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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CORPO ESTRANHO / Paulo Nogueira
O CORPO ESTRANHO / Paulo Nogueira

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CORPO ESTRANHO

 

ERAM TRÊS E MEIA DA MANHÃ EM PONTO. ISSO se o relógio do subinspector Reinaldo Carta estivesse certo, como ele achava que estava. Achava, não: tinha a certeza - mudara a pilha ainda há menos de quatro semanas. Soprava uma aragem amena e doce quando viu a cabeça sem corpo pela primeira vez. Emitiu um suspiro inaudível e semicerrou os olhos. Doía-lhe outra vez naquele maldito sítio. Como se alguém o espetasse insidiosamente com uma agulha muito comprida, aquelas de coser sapatos. Precisava mesmo de ir ao médico. Não havia nada a fazer. Nem valia a pena continuar a empanturrar- se de analgésicos e ansiolíticos. Ainda ontem emborcara quatro dolvirans e dois lexotans. E ela sempre dizia que a automedicação era um disparate. Uma emenda pior que o soneto. E, como quase sempre, ela tinha toda a razão.

Nas primeiras horas do feriado do 25 de Abril, Lisboa encontrava-se quase deserta. Ou pelo menos aquela área da cidade. De qualquer modo, milhares de pessoas haviam feito ponte, abstendo-se de comícios, manifestações ou cortejos cívicos - contra a data, a favor da data mas ainda mais favoráveis ao lazer, ou simplesmente indiferentes.

A Escola Nacional de Belas Artes ficava, coerentemente, no Largo da Academia Nacional de Belas Artes. Qual seria o nome do Largo antes da existência da escola?, especulou o subinspector. Será que alguém ainda sabia? A praceta estava em obras: como sonolentos bicharocos antediluvianos, betoneiras, gruas e guindastes acocoravam-se sobre o piso de paralelepípedos. Dir-se-ia que dormiam o sono dos justos, uma sesta reparadora depois de um lauto banquete. No céu, caravanas de nuvens vendavam e desvendavam a lua cheia, salpicando sombras furtivas nos edificios.

Quase defronte à escola Carta avistou um restaurante de luxo, com as suas cinco estrelas afixadas na entrada como condecorações no dólman de um marechal - o estabelecimento pareceu-lhe um intruso naquele cenário tão lúgubre. Um pouco mais adiante, distinguiu o escritório de uma decoradora famosa, que restituiu parcialmente cidadania à fachada hedonista do restaurante. Do lado oposto alinhavam-se as carcaças calcinadas do Chiado, continentes sem conteúdo que o subinspector, deplorando a sua falta de imaginação, mais uma vez associou aos estúdios de cinema.

O prédio da escola compunha-se de dois andares, com as paredes pintadas de amarelo-claro, já pardacentas e descascadas, e janelas de caixilhos grená envernizados. Junto de uma das vidraças, ligado à parede pelo cordão umbilical de uma barra e de uma corrente, pairava um candeeiro de ferro forjado, com cerca de quarenta centímetros quadrados, que irradiava uma luz anémica e fantasmagórica. Próximo do candeeiro, mas numa posição oblíqua, a dez metros do solo, empinava-se um mastro, sem qualquer bandeira hasteada ou enrolada. No lugar da bandeira estava a cabeça decapitada.

Apertando os olhos, Carta observou a ausência de sangue. Inconscientemente, num devaneio maquinal, esperara que a cabeça estivesse a pingar, que o sangue gorgolejasse e vertesse para o passeio uma espécie de fonte viscosa e macabra. Mas, não. Nem uma gota sequer. Assemelhava-se antes a um objecto empalhado, um troféu de caça. Uma primeira pista? Não ponhamos a carroça à frente dos bois, censurou-se.

O alerta tinha sido dado 40 minutos atrás por um agente que fazia a ronda e nada mais vira, senão a cabeça avulsa. A princípio, ao vis lumbrar a cena, julgara que se tratava de um ladrão de fios de electricidade, um desses párias urbanos que se esgueiravam nas madrugadas, balançando-se dos postes como morcegos. Porém, instantes depois reconsiderara. Como dissera a Carta: senhor subinspector, o doutor desculpe lá, mas nem mesmo o gatuno mais engenhoso seria capaz de roubar fosse o que fosse usando apenas as orelhas. E, como em breve ambos constatariam, até essa frugal gama de recursos era uma extrapolação descabida.

O estaleiro das obras, com o seu entulho e maquinaria, tolhia de maneira irritante as manobras da polícia. Carta ordenou que isolassem o local, demarcando um perímetro de cem metros, e que procedessem à retirada da vítima. Embora contasse com 56 anos de idade e quase trinta de serviço, era a primeira vez que deparava com uma mutilação desse género. Também era verdade que, quando muito mais novo, tinha presenciado um inquérito porque um homem, ao pôr a cabeça fora do comboio, fora decapitado quando a composição entrara num túnel. Todavia, aquilo agora era muito diferente.

Não, não havia comparação possível. Que diacho, sem as demais partes do corpo afigurava-se quase blasfemo chamar "vítima" aos restos mortais. E isso num caso em que o despojo era a cabeça, a fracção mais ilustre da anatomia humana. Como seria se se tratasse, digamos, de um pé? Mas a perda de um pé não mata forçosamente, ao passo que a decapitação. . . Carta pigarreou, esforçando- se por concentrar-se. Para isso é que era pago.

O resgate da cabeça não prenunciava uma operação muito simples. A porta da escola estava trancada e foi preciso esperar mais de uma hora por uma escada dos bombeiros - os malfeitores podiam arrombar portas à vontade, sem cerimónias nenhumas, mas a polícia não, não sem um mandado, nem mesmo por motivos de força maior. O fotógrafo aproveitou a pausa para efectuar o seu trabalho, de todos os ângulos possíveis e imagináveis. Quando a escada finalmente fez a sua aparição, o subinspector sucumbiu a um impulso.

- Pensando bem, eu próprio trato disso.

Torres e Rodrigues, os dois agentes que o acompanhavam, pestanejaram mas encolheram os ombros. Olharam de soslaio para o autor da descoberta, o agente de ronda, que afivelava uma fisionomia marmórea. Estavam habituados às excentricidades do superior. Se estavam. . . Ó, ó. Em todo o caso, por aquela francamente não esperavam. O chefe não gozava da reputação de homem do terreno. Muito pelo contrário - era um bota de elástico consumado. Além do mais, na esquadra toda a gente sabia que após a morte da mulher andava um bocado caduco.

Nesta altura algumas luzes de casas estavam acesas, e o Largo brilhava com os faróis dos carros-patrulhas, reflectores e, mais à frente, os lampejos das lanternas que se moviam na escuridão. Carta despiu o casaco e entregou-o pelo colarinho a um dos subalternos. Dobrou as mangas da camisa até aos cotovelos e puxou para as coxas os vincos das calças. Calçou as luvas de borracha verde, por causa das impressões digitais. Cingiu firmemente as bordas da escada e iniciou a escalada.

Deteve-se quase no momento seguinte. As dores, que tinham esmorecido, voltavam a espicaçá-lo. Estaria a cometer alguma asneira? Afinal que diabo é que se passava consigo? Dera em doido ou quê? Pronto, agora não podia retroceder.

O agente Torres, que tinha uma esferográfica vermelha metida atrás das orelhas, esboçou um sorriso e, com o superior pelas costas, desferiu uma cotovelada nos rins do colega. Cochichou: "Se o chefe for atropelado por uma borboleta, vai parar às Urgências, em estado de coma. " Rodrigues, por sua vez, abanou a cabeça e olhou para o céu, num esgar histriónico, como se suplicasse clemência. Em seguida, tirou um cigarro do maço e acendeu-o, inalando profundamente o fumo, com gestos ao mesmo tempo solenes e demsórios, de quem se prepara para aturar uma longa espera.

Ainda imóvel, Carta respirou fundo e tentou ignorar a dor. Volatizá-la pelo desdém, como desdenhava aqueles dois emplastros que, no chão, por certo zombavam dele. No caso da dor, no entanto, era mais fácil falar do que fazer.

Será que se avistava o rio do cimo da escada? Resistiu à tentação de relancear os olhos por cima dos ombros e esquadrinhar o panorama. Reanimou- se, mobilizou toda a energia de que era capaz e galgou os degraus seguintes, detendo-se apenas no penúltimo.

Encontrava-se a não mais de meio metro abaixo da cabeça, que, impelida pela brisa, oscilava pacificamente no mastro, como uma lanterna chinesa já apagada. Com todo o cuidado, o subinspector trepou para o último degrau. Era espantoso como, não obstante a lua cheia, a luminosidade solícita do candeeiro contíguo e a acuidade visual de que tanto se orgulhava, discernia agora uma profusão de pormenores que não notara do solo.

Mal-grado a expressão crispada e retorcida do semblante, podia constatar que a vítima consistia num jovem do sexo masculino, de feições e tez não-europeias, da cor do mate. O rosto estava convulsionado numa careta violácea de agonia, como se fosse de cimento mole. Os lábios entreabertos deixavam entrever alguns dentes brancos e finos como pinhões e uma língua intumescida. Os cabelos escuros e longos afunilavam-se num rabo de cavalo, e era pelo rabo de cavalo que a cabeça, grotescamente mirrada, tinha sido atada ao mastro.

Carta suspirou de alívio: os olhos da vítima encontravam-se misericordiosamente fechados.

Lembrou-se de Emília - os dela, tivera ele próprio de os fechar para sempre.

 

O AGENTE RODRIGUES DEU MAIS uma PASSA, engOliU O fUmO, eXpeliU um sinuoso repuxo branco, atirou para o chão a ponta incandescente do cigarro e esmagou-a com o bico do sapato, imprimindo um borrão negro no paralelepípedo. Com a mão em pala sobre os olhos, interpelou Reinaldo Carta, numa voz neutra:

- Então, doutor? Isso vai? Quer que suba também? Precisa de uma mãozinha?

- Por enquanto, não. Continuem aí, no vosso sono de beleza. Já vos digo qualquer coisa.

De que é que ele está à espera?, resmungou o subalterno, entredentes. O colega apenas sorriu, como se levitasse acima daquelas questiúnculas.

Carta, lá do alto, estendeu a mão em direcção à cabeça. Foi então que reparou noutro ponto importante: uma tira de metal prateado estreitava várias vezes o rabo de cavalo. Atónito, apostou consigo próprio como era a corrente de um relógio - e muito dificilmente teria sido colocada pelo próprio morto. Ao roçar com os dedos a face da vítima, sentiu um calafrio e retirou imediatamente a mão. Não, o sobressalto não derivara do contacto epidérmico. Na verdade, acabara de fazer outra descoberta, tão tétrica como desconcertante: faltava uma orelha à cabeça. Como é que não observara aquilo antes? Estava mesmo a ficar velho. E, o que é pior, senil.

Comunicou a novidade aos agentes: "Cortaram-lhe também uma orelha. A orelha esquerda. Ceifada pela raiz. " O polícia que estivera a falar com ele grunhiu: "Bem, mais coisa, menos coisa. . . " O que apenas sornava ao ouvir aquilo sorriu mais ainda. Depois, sussurrou ao ouvido do amigo: "Queres ver como ele ainda nos vai dizer que a cabeça cometeu assassínio?"

Naquele momento, Carta chegara a uma conclusão prática: obviamente, não conseguiria - nem ele nem ninguém - retirar a cabeça desdo o nó dos cabelos. Era imperiosa uma solução drástica, género padre da Macedónia com o nó górdio.

- Arranjem-me uma tesoura grande e dois sacos plásticos. Tamanho XL. Vá lá, despachem-se. Se não, nunca mais saímos daqui.

Aquilo não demorou tanto como a escada. Ainda assim, Carta teve tempo de admirar o panorama e verificar que não, não se avistava o rio daquele poleiro. Era uma pena. Emília gostava tanto do rio. que era o seu principal vaso sanguíneo. A sua aorta.

Cortar o rabo de cavalo constituiu uma tarefa penosa mas não complicada: o cabelo estava bem tratado e sedoso. Com toda a certeza fora lavado recentemente, e com um champô dispendioso. Uma espessa madeixa continuou atada ao mastro, enquanto o subinspector amparava a cabeça com a outra mão, como um jogador de basquete debaixo do cesto. Introduziu o resto mortal no saco, pousou a tesoura no último degrau da escada, sobre o segundo saco plástico, e desceu.

No solo, descalçou as luvas e ordenou ao agente Rodrigues:

- Agora sobe e traz o restante. Todo ele. Ah, muito cuidado com o que está atado ao rabo de cavalo. Se fizeres asneira, arranco-te as tripas com um berbequim.

Carta ergueu a cabeça decapitada à altura da sua vista e examinou. à luz ofuscante da lanterna. Dentro do saco plástico humedecido, a cabeça lembrou-lhe um peixinho tropical, pescado do aquário de uma loja de animais para ser transportado à casa do cliente. Com duas diferenças substanciais: este peixe era demasiado grande para ornamento e já não respirava.

Eram quatro e meia da manhã, mas um pequeno e compacto grupo de curiosos pouco a pouco rodeara a cena do crime, apinhando-se diante da Academia. Carta já se acostumara à morbidez das pessoas, e, pensando bem, agora não adiantava ralhar com os agentes por afrouxarem o cordão de isolamento. Até porque teriam mesmo de interrogar os vizinhos. Assim como assim, recolheriam os respectivos nomes e moradas dos que estivessem à mão de semear.

- Desculpe lá, se não se importa! Sim, o senhor mesmo! É o senhor quem manda aqui, não é?

A pergunta partira de uma velhota atarracada que se perfilava ao lado da betoneira, de braços cruzados sobre os seios pletóricos, como se os descansasse numa balaustrada. Carta observou que ela própria se assemelhava a uma betoneira. Reparando melhor, constatou que, mais coisa menos coisa, aquela velhota era provavelmente da sua idade. Não estava a ficar velho: já era velho. Oh, e depois? O que é que isso interessava? Ou a quem?

- Sim, sou eu. Quem é a senhora e o que deseja, se não é indiscrição?

Encorajada pela ambígua resposta, a mulher aproximou-se mais um pouco do subinspector, arrastando as pantufas. Aconchegando-se com um ar austero, levantou a gola do roupão turco que trazia vestido sobre o que era, evidentemente, um pijama de flanela, e afundou as mãos nos bolsos. Silvou a língua de encontro aos dentes, como se tivesse acabado de comer e quisesse um palito.

- O meu nome é Glória Junqueira e vivo do outro lado da rua.

- Ah, sim? Muito me conta. Não me diga que viu quem pendurou a cabeça no mastro? Ou melhor, diga-me que sim, que viu tudo. Tudo e mais alguma coisa.

A velhota fez uma careta de desgosto, sinceramente penalizada.

- Não, meu senhor, não pósso dizer que tenha visto, raios me partam. Não vi nada de suspeito ou fora do normal em lado nenhum. E olhe que estou sempre alerta e a minha vista é muito boa.

- Nem janelas abertas na escola? Ou luzes acesas?

- Nadinha.

- Bom, então afinal do que é que se trata?

A interlocutora lançou um olhar severo ao subinspector. Tinham todo o tempo do mundo.

- É aí que eu queria chegar, se me deixar falar. Estava muito descansadinha a dormir ao lado do meu marido, o meu Junqueira, coitadinho, quando acordei por causa de uma corrente de ar. Ainda esta manhã o senhor doutor disse-me que a última coisa que eu podia apanhar na vida era uma corrente de ar.

- Ai, sim?

- É que nem pensar nisso. Olhe, julguei que o meu marido tinha deixado umajanela encostada. Ele é o melhor homem do mundo mas já está um pouco balhelhas, sabe? - A mulher falava do marido com uma meiguice excessiva, que continha algo de sádico.

- Não me admirava nada - comentou Carta.

- Coitado, mas desta vez a culpa não era dele. Não era, não senhor. Deve ter sido apenas uma impressão minha, ou um pesadelo, sei lá. Parecendo que não, essas coisas acontecem, e não dão jeito nenhum. Se calhar não fiz a digestão como deve ser. Foram os gases, com certeza.

- Sim, sim, e depois? Vamos ao que interessa.

- Ora, quando verifiquei a janela, avistei-vos cá em baixo. Mal, estava mal, tinha perdido o sono e vim. .

- Bisbilhotar e tagarelar. . . , ruminou Carta. . . ver se podia ajudar nalguma coisa.

- Não me diga? Agradeço a boa vontade. Todos os vizinhos serão devidamente interrogados, minha senhora. Agora com licença, que ttenho mais que fazer.

- Só um instantinho, senhor subinspector. No seu lugar, não teria assim tanta pressa. Olhe que não teria, não senhor. Quem avisa, amigo é.

- Por favor, minha senhora, se tem algo a dizer, rogo-lhe que vá directa ao assunto de uma vez por todas, se não é pedir muito.

A senhora Junqueira arvorou uma expressão ressentida. Fez um beicinho. Balbuciou:

- Era precisamente o que pretendia, subinspector. - E em toda frase sublinhava o prefixo "sub".

A velhota retirou as mãos dos bolsos e cruzou novamente os braços, oscilando para a frente e para trás, como se tomasse balanço. Mais uma pausa dramática. Carta suspirou e esfregou os olhos, que lhe ardiam e por certo estavam raiados de sangue. Já não tinha idade para aquilo. Não com aquela dor emboscada nos meandros do seu corpo. Finalmente, a mulher descoseu-se, piscando os olhinhos de pássaro:

- Acontece, meu senhor, acontece, subinspector. . . Carta, não é assim?. . . acontece que conheço aquela cabeça como a palma da minha mão.

 

REINALDO CARTA ESTAVA A DORMIR quando o telefone tOCOu. COmO sempre, odiou o aparelho e amaldiçoou o guincho estridente. Virou-se na cama e relanceou os olhos pelo rádio-despertador em cima da mesinha de cabeceira, cujos dígitos lilases resplandeciam suavemente na penumbra, assinalando 11 horas e três minutos a. m. Havia um atendedor de chamadas, mas, como a mensagem fora gravada por Emília, preferira desligá-lo - ouvir aquela voz era agora uma provação insuportável. Fosse como fosse, faltava-lhe coragem quer para gravar ouha mensagem por cima da primeira, quer para se desfazer da cassete, que continuava em vão no respectivo compartimento. Já lhe bastavam a metade que sobrava da cama e a falta do contrapeso do outro corpo do outro lado, e ainda o espaço que ela tinha deixado para sempre no espelho grande da casa de banho. Levantou-se, calçou os chinelos e arrastou-se até à sala.

Era o agente Rodrigues.

- Bom-dia, subinspector. Espero não o ter acordado.

- Diga.

- Bem, é que encontraram o corpo. Quer dizer, o resto do corpo. Menos a. orelha, naturalmente. Esta continua a monte.

- Hum. Quando?

- Mesmo agora. Telefonei-lhe imediatamente, está-se mesmo a ver.

Não fez mais do que a obrigação. E onde?

- Num contentor de lixo ao pé da escola. De certeza que passámos por ele na madrugada de ontem.

- Talvez sim, talvez não. Quer dizer, pelo contentor passamos seguramente, mas ninguém nos garante que o corpo já lá estivesse. Como é que o descobriram?

- Foi um tipo que ia a levar o cão para fazer as necessidades. O sacana do bicho desatou a ladrar feito um doido para o contentor. Não arredava pé dali por nada deste mundo, por mais que o puxassem pela trela, todo hirto e empinado nas patas traseiras. O dono ficou curioso e levantou a tampa, julgando que ia dar com um gato vadio ou uma cadela com o cio. Quando espreitou lá para dentro e viu o corpo, ia tendo um enfarte. Ainda estava gago ao falar connosco. Anotamos o nome e a morada do indivíduo, como é evidente. Com a cidade às moscas, acho que até tivemos imensa sorte.

- Se calhar tivemos. Sinais de luta?

- Nenhuns.

- Muito bem. Pegadas?

- Mesmo que houvesse algumas, o aguaceiro da manhã tê-las-ia lavado. Incluindo as do melhor amigo do homem.

- Algum documento de identificação nas roupas?

- Nada. Nem um passe de transportes.

- O legista está a tratar do assunto?

- Está, sim. Barafustou um bocado, resmungou que nunca tem sossego, que somos uns empatas, mas lá arrancou. Sabe como é o doutor Castelo, sempre a brincar. À tarde se calhar já nos diz alguma coisa. Se calhar.

- Oxalá que sim. É tudo?

- Não, senhor. Localizei um professor da Academia de Belas-Artes. Um tal Rogério Lemos. Para ser mais preciso, foi ele quem nos telefonou. Já concordou em informar-nos sobre a vítima. Quando o subinspector quiser. Pode ser na própria escola. Assim aproveitávamos e dávamos uma vista de olhos.

- Óptimo. Daqui a bocado estou aí.

- Só mais uma coisa.

- Vá lá, despeje o saco.

- O senhor estava certo: a corrente no rabo de cavalo era mesmo de relógio. Parece-me velha como a minha avó, mas ainda não conseguimos determinar a marca. Como sabe, está quase tudo encerrado. Nem sei como ela foi lá parar, é claro.

- Deixem isto comigo.

- O doutor é quem manda.

- Pois sou. E não se esqueça disso. Fiz-me entender?

- Abundantemente.

Carta voltou para a cama como um sonâmbulo, completamente desperto. Não pretendia adormecer outra vez, apenas ordenar as ideias,    separar o joio do trigo. Aliás, como a maior parte das pessoas naquela fase da vida, entre a meia-idade e a velhice, era-lhe cada vez mais difícil dormir bem. Muitos anos atrás, ainda jovem, adquirira o hábito de, à noite, expurgar da cabeça todas as especulações e preocupações que o tinham afligido durante o dia e de se concentrar em casos domésticos ou em recordações agradáveis. Agora, porém, os casos domésticos inexoravelmente lembravam-lhe Emília, assim como as recordações eram todas dela.

De qualquer maneira, desta vez o sono não correspondia mesmo a um anseio, não obstante o excedente de vigílias que o subinspector tivera. Dobrando ao meio a almofada, pousando nela a cabeça e olhando o infinito no tecto, Carta iniciou a recapitulação. O que é que já sabia, afinal? Pouca coisa - mas ainda era cedo. A imprensa nem sequer fizera grande alvoroço, considerando-se que, apesar dos pesares, uma cabeça não aparecia todos os dias hasteada num mastro. Se a vítima fosse um cidadão de primeira classe, talvez o caso mudasse de figura. Mas isso não era da sua conta. Graças ao precioso, embora não muito substantivo, testemunho da vizinha, sabia       que o morto era um aluno da Academia de Belas-Artes e que no mínimo tinha ascendentes não- portugueses.

- Um monhé, senhor subinspector, um monhé. . . - exclamara a mulher, desdenhosamente.

Aluno da escola, então? Uma ligação sem dúvida sólida e fecunda, um liame firme por onde puxar. Agora era ver o que é que viria, se um salmonete ou uma bota velha. O restante mantinha-se escasso e duvidoso. Quando o subinspector lhe indagara pelo nome da vítima, a senhora Junqueira respondera-lhe que ignorava, e murmurara entredentes :

- Se eu ao menos pudesse adivinhar. . . Mas não aprecio estrangeiradas. Muito menos os que vêm daquelas terras onde os homens usam uma toalha enrolada na cabeça.

Segundo a velhota, o jovem "não passava, a propósito, de um grandessíssimo ordinário". E por que carga de água, valha-me Deus? Porque andava sempre "com livros pornográficos para baixo e para cima". O que era que ela pretendia dizer? Provavelmente, tratar-se-iam de livros de arte, guarnecidos de nus artísticos na capa. Mas, com uma expressão de dignidade altiva, a mulher insistira que "eram mesmo livros porcos. Cá se fazem. . . " Carta considerou que não valia a pena discutir. Eventualmente, o tal professor elucidaria aquele ponto, se houvesse algum interesse na questão.

Muito bem: como já supusera, a corrente pertencia de facto a um relógio - um indício intrigante. Qual seria o seu significado? E a muti lação da orelha? O resto do corpo já estava estendido na mesa de autópsia. E pronto: era só o que tinham para já. Um acerto de contas entre gangues juvenis suburbanos de extrema direita ou esquerda, uns e outros embrutecidos pelos estupefacientes? Balançou a cabeça, céptico: em Portugal muito raramente os distúrbios ideológicos ou raciais entre os jovens iam assim tão longe. Claro que toda a regra tinha uma excepção. . . De resto, não seria a primeira vez. E Carta sabia aquilo que podia fazer um indivíduo entupido de drogas e ansioso pela suprema bem-aventurança de, ao menos durante uns breves momentos, não ser o que era.

Um miado desviou-lhe o curso do raciocínio. Sextante, o gato siamês, ouvira-o e, com o estômago a dar horas, estava a pedir comida. Carta levantou-se com um suspiro, espreguiçou-se de punhos fechados e os braços abertos em V, e convergiu para o terraço do apartamento a fim de desentorpecer as pernas. O gato que esperasse um pouco -já era tão roliço. . . Se não passasse os dias a lamber os próprios testículos e o diminuto pénis cor de salmão, com uma das patas traseiras enganchada atrás da nuca, Carta até julgaria que cometera um equívoco e que Sextante estava grávido de uma felpuda ninhada.

No céu, como ameaçadores tanques de guerra, rolava um cortejo de nuvens bojudas e cinzentas. Cheirava à chuva, observou o subinspector, enchendo os pulmões de ar fresco. Ainda assim, pálidos raios de sol pendiam como espadas douradas para o oceano, cuja superFície ora cintilava ora se ensombrava. O vento moldava liliputianos carneiros de marfim na ondulação. Admirou a curva das ondas, o tumulto da água a abater-se, os grandes arcos que se fundiam e varriam a areia lisa, enquanto a onda recuava, deixando a sua leve orla de espuma. Um veleiro singrava o mar, com a quilha arrebitada e o triângulo da vela voluntariosamente enfunado. Mais ao longe, deslizava um cargueiro carregado de contentores.

Um minúsculo rochedo, rodeado de arestas eriçadas, elevava-se num pequeno farol, por certo não habitado, o qual emanava uma luz débil de lantejoula, reflexo do sol no holofote apagado. O par rochedo-farol parecia um queque com uma única velazinha em cima. Franzindo a testa, Reinaldo Carta ruminou se por acaso cada dia não era um pouco como aquele farol - uma coisa isolada num muro escarpado, capaz apesar de tudo de emitir uma luz ténue e precária, a qual, por uma razão ou por outra, quase ninguém distinguia, se é que alguém alguma vez o fazia. Fungou e abanou a cabeça. Precisava de se livrar daquela ridícula autocompaixão.

Contemplou as floreiras com um arrepio de remorsos. Eram de Emília e sentia-se na obrigação de velar por elas - mas regava-as de modoo esporádico e insuficiente: a terra encontrava-se desidratada, as plantas encarquilhadas e, se não fosse pelas chuvas, possivelmente as flores como as folhagens já teriam sucumbido. Se continuassem assim, não passariam do próximo Verão. Emília. . . A certeza de que nunca mais a veria pesou subitamente sobre ele, como acontecia por vezes. Fechou os olhos.

Quando voltou a abri-los, o veleiro já lá não estava. Mas a paisagem continuava hipnótica: daquele décimo-quarto andar avistava-se quase toda a orla maritima da linha de Cascais.

Emília gostava tanto da casa! Fizera questão de que o apartamento possuísse um terraço com no mínimo trinta metros quadrados e que a vista do mar fosse total, e não - como ela dizia, fustigando demoradamente os ardis das agências imobiliárias - descortinada apenas com a ajuda de um telescópio, um mapa e um torcicolo. Zangara-se acaloradamente com uma amiga que, ao ouvir a descrição do panorama, protestara: "Mas minha querida, tu já viste o mar, não viste?"

Mudando o peso do corpo de uma perna para a outra, Carta meditou que aquela era talvez a primeira vez que apreciava a severa majestade da paisagem - o mar, o rio e o seu estuário, o esplendor de mais uma manhã que se ia para sempre, serpenteando por entre os segundos, os minutos e as horas. Dantes, parecia que o fascínio de toda aquela massa líquida era uma prerrogativa vital de Emília, o seu sistema linfático.

Ela nunca cessara de decorar a casa. Carta cruzou os braços e sorriu, recordando-se do dia em que tinham vindo entregar a cama estilo Império, de quatro colunas, que a mulher exumara num antiquário de Braga. Era realmente admirável. Infelizmente, bem no momento em que os carregadores de fato-macaco azul chegavam com a mercadoria extinguiu-se a energia eléctrica, inviabilizando os elevadores. Era impossível desmontar a cama sem dar cabo dela para sempre. Resultado: os desgraçados foram obrigados a subir catorze andares de escadas com o móvel às costas, resfolegando e praguejando como piratas. Carta recompensou-os com uma gratificação generosa, assim que pousaram a cama no meio do quarto e limparam o suor das testas oleosas. A mesma cama que agora era um deserto, e ele o seu único beduíno, no meio de uma tempestade de areia. O subinspector, que se comprazia em escarnecer de si próprio, acrescentou em voz baixa: "Ou o seu único camelo. "

Pôs-se em biquinhos de pés e olhou lá para a rua, onde um camião manobrava penosamente para estacionar. Pensou no que é que sucederia ao corpo humano, se caísse do décimo-quarto andar até ao solo. Emília um dia levara Sextante para ser examinado pela veterinária que morava no segundo andar. Porque estranhara o temtório ou com receio da médica, ou ainda aterrorizado pelo chinfrim dos periquitos, o facto é que o gato se atirara pela janela sem sequer um miado de adeus. Não sofreu nem uma esfoladela, e parecia apenas constrangido quando a dona, mortificada e esbaforida, o estreitou nos braços.

Mas um corpo humano que tombasse do décimo- quarto andar, calculou Carta, sobretudo uma velha carcaça empenada e decrépita, ficaria tão esfacelado que poderia ser recolhido com um único palito de dentes.

Saiu do terraço e entrou na casa de banho para o duche matinal. Nas primeiras semanas de solidão, encontrara cabelos de Emília por todo o lado, mas sobretudo naquele chão de azulejos cor de pêssego. Dir-se-ia que a mulher estava a germinar na casa de banho, a brotar como uma savana. Somente depois de decorridos dois meses e oito vezas da mulher a dias é que os cabelos se extinguiram. Mesmo assim, de vez em quando Carta ainda dava com um: reconhecia-os pelo comprimento. O subinspector sabia que o cabelo de um cadáver era uma das últimas partes do corpo a desaparecer, e que - assim como as unhas - continuava a crescer durante algum tempo, mesmo depois da morte.

Hoje não é preciso fazer a barba, anunciou-se com lassidão, defrOnte ao espelho. Tantas rugas. E aqueles olhos debruados de olheiras escuras, que lhe davam um horrível ar de ressaca. Assim como assim,    a impressão era de que tinha de facto a boca forrada de pêlo seco. Ao menos o penteado já não lhe causava problemas, pois estava quase totalmente calvo, excepto pelos tufos grisalhos nas têmporas. Há tempos usara umas ampolas contra a calvície, mas aquilo não resultara. Fora como semear roseiras no Sara.

      Já vestido, sentiu roçarem-lhe uma perna: era o gato, que esfregava o dorso nas calças de Carta. O subinspector ralhouafavelmente e dirigiu-se à cozinha, escoltado pelo animal, cuja pele serpenteava de entusiasmo. Retirou do armário duas latas de comida, Abriu uma delas e esvaziou o conteúdo no prato do bichano, que tinha desatado a miar e a andar de um lado para o outro assim que ouvira o estalido da lata. Agora, Sextante mastigava com voracidade. Numca deixava um resíduo na tigela, que ficava a brilhar.

Do frigorífico o subinspector trouxe um tupperware com arroz branco, que a empregada cozinhara na véspera. Serviu uma quantidade frugal num prato, tapou-o com a película aderente e introduziu-o no microondas. Escoado um minuto a campainha tilintou. Carta ocupou a cadeira à mesa e levou o garfo à boca. O atum tinha demasiado óleo e o arroz, uma argamassa compacta, estava na melhor das hipóteses morno, mas não se importou. Intimou-se a engolir tudo até ao fim. a terceira lata de atum que comia no intervalo de uma semana. continuasse com aquela dieta, qualquer dia cresciam-lhe barbatanas e guelras. Depois, lavou o prato e os talheres, que ficaram a secar no balcão do lava-loiças, cobertos por um pano.

Ao meter no bolso a chave do carro, a punhalada - a segunda daquele dia, que para ele mal tinha começado - fê-lo gemer, mais de exasperação do que de dor. Antes de sair, abriu a estante da sala, retirou uma garrafa de vidro lapidado e verteu para um copo dois dedos de whisky irlandês. Desde a morte de Emília a bebida exercia nele um efeito contraproducente: ao invés de o apaziguar, crispava-o mais ainda, inundando- o de ansiedade, maneirismos e tiques faciais. Se estava ainda mais tenso, é porque havia bebido para relaxar um pouco. Apesar disso, as quantidades que consumia eram cada vez maiores.

Sorveu o último gole, fez uma careta, estalou a língua e acendeu um cigarro. Fumava três maços por dia, sem filtro, para desespero de Emília. Quando a mulher morreu, parara de fumar. Na volta do funeral, retomou o hábito. Considerava que a sua atitude denotava falta de carácter, além de desprezo pela saúde. Mas se não se preocupara com a sua saúde enquanto a mulher vivia, por que se iria preocupar agora?

Ao fechar a porta atrás de si, Sextante brincava no terraço com uma mosca que tinha apanhado, empurrando-a delicadamente com a patinha, como um escuteiro a ajudar uma anciã a atravessar a rua. Carta nunca percebera se afinal o gato as comia ou não. Fosse como fosse, jamais encontrara mosca alguma no chão. Ao contrário dos cabelos de Emília.

 

Pela ENÉsima vEz, Reinaldo Carta tentava estabelecer semelhanças, ou ao menos uma correspondência razoável, entre aquela fotografia nas suas mãos e a cabeça pendurada no mastro. Conseguiu-o, por fim, mas foi preciso mobilizar todo o seu olho clínico. A foto, tirada ao ar livre e um pouco desfocada; mostrava um jovem de aparência indiana languidamente apoiado a uma árvore, abarcando apenas do torso para cima. O rapaz tinha um nariz proeminente, mas não desgracioso, sobrancelhas espessas, olhos em forma de moeda, lábios carnudos e brilhantes e cabelos compridos da cor do carvão, ligeiramente encaracolados nas pontas. Na orelha esquerda pendia um brinco, uma pequena argola dourada, quase imperceptível. O olhar era petulante e o queixo estava erguido, numa atitude pueril de desafio.

- Ravi Sharma, eis o seu nome. Nasceu há 22 anos, em Goa, filho de pai português e mãe goesa - anunciou o professor Rogério Lemos. - Não sabemos muito mais sobre ele, infelizmente. Como compreende, andava aqui há apenas três meses. E não era muito tagarela, ao menos não com o corpo docente.

Encontravam-se numa sala de aula da Academia, atravancada de pranchas de desenho e cavaletes, tubos de tintas, pincéis e aguarrás. O professor Lemos, especialista em História de Arte Antiga, na ausência do director tivera a bondade de se deslocar até lá, e utilizara a sua própria chave. Era úm homem corpulento como um urso, com as mãos grossas de um camponês, tronco triangular, cabelo ondulado cor de areia, nariz abatatado e queixo pragmático. Carta nunca vira uma pessoa com idade tão indefinida: tanto podia ter quarenta e muitos como sessenta e poucos - a sua pele, contudo, apresentava uma textura de casca de queijo envelhecido.

- Como é que obteve a fotografia? Se me permite, não me parece lá muito curial.

- Repare, subinspector: solicitamos uma foto para a matrícula. Os jovens muitas vezes esquecem-se e, provisoriamente, ficamos com as que têm consigo, por uma razão ou por outra. Vale mais um pássaro na mão. . . Depois, invariavelmente, substituem-na pela convencional, tipo passe. Ao que parece, Sharma não se deu ao trabalho, esqueceu-se ou não teve tempo de fazer a troca. Seja como for, a foto é recente, como indica a data escrita no verso.

- Sim, é verdade - concordou Carta, acendendo um cigarro.

- De qualquer forma, é apenas uma especulação. Se quiser, poderá confirmar por si próprio. Como decerto compreende, a Academia permanecerá encerrada alguns dias por causa da tragédia. Mas a secretaria estará acessível a partir de segunda-feira, pelo menos em part-time. Ainda não sei bem se de manhã ou à tarde. Convém é não se esquecer de que isto é uma escola de arte - para o mal e para o beme - não um quartel. Não somos prussianamente adestrados.

- Percebo - comentou Carta, lacónico, compenetrando-se, quase no mesmo instante, de que o professor era muito reticente em relação à sua sensibilidade. Paciência, pensou o subinspector. Eram os ossos do ofício. Todos os polícias são broncos, estúpidos e fascistas. Sobretudo se já nos passaram uma multa de trânsito. - E quanto a parentes? Pais, mães, irmãos, tios. . .

- Por acaso pensei nisso. O único contacto que temos é uma tia que vive no Porto. Tomei a liberdade de ligar-lhe, para dar a triste notícia, e fui informado por alguém - julgo ser a empregada - de que a senhora está hospitalizada há uma semana, e consta que não sai do hospital tão cedo. Se é que sai com vida, coitada: teve uma embolia cerebral e encontra-se nos Cuidados Intensivos.

- Estou a ver. Não foi uma semana auspiciosa para a família Sharma.

- Em todo o caso, se deseja ficar com o número do telefone e o nome da tia. . . Para o hospital não telefonei. - O professor Lemos tirou uma folha de papel do bolso interno do casaco e estendeu-a ao subinspector.

- Com certeza - disse Carta, dobrando o apontamento e guardando-o na carteira, junto com as facturas de restaurantes. - Nunca se sabe. Uma pergunta pessoal: Ravi era um bom aluno?

- Nem por isso. Assim-assim. Quer dizer, não era parvo mas tanbém não era nenhum génio. Enfim, como quase todos os outros.

- E como pessoa, que tal?

- Como já disse, andou cá muito pouco tempo para que o conhecesse bem. Superficialmente falando, parecia-me fútil. Estava sempr a pentear o cabelo nos reflexos das janelas e mais interessado em coleccionar engates do que noutra coisa qualquer.

- Ah, era um sedutor?

- Bem, ao menos esfalfava-se, isso posso garantir-lhe. Problema de auto-afirmação, talvez. Creio que é comum naquela idade. Vi-o quantas vezes com um exemplar do "Kama Sutra" nos braços. muito subtil, pois não?

- Se calhar era assim que apregoava as suas origens indianas, pensou o subinspector, recordando-se dos "livros pornográficos" de que a senhora Junqueira falara.

- Acha? Claro que é sempre possível, porém creio que os seus propósitos não eram tão. . . étnicos. Era mesmo um engatatão, com as hormonas a trepidarem por todo o lado. Embora provavelmente com pouca sorte: ainda outro dia levou um estalo de uma colega, por excesso de atrevimento, segundo julgo saber.

- Ai, sim? Como é que foi isso? E quando?

- Deixe-me pôr em ordem as ideias. Olhe, há uns três ou quatrO dias. Ia a entrar na sala quando ouvi um burburinho, umas vozes irritadas. A altercação era entre Ravi e outra aluna, que acabou a conversa com uma bofetada. Sonora e muito bem aviada, diga-se de passagem. A seguir a moça retirou- se, toda esbaforida e zangada. Passado um instante, Ravi também saiu, mais ou menos com o rabo entre as pernas e vermelho como um rabanete - para um indiano, . Os dedos de Berenice ainda estavam impressos na face dele, como a mão de uma estrela de cinema na Calçada da Fama. De qualquer forma, foi tudo muito rápido. Fiz-lhe uma descrição em câmara lenta.

- Como é que se chamava a colega? Berenice quê? O professor permaneceu um momento calado e fixou no polícia uns olhos escuros e frios como basalto. Finalmente, murmurou numa voz sibilante:

- Veríssimo. Berenice Verissimo. Por sinal, ela sim é que é uma boa aluna. E com talento. Claro que talento não chega. Na maior parte dos casos, não dá nem para a saída. Muitas vezes, é preferível uma mediocridade sólida a uma aptidão difusa e dispersiva.

- É possível. Isso ultrapassa a minha competência, professor. Tem o número de telefone e a morada dela, se faz favor?

- Só na secretaria. Não me diga que vê alguma relação entre. .

- Não confirmo nem desminto. Quero apenas conversar com a jovem, assim como com as outras pessoas que, de uma maneira ou de outra, conheceram a vítima. Mesmo porque parece que não foram assim tantas. . . Professor Lemos, agradeço que me avise imediatamente, se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, por mais insignificante que pareça. Tudo pode ser útil. Até porque não há sinal de impressões digitais.

- O velho truque das luvas?

- O velho truque das luvas.

- Então nesta altura tudo o que vem à rede é peixe. . .

- Precisamente.

- Não tem absolutamente nenhum suspeito?

- Não. Mas esteja descansado que eles aparecem.

Apertaram as mãos. Carta girou os calcanhares para a saída. O professor fora muito prestativo. Excessivamente prestativo? E Ravi: seria frivolo, por pensar demasiado em raparigas? O subinspector sorriu pesarosamente. "Com aquela idade, também eu pensava um bocado no assunto. Se é que pensava noutra coisa. "

 

ReinalDO CARTA ESTAVA EM PÉ, diante da janela do seu gabinete no terceiro andar, a fumar um cigarro atrás do outro. Caía uma chuva fina e obstinada, de gotas finas como alfinetes, que as rajadas de vento deitavam contra ajanela. Lá fora, a luz amarelo-açafrão dos candeeiros contrastava com a palidez do entardecer. Afastando uma série de telefones, o doutor António Castelo sentara-se num dos vértices do tampo da secretária, e balançava uma das pernas, para cá e para lá, como se marcasse o compasso de uma canção. Calçava sapatos de vela, cor de avelã e meias com cornucópias.

Castelo era um quarentão elegante e bem conservado. De crânio forte, na zona da nuca os escassos arabescos de cabelo eram deliberadamente realçados pelo gel. Além de ser um enólogo de fama mundial, o médico tinha também um fraco por tudo o que dissesse respeito a autópsias, anatomias, dissecações - um verdadeiro erudito na sua esfera. E, ainda por cima, com vocação pedagógica: não desdenhava uma ocasião para pontificar. Os colegas da polícia consideravam-no ou maçador ou macabro, mas Carta, que tão-pouco era muito aparecido por ali, estimava-o genuinamente, apesar de não poder classificá-lo como um amigo íntimo, pois não conviviam fora do expediente. Achava Castelo espirituoso sem ser importuno, e competente mas não presunçoso. Ao contrário da maioria dos patologistas, não ficava zangado quando os polícias lhe espreitavam por cima dos ombros enquanto estava a trabalhar, com as mãos enfiadas nas luvas de látex e um avental de plástico nos quadris, a despejar órgãos num balde para em seguida os pesar, ou a esgrimir acessórios lúgubres como drenos e pulverizadores. Na verdade, tinha trabalhado em morgues durante toda a sua vida adulta, e não havia quase nada que conseguisse irritá-lo.   

- Dói quando urinas?

- Na verdade, não tem doído muito ultimamente. Hoje por exemplo quase não senti nada. Só um pouquinho, logo que me levantei.     

- Não te faças de surdo. Não foi isso que perguntei. Responde-me como deve ser: dói quando urinas?

O polícia clareou a garganta e alisou a amarrotada gravata castanha, que já vira melhores dias.

- De manhã, é quando dói mais.    

- Aposto o meu canudo como é a próstata. Na tua idade é limpinho. Deverias ver isso, ó Carta, antes que seja tarde. Amanhã mesmo, aliás. Vou marcar-te uma consulta com um amigo meu, que é um barra nessa área. Prometes que não faltas? Vê lá, é um tipo ocupadíssimo.

- Pronto, prometo. Palavra de honra. Agora podemos ir ao que interessa?

- O mais possível. O exame foi uma beleza.       

- Não sejas necrófilo, por favor.     

- Não estou a sê-lo. Tu é que és demasiado sensível. Tenho visto coisas bem mais feias do que uma bonita autópsia numa morgue respeitável. Claro que, graças às tuas investigações, foi mais fácil compor o ramalhete. Como sabes, nesses casos muitas vezes é um bico de obra determinar a idade, a patologia e até o sexo dos restos mortais.

- Quanto ao sexo, bastava olhar para ele.    

- Livra, que esses achaques põem-te mesmo rabugento, hem?     

Não te esqueças de que estamos a falar apenas da cabeça. Ainda não trabalhei o suficiente com o restante do corpo. Espero obter novas indicações depois de o examinar melhor.      Não me tinha esquecido. E depois?    

- Para já, o assassino é de certeza uma pessoa de compleição robusta. Não necessariamente um brutamontes ou um peso-pesado, mas alguém saudável e em plena forma, que contou ainda com a vantagem da surpresa.     

- Uma mulher então está fora de questão?  

- Ai, ai, continuas a pensar que a mulher é o sexo frágil? Não, meu anacrónico amigo, as senhoras não são uma carta fora do baralho. Tudo depende muito das circunstâncias. Mas trata-se seguramente de uma criatura vigorosa. Tudo indica que o cadáver tenha sido carregado e não arrastado, não é mesmo? E, sobretudo, não é nada fácil separar a cabeça de um corpo. Quando a guilhotina entrou em moda na Revolução Francesa, durante o periodo do Terror, era corrente ver-se os olhos dos condenados a rolarem nas órbitas e as pernas convulsivas, mesmo depois de a lâmina ter caído.

- Ai, sim?

- Ah, pois! Aliás, após o Terror, nos primeiros dias do Directório os aristocratas que tinham escapado à guilhotina cultivavam a mania irónica de atar uma fita vermelha à volta do pescoço, precisamente no sítio em que a lâmina o deveria ter cortado, como se fosse o memorial de uma ferida.

- Não me digas que a arma do crime foi uma guilhotina.

- Isso querias tu. . . Que sensação, ahn? Uma "cause célèbre". . . Entravas para os anais da criminologia portuguesa. Não, para a decapitação usaram possivelmente um machado, uma faca de mato serriada ou uma coisa assim mais prosaica. E houve vários golpes. Por outro lado, não me admirava que a vítima estivesse inconsciente, talvez narcotizada.

- Como sabes que Ravi Sharma não se drogou voluntariamente?

- Achas que também cortou a própria cabeça?

- Poupa-me o teu humor negro, está bem? Horário?

- Pela observação superficial das vísceras, a digestão estava apenes no início. Por isso suponho que a morte se deu não muito tempo depois do jantar. Naturalmente, cada um janta à hora que quer.

- Infelizmente. Algo de interessante na refeição?

- Nada de especial, a não ser uma quantidade de álcool - mais precisamente, vinho - um tanto elevada. Diria que ele bebeu ao jantar cerca de meia garrafa, talvez três quartos de litro.

- Uma dose avantajada, embora não exactamente excepcional. Se fosse um bom copo, não o deitaria abaixo. E que mais?

- Temos outras indicações. Como sabes, quando uma pessoa morre, a rigidez cadavérica começa a estabelecer-se algumas horas mais tarde, variando este período conforme a causa da morte, temperatura do ambiente e coisas assim. Principia pela cara e pelo queixo e propaga-se gradualmente a todo o corpo. Em geral dura vinte e quatro horas e em seguida desaparece pela ordem que começou.

-E. . .

- E a cara do rapaz ainda estava bastante hirta - donde se conclui que a morte ocorreu há bem menos de 24 horas antes da descoberta da cabeça. O resto do corpo, ao ser encontrado, já estava lasso.

- E quanto à orelha mutilada?

- Ah, sim: é praticamente certo que foi cortada antes da decapitação. Muito pouco tempo antes, mas ainda assim antes.

- Já desconfiava.

- Ai, sim? E pode-se saber baseado em quê? Bola de cristal, talvez?

- Pressentimento. Instinto. Experiência. Chega?

- E sobra. Então senta-te na tua cátedra que agora vem o melhor.

- Não me sento nada. E tens meio segundo para vender o teu peixe - Na viga do telhado defronte, um casal de pombos alçou voo alvoroçadamente. Uma criança com um boné de basebol apareceu à janela, de olhos muito abertos, acompanhando o curso das aves.

- Deves mesmo ir ao médico. Estás impossível de aturar. Calma, cá vai. Foi encetada - ouça bem: apenas encetada - na cabeça uma tentativa de mumificação. Aliás, muito rudimentar, mais um esboço de empalhamento do que propriamente de embalsamamento. A operação foi abandonada abruptamente e ficou-se por aí.

- Hum, daí a ausência de sangue e o tamanho anormal da cabeça.

- Exacto. Era o primeiro passo - e foi virtualmente o único.

- Essa agora. . . Uma mumificação!

- Calminha, senhor subinspector. Eu disse apenas uma tentativa, e muito tosca. De resto, não é assim tão incrível: as múmias é que estão a dar.

- Como assim?

- Não sabes o que é que se passa com a múmia do Lenine?

- Múmia do Lenine? Eu nem sabia que o Lenine tinha uma múmia. . .

- Ora essa, claro que não tinha múmia coisíssima nenhuma! Olha que tu também. . . Refiro-me ao corpo de Lenine mumificado e exposto na Praça Vermelha. Carta, em que mundo é que vives?

- Neste. Que remédio. . .

- Mas os jornais não falam de outro assunto, e muito menos a televisão. Ou seja, do referendo sobre a múmia do Lenine. Foi o tema de abertura dos telejornais de ontem. Em todos os canais.

- Referendo? Que referendo? Não era sobre a moeda única?

- Isso já lá vai. Presta atenção. Quando Lenine morreu, em 1924, o seu corpo foi embalsamado com um unguento especial, cuja fórmula continua a ser um segredo de estado na Rússia pós-soviética. Os imventores do tratamento foram dois cientistas soviéticos, fundadores do Instituto de Investigação Científica de Estruturas Biológicas, pioneiro mundial em técnicas de embalsamamento. O instituto mumificou grandes líderes comunistas, como o chinês Ho Chi Min, o búlgaro Dimitrov e o nosso velho conhecido, Agostinho Neto, que Deus o tenha e o Diabo o carregue.

- Achas que foram os cientistas vermelhos que o degolaram?

- Não te armes em parvo.

- E tu não amues. Continua, por favor. Sou todo ouvidos.

- Bom, Boris Yeltsin declarou várias vezes que a múmia de Lenine deveria receber uma sepultura cristã. Ou seja, o fundador do comunismo deveria ser enterrado junto com a sua mãe e a sua irmã, no cemitério de São Petersburgo. Pois bem: Yeltsin acaba de propor um referendo nacional sobre a questão, no prazo de um ano. A alternativa é simples: a múmia de Lenine permanece no mausoléu da Praça vermelha ou é sepultada segundo os ritos da Igreja Ortodoxa?

- Já agora, em que é que votavas?

- Eu? Essa é boa! Sei lá. . . Uma coisa é certa: Lenine detestava a ligião. Por outro lado, por causa da Revolução renunciou a todos os prazeres, como a patinagem, a música, a leitura do latim... É bem verdade que não sei se o diverte muito estar exposto na Praça Vermelha como atracção turística, assim tipo sereia ou aquele miúdo incontinente de Bruxelas.

- Pensas que o assassino pode ter sido influenciado por esse falatório todo?

- Se fosse só isso. . . Não vês nem um pouco de televisão?

- Não tenho televisão. Ou melhor, tenho mas está avariada. e que lhe preguei um pontapé. - Carta lançou um olhar perscrutador ao outro. Sabia que, apesar daquela fachada tão moderna, o doutor Castelo ainda usava um frasco do velho Vicks Vap-O-Rub sob as narinas, para dissimular o odor dos corpos em decomposição. Não fez comentários, mas um sorriso irónico aflorou-lhe os lábios como um nenúfar num tanque.

- És uma aberração da natureza - continuou Castelo, zurzindo o ar com o dedo. - Pois fica a saber que se tem discutido muito outra múmia: a de Tutankamon.

- Ah, desta já ouvi falar.

- Fico muito mais descansado.

- Não me digas que também lhe querem dar um funeral cristão. . . O médico vagueou os olhos do gabinete de Carta para a sala da esquadra, com as suas filas de secretárias, paredes e tectos de um mostarda tristonho.

- Antes fosse. Acontece que a múmia de Tutankamon está a esboroar-se, seja por um tratamento arqueologicamente inadequado por parte dos seus descobridores, seja por má conservação. Depois de apenas 71 anos em contacto com o mundo dos vivos, a pobre coitada - que tem três mil anos bem vividos -já perdeu a orelha esquerda e a cabeça foi separada do corpo. E perdeu também o pénis. . .

- Raios, que se não fosse por este último, hum, detalhe, a coincidência era notável! Ravi Sharma também perdeu a orelha esquerda, foi decapitado e submetido a um princípio de mumificação. Pensas que pode ser mais do que simples coincidência?

- Não faço a mínima ideia, meu caro. Sou apenas o doutor Watson. Tu é que és o Sherlock.

Carta deitou mais cinza no cinzeiro. O odor a nicotinajá era intenso.

- Espera um pouco. Só um instante! Disseste que a mumificação, ou embalsamamento, ou lá o que é, foi abandonada de repente. Porquê?

- Como é que queres que eu adivinhe? Já não é uma questão clínica. As hipóteses são várias: ou porque o seu autor não teve tempo de a concluir, ou porque percebeu que não dominava suficientemente a técnica, ou porque mudou de ideias, nem mais nem menos. Ou, o que talvez seja o mais provável de tudo, por desvario psicológico puro e simples.

- Ah, pois: é o costume - um pobre lunático que não sabia o que fazia. Ele é que perde a cabeça e o outro é que é decapitado.

- As palavras são tuas, não minhas. E não te faças de duro, pois já te conheço desde os tempos da outra senhora.

Ao ouvir aquilo, Carta empalideceu e tossiu. O doutor Castelo engoliu em seco, constrangido, e o subinspector viu a sua maçã de Adão a subir e a descer. Intempestivamente, o médico arregaçou a manga da bata azul-bebé e consultou o relógio.

- Já são seis horas? Tenho de ir. - Inclinou-se graciosamente e endireitou-se como um gondoleiro. - Só mais uma coisa: a vítima estava a submeter-se a um tratamento odontológico. De certeza. a- - Óptimo, óptimo. Uma indicação muito produtiva. Talvez na rua alguém conheça o dentista. Obrigado, Castelo. Foste o máximo, como sempre.

- Então paga-me na mesma moeda e vai ao médico da próstata, tambem? Já tens mais do que idade para ter juízo.

Sozinho no gabinete, Carta abriu uma gaveta. "Desde os tempos outra senhora" - a frase pulsava- lhe nos ouvidos que nem os grilhões de um comboio. Pobre Castelo: ficara mais atrapalhado do que ele próprio.

O subinspector não comia nada desde o malfadado arroz com atum. O seu ventre começou a produzir ruídos estranhos, como uma casa mal-assombrada. Retirou da gaveta um copo e uma garrafa de uisky, e serviu-se uma dose generosa. Reconsiderando, verteu mais um dedo - antes sobrar que faltar. Afastou a cadeira, estendeu as pernas, pousou um pé sobre a secretária e bebeu tudo de uma vez. Quase se engasgou, mas conseguiu controlar-se. Pigarreou com toda a força, arranhando a traqueia. Sentiu-se reconfortado, embora soubesse que o bem-estar não passava de uma miragem.

A fotografia de Ravi Sharma jazia sobre uma pilha de papéis dos processos mais recentes. Com que então, um português de Goa. . . O subinspector recordava-se da anexação - ou reanexação - de Goa, Damão e Diu pelos indianos de Nehru, em 1961. Na época era pouco mais do que um adolescente. Ouvira e lera tantas vezes chamarem "Pandita" a Nehru que se convencera de que aquele era o primeiro nome do dirigente indiano. Pandita Nehru, Pandita Nehru. Até que um dia uma namorada riu-se ruidosamente dele, chamou-lhe pateta e explicou-lhe que pandita significava apenas "sábio brâmane". Não era um nome como José ou João. O líder indiano chamava-se na verdade Jawaharlal Nehru.

Carta nunca mais se esqueceu daquela risota gélida, que se tornou cada vez mais fria à medida que a fisionomia dajovem - e até o ressentimento - se desvanecia na sua memória. Tão-pouco se esqueceu do significado da palavra pandita. A namorada arranjou outro - que, ou ele se enganava muito, tão-pouco sabia o significado da palavra pandita. Ou talvez o soubesse, quem podia adivinhar? Emília igualmente ignorava o que pandita queria dizer, até que ele a elucidou. Mas Carta não se riu dela. Foi ela quem sorriu, sussurrando-lhe ao ouvido, com uma ironia doce: "Meu sábio brâmane. . . "

Emília tinha dessas coisas.

 

QUANTO É QUE OS TERMÓMETROS MARCARIAM? Por certo, nenhuma temperatura abrasadora, equatorial. O sol da Primavera até era agradável, e a abóbada azul-cobalto do céu coroava uma        temperatura amena e tépida. Mas o doutor Lourenço Maia suava em bica, como se estivesse amortalhado numa sauna. Afrouxou o nó da gravata e, rangendo os dentes, resmungou mais uma maldição. Bateu com o punho fechado no volante. Endireitando a coluna vertebral, olhou-se no espelho retrovisor e viu uma cara afogueada, desfigurada pela perturbação.

Pedro, o filho de sete anos do doutor, fazia naquela tarde - mais precisamente, dentro de vinte minutos - a sua primeira comunhão, na capela do colégio de freiras irlandesas. Irlandesas, suspirou o dentista. bem regidas pela pontualidade britânica.

De índole metódica e perfeccionista, tinha calculado o tempo conscienciosamente, com folga até. Já percorrera aquele itinerário pelo menos dezenas de vezes, e nunca levara mais de meia hora. Pronto, 35 minutos no máximo dos máximos. . . Pois naquele dia saíra de casa com uma hora de antecedência, não fosse o diabo tecê-las. Compenetrava-se perfeitamente de quanto a criança contava com a sua presença       Para ele próprio a cerimónia constituía um incomparável prazer. Não obstante uma sequência endiabrada de semáforos encarnados, tudo correra de modo mais ou menos satisfatório até ao acesso da Avenida Infante Santo à avenida da Índia, que conduzia a Belém e dali à escola. O dentista afastou-se da faixa central, accionou o pisca-pisca e guinou para uma ramificação à direita, como lhe competia. Descontraído, cantarolava a canção que o rádio emitia. Era uma bela canção, aquela. Ao mesmo tempo harmoniosa e magnética. Foi aí que, sem perceber de facto como, se viu emparedado numa fila estagnada de carros. Visto de cima, o trânsito devia parecer uma grande lagarta metalizada.

A princípio, muniu-se de toda a paciência do mundo. Claro que aquilo não podia durar a vida toda. Nem pensar nisso. Toda a gente estava cansada de saber que em Lisboa bastava um acidentezinho de nada - uma encostadela de raspão, um pneu furado, um depósito vazio - para baralhar o tráfego todo num nó cego. Mas, em compensação, as coisas lá acabavam por seguir o seu curso, ainda que a passo de caracol. Sim senhor, e ele ainda dispunha de muito tempo. Bom, muito também já não diria, mas a distância agora era pequena.

Era bem verdade que aquilo não estava a andar mesmo nada. Consultou o relógio sem distinguir os ponteiros. Desligou o rádio, que já o irritava com a maldita canção. Ressoavam umas buzinadelas coléricas. Os aceleradores ronronavam futilmente. Os motores matraqueavam de ansiedade. Ah, sempre avançavam um bocadinho. . . Não, pura ilusão: os carros apenas se apertavam mais uns aos outros, quase tocando os pára-choques. Experimentou fechar os olhos, na esperança supersticiosa de que, quando os abrisse, tudo tivesse mudado. Não resultou.

Encontrava-se a somente cem metros da avenida da Índia. Tinha a certeza absoluta de que, desde que atingisse aquela meta, o resto seria tão fácil como saltar à corda. Abriu a porta e, soerguendo-se no banco, espreitou à sua frente. Primeiro descortinou um polícia, lá na intersecção das duas artérias. Depois outro. Flanqueando a viatura azul e branca da Brigada de Trânsito, ambos acenavam langorosamente para alguém, como se dedilhassem uma harpa. Mas nem um automóvel circulava. Nem um camião. Nem um autocarro. Nem sequer uma bicicleta. Por amor de Deus, o que é que se passava? Alguém poderia fazer o favor de explicar?

Momentos depois, sempre no alcatrão da avenida da Índia, o doutor Maia avistou um punhado de atletas. Eram de facto isto: atletas amadores - homens em calções coloridos e camisolas de alça, correndo diligentemente com um número ao peito, como quem participa de uma proeminente prova desportiva. Quase no mesmo instante, como a sua visão periférica se condoesse e o alertasse com um estalar de dedos, reparou numa série de cartazes idênticos, colados à parede de um prédio, que anunciavam em letras garrafais: Corrida Contra o racismo. A data coincidia. E a hora. E o local. Oh, não.

O doutor refugiou-se de novo no carro, com um nó na garganta. Qualquer coisa no seu estômago arrulhou como um pombo. Desta vez, olhou os ponteiros do relógio: faltavam quinze minutos para o início da liturgia. Ora, os padres e as freiras eram irlandeses, mas os pais dos alunos não o eram. Latinos dos quatro costados, isso sim. Portugueses de gema. Com excepção do doutor Maia, que era brasileiro, e de Pedro, -brasileiro. Afinal talvez ainda pudesse socorrer-se de uma provincial margem de manobra. Não podia era perder as estribeiras, nem

sucumbir a um impulso insensato, como o de abandonar o carro e continuar a pé, a galope pela calçada, ultrapassando os próprios corredores.  

Alcançando a meta de fato e gravata. Ao pensar nisso, tirou a gravata e colocou-a no bolso, amarfanhando- a toda.

Confessou-se que, nos últimos tempos, andava a perder a paciência com assustadora facilidade. Dantes, mesmo no engarrafamento mais emaranhado, conduzia-se com a serenidade de um monge em sua cela tibetana. Agora, exaltava-se por qualquer coisinha. Seria assim? Ou a idade que ia chegando, com a rabugice proverbial dos anciãos? Que disparate: não estava assim tão velho, e nem todos os velhos eram rabugentos. Precisava mesmo era de umas férias, um dia só. Talvez no ano que vem.

