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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CORPO LIBERTO / Josiane da Veiga
O CORPO LIBERTO / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Japão, janeiro de 1947.
O balanço repentino levou o jovem a tombar para o lado, fazendo com que seu ombro esquerdo se chocasse contra a parede fria do ônibus lotado. O movimento brusco também surpreendeu o homem de meia-idade que sentava ao seu lado, trazendo o corpo avantajado de encontro ao seu braço. Respirou fundo, contendo o horror do toque irrelevante, mas logo se aliviou, ao perceber que o companheiro de viagem voltava à sua posição inicial.
— As estradas estão uma merda... — o homem resmungou.
— Dizem que o General MacArthur começará, em breve, reformas nas estradas... — o jovem comentou sem pensar.
O outro balançou a cabeça, sem dizer mais nada. Depois, voltou o rosto para frente e esfregou o nariz, como se o cheiro azedo do ônibus o incomodasse demasiadamente. O mesmo não acontecia com Shiromiya Kazue. Estava acostumado ao fedor que o país exalava desde 1945, um misto de cheiro de pólvora, cadáveres e sujeira no ar, além de uma miséria sem fim, que o habituou. O que importava aquilo? Estava indo ao encontro de sua felicidade.
Sorriu, apertando a bolsa de pano nas mãos. O dinheiro de suas economias e das joias vendidas, seguro dentro dela, deixava-o tranquilo. Previdente, havia gastado bem pouco desde sua saída da casa do comerciante Ryo Satoshi e trabalhado durante aquele um ano e meio para se manter. Não tinha muito, mas havia conseguido economizar uma boa base para recomeçar.
— Onde ficam suas terras? — o homem indagou.
— Segundo as informações da carta que recebi, ficam em um vilarejo perto de Kyoto.
— Teve sorte — o companheiro de assento sorriu. — Kyoto praticamente escapou ilesa da guerra.
Shiro assentiu.
— Kibou [1] é o nome da cidade.
— Esperança? — o homem pareceu surpreso. — Parece prelúdio de um futuro bom — ele riu.
— Também achei, quando meu amigo leu o nome para mim.
O homem não fez caso de que o jovem não sabia ler. A maioria das pessoas naquele ônibus não sabia.
— Não é pelo nome, e sim pelo local. Conheço Kibou, é um vilarejo pequeno, onde vivem umas quinze famílias. Fica em uma região montanhosa, mas o solo é fértil. Teve sorte, meu jovem, será muito feliz lá — bateu de leve na sua mão. — Tem família?
— Uma filha — Shiro contou, orgulhoso. — Ficou na casa do meu amigo para que eu pudesse tomar posse do hectare que ganhamos.
— Ah, ela será muito feliz em Kibou! É uma região para crianças crescerem saudáveis. Poderá correr pelos bosques, tomar banho de rio, comer os frutos das árvores... Realmente, teve muita sorte — repetiu.
Shiromiya sentiu os olhos úmidos de felicidade.
— Uma infância feliz é o que eu mais poderia desejar para ela.

 

 

A estrada de terra batida era longa e estreita, mas não assustadora. Uma casa pequena próxima de sua propriedade deixava tudo extremamente acolhedor. A chaminé exalava fumaça e ele gemeu, sentindo o cheiro de pão assado. Não comia nada desde o dia anterior e estava faminto. Contudo, não foi pela fome que se aproximou da casa e bateu palmas.

— Sim? — uma senhora miúda, de feição gentil, apareceu.

Shiromiya ergueu a carta, mostrando o papel timbrado com o selo do governo que havia ocupado o poder desde o final da guerra.

— Ah — a mulher assentiu, saindo pela porta. — Não sabia que iriam dar o hectare do meu filho tão cedo...

Shiro se envergonhou.

— Eu...

— Não precisa explicar — ela o cortou. — Você se inscreveu para ganhar terra e a ganhou. Não fez nada errado.

— Não pensei que a haviam tomado do filho da senhora — apesar da abnegação demonstrada pela mulher, tentou ajeitar a situação.

— Meu filho morreu — ela amenizou a culpa estagnada na face do recém-chegado. — Assim como minha nora, meu neto... A guerra levou toda a minha família. Então, não se preocupe quanto a isso.

— Porém...

— A casa — não permitiu que ele interrompesse — não é grande coisa, mas dará para ocupá-la. Precisa apenas limpar o terreno e arrumar as coisas. Pode ficar com os móveis e as roupas, se quiser. Ninguém abre aquela porta desde a morte da minha família, então, está tudo sujo...

Os olhos da mulher nublaram, e ela deu-lhe as costas.

— Vou buscar as chaves para que possa abrir os cadeados — disse, após um momento de comoção.

Shiro a viu afastando-se de ombros caídos. Sabia que devia ficar em silêncio, respeitando sua dor, mas não aguentou ver tanto sofrimento nos olhos femininos.

— Tenho uma criança, uma filha pequena. Ela está completando cinco anos... — sua voz baixou. — Somos sozinhos, ela e eu — explicou. — Então, se a senhora permitir, poderemos lhe fazer companhia às vezes...

A velha voltou-se para ele.

— Sou Ume Higurashi — apresentou-se.

— Kazue Shiromiya — curvou-se. — Mas todos me chamam apenas de Shiro.

— Seja bem-vindo, Shiro — ela sorriu, pela primeira vez. — Espero que cuide bem das terras que um dia pertenceram ao meu filho.

— Sou bom com a terra, senhora — afirmou. — Prometo tratá-la com respeito e conseguir dela bons frutos.

A mulher assentiu.

— Então, agora vou buscar as chaves — disse, pela segunda vez. — As chaves da sua casa.

A frase final ecoou no coração de Shiro, que sentiu os olhos inundando-se de felicidade. Quando a velha sumiu, ele murmurou baixinho, numa prece íntima:

— Viu, Nana? — olhou para o céu. – Eu tenho uma casa agora. Minha casa. Minha — repetiu. — E vou cuidar dela da forma como você me ensinou a fazer. Eu prometo.


***


— De onde a Branca de Neve conhecia o príncipe encantado? — a garotinha indagou, fazendo Saito arquear as sobrancelhas.

— Não se conheciam... que eu saiba.

— Então, o príncipe encontrou uma mulher morta que ele nunca viu na vida e a beijou? — o olhar negro e atrevido pareceu irônico.

— Segundo o soldado alemão, de quem ouvi a história, foi exatamente o que aconteceu. É disso que se trata o amor verdadeiro [2] — perseverou.

— Amor verdadeiro se nem se conheciam? — insistiu.

Saito mordeu os lábios, irritado. Sentado embaixo de uma enorme cerejeira, ele aproveitava a tarde ensolarada de folga para contar histórias para a filha de Shiromiya. Contudo, não era admiração que via nos olhos pequenos, e sim ironia.

— Tem cinco anos, Miya! — ralhou. — Com essa idade, você escuta as histórias e não faz perguntas, entendeu? Devia ser deslumbrada como todas as outras crianças!

A menina deu os ombros, parecendo desistir do embate apenas para não cansar a própria beleza. Saito respirou fundo, puxando-a para seu colo e enchendo a bochecha de beijos.

— Pare, tio Jiro — ela reclamou, tentando escapar das mãos que lhe faziam cócegas.

— Vai sentir saudades de mim? — indagou, parando as cócegas, mas mantendo-a nos braços.

A criança não respondeu. Apenas encostou a cabeça no ombro dele e manteve-se quieta.

— O que foi?

Quis interrogá-la, mas, de repente, a garotinha deu um salto. Seguindo o olhar infantil, percebeu Shiromiya andando na direção deles, ainda longe.

Em segundos, Miya disparou naquela direção. As pernas pequenas e roliças correram como uma onça em direção à presa. E quando, enfim, chegou até o pai, atirou-se em seus braços, apertando-o fortemente.

— Ora, foram apenas três dias, Miya — Shiro riu, beijando a bochecha rosada. — Sentiu, tanto assim, a minha falta?

Percebeu os olhos úmidos da filha. Estranhou.

— O que foi?

— A senhora Saito disse que não iria mais voltar — ela contou, de supetão. — Disse que eu ficaria bem, que ela iria cuidar de mim, e que você iria cuidar da própria vida.

— Mas você é a minha vida, Miya — ele retrucou, irritado. — Nunca mais vou deixá-la sozinha, eu prometo. Mas, prometa-me, em troca, que jamais acreditará quando qualquer pessoa disser que iremos nos separar.

A criança assentiu, voltando a abraçá-lo. E permaneceu daquele jeito, carregada, até chegarem a Saito Jiro, que os aguardava perto da cerejeira.

— Estou indo embora, Jiro — Shiro contou. — Venha comigo — pediu.

O amigo negou, a expressão abatida.

— Arrumei um emprego em Okinawa. Vou ajudar os novos soldados que vêm para a base americana a se comunicarem com as pessoas.

— Mas é longe...

— Eu não iria se você estivesse em uma situação ruim, sem teto ou emprego. Mas conseguiu sua casa, tem algum dinheiro guardado e poderá começar a plantar. Irão abrir escolas em todas as regiões, inclusive em Kibou, e Miya aprenderá a ler e escrever. Vocês terão uma vida tranquila.

O ex-soldado pousou uma das mãos no ombro do amigo.

— Sempre estarei em contato e irei vê-lo, meu querido. — disse com um sorriso. — Mas também preciso recomeçar, ter algo com que me ocupar.

Jiro estava, desde o fim da guerra, ajudando na fazenda dos pais. Shiromiya também se ocupou do mesmo labor. Porém, percebia-se de longe que os Saito eram frios, e não havia muito amor ali. Eles mal olhavam para o próprio filho, então não restava muito a fazer naquele lugar. Precisava do próprio espaço, de um lugar em que não fosse visto como motivo de vergonha.

Da mesma maneira, tratavam Shiromiya. Por sorte, Miya era naturalmente encantadora e a mãe de Jiro, em pouco tempo, já havia se apegado à menina.

— Dizem que os americanos instalarão bases pequenas por todo o Japão, e também em Kyoto. Assim que conseguir, pedirei transferência e irei para mais perto de você — Jiro prometeu. — Não se preocupe, não nos distanciaremos.

Shiromiya concordou, voltando os olhos para a casa.

— Sua mãe...

— Miya é sua filha e ela não tentará impedi-lo de levá-la. Apenas, ela acha que homens como nós não servimos para termos uma família. Ela nos vê como irresponsáveis, sujos... Acha que somos diferentes dos outros homens, apenas porque não desejamos mulheres.

— Sua família me acolheu no pior momento da minha vida, e eu sou muito grato por isso — Shiro suspirou. — Contudo, agora é a hora de eu seguir meu caminho.

Jiro assentiu.

— É um batalhador, meu amigo. Será muito feliz.

Kazue baixou a face e encarou a criança que o observava.

— Eu já sou.


***


Conforme disse Jiro, a senhora Saito não tentou impedi-lo de levar Miya de sua casa. No entanto, Shiro condoeu-se pelas lágrimas da mulher, que parecia perdida por uma filha alheia, quando sequer encarava o fruto de próprio seu ventre.

— Nossa nova casa é bonita? — Miya indagou, enquanto mordia um pedaço de bolo que haviam comprado no terminal da rodoviária.

— Ainda não é muito bonita — respondeu, sincero. — Precisa de alguns reparos, como pintura e conserto de algumas telhas. Mas tem dois quartos, então você terá um quarto só para você, seu próprio futon — contou. — Não fica feliz com isso?

— Sim — assentiu, entusiasmada. — Conte-me mais.

— Tem uma cozinha e um banheiro — e era só. A casa de três cômodos e banheiro era pequena e sem grandes atrativos, mas ele faria de tudo para torná-la um lar. — Teremos um pátio grande para criar galinhas e plantar uma horta. Poderemos comprar uma vaquinha, então você sempre terá leite.

Os olhos femininos animaram-se diante da menção aos animais.

— E eu poderei ter um gato?

— Um gato?

— Amo gatos — ela contou. — Eu sempre brincava com a “fofinha” da senhora Saito.

Shiro sorriu. Não sabia se poderia criar um gato, ainda não tinha ideia dos custos que teria com sua nova propriedade, então preferiu não criar esperança. Contava-se que o novo governo estava dando subsídios para novos agricultores — como ele — mas realmente desconhecia a veracidade da informação.

— Sabia que na casa que eu vivi em Tóquio tinha um gato?

— Sim, tio Jiro me contou. Minikui, não é?

Será que Minikui ainda estava vivo? A lembrança doeu em Shiro. Em seguida, a imagem de um cortesão de longos cabelos negros tocou-o, mas ele afastou as recordações, ansioso, temendo lembrar-se das demais emoções vividas e vacilar diante de seu destino solitário. Não tinha mais tempo para aqueles sentimentos. Naquele momento, tudo que importava era Miya.

— É dele que você sente saudades quando chora de noite, antes de dormir?

A pergunta assustou Shiro, que se viu embasbacado, sem palavras, diante da filha.

— O quê? — murmurou. — Eu não choro à noite, Miya.

— Chora sim, eu já vi.

— Viu?

— Sim.

— E por que não disse nada?

— Porque tio Jiro disse que, às vezes, as pessoas sentem vergonha se são flagradas chorando e que é melhor fazermos de conta que não vimos nada. Então, eu fingia que estava dormindo...

Shiromiya acariciou a face da pequena, emocionado. Como um ser tão pequeno podia ser tão sensível ao ponto de evitar a curiosidade e a preocupação, apenas para não deixá-lo constrangido?

— Eu perdi muito, Miya. Assim como você, não tenho mãe, nem parentes. Eu tinha um irmão, não de sangue, mas de alma, que tive que deixar para trás porque fugi do... – interrompeu as palavras, recusando-se a citar um certo nome que já não pronunciava desde que deixou Sapporo. — Mas, agora eu tenho você, não é? Então, eu sei que um dia esse choro vai parar.

A pequena sorriu, compreendendo o intento das palavras. Depois, voltou os olhos para o ônibus que se aproximava.

— É o nosso ônibus, papai?

— É sim, filha.

Estendendo a pequena mão, ela segurou firme nos dedos do pai. Confiava inteiramente nele, e sabia que ele faria todo o possível para mantê-la bem e segura.

 

Capítulo 01

Tóquio, Japão.

Novembro de 1950.

 

Os dedos longos e curvilíneos bateram levemente na mesa de madeira. A mão bonita chamou a atenção do homem de cerca de cinquenta anos, fazendo-o encarar o comerciante do ramo naval que parecia entediado no evento. Sentados lado a lado, servo e senhor não falavam, apenas mantinham-se focados em seus próprios pensamentos.

Tadao observou o patrão atentamente, enquanto meditava que nada nos últimos anos parecia tirá-lo do seu mundo de dor e sofrimento. Ryo Satoshi completaria trinta e dois anos dali a sete dias. Era jovem, rico, bonito e poderoso. Mesmo fazendo parte de um país derrotado, ele mantivera seu status de influência. Antes, dobrara seus ganhos vendendo comida para o exército japonês durante a guerra. No momento, negociava com o exército invasor, tornando-se a cada dia, mais abastado.

Contudo, o foco no trabalho não trazia luz aos seus olhos. Mesmo ali, sentado num salão onde ele investira uma parcela importante dos lucros, sua postura denotava seu conflito. A cabeça baixa, a maneira acanhada, os pensamentos longe... Nada parecia lhe importar.

No palco a frente deles, um homem discursava de forma enérgica. Ao seu lado, após uma frase de efeito, um grupo bateu palmas. Era um dia animador, aos poucos o país estava voltando do inferno, reerguendo-se. Várias fábricas estavam abrindo suas portas, o emprego começou a despontar, e boa parte da população sentia-se animada perante a luz que parecia irradiar no fim do túnel.

Repentinamente, o servo ouviu o nome do patrão ser pronunciado e apurou os ouvidos ao segmento do discurso:

— Essa noite não existiria, não fosse a ajuda desse homem formidável; então, pedimos que ele suba ao palco para dizer algumas palavras e receber nossa gratidão.

Volvendo os olhos, percebeu que o homem os encarava. Sabia que Ryo havia dito aos organizadores do evento que não queria falar, mas na animação crescente daquela noite, intuiu que o pedido fora esquecido. Tocou-lhe o ombro, despertando-o.

Satoshi o encarou, questionador. Então, Tadao, moveu a face para o palco, fazendo-o perceber que estava sendo chamado adiante. Pareceu irritado, mas não recusou. Erguendo-se, caminhou até o centro do palco, onde parou diante de um microfone. Diante dele, o grupo de pessoas, que atingia uma marca acima de cem, parecia ansioso pelas suas palavras.

Ryo respirou fundo e aproximou-se do microfone. A estática ecoou pelo salão grande, e ele pigarreou antes de abrir a boca.

— Boa noite — cumprimentou.

Subitamente, o silêncio. Realmente, não estava preparado para falar, não sabia o que dizer. Já havia muito tempo que ele sequer aparecia em público, inclusive, ultimamente, a maioria dos acordos fechados estava sendo realizada por Tadao.

— No último ano da guerra — começou, involuntariamente, repentinamente sentindo que as palavras cascateavam de sua garganta, num desabafo que parecia cortar-lhe a alma, — a pessoa que eu amei me confessou que tinha um sonho.

Os olhares atentos sobre ele não eram incômodos. Praticamente, todos ali já amaram e, certamente, todos haviam perdido alguém importante durante a guerra. O luto resplandecia nos olhos respeitadores e gentis. Aquilo o incentivou a prosseguir.

— Mas, talvez, porque estava cego em minha arrogância, ou talvez porque simplesmente só damos valor às pessoas depois que as perdemos, eu ignorei seu sonho, sequer me esforcei em ajudá-la a conquistá-lo. Então, se eu tivesse o poder de voltar ao passado, eu gostaria de ter pelo menos tentado...

As palavras queimaram novamente. Ryo deu um passo para trás, respirando fundo, engolindo as lágrimas. Já não mais encarava o palco, estava absorvido na própria culpa.

— Quando me falaram sobre esse projeto — ergueu o rosto e encarou o cartaz sobre sua cabeça, — imaginei que poderia obter um pouco de perdão, colaborando.

Sua franqueza foi compreendida. Algumas pessoas assentiram diante dele.

— Espero que o “Centro de Alfabetização para Adultos de Tóquio” traga a todos que dele usufruírem não só conhecimento, mas também orgulho próprio e oportunidades. Vocês, mais do que ninguém, sabem da dificuldade de não se saber ler e escrever. Agora, com a abertura de tanto mercado de trabalho na nossa cidade, a educação é papel fundamental na obtenção dos melhores empregos. Assim sendo, aproveitem essa oportunidade, e conquistem o que desejam. E, caso precisarem de mim, basta me procurarem.

Sem mais, o homem saiu do palco sobre forte aplauso. Tadao, em pé, o aguardava submisso. Nada comentou, enquanto o via pegar o paletó e deixar o salão. Deixou-o a sós, como costumava fazer durante aqueles anos que pareciam séculos. Desde que Shiromiya Kazue havia desaparecido, Ryo sobrevivia a passos forçados, como se não se permitisse morrer, apenas porque sabia que tinha muitos pecados a pagar naquela terra amargurada.


***


Yanada, o famoso bairro da arte em Tóquio, estava movimentado naquela noite fria do final de outono. Ryo parou diante de uma padaria e, pela vidraça, observou o padeiro a comercializar biscoitos tradicionais de arroz. Não sentia fome, mas pensou em achegar-se e comer. Fazia um tempo que não se alimentava direito, pulando o almoço ou a janta, disfarçando a negligência com bebida destilada.

Abriu a porta e aproximou-se de uma mesa. Logo, uma moça o atendeu e Ryo pediu bolinhos e café. Desde a chegada dos americanos, ele passou a tomá-lo. A primeira vez, foi numa reunião com o novo governo, num acerto de vendas de sardinhas enlatadas para o exército americano. Adorou a experiência e, desde então, passou a apreciar a bebida forte todos os dias.

Sozinho, enquanto aguardava a comida, ele passou a observar o movimento da rua. A maior parte das pessoas a caminhar nas calçadas eram mulheres. Muitos homens perderam a vida na guerra e, por conta disso, elas tomaram a dianteira na manutenção de suas famílias. Com a nova constituição, podiam votar e conquistavam seus próprios direitos. Entendeu, então, porque Miya, em suas visões, parecia tão segura e dona de si.

Renegou os pensamentos, ciente de que nenhuma daquelas visões se realizaria. Pensar na filha que jamais nasceria era uma tortura, além do que era capaz de suportar. Então, inconsciente, tocou no pingente do cordão que mantinha no pescoço há cinco anos. O coração dourado, a joia mais barata que possuía, era, contudo, seu bem mais valioso. Respirou fundo, relembrando as cenas felizes de tempos anteriores, quando ele tinha Shiro nos braços, e quando era amado sem restrições.

Repentinamente, uma voz infantil fê-lo desviar a atenção. O menino devia ter três ou quatro anos. Comia um pedaço de torta, enquanto ria com dentes tortos para o pai à sua frente. Ao lado do homem, uma mulher sorriu satisfeita. Uma família feliz. Algo que ele teria, não fossem seus atos covardes e desumanos.

Levantou. Atirou sobre a mesa o valor que devia valer os bolinhos e o café, saindo rapidamente do estabelecimento, fugindo da imagem alegre.


***


Caminhou sem rumo, sentindo a brisa gelada tocar seu rosto numa carícia mortal. A verdade é que a perspectiva de voltar para sua casa silenciosa ou usufruir dos bares e bordéis abertos àquela hora não o animava.

Com o fechamento da Casa Ai, Ryo não tinha mais um lugar para beber e flertar. Nenhum bordel lhe chamava a atenção e, bem da verdade, nenhuma mulher ou homem atiçava nele qualquer fogo da paixão. Apenas, então, passava as noites no próprio escritório, lendo algum clássico, aventurando-se no mundo escrito, fugindo da realidade.

Às vezes, ia ver Shin. O pensamento voltou, de modo repentino, a 1946, quando ambos estavam sentados em uma sala separada do público, aguardando o julgamento do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente. Conforme os militares iam sendo condenados, Ryo foi se preparando para o pior. Contudo, devido a uma armação de MacArthur, uma falha no processo permitiu que todos os membros da família Imperial fossem inocentados de seus crimes.

Shin Sakamoto ouviu sua absolvição em total silêncio. Ryo respirou aliviado, segurando suas mãos, assim que o amigo saiu livre do prédio em que era julgado. Não conversaram até chegar na casa dele. Abalado, o nobre simplesmente sentou-se numa poltrona e permitiu que algumas lágrimas escapassem dos olhos exaustos.

— Acreditei piamente que seria punido, Ryo-san — Shin disse, abatido. – Achei que com a minha punição encontraria a paz... Eu preciso pagar...

Ryo o ouviu em silêncio. Imaginava o quanto Sakamoto se auto-repreendia, mas nada poderia fazer para aliviar–lhe a culpa. Permitindo ao amigo a privacidade para se deprimir, ele o deixou isolado por um tempo. Em 1947, contudo, Shin passou da depressão à loucura, enchendo a casa de animais. Andava pela cidade, recolhendo cães e gatos sem donos, vítimas passivas e abandonadas à própria sorte, após a guerra. Quis censurá-lo, dizer-lhe que havia enlouquecido, mas Shin parecia ter encontrado uma razão para viver, e aquilo o aliviou.

De Sakamoto, Mamoru passou pela sua mente. Pensou no amigo cortesão e no quanto sentia falta das conversas noturnas e sinceras. Todavia, antes da mente aprofundar-se nas lembranças, ele tropeçou em algo. Girou o rosto para baixo e percebeu ser uma perna esticada de uma mulher.

— Precisa de ajuda? — indagou, ao vê-la sentada, como se moribunda.

Desde Shiromiya, tornou-se incapaz de deixar qualquer pessoa desamparada, abandonada à própria sorte.

O cabelo em desalinho, quebrado e sujo, caía sobre o rosto magro. Ryo agachou-se perante ela e ergueu-lhe a face. Assustou-se diante da imagem.

— Midori?

Apesar de tantos anos, ainda podia-se perceber a beleza. A jovem prostituta da Casa Ai, que o havia servido muitas vezes no passado, estava em estado de desnutrição e desamparo, seus olhos estavam apagados, a pele amarelada e, claramente, doente.

— Ryo-san? — ela indagou, reconhecendo-o.

Satoshi a ergueu no colo. O odor da mulher ficou mais forte e ele torceu o nariz, mas não hesitou. Precisava ajudá-la urgentemente.

Conseguiu um carro de aluguel alguns metros adiante. O motorista até tentou negar-se a levá-los para o hospital mais próximo, mas Ryo falou-lhe com tanta autoridade que ficou temeroso em provocar um rico. Assim sendo, em menos de uma hora, Midori já repousava em uma cama aquecida, sendo tratada por uma boa equipe de médicos que atenderam prontamente a requisição do comerciante.

— Realizaremos alguns exames — o médico explicou. — Porém deve se preparar para o pior — foi negativo. Depois, arqueou as sobrancelhas, curioso diante da situação. — É uma conhecida?

Ryo até pensou em desconversar. Porém, viu-se sendo sincero.

— Ela me atendia há dez anos. Não a via desde 1944, quando foi enviada para uma fábrica. Soube que foi bombardeada.

O médico assentiu.

— Era uma boa garota — completou. — Cuidava dos pais — recordou-se. — Trabalhava na noite para manter a família nos tempos difíceis...

Duas horas depois, o médico retornou ao quarto. Chamou Ryo para uma conversa e, do lado de fora do quarto, explicou que a jovem estava com sífilis em estado avançado.

— Daremos penicilina, mas os órgãos foram afetados. Ela está morrendo...

Ryo respirou fundo.

— De qualquer forma, faça o que for possível — pediu.

Depois, voltou para perto da cama. Naquele momento, a mulher abriu os olhos. Encararam-se, e ela notou que o homem chorava. Ficou surpreendida por tal, mas as palavras dele, momentos depois, deixaram claro o motivo.

— Não pedi a Shin para que Rika e você fossem libertadas da obrigação de irem às fábricas — revelou. — Não citei seu nome, tampouco o dela. Tudo que eu queria, era livrar Shiromiya. Não pedi nem por Aiko, Sakamoto o liberou porque assim o quis.

Ela sorriu, compreensiva.

— Eu sei, Ryo-san — admitiu. — Sempre soube. Mas mandou o dinheiro para minha família, não é?

— Enviei até a data que o banco, que fazia o pagamento, informou que todos haviam morrido em um bombardeio.

Midori sentiu as lágrimas virem e as secou com a mão espalmada.

— Então, fez tudo que podia por mim — avisou. — Se tem qualquer culpa no seu coração, esqueça.

— Como pode me perdoar? — ele retrucou. — Por minha culpa, você está assim...

— Ninguém manda no destino — a jovem replicou. — Essa foi a minha sina, mas graças a Kami, ela está chegando ao fim.

Ryo sentou-se em uma cadeira ao lado da cama. Segurou a mão direita de Midori, tentando dar-lhe forças.

— E Rika?

— Morreu na fábrica de Osaka...

Ryo mudou o rumo da conversa.

— Por que não procurou por Aiko quando tudo acabou? Ele buscou por informações suas, de Rika e Keiko por meses.

— Eu soube que ele havia mudado de ocupação. Achei por bem deixá-lo viver a própria vida — suspirou. — E Nana?

— Morreu no primeiro bombardeio de Tóquio.

Midori sentiu a garganta doer, mas não chorou.

— Shiro? — balbuciou, enfraquecida. Subitamente, porém, percebeu o brilho dourado no pescoço de Ryo. — Eu conheço esse cordão... Não me diga que...

— Eu o levei a Sapporo — Ryo a interrompeu. — Ele ficou comigo até julho de 1945, mas então desapareceu — o tom baixou. — Foi minha culpa, eu o magoei demais...

— E depois?

— Vim para Tóquio atrás dele. Imaginei que pudesse ter voltado ao abrigo da Casa Ai, mas encontrei o lugar abandonado. Então, depois me lembrei de Keiko, e imaginei que Kazue pudesse ter procurado abrigo com ela. Hiroshima não havia sido bombardeada e diziam ser segura. Porém eu sabia que era questão de tempo... — emudeceu, aflito. Depois, voltou a falar. — Peguei um carro e dirigi como um louco para lá. Quase morri na estrada, mas não cheguei a tempo. Você sabe, aconteceu...

— A bomba?

— Sim. Então, eu acredito que ele tenha morrido lá. Aiko buscou pela lista de mortos que saiu um tempo depois e constava o nome de Keiko. Ela morreu na fábrica, trabalhando, e o filho, na escola. Não havia informações sobre visitas, porém, é o mais óbvio. Eu quis me negar a acreditar no começo, entretanto, contratei investigadores para buscá-lo pelo país e nenhum conseguiu nada. Então, em janeiro de 1947, eu desisti e aceitei o fato.

— Se não encontraram um corpo, então existe esperança.

— Se ele estava em Hiroshima... Como poderia haver um corpo? — fechou os olhos, depois disse pausadamente — Nunca me perdoarei pelo que fiz a ele... Nunca me perdoarei pelo que fiz a mim mesmo...

Midori quis dizer algo, mas uma tosse intensa a atacou. Teve que girar o corpo para o lado, cuspindo uma saliva amarga e salgada. Ryo percebeu que a situação era grave.

— Irei chamar Aiko-san... — disse a ela.

— Não quero que ele me veja assim — choramingou.

— Ele amava você e precisa vê-la antes... — não continuou, não precisou.

Só então a mulher assentiu. Diante daquilo, Ryo saiu correndo.


***


Assim que a rendição foi assinada naquele longínquo dois de setembro de quarenta e cinco, Mamoru Aiko abandonou o bunker do Imperador. Diante de um silencioso Shin Sakamoto, ele levantou-se de manhã, pegou Minikui no colo e saiu porta afora, indo embora definitivamente daquele lugar.

O país arrasado não o assustou. Já no primeiro dia livre do olhar do ex amante, voltou para os escombros do que um dia fora sua casa. O abrigo antibomba estava intacto, e ele teve comida e teto até as coisas começarem, aos poucos, a entrar nos eixos.

Não que tenha sido simples. Assustado e depressivo, ele teve que recolher restos humanos de dentro e em volta do seu lar. Limpou como pôde, mas soube que jamais conseguiria viver ali novamente.

Cerca de dez meses depois, conseguiu vender a propriedade. Pensou seriamente em ir atrás de Jiro (e Shiro! Sabia, claro, que seu amado Kazue estava com o sargento), mas temeu que sua presença chamasse demais a atenção e Ryo o encontrasse. Era até engraçado que Satoshi não tivesse desconfiado que Saito havia roubado Shiromiya dele. Talvez cogitasse, mas a diferença de um dia entre a visita de Jiro e o sumiço de Shiro nunca fora questionado de forma audível por Satoshi.

Então, depois de muito meditar, preferiu comprar um casebre em Asakusa. A maioria das casas e prédios de Tóquio havia caído, mas o bairro, em especial, conseguira sobreviver aos bombardeios. O sobrado de dois andares era próximo ao distrito de gueixas, e Mamoru gostava de se imaginar perto da antiga vida. Não muito grande, sua parte inferior era nitidamente preparada para receber algum tipo de comércio. Havia espaço e um bom ponto para atendimento. As janelas grandes e de vidro eram semelhantes à porta, que também deixava a rua à vista. Uma escada interna levava ao pavimento superior, onde um pequeno e cômodo apartamento era o ideal para ele. Dois quartos, sala, cozinha e um banheiro confortável.

Nos primeiros meses, trancafiou-se dentro da nova casa, sem vontade de ter qualquer contato com o mundo exterior. Sakamoto descobriu sua localização e passava algumas vezes em frente à sua casa. Ficava parado do outro lado da rua, a olhá-lo pela janela, mas não se atrevia a bater na sua porta.

Depois da reclusão, ele decidiu ir atrás de suas meninas. Quem sabe alguma estivesse precisando de um lugar para ficar? Não conseguiu nenhuma informação, era como se tivessem sumido do mapa. Keiko foi a única de quem teve notícias. E eram as piores possíveis.

Ao perceber-se sozinho e sem objetivos, procurou por Ryo. Pediu dinheiro emprestado, precisava criar algo, ter alguma ocupação na vida.

O amigo nem pestanejou e, no mesmo dia, ele começou a trabalhar na sua nova fonte de renda. Abriu uma livraria, um lugar calmo e que necessitava o menos possível de contato com os clientes. As pessoas chegavam, compravam livros e iam embora. Não precisava entreter ninguém, nem se preocupar com a aparência.

Em 1949, quando seu estabelecimento já tinha certa fama, uma venturosa coincidência o fez expandir os negócios. Era um dia chuvoso, quando o senhor Watanabe — um cliente regular — entrou no local. Após alguns minutos escolhendo alguns exemplares de clássicos românticos, ele aproximou-se do balcão para pagar. Como de costume, Mamoru atendeu-o com um sorriso solícito e, enquanto somava a conta, olhou para a porta, preocupado com a chuva que caía cada vez mais forte. Notou que, caso seu cliente saísse naquele momento, além de se molhar, teria os livros destruídos, então sugeriu:

— Gostaria de sentar-se?

O homem assentiu e Aiko arrumou uma cadeira perto da vidraça para que ele se acomodasse. Depois, levou-lhe uma xícara de café, bebida que passou a ingerir após a guerra. Após duas horas de chuva forte, percebeu que o senhor parecia bastante confortável no lugar. Mesmo quando a chuva passou, ele prosseguiu sua leitura, parecendo gostar do ambiente. Quando se levantou para ir embora, agradeceu ao ex-cafetão, e estendeu a ele uma nota americana.

— Pelo café — sorriu.

No mesmo instante, Mamoru decidiu espalhar poltronas no lugar e fazer café e chá para oferecer aos clientes, enquanto eles liam. Em menos de um mês, triplicou as vendas e a livraria seguidamente estava cheia de clientes que iam lá para ler e beber, silenciosos.

Antes mesmo da década de cinquenta se iniciar, ele já havia quitado sua dívida com Ryo.

Assim sendo, naquela noite gelada de novembro, estranhou ao ver o amigo na parte de baixo da sua casa. Com Minikui do lado, ele abriu a porta, encarando o outro. Imediatamente, percebeu sua apreensão e anteviu o pior.

— Quem?

Quem morreu?

Só a morte ainda existia naquele lugar. Todo o resto havia se perdido nas lacunas do tempo.

— Midori.

Jamais pensou ouvir aquele nome novamente. Sentiu as lágrimas transbordando nos olhos, e o coração aos saltos.

— Ela ainda está viva, você pode se despedir — Ryo sussurrou, comovido.

Mamoru assentiu.

— Vou buscar meu casaco.

Quando chegou ao hospital, a mulher já estava inconsciente. O médico explicou que a doença havia atingido o coração e que, provavelmente, ela não teria resistido mais que uma hora na rua. O homem, então, sentou-se na cama e a pegou nos braços. Não puderam conversar, mas ele a ninou e beijou seu rosto, enquanto sentia o sopro de vida dela abandonando seu corpo.

Aiko não chorou quando a respiração parou. Apenas acariciou o rosto sofrido e a manteve segura, num abraço fraterno.

***


Dois dias depois, ele apareceu no escritório de Ryo. Ao contrário das vezes que lá esteve no passado, foi recebido como um irmão, num abraço forte do outro.

— Obrigado pelo que fez a Midori — disse, sentando-se à mesa.

De frente a ele, Ryo assentiu.

— Eu lamento muito que a doença já estava em estado avançado... — comentou, franco.

Aiko concordou.

— Mas, ao menos, ela pôde morrer numa cama quentinha, sendo tratada com respeito.

— É estranho que a guerra ainda parece não ter acabado, não? — Ryo murmurou.

Naquele momento, Mamoru sentiu-se tentando a falar a verdade para ele. Talvez, amenizar a dor de Satoshi, que ficara transtornado desde que acreditara na morte de Shiromiya em Hiroshima. Contudo, ele levantou-se.

— Eu preciso ir — disse. — Apenas, vim porque queria muito agradecê-lo.

Do lado de fora do escritório, ele girou o corpo, a fim de voltar. Pensou e repensou seguidas vezes o que devia fazer. Por fim, deixou tudo como estava. Se Kami-sama desejava unir novamente Shiromiya e Ryo, as coisas um dia viriam à tona.

— Ninguém foge do que está predestinado — murmurou.

E suas palavras eram sábias.

 

Capítulo 02


— Após várias horas no mar, chegamos a Sotogahama — Saito Jiro manteve o ar sério, enquanto narrava os eventos passados. — A cidade estava um caos e a maioria dos transportes já não circulava mais, mas conseguimos dois assentos no único ônibus que partiria da cidade naquele dia. Porém...

Fez uma pausa para bebericar o chá. A garota à sua frente não gostou da interrupção.

— Porém? — insistiu, fazendo-o prosseguir.

— Porém, quando chegamos próximo de Niigata, vimos vários ônibus e carros incendiados, provavelmente vítimas dos Caças americanos. Então, decidi descer.

Shiromiya aproximou-se, carregando uma panela fumegante. Colocou-a na mesa baixa, diante da filha e do amigo.

— As pessoas do ônibus riram de nós — lembrou-se.

— Sim, estávamos numa zona rural, e não havia nenhuma casa ou lugar próximo para pedirmos abrigo.

— Mesmo assim, Jiro insistiu que saíssemos do ônibus e prosseguíssemos a pé.

Saito assentiu.

— Mas quase me arrependi, quando você começou a chorar — disse à criança.

— Eu? — ela parecia em dúvida. — Não sou nenhuma chorona!

Os homens se encararam, sorrindo.

— Mas você tinha só três anos, Miya — Shiromiya interveio.

— E estava com fome — Saito abrandou. — No ônibus, havia uma família com uma sacola de milhos, então, a fome era suavizada pelas espigas que eles dividiam conosco. Depois que descemos, infelizmente, não havia onde conseguir alimentos, e nossa caminhada era vagarosa devido ao medo de sermos vistos por alguma aeronave.

A menina arrebitou o nariz.

— E então? Continue — pediu.

— Andamos por dois dias seguidos. Por sorte, conseguimos alguns figos e passamos por um rio. Então, deu para amenizar a fome e a sede. Contudo, você queria comida de verdade, e nós não tínhamos de onde tirar. Ambos — apontou Shiro — já estávamos entrando em desespero, quando avistamos o ônibus que havíamos abandonado.

A imagem da enorme carcaça carbonizada e cercada por corpos escurecidos pelo fogo tocou Kazue, que espantou os pensamentos, rapidamente.

— As pessoas não estavam mais lá — Jiro mentiu, evitando traumatizar a criança. — Mas deixaram a sacola de milhos...

O tom da última frase foi baixo. Saito recordou-se de como encontrou a sacola atirada próximo dos corpos sem vida, provavelmente sendo levada por uma das pessoas que tentara fugir do ônibus em chamas, mas fora alvejada pelos aviões, enquanto escapava.

— Nós fizemos uma fogueira e comemos até nos fartarmos — apontou a lateral de Miya. — Todas as espigas sumiram em questão de minutos, menos o Senhor Bigode.

Uma espiga de milho seca, vestida com uma camiseta pequena e xadrez, e com olhos de botão, descansava ao lado da menina de oito anos. Ela encarou o boneco feito artesanalmente e sorriu.

Shiromiya acompanhou o olhar, lembrando-se do seu desespero pelas lágrimas ininterruptas da filha, querendo a mãe. Tentando distraí-la, pegou uma das espigas de milho e começou a falar com ela, fazendo de conta que era uma pessoinha. A ação chamou a atenção da pequena que a segurou no colo, começando também a dialogar.

Shiro, então, lhe disse que o nome da espiga era Senhor Bigode, devido à palha grande que saía da cabeça e parecia ir até uma cavidade que lembrava uma boca.

Assim que chegaram à casa de Saito, após a guerra ter cessado, ele deu ao boneco dois olhos, uma boca e roupas. Miya que já o havia adotado, apegou-se ainda mais a ele, andando de um lado para o outro com a peça, da mesma forma que Shiro fazia, quando tinha sua idade.

— Viu como o tio Jiro sempre cuidou de você? — Saito interrompeu seus pensamentos. A mão direita aproximou-se de Shiro e acariciou sua coxa, eroticamente.

Kazue o espantou com um safanão. O homem o encarou, magoado, mas Miya interrompeu a troca de pensamentos, alheia ao que rolava embaixo da mesa.

— Meu pai sempre cuidou de mim — ela devolveu.

Shiro escondeu um sorriso satisfeito ao ver Saito bufar.

— E eu?

Ela riu, recusando-se a responder. Enquanto Shiromiya servia o prato de ensopado para a filha, Jiro questionou:

— Miya, você gostaria que o papai namorasse o tio Jiro?

— Não.

A resposta imediata fez Saito gargalhar.

— Não vai nem pensar?

— Não.

Repentinamente, Shiromiya deu mais um tabefe no braço de Saito.

— Não fale dessas coisas para ela! — repreendeu.

— Que coisas?

— Você sabe.

— Homem e homem? — o ex-sargento arqueou as sobrancelhas grossas. — Ela sabe como as coisas funcionam, não é, Miya? Eu expliquei para ela!

— O quê?

A forma como o rosto de Shiromiya ficou vermelho denotava o quanto estava furioso pela descoberta.

— O que queria que eu fizesse? Ela me viu aos beijos com Ayako-san.

O rapaz em questão trabalhava na prefeitura de Kibou. Era jovem, uns vinte anos, no máximo.

— Quando? — Kazue enfrentou-o.

— Faz uns dois meses — Jiro deu os ombros. — Eu cheguei à cidade com uma sacola de presentes para Miya, e ele me ajudou a trazer tudo até aqui.

— E então você o recompensou, dando-lhe beijos?

— Qual é o seu problema? — Jiro irritou-se. — Está com ciúmes?

— Estou com raiva por Miya! — estava sendo sincero. — Ela tem oito anos, não tem idade para ver...

— Ver o quê? Dois caras se beijando? Se fosse com alguma jovenzinha não teria problema?

— Você sabe que eu não quis dizer isso — protegeu-se.

— Acorde, Shiro — ralhou. — Miya, se duvidar, é mais esperta do que você! Ela está crescendo numa fazenda, acha que não repara como o galo pula em cima da galinha?

— Quer parar de ficar falando essas coisas em voz alta, na presença dela?

A garota os observava em silêncio, o olhar divertido.

— É por isso, Miya? — Saito voltou sua atenção à garotinha. — Não quer que o papai namore o tio Jiro, porque o viu beijando outro homem?

— Papai Shiro só vai namorar o meu pai — ela afirmou, fazendo os dois homens arquearem as sobrancelhas.

— Como assim? — a pergunta veio de Shiro, que pareceu espantado.

A garota apontou o fogão. Ambos olharam naquela direção, sem entender.

— Ele — ela explicou, parecendo mostrar alguém. — Meu pai.

Saito se arrepiou.

— Não tem ninguém ali, Miya.

— Tem sim — ela perseverou. — Ali, bem na frente do fogão, de costas para nós.

Saito agarrou o braço de Shiro.

— Leve-a até um monge — pediu. — Com tantas mortes no país, com certeza ela está...

— Ah, cale a boca! — Shiro riu. — É uma criança, tem amigos imaginários — amenizou.

A miúda riu, achando cômico o olhar assombrado do seu tio. Depois, pôs-se a comer, despreocupadamente.

— Falei com a senhora Higurashi — Saito disse ao amigo. — Ela disse que poderá ficar com Miya hoje.

Shiro pareceu incomodado. Sorveu o ensopado, antes de replicar.

— Não me agrada sair e deixá-la com outras pessoas.

— Pelo amor de Deus! É a senhora Higurashi! É como uma avó para Miya!

— Mas é tão raro eu ter um pouco de tempo para ficar com ela... Trabalho tanto...

— Shiro, precisa respirar e deixar sua filha respirar também. Ela vai ficar bem, está tomando os remédios direitinhos, não é? — encarou a menina.

— Sim, e estou me sentindo bem — a garota intrometeu-se. — Além disso, a vovó vai me ensinar a fazer pão.

Saito voltou-se para Shiromiya, a fim de prosseguir no seu intento, quando percebeu a fala da criança.

— Você falou com a senhora Higurashi?

— Não.

— Como sabe que ela vai ensiná-la a fazer pão?

— Eu vi, ontem à noite, enquanto dormia.

Saito voltou-se novamente ao amigo.

— Leve-a ao templo! — implorou.

Kazue deu os ombros. A situação já perdurava uns dois anos. A primeira vez acontecera em 1948, quando um vizinho faleceu. A menina acordou de manhã, dizendo ao pai para se arrumar e ir até a casa que ficava a uns dois quilômetros de distância, pois a família precisaria deles naquele momento de infortúnio. Depois, prosseguiu em coisas pequenas: os dias que choveriam, as visitas não avisadas de Jiro, o número de pintinhos que nasceria em determinada ninhada. Nada que o preocupasse, mesmo que se assemelhasse muito ao dom de certo alguém de seu passado.

Porém, diferente do que havia dito a Saito, as visões que ela passou a ter depois do final do verão de 1950, passaram a lhe apavorar demasiadamente. Miya chamava por um pai invisível, enervando-o. Dizia a Shiromiya que ele e o homem que só ela via ficariam juntos, como uma família.

Às vezes, também, acordava à noite com a voz infantil, conversando animadamente com alguém que ele não era capaz de enxergar sobre os cachorros e gatos que ela gostaria de ter.

Caso seus problemas não fossem tão maiores, com certeza, enlouqueceria. Porém, não tinha muito tempo para pensar sobre tais coisas. Ele trabalhava cinco dias por semana na própria propriedade, lavrando e cuidando das galinhas. Nos outros dois dias, ajudava na colheita de uma propriedade vizinha, o que lhe garantia o dinheiro necessário para os gastos com a saúde de Miya. Nas noites de segunda e quarta, era o faxineiro da prefeitura. Nas demais, empenhava-se em ajudar a filha com as lições da escola, mesmo não sabendo escrever.

Então, quando teve aquele sábado de folga, pensou em passá-lo com ela, tomando suco de laranja embaixo do pé de figos. Contudo, Jiro havia lhe dito sobre uma festa em Kyoto cerca de um mês antes. Na época, para se livrar do persistente convite, aceitou acompanhá-lo, mesmo odiando participar de tais eventos.

— Vai ser divertido — Saito insistiu, percebendo-o pestanejar. — Você precisa conhecer pessoas novas, divertir-se um pouco.

— Não quero conhecer ninguém.

— Nem todo mundo é como aquele crápula...

— Não me interessa como as outras pessoas são ou deixam de ser — Shiro fogueou-se. — Não estou buscando amizade nem amor. Quero apenas ficar quieto no meu canto.

Saito percebeu o desconforto do amigo, porém foi firme:

— Mesmo assim, prometeu-me que me acompanharia. Não aceitarei que volte atrás em sua palavra. Portanto, pode se arrumar que nós vamos beber e dançar hoje, Shiro!

Respirando fundo, sabendo que nenhum argumento iria convencer Jiro, Shiromiya acatou.


***


Quando Shiromiya entrou naquele bar sujo e fétido ao norte de Kyoto, ele encarou o amigo, com o semblante nitidamente aborrecido. Então, era para aquele lugar quase vazio e sem atrativos que Jiro Saito insistiu que o acompanhasse?

Um homem grande e corpulento aproximou-se, encarando os dois amigos. Depois, fez um chamado com a mão para Jiro, pedindo que ambos o acompanhassem.

Apesar de achar estranha tal situação, Kazue os seguiu. Tinha total confiança no amigo que o protegera e amparara durante aqueles cinco últimos anos. Saito até havia solicitado uma transferência para a base de Kyoto para poderem estar próximos. Amava-o como parte de sua família e era-lhe muito agradecido.

A única coisa que o incomodava era o fato de Jiro ter se tornado um canalha no âmbito sexual. Ele praticamente havia dormido com todos os homens que se aproximaram, desejosos de seu corpo sedutor. Contudo, mesmo desfrutando de todos os prazeres carnais, não entregava o coração. Às vezes, comentava que ambos poderiam começar um relacionamento, criar Miya e dividir a vida. A ideia poderia parecer conveniente, mas o menor sabia que o coração do amigo não era dele e que seria um erro ficarem juntos apenas para aplacar a solidão. Além do mais, por mais que tentasse, seria incapaz de amar novamente.

Então, mantinham a amizade, da qual Shiro não abria mão. Depois de terminar o gozo ao lado dos parceiros, Saito o procurava. Sentava-se no chão de sua casa, e ficava conversando com sua filha. Apesar das palavras gentis para a criança, seus olhos tristes e batidos escondiam sua dor, fazendo o coração de Shiro condoer-se, solidário.

Os pensamentos foram interrompidos junto com os passos. Shiro olhou para frente e percebeu uma porta que levava ao porão. Ali, bem ao fundo do bar, podia-se ouvir uma suave canção em um idioma que desconhecia.

A porta abriu, revelando uma escada. Jiro sorriu para ele e desceu. Shiro o acompanhou, chocando-se ao ver a imagem de um bar escondido naquele ex-abrigo de guerra.

Havia um balcão e algumas mesas em que os frequentadores bebiam. Ao lado, tinha um pequeno palco, onde uma caixa de som tocava uma melodia lenta. No espaço livre do salão, alguns homens dançavam enroscados com outros homens, num ritmo sensual.

Ali, eram todos iguais. Todos homossexuais. Mesmo que os rostos denotassem a diferença racial, havia em cada um deles a mesma procura, a mesma ânsia.

— Confuso? — Jiro brincou, ao vê-lo embasbacado. — Surpreso? Ou simplesmente fascinado? — riu. — Achou que fôssemos os únicos assim no mundo?

— Nunca vi pessoas dançando assim — admitiu. — Estão com os corpos grudados...

— E isso não te excita? — Saito sussurrou, contra sua orelha. — Não é delicioso?

Na verdade, a sensação que tomava conta de Shiro era de repulsa, não de desejo. Reflexos de uma memória perdida, onde ele enroscava-se num corpo que há muito tentava esquecer, surgiram na sua mente.

— Dê uma chance a si mesmo — Jiro pediu, vendo-o em choque.

Houve um silêncio amistoso entre eles.

— Às vezes — sussurrou, — raramente... muito raramente...

— O quê?

— Pergunto-me como ele está... — admitiu, numa confissão que pareceu rasgar sua garganta e trazer lágrimas aos seus olhos. — Ele provavelmente se casou, assim que a guerra acabou e deve ter filhos. Será que é feliz?

Jiro segurou seus ombros, trazendo-o para um abraço.

— Feliz? Aquele filho da puta deve passar os dias tentando ficar duro pra esposa, e procurando amantes homens para acalmar a carência.

Shiro desvencilhou-se do abraço, sorrindo.

— O que me importa, não é? Não sou o primeiro idiota enganado por alguém!

Jiro riu.

— Vamos beber? Eles têm cerveja aqui.

— Cerveja?

Saito o pegou pela mão, arrastando-o até um balcão.

— Experimente. É um pouco amarga, mas é uma delícia.

Fazendo um gesto para o homem que atendia, Saito recostou-se no balcão. Repentinamente, porém, ficou rígido, ao perceber um rapaz jovem e alto se aproximando. Shiromiya percebeu sua reação e o encarou, curioso.

— Finja interesse em mim — pediu, fazendo o amigo rir baixinho.

— Por quê?

— Aquele chato — murmurou, apontando discretamente com a face. — Um imbecil apaixonado. Parece uma mulherzinha... Só porque dormi com ele, agora acha que vamos nos casar — ridicularizou.

Shiromiya não gostou do tom. Especialmente porque já estivera do outro lado. Revoltado, então, voltou-se para o rapaz que chegava.

Era bonito. Jovem, aparentava não ter mais de vinte anos. Alto, de cabelos castanhos claros e olhos azuis. O queixo, quadrado, como a maioria dos americanos, era perfeitamente harmônico a um sorriso gentil. Não precisou de muito tempo para perceber que ele era doce. E completamente fascinado por Saito.

— Não quero dançar — Jiro estendeu a mão num abano desprezador, antes mesmo de o rapaz dizer qualquer coisa.

O americano ficou vermelho e baixou a face, envergonhado. Shiromiya repentinamente deu um passo à frente.

— Mas ele não está chamando você — disse ao amigo. — É comigo que quer dançar, não é? — e estendeu a mão.

A gratidão que viu nos olhos do outro, fê-lo perceber que fizera a coisa certa. Diante de um embasbacado Jiro, ele acompanhou o jovem até o centro do salão. Não se agarraram, o homem pôs as mãos em sua cintura e Shiro, em seus ombros. Com uma distância segura entre os corpos, o menor relaxou.

— Muito obrigado — o rapaz estrangeiro agradeceu, em japonês.

Shiro arregalou os olhos, surpreso.

— Você fala meu idioma quase sem sotaque...

— Eu o aprendi na América. Morava próximo de imigrantes japoneses e, como se não bastasse, no treinamento que me preparava para vir para cá, passei por mais um curso rápido — ele molhou os lábios com a língua. — Sou Daniel.

— Shiromiya. Mas ninguém me chama assim, então, apenas Shiro.

— Você é o homem que Saito vai ver em todas as folgas, não é? Dizem que ele é completamente apaixonado por você.

Kazue não resistiu e gargalhou.

— Está enganado, ele é como um irmão. É verdade que me ama, mas não da forma como imagina. Jamais fomos amantes.

— Alguém que não caiu em sua teia de paixão? — o outro parecia duvidar. — Realmente, é inacreditável, Shiro.

Kazue pareceu envergonhado e baixou a face.

— Jiro me salvou no pior momento da minha vida. Ele é um homem maravilhoso, mas nunca houve qualquer clima amoroso entre nós, e nem haverá.

— Você parece bem maduro para alguém que provavelmente é mais novo que eu.

A música finalizou. Contudo, ambos permaneceram parados no mesmo lugar.

— Quantos anos têm? — Shiromiya indagou.

— Vinte e um.

— Tenho vinte e quatro — sorriu.

— Não acredito! É verdade?

— Sim, e sou pai. Tenho uma filha de oito anos.

— Oito? Mas foi pai tão cedo?

Shiromiya sempre desconversava, quando o assunto pautava o tempo que separava Miya e ele.

— É natural fazer besteiras quando se tem dezesseis anos.

— E a mãe dela?

Outra música começou a tocar. Daniel voltou a cercá-lo com os braços, e Shiromiya uniu as mãos nos ombros dele.

— Morreu, na guerra.

De certa forma, estava sendo sincero, então não se culpou.

— É totalmente diferente do que sempre imaginei, Shiromiya — Daniel parecia fascinado. — Gostaria que Saito fosse como você...

— Jiro é maravilhoso — Shiro insistiu. — Você devia tê-lo conhecido antes... — emudeceu. — Às vezes penso que ele é assim, porque jamais voltou a Tóquio, deixando lá pessoas que ele amava.

— Não volta porque não quer — Daniel contou. — Fui convocado para viajar para Tóquio daqui a algumas semanas, enviar alguns documentos importantes para a base de lá. Pedi para que Saito me acompanhasse, mas ele recusou.

A notícia chocou Shiromiya. Acreditava que Jiro não voltara por falta de condições, por causa do trabalho ou qualquer outro assunto. Não que simplesmente não desejasse voltar.

Subitamente, a verdade caiu como um balde de água fria sobre seus ombros.

— Daniel, fique certo de que Jiro-san vai acompanhá-lo na sua viagem.

Assim que a música se encerrou, ele agradeceu ao rapaz e voltou para perto de Jiro. Encontrou-o bufando.

— Por que teve que dançar duas músicas com ele?

Shiro sequer objetou e disparou.

— Por que nunca voltou para Aiko e Shin?

A pergunta deixou o amigo constrangido. Nitidamente, ele tentou esconder a reação sorvendo mais cerveja, como se estivesse completamente despreocupado.

— É por isso que se tornou esse amargurado?

Saito o encarou, raivoso.

— Amargurado? Tem ideia do quanto me divirto? De quantos eu fodo por semana?

— Em quantos busca o seu amor perdido por Aiko e Shin? — devolveu, sua franqueza cortando a alma do outro. — É por mim todo esse sacrifício? Acha que pode se trair e contar a Sakamoto onde estou? Acredita que, sabendo a verdade, Ryo virá atrás de mim? — o semblante de Kazue tornou-se complacente. — Meu amado, acha mesmo que ele lembra que um dia eu passei por sua vida? Acha mesmo que ele guardou qualquer lembrança minha? Depois que trocaram os lençóis da cama em que deitei, não restou mais nada de minha presença na sua casa.

Segurou as mãos do outro. Viu lágrimas.

— Eu imploro, aceite o convite de Daniel e vá ver seus amigos. Por Deus! Como acha que vou dormir à noite, pensando que por minha culpa você não pode mais ver as pessoas que ama?

Repentinamente, o ex-soldado apertou Shiro nos braços. As palavras de agradecimento ditas em um de seus ouvidos o tocaram tão profundamente quanto uma declaração de amor.

— Vou ver Aiko... — sussurrou.

Os olhos de Kazue encheram-se de lágrimas. Ele apertou Jiro tão forte que temeu machucá-lo.

— Diga-lhe que eu o amo — pediu. — Diga-lhe que não passou um único dia, desde que eu o deixei, que não pensei nele. E que, um dia, quando Miya melhorar, eu irei vê-lo.


***


Apesar da escuridão reinante naquela noite fria, ainda não era tão tarde. Shiromiya desceu na estação de Kibou e rumou para a casa da senhora Higurashi. Assim que chegou lá, bateu palmas e logo foi atendido por uma simpática velhinha, que sorriu ao vê-lo.

— Mas já? — ela perguntou. — Achei que amanheceria na festa, uma vez que seu amigo falou que iriam se divertir muito.

— Minha ideia de diversão não é exatamente a mesma que a de Jiro, Higurashi-san — ele brincou. — Miya deu trabalho?

— Ela fala mais do que a boca, mas é uma criança maravilhosa — respondeu. — Ensinei-lhe a fazer pão.

A frase ecoou na mente de Kazue, que se sentiu incomodado. Contudo, agradeceu à velha senhora, enquanto a via voltando para dentro de casa, a fim de chamar a criança.

Assim que Miya correu em sua direção, Shiromiya estendeu as mãos e a pôs no colo.

— Leve a lamparina — Umi pediu, assim que ele se despediu. — Apesar de sua casa não ser longe, está muito escuro.

Com a menina equilibrada no seu braço direito e segurando o utensílio de querosene na mão esquerda, ele pôs-se a caminhar, em direção à sua propriedade. O vento gelado bateu nos seus cabelos, e ele observou a filha, tentando perceber se ela estava com frio e se precisava do seu casaco.

— Me ponha no chão — a garota pediu. — Eu tenho oito anos e não sou inválida.

— Inválida? — ele riu. — Onde aprendeu essa palavra?

— Eu sei muitas palavras difíceis — ela arrebitou o nariz. — Sou amada por gente poderosa.

Kazue jogou a face para trás e gargalhou alto, fazendo com que o som de sua voz ecoasse pelas árvores frondosas.

— Que você é amada, tenho certeza — ele esfregou o nariz na bochecha infantil. — Agora, por uma pessoa poderosa, não sei não...

Subitamente, a criança pareceu em transe. Shiromiya, imediatamente, pensou nos anos que ficaram para trás. Incomodou-se tremendamente pela situação e decidiu que talvez devesse procurar ajuda, assim que pudesse. Miya não poderia ser vítima daquela maldição. O comerciante, com quem se relacionara, merecia aquela triste sina, mas uma criança sem pecados ou erros como a filha, não poderia ser punida por tal situação.

— Lá — ela apontou uma clareira. — Temos que ajudar o vovô.

O homem observou adiante. Ergueu a lamparina, tentando ver algo naquela direção. Nada. Mesmo assim, sabendo que a filha não falhava nas palavras, ele a colocou no chão e começou a caminhar em direção ao ponto apontado.

Não demorou muito e percebeu um vulto sentado aos pés de uma árvore. Era um homem idoso, de rosto enrugado e cabelos brancos. O corpo cansado se encolhia envolvido por um cobertor velho.

— Com licença — Shiro chamou sua atenção e o velho levantou a face.

Percebeu o abandono ao olhar para aquela figura triste. Sentiu os olhos arderem. Aquele senhor, provavelmente, trabalhara durante toda a sua vida com dificuldade e, naquele momento, chegava à velhice sem ter onde repousar a cabeça. Maldita guerra que atingia aos mais fracos.

— Moço — o velho cumprimentou com um curvar de cabeça. — Sabe onde tem algum celeiro para que eu possa passar a noite?

Shiromiya negou.

— Não há nenhum por aqui. Mas venha comigo — disse.

Assim que chegaram em casa, Shiro esquentou o ensopado que sobrara do almoço. Enquanto aquecia a casa com o fogão a lenha, ele sentou-se à mesa com o senhor, e passaram a conversar como velhos amigos.

— O senhor é daqui?

O velho balançou a cabeça, negando.

— Depois de perder minha casa e minha família, passei a andar por aí. Sou caixeiro-viajante — mostrou uma sacola grande, onde trazia alguns objetos.

— Mas não será por muito tempo — a menina à frente dele avisou, sorrindo.

O homem de cabelos brancos arqueou as sobrancelhas, não entendendo a colocação.

— Miya! — o tom de Kazue era de repreensão. – Já falamos sobre isso, não?

Ele havia pedido muitas vezes para que a criança contivesse a língua, quando não estivesse a sós com ele ou com Jiro. Se havia algo que o passado lhe ensinara era que, em dificuldades, o ser humano era capaz de coagir pessoas especiais, como Miya, a fim de deter o poder.

— Foi muito bom para mim — o senhor ignorou a situação. — Não sei se teria aguentado essa noite ao relento. Então, como agradecimento, gostaria de lhe dar algum presente — voltou-se para a sacola.

— Eu jamais poderia aceitar.

— Eu aceito! — Miya adiantou-se. Mesmo sendo censurada pelo olhar severo do pai, prosseguiu. — O livro de capa escura, aquele grosso. O terceiro da pilha que o senhor tem na sacola.

O homem ficou embasbacado, mas abriu a bolsa de estopa. Buscou nos pertences a obra que a criança citara.

— Como sabia? — parecia surpreso. — Esses livros foram tudo que sobraram da casa onde vivi. — contou.

— Jamais poderíamos ficar com suas lembranças — Shiromiya estava prestes a mandar a pequena para o quarto, de castigo.

— Não se preocupe, eu tenho dois exemplares dessa obra. — O homem não fez caso. Estendeu o volume para a menina, que o pegou nos braços. — Espero que você goste dessa história tanto quanto a minha filha gostava. É uma bonita história de amor, esquecida pela vingança.

Shiromiya percebeu o interesse de Miya e então assentiu. Era bom ver que ela gostava de livros tanto quanto ele. Gostaria de poder ler para ela, como alguns pais faziam. Porém era a filha que, ainda com a dicção infantil, o entretinha nas noites, a lhe contar histórias.

— O Mor..ro dos... — ela balbuciou, tentando ler a capa.

Miya estava na escola há dois anos. Porém, perdeu muitos dias letivos em 49. Então, ainda levaria um tempo para que chegasse ao nível das crianças da idade dela.

— O Morro dos Ventos Uivantes — o velho completou, ajudando-a.

O título chocou Shiromiya, que pareceu impressionado. Tentou esconder sua reação, mas o senhor já o encarava, com interesse.

— Conheço a história — disse, por fim.

— É mesmo?

— Quando estava em Tóquio, tive um... amigo... — demorou um pouco para classificar Ryo Satoshi. Sabia que o outro não o considerava daquela forma, por isso, usar a palavra parecia errado. — Bom, ele leu para mim.

Sorriu, diante das lembranças.

— Eu era muito jovem e fiquei encantado por Heathcliff e Catherine.

— Todos que conhecem a história, ficam — assentiu. — Deve ter sido um bom amigo, pois leu um clássico maravilhoso. Ainda o vê?

Shiro negou.

— Não o vejo desde 1945, quando deixei sua casa em Sapporo.

— Mas sente sua falta, pela forma como seus olhos se emocionaram ao lembrar-se dele.

Não era emoção que Shiro imaginava sentir e sim ódio. Contudo, não desmentiu.

— A vida levou cada um para um lado. Sequer penso nele — prosseguiu, tentando convencer a si mesmo.

Depois, passaram a falar um pouco sobre como haviam sido suas vidas durante a guerra. O homem, que se chamava Nobu, contou-lhe sobre sua casa em Nagoya, de como era feliz com a esposa e os dois filhos casados. Falou dos netos, da vida difícil, mas afortunada. Então, falou sobre o bombardeio que destruiu tudo que tinha e de como passou a perambular pelo país.

— Mas não fique triste, vovô — a menina disse ao velho. — Vá para Tóquio e lá encontrará um lar.

O homem encarou surpreso o pai, que apenas deu um sorriso cúmplice que parecia dizer: “é só uma criança...” e logo a frase foi esquecida.

Depois, ouviu os relatos de Shiro sobre Tóquio, do irmão adotivo que ficou para trás. Porém, nada sobre uma Casa Ai ou sobre a profissão que Shiromiya desempenhava no passado.

Mais tarde, o dono da casa arrumou o futon da filha para o velho dormir. Levou Miya para o seu quarto, a fim de dividir com ela o leito. Trancou a porta, antes de se deitar. Mesmo que Nobu parecesse uma pessoa bondosa, ele jamais confiaria a vida de Miya a ninguém, além de Jiro ou Aiko. Sabia que sua superproteção era até incômoda, mas não conseguia evitar.

Apagou as luzes do quarto e deitou-se ao lado da criança. A menina recostou-se no seu peito e murmurou, com os olhos fechados:

— Quando eu crescer, quero escrever livros.

Shiromiya sorriu diante do desejo.

— Poderá ser o que quiser, minha filha — disse, beijando-lhe o topo da cabeça, — porque você vai estudar, vai crescer sendo respeitada, e quando ficar adulta, poderá conhecer um jovem bonito e inteligente, e ambos se casarão. Ninguém jamais vai menosprezá-la, nem humilhá-la. Eu nunca vou deixar que passe por nada... — a continuação “que eu passei” perdeu-se em sua voz baixa.

Enquanto notava que a garota pegava no sono, ele secou as próprias lágrimas, companheiras fiéis das suas noites, há mais de cinco anos.

 

Capítulo 03


Saito Jiro entrou no quarto do pequeno apartamento que ele alugava no subúrbio de Kyoto para seus encontros amorosos. No lugar, o rapaz americano que passou a ser um amante frequente já o aguardava. Sorriu para ele, enquanto guardava o casaco no armário.

O jovem levantou-se da cadeira e correu em sua direção, abraçando-o por trás.

— Por que é tão cruel comigo?

— O que você acha que merecia, depois de me delatar para Shiro-san?

— Ficou ofendido? Sinto muito se fui indiscreto, mas você nunca disse que era segredo sua recusa em voltar para Tóquio.

— Não era segredo, porém não precisava ter falado — disse, voltando-se para o estrangeiro. — Shiromiya já tem muitos problemas para ficar se preocupando com os meus — desvencilhou-se do abraço e sentou-se na cama.

O outro permaneceu em pé, a encará-lo.

— Problemas? O que de tão grave aconteceu para que evite voltar à capital? Tem a ver com a guerra? Perdeu alguém importante lá? Ou se trata de um amor não correspondido? É isso, não é? — adivinhou, talvez, motivado pela expressão ferida que o outro manifestou após sua pergunta. — Que tipo de cara partiu seu coração, Saito-san?

Jiro enfezou-se. Não só pela pergunta indiscreta. Afinal, quem era aquele garoto para lhe questionar daquela forma? Mas, principalmente, pela menção negativa à Aiko, através do tratamento pronunciado em um tom de menosprezo. Ele jamais seria um cara qualquer em sua vida!

Além do mais, havia Shin...

O coração palpitou com a lembrança dos dois, o sentimento dividido e inquietante martelando novamente suas emoções. Irritado, encarou o jovem, pronto a dar a resposta que ele queria ouvir.

— Isso não lhe diz respeito! — retrucou, no entanto.

Daniel virou-se de costas e esmurrou a parede.

— Não diz, porque você não me conta nada a seu respeito! — esbravejou. — Por que não se abre comigo? Por que não me deixa entrar em sua vida?

— E por que eu faria isso? — perguntou o japonês, após um sorriso de escárnio.

— Porque eu o amo!

— Não sabe o que é amor, garoto. Você só tem vinte e um anos.

— Só porque passou dos trinta, não quer dizer que você saiba! — devolveu.

Jiro riu, achando graça de aquela criança birrenta tentar desestabilizá-lo.

— Sabe por que estou em Kyoto? E antes disso, em Okinawa? Porque a pessoa que eu amei me pediu para fugir com Shiro. Kazue era vítima de um arrogante que o manipulava e enganava. A única forma de impedir aquele homem — que, aliás, era muito rico e poderoso — de cessar de exercer poder sobre Shiro era sumindo com ele. Por conta disso, eu passei cinco anos da minha vida sem saber como estão meus amigos, sem poder conversar com Sakamoto ou beber chá com Mamoru. E você quer me ensinar sobre amor? Amor, meu caro, é se sacrificar.

— E acha que eu não me sacrifico? Vendo-o com outros homens...

— Nunca te prometi nada.

— Mas eu acreditei que podia ser diferente...

— Por quê? Só porque tem uma história triste? Porque papai o expulsou de casa, quando o pegou no celeiro com o filho do japonês? Por que quando foi se despedir da mamãe antes de embarcar para cá, ela disse que era uma pena que a guerra tinha terminado e que você não morreria aqui?

Respirou fundo. Percebeu as lágrimas que provocou, mas não teve piedade.

— Seu infortúnio, meu caro, não é nada comparado ao de Shiro. Ele era vendido na rua desde criança. Foi espancado, estuprado e humilhado por mais vezes do que você seria capaz de contar. Quando mais jovem, apaixonou-se por alguém que o enganou para mais tarde pisar em seus sentimentos. Depois, perambulou pelo país destruído com uma filha pequena nos braços. Hoje, enquanto você passa a tarde choramingando nos meus ouvidos, ele está com uma enxada na mão, trabalhando. Aliás, é o que ele faz, durante todos os dias da semana. E, às vezes, ainda faxina à noite a prefeitura da cidade em que mora, para que nada falte à sua garotinha.

Recostou-se na guarda da cama, enquanto tirava os calçados com os próprios pés.

— Se eu devo sentir pena de alguém aqui, não é de você! Aliás, de você não sinto a menor piedade. Você se envolveu comigo porque quis. E, desde o primeiro momento, eu disse que não me apaixonava.

Depois, sorriu, amenizando a crítica.

— Contudo, não fique tão triste... eu decidi ir contigo para Tóquio.

— Mesmo?

Saito gargalhou, diante da sincera felicidade que viu resplandecida no olhar do outro.

— Mas tenho uma condição.

O outro se aproximou perigosamente, esquecendo as palavras cruéis jogadas em sua cara.

— Quero que beije os meus pés — mandou.

Rapidamente, o americano caiu de joelhos diante dele. Ergueu os membros inferiores do outro com as mãos, e beijou-os, devotadamente.

E, daquela forma, começou aquela agitada tarde de final de novembro.


***

A mordida amigável no seu pé, fê-lo voltar a cabeça para baixo, e cumprimentar com a face o cachorro que o encarava, balançando o rabo. Shin Sakamoto dizia que aquelas abocanhadas eram “mordidinhas de amor”. De onde ele havia tirado tal título, era algo que Ryo Satoshi jamais descobriria, mas se recusou a fazer caso e simplesmente sorveu todo o conhaque do copo, enquanto observava o melhor amigo brincar com um diferente cão, do outro lado da sala.

— Como ainda não internaram você? — indagou, ridicularizando a situação.

— Alguns acham que enlouqueci, mas a maioria sabe que jamais estive mais lúcido.

Era verdade. Aquele lado humano que Shin pareceu desenvolver após o julgamento e que o fez resgatar animais sem lar, era fruto de uma racionalidade invejável.

— Você parece feliz hoje — Ryo resmungou, mudando de assunto.

— Eu vi Minikui — confessou.

— Novamente foi incomodar Mamoru?

— A rua é pública e ele não pode me impedir de ficar do outro lado da calçada a olhar para sua janela.

Ryo deu os ombros, não querendo se envolver naquele problema. Fazia cinco anos que Mamoru Aiko não dirigia a palavra a Shin Sakamoto, e fazia cinco anos que o sobrinho do Imperador continuava a mendigar atenção.

— E então? — Shin voltou a encher seu copo. — Trinta e dois anos, hem?

A reunião dos dois amigos naquela noite tinha o propósito de comemorar o aniversário do comerciante. Devia ser um evento feliz, mas acabou com os dois homens sentados na sala de Sakamoto, bebendo como se nada tivessem a festejar.

— A vida passa rápido — o tom não era agradável. — Parece que foi ontem que o conheci, que conheci Aiko. Parece que foi ontem que dei meu primeiro beijo, fiz sexo pela primeira vez. Se fechar meus olhos, ainda consigo sentir o som das músicas alegres da Casa Ai, do cheiro das rosas. Ah, como amava passar meu tempo lá!

— E parece que foi ontem que conheceu Shiro, não é? — Sakamoto provocou.

— Obrigado por citar o que tentei evitar a noite toda — foi mordaz.

A gargalhada de membro da família Imperial invadiu o ambiente e fez sua cabeça latejar.

— Mais algum tempo e já estaremos com quarenta, cinquenta anos. Depois, o que nos resta? Será que teremos saúde aos sessenta, bebendo desse jeito? — encarou o copo de conhaque. — Será que teremos quem nos cuidará na velhice?

— E pergunta isso para mim? O profeta aqui é você.

A colocação irritou Ryo, ao mesmo tempo em que o entristeceu.

— Nunca mais tive uma visão — ergueu a mão e massageou a têmpora, parecendo amenizar a dor de cabeça. — Sempre considerei meu dom uma maldição, mas agora... Viver sem saber o que o amanhã me reserva é o pior destino que eu poderia desejar.

— Bem vindo ao meu mundo — o outro riu.

Era próximo da meia noite quando Ryo Satoshi deixou a majestosa mansão onde Sakamoto residia. Tadao o aguardava do lado de fora, postado ao lado do automóvel grande e escuro.

— Vou caminhar um pouco — Ryo disse, dispensando-o.

— Mas, senhor...

O receio na voz do servo era compreensível. O Japão passava por uma reformulação, não só de estado e leis, mas também de valores. Alguns baderneiros armados estavam provocando brigas, tentando deixar ainda mais inquieto o clima já hostil.

O exército americano também andava pelas ruas, ostentando armas. Porém, a maioria dos soldados eram simpáticos. E adoravam as prostitutas das vilas pobres, que fantasiavam-se de gueixas para atendê-los. Ah, se soubessem o quão preciosas eram as gueixas do passado, ricas em cultura e sedução! Jamais aceitariam aquela encenação ridícula das mulheres desesperadas por dinheiro.

Ryo abanou para um carro de aluguel que cruzou com ele a duas quadras da casa de Shin. Mecanicamente, pediu ao motorista para levá-lo ao bairro vermelho. Assim que chegaram lá, ele pagou o homem e desceu.

Encarou o portão de ferro, feio e mal pintado. Atrás dele, uma casa de madeiras sujas se erguia. Dela, uma música irritantemente alta demais parecia arder os ouvidos, e os homens pareciam gritar para conseguir serem escutados.

Em nada, aquele ambiente lembrava a antiga construção que ostentou por séculos a Casa do Amor. Com a derrota, toda a rica e maravilhosa cultura pareceu esquecida. Não havia mais beleza e conquista, era apenas sexo e álcool.

Repentinamente, uma antiga música de amor começou a tocar. Ryo podia se lembrar de tê-la ouvido na infância, e por algum motivo, percebeu que ela lhe trazia a memória de Shiromiya.

Se Shiro estivesse ali...

Se Shiro não o tivesse abandonado...

Se Shiro estivesse vivo...

Ergueu a mão, observando o relógio de pulso, percebendo que seu aniversário já havia findado. Mais uma data sem valor, sem qualquer motivo para comemorar. Repentinamente, então, levou a mão ao bolso do casaco. A pistola adquirida há pouco tempo pareceu fria em seus dedos. Puxou-a e a ergueu até a fronte. Pôs o dedo no gatilho. Quase sorriu ao perceber que aquele era o fim da merda que era sua vida.

— Imagino que a dor em sua vida seja insuportável, mas se matar nunca foi a melhor saída.

Ryo baixou a arma e voltou o corpo. Encarou o homem que falara e percebeu ser um velho pobre, andarilho, pelas roupas já rasgadas. Estava sentado com as costas escoradas numa parede. Claramente, era ali que parecia passar a noite.

— Eu perdi tudo — justificou.

— Desculpe a sinceridade, mas pelas roupas que usa, devo discordar de você. Não me parece ter perdido o prestígio ou o dinheiro... Eu sim... Como pode ver.

— Tudo que me importava — corrigiu.

O velho assentiu, compreensivo.

— Guarde essa arma, meu jovem. Pelo menos, por mais uma noite — fez um aceno com a mão. — Venha comigo, vamos beber um copo de saquê e conversar. Se depois, você ainda quiser se matar, eu não vou impedi-lo.

Era um pedido justo. Ryo concordou.

Evitando o terreno onde antigamente a Casa Ai abria suas portas para um mundo de beleza e sedução, ele rumou para outro bordel. O ambiente sujo não o incomodou, e ele sentou-se junto com o velho em uma mesa de madeira. Uma jovem miúda apareceu, e eles pediram a bebida.

— Nobu — o homem se apresentou. — Sou vendedor ambulante, ando pelo Japão...

— Vende o quê?

A pergunta não era interessada, mas Ryo queria simplesmente conversar.

— Tudo que eu consigo carregar — o velho sorriu. — Roupas, calçados, cobertas, panelas... e livros.

— Livros?

— É... — o homem deu os ombros. — Mas fale-me de você. Como se chama?

— Ryo — respondeu. — Ryo Satoshi.

— É jovem e rico, Ryo Satoshi — enfatizou. — Por que deseja a morte?

A moça chegou com a bebida. Só após ela servi-los e sumir, foi que o outro respondeu:

— Como eu lhe disse, perdi tudo.

— Sua família?

— Nunca tive uma família — negou. — Perdi a pessoa que eu amava...

— Também perdi a pessoa que eu amava — Nobu se solidarizou. — E meus filhos...

— Perdi minha filha também... A filha que jamais nascerá...

O outro não questionou a frase curiosa. Apenas, bebeu um gole do saquê, e depois comentou:

— A guerra é algo que destrói mais do que o momento. Ela nos marca para sempre. Talvez, gerações.

Ryo pôs os cotovelos na mesa. Sua postura parecia ainda mais derrotada, entregue. O velho bateu de leve no seu ombro.

— Estive no interior, vi muita gente sem esperança. Mas é nosso dever erguer nosso país.

O comerciante o observou atentamente. Parecia exausto, cansado e com fome. Compadeceu-se.

— Tem onde dormir?

— Não tenho onde repousar a cabeça desde 45, meu jovem — riu. — A ultima vez que dormi em um futon, foi há duas semanas, na casa de um jovem, num vilarejo perto de Kyoto.

— Possuo muitas casas — Ryo levantou-se, puxando notas graúdas e largando sobre a mesa. — E também me tornei acionista de alguns hotéis recém-construídos aqui em Tóquio. Você pode dormir no quarto de um deles. Então, venha comigo.

— E por que faria isso por mim? Nem me conhece.

— Porque se importou em me impedir de puxar o gatilho.

O homem sorriu.

— O jovem que me deu pouso no interior também me pôs dentro de sua casa sem saber nada sobre mim. Como agradecimento, eu lhe dei um livro. Faço questão de dar-lhe um também.

Ryo negou.

— Não é necessário.

— Eu possuía dois “O Morro dos Ventos Uivantes”. Um ficou com ele, faço questão de que o outro seja seu — insistiu, abrindo a sacola de pano e erguendo um exemplar velho e maltratado.

Ryo o pegou nos dedos.

— Parece surpreso — o homem comentou.

— Esse livro é muito especial para mim — admitiu. — Eu o lia para a pessoa que eu amava...

O velho arregalou os olhos.

— Curioso... — murmurou. — O jovem que me hospedou tem uma história parecida. Ele tinha um amigo que lia para ele... Ah, é mesmo... ele comentou que vivia em Tóquio na época, mas perderam o contato depois... — buscava as palavras, tentando-se recordar da conversa. — Parece que a última vez que o viu foi em Sapporo.

Em algum lugar dentro de Ryo, algo explodiu. Mesmo não querendo se animar por tal semelhança, o coração bateu apressadamente. Quantas vezes, naqueles anos todos, se deixou levar por qualquer boato, viajando léguas porque simplesmente alguém havia visto um jovem parecido com Shiro, ou porque havia alguém com o mesmo nome em alguma fazenda ou fábrica?

E, em todas as situações, ele terminava a viagem chorando, enquanto segurava o medalhão. E depois de aceitar, enfim, que não mais o teria, surgia mais uma vez a ansiedade de partir no mesmo instante em busca de outra possível mentira?

— Como ele é? — perguntou, incerto.

— O jovem? Ah, é da sua altura e magro. Trabalha no campo, parece que ganhou terras na reforma agrária. Muito honrado e honesto.

— Ele disse seu nome?

— Falou, mas... — o homem ficou pensativo. — Como era mesmo? Shiromura...

— Shiromiya?

Ao longe, Ryo foi capaz de ouvir uma risada abafada por um gemido. Enquanto o mundo ao seu redor parecia se divertir, tudo nele era apreensão e desespero.

— Sim, Shiromiya! — Nobu bateu a mão na mesa. — Kazue Shiromiya!

 

Capítulo 04


Mamoru Aiko passou o pano úmido no balcão de madeira, enquanto conversava animadamente com seu cliente mais regular. Eram raros os dias em que o senhor Watanabe não aparecia na livraria. Sentava-se na mesma cadeira, diante da mesma janela para, religiosamente, fazer as três coisas que, à análise do proprietário, pareciam ser suas atividades preferidas: tomar café, ler e jogar conversa fora.

Quando acabava de ler o último volume adquirido, comprava imediatamente outro livro. E, daquela forma, a rotina se seguia. Além da companhia, Mamoru via no idoso, uma fonte de cultura e sempre ouvia com atenção suas histórias sobre a juventude, sobre sua participação na Primeira Grande Guerra. Minikui costumava erguer a cabeça, diante das falas irritantes e, depois, voltava a dormir em cima da almofada que Aiko punha no balcão.

Desviando um pouco o olhar do velho – que já voltava a ler – Aiko olhou para o gato, imaginando quanto tempo ele ainda resistiria. Minikui já não ouvia direito, não via direito e sequer andava direito. Às vezes, acabava fazendo suas necessidades deitado, como qualquer vovô sem controle; mas parecia se recusar a partir.

Provavelmente, por amor, já que ele havia perdido tudo na Guerra. Os olhos nublaram ao pensar em Nana, Shiro e nas meninas. Passara a vida toda sendo mimado e acompanhado por pessoas que o queriam bem. No momento, estava completamente sozinho e carente. Desejava amigos, abraços e companhia. Queria alguém para jantar com ele, para acompanhá-lo ao parque nas tardes ensolaradas de domingo. Porém, assim como aquele inverno que chegava naquela sexta-feira congelante de primeiro de dezembro, a vida de Mamoru era sem calor e triste.

O sino posto na porta para avisar a chegada de clientes, tirou-o da letargia. Viu um homem alto e bonito entrar. Já havia visto aquele cliente algumas vezes, ele costumava vir todas as sextas-feiras, comprava um clássico e depois ia embora, silenciosamente. Porém, naquele dia, parecia mais determinado. Pegou o primeiro livro que viu na prateleira e foi até o balcão.

— São 400 ienes — Mamoru disse, abrindo a caixa registradora.

O homem puxou o dinheiro do bolso e o estendeu. Parecia tremer e Aiko estranhou. Observou-o curioso, notando que ele jamais erguia a face em sua direção. Era atraente e jovem. Aparentava vinte e cinco anos, tinha os cabelos bem cortados e roupas novas. Não carecia de timidez para chamar a atenção, por isso sua atitude acanhada se tornava ainda mais fofa.

Entregou o recibo ao homem e o viu indo em direção à porta. Voltou à atenção ao gato, acariciando seu pelo bonito, quando percebeu que o rapaz voltava.

— Sou Arata — ele se apresentou.

Aiko sorriu.

— Aiko.

O outro pareceu nervoso.

— Eu sei. Mamoru Aiko, não é? Eu venho aqui há algum tempo.

Ele falava como se o dono da livraria não soubesse.

— Eu sempre tento ganhar coragem para falar com você — admitiu. — Mas é difícil...

— Ora, por quê? — Mamoru ficou curioso.

— Porque é bonito demais, Aiko-san.

Havia muito tempo que não ouvia um elogio e quase riu diante dele. Contudo, era nítido que o jovem a sua frente, numa adorável expressão constrangida, havia esboçado tais palavras com enorme dificuldade, vencendo muitas barreiras internas. Então, tudo que Mamoru fez foi agradecer.

— Eu... — o outro prosseguiu. — Hoje à noite passará um bom filme... — comentou. — Eu sei que você provavelmente já deve ter compromisso... Com certeza tem compromisso... Ah, o que estou dizendo, é claro que você jamais aceitaria assistir um filme comigo...

— Eu aceito — disse, de supetão.

O rapaz pareceu surpreso.

— É mesmo?

— Sim — afirmou. — Que horas virá me buscar?

O outro respirou fundo, como se não acreditasse que aquilo estava acontecendo.

— Às sete e meia, pode ser?

— Estarei aguardando.

Tão logo o jovem saiu pela porta, Aiko sorriu. Fazia tanto tempo que não saía de casa que ficou, imediatamente, ansioso. Sabia, é claro, que o outro podia ter se apaixonado por ele, mas... Ora, por que não? Ele tinha o direito de conhecer pessoas novas, criar novos laços. Um novo melhor amigo ou... um amor? Arata era bonito, e parecia ser boa pessoa.

— Parece que tem um novo amigo — o senhor Watanabe ergueu-se da cadeira e achegou-se a ele, sorrindo.

— Sim — Aiko confirmou. — Parece que sim.

— Fico feliz, Aiko-san — o velho lhe bateu levemente no braço. — Jovens precisam de companhia.

Quando o cliente foi embora, Mamoru voltou-se para seu velho gato.

— Veja, Minikui — comentou, amenizando as palavras. — Ele falava de companhia humana, fique certo.

O ronronar baixinho deu-lhe a certeza de que o seu velho amigo entendera.


***


Shin Sakamoto jogou a pequena bola de pano o mais longe que conseguiu. Percebeu cerca de dez cães correndo atrás dela e sorriu.

Na noite anterior, salvara um filhote preso em um bueiro, enquanto voltava de um bar. Com o novo morador, tinha cerca de trinta cães. A maioria que resgatava não resistia, afinal, já chegava até ele muito debilitada, mas Shin conseguia dar-lhes uma morte respeitosa em um abrigo quente, onde tinham comida e água à vontade. Os que sobreviviam, eram mantidos na enorme propriedade com ele. Mandou construir canis e contratou cerca de cinco novos empregados que trabalhavam para manter tudo limpo e entreter os animais.

Todos que o conheciam acreditaram que estava louco, parecia não se lembrarem de que ele sempre desejou a presença dos animais muito mais do que apreciava a de humanos. Aliás, sempre suportou homens e mulheres, não os manteve por perto por quaisquer motivos, além da pura necessidade. A exceção era apenas seus amigos mais íntimos.

— Senhor Sakamoto? — uma serva aproximou-se respeitosamente e curvou-se perante ele.

— Sim?

— Ele chegou.

Todas as sextas, à tarde, ele recebia uma visita especial. Sorriu e fez um aceno para que a mulher encaminhasse o visitante ao pátio, até ele.

Voltou a sua atenção para os cães e percebeu um miúdo aproximar-se, buscando afago. Aquele cachorro de pelos curtos e marrons havia sido encontrado morrendo, dias após o final da guerra. Fora o primeiro cão que salvara.

— Olá, Baka-san [3] .

O cão deitou-se de barriga para cima, e Shin coçou com vontade aquela parte em especial. Vendo o carinho do tutor, mais três cachorros se aproximaram, buscando afagos.

— Ahou [4] , Boke [5] — voltou-se para cadela — Busu [6] ... — cumprimentou-os, acariciando a face de cada um deles.

— É curioso, Sakamoto-san — o que chegava comentou. — Todos os seus animais têm um nome agressivo. Parece que os está xingando, quando os chama.

Shin gargalhou diante do fato.

— Soube que os americanos temem um ser de sua mitologia que provocou Deus e que foi expulso do paraíso. Dizem que esse “anjo caído” faz os humanos cometerem erros. Então, estou pensando seriamente em denominar Lúcifer meu próximo cachorro.

O homem riu, acompanhando-o na gargalhada.

— Nunca entenderei sua necessidade de causar choque.

— O mundo precisa de alguém que faça as pessoas acordarem para a merda de vida que levam. A maioria delas gosta de se iludir e se imaginar num conto de fadas, onde elas são as protagonistas, à espera do seu final feliz. Alguém precisa deixar claro que não existem finais felizes.

Depois, deixou os cachorros e passou a voltar para a própria casa. O homem o seguiu.

— Quer uma bebida? — ofereceu, assim que entraram.

— Um chá quente seria bom. O vento gelado está causando dor nos meus ossos.

— Isso porque é um velho, Watanabe-san — riu.

— Melhor envelhecer a morrer.

Shin gargalhou.

— É por isso que eu gosto de você. Jamais tenta parecer uma vítima, apesar das minhas palavras.

— E foi por isso que me tirou do jardim para trabalhar como espião?

— É claro. Estava na hora de você se aposentar da terra e ir passar as tardes sentado, lendo, bebendo café... Não é bem melhor?

— Não nego, meu senhor — curvou-se.

Shin o convidou com o gesto a sentar-se.

— E então? O que tem para mim?

— Um rapaz convidou Aiko-san para ir ao cinema hoje.

— Que horas?

— Sete e meia.

Shin sorriu.

— Mas que ótimo! Quanto tempo fazia que não nos divertíamos?

— O último que o convidou para sair foi há um ano e meio — pareceu recordar.

— Não foi aquele que lhe quebrei um dente?

— Acredito que sim.

— Arrependo-me daquilo. Até paguei o dentista para ele depois. O coitado, até hoje, acha que mexeu com alguém da Yakuza [7] .

Watanabe ficou em silêncio, assim que a serva chegou com uma bandeja. As duas xícaras de chá pareciam fumegantes, e o senhor sentiu a boca salivar diante da bebida verde de ótima qualidade. Depois, voltou a atenção ao seu patrão e o percebeu tranquilo a bebericar.

Gostava daquele homem. Não era de palavras falsas, não queria agradar ninguém. Falava com ele, um ex-jardineiro velho, com a mesma naturalidade que falaria ao presidente americano. Talvez aquela fosse a melhor — ou pior — característica de Sakamoto: para ele, todas as pessoas eram o cocô de Deus.

— Falando em arrependimentos — o membro Imperial voltou a falar —, arrependo-me de poucas coisas nessa vida. Uma delas é de não ter dado a Mamoru a importância que ele merecia.

— Era uma época diferente — Watanabe interveio. — Outros valores...

— Eu já cagava para a sociedade naquela época, então não é desculpa — resmungou.

Percebendo que Shin entrava em um mundo de comiseração, o outro levantou-se, pediu licença e saiu.


***


— Cacete! — Shin resmungou. — Está frio pra caramba! — disse ao homem, enquanto esfregava uma mão contra a outra.

Camuflados pela escuridão de um beco, ambos observavam a rua da casa de Mamoru. Eram sete horas da noite, mas Shin sabia que qualquer homem que estivesse interessado em Aiko jamais seria pontual. Grande parte deles costumava ficar nervoso e ansioso, e sempre chegavam antes.

Seu pensamento foi certeiro, pois segundos depois, Watanabe resmungou ao seu lado. Shin olhou para o velho e o percebeu apontando uma pessoa na rua.

— É ele.

Tão logo confirmou, como combinado, saiu na direção oposta, sumindo das vistas.

Shin, ao contrário, foi até o rapaz. Caminhou em passos cambaleantes, como se estivesse bêbado. Depois, esbarrou nele, segurando-se no corpo jovem.

— Me desculpe — disse.

— Não foi nada — o outro quis segurá-lo, para que não caísse.

Era bonzinho, pelo jeito. Não daqueles bonzinhos enjoativos como Aiko, mas o tipo de pessoa capaz de segurar outra, numa gentileza sem retribuição. Porém, lamentavelmente, piedade não era uma das qualidades de Shin Sakamoto.

— Venha comigo — falou firme, demonstrando que não precisava de ajuda.

O rapaz sentiu algo contra o estômago e olhou para baixo. Percebeu o tom metálico de um revólver.

— Por favor...

— Se você não me acompanhar quietinho, eu vou te meter bala no meio da rua.

Diante disso, o outro o seguiu. Voltaram para o beco escuro, onde Shin atirou o rapaz contra uma parede.

— Eu tenho dinheiro — ele fez sinal pedindo autorização para mexer nos bolsos.

— Não é um assalto, seu idiota — Shin riu. — Apenas um aviso. Soube que você andou convidando o meu amante para sair...

— Aiko-san?

Diante de uma confirmação e com a pistola apontada para a cabeça, tentou se explicar:

— Eu não sabia que ele tinha...

— Ora, eu sei — Shin o interrompeu. — E esse é o único motivo pelo qual você ainda não está morto. — baixou a pistola. — Você é jovem e bonito, não merece morrer, apenas ser avisado. Então, vamos combinar: volte para aqueles bares e festas de bichas que você frequenta e diga a todos eles que o dono da livraria tem um amante próprio. É bom já deixar de sobreaviso para proteger seus amigos, não é?

— Sim, senhor.

— Que ótimo! — Shin adorou a concordância imediata. — Sabia que o último que tentou sair com ele não aceitou assim tão fácil? Tive que quebrá-lo inteiro. Não sou uma má pessoa, odeio ter que machucar os outros — deu os ombros. — Você é esperto.

— Obrigado, senhor — parecia prestes a chorar. — Posso ir?

Diante da aquiescência de Sakamoto, o outro saiu correndo. Tão logo sumiu, uma risada baixa surgiu.

— Ele quase cagou nas calças, Sakamoto-san — Watanabe comentou.

— É um menino. É natural que tenha algumas pedras no caminho, antes de encontrar a pessoa certa.

— Que tenha boa sorte — o velho comentou, fazendo um gesto gentil com as mãos.

— Sim, que encontre sua pessoa certa e que tire os olhos da minha — brincou.

Depois disso, ambos seguiram até um bordel, a fim de beberem a noite afortunada.


***


Aiko Mamoru se encarou no espelho. Estava bonito, apesar do tempo que havia se passado. Os cabelos nunca mais tiveram o comprimento dos que ostentava na época de cortesão, mas haviam crescido após a guerra e já chegavam abaixo do ombro. Permaneciam negros como carvão, apesar de ele já ter duas rugas na pele delicada como pêssego.

Assim que pensou naquilo, lembrou-se de Sakamoto. Havia visto-o duas semanas antes, embaixo da sua janela. Percebeu o grisalho discreto em algumas mechas, apesar de ambos terem apenas trinta e dois anos.

Espantando os pensamentos, ele afastou-se do espelho e buscou o casaco do roupeiro. Já estava quase na hora combinada de Arata chegar e não queria que o outro achasse que ele não estava interessado.

Desceu à parte inferior da casa e ficou na livraria, à espera do novo amigo.

Contudo, o tempo passou amargo e cruel, e o rapaz não deu sinal de vida. Às oito e meia, Mamoru desligou as luzes e subiu para o quarto. Tirou a roupa, dizendo a si mesmo que possivelmente ele tivera um imprevisto, assim como os outros. Era melhor do que admitir que havia algo errado consigo ou que estava destinado à solidão. Afinal, naqueles anos todos, ele já havia sido convidado para sair outras cinco vezes e em todas fora deixado a ver navios.

Diferente das outras vezes, porém, não ficou tão triste. Tirou a roupa e deitou-se na cama. O gato velho veio esgueirar-se para as cobertas, ao seu lado. E com aquele ronronar tranquilo, ele logo dormiu.


***


Ryo Satoshi correu em direção à pequena padaria. Entrou, sacudindo de leve o casaco, parecendo ansioso para espantar o frio intenso.

Era o primeiro sábado de dezembro, e a manhã surgiu um tanto melancólica. Nuvens grossas se formavam no céu, mas ele não sabia se era a chuva que vinha, ou o próprio frio que formara uma barreira, impedindo o sol.

— Por favor, chá quente — pediu à senhora que o atendeu no balcão.

A bebida logo chegou e ele a bebeu com sofreguidão.

— É novo por aqui — ela comentou, puxando assunto. — O que o traz a Kibou?

Ryo sorriu. Sua vontade era responder simplesmente: “ Vim em busca do meu amor ”. Contudo, sabia que não havia certezas naquela viagem.

Havia saído de Tóquio no dia seguinte ao que conhecera o velho viajante. Batera na porta do quarto de Tadao às quatro e meia da manhã e lhe contara, emocionado, a incrível história. Entregou-lhe uma procuração para que o servo pudesse tomar decisões em seu lugar, enquanto viajava. Também disse-lhe o nome e localização de Nobu e pediu que arrumasse um bom lugar em que o velho pudesse passar o resto de seus dias.

Depois, entrou no carro e partiu. A maior parte das estradas permanecia em reforma, e ele passou por alguns apertos, mas conseguiu chegar em Kyoto poucos dias depois. Alugou um quarto de hotel, tomou um bom banho e tentou dormir uma noite, para que tivesse forças de enfrentar o reencontro com Shiromiya. Não conseguiu. Então, naquela manhã de sábado, ele partiu em direção ao vilarejo. Meia hora depois, chegava à padaria.

— Eu perdi o contato com um amigo na Guerra — explicou a ela. — Porém, conheci uma pessoa que me disse que talvez ele esteja aqui.

— Após a guerra, recebemos cerca de cinco famílias novas. Todas ganharam um pedaço de terra dos americanos. Como se chama seu amigo?

Ryo pediu mais uma xícara de chá, tentando desconversar. A verdade é que não sabia se devia ou não deixar que Shiro — se fosse realmente o seu Shiro! — saber que estava ali. Kazue havia ido embora de sua casa, após a noite de seu noivado. Então, era provável que ele descobrira que Ryo iria se casar.

— Com certeza foi esse o motivo... — Ryo resmungou para si mesmo.

A mulher voltou com a xícara cheia. Ryo a pegou na mão e mudou o assunto:

— A garagem aqui ao lado é sua?

— Sim, eu tinha um carro, mas ele foi destruído quando bombardearam Kibou.

Ryo assentiu.

— Poderia me alugar a garagem por alguns dias? Não quero deixar meu carro na rua.

A mulher pareceu meditar, mas diante da nota alta colocada em cima da mesa, ela logo concordou.

— E a senhora teria um quarto? Talvez, eu não o use — ele avisou. — Mas, posso deixar pago.

Mais uma vez, ela concordou.

— De qualquer forma, estará à disposição — falou, solícita.

Ryo, então, entregou as chaves do carro a ela. A mulher chamou o marido, que conversou um pouco com Ryo, antes de ir estacionar o veículo.

Depois, Satoshi foi até a janela e ficou a observar aquela pequena cidade. Diferente das cidades tradicionais, onde as casas se amontoavam, Kibou era bastante interiorana. As moradias ficavam cerca de cem metros distantes uma da outra, e não havia muitas pessoas à vista. Como haviam lhe avisado em Kyoto, aquela era uma cidade agrícola.

Onde ele estava, possivelmente no centro, além da padaria, havia uma mercearia, um posto de saúde e um prédio que parecia ser a administração pública. Adiante, havia uma escola pequena, onde se podia avistar um senhor idoso a arrumar as flores.

— Estou lhe dizendo... — ouviu uma voz ranzinza de uma mulher.

Girou o rosto e percebeu ser uma senhora idosa que dialogava com alguém. De onde estava, o rosto da outra pessoa não era visível, pois estava fora do ângulo da janela, então parecia que a velha falava sozinha.

— Só consigo Udon [8] de qualidade usando os ovos das suas galinhas.

Repentinamente, uma gargalhada adorável invadiu os ouvidos de Ryo, fazendo com que todo o seu corpo entrasse em ebulição. Por alguns instantes, sentiu que o próprio ar faltou, e o coração parou de bater.

Ele reconheceria aquele timbre em qualquer lugar...

Quis correr naquela direção, desejou ardentemente mexer-se, encarar o rosto daquele que ele amava com todo o seu coração, mas o corpo paralisou no lugar.

— Deve ser porque as galinhas lá são tratadas com amor.

A velha e o homem começaram a caminhar, e Ryo pôde, enfim, visualizar o rosto. Lágrimas espessas surgiram em seus olhos sem avisos, enquanto a boca secava e ele segurava-se na janela para não cair.

Era Shiro... Seu Shiro... Estava um pouco diferente, parecia maior... Mas ainda... Seu Shiro.

Viu-o retirando o casaco, apesar do frio enorme. Percebeu o porquê do tamanho. Ele tinha músculos nos braços e o corpo estava mais... masculino. Trazia nas mãos um machado, e pela forma como suava, Ryo sabia que ele acabava de sair do labor.

— Quando queremos carne, eu compro as galinhas já mortas do senhor Urashi. — Shiromiya prosseguiu contando, alheio ao olhar que o seguia. — Jamais teria coragem de matar as minhas...

— Mas são animais — a velha estranhou.

— Eu sei. Mas graças a elas, sempre tenho ovos de manhã. Por isso, sou-lhes muito grato.

A mulher concordou e mudou de assunto.

— Muito obrigada por ter me ajudado com o telhado.

— Imagine — Shiro pareceu tímido. — Se chover novamente dentro de casa, me avise, que eu vou lá e cubro para a senhora, de novo.

— Mas preciso lhe pagar — ela parecia incerta.

— Um pão quentinho de tarde será mais que o suficiente.

A velha sorriu, apertando suas mãos.

— Muito obrigada — curvou-se.

— Não se curve, vovó — impediu-a. — Sua coluna — apontou. — Agora, preciso ir para o trabalho.

— É mesmo, você ajuda nos finais de semana na propriedade de Urashi-san, né?

— Sim, graças a ele, tenho dinheiro para comprar os...

O restante da voz se perdeu com os passos que se afastavam.

Sentindo todo o corpo cambalear de emoção, enfim, Ryo conseguiu se mexer. Largando a xícara em cima do balcão, ele saiu correndo, atrás do homem da sua vida.

 

Capítulo 05


O ar gelado balançou seus cabelos, fazendo a franja raspar de forma incômoda na sua testa. Então, ele a empurrou para baixo do chapéu, e voltou a lançar, com força, a foice sobre os pés de cidreira.

Normalmente, trabalhava nas plantações de arroz, mas havia recebido um convite inesperado do senhor Urashi para ajudá-lo na colheita da cidreira. Além do dinheiro muito bem-vindo, Shiromiya viu no trabalho uma ótima oportunidade, uma vez que o patrão havia conseguido se tornar o fornecedor oficial da planta em uma fábrica de chás a oeste de Kyoto.

Daquela forma, os cuidados com os chás redobraram e Urashi o retirou das áreas alagadas, para as encostas das montanhas, promovendo um avanço significativo para a região e, consequentemente, o aumento de mão de obra. Tal fato poderia significar um emprego certo não só para Shiro como para muitos homens que, assim como ele, precisavam trabalhar.

— Como está Miya? — o patrão apareceu ao seu lado sorrindo e estendendo-lhe uma garrafa com água.

Shiro curvou-se discretamente, antes de aceitar a bebida.

— Está bem, graças aos remédios — tomou um gole da água. — Muito obrigado pelo trabalho.

— Ora, não há o que agradecer. Eu precisava de ajuda nas colheitas e você precisava de um dinheiro extra pra cuidar da filha. É uma troca entre vizinhos.

Quando Miya desmaiou pela primeira vez, todas as pessoas da pequena Kibou manifestaram solidariedade. O prefeito conseguiu um carro para levá-la a Kyoto, e o dono da mercearia lhe deu dinheiro para que ele pagasse um médico. Quando voltou, já com a notícia de que a seriedade da doença da filha custaria muito mais do que ele podia arcar com a venda dos ovos, dos milhos e tomates que plantava na sua pequena propriedade, as pessoas passaram a ajudá-lo, fornecendo-lhe trabalho. Urashi o pagava para ajudar na lavoura, e o prefeito deu-lhe as chaves para limpar a prefeitura à noite, duas vezes na semana. Aquele dinheiro extra fez suas contas ficarem em dia e os remédios serem comprados sem dever nada a ninguém.

