? Queria fazê-la sofrer? Sim, isso devia ser. Porto? Tinha lhe enviado Porto? Um sorriso malicioso apareceu em seu rosto. Conhecia-o. Sim, começava a conhecê-lo e isso a encheu de alegria. «Ele jamais aceitará uma bebida oferecida de suas mãos», havia dito sarcástica ao seu pai, e não se enganava. De repente olhou para a biblioteca. Como teria tomado seu pai tal atrevimento? A resposta a obteria breve.

- Obrigada, Larson, por suas palavras. Sabe que para nós a família Seller é muito especial - declarou abraçando-o com força.

- São nossos únicos familiares! - Exclamou Larson chorando. - Minha esposa, meu filho e eu estamos muito agradecidos pelo trato e o respeito que nos mostraram; agradeço todos os dias ao Senhor por aceitar a oferta de emprego que me ofereceu naquele dia seu maravilhoso pai.

- Não diga isso que me faz chorar também! - Disse entre soluços.

- Desejo-lhe muita sorte desta vez, senhora Campbell, e se não errar em meus pressentimentos, ele saberá valoriza-la - comentou afogado pelos sentimentos e mantendo de novo a distância. - E se não conseguir apreciá-la como devido, temos experiência em fazer desaparecer aos que não são adequados para a família.

- Larson! - Exclamou surpresa enquanto o mordomo partia.

Como todos podiam zombar de um tema tão importante? Acaso nenhum dos que viviam sob o teto de Shother entendiam que a pessoa com quem se casaria era um importante homem da lei? «Oh, meu Deus!», exclamou levando a mão direita para o rosto pelo desespero. Não tinham cura. Nenhum deles podia encontrar o remédio para comportar-se como era devido durante umas horas.

Depois de soprar dirigiu-se para a biblioteca, precisava falar com seu pai e aplacar a fúria que Michael teria produzido ao lhe enviar descaradamente o licor com o qual celebrar o compromisso. Antes de golpear a porta colocou a orelha na folha de madeira e tentou descobrir se brotavam palavras inadequadas de seu pai, mas tudo permanecia em silêncio, muito silencioso.

- Adiante. - Ouviu seu pai dizer quando bateu com dois suaves golpes.

- Encontra-se bem? - Perguntou sem afastar-se da entrada. Deu uma olhada rápida ao seu redor, descobrindo o pacote do presente e a garrafa em frente a ele.

- Entre, April, e toma assento, devemos conversar - disse com um tom nada reconfortante.

- Se for sobre o presente que lhe enviou o senhor O´Brian, Larson já me informou sobre isso - comentou enquanto caminhava para o interior.

- Não se trata disso, embora tenha de te explicar que me divertiu compreender que o inspetor, no fundo, é uma pessoa espirituosa. Mas não vou referir-me a isso, eu gostaria de falar contigo tal como devia ter feito no dia que Eric pediu sua mão.

- São situações diferentes... - indicou enquanto se sentava.

- Sei. Embora te pareça incrível, sempre tive a certeza de que O´Brian era o único homem que podia te fazer feliz, entretanto, isso é o que deseja? De verdade quer se casar com ele? Não quero que se sinta pressionada pela opinião que tenho sobre o inspetor, nem por como todo mundo o respeita, ou...

- Acredita que eu teria saído correndo atrás dele se não estivessem claros meus pensamentos? - Disse olhando-o aos olhos.

- Não tem obrigação de nada, April. Não importa o que ocorreu entre os dois ontem.

- Pai... - disse ruborizando-se.

- Nunca pusemos impedimentos em suas decisões, querida. Tanto sua mãe como eu quisemos que as escolhas que fizessem fossem acertadas e, se não o eram, que lutasse com unhas e dentes para as levar adiante. Mas... sabe que tipo de vida vai enfrentar? Se casará com um homem que encara o perigo dia após dia. Saberá como sai de seu lar, mas duvidará se conseguirá retornar da mesma maneira.

- Sei... - murmurou cravando o olhar no chão. - Assim como sou consciente do que perderei se não tentar.

- Tanto te ofereceu no pouco que se viram? - Interessou-se ao escutar tal confissão de sua filha.

Quando Eric apareceu ela só falava da vida que teria como viscondessa; das festas, dos eventos, de suas aparições em sociedade levada pelo braço de um homem tão formoso. Entretanto, não estava fazendo referência à corpulência do inspetor nem ao respeito que todo mundo lhe tinha ao estar presente. Estava falando de felicidade. Aprendera a lição? Pediria à vida aquilo que não obteve?

- Basta-me seu olhar para saber o que deseja, o que pensa ou o que tenta me dizer. Meu coração se descontrola quando o vejo aparecer e, embora pareça uma loucura, não sinto temor por ninguém salvo por mim mesma.

- Por quê? - Insistiu Norman mais feliz que sua filha.

- Porque eu gostaria de permanecer todo o tempo ao seu lado, roubando sua presença de tudo aquilo que o reivindique. Quero-o só para mim... - declarou.

- Isso mesmo senti, sinto e sentirei por sua mãe - confessou com um suspiro. - Então, não ficará mais remedeio que aceitar sua proposta e brindar com o licor que me enviou.

- Foi um gesto muito generoso de sua parte - comentou segurando uma gargalhada.

- Sim, meu futuro genro tem uma maneira muito peculiar de atuar - resmungou.

- Enviou-te uma nota? - Soltou procurando-a sobre a mesa.

- Como a que recebeu esta manhã? - Perguntou arqueando as sobrancelhas. - Sim, embora esteja seguro de que não seria tão ousada como a tua.

- Ele não foi ousado - defendeu. - É um homem muito respeitoso.

- Se for certo o que diz, podemos fazer um trato, se quiser.

- Um trato?

O que acontecia a todo mundo para declarar com tanta facilidade pactos com ela?

- Sim - afirmou Campbell com um leve movimento de cabeça. - Eu te mostro a minha - indicou enquanto tirava a nota da gaveta - e você me mostra a tua.

- Não a tenho! - Exclamou sobressaltada. - Acho que a perdi...

- Então, não há trato - apontou Norman com um sorriso malicioso.

Esteve a ponto de levantar-se e lhe arrebatar o papel pela força quando ambos se voltaram para a porta ao escutar como se abria com ímpeto.

- Graças a Deus que chegou! - Exclamou sua mãe respirando como se tivesse corrido pelo jardim. - Me acompanhe. Encontramos o ditoso vestido.

- Que vestido? - Perguntou Norman ocultando a nota em seu bolso.

- O que se empenhou sua filha em usar esta tarde - resmungou Florence.

- Qual? - Insistiu.

- O mesmo que usei quando conheci Michael - afirmou April.

- Boa escolha - concordou seu pai levantando do assento. - Estou seguro de que o deixará surpreso.

- Isso espero... - respondeu Florence exalando um grande suspiro.


XX


Então April tinha visitado Vianey para lhe pedir ajuda com o senhor Dark? Michael sorria com agrado após ler a nota que a baronesa lhe tinha mandado. Logicamente, além de lhe explicar que apareceu em seu lar antes das dez da manhã, repreendia-o por havê-la posto em uma situação semelhante. Não podia reprovar aquela reprimenda posto que deve ter sido muito duro para ela observar como April se derrubava depois de lhe confessar sua decisão de aceitar a proposta de matrimônio, e não poder aliviá-la lhe contando a verdade. O sorriso desapareceu de maneira fulminante quando releu as últimas linhas que lhe tinha escrito: «Estude bem sua jogada, Michael. Se não atuar de maneira adequada, a perderá para sempre». E tinha razão. Se, depois de lhe contar a verdade, fugisse de seu lado, ficaria sem ela e permaneceria submerso em um estado de agonia eterna. Que caminho devia tomar? Seria conveniente fazê-la aparecer no Clube e continuar fingindo o papel que ali desempenhava? Era melhor lhe dar essa liberdade sem que retornasse ante ele?