Olhou para trás: é que nem sequer podia evadir-se dali, subtrair-se por um percurso alternativo - estava bloqueado, encurralado numa já extensa e incomensurável fila. Os condutores, com as fisionomias irritadas de impaciência, saíam dos veículos e vagueavam pelo passeio, praguejando contra a má sorte e confortando-se com a sua impotência.

Lourenço voltou a deixar o automóvel. Caminhou alguns metros na calçada e avistou um terceiro polícia, este mais próximo do que os outros dois. Perguntou-lhe respeitosamente quanto tempo é que aquilo ia demorar. O polícia encolheu os ombros e humedeceu o lábio de cima no de baixo: "O tempo que for preciso".

O doutor apercebeu-se de que um primeiro pelotão de corredores povoado por homens jovens, tinha acabado de passar. Agora vinham as mulheres, também jovens. Uns e outras corriam de cabeça inclinada para o solo, como se quisessem ver onde pisavam, porém com um ar brioso e enérgico. Quase ninguém arfava. Depois das raparigas, assomaram os idosos e as idosas, alguns já anciãos, num ritmo visivelmente mais lento. Foi quando o polícia lhes ordenou, a Lourenço e aos demais:

- Voltem para os vossos carros que isto vai arrancar. Então! Estão à espera de quê?

Louvado seja Deus: em dez minutos, com um pouco de sorte na hora do parqueamento, ainda se safava.

A fila de veículos começou de facto a rolar, ainda que muito vagarosamente, como se a pressa fosse inimiga da perfeição. Mas era melhor do que nada. Lá percorreram os fatídicos cem metros e penetraram na messiânica avenida da Índia. No entanto, deslocavam-se com uma morosidade de lesma. Lourenço meteu a cabeça pela janela e, consternado, compreendeu por que é que o tráfego não acelerava: muito simplesmente, continuavam a andar na retaguarda da corrida ou seja, nos calcanhares dos idosos. Era impossível ultrapassá-los sem os atropelar e deitar por terra um a um, como pinos de bowling. O cortejo de veículos deslocava-se à velocidade que um sexagenário corre uma prova de longo curso. Os olhos do doutor marejaram-se de exasperação. Sinceramente, não era justo. Não era, não era.

Ele não merecia aquilo. Ou merecia? Por que é que não saíra de casa uns míseros dez, quinze minutos mais cedo? Teria evitado a corrida - que aliás desconhecia por inteiro. Bem, não saíra mais cedo primeiro porque, como não tinha o dom da presciência, não julgara preciso, e segundo porque não desejava confraternizar com os parentes da sua ex-mulher senão o estritamente necessário.

Enxugando o suor da testa nas costas da mão, Lourenço baixou a pala em frente do pára-brisas. Lembrou-se de que, nem de propósito, a comitiva da sua ex-mulher vinha da extremidade oposta da cidade, e portanto não seria retardada pela corrida. Por outras palavras, por certo já estariam todos empertigados na capela, batendo os dedos indicadores nos relógios, entreolhando- se de modo significativo ("é o costume!") e fitando o pequeno Pedro com solícita comiseração. O doutor não podia contar com sequer um aliado, na medida em que os seus familiares se encontravam do outro lado do Oceano Atlântico, com baleias, tubarões, ilhas, correntes marítimas, tempestades e sargaços pelo meio.

Não, que coisa, ele estava a empolar os acontecimentos, a comprazer-se num masoquismo pateta, a martirizar-se patologicamente. eram de novo os velhos remorsos ditados pela separação. Afinal de contas, ultrapassada a inevitável turbulência dos primeiros tempos do divórcio - os primeiros cinco anos, por assim dizer - Lourenço e Lúcia tinham conseguido cimentar um modus vivendi bastante razoável e civilizado, ocasionalmente cordial e até amistoso. Naturalmente, um resíduo latente de ressentimento era talvez indelével. demasiadas coisas tinham sido ditas e ouvidas - e quanto a isso não havia nada a fazer. Porém, com boa vontade e afinco, as desavenças por tudo e por nada pertenciam ao passado. O que sobretudo importava agora eram as duas crianças - Pedro e Teresa, esta com dez anos.

Uma aragem misericordiosa afagou e refrescou o semblante do doutor, cujos cabelos, húmidos e desalinhados, ondularam de gratidão. Lourenço viu que a brisa era gerada pelos carros que passavam em sentido contrário - pois os atletas só percorriam e empatavam a pista que ele ocupava. Na outra, o trânsito escoava-se serenamente, com a densidade rarefeita dos fins-de-semana. Os condutores passavam pelo dentista com um ar gozão.

Enquanto deslizava atrás dos anciãos, alternando a primeira e a seegunda mudanças, de olho na temperatura do motor e procurando convencer-se de que cinco minutos de atraso, ou mesmo dez, não são uma coisa do outro mundo, numa cerimónia que deveria durar pelo menos uma hora, o doutor Maia tomou consciência das faixas com inscrições que guarneciam a avenida, alusivas à Corrida Contra o Racismo.

Ele próprio, embora estrangeiro, não podia em sã consciência queixar-se de discriminação, sobretudo numa época de tribalismo exacerbado e cidadania tão movediça. Foi o que, mais uma vez, declarou a si mesmo, anuindo com a cabeça. Claro que tinha boas maneiras, elevada instrução e a pele branca - a sua discrepância não era epidérmica mas apenas fonética.

É certo que ainda assim sempre havia um ou outro caso de animosidade, mas isso derivava do mau feitio intrínseco de indivíduos isolados, e não de uma inclinação colectiva. Também era verdade que o bilhete de identidade que trazia na carteira era azul-celeste, contrastando conspicuamente com os B. I. amarelos-pálidos dos cidadãos portugueses e da União Europeia - estes últimos que nem sequer falavam português. Entre outras coisas, o bilhete azul implicava uma revalidação anual obrigatória. Mas mesmo tal inconveniente podia ser atribuído ao desleixo de Lourenço, que estivera casado sete anos com uma portuguesa, tivera dois filhos portugueses e não se dera ao trabalho de invocar os benefícios e privilégios que esse estatuto facultava.

E havia o recurso à dupla nacionalidade, prerrogativa dos brasileiros em Portugal e dos portugueses no Brasil. Porém aquilo pressupunha pelo menos um ano a peregrinar de repartição pública em repartição pública, enfrentando funcionários quase sempre ressabiados e hostis, que pareciam ter sido escolhidos a dedo entre Os Grandes Gurus da Xenofobia, treinados para temerem os seus superiores e desprezarem os seus inferiores. O doutor Maia sorriu amargamente, pensando que se Deus dependesse da burocracia portuguesa para inaugurar a Criação, o Universo ainda estaria a ganhar bolor entre formulários, memorandos e carimbos.

É certo que existia uma terceira hipótese: os cinco anos consecutivos de habitação no país concediam-lhe automaticamente, ao menos em teoria, o cobiçado bilhete de identidade amarelo. Contudo, da última vez em que o doutor se deslocara à Secretaria dos Estrangeiros, ainda mais lenta do que aquela em que agora vegetava, com pessoas sombrias e resignadas diante de guichets onde espreitavam muitas pessoas feias e intratáveis, que só lhes sabiam ladrar. O documento fora-lhe indeferido, subsistindo o azul.

Incrédulo e revoltado, Lourenço nunca mais pusera lá os pés. Recordava-se vividamente daquela tarde aziaga. Já estava há uma hora na fila, que se contorcia pela calçada, quando um seu amigo foi ter com ele. "Como é que me achaste no meio desta gente toda?", perguntou, admirado. "Não havia nada que enganar, meu velho: és o único branco aqui. "

Assim, no presente momento, embora tivesse dois filhos portugueses, vivesse no país há mais de dez anos consecutivos e auferisse rendimentos bem acima da média nacional, o doutor Maia encontrava-se em situação ilegal, pois o bilhete azul caducara há três anos e não fora renovado desde então. De vez em quando tinha pesadelos com aquilo: sonhava que era conduzido à fronteira pelos cabelos, sumariamente deportado e nunca mais via os filhos, que acabavam por se esquecer de que um dia ele existira na face da Terra.

Mas não: não podia queixar-se de xenofobia. Está bem, houvera aquele incidente há uns meses com o polícia, que fora realmente desagradável. Tinha ido ao clube de vídeo escolher umas cassetes de desenhos animados para os filhos, e estes acompanhavam-no. Em frente ao clube era impossível estacionar: tudo atravancado com tapumes de obras. Olhando em redor, o dentista aventurou-se pelo parque de um hotel adjacente, que se encontrava quase deserto. Mal desligara o motor, um funcionário do hotel veio ter com ele, pressuroso, comunicando-lhe que não podia parar ali, a não ser que fosse um hóspede.

Com um sorriso simpático, Lourenço argumentou que não, não era um hóspede, mas não se ia demorar, era só o tempo de dar um saltinho ao videoclube e voltar com as cassetes de desenhos animados. Afinal, era domingo e o estacionamento estava às moscas. E sabe como são os miúdos. O funcionário, no entanto, manteve-se intransigente: sentia muito, porém normas eram normas e ele nada podia fazer.

Sem outro remédio, o doutor Maia aquiesceu e pôs o motor a trabalhar. Pareceu-lhe vislumbrar uma vaga alguns metros mais adiante e orientou o carro naquela direcção, rolando afoitamente por cima do passeio. Nisto ouviu o apito do guarda.

Guiou o carro para a rua e parou. O polícia aproximou-se da janela e fez uma continência.

- Boa-tarde.

- Boa-tarde.

- Os seus documentos, se faz favor.

Lourenço apresentou o livrete e a carta de condução, enquanto observava pelo retrovisor a expressão ansiosa no rosto dos filhos, sentados muito erectos no banco de trás.

- Ponha o cinto, se faz favor - disse o polícia, devolvendo-lhe os documentos. Diabo, como é que se esquecera da porcaria do cinto?

- Não sabe que não pode circular em cima do passeio?

- Sei, sim. Tem toda a razão - respondeu o doutor Maia, procurando um equilíbrio entre a deferência conformista e a dignidade cívica.

- Não conhece o nosso Código da Estrada? Isto aqui não é nenhuma república das bananas.

Lourenço corou de humilhação. O couro cabeludo ardeu-lhe. Tinha a certeza de que as suas orelhas estavam incandescentes como dois archotes. Pensou no bilhete de identidade caducado que trazia consigo. Lançou um olhar de relance ao espelho: Pedro fazia um beicinho de choro e Teresa esboçava um sorriso tenso, com os olhos baixos.

Sim, tudo aquilo fora muito desagradável, mas no fundo não tivera consequências maiores do que uma multa no valor de cinco mil escudos. E a polícia era sempre a polícia, em qualquer parte do mundo.

Um ruído feroz interrompeu-lhe o devaneio: o condutor do carro que estava atrás dele apitava desalmadamente. No entanto, apenas uns três metros separavam Lourenço do automóvel à sua frente. Foi então que, vislumbrando uma brecha, tomou uma decisão radical e desesperada: rodeando em curtos ziguezagues a barreira de carroçarias, intro duziu-se numa ruazinha transversal, como um salmão numa torrente de montanha. Desconhecia se a rua tinha ou não saída; se seria ou não de sentido proibido. Tinha-a; não era. Cortou à esquerda e desembocou na via paralela à avenida da Índia, que se encontrava quase deserta.

Ofegava, quando transpôs o umbral da capela e assomou na espaçosa nave, imponente e paramentada, digna de uma igreja autêntica. Chegava 16 minutos atrasado. Descortinou o sector reservado aos pais, onde estavam sentados Lúcia e Pedro, este com uma vela na mão. Ficava tão engraçado com aquela gravata. Pedro viu o pai e sorriu-lhe sem sombra de angústia. Lúcia virou-se e contemplou o ex- marido, franzindo a testa, mais curiosa do que aborrecida. O doutor Maia ocupou o seu lugar e estreitou desajeitadamente o ombro do filho. Curvou-se e perguntou-lhe, sussurrando, se a solenidade já tinha começado há muito tempo. Pedro meneou a cabeça, circunspecto, enquanto a mãe levava um dedo aos lábios: "Chiu. . . "

Lourenço sentou-se também, sentindo os fundilhos das calças ensopados de suor, e a transpiração a escorrer-lhe pela parte detrás das coxas. Formulou para si próprio a justificação do atraso, a fim de comunicá-la apologeticamente no final da cerimónia, mas percebeu que a história soaria demasiado comprida, irrelevante e inverosímil.

Não tinha importância. Era isto: bem vistas as coisas, não tinha importância nenhuma. Parecia que agora estava tudo bem. Parecia, não: estava mesmo tudo bem, agora que tudo tinha acabado bem. Como costumava dizer o padrinho do doutor Maia, depois de um ocasional dissabor do afilhado, consolando-o de modo um tanto ou quanto contraproducente: "Vá lá, rapaz, anima-te! Não se pode ter azar em tudo!" Talvez não fosse bem assim.

No dia sEGuinte, por volta das dez e meia da manhã, o doutor Lourenço Maia deixou o seu carro na oficina, combinando ir buscá-lo 48 horas depois. O mecânico explicara-lhe que havia graves problemas com os amortecedores da frente e o sistema de embraiagem. O tubo do escape também tinha os dias contados. Era imperativo substituir toda aquela tralha e proceder à respectiva afinação. Caso contrário, corria o sério risco de o Fiat Uno sofrer uma pane e não dar mais um passo, a não ser puxado pelo reboque.

Não admirava nada: afinal de contas, o veículo já ia nos cinco anos bem vividos, e há mais de três que não era submetido às revisões regulares. O conta-quilómetros assinalava o belo algarismo 99. 634 e os pneus estavam carecas. Nas manhãs frias, levava horas a pegar. O facto de as ruas de Lisboa ocultarem mais buracos do que um campo de golfe, e de o seu dono inúmeras vezes estacionar com duas rodas em cima dos passeios, também não ajudava muito. Na verdade; naquele carro a única coisa que não fazia barulho era a buzina.

Lourenço estava bastante satisfeito com os mecânicos, que lhe tinham sido indicados pelo merceeiro, o senhor Sardinha, um tipo de poucas mas proveitosas palavras, frequentemente apenas grunhidas. Eram (os mecânicos, pai e filho) despachados, correctos e eficazes. E, ainda por cima, simpáticos mas sem servilismos untuosos. Quando o doutor lá chegava, estendiam-lhe o punho à guisa de aperto de mão, já que as mãos encontravam-se todas sujas de graxa. Lourenço sentia-se como se estivesse a cumprimentar um par de benévolos Capitães Ganchos.

Afastando-se a pé da oficina, começou a descer a rua íngreme e bastante conscientemente intacta do ponto de vista arquitectónico, com os seus telhados de beiras com telhas sinuosas. Caminhou cerca de 50 metros até ao cruzamento mais próximo, a fim de apanhar um táxi. Um rafeiro atravessou a passagem de peões, com um esgar carrancudo, assustando uma mulher que empurrava um carrinho de bebé com uma expressão cansada. Numa tasca, trabalhadores faziam uma pausa e, sentados em bancos altos, bebiam cerveja em copos esguios e mordiscavam tremoços. A temperatura continuava elevada, embora o dentista não sufocasse de angústia, como na véspera. O doutor Maia podia apostar como a chuva vinha aí.

- Para onde, chefe?

- Para a Defensores de Chaves, por favor.

- Cá em baixo ou lá mais para cima?

- Naqueles semáforos junto da Casal Ribeiro.

- Com certeza. Olhe que a sua porta está mal fechada. Força. Ena, também não é preciso dar cabo da gaja! É brasileiro, não é?

Instintivamente, o Lourenço recolheu-se como uma tartaruga na sua carapaça. Claro que a pergunta nada tinha de descortês. O taxista estava apenas a meter conversa, como era apanágio da sua classe. O doutor não se envergonhava da sua nacionalidade, porém, dez anos depois, nem sempre lhe apetecia ser identificado como estrangeiro cada

vez que abria a boca e proferia um monossílabo. De resto, o crescente hibridismo da sua pronúncia a si mesmo perturbava. Era como se já não fosse nem carne nem peixe, não pertencesse nem ao mar nem à terra, mas tivesse degenerado num monstro anfibio, uma espécie de Leviatã. Quando ouvia a sua própria voz no gravador de chamadas, soava-lhe anómala, exótica, ainda mais bizarra do que é comum ao ouvirmos as nossas palavras reproduzidas mecanicamente.

- Sou, sim.

- Ah, pois. Bem me parecia. Tenho uns parentes por lá. No Recife. Uns primos por parte de mãe. O Luís e o Nuno. Mas já não sei deles há anos. Sabe como é. . . Se calhar até os conhece.

- Eu sou de São Paulo. Fica a 1000 quilómetros do Recife. Onze, doze horas de carro. E o Recife tem um milhão de habitantes.

- Pois, o Brasil é grande como o caraças. Mas Lisboa é ainda mais longe e no entanto você chegou cá, não é verdade? Olhe lá, amigo, não desfazendo, aquilo lá anda mal, não anda?

- Bom, parece que agora está a melhorar um bocadinho.

- Safa, juro que não percebo isso! A sério que gostava que me explicassem. Como é que é possível? Um país tão grande e tão rico. . . Aqui entre nós, diga-me lá a verdade: os brasileiros não gramam muito o trabalho, pois não? O meu tio viveu 30 anos em Moçambique e contou-me que com os pretos era a mesma coisa. Os tipos preferiam morrer à fome a mover uma palha.

- Não é bem assim.

- Não, não se chateie. Para já, você não é preto. E deixe lá que eu, se vivesse naquele calor todo, com as praias à mão de semear e aquelas mulatas mesmo a pedi-las, também não fazia nenhum. Isso é que era bom. Para não falar no samba, é claro. O Carnaval. . .

- O Carnaval são quatro dias por ano. Em São Paulo não gostamos de Carnaval. Hã, o trânsito hoje não está grande coisa. . . A esta hora não é normal tanto engarrafamento. . .

- Ah, deve haver para aí alguma manifestação a empatar, só para prejudicar os outros. É o costume. Porra, pá, é que isto também nunca mais endireita.

- Não se importa que abra a janela? Está abafado.

- Lamento, a janela encravou-se. Uma grande bronca. Pois é, nesta altura do ano, este calor todo. E daqui a bocado começa a pingar e é logo uma inundação. Vai ver que a janela aberta não lhe faz falta. Está tudo mudado, e não é só o tempo, não senhor. É tudo. E tudo para pior. Se visse como era dantes. . .

- Já estou cá há 10 anos. .

- Olhe, vou meter por um atalho, se não nem o pai morre nem a gente almoça.

Sonolento, Lourenço recostou a cabeça no banco. Esgrimindo com o arrazoado do taxista, o rádio do carro emitia os primeiros acordes de uma lânguida e carismática balada, que tinha feito furor há duas décadas. A cantiga soou-lhe familiar, embaladora. Fechou os olhos, sentindo-se obscuramente nostálgico.

Naquele momento, tinha catorze anos e estava escuro, muito escuro. Um breu habitado por estrelas desmaiadas. Ao seu lado, pela vereda que sulcava o capim espesso, caminhava João, apenas três meses mais velho que o amigo. João, com uma cabeleira de palhaço cortada em forma de alcachofra, era filho de um dos lavradores que trabalhavam a meias para o avô de Lourenço - isto é, cultivavam a terra que arrendavam do patrão, com quem, depois da venda da colheita, dividiam os lucros pela metade.

Lourenço gostava de passar as férias na fazenda - não gostava é de voltar para São Paulo, para as clausuras insípidas do apartamento e da escola. Na fazenda, sempre que possível acompanhado do versátil João, arreavam os cavalos, batiam-lhes com os calcanhares nus nas virilhas macias como cetim e trotavam pelos pastos até o sol mirrar e se esvair no horizonte, orientando as montadas por entre os formigueiros de barro de até um metro de altura, mantendo a rédea curta para se desviarem quer dos cones de bosta, ora aromáticos e fumetes, ora inodoros e secos como rolos de corda, quer das súbitas e traiçoeiras ravinas ou mesmo dos buracos de cobras.

Ou vagueavam descalços pelos corredores infinitos dos milharais, que se perfilavam como uma guarda pretoriana de um imperador Antonino. Frequentemente, Lourenço e João colhiam uma espiga, depenavam a barba púrpura que se enredava na maçaroca como uma pauca e bombardeavam-se com os grãos de milho, semelhantes a demtes postiços de ouro, sempre com o sol a pino a trespassar os orificios dos chapéus de palha. A pele de João era bronzeada como a de um sarfista, embora ele nunca tivesse visto o mar.

Ou então brincavam às escondidas nas alamedas jade e carmim do cafezal, em cujo solo de vez em quando encontravam, tropeçando nela e estatelando-se no chão, uma melancia brava, ocasionalmente fonte decopiosas e espasmódicas diarreias, depois de esquartejada em triângulos com um canivete e engolida com uma voracidade de ogre. Naquela noite, em que as sombras engolfavam os campos como as viúvas se cobrem de luto, Lourenço distinguiu, melhor do que viu as estrelas do céu das luzes da povoação, chamada Olímpia. Era aí que o seu avô realmente residia, embora se deslocasse à fazenda todas as manhãs, com o seu chapéu de abas largas enterrado na cabeça, a sombra das abas a esconder-lhe como uma máscara os olhos aquosos. Geralmente ia de charrete, guiada por um empregado e puxada por uma égua alazã que constituía, para Lourenço, o cavalo mais burro do mundo. Por detrás das cercas de arame farpado, nos pastos que flanqueavam a estrada, grupos de vacas fitavam-nos com bonomia. Às vezes, com um pouco de sorte, durante a jornada o menino via a égua arquear elegantemente a cauda - que ficava a pairar como um pequeno toldo sobre a garupa - e expelir as esferas de excrementos como se lançasse granadas. O avô conservava-se impenetrável, alheado, mas o neto divertia-se imenso, sobretudo quando as flatulências do animal preludiavam a operação.

As luzes de Olímpia cintilavam numa elevação à esquerda do rapaz, distantes apenas quinze quilómetros. Um rasto fosforescente, um pouco mais alto do que os demais asteriscos luminosos, demarcava a localização do Grande Hotel. Intimamente, Lourenço deplorou, como sempre acontecia, que o estabelecimento já não detivesse a grandeza de outrora, quando o jogo era ainda permitido por lei e ali funcionava um concorrido casino, no qual fortunas nasciam e expiravam num piscar de olhos, e com o estalar de um dedo perdiam-se e ganhavam- se manadas e colheitas. Sim, jogava-se alto e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Agora, com os baralhos de cartas e as roletas proscritos e banidos, guarnecidos de pó e teias de aranha nalguma remota gaveta, o Grande Hotel recordava a Lourenço algo como um tigre de dentes de sabre, o tresmalhado remanescente de uma espécie que há muito se extinguira, e para todo o sempre, mas que retivera, apesar de tudo, um necrófilo e romântico fascínio.

- Nem penses que vou até lá contigo - preveniu-lhe João.

- Ah, vamos, por favor.

- Já te disse que não.

- Então amanhã também não te levo à festa em Olímpia. Podes tirar o cavalinho da chuva. Depois não te queixes. Vais perder o maior baile da tua vida.

- Óptimo. Não me importo nada. Sabes que só concordei com essa ideia de jerico porque tu insististe.

Lourenço refreou a marcha e parou a dois palmos de João.

Quinhentos metros mais à frente, as luzes dos candeeiros a petróleo da cassa do avô, ainda desprovida de electricidade, ardiam e bruxuleavam através das fendas das janelas de tabuínhas. Do local onde se encontravam até lá não se via um palmo diante do nariz, nem mesmo a fagulhha alada de um pirilampo ou a centelha dos olhos de um gato. Um clamor surdo e grave ressoou, amplificando e perpetuando-se no silêncio da noite. Lourenço deu um passo atrás. A noite era diferente do dia, com um cheiro diferente, ruídos diferentes - um poder estranho e sinistro reinava sobre ela, e tal poder conseguia detectar o odor do medo, 1 como os cães farejavam o cheiro do terror.

-Não te assustes. É apenas uma coruja. Vocês, os tipos da cidade, são uns mariquinhas.

- Se eu vivesse aqui também não me importava. João, queria ver-te numa escada rolante. Ou a mergulhar numa onda. Borravas-te todo.

- Isso é que não me borrava.

- Isso é que borravas.

- Bom, vou-me mas é embora.

- Nunca mais falo contigo - resmungou Lourenço, contemplando apreensivamente o vulto maciço e sinistro do canavial que se perfilava entre a encruzilhada e a casa do avô. Constava que gerações inteiras já ali tinham sido degoladas com uma foice de ceifar canas-de-açúcar. Depois, durante algumas horas, as cabeças permaneciam espetadas nas canas, como espantalhos macabros, gemendo até que o sol raiasse. Então, desintegravam-se sem deixar rasto. Toda a gente falava naquilo. E Lourenço sabia que, onde há fumo, há fogo.

- Vamos fazer o seguinte - propôs João, conciliador - Fico aqui até chegares a casa, e canto para te fazer companhia. É como se estivesse ao teu lado.

- Mas. . .

- Não há mas nem meio mas! É pegar ou largar.

- Está bem, pronto. Então, até amanhã.

- Até amanhã. Vai pela sombra. . .

Lourenço embrenhou-se na densidade opressiva das trevas, olhando de soslaio para as silhuetas espectrais das canas-de- açúcar. Ainda por cima era uma noite de lua nova, e por isso mesmo tão escura. As luzes de Olímpia tinham desaparecido como um navio iluminado que se afunda. Do outro lado do canavial, a uns 20 metros da casa do avô, aprumava-se a temível palmeira, uma árvore da altura de um prédio de três andares, com o tronco de quatro metros de diâmetro, eriçado de espinhos aguçados do tamanho das garras de um urso. Lourenço ouvira dizer que, numa madrugada longínqua, o pai de João, perdido de bêbado, trepara prodigiosamente pela palmeira e adormecera como um recém-nascido nos galhos largos da sua copa, uma façanha até então inédita e consensualmente impraticável. No dia seguinte, quatro homens tiveram de estender um cobertor para que ele saltasse lá do alto - era tão inviável descer pelo tronco como subir, não tanto pela altura, mas pelo dilaceramento que os espinhos infligiriam. O pai do João jamais confirmou ou desmentiu a história. Quando lhe falavam naquilo, e falavam-lhe inúmeras vezes, apenas sorria, como se uma força sobrenatural lhe selasse os lábios.

Evocando aquelas noites antigas, Lourenço ouvia a voz de João estropiar a letra da canção lânguida e carismática, mas agora sentia-se seguro e resguardado. Aos poucos, o timbre do cantor adensou-se, ganhou afinação e mesmo um admirável acompanhamento instrumental, de cordas, metais e sopro. Nunca supusera que João cantasse tão bem. E muito menos que tocasse tantos instrumentos, ainda por cima todos ao mesmo tempo, como se fosse um polvo.

- Ó senhor, acorde lá. Chegámos. É aqui, não é?

Lourenço abriu os olhos e percebeu que a canção, agora, provinha do rádio do táxi. Passara pelas brasas nos últimos dois ou três minutos.

Esfregando os olhos e engolindo um último bocejo, pagou a tarifa, apostando que a opinião do taxista sobre a relação de causa e efeito entre a indolência dos brasileiros e as vicissitudes do país se devia ter fortalecido. Atravessou a avenida e parou no snack para beber um café. Estava mesmo a precisar de um - curto, forte e cremoso.

Que teria sido feito de João? Nunca mais tivera notícias dele. A fazenda, por sinal, já não pertencia ao avô do dentista, que a vendera em fracções sucessivas para pagar as despesas do tratamento oncológico do filho - tio de Lourenço - o qual acabara por morrer dois ou três anos depois, esquálido como um faquir. Era provável que João ainda lá estivesse, naquela mesma ou noutra fazenda, também a lavrar a terra alheia e a apascentar o rebanho dos outros, precocemente envelhecido, as mãos calejadas tanto pelos cabos das enxadas como pelas tetas renitentes das vacas. Casado? Com filhos? Feliz? Já teria visto o mar? A verdadeira pátria do homem é a infância, pensou o dentista.

Sim, levara João à festa em Olímpia, no dia seguinte. Tratava-se apenas de um bailarico provinciano, no salão do clube da povoação, que tinha muito mais pretensões do que méritos. Lourenço emprestara ao amigo umas calças e umas camisas novas, que João vestira qual uma armadura. Introduzira-o como seu convidado pessoal. Passados alguns minutos, deixou de o ver por entre os jovens que borboleteavam nas imediações da banda, a procura de um par encorajador, enquanto fingiam que faziam outra coisa qualquer, muito mais importante. No salão, nada. No bar, também não. Na casa de banho, tão-pouco. Deu mais uma volta, intrigado. Tinha de tirar aquilo a limpo.

Descobriu-o à janela, do lado de fora do salão, no corredor que rodeava o pavilhão principal do clube, com os braços cruzados no parapeito, a espreitar avidamente os pares rodopiando na pista, as pupilas do tamanho de um pires. Outros basbaques acotovelavam-no e apontavam curiosidades com o dedo, emitindo exclamações ocasionais. Lourenço ficou furioso.

- O que é que estás aí a fazer, João? Depois de todo o trabalho que tive para que entrasses, ficas aqui fora feito um asno? Estás louco ou quê?

- Desculpa lá, Lourenço. Não foi por mal. Sinto-me melhor assim. Não te aborreças por minha causa, que não vale a pena. Eu cá estou óptimo. A divertir-me à brava.

Girando a chave do consultório, o doutor Maia compenetrou-se de que talvez precisasse novamente de alguém que cantasse enquanto ele transpunha a escuridão. De uma coisa, no entanto, estava mais do que certo: quanto a si, preferia ficar do lado de dentro do baile. E, se

possível, dançar a noite inteira.

- Está a sentir-se bem, senhor doutor?

Era dona Margarida, a sua assistente. Tão atenciosa que até chateava.

- Estou, sim, obrigado. Apenas um pouco, ahn, com sono.

- O cliente das onze chegou. Ejá leu as revistas da sala de espera umas vinte vezes. Deve sabê-las de cor e salteado, incluindo os anún cios. E o senhor Fonseca não tarda aí.

- Dê-me apenas cinco minutos e mande-o entrar.

O doutor Maia fechou-se na casa de banho e lavou as mãos, passando-as como um ancinho pelos cabelos, penteados para trás. Felizmente, não apresentava olheiras, e os globos oculares estavam imaculados. Ninguém diria que não dormira como um urso a hibernar na sua toca. Atendia o primeiro cliente quando ouviu a campainha. Dona Margarida assomou pouco depois, como se fosse o seu eco.

- Não me diga que o senhor Fonseca já chegou. . . Hoje está tudo cheio de pressa - disse Lourenço, contrariado. Não gostava que os clientes se comprimissem na sala de espera.

- Não, doutor Maia. Não é o senhor Fonseca. O senhor Fonseca a esta hora ainda vem a caminho. É a polícia. Querem falar consigo.

 

COM UM ARQUEJO DE ESFORÇO, OS mÚSCUlOS dOS braÇOS eStiCadOS

como correntes e o coração às cambalhotas, Berenice retirou a bilha da primeira prateleira do roupeiro. Húmidos de suor, os seus dedos gravaram impressões digitais na pátina de pó pousada nas alças de barro. Ufa, meu Deus, como aquilo pesava! Quanto, mais precisamente? Cinco quilos? Sete? Dez? Era dificil calcular assim de repente. Em todo o caso, quanto mais pesada melhor.

Desde que se mudara para o apartamento, há dois anos e um mês, não mexia na bilha. E não cessara de introduzir mais moedas na ranhura, sem falhar uma semanazinha sequer. A não ser, é claro, nas quinzenas de férias em que passara a viajar - mas, mesmo assim, na volta suprira o mealheiro com o dobro da provisão habitual.

Agora chegara a hora de partir o cofre de barro, comprado há cinco anos numa feira algarvia de cerâmica, mais ou menos com o mesmo desígnio que hoje acalentava. Quase tinha pena de despedaçar a bilha, uma confidente leal, conquanto taciturna, tantos meses a fio, chovesse ou fizesse sol. Mas era preciso. Não podia mais esperar. Quem espera, desespera.

E, como se o próprio destino a estivesse a impelir, a empurrar a alavanca que acciona as pesadas engrenagens das coisas, o mealheiro encontrava-se atestado até ao gargalo. Que Coincidência feliz! Que importância conteria? Seiscentos ou setecentos contos, como ansiava? O suficiente para o seu formidável projecto? Berenice esperava bem que sim. Tinha quase a certeza. Afinal, eram cinco anos de depósitos semanais. Duzentas e sessenta e uma semanas, nem mais nem menos. Em moedas, por certo, mas é grão a grão que a galinha enche o papo. De resto, não entesourara uns reles tostões - nem pensar nisso. Tiveram a honra apenas as moedas de valor mais elevado na respectiva altura. Assim, principiara pelas de 50 escudos. Depois, somente as de 100. Finalmente, restringira-se às de 200, douradas e lustrosas.

Uma sensação de euforia animava-lhe o espírito. A quantia acumulada era a sua única dúvida. Quanto ao resto, sabia como proceder. Nunca estivera tão decidida em toda a sua existência. Era só seguir o organograma mental. Primeiro, naturalmente, tratava-se de transportar a bilha para o chão da cozinha, já forrado com as folhas do jornal da véspera, e de a partir com um golpe de martelo. Separaria as moedas consoante o valor individual, em porções de dez unidades cada uma, que por sua vez meteria nos saquinhos de plástico transparente alinhados no balcão. Depois, somaria as importâncias de todos os sacos e obteria o total. Por fim, efectuaria o depósito bancário. Depois era só comprar a passagem e adeus para os que cá ficavam.

Quer dizer, na verdade não era bem assim. Ainda antes do sacrossanto depósito, atendendo a pedidos (muita gente no bairro sabia do seu famoso mealheiro) trocaria alguns sacos de moedas pela quantia correspondente em notas - com a senhora Arminda, do restaurante, e a senhora Júlia, da farmácia, que estavam sempre a precisar de trocos e não custava nada ajudá-las. Aí então, sim, teria todo o dinheiro da bilha devidamente depositado no banco, numa conta recém-aberta com apenas dez mil escudos.

Não, ela não se preocupava com a notoriedade local do mealheiro. Sabia defender-se muitíssimo bem, como aliás aquele Ravi Sharma verificara pessoalmente. Ao pensar no rapaz, a moça abanou a cabeça, pesarosa. Talvez não precisasse de ter sido tão truculenta. Ora, águas passadas não moviam moinhos, por mais turbulentas que fossem. E a culpa, bem vistas as coisas, fora toda dele. Se tudo corresse como planeara, dentro de muito pouco tempo ela estaria a viver no Taiti, como o seu idolatrado Paul Gauguin.

Depôs a bilha sobre as folhas de jornal, arfando de entusiasmo e ansiedade. Abriu a torneira do lava-loiças e, com as mãos em concha, bebeu um gole de água. Espargiu a nuca, refrescando-se, arrepiando-se com as gotas que lhe deslizavam pelo pescoço abaixo. Ora essa, hoje ainda não tomara as duas cápsulas do complexo multivitamínico - mas elas não perdiam pela demora.

Avaliou aprovativamente a densidade muscular dos seus braços e pernas: embora fosse de ossatura ampla, não descortinava nem um milímetro de flacidez, estrias ou celulite. Não era uma satisfação narcísica, pois Berenice não se achava atraente - longe disso. Estava ao corrente de o quanto a boémia tinha minado o organismo de Gauguin e, já nos trópicos, agravado as suas provações e agonias. A jovem considerava o seu próprio corpo uma espécie de utensílio - assim como o cinzel e o pincel. Ia precisar de toda a vitalidade lá do outro lado do mundo, com aquele calor, humidade e raios de sol espessos como mel. Sabia que mesmo o paraíso reservava dissabores e contratempos. Não era nenhuma criança de colo.

Limpou as mãos no rolo de papel afixado na parede e voltou ao quarto. Onde é que arrumara mesmo os folhetos? Ah, dentro da caixa de sapatos, ao lado dos halteres. Cá estavam eles. Também com o seu quinhão de pó. Bem, nunca se vangloriara de ser uma dona de casa excelente. Muito já fazia ela. Soprou a tampa da caixa, retirou o maço de prospectos, levou-os para a cozinha e sentou- se no chão, com as pernas cruzadas na posição do lótus. Ia retardar um bocadinho o prazer de conferir o dinheiro, ocupando-se brevemente com outro deleite: o de imaginar-se já em Bora-Bora.

Em cores flamejantes e ornado de flores vistosas, o primeiro folheto gabava as lagoas de coral da Polinésia Francesa (explicando de passagem, didáctica e atenciosamente, que "polinesia" queria dizer: muitas ilhas, de águas límpidas e cálidas, as montanhas vulcânicas porém pacíficas, o clima idílico e a vegetação exuberante, o rosário de atóis e ilhas coralinas, com praias de areias finas como pó de talco. Depois, como se inflamada pelo seu próprio ardor, a publicidade apregoava as Tahiti Tours, com nove modalidades de excursões pelo arquipélago, como "Meeting the Polynesians" ou "Dinner at the Belvedere". Ora, aquilo era para os turistas filisteus.

Com uma careta de desdém, Berenice foi direita ao que a interessava:

Paul Gauguin Tour. Um sorriso substituiu a carranca. Esta excursão oferecia deslocações ao vale Punaruu, onde Gauguin marchara rumo ao célebre planalto das laranjeiras; às montanhas Paea, um dos cenários predilectos do pintor; à gruta de Mara, em cuja piscina natural, de águas azul- porcelana, o artista tantas vezes se banhara; e ao imprescindível Museu Gauguin em Papeari.

Outro prospecto propunha a viagem ao Taiti propriamente dita, a bordo de um paquete de luxo. Para que diabo ela guardara aquilo? Não estaria boa da cabeça? Naquele reduto de novos e velhos ricos, sentir-se-ia tão deslocada como um pelicano no deserto. Era, de qualquer maneira, uma extravagância proibitiva. Ia rasgar a propaganda e deitá- la ao lixo quando reparou no nome do transatlântico e compreendeu tudo: "MiS Paul Gauguin", com capacidade para 320 passageiros.

Quase corou: não passava mesmo de uma sentimental. Uma fotografia tipo cartão postal apresentava o imponente navio, construído num fiorde da Noruega, com mais de um quilómetro de comprimento, sete tombadilhos e quatrocentos camarotes. Uma genuína comunidade mundana com lojas, duas piscinas aquecidas, jacuzzis, saunas, courts de squash, discotecas, salas de jogos de vídeo, salões de bailes, cinco restaurantes, cafés, ginásios de aeróbica, cinemas, teatros, bibliotecas e seis elevadores. Uma espécie de aldeia flutuante, porém cosmopolita como Manhattan. Penachos de fumo branco pareciam evolar-se das chaminés, mas talvez fosse apenas uma ilusão gerada pelas nuvens demasiado próximas.

Não, aquele barco não fora feito para ela, mesmo que quisesse, e mesmo que pudesse. Claro que não era indiferente às belezas naturais, mas o seu projecto jamais se reduzira a uma prosaica excursão turística. Tratava-se, pelo contrário, de cumprir a sua vocação. A Escola de Belas-Artes já dera o que tinha a dar. Não precisava do diploma para nada. Mordeu os lábios, persuadida de que agora tinha mesmo de executar o salto e agarrar o outro lado do trapézio, se pretendia de facto levar as suas aptidões até às últimas consequências. A arte ou era tudo ou não valia tanta canseira.

Afinal de contas, era exactamente aquilo que Paul Gauguin compreendera, quando decidira demandar a Polinésia. Sem dúvida, cobiçava toda a matéria-prima e ímpeto plástico que pudesse angariar, do folclore à escultura medieval, das gravuras japonesas aos manuscritos persas - e as expressões primitivas dos Mares do Sul vinham mesmo a ralhar. Mas o pintor buscava sobretudo um alento existencial, rompendo as algemas que o encadeavam a um mundo letárgico, trivial e mesquinho. Sim, Berenice estava segura disto: talvez mesmo mais do que lá chegar, Gauguin necessitara de partir. Assim como se molda uma escultura retirando-se a matéria supérflua. Partir completa e dsmesuradamente, para os antípodas, não para o quintal, como fizera Yan Gogh em Arles.

Pousando os folhetos nos joelhos, a jovem disse a si própria que não estava a fugir de nada. Aquela era uma ideia estapafúrdia: optar por uma situação mais produtiva não representava nenhuma evasão, mas um judicioso e construtivo bom-senso. Não havia nada de hedonista no projecto. Já em miúda não gostava de ter férias sem um objectivo. Não sabia de que raízes de remorso infantil ou responsabilidade imaginária se desenvolvera aquele curioso masoquismo que, uma vez por outra, se reacendera com redobrada intensidade. Às vezes, parecia rodopiar num vórtice de energia quase opressiva, demasiado pletórica para ser contida entre as quatro paredes do apartamento.

Analisando as coisas de modo realista, o que é que a retinha ali? Nada. Nada vezes nada. Não, seguramente, aquela habitação, que um industrioso construtor civil (havia, além disso, os 20 hectares kiwis em Trás-os- Montes), lhe oferecera depois de vender com um lucro substancial uns quantos andares nos subúrbios de Lisboa, que erguera empregando mão-de-obra barata e trabalho clandestino. Ela nunca pedira aquele apartamento e muito menos o desejara, num prédio cujos moradores rapidamente guarneceram de varandas transformadas em horripilantes marquises. Detestava pensar que o pai, com a mlhor das intenções, lhe dera o imóvel como uma espécie de dote, um isco para atrair os pretendentes que os encantos da filha, por si só, não sensibilizavam.

Mordeu mais um pouco os lábios, que começaram a sangrar depois de lhes ter puxado a pele com os dentes. Claro que o pai não pensava exactamente assim, com esse calculismo frio, mas podia ter pensado. Apesar de tudo, era o seu pai, e não o seu carcereiro. E Berenice sabia que ele precisava de sentir-se necessário. Mas tinha achádo sempre inútil irritar-se com o pai e mais inútil ainda perder a paciência. Por outro lado, não exagerava nem um bocadinho ao afirmar que, para o senhor Veríssimo, uma mulher consistia numa criatura que salta para uma cadeira e grita quando vê um rato.

Um fragor oriundo do tecto pareceu dar-lhe razão e fornecer-lhe um novo género de argumentos. Os vizinhos eram insuportáveis, sempre a berrar uns com os outros, a furar as paredes com berbequins, a ouvir pelo rádio canções pavorosas - melífluas ou brejeiras - a qualquer hora do dia ou da noite, a manchar a sua roupa pendurada no estendal sabe-se lá com que substância roxa e indelével, a incitar o raio dos cães a ladrarem horas a fio. O pior era a vizinha de cima, que às oito horas da manhãjá se punha a limpar o pó, a sacudir os tapetes e a aspirar a casa toda, empurrando os móveis como se estivesse a jogar flipper com os sofás, mesas e cadeiras, uns ricocheteando nos outros. Meu Deus, como aquilo tudo era medíocre e tacanho! Que existências tão cheias de tédio e solidão!

É que nem sequer podia relaxar-se. Ou concentrar-se convenientemente, içar o balde da inspiração no poço da sua alma. O apartamento situava-se na rota do aeroporto e, durante a noite, o ronco dos motores era incessante e ensurdecedor. No Verão, então, com a afluência de turistas estrangeiros em férias, dir-se-ia que os aviões voavam em fila indiana sobre o telhado, ou mesmo em formações triangulares, como as aves migratórias. O barulho era tanto que Berenice, de sono muito leve, sentia-se como se fosse uma controladora do tráfego aéreo, brandindo bastões luminosos na própria pista do aeroporto.

Já na primeira noite que lá passara - mudara-se em meados de Agosto - não pregara o olho. Na manhã seguinte, com umas olheiras que lhe chegavam ao queixo, encontrou-se na entrada do prédio com a vizinha do rés-do-chão. Esta vinha da mercearia e segurou-lhe a porta da rua. Encorajada pelo ar amável da mulher, Berenice queixou-se dos aviões e perguntou-lhe se era sempre assim. A outra fitou-a como se ela fosse uma venusiana.

- Aviões? Que aviões? Caiu algum avião? Morreram quantos?

- De súbito, percebeu aonde Berenice queria chegar: a sua fisionomia iluminou-se, deu uma palmada na testa e desatou numa gargalhada rouca. - Não me leve a mal, minha filha, mas é que já vivo aqui há tamto tempo que nem dou por eles. Para mim, é como se morasse no tenpo. Sou capaz de acordar com uma melga a zumbir ou com a torneira a pingar - mas até me esqueço de que os aviões existem. Olhe, agora se calhar até adormeço melhor com eles do que sem eles.

- Mas é uma barulheira horrível. . .

- Creia-me: apenas nos primeiros dias. Vai ver que dentro de uma semana, ou duas, no máximo dos máximos, está como eu. Acostuma-se. Pode apostar.

Berenice suspirou de angústia ao reflectir em tais palavras. Era exactamente daquilo que estava a falar: não queria acostumar-se, não queria habituar-se, não queria resignar-se. Nem ao ronco dos aviões nem àquele tipo de vida. Se é que aquilo era vida. Foi quase com alívio que se certificou, um mês mais tarde, da persistência das vigílias ditadas pelo tráfego aéreo - e das olheiras já nos calcanhares. Adoptou uma solução de compromisso, passando pela farmácia e comprando cinco caixinhas de tampões para os ouvidos, feitos de cera, espuma ou cilicone, que lhe restituíram o sono sem fazê-la sentir-se uma apóstata.

Um dia, encontrou-se casualmente no supermercado com a vizinha do rés-do-chão. Ambas iam a passar pela caixa, mas a outra já tinha pago a sua conta, guardado a carteira e metia as mercadorias nos sacos plásticos, enquanto Berenice ainda depunha os produtos na passadeira rolante. Reparou, pelo canto do olho, que a vizinha subtraía uma pilha de sacos e se esgueirava sorrateiramente. Berenice sentiu-se arrasada. Ora, os sacos eram mesmo oferecidos, e com certeza a mulher não ia fazer nada com eles - quanto muito, forraria a parte debaixo dos tapetes da porta, uma mania esotérica que a jovem jamais percebera. Se ao menos a vizinha estivesse a roubar! Mas nem isso. . .

Durante todo aquele dia, a cena, como um parasita num hospedeiro, não lhe saiu da cabeça. Que vida, a sua.

Quanto? Não ERa PossívEL! Só aQuiLo? Depois de cinco anos, apenas 347 mil escudos? Desolada, passou a mão pelos cabelos, despenteando e eriçando a sua franja cor de malva. A depressão abateu-se sobre ela como um chapéu de feltro preto. Uma espuma fria inundava- lhe as entranhas. E agora? Pressentira que pecara por optimismo logo no início da contagem, quando vira que afinal também introduzira na bilha moedas de valor muito mais baixo: de vinte, dez e até cinco escudos. Que parva! Como pudera ser tão estúpida? Podia jurar que havia mais, muito mais - no mínimo, o suficiente. Permaneceu alguns minutos paralisada, de olhar perdido, os olhos vítreos como os de um peixe. Em seguida, desatou a rir, de puro nervosismo.

Abriu a mala e retirou o maço de cigarros e o isqueiro Bic. Acendeu um, sofregamente. Na verdade, detestava o sabor do maldito tabaco e admirava-se imenso de como alguém podia gostar daquilo: engolir fumo deliberadamente, sem estar num incêndio nem nada! Enfiar folhas em brasa no orificio alimentar era o cúmulo da burrice. . . Por isso, fumava muito pouco - apenas quando precisava de controlar a sua exaltação.

Ei, esperem um pouco. Esperem só um minutinho. Ter-se-ia enganado na conta? Acontecia muitas vezes. Até os bancários se enganavam - geralmente para menos. Toda a gente falava nisso. Bastava um instante de distração, e pumba: já estava. Era isso, de certeza. Seria uma maçada fenomenal, mas decidiu repetir a contagem, moeda por moeda. O resultado compensaria o esforço. Uma hora e oito minutos mais tarde, verificou que se tinha de facto enganado: a bilha não continha 347 mil escudos, mas sim 338 mil. Ou coisa que o valha. Ela é que já não contaria mais. Sentia-se obscuramente atraiçoada pelo mealheiro, embora soubesse que o erro fora apenas seu. Tinha os dedos entorpecidos e macilentos com a fuligem do metal. Mesmo assim, mordiscou uma unha. Coçou a cabeça, com frenesi. Precisava de pensar calma, porém rapidamente numa saída. Não ia capitular agora. Nem que tivesse de assaltar um banco. Nem que fosse preciso ficar em Bora-Bora a lavar os pára-brisas de automóveis parados nos semáforos.

Pôs-se em pé e sem dar por isto foi ter à sala. Sentou-se à mesa dobrável, contígua à parede, com uma folha de papel em branco e uma caneta à sua frente. Trincou a tampa da esferográfica e reflectiu. Só a passagem aérea para Papeete, via Paris (um voo de 20 horas, com escala em Los Angeles), custava 231 mil escudos, mais taxas de aeroporto. A partir do dia 15 de Junho, no entanto, a tarifa subia para 264 mil escudos.

Portanto, não valia a pena dramatizar ou arrancar os cabelos. Que diabo, também não fora tudo em vão, tudo tempo perdido. O dinheiro do mealheiro chegava ao menos para a passagem, aliás o principal. Era evidente, todavia, que ela não poderia governar-se por muito tempo com os cerca de cem mil escudos restantes, por mais frugalmente que vivesse. Na Polinésia Francesa, uma região de turismo sibarita, o custo de vida era astronómico. Nisso podia apostar. O objectivo de Berenice, em princípio, consistia em lá permanecer pelo menos por um ano. depois logo veria. Dispunha ainda de uma conta bancária a prazo, que não pretendera tocar por enquanto. Mas isso tinha sido antes do balde de água fria com a bilha. De qualquer forma, a conta era irrisória, proporcionando-lhe no máximo mais cem mil escudos. Não adiantava nem atrasava muito. Mas era melhor do que nada.

Encostou-se ao espaldar da cadeira e inclinou-a para trás, equilibrantdo-a em apenas dois pés. Recapitulando: podia contar com cerca de dois meses de prazo até que o preço da passagem subisse e, entretanto, tentar angariar todo o capital que pudesse. Venderia a mobília, se fosse preciso. E até mesmo a casa, já agora. Sim, e por que não? Ora essa! O pai ficaria furioso, isto eram favas contadas. Sobretudo depois que soubesse o motivo. Naturalmente, pedir-lhe ajuda estava fora de causa. Já decidira enviar-lhe um postal mais ou menos jovial, cuidadosamente descontraído, assim que chegasse à Polinésia. Se comunicasse a decisão antes de partir, a resistência paterna seria maior do que ela admitia tolerar.

Não podia era recuar. Isso é que não. Nunca mais se perdoaria, nunca mais teria outra oportunidade, pois jamais seria a mesma pessoa. Por que é que toda a gente vivia como se fosse eterna, mesmo - ou talvez sobretudo - aqueles que não acreditavam numa vida após a morte? O que é que ela já havia feito até hoje, aos 22 anos? Fantas magorias. Ou seja, uma série de quadros imaturos e insatisfatórios, e umas quantas esculturas que prometiam muito e cumpriam pouco. No fundo, meros trabalhos de casa, fantasias descontroladas.

E, contudo, sabia do que era capaz, desde que perseverasse e não se rendesse. Não era à toa que, desde criança, criava esculturas com as molas de secar roupa, umas entaladas nas outras, cada vez mais compridas e ramificadas em galhos tentaculares, até que cediam ao seu próprio peso. E desenhava tudo o que via nas toalhas de papel e nos guardanapos dos restaurantes. Uma vez apanhara um tabefe da mãe, porque a toalha não era de papel mas sim de linho, até então imaculado. Também na escultura mas sobretudo na pintura, Berenice sabia que podia tratar a figura humana como mais um objecto, decente e fiável, ao invés de se enredar na quimera ambígua e poliédrica da realidade. Oh, sim, isso era uma certeza sólida como granito.

Ficou tão comovida com o seu infortúnio que apeteceu-lhe soluçar outra vez, flutuar na corrente sedativa do desespero cego. Os lábios incharam- lhe numa careta infantil. Mas combateu a tentação, que considerou pusilânime, contentando-se com um breve gemido. Soluços não eram soluções. . . Quando ainda pequena, nos momentos de desgosto comprazia-se em passar o dedo indicador pela chama de uma vela, cada vez mais devagar, avaliando até que ponto conseguia suportar a dor fisica e sobrepô-la à outra, como uma espécie de compressa. Ou então, quando não queria pensar nas coisas que a aterrorizavam, imitava o som gutural do motor de uma motocicleta, até que abafasse o curso dos próprios pensamentos, a voz angustiante das suas emoções. Agora, já adulta, procurou consolar-se, dizendo-se que o próprio Gauguin se debatera inúmeras vezes com o mesmo obstáculo, ele que fora nada mais nada menos do que corretor na Bolsa de Paris. Uma situação que, por sinal, correspondia simetricamente ao dilema que ela agora enfrentava: a bolsa ou a vida.

Se ao menos não estivesse tão sozinha. . . Porém, se não estivesse sozinha, será que ainda desejaria partir para o outro lado do mundo? Para os confins do planeta? Garantiu-se que sim, zangando-se consigo mesma. Que raio de palermice. Uma coisa nada tinha a ver com a outra.

Voltou à cozinha e abriu ajanela de par em par, a fim de arejar os neurónios. Precisava de comer alguma coisa, ao menos para poder tomar a ração de multivitaminas. Se a engolisse em jejum, seria o estômago que pagaria as favas. Retirou do armário duas fatias de pão de forma e preparou uma sande de carne assada com alface, pepino e maionese. Espremeu três laranjas e encheu um copo com o sumo, não se importando com os caroços. Depois abriu um iogurte magro com pedaços de banana.

A comida soube-lhe bem e sentiu-se um pouco melhor. Recordou-se de uma das máximas predilectas da mãe: "De barriga cheia as coisas nunca parecem tão más" - uma frase que ela sempre considerara boçal, um lugar-comum da pseudo-sabedoria obtusa que tanto a exasperava.

De qualquer modo, a sua natureza diligente prevaleceu. Berenice estava sempre a fazer alguma coisa e, enquanto fazia esta coisa, considerava e decidia a coisa que faria a seguir. Às vezes achava que havia algo de doentio num feitio tão industrioso. Mas depois concluía que aquela suspeita é que era paranóica. Não existia nada de anormal nela, pelo menos nada de anormalmente anormal. Apenas tinha os seus demónios, como toda a gente neste mundo.

Tentou entreter-se pensando no que é que iria levar para o Taiti, sobretudo quanto a peças de roupa. Não pretendia transportar demasiada bagagem - seria pouco prático. Agachou-se e começou a recolher maquinalmente as folhas de jornal estendidas no chão, salpicadas dos caquinhos pontiagudos da bilha. As páginas dos jornais com as pedrinhas por cima lembravam-lhe o jogo da macaca. Tinha sido muito boa no jogo da macaca. De súbito, os seus olhos detiveram-se num título que lhe escapara na véspera, pois lia apenas as secções de artes e espectáculo. O cabeçalho dizia o seguinte: "Polícia já tem um suspeito da decapitação de aluno da Escola de Belas Artes. " Ao lado do texto, havia uma fotografia de Ravi Sharma encostado a uma árvore, a fixar o foco com aquele seu olhar ressentido.

Desta vez Berenice rompeu realmente num pranto convulsivo, de lágrimas pesadas como pérolas, como se chorar fosse um acto arcaico que há muito tivesse caído em desuso.

 

A ASSISTENTE DO DENTISTA ERA UMA MULHER DE MEIA-IDADE, cinquentona de fresco, com uma pele de um cinzento aguado e uma aparência assepticamente asseada - deformação profissional, porventura? Uma morena tingida de loira, talvez por assim ser mais fácil dissimular a erva daninha dos cabelos brancos, opulenta de carnes, com um colar de ouro a condizer com o relógio e os brincos, de maneiras secas e geométricas. Encontrava-se barricada atrás de um balcão, onde repousavam um telefone e o caderno de marcações das consultas, preenchido a tinta azul com uma caligrafia elegante e floreada como uma iluminura.

Com um ar desconfiado, perguntou a Carta se tinha hora marcada ou se era a primeira vez. O subinspector não descortinou a contradição entre aquelas duas hipóteses, mas limitou-se a explicar em voz baixa que era da polícia. Ao ouvir aquilo, a expressão dela foi primeiro de assombro ofendido, depois de apreensão - duas reacções a que o subinspector estava mais do que habituado, e precisamente por essa ordem. A seguir, costumava aflorar uma descontracção forçada. Por que será que toda a gente se julgava culpada de alguma coisa? Atavismo, talvez?

- O doutor Maia fez algo de errado? - indagou a mulher, arrependendo-se de imediato da curiosidade. A pergunta tinha jorrado da sua boca.

- Claro que não - respondeu Carta, a sorrir brandamente.

Simples rotina - tranquilizou-a. Sabia apreciar a lealdade espontânea quando dava com ela, e a assistente era visivelmente um poço daquela virtude.

- Faça o favor de aguardar naquela sala, que vou avisar o doutor. Com certeza vai ter de esperar um pouco, pois ele está a acabar de atender um cliente, e não pode parar a meio, como deve calcular.

- Com certeza. Não há pressas - concordou Carta, conciliador, observando que a mulher tinha recuperado todo o seu sangue-frio. Na verdade, emanava agora uma reserva cheia de rectidão e idoneidade, que abarcava o patrão.

A sala consistia num aposento quadrado, povoado por uma pequena mesa com uma pilha de revistas não muito recentes, um aparelho de televisão portátil sobre um suporte instalado num vértice da parede e duas cadeiras género realizador de cinema, só que em tubos de metal. Da existência de apenas duas cadeiras numa sala de espera o subinspector concluiu que o dentista era um homem pontual. Nenhum cinzeiro à vista. Havia ainda três gravuras penduradas, todas representando barcos do tipo "clipper" e correctas no seu estilo perfunctório, mas com propósitos exclusivamente ornamentais e sem grandes veleidades. No tapete que forrava todo o chão, duas liliputianas colunas de som massajavam o ambiente com uma música suave e tranquilizadora, oriunda de uma emissora de FM.

Percebeu que a assistente tinha penetrado no gabinete odontológico ao ouvir o ruído de uma broca a trabalhar. Um segundo depois, o ruído cessou, e ouviu-se um assobio a acompanhar a canção que o rádio emitia. Pouco depois o assobio também se extinguiu - seguramente, a mulher informava o doutor da presença de Carta.

O subinspector decidiu que afinal valia a pena sentar-se e, enquanto espreitava a desactualizada pilha de revistas, sentiu uma palpitação de dor. Endireitou-se na cadeira e descruzou as pernas, a ver se aquilo passava. Já tinha hora marcada para aquela tarde com um urologista, sob os auspícios do seu amigo Castelo.

Soaram uns murmúrios indistintos. Pouco depois, uns passos anunciaram um rapazote, que parou junto do balcão, com uma mão na bochecha e a cara atordoada. Logo a seguir a assistente materializou-se no seu posto, recolheu o cheque e assentou a próxima consulta. O jovem balbuciou uma despedida, com um sorriso amarelo, e afastou-se. A porta ia fechar-se atrás dele, porém foi sustida por um sujeito com um guarda-chuva, que acabava de chegar - ainda vibrava no ar o solavanco do elevador antigo, com grades de gaiola.

A assistente cumprimentou o recém-chegado, certificando-se de que ele não encharcava o chão com o guarda-chuva molhado, ao invés de o introduzir no recipiente próprio para o efeito. Mandou-o sentar-se e esperar a sua vez, contornou o balcão e comunicou secamente ao subinspector:

- Já pode entrar. É por aqui - A mulher deslocava-se com a lentidão majestosa de um glaciar. Era evidente que não tencionava esbanjar hospitalidade com aquele intruso.

Carta transpôs o pequeno corredor, passou por uma porta que devia ser a casa de banho ou uma despensa e entrou no consultório, protagonizado pela proverbial cadeira de dentista, que o subinspector, mais ou menos jocosamente, classificava como o sucedâneo mais próximo da cadeira eléctrica - com a diferença que esta última era mais rápida e barata.

O doutor Lourenço Maia recebeu-o, com um sorriso caloroso nos lábios. Normalmente as pessoas não ficavam assim tão radiantes ao ver um polícia: na melhor das hipóteses, estavam a apresentar uma queixa por um contratempo qualquer, e na pior. . . Carta examinou-o com atenção. Era um homem dos seus trinta e poucos anos, mas aparentava menos idade, até com qualquer coisa de infantil: tinha o cabelo todo negro, sem clareiras de calvície, e quase nenhuma ruga, excepto na testa, bastante vincada. Esguio, de estatura mediana, possuía o tipo de rosto longo e sensível de que as mulheres pareciam gostar.

O dentista descalçou as luvas de borracha e estendeu a mão a Reinaldo Carta.

- Bom-dia. Em que posso ajudá-lo?

Brasileiro, registou o subinspector. Nos consultórios odontológicos e nos relvados de futebol era cada vez mais fácil encontrá-los. Este, pela pronúncia, devia estar cá há muitos anos.

- Peço desculpa pela intromissão. Precisava dar-lhe uma palavrinha. Prometo-lhe ser breve. O meu nome é Reinaldo Carta e sou subinspector de polícia.

- Muito prazer.

- Igualmente. O doutor é brasileiro, não é? De São Paulo, salvo erro?

O doutor lambeu os lábios nervosamente, e depois concordou, num tom apologético:

- Exacto. Tem um ouvido excelente. Mas já estou cá há dez anos. Na verdade, encontro-me definitivamente radicado em Portugal. E já não vou ao Brasil há quatro anos.

- Ah, gosta assim tanto do nosso país?

O outro não esperava por uma pergunta daquelas e, desarmado, intensificou o sorriso.