Porém, tinha um preço. Não havia descansos, nenhuma folga. Era um luta diária que o obrigava a levantar antes mesmo de o sol raiar e ir dormir tão logo lavasse a louça do jantar.

— Precisa de uma esposa, Shiromiya-san — Urashi comentou, ajudando-o a erguer as folhas largas de cidreira que punha em cima de um saco, após cortá-las. — Miya precisa de uma mãe.

O outro desconversou, indiferente.

— Estou dando conta...

— Mas...

— Sei que é difícil explicar, mas Miya e eu sobrevivemos até agora. Vamos prosseguir juntos e tudo dará certo.

O mais velho assentiu.

— Eu entendo, apenas... É um pai maravilhoso, apesar da tão pouca idade. Não vejo nenhum outro homem nessa cidade que ama tanto sua prole. Somente acho que talvez pudesse se dar a chance de ser feliz, ter outros filhos...

— Uma só já me dá trabalho demais — riu.

Repentinamente, seu pescoço queimou. Girou a face à procura de algo.

— O que foi? — Urashi olhou na mesma direção.

— Nada. Apenas, pareceu-me que era observado.

O homem ficou assustado.

— Nem me fale uma coisa dessas. Precisamos acender incensos para nossos ancestrais. Houve muita morte nos últimos anos, e nossa amada terra está lavada em sangue.

Shiromiya, mais cético, acreditava que aquela sensação estranha que o acompanhara durante todo o dia tinha outras causas: rumores de que grupos radicais se formavam nas montanhas, a fim de emboscar os americanos, prosperavam ultimamente. Repentinamente, temeu que alguém o houvesse visto com Daniel naquele bar, ou que houvessem descoberto que Saito trabalhava para os estrangeiros.

— Vai chover — Urashi comentou, mudando a pauta. — Vamos terminar mais cedo por hoje.

— O senhor é que sabe — concordou.

Então, empurrou o chapéu de palha para trás. Preso por uma corda que resvalou para o pescoço, o chapéu caiu nas suas costas. Sua postura ficou mais aliviada e ele moveu-se para o monte verde. Ajudou a recolher o chá e a limpar a área. Pôs sua foice e o seu machado na cinta que ele mesmo havia feito para carregar os instrumentos e foi andando vagarosamente em direção à estrada.

— Até amanhã — disse ao chefe, ao seu despedir.

O homem acenou, feliz. E aquele gesto alegrou Shiromiya também.

Apesar de tudo, vivia um bom momento. Era admirado pelas pessoas daquela cidade, exemplo de homem e pai. Tinha orgulho do serviço que fazia, e ninguém o pisaria por qualquer motivo obscuro do passado. Ali, os homens o olhavam com respeito, não com desejo ou abuso. Era apenas mais uma pessoa tentando sobreviver.

O vento soprou mais forte e ele vestiu o casaco. Apesar de ser um dia comum, adorava as noites de sábado porque eram nelas que Miya e ele sentavam-se à mesa e ele a via fazendo a lição escolar. E ela sempre lhe ensinava alguma coisa, algum kanji [9] , e então eles passavam a noite criando frases a partir daquela palavra. Era um mundo novo para Shiro e ele era tremendamente grato em compartilhá-lo com a filha.

Repentinamente, ouviu passos nas folhas secas. Girou o rosto, não vendo ninguém na estrada. O vento soprou mais forte e ele pensou que poderia ter se enganado, mas sabia igualmente que não costumava errar.

— Quem está aí? — perguntou alto, tirando a foice da cintura. — É melhor aparecer, porque eu não estou para brincadeira!

Respirou fundo, buscando a calma. Sabia que o risco de ser considerado um traidor por um daqueles grupos que se alastravam como moscas, era enorme. Amigo de Jiro e recebedor de terras na Reforma Agrária, tivera sorte com a instalação do novo governo. Contudo, não era justo ser atacado por isso. Nunca ajudou os americanos, apenas usufruiu de um direito dado a uma parcela da população. E não queria se arriscar. O que seria de Miya, caso algo viesse a acontecer com ele?

— Apareça — ordenou, novamente. — Ou eu vou atrás de você!

Repentinamente, ouviu os passos vindos do lado direito. A pessoa parecia estar temerosa, mas o formato de seu corpo surgiu, atrás das árvores, antes de ela andar vagarosamente até a estrada. Parou diante de Shiromiya, que sentiu todo o ar faltar, enquanto o coração palpitava com força no peito.

Ryo Satoshi...

Não o via há mais de cinco anos, mas era como se tivesse visto-o na noite anterior. Não havia no ex-amante nenhuma diferença significativa. Talvez o cabelo um pouco mais comprido e algumas rugas leves nos olhos... Ainda se vestia bem, socialmente, como se estivesse indo para uma importante reunião de negócios. A única diferença que chamava a atenção eram os olhos emocionados sobre si.

Ryo deu dois passos em sua direção, e Shiro recuou dois.

— O que quer?

A frase saiu carregada de dor e ele recriminou-se pela fraqueza, afinal, já havia se passado muito tempo, desde que descobrira que seu amor era compensado por desprezo. Depois de Ryo, passou por situações difíceis, mas sobreviveu. Naquele momento, sabia o que significava ser amado. Encontrou em Miya o que passou a vida inteira a buscar e jamais se permitiria receber o resto de sentimento de outra pessoa novamente.

— Shiro... — o murmuro do outro o arrepiou.

Aquela voz... A voz que o chamava, quando chegava ao êxtase da paixão. A voz que o embalava em noites frias, mas também que o massacrara ao declarar, o que de fato, o dono dela nutria por ele.

— O que está fazendo aqui? — questionou, cada vez mais nervoso.

Repentinamente, olhou para o lado, temeroso de que alguém surgisse e visse a cena. Não queria perder o conceito que conquistara, não queria que as pessoas soubessem o que ele, um dia, fora obrigado a fazer na infância.

— Eu o procurei por todo o país — Ryo explicou, a voz engasgada, como se estivesse prestes a chorar. — Eu pranteei sua morte...

— Morte? — as sobrancelhas se uniram, em dúvida.

— Você desapareceu. Contratei detetives, visitei inúmeras cidades. Até que...

— Olha — interrompeu-o. — Não pedi para você me procurar, então não entendo por que o fez. Agora, pode dizer de uma vez o que você quer? Eu tenho mais o que fazer.

E era verdadeiro. Miya tomava os medicamentos no início da noite, e a luz do sol já estava dando adeus. Além disso, ele queria estar em casa antes da chuva.

— Eu te amo.

Aquela confissão foi uma punhalada cruel no seu coração. Ele sentiu as pernas tremerem e lágrimas surgirem nos olhos. Lembrou-se vagamente de Ryo dizendo que estava se apaixonando por ele, ainda na Casa Ai. Então, repentinamente, aquele dia maravilhoso, transformou-se em pesadelo naquela manhã de julho de 1945, quando ouviu o comerciante rindo para Tadao.

“Ele é só um prostituto analfabeto”.

Engoliu o princípio de choro, dizendo a si mesmo que tudo era parte do passado. Afinal, havia vencido aquele amor. Escondera Ryo dentro de si e lutava desesperadamente para não trazê-lo à tona.

— Foi bom revê-lo, Ryo-san. Tenha um bom dia.

Deu as costas e prosseguiu a caminhar. Repentinamente, percebeu que o outro o seguia. Recusou-se a parar.

— Penso em você todos os segundos, desde que me deixou.

Apressou o passo.

— Sei que ficou magoado, mas...

— Olhe — parou, repentinamente, girando o corpo em direção a Satoshi. — Está enganado. Isso, para mim, acabou. Acha que eu tenho tempo de ficar me amargurando com o que já não tem mais nenhuma importância?

Ryo estendeu a mão para tocá-lo, mas ele recuou novamente, enquanto seus olhos chisparam, ameaçadores. Era como um animal acuado dizendo: “ não me toque ”. Ryo respeitou.

— Volte para mim — pediu.

— Você está louco? — segurou-se para não gritar. — Não nos vemos há anos, e ainda acha que tudo continua como antes? — Fez menção de continuar a caminhar, mas antes avisou: — Volte por onde veio! Não ouse interferir na minha vida, ela é muito cara para mim. Se eu souber que andou falando a meu respeito por aqui, eu o mato — ergueu a foice e apontou para Ryo. — Eu lutei muito para ter paz, e você não destruirá isso.

— Jamais...

Shiro então voltou a andar. Seu corpo inteiro tremia e ele segurava uma louca necessidade de chorar. Subitamente, não era mais o homem corajoso que enfrentava sozinho uma vida difícil para proteger a filha. Voltava a ser o mesmo garoto órfão, vendido por arroz, o mesmo dançarino de bordel que fora humilhado pelo homem que amava.

Como Ryo soubera dele? Pensou que talvez pudesse ter sido por Saito, mas Jiro havia partido naquela manhã de Kyoto, assim, não haveria tempo de Ryo descobrir sobre ele e surgir diante de seus olhos.

Chegou ao portão de casa e o abriu rapidamente, ansiando para entrar logo, tomar um banho, fingir que aquilo não havia acontecido. Contudo, ao voltar-se, deu de cara com Ryo.

Como ele se atrevera a segui-lo?

— Você não me ouviu?

— Eu te amo — o outro parecia em transe. — Só quero ficar com você, quero provar que meus sentimentos são sinceros.

O portão era baixo, ficava na altura da cintura de Shiro, então, quando ele o fechou, bateu na barriga do comerciante.

— Não tem vergonha na cara? Você se casou, não é? Como acha que sua esposa se sentiria em saber que você está atrás de um homem? Não tem filhos? Não honra sua família?

— Eu...

Subitamente, Ryo ficou em silêncio. Sua atenção voltou-se para a entrada da casa de Shiromiya. O outro estranhou a postura e volveu naquela direção. Viu a filha a observá-los, com um sorriso amistoso nos lábios.

— Miya! — gritou, apontando para a casa. — Para dentro!

Ryo abriu a boca, embasbacado.

— Miya? — as lágrimas escaparam dos olhos.

Shiromiya, contudo, sequer o observava. A garota não se mexeu, e ele se irritou.

— Para dentro, AGORA! — ralhou alto, e então ela entrou rapidamente e fechou a porta.

Assim, Shiro voltou-se para o homem. Ficou surpreso ao vê-lo chorando, mas fingiu ignorar.

— Onde você a encontrou? — Satoshi perguntou, rindo.

Ele chorava e ria ao mesmo tempo? Era inacreditável!

— Você perdeu o juízo?

— Onde? – insistiu.

— Sapporo — foi sincero. — Ela é minha filha, eu tenho o registro.

— Que mentira disse aos americanos? Que havia perdido os documentos na guerra?

— Não é problema seu — rugiu.

Ryo quis se adiantar, negar a intenção das palavras, mas o portão o impediu.

— Não queria ofendê-lo — sorriu, no entanto, secando as lágrimas. — Apenas... eu achei que ela...

— Ryo-san, isso já se prolongou demais — Shiro o impediu de se aproximar, afastando-se. — Não é bem-vindo à minha casa. Então, vá embora e nos deixe em paz.

Ryo permaneceu parado no mesmo lugar.

— Não posso viver sem você — disse, sincero.

— Então se mate — finalizou.

À vista disso, caminhou reto até sua casa, batendo a porta após entrar.


***


Kazue foi direto até a lamparina. Acendeu-a e voltou-se para a filha, que o encarava, curiosa. Shiro girou o corpo, ficando de costas para ela. Não queria que a pequena notasse o quanto estava abalado. Ainda não podia acreditar naquele reencontro, nas palavras falsas pronunciadas como se fossem sinceras.

Amor?

O que ele pretendia, mentindo daquela forma? Ainda o tinha em tão baixa estima ao ponto de acreditar que ele cairia novamente em seu jogo de sedução? Estremeceu diante dos questionamentos, o coração torcendo para que Ryo fosse embora, assim que percebesse que ele não se prostituía. Afinal, havia aprendido por experiência própria, que a única coisa que homens poderosos como o comerciante queriam de pessoas como ele, era o corpo.

— Vai chover — comentou, lutando bravamente para que as lágrimas não inundassem seu semblante. — Vou recolher as galinhas.

— Já as pus no galinheiro, papa — o chamou carinhosamente, como se quisesse demonstrar compreensão. — E já recolhi as roupas que estendeu no varal ontem. Depois, eu as dobrei.

Shiromiya sorriu diante da ajuda. Não queria que Miya perdesse a infância com trabalho, como ele. Desejava ardentemente que ela tivesse tempo para brincar, para ler, para estudar e aproveitar aqueles tempos importantes. Mas aquela pequena atitude havia sido muito benéfica para ele, que estava exausto fisicamente, do labor de todo o dia e psicologicamente, depois do encontro com aquele que um dia havia amado.

— Obrigado — disse, sorrindo. — Comece a sua lição, eu vou tomar banho, está bem?

Ficou firme diante de seu olhar. Só desabou quando a porta do seu pequeno banheiro se fechou e ele pode resvalar no chão, enquanto o choro o tomava. Mordeu os lábios, impedindo qualquer som, e reforçou apertando os dedos calejados sobre a boca.

Enquanto o corpo sacudia em soluços, as imagens de sua vida em Tóquio e Sapporo cruzavam sua mente. Por Deus, havia sido tão feliz e tão infeliz lá, ao mesmo tempo. Ryo o havia mostrado o céu e, depois, o rebaixou ao inferno. Havia lhe mostrado sobre a delicadeza dos seus sentimentos e, depois, o devassou com sua podridão.

Permitiu-se prantear por alguns minutos até recuperar o autocontrole, dizendo a si mesmo que havia vencido, que tinha uma vida e que não sentia a menor falta do toque e da paixão do outro. Mas sabia, é claro, que mentia. Tinha total consciência que não se passara um único dia desde que o abandonara, que não pensara em Ryo, mesmo recriminando a si mesmo por ter sido tão tolo, acreditando que poderia ter sido possível um relacionamento entre eles.

Depois, ergueu-se e foi se lavar. Embaixo da água quente, ele disse a si mesmo várias vezes que não tinha mais tempo para chorar por amor. Não podia falhar novamente, nem ouvir aquela conversa fiada de Satoshi, pois não era mais sozinho e suas responsabilidades incluíam uma criança doente.

Saiu do banheiro, secando os cabelos. À mesa, a filha parecia entretida nos livros. Após estender a toalha em uma cadeira no quarto, ele voltou à cozinha e pôs-se a mexer nas panelas. O som ao fundo deixou claro que começava a chover com força.

— Vamos comer ensopado de novo — avisou a ela.

A garota não respondeu, e ele a observou.

— Ouviu, Miya?

Ela sorriu.

— O que foi? — ficou curioso.

— Nada — desconversou. — Terminei minha lição.

— Mas sempre a fizemos juntos...

— Parece cansado, papa, então eu a fiz sozinha — explicou.

Shiromiya voltou-se para a sopa. Havia feito-a ao meio dia e só a estava esquentado. O estômago doeu e ele sorriu. Enfim, as coisas estavam como sempre... Com certeza, quando acordasse na manhã seguinte, encararia toda a situação como um simples pesadelo.

— Você tomou os remédios? — repentinamente, se lembrou de que não os havia dado a ela.

— Sim, papa. Eu mesma os peguei. Não sou mais uma criança.

Sorriu diante da voz irritada.

— É claro que não — concordou. — É uma mocinha responsável.

Girou em direção a ela, a fim de lhe indagar como foi o dia, porém, viu a mesa vazia. Correu os olhos pelo pequeno ambiente e a percebeu perto da porta, a olhar para fora.

— O que está fazendo?

— O moço continua lá... — ela explicou.

Shiromiya ficou espantado. Então, seguiu até a porta e olhou para fora.

Ryo Satoshi permanecia parado no mesmo lugar em que o havia deixado, o olhar a encarar a casa de madeira, o corpo ensopado pela chuva.

— Isso não é problema nosso — ele puxou a criança e trancou a porta.

— Mas ele vai ficar doente.

— É adulto, sabe que pode adoecer se ficar ali — foi firme. — Vamos jantar.

Miya o encarava com os olhos transbordantes de compaixão.

— Ele é seu amigo, não é? Eu vi a forma como o olhava. Está zangado com ele?

— Ryo-san errou muito comigo, Miya — contou. — E eu não estou disposto a abrir espaço na minha vida para ele novamente.

— Só tem lembranças ruins? — insistiu. — Nada que o faria abrir a porta para uma pessoa que está na chuva?

— Desde quando você é tão preocupada com pessoas?

— Você não respondeu à minha pergunta.

Mas que criança irascível!

— Miya...

Naquele momento, um relâmpago clareou sua casa.

— Não somos tão pobres que não podemos oferecer um prato de sopa — ela parecia prestes a chorar. — Está frio e parece que ele não irá embora.

— Se eu abrir aquela porta, poderei me arrepender para o resto da vida.

— Se não abrir, também.

Oito anos! Ela tinha oito anos! Por Deus, com oito anos ele jamais se atreveria a debater com um adulto!

— Miya... — tentou.

As lágrimas da pequena vieram e, enfim, ele percebeu que não poderia fugir. Contudo, estranhamente, assim que buscou o guarda-chuva e saiu, o choro tornou-se um sorriso. Miya definitivamente não era normal.


***


Ryo permaneceu parado no mesmo lugar, desde que a porta pela qual Shiromiya entrara se fechou. Mesmo que desejasse sair daquele vento gelado, prenúncio de tempestade, ele não conseguira se mover. Amava muito Kazue, mais do que imaginara, um dia, poder amar alguém. E o havia encontrado. Sabia que a reação de Shiro havia sido natural diante do passado que tiveram, mas não iria desistir.

Por Kami-sama, ele lutaria enquanto respirasse para reaver sua família.

E Miya... Pelos céus... Miya...

Todos os erros cometidos em nome da filha que ele acreditou que jamais veria. Quantas noites chorou, culpando-se por tê-la matado antes mesmo de nascer? Contudo, ali estava ela, com o mesmo olhar audacioso, a mesma postura ereta de quem sempre tem uma opinião formada sobre tudo. Não ouviu sua voz, mas sabia que era gentil e firme. Sabia que ela era tudo que sempre ansiou.

Não estava sozinho... tinha uma família. Uma família que não o queria, mas ele lutaria por ela.

Quando a chuva começou, sentiu o corpo gelar. As gotas grossas misturaram-se com suas lágrimas incontidas. Em segundos, estava empapado. Poderia morrer de frio ali, mas não se importava... nada importava.

Porém, a porta abriu. Ele percebeu Shiromiya voltando para perto de si. Queria agarrá-lo, beijá-lo, dizer um milhão de vezes o quanto o amava. Queria abraçar a filha e o seu amor, mimá-los e, após pôr Miya para dormir, deitar-se com Shiromiya e extravasar toda a sua saudade no corpo adorado do outro.

— Não estou fazendo isso por você — Shiro avisou, abrindo o portão. — Miya está com pena. Ela é criança e não entende que você não é obrigado a ficar aí, como um imbecil, na frente da minha casa.

Ryo nada disse, enquanto o seguia como um cachorro. Entrou na pequena residência e ficou espantado com sua aparência simples. Havia apenas um cômodo, com duas portas à esquerda que pareciam levar aos quartos. No lado direito, outra porta dava para o banheiro. No fundo, um fogão e um armário. No centro, uma mesa. Diante dela, a menina que o encarava sorrindo.

Sentiu as lágrimas voltando e sorriu de volta.

— Olá Miya... — cumprimentou-a, querendo dizer muito mais coisas. Todavia, sabia que não podia.

Sentiu um empurrão na barriga. Olhou para baixo e viu uma toalha.

— Vá se lavar — Kazue mandou. — O banheiro não é luxuoso como os seus, mas poderá tomar banho.

Ryo o seguiu, enquanto ele abria a porta para um pequeno compartimento de alvenaria, piso bruto e sem qualquer luxo. Shiro saiu, deixando-o sozinho, mas retornou em breve, com uma panela de água quente que pôs dentro de uma espécie de balde de lata pendurado na parede, que servia para chuveiro.

— É só puxar essa corda que a água sai — explicou. — Não demore — pediu. — A comida está pronta.

Assim que Shiromiya fez menção de sair novamente, Ryo o segurou no braço. O arrepio pareceu um choque elétrico e atingiu a ambos. Porém, a reação entre eles foi diferente.

— Nunca mais me toque — o sussurro ameaçador do ex-dançarino da Casa Ai ecoou em Ryo. — Se acha que estou à venda, além de idiota, está cego. Eu não estava me prostituindo quando fui com você para Sapporo, independente do que pensa. Era um menino tolo e acreditei nas suas boas intenções. Acreditei que era meu amigo...

Shiro sentiu que iria chorar, mas ele não queria dar esse gosto para Satoshi, então, puxou novamente o braço e saiu, pisando firme.

Quando a porta fechou, Ryo recostou-se nela e sorriu.

— Ele ainda me ama...

 

Capítulo 06


Ryo achegou-se à mesa. Ele parecia temeroso, mas sentou-se diante da filha que o observava com extrema alegria. Shiromiya pareceu sumir por alguns instantes, mas voltou em seguida, saindo de um dos quartos. Depois, ele foi até o fogão a lenha, e pegou a panela. Levou-a até a mesa baixa e a pôs diante do olhar amistoso de Satoshi.

Ali, à luz fraca da lamparina, ele admirou as feições do seu amor atentamente. Kazue estava ainda mais bonito do que se lembrava. Havia nele uma força que não existia quando o conhecera. A forma como ele pegou o prato de Miya e serviu, fê-lo entender que foi a paternidade que deu ao rapaz aquela expressão de garra e determinação que o tornava ainda mais atraente.

— Eu não quero — ouviu, pela primeira vez, a voz da criança.

Tremeu diante dela. Era exatamente como se lembrava das visões passadas.

— Você vai comer o repolho — Shiro foi firme.

— Não pode me obrigar — ela retrucou, ainda mais decidida.

— Não, não posso. Mas posso ficar com você sentado à mesa até que o dia amanheça, aguardando que coma o repolho!

Então ele se levantou, parecendo ir buscar alguma coisa no fogão. Naquele rápido momento, Ryo observou a menina se erguendo e colocando o repolho no seu prato. Entendendo a intenção, o recém-chegado cobriu o vegetal com o caldo.

Miya piscou para ele, e então Satoshi soube que haviam criado um vínculo instantâneo.

Shiromiya voltou para a mesa com um prato cheio de milhos cozidos. Encarou a filha e depois pôs os olhos no prato dela.

— Cadê seu repolho?

— Eu comi.

— Tão rápido? — parecia duvidar.

A criança assentiu, e Shiromiya soube imediatamente que estava mentindo. Contudo, a voz do outro lado da mesa o contradisse.

— Ela comeu, eu vi.

Fulminou Ryo com os olhos, que não pareceu se importar, já que ria como um idiota para a criança. Então, simplesmente serviu-se também. Em silêncio, comeram por alguns minutos, até que ouviu Ryo resmungar à sua frente.

— Você continua cozinhando bem...

Ignorou o elogio, mas não resistiu e acabou encarando-o. Por que diabos Ryo o observava com tanta...?

Espantou os pensamentos. O que queria dizer? Amor? Paixão? Fascínio? Emoção? Não importava o que estava encenando naquele momento, era tudo um grande teatro, uma mentira.

— E também — o outro prosseguiu, sem se incomodar com seu silêncio — continua a ser metódico com a higiene. Sua casa é bastante limpa.

A menina cutucou o pai.

— O que é metódico?

— Não sei, nem estou interessado em saber — ele respondeu, ignorando propositalmente o outro.

Ryo não se deixou abater.

— Metódico é alguém que segue uma ordem, um sistema. Seu pai sempre foi muito exigente com a limpeza. Eu lembro que quando ia vê-lo em Tóquio, o quarto dele era o mais limpo do lugar onde morava — o sorriso morreu de repente. — Quando saiu da minha casa, deixou seu quarto arrumado, todas as roupas dobradas e ajeitadas. Limpou o banheiro e arrumou a cama. Parecia que o lugar nunca havia recebido alguém tão importante.

— Porque nunca recebeu ninguém importante — Shiro rebateu, dirigindo-se a ele pela primeira vez à mesa.

— Está enganado. Aquele quarto abrigou a pessoa mais importante da minha vida — confessou. — Shiro, eu...

O outro se levantou, deixando praticamente toda a comida no prato.

— Miya, já terminou? Vá escovar os dentes — mandou. — Eu tenho que levantar cedo e quero dormir cedo.

A criança assentiu e foi para o banheiro. Enquanto Kazue recolhia a louça, Ryo se ergueu e foi até ele.

— Vocês vão sair amanhã?

— Não, eu trabalho.

— Aos domingos?

Shiromiya retirou uma panela do fogão. Ryo viu a água quente e percebeu que não havia torneiras no lugar.

— Você tira água de onde? — perguntou, legitimamente interessado.

— Eu tenho um poço.

— Se quiser, eu posso mandar instalar uma bomba e encanar a água para você — ofereceu.

Shiromiya gargalhou, ferino.

— Eu prefiro carregar baldes nas costas o resto da vida a receber qualquer tipo de ajuda sua.

Obviamente, as palavras feriram Ryo, mas ele não recuou, disposto a recuperar o tempo perdido.

— Eu não casei — contou, repentino, tentando trazer qualquer traço de simpatia ao outro. — Quando foi embora, eu cancelei o noivado.

— Não lhe perguntei nada.

— Mas... — estava prestes a chorar. — Eu o procurei... fiquei maluco, achei que tivesse morrido em Hiroshima...

A menção da cidade trouxe melancolia a Shiro.

— Sabe se Keiko sobreviveu? — perguntou, esperançoso.

— Morreu com o filho. Midori e Rika também.

Shiro engoliu as lágrimas, respirando fundo. Já imaginava o que havia ocorrido às amigas, mas ele não tinha tempo para pranteá-las.

— Não me casei, Shiro — Ryo insistiu, trazendo novamente o assunto à pauta.

— Eu já ouvi isso.

— Não me casei, porque eu te amo.

Shiromiya terminou de lavar a louça e, imediatamente, começou a secá-la num gesto mecânico. Parecia alheio às palavras.

— Kazue...

— Diga-me: o que isso me interessa? — subitamente, voltou-se ao outro, furioso. — Não se casou porque não quis! Não me culpe pelas suas escolhas.

— Ouviu algo do que eu disse?

Repentinamente, o som da porta do banheiro se abrindo, fê-los voltarem-se à menina.

— Já fez xixi? — Shiro questionou.

— Sim.

— Ótimo, então vá pro quarto do papai — pediu. — Ryo-san dormirá no seu futon essa noite.

A menina aquiesceu.

— Boa noite — disse a Ryo, enquanto cruzava por ele.

— Durma bem, meu anjo — ele acariciou a face dela, emocionado.

Quando a criança sumiu, voltou-se para Shiromiya. O outro o encarava friamente.

— Pode ficar essa noite, mas amanhã irá embora — avisou.

Quando a porta do quarto bateu, Ryo quase gargalhou. Agora que os havia encontrado, jamais os deixaria.


***


Ryo Satoshi remexeu-se no futon. A coberta perfumada cobria-lhe o rosto, aliviando o frio que fazia, e ele aconchegou-se no tecido macio, sorrindo, aliviado. Por um momento, acreditara que tivesse acordado em Sapporo, e que todo dia anterior não havia passado de um sonho bom. Porém, assim que abriu os olhos e percebeu-se naquele pequeno quarto pobre, mas limpo, naquele vilarejo, soube que Kami-sama havia lhe perdoado pelas falhas e que estava lhe dando outra chance.

— Bom dia — ouviu o tom infantil e abriu os olhos.

Sentou-se na cama, sentindo novamente aquela felicidade transbordante atingindo-o em cheio.

— Miya — sussurrou. — Você está mesmo em minha frente?

Ela riu baixinho.

— Sei que está surpreso — seu tom era de total compreensão. — Também estou. Não imagina meu susto quando percebi que papa o via também.

Ryo não entendeu a colocação.

— O que quer dizer?

— Ora, você sabe. Sempre o vejo pela casa, andando pela horta, lavando a louça. Às vezes toma chá comigo — sorriu. — Achei que nunca fosse aparecer em carne e osso, apenas nas minhas visões.

A boca de Satoshi abriu-se em espanto. Por alguns segundos, ele entrou em pânico, sabedor de como o dom se manifestou em si mesmo, na infância.

— Você tem visões?

— Fora você, só sonhos.

— E o que vê?

— Nada importante, apenas coisas pequenas como quando os pintinhos vão nascer, ou quando vai chover. O que foi?

Estava em pânico, pois temia tudo que Miya poderia passar. Era verdade que sentia falta do seu próprio dom, mas ele havia destruído sua vida. Por causa das malditas visões, havia perdido Shiromiya. Aquele fardo era pesado demais para ombros tão pequenos.

— Alguém sabe que você tem essas visões?

— Tirando papa?

Ryo assentiu.

— Só tio Jiro — afirmou.

Tio Jiro? Ryo arqueou as sobrancelhas, enquanto a menina tagarelava, sentando-se no futon.

— Papa sempre diz que jamais devo contar sobre esse dom a ninguém. Só o estou contando a você porque sei quem é.

— Quem você acha que sou? Um amigo?

— Não.

— Um comerciante?

— Não.

— Um vidente?

Ela gargalhou.

— Não mesmo — negou. — Sei que você não tem mais visões.

Ela sabia disso também?

— Então, quem sou para você?

A garota sorriu. Ele retribuiu, porque aquela imagem em si já era tão confortadora que o fazia imensamente feliz.

— Meu pai.

A resposta direta e sincera fez o coração de Ryo palpitar no peito. As lágrimas vieram e ele não resistiu. Entendendo aquela emoção, Miya o abraçou.

Algo explodiu dentro dele, quando sentiu os braços pequenos e frágeis cercando-o. Apertou-a com força contra o peito, dizendo a si mesmo que nada mais separaria aquela criança dele.

— Achei que a havia perdido — admitiu, mesmo sabendo que ela não entenderia.

— Mas eu estou aqui e você também — acalentou. — E seremos uma família agora.

Separaram-se. Ryo secou as lágrimas.

— Não sei, Miya. Não sei se seu pai um dia vai me perdoar...

— Mas ele ama você.

A afirmação o atingiu em cheio. Perdeu o ar.

— Ele disse isso?

— O quê? — voltou a rir. — Papa jamais admitiria isso — decepcionou-o.

— Então, como sabe?

— Durante todos esses anos, sempre que se deitava para dormir, papa chorava. Mesmo quando eu passei a ter meu próprio futon, eu ouvia os suspiros abafados dele. Mas, ontem à noite, ele não chorou. E — prosseguiu, sem deixar que o riso feliz de Ryo a interrompesse — ele jamais me deixa sozinha com qualquer homem, além do tio Jiro. Porém, hoje de manhã, antes de sair para trabalhar, ele me disse que podia deixá-lo dormir e que eu não precisava temê-lo.

O fato de Shiro ser superprotetor não o surpreendeu. Não depois do seu passado.

Ryo ergueu a mão, acariciando a face infantil.

— Fale-me do tio Jiro.

— Ele se chama Jiro Saito.

Ryo sentiu o sangue ferver. Aquele filho da puta comeria o pão que o diabo amassou, quando pusesse as mãos nele.

— Ele e seu pai são namorados?

— De onde você tira essas ideias?

Aquele ar debochado lembrava-lhe alguém. Não levou nem um segundo para perceber que a filha tinha o jeito estranho de Sakamoto.

— Tio Jiro tem um montão de namorados — contou. — Mas ele é muito gentil conosco e sempre aparece para me dar presentes. E ele cuidou de mim muitas vezes — seu tom ficou sério. — Eu sei o que você está pensando, mas deve ser grato a ele e não odiá-lo, pois ele nos protegeu por todos esses anos.

— Ele tirou de mim esse direito — objetou. — Eu os protegeria, se ele não tivesse roubado Shiromiya de mim.

— Está enganado, mas não vamos discutir. Temos muito para conversar, não é?

Riu perante a atitude madura.

— Quantos anos você tem?

— Oito. Mas farei nove no mês que vem.

— Janeiro?

Igual a Shin Sakamoto.

— Vamos caminhar lá fora? — a garotinha perguntou, tão logo se levantou.

Ryo a acompanhou pela horta, ouviu-a discursar sobre o tempo que viviam ali, de como Shiromiya vendia milhos e ovos para a mercearia e de como ela adorava as galinhas. Percebendo que Kazue havia feito um ótimo trabalho, Ryo perguntou-se se havia feito alguma falta para aquela família.

— Seu pai é feliz?

Miya pareceu irritada.

— Ele ainda chora por você!

— Mas...

A garota riu.

— Parece tão inseguro. Você o ama, não é?

— Mais do que um dia fui capaz de imaginar amar alguém, Miya... Mas ele achou que eu fosse me casar e então me deixou...

— Por que iria se casar?

Sentaram-se em cima de duas torras grandes de madeira que servia de banco para Shiromiya, quando queria descansar. As galinhas ciscavam à sua frente e o sol tocou seus cabelos em desalinho.

— Por você — confessou.

— Como assim, por mim?

— Assim como você, eu tinha visões. E eu sempre a vi, andando pela minha casa. Então...

— Pensou que eu seria sua filha de sangue, né?

Que criança admirável!

— Sim — confirmou.

— Que engraçado, porque eu sempre soube que era sua filha espiritual...

Ryo sorriu, fazendo um cafuné na cabeça da menina, que aceitou o agrado com um bonito sorriso nos lábios. O sol, no centro do céu, indicava que logo era hora do almoço, e ele se questionou se podia levá-la para almoçar em algum lugar agradável na cidade. Queria dar tudo do bom e do melhor para ela. Observou-a e viu as roupas. Eram limpas, mas pobres e simples demais. Com certeza, uma menina daquela idade adoraria usar vestidos de babados.

— No entanto, isso é passado — consolou-se. — A única coisa que importa agora, Miya, é que eu a encontrei — mais uma vez, lágrimas inundaram seus olhos. — Eu a achei, filha... Nada mais importa. Sou seu pai e vou cuidar de você para sempre.

O som de algo pesado caindo às suas costas fizera com que ambos voltassem para trás. Shiro estava ali, com o machado aos pés, e parecia furioso.

— Miya, vá para dentro — mandou. — Quero falar com Ryo.

A menina encarou Satoshi e, diante da confirmação dele, passou pelo pai e entrou na casa. Assim que ela sumiu, a voz de Shiro voltou a surgir.

— Venha comigo — chamou.

Ryo o seguiu até a frente da casa. Assim que lá chegaram, viu o dono da casa abrindo o portão.

— Shiro... — tentou conversar.

— Vá embora agora — o outro estava firme e frio.

— Mas...

Subitamente, Ryo sentiu uma forte pancada no nariz. Incrédulo, sentiu o corpo caindo em direção à saída. Enquanto a boca recebia o sangue que escorria do nariz, ele percebeu Shiro com o punho fechado, disposto a bater mais.

— Acha que vai iludir a minha filha e depois vai destruí-la como fez comigo? — questionou, possesso. — Eu te mato se fizer Miya derramar uma única lágrima, entendeu?

Repentinamente, Shiro bateu o portão.

— Miya só tem um pai — avisou. — Quanto antes você for embora, melhor para ela.

E sumiu diante de suas vistas nubladas pelas lágrimas.

 

Capítulo 07


Shiromiya sentou-se na porta dos fundos, os olhos nublados pelas lágrimas e pela dor que ainda sentia, fruto de tudo que havia passado nas mãos de Ryo Satoshi.

Não conseguia acreditar na audácia do comerciante! Como se atrevera a dizer para Miya que era seu pai? O que queria? Tirá-la dele? Jamais permitiria, tinha todos os documentos e Ryo não poderia provar que a menina não era sua filha.

Contudo, entrou em pânico. E se Satoshi tivesse um plano? Bem, sabia que os ricos costumavam conseguir o que desejavam através do seu poder. Apertou os braços em volta de si mesmo, tentando proteger-se daqueles pensamentos pessimistas. O que uma menina pobre interessaria para alguém fútil como Ryo? Aprendera com o passado: Ryo só amava e se importava com status e dinheiro.

— Você bateu no meu pai! — ouviu a acusação às suas costas e voltou-se para a menina. Viu-a tremendo, engolindo as lágrimas, numa atitude firme, mas raivosa. — Ele voltou para nós e você o mandou embora!

Tentou manter a calma. Apesar de o jeito excêntrico dar-lhe a impressão de que convivia com uma adulta, a verdade é que Miya tinha oito anos. Era uma criança, com as fantasias infantis criadas pela mente.

— Ele não é seu pai, Miya — afirmou. — Eu sou seu pai! Fui eu que a criei, que lhe dei banho quando pequena, que cuidou de você quando esteve doente. Eu que sei a que horas você dorme, a que horas almoça, janta, faz cocô! Sou eu que sei que odeia repolho e chuchu. Ryo-san não tem noção da sua personalidade, ele a conheceu ontem! Então...

— Ele é meu pai sim! — objetou, interrompendo-o. — E ele queria ficar aqui, conosco. Nós todos seríamos uma família feliz, mas você o mandou embora — gritou.

Depois disso, disparou para o quarto, fechando a porta.

Shiro permaneceu parado no mesmo lugar, encarando a madeira fria. Depois, volveu o corpo para frente, sentindo as lágrimas despencarem de seus olhos. Em menos de vinte e quatro horas, Ryo Satoshi revirou sua vida do avesso, colocando a filha contra ele. Nunca havia discutido com ela antes, mesmo diante da personalidade geniosa e difícil.

A parte mais complicada era vê-la declarando Ryo seu pai com tamanha naturalidade. Doía absurdamente, porque o ex-amante nada fizera para merecer aquele tratamento. Sabia ser ciúme, mas mesmo sendo uma atitude infantil, perdoou-se. Desde que a adotara, há mais de cinco anos, ele era o único em sua vida. Satoshi não podia simplesmente aparecer e roubar seu posto sem qualquer esforço.

Escondeu o rosto entre as mãos, exausto. Se pudesse, deitaria ali e só se levantaria quando a presença de Ryo já houvesse se dissipado. Porém, entendeu que não precisava daquilo, quando sentiu os braços pequenos a circulá-lo, num abraço gentil.

Miya deitou a cabeça em sua nuca e sussurrou, baixinho:

— Gomenasai [10] , papa...

Sorriu, diante da atitude bonita. Voltou o corpo para trás e a pegou no colo, abraçando-a com força, unindo seu nariz ao da pequena.

— Vou trabalhar até as três horas — avisou, desconversando, enterrando aquela briga imediatamente. Ora, ser pai não significava amar incondicionalmente? — Depois, vamos à costureira.

— Hoje?

— Sim — afirmou. — Encontrei Aoki-san, e ela me disse que os vestidos que mandei fazer já estão prontos. Então, perguntei se ela poderia nos atender hoje e agendamos um horário.

Ele desejava dar os dois vestidos para a menina no início do ano, para que ela fosse à escola com roupas novas. Porém, sabia igualmente que ela necessitava de roupas e sapatos novos, pois os seus já estavam gastos. Assim, decidiu antecipar o presente.

— Depois, vamos comer bolo? — ela tentou, querendo aproveitar o máximo aquela folga paterna.

— É claro — afirmou. — De chocolate — completou. — O seu favorito.

Ryo Satoshi ficou brevemente esquecido, assim que sentiu o beijo estalado na bochecha.


***


Obviamente, apesar do que acreditou Shiromiya, Ryo-san não arredou o pé das proximidades da pequena casa de madeira. Escondido entre as árvores e arbustos, ele encolheu-se no casaco, espantando o frio, com o olhar fixo na direção onde morava Shiro e Miya.

Viu-o saindo no começo da tarde com o machado nas mãos e o olhar determinado. Admirou-o mais uma vez. Era um guerreiro, corajoso, certo em sustentar sua pequena família. Porém, não pôde deixar de espantar-se pelo fato de Shiromiya não ter sequer uma folga. Pelo que notou, ele passava o tempo todo no labor, sem descansar. Contudo, não investia o que ganhava na casa ou na propriedade.

Arqueou as sobrancelhas.

Era estranho. Shiromiya parecia vender ovos e milhos para a comunidade. Tinha mais de um emprego e não aparentava ter gastos grandes. E, mesmo assim, tanto ele quanto Miya vestiam roupas assustadoramente velhas.

Por quê?

A inquietação tomou conta de si, apesar de saber que não devia forçar nada. No devido tempo, após reconquistar a confiança do outro, levá-los-ia consigo para onde teriam tudo do bom e do melhor, numa casa grande e bem equipada, e comida da melhor qualidade.

Sim... Quando Shiro o aceitasse de volta, nunca mais permitiria que ele minasse as forças cortando chás ou plantando milhos. Nunca mais lavaria louça ou roupa. Nunca mais dormiria pouco, nem usaria farrapos.

Os pensamentos foram interrompidos pela garotinha, que saiu pela porta carregando um pequeno caldeirão. Parecia pesado, mas ela usava as duas mãos para levar o recipiente e, em passos curtos, seguia rígida em direção oposta ao pai.

Aonde ia?

Ryo não pestanejou e a seguiu. Sabia, pelo olhar desconfiado com o qual se dirigia para a casa vizinha mais próxima, como se temesse ser pega em flagrante, que estava aprontando algo. Porém, havia uma coragem semelhante à de Shiro na forma como caminhava, em direção à mata fechada.

Deu um espaço de distância, não querendo que ela soubesse que estava sendo seguida. Pouco depois, ouviu latidos, e temeroso de que a pequena fosse atacada, apertou o passo, logo a encontrando.

Miya levou um susto quando o percebeu, mas nada se assemelhou ao seu, quando a notou cercada por cães. Todos deformados, feios e famintos. Viu então que a caçarola tinha comida, e que ela distribuía em pequenos potes o alimento.

— O quê...? — quis indagar, mas logo foi interrompido.

— Não pode contar pra ninguém o que viu!

— Mas... — buscou as palavras. — De quem são esses cães?

A menina olhou para baixo, envergonhada.

— De ninguém. Dizem que, dos mais velhos, os donos morreram na guerra — encarou-o. — Os adultos são muito maus, não pode contar a ninguém que eu os salvei, porque as pessoas os matarão se souberem que estão no mato.

— Os matarão?

— Eles comem galinhas, quando a fome aperta — explicou. — Então, eu tento amenizar, mantendo-os aqui, perto do rio, onde tem água para beberem. Todos os dias, quando papa sai para trabalhar, eu trago comida. — Um dos cães se aproximou, e ela afagou sua face. — As pessoas não gostam do que é feio. Encantam-se com os filhotes, mas, quando eles crescem e envelhecem, elas os expulsam. Consideram os animais doentes, imundos, sem conseguir notar que a imundície está nelas mesmas.

Ryo ficou espantado. Impossível não se admirar com aquela postura firme, como se fosse uma adulta defendendo uma causa.

Em silêncio, deixou terminar seu trabalho. Depois, acompanhou-a de volta.

— Seu pai sabe? — inquiriu.

— Ele não pode saber! — foi resoluta, deixando claro que era um segredo entre eles.

— Mas por quê?

— Eu não posso andar muito, principalmente sozinha.

Sem entender, Ryo estancou.

— Como assim?

A menina deu os ombros.

— Não posso me atrasar, preciso tomar banho porque papa vai me levar na costureira à tarde. Então, tchau papai — acenou para ele, e correu em direção ao casebre que estava a pouca distância.

Aquela referência o fez sorrir como um idiota, enquanto a via sumir dentro da casa.


***


Shiromiya olhou para trás. O ateliê da senhora Aoki estava com as janelas abertas, e as pessoas de fora podiam enxergar o que ocorria lá dentro. Porém, não havia ninguém à vista.

Entretanto, depois de sentir o peso dos olhos de Ryo sobre si, Shiromiya quase podia afirmar que o outro estava ali, à espreita. Contendo a revolta pela falta de privacidade, ele encarou a velha senhora, que mostrou os vestidos marrons para ele.

— O tecido é de boa qualidade — ela disse. — E Miya ficará uma graça neles.

Shiromiya encarou a menina. Ela, por sua vez, parecia encantada por um vestido floral, posto em um manequim perto da janela. Chamou-a, e a garota disfarçou, aproximando-se da roupa com olhos artificialmente empolgados.

— Você quer experimentar? — indagou a ela.

— Me servem, papa — afirmou.

Shiromiya assentiu, puxando as notas e estendendo-as à costureira. Pouco depois, eles saíram porta afora, de mãos dadas.

— Um dia compraremos um vestido bonito — prometeu.

— Eu não me importo com vestidos — ela retorquiu. — Mas me importo com bolos.

Kazue gargalhou, enquanto seguia para a padaria.


***


— Aquele filho da puta! — Shin resmungou, enquanto assinava a papelada. — Ele me garantiu que cuidaria dos negócios! Só por isso aceitei essa sociedade!

Tadao não objetou, até porque conhecia bem o sobrinho do Imperador para entender que retrucá-lo nunca era uma boa saída. Contudo, não escondeu o aborrecimento. Shin Sakamoto estava assinando as papeladas da administração da rede de hotéis que Ryo e ele adquiriram após a guerra. Jamais precisou “pôr a mão na massa”, usufruindo apenas da porcentagem investida junto com o amigo naquele negócio. Então, por que tanta reclamação?

— E para onde foi aquele “pau no cu”?

— Não faço ideia. Ryo-san parecia nervoso demais para conseguir se expressar, mas entendi que poderia ser algo relacionado a Shiromiya-san.

— Mas Shiro não morreu? Por que diabos a cada boato que surge, ele abandona tudo e vai atrás?

— Não faria o mesmo pelo seu grande amor?

O outro resmungou baixo, evitando responder. Por Mamoru, ele nadaria de Tóquio a Okinawa sem sequer parar para descansar.

— Aquele retardado! — xingou mais um pouco, apenas para não perder o costume. — Aposto que vai voltar choramingando como um imbecil...

Terminou de assinar e estendeu a papelada para Tadao, que a segurou, curvando-se respeitosamente, antes de sair em silêncio.

Shin mal teve tempo de respirar, quando a entrada obtusa de uma serva fê-lo resmungar baixo.

— Mais visitas?

A mulher assentiu.

— Mande entrar.

Tudo que desejava era se livrar logo do estorvo. Recostou-se na cadeira de couro, fechando os olhos e respirando fundo. Estava numa crise de paciência há alguns dias, mal contendo a gana de conviver com humanos.

Ouviu o som de passos. Abriu os olhos, encarando aqueles que chegavam. Eram dois homens, mas foi apenas para um que ele deu sua atenção.

— Jiro? — sussurrou, imaginando ser uma alucinação.

Mas o sargento que o serviu sorriu, em tal euforia, que Shin percebeu que aquela imagem era real.

Levantou-se rapidamente e correu em sua direção. Apertou-o nos braços, aspirando seu perfume, tentando captar sua essência. Por fim, soltou-o levemente, e segurou seu rosto, estudando sua feição.

— É você mesmo? — questionou, incrédulo.

— Quer uma prova?

Repentinamente, sentiu o beijo gentil nos lábios e soube que, após tantos anos, Saito era novamente seu.

Contudo, retribuiu de uma força inesperada. Daniel, o soldado estrangeiro, arregalou os olhos, diante do soco que o homenzarrão deu no seu amante. Segurou Jiro, para evitar que ele caísse no chão. Sentiu o rosto foguear e quase partiu para cima do outro, mas foi impedido por Jiro.

— Que bela recepção — Saito brincou, limpando o sangue no nariz.

— Eu te esperei por anos, seu veado desgraçado! — resmungou, pegando-o pelo colarinho. —Você prometeu que voltaria!

— E voltei!

— Cinco anos depois?

— Estou aqui, não estou?

— Achei que havia morrido... — sussurrou. — Achei que tivesse roubado Shiromiya e ambos tivessem morrido nas estradas...

— Bom, é verdade que escapamos da morte... — repentinamente, percebeu as palavras. — Como sabe que estive com Shiro?

Shin o largou.

— Não é óbvio? Você foi vê-lo, e ele desapareceu em seguida.

Depois, deu-lhe as costas, voltando para a mesa. Porém, não chegou até ela, sendo impedida pelos braços fortes de Saito, que o cercaram por trás.

— Não tem noção do quanto senti sua falta...

— Não muita, já que sequer me escreveu uma carta.

— Eu não podia — afirmou. — Por Shiro.

— E o que mudou?

— O tempo? A possibilidade de Ryo Satoshi ter esquecido sua obsessão.

Shin ficou em silêncio.

— Onde estiveram? Você e ele?

— Perto de Kyoto.

Subitamente, Shin percebeu que se contasse a Jiro que Ryo estava viajando para o interior por causa de um boato sobre Shiromiya, poderia perder Saito novamente. Assim, ficou em silêncio.

— Ryo se casou e está muito feliz — mentiu, descaradamente.

— Imaginei isso — Jiro sorriu, girando seu corpo. Ambos ficaram frente a frente, apaixonados. — E, diante disso, poderei ficar com você.

Um pigarrear fê-los se soltarem. Shin só então pareceu dar-se conta do gaijin [11] parado no seu escritório.

— Quem é? — perguntou, já bufando.

— Meu amante.

Aquela resposta direta fez Shin se enervar grandemente.

— Pelo menos, poderia ter a decência de não trazê-lo a minha casa.

Saito atirou a cabeça para trás, gargalhando.

— Como se você tivesse ficado em celibato esses anos todos.

O semblante enervado de Shin deixou claro que Saito acertara na mosca.

— O... quê? — perguntou, assombrado. — E Aiko?

Quando Shin deu os ombros, ele soube que ambos teriam muito para conversarem.

 

Capítulo 08


Daniel Joshua Collins nasceu em uma pequena propriedade no norte do Texas. Filho de um fazendeiro, acostumou-se à lida do campo desde pequeno. Apaixonado por cavalos, sentia-se livre, enquanto montava e percorria o campo, andando por entre os rios e lagos, saboreando a vida.

Foi precoce em tudo. Aos cinco anos, já percorria sozinho a sua terra; aos sete, já ajudava a professora a ensinar os colegas a ler. Aos dez, já beijava as filhas dos ex-escravos negros que ainda moravam na propriedade do pai; e aos catorze, já fazia sexo.

A primeira vez foi com Amy, uma mulata de cabelos ajeitados cuidadosamente num coque. Ela, já entrando na fase adulta, convidou-o para visitar o celeiro num dia de chuva. Ele foi e descobriu as maravilhas do prazer carnal. Depois dela, deitou-se com Aida, Jaenette, Úrsula e Kelly. Todas, sem exceção, não só se encantavam pela possibilidade de conquistar o filho do patrão, como também de usufruir de sua clássica beleza.

Os cabelos castanhos eram mechados com a claridade do sol. Os olhos tão azuis quanto o céu pareciam hipnotizar as moças ingênuas. E, além disso, era gentil e doce com todos, encantando ainda mais aquelas que se atraíam por suas qualidades.

Contudo, por mais que gostasse de dormir com elas, não conseguia nutrir nenhum sentimento. Claro, na afobação juvenil em usufruir de todos os prazeres lhe fornecidos tão facilmente, não se dera conta do fato.

Até ele entrar em sua vida...

Conheceu Ren num dia de sol, quando o avistou em uma mercearia na cidade. Ficou pasmo ao vê-lo, pois era o primeiro oriental que conhecia. Naquele dia, não se aproximou, apesar de desejoso, ansioso para observar com mais atenção aqueles olhos puxados que conseguiam ser tão belos quanto exóticos. Mais tarde, soube que uma família japonesa havia imigrado e que o rapaz era o mais novo de cinco irmãos.

Quase uma semana após aquele primeiro encontro, falou com ele. Depararam-se no rio. O outro não entendia que havia invadido uma propriedade privada e divertia-se nas águas calmas. Conversaram pela primeira vez. O assunto variou, desde a chegada do jovem ao país e da dificuldade ao novo idioma, até a escola que começaria no próximo semestre.

A amizade caminhou bem. Criaram um vínculo, e quando se deu conta, Daniel já estava completamente apaixonado.

Um dia, indagou ao seu amado o significado de seu nome. Ren, segundo disse o japonês, significava Lírio d'água. Então Daniel percorreu todo o rio até encontrar um lírio. Ao pegar a flor rosada, levou-a até o jovem e se confessou.

Pela primeira vez, o sexo teve um significado. Apaixonado, abandonou todas as namoradas e passou a desfrutar do corpo divino de Ren no celeiro. Faziam planos, promessas. Falaram sobre fugirem juntos, procurar emprego no México. Podiam viver no deserto, apenas do seu amor. Mas nenhum plano resistiu à realidade: um dia o pai os flagrou, nus, deitados entre o feno.

Daniel foi expulso de casa, e a família de Ren foi embora, afastando-o dele. Não mais vê-lo apenas destruiu ainda mais seu coração. Sozinho, abandonado, até os melhores amigos viraram-lhe as costas.

“ Desculpe, não posso ficar perto de você ”, disse-lhe uma vez Arthur, um companheiro de festas. “ Se você se apaixonar por mim, terei que lhe dar uma surra e quero evitar isso! ”.

Então, achou emprego em um prostíbulo. O filho rico do dono das maiores propriedades da cidade, passou a limpar o chão cheio de urina e vômito. Quando fez dezenove anos, soube que o país procurava jovens para servir na base japonesa.

Estar no Japão significaria estar mais perto de Ren... de alguma forma. Então, ele se inscreveu. O treinamento ocorreu por cerca de um ano e, após terminá-lo, foi avisado que seria enviado para lá em fevereiro de 1950.

Voltou para casa, a fim de se despedir da mãe. A mulher, ao vê-lo, disse-lhe somente: “ Uma pena que a guerra acabou. Queria que morresse lá, para que eu não tivesse mais que conviver com a vergonha de ter um filho bicha ”.

Sabia que nunca mais a veria depois daquilo.

Mas o futuro lhe reservou surpresas. Havia outros gays no exército. Claro, discretos, mas... existiam. Não era mais único, e aquilo o tranquilizou. E quando chegou a Okinawa, soube da fama de um japonês que estava levando ao delírio a maioria dos homens da base.

Não se preocupou. Acreditou piamente que seu amor por Ren era único e eterno, mas quando viu Saito Jiro pela primeira vez, ficou perdidamente apaixonado.

Jiro não era fácil, não aceitava qualquer um. Ao contrário, escolhia a dedo o amante da vez e, depois de dormir com ele, desprezava-o, destruindo vários corações. Então, Daniel tentou se aproximar primeiro, conquistar sua amizade. Contudo, logo na primeira vez que conversaram num bar, terminaram a noite juntos numa cama.

Na manhã seguinte, Jiro se levantou e saiu, sem se despedir. Sabendo ser esse o costume do outro, reuniu sua coragem e passou a persegui-lo. Mandava-lhe presentes e mensagem de amor. Foi recompensado pela persistência. Não que Saito o amasse, mas o aceitava. Até o assumiu como amante fixo. Porém, não era fiel e não lhe fazia nenhuma promessa.

Mais era magoado do que feliz naquela relação. Mesmo assim, não conseguia sequer se imaginar longe dele. Sabia que o outro tinha seus demônios, suas feridas e, provavelmente, por isso, identificava-se tanto com ele.

Ren se perdeu nas lacunas do tempo. Naquele momento, enquanto meditava sobre a vida naquele quarto de hotel em Tóquio, ele provavelmente poderia pensar no ex-amante. O que estaria fazendo? Era feliz? Obrigaram-no a se casar? A assumir algo que não queria? Ou havia fugido e, assim como ele, encontrara outros braços masculinos para se afundar?

Suas inquietações, porém, nada eram comparadas ao desconforto que sentia ao não conseguir recordar direito do rosto do jovem amor. Porque depois de Jiro, nenhum rosto tornara-se claro para ele.

Repentinamente, a porta do quarto abriu. Viu o amado entrando e o encarando. Ficou surpreso e não pôde esconder o fato.

— Achei que fosse ficar com Shin Sakamoto.

O tom, uma mescla de acusação e raiva, fez Saito rir. Depois dos dois amigos se encontrarem, Jiro pediu que ele fosse embora. Tinham muito que falar, explicou. Com os olhos cheios de lágrimas, Daniel obedeceu.

Assim, não esperava ver Saito ainda naquele dia.

— Shin não fode há cinco anos. Acha que eu seria louco de dar minha bunda para ele?

Depois riu. Sozinho. Daniel o encarava com o olhar carregado de ciúmes. Saito preferiu ignorar. Girou o corpo e foi até o banheiro tomar banho. Porém, mal colocou o corpo embaixo d’água, ouviu o tom reprimido do outro.

— E o outro? O tal Mamoru?

Pelo que disse Shin, Aiko havia se enfurnado num novo negócio, sem abrir espaço em sua vida para mais nada. Até mesmo Shin, com quem dividia todos os sonhos, ele havia se fechado. Haveria espaço para Jiro?

De repente, aqueles cinco anos pareceram tempo demais. E se tudo que Jiro permanecia nutrindo havia se apagado em Aiko?

— Irei vê-lo amanhã — avisou.

Contudo, não tinha tanta certeza. Temia o reencontro.

— Não consigo entender o que se passou entre vocês três — Daniel comentou, observando-o, enquanto se ensaboava.

Saito riu, tentando aparentar tranquilidade.

— Shin e eu éramos rivais pelo amor de Aiko. Até que um dia, eu percebi que o amava também.

A forma como explicava parecia simples. Porém, Daniel não entendia como alguém podia amar duas pessoas ao mesmo tempo.

— Acho que você não ama nenhum deles — murmurou.

A gargalhada irônica fê-lo perceber que Saito ouvira sua opinião.

— Não me importo com o que acha.

Em seguida, Jiro enxaguou-se e saiu do chuveiro. Nu, caminhou até perto do rapaz, ostentando toda a sua virilidade e fazendo com que a boca do americano secasse.

— Deixe-me ir com você — implorou.

— Não — recusou. — Quero ver Aiko-san sozinho.

— Por quê? Vai dormir com ele?

Jiro encostou seu corpo molhado ao outro.

— Quem sabe — murmurou.

Repentinamente, Daniel segurou o corpo magro. Em segundos, o atirava na cama. Tomou-o com paixão, parecendo rogar que Saito percebesse seus sentimentos e os correspondesse. Porém, a frieza do outro significava que sua súplica fora, como sempre, ignorada.


***


Shiromiya enfiou a enxada na terra com força. Depois, ergueu a mão até a fronte, limpando o suor que molhava a testa. Apesar de inverno, o sol estava bastante forte naquela tarde de segunda-feira, e ele tinha que aproveitar para remover as ervas daninhas do terreno, a fim de prepará-lo para a plantação, antes que a chuva começasse a cair em janeiro.

Não era uma área extensa, mas sozinho ele levava certo tempo para aprontar tudo. Então, logo retornou a capinar, dedicando toda a sua atenção ao ofício. Porém, momentos depois, sentiu novamente que era observado e não precisou se voltar para saber quem estava ali.

— Vá embora — mandou, erguendo a enxada e a batendo com força no terreno. — Eu tenho mais o que fazer.

— Eu... — Ryo murmurou.

Diante do silêncio, Shiro parou o trabalho e voltou-se para ele. Viu um pacote em suas mãos.

— Eu o vi ontem na costureira — tentou se explicar.

— E?

— Vi o vestido floral...

Estendeu o pacote para Shiromiya.

— O que quer com sua atitude? — O outro o enfrentou, sem segurar o embrulho. — Quer conquistar a minha filha dando-lhe agrados? Tirar de mim a responsabilidade de fazê-la feliz? Sabe que não posso dar-lhe presentes, então os compra para tentar mostrar a ela que viver com alguém rico é melhor?

Ryo negou rapidamente.

— Shiro, não é essa a minha intenção — foi sincero. — Eu o comprei para que você desse a ela.

O outro arregalou os olhos, mas não se desculpou.

— Não consigo entendê-lo, Ryo-san — afirmou. — Por que está aqui?

— Não me entende? Perdi tudo! — disse, emocionado. — Não tenho para o que voltar. Vivi todos esses anos apenas com a sua lembrança, com a necessidade de revê-lo. Estava prestes a me matar quando soube que podia estar vivo.

Shiromiya abriu a boca, pasmo.

— Perdeu tudo?

— Não percebe? — estendeu os braços, mostrando a si mesmo.

Kazue observou o outro, tentando encontrar nele traços de pobreza. Não havia. Estava bem alimentado e vestido. Porém... por que mentiria?

A recessão pós-guerra fez falir a maioria das fábricas. Muitos dos antigos e abastados burgueses estavam na miséria absoluta.

— Tem onde ficar? — questionou, para em seguida completar: — Não que eu deseje que fique em minha casa. Porém, bem ou mal, você me deu teto num momento de turbulência. Não tenho muito, mas posso te oferecer um futon e um prato de comida. Porém, terá que trabalhar.

Ryo pareceu em confusão, Levou um tempo para entender que Shiro havia compreendido mal suas palavras. No entanto, ficou em silêncio momentâneo, receoso de se contradizer.

Porque, depois daquele primeiro encontro carregado de mágoa e rancor, ele percebia agora um vislumbre de piedade em Kazue. Era pouco, mas era tudo que tinha. Sabia, contudo, que não devia fazer semelhante coisa, não podia usar uma mentira para adentrar novamente na vida de seu grande amor.

— Enfim — Shiro resmungou, diante do seu silêncio. — Se tem algo melhor, vá. Só tentei ser grato.

Ryo sabia que era uma decisão que devia ser bem pensada. Contudo, não tinha tal tempo. Subitamente baixou o olhar e observou o vestido comprado. Depois, voltou a encarar Kazue. Era segunda-feira, mas ele estava exausto.

— Você poderia me ensinar a lidar com a terra — sugeriu.

O outro gargalhou.

— Acho que deve tentar um emprego na cidade. Essas suas mãos macias e não acostumadas ao trabalho duro não vão aguentar o peso de uma enxada.

— Não me importo — adiantou-se. — Só quero ficar ao seu lado.

As palavras pareceram vazias a Shiromiya, mas ele não as desprezou.

— Antes, precisa saber: o tempo passou e eu não sou mais aquele garoto. Não sinto nada por você — avisou. — Então, esqueça qualquer possibilidade de praticarmos os atos passados. Se você tentar, eu o expulso da minha casa na hora.

Ryo assentiu.

— Além disso, vai ter que ajudar a cuidar da casa. Lavar sua louça e... — observou-o atentamente. — Vou ensiná-lo a fazer comida.

O sorriso deleitoso do comerciante pareceu animado demais para Shiro, que estremeceu.

— O que aconteceu? — indagou, desconversando e voltando para a enxada.

— Como?

— Quando perdeu todo o seu dinheiro? Foram os americanos? E Sakamoto-san?

— Sakamoto-san não está muito bem de saúde mental — naquilo, ao menos, não mentia. — Ele passou a cuidar de cães abandonados, e mal nos víamos. Então, veio a recessão, e o dinheiro pareceu sumir.

— Não te restou nada? Você tinha tantas casas. E seu ouro?

Ryo mordeu o lábio inferior.

— Descoberto e confiscado. — quanto mais simples e diretas fossem suas palavras, mais fácil as manteria. —Tenho um carro — confessou, antevendo que a mulher da padaria pudesse delatá-lo. — E uma mala. Deixei ambos num comércio da cidade. Mas vou vender o carro, para ajudá-lo com as despesas.

O outro não recusou.

— Traga suas coisas até o final da tarde — Shiro disse, fazendo com que Ryo quase saltasse de alegria. — Vou arrumar um futon para você com a minha vizinha.

— Posso comprar um — o outro se adiantou, tentando não incomodar.

— Bem se vê que não sabe economizar — Shiro sorriu para ele, pela primeira vez. O coração de Ryo se aqueceu tanto que ele se conteve para não chorar de felicidade. — Guarde seu dinheiro — avisou. — Se não conseguirmos, então você compra.

Ryo concordou. O outro girou o corpo novamente para a roça, e ele percebeu que o assunto estava encerrado. Porém, não conseguia sair do lugar. Não queria se afastar, temeroso que Shiromiya voltasse atrás na decisão. Então, disse a única coisa que lhe veio a mente.

— Muito obrigado. Você é muito generoso. Qualquer outra pessoa...

— Não entenda errado. Eu não gosto de você — adiantou-se, interrompendo-o. — Eu já gostei... Eu amei — corrigiu-se. — Mas, você destruiu isso. Mesmo assim, não fosse você eu não teria sobrevivido ao bombardeio em Tóquio, nem teria forças para chegar ao médico quando estava com aquela febre alguns dias depois. Em seguida, você me recebeu na sua casa, mesmo eu sendo apenas um prostituto analfabeto que não sabia se portar na mesa. Então, é justo que eu lhe dê um teto até que consiga se ajeitar e organizar a sua vida.

Prostituto analfabeto? Que não sabia se portar na mesa...? Ryo pareceu reconhecer aquelas palavras de algum lugar. Mas Shiro nunca havia se tratado assim para ele. Repentinamente, recordou-se da conversa com Tadao naquela manhã de noivado.

— Você me ouviu... — sussurrou, espantado.

Shiromiya girou-se novamente para ele. Seus olhos, secos, estavam completamente sem vida.

— Não importa.

— Precisa entender: eu era um idiota! Nada daquilo representava...

— Já disse, não importa — cortou-o. — Já passou.

— Foi por isso que foi embora? Foi por isso que fugiu com Saito-san?

Shiromiya não respondeu.

— Eu continuo analfabeto e sem saber segurar os talheres — avisou. — Mas eu não sou um prostituto. Eu não o era quando fui com você para Sapporo. Saiba que eu nunca me deitei com você por dinheiro.

— Shiro, eu sei.

— Então, entenda uma coisa antes de vir para a minha casa: antes eu temia minha reação por você, agora eu estou seguro de que só quero distância. Podemos conviver, mas se tentar me tocar, eu enfio o machado na sua cabeça — ameaçou. — Não me importa as consequências, nunca mais encostará um dedo em mim.

Ryo entendeu o tanto de dor que havia naquelas palavras. Então, apenas se curvou respeitosamente e se afastou.

Ambos choravam quando suas imagens desapareciam pela distância.


***


— Deixa eu ver se entendi — Shin murmurou. — Você quer que eu mande alguém pegar seu carro e levar uma boa quantidade em dinheiro?

— Exato. Não muito, apenas o suficiente para que eu pudesse representar que vendi o automóvel.

— E isso por que...? – inquiriu, aguardando o outro completar.

Ryo girou o telefone, encarando uma senhora que parecia ansiosa para que ele saísse da cabine.

— Só um momento — pediu a ela, cobrindo o bocal. — Estou resolvendo um problema, e logo desocuparei.

A mulher arqueou as sobrancelhas, mas não o importunou.

— Shiro acha que estou pobre — explicou, de supetão.

— E ele acha isso por quê?

— Entendeu errado algo que eu disse.

— E você não o corrigiu?

Blasfemando, Ryo ralhou.

— Por que o interrogatório? Vá se ferrar!

— Engraçado dizer isso para mim quando quem irá é você.

— Vá se foder!

— Vá você!

A mulher bateu na porta da cabine. Ryo fez um sinal de espera para ela, e voltou a atenção para o telefone.

— Fará isso ou não?

— Que escolha eu tenho? — quase gritou. — Menti para Saito para protegê-lo.

— Aquele desgraçado está aí?

— Sim, e ele acha que você casou e está vivendo uma vidinha bem tranquila em Sapporo. Sequer imagina que está em Kibou, importunando Kazue.

— Não estou...

— Mentindo para ele — continuou, sem se deixar interromper. — É desse jeito que vai provar que mudou?

— Olha quem fala! — Ryo revoltou-se. — Por acaso é o senhor perfeito?

— Ao menos, mentiroso te garanto que não sou.

— Ah, com certeza, sua sinceridade é o tipo de qualidade que camufla todos os seus defeitos. — Depois, amenizou o tom. — Não entenderia... Não é pai.

— Nem você.

— Miya é minha! — gritou, angustiado. — Minha filha. — repetiu. — Jamais entenderia o que eu sinto ao vê-la. E Shiro... Ele é a pessoa que eu mais amo na vida. Por ele, faria qualquer coisa. Essa é a única chance que terei de ficar perto dele, e nada me fará desperdiçá-la.

Mais uma batida na porta da cabine. Ryo suspirou, daquela vez, encarando furioso a mulher. Ela pareceu entender que estava prestes a ser agredida e se afastou.

— Mandarei alguém buscar o carro e levar o dinheiro — Shin disse mais calmo. — Por favor, não coloque tudo a perder dessa vez.

Satoshi sorriu.

— Torça por mim.

Houve mais um breve silêncio entre eles. Mas assim que Shin voltou a falar, Ryo soube que, como sempre, eles continuavam os melhores amigos.

— É o que eu sempre faço, desde que nos conhecemos.

 

 

 

 


Capítulo 09

Miya reagiu com extrema tranquilidade ao anúncio de que Ryo moraria com eles. Sorriu para Satoshi e lhe desejou boas-vindas. Depois, foi tomar banho, como se o fato de que, após todos aqueles anos, alguém passasse a dividir a casa com ela e seu pai fosse casual.

Ryo buscou a mala no começo da tarde. Informou à proprietária da padaria sobre a venda do carro e pediu que ela enviasse alguém à casa de Shiromiya, assim que o “comprador” chegasse. Prometeu-lhe uma larga quantia em troca de tal favor. A mulher sorriu e agradeceu, feliz na fortuna de encontrar um cliente tão bom e generoso.

Assim, Ryo chegou a casa e encontrou no quarto de Shiromiya um velho futon. Encarou-o em estado dúbio: euforia e incômodo. Ora, passaria a dividir o quarto de Kazue e poderia ficar perto de seu grande amor. Contudo, um futon velho e desconfortável não era algo a que estava acostumado. Mesmo assim, o que importava? Dizendo a si mesmo que dormiria até no chão duro se aquilo significava ficar perto de Shiro, ele ajeitou suas coisas em uma gaveta desocupada e preparou-se para entrar no eixo familiar.

Já era noite quando ele tomou banho e terminou de organizar as roupas. Shiro pouco apareceu, mas ele ouvia sua voz gentil para a criança. E também, ouvia muito Miya. Por Deus! ela era uma tagarela de mão cheia. Falava mais do que ele era acostumado a escutar. Parecia saber sobre tudo, sobre todos. Então, ele aproximou-se da porta do quarto e passou a observá-los, sentados à pequena mesa, diante de livros espalhados.

— “Ai” – ela soletrou um kanji, mostrando ao pai. — Amor. — repetiu. — Diga-me, papa, frases com “amor”.

Shiromiya pareceu incomodado diante da menção do sentimento e ficou em silêncio alguns segundos.

Ryo o observou atentamente. Seu estado rígido denunciava também cansaço. Provavelmente, adoraria estar na cama, descansando. Porém, parecia ainda mais afoito em permanecer ao lado da criança, enquanto ela fazia a lição. Segurava de forma trêmula um lápis curto e tentava imitar o kanji em uma folha de papel branco.

— Amor... — Kazue murmurou.

— O que é amor? — insistiu a criança.

Ryo aguardou a resposta com ansiedade.

— Amor é o que eu sinto quando a vejo dormir — Shiro respondeu, simples.

O comerciante sorriu diante do retorno, repentinamente percebendo que não se enciumava com tal. O que era inacreditável, tendo em vista que costumava arder de ciúmes por qualquer manifestação de emoção de Shiromiya. Lembrou-se de quando tinha crises de insegurança referentes a qualquer pessoa que pudesse despertar a atenção do outro.

— E quando eu estou acordada? — a pergunta era furiosa. — Não me ama?

Shiromiya gargalhou. Ryo recostou-se à porta, curioso diante do embate.

— Com certeza, eu amo — afirmou. — Amo mais do que tudo nesse mundo. Você é a minha pessoa preferida.

Então, ambos trocaram um carinho, encostando os narizes.

Um dia, Shiromiya havia dito aquilo para ele. Naquele momento, confessava para Miya. Percebendo que ele também nutria os mesmos sentimentos, sorriu. Queria que Shiro soubesse que Miya era fruto do amor deles, das suas almas, assim como ele mesmo sabia. Porém, cético como era, e depois de tudo que passara, provavelmente Shiro reagiria com rispidez ao lhe narrar tal coisa.

Repentinamente, Shiromiya voltou-se para a porta, parecendo incomodado por vê-lo. Então, girou-se novamente para Miya, mandando-lhe guardar os livros.

Ryo percebeu que era a hora de jantar e se aproximou da mesa.

— Acabou a água — ouviu a voz perto do fogão. — Vou buscar no poço.

Assim que Shiro sumiu nos fundos da casa, Miya surgiu novamente diante dele. Ela vinha com aquele sorriso enigmático, que parecia dizer mais que as palavras. Sorriu de volta, ansioso para encher a bochecha infantil de beijos.

— Eu sei que você já fez papa sofrer.

A surpresa de Ryo diante da frase era tão nítida que ele sequer conseguiu abrir a boca.

— Você sabe que essa é sua última chance, né? — ela prosseguiu. — Então, não o faça sofrer mais, senão eu terei que machucá-lo, papai... E não quero isso.

Aquela tampinha o estava ameaçando? Era adorável e, ao mesmo tempo, revoltante. Era sua filha, pelo amor de Deus! Como uma filha podia falar assim com o pai?

— E você vai me machucar como? — indagou, segurando-se para não gargalhar diante dela.

— Não preciso de tamanho e força — avisou. — Eu sempre terei meu jeito.

Depois, recostou-se no seu braço, segurando-o firme. O assunto pareceu encerrado, mas Ryo não resistiu em bagunçar seus cabelos num cafuné amistoso. Sakamoto surgiu em seus pensamentos, e ele imaginou a reação de Shin quando a visse, com aquela pose tão semelhante a sua.

Arregalou os olhos.

Kami-sama o protegesse! Não podia deixar Shin se aproximar dela! Já era devidamente terrível sem ser grosseira como o amigo!

Shiro voltou carregando um balde de água. Pôs o líquido dentro de uma panela em cima do fogão a lenha, e depois se achegou com outra à mesa. Novamente, comeriam ensopado. Não que Ryo estivesse pensando em reclamar, mas não pôde deixar de estranhar que tudo naquela casa seguia um ritmo cadenciado e uniforme, sem grandes modificações.

Miya parecia habituada a tal coisa, pois comeu tranquila. Então, ele fez menção de voltar-se para Shiro, a fim de conversarem sobre o elo que os unia. Contudo, o olhar gélido o desmotivou. Só tocou no assunto, quando a hora de dormir chegou.

Sentou-se no futon, do lado oposto ao de Shiromiya e o viu arrumando as roupas que usaria no dia posterior.

— Você levanta cedo? — indagou, buscando assunto.

Shiro o encarou, como se só, então, percebesse que estava dividindo o quarto. Não lhe respondeu.

— Como a controla? — Ryo mudou de assunto, tentando despertar qualquer atitude no outro, além da indiferença.

— Como assim?

Deu certo. Parece que Miya era um assunto que sempre despertava Kazue.

— Bom, é uma criança diferente...

— Está chamando minha filha de anormal?

O olhar colérico de Shiromiya o amedrontou.

— Claro que não! Apenas, é parecida com Shin. Você reparou?

— Minha Miya não tem nada de Sakamoto-san!

Como assim, nada? Era uma miniatura feminina do sobrinho de Hirohito. Entretanto, não queria discussão, ao contrário, buscava desesperadamente a simpatia.

— Quis dizer que é inteligente demais para a idade.

Diante das palavras, Shiro até tentou disfarçar o orgulho, mas viu-se conversando animadamente.

— Apesar de ter faltado muitas vezes na aula ano passado, passou com louvor e é a melhor aluna da turma. A única matéria que tem dificuldade é a leitura. Então, tento ajudá-la.

Ryo ficou surpreso. Era interessante que, mesmo sem saber ler e escrever, Shiromiya se esforçava acima de suas forças para dar suporte à pequena. Envergonhou-se. Era dele aquela responsabilidade.

— Posso ajudá-lo — ofereceu-se.

— Por quê? Ela não é nada sua.

A frase ardeu em seu peito. Lembrou-se do toque da pele infantil, da forma como ela, já adulta, o chamava orgulhosamente de pai... E, mesmo naquele momento, da maneira como ela já se sentia completamente à vontade perante sua presença. Como queria explicar a Shiromiya que Miya era dele tanto quanto sua!

— Estou vivendo aqui...

— Quanto tempo irá ficar?

Só então reparou que Shiro não esperava que ele fosse ficar muito.

— Até você me mandar embora — brincou.

O outro não expressou qualquer palavra diante da resposta. Ryo suspirou. Ao longe um estrondo anunciava uma chuva que se aproximava. Era uma época bastante úmida do ano.

— Gostaria de instalar uma bomba para encanar a água. Acho que facilitaria muito a sua vida.

Silêncio.

— Inclusive, poderia colocar um gerador...

— Guarde o dinheiro do seu carro para as suas necessidades.

— Minhas necessidades agora estão aqui — foi franco. — Por favor, deixe-me mostrar um pouco de gratidão. Você me disse que me acolheu porque um dia eu o ajudei. Foi generoso dentro das suas limitações. Então, quero demonstrar que também posso ser.

— E por quê? O que isso lhe interessaria?

— Eu mudei, Shiro.

O outro baixou a face. Por alguns segundos Ryo aguardou uma réplica que não veio.

— Você não acredita que as pessoas possam mudar?

Shiro suspirou.

— Talvez. Ficar pobre obrigaria você a mudar mesmo.

— Não foi por falta de dinheiro, Shiro — disse, franco. — Foi por você.

Mais silêncio. Percebendo que Shiro parecia remoer as palavras, Ryo prosseguiu.

— Quando encontrei o quarto vazio naquela manhã... Eu morri de alguma forma. Percebi naquele momento o quanto eu o amava... O quanto você foi especial... E o quanto eu não valorizei isso. Só queria que...

— Olha — interrompeu-o. — Eu realmente preciso acordar cedo. — Levantou-se e foi até a lamparina. — Vamos dormir — avisou, encerrando o assunto.

Então, a luz foi desligada. Ryo deitou-se, exausto de todas as formas possíveis e ficou a encarar a silhueta que, no escuro, se movia em direção ao futon. O vento batia nas madeiras da casa simples e ele podia sentir uma leve brisa a tocá-lo. Logo, os pingos chegaram, e o tempo pareceu correr depressa, enquanto seus olhos permaneciam abertos, acostumando-se a escuridão, observando a pessoa do lado oposto do quarto.

Ao contrário dele, Shiromiya dormiu imediatamente. Claro, acordava cedo e passava o dia todo trabalhando, não era à toa que estava exausto. Ouviu o ressonar tranquilo e também fechou os olhos.

Lá fora, a tempestade se intensificou. Os trovões sucederam-se, um atrás do outro. Ryo abriu os olhos novamente, incapaz de conseguir pegar no sono. E foi naquele momento que ouviu um som diferente da chuva. Olhou para a porta e viu-a abrindo. Em segundos, a imagem de uma menina pequena surgiu.

Quis chamar Miya, perguntar-lhe se estava tudo bem, mas a menina esgueirou-se para as cobertas de Shiromiya. E, tão baixo quanto um sopro, ele ouviu um choramingo infantil.

— O senhor Bigode está com medo do “cabum”... — Ela sussurrou, a voz embargada. — Pare o “cabum”...

Shiro remexeu-se embaixo das cobertas e a abraçou, apertando-a contra o peito.

— Não é “cabum” — a voz pacífica dele tentava acalmá-la. — Diga ao senhor Bigode que é somente a chuva.

Ryo ficou paralisado, enquanto ouvia o choro baixo, comprimido contra o outro. Ouviu também o murmurar de Shiro, indicando que ele se esforçava em acalmar a criança. Então, depois de alguns minutos, tudo se acalmou.

O coração doeu ao perceber que ambos se confortavam bem sem ele. Miya tinha Shiro, e Shiro tinha Miya. Era praticamente um intruso, sem qualquer utilidade. Caso fosse embora no dia seguinte, não dariam por sua falta.

Miya lhe disse que Shiro chorava todas as noites, antes de ir dormir. Daquela vez, sentia, seria ele a passar por tal aflição.


***


Aiko Mamoru curvou-se ligeiramente à mesa, pondo sobre ela uma xícara de café preto. O velho a sua frente, sorriu, agradecido.

— O livro está agradável, Watanabe-san?— indagou, gentil.

— Com certeza. Dumas tem o poder de me fazer viver aventuras que sequer imaginei em toda a vida.

Mamoru sorriu novamente e se afastou, dando ao homem a privacidade para prosseguir em seu contato com o mundo escrito.

Na verdade, era até cômico que não gostasse de ler, já que, naquele momento, era dono de uma livraria. Claro, às vezes folheava uma página ou outra, lia uma poesia aqui, um conto acolá, mas nada que realmente lhe despertasse a atenção. Preferia os butais ou cinemas. Infelizmente, já tinha certo tempo que não ia a nenhum dos dois.

O som do sino em cima da porta tocou. O aviso de que chegava um novo cliente o fez voltar-se para a saída, querendo receber com um sorriso o próximo comprador. Porém, a demonstração tornou-se emoção, assim que viu aquele que entrava.

Jiro Saito continuava igual, apesar de ambos já terem passado dos trinta anos. A pele acetinada e os intensos olhos o mediram por alguns segundos, antes de Jiro parecer forçar um sorriso que era tão acanhado que Mamoru pestanejou por algum tempo, antes de caminhar rapidamente em direção a ele, jogando-se em seus braços.

— Jiro...? — sussurrou contra os ouvidos do amigo e sentiu que ele o apertava com força contra si.

— Achei que o tempo pudesse ter apagado minha imagem da sua mente — ouviu a confissão desesperada, entre soluços, e então se viu a chorar também.

Soltaram-se o suficiente apenas para que pudessem se olhar.

— E Shiro?

— Ele está bem — adiantou-se, não querendo dar qualquer impressão errada. — Temos tanto para conversar.

Mamoru assentiu.

Era tempo demais para colocarem em dia.


***


Jiro observou o movimento nas ruas através da janela enorme. Sentado à uma pequena mesa, ele bebericou o café antes de voltar-se para o amigo à sua frente. Sorriu novamente. Aiko estava tão bonito quanto as sakuras na primavera. Permanecia com aquele olhar gentil e bondoso, extremamente sensual. Era como se o tempo não houvesse machucado aquele coração tão generoso.

— Como é Miya? — Aiko indagou, após um minuto de silêncio.

Depois dos cumprimentos afoitos, os dois passaram a trocar histórias sobre o tempo que estiveram separados. Quando soube que Shiro era pai, Mamoru ficou surpreso.

— Bom... — Jiro buscou as palavras. — É linda. Apesar de não ser filha biológica, ela tem o mesmo olhar de Kazue.

— E o jeito dela? É delicada e doce como uma flor?

Um ataque de riso inundou a garganta de Saito e ele levou um certo tempo para conseguir se controlar.

— Digamos que, às vezes, esquecemos que ela tem oito anos. É bem madura.

— De um lado positivo?

— Sabe quando Shin nos enlouquece e nos faz desejar matá-lo? E, então, em seguida, ele nos toca com o olhar pedinte, carinhoso? E tão logo isso ocorre, nós acabamos por perdoá-lo, mesmo sem merecer?

Não houve respostas, e Jiro não se ateve ao fato de que o outro parecia não disposto a falar do terceiro.

— Então, ela tem essa personalidade que nos deixa em conflito: esganar aquele lindo pescoço ou encher de beijos as bochechas rosadas? Contudo, apesar da personalidade forte, é uma criança adorável. Shiro fez um trabalho incrível.

Aiko uniu as suas mãos a de Jiro.

— Fico tão feliz! Por que ele não veio com você?

— Kazue tem gastos extras. Miya tem problemas de saúde. E ele não aceita ajuda. Acha que Miya é sua responsabilidade e é capaz de provocar uma briga se eu tentar dar qualquer dinheiro. Então, não teve condições de viajar.

— Posso ir até ele — Mamoru se animou diante da possibilidade. — Estou tão feliz que tenha vindo! — apertou os dedos do outro. — Assim que partiu, arrependi-me de ter dito para que não entrasse em contato. Céus! Como sofri todos esses anos sem saber se vocês dois estavam bem.

Jiro sorriu.

— Se eu soubesse que Ryo Satoshi tivesse se casado, eu teria vindo antes.

A frase fez Aiko arquear as sobrancelhas.

— Mas ele não se casou.

Daquela vez foi Saito que ficou confuso.

— Como assim? Shin me disse... — a voz morreu. Por alguns segundos ambos pareceram em torpor. — Por que ele me mentiria?

Aiko deu os ombros.

— Como estão vocês dois?

Apesar da seriedade da mentira de Sakamoto, os olhos apagados de Mamoru eram assunto bem mais urgente. Então, Jiro não resistiu ao assunto.

— Não estamos — o outro explicou. — Não estamos há cinco anos.

Saito sabia. Shin já havia lhe dito aquilo, mas queria confirmar.

— Você está com alguém? — a pergunta ardeu em seu peito, fazendo com que ansiasse pela resposta.

Mamoru negou e algo explodiu em Saito.

— Uma vez disse a Shin que, caso ele não te valorizasse, eu iria lutar por você...

Aiko sorriu. Porém, imediatamente, voltou o corpo para traz, buscando o olhar do cliente que lia na mesa ao lado. Ao perceber o senhor Watanabe entretido em um livro, ele respirou aliviado.

— Podemos conversar sobre isso à noite? — perguntou, ansioso. — Gostaria de jantar comigo?

Saito estremeceu.

— Claro. Deseja ir a algum lugar especial?

— Quem sabe, aqui em casa...

A insinuação era tão clara que Jiro pareceu meditar se estava realmente diante do mesmo homem que havia deixado para trás em 1945. O que havia acontecido a Aiko naquele tempo? Não demorou muito em notar que as palavras eram movidas pela solidão.

Então, entrou em conflito. Desejava mesmo aproveitar-se daquela situação? Pensou em Shin e nos anos que o sobrinho de Hirohito teve para destruir as barreiras de Mamoru. Nada fez. A chance agora mudava de lado.

— Eu ainda te amo — confessou, não querendo deixar dúvidas sobre suas intenções.

Mamoru ficou tímido e voltou novamente a olhar a mesa ao lado. Então, retornou para Jiro, num sorriso tão acolhedor que o outro teve que se conter para não mandar o cliente de Aiko embora e levá-lo para o andar de cima.

— Eu farei uma janta gostosa — avisou. — Então, não se atrase.

Discretamente, Saito ergueu as mãos do amigo até os lábios e beijou com paixão os pálidos dedos.

 


Capítulo 10


A leve brisa noturna tocou seus cabelos. Jiro Saito enroscou os dedos nas madeixas, puxando a franja para trás, enquanto encarava a porta do estabelecimento de Aiko.

Baixou a face, observando o ramalhete de flores. Reticente, ele pensou mais uma vez se devia dar aquele passo. Havia passado os últimos cinco anos sonhando em reencontrar Mamoru, beijá-lo, tocá-lo. Nos seus mais ilusórios sonhos, pensava que talvez o tempo houvesse esfriado os sentimentos do outro para Shin. E então ele teria uma chance... Mas jamais pensou que, ao retornar, realmente pudesse encontrar a situação por qual tanto ansiara. Ainda assim, por que estava tão receoso?

A porta abriu, mesmo ele não tendo batido. Aiko o observou do outro lado, sorrindo. Vestia um bonito quimono floral, os cabelos atados em um rabo frouxo escorriam pelas suas costas, enquanto um leve odor de algum perfume amadeirado tocou seus instintos.

Deus! Como podia aquele homem ser tão lindo?

— Ficou quase dez minutos aí — Aiko riu. — Pensei que fosse desistir, então resolvi abrir a porta de uma vez.

— Jamais — Jiro negou, balançando a face. — Apenas comecei a pensar em nosso passado, em como desejei ardentemente encontrá-lo nesse tempo que passou.

Aiko deslizou as mãos pelos braços de Jiro. O olhar que trocaram dizia muito.

— Também fantasiei muitas vezes, nesses anos solitários, que Shiro e você entrariam pela minha porta... — lágrimas discretas formaram-se nos lindos olhos negros. Mamoru sorriu, disfarçando. — Tentava me apegar às minhas esperanças, mas não tinha certeza de que haviam sobrevivido...

Jiro assentiu. Na verdade, 1945 fora um ano que roubara de todos, a certeza da vida. Descobriu, a duras penas, que a morte era mais fácil do que imaginava.

— Mas agora está aqui — Aiko o puxou levemente para dentro. — Está aqui, Jiro-san... — repetiu. Fechou a porta e ambos permaneceram frente a frente, camuflados pela escuridão da loja deserta. — Mal posso acreditar que é você mesmo...

Os dedos finos e longos de Aiko deslizaram pela face pálida do ex-sargento. Quando o polegar passou pelos lábios macios, Jiro o capturou com os dentes. Um arrepio poderoso atingiu a ambos, e em segundos o corpo de Saito prensou o de Aiko contra a porta.

— Eu já disse — Saito avisou. — Todos esses anos não mudaram meus sentimentos por você. Então, Aiko-san... — murmurou, aproximando o rosto — não provoque uma situação que não deseja.

Em resposta Mamoru Aiko baixou a face, fazendo com que os lábios acariciassem os de Jiro. Ambos trocaram um beijo gentil, porém saudoso.

— Tenho total conhecimento do que você deseja, Jiro — sussurrou, tentador. — Mas, vamos jantar. — Afastou-se apenas o suficiente para que o desejo de Saito pudesse prosseguir aumentando. Segurando-o, pela mão, guiou-o até o andar de cima.


***


— Não era do meu conhecimento que você sabia cozinhar — Saito levou a massa até os lábios. Gemeu perante o gosto do Yakisoba feito com esmero.

— Eu era um preguiçoso — o outro brincou, também degustando o alimento. — A verdade é que Nana costumava ensinar seus “filhos” a fazer tudo. Sabíamos – as meninas, Shiro e eu – cozinhar, lavar, limpar... Enfim, eu apenas não fazia porque sempre tinha quem o fizesse para mim.

Saito assentiu, repousando o hashi no prato.

— Mas você não era um desocupado. Administrava a Casa Ai com energia e competência.

A menção de seu antigo lar trouxe ao outro homem uma tristeza profunda em seu coração.

— Voltei para lá — contou. — Quando o Japão se rendeu, fui embora do bunker e retornei para a Casa Ai. Os restos de Nana e de outros corpos que eu desconheço, ainda estavam espalhados. E ainda havia cheiro de carvão...

Jiro baixou a fronte, triste.

— Eu lamento não ter estado lá para você.

— Só não esteve porque cumpriu um pedido meu — Aiko afirmou. — O que fez provou-me o quanto seus sentimentos por mim são verdadeiros, Jiro...

O outro o encarou. Havia desejo ali ou era fruto da sua imaginação?

— De qualquer forma...

Levou um susto ao perceber que o outro moveu o corpo rapidamente. E, tão inesperado quanto um raio, Mamoru Aiko achegou-se a ele, sentando-se em seu colo, as pernas abertas contra sua cintura, paixão em seu olhar.

— O quê...?

A boca de Aiko procurou a sua e tudo se perdeu naquele beijo apaixonado. Jiro segurou-o firme, deslizando a língua pela sua abertura, saboreando seu gosto, brincando com seus dentes, enroscando sua língua na de Mamoru, aproveitando-se daquele momento com a mesma atitude de um faminto diante de um jantar generoso.

— Não entendo — assumiu, assim que as bocas se desgrudaram.

Diante da postura conflituosa, Aiko pareceu envergonhado.

— Desculpe, achei que era o que você desejava.

O outro não sabia se ria ou chorava diante da atitude.

— Mamoru, eu te amo — confessou. — Por Deus! Amo-o mais do que seria capaz de amar qualquer outra pessoa! — repentinamente a voz engasgou. Era mentira. Ele amava Shin Sakamoto com a mesma ansiedade e paixão. Porém sabia que não poderia ter ambos. E, naquele momento, conseguia a pessoa que mais desejou na vida. — Mas precisamos tanto conversar.

Aiko saiu de seu colo, sentando-se na almofada ao seu lado. Havia trazido da Casa Ai o costume de comerem em mesas baixas, sentados no chão. Apesar dos americanos, aos poucos, estarem infiltrando seus próprios costumes, incluindo mesas altas e cadeiras, aquele pequeno gesto trazia o alento do passado a Aiko.

— Eu preciso saber como Shin e você...

— Já te disse — rugiu, como um leão. — Não existe mais nada entre aquele homem e mim.

— Aquele homem? Antes de eu ir embora, ele era a pessoa que você mais amava.

— Mas eu o odeio agora! — gritou. Repentinamente, os olhos encheram-se de lágrimas, denotando seu descontrole. — Eu o odeio mais que tudo! Quero que ele morra!

Mas aquela dor transbordante em seu olhar não condizia com as palavras que saíam de sua boca. Maduro e experiente, Saito ficou ciente da verdade depois de alguns segundos, enquanto via o seu amado Aiko baixar a face, escondendo os lábios com as mãos, tentando engolir suas lágrimas.

— Talvez eu deva ir embora — disse, levantando-se.

Em segundos foi puxado novamente para o chão. Seu nariz tocou-se ao de Aiko. Em silêncio, ele esperou até que Mamoru conseguisse controlar o choro e falasse.

— É tudo culpa sua! — Aiko o acusou.

— Minha?

— Sim! Porque diz que me ama, mas nunca luta por mim! — ralhou. — Lembra-se de que em nosso passado eu havia lhe dado uma chance? Fui eu que o chamei para a cama! Que pedi para que fizéssemos amor! Mas foi você que me deixou naquela cabana.

— Fiz o certo. Não era a mim que queria.

— Mas estava disposto a aprender a querer. Eu desejava desesperadamente amá-lo, Jiro-chan. Eu estava aceitando o fato de que pudéssemos ficar juntos. Entretanto, você me deixou lá, sem armas, diante de um homem que tinha o poder de me avassalar.

— Um homem? Sequer consegue dizer o nome dele, não é? Fale, Mamoru! Diga! Ele se chama Shin Sakamoto!

O outro cobriu as duas orelhas com as mãos trêmulas. Jiro as puxou, fazendo-o acordar, trazendo-o novamente para a realidade.

— Sei o que está tentando fazer! — afirmou, puxando as mãos, descobrindo os ouvidos. — Quer transferir a culpa que sente pela morte de Nana para Shin. Porque é mais fácil atirar sobre ele a responsabilidade do que aceitar que você não foi embora de Tóquio porque não quis, apesar dos apelos de Nana, Shiro e até mesmo dos meus.

Aiko negou, incrédulo diante das palavras.

— Eu o amo, Mamoru. Mas não vou me aproveitar das suas ilusões para tê-lo. Se quiser... se me quiser — corrigiu-se —, estarei disposto a iniciar uma relação. Por Kami-sama, eu farei tudo na minha vida para fazê-lo feliz. Contudo, esse amor será respaldado na verdade.

Respirou fundo, ainda mantendo as mãos de Aiko firme nas suas.

— Não vou mentir, Mamoru. Você se lembra do que eu era antes de me apaixonar por você, não? Dormi com Shin no primeiro dia que o conheci. Tive dezenas de homens, pouco me importando com os seus sentimentos. E, ao perdê-lo, voltei a essa vida desregrada, sem princípios. Mas sempre teve a capacidade de despertar em mim meu melhor. E disso não abro mão.

Só então o outro pareceu se acalmar. Envolveu-o novamente nos braços, prensando-o com força.

— Eu te amo, Jiro — confessou, sem medo. — Só ainda não sei de que maneira.

— Está tudo bem, meu querido — sorriu, aspirando seu perfume. — Vamos descobrir juntos...

— Eu... — começou, volvendo o corpo para trás, encarando o outro. — Após aquele fim — referiu-se a Sakamoto —, eu me sinto tão só... e meu corpo dói...

Não era necessário ser muito inteligente para entender que Mamoru se referia a sexo.

— Tenho necessidades como qualquer pessoa, Jiro — disse. — Você viveria seis anos sem...?

Jiro o puxou, beijando-o com ardor. Em segundos, Mamoru voltava para seu colo, esfregando-se contra ele como um gato manhoso, ansioso por mais.

Porém, aquele homem oferecido não era o seu Aiko, e Jiro sabia disso. O ex-cortesão estava ferido demais, e provavelmente perdera seu próprio senso de direção e decoro.

— Vamos com calma — disse, contradizendo o seu órgão genital, que endurecia contra a calça jeans. — Vamos devagar... — sussurrou, contra seus lábios macios. — Você quer namorar comigo? — indagou, de supetão.

Aiko volveu a cabeça para trás, num sorriso apaixonadamente surpreso.

— Jiro... — murmurou, em espanto. — Eu... — pareceu sem palavras. Contudo, em seguida, gritou. — Sim! — afirmou. — Sim, Jiro-san, eu quero ser seu namorado!

Saito segurou firme seu rosto, como se pronto a beijá-lo novamente. Contudo, uma batida na porta os afastou.


***


Shin Sakamoto ergueu o isqueiro, acendendo o cigarro barato nos lábios. Depois de tragar, soprou a fumaça que se misturou à neblina daquela noite gelada. Encostou-se em um poste de luz, encarando o prédio de dois andares, tentando visualizar algo refletido pela janela do piso superior.

Nada.

Respirou fundo, tirando o cigarro da boca e o atirando no chão. Não estava no clima para fumar. Preocupado, pôs as mãos no bolso, a mente trabalhando rápido, tentando descobrir uma saída para seus problemas.

Watanabe o visitou à tarde, avisando-o do encontro de Aiko e Jiro. As palavras amenizadas por um tom gentil, tentavam acalmar a tempestade que se iniciou no semblante do sobrinho de Hirohito e alastrou-se para todo seu ser.

O que faria?

Não podia usar as táticas de sempre contra Jiro. Jamais lhe levantaria a mão, jamais tentaria subjugá-lo ou afugentá-lo. Porém, por maior que fosse seu carinho e respeito por Saito, não entregaria Aiko em suas mãos. Apesar do tempo que passou, Mamoru foi e sempre seria seu.

Talvez devesse ir até a casa. Isso! Arrebentaria a porta da frente com um pontapé e deixaria claro aos dois que não aceitava nada entre eles que não fosse apenas uma amizade. Afinal de contas, sabia que Jiro ainda nutria sentimentos românticos em relação ao ex cortesão e, depois de tanto tempo, Aiko provavelmente podia confundir a carência com paixão.

Recriminou-se a si mesmo por não ter se imposto ao outro antes. Ora, sabia que Aiko gostava de sexo – mais que o normal –, e devia estar subindo pelas paredes diante de tanto tempo em abstinência. Resmungando, intuiu que seria uma presa muito fácil para o sensual e sedutor Saito Jiro.

Subitamente, porém, o foco de suas idéias foi desviado para uma figura cabisbaixa que se postava do outro lado da rua a observar o mesmo ponto que ele.

Já havia visto aquele rapaz antes. Era o atual amante de Jiro. Como se chamava mesmo o estrangeiro?

— Daniel! — chamou, num tom normal, tentando não atrair demais a atenção dos transeuntes.

O rapaz o encarou. Seu olhar acanhado deixava claro que o havia reconhecido.

— O que faz aqui? — Shin questionou, aproximando-se.

— O mesmo que você, pelo jeito — respondeu.

Não era preciso ser um gênio para perceber que o rapaz estava ferido. E Shin sabia que nada era mais fácil que manipular alguém que sentia o coração doer de amor.

— Você sabe, não é? — começou, devagar, buscando as melhores palavras. — Jiro e Aiko são muito próximos.

O outro não respondeu.

— Amigos inseparáveis, em épocas passadas...

— Jiro me contou que vocês dois amavam a mesma pessoa.

— Não éramos rivais — Shin deixou claro. — Porque na verdade eu amo Saito-san também. Você sabia que na guerra ele era meu amante fixo?

Daniel pareceu surpreso.

— Ele não me fala sobre a guerra.

Shin fingiu espanto.

— É mesmo? Deve ser difícil para Jiro-chan. Enfim, apesar de viver na minha casa e me servir na cama, Jiro se aproximou de Aiko, que era também meu homem — tagarelou, sem constrangimento. — E os dois passaram a nutrir uma amizade... Ah, acabo de perceber, você não conhece Aiko, não é?

O americano preferiu o silêncio. Constrangido, baixou a face, remoendo aquela verdade. Saito havia lhe dito durante a tarde que iria até o amigo. Foi excessivamente direto em deixar claro que o resultado daquela visita poderia afastá-los definitivamente. Antes de sair do quarto alugado, encarou Daniel e sussurrou um “muito obrigado por tudo”. Quando ele bateu a porta, o americano caiu no choro.

— É só um garoto — Sakamoto interrompeu seus pensamentos. — Ainda não sabe como lutar pelo que quer, não é?

Daniel o observou com interesse. O que queria insinuar?

— Saito não costuma manter amantes por mais tempo que o necessário para satisfazer sua curiosidade. Porém, parece que ele o manteve. E mais, viajou contigo para Tóquio. Não é qualquer coisa, significa que ele nutre sentimentos por ti.

Tais palavras tocaram o coração machucado do outro.

— Acha mesmo?

— Se eu fosse você, bateria agora mesmo naquela porta — apontou. — Se apresentaria a Aiko e deixaria claro que não desistiria de Jiro! Aposto que isso vai surpreender Saito. Ele não espera isso de você...

Precisou de todas as suas forças para conter a gargalhada que invadiu sua garganta ao ver o jovem estrangeiro mover o corpo em direção à porta da livraria de Mamoru.

Ele bateu lá com o punho fechado, com força e determinação. Shin escondeu-se atrás do poste, observando a cena. Era um circo bem montado e ele não se faria de rogado em rir dos palhaços.

Pouco depois, Mamoru apareceu. Abriu a porta e disse alguma coisa para o rapaz. O sorriso que deu àquele menino fez o sorriso de Sakamoto sumir no rosto. Como odiava qualquer manifestação de carinho que Mamoru desse a outra pessoa! Ora, tudo referente ao amante era dele! Seu sorriso, seu corpo, sua voz, seu toque... tudo... seu!

E então, quando Mamoru abriu caminho convidando o rapaz a entrar, Shin Sakamoto enfim se congratulou. A noite de Jiro estava arruinada.


***


Saito Jiro percebeu o movimento próximo da janela. Encarou com atenção a cortina floral e sorriu ao perceber o pequeno corpo saindo de seu abrigo e indo até ele.

— Você ainda está vivo, criatura? — brincou, acariciando a face de Minikui.

O velho gato ronronou contra seus dedos, num cumprimento hospitaleiro. Depois, caminhou na direção do quarto de Aiko, deu um pequeno e difícil salto e deitou-se no colchão de molas.

Pensou em ir até ele. Sentar-se no leito e ficar conversando com o animal, como um velho amigo. Contudo, ainda não estava em tal estado de demência e preferiu aguardar Aiko, permanecendo no mesmo lugar.

Não demorou muito. Segundos depois, ouviu passos ecoando da escada de madeira. Retesou o corpo, antevendo a presença de mais uma pessoa.

Ao voltar o rosto para a porta de ligação, visualizou Mamoru entrando na sala com um jovem.

— Jiro! — Mamoru exclamou. — Seu amigo estava lá embaixo.

Saito precisou se conter para não voar até o americano e socá-lo. Como se atrevia? Não havia deixado claro que não mais o queria? Precisava ser mais explícito? Quando Daniel entenderia que já o havia usado o quanto desejava e que agora o descartava para enredar-se com alguém pelo qual nutria sentimentos?

— Você já jantou? — Mamoru indagou, solícito. — Espero que goste de...

— Ele já vai — Saito interrompeu, antes mesmo do outro se aproximar da mesa.

— Por quê?

Levou um certo tempo para que o ex-dono da Casa Ai percebesse a animosidade. Girou o corpo para Saito, preocupado, indagando-lhe com o olhar os motivos de estar tão raivoso. Porém, ao encarar novamente o rapaz americano e ver nele as lágrimas reprimidas, intuiu a verdade.

— São namorados? — a pergunta foi dirigida a Jiro.

— É claro que não! — O outro resmungou. — Ele é só um cara... que... você sabe...