Michael se levantou de seu assento e caminhou pelo interior de seu escritório. Nunca imaginou que a relação com ela passaria de alguns encontros esporádicos no Clube a convertê-la em sua esposa. Sim, era certo que mais de uma vez sonhou tê-la para sempre, mas... tinha sido consciente, em algum momento, de que podia conseguir esse desejo? Colocou-se em frente à mesa, apoiou as palmas sobre a superfície e respirou fundo. Não, nunca tinha pensado que a conseguiria, que ela terminaria aceitando-o. Aquela mulher sempre tinha sido inalcançável, entretanto, agora podia tocá-la, senti-la, amá-la... «E se lhe contar a verdade no Clube?», perguntou-se. Sem dúvidas era a alternativa mais insensata que podia tomar. Não lhe faria passar três dias repletos de calvário quando devia desfrutar com os preparativos do casamento. «Casamento...», refletiu em silêncio.

Nem em seus pensamentos mais ambiciosos evocou uma palavra tão importante e agora o fazia com uma facilidade impressionante. Abaixou a cabeça, fixando seus olhos no estojo que colocou sobre a mesa. April o aceitaria depois de tudo? Continuaria ao seu lado após lhe declarar que aquele monstro do qual lhe falou era o próprio Dark? De repente sentiu como a força de seu corpo o abandonava, as palmas escorriam pela mesa devido ao suor. Jamais acreditou que se acharia em uma situação tão desastrosa. Estava a ponto de alcançá-la e de perdê-la em partes iguais.

Sua vida se assemelhava à balança daquela justiça cega que a sustentava. «Pai, me ajude!», exclamou desesperado. Fazia muito tempo que não o nomeava, talvez porque fazia muito tempo que não necessitava da ajuda de alguém tão importante para ele. Sempre tinha lutado sozinho desde que seus pais faleceram, desde que o deixaram desamparado sob o amparo de suas próprias decisões...

- Está bem! - Clamou golpeando a mesa. - O farei! Mas não nesse maldito Clube e sim em minha casa. Ela saberá quem sou assim que abrir a porta do meu quarto - determinou com firmeza.

E assim seria. No momento em que April contemplasse como tinha decorado seu quarto, não ficaria a menor dúvida de que ele era o dominante que tanto a inquietava. Agarrou o estojo, colocou-o dentro do bolso de sua jaqueta e saiu daquela habitação que o asfixiava. Precisava enfrentar seu destino o quanto antes possível.

A chuva tinha parado; para sua sorte o tempo começava a mudar. Seria uma premonição? Seu pai estaria lhe indicando que fazia o correto? Abotoou o casaco, meteu-se na carruagem e, depois de sentar-se fez algo que não tinha feito em anos: rezar.


- Passou muito tempo e não me assenta tão bem como naquele dia... - disse April olhando-se no espelho.

Sua mãe e a senhora Seller fizeram um magnífico trabalho ao recuperar o brilho do vestido. A suavidade e o brilho não tinham diminuído, a renda permanecia intacta e ninguém poderia imaginar que se tratava de um modelo com sete anos de idade. Entretanto, ao abotoá-lo, percebeu uma ligeira pressão no torso. Tinha aumentado o seio? Não, não se tratava disso, mas sim de sua respiração. Respirava depressa como se tivesse começado uma corrida. «Relaxe... - disse. - Tudo sairá bem». Virou-se para a direita e logo para a esquerda, admirando uma e outra vez a silhueta que lhe proporcionava aquela roupa.

- Começo a duvidar se escolhi o vestido adequado...

- Não diga tolices, senhora! Assenta-lhe muito bem!

- Não acha que está muito apertado? - Perguntou duvidosa ao mesmo tempo em que suas palmas percorriam o tecido.

- Que eu recorde, na última vez que o usou se ajustava ao seu corpo da mesma maneira. O único que mudou foi sua forma de exibi-lo - se aventurou a dizer Ethere. Ao ver como sua senhora a olhava na expectativa, continuou sua explicação: - Na primeira vez que o colocou desejava deixar sem fôlego todos os cavalheiros que a observassem, entretanto nesta ocasião o único que deseja ver sem respiração é seu futuro marido e, como bem sabe, o senhor O´Brian não é como os outros.

- Então... não se fixará em meu vestido? - Perguntou divertida. - Pensa que se só me ocultasse sob uma tosca regata lhe impactaria da mesma forma?

- Não seria conveniente que você cobrisse seu corpo com uma roupa assim... - disse divertida. - Conforme ouvi, o inspetor a devora com os olhos.

- Quem diz uma coisa assim? - Soltou ruborizada.

- Todos os criados, senhora - esclareceu com certo temor.

- E por que opinam desse modo? - Perseverou enquanto levava a mão a um dos caracóis que tocava seu ombro esquerdo.

- Por como a observa quando está ao seu lado. O senhor O´Brian não controla seu comportamento quando a senhora está presente - acrescentou timidamente.

- E têm razão - declarou April com um amplo sorriso. - O senhor O´Brian é um descarado - expressou orgulhosa antes de soltar uma gargalhada.

- Será muito feliz com ele - assinalou a donzela caminhando para trás para contemplá-la com maior precisão. - Os cavalheiros que não ocultam suas intenções, que não escondem seus verdadeiros sentimentos, são os mais fiéis. - Depois de seu manifesto ficou calada. Como tinha podido dizer tal tolice depois do sofrimento que padeceu com o visconde? - Sinto muito, senhora. Acredito que a emoção do momento me impediu de escolher as palavras adequadas.

- Não se preocupe, Ethere. Penso o mesmo que você - comentou em voz baixa.

- Chegou! - Exclamou Florence abrindo a porta de repente. - O senhor O´Brian acaba de estacionar sua carruagem no jardim! - Trovejou inquieta.

O coração de April bateu com tanta força que quase a fez ajoelhar-se em frente a elas. Tinha vindo, estava ali e, como sempre, cumpria tudo aquilo que lhe prometia. Uma inoportuna dúvida a assaltou antes de dar a volta para contemplá-lo sair do veículo. Estariam fazendo o correto? Desta vez escolhia adequadamente? Então o viu descer e o sorriso que desenhou ao observá-la atrás do vidro acalmou qualquer indecisão. Tal como lhe havia dito a donzela, Michael era aquele homem que tinha esperado encontrar. Por que não o descobriu naquele dia? Sua imaturidade e o desejo de converter-se em uma aristocrata a cegaram e a separaram de seu verdadeiro destino? Possivelmente ela devia padecer a vida que tanto ansiou para descobrir que nada do que a rodeava era tão importante como encontrar uma pessoa cujo principal objetivo era amá-la e protegê-la.

April pôs sua mão enluvada de renda branca no vidro para saudá-lo e ficou sem respiração ao ver que Michael respondia lhe lançando um beijo. Por que nenhuma das pessoas que amava podiam comportar-se como era devido?

- April, temos que descer ao hall. Não podemos perder muito tempo quando nos chamarem - informou Florence, que tinha estado observando sua filha sem pestanejar.

- Sim - respondeu ela afirmando brandamente com a cabeça. - Desçamos...


Michael caminhou ereto até a entrada sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Ela o esperava, permanecia atenta a sua chegada. Teria dúvidas? Pensaria se estavam fazendo o correto? Mas aquele sorriso de satisfação desapareceu ao recordar a segunda parte de seu plano. Como se comportaria quando não se ajoelhasse em frente a ela para a pedir em casamento? Aceitariam seus pais que a afastasse de Shother sem afiançar o compromisso? O que aconteceria depois de levá-la a sua casa? Isso que sentia em sua garganta era o palpitar de seu coração? Parado em frente à porta, tomou ar e chamou. «Alea jacta est»1, disse.

- Senhor O´Brian! - Exclamou Larson com tanta euforia que se ruborizou rapidamente por seu inapropriado comportamento.

- Larson, não é? - O mordomo assentiu. - Como se encontra seu filho? - Interessou-se enquanto lhe oferecia o casaco.

- Perfeitamente bem, senhor. Graças a você, a família Seller volta a ser feliz - indicou Larson recolhendo o objeto e colocando-o sobre seu antebraço esquerdo. - Não sei como poderei lhe agradecer algum dia sua imensa bondade...

- Sou eu quem está agradecido pela atuação de seu filho, ao proteger a senhora Campbell em frente à porta da delegacia de polícia - comentou estendendo a mão.

- Sempre protegemos a família Campbell, senhor - aceitou com admiração a saudação do inspetor. - E sobretudo a ela.

- Bom, espero que a partir de hoje concedam-me essa honra, se ela me aceitar, claro está - comentou sarcástico.