- É evidente que gosto. Por que não haveria-de gostar? Tenho dois filhos nascidos cá.

- Então, os meus parabéns. Eu tenho apenas um gato. Aliás, ignoro a sua terra natal. E um siamês, mas duvido que tenha nascido no Sião.

- Os gatos são boas companhias, segundo ouço dizer. Não que os filhos não o sejam, é claro.

O doutor estaria de facto um pouco menos intimidado à medida que os minutos passavam, mais à vontade, ou apenas mais premeditadamente relaxado? Afinal de contas, o que teria a esconder? Carta resolveu entrar no assunto. A campainha da porta tilintou.

- Bem, doutor, não quero roubar o seu tempo. Suponho que o seu próximo cliente tenha acabado de chegar. O que me traz aqui é Ravi Sharma.

- Ravi! - exclamou o dentista, e Carta notou o alívio na sua voz. O subinspector apostou que o que quer que afligisse aquele homem na presença da polícia, a morte do aluno de belas artes não estava relacionada com o caso. A não ser, é claro, que o doutor Maia fosse um actor magistral, hipótese que nunca convinha descartar de imediato. Os seres humanos acuados eram capazes das metamorfoses mais camaleónicas.

- Sim, Ravi Sharma, seu ex-cliente. Creio que sabe que ele foi assassinado. Decapitado, para ser mais preciso.

- Assassinado? Decapitado? - gaguejou o dentista, boquiaberto - Mas como? E porquê?

- Eis precisamente as perguntas que sou pago para responder, doutor. Se acrescentar o "por quem", é claro. Quantas vezes Ravi esteve neste consultório?

- Deixe-me ver. . . Cinco, acho eu. É isso: exactamente cinco.

- E começou o tratamento há quanto tempo?

- Há cerca de três meses, mais coisa menos coisa. Veio uma vez em Fevereiro, duas em Março e duas em Abril. Tem - ou melhor, tinha - consulta marcada para Maio. Só não sei o dia. Mas a dona Margarida, a minha assistente, pode elucidá-lo sobre esse ponto. Quer que a chame?

- Agora, não. A última consulta ocorreu em que data?

- Hum. . . Já sei: foi no dia 24 de Abril. Às seis da tarde. O último cliente daquela quinta- feira. Lembro-me porque foi na véspera do feriado. Do 25 de Abril, é claro.

- Não me diga? Sabe, doutor, que sendo assim pode ter sido uma das últimas pessoas a ver Ravi Sharma com vida?

- A sério? Mas. . . Quer dizer, não há mal nenhum nisso, pois não? Do ponto de vista da polícia. . .

- Decerto que não. Claro que isso procura saber-se sempre. É talvez a parte mais importante dos casos e leva muitas vezes a desvendar-se todo o mistério. Certamente, a última pessoa que viu a vítima nunca é a que comete o crime. Isto facilita as coisas. Portanto, diga-me sem receio: Ravi pareceu-lhe preocupado? Ou assustado com alguma coisa? Ou diferente nalgum aspecto?

Naquele momento, a assistente entrou na sala e, fitando mais o subinspector do que propriamente o dentista, declarou que o senhor Fonseca já estava à espera. Aprumou-se ao lado da cadeira, deixando claro que pretendia assistir ao interrogatório, e ai de quem tentasse impedi-la.

Carta achou melhor fingir que a mulher não estava ali, embora não fosse fácil.

- Não me respondeu, doutor.

- Ai, sim, desculpe-me. Se Ravi parecia preocupado ou diferente? Ora, agora que fala nisso, recordo-me de tê-lo achado um tanto ou quanto alheado.

- Troque por miúdos, se faz favor.

- Repare, subinspector, os clientes de um consultório dentário não têm muitas oportunidades para tagarelar. Passam quase todo o tempo com alguma coisa metida na boca, que os impede de falar - os dedos do dentista ou da assistente, o tubo de sucção salivar, uma broca, uma agulha de anestesia, um rolo de algodão e assim por diante. Daí eu sempre os avisar de que, se doer, ergam a mão esquerda. É uma espécie de código entre nós.

- Porquê a mão esquerda?

- Porque o dentista, ao contrário dos bons empregados de mesa, trabalha sempre do lado direito do cliente.

- Compreendo.

- Mesmo assim, sempre há uma conversa preliminar. Afinal, convém descontrair as pessoas, não é assim? E, às vezes, tenho de preparar qualquer medicamento ou prótese para introduzir numa cavidade de um dente ou na arcada dentária, e é então que se trocam mais algumas palavrinhas.

- E Ravi Sharma aproveitava tais intervalos?

- Mais ou menos.

- E do que é que falavam, quando falavam?

- Bem, primeiro aconselhei-o como dentista. As gengivas dele estavam uma lástima, e a escovagem dos dentes era muito deficiente. A propósito, o primeiro tratamento foi uma raspagem das gengivas. Aquilo era só tártaro. Tratou-se basicamente de extrair o tártaro. Ou de partir pedra, como costumo dizer a brincar. Ravi tinha tanto tártaro que foi quase preciso uma britadeira. . .

A assistente deu uma risada agreste, que apanhou Carta desprevenido. Era como se a estátua do Marquês de Pombal descesse do pedestal e desatasse a galopar pela avenida da Liberdade abaixo, montada no leão. Em seguida, a mulher fez que sim com a cabeça, muito gravemente. Quanto ao dentista, parecia mesmo desanuviado.

- O subinspector nem faz ideia de como as pessoas descuram a higiene dentária - Havia um tom de desprezo apaixonado na sua voz. A assistente fez que sim com ainda maior convicção. Carta cerrou os lábios. Não estava muito seguro da sua própria dentadura. - Recebo no consultório homens e mulheres janotas e perfumados por fora mas pelintras e fétidos por dentro. Preferem comprar um segundo automóvel a combater a fonte do seu mau hálito, gerado por placas bacterianas que lembram registos fósseis.

- Ai, sim? - murmurou Carta, certificando-se de que entreabria a boca apenas o suficiente para que as palavras saíssem.

- É verdade. Ou então, só lavam os dentes no dia em que vão ao dentista. São como aquelas senhoras que apenas limpam a casa no dia en que lá vai a empregada, para não passarem vergonha diante dela. E depois, é claro, querem que façamos milagres de um dia para o outro.

- É?

- É, pois! Se visse o estado das gengivas de Ravi. Pobre Ravi. . .

- Estavam assim tão mal? - perguntou o subinspector, mais para desviar a atenção da assistente, cujo olhar incidia como um pé de cabra na comissura dos lábios do polícia.

- Se estavam mal? Mal é pouco. Estavam a cair de podres. Não é mesmo, dona Margarida? Esvaíam-se em sangue ao mais ligeiro toque. Não é assim, dona Margarida?

A mulher acenou duas vezes com a cabeça, para cima e para baixo, mas sem afastar os olhos da boca do subinspector. Aquele olhar continha qualquer coisa de tão penetrante como uma lâmina. Providencialmente, o dentista continuou:

- Durante a limpeza das gengivas foi uma hemorragia daquelas. Claro que controlada pelo aparelho de sucção. Ravi nem deu por isso. A propósito, subinspector, se me permite uma observação, acho que tenho tanta familiaridade com o sangue como o senhor. Sabia que costumo prescrever uma pasta de dentes que é produzida com um agente antimicrobiano natural, extraído de uma planta chamada Sanguinária? Não é curioso?

- Uma curiosidade um tanto mórbida, talvez.

- Oh, de maneira nenhuma! E também tenho o meu holofote, como nas salas de interrogatório!

Carta fez um esgar de desagrado.

- Não costumo usar holofotes nem encandear as minhas testemunhas. Se me perdoa a franqueza, os consultórios odontológicos é que sempre me recordaram aquelas câmaras medievais de tortura.

- Oh, mas isso com certeza era por causa das brocas de antigamente! Dantes, pareciam berbequins: vibravam demasiado, eram barulhentas e aqueciam depressa a cavidade dentária, obrigando o dentista a interromper o seu trabalho. Além disso, eram vagarosas, raras vezes atingindo as 5 mil rotações por minuto. As mais modernas passam agora as 200 mil rotações, o que permite uma brocagem muito mais rápida. E vêm com um sistema de arrefecimento por água, para evitar o aquecimento do dente, que provoca a dor. Vê o que quero dizer?perguntou o doutor, empunhando uma elegante broca prateada, semelhante a uma caneta futurista.

- Sim, sim, estou a ver. - disse Carta, disfarçando um bocejo.

- Em todo o caso, segundo consta, os barbeiros são os ancestrais dos dentistas.

- Tanto como os piratas são os ancestrais dos almirantes.

- Bom, seja como for, não me explicou do que é que Ravi falava. E por que o achou tão preocupado.

- É verdade, já me esquecia. Bom. . . - Subitamente, o doutor Maia mostrou-se outra vez tenso e inquieto. Cruzou os braços como se estivesse com frio. - É um pouco constrangedor tocar nesse assunto.

- Não se iniba, doutor. Nós, médicos e polícias, somos confidentes profissionais. Túmulos ambulantes. Diga lá o que ia a dizer. Tem um cliente à espera.

O dentista lançou uma olhadela à assistente, que o encarou com os olhos fulgurantes de devoção. Lourenço afagou o queixo, introspectivo.

- Ravi queixava-se imenso de discriminação. De discriminação racial, quero dizer - Esboçou outro sorriso defensivo. - Acho que desabafava comigo pelo facto de também eu ser estrangeiro. Se calhar sentia alguma identificação.

- E bem possível.

- Embora as nossas situações fossem radicalmente diferentes, é claro.

- Isso nem se discute. Até porque o senhor está vivo e ele morto. Mas o que é que dizia, concretamente?

- Não me recordo as palavras exactas. Como já disse, a conversa do dentista com o cliente é quase uma terapia sedativa, e não uma comunicação genuína. E depois, é um cliente atrás do outro. Para eles eu sou só um, mas para mim eles são muitos, graças a Deus.

- Esprema a memória. Pode ser importante.

- Mmmm, essencialmente, batia sempre na mesma tecla: que só não tinha mais sorte com as raparigas porque os pais delas eram uns xenófobos. Jurava que se não fosse por isso, pelo menos metade das lisboetas já teriam passado pela sua cama.

- E o senhor, o que é que respondia-lhe?

- Oh, limitava-me a rir e a concordar. Eram criancices, claro.

- Considera o racismo uma criancice? - perguntou Carta. O doutor Maia fez uma cara muito séria, quase cómica de tão circunspecta. Com esforço, controlou o mal-estar. Falou mais devagar. - Valha-me Deus, é evidente que não. Percebeu-me mal. Consideraava uma criancice apenas as fanfarronices amorosas de Ravi. Que, fora essas presunções pueris, era bom rapaz. Imaturo e um pouco estouvado, talvez. Quer dizer, nem melhor nem pior do que a maioria.

- Acredito. E não se lembra de nenhum comentário específico da vítima?

- Da vítima. Ah, sim, de Ravi. Decapitado, o senhor disse! que horror. . . Perdão, divago. Sim, lembro-me de dois comentários dele que me impressionaram muito. Quer dizer, impressionaram-me um pouco. - De novo, o doutor mostrava constrangimento.

- E pode-se saber quais foram eles, já agora?

O dentista respondeu a olhar alternadamente para a parede e para a assistente.

- O primeiro foi que, em Goa, os sacerdotes portugueses não faziam incongruência entre o baptismo dos nativos e a sua respectiva escravização. - Ora, quando ele nasceu já lá não estávamos. Isso foi chão que já deu uvas. E aposto que sobre São Francisco Xavier o rapaz não deu um pio. - Creio que Ravi falava de um ponto de vista histórico.

- É o costume. E o segundo comentário?

- O segundo? Ei-lo: na Índia os portugueses consideravam que uma ama nativa contaminava o bebé que amamentasse. - Lourenço suspirou profundamente, um suspiro fatigado e melancólico. Por instantes, dir-se-ia que se tinha esquecido da presença de Carta.

- Obrigado, doutor Maia. Foi muitíssimo útil. Apenas mais uma pergunta: Ravi Sharma disse-lhe se tinha uma namorada no momento, ou se estava interessado em alguém em particular?

- Por acaso perguntei-lhe isso, a brincar. É um assunto natural com os mais jovens. Mas saiu-se com evasivas. Que eu me lembre não mencionou nome nenhum. Na última consulta, contudo, recordo-me de ouvi-lo resmungar, enquanto eu calçava as luvas: "Esta vai ser a mais difcil de todas. Um bico de obra.

- Sugestivo, sem dúvida. Naturalmente, ninguém nos garante que estava a pensar numa pessoa. Podia ser uma oportunidade, ou um desafio qualquer.

- Sim, tem razão. Não tinha pensado nisso, mas concordo consigo.

- Bem, doutor, muito obrigado. Lamento pelo tempo que lhe tomei - são os ossos do oficio. E possível que tenhamos de voltar a conversar.

- Quando quiser - disse o dentista, numa voz resignada. Animando-se um pouco, acrescentou a sorrir:

- Da próxima vez, posso tomar a liberdade de examinar-lhe os dentes. Cortesia da casa. Olhe que não lhe fazia mal nenhum.

Carta deu dois passos em direcção a saída. De súbito, deteve-se e bateu a mão na testa.

- É verdade, doutor! Uma simples formalidade: onde é que esteve na noite do dia 24 de Abril?

- Eu? Em casa, a ver televisão e a ler o jornal. Sou um homem muito caseiro.

- Sozinho?

- Telefonei aos meus filhos e estive na conversa com eles durante, sei lá, meia hora mais ou menos.

- São crianças, pois não? Portanto não se devem deitar muito tarde, não é assim?

- Não, não se deitam muito tarde.

- Não faça essa cara. Como disse, é uma simples formalidade. Muito bom-dia.

Depois de fechar as duas portas, uma de empurrar e a outra de correr, Carta desceu pelo velho elevador, enfronhado nos seus pensamentos. Meditava naquela história de racismo. Era sem dúvida uma causa de ódio com ímpeto suficiente para gerar um assassino brutal. Sempre o mais sincero possível consigo próprio, Carta considerou que era racista, assim como a maior parte dos seus compatriotas. Ou, pior ainda, havia portugueses racistas e havia portugueses não racistas. Isso fazia de Portugal uma nação racista? Era óbvio que não. admitiu que podia estar enganado. Já se enganara antes e voltaria a enganar-se no futuro - quanto a isso não alimentava grandes ilusões. De qualquer modo, reflectindo na história colonial, concluiu que

uma raça não podia escravizar sistematicamente membros de outra em larga escala, durante mais de 300 anos, sem adquirir, ao longo deste processo, um sentimento consciente ou inconsciente de superiowridade racial. Por outro lado, era uma generalização razoavelmente correcta afirmar que a grande massa dos indivíduos de quase todos os países se considera superior aos de quaisquer outros. No caso dos portugueses em particular, a questão era ainda mais complicada, pois o seu complexo de superioridade volta e meia alternava ou se fundia com um complexo de inferioridade, um espicaçando o outro, num círculo vicioso. Contudo, suspirou Carta, qualquer abordagem estritamente profissional da história distorcia-a tanto como um mapa distorce a realidade dos montes e rios. Às teorias mais sofisticadas faltavam as dimensões do medo, os séculos de ódio acumulado em lagos envenenados, e as trevas do fanatismo, da ignorância e do desespero. O irracional, por definição, esquivava-se à lógica e confinava os homens na sua própria versão da verdade. O irracional escapava-se sempre pela parede e nadava na direcção oposta.

Com um estrondo, o elevador pousou e o subinspector saiu. Correu para o carro, mas ainda assim molhou-se um pouco nos ombros e nas pernas. Lá dentro, com os vidros fechados e embaciados e a chuva a tamborilar no tejadilho, reconheceu, um tanto admirado, que tinha simpatizado com o doutor Maia. Estava mesmo a dar em molenga, admitiu, ligando o limpa pára-brisas. Contemplou-se no espelho retrovisor, arreganhando os lábios e inspecionando os dentes e as gengivas: não pareciam assim tão maus, sobretudo para um homem da sua idade. Ressalvado o facto de que proliferavam as próteses e as lacunas. A usura do tempo.

Quando girou a chave da ignição e carregou no acelerador, viu um arrumador de carros a afastar-se furtivamente. Era assim tão obviamente um agente da autoridade? Uma frase de Lourenço ecoou-lhe no espírito: "Estou quase tão familiarizado com sangue como o subinspector". O clássico exibicionismo de tantos sociopatas, que no fundo só queriam ser presos e castigados? Carta passou a mão pela barba de dois dias. Familiarizado com o sangue o suficiente para matar uma pessoa, serrar-lhe a cabeça e espetá-la num mastro, tudo isso sem deixar impressões digitais? E com que motivos? Ora, a um dentista luvas de borracha é que não faltavam. Nem bisturis ou anestesias. Quanto aos motivos, essa era a parte mais fácil de todos os crimes. . .

 

REINALDO CARTA IGNORAVA QUE PODIA ENTRAR COM O CARRO no perímetro do hospital, mesmo sem invocar o seu estatuto de polícia, bastando para tanto mencionar a consulta e o nome do médico, em jeito de santo e senha. Daí que tenha arrumado o veículo numa rua adjacente, depois de andar alguns minutos às voltas, embrenhado nos anbíguos resultados da conversa com o dentista.

O hospital era rodeado por um muro alto - Carta conjecturou se a finalidade da muralha consistia em impedir que os doentes de lá debandassem na calada da noite. Na rede interna de ruazinhas alcatroadas, ramalhetes de placas apontavam as direcções das múltiplas especialidades: ortopedia, pediatria, urgências, psiquiatria, radiologia.

Seguiu a seta que dizia urologia e clínica geral, esquivando-se das macas que circulavam com ou sem pacientes estendidos nelas, empurradas por paramédicos de ar hostil. A porta de um pavilhão, uma mulher ainda jovem, em chinelos de pompons e com o roupão turco guarnecido do monograma hospitalar, segurava a haste de um tubo de soro como se fosse uma sentinela nas ameias de uma masmorra, a vigiar a ponte levadiça. Tinha uma expressão enfastiada e, com a outra mão, chupava um cigarro já no fim.

Carta contornou um jardim de arbustos raquíticos e calcinados, com umas flores anorécticas que Emília por certo lastimaria. Por entre a vegetação rasteira descortinou, admirado, um galo e algumas galinhas esqueléticas, que esgaravatavam a terra tão laboriosamente como um cão à procura do seu osso. O galo, com ar emproado, pôs-se em biquinhos de pés, bateu as asas e emitiu um chamamento esganiçado.

O subinspector desembocou por fim no pavilhão que pretendia. À entrada foi interpelado por um porteiro, que o aconselhou a dirigir-se ao balcão de informações - o qual, como Carta adivinhou, era pau para toda a obra. A sala de espera tinha forma rectangular, de tamanho médio. Duas filas de cadeiras de pau com braço, como as das salas de aulas, alinhavam-se à direita da entrada, logo após um cubículo que servia de casa de banho e não podia ser fechado nem por dentro nem por fora. À esquerda, vislumbrou uma porta dupla de vaivém, que uma etiqueta identificava como o recinto das radiografias.

Deteve-se diante do balcão, atrás do qual estava sentado um rapaz que dedilhava um computador, com o torso arqueado. Quando este fez uma pausa, Carta pigarreou e declarou que tinha uma consulta marcada com o doutor Ernani Lopes.

- Particular ou do Estado? - perguntou o rapaz, coçando o nariz e arrancando a crosta de uma borbulha, que inspeccionou e lançou para o lado com a catapulta dos dedos. A borbulha, reduzida a uma minúscula cavidade rosada, começou a sangrar.

- Do Estado - respondeu Carta, ajuizadamente.

- O seu cartão e o bilhete de identidade, se faz favor. Carta apresentou ambos os documentos, que foram transcritos numa ficha e devolvidos ao dono.

- Sente-se e espere um pouco que vou avisar o doutor. Será chamado pelo altifalante.

Carta escolheu uma das cadeiras e sentou-se. "Ultimamente, esperar em consultórios é a história da minha vida", gracejou consigo próprio. Um punhado de pessoas aguardavam a vez - a maior parte lia as revistas estropiadas sobre televisão e as suas celebridades, que jaziam numa pequena mesa. Relutante, o subinspector apanhou o único jornal disponível e folheou-o. Na página policial, leu o título: "Polícia já tem um suspeito na decapitação do estudante de Belas Artes".

Irritado, esfregou o queixo até aquecê-lo. Será que a imprensa não conseguia fazer nada direito? Assim também já era de mais. . . Não era nada daquilo que tinha dito, nem nada que se parecesse. Simplesmente explicara ao idiota do repórter que o assassino deveria ser alguém das relações da vítima, pois a hipótese de roubo, casual ou não, estava descartada, e a ferocidade sádica do crime indicava um ódio pessoal. E mesmo isso constituíam meras suposições baseadas na lógica e numa investigação preliminar, sujeita à reconsideração. Claro está, não existia nenhuma pista sobre a identidade do "suspeito". Fechou o jornal, enrolou-o e bateu com ele na mesinha, como se estivesse a matar uma barata.

Olhou em redor, com a atenção atraída por uma voz fanhosa. Era uma velhota corcunda, de fisionomia porcina, que falava ao telefone público aparafusado na parede. Os períodos estavam a acabar e ela atropelava as sílabas a fim de concluir o que tinha a dizer. Quando as moedas se esgotaram e a comunicação cessou, lançou um olhar rancoroso ao aparelho e grunhiu qualquer coisa inaudível. Em seguida, exclamou:

- Ninguém tem moedas de 20?

Ninguém as tinha, o que só agravou a animosidade daquele olhar. A velhota rastejou para o seu lugar, arrastando os pés inchados, fervilhando de exasperação e ressentimento.

Atrás do balcão, o recepcionista, como que para fazer alguma coisa, levantou-se de rompante e ligou o aparelho de televisão por cima da sua cabeça. Davam uma telenovela brasileira. Carta lembrou-se do doutor Maia. "Estou tão familiarizado com o sangue como o subinspector. . . "Aquela bravata dissimularia o receio que o dentista no fundo sentia? Receio de quê, afinal?

As cadeiras ao lado de Carta estavam ocupadas por um casal de ciganos, com um bebé dos seus dois anos e picos. A criança, indescritivelmente suja, quer na roupa quer no rostinho travesso, gatinhava pelo chão, fascinada com uma máquina que fornecia café e coca-cola a troco de moedas. A mãe era prematuramente envelhecida, informe e ácida nas suas vestes demasiado largas. O pai vestia-se de preto, incluindo um chapéu enterrado na cabeça, e usava uma barba hirsuta, com um ar solene. O bebé continuava a serpentear por entre as pernas das cadeiras, não obstante as ordens dos pais para que estivesse quieto. A senhora do telefone contemplou o trio com a testa franzida. Finalmente, a mãe agarrou o bebé pelos fundilhos, ergueu-o no ar e pregoulhe um tabefe, com pouca força, numa bochecha. A criança desatou a chorar e a mulher abraçou-a, confortando-a e sussurrando-lhe palavras meigas.

Ressoou uma campainha abafada e a seguir ouviu-se um nome ainda mais indistinto, que Carta decifrou apenas o suficiente para concluir que não era o seu. Apeteceu-lhe urinar, mas o incómodo da micção era tanto que se aliviava o mínimo de vezes possível. Não sabia o que era mais penoso, se a continência ou a incontinência. Pôs-se em pé, a fim de esconjurar a ânsia. Às vezes resultava isto é, ganhava mais algum tempo até à próxima provação.

Entre a casa de banho, em cuja órbita gravitou, e a porta de entrada para o que era, sem dúvida, o recinto das consultas, avistou fotografias arrancadas às páginas de uma revista género "National Geographic" e coladas à parede. De acordo com as legendas, todas elas reproduziam paisagens idílicas da Noruega, com eclusas elegantes, rios cristalinos, hospitaleiras casas de telhados triangulares e heras nas paredes, e prados viçosos da cor do kiwi. Como é que aquilo teria ido lá parar?, pensou Carta. Era desconcertante.

Naquele momento, ouviu claramente o seu nome no altifalante. Deu dois passos em frente e fixou o recepcionista com um ar inquiridor.

- É por aquela porta - suspirou o rapaz - Pode entrar. No corredor, a segunda sala à sua direita.

Carta fez o que lhe mandavam e deparou-se com um extenso corredor, mais iluminado do que a sala de espera e flanqueado por tabiques tapados por biombos munidos de rodinhas. O doutor Ernani Lopes estava sentado atrás de uma secretária, preenchendo umas fichas com uma caneta de tinta permanente. Era canhoto, de ombros largos, narinas peludas e, ao fitar o recém-chegado, revelou uns olhos cansados e inteligentes.

- Sente-se, por favor - disse, indicando a cadeira com a palma da mão. Ao fundo, jazia uma marquesa. - Então, muito prazer. Como é que vai o Castelo?

- Vai andando. Mandou-lhe cumprimentos.

- Já não o vejo há quase um ano. A última vez foi no Algarve, e casualmente. Estávamos ambos de férias. Deixe-me cá ver. . . Olhe, em Vila Moura. Mesmo na marina! Estava lá um homenzinho a fazer de estátua para ganhar uns cobres. . .

Carta acenou com a cabeça, compreensivamente. Não havia muito a acrescentar.

- É verdade, o Castelo. . . O eterno solteirão! Esse é que sabe viver. Bom, diga-me lá o que é que se passa consigo.

Carta mordiscou um canto da boca e procurou sintetizar as mazelas.

- Apetece-me urinar cada vez mais frequentemente, e, quando urino, dói-me imenso. Dói-me também quando não estou a urinar, às vezes, mas a dor é menos intensa.

O médico ouvia-o com toda a atenção, estalando a língua de vez em quando.

- Tem 56 anos. . .

- Exacto. Quase 57.

- Então levante-se, vá até àquela marquesa e dispa-se da cintura para baixo.

O exame foi rápido, mas não tão rápido como Carta teria preferido. O doutor Ernani Lopes auscultou-lhe o peito e as costas, apontou-lhe uma luz aos olhos e apalpou-lhe a glândula da próstata. Médico e paciente sentaram-se de novo, um frente ao outro. Embaraçado, o subinspector afivelava o cinto das calças.

- O Castelo acertou em cheio: a maçada é na próstata. Serei franco e claro. Claro porque dentro do possível gosto que os meus pacientes percebam do que estou a falar, e franco porque é a melhor política - ao menos neste caso.

- Fico-lhe grato.

- Não sei se sabe, mas a próstata é uma glândula masculina que envolve a uretra no local em que esta se liga à bexiga. Serve de passagem tanto para a urina como para o sémen. Basicamente é esta a sua vocação - prazer e negócios, por assim dizer. Agora, a complicação: entre os 40 e os 60 anos, a produção de hormonas masculinas diminui, e a próstata começa a degenerar. Está a acompanhar-me?

- Cada palavra. Não perco pitada. - disse Carta.

- Com a idade, o volume da próstata pode aumentar, exercendo uma pressão sobre a bexiga - a possível fonte da sua dor.

- Muito bem. Ou melhor, muito mal.

- Mas há outra possibilidade ainda pior. A próstata hipertrofiada é susceptível de gerar um tumor canceroso. Hoje em dia, o cancro da próstata afecta um em cada 20 homens com idade superior aos 50 anos. Parece incrível mas é a triste verdade.

O subinspector mexeu-se na cadeira, encolheu os dedos dos pés dentro dos sapatos e inclinou-se mais para a secretária.

- Quer dizer, nem sequer sou muito original. . .

O médico pôs as mãos em cima do tampo e cruzou os dedos, iniciando um movimento de rotação entre os dois polegares.

- Não sejamos alarmistas, que não vale a pena. Para formular um diagnóstico seguro, vamos passá-lo a pente fino. Afianço-lhe desde já que as chances de cura do cancro na próstata são apreciáveis, quando o carcinoma prostático é detectado precocemente.

- Nunca fui muito precoce - murmurou Carta, com um sorriso que tentou ser irónico - Desculpe-me, estou a ser pueril.

- Dadas as circunstâncias, tem todo o direito. Faça o favor de esperar um instante. Uma enfermeira virá ter consigo para recolher o material. Antes de mais nada, fará um raio X, e as análises ao sangue, à urina e ao coração. Descontraia-se, que tudo correrá bem. Depois voltamos a falar. Ah, hoje dorme no hospital e amanhã vai-se embora.

- Como? - exclamou Carta, alarmado. Não contava com essa.

- Nem sequer trouxe um pijama. . .

- Temos os nossos próprios pijamas, subinspector. E chinelos e robes bem janotas. É melhor assim, creia-me. Despachamos tudo de uma só vez e ficamos descansados. O exame principal consiste numa ultra-sonografia transrectal. Mas faremos também uma biópsia aspirativa com uma agulha fina e, só como desencargo de consciência, uma urografia excretora e uma endoscopia. A propósito, pode efectuar os telefonemas que desejar.

Uns instantes após a saída do médico, entrou a enfermeira, uma mulata longilínea, de cabelos da cor do estanho. Disse boa-tarde a Carta, que retribuiu maquinalmente o cumprimento. Aborreceu-o verificar que a sua voz vacilava. Ultra- sonografia transrectal, urografia excretora, agulha fina. . . Aquilo era um médico ou o marquês de Sade?

A mulher olhou-o de alto a baixo e ordenou- lhe:

- Vai tirar tudo o que tiver de metal: óculos, relógios, fios, pulseiras, anéis, dentes postiços e assim por diante. Em seguida, dispa a roupa toda, menos as cuecas, e vista esta bata. Tem aqui uns chinelos. Despache-se, está bem? - Falava de um modo ao mesmo tempo autoritário e benévolo. Voltou as costas ao paciente e cruzou os braços, dando pancadinhas no chão com o pé direito.

- Estou pronto.

- Óptimo, óptimo. Agora venha comigo.

Conduziu-o à sala de raio X. Ao atravessarem o corredor, Carta vislumbrou, noutro compartimento, um homem com uma bata de médico que deitava uísque num copo de plástico. E fumava, quase atirando o fumo para cima de um doente estendido numa maca. Carta sentiu inveja do médico e achou que deveria sentir pena do doente.

Na volta, a enfermeira mediu-lhe a tensão. Em seguida, disse-lhe:

- Seja um bom rapaz, tenha juizinho e deite-se na marquesa. Não tem alergias, pois não?

- Acho que não - Pelo canto do olho, verificou que havia outra mulher presente, de cuja chegada não se apercebera. Com certeza, a anestesista. Esta massajou-lhe com algodão o meio do braço e, sem pronunciar uma palavra, espetou-lhe uma agulha. Por fim, pediu-lhe:

- Faça uma contagem decrescente, de dez para zero.

Carta sempre tivera receio de ser posto a dormir e nunca mais acordar. Mas não disse nada. Ao menos, durante algumas horas não teria de cuidar de si próprio. Quando chegou ao número três já estava a vogar no seio de uma névoa opaca. A última coisa que sentiu foi empurrarem a marquesa, que deslizou aos solavancos. Não reparara que também ela tinha rodinhas. Estava mesmo a ficar velho. Se calhar, não por muito tempo.

Mais ou menos uma hora antes de despertar, sonhou que alguém, cuja identidade não distinguiu, lhe cortava a cabeça com um corta-unhas - e por isso não conseguia ver Emília, que tinha ressuscitado e o orientava ansiosamente: "Estou aqui! Aqui. . ."

 

Reinaldo Carta despertou por volta das cinco da manhã. O que é que havia naquela injecção?

Cimento? Desta vez, mais do que doer, o sítio do costume ardia-lhe imenso, quase como se tivesse apanhado um escaldão localizado. Abriu os olhos e devassou a penumbra. Encontrava-se num compartimento delimitado por um biombo, como aqueles que já vira antes, na altura da consulta com o doutor Lopes. À sua frente avultava outra cama, onde alguém ressonava com convicção, emitindo um som borbulhante, com um tubo de plástico no nariz. Um colega de mazelas, com certeza. Ouviu um murmúrio de vozes e passos surdos, produzidos por solas de borracha, provenientes do outro lado da divisória.

O outro paciente roncava cada vez mais alto. De súbito, uma voz feminina exclamou: "Silêncio!". Apesar do torpor que o tolhia, o subinspector ficou perplexo com aquela ordem peremptória. Afinal, encontrava-se na madrugada de um hospital. . . Bem vistas as coisas, a intimação não deixava de ser divertida. Consciente ou inconscientemente, o homem que ressonava submeteu-se. Mexeu-se no leito e calou-se depois de um suspiro.

Carta tentou mas não conseguiu, conciliar o sono outra vez. Apoderava-se dele a impressão suscitada pelo sonho recente. A morte de Emília. . . Fora tudo tão rápido. Era a proverbial vantagem que o senso comum atribuía aos ataques do coração. Tiro e queda, a melhor morte que se podia esperar num mundo que não se distingue exactamente pelas boas mortes. Pessoalmente, o subinspector preferia que ela tivesse ficado mais um pouco, mesmo moribunda, desde que isso não implicasse mais sofrimento. Podia ter-lhe dito algo mais intenso, exprimido melhor o seu amor e gratidão. Na realidade, apenas gaguejou umas frases estereotipadas e desconexas, nem práticas nem dolorosas.

Nunca iria esquecer-se daquele fim de tarde. Tinham falado em jantar fora, num restaurante mexicano que Emília adorava, sobretudo por causa dos "guacamoles", feitos com abacates, e dos "burritos", espécie de crepes recheados de carne picada e irrigados com três variedades de molho picante, sugestivamente baptizadas: quente (o mais suave), brasa (o médio) e fogo (o inflamável). Emília aventara até hipótese de, a seguir ao jantar, darem um pezinho de dança, se ainda estivessem para aí virados.

Por volta das seis e meia, o subinspector encontrava-se no seu gabinete doméstico, a examinar uns processos, como sempre mais complicados do que complexos. A mulher cuidava da floreira e dos inúmeros vasos, lidando com um novo modelo de adubo em barras do tamanho de um dedo mindinho que acabara de comprar, no qual depositava grandes esperanças, especialmente para umas plantas mais débeis e deficitárias de luz solar. Um quarto de hora antes, queixara-se de dor de cabeça. Depois, a dor despontara no ombro esquerdo. Devia ser mesmo incómoda, pois Emília tomara uma aspirina, coisa que, ao contrário de Carta, quase nunca fazia.

Momentos mais tarde, entrara no escritório para anunciar que o tempo estava a mudar. Era até provável um aguaceiro. Dajanela do terraço, avistavam-se primeiro uns clarões e em seguida os ramos brilhantes dos relâmpagos. Aconselhou ao marido um casaco espesso - parece que grassava um surto de gripe. Ou, melhor ainda, aquela gabardina forrada de feltro que ela lhe oferecera num aniversário e que ele nunca usara porque não calhara. Carta sondou-a sobre a dor de cabeça e no ombro, e a mulher respondeu que agora era o peito que se metia ao barulho. "Deixamos o jantar para o outro dia", propôs o subinspector. "O melhor é deitares-te um bocadinho".

Emília, com aqueles seus olhos brilhantes como prata polida, aceitou uma das sugestões e declinou a outra. Ia deitar-se por alguns instantes e ficaria nova em folha. Ele ia ver só. Não havia necessidade nenhuma de cancelar a reserva no restaurante. E muito menos o pezinho de dança. Saíam tão pouco de casa. . . Era verdade: durante quase todo o tempo, ele e Emília só precisavam da companhia ocasional de conhecidos amistosos que confirmavam a sua auto-suficiência.

Escoados alguns minutos, Carta ouviu um gemido - depois o seu nome foi balbuciado num estertor. Levantou-se intempestivamente e correu para o quarto, batendo o quadril na esquina da mesa. Estendida sobre os lençóis revolvidos, flácida como uma almofada mal cheia, a mulher arfava, muito pálida e com uma mão no peito. No olhar de Emília espraiava-se um medo cada vez mais baço. Às pressas, Carta chamou o 115. Em seguida, voltou para a cabeceira da cama, agarrou-lhe as mãos e afagou-lhe os cabelos húmidos. A ambulância veio pouco depois, mas já era demasiado tarde. Terá a mulher chegado a reconhecê-lo através das lágrimas?

Depois da morte de Emília, Carta passara quinze dias quase sem dormir. Sorvia litros de álcool como a areia sorve água. Encharcado de ansiolíticos, apenas dormitava, rilhando os dentes. Quando acordava, uns minutos mais tarde, doíam-lhe os maxilares. Contudo, não chorou. Chorar parecia uma coisa inadequada, que não estava à altura de um grande desgosto. Pensava, trabalhava e sofria apenas um dia de cada vez.

A solenidade da despedida da mulher deste mundo foi naturalmente penosa. Talvez mesmo mais do que naturalmente penosa. Houve um funeral simbólico, e, cinco dias mais tarde, a cremação do corpo, segundo o desejo expresso de Emília. No entanto, esta última cerimónia atrasou-se. Quando eram cinco horas da tarde, um homenzinho nervoso e compungido veio comunicar ao viúvo que, lamentavelmente, aquilo tinha de ficar para o dia seguinte.

- E posso saber porquê? - perguntou o subinspector, carrancudo.

- Acontece, meu caro senhor, que o nosso expediente acaba às cinco da tarde em ponto, e a Câmara Municipal recusa-se a pagar horas extras aos seus funcionários. Portanto. . .

Carta engoliu em seco. Não sabia se tinha percebido bem o que o outro dissera. Castelo, de fato e gravata escuros, agarrou-lhe o cotovelo e sussurrou que não era a primeira vez que tais contratempos aconteciam. Muito pelo contrário.

- Ora, não seja por isso: pago-vos eu próprio, do meu próprio bolso! Não nos íamos mesmo demorar muito mais. Quanto é?

O outro explicou que sentia muito, mas não podia fazer nada. Se ao menos dependesse dele. . . Mas não dependia, e não podia dar-se ao luxo de perder o emprego, mesmo não gostando nada daquele tipo de trabalho. Em todo o caso, amanhã também era dia.

Demasiado deprimido para extravasar uma cólera inútil, o subinspector voltou para casa. Declinou a companhia de Castelo, alegando que ia tentar dormir um pouco. Sabia o que o médico diria. "Queres falar da Emília?", dando a entender que não ficaria embaraçado se o amigo começasse a chorar. Todavia, os olhos de Carta estavam secos como giz.

Em cima da mesa da sala, jazia ainda a embalagem vazia do adubo em barras. Sextante entrou no aposento, ergueu a cabeça e lançou-lhe um olhar recriminador, de censura expectante. O que é que aquele homem aborrecido fizera com a sua adorável dona? Carta vagueou rumo à varanda, pensando que o corpo de Emília, aquele corpo em que ele tantas vezes pousara como um pássaro num ramo, estava agora na gaveta de uma câmara frigorifica de aço inoxidável, embrulhado numa mortalha de plástico.

Na manhã seguinte entregaram-lhe uma embalagem de plástico, estranhamente pesada, com um pó branco que ele, um tanto constrangido, lançou ao mar, num breve clarão prateado. A partir daquele dia e para o tempo que lhe restasse, o subinspector Reinaldo Carta fixou-se uma máxima: em todas as ocasiões da vida, o que há a fazer é esperar o melhor e preparar-se para o pior.

Virou-se devagarinho no leito e este rangeu. Quase em seguida, uma mão afastou parcialmente o biombo e alguém penetrou no compartimento. Era a mesma enfermeira que cuidara de Carta antes dos exames e da biópsia. Aproximou-se dele com uma expressão bondosa, mesmo maternal, embora tivesse idade para ser a sua irmã mais nova.

- Então, como vai isso? - murmurou.

- Vai indo - respondeu o paciente. No momento seguinte, reconsiderou. - Dói-me um pouco. Só um pouco.

- É normalíssimo. Vou dar-lhe um remediozinho e isso passa num minuto. Não quer fazer chichi?

Desde a infância ninguém perguntava ao subinspector se não lhe apetecia fazer chichi.

- Por enquanto, não. Obrigado.

- Veja lá! É que convém, no seu caso.

- Se é assim, posso tentar.

A enfermeira retirou-se e regressou pouco depois, com um objecto que era uma combinação de tubo de ensaio e garrafa. Na outra mão, trazia um pequeno tabuleiro com um copo de plástico com água e um comprimido. Deu à manivela atrás da cama e a cabeceira inclinou-se.

- Vá, tome lá isto e depois tente fazer um chichizinho. Escusa de se levantar. Volto daqui a bocado.

Carta engoliu o remédio. Urinar, contudo, não conseguiu, por mais que se esforçasse. Nem uma pinguinha. Era estranho.

- Então, já está? - indagou a enfermeira, introduzindo a cabeça no vão do biombo.

- É escusado, não sou capaz.

- Não faz mal. Tem muito tempo. Veja se dorme mais um pouco, que ainda é cedo. Mas por amor de Deus não ressone como aquele ali. Nós repousamos aqui mesmo ao lado. E passamos muito bem sem um dueto.

Carta voltou a tentar, porém não conseguiu adormecer. Com que então, um tumorzinho em perspectiva? Uma flor carnívora nos seus tecidos? Apetecia-lhe beber e fumar, mas ambos os refrigérios estavam fora de questão. Mudou de posição, pois os pés formigavam-lhe - fora isso, sentia-se bastante melhor, perfeitamente lúcido.

A propósito, será que podia ter esperanças de vir a ser embalsamado pelos tais médicos soviéticos? Se aquilo fosse mesmo cancro e em estado terminal, quem é que lamentaria a sua falta? Castelo, certamente. E quem mais? Familiares já não os tinha, excepto uma sobrinha em segundo grau, que vivia em Trás-os-Montes. Esta telefonara-lhe por ocasião da morte de Emília e falara até em vir para o enterro, se conseguisse meter uma baixa. No entanto, e segundo o subinspector supunha, acabara por apurar que o tio não herdaria pratica mente nada dos bens da mulher - que não era a sua esposa legítima a não ser o apartamento onde moravam. Assim sendo, contentara-se com um lacónico telegrama de condolências. Sob os lençóis, Carta arregaçou as mangas do pijama e sorriu com ironia, recordando- se de uma outra sobrinha, esta em primeiro grau e da família de Emília, que tivera muito mais sorte e levara quase todo o património da tia.

Não, não era pela linhagem que seria pranteado. E na polícia? Aí então muito menos. Há quase um quarto de século que a reputação de ter pertencido aos quadros da PIDE o perseguia, estigmatizando-o como uma lepra. No fundo, era tudo muito simples, tão simples que até dava vontade de rir, se não fosse também tão nefasto.

Quando conheceu Emília, esta era casada com um figurão que, ele sim, ocupava um posto proeminente na administração salazarista e mantinha laços estreitos com a polícia política. O matrimónio, embora relativamente recente, não corria lá muito bem: singrava em piloto automático. A mulher, de índole romântica e sonhadora, sentia-se acabrunhada e solitária. Carta e Emília apaixonaram-se pouco depois do primeiro encontro, pouco depois de ouvirem pela primeira vez as respectivas vozes.

Naquela época, o subinspector não passava de um estudante do último ano do curso de Direito, oriundo de uma família provinciana e modesta, que beneficiara de uma bolsa de estudo. A fim de auferir algum rendimento suplementar, trabalhava como escriturário numa repartição da polícia, exercendo funções burocráticas e indescritivelmente maçadoras. Todavia, sentia-se satisfeito e confiante, pois pretendia seguir carreira nos órgãos de segurança. Tão claro como a água, aquela era a sua vocação. Gostava de contribuir para a estabilidade e a coesão da sociedade.

Um belo dia o marido de Emília soube que eles tinham-se tornado amantes. Uma carta anónima, muito comum naquele mundo infestado de sicofantas? Era bem possível. De qualquer modo, haviam dado tanto nas vistas. . . Carta era talvez o visitante mais assíduo da casa de Emília, e por certo estava impregnado do seu perfume até às entranhas.

Ainda assim, levou cerca de dois anos para que o marido descobrisse a ligação. Era um homem que tomava tudo a sério e a si próprio mais do que tudo. A princípio nada fez, talvez distraído e avassalado pela convulsão social gerada pela Revolução dos Cravos, que tinha entretanto derrubado o antigo regime. Mas depois recuperou o tempo perdido e maquinou a sua vingança. Antes de fugir para o Brasil, onde se instalou num exílio dourado, semeou o boato de que Carta era um delator da PIDE. Encontrava-se em excelente posição para sedimentar a acusação com factos que, embora falsos em relação ao rival, pareciam convincentes, pois tinham realmente acontecido, só que com outras pessoas. Daí a profusão de pormenores fornecidos. E a fama de conservador de Reinaldo Carta também não ajudara muito.

Naquela época de exacerbação e ardor, Carta safou- se por um triz, pois, apesar de tudo, não existia nem podia existir nenhuma prova concreta contra ele. Porém as suspeitas eram imensas, os falatórios também, e foram precisas doses cavalares de brio e estoicismo - além do apoio inabalável de Emília - para não renunciar de vez à carreira. Numerosas pessoas acreditaram pelo menos implicitamente na infâmia. Em mais de uma ocasião Carta agarrara pelo colarinho um colega que deixara tombar uma insinuação torpe. No entanto, era um excelente polícia, e foi ficando, dando tempo ao tempo. Contudo, sabia perfeitamente por que é que com aquela idade e aqueles atributos ainda tinha o "sub" diante do "inspector". Claro que aquilo o prejudicava de muitas maneiras, numa sociedade em que o êxito é o único verdadeiro critério.

O pior de tudo era ainda outra coisa. Hoje, Carta não duvidava de que a calúnia tivesse pouco a pouco minado o coração de Emília, quanto mais não fosse pela frequente angústia que ela via espelhada nos olhos dele. Quantas vezes ele próprio não vira a mesma angústia, só que multiplicada por dois, reflectida nos olhos dela?

O doente da outra cama emitiu um gemido e abriu os olhos. Soergueu-se nos cotovelos e varreu a obscuridade com o olhar. Não disse uma palavra e voltou a adormecer, sem no entanto gemer ou ressonar. Quem me dera ter aquele sono, suspirou Carta.

Sentou-se no leito e bebeu o resto da água. Era engraçado como as pessoas tendiam a acreditar avidamente nos boatos mais pérfidos que ouviam sobre os seus semelhantes, e a ser tão cépticas sobre os rumores lisonjeiros.

Talvez houvesse uma razão para que os seres humanos procedessem daquela maneira, cogitou Carta. Talvez estivessem apenas a defender-se, a exercitar o instinto de conservação num mundo em que, afinal de contas, os maus e traiçoeiros são mesmo em maior quantidade do que os bons e leais. Era como dizia o povo: os bons morrem e os maus permanecem. O subinspector acenou com a cabeça - sim, era isso: Emília morrera, e ele continuava ali.

Pensando bem, se calhar já nem sequer era aquela infâmia que explicava a impopularidade de Carta no seu departamento. Ou ele se enganava muito, ou a aversão à polícia política salazarista já não era tão consensual assim. Afinal, uns quantos PIDES autênticos não tinham sido amnistiados há uns tempos? E também não havia aqueles outros, reformados já depois do 25 de Abril, com uma pensão paga pelo próprio Estado democrático?

Existia, é claro, outra questão - a da valentia de Reinaldo Carta. Paralelamente à reputação de ex-PIDE, esta por assim dizer já fossilizada, pairava uma outra, também insidiosa: a de timorato. Na verdade, o próprio subinspector não se considerava demasiado valente. Não, não se considerava: tinha demasiada imaginação para a temeridade e às vezes parecia mais talhado para a vida contemplativa do que para o trabalho policial. De resto, achava que cada um devia ser corajoso à sua própria medida, e não à medida dos outros.

Ainda por cima, era um bicho-do-mato: amava a sua gruta e detestava o relento. Aquilo a que Castelo chamava misantropia, Carta denominava simplesmente amor à privacidade. Só existia uma coisa que o aborrecia mais do que encontrar pessoas conhecidas: encontrar pessoas que não conhecia. Paradoxalmente, o seu ganha-pão consistia em tratar com estranhos - e estranhos em mais de um sentido.

O calor agora estendia-se-lhe por todo o corpo, que já transpirava. Sentia os pêlos das pernas húmidos. Não admirava: estava tapado com um cobertor e uma colcha. Desfez-se de ambos, empurrando-os para os pés da cama, conservando apenas o lençol.

Ah, o medo. . . Ficara assombrado ao verificar, depois de ouvir o prognóstico de cancro, que a morte não o aterrorizava. Ao menos, já não receava a morte. Claro que ainda tinha as suas fobias. Por exemplo, andava angustiado com aquela história de que o acesso aos arquivos da PIDE-DGS seria indiscriminadamente franqueado. Sabia melhor do que ninguém que jamais delatara ou torturara quem quer que fosse - mas não sabia se o então marido de Emília introduzira nos ficheiros alguma informação fraudulenta que o pudesse comprometer e arruinar. Capaz disso era ele: assistiam-lhe a astúcia e abjecção necessárias. Carta afligia-se com aquela possibilidade. O trabalho era agora tudo o que tinha. E só lhe restava esperar, pois o homem morrera há uns anos, levando o segredo para o túmulo. "Para o inferno. , murmurou o subinspector, num fio de voz.

Sempre que examinava o assunto, parecia-lhe incrível a malfadada acusação. Naquela altura, quando era um jovem imaturo, e mesmo hoje, esta velha e combalida carcaça, jamais se interessara pela política. Procurava apenas e tão-somente servir a lei, apelando para o seu livre-arbítrio se necessário, nas situações duvidosas. Compenetrara-se de que os principais motivos que conduziam ao crime - o dinheiro, o amor e a vingança - nada tinham a ver com a política.

É bem verdade que acalentava as suas convicções sobre o mundo em que vivia. Dizia a si próprio, por exemplo, que na última década o país mudara drasticamente, sofrendo uma remodelação radical do telhado ao rés-do-chão. As atitudes e crenças com que ele crescera tinham sido desmanteladas e substituídas pelo "kit" portátil de uma nova e impudente sociedade, animada pelo consumismo compulsivo, espalhafatosa e filistina, fanatizada pelas ortodoxias da moda e pelo sucesso meramente competitivo.

Um dos líderes nacionais calcificara aquele espírito mais do que nenhum outro. Falara directamente às pessoas, provando-lhes que as conhecia como a palma da mão, interpretando e traduzindo-lhes o que elas mesmas murmuravam lá no seu íntimo, porém não deitavam cá para fora. Aquele homem dissera-lhes, na sua voz sentenciosa, com a dicção tipo sopinha de massa: "Meus amigos, vocês não querem uma sociedade que os promova. Julgam que querem, mas realmente não querem. Estão-se nas tintas para a educação e a saúde e o diabo a quatro. E que se lixe a cultura! Tudo o que vocês anseiam, meus caros amigos, é por sentar-se em casa a ver televisão e, nos fins de semana, abarrotar os carrinhos dos hipermercados com promoções magníficas, como um piaçaba de borla na compra de três detergentes com aronma a limão. Ah, e levar o telemóvel a passear nos centros comerciais! Sim, sejamos francos, que ninguém nos está a ouvir mas o tempo está a passar. Vocês são egoístas, ignorantes, fúteis e gananciosos. Portanto, votem em mim e fiquem descansados para o resto das vossas vidas. Tinham votado nele durante muito tempo, e era bem provável que mais cedo ou mais tarde voltassem a fazê-lo. Aliás, dir-se-ia que, embora afastado, ele continuava a pairar, de forma etérea e difusa porém influente.

Ou será que era o próprio Carta que se enganava: estava apenas a ficar senil e neurasténico? Oh, seguramente o seu amigo Castelo teria objectado que desde que o mundo é mundo os homens são mesmo assim. Todos os homens - com uma excepção, ou, no máximo, duas. . . Mas o subinspector não concordava: as coisas estavam a piorar a cada dia que passava e não podia ser apenas por causa da sua andropausa.

Sim, toda a gente tinha medo, de uma forma ou de outra, consciente ou inconscientemente. Os cidadãos tinham medo da polícia e tinham medo dos bandidos. A polícia tinha medo dos bandidos e da opinião dos cidadãos. Os bandidos tinham medo da polícia e medo dos outros bandidos mais poderosos e sanguinários do que eles. Se pudesse, toda a gente viveria escondida debaixo da cama.

Aquele dentista também tinha medo? De quê?, resmungou Carta, intrigado. De súbito, a cabeça sem corpo pareceu-lhe um criptograma da sua época - uma cabeça avulsa, com a sua extensão anatómica atirada para um contentor de lixo.

Sentou-se outra vez na cama, de mansinho, e jurou deslindar aquele maldito crime, desse por onde desse. Se, é claro, ainda lhe sobrasse tempo para isso. Casos como o de Ravi Sharma eram invariavelmente difíceis, morosos e frustrantes, dependendo a maior parte das vezes mais da sorte que da perícia dos investigadores. Mas agora sabia perfeitamente o que faria amanhã, ou melhor, já hoje. Pressentia que iria dar passos decisivos. Tinha já as suas intuições. Cada segundo era valioso.

A enfermeira de cabelos de estanho afastou completamente o biombo e exclamou, numa voz de clarim:

- Toca a acordar, rapazes. Está na hora do chichizinho!

Pensando bem, agora até já lhe apetecia esvaziar a bexiga.

 

Na PIoR das HiPótEsEs o biFE tinha pelo menos um palmo de comprimento e um dedo de espessura. Recém-descongelado, escorria sangue e água, uma infusão cor de groselha que já vertia para o chão. Com um avental de plástico em volta da cintura, o doutor Lourenço Maia esticou-o na tábua de plástico rijo e temperou-o com sal, tiras de alho e uma folhinha de louro meio seca e quebradiça. Pena que o vinho branco acabara.

Ao lume, a margarina principiava a chiar e a adquirir uma tonalidade acastanhada. O doutor contemplou a frigideira com uma expressão de reconhecimento quase enternecido: aquele utensílio era sem dúvida o melhor amigo do celibatário. Com uma frigideira por perto, nunca um celibatário passaria fome na sua existência a solo. Lourenço lembrava-se de ter lido nalgum lado que a cozinha do celibatário só tinha um segredo: o sabor é irrelevante. Mas, pessoalmente, o doutor considerava que o segredo residia na frigideira. Sim, na frigideira. É certo que talvez as duas proposições não fossem assim tão incompatíveis.

Os fritos não eram lá muito saudáveis? Olhem, paciência. A inanição era-o ainda menos. Claro que agora já existiam em Portugal alternativas culinárias para uma pessoa que vive sozinha e não sabe, não pode ou não quer cozinhar menus variados. Lourenço volta e meia encomendava pizzas e iguarias chinesas pelo telefone. Marcava o número, enunciava o pedido e zás: meia hora depois ouvia o ronronar da motorizada das entregas e num instante estava a degustar manjares concebidos em Nápoles ou Xangai. Um prodígio.

Bem, por vezes as pizzas sabiam a plástico, e por vezes quer o to à Pequim quer o Porco Doce tinham exactamente o mesmo gosto. Mas não era sempre assim. E havia a encantadora Sopa de Ninho de andorinhas, cujo nome o fascinava. Além disso, só não tinha mais rfeições congeladas de sobreaviso porque o congelador do frigorífico era exíguo como um dedal: com uma lasanha e um empadão de carne já estava apinhado e não comportava sequer os cubos de gelo.

De facto, a situação tinha mudado bastante. E para bastante melhor. Há dez anos, um celibatário gastronomicamente leigo contava apenas com a assistência abnegada da frigideira. Agora, não. Havia muito por onde escolher. Até picanha congelada já se encontrava disponível nos hipermercados. Outro dia, vira carambolas e jaboticabas a pavonearem-se na secção de fruta. Depois ainda queriam que sentisse saudades da sua terra.

Virou o bife com o garfo de pau e salpicou umas gotas de água na frigideira, que zumbiu e expeliu uma nuvenzinha de fumo. Abriu o pacote de batatas fritas, empilhando um punhado num canto do prato. Depois, lavou quatro folhas de alface e cortou um tomate maduro em rodelas finas. Comprazia-se em cozinhar e não se aborrecia nem com a limpeza da loiça - o doutor Maia pertencia a uma geração em que as raparigas ainda gostavam menos dos trabalhos domésticos do que os rapazes. Apagou o lume do fogão de duas bocas, acomodou o bife entre as batatas e a salada e dirigiu-se para a mesa, onde já o esperavam um copo, uma garrafa de água mineral e um guardanapo de papel de folhas duplas, dobrado ao meio. Começou a comer com apetite, a boca inundada de saliva. Hoje nem sequer lanchara. Hum, não estava nada mal. Jamais se fartaria daquela ementa.

Um pequeno televisor a preto e branco, com uma periclitante antena em cima, transmitia o telejornal. A imagem não era grande coisa: havia uma espécie de tempestade de neve intermitente. O doutor congratulou-se com a certeza de que amanhã o seu automóvel estaria pronto. Pronto para outra. . . Pelo menos até ao próximo enguiço. Encolheu os ombros, banindo a melancolia: não fazia mal, não tinha importância nenhuma. Em breve poderia comprar um carro novo, imaculadamente novo e puro como uma virgem vestal.

Fizera numerosas despesas - despesas não: investimentos - nos dois últimos anos, mas elas estavam todas a frutificar, uma por uma. Primeiro fora o aluguer do consultório, com as respectivas e imperiosas obras nas instalações degradadas, dos canos às paredes, com manchas de humidade que se ramificavam pelas divisões como os frescos de Pompeia. Depois, o equipamento odontológico, que não se tratava do melhor disponível no mercado internacional, mas chegava lá perto. E, finalmente, a casa nova, um confortável apartamento num condomínio moderno de Lisboa, a estrear, com um vasto salão de tábuas corridas de 40 metros quadrados, lareira, antena parabólica, garagem individual com controlo remoto e dois quartos que nunca mais acabavam, um para os filhos e o outro para ele. Um belo guarda-chuva para se abrigar da tempestade, como costumava dizer o seu pai. Ia pagar aquele santuário de paz e segurança pelo resto da sua vida, já que a hipoteca bancária se estendia pelo prazo de vinte e cinco anos, não obstante a substancial entrada em dinheiro. Mas aquilo não o preocupava, e por dois motivos mais do que bons.

Primeiro porque já pagava uma renda por aquele estúdio mobilado que ainda habitava, renda que se evaporava irreversivelmente, ao passo que cada prestação da hipoteca era mais uma fracção da casa que adquiria. Por enquanto, disse em voz alta, a sorrir jovialmente, já possuía, digamos, a lâmpada da entrada e a campainha. E segundo? Ora, segundo porque podia amortizar o empréstimo quando e como quisesse, total ou parcialmente, com um reflexo imediato nas prestações.

Na verdade, não via a hora de evacuar aquele estúdio em que se refugiara depois do divórcio. Sete anos naquele cubículo era demasiado. Aquilo não era um lar: era uma guarita - mal tinha espaço para uma família de esquilos. Esfalfara-se numa clínica particular em Algés, acumulando horas extras, disponibilizando-se nos finais de semana, cobrindo as férias dos colegas e abstendo-se das suas. Agora estava, pouco a pouco, como o castor constrói o seu dique, a licitar a sua carta de alforria.

Lá fora, um carro acelerava irascivelmente, rosnando à espera do semáforo. Vruuummm, vruuummm. . . A algazarrajá era grande, mas ia aumentar. Ah, se ia. O estúdio ficava no primeiro piso de um fuliginoso prédio de três andares sem elevador, a cavalo de uma cervejaria muito concorrida, conquanto não demasiado selecta - na verdade, o doutor Maia costumava designá-la por "a espelunca" (e a sua habitação era "a catacumba"). O estabelecimento encerrava às duas da manhã, mas o pandemónio prolongava-se até bem mais tarde, pois numerosos fregueses, já torrencialmente alcoolizados, permaneciam na calçada, a conversar em voz alta sobre política, mulheres e futebol (não necessariamente por esta ordem), a fumar e a esvaziar as latas de cerveja de que se tinham abastecido. Frequentemente - digamos, uma ou duas vezes por semana - as conversas degeneravam em desavenças acaloradas, depois em altercações tempestuosas, a seguir em escaramuças, e estas por fim em refregas, com a intervenção tardia e recalcitrante da polícia.

Evidentemente, naquelas circunstâncias tornava-se difícil dormir sossegado, a menos que ele espetasse o dedo numa roca encantada. Claro que a sua cama também não cooperava: era um sofá que, depois de um esforço titânico, lá condescendia em abrir-se, apresentando um colchão delgado como uma hóstia e um estrado que um faquir consideraria incómodo. Pior ainda, a estrutura do sofá-cama incluía aguçadas arestas de ferro, onde o doutor Maia já se cortara um punhado de vezes.

Acabou de comer, limpou com o guardanapo a gordura dos lábios e foi ao frigorífico buscar uma maçã. Só nessas alturas calhava bem o estúdio ser tão acanhado: ao menos assim não precisava de andar muito. Tinha sempre tentado ver o lado bom das coisas, mas nem sempre era fácil. Jesus, como aquela decoração era desgraciosa! Olhem para aquele tapete pseudopersa, puído como um trapo, cor de burro quando foge. Quando se mudara para ali, havia três quadros nas paredes - dois representavam langorosas odaliscas seminuas, canhestros pastiches da "Maja Desnuda", e o terceiro evocava um incêndio florestal, com apopléticas labaredas escarlates. O dentista virara-os para a parede e assim continuavam.

A faca de sobremesa do talher do estúdio tinha sido surrupiada à baixela da TAP. E já não cortava muito bem - dilacerava, mais do que cortava. Descascou a maçã e talhou-a em fatias. Estava um bocadinho porosa, mas comia-se. Pôs-se a lavar a loiça, certificando-se de que o cano não se encontrava outra vez entupido. A propósito, quanto tempo levariam para ligar a água, a luz, o gás e o telefone da nova residência?

Uma semana, quinze dias? Com os trâmites burocráticos da escritura e da conservatória, calculou que ainda permaneceria pelo menos mais um mês no estúdio. No mínimo. Mas o que era um mês ou dois, com parado com os seus sete anos de cativeiro naquele calabouço?