Aquele desprezo... Aquele mesmo desprezo que Shin dirigiu a ele, e que Ryo focou em Shiromiya. Mamoru mal pôde conter o tremor nas mãos.

— Quantos anos têm? – voltou-se para o americano.

— Eu...

— O que importa? — Saito interrompeu. — Vá embora — apontou a saída para Daniel. — Eu o verei de manhã e então conversaremos.

O rapaz até fez menção de sair, mas antes de conseguir dar um passo, foi segurado nas mãos por Aiko.

— Na minha casa, só quem manda outra pessoa embora sou eu — avisou a Jiro. — Acho melhor você sair, Jiro-san. Amanhã nós conversamos.

Saito ficou embasbacado.

— O quê?

— Amanhã nós conversamos — Mamoru repetiu, mais firme. — Agora preciso digerir o fato de que me pediu em namoro, enquanto mantinha um relacionamento com outra pessoa.

— Aiko, eu não...

— Esse Jiro que está diante de mim não é o Jiro de minhas lembranças — a amargura era nítida no tom de voz. — Porém, o Jiro que me provou sua amizade e amor anos atrás merece ser ouvido e se explicar. Contudo, não agora. Agora eu prefiro me acalmar.

Compreendendo, Saito curvou-se diante de seu amado e saiu. Porém, ao cruzar por Daniel, dirigiu a ele o mais terrível de seus olhares.


***


Saito ouviu a gargalhada antes mesmo de cruzar a rua. Seus olhos focaram-se na figura ereta, encostada em um poste de luz, vestido com calça e casacos escuros, bem camuflado na escuridão de Tóquio.

— Imbecil! — ralhou alto, aproximando-se.

— Pode xingar-me à vontade, mas a verdade é que venci essa questão.

— Venceu-a? Não passa de um retardado! — conteve-se para não voar no pescoço alvo do amigo e esmagá-lo com as mãos. — Agora Mamoru está lá, sozinho e carregado de piedade para um moleque bonito, jovem, educado e bom de cama.

Conforme a frase ia ser mastigada por Shin, o sorriso satisfeito sumia de seu rosto.

— Aiko não é fútil...

— Ele rebolou em cima de mim — contou, atazanando mais. — E, meu caro, Daniel é dominante na cama, e é muito bom no que faz. Se ficarem ambos lá, consolando um ao outro, existe uma chance grande de tanto eu quanto você sermos chutados como dois frutos podres.

Shin então voltou o corpo para a janela de Aiko, visivelmente preocupado.

 

Capítulo 11


Saito Jiro atirou a cabeça para trás, enquanto sua sonora gargalhada ecoava pelo quarto bonito de Shin Sakamoto. O corpo inteiro tremia, em um misto de alegria e prazer, enquanto sentia o amigo achegando-se em cima dele, beijando sua boca com paixão e, depois, descendo os lábios para seu pescoço.

Como haviam parado ali ainda era motivo de surpresa para Jiro. Boa parte daquela noite foi desperdiçada por ambos, sentados à janela de Aiko, observando com atenção a luz do piso superior, buscando desesperadamente encontrar uma saída para o problema criado por Sakamoto. Desistiram quando as luzes apagaram-se e o americano não saiu da casa.

“ Eles não vão dormir juntos! ”, aliviou Saito, contendo um Sakamoto inconveniente, que já se preparava para invadir a casa do ex amante.

“ E como você sabe ?”

Daniel era apaixonado por ele, contara a Shin. Uma daquelas paixões juvenis, em que tudo que se vê é o objeto de cobiça. Sakamoto pouco acreditou, mas, por fim, aceitou seguir o amigo até um bordel, a fim de beberem para relembrar os velhos tempos.

E como beberam...

Havia tantas narrações a compartilhar, tanto a rir. A juventude que já os acalentou um dia, agora parecia reviver diante das historias partilhadas. E foi assim que acabaram indo parar na casa de Shin, completamente bêbados, carregando, cada um, duas garrafas de saquê, obviamente dispostos a beberem mais.

— Lembra quando você se recusou a cumprimentar Hitler?

Sakamoto, naquele instante, parecia entretido em abrir a fila de botões da camisa branca de Jiro. Porém abandonou a missão e deitou-se sobre o peito do outro, gargalhando alto.

— Deus, como eu era corajoso!

— Irresponsável e idiota! — Jiro negou, a risada fazendo sua garganta doer. Bebeu mais um gole de saquê. — Achei que iríamos morrer.

— Não nos matariam por algo assim — Shin negou. — Mas poderiam nos matar, caso descobrissem o que fizemos no quarto do hotel durante o tempo que estivemos na Alemanha.

Saito bebeu mais um gole de saquê. Repentinamente, a garrafa saiu de seus dedos e Shin bebeu o resto do líquido em um gole.

— Vou buscar mais — avisou, saindo de cima do corpo do amigo e indo cambaleante até a porta.

Jiro tentou se erguer, mas não tinha mais equilíbrio. Então, permaneceu deitado, o corpo relaxando sobre o efeito do cheiro de Sakamoto no travesseiro.

Repentinamente, porém, sentiu novamente o peso familiar em cima de si.

— Já pensou em comer um alemão?

— Você os achava gostosos?

— A maioria deles era vermelho demais, ansiosos demais... Mas algumas bundas pareciam apetitosas.

Saito gargalhou novamente. Por que se sentia como se estivesse no paraíso?

— Quero ficar assim pra sempre — confessou.

E então vieram as lágrimas. Era um alívio tremendo poder falar com Shin novamente, sentir seus beijos, seu toque. Naquele momento, sequer se lembrava do porquê haviam discutido tanto ou se Shin tinha defeitos.

O zíper de sua calça abriu e ele voltou a rir, secando as lágrimas e olhando para baixo.

— Não vamos transar — avisou.

Contudo, as palavras morreram ao perceber Shin dominar seu pênis com a mão direita e enfiá-lo em um pote com mel. Não havia visto o alimento em suas mãos! A textura fê-lo gemer. Mas nada o preparou para a sensação potente que o dominou ao ver Sakamoto levando seu mastro à boca, lambendo e chupando o mel, excitando-o de uma forma desesperada.

— Meu pau não é colher — Jiro avisou, tentando escapar daquela sedução barata, mas eficaz.

Talvez porque Shin quisesse contrariá-lo, talvez porque quisesse confrontá-lo, ou simplesmente submetê-lo... Enfim, as razões ocultas, Jiro não sabia, mas tudo perdeu a razão quando percebeu Sakamoto derramando metade do pote em sua virilha e descendo a cabeça, como se desejasse comê-lo literalmente.

Em algum canto de sua mente, a imagem de Aiko surgiu. Seu sorriso doce, sua postura gentil. E então a própria voz o atingiu, pedindo em namoro aquele homem que amou ardentemente por anos. E Mamoru aceitando, com um sorriso acolhedor.

— Eu não quero — resmungou, tentando afastá-lo de seu pênis duro. — Pare.

Shin não se moveu. Ou, ao menos, não da maneira que Jiro esperava. Segundos depois, ele voltava à posição inicial. Os olhos de Saito pesaram, como se estivesse entregando os pontos de uma guerra perdida.

No instante que ele fechava aos olhos, entregue ao sono, Shin adentrou em seu corpo sedutor. Saudoso, buscava novamente um porto seguro. O corpo apaixonante de um amor inesquecível.


***


O gosto acre foi a primeira sensação que teve ao acordar. Remexeu-se nas cobertas, elevando as mãos até a testa, gemendo alto ao sentir aquela dor insuportável causada pela ressaca.

Então, abriu os olhos. A luminosidade o atingiu e ele choramingou, com raiva.

— Shin! — chamou, chutando as cobertas e sentando-se na cama.

Só então veio a dor ardida, tal que ele conhecia muito bem. Volveu os olhos para baixo, percebendo uma gosma seca grudada nas suas pernas. Constrangido, levou as mãos a sua traseira. Fechou os olhos em agonia.

Rapidamente, o rosto do ex-sargento Saito Jiro ficou rubro de raiva. Sem pensar direito, ele tentou se colocar de pé. A ardência se tornou um pulsar forte de dor e ele precisou sentar-se novamente.

Respirou fundo, tentando se acalmar. Contudo, sua intenção não teve muito proveito e logo ele procurava as roupas, e descia as escadas, atrás do outro.

Encontrou-o à mesa, degustando uma infinidade de alimentos, parecendo feliz demais para alguém que bebera como um louco na noite anterior.

— Shin — gritou. — Por Kami-sama, o que fez?

O olhar inocente o atingiu.

— Aconteceu alguma coisa?

O tom da voz do outro era neutro e tranquilo. Saito precisou se conter para não atirar-se sobre ele e socá-lo até perder as forças.

— Tem porra na minha bunda! — explicou, num xingamento.

— Ah! — foi tudo que o outro disse e voltou a comer.

Diante da não justificativa, Jiro perdeu o controle. Agarrou cada coisa que conseguiu pegar e atirou no outro.

— Meu queijo suíço — ouviu, e se enfureceu mais.

— Você coloca nossa amizade em risco e se preocupa com a comida? – questionou, magoado.

— Nossa amizade? — Shin arregalou os olhos. — Em risco? Mas por quê?

Só então se deu conta de que diante de si estava o mesmo Sakamoto de cinco anos atrás. O Shin defeituoso, repleto de falhas e de pensamento distorcido. Não o Shin que criara, movido pelo afastamento, pelas ilusões românticas. O Shin real era aquele ali, confuso diante das próprias ações.

— Confiei em você — disse, num tom tão baixo que mal podia ouvir. — Deitei na cama com o amigo que eu confiava.

— E...?

Impressionante!

— E? — Jiro sentiu o sangue esquentar novamente. — Você ainda tem a cara de pau de perguntar?

— Quer fazer o favor de ser claro? Não estou conseguindo entender aonde quer chegar.

Saito sentiu a garganta doer e as lágrimas virem sem controle. Então, deu as costas e preparou-se para sair. Porém, não chegou até a porta da frente. Ao pôr a mão na maçaneta, sentiu-se segurado pelo outro.

— Jiro...

— Você fez comigo sem meu consentimento! Deitei naquela cama para dormir, porque estava bêbado e porque confiava em você. Não bebi para me oferecer, simplesmente aconteceu. Eu estava feliz demais porque eu havia reencontrado você — contou. — Só queria aproveitar o momento ao lado das pessoas que eu amo, mas você me magoou.

— Não sabia disso — Shin resmungou. — Achei que não fosse se importar... achei que estivesse gostando.

— Não consigo lembrar-me direito do que aconteceu, mas tenho certeza que pedi para que parasse — confrontou-o.

Sakamoto envergonhou-se e o soltou.

— Desculpe — pediu, sincero.

Saito assentiu, como sempre, mas não o abraçou nem disse qualquer palavra. Simplesmente saiu da mansão, chorando.


***


A porta abriu. Daniel ergueu a face e encarou um Jiro com o rosto abatido e os olhos vermelhos. O outro entrou no quarto e eles se observaram um instante. Então, Saito deu as costas e se afastou em direção ao banheiro.

O americano o seguiu, acanhado. Viu-o arrancar a roupa e postar-se embaixo do chuveiro. Esperou que Jiro se lavasse, buscando as melhores palavras para obter dele o perdão por ter interrompido o encontro, mas percebeu que o amante não parecia zangado.

— Jiro... — sussurrou enquanto o observava esfregar a toalha na cabeça. — Eu...

— Não quero conversar — interrompeu-o. — Não agora.

— Mas...

Então percebeu as lágrimas. Pasmo, aproximou, puxando-o para um abraço. Sentiu que pela primeira vez desde que se conheceram, Saito não se reprimia diante de um carinho seu. Ao contrário, afundou a fronte em seu pescoço e chorou alto.

— Aiko e eu conversamos — contou, tentando amenizar o que quer que fosse que estivesse incomodando o outro. — Eu o odiava antes de conhecê-lo, mas agora entendo porque você o ama. Ele é maravilhoso e vocês serão muito felizes — sussurrou, sentindo o coração arder perante cada palavra.

— Dormi com Shin — contou, de supetão.

Daniel o soltou, encarando-o atentamente.

— Entendo que jamais foi fiel a mim, mas achei que estivesse apaixonado por Mamoru Aiko — admitiu, contrariado.

— Não entende? — Jiro secou as lágrimas. — Não lembro como aconteceu. Eu dormi e Shin... Shin fez...

— Ele abusou de você?

A pergunta raivosa incomodou Saito, que se afastou e voltou para o quarto. Daniel o seguiu de perto, exigindo explicações.

— Eu estava bêbado... dormi... — balbuciou.

— Ele abusou da sua confiança! — insistiu na ideia, revoltado.

— Não é essa a palavra que explicaria o que aconteceu.

— Não, não é – concordou. — A palavra correta é estupro.

Jiro sentou-se na cama, sentindo todo o corpo tremendo.

— Não. Não entende... Não entende Shin... Ele não fez por mal...

— O cara abusou de você, e vai defendê-lo?

— Ele morreria por mim, não tenho dúvidas... Ele apenas errou. Eu também errei...

— Sim, e continua errando quando o protege e o chama de amigo.

A garganta de Jiro secou e ele buscou um copo de água no criado-mudo.

— Vou lá! — Daniel anunciou.

— Onde?

— Como, onde? Vou atrás daquele filho da puta!

Saito parecia em estado de choque, então suas ações eram lentas e demorava a processar as informações.

— Shin é problema meu — disse, depois de certo tempo.

— E você, meu!

— Sou doze anos mais velho que você, sei me cuidar.

— Jiro...

— Existe uma história entre mim e Shin. Uma história que envolve muito mais do que a guerra. Eu sei que ele errou, mas igualmente eu tenho certeza que ele... — a voz falhou. — Não entende... Shin não age pensando em ferir... ele apenas age sem pensar.

Daniel não conseguia entender como Saito ainda podia enxergar humanidade naquele monstro.

— Ele me fez ir até você e Aiko — contou.

— Eu sei.

A resposta repentina irritou-o.

— E, ainda assim, fica ao lado dele?

As lágrimas voltaram e Jiro apenas se encolheu.

— Eu o amo...

— Isso não é amor!

— Não consigo...

— O quê?

— Me curar desse sentimento...

O outro deu a volta, indo até a saída.

— Ao menos reconhece.

— Reconheço?

— Que está doente.

E então saiu, batendo a porta.


***

O equipamento que tinha nas mãos era grande, quase da altura do próprio Shiromiya. Ryo observou com atenção parecendo buscar adjetivos que descrevesse tal instrumento de trabalho.

Shiromiya o ergueu para cima. Parecia pesado. Deu-se conta, então, que o objeto lembrava duas muletas amarradas na parte inferior. Shiro baixou com força no chão, afundando o bico na terra remexida. Abriu a parte superior, e Ryo ouviu o grão caindo.

— Você entendeu?

Ryo pareceu confuso.

— Quer saber? — Shiromiya resmungou, sem muita paciência. — Tem estudo, pode conseguir um trabalho melhor. Além disso, eu não posso te pagar e duvido que tenha forças de aguentar a lida no campo por muito tempo...

— Eu aguentarei — respondeu, rapidamente, convicto. — Eu suportarei tudo para ficar do seu lado.

Shiro ignorou as palavras. Eram sempre tão vazias quanto o homem à sua frente. Mais uma vez pensou no porquê estava dando pouso para Ryo Satoshi, já que com o dinheiro da venda do automóvel ocorrida dois dias antes, ele poderia encontrar um quarto para alugar.

— Agora, tente você — disse, chamando-o mais para perto.

Ryo se aproximou, acanhado. Era como se temesse que a proximidade fizesse Shiromiya expulsá-lo.

Segurou a máquina de madeira. Olhou para o compartimento onde os grãos estavam e o viu cheio. Não parecia difícil e logo ele tentou erguer o equipamento. Quase não conseguiu.

Deus, como era pesado!

Depois, desceu com força o bico contra a terra. Repetiu o gesto mais duas vezes, e na terceira vez não conseguiu mais erguê-la.

Encarou Shiro e o viu segurando o riso.

— É difícil — resmungou.

Shiromiya assentiu, depois se aproximou dele. O coração de Ryo acelerou.

— Estenda suas mãos — Shiro mandou, fazendo com que Ryo cumprisse o ordenado imediatamente.

Shiromiya também estendeu as suas. Ambos ficaram com as palmas para cima, e Satoshi tentou entender o que o outro queria explicar. Levou um segundo, mas então o propósito ficou nítido. Suas mãos, pálidas e bem tratadas, contrastavam com as calejadas e machucadas de Shiro. Eram completamente opostos.

— Vou repetir o que já te disse desde que chegou — Kazue falou, calmo. — Não vai aguentar a vida debaixo desse sol quente, erguendo maquinários e arando a terra. Não é uma vida fácil, ainda mais para quem cresceu sem fazer esforço nenhum.

Ryo negou.

— Eu aguentarei tudo.

— Não tem que provar nada para ninguém — insistiu. — Muito menos para mim.

Não era verdade. Ele precisava demonstrar ao outro que o Satoshi de antigamente, o arrogante e almofadinha, havia morrido com a separação e a desesperança. O Ryo que agora compartilhava aquele trabalho com ele era um homem ansioso em demonstrar que havia mudado, que estava disposto a qualquer coisa pela família que reencontrou.

— Não me odeia — as palavras escaparam, assim que ele deu-se conta do fato. — Apesar de tudo que eu fiz, apesar de ter dito que me odiava, você não me odeia.

Os olhos cansados piscaram, surpresos.

— Não tenho tempo de alimentar ódio — Shiro resmungou, voltando ao trabalho. — Não tenho tempo de pensar em nada, além de Miya.

Não era totalmente verdade. Apesar de, durante o dia e parte da noite, ele estar ocupado e exausto, toda vez que repousava a cabeça no travesseiro, seus pensamentos iam para as suas desilusões.

— Fez um bom trabalho — Ryo elogiou, voltando ao trabalho, buscando forças para fazer com que Shiro se sentisse surpreso com ele. — Ela é incrível.

— Eu sei.

O tom orgulhoso resplandecia. Contudo, Ryo sentia ânsia de falar sobre outra coisa.

— Miya me falou sobre as visões.

O semblante tranquilo tornou-se raivoso. Ryo percebeu que havia tocado num ponto sensível.

— Que visões?

— O pai...

— Que merda de pai? Eu sou o pai dela! — quase gritou.

— E as coisas pequenas... — continuou. — Como quando os pintinhos nascem...

— Coincidência! — afirmou. — Ilusões infantis! Miya é uma criança inocente, ela jamais seria punida por tal maldição.

— Eu tinha a idade dela quando comecei, Shiromiya...

— Isso foi você. Miya não é você!

Sabia que não devia provocar mais a situação. Mas Miya era também sua filha e não podia simplesmente calar-se.

— É um fardo pesado demais, eu destruí a minha vida por causa dessa maldita clarividência. Precisamos...

— Destruiu? Graças a ela, sobreviveu muito bem à guerra. A única coisa que não entendo é como ficou pobre.

Ryo mordeu o lábio inferior, respirando fundo.

— Perdi você por causa das visões.

— Quanta asneira.

— Falo sério.

Shiro riu.

— E o que suas visões te dizem agora?

— Não mais as tenho, Shiro — contou. — Desde que me deixou. Aquele julho de 1945 foi a última vez que vi o futuro.

Kazue o encarou, firme, tentando encontrar traços de mentira.

— Kami-sama transferiu minhas visões para Miya.

Esperou a negativa, mas o questionamento seguinte o surpreendeu.

— E por que Ele faria isso?

— Porque ela é minha filha, também — contou. — Ela é nossa, Shiro, preparada para nós antes mesmo de nascermos.

Tão rapidamente quanto um raio, Shiro se aproximou dele. Os narizes quase se tocaram, e ao falar, Ryo percebeu a raiva incontrolável.

— Nossa? Uma ova! Repita essa merda novamente e eu juro por Deus que eu arranco seu pinto e dou para os cães comerem! Miya é a única coisa que eu tenho, e eu nunca vou perdê-la para ninguém.

— Não quero roubá-la de você, mas sabe tão bem quanto eu que sou o pai que ela sempre viu durante todos esses anos.

A frase fez Shiromiya recuar. As lágrimas que surgiram nos seus olhos denotavam o quanto cada palavra o atingiu brutalmente. Ryo deu dois passos em sua direção, segurando seus braços com carinho.

— Não é minha, Shiro. É nossa – repetiu. — Não quero tirar sua filha, ela é sua. Pertence a você, posso ver seu brilho gentil e sua bondade nos olhos dela. Apenas, percebe o quanto nossas vidas são entrelaçadas?

Por alguns segundos, os olhos de Shiro pareceram chocados, mas então a lucidez voltou.

— É um tolo se acha que vou crer nessa crendice ridícula — avisou. — E não ouse tentar iludir Miya! Eu caço você até no inferno se a fizer chorar ou a fizer acreditar que ela tem outro pai.

A ameaça se perdeu no som de passos vindo da casa. Shiro e Ryo voltaram o rosto naquela direção e viram a menina surgindo, feliz. Um pequeno caldeirão de restos de comida era carregado pelos dedos infantis.

— Papa, o que é aquele pacote em cima do armário?

Shiro se deu conta de que Ryo ainda não havia entregado o pacote de dias atrás para ela. Então, abriu a boca para se explicar. Porém, foi o som da voz do outro que emergiu, firme.

— É um vestido. Seu pai Shiro comprou para você.

Encarou Satoshi, odiando a facilidade com que as mentiras saíam de seus lábios.

— Miya sabe que eu não tenho dinheiro para tais agrados — parecia magoado. — Além disso, nós não mentimos um para o outro. — Voltou-se para a criança. — Ryo-san comprou pra você.

A menina sorriu, contente.

— Poderei usá-lo amanhã? — pediu.

— É claro, é seu — Shiromiya assentiu.

Miya daria pulinhos, se o caldeirão não fosse pesado. Ele então a viu resmungar para o lado, como se tivesse tido algo como “eu não te disse?”, mas não havia ninguém ali.

— Papa, vou levar os restos de comida para os porcos da senhora Souta.

Ryo ficou incomodado. A lembrança dos cães na floresta contrastou com as palavras que Shiro acabara de professar. Então, não havia mentiras entre eles? Pobre Kazue!

Um dia contaria a ele, mas ainda não. Ainda não podia decepcionar Miya, pois a pequena confiava nele.

— Miya e eu sairemos amanhã. — Shiro disse, assim que as pernas pequenas desapareceram no horizonte.

— Para onde vão?

O olhar raivoso voltou a tocá-lo.

— Não te interessa.

E afastou-se.

Se a intenção de Ryo era novamente conquistar o coração de Shiromiya, estava falhando miseravelmente.

 

Capítulo 12


Ryo Satoshi caiu sobre o piso de madeira, gemendo alto, sentindo todo o corpo pulsar de dor.

Como o trabalho braçal podia ser tão terrível? Jamais imaginou o quanto era doloroso erguer máquinas de plantar durante o dia todo, carpir, arar a terra, debulhar milhos com as mãos e alimentar as galinhas. Tudo parecia tão simples vendo de longe, mas participar ativamente do processo não era tarefa fácil.

Ergueu as mãos, cobrindo o rosto, exausto. Havia completado apenas um dia naquele ofício e não sabia se conseguiria levantar do futon no dia seguinte, pois todo o corpo ardia, principalmente as costas que doíam demasiadamente.

Um rosto infantil surgiu acima do seu e ele encarou a filha, que parecia curiosa diante da sua postura.

— Estou cansado — explicou-se, mesmo temendo decepcioná-la. — Como seu papa aguenta?

Miya adorava falar. Curiosamente, contudo, naquele instante não abriu a boca. Seu rosto pareceu nublado por alguns instantes, como se as palavras doessem.

Shiro entrou. Encarou o corpo do outro esparramado no chão, mas não teceu nenhum comentário. Foi direto para o banheiro. Ryo então fechou os olhos, tentando encontrar uma saída para o problema em que se metera. Desistir não era uma opção, mas ele teria que arrumar um jeito de não se massacrar de tanto trabalhar.

Ouviu o som de passos. Percebeu que a menina levava os livros até a mesa. Seu ritual de estudar à noite repetia-se mais uma vez.

O corpo, então, entrou num torpor de descanso. Ele não cochilou, mas sentiu sono. A ausência de vozes e o som único do virar de páginas e da água correndo no banheiro eram familiares. Sorriu. Repentinamente, a dor amenizou. Era tão sortudo, que mesmo que agradecesse o resto da vida a Kami-sama, ainda seria pouco.

A porta do banheiro abriu cerca de cinco minutos depois. Ryo sentou-se e encarou Shiro. Ele não havia vestido o pijama bege, como costumava fazer após o banho. Estava de camisa escura e calça de linho. As roupas eram gastas, mas excessivamente limpas.

— Miya — Shiro chamou a menina, que o encarou, enigmática. — Sabe o que fazer, não? Termine sua lição, jante e vá descansar.

A menina assentiu. Ryo percebeu o semblante triste, mas manteve-se calado. Não sabia ainda como ser ativo na vida de ambos sem parecer intrometido.

Shiromiya cruzou por ele e foi em direção à porta. Não lhe disse uma única palavra, mas antevendo que ele iria sair, não conseguiu mais se conter.

— Aonde você vai?

Será que tinha vida social? Se tinha, deixava Miya sozinha à noite para enlaçar-se em jogos ou bebidas? Ou talvez até outros homens?

— Eu comentei com você — resmungou. — Eu trabalho duas vezes por semana na prefeitura.

Ryo pareceu impressionado. Além da lida pesada durante o dia, Shiromiya ainda se ocupava à noite? De onde tirava tanta disposição?

O seu semblante espantado pareceu incomodar o outro.

— Não é nada importante — avisou. — Eu só limpo os banheiros, o chão, e as janelas. Sou apenas um faxineiro — diante da mudez do outro, deu os ombros e saiu.

Ryo então encarou a filha. Viu-a com lágrimas nos olhos. Quis questionar o porquê da mudança brusca de comportamento, mas ela levantou-se rapidamente e rumou para o quarto, batendo a porta.

Ficou surpreso. Tentou reviver a cena passada, buscando qualquer erro que pudesse ter cometido para deixar a criança possessa, mas nada encontrou. Então foi até a porta do quarto dela e bateu.

— O que aconteceu? — indagou, gentil, buscando sua simpatia. — Eu fiz alguma coisa, Miya? Se eu fiz, você pode me perdoar?

O silêncio durou alguns segundos. Então, ela abriu a porta devagar, e Ryo percebeu aquela miniatura de gente encarando-o com o nariz vermelho e o fungar característico de quem reprimia o choro.

— Não fez nada, papai — ela respondeu, trazendo alívio ao homem. — Eu fiz...

— O que fez?

Curvou-se perante ela, ficando à sua altura. Repentinamente, percebeu que estava desempenhando, pela primeira vez, a tarefa de pai. Dali em diante, teria toda a vida para ouvi-la reclamar ou falar de qualquer assunto, pertinente ou não, e para aconselhá-la nos problemas.

A satisfação que sentiu foi maior do que tudo que já viveu até então.

— É por minha culpa que papa não fica em casa — disse, num tom tão abatido que cortou o coração de Ryo.

— É claro que não é sua culpa — negou, no entanto. — Por que pensa assim?

Silêncio. Ryo percebeu que algumas coisas permaneciam ocultas naquela casa porque era desejo de Kazue. Será que ele havia advertido a criança para que alguns fatos da vida deles não fossem falados?

— As coisas ficarão melhores, Miya — tentou acalmá-la. — Estou aqui, agora — sorriu. — Não vou permitir que seu papa morra trabalhando, nem que você use roupas velhas. Contudo, preciso ir devagar, entende? Porque se eu sair amanhã e comprar coisas para a casa, Shiro não vai entender e pode me expulsar. Mas fique tranquila que eu prometo que ele não precisará mais trabalhar à noite.

Ela parecia confusa, mas não disse nada. Então, Ryo teve uma grande ideia. Não uma ideia que fosse fazer Shiromiya abraçá-lo e agradecê-lo (bem da verdade, era capaz de brigar com ele quando visse sua arte), mas algo que poderia aliviar – e muito – a vida do seu amor.

— Miya, você e seu pai vão sair amanhã, não é?

A menina assentiu.

— Então, eu preciso ir à cidade para dar um telefonema. Você pode ficar sozinha alguns minutos?

Ela remexeu-se e olhou de soslaio para o lado. Ryo achou a atitude suspeita, mas nada comentou.

— É claro, eu sempre fico sozinha quando papa vai trabalhar.

Ryo, então, decidiu esquecer o cansaço e saiu correndo porta afora.


***


— Mas, senhor... Onde vou conseguir uma equipe de serviços hidráulicos em tão pouco tempo?

— É para isso que você é bem pago — Ryo retrucou. — Tadao, não temos contato em Kyoto?

— Sim, mas...

— Ligue para eles. Diga que é um caso de urgência. Prometa um valor alto, quase o que eles ganhariam em um mês. Peça que estejam na cidade amanhã, às oito. Estarei esperando na pequena rodoviária, ao lado da padaria.

— Farei o possível, senhor.

— O possível é pouco. Precisa fazer o necessário, o suficiente. É uma emergência, preciso da bomba amanhã.

— E posso perguntar o motivo?

— Shiromiya irá para Kyoto amanhã. Ele não me permitirá ajudar de alguma maneira, então preciso aproveitar a ausência dele e instalar a bomba de sucção e os canos.

Ouviu um murmuro de aceitação. Preparava-se para desligar, quando o servo comentou:

— Saito-san está em Tóquio — avisou. — Eu o vi chegando na casa de Shin Sakamoto. Procurei-o depois disso, e ele me advertiu que eu devo esquecer-me do fato de que o outro foi um sargento.

Ryo sorriu.

Então Jiro Saito estava escondendo seu passado do novo governo? Aquela informação era muito preciosa e Ryo respirou fundo antes de agradecer.


***


Ryo Satoshi entrou na pequena casa e cravou os olhos na menina que escrevia num caderno. Sorriu e foi até o fogão. Nunca antes havia servido alguém, mas repentinamente, deu-se conta de que era uma tarefa que ele, como pai, devia desempenhar espontaneamente.

O arroz e o peixe estavam quentes. Era a primeira vez que ele não via ensopado no fogão e se surpreendeu. Serviu um pequeno recipiente de porcelana e levou até a menina.

— Depois você estuda — disse. — Agora, jante.

Ela não negou. Largou o livro para o lado e puxou o prato fundo, comendo sem agradecer a comida. Ryo, naquele instante, viu uma oportunidade de ouro de ensinar-lhe algo e não se reprimiu.

— Miya, você precisa dizer “ Itadakimasu ” [12] antes de comer. Seu papa nunca te ensinou isso?

— Ensinou e eu agradeço... na frente dele.

A boca do homem abriu-se, espantado.

— Só na frente dele? Não importa onde estiver, precisa agradecer.

— Por quê?

— Porque é o certo a se fazer.

Ela ficou em silêncio alguns instantes, como se ouvisse algo além de Ryo.

— Por que preciso fazer o que é certo?

— Ora, porque sim.

— Porque sim não é resposta.

Inferno! Ele não tinha ideia de como explicar as coisas. Afinal de contas, sempre que se imaginou naquela posição, a filha o idolatraria o suficiente para obedecê-lo sem questionar.

— Você não quer ser uma boa pessoa?

— Não existem boas pessoas.

— Como não? E seu papa? Ele não é uma boa pessoa?

A dúvida surgiu nos olhos infantis e ela voltou-se novamente para o lado, a olhar o nada. Só então Ryo percebeu o que ocorria.

— Quem você está vendo?

A criança arregalou os olhos.

— Ninguém.

— Não minta para mim, Miya.

— Eu não minto nunca, papa — afirmou.

— Não mente? Fala para o seu pai que vai levar comida aos porcos, mas esconde cachorros no mato, diz que come o repolho, mas o joga fora... e eu nem imagino o que mais você diz!

Ela enrubesceu, mas não pareceu constrangida pelo fato. Na verdade, um sorriso irônico de satisfação surgiu no canto de seus lábios, e então Ryo percebeu que o tom vermelho da pele não era de vergonha, e sim de orgulho.

— Miya — preparou um discurso, mas foi calado pelo abraço apertado.

— Papai, eu te amo.

Mas que pentelha! Ela o estava manipulando?

— Miya...

— Sentirá saudades minhas, amanhã?

Repentinamente, o conselho paterno deu lugar à dor em perceber que, pela primeira vez desde que a encontrou, não a teria por perto durante um dia.

— Mas voltará para mim, não é?

— Sim, no final do dia.

Ela então voltou para o prato e Ryo sorriu, enquanto a via comer. Obviamente, nem desconfiava de que Miya havia testado sua capacidade de manipulá-lo. E como um pai deslumbrado, caiu como um patinho.

***


Shiromiya sentiu as pernas pesarem. Mesmo acostumado à rotina pesada, naquele dia em especial, parecia ainda mais cansado do que o normal. Provavelmente, além da exaustão pelo trabalho físico, o fato de que, no dia seguinte, veria o médico de Miya, que avaliaria a reação da menina mediante os medicamentos, estava destruindo-o.

Havia limpado a prefeitura e na saída pegou o envelope com o salário mensal deixado no lugar de sempre pela secretária do prefeito. Aquele dinheiro pagaria as passagens até Kyoto e a consulta. Os remédios, ele compraria com o valor guardado das vendas dos ovos e milhos e do trabalho nos finais de semana nas terras do vizinho.

A caminhada de três quilômetros da prefeitura até seu hectare levou mais tempo que o costume. Tropeçou por duas vezes, e parou outra, sentando-se num barranco, no escuro, para recuperar o fôlego.

Depois se ergueu novamente, buscando forças no seu íntimo. Não podia vacilar, tinha que ser forte, lutar por ele e pela filha doente. Entretanto, sentia-se covarde, perante a possibilidade de que, eventualmente, a enfermidade vencesse.

Já havia perdido pessoas que amava. Primeiro a mãe, a qual mal conseguia lembrar-se do rosto. Depois, o irmão que, apesar de tudo, tinha o elo forte do sangue a uni-los. Então, Nana, sua mãe de adoção, que morreu tragicamente na guerra. E, por fim, Mamoru... com o qual, apesar de estar vivo, não mantinha contato.

Mas nada podia se comparar à possibilidade de perder a filha. A simples chance de isso ocorrer, tirava dele toda a capacidade de existir. Lembrava-se de ter enfiado lâminas nos pulsos uma única vez, quando Ryo ficou noivo. Contudo, não se machucou, percebendo que o seu amor não correspondido não era motivo suficiente para atentar contra si mesmo, apesar do tamanho do sentimento que um dia nutrira por aquele homem. Porém, era diferente com Miya. Era algo físico. Tinha absoluta certeza de que não iria conseguir seguir em frente se algo acontecesse à sua garotinha.

A casa estava silenciosa. Aproximou-se e notou a luz da lamparina acesa. Sabia ser tarde, atrasara-se desentupindo uma privada. Miya já devia estar dormindo.

Abriu a porta e olhou para dentro. Tudo estava vazio. Shiro sentou-se na porta e retirou os calçados.

“ Vou ficar aqui só um minuto ”, disse a si mesmo, exausto.

Porém, os olhos pesaram e sem perceber, ele entregou-se ao sono.

Repentinamente, sentiu uma mão macia tocar seu rosto. Fez forças para abrir os olhos, mas não conseguiu, então, só gemeu, reclamando.

— Shiro, você precisa ir descansar.

Aquela voz... Ryo Satoshi...

Pensou que iria se arrepender por receber o ex-burguês na sua casa, mas até então o outro não havia feito nada para irritá-lo. Nem mesmo forçara uma situação embaraçosa. Apenas o olhava como um cachorro com fome, buscando aprovação.

No entanto, Shiro sabia que não devia baixar a guarda. Ryo havia manipulado-o no passado. Apesar de estar diferente daquele menino machucado pela vida, esse Kazue de agora também tinha suas fragilidades.

— Tenho que tomar banho... — murmurou, desvencilhando-se das mãos no seu braço.

— Mal consegue se aguentar em pé — a voz do outro lhe deu vontade de chorar. — Eu posso ajudá-lo.

Não! Nada de ajuda!

— Quer se tornar importante na minha vida, para depois tentar destruí-la de novo? — questionou, buscando forças e abrindo os olhos. Então, agarrou-se à porta e se ergueu. — Enquanto estiver aqui, cuide dos seus problemas. Nesses anos todos, nunca precisei de ajuda para ir tomar banho, não preciso da sua ajuda agora.

Dando as costas, caminhou até o banheiro. Estava tão cambaleante que parecia que tinha bebido.

Quando a porta se fechou, Ryo baixou a face, angustiado. O que precisaria fazer para conseguir o perdão do seu grande amor?

***


Os gritos o acordaram. A luz vinda da cozinha ardeu em seus olhos cansados. Instintivamente, ergueu o pulso e olhou para o relógio. Cinco e meia da manhã. Outro grito. Ergueu-se rapidamente e olhou para o futon ao lado. Shiromiya já havia levantado. Ao longe, ele podia sentir aquele odor delicioso de pães assando e do chá de cidreira fervendo.

Mais gritos e choro. Levantou-se num pulo e correu até o quarto de Miya. Encontrou Shiro tentando erguer o corpo da criança que se recusava a acordar.

— Eu quero dormir — ouviu o choro alto. Os olhos fechados não impediam as lágrimas.

— Miya, você tem que acordar...

Shiromiya a fez sentar-se. Era impressionante como ele tinha controle da situação, apesar dos berros à sua frente.

— Não quero ir! — ela gritou, jogando-se novamente no futon.

Pegando-a de novo pelo braço, ele a sentou e puxou seu pijama para cima. Assim que retirou a camisa, enfiou pelo pescoço o vestido que Ryo comprara.

— Olhe como você está bonita — disse, repentinamente emocionado.

Era a primeira vez que Shiro via a filha usando uma roupa nova.

— Por... que... não me deixa... dormir? — a pergunta, dita entre fungadas, cortou o coração de Ryo.

— É necessário sair tão cedo? — intrometeu-se, mesmo diante do olhar furioso de Shiro. — O sol nem raiou.

— O ônibus sairá às seis e meia e Miya ainda precisa comer antes de ir.

— Mas...

— Quem decide a hora que minha filha acorda sou eu — cortou.

Miya comeu o pão chorando, e os olhos pareciam prestes a se fecharem em vários momentos. Shiro não ficou ali para ver, foi até o galinheiro e soltou as galinhas, depois buscou água no poço para deixar a louça lavada e, por fim, ainda varreu a casa antes de se arrumar.

Quando saiu do banheiro, vestido com um jeans surrado, uma camisa velha e um sapato gasto, Ryo revoltou-se. Aquilo estava indo longe demais e ele precisava resolver as coisas de uma vez!

Então, viu-o pegando a menina no colo e lhe dizendo que podia dormir no ombro dele. Miya pareceu disposta a aceitar a oferta, mas antes de fechar os olhos, ela acenou para o outro pai.

Shiro não se despediu dele, apenas rumou para a estrada. O coração de Satoshi doeu demasiadamente ao vê-los indo embora. Sabia que voltariam no final do dia, sabia que era necessário aquele passeio para que ele pudesse ajeitar as coisas na casa... Mas... mesmo assim... Como machucava!

Ao longe, o galo cantou. Aos poucos, uma réstia de luz começou a surgir no horizonte. Aquele dia nascendo, trouxe-lhe ânimo. Lembrou-se de um velho provérbio árabe que dizia “ A hora mais escura do dia é a que vem antes do sol nascer ”. Estava enfrentando sua hora escura, mas, com certeza, era uma questão de tempo para o sol brilhar novamente em sua vida. Acreditava naquilo e faria o possível para conquistar a vitória.

 

 

 


Capítulo 13

O frio havia se intensificado conforme o natal se aproximava. As ruas, aos poucos, começavam a ficar enfeitadas num tom verde e vermelho, influência americana que a população não aparentava incômodo em seguir. Era até cômico que tal situação, há menos de uma década, poderia levar os confraternos ao fuzilamento.

Jiro suspirou, encostado em um poste. Seus olhos estavam focados na livraria do final da rua. Estremeceu, apertando o casaco contra si, protegendo-se da friagem, enquanto pensava se devia ou não ir até Aiko.

Simplesmente, estava envergonhado.

Mamoru havia aceitado seu amor, disposto a construírem uma história juntos, mas ele enredou-se numa cama com Shin Sakamoto. Sentia-se sujo depois do ato. Culpava-se, apesar de saber que Shin era o maior responsável. Por que bebera como um louco? Por que fora pra casa do outro? Por que deitou-se em sua cama?

Sentia vontade de chorar, mas já havia derramado muitas lágrimas durante a madrugada. Naquele momento, tudo que queria era coragem para pedir perdão a Mamoru.

O som de passos fez desviar seus olhos para o lado. Encarou Daniel e suspirou.

— O que foi? — indagou, reclamante.

— Por que não vai até ele?

Jiro deu os ombros, incomodado.

— Virou fã de Aiko-san agora? Achei que o odiasse.

— Antes de conhecê-lo — concordou. — Agora, sei que você guardou seu coração para a pessoa certa.

Apesar de claramente as palavras saírem dolorosas, Saito assombrou-se com a coragem e a força com que Daniel as manifestara.

— O que deu em você? — resmungou.

— Simplesmente, percebi que ama mais seus amigos que seus amantes. Então, pensei... “ Se eu for seu amigo, ele vai gostar de mim? ”.

Jiro sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Escondeu aquela fraqueza, girando o rosto novamente para frente, a observar o prédio de dois andares.

— É um idiota — murmurou.

— Sou?

— Acha que eu viajaria com você se não gostasse?

Aquela pequena frase mexeu muito com o americano, que não conseguiu esconder um sorriso satisfeito.

Jiro se viu sorrindo, em retribuição.

— Aiko realmente desperta o seu melhor, não é? Nesse tempo todo que nos conhecemos, é a primeira vez que me diz tal coisa.

A frase enrubesceu o ex-sargento que remexeu-se dentro de casaco. Mas fingiu ignorá-la.

— Vá vê-lo — Daniel pediu. — Não é seu namorado? Pediu-o em namoro e agora sequer o procura?

— Como encará-lo, depois do que eu fiz?

— O que você fez? — enfureceu-se. — Por que se culpa? Não percebe que é a vítima?

— Shin, ele...

— Vai desculpar novamente aquele monstro? — retrucou. — Tudo que ele faz é justificado? Quando ele vai ser culpado dos próprios atos?

Aquele fogo que sempre surgia no âmago de Jiro quando Shin era citado, veio à tona.

— Não entende — sua voz era fraca. — Ninguém o entende...

— Não entendo estupradores, realmente.

— Pare, por favor — cobriu os ouvidos, as lágrimas, enfim, derramando-se pelo seu rosto. — Shin cometeu um erro, e só quem pode acusá-lo sou eu!

— Um erro...? — a voz do outro pareceu cansada. — Ele cometeu um ato abominável, algo detestável. O que pode ser pior que estuprar o melhor amigo?

Repentinamente, várias imagens cruzaram por sua mente. Como um sonâmbulo, ele aproximou-se sem consciência do americano. Sua boca abriu-se, numa careta, enquanto as palavras surgiram carregadas de culpa.

— Enterrar pessoas vivas — pausa. — Arrancar o coração de uma criança com as próprias mãos — outra pausa, maior que a anterior. — Arrancar um bebê do útero de uma mãe com um alicate... — a voz engasgou, e ele ofegou. — Colocar uma pessoa dentro de uma caixa cheia de ratos famintos e a ouvir gritando, enquanto agoniza ao ser devorada...

Então, Saito acordou, percebendo o que falara. Deu um passo para trás, perturbado, e quase caiu. Os braços fortes do outro o seguraram.

— Você viu isso durante a guerra? — questionou.

“ EU FIZ ISSO! ” quis gritar, mas a voz não saiu. Se não havia, na concepção de Daniel, perdão para Sakamoto, o que restaria a ele?

— É só uma criança tola — bateu no ombro do estrangeiro e se afastou. — Não sabe nada da vida...

— Sei que nada do que disse justifica a atitude de Shin Sakamoto.

Diante daquela verdade, Saito apenas retirou-se, caminhando vagarosamente em direção ao hotel.


***


No corredor, era possível ouvir a música de ritmo suave vindo do quarto que ocupavam. Jiro, primeiramente, voltou-se ao rapaz atrás de si, com o olhar curioso. Daniel havia tentado fazer alguma surpresa? Porém, diante do olhar igualmente questionador do outro, percebeu que ele também não sabia de onde vinha a canção.

Abriu a porta. Seus olhos, de início, arregalaram-se pelas rosas vermelhas espalhadas no chão, na cama, e nos móveis. Depois, percebeu o homem grande, ao lado de uma vitrola, segurando um buquê de flores variadas.

Era certo que Shin tentaria se aproximar. E era ainda mais exato que sua tática incluiria algo cafona e clichê. Só faltava estar de joelhos.

Deu um passo para trás ao perceber que o outro se ajoelhava em sua frente. Suspirou, exausto, percebendo que o conhecia bem demais. Observou seus olhos e sentiu as pernas fraquejarem. Mas, daquela vez, não era devido à doença amorosa que sentia pelo outro. Era repulsa e medo.

Sem perceber, foi recuando. Em segundos, estava atrás do americano que, ao perceber sua intenção, postou-se em sua frente, como se disposto a encarar o que fosse para defendê-lo.

— Jiro... — a voz de Shin saiu chorosa. — Eu sei que eu errei — assumiu. — Por favor, me perdoe.

— Mas é muita cara de pau... — Daniel ralhou. — Como se atreve?

— Não estou falando com você, estrangeiro — Shin encarou-o com nojo. — Estou falando com meu...

— Não sou mais nada seu — Saito o interrompeu, a voz saiu engasgada. — Vá embora, por favor.

Shin levantou-se e avançou. Daniel se interpôs entre ambos, a face erguida, disposto a lutar.

— Já disse para sair da minha frente — seu tom era voraz.

— Me obrigue — retrucou.

Shin sabia que aquele merda era amigo próximo de Jiro, então segurou-se. Estava em desvantagem ali, e a mente começou a processar dezenas de alternativas para conseguir sair daquele impasse.

— Isso não diz respeito a você.

— Está enganado. Na minha concepção, tudo que magoa Jiro, me diz respeito.

Dar uma surra naquele moleque arrogante ou tentar demonstrar – falsamente – que não era o mesmo Shin, a Saito? A escolha parecia difícil e, de fato, o era. Negar a si mesmo não era algo a que Sakamoto estivesse acostumado.

— Mais do que ninguém, achei que você seria capaz de entender um erro — preferiu as palavras, direcionadas ao melhor amigo.

Aquela frase cruel trouxe lágrimas a Saito. Contra a vontade, ele se viu soluçando.

A demonstração de fraqueza causou esperança ao sobrinho de Hirohito.

— Então é isso, Jiro? Nunca mais quer me ver? Não me ama mais? Quer que eu suma da sua vida?

Silêncio.

— Se essa é a sua vontade, eu vou aceitá-la, mas diga-a olhando para a minha face. Não mande esse seu cachorrinho de recados.

Irritado com a falta de respostas, ele empurrou Daniel com força. O rapaz viu-se jogado contra um criado-mudo, mas voltou rapidamente para Shin. No entanto, tarde, pois Sakamoto já apertava os braços de Jiro.

— Responda! — gritou. — Não quer mais me ver?

A resposta veio, num sussurro.

— Eu quero...

Shin sorriu. Mais ameno, fez as demais perguntas.

— Não me ama mais?

— Eu amo.

— Quer que eu suma da sua vida?

— Não...

— Então, me perdoa?

Enfim, Jiro o encarou.

— Eu o amo mais que a mim mesmo. Não posso imaginar meus dias sem você. Mas eu não consigo perdoá-lo, não ainda. Não consigo olhar para você, me dá nojo e raiva. Então, eu preciso de um tempo. Dê-me você uma prova de amor: mantenha-se afastado de mim.

A frase fez o sobrinho do imperador ficar embasbacado. Jamais imaginou ouvir aquilo, não de Saito. Do seu Jiro... o Jiro que o manteve de pé na Alemanha, que compartilhou com ele aquele quarto claustrofóbico no bunker... o Jiro que sempre deixou claro o quanto o amava e lhe era amigo.

— Não faz isso comigo... — foi a sua vez de choramingar.

Mas Saito livrou-se de suas mãos e correu até o americano. Sakamoto observou a cena, viu-o sendo abraçado carinhosamente pelo outro, e o ciúme o corroeu. Logo, as lágrimas surgiram, e ele percebeu que não conseguia se controlar. Era seu melhor amigo, preferindo os braços de um estrangeiro invasor aos seus.

Porém, não estava em posição de brigar. Depois daquelas palavras, percebeu que não tinha forças. Jiro o amava, havia admitido aquilo. Mas não queria vê-lo. Depois de cinco anos de ausência, uma escolha infeliz, enquanto bêbado, privá-lo-ia do cheiro do ex-sargento, do toque da sua pele, do som da sua voz...

Dando as costas, ele saiu do quarto.


***


Naquele mesmo horário, ao sul do Japão, um jovem homem sentava-se cabisbaixo em um banco de madeira. Ao lado dele, a filha de oito anos batia os pés, enquanto tagarelava sobre o dodói no braço.

Shiro encarou Miya e sorriu. Ela mostrou o vermelhão no braço e chamou de bruxa a enfermeira.

— Não deve falar assim, ela só fez o que precisava.

— Mas podia ser mais gentil — retrucou. — A moça da outra vez não me machucou tanto.

Parecia uma velha reclamando. Naquele instante, lágrimas surgiram nos olhos do homem, que desviou o olhar para outro lado. Não queria que a garotinha o visse fraquejar ou ela usaria o fato para evitar a sessão de agulhas e aparelhos a que era submetida periodicamente. Era ainda muito pequena para enfrentar tantas provações, todavia era necessário. E ainda que se identificasse com a fragilidade e impaciência dela, precisava manter a firmeza.

“ Os remédios controlaram a doença ”.

A voz do médico surgiu em sua mente, com força.

“ Mas não existe esperança para cura sem um tratamento especializado ”.

Sentiu um puxão no braço. Voltou os olhos para a pequena.

— Posso comprar pipoca? — ela apontou um vendedor a cerca de cinco metros deles.

Shiro assentiu e puxou uma nota, entregando-a a ela. Quase imediatamente, viu-a caminhando em direção ao pipoqueiro.

“ Sem cura, Miya permanecerá nessa vida limitada. Não poderá jamais correr e brincar, como uma criança normal. E sempre haverá o risco... ”.

Fechou os olhos, afastando a palavra morte dos pensamentos. A garganta ardeu e ele culpou-se, enquanto observava um pequeno bilhete nas mãos. Apesar de conhecer muito pouco as letras, apenas alguns kanjis aprendidos com a filha, sabia de cor o nome escrito no papel.

“ Sapporo Jirokanki Byouin ”.

O único hospital do país que podia ajudar havia sido inaugurado há alguns meses. Porém, os valores informados pelo médico estavam completamente acima de tudo que ele já havia guardado durante toda a vida. Mesmo que vendesse sua propriedade, não conseguiria pagar nem metade do tratamento.

O que faria?

Volveu os olhos para a filha, que voltava para o seu lado.

— E sua pipoca? — indagou, vendo-a de mãos abanando.

A menina apontou uma criança maltrapilha ao longe.

— Ele estava com fome — contou. — Me disse que não tem papai, nem mamãe.

Uma vez, Mamoru Aiko lhe contou que para manter a sanidade, precisava não ver. Disse que sempre apareciam prostitutas à porta da Casa Ai, pedindo emprego, abrigo e alento. Muitas vezes, o coração ardia perante os nãos que precisava dar. Nunca entendera bem aquela citação até aquele momento. Ver o menino com fome, enquanto mordia a pipoca e olhava para o nada, doeu. Mas como estender a mão, quando ele não tinha sequer para sua filha?

Levantou-se e foi até o garoto. Mesmo com pouco, deu uma nota que pagaria o jantar daquela criança. Nenhuma palavra foi trocada, nem de conforto, nem de agradecimento. O menino pegou a nota e simplesmente a guardou. Shiromiya voltou para a filha, arrasado.

Sentou-se no banco e fechou os olhos, suspirando alto.

— Vou viver, papa — ela contou, segurando em seu braço, acalmando seu coração. — Não precisa se preocupar, porque eu viverei muitos anos.

Shiromiya sorriu. Esperava que a pequena cumprisse sua promessa.


***


Ryo encarou a torneira, feliz com a missão cumprida. A água havia sido encanada num trabalho que levou o dia todo. Ao final do dia, após fornecer uma gorjeta polpuda aos técnicos, ele tomou um banho num chuveiro de ferro. Apesar de ainda não ser água quente, já era um avanço contra aquele latão furado que antes ocupava o lugar.

A noite chegou. Ansioso, ia de cinco em cinco minutos para a porta, nervoso pela ausência de Shiro e Miya. Resolveu se ocupar. Ambos provavelmente chegariam cansados, então ele decidiu surpreender Shiromiya, fazendo o jantar.

Não que soubesse cozinhar, mas já havia experimentado mexer nas panelas algumas vezes na sua casa de Hokkaido. Pôs a gordura de porco numa panela de ferro e começou a fritar o peixe. Numa outra panela, fez o arroz. Apesar de não saber se estava gostoso, o cheiro invadiu a casa e ele sorriu, antevendo o rosto espantado de Kazue.

— Papai! — ouviu o chamar feliz e alto vindo da porta.

Estendeu os braços e levantou a criança para cima, apertando-a contra si. Conhecera-a há tão poucos dias, mas ela já lhe fazia uma tremenda falta.

— Sentiu saudades? — Miya indagou.

— Jamais entenderá o quanto — respondeu, beijando a bochecha rosada.

Repentinamente, os olhos da menina desviaram-se para a pia. Pareceu espantada ao ver a torneira e encarou Ryo.

— Você sabe o que é isso? — ele perguntou.

— Existem dessas na escola — retrucou, ofendida.

Que ranzinza adorável!

— Agora seu papa não precisa mais buscar água no poço — percebendo a ausência de Shiromiya, encarou a filha. — Onde ele está?

— Foi ver as galinhas.

Assentindo, Ryo colocou a criança no chão.

— Vá tomar um banho que eu irei chamá-lo.

Sem pestanejar, ela obedeceu.


***


Shiromiya sentou-se aos pés da figueira que ficava no fundo do milharal. Sozinho, observou as estrelas e permitiu que as lágrimas caíssem pela face.

Que tipo de pai ele era? Que merda de pai ele era?

No que estava pensando quando a adotara? Não tinha nem para si e ainda resolveu assumir uma criança. Miya poderia ter encontrado uma família com mais condições – a própria mãe de Jiro queria assumir a menina –, e provavelmente eles achariam um jeito para cuidar da saúde dela.

Contudo, só de imaginar-se separado dela, experimentou uma dor tão profunda que era impossível não se sentir destruído.

Escondeu o rosto nas mãos, deixando que os soluços escapassem livremente.

Lembrou-se do passado, das palavras de Ryo naquela manhã de 1945.

“O único lugar que alguém como ele serve para estar é numa cama”.


Sim, ele não tinha nenhuma utilidade. Prostituto antes mesmo de ser adulto, acreditou que poderia ser diferente. Creu com todo seu ser que batalhar e lutar pela filha lhe daria dignidade, que Kami-sama olharia para eles, que daria a ambos felicidade. Mas um nada como ele sempre seria um nada.

O som de passos ao seu lado fê-lo desviar a atenção para aquele que chegava. Ryo o encarou surpreso, estranhando sua fragilidade, pois desde que havia voltado era a primeira vez que via um pouco do antigo Kazue naquele homem batalhador.

— Aconteceu alguma coisa?

A pergunta fez Shiro se erguer. Se as coisas fossem diferentes, ele se submeteria novamente ao comerciante em troca do dinheiro para o tratamento de Miya. E, bem da verdade, ele se deitaria com qualquer um que pagasse por tal. Por Miya, ele esqueceria seu senso de honra, duramente conquistado naqueles anos de trabalho intenso.

Mas Ryo não era nem sombra do comerciante arrogante que havia conhecido no passado. Lembrou-se vagamente das vezes que ele balançava notas de ienes no seu rosto, oferecendo qualquer valor por sexo. Nunca pediu-lhe sentimentos. Queria o corpo e o teve. Depois de tê-lo, planejou devolvê-lo para Aiko, como um objeto usado.

Shiro sentiu as lágrimas esquecidas voltando aos olhos, ao perceber que dera a ele todo o seu coração. Agora, aquele novo – e pobre – homem parecia desejar o oposto. Parecia querer sua amizade – que outrora desprezou – e suas emoções. Porém, como se numa maldade do destino, naquele momento, não se sentia disposto a abrir um milímetro de seu coração para ele.

— Shiro, por favor, o que aconteceu?

— Nada que importe a você.

Tentou desviar-se do homem, mas foi seguro pelo braço. Sentiu o membro latejar, a dor de carregar a filha durante todo o dia no colo pareceu atingi-lo. Estava cansado, física e emocionalmente.

— Estou preocupado — o outro explicou. — Onde estiveram o dia todo?

— Aonde eu vou com a minha filha, não lhe diz respeito — devolveu, tentando puxar o braço.

— Por favor... eu só...

Repentinamente, os olhares de ambos se buscaram. Fazia muito tempo que não se encaravam daquele jeito. Olho no olho, sem máscaras ou ressentimentos. Apenas dois homens que já haviam se amado, se observando, como se o tempo não houvesse passado nem os mudado tanto.

Ryo Satoshi o sentiu fraquejar. Percebeu uma réstia de emoção escondida, camuflada, guardada como um segredo proibido. Mais que isso, havia amor. E então tudo se perdeu naquela certeza, de que a guerra, os anos e as suas atitudes covardes não haviam destruído o mais importante.

Aproximou a boca daqueles lábios finos e lindos. Percebeu uma expressão tensa em Shiromiya, mas ele não recuou. Quando as bocas se encontraram, ambos fecharam os olhos, distinguindo, muito mais do que qualquer outra sensação, o encontro de suas almas.

Shiro sentiu que Ryo deslizou a língua pela sua boca macia. Sugou languidamente e lentamente o lábio inferior, antes de entrar com a língua dentro da boca quente e doce. Gemeu perante a sensação. Ele havia trocado seu primeiro beijo com aquele homem, e depois dele nunca havia existido outro.

Percebeu que ia chorar. Como uma mocinha daqueles contos antigos que Nana costumava contar pra ele. Iria chorar de emoção, de tristeza, de dor. Mas também de um alívio estranho, um alívio sem qualquer fundamento para existir.

Quando as línguas se enroscaram, ele sentiu um gosto salgado de lágrimas na boca. Imaginou que, enfim, suas lágrimas despencaram, mas, quando abriu os olhos, percebeu que o pranto era do outro.

Afastou-se, subitamente, chocado.

— O que você está fazendo? — questionou, empurrando-o.

Então, os dedos tocaram na camisa aberta. O gelado de um metal fê-lo desviar os olhos para baixo. Reconheceu imediatamente o coração de ouro, simples, mas de um valor sentimental inestimável, ostentado com orgulho pelo outro.

— Você quer me confundir? — sentiu que suas palavras saíram mais magoadas que o normal. — Eu tenho uma vida agora. — foi franco. — Não tenho tempo para sua sedução barata. Mesmo que eu ainda fosse um menino carente, buscando desesperadamente um amigo, fácil de enganar porque jamais havia sido amado por alguém e não conhecia a sensação, ou mesmo que eu ainda sentisse qualquer necessidade de ter seus sentimentos... ainda assim eu seria pai e teria a responsabilidade de cuidar de uma filha. Então, não interessa o que está buscando, não encontrará aqui.

Desviando-se de Ryo, ele praticamente correu até a casa.


***


Shiromiya Kazue entrou na casa com pressa. Mesmo ciente de que fora tão responsável quanto Ryo pelo erro cometido no terreno, ele sentia uma ânsia absurda de partir para uma luta corporal.

Como se atrevera? Como ousara interferir na sua paz?

Abraçou a si mesmo, enquanto continha um estremecimento que invadiu todo seu corpo.

— Papa.

A voz da filha fê-lo respirar fundo. Antes de voltar-se para a criança, ele recompôs-se.

— Sim, Miya?

Voltou os olhos e a viu sorrindo, de cabelos molhados, apontando a pia. Então, observou o objeto. Deu-se conta da torneira cinco segundos depois, e mal pôde conter o embrulho no estômago.

O som de passos denunciou a entrada de Ryo. Encarou o homem, sentindo todo o sangue subir para seu rosto. Deu dois passos em sua direção quando, antevendo a briga, Miya se colocou entre eles, abraçando as pernas de Satoshi.

— Obrigada — seu tom alto e franco acordou Shiro.

Encarou a pequena. Ela agradecia um gesto que aliviaria, e muito, a vida difícil de ambos. Num misto de revolta por Ryo intrometer-se em sua vida, e agradecimento por não ter mais que erguer latões de água do poço, ele recuou.

— Eu sei que a casa é sua — Ryo disse, os olhos fixos na figura do anfitrião. — Apenas desejei demonstrar um pouco de gratidão por você ter me acolhido.

Foi então que as pernas cansaram tremendamente. Aquele dia, um turbilhão de emoções, havia tirado dele toda a energia. Sem dizer uma única palavra, ele foi para o banheiro, lavar-se. Esperava que a água limpasse, acima de tudo, toda a mágoa que parecia massacrar seu coração.


***


Durante toda a semana, a chuva havia sido anunciada. E, de fato, ela veio, dois dias depois do previsto, inundando as ruas de Tóquio com lama.

Da janela de sua livraria, Mamoru Aiko encarou a rua. O sol já havia se despedido, e ele baixou a face, tristemente, enquanto fechava as cortinas e trancava a porta.

Mais um dia...

Jiro o havia pedido em namoro. Esperançoso, criou expectativas que não foram atendidas. Provavelmente, o ex-sargento havia se arrependido das palavras e por isso sumira.

Minikui enroscou-se em suas pernas. Baixou o corpo e acariciou o amigo que nunca lhe abandonara. Os olhos ficaram lacrimejantes, e ele pensou em Shiromiya.

Kazue também não o havia abandonado. Apenas, não podia vê-lo. Culpa das passagens caras e da vida difícil que levava. Sempre sonhou que Shiro teria uma vida estrelar na Casa Ai, e depois se aposentadoria com um bom dinheiro guardado. Sonhos em vão. A guerra destruiu tudo. Ryo cuidou de terminar o serviço.

Batidas fortes na porta. O coração deu um salto. Mesmo tanto tempo depois, batidas fortes ainda mexiam com seu imaginário. Lembravam-lhe explosões e dor. Porém, não havia mais guerra e ele precisava superar aquilo.

Abriu a porta. Ao longe, um relâmpago cruzou o céu. Naquele breve segundo em que a noite tornou-se dia, ele viu o rosto de Shin Sakamoto.

Segundos depois, o grande amor de sua vida ajoelhava-se perante ele.

Era o fim de sua paz.

 

Capítulo 14


Os olhos negros e misteriosos de Shin Sakamoto observaram as pequenas gotículas de água que acumularam sobre a mesa, caindo de seu cabelo. Sua cabeça baixa, os olhos fixos na madeira bonita, e os ombros caídos denotavam o quanto estava arrasado, massacrado.

Mamoru o observou por trás do balcão. Apesar da vontade de expulsá-lo, assim que o viu parado a sua entrada com os olhos cheios de lágrimas e o semblante tomado pelo desespero, percebeu-se dando-lhe passagem, permitindo que ele entrasse novamente em sua vida.

Odiou a si mesmo mais do que a Shin, quando notou que as lágrimas caíram junto com as dele. Não trocaram uma única palavra, a princípio. O outro, simplesmente, sentou-se numa das cadeiras, baixou a fronte até a mesa e ficou em silêncio, como se tudo que bastasse, fosse respirar o mesmo ar que ele.

Exausto, o ex-cortesão deu-se conta de que esperava por aquela aproximação há muito tempo. Não que a desejasse, mas repentinamente a situação era até um alívio. Shin viera. Shin estava ali.

Não entendia como se sentia. Bem da verdade, toda a situação era confusa. Shin passara aqueles cinco anos observando-o da janela, sem lhe dirigir a palavra. Então, Jiro aparecera. Jiro lhe pedira em namoro. Depois, sumira sem explicação. Agora Sakamoto vinha. Sakamoto chorava. Sakamoto parecia um derrotado.

Saiu de trás do balcão e se aproximou.

— Tome — estendeu-lhe um copo com chá.

Os olhos de Shin afundaram-se nos seus. Aiko ficou nervoso. O que tudo aquilo significava?

— Eu não deixei nenhum homem se aproximar de você nesses últimos cinco anos.

A confissão súbita fê-lo derrubar o copo no chão. De olhos arregalados, ele visualizou cada um dos pretendentes ou futuros amigos que surgiram naquela livraria, convidando-o para sair. Então, a imagem daqueles rostos não tão importantes foram substituídas por uma face que ele amava.

— Jiro?

— Não queria feri-lo, eu o amo...

Aiko sentiu as pernas falharem. Sentou-se então na cadeira em frente ao homem. Logo as lágrimas derramaram-se, abundantes, sobre as gotículas de água que lá estavam.

— O que você fez para Jiro-san?

Cinco anos após as palavras duras trocadas perante a revelação do segredo de Aiko Mamoru, eles voltavam a se enxergar, sem máscaras.

— Não queria machucá-lo — insistiu na ideia. — Eu achei...

— O quê? — gritou, ansioso e nervoso. — Fale logo, Sakamoto!

— Quando vocês se encontraram naquela noite, eu manipulei o americano para vir aqui, a fim de estragar seu jantar. Minha intenção era que Jiro saísse com ele, mas, para minha surpresa, o estrangeiro acabou ficando e Saito saiu sozinho, após você mandá-lo embora.

Shin mordeu o lábio inferior.

— Eu não planejei sair naquela noite com Jiro.

— Mas saíram?

— Sim, fomos beber... e acabamos indo para a minha casa.

Tudo aquilo era para lhe contar que os dois o haviam traído?

— Fizeram sexo? — indagou, segurando-se para não voar no rosto de Shin e esmurrá-lo.

— Eu fiz. Jiro dormiu.

Aiko estranhou as palavras por alguns segundos. Meditou no que Shin insinuava, e quase pediu para que ele repetisse, quando se deu conta do fato.

Arregalou os olhos, e todo o seu corpo convulsionou de raiva. Em segundos, ele saltava em cima do outro, os dois punhos fechados, agredindo-o com toda a força que conseguia demonstrar.

— Monstro! — gritou. — Jiro sempre confiou em você! — Mais socos. — Sempre acreditou em você! Mesmo depois de tudo, ele esperou muito para revê-lo — deixou-o, afastando-se. — Como você pôde?

Shin escondeu o rosto com as mãos.

— Eu não sei — sua sinceridade corroeu o outro. — Eu preferia morrer a machucá-lo.

Então Aiko se aproximou novamente.

— Fez isso para destruir minha relação com ele?

— O quê? — pareceu em conflito. — Não, eu jamais... Que relação?

— Estamos juntos.

Não contou apenas para que o outro soubesse. Queria ver seu olhar destruído, queria esmigalhar seus sentimentos, pisar no seu coração. Queria seu aspecto chocado e em lágrimas, vê-lo se arrastar aos seus pés, implorando para que não fizesse aquilo.

Contudo, só percebeu os próprios anseios, quando a gargalhada de Sakamoto destruiu todas as suas esperanças.

— É sério? — Shin ainda indagou, secando os olhos.

— Duvida por que motivo? Não acha Jiro um homem maravilhoso e encantador? Não o considera digno de ser namorado de alguém?

— Jiro é tudo isso e muito mais. O problema não é ele, é você.

Mamoru ficou indignado com a audácia. Sentiu todo o sangue subir em seu rosto.

— Meu sangue chinês me torna indigno? Vá para o diabo, Sakamoto! — conteve-se para não agredi-lo novamente. — Perderam a guerra — provocou, cutucando a ferida mais dolorosa. — Você e esse maldito Império. Agora, vergonhosamente, o Japão tem que ser protegido por americanos... E, assim, vai ter que tolerar que meu sangue chinês agora não me levará a campos de extermínio. Aceite que não tem mais poder nenhum...

— Perdemos a guerra, mas seu sangue ainda pode matá-lo — retrucou. — O país está cheio de milícias ansiosas para enfiar balas nas fuças de qualquer estrangeiro ou mestiço. Então, fale mais baixo porque ainda não está em segurança — respirou fundo. — Não disse que é indigno, apenas disse que o problema desse relacionamento é você. Jamais amará Saito.

Aiko se aproximou, o dedo em riste.

— Quem é você para dizer quem eu amo ou deixo de amar?

— O homem que você ama.

E antes que Aiko conseguisse reagir, Sakamoto o prendeu nos braços, invadindo seus lábios com a língua afoita. Todo o corpo do outro reagiu. Primeiro, numa luta frenética para se libertar daquele beijo roubado, daquele poder absurdo que ele tinha sobre si. Depois, por fim, entregando-se aos lábios generosos, permitindo que o gosto de Shin fosse saboreado pela sua língua, que seu desejo mesclasse ao do outro.

Assim que provou sua opinião, Sakamoto o soltou.

Aiko mordeu o lábio inferior, enrubescido e furioso pela vergonha.

— Eu te odeio — murmurou, negando todas as reações de seu corpo. — Eu te odeio mais do que tudo.

— Não matei Nana — Shin devolveu. Também sabia ser cruel. — Eu odiava aquela velha chata, mas não fui o culpado pelo bombardeio. Assim como não fui o culpado por você ter ficado em Tóquio. Sou um cretino, não vou negar. Fiz e faço coisas das quais me envergonho e me culpo, mas não vou carregar um fardo que não é meu — depois, aliviou. — Se lhe serve de consolo, saiba que o país todo foi massacrado, então, se era pra acontecer, ela teria morrido em Tóquio ou qualquer outra cidade. Não havia para onde fugir.

Mamoru não tinha respostas, então apenas apontou a saída.

— Desapareça da minha frente e nunca mais volte — mandou, mas não ficou para vê-lo se afastar.

Shin não tentou impedi-lo ao vê-lo subindo as escadas que levavam ao andar superior. Ainda observou o ambiente por alguns segundos, percebendo que Mamoru havia feito um bom trabalho naquele estabelecimento.

Depois, notou um movimento tricolor atrás do balcão.

Sorriu para Minikui e soube exatamente qual seria seu próximo passo.


***


Ryo Satoshi sentia os dedos arderem pelo trabalho de debulhar milho. Jamais pensou que aquela tarefa fosse tão complicada e dolorida. Refletiu como faria para comprar máquinas que realizariam aquele serviço sem que Shiro se sentisse ofendido por tal.

Depois do beijo trocado e da visão da água encanada na casa, ele mal o encarava. Contudo, escondendo um sorriso de satisfação, sentiu contra a própria pele que havia esperança para eles. Shiromiya ainda o amava. A forma como o observou, como seus olhos brilharam perante si, como a respiração acelerou e as lágrimas que se formaram e se sustentaram nos olhos com esforço, denotavam o quanto o sentimento ainda estava lá, vivo, preparado para ser despertado novamente.

E não havia ninguém mais disposto a amar que Ryo. Não existia no mundo todo outro homem em tal estado de desespero para se redimir com seu amor.

Miya cruzou por ele. Observou a menina que caminhava reto até o portão. Ela havia tido aulas de manhã. Shiro a levou e trouxe no colo. Achava um exagero, Miya já era quase uma mocinha, por que não caminhava por si só? Mesmo assim, ainda temia envolver-se no processo de educação. Estava pronto para assumir seu papel – de direito – de pai, contudo, o medo de ser rechaçado era grande.

Ergueu-se do banco e observou Shiro ao longe, carpindo. Depois, volveu os olhos para a direção que a menina andava e a seguiu. Encontrou-a em frente à casa, conversando com um garoto baixo.

Sentiu o sangue em ebulição. Mal pôde conter as pisadas fortes em direção à dupla. Sabia que estava com o semblante tomado pela raiva, mas não se conteve. O que era aquilo? Um namoradinho? Com oito anos? Só por cima do seu cadáver!

— Miya! — chamou, bravo.

A criança olhou para ele. Parecia confusa pelo seu ar zangado.

— Sim?

— Quem é esse?

— Meu coleguinha.

Ryo encarou o garoto, que pareceu temê-lo. Era pequeno, menor que Miya. Tinha o quê? Oito ou nove anos? Magricela, de joelhos ralados e ar bondoso. Porém, claramente, um lobo preparado para caçar a Chapeuzinho Vermelho.

Puxou-a pelo braço.

— Entre! Você não tem lição?

— Eu faço à noite.

— Então vá brincar com o sr. Bigode! — voltou o corpo para o meShiro. — O que você quer?

— Eu só vim entregar um recado ao senhor Shiromiya — o outro respondeu, com a voz fina.

Um pigarrear as suas costas, gelou-o. Volveu os olhos e percebeu Shiro a encará-lo, furioso.

— Por que está tratando Misaki-kun assim?

Ryo enrubesceu. Não respondeu, apenas deu passagem a Shiro, que se aproximou do garoto. O sorriso que lhe deu, junto com um gentil cafuné nos cabelos, fez com que Satoshi ardesse de ciúmes. Quando Shiro sorriria assim para ele? Queria também seu toque espontâneo!

— Saito-san ligou para a cabine telefônica — o garoto contou. — Ele pediu que o senhor o aguardasse lá daqui a uma hora que ele vai ligar novamente para conversarem.

Shiromiya agradeceu o aviso e o garoto foi embora correndo. Quando voltou-se para Ryo, notou seu ar preocupado.

— O que foi?

— Você vai?

— Aonde?

— Na cabine, ora essa!

Por que estava zangado? Era ele que deveria estar!

— É claro.

— Por quê?

O que diabos estava acontecendo ali?

— Como assim, por quê? Jiro é meu amigo, estou morto de saudades e ele me ligou. Qual é o seu problema?

— Vai contar a ele que estou aqui?

Se Jiro Saito havia investigado sua vida durante sua visita a Tóquio, contaria a Shiro que o comerciante estava mais rico do que nunca. Contudo, Ryo sequer desconfiava que Shiromiya também não tinha interesse de que Saito soubesse da presença do ex-amante ali. Temia a reação de Jiro. Claro que, ao descobrir a presença de Satoshi novamente na vida do amigo, Saito voltaria de Tóquio e provocaria uma briga, expulsando Ryo da casa.

Baixou a fronte. Não conseguia admitir, mas a verdade é que não estava pronto para se afastar novamente de Ryo. Claro, dizia a si mesmo que era o que queria. À noite, rezava a Kami-sama e pedia que o outro partisse. Implorava aos deuses que protegessem seu coração do poder devastador que Ryo tinha sobre si. Entretanto, a verdade que escondia no fundo de sua alma é que a presença do outro havia trazido certa luz a sua existência.

Miya puxou sua mão e ele encarou a filha.

— Mande um beijo para tio Jiro — ela pediu, sorrindo.

Shiro sorriu de volta, tentando firmar a si mesmo que era apenas aquela miniatura de gente a dona de seu coração. Porém, ao encarar o outro, vacilou.

Ainda o amava? Jamais! Preferia a morte a manter sentimentos por Ryo. Já não havia vivido aquilo antes? Crer que era uma pessoa normal, digna de amar e ser amado, era apenas uma ilusão. Ele tinha marcas e manchas profundas. Sequer era digno de ser pai de Miya. Só o era porque a pequena não havia tido opção.

Contudo, Ryo tinha. Provavelmente, encontraria alguém para dividir a vida em breve. Mesmo sem dinheiro, ainda era um homem com estudo e beleza. Conseguiria um emprego, teria sua própria casa, seus filhos, uma esposa bonita para ostentar.

E Shiro permaneceria ali. Um pequeno arranhão na imagem que Ryo ainda conquistaria perante a sociedade. Um segredo vergonhoso, um deslize fugaz. Algo que Ryo tentaria manter em segredo, que afundaria seu ego em preocupação. Afinal, quem gostaria de ter seu nome ligado ao dele? Um pária infeliz, um pedaço de carne que já havia sido usado por muitos. Um nada...

Permitir qualquer sentimento em seu coração era apenas alimentar uma dor que poderia destruí-lo.

— Papa? — Miya o tirou da letargia.

Piscou os olhos, espantando a tristeza que pareceu inundá-lo.

— Pode deixar — respondeu a ela. — Mandarei muitos beijos seus ao tio Jiro.


***


O som ficou chiado por alguns segundos. Porém, a estática logo se findou, e Shiromiya pôde ouvir com clareza a voz amada de seu amigo.

— Shiro?

Kazue riu diante do tom desesperado.

— Sentindo minha falta? Como você está?

Silêncio. Por alguns segundos acreditou que a ligação houvesse caído, mas então a voz de Jiro surgiu, nítida.

— Shiro, eu preciso de você...

Estranhou aquele pedido. Pôde perceber que Saito não estava bem. Desde o final da guerra, quando tudo que tinham era um ao outro, Jiro sempre se esforçou para se mostrar forte, aquele que ele poderia se apoiar para aguentar tanta dor.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, preocupado. Subitamente, lembrou-se do que ouviu na rádio perto da escola, quando foi levar Miya de manhã. — Daniel vai para a Coréia?

Com a Guerra da Coréia, boa parte do exército americano estava sendo transferido para lá. Um sentimento de insegurança tomou conta do país, e muitos pediam a volta de uma força armada para proteger a nação diante de tanta ameaça não declarada.

Shiromiya esforçava-se para não pensar nisso. Tinha seus problemas, o futuro do país não estava em suas mãos.

— Não... — Jiro pareceu só se atentar do fato naquele momento. — Não sei de nada, mas acredito que se ele fosse transferido, me falaria.

Mais silêncio. Repentinamente, Shiro sentiu-se inseguro diante disso.

— Viu Aiko-san? — sua pergunta era quase um murmuro.

Se Mamoru Aiko não houvesse sobrevivido à guerra, ele não desejava saber. Podia fingir que o grande irmão e amigo estava feliz, vivendo tranquilamente ao lado de seu grande amor. Preferia a ignorância à certeza de que não havia mais vida naquele a quem tanto amava.

— Aiko está bem. Eu pedi uma chance para nós, e ele me deu.

— É mesmo? — sorriu com a notícia

— Mas Shin me forçou...

A confissão fez com que Shiromiya arregalasse os olhos. Ryo havia dito que Shin estava fora do seu perfeito juízo. Mas não esperava que tanto.

— Não pode imaginar como me sinto, Kazue... — murmurou, em lágrimas. — Ninguém entenderia meus sentimentos...

Repentinamente, Saito deu-se conta das próprias palavras. Ficou profundamente envergonhado e pediu desculpas.

— Não seja bobo — Shiro disse, repentinamente os olhos transbordantes de lágrimas. — Não tem porque se desculpar.

— Mas eu... Fiquei tão cego em autocomiseração.

— Tem razão em ficar — Shiro declarou, tentando aparentar tranquilidade. — Somos diferentes, Jiro. Você sempre foi dono de seu corpo e o entregou a quem quis. Então, é natural que se sinta abusado.

— Mas você...

— Nunca tive o direito de me sentir assim... porque desde que me recordo, eu sempre fui uma mercadoria.

— Você não é isso, Shiro!

— Não fique nervoso, não há necessidade.

— Mas...

— Quero saber de você — cortou. — Falou com Sakamoto depois disso?

Jiro suspirou antes de responder.

— Estou tentando perdoá-lo. Sabe como é difícil superar uma decepção.

— É, eu sei.

Mais silêncio.

— Ryo Satoshi não se casou. Shin disse que havia, mas Aiko negou. Shin realmente não está normal, ele sequer sabe do amigo... — pareceu entender algo que até então havia passado. — Será que Shin não foi à loucura depois da guerra?

— Pode ser.

— Não sei por que lhe falei sobre esse cara — Jiro suspirou. — Perdoe-me, estou confuso e falando o que não devo.

Shiro não respondeu. Porque a bem da verdade, aquilo não importava. Nada poderia dar-lhe esperanças.

— Fale-me de Mamoru.

Mesmo sem vê-lo, Shiro soube que Jiro sorriu do outro lado da linha.

— Ele ficou tão feliz em saber sobre você e Miya! Disse que mal pode esperar para reencontrá-lo. Eu lhe expliquei sobre a sua dificuldade para viajar, mas ele disse que como você não poderá ir até ele, então ele irá até você.

Shiro sorriu.

— Mas minha casa...

— Acha mesmo que Aiko se importará por você ser pobre? Ele mal consegue aguentar tanta saudade. Precisava ver seus olhos quando citei seu nome.

Shiromiya sentiu-se profundamente feliz.

— Shiro, preciso desligar — Jiro avisou.

— Voltará logo?

Estranhou a preocupação, mas não se aprofundou na questão.

— Talvez eu volte com Aiko — disse, não querendo deixar claro que não planejava sair tão cedo de Tóquio.

Shiro assentiu.

— Eu te amo, Jiro. Por favor, se cuide.

— Eu também.

Sem mais palavras, ambos colocaram o fone no gancho.

 

Capítulo 15

Ryo Satoshi encarou o jovem rapaz que se aproximava. Shiro o observou por alguns segundos e então desviou os olhos, voltando para a enxada e a terra. Aparentemente, tudo estava normal. Contudo, como ficar sem saber o que diabos Saito Jiro havia dito ao seu amado? E se a verdade surgiu e Shiro estava tentando apenas buscar um jeito de tirá-lo de sua casa? Perderia a chance de envelhecer ao lado do homem que amava, enquanto via a filha crescer?

Deu um salto do banco de madeira onde separava as palhas das espigas de milho e foi até Shiromiya.

— Saito Jiro mora aqui perto?

Era óbvio que sabia que Jiro estava em Tóquio, ao lado de Shin e Aiko. Porém Shiro desconhecia o quanto ele estava ciente do fato.

— Jiro mora em Kyoto — contou, o semblante não demonstrava absolutamente nada de anormal. — Mas ele está em Tóquio no momento.

Ryo retorceu os lábios.

— Foi convocado para a reserva [13] ?

Shiro pareceu incomodado com o interrogatório.

— Não sei. Jiro não comentou nada.

— Um sargento primoroso como ele, que serviu na China e na Alemanha e depois protegeu um membro da Família Imperial, não seria deixado de fora, não é?

Claramente, Shiromiya não tinha palavras. Ryo quis colocá-lo contra a parede, fazê-lo admitir que Jiro estava escondendo o passado da justiça, mas preferiu amenizar o tom, diante do conflito da pessoa que amava.

— Mas conte-me, ele viu Shin?

Shiro ficou emudecido alguns segundos e Ryo quase desfaleceu. Mataria Sakamoto se ele tivesse deixado algo à mostra.

— Jiro acha que Shin ficou louco.

Bendita fosse a mente anormal e doentia do amigo!

— É mesmo?

Shiro recusou-se a falar do ato feito contra Jiro e atentou-se no que se referia a Ryo.

— Sakamoto-san disse que você está casado — comentou, fingindo indiferença.

Ryo segurou um riso.

— Provavelmente, criou um mundo perfeito onde eu tivesse desposado alguém e ainda estivesse rico. Sequer notou minha ausência.

Shiromiya pareceu acreditar em suas palavras. Percebendo que a conversa com Saito não lhe ofereceu riscos, mudou de assunto.

— Irá trabalhar hoje à noite na prefeitura?

Shiro assentiu, pegando a enxada e voltando a atenção ao trabalho.

— Estava pensando: agora que estou aqui, você podia largar esse emprego.

Naquele instante, parou de trabalhar. Volveu os olhos para o outro, curioso.

— O quê?

— Bom, eu quero ajudar nas despesas. Então...

— E até quando? — cortou. — Daí mês que vem, ou ano que vem, você irá embora, e como eu pagarei minhas responsabilidades?

— Não pretendo ir a lugar nenhum, Shiro.

— Isso é o que diz agora. Mas não sabe o que o futuro lhe reserva. Pode conhecer uma boa mulher, se casar, enfim, se ajeitar na vida, e eu ficarei a ver navios. Não posso e não quero contar com você.

As palavras machucaram, mas Ryo tentou compreendê-las. Era natural que Shiro não acreditasse nele. Não era exatamente aquele o motivo pelo qual estava ali, tentando reconquistá-lo?

— A única pessoa que desejo na vida é você, Kazue. — disse, no entanto.

O outro suspirou.

— Era só isso que queria me dizer? Tenho que voltar ao trabalho.

— Não, não é só isso — retrucou. — Está se matando, se destruindo. Olhe para você, está exausto!

— Não é problema seu.

— Eu te amo, então é problema meu.

A gargalhada sarcástica feriu Ryo mais uma vez.

— Se não quer parar por mim, faça por Miya. Ela sente muito a sua falta durante a noite – insistiu.

— Miya sabe que eu não tenho escolha. Não é como se eu fosse limpar os banheiros por prazer. Eu preciso fazer isso por nós.

— Ela me disse que se culpa por você ter de trabalhar tanto — contou, de supetão.

Só então a atenção de Shiromiya pareceu séria.

— Ela disse isso?

— Disse – confirmou. — Chorando – completou.

Percebeu resquícios de lágrimas formando-se nos lindos olhos amendoados. Mais uma vez se culpou.

— Shiro, estou aqui agora... Quero ajudá-lo.

— Eu teria que ser muito tolo para acreditar em suas boas intenções.

Ryo balançou a cabeça, concordando, compreensivo.

— Eu entendo. Mas me dê uma única chance. Apenas uma.

— Já lhe dei muitas chances no passado.

— Preciso de uma última oportunidade para provar que eu mudei, que eu te amo... Estou aqui para cuidar de você.

Quando Shiromiya atirou a enxada no chão, Ryo percebeu o quanto estava irritado.

— A que preço?

— O quê?

— Ora, na Casa Ai me oferecia dinheiro e ouro. Na sua casa, roupas, comida e abrigo. Tudo em troca do meu corpo. É isso que quer? Dar dinheiro para me levar para o futon? Sei como me enxerga, consigo visualizar seu desprezo pela forma...

Aquelas palavras foram interrompidas por um beijo. Se nada adiantava, se nenhuma declaração bastava, se de nada servia seu olhar apaixonado... então, era com a demonstração do seu sentimento físico que ele tentaria submeter Shiro, mesmo que um pouco.

Percebeu que o outro o empurrou com força. De lábios vermelhos, Shiromiya parecia ainda mais lindo e maravilhoso. Pelos céus, como o desejava ardentemente!

— Eu te odeio! — Shiro afirmou, os olhos raivosos e o corpo em gana de avançar no outro.

— Eu sei que o machuquei — Ryo devolveu. — Você foi destruído pela vida e, mesmo aos cacos, entregou tudo que restava para mim. Deu-me seu coração, seu corpo, sua confiança... e eu o decepcionei profundamente. Não me orgulho disso. Na verdade, passei os últimos anos culpando-me por cada atitude errada que tive. No entanto, eu preciso que, pelo menos dessa vez, confie em mim. Não só por você, mas também por Miya.

Shiromiya o encarava com seriedade, tentando encontrar qualquer vestígio de inverdade, qualquer vacilar no tom, qualquer coisa que pudesse se apegar para recriminá-lo. Porém, Ryo Satoshi parecia sincero, dedicado e franco. Mesmo assim, igualmente sabia que Ryo tinha o poder de enganá-lo.

Olhou por trás do homem e viu Miya a observá-los, ao longe. Tomou um susto. Ela havia visto o beijo? O que pensara?

Ryo percebeu sua descompostura e volveu o corpo para aquela direção. Sorriu.

— Não se preocupe, não deve ser a primeira vez que ela nos vê brigando e nos beijando.

— O quê?

— Aposto que viu muitas vezes nas suas visões. Ela sabe que somos seus pais... sua família.

Queria negar aquelas palavras, mas no fundo sabia serem reais. Miya falava de um pai imaginário, e Ryo se encaixava com louvor naquela descrição. Entretanto, viu-se avançando mais uma vez.

— Ela só tem um pai — retorquiu. — Apenas eu sou sua família. Você é apenas um hóspede que nem sei por que acolhi. Agora, saiba que esse é o seu lugar nessa casa e nunca mais avance esse limite.

Seguiu o caminho reto, mas percebeu que Ryo não o deixaria assim. Segurando-o pela cintura, puxou-o contra si.

Naquele instante, Shiro ardeu em mil pontos, sentindo subitamente que um calor há muito adormecido tomava conta de si. Não conseguiu se mover, todo o corpo ciente do outro, grudado no seu.

— Você... — começou, mas foi interrompido por um beijo gentil na nuca.

Fechou os olhos, contendo um gemido, um prazer indescritível tomando conta de todo seu corpo.

— Eu mereço cada palavra. Diga-as um milhão de vezes, se isso te fizer sentir melhor. Mas esqueça a ideia de que eu partirei. Nunca mais me afastarei de ti. Eu te amo e se, para convencê-lo de que estou sério, precisarei falar isso todos os dias, até o fim de nossas vidas, falarei.

Shiro abriu os olhos.

— Não cairei na sua lábia novamente.

— Não são palavras vãs. É a profunda verdade de minha alma.

Irritado, desvencilhou-se daquele abraço.

— O que você quer? — sua pergunta era direta.

— Você.

— Seja verdadeiro uma vez na vida, Ryo Satoshi!

— Estou sendo.

O menor negou com a face.

— Deixe-me em paz.

— Não posso. Está abatido, cansado, destruído. Seu olhar é opaco, como de uma carne sem vida. Por Kami-sama! sei que ama Miya mais que tudo. Eu também a amo, mas não precisa se submeter a uma vida tão cheia de privações por conta dela. Como acha que ela se sente ao vê-lo voltar para casa tão exausto ao ponto de dormir na porta?

Shiromiya ficou em silêncio, pensativo.

— Aceite minha ajuda. Não por mim, mas por ela.

— E o preço? — insistiu na ideia.

— Não há preço. Apenas quero que descanse.

Era uma grande tentação.

— Se ficar doente, quem cuidará dela? — o outro pareceu cutucar mais a ferida, tentando convencê-lo.

Então, Shiromiya voltou-se novamente para a criança. Miya parecia em conflito, de ir ou não até eles. Querendo acalmá-la, sorriu, acenando. Percebeu-a rindo, aliviada, e então voltando para o boneco de espiga.

— Está bem — disse, por fim.

E então se afastou. Ryo quase resvalou ao chão, mitigado. Mas, em vez disso, ergueu a face para o céu e, numa prece muda, agradeceu a Kami-sama por abrandar um pouco o coração de seu grande amor.


***


— “ Romeu, aqui sem vida, era marido desta Julieta — suspiro impaciente — assim como ela, morta também aqui, era a fiel consor... ”.

Ryo volveu os olhos para o livro.

— Consorte — ajudou-a.

— “ Era a fiel consorte deste Romeu ”. — Miya encarou o pai. — O que é consorte?

Ryo sorriu, fazendo um cafuné nos cabelos negros.

— Consorte tem vários significados. Pode ser uma pessoa que compartilha algum direito com alguém. Mas, nesse caso, significa cônjuge.

— E cônjuge seria...?

— A esposa ou o marido.

Numa das noites que Shiromiya passava na prefeitura, Ryo pegou os cadernos de Miya para ver seu progresso nos estudos. Notou a clara dificuldade com a escrita e, ao ouvi-la lendo para o outro pai, percebeu que ela também tinha problemas com a dicção. Não obstante, pediu que pegasse um clássico qualquer na biblioteca da escola. Ficou surpreso quando ela apareceu com Shakespeare em casa. A professora, ao ouvir a solicitação da menina, lhe entregou Romeu e Julieta , parecendo não se atentar da idade da criança. Ryo, contudo, ficou satisfeito com a escolha. Era um desafio, algo acima do que a sua mente ainda em desenvolvimento seria capaz de captar. Mesmo assim, a fazia ler para ele pelo menos três atos por noite. Shiro permanecia de lado, observando-os, emocionando com as palavras tão bonitas, mas era muito nítido que Miya não compartilhava do mesmo gosto.

Alguns dias e duas páginas depois daquela pergunta, ela encerrava a leitura.

— Graças a Deus — disse, após a frase final do príncipe.

Ryo achou engraçado aquele tom, mas permaneceu firme.

— Agora que encerrou, escreva um texto dizendo tudo que achou sobre o livro. Quero ler, e amanhã você levará a sua professora e pedirá a opinião dela.

A menina assentiu. Enquanto puxava o lápis e punha-se a escrever.

Então Ryo olhou Shiromiya, que naquele momento os observava do fogão. Atrás dele, a panela soltava fumaça, exalando um cheiro delicioso de sopa. Ryo sorriu para ele e percebeu que Shiro demonstrava agradecimento com os olhos, por estar ajudando Miya com os estudos.

— Terminei — ela disse, entregando a ele o papel.

— Mas já? — pegou a folha nas mãos, incrédulo, pois não havia se passado nem um minuto da tarefa.

“ Romeu e Julieta, dois tolos sem amor próprio, que passam o livro todo ignorando as ordens de seus pais e falando palavras românticas que me fizeram querer morrer, por fim, deixaram claro sua burrice ao se suicidarem. O final, ao menos, foi feliz. O mundo não merecia pessoas tão asnas ”.

Ryo a encarou e percebeu seu olhar satisfeito, petulante, como se o desafiasse a retrucar suas palavras. Porém não fez o jogo.

— Irá refazer sua lição — ordenou.

— Por quê?

— Porque isso aqui não é uma dissertação.

— O que é uma dissertação?

— Não me enrole, Miya! — ralhou. — Vai escrever uma redação, contando a história com suas próprias palavras e depois dizendo o que de fato aprendeu com o livro.

Ela pareceu prestes a avançar nele, os olhos soltando faíscas. Contudo, ao mesmo tempo, não falava. Parecia... ouvir.

— Miya?

— Este livro não é um livro japonês!

Já havia ouvido aquilo antes. Onde? Quando?

— Literatura não tem nacionalidade, Miya — argumentou. — A arte avança fronteiras e quebra preconceitos. Além disso, a guerra...

— Miya — Shiromiya se intrometeu. — Vá escrever a redação.

— Mas...

— Agora — seu tom firme, por fim, fez a menina esmorecer.

Então, ela baixou novamente os olhos para o papel e pôs-se a escrever. Ryo aproveitou aquele silêncio e levantou-se, indo em direção a Kazue.

O outro já estava voltado para o fogão, mexendo na panela com uma colher de pau. Ficou ao lado dele alguns minutos, vendo-o cozinhar, em silêncio. Mas, por fim, não resistiu.

— Obrigado — sussurrou contra suas orelhas.

Percebeu que Shiro estremeceu e conteve um sorriso diante daquilo.

— Não quero que fale sobre a guerra com Miya.

Diante do olhar curioso, completou.

— Ela perdeu os pais num bombardeio — contou, baixinho. — Estava vivendo num casebre com os corpos em decomposição. Ela tem muita dificuldade com o barulho de explosões e com a menção das bombas. Conforme avançávamos para o Sul, depois de partirmos de Sapporo, escapamos várias vezes da morte. Não fosse por Jiro, nenhum de nós estaria aqui hoje.

O fato causou um estranho formigamento em Ryo. Então, Saito Jiro havia mantido viva sua família? Devia a ele?

— Assim sendo, evite falar sobre os estrangeiros, sobre a diferença cultural. Permita que, aos poucos, ela vá compreendendo todos os fatos, toda a situação.

Ryo concordou.

— É tão estranho... A guerra parece continuar dentro da gente...

Shiro o encarou, seriamente.

— Agora, eu terminei! — a voz interrompeu o momento entre eles.

Voltou-se para a filha. Percebeu uma folha inteira preenchida e ficou satisfeito.

Iniciou a leitura. Miya, daquela vez, fez um bom trabalho. Resumiu com maestria a história dos Capuleto e Montecchio. Ryo sorriu enquanto lia a filha dissertar sobre vingança e amor. Mas o sorriso morreu quando chegou na parte final:

“ Professora, o meu pai não queria que eu dissesse isso para a senhora, mas a verdade é que tudo isso que disse aí em cima foi apenas para agradá-lo, porque a minha sincera opinião é a que Romeu e Julieta eram dois tolos sem amor próprio, que passam o livro todo ignorando as ordens de seus pais e falando palavras românticas que me fizeram querer morrer. Por fim, deixaram claro sua burrice ao se suicidarem. O final, ao menos, foi feliz. O mundo não merecia pessoas tão asnas ”.

Encarou a filha.

— Eu já disse que te amo hoje? — ela perguntou, piscando os olhos inocentemente.

Sem conseguir se conter, Satoshi Ryo jogou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada.


***


Shin Sakamoto aproximou-se sorrindo de sua estante de livros. Lá fora, a chuva prosseguia a cair, torrencialmente. Sem dar trégua, ele aliviou-se em não precisar sair de casa naquela manhã. Estava exausto, mesmo após a noite de sono. Mamoru tinha o poder de roubar-lhe a energia.

— Minikui — chamou o gato que levantou a cabeça. — Gostou da casa do papai?

O gato voltou a deitar a cabeça no chão. Ignorou-o, como era seu costume fazer com toda raça humana. Então, Shin sorriu, e voltou à atenção a todas as suas obras literárias.

Decidiu que passaria a manhã sentado em uma confortável poltrona, bebericando chá e lendo clássicos.

— Quem pôs esse lixo aqui? — indagou, pegando Hamlet nas mãos.

Odiava Shakespeare. Não tinha motivo, simplesmente sempre o detestou.

Iria atrás da empregada, indagando qual dos servos havia comprado tal obra, quando ela surgiu na sua porta.

— Um homem quer vê-lo — avisou.

— Não receberei visitas.

— Ele disse que a visita dele, o senhor receberia. Chama-se Mamoru Aiko.

Volvendo os olhos para o gato, congratulou-se mais uma vez.

— Viu como o papai é esperto?

O gato sequer lhe deu atenção. Era um bom dia para uma soneca. E era isso que faria.

 

Capítulo 16


O som de passos fez Shin ajeitar-se na cadeira. As mãos, sobrepostas em cima do joelho, e as pernas dobradas, numa cômoda posição, davam a ele um ar bastante superior. Sorriu, conforme o som foi aumentando e, antes de Mamoru Aiko entrar na sala, ele acariciou os pelos macios de Minikui.

— Eu vou te matar, Shin! — o grito surgiu antes da presença.

Aos pés do outro, dois cães o acompanhavam animadamente, os rabos batendo de um lado para o outro. Era engraçado que Mamoru conseguia atrair simpatia instantânea de qualquer animal.

— Aiko, meu amor, não grite — pediu, gentil. — Minikui não gosta de sons altos.

Ele piamente acreditou que o outro avançaria sobre ele, mas Mamoru permaneceu parado no mesmo lugar, furioso.

— Devolva agora meu gato!

— Seu gato?

— Shin, não me provoque...

— Provocar você é uma diversão que anima meus dias, meu amor — levantou-se, e andou até o visitante. — Não roubei Minikui, apenas o trouxe para passear um pouco.

— Sem a minha permissão? Isso é roubo.

— Permissão? Por que motivo a pediria? Ele é tão meu quanto seu!

— Seu? Nunca cuidou dele! Ele é meu!

— Não vamos brigar. Ele é nosso — quis encerrar a discussão.

— Nosso? — o berro de Mamoru fez com que Sakamoto recuasse. — Nosso o cacete! Nosso o caralho! Ele é meu, seu filho da puta! Nunca vai ser seu! Eu prefiro morrer a deixar Minikui em suas mãos!

O clima hostil, por fim, afetou os cães, que começaram a latir vigorosamente.

— Calado, Baka [14] ! — Shin avisou ao animal da esquerda e depois voltou-se ao da direita. — Fique quieto, Ahou [15] .

Repentinamente, sentiu os tabefes na face. Um, dois, três... perdeu a conta, quando percebeu que Aiko se atirava em cima dele com toda a força que tinha.

— Imbecil é você! — o outro rangia os dentes enquanto o agredia.

— Não estava falando de você — Shin tentou se explicar, mas ao sentir que suas palavras não bastariam perante o descontrole do outro, segurou-o com firmeza. — Já chega! — gritou, firme. — Baka e Ahou são meus cães.

Desvencilhando-se, Mamoru foi até o outro lado da sala. Minikui estava ali parado, observando-os.

— Adeus, Sakamoto.

— Adeus? — Shin provocou. Não queria deixá-lo ir embora. — Acha mesmo que não vamos mais nos ver? — riu. — Você ainda estremece nos meus braços, Aiko.

— De nojo — retrucou.

De costas, Aiko simplesmente estancou ao sentir o calor do corpo que se aproximou por trás de si. Repentinamente, a boca abriu, levemente, enquanto a respiração acelerava.

— Não consegue viver sem mim, Mamoru...

Então veio aquela erupção, um emaranhado de ódio e raiva que guardou durante tanto tempo. Antes mesmo de conseguir se controlar, ele volveu o corpo, ficando de frente para Shin. Os narizes quase se tocando, olho no olho.

— Não consigo? Eu vivi! — afirmou. — Vivi ótimos cinco anos sem o seu controle doente, sem a sua presença perturbadora. Eu vivi durante cinco anos o alívio de não me preocupar com seus erros, não me ater nas suas inseguranças. Eu vivi! E eu teria vivido muito mais, não fosse você ter se intrometido em minhas amizades. Contudo, você não. — sentiu-se cruel e, estranhamente, aquela sensação era deliciosa. — Você não pode viver sem mim — afirmou. — Passou cinco anos embaixo da minha janela, rastejando como um inseto, implorando atenção como um cão de rua. Esperando que eu lhe atirasse qualquer migalha de percepção, como um mendigo esperando comida. Você é quem precisa de mim, Sakamoto. Eu não preciso nenhum pouco de você.

Percebeu o choque no outro. Viu seus olhos arregalando-se, como se só naquele momento compreendesse a verdade. Então, de ombros eretos e com a sensação de dever cumprido, voltou-se novamente para o seu amado gatinho. Pegou-o no colo, murmurando palavras de amor, e saiu, sem olhar para trás.


***


O bar estava repleto de homens conversando animadamente. No subsolo de um restaurante, aquele antro de bebida era ponto de encontro da ala gay de Tóquio antes mesmo da guerra ser anunciada.

Jiro se lembrava da primeira vez que pisara ali. Estava chegando do interior, atrás de Oguri, seu primeiro amor. Um dos companheiros de patente convidou-o para uma noitada.

Jovem demais para entender o que aquele mundo representaria, acabou a noite completamente bêbado, devorando um homem de meia idade que insistiu para que ele o comesse no banheiro.

Lembrando-se daquilo, ele sentiu vontade de cuspir no chão. Voltar da Alemanha com Shin Sakamoto foi muito mais que regressar ao lar, foi refazer uma história, onde ele não era um nojento pervertido, e sim um amigo gracioso que protegia o cortesão da bela e delicada Casa Ai.

— Onze da manhã e já está bebendo? — indagou, aproximando-se de Daniel.

O rapaz havia saído naquela manhã, deixando um bilhete em seu travesseiro. Assim que o leu, foi em busca dele, necessitado de companhia. Encontrou-o flertando com um bonito e jovem rapaz oriental.

Encarou o rival. Tinha aproximadamente vinte anos, baixo e bonito. Era bastante afeminado, as mãos balançando em desdém, como se não gostasse nada da interrupção. Entretanto, tinha a mesma idade que o americano. Talvez, os mesmos gostos, o mesmo desejo pela vida. Sentiu-se velho e deslocado naquele instante.

— Jiro? — Daniel arregalou os olhos. — Pensei...

— Preciso de você, então não me deixe sozinho.

O terceiro membro naquele ambiente suspirou, zangado. Jiro enrubesceu, sentindo-se a criatura mais infantil do mundo.

— Tudo bem — Daniel concordou. Voltou-se então para o outro rapaz. — Podemos continuar nossa conversa outra hora?

O rapaz negou.

— Se for com ele, fique com ele.

Jiro Saito irritou-se com a audácia. Como os jovens poderiam estar sendo tão arrogantes e irritáveis? Lembrava-se da consideração que costumavam ter com os companheiros referente às amizades que nutriam. A guerra havia destruído a humanidade daquela nação, tornando-os tão frios?

— Então, tchau.

A voz de Daniel o tirou da letargia. Sorriu ao perceber que ele dizia tal coisa ao outro, e deixou-se guiar, quando ele o pegou no braço.

— Obrigado — foi tudo que sussurrou.