- Não duvide que o fará - afirmou Larson desenhando, por fim, um grande sorriso. - Se fizer a gentileza de me seguir, o senhor Campbell o espera na biblioteca.

- Chegou-lhe meu presente? - Perguntou arqueando as sobrancelhas.

- É claro! E tal como lhe indicou, não o tocou - disse ocultando o leve sorriso que se desenhou na sua boca.

- Perfeito... - sussurrou agradado.

Caminhando atrás do mordomo, Michael olhou de esguelha para o primeiro andar. Notou sua presença e inclusive podia cheirar seu perfume arrebatador. Permanecia escondida, espreitando-o como um caçador à sua presa. Por um momento desejou vê-la descer, como aquela primeira vez, mas por sorte para os dois não o fez. Se April aparecesse, ele teria dado a volta para dirigir-se até ela, pegá-la pela cintura e beijá-la com aquele desejo que aflorava nele cada vez que estava ao seu lado. Como podia o fazer perder com tanta facilidade o estrito controle que tinha sobre si mesmo? Porque era única...

- Entre – escutou Norman dizer.

O´Brian entrou no interior da biblioteca que tinha visitado em várias ocasiões por outros motivos. É óbvio, nada tinha mudado desde quinta-feira pela manhã, horas depois de April haver se encontrado com o senhor Dark. Em frente a ele, justo ao lado da cristaleira, achava-se a mesa de mogno escuro onde Norman estudava seus documentos. Como em todas as suas visitas, amontoava pastas e papéis em ambos os lados da mesa. Em frente, como se estivessem aguardando sua chegada, duas cadeiras com um assento muito duro o convidavam a sentar por um tempo limitado. A lareira ardia como se algum dos criados tivesse jogado, apenas ao vê-lo aparecer no jardim, quatro grossos troncos.

Com passo solene avançou para onde se achava Campbell, que se tinha levantado para recebê-lo. Por mais estranho que lhe parecesse só se escutava o ranger daquela lenha ardendo e suas pisadas sobre o tapete.

- Senhor O´Brian - saudou estendendo a mão.

- Senhor Campbell - respondeu aceitando aquele ato cortês.

- Me alegro de o ver de novo em meu lar - comentou Norman lhe assinalando uma das cadeiras.

- Agrada-me sabê-lo - apontou sátiro. - Embora pensei que me jogaria da residência após ser informado do meu propósito.

- Tenho que admitir que considerei a alternativa, mas depois de falar com minha filha e me confirmar que deseja converter-se na senhora O´Brian, reprimi qualquer desejo de jogá-lo. Entretanto, antes de dar meu beneplácito para essa proposta, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta.

- Qual? - Perguntou Michael desabotoando a jaqueta para acomodar-se na cadeira.

- É o que deseja? De verdade quer converter April em sua esposa? Tenha em conta que seu trabalho é bastante perigoso e, embora saiba proteger-se, cabe a possibilidade de que algum dia possa resultar ferido gravemente...

- Pensei que iria me perguntar se amo o suficiente sua filha para lhe dar a vida que merece - assinalou o inspetor arqueando as sobrancelhas.

- Sei que a ama - disse com firmeza. - O faz desde o primeiro dia que a viu em minha casa ocupando o lugar do antigo inspetor.

- Confia muito em seus...

- Só um homem apaixonado poderia olhar na minha cara com os olhos injetados em sangue e me advertir que minha filha estava em perigo! - Declarou Norman sem titubear. - Por que não voltou quando o requeri, senhor O´Brian?

- Porque tinha muito trabalho - se desculpou. Michael contemplou aquele homem com um ar de mistério. Tinha sido capaz de averiguar a verdade antes que ele? Tão evidente eram seus sentimentos por ela?

- Mentira! Não aceitou meus convites porque temia confirmar os sentimentos que manteve sempre por minha filha e, de certo modo, entendo-o. No passado April era uma menina mimada com milhares de ideias errôneas em sua cabeça. Não obstante, tenho que lhe confessar que sempre tive a esperança de que o escolhesse.

- Queria que me casasse com sua filha? - Perguntou assombrado. - Porque se era assim, teria lhe agradecido que me facilitasse o caminho... - comentou cruzando as pernas.

- Valorizam-se melhor os sentimentos quando se pensa que não os alcançarão - afirmou reclinando-se sobre seu assento e juntando os dedos, oferecendo mais peso à sua explicação. - Veio para propor matrimônio à minha filha, não é?

- Sim - respondeu terminante.

- Perfeito... - murmurou reflexivo.

- O que o preocupa, senhor Campbell? - Perguntou ao apreciar a mudança que mostrou seu rosto. Não havia zombaria nele e sim desconfiança. - Não está de acordo com este enlace? - Perseverou olhando-o sem piscar.

- Estou de acordo com essa proposta porque sei que April por fim será feliz, não obstante, há algo que me inquieta em todo este assunto - apontou Norman sério.

- Do que se trata? - Michael cruzou os braços e respirou pausadamente. Imaginava a que se devia a inquietação de seu futuro sogro, mas queria que ele mesmo se justificasse. Não podia começar uma aliança entre os dois com temores.

- Eu gostaria de saber que futuro pretende oferecer à minha filha. Tenha em conta que, dentro de alguns anos, ela será a herdeira de toda a fortuna que possuo - confessou finalmente.

- Não tomarei suas palavras como uma ofensa porque sei o motivo pelo qual as expõe. Entretanto, acredito que durante o tempo que levamos nos conhecendo, pôde compreender que minha atração por sua filha se afasta muito do interesse que pode me suscitar essa fortuna - manifestou sereno e exibindo uma fingida aflição.

- Mas se fizer a gentileza de me esclarecer que pensamentos tem a respeito, as possíveis dúvidas ficarão resolvidas no ato - insistiu Norman imutável.

- Ela se ocupará de sua fortuna tal como você lhe terá ensinado. É óbvio, a ajudarei em tudo o que necessitar, mas jamais obrigarei que tome uma decisão que não deseje - asseverou.

- Agradeço - disse Norman com um nó na garganta. - Sabia que escutaria essas palavras de sua boca, senhor O´Brian, agora só resta lhes desejar toda a felicidade que possam alcançar.

- Ainda não deve precipitar-se. Ela não me aceitou - comentou esquivo.

- Estou seguro de que o fará - disse Norman acrescentando às suas palavras um leve sorriso.

- Antes que ela responda, quero lhe mostrar a vida que levo como inspetor da Scotland Yard - alegou um tanto inquieto. Seria desculpa suficiente para sair de Shother com April sem levantar suspeitas?

- Não o compreendo - assinalou Campbell confuso.

- Eu gostaria que ela descobrisse por si mesma aquilo que posso lhe oferecer. Suponho que seria adequado para a futura senhora O´Brian averiguar in situ2 que trabalhos realizará seu marido quando a deixar sozinha em casa. Como bem indicou, exponho-me a um sem-fim de perigos diariamente - prosseguiu com sua argumentação.

- Quer dar um passeio com minha filha antes que lhe responda? - Perguntou assombrado Norman. Sabia que era um homem diferente, mas... tanto?

- Com efeito - reafirmou Michael com um leve assentimento.

- Isso só concerne a April - sugeriu o pai. - Embora creia que a surpreenderá sua decisão tanto quanto a mim.

- Não posso começar um matrimônio com enganos indevidos, nem quero que ela pense que obterá uma vida irreal, isso só conduziria a um desastre futuro, senhor Campbell - se justificou.

- Norman.

- Michael - respondeu.

- Mas... não é adequado que saiam sem estarem comprometidos - insistiu duvidoso. Norman levou a mão direita para seu queixo e o acariciou, acentuando com esse gesto a incerteza produzida pela exposição do inspetor.

- Deve-me um favor - disse Michael sério.

- Um favor? - Soltou Campbell olhando-o sem pestanejar.

- Sim. Acaso não recorda que liberei o filho de seu mordomo?

- Recordo-o perfeitamente - grunhiu.

- É um intercâmbio, Norman. Você não põe impedimentos e eu dou por resolvido o tema - declarou O´Brian categoricamente.

- Está bem. Deixarei que o acompanhe a esse passeio - disse levantando do assento. - Embora não saiba muito bem como aceitará essa repentina decisão. Espero que ela possa entender essa maneira tão peculiar de a pedir em casamento.

- Obrigado.