Consultou o relógio: 21 horas e cinco minutos. Era altura de ligar para os filhos. Todas as noites, salvo algum contratempo, falava com as crianças e, alternadamente, lia-lhes um capítulo de um livro infantil. Para Pedro eram contos de bichos, do tipo fábula. Para Teresa, mais velha três anos, as aventuras de um grupo de miúdos, que se metiam em electrizantes apuros e desvendavam formidáveis mistérios. Os filhos pareciam gostar daquilo a valer, o que não impedia o doutor de torturar-se com a ideia de que lia as histórias porque nem sempre tinha muito o que lhes dizer.

Assim que acabou de ouvir a narrativa daquela noite, Pedro exclamou, como de costume:

- Só mais uma. . .

O doutor sabia que não podia transigir - se não era mais outra, mais outra e mais outra, como Sherazade e o seu sultão. Pedro pagava qualquer preço por mais uns minutos de vigília, nem que fosse uma história chata e comprida. E Teresa também reivindicaria uma nova ração, com a voz a vibrar de fervor. Daí que Lourenço somente aquiescia quando Pedro insistia muito, mais do que ele se encontrava emocionalmente preparado para resistir.

Não foi o caso, desta vez. O filho estava com sono: a fala era entaramelada, pausada. O pai podia imaginá-lo a esfregar os olhos com os punhos fechados.

- Achas que vou ter pesadelos?

- É claro que não. Nem penses nisso. Vais dormir muito bem. Queres uma aposta? Não te esqueças de que a maninha dorme ao pé de ti. É só estenderes a mão.

- Com o que é que eu sonho?

- Sonha que amanhã vamos ler uma nova história e que vais gostar muito.

Pedro não deu mostras de achar a sugestão aliciante. Afinal, que o pai lhe fosse ler uma história não era novidade nenhuma. Nem que gostasse dela. Às vezes gostava e às vezes não gostava. Só depois de a ouvir é que podia saber. O que é que isso tinha de mais?

- Só isso?

- E sonhas que no fim-de-semana vamos fazer um passeio muito bonito.

- Aonde? Qual passeio? À praia? Já fomos à praia na semana passada. Estava imenso vento e entrou-me areia nos olhos. Lembras-te? Montes de areia.

- Olha, um piquenique! Que tal um piquenique? Pode ser à praia ou ao pinhal, como preferires.

- Um Piquenique? Comer com as mãos e tudo. Como um viking?Aquilo já era uma proposta decente. Assim já havia negócio.

- Então até amanhã e um beijinho.

- Espera só mais um pouco.

- O que é? Olha que a mamã ainda ralha contigo. E comigo. Já é tarde.

- Quero contar-te uma anedota de elefante. É fininha. Pedro adorava contar anedotas - as curtas eram as "fininhas". Em contrapartida, gostava de dizer palavras compridas, sempre com um ar muito importante - a sua predilecta era otorrinolaringologista.

- Então despacha-te. E que seja mesmo fininha.

- São três em uma. . .

- Despacha-te.

- Sabes o que é um elefante em cima de uma árvore.

- Não.

- Um elefante a menos na terra! E dois elefantes em cima dessa árvore?

- Mmmm, dois elefantes a menos na terra?

- Não, um elefante a mais na árvore! E três elefantes em cima dessa árvore?

- Ah, essa eu sei: dois elefantes a mais na árvore ou três elefantes a menos na terra!

- Erraste! Uma árvore a menos na terra! Toma, toma!

Se o doutor Maia se sentia em falta em relação a Teresa, em relação ao filho considerava-se quase um Herodes. Por ocasião do nascimento de Pedro, ele e Lúcia estavam virtualmente separados, embora ainda vivessem sob o mesmo tecto por mais alguns meses, até que o dentista alugasse o estúdio.

Ironicamente, a mudança calhou no próprio dia do baptizado do bebé. Era só naquele sábado que um colega da clínica de Algés lhe podia emprestar uma carrinha e ajudá-lo com os parcos trastes que levaria - uns quantos compêndios de odontopediatria, um candeeiro de cabeceira, duas malas de roupa, uma caixa de cartão com os sapatos, o rádio-despertador. No pórtico da Igreja, com a mão pousada no crânio semicalvo e sedoso de Pedro e rodeado pelos parentes da mulher, que nem desconfiavam do divórcio, o doutor recriminara- se mentalmente dezenas de vezes, chamando-se impostor e cobarde.

Ainda não se tinham escoado três meses desde a mudança quando o filho precisou de ser operado a uma hérnia. E a seguir a outra. Ambas as cirurgias eram inócuas, mas sempre aterrrorizadoras quando o doente contava com menos de um ano de vida. Correu tudo bem, porém Lourenço manteve-se afastado, embora informado, expectante e alerta. Depois foram os meses de convalescença. Resultado: ficou quase meio ano sem ver a criança. No primeiro fim-de-semana que Pedro passou com ele no estúdio, o bebé carpiu amargamente a mãe, que se eclipsara de súbito, deixando-o na companhia daquele frenético estranho.

Foi mais ou menos por esta altura que Teresa, então com quatro anos, começou a reparar no sotaque do pai. O doutor Maia estava a arrumar o sofá- cama para os filhos, forrando com lenços de nariz e panos de cozinha as arestas de ferro e entalando firmemente os lençóis, a fim de que eles não se magoassem. Ele dormiria numa cama dobrá vel, comprimida entre o sofá e a mesa. Eram quase dez e meia da noite e Teresa, que acordara às sete para a escola infantil, bocejava ruidosamente, com a boca muito aberta, encostada ao seu coala de peluche azul e preto, maior do que ela própria. Ficava mesmo cómica, com o buraco no lugar do incisivo central - o dente de leite tinha caído há uma semana e o definitivo ainda nem assomara.

- O João Pestana? - insinuou Lourenço, com um ar manhoso.

A filha esboçou um sorriso maroto e fez que não com a cabeça, lentamente, muito lentamente.

- Vá lá, vamos fazer o xixi para o caminho.

Teresa arregalou os olhos e ergueu a cabeça, como se tivesse ouvido o pai pela primeira vez. Franziu a testa e, coçando o cotovelo, perguntou, com um olhar grave e intenso, os olhos salientes como berlindes:

- Por que é que falas esquisito?

O doutor levou alguns segundos para perceber o que a filha queria dizer.

 

O LOCUTOR DO TELEJORNAL E OS SEUS trêS fantaSmaS fluOreSCenteS

deslocaram-se um pouquinho para a direita, ficando ligeiramente de perfil em relação à câmara, que corrigiu o enquadramento com uma subreptícia mudança de plano. Em seguida, o jornalista e os seus vibráteis ectoplasmas disseram em coro, numa voz um tanto alarmante, que prosseguia a querela entre os dentistas portugueses e brasileiros.

Que chatice. Aquilo nunca mais acabava? O doutor Lourenço Maia levantou-se do sofá-cama, evitando por um triz o gume da aresta, e mudou de canal. Um programa musical. Outro telejornal, este apenas sobre economia e finanças. Uma série de ficção científica, com caranguejos de inteligência sobre-humana. Ah, assim estava melhor. Vamos lá ver como é que param as modas em Alfa Centauro.

De qualquer modo, sentia sono e fadiga - os músculos do corpo doíam-lhe e os ombros pesavam-lhe. A propósito, no dia seguinte tinha de acordar mais cedo, para ir buscar o carro à oficina. Oito horas? Não, sete e meia. Não valia a pena correr riscos inúteis: muitas vezes era difícil arranjar um táxi, sobretudo quando chovia. O metropolitano estava fora de questão, com a greve marcada para amanhã, que ia baralhar ainda mais o trânsito.

Caminhou até à entrada do estúdio e encostou o guarda-chuva ao pé da porta. Assim não se sujeitava a esquecê-lo ao sair e só dar por isso quando sentisse os primeiros pingos na cabeça, como tantas vezes acontecia. Apagou a luz do corredor, que se reduzia à confluência entre a cozinha, a casa de banho e o quarto-sala. Avançando mais uns passos, correu os caixilhos de alumínio da janela ao lado do fogão. A lua pairava sobre as cristas dos edifícios, parecendo mais próxima do que o Brasil. Nem sinal da atraente vizinha do prédio em frente. Ao menos ela parecia-lhe atraente, embora não lhe conseguisse distinguir muito bem as feições. Lourenço já não apreciava as noitadas nem as farras, mas havia noites em que um telefonema de um conhecido sociável teria sido para ele uma surpresa agradável e bem-vinda.

Aquela controvérsia entre os dentistas dos dois lados do Atlântico irritava-o e afligia-o. Agora que por fim estava a correr tudo sobre rodas. . . Não se sentia propriamente solidário com os seus colegas e compatriotas brasileiros, embora achasse que nalguns pontos eles tinham uma certa razão - já lhe chegara às mãos a revista de uma associação portuguesa de dentistas, incitando os seus pares e clientes a denunciarem os brasileiros. Aliás, era basicamente uma questão corporativa, pensava o doutor. Num mercado exíguo, que diabo, os nativos tinham a prioridade. Essa era uma regra elementar. Direito consuetudinário, ou lá o que era. Oh, está bem, Lourenço sabia que os dentistas brasileiros propunham que fosse o próprio mercado a escolher, baseado no mérito e na competência. Mas tal pretensão não passava de uma quimera perigosa.

Ao invés da atraente vizinha, apareceu à janela o seu jovem e atlético marido e o doutor, apanhado em flagrante indiscrição, recuou um passo. Estaria a ser egoísta? Essa conjectura magoava- o. É claro que não estava. Não se tratava mesmo nada disso. Certo, milhões de portugueses, de todas as profissões e mesmo sem elas, tinham emigrado para o Brasil e para todos os confins do planeta séculos a fio, algumas vezes sendo bem recebidos, outras abrindo o seu próprio caminho da melhor maneira possível (ou seja, a disparos de canhão contra gente que ainda não tinha descoberto a pólvora). Muitos ainda o faziam. Não podiam portanto ser mais compreensivos? Para o doutor Maia, esta era uma expectativa irrealista, apoiada num conhecimento insuficiente ou fantasista da natureza humana.

Voltou para o sofá-cama, abanando vigorosamente a cabeça. Não, não estava a ser egoísta. É bem verdade que não se dava muito com brasileiros - agora que examinava o assunto, via que não tinha nenhum amigo que fosse também seu conterrâneo. E até quando, na rua, ou no cinema, ou num restaurante, ouvia o seu sotaque natal, retraía-se e, se estivesse a falar, baixava o tom de voz ou calava-se.

Não existia nenhuma razão especial para que reagisse assim. Nenhuma razão dramática. Não valia a pena fazer uma tempestade num copo de água por causa disso. Não, não se estava a pôr na defensiva. Que absurdo. Simplesmente, os brasileiros - sobretudo os cariocas, que pareciam multiplicar-se como coelhos na Primavera - eram tão espalhafatosos! Tão expansivos! Como se julgassem que o mero facto de se encontrarem no estrangeiro estabelecia automaticamente uma afinidade fraterna entre os conterrâneos. Ora, o doutor Maia recusava-se a entabular conversa com alguém que nunca vira mais gordo e com quem nada tinha em comum, só porque possuíam o mesmo passaporte. Francamente, era ridículo. Na verdade, provavelmente as únicas coisas de que sentia saudades do Brasil - sem falar, é claro, nuns poucos parentes - eram o quiabo, o pastel de palmito e o sumo de tamarindo.

Quando viera para Portugal, há 15 anos, mal ocupara a sua cadeira no avião e o vizinho do lado já metera conversa.

- Sabia que mais de 500 aviões sobrevoam a cabeça dos habitantes de São Paulo a cada dia? Considerando que pousam e voltam a descolar, há mais de mil viagens diárias de avião sobre a nossa cidade.

- Ah, sim? - fez Lourenço, reticente.

- É verdade. E a média mundial de acidentes - não necessariamente com vítimas - é de 1, 4 para cada 1 milhão de descolagens. Ou seja, um acidente a cada 714 mil descolagens. Você não é azarento, é?

Era daquela tagarelice copiosa que o doutor Maia preferia esquivar-se. Oh, sim, naturalmente era possível que o homem estivesse apenas a combater a sua própria fobia aérea.

Já os portugueses não se envergonhavam da tristeza. Não, senhores. Nada disso. Pelo contrário, ingeriam-na metodicamente e faziam dela uma espécie de soro profiláctico contra futuros infortúnios. Não eram como os brasileiros, compelidos à alegria permanente, com ou sem motivos. De facto, Portugal era um país pelo menos tão bom como qualquer outro para uma pessoa se sentir deprimida.

Uma voz feminina anunciou o fim da emissão e a bandeira portuguesa começou a tremular no ecrã, ao som do respectivo hino nacional. Lourenço ficou de gatas sobre os lençóis e desligou a televisão, que, a crepitar e a zumbir, demorou alguns instantes até extinguir a imagem.

Não, ele não convivia com brasileiros. Mas não era de propósito - simplesmente não filtrava os seus confrades pela nacionalidade. Não tinha culpa que o amigo brasileiro que o acompanhara na sua viagem à Europa tivesse regressado a São Paulo três meses depois. Que diabo, ele não era um emigrante! De resto, aquela era a principal singularidade da sua situação: encontrava-se ali não compelido pelo dinheiro ou por necessidade de oficio, mas devido ao mais nobre dos motivos - o amor.

O que, para falar a verdade, era muito desconcertante, pois o doutor jamais se considerara uma pessoa romântica, nem pouco mais ou menos. Nem sequer sentimental. Julgava-se um pragmático. No entanto, apaixonara-se por Lúcia na primeira semana na Europa, quando as roupas que trouxera do Brasil ainda nem sequer haviam sido lavadas. Tinha 22 anos e participava da viagem de fim de curso, após a qual encetaria carreira em São Paulo. Uma excursão desopilante pelo Bom e Velho Continente, antes de arregaçar as mangas até às omoplatas e desembainhar a broca odontológica.

Dois meses mais tarde, sem saber exactamente como, e sem pôr os pés em qualquer outro país, estava casado e a trabalhar numa policlinica em Algés, das nove da manhã às oito da noite, com uma hora de intervalo para o almoço - geralmente uma sande de carne assada e um galão escuro de tanto café. Um ano depois, Teresa vinha ao mundo, num parto rápido e normal. Retrospectivamente, o doutor Maia considerava assombroso que tivesse sido assim tão impulsivo. Nem parecia ele.

Conferiu a marcação no rádio-despertador e lançou um olhar relutante ao jornal que jazia no chão. Não, não lhe apetecia ler as notícias. Falariam de Ravi Sharma? Com certeza falariam. Pobre Ravi. Falariam de si próprio? Cruzes, oxalá que não. Com que então tinha sido a última pessoa a ver o rapaz com vida? O subinspector parecera-lhe astuto. E persistente, o que era talvez ainda pior. Por que carga de água fizera aquele gracejo estúpido sobre a "sanguinária"? Como pudera ser tão imprudente? Quem lhe dera que não voltasse a vê-lo. Ora estava a ficar paranóico: não existia nenhuma razão para suspeitarem dele. O facto de o bilhete de identidade estar caducado não o transformava automaticamente num degolador.

Esboçou um gesto em direcção ao interruptor do candeeiro empoleirado no braço do sofá, mas reconsiderou e, esticando as pernas, cruzou as mãos atrás da nuca. Sim, era aquilo que pretendia dizer: fizera toda a sua carreira odontológica em Portugal. Nunca atendera sequer a uma consulta no Brasil. Vivia há mais de quinze anos em solo português, dois quintos da sua existência. Seguramente era aqui que consumiria o resto dos seus dias, e aqui seria enterrado. Era aqui que comprara a sua nova casa, a sua estufa emocional, e aqui os seus filhos gerariam os seus netos, e estes por sua vez os seus bisnetos, até que se extinguisse a ilustre casa dos Maias.

Está bem, a sua formação académica era brasileira e jamais lhe passara pela cabeça trabalhar fora do Brasil - tratara-se de um acidente. Mas um acidente não constituía um incidente. É claro que agora ninguém o levaria a sério, depois do estoiro da boiada, da avalancha de dentistas brasileiros dos últimos anos, desembarcando alegremente em Portugal como uma trupe de violinistas ciganos. Quem é que acreditaria que com ele fora tudo sem querer e nunca de propósito? Francamente, ninguém.

E era igualmente verdade que a seguir ao divórcio cismara em voltar para o seu país - no instante seguinte renunciando para sempre à ideia, pois não podia viver longe dos filhos, e os filhos não podiam viver longe da mãe. Por outro lado, naquela altura não tinha a clientela de agora, e esfolava-se para terceiros. Todavia, tratando-se do projecto de carreira, estava habituadíssimo às surpresas inopinadas. Sobretudo quando meditava naquilo a que chamava, com um sarcasmo amargo, o espantoso advento da sua vocação.

 

LOURENÇO MAIA, DE 16 ANOS, encontrava-se entrincheirado no seu

quarto, com a porta aferrolhada como se aquilo fosse a caverna de Ali-Babá e os quarenta ladrões se aproximassem a galope, cada um deles com uma cimitarra nos dentes. Nesse ponto tinha muito mais sorte do que as suas irmãs - uma mais velha e a outra mais nova - as quais desde sempre partilhavam o mesmo aposento. Ele, como único varão, fora contemplado com um reduto exclusivo.

Um ano antes, as paredes do quarto ainda permaneciam forradas de cartazes de jogadores de futebol. Agora os atletas haviam sido desalojados por posters de viçosas raparigas, entaladas em biquinis como sementes numa vagem. Ao ver aquilo pela primeira vez, a sua tia Lurdes não conseguira conter-se, meneando a cabeleira alta e fofa como algodão doce, só que tingida de púrpura (Lourenço brincava que a tia era um dos capacetes azuis da ONU). Arvorando um semblante manhoso muito típico dela, ciciara:

- Bom, não há dúvida de que ele está a crescer e a natureza a seguir o seu curso.

Ao que Cláudia, a irmã mais velha de Lourenço e sua inimiga figadal, acrescentara:

- Parece mas é uma oficina mecânica. Sempre achei que o mano tinha imenso futuro como bate-chapas.

O rapaz passara quase toda a tarde a gravar canções no seu rádio-gravador. Gravava-as directamente da emissora de FM para a cassete.

O único contratempo residia na voz do locutor, que interrompia inúmeras vezes a sequência musical para dar horas, emitir um anúncio importuno ou ler um punhado de notícias que não interessavam nem ao Menino Jesus. Naquele dia, porém, mantivera-se alerta: com um sobressalto, detinha a gravação assim que ressoava a voz do locutor, e rebobinava-a até aos derradeiros acordes da respectiva canção. Por enquanto conseguira expurgar a cassete de tudo o que não fosse antológico.

Faltavam apenas duas ou três canções para esgotar o lado B da cassete quando ouviu o telefone a retinir no rés-do-chão. Passos marciais na escada. Agora a rufarem no corredor. Um momento mais tarde, bateram-lhe à porta. Duas pancadinhas rápidas e petulantes.

- Telefone para ti. Vê lá se não ficas horas a falar, que estou à espera de uma chamada importante. Uma não, duas. Tens três minutos cronometrados. A contar a partir de agora.

Eis Cláudia, a primogénita e sua némesis, cujo hobby predilecto consistia em delatar aos pais cada "faux pas" do irmão, e que depois se justificava diante do réu no cadafalso, com um arzinho seráfico do mais sardónico cinismo:

- Foi para o teu bem. Um dia ainda me hás-de agradecer. Que descaramento mandar que ele se despachasse. . . Cláudia, a vil sicofanta, açambarcava o telefone horas seguidas, a tagarelar com as amigas sobre as coisas mais idiotas que se podia imaginar. Se bem que todas essas coisas, no fundo, no fundo, se resumiam a variações sobre o mesmo tema, uma espécie de "leitmotiv" wagneriano: Como Induzir o Rapaz Mais Jeitoso do Liceu a Namorar Comigo.

- Alô - Lourenço?

- Não, é o monstro do Lochness. Claro que sou, seu tonto.

Do outro lado da linha estava Filipe, o seu amigo do peito, um sortudo de uma figa a quem o pai emprestava o automóvel a torto e a direito, embora o filho tivesse apenas 17 anos, não possuísse carta de condução nem nada que se parecesse, e guiasse como se fosse o judeu Ben-Hur e todos os outros condutores o romano Messala.

Pronto, pronto, deixando de lado a dor de cotovelo, Filipe nem conduzia assim tão mal, apenas estacionava o carro pessimamente, como se amarrasse um cavalo a um poste.

- Ora, é que tens uma voz tão fininha que podiam ser as tuas irmãs. Aliás, como é que vão as minhas fofuras?

- Não é da tua conta. Não são para o teu focinho. Aliás, para o teu lábio leporino. Que eu saiba não és O Rapaz Mais Jeitoso do Liceu. Antes que me esqueça, confirmaste a festa?

- Por que é que achas que te estou a ligar? Tudo preto no branco. Passo para te apanhar por volta das nove. Buzino três vezes e tu desces, que não me apetece aturar o sermão da tua mãe, essa santa senhora.

- A festa sempre é à beira da piscina?

- Claro que é. O mais possível.

- Levo fato de banho e toalha?

- Nem penses nisso. As cuecas chegam perfeitamente. E sobram. Aí é que está a graça: tomar banho de piscina vestido da cabeça aos pés. Quanto muito, despem-se as meias e os sapatos. Não vamos lá para competir nos cem metros mariposa.

Ao desligar, Lourenço lançou uma olhadela nervosa ao relógio. Dispunha de mais ou menos três horas. Parecia muito, mas passavam num segundo. Sabia como era. Portanto, organizemos os planos: primeiro verificar se o novo par de calças de gangajá tinha vindo de lavar. Em caso afirmativo, louvado seja Deus. Em caso negativo, existiam duas hipóteses: com o risco da própria pele, resgatá-las do cesto de roupa suja ou do estendal, se já estivessem enxutas; ou então, caso ainda se encontrassem demasiado molhadas para serem aquecidas com o ferro de engomar, substituí-las por um outro par. Que remédio.

Depois, tomar um duche, lavando os cabelos com esguichos perdulários do champô importado que Cláudia escondia dele na terceira gaveta da cómoda, a contar de cima para baixo, sob o monte de meias, lenços e lingerie. Convinha também jantar cedo, a fim de concluir a digestão o mais depressa possível e assim habilitar-se à piscina. Sempre ouvira dizer que havia qualquer coisa de bacanal romano numa festa à beira da piscina. Assediaram-lhe o espírito lampejos de togas femininas encharcadas e transparentes, voluptuosamente coladas ao corpo, desvendando convexidades e concavidades.

Duas horas mais tarde, os preparativos estavam quase concluídos. Não fazia mal que a mãe tivesse ralhado severamente com ele, porque pela enésima véz esquecera-se de baixar a tampa da sanita depois de urinar. Lourenço encolheu os ombros: a profissão das mães consistia em importunar os filhos, assim como a profissão de James Bond era o perigo ao serviço de Sua Majestade. Uma vez era porque se esquecera de baixar a tampa da retrete e puxar o autoclismo, outra vez porque esquecera-se de a levantar, regando-a com a urina como se estivesse a apagar um incêndio florestal. O que é que isso interessava? Queria lá saber. Agora faltava apenas o principal: extrair o maldito aparelho dos dentes.

Como a sua mãe costumava dizer, em casa de ferreiro, espeto de pau. Lourenço era filho do doutor Carlos Alberto Maia, um dos mais proeminentes dentistas de São Paulo. E, todavia, tanto ele como as suas irmãs sofriam de aborrecidas mazelas odontológicas, de origem congénita. Os dentes defimitivos de Lourenço tinham nascido demasiado encostados uns aos outros. Nem o fio dental conseguia insinuar-se entre eles. Dos sete aos nove anos, o incisivo lateral superior desatou a sobrepor-se ao incisivo central, e, dos onze aos doze, o segundo molar encavalitou-se no primeiro molar. Uma barafunda infernal.

Não havia nada a fazer senão apelar para o aparelho correctivo, a princípio do tipo móvel. Estava fora de questão arrancar prematuramente um dos dentes para dar lugar a outro. Desse modo, a partir dos treze anos o rapaz começou a usar aquilo a que Cláudia chamava "o teu açaime". Ainda por cima, talvez por o doutor apertar os arames em demasia, os dentes doíam-lhe imenso. Mal podia resvalar os de cima nos de baixo. A simples mastigação muitas vezes constituía um suplício lancinante. Por isso, à noite, ao deitar-se, removia o aparelho e arrumava-o sob o travesseiro como um punhal na bainha, para o caso de o pai pretender certificar-se de que o filho não estava a trapacear.

De facto, tais rondas nocturnas realmente aconteciam, com consequências imprevisíveis. Às vezes Lourenço acordava a tempo, compunha-se e tudo acabava bem. Noutras vezes, ou ele não acordava a tempo ou o aparelho tinha escorregado imperceptivelmente para o chão, jazendo debaixo da cama, insensível às apalpadelas desesperadas do rapaz, cujo único anseio naqueles momentos era de que a terra se abrisse a seus pés. E tudo acabava mal e porcamente.

Como o doutor clamava a plenos pulmões, os resultados não apareciam, pois aquilo que o aparelho corrigia de dia, retrocedia à noite. Ou então, quando era obrigado a usá-lo durante o sono, Lourenço desforrava-se na manhã seguinte, relegando-o para o bolso das calças e colocando-o somente quando ouvia os passos paternos, no final da tarde. De vez em quando esquecia-se de retirá- lo do bolso e por causa disso em duas ocasiões a máquina de lavar roupa triturara a prótese, moldada em acrilico e metal mais ou menos flexível. Houve ainda uma outra vez em que, feito parvo, a deixara no bolso traseiro das calças e durante todo o dia sentara-se e levantara-se como uma mola. Só quando fora vestir o pijama é que os minúsculos destroços tinham tombado aos seus pés, tão minúsculos que Lourenço tardou um pouco a reconhecê-los. O pai gritara-lhe: "No bolso traseiro das calças? O aparelho é para endireitar os teus dentes, não o teu rabo!"

Foi então que, farto até aos cabelos daquela história, que já se arrastava por quase quatro anos e comprometia a sua reputação profissional, o doutor Carlos Alberto Maia tomou uma decisão drástica e transpôs o seu Rubicão familiar. O rapaz foi convocado ao consultório do pai e este espetou-lhe nos dentes um aparelho fixo, a coisa mais medonha que se podia conceber. Lourenço insurgiu-se, sentiu-se o Máscara de Ferro, mas submeteu-se. Não se brincava com a ira paterna.

Com aquele trambolho na boca, o jovem não se admirava que, quase aos 17 anos, jamais tivesse beijado nos lábios qualquer rapariga. Aquela era uma questão que o angustiava imenso. Sobretudo os aspectos técnicos e logísticos do assunto. Por exemplo, como é que se posicionavam os respectivos narizes, a fim de não colidir e estragarem tudo? E na realidade que papel afinal desempenhava a língua? Sim, a língua, essa mesma! A mítica e lendária língua! Era de facto uma pro tagonista ou uma reles figurante, para não dizer uma intrusa? Estava cansado de praticar com as beldades dos posters e até já rasgara um ou outro cartaz por causa da saliva, engolindo bocadinhos de papel e reboco da parede. Mas aquelas jovens, apesar de muito belas, convidativas e submissas, não dispunham da tridimensionalidade necessária para um adestramento adequado. E, claro está, eram irremediavelmente inanimadas - não correspondiam nem retribuíam. Em suma, quando chegasse a hora teria que confiar na sua capacidade de improvisação e na Providência Divina.

Porém, para que a hora soasse, e, melhor ainda, soasse naquela noite, à beira da piscina, sob o céu cravejado de estrelas e a cumplicidade balsâmica da lua, precisava desembaraçar-se do detestável aparelho. Caso contrário estava condenado ao opróbrio e à castidade sempiterna. Evidentemente, não podia nem pensar em desfazer-se do açaime pura e simplesmente, pois as represálias domésticas seriam apocalípticas. Mas já engendrara um plano infalível.

Verificou se a porta se encontrava de facto fechada à chave com duas voltas e levou a prudência ao ponto de obstruir o buraco da fechadura com chumaços de algodão, a fim de que Cláudia não se sentisse tentada a bisbilhotar. Não seria a primeira vez, aliás. E o seguro morreu de velho.

Não, a costa estava limpa. Abriu a porta central do roupeiro, cujo espelho interno lhe chegava à cintura. Em cima da cama, repousava uma pequena chave de parafusos de cabo vermelho. Virou-se para o espelho já com a ferramenta nas mãos e arreganhou os dentes. Ai, que Quasimodo, Deus meu! Susteve a respiração por um instante e começou a desmontar, um por um, os grampos e os arames que estruturavam o aparelho, acomodando-os sucessivamente numa caixinha de cartão. Caramba, os sacaninhas custavam a sair. Gotículas de suor banhavam-lhe a testa.

Dez minutos depois, porém, a operação findara. Tudo correra bem, se exceptuasse as estrias brancas, perfeitamente visíveis e até mesmo conspícuas, que os arames haviam imprimido no esmalte dos dentes. Em todo o caso, os sinais eram muito menos ultrajantes do que o aparelho propriamente dito. Considerou-se satisfeito. Na volta, resguardado pelo ermo da madrugada, reconstituiria aquele puzzle e ninguém daria por nada, nem mesmo o Torquemada caseiro. Os fins justificavam os meios.

Guardou a caixinha no compartimento secreto do roupeiro e acabou de se vestir. Espargiu um jacto de perfume nas axilas, experimentando um ligeiro ardor - no ano anterior, tinha rapado com o barbeador do pai tanto as axilas como o peito, na esperança de que os pêlos varonis despontassem mais depressa. Nos sovacos já floresciam uns promissores tufozinhos, mas o torso continuava insensivelmente calvo. Já agora, encolheu a barriga, puxou o cós das calças para a frente e borrifou também o baixo ventre - mal não fazia de certeza.

Diabo, a boca doía-lhe um pouco. Devia ser a gengiva, que esfolara ao tirar um dos grampos. Ou então uma nova afta. Mas era tudo por uma causa nobre. Como dizia a sua professora de inglês, aquela filha da mãe que em plena aula zombava da sua pronúncia, "no pain, no gain".

Três buzinadelas agudas preveniram-no da chegada de Filipe. Destrancou a porta do quarto e desceu as escadas de mansinho, em biquinhos de pés. Providencialmente, o pai tinha ido à bola com os amigos. Ou ao póquer, ou lá o que era. A mãe e as irmãs demoravam-se na sala de jantar, entretidas na conversa, debicando uma mousse de chocolate enquanto deploravam um conhecido que des cambara no alcoolismo e batia na mulher sem dó nem piedade. Cláudia dizia que a mulher era uma parva em aturar aquilo, e nesse caso até merecia o castigo.

Deteve-se à soleira da porta da casa.

- Adeus, mãe.

Reparou que, pela primeira vez em três meses sem o aparelho, a sua voz parecia um tudo nada desfigurada. Algo como o clamor de uma foca-bebé que estivesse a ser morta à paulada. E o pior era que não podia subestimar os sonares ultra-sónicos da mãe. Mais do que nunca, uma retirada estratégica era imperiosa.

- Já vais? Não voltes tarde.

- Não, não volto. Volto cedíssimo: ao raiar do dia.

- O que é que disseste? Estás constipado ou quê? Se estás, o melhor é ficares em casa. Ainda apanhas uma pneumonia e chumbas por faltas.

- Estou óptimo, só me engasguei há bocadinho com o rebuçado para a tosse.

Fechou a porta atrás de si, antes que a mãe metesse na cabeça a ideia de dar-lhe um beijo de despedida na testa e um novo sortimento de recomendações, além de proceder a um exame "in loco" nas amígdalas. Quando regressasse, já todos estariam aninhados nos braços de Morfeu. Pensando melhor, o açaime podia ficar para amanhã. No dia seguinte teria todo o tempo do mundo para tratar do estafermo, na privacidade blindada do seu quarto.

Filipe trajava umas calças jeans, uma t-shirt beige canelada com três botões e aqueles ténis americanos de basquete que Lourenço tanto cobiçava. Mascava pastilha elástica e tamborilava os dedos no volante cujo diâmetro era tão exíguo como o de um pires de café. Quando arrancaram, Filipe carregou a fundo no acelerador e os pneus de banda- larga emitiram um guincho de perfurar os tímpanos. Lourenço agarrou-se ao painel dos instrumentos. Uma nuvem de fumo branco azulado ficou a flutuar diante da casa do doutor Maia, e uma vizinha apareceu àjanela. O rádio do carro comunicou o boletim meteorológico: previsão de bom tempo nocturno, com máxima de 24 graus para a madrugada.

- Ainda bem que não está frio nenhum - congratulou-se Filipe.

- Como sabes, detesto o frio. Fico logo constipado e a minha asma põe as manguinhas de fora.

- Trouxeste a tua bomba? - perguntou Lourenço, só para o chatear. Achava que Filipe, de uma maneira insólita e irritante, até estimava aquela doença, talvez considerando que ela lhe conferia proeminência e singularidade.

- O que é que achas? Claro que trouxe. Nesta coisa do clima São Paulo é uma porra. O meu pai tem um amigo que viveu a vida toda no Nordeste, em Recife, Maceió, Fortaleza. Pois o sujeito, um velhotejá com pelo menos cinquenta anos, nunca na vida dormiu com um cobertor, nem uma noite sequer! Nunquinha! Já viste uma coisa destas? Já viste que sorte? Dormir descascado pelo resto da vida. . .

Lourenço emitiu um grunhido, indicando que estava a ouvir, mas não a concordar. Pessoalmente, até gostava do comedido Inverno paulista. O calor muitas vezes causava-lhe afecções de pele, como assaduras e dermatites, sobretudo na região da virilha. E agravava a sua acne, que ele odiava mas não conseguia resistir à comichão impedindo que as crostas secassem e cicatrizassem. Durante as aulas de matemática, quando o professor desenhava no quadro elegantes parábolas trigonométricas, Lourenço costumava devanear com ninhos de águia em picos nevados, ou consigo a esquiar vertiginosamente nas estâncias argentinas de desportos de Inverno, a planar por entre as arestas cremosas e alvas das cordilheiras, como um Homem-Condor.

Sem consultar o amigo, desligou o rádio do carro e introduziu na fenda do leitor de cassetes a fita que tinha gravado durante a tarde.

Satisfeito, constatou que extirpara todas as intromissões do locutor, sem falhar uma sílaba nem atropelar as canções umas nas outras.

Filipe esticava as mudanças de velocidade até ao limite e, a cada uma delas, o carro resfolegava e dava um salto para a frente. Estava obviamente a pavonear-se. O pai do rapaz devia andar muito bem disposto, pois cedera-lhe o seu automóvel de estimação, um Odsmobile Courtless 1970, com a carroçaria dourada metalizada, tecto de vinilo preto e o capô comprido como o convés de um iate. No dia em que um vândalo anónimo arranhara a porta daquela preciosidade com uma chave, o proprietário quase tivera uma síncope. Lourenço só esperava que não dessem com nenhum auto-stop da polícia - nesse caso, adeus piscina. Adeus, bacanal romano. Adeus, togas molhadas voluptuosa mente coladas ao corpo. Adeus, beijos tridimensionais.

- A festa é na casa de quem? Alguém lá do colégio?

- E eu é que sei? Não faço a mínima ideia. Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. É o costume: o Fulano convida o Sicrano, que convida o Beltrano, que já não conhece o Fulano. Quem falou comigo foi o Marcos, que tinha falado com o Armando. Parece que é numa chácara, ou coisa assim. É isso, é. Olha, fiz um mapa. Está aí dentro do porta-luvas. Vê se percebes alguma coisa. Assim não, merda, está de cabeça para baixo!

Convergiram para a auto-estrada que conduzia aos arrabaldes da cidade, com cinco pistas em cada sentido. Rolavam paralelamente a um extenso, largo e poluído rio, cuja superfície opaca e rançosa parecia prestes a solidificar-se, como açúcar caramelizado. Lournço pensou que qualquer dia já nem precisariam de pontes. Ao longe, perfilavam-se as silhuetas sombrias das fábricas, com as suas florestas de chaminés, altas e espessas como os troncos das sequóias, as espirais de fumo enoveladas umas nas outras, o odor insalubre infestando o ar. Como é que alguém se atrevia a comprar os abacaxis, mamões e abacates que eram vendidos em bancas nas bermas da estrada? Não era como comer uma bomba-relógio às fatias? O rapaz fechou o vidro da janela e os orifícios de ventilação, esperando que o panorama mudasse.

Pouco a pouco, a auto-estrada estreitou-se numa via vicinal esburacada. Mas o ar purificara-se e já era plenamente respirável. Com a ajuda das placas, do mapa e de uns atalhos que mais atrasavam do que adiantavam, quarenta e cinco minutos mais tarde chegavam aos solavancos ao seu destino.

Já podiam ouvir a toada da música a matraquear como uma fanfarra, mas não o fio da melodia. A casa, completamente isolada, coroava a crista tonsurada de uma pequena colina. Era uma vivenda do género pré-fabricada, apoiada em oito vigas, construída em módulos de madeira, cimento e estuque, rodeada por um pinhal de araucárias, cujos ramos se espetavam para o alto como cerdas de uma imensa escova. Circundava-a um alpendre que, nas traseiras, dava para um regato meio tapado pelas folhagens densas e escuras dos arbustos selvagens. Num flanco do relvado, com o rasto ainda recente da tosquia do aparador mecânico, avultava uma imponente churrasqueira de tijolos, aqui e ali borrada de preto pelo carvão. No outro lado, avistava-se uma piscina, a qual, com a água iluminada a partir do fundo, produzia um efeito fluorescente, semelhante a um pirex de gelatina de limão que ainda não tivesse ido ao frigorífico.

Filipe arrumou o carro junto de uma vedação. A cerca de cinco metros empertigavam-se uma magnólia e duas bananeiras com os respectivos cachos ainda verdes. Piscando um olho, propôs a Lourenço que, antes de mais nada, localizassem o Marcos.

- Claro que não é preciso convite, mas ele pode dar-nos umas dicas. Não te esqueças de que somos forasteiros.

- Até parece que entramos em região apache. - resmungou Lourenço, saindo do carro e marchando rumo a casa. Sob os seus pés, os seixos crepitavam.

A noite arrefecia. Soprava uma aragem suave, arrastando o aroma da terra e do mato. Ao pé da piscina avistaram um punhado de rapazes e raparigas, uns ondulando o corpo ao som da música, outros esvaziando o conteúdo dos copos, que voltavam a encher das garrafas alinhadas numa mesa de fórmica - vodka e gim, principalmente, mas também vinho e cerveja em lata, estas últimas acomodadas numa enorme caixa de esferovite, cujo gelo já derretera há muito. Umajovem sentara-se à borda da água e submergira os pés até às canelas. De vez enquanto, erguia a perna e tentava salpicar os mais próximos, que fugiam a correr às gargalhadas. "É assim que começa", pensou Lourenço.

Dentro da casa a confusão era fenomenal. A música ribombava, silvava e gania, e só se conseguia falar berrando ao ouvido do interlocutor, que esboçava um sorriso amarelo de incompreensão e estupor, com as orelhas borrifadas de perdigotos. A luz reduzia-se a uma penumbra mortiça. Numa divisão que consistia possivelmente na sala, dezenas de pessoas, num grupo compacto, gesticulavam e rodopiavam como derviches. As moças meneavam as ancas e agitavam os braços que nem palmeiras batidas pelo vento; os rapazes, muito mais hirtos, preferiam os movimentos pendulares, para a frente e para trás, ou de um lado para o outro. De fora a casa não parecia tão espaçosa, mas aquela sala era enorme, embora sem mobília, salvo um bufet encostado num canto e um inopinado piano de cauda Steinway empurrado para uma parede por baixo da escada.

- Estou a ver o Marcos - anunciou Filipe, mais por gestos do que por palavras. - Vamos lá falar com ele.

Aventurou-se aos ziguezagues na pista de dança, como um peão naqueles jogos de tabuleiro em que determinadas casas fazem avançar ou recuar umas tantas outras. Lourenço logo o perdeu de vista. Retrocedeu ao vestíbulo e, vislumbrando a cozinha, avançou para lá.

Não existia um centímetro vago no compartimento. A mesa, o balcão, a parte de cima do frigorífico, a tampa do fogão, o caixote de lixo - tudo estava atravancado de objectos: garrafas em pé, deitadas ou de cabeça para baixo, por abrir, vazias ou pela metade; copos de papel na mesma situação; pratos e travessas de cartão com coxinhas, croquetes, empadas e sanduíches de pão de forma, alguns ostentando a cicatriz de uma dentada, outros apenas empalados por palitos; cinzeiros apinhados como piras funerárias; guardanapos amarfanhados, com manchas coloridas de bebidas, gordura e baton. Numa extremidade da mesa, Lourenço viu um bolo de chocolate redondo, salpicado de smarties, do qual restava apenas um triângulo isósceles, suficiente para uma ou duas fatias. Teria sido o aniversário de alguém? Bem, ele não trouxera nenhuma prenda.

Encontrou um copo que julgou intacto, depois de o cheirar e abanar. Encheu-o de gim quase até à boca e lançou-lhe uma rodela de limão. Emborcou tudo de uma vez - as entranhas crisparam-se-lhe e o estômago acusou um espasmo. Calma aí, rapaz. Levou a mão aos lábios e emitiu um arroto, afortunadamente daquele género que denominava arroto com silenciador, de apenas dez decibéis". Agarrou uma empada e enfiou-a inteira na boca. Não havia caroços de azeitona, mas a massa era seca como cortiça. Custou-lhe a engolir o raio da empada, mas ela por fim desceu-lhe aos sucos gástricos do estômago e lá ficou, como uma gaivota pousada num mar encapelado.

- E que tal uma loíra? - perguntou alguém. Do sexo feminino.

A voz viera de trás dele como uma fonte murmurante. Partira de uma rapariga de estatura um pouco abaixo da média e franja género escova, com rabo de cavalo, umas calças de veludo desbotadas e justas e uma incongruente camisola de alças. Lourenço viu que ela tinha a recomendá-la umas mamas do tamanho de toranjas. Só passado um momento percebeu que ajovem lhe estendia uma garrafa de cerveja. A tal loira em oferenda era ela ou a bebida? A bebida, é claro. O contrário era bom de mais para ser verdade.

Aceitou a garrafa, cujo vidro se encontrava mais molhado do que propriamente frio. O rótulo deslizava pelo vasilhame abaixo e não era fácil retê-lo. Bebeu um gole pelo gargalo, pois parecia ser este o protocolo. Morna, sabia a óleo de figado de bacalhau. Mas, que diabo, nos pubs da Inglaterra bebiam cerveja praticamente em ebulição, género lava, como chá das cinco.

- Sou a Sandra.

- Lourenço.

- És amigo do Diogo?

- Diogo? Qual Diogo?

- O proprietário desta casa, desta cozinha e desta garrafa de cerveja que acabas de esvaziar com uma careta de abstémio. O que é que são essas coisas brancas que tens nos dentes?

Lourenço fez de conta que não tinha ouvido.

- Estranho, pensei que a festa fosse do Marcos.

- Marcos, Marcos. . . Não conheço nenhum Marcos. Mas é possível - também não conheço o Diogo.

- Sou o Lourenço.

- Sim, eu sei. Já me disseste há meio segundo. Foste à piscina?

- Passei por lá.

- Não queres dançar?

- Agora não me apetece.

- Nem a mim. Detesto engarrafamentos. Vamos lá para fora andar um bocadinho? Arejar os neurónios?

- Vamos, sim.

- Então levamos um cantil. - Abriu o avantajado frigorífico, que não continha senão bebidas, embalagens de iogurte com pedaços de frutas e uma misteriosa tijela tapada com papel-alumínio. Retirou uma garrafa de vinho branco e abriu-a com o saca-rolhas de asas, com gestos de quem se prepara para alçar voo a partir de um ramo. Depois,

tornou a introduzir a rolha no gargalo, girando-a devagarinho. Quando passou por Lourenço, tomando a dianteira, este observou que ela era mais velha do que ele. Devia ter no mínimo uns 18 anos. Uma mulher vivida. Estava em boas mãos. Oh, lá, lá!

Ao rodear a pista de dança, vislumbrou Filipe, a dançar espasmodicamente, com a cara toda vermelha e suada, os cabelos colados à testa como corninhos murchos. Ao pé da piscina já havia mais gente do que dantes. Três rapazes chutavam entre si um copo de papel comprimido numa bolinha, tentando mantê-lo no ar o maior tempo possível. Um deles fazia de guarda-redes e lançava-se ao chão por tudo e por nada, com espalhafatosas acrobacias. Dois outros chupavam charros de marijuana como se fossem rebuçados de mentol. Sem mais nem menos, um sujeito sardento e com um cabelo de um ruivo flamejante abriu todos os botões da camisa, libertando um ventre flácido e pálido que bamboleou de contentamento. Anunciou que só não despia o resto porque a relva lhe fazia comichão. 

Sentaram-se num banco de ferro ao pé de uma parreira, que emoldurava um caramanchão desgrenhado. Lourenço já ouvira falar nas propriedades afrodisíacas dos caramanchões. Uma grinalda de hera pendia até ao solo, com caracolinhos verdes em forma de saca-rolhas.

As folhas cobriam a terra como uma lã. Com os dentes laterais e maneiras de cossaco, Sandra arrancou a rolha do vinho. Bebeu um gole e passou a garrafa ao jovem. Lourenço, que não estava habituado a beber assim tanto, jantara muito cedo e depois só consumira aquela empada ainda por cima sem azeitona, já sentia a cabeça que nem um pião. Mas não quis dar o braço a torcer. De qualquer forma, o ar fresco operava milagres.

Oxalá Filipe estivesse a ser mais moderado. Se não, quem é que levaria o carro? Aliás, aonde é que estava mesmo o carro? Já não tinham carta de condução, e agora com os copos. . . Se não aparecessem de manhã, a sua mãe poria a Interpol em alerta vermelho. E, se fossem apanhados a conduzir, iria um para Alcatraz e o outro para Sing-Sing, com fatos às riscas, número ao peito e aquelas bolas de chumbo acorrentadas aos pés, definhando pelo resto da vida em trabalhos forçados. Fechando os olhos, sorveu duas grandes goladas - o último desejo do sentenciado. Precisava de conservar um fragmento daquela garrafa, para cavar o túnel que o conduziria ao mar e à liberdade. Depois, com uma identidade falsa e uma colecção de passaportes espúrios, o Homem-Condor tornar-se-ia campeão mundial de esqui, voando sobre um ninho de cucos.

O vinho pareceu-lhe azedo e escorreu-lhe pelo canto da boca. Constrangido, limpou o queixo na manga da camisa branca, do que de imediato se arrependeu, mortificado. Será que nódoa de vinho era indelével? Bem, a sua mãe por certo elucidaria aquele ponto.

Sandra bebeu também um bocado copioso. Falaram de música. Bandas pop, filmes, livros e coisas assim. O que é que fazes na vida e coisas assim. Descobriram imensas afinidades, empatias por assim dizer siamesas. A voz dela soava diferente, ou era ele que estava a ficar surdo que nem uma porta? Se calhar as duas coisas. Era como se fosse uma voz do Além, só que geminada.

- Queres um cigarro?

Quis. Sim, e por que não um cigarro, ou mesmo um cachimbo e um charuto? Que tal os três ao mesmo tempo? Na verdade, fumava muito pouco. Não apreciava o sabor do tabaco, mas admirava o acto de fumar - romântico e viril, sem sombra de dúvidas. Desta vez, contudo, aquilo soube-lhe mesmo mal, e arranhou-lhe a garganta como se gar garejasse com arame farpado. Desatou a tossir, enquanto via uma chama a bruxulear na extremidade do cigarro.

- Acendeste o filtro, seu doido! - riu-se a jovem. Lourenço riu-se também, satisfeito com a alegria da rapariga. Atirou o cigarro incandescente para o chão, provocando um chuveiro de cinzas brilhantes. Sorveu outro gole de vinho só para desinfectar a boca do gosto horrível do filtro, assim género adstringente. Nada que o seu pai não prescrevesse aos clientes com afias ou mau hálito. Do interior da casa, ressoavam aclamações. A festa ia de vento em popa. Como a existência era bela. . .

Dir-se-ia que estavam ali desde que Deus cruzara os braços no sétimo dia. E Lourenço poderia continuar naquele local a vida inteira. Não se surpreenderia mesmo nada se de um momento para o outro o disco solar assomasse no horizonte, tal um curioso a espreitar por cima do muro. Um aroma de madressilvas e azáleas impregnava a atmosfera. Por baixo dos pés de ambos, estalavam as folhas secas. Lourenço sentia-se alheado mas não distante, como se habitasse uma bolha de sabão. E tinha uma erecção que dava para partir côcos. Sem nem pensar no que fazia, nem se tinha vontade de o fazer, encostou-se a Sandra e reclinou-se para beijá-la. Ela afastou a cabeça.

- Não me apetece. Desculpa, mas não me apetece. Lourenço não soube o que responder.

- Ah, então estás aí, meu foragido? Não atrapalho, pois não? Filipe. O cabrão do Filipe. O filho da mãe do Filipe. A besta do Filipe em carne e osso. E principalmente gim, a julgar pelo odor miasmático, pelos olhos vermelhos como feridas, a voz pastosa, o andar cambaleante e a mancha de mijo na braguilha, que descia quase até ao joelho.

Fez uma mesura grotesca:

- Não me apresentas a tua amiga, Lourenço? Não sejamos gananciosos.

Antes que mais alguma palavra pudesse ser dita por qualquer dos vértices do triângulo, Filipe exalou um suspiro pungente, depois um gemido plangente, arqueou as costas e vomitou para o chão, uma golfada intensa e compacta, de cor parda. Por fim, ajoelhou-se e recostou-se no banco, a gemer baixinho, numa posição fetal. Parecia uma alforreca agonizante.

Petrificados, Lourenço e Sandra não conseguiam senão fixar os seus próprios pés, borrifados por uma miscelânia de gim, cerveja e massa de croquete insuficientemente digerida. No instante seguinte, emergiram do torpor ao ouvir Filipe clamar, em voz cada vez mais embargada:

- Eu vou morrer, eu sei que vou morrer! E ninguém me liga nenhuma! Ninguém. É assim que as pessoas são. O meu melhor amigo. . .

Lourenço agachou-se ao lado do moribundo e perguntou-lhe, redundantemente:

- Filipe, ouve-me, estás mal-disposto?

Filipe virou-se vagarosa e dramaticamente para ele, e fitou-o como se o amigo fosse translúcido.

- Queres um copo de água, Filipe? Filipe, estás a ouvir-me? Filipe!

Filipe esboçou um sorriso magnânimo, inundado de misericórdia abanou a cabeça e começou a soluçar baba e ranho.

Sandra acocorou-se também e aconselhou, com aquela voz longínqua:

- O melhor é agarrarmos nele e levarmo-lo para um banho de chuveiro. Um duche frio.

Sim, reflectiu Lourenço, aquela era uma boa ideia, uma ideia mesmo providencial. Um duche frio e depois uma caneca de café bem forte, sem açúcar. Uma caneca, não. Um púcaro. Um púcaro do tamanho de uma cisterna. Era assim que faziam nos filmes, e por alguma razão devia ser.

Com a ajuda de Sandra, começou a içar Filipe, que, quase inanimado, pesava uma tonelada. Por fim, ficaram os três erectos, embora precariamente, oscilando sob o caramanchão. Foi então que uma ideia pairou na cabeça de Lourenço como uma estrela num presépio. A piscina. Como é que não pensara naquilo antes? Com aquela quantidade de água ali mesmo à mão de semear, quem é que precisava dos parcimoniosos chuviscos de um duche? Aquilo é que era uma panaceia, o tratamento de choque que a situação exigia.

- Vamos levá-lo para a piscina!

- Piscina? Que piscina? Ah, essa piscina. . . Mas ele sabe nadar?

- perguntou a rapariga, judiciosamente.

- Claro que sabe. Como um golfinho. Bem, fui eu que o ensinei. De qualquer modo, não vai nadar - vai apenas molhar-se, tomar um banho de imersão. Com certeza há uma parte rasa e estaremos lá para o amparar.

- Se achas que sim. . . Força.

Cambalearam em direcção ao relvado e, aproximando- se da piscina, constataram que não seriam os precursores. Pelo menos quinze jovens de ambos os sexos já singravam a água clorificada de um lado para o outro, bombardeando-se com repuxos de palmadas e pontapés na superFície. Uma coluna de som tinha sido trazida para o relento, e alguns dos nadadores agitavam os braços e estalavam os dedos. Um dos convivas, mais circunspecto, gritou para que tivessem cuidado com a coluna de som, se não ainda morriam todos electrocutados. Toda a gente se riu.

Detendo-se um instante para ganhar fôlego, Lourenço reparou numa das raparigas dentro da água, que estava em soutien. Quem sabe se ainda poderia unir o útil ao agradável? Ia perfeitamente a tempo. Nem tudo estava perdido. Aliás, Sandra usaria soutien? Se calhar, não. Marilyn Monroe dormia apenas com Chanel número 5. Lady Godiva andava à cavalo em pelota. Na parte mais funda e escura, ao pé do trampolim, um rapaz boiava com um sapato na mão, que enchia e voltava a despejar dentro da água.

Na borda da piscina, alagada e escorregadia, com a cabeça de Filipe apoiada no ombro de Lourenço como os galões de um general, os três foram entusiasticamente saudados pelos banhistas.

- Despachem-se, que a água está óptima! Não sejam medricas! Venham daí!

Cerca de cinco ou seis jovens nadaram até à borda e começaram a puxá-los pelos calcanhares.

- Ei, esperem um pouco, o meu amigo está mal-disposto. Só queremos molhar-lhe a cabeça para ver se ele melhora. Parem lá com isto! Por favor! A sério. . .

- A cabeça não chega, molhem-no todo!

Lourenço sentiu Filipe vacilar e quase cair. Sandra soltou-se deles e atirou-se à água com um grito primal, dionisíaco. Lourenço ainda teve tempo de lastimar-lhe o chapão e de perceber que Filipe resvalara devagarinho para o solo. De súbito, experimentou um puxão numa perna e desequilibrou-se. A partir daí desenrolou-se tudo numa fracção de segundo, em que conseguiu distinguir o amigo deitado, a vomitar novamente, só que agora para dentro da piscina. Enquanto caía, Lourenço felicitou-se por não tombar na direcção da água, conspurcada pela bílis, álcool, fragmentos de croquetes e talvez urina, e deplorou a sorte de Sandra. Como uma torre atingida na base por uma descarga de artilharia, estatelou-se de bruços no piso de lajes quadradas.

A dor foi lancinante mas breve, como um choque eléctrico de alta voltagem. Atordoado, com uma expressão de estupor, tentou sentar-se sem atinar muito bem o que afinal tinha sucedido. Se é que tinha sucedido alguma coisa. Só sabia que o mundo girava como um carrossel. Endireitou- se, por fim, abanando a cabeça, e levou a mão aos lábios, que pareciam viscosos. Quando examinou os dedos, estavam vermelhos até ao punho. Pôs-se de joelhos e cuspiu um espesso jacto de sangue. Dir- se-ia que as entranhas lhe jorravam pela boca.

Os outros rodeavam-no alvoroçadamente. Alguém gritou, com uma voz histérica:

- Gelo! Por amor de Deus! Tragam gelo para estancar a hemorragia! Esse tipo vai estrebuchar aqui nas nossas barbas!

- Será que ainda há gelo? Duvido. Não serve água fria? A piscina ia-se despovoando. Lourenço, tiritando, atordoado e pálido como a cal, sentia na pele as gotas de água que pingavam dos seus próprios cabelos e das cabeças debruçadas sobre si.

Filipe, num timbre assombrosamente lúcido, murmurou-lhe:

- Ergue a cabeça. Deixa-me ver a tua boca. Abre-a! Lourenço obedeceu e ouviu-se um rumor consternado. Depois, uma risada abafada, seguida de uma reprimenda.

- Lourenço - disse Filipe, muito sério - olha bem para mim. Estás bem, mas partiste dois dentes. Os dois dentes da frente. Não sei como é que fizeste, mas arrancaste-os pela raiz. Agora não te preocupes, que vais ficar bom. Isso não é nada.

Alguém encostou à boca de Lourenço cubos de gelo envolvidos num lenço atado nas pontas. Na verdade, eram apenas fragmentos de cubos já muito derretidos.

- Não seria melhor chamar um médico? - propôs o sujeito ruivo e sardento, a abotoar a camisa, com os botões trocados.

- Ora, a hemorragia está a parar - observou a rapariga em soutien, atirando o cabelo molhado para trás - Se arranjarmos água oxigenada, então. . .

- O pai dele é dentista. - informou Filipe.

- Ah, que felizardo Este rapaz nasceu com o rabo virado para a lua - exclamou Sandra, na sua voz remota. - Beija-me! Agora já me apetece. Sou uma vampira! - E serpenteou o torso, com as roupas voluptuosamente coladas, dançando uma música que só ela ouvia. Ou talvez não, pois o rapaz que há pouco enchia e esvaziava um sapato com a água da piscina perfilou- se à frente da jovem, iniciando movimentos pendulares, de um lado para o outro.

Alguém anunciou, radiante:

- Olhem, encontrei um dos dentes! Ah, não, é só um resto de croquete que aquele ali vomitou. Podia jurar que era um dente. Que nojo.

Três meses mais tarde, Lourenço ainda usava uma prótese provisória no lugar dos dois dentes perdidos. O pai explicou-lhe que aquilo era uma punição pela sua irresponsabilidade e incúria - só quando se compenetrasse da sua imaturidade é que levaria a prótese definitiva, tal e qual os dentes originais. De todas as situações da vida devemos extrair lições construtivas, sobretudo das mais adversas. Cláudia, por sua vez, limitara-se a comentar: "Os seres humanos sem dentes na frente podem ser muito úteis a ralar cenoura".

Na verdade, contudo; se não fosse por uma espécie de constipação crónica, de origem nervosa, que contraíra depois do acidente, até que o rapaz nem se lastimaria muito. Afinal, o problema da assimetria dos incisivos superiores tinha sido resolvido - brutalmente mas tinha - e já ninguém falava no famigerado aparelho.

Melhor ainda, Sandra telefonara-lhe várias vezes, para saber como iam as coisas. Agora, a sua voz longínqua parecia quase contígua.

Naquele preciso momento encontrava-se diante da porta da casa de Sandra, erecto como uma estaca. Eram onze e vinte e cinco da noite, e ia beijá-la nos lábios, de uma vez por todas. As folhas dos eucaliptos farfalhavam. De quando em quando, um cão ladrava para ninguém. Não chovia há 27 dias, e as roupas da jovem não estavam voluptuosamente coladas ao corpo, mas não fazia mal. Aquele decotezinho abissal deixava entrever mil e uma promessas ditosas. . .

Um niquinho para a direita, um milímetro para a esquerda - um beijo na boca! Agora é que é. . . Porém, ao alinhar sabiamente o pescoço num ângulo de 45 graus, por assim dizer com a destreza de um gigolo, Lourenço sentiu uma comichão insuportável no nariz, e apeteceu-lhe espirrar. Desviou um pouco a cabeça e deu um espirro estrondoso, contratempo perdoável e até justificável em quem ainda sofria de uma constipação traumática. Pena que, embora procurasse tapar o nariz com a mão, a prótese dupla - projectada como uma bala pelo sobressalto do espirro - tivesse atravessado impetuosamente a barreira e chocado contra o decote da rapariga, sumindo-se por ali abaixo com a velocidade de um raio.

Sandra emitiu um uivo de repugnância e deu um passo para trás. O uivo acabou por se extinguir, mas os passos para trás continuaram por mais algum tempo, até que a porta da casa se abrisse e se fechasse e Sandra desaparecesse para sempre. O rapaz permaneceu paralisado, a respirar com dificuldade, petrificado pelo dilema entre clamar pela rapariga ou conservar cerrada a boca desdentada.

Tlim, tlão, tlim, tlão. . . Cavernosas e soturnas, as doze badaladas da meia-noite ainda ressoavam no campanário do Colégio de São Bento, que assinalava a hora oficial de São Paulo, quando Lourenço decidiu ser dentista.

 

A PRIMEIRA COISA QUE ChAMAVA A ATENÇÃO em Tomás Figueiredo

era a discrepância entre a cabeleira imaculadamente branca e o bigode retintamente negro. Reinaldo Carta calculou que devia ser mais um capricho da natureza, uma anomalia qualquer na pigmentação, pois não existia nenhum motivo para alguém pintar o bigode com tanto esmero e descurar o cabelo com tanta inadvertência.

A segunda coisa que chamava a atenção em Tomás Figueiredo eram as suas maneiras excepcionalmente corteses, de uma polidez anacrónica, quase gótica. Naquela amabilidade, contudo, o subinspector não descortinou nem um laivo de servilismo - pelo contrário, transparecia nele um ar patrício e sobranceiro, uma imponência aveludada e solene, talvez um pouquinho ridícula. Os olhos eram empapuçados e flácidos, de um azul acinzentado e gelatinoso, como se tivesse estado a olhar para o Sol durante muito tempo. Parecia acabado de passar a ferro, com os vincos perfeitos nas mangas da camisa branca e na parte da frente das calças, vincos tão aguçados que seriam capazes de cortar fatias de queijo. Tinha decerto sessenta e tantos anos, talvez mesmo setenta e picos, e respondia pelo Museu do Relógio, o qual, como o investigador descobriu um tanto admirado, não distava nem cinco minutos a pé da Escola de Belas-Artes. Carta, que acreditava na lógica minimalista da simplicidade, limitara-se a folhear as Páginas Amarelas, em busca do local mais indicado para elucidar o mistério da corrente no rabo-de-cavalo de Ravi Sharma, e dera com a morada. Lisboa era mesmo uma aldeia. À primeira vista, o Museu do Relógio não diferia muito de uma relojoaria importante, salvo pelo rendilhado labirinto de salas e mais alguns pormenores periféricos. Tais salas estavam mobiladas por expositores, montras e pedestais ocupados por relógios de múltiplos tamanhos e feitios, de pulso e de parede, relógios de sol e clepsidras - e peças e maquinaria destinadas à sua produção.