— Se eu não tivesse feito isso, você provavelmente jamais me consideraria seu amigo — o tom não mantinha nenhum traço oculto. Era apenas uma afirmação franca. — Pelo pouco que notei, vive uma relação próxima demais com seus amigos...

— Amantes encontramos em qualquer lugar — Jiro defendeu-se. — Mas amigos... Amigos verdadeiros...

— Eu sei — o outro cercou seus ombros, puxando-o levemente, beijando seus cabelos úmidos.

A chuva parecia não dar trégua. Daniel puxou um guarda-chuva de um canto e abraçou Jiro. Assim, tão próximos como nunca até então, eles voltaram para o hotel.


***


A figura cabisbaixa, sentada à porta do quarto daquele hotel barato, com os ombros caídos e soltando pequenos suspiros audíveis, foi a primeira visão que Daniel teve assim que entrou no corredor.

Ao seu lado, Jiro estancou quando Mamoru volveu o olhar para eles e se ergueu. Queria sair correndo, não achava justo aquele encontro, não naquele momento que ainda se sentia tão humilhado. Porém, permaneceu parado, diante do olhar amigável do outro.

— Bom dia — Aiko o cumprimentou, um sorriso caloroso nos lábios.

Daniel suspirou e assentiu.

— Vou deixá-los a sós.

Jiro Saito quis segurá-lo, implorar para que não fosse, mas viu-se desviando o corpo e permitindo-o sair. Então, resolveu ser forte e aproximou-se de Mamoru.

— Vamos conversar lá dentro — sugeriu, abrindo a porta.

Aiko não gostou da cor daquele quarto. Um bege escuro, sem qualquer toque de personalidade. Porém, não estava ali para conversar sobre decoração. Sentou-se na cama que acreditou que fosse de Jiro e o aguardou fechar a porta.

— Não foi mais me ver — disse quando o silêncio se tornou incômodo. — Está arrependido de ter me pedido em namoro?

— Talvez.

A resposta não era a que esperava, mas a compreendeu imediatamente. Viu Jiro ir até uma mesinha, como se estivesse olhando algo em um livro, que lá estava. Não queria encará-lo, sentiu. Mas sabia também que não era por falta de amor. Motivado por aquela esperança, levantou-se e foi até ele.

Abraçou-o com força por trás, descansando a testa em sua nuca.

— Eu já sei o que aconteceu, Jiro-san.

Percebeu o leve tremor no outro.

— Como?

— Shin me contou.

Jiro ergueu as mãos, escondendo o rosto entre elas.

— Foi no mesmo dia que eu te pedi... — O som sumiu por alguns segundos. — Perdoe-me.

— Pelo quê?

— Eu o traí, Aiko-san.

— Trair? — girou-o. — Como pode pensar dessa forma?

— Mas...

— Escute: meu melhor amigo é Shiromiya. Mesmo que o tempo tenha nos obrigado a distanciar, ele é e sempre será uma parte muito importante do meu coração. Então, imagine que numa noite Shiro e eu nos embebedássemos. E, por acaso, acabássemos numa mesma cama. Você acha que eu abusaria da confiança dele ou ele da minha?

— É diferente. Shiro e você nunca tiveram um envolvimento.

— Responda-me apenas uma pergunta, então: você queria fazer aquilo?

A resposta franca foi rápida.

— Não.

— Então não ouse se culpar — mandou. — E não ouse nunca mais dizer que se arrepende de nós.

Saito permaneceu encarando aquele por quem há muito tempo seu coração palpitava.

— Nunca mais direi — prometeu.

O silêncio que se seguiu foi resultado do beijo que trocaram.

Do outro lado da porta, o americano ouviu atentamente a conversa. Diante da cena que intuiu ocorrer, apenas se afastou, com os ombros caídos.


***


Jiro deixou o corpo cair para o lado. Encarou o teto, sentindo o rosto enrubescer de vergonha e decepção.

— Eu não sei o que dizer.

Aiko apenas o encarou. Depois, acenou, compreensivo, e beijou seus ombros.

— Acontece.

— Não comigo.

Mamoru quase riu. Cobriu seu corpo nu e achegou-se nos ombros de Saito.

— Não tem graça — o outro retrucou, ao vê-lo segurar uma gargalhada.

— Tem sim — disse, no entanto.

— Sabe o quanto sonhei com esse momento?

— Sei — afirmou. — Talvez por isso tenha ficado tão nervoso. Ou talvez porque fazer amor com um grande amigo seja difícil e requer um certo tempo. Tempo que, aliás, nós temos.

Jiro resmungou e Aiko acariciou sua face.

— Talvez o motivo seja outro — o ex-sargento disse por fim.

Ficaram em silêncio diante da verdade. Ambos a sabiam, mas a rejeitavam.

— Nesses anos que correram, Shiro e eu conversávamos muito. Lembro-me de uma noite chuvosa, enquanto dividíamos um futon e ele me contou sobre os abusos.

Aiko manteve o silêncio. Jiro precisava falar, e ele estava ali para ouvi-lo.

— Você deve conhecer a história — murmurou. — Com dez anos perdeu a mãe, a fome passou a ser uma companhia diária, e o irmão, no desespero, viu em sua beleza uma forma de não morrerem à míngua.

Aiko fechou os olhos. Repentinamente a imagem daquela manhã de outono de 1940 surgiu em sua mente. Shiro jogado dentro da carroça, suas partes íntimas expostas, machucadas, seus ossos salientes, a morte prestes a consumi-lo.

— Você sabe detalhes?

— Não, Shiro nunca falou e eu nunca perguntei.

— Bom... — Jiro suspirou. — Ele me contou algumas coisas — fechou os olhos e beijou levemente a testa do outro. — Tenho até vergonha de me sentir um derrotado por uma única noite com um homem que já me teve, em outra oportunidade. Ele sim tem direito de sentir a dor que parece maior a cada dia. Com Shiro... foram tantos homens. E ele era só um menino... Foi submetido a horas intermináveis de tortura psicológica e sexual que é quase inimaginável que aconteça a uma simples criança.

Aiko afundou o rosto no pescoço de Jiro.

— Certa vez lhe perguntei o número — confessou a Jiro. — Disse-me que passaram de trezentos.

— Cinco anos de abusos diários — o outro calculou — com certeza passaram de trezentos homens — concordou. — Mas o fato é que, após tanta agressão, surras e estupro, ele era apenas um pedaço de carne andando de um lado para o outro, sem qualquer fé em si mesmo.

Subitamente, seu sangue ferveu.

— E então, quando ele já estava confortado em ser apenas uma sombra, Ryo Satoshi apareceu...

A voz de Jiro baixou tanto que quase ficou inaudível.

— Shiro me contou que a primeira ereção foi já adulto.

Aiko sorriu. Então, Jiro e Shiro mantiveram aquela amizade entregue, onde tudo era revelado. Ficou feliz por ele, já que uma amizade daquelas era o primeiro passo para uma cura.

— Eu fiquei surpreso — Jiro prosseguiu. — Veja bem, eu tive ereções assim que entrei na puberdade e vivia orgulhoso disso; mas, Shiro... Shiro tinha vergonha de sentir paixão, amor... e tudo mais. E quem despertou tudo isso nele foi Ryo Satoshi, que o convenceu de que ele poderia ser amado, não importava a mácula em seu ser.

O sorriso de Aiko morreu.

— Eu imagino a dor que ele sentiu...

— Sinceramente, não fosse por Miya, eu tenho certeza que Shiromiya não tentaria fugir e escapar das bombas. Acredito que ele teria desistido pelo caminho, cansado de uma vida tão cruel... — apertou Aiko nos braços. — Hoje ele vive uma vida difícil, mas honrosa. Porém a dor que sempre existiu nos olhos dele permanece lá. E não importa o quanto eu tenha me esforçado para ajudá-lo, ele parece a cada dia mais massacrado e machucado pela vida.

Encararam-se. Jiro sentiu o rosto molhado, e só então percebeu que estava chorando.

— Eu tive a chance de matar Ryo Satoshi — confessou a Aiko. — Quando busquei Shiromiya-san, Ryo me devolveu uma arma que pertenceu a Shin, mas que eu guardava. Eu peguei o revólver na mão, bastava apontar para a cabeça dele e disparar.

— Que bom que não o fez.

— Me arrependo todos os dias de não o fazer — assumiu. — Eu odeio aquele filho da puta! Nunca vou perdoá-lo pelo que fez a Shiro.

Aiko suspirou. Então, achou por bem sentar. Percebendo seu conflito, Jiro também se sentou, encarando-o.

— Ryo não é mais o mesmo homem.

— Que belo ator! — riu. — Está enganando até você?

— Ele passou dois anos procurando ininterruptamente por Shiro-chan. Então, em 47, se convenceu de que ele havia morrido. Desde então, passa os dias com a certeza de que é o culpado pela...

— Sente pena pelo remorso dele? — Jiro o interrompeu.

— Não é remorso — Aiko perseverou. — É arrependimento. Todos nós cometemos erros...

— Se você visse Shiromiya, saberia que o que ele fez não tem perdão – respirou fundo, buscando calma. — Você o vê com frequência?

— Não o vejo desde... — estancou. Não queria falar sobre Midori porque ainda doía demais. — desde o final de novembro.

— Não quero que conte a ele que Shiro está bem. Não quero que vá atrás de Shiro, tentando destruir novamente os restos que sobraram do orgulho dele.

Aiko hesitou. Era uma promessa difícil de fazer. Shiro era seu melhor amigo, mas ele também nutria forte afeição por Ryo, já que eram como irmãos desde criança. Viu, durante os anos, Satoshi tornar-se um morto-vivo, sem nenhuma alegria. Nunca o viu sorrir depois que Shiro se fora.

— Está bem — disse, por fim.

O beijo agradecido em sua têmpora deu-lhe a certeza de que havia feito a coisa certa.


***


Daniel engoliu o conhaque em um único gole. O pensamento longe, os olhos fixos num horizonte imaginário, a vida tão vazia quanto o copo a sua frente. Sentia-se arrasado, mas havia jurado permanecer perto de Saito não importava o quê.

E havia o fato de que era impossível odiar Mamoru Aiko. Era gentil e doce. Humano até dizer chega, tão delicado quanto uma rosa. Lembrou-se da noite que o conheceu e que lhe deu a certeza de que, não fosse por Jiro, teria se apaixonado à primeira vista por ele.

— Um jovem bonito como você, bebendo em pleno horário de almoço? — uma voz fê-lo voltar-se para um homem japonês de meia idade. — Só pode ser dor de amor.

Daniel não respondeu, mas também não objetou ao ver o outro sentar-se em sua frente. Talvez fosse a bebida falando por ele, mas em seguida, se percebeu sorrindo sedutor para o nipônico.

— Quem nunca sofreu por amor?

— De fato — o outro concordou, fazendo um gesto para o garçom trazer-lhe também bebida. — Mas para que sofrer se podemos nos divertir?

Daniel molhou os lábios já secos com a língua. Gostou daquele homem. Tinha provavelmente uns quarenta anos, mas era de um charme incalculável.

— Sou Daniel Joshua — disse, estendendo a mão para cumprimentá-lo.

O outro sorriu, estendendo a sua. O toque os atiçou.

— Eu sou Oguri.

 

Capítulo 17


Não nevou em Kibou no Natal de 1950. Não que costumasse nevar todos os anos, mas aquele ar gelado e as nuvens escuras e grossas deram a Shiromiya a impressão de que a neve não tardaria a cair.

Ryo o avisou de que iria a cidade. Não explicou muito os motivos e Shiro simplesmente deu os ombros, concordando. Depois, se ocupou em arrumar a cerca que caiu na noite anterior. Sua preocupação estava completamente focada em proteger as galinhas de predadores, então, quando a noite chegou – mais cedo que de costume – ele sentiu-se satisfeito pelo conserto.

Ao entrar em casa, o calor agradável do fogão a lenha tocou-o. Esfregando uma mão na outra, sorriu ao perceber a comida já em fase de cozimento. Não que lhe agradasse dividir a casa com Ryo, mas era um alívio ter ajuda. E Satoshi parecia ansioso em se mostrar útil.

Sempre que conseguia acesso ao fogão, cozinhava. Antes de Shiro erguer-se para ir cortar lenha, ele já aparecia com os pedaços de madeira nos braços. Quando Shiro surgia no galinheiro para alimentar as galinhas, já percebia os grãos de milho no chão, e os animais comendo. Enfim, Ryo tornara-se uma sombra ansiosa para tirar dos ombros do outro tanto peso.

Conforme as semanas foram passando, Shiromiya acostumou-se ao calor que ele emanava. Sempre ali, quieto, como se temesse ofendê-lo. Sempre ao lado de Miya, parecendo ansioso para se demonstrar um amigo amoroso e leal. Quase, imperceptivelmente, sua figura tornou-se algo confortador. Era como se Shiro sempre pudesse contar com ele.

No entanto, volvendo os olhos para o caldo fumegante e de delicioso cheiro, o anfitrião meditou mais uma vez. Tinha que ter cuidado, precisava ater-se ao fato de que Ryo iria embora mais cedo ou mais tarde. Não podia acostumar-se com a sua ajuda, porque um dia ela acabaria. Precisava proteger o coração, porque quando a decepção viesse – e viria! – a dor poderia destruí-lo.

— Sabe que dia é hoje? — Ryo indagou, mexendo as batatas.

— Ontem, você quer dizer? Aniversário de Aiko-san — respondeu. — Eu jamais esqueceria.

Satoshi arregalou os olhos. Shiro não esqueceu, mas ele havia esquecido.

— Na verdade, estava falando sobre o Natal.

— Natal? A festa dos americanos?

— Dos cristãos, na verdade — Ryo riu. — Eles comemoram o nascimento de um messias.

— E?

— Bom, costumam trocar presentes nessa data. Apesar de não entender bem o motivo, gostei da chance de poder dar algo para Miya. Permite-me?

Era estranho, mas Shiro não viu motivos para recusar.

Ao ver a face assentindo, Ryo precisou se conter para não pular nele e enchê-lo de beijos cálidos.


***


— Se Ele é o filho de Deus, porque o mataram?

Ryo coçou a cabeça. À sua frente, a menina o encarava com olhos interrogativos.

— Bom, alguma coisa como expiação.

— O que é expiação?

— Algo como uma oferenda ao Deus cristão.

— E eles oferecem pessoas?

— Mais ou menos. Jesus era um deus.

— Como Deus queria o próprio Deus como oferenda?

Ryo olhou para Shiromiya, pedindo socorro. Viu-o quase gargalhando, enquanto bebia a sopa.

— Eu não sei explicar muito bem — disse, por fim. — Mas o importante é trocar presentes — tentou aliviar.

— Para que me dará presentes se eu não sou cristã?

Ele percebeu Shiro movimentando-se ao seu lado. Girou o rosto e o percebeu com as duas mãos na boca, segurando o riso, enquanto o corpo convulsionava.

— Miya, é só um agrado. Você não quer?

Percebeu a mágoa no tom da sua voz. Não queria ser fraco perante ela, mas a cada interrogatório, notava ser uma pessoa não tão inteligente quanto sempre imaginou.

— Eu quero, mas também quero entender porque as pessoas trocam presentes nesse dia.

O som suave da voz de Shiro surgiu.

— Miya, quando Daniel vier aqui, você poderá perguntar a ele, pois ele provavelmente é cristão.

Ryo movia a face, concordando, quando se deu conta do nome dito à mesa.

— Quem é Daniel?

Shiro o encarou surpreso. Percebeu seu olhar raivoso, seu rosto enrubescido e a boca entreaberta denunciando a respiração acelerada.

— É o namorado do tio Jiro.

A resposta de Miya surpreendeu a ambos.

— Como você sabe disso? — Shiro indagou.

— Tio Jiro me contou.

O sorriso infantil não aliviou o clima que se instaurou na mesa.

— Jiro comenta com Miya sobre seus relacionamentos?

Shiro lembrou-se de ter ficado irritado pelo mesmo motivo, semanas atrás. Porém, ele era o pai dela.

— Sim — retorquiu. — Qual o problema?

Ryo respirou fundo.

— O problema é que ela não tem dez anos ainda! Isso é assunto que se trate com uma criança?

— Não vejo problema em ela saber que o tio que ela ama está namorando.

Ryo se viu sem palavras. Mordeu o lábio inferior, buscando alguma resposta, quando Shiromiya voltou a falar, machucando-o.

— Ah, é mesmo — disse, desdenhoso. — Você considera uma aberração um homem amar outro.

— Shiro, eu...

— Ainda lembro-me das suas palavras, Ryo-san — interrompeu-o. — Então, não precisa repetir.

— Não é isso! — exclamou. — Apenas não quero ouvir Miya...

— Miya não é nada sua. Não se sinta tão incomodado, porque não tem esse direito.

Ryo volveu o olhar para a menina e a notou tão nervosa quanto ele próprio. Claramente, Miya queria negar aquela informação. Soube então que a dor absurda que sentia cada vez que era negado a ele o direito de exercer seu papel na vida dela, também era compartilhada pela criança. Mas como retrucar Shiromiya se ele não entendia ou não cria no destino?

Por fim, desistiu do embate ao notar o olhar lacrimejante da garota. O clima hostil afetava-lhe muito mais do que a ele mesmo.

— Abra seu presente— disse, por fim, mudando o assunto.

Uma boneca bonita, de aproximadamente cinquenta centímetros, feita de pano e ostentando bonitos e cacheados cabelos loiros surgiu diante dos olhos da criança. Era a primeira boneca que Miya via ou tocava e a sua adoração foi instantânea e mágica.

— Ela vai ser a esposa do sr. Bigode — avisou, apertando o tecido macio contra o rosto.

Ryo olhou de soslaio para o lado, observando a reação de Kazue. Percebeu-o emocionado. Tudo que dizia respeito a Miya, tocava profundamente seu amor.

Repentinamente, a atenção voltou para a filha. Sentiu seu peso em cima de si e a apertou nos braços, adorando o abraço espontâneo, raro vindo dela, que preferia demonstrar com palavras ou toques leves sua afeição.

— Como ela vai se chamar? — indagou, assim que recebeu um beijo estalado na bochecha.

— Princesa — disse, feliz. — Porque é minha primeira amiga. Assim combina com o Príncipe.

— Príncipe? Que príncipe?

Os olhos da pequena se arregalaram.

— Ah — pareceu buscar uma explicação. — O príncipe encantado.

Que adorável! pensou Ryo, orgulhoso. Ela estava lendo contos de fadas?

— Vou levar a princesa para conhecer o marido dela.

Parecia uma desculpa, mas não tentou impedi-la de fugir. A menina correu para o próprio quarto, e ele então se voltou inteiramente a Shiro.

— Comprei algo para você também.

— Não era necessário.

A resposta direta não foi um charme qualquer. Era franca e sincera. Ryo identificou o desconforto na voz e a mente traiçoeira trouxe novamente a imagem daquele comerciante de antigamente, incapaz de perceber que amava Shiro, tentando comprá-lo de todas as formas.

— Eu não tinha dinheiro para comprar algo caro... — caprichou na frase planejada. — Mas, queria te dar algo, então...

Estendeu uma caixa para o outro. Shiromiya encarou o pacote por alguns instantes e, por fim, moveu a mão, segurando-a. Abriu o laço vagarosamente, como se temesse o conteúdo, mas ao ver quatro pequenos sabonetes dentro da caixa, sorriu.

— Você gostou? — o outro indagou, receoso.

— Eu gostei muito. Obrigado.

Encararam-se. Por alguns segundos, rápidos quanto um piscar de olhos, ele percebeu uma gratidão profunda ali. Porém, da mesma forma que surgiu, desapareceu, e Shiro voltou à sua postura séria.

Ryo quis tocá-lo, reafirmar seus sentimentos mais uma vez. Porém, decidiu ter calma. Reconquistá-lo-ia, nem que demorasse a vida toda.


***


— Está preocupado com alguma coisa?

Saito Jiro ergueu a face para o namorado. Ambos jantavam os restos da noite anterior, quando comemoraram o aniversário de Mamoru.

— Não, nada.

A verdade é que duas coisas tiravam dele a atenção. A mais incômoda era o fato de que, por mais que Aiko se mostrasse disponível, ele não sentia interesse por sexo. Desde a fatídica manhã em que tentaram e não deu certo, eles passavam os dias conversando de mãos dadas, comendo algo, ou lendo um para o outro.

Aiko não parecia ressentido, mas Jiro sabia – pela experiência de Shin – que o outro era uma pessoa bastante interessada na arte do amor. Contudo, ele sentia calafrios de simplesmente esgueirar-se numa cama. Nunca antes havia passado por tal coisa. Por que justamente quando o havia conquistado, seu corpo se negava a desfrutar de tamanho privilégio?

O outro motivo era a ausência do outro lado da mesa. Daniel havia sido convidado para jantar com eles, tanto na noite do aniversário, quanto naquela noite. Na pequena confraternização de Aiko, ele surgiu com um sorriso por demais satisfeito no rosto. Beijou Mamoru no rosto, presenteou-o com uma colônia francesa e depois desapareceu.

Jiro sabia que ele estava aproveitando a súbita liberdade. Com certeza, havia conhecido alguém que estava lhe proporcionando momentos valiosos de prazer. O que não entendia era porque se incomodava tanto com o fato.

— Daniel é jovem — Aiko falou, tirando-o da letargia. — É natural que encontre novos amigos e vá se divertir.

Jiro o encarou, espantado.

— Não estava pensando nele — defendeu-se.

— Olha de cinco em cinco segundos para o lugar vazio — Mamoru sorriu, aliviando as palavras. — Sei que está pensando nele.

Diante da verdade, preferiu ser sincero.

— Me sinto um pouco responsável. Ele é um garoto...

— Bom de cama? — interrompeu-o, dando uma piscadela maliciosa.

— Eu iria dizer “gentil”.

— Está com ciúmes dele? — só então deixou transparecer o ciúme. — Porque, por mais gentil e querido que ele seja, ainda assim já foi seu amante.

— Aiko...

O outro ergueu as mãos. Respirou fundo e sorriu, confortador.

— Desculpe — pediu. — Me tornei esse homem inseguro, incapaz de admirar a amizade. Devo ser assim porque perdi Shiromiya...

— Não perdeu...

— Não o tenho aqui, tenho? Esteve comigo por muitos anos, eu confiava nele, e ele em mim. Jamais terei uma relação assim com outra pessoa. E agora, quando vejo outros amigos, sinto a inveja e o ciúme me corroerem.

Jiro baixou a fronte, envergonhado.

— Não sabia que se sentia assim...

— É claro que não — Aiko riu, nervoso. — O fato de que passou os últimos cinco anos com Shiro, que construíram uma história... só aconteceu porque eu te pedi isso.

— Seu nome nunca deixou de ser citado por nenhum de nós.

— Mesmo assim... — Aiko brincou com o hachis em cima do arroz. — Mesmo assim — repetiu —, não estive lá quando adotou Miya. Não o vi se desenvolvendo como homem e pai. Não presenciei suas batalhas, não o abracei quando chorou. É como se uma história toda tivesse se passado, e eu não tivesse mais lugar na vida dele...

— Mas assim que vocês se virem, será como sempre — Jiro o animou.

Mamoru soltou os hachis. Lá fora, a neve começou a cair. Tóquio, aos poucos, ficava levemente embranquecida. Minikui, da janela alta, observava atentamente aquele espetáculo. O silêncio o agradou. Mas logo foi interrompido.

— Sinto falta da Casa Ai — contou. — Falta de Nana, das músicas, da juventude...

— E de Shin?

A pergunta direta não o incomodou.

— Sinto falta de como eu me sentia por ele. De como meu coração batia, de como minhas mãos tremiam. Mas, estranhamente, não sinto falta dele.

— Porém, você ainda o ama.

Encararam-se.

— Eu amo.

A confissão não angustiou Jiro. Ele sabia, desde sempre. Mamoru havia negado antes, mas era tão nítida a mágoa no tom da voz, na forma como parecia angustiada cada negativa...

— E eu me odeio por isso — completou.

Jiro ergueu-se da sua poltrona e foi até ele. Apertou-o nos braços, com força, beijando o topo de sua cabeça. Ficaram assim, num balanço suave.

— Não se odeie. Não é algo que tenha que se envergonhar.

— É sim.

— Não, não é. Eu também amo aquele imbecil, apesar de tudo que ele já nos fez.

Aiko o encarou.

— Podemos fazer uma promessa para esse novo ano que vai se iniciar — sugeriu. — Vamos esquecer Shin Sakamoto.

Saito gargalharia, não fosse aquela tristeza profunda na sua alma.

— Ok. Tenho certeza de que não seremos os únicos a fazermos promessas que não cumpriremos.

 

Capítulo 18


Em Kibou , o Shinu­gatsu [16] era comemorado em conjunto pelas pessoas do vilarejo. Aos pés de uma pequena montanha onde se localizava o templo, ergueram barracas com comida e bebida numa bonita confraternização. Havia um clima de esperança no ar, como uma chuva calma que caía na relva seca.

Miya, vestida com uma yukata [17] floral, andava por entre as barraquinhas, comendo uma coisa ali, outra aqui, alheia aos pais que, atrás dela, observavam-na com atenção.

Depois de um tempo, Ryo volveu os olhos para Shiromiya. Ele estava quieto, mas não tranquilo. Seu olhar parecia nervoso e preocupado. O comerciante quis indagar quais eram os problemas que o massacravam tanto, porém, mais uma vez, reuniu sua força de vontade e manteve-se em silêncio.

Não queria perder o que havia conquistado até então. Apesar de não lhe dirigir a palavra com frequência, Shiro estava mais aberto com ele. Não mais o encarava com pavor. Parecia aceitar sua presença, mesmo que ela o deixasse desconfortável. Aos poucos, talvez, estivesse recuperando sua confiança e também seu amor. Contudo, no momento, tudo que tinha era a sensação da presença do outro. Era pouco, claro, mas sofreu por cinco anos na certeza de que ele havia morrido. Simplesmente olhar para o rosto amado, já era um alento.

— Ficaremos muito tempo? — questionou.

Não que se incomodasse em estar ali com ele. Foi apenas uma pergunta para puxar assunto.

Porém, amaldiçoou as palavras ao perceber Shiro a encará-lo com mágoa, quase incredulidade.

— Não precisa se envergonhar... Ninguém aqui sabe o que fui... o que sou.

— Não foi isso que eu quis dizer.

O outro não creu nas palavras.

— Não importa o que quis dizer — disse, por fim. — Vou ao templo fazer minhas orações — avisou.

Ryo fez menção de segui-lo, mas Shiro ergueu a mão.

— Vou sozinho.

Então, viu-o girando o corpo. Mordeu o lábio inferior, enquanto Shiro se afastava, sentindo-se completamente indesejável.

Entendia os sentimentos de Kazue, mas até quando teria que sofrer as consequências de seus erros?

Um grupo de crianças esbarrou nele, correndo. Pediram desculpas rapidamente e se afastaram, enquanto riam animadamente. Ryo percebeu Miya encarando os pequenos e foi até ela:

— Eles não são seus amiguinhos?

Ela pareceu incomodada com a questão.

— São meus coleguinhas.

— E você não quer ir brincar com eles?

Ela encarou as crianças por alguns segundos. Até fez alusão de dar um passo adiante, mas repentinamente estancou. Ryo percebeu o conflito velado nos olhos bonitos, iguais aos de Kazue. E, assim como o pai que costumava pestanejar sobre as decisões, a criança recuou, sombria.

— O que foi?

— Não quero brincar — disse, séria. — Vou ver Obaachan [18] Higurashi – apontou uma velha senhora, sentada à uma mesa repleta de outras vovós. Ryo reconheceu a vizinha imediatamente. — Depois nos vemos, papai.

Sentiu-se solitário, mas igualmente viu uma ótima chance de se entrosar com as pessoas daquela pequena comunidade. Todos ali gostavam de Miya e de Shiro. Eram como uma família, trocando favores. Então, provavelmente, passaria o resto da vida ali, vendo a filha tornando-se uma mulher, e envelhecendo ao lado de Kazue. Assim sendo, queria ter a aprovação daquelas pessoas.

Preparava-se para caminhar em direção a uma mesa cercada de homens, quando uma voz feminina fê-lo voltar-se. Uma mulher de aparentemente vinte e cinco anos sorria, amistosa, mostrando os dentes brancos. Seus cabelos presos num coque eram tão negros quanto a noite. Ele lembrou-se de Keiko, naquele momento. Apesar da jovem a sua frente não ser tão bela quanto a antiga prostituta que o serviu, ambas possuíam o mesmo olhar generoso e bondoso.

— Eu o vi falando com Miya — a mulher comentou. — É algum parente?

Como doía não poder dizer que era o pai.

— Um amigo do pai dela... — respondeu, sorrindo. — E você?

— Sou Emi Harada — ela curvou-se. — A professora de Miya — explicou. — Foi você que pediu para ela ler um clássico?

— Sim — afirmou. — Esperava que Shakespeare movesse algo em seu íntimo. Porém, ainda é muito criança para entender...

— Muitos adultos não gostam de Shakespeare — a professora o interrompeu. — Mas, torço para que Miya mude de opinião, assim que for adulta. De qualquer forma, agradeço pela ajuda.

— Ajuda?

— A leitura dela melhorou bastante. Miya me contou que você a auxilia com as lições.

— Não faço mais que a minha obrigação.

Incomodou o fato de que Shiro, que arduamente, mesmo sem conhecer as letras, ajudou-a por todos aqueles anos, não havia sido lembrado nas palavras da professora.

— Pretende ficar muito tempo em Kibou?

Se ele pretendia encerrar o assunto e afastar-se, viu que sua vontade não seria cumprida.


***


À hora das 108 badaladas do sino do templo — a joya no kane, cerimônia que relembra os japoneses dos 108 pecados existentes no homem — se aproximava.

Shiro afastou-se do altar, disposto a recepcionar a chegada do novo ano ao lado da filha, quando percebeu que mesmo as orações fervorosas que acabara de proferir diante do incenso não pareciam suficientes perante toda a sua angústia.

Voltou o corpo para o altar, acendendo mais um incenso.

— Nana, querida — disse, baixinho, num murmuro que só ele entendeu. — Não deixe de cuidar de Miya. Sei que você a amaria como me amou se a conhecesse. Preciso que a proteja dessa maldita doença.

Então se ergueu, evitando o olhar das velas que pareceram apagar com o vento. Saiu do templo, voltando-se para a comunidade. Pensou em comer algo e sentar-se junto de Ume-san. Talvez, o vizinho Urashi não tivesse exagerado no saquê doce e eles pudessem conversar sobre a próxima colheita.

Contudo, seus olhos focaram-se na figura de Ryo ao longe, conversando animadamente com senhorita Emi, professora de Miya. Durante alguns minutos, ele permaneceu ali, no escuro, a observar o ato. Não havia nada demais na postura de ambos, mas a sensação que o tomou, conforme seus olhos fixaram-se no par, era semelhante a uma faca sendo cravada em sua alma.

Desviou os olhos, percebendo que as lágrimas juntaram-se, inconvenientes, causando-lhe vergonha. Por que se sentia daquele jeito, afinal? Não dizia a si mesmo de que era apenas uma questão de tempo para Ryo se interessar por alguém com um passado mais limpo? Uma mulher? Além disso, durante todos aqueles anos, não mantivera nenhum sonho, então... nada estava sendo arrancado de si, não é?

Naquele lugar, longe das lâmpadas penduradas nas árvores, Shiro percebeu que, ainda que não admitisse, ele tivera esperanças de que as palavras de Ryo em sua casa fossem sinceras.

— Um idiota será sempre um idiota — ele sussurrou.

Repentinamente, sentiu um toque nas mãos. Voltou o corpo e percebeu Miya. Mesmo sem a iluminação, notou que a doença, mais uma vez, havia-a esgotado.

— Quer dormir? — ele indagou, agachando-se à altura dela.

— Eu posso esperar os sinos baterem...

A voz era chorosa. Como se implorasse por descanso.

— Não precisa, meu amor...

— Mas se não ouvirmos os sinos, nossos pecados não serão retirados. [19]

Shiromiya sorriu.

— Acho que eu já paguei pelos meus pecados, Miya — ele comentou, acariciando a face macia. — Antes mesmo de cometê-los...

A menina suspirou de alívio.

— Papa, que bom que não se importa, porque sinceramente eu não acredito em nada disso.

Sorriu, sentindo as lágrimas sumirem. Ali, bem ali, naquela criança, devia se concentrar as suas esperanças de felicidade.

Ergueu-a nos braços, aspirando seu perfume de jasmim. Céus, como a amava! Como ansiava por protegê-la. Mas, infelizmente, ele era o pior pai que ela podia ter.

Percebeu o ressonar imediato contra seu ombro. Então, sem pestanejar, ele deu meia-volta e afastou-se, sumindo na escuridão.


***


A estrada estava escura. Mesmo assim, instintivamente, ele seguiu pelo caminho de chão batido, ouvindo o som auspicioso das corujas e dos grilos, que pareciam animados naquela noite fria.

Será que, realmente, a mudança de um ano para o outro mexia em algum ciclo espiritual como ele havia ouvido alguns vizinhos falarem? Afinal de contas, os animais e insetos pareciam entender que 1950 havia ficado para trás. Ou tudo era apenas fruto da sua imaginação, um esforço singular para esquecer a imagem de Ryo animado ao lado de outra pessoa?

Sentiu Miya respirar profundamente contra seu ombro. Apertou-a nos braços ainda mais, tentando amenizar o frio. Logo estariam em casa, e ela poderia dormir quentinha no seu futon.

— Shiro!

O chamado o fez parar. Pensou estar ouvindo coisas, talvez o vento, mas quando se voltou, percebeu a figura de Ryo Satoshi, encarando-o exaurido.

— Você sumiu — o tom era de acusação. — Por que foi embora e me deixou para trás?

Sentiu os olhos umedecerem. Era uma sorte que não havia luz suficiente para que Ryo visse seu semblante.

— Você tinha companhia.

— A professora de Miya? — de acusação, o tom ficou raivoso. Porém, tão rápido quanto um raio, as palavras amenizaram, cálidas e felizes. — Está com ciúmes?

Por alguns segundos, Shiromiya pensou em negar. Era, aliás, o que ele devia ter feito. Contudo, o coração pulava tanto no peito que parecia doer, e as lágrimas que já escorriam pelos olhos amendoados não eram mais um segredo quando ele falou, com a voz embargada.

— Não é justo você voltar e destruir a minha paz.

Ao longe, o badalar dos sinos começou a tocar, um atrás do outro. Shiro lembrou-se que no ano anterior, Miya e ele sentaram-se na escadaria do templo e contaram, como se numa regressiva, cada um deles. Agora, mal podia se concentrar naquele som agudo, ao longe.

Notou que Ryo se aproximou. Cada passo meticulosamente pensado, como se temesse que Shiro recuasse. Contudo, Kazue manteve-se estancado no mesmo lugar, sem mover um músculo.

— Akemashite omedetou gozaimasu ! [20]

Satoshi segurou seu rosto com as duas mãos, enquanto aproximava a própria face. O último beijo de 1950 e o primeiro beijo de 1951, parecia carregado de simbolismos. E assim, Kazue percebeu que não adiantava mais fugir. Entregue, ele apenas encarou o outro, girou o corpo e voltou a caminhar em direção a casa.

Ryo sentiu na pele tudo que Shiro quis dizer e não disse. Então, sorriu e o seguiu.

Era o início de uma nova vida.


***


Shiromiya deitou o corpo da criança no futon. Tirou o calçado e a yukata que ela vestia. Miya sequer abriu os olhos enquanto o pai colocava uma camisa comprida nela e a cobria com um cobertor. Beijou os cabelos negros e lisos e depois se ergueu. Ryo estava parado à porta, observando amorosamente a cena. Sentiu todo o corpo estremecer, antevendo o que vinha.

— Não podemos fazer barulho — Shiro avisou, causando um estrondo em seu íntimo.

Cruzou por ele e seguiu para o quarto. Entrou, sentindo que Ryo o havia acompanhado pela respiração rápida contra sua nuca. Fechou os olhos, nervoso. Precisava de uma desculpa para aquele erro, e ela veio rápido: Nenhum homem ficava sem sexo.

Ignorou os pensamentos de que, naqueles anos todos, não sentira falta. Ignorou a imagem de outros homens tomando-o à força, fazendo-o perceber que sexo nunca foi algo de que gostasse. Ignorou a ânsia que, o que de fato desejava, era o toque de Satoshi, seus beijos, suas carícias... sua paixão.

Ryo o virou. Encararam-se, e como sempre acontecia quando os olhares se encontravam, um misto de sentimentos ecoou em ambos.

— Eu te quero tanto, Shiro... — Ryo murmurou contra sua face, o ar que exalava de sua boca cheirava a cravo. — Nunca amei ninguém como amei você...

Aquela frase mexeu ainda mais com ele. Sentiu as lágrimas deslizando pela sua face, e arrepiou-se, quando Ryo as secou com beijos.

Depois, tudo tornou-se uma fusão de roupas sendo arrancadas, lábios se encontrando, peles se tocando e almas se fundindo.

A boca de Ryo desceu num caminho perigoso entre seu peito até sua cintura. Em segundos, o mais velho o forçou contra o futon e Shiromiya se deixou guiar, aquecido por um calor carnal que o deixou zonzo.

Contudo, nada o preparou para Ryo agachar-se até seu pênis ereto e colocá-lo na boca. Pasmo, Shiro encarou o ato por alguns segundos, sem saber como se expressar. Repentinamente, recordou-se do passado, quando um homem tentou fazê-lo em seus lábios, e Shiro mordeu o mastro, com raiva. Apanhou tanto daquela vez que ficou dias sem conseguir abrir os olhos, cheios de hematoma. Tudo que remetia a sexo oral lhe dava aversão; porém, naquele instante, o ato parecia até bonito.

Fechou os olhos, tocando os cabelos macios do outro, sentindo sua cabeça erguendo-se e abaixando-se, num ritmo cuidadoso e cadenciado.

Shiromiya contorceu-se com a sucção forte.

Repentinamente, nada era mais doce. O toque gentil passou a selvagem. Agarrou os cabelos em desalinho de Ryo. Deu-se conta, tarde demais, que aquele era o seu fim. Como podia entregar-se daquele jeito, permitir que o outro o lambesse, o sugasse, o submetesse mais uma vez?

A culpa o dominou, mas logo foi afogada naquele mar de sensações potentes e pecaminosas. Sem controle, percebeu o clímax o atingindo. Tentou empurrar Ryo, mas ele manteve-se firme, deixando que sua boca se enchesse com a essência de seu amor.

— O que está fazendo, idiota? – reclamou, ao vê-lo erguer a cabeça com a boca cheia. – Cuspa isso!

O sorriso safado do outro o pegou desprevenido. Repentinamente, Ryo agarrou suas coxas, erguendo-o. Inacreditavelmente, sua força fez com que Shiro ficasse com o bumbum para cima. Incrédulo, viu-o pousando a boca em seu buraco pulsante e, em seguida, derramando sobre ele o gozo que acabara de expulsar.

A lubrificação quase o fez gritar. Cobriu a boca, preocupado em não deixar escapar nenhum som. Mas pouco pôde fazer para conter o gemido, quando Ryo, baixando suas pernas, ergueu seu tronco, fazendo-o sentar.

Encararam-se. Mais uma vez naquela noite, Shiromiya afastou os pensamentos românticos. Não devia se enganar, não de novo. Aquilo ali, no brilho daquele olhar, não era amor. E tudo que eles compartilhavam naquele instante era alívio físico.

Renegou o incômodo pensamento de que tinha aversão a sexo. Mentiu a si mesmo dizendo que Ryo era apenas mais um, quando na verdade, ele havia sido o único. E então sentou-se sobre o mastro, deixando que ele o invadisse mais uma vez.

Todo o ato foi realizado olho no olho. De alguma forma cômica, ambos tinham medo de fechar os olhos e a imagem confortadora a frente desaparecer, como se acordassem de um sonho bom.

A onda de prazer o atingiu. Lembrou-se de que foi Ryo que o despertou para aquele tipo de paixão. E, repentinamente, percebeu que queria novamente aquele clímax, aquela delícia, aquela união.

Conteve um gemido, mordendo o lábio. Ryo também parecia ciente de que não podiam fazer barulho, então, quando aquela dança erótica de vai e vem tornou impossível que os sons fossem abafados, eles empenharam-se num beijo intenso, mascarando o som da paixão entre o enroscar das línguas.

A dança logo se acelerou. Contudo, não tão rápido quanto era antigamente, quando eram mais jovens e Shiro, especialmente, vivia uma ilusão. Daquela vez, era como se estivessem cientes de que a pressa era uma inimiga, de que o tempo passava rápido demais, que a vida não esperava que resolvessem seus dilemas.

Então, veio aquela onda fulminante que pareceu querer levá-lo até um topo de uma montanha e jogá-lo de lá, como um pássaro em um céu ensolarado. Choramingou de prazer, enquanto sentia o bumbum receber um jato quente.

Enfim, havia acabado aquele ato que se culpou tanto por tanto tempo por imaginar. Observou o rosto de Ryo e ele mantinha um sorriso satisfeito e cálido nos lábios. Recebeu mais um beijo gentil e suspirou.

Estava tão feliz que podia chorar. Mas aquilo era certo? Em troca daquela sensação, ele havia se desfeito do seu orgulho. O que faria quando Ryo fosse embora para se casar com uma mulher? Qual seria a dor de vê-lo com filhos perambulando por aí?

— Não sei o que está pensando— seus pensamentos foram interrompidos pela voz sussurrante. — Mas pode tirar essas caraminholas da mente. Não quero ver esse olhar triste nunca mais.

Shiro não conseguiu evitar acariciar a face suada. Gostava da forma como o olhar de Ryo sempre parecia negro demais.

— Não me machuque — pediu, num murmuro.

— Nunca mais — o outro prometeu.

Respirando fundo, ele abandonou o colo e deitou-se no futon. Exausto, fechou os olhos, pronto para dormir. Sabia que não devia crer naquela promessa, mas não conseguiu conter o sorriso que o tomou.

Ryo deitou-se ao seu lado. Era um futon pequeno, mas ele sequer pensou em mandá-lo sair. E, no calor daqueles braços, adormeceu.

 

 


Capítulo 19


Ela abriu os olhos lentamente, como se voltasse de uma breve morte. O corpo, contudo, logo ficou alerta, diante da imagem à sua frente.

O confortável futon ela sentia pela maciez no bumbum. Porém, a cena que decorreu diante de seus olhos em nada lembrava o quarto calmo e limpo que costumava descansar.

Estava em uma escadaria, tão grande quanto aquelas dos filmes europeus aos quais o tio Jiro costumava levá-la para assistir em Kyoto. Tirando isso, soube que ainda estava em seu país, pelos nipônicos que cruzavam por ela, apressados, como se estivessem todos atrasados, e como se esse atraso pudesse custar suas vidas.

Sentiu a agonia tão logo o carro escuro estacionou à sua frente. Iria aconteceu algo. Soube antes mesmo da porta do veículo se abrir. O coração acelerou e um sufocamento agoniante invadiu sua garganta.

Contudo, salva pelo corpo que despertou, ela logo se viu no próprio quarto, ainda escuro pela noite que não havia ido embora.

A garganta secou e o choro a consumiu. Era a primeira visão fora do seu mundinho tranquilo. E, mesmo sem saber o que teria ocorrido nela, soube que a partir daquele instante, sua bênção havia se tornado uma maldição.


***


Uma das memórias mais doces que Ryo Satoshi mantinha de suas visões passadas, era a imagem de Miya aos nove ou dez anos, ao lado da sua cama em Sapporo, dizendo-lhe que queria ser homem. Aquela figura quase apagada, a silhueta delicada, contrastando com um tom grave de alguém que, por algum motivo escuso do destino, nascera com uma personalidade mais forte que a maioria, trouxe durante anos um calor confortador ao seu coração.

Contudo, diferente daquela pose metida e de queixo erguido, quando abriu os olhos, percebeu a criança insegura do lado oposto do futon, às costas de Shiromiya, encarando surpresa a cena dos dois homens deitados, dormindo, naquele espaço estreito.

A menina estava vestida com a camisa larga que fora deitar, e nas mãos trazia a espiga de milho que lhe servia de amigo desde que se lembrava.

A primeira reação do homem foi o desespero. Sabia estar nu. Ambos. Mas logo se acalmou, percebendo que a coberta escondia aquele fato. Depois, a surpresa, afinal de contas, apesar de Miya ter dito anteriormente que sabia que os pais se amavam, ela estava com os olhos lacrimejantes, transbordando algo que Ryo não foi capaz de identificar.

Baixou os olhos e percebeu Shiromiya dormindo profundamente. Precisava falar com Miya, mas aquele não era o melhor lugar.

— Amor — chamou-a, baixinho. — Me espera na cozinha?

Miya assentiu, sem objetar. Sumiu das vistas de Ryo, fechando a porta. Rapidamente, ele puxou as cobertas e, desnudo, correu até as calças atiradas no chão. Vestiu-se ainda mais rápido do que se levantou, e foi até ela.

Encontrou-a sentada nas almofadas em volta da mesa. Aquecida por um cobertor, pela primeira vez parecia tão pequena e indefesa que Ryo se condoeu. Aproximou-se cuidadoso, sem saber exatamente como responder as perguntas que viriam. Sentou-se ao seu lado, sem tirar os olhos do rosto pálido.

Miya o encarou. Havia mágoa e dor no olhar. Naquele instante, Ryo notou que provavelmente a aceitação de Miya não seria fácil para a relação que ele pretendia iniciar com Shiro.

— Eu tive uma visão — ela contou, de supetão, fazendo-o arregalar os olhos.

Houve um misto de alívio e desespero. Claramente, ela ignorou a cena dos pais dormindo juntos, ou simplesmente não se importou. Aquilo facilitaria as coisas. Em contrapartida, a visão que a deixou com o olhar amedrontado era, possivelmente, o início da praga que ele mesmo sofreu, aos dez anos, quando viu, anos antes, a morte do pai, em agonia no quarto principal da casa de Hokkaido.

— Quer falar sobre isso?

— Não quero mais ter visões — a frase era um pedido. E Ryo sentiu o corpo inteiro doer porque não poderia atender aquela vontade.

— O que você viu?

— Um lugar... Uma cidade grande. Eu estava em uma escadaria larga e comprida e aos pés dela havia uma rua movimentada. E então um carro estacionou.

Silêncio.

— E o que aconteceu?

— Não aconteceu nada. Eu pisquei e estava aqui de novo. Mas...

— Teve uma sensação ruim?

— Alguma coisa iria acontecer — ela confirmou. — Algo horrível.

— Viu quem estava no carro?

— Não.

— Reconheceu alguém na rua?

— Não.

— Seu pai? Eu? Seu tio Jiro? Ninguém por perto?

Mais uma vez, a negativa.

Ryo sabia exatamente o que era aquilo. As visões fragmentadas eram piores que as completas, porque deixava no clarividente uma sensação horrível de espera, como alguém a observar uma tempestade furiosa a se aproximar.

— Terá que tentar esquecer isso, e aguardar a continuação da visão, Miya — disse, tão sincero que pesou-lhe a alma. — Estarei aqui com você quando elas vierem, está bem?

A criança assentiu, abandonando a almofada e subindo no seu colo.

— Por que estava dormindo com papa?

A pergunta não foi surpreendente, apesar de repentina. Ryo a segurou nos braços, buscando a melhor força de explicar para ela o que era um relacionamento homossexual. De fato, Miya devia saber que casais dormiam juntos, mas não dois homens.

— Quando duas pessoas...

—Ah! — ela interrompeu, sem paciência. — Não me interessa essa chatice romântica. Quero saber se fizeram as pazes...

Ryo quase riu.

— Não sei, Miya — porém, em seguida, lembrou-se de algo. — Quero te pedir um favor — disse. — Você poderia fazer algo por mim?

As sobrancelhas se uniram, curiosas.

— Você entende que é a pessoa que seu papa e eu mais amamos no mundo todo, não é? E que você sempre poderá dormir conosco quando quiser, sempre haverá espaço entre nós para você. Mas agora que estamos juntos — anteviu, mesmo sem certeza —, eu quero evitar alguma situação embaraçosa. Então, pode, quando for ao nosso quarto, bater na porta antes de entrar?

Miya pareceu ofendida.

— Eu não quero dormir entre vocês como uma pirralha medrosa! — ralhou. — É o Sr. Bigode que tem medo dos “cabuns” e quer o papa...

Ryo assentiu, fingindo compreender.

— Onde ouviu essa palavra “ pirralha ”?

Miya arregalou os olhos.

— Na escola, eu acho.

— Tem certeza?

— Estou com sono — desconversou, aninhando no peito musculoso.

Ryo então sorriu e a ergueu no colo. Era estranho como ela conseguia dormir tão rapidamente, como se o corpo inteiro simplesmente se apagasse.

Ao deitá-la na cama, cobriu seu corpo miúdo com as cobertas e pediu, baixinho, numa reza a Kami-sama, que a livrasse de todo horror que ele mesmo havia passado.

Fosse lá o que fosse a visão, o resultado não seria bom.


***


— Está zangado comigo?

A pergunta de Saito tinha lógica. Era manhã do primeiro dia de 1951 e Mamoru Aiko pouco respondia aos seus comentários. Apenas algumas monossílabas sem importância e então voltava a atenção para a comida que estava preparando.

— Não — contudo, a negativa confirmava suas dúvidas.

Sentado diante da mesa da cozinha, Jiro resmungou.

— O que é que eu fiz?

Mamoru suspirou. Depois, largou o pano de prato em cima da pia e volveu o corpo para o namorado.

— Está apaixonado por Daniel?

Foi um tiro sem misericórdia. Jiro abriu a boca, espantado, mas não conseguiu negar, apesar de ser óbvio que não nutria sentimentos pelo outro. Eram apenas amigos e ele amava Aiko. Não o havia aguardado por todos aqueles anos? Não sonhou com ele? Criou fantasias com ele? Então, por que agora que o tinha, se interessaria pelo outro?

— Duvida de meus sentimentos por você?

— Sempre fomos amigos e eu não duvido que me ame — foi sincero. — Porém, confundir o amor fraterno e o amor romântico é algo que a maioria das pessoas já fez. Lembro-me de Shiromiya, com catorze ou quinze anos, correndo atrás de mim na casa Ai e dizendo a Nana que me amava.

Jiro ficou nervoso.

— Não tenho catorze ou quinze anos — replicou. — Sou um homem vivido! Sei bem o que quero da minha vida.

— Passou a noite inteira olhando para a janela, irritado porque Daniel sumiu, porque arrumou um amante que o empolgou, porque ele parece não se enciumar pela nossa relação.

Era uma verdade atrás da outra. Saito não podia negá-las, apesar de desejar.

— Ele é meu amigo, e eu me preocupo com ele — na ânsia de se proteger, resolveu atacar. — A única pessoa aqui que ainda nutre sentimentos por outro alguém é você.

O choque nos olhos de Mamoru Aiko trouxe-lhe culpa.

— Eu sinto muito — murmurou. — Não queria...

— Queria sim — Aiko reagiu. — Atira Sakamoto na minha cara em cada oportunidade que tem!

Ficaram em silêncio alguns segundos, como se digerindo a troca de palavras ríspidas. Depois, Jiro se ergueu e caminhou até o namorado, abraçando-o com força.

— O que está acontecendo conosco, Mamoru?

A pergunta causou um efeito tranquilizador no outro. Pareciam, então, os mesmos de anos atrás, quando bastava um toque ou um olhar para que se compreendessem e se apoiassem.

— Devia perguntar o que o tempo fez conosco — riu, escondendo o rosto no ombro de Jiro. — Eu sempre sonhei em ser feliz, Jiro-san. Antigamente era com Sakamoto. Agora, é com você. Sei que ainda temos marcas do passado, mas poderíamos superá-las se ambos pudéssemos focar nesse objetivo.

Jiro o encarou, assentindo. Era um caminho longo, mas eles iriam vencer, pensou. Entretanto, ao voltar-se para a mesa, ouviu o som do sino da livraria batendo.

— Visitas? — arqueou as sobrancelhas.

Aiko pareceu culpado.

— Eu convidei Daniel para o almoço na semana passada — admitiu. — E disse que ele podia trazer seu acompanhante misterioso.

Algo explodiu no âmago de Saito, mas ele conteve a reação negativa, impedindo-a de surgir em seu semblante.

Mamoru desceu as escadas e o ex-sargento permaneceu sentado à mesa, respirando fundo e pausadamente, preparando um sorriso. Porém, ao ver o namorado retornar com o par, sentiu os olhos arregalando-se surpresos.

— Bom dia — o homem com Daniel o cumprimentou. — Prazer em conhecê-lo, sou Oguri-san — curvou-se, respeitosamente.

Saito mal conseguiu se mexer. Em sua mente, milhões de pensamentos explodiam, em desalinho. Oguri estava ali? Oguri não se lembrava dele? Oguri havia sobrevivido à guerra?

Estava bonito e, apesar dos cabelos grisalhos nas laterais, ainda mantinha aquela postura sedutora, que o levou ao céu e ao inferno em sua mocidade. Ainda causava frenesi em Saito, apesar de tudo.

— Jiro... — o tom triste de Aiko pareceu acordá-lo.

Encarou o namorado. Percebeu que Aiko o pressionava motivado pela conversa recém-dita.

— Desculpe — murmurou, curvando-se também. — Sou Saito Jiro — apresentou-se, não desejoso que os outros dois soubessem do elo.

Ao ver o brilho nos olhos do primeiro amor, soube que Oguri se recordava dele. Então, porque transparecia não conhecê-lo?

Traços dos encontros da juventude com o ex-capitão borbulhavam em sua mente. Oguri também estaria chocado?

— Acredito que seremos bons amigos, Saito-san — o outro replicou.

Depois, Mamoru apontou a mesa, convidando-os a se sentarem. Ao cruzar por Jiro, o convidado pousou leve e discretamente a mão em seu traseiro. Quando se encararam, Jiro percebeu que o outro não havia se aproximado de Daniel em vão. Todos os seus instintos de proteção se atiçaram. Não sabia Jiro, mas estava diante de um grande problema


***


— Mas é feriado! — Ryo resmungou, andando atrás de Shiromiya.

— As galinhas têm que comer — o outro retorquiu. — Além disso, feriado ou não, a neve fina que caiu de madrugada pode matar as alfaces e as couves. Então, vamos cobri-las.

— Cobri-las?

— Fazer uma espécie de proteção, um telhado com uma lona comprida.

Ryo suspirou. Mas apesar das reclamações, sorriu, feliz. Era, com certeza, o momento mais importante da sua vida. Apesar de Shiromiya ter desaparecido do futon, quando ele acordou de manhã, não o ignorou quando o encontrou no café da manhã.

De cabelos molhados, Shiro parecia resplandecer sentado à mesa, ouvindo Miya tagarelar sobre o inverno e de como ela adorava ler embaixo das cobertas. Então, ele encarou Ryo e sorriu, apontando um lugar vazio.

Satoshi acreditou que flutuou até o lugar. Era esplendorosamente maravilhoso cada detalhe dos segundos que se seguiram no café. Até Shiro se levantar e dizer que tinham trabalho.

Em algum momento, Ryo creu que eles passariam o dia deitados no futon, lendo algo ou conversando sobre suas vidas, enquanto ficaram longe. Depois, Ryo reafirmaria o quanto sentiu sua falta e o quanto valorizava aquele momento. Em seguida, viria a promessa: nunca mais se separariam. Porém, Shiro nem deu espaço para reclamações, logo se punha de pé e movia-se para a horta, sem sequer convidá-lo.

— Kazue — chamou, buscando sua atenção, manhoso. — Depois disso, podíamos ir passear um pouco, não?

Shiromiya voltou-se para ele, surpreso. Diante do olhar, Ryo explicou-se.

— Para comemorar...

— Comemorar o quê?

— Como o quê? — aproximou-se, perigosamente. — Comemorar nós dois...

— Ah.

O muxoxo foi seguido de um dar de ombros. Ryo esperou uma negativa ou uma confirmação avergonhada, mas jamais um desinteresse tamanho.

— Shiro! — ralhou, alto.

O outro então sorriu, como se aquela pose indignada fosse deveras divertida.

— Me ajude a arrumar a cobertura e eu pensarei no seu caso.

Ryo Satoshi nunca trabalhou com tanta determinação na vida.

 

 

 

Capítulo 20


Miya encarou a bebida escura e fumegante, torcendo o nariz como uma aristocrata diante de um plebeu. Imitava a figura grande e altiva a sua frente, vista apenas pelos seus bonitos olhos, secreta aos demais sentados à mesa daquela pequena padaria.

“ Essa merda é amarga ” o príncipe disse.

Ela quis imitar o tom desgostoso, porque adorava o timbre e porque tudo nele parecia perfeito e admirável. Porém, se falasse “ merda ” o papa Shiro limparia sua boca com sabão. Então, apenas imitou a careta enojada.

— Você nem experimentou — seu outro pai riu, colocando a bebida diante dos olhos dela.

— Tem certeza que isso não lhe fará mal? — O papa Shiromiya parecia inseguro. Era sempre assim, como se qualquer coisa desconhecida pudesse machucá-la.

— É café, Shiro — Ryo riu. — Crianças no mundo todo bebem café de manhã. Ajuda a deixá-las mais dispostas durante o dia.

— Bebida americana — ela ouviu o príncipe reclamar, como se o fato de simplesmente a bebida ser estrangeira, a desqualificasse.

Então, decidiu seguir seu ídolo.

— Não quero essa bebida de americanos — murmurou, de forma audível, e ergueu o queixo, para deixar bem clara sua posição.

Ela percebeu um olhar furioso vindo do pai à sua direita. Era a primeira vez, desde que Ryo Satoshi entrara na sua vida, que percebia que ele estava zangado.

— Miya, quem te ensinou a falar assim?

— Ninguém. São meus próprios pensamentos.

— Uma ova! — ele ralhou, apesar de manter o tom baixo. — Tem oito anos!

— Estou completando nove no final do mês — ela o interrompeu, explicativa.

— Tudo bem, nove anos! Com nove anos, você observa as reações dos adultos e as imita. Todas as crianças são assim. Então, quem você está imitando? Seu papa jamais falaria assim, muito menos eu!

Ela encarou o papa, buscando proteção, mas Shiromiya inquiria a mesma coisa com o olhar.

— Não gosto dos americanos — retrucou, desesperada. Então, a mente lembrou-se de algo e ela usou por escapatória. — Eles quase nos mataram.

Ryo processou a explicação por alguns segundos. Estudou-a atentamente, buscando saber se dizia a verdade. Por sorte, logo relaxou.

— Miya, era uma guerra — tentou explicar. — Mas agora os dois povos estão em paz. Devemos sempre buscar a paz, está bem?

— O amigo do seu tio Jiro é americano. Você vai deixar tio Jiro triste se falar assim para o amigo dele — Shiro interveio, usando um argumento que Ryo odiou.

Contudo, a fala enfim pareceu atingir um ponto fraco na criança, que então concordou, e se desculpou.

— Vou tomar a bebida dos americanos — ela disse, volvendo o olhar para Ryo.

O homem quase riu.

— Café, Miya. Se diz “café”.

Ryo então colocou um pouco do líquido na xícara branca. A menina sorveu, fazendo uma careta.

— É horrível!

— Eu coloco um pouco de açúcar — Shiro disse, apontando um açucareiro para a filha.

Não se fazendo de rogada, ela pegou a colher e começou a colocar açúcar na xícara. Duas colheres e experimentou. Não fez mais careta, mas não parecia satisfeita. Mais duas, e novamente, sorveu. Balançou a cabeça, como se a bebida agora fosse razoável. Porém, para espanto dos dois homens, ela ainda colocou mais uma colher na xícara e então bebeu.

— Agora sim, delicioso.

— Café tem que ser bem doce — o príncipe comentou, bebendo o seu, com também cinco colheres de açúcar.

— Sim, bem doce — ela respondeu, fazendo com que Ryo e Shiro se encarassem pasmos.

— Miya, isso não te fará bem — Kazue tirou a xícara dela, recebendo sob si olhares enfezados. — Não quero que coloque tanto açúcar.

A criança encarou Ryo, como se buscasse ajuda, mas o outro não pareceu disposto a ficar do seu lado.

— Quando eu for adulta, vou fazer o que eu quiser e você não mandará em mim — ela reagiu, numa promessa que fez Shiro estremecer.

E então se ergueu, emburrada. Foi até a outra mesa, onde a sra. Maya bebia chá. Shiro simplesmente ficou sem palavras, até que seus olhos se encontraram com Ryo, que sorriu, tranquilizador.

— Não se preocupe.

— Não sei o que fazer — admitiu, pela primeira vez, ao outro. — Ela é incontrolável — escondeu o rosto entre as mãos. — Já me aconselharam a bater com uma vara, mas eu não tenho coragem.

Ryo quis segurar suas mãos, mas sabia que Shiro iria se sentir pressionado. Então, simplesmente murmurou.

— Você é um ótimo pai, amor — sorriu. — E faz um ótimo trabalho. Acredite, na idade dela Sakamoto já andava planejando táticas militares de guerra.

— Sakamoto? — Shiro arqueou as sobrancelhas. — E o que ele tem a ver com minha filha?

Ryo ficou constrangido.

— Eles são “um pouco” parecidos.

— Não é a primeira vez que diz isso. E não será a primeira que eu te direi que Miya não tem nada de Shin-san.

— Sei que não gosta da ideia. Acredite em mim, ela também me dá calafrios, mas conheço Sakamoto desde que ambos éramos dois moleques, e Miya é quase uma cópia.

Shiro bateu a mão na mesa, erguendo-se.

— Vamos para casa — avisou.

— Você não comeu seu pedaço de bolo — Ryo tentou acalmá-lo.

— Perdi o apetite.

Shiro caminhou até a mesa aos fundos e estendeu a mão para Miya. Mesmo que a menina ainda estivesse zangada pela recriminação, ela não pestanejou em erguer os dois braços para o pai, que a pegou no colo imediatamente.

Diante do olhar de Ryo, fizeram as pazes sem palavras, enquanto ela deitava a cabeça no ombro aconchegante, e Shiro aspirava o cheiro delicado dos cabelos femininos.

— É, Shin... — Ryo murmurou, suspirando diante da cena. — Não será fácil transformá-la em sua extensão...


***


Saito Jiro passou a tarde sentado à janela, observando a rua estreita onde o hotel se localizava. Sabia que Oguri o procuraria, mas não sabia quando. Queria evitar que Daniel descobrisse o fato antes que fosse tarde demais. Talvez, se conversassem, pudessem chegar a um acordo. Oguri ou ele teria que sair da vida do americano.

Um carro escuro estacionou do outro lado da rua. Pouco depois, ouviu uma buzina. Estreitando os olhos, reconheceu o motorista, mesmo estando no terceiro piso do prédio. Desceu as escadas com uma rapidez que lembrava uma fuga desenfreada. Correu até o veículo e entrou. Havia uma conexão estranha: Oguri o aguardava, mesmo que, teoricamente, nada comprovaria que Jiro estaria no prédio, esperando-o.

Nada disseram, enquanto o mais velho dirigia até o outro lado da cidade. Estacionou diante de uma casa bonita, recém-construída, em estilo ocidental. Desceram, e Jiro o acompanhou, ainda em silêncio, até a residência.

— Quer uma bebida? — o ex-capitão ofereceu, assim que entraram.

— Não, obrigado. — Jiro recusou educadamente, enquanto se aproximava do sofá.

A casa era extremamente bonita. Claramente, Oguri havia se dado muitíssimo bem com o final da guerra.

— E sua esposa?

— Morreu na guerra — sentou-se diante de Jiro, cruzando as pernas. — Era uma boa mulher, muito comportada e obediente. Sinto falta dela, às vezes. E do garoto também.

— Garoto?

— Meu filho. Tinha três anos quando a casa foi bombardeada naquela maldita madrugada de março de 45.

Jiro suspirou.

— Eu estava em Tóquio quando isso aconteceu — contou.

— É mesmo?

— Estava preso em Sugamo.

Oguri gargalhou daquele mesmo jeito sedutor que costumava fazer enquanto conversavam após o sexo, no celeiro do seu pai.

— O que fez?

— Ofendi a honra do Imperador e da Kempeitai.

O sorriso não morreu. Oguri endireitou-se na poltrona e largou o copo em uma mesinha lateral. Em seguida, inclinou-se para frente, e estendeu a mão até o joelho de Saito.

— Incrível como os anos parecem não ter passado para você. Continua tão lindo...

Jiro moveu-se, afastando as pernas.

— Precisamos conversar — avisou.

— Sim, precisamos. — Oguri o interrompeu. — Procurei você após a guerra, mas desapareceu. Aliás, não apenas você como todos os seus documentos e relatórios de participação...

Jiro estremeceu. Para onde a conversa estava indo?

— Seu encontro com Daniel não foi um acaso, não é?

— É claro que não! — o outro gargalhou. — Garoto adorável, mas dois dominantes numa cama não dão certo. Digo, tive que me submeter para chegar até você, mas não gostei da experiência.

— O que quer de mim?

Oguri levantou-se. Caminhou até Jiro, sentando-se ao seu lado.

— Não é óbvio?

— Não, não é.

— Ora Jiro... Já se passaram tantos anos, ainda não me perdoou?

— Por ter me feito crer que me amava? Por ter me influenciado a entrar para o exército? E, por ter, depois de tudo isso, me deixado de lado em favor de uma mulher?

O outro gargalhou, tocando com o dedo indicador no queixo do outro.

— Eu precisava. Havia muitos boatos a meu respeito.

Saito virou o rosto. Não queria aquele toque, dava-lhe aversão.

— Não importa mais. Acabou.

— As coisas só acabam, quando eu digo que acabam, meu amor...

Repentinamente, sentiu o rosto sendo puxado. Tomado por um beijo furioso, enlouqueceu em desespero. Não queria aquele toque! Não queria aquela carícia!

Empurrou o outro com todas as suas forças. Quando, enfim, se viu livre, saiu do sofá e foi na direção oposta.

— Vim aqui para te implorar para não ver mais Daniel — disse ao ex-amante. — Por favor, gosto muito do garoto...

— Jiro, Jiro... — Oguri riu, interrompendo-o mais uma vez. — Não compreende minhas palavras? Quem deixará de ver Daniel é você. Aliás, não apenas ele, mas também aquele puto, ex-dono da Casa Ai.

A menção jocosa o enfureceu.

— Nunca mais fale assim de...

— Ah — Oguri o cortou. — Também não quero mais que veja o pirralho que se vestia de mulher.

Shiro? Como ele podia saber de Shiro?

— Quem acha que é para...?

— Não percebeu ainda, Jiro? — Oguri estendeu os braços, mostrando a casa. — A maior parte dos oficiais está na penumbra. Mas olhe para mim. Eu me safei da guerra de uma forma brilhante.

Repentinamente, Saito percebeu os motivos que faziam Oguri saber do sumiço de sua documentação e também dos seus passos.

— Está trabalhando para os americanos?

— Descobrindo criminosos de guerra. Como você — diante do olhar assombrado, gargalhou. — O quê? Acha mesmo que não haveria investigação? Seus documentos não foram os únicos que sumiram. Conheci o alto escalão do exército, e agora estou atrás daqueles que serviram as forças armadas, desempenhando um papel cruel contra os direitos humanos. E você se encaixa com louvor nessa descrição.

Saito estava sem palavras.

— Não precisa agir sem pensar. Ora, eu jamais seria tão maldoso com alguém que gosto tanto. Vá afastando as pessoas que você tanto preza, sem alarde. Depois, quero você aqui comigo em um mês.

— Senão?

— Senão a forca será a sua companheira no próximo verão.


***


Shiromiya mal o encarou durante todo o dia. Sabia que o havia deixado furioso, mas não imaginava o tanto. Naquele momento, sentado à mesa após o jantar, ele observava atentamente Kazue secando a louça. Não gostava daquele afastamento repentino, após uma luta tão árdua para reconquistá-lo.

— Miya, não está com sono?

A filha pintava uma árvore numa folha larga. Não o encarou ao responder.

— Não.

— Mas você tem aula amanhã, não é?

A menina assentiu.

— Então, que tal ir dormir mais cedo?

Mais uma negativa. Ryo suspirou, resignado, quando notou Shiromiya o encarando, segurando um riso.

Sem perceber, sorriu de volta.

— Vou dormir — Miya anunciou.

Encarou-a, curioso, e a percebeu sorrindo maliciosa. Agradeceu-a com o olhar, percebendo que aquela pequena ajudante estava lhe dando todas as armas que precisava para adentrar no coração de Kazue.

Shiro ainda permaneceu limpando a cozinha por alguns minutos, após Miya se retirar. Depois, caminhou lentamente até a porta do quarto. Parou alguns segundos, antes de se voltar para Ryo.

— Você não vem? — indagou.

Quando a porta do quarto se fechou, novamente, a menina surgiu na cozinha.

— Você viu? — indagou para uma figura alta ao seu lado. — Meus pais se amam.

O vento soprou com força, e um silêncio se instalou no ambiente. Porém, a garota ouvia a voz grave em sua alma.

— É claro que eles vão ficar juntos — retrucou. — Eu nunca vou deixar que se separem.

E com aquela promessa, enfim, ela foi dormir.

 

Capítulo 21


— Você irá trabalhar de manhã?

O segundo domingo de janeiro iniciava mais frio que o primeiro. Ryo Satoshi não sabia precisar com certeza a temperatura, mas sentia os ossos doerem, como se estivessem congelados.

Aconchegou-se ainda mais no corpo nu de Shiro e ouvi-o suspirar. Fechou os olhos, feliz, sentindo o deleite gentil pelo calor emanado pelo outro.

Haviam acabado de fazer amor. Como era costume fazer nas últimas duas semanas, assim que o clímax os atingia, apertavam-se um contra o outro e ficavam a conversar sobre as ocupações diárias.

— Como todos os domingos — Shiro respondeu, já fechando os olhos.

Não gostava daquilo. Já havia conseguido tirar Shiro das noites na prefeitura, e precisava de um argumento para arrancá-lo do trabalho braçal dos finais de semana. Porém, como? Queria tanto poder contar a verdade, dizer a Shiromiya que ele nunca mais precisaria se preocupar com nada. Que cuidaria de tudo, que poderia passar os dias apenas se ocupando em criar Miya.

Mas qual seria a reação de Kazue ao saber a verdade? Antes disso, precisavam estabelecer uma relação duradoura. Precisava fazer com que confiasse nele, para só depois expor detalhadamente a real situação.

— Eu te amo — sussurrou contra o outro, apertando-o mais firme.

Não, não podia perder aquela chance. Kami-sama havia lhe devolvido a vida que havia renegado no passado. Cinco anos de absoluta culpa e remorso haviam-no transformado em um morto-vivo. Não conseguiria nunca mais voltar aos dias posteriores à saída de Shiro de sua vida. Não aguentaria a solidão novamente.

— Você quer se casar comigo? — sussurrou.

A gargalhada o contagiou e se viu rindo também.

— De que jeito? Somos dois homens.

— Isso é um sim?

— Isso é um “você enlouqueceu”.

Ryo esfregou seu queixo no do outro, fazendo-o com que abrisse os olhos.

— Tudo bem, ainda não é possível um casamento legal, mas...

— Não vamos nos casar, Ryo — Shiro o cortou, friamente.

Gelou. Mas logo foi acalmado pela frase seguinte.

— Mesmo uma cerimônia simbólica... O que as demais pessoas pensariam?

— Eu não me importo com que as pessoas pensam.

— Você realmente mudou — o outro resmungou. — Antigamente tinha vergonha até de me acompanhar ao cinema.

— Não me lembre das atitudes covardes daquele homem do passado.

Shiro soltou mais um suspiro longo.

— Não me importo com o que as pessoas pensam de mim, mas sim de Miya. Não sabemos a reação dos pais dos coleguinhas ou dos professores. Eu não quero que ela passe por nenhuma situação constrangedora. Logo será uma mocinha, trabalhará, provavelmente se casará e terá filhos. Não posso pensar em ser uma mancha na história de vida da minha filha.

Era de uma sinceridade cruel e Ryo viu-se lacrimejante. Então, era aquilo? Ambos, uma vergonha? Um segredo impuro e oculto para que a pequena princesa deles pudesse ter oportunidades?

— Acabamos de sair de uma era de ódio. Foram tantas mortes durante a guerra, tanta raiva reprimida e exposta... E devemos nos culpar por nosso amor?

O “nosso amor” ecoou pelo quarto. Shiro não respondeu. No fundo, Ryo acreditou, com esperança, que ele confirmasse que o amor era recíproco. Mas Kazue apenas o encarava, sombrio, como se mastigasse bem as palavras antes de proferi-las.

— Não insista em algo que não vai acontecer — decretou. — Ninguém deve sequer suspeitar que temos um envolvimento, entendeu?

— Mas Shiro...

Era mais uma punição? Por que as coisas se inverteram tanto?

— Eu já disse.

— Precisa entender...

— Quem precisa entender é você: se eu tiver que escolher, você vai sair perdendo.

As palavras machucaram, mesmo que Ryo soubesse que não eram inteiramente sinceras. Ambos amavam Miya desesperadamente, mas nenhum deles conseguiria deixar o outro depois de tudo que passaram.

— Não preciso escolher, Shiro — sussurrou. — Só quero ficar perto de você e quero que você entenda que estou sendo verdadei...

Não prosseguiu. Estava sendo verdadeiro? Só estava ali naquele futon enroscado nas coxas de Shiro porque havia mentido.

— Não importa — Shiro o tirou da letargia.

— Não importa?

— Não acho humanamente possível você me magoar mais do que já fez.

Era uma punhalada atrás da outra. Eles realmente haviam acabado de fazer amor?

— Eu entendo que falar assim comigo é sua proteção — Ryo murmurou. — E eu vou suportar qualquer coisa que diga, não só porque mereço seu descrédito, mas também porque eu não admito mais uma vida em que você não faça parte dela.

Kazue não retrucou. Apenas fechou os olhos, como se o sexo e a conversa houvessem minado suas energias. Não viu, portanto, Ryo Satoshi secando as lágrimas enquanto ele dormia.


***


Saito Jiro pensou seriamente em ignorar a ameaça de Oguri durante os dias que se seguiram. Talvez ele não cumprisse o que dissera. Talvez fosse apenas um teste. Talvez...

Contudo, numa das noites em que bebia em um bar com Daniel, Oguri apareceu sorridente. Durante os cumprimentos, Jiro sentiu que ele colocara algo em seu bolso. Após pestanejar, foi ao banheiro para abrir o bilhete. Leu o nome de Mamoru Aiko e a palavra China rabiscada ao lado. No outro canto do papel branco, o nome de um miliciano famoso, preso pelos americanos nas últimas semanas, acusado de matar estrangeiros.

Saito encostou a testa na parede fria, enquanto sentia o choro inundar sua garganta.

Sabia ser merecedor de todo castigo do destino, mas... nunca imaginou que sua punição envolvesse a pessoa que mais amava.

Conforme os dias foram se arrastando, ele decidiu afastar Daniel e Mamoru de uma forma definitiva. Não bastava sumir, ambos não se conformariam com tal coisa. Precisava fazer com que o odiassem. Precisava provocar tamanha dor que tanto o americano quanto o ex-cortesão desejassem ardentemente que ele desaparecesse de suas vidas.

Com Aiko, o momento oportuno se mostrou dois dias antes do aniversário de Shin. Durante todo o mês de janeiro, manteve-o afastado, sendo ríspido nas respostas, demonstrando ser um peso ter que ir vê-lo. Porém, nada parecia abalar o namorado, até que, numa das noites em que jantou em sua casa, Mamoru insistiu para que dormisse ali.

Quis recusar, mas a aproximação da data trazia uma sombra tão triste aos olhos bonitos do outro, que acabou concordando.

Jantou em silêncio, sem responder os inúmeros comentários de Mamoru, que resolveu tagarelar sobre o tempo, sobre a aproximação da primavera e sobre os negócios. Simplesmente assentia com a cabeça e fazia um pesaroso “ hum ” quando a questão era mais pessoal.

Depois, lavou-se e foi em direção ao quarto para dormir.

Apesar de não fazerem sexo, ele dormiu na cama de Aiko muitos dias seguidos. Era confortador, apesar de perigoso. Contudo, o tempo estava passando e Mamoru não fazia nem menção de expulsá-lo de sua vida.

Olhou para o leito bem arrumado. A colcha bonita, floreada, os travesseiros macios e perfumados. Sentiu lágrimas nos olhos, mas foi forte. Viu o gato velho dormindo aninhado aos pés dela, e então se aproximou.

— Me perdoa, Minikui — sussurrou, acariciando os pelos macios.

Respirou fundo. Uma. Duas vezes. Depois, percebeu Mamoru se aproximando em silêncio do quarto, secando os cabelos longos. Era o momento.

— Sai da cama — disse alto, dando um leve tabefe no felino.

Minikui o encarou com surpresa, mas nada se comparava ao olhar de Aiko.

— O que houve? — questionou.

— Esse gato velho — Jiro resmungou. — Você não percebe que ele está soltando pelos?

— Os pelos estão caindo pela idade — tentou se justificar. — Mas eu limpo...

— Isso é nojento — interrompeu-o. — Devia manter esse bicho fora da sua casa.

Mamoru estava tão boquiaberto que não conseguia ter uma reação. Simplesmente, foi até Minikui e o pegou no colo.

— Vou colocá-lo para dormir na caixinha dele... — murmurou.

Jiro não esperava por aquilo. Bem da verdade, preparou-se para ser expulso por Mamoru. Contudo, percebeu que, apesar do olhar derrotado, ele deitou-se ao seu lado sem tecer nenhuma recriminação.

Virou-se de costas e fechou os olhos. Sentia o corpo pesado, aos frangalhos, mal conseguiu conter as lágrimas, quando as mãos gentis do namorado cercaram sua cintura e Aiko afundou o rosto em suas costas.

— Você é tudo que me restou, Jiro... — murmurou. — Eu sei que está cansado de mim, mas não posso deixá-lo ir...

Não respondeu.

Lá fora, o vento gelado cortou o ar, causando um uivo agoniante. Era uma noite triste. E não havia nada que ele pudesse fazer.


***


Estava novamente na escadaria larga. Os mesmos rostos cruzaram por ela, enquanto o mesmo carro escuro se aproximou.

Dessa vez, ouviu o chiado dos pneus ao frear. Percebeu, então, que o motorista estava com pressa. Levantou-se, observando-o abrir a porta. Era um homem japonês alto e muito bonito. Não o reconheceu. Não era ninguém que ela já havia visto, tanto no seu dia-a-dia quanto em suas visões.

O homem saiu do carro. Nos braços, uma pasta de couro preta. Ele subiu as escadas em direção a ela. Parou e encarou-a.

— Miya!

A menina deu-se conta de que estava na sala de aula. Os colegas riam, achando graça da sua postura desesperada, em pé, no meio da sala. A professora Emi-sensei [21] , contudo, não parecia risonha. Ao contrário, seu olhar estava furioso.

— Sente-se! — ordenou.

A criança sentou-se. Envergonhada, ela baixou a face. Sentia a pele queimar, ruborizada, humilhada.

Olhou para o lado, e viu o príncipe. Ele era o único que a compreendia, o único amigo que tinha.

Então pensou no tio Jiro e fez um biquinho. Tinha que falar com ele, pedir que voltasse. Estava assustada e com medo, e só queria ficar protegida pelos braços daquele que sempre esteve lá para ela.


***


— Eu poderia usar a régua — a mulher explicou para Shiromiya com o tom mordaz, arrepiando-o. Mesmo que bater com o objeto fosse comum aos mestres, ele se horrorizava só de imaginar a filha, indefesa, apanhando na frente dos coleguinhas. — Mas prefiro que sejam os pais a educá-la.

Shiro respirou fundo. Naquela tarde, ao buscar Miya na escola, foi chamado pela professora a entrar. A menina permaneceu sentada em um banco do lado de fora, tão acanhada que Kazue estranhou imediatamente.

A sala de aula estava vazia, e a professora sentava-se atrás de uma mesa grande, com a postura séria e ereta, parecendo pronta para uma briga.

— Eu falarei com ela — Shiro protegeu-se. — Vou explicar que não pode atrapalhar a aula...

— Crianças nessa idade não precisam de palavras! — a mulher foi direta. — Evite a vara hoje e tenha uma adulta mesquinha e irresponsável amanhã.

Shiro assentiu. Levantou-se, curvou-se respeitosamente e saiu da sala.

O vento frio balançou seus cabelos e ele se aproximou da filha. Ela faria aniversário no dia seguinte, mas não parecia se lembrar da data. Ao contrário, estava tão deprimida que o fato cortou seu coração.

— Vai me bater, papa? — indagou, assim que ele se aproximou.

Shiromiya sentiu a presença da professora atrás dele. Soube, pela respiração da mulher, que ela esperava que ele afirmasse, ameaçador. Contudo, jamais havia erguido a mão para ela. Nunca precisou. Apesar do temperamento complicado, a filha nunca fizera nada que merecesse uma surra.

E, se Ryo Satoshi estivesse certo, não fora culpada pelo acontecimento em aula.

— É claro que não, Miya. — Estendeu os braços para ela e a ergueu no colo.

Antes de ir, girou o corpo em direção à mulher. Percebeu seu olhar crítico, como se o elegesse o pior pai do mundo. Talvez, ela até estivesse certa, mas ele jamais machucaria a sua criança, por conselho nenhum no universo.

— Não fiz de propósito — ela sussurrou no seu ouvido. — Eu juro que não...

— Eu sei — apertou-a, beijando a bochecha fogueada. — Eu a criei; acha que não a conheço?

A criança assentiu e então deitou a cabeça em seu ombro. Shiro nada disse, mas seu olhar para a professora era claro: “ não toque na minha filha ”.

Além de todos os percalços que a vida já havia lhe dado, ainda teria que suportar o peso de uma maldição. De qualquer forma, ele sofreria tudo que pudesse por ela. Porque, mesmo sem terem o mesmo sangue, Kami-sama sabia: aquela pequena menina condenada era sua família e ele a amava mais do que a si mesmo.

 

 

 


Capítulo 22

Ryo bebeu o chá, enquanto observava Shiro limpando a louça. A água quente passou com dificuldades contra sua garganta irritada. Imaginou que pegara um resfriado na lida durante as manhãs geladas, mas seu ânimo íntimo era tamanho que doença nenhuma progrediria em um corpo tão feliz.

O sol não aparecia há dias. Nuvens grossas e escuras deixavam aquele início de ano melancólico. Apesar disso, era o princípio de uma vida com Shiro e, mesmo sem o sol, tudo parecia iluminado.

Faziam amor desde o primeiro dia de janeiro. Não teve nenhuma noite que ele não enredou-se com Kazue nos lençóis, beijando, lambendo e possuindo o outro de todas as formas que sempre imaginou. Assim, mesmo que a vida tivesse uma prospectiva cansativa e sem nenhum luxo, tudo valia a pena quando, à noite, após a exaustão do labor, ele era recompensado pelo toque suave e a respiração doce contra a face.

— Ela disse o que viu? — indagou, cansado.

— Não. Apenas falou que não atrapalhou a aula de propósito.

Shiromiya havia lhe contado o problema ocorrido na escola, assim que chegou com Miya. Ryo e ele trocaram um olhar que falou muito, mas não teceram comentários na frente da criança. Satoshi conversou bastante com ela durante o jantar, porém, nada sobre as visões. Pareceu ansioso por fazê-la esquecer o que vira. Shiro, em silêncio, viu-o prometer-lhe um bolo de chocolate para o dia seguinte e um presente.

Miya não era acostumada a agrados, apesar de Shiromiya ter se esforçado durante todos aqueles anos para que não lhe faltasse nada. Então, como a criança que era, logo a menina se encantou com a possibilidade de um brinquedo novo.

Ao final do jantar, ela foi dormir tranquila, esquecida das coisas perturbadoras que viu.

— Não terá problemas? — Shiro fê-lo arquear as sobrancelhas.

— Como?

— Um presente — ele explicou, secando as mãos no prato de prato. — Você já lhe comprou uma boneca para o natal, e agora disse que...

— Não se preocupe, tenho algumas economias.

O argumento impressionou Shiro.

— Se tinha economias, por que me procurou? Por que não alugou uma casa?

Ryo ficou pasmo. Por alguns segundos, não soube o que responder. A verdade? Inconcebível. Shiro o colocaria para fora no mesmo segundo.

— Não é muita coisa... — justificou, rapidamente.

Repentinamente, percebeu que as palavras pareceram ferir Shiro. Por Deus! era como andar numa corda bamba, cada coisa dita ou feita poderia excluí-lo para sempre da vida dele.

— Pode não acreditar — tentou reparar —, mas quando sumiu, procurei-o durante anos. E eu realmente acreditei que nunca mais iria encontrá-lo. Quando soube que havia a possibilidade de estar vivo, eu não pensei duas vezes... Não estou aqui porque preciso, mas porque te amo...

Uma trovoada ecoou no céu. Naquele curto instante em que um clarão pareceu iluminar o casebre, o semblante de Shiro mudou. Ele sorriu, gentil, como fazia nos tempos da mocidade, e então ambos pareceram acender.

— Logo Miya acordará e virá para meu futon — sussurrou, porque sabia que a criança sempre o procurava quando a chuva era barulhenta. — Então...

— Então? — seu tom era malicioso.

— Vamos para o banheiro?


***


Ryo deslizou a mão magra e curvilínea pela pele delicada como um pêssego. Shiromiya o encarava, enquanto o outro parecia disposto a tocar o corpo nu vagarosamente, como se ansiasse em memorizar cada detalhe, cada pinta ou mancha que encontrasse.

— Tudo em você me excita — confessou ao amante, a voz apaixonada.

— Suas mãos estão ásperas — Shiro sussurrou, trazendo-o mais para perto, sentindo um arrepio delicioso invadi-lo.

Sorriu ao sentir como era agarrado por ele. Shiro ainda era frágil, apesar de forte. Percebeu então que era uma força em personalidade, não no físico. Era engraçado que, só naquele momento, dera-se conta disso.

— Está sorrindo... — beijou-o na boca, sentindo as línguas se enroscarem languidamente.

— É que você continua igual... — Ryo respondeu, após separarem as bocas.

— Nada em mim é igual — retorquiu.

Apoiando as costas na parede, Shiro deslizou a coxa direita para a cintura de Ryo. O mais velho segurou uma gargalhada.

— Aqui? Em pé?

— Você não quer?

Aquele tom sensual o deixou ainda mais duro. Estava completamente entregue ao momento.

— Vire-se de costas.

— Não, quero olhar para você...

Ryo mal conseguia conter o tremor nas pernas e Shiro não parecia disposto a ajudá-lo.

— Está louco? Não quero te machucar...

— Quero ver seu rosto quando entrar em mim...

A respiração acelerou. Ele conseguia ouvi-la pela boca entreaberta, como se estivesse tendo um ataque. O pensamento foi engraçado e ele quase riu. Porém, pela expressão de Shiro sabia que se risse, seria expulso do banheiro a pauladas.

Pegou as duas coxas com firmeza. Sentiu que aquela força exagerada extasiou o outro. Shiro gostava daquilo, gostava de uma pegada forte, rígida, autoritária. Gostava quando Ryo o submetia, o apertava... quase o machucando.

— Faz logo... — mandou.

— Por que tanta pressa? Deixe-me aproveitar...

— A chuva está chegando, Miya vai acordar.

A explicação trouxe a sensação do peso da idade a Ryo. Não eram mais jovens que podiam aproveitar todo o tempo disponível apenas para se amarem. Agora tinham compromissos e uma filha que temia tempestade para interrompê-los em momentos como aquele.

— Quer parar de pensar?

O tom daquela vez o fez rir baixinho. Contudo, Kazue estava tão ansioso que rebolou sobre o pênis duro dele, fazendo com que Ryo quase arqueasse as costas, num gemido alto.

— Cale a boca! — o xingamento foi baixinho.

— Ela está dormindo — se justificou.

Mal podia esperar para achar uma solução para suas mentiras e levar Shiro e Miya para sua casa de paredes grossas. Quando fizesse amor com Shiro em sua casa em Sapporo, poderia gritar e gemer à vontade.

Enfiou-se vagarosamente para dentro de Shiro. Lembrou-se de Shin, quando o amigo lhe contou que precisava roçar com o pau duro em uma saliência dentro do companheiro para que ele explodisse em prazer. Ficara chocado com a informação, porque nunca sequer pensara no fato antes, pois quando fazia amor com Shiro, tudo se perdia nos beijos, toques e prazeres. Porém, daquela vez, quis que fosse especial, então, prestou atenção na saliência enquanto deslizava. Duas entocadas e encontrou.

Repentinamente, parou. Olhou para Shiro que se contorcia diante dele.

— Você é a pessoa mais linda que eu já encontrei na vida — sussurrou. — E não estou falando da sua beleza física, dos seus cabelos macios, dos seus olhos maravilhosos, dessa boca que me faz suspirar... Porque mesmo que não tivesse essa aparência, ainda assim seria perfeito...

Shiro o encarou, comovido. Mas os olhos lacrimejantes logo se fecharam, quando Ryo passou a meter com força na protuberância delicada.

— Oh... — Shiro gemeu. — Ry-chan...

Parecia uma melodia que o embalara na sua primavera e que depois nunca mais ouvira. Então, que um dia passou a tocar, sem que ele esperasse, no rádio.

Tomou os lábios macios, saboreando a boca delicada, enquanto se afundava mais e mais em Kazue.

Sentiu os dedos de Shiro segurando suas nádegas, parecendo querer ditar o ritmo. Fez sua vontade. Abriram os olhos e se observaram enquanto o auge do prazer os atingia. O semblante em deleite os excitou mais.

— Ry-chan — ele gemeu, baixinho, conforme o clímax se aproximava.

Ryo se enfiava com força, parecendo querer marcá-lo de todas as formas possíveis.

— Diz que me ama... — pediu, sabendo que Shiro estava vulnerável e zonzo pelo prazer.

Shiro pareceu surpreso. Porém, logo gemeu mais alto e sentiu o corpo convulsionando num orgasmo potente. Ryo também se perdeu nas sensações, mas o prazer não foi absoluto.

— Shiro... — ele gemeu quando o pênis escapuliu para fora do outro.

— Vamos nos limpar e ir pro quarto — o outro o cortou, rápido.

— Mas...

— Eu estou com sono, Ryo-san... Conversamos amanhã, está bem?

O sorriso confortador parecia dizer “ Deixe de mendigar amor e satisfaça-se com o que tem ”, mas Ryo não desanimou. Sorriu e postou-se com Shiro embaixo do chuveiro. Ainda se amaram mais uma vez antes de voltarem para o quarto.

Cerca de meia hora depois, deitado no futon, ele ouviu uma batida de leve na porta. Olhou para o lado e viu que Shiro dormia, exausto.

— Entre, amor — ele chamou, baixinho.

Logo a menina surgiu com o boneco nos braços.

— O...

— Eu sei, eu sei — ele riu, abrindo espaço entre Kazue e si mesmo. — O senhor Bigode tem medo, não é?

— Ele é um covarde — ela concordou.

Ryo não respondeu. Apenas a puxou, beijando os cabelos cheirosos antes de fechar os olhos. Miya ainda não sabia, mas seu pai também era um covarde. Ela não fazia ideia do quanto Ryo temia perder aquela família.


***


— Eu não quero ir para a aula.

O pedido foi seguido por um tremer no queixo. Em questão de segundos, a aniversariante passou de menininha saltitante andando pelas ruas de Kibou, para uma criança infantil e birrenta. Fincou os pés diante da escola, enquanto encarava Ryo Satoshi com um misto de desafio e pavor.

— Miya — Ryo tentou. — Não quer ser uma menina inteligente? Para isso tem que ir à escola.

Apesar de ela ter colocado a mochila nas costas, Miya realmente creu que não precisaria ir estudar no dia do seu aniversário. Era final de janeiro e o vento já não estava tão frio. O inverno começava a dar adeus, e sabiam que poucos dias à frente as sakuras enfeitaram as ruas, trazendo um espírito de conforto e luz a todos.

— Eu odeio esse lugar — ela se defendeu.

Era a primeira vez que Ryo a levava ao colégio. Pediu para Shiro a tarefa, pois desejava comprar bolos e bebidas na volta para a casa. Além disso, também queria ir conversar com o patrão de Shiro sem levantar suspeitas. Contudo, já estava há quase dez minutos parado em frente ao prédio horizontal, construído há pouco tempo, tentando argumentar com a criança.

— Não deve odiar! A escola...

— A professora me odeia — ela insistiu.

— Não é verdade. A senhorita Emi só busca educá-la — percebendo que não a convencia, mudou a tática. — Papai vai te dar o que você quiser se entrar na escola e estudar direitinho.

A promessa a animou pela primeira vez em dias.

— Verdade?

— Sim.

— Qualquer coisa?

— Qualquer coisa humanamente possível — começou a desconfiar.

— Eu quero o tio Jiro...

O choque foi visível no olhar atônito do homem.

— Miya...

— Você prometeu!

— Mas Miya... — molhou os lábios com a língua, enquanto pensava. — Ele está em Tóquio, como eu poderia...?

— Então liga para ele. Quero falar com ele...

— Miya... — Céus, onde estavam as palavras quando se precisavam delas? — Não é tão fácil. Uma ligação custa caro — uma esmola, pelas suas posses. — Eu gostaria muito, mas não posso — mentiu, sentindo o coração sangrar pela visão do olhar abatido. — Você pode me perdoar por isso?

Ela olhou para o chão, assentindo, acanhada.

— Sente muita falta dele?

Não houve respostas. A criança volveu os olhos para o lado, evitando o confronto.

— Miya, vou comprar docinhos para sua festinha de aniversário — ele mudou de assunto, sorrindo e a apertando nos braços. — Então, você pode convidar todos os seus coleguinhas, está bem?

Ela assentiu. Depois, lhe depositou um gentil beijo na face e afastou-se, correndo.

Ryo ergueu-se, suspirando alto. Estava cheio de dilemas, de todos os lados. Precisava resolver a mentira que criara, precisava conseguir que Shiro perdesse o emprego sem comprometê-lo e precisava afastar Saito Jiro – o maldito – da sua família.

— Você já me roubou muito — murmurou. — Não me tirará mais nada.


***


O homem grande e forte bateu com força a foice contra os pés de cidreira. O cheio agradável do chá o atingiu, enquanto ele calculava mentalmente quanto da erva colheria durante o inverno.

Urashi nasceu a viveu toda a vida em Kibou. Casou-se jovem, foi pai cedo demais, mas nunca fugiu das suas responsabilidades de homem. Talvez por isso simpatizasse tanto com Shiromiya, a quem empregara desde que a filha do jovem ficou doente.

— Com licença.

O tom masculino o fez soltar a foice e voltar-se para o visitante. Reconheceu o rosto de Ryo Satoshi. Conversaram brevemente na noite de ano novo. Soube que o homem do norte estava vivendo na casa de Shiromiya. Eram amigos de longa data, pelo jeito. E agora ele estava diante de si, com sacolas de compras nas mãos, sorridente.

Devolveu o sorriso.

— Boa tarde — cumprimentou. — Posso ajudá-lo em algo?

Ryo assentiu e se aproximou.

— Vim conversar com o senhor. Espero não ser um mau momento.

— Não, não é. Do que se trata?

— Shiro...

Então, o homem o chamou a sentar em pequenas toras de madeira. Em nenhum momento na conversa que se seguiu Ryo sentiu-se um traidor. Ora, estava apenas salvando Shiromiya da fadiga, da exaustão absoluta. Ele podia arcar com as despesas da casa, e de qualquer coisa que aquele núcleo necessitasse.

Mas Kazue não deixaria o emprego. Não confiava nele ainda. Então, que escolha tinha a não ser pedir ao homem que o demitisse?

— Eu não sei... — Urashi pareceu incomodado com o fato.

— Estará lhe prestando um favor — Ryo afirmou. — Ele precisa descansar, não tem repouso...

— Sim — concordou, pela primeira vez. — Conversava esses dias com minha esposa. Nos preocupamos com Shiro. É um homem jovem, mas não tem muita força física. Se algo lhe acontecer, o que será de Miya?

Não se atentou para a frase. Tudo que via era seus próprios planos dando certo.

— Posso contar com o senhor, então?

— Certamente.

Ryo curvou-se, feliz.

Ao chegar em casa, agarrou Shiro e o rodopiou no ar, rindo, como uma criança serelepe.

A vida sempre sorria para ele.


***


Saito Jiro mexia na comida sem nenhum interesse. Ao lado dele, Aiko o observava atentamente, buscando espaço para uma conversa qualquer. Não havia. Jiro estava em outro lugar, muito longe dele. Jamais imaginou que o amigo que tanto amava pudesse se afastar de forma tão real. O corpo estava ali, mas o espírito sumiu em algum lugar do tempo.

— Está tão quieto — comentou sorrindo, tentando puxar assunto.

— É aniversário de alguém...

A explicação perdeu-se na dor de Aiko. Ora, e ele não sabia? Sakamoto completava mais um ano de vida naquele dia, e não podia sequer lhe desejar felicidades. Afastou os pensamentos tão logo os teve.

— Eu falo de Miya.

Deu-se conta de que Jiro o encarava. Envergonhou-se. Depois, o percebeu mais seriamente. Estava com o olhar apático, triste e derrotado. Não resistiu e aproximou as cadeiras, apertando-o nos braços.

— Por que não liga para ela?

— Seria um problema. O telefone é afastado da casa de Shiro uns três quilômetros. Teria que pedir para alguém ir chamá-lo. Além disso, há essa hora Miya deve estar na escola. Preferi enviar uma carta.

Aiko assentiu.

— Quer falar sobre isso?

— Sobre o quê?

— Sobre a falta que está sentindo...

Jiro o encarou. Percebeu o olhar pedinte, querendo compartilhar as histórias de uma vida que ele não viveu. Levantou-se.

— Mais tarde. Talvez eu venha para o jantar.

E, sem sequer um beijo, saiu da livraria, deixando o namorado lacrimejante para trás.


***


Quando Shiromiya surgiu com a filha deles nos braços, no final da tarde daquele dia, Ryo não pôde deixar de soltar sua dúvida:

— Onde estão as crianças?

Ele havia organizado a mesa, arrumado o bolo, os doces, os chás, e até conseguira alguns balões para atar nas paredes. Preparou-se para uma multidão de meninos e meninas, mas não havia nenhuma senão a sua.

— Não convidei ninguém — Miya respondeu.

— Por que não?

— Para sobrar mais comida — a explicação parecia óbvia.

Ryo se irritou imediatamente, mas o olhar firme de Shiro o manteve em silêncio. Kazue, assemelhando-se a um pai relapso, beijou-a na fronte, orgulhoso, como se quisesse dizer que a apoiava e que a compreendia.

Apesar da aparência, a verdade era que o mais jovem sabia que a menina havia sim convidado os coleguinhas, mas como já acontecia há algum tempo, todos ignoraram o convite e fingiram não percebê-lo.

No final do dia, quando Shiro foi buscá-la, ela permanecia sentada no banco, olhando para as demais crianças, tentando notar se alguma faria qualquer menção de ir até ela. Observando ao longe, sentiu os olhos transbordarem de lágrimas ao perceber que estava altiva, mesmo solitária.

Então, secou os olhos e caminhou em sua direção. Sorriu ao pegá-la no colo e apertá-la com todas as forças que tinha contra si.

— Eu te amo — ele sussurrou contra os cabelos dela, enquanto a abraçava, já sentados à mesa.

— Eu também, papa — a resposta simples o fez sorrir.

— E eu? — Ryo riu, enquanto puxava um embrulho. — Se não me ama, não vai ganhar presentes.

Parecia esquecido da irritação. Afinal, ela se assemelhava a Sakamoto nisso também. Nunca conseguia ficar irritado muito tempo com o amigo.

— O que comprou pra mim?

As mãos pequenas praticamente tomaram o pacote das mãos dele. Ela abriu o laço rapidamente, encontrando um conjunto de pequenas xícaras e panelinhas de plástico.

Shiromiya havia visto o brinquedo dias atrás na mercearia e sabia ser caro. Pensou se um dia poderia comprar algo assim, mas logo desfez-se da ideia. Então, Ryo surgia com o agrado. Ergueu os olhos, inquisidor.

— Pedi um desconto — o outro se explicou, tão logo percebeu o olhar carregado de dúvidas.

— Mesmo assim...

— Quer relaxar?

— Está gastando demais — mexeu os lábios, mas o som não saiu. Não queria que Miya participasse daquele embate.

— Mas é para a nossa filha — o outro respondeu, igualmente sem o som, sorrindo, animado.

“ Nossa ”.

Compartilhar com Ryo a paternidade parecia um erro. Mas como todos os erros que Shiro já cometera, era igualmente confortador e maravilhoso. Pela primeira vez diante da menção, ele sorriu, feliz.

— Agora vou poder preparar a comida para o sr. Bigode, a princesa e o príncipe — falou dos bonecos e do amigo imaginário que só ela via.

— Vai sim — Ryo concordou. — E terá que me fazer chá também.

A menina assentiu mais uma vez. Depois, o abraçou com força, num agradecimento. Nunca ganhara dois presentes em tão curto prazo.

Mais tarde, quando Ryo e Shiro já se encontravam deitados no futon, Kazue o apertou forte, como se o agradecesse por tudo que estivesse fazendo.

— Ainda é pouco — Ryo sussurrou contra sua testa. — Se eu não tivesse feito nada de errado, Miya teria crescido em uma casa enorme, com tantos mimos, bonecos e brinquedos que ela enjoaria fácil de todos eles.

Shiro ouviu as palavras, mesmo baixas, mas não respondeu. Repentinamente, sentiu um choro surgindo em sua garganta, e antes que pudesse pensar seriamente sobre aquilo, as lágrimas despencaram.

Talvez fosse verdade. Mas não era nos luxos que ele pensava.

Se não tivesse ido embora, teria encontrado Miya?

E, caso houvesse, Ryo a aceitaria em sua casa?

Daria a ela o tratamento de que necessitava para ser uma criança normal?

Mais que isso, ao estar curada, ela teria amiguinhos?

Eram apenas suposições. A realidade era que Miya precisava de um médico em Sapporo e Shiro não tinha condições de bancar isso. Suspirou, aconchegando-se no peito de Ryo. Pela primeira vez em quase um mês, não fizeram amor naquela noite. Contudo, a forma com que se abraçaram pareceu tão íntima quanto as noites em que gemiam espremidos um contra o outro.

 

Capítulo 23


Fevereiro iniciou-se com um ar primaveril. Ainda estava frio, mas era possível sentir o odor de flores a desabrochar. O sol surgiu com força no céu, iluminando a cidade, deixando os rostos azedos do inverno um pouco mais simpáticos, como se reacendesse a esperança em cada um.

Mamoru Aiko deslizou o pano de algodão sobre o balcão, enquanto a mão direita acariciava o pelo já raso e áspero do velho gato, dormindo sobre a bancada.

— Você sabe, não é? — o tom do outro o fez sorrir. — É como diz aquele velho ditado.

— Que ditado?

— “ Todo homem é poeta quando está apaixonado ”. É uma frase de Platão que eu concordo totalmente.

Mamoru riu.

— E você acha que ele está apaixonado por você?

Daniel Joshua mordeu o bolinho de arroz e engoliu o café quente antes de responder. Ao lado, um livro pequeno repousava, compra recente. Ele era o primeiro e único cliente a entrar na livraria de Mamoru Aiko naquele dia.

— Oguri me fala muitas coisas... Palavras doces.

— Palavras são enganosas — Aiko foi sincero. — Nunca acredite em palavras...

O outro assentiu.

— Eu sei, mas... Que escolha tenho?

— Está me dizendo que está ficando com ele, apenas porque tem medo da solidão?

— Todos temem a solidão — o americano retrucou, franco. — Você não?

Aiko negou.

— Quando a guerra acabou, eu fiquei completamente sozinho. Via, às vezes, um amigo de Sapporo, mas eram apenas visitas esporádicas. Havia perdido toda a minha família durante os bombardeios. E minha primeira reação foi de pânico. Contudo, acredite em mim, a solidão é mais cruel imaginada do que vivida.

Daniel permaneceu em silêncio alguns segundos.

— Conte-me mais de você, Aiko...

O pedido era tão sedutor que Mamoru riu. Aquele homem estrangeiro tinha um tom grave incrivelmente sexy. Não condenava Jiro por ter caído em suas graças.

— Não há nada muito interessante sobre mim.