April não tinha podido permanecer no hall como desejou sua mãe. Quando percebeu que a porta se fechara atrás da entrada de Michael, desceu as escadas com rapidez e se dirigiu para a biblioteca para colar a orelha na porta. Precisava saber o que diziam dela. Seu pai poria muitas dificuldades? Michael saberia sair vitorioso de todas elas? Várias vezes conteve a respiração, mas o incessante batimento de seu coração se ouvia com mais força que suas vozes. De repente não escutou nada, permaneciam em silêncio. O que acontecia? Seu pai teria se negado mesmo conhecendo sua decisão? Presa do pânico, abriu a porta e se pegou de bruços com o torso de seu pai.

- Estava escutando atrás da porta, senhorita? - Perguntou-lhe com tom zangado.

- Não, foi uma mera coincidência. Ia bater quando abriu - comentou abaixando a cabeça para que Michael não percebesse nem seu rubor nem sua mentira.

- Entre de todos os modos, o senhor O´Brian tem que te fazer uma pergunta - informou Norman enquanto recebia Florence estendendo sua mão para ela.

- Senhor O´Brian... - April o saudou com cordialidade.

- Senhora Campbell... - respondeu ele aproximando-se dela para tomar-lhe a mão e beijá-la.

- O que deseja me perguntar? - Notou como seu coração se transportou à sua garganta, era incapaz de continuar falando e suas pernas pareciam debilitar-se ao observar aqueles olhos vorazes.

A donzela tinha razão, Michael a devorava com seu olhar e não escondia suas emoções ante os outros. Por isso soube, no mesmo momento que entrou, que lhe tinha agradado vê-la com o vestido. Recordava-o. Sim, recordava a roupa que usava na primeira vez que se viram.

- Eu gostaria de saber se gostaria de fazer um passeio - esclareceu Michael.

- Um passeio? Agora? - Exclamou estupefata.

- Sim - confirmou ele. - Eu adoraria que me acompanhasse pelas ruas da cidade. Tenho que fazê-la compreender quem sou na realidade antes de continuar com meu verdadeiro propósito.

- Quem é na realidade? - Expressou arqueando as sobrancelhas.

Michael voltou a assentir.

Assombrada girou para seu pai esperando que lhe indicasse o que tinha acontecido entre eles para que Michael não a pedisse em casamento, como devia fazer, de um modo convencional. Mas não adivinhou nada. O semblante de seu pai estava pálido, tanto como o dela.

- Aceita esse passeio, senhora Campbell? - Insistiu O´Brian.

- Sim, é claro - disse enfim.

O que Michael tramava? O que pretendia lhe mostrar? Havia lhe dito que averiguaria quem era na realidade, de que realidade falava? De repente, apesar de estar com as costas cobertas com o casaco que Larson lhe ofereceu, começou a tiritar. Sabia. Michael conhecia seu segredo e não queria humilhá-la diante de seus pais retirando a proposta. De repente April quis voltar para seu quarto, atirar-se sobre a colcha e chorar como uma menina. Entretanto, já não era nenhuma menina e sim uma mulher e, como tal, devia enfrentar com integridade seus atos, por mais arrependida que estivesse.


XXI


Um silêncio incômodo reinou no interior do veículo. April se sentou justo no assento que dava para a janela da porta e Michael na outra. Não podia deixar de pensar no motivo pelo qual tinha tomado a decisão de fazê-la sair de Shother sem lhe haver proposto matrimônio, nem tampouco como seu pai tinha aceito sem sequer rebater a desatinada ideia. «Saberá quem sou na realidade...». Essas palavras afloravam em sua cabeça uma e outra vez. Acaso Michael guardava algo que ela ainda não tinha descoberto? Ou talvez foi essa a desculpa que ofereceu para lhe confessar que tinha averiguado sua visita ao Clube? Observou-o de soslaio, tentando esclarecer aquelas dúvidas, mas seu rosto não revelava nada. Permanecia sério, com o olhar cravado no exterior. Aquela tensão de seu corpo a manteve em alerta. Até o momento não se comportou tão distante com ela e muito menos estando sozinhos. O que planejava? Que mistério ocultavam aqueles olhos azuis que não eram capazes de olhá-la? Esmagada pela incerteza, decidiu falar para romper aquele desesperador mutismo.

- Michael, eu... - começou a dizer.

- Imagino que se perguntará o motivo deste repentino comportamento - interrompeu. - Como suporá, não tenho a intenção de passear pelas ruas te levando pelo braço, mas sim pretendo nos dirigir a minha casa. Quero te mostrar algo antes que responda a minha pergunta - informou.

- A sua casa? - Repetiu virando-se para ele. Suas costas, aquelas que tinha mantido retas como uma tábua, começaram a encurvar-se de maneira inadequada. Sua respiração, agitada em cada inspiração, começou a ser tão desenfreada que notou como seu estômago lutava por tirar tudo aquilo que continha em seu interior.

- April... - murmurou com tanta tristeza que a ela lhe rompeu a alma. - Nunca te enganei, meu amor, e não o farei jamais - acrescentou aproximando-se por fim. Pegou-lhe as mãos e as dirigiu para sua boca para tranquilizar a inquietação que mostrava com um beijo.

- Michael, eu... - insistiu em falar. Seria o momento de lhe revelar aquilo que carcomia suas vísceras? «Nunca te enganei, meu amor e não o farei jamais». Como podia lhe confessar tal coisa? Porque sabia. É claro que sabia que ela tinha ido ao Clube e que se entregara a outro homem! Por isso lhe falava de enganos. - Eu gostaria de te comentar algo que ocorreu na semana passada. Acredito que deveria saber antes que cheguemos à sua casa.

Michael a olhou nos olhos e observou como se enchiam de lágrimas. Sua boca, tremente pelo que tentava dizer, enrugava-se sem ela ser consciente. Poderia beijá-la para evitar que continuasse falando? Um beijo seria suficiente para que ambos se esquecessem daquela noite?

- Não o faça ainda, April. Espera que cheguemos. Uma vez resguardados de tudo o que nos rodeia, falaremos longamente - apontou beijando de novo aquelas mãos trementes.

Devagar afastou o olhar dele e o fixou no vidro. Se não estava enganada, percorriam Mayfair, o bairro de Londres pertencente ao distrito de Westminster. Vivia naquela zona tão cara e prestigiosa? Michael tinha comprado uma residência naquele lugar? Isso era ao que se referia? Com os olhos abertos como pratos e com o coração em um punho, dirigiu seus olhos para ele esperando encontrar as respostas.

- Não pensaria que me alojaria em uma casa de campo suja, não é? - Perguntou como se lesse seu pensamento. - Não acredito que a senhora Warren teria me permitido tal descaramento - disse desenhando, por fim, um leve sorriso.

- A senhora Warren? - Repetiu entreabrindo os olhos. Nunca lhe tinha falado de nenhuma mulher e, apesar daquela agitação que sentia pelo que aconteceria quando a carruagem se detivesse, foram os ciúmes os que causaram um intenso rubor.

- Minha governanta - esclareceu.

- Ah... - disse aliviada.

- Quando cheguei a Londres procurando um emprego com o qual sobreviver, li no jornal um anúncio sobre aluguéis de quartos. A senhora Warren hospedava os inquilinos em seu lar por um módico preço. Com o tempo essa arrendatária resmungona e autoritária se converteu na família que não tenho. Depois de muitos meses procurando algo que me proporcionasse o salário suficiente para lhe pagar e me alimentar, ela me falou de uma notícia que escutou no mercado. Conforme parecia, o magistrado que dirigia a Scotland Yard necessitava de uma dúzia de novos agentes. Até aquele momento não pensei em achar outro ofício que não fosse o que me ensinou meu pai, mas o som do meu estômago me indicou que devia mudar de opinião. Então um dia, cansado e desesperado, decidi seguir as indicações que me ofereceu a senhora Warren - narrou, fazendo desaparecer, com a história, aquele nervosismo que ambos padeciam.

- O que ocorreu? - Nunca tinha lido sobre o passado de Michael. Sua vida parecia ter começado quando conseguiu seu atual cargo, embora ela o tivesse conhecido quando não era mais que um agente de rua.

- Apareci no escritório do antigo inspetor e lhe disse que procurava trabalho. É claro, rejeitou meu oferecimento de maneira categórica - disse, enquanto desenhava outro leve sorriso. - Mas não me rendi. Durante um mês inteiro me plantei em frente à porta daquele escritório pedindo uma oportunidade.