Todos os modelos traziam etiquetas com legendas sobre a identificação e data de fabrico, e um conjunto deles, seguramente os mais ilustres, ofereciam uma sinopse da sua história e dos vultos que os tinham usado ao longo das épocas. Numa parede, iluminada por dois spots apontados para baixo, cruzando os focos de luz, pendia uma grande gravura de um roliço ancião com uma barba de Pai Natal, envergando uma espécie de cafetã e um barrete com pompons. O subinspector leu a etiqueta no rodapé da moldura: "Galileu Galilei".

Depois de se apresentar, Reinaldo Carta acrescentou, com mais formalidade do que o costume:

- Se quiser ter a bondade de me conceder alguns momentos de atenção.

O senhor Figueiredo abriu os braços como se eles próprios fossem grandes e pesados ponteiros, talvez um pouco oxidados, num gesto que abarcava todos aqueles relógios, mostradores, engrenagens, algarismos arábicos e romanos, e respondeu com um sorriso avinagrado, numa voz rouca e rachada:

- Como pode ver, tenho todo o tempo do mundo. Durante muitos anos, mantive uma ourivesaria na Baixa Pornbalina, mas com a chegada dos centros comerciais aquilo deu para o torto. Reformei-me e agora tomo conta deste museu, rodeado das coisas que mais me interessam. Mas não falemos de mim. Em que posso ajudá-lo, excelentíssimo agente da autoridade?

Carta adivinhou estar na presença de um daqueles idosos solitários que a sociedade contemporânea segregava. No seu gabinete, inúmeras vezes atendia chamadas telefónicas de velhotes de voz trémula, que pretendiam apresentar uma queixa mas gaguejavam e tergiversavam, enredando-se numa teia que nunca mais acabava, pois no fundo só desejavam gastar o seu latim, contar o que lhes tinha acontecido ontem e anteontem, ouvir uma voz que não a deles próprios.

Certo ou errado, altruísta ou egoísta, Carta não tinha tempo a perder e o melhor era ir direito ao assunto. Retirou do bolso a corrente e depositou-a sobre o balcão.

- O que pretendo é um parecer da sua perícia profissional. Gostaria que me dissesse tudo o que fosse possível sobre este objecto, para mim muito enigmático.

O relojoeiro pousou na corrente um olhar fixo e sôfrego. Por um instante, deu uma impressão de alheamento fatigado. Passou a mão pela bochecha macilenta. Depois, com os dedos em pinça, pegou na corrente por uma das extremidades e ergueu-a, como se fosse o cadáver de uma pequena serpente.

- Um Roskopf. - murmurou, pensativamente.

- Perdão? Disse roscof? Quer dizer que a corrente não presta? Figueiredo soltou uma risada sincopada, semelhante a um relincho. Estava visivelmente satisfeito.

- Não, subinspector, não é nada disso que quero dizer! Mas a sua confusão é natural. Na verdade, quase inevitável. Mas não se ofenda, peço-lhe.

- Não pode ser mais claro?

- Tem toda a razão: já vai perceber tudo. O que disse foi Roskopf, e não roscof Roskopf deriva de Georges-Frédéric Roskopf, um relojoeiro suíço do século passado, que realizou uma pequena porém duradoura revolução no domínio da relojoaria. Como sabe, nos últimos séculos acalentamos a mania das revoluções.

- É estranho: sempre pensei que roscof fosse uma coisa reles.

- E não deixa de o ser. Na verdade, é uma corruptela do nome Roskopf. Já vai perceber o porquê. Ainda no século xix, muito poucos trabalhadores - ou mesmo membros da classe média - possuíam relógios, pois o preço era exorbitante e proibitivo. Mais ou menos em meados do século, tornou-se necessário criar um modelo capaz de prover as carteiras mais modestas mas que, ao mesmo tempo, fosse suficientemente resistente e preciso.

- E é aí que entra o tal Roskopf.

O velhote endireitou o casaco, puxando-o pela bainha.

- De facto. Repare, subinspector, que durante séculos a fio os relógios não eram concebidos para mostrar o tempo, mas sim para o soar.

- Como os sinos das igrejas, quer o senhor dizer. . .

- Isso mesmo. A nossa hora igualitária, exacta e uniforme é uma invenção moderna, e, por incrível que possa parecer, o minuto e o segundo são ainda mais recentes. Claro, houve outras tentativas, como o relógio de sol e o de água, mas ambos implicavam inconvenientes óbvios. Existiram experiências ainda mais extravagantes, como os relógios de fogo e os aromáticos.

- E as ampulhetas? Perdão, é que sempre simpatizei com as ampulhetas.

- Olhe, também eu. Parece que nelas o tempo passa mais devagar, não é mesmo? Oxalá fosse assim. . . A própria imagem móvel da eternidade. Mas as ampulhetas adaptavam-se mal à medição de um dia inteiro. Tinham de ser demasiado grandes - Carlos Magno mandou fazer uma tão grande que só precisava de ser virada de 12 em 12 horas! Ou então, se eram pequenas, tinham de ser viradas frequentemente e no preciso momento em que o último grão caía. Uma trapalhada.

- Realmente, não parece muito prático.

- Pois não. . . Não davam jeito nenhum. Daí a supremacia admirável dos sinos, até porque uma população iletrada não se enganaria com os sons. Só muito mais tarde adveio aquilo a que chamamos "a hora igual", demarcando-se das sete horas canónicas dos sinos, como as "matinas" ou as "vésperas". E nasceram os primeiros relógios mecânicos, por assim dizer democratizando o tempo. Ao menos num ponto, porém, as coisas não mudaram muito: matamos o tempo e ele enterra-nos.

O subinspector não percebeu a ligação e comentou, para sustentar o fio da conversa:

- Reparei na gravura de Galileu. . .

- Ah, sim, também ele tem culpas no cartório. Mas Galileu foi apenas a culminação do processo. Um inocente útil. Trinta anos depois da sua morte, o erro médio dos melhores mecanismos de medição do tempo fora reduzido de 15 minutos para apenas 10 segundos por dia.

- Tanto assim? Esplêndido.

- Acha? Pode ser. Confesso que tenho as minhas dúvidas.

- E o tal Roskopf sonhava com um relógio para toda a gente?

- Realmente. . . Meteu-se-lhe na cabeça produzir um relógio fiável que custasse apenas 20 francos, uma pechincha naquela época de indústrias caseiras. De acordo com ele, o modelo seria baseado naquilo que designou por três princípios morais. Primeiro, fornecer à classe trabalhadora um bom relógio por um preço acessível. Segundo, suprimir todo o luxo e requinte na caixa do relógio, dando prioridade às peças internas. Terceiro, utilizar apenas material de boa qualidade, e remunerar os seus operários convenientemente, a fim de manter o nível da manufactura.

- E conseguiu-o?

- Para o bem ou para o mal, sem dúvida que sim. As primeiras unidades fizeram furor na Exposição Universal de Paris, em 1868. Todavia, o modelo ficou para sempre com a fama de "relógio de operários", em contraste com os relógios mais dispendiosos e requintados da aristocracia.

- Hum, daí a conotação pejorativa de "roscof". Uma coisa rudimentar, para o zé- povinho.

- Exacto. A fábrica funcionou de 1800 a 1880, quando faliu, porque já ninguém queria "um relógio de pobre". Tão típico, não é? De resto, Roskopf tinha-se esquecido de patentear o modelo na Suíça, e assim em poucos anos as imitações proliferavam, ao passo que os dele encalhavam nas prateleiras. O relógio que o senhor usa agora é seguramente um descendente bastardo de um Roskopf.

- Ora essa. . .

- Justiça divina, quem sabe. . . Roskopf abriu a caixa de Pandora. Dantes, o povo habitava apenas o tempo presente, num imediatismo sensorial. Ao passo que a noção da passagem das horas é já uma noção do curso da história.

- E que mal há nisso?

- Nenhum, não é verdade? Mas o mais irónico de tudo é que os exemplares originais dos relógios Roskopf valem hoje uma verdadeira fortuna. Para um coleccionador de classe internacional, pode dizer-se que não têm preço. Estou a falar de milhões de dólares.

- Não me diga? E o senhor possui algum cá no seu museu?

- Eu? Quem me dera, subinspector, quem me dera. Não, não tenho nenhum. Não sou um colecionador, nem grande nem pequeno. Sou apenas um diletante interessado na crónica dos relógios. Não é a mesma coisa que ter licença para cunhar moedas. . . Como reformado, limito-me a supervisionar esta casa. Que, diga-se de passagem, hoje em dia pouca gente visita. Infelizmente.

- Não terá ao menos uma ilustração do Roskopf? Do modelo, não do inventor. Assim eu ficaria com uma ideia. . .

- Ah, isso talvez se possa arranjar. Dê-me só um minuto. Figueiredo afastou-se por uma porta lateral e reapareceu instantes depois, com um pesado livro de capa dura nas mãos. Com um baque, pousou o volume no balcão e, humedecendo o indicador nos lábios, abriu-o numa página assinalada com uma tira de papel. As suas mãos, com os dedos deformados pela artrite, mexiam-se como caranguejos, rastejando sobre o papel.

- Eis o que procura.

Carta debruçou-se para a frente e observou a imagem com toda a atenção. Não obstante o relógio fosse manifestamente novo no momento da fotografia, era um desenho bastante antiquado para os padrões contemporâneos.

- Parece-me sólido e eficiente.

- Sim - admitiu o relojoeiro, secamente.

- Por acaso não conhece ninguém que possua um Roskopf? Alguém a quem eu me possa dirigir?

- Não, não conheço. Lamento. De qualquer forma. . . Naquele momento, o subinspector ouviu a porta da sala ranger e abrir-se. Uma faísca bruxuleou nos olhos de Tomás Figueiredo. Curioso, Carta voltou-se.

Tratava-se de umajovem de cabelos castanhos e ondulados. Tinha os olhos verdes, engastados no rosto como duas gemas e pareciam lapidados por um joalheiro. Usava um chapéu preto de Verão, que condizia com um sinal do lado esquerdo da boca. O lábio superior era quase tão carnudo como o inferior, como se tivesse sido picado por uma vespa. Na verdade, aquela boca tão rubra lembrava o lacre das cartas antigas. Quando a rapariga se aproximou, o polícia aspirou-lhe o perfume, um aroma doce e quente. Toda ela emanava sensualidade e langor, uma feminilidade quase desmedida, ao mesmo tempo submissa e

sedutora. No meio de todos aqueles relógios, uma ânsia apaixonada, selvagem e dolorosa, de reconquistar uma hora que fosse da juventude perdida, apoderou-se por momentos do subinspector. Súbita e inexplicavelmente, o envelhecimento pareceu- lhe a única tragédia da vida, o infortúnio perante o qual todos os outros empalideciam.

- Olá, pai! - cumprimentou a jovem. - Preciso de dinheiro.

Fui mesmo agora ao multibanco e o meu saldo está negativo. Abaixo de cão.

- Com certeza, querida. Temos de remediar essa calamidade.

O relojoeiro abriu uma gaveta à sua frente e retirou o livro de cheques. Puxou uma folha, preencheu-a vagarosamente e, expectante, estendeu-a à rapariga. Esta pegou no cheque, conferiu a importância, dobrou-o ao meio e sornri.

- Obrigada. O pai é um anjo. O meu anjo da guarda. . . - Missão cumprida, olhou para Carta pela primeira vez, de alto a baixo, com um desdém gélido. O subinspector encolheu a barriga sem dar por isso: o seu corpo traiu-o, como os corpos sempre fazem. O senhor Figueiredo pigarreou.

- Ah, sim. Cecília, este é o subinspector Reinaldo Carta. Subinspector, esta é a minha filha Cecília. Ela já está de saída. Vai, filha, vai normalizar o teu saldo bancário, antes que te cancelem de novo a conta. Já estiveste inibida uma vez e se não fosse eu interceder junto do gerente. . . Sabes que detesto essas situações.

Cecília fechou encantadoramente um dos olhos e arqueou a sobrancelha do outro. Por alguns momentos, examinou as unhas com toda a atenção. Em seguida, verteu uma rajada de perguntas.

- Reinaldo Carta? Subinspector? O polícia que anda a investigar a morte do Ravi? Do Ravi Sharma?

- O próprio. Como é que sabe? Leu nos jornais? A jovem fez um beicinho de troça.

- Jornais? Ora, e eu lá tenho tempo de ler jornais? Nem o horóscopo! Que nada: na escola não se fala de outra coisa.

- Escola? Qual escola?

A filha do relojoeiro deu uma gargalhadinha.

- Essa agora! Que escola é que havia de ser? A Academia de Belas Artes, é claro.

- O quê? A Academia de Belas Artes? A do Chiado?

- Não, a de Kuala Lampur! Claro que é a do Chiado. Há outra?

- Não me diga que então era colega de Ravi. . .

- Coleguíssima. Desde o primeiro dia em que ele lá pisou.

- E conhecia-o bem?

- Naturalmente. - respondeu Cecília, com um aceno sugestivo. No instante seguinte, pestanejou e ficou muito séria. - Quer dizer, tinha de o conhecer, não é verdade? Estávamos todos na mesma sala, quase todos os dias.

O relojoeiro tornou a intervir.

- Perdão, subinspector, mas a minha filha está mesmo com pressa. Aliás, ouviu a história do multibanco. Além disso, as aulas já recomeçaram.

- Por favor, não se prenda por mim. É que, simplesmente, a coincidência surpreendeu-me. Espero voltar a vê-la, Cecília. Talvez tenha mesmo de o fazer.

- À vontade, subinspector. O meu pai sabe onde me pode encontrar. Bem, adeus. Beijinhos, pai. Depois falamos.

A rapariga virou as costas e partiu, ondulando os cabelos e levando consigo a fragrância floral, macia e húmida, bamboleando o seu corpo flexível como um chicote. Era sem dúvida uma jovem desinibida e auto-satisfeita. Carta afastou-se como o Mar Vermelho para a deixar passar. O pai escoltou-a com um olhar inebriado. Carta vacilou um segundo antes de profanar aquela idolatria.

- Desculpe, senhor Figueiredo, mas por que é que não me disse que a sua filha estudava na mesma escola de Ravi Sharma?

- Porque não me perguntou, subinspector. Simplesmente por isso.

Com o perfume de Cecília ainda a palpitar-lhe nas narinas, Carta hesitou: tinha ou não mencionado o caso quando se apresentara? De qualquer forma, como a própria jovem assinalara, era notória a ligação do nome Reinaldo Carta com o crime da cabeça decapitada.

- Julguei que soubesse que era por isso que estava cá.

- Ah, pensava que a sua fama o tinha precedido? Sinto desapontá-lo. Como queria que eu soubesse? Não podia adivinhar. Supunha que tinha mais que fazer. Não, pensei que fosse por causa do relógio. Do Roskopf. Como sabe, não me falou noutra desde que cá chegou.

- Tem razão. Por isso também, é claro - Carta cruzou os braços, zangado consigo próprio. Estava a conduzir-se como um principiante. Fosse como fosse, já tinha muito em que pensar nas próximas horas.

- Vive com a sua filha, senhor Figueiredo?

- Vivo sim, subinspector, embora ela tenha também um estúdio, que usa como atelier. Eis o meu cartão.

O cartão era espartano. Dizia apenas: "Tomás Figueiredo, relojoeiro." e trazia uma morada e um número de telefone.

- Bem, muito obrigado. Foi muito gentil.

- Às suas ordens, subinspector. Volte sempre que quiser. Foi um prazer. Como já disse, não costumo receber muitas visitas. Muito menos visitas tão ilustres.

O subinspector Reinaldo Carta saiu dali a pensar como era engraçado que, no Museu do Relógio, todos os relógios estivessem parados - aquele era o pior lugar do mundo para se saber as horas. Sim, era engraçado. Ainda que engraçado não fosse propriamente a palavra.

 

NÃO, COMO DE COSTUME as coisas não tinham corrido nada bem durante o jantar na casa do pai. Por que diabo é que ela ainda insistia naquilo? Ou melhor, por que é que ambos insistiam? Bom porque ele era o pai dela e ela era a filha dele. O fardo do sangue. O jugo dos genes. As vezes Berenice quase chegava a duvidar daquela genealogia, e recordava-se de que tão-pouco a mãe se parecia consigo no que quer que fosse. Mais um caso de bebés trocados na maternidade, por incúria ou premeditação? Oh, sim, os seus pais biológicos seriam de certeza uns artistas milionários de sangue azul. . .

Claro que nem sequer aflorara a questão da viagem para o Taiti. Se o tivesse feito, o pai por certo acusá-la-ia de o tentar matar do coração. Homicídio em primeiro grau, com calculismo frio e metódico, como se houvesse enterrado uma serra eléctrica no seu peito até que o gume saísse pelas costas, arrastando para fora a velha caldeira. Ou então, na melhor das hipóteses, repetiria o suspiro de Renoir, quando este soube das andanças exóticas de Gauguin: "Mas pinta-se tão bem aqui em Bastignolles. . . "

Não, o assunto com o pai era tabu. Depois logo se veria. Falaram apenas de banalidades e mesmo assim discordaram em tudo.

- Por que é que não comes carne? O bife está uma delícia. Nunca provei um lombo mais tenrinho. Desfaz-se na boca. Fazes uma ideia quanto custa um quilo de carne destes?

- Não me apetece. Só me apetece a salada e o pão.

- Deste em vegetariana, por acaso? Ou estás outra vez de dieta?

- Não, não dei em vegetariana coisa nenhuma. O pai nunca ouviu falar nas vacas loucas? BSE não são travões de automóvel, sabia? Esses são os ABS.

- Oh, por amor de Deus, ainda esta história? Descansa que isso já lá vai. És mais papista que o Papa. Não ouviste o ministro da Saúde? Julgas que ele anda a gozar connosco, ou quê?

- Não sei nem me interessa. Não ligo a mínima ao que os ministros dizem. Estou-me a marimbar para essa gente. Seja como for, ele não disse que conhece o paradeiro de cada uma das vacas que puseram as patinhas em Portugal desde o aparecimento da doença. Se calhar uma delas anda agora no teu prato, a proclamar-se Napoleão. . . Para não mencionar o colesterol dos dois ovos estrelados. E eu não gosto assim tanto de comer para arriscar o meu pescoço por causa de um bife.

- Ai, a que ponto chegamos: hoje em dia, quem come carne de vaca é olhado como se fosse um canibal. Está bem, mais fica. Quem perde és tu.

- Não sei se o pai sabe, mas existem animais chamados perus, galinhas, patos, porcos, ovelhas, peixes. E massas. Agora até já há bifes de avestruzes, não ouviu falar?

- Deus me livre e guarde!

- Na Índia, as vacas são sagradas e ninguém morre de fome. O senhor Veríssimo deu um murro na mesa e soltou uma gargalhada.

- Ai, não? Na Índia ninguém morre de fome? Essa foi o máximo, fillha. A sério: bateste o teu próprio recorde! Os meus sinceros parabéns! Ah, não respondes, não é assim? Topaste a asneira, não foi? Mas teve piada, lá isso teve. Sabes mesmo como animar um jantar.

Berenice continuou calada. De facto, arrependera-se imediatamente do que dissera, não porque tivesse sido um disparate - embora soubesse que o fora, e dos grandes. Receou mas é que, com a alusão à Índia, o pai se lembrasse de Ravi. Era só o que faltava. Não queria pensar naquilo. Queria bloquear o assunto, calafetá-lo por todos os lados. Sobretudo depois que ouvira uma mensagem no seu gravador de chamadas, na qual úma voz masculina, que se identificara como o subinspector Reinaldo Carta, anunciara: "Preciso de conversar consigo assim que for possível. Mera rotina. Mas urgente. " O sujeito repetira duas vezes o número do telefone do seu gabinete na polícia. E prevenira que voltaria a ligar, como uma ameaça velada. Berenice não sabia o que havia de fazer. A mensagem provocara-lhe uma azia intensa, que ainda persistia. Não era um bife de lombo que ia debelar aquilo.

Ah, se pudesse partir hoje mesmo! Entrar no avião naquele minuto e pôr-se a milhas! Já não faltava assim tanto dinheiro, mesmo que não vendesse o apartamento. Anunciara-o para alugar, o que assegurava mais uma fonte de rendimentos - depois o banco providenciaria a transferência da renda para onde quer que indicasse. E já tinha interessados nos sofás, na aparelhagem de som e no fogão. Quanto ao carro, estava praticamente vendido. Mas não podia desanimar, era só questão de mais umas poucas semanas. Precisava de tentar ver o lado bom das coisas: com o atraso, ao menos escapava à estação mais chuvosa e húmida na Polinésia Francesa, que ia de Novembro a Maio.

- Mudemos de assunto. - recomeçou o senhor Veríssimo, pousando o copo de vinho. - E em relação a namorados, como é que vamos?

Pronto, pensou Berenice. Cá vamos nós.

- Não vamos.

- Como não vamos? Nada ainda? Desculpa-me por estar a perguntar, eu sou só o teu pai, mas uma vez que não vou viver para sempre, e tu, se é que ainda não te esqueceste, herdaste o nome da família, queria saber se me deixavas entrar no segredo dos deuses. . . Já tens 22 anos e até hoje não soube que andasses com um rapaz, nem que fosse com um desses valdevinos que abundam na tua escola!

- E depois?

- Mas filha, estás à espera de quê? Da menopausa? Eu queria tanto um neto. . .

- Compra uma dúzia. Dinheiro não te falta.

- Se fosses um pouco mais simpática e não te vestisses sempre de preto! Pareces uma viúva - antes fosses. . . Se te arranjasses um pouco aposto que estavas casada e já eras mãe.

- Acha que sim?

- Claro que acho. Evidentemente. É que até nem és feia.

- Obrigado pelo galanteio. Foi muito convincente.

- Pois, mas do jeito que te vestes e falas, e com essas maneiras arrapazadas, ainda dás em solteirona. Nem sequer em tia, pois não tens irmãos.

- Ao menos disso não me pode culpar, não é mesmo? Não é entusiasta do incesto, creio?

- Berenice! Respeita-me, está bem? Bom. . . Ó filha, na minha idade é natural ansiar por um neto. Um rapazinho a quem eu ensine uns truques. Não é pedir muito. . . Um dia também hás-de ter um filho, e vais ver como é.

- Sempre um rapaz! Há pelo menos 22 anos queres um rapaz. O pai e a mãe, se não me engano.

- O que é que pretendes dizer com isso? Que não arranjas namorados só para me agradar? Francamente, Berenice. Tem mas é juízo.

Acabaram de comer em silêncio. Depois, o pai fez o que fazia desde que mandara instalar a TV Cabo: dirigiu-se para a sala, aninhou-se no seu cadeirão almofadado, acendeu um charuto, estirou as pernas por baixo da mesinha e pôs-se a assistir a um programa do Travel Channel, intitulado "Além do Horizonte".

Berenice não percebia aquilo. Não fazia sentido nenhum. Nenhum, nenhum. Não tinha ponta por onde se lhe pegasse. Afinal de contas, o pai detestava viajar.

- Por isso mesmo. - explicara o senhor Veríssimo, esfingicamente. - Vá lá, o programa tem imensa graça. Por que é que o não admites? Só para me chatear? Não sejas tão casmurra. Faz-te rugas.

A jovem sentou-se no sofá e consultou o relógio. O ponteiro dos segundos rodopiava vagarosamente. Ficaria mais dez minutos. Dez, não: cinco.

No ecrã, sucediam-se as imagens de diferentes países, com breves comentários sobre terras e costumes exóticos ou curiosos, passados ou contemporâneos.

Berenice aguçou os ouvidos.

"Na Índia, até mesmo a sombra de uma pessoa de baixa casta pode ser considerada uma profanação, se incidir sobre um brâmane, membro da classe mais alta, ou seja, dos sacerdotes. Conquanto as leis actuais da Índia proíbam o sistema de castas, muitas pessoas ainda o observam, na prática".

Apreensiva, a rapariga olhou de relance para o pai. Aquilo já era uma conspiração! Felizmente, a informação não despertara o idiossin       crático interesse paterno. Pelo contrário, o Papá Urso bocejou e espreguiçou-se. Deu pancadinhas na barriga, como se estivesse a brincar com um cachorrinho.

- Acho que vou beber um conhaque. Para espevitar. Se não,          daqui a meio minuto estou a dormir. Hoje não parei o dia todo. E levantei-me às seis. Aposto como ainda ias no primeiro sono. Vá, confessa lá. - O senhor Veríssimo era uma dessas pessoas que falam do trabalho como se o esforço lhes pertencesse só a eles, como se fosse uma cruz árdua e iníqua que devessem transportar, enquanto o resto da humanidade se entretinha levianamente.

"Em Ann Arbor, no Michingan, há proporcionalmente mais dentistas do que em qualquer outra cidade dos Estados Unidos. O município detém, também proporcionalmente, o maior índice de roubos nos EUA. Não foi estabelecida nenhuma conexão entre os dois factos. "

A menção aos dentistas e a circunstância de o programa ser dobrado em brasileiro levaram Berenice a pensar numa notícia que lera aquela manhã. A nota informava que o subinspector Reinaldo Carta,        responsável pelas investigações sobre o crime da cabeça decapitada, se avistara com o dentista da vítima, um cidadão brasileiro chamado Lourenço Maia. Como sempre, o subinspector recusara-se a comentar as declarações que recolhera, mas era bem provável que já andasse nos calcanhares do criminoso.

Aquilo deu-lhe uma ideia. Sim, era possível que fosse uma boa ideia. Valia a pena tentar, em vez de ficar de braços cruzados, feita parva.

Berenice voltou para casa às dez e meia da noite. Inclinando a cabeça para o lado, o pai adormecera diante da televisão, e ressonava com um assobio intermitente. Ela desligou a TV, pegou no charuto como se ele fosse a cauda de uma ratazana, apagou-o na torneira da cozinha e deitou-o no caixote de lixo. Retirou o copo de conhaque do braço do cadeirão e pousou-o na mesinha de centro. Esboçou um sorriso: era muito menos desmazelada na casa do pai do que na dela. . . Depois, tentou sair de mansinho mas a fechadura de segurança da porta da rua fazia um barulhão com aquelas trancas todas. Assim como assim, o pai teria mesmo de levantar-se do seu trono para se ir deitar.

E agora, o que é que eu faço, o que é que eu faço? gemeu Berenice, ao correr o trinco do seu próprio apartamento. Pairava um odor agradável, uma mistura leve e limpa de panos novos, verniz de mobiliário e essência de banho de ervas. A ideia que lhe acudira ao espírito parecia boa, pelo menos em teoria, mas só podia pô-la em prática no dia seguinte. Despiu o impermeável e pendurou-o no bengaleiro. Foi para o quarto, sentou-se na cama, descalçou os sapatos e as meias e vestiu o pijama. Não tinha sono nenhum. Pelo contrário, sentia-se inquieta e excitada.

Já em chinelos, vagueou rumo ao telefone, instalado na divisão que utilizava como atelier. Por que é que Cecília não lhe telefonava? Nem uma palavrinha! Só podia ser por causa de Ravi. Não havia outra explicação. Sabia que Cecília tivera um fraco pelo colega. Também, que novidade! Aquela tipa tinha um fraquinho por tudo o que usasse braguilha. Berenice nunca vira ninguém mais promíscuo e volúvel. Era como se a Sidajamais tivesse existido. No entanto, quando a censurara por ser inconstante, a amiga respondera-lhe, com aquela risota dengosa: "Inconstante não, versátil".

E Cecília aduzira um pequeno discurso, com a gordura e o açúcar dos donuts nos cantos dos lábios: "Ouve, Berenice, ninguém é perfeito - nem mesmo eu. Estou a brincar, claro. Mas isto é a sério: por mais que nos amem, nos desejem, por mais sedutoras que sejamos, os homens acabam sempre por se fartar de nós. Sempre, sempre. Deve ser aquela história de que eles são os portadores dos genes e nós as incubadoras. A natureza paga-lhes para que reguem tudo quanto é canteiro. Trata-se, portanto, de nós nos anteciparmos a eles. E tão simples como isso. Na vida de uma mulher há apenas uma lição, minha linda: só ter sexo com homens que te desejam mais do que tu os desejas a eles. "

Não, Berenice não estava a ser injusta nem desleal. Já lhe dissera aquilo tudo pessoalmente, não fazia muito tempo. Fora no mês passado.

Encontravam-se num café na avenida 24 de Julho, a comer uma torrada e a passar a pente fino a matéria de História da Arte Antiga. Egipto, para ser mais precisa. A troco de nada, assim sem mais nem menos, Cecília acusou-a de não gostar de rapazes. Lembrava-se perfeitamente da frase: "Que coisa, Berenice. Até parece que não gostas de rapazes. " Ao que ela respondera, com toda a calma que conseguiu mobilizar: "Não, não gosto é de qualquer um. "

Será que Cecília a culpava pelo que acontecera a Ravi? Já agora, podiam culpá-la também pela extinção das baleias e pelo buraco no ozono! Cecília não lhe telefonava desde que a morte do colega se tornara pública e como por sua vez Berenice não regressara à escola. . . Não se falavam há tanto tempo Imenso tempo. Tinha saudades daquela tonta. Não sendo boa em nenhum desporto, nem elegante, nem estúpida, não era assim tão fácil para Berenice fazer amizades. Ainda por cima, Cecília sabia que, mais dia menos dia, ela ia-se embora para a Polinésia.

E Berenice morria por descobrir o que é que se passava na Academia. O que é que murmuravam por lá. Se davam à língua sobre ela e coisas assim. Ligara inúmeras vezes a Cecília e deixara sucessivas mensagens no atendedor de chamadas, mas não obtivera qualquer resposta. Nada vezes nada. As mensagens tinham sido devidamente ouvidas, lá isso tinham, pois a quantidade de sinais no gravador nunca era a mesma. Depois Berenice passou apenas a marcar o número, para ver se a outra atendia, porém já não deixava recados. Para quê?

Sim, se calhar a amiga tinha ficado zangada com o estalo que dera em Ravi. Mas, sinceramente, aquilo eram águas passadas. Fora um azar incrível, quase como espancar um cadáver, mas o que é que ela podia fazer? E se Cecília estava deprimida com a morte do colega, mais uma razão para desabafar com alguém de confiança. Eram ou não eram amigas do peito?

Seria possível que na Academia andasse toda a gente melindrada com ela? Pronto, estava arrependida pela bofetada em Ravi, mas só postumamente. Quer dizer, estava arrependida porque afinal o rapaz tinha morrido. Uma grande chatice. Se ele continuasse vivo, não experimentaria nem um bocadinho de contrição. No entanto, claro que não fora o tabefe que dera cabo dele. Um estalo não ceifa a cabeça de ninguém.

A cabeça degolada. Que horror. Fechou os olhos para apagar aquela imagem. Game over.

Tinha a certeza absoluta de uma coisa: Cecília achava que dera a bofetada ou porque Berenice não gostava de rapazes ou porque amava Ravi e sentia-se despeitada porque ele lhe não retribuía. Não tinha lógica nenhuma. Era uma contradição nos termos. Se calhar a culpa era mesmo dela, ao menos indirectamente: faltara-lhe a coragem para contar à amiga que o rapaz, com aquele arzinho sonso que os homens arvoram nessas alturas, propusera-lhe posar nu para ela, no seu próprio apartamento. "Sou muito melhor do que os modelos da Academia. Porque sou naturalmente proporcionado, e não um boneco insuflável", ronronara, impando-se todo, realçando o peito como um pombo e gingando os quadris. "Vais ver como te inspiro uma obra-prima. E, se quiseres, levo o meu "Kama Sutra", para qualquer emergência. Nunca se sabe. " O cretino falava no "Kama Sutra" como se fosse um vibrador. Quando estendera a mão para lhe apalpar o rabo e lhe dissera aquilo, ela pregara-lhe o tal correctivo.

O relógio de parede bateu onze horas. Berenice contemplou os folhetos turísticos sobre a Polinésia, que, como cartas de Tarot, continuavam espalhados em cima da mesa. Um deles apresentava uma perspectiva aérea de Bora Bora, com as suas cristas vulcânicas de lava e basalto, a floresta sedosa e húmida como folhas de ervilhas, as praias solitárias, o mar e a sua infindável gama de azuis: o azul-marinho, o azul-nocturno, o azul-safira, o turquesa, o alfazema, o glauco, o azul prateado da laguna.

Um paraíso? Isso agora. . . Berenice sabia que por todo o lado o paraíso estava irremediavelmente perdido, mas era talvez possível

encontrar os seus vestígios, os seus restos mortais. E, de qualquer modo, um artista não pinta apenas a beleza, mas antes o sublime, e este contém numerosas sombras e fantasmas, porventura mais do que a própria harmonia.

Ainda assim, a colonização a sério da Polinésia só tinha começado em 1843, quando o almirante Abel del Petit Thouars proclamara a sua anexação à França, com a aquiescência da rainha indígena Pomare iv. Um pouco mais tarde, o rei Pomare v, depois de ter cedido os seus direitos em troca de uma pensão de cinco mil francos mensais, morrera de cirrose hepática provocada pelo alcoolismo crónico que reduzira o seu figado a uma esponja porosa.

Mas o panorama polinésio jamais se adulterara a ponto da desfiguração, nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, com a instalação pacífica de 5 mil soldados americanos em Bora Bora, para proteger a ilha de uma eventual invasão japonesa. E, quando, nos anos 70, o produtor Dino de Laurentis rodara naquelas paragens o filme- catástrofe "O Furacão", ninguém duvidara de que esse título reflectia apenas uma liberdade poética, quer no sentido literal quer no sentido figurado. Não, aquilo ainda não era propriamente a Baixa da Banheira.

Era bem verdade que as coisas são como são e vão continuar a ser

- já em 1888, o seu querido Paul Gauguin fora multado pelas autoridades francesas da Polinésia por atentado ao pudor, depois de ter sido surpreendido pelos "gendarmes" a tomar banho de mar inteiramente nu, na primeira aldeia indígena que encontrou pela frente.

Batendo as pestanas, Berenice levantou o olhar para a reprodução de uma tela de Gauguin que, com quatro pionaises, pendurara na parede do aposento. Intitulava-se "De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos?" Era o seu Gauguin predilecto, no que estava de acordo com o pintor, que apontara nos seus cadernos: "Creio que esse trabalho não só ultrapassa em valor todos os anteriores, como também nunca mais farei outro melhor". E pensar que o pintor só o conseguira vender por menos de mil francos, cerca de 30 contos. . .

Nos projectos preliminares, o artista anotara que a tela teria seis metros de comprimento por dois de altura, o que correspondia às dimensões do seu estúdio em Moorea. Todavia, depois de pronto o quadro compreenderia cerca demetro e quarenta centímetros por 3 metros e oitenta centímetros. Não obstante o cenário edénico, Gauguin iniciou-o numa altura funesta da sua vida - decidira cometer suicídio numa data marcada, viciara-se em drogas, sofria de sífilis e de um momento para o outro podia ser preso.

Podia ser preso. . . Ao menos ela não se viciara em drogas nem sofria de sífilis. Berenice deu mais um passo em direcção à reprodução. Os dois cantos superiores da tela tinham sido pintados de amarelo e continham inscrições: à esquerda, o título da composição, e à direita, a assinatura do autor. No centro, via-se uma figura andrógina banhada pelo sol, a colher uma fruta. Ao lado dela, mas no seio de uma sombra azulada e fria, pairava um ídolo pagão, com os braços misteriosamente erguidos, como se indicasse o além. Em baixo, à direita, um bebé repousava, velado por três jovens agachadas. No canto oposto, uma criança comia uma maçã ao pé de dois gatos e uma velha moribunda aparentava resignação.

Berenice não tentava traduzir em palavras o significado do quadro, mas tinha as suas impressões sobre ele. Distintas figuras, grupos e paisagens violavam todas as escalas e perspectivas comuns. A figura central dominante consistia no andrógino, que podia ou não estar a colher o fruto da Árvore do Conhecimento. Berenice sabia que, para Gauguin, as mulheres europeias eram intelectualmente atrofiadas, mantidas na debilidade e inferioridade, com as suas possibilidades de desenvolvimento tolhidas. Na Polinésia, como o pintor escrevera, tudo era diferente: "Aqui há qualquer coisa viril na mulher e qualquer coisa feminina no homem". A propósito, quando Gauguin desembarcara em Papeete, os nativos chamaram-no "taata vahine", ou "homem-mulher". No dia em que Berenice comentara tal facto com Ravi Sharma, censurando-o pelo seu sexismo chauvinista, o rapaz resmungara: "Pois, o teu Gauguin andava para cima e para baixo metido num saiote. É por isso que gostas tanto dele - também tu és um homem de saias. "

Não, ela não ousava esgotar racionalmente o sentido do quadro "De Onde Viémos, Quem Somos, Para Onde Vamos". Mas distinguia naquelas personagens e cores uma cidadania ao mesmo tempo secular e espiritual, que nunca tinha começado e nunca iria acabar. Era a experiência extática de uma possibilidade, de um mundo mais belo e melhor adjacente ao nosso, e ao qual este último remetia por meio de símbolos muito simples, tão simples que quase o poderíamos tocar, se ao menos. . . Um mundo limpo, honesto e inocente, no qual toda a gente sabia a verdade e toda a gente era feliz. Se ao menos. . .

Virando as costas à tela, aproximou-se do seu globo terrestre, uma prenda que o pai lhe dera há um ano. O globo, como o senhor Veríssimo explicara à filha com uma fisionomia travessa, tinha sido um brinde do Travel Chanel aos seus espectadores mais assíduos e devotados. Berenice girou-o distraidamente. Depois, com o globo de novo imóvel, pousou o dedo em Lisboa e deslizou-o horizontalmente para a direita, seguindo o paralelo - passou por Nápoles, Ancara, Pequim, Denver e Nova Iorque. A Polinésia ficava lá em baixo. Lá longe.

Valha-me Deus, e aquela peste de inspector? Ou subinspector, ou lá como se chamava o seu cargo? Era bem possível que suspeitasse dela a sério, para valer. O que era mais grave e preocupante do que a birra pueril de Cecília. Afinal, Cecília, embora a pudesse fazer sofrer, não podia mandá-la para a cadeia pelo resto da vida. Bem, pelo resto da vida também não. Não havia prisão perpétua em Portugal. Nem, seguramente, pena de morte. Ou será que agora já havia? Oh, sim, ela sabia como a polícia funcionava: apanhavam tudo o que podiam nas suas grandes redes de malhas apertadas e depois deitavam fora o refugo, e assim ficavam a saber de muitos segredos que não tinham nenhum direito de saber e causavam grandes desgostos.

Ah, quem lhe dera que a bilha tivesse tantas moedas como a caixa forte do Tio Patinhas.

Como não era o caso, chegara a hora do plano B.

 

Já agora, convém não perdermos mais tempo, não é verdade? - sugeriu o doutor Lourenço Maia.

- Com certeza. - concordou Berenice Veríssimo. - Mais uma vez, agradeço imenso a sua boa vontade e peço desculpa pela maçada, doutor. Mas já não podia com a dor de dentes. Tomei não sei quantas aspirinas e nada. Ah, ainda bem que a sua cadeira é comprida. Tenho pernas que nunca mais acabam. No liceu, chamavam-me "girafa" ou "escadote". Muito criativo, não acha?

Berenice tinha a penosa noção de que estava a tagarelar descontroladamente, mas falar pelos cotovelos era um velho tique dela, sobretudo se o interlocutor se mantinha reservado e observador, como agora esse dentista. Que inveja sentia das pessoas que não receavam o silêncio, nem se perturbavam com a sua própria mudez. . . Depois, ainda por cima, acudiam-lhe parvoíces absurdas, como aquela das "pernas que nunca mais acabavam". Parecia que estava a gabar-se, a armar-se em boa. Logo ela. Olha quem.

- Pronto, pronto, então diga-me lá qual é o problema assim tão urgente. Eu, como médico, não tenho horários, mas a dona Margarida está ansiosa por voltar para casa. Já passa e muito das sete. E chove a potes.

- A sua assistente? Ah, calculei logo, pela cara que ela fez quando pela milionésima vez insisti na consulta. Lembrou-me aquele monstrojaponês, o Godzilla. No bom sentido, é claro. Não sei sejá viu o filme. Não presta para nada. Aonde é que eu ia mesmo? Ai, sim, é que o dente dói-me horrivelmente, e como estou com uma viagem marcada para muito longe, com muitas horas de voo, achei melhor certificar-me de que não era nada de grave. De que não ia desembarcar num caixão.

- Posso estar a ser precipitado, mas creio que podemos afastar a hipótese necrológica. Então abra bem a boca. Não, antes diga-me só uma coisa: como é que fui o feliz eleito? Não é minha cliente. . . Mora aqui perto?

- Não, mas já o conhecia de nome. Sou colega, ou antes, fui colega de um cliente do doutor.

- Sim? E qual deles?

- O Ravi Sharma.

- O rapaz decapitado? Então deve estar muito abalada.

- Hã, eu disse que era colega dele, não amiga. Na escola, sentava-se ao meu lado. Para ser franca, não nos dávamos lá muito bem.

- Não? Estranho. Julguei que as raparigas simpatizassem com ele.

- Era o que ele pensava, disso não tenho dúvidas nenhumas.

- Lá isso é verdade. Considerava-se um "matador", não é? Mas como tinha boa figura. . .

- Ah, e julga que uma bela plumagem chega para apanhar-nos a todas na estação do acasalamento, não? De preferência com uns cabelos no peito, talvez? Perdoe-me, doutor, mas vocês os homens só não são todos iguais porque uns conseguem ser piores do que os outros.

- A sério? Somos assim tão maus? Então vamos lá tratar do seu caso. Abra bem a boca, por favor. Como se fosse engolir um cachalote. Qual é o dente que lhe dói?

- Mmmmm. É este. Não, este!

- O segundo molar. Realmente, a cárie foi obturada há algum tempo mas está um bocadinho deteriorada.

- Jura? Ah, pois, bem me parecia. . .

- Dói quando come um gelado, por exemplo?

- Imenso. De subir pelas paredes.

- Curioso: não há infecção na polpa nem abcesso na raiz. Ouça, costuma usar o fio dental?

- Sempre.

- Antes ou depois da escovagem?

- Antes.

- Muito bem. Então vou restaurar a obturação. Não que fosse atrapalhar a sua viagem. Para ser sincero, não percebo como é que dói assim tanto. Posso perguntar-lhe para onde é que vai?

- Para a Polinésia Francesa.

- A Polinésia Francesa? Não tenho a certeza de saber onde fica exactamente. . .

- O centro da Polinésia é formado pelas ilhas da Sociedade - as mais conhecidas são o Taiti, Bora Bora, Moorea e Raiatea. Mas na realidade os diferentes arquipélagos polinésios estendem-se por uma superFície marítima comparável ao continente europeu.

- Ah, sim, as famosas ilhas dos Mares do Sul. Deve ser muito bonito. Prazer ou negócios?

- Como?

- Que eu saiba não é altura de férias académicas. E como disse que andava na Escola de Belas Artes. . .

- Andava mas já não ando.

- Desistiu?

- Não é bem isso: vou fazer uma espécie de estágio ou trabalho de campo no cenário onde trabalhou o pintor que mais admiro.

- E pode saber-se o nome dele?

- Paul Gauguin.

- Hum, o tal que induziu Van Gogh a cortar a orelha. Vi um filme sobre a vida deles, se não me engano com o Kirk Douglas e o Anthony Quinn.

- Gauguin não induziu Van Gogh a cortar orelha coisa nenhuma. Desculpe-me, mas isso é um lugar-comum pateta, que só favoreceu Van Gogh e só lixou Gauguin. Na verdade, ele - junto com Picasso é o maior nome da arte do século xx. Van Gogh já estava doido varrido quando aquilo aconteceu, mas deixou Gauguin com a fama de um Mike Tyson do pincel.

- Tudo bem, não está mais aqui quem falou. Depois explica-me melhor essa história da orelha, combinado? Agora fica proibida de dizer uma palavra, se não nunca mais saímos daqui. Aliás, espere um segundo que vou dispensar a dona Margarida. Não preciso dela para a obturação.

Sozinha por um instante, Berenice deplorou o rumo dos acontecimentos.

Mal por mal, ao menos ficava com um dente tratado. . . Mas em relação às suspeitas do subinspector Carta não avançara nada. Fora uma parva e não soubera manobrar a conversa. Com certeza parecia ao mesmo tempo desejosa e receosa de falar, o que não era nada bom.

Nem um pouco antipático, o tal dentista. Com que simplicidade confessara que não conhecia a localização da Polinésia! Mais valia uma ignorância despretensiosa do que uma erudição cabotina. Mil vezes! E ela sabia do que falava, pois era uma leitora voraz. Uma vez pensara até em arranjar um daqueles capacetes de mineiros, com uma lanterna embutida, para ler mais confortavelmente na cama. Depois reconsiderara - tratava-se de um disparate de todo o tamanho.

- E pronto. Ficou bem bonito, modéstia à parte. Segure o espelho e veja por si própria. Não ficou?Agora durante uma hora não come nada, está bem? Nem sequer um tremoço.

- Prometo. Estou muito mais descansada.

- Ainda bem.

- Ahn, doutor, bem sei que é tarde e que está com pressa depois deste frete todo, mas posso fazer-lhe uma pergunta?

- Força.

- Foi interrogado pelo polícia que anda a investigar a morte do Ravi, não foi?

- Fui sim senhora. Desconfio que na Escola de Belas Artes não falam de outra coisa, não é?

- Pois não. Olhe - como é que hei-de dizer? - o subinspector comentou algo sobre mim?

- Sobre si? Por que é que ele havia de comentar algo sobre si? Berenice sorriu debilmente.

- Ora, fui colega de Ravi.

- Creio que não foi a única. . . Não me diga que eram só os dois na aula. . .

- Sentava-me ao lado dele.

- Não me parece assim tão importante. A não ser na hora de se copiar as respostas dos testes.

- Não me dava com ele.

- Quem não deve não teme.

- Dei-lhe uma bofetada na véspera da sua morte e toda a aula viu. E suponho que toda a Baixa Pombalina ouviu. O eco por acaso não chegou cá?

O doutor Maia olhou-a fixamente, como se a visse pela primeira vez. A jovem vestia-se de preto dos pés a cabeça, o que quase reduzia a sua esbeltez angulosa a uma esqualidez cadavérica. Usava o cabelo curto, com uma franjinha género patrício romano. O nariz era aquilino, com narinas largas e palpitantes. Os olhos cinzentos, semiocultos pelas pálpebras descidas, alternavam lampejos de ousadia e apreensão.

- Quer jantar comigo? Hoje? Esta noite? Daqui a uma hora já pode comer bem mais que um tremoço. Contava-me mais sobre Gauguin e a orelha de Van Gogh, e eu contava-lhe mais sobre o interrogatório do subinspector. Parece-me uma troca justa. Que tal?

A rapariga permaneceu um instante sem mover um músculo. Depois, quase sem pensar, num impulso que não teve tempo de refrear, Berenice fitou o dentista e acenou afirmativamente com a cabeça.

 

EM PÉ, diante do EsPELHo, Berenice mantinha as mãos pousadas na cintura e as pernas afastadas. Nua como um osso, os globos de água dos cabelos molhados tombavam-lhe pelos ombros, sulcando a pele arrrepiada de frio. Era um daqueles espelhos antigos, grandes e ovais, com moldura e pés de madeira, que se inclinavam para a frente e para trás e abarcavam todo o corpo.

Examinava-se atenta e criticamente, com uma sensação de angústia. De uma vez por todas, tinha ou não uma aparência, já nem dizia arrapazada, mas mesmo masculina? Viril, até. . . Francamente achava que não. Certo, era esguia e musculada, mas não ao ponto do culturismo grotesco, dos bíceps e peitorais salientes e a pele resplandecente de óleo. Na verdade, parecia a si própria até um pouquinho frágil e etérea, o corpo delgado como uma raiz. Todavia, era saudável, lá isso era - não se lembrava da última vez em que estivera doente, nem sequer constipada.

Ou estava a iludir-se inconscientemente? Recordou- se de Mette Heegaard, a esposa dinamarquesa de Gauguin, e sorriu com amargura: seria aquele o seu caso? A mulher de Gauguin tinha um aspecto tão másculo que, em 1905, o fiscal dos Caminhos de Ferro do sul da França quase expulsara de uma cabina só para mulheres (havia isso naquele tempo) um homem que fumava um charuto de bom tamanho. Só que o homem não era homem - era Mette. . . Aliás, Berenice vira um dia uma fotografia de Mette: assemelhava-se à ideia que se faz de Gengis Cão. Não, ela, Berenice Veríssimo, não era assim. Nem pensar. Se na infância e ainda na pré- adolescência se conduzira com uma maria-rapaz, a culpa cabia toda aos pais - por meias palavras, estavam sempre a deplorar que o seu único herdeiro não fosse um varão. Um irmão de Berenice - o primogénito, um homenzinho! morrera com apenas dez meses, de difteria. Berenice nasceu um ano depois daquela morte, mas tinha a sensação de que os pais nunca lhe perdoaram. Não podiam olhar para ela sem tornar claro que tinha sido o filho errado a morrer. Tentara até gostar de futebol, a fim de indemnizar o pai pelo facto de ser meramente uma rapariga. Acompanhara o senhor Veríssimo aos estádios e assimilara os nomes dos jogadores, as regras, as tácticas e o jargão desportivo. Não conhecia muitas meninas que soubessem em que consistiam o fora-de jogo, o pontapé de bicicleta, a marcação homem-a-homem, o pé- em-riste.

Naquela época o senhor Veríssimo era muito mais supersticioso que agora. Quando a sua equipa começava a perder, resmungava que aquele maldito assento dava azar. E, deixando a filha com ordens expressas para que não se movesse dali, mudava-se para outra cadeira, uns vinte metros mais distante. Se aquilo não resultava num prazo razoável, tornava a deslocar-se mais uns bons metros, percorrendo a configuração oval do estádio. Um dia, depois de muitos minutos e muita persistência, a equipa do senhor Veríssimo lá conseguiu virar o resultado adverso. A custo, Berenice distinguiu o pai, do outro lado do estádio, na direcção oposta de onde ela se encontrava, dando pinotes de alegria e acenando-lhe com o polegar para cima, como se exclamasse: "Eu não disse? Eu não disse?" Às vezes, contudo, o senhor Veríssimo completava toda a elipse de cimento e voltava cabisbaixo ao ponto de partida, sem que o marcador desfavorável se alterasse. Nesses dias, regressava a casa como se o gato lhe tivesse comido a língua.

Claro que depois Berenice deixara-se daquela tolice sem pés nem cabeça. Hoje não podia nem ver uma partida de futebol pela TV, nem sequer o resumo dos golos no telejornal. Oh, se houvesse alguém a quem pudesse jurar que não era lésbica e isso chegasse para que todos acreditassem nela e a deixassem em paz! Mas não havia ninguém assim, nem uma alma neste mundo sobrepovoado.

Dentro de um quarto de hora, o doutor Lourenço Maia, que a levara de carro do consultório até à porta de casa, viria buscá-la para jantarem. Os tais tremoços reforçados. Aceitara o convite para saber mais sobre o curso das investigações. Em suma, para tirar nabos da púcara.

O dentista afigurava-se uma boa pessoa. Talvez arranjadinho de mais para o seu gosto, com a risca do cabelo tão direita e o corte de simetria perfeita - mas de aspecto agradável. Durante o percurso, falara dos seus filhos com uma ternura quase piegas. Berenice tinha a certeza de que o seu próprio pai nunca falava assim dela. Gauguin também amava os filhos, e sofrera muito com a morte da filha Aline, de pneumonia, aos 20 anos, quando ele se encontrava na Polinésia. Por sinal assim como o doutor Maia, o pintor também tinha uma costela sul-americana: partira de Lima, a capital do Peru, apenas aos sete anos. E mais tarde evocara a cidade com uma nostalgia elegíaca: "Esse maravilhoso lugar onde nunca chove."

Enquanto secava o cabelo com o secador cavernoso, com gestos enérgicos de domador de circo, Berenice meditou na observação do doutor: "Passo pela sua casa às nove. Toco a campainha e desce, está bem?" Fora atencioso e cortês da parte dele. Ou seja, como se sugerisse: "Não pretendo meter-me na sua casa e seduzi-la". Que palerma: se calhar não era nada disso. Talvez ele estivesse apenas a ser pragmático, ou mesmo preguiçoso.

Vestiu-se e voltou ao espelho, balançando-se nos calcanhares. Não, definitivamente não possuía uma aparência viril. É certo que, por vezes, ainda tinha pesadelos com aquela tarde, e acordava a gemer no meio da madrugada, de mãos estendidas, à procura da realidade. Então sentava-se na cama, com os braços à volta dos joelhos, ou andava de um lado para o outro do quarto, porque quando se deitava não conseguia evitar crispar-se e virar-se e cravar as unhas nas partes moles de si mesma. Depois de tanto tempo, já nem sabia o que era fantasia e o que não era - e isso era o pior de tudo.

Quantos anos teria então? Oito, nove? De qualquer forma, andava num dos últimos anos da instrução primária - lembrava-se perfeitamente da bata do colégio, de colarinho redondo como asas de borboletas. Tinha surripiado dinheiro da carteira da mãe, para comprar guloseimas. Mais por aventura do que por outra coisa. Com uma colega mais velha, que já chumbara duas vezes, fizera gazeta e vagueara pelas traseiras da escola, empanturrando-se de bolos, gelados e coca-cola. Rebolavam juntas pela ribanceira relvada, e depois tornavam a subir e rebolavam de novo. Ela, uma criança tão séria, nunca se divertira tanto na vida. Regalou-se de tal modo que não deu pelo passar das horas, nem pelo fim das aulas, assinalado pelas badaladas de um sino. A mãe, uma mulher seca, fanática e irascível, foi encontrá-la estendida na relva, ao lado da amiga, toda salpicada de folhas, na roupa e nos cabelos.

Até chegar a casa, a mãe não disse uma palavra. Depois, escoltoua pela mão até ao quarto, mergulhado na obscuridade. Acendeu o abajourt da mesinha-de-cabeceira e sentou-se com a filha na borda da cama, puxando a saia para os joelhos. Berenice tremia só de pensar que a mãe tinha desmascarado o seu pequeno furto. Jamais seria perdoada. Jamais. Rezava silenciosamente para que ela não tivesse dado pela falta do dinheiro, e estivesse zangada apenas por causa da gazeta. Era um mal menor - até porque tinha sido a primeira vez.

- Foi aquela Cristina que te obrigou a fazer isso, não foi? "Isso"? O que a mãe quereria dizer com "isso". Mmmmm. . . Devia ser a gazeta.

- Responde. Não tenhas medo, que eu sou a tua mãe e tudo o que faço é para o teu bem. Estás cansada de saber que eu até era capaz de tirar a comida da minha boca só para te dar a ti. E descansa, que quem diz a verdade não merece castigo. - A senhora Veríssimo cerrou os maxilares. Cheirava intensamente a Vicks Vap-O-Rub, que usava como panaceia para todos os achaques.

- Nós fizemos gazeta, sim senhora. Mas já tenho boas notas e o ano está mesmo no finzinho. . .

- E por que é que estavam deitadas juntas quando vos encontrei?

- Tínhamos rebolado na relva e estávamos cansadas. Foi isso, mãe. Juro.

- Quem mais jura, mais mente. Ouve-me com atenção e pensa bem no que vais responder. Não me tentes enganar que é pior. Deixaste que ela olhasse as tuas partes? A tua coisinha? E que ela pusesse lá as mãos? Deixaste, não deixaste? Fala.

A minha coisinha? Aonde é que a mãe queria chegar? O que era a sua "coisinha" A sua mochila nova, talvez Oh, sim, Cristina empurrara-a quando rebolavam, e ela por sua vez empurrara a amiga fazia parte da brincadeira e tinham as canelas esfoladas de tanto rolarem de um lado para o outro. Bem, desse por onde desse, sempre era melhor do que ser acusada de ladra. Graças a Deus, parecia que a mãe não descobrira o furto. Ela dizia sempre que a propriedade era sagrada. E Berenice só queria era ver-se livre daquilo. Sair daquele quarto, daquela penumbra, daquele odor.

- Sim, deixei, mãe.

A mãe fechou os olhos por um momento. Quando os abriu, exibia uma fisionomia impávida, quase pacificada. Se calhar aquilo ainda acabaria bem, ou pelo menos não tão mal como Berenice receara ao princípio.

- Eu já sabia. Tive um pressentimento. Eu já sabia. Coração de mãe não se engana. E gostaste, não foi? Gostaste, não gostaste?

Aquele "não foi?" induziu Berenice a crer que a mãe esperava e ficaria satisfeita com uma resposta afirmativa. De qualquer forma, não tinha a mínima ideia do que ela estava a falar, se da mochila nova ou de outra coisa qualquer, mas uma coisa era certa: do dinheiro furtado é que não era. Ufa, disso já estava salva e nunca mais se meteria noutra! Portanto, nenhuma resposta sobre aquele mistério podia ser tão catastrófica. No fundo, aquilo era como as provas orais de tabuada, em que Berenice se desenrascava sempre tão bem.

- Sim, mãe.

- Sim, mãe, o quê?

- Sim, gostei.

- Gostaste de quê?

- Gostei de que a Cristina olhasse a minha. . . coisinha. E de que pusesse lá as mãos. Gostei, gostei. Gostei muito.

A bofetada apanhou Berenice de surpresa e foi tão violenta que atirou-a ao chão. Dejoelhos, atordoada, com as faces palpitando, ouviu a mãe soluçar convulsivamente. Quando parou de chorar, a senhora Veríssimo começou a gritar. Mas então Berenice já não ouviu muito bem, pois tinha tapado os ouvidos com as mãos, com toda a força de que era capaz. E desatara a imitar, o mais baixinho possível, o ronco de uma motocicleta.

Até aos vinte anos, costumava repetir a si mesma: não devo odiar a minha mãe, não devo odiar a minha mãe. Nem mesmo a memória dela.

Berenice começou a escovar o cabelo diante do espelho. A escova tinha cerdas rijas e arranhava-lhe o couro cabeludo. Mesmo assim, iniciou a contagem de cem escovadelas. Tinha lido numa revista pateta que cem escovadelas diárias são o caminho mais curto para uns cabelos sedosos e macios - e nem tudo o que vinha numa revista pateta era forçosamente pateta. Aquilo até fazia sentido.

Será que o dentista achara estranho tanto interesse da parte dela nas averiguações do subinspector? Se achara, não o deixara transparecer. Afinal de contas, a bofetada na véspera do crime explicava muita coisa. Era natural que estivesse um pouco apreensiva. Ia viajar para longe, não ia? Não desejava ser perseguida por um mandado de captura. Ou mesmo retardar a partida por causa de suspeitas infames e interrogatórios cretinos.

Era curioso: no princípio até simpatizara com Ravi. Oh, ele era indiscutivelmente atraente, mas não se tratava disso, nem pouco mais ou menos. Parecia mesmo interessado na arte, e não apenas no sentido académico. Nos primeiros dias haviam conversado sobre Gauguin de forma muito agradável. Mas tudo logo deu para o torto. Foi quando Ravi principiou com aqueles piropos estúpidos e depois com as bocas foleiras. Tornou-se impossível. Uma vez, como quem não quer a coisa, informara-a de que, segundo o "Kama Sutra", as dimensões sexuais de um homem podem classificar-se como "lebre", "touro" ou "cavalo". E acrescentara, de sorriso fanfarrão nos lábios: "Adivinha lá em que categoria eu me encaixo?" Berenice franzira a testa por uns segundos e dissera: "Não há uma categoria intitulada "micróbio?"

Não, ela realmente não tinha muito jeito com os homens. Nunca o tivera, talvez por causa da sua aparência de ave pernalta. Na instrução primária, um punhado de rapazes da sua aula ataram-lhe os ténis de ginástica um no outro, com os próprios atacadores e imensos nós, e lançaram-nos à sanita do vestiário das raparigas. Ela até nem se importou assim tanto, pois foi dispensada da aula de vólei, que detestava e na qual fazia uma triste figura. Porém outra no lugar dela ter-se-ia sentido muito humilhada. Agora que pensava no assunto, parece que tinha chorado um pouquinho, mas não o suficiente para que os outros reparassem nisso e a apontassem com o dedo durante o recreio. De resto, afinal o que tinha em comum com os outros? Mal chegava a ter alguma coisa em comum consigo própria. . .

Aliás, nessa história de amor e paixão e tudo o resto, havia muito que se lhe dissesse. O ofício da arte implicava uma espécie de ascese, de entrega total, e a atmosfera turbulenta das paixões era fatigante e nociva para os criadores. Bastava ver o caso de Cecília. O talento, e sobretudo o seu exercício, cobravam uma tarifa - a quem muito é dado, muito é pedido. Quanto a ela, não estava nada arrependida da sua escolha. A arte era acima de tudo um processo no qual a técnica administrava a emoção. E não precisava de ninguém a roncar nos seus ouvidos! Já lhe chegava o motor dos aviões), nem a roubar-lhe os cobertores dos pés. Oh, então eu não sei! Belas perspectivas, belíssimas.

Noventa e sete. Noventa e oito. A campainha. Era ele. Vinha mesmo a calhar. É que até já tinha fome. Isto é, ao menos sentia um vazio no estômago, que devia ser fome. As duas escovadelas finais ficariam para a próxima vez. Antes de sair, lançou ao espelho uma olhadela angustiada.

 

- DIVORCIADO. SOU DIVORCIADO.

O restaurante, cujo proprietário havia regressado da guerra da Guiné com uma perna artificial e por isso tinha dificuldade em alcançar as garrafas das prateleiras mais altas, que pescava com uma vara munida de uma argola de arame, ficava numa das ruas-desfiladeiros do Bairro Alto - o "Solar do Chefe Almeida". Com apenas duas salas pequenas, o estabelecimento parecia simples mas acolhedor. Nas paredes pendiam fotografias antigas de Lisboa, virtualmente irreconhecível. O doutor Maia pedira spaguetti com mariscos e Berenice seguira-lhe o exemplo. Em cima da mesa havia um cesto de pão e um pires com bolinhas estriadas de manteiga.