— Aposto que há. Quem foi seu primeiro amor?

— Isso é algo que realmente não quero falar.

O semblante amargurado instigou ainda mais Daniel.

— Foi Sakamoto, não é? Eu ouvi comentários — mordeu o último pedaço do bolo, como se não percebesse a animosidade. — Não sei o que você ou Jiro viram naquele cara.

— Acredite em mim, nem nós.

Riram como há muito não faziam.

— Eu o amei mais que tudo — Aiko confessou, assim que a gargalhada se findou. — Eu teria morrido por ele sem pensar duas vezes...

— E por que não estão juntos?

— Porque ele descobriu que eu tenho sangue chinês.

A sobrancelha do outro arqueou.

— E?

Percebendo a dificuldade para entender, Mamoru explicou:

— Para os japoneses, chineses e coreanos valem menos do que cães.

— A guerra acabou. As coisas estão mudando.

— A guerra não criou esse pensamento. É cultural. Aqui, crescemos ouvindo que os outros povos são inferiores. Mas enfim... Não importa mais — deu os ombros. — Shin e eu jamais ficaremos juntos novamente.

Daniel assentiu, parecendo estar de acordo com o comerciante.

— Mas, e você? Como foi seu primeiro amor? — devolveu a pergunta, gentil.

— Ele era japonês — o sorriso doce fez Mamoru sorrir também. — Eu o amei de uma forma muito pura.

— E por que terminaram?

— Nunca terminamos. Apenas nos separaram. A família dele descobriu nosso enlace e foram embora, meu pai me expulsou de casa, enfim... — ficou em silêncio, mitigando o assunto. — Veja bem, eu dormia com várias garotas que trabalhavam na fazenda e meu pai sentia orgulho disso. Mas quando eu me apaixonei, ele me renegou.

— Porque era um homem — Aiko explicou. — É muito difícil para certas pessoas aceitarem.

— É a tal moralidade que aceita que um filho durma com várias mulheres, mas condena se ele se deita com um homem — brincou.

Então, se ergueu, largando no balcão duas notas de ienes.

— Foi bom conhecer um pouco mais de você, Aiko-san — disse, sincero.

— Igualmente — percebendo que o rapaz já se despedia, não aguentou. — Como está seu relacionamento com Jiro?

A pergunta fez Daniel encará-lo com constrangimento. Baixou a face, incomodado. Depois, o sorriso acanhado antecipou a confissão.

— Se o fato de ele me ignorar completamente puder ser chamado de relacionamento, minha amizade com Jiro continua como sempre: eu o seguindo como um cão e ele me chutando como um dono mau.

Quando o americano afastou-se, Mamoru apoiou-se na mesa.

Então, o problema de Saito não era Daniel. No entanto, o que devia ser? Não acreditava que Jiro simplesmente havia deixado de amá-lo. Mesmo que não romanticamente, eles eram amigos demais para o outro simplesmente cortá-lo de seu afeto. Contudo, por que estava sendo tão grosseiro e mal-humorado? O que de fato se passava com Jiro?

Precisava descobrir. Não aguentava mais aquela indiferença. Se Daniel suportava tais afrontas, ele não tinha tamanho torpor.

— Preciso de um plano — disse para Minikui.

O felino ergueu a cabeça e o encarou. Depois, voltou a deitar.

Realmente, aqueles problemas não interessavam a ele.


***


— Por que está sorrindo como um idiota?

Ryo Satoshi arregalou os olhos, indeciso perante as palavras. Tentou conter o riso e então apenas volveu os braços ao redor da cintura de Shiromiya, trazendo-o para si. Beijou seus lábios lentamente, ignorando a pergunta, tentando fazê-lo esquecer da questão levantada.

Funcionou, porque ao soltá-lo, Shiro parecia em tal estado de encantamento que suas palavras mudaram o tom.

— Eu preciso de um favor — pediu.

— Qualquer coisa.

— Bom — Kazue levou a mão até o bolso de trás da calça de linho, — preciso que vá à tarde pagar a mercearia. Eu compro lá o que falta e sempre pago no primeiro domingo do mês.

— Mas ela não está fechada?

— Está. Porém a proprietária, Yoshie-san, me atende quando bato palmas em frente à casa dela, ao lado da mercearia. Pode ir?

Ryo assentiu, recebendo o dinheiro. Shiro sorriu, em despedida, e afastou-se em direção às terras de Urashi-san.

No final daquele dia, Shiromiya voltaria para casa desempregado. Parecia cruel, aos olhos de qualquer pessoa, mas Ryo apenas queria poupá-lo. Aos poucos, aquela resistência em ser mantido pelo outro se quebraria. Então, ele poderia assumir o papel que teria sido seu desde o início, não fosse Kazue ter desaparecido durante a guerra.

Miya levantou-se naquele domingo próximo do meio-dia. Almoçaram uma comida simples – frango cozido, arroz e repolho – e depois ele foi limpar a louça enquanto ela sumia, em direção à floresta.

Às vezes, ia com ela levar comida aos cães. Contudo, a terra era segura, e a menina gostava daquela curta liberdade. Cerca de quinze minutos depois, ela voltou e, buscando os bonecos e os brinquedos que Ryo havia lhe dado, foi brincar nos fundos da casa.

Era uma vida simples, mas era maravilhosa.

Próximo das quinze horas, decidiu ir até a mercearia. Saiu pelos fundos e visualizou a filha servindo chá de grama para o boneco de espiga e a boneca de pano. Tagarelava com eles, falando sobre coisas que Ryo não fazia a menor ideia do que era. Não resistiu e se aproximou, encarando-a.

— Sua casa ficou muito bonita — elogiou o local em que ela criara uma réplica de uma casa para brincar com as bonecas.

— Eu sei, papai.

Claro, sabia de tudo.

— Quer brincar comigo?

O convite o fez sorrir. Imaginava o que Shin diria se o visse agachado, sentado em um toco de madeira, fingindo beber água com grama enquanto entrava em um mundo imaginário de uma criança de nove anos.

— Não posso — negou. — Seu papa me pediu...

Repentinamente, recuou. Miya o observou com o olhar tão triste, que não conseguiu dizer mais nada.

— Tudo bem — ela respondeu, ao vê-lo travar. — Eu brinco sozinha.

Aquela solidão para uma criança vivendo em uma comunidade repleta de outras, era algo que incomodava demasiadamente Satoshi. Onde estavam as outras meninas? Por que Miya não corria com os garotos entre as árvores, brincando de esconde-esconde? Por que nenhuma apareceu no dia de seu aniversário?

Eram muitas questões, mas quando ele se sentou no pedaço de madeira, decidiu não inquirir nenhuma a ela. Conversaria com Shiro mais tarde, no final daquele dia.

— Sobrou bolo do seu aniversário e eu posso fazer chá — disse, colocando-se à disposição.

O sorriso de pura felicidade, fê-lo ter a certeza de que havia feito a coisa certa.


***


Ele tropeçou e caiu de joelhos. Não se machucou, apesar disso. O sol ardeu em seu rosto. A despeito de ser um dia ameno, ele suava, fruto de todo esforço praticado durante o dia.

O senhor Urashi o atendeu em silêncio. Trabalharam na colheita durante todo o dia. Imaginando que o vizinho estava com problemas, ele não insistiu numa conversa sobre as lagartas que estavam comendo parte da soja cultivada no lado leste da propriedade, e também fechou a boca.

No final do dia, o vizinho o chamou. Estendeu-lhe o dinheiro do trabalho e então lhe avisou de que não precisaria mais de seus serviços. Shiromiya mal ouviu a justificativa. Repentinamente, os problemas financeiros do outro, o prejuízo da última safra ou a perda de um comprador de Kyoto não importou. Tudo que ele via era a falta daquele dinheiro e os remédios de que necessitava comprar para Miya.

— Eu lamento — Urashi disse, acanhado.

— Está tudo bem — sorriu, constrangido.

Colocou as notas de ienes no bolso e começou a caminhar em direção a sua casa. Entretanto, nada estava bem. O corpo pesou, o machado e a foice pareceram arder em seus dedos, e as lágrimas vieram antes que ele conseguisse impedi-las.

No isolamento daquela estrada de chão batido, entre árvores frondosas, ele escondeu o rosto com as mãos e soluçou.

Por que deixara o trabalho na prefeitura? Por que ouviu Ryo?

O que faria então?

Tinha em mãos o suficiente para mais um mês de remédios, mas... e depois?

De ombros caídos, ele se aproximou de casa. Percebeu o cheiro gostoso de algo sendo preparado e pôde ouvir Ryo rindo de qualquer coisa que Miya tagarelava.

Seria uma vida de sonhos... se na verdade não fosse um pesadelo.

— Oi — cumprimentou, acanhado, entrando pela porta dos fundos.

Ryo estava no fogão à lenha, mexendo em algo na panela. Tinha os cabelos molhados, havia tomado banho. Volveu e viu a filha também já limpa, sentada à mesa, em frente aos cadernos.

— Obrigado — disse, sincero, ao perceber que não precisaria organizar nada naquele dia.

No fundo, tudo que queria era deitar e dormir.

— Passei o dia todo brincando com Miya — Ryo contou, rindo.

— Comemos todo o bolo do meu aniversário e depois fizemos bolo de barro — ela completou, extremamente orgulhosa.

— É mesmo? Que bom, amor... — ele a encarou, num sorriso cúmplice. Depois, voltou-se para o amante. — Vou tomar banho... — Já se dirigia ao banheiro quando se lembrou. — Conseguiu ir até a mercearia?

Pela expressão de Ryo, era nítido que ele não havia ido.

E havia sido um péssimo momento para não ter realizado um pedido. Sem paciência, Shiro estendeu a mão, pedindo o dinheiro de volta. O outro ficou envergonhado, mas devolveu.

— Eu posso ir amanhã...

Sem respostas, Kazue cruzou por ele e foi reto para a estrada. Pouco depois, sentiu Ryo puxando seu braço.

— Shiro, eu vou amanhã.

— Não deixo de honrar meus compromissos. A mercearia me vende quando preciso, e eu pago sem deixar atrasar um dia.

— Mas...

— Não entende, não é? Nem sempre as galinhas põem ovos, nem sempre há emprego sobrando. Às vezes a neve mata os pés de milho, outras vezes os gafanhotos comem o chá. Eu tenho uma criança para criar, não posso ficar sendo irresponsável...

— Eu não sou irresponsável! — Ryo se irritou, pela primeira vez. — Eu estava indo, mas Miya...

— Miya o quê? Vai culpá-la? Ela é uma criança e nunca fez birra por ficar sozinha!

— Exatamente! Ficar sozinha! O tempo todo! Onde estão os amigos que uma criança normal tem? Todas as vezes que vou buscá-la na escola, ninguém se aproxima dela! E não me venha dizer que ela não convidou os coleguinhas, porque eu vi hoje, nos olhos dela, o quanto ela sente falta de uma companhia para brincar!

Shiromiya respirou fundo, engolindo as lágrimas.

— Está se envolvendo demais no que não te importa.

— Não me importa? Tudo que tenho feito desde que vim para cá é me importar, Shiromiya!

O outro negou com a face, e deu dois passos para trás. Em segundos, voltava a caminhar. Novamente, foi interrompido.

— Não vai sem me explicar!

— Explicar o quê? Que uma criança de nove anos passa os dias falando com amigos imaginários porque nenhuma outra se aproxima dela? Acha que eu não sei? Está aqui há pouco tempo, estou há anos. Eu vi minha filha perder o posto de líder da turma, de criança mais amada e seguida, para a mais solitária.

Percebeu que chorava, quando a voz saiu engasgada demais. Mas quando se tratava de Miya, ele não podia chorar. Precisava sempre ser forte.

— Quer saber? Ela já foi a menina mais idolatrada de Kibou. Quando chegamos à cidade, esse jeito tagarela e bem disposto fez com que ela tivesse muitos amigos. Eu mal via Miya de dia, ela passava as tardes correndo pela floresta, brincando com as meninas, pulando no lago com os meninos. Vivia de joelho ralado e pés sujos. E eu adorava isso, eu me orgulhava disso.

Ryo mal conseguia respirar. Ele não conseguia visualizar aquela história. Não de sua Miya que sequer andava até a escola, tendo sempre que ser levada no colo pelo outro.

— Então, um dia, um dos meninos veio me chamar. Ela havia desmaiado. Eu não lembro direito como aconteceu, tudo que eu me recordo é de ter corrido até a estrada, do corpo miúdo deitado na terra, e de eu tê-la pegado nos braços e corrido até o ambulatório. A enfermeira fez alguns procedimentos, mas o caso estava acima do conhecimento dela, então o prefeito arrumou um carro e a levaram para Kyoto...

— Quando você foi a Kyoto daquela vez...?

— Sim, fui ver um médico. Na verdade, o médico que trata Miya.

— O que ela tem?

No fundo, Satoshi não queria descobrir. Porque não estava preparado para aquilo. Estava preparado para superproteção, para antipatia da pequena, ou qualquer justificativa. Mas nunca estaria preparado para sua filhinha doente.

— Sopro no coração...

Ok. Ryo tentou se acalmar, porque não era uma doença muito grave. Na verdade, havia, certa vez, ouvido alguém dizer que a maioria das crianças sofria disso. Que bastava tomar uma medicação e a doença desapareceria quando crescia. Ou não?

— E cardiopatia congênita...

O que diabos era aquilo?

— É grave? — era a única questão que o pressionava no momento.

— Ela usa medicação — evitou responder.

Ryo tentou respirar profundamente. De nada adiantaria ele entrar em pânico.

— Eu perdi o meu emprego — Shiromiya soluçou. — Os remédios são caros... Meu Deus, de onde eu vou tirar dinheiro...?

Repentinamente, entendeu porque Shiromiya trabalhava sem descanso. Por que era importante o labor nas terras do vizinho. Interrompeu-o com um abraço forte.

— Shiro, você não precisa se preocupar, está bem?

— Mas...

— Olhe, eu tenho economias, você sabe... E eu posso bancar essa medicação.

— Até quando?

Ryo queria dizer um “ até quando precisar ”, mas não se atreveu.

— Não sei quanto custam os remédios, mas posso comprá-los por, pelo menos, um ano. O dinheiro do carro que eu vendi está guardado... Enquanto isso, vamos nos organizando, está bem?

Enquanto isso... organizar? O que ele precisava era definitivamente descobrir um jeito de falar a verdade!

Shiromiya percebeu naquele instante que Ryo ficaria ali. Era estranho, porque desde que voltaram a se relacionar, ele sempre esperava o momento que Satoshi lhe comunicaria que iria embora.

— Obrigado — apesar do orgulho, não recusou.

E então afastou-se novamente, daquela vez, indo em direção à cidade.


***


— Então, Emi-sensei disse que ela seguiu o coelho de colete para dentro de um buraco — Miya contou ao pai que sentou-se diante dela à mesa. Os dedos ágeis pintavam com maestria uma menina loira e um animal de orelhas grandes. — Quem seria idiota de seguir um coelho de colete? E segurando um relógio! Eu iria é pensar: “ O que um coelho faz com um colete? E pra que um coelho precisa ver as horas? ”. Enfim, ela caiu no poço e não morreu.

Largou o giz de cera amarelo e pegou um verde.

— Está prestando atenção no que eu estou contando? — questionou, ao perceber que Ryo estava com os olhos repletos de lágrimas.

Ryo assentiu.

— Estou.

A menina suspirou.

— Não estou dizendo que não gostei da Alice ou do País das Maravilhas, mas bem que podiam escrever algo mais compreensível.

— Essa é a mágica da literatura.

— Não vi mágica nenhuma.

Largou o giz e o encarou, conflituosa.

— O senhor está bem, papai?

Ryo sorriu diante da pergunta preocupada.

— Miya, por que não me contou sobre sua doença?

Ela enrubesceu. Baixou a face, incomodada, e depois indagou:

— Vai me tratar diferente agora?

— Diferente?

— É a única pessoa que não me trata estranhamente...

— Como assim, Miya?

Pareceu querer contar algo, mas logo se calou.

— Fale para mim, amor — pediu. — Eu só quero ajudar você.

— Quando eu fiquei doente, todos os meus amigos vinham me ver. Depois, o tempo foi passando e eles enjoaram de brincar aqui em casa... Eles queriam correr, essas coisas — murmurou. — Aos poucos, foram sumindo... Quando me dei por conta, eu só tinha o senhor Bigode.

Aquilo cortou o coração de Ryo.

— E na escola?

— Acho que as outras crianças pensam que é contagioso.

— A sua professora não lhes explicou que não é?

— A professora não gosta de mim.

Ryo sorriu.

— Com certeza ela gosta, Miya. Os professores, às vezes, são duros para o nosso próprio bem.

A mágoa no olhar infantil foi nítida.

— Ninguém acredita em mim. Papa disse a mesma coisa.

Ryo a puxou contra ele, prensando-a nos braços.

— Vou falar com a sua professora amanhã, está bem?

Sem respostas.

— Ei, me ouviu?

— Não me importa — retrucou, zangada.

Achou a reação fofa e encheu a bochecha de beijos que ela fazia questão de limpar tão logo eram dados.

— Você me perdoa? — ele indagou, esfregando o nariz na bochecha dela. — Devia ter crescido em um castelo, como a princesa que é. Devia ter ido para as melhores escolas e ter tido os melhores médicos. Eu falhei com você, meu amor... Mas, eu vou consertar isso, eu prometo.

— Não quero nada disso — ela retrucou. — Só quero que acredite em mim.

Encarou-a.

— Eu acredito, Miya — foi sincero. — E eu vou te ajudar. Confia em mim?

Levou alguns segundos, mas a resposta o encheu de felicidade.

— Sim, papai.

Ryo sabia que não a decepcionaria.

 

Capítulo 24

Daniel ouviu a porta batendo no exato momento em que saía do banheiro. De toalha na cintura e cabelos molhados, ele pôs a mão na maçaneta e respirou fundo. Apesar da personalidade arredia e grosseira que Saito estava demonstrando ultimamente, ele ainda era aquela pessoa que amava acima de tudo, até de si mesmo. Assim, não sentia nenhuma disposição de revidar o tratamento cruel.

— Bom dia — cumprimentou.

Jiro não havia aparecido durante a noite. Provavelmente, dormira na casa de Mamoru.

— Aiko está bem? — indagou, puxando assunto.

O ex-sargento estava de costas. Parecia entretido em olhar alguma coisa na mala. Puxou de lá um blusão, e então, afastou-se.

— Jiro, você...

A porta bateu. Pasmo, ele tentou buscar na mente qualquer coisa que pudesse ter feito para ofender o amigo.

Nada vinha.


***


Mamoru Aiko permaneceu parado no banco traseiro do carro de aluguel. À sua frente, o motorista pareceu impaciente.

— Vou pagar pelo seu tempo — ele disse.

Instantaneamente, o homem sorriu. Mamoru escondeu um olhar crítico, afinal de contas, não estava ali para entrar em discussão com um motorista, e sim para seguir Saito. Pelo que Daniel comentou, Jiro chegava e saía sem deixar muita margem de tempo.

Naquela manhã, ao deixar a casa de Aiko, Jiro seguiu reto para o hotel. Mamoru o acompanhou a distância, imaginando para onde o namorado iria depois. Ele não estava trabalhando. Havia conseguido uma folga para seguir com Daniel da unidade de Kyoto. Portanto, não tinha realmente para onde ir, além dos lugares comuns. Algo dizia ao ex-cortesão que havia mais do que ele supunha nessa história.

Jiro entrou no prédio e saiu em menos de dez minutos, conforme a informação de Daniel. Do lado de fora, ele observou o relógio, aparentemente nervoso. Olhou para os dois lados da rua, e estendeu a mão para um carro de aluguel que passava no momento. Aiko sentiu todo o ventre estremecer, nervoso.

— Siga o carro, por favor — disse ao motorista.

Circularam por Tóquio, fazendo algumas voltas na região central, até que entraram em uma região residencial de alto padrão. Arqueando as sobrancelhas, Aiko tentou imaginar o que faziam ali.

Seguindo a uma distância segura, ele percebeu o carro parar diante de uma mansão. Solicitou ao motorista que parasse também. Viu Jiro saindo do carro e caminhando até as escadarias. Entrou sem bater.

— Obrigado por seus serviços — avisou ao seu motorista, estendendo o valor que o homem solicitou.

Estava distante quase uma quadra, contudo, aproximou-se cuidadosamente.

O palacete de dois andares era branco e cercado por um jardim imenso. Não tinha cercas, ao estilo das casas americanas que ele viu em alguns filmes, desde que a guerra terminou. Toda a lateral era ornamentada por vasos de plantas floridas, expostas em janelas largas e abertas, trazendo o odor agradável das flores para dentro do lar.

Pensou em bater na porta e indagar a quem pertencia aquele lugar. Porém, instigado por um instinto primitivo de espionagem, que sequer suspeitava ter, viu-se esgueirando por entre as roseiras espinhosas, machucando os braços, enquanto olhava para dentro das janelas.

Na terceira delas, estancou. Ao longe, pela porta aberta, viu Saito conversando com alguém no corredor. Parecia tenso, incomodado. Mordeu os lábios, segurando uma ansiedade poderosa de chamá-lo. Contudo, em seguida, os pensamentos piedosos deram lugar ao espanto terrível e gigantesco de ver outro homem aproximando-se rapidamente e agarrando Jiro pela cintura.

Enquanto Aiko segurava as lágrimas, viu que ambos se beijaram ardentemente. Levou alguns segundos para dar-se conta de que aquele homem que tocava o seu namorado, de uma forma que Jiro jamais o permitia fazer, era Oguri-san.


***


— O rapaz que mora com seu pai — a professora aproximou-se dela, na hora do lanche, — tem namorada? Noiva?

Miya ergueu os olhos. Emi-sensei não costumava falar muito com ela. Não ultimamente, pelo menos. Quando chegou à pequena cidade de Kibou, Miya foi logo matriculada na escola que abria as portas pela primeira vez, desde o final da guerra. De início, a professora se mostrou atenciosa e gentil. Buscava sempre se mostrar disponível, e até ia a sua casa, levando pedaços de bolo para ela e seu pai Shiromiya. Dizia à menina constantemente que ela precisava de uma mãe, que precisava de alguém que penteasse melhor seus cabelos, passasse suas roupas, e todas essas coisas. Miya, contudo, sempre estava satisfeita com o cuidado de seu papa e nunca respondia positivamente às investidas da professora.

Certa vez, Emi convidou seu papa Kazue para lanchar. Ela se recordava do pai não querer, mas acabar aceitando porque não tivera muita escolha, diante de tantos convites... Simplesmente, lhe faltavam argumentos para recusar sem entregar a sua condição. Mas o encontro nunca acontecera porque Miya havia tido a primeira crise naquela semana, e a doença afastou o pai de qualquer passeio.

Foi ali o ponto de mudança da professora, que, aos poucos, começou a usar um tom mais felino e arrogante com a menina.

Ir à escola, dia após dia, era uma tortura que ela aguentava com a força de um guerreiro. Respirava fundo antes de entrar na sala e prestava atenção demasiada em cada explicação para não ter que perguntar nada posteriormente. Nos recreios, sentava-se sozinha em um banco afastado e comia o onigiri com recheio de ameixa que o papa costumava pôr em sua merendeira.

— Eu perguntei se ele tem namorada — a voz autoritária da mulher novamente a tocou.

Percebeu o movimento ao lado, mas não olhou naquela direção. As pessoas costumavam notar que ela via algo que mais ninguém enxergava e isso muito a incomodava. Então, mesmo que a silhueta grande fosse nítida aos seus olhos, ela não mais girava o rosto naquela direção.

“ Não responda, é uma armadilha ”, a voz do príncipe chegou a ela.

Mordeu os lábios, indecisa a quem obedecer. Por fim, o suspiro resignado da japonesa alta decidiu por ela.

— É uma pena, Miya — a professora falou. — Podia ser uma criança adorável, cheia de amigos e alegrias. Contudo, prefere ser essa esquisita sem talentos, um estorvo em sala de aula que me faz ter nojo de lecionar.

A menina baixou a cabeça, os lábios apertados. Não respondeu, sequer demonstrou ter ouvido qualquer coisa. Simplesmente, aguardou que a professora se afastasse e ela o fez, alguns segundos depois.

“ Vadia! ” ouviu, pela primeira vez, claramente, o palavrão.

Cobriu a boca, segurando um riso.

— Não pode falar assim — murmurou. — É muito feio.

“ É o que essa cadela é ”.

Miya deu os ombros.

— Papa Shiro, uma vez, me disse que a senhorita Emi era bastante triste porque quando estava na idade de se casar, os meninos estavam sendo convocados para a guerra, e ela acabou ficando solteira.

“ E desde quando ser solteira é motivo para ser uma... ”

Ele não completou a frase. Pareceu notar que ela tinha apenas nove anos e não devia falar tais coisas em sua presença.

“ O que ela disse... ”.

— Eu sei — interrompeu. — Não tem importância.

O sino que chamava para a aula tocou. Miya engoliu o resto do onigiri e afastou-se. Ao volver para trás, a fim de acenar para o seu príncipe, ele já havia desaparecido. Sorriu. Emi-sensei estava errada, ela tinha um amigo.


***


Ryo Satoshi sorriu ao sentir o abraço nas pernas. Fez um cafuné nos cabelos bem arrumados em um coque bonito. Dividir a tarefa com Shiro de levar e buscar Miya da escola era algo que estava lhe dando muito prazer. Perdeu anos valiosos da vida dela, portanto queria aproveitar cada instante mágico, antes que ela crescesse e se tornasse aquela adolescente arredia de que ele se lembrava bem de suas visões.

— Teve uma boa aula?

— Sim, papai.

Ser chamado de pai de forma tão natural o fez sorrir ainda mais.

— Eu quero conversar com a sua professora — disse a ela. — Pode nos dar licença um momento?

O horror estampado nos olhos o incomodou. Mesmo assim, ela assentiu e se afastou. Ficou observando-a de longe, até vê-la sentar em um banco alto.

Só então entrou na sala de aula. Emi-san estava à mesa, corrigindo trabalhos escolares. As demais crianças já haviam ido embora, e ela não pareceu notar sua presença. Assim sendo, Ryo bateu de leve na porta, e a aguardou erguer a face.

O sorriso satisfeito dela o fez arquear as sobrancelhas. Parecia feliz por vê-lo. Feliz demais, e aquilo o incomodou. Mesmo assim, espantou os pensamentos ridículos e se aproximou da mesa.

— Poderíamos conversar por alguns minutos, sensei? — indagou, gentil.

Prontamente, ela apontou uma cadeira diante de sua mesa.

— Imaginei que veria me ver — comentou, o sorriso cada vez mais largo.

— É mesmo?

— Sim — afirmou. — É natural.

Ryo tentou entender a implicação das palavras, mas logo as desconsiderou.

— Bem, gostaria de falar sobre Miya...

O sorriso morreu no mesmo instante. Contudo, ela logo disfarçou com uma tossida leve, como se estivesse resfriada.

— É claro — encarou-o. — Miya é uma criança única — assentiu. — Mas acredito que deveria ser o pai dela a vir falar comigo.

Como aquilo doeu! Mais que dor, era um sangramento interno que parecia tirar dele todas as forças.

— Eu moro com Shiro... Miya é como se fosse minha filha — justificou, lembrando-se das palavras de Shiromiya. Jamais ninguém devia saber da real situação. — O fato é que eu fiquei sabendo recentemente da doença dela.

A mulher permaneceu em silêncio.

— E eu soube também que as demais crianças se afastaram. Parecem temer um contágio. Contudo, a doença não é contagiosa. Então, gostaria de pedir sua ajuda...

— As crianças não se afastaram de Miya por causa da doença, e sim pela personalidade geniosa.

Seria verdade? Lembrou-se imediatamente de Sakamoto naquela idade, expulsando as crianças ao redor de si, chamando-as de burras. Apenas Ryo foi excluído daquele tratamento.

— Ela é doce... — insistiu.

— Hoje lhe fiz uma pergunta. — contou. — Algo referente à aula. — mentiu. — Ela sabia a resposta, eu tenho certeza. Contudo, apenas por birra, por afronta, se recusou a responder — suspirou. — Tenho certeza de que deseja o melhor para Miya, que busca ajudá-la, mas sinceramente, essa incumbência não é sua. Quem tem que dar-lhe educação é o pai dela, que se recusa a fazer isso.

— Como assim, “ se recusa a fazer isso ”?

— Tem noção de quantas vezes eu já conversei com Shiromiya-san referente a um castigo? E quantas vezes ele recusou?

— Castigo? Está falando em bater nela?

A mulher mexeu as mãos. Parecia cansada.

— Precisa se casar, Ryo-san, e ter seus próprios filhos. Sei que seria um pai maravilhoso. Não carece ficar sofrendo por uma criança sem solução, que não tem nada a ver com você.

Ela levantou-se e circulou pela mesa, parando atrás dele.

— Um homem na sua idade já devia ter uma família para ocupar o pensamento.

Satoshi levantou-se imediatamente. Mordeu os lábios, segurando uma resposta hostil.

— Até mais — disse, por fim, e saiu.

Do lado de fora, aproximou-se rapidamente de Miya. Shiro havia lhe explicado que ela devia evitar se cansar, então ele ergueu-a no colo. Sentiu as pernas circularem sua cintura e a segurou firme, encarando aqueles bonitos olhos escuros.

Não disse nada, e ela também não falou. Estava em franca dificuldade de saber em quem acreditar. Todas as palavras de Emi se encaixariam com perfeição em Shin, e Miya tinha uma tendência estranha de seguir seu amigo. Porém, era sua bebê, sua menininha de olhar puro que o chamava de papai e que o tocava com as mãos tão pequeninas que ele podia facilmente cobrir com as suas... Mais que isso, era fruto de seu amor por Shiro, a união de suas almas...

— Você acreditou nela, não é? — a pergunta interrompeu seu pensamento.

Já estavam a meio caminho de casa, e ela não havia feito, até então, qualquer menção para conversar.

— O que quer dizer?

— Sensei sempre tenta jogar papa contra mim, mas é infeliz na sua vontade. Papa sempre fica do meu lado e não acredita nas mentiras que conta.

— Não pode acusar uma professora de mentir, Miya. Isso é feio.

Ela se contorceu forte em seu colo, até conseguir escapulir para o chão.

— Ei — segurou seu bracinho, quando percebeu que ela iria correr. O coração aos saltos, não podia deixar que ela se estafasse. — Não disse que estou contra você.

— Emi-sensei quer se casar com você e ter filhos. E ela vai conseguir, não é? Você já abandonou papa uma vez porque queria filhos, e agora vai fazer de novo.

— Não abandonei seu papa porque queria filhos — ficou furioso. — Abandonei porque queria você! — percebeu que ela se acalmou diante de suas palavras. — E que história é essa de casamento? Não vou me casar com a sua professora, Miya!

— Ela me perguntou se você tinha namorada ou noiva.

Ryo ficou perplexo.

— Foi essa pergunta que você se recusou a responder?

— O príncipe me disse que era uma armadilha.

Quem quer que fosse o tal príncipe encantado que ela enxergava, ele havia acertado na questão.

Ergueu-a novamente para o colo.

— Está tudo bem, amor — sussurrou contra seus cabelos. — Papai nunca vai ficar contra você.

Ela deitou a cabeça em seu ombro. Enquanto caminhava, Satoshi sentia cada vez mais o peso de sua mentira. Miya carecia de melhores médicos, de um tratamento especializado e precisava de uma nova escola, com uma professora capaz de entender sua individualidade.

O cerco estava se fechando. Ele necessitava de uma solução. E logo.


***


Daniel observou pela janela do segundo andar da casa de Aiko. Ao lado dele, o novo amigo bebia chá, enquanto acariciava o gato no colo.

Havia sido chamado por Mamoru para ir ao seu encontro. Imaginou que o outro o convidaria para jantar, ou algo do tipo. Nunca imaginou que o teor da conversa fosse Jiro e Oguri, e um apaixonado encontro que Aiko jurava ter presenciado.

— Eu não consigo acreditar — o americano voltou-se para o nipônico, abandonando a janela e sentando-se à mesa. — Não consigo.

— Confia tanto em Oguri assim?

— Mal o conheço — admitiu. — Mas conheço Jiro.

— Conheço Jiro muito mais que você — Mamoru devolveu.

— Ele o ama... — insistiu. — Ele o amou por anos...

— Não tenho a menor dúvida disso — o outro devolveu. — Não estou colocando em discussão os sentimentos de Jiro-san. Eu tenho absoluta certeza que Jiro me ama. Assim como ele ama você, e ama... — mordeu a língua. — Não importa se é amor romântico ou não, Jiro não trai. Ele é grotescamente leal a quem se devota.

— Bom — Daniel coçou a cabeça. — Ele teve...

— Casos? Sim, eu sei. Mas você também sabia. Jiro não age pelas costas, ele escancara. E é por isso que eu tenho certeza que existe algo além do que vi — garantiu. — Jiro se encontrou com Oguri escondido. E ele está diferente, como se desejasse meu ódio — levantou-se, colocando o gato de lado. — Contudo, o que eu poderia fazer para descobrir? Pela casa de Oguri, ele tem posses, dinheiro sobrando. Eu não poderia bancar um investigador, ou coisa do tipo.

Daniel assentiu. O que diria ele, então? Um estrangeiro invasor! Quem lhe daria qualquer auxílio para tentar descobrir o que estava acontecendo entre Jiro e Oguri?

O sino da livraria bateu. Já era tarde e a loja estava fechada. O rapaz estranhou, preocupado que fosse Saito. Contudo, pelo semblante de Mamoru, claramente, o convidado havia sido chamado para lá.

Seguiu Aiko até o térreo. O outro foi direto à porta e a abriu.

Estremeceu, quando reparou no rosto do visitante.

Shin Sakamoto entrou pisando firme. As mãos encolhidas no bolso, mas a postura altiva, habitual naquele homem. A roupa preta parecia deixá-lo mais pálido, mas o sorriso arrogante ainda estava lá, quebrando qualquer piedade que pudesse existir no americano.

E havia mais...

Ele estava voltando para a vida de Aiko.

Daniel percebeu, naquele instante, que o outro nunca mais sairia dela.

 

Capítulo 25


— É sério , Mamoru? — Daniel rangeu os dentes. — Esse estuprador?

O outro não respondeu. Simplesmente deu passagem e Shin adentrou na livraria. Caminhando reto até o gato que estava sentado diante da escada, ele pegou-o no colo.

— Olá, meu bebezinho — o homem grande murmurou, esfregando o nariz nos pelos ásperos. — Sentiu saudades do papai?

Daniel virou os olhos, contendo a gana de chutar aquele traseiro porta afora. Provavelmente o faria, se tivesse aquele direito.

— Shin pode nos ajudar — Aiko se defendeu.

— Ele? — Daniel insistiu, apontando o dedo na direção do outro.

O ato pareceu incomodar Shin que, pela primeira vez, se dirigiu ao americano.

— Abaixe esse dedo se não quer que eu o quebre.

— Pois tente — provocou.

Percebendo o clima pesado em tão pouco tempo, Aiko colocou-se entre os dois homens.

— Por favor, mantenham o foco. Daniel, Shin está aqui para nos ajudar em relação a Jiro — em seguida, voltou-se ao ex-amante. — Nunca mais ameace ninguém dentro da minha casa — avisou.

Shin deu um muxoxo, mas não demonstrou oposição. Simplesmente, largou o gato no chão e caminhou até a bancada. Daniel suspirou fundo e o seguiu. Sentaram-se diante de Aiko, que os serviu com café quente, preparado anteriormente.

— Então, Oguri apareceu — Shin murmurou, enquanto colocava açúcar na xícara, demonstrando que Aiko já havia antecipado o assunto brevemente.

— Você o conhece? — Daniel estranhou, observando-o enquanto adoçava a bebida.

Uma colher. Duas... três... quatro... O que diabos... Cinco?! Fez uma careta de nojo ao perceber o outro colocar aquele melado na boca.

— Ao contrário da sua relação com Jiro, a minha é baseada na mútua confiança. Sem segredos, sem surpresas.

O americano sentiu os dedos tremerem e mal conseguiu segurar a ânsia de voar em direção àquele cara arrogante e enchê-lo de socos.

Contudo, Sakamoto não havia dito nenhuma mentira. Mesmo amando Jiro há algum tempo, o outro não havia aberto muito sobre si para o estrangeiro. Mesmo aqueles dois homens a sua frente, peças mais que importantes de seu passado, ele só soube da existência dias antes de irem para Tóquio.

— Oguri foi o primeiro amor de Jiro. Era um capitão do exército que acampou próximo de sua casa. Seduziu-o e depois o convenceu a se...

Sentiu o olhar de Aiko fuzilando-o, e calou-se.

— Convenceu-o a quê?

A dúvida do americano não podia ser respondida. Não por eles. O sargento que serviu na mais cruel unidade da segunda guerra havia morrido. O Jiro que ele conhecia era apenas um amante, sujeito a um membro da família Imperial.

— O que importa — Shin concluiu — é que Oguri se casou e o abandonou. Pouco tempo depois, eu o encontrei e Jiro passou a me servir.

O silêncio que se seguiu foi quebrado pelas palavras incrédulas.

— Oguri é casado?

Daniel sentiu-se completamente sujo diante da menção.

— Pelo que investiguei rapidamente, viúvo. A mulher morreu na guerra. Aparentemente, ele também teve um filho. A criança também morreu durante os bombardeios.

Aiko mordeu o lábio inferior.

— O que mais descobriu?

— Nada — foi sincero. — Contudo, apenas comecei. Os motivos pelos quais Jiro e Oguri estão se encontrando ainda me são desconhecidos.

— Não é óbvio? — Daniel levantou-se da cadeira. — Eles estão tendo uma reconciliação! — afastou-se até a porta. — Jiro não precisava me maltratar para isso. Podia simplesmente me avisar que estava com o meu namorado. Estou acostumado mesmo a ser desprezado por ele.

Quando a porta bateu, Shin e Aiko se encararam.

— Que garoto sentimental — o maior ridicularizou.

— Até parece que você também não é do tipo que vive pelas suas emoções.

Shin riu e sorveu mais um gole do café.

— Acredito que esse cara esteja chantageando Jiro — avisou.

— Pensei a mesma coisa.

— Mas com o quê?

— Os documentos da guerra...? — Aiko tentou.

— Todos destruídos — disse, porém, não estava tão certo. Poderia haver mais? Como pudera ser tão descuidado? — Caso as coisas se compliquem, terei que matar esse tal Oguri.

Aiko quase riu. Shin realmente não conseguia policiar as palavras que saíam do cérebro e chegavam à boca. Era tão devastadoramente sincero que mexia com os nervos, deixando-os à flor da pele.

— Não vai matar ninguém, entendeu? — irritou-se. — Por que tudo, para você, se resume a assassinato?

— Porque a morte resolve — disse o óbvio. — Se Oguri estiver chantageando Jiro, e eu matá-lo, duvido que volte dos mortos para prosseguir com a chantagem.

— Não somos irracionais! — Aiko quase gritou. — Matar não resolve os problemas. Apenas os agrava.

— Que eu saiba resolveu o seu — devolveu, impiedoso. — Ou por acaso Hiroshi ou outro homem tentou estuprá-lo depois de eu ter cortado a cabeça daquele desgraçado?

Aquele fato incomodava mais do que imaginava ser possível. Entretanto, não queria se lembrar do passado, de sua ingenuidade e tolice. Machucava demasiadamente todos os erros cometidos.

— Obrigado, Aiko... Por me deixar participar disso.

O agradecimento baixo trouxe-o novamente à conversa. Encarou Shin e o percebeu completamente exausto, como se toneladas esmagassem seus ombros. Apiedou-se, mesmo que todos os seus instintos o dissessem para que não o fizesse.

— Como você está? — indagou, culpado.

Por que perguntava tal coisa? Não lhe interessava.

— Sozinho... — o outro murmurou. — Como nunca estive antes.

— A culpa é sua.

— Eu sei, Mamoru... eu sei.

Terminou o café, mas não fez menção de se levantar.

— Não estou normal — confessou.

Aiko quase riu. Quando, em nome de Deus, ele esteve?

— Por que diz isso?

— Pego no sono durante o dia, sentado ao meu escritório, ou trabalhando na administração dos hotéis... E então tenho sonhos...

— Que tipo de sonhos?

— Não consigo me lembrar... Apenas... Mexem comigo.

— De uma forma boa ou má?

— Não sei — admitiu.

Encararam-se. Aiko sentiu todo o corpo se enrijecer, aquele calor, que há muito não sentia, tocá-lo, como um inimigo avançando suas defesas frágeis, deixando-o à mercê de tudo que se poderia desejar dele.

— Eu te amo...

Mamoru ouviu as palavras num sopro, como uma brisa suave a balançar suas madeixas. Sentiu as lágrimas formando-se em seus olhos, imaginando como gostaria de tê-las ouvido no dia que Shin descobriu que tinha sangue chinês, ou nos dias posteriores, quando encontraram-se nos becos do antigo bairro do prazer.

Mas naquele momento? Tantos anos depois... O que sobrou entre eles?

Sabia que havia muito sentimento ainda. Era impossível negar, pois o coração doía toda vez que o olhava. Mas depois de tudo... como poderia perdoá-lo? Como poderia se perdoar?

E Jiro...? Jiro não merecia ser traído por algo que Mamoru se envergonhava por sentir.

— Acabou, Shin... Acabou há muitos anos.

— Mas você me chamou novamente. E eu estou aqui.

— Eu o chamei por Jiro.

— Não, você me chamou por você mesmo. Mas não vai admitir isso. Sabe que precisa de mim, que se sente seguro quando eu assumo o controle. Mas aceitar isso te machuca. Tudo bem, eu entendo. Já estou feliz apenas por estar aqui, por poder ajudar...

Aiko desviou o olhar.

— Jiro...

— Eu sei. Ele deve me odiar ainda...

— Jiro não o odeia.

— É difícil acreditar, mas é uma esperança. Farei o que for necessário para protegê-lo e para que ele saiba o quanto eu o amo.

— Isso significa o quê?

— Exatamente o que parece.

Aiko negou.

— Não o chamei para que faça alguma loucura. Jiro precisa do amigo dele, não de alguém sem limites, pronto a cometer algo que vá machucá-lo ainda mais.

A frase teve um efeito poderoso no outro. Sakamoto aquiesceu e se levantou.

— Eu farei o possível para evitar problemas, prometo.

Quando ele saiu porta afora, Aiko Mamoru segurou-se na bancada, para evitar que as pernas falhassem e ele caísse no chão.

Era real... tudo que Shin dissera era real. Ao ver Jiro e Oguri, ele foi afrontado com sua pior fraqueza: a insegurança. Precisou desesperadamente de Shin e, por isso, lhe mandou uma carta durante a tarde.

Assim, diante da veracidade de todas as suas emoções aflorando, o que ele faria?

Fugir parecia a única saída.


***


Ryo observou a cena com o coração ardido, lágrimas formando-se em seu íntimo, uma dor descomunal a tocá-lo.

Shiro separava uma carreira de pílulas de cores variadas. Nas mãos, um copo de água antecedia um processo diário. A menina à frente apenas abria a boca, enquanto o pai ia colocando, de um em um, através de intervalos para os goles de água, o remédio que ela tomava todos os dias.

Era a primeira vez que assistia o ritual. Deu-se conta de que Shiromiya o fazia escondido dele, provavelmente quando estivesse no banho.

Quando acabou, seguiu Shiro até a cozinha. Confrontou-o, mesmo entendendo que não tinha esse direito.

— Por que fazia escondido de mim?

O olhar que recebeu o enervou.

— Miya não gosta que as pessoas vejam...

Ryo negou com a face.

— Não foi apenas por isso, foi?

— Eu só queria nos proteger — o outro admitiu, não muito contrariado.

— Proteger de mim?

— Não tem idéia da ameaça que representa, Ryo-san.

As palavras ecoaram pela sua mente, incapazes de abandoná-lo.


***


O antigo capitão Oguri sobreviveu seus últimos dias de batalha em Iwo Jima. Conforme os americanos iam avançando pelas trincheiras, ouviu a ordem de um superior para que todos se suicidassem.

Obediente, como a maioria dos soldados da época, ele as transmitiu para seus subordinados. Contudo, após assistir cada um deles atirando contra si mesmos, pousou o revólver na fronte e meditou, por alguns segundos, na burrice que era acabar com a própria vida quanto ainda era jovem e quando tinha deixado de aproveitar muitos momentos por culpa do Império.

Passou cerca de uma semana escondido dos próprios companheiros de batalha. Foi dado como morto. Honrado pelos que ficaram. Porém, assim que possível, entregou-se aos americanos que o levaram até uma prisão na América, onde devia permanecer preso por muito tempo, a fim de ser punido por todo mal feito.

Mas a sorte costuma sorrir àqueles que a merecem. Na prisão, demonstrou bastante habilidade com a língua estrangeira, e se aproximou de um guarda que o manteve como amante por cerca de um ano.

Em 1946, foi a júri. Fez o melhor ar de arrependimento, falou sobre coação, tocou o coração dos ouvintes sobre a dor da esposa e do filho mortos e, por fim, foi absolvido sem grandes problemas.

Despediu-se da América com um emprego muito interessante. Delatar os antigos companheiros, não fazia nenhum mal ao seu coração. Ao contrário, ria da confiança que os outros empregavam em si.

E foi durante aqueles dias que recordou-se de um corpo maravilhoso e de uma alma tão pura que o levou à loucura durante uma viagem para o interior. Procurou por Saito Jiro durante meses, mas não havia dados ou registros que o levassem até o outro. Talvez tivesse morrido durante a guerra, ou talvez fugido do país com documentos falsos. Seja lá o que acontecera, muito pouco se sabia sobre Jiro ou a unidade ao qual servira. Era como se a 731 fosse apenas um pesadelo imaginado, nada real.

Os americanos se chocaram com Auschwitz. Qual seria a reação ao descobrir o que se passava na cidade de Harbin? O prestígio e a fama de herói o levaria às alturas. Então, não pensou muito e pôs-se à missão de encontrar a peça chave para descobrir tudo que necessitava.

Contudo, a vida lhe pregou outra peça. Durante uma visita a Okinawa, pasmo, percebeu Jiro a andar com um garoto americano nas ruas. Ele vestia o uniforme americano, e não levou muito tempo para que Oguri descobrisse seu emprego de tradutor. Mais que isso, descobriu que Jiro havia se aprofundado na arte do amor e estava ainda mais belo e maravilhoso do que antes.

Passou a segui-lo, como se obcecado por ter de novo os anos que outrora viveu. Sentiu falta da juventude, das tardes apaixonadas no celeiro. E ali estava Saito novamente, preparado a desempenhar tudo que a vida lhe roubou.

Daniel, Miya, Shiro... Nomes que foram surgindo conforme os dias foram passando. Informações muito importantes. Jiro, pelos boatos, jamais esteve no fronte, era apenas o servo de um membro da família real. Shiro era o pai de Miya, mas ninguém sabia nada sobre a mãe que, convenientemente, morreu durante as explosões atômicas.

Era um emaranhado de mentiras, que ele só viu crescer quando Jiro foi para Tóquio. Primeiro atrás de um importante e querido membro da família real. Riscou o nome de Shin Sakamoto de seus papéis porque de nada lhe valia mexer naquele vespeiro. Contudo, a melhor das surpresas era um comerciante, dono de uma livraria, que tinha sangue chinês nas veias, que enganou a todo o país quando administrou uma casa de prostituição, fingindo-se de puro, de um japonês legítimo, rindo pelas costas dos ignorantes, sobrevivendo tranquilamente em Tóquio enquanto homens de família morriam nas trincheiras.

Diante de tantas informações, aproximou-se do rapaz americano, largado de lado, assim que o chinês apareceu. Foi tão fácil que era até engraçado. Como sofrer por amor abria portas a corações desconcertados... De Daniel a Jiro foram poucos dias, tempo que planejava recompensar, assim que o tivesse totalmente em suas mãos.

E ali estava ele agora, parado diante da porta de sua enorme casa, meditando em como o destino era afortunado para aqueles que corriam atrás de seus objetivos. Em breve, Jiro seria seu. Teria mais que o corpo, teria as informações que precisava para pôr a júri todos os criminosos da unidade 731.

Entrou na residência, sentindo imediatamente que havia algo errado. Era instintivo. A guerra havia sido muito mais do que um momento histórico. Ela trouxe aos seus sobreviventes uma dimensão do perigo que nada mais podia se comparar. Era como se todo barulho captado pudesse soar como uma sirene, avisando, ou não, de um risco iminente.

Estava desarmado. Ou, ao menos, não com uma arma de fogo. Pegou então um pequeno canivete que trazia no bolso e começou a caminhar vagarosamente em direção ao escritório. Contudo, pelo som de um assovio agudo, percebeu que o invasor não fazia a menor questão de se esconder.

Entrou no ambiente. Estancou diante de um revólver apontado em sua direção.

Sentado confortavelmente em sua cadeira de couro, com os pés apoiados em cima da mesa revirada e com vários papéis atirados por todos os lados, Sakamoto Shin sorriu, parecendo feliz por vê-lo.

— Você demorou — o tom dele era grave, uma voz muito sensual. — Quase perdi a paciência por ter que aguardá-lo.

Oguri não se moveu.

— Ah, é claro. Não nos apresentamos ainda, mas você deve saber quem sou.

— O filho mais velho dos Sakamoto.

— Exato! — um riso debochado o tomou. — E você é o antigo capitão da guarda de Kantogun.

— Sabe mais que isso.

— Claro que sei — Shin tirou as pernas da mesa e se levantou. A arma prosseguia erguida, ameaçadora. — Foi a pessoa que destruiu o coração de Jiro — aproximou-se. — E eu, a pessoa que restaurou.

— Pelo que sei, você também não foi o melhor dos amantes.

Passos rápidos ecoaram. Em segundos, a arma grudou em sua garganta. Sentiu o hálito de canela contra a face, e a voz tornou-se raivosa.

— Seu filho da puta — o outro cuspiu contra ele. — Está entregando seus antigos aliados. Que escória é você?

Pelo estado dos papéis, Shin descobrira sua profissão.

— Sou apenas um justiceiro.

— Não me interessa o que você é! Caso se atreva a...

A figura de Jiro surgiu no corredor. Seu olhar atônito para Sakamoto, fê-lo perceber que o amigo havia ouvido seu discurso. Porém, ao invés de parabenizá-lo pelo cavalheirismo em defender sua honra, Jiro avançou contra ele, afastando-o do outro. Pondo-se entre eles, gritou com Shin.

— O que está fazendo aqui?

Entretanto, não o deixou responder. Puxando-o pelo braço, retirou-o da presença de Oguri. Shin ainda pôde visualizar o sorriso satisfeito do maldito antes da porta se fechar às suas costas.

— Ele não pode ameaçá-lo — Shin destacou, antes mesmo de Saito abrir a boca. — Eu vi os papéis, mas eles não têm nenhum poder contra você.

Jiro não denotava nada em seu semblante. Incentivado por isso, Sakamoto continuou:

— Acha mesmo que os americanos desconhecem a 731? Eles sabem de tudo, mas as informações foram abafadas. Todos os médicos receberam perdão e Shirô Ishii está na América ajudando nas pesquisas para a guerra da Coréia.

A informação caiu como uma bomba diante de Jiro. Então, todas as atrocidades... Não haveria penalidade? O maldito Ishii seria tratado como um simples cientista? Um médico? Tudo que ele fez, todas as mortes que causou... tudo... impune?

Quase perdeu as forças, mas Shin o segurou.

— Venha comigo, esqueça o que esse idiota disse. Se ele insistir, os próprios americanos vão matá-lo. Você compreende, Jiro? Os americanos ficaram loucos quando souberam das pesquisas. Precisavam daquelas descobertas... Então, aceitaram esconder o que aconteceu... A Unidade 731 é um segredo que ficará desconhecido ao mundo para sempre — respirou fundo. — E mesmo que não o fosse, você era só um soldado. Quem realmente tem as mãos manchadas são aqueles monstros...

— Ninguém vingará a morte daquelas pessoas?

Contudo, por mais terrível que soasse, aquilo significava que ninguém viria atrás dele. Por alguns segundos, sentiu o gosto da liberdade. Mas, em seguida, as lembranças das ameaças seguintes o tomaram.

— Não posso... Aiko e Shiro... Se eu for...

— Aiko e Shiro?

— Ele sabe que Aiko é chinês. Ele tem contato com milicianos. Aiko-san poderá morrer — afastou as mãos de Shin, que seguravam seus braços. — Shiro mentiu ao governo sobre Miya. Ela não é filha biológica, ele a adotou em meio ao caos.

— E você acha mesmo que esse tal Oguri poderá provar isso?

— Não posso arriscar. Não com a vida de Aiko. Não com a pessoa mais importante da vida de Shiromiya. Eu preferiria morrer — afastou-se, indo em direção à porta. — Obrigado Shin, mas nunca mais venha.

O outro negou.

— Não vou desistir de você.

— Devia, porque eu já desisti de você.

 

 


Capítulo 26

Jiro Saito não apareceu em sua casa pelos dois dias seguidos do encontro com Sakamoto. Shin havia vindo, sentara-se brevemente em um dos bancos e contara, animado, que enfiou um revólver na garganta de Oguri, e que ameaçara sua vida. De nada valia tal informação, mas ele parecia uma criança armando e sendo, novamente, feliz.

Aiko sentiu-se apreensivo ao saber que Jiro flagrara o ato. Porém, não o procurou no hotel em que o namorado dividia quarto com Daniel, esperando que aquele tempo separados, esfriassem os ânimos.

Irritado, pensou que Shin podia ter sido mais discreto, mas, em seguida, a raiva voltou-se contra si mesmo, porque conhecia o ex-amante bem demais e sabia que discrição não seria jamais uma das suas características.

— Oguri delata antigos soldados — Shin comentara, enquanto mordiscava um pedaço de bolo.

— Então, é por isso que Jiro está aceitando sua presença?

— Não. Ele usou outras ameaças, seu sangue chinês e a adoção irregular da filha de Shiromiya.

A explicação causou um efeito poderoso em Aiko, que reprimiu o choro na frente de Shin, mas o soltou durante os dias que se seguiram. Então, seria sempre daquele jeito? Saito sempre se sacrificando em nome de alguém que sequer o amava de todo coração?

Mamoru não merecia o ex-sargento e a constatação lhe tirou as forças. Mesmo assim, não estava disposto a deixá-lo partir. Não aguentaria uma vida sozinho, não depois de experimentar novamente o calor de outra pessoa. A solidão daquelas paredes eram desesperadoras demais.

No final do terceiro dia, Jiro surgiu diante de sua porta. Já havia anoitecido, e uma chuva mansa caía contra a janela. Ele ouviu a batida na porta, o barulho do sino ecoar, e desceu as escadas correndo, quase atropelando Minikui que dormia no caminho.

— Jiro... — murmurou, trazendo-o contra os braços, apertando-o fortemente contra si. — Jiro... — repetiu, num sussurro.

Queria dizer tantas coisas, falar tudo que sentia, abrir o coração. Explicar que estava disposto, novamente, a lutar por ambos. Dizer que o amor incondicional de Saito o despertara. Contudo, as palavras não saíram, e tudo que fez foi recuar, quando sentiu as mãos fortes do antigo combatente afastando-o com delicadeza.

— Você me traiu.

As palavras, frias e duras, doeram profundamente. A boca abriu, ansiosa, tentando justificativas que, aos próprios ouvidos, eram falhas.

— Eu precisei. Você estava estranho, e eu não sabia o que fazer.

— Então você me seguiu?

— Como sabe? Shin te contou?

— Oguri te viu na janela da casa dele. Ficou na espera da sua reação, mas até mesmo ele não acreditou que você fosse correr para Sakamoto, depois de tudo que aconteceu entre nós três.

Mamoru tentou se aproximar novamente. Jiro caminhou para o outro lado, aproximando-se das mesas onde os clientes, durante o dia, bebiam café.

— Fiquei desesperado. Não sabia o que fazer.

— Qualquer ato seu, qualquer... — Jiro começou, sentindo as lágrimas inundando as vistas — seria compreensivo. Eu poderia entender você brigar, você surgir na casa de Oguri, ou você até mesmo terminar nossa relação. Mas chamar Shin... Sua atitude só demonstrou o que era óbvio o tempo todo, mas eu fingia não ver.

— Não diz isso, por favor...

— Aiko, você ama Sakamoto. Você o ama — elevou o tom, ao percebê-lo tapar os ouvidos com as mãos. — Você nunca o esqueceu! E por mais que lute, nunca vai esquecê-lo — aproximou-se, puxando os braços do outro, obrigando-o a ouvi-lo. — Por mais doentio que seja o relacionamento que eu estou disposto a ter com você, eu não posso mais aguentar isso, Aiko. Sim, eu planejei que você me odiasse, enquanto eu pensava no que faria a Oguri. Passei, inclusive, a pensar em soluções. Talvez, até mesmo fugir com você para algum lugar afastado, um outro país. Existem várias colônias nossas no Brasil, por exemplo. Porém, como eu poderia sonhar com um futuro ao lado de alguém que está tão preso ao passado quanto você?

O outro tentou abraçá-lo, mas Jiro não demonstrou reação diante do seu carinho.

— Eu fujo — disse, comovido. — Eu vou com você para qualquer lugar do mundo, Jiro-san...

— E você acredita mesmo que eu esteja disposto a dividir uma vida com alguém que ama outra pessoa?

Desviou-se dos braços de Mamoru, segurando as lágrimas que brotavam com força nos olhos.

— Por favor — implorou. — Não desista de nós.

— Por quê? — Saito voltou-se para ele. — Porque se eu desistir, você não terá domínio próprio e cairá nos braços de Shin?

— Eu... — tudo pareceu ficar em branco na mente do ex-cortesão. As lágrimas brotaram, a garganta ardeu, e ele chorou alto enquanto se ajoelhava diante de Jiro, agarrando suas pernas. — Eu não tenho culpa... — murmurou. — Eu não quero isso...

As lágrimas, até então contidas de Jiro, por fim despencaram. Ele mordeu os lábios, buscando autocontrole. Quando, enfim, as batidas do coração normalizaram, acariciou o topo da cabeça de Mamoru.

— Eu sei, meu amor — murmurou.

O tom, pela primeira vez naquele noite, gentil, fez com que Mamoru firmasse os braços. A força que ele empregava para não deixar Jiro se mover era tamanha que por alguns segundos, Saito imaginou se iria conseguir sair dali.

Por fim, respirou fundo e tentou se mover.

— Não, Jiro — Aiko gritou.

— Acabou, Mamoru.

— Não, por favor — pediu em meio às lágrimas. — Por favor, eu imploro, eu faço o que você quiser... Não me deixe... Não me abandone...

Mas não houve misericórdia. Jiro tinha que se amar antes de amá-lo e, por isso, apenas por isso, ele desvencilhou-se das mãos que o prendiam, deixando para trás a pessoa que mais havia amado em toda a sua vida, jogada no chão, soluçando alto, gritando seu nome...


***


Ryo Satoshi encarou a menina com apreensão.

— Não sou a melhor pessoa para pedir qualquer coisa a Shiro, Miya!

O olhar acanhado de quem parecia prestes a chorar, fê-lo pestanejar.

— Por que você não pede? — insistiu. — Tem mais chances de conseguir o que quer!

— Eu pedi uma vez, mas papa disse que não podíamos, porque ele não poderia cuidar de um filhote...

— Então... — tentou argumentar. — Por que você não espera mais um pouco? Quem sabe, em breve, tenha alguma surpresa e então poderá ter seus cachorros.

A surpresa, planejava ele, era levá-los para a casa grande de Sapporo, onde a propriedade enorme poderia abrigar todos os animais que a filha desejasse. Sorrindo, prometeu a si mesmo dar tudo que ela pedisse, cobri-la de todos os mimos ansiados. Se Miya queria cães, tê-los-ia às pencas, de todas as raças e tamanhos. Se desejasse gatos, ele faria da sua casa um ninho de felinos. Teria cavalos, macacos, enfim... bastaria ela demonstrar interesse, e ele daria um jeito de adquirir.

— Meus cachorrinhos estão na floresta há muito tempo, papai. Eu levei panos e fiz abrigos com os galhos, mas... é muito triste.

Quando o queixo dela tremeu e ela fez cara de choro, Ryo, enfim, concordou. De fato, ela tinha razão. Não apenas pelos animais, mas principalmente porque sua filhinha doente andava até a mata todos os dias para levar-lhes comida. E se algo lhe acontecesse no trajeto? Nunca se perdoaria.

— Tudo bem, meu amor — concordou por fim.

Incrivelmente, as lágrimas dela desapareceram no mesmo instante.

— Você vai pedir?

— Eu vou. Mas não sabemos se seu papa vai aceitar.

Durante o jantar, Miya e Ryo trocaram olhares significativos, despercebidos por Shiro, que estava entretido demais em falar sobre a plantação dos chás que ele pretendia começar em março. Porém, tão logo os três terminaram de comer, e Kazue recolheu os pratos, Miya piscou para Ryo e foi em direção ao seu quarto.

Então Satoshi respirou fundo, levantando-se, e caminhou em direção ao seu amado que lavava as louças.

Abraçou-o por trás, beijando suavemente sua nuca. Sentiu uma leve cotovelada na barriga, como se Shiro quisesse lembrar-lhe que ainda não era hora de romantismo. Sorriu e descansou os lábios naquele vão precioso entre o pescoço e as costas, fazendo com que o outro arqueasse a cabeça por puro instinto. Logo, Shiro resmungou e se afastou das suas mãos.

— Você anda impossível — ouviu a reclamação, que era baixa e nem tão reticente assim.

— Só estou apaixonado.

Sentiu o estremecimento do outro e sorriu, tentando se aproximar novamente. Contudo, Shiro fugiu, indo com um pano úmido até a mesa, a fim de limpá-la.

— Sabe, amor... — Ryo começou, buscando diferentes formas que pedir aquilo que a filha tanto queria.

Kazue voltou-se para ele, inquisitivo.

— Sim?

— Essa casa não é um lar.

A sobrancelha negra do menor ergueu-se.

— O quê?

— Você que me disse isso.

— Nunca disse tal coisa — afirmou, repentinamente zangado.

— Em Sapporo, anos atrás — explicou. — Uma casa nunca é um lar sem um animal correndo entre as pernas de seu dono— citou. — Onde estão os cachorros e os gatos daqui, Shiro?

A gargalhada o animou.

— Tem razão — assentiu. — Mas temos galinhas.

— Galinhas são comida.

— Morre quem colocar as mãos nas minhas galinhas para comê-las — Shiro ergueu o pano contra Ryo, rindo.

Subitamente, o embate tornou-se uma brincadeira, e ambos começaram a rir. Porém, Ryo tinha um objetivo e prosseguiu.

— Falo sério, Shiro. Miya precisa de um animal para lhe fazer companhia.

— Eu sei disso, mas não...

— Shiro, eu entendo que você não podia ter assumido mais essa responsabilidade antes, mas agora eu estou aqui, e eu vou cuidar de tudo. Eu prometo.

O pensamento incômodo que sempre o tomava, quando Ryo fazia promessas o tocou novamente.

“Vai cuidar de tudo... até ir embora... até perceber que aquela relação era condenável... até sentir necessidades de ter uma família que o orgulhasse, filhos com seu próprio sangue...”

— Pare, Shiro! — o tom alto o acordou. — Por que sempre parece duvidar de mim? Eu estou dizendo que vou cuidar de tudo, pode ter um pouco de confiança?

Havia irritado-o? Entretanto, Ryo não tinha o direito de se sentir assim. Shiro só estava tentando se proteger. Ainda assim, ele desanuviou.

— Tudo bem — disse, por fim. — Onde irá arrumar um filhote?

Um? Era meia dúzia. Filhote? Eram velhos e feios. Mas Ryo simplesmente deu os ombros.

— Isso é comigo — sorriu.

Aproximou-se novamente e puxou o outro contra si.

— Obrigado.

O beijo intenso esquentou todo o corpo de Shiromiya, que não teve forças para fugir. Até porque era tão fácil quando era com Ryo. Simplesmente, sentia todo o coração aquecer diante da sensação de amparo que ele transmitia, da língua passeando, saboreando sua boca, da saliência gentil contra o ventre.

— Terei meus cachorros?

A voz da sua pequena o atingiu e ele empurrou Satoshi com força, enrubescido, morrendo de vergonha. Sequer a encarou, voltando-se novamente para a pia e simplesmente aquiesceu.

— Sim, meu amor... Terá seus cachorros — ouviu do outro.

O plural não o incomodou. Sequer o percebeu. Ouviu Miya saltitando e atirando-se contra Ryo.

Os dois realmente pareciam pai e filha.


***


A caixa de filhotes foi largada no seu portão no início da noite. Uma das empregadas encontrou, seguindo o barulho dos choramingo caninos. Eram vira-latas de cores variadas: marrons, pretos, brancos e beges. Todos com mais ou menos trinta dias de vida, abandonados na chuva, como coisas sem valor.

Shin Sakamoto agachou-se diante da caixa e pegou-os no colo, um por um. Uma das toalhas secava os pelos molhados, mas ele sabia que aqueles bebês precisavam de mais do que o calor que ele tinha a oferecer.

— Aqueça o leite e encontre lençóis para que eles fiquem esquentados — ordenou à mulher. — E arrume alho para eu tentar eliminar os vermes...

Suas ações eram todas derivadas da experiência em salvar cães abandonados nos últimos anos. Limpou os filhotes, deu-lhes comida e colocou-os para dormirem em uma despensa aquecida, onde se guardavam enlatados.

— Vai ficar com eles, meu senhor? — a empregada indagou, quando ele terminou a tarefa.

— Com certeza — Shin assentiu.

Até porque, se não o fizesse, ninguém mais o faria. Era engraçado como animais abandonados pareciam invisíveis à maioria da população.

Quando a empregada sumiu, ele foi até o próprio quarto. Tomou um relaxante banho no seu banheiro anexo e, depois, preparou-se para dormir. Contudo, mal puxou as cobertas, quando uma batida em tom urgente fê-lo voltar-se para a porta.

— Sim? — a mesma empregada surgiu diante dos seus olhos. — Aconteceu algo aos cachorros?

— Não, senhor — ela negou. — Aquele seu amigo de cabelos compridos — ela parecia não recordar o nome — está lá embaixo.

Aiko? Shin cruzou por ela quase correndo. Mamoru não viria em sua casa sem propósito. Algo acontecera. Com o coração aos saltos, ele aproximou-se da sala.

— Shin! — Antes mesmo de conseguir reagir, Mamoru atirou-se em seus braços. Estava ensopado, choroso, desesperado.

— O que aconteceu?

— Me leva até o seu quarto?

Sequer meditou nas implicações do pedido. Era Aiko, aquele que se recusava a falar com ele nos últimos cinco anos, e que agora parecia precisar de ajuda.

Com a mão em seu braço, ele o guiou até os aposentos principais da casa. Fechou a porta atrás deles, soltando-o e correndo até o armário para pegar uma toalha.

— Aconteceu algo com Jiro? — foi sua primeira dúvida, enquanto se agachava, à procura dos panos.

Quando voltou-se para o ex-amante, viu-o abrindo a camisa. Pasmo, sequer conseguiu se mexer, enquanto cada peça da roupa bonita era arrancada do corpo e atirada no chão.

Mais de meia década depois de eles terem feito amor pela última vez, Mamoru Aiko estava nu diante dele. A pele úmida, arrepiada pelo frio, o rosto nublado pelas lágrimas, o nariz vermelho, e um tremor característico de alguém que não tinha consciência do que fazia.

— Vem cá — Shin o puxou para os seus braços, envolvendo-o com uma toalha.

— Me ame, Shin — o pedido parecia vir da juventude, dos tempos que ficaram para trás.

— Eu te amo, Mamoru — confessou, beijando o topo de sua cabeça. — Eu te amo mais que tudo nesse mundo — a afirmação era real. — E é por isso que eu não posso aceitar...

— Mas...

— Eu sei, eu sei — sorriu, repentinamente, sentindo as lágrimas tomá-lo. Já fazia um bom tempo que não chorava... Não um choro tão significativo quanto aquele.

Apertou-o tão forte quanto pôde. Queria lhe dizer inúmeras coisas, falar que ainda não podiam, mas que, enfim, a barreira fora quebrada e, aos poucos, a vida deles voltaria ao normal. Chamá-lo-ia para morar consigo, para dividirem as alegrias e tristezas... Pediria perdão pelo mal feito, e então, recomeçariam...

Mas ainda não. Não quando a perturbação sentimental de Aiko era tamanha.

Aos poucos, o corpo do outro pareceu acalmar. Então, o levou até a cama, e o deitou entre as cobertas convidativas.

Quando fechou os olhos, ao lado do corpo do homem que sempre amou, sorriu. A vida parecia estar entrando nos eixos.


***


O dedo polegar de Ryo deslizou pelo antebraço de Shiromiya. O outro sorriu, tímido, olhando para a xícara de chá de camomila com canela, aproveitando aquela pequena cena em família, com um prazer indescritível.

Miya balançava numa dança imaginária com a boneca princesa. Contava sobre cães que ela teria, e como eles seriam felizes lá. Afinal de contas, ela os amava muito, muito e muito. Shiro ouvia a tagarelice com um sorriso calmo, enquanto as mãos insistiam em tocar as de Ryo, que se sentava a sua frente, também a bebericar chá.

— Estou apaixonado por você — o tom do outro, baixinho, para que a criança não ouvisse, chegou até ele e o enrijeceu. — Eu te amo...

— O que está acontecendo com você? — reclamou, mas o sorriso que parecia recusar-se a sair de sua face o desmentia.

— Foi a primeira vez, pelo que me lembro, que você acatou um pedido direto meu.

Só se fosse a primeira vez naquele dia, porque Shiro se recordava de que, durante as semanas que se seguiam, ele dava a Ryo tudo o que ele desejava.

— Tolo — resmungou.

— Não está na hora de Miya ir dormir?

A mudança de assunto era condizente com o olhar apaixonado. Ryo o estava devorando em plena cozinha e Shiro mal conseguia respirar diante daquele olhar. Pensou no horário, devia ser aproximadamente nove horas da noite, então, sim, Miya já devia ter ido deitar-se.

Sorriu, repentinamente interessado em provocar.

— Acho que ainda é cedo.

— Acho que já passamos da hora, Shiro — devolveu.

Subitamente, Shiro percebeu que havia silêncio, além da voz de Ryo. Girou o rosto, observando a menina.

Miya estava parada na cozinha, de costas para eles, observando a parede.

Ryo percebeu o olhar fixo do amante, e também girou o rosto. Num estalo, percebeu o que acontecera. Ela estava em transe novamente.


***


Como se já tivesse acostumada à visão, ela observou a aproximação do carro com uma tranquilidade não condizente das outras vezes. Os transeuntes cruzavam por ela, um mais apressado que o outro, rostos ansiosos, parecendo ir em direção a ocupações importantes. Daquela vez, contudo, havia uma aura de familiaridade nas expressões. Desceu dois degraus da escadaria, ansiosa por dizer algo a qualquer um que parasse e a encarasse. Queria interagir para compreender o significado daquilo que via.

Mas ninguém a via. Era uma figura invisível para aqueles rostos, assim como aqueles rostos eram invisíveis às pessoas reais a sua volta.

O homem bonito da pasta preta surgiu. Ele girou o corpo para trás, como se percebesse a presença de mais alguém, então, começou a subir a escada em sua direção.

Até aquele momento, os sons que a circundavam eram vozes e motores dos carros, costumeiros a uma cidade grande. Entretanto, dois estalos altos invadiram o ambiente, fazendo com que, subitamente, tudo se envolvesse entre o silêncio e a perplexidade. O corpo pequeno deu um salto, assustando-se com o eco.

Ela olhou além do homem bonito a sua frente. Do outro lado da rua, percebeu um rosto conhecido, de lábios entreabertos. Sentiu as lágrimas invadindo seus olhos pela presença confortadora, quando o homem bonito deu um passo à frente, chamando sua atenção.

Pela primeira vez, visão e vidente interagiram. O homem bonito parecia poder vê-la e ela representava algo que acalmava seu coração. Porém, quando a mancha de sangue surgiu, diante de seus olhos, percebeu que ele simplesmente estava morrendo.

Havia sido dois tiros. O primeiro, Miya não sabia onde o havia atingido, mas o segundo era nítido pelo pequeno buraco na testa.

Aquele tempo que pareceu levar uma eternidade foi quebrado pela força da gravidade. O homem bonito caiu em cima dela, afogando-a, impedindo-a de respirar pelo seu peso. Começou a gritar, pedindo ajuda, quando o sangue inundou seu corpo, tornando a visão daquele dia ensolarado em uma mancha vermelha, podre, agoniante.

“ Miya! ”, ouviu o chamado, mas estava presa. “ Miya! Miya! ”, o seu nome repetido, aos gritos, não conseguia trazê-la de volta a sua vida simples em Kibou.

O corpo não a soltava. O homem bonito não queria morrer sozinho, então ele tentou levá-la com ele.

— Miya!

Piscou. Subitamente, a mancha marrom tornou-se cinza-claro do teto de madeira de seu lar. Estava nos braços do papa Shiro, que a encarava com olhos lacrimejantes. Seu olhar, então, percebeu o outro pai, acariciando sua testa, tentando acalmar seu angustiado coração.

Fez uma careta, antecedendo o choro que veio em seguida. Chorou alto, enquanto era erguida do chão e embalada pelo papa como se ainda tivesse três anos.

Enquanto ele a sacudia em um balanço forte, roçava seus lábios na bochecha dela, e lhe dizia que tudo ficaria bem.

Mas nunca mais nada seria como antes.


***


Ryo apareceu no quarto com uma xícara de chá de camomila nas mãos. Encarou Shiro, que ainda mantinha a criança no colo, apesar do tempo que transcorrera desde que a visão terminara.

Era quase meia noite. Contudo, ao contrário da menina que apagou depois de algum tempo de colo, Kazue tinha os olhos arregalados, atônitos, desesperados demais para dormir.

— Shiro, você precisa descansar — aconselhou.

Levou alguns segundos para Shiro encará-lo. Porém, quando o fez, Ryo recuou diante do olhar.

— Vá embora.

A ordem o machucou, mas ele não se moveu.

— Shiro...

— Por que você passou isso para ela?

A acusação era terrível, e Ryo ficaria profundamente magoado se também não se culpasse por tal.

— Shiro, eu preferiria morrer a vê-la nesse estado! — defendeu-se. — Eu passei anos da minha vida com essa maldita clarividência, estraguei nossa relação por causa dessa maldição! Como você pode considerar que possa passá-la adiante? E, mesmo que pudesse, acredita que eu fosse escolher a única criança pela qual eu morreria como alvo?

Enfim, as lágrimas de Shiro despencaram. Ryo aproximou-se e o abraçou.

— Me perdoa — pediu o mais jovem, com a voz falha.

— Está tudo bem, Shiro...

— Me diz que isso vai passar — implorou.

— Não vai passar, mas ela vai aprender a ter mais tranquilidade para encarar as coisas horríveis que verá. Acredite, terá dias que ver alguém morrer sequer vai fazê-la perder o apetite.

Era horrível demais para os ouvidos de Shiromiya.

— E o que eu vou fazer?

Ryo a pegou de seu colo, aliviando os braços que já estavam dormentes.

— Nós — frisou o fato de serem um casal. — Nós vamos superar, Shiro. Nós vamos estar ao lado dela, vamos ajudá-la, até ela conseguir enfrentar isso com confiança.

Shiromiya assentiu. A cada dia que passava, estava mais entregue a segurança que Ryo transmitia.

 

Capítulo 27


Quando abriu os olhos naquela manhã de sol forte, Shin sentiu um estranho choque ao encontrar a cama vazia. Não que fosse surpreendente, ao contrário, era a provável atitude de Aiko, após o ato desesperado da noite anterior. Contudo, saber que ele havia ido embora sem deixar espaço para que ambos conversassem de cabeça fria, machucou seu coração. Pensou seriamente em ir atrás dele, colocá-lo contra a parede e obrigá-lo a aceitá-lo. Porém, havia prometido a si mesmo que não mais forçaria nenhuma situação. Se Aiko retornasse a ele, seria com as próprias pernas.

Levantou-se e foi tomar banho. Ao voltar ao quarto, percebeu uma folha de papel em cima do criado mudo. Pegou-a e leu um recado curto: “Vou viajar. Vou atrás de Shiromiya. Dê-me espaço para pensar no que desejo” .

As mãos tremeram e a garganta travou. Quis rasgar o papel, mandar às favas, correr atrás de Aiko e dizer que nunca mais olharia na sua cara, pois odiava covardes como ele; mas, por fim, apenas escondeu o papel na gaveta e terminou de se arrumar.

Incrivelmente, o que mais lhe angustiava não era o abandono ou a covardia. No fundo, bem sabia que merecia aquilo. O problema era Jiro. Como poderia ajudá-lo se sequer podia se aproximar do outro?Aiko estava agindo como um interlocutor. E agora? Como poderia resolver os graves problemas sem seu auxílio?

Sentiu-se tonto e sentou-se na cama. A mente, sempre que extremamente perturbada, buscava sono. Ultimamente, ele andava tento mais cochilos que o natural, mas firmou-se no fato de que não era nenhuma criança e que precisava manter os olhos abertos para buscar soluções pragmáticas.

Levantou-se. Terminou de se arrumar e saiu do quarto em passos firmes.


***


Miya abriu os olhos, sentindo a ardência que sucedia o choro. Havia pegado no sono durante as lágrimas, e elas permaneceram em seu coração mesmo quando o torpor dos sonhos a tomou.

Dormiu aninhada entre os pais. Sentia-se segura ali, mas também sabia que nada podia evitar as visões. Provavelmente, nunca mais teria as agradáveis. Tudo que veria, dali em diante, seria a dor agoniante que parecia transcender todo o Japão.

— Oi, meu amor — a voz do papai Ryo a fez encará-lo.

Estavam sozinhos no futon. O papa Shiro havia levantado pouco antes para preparar seu café da manhã. Podia sentir o odor delicioso do pão recém-assado e do doce de abóbora que estava sendo cozido.

— Quero ir buscar meus cachorros — avisou, sem devolver o cumprimento.

— Nós iremos — Ryo confirmou. — Apenas, quer me contar o que viu?

A criança moveu a cabeça, negando.

— Envolve seu papa ou eu?

Mais uma vez, a negativa.

— Então, por que não me conta, meu amor? — inquiriu, preocupado. — Sabe que o papai já passou por isso, não é? Eu posso te ajudar.

Ela pareceu buscar as palavras. Então, sentou. Ryo sentou-se também e ficou encarando-a, aguardando.

— Quero ver meus cachorros — disse, por fim, encerrando o assunto.

Porém, daquela vez, ele não se deixaria manipular tão fácil.

— Miya!

— Prometeu que iríamos buscar meus cachorros — insistiu.

— Iremos depois de você me contar o que viu — foi claro. Contudo, condoeu-se pelos olhos lacrimejantes. — Miya, eu cometi muitos erros por conta dessas visões. Não quero que você passe pela mesma situação.

A menina pareceu meditar diante de suas palavras. Porém, permaneceu firme e determinada.

— Perdão, papai. Mas eu prometi que não falaria nada e não vou.

— Prometeu? Para quem?

— Também não posso falar.

— Não irá ver seus cães se não me disser, Miya!

Levantou-se e viu a criança fazendo a cara de choro, mas daquela vez não fraquejou.

Shiromiya apareceu na porta do quarto, assim que ouviu as vozes e ficou a observar o embate. Percebeu a filha a encará-lo, como se pedisse socorro, mas não intercedeu. Repentinamente, soube que estava dividindo com Ryo a responsabilidade de educá-la, e não se culpou por isso.

— Se não deixar meus cães virem morar comigo — o tom feminino emergiu, alto e ameaçador, — irei morar com eles na floresta.

Diante do nariz erguido e da postura bem calculada, ele sentiu-se vacilar. O que faria? Encarou Shiro, que parecia igualmente em conflito. Ambos não tinham experiência familiar. Shiromiya cresceu sozinho, e Ryo não poderia firmar-se na experiência com o próprio pai. Com certeza, o genitor lhe daria cintadas no traseiro pela audácia, mas ele não conseguia sequer pensar em levantar a mão para sua filhinha.

— Miya... — disse, por fim — É claro que você terá seus cães — concordou. — Apenas...

— Seus cães? — dessa vez a intromissão veio do homem ao seu lado. — Como assim, “cães”? Eu pensei que vocês iriam buscar apenas um filhote...

Ryo gemeu, arregalando os olhos e encarando a filha. O olhar maquiavélico o confrontou. Ela não o ajudaria, ao contrário, usaria o fato para livrar-se do embate recém-travado. Ryo não conseguia manipular aquele gênio mau, e Shiro era, naquele instante, uma preocupação mais urgente.

— Não sei como te explicar isso sem que você queira arrancar a minha cabeça — admitiu, encarando o amante.

A frase teve o efeito desejado. O olhar de Shiro se tornou risonho, mas, em contrapartida, ele cruzou os braços sobre o peito.

Miya levantou-se e calçou os chinelos. Depois, caminhou em direção à porta, cruzando por Ryo, mal conseguindo conter o riso que insistia em escapar dos lábios.

— Vou tomar meu café, papai — ela disse, abraçando suas pernas. — Boa sorte.

Ele iria precisar.


***


— Ela ia sozinha?

O rugido quase o fez correr para debaixo das cobertas. Ryo mordeu o lábio inferior, nervoso.

— Se serve de desculpa, ela já fazia isso antes de eu vir morar com vocês.

Shiromiya pareceu meditar diante da frase.

— Por que não me contou quando descobriu?

— Não queria decepcioná-la.

— Ela é uma criança, Ryo! — ralhou, alto, erguendo o dedo para ele. — Decepcioná-la faz parte da missão dos pais. Ou você acha que eu passo meus dias fazendo todas as suas vontades? E se algo tivesse acontecido com ela? Como você... Por que está sorrindo?

— Acabou de aceitar que eu também sou o pai dela — murmurou, aproximando-se perigosamente do outro, puxando-o contra si e beijando-o nos lábios.

Shiro aceitou o beijo, mas, em seguida, afastou-se.

— Estou falando sério — insistiu.

— Ótimo — riu. — Porque você sabe a verdade, não é? Já consegue aceitá-la?

Encararam-se. Aquele brilho no olhar o fez fraquejar. Dizer o tão sonhado sim para Ryo era arriscar tudo que havia construído. Permitir-se-ia aquilo?

— Agora que já fizeram as pazes — Miya surgiu à porta. A boca estava suja de pão, — posso ir buscar meus cães?


***


— Eu não preciso de muita coisa para ser feliz — ela anunciou com a típica postura madura e dona de si, incomum até mesmo em adultos.

Ryo sorriu, observando a menina saltitante a sua frente. Caminhavam praticamente em fila indiana pela estrada empoeirada. Quis levá-la no colo, mas Miya recusou. Então, tudo que fez foi vigiar cada passo dela com seu olhar coruja e preocupado.

Como podia ser tão perfeita? Bom, não era perfeição a palavra certa, mas... Como era única! Nunca havia conhecido outra criança tão cheia de opinião. Sorriu, orgulhoso, ao mesmo tempo em que dizia a si mesmo que precisava atentar seus atos perante a criança, pois não queria que ela se tornasse uma mesquinha, egoísta e irracional como Shin Sakamoto.

— É mesmo? — indagou, mal contendo a animação na voz. — Do que precisa?

— Papa, meus cães... — ela parecia contar. – Ah, e...

— E? — insistiu, ansioso por vê-la citando-o.

— E gatos — completou. — Quero gatos — afirmou. — Quando poderei ter gatos?

A decepção era visível.

— Miya, e eu? — apontou para si mesmo.

A menina volveu o corpo e o encarou, sorrindo.

— O que tem você, papai?

Ryo então notou que ela estava provocando-o. Parecia voltar a Miya anterior à visão, com seu senso de humor excêntrico. Sorriu, fazendo o jogo, afinal de contas, se provocar entretinha a filha num esquema longe das visões perturbadoras, ele lhe faria a vontade.

— Você não precisa do papai pra ser feliz? — fez cara de choro, fingindo tristeza.

Ouviu a gargalhada felina, e depois estendeu os braços, para receber o abraço de conforto.

— Obrigada por ter aparecido, papai — ela sussurrou, fazendo com que ele lacrimejasse. — Eu sempre o esperei...

Era como ir do inferno ao céu em apenas um segundo. Queria ficar ali, apertando aquele corpo pequenino contra si durante todo o dia, mas Miya se desvencilhou e correu em direção à floresta fechada, onde os cães haviam sido atados por eles alguns dias antes para que não incomodassem os vizinhos.

Mais alguns passos, Miya sumiu entre as árvores. Repentinamente, o silêncio. Estranhou imediatamente, pois sempre que a filha surgia diante dos animais, era um festival de latidos dignos de um circo.

Logo, uma sensação poderosa de formigamento o tomou. Acelerou o passo, mas, em seguida, viu-se correndo por entre as árvores.

Alcançou-a no exato momento que seus olhos perceberam a cena monstruosa a sua frente.

Miya, em pé, parecia olhar para o nada. No meio de um círculo de cães mortos, cabeças abertas e tripas, sangue e cérebros espalhados pela terra que há poucos anos fora palco de muita morte, a criança enfim deixou escapar lágrimas que deslizaram pela face embranquecida.

Ryo mal conseguia respirar, enquanto a viu perdendo a cor. Com cautela, aproximou-se, e ouviu o sussurro baixo, quase indecifrável.

— Por que mataram meus cachorrinhos?

Ele não pôde responder. Logo o corpo pálido perdeu as forças e caiu com força. Teve tempo de segurá-la, para perceber, instantes depois, que Miya havia perdido a consciência.

— Não, não... Não! – gritou, desesperado. — Não, Kami-sama, não! — implorou, enquanto a sacudia de leve.

E então tudo pesou em si. Suas mentiras, sua arrogância, seus erros.


***


Shiromiya estava arando a terra, quando um dos vizinhos apareceu e lhe avisou que o amigo com quem dividia a casa havia surgido na cidade com o corpo de Miya nos braços. Ela estava desacordada e havia sido levada imediatamente para a enfermaria da cidade.

Largou o arado prontamente e correu como um louco em direção à cidade. Mal sentia as pernas, a garganta doeu e uma agonia sem fim o tomou. Desde que passara a usar a medicação, Miya não tivera mais desmaios. O que havia acontecido?

Chegou ao local e foi em direção ao quarto apontado pela enfermeira. Assim que parou à porta, os olhos cravaram na criança miúda que dormia profundamente na cama. Os olhos umedeceram ao notar que o braço dela estava avermelhado onde o soro fora introduzido, e que a menina parecia mais pálida e doente como nunca, até então.

Foi à cama e segurou seus dedos gelados. Curvou-se e beijou-lhe a testa, sentindo-se incapaz diante do tamanho daquela doença.

Por que havia acontecido novamente? Miya estava tão bem durante a manhã. Havia comido todo o café da manhã que ele lhe arrumara com todo amor. Agora, estava ali, completamente frágil perante a grandiosidade de sua moléstia.

Percebeu um movimento perto da janela e só então se deu conta de que Ryo também estava no quarto. Pálido, os olhos mortificados, ele observava a cena sem emitir nenhum som. Intuindo imediatamente que o outro se culpava pelo que havia acontecido, aproximou-se, cautelosamente, e lhe acariciou os braços.

— Ryo-san, o que aconteceu? — perguntou, com calma.

— Mataram os cães... — sussurrou, explicando. — Miya viu... ela desmaiou... — Parecia que falar, doía. — Então, eu não sabia o que fazer e corri com ela para cá, porque você tinha dito que havia feito a mesma coisa...

—Sim, fez bem — tranquilizou-o. — Ela toma o soro com medicação e costuma melhorar.

Só então o olhar de Ryo pareceu encontrar o seu.

— Shiro, é grave?

— Sim, é — confessou, pela primeira vez.

— Existe risco...?

— Sim — respondeu rápido, antevendo a questão completa.

— E não há cura?

Os olhos negros do outro pareceram envergonhados.

— Existe chance de cura com um tratamento especializado. Mas eu não tenho condições de pagá-lo.

Ryo notou o quanto Shiromiya sentia-se humilhado por tal coisa. Ele sempre se esforçava para ser o melhor pai que Miya podia ter, mas não conseguia dar à filha uma vida saudável.

Abraçou-o com força, dizendo-lhe baixinho que tudo ficaria bem.

— Eu preciso respirar um pouco — avisou, depois de alguns segundos. — Vou caminhar, está bem? — disse, sorrindo.

Shiro assentiu.

— Já volto — Ryo foi até a cama e beijou a testa da filha.

Depois afastou-se, ansioso por conselhos.


***


O telefone tocou várias vezes até uma voz pastosa atender.

— Estava dormindo? — Satoshi indagou, olhando para o céu. — É quase meio-dia — lembrou. — Não tem vergonha?

Ouviu um pigarrear.

— Ando tão exausto... — Shin sussurrou. — Um sono terrível... Não sei o que está acontecendo.

Ryo suspirou. Não tinha paciência para a preguiça do melhor amigo.

— Shin, Miya está morrendo — informou, de supetão, sentindo um choro sufocado tomá-lo. — Minha filha está morrendo, Shin — repetiu, secando as lágrimas que já despencavam.

— Como assim?

— Ela tem uma doença no coração.

— Doenças cardíacas costumam ter tratamento — Sakamoto apontou. — Mês passado, ouvi no rádio que o hospital de Sapporo está estudando a possibilidade de tirar um coração doente de um animal e trocar por outro, sadio — parecia assombrado. — Tem ideia do quão incrível é isso?

— Sim, Shiro me comentou de um tratamento. Ele custa caro... Eu posso pagar... Mas se eu contar a verdade para Shiromiya, ele me mandará embora... Ele não vai aceitar que eu menti esse tempo todo para me aproximar — confessou. — Eu sei que é vergonhoso, que eu sequer devia pestanejar...

— Pestaneja porque não é a sua filha — foi direto, mortal. — Se fosse, não hesitaria.

— Como pode falar assim? Sabe o quanto sofri esses anos todos por Miya!

— Você sofreu? Imagino o que Shiromiya passou para criar a filha doente, que devia consumir remédios caros, pagar médicos... e ele sequer tem dinheiro para isso. Penso nos sacrifícios que fez, no quanto trabalhou... Ele, sim, é o pai dela. Um pai de verdade não estaria no telefone enchendo meu saco, com medo de falar a verdade. Um pai de verdade já teria ligado para o hospital de Sapporo e agendado uma consulta. Um pai de verdade não seria um pai lixo como você.

Ryo ficou em silêncio, pasmo diante das palavras. Porém não havia irritação, apenas a constatação de que Sakamoto estava completamente certo. E, com a sua costumeira indelicadeza, despejava aquelas verdades diante de si. Não havia outra forma de fazê-lo entender, então Shin não usou de artifícios.

— Obrigado, Shin — murmurou. — Eu vou fazer o que eu preciso para salvar a minha pequeninha.

— Hum — o resmungo fê-lo notar que estava tudo bem entre eles. — Quando voltar para Sapporo com a criança, me avise, pois quero conhecê-la.

Não!

— Por quê? — Ryo demonstrou preocupação.

— Como por quê? É sua filha! Provavelmente terei que conviver com a menina até ficar velho. Ou podemos cortar os laços. Não me importaria de deixar de ser seu amigo.

Ryo sentiu uma gargalhada brotar do seu íntimo, mas não a soltou. Na verdade, não conseguiu. Tudo que conseguia pensar agora era em ter que confessar a Shiro uma vergonha tamanha, e na reação de Kazue ao saber da verdade.

Eles haviam construído uma relação. O amor que haviam estabelecido seria o bastante para obter perdão?

— Eu preciso ir. Obrigado mais uma vez, Shin...

— Sempre à disposição para compartilhar sabedoria — riu.

— Eu te amo.

A resposta não veio.

— Shin? — murmurou.

Silêncio. Não sabia o porquê da ausência de resposta, mas Shin era excêntrico e podia simplesmente estar ignorando-o propositalmente, então desligou.

Do outro lado da linha, o amigo já estava em sono profundo.


***


Ryo voltou ao quarto e encontrou Shiromiya sentado ao lado da cama. O olhar de ambos se encontrou, e Shiro sorriu.

— Ela acordou, tomou os remédios e voltou a dormir. A enfermeira disse que descansar é o melhor agora, assim os batimentos vão diminuir.

Ryo assentiu. Com as mãos no bolso, ele observou a cama e percebeu a menina ressonando, a postura de um anjo, e então respirou fundo.

— Ry-chan — o som fê-lo voltar a encarar Shiro. Notou-o erguendo-se, e caminhando em sua direção. — Obrigado por ter cuidado dela — sorriu. — Obrigado por ter trazido Miya ao posto de saúde, obrigado por estar aqui agora...

Ryo estremeceu.

— Eu te amo — ouviu a confissão tão aguardada e arregalou os olhos. — Eu estava com tanto medo de dizer isso, mas agora parece tão natural... — Shiro admitiu.

Ryo mordeu o lábio inferior. Repentinamente, não conseguia responder a altura àquela declaração. Tudo que Shiro amava, o homem que Shiro desejava, era uma farsa, uma mentira. A pessoa que cuidou de Miya, a pessoa que tentou tão afoitamente a reconciliação com o homem que dizia querer... Aquele Satoshi era uma criação de sua mente enganosa.

O verdadeiro Ryo havia machucado Shiromiya, ferido seus sentimentos, enganando-o, fazendo-o crer que podia ser feliz ao seu lado. O Ryo real o levou para Sapporo apenas para usá-lo como um objeto, enquanto armava um casamento para manter uma imagem conveniente perante a sociedade.

— Desculpe — A voz de Shiro soou, baixa, e então Ryo pareceu sair do torpor. — Eu... — Viu Kazue tentando esconder as lágrimas, ferido mais uma vez. — Eu não devia ter dito isso... Imagino que o que presenciou nessa manhã tenha mudado tudo. — Por que Shiro parecia tão compreensível? — Você não tem nada que o prenda, Ryo-san... Eu vou entender...

Só então deu-se conta de que Shiro havia compreendido mal o seu silêncio. Ao percebê-lo afastando-se, segurou suas mãos, puxando-o para um abraço.

— Shiro, eu te amo também — disse, eliminando suas dúvidas. — Mas eu preciso falar com você...

O outro o encarou.

— O que é?

— Não aqui. — sussurrou. — Precisamos conversar com calma...

— Se está saindo das nossas vidas, não precisa de rodeios.

— Só vou sair de sua vida se você me expulsar, Kazue — afirmou. — Ou, nem mesmo assim. A verdade é que... — emudeceu. Era muito difícil falar. — Somente, eu tenho a solução sobre o tratamento de Miya.

Não recebeu nenhum olhar surpreso. Shiro permanecia sério.

— Ligou para Sakamoto-san, não é? Pediu dinheiro para ele?

Era uma saída fantástica. Era um caminho perfeito. Miya podia se tratar, podia ficar curada, e Shiro não desconfiaria nem por um segundo da real situação. Contudo, como poderia construir uma vida com seu amor mediante tanta mentira?

— Não — mal acreditava no que a boca acabara de fazer. Devia ter pensado melhor. Podia prosseguir sua vida com Shiro e cuidar de Miya sem precisar abdicar de nada. — Não. Não pedi. Mas vamos conversar em casa, com calma, está bem?

— Não! — O outro reagiu. — Está me deixando nervoso. O que é?

— Acredite em mim, Shiro. Apenas isso. Eu te amo e eu vou cuidar de Miya e de você. Mas, realmente, preciso que confie em mim.

O som de um gemido interrompeu o pensamento deles. Voltaram-se para a cama e encararam a filha, que acordava, chorona, pedindo atenção. Shiro foi até o leito e sentou-se, trazendo-a para um abraço.

— Mataram meus cachorrinhos, papa — ela choramingou, escondendo o rosto no vão de seu pescoço. — Por que as pessoas são tão más?

— Existem pessoas boas e más, Miya — Shiro murmurou. — Eu lamento muito pelos seus cães.

A criança observou o outro pai aos pés da cama, esperando que ele dissesse algo, mas Ryo não conseguia abrir a boca. Vê-la desmaiando em seus braços foi agoniante demais e ele ainda estava em choque.

“ A raça humana é um lixo ”.

Repentinamente, o príncipe encantado surgiu aos olhos infantis, ao lado do pai Ryo. Ela não manifestou nenhuma reação, não querendo ser inquirida por ele novamente mediante suas visões.

“ E, por favor, não acredite em conto de fadas. Não existem finais felizes. O fim de todos nós, não importando o quão bom ou maus fomos, é o mesmo: morreremos e seremos enfiados numa cova, onde nossos corpos passarão a ser devorados, dia e noite, por vermes. E, depois, mais nada restará ”.

Ele caminhou para mais perto da cama.

“ Nem mesmo nossa lembrança ”, prosseguiu. “ Porque, aqueles que nos amam e ficam, um dia, também morrerão. E não haverá mais nada, nem mesmo o que amamos, ou o que odiamos. Essa vida é apenas um vento calmo, que vem e vai. Aprenda a aproveitar seus dias, Miya, sem amargurar-se pelos outros. Porque tanto a vida deles, quanto a sua, um dia acaba. Crie princípios e viva por eles. Ignore o resto. Não vale a pena .”

A criança assentiu, discretamente.

Tão logo, a enfermeira entrou no quarto. Shiro se afastou enquanto ela media os batimentos de Miya manualmente. O homem aproximou-se de Ryo e aguardou, ansioso.

— Seria bom ela passar a tarde aqui — a enfermeira sorriu, tranquilizadora. — Apenas por precaução — salientou. — Tem algum problema?

— Não — Shiromiya adiantou-se. — Se é o melhor para ela.

Enquanto a mulher arrumava mais alguns comprimidos, os homens se afastaram, em direção à janela.

— Quando saiu , a senhora Kyousuke veio me trazer alguns pães — Shiro contou, denotando o quão prestativos eram as pessoas daquele vilarejo e o quanto pareciam gostar dele e da filha — e ela me comentou que foram alguns dos meus vizinhos que mataram os cães, porque alguém os viu comendo as galinhas. Então, eles pegaram marretas e foram atrás. Ficaram surpresos ao encontrá-los amarrados, porque seria um serviço mais fácil de realizar.

— Mataram os cachorros a marretadas?

Pelos céus, que ato monstruoso!

— Parece chocado.

— Você não? — Ryo ficou surpreso, já que Shiro sempre demonstrou gostar de animais.

— Quando eu morei na sua casa, me recordo de ver leitões inteiros assados na sua mesa, dos quais você comia apenas um pedaço e jogava fora o resto. Não se importava com o sacrifício daqueles animais para que pudesse desperdiçar. Então, não considerei que pudesse se importar com os cães de Miya.

Ryo ficou pasmo. Nunca pensou antes viu a situação daquela forma.

— Você está certo, meu amor... — murmurou. — Nunca mais agirei assim.

Shiro sorriu. Aquele tratamento, apesar de estranho, parecia música a seus ouvidos.


***


Aiko Mamoru desceu na pequena rodoviária daquela cidadezinha ao final da tarde.

Trazia nos braços uma sacola com poucas mudas de roupa – pretendia ficar dois ou três dias, apenas, com Shiro. Afinal, precisava voltar para casa e trabalhar — e uma cesta grande, onde um velho gato gordo dormia o sono dos justos.

A melhoria das estradas fez com que a viagem durasse algumas horas. Diferente de anos antes, onde ele não conseguiria chegar em Kibou sem que dias se transcorressem.

Jiro havia lhe explicado brevemente onde Shiro morava. Mesmo assim, ele foi até uma pequena loja de roupas e indagou. Instantaneamente, percebeu que Kazue era querido naquela região, pois foi acolhido com um sorriso simpático e um oferecimento de que alguém poderia acompanhá-lo até a casa, que ficava um pouco distante.

Recusou, dizendo estar tudo bem. Caminharia com calma até o lugar e o encontraria, pois era bom em se localizar.

E, de fato, cerca de meia hora depois, aproximou-se de uma casa pobre em meio a árvores frondosas. Abriu o portão e entrou. Sorriu. Tinha certeza que era a casa de Shiro, pois tudo ali respirava a Nana. A forma como o chão estava varrido, a maneira como o jardim estava bem cuidado... Simplesmente, aquela faceta da velha que o criou era visível em cada pedaço daquele terreno.

“ Pobre sim, desleixado nunca! ” Nana dizia, sempre que ele fazia cara feia para aprender ofícios domésticos.

Foi até os fundos da residência e observou a parte traseira do local. O galinheiro estava com a porta aberta, e várias galinhas cacarejavam, enquanto ciscavam a terra, alegremente. Não havia gado, nem porcos, nem cães. Mas havia uma horta bem arrumada, com vários pés de repolho, alface, couve e tomate distribuídos por um terreno cercado. Atrás, uma plantação de milho-verde.

Sentou-se nas escadas de madeira que ficavam diante da porta dos fundos. Minikui pareceu acordar e ele acariciou sua cabeça, ouvindo-o ronronar.

O tempo passou devagar, mas não levou nem uma hora para ele ouvir o portão batendo. Largou a cesta e a sacola no chão e se ergueu. Preparou-se para ver Shiro, mas antes mesmo do corpo miúdo surgir, ele já convulsionava, em prantos.

O olhar atônito encontrou o seu. Shiro abriu a boca, espantado. Depois sorriu. Naquele instante, as lágrimas do menor também caíram, saudosas. Era como se muitas vidas houvessem passado até aquele reencontro.

Um diante do outro, eles choraram sem conseguirem se mover.

 

Capítulo 28


Shiromiya aproximou-se da mesa e serviu o chá. Lá fora, o sol já havia se despedido, e a noite gelada havia chegado, impiedosa, por entre as montanhas do vilarejo.

Sorriu, volvendo o olhar para seu irmão de alma. Mamoru devolveu o sorriso, sorvendo o chá de cidreira que cheirava deliciosamente bem.

— Nem acredito que Minikui ainda está vivo — Shiro murmurou, sentando-se ao lado de Mamoru, segurando suas mãos.

— Ele é um senhor bem resistente — o outro comentou, sorrindo para o felino que aconchegou-se entre as mantas, aquecendo seu corpo já degastado pela idade.

Entrelaçaram seus dedos, encarando-se. Parecia que tanto havia a ser dito, mas lhes faltavam palavras. Muitos anos haviam se passado desde a última vez que se viram, sequer puderam se despedir devidamente, havia dor e saudade em seus olhos, então tudo que fizeram foi aconchegarem-se nos braços um do outro, aspirando o perfume confortador.

— Então — Mamoru começou, beijando a testa do outro –, Jiro me falou sobre a sua vida. Disse-me que você é um guerreiro, um homem incrível, que conquistou tudo que tem com dignidade e honra.

Shiromiya sorriu, constrangido.

— E é pai — Aiko sentiu os olhos arderem. Reprimiu as lágrimas. — Deus, nem acredito! – exclamou. — Pai!

— É... — Shiro assentiu. — Miya é incrível...

— Jiro me disse. Jiro-san me deixou a par de muitas coisas para me confortar — baixou o tom. — Senti tanta inveja dele, Shiro, quando soube que você tem uma filhinha e ele pôde vê-la crescer... Que ele assumiu o papel de tio, que ele esteve ao seu lado quando ela ficou doente... — admitir aquilo o machucava, mas ele precisava fazer. — Eu queria ter estado aqui.

— Esteve, Aiko-san — Shiro acariciou sua face, consolador. — Se não fosse por você, talvez eu não tivesse forças.

Aceitou aquele consolo.

— E onde ela está? — indagou. — Mal posso esperar para enchê-la de beijos e apertá-la nos braços.

Shiro sorriu.

— Ela teve uma crise — contou a contragosto. — Levamo-la ao posto de saúde, mas logo ela estará em casa. Vim antes para arrumar tudo...

Ele mordeu os lábios. Aiko observou o gesto com carinho. Percebeu-o em conflito.

— Aiko-san, gostaria de falar com você sobre...

Emudeceu.

Aiko notou então o quanto Shiromiya parecia constrangido. A vida parecia ter mudado muito Shiro, mas ele sentiu que havia coisas que permaneciam iguais.