- E lhe deu... - falou ela sem afastar seus olhos dele.

- Sim, mas com uma centena de condições. Para minha sorte, tenho facilidade de aprender com rapidez e isso chamou a atenção do inspetor. Dia após dia submetia-me a um sem-fim de provas, cada uma mais difícil que a anterior. Entretanto, os resultados que obtive o convenceram da minha capacidade como agente.

- Li em um dos jornais que ele mesmo te cedeu o cargo - comentou April mais tranquila.

- Foi um dia muito emotivo para mim. Enfim conseguia me converter no homem que meu pai tanto desejou - disse com nostalgia. - Estou seguro que estaria encantado de presenciar um momento tão importante em minha vida...

- Não duvido que Elmet esteve ao seu lado. - Referiu-se ao pai de Michael por seu nome, aquele que lhe tinha confessado na noite anterior.

- Isso espero... - disse justo no momento que a carruagem parou. Um nó na garganta o deixou sem respiração. Falar sobre o passado lhe tinha dado certa trégua, mas agora vinha o importante, o presente e aquele futuro que desejava alcançar e que poderia perder em décimos de segundo.

- Senhor O´Brian - falou o cocheiro ao abrir a porta.

Michael saiu do interior com rapidez, estendeu a mão para April e, quando ela desceu, a beijou devagar.

- Este será, se me aceitar, nosso futuro lar - comentou com os olhos cheios de orgulho.

- É... lindo - disse olhando a fachada.

- April Campbell, aconteça o que acontecer aí dentro quero que saiba que não posso nem poderei viver sem ti - sussurrou antes de chegar à porta.

A pressão no peito da mulher aumentou. Por que lhe declarava isso justo em frente a sua casa? Temeria que ela recusasse viver com ele, que o rejeitasse? Tentou frear o passo e lhe confessar ali mesmo que não era ele a pessoa inadequada, e sim ela. Ela era a única farsante. Ela era a única que tinha mentido. Mas uma mão de Michael pousou em sua cintura convidando-a a prosseguir.

- Enfim aparece! - Exclamou a senhora Warren quando abriu a porta. Nesse instante, ao perceber que seu senhor não estava sozinho, ruborizou-se, abaixou a cabeça e murmurou: - Desculpem-me... não devia falar desse modo.

- Senhora Warren, apresento-lhe April Campbell - anunciou com tanta satisfação e orgulho que April ficou pétrea. Alguém a tinha apresentado alguma vez dessa forma? Alguém teria mostrado tanta dignidade ante sua pessoa? Salvo seus pais, ninguém mais.

- Senhora Campbell! - Voltou a exclamar abrindo os olhos como pratos. - Encantada de conhecê-la... por fim - apontou baixando a voz para que não a escutassem.

April olhou à governanta e logo ao Michael. Teria falado dela? Conheceria as pretensões de Michael? «Não o duvide - disse a voz em sua cabeça. - O serviço está a par de tudo o que ocorre na casa».

- Igualmente, senhora Warren - saudou.

- Se fizer a gentileza de me oferecer seu casaco - disse a criada notavelmente envergonhada.

- Chegou o que mandei com o Borshon? - Perguntou Michael observando as duas mulheres.

- Sim - assinalou ruborizando-se ainda mais.

- Bem, obrigado. Pode desfrutar do resto da tarde. Eu mesmo atenderei as necessidades da minha convidada - assinalou O´Brian olhando-a com os olhos entrecerrados.

- Muito obrigada, senhor - respondeu com um sorriso de orelha a orelha.

- Outra coisa, senhora Warren - insistiu quando a mulher tinha começado a dirigir-se para o guarda-roupa que havia no corredor direito.

- Sim, senhor? - Perguntou arqueando as sobrancelhas. Como teve o descaramento de lhe perguntar se tinha aberto a garrafa de champanha ou se tinha colocado os morangos como lhe indicou naquela nota, se estaria com ela quando a convidada partisse.

- Se tudo sair segundo o previsto, já pode ir chamando um barbeiro. Acredito que terá que cortar o cabelo - disse mordaz.

- Esperarei a manhã, se não se importar. Ainda não vi nada nos dedos - desafiou. E após isso continuou andando sem deixar de amaldiçoar em voz baixa.

- Por que tem que cortar o cabelo? - Interessou-se April.

- Precisa cumprir uma promessa - respondeu lhe segurando a mão. - Vem, quero te mostrar o que guardo no interior destas paredes. Ardo de desejo por saber o que acha do meu humilde lar.

Sentindo o calor que desprendia aquela grande mão entre a sua, caminhou ao seu lado enquanto falava das salas que tinha construído após adquirir a propriedade. Embora devesse prestar atenção ao que lhe explicava, não era capaz de concentrar-se em nada, salvo em achar o motivo pelo qual estava ali. Fora, na carruagem, parecia um homem inseguro, duvidoso e inclusive diferente do Michael que tinha conhecido até o momento. Entretanto, naquele lugar retornou aquele homem que a fazia perder a razão.

Mais de uma vez a segurou entre seus braços abraçando-a e beijando-a, como se necessitasse daquele afeto para continuar com sua explicação. Narrou como conseguiu os móveis do salão, quanto tempo demorou para redecorar a biblioteca e inclusive o calvário que padeceu ao remodelar a cozinha. Podia tratar-se disso? Sua verdadeira intenção era lhe mostrar o lar no qual viveriam juntos? April estava confusa. Achava-se no meio de uma luta entre o sim e o não porque sua mente lhe gritava que sim, mas seu coração lhe insistia que não.

- Os quartos estão no piso de cima – explicou. - Não tenho tantos como os que possui em Shother, mas para mim são suficientes.

Tinha chegado o momento de lhe revelar a verdade. Entreteve-se lhe indicando estupidezes sobre como havia redecorado seu lar para apaziguar a dor que sentia em seu peito. Michael estava seguro de que até a tinha aborrecido com suas tolas explicações, mas devia tomar seu tempo antes que fugisse de seu lado. Embora se afastasse dele quando abrisse a porta do quarto, embora se encolerizasse ao lhe revelar a verdade, sua mente lhe ofereceria a lembrança daquele momento e, se Deus era benevolente, algum dia poderia perdoá-lo por lhe dar a oportunidade que tinha desejado.

- Não crê que seria inadequado subir? - Perguntou indecisa.

- Não quero te possuir no quarto... por enquanto. Só pretendo te mostrar quem é a pessoa que está ao seu lado para que não tenha dúvidas... - explicou enquanto lhe agarrava a mão e a animava a subir.

- Sei quem é, Michael O´Brian. Já descobri durante este tempo - declarou estupefata.

- Acredite-me, - disse aproximando-se ainda mais - ainda há algo que não te contei e que talvez te separe de mim.

Agarrando-a pela cintura e adquirindo a pouca valentia que podia adquirir naquele instante, Michael a conduziu pelo corredor da esquerda até à última porta. Tinha chegado o momento que tanto temia, que tanto odiava e que desejava não ter que enfrentar nunca. Conteve a respiração, notou como o coração parava e mal pôde falar.

- April... - sussurrou voltando-a para ele.

- Michael... - respondeu abrindo os olhos como pratos.

- Fecha os olhos, querida. Deixa que te mostre a pessoa que tem ao seu lado, mas antes de te revelar o que oculto aí dentro, quero que saiba uma coisa...

- O quê? - Insistiu ela notando como o coração se desprendia de seu peito para dirigir-se à garganta.

- Que aconteça o que acontecer... te amo - declarou antes de beijá-la.

Seria seu último beijo? Voltaria a tomar aqueles lábios? Obteria algum dia aquele sabor de sua boca? Como poderia viver sem ela?

Quando o beijo acabou April tentou falar, mas ele não deixou. Dirigiu sua mão direita para os olhos, os fechou e a virou para a porta. Já não havia volta. Ou a teria ou a perderia para sempre.

O leve som das dobradiças ao abrir a fechadura lhe indicou que permanecia em frente àquele misterioso quarto. Por que o atormentava algo que insistia em lhe mostrar? Por que notava uma terrível dor no peito? Algo horrível estava a ponto de acontecer... algo que lhes mudaria a vida. Lentamente, como se as pálpebras lhe pesassem uma tonelada, abriu-os e, ao contemplar com precisão o que havia no interior, ficou paralisada.