Talvez ela não devesse ter tocado no assunto. De qualquer forma, não perguntara se era casado. Supusera que sim, embora não visse aliança - o que também não queria dizer nada. Quem é que usava aliança hoje em dia? Ora, muita gente. Fosse como fosse, perguntara-lhe apenas se a mulher dele era brasileira ou portuguesa. Não havia mal nenhum nisso. Nenhum, nenhum. Não significava que estivesse a fazer-se ao piso, nem nada que se parecesse. Por amor de Deus, sentia-se tão tensa e insegura. . Mas também alegre, com uma curiosa e expectante euforia. E por que ele se confessara divorciado com tão visível constrangimento, como se aquilo ainda fosse um anátema? Será que nunca tinha ouvido falar na Família Real britânica? Era melhor do que continuar casado e anunciar com um semblante compungido que a mulher não o compreendia, que dormiam em camas separadas, que era por isso que às vezes saía com outras mulheres e que seria óptimo conhecerem-se melhor.

- E você, tem namorado?

- Não, não tenho.

- Eu também não tenho namorada - informou o doutor, como se pretendesse tranquilizá-la, assinalando que o celibato não era vergonha nenhuma. Ela apreciou a intenção, mas não gostou muito do tom paternalista. Não precisava que lhe dissessem que não era uma solteirona, ou que não havia qualquer mal em ser-se uma solteirona. Talvez estivesse a ser demasiado susceptível. O importante era obter as respostas que desejava. O resto não interessava nada. Claro que não podia ir direito ao assunto.

- Mas o doutor não me respondeu. A sua mulher, ou ex-mulher, é portuguesa ou brasileira?

- Portuguesa. Chama-se Lúcia.

- Conheceram-se cá ou no Brasil? - Jesus, o que é que se passava com ela? Estava doida ou quê? Desde quando aquilo era da sua conta?

- Conhecemo-nos em Lisboa. Foi tudo muito rápido. Talvez demasiado rápido. . . Quase como aquelas cenas dos filmes em Las Vegas. Vi na televisão que em Las Vegas inaugurou-se agora um serviço ainda mais rápido de matrimónios. Basta um telefonema: o juiz espera os noivos na calçada, debruça-se sobre a janela e casa-os dentro do automóvel. Depois, os pombinhos metem a primeira e partem para a lua-de-mel, sem nem sair do veículo.

- Isso é que é pressa. Só faltava estamparem-se na primeira esquina.

- O seu amigo Gauguin foi casado?

- Oh, sim, duas vezes. Casou na Europa com uma dinamarquesa, e depois na Polinésia com uma nativa de treze anos. Um casamento maori. Uma bela solenidade. Hoje está um bocado abandalhada. Descambou numa ratoeira para turistas endinheirados, que vão até lá fingir que se casam outra vez. Ou, se já são casados, levam as respectivas amantes a tiracolo, para lhes dar graxa. Só a cerimónia custa, se bem me lembro, cerca de 300 contos limpinhos. A pseudonoiva é massajada pelas nativas e vestida com os trajes locais, de pluma e ráfia, enquanto o pseudonoivo é tatuado - com uma caneta de ponta de feltro! - e coroado com uma guirlanda de flores. Depois, o casal bebe água-de-coco e champanhe.

- Está muito bem informada. . .

- Li tudo o que podia sobre a Polinésia. Até a palha. Nós, do signo de Gémeos, gostamos de saber onde pisamos.

- Só um momento. . . Disse que a esposa polinésia de Gauguin tinha treze anos? E ele tinha quantos?

- Não sei ao certo. Uns quarenta ou cinquenta. Acho eu, mas não o posso garantir. Para datas sempre fui uma azelha.

- Suponho que ele não acreditava no conflito de gerações. gracejou o doutor. - Oh, aí vem o nosso jantar. Espero que goste.

Berenice provou o prato. Sabia bem. Ligeiramente agridoce, com um molho leitoso e salpicos de berbigão. Os camarões e as gambas tão-pouco deviam andar longe.

- É bom. Mesmo bom. Nunca tinha provado.

- É, não é? E como é que se chamava a esposa polinésia de Gauguin?

Uma fita de spaguetti ligava elasticamente a boca da jovem ao prato. Berenice engoliu-a como a língua de um lagarto.

- Tinha um nome complicado: Tehaamana. Mas bonito: significa "aquela que dá força".

- Sério? É realmente bonito. Quem é que não precisa de um empurrãozinho, não é mesmo?

- Também acho.

De repente, o doutor Maia bateu a mão na testa e fez uma careta.

- Como é que não me lembrei disso antes? Ando mesmo a precisar de umas férias! Só agora, ao ouvir essa história da esposa de treze anos, é que uma luzinha se acendeu nesta cabeça oca. Ravi Sharma falou-me em si! Sim, sim, era de si que ele falava! Só podia ser, embora na altura eu não tenha fixado o seu nome. Aliás, o caso todo entrou-me por um ouvido e saiu pelo outro, enquanto eu despachava um dos tratamentos de canal mais complicados que já vi.

Berenice pousou o garfo sem o levar à boca. O conteúdo resvalou para o prato e salpicou molho na toalha.

- E o que foi que ele disse?

- Olhe, disse que tinha uma amiga que era uma entusiasta ferrenha de Gauguin. Que considerava Gauguin um verdadeiro guru.

- Ah, Ravi, Ravi, sempre a distorcer as coisas. . . Às vezes até me apetecia exumar-lhe o cadáver.

Lourenço tentou cortar uma gamba com o garfo, mas ela não se entregou sem resistência.

- Ai, se um polícia que eu cá sei estivesse debaixo desta mesa. . .

- Tem razão. Foi uma observação de mau-gosto. Já cá não está quem falou. E depois?

- Hum, deixe-me ver se me recordo do resto. Ah, sim, comentou que, na opinião dele, Gauguin não passava de mais um colonialista. Um "sahib", nas suas palavras. E ainda por cima encapotado. Armado em bonzinho. Foi por isso que abordou a questão: como tantas vezes, falava de neocolonialistas.

- É tão típico de Ravi! Estou mesmo a vê-lo a baralhar tudo. Tão sectário e maniqueísta. . . Gauguin esteve quase a ser preso por defender os nativos. E por causa disso até foi deportado para as ilhas Marquesas! O que mais queria Ravi? Acrescentou alguma outra coisa?

- Só me recordo de mais um ponto, e diz respeito a isso mesmo que acaba de mencionar. Ravi disse que você escamoteava o facto de Gauguin não se ter importado nem um pouco de contaminar dezenas de adolescentes polinésias com a sua sífilis.

Berenice corou e crispou as mãos no guardanapo, que começou a torcer de um lado para o outro.

- Não há nenhuma prova disso!

- De que ele tinha sífilis? Desculpe-me, mas é que para mim tudo isso é chinês.

- Não, de facto ele teve sífilis, coitado. Não há provas é de que tenha contaminado as polinésias. . . De que as tenha infectado com a sua sífilis.

Bem murmurou Lourenço. Achou melhor mudar de assunto.

Mas Berenice antecipou-se.

- E o doutor comentou com o subinspector Carta que Ravi falou em mim?

- Nem uma palavra. Para já, como disse, não me lembrava do seu nome ou dessa conversa. Se calhar, concluí inconscientemente que era uma questão muito técnica e académica e não ia interessar ao subinspector. Se calhar fiz mal.

- É evidente que fez bem! Ora essa. . . Tudo o que me associar ao Ravi só me pode prejudicar. Não quero parecer insensível ou interesseira, mas a ele, Ravi, é que já nada pode prejudicar.

- Talvez ele apreciasse que fosse feita justiça.

- Com certeza, mas se estou completamente inocente.

- Voltando ao Gauguin, prometeu-me contar a tal história da orelha. Foi o nosso acordo. E, como vocês dizem, contas são contas.

- E o prometido é devido. Tudo começou nas proximidades do Natal, em Arles, na "Casa Amarela", o tal "estúdio do Sul" que Van Gogh e Gauguin tinham montado. Van Gogh viu um quadro do amigo, chamado "Vincent a Pintar Girassóis", e passou-se completamente. Chegou a atirar um copo em Gauguin. Depois pediu desculpas e Gauguin engoliu-as - mas advertiu-o de que, da próxima vez, torcia-lhe o pescoço que nem um parafuso.

- Isso é o que eu chamo camaradagem.

- O pior veio mais tarde. Van Gogh tentou atacar Gauguin com uma navalha, mas falhou. Gauguin mudou-se para um hotel.

- Eu ter-me-ia mudado para a Polinésia.

- Já lá iremos. . . Na véspera do Natal, convencido de que Gauguin partira para sempre, Van Gogh empunha a navalha e mutila a sua própria orelha. Consegue descortinar a culpa de Gauguin nessa maluqueira toda? Só se o acusarmos de não ser tantã.

- Pronto, convenceu-me.

- Está certo, Van Gogh era um grande pintor, teve uma vida desgraçada e só vendeu um quadro em toda a sua existência. Mas Gauguin também comeu o pão que o diabo amassou e ainda ficou com a fama de carrasco do outro. É como se ele tivesse pintado um grafitti de spray na Capela Sistina!

- Confesso-me rendido. Mas, aqui entre nós, pretende realmente partir para a Polinésia?

- Obviamente. E por mil e uma boas razões. Não se trata de uma pancada pueril ou fantasiosa. Planeio uma estada muito disciplinada e metódica, uma espécie de estágio. Só que, ao invés de ser no atelier de um colunável qualquer, será num arquipélago, ao ar livre, em que o cenário não se irá embora. Para mais, estou farta do saudosismo institucional dos portugueses e das capelinhas paroquianas das artes. Cá, as capelinhas são Vaticanos. Ter um amigo imparcial é mais ou menos como aceitar um convite da Lucrécia Bórgia para jantar.

- Isso eu não sei: lamento, mas não percebo muito de arte. Mas creio que está a ser injusta. A generalizar. E mesmo admitindo que esteja certa, como é que sabe que nas outras partes do mundo também não é assim?

- Oh, por favor, poupe-me a cantilena de que em todo o lado há gente boa e má! Estou a ser sincera, quando muito imprecisa. Quando penso que foram os exploradores portugueses - a par dos espanhóisque, nesse cantinho do mundo, uniram para o melhor e para o pior os ramos separados da humanidade. . .

- Não estará você própria a ser passadista, agora? Berenice brincou com as migalhas de pão na toalha. Levou uma delas à boca.

- Se calhar. Ando um pouco desatinada, sabe? Não quer comprar ou alugar uma casa? Oh, esqueça! Mas o que não desejo, a sério, é que o meu futuro seja pequeno só porque o meu passado nunca mais acaba. Glória não pode ser nem uma desculpa nem um grilhão no tornozelo.

- Os brasileiros nem de um passado grandioso se podem gabar. E o presente, então. . . Para trás, Satanás!

- O doutor não me parece lá muito patriótico.

- Olha quem fala!

- Patriótica até sou, e bastante. Gosto imenso deste rectangulozinho no mapa, como um remendo nos joelhos da Península. Posso dizer mal do meu país, mas o doutor que não se atreva. Ei, não faça essa cara, que estou a brincar! Claro que pode dizer mal. . . Era só o que faltava!

- Obrigado pela autorização.

- De nada. Agora, o que não sou é cega nem chauvinista. E desconfio que santo de casa não faz milagres. Mas, atenção: isto não é um desterro. Vou e volto, assim tipo bumerangue - só que um bumerangue sem pressa nenhuma.

Berenice suspirou e decidiu desviar de novo o rumo da conversa. Fitou o dentista nos olhos:

- É verdade! Gosta de ser dentista? Não sei se estou a ser intrometida.

- Que nada. Não se preocupe, que estou habituado: uma das características mais deploráveis dos brasileiros é contarem toda a sua vida - incluindo os pormenores mais escabrosos - a alguém que conheceram naquele minuto.

- Oh, o português não é nada assim. É muitíssimo mais discreto: a alguém que conhecemos naquele minuto, contamos toda a vida do vizinho, sobretudo os pormenores mais escabrosos.

- Não estamos a ser muito bairristas, pois não? Mas responder à sua pergunta é uma longa história. Vou tentar abreviá-la, se estiver mesmo interessada.

- Naturalmente que estou. Se não, não tinha perguntado. Não faço fretes.

- Fico mais descansado. Também não é nada de extraordinário. Quando adolescente, meti-me nuns sarilhos por causa dos dentes. Uns atrás dos outros. Ia ficando destrambelhado. Nem imagina. Devo então ter pensado que, se os conseguisse controlar, assumir o comando daquela embrulhada, regularia tudo, ou pelo menos tudo o que fosse humanamente regulável. Ser o homem do leme, em vez de remar nas galés. . . Claro que era uma ilusão, uma infantilidade ingénua e talvez freudiana, mas não me posso queixar. Gosto do que faço e não passo fome.

- Muito bem. Quanto a mim, considerei sempre que o importante é fazer aquilo que gostamos. Como modo de vida, quero dizer.

- Poucos o conseguem, não é? Felizmente para mim, as pessoas não são crocodilos.

- Crocodilos? Como assim?

- É que aos crocodilos, não importa quantos dentes percam ao longo da sua existência, continuam nascendo outros, novinhos em folha e sempre sadios. Seria o fim dos dentistas.

Ele disse aquilo e sorriu abertamente. Berenice admirou-se. Tinha-o considerado um tipo com objectivos precisos e judiciosos, que levava o seu trabalho muitíssimo a sério. Era tão arrumadinho. Mas aquele sorriso era autêntico, e deixava entrever outras coisas.

- Quer sobremesa? Há um doce da casa que é uma delícia.

- Não, obrigado. Só um café.

- Então são dois. - Com os dedos em V, o doutor Maia comunicou a informáção ao empregado e virou-se de novo para a jovem. Diga-me uma coisa.

- Trate-me por tu, está bem? Também vou tratar-te assim, se não te importas. Não gosto de cerimónias. Aliás, já comecei. .

- Por mim, tudo bem. Embora às vezes ainda tropece no "você", que é o tratamento mais comum no Brasil.

- Bem sei. Também já aturei o meu quinhão de novelas. Juro-o sobre uma resma de Bíblias.

- Não falemos de coisas tristes. Então cá vai: não sentes, de vez em quando, que procuras por uma coisa que não sabes o que é?

Berenice não se apressou a responder, ocupada a acender o isqueiro Bic.

- Sempre.

- E achas que vais encontrá-la?

- Não sei. Francamente, não sei. Espero pelo menos descobrir o que é, ou se ela realmente existe. E que, se a encontrar, não sinta que mais valia estar quieta.

Lourenço limpou os lábios no guardanapo e bebericou o vinho cautelosamente - a bebida fazia uma pressão perigosa sobre a sua solidão. Sentia-se dividido entre a simpatia pela rapariga e a ânsia de que o criminoso fosse capturado o mais depressa possível, a fim de que o subinspector o deixasse em paz com os seus documentos caducados.

- E bem possível que não seja da minha conta, mas, já que estamos aqui e que somos agora uma espécie de cúmplices. . .

- Cúmplices? Quem te ouve pode até pensar. . . Olha o subinspector debaixo da mesa. . .

- Cúmplices no bom sentido. Pretendemos ambos ajudar. a provar a nossa respectiva inocência.

- Não sabia que também estavas a ser acusado. Ou melhor, eu tão-pouco estou a ser acusada, ao menos por enquanto. Ninguém falou comigo pessoalmente.

- Não, o subinspector Carta não fez nenhuma insinuação contra mim. Nem nada que se pareça. Mas sabes como é: vale mais prevenir. . . A polícia gosta de pensar que toda a gente tem um esqueleto no armário. E desconfiam que, quando nós conhecemos o tal esqueleto, ele era bem rechonchudo.

- Sim, é o que eu penso também.

- Portanto, diz-me uma coisa, se quiseres: por que esbofeteaste o Ravi Sharma?

Berenice alinhou o garfo e a faca paralelamente sobre o prato. Fincou os cotovelos na mesa, apoiou o queixo nas palmas da mão e reflectiu por um momento. Recomeçou a falar muito lentamente.

- Desde há alguns dias ele estava cada vez mais importuno e impertinente. Cada vez pior. Mais parvo e bronco. Nem parecia ele. Sempre com aquela história do Kama Sutra. Será que os homens também têm cio? Chegou a declarar-me que fizera uma tatuagem num determinado sítio. E tentava apalpar-me, só para me infernizar. Dizia que ia posar nu para mim e que eu ia fazer um retrato da tal tatuagem, de frente e perfil. Era de propósito para me deixar danada.

- Nunca pensei que Ravi fosse assim. Incrível. Continua, por favor.

- Resolvi ignorá-lo e não voltar a falar-lhe. Depois, naquela maldita manhã, na sala de aula, chamou-me nomes. Perdi a cabeça e dei-lhe um tabefe. Foi a primeira vez na minha vida. Acho que as bofetadas são aviltantes - mais vale um murro no focinho.

- É possível. Nunca fiz nem uma coisa nem outra. Posso saber que nomes Ravi te chamou, para te enervar assim tanto?

Berenice corou outra vez. Encheu o copo de vinho e bebeu-o até ao fim. Pousou em Lourenço um olhar de intensidade quase sólida.

- Chamou-me frígida.

- Só isso? Não que seja insignificante, é claro.

- Não, não foi só isso.

- Então. . . Tudo bem, se não te apetece dizer, não digas. Os olhos da rapariga varreram o tecto do restaurante. Pareciam vidrados. Berenice sentia-se como se tivesse na garganta uma espinha de peixe a passar por onde não devia. A voz brotou-lhe num murmúrio ténue.

- Chamou-me fufa. Lésbica, se preferires. Sáfica, se fores pedante.

 

O TEMPO ESTAVA PÉSSIMO. Aliás, péssimo era um eufemismo. Está bem, Abril, águas mil, mas aqueles aguaceiros de sudoeste em fins de Maio? Francamente. Não dava para perceber de jeito nenhum. Os sucessivos relâmpagos assemelhavam-se a tridentes de néon es petados no mar. Da janela da cozinha, Reinaldo Carta vislumbrou um navio semi-envolto pelo nevoeiro, como o Holandês Voador a transpor a sua enésima nuvem. Emília gostava da lenda do Holandês Voador e às vezes invocava-a, quando à noite as sirenes das embarcações apitavam com o seu timbre ora grave como o das tubas, ora plangente como o dos bandolins.

Num esforço cauteloso, com uma lata numa mão e uma colher de sobremesa na outra, o subinspector acocorou-se para prover de comida a tigela de Sextante, que aguardava impacientemente o desenrolar dos acontecimentos. O gato lambia os beiços com a sua linguazinha cor de morango, e miava de entusiasmo, arqueando a cauda cinzenta num ponto de interrogação. Assim que o polícia se endireitou, Sextante precipitou-se sobre o almoço.

Como de costume, Carta observou-o fascinado. Aquilo é que era um gastrónomo. Nem sempre fora assim, é claro. Nos primeiríssimos tempos, quando Emília o comprara quase bebé numa loja de animaisum novelozinho amorfo, com traços no lugar dos olhos - o gato nunca se mostrava tão voraz. Deixava porções quase inteiras na tigela e ia saboreando-as ao longo do dia. Agora, não: só abandonava o prato depois de lamber a última migalha, puxando o lustro à superfície do plástico. E em seguida rondava a tigela durante alguns minutos, como se absorvesse e metabolizasse, por fim, o próprio odor acre da ração.

Carta sentia-se tentado a repetir a dose, porém a veterinária alertara-o de que seria um grave equívoco. E de mal-entendidos na sua relação com o gato ele já tinha uma quota que chegava e sobrava. Depois do enterro de Emília, naqueles dias em que errara pela casa como por um labirinto sem sequer uma porta, Carta experimentara a dor como o derradeiro afecto, a última muralha antes da loucura e da morte. Não conseguia fazer como as outras pessoas, que bebem, vão ao cinema e se sentam lá a sofrer. Ele tinha que sofrer em casa. E descurara completamente as necessidades do felino, como no caso das floreiras. Não fora por mal: Sextante pertencia à Emília - o subinspector não estava habituado a cuidar dele e ponto final. Ainda por cima, dera folga indefinida à mulher-a- dias, pois não suportava ver ou ouvir sinais de vida.

Na verdade a coisa fora um pouco pior do que aquilo. Mais dramática, talvez operática. O gato miava, resfolegava, bramia e fungava, mas Carta, a vogar no seu limbo, não correspondia. Planava num desgosto catatónico. Nunca sentira uma tristeza tão letárgica. Era como se ele não fosse mais dele. Até que, desesperado, perdeu a cabeça com aquele animal que ousava profanar o seu luto com reles apelos glutões. Agarrou Sextante pela cauda e, com o braço estendido no vácuo de catorze andares, pendurou-o na varanda. O gato contorceu-se e guinchou histericamente, tentando arranhar o subinspector com as unhas aguçadas como pinças, que há muito tempo ninguém aparava. Urinou um fiozinho dourado para o vazio. Por fim, o homem pousou-o no chão e o felino disparou rumo ao interior da casa, eclipsando-se em silêncio absoluto.

Só quando o recipiente que servia de casa-de-banho ao animal começou a transbordar de excrementos e a exalar uma pestilência irrespirável, uma infusão pastosa de uriná e fezes, é que Carta reagiu.

A primeira substância comestível que apanhou foi um pacote de fibras de cereais All-Bran, ainda por abrir e com a data de validade dentro do prazo. Rasgou o picotado e, céptico, deitou um punhado na tigela. Sextante; amedrontado mas faminto, materializou-se cautelosamente. O homem afastou-se um pouco, e foi o que bastou para que o gato executasse um pequeno salto para a frente e engolisse tudo o que havia para engolir.

Carta murmurou para si próprio que pelo menos aquele problema estava resolvido. Ao jantar, repetiu o menu. E no almoço do dia seguinte. A emenda, porém, acabou por ser quase tão má como o soneto: o gato contraiu uma disenteria aguda e por um triz não entregou a alma ao Criador. Esteve sem comer durante todo um final de semana, acabrunhado e inerte; definhou e emagreceu. Às duas da manhã do domingo, o subinspector parou de beber, tomou um duche mais ou menos frio e arrastou-se até a uma loja de conveniência. Comprou uma embalagem com cinco latas de comida para gato: rim, coelho, vaca, galinha e atum. E dez quilos de areia higiénica. Como expiação e remissão, pareceu-lhe o suficiente. Depois logo se veria.

Naquele momento, Sextante bebia água, com uma chispa de satisfação nos olhinhos redondos e penetrantes, os bigodes muito brancos e eriçados como pingentes de gelo. Agora, podia dizer-se que aquele era um gato de sorte.

Nos seus tempos de adolescente numa aldeia do Ribatejo, Carta fora bem menos afortunado. Dia após dia, a fome acossava-o. Enquanto vivesse, jamais se iria esquecer da "sopeira", uma travessa que continha a comida para toda a família: batatas, favas, feijões, couves e, por vezes, nas ocasiões especiais, um parcimonioso porém sublime naco de carne de cavalo, que era o "conduto". A cada membro do clã sentado à mesa estava reservado e demarcado o seu quinhão, e ai de quem tentasse usurpar o do vizinho - levava logo uma espetadela punitiva com o garfo. Deve haver algo de rijo em mim, pensou o subinspector. Os irmãos haviam todos morrido ainda antes dos trinta anos. Ele aguentara-se bem. Aliás, as coisas tinham melhorado muito nos últimos tempos. A primeira vez que comera num restaurante tinha já 23 anos.

O facto era que ele se aguentara. Pelo menos por enquanto, até a rasteira que a próstata procurava pregar-lhe. Se calhar já excedera em muito o seu quinhão na sopeira da vida.

Nos primeiros meses de união, Emília - que até então tivera duas cozinheiras privativas - sabia cozinhar apenas um prato: Strogonoff, um guisado de carne com natas suíças e ressonância cossaca. Anos mais tarde, Carta costumava gracejar: "Quando casei, Strogonoff era o meu prato predilecto. Depois tornou-se o meu conduto. "

Nas ocasiões em que queria mesmo agradar a Sextante, Carta fazia-lhe pipocas. Era verdade: o gato, que não tolerava peixe fresco nem bacalhau, adorava pipocas. A princípio somente as salgadas, depois também as doces. Parecia até que compreendia a palavra pipoca

- não é que falasse português, apenas falava "pipoca", o seu esperanto. Bastava o homem pronunciar a palavra para que o animal desatasse a miar extaticamente. O subinspector descobrira aquela predilecção por acaso, num dia em que o doutor Castelo, depois de uma sessão de cinema, passara por ali com um pacote de pipocas ainda cheio nas mãos.

Como sempre, o médico-legista estava bem disposto e elegante na sua camisa cor de vinho Borgonha. Lançando-lhe um olhar jovial por cima dos óculos de meia-lua, o doutor comentou que, depois de tantos anos de convívio e até camaradagem profissional, era a primeira vez que ia a casa de Carta, e quase sem querer. Muitas coisas tinham corrido mal na existência de Castelo, mas nenhuma delas o transformara num homem amargo ou rancoroso. E Carta sabia que isto era muito raro: alguém que não culpava a vida ou terceiros pelos seus infortúnios. Na verdade, mais do que conhecimento, Castelo emanava sabedoria, uma virtude sem autocomplacência, e confiança sem presunção nem desdém.

Beberam um copo, deram um dedo de conversa e na saída o médico esquecera-se das pipocas. Carta preparava-se para deitar o pacote ao lixo quando se lembrou de atirar uma pipoca ao gato. Ela resvalou para o chão como um cristal de neve. Sextante cheirou-a, céptico e desconfiado, empurrou-a com a patinha, mordiscou-a prudentemente e por fim engoliu-a. Foi uma epifania. Ergueu a cabeça, com um olhar inflamado e suplicante, e, uma a uma, consumiu o que restava do saco.

Era estranho, mas, dependendo do ângulo em que as observávamos, todas as coisas na vida podiam parecer bem estranhas. Castelo informara-o mais tarde de que já os povos da América pré-colombiana

- eram os Maias ou os Astecas? - comiam pipocas. E Emília uma vez dissera-lhe que os gatos, oriundos do Egipto, só tinham sido domesticados por volta do ano 200 antes de Cristo. No tempo de Platão, ainda eram pequenas feras selvagens a rondar os ermos agrestes. Talvez houvesse uma relação entre aquilo tudo. Carta era bom em estabelecer vínculos entre factos aparentemente desconexos. Por outro lado, talvez estivesse apenas com esclerose múltipla. Riu-se e, com o pé, fez uma festinha no dorso de Sextante. Este fechou os olhos de prazer.

O gato era ainda mais efusivo com Emília: deitava-se no colo dela, enredava-se sob as suas pernas quase ao ponto de a fazer tropeçar, aconchegava-se nos seus chinelos, pousava-lhe uns olhos meigos e amorosos. Enquanto a mulher vivia, Sextante e Carta foram estranhos sob o mesmo tecto. Um não precisava nem queria saber do outro para nada. Ignoravam-se cordialmente.

Depois do episódio da disenteria, as coisas principiaram a mudar, devagarinho. O subinspector concluiu que ou se desembaraçava do bicho ou cuidava dele. Por essa altura, Sextante fitava-o com uma expressão ressentida, como se analisasse a desditosa razão pela qual aquele homem maçador estava ali, no lugar daquela senhora tão querida.

De pé, no meio da cozinha, o polícia examinava o felino, que dobrara as patas e as recolhera sob o torso, depois de lamber o peito por alguns instantes, como se tivesse o pescoço de borracha. Quanto tempo vivia um gato? Dez, doze anos. Aquele já tinha oito. Portanto mutatis mutandis, era mais ou menos da idade de Carta. Sextante devolveu-lhe o olhar: parecia que tinha uma opinião formada sobre o polícia.

Algumas semanas a seguir à missa de sétimo dia, o subinspector começou a reparar que, afinal de contas, encerrava algumas afinidades com o gato: ambos detestavam mudanças, desvios na rotina, e cultuavam o método com toda a devoção. Sextante, assim que acordava, espreguiçava-se na cama de verga almofadada, num canto da cozinha com uma espécie de flexões. A seguir, marchava fleumaticamente para o gabinete de Carta, onde afiava as unhas no tapete. Depois, deslocava-se à varanda - o máximo de ar livre que conseguia tolerar - e lá se estirava ao sol e contemplava, com uma irritação fascinada, o voo e o trinado dos pardais.

Decidido a conservar Sextante por homenagem a Emília, Carta esperava gostar do animal e muito menos que o gato gostasse dele. Hoje suspeitava que ambos se haviam enganado. Sextante girou o corpo e ficou de costas, para que o dono lhe coçasse a barriga. Era a primeira vez que lhe concedia tal honra. Carta agachou-se e coçou-lhe o ventre. O gato miou, enlevado. Carta resmungou- lhe:

- O amor, meu caro amigo, é um alto preço que pagamos pela companhia.

Excepto ele próprio, o subinspector nunca conhecera uma criatura mais caseira que Sextante. Sobretudo depois do malfadado episódio da varanda, quando contraíra uma mazela muito desconcertante num gato: vertigem crónica. Sextante não podia apanhar-se a mais de um metro de altura que entrava em pânico total.

Mesmo depois da reconciliação com o bicho, Carta cometera outros erros quase irreparáveis. Julgava que os gatos eram seres independentes e autónomos, porém esquecera-se de que toda a regra oculta uma excepção. E o subinspector tão-pouco compreendeu que, para Sextante, a partir de determinado momento ele pouco a pouco transformara-se em Emília.

Há dois meses, numa ocasião em que tivera de viajar em trabalho, deixara o felino num alojamento para animais da União Zoolófila. Na volta, Sextante mostrou-se irreconhecível e intratável. Assim que Carta se aproximou dele, dizendo o seu nome, bufou rancorosamente. Até a funcionária da União Zoolófila se assustou, e declarou que nunca vira uma coisa assim. Era normal que os bichos se ressentissem da ausência dos donos e exprimissem a sua mágoa, mas não com tanta ferocidade.

Com o pêlo eriçado e o dorso arqueado, rosnando belicosamente, Sextante não consentiu que o subinspector o cingisse. Foi a própria funcionária quem o meteu numa improvisada caixa de cartão com orificios para a respiração.

No percurso rumo ao carro, Carta sentiu o animal debater-se dentro da caixa. Teve pena dele, mas já não faltava muito. Depositou a caixa no banco traseiro do automóvel e guiou para a Avenida Marginal.

Sextante miava como se ainda se encontrasse na varanda, pendurado pela cauda sobre o abismo. E debatia-se e fungava cada vez mais freneticamente - o cartão trepidava, com a pressão das patas e das unhas. Carta acelerou mais um pouco, porém com todos aqueles semáforos de velocidade controlada não podia ir tão depressa como pretendia. O gato calou-se, e, pelo espelho retrovisor, o homem observou que uma mancha escura e húmida se propagava pelo cartão. Sextante estava a urinar. Em seguida, recomeçou a debater-se e a caixa rompeu-se.

A cabeça do gato despontou, os olhinhos triunfantes mas ainda amedrontados. Por um instante, Carta desorientou-se. E se o animal se atirasse a ele, para o arranhar? Para o cegar, até? Que diabo, circulavam numa estrada cheia de curvas, a oitenta por hora! Ou se então se introduzisse sob os pedais? O automóvel guinou uns centímetros para a direita, e depois de novo para a esquerda. Tinha que tomar uma resolução imediata. Olhou de novo para o espelho e viu que Sextante permanecia sentado sobre as patas traseiras, ao lado dos destroços da caixa, calmo, taciturno e pensativo, com uma expressão de despeito e amargura. Reinaldo Carta decidiu que o melhor era deixar as coisas como estavam.

O gato continuou retraído até avistar a fachada do prédio, quando emitiu um miado benévolo. No elevador, enquanto subiam os catorze andares, começou a lamber-se dos pés à cabeça. Já dentro de casa, esgueirou-se em pezinhos de lã e desapareceu por uns momentos, silencioso como um índio. Ao reaparecer, aproximou-se do dono, roçou-lhe várias vezes a nuca nas pernas, ronronou uma saudação cordial e marchou para a cama. Carta suspirou: por um triz não apanhara uma das doenças de Napoleão Bonaparte, a ailurofobia. Ou, por outras palavras, terror de gatos.

No dia seguinte, o subinspector fora a uma loja de animais e comprara um recipiente próprio para transportar bichos de estimação, em plástico rijo, com suportes para vasilhas de água e comida e moldada de tal forma que permitia ao gato observar tudo o que se passava em seu redor. Nas duas vezes em que tivera de viajar outra vez, utilizara aquele casulo, e Sextante, embora contrariado, não criara problemas.

Eram quase duas horas da tarde. Antes de sair da cozinha, o polícia compenetrou-se - arbitrariamente, pois ainda não a conhecia cara a cara - de que Berenice Veríssimo lembrava-lhe Sextante, naquela ocasião em que o gato estivera suspenso pela cauda no vácuo do terraço. Mas com duas diferenças importantes: a primeira era que com certeza nunca passara pela cabeça de Sextante fugir para a Polinésia Francesa o mais depressa possível. E eis a segunda: Carta não pretendia pousar Berenice no chão do terraço, mas deixá-la cair no seu próprio abismo.

 

O interrogatório de Berenice Veríssimo fora produtivo mas inconclusivo? Paciência, Roma não se erguera num dia. O trigo já excedia em muito o joio. Sempre havia tempo para a ordem de prisão, os portos e aeroportos estavam prevenidos e Berenice devidamente vigiada. O epicentro do caso consistia por certo na bofetada infligida na vítima pela rapariga na véspera do crime, em plena sala de aulas da Escola de Belas Artes. A jovem dera tanto nas vistas como um repuxo a esguichar no meio de uma fonte luminosa.

Antes de interpelar a estudante, Reinaldo Carta fizera direitinho os trabalhos de casa. Em primeiro lugar, despachara para a Academia os seus perdigueiros, Torres e Rodrigues, com instruções estritas na ponta da língua. Ambos, após alguns dias de árdua prospecção (os professores eram reticentes e os alunos tagarelas mas dispersivos e incoerentes), farejaram pistas muito sugestivas. Por exemplo, Berenice nunca mais pusera os pés na Escola depois da morte de Ravi. Nem para dizer adeus, até ao meu regresso. Uma balda total. Simples coincidência? Tudo nessa vida era possível, mas havia uma coisa chamada lógica e, decididamente, a lógica encurralava a rapariga.

Como se aquilo não bastasse, os agentes confirmaram que a jovem pretendia partir para o Taiti, ou Bora Bora, ou lá o que era, muito brevemente. Ou seja, como assinalou o agente Rodrigues, elevando a voz de bagaço no barulhento telefone da Esquadra, "cavar o outro lado do mundo, à grande e à francesa". E verdade que, segundo dois colegas e três professores, o projecto de viagem não era de modo nenhum recente e justificava-se pelo interesse (um dos professores falou até em "obsessão") da rapariga no artista francês Paul Gauguin, o qual se estabelecera naquelas remotas paragens e por lá ficara até exalar o último suspiro. Ainda assim, nas presentes circunstâncias, tratava-se de uma decisão muitíssimo suspeita.

Mais: colegas de Berenice (conquanto nem todos) deram a entender, mais ou menos veladamente, que ela não morria de amores pelo sexo masculino. E que, em contrapartida, denotava intensa afeição, uma afeição por assim dizer possessiva, por Cecília Figueiredo, a filha do relojoeiro Tomás Figueiredo. Até que ponto aquela informação era segura, ou mesmo significativa? Ou não passava de mera maledicência, e não só dos alunos? Carta sabia há muito que quer Rodrigues quer Torres se compraziam em desmascarar "fufas e paneleiros" a torto e a direito. Dava-lhes um gozo incomparável.

O que importava era: caso Berenice estivesse sentimentalmente ligada a Cecília Figueiredo, tal facto apresentava relevância no contexto do crime? Naturalmente que sim: delineava o bom e velho motivo da eliminação do rival - um "crime passionnel". Ainda por cima, outras testemunhas apontaram um romance, ou ao menos um namorico, entre Cecília e Ravi. E, mais grave ainda, a própria Cecília, embora ressalvando que já nada tinha a ver com Ravi na altura da morte deste ("para mim, Ravi passara à história - salvo seja!"), confirmara que Berenice desaprovara a ligação.

A filha do relojoeiro revelara por fim que a amiga "realmente não gostava de rapazes. Pelo menos nunca lhe conheci um namorado sequer". E acrescentara, com uma irritação virtuosa: "Isso não é normal numa jovem, não acha? Mesmo que ela não seja muito gira e tenha cara de sonsinha, ancas ossudas e cabelo de rato. " Bem, pensou Carta, pigarreando, Cecília não podia ser acusada de excesso de lealdade. Por um instante, quase conseguiu reconstituir mentalmente o aroma que se evolava do pescoço da menina Figueiredo.

A propósito, por falar em Figueiredo, o relojoeiro andara na tropa no Ultramar. Mas não em Goa, nem sequer na Índia, e sim em Angola

- vivera em Luanda durante uns bons anos, até aos acordos do Alvor.

Também não tivera apenas a tal relojoaria na Baixa Pombalina, mas uma rede de ourivesarias em diversas cidades do país, e até em Barcelona e Madrid. Há uns poucos anos, desfizera-se de todas elas em troca de um belíssimo pé-de-meia, e dedicava-se agora ao Museu do Relógio. Enfim, uma espécie de mecenas que, como a maioria dos seus pares, pretendia unir o útil ao agradável: satisfazer um hobby interessante e ao mesmo tempo esquivar-se ao fisco.

Entretanto, a tia de Ravi Sharma, aquela que estava hospitalizada no Porto, morrera sem recuperar a consciência. Que sorte macaca resmungou Carta. O que mais é que lhe iria sair na rifa?

Depois de aquilo tudo averiguado, restavam dois passos prioritários: mandar revistar o quarto de Ravi Sharma e falar pessoalmente com Berenice Veríssimo. O primeiro passo, para grande exasperação de Carta, estava suspenso, pois a viúva que alugara o quarto ao rapaz - uma tal senhora Prado - encontrava-se a visitar familiares em Toronto e recusara-se terminantemente a abreviar a estadia. "Isso é que era bom!", bufara, sem nenhuma cerimónia, enquanto os impulsos telefónicos tombavam em cascata. Louvado seja Deus, agora só faltavam dez horas para que a recalcitrante dama regressasse a Portugal.

Quanto ao interrogatório da jovem, tencionava efectuá-lo na Esquadra e mandara emitir uma notificação pelo correio. Não utilizava o tal holofote a que o doutor Lourenço Maia aludira, porém sabia que o recinto policial intimidava a maior parte dos mortais.

No entanto, quisera antes de mais nada munir-se de toda a informação possível, não apenas aquela recolhida no terreno, mas sobretudo a que ele próprio - filtrando, conjugando e sincronizando as notícias que os agentes lhe forneciam - compilara naqueles dias na sua própria casa. Era nessas funções que se sentia como um peixe na água: alinhavando a realidade às abstracções, encetando uma espécie de excursão espeleológica, uma descida às profundezas subterrâneas dos outros.

Para começar, existia a história da Polinésia Francesa. A única associação que o subinspector fazia com aqueles longínquos rincões era um filme intitulado "Motim no Bounty", salvo erro com Marlon Brando a interpretar um marujo que desafiava um capitão despótico e se refugiava nos hospitaleiros braços de uma taitiana de melenas onduladas e cintura de vespa. Agora que pensava no assunto, parecia-lhe que Marlon Brando chegara mesmo a comprar uma ilha, ou ao menos um atol, naquele arquipélago.

Serviu-se de uma dose avantajada de whisky e dispôs o maço de cigarros ao lado do cinzeiro, e junto deste uma caneta esferográfica com o respectivo bloco de papel. Claro que o urologista lhe tinha proibido o tabaco e a bebida, mas que se lixasse. O subinspector não percebia como uma pessoa podia ficar mais saudável privando-se de tudo de que mais gostava. Sorveu um gole, e o whisky desceu-lhe pelo diafragma como se fosse óleo de travões.

Relanceou os olhos pelas portadas da sala, lacadas de branco e abertas de par em par. Quando era um jovem polícia, teria ficado boquiaberto se alguém lhe dissesse que um dia habitaria uma casa como aquela, com uma mobília cuidadosamente escolhida, vasos de palmeiras a ornar os corredores, uma sala de estar e de jantar separadas e, sobretudo, uma sensação geral de aconchego e brandura. Mas, sem Emília, sem alguém para junto de quem ir ao fim do dia, tudo aquilo definhava.

No terraço, Sextante encontrava-se preguiçosamente estendido, a adorar o sol como um pequeno inca. A superficie do mar estava plana, sem uma ruga sequer, e bruxuleava faíscas douradas. Bandos de gaivotas adejavam e piavam de um lado para o outro. Carta lembrou-se de uma coisa que tinha lido em qualquer lado: as gaivotas choram. Caçando e comendo peixes de água salgada, armazenam demasiado sal nos seus corpos emplumados. As lágrimas ajudam-nas a perder o sal em excesso dos sistemas internos, circunstância que seria perigosa para elas. O subinspector admitiu que aquele era um bom álibi para carpir as mágoas. Mas ele não era nenhuma gaivota.

Enquanto trazia para a mesa da sala um volume da enciclopédia de arte moderna de Emília (o que ia de F a H e por certo incluía Paul

Gauguin), Carta conjecturou se qualquer visão crítica que se tivesse da sociedade moderna não dependia, por sua vez, de uma perspectiva da condição primitiva. Em todo o caso, afigurava-se-lhe que aquela perspectiva, fantasiosa ou real, era necessariamente uma fonte para projecções alternativas das possibilidades humanas. E isso levava-o numa linha recta até Gauguin.

Afagou carinhosamente a capa do compêndio. Oh, sim, Emília era uma mulher sofisticada e cultivada. Com o tempo, tornou-se também uma excelente cozinheira, expandindo o seu repertório culinário muito para além do Strogonoff - na verdade, aprendeu a preparar Lagostins à Arnaud como ninguém. Andava pela sala energicamente, a bater os saltos dos sapatos, quase como uma dançarina de flamenco, com aqueles olhos que pareciam amoras negras.

Repelindo as lembranças, o polícia humedeceu o dedo indicador na língua (um costume que Emília deplorava mas que agora já se podia permitir) e procurou no índice a respectiva secção. Concluiu, um tanto desanimado, que o alentado número de páginas ao menos confirmava a proeminência atribuída por Berenice Veríssimo ao pintor francês. Começou a ler, saltando as passagens que considerava deslocadas do seu propósito. De vez em quando, sondava de relance as inúmeras ilustrações - reproduções de telas e fotografias do artista com a família ou amigos.

Poucos instantes depois, deu um murro na mesa, um gesto tão brusco que agitou a superfície do copo e derrubou o cigarro do cinzeiro. A orelha! Como é que não pensara naquilo antes? Que grandessíssimo asno! Até mesmo um ignorante como ele estava farto de saber que Gauguin se zangara com Van Gogh, e que este, emocionalmente desequilibrado, mutilara a sua própria orelha. Na verdade, aquela era decerto a única coisa que sabia sobre Gauguin antes de abrir a enciclopédia.

Carta espirrou de excitação. Ostentava a expressão de umjogador de póquer com quatro ases na mão. Aquilo era uma prenda embrulhada em papel de seda! Ora, os colegas e professores de Berenice, além de assinalar a sua "obsessão" por Gauguin, também tinham realçado o seu desprezo por Van Gogh. E à cabeça de Ravi Sharma faltava uma orelha. . . Mais exactamente, a orelha esquerda. Sem querer pôr o carro a frente dos bois, por enquanto tudo apontava para um caso de crime por mímese, no qual o criminoso moldava uma réplica de um incidente que o impressionara, perturbara ou mesmo traumatizara.

O subinspector acelerou a leitura. Qualquer pormenor agora podia ser decisivo. Afortunadamente, a enciclopédia detinha-se nos aspectos policiais da desavença entre os dois pintores. Comunicava o relatório: "Vincent Van Gogh agarrou numa navalha para se mutilar.

Cortou um bocado do lóbulo da orelha esquerda". A orelha esquerda! Calminha, meu velho.

Carta acendeu outro cigarro e enxotou Sextante com o pé, enquanto o gato se tentava emaranhar nas suas pernas. "A seguir Van Gogh enrolou a cabeça com uma toalha para poder estancar o sangue". A cabeça enrolada numa toalha teria sugerido a Berenice um indiano com o seu turbante? Não, não, aquilo já era ir longe de mais nas suposições - já nem era uma suposição, mas uma extrapolação. E de todo supérflua. Com as encruzilhadas, todo o cuidado era pouco. Se por acaso se extraviasse agora, corria o risco de nunca mais encontrar o caminho correcto.

Toda aquela rixa havia ocorrido na véspera do Natal. Existia um último detalhe policial que era no mínimo interessante: Gauguin voltara para Paris no dia 26 de Dezembro, e no dia 28 assistira a uma exececução capital. De acordo com o texto, o pintor jamais se esquecera dos gritos da multidão: "Viva o assassino! Abaixo a justiça!". O subinspector franziu a testa: quem viu uma raça humana, viu-as todas. Pensando bem, como é que alguém preferia ser racista, se podia ser misantropo?

Adiante. Parecia que o principal já estava percorrido. Aquilo é que fora uma colheita. A secção da enciclopédia concluía com a observação de que a obra de Paul Gauguin tinha sido proibida tanto por Adolf Hitler como por Josef Estaline. Carta levantou a cabeça e olhou melancolicamente para a janela: também os arquivos da PIDE encerrariam uma recomendação semelhante?

Ergueu-se da cadeira, tornou a afastar Sextante e dirigiu-se ao escritório, de onde voltou com um dossier pardo. O gato retirara-se para perto do sofá e fazia as suas abluções, uma toilette meticulosa, com uma perna bem espetada, como se fosse um presunto, e a língua a trabalhar como uma esponja. Carta sorriu com uma ponta de orgulho: que bicho tão asseado. . .

Muito bem, então: existia uma derradeira conexão que talvez pudesse ser estabelecida desde já, embora igualmente com algumas reservas. Abriu o dossier, folheou um calhamaço de papéis e retirou um recorte de jornal, cujo título anunciava: "Novo Crime Por Esquartejamento em Macau". O subinspector leu mais uma vez a notícia: "As cabeças de duas jovens, que se crê serem as de duas asiáticas que a Polícia Judiciária tentava encontrar desde o dia 18, foram ontem descobertas por operários de uma obra na ilha da Taipa. Nessa data, haviam sido encontradas partes de corpos humanos na sanita de um quarto do Hotel Presidente, em Macau".

O exemplar do jornal datava do dia 22 de Abril, portanto anterior ao assassinato de Ravi Sharma. Na opinião de Carta, a nota, com as suas cabeças cortadas, ilhas no Pacífico e combinação entre portugueses e asiáticos, podia ser uma referência pelo menos tão influente na mente do criminoso como os noticiários televisivos sobre as múmias de Lenine e Tutankamon. Até porque, afinal de contas, nem o líder comunista nem o faraó tinham sido decapitados.

Claro que restava um ponto fundamental a deslindar. Precisamente a questão da semimumificação da cabeça de Ravi Sharma. À primeira vista, Gauguin era alheio ao assunto, e dificilmente na Escola de Belas Artes ensinariam técnicas de embalsamamento. Ou será que as ensinariam? Se calhar. . . Para Reinaldo Carta, a pedagogia contemporânea era um dos mistérios mais indecifráveis do universo.

De qualquer forma, agora já estava em condições de esgrimir com Berenice Veríssimo. E a arder de curiosidade por vê-la pessoalmente.

 

- FAÇA O FAVOR DE SENTAR-SE. - convidou Reinaldo Carta, indicando a cadeira diante de si, ao mesmo tempo em que afastava da sua frente uma periclitante pilha de relatórios e memorandos. No tampo da secretária, numa posição bem visível, deixara exposta a fotografia de Ravi Sharma que obtivera do professor Rogério Lemos.

- Fique à vontade. Não há razão para estar nervosa.

- E quem é que disse que eu estou nervosa? Não estou nada nervosa. - respondeu Berenice, contorcendo-se na cadeira, hirta como um robô. Apesar da timidez e do ar reprimido de quem se desculpa, parecia uma rapariga com uma fibra e uma obstinação consideráveis. Era o que se podia chamar de um rosto com garra. Mas Carta sabia que ninguém neste mundo é inquebrantável.

- Não? Ainda bem. A propósito, agradeço que tenha vindo tão depressa.

- Não tem nada que agradecer. Como talvez já saiba, vou viajar para bem longe dentro de muito pouco tempo. A minha estada lá fora será prolongada e não pretendo deixar assuntos pendentes.

Carta sabia que era excessivamente sensível ao timbre da voz humana e o de Berenice, embora não fosse dissonante nem desagradável, pareceu-lhe forçado, como se estivesse a falar num tom que não lhe era natural.

- Uma atitude sensata e previdente da sua parte. Ah, pois, a tal viagem para a Polinésia. . . Tão distante. . . O outro lado do mundo! De facto, os meus agentes falaram-me nisso. Posso perguntar se já comprou a passagem?

- Não, por enquanto não.

- Nem sequer marcou?

- Também não. Mas isso é o menos. Aviões é que não faltam. Ou barcos. Tenho pressa de partir, de chegar nem por isso.

- Ah, tem pressa de partir? Mmmm, muito bem. Mas diz o adágio que a pressa é inimiga da perfeição. É melhor ir com calma. Devagar se vai ao longe. Nada de trambolhões, não é mesmo?

A rapariga cruzou os braços e emitiu um suspiro.

- Olhe, subinspector, não pode ir direito ao assunto? Detesto rodeios e tenho mais que fazer.

Carta abanou a cabeça lentamente, com um ar grave.

- Isto já é o assunto, menina. Isto é o cerne do problema. Mas diga-me uma coisa muito concreta: onde estava na noite de 24 de Abril último?

- Hem? 24 de Abril? Não me lembro.

- Hum. Preste atenção ao que vou dizer. Quando é cometido um assassinato, há sempre motivo para se suspeitar de uma pessoa que não pode explicar onde estava à hora em que se cometeu o crime. Não digo que isso seja uma prova, ou um carimbo de culpa, mas é uma suspeita. Lá isso é. Portanto, aconselho-a que pense bem. Não deve ser assim tão difícil puxar pela memória. Afinal, estamos a falar da véspera de um feriado importante.

Berenice enfiou os dedos pelos cabelos e permaneceu silenciosa por uns momentos. Murmurou:

- Creio que estava com o meu pai. Na casa dele. Sim, foi isso. Agora tenho a certeza.

- E o seu pai confirma-o?

- Claro que sim. Bem, mais ou menos. Quero dizer, às tantas e como é costume, julgo que adormeceu na sua poltrona, a ver televisão.

- E o que é que fez você?

- Eu? Ora, fui para minha casa, é claro. Não tenho ido a lado nenhum, a fim de poupar dinheiro para a passagem e as despesas na Polinésia.

- É claro. Ou seja - e por favor corrija-me se eu estiver errado, o senhor Verissimo não pode precisar a que horas a filha deixou a sua casa e foi para a casa dela.

- A hora exacta, com os minutos e tudo, naturalmente que não.

- Naturalmente.

- Mas o meu pai pode confirmar que eu lá estive até pelo menos bem depois do jantar.

- Ou seja. . .

- Até às dez, dez e meia da noite, que foi quando ferrou no sono.

- Dez, dez e meia. . . Certo. E o que é que a menina fez quando chegou à sua casa? Pense bem, peço-lhe.

- O que é que eu fiz, o que é que eu fiz. . . Deixe-me ver. Nada de especial. Arrumei umas coisas, meti umas roupas na máquina de lavar, pus umas meias a secar sobre o aquecedor, lavei a cabeça e sequei o cabelo com o secador, passei os olhos por um livro, tomei os meus medicamentos e fui-me deitar.

- Está a ver? Uma lista bem completa. . . Disse medicamentos? Não anda doente, espero?

- Eu, doente? Não, não, estou óptima. São umas multivitaminas e minerais que tomo regularmente.

- Sim, o seu aspecto é bastante saudável. Eu diria quase vigoroso, uma saúde de ferro. Deve ser bem forte, apesar de esguia.

Berenice corou e enganchou o pé direito atrás do tornozelo esquerdo. Depois ergueu o queixo orgulhosamente.

- Procuro manter-me em forma. Não há nenhuma lei contra isso, suponho.

- É óbvio que não. Escusa de exaltar-se. Não pretendi ser rude. Era até um elogio. Já lhe disse que não vale a pena enervar-se.

- E eu já lhe disse que não estou nervosa. Lamento desapontá-lo. Tenho a consciência tranquila.

- Então vamos continuar assim, combinado? Aonde é que íamos mesmo? Ah, sim, lembra-se da última vez em que viu Ravi Sharma?

- Sim, lembro-me perfeitamente. Foi no último dia em que fui à escola.

- Portanto, na véspera do crime. O dia da famosa bofetada. Quer-me contar o que é que se passou?

- É muito simples: Ravi meteu-se comigo e molestou-me. Como já não era a primeira vez nem a segunda, preguei-lhe um estalo. E não me arrependo.

- Ai, não? É uma pessoa muito sincera, tendo em conta que se encontra numa esquadra de polícia, a depor sobre a morte da pessoa que esbofeteou horas antes do crime. Se calhar, uma sinceridade imprudente.

- Ouça, tenho pena que Ravi tenha morrido, mesmo achando que não faz cá falta nenhuma.

- Já percebi. Posso saber qual foi o insulto?

- Sou obrigada a responder?

- Aqui, não. Mas, se formos a tribunal, seguramente que sim. E será pior para si. Garanto-lhe que não pergunto apenas por perguntar, muito menos para a melindrar. Pergunto porque é necessário.

Berenice baixou os olhos e suspirou.

- Pronto, não é preciso fazer uma tempestade num copo de água. Não foi uma coisa do outro mundo. Ravi era um tosco e um ordinário e chamou-me fufa. O que, diga-se de passagem, não sou. Chamou-me fufa simplesmente porque lhe dei uma nega. É tão simples como isso.

- Acredito na sua palavra. Parece-me uma rapariga inteligente e não ganha nada em mentir. Por outro lado, não são apenas os estúpidos e os aldrabões que cometem crimes, não é verdade? Como descreveria o seu feitio?

- O meu ou o dele?

- O seu, Berenice.

A rapariga carregou os calcanhares com força no chão. Sentiu que as mãos lhe estavam a ficar húmidas.

- O que quer que lhe diga?

- Repito, o seu feitio. Turbulento, calmo, introspectivo, temperamental. . .

- Normal.

- Como assim?

- Depende das circunstâncias. Se me pisam os calos, é claro que acabo por ir aos arames. Não sou uma mosca morta. Mas tão-pouco sou violenta. Pelo contrário, sou incapaz de fazer mal a uma mosca.

- É pena. As moscas podem tornar-se bichinhos muito importunos. O meu gato passa a vida a caçá-las. Possui algum relógio antigo?

- Relógio? Não. Só tenho este que, como vê, é um Swatch. Não propriamente novo em folha, mas não se pode chamá-lo antigo.

- Não, não se pode. É bonito, com esses passarinhos. Tem a certeza de que não possui nenhum outro, bem mais antigo?

- Absoluta.

- E quais são as suas relações com Cecília Figueiredo? A jovem empertigou-se na cadeira. Manteve-se tensa e imóvel, porque receava vomitar, se se mexesse. Parecia que tinha a boca cheia de berlindes.

- Cecília? Ela é a minha melhor amiga! O que é que o senhor pretende insinuar?

Carta forçou-se a olhá-la nos olhos, onde, para seu embaraço, viu mais dor do que ira.

- Não pretendo insinuar rigorosamente nada. Foi uma pergunta muito simples. Pretendo apenas esclarecer os factos e apurar a verdade. para isso que sou pago pelos contribuintes. Acalme-se, que aliás já me respondeu - era a sua melhor amiga. Por enquanto é só. Está dispensada. Mas não saia da cidade e muito menos do país sem primeiro falar comigo. Se o fizer, agravará a sua situação. E muito.

- Isto é uma ameaça?

- Certamente que não. Mas é um aviso.

Berenice balbuciou um cumprimento, empurrou a cadeira para trás com um rangido e saiu. Instantes depois, o agente Torres bateu à porta, introduziu a cabeça no vão, fez a continência irónica que Carta odiava e entrou. Aparentemente, o maior problema do agente era se devia usar o cinto acima ou abaixo da barriga. Disse bom-dia, coçou o queixo e grunhiu:

- Vi a fufa lá fora mesmo agorinha. A caminhar para o parque de estacionamento com o tal dentista brasuca. O doutor Maia, lembra-se? Dá que pensar, não dá? Afinal, o assunto entre os dois com certeza não pode ser cama. . . - Era típico de Torres, ruminou o subinspector, ao mesmo tempo pensar e desejar o pior. O agente piscou os olhos a Carta, com um arzinho astuto. E concluiu: - Ela até que tem umas boas maminhas. Mal empregadas. . .

O polícia calou-se abruptamente, ao contemplar a expressão crispada no rosto do chefe. Se calhar era dessa que apanhava com um processo disciplinar nos cornos.

 

Pelas onze e quarenta da manhã, Carta encontrava-se outra vez sentado no seu gabinete, a fumar um cigarro e a tamborilar os dedos no tampo da secretária, perdido em divagações. Fora ao aeroporto buscar a senhora Prado, que voltava de Toronto, e dera-lhe boleia até casa, revistando em seguida o quarto de Ravi Sharma.

A pensão, por sinal semiclandestina e sem alvará de funcionamento, mas tacitamente tolerada pela polícia, era uma espécie de longo corredor delimitado por tabiques. Ocupava todo o primeiro andar de um prédio não muito antigo mas muito velho, com uma escada de ferro em caracol, numa rua pacata e arborizada. Ficava a pouco mais de cinquenta metros da Pousada da Juventude, uma instituição internacional que mantinha alojamentos para jovens em numerosos países europeus.

- Muitas vezes, principalmente no Verão, aquilo está à cunha, e eles mandam-me a rapaziada. - explicou a senhora Prado, enquanto girava a chave na porta do quarto da vítima. - Não foi o caso deste pobre Ravi, que já trazia uma indicação. Do Porto, se não me engano. Sim, é isso.

O aposento exalava um odor a bafo, mas estava arrumado e limpo. Continha uma cama de casal, um roupeiro com arabescos de madeira que não chegava até ao tecto e uma espécie de toucador anacrónico, com um espelho triplo. Do varão do roupeiro pendiam cabides com casacos e calças. Nas gavetas, Carta encontrou camisas, meias e cuecas dobradas. Numa prateleira, repousavam três pares de sapatos, um deles tão velho que era impossível que ele ainda o usasse.

Nada de valioso do ponto de vista policial.

- Não sei o que hei-de fazer destas roupas. Ravi não tinha família, pois não?

- Tinha uma tia, que morreu outro dia.

Em cima da mesinha de cabeceira jaziam umas quantas revistas e uns jornais desportivos dobrados ao meio. O subinspector folheou-os. De novo, nada de relevante. Puxou a gaveta para fora e vasculhou o seu interior. Um dicionário de bolso português-inglês, uma caneta esferográfica sem tampa e quase sem tinta, uma carteira de aspirinas com apenas dois comprimidos, um deles partido ao meio.

Fitando de soslaio a senhora Prado, cuja fisionomia espelhava uma curiosidade alerta e ávida, o subinspector abriu o envelope e deu com uma folha de papel. Não se podia chamar aquilo de carta - era só um bilhete, com uma caligrafia parecida com as linhas de um electroencefalograma. Dizia o seguinte:

"Meu querido Ravi: Magoaste-me ontem quando disseste que eu te desprezava e que nunca aceitaria casar com um homem como tu. Sabes bem que não sou assim e que te amo tanto como tu me amas. Tenho confiança em que um dia hás-de ser alguém. Um artista famoso e rico - e por que não? Mas por favor, não voltes a esperar por mim assim tão perto da minha casa. Vão Reparar em ti, e conheces as coscuvilheiras. Não convém brincar com fogo. E, sobretudo, deixa-te de ideias estúpidas. Beijos apaixonados,

  1. S. : Espero que tenhas gostado da minha prendinha, e que amanhãjá estejas a usá-la. "

"C" de Cecília? Provavelmente. A letra era infantil e o "por favor" estava sublinhado. Que prenda seria aquela? Uma peça de roupa, talvez? Ora, podia ser um milhão de coisas. Carta dobrou em quatro a mensagem, introduziu-a no respectivo envelope e guardou-a no bolso do casaco.

- Este bilhete foi confiado a si, para depois o entregar a Ravi Sharma? - perguntou Carta, olhando inquisidoramente a dona da pensão.

- A mim? Credo, Deus me livre! É a primeira vez que o vejo na minha vida. Juro por esta luz que me ilumina. Não toquei em nada deste quarto. É uma mensagem do assassino?

O subinspector ignorou a pergunta.

- Ravi recebia visitas? Veio alguém trazer- lhe o bilhete?

- Meu senhor, esta é uma pensão familiar - modesta porém honrada. Não é uma casa de passe. Claro que não sou nenhuma santa do pau carunchoso, e não me importo que os clientes recebam visitas - mas, na sala, que é o lugar próprio das visitas. Respeitinho é muito bom e eu gosto. De qualquer forma, que eu saiba Ravi nunca recebeu ninguém.

- E correspondência? Costumava chegar alguma coisa em nome dele pelo correio?

- Nos quatro meses em que cá esteve, recebeu mensalmente um pagamento por bilhete postal, e umas poucas cartas provenientes do Porto. Acho que o bilhete postal também vinha do Porto, mas não posso jurar. Não sou bisbilhoteira.

- Bem vejo. Costumava usar o telefone?

- Usou-o uma ou duas vezes, se bem me lembro. Não mais. Tenho a certeza porque instalei um cadeado no aparelho, que só funciona com a minha autorização. Claro que não fiquei a ouvir a conversa, por isso não lhe posso dizer com quem falou nem sobre o quê.

- Com certeza. Uma última pergunta: no dia 24 de Abril, Ravi saiu da pensão a que horas?

A senhora Prado pousou o queixo no punho fechado, numa atitude meditativa. - pouco depois do almoço. Depois disso nunca mais o vi.

- E mais?

- Mais? Como assim, mais? Mais nada.

- Muito bem. Fico-lhe grato, senhora Prado. Creio que não voltarei a incomodá-la.