— Sobre Ryo-san? — chutou, mesmo considerando que podia ferir o outro com a indagação. — Preciso que saiba de algo, Shiro — prosseguiu, quando o menor fez menção de interrompê-lo. — Ryo-san mudou muito, não é mais o mesmo homem. Ele se desesperou quando você desapareceu. Juro que, muitas vezes, fiquei tentado em lhe contar que você estava vivo, mas depois voltava atrás, temeroso de destruir uma vida que provavelmente houvesse construído — mexeu as mãos, nervoso. — Enfim, ele não se casou, ele...

— Eu sei de tudo isso — Shiro conseguiu interrompê-lo. — Ele está aqui, comigo.

Aiko abriu a boca, espantado.

— Quero dizer, não agora — riu. — Ele está com Miya, mas eles já devem estar chegando. Desde que perdeu toda a sua fortuna, Ryo-san me pediu abrigo. Ele está trabalhando comigo — contou, não conseguindo esconder sua felicidade. — Estamos juntos, Aiko-san — confessou. — Eu ainda o amo, e ele me ama também, eu acho — pareceu inseguro. — Enfim, ele não lembra mais aquele homem cruel e manipulador. Ele é um bom homem, agora.

Aiko sequer conseguia respirar.

— Shiro...

— Eu sei — Kazue o interrompeu, novamente. — É difícil acreditar nele, depois de tudo. Por isso, não falei nada para Jiro-san. Estou tentando ver se isso tudo vai dar certo, Aiko... — bebeu um gole do chá. — Ele é tão bom com Miya! Ela o chama de pai, escondida de mim — sorriu. — Por favor, não me julgue.

Aiko não o julgava. Mas julgava aquele filho da puta chamado Ryo Satoshi. Como pudera ser tão idiota de crer em sua redenção? Era apenas um bastardo manipulador. Como contaria a verdade para Shiromiya? Como destruir aquele princípio de família que ele sempre sonhou possuir? E havia a menina. Uma criança aguentaria uma decepção tamanha?

— Shiro...

Abriu a boca. Fechou. Abriu novamente, enquanto respirava fundo. Apesar de não ser algo fácil a se dizer, Shiromiya tinha o direito de saber que estava sendo iludido mais uma vez. Contudo, o som característico de uma conversa animada chegou aos seus ouvidos e ele se calou novamente, cravando os olhos na porta que se abriu logo em seguida.

Uma menina bonita, de cabelos longos, lisos e negros, entrou, seguida de um homem animado. Aiko não o reconheceu imediatamente, pois ele estava diferente. Nada de roupas glamorosas, caras e sofisticadas. Nada daquela postura arrogante, de queixo erguido. Ao contrário, vestido com calça e camisa velhas, ele entrou no casebre com um sorriso franco e sincero, diferente do habitual, o pretensioso, que costumava lhe dar nos nervos.

Mas o sorriso morreu, assim que os olhos se encontraram. Ergueu-se da mesa e ficou em pé, diante daquele enganador, ansiando para contorcer seu pescoço com as próprias mãos.

— Aiko-san — ouviu a voz de Shiro, ao longe. Porém, não conseguia se focar nela. Até mesmo respirar estava difícil. — Essa é Miya — apresentou.

Aiko precisou de todo autocontrole que tinha para desviar os olhos de Ryo e baixar até a menina. Notou os olhos escandalizados dela, mas não se ateve a eles. Volveu novamente a Ryo, ameaçador. Foi quando ouviu o som de passos e o suspiro assustado de Shiromiya.

— Miya? — o som do amigo o acordou. Percebeu então que a criança havia saído da casa, correndo, em direção ao pomar. — Miya? O que aconteceu? — Shiro voltou-se para ele. — Desculpe, Aiko-san, não foi um dia fácil para ela — desculpou-se. — Vou trazê-la de volta.

Aiko não reagiu ao ver o amigo sair da casa atrás da criança. Toda a sua atenção estava cravada em Ryo como uma antiga árvore em terra fértil.

— Seu...

— Por favor — o som chegou a ele, baixo. — Eu imploro...

— Implora o quê? Seu desgraçado! — não gritou, apesar de sentir vontade. — Acreditei no seu arrependimento, acreditei que havia mudado! Mas não... Prossegue como o mesmo falso mentiroso de sempre. Atreve-se a...

— O mesmo? — Ryo se aproximou. — Olhe para mim!

— Usar roupas velhas é um preço alto demais para pagar? Deve estar se divertindo manipulando Shiro.

Ryo segurou seus braços. Não empregou força, apenas parecia querer demonstrar seu desespero.

— Eu desistiria do meu dinheiro por ele. Eu ligaria para Tadao amanhã mesmo e doaria toda a minha fortuna, se com isso eu pudesse viver para sempre com Shiro e com Miya nessa casa sem luxos. Mas eu não posso fazer isso. Miya precisa de um tratamento. Ela está doente, ela pode morrer — seu tom sussurrado deixava nítido seu desespero.

— Não adianta usar a criança para me convencer a participar do seu jogo sujo.

— Aiko, eu vou falar a ele. Eu juro. Por favor, Shiro jamais me perdoará se souber a verdade por você.

O outro pareceu pensar. Diante daquilo, Ryo continuou:

— Eu o amo, Aiko. Eu o amo mais do que tudo nesse mundo. E Miya... Lembra-se de eu te contar sobre uma menina que eu via?

Era a desculpa que Ryo sempre dava para Aiko pelos atos que cometera, quando conversavam nas noites solitárias depois da guerra.

— A menina que você usou para justificar sua crueldade e falta de caráter?

— Eu sei que tem razão em me ofender — Ryo assentiu. — Sim, eu sou um cretino desgraçado. Sim, eu mereço ouvir cada um dos seus argumentos. E eu definitivamente não mereço uma segunda chance. Mas eu imploro... Por favor, me dê só mais essa oportunidade. Se não por mim, por Miya. Ela é a minha vida, eu morrerei se algo acontecer a ela.

O som de vozes ao fundo fez Mamoru estremecer.

— Você tem até amanhã de manhã. Se não contar a ele, eu irei.

E o assunto se encerrou quando pai e filha entraram na casa.


***


Shiromiya encontrou a filha sentada em um banco de madeira, perto das macieiras. Ela parecia temerosa, os olhos arregalados, e a postura acanhada, como se houvesse visto um monstro e não apenas o irmão de coração de seu pai.

Aproximou-se e sentou ao lado dela. Era difícil lidar com uma criança de personalidade tão incomum, mas ele esforçava-se para passar lições importantes sem interferir na sua individualidade.

— Sabe, Miya — começou, quando ela não fez menção de lhe falar nada. — Quando eu tinha a sua idade, eu já tinha uma vida muito difícil.

Nunca falava com ela sobre o passado. Era chocante demais, e temia a reação. Talvez, quando fosse mais velha, pudesse confessar o que ainda lhe doía demasiadamente, mas... naquele momento, não.

— Aiko-san me encontrou. Eu não comia há dias e estava muito machucado. E ele cuidou de mim. Deu-me abrigo, amor e respeito. Ele me ensinou a ser uma pessoa melhor. — A criança o encarou. Seu rosto era uma incógnita. — Tem ideia do que representa para mim você também amá-lo?

Miya desviou o olhar. Por que ela parecia em pânico?

— Se um dia algo me acontecesse, Miya, eu confiaria você somente a duas pessoas: Jiro-san ou Aiko-san.

— Prefiro o meu papai — ela retrucou.

Shiro riu.

— Sim, claro — não negou. — Mas disse isso para que você compreendesse o quanto eu o amo. Então, quer ir conhecê-lo?

Repentinamente, ela olhou para o lado. Alguns segundos em silêncio, e um levantar rápido do banco.

— Está bem.


***


Mamoru Aiko se ajoelhou perante a criança que o encarava seriamente. Era bonitinha, adorável, pequenina e fofa. Sentia vontade de mordê-la.

— Oi, Miya — começou, contendo a ânsia de apertá-la nos braços. Jiro havia comentado que ela não era muito carinhosa. — Eu sou Mamoru Aiko.

— Meu tio — ela deixou claro que sabia quem ele era.

Emudeceu, voltando os olhos para Shiromiya que parecia tão nervoso quanto ele. A menina não dava ares de ser aberta a amizade, e ele desejava demais aquilo dela.

— Que gato é esse? — o tom feminino fê-lo voltar-se novamente para ela.

— É meu. É Minikui — disse, sorrindo, ao perceber o interesse.

— Minikui? — ela girou o corpo, olhando para o pai.

— Sim, esse mesmo Minikui — Shiro confirmou as suspeitas.

Em menos de dois segundos, ela já tinha o gato nos braços. O bichano pareceu não se importar com uma desconhecida a apertar-lhe contra o rosto.

— Eu amo gatos — ela contou a Aiko, fazendo-o sorrir. — Eu os amo muito, eu quero ter dezenas deles um dia.

Shiro sorriu.

— Eles dão trabalho, princesa — disse. — Mas um ou dois você até poderá ter.

— Cinco.

— Três.

— Três! — pareceu concordar. — Três está bom — aproximou-se de Aiko e sussurrou para ele. — Dos três, terei uma fêmea que terá filhotes, então eu terei dezenas.

Aiko conteve uma gargalhada. Quem ela lembrava, manipulando tudo e armando o seu próprio futuro? Não resistindo mais, pegou-a no colo e escondeu o nariz nos seus cabelos.

— Ela tem seus olhos — disse a Shiro. — É linda... — sorriu.

Do outro lado da sala, Ryo observava a tudo apreensivo. Mamoru percebeu, mas não tinha a menor piedade dele.


***


Daniel abriu a porta do quarto e seus olhos cravaram-se no homem sentado na cama. Sentiu o sangue ferver, mas não se manifestou. Apenas, entrou e fechou a porta atrás de si.

— Jiro não está — avisou, em um resmungo, tirando o casaco.

— Aiko foi viajar — Shin disse, sem cumprimentá-lo. — Ele me deixou sozinho com esse problema envolvendo Saito-san.

— E o que eu tenho com isso?

Shin sorriu.

— Como o quê? Não é você que fica por aí torrando a paciência de todo mundo dizendo que ama Saito-san?

— Eu amo, mas sei respeitar suas escolhas. Se ele quer ficar...

— Garoto — cortou-o —, Jiro está sendo chantageado. Ele tem segredos, Oguri sabe disso. Por isso ele está lá.

Então Sakamoto já sabia que Saito havia deixado o quarto de hotel?

— Não acredito no que diz. Jiro não é do tipo que se deixa manipular.

Shin Sakamoto riu desdenhoso.

— Preciso de ajuda.

— Não farei nenhum plano com alguém sem caráter como você.

— Não é hora para ter escrúpulos.

Daniel caminhou até a porta. Abriu-a.

— Não importa as circunstâncias, o que é certo, é certo. E o que é errado, é errado. E fazer qualquer tipo de pacto com você é arriscar a minha própria sanidade.

Sakamoto não costumava ter nenhuma vontade recusada. Sentiu o estômago inflar diante de tanta audácia.

— Podíamos salvar Jiro, saiba disso. Mas você acaba de jogar tudo fora.

Quando ele desapareceu no corredor, Daniel fechou a porta, nervoso. Seria verdade?


***


Shiro arrumou o futon de Ryo no quarto de Miya, para que Mamoru lá dormisse. Já era tarde e, após um jantar em que só ele e a menina falavam, o cansaço daquele dia, emocionalmente intenso, o tomou.

Aiko sentou-se no futon. À sua frente, a garotinha que, à primeira vista havia demonstrado excessiva timidez, mas que, naquele momento, tagarelava sem parar, contou-lhe sobre a escola, sobre cães que alguém matou e sobre as galinhas que ela protegia com a própria vida.

Ele mal conseguia conter a vontade de gargalhar a cada narração compartilhada. Era tão pequena, mas tão audaciosa... Não era à toa que Jiro era louco por ela.

Shin a amaria...

Reprimindo aquele pensamento, ele voltou a atenção para as histórias.

— Minikui é maravilhoso — ela elogiou, ainda com o felino nos braços. — Você me daria ele?

O susto pareceu fazer seu coração parar. Minikui era seu vínculo precioso com a mãe que o criou e com uma vida da qual sentia muita falta. Porém, Miya era seu futuro. Uma sobrinha, uma nova família, uma esperança de um dia ensolarado em meio às trevas.

Não podia negar-lhe nada...

— Eu o amo, mas se você quiser ficar com ele... — engasgou sentindo os olhos arderem.

Subitamente, uma gargalhada tomou conta do ambiente.

— Estou brincando, tio Aiko. Animais não são coisas para passarmos de uma pessoa para outra. Eu sei que ele é seu filho.

Mamoru sorriu, sentindo um alívio intenso tomando conta de si.

— Me pegou! — exclamou, secando as lágrimas, enquanto ria.

Mais tarde, naquela madrugada, a criança remexeu-se entre as cobertas. O príncipe encantado sentou-se ao seu lado. Ela sorriu.

“ Viu? Ele não te negou o que mais ama ” — ele comentou, devolvendo o sorriso. — “ Ele não te negaria nada ”.

— Mas — ela parecia insegura —, achei que fosse um vilão.

“ Os outros só são vilões quando estão contra nós, Miya. Do nosso lado, serão sempre mocinhos ”.

E diante de mais um ensinamento, ela dormiu.

 

Capítulo 29


Saito Jiro soube que as coisas piorariam quando viu Daniel Joshua parado à porta do casarão de Oguri, naquela noite. O rapaz mantinha uma postura reta, uma determinação indecifrável no olhar, e uma calma digna de Sakamoto, fazendo maldades.

— O que quer aqui? — resmungou, ao abrir a porta.

Repentinamente, o doce americano pareceu esquecer sua postura gentil de sempre. Jiro sentiu a força empregada enquanto ele segurava seus braços, impedindo-o de fugir. Era como se, enfim, após tantas humilhações, ele resolvesse assumir uma postura mais agressiva diante da situação.

— Eu te amei — Daniel disse, alto, nervoso. — Eu cuidei de você quando estava sofrendo em Kyoto. Eu suportei suas traições e até seu abandono quando reviu seus antigos amantes. Eu aceitei ser seu amigo, seu protetor. E, depois, quando percebi que estava feliz, eu tentei reconstruir a minha vida sem te afastar. Mas você e ele — fez menção a Oguri — me usaram. Você me humilhou tantas vezes que jamais conseguiria contar. Oguri me manipulou para se aproximar de você. E agora que conseguiram ficar juntos, saíram sem sequer um pedido de desculpas — despejou.

Jiro sentiu cada palavra. Nunca foi sua intenção magoar o ex-companheiro. Porém, nada podia fazer quando a verdade era assustadoramente terrível.

— Vim para me vingar.

As palavras ecoaram pelo salão como profecia de tempos antigos. Jiro arqueou as sobrancelhas, incapaz de entender o que elas significavam, mas todas as dúvidas foram respondidas quando sentiu a força com que os braços estrangeiros seguraram sua cintura e como seu corpo foi puxado contra o do outro.

Logo, sua boca foi tomada. A intenção, reconheceu em seguida, era feri-lo, machucá-lo, mas Daniel não era um vilão, e logo a primeira tentativa tornou-se uma poderosa carícia, como se ele aceitasse desculpas que nunca foram pedidas.

— Vá embora — Jiro disse após se soltar. — É uma pessoa maravilhosa, vai reconstruir a sua vida. Não se envolva com tanta sordidez.

Deu as costas, tentando fugir daquele embate. Mais uma vez foi cercado. Desde Shin, seu corpo não reagia com paixão a qualquer toque. Falhou com Aiko e suportou Oguri em todas as noites que ele o procurou. Contudo, naquele instante delicado, quando a boca bonita acariciou sua nuca, ele estremeceu.

— Sakamoto disse que você estava sendo ameaçado. Eu duvidei. Mas, agora, olhando seus olhos, percebo que eles clamam por socorro, Jiro...

— Não te pedi nada.

— Mesmo que não me peça, eu aceito passar todos os dias da minha vida cuidando de você — Daniel o girou, fazendo com que os olhos se encontrassem. — Sei que não me ama, sei que não posso concorrer com todos os homens do seu passado. Contudo, eu aceito meu destino por pior que seja. Apenas, sem você, não vejo motivos para sorrir.

Era um menino. Jiro sentiu os olhos encherem-se de lágrimas por pensar em si mesmo, na idade dele. Estava indo de viagem para a China para servir a um campo pacífico. Era tão imaturo, jamais imaginou as atrocidades que viria a cometer.

E Daniel era tão verdadeiro! Era um tesouro, uma joia preciosa, pura e delicada. Apesar de, fisicamente, ele ser grande e forte, seus lindos olhos claros e seu tom gentil, sempre lhe deixavam ansioso para jogar-se em seus braços.

Mal percebeu quando a boca do americano voltou a tocar a sua. Aquele beijo pueril envolveu seu coração. Não pôde se recusar a mais um beijo, a um abraço de despedida. Mais que Shin e Aiko, aquele garoto estrangeiro havia compartilhado com ele muitos dias de alegria. Daniel sempre o respeitou, mesmo quando ele não merecia.

Quando suas costas tocaram a parede, percebeu o quanto tudo nele tornou-se fogo e paixão. Enfim, o gélido torpor que o tomou após Shin o magoar, agora parecia curado pela mesma pessoa que, outrora, o havia salvado de si mesmo após a guerra.

— O que diabos está acontecendo aqui?

A voz de Oguri fez com que eles se afastassem. Percebeu Daniel colocar-se à frente dele, protegendo-o. Logo em seguida, porém, a razão o tomou e ele o afastou.

— Daniel veio apenas se despedir.

— Vim levá-lo comigo — o americano negou. Depois, voltou-se para Oguri. — O que eu te fiz para que me enganasse assim?

Oguri sorriu. Era impossível não gostar daquele garoto cheio de honestidade. Aproximou-se dele, mantendo a postura reta, mas firme.

— Não te quero mal. Gostei muito de você.

— Eu realmente estava disposto a te amar — Daniel insistiu.

— Não fique tão zangado — riu, aproximando-se. Um leve beijo depois e voltou-se para Jiro, puxando-o. — Livrei-te de um assassino sanguinário.

Daniel encarou Jiro, aguardando-o negar as palavras.

— Na guerra? — indagou, depois.

— Sim — Jiro confirmou.

— Muitos homens tiveram que matar na guerra — Daniel justificou.

— Num campo de concentração — Oguri o cortou. — Matou e torturou mulheres, homens, crianças e idosos. Até mesmo animais — apontou. — Jiro não foi o amante de Shin, foi um sargento. Apenas, descubra a verdade por Aiko ou Sakamoto. Eles sabem.

Daniel abriu a boca, espantado. Quis indagar a Saito a veracidade daquelas palavras. Contudo, não conseguiu ao ver a culpa estampada no outro. Jiro, o seu valente Jiro, um cruel torturador?

— Daniel — Oguri apertou seus ombros, guiando-o até a saída —, Saito nunca te amou, apenas usou-o para aliviar as culpas da alma. Então, siga sua vida, meu querido. Apenas velei por sua segurança mental. Um dia vai conhecer um cara maravilhoso que vai te fazer feliz.

O americano encarou Saito. Viu sua cabeça baixa, como se concordasse com o conselho. Então, sem saída, ele afastou-se, saindo sem se despedir.

Não viu, portanto, o choro compulsivo que tomou o antigo sargento. E não era um pranto por culpa. Era uma dor por entender, pela primeira vez, a importância daquele estrangeiro em sua vida.


***


Havia um burburinho ao longe. Era uma mistura de risadinhas abafadas e de um tom alegre, compartilhando experiências. Shiro abriu os olhos e divisou o riso da filha e a voz do melhor amigo. O cheiro de pão assado invadiu suas narinas e ele notou que, pela primeira vez em anos, não era o primeiro a acordar para dar o lanche da manhã para sua pequena.

Sorriu, repentinamente, sentindo que a vida estava lhe trazendo boas surpresas. Estendeu as mãos para o lado, buscando o corpo confortador de Ryo, mas não havia ninguém dividindo o futon com ele. Abriu os olhos, sentando-se. Satoshi nunca acordava antes dele, e aquele sinal parecia um mau presságio.

Logo o visualizou. Sentado a sua frente em um banco de madeira, Ryo parecia num grande conflito. Lembrou-se imediatamente que, no dia anterior, ele falara de uma conversa séria entre eles. Parecia que havia chegado o momento e tudo que o coração de Shiromiya acalentava era nervosismo e solidão.

Ryo nem havia aberto a boca, mas ele já sabia que era o fim do amor deles.

— Não precisa dizer nada — Shiromiya murmurou, sentindo os olhos encherem-se de lágrimas. — Eu realmente não preciso ouvir.

— Shiro...

— Prefiro não ouvir — interrompeu-o, levantando-se do futon. — Eu não preciso ouvir — repetiu, agoniado.

— Você ainda não sabe o que eu vou dizer.

Kazue foi até as roupas, dobradas cuidadosamente em cima da cadeira de madeira. Começou a se vestir rapidamente.

— Sabe quais os motivos que levaram Jiro a cruzar o país para chegar até mim em Sapporo? — a pergunta saiu de forma dolorosa, quase dolorida. — Aiko disse a ele que você me considerava um animalzinho de estimação descartável.

— Shiro, eu...

— Eu ouvi você dizendo a Tadao-san que me mandaria de volta para Tóquio.

— Eu iria te colocar numa casa perto de Mamoru. Iria cobri-lo de luxos — defendeu-se. — E iria te visitar sempre que possível!

Shiro riu, amargurado.

— Eu não queria seu dinheiro, nem uma casa rica ou presentes. Eu só queria ficar perto de você. Para mim, tanto fazia se fosse em Sapporo ou nessa casinha simples que estamos agora.

Ryo enrubesceu.

— Eu sei disso, Shiro. Mas, antes, eu não sabia. Ou eu fingia não saber. Estava cego em arrogância.

O outro voltou-se para o roupeiro, buscando um casaco. Ele não encarou Ryo ao indagar:

— Você está indo embora?

Houve um silêncio constrangedor entre eles. Ryo não conseguia respirar, sentindo todo o corpo doer mediante a pressão.

— Eu vou dar comida para as galinhas e arrumar a horta. Você pode sair enquanto isso. Não precisa dar explicações. Eu já entendi.

— Kazue, não é isso...

— Acha que sou um idiota? Enquanto era apenas um passar de dias tranquilo, estava tudo bem. Mas, agora, você percebeu que existem responsabilidades. E elas incluem uma criança com uma doença rara e...

Shiromiya foi interrompido por um beijo intenso. O corpo esmagado contra o do outro, reagiu, angustiado. Queria apertar Ryo contra si e implorar que ele não o deixasse. Passou uma vida inteira sozinho, sem apoio. E agora sentia o gosto de uma família. Não queria perder aquilo. Porém, ao mesmo tempo, temia as palavras futuras e por isso se afastou.

— Eu te disse uma vez — Ryo começou. — Só irei embora se você me mandar.

Sem resposta.

— E eu falei ontem que eu te amava. Eu apenas... Miya... — balbuciou.

Pelos céus, como falar a verdade?

— Você disse que talvez houvesse achado uma solução — Shiro murmurou, tímido.

— Eu tenho a saída, mas ela dependerá de você — foi franco. — Porque eu vou respeitar a sua decisão, Shiro...

Shiro respirou fundo.

— Você mentiu para mim.

Ryo quase engasgou.

— O quê?

— Você mentiu para mim e agora precisa falar a verdade.

Não era uma pergunta, mas Satoshi sentiu todo o corpo estremecer, e a resposta saiu engasgada, sufocada pelas lágrimas que vieram em seguida.

— Sim — confessou. — Eu precisei.

— Precisou?

— Para entrar de novo na sua vida.

Shiro tentou decifrar a verdade naquele olhar profundo. Não conseguia. Nada parecia se encaixar.

— Não entendo — admitiu. — Achei que fosse falar apenas que não me ama. Mas, se não me ama, por que precisava entrar na minha vida? Pelo meu corpo? Sei que já não tenho a aparência juvenil que tanto te atraía. Não sou mais frágil e delicado. Minhas mãos são machucadas e calejadas. Minha pele é rachada pelo vento frio que encaro todas as manhãs. Então, que motivos teria para me querer?

Então, Shiro nunca acreditou no seu amor?

— Eu amo você — Ryo retorquiu. — Eu amo você desde a primeira vez que eu te vi, ainda em visões, na minha infância. Não soube identificar o sentimento durante os anos passados, mas quando foi embora, eu percebi o que antes parecia tão obscurecido pela minha crueldade. E, desde então, tudo que eu penso é em tê-lo novamente. Preciso que confie em mim, Shiromiya. E, por isso, preciso que saiba a verdade.

— Que verdade?

— Nunca desconfiou de nada?

— Desconfiar do quê?

Era incrível que, mesmo após ser vítima de tantas maldades do destino, ele ainda era puro.

Ryo engoliu em seco e então respirou fundo.

— Realmente, eu menti para você — assumiu. E então, despejou. — Não perdi meu dinheiro, Shiro. Ao contrário, sou mais rico que antes. Hoje, negocio com o governo americano. Exporto enlatados para a Europa também...

Iria prosseguir falando de seus feitos, quando notou que os olhos de Kazue estavam apáticos.

— Não era minha intenção inicial. Apenas, você entendeu isso quando nos encontramos e, no desespero, eu não o corrigi. Depois, tudo se tornou um emaranhado de histórias desconexas. E, bem da verdade, eu podia renunciar a tudo que tenho... E eu pensei em fazer isso, mesmo... Só que então soube de Miya... e...

— Por favor... — a voz fraca de Kazue surgiu entre eles. — Cale a boca.

— Não — Ryo se recusou, puxando-o novamente. — Shiro, por favor, por um segundo, tente pensar no que faria se estivesse na minha posição. Eu busquei por você durante anos, e quando te vi... você me odiava, não me permitia uma aproximação.

Shiro se desvencilhou.

— O que mais eu podia fazer? Viver sem você não era opção.

— E a opção era mentir? — o outro repreendeu, alto, empurrando-o. — É claro que você sequer pestanejou. Sempre fui o idiota que você manipulou a bel prazer. Você mentiu para mim muitas vezes no passado, e agora eu descubro que você mente no presente. — As lágrimas voltaram, impiedosas. — Eu queria muito ser amado por você, Ryo-san. Mas pelo Ryo que foi meu companheiro nesses últimos meses. Contudo, esse Ryo não existe, ele é só mais uma farsa sua.

— Eu sei que você está magoado...

— Magoado? Estou me segurando para não expulsá-lo da minha casa agora a pontapés — respirou fundo, secando as lágrimas. — Não farei isso por Miya, que ama você. Mas, quero que pegue suas roupas agora e desapareça.

— Shiro, por favor...

— Você tem dez minutos.

E saiu, batendo a porta.


***


Miya estendeu um pintinho amarelo para Mamoru, sorrindo. Ele segurou a criatura pequena nas mãos e a admirou. Era tão fofinho, parecia uma bolinha de penas, completamente desprotegida.

— Ninguém come as minhas galinhas — ela contou, orgulhosa. — Papa também as ama porque elas nos dão ovos. E elas entendem que são amadas porque elas nunca deixam de nos dar ovos...

Aiko assentiu, compreensivo.

— Mas eu não amo as galinhas pelos ovos — ela explicou, temerosa de que ele entendesse errado.

Mamoru riu. Era realmente uma menina especial. Ao mesmo tempo doce e geniosa. Repentinamente, contudo, a atenção dele voltou-se para a casa. Mais precisamente para Shiromiya, que saía dela em direção a estrada com rapidez. Nitidamente, desesperado. Já entendendo o que se passara, Mamoru disfarçou a situação para a criança.

— Miya, você pode brincar um pouco com Minikui? — apontou o gato, próximo do galinheiro. — E cuidado para ele não lanchar os pintinhos — aconselhou. — Vou conversar um pouquinho com seu papa.

Mal a viu assentir, e distanciou-se. Seguiu Shiromiya de longe, não querendo chamá-lo e, ao mesmo tempo, não querendo perdê-lo de vista. Logo, ele estancou na estrada e sentou-se em um barranco. Mamoru o viu chorando e se aproximou, cuidadoso.

— Engraçado que eu estava tão confiante — Shiro murmurou para ele, assim que o divisou entre a visão nublada. — Eu realmente acreditei que as coisas dariam certo agora. Porque o Ryo-san pobre, sem dinheiro para alugar um quarto e que precisava lavrar na terra comigo para comer, parecia alguém que pudesse dividir a vida ao meu lado. Não me sentia diminuído para ele — confessou. — Mas esse Ryo rico que passou anos me humilhando e exigindo que eu colocasse um preço no meu corpo... Esse Ryo...

— Eu sei — Aiko o interrompeu, sentando-se ao seu lado.

— Eu me sinto tão idiota...

As mãos firmes de Mamoru apertaram seu ombro.

— Quando você desapareceu, Ryo levou um choque de realidade. Eu me lembro como se fosse ontem, ele aparecendo em Tóquio, andando pelo subúrbio atrás de você. Ele foi até a Casa Ai porque tinha certeza de que estava no abrigo. Mas não te encontrou. Depois, decidiu ir para Hiroshima, atrás de Keiko. A bomba estourou quando ele estava em viagem. Eu me culpei tremendamente e quase me matei porque pensei que ele pudesse ter morrido lá, já que levou dias para ter qualquer notícia. A culpa me consumiu. Acreditei que havia destruído meu amigo. Mas, então, ele apareceu. Ele escapou por questão de horas. Mas não era mais o Ryo que nós conhecíamos. Ele estava destruído. Passou a viver de esperanças que você tivesse escapado ou que tivesse ido para outro lugar. O Japão estava um caos, mesmo assim contratou detetives, e só desistiu depois de dezenas de viagens para qualquer canto que indicasse um Shiromiya jovem sem família.

Respirou fundo.

— Pensei em falar a verdade para ele, mas eu mesmo não sabia se Jiro e você haviam sobrevivido. Assim, me calei. E passei a vê-lo afundar-se em remorso e trabalho. Ryo parou de viver quando você o abandonou, então, por mais que eu te ame demasiadamente, eu não o culpo por ter mentido. Penso que teria feito a mesma coisa se isso me trouxesse novamente a pessoa que eu amo.

— O problema é exatamente esse — Shiro murmurou. — Nunca foi arrependimento, sempre foi remorso. Nunca foi amor, apenas desejo. Se ele tivesse aparecido e tentado adquirir a minha confiança com a verdade... Mas não... Ele sempre escolhe o mais fácil, o que vai fazer com que...

Repentinamente, calou-se.

— Shiro?

— Ele não perdeu o dinheiro... — murmurou. — Está mais rico do que nunca.

— Sim.

Mamoru assustou-se, quando o viu erguendo-se rapidamente e rumando em direção a casa. Contudo, não o parou. Fosse qual fosse a atitude de Shiromiya, era compreensível sua dor e ele a respeitava.


***


A porta abriu. Ryo permanecia parado no mesmo lugar, desde que ela se fechara. Apesar do tempo dado por Shiro, ele não conseguia dar o passo que o levaria para longe da filha e do seu grande amor. Então, quando volveu-se para a abertura, esperando ansiosamente que houvesse esperança nos olhos de Kazue, seu semblante denotou seu desespero.

— Você ainda é rico? — a pergunta o surpreendeu. — Rico o bastante para pagar o tratamento de Miya?

Ryo assentiu.

Shiromiya sabia que estava jogando fora tudo pelo que sempre lutou. Era o fim de seu orgulho, de sua honra. Mas o que mais ele poderia fazer? Miya estava morrendo, e ser pai significava, acima de qualquer outra coisa, perder qualquer traço de dignidade em nome do filho. Por ela, roubaria ou mataria. Por ela, venderia o corpo novamente nas ruas. Por ela, partiria ao lado daquele crápula para Sapporo.

— Então, eu vou aceitar a sua ajuda.

As palavras ecoaram na alma de Satoshi. Ele sabia que não era perdão.

— Mas, assim que ela ficar curada — salientou — sairemos da sua vida e você nunca mais porá os olhos em nenhum de nós.

Quando a porta fechou-se novamente, ele soube que pagaria um preço alto demais por todos os erros que já cometera.

 

Capítulo 30


Num ato de pura generosidade imérita, Shiromiya Kazue aceitou o pedido baixo de Ryo Satoshi para que o comerciante pudesse contar a verdade para a garotinha que brincava perto do galinheiro. Para Ryo, já era difícil demais assumir que mentira para ela, enganara-a durante todo aquele tempo. Que ela soubesse disso por um terceiro, só agravaria o peso de sua consciência.

Aproximou-se cuidadosamente, temendo cada passo. Uma coisa era falar com um adulto, por mais difícil que tivesse sido. Outra, era explicar para uma criança de nove anos o que nem mesmo Shiro fora capaz de entender.

— Papai! — ela exclamou quando ele se aproximou. — Eu preciso de gatos — ergueu Minikui do chão. — Eu preciso de gatos agora mesmo!

Ele achou graça naquela postura apaixonada.

— E terá — confirmou.

— Eu quero todos os gatos do mundo.

— Todos que você quiser — prometeu.

O sorriso de deleite que recebeu o acalmou. Respirou fundo e sentou-se no costumeiro banco de madeira que ficava sempre ali perto do galinheiro.

— Vem cá — disse, batendo no banquinho do lado, indicando que queria que ela se sentasse. — Nós precisamos conversar, Miya.

— Eu fiz algo errado? — ela questionou, abandonando o velho felino e aproximando-se.

Ryo quase riu. Por que toda criança sempre imaginava um castigo quando os pais pediam uma conversa?

— Você não — negou. — Eu, Miya... Eu fiz algo errado.

A curiosidade despontou nos olhos inquietos. Parecia feliz demais por compartilhar uma traquinagem. Ryo, contudo, sabia que a postura risonha a abandonaria assim que soubesse o teor da confissão.

— Miya, o que você sabe sobre mim? — indagou, tão logo ela se sentou.

— Sei que tinha visões.

— E o que mais?

— Que magoou papa.

— E sabe como eu o magoei?

— Você iria se casar e abandoná-lo.

— Eu casaria com uma moça rica para ter você — ele confirmou. — Mas eu descobri na minha última visão, que você deveria ter crescido ao meu lado e de seu papa. Que não haveria casamento...

— Eu já sei disso — resmungou. — Papai, fale logo, quero ir brincar com Minikui!

Parecia que tinha comichão. Ela estava ansiosa para sair do banco e ir até o gato tricolor.

— Miya — mesmo assim, foi calmo —, antes de dizer, queria que você soubesse que eu te amo. E, muito do que eu fiz, foi para não ficar longe de você.

Ela mal prestava atenção em suas palavras. Em nenhum momento o encarou. O olhar fixo em Minikui que já cochilava ao sol.

— Miya! — insistiu.

— O que, papai? Fale de uma vez!

— Olhe para mim.

A muito contragosto, ela o encarou.

— Miya, papai mentiu para seu papa quando falou que estava pobre. Menti, para que ele me aceitasse na casa de vocês.

Ela pareceu não entender. Foi, então, mais claro.

— Eu tenho muito dinheiro. Não sou pobre — repetiu. — Sou rico. Mais que isso...

A menina permanecia estática, mal piscava. Não havia nada em seu semblante que denunciasse seus pensamentos. Aquilo assustou Ryo, então, começou a falar interruptamente qualquer coisa que pudesse cativá-la.

— Isso quer dizer que você irá morar numa casa enorme, Miya. Terá um quarto de princesa, com todas as bonecas que quiser. E poderá pintá-lo. Gosta de cor de rosa, não é? Poderá ter tudo dessa cor — nada, sem reação. — E animaizinhos. A minha propriedade é enorme, você terá os animais que desejar e na quantidade que quiser. Também não precisará mais ir às aulas de Emi-sensei, irá para uma escola melhor!

Quando ela respirou, Ryo se acalmou momentaneamente, pois aquele espanto lhe deu nos nervos. Sorriu, assim, buscando nela qualquer traço de alegria.

— No meu aniversário — a voz da menina, surgiu, acanhada —, eu pedi para falar com o tio Jiro...

Ryo sentiu os olhos emudecerem.

— Você disse que não tinha dinheiro — ela insistiu.

— Eu menti, Miya — assumiu, muito envergonhado. — Eu não queria que falasse com Jiro Saito.

— Por quê?

— Porque foi ele que roubou seu papa e você de mim.

A frase infeliz escapou de seus lábios e teve o efeito esperado. Da simples apatia e descrença, ele percebeu a menina enrubescer de raiva.

— Meu tio — ela destacou, com intensidade — não é um ladrão — defendeu, já sentindo as lágrimas escapando dos olhos. — Ele sempre cuidou de mim e ele nunca mentiu para mim, como você fez!

Antes de Ryo esboçar qualquer reação, ela lhe deu as costas e saiu correndo, em direção a casa. Aiko Mamoru surgiu na porta no exato momento que ela a alcançava. Então, de longe, Ryo o viu erguendo a menina e a colocando no colo. Viu o beijo que ele lhe depositou na bochecha, consolando-a.

Era a primeira vez que a fazia chorar. Foi a dor mais intensa que já havia sentido até então.


***


O movimento ao seu lado fê-lo levantar o rosto. De todas as pessoas que ele esperava ver ali, Shiro era a última de quem imaginava receber conforto.

Ficou surpreso, na mesma medida que o coração disparou, repleto de esperança. Contudo, nada disse enquanto Kazue sentava-se ao seu lado. Seu amado estava frio e sem expressão. Mesmo assim, Ryo encarou a atitude como alento, um consolo cúmplice.

Era a primeira vez, desde que chegara àquela casa, que se sentia completamente vazio. E era, na mesma medida, a primeira vez que se sentia repleto de expectativas. Aquele misto de sentimentos, mescla de paixões, dominou-o.

— Shiro... — choramingou, ansioso por abraçá-lo.

No entanto, o olhar frígido o afugentou.

— Vai passar — a secura na voz fê-lo estremecer. — Ela apenas está assustada. Como Miya parecia vê-lo em visões antes mesmo de você aparecer, ela acreditava que sabia tudo de você, que não havia segredos. Ou seja, ela confiava muito em você – respirou fundo, mudando o tom. — Eu já a avisei que partiremos amanhã para Sapporo.

Ryo ficou espantado.

— Tão cedo?

— Eu quero que ela veja o médico o mais rápido possível.

Ryo assentiu.

— Sim, concordo. Ligarei para Tadao e pedirei para ele agendar uma consulta.

— Sim, faça isso.

— E Aiko-san? Irá conosco?

— Mamoru ficará mais alguns dias aqui, descansando. Depois, ele irá embora e deixará as chaves com a vizinha. Não há motivos para ele ir conosco para Sapporo — Shiro o encarou. — Não se preocupe com Aiko-san, porque ele entendeu minha urgência.

— Eu também entendo, Shiro...

Quis dizer mais coisas, quando o som de passos fê-los notar que havia mais uma pessoa ali.

— E as minhas galinhas?

A voz irritante da menina chegou a eles. Aparentemente, estava furiosa.

— Não estaremos aqui para cuidar delas, então irei dá-las ao sr. Urashi.

O pezinho bateu no chão com força.

— Ele vai matá-las para comê-las.

Shiro sabia daquilo.

— Eu sou seu pai e eu já decidi que iremos para Sapporo, Miya. Eu lamento demais pelas suas galinhas, mas...

— Então vá, porque eu ficarei.

— Estamos indo para Sapporo por sua causa — Shiro tentou explicar, paciente. — Eu sei que está sofrendo...

— Não vou para merda de lugar nenhum!

O grito e o palavrão chocaram tanto Shiromiya que, por alguns segundos, ele não se mexeu. Porém, em seguida, quase levantou a mão para esbofeteá-la, diante da palavra vulgar. Nunca havia admitido aquele palavreado antes, não o faria agora.

Contudo, a criança desapareceu da sua frente tão logo ele piscou os olhos, correndo em direção ao galinheiro. Deu dois passos naquela direção, quando seu braço foi seguro por Ryo.

— Por favor, tenha paciência com ela — implorou. — Sabe que a culpa é minha, não é? Miya é só uma criança magoada.

Desvencilhou-se, meditando nas palavras. Ryo tinha razão, ele sabia.

Quando aproximou-se do galinheiro, percebeu que Miya havia se escondido dentro das gaiolas. O lugar em si era preparado para manter as galinhas que chocavam em segurança. Como era estreito e comprido, ele não conseguiria puxá-la para fora, e aquilo o enervou.

— Miya! — gritou. — Não me faça pegar o cinto!

— Pegue o que quiser!

Era inacreditável! Ela o estava menosprezando. Sua garotinha de nove anos, que ele cuidou e criou com todo o amor, o estava desafiando implacavelmente, cheia de autoridade e sem qualquer traço de temor.

— Shiro, por favor — o som da voz de Ryo o deixou ainda mais irritado.

— Cale a boca — mandou. — Isso não tem nada a ver com você!

Contudo, logo viu seu braço sendo puxado novamente.

— Eu errei sim, eu não vou negar. Eu te magoei e eu me odeio por isso. Mas eu também sou o pai dela, e você sabe muito bem disso. Então...

— Você não é meu pai! — o som emergiu da gaiola, raivoso. — Eu te odeio, vá embora!

Ryo ficou tão espantado que sequer conseguiu reagir. Tudo nele explodiu em remorso e dor. Todos os erros cometidos, tudo que fizera... em muito, agira daquela forma por causa dela. De todos os seus desejos, ficar perto da filha era uma prioridade. Agora, porém, suas ações traziam o resultado contrário. Miya não o queria mais?

Encarou Kazue por instinto, precisava dele mais do que nunca. Mesmo sabendo que não havia nada em Shiro para com ele, pôde perceber a solidariedade em seus olhos límpidos. Shiro, definitivamente, era uma pessoa pura e gentil. Nenhuma outra pessoa no mundo, na posição dele, estender-lhe-ia a mão num momento como aquele.

— Saia da gaiola, Miya — Shiro disse, volvendo novamente para a menina. — Eu já te expliquei o porquê estamos indo.

— Não vou — ela garantiu.

A birra era grande, mas Shiro tinha tempo. Então, simplesmente decidiu esperar.

— Vamos para dentro — avisou a Ryo. — Quando escurecer, ela sairá.

A dúvida corroeu Ryo, mas ele não teve escolha. Olhou novamente para sua menininha, que insistia em não encará-lo. Então, por fim, seguiu Kazue.


***

 

O plano de Shiromiya Kazue falhou miseravelmente, mesmo quando, já tarde da noite, ele fechou a porta e desligou a lamparina. A menina sequer se mexeu de seu esconderijo.

— Definitivamente — ouviu o resmungo de Mamoru —, ela tem muita personalidade.

Shiro não conseguia encarar a frase como um elogio. Miya era única e não apenas porque havia sido criada por um pai, ou porque tinha uma doença grave. Ela era excepcional num gênio indomável, algo que o enervava e o orgulhava ao mesmo tempo.

Não fez sequer um muxoxo quando Shiro a chamou para o almoço. Ignorando-o sumariamente, permaneceu estática dentro da gaiola. Durante a tarde, enquanto Ryo foi à cidade para ligar para Tadao, ele olhava de soslaio para o abrigo das galinhas, tentando imaginar quando a fome e a dor nas pernas a venceriam.

Na hora do jantar, ele voltou ao galinheiro com um prato de comida. Ficou furioso quando ela chutou o prato para fora, assim que ele deu as costas. Percebeu que não venceria aquela questão pela paciência quando chegou a hora de ir dormir, e ela não pareceu nem um pouco temerosa pela escuridão reinante lá fora.

— Eu não aguento isso — disse Ryo.

Ele havia desligado as luzes para fingir para a criança que estavam indo dormir. Imaginou que o medo a tocaria, então ficou de vigília perto da janela, a observar o galinheiro. Ouviu o risinho camuflado de Mamoru, que parecia achar tudo aquilo muito divertido. Mas Satoshi denotava desespero.

— Fique aí — mandou.

— Ela não vai sair — Ryo insistiu. — Eu sei que não vai sair, porque ela tem o mesmo jeito de Sakamoto. E Sakamoto não sairia. Sakamoto deixaria as pernas apodrecerem e morreria de fome, mas não moveria nenhum músculo.

Ouviu a exclamação espantada de Aiko atrás de si. Provavelmente, só então o amigo se dera conta de onde conhecia aquela forma tão estranha de ser.

— Shiro... — ouviu o tom de Mamoru às suas costas. — Ceda — o pedido parecia uma blasfêmia.

— Ceder como? — indagou. — Dizer que não iremos? Está fora de cogitação! Ela precisa ver o médico e amanhã irá para Sapporo, nem que eu tenha que destruir o galinheiro com um machado e arrancá-la de lá.

Um silêncio perturbador tomou conta do ambiente. Na escuridão reinante, os três adultos sentiam-se incapazes perante a criança. Contudo, subitamente, Ryo pareceu ter uma ideia.

— Eu já volto — saiu pela porta, sem que Shiromiya tivesse a chance de interceptá-lo.

Shiro sentiu-se prestes a desabar, quando os braços de Mamoru o cercaram.

Ah... aquele carinho confortador e fraterno. Que falta lhe fez!

— Uma vez, durante uma madrugada, uma certa criança também quase me enlouqueceu quando saiu sem avisar para ir tomar banho num lago... — caçoou, acalmando-o.

— Eu era tão inocente — riu, após respirar fundo. — Mas, hoje, sou um adulto bem focado no que eu quero.

— E o que você quer, meu amor?

— Quero que minha filha fique curada e que tenha todas as oportunidades que eu não tive.

Aiko assentiu.

— E ela terá, Shiro-chan. E sabe por quê? Miya tem o amor dos pais dela, uma família capaz de lhe sustentar em seus sonhos.

— Ela não tem pais — retrucou. — Ela só tem um pai.

— Ela tem dois — o outro insistiu. — E eles se amam — sorriu. – Sei que estão passando por problemas agora, mas eu acredito no sentimento de vocês. Vai ser muito feliz ao lado de quem você ama, Shiro. Isso é uma dádiva, e você terá a chance de aproveitá-la.

Shiro não negou, mas também não confiou muito naquelas palavras. Pareciam muito distantes de suas próprias crenças.


***


Miya abraçou a si mesma, tentando espantar o frio. A leve brisa estava congelante, os dentes tilintavam, a barriga doía de fome e o sono quase a consumia.

“ Estou orgulhoso ” ela ouviu a voz do príncipe encantado. “ A honra e a lealdade aos amigos é característica mais importante de uma pessoa! ”.

A menina sorriu.

— Eu sei.

“ Fique firme, Miya. Não esmoreça até suas amigas estarem em segurança ”.

A criança observou as galinhas que dormiam, alheias ao futuro sombrio que as esperava.

Repentinamente, os olhos encheram-se de lágrimas. O príncipe encantado viu e pareceu solidário com sua dor.

“ Seu papai é um imbecil! ” ele resmungou. “ Seu papa merece coisa melhor. ”

— Não quero que meu papa fique com outra pessoa.

“ Mas você mandou seu papai embora. E se ele for? ”

Ela deu os ombros, fingindo não se importar. Era um contraste claro com o choro contido.

Repentinamente, o príncipe sumiu. Tão logo isso aconteceu, o papai Ryo surgiu na porta do galinheiro. Ela desviou os olhos, ignorando-o propositalmente.

— Miya, suas galinhas não vão ser mortas, eu prometo.

Levou um certo tempo, mas enfim a resposta veio.

— Não dá para acreditar em você.

Ryo sentiu um nó na garganta, mas disfarçou.

— Me dê esse crédito, por favor — implorou. — Se eu decepcioná-la novamente, poderá me odiar para sempre, mas, antes, dê-me uma segunda chance.

A criança, por fim, o encarou.

— O que fará?

— Eu tenho dinheiro, Miya. Posso pagar o transporte e levá-las todas para Sapporo.

Os olhos de Miya brilharam.

— É sério?

— Eu juro. Eu prometo. Eu farei tudo que puder para que você me perdoe.


***


De dentro da casa, Mamoru e Shiro observavam com atenção a conversa ao longe. Não podiam ouvir o que Ryo dizia, mas se surpreenderam quando a menina saiu do galinheiro e aceitou a mão que ele lhe oferecia, deixando-se conduzir novamente para casa.

— É, Shiro... — o risinho de Mamoru era bem nítido. — Parece que vai ter que aceitar que ela tem, sim, um segundo pai.

 


Capítulo 31


Miya encarou o bonito Chevrolet Buick com os olhos encantados de uma criança. O automóvel grande e moderno era de um tom vinho, com duas portas e lataria polida. Ela não entendia nada de carro, mas apaixonou-se imediatamente pelo veículo e logo tentava abrir a porta para ver o painel e todos os acessórios.

— Você gostou? — Ryo indagou às suas costas.

— É muito bonito.

O tom amigável denotava que parecia esquecida de que estavam brigados.

— Eu posso dirigir? — a voz infantil perguntou em seguida.

— Sim, quando tiver idade.

— É sério? — seus olhos arregalaram-se, felizes. — E você me daria ele?

A dúvida não era um pedido. Parecia mais um teste. Ryo entendeu e não se objetou.

— Terá tudo que quiser, Miya. Terá quantos carros quiser, quantos desejar.

Afastados do par, Aiko e Shiro encaravam a cena com certa apreensão. Desde que uma equipe de funcionários de Ryo havia aparecido de manhã com um veículo luxuoso e com um caminhão para transportar as galinhas, ambos calaram-se diante do que estava por vir.

O caminhão levaria as galinhas até um pequeno porto, onde um cargueiro as transportaria até a ilha de Hokkaido. Até o final da tarde, elas já estariam na propriedade de Satoshi. Isso, eles souberam pelo que Ryo contara a Miya. Porque, desde que acordara de manhã, o comerciante parecia alheio ao mundo, interessado em apenas conquistar a simpatia da pequena.

Então, quando o caminhão foi embora com as “amigas” da filha, Ryo dispôs-se a mostrar a ela todo o luxo que poderia lhe dar. Em pouco tempo, já a extasiou com a perspectiva de brinquedos novos, vestidos de babado e finais de tarde comendo bolo de chocolate.

— Eduque Miya — Shiro ouviu a voz de Mamoru, preocupada. — Porque Ryo vai fazer de tudo para compensá-la por todas as mentiras e pelo tempo afastado. Então, se não for firme com ela, Satoshi poderá torná-la uma pessoa irascível e materialista.

Shiromiya balançou a fronte, concordando.

— Não se preocupe — sorriu, desconcertado. — Ele não terá muito tempo para isso. Assim que Miya receber alta do tratamento, nós voltaremos para cá.

O amigo segurou seus dedos, tentando lhe transmitir força.

— Eu quero que tome a melhor decisão, Shiro — afirmou. — A que lhe fará feliz.

— Nenhuma das minhas alternativas me fará feliz — o sorriso tornou-se triste. — Voltar para Kibou e ficar longe de Ryo vai destruir meu coração — assumiu. — Mas ficar ao lado dele vai destruir-me inteiramente. E antes um coração partido do que uma alma devastada.

— Não pode ter certeza disso...

— Ryo-san tem esse dom — murmurou. — O dom de nunca acertar, quando o assunto sou eu.

Cerca de duas horas depois, Shiromiya e Ryo guardaram no carro os poucos pertences que Shiro tinha. Duas sacolas com roupas e outra com medicamentos. De cabelos lavados e vestindo o único vestido novo que tinha, Miya parava ao lado do automóvel, ansiosa para andar de carro.

Era a primeira vez que Mamoru visualizava a criança que ela era. Durante os dois dias que esteve ali, ficava desnorteado com o palavreado desregulado, o tom ameaçador mesclado com um olhar aterrorizante, e com a postura arrogante e gentil ao mesmo tempo. Depois que Ryo denotou a semelhança com Shin, percebeu que, de fato, ela tinha tanto de Sakamoto que mal podia esperar para que eles se encontrassem.

Sabia, de antemão, que Shin a desprezaria num primeiro momento, pois ele detestava crianças. Contudo, quantas horas demorariam para ela se tornar a menina de seus olhos? Imaginou, com culpa, o quão orgulhoso ele ficaria em saber que aquela pequena menina desafiou os pais por causa de um bando de galinhas. Sim, ele amaria Miya...

Repentinamente, sentiu uma necessidade enorme de ter sua própria criança... ao lado de Shin. Seu pensamento guiou-se à imagem de Sakamoto segurando uma pequena como aquela nos braços, ensinando-a a cuidar de cachorros e a andar de cavalo. Lágrimas surgiram subitamente quando notou que jamais poderia gerar um filho... dar tal presente ao homem que amava.

Suspirou.

O que diabos estava pensando? Shin não merecia presente nenhum! Um homem que o humilhou e o ameaçou no pior momento de sua vida não tinha nenhum mérito em seus pensamentos.

— Mamoru... — Shiro o tirou da letargia.

Encarou-o. Percebeu os olhos repletos de lágrimas e viu-se a chorar também.

— Me perdoa, Aiko-san.

Riu, triste, daquela postura retraída. Ora, desde quando precisavam de explicações entre eles?

— Parece até que nunca mais vamos nos ver — brincou.

Shiro baixou a fronte.

— Pode me culpar pelo medo? — indagou. — Lembro-me de chorar no seu colo durante nossa despedida em 45, como se fosse ontem.

O vento balançou as mechas longas de Aiko. Ele suspirou.

— Sequer pude me despedir de você. Tudo que me lembro é de vê-lo entrando no abrigo e, depois, de Nana nas escadas... — balançou a face, afastando os pensamentos fúnebres. — Sou feliz porque agora posso dizer um “ até logo ”. Então, tenha certeza disso: Não é uma despedida, é apenas um afastamento temporário. Somos irmãos e não importa o tempo que passar, sempre estaremos ligados por algo mais forte que a própria existência.

Shiromiya sorriu, assentindo.

— Eu prometo que depois que Miya se tratar...

— Ei! — interrompeu-o. — Sem promessas tolas. É claro que passaremos vários dias juntos. Você irá me ver em Tóquio, e eu sempre virei visitá-lo em Kibou. Não vou deixar de acompanhar o crescimento da minha sobrinha — riu.

Shiromiya o abraçou forte, assim que as palavras cessaram. Ficaram daquele jeito, num silêncio que muito dizia, até que Ryo e Miya se aproximaram.

— Aiko — Satoshi se curvou perante ele —, eu te agradeço por...

— Cuide de Shiro — interceptou.

Não era um pedido, era uma ordem.

— Com a minha vida — Ryo garantiu.

— E se Miya se tornar um Shin de saias, eu juro que você vai se ver comigo.

Ryo negou.

— Prefiro morrer antes.

O balanço na sua mão, fez o ex-cortesão olhar para baixo.

— Quem é Shin?

— Shin Sakamoto é amigo de seu pai — Mamoru explicou. Em seguida, ergueu-a do chão. — Ojisan [22] vai sentir muito a sua falta, Miya — murmurou. — Mas eu prometo que irei vê-la assim que puder.

— Eu sei.

A garganta doeu, e ele percebeu que já chorava quando a colocou novamente no chão.

— Eu sei que nos conhecemos há poucos dias, mas eu já a amo, Miya.

— Eu também, tio — ela respondeu, simples.

Então, Shiro entregou as chaves da casa para Mamoru.

— Fique o tempo que quiser.

— Obrigado.

— E perdoe-me mais uma vez.

Outro abraço, daquela vez mais curto. Então, os três entraram no veículo e Aiko permaneceu estático enquanto os via distanciar-se. Sabia que Shiromiya não voltaria mais para Kibou, mas aquilo não o entristeceu. Repentinamente, riu. Parecia que os dias de sofrimento de Shiromiya haviam se findado.


***


Depois da guerra, Shin Sakamoto e Ryo Satoshi perderam o viço de viver e uniram-se no próprio desespero, temerosos de um futuro sombrio. Passavam, então, os dias sentados um ao lado do outro, bebendo bebida destilada e reclamando de cada segundo de suas existências. Após 1947, quando Ryo teve mais uma decepção em sua busca desenfreada por Shiromiya, ele sugeriu a Shin que se tornassem sócios.

“ Entre apenas com o dinheiro ”, Ryo pediu. “ Eu farei a administração ”.

Talvez porque a ideia de uma rede de hotéis o agradou, ou talvez porque confiasse demasiadamente no tino de negócios de Satoshi, Shin investiu uma boa parcela de sua herança na construção de uma rede hoteleira que ia de Hokkaido a Okinawa. Divertiu-se por meses ao ver os prédios serem erguidos e participou efetivamente da escolha dos funcionários. Porém a diversão quase se tornou uma briga, quando eles tiveram que escolher o nome da rede.

“ SS é ridículo !” Ryo esbravejou. “ Vai parecer que somos nazistas! ”

O “ SS ” era referente à “ Satoshi e Shin ”. Ironicamente, era a mesma sigla da extinta polícia de Hitler.

“ Então que tal Besta abandonada e Idiota que afugentou o seu grande amor? ”.

A cara que Ryo fez ao receber as palavras, fez Shin estremecer.

“ Precisamos de um nome profissional e forte. Algo como... uma tempestade ”.

“ Arashi? ” — Shin ergueu as sobrancelhas negras. “ Eu odiei ”.

“ E você, por acaso, gosta de alguma coisa? ”.

“ Dos meus lindos olhos negros, da minha pele acetinada e da minha personalidade majestosa ”.

Ryo se irritou com a falta de foco.

“ Por que tive a desgraça da ideia de ser teu sócio? ”.

“ Por que não te fode ao invés de reclamar? ”.

“ Vai você! ”.

“ Morra! ”.

Ao final daquela tarde, eles já eram os melhores amigos novamente.

Enfim, Miya não sabia da briga por causa do nome, tampouco desconfiava do clima que inundou os donos daquele prédio ao se unirem para colocá-lo de pé, mas, quando se aproximou daquela enorme construção no centro de Niigata, ela balbuciou “ Arashi ” com profunda admiração.

De uma beleza aristocrata, com pilares que lembravam os antigos templos gregos e com um perfume marcante de incenso, aquele prédio de três andares, distribuído em uma horizontal e vasta fileira de janelas, aparentava o castelo da cinderela, dos contos infantis que ela leu na escola.

Era impossível não se empolgar e ela sorriu extasiada para o pai Ryo, que a observava.

— É lindo — murmurou.

Ele assentiu, devolvendo o sorriso.

— É seu?— a criança questionou.

Mais uma vez, ele concordou. Contudo, acrescentou.

— E seu.

— Meu?

— Tudo que eu tenho é seu, Miya. Já ordenei a Tadao para torná-la minha herdeira.

Pela confusão nos olhos da pequena, Ryo percebeu que ela não havia compreendido o que aquilo queria dizer.

— Não falamos sobre isso — o tom do papa Shiro a fez arregalar os olhos. Impressão sua ou ele estava furioso?

— Ela é...

— Ela é minha filha! — Shiro disse, firme. — E qualquer decisão que envolva o futuro dela deve ser discutida comigo.

Ryo se envergonhou.

— Sim, eu compreendo. Perdoe-me.

Kazue pareceu constrangido diante do semblante culpado do outro.

— Compreenda que tudo que ela precisa, no momento, é do tratamento.

Ryo pareceu concordar, mas foi apenas um ato em prol de evitar qualquer animosidade entre eles. Porque a verdade é que ele não iria alterar em nada seu planejamento. Miya seria sua herdeira absoluta e Shiromiya Kazue, como pai, o tutor legal dela. Tadao já havia organizado o testamento.

Depois da guerra, passou a desprezar sua vida. Contudo, agora tinha motivos de sobra para viver e para ser responsável com o futuro. Miya não passaria por nenhum tipo de necessidade. Nunca mais.

— Iremos passar a noite aqui? — Shiro indagou, buscando sua atenção.

— Tadao está preparando a casa para receber vocês — Ryo explicou, fazendo com que Shiro franzisse a testa.

Por que a visita de um homem e uma criança precisava de qualquer preparação? Shiro podia dormir num sofá ou no chão. Miya podia dormir no quarto que ele ocupara, ou em qualquer outro, de hóspedes.

— E hoje ele esteve bastante ocupado em busca de um marceneiro que construísse um galinheiro rapidamente... — riu, prosseguindo. — Então, como a consulta de Miya ficou para a próxima semana, pensei que poderíamos passar uns dias aqui para descansarmos e... enfim... — buscou as palavras com nervosismo — Eu pensei que poderíamos ter um tempo nosso.

— Isso não é um passeio — Shiro insistiu, deixando as coisas bem claras.

— Tenho ciência disso. Contudo é a primeira vez que posso ser completamente franco com você. Preciso reconquistar sua confiança, Shiro. Deixe-me, pelo menos, tentar.

Não obteve respostas, simplesmente porque Shiromiya não tinha o que responder. Havia em si muitos conflitos e ele não estava pronto para nada naquela relação.

— Onde está Miya?

Diante da pergunta de Ryo, olhou para frente. Nos míseros segundos que tirou os olhos dela, a menina havia desaparecido de suas vistas.


***


— Hum... — o gemido fez o estômago de Saito Jiro revirar. — Que delícia.

Sentado à mesa de jantar, encarando um lanche apetitoso e sentindo a garganta secar, ele se perguntou em como o tempo podia mudar as pessoas. Há pouco mais de uma década, ele adorava o som daquela voz, o cheiro masculino que o outro homem exalava, e cada olhar que lhe destinava. No momento, diante do ex-capitão Oguri, tudo que ele sentia era nojo e raiva. No momento, o nojo era maior que a raiva.

— Precisa experimentar, Jiro — Oguri disse, passando-lhe um pedaço de pão com um creme marrom. — Os americanos chamam de pasta de amendoim. É incrível.

— Não sinto fome — recusou.

Oguri o encarou, sério.

— Faça um esforço — pediu. — Para me agradar.

— Não tenho nenhuma vontade de te agradar — devolveu.

Pela rapidez da respiração de Oguri, ele percebeu que o outro não gostara daquela rebeldia. Mesmo assim, não recuou. De cabeça erguida, sustentou o olhar sem medo.

— Talvez o aspecto do doce lhe lembre das pessoas defecando na roupa enquanto você as torturava e assassinava — a voz pungente o feriu. — Não o culpo pela falta de apetite, Jiro. Afinal de contas, realmente deve ser nojento lembrar-se do próprio passado.

Repentinamente, a cadeira foi afastada e Oguri ficou em pé.

— Siga um bom conselho, meu querido — o mais velho destacou. — Agrade-me e terá tudo comigo. Do contrário, o único que sofrera é você.

Quando o som dos passos pesados indicava que o outro havia saído da sala, Saito apertou os olhos, respirando fundo. Tudo que queria, naquele instante, era estar bem longe dali, diante de alguém que jamais o feriria pelo seu passado. E a única pessoa que se adequava aquela lista era um certo rapazote americano que ele tanto desprezara.

 

Capítulo 32


O enorme chafariz ficava ao centro do salão de entrada do hotel Arashi. Era de uma tonalidade metálica e, no meio dele, uma escultura de quase dois metros segurava um vaso de onde água despencava ininterruptamente, num processo quase hipnotizante.

Miya encarou a mulher de concreto. Seu rosto sem expressão, seu corpo perfeito, os seios nus e uma cauda em lugar das pernas. Era linda. E era, pelo seu pouco conhecimento em mitologia, uma sereia.

Lembrava-se de ter lido nos livros que aquelas mulheres costumavam atrair os homens e matá-los. Como era uma garota, não se preocupou com o fato. Tudo que fez, foi ansiar por um dia conhecer uma daquelas belas criaturas mágicas.

— Seu sapato está furado.

Uma menininha pequena, de cabelos cortados à altura do ombro, de vestido escuro bem talhado e de sapatos brilhantes, encarava-a. Sorriu, constrangida.

— Sou Miya — apresentou-se.

A menina que, provavelmente, tinha a sua idade, ergueu a sobrancelha em escárnio. Contudo, nada disse enquanto retornava ao seu lugar, próximo de um homem alto e bem vestido. Miya observou a cena. A criança disse algo ao homem, que girou o rosto e a encarou. Depois, ele começou a caminhar em direção ao balcão, onde um atendente uniformizado ouviu atentamente sua fala e também a observou.

Esquecendo a cena imediatamente, ela volveu para a sereia, prosseguindo no seu encantamento. Todo aquele ambiente era bonito, de encher os olhos. Ergueu as mãos e tocou na água fria. Só então percebeu pequenos peixes dourados zanzando tranquilamente.

Peixes! Esquecera-se de pedir peixes para o pai Ryo. Queria todos... todos do mundo!

— Como você entrou aqui?

Um homem de terno, e olhar arrogante a mediu de cima a baixo. A criança voltou-se para ele e sorriu.

— Meu pai me trouxe — contou, feliz.

— Sei — ele resmungou, pegando em seu braço. — Aqui não é seu lugar. Vá embora.

— Mas eu...

— Não entre mais aqui! — ele foi firme, enquanto a guiava em direção à saída.

Repentinamente, estancou. Miya desviou seu olhar do rosto agressivo e encarou os pais, que surgiram à porta. O pai Ryo estava nitidamente furioso e sua postura fez com que o homem grande a soltasse.

Por puro instinto, ela aproximou-se de Shiro, que a pôs no colo. Não estava com medo, era apenas uma sensação estranha, como se precisasse de abrigo.

— O que está acontecendo aqui? — Ryo indagou.

— Lamento, senhor — o homem curvou-se. — Estava guiando a criança para fora. Não sei como entrou.

— Como assim, não sabe como entrou?

— Os hóspedes reclamaram e...

— Você estava expulsando a minha filha do meu hotel?

O homem arregalou os olhos, enquanto os olhos cruzavam entre a criança de sapatos velhos e um dos burgueses mais ricos do país.

— Sua filha?

— Minha filha — Ryo afirmou, deixando bem claro o tom raivoso. — E você está despedido.

O homem baixou a face, enrubescido de vergonha. Quis se desculpar mais uma vez, mas a voz não saiu. Contudo, outro som emergiu, como a voz de um anjo, para salvá-lo.

— Despedido por quê? Tudo que fez foi o seu trabalho.

Ergueu a face e encarou o homem bonito que segurava a menina. Também estava com roupas gastas e, nitidamente, se notava que era um trabalhador braçal.

— Ele... — Ryo mudou o tom, parecendo culpado, mas foi interrompido.

— Como o gerente poderia saber que ela é sua filha? — Shiro insistiu. — E, caso fosse qualquer outra criança, ele não deveria expulsar do hotel? Ou você permite que crianças pobres e maltrapilhas circulem livremente por esse lugar luxuoso?

Ryo balançou a face, nervoso.

— Shiro...

— Você deve um pedido de desculpas para o seu empregado.

Satoshi quase engasgou. Era a primeira vez que estava naquela posição. Jamais havia pedido qualquer tipo de perdão aos que empregava, não importava o quão grosso ou errado havia sido. Afinal de contas, era ele que pagava os salários.

— Não é necessário — o gerente do hotel interpôs-se.

— Para mim é — Shiro falou alto. — E para você, Ry-chan?

O apelido entrou em Ryo, e ele sorriu por dentro. Pareceu – e ele estava certo nisso – que tal escapou dos lábios de Shiromiya, mas não se importou. Quase beijou o gerente do hotel, agradecendo pelo momento.

— É claro — a voz saiu mais feliz do que desejava. — Não havia como você saber — assentiu. — Peço desculpas. Entenda que, como pai, é algo insuportável que qualquer pessoa maltrate a minha filhinha.

O homem sorriu.

— Eu não sabia que era pai, Ryo-san.

— É uma longa história — avisou. — Por favor, arrume minha suíte e peça para que coloquem uma cama de solteiro nela também. Quero que Miya fique conosco.

— Sim, senhor.

O homem até pensou em indagar se precisariam de mais uma cama, tendo em vista que eram três pessoas, quando a voz em tom de encerramento do chefe o interrompeu.

— Nós jantaremos no quarto. Providencie algo para que possamos comer.

Mais uma vez, aquiescência. Depois, o homem afastou-se, e Satoshi voltou-se inteiramente para Kazue.

— Lamento que tenha presenciado isso.

Kazue quase riu. Já havia vivido situações bem mais complicadas na vida. Uma simples cena como aquela sequer alterava seu humor.

— E você, Miya, está bem?

— Eu quero todos os peixes do mundo — ela respondeu, parecendo alheia à cena anterior.

— Todos? — Ryo quase riu. — Por que sempre tem que ser todos os animais que existem?

— Porque eu os amo — sua franqueza fez Ryo rir. — E quero poder dar a eles todo o meu amor.

Era uma resposta simples, direta e objetiva. Exatamente como ela.


***


O rapaz de cabelos castanhos escondeu o rosto entre os dedos pálidos. À sua frente, estava uma garrafa de conhaque pela metade e à sua volta, outros bêbados sem esperança com a vida.

Eram onze horas da noite. O silêncio em Tóquio não incomodava. Naquele bar de subúrbio, outros americanos bebiam e riam, enquanto mulheres japonesas simulando gueixas sentavam-se em seus colos, fingindo risos e alegria que – tinha certeza – elas estavam longe de sentir.

— Demorei para achá-lo — Shin surgiu ao seu lado e ele afundou ainda mais o rosto entre as mãos.

— Por que diabos está aqui? — indagou, mesmo assim.

— Mamoru me ligou — avisou. — Ele iria voltar em breve, mas decidiu ficar na casa de Shiro. Disse que não está preparado para me encarar. O que isso significa? Como assim não está preparado para me encarar? O que você acha que ele quis dizer com isso?

— Nós não somos amigos! — Daniel reagiu. — Por que está desabafando comigo?

— Ele me ama. Quando Jiro o deixou, ele se obrigou a encarar isso. Por que então não me perdoa e nos permite vivermos felizes?

O americano o encarou. Apático, riu, desdenhoso.

— Aiko-san não merece passar o resto da vida ao lado de uma pessoa como você.

Shin se sentou ao seu lado. Daniel gemeu. Não queria brigar, não era de personalidade forte e arredia. Contudo, aquele homem lhe dava nos nervos.

— Você podia ir atrás dele e pedir para que voltasse – Shin sugeriu.

Por que demônios faria aquilo?

— Está zoando com a minha cara?

Encarou-o. O olhar pedinte fê-lo beber mais um gole da bebida alcoólica.

— Jiro... — murmurou, fazendo com que Sakamoto o encarasse. — Jiro era mesmo um sargento?

Não houve assombro no outro.

— Ele te contou?

— Oguri me contou.

— Procurou-o?

— Procurei por Jiro. Eu o amo, quero protegê-lo.

Repentinamente, o jovem americano sentiu um toque no ombro. Arregalou os olhos, estranhando aquela atitude. Shin Sakamoto nunca antes lhe demonstrara qualquer tipo de solidariedade.

— Saito era só um garoto quando entrou para o exército. E só o fez porque se apaixonou por um homem mais velho, que o iludiu com promessas de amor. Esse homem é Oguri.

Daniel Joshua abandonou o copo e voltou-se totalmente para Sakamoto.

— Depois de algum tempo, já abandonado por Oguri, mas preso a uma lei moral pela Kempeitai, nada pôde fazer quando foi transferido para um campo de estudos na China. Jiro acreditou piamente que estivesse indo para um campo científico, mas foi enviado a um campo de concentração. Acredite em mim, tudo que ele fez foi obedecer a ordens. Jiro nunca foi um monstro, apenas uma marionete nas mãos de gente ambiciosa e doentia.

Daniel balançou a face.

— Ele não foi seu amante, então?

— Já dormimos juntos, mas somos apenas amigos. Jiro sempre amou Mamoru.

— E você? Quem amou?

— Igualmente, amei e amo Mamoru. Mas amo Saito também. Morreria por ele sem pensar duas vezes.

— Só que é um amor diferente?

— Não sei explicar — Shin admitiu. — Ele foi o único homem da face da terra que não avassalei por ter se aproximado de Aiko.

Daniel se levantou.

— Falei com Ryo-san. Ele está protegendo Shiromiya, e ninguém vai tirar a filha deles. Aiko está no interior, longe das milícias. Oguri desconhece sua localidade. Então, não seria uma boa hora para tirarmos Jiro de lá?

O americano o encarou. Não entendia direito aquele pensamento, mas desconversou.

— Eu não sei — foi franco. — Preciso pensar.

— Pensar? Jiro não tem tempo... — mordeu o lábio inferior, controlando a raiva. — Eu preciso de ajuda... Você consegue compreender isso? Não sou muito bom em planos. Sei executar, mas pensar em soluções sozinho? Não funciona! Estou engolindo meu orgulho e te procurando. Pensa tão pouco em Jiro assim?

O outro não respondeu. Simplesmente se afastou, em um silêncio perturbador.

Viu fotos do julgamento de Nuremberg. Sabia o que o eixo havia feito durante a guerra. Não culpava os civis daqueles países, mas... os militares? Eram uma raça demoníaca, capazes de tudo.

O Saito que se deitava com ele, sedutor, em nada se assemelhava à imagem que tinha daqueles que matavam pessoas inocentes em prol de suas loucuras.

O que ele devia fazer? O que Jiro faria no lugar dele?

Preparava-se para retornar, quando trombou em um nipônico baixo.

— Desculpe-me — pediu, sem olhá-lo nos olhos.

Volveu novamente para o bar, onde Shin bebia o resto de conhaque de sua garrafa. Contudo, não deu dois passos e seu braço foi segurado por duas mãos delicadas. Um toque que ele nunca esqueceu.

— Daniel...

O chamado fez seu coração apertar. Girou o rosto.

— Ren... — murmurou.


***


Shiromiya ajudou Miya a tomar banho naquela banheira luxuosa, e depois se banhou também. Era um ambiente rico, perfeito. Cada detalhe pensado e repensado para denotar luxo e beleza. Quando saiu do banheiro conjugado, encontrou a filha sentada e mordiscando, com olhos culpados, um pedaço de frango assado que havia sido colocado no centro da mesa alta.

— Estava com fome — ela resmungou.

Shiromiya sorriu. Jamais imaginou que um dia voltaria a um ambiente com tanto glamour. Sentou-se à mesa, de frente para ela, e começou a servi-la.

— Que comida estranha... — ela comentou, acostumada a coisas simples.

— Mas é gostoso — ele sorriu. — As batatas são cozidas com manteiga, o frango tem uma casquinha temperada, e o arroz tem milhos e ervilhas. Você vai gostar.

— Papai virá jantar conosco?

Era a primeira vez que ela chamava Ryo assim na sua frente. Shiro sentiu um arrepio, algo muito intenso, que cortou seu coração, e o fez sentir lágrimas surgirem nos olhos.

— Miya...

Calou-se. Não, não precisava daquela conversa naquele momento. Precisava dar à filha um tempo feliz, para que ela pudesse se curar o quanto antes.

Assim que entrou no carro, prometeu a si mesmo seguir o fluxo. Se Ryo queria um amante, era o que teria. Se o que desejava era um amigo, um companheiro, alguém para conversar... todas essas coisas, ele estaria disposto a ser. Não recuaria a nada. Não se negaria a nada. Mesmo que o despedaçasse e o destruísse. Ele arriscaria tudo para que Miya pudesse se tratar pelo tempo que precisasse. Não tiraria Ryo do sério, não o importunaria, não arriscaria nada que pudesse fazer o comerciante desistir daquele amparo.

Mordeu o pedaço de frango ao se recordar da entrada naquele hotel. Por puro instinto, defendeu o empregado. Agira daquela forma porque cansara de ser humilhado por gente com mais recursos que ele. Sabia que os ricos viam os pobres como inferiores, e precisou dar um basta na cena. Arrependeu-se tão logo Ryo lhe avisou que iria assinar alguns papéis que “ aquele cretino do Sakamoto ” não assinara. Temeroso de ter despertado algo que não devia em Ryo, ele mal conseguiu engolir a comida.

Voltou os olhos para baixo. Miya não estava nem um pouco acanhada diante de tantos pratos saborosos.

— Papai virá jantar conosco? — ela insistiu. — Ou eu posso comer tudo?

Shiro quase riu.

— Você não vai conseguir comer o frango inteiro, filha.

— Quer apostar, papa?

Ela bem que tentou, mas foi vencida logo na segunda vez em que foi servida.

Depois de comer, o cansaço e a animação da viagem logo lhe deixaram sonolenta, e Shiro a deitou na cama bonita e aconchegante que colocaram ao lado de onde ele e Ryo dormiriam.

Aninhou-a por um tempo, até vê-la ressonar. Sentiu falta de quando ela era menor e ele podia balançá-la nos braços. Agora, mais pesada, não conseguia embalar seu bebezinho sem sentir os braços doerem.

Depois de um tempo, camareiros surgiram para levar as sobras embora. Shiro viu-os cumprirem suas obrigações e sorriu agradecido, antes de eles saírem.

Deitou-se e aguardou. Ryo estava demorando e ele sentia o coração saltar do peito. Sem notar, logo o cansaço também o venceu e ele cochilou, esquecido das coisas que o preocupavam.

Acordou com o som de passos. Abriu os olhos e olhou em volta. Ryo estava agachado ao lado da cama de Miya, e beijava a sua bochecha, num desejo mudo de que ela tivesse doces sonhos. Sorriu, apaixonado.

Sim, apaixonado.

Por mais que não quisesse aquele sentimento, não podia escondê-lo de si mesmo. Por que Satoshi conseguia destruir todas as suas defesas com tanta facilidade?

Ryo então voltou-se para ele.

— Desculpe o atraso — disse, tranquilo. — Parece que Shin não fez nenhuma de suas obrigações pelo tempo que me afastei.

Shiro assentiu. Não entendia muito dos negócios deles.

— Você já jantou?

— Comi um sanduíche — o outro respondeu. — Vou tomar um banho porque sinto todo o meu rosto empoeirado — riu, baixinho.

Shiro assentiu. Sentou-se na cama e o aguardou. Cerca de quinze minutos depois, o comerciante surgiu. Vestia uma calça de linho e o torso estava descoberto, fazendo a boca de Shiromiya secar.

Ryo não pediu, nem avisou que se deitaria ao seu lado. Simplesmente, afastou as cobertas e enfiou-se embaixo dos lençóis. Tentando manter a calma, deitou-se também.

Shiro sentia a respiração ritmada dele e imaginou o que aconteceria então. Sexo não, afinal de contas, a filha estava dormindo a menos de três metros deles. Conversa, também não, pois Satoshi dirigira o dia todo e estava exausto. Então... O quê?

Sentiu-o segurando suas mãos. Só então notou que segurara a respiração, de puro nervosismo. Voltou o rosto e o encarou.

— Eu te amo — Ryo confessou, mais uma vez. — Vou cuidar de você, mas preciso que cuide de mim também.

Aquele pedido estranho fez Shiro arquear as sobrancelhas.

— Não me deixe mais, Shiro. Não posso mais viver sem você.

Ele mal percebeu as lágrimas começarem a cair, mas quando o abraçou fortemente embaixo daquelas cobertas, soube que dificilmente conseguiria sair daqueles braços.

 

Capítulo 33


A réstia de sol adentrou pelo vão da cortina e fez seus olhos arderem. Uma mão na sua cintura fê-lo sorrir, esperançoso pelo dia que se iniciava, prenúncio de uma vida nova.

A respiração de Shiro às suas costas e o encaixe dos corpos, dormindo em concha, lhe trouxe uma segurança espontânea. Era aquilo, aquela vida perfeita que sempre ambicionou. Não era o quarto nem o conforto... era a pessoa, agarrada a ele, dormindo profundamente. Era o cheiro de Shiromiya que parecia adentrar sua mente, causando alvoroço. Quis se mover, ficar de frente para ele, apertá-lo contra si, beijar sua boca, lamber seu queixo, deslizar as mãos por seu ventre, agarrar seu mastro, gemer contra sua pele... enfim, amá-lo. Mas todas as suas vontades tiveram que ser contidas, pois, ao abrir os olhos, encarou a filha que o observava atentamente.

— Bom dia, amor — disse, baixinho, não querendo acordar Shiro.

— Não tem porta — ela avisou, fazendo referência a distância entre a sua cama e a dos pais, tentando se desculpar por não ter batido.

— Eu sei — achou graça do olhar culpado. — Você está com fome?

A menina assentiu.

Levemente, ele retirou o braço de Shiro da sua cintura e se levantou. Pôs o dedo polegar ereto nos lábios, pedindo para que a menina fizesse silêncio. “ Papa está cansado, vamos deixá-lo dormir ”, advertiu. Depois foi com ela até as malas e a ajudou a se vestir.

— Você me espera aqui? — indagou. — Vou tomar um banho rápido e já desceremos.

Enquanto a água escorria pelo seu corpo, ele imaginou se merecia tanta bênção. Durante toda a sua vida foi uma pessoa mesquinha e covarde. Naquele momento, era agraciado com a presença de um homem generoso e que esbanjava coragem. Shiro havia criado a sua Miya com tanto amor e responsabilidade, que ele pensou em si mesmo. Teria tido tanta dedicação, caso os papéis fossem inversos?

Saiu do banheiro e a viu, sentada na cama. O leito já estava arrumado. Sorriu porque, pela primeira vez, notou que Shiro a ensinara a fazer pequenas tarefas.

Alguns minutos depois, eles já estavam na área do restaurante do hotel, sentados e, frente a uma mesa vasta, repleta de iguarias.

— Posso comer tudo?

A indagação de Miya parecia assombrosa. Ryo mal podia conter o ânimo diante daquele olhar. Orgulhoso, pôs um guardanapo no colo dela, e serviu-a com pães e queijos.

— Iremos fazer compras hoje — avisou. — Ontem à noite, pedi para que um dos funcionários avisasse uma costureira famosa da cidade para que ela providenciasse roupas infantis.

— Tão rápido?

— Quando você promete pagar três vezes mais pela urgência, as pessoas se apressam sem pensar, Miya — explicou. — Você precisará experimentá-las e fazer os ajustes.

Ela sorriu, mas não pareceu muito entusiasmada. Ryo imaginou o motivo. Estava com o costumeiro uniforme bege “cor de nada”, como ele costumava chamar. O vestido floral que havia dado a ela fora usado no dia anterior e estava sujo. Então, ela praticamente não tinha o que vestir. Só suas velhas roupas que não encantariam nenhuma menina naquela idade.

— Não é muito vaidosa, não é, filha?

Ela mordeu o pão e sorriu.

— Eu gosto de vestidos — explicou. — Mas prefiro cachorros.

— Terá cães, eu prometo — sorriu. — Assim que chegarmos em casa.

— Mas não serão os meus cãezinhos — o olhar bonito ficou abatido. — Meus bichinhos morreram sem saber o que era um lar.

O que estava havendo com ele? Por que sentiu vontade de chorar? Era incrível como aquela pequena podia influenciá-lo.

— Mas você deu um lar para eles — afirmou. — Seu amor valeu por toda uma família.

Miya não respondeu. Voltou a comer, lacônica. Ryo então segurou a xícara de café e esgueirou-se para trás, no encosto da cadeira. Só então percebeu que aquele mundo ao qual pertencia era extremamente guiado pelas aparências. À sua volta, onde gente com muito dinheiro se alimentava, os olhares recriminadores pareciam queimar. A criança nada notou, mas ele sentiu todo o estômago esquentando ao notar uma senhora à esquerda encarando a criança com excessivo nojo.

Precisou de todo o seu autocontrole para não expulsar nenhum dos hóspedes. Como aquela gente se atrevia a encarar a filha dele com aquele tom petulante? Miya teria muito mais dinheiro em sua vida do que todos eles juntos! Contudo, nada fez, porque admitiu que ele teria a mesma reação, caso não fosse a criança que ele amava.

Mais tarde, o desafio foi encarar uma das melhores costureiras do Japão, que ergueu a sobrancelha em total espanto ao observar a menina baixa.

— É uma longa história — Ryo disse, assim que a bonita e requintada Kaori Kento o encarou.

— Uma filha, Ryo-san? — a costureira riu, baixo. — E diziam a bocas pequenas que você havia se tornado um celibato.

— Diziam mais coisas — ele foi cínico. — E sei que essas coisas em nada tinham a ver com o celibato.

— As pessoas são maldosas — Kaori finalizou, trazendo um vestido pronto de um dos balcões.

Enquanto Miya estendia as mãos e pegava o tecido, ele encarou a criança. Apesar do que Miya dissera antes, ela agora parecia deslumbrada pela qualidade e pelo tom amarelo claro. Era, realmente, uma peça única.

— Não foi maldade — ele contou à costureira, repentinamente sabendo que não mais mentiria a ninguém sobre sua condição. — É tudo verdade.

A mulher abriu a boca, espantada.

— Não devemos estar falando do mesmo assunto — Kaori tentou consertar.

— Estamos — foi firme. — Eu não vou dizer que sou homossexual, porque homossexuais sentem atração por homens. Eu não sinto atração por homens. Eu sinto por apenas uma pessoa. E veio a ser um rapaz. Ele se chama Shiro, então, eu comecei a definir minha condição por Shirossexual.

A mulher riu.

— Bom, eu sempre acreditei que devia amar uma pessoa e não uma sexualidade. Espero que seja feliz.

Depois disso, os adultos não tocaram mais no assunto. Ryo sentou-se em uma bela poltrona e ficou a admirar a filha escolhendo as roupas de que mais gostava. Kento lhe confidenciara que as peças haviam sido encomendadas por antecedência por outro cliente, que desistira da compra. Miya, então, estaria repleta de casacos, vestidos e macacões fofos.

— Eu não sei de qual gosto mais — ela o encarou, erguendo dois vestidos.

— Você pode ficar com todos.

— Posso mesmo?

— É claro, amor... Tudo que você quiser.

E era uma verdade. Ryo sempre lhe daria tudo que ela desejasse, e aquela promessa se seguiria por toda a vida.


***


Shiromiya terminou de arrumar a cama, sentindo-se completamente envergonhado. Havia apagado num sono exausto. Sequer percebeu Ryo e Miya saindo do quarto, e só acordara próximo do meio dia, quando uma moça da recepção bateu à porta e lhe avisou que Ryo o aguardava no restaurante.

Depois das pequenas tarefas, ele arrumou-se e desceu. Cruzou por alguns olhares significativos, mas aquilo não o afetou. Não era uma novidade, afinal de contas. Conhecia os ricos, sabia o que o poder era capaz de fazer, e jamais se permitiria novamente sentir-se inferior pelos bolsos vazios.

— Olhe pra mim! — a voz infantil chegou a ele, assim que entrou no restaurante. — Papai me deu uma fita — ela mostrou o cabelo cuidadosamente atado com um laço de cetim. Depois, girou em volta de si mesma, mostrando o vestido cor-de-rosa que parecia ter feito sob medida para ela. — Eu estou bonita?

Shiro tentou não sorrir, mas era impossível.

— É claro que está — ele deslizou a mão na face macia. — Você é a menina mais bonita do mundo — disse, do fundo do coração.

Depois, encarou Ryo.

— Obrigado — foi sincero.

Provavelmente, ela nunca teria a oportunidade de vestir algo bonito, não fosse pelo comerciante.

— Comprei algumas coisas para você também — Ryo comentou, receoso. — Eu quero que se sinta à vontade.

Shiromiya sentou-se à mesa. Aquele contentamento incrível que parecia tomar todo seu ser, mal podia ser escondido. Céus! ele tentou se concentrar no falatório da filha, falando sobre a moça bonita que escovou seus cabelos e sobre os vestidos que comprara, mas tudo que desejava e que lhe tomava a mente era a necessidade de segurar as mãos de Ryo e lhe afirmar que ainda o amava.

Porém estava certo? E se fosse mais um erro? Como evitar o medo depois de tudo?

— Estava pensando que podíamos passear pela cidade — Ryo comentou. — O que acha de levarmos Miya para conhecer a praia?

— Mas está frio — Shiro objetou.

— A praia? — ela parecia tão interessada que nem lhe ouviu. — Sim, papa... — implorou a Shiromiya. — Eu quero conhecer a praia!

Diante de tanta insistência, o que mais ele podia fazer a não ser concordar?


***

Miya deslizou o dedo polegar pela água gelada. Durante a tarde, havia passeado com os pais pela praia, catando conchinhas e brincado de pular ondas. Naquele momento, depois de tomar banho e lanchar, ela estava diante da escultura da sereia, que tanto a fascinava. Sentou-se à borda da fonte e ficou a brincar com os peixinhos dourados.

Nunca, até então, havia se divertido tanto com o passar dos dias. E pensar que ela podia estar, naquele instante, preocupada em ter que ir para as aulas da senhorita Emi-sensei. Riu baixinho. Esperava nunca mais ter que olhar para a cara da professora.

— Olá.

Volveu os olhos diante do tom feminino. Ao seu lado, a menina do primeiro dia, dessa vez, encarava-a com total simpatia.

— Você é a garota que eu encontrei uns dois dias atrás?

Miya assentiu.

— Eu sou Akemi — ela se apresentou, curvando-se docemente. — E você, como se chama?

— Eu sou Miya.

A menina bonita sorriu.

— É verdade que você é a filha do dono desse hotel?

— Meu papai tem muitos hotéis — ela contou, orgulhosa.

— Isso é muito legal — Akemi assentiu. — Onde você estuda?

— Na minha cidade — explicou. — Em Kibou. E você?

— Kibou? — ela arqueou as sobrancelhas. — Nunca ouvi falar — admitiu. — Eu estudo em um internato para meninas, em Tóquio. Mas papai me prometeu que ano que vem irei para os Estados Unidos. E você? Quantas vezes já viajou para fora do país?

Miya coçou a cabeça. Ficou envergonhada ao falar.

— Nunca.

— Nossa, é mesmo?

— Sim, mas não me importo.

— Com certeza, se você pedir, seu pai a levará para conhecer outros países — ela aconselhou, num tom confortador. — Vamos ser amigas?

Parecia um sonho pela ótica daquela menina rejeitada. Ora, outra garota, tão bonita que se assemelhava às princesas dos contos infantis, querendo sua amizade?

— Sim! — quase gritou. — Vamos brincar? Minha boneca Princesa e meu boneco Sr. Bigode estão nas malas!

A menina negou.

— Depois brincamos com os bonecos. Temos coisas melhores a fazer!

E a segurando pela mão, puxou-a em direção aos fundos.


***


— Pela sua cara — Akemi comentou — você não conhecia esse lugar.

— É a primeira vez que conheço um hotel do meu pai — Miya contou. — Não sabia que tinha um campo tão bonito atrás dele. Ontem, só ficamos na recepção e no restaurante.

— Papai gosta de se hospedar no Arashi exatamente porque ele pode vir para cá, e sentar-se às sombras das cerejeiras, enquanto bebe saquê.

O sol já havia se despedido, mas o grande espaço traseiro do hotel era adornado e iluminado por bonitos postes brancos, que faziam uma fileira em volta de bancos de gesso.

— Eu tenho uma coisa para te mostrar — a menina sussurrou. — É algo para nós brincarmos.

Parecia uma travessura, e Miya animou-se por tal. Seguiu a amiga, cada vez mais fascinada pela postura de liderança da outra.

Foi então que chegaram até um paredão de concreto, um muro. Não havia nada lá, a primeira vista. Contudo, um miado baixo e fraco fez a filha de Shiromiya olhar para baixo.

— É um gatinho? — ela murmurou, já sentindo o coração sangrar.

O pequenino felino, que não devia ter mais que um mês, estava bastante fraco e coberto de ferimentos.

— Meu pai disse que essas pragas se alastraram depois da guerra — Akemi abaixou-se e pegou uma pedra. — Então, vamos brincar?

Miya voltou-se para ela.

— Não entendo...

E, realmente, não entendia. O que a menina iria fazer?

— A gente atira na cabeça, com força — explicou. — É engraçado porque eles dão saltos enormes enquanto morrem — pegou no braço de Miya e a afastou, numa distância que tornava a “brincadeira” mais desafiante. — Vamos lá, tem que acertar, hem? — estava animada. — Você primeiro.

— Mas...

Akemi ergueu a mão de Miya e depositou uma pedra nela.

— Para sermos amigas — condicionou —, você tem que fazer o que eu quero.

Depois, caminhou até a metade do caminho. Entre o gato e Miya, ela ergueu o queixo, orgulhosa de sua manipulação.

— Atire!

Por alguns segundos, Miya encarou a pedra. Depois, observou a menina. Nunca tinha tido uma amiga, nenhuma criança para brincar. Sentia tanta falta disso, queria tanto uma companhia de sua idade... o que ela devia fazer?

Respirou fundo e então atirou.


***


Ryo moveu a caneta enquanto lia o contrato de fornecimento para os hotéis do sul. Queria matar Shin Sakamoto e, provavelmente, o faria, assim que colocasse as mãos nele. Shin, durante todos aqueles meses, tornara a vida de Tadao um inferno e, por fim, disse que estava cansado demais até mesmo para assinar papeladas prontas, o que ocasionou em uma interrupção do serviço em alguns lugares.

— Eu poderia ter ligado para você, Ryo-san — Tadao lhe disse, momentos antes, pelo telefone. — Mas temi que pudesse incomodar sua vida com Shiromiya-san. Sinceramente, sei que a sua prioridade é Shiro e a criança.

Ele agradeceu o servo, salientando que fizera bem. Contudo, levaria meses revendo cálculos e papeladas, afinal de contas, várias taxas haviam se modificado desde novembro.

Uma batida na porta do escritório, e ele ergueu a face.

— Sim?

Shiro surgiu diante dos seus olhos. Havia colocado o quimono que ele havia lhe comprado, estava tão bonito que, por alguns segundos, Ryo reteve o ar, incapaz até mesmo de respirar.

— Vim agradecê-lo — disse, erguendo as mangas, sorrindo.

Ryo devolveu o sorriso. Na mesma hora, largou a caneta, mandando às favas todo o trabalho. Levantou-se e foi até o outro, puxando-o para dentro do escritório e fechando a porta a chave.

— Ryo-san? — a sobrancelha de Shiro ergueu-se, insegura. — Você...?

— Estou com saudades — disse, apertando Shiro contra a porta, apaixonado. — Preciso sentir seu gosto.

Mergulhou os dedos nos cabelos escuros. A boca máscula tomou a outra, e Shiro sequer tentou se afastar. Completamente entregue, ele deliciou-se pela língua quente que deslizou por seus dentes, brincou com sua língua e esquentou todo o seu corpo.

— Quero o seu gosto — Ryo repetiu, fazendo com que a dúvida tomasse seu semblante.

Em segundos, era levado até a mesa. Sentou-se nela, permitindo que o outro fizesse tudo que quisesse consigo. Porém, nada o preparou para que a boca deliciosa de Ryo deslizasse abaixo de seu ventre.

— Ryo-san... — gemeu, nervoso. — Não podemos... Estamos...

— Sinto sua falta...

— Quando chegarmos a Sapporo — prometeu. — Mas aqui... É feio...

Ryo riu.

— Shiro, onde está seu lado aventureiro?

— Fazer sexo no seu escritório é uma aventura? — fuzilou-o com os olhos.

— Não foi isso que eu quis dizer — defendeu-se, mantendo o sorriso. — Mas tudo bem. Aceito sua posição — afastou-se, por fim. — Em casa... Na nossa casa.

Shiro saiu da mesa, arrumando o quimono.

— Sua casa, Ryo — tentou ser firme. — Por favor, não me faça acreditar em uma vida que não vai acontecer — pediu. — Porque, quando os sonhos acabarem, o que me restará a não ser a dor?

Ryo sentiu-se enfurecer pela colocação. Porém, conteve sua gana.

— Quanto tempo acha que Miya ficará em tratamento? Não sabemos a gravidade real da doença. Você acredita em meses, mas ela poderá permanecer por anos recebendo cuidados médicos. E então, acredita mesmo que temos um prazo de validade? Acredita mesmo que eu vou deixar você sair da minha vida novamente, Shiromiya?

— Eu te disse...

— Eu sei o que disse, não sou surdo. Aceitei porque era tudo que eu tinha no momento. Mas nunca mais vou ficar sem você. No instante que entrar pela porta da minha casa, só sairá dela sob meu cadáver.

— Ryo-san...

— Por favor, Shiro — respirou fundo. — Por favor — repetiu. — Não vê que eu o amo? Que eu quero que envelheçamos juntos? Que criemos nossa filha juntos? Que, daqui a alguns anos, vejamos nossos netos correndo pela nossa casa? Eu sei que eu o magoei. Mas farei de cada dia da minha vida um dia para demonstrar meu arrependimento.

Shiro quis responder, mas uma batida forte interrompeu seus pensamentos. Ryo encarou-o por mais alguns segundos, como se esperasse um sim; mas, quando nada veio, decidiu ir até a porta.

— Sim?

— Sua filha — um servo surgiu, nervoso. — Aconteceu um problema.


***


— Uma criança sem educação! — o grito fez o ouvido de Ryo doer. — Uma criança sem freios! Olha só o que ela fez com a minha princesinha.

Mais uma vez, Satoshi observou o rosto machucado da menininha bonita de cabelos channel.

— Tenho certeza que foi um acidente — voltou-se para o gerente. — Já chamaram o médico?

— Sim, chega em breve — o homem respondeu.

— Mesmo que tenha sido um corte superficial — o hóspede, pai da criança que Miya machucara, ergueu as mãos, numa atitude teatral, — não deixa de demonstrar a má educação que essa criança tem!

Ryo engoliu em seco, tremendo. Atrás dele, Shiromiya deu um passo à frente.

— Nós pedimos desculpas — a voz dele ecoou. — Tenho certeza de que Miya não fez por mal, não é Miya?

A menina ergueu a face para o pai. Seus olhos frios e secos não demonstravam nada. Ela permanecia sentada, arrogante, numa cadeira. Sequer se mexia. Contudo, tinha algo nas mãos que Shiro não percebeu.

— Miya, peça desculpas a Akemi-chan.

Levou alguns segundos, mas a resposta veio.

— Nem morta.

O hóspede bateu palmas.

— Onde está a mãe dessa menina? — inquiriu. — Quero conhecê-la para parabenizá-la pelo excelente trabalho.

Sua ironia quase fez Shiromiya chorar. Ele sabia que havia fracassado, mas ouvir a verdade atirada em sua face machucava demasiadamente.

— Ela não tem mãe — respondeu. — Sou o responsável por ela — avisou.

Quis complementar que era o pai, mas Ryo já havia espalhado aos quatro cantos que era o genitor. Então, permaneceu em silêncio, temeroso em piorar as coisas.

— Agora ficou claro — o homem voltou-se para Ryo. — Deve escolher melhor seus criados. Um... — fez um movimento com a mão, numa clara demonstração de desprezo. — Um rapaz desse tipo não tem como educar uma criança.

Ryo ouviu as palavras com total perplexidade. E só quando o som do outro se encerrou, foi que ele entendeu o simbolismo. Mal respirava, quando avançou. Porém, deu apenas dois passos e Shiro segurou seu braço com firmeza.

— Venha — puxou-o. — Precisamos conversar.

Toda a discussão acontecia numa sala onde funcionava a gerência. Apesar de não querer, Ryo acompanhou-o ao corredor.

— Não responda — Shiro não pediu, mandou. — Não diga nada. Vamos resolver isso...

— Ele te ofendeu! Como ele ousa? Vou lá...

— Não pode dizer a ele nosso enlace — interrompeu.

— Não vou mentir...

— Não estou pedindo para que minta. Apenas para que não espalhe nossa relação a quem nada tem a ver com a nossa vida.

Ryo negou.

— Quantas vezes acreditei que fugir era a solução, Shiro? Não é! Precisamos enfrentar...

— Entenda uma coisa, Ryo-san: não somos pessoas sozinhas, sem compromisso com qualquer regra da sociedade. Temos uma criança! E se alguém ficar chocado ou nos odiar o suficiente para nos retalhar? Quem mais vai se prejudicar é Miya. Não sei o que a lei diz, mas se a tirarem de nós por causa da nossa relação, o que faremos? Provavelmente um de nós terá que casar com uma mulher para tê-la novamente! Percebe que a maioria das pessoas preferiria que Miya apodrecesse num orfanato a que vivesse do nosso lado?

Ryo quis retrucar, mas não conseguiu. Shiro deixou-o e voltou à sala.

— Peço perdão — ele ouviu a voz de Kazue. — Miya ficará de castigo até que entenda o erro que cometeu.

Depois disso, Shiro surgiu novamente no corredor, puxando a criança pelo braço.

O olhar aterrorizado de Miya o tocou, e doeu profundamente em seu coração. Sabia que Shiro a castigaria, e quase foi atrás, implorar para que não o fizesse. Contudo, ela havia machucado outra criança, feito algo que estava além da imaginação de Ryo.

Onde foi que erraram tanto?

 

Capítulo 34


— Papa — o grito cruzou pelos corredores. — Não me bata!

Shiromiya não a encarou. Nunca levantou a mão para ela, mesmo nas piores malcriações. Imaginou que talvez conseguisse criá-la sem precisar de castigos físicos. De fato, até então, conseguira dominar aquele gênio ruim com sermões ou cortes de algo que ela gostava. Contudo, Miya bateu numa outra criança, e aquilo não podia ser ignorado.

— Papa! — ela gritou, chorando. — Me escuta primeiro! — pediu.

Ele abriu a porta. Só então se deu conta do gatinho filhote nas mãos dela. Puxou-o de seus dedos e o colocou do outro lado do quarto. Depois, cuidaria dele.

— Vou te perguntar uma última vez, Miya — disse, firme. — Você está arrependida do que fez?

Parecia tentador a ela dizer que sim. Ora, livrar-se-ia das palmadas, e o máximo que precisaria ter de fazer era pedir desculpas à garota que ela realmente creu que pudesse ser sua amiga, e ao seu pai. Mas havia algo que o príncipe havia ensinado a ela, e isso se chamava honra. Antes ser considerada grossa e cruel pelas verdades que saíam de seus lábios, a ser falsa e hipócrita consigo mesma, a fim de se manter bem vista num mundo bárbaro.

— Não me arrependo.

Shiro assentiu, como se aquilo pesasse toneladas em seus ombros.

Então, sentou-se na cama e a puxou. Ergueu seu bumbum para cima e bateu três vezes, com uma força controlada. Quando Miya chorou, ele sentiu uma dor profunda, que fê-lo erguê-la e soltá-la.

— Está de castigo, Miya! — avisou. — Até que tenha consciência do seu erro.

E então foi até o gatinho. Pegou-o no colo e saiu, sem olhar para trás.

Do lado de fora, não aguentou mais o peso das pernas e caiu no chão. Encolheu-se contra a porta e permitiu que as lágrimas escapassem, aliviando-o da culpa.

— Shiro — Ryo sentou-se ao seu lado.

Soube então que ele estivera ali, do outro lado da porta, aguardando o desenrolar.

— Não a machuquei — o menor contou. — Mas dói muito...

— Não teve escolha.

— Ela feriu uma criança — disse, incrédulo, enquanto as lágrimas despencavam, sem cessar. — Meu Deus... ela machucou uma criança — repetiu. — Como pôde fazer isso? Pior, por que não se arrepende?

Ryo segurou seus ombros.

— O que nós vamos fazer, Ry-chan?

O outro sorriu, cúmplice.

— Vamos viver um dia após o outro. Vamos tentar demonstrar a ela que deve ser uma boa pessoa, e que isso é o mais importante de tudo — afirmou. — Não vamos nos desesperar. Ainda temos tempo de corrigir esse temperamento — seus olhos se chocaram com o pequeno serzinho nas mãos de seu amor. — De onde surgiu esse gatinho preto?

— Estava com Miya — Shiro secou os olhos. — Está machucado. Vou dar banho nele e usar banha de porco nas feridas.

— De onde Miya tirou esse gatinho?

— Não faço ideia — Shiro deu os ombros. — De qualquer forma, só o darei a ela quando perceber que está disposta a mudar.

No dia seguinte, após Ryo sair para terminar seus afazeres, Shiromiya resolveu ir até a cama de Miya. Ela já havia acordado e mantinha o olhar mortal. Claramente, estava magoada pelos tapas no traseiro. O nariz estava vermelho, havia chorado durante a noite, ele ouvira, mas em nenhum momento baixou o queixo, em qualquer sinal de constrangimento.

Era uma fortaleza.

O homem encarou a filha. A postura retraída dela ardeu sua alma. Céus, como se culpava por cada castigo que lhe empregava! Contudo, o que mais podia fazer para conter aquela personalidade avassaladora?

— Miya, poderá sair do quarto — avisou, assim que o tempo do castigo se findou. — Mas antes... — respirou fundo. — Pensou no que fez?

— Sim, papa — ela assentiu, séria.

— E está arrependida de ter dado uma pedrada na menina?

— Sim, papa.

Shiro suspirou aliviado. Contudo, o alívio logo se findou, quando a voz infantil concluiu.

— Arrependo-me de ter dado uma, e não duas pedradas naquela imbecil!