- Faz pouco mais de quatro anos, - começou a contar atrás dela - tive que investigar um caso peculiar... como necessitava de precisão e discrição, meu antigo inspetor me ordenou que me encarregasse pessoalmente. Segundo ele, eu era o homem ideal para fazê-lo. Durante meses percorri a cidade a pé procurando uma possível pista, mas tudo o que encontrei não resultou certeiro. Por sorte para mim, um dia achei uma minúscula relação entre o meu caso e lady Swatton, então me apresentei em Jhopenser para que ela me explicasse que vínculo tinha com a vítima. «Nada salvo que ambos visitavam o mesmo lugar», foi sua resposta. Durante dias meditei nessa frase e na expressão de Vianey ao me dizer isso. Sabia que ocultava algo, embora um palpite insistisse que não tinha nada a ver com o caso. Então duas semanas depois retornei à casa da baronesa e perseverei em averiguar o que escondia. Não me levou ao Clube nem no primeiro dia que o pedi nem no segundo, Vianey demorou muito tempo em estar segura de que eu era uma pessoa de confiança. Mas quando finalmente o fez, ali mesmo apareceu o senhor Dark - declarou olhando as costas de April, percebendo como seu corpo começava a dobrar-se, as pernas lhe falhavam e seu peito respirava entrecortado. - Por favor... diga algo - rogou ao vê-la tão calada.

Sua capacidade de mover-se ou de pensar desapareceram. Quando abriu os olhos e contemplou o interior do quarto de Michael, seu cérebro se defendeu inundando-a em um profundo estado de choque. Não podia ser certo, nada do que observava era real, devia estar vivendo um pesadelo do qual logo despertaria... entretanto, quando voltou a fechar os olhos, quando escutou a voz de Michael atrás dela, quando notou as radiações de calor que emitia seu corpo ao aproximar-se do dela e o aroma que inalou ao tomar um longo suspiro, entendeu que não se tratava de um pesadelo.

O senhor Dark e Michael eram a mesma pessoa.

Seus joelhos começaram a dobrar-se, começou a nublar a visão e seu estômago insistiu em expulsar o que horas antes tinha ingerido. Diminuída, confusa e sem forças para manter-se durante mais tempo de pé, April esticou a mão para o marco da porta para sustentar-se.

- Não me toque! - Gritou-lhe quando Michael tentou ajudá-la. - Não volte a me tocar! - Berrou movendo seu corpo como se uma vespa estivesse a ponto de picá-la.

- April, eu...

- Não me fale mais! Não me olhe mais! Não me toque mais! - Trovejou endireitando seu corpo. - Divertiu-se? - Perguntou-lhe voltando-se para ele. As lágrimas empapavam seu rosto pálido, sua mandíbula permanecia dura, apertada. Apesar daqueles traços de tristeza, o que deixou Michael sem palavras foi o olhar sombrio e desafiante que apareceu nos belos olhos de April. - Sim, com certeza o fez... - acrescentou mordaz. - Deve ter se divertido muitíssimo ao ter o controle sobre mim, não é? Que satisfação maior teria quando descobriu que minha fantasia era a mesma que você me declarou! Oh, sim! É claro! Riu? Desfrutou quando a cumprimos? - Comentou apertando os dentes e sem ser consciente de que tinha caminhado para trás para separar-se ainda mais dele.

- April não é o que pensa... - tentou esclarecer enquanto dava o primeiro passo para o interior do quarto, deixando-a à sua direita. Olhou com raiva ao seu redor e desejou desfazer-se daquela cama com a colcha negra, daquele tapete escuro onde ela poderia ter despido seus pés, da poltrona onde ele permaneceria observando-a, da penteadeira onde se poliria depois de um encontro passional... não queria tudo isso se April o abandonasse.

- Não é o que eu penso? - Repetiu ainda mais irritada. - Que graça! - Exclamou mudando da ira à risada. - Todo este tempo estive preocupada porque guardava um segredo e resulta que sabia. Como pode ser tão mesquinho, senhor O´Brian? - Retornou à raiva de novo. Entreacerrou os olhos e o olhou como se com esse olhar pudesse matá-lo. - Como pôde permanecer ao meu lado sabendo o que aconteceu no Clube?

- Em nenhum momento me diverti às custas do nosso encontro - tentou explicar-se.

- Oh, vá! Agora o entendo! - Exclamou fora de si. - Como pensou que não podia me alcançar sendo um estúpido inspetor, procurou a maneira de fazê-lo como o senhor Dark... com o que chantageou Vianey para que ela terminasse me oferecendo? Prometeu-lhe discrição?

- April, querida, relaxa... não foi assim... - prosseguiu aproximando-se.

- Não me chame de querida! - Clamou desesperada. - Sou lady Gremont! Sou a viúva do visconde de Gremont! - Vociferou ao mesmo tempo que, como um cavalo descontrolado, dirigia-se para a porta para sair dali.

- Não! - Gritou Michael agarrando-a pela cintura para que não partisse.

- Solte-me, maldito bastardo! - Soluçava sem deixar de lhe dar fortes golpes no peito. - Solte-me, não lhe pertenço! Não pertenço a ninguém! Maldito bastardo! Maldito seja, Michael! - Prosseguiu repreendendo-o até que suas forças foram diminuindo igual à intensidade de seus golpes.

- Desde que desceu a escada com o mesmo vestido que usa hoje, quis que fosse minha, April - comentou Michael com suavidade ao ver como as mãos dela se estendiam para o chão e olhava para baixo. - Desejei morrer quando li que, finalmente, casava-se com o visconde. Estive a ponto de abandonar tudo e me lançar ao abismo, mas por mais estranho que pareça, algo me dizia que não me rendesse porque, cedo ou tarde, eu teria outra oportunidade. Então lutei com toda minha força interior para que quando chegasse esse dia me tivesse convertido em um homem digno de ti - confessou colocando o queixo sobre o cabelo dela. Apesar de querer reconfortá-la, April se mantinha distante assim como uma paciente de um psiquiatra. - Com o passar dos anos, justo quando comecei a pensar que essa oportunidade não chegaria, apareceu minha ansiada esperança. Pensa que eu não aproveitaria cada minúscula possibilidade de te conseguir? De verdade acredita que eu permaneceria afastado de ti, da única mulher a qual amei e amarei pelo resto da minha vida? Possivelmente não atuei como deveria, não o discuto. Talvez devesse seguir com meu empenho de te alcançar sendo Michael O´Brian, mas quando Vianey me disse que pretendia te levar ao Clube, a mera ideia de imaginá-la nos braços de outro homem me deixou louco. Não, meu amor, não podia te perder de novo...

- É a única mulher que esperei por toda a minha vida... - sussurrou April as palavras que ele lhe disse sendo o senhor Dark.

- Sim, querida, assim é. É minha única mulher - corroborou o inspetor com um ar de esperança. - Na noite que apareceu com a máscara, confusa, assustada e indecisa, meditei sobre como devia atuar. Juro-te por minha vida que minha intenção não era te possuir e sim falar. Desejava saber tudo de você. Entretanto, quando te perguntei sobre qual era sua fantasia sexual e conforme narrava descobri que apesar do tempo e dos anos eu tinha estado ao seu lado assim como você sempre tinha estado comigo, esse monstro que habita em meu interior despertou com tanta força que me resultou impossível reprimir seus desejos.

- Estava ferido... - sussurrou aproximando por fim sua testa do peito agitado do homem.

- Nada podia evitar que aparecesse ante ti! Nada salvo minha própria morte... - afirmou com solenidade.

- Mas sabia a verdade. Conhecia o ocorrido entre nós dois... - continuou impassível.

- Acaso utilizei essa verdade para me aproximar de ti? Chantageei-te, April? Obriguei-te a ficar comigo alegando o acontecido? - Reiterou pegando-a pelos braços para separá-la um pouco dele.

- Não... - respondeu em voz baixa.

- É claro que não, querida. - Abraçou-a de novo. - Jamais faria algo que te prejudicasse, que te provocasse humilhação. Amo-te tanto que sou incapaz de te machucar. Permiti, durante todo este tempo, que vivesse afastada de mim, que obtivesse a vida que tanto ansiava, mas já não posso me manter à margem. Quero viver o resto da minha vida contigo, April Campbell. Desejo te converter em minha mulher.