Às onze horas, já de volta ao seu gabinete, Carta recebeu das mãos do doutor Castelo o relatório definitivo da autópsia, com apenas um dado novo. Na realidade, tratava-se mais propriamente da confirmação oficial de uma suspeita já levantada pelo médico legista: no nariz de Ravi Sharma foram encontrados indícios inequívocos da extração de clorofórmio.

- O que é que me dizes a isto? - perguntou Carta.

- Bem, todas as mutilações ocorreram depois da inalação do sedativo, tanto a amputação da orelha como, é claro, a decapitação. Suponho que fosse preciso uma força considerável e grande resolução para administrar clorofórmio a um rapaz tão novo. Provavelmente ele resistiria ao máximo, a menos que estivesse a dormir. Nesse caso,        depois de umas inalações profundas ficaria semi-inconsciente e seria fáCil subjugá-lo.

- Pois, mas aposto como estava acordado. E não te esqueças de que havia bebido ao jantar quase uma garrafa de vinho, o que chega para explicar um certo torpor e passividade.

" - Lá isso é verdade. No entanto, isso não exclui a hipótese de que Ravi estivesse a dormir ainda mais profundamente por causa do álcool.

- Pode ser. Logo veremos. Ou me engano muito ou não estamos longe da resolução deste mistério.

Os lábios do doutor Castelo franziram-se num assobio silencioso.

Às onze e vinte, de novo sozinho, Carta relia pela enésima vez todo o processo e admitia intimamente que precisava de um cinzeiro maior, quando o telefone tocou.

- Subinspector Reinaldo Carta?

- Sim, sou eu. Quem fala?

- É o doutor Ernani Lopes. Precisava de o ver, pois já tenho o resultado da biópsia. Se pudesse dar um salto ao hospital ainda hoje. . : Pelas quatro da tarde está bem para si?

- Diga-me o resultado, doutor. Agora.

- Não são assuntos que se tratem pelo telefone, subinspector Prefiro conversar consigo pessoalmente, como é óbvio.

- Ouça, doutor, sou bastante crescido para suportar a verdade: nua e crua, sobretudo depois de trinta anos de trabalho policial. E estou na fase crucial da investigação de um crime medonho. Portanto, agradeço-lhe que seja franco. Quanto tempo ainda tenho de vida? Meia hora? Dez minutos? Convém que sincronizemos os relógios?

- Muito bem, subinspector, farei a sua vontade, já que insiste tanto, embora seja contra o meu hábito. A biópsia acusou um tumor maligno na próstata.

- Quanto tempo? Pelo meridiano de Greenwich, se faz favor!

- Por favor, não seja tão pessimista. Percebo que esteja abalado; mas existem tratamentos produtivos - no seu caso o diagnóstico foi precoce. Deposito esperanças muito razoáveis numa terapia não apenas paliativa, mas curativa. Mas, para isso, preciso de examiná-lo outra vez e o mais depressa possível. Há muita coisa a levar em consideração. Por exemplo, a alternativa entre a radioterapia e a prostatectomia radical. - ou seja, a cirurgia.

- Fico-lhe grato pela sinceridade, doutor. Dê-me apenas mais uns poucos dias e serei todo seu, da cabeça aos pés. Diga-me só mais uma coisa, mas sem evasivas: quais são as minhas chances de sobrevivência?

- Oh, é difícil de calcular. . . Se não mesmo impossível. Cada caso é um caso.

- Doutor. Por favor.

- O senhor é terrivel! Estatisticamente, e desde que nos despachemos, eu diria cinquenta por cento.

- Hum, parece-me justo. A salomónica Mãe Natureza. Uma no cravo e outra na ferradura. Obrigado, doutor. Ver-nos-emos muito em breve.

Carta pousou o telefone e pegou o cigarro - uma longa minhoca de cinza caiu, desintegrou-se e espalhou-se-lhe pelo peito da camisa. Sacudiu-se, abriu a última gaveta de cima para baixo e bebeu um gole de whisky do gargalo da garrafa.

Se morresse brevemente, quem é que tomaria conta de Sextante? O gato dependia tanto dele como as plantas da fotossíntese. Pobre bicho.

O subinspector pensou que nunca aprendera a jogar matraquilhos nem a comer com os pauzinhos chineses. Nunca ganhara nem perdera na roleta, nem andara a cavalo. Maquinalmente, pegou na fotografia de Ravi Sharma e começou a dar pancadinhas com ela na secretária. As televisões e os jornais já se estavam a cansar do assunto e a falar de outras coisas. Carta lembrou-se do "safi", o antigo costume indiano de imolar a viúva na pira funerária do marido morto. Teria coragem de imolar-se com Emília? Bem, apenas as viúvas é que se imolavam, não os viúvos. . .

Foi então que o subinspector Reinaldo Carta olhou para a fotografia que jazia nas suas mãos como se a visse pela primeira vez. Deu um salto na cadeira. Como pudera ser tão cego? Valha-me Deus, será que doravante as pistas decisivas teriam que vir em Braille?

 

Claro que sim. Distinguia em si estranhas correntes de pensamentos, desvios da normalidade e impulsos incontroláveis. Mas quem é que se podia considerar seguro e estável na sociedade de hoje?

Fechou o exemplar da revista Time, levantou-se da cadeira e foi ver como é que estava a sua cara. Quase encostou o nariz ao espelho, cuja superfície se embaciou com a respiração entrecortada. Os olhos brilhavam-lhe intensamente, como pontas de maçaricos, contrastando com as órbitas escuras. Um músculo vibrava-lhe num canto da boca.

Minutos antes, sentia-se uma pessoa exaurida, vazia e fraca, a vogar num limbo. Mas, em seguida, lera na revista sobre um incidente em Nova Iorque. Kathy, uma americana que se encontrava em coma há mais de dez anos e, em Março passado, dera à luz um rapazinho, depois de ter sido violada por um auxiliar de enfermagem, acabara de morrer.

Enquanto se dirigia para a porta, caminhando sobre a carpete azul e fofa, uma fúria tremenda, familiar e desejada invadiu-lhe o ser e inundou aqueles espaços vazios de um calor, de uma intensidade, de uma raiva trepidante. A ira corria-lhe como electricidade atrás de cada nervo do seu corpo.

Agora só não tinha a certeza se cortar uma única cabeça fora o suficiente.

 

- BERENICE?

- Sim?

- É o Lourenço. Não te acordei, espero. . .

- Se me acordaste? Isso é que era bom! Não, não, nem pensar. Pelo contrário: estava acordadíssima, a fazer as minhas contas aqui com a calculadora. Já me doem os dedos e tudo.

- Contas? Quais contas? Para a Polinésia?

A jovem não respondeu imediatamente. Seguiu-se um silêncio indicativo, na opinião do dentista, de que Berenice acendia um cigarro. De facto, a resposta soou junto com uma espécie de sopro.

- Bruxo. . .

- E que tal?

- Ah, Lourenço, estou radiante! Ontem arranjei um inquilino fiável para esta casa e um pouco depois vendi o carro a pronto. Toma lá, dá cá. Dois excelentes negócios! Já tenho o dinheiro para partir e lá ficar por uns bons tempinhos. Desafogadamente. Até me custa a acreditar.

- A sério? Isso exige uma comemoração! Uma festa assim tipo Versalhes Almoçamos?

- Bem que eu queria. Mas tenho de ir à polícia, prestar depoimento sobre a morte do Ravi. Uma chatice que nunca mais acaba. Só espero que o melga do subinspector não me proíba de sair do país. Era só o que me faltava, nesta altura do campeonato. Que lindo serviço!

- Claro que não te vai proibir. Pensamento positivo, rapariga! Não és uma Irmã Metralha. Olha, vou contigo e depois almoçamos juntos, para celebrar a viagem e a figura de urso do subinspector.

- Não vais nada. Está fora de questão. Com certeza que não podes assistir ao interrogatório. És dentista e não advogado. Não te armes em Peny Mason.

- Ouve lá! Não me percebeste: é que a minha proposta traz água no bico. Tenho de pagar uma multa, e assim uno o útil ao agradável. Naturalmente não assisto ao interrogatório mas espero lá fora por ti, a fazer figas com as mãos e os pés.

- É simpático da tua parte, mas estás a inventar.

- Não estou nada. Se quiseres, mostro-te a multa, preto no branco.

- Foste mesmo multado? Como?

- Arrumei o carro num lugar proibido e depois circulei uns míseros dois ou três metros em cima da calçada. Como se dois terços dos carros de Lisboa não estivessem em cima dos passeios neste preciso momento em que falamos. E como se eles houvessem sido lá postos pelos próprios músculos dos proprietários.

- Pronto, pronto, já me convenceste. És muito persuasivo, sabias? Então, ficamos assim: quem se despachar primeiro espera pelo outro no parque de estacionamento, certo?

- Combinado. E boa-sorte.

- Não digas isso, que dá azar.

Berenice desligou o telefone com sentimentos ambíguos. Era bom saber que Lourenço estaria por perto durante o interrogatório. Mas era mau saber que ele não estaria por perto quando ela estivesse na Polinésia.

Pensando bem, não lhe competia toda a culpa pelo fiasco nas suas relações com os homens. A propósito, que relações? Lourenço era cativante, sorria com espontaneidade, denotava senso de humor, mostrava-se cheio de vivacidade. Com os portugueses, qualquer relacionamento começava com um grande débito. Tinha de se passar meses e meses a anular o resíduo inicial de desconfiança e retraimento antes de se transpor a faixa perigosa, isto já sem falar em ver alguma retribuição positiva pelos esforços envidados. Conhecer Lourenço fizera-a lembrar que as relações humanas não precisavam de ser assim, que noutras partes do mundo se abria a conta a crédito e, a menos que se desse cabo dessa boa vontade comportando-se como um sacana chapado, a afeição mútua continuava a expandir-se em cada encontro consecutivo, como se fosse natural para os seres humanos darem-se bem.

Como aquilo tudo era inquietante e familiar! Que angústia agradável. . . Lourenço estava a transformar-se num nome para designar o que Berenice ignorava, ou seja, a presença fugidia e esquiva do outro nela mesma. "Talvez", pensou a rapariga, enquanto vagueava a esmo pela casa, fingindo que ia a algum lado, "talvez o amor a nós mesmos não signifique que gostemos realmente de nós, mas apenas que desejamos o nosso próprio bem. Mais instinto de sobrevivência do que outra coisa qualquer".

Berenice parou mais uma vez diante da reprodução do quadro "De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos?". Porém, agora olhou-o sem o ver - penetrou nele como num extenso túnel.

Aos nove anos, dois Verões depois do incidente na escola com a amiga Cristina, estava de férias com os pais na cidade de Lagos. À noite, a seguir ao jantar (e jantavam sempre cedo), os três saíam para um digestivo passeio a pé, desembocando no largo do centro do município, com o homem das pipocas doces e salgadas, o balcão dos gelados que escorriam pelos cones abaixo, lambuzando-lhe os dedos e pintando-lhe bigodes e barbichas rosadas e castanhas nos cantos da boca, o carrinho fumegante dos cachorros-quentes e o seu arsenal de ketchup, mostarda, batatas fritas, couve, milho, cebola e maionese, o desmazelado vendedor dos anéis, das pulseiras e dos brincos sobre um lençol estendido no chão.

Naquela noite, o largo reservava-lhes uma esplêndida surpresa: um escorrega de borracha insuflável, que a Berenice pareceu alto como um arranha-céu. Teria pelo menos quatro metros de altura. Pelo menos.

- Queres? - perguntou-lhe um pai, enfiando a mão no bolso do casaco.

Berenice relutou. O brinquedo afigurava-se-lhe tentador, mas. . . Queria? Não queria? Não havia ninguém a escorregar. Valia a pena tentar. Quem não arrisca, não petisca.

O senhor Veríssimo deu-lhe uma palmadinha nos ombros e dirigiu-se a uma espécie de guichet improvisado. Pagou o bilhete e passou-o à filha, que por sua vez o entregou à mulher que fiscalizava a entrada das crianças.

- Tens de tirar os sapatos.

Berenice puxou os atacadores e descalçou-se. Crispou instintivamente os dedos dos pés.

- As meias também?

- Não, as meias não. Podes ir.

A gatinhar, subiu pela rampa de borracha e atingiu a plataforma superior. Principiava a descontrair-se. Aproximou-se da parte que compunha o escorrega propriamente dito e permaneceu imóvel por alguns momentos. Avistou os pais, perfilados no passeio, a contemplar a filha com toda a atenção. Reparou também que o movimento na rua aumentava, assim como o burburinho. Mais e mais pessoas afluíam. Ouviu o senhor Veríssimo incitá-la, com as mãos a moldar um megafone:

- Então, filha? Estás a dormir, ou quê?

Sentou-se na borda do escorrega e, com um impulso, deixou-se deslizar, ricocheteando o traseiro ossudo nos solavancos. Oh, aquilo era mesmo divertido. Se era.

Pôs-se de pé, a sorrir, e preparou-se para subir outra vez. Que bom, ainda tinha muito tempo. O bilhete daria para quanto: cinco, dez minutos? Ao contornar o acesso para cima, observou mais dois pares de sapatinhos alinhados junto dos seus. Naquele instante, outras três crianças flanquearam-na, descalçaram-se e ultrapassaram-na antes que Berenice pudesse sequer pestanejar. Ouviu novamente o vozeirão do pai, agora mais próximo:

- Ó filha, o tempo está a passar! Não sejas uma pata-choca! Não faças figura de parva!

Olhou para cima e, ajoelhando-se, voltou a gatinhar mesmo junto à platafor ma. Convergiam sucessivos contingentes de rapazes e raparigas, conhecidos uns dos outros, febris e turbulentos. Abeirou-se da prancha de borracha, mas reconsiderou: era muito melhor esperar que aquele grupo se despachasse. Depois desceria sozinha, à vontade, como da primeira vez. Deixou-se estar ali, erecta como um semáforo, e muito atenta Contudo, depois daquele veio outro grupo, que já tinha dado a volta e subido novamente. E a seguir um segundo, um terceiro, um quarto. . .

Berenice perdeu a conta. Sentia-se um pouco tonta e enjoada. Bloqueando inadvertidamente um dos acessos do escorrega, foi empurrada para trás. Tropeçou, perdeu o equilíbrio e caiu sobre a borracha da plataforma, mas, é claro, não se magoou mesmo nada, embora aquela área fosse mais rija. Encostou-se ao fundo da estrutura e começou a maquinar um plano de fuga. Não podia nem descer pela prancha, com aquele fluxo incessante como uma maré, nem pela rampa da plataforma, também atravancada.

Sempre encostada a parede, esgueirou-se até a borda do brinquedo. Avaliou a distância até à calçada. Oh, não havia de ser nada. Bastava cair com os pés bem juntos e os joelhos dobrados. E algum anjo-da-guarda tinha de estar de sentinela. Fechou os olhos, respirou fundo e lançou-se para o vazio, enquanto as demais crianças deslizavam aos trambolhões, como bolas de neve a rolar por uma montanha.

Torceu um bocadinho o tornozelo e esfolou os joelhos. O pior agora era a náusea no estômago. Deus não permitisse que vomitasse no meio daquela gente toda! Os pais vieram a correr, a bufar e a ofegar, a mãe a soltar longos suspiros e gritinhos curtos, a chamar-lhe o nome. A senhora Veríssimo abraçou a filha, apertou-a contra si até magoar-lhe as costelas, levantando-a do chão, a perguntar porquê, porquê? Porquê o quê?, pensou Berenice, enquanto tentava esgrimir com o olhar a perplexidade amedrontada das outras crianças, que tinham parado de escorregar.

- Então, e o brinde? - exclamou o dentista, erguendo o copo. Berenice fez o mesmo e os vidros tilintaram.

Lourenço Maia examinou pensativamente o perfil esbelto da rapariga que sorvia o vinho, o nariz bem desenhado com uma covinha no osso, as pálpebras de veias finas, os olhos grandes qual postigos, os cabelos que lhe caíam a direito como se fossem um elmo. Não havia nada a fazer - existia uma pérola naquela ostra.

Não se lembrava da última vez em que se sentira assim na presença de uma mulher. Era desconcertante, mas não se lembrava sequer do nascimento da sua paixão por Lúcia. Na verdade, e ainda mais assombroso, tanto a Lúcia actual como a jovem que ele encontrara há 15 anos pareciam-lhe difusas e inacessíveis. Da jovem - perdida num passado já nebuloso, a mensagem original de um palimpsesto demasiadamente reescrito - não se recordava quase nada, excepto que, nas noites mais frias do Inverno, ela gostava de dobrar a extremidade dos lençóis na parte de cima do edredon. Quanto à Lúcia actual, entrevista apenas por breves momentos no vaivém dos filhos, ele simplesmente não a conhecia.

E, no entanto, fora por causa daquela mulher que o doutor Maia desviara em 180 graus o curso da sua vida, numa viagem sem volta. De facto, a sua genuína e tremenda jornada consistira no encontro com Lúcia. Com aquela mulher que ele já não sabia quem era, nem por que a amara, nem sequer se de facto a amara, embora supusesse que sim. Ou, pelo menos, que estivera apaixonado por ela.

Há três anos, num dos seus fins-de-semanas quinzenais com as crianças, Pedro falara-lhe no seu novo "tio de bigodes". Eis como Lourenço ficara a saber que a mãe dos seus filhos tinha outro amor, e que esse homem ia habitar com Lúcia, Pedro e Teresa. Rezou para que o "tio de bigodes" fosse uma boa pessoa, para que tratasse bem os enteados. E para que os seus filhos não viessem a gostar mais do padrasto que do pai. Mas não experimentou nem uma alfinetada de ciúme, nem que fosse pelo amor-próprio ferido, ou qualquer vaidade masculina. Nada. Zero. Pelo contrário, a expectativa de que desta vez Lúcia alcançasse a felicidade sentimental aliviou-o alguns gramas do fardo da culpa.

Agora, quinze anos passados desde o seu casamento, sentado naquele restaurante diante daquela rapariga um tanto estranha, de uma doçura recôndita e arisca, registava novamente movimentos tectónicos no seu coração.

Pousou a sua mão sobre a de Berenice e agarrou-lhe os dedos como a uma alça, como se receasse que a jovem se volatizasse. Coisa que era exactamente o que ela pretendia fazer.

Com Berenice na casa de banho, Lourenço almofadava as arestas aguçadas do sofá-cama. Em relação ao restaurante, a casa dele era mais próxima que a dela. E, naquelas circunstâncias tão especiais, a pressa era amiga da perfeição. Abriu os lençóis, esticou-os e entalou-os sob o colchão e revolveu o travesseiro. Na sua nova residência, estariam muito mais confortáveis. Quem sabe, um dia?

Aí vinha ela. Deu dois passos na direcção da rapariga e, afastando-lhe a gola da camisa, roçou-lhe a boca pelas omoplatas, aspirando o aroma adocicado da carne humana. Berenice acariciou- lhe as penugens da nuca e ergueu-lhe o queixo, fitando-o profundamente nos olhos, como se eles contivessem uma mensagem em código. Uniram os lábios e Lourenço sentiu-se como se pela primeira vez na sua vida beijasse uma mulher que não era um poster.

Durante o jantar, Berenice recusara-se a entrar em pormenores sobre o interrogatório. Limitara-se a comentar que "tudo tinha corrido bem".

Agora, enquanto se estendiam um ao lado do outro, nervosos e comovidos, e entrelaçavam os seus corpos como duas mãos, murmuravam frases incoerentes de ternura. Lourenço agarrou com uma mão quent cada haste do sofá-cama, como se estivesse a guiar um trenó. Fitou Berenice e sussurrou:

- Diz-me que não foste tu.

Ajovem bateu as pestanas duas vezes e, com a voz firme mas sem aspereza, respondeu:

- Não fui eu. . . Diz-me que não foste tu.

O dentista escancarou um sorriso:

- Não fui eu.

Berenice também sorriu, com uma luz nos olhos, e abriu-lhe as pernas como se fosse um livro.

 

A INDA BEM QUE O TEMPO TINHA MELHORADO. CasO COntráriO, Que grande maçada, valha-me Deus! As nuvens por cima dos montes iam subindo com a luz. O sol aquecia o bastante para que viajassem em mangas de camisa. O doutor Maia ligou o pisca-pisca para a esquerda e, numa manobra concisa, ultrapassou o automóvel que rolava à sua frente.

- Não andes tão depressa! - protestou Teresa, inclinando-se para espreitar o velocímetro. - Sabes muito bem que é perigoso e ainda por cima apanhas outra multa.

- Filha, estou apenas a 90. . . - justificou-se o pai. - Aquele carro é que nunca mais andava. Não te esqueças de que isto é uma estrada e não uma rua.

Teresa sentiu-se mais tranquila, embora não desse o braço a torcer, com os olhos emitindo uma centelha ainda zangada. Mas aquilo passava-lhe num instante.

No banco de trás, as crianças começaram a brincar a uma adivinha chamada "quem é?". Um dos dois tinha de fazer perguntas até descobrir a identidade da pessoa em que o outro estava a pensar. As respostas só podiam ser "sim" ou "não".

- Já pensei! - anunciou Pedro, erguendo o braço com aquela avidez tão típica da infância.

- É homem? - perguntou Teresa, lentamente.

- Não.

- Bom, então é mulher. É da família?

- Sim.

- É a mamã?

- Sim!

- Ora. . . Olha que tu também! - resmungou a rapariga, irritada com a falta de imaginação do irmão.

O dentista consultou o relógio. Muito bem: mais dez, quinze minutos e chegariam a Vila Nova de Milfontes.

- Vamos jogar antes aos animais - propôs Teresa. Tratava-se a de dizer alternadamente o nome de um bicho, sem repetição. Aquele que falhasse ou repetisse o animal, perdia.

- Primeiro eu! - exclamou Pedro. - Javali.

- Avestruz. Hipopótamo - Elefante. - Vaca. - Burro.

- Porco.

- Gato.

- Cão.

- Girafa.

- Leão.

Pedro permaneceu calado, com uma expressão aflita. Franziu a e ergueu os olhos ansiosos para o tecto do carro, com um ar de falsa concentração.

- Hã. . . Mmmmm. . . O que é que disseste por último?

- Leão.

- Leoa!

- Não vale! Isso não vale! Batoteiro! Nunca mais brinco contigo. O doutor Maia contemplou-os de relance pelo retrovisor.

Puseram-se ambos em silêncio, de braços cruzados, competindo na evidência do beicinho.

Nos últimos dias, os remorsos de Lourenço tinham-se intensificado outra vez. Por causa de Berenice, mal telefonara aos filhos e não lhes lera nem sequer um capítulo, fosse a Teresa fosse a Pedro. Era indecente, mas não conseguia pensar noutra coisa que não na rapariga. Daí a ideia daquele fim-de-semana só os três, num sítio comicamente chamado Moinho da Asneira, nos arredores da localidade alentejana de Vila Nova de Milfontes, um reduto bucólico e aprazível, banhado por um lago artificial e contíguo ao rio e ao mar. Pelo menos era o que apregoava o folheto turístico, com fotografias e legendas muito convidativas. O doutor reservara um alojamento com dois quartos, um para si e o outro para as crianças, mas Berenice açambarcava-lhe o espírito. Naturalmente, avisara a jovem aonde estaria até domingo e dera-lhe o número do telefone do Moinho da Asneira.

Naquela tarde em que fizeram amor, momentos antes de partir da sua casa, Berenice exortara-o a acompanhá-la na viagem à Polinésia.

- Se gostas mesmo de mim, vem comigo. Sim: vem comigo. Como não temos pressa, vamos de navio, que é mais romântico, com aqueles corrimões nos corredores e aquelas mesas especiais com parapeitos para que os pratos não escorreguem. A propósito, deita-me a tua língua.

- O quê?

- É isso mesmo que ouviste: deita-me a tua língua. Agora.

Constrangido e atrapalhado, obedeceu.

A rapariga aproximou-se dele devagarinho e observou-o com os olhos apertados e a risca do cabelo molhada de suor, pousando-lhe o dedo na língua em jeito de espátula, como um otorrinolaringologista a examinar umas amígdalas.

- Ah, eu já adivinhava! Tens uma língua tal e qual uma carta náutica. Tu é que ainda não sabes, mas és feito para o mar, para a errância. Isto aqui foi apenas o primeiro porto, meu Popeye!

O dentista fechou a boca, apalpou o maxilar, bateu os dentes de cima nos de baixo e sorriu. Passou a mão pelo cabelo e perguntou:

- Queres dizer que vou ter uma mulher em cada porto? Berenice deu uma gargalhada feliz, puxou o trinco para trás, soprou-lhe um beijo da palma da mão e fechou a porta atrás de si. Mas Lourenço sabia que ela falava a sério, muito sério. E era isso que o angustiava. Receava que, se não fosse com a rapariga, perdê-la-ia para sempre. Mesmo que Berenice não se radicasse na Polinésia, coisa de que ele duvidava e muito, o desprezo inspirado pela sua recusa ditaria inevitavelmente a erosão do amor. Meu Deus, o que é que ela queria que fizesse? Só gostaria que ce lhe explicasse isso! Sim, se ela não se importasse! Ele era um dentista, não era nenhum Gauguin. Trabalhava com brocas, dentes postiços e placas, não com pincéis e crepúsculos purpúreos. As arcadas dentárias e as gengivas eram as suas telas. Oh, sim, Berenice já o informara que o próprio Gauguin fora um prosaico corretor da Bolsa de Valores. Mas ele tinha a Teresa e o Pedro, dois fillhos pequenos. . Ah, que diabo, Gauguin também tivera dois filhos pequenos e mesmo assim zarpara sem olhar por cima dos ombros, sem pensar duas vezes, sem sequer murmurar adeus, até ao meu regresso.

No entanto, existiam ainda outras circunstâncias a levar em linha de conta. Se, por causa dos fillhos, depois do divórcio Lourenço não voltara para o Brasil, onde estavam o seu pai, a sua mãe, as suas irmãs e os amigos de infância e juventude, para não falar no seu berço e habitat natural, como podia agora lançar tudo pelas costas e singrar para o Taiti como se fosse Sinbad, o Marinheiro? Era evidente que não podia.

E uma precipitação semelhante já não lhe custara um exílio? A propósito, se não era indiscrição, o que faria em Bora Bora, enquanto Berenice zanzasse em busca de luzes, cores e paisagens? Ele não era capaz de desenhar nem uma cruz! Bem, ao menos uma vantagem aquilo tinha: muito dificilmente a Polinésia seria inundada de dentistas brasileiros.

Não, não podia dar-se ao luxo de gracejar com tal assunto. Depois de tanto esforço, alcançara finalmente uma posição invejável do ponto de vista profissional. Dentro de um mês, no máximo, a sua nova casa estaria pronta, aconchegante e acolhedora, e isso sim é que seria o seu cais redentor. Berenice faria alguma ideia do que significava para um brasileiro - uma criatura dos trópicos - ter uma sala com lareira, as labaredas a crepitarem pela noite fora? Um sortilégio, nem mais nem menos! Assim como se nevasse na Floresta Amazónica. . .

Se partisse, teria de começar da estaca zero pela terceira vez, como fizera sete anos atrás, depois da separação, quando deixara tudo o que possuía com a mulher e os filhos e se mudara de rabo entre as pernas para aquele estúdio ignóbil. Agora era um homem reciclado e parecia-lhe uma injustiça cósmica e um egoísmo monstruoso pretenderem que iniciasse tudo outra vez, "ab ovo", sem mais nem menos.

- Pai.

- Diz, Pedro. - Ah, o filho estava a romper primeiro a crosta da zanga. Teresa continuava a olhar sombriamente pela janela, coisa que jamais fazia quando, nos passeios que davam, o doutor Maia a incitava a apreciar as belezas da natureza.

- Eu podia ter dito zebra. - observou Pedro, com um semblante austero. - Eu podia ter dito zebra perfeitamente. - O rapaz lançou uma olhadela desafiadora a irmã, que ignorou a provocação e, cansada das belezas da natureza, abriu uma revista de banda desenhada.

- Pois podias.

- Pai.

- Sim?

- A zebra é um cavalo preto com riscas brancas ou um cavalo branco com riscas pretas?

- Boa pergunta, filho. - Pedro divertia-se imenso com os jogos verbais, mas gostava também das palavras compridas e complicadas, as "palavras caras". Muitas delas já as conseguia pronunciar, embora nem sempre compreendesse o seu significado, e quando lho explicavam por vezes ficava ainda mais confuso e intrigado.

Subitamente, o doutor Maia lembrou-se de Ravi Sharma e das suas queixas contra a discriminação e o racismo. As pessoas eram seres brancos com riscas pretas ou seres pretos com riscas brancas?

- Não sei, filho, não sei. Mas que podias ter dito zebra, lá isso podias.

Pedro tossiu um bocadinho. De constituição um tanto anémica, constipava-se quase sempre com as oscilações de temperatura. Na bagagem, Lourenço levava xarope e ben-uron. Aliás, ele próprio não andava a sentir-se lá muito bem. Antes de sair de casa, sofrera umas fortes cãibras, primeiro no pescoço e depois nas coxas, quando se baixara para atar os sapatos do filho. Por certo, uma consequência da tensão gerada pelos acontecimentos vertiginosos dos últimos dias e agravada pelo adiamento crónico das férias. Mesmo agora, com o sim ples esforço requerido pelos pedais do carro e pela concentração no acto de conduzir, tanto as pernas como o pescoço voltavam a impor descanso - e as costas também punham as manguinhas de fora. Ainda bem que estavam quase a chegar.

Havia prometido a Berenice que no regresso lhe daria uma resposta definitiva a respeito da Polinésia. Ela já tinha as malas prontas e reservara a passagem. Para ser sincero, ele quisera apenas ganhar tempo, à espera de que sobreviesse alguma reviravolta providencial, que no momento nem sequer conseguia descortinar, embora não pense noutra coisa.

Céus, com que desdém Berenice falara do pai, a quem nem se via a mencionar a simples perspectiva da viagem! Diante do doutor Maia, com as feições crispadas de exasperação, ela gemera:

- Santo Deus, é uma viagem puramente pragmática. Não sou uma hippie a peregrinar a Katmandu. Será que ninguém consegue perceber isso?

- Eu consigo! - dissera Lourenço, pressurosamente. Mas sabia que não era bem assim.

Berenice prosseguira, enquanto andava em círculos e gesticulava:

- Se Gauguin, há mais de 100 anos, portanto em condições muito mais adversas e precárias, viajou duas vezes para o Taiti, por que é que acham tão absurdo e desmiolado que eu faça o mesmo no limiar do século xxI, quando já existe uma geringonça chamada avião?

O doutor Maia balançou a cabeça, concordando. Porém a jovem ainda não concluíra a sua peroração.

- Sabias que nas viagens marítimas nos tempos de Gauguin as pessoas colocavam a roupa suja em sacos que eram atirados ao mar durante um bocado, e que era assim que retiravam a sujidade? Isso dá-te uma ideia das adversidades que ele enfrentou, comparadas com as comodidades ao meu dispor. E, no entanto, toda a gente me olha como se eu fosse louca.

- Eu não te olho assim - repetiu, como se quisesse convencer a todos, menos a si mesmo.

Como qualquer pessoa normal, também ele desejava uma vida

menos convencional, menos comum e previsível. Já tivera os seus rasgos de ousadia e temeridade. Depois da queda na piscina, o pai cortara-lhe a mesada por tempo indeterminado. O tal sermão da responsabilidade e maturidade. Justo quando Lourenço mais precisava de dinheiro, pois a esquiva Sandra fora por fim rendida no seu coração. E ainda bem, porque Cláudia penetrara clandestinamente no quarto do irmão e, com uma caneta de ponta de feltro preta, pintara bigodes à Zapata em todas as beldades dos posteres.

E eis que então Lourenço arranjou uma fonte alternativa de divisas. Perto do seu colégio, inauguraram um hipermercado de dois pisos, com banda de música, faixas e discursos a respeito do progresso laborioso da cidade, entrecortados pelos guinchos do microfone. No piso superior, espraiava-se uma vasta secção de discos, naquela época ainda os volumosos LP's de vinil.

O rapaz entrava no estabelecimento pelo rés- do-chão, subtraía um saco vazio com o logótipo do hipermercado, metia-o sob o cós das calças, subia ao piso superior e, no momento oportuno, introduzia dois ou três discos no saco. Depois saía pela porta do primeiro andar, cujo segurança, avistando o saco fechado, julgava que Lourenço já trazia as compras pagas do rés-do-chão. O estratagema só falhara uma vez, quando um segurança desconfiou dele e passou a segui-lo de modo tão conspícuo e canhestro que Lourenço vagueou aleatoriamente pelos quilométricos corredores do hipermercado, detendo-se em cada uma das prateleiras, interessadíssimo em todas as mercadorias, examinando-as com uma minúcia infinita, só para chatear o perseguidor. Depois, com as pernas já a formigarem, retirou-se, o queixo erguido e o nariz empinado, privado da pilhagem mas dizendo a si próprio que um dia era da caça e o outro do caçador.

De posse dos discos, vendia-os a um alfaiate que trabalhava ao pé da escola de inglês, sovina até dizer chega. Claro que o botim era irrizsório, pois o tal receptador recolhia o espólio pelo preço da uva mijona, cerca de dez vezes menos do que o valor original, embora os discos ainda apresentassem um lacre inviolado. Um negócio da China para o alfaiate.

Oh, sim, também o doutor Maia tivera as suas aventuras épicas, conquanto hoje lhe custasse a acreditar que fora capaz daquelas ingénuas rapinagens. E a própria viagem de fim de curso não fora uma odisseiazinha? Enquanto os demais colegas seguiam bovinamente com o monitor para Barcelona, Lourenço deixara-se ficar na pensão lis boeta com um amigo, retido por uma inércia entorpecedora e ainda agora inexplicável. Durante dez dias, flutuara numa espécie de éter malbaratando como um sultão todo o dinheiro que havia trazido - em lagostas, táxis e champanhe. Depois conhecera Lúcia, e o seu amigo partira para a França, a fim de se juntar ao restante do grupo. E depois o dinheiro começara a escassear.

Massajando o pescoço, ao mesmo tempo em que procurava a placa com a indicação do Moinho-da- Asneira, adjacente a uma bomba de gasolina, o doutor Maia recordou-se daquela pensão, o seu primeiro tecto em Portugal, o cenário em que vira pela primeira vez a mãe dos seus filhos.

Não pode deixar de se rir ao lembrar-se da dona Jacinta, a senhora que comandava o estabelecimento, uma negra moçambicana rechonchuda e baixota, de olhos esbugalhados nas órbitas muito brancas, um ligeiro buço e a voz mais estridente que já se ouviu na face da Terra. Na antiga Lourenço Marques, dona Jacinta juntara os trapinhos com um soldado do Exército português, o senhor Valadares, que a trouxera consigo ao voltar para Portugal.

Nas tardes das quintas-feiras, a casa de banho da casa estava vedada aos pensionistas, que, numa emergência, tinham de se socorrer no café mais próximo. É que aquele era o sacrossanto dia do banho do casal - aquele e só aquele, durante toda a semana. Dona Jacinta sentenciava que mais de quatro banhos por mês era o mesmo que encomendar uma pneumonia dupla, sem dó nem piedade. Após cerimoniosos preparativos, encerravam-se lá dentro, davam a volta à chave e produziam uma algazarra dos diabos, com gritinhos, urros, risotas e gargalhadas, clamores e grasnados, ruídos de esguicho, mergulho, gorgolejos e sucção, toalhas a estalarem e assim por diante. Os hóspedes interrogavam-se como é que o casal cabia dentro da banheira, já que, se a dona Jacinta era avantajada, o senhor Valadares era um lutador de sumo escarrado e cuspido. E tudo aquilo só para se lavarem atrás das orelhas? Fosse como fosse, saíam da casa de banho enternecidos e perfumados.

Nos outros dias da semana, a mulher administrava a pensão e o marido, sentado à mesa da sala, folheava os jornais desportivos e esvaziava um garrafão de cinco litros de vinho tinto. Pelas seis horas da tarde, o senhor Valadares apresentava a voz entaramelada e rodelas escarlates nas bochechas, como o centro de um alvo, e pousava nos hóspedes um olhar húmido e compassivo. Dir-se-ia que tudo o que pretendia na vida era aquele banho às quintas-feiras, e beber suavemente até morrer. Nas primeiras semanas Lourenço concluiu que dona Jacinta era

uma das pessoas mais bonacheironas e afáveis que já conhecera na vida. Gostava de anedotas picantes e pedia ao jovem que lhe ensinasse palavrões brasileiros, repetindo-os mais tarde em voz alta. Por vezes, levara-lhe até o pequeno-almoço à cama - ora, se a refeição estava incluída na diária, quanto mais o room service. Mostrara-lhe sua colecção de moedas de todo o mundo - uma colecção realmente planetária - e perguntara-lhe se no Brasil não tinham sido lançadas moedas novas (antigas ela já as tinha, e muitas). Dona Jacinta tagarelava com jovens oriundos de todos os confins do globo, mas o Esperanto continha apenas uma palavra de facto estrangeira: money Por tudo e por nada, ou só porque lhe dava prazer, ia e vinha pelo corredor da casa, exclamando como um papagaio no ombro de pirata: "Money! Money!" E desatava às gargalhadas, até ficar com os olhos marejados.

Porém, quando o dinheiro do rapaz começou a rarear, o tratamen to mudou. Os modos da senhora tornaram-se mais secos e abruptos. Um dia, ao chegar da rua, Lourenço viu que as suas coisas se encontravam num quarto acanhado, pouco mais que uma despensa. Dona Jacinta explicou-lhe que recebera um casal finlandês, e por isso precisara da cama de casal do aposento que o brasileiro ocupava. Bem, era um motivo mais do que razoável.

Lourenço somente se aborreceu quando, durante uma visita de Lúcia, que conhecia a dona da pensão desde que lá se hospedara um seu amigo inglês, dona Jacinta queixou-se à rapariga, alto e bom som; de que o brasileiro gastava demasiado papel-higiénico.

É verdade: o que seria feito de dona Jacinta e do senhor Valadares? O doutor Maia nunca mais lá voltara, embora passasse pela frente da casa algumas vezes. Dona Jacinta teria enriquecido e comprado a maior televisão do mundo, supertrinitron, como sonhava? E o senhor Valadares sucumbira à cirrose hepática?

- Olha a placa ali! - exclamou Teresa, que muito se orgulhava do seu sentido de orientação.

Lourenço relanceou os olhos pela direcção que a filha apontava e avistou a indicação do Moinho da Asneira. Suspirou, aliviado: sabia que o seu sentido de orientação era muito deficiente - perdia-se até em portas giratórias. Saiu da estrada alcatroada e seguiu pelo caminho de terra batida. Os buracos eram mais que muitos e começaram as trepidações e os solavancos.

- Pai.

- Sim, filho?

- Achas que vou ter pesadelos no Moinho da Asneira?

- Claro que não. Aposto contigo como não vais ter pesadelos nenhuns. Nem hoje, nem amanhã, nem depois.

Pedro sorriu, aliviado. Começou a chocalhar um tubo de smarties. De repente lembrou-se de uma coisa que tinha ouvido na escola, e o seu rosto iluminou-se mais ainda. O leve sorriso era malicioso. Dir-se-ia que tinha um segredo que já não podia mais guardar só para si, e exclamou, de olhos brilhantes:

- Pai, outro dia sonhei que estava acordado, e quando acordei estava a dormir!

Teresa bufou, parando de contar em voz alta os carros que passavam em sentido contrário.

- Agora dizes sempre isso! Qual é a graça? Sonhei que estava acordado e quando acordei estava a dormir. . . Vê lá se cresces!

O caminho descia e serpenteava de um lado para o outro, íngreme e estreito. Se viesse um carro em sentido contrário, o doutor Maia não sabia como haveria de fazer. Nas bermas da estrada, estendia-se a vegetação silvestre, uma capa verde escura salpicada do amarelo vivo das azedinhas. O vento inclinava as hastes das canas, que gemiam penosamente.

Lourenço e Berenice eram tão diferentes! Será que ele nunca mais aprendia? Quando, inevitavelmente, o doutor Maia começasse a falar em abcessos e próteses, ela por acaso não desataria aos bocejos? Por outro lado, ele agora já não era aquele impulsivo jovem de vinte aninhos, que desposara Lúcia como quem vai ali e já vem. Depois de tudo o que passara, podia confiar um pouco mais na densidade dos seus sentimentos.

Talhado para a errância, dissera ela? Oh, por favor, não exageremos. Que errância, que nada. Não senhora, era essencialmente um sedentário. Se derivara tanto, era ápenas como no caso de Ulisses, o mitológico fundador de Lisboa, que vogara durante dez anos só para voltar para a casa de uma vez por todas. Talvez, nos últimos tempos, Lourenço se tivesse tornado cada vez mais recolhido e ensimesmado, muito formiga e muito pouco cigarra. Mas não era precisamente aquilo que o seu pai lhe prescrevera? Não era nisso em que consistia o discernimento e a responsabilidade?

Afinal de contas, bem vistas as coisas, ele mal conhecia Berenice. Não, claro que não acreditava que ela tivesse matado Ravi Sharma e lhe tivesse cortado a cabeça com uma serra eléctrica ou lá o que era. Isso não. Nem pensar. A rapariga era estranha, mas de uma forma inofensiva e até benigna, algo assim como um unicórnio.

- Chegámos, pai, chegámos! - gritaram, em coro, Teresa e Pedro, com as fisionomias desapontadas pela simultaneidade da descoberta. Também o doutor Maia descortinara a fileira de casinhas brancas como giz, semeadas na outra margem do lago.

Naquele momento, a pensar em Berenice, na Polinésia, nos filhos, na casa nova, em Paul Gauguin, em Ravi Sharma e no subinspector Reinaldo Carta, o dentista sentiu-se como o pai do seu velho amigo João, que subira sem saber de que modo a uma árvore eriçada de espinhos, e depois não fazia a mínima ideia de como descer.

 

COMO DA PRIMEIRA VEZ, O MUSEU DO RELÓGIO encontrava-se mergulhado em profundo silêncio, uma placidez solene de abadia. Tomás Figueiredo polia um vidro com uma flanela amarela. Um cachimbo de nogueira dançava-lhe orgulhosamente no canto da boca. Ao ver Carta, pousou a lente e a flanela no tampo do balcão e empurrou os óculos de lentes grossas como lupas para o alto do nariz, encostando-os às pestanas.

- Ah, subinspector. . . Que surpresa agradável. Confesso que tão cedo não contava com uma nova visita.

- Boa-tarde, senhor Figueiredo.

- Mas que cara é essa, tão carrancuda! Aconteceu alguma coisa?

Carta limitou-se a franzir o sobrolho e a fazer um gesto vago com a mão.

- Aconteceram várias coisas. Demasiadas, se calhar.

- Ai, sim? Está a aguçar-me a curiosidade. Suponho então que não veio matar as saudades dos meus relógios. É pena.

- Não, não vim por causa dos relógios. Dos seus relógios, como diz. Ou melhor, de certa maneira talvez tenha vindo por causa do mesmo relógio que dantes. Um relógio que não me disse que era seu. . .

- O Roskopf? É isso? Se é assim, perdeu a viagem. Já lhe disse tudo o que sabia sobre o Roskopf. Até à última palavra.

- Tem a certeza? Perdoe-me, mas não estou assim tão certo. Não me contou, por exemplo, que a sua fillha Cecília era namorada de Ravi Sharma e estava apaixonada por ele, tanto que lhe ofereceu um brinco de ouro.

O relojoeiro empalideceu. Fincou as mãos no balcão, como ganchos encarquilhados, e mordeu os lábios. Os cantos da boca estavam vincados e lassos.

- Não lhe falei nisso por duas razões: primeiro porque não me perguntou e não costumo meter o nariz aonde não sou chamado. Segundo porque, como deve compreender, não se trata de um assunto muito agradável para um pai.

- Como assim?

- Como assim? Essa é boa. Ora, subinspector, sinceramente. . . Vê-se mesmo que não tem filhos. E Cecília não estava apaixonada pelo monhé coisa nenhuma. Já tinha até pedido o maldito brinco de volta. Graças a Deus, ela é demasiado frívola para amar seja quem for. O que, naturalmente, não a impedia de dormir com o sujeito.

Tomás Figueiredo curvou-se mais um pouco, e acabou por pousar ambos os cotovelos no balcão, sobre um exemplar da revista Time. Parecia mais velho a cada minuto que passava. Era como uma estátua de cera a derreter.

- É para o senhor ver como são as coisas. Dantes, encerrávamos as nossas donzelas nas torres dos castelos - agora, imploramos para que elas tomem a pílula. . . E Cecília nunca me ouve. Os nossos filhos acham sempre que somos ao mesmo tempo senis e infantis. Quando penso que na minha juventude a opinião geral era de que de algum modo era errado ser jovem. . . Mas, já imaginou, subinspector? Eu, avô de um cafre? Brincamos ou quê? A simples hipótese faz-me náuseas. Já reparou como a minha filha é bela?

- Sim, é muito bonita. O que não dá ao pai o direito de degolar os seus namorados.

- Para já, não degolei ninguém. Mas falemos dessa lengalenga dos direitos. Olhe, subinspector, também eu tenho os meus contactos na polícia. E dos bons. Como deve calcular, nem todos os militares são capitães de Abril ou das fileiras do MFA. Antigamente, éramos todos unha com carne, a polícia e a tropa. Por isso, sei que, pelo seu passado, o senhor está muito mais do nosso lado que do outro.

- Não percebo nada do que diz. De um lado e do outro? O que é que pretende insinuar? Seja claro.

- Não percebe ou não quer perceber? Já viu o estado das colónias do Ultramar? Já viu as ruas de Lisboa? O terminal do Rossio, por exemplo? Aonde é que vamos parar?

- De novo, não o percebo.

- Não se faça de desentendido. Estamos só os dois aqui. Permita-me contar-lhe uma breve história.

- Faça o favor.

- Portugal teve há tempos uma infanta chamada Catarina de Bragança. Ela media pouco mais de metro e meio de altura, e tinha uma boca enorme, com dentes de castor. Mas era submissa, bordava e cantava música sacra.

- Muito prendada.

- Não seja grosseiro, peço-lhe! Não neste museu! Não se atreva. . . - exclamou o relojoeiro, com uma voz que mais parecia o dobrar de um sino.

- Pronto, pronto. Acalme-se. Continue.

- Bem. Os embaixadores portugueses percorreram a Europa oferecendo mundos e fundos a um rei poderoso que casasse com Catarina. Mas, quando ouviam a descrição da infanta, todos reconsideravam. Todos, menos o inglês Carlos II, que estava com os cofres vazios. Por meio milhão de libras, mais os portos de Tânger e Bombaim, ele aceitou a proposta. Além disso, Portugal deu à Inglaterra comércio livre com a Índia e o Brasil. É ainda hoje o maior dote da história.

- Não vejo aonde quer chegar.

- Já vai ver. Nunca, nem na noite de núpcias, Carlos dormiu com a sua rainha. Teve sete filhos bastardos em prol da Inglaterra, mas não se aproximava da mulher nem a tocava sequer com o mindinho. Catarina, por sua vez, não se queixava. Pelo contrário, ensinou o rei e a corte inglesa a comerem de garfo e faca.

- Se não me engano, Carlos II foi executado. . .

- Não, está enganado. O pai dele, Carlos I, é que foi decapitado. Que mundo pequeno, não é assim? E que justiça poética!

- Todos esses rodeios só para confessar a decapitação de Ravi Sharma, senhor Figueiredo?

- Nada disso, subinspector. Não confessei nada e não acabei a minha pequena lição de história. O nome do bairro de Queens, em Nova Iorque, é uma das raríssimas homenagens à nossa infanta, mas 99 por cento dos americanos não sabem nem querem saber que a rainha em questão foi Catarina, uma portuguesa de gema.

- E daí?

- Daí que, há mais de dez anos, os portugueses de Nova Iorque tentam dar à rainha o lugar que ela merece, pelo menos em Queens. Através de festas e donativos, angariaram dois milhões e meio de dólares e mandaram construir uma estátua com 15 metros de altura de Catarina, lindíssima, de caracóis em cascata numa cabeleira leonina e um opulento par de seios incrustados no decote generoso. Só perde em tamanho para a Estátua da Liberdade. No próximo ano, o monumento será instalado na margem do rio, em frente da ONU. Ou melhor, talvez sim, talvez não.

- Por que talvez não?

- Porque um bando de políticos pretos de Queens não quer saber de Catarina no bairro deles. Alegam que a rainha foi mulher e nora de dois dos maiores esclavagistas da história. Com o mesmo argumento, esse lobby já conseguiu riscar os nomes dos presidentes George Washington e Thomas Jefferson das escolas públicas de Queens.

- Hum, estou a ver. O senhor matou Ravi por simples racismo!

- Racismo? Qual racismo? Será que falo grego? A propósito, na Grécia que os humanistas gostam tanto de invocar, os estrangeiros também não tinham cidadania. E todos os estrangeiros eram chamados "bárbaros". Já os escravos não passavam de uma ferramenta animada. Portanto, poupe-me a cassete, está bem? Já agora, por que é que deveríamos pedir desculpas aos pretos? Por lhes dar a civilização, o império da lei, um pouco de prosperidade - coisas que eles nunca tiveram nem antes nem depois, e jamais teriam se não fôssemos nós?

- Que eu saiba a terra era deles, senhor Figueiredo. A voz do relojoeiro ressoou como um coaxar rouco:

- Está a gozar comigo, não? Qual terra era deles, se faz o favor de dizer, se antes de nós não existia um território delimitado como Angola ou Moçambique, mas meras tribos sempre à pancada umas com as outras? Até os pretos que foram vendidos como escravos para os Estados Unidos viveram mais tempo do que se tivessem ficado em África, e os seus descendentes americanos estão muito melhor do que aqueles que permaneceram em solo africano - estes caem como tordos, ou pela fome, ou pela guerra, ou pela sida. E é esse estado de coisas que eles querem trazer para aqui? Francamente!

- Não vou perder o meu tempo a discutir consigo. O senhor não está bom da cabeça.

Figueiredo bateu com o punho no balcão - os seus olhos avultavam ameaçadoramente nas órbitas ossudas.

- Ah, eu é que estou doido. . . Mesmo que assim fosse, quem é o senhor para julgar? Desde a primeira vez que pus os olhos em si, subinspector, nunca me pareceu uma pessoa emocionalmente estável. Tem a certeza de que tem a cabeça no lugar?

- Como é que matou Ravi, senhor Figueiredo?

- E ele a dar-lhe! E eu que até simpatizava consigo, e tive tão boas indicações a seu respeito. . .

Carta levantou as sobrancelhas, mas não disse uma palavra.

- Não, não matei ninguém, subinspector. - O sorriso do relojoeiro era lasso, e os olhos sem vida. - Claro que, sob o ponto de vista de um cavalheiro, não me faltavam motivos.

- Não se trata de uma simples coincidência o facto de a cabeça de Ravi Sharma ter sido pendurada na madrugada do 25 de Abril. . . Pois não, senhor Figueiredo?

- Mais uma justiça poética, subinspector, mais uma justiça poética! Como sabe, a torpe anexação de Goa pela Índia, em 1961, só foi reconhecida por Portugal depois do 25 de Abril de 1974 - mais precisamente, em Novembro de 1974, durante o Governo Provisório. Imagine só: a mesma Goa onde Camões escreveu Os Lusiadas. . .

- Sim, agora tudo se encaixa.

- Tudo se encaixa? Não, hoje em dia nada se encaixa, subinspector. Aliás, esse é que é o problema. As coisas nunca são tão simples como pensa. Sei, por exemplo, que o senhor pretende ter amado muito a sua falecida esposa. Mas tem a certeza de que não foi feliz com ela só depois que ela morreu?

Carta sentiu um frémito de cólera, depois uma palpitação de dor. A próstata. . . A indignação era tão cansativa que ele a guardava para a maior das injustiças. Notou, com desagrado, o seu tique de apelar para a compaixão - e refreou-se imediatamente. Naquelas circunstâncias, era mais absurdo do que nunca. Com uma objectividade clínica e uma espécie de espanto observou que as suas mãos não tremiam. Deu-se conta da iminência do mal e teve de fazer uma pausa antes de poder controlar a voz.

- O senhor está preso, senhor Figueiredo.

No instante seguinte, Reinaldo Carta olhou para trás, porém não tão depressa como convinha. Só pôde ver que um objecto escuro e pesado descia rapidamente sobre a sua cabeça. Quase conseguiu desviar-se, mas foi atingido na fronte. A dor na cabeça cresceu como uma grande flor vermelha. Estendeu cegamente as mãos, no entanto só colheu o vazio. Foi como se o chão se tivesse transformado numa rampa. As pernas dobraram-se-lhe e escorregou frouxamente para o solo, o seu cérebro tornando-se um caleidoscópio. Sentiu-se a cair no tempo, no espaço, numa eternidade de terror.

O subinspector abriu os olhos devagar. Quanto tempo se tinha passado? Não muito, a julgar pela espessura do sangue na sua fronte, quase a escorrer-lhe para os olhos. Soergueu-se com dificuldade, pondo-se de joelhos. Puxou o lenço do bolso e limpou a ferida. O raio da próstata doía-lhe bem mais do que a cabeça.

Foi então que viu o senhor Figueiredo, estendido entre o balcão e a parede, com os olhos muito abertos e vítreos e uma expressão de sur presa ofendida. Na agonia, mordera o lábio inferior, quase o rasgando em dois. Tinha um buraco de bala na testa, como uma pequena rosácea. Para o relojoeiro, o tempo parara para sempre.

Ao lado do cadáver, Carta avistou a sua própria pistola. Se quisesse apanhar o assassino de Ravi Sharma e de Tomás Figueiredo e livrar-se de uma grande enrascada, precisava de levantar-se. E correr o mais depressa possível.

Felizmente, sabia aonde devia procurar. Infelizmente, a dor na próstata aumentava a cada segundo.

 

LOURENÇO MAIA DESLIGOU O MOTOR DO CARRO num pequeno parque de estacionamento, com uma espécie de cobertura de pranchas e colmo para a protecção do sol e da chuva, e capacidade para uns cinco ou seis veículos apenas. Uma estrada ainda mais estreita, com cerca de cem metros de comprimento, conduzia através da água aos alojamentos propriamente ditos, mas uma placa rústica pedia em português e inglês que os hóspedes fizessem o favor de prosseguir a pé.

O adulto e as duas crianças saíram do carro, entre bocejos de preguiça e suspiros de alívio, e desentorpeceram as pernas. O dentista observou uma célula fotoeléctrica instalada na única viga de metal, que por certo acendia as luzes durante a noite, accionada pela deslocação dos veículos. Erguendo os olhos, avaliou o panorama: vá lá, aquilo era mesmo bonito. Sossegado até dizer chega. Lourenço esfregou uma mão na outra, com uma sensação de expectativa.

Na outra extremidade da estrada, uma dúzia de casinhas brancas, de portas vermelhas e chaminés diagonais, lembravam uma aldeia de gesso. Por detrás delas, arqueava-se uma graciosa colina, ornada de um denso arvoredo. Uma cotovia invisível executava as suas escalas em soprano. Um pássaro sabe cantar só a canção que conhece, ou é capaz de aprender uma outra canção? O doutor sentiu-se descontrair, mas foi sol de pouca dura - os músculos das coxas ainda palpitavam. Dilatou o tórax e susteve a respiração: por amor de Deus, não chores, idiota!

De um lado, estendia-se um lago artificial, apinhado de juncos, canas e arbustos aquáticos, de aspecto um tanto ou quanto pantanoso e agreste - assemelhava-se a um arrozal cambodjano. Do outro lado, um braço desgarrado do rio Mira esgueirava-se até ao mar, nas cercanias de Vila Nova de Milfontes. Avistava-se até mesmo a ponte principal da povoação, uma fita cinzenta a pairar no horizonte, sustentada por um triângulo de barras cujo vértice mergulhava na água. Dir-se-ia que haviam desembarcado numa ilha.

- Muito bem, rapaziada, toca a andar! - disse o doutor, imprimindo na voz uma vibração entusiástica. Teresa e Pedro, entretidos, continuaram a atirar pedrinhas ao lago.

Lourenço abriu o porta-bagagens e retirou as duas malas, pousando-as no chão. Oxalá desta vez Lúcia não se tivesse esquecido de mandar os ténis de Pedro. Na verdade, não era bem um esquecimento, mas um braço-de-ferro tácito: ela preferia que o filho andasse de sapatos, ao passo que Lourenço era adepto incondicional dos ténis, sobretudo nas férias.

- Vá, crianças, despachem-se. O que não falta aqui são pedrinhas e água.

Recalcitrantes, com as faces afogueadas de excitação, Teresa e Pedro seguiram o pai em direcção às casas, detendo-se de quando em quando para apanhar mais seixos com que alvejar o lago. O doutor Maia sentiu a testa e as axilas molhadas de suor. Nada mal para fins de Maio. O sol projectava-lhes as sombras em proporções perfeitas, nem demasiado esguias, nem grotescamente encolhidas. Apesar disso, via-se a lua no céu, suspensa como uma medalha de prata.

A estradazinha desembocava numa encruzilhada tripla: à direita, aprumava-se o casario; ao centro, alçava-se uma rampa de cimento; à esquerda, afastava-se um apêndice da estrada por onde tinham vindo, que agora já não passava de uma modesta vereda. Na intersecção daquilo tudo encontrava-se uma espécie de barracão. Pelo clamor mecânico que ressoava lá dentro, Lourenço calculou que devia conter algum tipo de gerador, ou qualquer coisa motorizada, como o sistema hidráulico da piscina, com bombas, engrenagens e eixos lubrificados. Sim, porque o folheto publicitário prometia uma piscina.

Teresa deu um gritinho e apontou para cima. No telhado do barracão, um catavento com a efigie de um duende dava à manivela intermitentemente, como se parasse para recobrar o fôlego e depois retomasse o trabalho. Pedro, como não fora ele quem fizera a descoberta, não achou nada de especial.

O doutor hesitou: qual direcção deveria tomar? Afinal, não se descortinava vivalma em lado nenhum. Deliberou optar pelo rumo do casario, que ao menos estava mais próximo. Não tinham percorrido vinte metros quando vislumbrou uma porta aberta e um vulto no interior. Caminhou naquele sentido e deu com uma mulher a passar roupa a ferro, de rosto encovado como uma figura de um quadro de El Greco, rodeada por trouxas amarfanhadas de camisas, calças, meias e cuecas, amontoadas em alguidares de plástico.

- Bom-dia! O meu nome é Lourenço Maia. Fiz uma reserva para este fim-de-semana. Através do ACP. . .

A mulher fitou-o com um ar inexpressivo, como se Lourenço houvesse germinado, brotado e florescido naquele lugar desde que o mundo era mundo.

- É só um instantinho que vou chamar o patrão. - Eclipsou-se no interior da divisão e falou abafadamente ao telefone. Minutos depois um homem descia em passos largos a rampa de cimento, a agitar os braços com a correria. Diante de Lourenço, estendeu uma mão mole e húmida.

- Bom-dia! Desculpem lá a confusão. Chamo-me Piet van der Platten. - Tratava-se de um indivíduo talvez dos seus quarenta anos, algo envelhecido pelos ombros curvados e a pele com uma porosidade de esponja. Tinha um intervalo entre os dentes da frente, era magro como um galgo e surpreendentemente baixo: para encarar Lourenço via-se obrigado a deitar a cabeça para trás. Trazia calças e camisa brancas, muito leves, e alpercatas salpicadas de lama. Falava com um fortíssimo sotaque, que o dentista não conseguiu identificar.

- Lourenço Maia. Fiz reservas para o fim-de-semana. . . Através do ACP.

- Claro, claro. Vamos lá resolver isso.

Ofegante, o homem entrou na divisão em que a empregada passava a ferro e voltou com uma folha A-4 nas mãos. O papel não estava exactamente impecável, mas em compensação continha imensas garatujas hieroglíficas. O senhor Platten arqueou uma sobrancelha e examinou os apontamentos, seguindo-os com o dedo indicador, entre aturdido e alvoroçado. Parecia Champolion com a sua Pedra Roseta. O doutor Maia espreitava-lhe por cima dos ombros. Sem dúvida, aquilo era tudo muito informal.

- Ah, cá está! Peço desculpas novamente, mas a minha mulher foi visitar a família na Holanda e fiquei a tratar de tudo sozinho. Mas tenho a certeza de que vão gostar.

- Também eu. - disse Lourenço, polidamente. - Fala português muito bem.

O homem riu-se, lisonjeado - uma boca pequena de esquilo, cheia de dentezinhos amarelos.

- Oh, é bondade sua! Já são muitos anos de prática, sabe? Primeiro em Moçambique, como cooperante. Foi lá que conheci a Hanna. Depois descobrimos este sítio e acabamos por vir cá parar e ficámos até hoje. Mas ainda se nota o sotaque holandês, não?

- Um bocadinho. Quase nada.

- Ah, pois. É que também não costumamos receber muitos hóspedes portugueses, sabe? Mantemos contratos com as agências de turismo de Amesterdão e Haia, e elas esgotam-nos a lotação o ano inteiro. Quase que só velhotes reformados. . . Tudo gente boa, muito pacata - quase não saem das casas. Sim, foi uma sorte o senhor ter arranjado uma aberta. É bom receber portugueses aqui no Moinho da Asneira. E crianças, hem? Sejam bem-vindos!

O doutor Maia absteve-se de explicar que não era português. Eis uma boa oportunidade para não ter de explicar nada. Soube-lhe mesmo bem. O holandês estendeu-lhe um par de chaves idênticas e indicou-lhe o caminho.

- É já ali. A primeira casinha de lá para cá. Mesmo junto do lago. Aqui entre nós, a minha preferida. Temos telefone no restaurante, ao cimo da rampa. É lá também que está a piscina. Se precisar de alguma coisa, é só dizer, ok? Por volta do meio-dia a empregada bate à porta para fazer as camas e lavar a loiça. Bom, divirtam-se. Ah, sim, vou ligar a luz e a água.