Pasmo, sem reação, ele simplesmente buscou uma cadeira. Colocou na frente dela. A agressão não havia funcionado, então decidiu agir como sempre agira: com diálogo.

— Me fala, filha — pediu, num tom carinhoso. — Por que não se arrepende?

— Porque ela mereceu.

— E por que ela mereceu?

— Não vou dizer — o olhar que ela lhe dirigiu era de puro ódio. — Eu quis explicar antes, mas não quis me ouvir — atirou na sua face. — Sempre fica contra mim, nunca acredita no que eu digo.

— Miya, isso não é verdade.

— Me bateu — a mágoa era nítida. — Me bateu sem eu merecer.

— Filha, você atirou uma pedra na outra menina.

— Ela iria matar o gatinho. Disse que era engraçado, que quando morriam com a pancada, davam pulos altos — contou, mesmo não querendo. — Então colocou a pedra na minha mão e me mandou atirar. Eu atirei.

Shiro ficou pasmo.

— Por que não me disse isso antes?

— Eu tentei. Mas sempre pensa o pior de mim!

Aquela acusação quase o tirou do sério. Afinal, ela tinha razão... Não lhe dera uma oportunidade de se explicar, avassalara a criança perante uma acusação. Naquele instante, prometeu a si mesmo sempre ouvir o lado da filha antes de acusá-la de qualquer coisa.

— Vou falar com seu pai... — murmurou, sem se dar conta das palavras. — Ryo-san vai resolver isso.

— Odeio esse mundo injusto! Fiquei de castigo, enquanto aquela vaca saiu como vítima!

Quis recriminá-la pelo adjetivo, mas não conseguiu.

— Fique aqui mais um pouco — pediu. — Já volto.


***


— Um mês de hospedagem gratuita não paga a humilhação que a sua filha fez a minha passar! — o homem encarava Ryo com raiva.

— Então, o que deseja?

Pagaria o preço, afinal de contas, queria resolver aquela situação o quanto antes.

Porém, o homem não chegou a lhe dar valor. A porta abriu. Shiro surgiu, parecia espumar de raiva, e Ryo sequer pensou no fato de que, pela primeira vez, ele agia sem educação, entrando no escritório sem avisar.

— Você — Shiromiya apontou para o hóspede. — Como tem coragem de ensinar a própria filha a ser cruel com os animais?

Ryo arqueou as sobrancelhas.

— Do que está falando?

Shiro manteve o olhar fixo no homem.

— Miya atirou a pedra para proteger um gatinho que a sua filha iria matar!

Satoshi encarou o homem. Ele parecia tranquilo.

— Não pode provar isso — prevaleceu.

— Não nega? — Ryo contorceu as mãos. — Minha filha ama os animais, faria qualquer coisa para protegê-los. Assim sendo, é bem possível que a ação de Miya tenha sido por esse motivo.

— Tem ideia da quantidade de bichos que se alastraram depois da guerra? Akemi não é cruel, é racional.

Ryo se levantou.

— Saia agora do meu hotel!

— Como se atreve?

— Saia agora, ou vou te dar uma surra!

Em segundos, Shiromiya estava ao lado dele.

— Por sua culpa, eu castiguei a minha filha!

— Sua...?

Então o homem os encarou.

— Faço questão de não colocar mais meus pés nesse local sujo — avisou. — E farei questão de informar aos meus amigos o tipo de laia que o dono tem.

Quando ele sumiu, Kazue voltou-se para Ryo.

— Eu...

— Não irá me prejudicar — Ryo o acalmou. —Shin e eu só abrimos essa rede porque precisávamos ocupar a mente. Estava ficando louco, e meu trabalho nas fábricas não me afundava o suficiente.

— Mas...

— A base da minha fortuna são os pescados. E a base de vendas, hoje, é o mercado americano. Não me importo com o que ele espalhar. Se tentarem tirar Miya de nós, peço socorro aos estrangeiros com quem negocio. Qualquer coisa, iremos embora para os Estados Unidos. Então, por favor, se acalme e não fique pensando caraminholas — sorriu.

Shiromiya assentiu, mais calmo.

— Preciso me desculpar com Miya — avisou.

— E temos um jeito ótimo para isso.

Compreendendo instantaneamente, o mais novo concordou.


***


Os dois homens entraram no quarto e encararam a criança, que os observou com o olhar claramente ferido.

— Miya — Ryo começou —, nós queremos nos desculpar...

— Não precisa — ela o interrompeu. — Não importa.

Como era difícil! Nove anos e parecia querer bater em ambos.

— Miya, nós erramos e estamos profundamente envergonhados — Shiro saiu à frente e se ajoelhou perante ela. Com as duas mãos em seus joelhos, obrigou-a a encará-lo. — Você perdoa o papa?

O queixo tremeu.

— Perdoo — ela murmurou e então se atirou nos braços dele.

Era tão complicada em vários momentos e tão simples em outros. Ryo então aguardou eles se afastarem e, quando o fizeram, estendeu para ela um minúsculo gatinho preto.

— Acho que você o salvou, não é? Merece ser a mãe dele.

O sorriso da menina foi tão autêntico que Satoshi se viu rindo também. Ela o pegou no colo e encheu o focinho de beijos, enquanto sentia as unhas felinas agarrando-se em seu vestido.

— Meu primeiro gatinho — sussurrou. — Agora só falta o resto dos gatos do mundo inteiro, papai — encarou Ryo.

Que Kami-sama o ajudasse!


***


A estadia no hotel Arashi durou mais três dias, nos quais Ryo aproveitou para passar com a família, dedicando a Shiromiya sua atenção máxima, além de realizar todos os desejos da filha. Após a entrada do novo membro na família, o gato preto, Miya acalmou-se e, praticamente, não fez mais nenhuma travessura. Passava às tardes sentada no pátio traseiro, brincando com o gatinho, enquanto Shiromiya e ele bebiam chá e conversavam sobre coisas que ficaram para trás.

— Como você conheceu papa? — a pergunta o surpreendeu.

Ryo quase se engasgou com o chá. Volveu o olhar para Shiromiya que o encarava apreensivo.

— É uma longa história, amor — murmurou.

— Conte-me.

O pedido era uma ordem. Mas o que ele podia dizer? “ Quando conheci seu papa, bati nele porque o considerava uma aberração ”?

— Eu dançava numa casa de gueixas — Shiro amenizou. — Ryo-san era um cliente.

— Você dançava? — o assombro nos olhos amendoados era intenso. — Sério?

— Sim.

— Nunca me falou disso, papa.

— Foi muito tempo atrás. Você não havia nascido ainda. A casa era administrada pelo tio Aiko — Shiro desviou seus olhos dos dela e encarou Ryo. — Não tivemos um bom início, mas, pelo menos, nos tornamos amigos.

Ryo sorriu, malicioso.

— E, depois, nos apaixonamos — completou.

Shiro enrubesceu, mas Miya pareceu não se importar.

— Papa, quero vê-lo dançar!

Pelos céus, Ryo também! Na primeira vez que o vira, desejou tê-lo bailando para ele sedutoramente. A lembrança fez com que todo o corpo clamasse por aquilo novamente. Queria Shiro vestido um bonito quimono, dançando ao som do Koto, olhando em seus olhos, prometendo delícias inimagináveis.

— Não pense bobagens — Shiro o surpreendeu com a recriminação.

— Bobagens, não — disse. — Apenas, um pequeno desejo que guardarei para quando estivermos sozinhos.

Percebeu o sorriso camuflado, acoimado, por simplesmente existir. A própria vontade de rir desapareceu por notar o quanto Shiromiya se culpava por amá-lo.

— Está tudo bem — disse ao outro, que o encarou. — Vamos superar isso. — afirmou. — Juntos.

Shiro sorriu novamente.

Era o prenúncio de tempos felizes.

 

Capítulo 35

 

Tadao abriu a porta frontal da residência de Ryo, assim que o carro estacionou na entrada. Ele viu seu patrão saindo do veículo com um sorriso na face, que há muito não enxergava. Viu-se a rir junto e sentiu que tudo estava bem.

Segundos depois, Shiromiya também saía, e ele percebeu que os anos deram ainda mais beleza àquele rapaz. Antes, era uma aparência juvenil e frágil. No momento, havia força e grandeza em seu olhar.

Por último, enfim, ele percebeu a criança. Era diferente do que imaginava. Pensava nela menor, ainda de colo ou de aparência acanhada. Mas ao visualizar aquele lindo sorriso em sua direção, soube que em nada assemelhava-se à sua imaginação. Miya tinha o queixo erguido, falava alto com o pai (alguma coisa como “ Papai, leve o gatinho ”) e também parecia destacar-se em uma presença espirituosa.

Foi ela que primeiro o cumprimentou, subindo as escadas. Ele encarou aquela miniatura de gente e quase a abraçou. Era como reencontrar uma neta que há muito não via.

— Eu sou Miya — ela apresentou-se, alegre.

Ele sabia. Ele ouviu o nome dela ser suspirado naquela casa durante os últimos cinco anos.

— Eu sou Tadao.

— Você é meu vovô?

O homem negou.

— Infelizmente, você não tem avós. Seu pai é órfão. Mas, se quiser, posso ser seu avô de brincadeira.

— É mesmo?

Ele não chegou a responder, porque Shiro surgiu às costas dela. Ambos trocaram um sorriso saudoso, antes de curvarem-se um ao outro.

— É muito bom vê-lo bem, Shiromiya-san — Tadao disse, sério. — Ryo-san e eu viajamos muito pelo Japão atrás de você.

Até aquele momento, Shiro acreditava que as palavras de Ryo haviam sido apenas uma artimanha para reconquistá-lo. Mas, ao ouvir a confirmação por Tadao, ele sentiu os olhos arderem.

— Eu lamento ter causado preocupação.

Tadao abriu a boca, mas a inquieta abaixo deles começou a puxar sua manga, pedindo atenção.

— Vovô-chan, viu minhas galinhas?

Shiro riu do apelido, mas não a contradisse. Os adultos trocaram um olhar cúmplice, antes do mais velho responder.

— Então, todas aquelas galinhas que chegaram eram suas?

— Sim, elas estão bem?

— Estão todas bem, mas acredito que estão sentindo sua falta.

— Ninguém tentou comê-las, não é?

Tadao abriu a boca, fingindo espanto.

— Claro que não! São as galinhas da princesa dessa casa. Ninguém comerá as galinhas da princesa!

Ela riu das palavras no momento que Ryo se aproximava. O gatinho preto nos braços estava quieto, como se estranhasse o lugar. Porém, o homem que o segurava estava resplandecendo felicidade.

— Tadao — cumprimentou-o. — Está tudo organizado?

O servo assentiu. Então, dando-lhes licença, aquela estranha família entrou junta na casa pela primeira vez. Pouco depois, Tadao sumiu, dando-lhes privacidade.

— Quantas pessoas moram aqui?

Foi um cômico déjà vu. Ele já havia escutado aquela indagação antes de Shiromiya. No momento, era a menina que o questionava, assombrada, diante da sala enorme.

— A casa de Sapporo tem muitos quartos — ele avisou. — Alguns usamos como salas para recreação: sala de leitura, sala para chá, e tais coisas. Assim, atualmente, há oito dormitórios.

— Oito?

— Sim. E todos eles têm seu próprio banheiro. E temos a sala de entrada, a sala de estar, a sala de jantar, a cozinha, o jardim de inverno interno e o meu escritório. Você vai conhecer tudo, afinal de contas, a partir de agora, essa é a sua casa. Mas, antes, vamos ver seu quarto?

Ryo estendeu a mão, e a menina segurou-a firmemente. Depois, ele sorriu para Shiro, que estava sério, naquele instante, como se antevisse algo.

Ryo entendeu.

Ele estava voltando à casa em que havia sido tremendamente feliz, mas também tristemente humilhado e traído. Mesmo assim, fez um sinal para que ele os acompanhasse. Queria que ele visse também o que havia planejado para a filha deles. Queria que soubesse o quanto se esforçara para que, mesmo a distância, organizasse um quarto dos sonhos para uma menina de nove anos.

Pararam diante do quarto que outrora Shiro utilizara no passado. Havia escolhido aquele quarto para Miya porque era um local especial, onde ele acreditava sentir o cheiro de Kazue durante os anos, onde se permitia sofrer pela ausência do outro.

Abriu a porta e a parede rosa parecia saltar de lá. Todo o ambiente estava diferente de quando Shiro dormira ali. Não só a cor que mudara de tom, mas também os móveis perfeitamente alinhados em cores rosadas e brancas. A cama, enorme, de dorsel com babados em renda, estava adornada com muitas bonecas. Havia dois criados mudos em volta dela e, mais afastada, uma linda penteadeira com um espelho que mostrava quase o quarto todo. Miya mal conseguiu entrar, espantada demais.

— É tudo seu — Ryo então entrou, e sentou-se na cama, largando lá o gatinho preto.

Mas ela não se aproximou. Volveu para Shiro, inquieta.

— É perto do seu quarto, papa?

Só então percebeu que ela estava com medo de ficar sozinha. Por maior que fosse o luxo e a beleza de suas acomodações, ela preferia a segurança da presença de Shiromiya.

Ryo encarou Shiro, que pareceu em dúvida.

— Não sei onde vou ficar, Miya — o homem admitiu, envergonhado.

Satoshi riu, buscando a atenção de ambos.

— É claro que é perto. Acha que a deixaríamos sozinha, longe de nós?

Chamou-a com a mão. Quando se aproximou, Ryo a ergueu no colo.

— Você gostou?

— É tudo muito bonito — ela admitiu. — E grande.

— O senhor Bigode e a Princesa ficarão com você aqui — aliviou. — E seu gatinho... Aliás, que nome dará a ele?

— Shin.

Houve um silêncio angustiante. Ryo mal conseguia respirar.

— Onde ouviu esse nome, Miya? — indagou, sério.

— Não é seu amigo? Lembra-se? Tio Aiko me contou, quando estávamos vindo para cá.

Ele quase riu, respirando fundo. Ora, de fato, estava vendo fantasmas onde não havia nenhum.

— É um excelente nome — concordou. — Vamos ver o quarto do papa, agora?

Shiromiya, em silêncio, aceitou a mão estendida em sua direção. Ryo o levou até um local que ele usufruiu muitas vezes no passado.

— Mas — Kazue parecia em dúvida — este não é o seu quarto?

— Nosso — Ryo balançou a cabeça, afirmativo. — Somos um casal, devemos dormir juntos — seu tom era categórico. — Não concorda, Miya?

Mas a garotinha estava entretida demais para prestar atenção nos pais. Andando pelo quarto, ela passou a mexer em tudo, curiosa.

— O que são esses vidros?

— Perfume.

— E essa porta, dá onde?

— No banheiro.

— E essa? Outro banheiro?

— Não, essa abre o armário onde ficam as roupas e os calçados.

— E por que têm poltronas e uma mesa no quarto?

— Para o caso de querer tomar café ou chá aqui.

— E a lareira?

— Pode ficar frio, então...

— Para que uma cama tão grande? Você dividia a cama com Tadao-san?

A curiosidade inocente o fez gargalhar. Shiromiya não resistiu e riu muito.

— Não, Miya. Eu dormia sozinho — explicou, por fim.

Naquele instante, uma leve batida na porta fê-los voltar-se para a entrada. Tadao surgiu, num sorriso cordial.

— Miya — chamou a criança. — Vamos ver como ficaram suas galinhas?

Pelo olhar do servo ao seu senhor, Ryo soube que ele estava dando ao par um momento a sós.

— Sim! — o grito o assustaria, caso não tivesse se acostumado àqueles rompantes.


***


Shiromiya Kazue observou a cama. Parecia absorto em seus próprios pensamentos. Ryo temeu aproximar-se, mas soube, na mesma medida, que devia. Então, o fez. Roçou seu corpo às suas costas e o abraçou por trás, pousando o queixo em seu ombro.

— Nervoso?

— Quem não ficaria?

— Eu sei que o magoei. E qualquer outra pessoa também teria medo do que o futuro reserva. Mas saiba que aquele Ryo de cinco anos atrás morreu no instante que você o abandonou.

— Mas esse Ryo de agora também mente...

Era uma verdade que machucava demasiadamente.

— O Ryo de agora agiu por desespero. Não me arrependo. O resultado foi tê-lo novamente em minha vida. Tente entender... Passar todos aqueles dias em Kibou, dormindo abraçado a você, com meu nariz afundado em seus cabelos, dividindo com você o trabalho e a refeição... Eu me senti tão honrado, tão feliz...

Silêncio.

Ryo não insistiu em palavras. Ele tinha toda uma vida para provar a Shiromiya a veracidade de seus sentimentos. Então, resolveu agir.

Estava com saudades do corpo do outro. Do toque. Do gosto. Deslizando o nariz na curva do pescoço, ele cravou os dentes na orelha apetitosa. Shiro gemeu e ele soube que, enfim, estava entregue.

Largou-o apenas pelo tempo necessário para trancar a porta. Não queria arriscar uma interrupção. Quando voltou-se ao amante, estremeceu.

Shiromiya estava parado aos pés da cama. O olhar absorto nele. Completamente excitado. Aproximou-se, temeroso de que aquela imagem perfeita desaparecesse diante de seus olhos.

Cuidadosamente, abriu os botões de sua camisa. Percebeu a pele acetinada, arrepiada. O olhar de Kazue estava fixo em seus olhos e Ryo mal pôde conter a ânsia de jogá-lo na cama e tomá-lo sem qualquer preliminar.

— Ainda é muito cedo — Shiro murmurou. — Miya poderá...

— Tadao vai entretê-la, acredite — beijou seus lábios. — Estamos há quase uma semana sem tocarmos um no outro. Não sente minha falta?

Quando a boca de Ryo tomou-o, Shiromiya meditou nas palavras. Sim, sentia saudade do carinho, dos beijos, do toque. Sentia uma saudade absurda de cada pedaço daquela pele. Porém, a cada entrega, surgia uma culpa absurda, como se todo o ato não passasse de mais um erro.

Estranhamente, era como uma contagem regressiva. Quantos erros cometeria até sua própria destruição?

Ryo o deitou na cama. Observando os músculos firmes do amante, Shiro viu-o se livrando das roupas com rapidez. Nus, um diante do outro, eles pareciam simplesmente dois humanos puros, num ato tão antigo quanto o próprio universo.

Dali em diante, todos os seus pensamentos se perderam no toque, nos beijos, nas carícias, na penetração firme, porém, gentil. Em algum momento, antes do gozo final, Shiromiya sorriu.

Depois, Ryo ajeitou-se ao lado dele e, escondidos entre as cobertas, eles cochilaram.

As mãos, entrelaçadas, indicavam uma união que nunca mais se quebraria.


***


— Nossa! — Miya exclamou, após morder um pedaço do peixe. — Que comida boa!

Tadao sorriu, sentado diante dela. Naquelas poucas horas que a conhecera, percebeu que ela amava falar. Falava sobre tudo, contava história sobre pessoas que ele não fazia a menor ideia de quem eram, e também tinha um gênio sarcástico.

— São os pescados que seu pai comercializa — explicou.

— É mesmo? Então posso comer mais?

Era tão adorável, com aquele olhar ansioso.

— É claro que pode.

— Se eu comer tudo, terá para papa e papai?

— Claro que sim, temos bastante comida.

— Shin-chan pode comer também?

Ela indicou o gatinho pequeno, ao seu lado.

— Acho que ele deve apenas tomar leite, pois ainda é muito pequenino — encarou a pequena mancha negra, no tapete. — Onde achou um filhote recém-nascido?

— Uma menina má iria matá-lo — contou. — Então eu bati nela.

Tadao abriu a boca, espantado. Contudo, não pode respondê-la, pois o som ritmado do telefone fê-lo levantar.

Enquanto Miya prosseguia em sua tarefa, ele caminhou polidamente até o escritório. Levantou o telefone do gancho e respirou fundo antes de falar:

— Residência de Ryo Satoshi. Pois não?

Houve um burburinho de papéis sendo revirados do outro lado da linha.

— Quando Ryo volta? Aquele infeliz não me ligou mais!

Reconheceu o timbre imediatamente e conteve uma resposta malcriada.

— Ryo-san já está em casa — informou.

— Já? — a gargalhada irônica de Shin Sakamoto fê-lo arquear as sobrancelhas. — Não demorou muito para Shiromiya colocá-lo para correr, hem?

— Shiro-san veio junto com o senhor Ryo.

Houve um silêncio significativo do outro lado da linha.

— Senhor Sakamoto? — Tadao acreditou que a ligação havia caído.

Contudo, a voz rouca do outro surgiu, em seguida.

— Preciso desligar.

Colocando o telefone no gancho, o servo imaginou o que aquele estranho diálogo significava.


***


Protegido pela janela da confeitaria, Daniel Joshua observava com curiosidade a cena que ocorria na calçada. Uma moça de aproximadamente vinte anos sorria para seu namorado, um jovem bonito da mesma idade. Ambos dividiam um guarda-chuva, encarando-se com profundo amor.

Lembrou-se de algo que Jiro lhe dissera, certa vez. Havia um simbolismo poderoso em dividir um guarda-chuva. Enquanto no ocidente, não havia nada demais, no oriente, significava amor e proteção.

— Então, você entrou para o exército?

A voz suave fê-lo volver seu olhar para o jovem bonito a sua frente.

— Eu precisava de algo que me tirasse daquela cidade — admitiu. — Depois que você foi embora...

— Meus pais me enviaram para o Japão — Ren o interrompeu. — Devolvido para essa terra recém-saída da guerra como um amaldiçoado, uma vergonha. Vim para morar com meus tios e passei a trabalhar na floricultura deles. Sou bom com as flores.

Talvez porque fosse tão delicado quanto elas, Daniel pensou.

Estudando seu rosto, percebeu-o muito parecido com o antigo Ren. A mesma doçura no olhar, a mesma gentileza de gestos.

— Você tem alguém? — questionou.

Ren negou.

— Foi meu único homem.

Daniel assentiu. Não havia muitas respostas para aquilo. Enquanto o japonês, claramente, aguardou com ansiedade e esperança um reencontro utópico, Daniel havia se esgueirado em camas alheias e se apaixonado por um monstro.

— E você? — a pergunta suave veio carregada de medo.

Daniel o encarou seriamente. Diante dele estava o mais puro de seus amores. O seu primeiro... Aquele que o despertou para sua real condição.

— Não.

Havia mentira em sua negação. Mas por que não tentar?

— Você acha que...

Ren olhou para baixo, enrubescido, calando-se no meio da indagação.

— Eu acho que sim — o americano respondeu.

Houve emoção no olhar que recebeu de volta. E ele arrependeu-se imediatamente de macular aquela pureza gentil.

 

Capítulo 36


Jiro abriu os olhos. A escuridão reinante o tomou, envolvendo-o no manto negro do desespero. O toque das mãos ásperas fê-lo morder os lábios, impedindo um grito agoniado.

O toque, outrora amado, agora lhe deu ânsia de vômito. Fechou os olhos com força, enquanto sentia a pele sendo acariciada. Os dedos deslizaram pelo cós da sua calça, tocando-o com intimidade, enquanto a boca molhada avassalava a sua, lambendo e chupando seus lábios mortificados.

Oguri já havia se satisfeito naquela noite. Por que não o deixava em paz?

— Depois que isso tudo acabar, Jiro — ele murmurou —, penso em comprar as terras de seus pais. O que acha? Não seria maravilhoso voltarmos àquele celeiro onde nós nos apaixonamos?

Saito não aguentou.

— O tempo passou. Quanto vai demorar para perceber? Você não é mais aquele jovem oficial e eu não sou mais nenhum menino deslumbrado.

Ouviu o farfalhar das cobertas sendo jogadas longe. Logo Oguri colocava-se em pé, revoltado. Jiro o observou temeroso, vendo-o andando de um lado para o outro à cata de suas roupas.

— É um tolo, Saito Jiro — foi tudo que disse, saindo do quarto e batendo a porta.

Jiro pôs-se de pé, assim que se viu sozinho. Vestiu-se, sentindo-se o mais sujo dos homens. Depois, procurou a carteira de cigarros do bolso do casaco. Precisava fumar, como nunca até então.

Caminhou até a janela. A varanda ordenada por flores parecia idílica. Tudo naquele ambiente era bonito e romântico, e ele poderia ser extremamente feliz, caso estivesse apaixonado. Mas... não estava.

Amava Aiko.

Amava Shin.

E, por algum motivo oculto, amava Daniel.

E era o último aquele que tomava conta dos seus pensamentos ultimamente.

Repentinamente, um movimento próximo das árvores chamou sua atenção. Pasmo, reconheceu a figura que tentava chamar sua atenção com um movimento nas mãos. Voltou-se para a porta, imaginando se Oguri voltaria.

Não... não era seu costume voltar. Após o sexo, ele ia tomar banho e dormir no próprio quarto. Sem pensar direito, Jiro agiu. Saiu sorrateiramente, fazendo o mínimo som possível. Em segundos, estava no jardim.

Mal percebeu quando se atirou nos braços de Sakamoto.

Num primeiro momento, Shin pareceu em transe, completamente atônito pelo ato. Porém, em seguida, Jiro sentiu os braços do maior cercando-o com firmeza, transmitindo completa segurança.

— Jiro... — murmurou contra seus cabelos. — Você me perdoou?

Jiro riria, se sentisse qualquer vontade.

— Eu não tenho escolha — o som da voz do antigo sargento era claro. Não era uma resposta à pergunta de Shin e, sim, uma constatação da sua atual situação. — Eu precisarei matar Oguri.

Shin não ficou chocado, porque era aquela sua solução desde o princípio.

— Oguri pode não ter como provar que Shiro não é o pai de Miya. Com isso não me preocupo tanto. Mas, caso ele entregue o nome de Mamoru as milícias...

— Eu sei — Shin concordou. — Aiko não amanhecerá vivo.

Soltaram-se.

— Eu tentei convencê-lo várias vezes durante esses dias da loucura que é retomarmos nosso relacionamento. Mas Oguri está cego em seu egoísmo. Ele ansia desesperadamente voltar à sua juventude, seus amores inconsequentes. Ele não aceita que o tempo passou e que nós mudamos.

— Você não precisa se justificar para mim, meu amor — Shin afirmou. — Eu vou resolver isso, está bem? Apenas, me dê alguns dias para arquitetar algo.

— Shin... — Jiro murmurou. — Sinto-me o pior dos homens... Não... Não... — negou com um gesto de cabeça. — Não posso matar Oguri. Não posso ser cúmplice de mais um assassinato. Já darei contas de muitas vidas perante algum deus quando morrer. — A aflição tornou-se lágrimas. — O que eu farei, Shin?

— Jiro, você não precisa matar ninguém.

— Você não vai matá-lo, entendeu? — segurou as mãos de Sakamoto. — Prometa-me!

— Farei o que for preciso.

— Não posso aguentar mais esse peso na consciência.

Shin voltou a abraçá-lo, tentando lhe transmitir confiança.

— Jiro, estou indo para Sapporo hoje. Existe algo que eu preciso fazer, é urgente — avisou. — Mas eu voltarei depois de amanhã. Apenas passarei a noite lá, porque a barca só faz a travessia durante a manhã. Estão, sairei de madrugada, chegarei lá pelas dez horas e, no dia seguinte, já estou de volta, entendeu?

— Sim, não precisa se explicar...

— Jiro, não quero que ache que eu o estou abandonando. Apenas preciso resolver algo que há anos me aflige, está bem?

Saito assentiu.

A luz do andar superior da casa acendeu. Jiro alarmou-se.

— Preciso subir antes que Oguri dê por minha falta.

— Está bem. Na madrugada da segunda para a terça, estarei aqui para conversarmos.

Não se despediram. Jiro Saito correu em direção a casa e Shin ficou a observá-lo.

Era prático. Estava decidido. Oguri iria morrer.


***


Shiromiya espirrou um pouco de perfume no pescoço. Não tinha o costume de usar aqueles produtos, mas sentiu-se tão acolhido por Ryo, que mal notou quando vestiu um dos roupões novos que ele comprara e usou a infinidade de produtos disponíveis no quarto.

De repente, foi envolvido por um abraço gentil. O hálito morno de Ryo acariciou suas orelhas e ele sorriu, aconchegando-se naquela ternura.

— Não — disse, repentinamente, ao sentir o pedaço de carne dura tocando suas nádegas.

— Pode me culpar? Fiquei uma semana inteira sem você.

— O que é uma semana para quem ficou... — calou-se. Não sabia o que havia acontecido com Ryo durante os anos que se mantiveram afastados.

— Não tive ninguém, Shiro — ele contou, entendendo seu silêncio.

Shiro riu baixinho.

— Crê mesmo que eu vou acreditar em tal coisa? Cinco anos para um homem que dormiu com todas as mulheres da Casa Ai? Sei que deve ter tido amantes.

— Não — Ryo voltou a negar. — Por mais impossível que seja acreditar, depois de conhecer você, não houve mais ninguém a quem meu corpo clamou.

Shiromiya Kazue voltou-se para ele, buscando a verdade no olhar. A franqueza que o tocou, fê-lo lacrimejar.

— E você? — Ryo indagou. — Houve alguém durante esses cinco anos?

Shiro negou.

— Nem Jiro?

— Jiro é meu amigo.

— Mas o sargento...

— Jiro nunca me viu dessa forma — foi firme. — Sim, houve um momento nesses anos que ele pensou que poderíamos ficar juntos, mas... — mordeu o lábio inferior, buscando a melhor resposta — eu nunca fui uma pessoa normal... — admitiu. — Sou apenas um condenado a viver eternamente vítima de erros...

— Não erros seus — Ryo afirmou. — Nunca falamos sobre isso — percebeu, pasmo, naquele instante. — Você quer desabafar comigo?

Kazue desvencilhou-se do abraço. Saindo de frente do enorme espelho, ele aproximou-se da janela. O sol já havia se despedido há pelo menos três horas.

— Lembro-me de como reagia perante os acontecimentos...

— Como assim?

— Você teve nojo de mim, quando aquele homem disse que havia me comprado na infância.

Ryo enrubesceu.

— Eu era um arrogante — admitiu. — Um desgraçado que não sabia o que fazer diante dos sentimentos intensos que sentia. Foi ciúme. Foi ódio. Foi a sensação de incapacidade. Eu atingi a vítima, em vez de voltar-me contra o agressor.

Foi até Shiro. Abraçou-o novamente.

— Quantos anos você tinha?

— A primeira vez? Dez, acho...

Praticamente, a idade de Miya. Ryo abriu a boca, espantado, mortificado, assustado. Era algo tão terrível que mal podia acreditar.

— Foi um homem velho. Meu irmão e eu não comíamos há dias. Eu estava com tanta fome que a visão embaçava e não tinha mais forças — ele sentiu as lágrimas inundando seus olhos. — Eu não tive forças sequer para tentar lutar contra ele, e não apenas porque ele era um adulto e eu uma criança. Eu não tinha energia para fugir. Estava fraco demais — respirou fundo, e então prosseguiu. — Foi dentro de uma carroça. Ele arrancou as minhas calças e...

Encarou Ryo. O olhar lacrimejante à sua frente fez sua garganta arder e as palavras travarem.

— Eu era muito pequeno, então eu sempre sangrava muito. Ninguém nunca se preocupou ou se apiedou. Assim, parei de sentir pena de mim mesmo... Não sei como isso aconteceu, apenas, eu aguentava tudo calado, sem pensar. Mesmo quando apanhava, mesmo quando meu irmão me vendia para mais de um homem ao mesmo tempo, mesmo quando enfiavam coisas em mim... — engasgou. — Eu, simplesmente, achava que era normal. Que eu não era algo que valesse a misericórdia de alguém.

Ryo o apertou forte.

— Então, Aiko apareceu. Depois, você. Eu acreditei verdadeiramente que as coisas podiam ser diferentes. Mamoru me fez acreditar no amor fraternal, e você despertou em mim coisas que eu jamais acreditei que pudesse sentir por outra pessoa. Então... Depois... — a voz engasgou.

Mais uma vez ele desvencilhou-se de Ryo. Era muito difícil lembrar-se de tudo. Cada palavra dita naquela mesma casa, cinco anos antes, parecia ainda ter poder.

— O difícil é que você não mentiu. Apenas apontou o que eu era, mas havia me esquecido. Eu era realmente um prostituto, mas acreditava que isso não importava, que você me amava, apesar de tudo. Eu era um analfabeto, mas você me deu esperanças de aprender as letras. Eu era alguém que não sabia falar ou me portar à mesa, mas eu achei que...

— Shiro — Ryo o interrompeu novamente. — Shiro, aquelas palavras foram malditas. Elas não são reais. Eu estava cego em arrogância. Eu não vi o tesouro que tinha nas mãos. Você nunca foi um prostituto, foi uma vítima. Você foi abusado, estuprado por anos. Não se vendeu, foi vendido. Você não sabia ler, porque nunca teve a chance, mas em pouco tempo ao lado de uma criança, você se motivou a aprender. Eu sei que já reconhece alguns kanjis e eu juro por tudo que é mais sagrado que aprenderá todos eles. E, por Deus! meu melhor amigo é um porco na mesa, e eu o amo. Não me importo mais com essas futilidades. Eu me arrependi do homem que eu era todos os dias que se passaram nesses cinco anos. Por favor, eu te imploro... — ajoelhou-se diante dele. — Por favor, me perdoe.

Kazue abriu a boca, espantado. À sua frente estava o único homem que amou. O homem que se declarava abertamente pai de sua filha. E o homem que o havia ferido sem igual. Mesmo assim, ele sorriu, vendo-o tão comicamente.

— Levante-se, Ry-chan — gargalhou, secando as lágrimas.

— Eu estou falando sério.

— Eu o amo — afirmou, sem medo. — Não precisa disso.

— Mas eu quero ter certeza.

Shiro ficou sério.

— Está bem. Eu o perdoo.

— Do fundo do coração?

— Sim — assentiu. — Eu já o perdoei há meses, tolo.

— Ok — Ryo falou a palavra que os americanos usavam, quando se comunicavam, de forma rápida, com os japoneses. — E você quer se casar comigo?

Shiro gargalhou.

— Você ficou maluco?

— Você quer se casar comigo? — repetiu. — Não vou sair daqui enquanto não me responder.

— Ryo-san, não poderemos nos casar. Homens não podem se casar!

— Na verdade, eu estou enviando dinheiro para um grupo canadense que está tentando articular a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo [23] .

Shiro abriu a boca, espantado.

— O quê?

— Eu fui um cretino no amor, então eu tentei me redimir ajudando outros casais.

Kazue riu.

— Shiro, você aceita se casar comigo? Meus joelhos estão ficando dormentes.

Era uma situação idílica. Algo que ele jamais pensou vivenciar. Aliás, se alguém, um dia, lhe dissesse que um rico, bonito e idealizado burguês iria se ajoelhar diante dele — um menino que cresceu nas ruas sendo usado por muitos homens — jamais acreditaria.

Contudo... Era real. Ryo e ele... Era real. Sempre foi. Desde sempre. Desde as manhãs de leitura na Casa Ai. Desde a ida ao lago para tomar banho escondido de Mamoru. Desde o cinema, o primeiro beijo na chuva, os passeios nos parques. Desde as brigas, o sexo desesperador, as decepções, a fuga, os anos que passaram, o reencontro, o perdão...

— Sim... — as palavras foram acanhadas, carregadas de timidez. — Se um dia esses canadenses conseguirem...

Foi interrompido por um beijo cálido.

— Vou te dar uma aliança — Ryo jurou. — Mas, mais importante, eu preciso te devolver algo que sempre representou nosso laço.

Volveu as mãos para o próprio pescoço. Retirou o cordão. Shiro chorou ao perceber Satoshi colocando-o em volta do seu pescoço. Havia se acostumado àquele símbolo, e sentiu falta dele durante aqueles anos, da mesma forma que sempre sentiu de Ryo.

— E, mais uma coisa — Ryo afastou-se, indo em direção à cômoda. — Quando você sumiu, eu fui para Tóquio porque meu primeiro pensamento era que podia estar no abrigo — contou. — E lá encontrei algo que deixou para trás.

Retirou de lá um encadernado escuro. Shiro reconheceu imediatamente o livro.

— Eu lembro — murmurou. — Eu o guardei na noite do bombardeio junto com a minha caixinha... — sentiu as lágrimas voltando. — Eu o mostrei a Aiko... Então desci. Mal havia colocado as coisas na prateleira e ouvi um barulho, um estrondo... Foi horrível.

Ryo assentiu, colocando “A Tulipa Negra” em suas mãos.

— Obrigado — Shiro agradeceu com uma sinceridade que chocou Ryo.

Só então Satoshi se lembrou que Shiromiya nunca se preocupou com as coisas caras. Eram livros empoeirados que ele sequer sabia ler, que o rapaz valorizava como uma joia.

Segurando-o nos braços novamente, passou a guiá-lo para a cama.

— Precisamos comemorar nosso noivado — brincou, fazendo com que o outro soltasse a obra.

— Já fizemos — Shiro riu. — Duas vezes hoje. E Miya deve estar preocupada, afinal, sumimos das vistas dela desde que chegamos.

— Confie em Tadao. Ele tem cinco filhos e uns dez netos. Ele sabe como cuidar de uma criança, afinal, foi ele que me criou. Deve estar mostrando livros infantis para ela na biblioteca, ou ensinando-a a jogar alguma coisa no tabuleiro.

Shiro não mais se opôs. Estava tão entregue, tão feliz. Simplesmente permitiu-se aquela alegria.

Alguns segundos depois, tudo que ele usava era o cordão de ouro. Seu corpo nu, delicado e delicioso, foi admirado por Ryo por alguns segundos, antes do comerciante deitá-lo na cama.

— Você sabe, não é? Precisa apenas erguer um pouquinho esse quadril — puxou a coxa de Shiro para cima. — Que o resto seu marido faz...

— Meu marido?

— Seja um esposo submisso e me deixe degustar desse prato apetitoso...


***


Kazue agarrou-se à cabeceira de ferro. Gemeu alto, enquanto sentia o corpo sendo usado com força por Ryo.

O sexo com Satoshi sempre foi intenso. Mas, naquela noite, quando ele o buscou mais uma vez, imaginou de onde ele tirava tanta disposição. Ryo queria transformar uma semana de abstinência em um dia?

— Céus — Ryo gemeu nos seus ouvidos, fazendo-o arquejar de tanto prazer. — Não existe ninguém mais gostoso do que você.

Era um elogio? Jurava que havia ouvido ele dizer a mesma coisa para o frango que jantaram.

As mãos de Satoshi seguraram com força sua cintura e ele sentiu que ele o puxava e o empurrava com mais velocidade. Shiro quis reclamar, mas não tinha muito o que objetar quando o próprio pênis contorcia-se diante daquela paixão.

— Vou gozar — Ryo avisou.

Kazue riu.

— Eu percebi.

— Você está perto? Se não estiver, eu posso ir mais devagar para prolongar...

“Ah, sim. Ele iria conseguir!”

— Meu amor, se existe algo que você não consegue ter é autocontrole.

Dito e feito. Não levou dois segundos e Ryo derramou-se completamente dentro dele.

Outra marca de Satoshi era que, após gozar, ele perdia as forças momentaneamente. Logo Shiro sentiu-o esmagando-o com seu peso. Conseguiu escapar debaixo dele, indo para o lado. Segurou o próprio pênis, completamente duro.

— Quer que eu te chupe? — Ryo indagou.

— Ah — Shiro resmungou. — Fale de um jeito mais gentil, por favor.

— Quer que eu ponha na boca e sugue? — tentou, ainda com a cara completamente safada.

Kazue gargalhou. Como podia ser assim entre eles? Não era só prazer. Havia sempre uma atmosfera agradável, brincalhona. Sentia falta daquilo.

Assentiu e o viu ajoelhando-se na cama, aos pés dele. Fechou os olhos, sentindo os lábios úmidos e quentes lambendo e chupando cada pedaço dele. Como já estava muito excitado, logo chegou ao clímax.

Ryo engoliu tudo. Shiro achava aquilo horroroso e quase exigiu que ele cuspisse, mas o viu saindo da cama, aproximando-se de uma mesa com vinho e bebendo uma taça.

— Estou bebendo para limpar a boca — Ryo explicou, ao ver o olhar surpreso. — Sei que tem nojo de me beijar quando eu estou com a boca cheia do seu sêmen.

— Porque é nojento — defendeu-se.

— Vem do seu corpo! — alfinetou.

— Cocô também e eu não como merda!

— Uau! Romântico assim, quem resiste? — Depois, voltou a provocar. — Você engoliria o meu? — estava louco para provocar a fera.

— Nem morto.

— Mas... É meu corpo...

— E daí?

— É uma prova de amor!

— Eu tenho que provar meu amor por você? — Shiromiya indagou, firme. Apesar das palavras, era nítido que tudo não passava de uma brincadeira entre eles.

— Talvez... Um pouquinho.

— Você quer mesmo?

Ryo sorriu de ponta a ponta.

— Já que perguntou... Sim, eu quero muito.

— Vai continuar querendo.

Ao som daquela sonora gargalhada, ele voltou para a cama.


***


Miya abriu os olhos. Havia tido uma noite agradável.

Assim que os pais sumiram durante a noite, Tadao a divertiu com diversos jogos. Salientando que seu papa Shiro e seu papai Ryo deviam estar descansado, ele a manteve entretida com comida, brincadeiras nos tabuleiros e livros coloridos que ela sequer sonhou existir.

Adormeceu ainda na biblioteca, e o servo levou-a até a cama. Dormiu junto com o senhor Bigode, Shin-chan e a Princesa, pela primeira vez, naquele quarto dos sonhos.

Durante a madrugada, foi acordada levemente por um beijinho na testa. Recordou-se de abrir os olhos e perceber papa Shiro cobrindo-a melhor, cuidando para que ela estivesse bem aquecida na madrugada. Ao abrir os olhos novamente, o sol já despontava no horizonte.

Era muito cedo ainda. Ela sabia que todos dormiam, mas havia uma missão a cumprir. Levantou-se e vestiu-se sem vaidade.

— Shin-chan — avisou ao gatinho. — Eu já volto. O senhor Bigode cuidará de você.

Andou pela casa enorme até chegar à saída. O trajeto que ela percorreu da mansão ao portão de ferro foi feito em alguns minutos.

Encarou a estrada. Havia um mapa em sua mente.

Sorriu. Os raios do sol tocaram sua face, aquecendo-a. Era um dia feliz.


***


Shin Sakamoto desceu do ônibus rapidamente. O motor do carro afogara assim que desceu da balsa e, ao levá-lo para um mecânico, o homem disse-lhe que precisaria de, pelo menos, um dia para deixá-lo disponível para pegar a estrada novamente.

Enfurecido, decidiu seguir o restante do caminho de ônibus. Dividiu um banco com uma senhora tagarela que não se calou durante todo o trajeto, contando para ele sobre netas solteiras que estavam à procura de um jovem rapaz para desposar.

Ansioso para soltar um “ Elas têm pau? Não? Então não me interessa! ”, ele manteve-se em silêncio, segurando palavrões.

Já eram nove horas da manhã, quando o ônibus chegou a Sapporo. Com o olhar, buscou carros de aluguel, mas não havia nenhum. Devia ser uma maldição! Que péssimo momento para ele pegar a estrada!

— Príncipe encantado! — ouviu, atrás de si, mas não se ateve a voltar-se.

Caminhou em direção à rua asfaltada, tentando achar qualquer um que pudesse levá-lo até Ryo.

Ninguém.

Suspirou.

De qualquer forma, era um homem. Não precisava de ajuda. Além disso, a propriedade enorme ficava a poucos quilômetros. Podia ir andando.

Subitamente, um toque em sua mão. Olhou para o lado e viu uma menina miúda, sorrindo numa felicidade incontida.

— Príncipe encantado! — ela exclamou, e só naquele momento percebeu que ela falava com ele. — Eu estava esperando por você!

Então, ela o abraçou.

Um carinho que parecia vir do fundo do coração.

 

Capítulo 37


Shiromiya Kazue assustou-se quando, ao abrir a janela, constatou o sol já alto no céu. Volveu o olhar para o relógio na parede. Nove horas da manhã, e o susto de perceber que já fazia uma semana que não acordava tão cedo, fê-lo voltar-se para o responsável pelas férias não planejadas.

Ryo Satoshi dormia, exausto. Haviam se amado tantas vezes e de tantas formas durante a noite, que o outro sequer se incomodou com o sol encontrando a cama.

Sorriu, terminando de se arrumar.

Era um novo amanhecer em sua vida, e também, uma volta aos seus sonhos afogados por cinco longos anos. Havia um otimismo latente em seu âmago, algo que ele jamais poderia novamente reprimir.

Sabia que estava entregando, mais uma vez, tudo a Ryo.

Podia ser o seu fim.

Não se importou.

Tocando no cordão, ele rumou em direção ao quarto de Miya. Estava feliz e queria compartilhar aquela felicidade com a sua filha. Durante a noite, ninou-a em seus sonhos, pois mal podia ficar algumas horas longe dela sem sentir o coração aos frangalhos. Naquele momento, queria servir-lhe o café da manhã e depois fazer algo que não fazia pela pura falta de tempo em Kibou: brincar.

Sim, levaria a criança para o jardim e eles fariam comidinhas de mentira e, depois, poderiam jogar pique-esconde.

Céus! nem se lembrava da última vez que tivera tempo para dedicar toda a sua atenção a ela. Quantas vezes ouviu o pedido para brincar como senhor Bigode, mas como mal conseguia manter os olhos abertos, dizia que o fariam em outro dia e iam dormir?

Estar ali na casa de Ryo, significava mais que dar um tratamento decente à doença da filha. Era também a chance de poder estar ao seu lado de forma assídua. Sem a necessidade de buscar recursos para vesti-la, alimentá-la e fornecer-lhe medicamentos, ele poderia, simplesmente, estar à disposição para educá-la de uma maneira que sempre desejou.

— Miya? — abriu a porta do quarto.

A filhinha sempre foi preguiçosa de manhã, então imaginou que a encontraria na cama.

Não estava.

Foi até o banheiro, mas não havia ninguém lá.

Sem se alarmar, afinal de contas, a criança podia ter acordado e ido brincar na casa grande, ele arrumou a cama e pegou Shin-chan que estava deitado no chão, em meio a um tapete felpudo.

Com o gatinho nos braços, caminhou até a sala. Nada. Foi à cozinha, e sorriu para Tadao.

— Miya já lanchou? — indagou, crente de que a criança estaria no galinheiro ou no jardim.

— Não a vi — o servo respondeu, arqueando as sobrancelhas. — Não está dormindo?

— Não, já levantou, mas não a encontro.

— A propriedade é grande. Provavelmente foi brincar no pomar. Ou foi ver o galinheiro.

Shiro assentiu. Contudo, não conseguiu simplesmente sentar-se à mesa para comer. Servindo um pouco de leite morno em um pires, ele deixou Shin-chan a lanchar em um canto e foi atrás da filha.

Não estava no jardim.

Não estava no pomar.

Já estava com lágrimas nos olhos, aproximou-se do galinheiro. O único som que ouvia era o cacarejar ritmado das suas galinhas.

Uma dor absurda no coração o tomou. Voltou o corpo e correu em direção a casa. Como um raio, entrou no quarto e acordou Ryo.

— Miya — disse, diante de um Satoshi atordoado. — Miya sumiu.


***


Os passos do homem eram tão rápidos que a menina quase tropeçou nas próprias pernas. Em vão, tentou segurar seus dedos, para conseguir acompanhar a velocidade, mas ele afastou suas mãos, incomodado.

Claramente, o príncipe não a reconhecera. Não que aquilo a assustasse, afinal de contas, o próprio papai Ryo não se lembrava de ter estado em sua casa antes de surgir à sua porta naquela tarde chuvosa.

— Príncipe — ela tentou chamar sua atenção.

— Está enganada — a voz grossa e ríspida a cortou. — Não faço parte da linhagem. Sou apenas um parente distante.

— Parente?

— Do Imperador — ele completou. — Afinal de contas, de onde me conhece, pirralha?

Shin Sakamoto estancou. Então, volveu o corpo para a criança, que respirava assustadoramente rápido, como se estivesse exausta.

— Estou indo para a propriedade de um amigo e não quero uma criança intrometida atrás de mim — avisou. — Onde você mora? Seus pais não lhe disseram que não deve ficar atrás de estranhos?

— Mas você não é estranho — ela explicou. — É meu único amigo.

Shin riu.

— De onde tirou isso?

— Não se lembra, não é? Mas eu o vejo em minhas visões.

— Visões?

— Sou amaldiçoada, como papai era. Meu pai, seu amigo, também tinha visões.

Shin arqueou as sobrancelhas. Aquela criança seria...?

— Isso não é possível... — murmurou.

— É meu amigo — ela insistiu na ideia. — Ensinou-me que a honra deve ser maior que tudo. Ensinou-me que não importa o que as pessoas pensam, devemos sempre proteger os animais — a beleza das palavras acabou ali. — Ensinou-me a chamar a minha professora de vaca.

Shin abriu a boca, espantado.

— Eu...

— De madrugada, quando me contou que estava vindo e pediu que eu viesse recepcioná-lo, disse-me que provavelmente não acreditaria nas minhas palavras, porque odeia crianças e porque, durante o tempo que está comigo, seu corpo físico dorme — contou, seu comprometimento era intenso. — Então, falou que teria um código, que quando eu o dissesse, teria certeza de sou quem digo que sou.

Shin arqueou as sobrancelhas. Que código podia ser? Ele era um livro aberto.

— Disse — ela prosseguiu, diante de sua mudez — que gosta mais de gatos que de cães.

Exceto por isso. Ninguém imaginava que ele, que era cercado por dezenas de cachorros, gostasse mais de felinos. Não que fosse uma surpresa para a humanidade, mas... era algo que não gostava de pronunciar em voz alta.

Engoliu em seco.

— Você é Miya?

— Sim — o sorriso dela era encantador.

— A filha de Shiro?

— E de Ryo — ela completou.

— E o que diabos fazia sozinha na rodoviária?

— Já expliquei. Vim vê-lo!

— Mas — buscou amenizar o tom — não é doente?

— Sou — não pareceu se incomodar com tal coisa. — Mesmo assim, queria falar com você antes que visse meu papai e meu papa. Porque ambos têm medo que seja uma influência ruim para mim.

Ficou possesso diante das palavras. Entendia Shiromiya, mas Ryo? Como ele se atrevia a pensar de tal forma? Não era seu melhor amigo? Que tipo de relação era aquela? Falso do caralho! Iria se vingar!

— Não importa. É meu ídolo, e quando crescer quero ser como você.

Sorriu, subitamente, alegre pela confissão da criança.

— Mesmo que seu pai não queira?

— Ninguém pode me obrigar a nada. Você me ensinou. Sou dona das minhas próprias escolhas enquanto seguir meus princípios.

Aquilo era incrível demais. Repentinamente, entendeu que Kami-sama era bondoso com ele. Podia não ter filhos, mas teria uma continuidade.

— Me chama de príncipe encantado. Por quê?

— Porque é tão bonito quanto os príncipes dos livros que eu leio.

Quão bom era ver seu ego inflamado pelas palavras sinceras de uma criança.

— Mas ainda não entendo... Como podia me ver?

— Não sei como aconteceu. Um dia estava brincando de casinha e então olhei e você estava lá, sentado diante de mim.

— Assim, do nada?

— Minhas visões não são muito claras. Eu apenas o via. Surgia do nada e desaparecia do nada. Mas sou muito grata.

— Grata?

— Sempre ficava sozinha no recreio, sem ninguém para conversar. Eu brincava sozinha também. Não tinha amiguinhos. Então, você apareceu. O príncipe é o melhor amigo que eu poderia sonhar.

Ele podia ver coraçõezinhos escapando dos olhos infantis.

— Bom, vamos indo, então — disse a ela, já dando as costas. — Amigos ou não, ainda quero ir falar com seu pai.

Silêncio.

Volveu o corpo novamente para trás e a observou. Parada no meio da estrada, a criança respirava com sofreguidão.

— Estou cansada — ela explicou.

Ele a observou atentamente. De fato, parecia exausta.

— Não seremos amigos se for essa fracote que demonstra — foi duro, afinal de contas, era uma criança, e era nessa idade que ela criaria suas bases morais que a seguiriam para a vida.

— Não sou fraca, príncipe. É o meu coração que dói.

Aquela autodefesa cheia de arrogância e braveza fez Shin sorrir.

— Não me chame assim, é ridículo! — mandou, fingindo zanga. — Me chame de Shin.

— Shin é o nome do meu gatinho.

— É mesmo? Foi em minha homenagem?

— É claro.

Diante de tal resposta, o que mais ele poderia fazer que não fosse estender os braços e segurá-la no colo?


***


— Calma, meu amor — Ryo aproximou-se, temeroso. — Tome um pouco de água.

— Eu não quero água!

Ryo deu dois passos para trás. Por alguns segundos, esperou que Shiromiya lhe tomasse o copo das mãos e o atirasse na sua cabeça.

— Respire, Shiro — salientou. — É uma criança. A propriedade é enorme, deve estar explorando cada canto numa aventura. Estará em casa em alguns minutos.

Kazue levantou-se do sofá. As mãos tremiam e ele estava afogueado. Desde que notara seu sumiço, ele passou a buscar pela filha em cada canto da residência. Chamou por ela e foi até a estrada, tentando ver algum sinal. Não havia. Era como se ela tivesse evaporado. E aquela impotência diante do fato quase lhe roubou as forças e a racionalidade.

— Ela pode ter desmaiado em algum lugar — pensou logo na pior hipótese. — Ryo-san! — as palavras saíram afogadas em lágrimas. — Preciso achá-la.

— Tadao foi procurá-la. Se não aparecer, vamos chamar a polícia. Por favor, tente...

— Não me peça calma! — gritou, quase avançando em cima de Ryo. — Não me peça calma quando a minha filha doente está perdida! — repentinamente, outra coisa ocorreu. — E se alguém a pegou? Meu Deus, e se algum homem...

Naquele instante, Shiromiya olhou pela janela. Ao longe, percebeu alguém no portão. Não se ateve ao rosto do homem, percebendo, mesmo a distância, uma criança sendo carregada.

Ele correu como um louco. Mal sentia as pernas enquanto avançava. Logo, estava na área externa, no caminho de pedras até a frente da enorme propriedade.

Segundos depois, puxava a criança para seu colo. Não sabia se brigava com ela ou a beijava. Optou pela última alternativa, apertando-a tão forte contra o peito, que mal a deixava respirar.

Volveu então o olhar para o rapaz, querendo agradecê-lo. Em choque, notou ser Shin Sakamoto. As palavras tristes de Jiro o encontraram, fazendo-o recordar-se de que o membro da realeza havia ferido seu grande amigo.

Fechou a cara e deu-lhe as costas, rumando novamente para a casa.


***


Ryo estava logo atrás de Shiro. Ele percebeu a reação de Kazue, mas acreditou que ela se devesse ao nervosismo anterior do outro. Então, quando viu Shiro se afastando com Miya no colo, apenas sorriu para Shin, num agradecimento.

— Onde ela esteve?

— Foi me receber, é claro. Afinal de contas, eu sou o príncipe encantado dela.

A frase teve o efeito desejado. Shin viu Ryo ficar verde e, depois, azul. Quando acreditou que a explosão ocorreria, foi surpreendido pela fala baixa, calculada.

— Não é verdade.

— Serei uma péssima influencia para sua filhinha, não é? Sim, ela me contou. Contou-me também que você sequer queria nosso encontro, então ela escapou de madrugada, sozinha, e foi me ver. Isso, meu caro, é culpa sua. Ela arriscou a sua segurança e a sua saúde porque o pai não respeita suas escolhas.

Ryo deu dois passos em direção a Shin. Estavam tão próximos que o nariz quase se tocou.

— Nunca mais ouse...

— Sim, eu ouso. E sabe por quê? Se tentar me impedir, Miya aguardará ter idade e sumirá das suas vistas, assim que puder. Ela virá até mim, se você tentar separá-la do melhor amigo. E sabe tão bem quanto eu, que nós nunca esquecemos. Pode trancá-la numa escola interna como meus pais fizeram comigo. Porque a liberdade vem e, com ela, a nossa vingança.

Deu dois passos para frente em direção a casa. Contudo, estancou. A mão de Satoshi agarrou-se com firmeza em seu antebraço.

— Pode ameaçar quem quiser — Ryo murmurou. — Mas a minha família é sagrada. Shiro e Miya são tudo para mim. Neles ninguém...

— Não vou roubar sua filha, Ryo — Shin amenizou as palavras, diante do olhar aturdido do outro. — Estou apenas zangado porque ousou dizer que posso ser uma má influência para ela.

— Eu nunca disse isso!

— Bom, quem me falou foi ela. Pode negar?

Como Miya pôde descobrir seus pensamentos? Ele jamais falou as palavras para ela em voz alta, mas, várias vezes, pensou nelas.

— Entenda... Não é exatamente assim — buscou justificativas. — Eu te amo — afirmou. — Por Deus, é a pessoa mais próxima que tenho. Apenas, Miya tem seu jeito. Ela tem sua forma de agir. Eu temo por ela. Você é homem, não importa o que faça, a sociedade sempre reage...

— Nossa, machismo vindo de você? Estou surpreso. Quem aqui sempre desprezou as mulheres fui eu!

— Não se trata disso.

— Se Miya quiser quebrar barreiras e cagar em cima dessa sociedade burra e alienada, terá em mim seu maior cúmplice. Não me importa se é homem ou mulher. Pessoas como nós não nascemos para seguirmos regras — afastou-se. — Agora, dê-me licença. Vim aqui para ver Shiro e não alguém que me chama de amigo, mas diz à própria filha para não se aproximar de mim.

Aquela pose de vítima tinha um objetivo. E foi cumprido com sucesso, quando Ryo o segurou novamente, completamente culpado.

— Está certo, Shin-san. Perdoe-me.

Sakamoto respirou fundo.

— Está com sorte. Hoje eu estou num bom dia, então vou perdoá-lo.

E rumou em direção a casa, dessa vez sem impedimentos.


***


— Papa — a menina resmungou, o rosto esmagado contra o peito masculino. — Não consigo respirar.

Logo o rosto foi puxado. O pai espremia tanto sua face com as mãos que ela sentiu as bochechas se inflando.

Estava sentada no colo dele, numa poltrona bonita da casa ainda mais bela. Shiro segurava lágrimas, e Miya sentiu uma leve culpa por causar preocupação. Ela planejara retornar antes de o pai acordar, porém, o ônibus atrasou e ela acabou tendo que esperar na rodoviária.

— Miya — a voz do pai era séria. — Nunca mais — o tom aumentou. — Nunca mais na sua vida, ouse sair de casa sem me avisar — não era um pedido, era uma ordem. — Enquanto você morar comigo, não me importa se tiver dez ou trinta anos, você me deve obediência, entendeu?

A menina assentiu.

— Nunca mais farei, papa.

E falava sério. Havia feito tal coisa apenas por necessidade. Mas, de fato, não gostava de preocupar seu amado pai.

— Você imagina como eu me senti? E se tivesse te acontecido alguma coisa? E se alguém tivesse te feito mal? Nunca mais faça isso — repetiu. — Da próxima vez, vai apanhar de vara!

— Não farei mais — ela jurou, preocupada com as varetas dos pés de marmelo que existiam próximas da casa.

Novamente, o rosto foi puxado. O abraço dele era tão intenso que parecia que não a via por mil anos.

Depois, ouviu sons. O papa soltou-a um pouco, e ela pôde girar o rosto. O príncipe encantado havia entrado na casa e os observava sorrindo.

— É um pai incrível, Shiro — ouviu o elogio e sorriu. Amava aquele tom de voz. — Fez um ótimo trabalho.

O papa não agradeceu.

— Miya, Shin-chan está na cozinha. Vá brincar com ele.

A ordem direta não a deixou pestanejar. Assentindo, ela pediu licença e se afastou.


***


Shiromiya ergueu-se da poltrona, ajeitando o casaco. Não eram dez horas da manhã ainda, mas ele já estava exausto dos momentos desesperadores que vivenciara.

— Bom — disse baixo, sem olhar nos olhos de Shin —, estou indo para o quarto — avisou. — Acredito que Ryo já deve estar voltando e vocês poderão conversar sobre o que quer que seja.

Porém, não chegou a dar um passo.

— Não consegue me olhar, Shiro — Shin observou, certeiro. — Sabe o que aconteceu entre mim e Jiro, não é?

Kazue então o encarou. Seu semblante era firme.

— Sim, eu sei.

— Eu falhei com Saito — Shin assumiu. — Fui um crápula, eu traí a confiança e o amor dele. Eu me arrependo e me envergonho disso — respirou fundo. — E você sabe que eu não minto — riu, triste. — Infelizmente, não é? Seria mais fácil se eu conseguisse mentir. Eu poderia fingir que estava bêbado ou que Jiro havia me pedido e depois negado... sei lá. Entre amantes sempre surgem justificativas. Mas a verdade pura é que eu machuquei alguém que amo mais que a mim mesmo.

Shiromiya desviou o olhar, incomodado.

— Eu pedi perdão a Jiro. Várias vezes. Ele não conseguia me perdoar, mas... aconteceram algumas coisas — calou-se. Não queria destruir com preocupações desnecessárias aquela vida bonita que Ryo e Shiro estavam construindo. — Enfim, nós nos vimos ontem à noite, e ele conseguiu me desculpar...

Kazue assentiu.

— Fico feliz por você.

Então, preparou-se para deixar a sala, quando Shin se adiantou, colocando-se no caminho.

— Quando sumiu, Shiro — prosseguiu, sem deixar-se interromper —, eu tive certeza que estava com Saito. Mesmo quando Ryo acreditava que estava morto, eu sabia que estava bem. Aguardei notícias de vocês com esperança, mas os anos foram passando... — calou-se um instante. — Eu me culpei muito, Shiro... Porque, depois que nos tornamos amigos, eu sempre acreditei que teria tempo para me desculpar devidamente com você, por tudo que fiz. Mas, então, de repente, eu o havia perdido... e não havia mais nenhuma chance.

Kazue mal conseguia respirar.

— Eu nunca te pedi perdão, Shiro... e isso me doeu por muito tempo.

Então, como se estivesse num devaneio, ele percebeu Shin se curvando a sua frente. Abriu a boca, completamente espantado.

— Shin-san...

— Quando nos conhecemos, eu senti tanto ódio. Eu te considerava um rival, porque o vi abraçado a Aiko. E você é tão bonito... Não pude controlar a raiva. Eu o machuquei. Eu o feri. E, mesmo assim, nunca me odiou. Quando eu lhe prometi proteção, recebeu minha amizade sem sequer pestanejar. Eu nunca mereci seu carinho ou a forma como você sempre tentou me ajudar com Aiko... Mesmo assim, você foi meu amigo. Então, quase dez anos depois daquela noite maldita, eu quero o seu perdão, Shiro. Pode me perdoar?

Nunca nenhum dos homens que o submeteu havia lhe pedido aquilo. Era como se todo o passado, subitamente, retornasse aos seus olhos. Ele mal conseguia conter as lágrimas. Mesmo que a surpresa estampasse seu olhar, viu-se segurando as mãos de Shin e o puxando. Fazendo-o ficar em pé, em segundos, o abraçava.

— Lembra-se de quando aquele homem, amigo de Ryo, foi até a Casa Ai?— a voz de Shiromiya era doce. — Ele me ofendeu, me humilhou. Ryo-san sequer tentou me proteger. Eu me senti tão diminuído... E eu sabia que meus dias de felicidade haviam terminado, porque homens como aquele, quando escolhem seus brinquedos, não desistem até vê-los completamente destruídos. Muitas coisas se passaram na minha mente... Pensei que minha vida se tornaria um inferno, visualizei-o armando para me tirar da Casa Ai... de perto de Aiko-san. Pensei também que seria o meu fim. Aquele homem, em especial, havia me machucado muito durante o tempo que me teve...

Shin sentiu lágrimas vindo aos olhos, quando Shiro o encarou.

— Mas, então, você surgiu na escada. Você se colocou entre nós e me protegeu. Ninguém mais o fez, foi você. Mesmo com todos os defeitos que você sabe ter, foi você que disse a ele que o aniquilaria caso ele tentasse se aproximar de mim. Naquele momento, se um dia tive qualquer mágoa sua, ela acabou. Então, por favor, não peça perdão por algo que já está perdoado há quase uma década.

Shin sorriu, beijando-lhe a testa.

— É uma pessoa maravilhosa, Shiro. Eu jamais teria seu coração bondoso. Obrigado.

Naquele momento, a porta da sala abriu, e Ryo Satoshi entrou. Encarou o par naquele abraço cúmplice e arqueou as sobrancelhas.

— Você não o merece — Sakamoto disse, encarando o comerciante.

Shiro riu. Tudo estava bem.


***


Shiromiya sorriu, observando ao longe, Shin Sakamoto conversando animadamente com a sua filha. Ambos estavam no galinheiro, e ela apontava as galinhas, enquanto falava sem parar. O homem mantinha a postura séria, como se o assunto fosse deveras importante.

Sentado em um banco bonito de gesso, Shiro bebericava chá, quando sentiu a presença de outra pessoa. Olhou para o lado e Tadao sorriu. Então, bateu no banco, chamando o velho servo para fazer-lhe companhia.

— Lamento que, em pleno sábado, Ryo-san teve de ir a uma das fábricas — Tadao comentou.

— Não se preocupe. Eu sei que ele é muito ocupado — Shiro sorriu. — Além disso, trabalho é algo importante e nunca devemos negligenciar.

O homem assentiu.

— Estou aliviado, Shiro-san — comentou. — Eu queria ter dito isso antes, mas desde que chegou, ainda não tive oportunidade de ficar sozinho com você. Estou feliz, portanto, por podermos falar em privacidade. Ryo-san sofreu muito, sentiu demais a sua falta. Eu temi pelo pior, durante os anos que se passaram.

— Temeu?

— Que ele tirasse a própria vida — o homem explicou. — Sei que pode parecer estranho, mas Ryo-san é um filho para mim. Sempre desejei que fosse feliz.

Kazue assentiu, sorrindo.

— Tenho certeza de que ele o vê como pai também. Sei que sempre confiou no senhor, inclusive com seus bens materiais.

— Eu o criei — Tadao contou, surpreendendo-o. — O pai de Ryo era um homem terrível. Gostava de crianças — a voz sugestiva fê-lo compreender imediatamente as intenções. — Eu temi muito que ele quisesse abusar do próprio filho, mas, me envergonho em dizer, graças a Kami-sama, ele só queria meninas. A própria mãe de Satoshi era uma criança quando ficou grávida.

Shiromiya abriu a boca, embasbacado. Mal conseguia acreditar naquilo. Era terrível.

— Passei a dormir na casa, próximo do quarto de Satoshi. Sabia que não poderia fazer muito para protegê-lo, mas tentei. Por sorte, o antigo dono dessa casa morreu cedo, e então tudo virou paz e solidão — ele suspirou. — Aqueles meses de 1945 foram os primeiros meses que Ryo-san soube o que era ter uma família. Ele nunca havia dividido a vida com ninguém, apenas preocupado em ter dinheiro e afazeres. Não foi sua culpa, afinal de contas, era a única maneira de viver que ele conhecia. Então, você apareceu e ele passou a ter luz própria, a ter outras prioridades. Quando sumiu, desesperou-se. Um dia, quando soube da possibilidade de reencontrá-lo, abandonou tudo para seguir atrás de você.

Shiromiya ficou emocionado pelas palavras e não escondeu o fato.

— Então, passei a cuidar de tudo... Mas, é claro, tem coisas que só o próprio dono precisa decidir. Assim, não fique triste pela ausência dele.

— Não fico — retificou. — Jamais ficaria. Como eu disse, trabalho é trabalho. — suspirou. — Talvez eu também possa arrumar algum. Talvez eu possa estudar... Aprender a ler.

— Ryo-san fundou centros de alfabetização para adultos por todo o Japão. Existe um em Sapporo. Tenho certeza que ele ficaria feliz se você fosse...

Shiro ergueu a mão, calando-o. Estava tão surpreso que não conseguia compreender direito as palavras.

— Fundou? É gratuito?

— Sim.

— Mas quem paga os professores? E os materiais?

— Ryo-san abriu uma organização filantrópica. Todos os recursos são mantidos por ele.

— Por que ele fez isso?

— Por você, é claro — Tadao sorriu. — Ele passou a viver por você, desde que sumiu. Passou a ajudar pessoas a realizar sonhos, como se isso pudesse trazê-lo um pouco mais para perto dele. Soube de Midori? Ele a salvou das ruas, e a levou para o hospital, onde ela pôde morrer com dignidade.

Ryo havia lhe dito que Midori estava morta, mas jamais lhe explicou em detalhes. Sentiu as lágrimas surgirem nos olhos, compreendendo que muito do homem que Ryo tornara-se era por causa dele.

— Obrigado por me contar — disse a Tadao, do fundo do coração.

O servo aquiesceu.

Ao longe, a risada masculina de Sakamoto desviou sua atenção.


***


— Como eu queria ter visto a cena — Shin comentou, segurando a gargalhada.

— Mas você viu. Estava lá. Incentivou-me a manter-me firme.

Shin observou a criança com mais atenção. Agora, sem a pressa em chegar em casa, encarando-a melhor, percebia os traços de Shiromiya. Como podia ser possível, sendo que Shiro nem era seu pai biológico? Ela falava e gesticulava como Kazue, mas a determinação na voz assemelhava-se muito a... ele. Era uma sorte que havia influenciado tanto Miya. Salvara aquela criança da personalidade maçante dos pais.

De Ryo, restava o dom... as visões perdidas. Esperava que a sobrinha não fizesse tanta besteira quanto o pai.

Sorriu. Sim, sobrinha. Miya era filha de Ryo, da mesma forma que Satoshi era seu irmão. A alma era mais intensa que o sangue.

— De fato, Miya. Foi corajosa e salvou todas as galinhas. Você, definitivamente, puxou por mim.

— Puxei?

— Sim, sou seu tio, não é?

Ela sorriu, mostrando todos os dentes.

— Como tio Aiko e o tio Jiro?

Que família esquisita!

— Pois é. Mas eu sou o seu favorito.

— É claro. Porém, os outros não podem saber.

— Por que não?

— Porque eu direi para eles, que são eles.

De fato, aquela fruta não caiu longe do pé.

 

Capítulo 38


De longe , era possível perceber a tempestade aproximar-se com lentidão, com seu som baixo dos trovões e ver, no horizonte, flashes de luzes, indicando a força da natureza.

Shin Sakamoto desviou os olhos da janela e encarou Shiromiya, que balançava a menina adormecida nos braços. Era uma visão confortadora, num mundo cruel.

— Não é pesada? — indagou, por pura curiosidade.

Viu o sorriso lindo e encantador e percebeu-se a sorrir também. Não era à toa que Ryo Satoshi era loucamente apaixonado por aquele homem.

— Eu sinto falta de quando ela tinha três anos — contou, saudoso. — Adorava ficar com ela nos braços...

— Mas cresceu — Shin completou.

— Sempre será meu bebezinho — contestou. — E hoje foi um dia cheio para ela. Acordou de madrugada para ir até você, não dormiu depois do almoço, como costume. Enfim, não é à toa que apagou tão cedo.

Perto das dezoito horas, Tadao serviu o lanche da tarde para a sonolenta criança. Depois, Shiro deu-lhe banho. Ela insistiu em ir para a sala, conversar com seu príncipe encantado, mas, pouco depois de chegar lá, foi aproximando-se do papa Shiro e esgueirando-se para seus braços. Em poucos minutos, dormia profundamente.

— Você acha que, um dia, Mamoru e eu poderemos ter uma vida assim? — o questionamento de Sakamoto fez com que Kazue focasse sua atenção no homem grande.

— Assim, como?

— Feliz — a simplicidade da resposta fê-lo sorrir novamente. — Com uma família.

— Construir uma família não é algo fácil. Especialmente quando envolvem crianças. Parece bonito e tranquilo, mas Miya, muitas vezes, me enlouquece. A personalidade forte dela é incontrolável. Sei que cometo muitos erros em relação a ela. Mesmo assim, vale a pena cada segundo perto da minha criança. Se Mamoru e você conseguirem se perdoar, tenho certeza que serão ótimos pais.

Shin suspirou.

— O problema é que a sorte não nos favorece. Além de todos os problemas, duvido que consigamos adotar uma criança, apesar de existir milhares sem pais, desde que a guerra terminou. Você foi esperto em conseguir Miya no meio do inferno. Assim, com as transições de governo, foi mais simples assumi-la como pai biológico.

— Mas ainda temo que alguém descubra a verdade — admitiu. — Eu não aguentaria se a tirassem de mim...

— Eu imagino.

— Não — Shiromiya negou. — Não faz ideia. É algo mais forte que a própria vida. Ela veio para mim muito pequena, mal havia aprendido a andar. Eu sou o pai dela, do fundo da alma... Se algo acontecesse...

— Ryo-san jamais permitiria. Ele tem aliados políticos poderosos. E Miya é órfã. Quem se importaria em destruir uma família apenas para colocar mais uma criança em abrigos já superlotados?

— Muita gente — a voz do outro era firme. — Muita gente nos odiaria porque somos dois homens vivendo juntos.

Era uma verdade incontestável.

— Não fique preocupado — Shin negou. — Além de Ryo, você tem a mim. Eu juro por tudo que é mais sagrado que ninguém tocará na sua filha.

A voz de Shin passou-lhe segurança.

Alguns minutos depois, Shiro levou a filha para o quarto. Ela acomodou-se embaixo dos lençóis e sequer sentiu o beijo pacífico que recebeu do pai.

Assim sendo, quando Ryo chegou em casa, já noite, encontrou apenas o amante e o melhor amigo sentados à mesa. O jantar já havia sido servido e ele sentiu a barriga doer diante de tantos pratos saborosos.

Beijou a fronte de Shiro e sentou-se à ponta da mesa, local usual do dono da casa. Após o agradecimento habitual, pôs-se a servir.

— Dizia a Shiromiya — ouviu o tom de voz de Shin e sorriu para o amigo — que estou feliz pela família que construíram.

Shiro enrubesceu e Ryo riu.

— Sim — concordou. — Mas foi um longo caminho até aqui.

Houve um breve silêncio bonito, quebrado pelas palavras amenas de Shin.

— E Shiro perdoou-o por tudo que fez?

Ryo encarou Shin. Havia um brilho estranho em seu olhar ou era impressão? Desviando o olhar, volveu para Shiro e o observou atentamente. Percebeu o sorriso acanhado e estendeu-lhe a mão. Seguraram os dedos um do outro, enquanto dividiam um olhar amoroso.

— Sim, eu o perdoei — Shiro afirmou. — Queremos compartilhar uma vida — afirmou. — E, dessa vez, sem mentiras, sem dúvidas, sem nada obscuro. Ryo-san e eu não esconderemos mais nada um do outro.

— Que bonito! — Sakamoto exclamou. — Porque, você sabe, não é qualquer um que perdoa o que o namorado fez ao melhor amigo.

Ryo desviou os olhos de Shiro e encarou Shin. O sorriso maquiavélico estava ali, firme, determinado... vingativo. O que ele planejava?

— Como assim? — Shiro murmurou.

— Ora, Ryo-san deve ter te contado — a malícia resplandecia em seu âmago. — O que ele fez a Mamoru e a você no dia que nos separamos, quando Tóquio foi bombardeada...

Shiro desviou o olhar do convidado e encarou o companheiro.

— Não contou? — Shin questionou, como se não fosse óbvio. — Que coisa, não? — voltou-se para Ryo. — Se não contar, quem contará? Você e eu somos as únicas pessoas que sabemos... — depois riu. — Deixe que eu conte — decidiu, retornando o olhar para Kazue. — Ryo-san me ameaçou com uma arma para trazê-lo para Sapporo. Eu planejava mantê-lo ao lado de Aiko no bunker, mas Satoshi disse que contaria a Kempeitai que Mamoru tinha sangue chinês. Ou seja, se eu me mantivesse firme no propósito de manter Aiko-san e você juntos, estaria arriscando a vida dele.

Ryo largou os hashis no prato e voltou-se para Shiromiya. Sentia a pele queimar, e ficou dividido entre tentar desculpar-se com o namorado ou atirar-se contra Sakamoto e enchê-lo de socos.

Por fim, a palidez de Kazue decidiu por ele.

— Shiro... — começou, mas foi interrompido por um jato de água fria.

Shiromiya havia atirado a água do copo na sua face e, depois, saído correndo da mesa. Estava furioso e Ryo sequer tentou contê-lo.

— Por que diabos fez isso?

— Primeiro, porque eu nunca esqueço e sempre me vingo. Segundo, porque eu te avisei que me pediria perdão, um dia. Terceiro, porque estou limpando meu passado com Shiro e não quero que ele pense que eu não lutei para tê-lo ao meu lado, durante a guerra. Você foi o culpado de tudo.

— Limpar seu passado? Fodendo com a minha vida?

— Está reclamando do quê? — Shin voltou a comer, como se nada tivesse acontecido. — Menti, por acaso? Foi um filho da puta, um desgraçado. Aiko-san ficou em estado de choque, quando acordou do estado catatônico e não viu Kazue. Por causa disso, Jiro teve que arriscar a vida num país em guerra para ir até Shiro e salvá-lo de você. Por causa disso, fiquei longe de Jiro por quase seis anos. Achou mesmo que Shiro não merecia saber a verdade?

Ryo respirou fundo. Realmente, havia sentido naquelas palavras, por mais doloroso que fosse admitir.

— Eu mudei — objetou, contudo. — Não sou mais o mesmo Ryo Satoshi de seis anos atrás.

— Não tenho dúvidas disso. Mas esse fato não anula seus erros. E acho bom limpar todo o passado com Shiro-san, pois senão eu o farei por você!

Enfurecido, Ryo achou por melhor não entrar numa guerra verbal com Shin Sakamoto. Empurrando a cadeira, saiu em direção ao quarto, atrás de Shiromiya, a única pessoa a quem realmente devia se desculpar.


***


Ryo o encontrou no quarto deles, a observar a cidade ao longe, pela enorme janela da varanda. Não precisou se aproximar muito para sentir que ele estava muito irado. Ficou inseguro, diante do que estava por vir.

Deu dois passos. Estancou. Como se desculpar quando sequer tinha justificativas? Analisando friamente seu passado, mal conseguia acreditar no monstro que era. Lembranças de como planejava desfazer-se de Shiro, após possuí-lo, tomaram conta de sua mente. Não merecia perdão, mesmo assim, precisava tremendamente daquilo.

— Shiro — começou baixo, tentando manter a calma.

— Esta tudo bem — a voz do outro chegou a ele, igualmente baixa.

Respirou fundo, aliviado. Aproximou-se, cautelosamente, no entanto. Quando percebeu que o outro não bateria nele, abraçou-o por trás, colocando o queixo em seu ombro.

— Cometi muitos erros, Kazue — admitiu. — Da maior parte, sequer me lembro. Juro eu não me recordava de ter ameaçado Shin, caso contrário, teria lhe contado antes. Só quando o ouvi foi que a memória retornou.

O suspiro de Shiro pareceu resignado.

— Eu disse que o perdoava. E eu o perdoei, verdadeiramente, por tudo o que aconteceu no passado — foi firme.

Voltou-se para Ryo. Encararam-se.

— Eu o perdoei — repetiu. — Mas não perdoo mais nada. Não importa o quê, tudo que fizer a partir de agora... Não haverá perdão, entendeu?

Ryo assentiu.

— Mesmo uma mísera coisa... Não perdoarei!

Satoshi o apertou nos braços, trazendo-o para um beijo.

— Falo sério! — Shiro parecia magoado.

— Eu sei — o outro respondeu. — Mas não me importo. Porque eu serei o melhor marido que você poderia ter. Não falharei com você, tenho ciência disso. Martirizei-me muito todos esses anos e não vou falhar mais.

Shiro então aceitou o carinho. Aconchegou-se novamente nos braços de Ryo e, enfim, tranquilizou-se.


***


— Ah, que bonito! — Shin exclamou ao vê-los retornando à sala de jantar. — Fizeram as pazes?

— Sim — Ryo resmungou, fuzilando-o com o olhar.

Ajudando Shiro a se sentar, logo ele retornou ao prato outrora abandonado.

— Obrigado, Shin-chan — ouviu a voz de Shiro e ficou ainda mais zangado. — Por ter tentado cuidar de mim.

— Eu te disse, não? É meu protegido.

E Shin Sakamoto ainda saía como herói? Ryo ficou revoltado. Que mundo injusto!

— Estava pensando aqui... — a voz de Sakamoto prosseguiu, tranquila. — O que acham de darem Miya para mim?

Silêncio novamente.

— Shin, diga que está brincando, porque Shiro está ficando azul.

— Veja bem, sei que ela tem uma personalidade forte. É parecida comigo. Poderiam tentar adotar uma criança mais calma e eu cuido dela.

Ryo quase sorriu quando Shiro abandonou a mesa e saiu, bufando, novamente, em direção ao quarto.

— É, parece que você saiu de herói para vilão em poucos segundos.

— Por quê? O que eu fiz?

Quando Ryo gargalhou, o outro o acompanhou no riso. Enfim, tudo havia voltado ao normal.


***


Enquanto encarava o líquido malte, Shin Sakamoto imaginou se Nagakawa Seibei, o fundador da cervejaria Sapporo, imaginaria o quanto a bebida que ele se preparou tanto na Alemanha para fabricar, tornar-se-ia uma das favoritas de todo o país.

Para Shin, era assim. Desde que a provara pela primeira vez, havia se distanciado do saquê. Bastava um gole do líquido amarelado para ficar feliz. E, ali, próximo da varanda da sala de Ryo Satoshi, observando a tempestade que já se iniciava, ele pensou que a bebida o acalmaria dos inúmeros problemas que começariam, a partir do dia seguinte.

Planejava pegar a balsa ainda de manhã. Depois, rumaria direto para Jiro. Com ele, arquitetaria a melhor forma de aniquilar Oguri. Caso Saito continuasse a recusar, teria que fazer o serviço sozinho. Nada daquilo seria necessário se o ex-capitão não os ameaçasse, usando a pessoa mais importante de sua vida.

Mais um gole. Suspirou, pensando em Mamoru Aiko.

Fazia dias que não o via. Sentia sua falta. Tinham tanto que conversar. Mas estava sendo, pela primeira vez, compreensivo. Estava dando o tempo que Aiko pediu. Esperava que ele estivesse sendo usado em prol do seu ideal. Queria desesperadamente voltar com Mamoru.

O trovão ecoou.

Deixou o copo de lado, quando percebeu um movimento em sua direção.

Sorriu.

— O que aconteceu, Miya?

Outro trovão.

— Está com medo? — indagou, ao percebê-la estremecer. — Nossa raça não tem medo — definiu-os de um jeito estranho, buscando ser duro. — Vá dormir.

Pareceu ao homem que a menina quis objetar, mas, por fim, ela voltou para o próprio quarto sem tecer uma palavra.

Era o teste. Shin largou a cerveja e escondeu-se entre os pilares. Aguardou. Cinco minutos depois, ouviu novamente o som de passos. Não levou muito, e ela surgiu, esgueirando-se nas sombras, em direção ao quarto dos pais.

— Miya! — a voz dele entoou, como um cântico sagrado. — Eu não a mandei ir dormir?

A criança baixou a face, constrangida.

— Você me desobedeceu?

A menina o encarou. Seu olhar não denotava absolutamente nada: nem arrependimento, nem culpa, nem orgulho.

— Pois bem, Miya. — Shin suspirou. — Eu quero lhe dar os parabéns!

Arregalou os olhos, incrédula.

— Nós não devemos obedecer a ninguém, apenas às nossas vontades. Não interessa o que eu disse para fazer, se não pode contra mim, iluda-me e me engane. Exatamente como fez. Estou orgulhoso.

Ela sorriu. Shin fez um cafuné desengonçado em sua cabeça, adorando a sensação de ser tio. Com certeza, ensinaria a Miya a arte de viver sendo livre. Ela seria sua versão melhorada.

— Você tem medo de trovões? — questionou, depois, curioso pela faceta frágil.

— Não tenho medo de nada — ela respondeu, firme.

— Ora, tem sim. Admita — mandou. — Não me desobedeceu apenas por temer ficar sozinha, enquanto os trovões ecoam?

— Não é por mim — insistiu. — Eu não lembro direito de quando era bem pequeninha, mas me recordo dos “cabuns”... E sei que depois de um deles, minha mama dormiu e nunca mais acordou. Eu tenho medo de que os “cabuns” tirem meus pais de mim...

Shin ficou pasmo.

— Então, não é a chuva que você teme?

— Por isso sempre peço para dormir com eles. Porque, se eles dormirem para sempre, eu dormirei também.

Shin se comoveu. Ela devia ser uma criança de colo quando a guerra se findou e, mesmo assim, estava marcada pelo horror.

— Está certo, Miya. Vá para junto dos seus pais.

Ela se curvou ao tio, respeitosamente, e depois sumiu na escuridão.


***


Ryo Satoshi acordou com a batida na porta. Ao seu lado, Shiro remexeu-se.

— Entre, filha — a voz de Kazue ecoou.

A pequena surgiu no vão da porta. Arrastando o boneco de espiga, ela subiu na cama, ficando entre os pais.

— O senhor Bigode pediu para dormir aqui — explicou.

Shiromiya beijou a face bonita da criança e a puxou para baixo das cobertas. Ryo acariciou seus cabelos até o sono apagá-la.

Quando a chuva intensificou-se, ela agarrou-se com força contra o papa Shiro. Não sabia, mas nenhum “cabum” tiraria o pai dela...


***


Apesar do ocorrido na noite anterior, na despedida, Shin Sakamoto recebeu um abraço forte e uma pequena caixa com guloseimas de Shiro. Prometendo que voltaria assim que pudesse, ele também apertou Miya contra os braços e apertou cordialmente a mão de Satoshi, afinal de contas, entre ele e o melhor amigo, as coisas eram mais secas.

Estava aliviado de muitas maneiras. Não gostava de ser injusto. O perdão de Shiromiya lhe tirou um peso imenso da consciência, e deu-lhe forças para o que estava por vir.

Já era noite quando chegou em Tóquio. Aguardou cerca de duas horas, durante a madrugada, diante da casa de Oguri. Jiro só surgiu quando teve certeza de que ambos não seriam flagrados.

— Shin — atirou-se em seus braços novamente.

Era nítido o quanto estava frágil e desamparado. Shin não recusou aquela oportunidade.

— Senti muito a sua falta — murmurou, apertando-o contra si.

— Eu também. Nesse momento, você é a única força que tenho.

Aquele tom, resignado e machucado, amoleceu Sakamoto. Então, disse a primeira coisa que surgiu em mente, para alegrar Saito.

— Adivinhe quem eu conheci!

Jiro o encarou. O rosto sorridente o confundiu.

— Como?

— Uma pessoinha que você ama muito — afirmou. — Quem é a única menina no mundo que você ama?

A princípio, Jiro não conseguiu entender o tom da conversa. Quando, enfim, captou as palavras, abriu a boca, extasiado.

— Esteve em Kibou?

— Não, em Sapporo.

— O que Miya faz em Sapporo?

Repentinamente, compreendeu tudo.

— Ryo?

— Por favor, não fique nervoso. Ela está tão feliz! Satoshi é um pai perfeito.

Antes mesmo de conseguir terminar a explicação, Jiro deu-lhe as costas, voltando correndo em direção a casa.

Diante da reação, percebeu a besteira que fizera. Ryo que se preparasse. Jiro não ficaria calado diante daquilo.

 

Capítulo 39


Oguri desligou o fogão. O cheiro gostoso da sopa de Miso invadiu o ambiente. O antigo capitão da Kempeitai serviu o caldo em um bonito prato, e o arrumou em uma bandeja enfeitada com ramos.

Enquanto andava em direção ao quarto de Saito, meditou sobre o progresso que estava fazendo. Tinha paciência e pretendia, com carinho e dedicação, derrubar as barreiras que Jiro erguera. Já havia decidido que ambos ficariam juntos, e nada o faria desistir daquela ideia.

A vida deles havia dado muitas voltas desde que se separaram. Os caminhos que ambos seguiram lhes trouxeram vergonha e mágoa. Contudo, aquele momento, era a segunda chance de reconstruir o que jamais deviam ter interrompido.

Abriu a porta.

O vazio não o chocou tanto quanto a constatação de que Jiro fora embora.

O ar faltou e a raiva o consumiu.

Atirou a bandeja no chão. Seu olhar trazia mais que odiosidade pela traição... trazia vingança.

— Achou que eu blefava, Saito? — indagou a ninguém. — Vai pagar caro por isso.

Quando a porta bateu, selou o destino de todos que estavam envolvidos naquela chantagem.


***


O médico encarou o par a sua frente. Sorriu, tentando transmitir calma. Os dois homens pareciam se corroer de medo das notícias que viriam. Volveu os olhos mais para baixo e observou a menina que o encarava com os olhos arregalados. Contudo, o olhar dela ia, seguidas vezes, em direção a um pote de pirulitos que ele mantinha no consultório para acalmar crianças que vinham para consulta ou acompanhando os pais.

— Quer um? — indagou a ela.

O olhar feminino desviou-se do médico e dirigiu-se ao homem de extraordinária beleza, sentado atrás dela.

Ela não perguntou, mas o “ eu posso ?” parecia vazar de seus poros.

O pai assentiu.

A menina então enfiou a mão dentro do pote e pegou o pirulito cor-de-rosa.

— Posso pegar mais um? — ela perguntou ao doutor.

— Miya!

Ela retirou a mão do pote, fazendo o médico rir. Que criança adorável.

— Um é o suficiente, filha — Shiro completou, fazendo um cafuné vagaroso em seus cabelos.

Em poucos segundos, uma bonita enfermeira adentrava o consultório, carregando alguns papéis. Colocou-os à frente do doutor e depois estendeu a mão para a menina.

— Você quer conhecer os peixes que temos no aquário da recepção?

Era como oferecer comida a um faminto.

Miya olhou novamente para o pai, que assentiu. Então, de mãos dadas com a mulher, ela saiu da sala.

— Apesar da falta de recursos — o doutor começou, calmo —, o médico de Kyoto não errou no diagnóstico.

Shiro fechou os olhos com força.

— Contudo, somos especializados nisso, você sabe... — o homem sorriu. — E, pelo que vejo, Miya não está num grau muito avançado de cardiopatia congênita.

Aquilo era uma boa notícia?

— O sopro não nos preocupa, porque eu acredito que do tipo dela, se cura com o tempo. A preocupação é uma má formação que ela desenvolveu no ventrículo direito. Em alguns casos, eu sugeriria uma cirurgia, mas Miya é uma criança e um tratamento medicamentoso seria o ideal.

— Quanto tempo de tratamento? — Ryo indagou, diante do silêncio da pessoa ao seu lado.

— Depende de como ela responderá aos remédios, mas precisamos de um acompanhamento mensal, com exames periódicos de ecocardiograma, tomografia e avaliações do músculo cardíaco por, pelo menos, um ano.

O médico desviou os olhos de Ryo e voltou-se para Shiromiya.

— Temos as mais avançadas técnicas de tratamento para doenças cardíacas. A probabilidade de cura é alta.

Enfim, ouvindo a respiração de Shiromiya, Ryo voltou-se ao amante e sorriu.

— Eu te disse... — murmurou. Depois, olhou para o médico. — Ele nem dormiu à noite, preocupado com o que o senhor diria.

O médico arqueou as sobrancelhas, curioso com o enlace daqueles dois. Contudo, Ryo Satoshi era rico e poderoso demais para que o doutor tecesse qualquer comentário comprometedor.

— Tenho algumas sugestões — voltou ao assunto, tentando abafar aquela atmosfera estranha. — Miya está estudando?

— Estava — Shiro respondeu. — Mas a tiramos da escola para que ela viesse a Sapporo.

— Creio que ficarão na cidade, não? Ou voltarão para sua cidade e virão mensalmente se tratar em Sapporo?

— Shiro vai morar comigo — Ryo contou, orgulhoso, ignorando o olhar furioso ao seu lado.

O médico assentiu.

— Ela ainda não está matriculada em nenhuma escola de Sapporo?

— Chegamos no final da semana passada — o comerciante explicou. — Não tive tempo de procurar a melhor escola...

— Eu sugiro que ela tenha, até o final do semestre, aulas em casa, com um professor particular. Uma mudança de ambiente é sempre estressante para qualquer criança e, no caso de Miya, é importante que ela possa passar esse início de tratamento tranquila.

— Irei atrás de um professor particular — Ryo afirmou, aceitando o conselho.

— Tentem evitar que ela receba notícias fortes, que passe por algumas emoções. Seria bom que, até se habituar à troca de medicação, ela pudesse apenas brincar de coisas leves e passar boa parte do dia dormindo.

— Faremos isso — Shiro assentiu.

Depois, tudo transcorreu como esperado. Miya foi levada para o ambulatório para receber as primeiras doses do novo remédio que havia sido importado dos Estados Unidos, e Shiromiya recebeu instrução de como dar-lhe as medicações.

Parecia que aquela manhã teria um final feliz, não fossem os berros que interromperam aquele momento pacífico, assim que chegaram em casa.

— Eu odeio estudar!

Para a filha de Shiromiya Kazue, não bastava a revolta em saber que teria que voltar às aulas. Ela precisava, desesperadamente, anunciar aquilo de uma forma audível e ameaçadora.

— Estudar é muito importante, Miya — Shiro respondeu, mantendo a paciência. — Não quer ser uma burra como seu papa, né? Que não sabe ler nem escrever...

Ryo, ao seu lado, quis negar as palavras, mas o grito infantil o interrompeu.

— Eu sei ler e escrever! Já basta!

Muito fácil para o médico dizer que eles não deviam estressá-la. Ele não conhecia aquele demônio de vestido de fitas!

— Miya, você não irá para a escola, por enquanto... — Shiro interveio. — Terá uma professora muito querida para te dar aulas em casa — demonstrava uma animação na voz que estava longe de sentir.

Miya o encarava como se fosse a primeira vez que o via. Então, volveu para o pai Satoshi.

— Quero ficar brincando com Shin-chan.

O que ele devia fazer? Como obrigar uma cópia de Sakamoto de nove anos e doente a fazer o que ele queria?

— Se você prometer estudar e ser uma boa aluna, vai ganhar seu primeiro filhote de cachorro.

Enquanto o sorriso mais feliz do mundo surgia nos lábios da criança, Shiromiya o fuzilava com os olhos pela segunda vez naquele dia.

— Você acabou de comprar a Miya? — indagou, assim que ela saiu da sala para contar a novidade para Shin-chan que dormia na varanda.

— O que você queria que eu fizesse?

— Que a obrigasse, porque essa é a responsabilidade dela.

— Mas... — Ryo buscou argumentos. — Como eu faria isso?

— Sendo firme!

Ryo negou.

— Shiro, prefiro que você seja o pai firme e eu, o pai legal.

Kazue não aguentou e gargalhou.

— O poderoso Ryo Satoshi tem medo de uma menina de nove anos de idade?

— Você não viu? — defendeu-se. — Ela se nega, ergue o queixo como se dissesse “ quero ver como vai me obrigar! ”, e me faz tremer nas bases. O que eu devia fazer? Bater nela? — Shiro não respondeu, mas seu olhar dizia algo como “ se precisasse, que o fizesse! ”. — Eu não tenho coragem nem de gritar com ela, apesar de ela gritar comigo. — sentou-se no sofá. — Lembro-me de minhas visões no passado, eu me sentia um frouxo, um banana, alguém incapaz de controlar a própria filha. Dizia a mim mesmo que quando chegasse a hora, quando Miya nascesse, eu não a deixaria montar em cima de mim como um cavalo. Agora, percebo que as coisas não são tão simples assim.

Shiro sentou-se no seu colo, solidário.

— Eu sou um péssimo pai.

— Não é verdade — o outro riu. — É maravilhoso, atencioso, preocupado, carinhoso, gentil e sempre tem paciência de explicar as coisas para ela mesmo que ela se negue a aceitar.

Ryo fez bico com os lábios.

— Só diz isso porque me ama.

— De fato, eu o amo. Mas isso não elimina a necessidade de retroceder na sua ação. Cometeu um erro e terá que corrigi-lo, senão ela fará birras por mínimas coisas, esperando sempre uma recompensa.

Ele sabia.

— Precisa ser agora? Não posso esperar até... sei lá... quando ela tiver uns quarenta anos?

Shiromiya gargalhou, baixando a face e beijando os lábios sedentos.

— Vou mandar preparar o almoço — avisou. — Enquanto isso, desfaça seu erro.

Ryo respirou fundo. Um misto de sentimentos poderosos o tomou. Primeiro, alegria por Shiro assumir a posição de dono daquela casa, cuidando do almoço, dos afazeres domésticos, era praticamente uma confissão pública de que ele aceitava o papel de marido que Ryo lhe oferecera. Em contrapartida, a apreensão. Olhou para fora, pela janela, e encarou a paisagem bonita, enquanto meditava nas palavras.

Por fim, respirou fundo e decidiu-se. Diria a Miya que ela não ganharia o cão. Não ainda. Primeiro, estudaria porque era uma criança e tinha que obedecer aos pais. Depois, no futuro, ela teria sim seus filhotes porque já havia uma promessa antiga feita a ela.

Isso!

Preparou-se para sair, quando o olhar cruzou com o vão da janela.

Paralisou.

Ao longe, Jiro Saito abraçava sua filha com força, enquanto a erguia nos braços.

Era como se o inferno houvesse voltado.


***


Momentos antes, Miya tagarelava com as galinhas e o gato, no quintal da mansão.

— Ele tem que ter um nome importante — avisou. — Tem que ser algo imponente, que cause medo.

O cacarejar de uma das galinhas foi sua resposta.

— Sim, será grande e ameaçador — anteviu. — Assim, eu colocarei para correr todo mundo que tentar me entristecer — voltou-se para o gato. — Não me olhe assim, Shin-chan. Ele vai crescer com você, então, não vai machucá-lo. Vocês serão irmãos.

Repentinamente, ela experimentou algo confortador no peito. Era como se pudesse sentir a energia de alguém que muito amava. Começou a andar, então, em direção à frente da casa. Ao longe, percebeu uma figura parada diante do portão alto de ferro.

Ela sabia que não podia correr.

Ela sabia que não podia se emocionar.

Mas fazia tanto tempo que não via o tio, que antes que pudesse se conter, as pernas dispararam, enquanto as lágrimas despencavam dos olhos.

Atirou-se nos braços seguros tão logo o alcançou. Apertou-o forte contra si, sentindo que ele repetia o gesto, mantendo-a firme.

Tinha tantas coisas para contar sobre as aventuras que viveu. Tio Jiro tinha que conhecer seu gatinho, tinha que ver que linda era a nova casa de suas galinhas. E a nova boneca? Ele iria adorá-la!

Porém, antes de abrir a boca, ela ouviu um fungar raivoso às suas costas. Levemente, afastou a parte superior dos ombros do tio e olhou para trás.

O papai Ryo parecia prestes a ter um colapso.

— Solta agora a minha filha!

Apesar de não parecer temeroso, Jiro a pôs no chão. Ela encarou o tio, buscando respostas, mas tudo que ele lhe disse foi:

— Chame seu pai.

Assim que ela deu dois passos em direção a casa, olhou para trás. Sem acreditar no que seus olhos viam, percebeu o sempre tão calmo pai Ryo avançar contra seu amado tio e lhe dar um soco no rosto.

Estancou.


***


Era como se tudo voltasse no tempo. A vida perfeita que ele havia planejado sendo destruída pela mesma presença. Aquele homem, aquele maldito sargento, roubara Shiromiya dele no momento em que decidiu que Shiro e ele poderiam viver juntos, felizes, como uma família, independente do que dissesse a sociedade.

Então, aquele rosto surgia novamente. Mesmo o tempo não apagava a sensualidade e a forte atração que ele despertaria em um coração machucado, como o de Kazue. E ali estava ele. Daquela vez, não levando de si apenas seu amor, mas também a filha pelo qual ele sacrificou tudo.

Percebeu Jiro Saito colocando Miya no chão. O olhar dele fixo em si.

— Chame seu pai — ele dissera a sua filha.

Seu pai? Ryo era o pai dela! Ignorou completamente que ele se referia a Shiromiya, até porque, naquele instante, não conseguia processar direito qualquer palavra.

Mal sentiu as pernas. Avançou, firme, reto, até aproximar-se o suficiente para desferir um forte soco no rosto daquele bandido.

Jiro pareceu não esperar, porque não se defendeu. Apenas, deu dois passos para trás. Viu então o brilho maquiavélico no olhar e avançou também.

Rolaram no chão como dois pivetes de cinco anos brigando por uma bola. Ryo sentiu os socos, mas a adrenalina não lhe permitiu nenhuma dor. Apenas batia, com toda a força que tinha, com as mãos, as pernas, e até uma cabeçada ensaiou, mas errou o alvo.

Por fim, venceu. Sim, por incrível que pudesse parecer, venceu. Mesmo que Jiro Saito tivesse mais técnica, era ele que tinha a gana de proteger aquilo que levou anos para conquistar. Ninguém... ninguém destruiria seu lar novamente.

Sentado sobre a barriga de Jiro, ele ergueu a mão para o soco final. Contudo, tão rápido quanto um raio, ele viu sua garotinha agarrar-se em Jiro. Por segundos, ele não a atingiu. Assustado, saiu de cima do outro e viu Miya abraçando aquele homem, escondendo seu rosto na curva do pescoço de Jiro, como se esperasse protegê-lo, mas, ao mesmo tempo, estivesse com medo.

— O que foi? — Jiro indagou, arrogante. — Achou mesmo que poucos meses apagariam todos os anos em que estive ao lado dela?

Chocado, mal percebeu Shiromiya surgir do nada, correndo. Ele estendeu os braços para Miya, que foi instantaneamente transferida de colo. Ela parecia apagada, diferente da criança de sempre.

Ryo então voltou-se para Shiro. Percebeu a raiva incontida e soube que estava ferrado.

— Oi, meu amor — Shiro murmurou, beijando os cabelos da criança. — Eles estão brincando, olhe — apontou para os dois homens de rostos machucados. — Garotos são assim mesmo... — prometeu torturas eternas com o olhar — Um bando de imbecis — xingou-os, propositalmente. — Eles brincam de brigar.

Miya, acanhadamente, os encarou. Ryo percebeu o quão assustada estava, e tentou sorrir, para tranquilizá-la.

— Mocinha, você tem que tomar banho e ir dormir — Shiro focava toda a sua atenção nela. — Lembra o que o médico disse?

A indagação era mais para Ryo que para a criança.

Satoshi fechou os olhos, com força, sentindo a culpa dominá-lo.

— Jiro-san, venha — Shiro chamou. — Nós precisamos conversar.

Por alguns segundos, Saito pareceu encará-lo, como se esperasse sua objeção. Não sabia ele, claro, que Ryo não negaria nada a Shiro. Até porque, se o fizesse, deixaria claro que não estava disposto a dividir a vida – e a casa – com Kazue. Então, quando o comerciante apenas voltou o olhar para o outro lado, ele seguiu Shiro de perto, em direção à mansão.


***


— Esse é Shin-chan — Miya contou, mostrando o gatinho preto.

Se estranhou o nome, Saito não demonstrou. Apenas sorriu, parecendo interessado.

A criança então começou a narrar sobre uma menina má que queria matar o felino, mas que ela impediu. Deu ares de heroísmo, enquanto Shiro secava seus cabelos com uma toalha felpuda, atrás de si.

Jiro percebeu a exaustão pelos olhos escuros. Continuava igual, então. Ainda se abalava profundamente por qualquer carga emocional intensa. Lembrou-se de que, no passado, quando confrontada com coisas fortes, ela desmaiava. Foi assim até os remédios fortes fazerem efeito. Depois, apenas parecia cansada demais e vivia pulando para o seu colo, buscando conforto para dormir.

Depois de Kazue lhe fazer uma trança, ela aceitou pacificamente deitar-se na cama bonita de dorsel.

Estendeu a mão para Jiro, como se pedisse que ele não a deixasse enquanto descansasse. Ele sorriu e estendeu-lhe os dedos. Shiro afastou-se, deixando-os naquele momento fraterno. Sentiu os olhos úmidos ao perceber o tamanho do amor que havia ali.

Quando, por fim, Miya ressonou, Saito voltou-se para ele. Sentaram-se em duas poltronas estrategicamente postas ao lado da janela. Sorriram. Sequer haviam se cumprimentado, mas acharam que não havia espaço ali para tal coisa.