- Mas depois disto... depois de...

- Sei. Por isso sou consciente de que, se necessitar de tempo lhe darei - disse isso com um nó pressionando sua garganta. - Porque sempre me encontrará aqui, esperando sua volta.

Devia liberá-la, devia abrir os braços e permitir que partisse, mas era tão difícil fazê-lo! Apesar de suas palavras, seu coração lhe gritava que não o fizesse porque o mais provável era que não retornasse. Com lentidão foi afastando-se dela, concedendo-lhe aquela liberdade que requeria. Michael deu vários passos para trás sem poder afastar o olhar daquele corpo quebrado pela dor. Não voltaria. Estava claro que se afastaria dele para sempre...

- Por que seu quarto e o do Clube são semelhantes? Trouxe a sua casa alguma serva?

- Não! - Respondeu com rapidez aproximando-se de novo dela, mas April levantou sua mão para que não se aproximasse. - Aqui jamais esteve outra mulher salvo a senhora Warren.

- Então... por que construiu este lugar? - Perguntou dirigindo o olhar para o quarto.

- Tinha a esperança de que algum dia pudéssemos desfrutá-lo... - disse com tom suave.

- Desfrutá-lo? - Soltou mais irada do que pensou encontrar-se.

- April... desde o primeiro dia que te encontrei soube que era a mulher que devia permanecer ao meu lado - confirmou com solenidade. - A única que saciaria meu monstro pelo resto da minha vida.

- Mas eu não soube quem eu era na realidade até que li o diário de Úrsula - murmurou.

- Possivelmente sua forma de atuar naquele balcão, descobrir que se excitou com minhas palavras me advertiram disso...

- Mentira! - Gritou.

- April, não minto, meu amor. Juro-te que, desde que pus meus olhos em ti, só sonhei em te ter, te oferecer aquilo que desejasse e que eu também desejei. Sei que agi mal ao não te revelar que era o senhor Dark e inclusive deveria ter impedido a Vianey de te conduzir ao Clube, mas fiquei louco ao imaginá-la enfim ao meu lado.

- Tinha marcado contigo na quarta-feira... - sussurrou. - O que pretendia fazer se eu tivesse aparecido? Falar-me do nosso compromisso? Contar-me que as duas pessoas eram a mesma? Ou talvez esperava que eu falasse de outra fantasia para que ambos a fizéssemos realidade no Clube? - Elevou pouco a pouco a voz.

- Só a queria ter... - defendeu-se.

- Não é uma resposta, Michael! - Repreendeu-lhe. - O que teria acontecido se não tivesse corrido atrás de você, se não tivéssemos tido o encontro de ontem?

- Teria te esperado como o senhor Dark e teria te dado a máscara vermelha - explicou sem poder afastar seus olhos dela.

- Maldito seja! – Berrou. - Queria me converter em sua serva para sempre?

- Não! Só queria e quero que seja minha, embora fosse daquela maneira. Nunca considerei a ideia de que se apaixonasse por Michael e deduzi que talvez dessa forma...

- Traiu-me, Michael O´Brian. No fundo é igual a todos os outros.

- Te amo, April! E fiz tudo isso porque não posso viver sem ti! - Clamou desesperado.

Mas, depois de escutar suas palavras, April girou sobre os calcanhares e saiu do quarto fechando a porta depois de sua saída. Não, não podia retornar. Apesar de seu coração se acelerar em cada passo que dava, apesar de que a única coisa que pensava era em voltar a sentir o calor de seu corpo, não podia ceder. «Por quê? - Perguntou a voz em sua cabeça. - Acaso não suspeitava que eram a mesma pessoa? Recorda, April, recorda todas as semelhanças que achou; seu aroma, sua forma de falar, como te fazia sentir... você mesma sabia a verdade. Foi consciente de tudo. O único que te faltava era que ele confessasse e o fez. Além disso, declarou que construiu aquilo para você. Que mais provas de amor necessita?».

Embora a voz insistisse em fazê-la entrar em razão, desceu as escadas. Queria sair daquele lugar, respirar e sentir a umidade do exterior. Aproximou a mão da maçaneta com a intenção de girá-la para abrir. Entretanto, não tinha forças para fazê-lo. Algo em seu interior a impedia de afastá-lo de sua vida para sempre. Por quê? Por que não era capaz de dar um passo? «Porque o ama e porque sabe que no fundo tem razão - declarou aquela voz. - Ele esteve em sua cabeça desde aquele dia. Em quem pensava durante suas noites frias e solitárias? A quem via quando fechava os olhos? O que sentia ao imaginar o que ele te descreveu naquele balcão? Quem esteve ao seu lado quando enfim a cumpriu?»

April se voltou para a escada observando o patamar do piso. O que aconteceria se partisse? A esperaria de novo? Sim, estava segura de que ele aguardaria sua volta. Durante quanto tempo? Meses, anos? O que faria ele enquanto ela não voltasse? Apareceria no Clube e tomaria sob seu amparo outra serva? A mera ideia de o imaginar com outra mulher lhe causou uma ira inconcebível. Não lhe importava o que fez no passado, porque ela mesma pertencera a outro homem, mas nesse momento, quando os dois eram livres, não podia conceber que Michael tocasse outra mulher. Queria seus beijos, suas carícias, suas palavras, seu amor... não lhe bastava aquela reflexão para confirmar que o tempo e a distância não eram necessários?

Sobressaltada, agarrou o vestido, levantou-o e subiu as escadas como se o próprio diabo a perseguisse. Não havia volta atrás, Michael era o homem que tinha esperado em toda a sua vida e não cabia a possibilidade de separar-se dele.

- O que me oferecerá? - Gritou quando abriu a porta de repente.

O´Brian permanecia sentado sobre sua cama com as mãos ocultando seu rosto quando ela apareceu.

- Tudo! - Respondeu levantando-se com rapidez. - Tudo o que me pedir lhe darei, April.

- Quero a vida que me descreve, Michael. Anseio o homem que me ama, que me fala de maneira ousada, aquele que me protegerá e respeitará a cada dia de minha vida - disse caminhando para ele. - Mas também desejo ter o dominante que encontrei no Clube porque, assim como você, tenho desejos que ninguém pôde acalmar até que te encontrei - revelou sem titubear. - Quero aquela máscara em meu rosto cada vez que nos encontremos neste quarto, que não saiamos daqui até que ambos acalmemos esses monstros que vivem em nosso interior. Quero seu amor, sua compreensão, sua verdade... - tomou ar para poder concluir, enfim, seu discurso. - Quero que esse coração dividido me pertença para sempre.

- Sempre foi teu, April Campbell - declarou com firmeza enquanto se aproximava dela.

- Se for assim, aqui me tem... - disse com um suave fio de voz.

- Oh, meu amor! - Exclamou abraçando-a com força. - Te amo! Te amo! - Clamou em meio a uma chuva de beijos.

As mãos dela se enredaram em seu pescoço aproximando-o ainda mais de seu corpo tremente. Deixou que a enchesse de beijos, de carícias, de afeto. Permitiu que aquele desejo que sentia quando Michael se encontrava ao seu lado aflorasse. «Único - disse-lhe a voz. - Ele foi e será o único...».

- Casará comigo? Me aceitará como marido, então? - Perguntou colocando suas mãos nas bochechas molhadas.

- Sim – respondeu. - Me casarei contigo, Michael O´Brian.

Justo quando ela esperava o beijo que prometia tal declaração, Michael se distanciou um pouco. Colocou a mão em sua jaqueta e tirou uma caixa.

- Espero que seja de seu agrado. Embora saiba que o cetim é seu tecido preferido, não soube se você gostaria de usar este pequeno presente - disse mostrando-lhe.

- O que é?

- Abre-a - incitou.

Com as mãos trementes April abriu a caixa.

- Michael! - Exclamou ao ver o conteúdo. - Não tinha pensado em me daria isto de presente diante dos meus pais? - Perguntou sobressaltada.

- Isto é só para nós... - disse tirando a máscara vermelha da caixa. Devagar a colocou sobre o rosto da mulher e atou os laços. - O anel está no outro bolso - acrescentou.

- Vermelha? - Perguntou olhando através daquela máscara que a convertia em sua para sempre.