Desapareceu por entre a ecléctica assoalhada da tábua de passar roupa, enquanto Lourenço observava o filho com o canto do olho. Como quem não quer a coisa, Pedro afastava-se em biquinhos de pés para o alojamento que lhes tinha sido atribuído. Teresa, junto do pai, vacilava: ainda iria a tempo de ultrapassar o irmão?

- Vá, fillha. Vamos embora.

A casa tinha um ar um pouco pesado, rescendendo a cera. A sala era pequena mas confortável e asseada, separada da cozinha apenas por um balcão com três banquinhos. O dentista enfiou na tomada a ficha do frigorífico, que começou a zumbir obedientemente, ao lado do fogão de três bocas, uma delas eléctrica. O armário continha tachos, panelas, talheres e loiças. Não era propriamente Limoges ou Sévres, mas não chocava e o doutor não era esquisito. Mais tarde, seria preciso ir ao supermercado em Milfontes, a fim- de comprar leite, pão, fruta, chocolate, café, cereais, queijo, rebuçados e bolachas. Pelo menos. Não existia televisão, mas tinham trazido um baralho de cartas e dois jogos de tabuleiro: o Monopólio e o Beco da Traição. Pedro trouxera também o seu Game Boy, e Teresa o seu diário com cadeado.

No centro da sala havia uma mesa de madeira manchada, empenada, escaldada de chá ou café, com uma jarra de barro com flores secas em cima. Encostados à parede estavam dois cadeirões de vime com uma padrão trançado e intrincado e almofadas de retalho. Teresa contornou-as e empurrou a porta da varanda, que não deslizou lá muito docilmente. Aquilo era aconchegante, porém algo desmazelado. Antes assim, pensou Lourenço. Como dissera o holandês, abaixo as formalidades. Afinal, precisava mesmo de relaxar. E muito.

Um toldo amarelo gema-de-ovo resguardava a varanda do sol e uma vedação de arame em rede separava-o do lago. De súbito, ouviu-se um ruído: na superFície da água afloraram círculos concêntricos.

- Um peixe, pai. Eu vi! - exclamou Pedro, apontando com o dedo, como se fosse um sinal de trânsito.

- Também eu. - disse Teresa. - Um peixinho prateado. Olhem, barcos!

De facto, um pouco mais à direita, num diminuto ancoradouro, atadas por uma corda, flutuavam duas canoas do tipo pirogas, e ainda um daqueles barcos movidos a pedais, conhecidos nas praias como "pedalinhos" ou "gaivotas".

- Podemos andar de pedalinhos, pai? Podemos?

- Claro que sim, mas primeiro vamos desfazer as malas. Os dois quartos eram praticamente iguais, com um roupeiro, duas camas de solteiro e umajanela com vista para os montes, no sopé dos quais se espraiava um vasto canteiro de hortênsias cor-de-rosa, grandes como couves, de aspecto fresco e mesmo orvalhado.

Felizmente, os ténis de Pedro tinham vindo. Lourenço descalçou-lhe os sapatos e procedeu à troca. Ao agachar-se, sentiu de novo uma punhalada nas pernas. Caramba, quando é que iria espairecer? Também não adiantava forçar as coisas. Arrumaram a bagagem nos roupeiros e enfiaram as malas vazias em baixo das camas. Não existia pó acumulado sob elas.

O doutor mudou de roupa, vestindo uma t-shirt verde com decote em V e umas bermudas castanhas, com as bainhas dobradas. Desgostava-o o seu corpo, aquelas pernas magricelas nas quais as rótulas se projectavam como deformidades. Bem, até parecia que estavam no Verão! Já não faltava assim tanto. Lourenço inalou o ar, na esperança de farejar o aroma da praia - ansiava ardentemente pelo Atlântico: a areia, a maresia, a salinidade, a terapêutica da água fria. O fillho puxou-lhe pela mão.

- Agora vamos aos barcos!

- Calma, Pedro, temos muito tempo para os barcos. Descansa que eles não vão fugir. Antes quero ver o Moinho todo, está bem?

Inesperadamente, o rapaz não protestou. Saiu a correr rumo à varanda, a saltar como uma rã, e varreu-a com o olhar, à procura de uma pedrinha para lançar ao lago.

- Gatinhos, gatinhos!

Numa árvore adjacente à casa, dois gatos ainda filhotes brincavam entre os galhos, executando complicadas acrobacias, como ginastas num trapézio. Um pouco mais além, uma galinha contemplava-os, desconfiada, a marchar com um passo marcial e porte de matrona. Ainda mais ao longe, como quem não quer a coisa, um galo vigiava a sua concubina.

- Alguém tem fome?

- Eu, não!

- Eu, também não! - Pedro deu um arroto conclusivo.

- Pedro!

Tinham comido sandes, refrigerantes e gelados numa estação de serviço, e Lourenço calculava que tão cedo não teria de se preocupar com o assunto. Talvez só mesmo na hora dojantar, ou então quem sabe um lanche tardio. Ele próprio estava mais do que saciado.

Girou a chave na fechadura e saíram para um reconhecimento do terreno. Ao alcançarem a encruzilhada, consultou as crianças.

- E agora? Para onde?

- Para cima! - exclamaram os dois, em uníssono. A rampa tinha uma inclinação de cerca de trinta graus, flanqueada por árvores de troncos delgados e descascados, porém de ramagens verdes e frondosas. Eram medronheiros, sobreiros e azinheiras. Ouvia-se o reco-reco das cigarras. Os melros e os tordos caçavam caracóis no fundo das sebes e partiam conchas nas pedras. Lourenço olhou para trás: em certos pontos, aquilo recordava de facto um pântano, mas sem o aspecto doentio e insalubre das zonas pantanosas. Áreas secas alternavam com extensões profundamente alagadas, num mosaico de terra, areia, vegetação e água.

A rampa desembocou num jardim, em cujo centro avistaram o restaurante, um salão com colunas brancas, mesas redondas de mármore esverdeado e cadeiras de plástico bege. Evitaram decorosamente o recinto, pois havia pessoas a almoçar, entre as quais o senhor Platten - este acenou-lhes com a mão, jovial e rubicundo. Os comensais tagarelavam em holandês. Estavam todos corados e felizes. Afigurava-se mais uma almoçarada entre amigos e parentes do que uma refeição entre hóspedes e hoteleiro.

Na outra extremidade do jardim, uma piscina oval faiscava ao sol. Aproximaram-se da borda, com Pedro a liderar o grupo. De súbito, fez uma careta e cruzou as mãos atrás das costas, empertigado.

- Eu é que não tomo banho aqui! Nem pensar. E muito funda! E assim era: não tinha nem degraus nem zonas rasas, acessíveis a uma criança que não soubesse nadar. Ainda por cima, o dentista esquecera-se das malfadadas braçadeiras. Faltava sempre alguma coisa. De qualquer modo, nem Pedro nem Teresa pareciam entusiasmados.

- A água está suja. - resmungou a rapariga. Com efeito, um punhado de insectos e folhas boiavam à deriva. Uma libelulazinha debatia-se desesperadamente, mas era uma causa perdida.

- A água não está suja. - disse Lourenço. - Não te esqueças de que estamos no campo. É natural que o vento atire folhas e bichinhos para a piscina.

- Sim, mas é tão sombria! Mal se vê o fundo. . .

- Ora, isso é por causa dos azulejos, que são azuis-escuros.

Nem Teresa nem Pedro se mostraram convencidos, e o doutor sentiu-se desapontado.

- Pai, é verdade! - gritou Pedro. - Adivinha como é que a gente sabe que um elefante está na piscina?

- Não faço a mínima ideia, filho - suspirou o doutor, melancolicamente.

- Por causa dos chinelinhos redondos à borda da água!

 

A terceira secção da encruzilhada correspondia a uma espécie de alameda que ziguezagueava por entre as árvores. Não chovia há vários dias - caso contrário o caminho seria um lamaçal intransitável.

No fim do arvoredo depararam com uma surpresa agradável: diante deles, estendia-se o tortuoso canal do rio que tinham visto à chegada. Uma espécie de pontão, feito de tábuas e sustentado de dois em dois metros por boias azuis, flutuava sobre a água, impelido para cima e para baixo. Uma fileira de estacas, espetadas paralelamente ao pontão, servia de corrimão.

- Iuuupiii! O que chegar por último é uma tartaruga! - desafiou Pedro, a tomar balanço, preparando-se para arrancar.

- Espera, filho! - advertiu o pai. - Deixa- me verificar se isso é seguro.

Avançou alguns metros sobre as pranchas, dando cada passo como se estivesse a caminhar na neve. Elas abanaram suavemente, mas sem perigo. Não havia tábuas podres ou pregos soltos, nem sinal de incúria.

- Pronto, podem vir.

Pedro e Teresa não perderam tempo. Passaram pelo pai como foguetes, mas abrandaram quando deram pelo movimento das pranchas sobre as bóias.

- Não tenham medo que isto não cai. É apenas a ondulação da água.

Reconfortadas, as duas crianças retomaram o passeio, agora mais comedidas. Em pontos esparsos do rio, despontavam ilhotas forradas de arbustos, assinaladas pelo piar das gaivotas, que de quando em quando voavam para o céu e depois desciam a pique. Aqui e ali, a terra avançava timidamente sobre a água, estendendo miniaturas de penínsulas.

No final do pontão encontraram uma plataforma rectangular, que fazia de cais doméstico. Um barco a motor, pouco mais do que um bote, oscilava junto das tábuas, preso a uma corda.

Lourenço não resistiu: num impulso, trepou para o barco e sentou-se à cadeira colocada diante do leme. Pedro e Teresa preferiram permanecer na plataforma. Uma garça azul pousou nas proximidades e ficou parada, apoiada apenas numa pata a olhar para nada.

- Não saias daí, que vou buscar a máquina fotográfica! - gritou Teresa.

- Agora não, filha. Depois. . . Temos tempo. - A corrente agitou a água com um pouco mais de intensidade. O barco subiu e desceu, subiu e desceu. O dentista sentiu-se um velho lobo do mar. Afinal de contas, talvez tivesse mesmo sido talhado para a errância. . . Quem sabe? E o que é que Berenice andaria a fazer naquele exacto momento?

De novo no alojamento, o doutor Maia disse a Teresa e Pedro que calçassem os chinelos, se queriam andar na "gaivota". Era mais prático e não havia risco de molharem as meias, sujeitando-se a mais constipações. Ele próprio ia fazer o mesmo. A filha aproveitou e vestiu um biquini preto e branco, enquanto Pedro continuou de t-shirt às riscas horizontais e calções azuis, proclamando que estava demasiado frio para andar em tronco nu.

Dirigiram-se ao ancoradouro, pontapeando o cascalho do caminho pedregoso. Admiraram os renques dourados de juncos, cujas cabeças pesadas balançavam ao vento. Num bloco de granito pouco acima da águajazia uma argola, donde saíam as cordas que prendiam os barcos. Com as mãos, Lourenço manteve a "gaivota" firmemente encostada ao cais, enquanto os filhos se sentavam nela. Depois, soltou a respectiva corda.

- Cuidado, hã? Não se aproximem muito das margens, por causa dos arbustos.

Teresa reclinou-se para trás, mas Pedro, cujas pernas eram ainda demasiado curtas, ocupou a borda do assento, para poder chegar com os pés aos pedais. A embarcação afastou-se lentamente do ancoradouro, rumo ao centro do lago.

O dentista, por sua vez, escolheu uma das canoas, içou os remos e instalou-se. Desamarrou a corda que prendia a canoa ao pilar e empurrou com as duas mãos. Começou a remar devagarinho, avaliando o estado dos braços, das pernas e das costas. Apalpou o pescoço e sentiu os músculos sobressaírem como se fossem arame. Parecia tudo mais ou menos em ordem. Imprimiu mais energia aos músculos, orientando a canoa para o rasto sinuoso que a "gaivota" sulcava na água. Teresa virou-se para trás, a sondar o pai, e deu-lhe adeus com a mão. Pedro fez o mesmo e, a sorrir, provocou-o:

- Então, tartaruga?

Uma lassidão agradável foi-se apoderando do doutor, que pousou os remos. Era uma sensação de aventura controlada, deslizando sobre águas não muito profundas. O sol tépido banhava-lhe as faces e aquecia-lhe o couro cabeludo, inundando-o de uma plenitude indolente. Lançou um olhar aos "pedalinhos": Teresa manobrava escrupulosamente o leme. Era tão conscienciosa! Pedro, por seu turno, tinha desistido de pedalar - mergulhou uma das mãos no lago e exclamou: "Uau. . . Está fria! Um gelo!"

- Então vê lá se não cais borda fora. . . - advertiu o pai. Pedro levantou-se cautelosamente do assento e, de costas arqueadas, sentou-se na proa da embarcação, uma superfície cúbica de faces inteiramente planas, estável e segura. Ali estava bem.

A água, cor de chá e lisa como um vidro, espelhava um céu povoado de nuvens altas. Apaziguado, Lourenço estendeu-se na canoa, primeiro as pernas, cujos músculos estalaram, depois o tronco. Cruzou as mãos sob a nuca e pestanejou - devia ter vindo com os óculos de sol. O langor aumentava, subindo-lhe pelo corpo como uma manta. Fechou os olhos e apercebeu-se das chamadas "muscae volitantes" - sombras na retina causadas por ciscos do humor vítreo que se vêem como fios transparentes, a adejarem no campo visual. Estava agudamente consciente de si próprio, não como observador, mas apenas como um homem a viver o presente, concentrando-se no momento e não querendo saber do passado. Sentia-se mais vivo do que aquilo que se sentira durante anos.

Aos poucos, a imagem de Berenice modelou-se no seu espírito, como o plano trémulo de um filme que vai ganhando foco conforme a projecção avança. Depois foi a voz dela. E o seu cheiro, e os seus gestos, e o seu ardor, entre ingénuo e sensato.

"Amo-a", pensou Lourenço. "Se alguma coisa é o amor, então é isto o que estou a sentir. Amo-a e preciso dela, já nem digo para ser feliz, mas simplesmente para viver, um dia depois o outro. Com ela as coisas recuperam o sentido, todas as coisas, as boas, as más e até aque las que não têm explicação. "

Sentou-se outra vez na canoa. Pedro e Teresa tinham-se distanciado mais alguns metros, mas o doutor ainda conseguia ouvir as suas vozes entusiásticas, embora já não distinguisse o que diziam. Se partisse com Berenice, os filhos compreenderiam a sua decisão? Oh, agora talvez não, não completamente, mas mais tarde é bem possível que sim. Eram crianças boas e generosas, e podia confiar no amor e na lealdade delas. Porém, por outro lado, eram apenas crianças, e precisavam dele agora, mais do que nunca. Pensou até que ponto podia de facto ser feliz. Talvez mais do que merecesse. . .

E existia também a casa nova, uma dívida que contraíra por vinte longos anos. Mas isso, naquele momento, era o menos. Não sejamos mais papistas do que o Papa: não havia necessidade de partir para sempre. Nem Berenice decidira assim. E se no tempo de Gauguin era muito mais complicado partir, também era muito mais complicado voltar. Hoje, em 24 horas de voo, dava-se um saltinho a qualquer parte do mundo.

Digamos, umas férias de 30 dias, para começar. Enfim, o mês do costume, que toda a gente gozava uma vez por ano. Que diabo, ele estava mesmo a precisar - era até um imperativo terapêutico. As dores, cãibras e torcicolos dos últimos dias correspondiam a alertas vermelhos emitidos pelo seu corpo, esticado até à derradeira fibra. Se persistisse irreflectidamente, um dia destes, ao invés de tratar de uma simples obturação, ainda arrancaria um incisivo central, e aí é que seria o bom e o bonito.

Que saudades de Berenice. . . Será que a rapariga também o amava de facto? Afinal, tinha precisamente a idade dele quando se julgara apaixonado por Lúcia. Sim, mas as pessoas são muito diferentes entre si, e as mulheres amadurecem muito mais depressa do que os homens. E havia o modo como Berenice o fitava. O olhar dela era como aqueles corações trespassados por uma seta que, nos dias frios, os adolescentes desenham com o dedo nas janelas embaciadas pelo vapor.

Pensando melhor, quando supunha que estava a contemporizar com ela, na verdade contemporizava consigo próprio - agora percebia que já se decidira há muito. Sim, partiria com ela. Naquela mesma noite falaria com as crianças. Tinha era de pensar na melhor maneira de abordar o assunto, para os não alarmar nem os levar a pensar numa deserção. Muito menos agora, em que, depois de tantos sobressaltos, se haviam habituado ao sistema de filhos com dois lares.

Aliás, Teresa estava a chamá-lo. Abriu os olhos e viu que a "gaivota" se distanciara. A filha gesticulava com o braço, com toda a força. Pedro, por sua vez, mantinha-se imóvel como uma cariátide.

O doutor Maia diagnosticou a situação. Tinham-se aproximado em demasia dos juncos e das sebes de canas e agora estavam encalhados, com a quilha ou as pás por certo enredadas nas ramagens submersas.

- Não se mexam, que eu vou já! Não façam nada! Não tenham medo. . .

Remou o mais rapidamente que pode e, ao aproximar-se, comprendeu que os filhos haviam tentado contornar uma ilhota, para fazer o percurso em sentido contrário e assim surpreendê-lo pelas costas. Uma pequena partida daqueles marotos. No entanto, ao tangenciarem a orla da terra, as plantas tinham-nos apanhado.

Encostou a canoa à "gaivota" - felizmente, agora não havia vento nem ondulação de qualquer espécie. Pedro estava visivelmente assustado. Teresa não demonstrava receio, apenas impaciência.

- Não tenham medo, que isso não é nada. - insistiu o dentista, já a meio metro do "pedalinho".

Pois bem: qual a melhor solução? Tentou libertar a embarcação, empurrando-a com o remo, mas foi em vão - aquilo estava mesmo emaranhado. Limitava-se a deslizar de um lado para o outro. E empurrar a "gaivota" da sua canoa era pouco produtivo, se não completamente inútil. Se estivesse ele próprio dentro da água, o caso mudaria de certeza de figura.

Descalçou os chinelos, despiu a t-shirt e comunicou aos filhos:

- Prestem atenção que vamos fazer o seguinte. A canoa não aguenta o peso de nós todos. Por isso, trocamos de lugar, mas aos poucos. Pedro, que grande aventura, hã? Vais ter muito que contar aos teus amigos. Olha, primeiro tu. Levanta-te e dá- me a mão.

Pedro ergueu-se que nem um autómato, com uma palidez de lírio.

Estava manifestamente a lutar contra o pânico. Não queria dar o braço a torcer, e muito menos desatar a chorar. Agarrou a mão do pai e cravou-lhe as unhas.

- Muito bem! Agora é só mais um passinho e já está. O menino suspirou fundo, avançou um pé e pousou-o na canoa. Depois o outro. Comprimiu-se de encontro ao corpo de Lourenço e agarrou-lhe as pernas com os dois braços. Em seguida, afastou-se um pouco e gaguejou:

- Não tive medo nenhum! Não tive medo nenhum! Pergunta à Teresa! Não foi, mana?

A irmã não disse nada, e Pedro deu-se por satisfeito.

- Teresa, agora é a tua vez. Então é assim: como a canoa não comporta três pessoas, primeiro vou ter de sair. Meto-me na água, seguro a "gaivota" para que ela não oscile e mudas de lugar.

- Vais-te molhar todo? - perguntou a rapariga, céptica.

- Vou, sim. Estava mesmo a apetecer-me um banho frio.

- A água está mas é gelada! - informou Pedro.

- Não tem importância. Só me faz bem. Sabes remar, não sabes, Teresa?

- Claro que sei. Remei imensas vezes com a mamã.

- Eu também sei! - gritou Pedro, já mais relaxado.

- Óptimo, óptimo. Então remam um bocadinho para longe da "gaivota", em direcção ao ancoradouro, de modo que eu possa desencalhá-la à vontade. Depois pedalo para junto de vocês e vamos todos para o apartamento, tomar um duche quentinho e pensar no jantar.

Lourenço sentou-se na borda da canoa, que se inclinou na sua direcção. Estava convencido de que conseguiria soltar os ramos e raízes que retinham as pás. Até lhe apetecia nadar um bocado. E nunca fora friorento. Mergulhou os pés na água, a seguir os joelhos, e deixou-se escorregar todo. Diacho, a temperatura do lago era de facto glacial. . . Teresa passou para a canoa, sem dificuldades. Cada uma das crianças empunhou um remo e, desordenadamente, aos ziguezagues, afastaram-se pouco a pouco do "pedalinho".

Satisfeito, o doutor Maia submergiu. Deu-se conta de que a coisa seria mais complicada do que julgara. Bem mais complicada. A água era espessa, baça e barrenta, com muito pouca visibilidade. Custava-lhe conservar os olhos abertos. Desorientado, quase bateu a cabeça na popa da "gaivota". Precisava de ter cuidado. Aflorou de novo a superfície e rodeou a embarcação, dando-lhe sucessivos empurrões. O "pedalinho" não se libertou, mas pelo menos conseguiu localizar a área aprisionada - era mesmo sob os assentos, nos tubos que moviam as pás a partir dos pedais. Enormes bolbos verdes e caules fibrosos tinham-se agarrado ao casco.

Respirou fundo, susteve o ar e voltou a mergulhar. Felizmente, a cor amarela viva da "gaivota" tornava-a um pouco mais nítida, um borrão claro naquela massa turva e lúgubre. Às apalpadelas, tocou por fim os tentáculos pegajosos e escorregadios que se entrelaçavam no metal. Com todo aquele esforço, os braços e o pescoço já lhe doíam outra vez.

Veio à tona, mortificado. Por uma razão qualquer, não era capaz de permanecer debaixo da água o tempo suficiente para soltar o barco. E os movimentos eram-lhe mais e mais penosos, com os braços e as pernas já meio dormentes. Talvez, se batesse os pés no leito do lago e desse impulso com toda a força, como fizera centenas de vezes no piso das piscinas, então sim ficaria numa boa posição para retirar as ramagens. Aquilo era um lago artificial e não podia ser muito fundo. A ideia infundiu-lhe um novo alento.

A boiar de costas, perscrutou os filhos, que se tinham detido a meia distância entre a zona dos arbustos e o ancoradouro. Ambos conservavam as cabeças viradas para o pai. Lourenço ergueu o braço e acenou-lhes - Teresa retribuiu a saudação e Pedro, ajoelhado no assento da canoa, repetiu a continência.

Aspirou a maior quantidade de ar que pôde e, de bochechas insufladas como um saxofonista, mergulhou. Distinguiu de soslaio a silhueta esquálida dos juncos, esverdeados pelo limo. Desceu cerca de três ou quatro metros e resvalou no fundo. Tocou-o com uma das mãos: afigurava-se bastante lodoso. Bom, era agora ou nunca - as coxas enregeladas palpitavam-lhe e, ou muito se enganava, mais uma cãibra vinha a caminho. E das boas.

Executou uma pirueta e roçou os pés no leito viscoso do lago, com os joelhos dobrados, para obter o maior impulso possível. Observou os seus próprios movimentos em câmara lenta, como se fosse um cavalo marinho. Mas o solo era demasiado mole, fofo e movediço, e as suas pernas afundavam-se lentamente, enterrando-se no lodo como uma faca quente na manteiga. Não havia solidez suficiente para o arranque. Pelo contrário, a lama engolfava-o cada vez mais e mais. O ar começava a faltar-lhe. Sentiu-se zonzo como se estivesse na beira de um precipício.

Exasperado, debateu-se com todo o vigor que lhe ainda restava e abanou os braços para cima e para baixo. Pareceu-lhe que se elevava um pouco, desprendendo-se alguns palmos das garras pegajosas da lama, do limo e dos líquenes, e redobrou o esforço, flexionando as pernas energicamente.

Nesse momento, a cãibra atingiu-o como um açoite. Com a dor, abriu a boca sem querer e engoliu água. Esvaiu-se-lhe o pouco ar que armazenara. Foi como se lhe metessem um punho na garganta. Os joelhos dobraram-se-lhe e afundaram-se no lodo, com aquele horror húmido insinuando- se-lhe em cada poro. Quase podia ouvir as batidas frenéticas do seu coração. A sensação de frio era tão tremenda que por instantes não sentiu mais nada. As mãos ficaram-lhe sem força, como se fossem de cortiça. Depois, uma névoa acinzentada velou-lhe os sentidos, projectando-o para além do pensamento, do medo, das preocupações. Como se mudasse de disposição, o lago embalou-o suavemente, e fechou-lhe os olhos cansados. Antes de perder a consciência, acudiu-lhe uma frase do filho: "Sonhei que estava acordado, e quando acordei estava a dormir. "

 

A CABEÇA DO SuBINSPECTOR REINALDO CARTA ainda latejava de dor quando o agente Torres, com um espalhafato por certo pueril, travou bruscamente diante da ala de embarque internacional do Aeroporto de Lisboa, fazendo guinchar os pneus da viatura. Um gongo digno da Cidade Proibida ressoou no cérebro de Carta.

O subinspector saiu do carro com todo o cuidado possível, para não exasperar ainda mais a sua irascível próstata. Persistia nele uma leve vertigem. Enviou Torres para um lado e Rodrigues para o outro, aventurando-se ele próprio pela entrada principal, brandindo a identificação como se fosse um leque, por entre os guias turisticos com os seus cartazes.

Galgou a passadeira rolante de acesso ao átrio principal e dirigiu-se ao check-in, fintando as pessoas que, risonhas, alvoroçadas ou indiferentes flanqueavam os seus volumes. Um par de hospedeiras de bordo, muito elegantes nas suas fardas verde e azul, observaram-no com uma curiosidade vaga e fria. Passou por um casal, cada um a puxar uma mala azadrezada sobre rodas. Dois rapazes empurravam carrinhos de bagagens, atulhados de sacos, maletas e malas.

Na zona do check-in, fillas paralelas ramificavam-se e contorciam-se dos guichets das companhias aéreas, com as suas balanças atravancadas, até à outra extremidade do recinto, rodeando as colunas rectangulares. Alguns dos passageiros liam jornais, outros fumavam, outros ainda conversavam e uns quantos suspiravam de desgosto pela morosidade da operação.

Contornando as filas, Carta esquadrinhou todo o saguão, mas não vislumbrou a pessoa que procurava. Ter-se-ia equivocado? Nesse caso, estava tudo perdido. Mas, não: apesar dos pesares e dos passos em falso, ainda conservava a confiança no seu faro. É claro que correra um grande risco, porém continuava certo de que o peixe morderia o isco.

Quem sabe se no restaurante. . . Sim, e por que não? Subiu a escadaria apoiado no corrimão, refreando-se para não trepar os degraus de dois em dois. Uma família de gordos, todos vestidos como ovos de Páscoa, encaminhava-se na direcção do restaurante. No canto oposto do estabelecimento género self service, desfilava a procissão dos clientes que, rumo à caixa registadora, empurravam as bandejas diante do balcão em forma de rim. Já nas mesas, vultos indistintos comiam pirâmides de croissants, sanduíches e frutas, e bebiam refrigerantes e cafés, amarfanhando em bolinhas os guardanapos de papel, depois de os esfregar nos lábios como uma borracha. Algumas pessoas assistiam às televisões instaladas nas esquinas das paredes. Numa dessas mesas, sentada ao lado de um saco de couro quase do tamanho de um sarcófago, o subinspector reconheceu Berenice Veríssimo.

Berenice estava tão absorta que não deu pelo polícia senão no último instante. Sobressaltada, esboçou um gesto para se levantar mas sucumbiu e deixou-se resvalar de novo para a cadeira.

- Olá, menina Veríssimo! - saudou Carta, com uma vénia irónica. - Que mundo pequeno, hem?

- Subinspector.

- Mas que sorriso tão amarelo. . . Parece que viu um fantasma! Vejo que não seguiu o meu conselho. Nada de precipitações, lembra-se? Aliás, nem era um conselho, mas uma ordem. Se bem me recordo, tinha-a proibido de viajar. Será que já ninguém liga aos agentes da autoridade?

A jovem permaneceu muda, avassalada, e vagueou os olhos preocupados. Carta nunca tinha visto ninguém tão lívido.

- Então, não me responde?

A voz de Berenice tinha o som de vidros partidos:

- Eu não fiz nada, subinspector. Não cometi crime nenhum.

- Se me dá licença, creio que compete a mim decidir, não acha? Nada de diletantismos! Mas, enfim, já que tocou no assunto, devo confessar que por acaso concordo consigo.

Berenice abriu a boca e pousou os punhos na mesa.

- Como? O que foi que disse?

Carta arvorou uma expressão de candura.

- Disse que concordo consigo. Que não cometeu crime nenhum. Que não matou Ravi Sharma. Que está inocente, embora merecesse um puxão de orelhas por desobedecer às minhas ordens. Ou até uma palmada no traseiro. Fui bastante claro, espero.

- Mas. . . Então. . . Quer dizer que estou livre?

- Sim, pelo menos tão livre como eu próprio. E daí, talvez mais. . .

- Posso viajar para onde quiser?

- Se depender de mim, boa viagem. O resto é consigo e com a companhia aérea. Já tem a passagem?

- Tenho, sim.

- Polinésia, portanto.

- Aonde mais, não é verdade? Via Paris e Los Angeles. . .

- Contudo, não me parece lá muito satisfeita. Não agora, que o pequeno mas merecido susto que lhe infligi já passou. Devia estar radiante, mas parece até um pouco abatida.

- É que. . . Bem. . .

- Certo, isso não é da minha conta. Desejo-lhe felicidades. E, napróxima oportunidade, seja mais obediente, está bem? Mas comcerteza não haverá próxima oportunidade. Mande-me um postal, se puder.

Carta apertou a mão da rapariga e olhou em volta.

- Subinspector, só mais um segundo, peço-lhe.

- Diga. Despache-se, que já perdi demasiado tempo aqui.

- É precisamente isso o que me intriga. Se não veio ao aeroporto por minha causa, então por que é que veio?

- Depois de tudo o que passou, tem direito a uma resposta. Vim fazer aquilo que calculou desde o princípio. Vim prender o assassino de Ravi. Só que, desta vez e para variar, o verdadeiro.

Para onde, agora? O subinspector hesitou por um momento, e observou que Torres e Rodrigues subiam as escadas à sua procura, os dois pares de olhos salientes como os de uma lagosta. Debaixo dos braços das camisas de ambos, floresciam manchas de suor do tamanho de abóboras.

Chegaram afogueados e esbaforidos, lembrando duas locomotivas lançadas em movimento. Rodrigues tinha as fraldas da camisa para fora das calças, quase como uma cauda. Torres estalava os nós dos dedos de uma mão na outra, nervosamente.

- Nada?

- Nada. A não ser que. . .

Carta separou-se dos agentes e entrou na casa de banho dos homens. A máquina de secar as mãos crepitava de modo irritante. Nos urinóis, perfillavam-se dois indivíduos, de cabeça baixa, concentrados no que faziam. O subinspector examinou os perfis com toda a atenção e recebeu de volta olhares desconfiados e hostis. Não, não era nenhum deles.

Das quatro cabinas, apenass uma tinha a porta fechada. Com um esgar de dor, agachou-se e espreitou lá para dentro, descortinando um par de sapatos masculinos e umas calças arriadas até às canelas. Ergueu-se a custo e bateu:

- Polícia. Identifique-se, por favor.

Escoados uns segundos, ouviu-se o gorgolejar do autoclismo e a porta abriu-se. Um jovem ruivo, com uma barbicha rala que nem raspas de cenoura, afivelava o cinto.

-am Tom Carter, from United States. What's wrong, sir?

Carta grunhiu uma desculpa e saiu. Agastado, ignorou as fisionomias expectantes de Torres e Rodrigues e parou para pensar, apoiando uma das mãos à parede. De súbito, virou-se e, sem aviso prévio, penetrou na casa de banho das senhoras.

Nos lavatórios, diante de um grande espelho rectangular, não havia ninguém. Reinava um silêncio absoluto. Pairava no ar o odor de detergente misturado com lixívia.

Duas das portas das cabinas encontravam-se fechadas. O subinspector aproximou-se lentamente da primeira. Tocou-a com as pontas dos dedos e viu que estava apenas encostada. Empurrou-a devagarinho, devassando um compartimento deserto. Com dois passos para o lado, aproximou-se da outra porta. Esta encontrava-se mesmo fechada com o trinco. Distinguiu uma respiração surda. Agachou-se e lançou uma olhadela: um par de sapatos masculinos e um par de calças masculinas, que abarcou até aos joelhos.

Endireitou-se e pigarreou. Depois declarou, com a voz firme:

- Saia, por favor. A sua viagem acaba aqui.

 

O PROFESSOR ROGÉRIO LEMOS trazia uma mala de plástico a tiracolo. Abriu a porta com um sorriso cínico e teatral, mas resignado.

- Ora, subinspector, francamente! Não podia ter-se atrasado um pouco, como é apanágio da polícia portuguesa? Quem tinha razão era o finado Tomás Figueiredo: já não há respeito pelas tradições. . . Mais um quarto de hora e eu safava-me. Isso não se faz.

Acompanhado pelos exultantes agentes Torres e Rodrigues, Carta escoltou-o às instalações da polícia no aeroporto. Reparou que a sala sem janelas tinha sido alcatifada de novo e cheirava a pintada de fresco, com as paredes cor de manteiga. Sentia-se um pouco incomodado, na presença de um tipo de poder ao qual não estava habituado: uma autoridade intelectual confiante. Uma dúzia de Secretários da Segurança impressioná-lo-iam menos.

- Sente-se, professor. Vamos dar um dedo de conversa aqui mesmo. Uma conversinha informal. Temos muito tempo pela frente, mas, como deve imaginar, há algumas coisas de que preciso saber imediatamente.

- Quantos circunlóquios! Não faça cerimónias, subinspector, não faça cerimónias. . . Nunca me fiz de rogado consigo, a não ser o necessário.

Carta não pôde deixar de admirar o sangue-frio do interlocutor. Torres e Rodrigues franziram o sobrolho carregado, tempestuoso, ofegando como leopardos.

- Muito bem, então. Já vendeu o relógio?

Rogério Lemos abanou a cabeça e esboçou uma careta amargurada.

- Não, para o cúmulo do azar, ainda não. Na verdade, tenho-o comigo - suponho que pretendia revistar a minha bagagem, não?Deu uma palmadinha jovial na mala de plástico. - Mas, se me permite um trocadilho, já acertara os ponteiros com um coleccionador austríaco, aliás muitíssimo generoso, que excedeu as minhas expectativas mais optimistas. Era uma das razões da minha viagem. Além da fuga, é claro. Como disse, mais quinze minutos de sossego na confortável retrete das senhoras e agora estaria a voar para Viena, como uma pombinha da Catrina. Sob um nome falso, claro.

- O crime não compensa, não acha?

- Para a polícia, parece que sim.

- Olhe, professor, já reconstituí quase todo o quadro dos homicídios, mas admito que restam algumas pequenas lacunas.

- Ah, pois, os pormenores são tão maçadoramente importantes. . . Veja o meu caso: tanto trabalho para atirar as culpas sobre a minha aluna predilecta, e qual o resultado? Mas é bem feito para mim: quem mandou confiar num louco?

- Ouça. . . Tomás Figueiredo pretendia recuperar o brinco que Cecília oferecera a Ravi, não é assim? Porém sabia que não seria fácil e por isso muniu-se do clorofórmio e, por via das dúvidas, pediu a sua ajuda. O senhor exigiu em troca o Roskopf, decerto já adivinhando que as coisas iam correr mal. Mas como é que atraíram o rapaz para o Museu do Relógio?

O professor tamborilou os dedos num joelho. As palmas das mãos eram grandes como bandejas.

- Falei com ele na escola, prometendo-lhe interceder junto do pai da rapariga. Amansar o dragão, como se isso fosse possível. . . A princípio, Ravi recusou-se. Cheguei até a considerar outra alternativa. Mas, horas mais tarde, ligou-me da rua. Estava meio embriagado, e mais fanfarrão do que nunca. Julgava-se uma espécie de cavalheiresco Montecchio contra os nefandos Capulettos. Combinamos um encontro a três nas instalações do Museu.

- Estou a ver. E depois?

- As coisas descarrilaram desde o início, com Ravi intratável e Figueiredo rancoroso. Não se esqueça de que já era madrugada do 25 de Abril. O rapaz julgava que o relojoeiro ia fazer uma retratação, aceitar o namoro da filha e assim por diante. E o velhote esperava um servilismo incondicional, talvez uma genuflexão. Quando Figueiredo lhe ordenou que devolvesse o brinco, Ravi chamou-o "dinossauro fascista", cuspiu-lhe e insinuou que Cecília estava grávida dele. O pai da donzela passou-se completamente.

-E. . .

O professor emitiu um longo suspiro. Parecia cansado.

- Posso fumar um cigarro? Deixei o tabaco há três meses, mas creio que a ocasião merece uma recaída. . .

- Claro que sim.

Carta estendeu-lhe um cigarro e o isqueiro, que Lemos agarrou com uma mão quase do tamanho de uma pá. Em seguida, o polícia acendeu um para si.

- Aonde é que eu ia? Ah, sim, Figueiredo perdeu as estribeiras, pegou numa daquelas ferramentas e vibrou-a na cabeça do rapaz. Ravi caiu, mas não desfaleceu. Ficou estendido no chão, a gemer e a sangrar.

- Foi aí que o senhor entrou em acção, presumo.

- Exacto. Figueiredo estava demasiado exaltado para fazer fosse o que fosse. Desconfio que estava também um pouco acobardado, fisicamente acobardado, quero dizer. As mãos tremiam-lhe imenso, como se tivesse a doença de Parkinson - que não tinha. Os dentes matraqueavam-lhe e emitia leves sons sibilantes. Os olhos dele eram como bagos de uvas prestes a rebentar. Arregacei as mangas, ensopei um lenço com o clorofórmio e narcotizei o meu aluno.

- Continue.

- Tentei arrancar o raio do brinco, mas quem é que disse que aquilo saía? Até porque naquela altura a frieza já não era muita. Não sou propriamente Jack, o Estripador. Desde o princípio, encarei tudo como um simples negócio. A minha carta de alforria.

- Oh, sim, já lá iremos. Prossiga.

- Figueiredo passou-me um canivete, com um sinal sugestivo. Sem pensar duas vezes, cortei a orelha ao rapaz. Foi mais fácil do que julgava.

- Ai, sim?

- É verdade. Se me permite uma liberdade poética, foi quase como colher uma rosa.

- E entregou a orelha a Tomás Figueiredo. . .

- Sim, mas antes exigi que fosse buscar o Roskopf. Toma lá, dá cá.

- Portanto, embolsou o seu prémio.

- Não foi bem assim. Ao voltar, Figueiredo estava ainda mais paranóico. Praticamente possesso. Vociferava o discurso do costume, contra os pretos e os vermelhos. Amaldiçoou mil vezes o 25 de Abril. Receei que aquilo fosse acabar mal - isto é, que eu ainda ia ficar sem o meu querido relógio.

- Mas não ficou.

- Não, porque o doido resolveu decapitar o rapaz e espetar a cabeça no mastro da escola. Uma espécie de exorcismo contra a corrupção dos tempos - foram essas as palavras dele. "Não façamos prisioneiros!", clamava aquele velho chanfrado. Claro que era uma ideia demente, mas não irrealizável, desde que eu desse uma mãozinha. E eu já tinha ido longe de mais para recuar. Perdido por um. . .

- Então, decapitou o rapaz.

- Sim, com uma das peças do Museu, um serrotezinho muito aguçado de talhar engrenagens, que veio mesmo a calhar. Não foi tão fácil como a orelha: o pobre diabo esvaía-se em sangue - nem sei bem qual foi o "coup de grace". Se eu adivinhasse que seria assim, tinha forrado o chão do museu com jornais. Prefiro abster-me de descrever a operação.

- Não é preciso. Adiante.

- Ainda bem. Enrolei a cabeça num pano de limpeza e metia-a dentro de um saco plástico, desses de supermercados. Lavei e limpei as mãos, julgando que a aventura tinha terminado.

- Mas não tinha.

O professor suspirou profundamente e abanou a cabeça. Afivelou uma expressão consternada.

- Pois não: o delírio de Figueiredo ainda me reservava mais duas surpresas. Primeiro foi a história da mumificação: o velhote vira na TV uma reportagem sobre a múmia de Lenine e decidiu que um troféu embalsamado seria muito mais simbólico. Sabia que, com a minha especialização em egiptologia, eu percebia um pouco do assunto. Obrigou-me a arranjar os materiais necessários, se quisesse levar o relógio.

- E arranjou-os?

- É claro que não! Não se trata propriamente de um penso rápido. . . Olhe, fiz de conta! Quem não tem cão, caça com gato. . . Dei um salto a correr a casa e voltei com uns unguentos resinosos e uns óleos balsâmicos que comprei na minha única e saudosa viagem ao Cairo. Por amor à arte, e já que estava com a mão na massa, esmerei-me. Extraí-lhe uma quantidade de massa encefálica pelas fossas nasais com um gancho de metal e meti lá dentro os óleos e os unguentos. Mas às tantas, desisti: a prática é sempre diferente da teoria.

- E o relojoeiro, como reagiu?

- Deu-se por satisfeito. Também não era o Ramsés II.

- Mencionou uma segunda surpresa. Qual foi?

- Uma surpresa muito aborrecida! Figueiredo, no seu desvario galopante, quis ignorar o nosso acordo e atar o Roskopf ao cabelo de Ravi. Rosnou que aquele era o sítio ideal para pendurar uma máquina concebida como "o relógio da escumalha". Estava radiante com a ideia.

- E o senhor, o que fez?

- Primeiro, tentei convencê-lo de que aquilo correspondia quase a uma confissão de culpa. Respondeu-me que a polícia não sabia nem nunca viria a saber que ele possuía um Roskopf. Que ninguém em Portugal o sabia, nem mesmo a sua adorada Cecília.

- E depois?

- Desesperado, lancei os meus últimos trunfos. Lembrei-lhe de que era eu quem tinha a chave da Academia, e de que precisava da minha ajuda para pendurar a cabeça. E que, sem o auxílio deste bom samaritano, jamais conseguiria desembaraçar-se do resto do corpo.

- E ele reconsiderou. . .

- Sim, mas antes, sem que eu notasse, o filho da mãe trocou a corrente original por outra quase igual. Como não sou um perito em relógios e já estava esgotado, fisica e mentalmente, não desconfiei de nada quando me disse que ia atar uma corrente vulgar ao rabo de cavalo.

- Soube da verdade apenas pelos jornais. . .

- Foi um choque medonho. Compreendi, tardiamente, que não podia confiar naquele lunático. Que mais cedo ou mais tarde se denunciaria a si próprio e a mim também.

- Por isso deu cabo dele.

- Uma espécie de legítima defesa preventiva, não acha? Devia estar-me grato, pois poupei a sua vida. "Noblesse oblige. "

- Foi muita bondade sua, assim como o facto de ter usado a minha arma para eliminar Figueiredo. Mas explique-me: também é um racista, professor? Um xenófobo?

O professor fez um esgar amuado.

- Ora, subinspector, sinceramente. . . Assim o senhor me ofende! Claro que não sou nem uma coisa nem outra. Se depender de mim venham quantos couberem. A maior parte das pessoas é irremediavelmente estúpida, seja qual for a cor da pele.

- Anticomunista?

- Essa é boa! O anticomunismo hoje em dia é quase uma necrofilia. Para a geração dos meus alunos, a União Soviética é uma referência histórica tão remota como era para a minha o império Austro-Húngaro.

- Foi tudo por dinheiro, então?

- Por dinheiro? Nunca! Pelo contrário: pelo espírito. . .

- Como assim?

- Sabe, subinspector, quando comecei a leccionar na Escola de Belas-Artes ia cheio de fantasias edificantes. Nunca me iludi sobre o meu talento criativo, mas acreditava no meu apostolado pedagógico. Que conseguiria imprimir a causa das Musas naquelas alminhas em branco que eram os meus alunos.

- Uma atitude nobre.

Os olhos de Rogério Lemos incendiaram-se.

- Tonta! Uma atitude tonta. . . Ou, na melhor das hipóteses, ingénua. Levei muito tempo para encarar a realidade, e ainda mais tempo para admiti-la. As raparigas andavam ali como num curso de corte-e-costura, numa aulinha de lavores. E os rapazes não pensavam senão em papar as futuras artistas, supostamente mais libertinas.

- Que exagero, professor.

- Antes fosse, meu caro polícia. . . Antes fosse! Actualmente, só há uma classe de pessoas em menor número do que o daquelas que querem ensinar: o daquelas que querem aprender E olhe que esses jovens de hoje têm tudo: veja o caso da nossa deliciosa Cecília. . . E eu, o que é que tinha? Caraminholas virtuosas na cabeça e as algibeiras rotas.

Carta estendeu as mãos, como a indicar uma paisagem.

- Portanto, foi mesmo por dinheiro.

Rogério Lemos esboçou um sorriso desdenhoso.

- Não quer ou não consegue perceber? Será que falo para as paredes, como sempre?

- Não, não, já percebi que odeia os jovens.

O professor mostrou-se irritado: a sua cara era agora um ninho de rugas.

- Então não percebeu patavina. Os jovens são apenas os fillhos dos pais deles: gente espiritualmente perra e mandriona, sem discernimento crítico, ruminantes mentais. Eis os pais dos famosos anos sessenta! Ainda por cima, os filhos são malcriados: o pior defeito do ignorante é zombar de quem lhe fornece o conhecimento. Não sabem, não querem saber e têm raiva de quem sabe. Se calculasse quanta chacota engoli. . .

- Não podia simplesmente reformar-se?

- Para já, não sou assim tão velho e gostava do meu oficio, pelo menos antes dele ser aviltado. E suponho que conhece o valor das reformas. Não, eu merecia mais, subinspector. Muito mais. Já nem digo como prémio, mas até como indemnização. Foram demasiados anos a aturar aquelas bestazinhas emproadas, com a mania de que eram todos uns Picassos e eu um caruncho académico. . . Isso quando sabiam quem era Picasso! Fui parvo durante décadas a fio, mas um dia isso acabou. Compreendi finalmente a verdade e jurei nunca mais gastar o meu latim.

- A verdade? Que é.

Rogério Lemos bateu palmas.

- Bravo, subinspector! Com que então, sarcasmos. . . Não me incomodam nada.

- Não se melindre, professor. Sou todo ouvidos. A sua história fascina-me.

- Faço ideia. . . De qualquer modo, ia mesmo ter de contá-la, não é? Dê-me mais um cigarro, que continuo. Convenha que é um preço módico para uma confissão tão encantadora.

- Eis o maço. Sirva-se à vontade.

- Obrigado.

- Falava-me da verdade que descobriu. . .

O professor sorriu e juntou as cinco pontas dos dedos com as outras cinco numa atitude afectada de reflexão.

- Precisamente. Foi como se recebesse uma bala na testa. . . Uma revelação arquimédica! Um dia, depois de todas aquelas desilusões no meu magistério, recolhi à base - aos Gregos Antigos. E percebi finalmente que o acesso a uma visão universal das coisas e a realização das mais altas qualidades espirituais humanas é forçosamente um privilégio de poucos.

- Ah, sempre voltamos às discriminações. . .

- Longe disso. A restrição não é de ordem económica, social, étnica ou biológica. É uma daquelas mazelas humanas que, como o cancro ou os divórcios, se distribuem equitativamente entre classes, sexos e raças. Na verdade, os excluídos nem sequer dão pela falta do que perderam e sentem-se bastante satisfeitos com o seu estado, reinando entre os poucos felizes e os muitos infelizes uma perfeita harmonia, salvaguardada pela distância intransponível que os separa. Eu é que fora um asno.

- Não percebi qual é a tal restrição de que fala.

- Os gregos chamavam-na "apeirokalia". Significa simplesmente "inexperiência das coisas mais belas". Queria dizer que o cidadão que fosse privado, durante as etapas decisivas da sua formação, de certas experiências interiores, jamais poderia compreender a ânsia do belo, do bem e do verdadeiro. Sem aquelas experiências, a inteligência patina em falso sobre miríades de dados sensíveis, alheia ao nexo que une as abstracções e a realidade. Oxalá não tenha sido demasiado abstruso. E oxalá o subinspector saiba o que significa abstruso.

- Creio que apanhei o seu ponto de vista. Mas por que então desviou a minha atenção sobre Berenice, a sua aluna predilecta, como já confessou? Praticamente atirou-a para o meu colo. . .

- Exactamente por isso! Berenice era a única coisa que prestava naquele rebanho de carneiros. Assim sendo, alimentava os últimos laivos do meu quixotismo pedagógico. Enquanto houvesse uma aluna como ela, não podia fazer tábua rasa da situação. De resto, com o seu feitio introvertido e a tal viagem para a Polinésia, era o bode expiatório ideal.

- E o que é que faria com o dinheiro do relógio?

- Tudo aquilo a que a minha "apeirokalia" me faculta. E que tem um preço relativamente elevado - não tanto como os Ferraris dos futebolistas e as mansões pirosas dos cantores pop, naturalmente. Voltaria ao Cairo quantas vezes quisesse. Sulcaria o Nilo para cima e para baixo, no meu próprio veleiro. Compraria códices antigos. Teria uma casa decente, de acordo com o meu gosto cultivado. E frequentaria concertos e bailados a torto e a direito, onde e quando me apetecesse. Mas, sobretudo, livrar-me-ia para sempre dos meus alunos e dos seus trabalhozinhos de casa copiados das enciclopédias em fascículos, em cima dos joelhos.

- Como é que pode pensar assim? Como é que pode um assassínio resolver alguma coisa? Nunca o fez.

- Pode e resolve. Fê-lo imensas vezes. O senhor nunca leu a História Universal?

- Muito bem, professor. Diga-me só mais isto: está arrependido?

- O que quer que eu faça? Que reze cinco ave-marias? Ora, que pergunta! Claro que estou arrependido. Arrependidíssimo. De ter falhado. Nunca me hei-de perdoar. Porém não deixa de ser simbólico, não acha? Fui apanhado não numa cátedra, mas numa retrete.

 

BeRENICE CONTEMPLOU O CORPO EXANGUE DE LouRENço, tapado até ao queixo por um lençol branco. Um calafrio descia pelas costas da rapariga, enovelando-lhe o estômago, e as pernas tremiam-lhe. O coração batia-lhe como um martelo envolto num pano. O risco no cabelo do dentista, habitualmente direito que nem uma régua, degenerara num torvelinho desgrenhado, como folhas mortas. Uma das mãos assomava sob o lençol, lanhada e macerada, com a unha do indicador lascada e violácea e, no punho, havia escoriações cuneiformes.

Apoderou-se da jovem o desejo de agarrar aquela mão, de massajá-la e aconchegá-la ao peito como a uma ave exausta e soprá-la e lambê-la até que as feridas sumissem, num passe de mágica. Mas conteve-se. Virou-se para o homem em pé, ao seu lado, com uma bata branca e um estetoscópio pendurado no pescoço, qual o colar de um feiticeiro.

- Tem mesmo a certeza, doutor?

- Certeza de quê, menina?

- Bem. . .

- Oh, de que está vivo?

- É que parece tão inanimado.

- Claro que tenho a certeza! Palavra de Hipócrates. Safou-se por um triz, mas já não corre perigo nenhum. Engoliu mais água do que a Atlântida, porém secámos-lhe os pulmões até à última gota - sequinhos que nem um arenque fumado. E a imobilidade é um dos efeitos do sedativo. Deve estar mesmo a acordar. Dê-lhe mais uns segundos e ele ainda fala consigo. Um pouco grogue, mas fala. Aliás, vou deixá-los a sós por um instante, para que conversem à vontade. Não o fatigue, está bem? Não me demoro.

O médico afastou-se com um aceno simpático. Berenice, aliviada, sentou-se na cadeira perto da cama. Não, aquele rosto não era uma máscara mortuária. Certo, estampava uma palidez de marfim amarelado, mas com o que passara, o que é que se podia esperar? Pousou-lhe a mão na fronte: a temperatura afigurou-se-lhe normal e a respiração regular.

Ouvira a notícia no televisor do aeroporto, ainda no restaurante. Era um noticiário intercalar. Depois da descoberta do corpo de Tomás Figueiredo, os repórteres retomaram o caso da decapitação com uma avidez redobrada. Primeiro fora a informação sobre a morte do relojoeiro, poucas horas antes. E, quase ao mesmo tempo, a notícia em directo do acidente com o dentista de Ravi Sharma. O locutor anunciara que o doutor Lourenço Maia fora retirado do lago entre a vida e a morte, e conduzido ao hospital num estado considerado desesperado. Acrescentara, com um arzinho visivelmente encantado, que o afogamento ocorrera em circunstâncias mais do que misteriosas. Falou em "coincidência macabra" e prometeu novidades no próximo bloco informativo, deixando entrever a hipótese de suicídio. Berenice parou de ouvi-lo.

Pegou na mala, desatou a correr aos trambolhões, à procura de um táxi. O seu corpo tinha a sensação de caminhar através da água. Talvez Renoir tivesse razão: podia pintar-se em Bastingnolles. . . Talvez Ravi tivesse razão: o que ela amava em Gauguin era que ele estava sempre a fugir - da sua terra, dos seus amores, de Van Gogh. . . Pensou: talvez a universalidade da minha aptidão artística esteja para a minha terra assim como o meu eu está para os outros. Talvez. . .

Não sabia muito bem o que se passava consigo e não estava segura de nada. Mas rezava para que Lourenço sobrevivesse e para que o taxista andasse ainda mais depressa, voando sobre os passeios e ignorando os semáforos. Foi-lhe dificil indicar o nome do hospital: o terror tinha-lhe secado a garganta e quando tentou falar o seu maxilar tremeu como se sofresse de paralisia. Gemeu: "Isto não pode estar a acontecer, não pode ser verdade". Quem lhe dera que o táxi fosse como aqueles carros com altifalantes, cartazes e balões que percorriam as ruas antes das eleições, e que o altifalante clamasse: "Saiam da frente! Saiam todos da frente!"

O dentista arrulhou baixinho, ergueu uma perna e dobrou um joelho, moldando uma colinazinha no lençol. Abriu os olhos e pestanejou. Berenice levantou-se, debruçou-se sobre ele e beijou-o na testa.

- Olá, mergulhador! Até que enfim vens à tona. Como é que te sentes? Queres uma respiração boca à boca?

Lourenço suspirou e abriu mais os olhos, confuso. Tossiu duas vezes. Falou numa voz rouca, gutural:

- Dói-me o corpo. . . E a cabeça. Não muito. - Na verdade, sentia-se liberto da sua infelicidade como se tivesse sido erguido por uma enorme onda e colocado firmemente sobre um rochedo. - As crianças. . . ?

- Estão bem. Com a mãe. Um pouco abaladas, mas nada traumático. Vêm cá mais tarde.

- Como foi que. . .

- Não percebi muito bem a história do médico, mas parece que três senhores holandeses iam a passar e ouviram os gritos dos teus filhos. Dois deles correram para a canoa e pescaram-te na hora H. O terceiro chamou uma ambulância num português macarrónico. Em suma, amanhã estás pronto para outra. Só que para a próxima eu vou contigo e levo uma bóia, daquelas de patinho. E um escafandro, por via das dúvidas. Nem que vás nadar num pires de água. Olha, ficas tão querido quando estás a dormir. . .

Lourenço fechou os olhos e fingiu ressonar.

- Pára com isso já! - Berenice soltou uma gargalhada. O dentista abriu os olhos, sério.

- Vens comigo?

Ela respondeu-lhe com outra pergunta:

- Sabias que o assassino de Ravi foi preso? Não, não podias saber.

- Sim? E quem era?

- Um professor lá da Escola. Rogério Lemos. Por sinal, o melhor deles. Se bem que um tanto pedante. . . Não é incrível?

Foi a vez de Lourenço responder-lhe com uma pergunta:

- Vens comigo? Disseste que vens comigo? Eu tinha decidido ir contigo.

- Então melhor ainda: só temos de escolher a direcção, não achas? Tens uma moeda? O meu mealheiro foi-se todo.

Lourenço pestanejou outra vez, atordoado. Considerando tudo o que acontecera nos últimos tempos, talvez tivesse mesmo direito a um milagre. Depois fez uma cara mais grave.

- Eu não entendo nada de arte.

A rapariga deu uma risada nervosa, derrisória.

- Ora, o professor Lemos percebe e muito - achas que é um bom partido para mim? Descansa, que não estou a pedir a tua mão, apenas os teus aurículos e ventrículos. De qualquer modo, já reparei que aprendes depressa. Se quiseres, prometo ensinar-te o pouco que sei, se prometeres não me ensinar como se arranca um dente. . .

Com a ajuda dos cotovelos, Lourenço soergueu-se na cama. Puxou Berenice para si e beijou-a nos lábios. A jovem fez-lhe uma festinha nos cabelos, revolvendo-os ainda mais.

- Deixa-me acabar. Tu não percebes nada de arte e eu não percebo patavina de odontologia. Mas o que me interessa é que tu percebes um pouquinho de mim, e eu sou uma sumidade em ti.

Como sempre, ela estava a falar pelos cotovelos, a dizer disparates, mas já não se importava. Inclinou-se de novo para a boca de Lourenço. Pela primeira vez, sentia-se em casa na sua própria vida.

 

ESTAVA NA HORA DE SE LEVANTAR. E daí talvez não. Afinal, era domingo, a primeira folga do subinspector Reinaldo Carta desde que tivera alta do hospital. De acordo com o doutor Ernani Lopes, a operação à próstata correra às mil maravilhas, tanto que o doente fora autorizado a passar os últimos dias da convalescença em casa. Com uma enfermeira, é bem verdade - uma senhora eficiente e ferozmente respeitável, que o assistia qual uma sentinela, rodeando-o de mimos autoritários, sempre a assobiar como um canário.

O doutor Castelo visitara o amigo no hospital mais de uma vez, e já anunciara, espetando o queixo voluntarioso, que pretendia frequentar aquela casa regularmente, quer o anfitrião quisesse, quer não. "Os teus dias de eremita acabaram, meu caro Sherlock. Trata de fazer um curso intensivo de boas maneiras. " Sextante, por seu turno, circundava a cama do dono como os anéis em redor de Saturno.

O subinspector sorriu sem saber porquê, e espreguiçou- se. Claro que o pós-operatório ainda o importunava, mas parecia-lhe que a cada dia o incómodo diminuía mais um pouco e que a doença tinha sido de facto derrotada. Claro que era cedo para se ter uma certeza absoluta.

Afastou o lençol e sentou-se na cama, confiante. A resolução do caso da cabeça cortada, com todas as suas implicações tortuosas, expurgara o estigma que pendera sobre Carta durante todas aquelas décadas. Pelo menos era o que ele achava. Nem de propósito, tinha um novo superintendente-geral, que o fitara com uma franqueza límpida e cumprimentara-o distraidamente, como se Carta fosse um funcionário como outro qualquer, nem mais nem menos do que ninguém. O que era precisamente aquilo que o subinspector desejava.

Enfiou os pés nos chinelos aflanelados, com bordas de feltro, já demasiado quentes para aquela altura do ano. Pensou de novo em Ravi Sharma, aquele rapaz cujo desaparecimento ninguém chorara nem choraria. Realmente, cada um só era dono da sua própria morte, assim como cada um vivia sozinho a sua própria vida. Tínhamos de viver connosco próprios, até não haver mais tempo disponível. Naturalmente, isso não significava que não precisássemos de ninguém. . . Ravi não merecia morrer, se é que alguém o merece. A morte, a verdadeira morte, não era uma charada que se deslindava no último capítulo, com silogismos e pirotecnia. Estremeceu. Nunca se conseguiria acostumar a isso, às coisas terríveis que aconteciam, à aniquilação e à falta de sentido. Toda aquela maldade e não era preciso explicá-la ou comprendê-la ou fazer fosse o que fosse, a não ser pôr-lhe um fim e esperar pela próxima. Parecia que não existiam nem o bem nem o mal, apenas psicopatas ou sociopatas, assim como não havia nem melancolia nem angústia incuráveis - era só uma questão de encontrar o medicamento ou a companhia certa.

Depois pensou em Berenice Veríssimo e Lourenço Maia, que, para incredulidade dos agentes Torres e Rodrigues, haviam juntado os trapinhos. Suspirou devagarinho, e lembrou-se de que dentro de 20 minutos precisava de tomar o seu remédio, com um grande copo de água. O primeiro de um rosário de cápsulas feitas de gelatina. Sim, Lourenço e Berenice. . . Era engraçado como najuventude as pessoas aspiravam à felicidade total, à beatitude suprema, à bem-aventurança perfeita. Na maturidade, depois dos sucessivos correctivos que os anos lhes infligiam, das pauladas que lhes choviam nas costas durante o percurso, já se contentavam com o sossego, e a simples ausência de sofrimento, o êxtase efémero e negativo da cessação da dor, inundavam-nas de gratidão.

Será que estava com inveja daqueles dois? Seria possível? Talvez fosse isso. Talvez não fosse. Uma coisa era certa: Lourenço e Berenice ainda íam naquela idade em que se julga que para se ser feliz é só carregar num botão. Ou, pelo menos, que há um botão num lado qualquer. Em todo o caso, era bom quando o bem acontecia a alguém bom. Não acontecia com muita frequência.

Voltou a sorrir sem nenhuma razão especial. Sextante esgueirou-se por baixo da cama e fez-lhe cócegas nos pés. Em seguida, miou. Hoje não havia pequeno-almoço? Oh, eis um gato muito singular, tão solícito como um cão São Bernardo, com aqueles pequenos barris de aguardente atados ao pescoço. Por falar nisso, o subinspector estava terminantemente proibido de beber. Ora, não se podia ter tudo. Nem seguir tudo à risca.

Deu uma palmada nas coxas, pôs-se de pé e admirou a luminosidade que se refractava em barras pelas frestas da porta. Como era mesmo o nome do fertilizante com que Emília regava as floreiras? Rememorou o rosto suave e romanesco da mulher, com uma harmonia e beleza agora para sempre fixadas muito para além da degradação do tempo.

Nas últimas semanas, imperceptivelmente, o subinspector Reinaldo Carta tinha passado da dor da perda para o saber da falta.

Anda, Sextante. Vamos lá ver o que há para comer.

 

                                                                                Paulo Nogueira  

 

                      

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