— Veio pelo tratamento? — Jiro indagou, quebrando o silêncio.

— Não vou negar que esse foi o motivo primordial. Miya teve outra crise grave. O médico já havia me adiantado que a doença precisava ser contida... Eu não pensei, agi.

— Há quantos dias chegou?

— Não faz uma semana.

Jiro respirou fundo.

— E Ryo Satoshi o acolheu assim, tranquilamente? Não cobrou nenhuma explicação, não tentou impor nada a você?

Shiromiya enrubesceu.

— Jiro... — começou, buscando as melhores palavras. — Não foi assim que aconteceu. Na verdade, Ryo me procurou durante todos esses anos.

— Mamoru me contou. Shin também.

— Sim. — Olhou para o amigo, buscando compreensão. — E ele me achou.

Saito arqueou as sobrancelhas, enquanto tentava controlar a gana.

— Quando?

— Início de dezembro do ano passado.

Na mesma época que ele foi para Tóquio?

— Ele apareceu em Kibou... então.. anh... — sentiu o ar faltar. — Ele...

— Ele o quê?

— Ele me disse algo, e eu achei que havia perdido tudo. Confundi as coisas e Ryo-san não me corrigiu.

— Ryo fingiu estar na miséria?

— Eu o convidei para morar comigo, porque eu devia aquilo a ele.

E porque o amava tão desesperadamente que não poderia vê-lo partir, apesar do que dizia.

— Então, ele passou a trabalhar comigo nas plantações, a dividir o oficio, a cuidar das galinhas, da casa, de Miya... Quando ele me falou a verdade, já era tarde demais. E tudo que eu pensei foi no tratamento, no dinheiro que ele poderia desembolsar...

— Você está completamente apaixonado por ele — cortou-o, mordaz.

Shiro o encarou. Havia lágrimas em seus olhos.

— Estou — confirmou.

Jiro olhou para frente.

— Você tem consciência que está arriscando a sanidade da sua filha?

Shiro escondeu o rosto entre as mãos.

— Jiro, por favor... Não vou aguentar que me condene.

— Não estou condenando. Estou apenas pasmo.

O antigo sargento voltou-se ao amigo. Percebeu seu desespero e se compadeceu.

— Eu preciso falar com Ryo Satoshi — avisou. — É possível?

— Vocês não podem brigar. Miya não pode se alterar.

— Não vou brigar, quero apenas falar com ele — afirmou.

Shiro o encarou por alguns segundos, buscando a verdade em seu olhar.

— Tudo bem — afirmou. — Mas antes ele tem que falar comigo — avisou.

Era uma mudança brusca de comportamento que deixou Jiro em estado de alerta.

Quando o amigo sumiu do quarto, ele observou o gatinho preto a encará-lo.

— Acho que nem precisarei bater naquele idiota. Shiro fará isso por mim.

E sorriu.


***


Ryo Satoshi não ergueu a face quando a porta foi aberta. Sentado na cama do próprio quarto, ele encarava o chão com seriedade. Ouviu os passos, rápidos, de um lado para o outro, e sentiu que o ódio de Shiromiya não seria acalmado por um simples pedido de desculpas.

— Duas horas! — Shiro apontou.

Ryo enfim o observou, tentando entender.

— Irresponsável!

O grito quase o fez sair correndo do quarto.

— Shiro...

— Não fazia duas horas que o médico tinha explicado detalhadamente da importância de Miya ter uma vidinha calma, sem preocupações. E você teve a capacidade de bater no Jiro em sua frente, sabendo das condições de saúde dela?

— Estava protegendo a minha família! — defendeu-se.

— De quê? Do meu amigo? Do tio que ela ama?

— Ele roubou você de mim! Acha que eu ficaria parado vendo-o destruir novamente tudo que construímos?

Houve um breve silêncio. Pareceu ao comerciante que Shiromiya digeria as palavras.

— Roubou? — repetiu, abasbacado. — Roubou?

— Shiro...

— Jiro me salvou! Eu precisava fugir daqui, mas não tinha como fazer! Estava com medo, as bombas estouravam todos os dias. Eu não conseguia definir o que era pior: viver ao seu lado, sabendo o que você me considerava, ou enfrentar a chuva de balas que os americanos nos empregavam.

— Shiro, me deixa...

— Você me usou — a mágoa voltou, como se o perdão jamais houvesse existido entre eles. — Me usou e planejou me devolver para Aiko-san como uma camisa velha. E tem a cara de pau de bater na única pessoa que me estendeu a mão, quando eu já não tinha ninguém?

Tão logo disse as palavras, Shiro pareceu se arrepender. No entanto, não se desculpou.

— Eu apenas... — Ryo não pareceu ofendido. — Apenas...

Shiro se afastou em direção a enorme janela. Lá fora, as galinhas ciscavam entre o gramado verdejante.

— Mesmo que nós nos amemos muito, você acha que as coisas darão certo?

— Nós faremos com que dê — Ryo o abraçou por trás. — Viver sem você não é uma opção, Shiro...

— Sempre diz isso. Mas viveu por cinco anos. Eu também.

— Vegetei por cinco anos, Shiro. E já estava decidido a me matar. Fui impedido por um velho senhor, um vendedor ambulante, que me flagrou com uma arma apontada para a cabeça. Ele se chama Nobu e, durante nossa conversa, ele me contou sobre um jovem rapaz que vivia no interior e que o havia abrigado numa noite fria.

Shiro voltou-se para ele.

— Nobu? — reconheceu o nome. — Como ele está?

— Bem. Está abrigado em um hotel Arashi de Tóquio. Tem uma cama quente, todas as refeições diárias, e pode descansar de sua vida difícil. Tadao sempre vai vê-lo quando está em Tóquio.

— Também quero vê-lo.

Ryo sorriu diante da empolgação. Pareceu que a briga estava esquecida.

— Tudo que você quiser.

Curvou-se, beijando profundamente os lábios doces.

— Não vai se safar assim — Shiro o advertiu. — Terá que conversar com Jiro!

Ryo concordou. Até porque não havia escolhas.


***


— Então — Miya mostrou o senhor Bigode —, eles casaram — ergueu a boneca Princesa. — E agora tenho que arrumar senhores bigodes para todas essas bonecas — apontou ao redor, as estantes cheias de inúmeros brinquedos — para que elas não sintam ciúmes da Princesa.

Jiro assentiu, sério. Desde que ela havia acordado, cinco minutos antes, ele a ouviu tagarelar como nunca.

Aliás, continuava igual. Como gostava de falar! Lembrou-se das vezes que ela dormia com ele em Okayama, em como tagarelava até os olhos de Saito pesarem e ele não aguentar mais. Depois, os dias que intercalou com Shiro no hospital, a forma como ela arregalava os olhos e metralhava a enfermeira com um montão de palavras desconexas, enquanto recebia o soro.

Sorriu, beijando-lhe a testa, interrompendo o falatório atual.

— Você gosta daqui?

A menina o encarou.

— Essa casa é grande.

Jiro arqueou as sobrancelhas.

— Isso é um não?

— Eu gosto daqui — ela replicou. — Apenas, meu quarto é longe do papa. Tenho o corredor todo até chegar lá.

— Como assim? O quarto dele é do outro lado da casa?

— Não. Uns dois quartos depois do meu. Mas em Kibou era do lado.

Jiro riu.

— E você tem medo de dormir sozinha?

— Tenho Shin-chan e o senhor Bigode... — olhou adiante. — Mas não gosto dessas bonecas — sussurrou. — Peça para que o papa as tire daqui, por favor?

Jiro iria responder quando um barulho na porta fez sua atenção se voltar à saída. Instintivamente, sentiu Miya reprimir-se ao ver Ryo Satoshi. Pelo olhar do comerciante, soube que ele não era o único a perceber a reação da criança.

Mesmo em conflito, apiedou-se.

— Miya me dizia que gostaria de doar as bonecas para crianças carentes — contou. — Que coração grandioso, não é?

A menina pareceu surpresa. Não havia pensado em dar a outras crianças e sim jogá-las no lixo, mas gostou da ideia.

— É mesmo, filha? — Ryo a encarou, surpreso.

Assentiu.

— Faremos o que você quiser — afirmou.

Depois, fez um sinal para Jiro. O outro o acompanhou até o corredor.

— Eu gostaria de...

— Não precisa se desculpar — Jiro o cortou.

— Se eu não me desculpar, Shiromiya vai atazanar a minha existência todos os dias da minha vida até meu suspiro final.

Saito riu. Sabia que era verdade.

— Shiro o amou durante todos esses anos, mesmo que não admitisse isso. Eu quero que ele seja feliz — Jiro assumiu. — Mas eu tenho medo que o machuque novamente.

— Isso nunca mais vai acontecer. Tem minha palavra.

Jiro suspirou.

— Bom, estou mais tranquilo. — Depois voltou o olhar para o quarto da criança. — Preciso voltar para Tóquio... Vou me despedir de Miya.

— Passe a noite aqui.

— Não, obrigado.

— Não há balsa durante a tarde ou noite. A balsa que liga Hokkaido ao resto do país só funciona de manhã. De qualquer forma, terá que passar a noite em Sapporo.

Saito o encarou. Ryo estranhou aquele ar de pânico.

— Como assim?

— Não sabia?

— Preciso voltar para Tóquio! É urgente!

Ryo deu os ombros, buscando alguma saída.

— Eu possuo um monomotor. Mas ele está numa das ilhas ao sul, levando matéria-prima para uma das fábricas. Volta à noite. Assim que voltar, creio que em poucas horas, poderá levá-lo novamente para Tóquio.

Jiro envergonhou-se.

— Sinto-me como se estivesse abusando de sua hospitalidade.

— Você é o tio de Miya — Ryo bateu de leve nos ombros de Jiro. — Eu faria qualquer coisa pela minha filha.

A guerra entre eles acabou ali.


***


Mais tarde, quando Ryo voltou ao quarto de Miya, observou-a explicando às bonecas porque não as queria. Riu, diante do pavor que ela tinha de parecer indelicada aos brinquedos. Então, não era assim tão parecida com Shin.

— Disse ao seu tio que não quer ficar nesse quarto? — indagou, lembrando-se da conversa que Jiro e ele tiveram durante a tarde, ao tomarem chá.

A criança voltou à cama. Parecia envergonhada.

— Amor, se você quiser posso colocar suas coisas no quarto do lado do nosso. Mas sabe por que eu escolhi esse quarto para você?

Ela negou.

— Seu pai ficou aqui cinco anos atrás. E foi para cá que eu voltava durante todos esses anos, em busca da presença dele.

Miya sorriu. Era romântica, apesar de ele ter certeza de que ela negaria, caso perguntasse.

— Assim, eu sempre considerei esse lugar especial. E queria que a minha filhinha amada pudesse vivenciar isso.

— Vivenciar o cheiro do papa?

Ela também havia sentido aquele perfume cítrico que jamais abandonou o ambiente?

Puxou-a para seu colo, beijando a bochecha.

— Desculpe pelo que fiz essa manhã.

— Nunca mais brigue com ninguém — ela disse, firme. — É muito feio!

— Meninos são assim, amor.

— Não, porque o Príncipe é perfeito e jamais faria algo tão bobo.

Riu. Ah, Shin Sakamoto...

— Está bem. Perdoa-me?

— Talvez...

— Talvez?

— Talvez — reafirmou. — Talvez eu mereça dois cães ao invés de um.

Como ele explicaria a Shiromiya que ao invés de tirar o filhote dela, saiu daquele quarto prometendo aumentar o número de animais de estimação?


***


A réstia de sol entrou pela cortina semiaberta. Mamoru Aiko colocou o cesto com Minikui no chão, encarando sua bonita livraria. A poeira acumulada pelos dias de sua ausência estava lá, mas ele prometeu a si mesmo que se empenharia em organizar as coisas no dia seguinte.

Eram sete horas da noite. Voltava de Kibou exausto e ainda precisava pensar nos passos que daria em relação a sua vida.

— Vamos subir? — perguntou a Minikui, erguendo-o no colo.

Fechou a porta e subiu as escadas com paciência e vagarosidade. No pavimento superior, guardou as roupas no armário, as malas embaixo da cama, e então se preparou para ir tomar banho.

Contudo, ao voltar para cozinha, um estrondo forte o paralisou.

Alguém havia arrombado a porta do pavimento térreo.

O som de vozes masculinas, muitas, invadiu seus ouvidos e, naqueles breves segundos que ele levou para processar a informação de que sua casa estava sendo invadida, as imagens do passado surgiram em sua mente.

Nana o havia preparado para aquilo. Mas fora pré e durante a guerra. Jamais, pós.

Ele sempre soube que um dia os homens descobririam que ele era um chinês. Um dia, seria morto a pancadas por aquilo. Um dia, teria seu escalpo retirado, enquanto eles o estuprariam e assassinariam da forma mais cruel que pudessem.

Olhou para o lado, buscando uma saída. Os passos já estavam na escada. Correu na direção oposta. Por um milagre de Deus, Minikui surgiu aos seus pés, e ele o pegou no colo enquanto se enfiava dentro do armário da despensa, escondido atrás de caixas.

Alguém chutou a porta do pavimento superior, e ela abriu-se num estrondo.

Houve gritos e palmas. Ele ouviu o barulho de lâminas sendo batidas na parede e na mesa.

— O chinês foi viajar? — alguém indagou, percebendo a cama arrumada e o estado de abandono do local.

Fechou os olhos com força. O pânico invadiu sua garganta e ele cobriu os lábios para impedir-se de gritar.

— Destruam tudo — outro alguém falou alto.

Por que aquilo estava acontecendo? A guerra havia acabado, e a Kempeitai não existia mais... Subitamente, a compreensão: alguém o havia delatado para alguma milícia.

O som de seus vasos, pratos e copos surgiu. Não precisava ver para saber que estavam quebrando. Depois, percebeu os móveis sendo arrastados e ouviu um estrondo forte, estavam destruindo a mesa e as cadeiras.

Tudo que ele levou anos para reconstruir, indo embora em alguns minutos.

Chorou silenciosamente, escondido, apavorado pelo medo crescente de que alguém abrisse a porta da despensa. A cada grito, ele se encolhia mais, apertando Minikui contra o peito.

— Por favor, Nana — murmurou. — Se está me ouvindo... Mãe... Proteja-me...

Então, depois de um tempo que pareceu durar uma eternidade, houve silêncio. No entanto, Mamoru não se mexeu. Paralisado, temia até respirar.

Queria que o coração cessasse de bater naquele instante. Era mais que o medo da morte, era a humilhação por ter sua casa invadida e sua vida ameaçada por um sangue que ele não tinha culpa de ter.

O velho Minikui ronronou em seu colo, transmitindo-lhe carinho e companheirismo. Fechando os olhos com força, ele gemeu, perante tanta dor.

Sua vida... destruída. Mesmo que não o houvessem capturado naquela noite, não descansariam até pegá-lo.

O que ele faria?

Onde pediria socorro?

Teria que fugir. Mas quanto tempo demoraria até ser delatado novamente? A marca racial era tão profunda que mesmo a guerra perdida não a inibira.

Tremendo, ele decidiu permanecer no abrigo, até o dia seguinte. Lembrou-se de ouvir falar dos judeus que passavam semanas enfiados em buracos nas casas para escaparem da SS.

O inferno daquele povo havia acabado.

O seu, parecia que estava começando.

 


Capítulo 40


Jiro Saito soube que sua ação havia desencadeado uma intensa e perversa reação quando, ao entrar no escritório de Oguri na manhã do dia seguinte a sua visita a Shiro, viu-o tomado pelo abandono e bagunça. Havia folhas espalhadas no chão lustrado, e garrafas de conhaque barata, clandestinamente adquiridas dos estrangeiros, postavam-se vazias em cima da mesa marrom de madeira.

Não precisou pensar muito. Ele sabia, acima de qualquer coisa, que Oguri era um homem de palavra. Estranhamente, o primeiro pensamento não se voltou para si, afinal de contas, tudo levava a crer que em segundos, seria caçado e levado à justiça, para pagar por seus crimes.

Foi o rosto de Shin Sakamoto tomado pelo ódio, naquela noite de ano novo, tantos anos atrás, que surgiu em seus pensamentos. A noite que descobriu o sangue de Aiko e soube que era questão de tempo para o amigo ser descoberto e morto.

Não foi. Não durante a guerra.

Anos depois, prosseguia em anonimato.

Por culpa sua, ele seria punido pelo enlace de sua mãe com um chinês há, pelo menos, três décadas.

Voltou-se em direção à porta e subiu as escadas. Entrou no seu quarto, encontrando-o igualmente revirado. Temeu pelo pior, mas suspirou aliviado quando, ao abrir o armário, encontrou seu revólver repousando escondido entre as cobertas.

Era uma sorte que Oguri não havia se aprofundado em suas coisas.

Em segundos, estava na rua.

Aquela manhã estava fria, como costumavam ser todas as manhãs daquele início de primavera. O sol resplandecia no céu e as pessoas cruzavam por ele animadas, diante de mais um dia de trabalho. Se não fossem alguns militares parados na rua, em guarda, ninguém diria que aquele país estava dominado por um governo estrangeiro.

Contudo, nada daquilo chamou a atenção do ex-sargento. Rapidamente, ele conseguiu um carro de aluguel que o levou até a porta da livraria. Nem precisou entrar para saber que algo ruim havia acontecido.

A porta estava entreaberta. Colocando a mão na madeira, percebeu que havia sido arrombada. Abriu-a totalmente e deparou-se com a visão terrível de todos os amados livros de Aiko atirados ao chão, enquanto as mesas e o balcão estavam quebrados.

Mamoru havia viajado para a casa de Kazue em Kibou. Contudo, Shiro estava em Sapporo. Será que o ex-cortesão havia regressado ao lar, ou ainda estava protegido em uma cidade interiorana?

Tinha medo de descobrir.

Por fim, começou a subir as escadas. Silenciosamente, levou as mãos à traseira e buscou o coldre calibre 45 ganhado de um americano que lhe abriu as pernas numa noite de bebedeira.

Com a segurança da arma em mãos, ele entrou pela porta. O lugar estava vazio. Respirou aliviado, apesar da cena grotesca dos móveis e pratos quebrados. Preparava-se para voltar à escada, quando decidiu ir até o quarto.

Suspirou ao observar a cama. Deitou-se ali algumas vezes. Riu baixinho ao se lembrar de que sonhara tanto em fazer amor com Mamoru, mas fora impedido daquilo pelo próprio corpo.

Começou a andar em direção à saída. Subitamente, voltou-se. Agachou-se, sentindo um instinto poderoso, fruto da guerra.

Embaixo da cama, as malas de Aiko. Foi até o armário de roupas. Estavam lá. Por fim, percebeu o cesto de Minikui ao lado da mesa.

O coração disparou e a boca secou.

— Mamoru! — gritou. — Mamoru!

Caminhou novamente para a sala, preparando-se para deixar o pavimento superior, quando ouviu um som.

Girou o corpo, correndo em direção à despensa. Abriu-a. Vazia. Porém, em seguida, uma pequena portinhola de um velho armário onde Aiko guardava comida escancarou-se.

— Jiro...

Aquele som, fruto do desespero, cortou seu coração.

Sentiu os olhos inundarem-se pelas lágrimas. Não as reprimiu. Era o culpado do infortúnio de seu amado. Aiko sempre lhe deu amor e carinho. Merecia ser retribuído com a mesma consideração.

Foi até o outro, estendendo-lhe as mãos.

— Está tudo bem, meu amor — assegurou. — Não tem mais ninguém aqui.

— Não — recusou-se a sair. — Tenho medo.

Então o choro rompeu as barreiras do autocontrole. Aiko afundou o rosto no pelo áspero do velho gato. Era um sentimento de desespero tão poderoso que ele acreditou que não teria mais forças para nada, nem viver.

— Fui ver Shiro em Sapporo — Jiro contou, rapidamente. — Jamais devia ter feito isso. Oguri deve ter delatado você para os milicianos, como ele prometeu que faria.

Enfim, Mamoru aceitou a mão. Temeroso, ele saiu de seu abrigo, aninhando-se no abraço de Jiro.

— Eles vão me matar, Jiro — murmurou. — Eu me escondi hoje, mas amanhã me encontrarão.

Os lábios gentis de Jiro deslizaram pelo seu rosto. Era um carinho cúmplice, dois derrotados pela vida.

— Não... não... — negou. — Vamos conseguir ajuda, está bem?

Apesar das palavras, Jiro sentiu a desesperança tomá-lo. Como se safariam? Ele seria preso em questão de horas, tão logo Oguri entregasse seus documentos para a imprensa ou o governo americano. Depois daquilo, quem protegeria Aiko?

— Aiko-san — chamou-o, repentinamente esperançoso. — Irei ver Shin-chan — avisou. — As milícias não atacam de dia, então, estará seguro aqui — mesmo assim, entregou a arma ao amigo. — Não irá comigo porque temo que estejam vigiando a casa e possam atacá-lo, assim que o virem. Então, vou pedir escolta para tirá-lo daqui.

— E irei para onde? Para onde um chinês pode ir nesse país?

— Shin terá um lugar, tenho certeza — afirmou. — Apenas, fique aqui. — pediu. — Mantenha a calma, está bem? E se alguém vier, atire.

Aquele sábio conselho foi imediatamente aceito pelo belo homem de cabelos longos.


***


Depois que Jiro partiu, Aiko permaneceu parado em sua cozinha, como se não acreditasse em seus olhos.

Quando a Casa Ai foi destruída, ele perdeu mais que seu sustento e sua família. Ele perdeu o lugar que chamava de lar. Jamais acreditou que poderia encontrar em outro ambiente aquela sensação, mas naquele pequeno lugar em cima de uma livraria, ele passou os últimos anos com relativa tranquilidade.

Cada móvel, cada prato, xícara, talher... cada detalhe foi comprado com o fruto do seu trabalho. Com a guerra, perdeu tudo. O pequeno terreno onde funcionava seu prostibulo foi vendido a um preço não muito alto. Conseguiu adquirir sua nova casa, mas o que a compunha foi resultado de horas e horas de trabalho, empilhando livros, atendendo clientes, limpando a livraria e fazendo café.

Naquele momento, tudo... morto.

Era aquela a sensação, apesar de serem apenas objetos.

O movimento tricolor fê-lo sorrir.

De tudo, sempre restava Minikui. O velho Minikui que o acompanhou durante toda a vida. Quantos poderiam dizer possuir amizade tão fiel?

Bateu as mãos, chamando pelo gato. Colocou o revólver na cintura e o pegou no colo. Respirou fundo. Era hora de dizer adeus, mais uma vez.

Caminhou pelas escadas, sem se voltar. Seu pequeno comércio estava igualmente destruído. Rasgaram seus livros e até tentaram fazer uma fogueira com as cadeiras. Pela graça de Deus, não conseguiram ou foram desencorajados pela possibilidade de chamarem a atenção da polícia militar que andava à caça dos milicianos.

Sentou-se na única cadeira que restou, largando Minikui no chão. Os olhos apagados não se fixavam em nenhuma das figuras destruídas. Não queria aquela lembrança. Já tinha recordações dolorosas demais.

De repente, o barulho da porta fê-lo levantar rapidamente, assustado.

Pasmo, abriu a boca, percebendo que era incapaz de gritar.

Oguri... a pessoa que havia destruído a sua vida... ali, na sua frente.

— Por quê? — foi tudo que a mente conseguiu passar à boca.

O ex-combatente o encarou. Parecia haver piedade em seu olhar, mas ele deu os ombros diante de sua pergunta.

— Falei com o líder da Milícia essa manhã, e ele me disse que você estava viajando. Vim apenas conferir para ter certeza de que não passam de idiotas.

— O que eu te fiz?

— Você? Nada, Aiko-san — seu tom era gentil. — Gostei muito de sua companhia e foi um prazer imensurável conhecê-lo. Mas, infelizmente, preciso machucar Jiro e não basta delatá-lo para o governo, eu quero que ele apodreça na cadeia, sentindo-se culpado por ter destruído a pessoa que ele idolatra.

Caminhou para o outro lado, parecendo interessado no monte de livros no chão.

— Claro, não é a única pessoa que Jiro ama. Porém é a única que posso tocar. Kazue Shiromiya está morando na casa de um homem poderoso. A filha dele está sendo tratada no hospital mais caro do país. Sou vingativo, mas não sou burro. Mexer naquele vespeiro é pedir para morrer. Ryo Satoshi não é do tipo que se prende à vigília moral. Ele pagaria um valor alto pela minha cabeça e não descansaria até vê-la em uma estaca de madeira.

Voltou-se novamente para Aiko.

— Mas você... — sorriu, amistoso. — Você é só um ex-puto de um prostíbulo. Não tem família, não tem ninguém. Sakamoto Shin já havia te dado um pé na bunda antes mesmo da guerra se findar. A única pessoa que te ama, não tem como te proteger. Que outra pessoa eu poderia atacar assim?

Aiko sentiu a face sendo lavada pelas lágrimas, mas não se atreveu a secá-las. Não conseguia se mexer.

— Estou indo para a sede do governo. Chamarei a imprensa. Estão mantendo a Unidade 731 em segredo, mas não será por muito tempo. Até essa manhã se findar, Jiro será um foragido da polícia — riu. — Não se preocupe, não estará vivo para vê-lo ser condenado a muitos anos de prisão, ou talvez até a morte.

Voltou-se para a porta. Naquele instante, Minikui cruzou por ele. Sem pensar, Oguri chutou o gato para longe.

Apenas um miado dolorido cortou o ar.

Enquanto o homem sumia pela porta, Aiko aproximou-se do seu amado felino, deitado no chão. Colocou-o no colo, apertando-o contra o peito.

Sentiu-se sendo sufocado, como se estivessem arrancando um pedaço de si mesmo. Quis gritar, mas estava consumido. Era um misto de muitas sensações. Amor, ódio, vingança... culpa.

Minikui morreu assim... não de velhice, apesar da idade. Morreu por responsabilidade dele, do seu maldito sangue, de sua mancha na alma.

E, enquanto ninava o corpo finado de seu amado gatinho, milhões de imagens cruzaram sua mente. Todos que já havia conhecido. Todos que amou. Todos que o amaram.

Mas o amor não cabia naquele mundo maldito, naquele destino perturbador, onde tudo era arrancado de si. Então, ele perdeu-se na escuridão. Não pela primeira vez, mas de forma avassaladora.

Uma parte de Aiko morreu com Minikui no final daquela manhã.


***


Sakamoto ergueu os olhos do papel que segurava. Não precisou pensar muito ao ver a imagem de Jiro Saito à sua frente.

— Eu devia tê-lo matado quando as chantagens começaram — foi tudo que disse, ao constatar o óbvio.

Contudo, sufocado por dilemas éticos que sequer eram seus, ele pestanejou. Agora, o que seria de Jiro? O que seria de Aiko?

— Mamoru ainda está no interior? — questionou Saito, esperando uma boa notícia.

— Não, ele voltou ontem à noite.

Silêncio. A angústia era palpável.

— E?

— Foi atacado — o amigo confirmou suas suspeitas.

Shin respirou fundo. As mãos bonitas seguraram a mesa, enquanto os dedos soltavam os papéis.

— Machucaram-no muito?

Saito o observou atentamente. Shin estava se contendo? Por que parecia tão frio?

— Ele se escondeu. Os milicianos acreditaram que estava viajando.

— Ainda está na livraria?

— Sim. Não tenho um lugar protegido para levá-lo.

Shin assentiu.

— Traga-o para cá. Minha casa é segura, ninguém entra no jardim imperial. Vou deixar os empregados de sobreaviso. Aiko poderá viver aqui até conseguirmos pensar em algo melhor.

Jiro curvou-se, agradecido.

— E Oguri?

Saito olhou para baixo, envergonhado. Mesmo assim, seu tom era calmo.

— Vi seu escritório. Os papéis que me incriminavam não estavam lá. Acredito que ele está na sede provisória do governo, delatando-me.

Shin resvalou-se para trás por alguns segundos. Parecia pensar.

— Eu estou pronto para pagar por meus crimes — Jiro afirmou, sem medo.

— Ninguém nunca está pronto para ser condenado à morte — o outro resmungou. — Vou resolver isso.

Ergueu-se, abrindo a primeira gaveta de sua escrivaninha. A pistola bonita que ele havia ganhado do pai quando ainda era um garoto, foi erguida com firmeza.

Jiro o seguiu, enquanto ambos rumaram para fora da residência.


***


O carro preto cortou o ar, andando velozmente pelas ruas bonitas e recém-restauradas daquela Tóquio alegre. Era um dia bonito, o sol brilhava no céu, e o amontoado de pessoas andavam com rapidez, em direção aos seus afazeres.

O carro preto parou. Oguri desceu dele, observando o prédio alto de escadarias. A sede americana do governo provisório, dirigido por Douglas MacArthur, parecia ainda mais imponente desde a última vez que se lembrava.

Respirou fundo, fechando a porta do carro. Foi até o motorista, entregando a ele valor suficiente para pagar a corrida.

Era ali, o fim de Jiro.

Quando cruzasse as escadas, quando entrasse no corredor, quando entregasse nas mãos da guarda os documentos que tinha em mãos, seria o encerramento de uma era. Não apenas para Saito, mas para muitos dos soldados e combatentes que serviram naquela unidade de mentira.

A justiça tinha gosto de fel.

Segurando a pasta preta contra o peito, ele pôs-se a andar. Dois lances de escada depois, e o som de um tiro chicoteou à sua direita.

Naqueles segundos que pareceram durar séculos, ele foi capaz de olhar para o lado e ver o buraco criado no concreto. No tempo que levou para voltar o rosto para frente, percebeu, como se surgida do nada, uma criança.

Um anjo feminino, tão bonitinha quanto aquelas que ele matou, quando soldado.

Então, mais um tiro.

Sua cabeça pareceu queimar. E o solavanco o impulsionou para frente.

Sentiu, um a um, seus órgãos parando. Era como se, então, perdesse a capacidade de piscar, respirar, andar ou sentir.

A menina o olhou com compaixão. Dizem que nos momentos finais, a vida passava diante de seus olhos. Para Oguri, provou-se uma mentira. Tudo que ele via era uma criança que não se lembrava de ter visto antes, a personificação da morte.

— Eu só queria ser amado — disse, numa vã justificativa tardia.

— É o que todos querem — ela respondeu, como se o absolvesse de todos os pecados.

E então tudo foi escuridão.


***


Os gritos sucederam-se ao tumulto. Homens, mulheres e crianças correndo de forma desencontrada, em direção a qualquer lugar que parecesse um abrigo.

Naquele rebuliço, soldados da polícia estrangeira surgiram, empunhando armas. Um agachou-se ao lado do corpo e fez um sinal negativo ao que surgiu ao seu lado.

Preparavam-se para correr em direção ao assassino, quando um homem de extrema beleza e porte agressivo surgiu diante deles. As mãos para cima, a arma usada para o assassinato erguida para o alto.

— Não é necessário — ele disse, sério e firme. — Eu me rendo.

Os soldados foram em sua direção. Tiraram a pistola de suas mãos, enquanto o algemavam.

— Não o toquem com tanto desrespeito — um soldado japonês apareceu próximo dos estrangeiros. — Ele é um membro da família Imperial.

Se havia algo que representava respeito aos conquistadores, era aquele sangue.

— É parente de Hirohito? — um dos homens de olhos grandes perguntou em japonês.

O homem arqueou as sobrancelhas. Volveu-se para o policial e respondeu, sem qualquer tremor na voz:

— Eu sou Shin Sakamoto. E o Imperador é meu tio.

 


Capítulo 41


Ryo Satoshi entrou em sua bonita residência com um sorriso satisfeito no rosto. Jamais imaginou que a vida podia ser tão perfeita. O simples fato de que havia alguém o esperando ao final do dia, motivou-o no trabalho e o fez tratar a todos com quem cruzou com gentileza e doçura.

Então, era daquele jeito.

Nada no mundo podia se comparar a ter uma família. A chegar em casa e ouvir o som melodioso de uma canção antiga balbuciada pelos lábios lindos de Shiromiya. Ver as janelas abertas, o cheiro delicioso de café. Simplesmente... ter alguém ali.

Shiro, aliás, também parecia muito feliz. De costas para ele, arrumava a mesa no jardim de inverno. Não o percebeu, e Ryo aproveitou para lhe dar um pequeno susto. Abraçando-o por trás, beijou o pescoço alvo, enquanto aspirava o perfume dos cabelos.

— Chegou cedo — Shiro murmurou.

— Mal podia esperar para vê-lo.

O outro sorriu. Embevecido, voltou-se para Ryo e eles trocaram um beijo intenso.

Pelos céus! A cada dia, parecia melhor. Como pudera viver tantos anos sem aquilo? Apertou-o nos braços, querendo mergulhar em tudo que Shiro significava. Ali estava seu amante, seu amor, seu companheiro, seu amigo.

— E Miya? — perguntou, roubando um pedacinho de bolo.

— Iria chamá-la para lancharmos — explicou. — Vou pegar mais uma xícara. Poderia ir até ela?

Ryo fez menção de se afastar, quando foi segurado.

— Ela está estranha...

— Do jeito de sempre? — ele riu.

— Não — ignorou a brincadeira. — Pode tentar conversar com ela? Eu tentei puxar assunto, mas ela não pareceu disposta a falar comigo.

Miya não querendo falar? E desde quando nevava no inferno?

— Acha que pode ser algum efeito colateral dos medicamentos? — preocupou-se.

— Não, ela está bem. Apenas, triste.

Aquilo enervou Ryo, que enfim foi atrás da filha. Encontrou-a com o gato preto perto de uma bonita cerejeira florida. Sentada no chão, ela mantinha a face baixa e parecia cavoucar o chão com grande interesse.

— O que está fazendo, amor? — indagou, assim que se aproximou o suficiente.

Sem respostas. Miya não ergueu a face e não o encarou.

— Miya — chamou-a, sentando-se ao seu lado. — Aconteceu alguma coisa?

Por fim, os olhos bonitos volveram-se para ele.

— Por que existe a morte?

Era uma pergunta incomum para uma criança. Ryo respirou fundo, antes de responder.

— A morte é um processo natural da vida. É o destino de todos nós.

— A morte não é natural — ela negou.

— Claro que é, filha. Nós nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. Foi assim que Kami-sama nos criou.

— Quer dizer que a morte é uma criação de Kami-sama?

Ele não tinha ideia do que responder.

— Bem...

— Por que dizem que, após morrermos, vamos para um lugar melhor?

— Falam que depois de morrermos, iremos nos encontrar com nosso criador.

— Então porque sofremos tanto? Encontrarmo-nos com Deus não nos devia deixar alegres?

— Bom...

— A verdade é que a morte é o início de um grande pesadelo, não é? Eu vi nos olhos do homem bonito.

Que homem bonito?

— Miya...

Então ela abriu os bracinhos e o apertou. Ryo beijou os cabelos macios e cheirosos.

— Esqueça isso, está bem? — pediu. — Seu papa arrumou um lanche para nós — disse, tentando animá-la. — Conforme você irá crescendo, as coisas ficarão mais claras.

Era uma mentira. Mas ele realmente não sabia o que dizer para ela naquele momento.

— Não importa o quê, Miya... Seu pai sempre estará do seu lado.

E com isso, enfim, ele a tranquilizou.


***


Saito encarou o amigo. Cercado por um casaco enorme, Aiko Mamoru parecia pequeno diante da magnitude daquele quarto.

Jiro tentou se aproximar, mas desistiu, percebendo-o completamente aéreo. Queria dizer algo que o desafogasse do horror, mas as palavras pareciam custosas e difíceis.

Era mais um final para a vida do antigo dono da Casa Ai.

— Meu querido — balbuciou, por fim. — Shin disse que devia escolher o quarto que desejasse.

— Eu quero ficar aqui — ele afirmou, a voz parecendo estremecida. — Quero ficar no quarto de Shin.

Jiro assentiu, baixando o olhar para o cesto que tinha nas mãos. Na pressa de chegarem logo na casa protegida dos Sakamoto, a única coisa que ele buscou foi o corpo morto de Minikui.

— Vou enterrá-lo aos pés de um bonito carvalho.

Não viu, mas percebeu que Aiko chorava.

— Você quer ir comigo?

O outro negou.

— Aiko...

— Eu não aguentarei, Jiro... — explicou-se. — Eu tive que juntar, sozinho, os restos de Nana. Eu precisei velar por Midori. Eu fui a única pessoa a buscar por Keiko e por Rika. Eu não aguentarei ver Minikui sendo posto embaixo da terra fria.

O outro assentiu. Curvando-se mais uma vez, preparou-se para deixar o quarto.

Contudo, antes de sair, percebeu Mamoru Aiko buscando um casaco sobre a cama. A vestimenta esquecida de Shin foi levada até o rosto e, abafando-a contra si, Aiko chorou até as forças esvaírem-se e ele cair no chão.


***


Jiro cavou o buraco fundo rapidamente. Era um trabalho que lhe ardeu a alma e, antes mesmo de terminar, ele já chorava.

Nem sabia direito o porquê... Minikui sequer era seu. Talvez, havia culpa por tê-lo maltratado quando tentou afastar Mamoru de si. Sabia que o felino não guardou mágoas, mas, mesmo assim, lhe doeu dizer adeus.

Colocou todo o cesto no buraco. Cobriu-o com um bonito manto branco e ficou a olhar aquele corpinho pequeno e indefeso.

Por que a vida era daquele jeito? Tão breve? Ainda mais para os animais... Tão puros eram, porque viviam tão pouco?

Aos poucos, começou a jogar a terra. Quando preencheu todo o buraco, pôs uma pedra grande sobre ele para indicar que ali jazia um amigo.

Ao voltar-se para a mansão, percebeu Mamoru Aiko ao longe, observando a cena. Condoeu-se, mas tudo que fez foi girar em direção aos galpões, para guardar as ferramentas.


***


Shin Sakamoto mantinha os olhos fechados, respirando fundo, enquanto pensava em seu destino.

Diante de uma enorme mesa, ele aguardou por horas que alguém surgisse e lhe desse qualquer indicação do que lhe ocorreria. Nada. Por fim, quando pensou que haviam se esquecido dele, a porta do escritório abriu e um homem de meia idade surgiu, trazendo vários papéis nas mãos.

Levantou-se, educadamente. O homem, vestido com um bonito uniforme do exército americano, indicou-lhe a cadeira, e ambos sentaram-se.

— Sou o coronel Thompson — apresentou-se, previamente. — E, pelo que me disseram, é Shin Sakamoto.

— Sim, sou eu.

— Senhor Sakamoto — Thompson mexeu nos papéis, parecendo tentar ganhar forças para falar —, dizem ser um homem violento.

— Dizem muitas coisas.

Que belo chute no saco ficar ali para ouvir sermão! Que o jogassem em uma cadeia de uma vez!

— Mas ambos sabemos que o que fez essa manhã foi honroso e digno de um herói. Porém, escolheu o momento errado. Devia ter matado o informante Oguri de forma mais... discreta. Teríamos tempo de encobrir os rastros.

Shin revirou os olhos. Estava cansado, de muitas maneiras, daquele mundo podre.

— É um membro da família imperial, mas não um descendente direto.

— Minha mãe é prima distante do Imperador.

Os papéis de Thompson ficaram visíveis. Reconheceu-os do dia que os pegara na casa de Oguri. Ali, naquele monte, estava toda a investigação do antigo capitão da Kempeitai.

— Sabe que, então, está abaixo da lei.

— Eu conheço muito bem as leis do meu país e do seu, coronel — afirmou. — Por que não terminamos com isso de uma vez? Serei preso, não é?

— Matou um homem para defender um segredo de Estado. Tudo que envolve a Unidade 731 é confidencial. Ninguém pode saber o que lá ocorria, não apenas para manter a paz no Japão...

— Mas, especialmente — Shin completou —, porque aquele filho da puta do Shirô Ishi recebeu o perdão e hoje trabalha para vocês. Aliás, o que diria o tão honroso povo americano, quando descobrisse que uma das mentes mais maquiavélicas da história, hoje é tratado como um genial cientista por aqueles que os governa?

Thompson esfregou uma mão na outra, como se sentisse frio.

— É de suma importância que as coisas permaneçam como estão.

— Eu sei disso.

— Mas não podemos fingir que não cometeu assassinato. Ainda mais que os tiros foram em frente ao governo provisório.

— Assumirei a culpa e pagarei pelo crime — Shin afirmou, sem medo. — Encerramos por aqui?

Thompson balançou a cabeça, negativamente.

— Criaremos um problema se o prendermos. Especialmente com sua família. Um problema que queremos evitar.

— Devem prender — Shin salientou. — Até realizarem as averiguações necessárias e descobrirem que Oguri planejava invadir a sede do novo governo e matar a todos — Shin sugeriu. — Não sabiam que ele tem contato com milicianos?

O Coronel resvalou para trás, na cadeira. Estava tremendamente impressionado.

— Qual é a verdade? — questionou, por fim.

— A verdade é que foi passional.

— É mesmo?

— Oguri chantageou um de meus amantes e tentou matar o outro.

Outro? Ele falava de gênero masculino? Preferiu ignorar.

— Chantageou?

— Um deles serviu na unidade 731. Nada encontrarão sobre ele, fora isso que têm em mãos. Eu mesmo destruí os papéis quando a guerra estava nos seus dias finais.

Thompson riu.

— Um homem tão inteligente como você deixaria para aniquilar outro numa manhã de dia útil, em frente a um dos locais mais frequentados de toda Tóquio? Isso é exatamente o que não se encaixa.

— Nada precisa se encaixar. Vocês manipulam a Imprensa, enquanto eu permaneço em silêncio, preso.

— Não poderíamos fazer nada rapidamente. Teríamos que implantar uma investigação minuciosa. Tem consciência que talvez permaneça fechado em uma cela por tempo demasiado? E que talvez a sua família não aceite...

— Escreverei ao meu tio, assumindo tudo. Não se preocupe. E, quanto ao tempo, não me importo — interrompeu-o. — Que seja para o resto da minha vida!

O outro assentiu.

— Não sei quem planeja proteger, mas fico feliz em termos chegado a um consenso.

Então, pegou o telefone e chamou alguém. A porta se abriu segundos depois.

— Esses guardas o levarão até a prisão de Sugamo. Terá uma cela particular e...

— Não importa — repetiu, cortando-o novamente. — Vamos de uma vez.

E deixou a sala sem olhar para trás.


***


Shiromiya havia dispensado a criada mais cedo. Ryo só soube daquilo quando entrou na cozinha e o viu lavando a louça do lanche. Aproximou-se, pegou uma toalha e começou a secar, ajudando nos afazeres.

— Miya me fez uma pergunta difícil — contou baixinho, como se fosse um segredo.

— Perguntou de onde vêm os bebês?

O comerciante não aguentou e riu, negando.

— Isso eu saberia responder — afirmou. — Todo pai se prepara para essa pergunta!

— É mesmo? E o que diria?

— Que nascem das abóboras! — exclamou, como se fosse óbvio.

Kazue fez um carinho com os lábios em sua bochecha.

— E então? O que Miya queria saber?

O telefone ecoou do escritório. Ryo encarou o amante, arqueando as sobrancelhas.

— Tadao já foi?

— Sim.

Beijou-o novamente. Nunca parecia o suficiente.

— Já volto.

Enquanto andava em direção ao escritório, cruzou por Miya, que brincava com Shin-chan no chão da sala. A filha o encarou, e ele sorriu.

Tirou o fone do gancho, assim que entrou, temeroso de que a ligação tivesse caído. Ficou em silêncio alguns segundos, ouvindo a pessoa do outro lado da linha falar. Volveu o corpo e percebeu Shiro à porta, apreensivo.

— Obrigado por me avisar — disse, ao desligar.

Então, rumou até Shiromiya. Ambos trocaram um olhar significativo.

— Shin foi preso — comunicou, baixo.

— O quê?

— Ele atirou na cabeça de um homem na frente da sede do governo americano.

Shiro arregalou os olhos.

— Quem?

— Não faço ideia. Preciso ir para lá.

O outro assentiu.

— Eu também quero ir.

O casal desviou o olhar e voltou-se para a menina, parada próxima deles.

— Papai não vai passear, amor — Shiro explicou. — Ele vai ir ajudar a resolver...

— Eu preciso ver o príncipe — ela o interrompeu, firme.

— Miya, nós iremos ver o seu príncipe em breve, está bem? — Ryo prometeu. — Mas agora...

A criança se aproximou, segurando firme suas mãos.

— Não entende, papai. Eu preciso ver o príncipe.

Aquela insistência fê-lo arquear as sobrancelhas.

— Miya, por favor, tente entender...

— O Príncipe foi preso, não é? — acertou, em cheio.

Ryo encarou Shiromiya.

— Sim — achou por bem não negar, voltando-se novamente para ela.

— Eu sei disso. Preciso vê-lo, papai. Ele precisa me explicar.

— Explicar o quê?

— Por que deixou que pensassem que ele era um assassino.

— Você quer dizer...

— Eu vi quem matou o homem bonito — ela avisou, determinada. — E não foi o meu Príncipe Encantado.

 

Capítulo 42


A primeira noite na cela de dois metros quadrados foi extremamente difícil. Acostumado a uma cama macia e um ambiente amplo desde a infância, Shin encarou aquelas paredes encardidas e sem cor por tempo suficiente para enlouquecer um homem comum.

Sorte a dele, que “comum” fosse o último dos adjetivos que pudesse descrevê-lo. Shin era forte e firme. Leal, no sentido mais amplo da palavra. E era por pura lealdade que estava ali. Amor, também. Ele faria qualquer coisa pelas poucas pessoas que amava.

A noite foi fria, mas quando a manhã começou a se aproximar, ele sentiu os ossos doerem. Jamais soube que era no início da manhã que as temperaturas baixavam tanto. Protegido apenas pela roupa com que saiu de casa no dia anterior, ele meditou que precisaria pedir para Saito lhe trazer cobertores e lençóis, assim que ele fosse vê-lo.

A lista, aliás, foi aumentando conforme as horas foram passando. Precisava de caneta, papéis, livros, roupas, e tudo que pudesse distraí-lo naquele ambiente.

E... precisava ver Aiko. Como ele estaria?

Próximo das oito da manhã, a porta da cela abriu. Um guarda jovem o encarou. Mesmo na posição que estava, percebeu o respeito pela forma que o japonês lhe dirigiu a palavra.

— Autorizaram que um amigo do senhor entrasse para vê-lo.

Shin assentiu, enquanto o homem saiu. Esperou pelo rosto de Jiro, mas foi o rosto colérico de Ryo que apareceu. Imaginou que talvez tivesse que se proteger dos socos que trocariam. Mas Satoshi, num primeiro momento, simplesmente fechou a porta e avançou verbalmente, num tom baixo.

— Quem matou Oguri?

— Eu.

Primeiro soco. Shin não se defendeu.

— Quem matou Oguri? — questionou novamente.

— Eu o matei — reafirmou, sem medo.

Ryo ergueu novamente o punho, mas o baixou em seguida, como se estivesse farto.

— Diga-me a verdade. Sou seu irmão.

— Estou falando a verdade.

— Miya viu o assassinato em visão. Ela viu quem matou, mas não me conta. A única coisa que diz é que não foi você. Se ela protege o assassino, é porque o ama, assim como te ama. Confie em mim.

Shin o encarou apreensivo.

— Onde ela está agora?

— Na sua casa, com Shiro. Jiro me ligou ontem, informando o que tinha acontecido. Também me disse que Aiko foi levado até lá — respirou fundo. — E então, vai me contar?


***


— Então — Saito murmurou —, Shin e eu saímos em direção à sede do governo. Queríamos interceptar Oguri antes de ele entregar os papéis aos estrangeiros. Shin tinha certeza de que os americanos não desejavam que a 731 fosse descoberta — levantou-se da cadeira, indo até a enorme janela. Lá fora, os cães de Shin Sakamoto corriam, livres, pelo gramado. – Shin tinha informações confidenciais. Então, confiei nele.

Estavam sozinhos na sala, Shiro e ele. Miya havia subido até o quarto superior, ficar com o tio Mamoru, que parecia em estado de choque.

Kazue sentava-se numa confortável poltrona. Sua atenção inteiramente focada no amigo de longa data. Jiro volveu para ele novamente.

— Era a intenção de Shin matá-lo. Mas não ali.

— E o que aconteceu para que ele tomasse essa decisão?

Jiro fechou os olhos.

— Eu te contei que havia deixado Mamoru na livraria, não contei?

— Sim, você me disse que não pôde levá-lo consigo porque temia que houvesse milicianos à espreita, preparados para segui-los.

— Oguri foi até lá na minha ausência. Aiko me contou isso, depois — respirou fundo. — E matou Minikui.

Shiro nada disse, mas baixou a face, triste. Ainda se lembrava da primeira vez que viu aquele gato malandro que roubara seu peixe. Era um amor doce, familiar.

— Aiko ficou cego. Quando Nana morreu, ele entrou em choque, e ficou em estado catatônico. Mas, ao perder Minikui, ele não conseguiu raciocinar. Deixei uma arma com ele...

— Não me diga...

— Quando Shin e eu chegamos em frente à sede, visualizamos Mamoru do outro lado da rua, escondido em um beco. Corremos para lá, mas ele atirou antes. Sua péssima pontaria atingiu as escadas. Contudo, no solavanco do tiro, ele caiu para trás. Naquele momento, atirou novamente...

— Um tiro certeiro...

— Shin tomou a arma de suas mãos rapidamente e ordenou que eu saísse com Aiko dali. Pus Mamoru sobre os ombros e corri na direção contrária. Quando me voltei, vi Sakamoto com as mãos erguidas, entregando o meu revólver para os guardas.

Shiro não sabia o que dizer. Havia dor em seu coração.

— Miya viu tudo isso... — gemeu. — Como ela pôde aguentar ver tal cena?

Jiro não respondeu.

— Aiko não o matou por crueldade — disse, depois de um tempo.

— Você não precisa me dizer isso.

Jiro escondeu o rosto entre as mãos.

— O que será de Shin?

— Aiko tem consciência de que Sakamoto assumiu a culpa em seu lugar?

— Não sei. Ele mal responde às minhas perguntas. Ontem, quando enterrei Minikui, ele até falou comigo, mas depois, fechou-se novamente.

Shiro assentiu, erguendo-se. Sem palavras, ele subiu as escadas, em direção ao quarto de Shin. Saito lhe seguiu, indicando o caminho. Entrou no aposento e visualizou a filha deitada, quietinha, ao lado do tio de cabelos longos. Aquele Aiko lhe lembrava muito o mesmo que ele foi obrigado a deixar, anos antes.

— Miya — ele a chamou, fazendo com que a menina o encarasse. — O tio Jiro quer mostrar para você os cachorros que o tio Shin tem.

A menina aquiesceu, parecendo entender que a intenção do pai, na verdade, era ficar sozinho com Aiko.

Quando, enfim, só havia os dois no quarto, Shiro sentou-se na cama, ao lado do amigo, segurando suas mãos.

— Como você está?

— Eu matei um homem — a resposta curta dizia mais que qualquer discurso.

— Não teve escolha.

— Sempre há escolhas — Mamoru murmurou. — Shin assumiu a culpa — contou.

Ele sabia?

— Mamoru...

— Não posso permitir que ele pague por algo que não fez. Contudo, minhas pernas tremem e eu tenho medo de ir até Sugamo...

Que conselho poderia dar? O que diria numa situação daquelas? Shin era forte e imbatível. Mamoru era frágil e delicado. Claro que não queria nenhum dos dois encarcerado naquela prisão lendária, mas se alguém tinha de ser punido, que fosse aquele que suportaria o tempo que fosse necessário.

— Ryo-san deve chegar em breve. Ele deve saber o que devemos fazer — afirmou.

Porém, não havia a menor certeza em sua voz.


***


— Milicianos estão sendo presos às pencas — aquilo parecia explicar tudo.

Ryo Satoshi encarou o amigo seriamente.

— Shin...

— O nome de Mamoru já está nas mãos deles. Assim que fosse trazido para cá, armariam uma emboscada e o matariam cruelmente. Você acha mesmo que alguém se importaria com a vida de um mestiço chinês assassino? — ergueu-se da cama, andando naquele local pequeno. — Olhe para mim: uma cela privativa e uma promessa de que resolverão tudo rapidamente. Eu tenho privacidade e proteção. Não há um único guarda dentro dessa cadeia que não me teme e me respeita. Sou adorado.

— Mas não matou Oguri — Ryo insistiu. — É uma culpa da qual é inocente.

— Mas não sou inocente das dezenas de outras mortes a que assisti e pratiquei durante a guerra. De todas, absolvido, como se eu tivesse sido coagido a matar. Não fui — assumiu. — Matei, estuprei, fiz todo o mal inimaginável por vontade própria. Eu mereço ser preso.

Ryo suspirou.

— Diga-me, Satoshi — a voz de Shin fê-lo encará-lo. — Se fosse Shiro nessa situação, o que faria?

Aquilo deixava tudo claro.

— Eu amo Aiko — assumiu. — Do jeito mais torto e patético que se pode amar alguém. Mas, ainda assim, deixaria me matarem por ele.

Ryo sorriu.

— Então, nada o convenceria?

— Nada.

Subitamente, Ryo riu.

— Ficará ainda mais engrandecido aos olhos de Miya — constatou.

Shin gargalhou com a estranha preocupação daquele pai.

— Diga para ela me escrever — avisou. — Todos os dias.

— Não precisarei — o outro afirmou. — Ela o fará.


***


Já passava da meia noite, quando Ryo entrou na casa grande. A escuridão reinante lhe deu a certeza de que todos dormiam.

Não via Shiromiya desde a manhã, quando o deixou com Aiko e Jiro. Depois de ir até Shin, ele passou a buscar por seus muitos contatos, a fim de lhes cobrar por favores feitos quando os americanos começaram a se instalar no Japão.

As visitas aos presos eram feitas em uma sala, sob a vigília de um guarda. Porém, como Shin não estava condenado ainda, conseguiu que as de Sakamoto fossem realizadas em sua própria cela. Contudo, apenas uma pessoa por vez.

Respirou fundo, pensando que havia conseguido muito pouco. Precisava tirar Shin de lá. Não teria um minuto de paz, enquanto seu irmão ficasse trancado naquele local imundo.

Antes de chegar às escadas, ouviu um barulho vindo do escritório. Mesmo sabendo que devia ir dormir, não resistiu e seguiu naquela direção. Encontrou Saito Jiro bebendo saquê, completamente absorvido pelo que quer que fosse que estivesse observando na parede branca.

Sentou-se à sua frente. Sem qualquer pedido, logo foi servido com uma dose generosa da bebida destilada.

— Eu entendo Shin — Jiro confidenciou-lhe.

— Entende?

— Conforme os anos vão passando, o peso da culpa parece aumentar, esmagando tudo em nós.

Ryo bebericou, enquanto cruzava as pernas.

— Era matar ou morrer — aliviou. — Culpa-se, mas o que diria eu, sabendo o que aconteceria com meu país e com meu povo, e não movi um músculo para ajudar?

— Se tivesse aberto a boca, teria sido capturado e serviria de cobaia para os experimentos militares.

Subitamente, o perdão dado a si mesmo chegou a ambos, naquele instante, durante aquela prosa não intencional.

— Será um bom pai para Miya, não é?

Ryo sorriu.

— Não sei — admitiu. — Mas se for um bom pai significa amá-la acima de tudo, eu acho que serei o melhor pai do mundo.

Jiro assentiu. Havia em seus olhos uma dose de satisfação que alegrou Ryo.

— Cuide de Shiro, também — pediu. — Ele precisa de você. Nesses anos todos, não deixou ninguém se aproximar. Mesmo que você o tivesse ferido, sua lealdade e fidelidade por esse amor foi admirável.

Ryo anuiu, feliz.

— E você?

— Eu? — a pergunta parecia surpreendente para Jiro. — O que tem eu?

— Sempre me falaram que era apaixonado por Aiko ou por Shin. Nunca entendi direito o relacionamento de vocês — assumiu.

— Acredite, nenhum de nós entende — confirmou.

— Enfim, Shin está preso e sabe-se lá quanto tempo permanecerá assim. Então, ficará com Aiko?

— Aiko ama Shin — afirmou. — E Shin ama Aiko. Não é justo que eu me envolva e atrapalhe esse amor. Eles permaneceram tempo demais separados por escolhas erradas. Agora que, enfim, parecem entender a segunda chance que a vida está lhes dando, não serei eu a interferir.

— Ficará sozinho, então?

— Aiko e Shin não foram os únicos a desperdiçar as chances que a vida lhes deu. Eu também tive o amor de alguém e menosprezei. Agora, essa pessoa é feliz. Tem alguém que a ama. Tenho que aceitar isso e prosseguir.

Ryo largou o copo e se ergueu.

— Confie em mim: ninguém merecia menos uma nova oportunidade. E a vida não me sorriu? Talvez, você também tenha a sua chance.

E diante das palavras enigmáticas, deixou a sala.


***


Ryo abriu a porta do quarto e observou os dois corpos na cama. Sorriu, tirando o casaco e puxando a gravata. Shiro e Miya dormiam embaixo de cobertas grossas, confiantes da proteção que ele lhes dava.

Foi até o banheiro e tomou um banho rápido e quente. Percebeu que Shiromiya havia aberto as malas, e um pijama estava estendido no cabide pronto para ser usado por ele, quando chegasse.

Era incrível... Shiro cuidava dele com o mesmo afinco que ele sempre desejou que alguém fizesse.

Aproximou-se da cama, quando o viu abrindo os olhos.

— Você já jantou?

— Eu comi alguma coisa na rua — disse, despreocupadamente, esgueirando-se para baixo das cobertas.

O tom entre eles era baixo, para não acordar a criança.

— E Shin?

Ryo balançou a cabeça, negativamente.

— Fiz tudo que estava em minhas mãos, mas teremos que aguardar o julgamento. De qualquer forma, é interesse dos americanos que ele seja absolvido.

— Quando será isso?

— Não sei, Shiro. Mas não podemos ficar. Miya terá que ter aulas e permanecer perto do hospital.

Kazue assentiu.

— Poderá ficar aqui. Eu volto com ela para Sapporo — sugeriu.

— Ficar longe de você? — Ryo fez uma careta. — Nem morto.

O outro riu baixinho. Contudo, as lágrimas surgiram aflitas em seguida.

— Não quero deixar Aiko agora.

— Jiro cuidará dele.

— Já passei por isso antes e fiquei sem vê-lo por quase seis anos.

— Não vai acontecer novamente, meu amor — prometeu. — Eram outros tempos. Miya terá suas consultas com o médico e suas aulas durante a semana. E nos finais de semana, viremos para cá. Isso, até Shin ser liberto.

Kazue estendeu a mão para o amante, que a segurou.

— Tudo bem — concordou. — Faremos como diz.


***


O barulho de chaves desviou sua atenção para a porta marrom. Shin, sentado naquela cama de concreto coberta por um colchão fino, apenas encarou a madeira, até ela abrir, rápida, e ele visualizar o jovem guarda de sempre.

— Tem visita.

Esperou pelo rosto de Jiro, mas foi Mamoru Aiko que entrou no quarto. Levantou-se, nervoso.

Ambos, face a face, se encararam após um bom tempo de separação. Naquele instante, era como se o tempo tivesse voltado e, talvez, tivesse, de fato.

O coração de Shin bateu apressado, enquanto a mente divagava sobre a maior verdade da vida: ninguém esquece um grande amor.

 

 

 

 


Capítulo 43


“Toda manhã , quando abro os olhos — a voz de Shiromiya surgiu em sua mente. A conversa havia ocorrido horas antes de ele chegar ali — eu encaro Ryo-san e aguardo, apreensivo, que ele abra os olhos e me encare daquela forma humilhante de antigamente, dizendo que me enganou mais uma vez, que sou um idiota por ter acreditado em suas palavras, que me despreza, e me quer longe”.

Aiko Mamoru encarou o rosto abatido de Shin. Pareciam séculos desde que se encararam daquela forma sincera e real.

“Então, ele acorda. Por alguns segundos que parecem séculos, meu coração para e eu sinto lágrimas em meus olhos. Contudo, subitamente, ele sorri e diz, amorosamente, um bonito bom-dia. Depois, diz que me ama. Beija-me e levanta-se. Assim, sinto-me um idiota por pensar em tais coisas.”

— Oguri matou Minikui — a frase pareceu explicar muito.

Shin sorriu. Não precisava daquelas desculpas.

“Então, toda a manhã, eu prometo a mim mesmo que não pensarei mais bobagens. Prometo que, no dia seguinte, acordarei confiante e feliz. No entanto, na manhã seguinte, o ritual se repete”.

— Obrigado por ter vindo me ver — Sakamoto disse, apontando a cama.

Aiko largou a sacola com as cobertas e roupas que Jiro arrumou. Depois, sentou-se no local indicado.

“Eu sei que o medo de estar vivendo uma nova ilusão poderá me seguir para sempre. Mas, mesmo assim, quando ele diz que me ama, quando ele me beija, me aperta, quando ele simplesmente respira ao meu lado, eu sei que vale a pena. Vivi muitos anos em Kibou tentando me convencer que poderia viver sem Ryo. Mas estava me enganando. Eu não vivi sem Ryo, eu sobrevivi. Agora, nesse momento, quando sei que a noite ele estará em minha cama... Agora eu sei o que é viver de verdade. O que é ter o coração tomado pela alegria”.

— Como você está? — Mamoru questionou.

— Eu estou ótimo — o outro sorriu, tentando tranquilizá-lo.

— Não é justo — a resposta, porém, não foi a esperada. — Eu quero contar a verdade, Shin — avisou. — Eu preciso contar a verdade.

— O que você precisa é me ajudar, agora — o outro falou. — Preciso de você como nunca precisei antes, Aiko. Preciso que fique em silêncio e que cuide das minhas tarefas enquanto eu estiver ausente. Acredito que Shiromiya tenha lhe oferecido abrigo em Sapporo?

— Sim.

— Não pode ir — Shin pediu. — Necessito que fique na minha casa, que cuide dos meus cães. Pode fazer isso por mim?

— Jiro pode fazer isso...

— Quero que seja você.

Aiko sorriu. Mais uma vez, o tempo pareceu voltar.

“Sempre vale a pena perdoar. Não apenas pela pessoa que nós amamos, mas especialmente, por nós mesmos. Ser feliz vale qualquer risco”.

— Seja claro, Shin — mandou. — Quero que seja verdadeiro comigo.

O outro respirou fundo.

— Eu te amo — confessou. — E, por mais que saiba que não mereço você, peço que não me abandone. Espere-me, pelo tempo que precisar. Eu vou voltar para você e viveremos juntos. Teremos cachorros, gatos e, talvez, até filhos, como Ryo e Shiro. Eu os vi juntos, eu quero uma família ao seu lado.

Aiko sorriu, as lágrimas surgiram em seus olhos.

— Você me perdoa por tudo? — Shin indagou. — Porque, para seguirmos em frente, teremos que esquecer tudo que aconteceu.

— Não vou esquecer tudo que aconteceu — afirmou. — Porque é impossível. Eu sofri muito.

Shin abriu a boca, espantado e triste.

— Eu compreendo.

— Mas eu vou superar isso. Porque sofrer faz parte da vida. Porque se decepcionar faz parte da vida. Aprendi, a duras penas, que viver não é um conto de fadas. Que, às vezes, quem amamos não é padronizado como em nossos sonhos. Mas que, mesmo assim, o desejo de ser feliz é mais forte do que o medo da infelicidade.

Shin sorriu.

— Eu juro que...

— Não me faça promessas — o ex-cortesão recuou. — Apenas diga que me ama.

Sakamoto aproximou-se vagarosamente. Temia qualquer ato impensado. Aiko estava ali, diante dele, tantos anos depois, disposto a seguir a vida ao seu lado. Não podia falhar novamente.

— Por Deus, não há nada nem ninguém que eu ame como amo você...

A boca encostou de leve. Uma carícia tão gentil quanto saudosa. Shin sentiu o hálito quente entrando na sua boca, a textura macia da boca generosa. Abriu os lábios, enfiando a língua dentro daquele ninho de amor. Sentiu os dedos de Mamoru segurando seu ombro e não resistiu mais.

Afundando os dedos nos cabelos negros, ele mergulhou profundamente em cada recanto da boca amada. Lambeu, beijou, mordeu... aproveitou cada segundo como um sedento.

— Eu te amo — Shin repetiu, ao afastar os lábios. — Eu amo... Deus! como eu amo...

— Eu também te amo. — A mão macia acariciou seu rosto. — Não quero que se responsabilize por algo que não fez... — trouxe o assunto novamente em pauta. — Eu vou contar a verdade.

— Não, Mamoru — negou. — Confie em mim, apenas isso. Estou protegendo você.

— Eu sei, mas não é justo.

— Nada na vida é justo — deu os ombros.

— Tente entender como me sinto...

— Ryo-san deve ter explicado a você — Shin interrompeu. — A cadeia está cheia de milicianos. Acha que ficará numa cela confortável e privada como essa que estou? Dividirá a cela com eles e se dormir à noite, não acordará vivo.

Aiko baixou a face, constrangido. Shin segurou sua mão, confortador.

— Não faço isso apenas por você. Sou egoísta, sabe bem. Se algo te acontecer, como eu poderia viver? Estou pensando seriamente na minha felicidade.

Mamoru riu. Aproximou o rosto para mais um beijo, mas o barulho vindo da porta fê-lo retroceder. O rosto respeitoso de um guarda surgiu.

— O horário de visitas acabou — o rapaz informou.

Mamoru assentiu, erguendo-se.

— Eles permitem apenas uma visita ao dia e por apenas meia hora — comentou. — Jiro queria vê-lo amanhã, mas eu pedirei para voltar, mais uma vez — aproximou-se, para um abraço. Contudo, a intenção era murmurar nos ouvidos do outro. — Amanhã quero que me ame de uma forma mais carnal do que com palavras.

Então, soltou-o e foi embora, deixando um risonho preso para trás.


***


Jiro Saito parou, atônito, diante do casal à sua frente. Não esperava rever Daniel, então, não se preparou para um embate.

Naquela manhã, Miya comentou que queria conhecer a cidade. Shiro estava conversando com Mamoru e ele soube que Ryo estava trabalhando. Informou aos amigos, rapidamente, que iria passear com a sobrinha e sumiu de suas vistas.

Caminharam pelos parques e depois ele a levou para comer bolo de chocolate em uma rica confeitaria. Foi na saída que acabaram trombando com o casal.

Daniel estava bonito, ainda mais do que ele se lembrava. Volvendo o olhar para o outro rapaz, percebeu-o tímido. O tal Ren era tudo que Daniel descrevera, sem nenhum além. Formoso, fofo e delicado. A pele pálida parecia de porcelana.

— Como vai, Jiro? — o americano indagou.

Saito quase não conseguiu encará-lo.

— Essa é Miya — apresentou. — A filha de Shiro.

O americano encarou aquele pedacinho de gente e sorriu. A criança também pareceu feliz em conhecê-lo.

— Muito prazer, Miya. Você é muito parecida com seu pai — afirmou.

— Eu sei, tenho os olhos lindos dele.

O homem riu, voltando-se para Jiro.

— Como você está? — repetiu.

— Oguri foi morto — o outro explicou, sem pestanejar. — Estou bem.

— Morto?

— Não lê jornal?

— Eu estive ocupado — explicou.

Sim, claro, fazendo sexo com aquele garoto bonito.

— Shin o matou — foi curto. — Shin está preso — completou.

— E você, como se sente?

— Infeliz — sua sinceridade era tocante. — Como poderia me sentir de outra forma, com meu amigo preso por minha culpa? Contudo, ao mesmo tempo, me sinto satisfeito por saber que nem todos os meus amigos me abandonaram quando precisei.

Por que diabos dissera aquilo? Por que doía tanto?

Sorriu, tentando desfazer o mal já feito. Curvou-se levemente para o par, e afastou-se, sem se despedir. Sequer conseguia dizer qualquer coisa. A visão nublou e ele correria, não tivesse arrastando uma criança consigo.

Pouco depois, chegaram a uma praça. Ele sentou-se no banco e trouxe Miya para o seu colo. Afundou o rosto nos cabelos escuros da criança, enquanto tentava se acalmar.

— Você gosta do moço estrangeiro, tio?

A pergunta o fez sorrir.

— Sim, eu gosto — confessou. — Mas eu descobri isso muito tarde — suspirou. — Tem pessoas que são assim, Miya — aliviou. — Só percebem que a vida está lhes dando uma chance de ser feliz quando a desperdiçam.

— Por que não conta isso pro moço?

— Daniel — corrigiu. — O nome dele é Daniel.

Ela pareceu surpresa. Então, aquele rapaz bonito era o Daniel que ela ouvira falar meses antes?

— Então, conte isso ao Daniel — ela aconselhou. — Diga a ele como se sente. Quem sabe ele também goste de você.

— Ele gostava, Miya — contou. — Ele me amava. Mas eu não valorizei isso, e agora ele está com um moço que o estima. É justo que ele seja feliz.

Ela assentiu, compreendendo.

— Eu te amo, tio Jiro — ela confessou, pela primeira vez. — Nunca vou deixá-lo sozinho.

Saito sorriu, diante da frase fofa. Beijou a bochecha avermelhada e a apertou nos braços. Aquele amor, ele jamais desperdiçaria.


***


— Irão embora?

O guarda nipônico assentiu.

— Manterão algumas bases, mas o governo será entregue nas mãos do parlamento.

— Quando será isso?

— Em abril, meu senhor.

Shin assentiu, conformado. Desde o final da guerra, seu amado tio mantinha um status simbólico. Aquilo não o preocupava. O destino do país parecia estar andando bem. A honra e a coragem de seu povo transformaram aqueles anos desde a rendição em tempo de luta e reconstrução.

— Preciso ir, meu senhor — o guarda o avisou, respeitosamente.

Shin sorriu, achando engraçado. Mesmo em sua situação, as pessoas lhe tratavam com toda deferência.

— Antes de ir, pode me ajudar em algo?

— Se estiver dentro de meu alcance.

— Um de meus amigos virá hoje me ver. Sei que temos um tempo programado para a visita...

— Meia hora, senhor. Infelizmente, não podemos prorrogar acima disso. E só conseguimos esse tempo em particular devido a sua condição familiar. Os outros presos recebem visitas em salas públicas.

— Eu sei — Shin amenizou. — Sou muito grato por isso. Contudo, tudo que peço é que, cinco minutos antes de finalizar a visita, você possa dar uma batidinha na porta, para nos preparar para a despedida.

O rapaz concordou imediatamente.

Depois que ele se foi, Shin aprontou-se para receber Aiko. Havia tomado banho de manhã, outra regalia que recebeu dos americanos. Então, usou as roupas limpas que Aiko havia lhe trazido no dia anterior, perfumou-se e ficou à espera.

Parecia um garoto diante da primeira vez.

Estava tão nervoso que começou a suar. Quantos anos fazia? Seis? Sete? Eles haviam terminado antes do final da guerra. Como pudera suportar tanto tempo? Por que não avançara antes? Por que temia tanto dar aquele passo?

Levou cerca de uma hora para a porta se abrir novamente. Aiko Mamoru entrou, encarando-o. O guarda logo os fechou, sem qualquer comentário.

— Ansioso? — a pergunta de Mamoru se deu depois de perceber os olhos arregalados do outro.

Shin riu.

— Eu acho que você tem esse poder sobre mim.

— Fico satisfeito por isso — abriu o quimono. Estava nu. — Gosto de fazer você babar.

— Ei! Não estou babando.

Aiko aproximou-se. Shin segurou sua cintura e o puxou. Sentado na cama, ele aproveitou a posição para lamber o umbigo bonito.

— Está quase desmaiando — o outro murmurou. — Mas não te culpo. Eu realmente sou um pecado.

Riram.

A brincadeira, apesar de inocente, remetia a muitos eventos. E conforme o toque foi se aprofundando, eles perceberam que, embora suas mentes tivessem se esquecido de muitas coisas, as peles ainda se recordavam de cada arrepio.

Aiko sentou-se no colo de Sakamoto. A boca, lânguida, parecia em chamas. Tudo nele era fogo e desejo. Contorceu-se diante da masculinidade do amante, mas Shin parecia calmo e receoso. Seus toques eram breves, como se temesse avançar.

— Shin, não temos o dia todo — murmurou contra seu ouvido.

— Não me peça pressa. Eu sonhei tanto...

Mamoru o deixou, deitando-se na cama. Abriu as pernas, num convite óbvio.

— Eu também. Céus, como eu te quis, durante todo esse tempo. Mas quando sair daqui, poderemos aproveitar o sexo com calma. Agora, temos um tempo contado, e eu preciso sentir você dentro de mim...

Diante das palavras, Sakamoto arrancou as roupas. Nu, ele ajoelhou-se diante do outro, puxando-o para mais um beijo, enquanto encaminhava o membro avantajado para a entrada pulsante.

Não gritaram, mesmo que a penetração arrancasse deles a sanidade. Ambos morderam os próprios lábios, temerosos de que alguém desconfiasse do que acontecia dentro daquela cela.

Shin não se ateve muito ao carinho. Cavalgou o bumbum do amante com rapidez, com pressa, querendo dar a Mamoru o que ele viera buscar. Beijou-o, tentando se desculpar pela forma seca de fazer amor.

Contudo, Mamoru sempre o surpreendia na cama. Parecia delirar diante de sua energia, de sua agressividade. Quando Shin explodiu nele, o outro choramingou de prazer, agarrando-o tão forte que quase lhe arrancou-lhe a pele.

Era o apogeu daquele amor sincero.


***


— Falou sério sobre filhos? — Mamoru murmurou, acariciando as madeixas úmidas de suor.

Shin ressonava sobre seu peito.

— Nunca senti inveja de Ryo em toda a minha vida. Mas quando eu o vi com Shiro e Miya, eu desejei arduamente aquilo.

O outro respirou fundo, triste.

— Sabe que jamais teremos, não é?

— Por que não? Se Ryo e Shiro...

— Shiromiya conseguiu Miya em meio ao caos. Hoje, teríamos que ir até um orfanato. Ninguém nos daria uma criança.

— Eu posso tentar. Eu tenho contatos.

Mamoru sentiu os olhos úmidos. Em segundos, chorava.

— Jamais vou entender porque o nosso amor é tão sujo que não temos o direito nem de sermos pais.

Shin beijou-o levemente no peito.

— Eu tenho tanto amor para dar a uma criança, Shin — os soluços o tomaram. — Eu queria tanto ter um filho...

Sakamoto não lhe fez promessas vãs. Até porque, jamais se perdoaria caso decepcionasse novamente Aiko. Tudo que fez foi apertá-lo nos braços, num abraço cúmplice, dividindo com ele o peso da condição sexual.

Ambos, gays.

Ambos, amantes.

Ambos, apaixonados.

Ambos homens capazes de manter um lar e cuidar de uma criança. Pelos céus, havia tantos órfãos naquele país. Por que não teria um para eles?

Era querer demais?

O som da leve batida na porta os sobressaltou. Mamoru afastou-se rapidamente, em busca das roupas. Meia hora... Pareceram segundos. Shin, pela primeira vez, sentiu o impacto daquela prisão.

Enquanto Mamoru se ajeitava, ele suportou com bravura a dor da separação. Era uma punição justa, sabia, mas doía demasiadamente.

Quando o amante foi embora, pouco depois, permaneceu sentado na cama, encarando as paredes. Devia estar feliz, mas tudo que sentia era vazio e tristeza. E assim seria até sair daquele lugar e tomar as rédeas da própria vida.

 

Capítulo 44


Cinco meses depois.

 

Jiro Saito limpou o balcão com um pano úmido antes de colocar sobre ele as xícaras empilhadas. À sua frente, o velho e antigo cliente de Mamoru, Watanabe, bebia e lia silenciosamente, sentado sobre uma confortável poltrona, ao lado da janela.

Alguns meses antes, ele se demitiu do emprego no exército e assumiu a livraria de Aiko. Mudaram o nome para evitar qualquer incidente com os poucos milicianos que ainda restavam livres e organizaram um novo estabelecimento financiado por Ryo Satoshi.

Jamais pensou em se tornar um comerciante, mas virar sócio de Mamoru lhe tirou da melancolia que entrou após a prisão de Shin.

Quase na mesma época, um novo morador ocupou o lugar de Minikui no local. Kirei era tão bonito como seu nome. Branco, de pelos longos e de personalidade gentil, foi resgatado por Jiro num dia chuvoso, enquanto voltava para casa, após uma noite de bebedeira.

De certa forma, entendera, naquele instante, a importância de um amigo não humano. E, depois daquilo, seus dias passaram longe dos bares e muito perto de brincadeiras com cordões com o gato abandonado.

A porta bateu e ele sorriu para o entregador. Indicando com a face os fundos do local, seguiu com o homem, e o viu deixando lá a caixa com os novos clássicos que chegavam, comprados de uma editora local.

Estava na moda ler cultura ocidental, e ele sorriu diante dos títulos. Quando o homem afastou-se, ele se agachou ao lado da caixa, abriu-a e começou a organizar a mercadoria nas estantes bonitas.

O sino da porta tocou novamente.

— Já estou indo! — gritou, anunciando ao novo cliente a sua localização.

Largando os volumes no chão, ele voltou ao balcão, sorrindo, ansioso por agradar.

— Daniel?

Contudo, sua animação logo tomou lugar ao assombro. Era impossível esconder o espanto. Fazia muito tempo que eles não se viam. Aliás, desde o dia que o encontrou ao lado do antigo amor, não soube nada mais dele.

— Procurei você em Kyoto — o americano contou, aproximando-se do balcão. — Achei que houvesse voltado para lá.

— Eu pedi demissão.

— É — o outro assentiu. — Me disseram isso.

Houve um silêncio estranho. Jiro contorceu as mãos no pano do balcão, ansioso.

— Eu solicitei dispensa — o rapaz contou, puxando a franja para trás da orelha. — Não foi difícil, eu já havia cumprido o tempo obrigatório. Então...

— Vai voltar para os Estados Unidos? — Jiro o interrompeu.

Aquilo era uma despedida? Ficou feliz por Daniel ter tido o trabalho de tê-lo procurado para dizer adeus.

— Não, eu ficarei em Tóquio — negou.

Saito sorriu, escondendo um traço de dor. Sabia o que aquilo significava.

— Você e Ren vão viver juntos?

— Eu amei muito Ren, Jiro — o outro afirmou, sem pestanejar. — O primeiro amor mais puro que um homem pode ter. Mas o tempo me mudou. O tempo o mudou também. A vida é assim. O que parecia tão forte e grandioso aos olhos da juventude, não é mais capaz de me fazer mover os céus e a terra em nome de tal paixão. Você compreende?

Saito assentiu.

— A vida tem esse dom — Jiro amenizou. — Ela sempre nos mostra que o que muitas vezes nós acreditamos ser indispensável e absoluto, não é assim tão importante.

Daniel concordou.

— Como está?

— Estou bem — Jiro sorriu, simpático. — Como pode ver — abriu os braços, mostrando o local. — Assumi o posto de Aiko. Estou morando no andar de cima.

— E ele?

— Mamoru mora na casa de Sakamoto.

— Shin ainda está preso, não é?

— Será solto essa semana — Jiro contou, apesar da informação ser sigilosa. — Sua prisão havia sido prévia, e a investigação apontará que Oguri tentou armar uma emboscada na sede do novo governo, e que Sakamoto o impediu.

Daniel Joshua soltou uma gargalhada irônica.

— E como vocês ficarão?

Saito arqueou as sobrancelhas, não entendendo.

— Aiko, Shin e você? Viverão um triângulo amoroso?

Saito olhou de soslaio para o cliente lendo à janela. Ao percebê-lo completamente focado em sua leitura, respondeu.

— Nunca fomos isso — Jiro se defendeu. — Acho que, no fundo, eu apenas confundi o amor excessivo que tenho por eles com paixão. Mamoru também. Solitário e carente, não pensou duas vezes em se jogar para mim. Mas, na verdade, nós três sabemos que eu sempre sobrei nessa história.

Daniel enfiou as mãos no bolso. Parecia apreensivo.

— Está sozinho, então? — indagou.

Por algum motivo, o coração de Saito Jiro disparou diante da questão.

— Talvez.

— Talvez? — estranhou a resposta.

— Você está?

O sorriso lindo surgiu nos lábios do americano. Ele confirmou com a face.

— Desde que eu o conheci, sempre pertenci a você — confessou, baixinho, como se temesse uma nova rejeição.

O sorriso mais lindo do mundo se abriu diante do americano.

— Acho que ninguém mais no mundo me amou de forma tão incondicional quanto você — Jiro afirmou. — E eu demorei muito a entender isso. Assim, me perguntava se haveria, um dia, uma oportunidade de eu fazer as coisas de forma diferente.

Daniel abriu os braços, deixando-se à disposição. Saito riu.

— Quer jantar comigo?

Jiro assentiu.

— Posso preparar algo.

— Não, não aqui — Daniel negou. — Vamos jantar fora e depois caminhar olhando as estrelas. Eu comecei meu antigo relacionamento com você bêbado e caindo na sua cama como um idiota. Agora, quero que saiba que está diante de um homem sério, e por isso exijo seriedade em nossos atos. Primeiro, jantar, passear, namorar. Depois, compromisso. Por último — aproximou-se, quase encostando os lábios em seu ouvido — sexo.

Jiro gargalhou.

— Eu vou ter que esperar tanto tempo assim?

— Vai sim — o americano afirmou. — Porque quando acontecer, será especial.

Depois de um leve beijo na têmpora, Daniel saiu, deixando para trás um Saito muito satisfeito.

À janela, outra pessoa gostou do que presenciou. Watanabe-san mal podia esperar para contar a novidade ao chefe, Sakamoto. Sabia, de antemão, que o patrão ficaria feliz. Nada podia importar mais para o membro da família imperial que a felicidade do melhor amigo.


***


Shin Sakamoto fechou os olhos, suspirando, feliz, ao sentir o calor do sol acariciá-lo. O vento da liberdade bateu em seu rosto e ele riu, extasiado com o simples fato de que estava livre daquela cela, sua companheira nos últimos meses.

Olhou adiante. Aiko estava parado próximo, sorrindo em sua direção. Devolveu o sorriso, enquanto corria até ele. Sequer mediu seus atos, quando o pegou no colo, e o girou nos braços, num abraço feliz.

Pareciam duas crianças, mas logo voltaram à antiga compostura, afinal de contas, não o eram. Só então notou a menina próxima deles, sorrindo.

Agachou-se e recebeu aquele outro abraço, diferente do anterior, mais gentil e fraterno.

— Eu senti sua falta, Príncipe — ela disse, apertando-o o máximo que podia com os pequenos braços.

— Eu também, minha querida — ele murmurou, afastando-se. — Onde está seu pai?

— Ryo está trabalhando e Shiromiya ficou em Sapporo— Aiko respondeu por ela. — Eu busquei Miya ontem, para recebê-lo. Sabia que sentiam saudades um do outro.

— E Jiro?

— Trabalhando também.

Shin se ergueu, abrindo os braços dramaticamente.

— Eu saí da prisão e nenhum dos meus amigos está aqui para me ver? Eu sou um herói nacional! — fez referência a como o jornal o chamou, naquela manhã.

— Você é uma fraude e eles têm que trabalhar — Aiko riu. — Mas estou aqui — aproximou-se, ansioso para beijá-lo. — Não basto?

Shin riu. Mamoru era tudo que ele precisava.


***


A pedra em formato oval marcava o local onde seu amigo estava enterrado. Shin mexeu com o dedo na terra, já firme, enquanto percebia a relva crescendo.

— Minikui foi o melhor gato que já existiu no nosso planeta — ele apontou.

Miya, ao seu lado, agachou-se, também tocando a terra.

— É muito triste, não é?

— É sim — Shin confirmou. — Mas sabe? — encarou-a. — Enquanto viveu, nunca lhe faltou afago, comida, água, cama quente e amor. Então, eu sei que ele foi muito feliz e isso, de certa forma, é algo que acalma a tristeza.

Miya repousou a cabeça no ombro do melhor amigo.

— Terei muitos gatos, Miya. E para todos vou dar todo o amor do mundo. Assim, não haverá arrependimentos quando eles partirem — respirou fundo. — Lembre-se sempre, enquanto as pessoas e os animais viverem, sempre haverá tempo para perdão, amor e fraternidade. Busque isso. Depois que partem, não existe mais nenhuma possibilidade. Não poderá mais pedir desculpas por um erro ou confessar um amor escondido.

Ela assentiu.

— Sim, tio.

Ele a encarou, surpreso.

— Tio?

— Príncipe — corrigiu-se.

— Eu gostei de tio — ele avisou. — Gostei... — ratificou. — Me chame assim, a partir de agora.

Ela sorriu, concordando. Depois disso, voltaram para casa, para comerem o lanche que Mamoru organizou. Era o início de uma vida familiar que traria muita felicidade para ele.


***


Shiro não gostou de deixar Miya viajar sozinha. Contudo, o convite partira de Aiko e ele não soube como recusar. Até porque, reconhecia, era importante para ela adquirir independência, ver e viver coisas além daquelas que ele fornecia.

Aiko prometera que a menina se divertiria muito e ele, enfim, concordou. Com o coração sangrando, arrumou a mala e evitou o choro quando ela se despediu.

Contudo, quando a noite chegou e o lugar na mesa ficou vazio, ele entrou em desespero e só foi acalmado por uma curta ligação que Ryo fez para Sakamoto, a fim de que ouvisse a voz da filha.

Assim, dormiu um pouco mais tranquilo. Na manhã do dia seguinte, levantou-se mais animado. Percebeu que, afinal de contas, passear na casa dos tios fazia parte da vida familiar de qualquer criança, e era isso que, finalmente, ele estava disponibilizando a ela: uma vida normal.

Ryo já havia se levantado. Ele sempre acordava cedo para ir trabalhar. Como, pela hora, Satoshi devia estar tomando café da manhã, arrumou-se rapidamente e foi em direção à sala de jantar, desejoso de lhe dar um beijo, antes do amado sair.

— Eu vou me casar — ouviu a voz, ainda do corredor.

Repentinamente, tudo parecia igual aos anos que ficaram para trás.

Estava no mesmo lugar que, outrora, ouvira Ryo contando a Tadao do noivado com a filha de algum comerciante amigo. Soube, ali, entre aquelas paredes, o que Ryo pensava dele, e de como planejava enviá-lo para Aiko, que havia perdido tudo nos bombardeios.

O coração doeu e a boca secou. As pernas travaram e ele permaneceu estático, mal conseguindo respirar.

— É mesmo? — O tom de Tadao pareceu animado, diferente do antigo.

— Shiro não quer, acha polêmico e acredita que possa prejudicar Miya. Mas será algo privado, apenas para nossos amigos. Falei com Miya e ela adorou a ideia.

— E como estão aqueles grupos que você está financiando para que a união estável entre pessoas do mesmo sexo seja aprovado no parlamento?

Ouviu o suspiro resignado.

— Talvez haja um dia que amar alguém como eu amo Shiro não seja um erro tão grande aos olhos da sociedade. Infelizmente, não será na nossa geração. — Depois, um riso frouxo. — Mas se aprovarem em qualquer lugar do mundo, enfiarei Shiro dentro de um avião na mesma hora e vamos para lá.

As palavras, enfim, pareceram trazer novamente ar aos pulmões de Kazue. Ele quase riu, mas as lágrimas de alívio despencaram antes da risada chegar aos lábios. Secando-as rapidamente, voltou a caminhar, entrando na sala de jantar onde Ryo lanchava.

Após o cumprimento habitual, Tadao deixou discretamente o ambiente. Shiro voltou-se para o amante e sorriu, sem conseguir esconder a felicidade.

— O que foi? — as sobrancelhas de Ryo ergueram-se, inquisidoras.

— Você voltará para casa cedo hoje?

— Tenho uma reunião mais tarde...

— Cancele — pediu. — Preciso que volte cedo.

Ryo mordeu o pão, enquanto tentava decifrar o que havia de especial naqueles olhos negros.

— Está bem — concordou, por fim.

Antes de sair, ainda recebeu um doce beijo nos lábios, promessa de muitas delícias.


***


Ryo Satoshi entrou na sua residência estranhando ser recebido pela escuridão e o silêncio. Afinal de contas, desde que sua família voltara para ele, aquela casa estava sempre repleta de sons e iluminação.

Largou a pasta negra com documentos em cima do sofá, e foi em busca de Shiro. Enquanto retirava o casaco e afrouxava a gravata, ele pensou no fornecedor que pareceu irritado pelo cancelamento da reunião. Contudo, a prioridade era sempre Shiromiya. Então, pouco se importou pelo tom raivoso e desligou o telefone sem pestanejar.

— Shiro! — gritou, buscando-o em cada canto.

Seguiu até o quarto. A escuridão também se fazia presente ali, e ele ligou o abajur enquanto atirava o casaco sobre a cama, e abria a camisa.

Não se enervou por Kazue ter sumido, pois o amante poderia estar apenas colocando as galinhas para dormir. Porém, antes de voltar-se para o banheiro, para tomar uma ducha, ouviu o som melodioso de um koto .

Só então notou que o toca-discos havia sido ligado.

Girou todo o corpo em direção ao som, quando percebeu Shiro, de quimono floral, parado estrategicamente nas sombras, ao lado da cortina.

— Kazue... — murmurou.

Conforme o som foi aumentando, os passos de Shiromiya vieram em sua direção. Seu corpo seguia o ritmo cadenciado, e Ryo perdeu as forças. Sentou-se na cama, num misto de excitação e saudosismo.

Sempre sonhou que ele dançasse para ele... apenas para ele.

Enquanto a música prosseguia, reconheceu os passos perfeitos da antiga falsa gueixa de Aiko. Ali, estava ela. Sem a maquiagem excessiva, sem a peruca, e sem a compostura feminina. Era um homem dançando para ele e era o homem que ele amava.

Sorriu quando o ritmo aumentou. Era quase como fazer amor com os olhos. Shiro sempre conseguiu mover as mãos e os pés de uma forma completamente oposta, algo que só os melhores saberiam fazer.

Naquele momento, as ancas moveram como se estivessem sendo invadidas e Ryo se inflamou.

Antes mesmo da música se findar, ele já avançava contra o outro, puxando-o para si, agarrando seus cabelos, lambendo cada pedaço de pele que encontrou pelo caminho.

— Você é — murmurou, contra os lábios do outro — a pessoa mais perfeita que Kami-sama já criou.

Shiromiya riu.

— E ele criou você especialmente para mim — pareceu extasiado pelas palavras. — Sou muito afortunado, Kazue — afirmou.

— É mesmo — o outro gargalhou, concordando.

Encararam-se. Repentinamente, em silêncio.

— Diga que me ama — Ryo mandou.

— Novamente? Falo isso todos os dias.

— Sempre — retrucou. — Quero ouvir sempre.

O sorriso bonito voltou, ainda mais firme.

— Então faça por merecer as palavras — provocou, esfregando o quadril na elevação abaixo do ventre.

No final daquela noite, Shiromiya havia confessado tantas vezes seu amor, que Ryo achou provável que as palavras jamais findariam.

Quando dormiram, aconchegaram-se um no outro.

Na linha do destino, os deuses sorriram perante sua façanha. Aquelas duas almas gêmeas, destinadas a ficarem juntas, haviam enfim se encontrado. Era uma busca que se finalizava. Havia outras a se cumprir.

Os ciclos da vida nunca terminavam.

 

 

 

Epílogo

Ano 2000.

Sapporo, Japão.


O bonito rapaz de pele escura e olhos orientais amendoados bebericou o champanhe enquanto encarava a infinidade de porta-retratos em cima de um piano de cauda que lá estava apenas para adorno.

Não percebeu a aproximação da mulher de quase sessenta anos, mas adorou a sensação que teve, quando ela o cercou com os braços e o apertou.

— Mãe — murmurou. — Feliz ano novo.

O primeiro dia do ano de dois mil iniciava-se sem o apocalipse prometido pelos muitos religiosos que assim temiam. Aliás, senão as comemorações, aquela entrada de ano era bastante parecida com as demais noites.

Naquela casa, ele, Kazue Ryo Sakamoto, com sua mãe, Miya Shiromiya Ryo, e com seu avô, Satoshi Ryo, faziam companhia um ao outro, enquanto sorriam e contavam histórias de como a vida prosseguia.

Kazue administrava as muitas empresas da família. Eram tantas, que muitas vezes ele desejava largar tudo de mão e fugir para uma ilha deserta. Contudo, sabia que era responsável pela herança do pai – hotéis e uma rede de livraria – e da mãe – mais hotéis e fábricas. Foi preparado desde criança para aquela função e a cumpriria. Era um legado que o orgulhava.

— O que está olhando? — a mãe questionou, encarando as fotos.

— As lembranças de nossa família— ele murmurou. — Meus avôs, meu pai... Temos tanto a contar.

Ela sorriu.

— Sim, temos uma história grandiosa. Nossa família sobreviveu a muitas coisas, e hoje você herda tudo isso. Deve se sentir honrado.

— Sim, mãe — ele assentiu. — Eu me sinto. — Depois, volveu-se para ela. — Gostaria muito de ter conhecido meu avô, Kazue Shiromiya— apontou a foto. — Céus, como ele era bonito. Não é à toa que vovô Satoshi se assumiu gay por causa dele.

Miya gargalhou.

— A beleza era a menor das suas qualidades. Papa era doce, gentil, maravilhoso — sentiu os olhos úmidos, mas afastou as lágrimas. — Ele me salvou de todas as formas que uma pessoa pode ser salva por outra.

No começo do ano de 1960, Miya foi declarada oficialmente curada de sua doença. Feliz, ganhou – a contragosto de Ryo – uma viagem para assistir a um show do ídolo Elvis, nos Estados Unidos.

Shiro a acompanhou. Lembrava-se alegre, daquele momento a sós com o pai. Aliás, todos os momentos ao lado do papa foram incríveis. Ele sempre parecia entendê-la de uma forma que ninguém mais o faria.

Acariciando os cabelos do filho, lamentou que Shiro não pudera conhecer o neto. Miya estava grávida quando o pai morreu. Lembrou-se de acordar aos prantos de manhã, sem saber exatamente o porquê. O marido surgiu alguns minutos depois, com o telefone em mãos.

Ryo Satoshi encontrou o companheiro morto na cama, durante uma manhã fria de inverno. Foi um ataque cardíaco fulminante, explicara o médico. Ele tinha quarenta e cinco anos, e permanecia jovem. Estranhamente, tornou-se jovem para sempre.

Depois disso, ela mudou-se para a casa do pai. O marido, compreensivo, entendeu a situação, e aceitou aquele pedido. Até porque, se eles não o fizessem, Ryo não teria forças para prosseguir. Foi o nascimento do neto, sete meses depois, que renasceu uma réstia de luz no comerciante e empresário, mas nada que se assemelhasse ao Satoshi Ryo de antes.

“ Depois de tudo que eu fiz ” Ryo lhe explicara, certa vez, “ era justo que Kami-sama me punisse ”.

Miya queria dizer ao papai que Kami não punia ninguém, e que a vida era repleta de momentos como aquele. Mas respeitou sua dor, e tudo que fez foi abraçá-lo enquanto permanecia ao seu lado.

— Perder um pai é algo que dói muito, não é, mãe? — o filho comentou, notando seu olhar lacrimejante.

A mulher respirou fundo, respeitosamente.

Assim como ela, Kazue também perdera seu pai muito cedo. Rapidamente, relembrou de como a vida a uniu ao seu único amor romântico.

Aiko Mamoru, tão logo Shin saiu da prisão, em 1951, ficou obcecado pela ideia de ter um filho. Desejoso de fazer a vontade do amado, Shin tentou adotar uma criança nos inúmeros abrigos que foram criados pós-guerra.

Porém, a cada negativa, Aiko parecia morrer aos poucos. Na última vez que tentaram, uma das assistentes sociais lhes perguntou diretamente o que dois gays iriam querer com uma criança. Era uma cruel indicação de que jamais teriam um pequeno nos braços.

Ao voltarem para casa, Mamoru rumou reto escadarias acima, e Shin o seguiu pouco depois. Encontrou-o chorando, segurando um urso de pelúcia no quarto que haviam montado para receber a criança.

Depois daquilo, o ex-cortesão tentou convencer Shin a dormir com uma mulher e engravidá-la. A descabida ideia causou uma séria ruptura no relacionamento leal deles. Shin se sentia traído pela falta de ciúmes de Mamoru e, este, não o perdoava pela recusa.

Durante um jantar na casa de Jiro e Daniel, Mamoru disse, em tom alto, surpreendendo a todos:

“ Para dormir com putas quando mais novo, você não tinha tanto pudor ”.

Shin atirou os talheres em cima do prato e foi embora.

Ficaram separados por dois meses. Por fim, Sakamoto o procurou e, após uma conversa séria, decidiram desistir da ideia e reconhecer que a vida deles não seria como sonhavam. Para cicatrizar as feridas, Shin o convidou para uma viagem. Aiko nunca havia saído do país, e gostou da ideia.

“ Brasil ”, Shin afirmou. “ Temos uma enorme colônia japonesa lá ”.

Parecia assustador ir para tão longe, mas Aiko precisava respirar outros ares. E, de fato, ficou fascinado com o que viu. Um lugar bonito, cheio de verde e de uma cultura riquíssima. Contudo, a viagem mostrou-se mais proveitosa do que planejada.

Durante a visita em uma igreja histórica no Rio de Janeiro, o imprevisto de um roubo por uma criança os levou à delegacia. Enquanto Shin, num inglês impecável, reclamava com a polícia sobre aquele moleque tê-lo furtado, a criança, que foi capturada pouco depois, mantinha a cabeça baixa, sentada num sofá alheio.

Com os olhos fixos nele, Aiko percebeu a fome e a dor em seus olhos.

“ Como se chama? ” — perguntou, em japonês.

O menino o encarou assustado, sem entendê-lo. O intérprete que servia de guia traduziu a frase, e então ele ouviu a voz infantil.

“ Ele se chama João ”, falou o guia.

“ Que idade tem? ”

Mais uma troca de palavras adiante.

“ Tem onze ”.

“ Por que nos roubou? Ele não tem pais para sustentá-lo? ”

A criança ficou cabisbaixa ao responder ao homem.

“ Disse que a mãe morreu e o pai o largou nas ruas ”.

Algo dentro de Aiko explodiu naquele momento. Levantou-se do sofá e foi até Sakamoto. Ouviu a negativa cerca de cinco vezes, mas, ríspido, disse que não sairia dali sem o menino.

“ Ele nem é japonês! ” Shin argumentou como pôde.

“ Eu quero um filho. Ele não tem pai. Eu quero aquele menino, Sakamoto, e se você não mover céus e terra para dá-lo para mim, nunca mais olharei na sua cara! ”.

A chantagem teve efeito. As leis brasileiras poderiam ser facilmente manipuláveis por suborno, ele percebeu. Ao retornarem para sua casa em Tóquio, eles trouxeram consigo um garoto de pele escura e olhos assustados.

Não foi fácil, de início. Além da dificuldade com o idioma – vencida com a ajuda de vários interpretes e professores –, o garoto parecia escandalizado com o fato de ter dois pais. Certa vez, disse a Aiko que queria ir embora, fazendo-o chorar por dias. Em outra oportunidade, fugiu e ficou desaparecido por várias horas, enquanto Sakamoto colocava inúmeros membros da guarda real a sua captura.

Mas o amor costuma vencer todas as barreiras e um dia durante o café da manhã, Mamoru ouviu algo tão sonhado:

“ Pai, me alcança a manteiga? ”.

Shin, no canto da mesa, sequer conseguia respirar, enquanto as batidas do coração tornaram-se frenéticas. Porém, Mamoru nunca foi comedido, e logo abraçava o filho, enchendo-o de beijos.

O resto da família pareceu aceitar bem aquela adoção. Especialmente Miya. O primo tornou-se o melhor amigo para suas traquinagens e, conforme ela foi crescendo, tornou-se também o cúmplice no amor.

Ambos se apaixonaram praticamente ao mesmo tempo e descobriram juntos as dores e as alegrias do primeiro amor.

João e Miya casaram-se numa manhã de primavera. Ela foi levada ao altar pelos dois pais, que mal conseguiram conter as lágrimas. Tiveram uma vida boa e calma. Mas um câncer o levou de seus braços.

De certa forma, Miya pensou, João teve sorte, assim não viu os dois pais partindo em um acidente de carro.

O acidente foi mais uma das surpresas da vida. Teve outras, como o tio Jiro morrendo, aos setenta anos, sentado na sede da sua rede de livrarias, segurando um livro. Foi ela que o encontrou, ali e chorou por várias horas, abraçada a ele, enquanto a secretária mandava avisar ao tio Daniel o ocorrido.

Enfim, era isso, a vida. Shin Sakamoto sempre a alertou do fato. Viver os dias que temos com honra, para não ter arrependimentos. Ela sempre meditou na frase e prometeu a si mesma cumpri-la enquanto vivesse.

— Vou ver seu avô — avisou, afastando-se.

Satoshi Ryo estava sentado em sua cadeira de rodas. Aos oitenta anos, ele ainda tinha lucidez de mente, mas o corpo cobrou pelas noitadas de bebedeira da juventude.

O homem estava no jardim, observando ao longe o ar calmo da noite. Sorriu ao sentir o perfume da filha.

— Quer ir descansar, papai? — ela indagou, sentando-se ao seu lado.

Ryo a olhou.

— Você está com quase sessenta anos e não tem rugas, Miya. Como pode ser tão linda?

O elogio vindo do nada a fez gargalhar.

— São seus olhos que sempre vêem o melhor de mim — devolveu.

O velho sorriu.

— E meu neto?

— Na sala, olhando os porta-retratos. Falávamos de papa.

Ryo assentiu.

— Eu te amo, filha — a confissão foi inesperada, mas bem recebida.

— Eu também.

Ryo Satoshi olhou para frente. Ao longe, os canis e os gatis de Miya pareciam misturar-se à vegetação. A filha adorava árvores e a natureza. Havia transformado toda aquela enorme área em uma floresta nativa.

Miya seguiu seu olhar. A escuridão reinante era quebrada pelos flashes restantes de luz dos bonitos postes de iluminação decorativo do jardim.

Foi quanto notou a figura ao lado de uma das árvores. Vestido com um lindo quimono branco de flores vermelhas, ele estava tão bonito como sempre.

Seu papa... Seu Shiro.

Ele sorriu, e Miya sorriu em troca, sentindo um soluço escapar dos lábios. O coração batia tão apressado, que mal conseguia raciocinar, quanto mais se mover.

Foi então que viu seu pai Satoshi, jovem, aproximando-se daquela figura. Eles trocaram um beijo e deram as mãos. O rosto do papa voltou-se mais uma vez para ela, e então tudo desapareceu.

Kazue encontrou a mãe com o rosto lavado pelas lágrimas ao lado do corpo do avô. Sentiu o pranto também tomá-lo, mas a mãe o conteve com um sorriso e um abraço.

— Não chore — ela pediu. —A vida deu aos meus pais um final feliz.

 

 

 

[1] Cidade fictícia.
[2] Branca de Neve é um conto de fadas originário da tradição oral alemã.
[3] Tradução: idiota, bobo.
[4] Tradução: tolo, imbecil.
[5] Tradução: preguiçoso.
[6] Tradução: mulher feia.
[7] Mafia japonesa.
[8] Tipo de macarrão japonês.
[9] Os kanji são caracteres da língua japonesa.
[10] Perdoe-me.
[11] Tratamento pejorativo dado a estrangeiros.
[12] Obrigado pela refeição.
[13] Criada em julho de 1950, a Reserva Nacional de Polícia, consistia de uma infantaria leve formada por 75.000 homens.
[14] Idiota.
[15] Imbecil.
[16] Ano Novo.
[17] Quimono casual feito de algodão muito suave e sem forro, com o detalhe da faixa larga.
[18] Vovó.
[19] De acordo com os ensinamentos budistas, diz-se que os homens possuem 108 pecados ou desejos mundanos (indecisão, sofrimento e/ou preocupação). A cada balada, será retirado um pecado ou um desejo mundano (estado mental patológico, que nos levam à gerar ações negativas e que resultam no sofrimento) e receber a entrada do Ano Novo. Fonte - suri-emu.co.jp
[20] Saudação de final de ano. Equivale a um “feliz ano novo”.
[21] Tratamento designado aos educadores.
[22] Tradução: tio.
[23] No Canadá a união homossexual se tornou legal em 1969.

 

 

                                                                  Josiane da Veiga

 

 

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