- É claro, meu amor - respondeu abraçando-a de novo.

Podia sentir-se mais feliz? Podia haver imaginado alguma vez que se encontraria tão ditoso? Por fim April o aceitava e admitia como sua a escuridão que ocultava em seu interior. Por sorte ninguém poderia distanciá-los nunca mais.

- April, querida, devemos ir. Temos que dizer aos seus pais que aceitou a proposta - indicou com certo pesar. Não desejava romper a magia do momento, mas se não a levasse com prontidão à Shother teria um grave problema com quem se converteria, em poucos dias, em seu sogro.

- Primeiro precisa cumprir sua promessa - replicou desconfiada.

- Qual? - Quis saber confuso.

- A que me fez esta manhã - revelou ruborizando-se.

- Não seria adequado fazê-lo antes de ir a sua casa - disse mordaz.

- Não te parece boa ideia cumprir outra fantasia agora mesmo? Porque... - começou a dizer enquanto colocava suas mãos na cintura da calça e desabotoava os botões muito devagar - estamos em nosso quarto, estou usando a máscara e, tal como respira, o senhor Dark acaba de aparecer...

- Não me enlouqueça, April Campbell! - Exclamou ardendo em desejos por agradá-la. - Porque se cumprir minha promessa, não me saciarei comendo a fruta sobre seu corpo, mas sim a farei percorrer por sua pele, talvez até a saboreie banhando-a em sua essência. Além disso, tenho uma garrafa de champanha preparada para derramá-la sobre seu corpo nu. Quero, desejo e estou louco por saber que combinação acharei quando os mesclar em seu sexo.

A imagem de April nua, banhada em licor e ele percorrendo com sua língua cada centímetro dela, fez com que o monstro despertasse reclamando aquilo que imaginava.

- É uma declaração de intenções? - Perguntou colocando as mãos dentro das calças.

- É uma das muitas fantasias que aparecerão durante o resto das nossas vidas... - ronronou ao sentir os dedos de April acariciando seu sexo.

- Bom, pois se te servir de estímulo, não acredito que meus pais se preocupem com nossa demora. Imagino que se entreterão preparando o casamento. Talvez nem percebam nossa presença quando aparecermos em Shother - assinalou ao mesmo tempo que acariciava o grande falo de cima a baixo.

- E pelo aroma que desprenderá a champanha? - Disse tirando aquelas mãos perigosas de sua calça. Pegou-a em seus braços e a dirigiu para o divã preto que havia junto à lareira, onde pôde tombá-la para seu prazer.

- Tampouco... - murmurou cravando os olhos no homem que logo se converteria em seu marido.

- Te amo, meu amor - comentou enquanto lhe levantava a saia.

- Te amo, Michael O´Brian e... amo também a ti, senhor Dark - acrescentou após descobrir a caixa de morangos e a garrafa de champanha em uma vasilha metálica repleta de gelo.


Epílogo


Quinze meses depois

Norman olhava aniquilado as duas mulheres que amava. Ambas conversavam sobre a experiência tão incrível que tinham sentido ao converter-se em mães. Florence rememorou o parto de April e sua filha narrou como o pequeno tinha vindo ao mundo. Estavam tão felizes e mostravam tanta ilusão que foi incapaz de as interromper, embora não lhe resultou agradável escutar certas partes da conversação.

- Acho que vou ver meu neto - disse se levantando do assento. - Pareceu-me escutar que me reivindicava - acrescentou sorrindo de orelha a orelha.

- Não faça nada inadequado, Norman. Se o pequeno estiver descansando não o desperte - advertiu Florence.

- Não o farei - prometeu.

- Sabe que mente, não é? - Sussurrou April à sua mãe.

- Sei. Fazia-lhe o mesmo. Cada vez que estava adormecida colocava-se em frente ao berço e te movia para confirmar que continuava respirando - revelou com um leve sorriso de cumplicidade.

Depois de escutar como cochichavam sobre ele, Norman saiu da sala de jantar com passo ligeiro. Logo chegaria o pai da criatura e, como nas vezes anteriores, se colocaria em frente a ele, custodiando-o como um anjo guardião. Acaso pensava que lhe diria ou faria algo inapropriado? Só queria tê-lo entre seus braços, embalá-lo como fez com April e lhe sussurrar os projetos que tinha pensado para ele quando tomasse as empresas Campbell. Estava seguro que, assim como sua mãe, se lhe ensinasse desde o berço, seria o homem mais inteligente do mundo.

Com um sorriso de orelha a orelha posicionou-se em frente à porta do quarto. Podia cheirar dali aquele aroma de bebê que o pequeno desprendia. Uma fragrância a pureza que em poucos lugares podia detectar. Devagar, sem mal fazer ruído, abriu a porta. Tal como lhe disseram, encontrava-se descansando em seu berço. Norman caminhou suave e afastou as cortinas da mesma forma. Era lindo. Aquele pequeno era o bebê mais formoso do mundo. Franziu levemente o cenho ao descobrir que aquela juba continuava sendo escura e que, pelas dimensões do corpo, seria tão grande como seu pai.

- Bom, ninguém é perfeito, mas por sorte tem o nome mais apropriado para ti - sussurrou.

- Não estou muito seguro disso - interveio Michael que se apoiou no marco da porta cruzando os braços. - Ainda continuo pensando que deveríamos lhe ter chamado Elmet, como meu pai, e não Norman.

- Norman é o nome idôneo para o meu neto - comentou alargando o peito. - E minha filha soube escolher com sensatez.

- Já veremos... - comentou descruzando os braços e caminhando para o pequeno. - O que lhe contava? Espero que nada sobre o que tem planejado para convertê-lo em um homem de negócios.

- É um Campbell e, como tal, não precisará que lhe mostre que decisão terá que tomar para ser um homem de proveito.

- É um O´Brian e, se o observar com atenção, descobrirá que não há nenhum traço da família Campbell nele.

- Espere que cresça...

- Dirá alguma vez a verdade? - Perguntou após comprovar que o pequeno se encontrava sumido em um sono profundo e prazeroso.

- Que verdade? - Soltou desconcertado.

- Sobre a morte do visconde de Gremont. Agora somos família e não deve preocupar-se em encontrar dois agentes em frente à sua casa para levá-lo preso - comentou mordaz.

- Eu não fiz nada - defendeu-se novamente. - Embora mais de uma vez quis aniquilá-lo com minhas próprias mãos, nunca fui capaz de levar a cabo meus pensamentos.

- Não acredito... - murmurou enquanto se dirigia para a porta.

- Pois é a verdade - insistiu Norman.

- Não demore em descer. Eu gostaria de lhe mostrar minha nova aquisição - comentou entrecerrando seus olhos.

- Outra arma? Eu não gosto das pistolas! - Soprou.

- Mas tenho que lhe ensinar a maneja-las se por acaso algum dia decidir que não sou o marido adequado para sua filha - acrescentou sarcástico. - Já sabe que os O´Brian são imunes ao veneno.

- Maldito seja seu pai e sua tenacidade! - Exclamou em voz baixa em frente ao berço. Nesse momento, uma vez que Michael partiu, o pequeno abriu os olhos e o olhou fixamente. - Não fui eu e não me olhe como o fazem todos. Juro-te que nunca verti o veneno na garrafa daquele desgraçado. Entretanto, alegro-me muitíssimo de que sua avó tivesse a coragem que eu não encontrei naquele momento. Jamais imaginei que Florence fosse tão valente. Graças a ela sua mãe encontrou o homem que a tem feito tão feliz. Mas o que verdadeiramente valeu a pena foi você - disse colocando sua mão direita sobre o peito do novo Norman. - Se tivesse sabido que chegaria ao mundo depois de todo o ocorrido, não teria deixado que ela o fizesse, eu mesmo teria encontrado a coragem necessária. Não imagina o horror que padeceu sua querida mãe com aquele monstro. Agora tudo passou e, por sorte, outro Norman Campbell seguirá com o legado que criei. Por certo quando for maior omitirá que não acrescento o sobrenome de seu pai a esse nome tão bonito que sua mãe te pôs. Acredito que não lhe agradaria sabê-lo...

E como se fosse um pacto entre os dois, o pequeno esticou uma mão para agarrar com força o dedo de seu avô.

 

 

                                                   Dama Beltrán         

 

 

 

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